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Paul E.

Lovejoy

A escravidão na
África:
Uma historia de suas
transformações

TRADUÇÃO DE
Regina A. R. F. Bberìng e
Luiz Guilherme B. Chaves

C I V I L I Z A ÇÃO m U S l L B I K A

Rio de Janeiro
2002
i A África e a escravidão
A escravidão foi um im portante fenôm eno da história, estando presente em m ui­
tos lugares, da antigüidade clássica a épocas m uito recentes. A África esteve inti­
mamente ligada a esta história, tanto como fonte principal de escravos para as
antigas civilizações, o mundo islâmico, a índia e as Américas, quanto como uma
das principais regiões onde a escravidão era comum. Na verdade, na África a
escravidão durou até o século X X — m uito mais do que nas Am éricas. Tal anti­
güidade e persistência requer explicação, tanto para com preender o desenvolvi­
m ento histórico da escravidão na África, quanto para avaliar a relativa im por­
tância do tráfico de escravos para este desenvolvimento. De m aneira geral, a
escravidão se expandiu em pelo menos três estágios — 1350 a 1 60 0 , 1600 a
1800 e 1800 a 1900 — durante os quais o escravism o se tornou fundam ental
para a econom ia política africana. Essa expansão ocorreu em dois níveis ligados
ao com ércio exterior. Em primeiro lugar, a escravidão ocupou uma área geográ­
fica cada vez m aior, difundindo-se para fora daquelâs regiões diretam ente
envolvidas no comércio exterior de escravos. Em segundo lugar, o papel dos
escravos na econom ia e na sociedade tornou-se crescentemente importante, do
que resultou a transform ação da ordem social, econôm ica e política. Tam bém
nesse caso, o com ércio exterior esteve associado a essa transform ação.

A E SC R A V ID Ã O : U M A D EFIN IÇ Ã O

A escravidão era um a form a de exploração. Suas características específicas


incluíam a idéia de que os escravos eram uma propriedade; que eles eram estran­
geiros, alienados pela origem ou dos quais, por sanções judiciais ou outras, se reti­
rara a herança social que lhes coubera ao nascer; que a coerção podia ser usada à
vontade; que a sua força de trabalho estava à completa disposição de um senhor;
que eles não tinham o direito à sua própria sexualidade e, por extensão, às suas
próprias capacidades reprodutivas; e que a condição de escravo era herdada, a
não ser que fosse tomada alguma medida para modificar essa situação.1 Esses
vários atributos precisam ser examinados muito detalhadamente para tornar mais
claras as distinções entre escravidão e outras relações servis.
Enquanto propriedade, os escravos eram bens móveis; o que significa dizer
que eles podiam ser com prados e vendidos. Os escravos pertenciam aos seus
senhores, que, pelo menos teoricam ente, tinham total poder sobre eles.
Instituições religiosas, unidades de parentesco e outros grupos na mesma socieda­
de não protegiam os escravos como pessoas perante a lei, ainda que o fato de os
escravos serem também seres hum anos fosse algumas vezes reconhecido. Por
serem bens móveis, os escravos podiam ser tratados com o mercadoria. Mas eles
raramente eram simples mercadorias, e muitas vezes eram colocadas restrições à
venda de escravos, desde que houvesse algum grau de aculturação. Essas restri­
ções podiam ser puramente morais, como eram nas Américas, onde pelo menos
teoricamente era considerado errado separar famílias quando as vendas estives­
sem acontecendo, embora na realidade os proprietários de escravos fizessem o
que bem entendessem. Em outras situações as restrições eram realmente postas
em vigor, ou era automaticamente concedido às pessoas algum grau de autono­
mia que impedia a venda. Na prática islâmica e sob a lei islâmica, as mulheres
tomadas como concubinas não podiam ser legalmente vendidas uma vez que
tivessem tido filhos do seu senhor. Além disso, tais crianças eram tecnicamente
livres e geralmente reconhecidas com o tal. As mulheres tornavam-se legalmente
livres com a morte do seu senhor em muitos casos, e em alguns elas eram nom i­
nalmente livres assim que davam à luz, ainda que em geral não pudessem livrar-
se de sua posição como concubinas. Na verdade elas atingiam uma posição inter­
mediária entre escravas e livres. Outras restrições à venda limitavam o poder dos
senhores de vender os filhos de escravos, fosse por causa de sentimentos religio­
sos, no caso do Islã, ou por causa de parentesco aceitável ou posição étnica que
tivessem sido confirmados. Se a venda acontecesse, era cuidadosamente justifica­
da em termos de atividade criminosa, bruxaria ou alguma outraTazão ideologica­
mente aceitável; muitas vezes essas mesmas razões podiam levar à venda de mem­
bros nascidos livres da mesma sociedade. No entanto, era característica da escra­
vidão que o cativo fosse considerado a propriedade de uma outra pessoa ou
algum grupo empresarial, apesar das restrições à natureza dessa relação de pro­
priedade criadas por situações reais,
Uma digressão se faz necessária para que se possa estabelecer o que se quer
A AfRiCA E A ESCRAVIDÃO

dizer com “liberdade”. 0 termo é realmente relativo. As pessoas são mais livres
para tomar decisões por si mesmas ou são menos livres para fazê-lo. Todas as
sociedades impõem muitas restrições aos indivíduos, mas mesmo reconhecendo
isso ainda podemos entender os escravos como pessoas particularmente coagi­
das. No contexto das sociedades escravocratas, a liberdade envolvia uma posi­
ção reconhecida numa casta, numa classe dirigente, num grupo de parentesco ou
em algum tipo de instituição. Uma tal identificação incluía um conjunto de direi­
tos e obrigações que variavam consideravelmente de acordo com a situação, mas
ainda eram distintos daqueles dos escravos, que tecnicamente não tinham direi­
tos, apenas obrigações. O ato de emancipação, quando existia, transmitia um
reconhecimento de que escravo e homem livre eram opostos. A emancipação
demonstrava dramaticamente que o poder estava nas mãos dos homens livres,
não dos escravos.
Dessa maneira, a escravidão era fundamentalmente um meio de negar aos
estrangeiros os direitos e privilégios de uma determinada sociedade, para que \
eles pudessem ser explorados com objetivos econômicos, políticos e/ou sociais.2 j
Geralmente os estrangeiros eram considerados etnicamente diferentes: a ausên-'
cia de parentesco era uma distinção particularmente com um . Um a pessoa que
falasse a mesma língua que o seu senhor, sem sotaque, que com partilhasse
a mesma cultura, acreditasse na mesma religião e compreendesse as relações
políticas que determinavam como o poder era exercido era muito mais difícil de
controlar do que um estranho. Quando as diferenças na cultura ou no dialeto
eram relativamente sem im portância, o nível de exploração e o isolam ento social
dos escravos eram geralmente lim itados; tais situações sugeriam que a posse de
escravos era pequena e que a estratificaçâo política e econômica era mínima.
Certamente as formas mais desenvolvidas de escravidão eram aquelas em que os
escravos eram levados para uma distância considerável do seu local de nascimen­
to, enfatizando dessa forma as suas origens estrangeiras. Essa erradicação era
tão dram ática quanto o transporte dos africanos através do A tlântico ou do
deserto do Saara, ou tão pouco dram ática quanto a captura de pessoas que
viviam a apenas cem quilômetros ou menos do lar daqueles que os escravizavam.
Ambas as situações ajudavam a definir o escravo como um estranho, pelo menos
em primeira instância. Com o passar do tempo, as distinções culturais tendiam a
ficar nebulosas, de modo que variava a extensão em que a origem estrangeira
funcionava como um fator.
Q uando as estruturas sociais e as econom ias eram mais com plexas, a identi­
ficação dos escravos como estrangeiros também se tornava mais pronunciada, de
modo que a aculturação que invariavelmente ocorria não afetava a capacidade
dos senhores de explorar o trabalho e os serviços de seus cativos. Para os muçul-
, manos, a religião era um meio de classificar os escravos. Aqueles recentemente
' adquiridos geralmente não eram muçulmanos ou o eram apenas nominalmente.
Mesmo quando os escravos começavam a praticar o islamismo, eram geralmen-
; te considerados menos devotos. Para os europeus, os escravos eram vistos como
; racialmente distintos; apesar da aculturação, eles eram ainda mais claramente
definidos como estrangeiros, garantindo dessa forma que a aquisição de direitos
na sociedade de origem européia fosse severamente limitada. Outras distinções
mais sutis eram feitas, incluindo as diferenças de dialeto, o sotaque das pessoas
que tinham acabado de aprender uma nova língua, marcas faciais e corporais,
características físicas evidentes e, a mais comum de todas, a memória.
A escravidão quase sempre tinha início por meio de violência, que reduzia a
posição de uma pessoa de uma condição de liberdade para uma condição de
escravo.3 O tipo mais comum de violência era a guerra, na qual os prisioneiros
eram escravizados. Variações na organização de tal violência — incluindo ata­
ques cujo objetivo era adquirir escravos, banditismo e seqüestro — indicam que
a escravização violenta pode ser vista como inserida em uma sucessão contínua
da ação política em larga escala, na qual a escravização pode ser apenas um
subproduto da guerra e não a sua causa, ou como uma atividade criminal em
pequena escala, na qual escravizar é o único objetivo da ação. Tomados em con­
junto, as guerras, os ataques em busca de escravos e o seqüestro foram responsá­
veis pela maior parte dos novos escravos na história. Mesmo quando o motivo da
guerra não era adquirir escravos, a ligação entre guerra e escravidão era muitas
vezes estreita. Nas sociedades onde era costumeiro escravizar prisioneiros, os beli­
gerantes invariavelmente levavam em consideração as possibilidades de custear as
despesas de guerra com a venda ou a utilização dos escravos. Quando as guerras
e invasões eram crônicas, eram constantes a escravização e a reescravização dos
povos, e a incidência da escravidão em tais situações aumentava.
Enquanto guerras e violências similares eram responsáveis pela maior parte
dos povos recém-escravizados na história, procedimentos judiciais e religiosos
eram responsáveis por alguns episódios de escravização. A escravidão era uma
forma de punição judicial, principalmente para crimes como assassinato, roubo,
adultério e bruxaria. Os m étodos pelos quais os crim inosos suspeitos eram escra­
vizados variavam bastante, e muitas vezes eles eram vendidos para fora das suas
próprias comunidades. N ão obstante, essa form a de escravização estava mais
uma vez estribada na violência, apesar de legítima aos olhos da sociedade em
questão. A posição social de uma pessoa era radicalm ente reduzida: o novo es­
cravo podia perder sua qualidade de mem bro da com unidade, e a sua punição
podia confirmar um status que era transm itido aos seus descendentes.
Existem exemplos de escravizaçâo voluntária, principalm ente quando a
am eaça de m orrer de fome não deixava à pessoa nenhum o utro recurso.
Entretanto, esse não era um caso de violência consciente por parte da sociedade
ou de um inimigo. Podia haver causas estruturais que colocavam pessoas em
situações nas quais elas não podiam ter assegurada a sua sobrevivência e acha­
vam necessário escravizar a si mesmas. Essa dimensão estrutural podia trazer
com ela uma dimensão que era em última análise de exploração e violência. No
entanto, a escravizaçâo voluntária não era comum, e provavelmente foi respon­
sável por apenas uma pequena percentagem dos escravos na maioria dos lugares.
Além disso, a possibilidade de escravizaçâo voluntária dependia da existência de
uma instituição escravista na qual a violência era fundamental. Se não existisse
tal instituição, uma pessoa não poderia tornar-se um escravo, mas um cliente ou
algum outro tipo de dependente. O fato de que a posição de escravo pudesse ser
atribuída em tais circunstâncias indica que outras posições servis não eram ade­
quadas, seja porque fossem raras ou porque sua definição excluía tais casos.
O grau de coerção envolvido na escravidão era algumas vezes óbvio e em
outras disfarçado. 0 senhor podia impor sua vontade graças à sua capacidade
de punir os escravos que não cediam às suas ordens ou não desempenhavam as
suas tarefas satisfatoriamente. Chibatadas, confinamento, privação de alimento,
trabalho pesado extra e a capacidade de dispor dos escravos através da venda
eram meios comuns de coerção. A punição física podia levar à morte, e mesmo
quando havia uma proibição legal ou consensual de matar escravos raramente era
aplicada. Muitas vezes a coerção era indireta. O exemplo de outros escravos sen­
do punidos ou vendidos e o conhecimento de que o senhor podia fazê-lo geralmen­
te eram suficientes para manter a disciplina dos cativos. Sacrifícios de escravos em
funerais e cerimônias públicas, comuns em alguns lugares, também eram exemplos
para eles. Tais demonstrações públicas geralmente não eram uma forma de puni­
ção por insubordinação; na verdade, algumas vezes elas eram concebidas como
uma honraria, mas na maioria das vezes os escravos eram comprados especifica­
mente para o sacrifício. Como a insubordinação podia levar à venda, os riscos
para os escravos vendidos eram óbvios. O comprador podia muito bem estar pre--
cisando de uma vítima sacrificial. ;
A escravidão estava fundam entalm ente ligada ao trabalho. N ão era a única |
forma de trabalho dependente, mas os escravos podiam ser levados a desem pe- j ;
i
I

33

Q
nhar qualquer tarefa na economia. Eles tinham que fazer o que lhes fosse orde*
nado; como conseqüência, muitas vezes desempenhavam as tarefas mais ignóbeis
e pesadas, e algumas vezes corriam grandes riscos. N o caso dos cativos, o con­
ceito de trabalho não era visto como separado do.escravo como pessoa. Ele era
um instrumento de trabalho, e a coerção podia ser usada para forçar a aquies­
cência a determinadas ordens. Era dito ao escravo aquilo que ele deveria fazer e,
se não fizesse, era punido, muitas vezes severamente. A escravidão podia existir
e existia juntamente com outras formas de trabalho, incluindo a servidão (na
qual as pessoas estavam vinculadas à terra, e as suas obrigações para com o
senhor eram fixadas pelo costume), a clientela (subordinação voluntária sem
remuneração fixada pelos serviços), trabalho assalariado (no qual a remunera­
ção pelo trabalho era monetarizada), penhor (no qual o trabalho era visto como
juros sobre uma dívida e o penhor como colateral à dívida) e o trabalho com u­
nal (muitas vezes baseado em parentesco ou classes etárias, no qual o trabalho
era visto como uma atividade recíproca baseada em troca passada ou futura).
Essas outras formas de trabalho também podiam envolver coerção, mas geral­
mente não ao ponto de que pudessem ser chamadas de escravidão.
Uma característica peculiar à escravidão era essa absoluta falta de opção por
parce dos escravos. Sua total subordinação aos caprichos do seu senhor signifi­
cava que aos escravos podia ser atribuída qualquer tarefa na sociedade ou na
economia. Em conseqüência, eles não apenas desempenharam as tarefas mais
baixas e laboriosas, mas também assumiram posições de autoridade e tiveram
acesso a uma riqueza considerável. O trabalhador da plantation e o feitor de
escravos tinham em comum a subordinação ao seu senhor. Ambos eram incum­
bidos de uma tarefa, mas a natureza do seu emprego era tão diferente que eles
praticamente não tinham interesses mútuos. A identidade do escravo se dava atra­
vés do seu senhor. Legalmente, o senhor era responsável pelas ações do escravo, e
essa responsabilidade era a mesma para escravos administrativos e para trabalha­
dores comuns. Dessa forma, os escravos não constituíam necessariamente uma
classe. Sua dependência podia resultar na subordinação de sua identidade à do
seu senhor, de quem dependia sua posição, ou poderia levar ao desenvolvimento
de um sentimento de camaradagem com outros escravos, e por conseguinte for­
mar a base para uma consciência de classe. Ambas as situações podiam dar-se
numa mesma sociedade, se escravos e outros reconhecessem uma clara distinção
entre aqueles comprometidos com a produção e os envolvidos no exército e na
administração.
Como os escravos eram totalmente subservientes, os seus senhores controla-
A ÁFRICA E A ESCRAVIDÃO

vam as suas capacidades sexuais e reprodutivas, assim como as suas capacidades


produtivas/ Quando eles constituíam uma proporção significativa de qualquer
população, o acesso ao sexo e a reprodução eram fortemente controlados. As
mulheres (e os homens também) podiam ser tratados como objetos sexuais; o
direito ao casamento podia ser rigorosamente controlado; e os escravos do sexo
masculino podiam ser castrados. A importância do sexo é revelada de forma
mais surpreendente no preço de mercado dos escravos. Os eunucos eram muitas
vezes os mais caros, com mulheres bonitas e meninas logo atrás, seu preço
dependendo do seu atrativo sexual. Esses dois opostos — machos castrados e
fêmeas bonitas — demonstram ainda mais claramente aquele aspecto da escravi­
dão que envolvia o poder do senhor sobre as funções sexuais e reprodutivas, Os
escravos não tinham o direito de envolver-se em relações sexuais sem o consen­
timento do seu senhor. Não podiam casar-se sem que ele permitisse e lhes forne­
cesse uma esposa. Seus filhos, uma vez que fosse dada aos escravos uma oportu­
nidade de ter filhos, não eram legalmente a sua prole, mas propriedade do seu
senhor e muitas vezes do senhor da mãe. Biologicamente, eles eram filhos dos
escravos, mas o direito de criar as crianças podia ser negado. Em vez disso, os
filhos de escravos podiam ser levados embora e, mesmo quando não eram ven­
didos, podiam ser redistribuídos como parte de acordos matrimoniais, treinados
para o exército ou a administração ou adotados pela família do senhor. r >,
Os senhores tinham o direito de acesso sexual às mulheres escravas, que se :
tornavam concubinas ou esposas, dependendo da sociedade. Essa dimensão
sexual era a principal razão pela qual o preço das mulheres escravas era muitas
vezes mais alto do que o dos homens; Aos escravos do sexo m asculino podia ser
negado o acesso às mulheres, e cal dimensão de escravidão era uma forma essen-
ciai de exploração e controle. A capacidade de adquirir uma esposa dependia da
disposição de aceitar a condição de escravo e trabalhar arduamente. 0 casamen­
to ou outras uniões sexuais eram um método de recompensar os homens, Os
desejos das mulheres eram raram ente levados em consideração. Em bora os
homens pudessem receber uma esposa vinda do reduzido grupo de fêmeas dis­
poníveis para tais uniões, não lhes era permitida a paternidade efetiva sobre a
sua prole. Laços verdadeiros de afeto e vínculos biológicos reconhecidos exis­
tiam , naturalm ente, mas esses podiam ser rom pidos através da remoção das
crianças, se o senhor assim o desejasse. 0 senhor podia recompensar o escravo
do sexo masculino ou podia privá-lo da sua sexualidade através da castração.
A condição de escravo era herdada. Isso significava que o elem ento de pro- |
priedade, a característica de ser um estranho e a forma de m obilização do traba- \
lho continuavam na geração seguinte, embora na prática a condição de escravo
fosse muitas vezes modificada. A condição dos cativos mudava da instância ini­
cial de escravizaçâo, ao longo da vida do escravo, e tal evolução continuava pela
geração seguinte e além. A modificação variava de sociedade para sociedade,
sendo mais pronunciada em alguns lugares do que em outros. A idéia do escra­
vo como um estrangeiro tornava-se mais difícil de ser sustentada, uma vez que
ele começasse a compreender e aceitar a cultura do seu senhor. Mesmo quando
ainda continuassem a ser considerados e definidos como estrangeiros, geralmen­
te os escravos recebiam elementos básicos, como o acesso à terra, esposas, pro­
teção, ritos religiosos e outros atributos. Os aspectos mais técnicos da escravi­
dão, incluindo os elementos de propriedade, trabalho e a condição de estrangei­
ro, podiam ser invocados arbitrariam ente, mas na prática os direitos legais dos
senhores geralmente não eram plenamente exercidos. Em geral era alcançada
alguma espécie de acomodação entre senhores e escravos. O nível sociológico
dessa relação envolvia um reconhecimento por parte dos escravos de que eles
eram dependentes, cuja posição requeria subserviência ao seu senhor, mas igual­
mente necessitava da aceitação por parte dos senhores de que existiam limites até
onde os escravos podiam ser forçados.
Aqueles que nasciam na escravidão se achavam num a posição diferente
daqueles que tinham sido escravizados, pois o ato inicial de violência não exis­
tia. Os pais podiam contar aos seus filhos a respeito de sua escravizaçâo, mas
essa não era a experiência dos filhos. As crianças também podiam tom ar conhe­
cimento da escravizaçâo através de novos cativos e eram educadas numa socie­
dade na qual tais atos eram bem conhecidos. A ameaça da violência também
estava presente. Legalmente, elas muitas vezes podiam ser separadas dos seus
pais e vendidas, mesmo se na prática isso raramente acontecesse. A mesma inse­
gurança que levou à escravizaçâo dos seus pais ou dos novos escravos com os
quais eles entravam em contato podia resultar na sua própria reescravização
através de guerras ou ataques. E se elas se comportassem de uma maneira que
não fosse aceitável, podiam ser vendidas. Portanto, a violência por trás do ato de
escravizaçâo permanecia, embora para os descendentes de escravos fosse trans­
formada de ação real em ameaça. Como tal, a violência ainda era uma dimensão
crucial do controle social.
Em ambos os casos, além disso, a violência inerente à escravidão afetava a
psicologia dos escravos. O conhecimento dos horrores da escravizaçâo e o medo
da ação arbitrária produziam nos escravos tanto uma psicologia de servidão
quanto o potencial para a rebelião. Essa dualidade se relacionava com a coerção
própria à instituição, pois a memòria e a observação serviam como métodos efi­
cazes de manter uma atmosfera na qual a ameaça de violência estava sempre pre­
sente. Os escravos não tinham necessariamente que experimentar a chibata; na
verdade eles eram hábeis em evitá-la.
Os escravos não tendiam a ser naturalmente estáveis em número, e as popula­
ções cativas geralmente tinham que ser reabastecidas.5 Um motivo para isso era a
duração de vida relativamente curta de muitos escravos. A morte podia ser fruto
de um trabalho particularmente rigoroso, enquanto os sacrifícios funerários e ope­
rações de castração malsucedidas cobravam a sua parte. As condições de viagem
para os escravos destinados a mercados distantes eram outro fator, tanto porque
os indivíduos eram transportados de uma esfera microbiana para outra, como
porque as rações eram muitas vezes inadequadas. Uma outra razão era o desequi­
líbrio demográfico entre os sexos. O número de mulheres numa população é a
principal variável para determinar se ela irá ou não permanecer estável, expandir­
se ou contrair-se. Onde o número de escravos do sexo masculino era maior, como
acontecia entre os escravos recém-importados nas Américas, ou quando havia
uma distribuição desigual de mulheres escravas na sociedade, como em muitas
regiões da África, a taxa de natalidade podia ser baixa demais para manter o con­
tingente de cativos. A situação das populações com um número excessivo de escra­
vos do sexo masculino levava a um declínio geral da população total, não apenas
de escravos, a não ser que mais cativos fossem importados. Quando as mulheres
escravas eram distribuídas de maneira desigual, a população em geral não decli­
nava necessariamente, apenas a proporção de escravos. As mulheres geralmente
eram tomadas como esposas ou concubinas por homens livres, de modo que ain­
da tinham filhos. Como a posição social de concubinas e esposas escravas m uda­
va, muitas vezes levando à assimilação ou à total emancipação, o tam anho da
população escrava conseqüentemente diminuía. Aos filhos de esposas e concubi­
nas escravas com pais livres muitas vezes era conferida liberdade total ou parcial.
Sob a lei islâmica, isso era mais pronunciado. As concubinas não podiam ser ven­
didas uma vez que tivessem filhos e tornavam-se livres com a morte do seu senhor.
Os filhos de tais uniões eram livres ao nascer. Em outras situações, o costume dita­
va que as esposas escravas fossem incorporadas à sociedade, e mesmo quando não
eram conferidos aos seus filhos todos os direitos e privilégios conferidos aos filhos
de mães livres, o costume impedia a venda e outros tratamentos que eram impos­
tos aos recém-escravizados. Esses aspectos de assimilação gradual ou de total
emancipação contradiziam o traço da escravidão que enfatizava a condição herda­
da, mas eram com patíveis com o poder do senhor de manipular as funções sexuais
e reprodutivas de acordo com os seus próprios objetivos.
Essa característica da escravidão era responsável pela contínua importância
da escravização e do comércio escravo, instrumentos que reabasteciam de escra­
vos a sociedade. A continuação da escravização e do com ércio reforçava o ele­
m ento de propriedade na escravidão, mas o fazia de maneira desigual. Aqueles
que mais recentemente eram escravizados ou comercializados eram mais clara­
mente tratados como bens. Aqueles que tinham vivido num só lugar durante
muitos anos após a sua compra ou escravização tinham menos probabilidades de
serem tratados como se fossem simples mercadorias. A instituição como um todo
estava firmemente baseada em uma relação de propriedade, mas os escravos
experimentavam individualmente uma modificação nesse relacionam ento, até
que alguns não fossem mais propriedade ou mesmo escravos.
Um breve comentário se faz necessário para considerar o caso especial da
escravidão nas Américas, porque o sistema americano teve um desenvolvimento
particularmente deletério. M uitos aspectos da escravidão americana eram simi­
lares à escravidão em outras épocas e lugares, incluindo o tam anho relativo da
população cativa, a concentração de escravos em unidades econôm icas grandes
o bastante para serem classificadas como plantation e o grau de violência física
e coerção psicológica usadas para manter os escravos em seus lugares. N ão obs­
tante, o sistema de escravidão americano era único em dois aspectos: am anipu-
lação da raça como um meio de controlar a população cativa e a dimensão da
racionalização econômica do sistema. Nas Américas, o objetivo principal do tra­
balho escravo era a produção de mercadorias essenciais — açúcar, café, tabaco,
arroz, algodão, ouro e prata — para a venda nos mercados internacionais. Além
do mais, muitos aspectos que eram comuns em outros sistemas escravocratas
estavam ausentes ou eram relativamente pouco importantes nas Américas. Esses
incluíam a utilização de escravos no governo, a existência de eunucos e o sacrifí­
cio de escravos em funerais e outras ocasiões. As semelhanças e diferenças são
identificadas de modo a neutralizar uma tendência a ver a escravidão como uma
instituição peculiarmente americana. Sistemas escravocratas individuais tinham
as suas próprias características, mas ainda é possível analisar os padrões mais
abrangentes que distinguiram a escravidão de outras formas de exploração.

A ESCRAVIDÃO NAS FORMAÇÕES SOCIAIS

Os escravos podiam representar uma pequena percentagem ou uma parcela


substancial de uma população. Ao mesmo tempo que o fator demográfico era
importante, muito mais significativa era a posição dos escravos na sociedade e
na economia. Eles podiam ser incidentais para a sociedade em geral, porque
eram m uito poucos em número, mas m esm o quando eram m uitos podiam ser
distribuídos de maneira relativamente desigual dencro da sociedade ou concen­
trados nas mãos de relativamente poucos senhores. Sua função podia ser essen­
cialmente social, política ou econômica, ou alguma combinação destas. Os escra­
vos podiam ser utilizados extensivamente no exército e na administração (políti­
ca); podiam ser encontrados em papéis dom ésticos ou sexuais (social); ou
podiam ser envolvidos na produção (econôm ica). Às vezes, alguns escravos
desempenhavam uma ou outra dessas funções, embora algumas vezes estivessem
concentrados mais em uma categoria do que em outra. Quase sempre eles eram
encontrados em serviços domésticos, mas se sua localização social estivesse con­
finada quase que exclusivamente à exploração doméstica e sexual então outras
formas de trabalho eram necessariamente essenciais às atividades produtivas e
por conseguinte à natureza da organização econôm ica. M esm o quando escravos
cumpriam funções sociais mas não estavam empenhados na atividade produtiva,
a estrutura da economia tinida que se basear em outras formas de trabalho, e
assim a sociedade não estava baseada na escravidão.
A escravidão como um aspecto menos importante da sociedade deve ser dis­
tinguida da escravidão com o uma instituição. Naqueles lugares onde poucas pes­
soas possuíam poucos escravos, talvez como exemplos conspicuos de riqueza
mas não como trabalhadores, a escravidão era incidental à estrutura da socieda­
de e ao funcionamento da economia. A escravidão tornou-se im portante quando
os escravos foram usados extensivamente na produção, no monopólio do poder
político, ou na servidão doméstica (incluindo serviços sexuais). Essas situações
requeriam uma oferta regular de cativos, fosse através do com ércio, da escravi­
zaçâo ou de ambos, e o número de escravos na sociedade tornou-se significativo
o bastante para afetar a sua organização. Além disso, quando a escravidão se
tornou um componente essencial da produção, a instituição adquiriu caracterís­
ticas adicionais. M . I. Finley formulou convincentemente a im portância desse ,
desenvolvimento:
A escravidão, então, é transformada como instituição quando os escravos
desempenham um papel essencial na economia. Historicamente isso significou,
em primeira instância, seu papel na agricultura. A escravidão se acomodou ao
estado amplo sob condições radicalmente diferentes (...) e muitas vezes existiam
a e s c r a v i d ã o n a A f r i c a : u m a h i s t ó r i a de s u a s t r a n s f o r m a ç õ e s

pequenos grupamentos livres espalhados ao lado. O fato de que tanto os escra­


vos quanto os homens livres faziam trabalho idêntico era irrelevante; o que
importava era a condição do trabalho, ou melhor, em benefício de quem e sob
que (ou de quem) controles ele era conduzido. Nas sociedades escravocratas o
trabalho assalariado era raro e o trabalho escravo era a regra sempre que uma
tarefa fosse grande demais para que uma família a conduzisse sem auxílio. A
regra se estendia da agricultura à manufatura e à mineração, e algumas vezes até
mesmo ao comércio e às finanças.6

Na África, a escravidão passou por tal transformação em épocas diferentes e em


diferentes proporções na savana setentrional, nas regiões centro-ocidentais de
Angola e na bacia do Zaire, e em outros lugares.
A transformação da escravidão de característica marginal da sociedade para
uma instituição fundam ental produtiva resultou na consolidação de um m odo de
produção baseado na escravidão. “M odo de produção” é usado aqui para enfa­
tizar a relação entre a organização social e o processo produtivo, por um lado, e
os meios pelos quais essa relação é mantida, por outro.7 O conceito isola as rela­
ções sociais de produção, isto é, a organização da população produtiva em ter­
mos de sua própria identidade e das maneiras pelas quais essa população é diri­
gida. A interação entre as relações sociais e econômicas de produção requer con­
dições específicas para cada modo de produção, que permitam a renovação do
processo produtivo; de outra form a, não há continuidade histórica, somente
uma instância de produção. Finalmente, a relação entre o processo produtivo e a
sua renovação é refletida nas estruturas ideológicas e políticas da sociedade —
algumas vezes cham ada de “superestrutura” — com o um meio de distinguir
essas características da base m aterial.8
Um “modo de produção escravista” existia quando a estrutura social e eco-
nômica de uma determinada sociedade incluía um sistema integrado de escravi-
zação, tráfico de escravos e utilização interna dos cativos. Os escravos tinham
que ser empregados na produção, e assim o tipo de transformação identificada
por Finley deve ter ocorrido. Essa transformação geralmente significava que os
escravos eram utilizados na agricultura e/ou na mineração, mas também podia se
referir à sua utilização em transporte como carregadores, capatazes e remadores
de canoas. Os escravos podiam ainda exercer outras funções, incluindo o concu­
binato, a adoção em grupos familiares e o sacrifício, mas essas funções sociais e
religiosas tinham que ser secundárias em relação aos usos produtivos. Além dis-
so, a manutenção da população escrava tinha que ser assegurada. Essa renova­
ção podia ocorrer através do nascimento de crianças na escravidão (herança da
condição de escravo), invasões, guerra, seqüestro e outros atos de escravização,
e a distribuição de escravos por meio do comércio e do tributo. Como as popu­
lações escravas raram ente eram auto-sustentáveis por reprodução natural, a
escravização e o comércio eram geralmente pré-requisitos para a consolidação de
um modo de produção escravo.
A escravidão não precisava ser a principal característica das relações sociais
de uma sociedade para que existisse um m odo de produção escravista. Outras
instituições podiam também determinar as relações de produção sob diferentes
circunstâncias (parentesco, penhor etc.). Não obstante, quando a escravidão pre­
valecia em um ou mais setores da economia, a formação social — isto é, a com­
binação das estruturas sociais e econômicas de produção — incluía um modo de
produção escravista, não im portando que outros m odos coexistissem (feudalis­
mo, capitalism o etc.). Essa incorporação de várias estruturas econôm icas e
sociais num único sistema através da combinação e da interação entre diferentes
modos de produção podia ocorrer no contexto de um único Estado ou de uma
região mais am pla.9 Tal formação social podia incluir camponeses, por exemplo,
que estavam envolvidos numa relação tributária com um Estado ou que eram
autônomos e sujeitos a ataques por parte do Estado. As maneiras pelas quais
esses diferentes sistem as eram integrados — a sua “articulação” — podiam ser
muito complexas. A escravidão podia ser ligada a outros modos de produção
através do comércio a longa distância, relações tributárias ou ataques e guerras.
Q uando a interação estrutural entre a escravização, o comércio e o emprego
dom éstico de escravos era a parte m ais im portante de um a form ação social,
podia-se dizer que o m odo de produção escravo era dom inante. Isso ocorria
quando os principais escravizadores e negociantes de escravos compreendiam
uma classe de senhores de escravos que possuía um número substancial de cati­
vos e contava com eles para a manutenção da sua dominação econômica e polí­
tica. Nesse caso, a escravidão tornava-se essencial para a reprodução da forma­
ção social.
A ênfase na integração de um sistema produtivo baseado na escravidão com
os meios de reabastecer a oferta de escravos tem importância na reconstrução da
história da escravidão no seu contexto africano. Essa estrutura salienta três
situações históricas que eram parcialmente relacionadas e parcialmente autôno­
mas. Em primeiro lugar, fornece uma perspectiva para analisar a interação entre
a África e a demanda por escravos no mundo islâmico do norte da África e do

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O riente M édio. Em segundo lugar, enfatiza a conexão entre a África e as
Américas, onde os escravos africanos eram essenciais para a produção agrícola e
o setor de mineração. Em terceiro lugar, permite um estudo da ampla utilização
produtiva de escravos na África, especialmente no século XIX, após o colapso do
mercado exterior. Em todas as três situações, um modo de produção baseado na
escravidão se desenvolveu, mas suas características específicas eram diferentes. A
estrutura adotada aqui — a distinção entre escravidão como uma característica
marginal da sociedade, a escravidão como uma instituição e a escravidão como
um modo de produção — tem a intenção de facilitar um estudo dessas três dife­
rentes situações.
0 debate na literatura teórica entre marxistas e não marxistas, e entre os
próprios marxistas, inspirou essa estrutura conceituai, mas existem diferenças
claras no meu uso de “modo de produção” e “formação social” e o seu uso por
outros estudiosos. Discordo enfaticamente da abordagem de Samir Amin, Barry
Hindess, Paul Q. H irst e outros que empregam uma estrutura baseada na inter­
pretação de Louis Althusser, porque, como esses estudiosos admitem pronta­
mente, sua análise depende de construções ideais que são não históricas.10 Em
vez disso, eu sigo a formulação menos dogmática de Emmanuel Terray, cujo
objetivo é fornecer um “instrumento de análise”, que suponho que signifique um
“instrumento de análise histórica”.11 A partir dessa perspectiva, um “modo de
produção escravista” deve ser um termo descritivo cuja significação teórica não
é desenvolvida aqui. M eu objetivo é isolar o lugar dos escravos na produção
como um primeiro passo na reconstrução histórica.

0 AM BIENTE AFRICANO

A África negra estava relativamente isolada na Antigüidade e na época medieval.


Antes da metade do século X V , praticamente o único contato se dava pela costa
leste africana, através do mar Vermelho e pelo deserto do Saara. As regiões jun­
to a essas fronteiras eram diferentes das regiões mais isoladas do interior. Havia
exceções, dependendo dos recursos naturais, especialmente o ouro, de modo que
cinco áreas de produção deste metal foram atraídas para a órbita do mundo não
africano: três na África Ocidental (Buré, Bambuk e bacia do Volta),.a Etiópia e
o planalto de Xona, no interior do vale do Zambeze. Além disso, havia o comér­
cio interno de outros produtos além do ouro — nozes de cola entre as florestas
da África Ocidental a oeste do rio Volta e a savana ao norte; cobre, que era
comercializado ao sul do Saara para o baixo vale de Niger e que era também dis­
tribuído para o exterior das regiões ao sul do moderno Zaire; sal de muitas fon-
tes, incluindo numerosos locais no deserto do Saara, na costa do mar Vermelho
na Etiópia, locais centrais no interior de Angola, vários locais da Costa da Guiné
e outros perto dos Grandes Lagos da África Centro-Oriental. Apesar da sua pro­
vável antigüidade, esse comércio regional era relativamente autônom o do setor
externo. Além disso, os outros principais desenvolvimentos econômicos durante
o milênio anterior ao século XV também foram relativamente isolados. O movi­
mento dos agricultores de língua banto através da África Central, Oriental e Sul,
a emergência do nomadismo pastoril como uma especialidade na savana seten­
trional e pelo corredor lacustre da África Oriental e a difusão da exploração do
ferro e da produção artesanal eram, apesar de ligações ocasionais com o mundo
exterior, como no caso do algodão têxtil, muito mais influentes regionalmente
do que internacionalmente.
Uma das características do desenvolvimento regional era uma estrutura
social baseada na etnia e no parentesco. Embora a origem temporal das socieda­
des baseadas no parentesco não seja conhecida, as evidências lingüísticas, cultu­
rais e econôm icas indicam que tais estruturas eram m uito antigas. As referências
mais antigas ao parentesco, por exem plo, revelam que as distinções matrilinea-
res e patrilineares já estavam bem formadas no início do século XVI. Grande
parte da região costeira da África Ocidental era patrilinear, exceto pelos acãs da
Costa do Ouro. Na África Centro-Ocidental, os povos seguiam padrões matrili-
neares, com o fazem hoje os seus descendentes. Tal continuidade, que, falando de
m odo genérico, também coincide com distinções étnicas, sugere que os povos do
interior que estavam distantes dos primeiros observadores com partilhavam essas
estruturas. Assim, a evidência litorânea em relação à África Centro-Ocidental
indica a provável existência de uma região de sociedades matrilineares se expan­
dindo pelo continente em direção ao oceano Índico, assim como acontece hoje
em dia. N ada nos registros históricos indica que esse padrão tenha m udado
abruptamente em qualquer época do passado.12
Aquelas sociedades baseadas no parentesco têm sido diversamente descritas
como caracterizadas por um modo de produção “de linhagem” ou “doméstico”.13
Esse modo de produção tinha as seguintes características; as distinções etárias e
sexuais eram divisões fundamentais na sociedade, não existindo antagonismos de
classe. Os mais velhos controlavam os meios de produção e o acesso às mulheres,
e dessa forma o poder político era baseado na gerontocracia. Como as mulheres

Û
eram muitas vezes os principais trabalhadores agrícolas nesse tipo de formação
social, a produção e a reprodução estavam intimamente associadas.14 A manuten­
ção da sociedade dependia da fertilidade das mulheres e do produto do seu traba­
lho. As variáveis cruciais para a dominação gerontocrática incluíam o número de
mulheres casadas com velhos, o número de crianças nascidas de cada esposa, a
capacidade de assegurar a cooperação por parte dos mais jovens e parentes afins,
e o acesso aos bens imóveis da linhagem, incluindo terra, árvores, produtos silvres-
tes, caça e água. Nessa situação, a escravidão não alterava a base essencial da for­
mação social. Os escravos podiam aumentar o tamanho da população e assim
incrementar o número de pessoas mobilizadas pelos mais velhos, mas eles desem­
penhavam praticamente as mesmas funções que os membros da linhagem.
A escravidão era um dos m uitos tipos de relações de dependência, e era um
meio eficaz de controlar as pessoas em situações onde o parentesco continuava
predom inante. Os escravos não tinham ligações com a rede de parentesco e
tinham apenas aqueles direitos que eram concedidos por tolerância. Não existia
uma classe de escravos. Ao mesmo tempo que eles indubitavelmente desempe­
nhavam muitas funções econômicas, sua presença estava relacionada com o
desejo das pessoas, fosse individualmente ou de pequenos grupos de parentes, de
contornar as relações sociais tradicionais de modo a aumentar o seu poder. A
escravidão era, dessa forma, essencialmente uma instituição própria de socieda­
des de pequena escala, onde a influência política dependia do tam anho dos gru­
pos sociais. Se lhes fosse permitido, os escravos podiam tornar-se membros inte­
grantes desses grupos ou podiam ser mantidos como dependentes sem voz ativa,
mas o seu bem-estar estava relacionado com a fortuna de seu senhor e sua famí­
lia. Nesse contexto, as pessoas tinham escravos juntamente com outros tipos de
dependentes, mas a sociedade não era organizada de tal maneira que a escravi­
dão fosse uma instituição essencial. Essas não eram sociedades escravocratas.15
Além da escravidão, havia outras categorias de dependência, incluindo o
penhor, no qual as pessoas eram retidas com o garantia de dívidas, e categorias
etárias secundárias, nas quais os m ais jovens ainda não tinham perm issão de par­
ticipar plenamente das decisões da linhagem. Mesmo o casamento e o concubi­
nato eram instituições de dependência.
Os dependentes eram mobilizados no interesse da linhagem de acordo com
a determinação dos homens mais velhos. Eles executavam um trabalho coopera­
tivo nos campos, formavam expedições de caça, defendiam as cidades contra as
agressões e participavam de cerimônias religiosas. Como a terra muitas vezes era
um bem comum e como o casamento envolvia pagamentos que eram grandes
demais para que a maioria dos jovens pudesse cobri-los sem a ajuda dos mais
velhos, os laços de parentesco eram fortes. Em épocas de dificuldades, essas liga­
ções davam segurança. Os parentes mais jovens eram, em princípio, os mais vul­
neráveis. Mas eles precisavam da família, porque muitas vezes não tinham rique­
za nem idade suficiente para tomar conta de si próprios. Por outro lado, eram os
primeiros a sofrer em tempos difíceis.
Como o penhor demonstra, outros laços que não aqueles baseados no
parentesco eram importantes, porque suplementavam ou contornavam as cone­
xões biológicas.16 Sendo indivíduos retidos como garantia de uma dívida, os
penhorados tinham conexões familiares, mas geralmente não com o credor.
Dessa forma o seu valor estava baseado na expectativa de que seus parentes
pagariam a dívida e assim os livrariam da servidão. Os penhorados podiam ser
utilizados nessa qualidade, porque eram diretamente ligados ao devedor. As
crianças é que eram geralmente forçadas ao penhor, e, enquanto permaneciam
com um credor, o seu trabalho pertencia a ele. Elas eram resgatadas quando a
dívida se saldasse. Como a sua família era conhecida, eles geralmente não eram
maltratados. Legalmente não podiam ser vendidos. Eram uma garantia e espera­
vam que o seu período de servidão fosse breve. Para o credor, os penhorados
eram um investimento. Aqui havia um dependente a mais, não relacionado pelo
parentesco e que podia ser chamado para exercer uma variedade de funções pro­
veitosas. Havia pouco a perder. Se o penhorado morresse, outro tinha que ser
fornecido, contanto que não tivesse havido maus-tratos.
Em todas as sociedades, um homem podia ter o controle de muitas mulhe­
res, incluindo escravas, penhoradas e livres.17 Casar com uma m ulher livre
requeria pagamentos à sua família, e dessa forma um pai com alguma riqueza e
autoridade podia melhorar sua posição, ao contratar bons casamentos para as
suas filhas ou sobrinhas, conforme fosse a sociedade patrilinear ou matrilinear.
Além disso, um homem podia casar-se com penhoradas e escravas e dessa forma
evitar pagamentos nupciais. Ao casar-se com uma penhorada, a dívida era can­
celada e geralmente não havia obrigações para a família daquela a quem se unia.
0 custo de casar-se com uma escrava era o preço inicial de aquisição e, como a
sua família raramente era conhecida, a mulher tornava-se completamente depen­
dente do seu marido. Essas uniões com penhoradas e escravas não eram os casa­
mentos preferidos; contratos entre primos eram muitas vezes as uniões mais
desejadas, porque tais casamentos eram entre pessoas livres e fortaleciam os
laços de parentesco. N ão obstante, uma vez que um casamento respeitável esti­
vesse estabelecido, um homem podia procurar esposas adicionais que fossem
penhoradas ou escravas.
Essas práticas matrimoniais explicam por que havia uma grande demanda
por mulheres de condição servil. A natureza dessas relações(promovia a assimi­
lação, não a segregação. As mulheres tornavam-se parte da família. Aquelas com
as quais o senhor não se casava ou tomava como concubinas eram dadas aos
seus dependentes do sexo masculino — filhos, sobrinhos, leais seguidores. Em
todos esses casos, as mulheres escravas efetivamente tornavam-se dependentes
livres, principalmente depois de terem filhos de um homem livre. Diferentemente,
as esposas escravas de homens escravizados mantinham a sua condição servil.
Nessas situações geralmente não havia ato de emancipação, nem podia haver,
porque os laços de parentesco eram determinados pelo nascimento. A completa
incorporação a uma linhagem, que correspondia à emancipação, vinha gradual­
mente, dependendo do grau de aculturação, casamento com membros efetivos
da linhagem ou manifestações individuais de lealdade. N a ausência de classes
articuladas, a condição de escravo evoluía de uma maneira similar às mudanças
em outras categorias sociais. Os jovens mais tarde tornavam-se idosos; os escra­
vos ou seus descendentes gradualmente tornavam-se membros da linhagem.
Como muitos escravos domésticos eram mulheres ou meninas, essas obser­
vações sobre costumes matrimoniais ajudam a explicar a evolução em direção à
completa assimilação. As mulheres e os escravos nascidos na família eram facil­
mente assimilados, e a venda destes era rara. Aqueles tomados como escravos
quando crianças raramente eram vendidos, sendo tratados como membros da
família. Suas tarefas podiam ser mais servis, mas a eles eram muitas vezes conce­
didas responsabilidades no comércio, na produção artesanal ou em outras ocu­
pações. Escravos de segunda geração podiam ter a mesma sorte ou um destino
ainda melhor.
A ênfase na dependência podia refletir-se nas práticas religiosas; os sacrifí­
cios, por exemplo, eram interpretados como uma expressão de continuidade
entre esse mundo e o próxim o e a necessidade de dependentes em ambos. A
matança de escravos e a caça de estrangeiros — ou suas cabeças — também enfa­
tizava a dependência através do simbolismo ligado a tais atos. Estes não tinham
função produtiva, mas eram indicadores de posição social e econôm ica. A
demanda por vítimas a serem mortas em funerais, ritos religiosos e cerimônias
políticas podia ser esporádica, e dessa maneira incidental, ou podia tornar-se
regular e assim institucionalizada. Sítios funerais em Igbo-Ukwu sugerem que
ancestrais ibos do século IX já tinham desenvolvido uma demanda por vítimas
sacrificiais que podia ser atendida com a instituição da escravidão.18 A arqueo-
A ÁFR IC A E A E S C R A V ID Ã O

logia não pode determinar com precisão a condição social de todos aqueles que
eram enterrados junto com os nobres — podiam ser esposas livres, crianças,
voluntários ou outros. Em alguma época, entretanto, os escravos efetivamente
tornaram-se as principais vítimas.

0 FATOR ISLÂ M ICO

A existência de escravos em sociedades que enfatizavam o parentesco e a depen­


dência pessoal permitia a sua integração numa vasta rede de escravidão interna­
cional. Essa integração provavelmente já se difundia no passado, mas apenas
para aquelas áreas mais perto da bacia do Mediterrâneo, do golfo Pérsico e do
oceano Índico. Nos séculos Vili, IX e X, o mundo islâmico tinha se tornado o
herdeiro dessa longa tradição de escravidão, continuando o padrão de incorpo­
rar escravos negros da África às sociedades ao norte do Saara e ao longo das cos­
tas do oceano Índico. Os Estados muçulmanos desse período interpretavam a
antiga tradição escravista de acordo com a sua nova religião, mas muitos dos
usos dados aos escravos eram os mesmos de anteriormente — eles eram utiliza­
dos nos serviços militar, administrativo e doméstico. As designações, os trata­
mentos das concubinas e outras características da escravidão foram modificados,
mas a função dos cativos na política e na sociedade era em grande parte a mes­
ma. Apesar da antiga tradição, a principal preocupação aqui é com a consolida­
ção da escravidão no seu contexto islâmico, pois, durante mais de setecentos
anos antes de 1450, o :mundo islâmico era praticamente o único eixo de influên­
cia externa na economia política da África.19
Inicialmente os escravos eram prisioneiros capturados nas guerras santas
que expandiram o Islã da Arábia pelo norte da África e através da região do gol­
fo Pérsico. A escravização era justificada com base na religião, e aqueles que não
eram muçulmanos eram legalmente passíveis de escravização. Antes que os pri­
meiros califados fossem estabelecidos, os escravos vinham em grande parte das
áreas de fronteira onde a guerra santa ainda era travada. Assim, uma antiga divi­
são foi estabelecida entre as terras islâmicas centrais e a fronteira, e o grau de
especialização passou a definir este sistema de escravidão. As províncias islâmi­
cas centrais constituíam o mercado para os escravos; o abastecimento vinha das
regiões de fronteira. Os cativos não eram necessariamente negros, em bora os

u
negros sempre constituíssem uma proporção significativa da população escrava.
Eles também vinham da Europa Ocidental e das estepes do sul da Rússia. Eram
muitas vezes prisioneiros de guerra, não-m uçulm anos que tinham resistido à
expansão do islamismo. A escravidão era concebida como uma espécie de apren­
dizagem religiosa para os pagãos. Anteriormente, aos judeus e cristãos residen­
tes era concedido um status especial de “pessoas do livro”, sendo reconhecidos
como homens livres sujeitos a taxas e limitações especiais sobre as liberdades
civis, mas livres da escravização. Alguns cristãos eram escravizados durante as
guerras, principalmente na Europa Ocidental, mas a maioria dos escravos vinha
de outros lugares.
A natureza da demanda por escravos revela alguns aspectos importantes do
comércio. As mulheres e crianças eram preferidas em maior número do que os
homens. Tinham também mais probabilidades de serem incorporadas à socieda­
de muçulmana. Os meninos, fossem eles eunucos ou não, eram treinados para o
serviço militar ou doméstico, e alguns dos mais promissores eram promovidos.
As mulheres também tornavam-se domésticas, e as consideradas mais belas eram
colocadas em haréns, um fator que influenciava fortemente os preços de escra­
vos. Os homens adultos e as mulheres menos atraentes eram destinados às tare­
fas mais baixas e trabalhosas, e sua população tinha que ser constantemente rea­
bastecida através de novas importações. Essa escravidão não era uma instituição
autoperpetuadora, e aqueles nascidos no cativeiro formavam uma parcela relati­
vamente pequena da população escrava. A maioria dos filhos de escravos era
assimilada pela sociedade muçulmana, apenas para ser substituídos por novas
importações. Emancipação, concubinato, servidão doméstica, postos políticos e
posição militar também dificultavam o estabelecimento de uma classe de escra­
vos com uma distinta consciência de classe própria. A raça também era minimi­
zada como um fator na manutenção da condição servil. A exigência religiosa de
que os novos escravos fossem pagãos e a necessidade de importações contínuas
para manter a população escrava tornou a África negra uma importante fonte de
escravos para o mundo islâmico. Como a África subsaariana inicialmente estava
além das terras islâmicas, os muçulmanos e outros comerciantes procuravam por
escravos na África. Guerras locais, criminosos condenados, seqüestros e prova­
velmente dívidas eram fontes de escravos para os comerciantes visitantes, que
reuniam os cativos em pequenos grupos para transporte através do m ar
Vermelho e subindo a costa oriental africana, ou se reuniam para formar cara­
vanas para a marcha através do Saara. O comércio de exportação foi relativa-
m ente m odesto antes do século XV e na verdade não se expandiu consideravel­
m ente até o século X IX . As exportações chegavam a uns poucos m ilhares de
escravos por ano na maioria das vezes, e com o as áreas afetadas eram quase sem ­
pre muito extensas o impacto local era geralmente minimizado.
Na tradição islâmica, a escravidão era vista como um meio de converter os
não-muçulmanos. Assim, uma das tarefas do senhor era a instrução religiosa, e
teoricamente os muçulmanos não podiam ser escravizados, em bora na prática
isso fosse m uitas vezes violado. A conversão não levava autom aticam ente à
emancipação, mas a assimilação à sociedade do senhor, julgada de acordo com
a observância à religião, era considerada um pré-requisito para a emancipação e
normalmente garantia melhor tratam ento. Um aspecto da tradição religiosa e da
tradição legal era que a emancipação, como um ato de libertação dos escravos, e
de mudança da sua condição, estava claramente definida. Nas sociedades basea­
das no parentesco, a emancipação era um processo reconhecido pela integração
progressiva de sucessivas gerações através do casamento, até que as pessoas per­
tencessem integralmente ao grupo. M uitas vezes não havia ato de emancipação
no sentido exato da palavra. Na prática islâmica, havia.
As funções desempenhadas pelos escravos eram também diferentes, em par­
te porque as estruturas das sociedades islâmicas eram freqüentemente de uma
escala maior que entre os grupos de parentesco. Nos grandes estados islâmicos
da bacia do M editerrâneo, por exemplo, os cativos eram usados no governo e no
serviço militar, ocupações que não existiam em sociedades sem estado. Oficiais
e soldados escravos muitas vezes mostravam-se muito leais por causa da depen­
dência pessoal para com o seu senhor. Os eunucos formavam uma categoria
especial de escravos que não parece ter sido característica da m aioria das socie­
dades não-muçulm anas baseadas no parentesco. Os eunucos, que podiam ser
utilizados em funções administrativas e como fiscais dos haréns, eram particu­
larmente dependentes, sem nem mesmo a chance de estabelecer interesses que
fossem independentes do seu senhor. Sob a influência do Islã, a prática se difun­
diu pela África subsaariana, junto com o emprego de escravos no exército e na
burocracia.
A visão islâmica das mulheres escravas também era diferente daquela basea­
da no parentesco. A lei islâmica limitava o número de esposas a quatro, embora
apenas as considerações materiais e os caprichos pessoais limitassem o número
de concubinas. T anto em contextos islâmicos quanto em não-islâm icos, os
homens podiam ter quantas mulheres pudessem sustentar, mas a determ inação
legal era diferente. O costume islâmico, enfatizando uma linha mais clara entre
escravos e livres, permitia a emancipação de concubinas que tivessem filhos de
seu amo. Legalmente elas tornavam-se livres com a morte do seu senhor, mas
não podiam ser vendidas uma vez que tivessem filhos. N a prática, também as
esposas de origem escrava das sociedades baseadas no parentesco raram ente
eram vendidas, e essa posição aumentava a probabilidade de que se tornassem
membros do grupo familiar, e por conseguinte livres. Os termos de referência
diferiam, mas a prática era bastante similar.
Em muitas sociedades islâmicas, os escravos também executavam tarefas
que eram mais diretam ente relacionadas com a produção e o com ércio.
Certamente a escala de atividade econômica nas bacias do M editerrâneo e do
oceano Índico envolvia maior comércio, um nível mais alto de desenvolvimento
tecnológico e a possibilidade de exploração mais especializada do trabalho
escravo do que na maior parte da África negra até a época recente. Na verdade,
aos escravos freqüentemente eram designadas tarefas que não eram diretamente
produtivas, as quais, pelo contrário, alim entavam uma hierarquia política e
social que explorava uma população de camponeses livres, artesãos e populações
servis não escravas. Embora os escravos fossem mais freqüentemente utilizados
em funções domésticas (incluindo sexuais) ou no governo e no serviço militar,
ocasionalm ente eles eram empregados na produção, como nas minas de sal da
A rábia, da Pérsia e do norte do Saara. O utros cativos eram utilizados nos
empreendimentos agrícolas em larga escala e na fabricação artesanal. A freqüên­
cia e a escala desse trabalho, muito embora não fosse a principal relação de pro­
dução, eram bastante diferentes da utilização de cativos nas economias menos
especializadas das sociedades africanas baseadas no parentesco.
Esses diferentes usos dos escravos, a distinção mais clara entre escravos e
livres e o emprego ocasional de cativos nas atividades produtivas demonstram
uma diferença nítida entre a escravidão das sociedades baseadas no parentesco e
a escravidão da lei e da tradição islâmicas. A diferença mais importante era que o
escravismo nas terras islâmicas tinha passado por uma transformação parcial do
tipo que Finley identifica como significativa na institucionalização da escravidão.
Um sistema econômico plenamente baseado no trabalho escravo não tinha apare­
cido na maior parte do mundo islâmico entre 700 e 1400, apesar da importância
dos cativos administrativos e militares na m anutenção da sociedade islâmica.
Concubinas e escravos domésticos eram comuns e afetavam a natureza do casa­
mento como uma instituição e a organização das famílias abastadas. A adaptação
de práticas similares na África subsaariana igualmente envolveu mudanças.
0 C O M ÉR CIO TRANSATLÂNTICO

O crescimento e a expansão do tráfico europeu de escravos através do oceano


A tlântico tiveram um im pacto decisivo na evolução da escravidão na África,
principalm ente naquelas áreas da costa da Guiné onde a influência islâmica
tinha sido fraca ou inexistente.20 Embora a demanda de escravos nas regiões não
africanas do mundo islâmico tenha tido uma influência gradual mas sólida na
difusão das idéias e práticas islâmicas na África, o impacto do mercado europeu
para escravos foi mais intenso em um período mais curto, do que derivam con­
seqüências distintas. As exportações de escravos cresceram gradualmente duran­
te os primeiros 150 anos do comércio atlântico, chegando a 409.000 escravos de
1450 a 1600. Posteriormente o comércio aumentou numa escala que sobrepujou
todas as exportações anteriores da África. O volume total para o comércio atlân­
tico atingiu 11.313.000 escravos (ver Tabela 1.1), um número derivado em gran­
de parte da Base de D ados W.E.B. D u Bois de Viagens de N avios N egreiros, a
qual suplanta o censo pioneiro de Philip D . Curtin. A atração do m ercado atlân­
tico tinha o efeito de afastar ainda mais as formas locais de escravidão de uma
estrutura social na qual o escravismo era apenas uma entre outras formas de
dependência pessoal, para um sistema no qual os cativos desempenhavam um
papel cada vez mais importante na econom ia. Em resumo, essa mudança tam ­
bém envolvia uma transformação similar àquela que Finley caracterizou como
uma alteração fundamental na maneira pela qual a escravidão pode ser implan­
tada numa formação social determinada.

Tabela 1.1
Exportações de escravos da África: o comércio atlântico
Período Número de escravos computados Percentagem
1450-1600 409.000 3,6
1601-1700 1.348.000 11,9
1701-1800 6.090.000 53,8
1801-1900 3.466.000 30,6
Total 11.313.000 100,0
Fontes: tabelas 2.3, 3.2, 3.3, 7.1 e 7.5. Em relação ao período de 1450-1522, me baseei em Elbl
1997, e em relação ao século XIX, incluí os libertos e outros indivíduos escravizados que estavam
ocultos sob outras denominações; ver tabela 7.5,
A abertura do Atlântico ao comércio marcou uma ruptura radical na histó­
ria da África, especialmente porque este comércio também envolvia a exportação
de milhões de escravos, Antes desse desenvolvimento comercial, as costas atlân­
ticas da África tinham estado praticamente isoladas do mundo exterior. Uma
certa quantidade de sal e peixe era comercializada no interior em troca de ali­
mento, mas de um modo geral a linha do litoral era uma barreira. A mudança
tecnológica do transporte oceânico teve um enorme impacto econômico, tornan­
do disponíveis novas fontes de riqueza para os habitantes locais e facilitando a
mudança política numa escala sem precedentes. A escravidão ali estava intima­
mente associada a essa transformação, não apenas porque os escravos eram o
principal item de exportação, mas também porque eles tornaram-se muito mais
comuns na sociedade local do que anteriormente.
A transform ação na escravidão interna que acom panhou a expansão da
demanda européia por escravos foi bastante diversa daquela produzida pela
expansão islâmica. Introduziu-se uma nova força que modificou a escravidão de
maneira diferente das mudanças que tinham acontecido como resultado da cone­
xão islâmica na savana setentrional e através da costa oriental africana. N ão
havia tradição da lei islâmica, nem havia outros aspectos da prática escravocra­
ta islâmica, incluindo o concubinato, os eunucos e funcionários político-
militares com títulos islâmicos. Assim, uma importante conseqüência do comér­
cio europeu foi a consolidação de uma forma não-müçulmana de escravidão. A
escravidão sofreu uma transformação, de característica marginal da sociedade
para uma importante instituição, mas na maioria dos lugares ela continuou a ser
interpretada no contexto das estruturas de linhagem, e isso está identificado nes­
te trabalho como “escravidão de linhagem”.
Como instituição, a escravidão de linhagem compartilhou os mesmos aspec­
tos básicos a todos os tipos de escravidão: o elemento da propriedade, a identi­
dade estrangeira, o papel da violência e a exploração produtiva-e sexual. A dife­
rença surpreendente era a ausência notável de influência estrangeira no plano
ideológico. Quase não havia internalizaçâo das atitudes européias em relação à
escravidão, pois teorias e práticas islâmicas tinham sido adotadas em muitos
lugares. O impacto do mercado produziu algumas mudanças que podem ser
reputadas à influência européia, mas esse fator teve mais importância no nível
econômico do que no campo ideológico. A escravidão continuou a ser concebi­
da em termos de parentesco, mesmo quando os escravos recebiam novas tarefas.
Os escravos eram cada vez mais utilizados no governo, no comércio e no serviço
militar, de formas similares à sua utilização nos países muçulmanos. A estrutura
e os títulos eram diferentes, mas a função era a mesma. O mesmo acontecia em
relação ao controle das mulheres. As regras polígamas permitiam que os homens
tivessem tantas esposas quantas pudessem adquirir. Não havia racionalização
dessa prática por meio de leis que regulamentassem o número de esposas e o sta­
tus das concubinas, como havia na lei islâmica. No entanto, os resultados eram
similares. Os homens im portantes tinham muitas esposas, algumas das quais
eram escravas, e essa distribuição desigual das mulheres dentro da sociedade era
um elemento de controle social, principalmente porque as mulheres eram muitas
vezes os principais trabalhadores da agricultura, bem como as reprodutoras da
família. O controle das mulheres permitia a dominação da produção e da repro­
dução. Esse aspecto do escravismo teve um importante impacto no comércio de
exportação. Os europeus queriam trabalhadores para o campo e para as minas.
Na verdade eles não se importavam muito com o sexo deles, embora talvez tives­
sem uma ligeira preferência por escravos do sexo masculino. Os africanos que­
riam mulheres e crianças. Daí surgiu uma divisão natural da população escrava,
com os comerciantes europeus comprando aproximadamente dois homens para
cada mulher, por vezes uma proporção ainda maior de homens. O comércio
europeu era significativamente diferente do comércio muçulmano pelo Saara, o
mar Vermelho e o oceano Índico. Os muçulmanos também queriam mulheres,
não homens, como se evidenciava nos preços mais altos cobrados pelas mulhe­
res neste comércio muçulmano.
A transformação da escravidão nas áreas africanas não-muçulmanas estava
relacionada com a envergadura do comércio de exportação e com o grau em que
políticos e comerciantes alimentavam esse comércio através da escravizaçâo e do
tráfico. Como o número de escravos continuamente aumentava e se firmava a
capacidade de manter uma oferta regular, tornou-se possível utilizar os escravos
de novas formas. Essas novas formas estavam muitas vezes relacionadas com o
aumento da escala de produção de bens, incluindo ouro, mercadorias agrícolas,
m anufaturados e sal. N o século XIX, essa utilização produtiva dos escravos
tornou-se importante em muitos lugares. Independentemente da diferença ideoló­
gica para com a economia de plantation européia das Américas, a escravidão afri­
cana tornou-se firmemente associada a uma sociedade agrícola baseada em gran­
des concentrações de escravos. Em muitas regiões a escravidão ainda era concebi­
da em termos de parentesco e permanecia marginal à organização básica da socie­
dade. Não obstante, a escravizaçâo mais intensiva dos povos e o crescimento do
tráfico de escravos afetaram a instituição em praticamente todos os lugares.
A interação entre o ambiente nativo, a influência islâmica e a demanda euro-

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pria por escravos forneceu a dinâmica do desenvolvimento da escravidão na Áfri-
» i no último milênio, mas essas não foram sempre variáveis independentes. O
.núblente nativo, por exemplo, não pode ser reconstruído meramente eliminando
li herança islâmica ou ignorando temporariamente o mercado europeu de escravos,
f' relativamente correto que a escravidão provavelmente existia na África antes da
difusão do islam ism o, embora não se tenha certeza das características. Se nós
i ntendemos por “escravos” as pessoas que eram seqüestradas, capturadas em
KUerras ou condenadas a serem vendidas como conseqüência de um crime ou como
reparação por um crime, então elas eram obviamente escravas. Estruturalmente,
entretanto, a escravidão era marginal.
A influência do islamismo e do mercado europeu e muitos outros desenvol­
vimentos políticos e econômicos afetaram o rumo da escravidão. Uma vez que
tais fatores tivessem um impacto em determinadas sociedades, a natureza da
escravidão mudava, e o resultado era um ambiente nativo diferente. Em suma, a
história da escravidão é dinâmica, e as mudanças provocaram o surgimento de
sociedades escravocratas onde anteriorm ente havia apenas alguns escravos na
sociedade. Ou seja, a escravidão tornou-se uma instituição fundamental, e não
uma característica periférica. A África pôde ser integrada numa rede internacio­
nal de escravidão, porque as formas nativas de dependência pessoal permitiam a
transferência de pessoas de um grupo social para outro. Q uando os laços de
parentesco eram rom pidos, com o o eram no caso da escravidão, tornava-se
necessário mudar as pessoas do local de escravizaçâo para um lugar ainda mais
distante. Esse movimento tendia aos mercados externos de escravos, aqueles do
mundo islâmico e das Américas. Os cativos tendiam a ir da periferia para áreas
de maior desenvolvimento econômico e político, tanto dentro quanto fora da
África. Os escravos não eram importados para a África; eles eram exportados.
Repetindo a dimensão crucial do argumento: a integração da África em uma rede
internacional de escravidão ocorreu porque a África era uma área de oferta de
escravos. Na África, por conseguinte, existia um vínculo estrutural entre essa
capacidade de fornecer escravos para a utilização externa e o emprego interno
dos mesmos.
A escala dessa exportação demonstra o seu impacto. Mais de 11 milhões de
escravos deixaram as praias da costa atlântica da África; talvez um número ainda
maior tenha encontrado o caminho para os países islâmicos do norte, Arábia e
índia. Embora o foco aqui seja a história da escravidão dentro da África, e não o
destino dos africanos fora do continente, o volume desse comércio era tão subs­
tancial que revela um elemento essencial no controle social dos escravos, e na ver-
dade de outros dependentes, na África. A exportação era urna das possibilidades
com as quais os escravos se defrontavam; a exploração interna era outra. Elas
estavam intimamente relacionadas em sua estrutura. Os escravos geralmente
eram vendidos se fracassassem no desempenho das suas obrigações, e a venda,
não apenas pelo Atlântico mas também pelo deserto do Saara, o mar Vermelho e
o oceano Índico, era uma forma de punição e, deste modo, uma am eaça que aju­
dava a controlar as ações dos cativos. O comércio acarretava grandes riscos para
os escravos, incluindo marchas forçadas, alimentação precária, exposição a doen­
ças em condição de exaustão e fome, e maus-tratos. A morte e os danos físicos
permanentes eram com uns, e os escravos sabiam disso por experiência própria.
Como fonte para o comércio exterior desde tempos imemoriais, a África era
um reservatório de escravos baratos e abundantes — na verdade eles estavam ali
à mão. Esse aspecto, a escravização, era outra dimensão do escravismo na Áfri­
ca e afetou fortemente a história da instituição no continente. É incorreto pensar
que os africanos escravizassem os seus irmãos — embora isso algumas vezes
acontecesse. Na verdade, os africanos escravizavam os seus inimigos. Essa con­
cepção de quem podia ser escravizado servia aos interesses do mercado externo
e perm itia a ascendência política de alguns africanos no continente. Guerra,
seqüestro e manipulação de instituições jurídicas e religiosas são responsáveis
pela escravização da m aioria dos cativos, tanto daqueles exportados como
daqueles retidos na África. Diferente de outros lugares onde a escravidão era
comum, como particularmente na América e nas partes centrais do mundo islâ­
mico, a escravização regular era uma característica essencial do escravismo como
uma instituição. Os senhores de escravos nas Américas e nos principais estados
islâmicos contavam com o tráfico para obter a maioria de seus cativos. Eles pró­
prios geralmente não eram responsáveis pela escravização direta das pessoas. Na
África, os escravizadores e os proprietários de escravos eram muitas vezes os
mesmos. A Europa e as terras centrais islâmicas viam as áreas na sua periferia
como uma fonte de escravos, e a África era uma dessas regiões periféricas — pra­
ticamente a única para as Américas e a principal para os países islâmicos. Os
escravos também se movimentavam dentro da África, de áreas que eram mais
periféricas para lugares que eram mais centrais, mas a escravização era um
aspecto predominante em todos os lugares. Não havia separação funcional entre
a escravização e a utilização de escravos; elas permaneciam intrincadam ente
associadas.
Essa conexão revela uma característica fundamental do escravismo na Áfri­
ca, e, quando totalmente articulada com a utilização de escravos na produção, a
escravidão foi transform ada num modo de produção distinto. A história da
escravidão envolvia a interação entre a escravizaçâo, o tráfico de escravos e a uti­
lização de cativos na própria África. Um exame dessa interação dem onstra a
emergência de um sistema de escravidão que era fundamental para a economia
política de muitas regiões do continente. Esse sistema se expandiu até as últimas
décadas do século XIX. O processo de escravizaçâo aumentou; o comércio cres­
ceu em resposta aos novos e maiores mercados, e a utilização de escravos na
África tornou-se mais comum. Relacionada com a articulação desse sistema,
com as suas ligações estruturais com outras partes do mundo, estava a consoli­
dação dentro da África de uma estrutura política e social que contava em muito
com a escravidão. A produção dependia, em graus variados, do trabalho escra­
vo. O poder político contava com exércitos de escravos. O comércio exterior
envolvia a venda de escravos, muitas vezes como a mercadoria principal.
Nas fronteiras do Islã,
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