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desenvolvimento1
Carlos Lessa2
Sulamis Dain3
O tema Estado e desenvolvimento na América Latina propõe uma difícil tarefa com
respeito à consolidação e homogeneização de informação, definição de conceitos e
diversidade de interpretações. Em primeiro lugar, a partir de um ponto de vista lógico-
histórico, tratar do movimento da economia concreta em relação à qual se define o
tema requer, para países diversos, uma análise que não é historiográfica, mas um
intento de integrar o movimento lógico do capitalismo a partir de seu início
(constituição das forças produtivas especificamente capitalistas) com a história
concreta. Esta interpretação econômica é insuficiente para explicar os movimentos de
crise e transição, nos quais se estabelece o primado do político.
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Artigo escrito em dezembro de 1980.
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Professor do Departamento de Economia e Planejamento Econômico da UNICAMP e da UFRJ.
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Professora do Departamento de Economia da UFRJ.
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Se tomarmos o que existe em termos de interpretações sobre as relações entre
Estado e desenvolvimento, há um primeiro nível em que tudo é geral e inespecífico.
Por exemplo, na moderna teoria neoclássica e na teoria keynesiana, o Estado se
apresenta sob o ponto de vista pragmático, como substituto do mercado, como
depositário e solução para os desequilíbrios do sistema econômico. A intervenção
estatal se justifica no sentido de repor a solução ótima de equilíbrio. Sob este prisma,
o Estado não é mais que um grande agente planificador, potencialmente dotado de
sabedoria plena. Por sua neutralidade, pode combinar uma apologia liberal com uma
prática de intervenção estatal.
Entre uma teoria geral e uma visão tipológica, seria desejável constituir uma
instância analítica intermediária na qual a especificidade latino-americana está na
articulação Estado-desenvolvimento capitalista. Este conceito sobre a América Latina
se faz necessário, sobretudo se não se retiver a interpretação cepalina das relações
centro-periferia, segundo a qual há um princípio de ordenação que admite as
transformações da periferia como situação reflexa do desenvolvimento do centro, e
pelo qual a América Latina existe, de maneira indistinta das demais periferias, mas
como um exemplo concreto.
É possível obter uma visão alternativa que está centrada em uma construção
endógena, para explicar a dinâmica de nossas sociedades. De acordo com este
enfoque, cada caso é um caso, o que dificultaria considerar a América Latina em seu
conjunto. Se para nós a especificidade é algo diferente do particular, para se
identificar esta particularidade latino-americana referente à articulação do Estado com
o desenvolvimento econômico, não é possível identificá-la pelas vias usuais, seja pela
reconstrução da política econômica, seja pelo estudo das formações políticas dos
Estados nacionais.
Então, o que tentamos fazer neste trabalho é definir uma América Latina que
seja distinta, por um lado, das demais periferias, e, por outro (para os poucos países
que avançaram em sua industrialização), dos capitalismos centrais.
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Consideramos que há duas maneiras de construir uma especificidade latino-
americana definida dessa forma. A primeira, que apenas citaremos, consiste em
identificar na América Latina regularidades históricas que nos separam de outras
situações periféricas e do centro, tais como: a) os Estados latino-americanos são
contemporâneos da revolução industrial original - neste sentido há uma sincronia - e
isso nos diferencia das situações emergentes da descolonização; b) as forças
produtivas capitalistas são diacronicamente constituídas (trabalho assalariado, grande
indústria e sistema fabril ocorreram simultaneamente nos países avançados, mas não
na periferia); c) nos poucos países periféricos onde se chegou à constituição do setor
produtor de bens de capital e insumos, este é insuficiente para constituir uma estrutura
industrial com um núcleo tecnológico autóctone.
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do Brasil, e a generalização para o continente deve ser entendida como uma proposta
para o debate.
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característico das últimas décadas. Assim, historicamente, a penetração de algumas
economias latino-americanas como espaços de acumulação por frações de capital
estrangeiro ocorre antes que a industrialização seja o movimento central de nosso
desenvolvimento. A diferenciação do circuito industrial é feita em grande extensão
pelas filiais e ainda sob o comando de um complexo mercantil hegemonicamente
nacional. As filiais "aceitaram" uma posição subordinada a outras órbitas de capital,
que detinham o comando do movimento de expansão capitalista.
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espécie de divisão do espaço, segundo órbitas, por capitais de diferentes procedências.
Esse pacto se constitui em presença do Estado. Quais são os atributos desse Estado?
Cremos que primeiramente é necessário afirmar que é nacional. E aqui devemos ser
claros sobre esta convicção. A constituição dos Estados nacionais latino-americanos é
um episódio conseqüente da nova ordem internacional constituída pela revolução
industrial e sob a hegemonia inglesa. Todos concordam com esse ponto. Não
obstante, é freqüente a suposição de que a evolução do capitalismo em escala
mundial, a passagem subseqüente à etapa monopólica e a emergência do imperialismo
debilitaram os jovens Estados latino-americanos. O primeiro movimento de instalação
de filiais e a debilitação dos Estados nacionais periféricos seriam epifenômenos de
uma metamorfose operada no capitalismo mundial. Concordamos com a primeira
atribuição, mas, pelo menos no caso do Brasil, não se aplica a segunda. Há claras
indicações da presença, naquela época, de um Estado nacional consolidado e em
franco processo de robustecimento. Acreditamos que o melhor ângulo para observar o
Estado como sujeito é no âmbito das relações internacionais. O Brasil, ao longo dos
anos 20, realizou sistematicamente uma política de cartelização do café. A partir de
sua posição dominante na produção de café, o Estado brasileiro executou - via
retenção de estoques financiada por uma mobilização de recursos basicamente interna
- uma política de elevação do preço internacional do produto e impôs um preço muito
acima daquele que o oligopsônio mundial de café estava disposto a aceitar5. O estudo
dessa política mostra como, a partir de uma posição ativa do Estado, articularam-se os
interesses diferenciados do complexo do café. Que o êxito dessa política tenha, na raiz
da superacumulação brutal que gerou, apressado a crise final do padrão de
desenvolvimento capitalista sob a hegemonia do complexo, mostra apenas a
inexorabilidade da história como transformação. O ponto que queremos sublinhar é a
presença de um Estado nacional sólido como regulador de capitais nacionais na época
da instauração do primeiro conjunto de filiais industriais. E queremos dizer que essa
entidade - o Estado nacional consolidado - é uma precondição para a penetração das
filiais. Este é um desdobramento do capitalismo em etapa monopólica; é uma
projeção de blocos de capitais oriundos de espaços nacionais regulados para outros
espaços necessariamente ordenados. A famosa exigência de estabilidade - como
precondição para a atração de capitais estrangeiros e, em particular, os industriais -
supõe a previa cristalização de uma ordem capitalista regulada por um Estado
nacional estável. E, mais que isso, exige um Estado capaz de administrar a relação
simbiótica que se estabelece entre os capitais nacionais e as filiais. Exige um Estado
capaz de ser o guardião do pacto e administrador de suas demandas. A presença de
grandes massas de capitais que, interarticuladas com o Estado, dinamizam a expansão
desse capitalismo, é o principal estímulo do capital externo. Um espaço de
acumulação ordenado e dinâmico é a "ecologia" predileta das filiais. A comunidade
de interesses dos capitais nacionais presencia, pois, um movimento inicial em que o
capital industrial estrangeiro está subordinado econômica e politicamente ao capital
nacional. Economicamente, a uma dinâmica que é dada pelo complexo mercantil;
politicamente, devido a exigência de uma ordem nacional. Não é necessário falar do
interesse do capital estrangeiro pela penetração. Cabe interrogar o interesse do capital
nacional. No padrão pretérito de acumulação, a diferenciação do circuito nacional
pelas filiais ajuda a reduzir em parte o custo de reprodução de mão-de-obra e,
possivelmente, de alguns elementos do capital constante. Não obstante, isso tem o
sabor duvidoso das explicações a posteriori. Cremos que a penetração não continha
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Informação completa em Delfin Netto (1979).
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nenhuma ameaça e foi percebida como portadora de eventuais vantagens pelos
capitais nacionais não-industriais, solidamente apoiados em sua dupla hegemonia.
Para isso, a filial industrial orientada para o mercado interno não implicava nenhuma
ameaça, nem em termos de ocupação de seus circuitos, nem em termos de redução de
seus lucros. Poderia talvez ampliá-las, jamais diminuí-las. Sem atribuir maior
importância ao fato, impuseram um pacto implícito com duas cláusulas básicas. A
primeira dispõe, como reservas para os capitais nacionais das órbitas de seu interesse
crucial, como frentes de valorização. Tais órbitas são não-industriais e, entre elas, as
filiais estrangeiras industriais não poderão diversificar as inversões. A segunda
estabelece uma regulação quanto à partição horizontal da massa de lucros do
capitalismo associado. A rentabilidade das órbitas sob controle do capital nacional
não será inferior à da órbita industrial. A existência do pacto exige algo do Estado:
que seja o seu gestor. E acreditamos que essa é a especificidade do Estado em nosso
continente, pelo menos no caso brasileiro. A função de gestor do pacto é fundamental
para a reprodução do pacto do capitalismo associado e a manutenção da "sagrada
aliança". Se a competição intercapitalista operasse sem o imprescindível desempenho
do Estado como gestor, o capital industrial tenderia a fazer um movimento para a
instalação do capital financeiro. Haveria uma invasão de órbitas ontem e hoje
reservadas ao capitalismo nacional. Mas, fazer isso seria romper pela base os
fundamentos do Estado. Conservando a imagem, diríamos que é muito antigo o
primeiro esboço do grande pacto implícito, e, ainda que pelo desenvolvimento de
nosso capitalismo, tenha havido toda uma sucessão de versões posteriores, nas
renegociações alteraram-se cláusulas colaterais e engendraram-se termos aditivos;
mas as duas cláusulas básicas se mantêm hoje com sua concepção plasmada na
primeira negociação, antes da industrialização.
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passagem à industrialização, e se plasmou um novo padrão de acumulação; outros
países continuam em transição, alguns estagnados e mesmo involuindo em termos de
diferenciação do aparelho produtivo - Cone Sul; alguns, em busca de um novo marco
institucional que lhes possibilite a passagem para a industrialização - bloco andino; e
alguns estão tentando a construção do socialismo. O conceito de América Latina é
sustentável como unidade geográfica, mas se dissolve como matérial de reflexão
teórica para a economia política. Sem embargo, acreditamos que, ainda frente a este
panorama de uma variedade histórica que se abre em um espectro tão amplo, há
alguns denominadores comuns que podemos, a título de repto, pôr em discussão.
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econômico. Deste último emana a exigência de reproduzir interesses capitalistas que
não são capazes de autodeterminar-se no movimento de expansão. Neste sentido, o
Estado é prisioneiro do padrão esgotado. Mas de forma quase esquizóide e a partir da
mesma incapacidade que o limita, esse Estado dispõe de uma singular autonomia,
para diante, na definição de projetos e programas de diferenciação produtiva. Em
alguns casos, ocorre ser a instância que, a partir de configurações políticas
específicas, logra tentar o desenvolvimento das forças produtivas que formam um
novo padrão de acumulação. Esse Estado pode crer na utopia do pleno
desenvolvimento ou pode prescrever o retorno a uma situação oposta. Em uma
hipóstase do voluntarismo, pode pretender ser a nação-potência e pode propor uma
neomercantilização da economia. Não colocamos na economia o fio condutor de uma
explicação nas transições do tema Estado e desenvolvimento. Temos de pedir auxílio
aos cientistas políticos, para que nos forneçam algumas hipóteses estruturais que
aclarem tão diversas trajetórias históricas. Como economistas, podemos sugerir
poucas coisas, entre elas, que estes são capitalismos que, por razões genético-
constitutivas, parecem não poder completar a monopolização.
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nossa opinião, ligada à reiteração dos padrões "pervertidos" de valorização. Os
capitais nacionais tendem a obter massas de lucros que ultrapassam sistematicamente
as oportunidades de valorização de suas órbitas. Buscam sempre a forma de ativos -
de natureza diversa - como reserva de valor, e exigem permissividade e estímulo da
política econômica em direção a esse tipo de movimento. Há uma obliqüidade
patrimonialista e uma hipertrofia de operações especulativas ligadas à constituição,
transformação e circulação destes ativos. Qualquer pessoa que tenha manuseado
séries históricas de preços das terras urbanas e rurais na América Latina conhece o
fenômeno de uma evolução que supera a taxa de inflação e não mantém relação com
eventuais aluguéis ou rendas. Observando os capitalismos associados mais avançados,
é possível registrar o alto nível de criatividade das formas especulativas. Cremos que
isso é constitutivo e estrutural no capitalismo associado.
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Este tema para o caso do Brasil está exaustivamente analisado por Tavares (1974,1978).
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emprego e ingresso urbanos, o capital imobiliário determina as condições de
realização da produção de amplas parcelas do capital industrial.
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Estado. Mas sobrecarrega sua agenda e - segundo suspeitamos - limita sua capacidade
de ampliar o pacto social mantenedor da ordem. As interarticulações que sustentam e
reproduzem um capitalismo que não se constitui plenamente monopólico compõem o
pano-de-fundo das ampliadas distâncias que estigmatizam nossa estrutura social.
O Brasil não é um paradigma para a América Latina, porém ilustra dentro dos
limites as possibilidades de um padrão de desenvolvimento capitalista associado. É
ingênua a crítica desse padrão por insuficiência dinâmica. Que a crítica se oriente no
sentido de desvelar sua limitação estrutural na passagem a um pleno desenvolvimento
capitalista e registre a seqüela de comportamentos específicos dentro do político e do
social que derivam dessa peculiar organização.
Referências Bibliográficas
CARDOSO DE MELLO, João Manuel. O capitalismo tardio. Campinas: UNICAMP.
IFCH, 1975/Campinas: UNICAMP. IE, 1998. (Economia 30 Anos -UNICAMP,
4).
DELFIM NETTO, Antônio. O problema do café no Brasil. Rio de Janeiro: FGV:
1979.
TAVARES, Maria da Conceição. Acumulação de capital e industrialização no Brasil,
Rio de Janeiro: UFRJ, 1974/Campinas: UNICAMP. IE, 1998. (Economia 30
Anos -UNICAMP, 6).
TAVARES, Maria da Conceição. Ciclo e crise - Movimento Recente da
industrialização brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ, 1978/Campinas: UNICAMP.
IE, 1998. (Economia 30 Anos - UNICAMP, 8).
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