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A escravidão na
África:
Uma historia de suas
transformações
TRADUÇÃO DE
Regina A. R. F. Bberìng e
Luiz Guilherme B. Chaves
C I V I L I Z A ÇÃO m U S l L B I K A
Rio de Janeiro
2002
i A África e a escravidão
A escravidão foi um im portante fenôm eno da história, estando presente em m ui
tos lugares, da antigüidade clássica a épocas m uito recentes. A África esteve inti
mamente ligada a esta história, tanto como fonte principal de escravos para as
antigas civilizações, o mundo islâmico, a índia e as Américas, quanto como uma
das principais regiões onde a escravidão era comum. Na verdade, na África a
escravidão durou até o século X X — m uito mais do que nas Am éricas. Tal anti
güidade e persistência requer explicação, tanto para com preender o desenvolvi
m ento histórico da escravidão na África, quanto para avaliar a relativa im por
tância do tráfico de escravos para este desenvolvimento. De m aneira geral, a
escravidão se expandiu em pelo menos três estágios — 1350 a 1 60 0 , 1600 a
1800 e 1800 a 1900 — durante os quais o escravism o se tornou fundam ental
para a econom ia política africana. Essa expansão ocorreu em dois níveis ligados
ao com ércio exterior. Em primeiro lugar, a escravidão ocupou uma área geográ
fica cada vez m aior, difundindo-se para fora daquelâs regiões diretam ente
envolvidas no comércio exterior de escravos. Em segundo lugar, o papel dos
escravos na econom ia e na sociedade tornou-se crescentemente importante, do
que resultou a transform ação da ordem social, econôm ica e política. Tam bém
nesse caso, o com ércio exterior esteve associado a essa transform ação.
A E SC R A V ID Ã O : U M A D EFIN IÇ Ã O
dizer com “liberdade”. 0 termo é realmente relativo. As pessoas são mais livres
para tomar decisões por si mesmas ou são menos livres para fazê-lo. Todas as
sociedades impõem muitas restrições aos indivíduos, mas mesmo reconhecendo
isso ainda podemos entender os escravos como pessoas particularmente coagi
das. No contexto das sociedades escravocratas, a liberdade envolvia uma posi
ção reconhecida numa casta, numa classe dirigente, num grupo de parentesco ou
em algum tipo de instituição. Uma tal identificação incluía um conjunto de direi
tos e obrigações que variavam consideravelmente de acordo com a situação, mas
ainda eram distintos daqueles dos escravos, que tecnicamente não tinham direi
tos, apenas obrigações. O ato de emancipação, quando existia, transmitia um
reconhecimento de que escravo e homem livre eram opostos. A emancipação
demonstrava dramaticamente que o poder estava nas mãos dos homens livres,
não dos escravos.
Dessa maneira, a escravidão era fundamentalmente um meio de negar aos
estrangeiros os direitos e privilégios de uma determinada sociedade, para que \
eles pudessem ser explorados com objetivos econômicos, políticos e/ou sociais.2 j
Geralmente os estrangeiros eram considerados etnicamente diferentes: a ausên-'
cia de parentesco era uma distinção particularmente com um . Um a pessoa que
falasse a mesma língua que o seu senhor, sem sotaque, que com partilhasse
a mesma cultura, acreditasse na mesma religião e compreendesse as relações
políticas que determinavam como o poder era exercido era muito mais difícil de
controlar do que um estranho. Quando as diferenças na cultura ou no dialeto
eram relativamente sem im portância, o nível de exploração e o isolam ento social
dos escravos eram geralmente lim itados; tais situações sugeriam que a posse de
escravos era pequena e que a estratificaçâo política e econômica era mínima.
Certamente as formas mais desenvolvidas de escravidão eram aquelas em que os
escravos eram levados para uma distância considerável do seu local de nascimen
to, enfatizando dessa forma as suas origens estrangeiras. Essa erradicação era
tão dram ática quanto o transporte dos africanos através do A tlântico ou do
deserto do Saara, ou tão pouco dram ática quanto a captura de pessoas que
viviam a apenas cem quilômetros ou menos do lar daqueles que os escravizavam.
Ambas as situações ajudavam a definir o escravo como um estranho, pelo menos
em primeira instância. Com o passar do tempo, as distinções culturais tendiam a
ficar nebulosas, de modo que variava a extensão em que a origem estrangeira
funcionava como um fator.
Q uando as estruturas sociais e as econom ias eram mais com plexas, a identi
ficação dos escravos como estrangeiros também se tornava mais pronunciada, de
modo que a aculturação que invariavelmente ocorria não afetava a capacidade
dos senhores de explorar o trabalho e os serviços de seus cativos. Para os muçul-
, manos, a religião era um meio de classificar os escravos. Aqueles recentemente
' adquiridos geralmente não eram muçulmanos ou o eram apenas nominalmente.
Mesmo quando os escravos começavam a praticar o islamismo, eram geralmen-
; te considerados menos devotos. Para os europeus, os escravos eram vistos como
; racialmente distintos; apesar da aculturação, eles eram ainda mais claramente
definidos como estrangeiros, garantindo dessa forma que a aquisição de direitos
na sociedade de origem européia fosse severamente limitada. Outras distinções
mais sutis eram feitas, incluindo as diferenças de dialeto, o sotaque das pessoas
que tinham acabado de aprender uma nova língua, marcas faciais e corporais,
características físicas evidentes e, a mais comum de todas, a memória.
A escravidão quase sempre tinha início por meio de violência, que reduzia a
posição de uma pessoa de uma condição de liberdade para uma condição de
escravo.3 O tipo mais comum de violência era a guerra, na qual os prisioneiros
eram escravizados. Variações na organização de tal violência — incluindo ata
ques cujo objetivo era adquirir escravos, banditismo e seqüestro — indicam que
a escravização violenta pode ser vista como inserida em uma sucessão contínua
da ação política em larga escala, na qual a escravização pode ser apenas um
subproduto da guerra e não a sua causa, ou como uma atividade criminal em
pequena escala, na qual escravizar é o único objetivo da ação. Tomados em con
junto, as guerras, os ataques em busca de escravos e o seqüestro foram responsá
veis pela maior parte dos novos escravos na história. Mesmo quando o motivo da
guerra não era adquirir escravos, a ligação entre guerra e escravidão era muitas
vezes estreita. Nas sociedades onde era costumeiro escravizar prisioneiros, os beli
gerantes invariavelmente levavam em consideração as possibilidades de custear as
despesas de guerra com a venda ou a utilização dos escravos. Quando as guerras
e invasões eram crônicas, eram constantes a escravização e a reescravização dos
povos, e a incidência da escravidão em tais situações aumentava.
Enquanto guerras e violências similares eram responsáveis pela maior parte
dos povos recém-escravizados na história, procedimentos judiciais e religiosos
eram responsáveis por alguns episódios de escravização. A escravidão era uma
forma de punição judicial, principalmente para crimes como assassinato, roubo,
adultério e bruxaria. Os m étodos pelos quais os crim inosos suspeitos eram escra
vizados variavam bastante, e muitas vezes eles eram vendidos para fora das suas
próprias comunidades. N ão obstante, essa form a de escravização estava mais
uma vez estribada na violência, apesar de legítima aos olhos da sociedade em
questão. A posição social de uma pessoa era radicalm ente reduzida: o novo es
cravo podia perder sua qualidade de mem bro da com unidade, e a sua punição
podia confirmar um status que era transm itido aos seus descendentes.
Existem exemplos de escravizaçâo voluntária, principalm ente quando a
am eaça de m orrer de fome não deixava à pessoa nenhum o utro recurso.
Entretanto, esse não era um caso de violência consciente por parte da sociedade
ou de um inimigo. Podia haver causas estruturais que colocavam pessoas em
situações nas quais elas não podiam ter assegurada a sua sobrevivência e acha
vam necessário escravizar a si mesmas. Essa dimensão estrutural podia trazer
com ela uma dimensão que era em última análise de exploração e violência. No
entanto, a escravizaçâo voluntária não era comum, e provavelmente foi respon
sável por apenas uma pequena percentagem dos escravos na maioria dos lugares.
Além disso, a possibilidade de escravizaçâo voluntária dependia da existência de
uma instituição escravista na qual a violência era fundamental. Se não existisse
tal instituição, uma pessoa não poderia tornar-se um escravo, mas um cliente ou
algum outro tipo de dependente. O fato de que a posição de escravo pudesse ser
atribuída em tais circunstâncias indica que outras posições servis não eram ade
quadas, seja porque fossem raras ou porque sua definição excluía tais casos.
O grau de coerção envolvido na escravidão era algumas vezes óbvio e em
outras disfarçado. 0 senhor podia impor sua vontade graças à sua capacidade
de punir os escravos que não cediam às suas ordens ou não desempenhavam as
suas tarefas satisfatoriamente. Chibatadas, confinamento, privação de alimento,
trabalho pesado extra e a capacidade de dispor dos escravos através da venda
eram meios comuns de coerção. A punição física podia levar à morte, e mesmo
quando havia uma proibição legal ou consensual de matar escravos raramente era
aplicada. Muitas vezes a coerção era indireta. O exemplo de outros escravos sen
do punidos ou vendidos e o conhecimento de que o senhor podia fazê-lo geralmen
te eram suficientes para manter a disciplina dos cativos. Sacrifícios de escravos em
funerais e cerimônias públicas, comuns em alguns lugares, também eram exemplos
para eles. Tais demonstrações públicas geralmente não eram uma forma de puni
ção por insubordinação; na verdade, algumas vezes elas eram concebidas como
uma honraria, mas na maioria das vezes os escravos eram comprados especifica
mente para o sacrifício. Como a insubordinação podia levar à venda, os riscos
para os escravos vendidos eram óbvios. O comprador podia muito bem estar pre--
cisando de uma vítima sacrificial. ;
A escravidão estava fundam entalm ente ligada ao trabalho. N ão era a única |
forma de trabalho dependente, mas os escravos podiam ser levados a desem pe- j ;
i
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33
Q
nhar qualquer tarefa na economia. Eles tinham que fazer o que lhes fosse orde*
nado; como conseqüência, muitas vezes desempenhavam as tarefas mais ignóbeis
e pesadas, e algumas vezes corriam grandes riscos. N o caso dos cativos, o con
ceito de trabalho não era visto como separado do.escravo como pessoa. Ele era
um instrumento de trabalho, e a coerção podia ser usada para forçar a aquies
cência a determinadas ordens. Era dito ao escravo aquilo que ele deveria fazer e,
se não fizesse, era punido, muitas vezes severamente. A escravidão podia existir
e existia juntamente com outras formas de trabalho, incluindo a servidão (na
qual as pessoas estavam vinculadas à terra, e as suas obrigações para com o
senhor eram fixadas pelo costume), a clientela (subordinação voluntária sem
remuneração fixada pelos serviços), trabalho assalariado (no qual a remunera
ção pelo trabalho era monetarizada), penhor (no qual o trabalho era visto como
juros sobre uma dívida e o penhor como colateral à dívida) e o trabalho com u
nal (muitas vezes baseado em parentesco ou classes etárias, no qual o trabalho
era visto como uma atividade recíproca baseada em troca passada ou futura).
Essas outras formas de trabalho também podiam envolver coerção, mas geral
mente não ao ponto de que pudessem ser chamadas de escravidão.
Uma característica peculiar à escravidão era essa absoluta falta de opção por
parce dos escravos. Sua total subordinação aos caprichos do seu senhor signifi
cava que aos escravos podia ser atribuída qualquer tarefa na sociedade ou na
economia. Em conseqüência, eles não apenas desempenharam as tarefas mais
baixas e laboriosas, mas também assumiram posições de autoridade e tiveram
acesso a uma riqueza considerável. O trabalhador da plantation e o feitor de
escravos tinham em comum a subordinação ao seu senhor. Ambos eram incum
bidos de uma tarefa, mas a natureza do seu emprego era tão diferente que eles
praticamente não tinham interesses mútuos. A identidade do escravo se dava atra
vés do seu senhor. Legalmente, o senhor era responsável pelas ações do escravo, e
essa responsabilidade era a mesma para escravos administrativos e para trabalha
dores comuns. Dessa forma, os escravos não constituíam necessariamente uma
classe. Sua dependência podia resultar na subordinação de sua identidade à do
seu senhor, de quem dependia sua posição, ou poderia levar ao desenvolvimento
de um sentimento de camaradagem com outros escravos, e por conseguinte for
mar a base para uma consciência de classe. Ambas as situações podiam dar-se
numa mesma sociedade, se escravos e outros reconhecessem uma clara distinção
entre aqueles comprometidos com a produção e os envolvidos no exército e na
administração.
Como os escravos eram totalmente subservientes, os seus senhores controla-
A ÁFRICA E A ESCRAVIDÃO
0 AM BIENTE AFRICANO
Û
eram muitas vezes os principais trabalhadores agrícolas nesse tipo de formação
social, a produção e a reprodução estavam intimamente associadas.14 A manuten
ção da sociedade dependia da fertilidade das mulheres e do produto do seu traba
lho. As variáveis cruciais para a dominação gerontocrática incluíam o número de
mulheres casadas com velhos, o número de crianças nascidas de cada esposa, a
capacidade de assegurar a cooperação por parte dos mais jovens e parentes afins,
e o acesso aos bens imóveis da linhagem, incluindo terra, árvores, produtos silvres-
tes, caça e água. Nessa situação, a escravidão não alterava a base essencial da for
mação social. Os escravos podiam aumentar o tamanho da população e assim
incrementar o número de pessoas mobilizadas pelos mais velhos, mas eles desem
penhavam praticamente as mesmas funções que os membros da linhagem.
A escravidão era um dos m uitos tipos de relações de dependência, e era um
meio eficaz de controlar as pessoas em situações onde o parentesco continuava
predom inante. Os escravos não tinham ligações com a rede de parentesco e
tinham apenas aqueles direitos que eram concedidos por tolerância. Não existia
uma classe de escravos. Ao mesmo tempo que eles indubitavelmente desempe
nhavam muitas funções econômicas, sua presença estava relacionada com o
desejo das pessoas, fosse individualmente ou de pequenos grupos de parentes, de
contornar as relações sociais tradicionais de modo a aumentar o seu poder. A
escravidão era, dessa forma, essencialmente uma instituição própria de socieda
des de pequena escala, onde a influência política dependia do tam anho dos gru
pos sociais. Se lhes fosse permitido, os escravos podiam tornar-se membros inte
grantes desses grupos ou podiam ser mantidos como dependentes sem voz ativa,
mas o seu bem-estar estava relacionado com a fortuna de seu senhor e sua famí
lia. Nesse contexto, as pessoas tinham escravos juntamente com outros tipos de
dependentes, mas a sociedade não era organizada de tal maneira que a escravi
dão fosse uma instituição essencial. Essas não eram sociedades escravocratas.15
Além da escravidão, havia outras categorias de dependência, incluindo o
penhor, no qual as pessoas eram retidas com o garantia de dívidas, e categorias
etárias secundárias, nas quais os m ais jovens ainda não tinham perm issão de par
ticipar plenamente das decisões da linhagem. Mesmo o casamento e o concubi
nato eram instituições de dependência.
Os dependentes eram mobilizados no interesse da linhagem de acordo com
a determinação dos homens mais velhos. Eles executavam um trabalho coopera
tivo nos campos, formavam expedições de caça, defendiam as cidades contra as
agressões e participavam de cerimônias religiosas. Como a terra muitas vezes era
um bem comum e como o casamento envolvia pagamentos que eram grandes
demais para que a maioria dos jovens pudesse cobri-los sem a ajuda dos mais
velhos, os laços de parentesco eram fortes. Em épocas de dificuldades, essas liga
ções davam segurança. Os parentes mais jovens eram, em princípio, os mais vul
neráveis. Mas eles precisavam da família, porque muitas vezes não tinham rique
za nem idade suficiente para tomar conta de si próprios. Por outro lado, eram os
primeiros a sofrer em tempos difíceis.
Como o penhor demonstra, outros laços que não aqueles baseados no
parentesco eram importantes, porque suplementavam ou contornavam as cone
xões biológicas.16 Sendo indivíduos retidos como garantia de uma dívida, os
penhorados tinham conexões familiares, mas geralmente não com o credor.
Dessa forma o seu valor estava baseado na expectativa de que seus parentes
pagariam a dívida e assim os livrariam da servidão. Os penhorados podiam ser
utilizados nessa qualidade, porque eram diretamente ligados ao devedor. As
crianças é que eram geralmente forçadas ao penhor, e, enquanto permaneciam
com um credor, o seu trabalho pertencia a ele. Elas eram resgatadas quando a
dívida se saldasse. Como a sua família era conhecida, eles geralmente não eram
maltratados. Legalmente não podiam ser vendidos. Eram uma garantia e espera
vam que o seu período de servidão fosse breve. Para o credor, os penhorados
eram um investimento. Aqui havia um dependente a mais, não relacionado pelo
parentesco e que podia ser chamado para exercer uma variedade de funções pro
veitosas. Havia pouco a perder. Se o penhorado morresse, outro tinha que ser
fornecido, contanto que não tivesse havido maus-tratos.
Em todas as sociedades, um homem podia ter o controle de muitas mulhe
res, incluindo escravas, penhoradas e livres.17 Casar com uma m ulher livre
requeria pagamentos à sua família, e dessa forma um pai com alguma riqueza e
autoridade podia melhorar sua posição, ao contratar bons casamentos para as
suas filhas ou sobrinhas, conforme fosse a sociedade patrilinear ou matrilinear.
Além disso, um homem podia casar-se com penhoradas e escravas e dessa forma
evitar pagamentos nupciais. Ao casar-se com uma penhorada, a dívida era can
celada e geralmente não havia obrigações para a família daquela a quem se unia.
0 custo de casar-se com uma escrava era o preço inicial de aquisição e, como a
sua família raramente era conhecida, a mulher tornava-se completamente depen
dente do seu marido. Essas uniões com penhoradas e escravas não eram os casa
mentos preferidos; contratos entre primos eram muitas vezes as uniões mais
desejadas, porque tais casamentos eram entre pessoas livres e fortaleciam os
laços de parentesco. N ão obstante, uma vez que um casamento respeitável esti
vesse estabelecido, um homem podia procurar esposas adicionais que fossem
penhoradas ou escravas.
Essas práticas matrimoniais explicam por que havia uma grande demanda
por mulheres de condição servil. A natureza dessas relações(promovia a assimi
lação, não a segregação. As mulheres tornavam-se parte da família. Aquelas com
as quais o senhor não se casava ou tomava como concubinas eram dadas aos
seus dependentes do sexo masculino — filhos, sobrinhos, leais seguidores. Em
todos esses casos, as mulheres escravas efetivamente tornavam-se dependentes
livres, principalmente depois de terem filhos de um homem livre. Diferentemente,
as esposas escravas de homens escravizados mantinham a sua condição servil.
Nessas situações geralmente não havia ato de emancipação, nem podia haver,
porque os laços de parentesco eram determinados pelo nascimento. A completa
incorporação a uma linhagem, que correspondia à emancipação, vinha gradual
mente, dependendo do grau de aculturação, casamento com membros efetivos
da linhagem ou manifestações individuais de lealdade. N a ausência de classes
articuladas, a condição de escravo evoluía de uma maneira similar às mudanças
em outras categorias sociais. Os jovens mais tarde tornavam-se idosos; os escra
vos ou seus descendentes gradualmente tornavam-se membros da linhagem.
Como muitos escravos domésticos eram mulheres ou meninas, essas obser
vações sobre costumes matrimoniais ajudam a explicar a evolução em direção à
completa assimilação. As mulheres e os escravos nascidos na família eram facil
mente assimilados, e a venda destes era rara. Aqueles tomados como escravos
quando crianças raramente eram vendidos, sendo tratados como membros da
família. Suas tarefas podiam ser mais servis, mas a eles eram muitas vezes conce
didas responsabilidades no comércio, na produção artesanal ou em outras ocu
pações. Escravos de segunda geração podiam ter a mesma sorte ou um destino
ainda melhor.
A ênfase na dependência podia refletir-se nas práticas religiosas; os sacrifí
cios, por exemplo, eram interpretados como uma expressão de continuidade
entre esse mundo e o próxim o e a necessidade de dependentes em ambos. A
matança de escravos e a caça de estrangeiros — ou suas cabeças — também enfa
tizava a dependência através do simbolismo ligado a tais atos. Estes não tinham
função produtiva, mas eram indicadores de posição social e econôm ica. A
demanda por vítimas a serem mortas em funerais, ritos religiosos e cerimônias
políticas podia ser esporádica, e dessa maneira incidental, ou podia tornar-se
regular e assim institucionalizada. Sítios funerais em Igbo-Ukwu sugerem que
ancestrais ibos do século IX já tinham desenvolvido uma demanda por vítimas
sacrificiais que podia ser atendida com a instituição da escravidão.18 A arqueo-
A ÁFR IC A E A E S C R A V ID Ã O
logia não pode determinar com precisão a condição social de todos aqueles que
eram enterrados junto com os nobres — podiam ser esposas livres, crianças,
voluntários ou outros. Em alguma época, entretanto, os escravos efetivamente
tornaram-se as principais vítimas.
u
negros sempre constituíssem uma proporção significativa da população escrava.
Eles também vinham da Europa Ocidental e das estepes do sul da Rússia. Eram
muitas vezes prisioneiros de guerra, não-m uçulm anos que tinham resistido à
expansão do islamismo. A escravidão era concebida como uma espécie de apren
dizagem religiosa para os pagãos. Anteriormente, aos judeus e cristãos residen
tes era concedido um status especial de “pessoas do livro”, sendo reconhecidos
como homens livres sujeitos a taxas e limitações especiais sobre as liberdades
civis, mas livres da escravização. Alguns cristãos eram escravizados durante as
guerras, principalmente na Europa Ocidental, mas a maioria dos escravos vinha
de outros lugares.
A natureza da demanda por escravos revela alguns aspectos importantes do
comércio. As mulheres e crianças eram preferidas em maior número do que os
homens. Tinham também mais probabilidades de serem incorporadas à socieda
de muçulmana. Os meninos, fossem eles eunucos ou não, eram treinados para o
serviço militar ou doméstico, e alguns dos mais promissores eram promovidos.
As mulheres também tornavam-se domésticas, e as consideradas mais belas eram
colocadas em haréns, um fator que influenciava fortemente os preços de escra
vos. Os homens adultos e as mulheres menos atraentes eram destinados às tare
fas mais baixas e trabalhosas, e sua população tinha que ser constantemente rea
bastecida através de novas importações. Essa escravidão não era uma instituição
autoperpetuadora, e aqueles nascidos no cativeiro formavam uma parcela relati
vamente pequena da população escrava. A maioria dos filhos de escravos era
assimilada pela sociedade muçulmana, apenas para ser substituídos por novas
importações. Emancipação, concubinato, servidão doméstica, postos políticos e
posição militar também dificultavam o estabelecimento de uma classe de escra
vos com uma distinta consciência de classe própria. A raça também era minimi
zada como um fator na manutenção da condição servil. A exigência religiosa de
que os novos escravos fossem pagãos e a necessidade de importações contínuas
para manter a população escrava tornou a África negra uma importante fonte de
escravos para o mundo islâmico. Como a África subsaariana inicialmente estava
além das terras islâmicas, os muçulmanos e outros comerciantes procuravam por
escravos na África. Guerras locais, criminosos condenados, seqüestros e prova
velmente dívidas eram fontes de escravos para os comerciantes visitantes, que
reuniam os cativos em pequenos grupos para transporte através do m ar
Vermelho e subindo a costa oriental africana, ou se reuniam para formar cara
vanas para a marcha através do Saara. O comércio de exportação foi relativa-
m ente m odesto antes do século XV e na verdade não se expandiu consideravel
m ente até o século X IX . As exportações chegavam a uns poucos m ilhares de
escravos por ano na maioria das vezes, e com o as áreas afetadas eram quase sem
pre muito extensas o impacto local era geralmente minimizado.
Na tradição islâmica, a escravidão era vista como um meio de converter os
não-muçulmanos. Assim, uma das tarefas do senhor era a instrução religiosa, e
teoricamente os muçulmanos não podiam ser escravizados, em bora na prática
isso fosse m uitas vezes violado. A conversão não levava autom aticam ente à
emancipação, mas a assimilação à sociedade do senhor, julgada de acordo com
a observância à religião, era considerada um pré-requisito para a emancipação e
normalmente garantia melhor tratam ento. Um aspecto da tradição religiosa e da
tradição legal era que a emancipação, como um ato de libertação dos escravos, e
de mudança da sua condição, estava claramente definida. Nas sociedades basea
das no parentesco, a emancipação era um processo reconhecido pela integração
progressiva de sucessivas gerações através do casamento, até que as pessoas per
tencessem integralmente ao grupo. M uitas vezes não havia ato de emancipação
no sentido exato da palavra. Na prática islâmica, havia.
As funções desempenhadas pelos escravos eram também diferentes, em par
te porque as estruturas das sociedades islâmicas eram freqüentemente de uma
escala maior que entre os grupos de parentesco. Nos grandes estados islâmicos
da bacia do M editerrâneo, por exemplo, os cativos eram usados no governo e no
serviço militar, ocupações que não existiam em sociedades sem estado. Oficiais
e soldados escravos muitas vezes mostravam-se muito leais por causa da depen
dência pessoal para com o seu senhor. Os eunucos formavam uma categoria
especial de escravos que não parece ter sido característica da m aioria das socie
dades não-muçulm anas baseadas no parentesco. Os eunucos, que podiam ser
utilizados em funções administrativas e como fiscais dos haréns, eram particu
larmente dependentes, sem nem mesmo a chance de estabelecer interesses que
fossem independentes do seu senhor. Sob a influência do Islã, a prática se difun
diu pela África subsaariana, junto com o emprego de escravos no exército e na
burocracia.
A visão islâmica das mulheres escravas também era diferente daquela basea
da no parentesco. A lei islâmica limitava o número de esposas a quatro, embora
apenas as considerações materiais e os caprichos pessoais limitassem o número
de concubinas. T anto em contextos islâmicos quanto em não-islâm icos, os
homens podiam ter quantas mulheres pudessem sustentar, mas a determ inação
legal era diferente. O costume islâmico, enfatizando uma linha mais clara entre
escravos e livres, permitia a emancipação de concubinas que tivessem filhos de
seu amo. Legalmente elas tornavam-se livres com a morte do seu senhor, mas
não podiam ser vendidas uma vez que tivessem filhos. N a prática, também as
esposas de origem escrava das sociedades baseadas no parentesco raram ente
eram vendidas, e essa posição aumentava a probabilidade de que se tornassem
membros do grupo familiar, e por conseguinte livres. Os termos de referência
diferiam, mas a prática era bastante similar.
Em muitas sociedades islâmicas, os escravos também executavam tarefas
que eram mais diretam ente relacionadas com a produção e o com ércio.
Certamente a escala de atividade econômica nas bacias do M editerrâneo e do
oceano Índico envolvia maior comércio, um nível mais alto de desenvolvimento
tecnológico e a possibilidade de exploração mais especializada do trabalho
escravo do que na maior parte da África negra até a época recente. Na verdade,
aos escravos freqüentemente eram designadas tarefas que não eram diretamente
produtivas, as quais, pelo contrário, alim entavam uma hierarquia política e
social que explorava uma população de camponeses livres, artesãos e populações
servis não escravas. Embora os escravos fossem mais freqüentemente utilizados
em funções domésticas (incluindo sexuais) ou no governo e no serviço militar,
ocasionalm ente eles eram empregados na produção, como nas minas de sal da
A rábia, da Pérsia e do norte do Saara. O utros cativos eram utilizados nos
empreendimentos agrícolas em larga escala e na fabricação artesanal. A freqüên
cia e a escala desse trabalho, muito embora não fosse a principal relação de pro
dução, eram bastante diferentes da utilização de cativos nas economias menos
especializadas das sociedades africanas baseadas no parentesco.
Esses diferentes usos dos escravos, a distinção mais clara entre escravos e
livres e o emprego ocasional de cativos nas atividades produtivas demonstram
uma diferença nítida entre a escravidão das sociedades baseadas no parentesco e
a escravidão da lei e da tradição islâmicas. A diferença mais importante era que o
escravismo nas terras islâmicas tinha passado por uma transformação parcial do
tipo que Finley identifica como significativa na institucionalização da escravidão.
Um sistema econômico plenamente baseado no trabalho escravo não tinha apare
cido na maior parte do mundo islâmico entre 700 e 1400, apesar da importância
dos cativos administrativos e militares na m anutenção da sociedade islâmica.
Concubinas e escravos domésticos eram comuns e afetavam a natureza do casa
mento como uma instituição e a organização das famílias abastadas. A adaptação
de práticas similares na África subsaariana igualmente envolveu mudanças.
0 C O M ÉR CIO TRANSATLÂNTICO
Tabela 1.1
Exportações de escravos da África: o comércio atlântico
Período Número de escravos computados Percentagem
1450-1600 409.000 3,6
1601-1700 1.348.000 11,9
1701-1800 6.090.000 53,8
1801-1900 3.466.000 30,6
Total 11.313.000 100,0
Fontes: tabelas 2.3, 3.2, 3.3, 7.1 e 7.5. Em relação ao período de 1450-1522, me baseei em Elbl
1997, e em relação ao século XIX, incluí os libertos e outros indivíduos escravizados que estavam
ocultos sob outras denominações; ver tabela 7.5,
A abertura do Atlântico ao comércio marcou uma ruptura radical na histó
ria da África, especialmente porque este comércio também envolvia a exportação
de milhões de escravos, Antes desse desenvolvimento comercial, as costas atlân
ticas da África tinham estado praticamente isoladas do mundo exterior. Uma
certa quantidade de sal e peixe era comercializada no interior em troca de ali
mento, mas de um modo geral a linha do litoral era uma barreira. A mudança
tecnológica do transporte oceânico teve um enorme impacto econômico, tornan
do disponíveis novas fontes de riqueza para os habitantes locais e facilitando a
mudança política numa escala sem precedentes. A escravidão ali estava intima
mente associada a essa transformação, não apenas porque os escravos eram o
principal item de exportação, mas também porque eles tornaram-se muito mais
comuns na sociedade local do que anteriormente.
A transform ação na escravidão interna que acom panhou a expansão da
demanda européia por escravos foi bastante diversa daquela produzida pela
expansão islâmica. Introduziu-se uma nova força que modificou a escravidão de
maneira diferente das mudanças que tinham acontecido como resultado da cone
xão islâmica na savana setentrional e através da costa oriental africana. N ão
havia tradição da lei islâmica, nem havia outros aspectos da prática escravocra
ta islâmica, incluindo o concubinato, os eunucos e funcionários político-
militares com títulos islâmicos. Assim, uma importante conseqüência do comér
cio europeu foi a consolidação de uma forma não-müçulmana de escravidão. A
escravidão sofreu uma transformação, de característica marginal da sociedade
para uma importante instituição, mas na maioria dos lugares ela continuou a ser
interpretada no contexto das estruturas de linhagem, e isso está identificado nes
te trabalho como “escravidão de linhagem”.
Como instituição, a escravidão de linhagem compartilhou os mesmos aspec
tos básicos a todos os tipos de escravidão: o elemento da propriedade, a identi
dade estrangeira, o papel da violência e a exploração produtiva-e sexual. A dife
rença surpreendente era a ausência notável de influência estrangeira no plano
ideológico. Quase não havia internalizaçâo das atitudes européias em relação à
escravidão, pois teorias e práticas islâmicas tinham sido adotadas em muitos
lugares. O impacto do mercado produziu algumas mudanças que podem ser
reputadas à influência européia, mas esse fator teve mais importância no nível
econômico do que no campo ideológico. A escravidão continuou a ser concebi
da em termos de parentesco, mesmo quando os escravos recebiam novas tarefas.
Os escravos eram cada vez mais utilizados no governo, no comércio e no serviço
militar, de formas similares à sua utilização nos países muçulmanos. A estrutura
e os títulos eram diferentes, mas a função era a mesma. O mesmo acontecia em
relação ao controle das mulheres. As regras polígamas permitiam que os homens
tivessem tantas esposas quantas pudessem adquirir. Não havia racionalização
dessa prática por meio de leis que regulamentassem o número de esposas e o sta
tus das concubinas, como havia na lei islâmica. No entanto, os resultados eram
similares. Os homens im portantes tinham muitas esposas, algumas das quais
eram escravas, e essa distribuição desigual das mulheres dentro da sociedade era
um elemento de controle social, principalmente porque as mulheres eram muitas
vezes os principais trabalhadores da agricultura, bem como as reprodutoras da
família. O controle das mulheres permitia a dominação da produção e da repro
dução. Esse aspecto do escravismo teve um importante impacto no comércio de
exportação. Os europeus queriam trabalhadores para o campo e para as minas.
Na verdade eles não se importavam muito com o sexo deles, embora talvez tives
sem uma ligeira preferência por escravos do sexo masculino. Os africanos que
riam mulheres e crianças. Daí surgiu uma divisão natural da população escrava,
com os comerciantes europeus comprando aproximadamente dois homens para
cada mulher, por vezes uma proporção ainda maior de homens. O comércio
europeu era significativamente diferente do comércio muçulmano pelo Saara, o
mar Vermelho e o oceano Índico. Os muçulmanos também queriam mulheres,
não homens, como se evidenciava nos preços mais altos cobrados pelas mulhe
res neste comércio muçulmano.
A transformação da escravidão nas áreas africanas não-muçulmanas estava
relacionada com a envergadura do comércio de exportação e com o grau em que
políticos e comerciantes alimentavam esse comércio através da escravizaçâo e do
tráfico. Como o número de escravos continuamente aumentava e se firmava a
capacidade de manter uma oferta regular, tornou-se possível utilizar os escravos
de novas formas. Essas novas formas estavam muitas vezes relacionadas com o
aumento da escala de produção de bens, incluindo ouro, mercadorias agrícolas,
m anufaturados e sal. N o século XIX, essa utilização produtiva dos escravos
tornou-se importante em muitos lugares. Independentemente da diferença ideoló
gica para com a economia de plantation européia das Américas, a escravidão afri
cana tornou-se firmemente associada a uma sociedade agrícola baseada em gran
des concentrações de escravos. Em muitas regiões a escravidão ainda era concebi
da em termos de parentesco e permanecia marginal à organização básica da socie
dade. Não obstante, a escravizaçâo mais intensiva dos povos e o crescimento do
tráfico de escravos afetaram a instituição em praticamente todos os lugares.
A interação entre o ambiente nativo, a influência islâmica e a demanda euro-
S3
pria por escravos forneceu a dinâmica do desenvolvimento da escravidão na Áfri-
» i no último milênio, mas essas não foram sempre variáveis independentes. O
.núblente nativo, por exemplo, não pode ser reconstruído meramente eliminando
li herança islâmica ou ignorando temporariamente o mercado europeu de escravos,
f' relativamente correto que a escravidão provavelmente existia na África antes da
difusão do islam ism o, embora não se tenha certeza das características. Se nós
i ntendemos por “escravos” as pessoas que eram seqüestradas, capturadas em
KUerras ou condenadas a serem vendidas como conseqüência de um crime ou como
reparação por um crime, então elas eram obviamente escravas. Estruturalmente,
entretanto, a escravidão era marginal.
A influência do islamismo e do mercado europeu e muitos outros desenvol
vimentos políticos e econômicos afetaram o rumo da escravidão. Uma vez que
tais fatores tivessem um impacto em determinadas sociedades, a natureza da
escravidão mudava, e o resultado era um ambiente nativo diferente. Em suma, a
história da escravidão é dinâmica, e as mudanças provocaram o surgimento de
sociedades escravocratas onde anteriorm ente havia apenas alguns escravos na
sociedade. Ou seja, a escravidão tornou-se uma instituição fundamental, e não
uma característica periférica. A África pôde ser integrada numa rede internacio
nal de escravidão, porque as formas nativas de dependência pessoal permitiam a
transferência de pessoas de um grupo social para outro. Q uando os laços de
parentesco eram rom pidos, com o o eram no caso da escravidão, tornava-se
necessário mudar as pessoas do local de escravizaçâo para um lugar ainda mais
distante. Esse movimento tendia aos mercados externos de escravos, aqueles do
mundo islâmico e das Américas. Os cativos tendiam a ir da periferia para áreas
de maior desenvolvimento econômico e político, tanto dentro quanto fora da
África. Os escravos não eram importados para a África; eles eram exportados.
Repetindo a dimensão crucial do argumento: a integração da África em uma rede
internacional de escravidão ocorreu porque a África era uma área de oferta de
escravos. Na África, por conseguinte, existia um vínculo estrutural entre essa
capacidade de fornecer escravos para a utilização externa e o emprego interno
dos mesmos.
A escala dessa exportação demonstra o seu impacto. Mais de 11 milhões de
escravos deixaram as praias da costa atlântica da África; talvez um número ainda
maior tenha encontrado o caminho para os países islâmicos do norte, Arábia e
índia. Embora o foco aqui seja a história da escravidão dentro da África, e não o
destino dos africanos fora do continente, o volume desse comércio era tão subs
tancial que revela um elemento essencial no controle social dos escravos, e na ver-
dade de outros dependentes, na África. A exportação era urna das possibilidades
com as quais os escravos se defrontavam; a exploração interna era outra. Elas
estavam intimamente relacionadas em sua estrutura. Os escravos geralmente
eram vendidos se fracassassem no desempenho das suas obrigações, e a venda,
não apenas pelo Atlântico mas também pelo deserto do Saara, o mar Vermelho e
o oceano Índico, era uma forma de punição e, deste modo, uma am eaça que aju
dava a controlar as ações dos cativos. O comércio acarretava grandes riscos para
os escravos, incluindo marchas forçadas, alimentação precária, exposição a doen
ças em condição de exaustão e fome, e maus-tratos. A morte e os danos físicos
permanentes eram com uns, e os escravos sabiam disso por experiência própria.
Como fonte para o comércio exterior desde tempos imemoriais, a África era
um reservatório de escravos baratos e abundantes — na verdade eles estavam ali
à mão. Esse aspecto, a escravização, era outra dimensão do escravismo na Áfri
ca e afetou fortemente a história da instituição no continente. É incorreto pensar
que os africanos escravizassem os seus irmãos — embora isso algumas vezes
acontecesse. Na verdade, os africanos escravizavam os seus inimigos. Essa con
cepção de quem podia ser escravizado servia aos interesses do mercado externo
e perm itia a ascendência política de alguns africanos no continente. Guerra,
seqüestro e manipulação de instituições jurídicas e religiosas são responsáveis
pela escravização da m aioria dos cativos, tanto daqueles exportados como
daqueles retidos na África. Diferente de outros lugares onde a escravidão era
comum, como particularmente na América e nas partes centrais do mundo islâ
mico, a escravização regular era uma característica essencial do escravismo como
uma instituição. Os senhores de escravos nas Américas e nos principais estados
islâmicos contavam com o tráfico para obter a maioria de seus cativos. Eles pró
prios geralmente não eram responsáveis pela escravização direta das pessoas. Na
África, os escravizadores e os proprietários de escravos eram muitas vezes os
mesmos. A Europa e as terras centrais islâmicas viam as áreas na sua periferia
como uma fonte de escravos, e a África era uma dessas regiões periféricas — pra
ticamente a única para as Américas e a principal para os países islâmicos. Os
escravos também se movimentavam dentro da África, de áreas que eram mais
periféricas para lugares que eram mais centrais, mas a escravização era um
aspecto predominante em todos os lugares. Não havia separação funcional entre
a escravização e a utilização de escravos; elas permaneciam intrincadam ente
associadas.
Essa conexão revela uma característica fundamental do escravismo na Áfri
ca, e, quando totalmente articulada com a utilização de escravos na produção, a
escravidão foi transform ada num modo de produção distinto. A história da
escravidão envolvia a interação entre a escravizaçâo, o tráfico de escravos e a uti
lização de cativos na própria África. Um exame dessa interação dem onstra a
emergência de um sistema de escravidão que era fundamental para a economia
política de muitas regiões do continente. Esse sistema se expandiu até as últimas
décadas do século XIX. O processo de escravizaçâo aumentou; o comércio cres
ceu em resposta aos novos e maiores mercados, e a utilização de escravos na
África tornou-se mais comum. Relacionada com a articulação desse sistema,
com as suas ligações estruturais com outras partes do mundo, estava a consoli
dação dentro da África de uma estrutura política e social que contava em muito
com a escravidão. A produção dependia, em graus variados, do trabalho escra
vo. O poder político contava com exércitos de escravos. O comércio exterior
envolvia a venda de escravos, muitas vezes como a mercadoria principal.
Nas fronteiras do Islã,
1400-1600
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