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E CO E N ARCISO
leituras de um mito

AUTORES E TEXTOS DA ANTIGUIDADE

seguidos de uma

Antologia de Autores Portugueses


ou de Língua Portuguesa

Organização de
Abel N. Pena
Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Investigador do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa

Cotovia
Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa

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Este livro é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a
Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UID/ELT/00019/2013.

Título: Eco e Narciso, leituras de um mito

© Dos Autores e de Edições Cotovia, Lda. Lisboa 2017


© Centro de Estudos Clássicos, Lisboa, 2017

Todos os direitos reservados.

ISBN 978-972-795-382-0
ISBN 978-972-9376-45-0

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Índice

Préfácio de Abel N. Pena p. 9


Introdução de Nereida Villagra 15

TEXTOS E FONTES DA ANTIGUIDADE

Cónon, Diegeseis 24, trad. do grego de Rui Carlos Fonseca 35


Papiro Oxirrinco (P. Oxy.) 69.4711, trad. do grego
de Rui Carlos Fonseca 36
Filóstrato, o Velho: Narciso, Imagens 1, 23, trad. do grego
de Eduardo Ganilho 38
Calístrato, o Sofista: À estátua de Narciso, Descrições 5,
trad. do grego de Eduardo Ganilho 41
Pausânias, Descrição da Grécia 9.31.7-9, trad. do grego de Rui
Carlos Fonseca 43
Longo, Dáfnis e Cloe 3.22-23, trad. do grego de Rui Carlos Fonseca 45
Severo de Alexandria, Narciso, trad. do grego de Nereida Villagra 47
Nono de Panópolis, Dionisíacas 48.570-589, trad. do grego
de Rui Carlos Fonseca 48
Antologia Palatina 11.76, trad. do grego de Nereida Villagra 50
Antologia Palatina 9.27, trad. do grego de Rui Carlos Fonseca 51
Ovídio, Metamorfoses 3.339-510, trad. do latim de Paulo Farmhouse
Alberto 52
Primeiro Mitógrafo do Vaticano II. 83, trad. do latim de Maria Luísa
Resende 58

ANTOLOGIA DE AUTORES PORTUGUESES OU DE LÍNGUA PORTUGUESA

1. Do Renascimento ao Barroco.
Selecção e organização de Ana Filipa Gomes Ferreira

Cancioneiro Geral de Garcia de Resende 63


Luís Vaz de Camões 66

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Diogo Bernardes 73
Gregório Silvestre 75
Jerónimo Corte Real 78
Pedro de Andrade Caminha 79
Manuel de Faria e Sousa 80
D. Francisco de Portugal 85
Vasco Mousinho de Quevedo e Castelo Branco 86
Manuel da Veiga Tagarro 87
Jacinto Freire de Andrade 89
Francisco de Vasconcelos Coutinho 93
Bibliografia activa 94

2. Do século XVIII ao século XXI.


Selecção e organização de Ricardo Nobre

Soror Maria do Céu 97


Manuel Maria Barbosa du Bocage 98
António Feliciano de Castilho 99
António do C. Ferreira de Simas 113
Luís de Montalvor 115
José Régio 120
Fernando Pessoa 121
Eugénio de Andrade 123
Irene Lisboa 126
Sebastião da Gama 129
Alberto de Lacerda 130
Sophia de Mello Breyner Andresen 131
Miguel Torga 132
José Gomes Ferreira 134
João Maia 135
Fernando Guimarães 136
David Mourão-Ferreira 137
Jorge de Sena 138
Ruy Cinatti 139
Nuno Júdice 140
Ricardo Marques 142

Jordi Pàmias, Narcís i l’altre, selecção e tradução de Nereida


Villagra 143

BIBLIOGRAFIA 149

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Prefácio

Dando continuidade à colecção iniciada com Hero e Leandro, o Cen-


tro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lis-
boa apresenta mais uma publicação dedicada desta vez ao mito de Eco e
Narciso. Oferecendo aos leitores textos originais traduzidos em língua
portuguesa, pretende-se desde logo contribuir para o conhecimento, o
estudo ou a simples leitura de um mito que tanto tem marcado a cultura,
a literatura e as diversas formas de expressão do imaginário ocidental.
Precedida de uma introdução crítica e fundamentada que escrutina
até ao pormenor não só as fontes mitográficas de Eco e Narciso, como a
sua leitura e recepção literária desde o século I a.C ao final da Antiguidade,
reúnem-se na primeira parte do volume os testemunhos literários gregos
e latinos até agora conhecidos do mito. As traduções integrais dos textos,
despidas propositadamente de aparato crítico e de notas suplementares,
são, na sua maioria, inéditas em português e foram levadas a bom termo
por investigadores do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras
de Lisboa. Numa segunda parte apresentam-se duas antologias bem repre-
sentativas do esplendor do mito de Eco e Narciso na riquíssima literatura
portuguesa desde o século XVI ao século XXI.1 Desse trabalho se ocuparam
com acribia dois especialistas da recepção da literatura clássica na litera-
tura portuguesa. A finalizar o volume, um conjunto de textos do poeta e
filólogo catalão Jordi Pàmias, Narcís i l’altre, com selecção e tradução de

1 A presença de Narciso na poesia do século XX é assinalável. No entanto, por razões

que afectam a organização do volume, não foi possível incluir na antologia todos os auto-
res e textos que desejaríamos.

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10 ECO E NARCISO

Nereida Villagra, da Universidade Autònoma de Barcelona e actualmente


investigadora do Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa.
O leitor mais exigente pode ainda consultar uma expressiva, ainda que
não exaustiva, bibliografia sobre Eco e Narciso.

Atendendo à singularidade deste mito, uma breve análise das fontes


antigas mostra que os primeiros testemunhos literários, gregos e latinos,
datam do século I a.C., época de Augusto; mostram também que os textos
gregos são, na sua essência, epítomes em prosa e de carácter fragmentário
e que Narciso é uma figura estranha à cultura grega da época clássica e
helenística.
Como explicar o silêncio quase total da poesia e do pensamento espe-
culativo grego sobre o mito e o seu ressurgimento súbito na época impe-
rial? Embora a história deste mito compreenda três mitemas axiais e
indeléveis (paixão, morte e metamorfose), Eco e Narciso configuram um
par atípico no panorama mitogenético clássico. Com efeito, o mito não
entronca em nenhuma tradição estético-literária relevante nem nunca terá
feito parte da paideia grega como tantos outros. 2 Não inspirou os poetas
trágicos; não suscitou reflexão entre os filósofos pré-socráticos, nem em
Platão ou Aristóteles; não chamou a atenção dos poetas helenísticos, como
Calímaco ou Teócrito, nem dos poetae noui latinos como Catulo ou Pro-
pércio, nem dele constam registos mitográficos sólidos da época helenís-
tica. Tudo isto, e o facto de as primeiras versões gregas serem tardias e em
prosa explicam talvez a sua pouca expressão literária. Na retórica literária
antiga, como é sabido, a prosa era uma modalidade de expressão bastante
descreditada que nunca foi objecto de teorização equivalente ao genus
sublime da poesia, nem nunca alcançou nas academias a aura de outros
géneros literários.3 Por outro lado, o próprio nome de Narciso apresenta
uma etimologia oscilante e nebulosa. As variantes etimológicas do grego
Nárkissos permitem associá-lo à raiz narx — o que fascina e entorpece —,
mas a origem do nome deve ser muito antiga, talvez pré-helénica como

2
Cf., Introdução, p. 17 e sg.
3
Estrabão, I, 2.6 e Plutarco, De Pyth. Orac. 406e referem-se à prosa como uma
linguagem «chã», de «pés assentes na terra», por oposição à linguagem nobre e elevada
da poesia épica e da tragédia.

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PREFÁCIO 11

indica o sufixo —(i)ssos, podendo remontar ao micénico (cf. Kupárissos)


ou mesmo à mitologia fitomórfica minóico-cretense. Incorporado aos
mitos da metamorfose vegetal, ou associado ao grupo dos belos e ‘venci-
dos’ adolescentes, Narciso, tal como Adónis ou Jacinto — a flor de jacinto
do Hino Homérico a Deméter —, podem ter sido apenas nomes de heróis
transformados em flores que rejuvenescem cada primavera.4 A flor de
Narciso exala um intenso perfume, um perfume semelhante ao que emana
o fruto que Deméter utiliza para atrair Plutão e arrancar aos infernos a
filha Prosérpina. No comentário às Éclogas de Virgílio, Sérvio conta como
Papavero (papaver rhoeas, papaver somniferum), o jovem amado por
Deméter, morre tão tragicamente e do seu sangue nasce a papoila-
-dormideira — um dos atributos da deusa — que a desolada Deméter
utilizará como narcótico para apaziguar as suas mágoas, insónias e pesa-
delos nocturnos.5
Refere Pausânias que Panfo, um poeta pré-homérico, terá sido o
primeiro a contar a história da flor de narciso. Alguns pensam tratar-se
de um poeta helenístico, mas dele nada sabemos ao certo. Tem sido
invocado que a primeira referência a Narciso é o Hino Homérico a Demé-
ter (séc. VII a.C.). Contudo, nada de substancial se pode inferir de uma
vaga alusão eponímica do poeta à flor de Narciso (vv.6-8). Na tradição
grega, os testemunhos literários mais antigos datam do século primeiro,
com as Diegeseis ou Narrationes de Cónon, contemporâneo do impera-
dor Augusto.6 Na tradição latina, foi preciso esperar pela versão poética
de Ovídio para ver o mito ascender a verdadeiro paradigma da cultura
ocidental. O poeta augustano coloca Narciso no grupo dos rapazes caça-
dores, impondo-se nas Metamorfoses como instrumento de evasão ini-
ciática, simbólica e catóptrica7. De facto, as primeiras versões gregas e
latinas do mito coincidem com a divulgação dos tratados euclidianos

4 G. Mathieu-Castellani (2012), Narcisse ou le sang des fleurs: les mythes de la

métamorphose végétale à la Renaissance française. Les Seuils de la Modernité 15. Génève.


Sobre os mitos da metamorfose vegetal, atente-se nos nomes de Adónis, Aneto, Jacinto, Átis.
5 Maurus Servius Honoratus (1881), Commentary on the Eclogues of Vergil, II, 47,

ed. Georgius Thilo, Leipzig. B. G. Teubner.


6 Veja-se Introdução, p. 18.
7 Sobre o assunto, veja-se F. Frontisi-Ducroux, Jean-Pierre Vernant (1997), Dans

l'oeil du miroir. Paris.

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12 ECO E NARCISO

sobre catóptrica. Directa ou indirectamente relacionado com esta pro-


blemática, o uso do espelho é uma prática generalizada, reflectindo as
grandes transformações da sociedade augustana no que respeita, entre
outros aspectos, aos padrões de beleza e ao consumo de exóticos cos-
méticos. A própria iconografia imperial inspira-se não apenas em pro-
tótipos e cópias helenísticas mais ou menos idealizadas, mas no conceito
de ‘self-representation’, privilégio de uma civilização que sublima a ima-
gem e o espelho, não só como objecto demasiado civilizado, manipulável
e geométrico,8 mas como forma de arte. E a arte da Antiguidade não foi
insensível ao mito de Narciso, como o não foi a do Renascimento cuja
genialidade explora abundantemente os temas da caça, da nudez e do
espelho como elementos iconográficos mais libertos de preconceitos
morais, mas ainda assim presos à vanitas medieval.9 Na arte romana, são
significativas as representações pictóricas, essencialmente murais, que
se encontram nas cidades de Herculano e Pompeios ou na casa de Dio-
niso em Pafos (Chipre). No século II d.C., surge um dos mais importan-
tes e complexos fenómenos culturais que dominou o mundo greco-romano
até ao século IV: a Segunda Sofística, cujo nome se deve a Flávio Filós-
trato (165-245).10 Os Sofistas criaram também eles uma imagem de apa-
rato e teatralidade inspirados no poder da auto-imagem do filósofo
extravagante que irradia sabedoria como os reflexos do sol. O seu influxo
na sociedade imperial foi culturalmente determinante.
Narciso tem sido associado à ideia de encantamento e de beleza trá-
gica. Na mitologia grega, muitos jovens foram amados e raptados devido
à sua beleza, tal Ganimedes ou Hilas. Mas o conceito de beleza é anterior
a qualquer um deles. Tal como o banho e a higiene, a beleza é um dos
grandes padrões estéticos das sociedades. Deve-se a Homero a exaltação
poética dos ideais de beleza que passam pela higiene frequentemente femi-
nina, e cuja mentora é, como o nome indica, Higeia, uma das filhas de

8
G. Bachelard (1987), L’eau et les rêves, (ed. 21e), p. 32.
9
Afrodite e Narciso, embora em planos diferentes, estão ambos ligados ao amor, à
beleza e à imagem reflectida no espelho (katoptron). O motivo inspirou muitos pintores
renascentistas. Cf. Toilette de Vénus, anónimo, 1550; Narciso de Caravaggio (1579-1599);
Eco e Narciso de Poussin (1650); Metamorfose de Narciso de Salvador Dali.
10 Veja-se neste mesmo volume o texto de Filóstrato, Narciso, Imagens I, 23, pp. 38-40.

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PREFÁCIO 13

Asclépio. Com Homero, a beleza ascende a paradigma e a valor ideal, um


dos elementos mais peculiares da paideia grega.11
Os neoplatónicos, cujo maior representante foi Plotino (séc. III d.C),
viram em Narciso um erro metafísico, a deificação da beleza física e tan-
gível em detrimento da beleza inteligível e divina.12 Na Idade Média, as
noções de beleza assentam num frágil equilíbrio entre a higiene profilática
do banho e as virtudes de uma beleza natural perfumada de cauto ero-
tismo. Surpreendentemente, porém, a Idade Média consagra três impor-
tantes obras ao mito: Le Lai de Narcisse (anónimo séc. XII), Le Roman de
la Rose de Guillaume de Lorris e Le livre des eschez amoureux moralisés
de Evrart de Conty.13 Fora do âmbito poético, Alexandre Neckam (1157-
-1217) é talvez o primeiro letrado (grammaticus) medieval a fazer uma
leitura alegórica do mito de Narciso.14 Publicado uns anos antes do Oví-
dio moralizado, o enciclopedista medieval mistura, no seu De Naturis
rerum, ciência médica, acústica e figuras mitológicas herdadas dos poetas
latinos. O interesse pela problemática do corpo e da voz leva-o ao estudo
das duas personagens do mito: Eco representaria no plano sonoro o que
Narciso representaria no plano visual. Eco explica o fenómeno do eco, o
ar que repercute as últimas sílabas pronunciadas; Narciso é beleza, con-
templação da sua própria imagem e vanglória (inanis gloria). Assim, Nar-
ciso e Eco são figuras do corpo, de um corpo cuja beleza é uma ilusão
impossível de esquecer.15 Funde-se, pois, Narciso nos mistérios da beleza,
enquanto a ninfa Eco mais parece uma figura ‘acessória’ ao mito, um aition
ou explicação poética da voz que não obtém resposta. Naturalmente, Eco
não se esgota na etiologia da voz e do eco, nem na soberba fórmula da

11 Homero é o primeiro a falar de uma kosmetikê technê, Il. 14, 170-220.


12 Plotino, 1960, I, VI, 8. Sobre o assunto, Paul Hadot (1976), «Le mythe de Narcisse

et son interprétation par Plotin», Nouvelle Revue de Pyschanalyse, 13, 81-108.


13 Alina Daniela Marinescu, «Les métamorphoses textuelles du mythe de Narcisse

dans le moyen âge français: Mise en abyme, parodie et commentaire», Carnets V,


Métamorphoses Littéraires, mai 2013, 51-61 http://carnets.web.ua.pt/.
14 De autor anónimo talvez originário do Centro de França ou da Borgonha. Ovide

moralisé é uma tradução do início século XIV constituída por 72000 octossílabos adaptados
das Metamorfoses e, em parte, das Heróides de Ovídio. Sob um fundo cristão, o autor
apresenta três propostas interpretativas dos mitos: etiológica, evemerista e anagógica.
15 Cf. Frank Collin, «Narcisse, Tirésias et Orphée. Un regard moralisé sur le coprs

chez Alexandre Neckam» (2015), Anabases 22, 149-166.

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14 ECO E NARCISO

derradeira despedida ovidiana, «Vale», ‘Adeus!’. Mas se um dos critérios


principais do mito é a sua função etiológica, como André Jolles (1874-
-1946) e Mircea Eliade defendem, então Eco e Narciso são um bom exem-
plo dessa função no imaginário antigo e medieval. Enfim, entre o Ovídio
moralizado e a poética do amor cortês é, porém, Bocácio quem condensa
em provérbio moralizante muitos dos receios e anseios do pensamento
medieval: ‘Se queres viver feliz, nunca te olhes ao espelho’ (Decameron 6,8).

«Espelho meu, espelho meu…». Quando as borbulhas aparecem e


os primeiros sinais de puberdade despontam, o jovem busca no espelho
opaco ou luzidio um remédio para os mistérios do crescimento. Mas mor-
rer na contemplação dos seus argênteos reflexos é outra tragédia. Detenha-
-se o leitor por instantes na esfera de Platão e verá que, como na imagem
da caverna, Narciso passa de imagem produzida a imagem produtora ou
fundadora do olhar e de toda a actividade reflexiva. Protótipo da adoles-
cência, descoberta do auto-conhecimento, imagem janiforme presa à sua
própria imagem, Narciso crê que o reflexo que vê na fonte é uma imagem
suprema, viva e real, como se, não ele, mas a fonte, o lago ou o espelho
estivessem sedentos da sua própria beleza. Narcisismo ou inanis gloria?
Entre o espelho e o diverso, é, porém, no imaginário da modernidade que
o mito assume novas dimensões e significados tanto na busca do sublime
dionisíaco e apolíneo como no próprio conceito de sublimação no con-
texto da psicanálise.
Em suma, o facto de o mito se ter transformado numa espécie de
adynaton, isto é, de impossibilidade, cujo conturbado e trágico desfecho
tem sido negar-se e afirmar-se a si próprio ao longo dos tempos, pode
explicar o esplendor e o eclipse esporádico de Eco e Narciso em determi-
nadas épocas, períodos e sociedades. E se Narciso inspirou Ovídio,
Shakespeare, Oscar Wilde ou Paul Valéry, também entre nós inspirou
Camões, Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade e tantos outros poetas
portugueses cuja antologia se apresenta neste volume.

ABEL N. PENA
Univ. Lisboa — CEC

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Introdução

1. O mito no mundo antigo e a sua transmissão

No mundo ocidental, os mitos greco-romanos têm sido usados como


fonte de inspiração por escritores e artistas de todas as épocas, de tal
modo que a mitologia, entendida como o corpus de ‘mitos’ da Antigui-
dade, é um dos elementos da civilização clássica que maior impacto tem
tido na cultura europeia. Com efeito, o estudo da recepção dos mitos
greco-romanos nas diferentes literaturas europeias constitui um dos cam-
pos de estudo e de investigação mais pujantes e fecundos dos últimos
decénios.1
Mas o que é o mito? É difícil estabelecer uma definição que satisfaça
unanimemente todos os especialistas da matéria. No entanto, todos con-
cordam em admitir que, essencialmente, os mitos gregos eram narrativas
tradicionais. A noção de tradição é básica e definitiva para a compreen-
são da natureza destas histórias.2 Por ‘tradicionais’ referimo-nos ao facto
de serem conhecidas pelos membros de um grupo e transmitidas entre
eles por diferentes vias: nas representações de poemas épicos, corais ou
de tragédias, nas reuniões familiares ou no simpósio,3 nas pinturas de

1Uma visão de conjunto encontra-se no volume colectivo editado por Craig W.


Kallendorf (2011), A companion to Classical Tradition, Malden-Oxford. Revela-se
especialmente interessante o capítulo de Charles Martindale, «Reception», pp. 297ss.
Outra visão global encontra-se no livro, também colectivo, editado por Lorna Hardwick
e Christopher Stray (2011), A Companion to Classical Receptions, Malden-Oxford.
2 ‘Traditio’ no latim é um termo composto pelo prevérbio trans- e o verbo dare.
3 Momento posterior ao jantar em que se partilhava o vinho misturado com água.

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cerâmica ou na escultura, etc.4 Assim, os mitos eram histórias antigas,


partilhadas, e não fruto da invenção ou da originalidade de ninguém em
particular e, daí, não existir uma única versão do mito válida ou completa,
face a outras versões que podíamos considerar alteradas ou erradas.
O mito constituía uma tradição viva susceptível de ser modificada e
reinventada em cada uso ou em cada composição. Assim, os autores e
artistas que utilizavam a matéria mitológica para criar as suas obras, além
de disporem de diferentes tradições, contavam com a própria liberdade
de inovar, liberdade que lhes permitia oferecer versões surpreendentes
para um determinado público, ou apresentar o mito de modo a suscita-
rem uma reflexão sobre valores políticos e culturais, como no caso da
tragédia.
Na Antiguidade, o mito foi o alimento temático de grande parte das
criações artísticas e literárias. Com excepção da literatura científica, todos
os géneros literários (a épica, a lírica monódica e coral, a elegia, a tragédia,
a historiografia, a mitografia, a comédia, especialmente a nova, a novela,
a filosofia) incluíram em maior ou menor grau trechos míticos. A presença
massiva destas histórias, surpreendentes e inverosímeis até para os pró-
prios gregos, despertou o interesse de alguns autores que, já na própria
Antiguidade, coligiram em prosa os temas dos poemas épicos ou trágicos.
Na actualidade, estes autores são designados por mitógrafos. Acusilau de
Argos, Ferecides de Atenas ou Asclepíades de Trágilo, cujas obras se con-
servam fragmentariamente, são alguns destes autores. A Biblioteca de
Apolodoro, obra da qual conservamos três livros completos e resumos dos
restantes, é o exemplo canónico do género mitográfico.
Além da actividade compilatória, os próprios gregos começaram a
questionar-se sobre o valor destas narrativas enquanto relatos verídicos e
também enquanto documentos históricos. Assim, já no século IV a.C.,
conhecemos autores que interpretam os mitos de forma racionalista, como
Paléfato e Evémero. Paralelamente, surgiu a interpretação alegórica, que
procura nos mitos um significado profundo e oculto. A alegoria foi o modo
de interpretação do mito pagão mais divulgado durante a Idade Média

4
Para uma visão de conjunto sobre o uso dos mitos na sociedade grega antiga e o
seu contexto cf. Richard Buxton (1994), Imaginary Greece. The contexts of mythology,
Cambridge.

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INTRODUÇÃO 17

Cristã. Nos séculos posteriores, continuaram as escolas interpretativas


sobretudo alegóricas, simbolistas ou racionalistas. O século XX conheceu
um grande desenvolvimento do estudo do mito, impulsionado em parte
por outras disciplinas como a psiquiatria, a antropologia e a linguística.5
Surgem assim as escolas psicanalítica, ritualista e estruturalista, que cria-
ram diferentes e novos modelos interpretativos. No seio da escola francesa
estruturalista iniciou-se um debate, ainda em curso, em torno da própria
definição de mito. Segundo a escola de Paris, o mito não existia como
categoria de análise própria na Antiguidade, especialmente na cultura
grega da época arcaica e clássica. Ao contrário, o ‘mito’ seria um conceito
criado pelos estudiosos do século XVIII que abordavam o estudo da histó-
ria e da mitologia numa perspectiva racionalista. Marcel Detienne, um dos
principais representantes da escola de Paris, via em Platão o inventor da
mitologia, sendo ele o primeiro a usar o termo.6 Recentemente, no con-
texto anglo-saxónico defende-se que o ‘mito’ já existia e constituía um
tipo de história específica, desligada do seu suporte literário ou cultural,
embora o nosso termo ‘mito’ não traduza exactamente o sentido do termo
grego μῦθος, do qual deriva.7

2. Eco e Narciso nas fontes antigas

O caso do par mítico que ocupa o presente livro, Eco e Narciso,


ilustra bem a situação acima descrita no que diz respeito à natureza tradi-
cional do mito que o converte numa matéria modelável segundo os inte-
resses do texto que o acolhe. Das fontes antigas, só Ovídio oferece uma

5 Um bom resumo da história da mitologia como disciplina de estudo pode ler-se em

Fritz Graf (1993), Introduction to Greek Mythology, Maryland, pp. 9-56.


6 Marcel Detienne (1981), L’invention de la mythologie, Paris. Claude Calame (1991),

«‘Mythe’ et ‘rite’ en Grèce: des catégories indigènes?», Kernos 4, pp. 179-204.


7 O termo grego μῦθος significa em Homero ‘palavra’ ou ‘discurso’. Só posteriormente

passa a designar ‘ficção’ ou ‘mito’. A etimologia é obscura. Cf. Pierre Chantraine (1968),
Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Histoire des paroles, Paris, s.v. μῦθος,
pp. 718-719. Aires A. Nascimento (2007), «A envolvência do mito», in A. N. Pena (ed.).
Mythos. Actas do Colóquio Mito, Literatura, Arte. Mitos clássicos no Portugal Quinhentista,
Lisboa, pp. 11-30.

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18 ECO E NARCISO

versão em que a ninfa se apaixona pelo jovem. Os outros textos gregos e


latinos falam ora sobre Narciso, ora sobre a ninfa. No entanto, nas repre-
sentações artísticas e literárias posteriores à Antiguidade, a associação das
duas figuras é frequente. Tal é a versão seguida pelo Mitógrafo Vaticano
na Idade Média, cujo texto incluímos na nossa antologia (p. 58), ou pelas
famosas pinturas de Nicolas Poussin ou de Walter Waterhouse, que repre-
sentam cenas onde aparecem tanto Eco como Narciso. Com efeito, a
recepção deste mito na cultura europeia foi mediada justamente pela ver-
são de Ovídio, que passou a ser referência canónica devido à importância
das Metamorfoses, poema que se transformou em objecto de estudo em
sucessivos planos de formação, em diferentes épocas e em diferentes par-
tes da Europa.
A tradição em torno de Narciso, o jovem de Téspias, filho de Cefiso,
divindade fluvial, e de uma ninfa, que se apaixonou por si mesmo e mor-
reu em consequência desse amor dando origem a uma flor com o seu
nome, apenas surge nas fontes gregas a partir do século I a C., nas Diege-
seis ou Narrações de Cónon e num papiro fragmentário. Os textos gregos
mais antigos são, assim, contemporâneos de Ovídio.
A obra de Cónon consiste numa colecção de cinquenta relatos de
mitos de temática diversa. Apenas chegaram até nós por meio do resumo
que dela fez, no século IX, Fócio, patriarca de Constantinopla.8 Não se
conhece o texto original. No entanto, o resumo do capítulo correspon-
dente a Narciso é extenso e, provavelmente, reflecte o conteúdo e a estru-
tura do original. Neste texto, como se pode ler na tradução portuguesa
(p. 35), Narciso surge como um jovem belo e cruel para com aqueles que
dele se apaixonam, ao ponto de sugerir o suicídio a um deles, Amínias,
que assim o faz não sem antes invocar a maldição dos deuses contra Nar-
ciso. O texto sugere que, em consequência disso, Narciso se apaixona por
si mesmo e, ao aperceber-se do castigo, suicida-se. Cónon acrescenta que,
devido a esse trágico acontecimento, em Téspias, terra natal do jovem, é
costume oferecerem-se honras privadas a Eros e que a flor leva o nome
de narciso porque brotou lá onde caiu o seu sangue. Os relatos etiológicos,

8
Tradução inglesa, comentário e estudo da obra de Cónon encontra-se em M. K.
Brown (2002), The Narratives of Konon. Text, Translation and Commentary on the Diegeseis,
München.

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INTRODUÇÃO 19

aqueles que explicam a origem de um elemento do presente, ganharam


muita popularidade na literatura grega da época helenística, a partir do
século III a. C. Assim, vemos em Cónon uma continuidade das tendências
literárias iniciadas nos séculos anteriores.
Restos de um papiro do século VI d.C. contêm alguns fragmentos
poéticos, um dos quais se refere a Narciso.9 É outro texto da nossa selec-
ção (p. 36). O estado do papiro é muito lacunoso. Contudo, uma vez que
os três passos conservados se referem a mitos que terminam numa meta-
morfose, tem sido levantada a hipótese de poder tratar-se do fragmento
de uma obra perdida, as Metamorfoses de Parténio de Niceia, poeta e
mitógrafo do século I a.C.10 Concretamente, o texto do papiro foi relacio-
nado com o fragmento 28 de Parténio, onde uma heroína é transformada
em fonte.11 No entanto, também tem sido defendido que os versos do
papiro não são da autoria deste poeta, propondo-se uma data muito mais
tardia para eles e a sua pertença a uma colecção de exercícios retóricos
em verso.12 Seja como for, embora no papiro não apareça o nome de
Narciso, a referência ao mito é clara, já que aparece no texto um jovem
apaixonado pela sua própria imagem, que se lamenta junto de uma fonte;13

9 W. B. Henry é o primeiro editor do papiro no volume publicado por N. Gonis,


D. Obbink e D. Colombo, D. (2005), The Oxyrrhynchus Papyri 69, London. Em 2006 foi
estudado novamente por G.O. Hutchinson (2006), «The Metamorphosis of Metamorphosis:
P. Oxy. 4711 and Ovid», Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik 155, 71-84. Ver também
W. Luppe (2006), Archiv für Papyrusforschung und verwandte Gebiete 52, pp. 1-3;
E. Magnelli (2006), Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik 158, pp. 10-11; J.D. Reed
(2006), Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik 158, pp. 76-82.
10 Proposta de W. B. Henry seguida por G.O. Hutchinson e outros, op. cit. supra. As

fontes que falam sobre as Metamorfoses de Parténio deixam dúvidas quanto ao género,
pois não fica claro se se tratava de um poema ou de um hypomnema, uma obra em prosa
que relataria mitos de transformações, mas parece mais provável que fosse uma obra
poética. A acreditar nesta proposta, teríamos um exemplo excepcional de poema de
metamorfoses em pentâmetros dactílicos, diferente de todos os outros que conhecemos,
que são em hexâmetros, sendo o mais conhecido e aquele que mais impacto teve na
literatura posterior, depois de Ovídio.
11 O nome desta heroína não é mencionado no fragmento de Parténio mas ela é

identificada com Cometo. Os fragmentos de Parténio estão traduzidos em inglês e


comentados em J. L. Lightfoot (1999), Parthenius of Nicaea: The poetical fragments and
the Erotica Pathemata, Oxford.
12 H. Bernsdorff, The Journal of Hellenic Studies 127 (2007), pp. 1-18.
13 Assim podemos inferir que ele vê o seu reflexo e que se apercebe de que o objecto

do seu desejo é inatingível, como em Cónon.

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20 ECO E NARCISO

além disso, podemos inferir que os versos aludem à sua morte por derra-
mamento de sangue, uma vez que se conserva uma parte que diz literal-
mente «deu à terra». O motivo do sangue aparecia em Cónon, como vimos,
para explicar o nascimento da flor homónima, o que convida a pensar que,
provavelmente, o poema do papiro sugeria também a etiologia da flor.
Ovídio inclui a história de Narciso na sua obra-prima, as Metamorfo-
ses, poema que explica as transformações de diferentes personagens míti-
cas, por ordem cronológica, desde a origem do cosmo até à transformação
da alma de César.14 Trata-se de um vasto poema composto de centenas de
mitos que acabam com uma metamorfose, e que são, por sua vez, mitos
etiológicos, já que explicam a origem de animais, árvores ou outros ele-
mentos a partir dessas transformações. A versão ovidiana é de todas a mais
extensa que conhecemos do mito de Narciso. Além de ser mais descritivo
e dar maior ênfase à parte psicológica dos sentimentos, tanto de Narciso
como de Eco, a versão de Ovídio apresenta episódios que não encontra-
mos em mais nenhuma das versões que se conservaram: começa com o
relato sobre o oráculo de Tirésias no momento do nascimento de Narciso
e continua com a história de Eco, ninfa destinada a repetir as últimas
palavras do seu interlocutor. A particularidade da sua voz é um castigo da
deusa Hera anterior à paixão da ninfa pelo belo rapaz. Eco, apesar da sua
incapacidade verbal, consegue comunicar o seu amor a Narciso, mas é
cruelmente rejeitada. Assim, consome-se de paixão restando dela apenas
os ossos convertidos em pedra e a voz a ecoar pelos montes. Alguns estu-
diosos propõem que a relação entre Eco e Narciso é uma inovação de
Ovídio.15 Mas há também quem considere que é mais provável que o poeta
romano seguisse uma fonte grega (talvez um poema alexandrino) hoje
perdida.16 No entanto, os textos gregos conservados sobre a ninfa não a
relacionam nunca com Narciso.17

14 Umavisão de conjunto actualizada sobre o poeta romano e a sua obra encontra-se


em P. R. Hardie (2002), The Cambridge Companion to Ovid, Cambridge.
15 Bernd Manuwald (1975), «Narcissus bei Konon und Ovid», Hermes 103 (3), 349-

-372, pp. 358-359.


16 G.O. Hutchinson (2006), «The Metamorphosis of Metamorphosis: P. Oxy. 4711

and Ovid», Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik 155, 71-84. Especialmente, p. 81.
17 Sobre Eco, ver infra.

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INTRODUÇÃO 21

Ovídio continua o poema relatando que, após Eco, muitas outras


ninfas e rapazes se apaixonaram por Narciso e a todos ele rejeitou. Tal
como Cónon, inclui o motivo da maldição por parte de um admirador
rejeitado, mas o poeta latino não especifica quem o amaldiçoou. O ano-
nimato de quem reclama justiça contra Narciso reforça a ideia de acumu-
lação de rejeições e justifica o castigo contra o jovem: «e a deusa de
Ramnunte aprovou a justa prece». Assim, a paixão por si próprio é expli-
cada como um castigo divino, tal como na versão de Cónon. Segue-se uma
longa e espantosa descrição do desespero de Narciso a propósito desse
amor inatingível que o conduz à morte, após a qual, Ovídio concentra o
foco nos lamentos de Eco e na actividade das ninfas, chorando e prepa-
rando a pira para o funeral do rapaz. Este recurso permite ao poeta apre-
sentar a transformação do corpo de Narciso em flor como uma surpresa:
quando as ninfas vão procurá-lo, este terá desaparecido e só encontram
uma flor.
O motivo da transformação em flor é mencionado também no livro
V dos Fastos do mesmo autor (vv. 225-226), poema sobre o calendário e
as festividades romanas. Aqui, o poeta alude muito brevemente aos moti-
vos do auto-enamoramento e da origem da flor, a partir da menção a
Narciso feita por Flora-Clóris, ninfa das flores para os romanos:

tu também tens o teu nome nos jardins cultivados, infeliz Narciso,


por não seres um e outro.

tu quoque nomen habes cultos, Narcisse, per hortos, infelix,


quod non alter et alter eras.

No que se refere a Eco, incluímos na nossa selecção um poema da


Antologia Palatina e uma passagem da novela Dáfnis e Cloe de Longo
(pp. 45-46, 51). O breve epigrama da Antologia é atribuído ora a Árquias
ora a Parménion, poetas da época de Augusto, coetâneos de Ovídio, de
Cónon e de Parténio. O epigrama consiste numa apóstrofe da própria Eco
ao leitor, onde se estabelece um jogo entre a identidade da ninfa e o fenó-
meno acústico. Já Píndaro, poeta do século VI a.C., autor de epinícios,
brincava com a ambivalência do termo na Olímpica 14 (vv. 20-25):

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22 ECO E NARCISO

(...) Para a mansão de negros muros


de Perséfone vai agora, ó Eco,
levando a gloriosa notícia ao seu pai,
para que, quando vires Cleodamo, lhes digas que seu filho
coroou seu jovem cabelo nos famosos vales
de Pisa com as asas dos jogos que trazem a glória.18

μελαντειχέα νῦν δόμον


Φερσεφόνας ἔλθ', Ἀ-
χοῖ, πατρὶ κˈλυτὰν φέροισ' ἀγγελίαν,
Κλ<εό>δαμον ὄφˈρ' ἰδοῖσ', υἱὸν εἴπῃς ὅτι οἱ νέαν
κόλποις παρ' εὐδόξοις Πίσας
ἐστεφάνωσε κυδίμων ἀέθλων πτεροῖσι χαίταν.

Também por causa da qualidade repetitiva da sua voz, Eurípides, no


século V a.C., apresentava Eco no prólogo da tragédia intitulada Andró-
meda, hoje perdida.19 Nos escólios ao poeta helenístico Teócrito,
conservam-se três versos de uma intervenção de Andrómeda pertencente
ao prólogo desta peça. Graças à paródia que Aristófanes também fez desta
tragédia, na sua comédia as Mulheres que celebram as Tesmofórias,20 pode-
mos completar o fragmento com mais dois versos e a resposta de Eco.
Assim, sabemos que, no prólogo da tragédia, Eco repetia as últimas pala-
vras de Andrómeda no diálogo que com esta mantinha. É possível que a
audiência conhecesse a tradição segundo a qual Eco era uma ninfa casti-

18Tradução de Frederico Lourenço.


19F. G. Welcker (1839), Die griechischen Tragoedien: mit Rücksicht auf den epischen
Cyclos. Abtheilung 2, Bonn, p. 647. Para uma edição de todos os fragmentos desta tragédia
com bibliografia actualizada vd. R. Kannicht (2004), Tragicorum Graecorum Fragmenta.
Vol. 5.1. Euripides, Göttingen. Para o fragmento onde aparece Eco, cf., pp. 238-239. Uma
tradução inglesa da peça fragmentária encontra-se em Ch. Collard-M. Cropp (2008),
Euripides. Fragments. Aegeus-Meleager, Cambridge, pp. 130-155.
20 O tema da comédia é o seguinte: as mulheres de Atenas, irritadas com Eurípides a

propósito das personagens femininas que ele representa nas suas tragédias, reúnem-se nas
Tesmofórias, festa feminina anual, para planearem fazer justiça sobre o tragediógrafo. Um
parente, sogro de Eurípides, infiltra-se nas Tesmofórias, sendo descoberto e preso por
guardas. Eurípides tenta distraí-los usando passagens das suas tragédias. Assim, pede ao
sogro para assumir o papel de Andrómeda, e ele assume o papel de Eco e de Perseu.

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INTRODUÇÃO 23

gada a repetir apenas as últimas palavras do seu interlocutor. No entanto,


não se pode pôr de lado a hipótese de que Eco surja simplesmente como
a personificação do fenómeno acústico.
A novela de Longo, Dáfnis e Cloe, do século II da nossa era, apresenta
Eco em termos muito diferentes. O autor insere uma narrativa dentro de
outra, uma mis en abyme, na qual Dáfnis relata a Cloe a terrível história
da ninfa. A versão que aqui lemos difere totalmente no que diz respeito à
morte da ninfa e à origem do fenómeno acústico: nela, Eco é uma ninfa
com grandes qualidades musicais e que, em vez de se apaixonar, foge do
amor que por ela sente Pã. Essa rejeição, associada à inveja do talento
musical dela, irrita o sátiro que, enlouquecendo uns pastores, faz com que
a despedacem. O eco acústico foi concedido pelas Musas como consolação
à dispersão do seu corpo, coberto por Geia. Explica-se assim a presença
do eco em diferentes lugares dos bosques. Dois elementos desta narrativa
fazem lembrar o mito de Orfeu: a poesia e o desmembramento de Eco.
É interessante notar que Plutarco, no fim do século I, início do século II
d.C., nas Quaestiones Convivales, se refere a uma pantomima que tinha
como personagens principais Eco, Pã ou um sátiro.
Voltando a Narciso. Na Antologia Palatina (11. 76) encontramos um
breve epigrama satírico atribuído a Lucílio, epigramatista grego da época
de Nero.21 O mito é usado como termo de uma comparação, mas no
sentido oposto, criando assim um efeito cómico. O poema dirige-se a
Olímpico, um lutador, aconselhando-o a não passar junto de uma certa
fonte, não vá acontecer-lhe o mesmo que a Narciso e morra ao ver o seu
rosto claramente reflectido na água. A ironia é insinuada pelo uso do
termo ῥύγχος, bico ou focinho, para se referir à cara de Olímpico. No
fim, quando em lugar de referir uma morte produzida por paixão, lemos
μισῶν (do verbo ‘odiar’), o sentido satírico fica esclarecido, pois assim
percebemos que Olímpico morreria numa situação idêntica à de Narciso,
mas pela causa contrária, ou seja, por se odiar a si próprio por ser muito
feio.

21Sobre Lucílio, G. Nisbet (2005), Greek epigram in the Roman Empire. Martial’s
forgotten rivals, Oxford, pp. 36-81.

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24 ECO E NARCISO

DO MESMO AUTOR (sc. Lucílio)


Com esse focinho, Olímpico, perto de uma fonte
não vás, não vá dar-se o caso de olhares para a translúcida água
e tu, como Narciso, ao veres o teu rosto claramente,
morras, odiando-te a ti próprio até à morte.
Antologia Palatina 11. 76

ΤΟΥ ΑΥΤΟΥ
Ῥύγχος ἔχων τοιοῦτον, Ὀλυμπικέ, μήτ’ ἐπὶ κρήνην
ἔλθῃς, μήτ’ ἐνόρα πρός τι διαυγὲς ὕδωρ.
καὶ σὺ γὰρ ὡς Νάρκισσος ἰδὼν τὸ πρόσωπον ἐναργὲς
τεθνήξῃ μισῶν σαυτὸν ἕως θανάτου.

Os leitores do poema conheciam claramente a tradição da paixão de


Narciso e da sua extraordinária beleza, ideia insistentemente referida nas
fontes escritas, como vimos em Cónon e Ovídio, onde Narciso é desejado
por muitos, e nas fontes que referiremos a seguir.
No século segundo da nossa era, no contexto da Segunda Sofística
integrada na cultura grega da época imperial, dois autores de língua grega,
Pausânias e Luciano de Samósata, mencionam Narciso nas suas obras.
A obra de Pausânias é uma descrição da Grécia em dez livros na qual
o autor apresenta os diferentes territórios, assim como os monumentos e
tradições associadas.22 No capítulo dedicado à região de Téspias, lugar de
origem de Narciso, como também é mencionado em outras fontes, encon-
tramos duas versões do mito com uma clara componente crítica e racio-
nalista (pp. 43-44). A partir da visita à fonte de Narciso, ainda conservada,
Pausânias explica a reflexiva paixão de Narciso pela incapacidade de
identificar a sua imagem na superfície espelhada da água. Não especifica
como morre, apenas que foi junto à fonte. O próprio Pausânias considera
este relato absurdo e oferece uma segunda versão mais racionalista: o
jovem apaixonara-se pela sua irmã gémea que tinha morrido. Em conse-

22 Sobre o uso do mito na Descrição da Grécia de Pausânias, vd. Ch. Jacob, A. Mullen-

-Hohl (1980), «The Greek Traveler’s Areas of Knowledge: Myths and Other Discourses
in Pausanias’ Description of Greece», Yale French Studies 59. Rethinking History: Time,
Myth, and Writing, pp. 65-85.

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INTRODUÇÃO 25

quência disso, Narciso ficou preso à contemplação do seu próprio reflexo,


uma vez que este lhe lembrava a sua irmã. E assim deixou-se morrer.
Pausânias inclui também a referência ao mito etiológico da flor de narciso
e, novamente, critica essa tradição, explicando que no Hino Homérico a
Deméter, muito anterior a Narciso, já é mencionada a flor.
Luciano de Samósata, por sua vez, faz breves menções de Narciso no
Diálogo dos mortos e na História verídica, usando sempre a figura desta
personagem pela sua beleza. Na primeira obra, no quinto diálogo, encon-
tramos Hermes no Hades a indicar ao recém-chegado Menipo onde estão
os mais belos rapazes e as mais belas raparigas do lugar, entre os quais
figura Narciso, junto a Jacinto, Nireu, Aquileu, Tiro, Helena e Leda.23 No
segundo livro da História verídica,24 Luciano enumera as personagens
insignes presentes na Ilha dos Bem-aventurados, entre as quais menciona
Narciso. Passa depois a descrever os costumes sexuais dos habitantes da
ilha, que se uniam livremente com homens e mulheres. Só Sócrates, que
também lá estava, negava ter relações com rapazes, embora Narciso e
Jacinto as tivessem confessado. O mito da paixão de Narciso por si pró-
prio, a sua morte e a sua transformação em flor não são referidos nem
aludidos, mas a figura do jovem é usada neste contexto satírico por ser
conhecido como um belo efebo muito desejado. Considerando a presença
do mito noutras fontes literárias, podemos pressupor — assinale-se — que
os leitores de Luciano conheciam as tradições da rejeição de pretendentes
e a morte causada pelo próprio enamoramento de Narciso, o que aumenta
o efeito cómico pela distorção que representa descrevê-lo num relaciona-
mento homoerótico com Sócrates.25
As Fabulae, obra mitográfica latina de Higino, autor cuja actividade
se situa no fim do século I a.C., inícios do I d.C., incluem Narciso na lista
dos efebos mais belos e formosos. A lista segue outro catálogo onde cons-
tam os mais belos homens. Os jovens que acompanham Narciso são Adó-

23Diálogo dos mortos 5.


24Capítulos 17 e 19.
25 Uma tradução portuguesa das obras de Luciano encontra-se na colecção de autores

gregos e latinos da Imprensa da Universidade de Coimbra: Luciano de Samósata. I, II, III.


Tradução do grego, introdução e notas de Custódio Magueijo (2012). Sobre a interessante
obra Uma história verídica, A. Georgiadou, D. H. J. Larmour (1998), Lucian’s science fiction
novel “True Histories”, Leiden.

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26 ECO E NARCISO

nis, Endímion, Ganimedes, Jacinto, Hermafrodito, Hilas e Crisipo, todos


ainda efebos quando morrem.
Na poesia latina posterior a Ovídio encontramos mais algumas refe-
rências à morte de Narciso, nas quais sempre se insiste na sua beleza e na
ligação à flor homónima. No século primeiro da nossa era, o romano
Estácio, no livro sétimo da Tebaida (vv. 340-342), um longo poema sobre
o assalto dos sete contra Tebas, no passo que relata a reunião de soldados
Beócios que vão atacar a cidade, menciona Narciso do seguinte modo:26

Também tu, Cefiso, terias dado Narciso, excelso em beleza,


mas o duro rapaz já empalidece nos campos Tespíacos.
Banhas a flor, ó pai, com a tua onda órfã.

tu quoque praeclarum forma, Cephise, dedisses


Narcissum, sed Thespiacis iam pallet in agris
trux puer; orbata florem, pater, adluis unda.

De forma muito expressiva, o poeta traz à mente do leitor a narrativa


bem conhecida: Narciso, de extraordinária beleza, é duro porque rejeita
os amantes e empalidece no campo porque morre a olhar para o seu pró-
prio reflexo na fonte. O banho de Cefiso à flor alude à metamorfose do
jovem, expressando metaforicamente o lamento do pai pela perda do filho.
Assim, o pai, enquanto rio, aproxima a sua onda à flor, única lembrança
do seu filho morto.
Uns séculos mais tarde, no século IV d.C., Claudiano, no seu epílio
sobre o rapto de Prosérpina, faz uma breve referência ao mito de Narciso
(2.131-136).27 O poema descreve a deusa a colher flores junto com as
ninfas. Entre as flores que colhem estão o jacinto e o narciso, flores sobre
as quais o poeta faz um excurso referindo a sua beleza e origem:

26 Garrod, H.W (1906), Statius. Thebais, Oxford.


27 Uma edição do texto latino com introdução e comentário encontra-se em J. B. Hall

(1969), Claudian: De Raptu Proserpinae, Cambridge. Para a versão portuguesa, cf.,


Claudiano, O Rapto de Prosérpina (1991), com introdução, tradução e notas de Luís
Cerqueira, Lisboa.

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INTRODUÇÃO 27

Também a ti te colhem, triste Jacinto de chorosas formas,


e a ti, Narciso, agora ilustres filhos da Primavera,
outrora adoráveis jovens: tu, de Amiclas nascido,
este pelo Hélicon gerado; a ti abateu-te o giro errante do disco,
a este desiludiu-o o amor da fonte; a ti, com a fronte embotada
chora-te Délio; a este, Cefiso com a cana quebrada.

Te quoque, flebilibus maerens Hyacinthe figuris,


Narcissumque metunt, nunc inclita germina veris,
praestantes olim pueros: tu natus Amyclis,
hunc Helicon genuit; disci te perculit error,
hunc fontis decepit amor; te fronte retusa
Delius, hunc fracta Cephisus harundine luget.

É relevante notar que nestas duas alusões poéticas de Estácio e de


Claudiano está presente o lamento de Cefiso, pai de Narciso.
Nos séculos II-III e III-IV d.C., respectivamente, contamos ainda com
dois textos gregos que incluem o mito de Narciso em descrições de obras
artísticas: uma pintura nas Imagens de Filóstrato e uma escultura em Calís-
trato (ambos os textos na nossa antologia, pp. 38-42).28
As Imagens são uma obra atribuída normalmente a Filóstrato o Velho.
Existem mais dois autores com o mesmo nome, sendo que os três perten-
ciam à mesma família. As fontes não fazem uma distinção nítida sobre
qual deles foi escritor e que obra compôs. Os especialistas preferem falar
de Corpus Philostrateum para se referir ao conjunto de obras compostas
por Filóstrato de Atenas, Filóstrato o Velho e Filóstrato o Jovem. A obra
que interessa a este estudo consiste na descrição das pinturas duma pina-
coteca de Nápoles. A questão sobre a existência real desta pinacoteca e
das obras descritas tem sido longamente discutida. Não se conserva
nenhum vestígio do edifício descrito por Filóstrato, mas sabemos que na
sua época existiram construções semelhantes. No que se refere à existên-
cia dos quadros também não há vestígios. Contudo, a comparação das

28
Sobre estes textos há uma tradução espanhola e visão de conjunto em C. Miralles,
F. Mestre (1996), Filóstrato. Calístrato. Heróico. Gimnástico. Descripciones de cuadros.
Descripciones, Madrid.

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28 ECO E NARCISO

descrições com documentos iconográficos da época fazem com que os


especialistas se inclinem a considerar que o autor falava ou se inspirava
em obras reais, mesmo se na descrição introduzia variações ou detalhes
da sua própria imaginação. Particularmente interessante é o facto de Filós-
trato, que apenas descreve a imagem do quadro, sem narrar o mito, seguir
a versão adoptada por Pausânias no que diz respeito ao equívoco original
causador da paixão de Narciso. No entanto, não há referência nem ao fim
do jovem, nem à origem da flor.

Calístrato, em Descrições, seguindo o modelo de Filóstrato, descreve


esculturas. É interessante observar que a escultura de Narciso descrita por
ele é muito semelhante à pintura descrita por Filóstrato: um rapaz de pé,
a olhar para a fonte onde se reflecte o seu rosto. Mas, diferentemente do
texto anterior, Calístrato introduz uma breve digressão narrativa para con-
tar o mito. A versão que aqui lemos fala da morte de Narciso por se
apaixonar pela sua própria imagem, sem se deter a explicar a causa do
insólito amor. Calístrato também explica a aparição da flor como conse-
quência da morte do jovem.
No século IV, o sofista Severo de Alexandria dedicou um dos seus
exercícios retóricos ao mito de Narciso:29

A (narração) de Narciso
Começa a muito estranha história de um estranho sofrimento. Havia
um jovem, Narciso, que se amava a si próprio e se auto-destruiu, já
que se distinguia na beleza do seu corpo, e por isso recebeu a beleza
também como castigo. Com efeito, chegou a uma fonte para beber e,
como ficou lá a contemplar a sua própria beleza, viu-se preso de
paixão e de admiração por si próprio. Apaixonou-se, e por isso pro-
vocou a sua própria ruína. Era amado sem possuir amante, mas preso
à fonte mostrava afeição pelo seu reflexo como se fosse o seu amado.
Tentando tocar-se, deixou-se cair na água. E ao buscar consolação
para o seu sofrimento encontrou a privação da vida, tendo desfrutado

29 Waltz, C. (1832-1836), Rhetores Graeci, Stuttgart, Tubinga, Londres e Paris, 9


vols, vol. 1, p.357 [Osnabrück 1963].

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INTRODUÇÃO 29

da sua morte tanto quanto da sua metamorfose final. E deixou visível


a sua lembrança num rebento homónimo.

Τὸ κατὰ Νάρκισσον.
Παραλόγου πάθους ὁ λόγος ὑπῆρξε παραλογώτερος· Νάρκισσος γὰρ ἦν ἐρῶν
οἴκοθεν καὶ φθειρόμενος οἴκοθεν· ὥρᾳ μὲν γὰρ διέφερε σώματος· ὅθεν δὲ τὴν ὥραν
καὶ τὸν πόνον ἐκτήσατο· καταλαμβάνει γὰρ πηγὴν ὁ πιόμενος· θεατὴς δὲ τῆς
οἰκείας μορφῆς καταστὰς, ἐραστὴς ὁ αὐτὸς καὶ θεατὴς κατεφαίνετο· ἤρα δὲ, ὅθεν
αὐτὸς ἐξ αὐτοῦ καταφθείρεται· ἐρώμενος ἦν ἐραστὴν οὐ κτησάμενος· ἀλλ’ ἐπὶ
πηγὴν ἑαυτὸν ἐπαφεὶς, ἔστεργε μὲν τὴν σκιὰν ὡς ἐρώμενος· ἑαυτοῦ δὲ λαβόμενος,
ἑαυτὸν ἐναφῆκε τοῖς ὕδασι· καὶ παραψυχὴν τοῦ πάθους ζητῶν βίου στέρησιν
εὕρατο, τοσοῦτον τῆς τελευτῆς ὀνησάμενος, ὅσον εἰς τέλος μεταπεσεῖν· καὶ δηλοῖ
τὴν μνήμην ὁμωνύμῳ βλαστήματι.

Neste caso estamos ante um progymnasma, um exercício de formação


retórica. Havia diferentes tipos de exercícios, sendo um deles a narração
(διήγημα) que consistia em expor uma história real ou ficcional para desen-
volver a capacidade de relatar factos. O texto dedicado a Narciso insiste
na ideia de auto-enamoramento, processo que é descrito como um senti-
mento paradoxal. A causa dessa paixão é a própria beleza de Narciso, que
é considerada, simultaneamente, um dom e um castigo. Ele apaixona-se
pelo seu reflexo na água de uma fonte e, quando tenta tocar o objecto da
sua paixão, deixa-se cair na água, terminando assim o seu sofrimento.
O texto refere igualmente que há uma transformação e que a flor assume
o seu nome. Assim, nesta versão, observam-se traços racionalizantes ao
explicar a morte por afogamento, e novamente encontramos a etiologia
da flor.

Por último, no século V, Nono de Panópolis, no último livro do seu


extenso poema Dionisíacas, que conta em hexâmetros a expedição de
Dioniso à Índia, insere um brevíssimo relato sobre Narciso como excurso
erudito à menção das flores que brotam sobre a fonte de vinho que o deus
faz surgir para seduzir Aura. O texto (pp. 48-49) refere a beleza do rapaz,
a rejeição dos pretendentes, a paixão por si próprio e a origem da flor. No
entanto, o episódio é situado num lugar muito distante da localização que

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30 ECO E NARCISO

encontramos nas outras fontes, Téspias. A história decorre em Latmo, na


Cária. Esta mudança de lugar pode ter sido motivada pela tendência de
Nono de Panópolis, oriundo do Egipto, a dar preferência a versões dos
mitos de origem oriental.30 Também a ascendência do jovem é diferente:
enquanto Narciso é habitualmente filho de Cefiso e de uma ninfa, nesta
versão é filho de Endímion e Selene. Endímion, já conhecido por Hesíodo,
segundo diferentes fontes é amado por Selene e recebe, umas vezes como
castigo, outras como prenda, o sono eterno, o que o torna imortal. Em
fontes tardias coetâneas de Nono, o nome de Narciso é relacionado com
a raiz grega ναρκή, «torpor». É possível que esta paretimologia esteja na
base da variante da ascendência que escolhe Nono. No que diz respeito à
história de Narciso, surgem também nesta versão os elementos que se
repetem na maioria das fontes que transmitem o relato: a beleza de Narciso
e a rejeição dos pretendentes, o auto-enamoramento e a aparição da flor.

Em suma, na Antiguidade, o mítico par formado por Eco e Narciso


constituiu apenas uma das possíveis versões de um mito que é recreado
pelos escritores com três objectivos fundamentais: a explicação etiológica
da origem de um elemento do mundo presente, a flor do Narciso; a exem-
plificação do poder de eros quando a paixão é dirigida ao objecto errado;
e o uso da figura de Narciso devido à sua proverbial beleza. Assim, estes
relatos são integrados em diferentes obras como instrumentos de expres-
são estético-literária ao serviço da mensagem principal do texto que os
acolhe. Por exemplo, como descrição de um elemento pictórico ou escul-
tórico no caso de Filóstrato e Calístrato, como registo duma tradição local,
no caso de Pausânias ou como excurso poético erudito, no caso de Estácio
e Claudiano. Não possuímos nenhuma obra que tenha tratado o mito
como tema central. Contudo, inserido entre muitos outros mitos de meta-
morfose, o texto de Ovídio oferece a elaboração poética que trata o tema
da paixão com maior profundidade. Com a investigação da psicologia das
duas personagens que intervêm nesta versão, o poeta romano reflecte

30 Sobre este assunto, cf. F. Hadjittofi (2011), «Nonnus’ Unclassical Epic: Imaginary

Geography in the Dionysiaca», in Ch. Kelly, R. Flower, M. Stuart Williams (eds.), Unclassical
Traditions – Volume II. Perspectives from East and West in Late Antiquity, Cambridge,
29-42.

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INTRODUÇÃO 31

sobre o poder do sentimento amoroso e o perigo da obstinação do amor


não correspondido, dotando a narrativa de uma profunda dimensão
humana que aproxima o sofrimento de Eco e de Narciso à sensibilidade
do leitor. Assim, além do seu valor etiológico, a história torna-se, em Oví-
dio, expressão de uma inquietude humana universal. Em consequência,
não é surpreendente que tenha sido esta versão aquela que se impôs não
só como versão canónica, mas também como mediadora da recepção do
mito desde o final da Antiguidade até aos nossos dias.

NEREIDA VILLAGRA
CEC (FCT SFRH/BPD/90803/2012)

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TEXTOS E FONTES DA ANTIGUIDADE

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Cónon
(séc. I a.C.)

Diegeseis 24

Tradução de RUI CARLOS FONSECA

Em Téspias da Beócia (a cidade não se situa longe do Hélicon), nasceu


Narciso, um moço muito belo mas desdenhoso de Eros e dos jovens apai-
xonados. Por isso, os demais dos jovens apaixonados desistiram de o
querer namorar, mas Amínias era bastante perseverante e insistente.
Quando porém Narciso não o admitiu à sua presença e lhe enviou antes
uma espada, Amínias suicidou-se diante das portas da casa de Narciso,
não sem antes suplicar que a divindade se tornasse o seu vingador. Ora,
quando Narciso viu a sua própria figura e a sua forma espelhadas na água
da fonte, ele tornou-se o primeiro e o atípico enamorado de si mesmo. Por
fim, sem forças para continuar a viver em tormento, matou-se, acreditando
estar a sofrer a justiça do seu comportamento desdenhoso para com as
investidas amorosas de Amínias. A partir de então, os Téspios decidiram
reforçar as honras e a veneração a Eros, realizando sacrifícios privados em
sua homenagem, juntamente com as celebrações públicas. Os nativos acre-
ditam que a flor de narciso germinou pela primeira vez dessa porção de
terra por onde se derramou o sangue de Narciso.

EDIÇÃO
BROWN, M. K. (2002), The Narratives of Konon. Text, Translation and Commentary on
the Diegeseis, München.

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P. Oxy. 69.4711

Tradução de RUI CARLOS FONSECA

P. Oxy. 69.4711

Adónis

]a deusa dos sorrisos[1


].. [. ] em espiral[
…. ]. [. ]. [.. ]. [.. ]. [ … ] …. em períodos alternados[
ora está na companhia de Cípris, ora desce para junto de Perséfone.2
e o seu nome ao rio[
do seu sangue divino brotava uma bela flor.3

1Epíteto atribuído à deusa Afrodite. Cf. Ilíada 3.424 e Odisseia 8.362.


2Cípris serve para designar Afrodite, devido à associação do nascimento da deusa à
ilha de Chipre. Perséfone é a deusa dos Infernos, onde reina junto de Hades. Segundo o
mito, Adónis era um jovem de incomparável beleza, que, por decreto divino, passava uma
terça parte do ano com Afrodite e outra terça parte com Perséfone. Na terça parte restante,
a escolha recaía na preferência do jovem mortal. Adónis optou sempre por ocupar esse
tempo na companhia de Afrodite.
3 O episódio da morte de Adónis é descrito por Ovídio em Metamorfoses 10.708-739.

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TEXTOS E FONTES DA ANTIGUIDADE 37

Astéria

Filha de Ceu e da Titânide Febe,


Astéria era a irmã amada de Leto.4
Zeus desejava-a, mas a filha de Ceu fugia-lhe,
primeiro como ave por sobre as nuvens do céu,
depois decidiu lançar-se no meio do mar profundo,
e assim voou como uma nau em[.. ]. [.. ] … [
Zeus, porém, fluiu sob[
com Febo e a bela Ártemis[5
…. ]. .. [
…… ].. [

Narciso

]. [
]... ….. [
] ……. [
]… .. [
] ………. [ …. ] …….. [
] …… [ ….. ] é de natureza imortal.. [
] …… …. [ … ] …. … [ … ] … [
] ……. [ …… ] semelhante aos deuses. [
] ….. [ …… ]. [. ] ….. [
] desprezava todos
] enamorou-se da sua própria imagem
] junto da fonte lamentou o prazer de um sonho
] deplorou a sua beleza
] … derramou pela terra
] … para suportar
] …… [

Fonte: http://www.papyrology.ox.ac.uk/POxy/papyri/4711.html

4 Ceu e Febe são irmãos, que pertencem à raça dos Titãs. Da sua união nasceram
duas filhas: Leto e Astéria. Sobre a genealogia dos Titãs, vide Hesíodo, Teogonia 132-136.
5 Apolo e Ártemis, filhos de Leto.

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Filóstrato, o Velho
(séc. II-III d.C)

Narciso, Imagens 1, 23

Tradução de EDUARDO GANILHO

1. A fonte pinta6 Narciso, a pintura retrata a fonte e toda a história de


Narciso. Um rapaz recém-chegado da caça está de pé junto a uma fonte,
extraindo de si uma espécie de desejo e amando a sua jovem beleza;
e lampeja — como vês — para dentro de água.

2. A gruta é de Aqueloo7 e das ninfas, e está pintado o que é verosímil. As


estátuas são de arte rude e de pedra dali. Umas estão coçadas pelo
tempo; outras mutilaram-nas os filhos de boieiros ou pastores, ainda
meninos e insensíveis à divindade. E a fonte não é alheia aos ritos báqui-
cos, porquanto Dioniso a revelou às Lenas.8 Está coberta de videiras e
hera e belas gavinhas, e tem uma porção de cachos, de tudo aquilo de
onde vêm os tirsos.9 Celebram por cima dela sábios pássaros, cada um
com o seu canto, e brotam à volta da fonte flores brancas, que o ainda

6 * Alguns conselhos da professora Fotini Hadjittofi melhoraram muito esta tradução

dos textos de Filóstrato e Calístrato sobre Narciso.


A forma verbal graphei, aqui traduzida por “pinta”, pode significar “escreve”. O mesmo
verbo (inf. graphein) reaparece no princípio do segundo parágrafo (“está pintado/escrito
o que é verosímil”) e no fim do terceiro (“Digamos nós como está pintado/escrito”).
A ambiguidade estende-se ao substantivo graphē (“pintura”/“texto”): “a pintura/o texto
retrata a fonte” (1), “a pintura/o texto até goteja das flores um pouco de orvalho” (2), “não
sei se foi enganada pela pintura/pelo texto” (2), “Quanto a ti, rapaz, nenhuma pintura/
nenhum texto te enganou” (3).
7 Deus da água fecundante e de um grande rio homónimo no noroeste da Grécia.

O princípio deste parágrafo é um decalque da descrição de um local de culto junto ao rio


Ilisso no Fedro de Platão (230b-c), mas o deus aparece representado entre ninfas em vários
relevos sobreviventes (Isler, 1981: 23-25), porque era visto como pai de algumas das fontes
mais importantes da Grécia (Homero, Ilíada 21.194-197; Eurípides, As Bacantes 519-520;
Pausânias, Descrição da Grécia 2.2.3 e 10.8.9) e das próprias ninfas (Platão, Fedro 263d).
8 Seguidoras de Dioniso (deus do vinho, do êxtase, da fertilidade).
9 Um tirso, objecto associado ao culto de Dioniso, era um caule de férula revestido

com folhas (regra geral de videira e hera) e encimado por uma pinha.

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TEXTOS E FONTES DA ANTIGUIDADE 39

não são, mas brotam em honra do adolescente. Fiel à verdade, a pintura


até goteja das flores um pouco de orvalho. Sobre elas está pousada uma
abelha: não sei se foi enganada pela pintura, se nós é que devemos ser
enganados e julgá-la autêntica.10 Mas seja.

3. Quanto a ti, rapaz, nenhuma pintura te enganou, nem estás absorvido


em cores ou cera, mas não sabes que a água te modelou tal qual a olhaste,
nem refutas o sofisma da fonte. Inclina a cabeça e muda a tua forma e
move um pouco a mão e não fiques na mesma! Mas tu, como se tivesses
encontrado um companheiro, ficas à espera do que daí virá. Então a
fonte falará contigo? Ele nada ouve do que dizemos: está caído na água
com os próprios ouvidos e os próprios olhos. Digamos nós como está
pintado.

4. O rapaz descansa de pé. Tem os pés cruzados e a mão [esquerda]sobre


a lança plantada à sua esquerda. A mão direita está na anca de modo a
suportá-lo e produzir uma figura de nádegas salientes por causa da incli-
nação do lado esquerdo para fora. O braço mostra um espaço aberto
onde o cotovelo se curva, uma ruga onde o pulso se torce, e apresenta
uma sombra ao terminar na palma da mão; as linhas da sombra são
oblíquas por causa da curvatura dos dedos para dentro. O sufoco no
peito não sei se é da caça ainda, se já do amor. O olhar é sem dúvida o
de alguém bastante apaixonado, pois um desejo pousa sobre ele e miti-
ga-lhe o fulgor e o ímpeto de natureza. Parece-lhe talvez ser correspon-
dido no seu amor, porque o reflexo o olha como é por ele olhado.

5. Muito se diria também do cabelo dele, se o encontrássemos a caçar.


Inúmeros são os movimentos do cabelo na corrida, sobretudo quando
é soprado por algum vento. Mas mesmo agora há de que falar. Abun-

10Este passo lembra a competição de Parrásio e Zêuxis, dois pintores gregos do


século V a.C., relatada pelo naturalista Plínio (séc. I d.C.): “Conta-se que [Parrásio] entrou
em competição com Zêuxis. Quando este apresentou uvas pintadas com tanto sucesso que
as aves voaram para a cena, aquele apresentou uma cortina pintada com tal realismo que
Zêuxis, inchado pelo veredicto dos seres alados, insistiu que se removesse a cortina e se
revelasse a pintura; e, percebido o engano, concedeu a palma com nobre pudor, porquanto
enganara pássaros, mas Parrásio o enganara a ele, um artífice” (História Natural 35.65).

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40 ECO E NARCISO

dante e como que dourado, ajusta-se ao pescoço, cai à frente e atrás das
orelhas, ondula sobre a testa e flui sobre a barba nascente. Os dois
Narcisos são iguais e deixam ver a sua forma da mesma maneira, excepto
que um está exposto ao ar e o outro está mergulhado na água. O rapaz
está parado de pé junto à água, que também está parada. Ou melhor:
que olha fixamente para ele, como que sedenta da beleza.

EDIÇÃO
KALINKA, E. – SCHÖNBERGER, O. (1968), Philostratos: Die Bilder, München.
Excepção: ἴσοι em vez de εἰσί no quinto parágrafo, correcção sugerida por Jacobs,
mantida por editores posteriores e apoiada por Keydell (1970: 758).

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Calístrato, o Sofista
(séc. III ou IV d.C.)

À estátua de Narciso, Descrições 5

Tradução de EDUARDO GANILHO

1. Havia um bosque e nele uma belíssima fonte de água muito pura e


translúcida. Erguia-se junto a ela um Narciso feito de pedra. Era um
menino. Ou melhor: era um jovem da idade dos Erotes,11 que como
que emitia da beleza do seu corpo um brilho de relâmpago. A sua figura
era a seguinte. Lampejava com os fios dourados do seu cabelo, que na
testa se enrolava até formar um círculo e do pescoço se derramava para
as costas. Mas o seu olhar não era de mero gáudio nem de pura hilari-
dade. Por efeito da arte havia também dor na natureza dos olhos, para
que a estátua imitasse com Narciso o destino.

2. Estava vestido como os Erotes, a quem se assemelhava também por estar


na flor da idade. A roupa que o adornava era a seguinte. Um peplo bran-
co-flor, semelhante na cor ao corpo de pedra, envolvia-o. Estava preso
com uma pregadeira no ombro direito, descia até ao joelho e aí terminava.
Só a mão deixava ele livre da pregadeira para baixo. Era tão delicado e
fiel na imitação de um peplo real que até a cor do corpo brilhava através
dele, porque a brancura da roupa concedia que a luz dos membros saísse.

3. Estava de pé, usando a fonte como espelho e derramando para ela a forma
da sua face. A fonte recebia os traços dele e perfazia a mesma imagem,
de modo que as naturezas pareciam rivalizar uma com a outra. A pedra
transformava-se toda naquele, o menino real, enquanto a fonte competia
com as maquinações da arte na pedra, pois criava numa figura incorpó-
rea a semelhança do corpo do modelo e criava o reflexo vindo da estátua
com a natureza da água como se com uma espécie de carne.

11 Deuses do amor e do desejo.

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42 ECO E NARCISO

4. A figura nas águas era tão viva e espirante que pareceu ser o próprio
Narciso, aquele que, segundo dizem, chegou a uma fonte e, vista a sua
forma nas águas, morreu entre as Ninfas por ter desejado unir-se à sua
imagem — e agora aparece em flor nos prados durante a Primavera.
Verias como a pedra, embora fosse de uma só cor, se adaptava à expres-
são dos olhos e conservava um registo do carácter e indicava percepções
dos sentidos e denunciava emoções e acompanhava a exuberância do
penteado, dissolvendo-se na sinuosidade do cabelo.

5. Mas isto não pode ser dito com palavras: pedra estava relaxada a ponto
de se tornar fluida e apresentava um corpo contrário ao seu ser. Embora
tivesse uma natureza mais dura, transmitia uma sensação de delicadeza,
difundindo-se numa espécie de substância corpórea porosa. Tinha nas
mãos uma siringe,12 aquela que ele dedicava aos deuses pastoris — e
fazia o ermo ressoar com as suas canções, se desejasse entreter-se com
instrumentos de corda.

6. Admirado com este Narciso, jovens, imprimi-o na morada das Musas


e trouxe-o até vós. Seja o discurso como a estátua era.

EDIÇÃO
BÄBLER, B. – NESSELRATH, H.-G. (2006), Ars et verba: die Kunstbeschreibungen des
Kallistratos.Einführung, Text, Übersetzung, Anmerkungen, archäologischer Kommentar,
München.

12 Tipo de flauta de Pã.

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Pausânias
(séc. II d.C.)

Descrição da Grécia 9.31.7-9

Tradução de RUI CARLOS FONSECA

No cimo do Hélicon, há um pequeno rio de nome Lamos e, na região


dos Téspios, existe um lugar chamado Dónacon. É aí que se situa a fonte
de Narciso. Contam que Narciso olhou para a água dessa fonte e que, não
percebendo que olhava para a sua própria imagem reflectida, se apaixo-
nou, sem o saber, por si próprio. Por causa desse amor, acabou por encon-
trar a morte junto à fonte. Esta história é deveras absurda: o facto de um
rapaz, tendo já chegado à idade de ser conquistado pelo amor, não ser
capaz de distinguir um homem do seu próprio reflexo.
Existe uma outra versão da história de Narciso, embora menos conhe-
cida do que a primeira. Diz-se que Narciso tinha uma irmã gémea e que
ambos eram idênticos em todos os aspectos da sua aparência: o cabelo era
exactamente igual, a roupa que vestiam era também semelhante e os dois
iam juntos à caça. Consta que Narciso se apaixonou pela irmã e que, quando
a jovem morreu, se dirigiu para a fonte, sabendo que olhava para a sua
própria imagem reflectida. A ida à fonte não lhe trouxe, porém, o descanso
pretendido para a dor de amor, porquanto na visão que contemplava não
julgava ver a própria imagem reflectida, mas a imagem da sua irmã.
A terra fez brotar a flor de narciso antes desta história, assim me
parece, se atentarmos ao que vem indicado nos versos de Panfo13. Pois,
na verdade, este poeta nasceu muitos anos antes de Narciso, o Téspio.
Além disso, conta o poeta que Cora14, a filha de Deméter, fora raptada

13 Poeta grego que compôs hinos. Terá sido um autor da época arcaica (anterior a

Homero) ou da época helenística (a ter em conta a análise estilística dos seus versos). Cf.
Encyclopaedia of the Ancient World (vol. 10, s.v. “Pamphos”); e The Oxford Classical Dictionary
(s.v. “Pamphus”).
14 Trata-se de Perséfone, filha de Deméter, raptada pelo deus Hades, que a levou

para os Infernos, fazendo dela sua mulher. Segundo o mito, a jovem estava a colher flores,
no momento em que foi raptada. A estadia alternada de Perséfone entre o Olimpo (onde
vive com a mãe, durante uma metade do ano) e os Infernos (onde vive com o marido,
durante a outra metade do ano) explica o mito da sucessão das estações.

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44 ECO E NARCISO

quando se distraía a colher flores. Não foram as violetas que a levaram a


ser raptada, mas os narcisos.

EDIÇÃO
ROCHA-PEREIRA, Maria Helena (1981), Pausaniae. Graeciae Descriptio, vol. 3, Leipzig.

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Longo
(séc. II d.C.)

Dáfnis e Cloe 3.22-23 (Eco)

Tradução de RUI CARLOS FONSECA

Rindo docemente e dando-lhe beijos ainda mais doces, Dáfnis colocou


a coroa de violetas na cabeça de Cloe e começou a contar-lhe o mito de
Eco, pedindo pelo desempenho da tarefa de educador o pagamento de
outros dez beijos.
“A linhagem das Ninfas, minha querida pupila, é numerosa: há as
Mélias15, as Dríades16 e as Heleias17. Todas elas são formosas e todas são
musicais. Eco é filha de uma dessas Ninfas: não só é mortal, nascida de
pai mortal, mas também bela, nascida de mãe igualmente bela. Foi criada
pelas Ninfas e ensinada pelas Musas a tocar flauta e a cantar qualquer
melodia ao som da lira e da cítara, de modo que ao atingir a flor da moci-
dade passou a acompanhar as Ninfas na dança e as Musas no canto. Fugia
de todo o contacto com o sexo masculino, tanto de homens como de
deuses. Ora, Pã encolerizou-se contra a jovem, invejando-lhe a música e
não lhe conseguindo tomar a formosura. Por isso, fez recair um estado de
loucura sobre os pastores e os cabreiros. Estes, como cães ou lobos,
despedaçaram-na e espalharam as partes do corpo por toda a terra, ainda
quando cantavam. Por simpatia para com as Ninfas, Geia cobriu todos os
membros da jovem, preservando assim a melodia que deles emanava; e,
por vontade das Musas, a jovem solta ainda a sua voz, imitando todos os
sons — de homens, deuses, instrumentos e animais —, tal como outrora
fizera. Imita até o próprio Pã a tocar flauta. E ele ao ouvir vai saltando

15 Ninfas dos freixos, também conhecidas por Melíades (o seu nome é formado a
partir de μελία que significa “árvore de freixo”). Cf. Hesíodo, Teogonia 187; Calímaco,
Hino a Zeus 47.
16 Ninfas das árvores, em geral, e dos carvalhos, em particular (o seu nome é formado

a partir de δρῦς que significa “carvalho”).


17 Ninfas dos pântanos (o seu nome tem na sua base o adjectivo ἕλειος que significa

“que vive nos pântanos”).

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46 ECO E NARCISO

pelos bosques em perseguição do som, não procurando encontrar mas


antes conhecer a identidade do seu discípulo oculto.”
Quando Dáfnis terminou de contar a história de Eco, Cloe não lhe
deu apenas dez beijos, mas beijando-o com ternura deu-lhe muito mais
do que uma dezena de beijos. Pois a verdade é que também Eco repetiu
a mesma história, como para testemunhar que ele não havia dito falsidades.

EDIÇÃO
REEVE, Michael D. (1982), Longus. Daphnis et Chloe, Leipzig.

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Severo de Alexandria
(séc. IV)

Narciso

Tradução de NEREIDA VILLAGRA

A (narração) de Narciso
Começa a muito estranha história de um estranho sofrimento. Havia
um jovem, Narciso, que se amava a si próprio e se auto-destruiu, já que
se distinguia na beleza do seu corpo, e por isso recebeu a beleza também
como castigo. Com efeito, chegou a uma fonte para beber e, como ficou
lá a contemplar a sua própria beleza, viu-se preso de paixão e de admira-
ção por si próprio. Apaixonou-se, e por isso provocou a sua própria ruína.
Era amado sem possuir amante, mas preso à fonte mostrava afeição pelo
seu reflexo como se fosse o seu amado. Tentando tocar-se, deixou-se cair
na água. E ao buscar consolação para o seu sofrimento encontrou a pri-
vação da vida, tendo desfrutado da sua morte tanto quanto da sua meta-
morfose final. E deixou visível a sua lembrança num rebento homónimo.

EDIÇÃO:
WALTZ, C. (1832-1836), Rhetores Graeci, Stuttgart, Tubinga, Londres e Paris, vol. 1,
[Osnabrück 1963].

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Nono de Panópolis
(séc. V d.C.)

Dionisíacas 48.570-589 (Narciso)

Tradução de RUI CARLOS FONSECA

Enquanto Baco18 queria preparar um dolo para o leito,


A jovem filha de Lelanto19 vagueava por caminhos errantes
À procura de uma fonte, tomada por uma sede ardente.
Não ignorava Dioniso que Aura20 corria os montes sem descanso,
Sedenta. Célere, arremetendo contra a base de um rochedo,
O deus golpeia a terra com o tirso. A superfície rochosa parte-se
E do seu interior fragrante brota, espontânea,
Uma corrente púrpura de vinho. Para agradar a Lieu21,
As servas de Hélio, as Horas22, pintaram com flores
A margem superior da fonte, e fragrantes brisas sopravam
Na doce atmosfera que envolvia o prado recém-crescido.
Aí germinaram flores com o nome de Narciso,
O jovem gracioso, que no frondoso Latmo
Foi gerado por Endímion , o noivo da cornígera Selene23,
Narciso, que tendo outrora olhado para a imagem de si próprio
Formada na água, o aspecto silencioso da sua beleza enganadora,

18Dioniso, divindade do vinho e do delírio místico.


19Lelanto é um dos Titãs; a sua filha chama-se Aura.
20 Jovem por quem Dioniso se apaixonou. Veloz como o vento (o seu nome, Αὔρα,

significa “brisa”, “vento”), conseguiu sempre escapar às investidas do deus. Só por


intervenção de Ártemis é que a jovem se entregou a Dioniso, de quem teve dois filhos.
Zeus metamorfoseou-a em fonte, depois de, num ataque de loucura, ter matado um dos
filhos e se ter lançado ao rio Sangário (cf. Grimal 2004: 56-57).
21 Epíteto de Dioniso (Λυαῖος), que significa “libertador”.
22 Divindades das Estações e da Natureza, que presidem ao ciclo da vegetação. Entre

outras funções, vigiam os portões do Olimpo e encarregam-se dos carros de Hera e de


Hélio (Grimal 2004: 235-236).
23 Nesta versão do mito, Narciso é filho de Endímion (jovem pastor, muito belo) e

Selene (deusa da Lua).

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TEXTOS E FONTES DA ANTIGUIDADE 49

Morreu ao encarar o sombrio fantasma da sua forma;


Aí geminou também a viçosa flor do jacinto de Amicles;
E no alto, sobre as flores primaveris, chilreavam os rouxinóis
Voando em bando acima dos cumes floridos.

EDIÇÃO
ROUSE, W. H. D. (1963), Nonnos. Dionysiaca, vol. 3, London and Cambridge.

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Antologia Palatina 11.76
Sobre Olímpico e Narciso
(séc. I a.C.)

Tradução de NEREIDA VILLAGRA

Do mesmo autor (sc. Lucílio)

Com esse focinho, Olímpico, perto de uma fonte


não vás, não vá dar-se o caso de olhares para a translúcida água
e tu, como Narciso, ao veres o teu rosto claramente
morras, odiando-te a ti próprio até à morte.

EDIÇÃO
PATON, W. R. (1958), The Greek Anthology, vol. 3, London and Cambridge.

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Antologia Palatina 9.27
Árquias ou Parménion (sobre Eco)
(séc. I a.C.)

Tradução de RUI CARLOS FONSECA

Sê benévolo ao falares, tu que passas adiante. Sou Eco, bem-falante


e não-falante. Se ouço alguma coisa, é isso mesmo que to respondo,
pois devolver-te-ei as palavras que pronunciares. Se ficas em silêncio,
eu em silêncio ficarei. Que língua haverá mais justa do que a minha?

EDIÇÃO
PATON, W. R. (1958), The Greek Anthology, vol. 3, London and Cambridge.

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Ovídio
(séc. I a.C)

Metamorfoses 3.339-510 (Eco e Narciso)

Tradução de PAULO FARMHOUSE ALBERTO

Famosíssimo por todas as cidades da Aónia, este Tirésias


340 dava irrepreensíveis respostas à gente que o vinha consultar.
A primeira a pôr à prova a sua credibilidade e a veracidade
das suas palavras foi a azulada Liríope, que outrora Cefiso
apanhara no seu sinuoso curso, e que, tendo-a aprisionado
nas suas águas, violara. Finda a gravidez, a lindíssima ninfa
345 dera à luz uma criança, que já na sua tenra idade era adorável.
Deu-lhe o nome de Narciso. Ora, consultado sobre o menino,
se chegaria a ver os longos anos de uma velhice avançada,
o profético vate respondeu: ‘Se não se conhecer a si próprio.’
Durante anos, a profecia do vidente pareceu vã; mas o desfecho
350 do caso, o tipo de morte e a insólita loucura comprovaram-nas.

De facto, quando fez dezasseis anos, o filho de Cefiso


tanto podia parecer um menino como um jovem adolescente.
Muitos foram os rapazes, muitas as raparigas que o desejaram.
Mas (tão insensível era a soberba naquela beleza tão terna)
355 jamais rapazes alguns, raparigas algumas o tocaram jamais.

Um dia, acossava veados em pânico em direcção às redes,


quando foi avistado pela ninfa da voz. Era a ressoante Eco,
que não sabia calar-se quando lhe falavam, nem falar primeiro.
Naquele tempo, Eco era ainda um corpo, não apenas uma voz.
360 Mas embora faladora, não usava a fala de modo diferente
do que agora: devolver, de entre muitas, as últimas palavras.
Isto fora causado por Juno. É que estando, tantas vezes, prestes
a surpreender ninfas deitadas nos montes com o seu Júpiter,

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TEXTOS E FONTES DA ANTIGUIDADE 53

Eco, sagaz, costumava entreter a deusa com longas conversas,


365 até as ninfas se escapulirem. Mal a filha de Saturno percebeu,
‘Sobre a tua própria língua, com a qual me enganavas’, disse,
‘ser-te-á outorgado diminuto poder e brevíssimo uso da voz.’
E confirma a ameaça com actos. Eco passou tão-só a duplicar
as palavras do fim das frases e a devolver os termos que ouve.

370 Ora bem, quando viu Narciso a vaguear pelos campos ermos,
inflamou-se de amor. Sorrateiramente, vai seguindo atrás dele.
E, quanto mais o segue, mais de perto é a chama que a inflama,
tal como quando o enxofre vivaz, que embebe as pontas
dos archotes, arrebata as chamas que se lhe chegam perto.
375 Oh! quantas vezes quis chegar à sua beira com doces palavras
e lançar-lhe ternas súplicas! A sua natureza, porém, opõe-se,
e impede-a mesmo de começar. Permite sim é estar a postos
para aguardar sons, aos quais possa reenviar suas palavras.

Num certo dia, separado do seu grupo de fiéis companheiros,


380 o moço gritara: ‘Quem está aqui?’ ‘Está aqui!’ respondera Eco.
Ele ficou estupefacto. Dirigindo o olhar para todos os lados,
berra em altos brados: ‘Vem!’ E ela chama quem a chama.
Olhando para trás e, de novo ninguém vindo, ‘Porque foges
de mim?’, grita. E quantas palavras diz, tantas recebe de volta.
385 Ele insiste, e, enganado pela ilusão da voz que responde, diz:
‘Anda para aqui, vamos!’, e Eco, que jamais haveria de ecoar
qualquer outro som com mais prazer, ‘Vamos!’ retorquiu. 24
Para apoiar em pessoa as próprias palavras, saiu do bosque
e avançou com o fito de lançar os braços ao ansiado pescoço.
390 Ele, porém, foge. E, ao fugir, exclama: ‘Tira as tuas mãos
de cima de mim! Antes morrer do que entregar-me a ti!’
Nada consegue ela retorquir a não ser ‘entregar-me a ti!’

24 Jogo de palavras de difícil reprodução em português. O verbo tanto quer dizer

‘encontrar-se’ como ‘fazer amor’: a intenção de Narciso é propor um simples encontro


entre ambos, Eco interpreta as palavras de Narciso como uma proposta de encontro
sexual.

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54 ECO E NARCISO

Repudiada, esconde-se nos bosques, e, com vergonha, oculta


o rosto na folhagem. E desde então vive em grutas solitárias.
395 Todavia, o amor permanece e cresce com a dor da repulsa.
Os cuidados das insónias emagrecem o lastimável corpo,
a magreza engelha-lhe a pele, e toda a humidade do corpo
evola-se para os ares. Somente restam a voz e os ossos:
a voz ficou; os ossos, dizem, tomaram o aspecto de pedra.
400 [Desde aí oculta-se em bosques e em monte algum é vista,
e, porém, todos a ouvem: é tão-só som o que vive nela.]

Assim escarnecera desta, assim de outras ninfas, nos montes


ou nas águas nascidas, assim, já antes, do convívio com os moços.
Por fim, algum deles, despeitado, ergueu as mãos para o céu,
405 ‘Que lhe seja concedido amar e nunca possuir o ser que ama!’
terá pedido; e a deusa de Ramnunte25 aprovou a justa prece.
Havia uma fonte límpida, argêntea de reluzentes remoinhos,
que nem pastores nem cabritas pastando no monte, ou outro
gado, tinham, alguma vez, tocado, que jamais pássaro algum
410 tinha turvado, ou animal bravio, ou ramo caído de árvore.
A toda a volta brotava erva, que a água vizinha alimentava,
e um bosque que jamais deixaria o local aquecer com o sol.
Ali se estendeu o rapaz, exausto do ardor da caça e do calor,
seduzido tanto pela beleza do local como pela nascente.
415 [Enquanto procura acalmar a sede, uma outra sede cresce;]
E enquanto bebe, arrebata-o a imagem da figura que vê.
[Ama uma esperança sem corpo; julga ser corpo o que é água.]
Extasiado consigo mesmo, fica imóvel, incapaz de se mexer,
o olhar fixo, qual estátua esculpida em mármore de Paros.
420 Estendido no chão, contempla os seus olhos, astros gémeos,
e os cabelos dignos de Baco, dignos até do próprio Apolo,
as faces impúberes e o pescoço de marfim, e o esplendor
dos lábios, e o rubor misturado com a alvura da neve.
Olha maravilhado para tudo o que torna maravilhoso.

25 Némesis.

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TEXTOS E FONTES DA ANTIGUIDADE 55

425 Sem saber, deseja-se a si próprio, e o elogiado é quem elogia;


e, ao desejar, é o desejado, e junto incendeia e arde de amor.
Quantas vezes beijos vãos não deu àquela fonte enganadora!
Quantas vezes não mergulhou os braços no meio das águas
para abraçar o pescoço que vê, e não se abraçou a si mesmo!
430 O que está a ver, não sabe; mas abrasa-se com aquilo que vê,
e a mesma ilusão que engana os olhos enche-o de desejo.
Crédulo, porque tentas agarrar em vão a fugidia imagem?
O que desejas não existe! Sai daí e o que amas perderás!
A forma que tu vês não passa de uma imagem reflectida:
435 ela não tem substância. Contigo vem, contigo permanece,
contigo parte — oh! se tu pudesses partir!

Cuidado algum com Ceres, cuidado algum com o repouso


conseguem arrancá-lo dali. Estendido na vegetação à sombra,
contempla a mentirosa forma com um olhar insaciável,
440 e através dos olhos consome-se. Soerguendo-se um pouco,
estendeu os braços para os bosques à sua volta, e assim diz:
‘Quem jamais sofreu, oh! bosques, mais atrozmente de amor?
Decerto o sabeis, pois fostes esconderijo oportuno para muitos.
Quem porventura recordareis, na vossa tão longa existência,
445 (pois há tantos séculos viveis) que se tenha assim consumido?
Aquele encanta-me e vejo-o; mas o que vejo e me encanta
não logro encontrar: tanta confusão se apodera de quem ama!
E para que eu sofra mais, nem é o mar imenso que nos separa,
nem longo caminho, montes, muralhas de portas trancadas:
450 separa-nos um ténue fio de água! E ele anseia ser abraçado:
é que quantas vezes estendi os lábios para as límpidas águas,
tantas vezes voltou para mim a boca e se esforçou por beijar.
Poderia tocar-lhe, dirias: é mínimo o que obsta ao nosso amor.
Quem quer que sejas, sai cá para fora! Porque me iludes, rapaz
455 sem igual, aonde vais, desejando-te eu tanto? Decerto não foges
da minha figura nem da minha idade. Até ninfas me amaram!
Não sei que esperança me prometes com o teu olhar amigo.
Pois sempre que abri os braços para ti, tu abriste-los para mim;

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56 ECO E NARCISO

sempre que ri, tu riste-te; e amiúde reparei nas tuas lágrimas,


460 quando eu chorava. Os meus sinais devolves com um aceno.
E, do movimento dos teus formosos lábios, tenho a suspeita
de que respondes com frases que não me chegam aos ouvidos.
Oh! Mas ele sou eu! Percebi! O meu reflexo já não me engana!
É por mim que me abraso de amor! Inflijo e sofro estas chamas!
465 Que farei? Ser rogado, ou rogarei eu? Que hei-de rogar, afinal?
O que desejo já eu tenho: é a abundância que me faz pobre.
Oh! E se eu pudesse separar-me do meu próprio corpo!
(Desejo estranho num amante: querer ausente o ser amado).
E já a dor me subtrai as forças. Não me resta muito tempo
470 para viver, desapareço em plena floração da juventude.
A morte não me é coisa cruel, pois na morte deixarei a dor,
mas ele, a quem eu amo, prouvera que vivesse mais tempo!
Agora morreremos os dois juntos, num só último sopro’.

Assim dizendo, em delírio, volta-se para aquela mesma face,


475 e com lágrimas turvou a superfície da água. Estremecendo,
a lagoa devolveu a imagem desfocada. Ao vê-la desaparecer,
‘Aonde foges? Fica, cruel! Não me deixes, a mim que te amo!’,
gritou. ‘Ao menos que eu possa ver o que eu não posso tocar,
e assim oferecer alimento à minha pobre e desvairada paixão!’
480 Enquanto se entrega à dor, arranca a orla superior da túnica
e fustiga o peito desnudo com as mãos da cor do mármore.
O peito fustigado cobre-se de uma vermelhidão rósea, tal
como costumam as maçãs, quando em parte estão brancas,
noutra se avermelham, ou, como cachos de variegadas cores,
485 onde a uva ainda não madura vai ganhando a cor púrpura.
Mal contemplou isto nas águas de novo tornadas límpidas,
não aguentou mais! Tal como a loira cera sempre se derrete
com uma chama suave, e como o orvalho matinal se dissipa
com o calor do sol, do mesmo modo, esgotado pelo amor,
490 dissolve-se e, pouco a pouco, por fogo oculto é consumido.
Já nem tinha mais aquela cor, o branco à mistura com o rosa,
nem o vigor, as forças e tudo o que antes lhe encantava ver,

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TEXTOS E FONTES DA ANTIGUIDADE 57

nem tão-pouco o corpo era já o que em tempos Eco amara.


E quando esta viu isto, embora ainda ressentida e lembrada,
495 entrega-se à dor. E quantas vezes o pobre rapaz dizia ‘ai! ai!’,
outras tantas vezes ecoando as palavras ‘ai! ai!’ repetia Eco;
e sempre que lacerava desesperado os braços com as mãos,
também ela devolvia o mesmo som dos golpes de desespero.
Fitando as águas familiares, estas foram as últimas palavras:
500 ‘Oh! rapaz amado em vão!’, e outras tantas palavras o local
devolveu; e mal disse ‘Adeus!’, ‘Adeus!’ também disse Eco.
Reclina então a cabeça cansada nas verdejantes ervas,
e a morte cerrou os olhos, admirando a beleza do dono.
(Até depois, ao ser recebido na morada infernal, continuou
505 a mirar-se na água do Estígio). Suas irmãs Náiades lançam-se
no pranto, cortam madeixas de cabelo e oferecem-nas ao irmão;
no pranto se lançam as Dríades, e no seu pranto ecoou-as Eco.
Já preparavam uma pira e o brandir de tochas e um féretro:
em parte alguma estava o corpo! No lugar do corpo, acham
510 uma flor de centro cor de açafrão, cingido de pétalas brancas.

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Primeiro Mitógrafo do Vaticano, Livro II. 83
(séc. IX-XI)

História de Liríope e de Narciso

Tradução de MARIA LUÍSA RESENDE

1. A ninfa Liríope concebeu, com o rio Cefiso, Narciso, a quem Tiré-


sias prometeu uma vida próspera, se nunca se apercebesse da sua beleza.
2. Quando Eco por ele se apaixonou, não conseguiu seduzi-lo e definhou
devido ao amor que sentia pelo jovem. Sempre que o perseguia com as
últimas palavras, ele fugia, e o que restava do seu corpo transformou-se
em pedra. 3. Tudo isto aconteu por ira de Juno, que Eco constantemente
demorava com a sua tagarelice, para que não pudesse surpreender Júpiter
enquanto ele perseguia as ninfas nos montes. 4. Dizem que Eco era filha
de Juno e que, devido à sua deformidade, se ocultou nos montes, para que
nada, além da sua voz, pudesse ser reconhecido, e que mesmo depois da
sua morte a sua voz continuou a ser ouvida. 5. Devido à excessiva cruel-
dade para com Eco, Némesis — ou seja a Fortuna, que vinga os insolentes
— levou Narciso, acima mencionado, a apaixonar-se por si mesmo, para
que o consumisse uma chama não menor do que a de Eco. 6. Fatigado
por uma caçada incessante, Narciso estendeu-se à sombra, junto a uma
fonte, e, ao beber daquela água, apercebeu-se da sua própria imagem.
Durante muito tempo aí permaneceu, até que por fim definhou e a vida
abandonou-o. 7. Dos seus restos mortais surgiu uma flor, a que as ninfas
Náiades, deplorando morte do irmão, deram o nome de Narciso.

EDIÇÃO
PREMIER MYTHOGRAPHE DU VATICAN (2003), texte établi par Nevio Zorzetti,
traduit par Jacques BERLIOZ, Les Belles Lettres, Paris.

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ANTOLOGIA DE AUTORES PORTUGUESES
OU DE LÍNGUA PORTUGUESA

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1. Do Renascimento ao Barroco
Selecção e organização de
ANA FILIPA GOMES FERREIRA

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Cancioneiro Geral de Garcia de Resende

1) João da Silveira, Cancioneiro Geral, 617 (excerto) [vol. III, pp. 355-356]
De Joam da Silveira a Simam de Sousa do Sem, porque veo ao Terreiro
d’Almeirim em ũa mula, com ũas largas esporas da jineta esmaltadas
e com chapins.
De Dom Joam Lobo.

Quero-te dar um aviso,


nam no tomes ò revés,
que nam vejas os teus pés.
porque, vês,
morrerás coma Narciso.
Este conselho de mi
toma em milhores horas
do que calçaste as esporas
de Çafi. (vv. 32-40)

2) Henrique da Mota, Cancioneiro Geral, 798 (excerto) [vol IV, p. 169]


D’Anrique da Mota a um alfaiate de Dom Diogo, sobre um cruzado
que lhe furtaram no Bombarral.

Doutra parte nam é siso


buscar minha perdiçam,
que quando culpam Narciso,
que morreu por mau aviso,
pois de mim já que diram?
(vv. 31-35)

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64 ECO E NARCISO

3) Do Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende (1516): Nuno Pereira,


“Rezões que deu Nuno Pereira em favor de seu cuidado, ajudando
seus precuradores”26

Narciso, Mancias morrerão


de só cuidados vencidos!
Oh, quantos ensandecerão
mui sesudos, que perderão
com cuidados seus sentidos!
A que se chama pasmar,
que cousa é esmorecer
senão querer abafar,
sem poder esfolegar?
E suspirar é viver.

Se o dissesse Oriana,
e Iseu alegar posso,
diriam quem se engana,
que suspiros são oufana,
cuidado, quebranto nosso.
Diriam: Quem alegou
suspiros contra cuidado,
nunca bem se namorou,
ca o que a nós matou
mata todo namorado.

Se os que são já finados


e que d’amores morreram
pudessem ser perguntados,
diriam que com cuidados
a vida e alma perderam:
a vida em esperando

26
Estabelecido e sugerido por Ricardo Nobre. Leitura de: Cancioneiro Geral, org.
Garcia de Resende. Lisboa: Herman de Campos, 1516, fol. 1v-2.

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DO RENASCIMENTO AO BARROCO 65

com cuidados e tristeza,


a alma desesperando,
eles mesmos se matando
com cuidar qu’é mor crueza.

Quem cuidado quer contar,


cuidar é lançar em renda,
cuidar é vida tomar,
cuidar é sempre cuidar,
cuidar, cuidar na fazenda.
Cuidar tem quem tem brigas,
cuidado quem tem demanda,
outro cuidado se manda
com prazer, não com fadigas.

Mas não é já cousa nova


suspirar com mal d’amores,
ca u27 se paixão renova,
suspirar me lev’à cova
com seus grandes desfavores.
Suspiros tristes, que vêm
refinando dos sentidos,
trazem seus pendões tendidos
pela fé que vos não têm.

27 Entenda-se: porque onde.

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Luís Vaz de Camões
(c. 1525-1580)

4) Écloga II (“Ao longo do sereno”), excerto

Nesta amorosa liga concertavam


os tempos, que passavam com prazeres.
Mostrava a flava Ceres polas eiras
das brancas sementeiras ledo fruto,
pagando seu tributo aos lavradores;
e enchia aos pastores todo o prado
Pales, do manso gado guardadora.
Zéfiro e a fresca Flora passeando,
os campos esmaltando de boninas;
nas águas cristalinas triste estava
Narciso, que inda olhava n’água pura
sua linda figura delicada;
mas Eco, namorada de seu gesto,
com pranto manifesto, seu tormento
no derradeiro acento lamentava.
Ali também se achava o sangue tinto
do purpúreo Jacinto, e o destroço
de Adónis, lindo moço, morte feia,
da bela Citereia tão chorada;
toda a terra esmaltada destas rosas!
(vv. 188-207)

5) Écloga VII (“As doces cantilenas que cantavam”), excerto

Também vereis em pedra a Ninfa bela


cuja voz foi por Juno consumida;
e, se queixar-se quer de sua estrela,
a voz extrema só lhe é concedida.
(vv. 326-329)

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DO RENASCIMENTO AO BARROCO 67

6) Elegia II, excerto

Aquela que de amor descomedido


pelo fermoso moço se perdeu
que só por si de amores foi perdido,
despois que a deusa em pedra a converteu
de seu humano gesto verdadeiro,
a última voz só lhe concedeu;
assi meu mal do próprio ser primeiro
outra coisa nenhũa me consente
que este canto que escrevo derradeiro.
(vv. 1-9)

7) “Entre rústicas serras e fragosas”28 (excertos)

Entre rústicas serras e fragosas,


compostas de asperíssimos rochedos,
de salitradas lapas cavernosas;
onde gretando os húmidos penedos
orvalhados de neve branca e fria,
brotando estão de si mil arvoredos;
uma floresta verde e sombria
a Natureza experta, que rodeia,
como elevado muro, a serrania.
Neste fermoso sítio se recreia
o lascivo Cupido entre as boninas,
que sempre um brando zéfiro meneia.
Da cândida cecém29, das clavelinas,
da salva, manjerona e das mosquetas,
das rubicundas flores jacintinas,

28 Sugerido por Ricardo Nobre. Poema atribuído a Camões por Faria e Sousa. Leitura

de: Luís de Camões (1688). Rimas Várias, coment. Faria e Sousa. Tomo IV, parte II, Lisboa:
Impr. Craesbeeckiana, pp. 41-49.
29 Entenda-se a açucena.

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68 ECO E NARCISO

muitas capelas tece, que de setas


lhe servem contra peitos de donzelas,
a quem de inveja traz sempre inquietas.
Não são de uma só cor as flores belas;
que umas esmalte verde, outra rosado,
entre as azuis crescendo as amarelas.
Dos agrestes loureiros rodeado,
faz o vale uma sombra deleitosa,
quando aparece o sol mais levantado.
E, por cima da relva bem graciosa,
as gotas de cristal quase imitando
estão do aljôfar puro a luz fermosa.
As cristalinas fontes, que brotando
por entre alvos seixinhos se derivam,
das árvores os troncos vão banhando.
(…)
Tornando ao bosque meu, que descrevia,
despois de ter contado da frescura
que nele tão pomposa aparecia,
referir quero agora uma aventura
que nele ao vão Narciso aconteceu,
digna de se chorar com mágoa pura.
Castigo foi que o moço mereceu
por ser mostrar esquivo com aquela
que em viva pedra Juno converteu.
Ardia em fogo da alma a vã donzela,
sofrendo um duro peito; que a Narciso,
quando ela mais se abrasa, mais congela.
E quando fraca ninfa mais de siso
mostrava um sinal certo de firmeza,
então se provocava o moço a riso.
Já de uma profundíssima tristeza
a descora o rigor que a consumia.
Como diz desfavor mal com beleza!

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DO RENASCIMENTO AO BARROCO 69

O gelado pastor folgava e ria;


mas vendo-a de seu gosto andar contente,
por não a contentar se entristecia.
É tal o seu rigor que não consente
que seja o gosto próprio festejado;
antes disso se mostra descontente.
Mas o cego Cupido, de afrontado,
em vingança da fé que desprezou,
fez que fosse de si mesmo enganado.
Casualmente um dia se chegou
a beber numa fonte cristalina,
que de si nova sede lhe causou.
Vendo a sua figura peregrina,
que a fonte dentro em si representava,
se perdeu por imagem então divina.
Como já, de enlevado, não cuidava
nos enganos que a sombra lhe fazia,
vendo o fermoso rosto, suspirava.
Por as avaras águas se metia,
e, quanto mais molhava os tenros braços,
então mais vivamente o fogo ardia.
Vendo-se assi prender em duros laços,
ao sentimento obriga a paciência,
dando fora de si ao vento abraços.
Embevecido todo na aparência,
sem saber do cuidado o que sentia,
não fez ao doce engano resistência.
Ao ver-se longe mais, mais perto via
o peregrino gesto; e, se chegava,
então para mais longe lhe fugia.
Vendo, enfim, como em tudo o remedava,
caiu no torpe engano que tivera,
a tempo que de si já preso estava.

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70 ECO E NARCISO

A Beleza que a tantas morte dera,


de si mesma se abrasa e se cativa.
Quão longe então de si ver-se quisera!
Ela se abranda própria; ela se esquiva;
e, sendo ela somente a quem se amava,
ela se chama ingrata e fugitiva.
A fermosura, pois, que namorava,
com tal dificuldade era seguida
que, estando dentro de si, mui longe estava.
A solitária ninfa, que escondida
já nas cavernas côncavas se via,
dos males que lhe ouviu foi comovida.
Das namoradas mágoas que dizia
o namorado moço, ela somente
os últimos acentos repetia.
Ele, vendo-se estar ali presente,
as cristalinas águas acusava
de que elas o faziam descontente.
Outras vezes à fonte, quando a olhava,
já cego e sem prejuízo, agradecia
a figura que dentro lhe mostrava.
Mas vendo que ela em nada se doía
de seu grave tormento, grita e chora.
Quanto erra quem de sombras se confia!
Já lhe pede que saia para fora,
ignorando que sempre fora esteve
a beleza que nele próprio mora.
Despois que longo espaço se deteve
nestes queixumes seus tão lastimosos
que, com tão longo ser, julgou por breve,
cos olhos, belos, sim, mas lacrimosos,
do vale se despede e da espessura,
dando soluços da alma vagarosos.

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DO RENASCIMENTO AO BARROCO 71

Entregue na vontade da Ventura


ou, por melhor dizer, de seus enganos,
ao centro se arrojou da fonte pura.
Destarte feneceu em tenros anos
Narciso, dando exemplo à Fermosura
de que tema, se é tal, também seus danos.
Sentimento mostrou da sorte dura
o namorado Júpiter, mudando
ao moço em flor purpúrea, qu’ inda dura.
Aquelas claras águas rodeando,
onde por seus amores se perdeu,
está despois da morte acompanhando.
Tanto no seu engano procedeu
que não sabe na morte inda apartar-se
dos erros que na vida cometeu.
Bem pode do coração desenganar-se,
que o fogo de um querer na alma inflamado
não costuma na morte resfriar-se.
Porque despois do corpo sepultado,
prisão onde se encerra fraco esp’rito,
eternamente chora o seu cuidado
e das escuras águas do Cocito
a rápida corrente refreando,
celebra o lindo gesto na alma escrito.
Lá se está cos favores recreando;
e, se foi desprezado, lá padece,
as duras esquivanças lamentando.
Nem dos avaros olhos lá se esquece,
que de fermoso verde a terra esmaltam,
por não ver os do triste que endoudece.
Assi que os desfavores nunca faltam,
até despois da morte perseguindo
um triste coração que desbaratam.
Triste de quem em vão lhe vai fugindo!

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72 ECO E NARCISO

8) Os Lusíadas, canto IX, estância 60

Pois a tapeçaria bela e fina


Com que se cobre o rústico terreno,
Faz ser a de Aqueménia menos dina,
Mas o sombrio vale mais ameno.
Ali a cabeça a flor Cifísia inclina
Sôbolo tanque lúcido e sereno;
Florece o filho e neto de Ciniras,
Por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras.

9) Soneto

Dizei, Senhora, da Beleza ideia:


para fazerdes esse áureo crino,
onde fostes buscar esse ouro fino?
de que escondida mina ou de que veia?

Dos vossos olhos essa luz Febeia,


esse respeito, de um império dino?
Se o alcançastes com saber divino,
se com encantamentos de Medeia?

De que escondidas conchas escolhestes


as perlas preciosas orientais
que, falando, mostrais no doce riso?

Pois vos formastes tal, como quisestes,


vigiai-vos de vós, não vos vejais,
fugi das fontes: lembre-vos Narciso.

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Diogo Bernardes
(c. 1530-c. 1594)

10) Soneto CXXVII

Vendo Narciso em ũa fonte clara,


A sombra só da própria fermosura,
De si vencido (Amor quis por ventura
Vingar as Ninfas qu’ele desprezara)

Todo enlevado na beleza rara,


Que seu peito abrasou em chama pura,
Chorando disse, à sua vã figura,
Por quem perdeu em fim a vida cara.

Ó Ninfa destas águas moradora,


Surda em ouvir-me, muda em responder-me,
Não vês a quem não ouves, nem respondes?

Não vês que sou Narciso? ai que por ver-me,


Mil Ninfas d’outras fontes saem fora,
E tu por me não ver, nesta t’escondes.
Flores do Lima, 1597

11) Écloga IV, “Fílis”

Respondem estes montes quando chamo


Por ti, e com voz triste Eco responde
Movida de quantas lágrimas derramo.
(vv. 58-60). O Lima, 1596

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74 ECO E NARCISO

12) Écloga XIII, “Lília”

Se tu Lília me vences, se m’encantas


Com tua doce fala, e doce riso,
Porque foges de mim, de que t’espantas?

Lembre-te a fermosura de Narciso,


Que tal paga lhe deu seu desamor,
Olha que com Amor isto t’aviso.
(vv. 25-30). O Lima, 1596

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Gregório Silvestre
(1520-1569)

13) “Fábula de Narciso” (excertos)

Narciso por su mal fue tan hermoso


que nadie en hermosura le igualava,
su rostro parescia el sol lumbroso,
que en rosas y claveles colorava.
Su cuerpo tan apuesto, y tan gracioso
que solo el aire del enamorava,
y siendo para ver en tal manera
le fuera bueno à él que no se viera.

Tenia el rostro en si tanta excelencia


que en todo lo criado no se vía
alguno que llegase a competencia
de lo menos hermoso que él tenia.
La mas hermosa Ninfa en su presencia
postrava su lindeza, y se rendía,
un no se que en su lindo aspecto estava
que todo cuanto vía enamorava.

Efecto fue ansi hecho en aquel gesto


para que en viéndose él se enamorase,
y porque amor también desde aquel puesto:
aunque quisiese errar tiro no errase.
Las ninfas pueden dar testigos desto
ninguna le miró que se escapase,
y fueles tan cruel y desdeñado
cuanto querido dellas por hermoso.
(est. 10-12, vv. 73-96)

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76 ECO E NARCISO

Con todas cuantas cosas él obrava


la misma imagen suya respondía
llegávase ella a él, si él se llegava,
y apártase también si se desvía.
Y viéndole llorar también llorava,
y a par, cuando se ríe, se reía,
abátese à besalla, allí en la fuente,
y abátese la imagen juntamente.

No se si del amor havéis notado


la suerte de vengança, fiera y dura,
porque Narciso à Eco ha despreciado
en Eco, se le dio la desventura.
Con otra nueva Eco se ha encontrado,
que es esta que anda entre él y su figura,
sus varios movimientos imitando
como la boz la otra resonando.
(est. 81-82, vv. 641-656)

La fuerça, y la lindeza, y sus valores,


la vida, y la virtud, y todo el resto,
le van así gastando los amores
que ya no queda en él nada de aquesto.
De leche, y sangre tornan las colores,
en amarillo, y cárdeno su gesto,
la Eco así en la muerte le ayudava,
y aún muerto dava muestras que lo amava.

La cual como morir así lo via


aunque de su desprecio se acordava
así su desventura le dolia,
que a par con él sus males lamentava.
Narciso dize “ay”, y “ay” respondia,
sonava el golpe della si él se dava
él dize, “tanto mal mereci yo!”
y quédase la boz sonando, “y yo”.

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DO RENASCIMENTO AO BARROCO 77

El alma de las carnes ya saliendo,


Narciso dize “adiós”, y Eco “adiós”,
la fuerça, y la virtud desfalleciendo
quisiera, y más no pudo alçar la boz.
La muerte entró por medio desparziendo
la vida, y el coloquio de los dos,
los ojos ocupó de mortal sueño,
que tanto se agradaran de su dueño.
(est. 92-94, vv. 729-752)

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Jerónimo Corte Real
(1530-1590)

14) Naufrágio de Sepúlveda, Canto I (excerto)

Então junto da fonte clara e pura


Em flor já transformado se levanta
Aquele por quem Eco convertida
Em miserável voz e escuro acento,
Nos côncavos penedos, nas sombrias
Desertas lapas, faz amargo pranto.

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Pedro de Andrade Caminha
(c. 1520-c. 1589)

15) Epigrama

Por amores de si morreu Narciso,


A seu amor su’alma viu rendida;
Por si perdeu entendimento e siso,
E por si teve em pouco a mesma vida.
Tua nova fermosura e brando riso
Que para ti tod’alma tem vencida,
Deve com mais razão, Fílis, vencer-te;
Fermosíssima Fílis, e ousas ver-te?

16) Epigrama

Foi o Amor a Narciso duro imigo,


Porque o amor desprezou de quem o amava;
Fê-lo por si morrer, deu-lhe o perigo
Em si mesmo que em outrem desprezava:
Teme-te, Fílis, d’outro tal castigo,
Qu’inda Amor pode dar o que então dava;
Mas ah, que antes terás por gram ventura
Morrer d’amores d’essa fermosura!

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Manuel de Faria e Sousa
(1590-1649)

17) Excerto de “Fábula de Narciso y Eco”, Fuente de Aganipe, parte II

A donde (de si propio arrebatado


fuera de si, consigo repetía)
tantas vezes te escondes rayo amado,
ardiente siempre, y siempre en Zona fría?
Visita un poco el margen deste prado,
que bordas de caduca argentería;
y serás por florentes laberintos
Sol de perla en coluros de Iacintos.

Y porque un día liberal te excedas,


iguala a bellas vistas dulces laços;
pues ya no sufre Amor que me concedas
siempre en ojos ardor, sin nieve en braços.
Secretarias serán estas veredas
de amorosos favores; que a pedaços
hay plantas que conocen que en las palmas
de retornos de Amor crecen las Almas.

Si las salas que habitas de amatistes


no sufren que a mi gusto correspondas,
no temeré buscarte a donde asistes,
pues tengo mas deseos, que tu ondas.
Si en la distancia tímido resistes,
no quiero de ti mas que no te escondas.
Que son en los peligros mas constantes
osadías de Amor, glorias de Amantes.

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DO RENASCIMENTO AO BARROCO 81

Yo si por señas te hablo con los ojos,


con ellos también tu me hablas por señas.
Si con la lengua digo mis enojos,
que algunos dizes tu también me enseñas.
Crezca el ánimo, pues, con desenojos
fundados en que ya no me desdeñas.
Quién cuanto hago haze tan ligero,
también ha de querer lo que yo quiero.

Así hablando a sus sombras naturales,


de lisa candidez, y de áureo rizo,
infundía en los líquidos cristales,
de hermosos dedos el cristal macizo.
Coger piensa en los húmidos caudales
el favor de una mano de su hechizo.
A una mano, otra mano se venia,
pero ninguna dellas se cogía.

Aquel favor que en el cristal yaciente


imaginó lograr, le salió vano:
porque como era líquida la fuente,
quedava siendo liquida la mano.
En quererla coger está insistente,
sin advertir que es sombra, el fuego insano;
cristales con cristales se apretavan,
pero los apretados no se hallavan.

Como a aquél que de noche entretexido


en sonolientos laços de Morfeo,
hallazgo de tesoro apetecido
le representa el lánguido recreo,
pero dellos apenas ha salido
por el incendio del farol Febeo,
cuando no ve lo que en el sueño vía,
no sin dolor de aquella fantasía;

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82 ECO E NARCISO

La porfiada mano sin despojos


de sus porfías amorosas saca.
Pudiendo enflaquecerle estos enojos,
en nada sus insistencia anduvo flaca.
Buelve a pone en el cristal los ojos,
y como de su sombra no se aplaca
el ardor, que discurre por las venas,
de nuevo le informava de sus penas.

Ya cree que le escucha mas humana


la sombra, que insensible no le escucha;
pondera en poco labio mucha grana,
poca aspira a coger con ansia mucha.
Oh, cuantos devaneos hoy devana
este que hoy tanto con deseos lucha!
De la mano el primer favor no toca,
y busca ya el postrero de la boca.

Ya la boca (dos vezes encendida,


en Amor, i en color) a la agua llega,
y luego la del fondo promovida,
a buscar su motor veloz navega.
Pero, quién la azuzena pretendida,
de la mano, antes poco allí le niega,
negando agora de los bellos labios
los dos claveles, multiplica agrabios.

A admitir desengaños no se mueve


de sus engaños el Amante ciego;
ni con verse bever adversa nieve
cuando bever pensava amigo fuego.
Mas si las llamas del clavel no beve,
con las del suyo, el frígido sosiego
del luziente cristal está estragando,
que al fuego infuso queda murmurando.

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DO RENASCIMENTO AO BARROCO 83

Con sufragios de fuego rebolviendo


está el golfo en que no halla algún sufragio;
gran naufragio el Amor va padeciendo,
pero el deseo crece en el naufragio.
En la Ninfa gentil, que le está viendo,
de algún trágico sin era presagio
ver que la llama en la agua no se enfría,
y que esta con aquella se encendía.

Mas ya se aparta el joven con mil zelos


de las de su figura vítreas casas;
lleva en sus labios, de las aguas, hielos;
dexa en las aguas, de sus lavios, brasas.
El claro Auriga, que ha nacido en Delos,
dexando del zafir las vegas rasas,
calado por el húmido Tridente,
apenas dava a Ceres media frente.

Pero apenas también la Aurora buelve


a dar de su retorno blanco aviso,
cuando a buscar la fuente se resuelve,
o a verse en ella en mísero Narciso.
En Eco, que en su vista el gusto embuelve,
no perderle de vista era preciso.
Ambos salen al valle, ambos se miran
y con opuesto Amor ambos suspiran.
(est. 51-64)

18) Écloga II (excerto), Fuente de Aganipe, parte IV

Pois, Amor, se é possível que no fundo


Deste rio está vendo o raio aceso
Digno de ser farol a mais de um Mundo,
Não só de ter-me em sua corda preso;

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84 ECO E NARCISO

Evita o ver-se no cristal profundo,


Sobre que está pendendo o belo peso,
E, se ver o deixares, dá-lhe aviso
De que por ver-se a si morreu Narciso.
(est. 15)

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D. Francisco de Portugal
(1585-1632)

19) Soneto incluído no texto “Prisões e solturas de uma alma”, Divinos


e humanos versos

Riso à púrpura dá, púrpura ao riso,


primavera animada à primavera;
tal graça abre na graça que pudera
justificar Narciso a ser Narciso.

Qual noutro paraíso um paraíso,


se assoma um vivo sol no sol que era,
que humana acção divina acção movera
por quem perder mais siso era mais siso.

Opondo flor a flor e fogo a fogo,


fermosura fulmina a fermosura,
que o desejo a desejos desafia.

De um incêndio outro incêndio nace logo,


de um céu aberto, céu de mor ventura:
quem viu rir Célia muito mais veria.

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Vasco Mousinho de Quevedo e Castelo Branco
(c. 1570-c. 1630)

20) Excerto de Afonso Africano (descrição de Zara)

Às vezes enfadada na Floresta


Quando arde a calma, quando o Sol s’empina,
No regaço florido passa a sesta,
E na mão de alabastro a face inclina;
Ora os olhos à fonte clara empresta,
E brincando com a água cristalina,
A veia se perturba, e se mistura,
Porque ela se não turbe co’a Figura.

Que ao ver a imagem bela n’água clara


O lindo asseio e gracioso riso,
Se por ventura risse, perigara,
Perdendo-se por si como Narciso;
Mas ela é desta glória tanto avara,
Que, por se não mostrar, turba de aviso
A fonte, que da mesma água se cia,
Lhe fuja co’a figura, pois corria.
(canto IV, est. 38-39)

21) Excerto de Afonso Africano

Em flor se mostra ali, por si perdido


O fermoso Narciso incautamente,
E por ter o castigo merecido
Junto nasce da líquida corrente;
Em flor também Iacinto convertido
Sua história nas folhas tem presente,
Amaranto em belíssima bonina,
E Adónis pena eterna da Ericina
(canto VI, est. 19)

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Manuel da Veiga Tagarro
(finais séc. XVI – meados séc. XVII)

22) Ode III, Livro II, Laura de Anfriso

Álemo venturoso,
Que tendes as raízes na água clara
Deste rio fermoso,
Que correndo aqui pára
Só por me ouvir cantar a Ninfa cara;

Pouco tempo é passado,


Em que no vosso tronco limpo e terso
Escrevi meu cuidado,
Ponto este brando verso:
“Laura, Laura, beleza do universo.”

Com as letras ditosas


Como creceste vós, creceram elas,
Cada vez mais fermosas;
E por serem tão belas
De inveja se eclipsavam as estrelas.

Ó letras, signos da Alma!


Que os signos estelantes excedeis,
Levai, levai a palma
Contra os fados cruéis,
Pera que o vosso Anfriso eternizeis.

E vós, álemo altivo,


Que merecer pudestes tal ventura,
Não temais tempo esquivo,
Nem sorte iníqua e dura,
Que o nome que em vós pus vos assegura.

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88 ECO E NARCISO

Quantas vezes com brio,


Álemo meu, vos vejo deburçado?
Por vos verdes no Rio
Também afortunado,
Tendo de Laura o nome em vós lavrado.

Ah, como vos contemplo


Que movido do ar sonoro e brando,
Sois de Narciso exemplo.
Pois para a água olhando,
Vos estais de vós mesmo namorando.

Param os cristais finos,


Que querem ser as águas vagarosas
Espelhos cristalinos
Das letras venturosas,
Que se estão vendo na água mais fermosas.

Entre as felizes águas


Cristalina contenda se enxergava;
Qual vai chorando mágoas
Porque o lugar deixava,
Qual porque lhe sucede se alegrava.

As que na competência
Seu espumoso engano enobrece eram,
Honrando a resistência,
Torres de alambre ergueram,
E obeliscos de neve aos ares deram.

Já nunca estas correntes


Estiveram mais puras nem mais belas,
Salvo quando presentes
Se debuxaram nelas
Uns olhos mais fermosos que as estrelas.

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Jacinto Freire de Andrade
(1597-1657)

23) “Fábula de Narciso”, Fénix Renascida, tomo III (2.ª ed.)

Fabulemos, ó Musa, um pouco embora,


Perca-se com Narciso um breve rato,
Que ambição de patife tenho agora,
Pois que Cronista sou de um mentecato:
Musa de disparates inventora
Socorre estes, que agora intento, e trato,
Que hei mister neste tempo, ó grão Talia,
Até para ser néscio ter valia.

Filho Narciso foi da escarcha elada,


Um regato o gerou d’águas tão frias,
Que sobre um só cidrão da mesurada
Eu lhe bebera o pai dentro em três dias:
Com ser o regatinho um quasi nada
Pontes derruba, e faz mil tiranias,
De que se burla o tempo, pois elado
O tem por louco à mesma marge atado.

Brotou na serra dura, e correu logo


Atroando insolente a penedia;
Quantos fazem “três val” com menos jogo,
Muito ruído e pouca fidalguia!
Conquistar pertendeu com brando rogo
Uma Ninfa gentil, que parecia
Rico feitio, estampa peregrina,
Cheguem-se mais, que já corro a cortina.
(est. 1-3)

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90 ECO E NARCISO

Cresce Narciso em dias na beleza,


Tinha já de sobejo graça e brio,
Estava-se de gorra à natureza,
Dizem que fez trancinhas no feitio;
Os cabelos co’ a cor de Febo acesa
Por ouro se gastavam fio a fio,
E aqueles que o contemplam crespo e belo
Andam dependurados de um cabelo.

Dos olhos corre a fama na cidade


Que jogam demasiado o embaraço,
Não faz com eles sorte a liberdade
São de sete levar, de topo e faço;
Humanos são à mesma suavidade,
Mas irados e azedos, mais que agraço,
Se eles nocivos são, por ser perfeitos,
Menos mal fazem os tortos que os direitos.

Musa o retrate aqui, culta e limada,


Mas não tenho dos críticos o aviso,
Comparações de sol são mui d’estrada;
Pois que lhe hei-de chamar, a este Narciso?
Retratar formosura, e mais barbada,
É ter já no hospital atado o siso;
Teu pai que te retrate, ó mentecato,
Pois fez o original, faça o retrato.
(est. 32-34)

Deram-lhe um grão lugar, cresceu d’estado


Grande volateria a casa atroa,
Como se vê Ministro autorizado
A caças de rapina de afeiçoa;
Já diz que de papéis anda enfadado,
Que é grande cruz o ofício, nos pregoa;
Mas a cruz dum Ministro, se é velhaco,
É cruz do mau ladrão, é cruz de caco.

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DO RENASCIMENTO AO BARROCO 91

Tão grão pirata foi, que retratado


Por um gentil pintor que achou barato
Sem milagre nenhum se haver obrado
Lhe tem crescido as unhas no retrato;
Ao que serviu melhor, ao que é soldado,
Antes de o consultar lhe apanha o fato;
Nenhum Heitor por forte é seu valido,
Salvo se tiver Mendes no apelido.

Com ser ladrão se punha afeminado


Águas nas mãos e rosto destiladas,
Que anda este papelista costumado
A trazer de contínuo as mãos untadas;
Sempre sentenças diz, fala alcorçado30
Discrições de conversa abemoladas,31
Qu’um discretaço doce é justo empenho
Lavrar açúcar, pois tem tanto engenho.

De cândido alabastro a gentileza


Por singular na terra encarecia,
Tratou de fazer jóia a natureza,
Lavrou Narciso então de pedraria;
Como Fénix o queima a sua beleza,
De seus próprios ardores se acendia,
E em vez de pedir água, que se abrasa,
Seu mesmo dono punha fogo à casa.

Um pouco mais que humano se afigura,


Já de aromas o fumo apetecia,
Cinco mil anos há que à formosura
Estava lavrando altar a idolatria;
Numa fonte se viu, líquida e pura,

30Alcorça: massa de açúcar e farinha com que se cobrem ou fazem diversos doces;
em sentido figurado designa uma coisa ou pessoa delicada.
31 Abemolado: em sentido figurado significa extremamente suave, afectado.

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92 ECO E NARCISO

Mas turbou logo o espelho em que se via;


Não quer que dous Narcisos tenha o mundo,
Nem que haja inda por sombras seu segundo.

Para perder-se topa o novo ensejo,


Achou já noutra fonte o matadeiro;
Fora-se ele a viver só no Alentejo,
Não topara com fonte um ano inteiro:
Vai-te afogar minguado antes no Tejo,
Deixa cuidados néscios, malhadeiro,
Menos parece amor do que surgia
Andar abrindo fontes cada dia.
(est. 49-54)

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Francisco de Vasconcelos Coutinho
(1665-1723)

24) Soneto “À fragilidade da vida humana”, Fénix renascida, tomo III


(2.ª ed.)

Esse baxel nas praias derrotado


Foi nas ondas Narciso presumido;
Esse farol nos Céus escurecido
Foi do monte libré, gala do prado;

Esse nácar em cinzas desatado


Foi vistoso pavão de Abril florido;
Esse Estio em Vesúvios encendido
Foi Zéfiro suave em doce agrado.

Se a nau, o Sol, a rosa, a Primavera


Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago,

Olha, cego mortal, e considera


Que és rosa, Primavera, sol, baxel
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.

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Bibliografia activa

A Fénix Renascida, ed. António Nunes Correia e Matias da Silva Pereira, 2.ª edição, tomo
III, Lisboa, António Pedroso Galrão, 1746.
D. Francisco de Portugal, Divinos e humanos versos, introdução e notas de Maria Lucília
Gonçalves Pires, Porto, Centro Inter-Universitário de História da Espiritualidade,
2012.
D. Francisco de Portugal, Divinos e humanos versos, Lisboa, Oficina Craesbeckiana, 1652.
Diogo Bernardes, O Lima, Lisboa, Simão Lopes, 1596.
Diogo Bernardes, Rimas várias. Flores do Lima, Lisboa, Manuel de Lira, 1597.
Garcia de Resende, Cancioneiro Geral, fixação do texto e estudo por Aida Fernanda Dias,
volumes III e IV, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003.
Gregório Silvestre, Obras, Lisboa, Manuel de Lira, 1592.
Jerónimo Corte Real, Obras, introdução e revisão de Manuel Lopes de Almeida, Porto,
Lello & Irmão, 1979.
Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, introdução, notas e vocabulário de António José Saraiva,
Porto, Figueirinhas, 1999.
Luís Vaz de Camões, Rimas, texto estabelecido, revisto e prefaciado por Álvaro Júlio da
Costa Pimpão, apresentação de Aníbal Pinto de Castro, Coimbra, Almedina, 2005.
Manuel da Veiga Tagarro, Laura de Anfriso, Évora, Manuel Carvalho, 1627.
Manuel de Faria e Sousa, Fuente de Aganipe o Rimas varias, Madrid, Juan Sánchez, 1644.
Pero de Andrade Caminha, Visões de glória (Uma introdução à poesia de Pero de Andrade
Caminha), edição de Vanda Anastácio, vol. 2, Lisboa, Fundação Calouste Gulben-
kian, 1998.
Vasco Mousinho de Quevedo e Castelo Branco, Afonso Africano, Lisboa, António Álvares,
1611.

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2. Do século XVIII ao século XXI
Selecção e organização de
RICARDO NOBRE

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Integra esta antologia um conjunto de poemas que tematizam a his-
tória de Narciso e Eco ou cuja leitura recorda o mito. Seleccionaram-se
textos de diferentes épocas, dispostos cronologicamente, mas de modo
algum se deve considerar um trabalho exaustivo. Nesse sentido, evitou
reproduzir-se poesias muito extensas ou mais de um poema por autor
(orientação não intransigida). O único texto em prosa incluído pertence
ao Livro do Desassossego, do pessoano Bernardo Soares.
São indicadas em rodapé as edições de onde se transcrevem os poe-
mas; as actualizações gráficas e tipográficas de obras anteriores ao século
XX são da responsabilidade do organizador.

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1. Soror Maria do Céu
(1658-1753)

“Narciso, Gentileza”32

Tem o narciso tanta gentileza


que na fonte o rendeu sua beleza,
e hoje, porque o conte,
há narciso do espelho, e não da fonte.
Homem que, sem conselho,
como dama te alinhas ao espelho,
olha bem que só toca neste espaço,
o cristal à mulher, a ti o aço,
abraça o que te é próprio,
que ser homem e flor está impróprio.
Se és belo, procede de tal arte
que quem te vê Narciso te olhe Marte!

32 Leitura de: Madre Soror Maria do Céu (1736). Enganos do Bosque, Desenganos do

Rio, em que a Alma Entra Perdida e Sai Desenganada. Lisboa Ocidental: Of. Manuel
Fernandes da Costa, p. 205. No mesmo volume (pp. 107-109), encontra-se um poema em
espanhol com a mesma temática.

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2. Manuel Maria Barbosa du Bocage
(1765-1805)

“Da triste, bela Inês inda os clamores”33

À lamentável catástrofe de D. Inês de Castro

Da triste, bela Inês inda os clamores


Andas, Eco chorosa, repetindo,
Inda aos piedosos Céus andas pedindo
Justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se inda na Fonte dos Amores


De quando em quando as náiades carpindo,
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe, irado, a barreira, alaga as flores;

Inda altos hinos o Universo entoa


A Pedro, que da morte formosura
Convosco, Amores, ao sepulcro voa.

Milagre da beleza e da ternura!


Abre, desce, olha, geme, abraça e c’roa
A malfadada Inês na sepultura.

33
Publicado em 1791; citado de: Bocage (2008). Obra Completa, 1.º vol.: Sonetos,
ed. Daniel Pires, 2.ª ed. Porto: Caixotim, p. 227.

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3. António Feliciano de Castilho
(1810-1870)

Cartas de Eco e Narciso (excertos)34

CARTAS DE ECO E NARCISO – PRIMEIRA PARTE


Carta I: Eco a Narciso (pp. 27-30; completa)

Dos mancebos gentis ao mais amável,


ao formoso Narciso, uma das Ninfas
saúde, e o coração, e os ais dirige.

No tronco deste choupo ela te escreve,


nas verdes margens do sereno rio,
que de contínuas lágrimas aumenta.
Às minhas expressões, aqui traçadas,
negar não poderás teus lindos olhos;
seguido de teus cães é teu costume
passares por aqui, mal rompe a Aurora,
indo à montanha a perseguir as feras:
dentre as anosas árvores oculta,
sem ser vista jamais, te vejo sempre.
Ou vás, ou voltes já no fim da tarde,
ao ver-te cada vez te amo de novo.
O fogo, que por ti ferve em minh’alma,
de dia em dia, mais e mais se ateia.

A trança d’oiro desatada ao vento,


teus lindos olhos, teu semblante amável,
teu belo colo, tuas mãos de neve,
e a idade juvenil, e tudo encantos,

34
1.ª ed. 1821. O texto é citado a partir da 5.ª ed. (Lisboa: Empresa da História de
Portugal, 1903).

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100 ECO E NARCISO

mostram-me ao vivo as perfeições de Adónis.


Ao ver-te eu julgo vê-lo, e digo sempre:
“Se Adónis era assim, não te envergonhes
de adorar um mortal, ó páfia deusa.”
Mas Adónis… talvez que o mesmo Adónis…
não: nenhum dos mortais chega a Narciso.
Nome querido… ah! deixa-me beijar-te!
tanto o meu coração se ensoberbece,
como exulta de gosto em te escrevendo.
De possuir-te ufano o duro tronco,
engano-me? ou produz folhagem nova?
não, não é ilusão; ei-lo mais belo,
mais fastoso, mais nobre se alevanta
entre mil choupos, que esta praia cingem.
Da glória, que lhe dou, seu cume aos astros
vaidoso levará. Canoras aves,
vós nele resumi toda a floresta;
formai nos ramos seus os ninhos vossos,
em seus ramos cantai na madrugada.
Sua cima elevada além de todas
primeira gozará do Sol os raios.
À sua larga copa inda algum dia
os pastores, atónitos de vê-lo,
seu gado imenso espalharão à sombra;
virão cantar aqui na agreste flauta
sua ternura, seu amor constante.
Consagrado à paixão seja este tronco,
onde a mais terna mão gravou seus versos,
versos sem arte, só de amor nascidos.

Cos repetidos ais meu seio treme…


sinto meus peitos inundar-se em pranto!
Ah! correi doces lágrimas, que eu amo,
pois Narciso gentil é vossa causa,
e em vossa causa só descubro encantos.

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DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI 101

Quanto nunca se amou, Narciso, eu te amo!


Porém que digo? amar-te! é pouco ainda;
tu és aos olhos meus de amor o nume.
Teu doirado carcás, teu arco e frechas,
teus anos juvenis, imberbe rosto,
o som de tua voz, tua beleza,
tudo anuncia o deus, que as almas vence.
Feres os corações, como ele fere,
triunfas da razão, como triunfa,
roubas a paz aos corações mais livres,
lanças n’alma o cuidado, os ais produzes,
em sonhos de paixões o sono trocas.
Se um facho aceso tua dextra ornasse,
se asas d’oiro e de luz te revestissem,
nem mesmo a mãe de Amor vos dif’rençara!

Se as minhas expressões acaso leres,


não ouças sem piedade os meus tormentos.
Em lágrimas, em ais consumo os dias,
em lágrimas, em ais as noites velo;
fujo, aborreço as companheiras minhas.
Essas danças, que outrora me encantavam,
perderam para mim seus atractivos:
evito ver a luz, procuro as sombras,
nas mudas solidões penso em meus males,
nas ermas grutas longas horas gemo.
Essas cavernas, onde as feras dormem,
onde tem seus covis leões e tigres,
de meu contínuo pranto estão regadas.
Ali suspiro sempre, e quantas vezes
não lanço olhos de inveja e de ciúme
à leoa feliz, que está sem fúria
seu esposo afagando entre os filhinhos!
Sua sorte é melhor que o meu destino.
Aquele, que deseja, e por quem arde,

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102 ECO E NARCISO

ela o acha, ela o tem, e o goza sempre.


O rei dos animais não se envergonha
de arrastar os grilhões, que Amor lhe lança;
os laços conjugais nunca desdenha,
da existência o prazer no amor apura.
Amor, de nossos bens fecunda origem,
é da vida o sabor. Sorri-se Vénus
a quem a adora e busca, e de seu cinto
faz delícias chover sobre os amantes.
Quem não arde de amor, quem não procura
gostos celestes, que de amor só nascem,
em frouxa languidez consome os dias,
e desce à campa sem ter visto o mundo.
Quem não se acurva a amor, o ser lhe ultraja;
e o nume, que aos mortais sempre é benigno,
então seu braço vingador levanta,
e um golpe, inda maior que o mesmo raio,
à sacrílega audácia impõe mil penas.
Ah! defenda-te o Céu de tais castigos!
A vingança do nume excede a todas;
mais tormentos não tem as fúrias mesmas.
Medita, pensa bem nesta ameaça.
Pensa, cheio de horror, em mil exemplos
de calcadas, punidas esquivanças.

O vivente infeliz, que amor não goza,


é qual planta nascida entre penedos;
mal segura a raiz num chão de pedra,
os frios ares a perseguem sempre,
e à sombra dos rochedos não sentindo
luz, influxo, e calor do Sol brilhante,
sobe sem forças, infecunda vive,
as flores não produz que as Ninfas colhem,
e morre-lhe em si mesma a prole sua.
Tão triste condição Narciso evite!
Das Ninfas à mais terna, à mais constante

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DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI 103

ceda seu coração, sua ternura.

Tu, que podes encher os nossos campos


de filhos, como tu, formosos todos.
Tu, que podes ornar estas florestas
de ninfas novas que estas ninfas vençam,
esta glória a ti mesmo hás-de negar-te?
Não: voa aos braços de quem só te busca,
pondo todo o seu bem num teu sorriso.

Talvez perguntarás quem sou, que tanto


ouso elevar meus temerários votos?
Ai de mim! que farei? dizer meu nome?
Pela primeira vez tais sentimentos
dentro em meu coração se alevantaram!
Tu me fizeste conhecer que tinha
peito capaz de se inflamar de amores!
Esta a primeira vez que minha dextra
as ternas expressões tremendo escreve,
e o pudor me afogueia enquanto o faço!

Declarar-te meu nome? Ah! não me atrevo!


Temo os Faunos, e os Sátiros do bosque;
temo que possam deste rio as Ninfas
entre risos zombar da nova amante.
Responde-me; e se acaso às queixas minhas
insensível não és, pede encontrar-me.
Então me lançarei entre teus braços,
então meu fogo sentirás de perto.

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104 ECO E NARCISO

CARTAS DE ECO E NARCISO – SEGUNDA PARTE


Carta X: Eco a Narciso (pp. 75-76; excerto do final)

Narciso, se por mágica virtude,


tu pudesses roubar o ardor às chamas,
fazendo que a infeliz, em vez de morta,
leda brincasse no adorado incêndio,
recusara-lo tu? — Narciso, eu ardo,
Narciso, eu morro; por piedade ao menos,
a não ser por amor, cede a meus rogos.
Vem a meus braços, finge amar-me, e se isto
se isto inda é muito, inda te peço menos:
vem uma, uma só vez à minha gruta;
permite-me apertar-te ao terno seio,
beijar-te com transporte, e depois disto
podes sair do pranto meu banhado.

Carta XII: Narciso a Eco (pp. 83-84; excerto do início)

Li teus versos, ó ninfa, e minhas faces


de compassivo pranto estão cobertas.
Choro os teus fados, tua paz desejo,
mas não ta posso dar. Se és qual pareces,
dá-me outra vez o meu fiel Melampo,
meu companheiro, meu constante amigo,
e não me exijas impossível paga.
Dou-te o meu coração; mas, não te iludas,
não te dou nele amor, dou-te amizade.
Não te posso dar mais, nem tu desde hoje
podes mais exigir se isto me leres.

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DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI 105

Carta XIV: Eco a Narciso (pp. 87-90; excerto do final)

Amemo-nos, Narciso: ah! não rejeites,


não rejeites um bem que não conheces…
Se de uma ninfa meiga um doce abraço,
se em teus lábios acaso os lábios dela
sentisses imprimir num doce beijo,
Narciso, pensa bem! Resolve e escreve,
e eu te direi da minha gruta o sítio.

Carta XVI: Eco a Narciso (pp. 99-104; excerto das pp. 101 e 102)

Narciso, não por mim, pois me detestas,


mas por teus cães, mas por ti mesmo, ingrato,
por tua mãe, que bem como eu te adora,
pelas paternas ondas te conjuro,
cede a amor, cede a Amor; o Céu piedoso
compraz-se de esquecer passada ofensa,
vendo abrandar-se o coração dos ímpios.
Némesis pode, e quererá salvar-te;
basta só que de Amor às leis te humilhes,
basta só que o prazer, que os bens te agradem.
Cede, entrega-te a mim; eu posso e devo
do precipício à borda segurar-te;
e se acaso uma vítima demanda
o infortúnio cruel, eu quero, eu mesma
arrojar-me por ti do abismo ao fundo,
sentir o fado atroz que mereceste;
e inda no meio de infernais horrores,
fazendo-te feliz, serei ditosa.
Ah! confia no Céu, mas crê no sonho.
Vem a meus braços, fugirás da morte.
(…)

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106 ECO E NARCISO

Sou indigna de ti? Se acaso o pensas,


se inda és o mesmo, se mudar não queres,
treme, ingrato, que Némesis me vinga.
Há-de armar-se em teu dano o deus que ultrajas,
o deus que sirvo, o Amor; chega-se o tempo
em que ele há-de pagar meus sacrifícios.
Para servi-lo, a cólera de Juno
temerária afrontei; retive a deusa
mil vezes conversando, enquanto Jove…
Mas basta: se esta acção te excita o ódio,
pensa que Jove é rei da Natureza,
que Juno é vingativa, e que eu devia
conservar-lhes a paz, e a fama às ninfas.
Perdi a voz em pena da piedade;
dentre as sócias de Juno eis-me banida,
mas sempre a mesma e sempre virtuosa,
e somente infeliz depois que te amo.

Carta XVII: Narciso à Náiade da Fonte (pp. 105-108; completa)

À mais bela das Náiades mais belas,


por seus encantos mágicos vencido,
saúde envia o caçador Narciso.

Vencido por seus mágicos encantos?!!


Eu! que aborreço, que desprezo as ninfas?
Em meus lábios que insólita linguagem!
Oh! não, não é de amor! Se eu colho a rosa,
se a olho atento, se lhe louvo as graças,
quem dirá que por ela Amor me inflama?
Se paro às vezes no frondoso vale
por ver subtil pintada borboleta,
que adeja e brinca sobre as verdes plantas,

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DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI 107

que envergonhando a flor poisa sobre ela,


causando inveja ao zéfiro amoroso,
quem dirá que eu adoro a borboleta?

Sim, Náiade gentil; o dia inteiro


passei junto da fonte a contemplar-te,
mas não a arder por ti; de amor aos laços
jurei de me escapar; se eu não jurasse,
só podias, só tu lançar-me os ferros.

Que ninfa te assemelha em nossos campos?


Fujo das mais, seus rogos me importunam,
riso e piedade seu ardor me excita;
mas tu… não há no bosque outra mais bela,
nenhuma que te iguale! Embora o mundo
Vénus e Graças cegamente adore,
Vénus e Graças invejar-te devem.

Eu me deitei da tua fonte à borda


sobre a relva macia, olhando as águas:
Recostada como eu, coa mão na face,
soltas as tranças como as tranças minhas,
te vi sozinha no arenoso fundo.
Ao ver-te me admirei; se não me engano,
sinais de admiração te vi no rosto:
corei, coraste. Levantei-me à pressa,
para deixar-te repoisar sozinha
nas águas tuas, livremente à sombra
desta árvore, que os zéfiros embalam;
vi-te pronta a partir, fiquei-te olhando;
força invencível nos reteve os passos.
Sorri, sorriram teus vermelhos lábios:
parei suspenso a contemplar teu rosto,
meu rosto a contemplar te vi suspensa.

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108 ECO E NARCISO

Fugir deste lugar? disse eu comigo,


não, jamais fugirei! De novo à relva
o corpo lanço, e me recosto à margem;
tu recostas-te ao fundo, e nos olhamos.
Que novas comoções, nunca sentidas,
em tão suave olhar provou meu peito!
um não sei quê de incógnita doçura,
vagas ideias, mal distintos votos!…
Ó ninfa, não entendo o mago efeito
que os olhos teus no coração produzem!
Quê! será isto amor? será minha alma
sem conhecê-lo a vítima do monstro?
Não; se vingar-se contra mim quisera,
não me daria a mais formosa ninfa,
de olhar tão meigo, de feições tão belas.
Dos sentimentos meus ignoro o nome,
se amizade não são; mas este fogo…
seja o que for, chamemos-lhe amizade.

Ó minha amiga, ó Náiade inocente,


porque não sais de teu sereno fundo?
Porque não vens ao lado meu sentar-te,
gozar da solidão deste arvoredo,
com teu amigo passear sozinha?
Oh! depois que te vi, sinto mais doce
o nome de amizade e os seus influxos.
Crê-me, os amigos meus nunca amei tanto;
nunca de minha mãe ternos afagos
cobicei como os teus: quero abraçar-te,
quero nas faces imprimir-te um beijo,
outro na rósea boca, e depois destes
inda mil, inda inúmeros não bastam.

Porque não sais, ó tímida formosa?


Se creio os olhos meus, não me aborreces;

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DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI 109

quanto eu sinto por ti, por mim tu sentes.


Porque não sais dentre as nativas ondas?
Temes talvez que os Sátiros te colham?
Não temas nada; o teu amigo empunha
terrível arco de inflexíveis setas.
É tua mãe solícita e medrosa
quem te proíbe abandonar a fonte?
Vem pois, vem de relance; entre os meus braços
só te quero apertar, depois te ausenta,
e assim de tua mãe temer não podes.

O som da tua voz ouvir-te quero:


quão belo deve ser! Quando eu te falo,
vejo que os lábios teus também se movem,
mas nada escuto, que o proíbe a fonte,
nem tu me ouves talvez. Ninfa, é preciso
que falemos enfim sobre esta margem;
tenho para dizer-te imensas coisas.

Não sais por me temer? talvez ouvido


tenhas à tua mãe que são traidores,
que são cruéis e pérfidos o moços.
Mas, Ninfa, eu sou Narciso; este só nome
basta para aquietar-te os vãos receios.
Sempre que aceno, acenas-me sorrindo,
mas não queres sair. Quando acabado
tiver de te escrever neste salgueiro,
que tão perto nasceu das águas tuas,
pendente deixarei num de seus ramos
a ebúrnea aljava, que atrair-te possa,
e convidar-te a ler: sim, que é provável
que ao pôr-do-Sol, se o campo for deserto,
saias do fundo a passear um pouco
neste alegre jardim da Natureza.

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110 ECO E NARCISO

Adeus: eu voltarei, voltando a Aurora,


aqui virei passar inteiro o dia.
Responde-me, te peço; e se isto é muito,
beija dos meus versos o último verso,
que eu o beijo também, que eu te prometo
beijá-lo sempre que vier à fonte.

Narciso e a bela Náiade se adoram.

Carta XXI: Eco a Narciso (pp. 119-121; completa)

Narciso, inda te escrevo: o amor de todo


no meu peito expirou por teus repúdios,
mas fica em seu lugar ódio e vingança.

Desejar ser feliz é lei suprema;


busquei-a preencher, tu te opuseste:
gemi sem fruto, de meus ais te riste.
Humilhei-me, abati-me aos pés de um monstro,
queimei baldado incenso a férreo nume.
Restava-me o artifício, o engano, a fraude,
para alcançar-te; sujeitei-me a tudo.
Tomei de tua ninfa o caro nome;
sincero amor em falsos caracteres
a teus olhos expus; para o retiro
te convidei do côncavo rochedo.
Esperei-te entre cólera e ternura,
pois tinha de abraçar-te, unir-te à boca
minha boca amorosa, mas não tinha
de abraçar, de beijar meu terno amante.
Vieste: os passos teus senti de longe!
Paraste um pouco na sombria entrada,
E em baixa voz, que te alterava o susto,
“Náiade, estás aqui?” — Aqui — respondo.

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DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI 111

Entraste afoito; e apenas te embebeste


no horror da escuridão, corro a teus braços,
sem temer que os teus olhos me traíssem.
No primeiro transporte ardendo abraças
meu colo e minha fronte, e as faces beijas…
Mas, que deusa invejosa, ímpio, te pôde
subitamente revelar o arcano?
Mal tua dextra errante se firmara
sobre o meu seio, horrorizado soltas
um grito de terror: “Quem és?” exclamas,
“Não, não és tu.” — Mais rápido que a frecha
me fugiste a voar pelo escarpado,
fragoso dorso de íngremes rochedos.
Quis-te seguir, o espanto me reteve:
fiquei pasmada, fria, imóvel, muda,
qual de mármore duro antiga estátua.
Mas quero compensar-te a minha afronta,
a minha extrema dor, de que és só causa.

A Náiade gentil, que terno adoras,


és tu mesmo, é teu rosto impresso n’água!
Amas a sombra vã do objecto que amo;
és de inútil amor como eu vassalo;
vive em ti mesmo o que ansioso buscas;
não o podes gozar; mas eu, perverso,
se não gozo o que busco, é porque foges,
qual de Fúria infernal, da terna amante.

Eu te desprezo, eu te abomino; apenas


basta o meu coração para o meu ódio,
mas ódio justo, aos crimes teus devido.
Tu me roubaste a paz, a liberdade,
os risos, o prazer, a glória, tudo,
tudo, ingrato, até mesmo o Ser de Ninfa.

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112 ECO E NARCISO

Pintou-me horrível sonho à turva ideia,


Que eu me ia transformando em vastas rochas.
Fugia-me o calor, coava o gelo
pelos membros já duros, já disformes.
Pretendia fugir, sentia as plantas
mudadas em montões de rijas pedras;
erguer as mãos aos Céus, eis se tornavam
os braços meus alcantilados serros.
Neste estado infeliz, o sentimento
se apagava em meu corpo, e só do antigo
conservava alma e voz, qual hoje a tenho.

Narciso, os sonhos meus nunca me iludem:


roubaste-me de ninfa essência e corpo;
sinto o sonhado frio ir-me abraçando;
a pouco e pouco os membros se entorpecem.
Com trabalho aqui vim para escrever-te,
a custo movo a mão, que as letras forma.

Adeus, vou retirar-me aos ínvios bosques,


juntar-me às serras companheiras minhas,
sofrer eternamente os meus desgostos.
Às Fúrias te abandono, elas te esperam!
Já Némesis e Amor coas mãos divinas
se apoderam de ti, da luz te arrojam
para as margens da Estige; em cujas águas,
se os deuses justos são, deves suspenso
eternamente olhar teu próprio gesto
já murcho pela dor, já nu de encantos,
abrasado, ferido pelo férreo
ardente açoite da feroz Megera.

Adeus! Verte, infeliz, baldado pranto,


desespera-te, clama, exora os deuses;
tua cabeça às negras Fúrias voto,
ímpio! do teu perdão passou-se o tempo!

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4. António do C. Ferreira de Simas
“Deus”35

Brinca, meu anjo adorado,


Nesses prados tão floridos;
Olha tua mãe que te abraça;
Olha teus manos tão queridos;

…………………………………

Vês além naquela serra?


Os novilhos a pastarem;
E as relvas verdejantes
À margem do rio a brotarem?

Mais aquém, robles frondentes,


Cuja terra sol não vê?
E em cuja sombra, o viajante
Medita a sós o que lê?

Naquele bosque sombrio,


Que eu daqui bem o deviso,
Anda a triste Eco chorando
Da ingratidão de Narciso.

No sopé daquele monte


Vês bela linfa a correr?
E os cordeiros no calor
Vir ao regato beber?

35 Autor desconhecido das histórias da literatura e das obras de referência. O poema

vem impresso no n.º 30 do 2.º volume da Ilustração Popular (1867), p. 117.

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114 ECO E NARCISO

Tantos bosques, tantos campos,


Tantos sítios amenos;
Tantos montes, tantos vales,
Tantos regatos pequenos?

A esses dons da natureza


Que fazem curvar ateus,
Todos dirão com transporte:
Quem criou tudo foi Deus.

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5. Luís de Montalvor
(1891-1947)

“Narciso. A Fernando Pessoa”36

Erram no oiro da tarde as sombras de estas ninfas!

E até onde irá o aroma dos seus gestos


que sei tentam prender meus olhos que, funestos,
sonham um esplendor fatal de pedrarias?

Tarde de tentação! Que estranhas melodias


inquietam o céu de um rumor ignorado?
Seringe! Tua flauta arrosa de encantado
e sangue de ilusão esta tarde em demência
que a legenda recorda, e da imortal essência
do sonho esta hora antiga exuma o velho idílio.

Há mãos de festa e sonho em meu deserto exílio!

A Beleza é para mim, ó ninfas! o segredo


com que Deus me vestiu de Lindo!… Ai, tenho medo
de morrer o que sou às mãos desse desejo
das ninfas; mas está a sombra que não vejo
depois e antes de mim e, se afundo o olhar na ânsia
de me ver, só me vejo ao colo da Distância!
Deixai dormir um pouco o céu nos olhos meus,
eu não os quero abrir antes que os feche, — Deus! —

Ninfas! vós penteais o pavor à janela


da minha alma através a hora sombria e bela.

36Publicado em 1915 no segundo número de Orpheu, pp. 156-158. Citado de: O


Livro de Poemas de Luís Montalvor, ed. Arnaldo Saraiva. Porto: Campo das Letras, 1998,
pp. 45-48

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116 ECO E NARCISO

Coroas não serão sobre mim as de flores


que desfolhais, mas sim brancos braços de amores
que abrem nocturnamente e num país sem dia…
Sois o sonho de mim ao colo da Alegria!
Vossa presença põe o medo em meu destino.

As taças que entornais do aroma sibilino


da sedução, de tédio enchem o que me deste,
ó Deus! Gela meu ser ao sorriso terrestre
das virgens, que reflecte a tarde a rescender
do olor de Pã! … E o olhar dói por não o esconder
do céu; pois para toda a alma dormir, do belo,
o seráfico azul é como um pesadelo!

Porém como fugir ao sonho que me faz


como estrangeiro em mim? — do belo azul, voraz
a boca triste, sem cor e de humanas dores —
como se triunfal e de pálidas flores
da noite, fossem de um sonho, na hora escultado?

Cativo em mim sou como o dragão que, inviolado,


bebe a cintilação da sonora claridade
do cabelo sinistro, onde a luz arde e invade
de metálico alor o nicho onde se acoite…

Vossos cabelos, ai! chovem como ouro, à noite!


como fios de horror da teia do mistério…

Do cabelo, o esplendor do ouro estéril, é aéreo


como de aracnídeo sonho ou de sidério tecto
cinzelado no olhar — um reflexo de insecto —
no frio voo num ar de sono e ouro e luto…

Avalanches de tédio em seu cabelo escuto!…

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DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI 117

……………………………………………………
……………………………………………………

Fixo a carne, espectral, como ante inerte friso


de sombras, a nudez, linha esquecida em riso
sobre chamas, cruel, — Jóia dos calafrios! —
Um horror de ónix neva entre os meus dedos frios!

Contemplo o meu destino em mim. Ninfas, adeus!


Meus gestos irreais tem séculos de Deus!
Na paisagem do ser corre um rio sem fim:
Os meus gestos são como a outra margem de mim…
Cai alma no jardim dos meus sonhos funestos.
É sempre noite lá no fundo dos meus gestos
onde espreita Deus: há luar nas minhas mãos…
As mãos abanam no ar os nossos gestos vãos,
— mundos de sonolência ardendo em relicários:
Jóias celestes, vós, meus gestos solitários!

Por mim divaga o céu. E morre um diadema


à minha fronte triste e pensativa, emblema
da alma pálida como um velho pálio ou ouro…
Contudo que torpor me encosta ao sorvedouro
como esfinge que se inclina ao abismo e debruça,
a mirar a alma, irmã de um sonho que soluça?
É que um gesto sem nome em minha alma se aclara,
e no Jardim de Deus sou a ideia mais rara!

Meus gestos vão como esta água sempre correndo


pra a foz do nada; encosto a minha alma, tremendo,
à voz da água — cristal sonoro do alhear-me! —

No novelo de mim a minha ânsia a enredar-me.

Ó água sempre triste em seu ir pela parte

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118 ECO E NARCISO

da terra que é lívida e como alma que se farte


de sonhos! Não será a minha sombra ausente
um ar vosso — ou serei a imagem da corrente?

Quem descesse o mistério e visse a semelhança


nesse íntimo torpor das coisas, onde cansa
essa fuga do tempo em sombra reflectida…
Eu nunca terei dois gestos irmãos na vida,
e se olhasse pra trás teria medo de mim…
(interlúnio de nós no sonho dalém-fim…)

O que me reflectir roubará meu segredo.


O tempo escorre por nós como alguém com medo
por sobre um muro… Crio olhos de ser distante…
Na alma porei as mãos como por um quadrante…
As mãos são tempo… e tudo é um sono de si…

Miro-me, e não serei a sombra onde me vi?…

Ó espelho sem hora! Ó água em sono, lustral,


— espelho horizontal de tédio como um canal
sem ter fundo nem fim. Meu perfil sua dor!
Só me reflicto e não me vejo no torpor
da água que abana o tempo… ai, o tempo é a voz
com que se acorda o medo — escultura de nós
na distância... Em rumor, na água, vago demência
e durmo de Beleza ao colo da Aparência,
que foge como esta água e este tempo a correr…
Marulhar de mim no fundo do meu ser…
Só as mãos sabem ter o ar de sonhos contínuos…

Ai! Se o olhar cai nas mãos, desenham-se destinos


como arabescos… Abro os braços, mas em vão,
e ergo-me de mim com vestes de comoção!

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DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI 119

Resta-me contemplar pela noite que inundo


de mim, pendido sobre a aparência do mundo.
Minha sombra exilada esculto-a na doçura!

Perturbo-me de Deus nos braços da Ternura!

Sinto que a minha voz já atravessou Deus!…


Cresço sobre mim, ó noite em delírio! Adeus!
Imagem de ser belo às mãos da minha infância.

Sou eco de rumor quebrado na distância.

Alma da noite antiga incendiada a lavores!

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6. José Régio
(1901-1969)

“Narciso”37

Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,


Dobrado em dois sobre o meu próprio poço…
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!

Ó boca tumular, cerrada e fria,


Cujo silêncio esfíngico eu bem ouço!…
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!…

Assim me desejei nestas imagens.


Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:

Que eu vivo à espera dessa noite estranha,


Noite de amor em que me goze e tenha,
… Lá no fundo do poço em que me espelho!

37
Incluído em Poemas de Deus e do Diabo (1.ª ed. 1925), o texto foi republicado em
Biografia (1.ª ed. 1929); transcrito de: José Régio (2001). Poesia I, introd. José Augusto
Seabra. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pp. 56 e 118.

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7. Fernando Pessoa
(1888-1935)

“Reconheço hoje que falhei”38

Reconheço hoje que falhei; só pasmo, às vezes, de não ter previsto


que falharia. Que havia em mim que prognosticasse um triunfo? Eu não
tinha a força cega dos vencedores, ou a visão certa dos loucos… Era lúcido
e triste como um dia frio.

As coisas nítidas confortam, e as coisas ao sol confortam. Ver passar


a vida sob um dia azul compensa-me de muito. Esqueço indefinidamente,
esqueço mais do que podia lembrar. O meu coração translúcido e aéreo
penetra-se da suficiência das coisas, e olhar basta-me carinhosamente.
Nunca eu fui outra coisa que uma visão incorpórea, despida de toda alma
salvo um vago ar que passou e que via.

Tenho elementos espirituais de boémio, desses que deixam a vida ir


como uma coisa que se escapa das mãos em tal hora em que o gesto de a
obter dorme na mera ideia de fazê-lo. Mas não tive a compensação exterior
do espírito boémio — o descuidado fácil das emoções imediatas e aban-
donadas. Nunca fui mais que um boémio isolado, o que é um absurdo; ou
que um boémio místico, o que é uma coisa impossível.

Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante a Natureza,


esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para sempre como meda-
lhas. Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida, todas
as minhas direcções desejadas. Gozei não ser nada com uma plenitude de
bonança espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não
gozei nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de
falência e de desânimo. Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia,

38Excerto do Livro do Desassossego citado da edição de Richard Zenith (Porto:


Assírio e Alvim, 2012), pp. 303-305.

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122 ECO E NARCISO

floria vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros


quintais; mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam
intuitivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca
deixava de ser, no mistério confuso do meu ser, um lado de cá esbatido
na minha sonolência de viver.

Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu
solar sonhado todas as árvores estavam no outono. Esta paisagem circular
é a coroa-de-espinhos da minha alma. Os momentos mais felizes da minha
vida foram sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos deles como
um Narciso cego, que gozasse o frescor próximo da água, sentindo-se
debruçado nela, por uma visão anterior e nocturna, segredada às emoções
abstractas, vivida nos recantos da imaginação com um cuidado materno
em preferir-se.

(...)
Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem
dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura.

Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive amigos, quer
porque eles me faltassem, quer porque a amizade que eu concebera fora
um erro dos meus sonhos. Vivi sempre isolado, e cada vez mais isolado,
quanto mais dei por mim.

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8. Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Narciso39
A todos os olhos verdes
— como os meus

Aquele rapaz de olhos verdes,


Que me fita lá do fundo
Do cristal onde me espelho
Parece gostar de mim.

Segue todos os meus gestos


Com aquele olhar profundo
De querer fixar a vida
E os desvairos do mundo.

Tento fugir ao seu olhar,


Mas seus olhos indecisos
Estão presos ao encanto
Dos seus olhos muito belos,
Dos seus cabelos doirados,
E dos seus lábios vermelhos.

O rapaz que vai seguindo


Os meus movimentos brandos
Lá no fundo do cristal,
Tem nos olhos o desejo
De beijar a minha boca,
Num beijo brusco, brutal.

— Ai, meu menino bonito!


Foge aos olhos tentadores,

39
Publicado em 1940 ainda com o nome de José Fontinhas, o poema seria renegado
pelo poeta, pelo que nunca chegou a integrar recolhas posteriores da obra completa.

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124 ECO E NARCISO

Não te arrastem ao pecado!…

A boca daquele rapaz


Dos olhos esverdeados,
Tem um sorriso parado.

— Ai, meu menino bonito!


Foge à boca avermelhada
Não te arraste ela ao pecado!…

E o rapaz dos olhos verdes


E de sorriso parado,
Vem mais perto do meu rosto
Muito triste e descorado,
E a falar ingenuamente
Tenta levar-me ao pecado.

Sinto que vou perguntar-lhe


Se são meus os seus desejos,
E se são meus olhos lassos
Que ele anda sempre a fitar.

— Ai, meu menino bonito!


Cala-te…, não digas nada;
Não queiras nunca pecar!…

E o rapaz dos olhos verdes


Não me larga o meu olhar.

Tenho vontade de sorrir,


E também de perguntar
Se estará apaixonado
Pelos meus cabelos loiros,
Pelo meu sorriso duplo,
Ou por uns olhos ardentes

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DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI 125

Da cor das ondas do mar!


— Ai, meu menino bonito!
Ouve bem o que te digo,
Não queiras nunca pecar!…

E o rapaz dos olhos verdes


E do sorriso parado
Estende os braços… e beija
A minha boca vermelha
Que se rendeu ao pecado.

— Ai, meu menino bonito!


Fizeste da tua vida
Um soluço esfrangalhado!…
……………………………
O menino dos olhos verdes
— O de sorriso parado,
Que tem cabelos de oiro
E levemente ondulados
Está caído ali no chão
Ao pé do límpido espelho…

Tem o rosto descorado,


A boca fria… gelada,
Os olhos num choro amargo,
Choram de arrependimento
Pela ânsia de beijar…,
De beijar…, e ser beijado.
…………………………
— Ai, meu menino bonito!
Tens razão…, nós só choramos,
Depois de termos pecado!…

Lisboa — 1939

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9. Irene Lisboa
(1892-1958)

“Moderno Narciso”40

Era aqui,
aqui…
nesta mesma casa e tempo,
mas há um ano…
Não se ouvia o vento
nem outros ruídos.

Algum papelinho há-de


guardar as palavras,
o pensamento furtivo e desaproveitado,
a insistente imagem.

Narciso, doloroso Narciso…


Em ti pensava e penso, figura amável.
E tu vens…
mas tão dolente e magoado!
Contigo acorre, súbita,
a vista da água e do chão verde,
o quadro:
veredas, a claridade, as sombras…
E silêncio,
sempre o silêncio.

Surges tu, isso basta.


Os meus olhos vigilantes não mais te desamparam.
Procuras a água?

40
Publicado no ano de 1942 em Seara Nova, LXX, 801. Citado de: Irene Lisboa
(1986). Folhas Soltas da Seara Nova (1925-1955), ant., pref. e notas Paula Morão. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pp. 382-384.

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DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI 127

Vens cabisbaixo!
Trazes um sorriso amargo
e pareces cansado.
Foi extenso o caminho,
dizem-me os teus passos arrastados.
Extenso…

Descobriste o espelho da água, enfim,


depois da exaustiva caminhada.
E não falas, mas pensas…
As palavras que não dizes são estas:
Minha imagem,
minha companhia,
minha doce imagem!
Tu me consolas, tu me sorris…
O tão-só que eu sou
não acha outro lenitivo,
por isso te considera única e formosa.
De pedra, dura pedra,
frios e inumanos,
eram todos os seres dos velhos bosques
que percorri:
Faunos e ninfas
recreando-se em mesuras rígidas e invariadas.
Escorraçado e tímido
por entre eles passei.
Mitos extravagantes se veneravam e repetiam,
vindos do tempo
e ao tempo legados.
E eu solitário e esquivo fugia.

Minha imagem,
que me acenas quando te aceno,
deixa-me que te ame.
O olhar que me envias, resolve-me.

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128 ECO E NARCISO

Olhar dado e recebido…


Sempre eu! Eu só!
Cansado, amargo e inviolado.

Aqueles sonhos que levava


quando parti,
não sei se ainda os trago,
mas trago-me a mim.
Estou-me vendo
no fundo dos próprios olhos,
e na boca,
nesta boca amarga,
sorri de outro modo…
Água, meu doce espelho,
que tão íntimo me devolves!
Retém-me e acalma-me.
Por onde andei?
Não importa…
Em ti,
só em ti descubro
o raro, triste e submergido ser
que ainda me sorri.
Desdobrado,
infinitamente desdobrado…
nem morto, nem vivo,
fixo…

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10. Sebastião da Gama
(1924-1952)

“Narciso”41

Curvei, sobre o regato, o corpo todo…


Porém, mal entrevi o meu retrato,
que foi olhar e as águas do regato
se turbarem, manchadas no meu lodo.

Depois, cavei cá dentro com denodo;


perfumei-me de flores azuis do mato;
e, quando cri expulso o lodo inato,
mais uma vez curvei meu corpo todo.

E as águas tardaram em toldar…


Mas debruço-me ainda, pois espero
que me hão-de um dia, claras, espelhar.

Tanto faz ver-me belo ou feio, então;


só cristalinas, límpidas, as quero,
prá tua sede antiga, meu Irmão.

41Texto com a data de 28 de Novembro de 1943, citado de: Sebastião da Gama


(1986). Itinerário Paralelo, pref. David Mourão-Ferreira. Lisboa: Ática, pp. 30-31.

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11. Alberto de Lacerda
(1928-2007)

“Narciso”42

Brilhou outrora sobre a beleza das águas


para ver a Graça que havia
por dentro do seu desgosto.

Depois, amou outras faces.


Mas ninguém viu seu fraterno
tímido rosto.

42
Publicada em 1949 no 1.º fascículo de Távola Redonda, a poesia foi mais tarde
reunida em 77 Poems (Londres: George Allen and Unwin, 1955, p. 50).

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12. Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)

“Narciso”43

Um longo barco é no silêncio agudo


Outro Narciso em busca do retrato.

43Com a data de 29 de Novembro de 1949, o poema foi publicado em 1950 no


fascículo 7 de Távola Redonda.

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13. Miguel Torga
(1907-1995)

13.1 “O Narciso”44

O desenho impreciso
De cada rosto humano, reflectido!
Mas o velho Narciso
Continua fiel e debruçado
Sobre o ribeiro…
Porque não há-de ver-se inteiro
Quem todo se deseja revelado?

Devorador da vida lhe chamaram,


A ele, artista, sábio e pensador,
Que denodadamente se procura!

À movediça e trágica tortura


De velar dia e noite a líquida corrente
Que dilui a verdade,
Quiseram-lhe juntar a permanente
Ironia
Desse labéu de pérfida maldade
Que turva mais ainda a imagem fugidia…

44 Poema publicado em 1950 no volume Cântico do Homem. Citado de: Miguel Torga

(2007). Poesia Completa. Vol. I, Lisboa: D. Quixote, p. 407.

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DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI 133

13.2 “Mergulho”45

Tirem o Céu da sua altura triste;


Olhem a cor do inferno aqui no chão:
Verde-esmeralda que, se não existe,
É um milagre de luz em cada mão.

Anjos de barro, o nosso espelho apenas


Deve ser o cristal que viu Narciso:
Água dum poço de ilusões pequenas
Onde morra e renasça o Paraíso.

13.3 “Lago Turvo”46

Angústia marginada,
Meu canto é um lago turvo
Que devolve a paisagem, como um eco
Silencioso.
Um lago onde me afogo
Sem vontade,
Puramente impelido
Por não sei que fatal necessidade
De me sentir poeta e possuído.

Mar sem nascente e só do meu tamanho,


A doçura que tem é um sal sem gosto.
E a estranha inquietação de que se anima,
E o céu olha de cima,
São rugas que se agitam no meu rosto.

45 Poema datado de 22 de Julho de 1951 e publicado no Diário VI. Citado de: Miguel

Torga (2010). Diário. 2.º vol. [V a VIII], Lisboa: D. Quixote, p. 118.


46 Poema datado de 28 de Abril de 1956 e publicado no vol. VIII de Diário. Citado

de: Miguel Torga (2010). Diário. 2.º vol. [V a VIII], Lisboa: D. Quixote, p. 288.

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14. José Gomes Ferreira
(1900-1985)

“Se queres ir à minha frente”47

(O monstruoso Narciso.)

Se queres ir à minha frente


colar asas no pó cansado dos meus passos
— vai.

Vai e atapeta o chão com braços de seda longa…


Forra o céu de gestos azuis…
Prende-te pelos cabelos nas árvores
para desenhar o vento de primavera.

Vai.

Para eu passar depois


no meu trono de altas nuvens
— contigo no coração
do tamanho do meu amor pelo mundo.

47 Poema XIX de Idílio de Recomeço (1951), depois reunido em Poesia IV. 2.ª ed.,

Lisboa: Portugália, 1971, p. 99 e em Poeta Militante. 2.º vol., Lisboa: Moraes Editores –
Círculo de Poesia, 1977, pp. 164-165. Só nesta última versão “Narciso” surge com
maiúscula, o que na transcrição se mantém. Citado de: José Gomes Ferreira (1991). Poeta
Militante: Viagem do Século Vinte em Mim. 2.º vol., 4.ª ed., Lisboa: D. Quixote, p. 192.

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15. João Maia
(1923-1999)

“Narciso”48

Fui em busca do lago que se esquece


Perdido na floresta, onde, sem medo,
Descobrisse, na água, o meu segredo
E o perfil da minha alma conhecesse.

Tinha que ser profundo e muito quedo:


E quando a noite, em cima, se estendesse
Dispusesse, com vagar e interesse,
As estrelas nos ramos do arvoredo.

Debrucei-me sobre as almas fugitivas;


Mas rolavam suas ondas tão esquivas
Que mal me pude ver no lume delas.

Não existia o lago feiticeiro…


Que as linhas do meu rosto verdadeiro
Só tu podes, Senhor, compreendê-las.

48 Soneto citado de: João Maia (1954). Abriu-se a Noite. Braga: Edições Critério, pp.
77-78.

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16. Fernando Guimarães
(1928-)

“Narciso”49

Quase adormecido
olha o seu reflexo
para que junto ao rosto
a água principie.

De novo procura
a voz que recebe
apenas um segredo
que lhe fecha os lábios.

Há uma nuvem que passa


mais perto do corpo
e assim o desenha
como leve memória.

A nudez vem cercá-lo


de praias ou de tempo
enquanto continua
um rio entre o seu nome.

49
Texto incluído no volume A Face Junto ao Vento (1956), citado de: Fernando
Guimarães (1994). Poesias Completas I. 1952-1988. Porto: Afrontamento, p. 21.

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17. David Mourão-Ferreira
(1927-1996)

“Ars Poetica”50

Roubado à natureza o dossier secreto


Patente a analogia entre o fundo do poço
o rosto de Narciso o sangue do incesto

há-de tudo perder-se aereamente solto

Que o verbo seja um espelho Ao mesmo tempo um véu


Que não baste no lago a pureza do rosto

A lira é com certeza a mão esquerda de Orfeu


Mas é a mão direita a que revolve o lodo

50
Poema publicado no volume Do Tempo ao Coração (1966). Citado de: David
Mourão-Ferreira (2006). Obra Poética: 1948-1988, introd. Eduardo Prado Coelho. Lisboa:
Presença, p. 198.

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18. Jorge de Sena
(1919-1978)

“Narciso”51

De n’água contemplar-se onde se vê Narciso


se inclina sobre si para beijar-se e a imagem
avança em lábios trémulos que o respirar
ansioso escrespa o espelho prestes a partir-se.

Não foi de contemplar-se ou de a si mesmo amar-se


que em limos se fundiu com a sua imagem vácua
mas de não ter sabido quanto não de olhar
nem só de húmidos beijos se perfaz o amor.

51
Poema datado de 9 de Julho de 1970. Citado de: Jorge de Sena (1974). Conheço o
Sal… e outros poemas. Lisboa: Morais, p. 15.

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19. Ruy Cinatti
(1915-1986)

“Narciso”52

Digo: Narciso!
Narcisos são em barda… são aos montes…
um batalhão… nos vales, junto aos ribeiros,
campânulas amarelas, campainhas…
Quando perpassa a brisa, ouve-se música
nervosa e ondulante… São os narcisos!…

Wordsworth, poeta lacustre


dos lagos ingleses, junto à Escócia,
diz-nos, idêntico o sentido:
Não vale a pena pensar muito,
sensibiliza-te, faz como os narcisos.
Já madrugada, escreve… daffodils…
e dança com os narcisos toda a noite.

Pelos montes e vales é que me afirmo,


passeando com os poéticos narcisos…
Quando debruço os meus olhos n’água,
que vejo eu?… Vejo um narciso!…

Vivi com narcisos toda a vida.


A minha vida tem sido toda narcisada.
Em novo, não passava de um poeta.
Agora velho, contemplo-me num espelho,
mas matutino… Ó espelho rigoroso!…

52
Texto publicado em 1981 no volume 56 Poemas; citado de: Ruy Cinatti (1992).
Obra Poética, org. e prefácio Fernando Pinto do Amaral. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, pp. 633-634.

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20. Nuno Júdice
(1949-)

20.1 “Narciso”53

Ouço dizer que as águas cantam o amor, correndo,


e que nas suas margens há arbustos debruçando
tristezas profundas. Mas nem as águas nem o vento
nos arbustos me falam de mim; eu, que solitário
me debruço numa ânsia de tocar-me, e o rosto perco
no abismo da superfície; que o segredo que oculto
em mim persigo, num silêncio me evocando entre
os alheios rumores da vida; e que o tempo esqueço,
absorto na minha própria alma que obscureço.

20.2 “Eco e Narciso”54

Nela, vive o som que os deuses roubaram


ao fugitivo amante; sem destino, consome-se
no fundo de um espelho que repetiu o choro
da amada. Não o ouviu; nem viu essa
cuja beleza a terra sepulta, solitária,
condenada ao jugo da natureza. Olha-se,
fixamente, despindo-se da folhagem
que as chuvas acumularam no abrigo dos vales;
cobrindo-se com o brilho húmido que ofuscou
o furtivo aceno; dançando, enfim, quando
o vento envolve os arbustos com o desvelo
de um murmúrio de flauta. Aqui,

53 Publicado em 1985 no volume Lira de Líquen, o poema é citado de: Nuno Júdice

(2000). Poesia Reunida (1967-2000). Lisboa: D. Quixote, p. 259.


54 Publicado em 1990 no volume As Regras da Perspectiva, o poema é citado de: Nuno

Júdice (2000). Poesia Reunida (1967-2000). Lisboa: D. Quixote, p. 406.

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DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI 141

engana-o a imagem de que fogem as águas


que o seu reflexo suspende, detendo
o inelutável tempo; nenhuma súplica, porém,
restituirá um corpo à sombra
que persegue. Tão perto, no entanto, dos seus
braços que imitam a realidade!, procura
o seu conforto no fundo das fontes. “Quem és?”
“És.”, repete, sem que a voz se distinga
— e os seus lábios se revelem, turvos
de ânsia, num rigor de verso.

20.3 “A perversão de Narciso”55

Decidira que o amor fazia parte da vida,


ao contrário do que pensara. Olhava
para o espelho e recusava o que via,
correndo para a rua em busca de outros
rostos mais belos: os da jovem que passou
à sua frente e olhou de relance, inquieta
ao adivinhar o seu desejo; ou o dessa que
alisava os cabelos com as mãos, como se
estivesse a acariciar-se, e os seus olhos
perdiam-se na fronteira de um sonho
acordado. Queria dizer-lhes que as amava,
e que deixara para trás de si a sua imagem,
e a obsessão de se ver outro para se possuir até
à última esfera da loucura. E elas olhavam-no,
pedindo-lhe que se aproximasse. Mas
ele continuava parado como se nem sequer
as visse. Então, cansadas de esperar, partiam,
deixando-o entregue à solidão, e
ao inútil desejo de si próprio.

55
Poema citado de: Nuno Júdice (2015). Navegação de Acaso. 3.ª ed, Lisboa: D.
Quixote, p. 33 (1.ª ed. 2013).

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21. Ricardo Marques
(1983-)

“De Narciso a Eco”56

Amar não posso porque me conheço:

vi a flor nascendo
desde a semente
no reflexo de um lago
de que não me esqueço

Quando nada nos lembrar


da cinza de um beijo
do sangue póstumo ou
do tanque onde por fim
deixamos os ossos:

amor terreno nunca


há-de ser o nosso
ainda que o cantes
eternamente.

Amar não posso porque sou amado.

56 Poema citado de: Ricardo Marques (2015). Metamorphoses. s/l.: não (edições), p.16.

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Jordi Pàmias
Narcís i l’altre
Barcelona, 2001

Selecção e tradução de NEREIDA VILLAGRA

CONTEMPLAÇÃO

A consciência: Narciso,
diante da água serena do espelho.
O eu livre e autónomo
habita no exílio interior; feliz
morador dum castelo com seteiras,
contempla os outros seres, que aparecem
como um reflexo da água: indefinido
girassol ou miragem. Até que, um dia,
o amor, secretamente, parte o espelho.

REFLEXO

Na planície da noite,
as constelações formam um grande rebanho;
a lua é o pastor.
E, à alba, pouco a pouco,
o mundo retoma um jogo incerto
de volumes e de linhas,
uma música vaga de cores.
Mas a luz é o reflexo do Um
invisível, o espelho onde bate o Sol,
agora escondido–que avermelha a risca
do horizonte, na alvorada da morte.

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144 ECO E NARCISO

CHAMADA

Chamou alguém.
Atrás da porta, há um rosto
anónimo, uma estranha fisionomia
sumidiça, com um sorriso lento.
Uns olhos, escancarados, que me interpelam,
uma boca que diz palavras ignoradas.
A promessa de outro, o comovido
silêncio d’um eu único.
Ao mesmo tempo irmão e hóspede.

EREMOS

Grávido de luz e silêncio,


para o eremita, o deserto
é uma miragem. Não contempla
mais outro horizonte que o próprio corpo.
A vida dele é uma estranha sequência
de dias e de noites. Assenhoreia-se no reino,
enganador, da absoluta
vacuidade. Um túrbido e poeirento orgulho
rói-lhe a carne, como um cilício.
Sem a companhia do outro, tornamo-nos
uns fantasmas de pedra e de silêncio.

ROSTO

Calado e alto, o atleta glorifica a força;


o rosto, nu, é vulnerável.
Na musculatura há um deleite
que ignora a razão: o jogo dum corpo selvagem,
o fogoso esplendor do animal.

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DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI 145

Mas o rosto é um ser desvalido,


um tremor da alma indefesa,
a assinatura de quem fala: um escuro
rabisco, feito visível pelas rugas dos anos.

BANALIDADE

Sem o adereço do sofrimento,


o homem não tem doçura: nunca amadura.
Se não conhecer a solidão crispada,
o estilete da angústia e do medo,
vai ser uma criança abastardada: Narciso
banal, efebo gordo, que nada sabe
da amorosa linguagem. Homem ou mulher
fechados na beleza dum mundo sem palavras.

A PALAVRA QUE SALVA

Só quando dizemos tu,


respiramos ar fresco.
Foi velado o espelho do nosso eu soberbo,
foi escancarada a porta da torre de marfim...
Incomodam as luvas. E não vou levar máscara nenhuma,
no vermelho carnaval dos disfarces.
Na praia cansada das horas,
fitamos os olhos do outro e descobrimos
o grande azul, nu, do mar.

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146 ECO E NARCISO

MINOTAURO

Um século moribundo, com a razão perdida,


luzia uma cabeça de touro: gulags e vidros
partidos, nas noites amarelas, corredores
das câmaras de gás–o labirinto
por onde o minotauro se recreava.
Ariadne, o corpo jovem da luz,
a garota que, com os loiros cabelos, destrançados,
arredondou um novelo de fio para Teseu,
foi traiçoeiramente abandonada,
na praia de Naxos, pelo herói... E nas ruas
da Bósnia, feridos pela metralha.
Voltou, no fim do século, a vermelha noite do monstro.

O HERÓI

Ulisses: o retorno a si próprio,


o fechamento do círculo, o périplo que acaba
na casa natal. Feliz, pode dizer:
–Os outros estão vencidos. Já estou em Ítaca.

Antro de Polifemo, Circe, a feiticeira,


os companheiros de aventura, com a barba cinzenta,
Nausícaa, as sereias tentadoras:
tudo jaz num recanto poeirento da memória.

O sangue correu, na casa. E Penélope


abraçou-o. Agora Ulisses concluiu: –A minha ilha
e eu somos o mesmo. A viagem é um sonho...
Os outros são, só, escorralhas.

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DO SÉCULO XVIII AO SÉCULO XXI 147

SONHO

O outro é a minha réplica fiel:


pele cansada com rugas,
olhos que, à noite, fecham-se–portões
sem defesa–,
impressão de humanidade compartilhada, intercâmbio
de palavras, nos lábios: o beijo, em silêncio.
Não preciso do espelho: estendo os braços
e já não topo com o frio do vidro,
mas com um corpo húmido e morno,
que adormece ao romper da alba.
Mas o sonho é efémero. E pressinto
o vazio que encontraram, as minhas mãos, um dia.

FILEMON E BAUCIS

A azinheira e a tília crescem juntas.


E os forasteiros penduravam grinaldas,
como lembrança sagrada duns velhos hospitaleiros que
tinham acolhido, na Frígia, Zeus e Hermes,
quando iam pelo mundo, com vestes de mortais.
Mas Narciso morreu afogado pelo dilúvio.
Avezado a olhar-se num plácido lago,
interpelou as águas lamacentas, turvas a mais,
e perderam-se os gritos no vazio. Louvemos,
então, Báucis, a velhota, e o marido dela, Filémon, que
com o amor partilhado em horas solitárias,
ofereceram a casa aos deuses desconhecidos.

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148 ECO E NARCISO

INQUIETUDE

Hoje, quando as nuvens enegrecem,


sou um Narciso desengonçado, que tem saudades
do lago do céu; mas as sombras ameaçam-me
com o estilete dum medo velho. Os outros giram,
num remoinho de desejos, no vértice da morte,
e ignoro se a solidão vier de fora
ou se for o espelho do nosso ser suficiente;
temos, nas mãos, o brinquedo da razão,
e cedo o fazemos em pedaços. Como crianças nuas choramos,
e pedimos a migalha dum amor
que nos salve. Vivemos na condição, e na
penumbra
dum beco–ao pé dos muros onde rebate o silêncio.

VIDA INCERTA

Somos vulneráveis,
como um bebé deixado à intempérie,
como uma fina fatia de gelo, numa poça, ameaçada
pela pedra duma criança,
como, na clareira de um bosque, um cervato
Todos partilhamos o acaso da vida: corrente
de sangue, que há-de gelar-se, pestanejo
duns olhos, baixo a cúpula imutável
do céu. Dizemos palavras de perdão,
como num sonho; amamo-nos às cegas;
temos medo da morte; somos todos um rosto
sem defesa, um fraco pára-vento.

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Bibliografia

1. Edições e traduções

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Kallistratos.Einführung, Text, Übersetzung, Anmerkungen, archäologischer Kommen-
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JACOBS, C. F. W. – WELCKER, F. G. (1825), Philostratorum Imagines et Callistrati
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Acabou de imprimir-se
em Novembro de 2017
na Rainho & Neves
numa tiragem de 1000 exemplares

DEPÓSITO LEGAL 432 299/17

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