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Caderno de Teoria e História Literária

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia


Reitor
Prof. Dr. Paulo Roberto Pinto Santos
Vice-reitor
Prof. Dr. Fábio Félix Ferreira
Pró-reitora de extensão e assuntos comunitários
Profª Ms. Maria Madalena Souza dos Anjos Neta
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Diretora - edições uesb
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Comitê editorial
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(DQE/Jequié), Prof. Dr. Cézar Augusto Casotti (DS/Jequié), Prof. Dr. Cláudio Lúcio
Fernandes Amaral (DCB/Jequié), Adm. Jacinto Braz David Filho (Editor - Edições
UESB/VC), Prof. Dr. Joaquim Perfeito da Silva (DFCH/VC), Prof. Ms. Jorge Luiz
Santos Fernandes (DCSA/VC), Profª Ms. Lídia Nunes Cunha (DH/VC), Profª Maria
Dalva Rosa Silva (Diretora - Edições UESB/VC), Profª Ms. Maria Madalena Souza dos
Anjos Neta (proex/VC), Profª Drª Patrícia Anjos Bittencourt Barreto (DEAS/VC).

Floema é indexada nas seguintes bases de dados:


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805 FLOEMA - Caderno de Teoria e História Literária. Ano IX, n. 11, jul./dez. 2015.
809.005 Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2015. Dossiê: Graciliano Ramos.

ISSN 1807-541X (versão impressa)
ISSN 2177-3629 (versão eletrônica)
Início: janeiro de 2005 (semestral). Interrompeu em 2012, 2013 e 2014.
Site da revista: http://periodicos.uesb.br/index.php/floema
1. Letras - Periódicos 2. História e Crítica Literária. I. Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia. II. Título.

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Estrada do Bem-Querer, s/n – Módulo da Biblioteca, 1° andar
45031-900 – Vitória da Conquista-BA
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Caderno de Teoria e História Literária

Dossiê Graciliano Ramos


Copyright© 2015 by Edições Uesb

Caderno de Teoria e História Literária

COMISSÃO EXECUTIVA Marcos Moraes - FFLCH-USP


Moacir Amâncio - FFLCH-USP
Editor: Saulo Neiva - Un. Clermont-Ferrand,
Flávio Antonio Fernandes Reis - DELL França
Sheila Moura Hue - RGPL
Editor Adjunto da Versão Eletrônica: Telê Ancona Lopes - IEB-USP
Flávio Antonio Fernandes Reis - DELL
EQUIPE TÉCNICA
Organizadores do número:
Lúcia Ricotta Coordenação Editorial
Daniela Birman Jacinto Braz David Filho

Editoria Científica: Projeto Gráfico e Capa


Cássio Roberto Borges da Silva - DELL Orlando J. R. de Oliveira
Lúcia Ricotta - UNIRIO
Luís Otávio de Magalhães - DH Editoração Eletrônica
Mª das Graças Fonseca Andrade - DELL Ana Cristina Novais Menezes
Ricardo Martins Valle - DELL DRT-BA 1613
Rita de Cássia Mendes Pereira - DH
Valdira Meira - DELL Coordenação da Versão On-line
Flávio Antonio Fernandes Reis
Conselho Editorial:
Alberto Pucheu - UFRJ Revisão de Linguagem
Alcir Pécora - IEL-Unicamp Flávio Antonio Fernandes Reis
Gilda Santos - UFRJ
Hans Ulrich Gumbrecht - Stanford
University
Ivan Teixeira - USP
Jean Hébrard - École des Hautes Études Impresso na Empresa Gráfica da Bahia
en Sciences Sociales. Paris Tipologia Garamond 11/15/ Papel
João Adolfo Hansen - FFLCH-USP Pólen Soft IMUNE, 80 g/m²
Kathrin Holzermayr Rosenfield - UFRGS Em outubro de 2015
Lélia Parreira Duarte - PUC-MG
Leon Kossovitch - FFLCH-USP
Luiz Costa Lima - UERJ/PUC-RJ
Márcia Abreu - IEL-Unicamp
Márcia Arruda Franco - FFLCH-USP
SUMÁRIO

Dossiê: Graciliano Ramos

Editorial. Daniela Birman e Lúcia Ricotta.....................................................7

Entrevista
Silviano Santiago por Ângela Maria Dias, Daniela Birman e
Wander Melo Miranda...................................................................................11

Artigos

Luiz Costa Lima. A Vida, Um Fiapo......................................................23

Luís Bueno. “É o que Penso, Mas Talvez me Engane”:


Notas sobre o Crítico Graciliano Ramos...................................................33

Elizabeth Ramos. O Espaço na Construção de Angústia..................49

Jobst Welge. Introspecção e Deslocamento em Angústia......................61

Pedro Dolabela Chagas. Graciliano Ramos e o Romance


(numa leitura de Caetés)...................................................................................85

Fernando de Sousa Rocha. Tudo o que Era Sólido se


Desmancha no “Eu”: Construção da Identidade e
Produção Material em Torno de São Bernardo.......................................109

Ricardo Luiz Pedroso Alves. Escrever o Romance Rural.........................127


Gustavo Silveira Ribeiro. A Língua de Fabiano................................147

Carolina Duarte Damasceno Ferreira. O Assassinato de


Julião Tavares em Angústia, de Graciliano Ramos:
entre a Memória e a Imaginação.............................................................163

Daniela Birman. Memória, Ficção e Imaginação na Escrita da


Cadeia: Apontamentos sobre um Manuscrito de Graciliano Ramos......179

Daniela Birman. Documentos da Cadeia e da Repressão.................197

Depoimento de Leitura

Ângela Maria Dias. Caetés: a História de um Conformista


Melancólico................................................................................................205

Resenha

Lúcia Ricotta. Garranchos. Textos inéditos de Graciliano Ramos......213

Ficções

Milton Hatoum. Um Jovem, o Velho e um Livro..............................221

Ronaldo Brito. Perdidos no Círculo.....................................................225

Normas para apresentação de trabalhos..........................................251


Floema - Ano IX, n. 11, p. 7-10, jul./dez. 2015.

EDITORIAL

“As palavras de Infância diziam um mundo desconhecido que


transitava de Alagoas a Pernambuco e chegava ao Amazonas por
meio de uma voz áspera. Um mundo povoado por personagens
inesquecíveis [...].” Neste trânsito da literatura de Graciliano Ramos,
sobre o qual se debruça o escritor Milton Hatoum na crônica “Um
jovem, o Velho e um livro”, aqui citada e publicada, já se anunciam as
recepções, as apropriações e a celebração da obra do autor alagoano
que serão exploradas ao longo deste volume, por meio de entrevista,
artigo, depoimento e resenha. O escritor, cujo primeiro romance, Caetés,
completou 80 anos de lançamento recentemente, em 2013 – ano que
também marcou os 50 anos da sua morte e da publicação de Memórias do
cárcere – terá aqui a sua produção cultural examinada por pesquisadores
e escritores que apontam tanto novas possibilidades de tematização
quanto discutem e questionam antigos pressupostos que marcaram a
sua fortuna crítica e a nossa historiografia. 
O volume se abre com a entrevista concedida pelo escritor,
crítico e ensaísta Silviano Santiago aos pesquisadores Ângela Maria
Dias, Daniela Birman e Wander Melo Miranda. Na conversa, esteve
em pauta não apenas a obra literária de Graciliano, mas também aquela
do entrevistado e, em especial, a sua afinidade com o corpus ficcional
do autor em questão: “Meu diálogo com Graciliano é o diálogo que
comecei a manter com a família que me dei de presente na falta da
família verdadeira, ou real”, diz Silviano Santiago.
Nos artigos reunidos neste Dossiê, os críticos percorrem
caminhos diversos pela obra do escritor alagoano. Luiz Costa Lima
inicia esta seção com o texto “A vida, um fiapo”, em que identifica e
8 Editorial

analisa na fortuna crítica do autor vias contrárias à convenção realista


e documental postulada pela tradição. Luís Bueno se debruçou sobre
os textos de crítica de autoria do próprio Graciliano, examinando a
partir deste material sua visão sobre o gênero romance e sua relação
contraditória com os intelectuais de esquerda da época. Pedro Dolabela
observou em Caetés a dimensão mais ampla da tradição romanesca, tal
qual sistematizada por René Girard. Realizou isto, contudo, sem negar
a possibilidade deste romance oferecer uma interpretação cultural do
Brasil, em especial pela exploração da figura dos  fillers  por Franco
Moretti.
Jobst Welge examina a filiação dostoeivskiana de Luís da Silva,
sugerindo as reapropriações desta mesma linhagem “existencialista”
em outras ficções latino-americanas, especialmente as argentinas,
como El jorobadito, de Roberto Arlt (1933), e El túnel, de Ernesto Sábato
(1948). Angústia também é objeto de estudo de Elizabeth Ramos. Em
seu artigo, a autora aproxima este romance de Memórias do Cárcere,
estabelecendo uma ligação entre a perseguição sofrida pelo escritor
durante a ditadura de Getúlio Vargas e o confinamento narrativo e
espacial do narrador Luís da Silva.
Fernando Rocha enfoca a política identitária do nome e seus
legados no processo de construção material de citações em São
Bernardo. O caminho percorrido por Ricardo Luiz Pedrosa Alves
é diverso. Ele discute a “autolegitimação literária e intelectual em
operação em S. Bernardo”, a partir das tensões entre a literatura e a
formação social, divisando o lugar da “conciliação problemática”
do livro com o próprio ambiente rural. Já Gustavo Silveira Ribeiro
constrói uma leitura de Vidas secas a partir da filosofia de Jacques
Derrida e Emmanuel Lévinas, apoiando-se, sobretudo, nas categorias
de acolhimento e hospitalidade. 
O afastamento de uma leitura documental e puramente
“confessional” por meio da exploração das ligações entre a memória
e a imaginação foi trabalhado de formas distintas por Carolina Duarte
Damasceno Ferreira e Daniela Birman. Tomando também como
Editorial 9

objeto Angústia, Damasceno explorou a instabilidade e a ambiguidade


presentes na célebre cena do assassinato de Julião Tavares e os recursos
de aproximação entre os planos da ação e da narração, da memória
e da invenção. Já Daniela Birman procurou mostrar os vínculos da
ficção e da imaginação com as memórias da cadeia ao examinar dois
manuscritos de Graciliano guardados no IEB. Este texto, que encerra
a seção “Artigos”, é seguido de um pequeno caderno de documentos
no qual são apresentados momentos-chave da repressão policial sofrida
pelo escritor. Extraídos de um universo bem mais extenso, os registros
foram selecionados do prontuário de número 11.473, aberto para o
autor em 1948 na antiga Divisão de Polícia Política e Social, ligada ao
Departamento Federal de Segurança Pública.
A seção “Depoimento” publica a leitura por Ângela Maria Dias
de  Caetés. Retomando a perspectiva já exposta em seu trabalho de
doutoramento acerca da “desformalização do romance” memorialístico
por Graciliano Ramos, a autora nota no procedimento de autoironia
de João Valério o decisivo atravessamento do sujeito pela experiência
da temporalidade narrativa. Na seção dedicada à resenha, Lúcia Ricotta
apresenta o livro Garranchos. Textos inéditos de Graciliano Ramos (2012),
organizado por Thiago Mio Salla. Reunindo escritos de diferentes
gêneros (crônicas, discursos políticos, textos de crítica, de teatro, entre
outros), datados da década de 10 a década de 50, esta obra poderá
sem dúvida revelar ao pesquisador e leitor contemporâneos novos
enquadramentos para a ficção em prosa e, de modo mais amplo, para a
produção cultural do autor em questão. 
A seção “Ficção” fecha este Dossiê com a já citada crônica
“Um jovem, o Velho e um livro”, de Milton Hatoum, e com “Perdido
no círculo”, de Ronaldo Brito. Neste último, o escritor apresenta a
autobiografia de um autor ficcional que, desde logo, declara: “Uma
vida não se conta, uma vida não conta”. Com estilo aforismático e
sentencioso, o narrador, sofismando sobre a vida, resume a sua própria
trajetória às frases erráticas de um “eu” caprichoso, atualizando assim
a bufonaria e a ironia machadianas. Entre o “eu” e a escrita, esta prosa
10 Editorial

constitui um círculo dialético por meio da negatividade, sobretudo


quando considera que “tudo podia perfeitamente não ter ocorrido, a
começar por mim”.
As múltiplas perspectivas sobre Graciliano Ramos aqui
sumarizadas funcionarão, esperamos, como indicadoras do esforço
crítico atual em retomar a tradição de linhagens historiográficas já
sedimentadas e em explorar mudanças nos parâmetros interpretativos da
prosa do autor.Afinal, este “trânsito da literatura” do escritor alagoano,
com o qual iniciamos este editorial, não possui mão única nem deve ser
cristalizado numa leitura hegemônica.

Daniela Birman
Lúcia Ricotta
Floema - Ano IX, n. 11, p. 11-21, jul./dez. 2015.

Entrevista

Questões para Silviano Santiago


Daniela Birman
Lúcia Ricotta
(Organizadoras)

Entrevistadores:
Daniela Birman (Unicamp)
Ângela Maria Dias (UFF)
Wander Melo Miranda (UFMG)

BIRMAN. No livro Em liberdade (1981), você transita pelo ensaio,


pela ficção e pela (auto)biografia. Além de diversos gêneros, também
se comunicam, na obra, distintos períodos de violência e autoritarismo
da história do Brasil, como a ditadura de Getúlio Vargas; a repressão
à Inconfidência Mineira e a morte do poeta Cláudio Manuel da Costa;
a ditadura militar, em seu momento de abertura. Poderia contar
brevemente, tendo em vista este trânsito entre gêneros e períodos
diversos, como nasceu e foi consolidado o projeto de criação de um
diário do escritor Graciliano Ramos?
SANTIAGO. Não consigo inventar uma trama ficcional a partir
de dados reais contemporâneos meus. Não teria escrito um romance
sobre o golpe militar e o AI-5, ou a repressão e a tortura no Brasil pós-
64. Gosto de tomar certo recuo em relação aos motivos que levam a
uma trama de ficção, embora não tenha receio em pôr o dedo na ferida
aberta quando escrevo ensaio (veja minha participação nos anos de Em
liberdade nas reuniões anuais da SBPC). A trama de romance em que
menos recuei, por razões óbvias, é a de Stella Manhattan. Mas recuei um
bocado.
12 Ângela Maria Dias, Daniela Birman e Wander Melo Miranda

O recuo do criador frente ao motivo possibilita o tratamento


da questão que lhe é atual a partir de metáfora. Esta, por sua vez,
pode trazer – se bem trabalhada – uma intensidade semântica à prosa
que escapa, por exemplo, ao texto/documentário − por mais amplo
e ambicioso que seja este, sempre estará circunscrito no tempo e no
espaço. Uma intensidade semântica que – nas mãos de um bom leitor −
pode, espraiando-se, capitalizar (atualizar?) acontecimentos de períodos
históricos semelhantes, constituindo, ao final, uma espécie de amplo
painel dramático.
Em liberdade, é um painel dramático: comporta uma leitura do
golpe militar de 64 (discretamente lá está o episódio Vladimir Herzog
e o discurso de Dom Evaristo Arns), do Estado Novo getulista (lá está
a prisão de Graciliano) e da Inconfidência Mineira (lá está o “suicídio”
de Cláudio Manoel da Costa). Um painel que fala da repressão aos
intelectuais e artistas, no Brasil, por governos autoritários, ao mesmo
tempo em que faz, de acréscimo, uma leitura do comportamento da
literatura brasileira em tais períodos. Pela ordem: pós-modernidade (cuja
estética define a proposta ficcional em pauta), romance nordestino dos
anos 1930 e arcadismo mineiro.
A metáfora dominante – e primeira a surgir na minha imaginação
de criador − foi o episódio de Cláudio, “suicidado”, como Herzog, na
Casa dos Contos, em Ouro Preto. Afinal, sou mineiro e a metáfora ideal
estava em casa. Ao começar a escrita, achei que não seria prudente recuar-
me tanto em relação a 1964. O leitor contemporâneo meu poderia não
estar a par do episódio político da Inconfidência (então, o “suicídio”
de Cláudio não constava dos livros de história), pouco comentado/
divulgado pelos especialistas. A intensidade semântica buscada por mim
e proporcionada pela metáfora “Cláudio” teria – junto ao leitor pouco
motivado a ler literatura da década de 1970 − valor próximo ao zero.
Ocorreu-me, então, Memórias do cárcere (no Novo México, em 1962/1964
tinha orientado tese de mestrado sobre as memórias; Carlos Cortes,
chicano, foi o mestrando).
Entrevista 13

Não titubeei. Aclimatei-me à questão Graciliano e joguei Cláudio


para a segunda parte da ficção, bem menos verossimilhante que a
primeira parte.
Se permitir que me alongue, acrescento que há, na gênese do
romance, outra questão, por assim dizer, teórica: estava um tanto
farto das metodologias de leitura de romances, contos e poemas que
escamoteavam o sujeito, o autor. Como se sabe, os pressupostos teóricos
de leitura, desde o formalismo russo, nos levam a querer compreender
o texto e apenas ele. A famosa literariedade. Na época, passara a ler
textos que eram julgados inferiores, como autobiografias, memórias e
cartas. Queria “aprender” a abordá-los, e o caminho da ficção teórica se
apresentava como um bom caminho. Impunha-se a escrita do “eu” na
ficção. Assumir como forma, ou inventar como gênero o diário íntimo
pelo viés do pastiche. De certa forma, minhas preocupações de então
prenunciavam os escritos sobre “subjetivação” de Michel Foucault e
Gilles Deleuze.
BIRMAN. Ao expor, na abertura das Memórias do cárcere, os
motivos pelos quais levou uma década para narrar o seu confinamento
nas prisões de Getúlio Vargas, Graciliano Ramos nega a existência
de censura prévia em literatura. É nesse contexto que ele escreve
uma frase que já se tornou célebre: “Liberdade completa ninguém
desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com
a delegacia de ordem política e social, mas, nos estreitos limites a que
nos coagem a gramática e a lei, ainda podemos nos mexer”. Já você, ao
comentar, numa entrevista, a escolha do título Em liberdade, refere-se a
sua própria condição de escritor, que deteria um duplo compromisso
transgressor, em relação tanto ao que foi escrito na metrópole quanto
pelo modernismo de 1922. A problemática da assimilação e afrontação ao
modelo produzido na metrópole, como se sabe, também foi trabalhada
em dois conhecidos artigos seus (“O entre-lugar do discurso latino-
americano” e “Eça, autor de Madame Bovary”). Gostaria que comentasse
o atravessamento dessas tensões entre aprisionamento/movimento
limitado por coerções diversas/libertação/transgressão na sua escrita
de Em liberdade e naquela de Graciliano Ramos, em Memórias do cárcere.
14 Ângela Maria Dias, Daniela Birman e Wander Melo Miranda

SANTIAGO. Li todas as perguntas, antes de responder, por isso


advirto que esta resposta terá de comportar algo relacionado à resposta
seguinte. Graciliano era antes de mais nada um notável estilista clássico,
clássico porque tomo a questão do estilo a partir de Buffon (“O estilo é
o próprio homem.”). Com isso, quero dizer que era fundamental para
ele, enquanto manipulador de palavras, o “como escrever bem”, e esse
“escrever”, em toda circunstância, teria de ser o mais castiço possível,
já que era ele próprio que estava sendo escrito por ele. Escrever é a
busca de uma ética. Ser copidesque em redação de jornal faz parte do
seu jogo, como cantaria Cazuza. Como alguns têm um jeito próprio de
agir, Graciliano tinha um jeito próprio de escrever. Tinha estilo.
Dou um único e notável exemplo, tirado de Angústia. Luís da
Silva, ao ler o slogan “Proletários, uni-vos”, pichado no muro por ativistas
políticos sem a vírgula e sem o traço de união (aclaremos), comenta: “Não
dispenso as vírgulas e os traços. Quereriam fazer uma revolução sem
vírgulas e sem traços? Numa revolução de tal ordem não haveria lugar
para mim”.
Vai um segundo exemplo. Luís da Silva pouco se interessa pelos
valores literários defendidos por seu amigo Moisés. Este afirma que o
principal da literatura “é o sofrimento da multidão, a tragédia periódica
das secas”. Logo em seguida, Luís da Silva reage à concepção literária de
Moisés como reagiria ao estilo mais solto de um Jorge Amado: “Moisés
atacaria os livros feitos com frases bem arrumadas. A arte deveria estar
ao alcance de todos, a serviço da política”. As “frases bem arrumadas”
nunca estariam a serviço da política porque se distanciavam do alcance
de todos. Nessa linha, seria preciso que se consultasse o texto que
escrevi sobre repressão e censura no domínio das artes na década de
1970, devedor da estética de Graciliano.
Isso no tocante ao escritor alagoano. Meu problema era outro.
Não tendo tido a experiência da prisão (embora meu irmão mais novo a
tivesse tido), coloquei-me ao abrigo da crítica ao eleger a “forma-prisão”
(veja o texto que você cita sobre o entre-lugar) como lugar da minha
prosa sobre a violência e a repressão. A forma-prisão, entenda-se, é o
próprio do estilo castiço de Graciliano, a que tinha de me conformar
Entrevista 15

para que houvesse verossimilhança em diário íntimo (falso, claro),


“assinado” por ele. De maneira mais precisa: as “frases bem arrumadas”
(é óbvio que há pretensão e água benta nesta afirmação minha) de Em
liberdade pertencem e não pertencem a Graciliano. Depois do cárcere,
Graciliano seria o seu próprio estilo em liberdade. É “minha” prosa, por
mais claudicante que seja ela se comparada à do mestre de todos nós.
Aí está a coerção sofrida por mim e, a partir dela e nela,
a transgressão e a liberação. Teria de saltar agora para o tópico
multifacetado e original do pastiche, em oposição ao tópico simplista e
oswaldiano da paródia. A transgressão e a liberação – ao contrário do
que se dá na mera paródia – é homenagem, como em O primo Basílio.
Homenagem a Flaubert, no ensaio sobre Eça; homenagem a Graciliano,
no meu romance.
BIRMAN. Na mesa-redonda que debateu a obra de Graciliano
Ramos, publicada em Graciliano Ramos (org. José Carlos Garbuglio,
Alfredo Bosi e Valentim Aparecido Facioli. Ed. Ática, 1987), você
chamou a atenção para a atualidade presente no fato de Graciliano
Ramos não ter tentado dar uma voz ou fala a Fabiano. Poderia retomar
os principais pontos desta problemática e, se possível, expor, de modo
um pouco mais amplo, a atualidade de Graciliano Ramos hoje, já na
segunda década do século XXI?
SANTIAGO. Dar fala a Fabiano (não é por casualidade que
os nomes se parecem, assim como meu nome se parece ao dos dois)
seria exigir de Graciliano uma escrita ficcional semelhante à de Jorge
Amado, ou de José Lins do Rego. Sem estilo. Isso está, esteve e estaria
fora de qualquer cogitação. Não há possibilidade de Graciliano escrever
“tá” em lugar de “está”, “cê” ou “ocê” em lugar de “você”. Erros de
regência, concordância, nunca. A escrita do romance Vidas secas – para
ser literatura, no sentido em que a entendia Graciliano – teria de evitar
todo e qualquer solecismo, todo e qualquer compromisso com a fala
oral, no sentido da sua representação pela fonética.
Duas aproximações. Guimarães Rosa é sensível ao potencial de
riqueza semântica da notação fonética em literatura. Vejam um exemplo
simples e definitivo: o uso do pronome você numa frase de “A terceira
16 Ângela Maria Dias, Daniela Birman e Wander Melo Miranda

margem do rio”. Quando o marido está para tomar a canoa, sua mulher
lhe diz: “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!”.
No caso do testimonio hispano-americano, o problema da riqueza
vocabular e sintática foi resolvido pela adoção de um segundo autor, o
entrevistador e copista. É o caso da vida de Rigoberta Menchú, escrita
por Elisabeth Burgos (então, esposa de Régis Debray), a partir de
entrevistas com a “personagem”.
Não estou querendo dizer que Graciliano fosse alheio ao potencial
de riqueza semântica, proporcionado pela fala oral brasileira. A citação
é longa, mas se impõe a fim de evitar simplificações. Em carta à esposa
Heloísa, de 1932, escreve “O [romance] S. Bernardo está pronto, mas
foi escrito quase todo em português, como você viu. Agora está sendo
traduzido para o brasileiro, um brasileiro encrencado, muito diferente
desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto,
com uma quantidade enorme de expressões inéditas, belezas que eu
mesmo nem suspeitava que existissem. [...] O velho Sebastião, Otávio,
Chico e José Leite [amigos do romancista] me servem de dicionário”.
A sintaxe não é passível de aperfeiçoamento, só o vocabulário,
ou o dicionário, como diria também Carlos Drummond.
Nesse sentido, o grande diálogo com a estética do testimonio teria de
ser feito a partir de Guimarães Rosa. Mas isso já são outros quinhentos.
DIAS. Na minha tese de doutorado, em 1989, defendi que, à
diferença dos padrões dominantes no romance de 1930 ― ora fixados
no passado rural, ora atraídos pela perspectiva de um futuro radiante
de mudanças, no espectro entre a melancolia de Zé Lins e a utopia
de Jorge Amado ― a obra de Graciliano Ramos busca promover a
desformalização do romance, entendido convencionalmente como
“forma de desenraizamento transcendental”, numa direção em que o
impulso de introspecção narrativa passa a plasmar a exterioridade do
contexto, cada vez mais confundindo ficção com confissão. O que você
pensa sobre isso?
SANTIAGO. A formulação está correta. Para discuti-la, basta
começar pela análise do uso original e notável do futuro do pretérito (na
Entrevista 17

minha época, se chamava tempo condicional) em Vidas secas. O tempo


verbal não era usado por nenhum companheiro de escola e, ao mesmo
tempo, “passa a plasmar a exterioridade do contexto”, para retomar
expressão da entrevistadora.
No meu modo de entender, é a escolha do tempo verbal
destemperado – de uso exclusivo do narrador de Graciliano – que
diferencia e confunde a ficção de Fabiano com a confissão de Graciliano.
Este, o romancista alagoano, é o único a se desengajar do profundo
pessimismo pulsante na grafia-de-vida do personagem Fabiano e no
melhor romance nordestino sobre a seca. O romancista se desengaja
formalmente, esteticamente, do personagem para apontar – quase que
ao estilo bíblico – para um futuro promissor, compatível e coerente
com o seu próprio ideário político. É através de um jogo formal (o uso
do futuro do pretérito) que a prosa própria a Graciliano comunga com
os valores superiores da utopia socialista (ou comunista) e se distancia
de qualquer atitude “transcendental”, no sentido filosófico do termo,
e, acredito, da pergunta feita.
Onde outros escritores teriam usado a vulgaridade do tempo
imperfeito, macaqueando a linguagem do povo, Graciliano usa e abusa
do futuro do pretérito na sua prosa ficcional. Recordemos. “Quereriam
fazer uma revolução sem vírgulas e sem traços? Numa revolução de
tal ordem não haveria lugar para mim”, grifo e repito a frase tomada
de Angústia. Vejam os dois verbos grifados (quereriam e haveria) e se
perguntem se outros narradores não teriam como o próprio do estilo
deles o imperfeito (queriam e havia). E continuem se perguntando se eles
não complementariam a escolha do imperfeito, dizendo que somos nós
os que temos os pés fincados na realidade da seca.
DIAS. Em relação a Caetés, por exemplo, eu acredito que o “veto
ao imaginário”, para usar a expressão de Costa Lima, perpetrado pelo
narrador-personagem aponta para um enfoque da ficção como travessia
imaginária do cerco subjetivo, na superação das fronteiras egocêntricas
e do distanciamento objetivizante. Por aí, a ruína do “projeto caeté”,
como ficção, talvez possa ser lida em dois níveis. No primeiro, a rejeição
18 Ângela Maria Dias, Daniela Birman e Wander Melo Miranda

do “imaginário sem disfarces” talvez equivalha à sua inabilitação como


fantasia ou evasão pitoresca. No segundo, a diluição das fronteiras
entre civilização e barbárie sugere uma identidade já contaminada pela
experiência da narração, em sua dinâmica desconstrutora e aberta à
emergência do imprevisto. Você concorda com esta perspectiva?
SANTIAGO. A pergunta é boa e, como a anterior, complicada.
Sou matuto mineiro (de Formiga, para ser preciso), como Graciliano o
foi – com maior perfeição e sentido de identidade – alagoano. A pergunta
reclama uma discussão teórica sobre o “veto ao imaginário”, assim como
a pergunta anterior, o conhecimento de uma tese de doutorado de 1989
a que, por razões que desconheço, não tive acesso. Uma entrevista sobre
Graciliano não é o lugar para tal.
Aproveito a pergunta para dar continuidade à lógica desta
entrevista. Retomo, pois, problema já levantado, que julgo afim à
pergunta feita. Tergiverso, talvez, e peço desde já perdão à entrevistadora.
Como é que – e para quê? − o discurso biográfico do crítico (no
caso, meu) se apodera do discurso autobiográfico (no caso, de Graciliano)
ao assumir a primeira pessoa do biografado e não a do biógrafo?
Tanto ele, Graciliano, quanto eu, Silviano, estamos sempre entre
a ficção e a confissão. Há veto ao imaginário, se bem entendo a postura
de Costa Lima, tanto de uma parte quanto da outra.
A questão que levanto está tanto no romance Em liberdade, quanto
no conto “Todas as coisas à sua vez”, que se encontra na coletânea
Histórias mal contadas. No conto, tento mostrar como se dá o processo
de heroificação (martírio, no vulgar) do sujeito Graciliano pelo próprio
Graciliano às vésperas da morte.
Nos últimos dias de Graciliano, há uma delicada imbricação de
“venenos” no organismo do biografado que redundam numa espécie
de vida em martírio, impossível de levar o corpo à cura. Não é mais
possível que cada coisa se dê à sua vez. Todas as coisas à sua vez. Tomado
pelo câncer, o corpo do escritor não deixa de lado o cigarro, como não
abandona o cálice de aguardente, velhos e proibidos prazeres, e acata a
própria sublimação da dor pelas injeções de morfina. Lembro apenas
Entrevista 19

uma frase/resumo do conto: “Seringaita é a seringa que injeta parlapatices


na minha imaginação”.
A chaga causada pela ferida da morte redunda em outras chagas,
que se somam, constituindo um corpo de mártir às vésperas do
desaparecimento. O corpo derrete, mas não há que abdicar do prazer
da vida para acatar a dor da morte. Cada coisa à sua vez, merda. Todas
as coisas à sua vez. Leiam o conto, por favor.
MIRANDA. Qual é, para você, a importância da obra de
Graciliano Ramos para a cultura brasileira atual? Ela continua sendo
um caminho para a compreensão da nossa humanidade nesses trópicos
globalizados?
SANTIAGO. Por incrível que possa parecer, a obra de
Graciliano permanece porque é um monumento à arte. À arte literária.
Nesse sentido, qualquer preocupação com a nossa humanidade passa,
necessária e obrigatoriamente, pela investigação sobre o papel (ou a
função) que a arte possa ter no processo de conhecimento do real.
Por real entendam-se as várias questões de caráter social, econômico e
político que podem afligir o cidadão, a nação e o mundo e que recebem,
por parte de especialistas, a atenção disciplinar que melhor lhes convém
em primeira instância.
Antes de mais, portanto, a obra de Graciliano se manifesta
como um incentivo aos jovens. Que leiam e escrevam literatura, que
continuem a fazer a boa e reflexiva prosa e poesia brasileiras, porque, de
antemão, sabem que sua “mensagem” (se me permitem uma precisão
desnecessária) terá sempre olhos atentos, imaginativos e inteligentes de
leitores para recebê-la, para tentar levá-la um passo adiante, com vistas
a um futuro mais justo e igualitário para todos, indiscriminadamente. A
“mensagem” será sempre recebida pelos melhores dentre nós e, dessa
forma, não se perderá nos detritos cada vez mais volumosos dos novos
tempos desengajados, ou engajados na prática da indústria cultural.
Por mais distante que esteja no tempo cronológico do jovem leitor,
a obra de arte de Graciliano faz perdurar a necessidade de entendimento
entre os cidadãos, entre os conterrâneos, entre os contemporâneos. Ela é
20 Ângela Maria Dias, Daniela Birman e Wander Melo Miranda

o mais profundo dos elos entre os humanos demasiadamente humanos,


isso porque “poetizar”, segundo Hölderlin, “é um achar”. Em Graciliano
o jovem leitor acha o que procura.
MIRANDA. De que maneira sua obra, Silviano, continua a
dialogar com a de Graciliano, para além de Em liberdade?
SANTIAGO. Meu diálogo com a obra de Graciliano não é mero
produto do acaso. Ele surgiu em momento em que se fazia indispensável
uma conversa minha com meu pai já morto. Nesse sentido, detecto,
retrospectivamente, que meu diálogo tem muito a ver com poemas de
Carlos Drummond na linha de “Como um presente” (A rosa do povo).
Há uma estranhíssima e fascinante confluência de datas que indicia a
profundidade do meu diálogo com o alagoano. Graciliano e meu pai
nasceram em 1892. Fui concebido em 1936, quando Graciliano e meu
pai faziam 44 anos. Escrevi o romance enquanto me aproximava dos
44 anos e o terminei no ano em que completava aquela idade. Paro por
aqui para não avançar em quimeras que definem a nossa vida por um
viés de que temos medo de nos aproximar. Ou então: continue a leitura
de Em liberdade com a de Viagem ao México e a de De cócoras.
Esse diálogo com o pai continua ainda no conto acima referido,
“Todas as coisas à sua vez”, que está em Histórias mal contadas.
Ele é interrompido uma ou outra vez por um diálogo com minha
mãe, morta desde a tenra idade. Este é, por exemplo, o caso da trama
do romance O falso mentiroso.
Meu diálogo com Graciliano é o diálogo que comecei a manter
com a família que me dei de presente na falta da família verdadeira,
ou real. Por isso é que meu discurso ficcional, apesar de sempre ser
constituído sob o guarda-chuva do “falso”, é mais verdadeiro que
qualquer mundo que me é dado (ou imposto) como verdadeiro.
MIRANDA. Seus projetos literários atuais contemplam outras
“leituras” de seus precursores? 
SANTIAGO. Perdoe se antes esclareço um detalhe. Minhas
leituras são sempre leituras daquele que se apresenta aos seus próprios
contemporâneos como precursor, e não como descendente. Nesse sentido,
Entrevista 21

o precursor é aquele que inventa o passado, dá-lhe a forma e o sentido


que carece para continuar a significar de maneira forte e duradoura no
presente. Se não há precursor, não há memória. Há história. Há relatos.
Não há arte.
Portanto, o precursor – repito: nesse sentido específico – é o
que controla a cronologia às avessas, mostrando o raro sentido do
passado no presente, com vistas ao futuro. Eça é precursor de Flaubert,
assim como Machado de Assis é precursor de Flaubert e de Eça. O
precursor desencaminha a seta do tempo para que ela, contemplando
carinhosamente o que tinha deixado pelo meio do caminho, ilumine-o
com o facho de luz que ela própria continua a produzir, independente
da vontade do seu criador original e graças à sensibilidade dos sucessivos
criadores. A leitura do precursor não satisfaz a vontade do criador
original; satisfaz a vontade da obra criada por ele. Sem o precursor,
há crítica, há biografia. Não há o diálogo entre a arte e a arte, entre o
criador e o criador.
Ao responder à pergunta, direi que estou sempre fazendo leituras.
Estou sempre querendo dar sentido e forma à tradição.
Floema - Ano IX, n. 11, p. 23-31, jul./dez. 2015.

Artigos

A Vida, Um Fiapo

Luiz Costa Lima1

Resumo: Constata-se a insuficiência das categorias de realismo e documento


para avaliar os dilemas de Graciliano Ramos relacionados à escrita. E verificam-
se na fortuna crítica do autor, em vez de um bloco maciço convencional, vias
contrárias à presença do realismo inconteste, que apontam para a inegável
manobra ficcional do significado do ciúme de Paulo Honório e do silêncio que
acompanha a vida e a morte de Baleia. Estes são os polos dentro dos quais
a suposta unicidade do realismo de Graciliano é carcomida, o que permite
apontar para o lugar particular de Graciliano Ramos no âmbito da tradição
literária brasileira ligada ao regionalismo. 

Palavras-chave: Realismo. Documento. Fortuna Crítica. Baleia. Paulo Honório.

Abstract: This article points out the inadequacy of the categories of realism and
document to evaluate the Graciliano Ramos’s dilemmas related to writing. And
suggest that there are in critical fortune of the author instead of a solid block
conventional undermining the undisputed presence of realism contrary ways
that defies generic definitions of Ramos’s realism, pointing to the undeniable
fictional maneuver on the meaning of jealousy from Paul Honorius and the
silence that follows the life and death of whale. These are the poles within which
the supposed uniqueness of Graciliano’s realism is rotten, which lets us point to
his particular place within the Brazilian literary tradition linked to regionalism.

Keywords: Realism. Document. Critical Fortune. Baleia. Paulo Honório.

1
Professor emérito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), é autor
de mais de vinte livros. Entre estes, História. Ficção. Literatura (2006) e Trilogia do Controle (2007).
24 Luiz Costa Lima

Na década de 1930, a literatura brasileira conheceu a irrupção do


romance nordestino. Vinculado aos modos perversos da exploração da
terra, pela imensa desigualdade social que o latifúndio, o engenho de
açúcar, depois a usina, implicavam, de cunho decididamente ideológico,
passou a ser conhecido, nas histórias da literatura nacional, como o
regionalismo neorrealista.
Dele faziam parte autores que, em alguns casos, permaneceram
conhecidos apenas por suas obras de estreia. É o que sucede com José
Américo de Almeida, com A Bagaceira (1928), Raquel de Queiroz, com
O Quinze (1930) e Amando Fontes, com Os Corumbas (1933). A estes se
acrescentavam nomes que publicaram por toda a vida – José Lins do
Rego e Jorge Amado, estreantes em 1932, respectivamente com Menino de
engenho e País do carnaval. O ciclo era completado por Graciliano Ramos,
de produção numericamente modesta – à sua obra estritamente novelesca
composta por Caetés (1933), São Bernardo (1934), Angústia (1935), Vidas
secas (1938), acrescentar-se-iam o livro de contos, Insônia (1947), suas
primeiras memórias, Infância (1945), e as terríveis recordações de sua
prisão como comunista – o que então não era –, durante o Estado
novo varguista, nas Memórias do cárcere (4 volumes, 1953). Mesmo que
se acrescente a reunião de crônicas, com destaque para o póstumo
Vivente das Alagoas (1962) e os relatos infantis (Alexandre e outros heróis,
1962), a obra de Graciliano não deixa de se distinguir da produção dos
romancistas mais prolíficos de sua geração, José Lins e Jorge Amado, seja
por não se diluir progressivamente, seja por não se entregar ao gosto do
mercado. De qualquer modo, tais critérios ainda são demasiado rasteiros
para que assinalem sua singularidade.
Não se trata de negar a vinculação nordestina quer de sua prosa
ficcional, quer de suas primeiras memórias. Sua base nordestina só se
estenderá por outras regiões a partir da macabra experiência no porão
do navio que o transporta, junto com outros presos políticos, para o Rio
de Janeiro, e os anos de cárcere que sofre, sem direito a um processo
judicial. O cárcere na Ilha Grande só cessa pela interferência de amigos
influentes, como José Lins, e pela ajuda desinteressada de uma figura
humana da grandeza do advogado Sobral Pinto.
A Vida, Um Fiapo 25

Se não se pretende negar o indiscutível, importa pensar se sua


obra concentra-se no raio realista de seus companheiros de região. Para
fazê-lo, convém antes estabelecer o que se entende por raio realista. Vale
então recordar a distinção que Lukács (1960) estabelecia, a partir do
romance francês do século XIX e estendia à prosa a ele contemporânea,
entre realismo e naturalismo. O realismo correspondia ao romance
exemplar, tendo seu clássico em Balzac, porque apresentaria a estrutura
socioeconômica da conjuntura histórica representada no enredo, ao
passo que o naturalismo, primeiramente tipificado por Zola, contentava-
se com seus traços de superfície. Nos seus próprios termos: (realismo
e naturalismo supõem)

a presença ou ausência de uma hierarquia entre os traços


próprios aos personagens representados e as situações em
que se acham postos esses personagens. [...] É secundário que
o princípio comum de todo naturalismo, ou seja, a ausência
de seleção, a recusa da hierarquização, apresente-se como
submissão ao meio (primeiro naturalismo), como atmosfera
(naturalismo tardio, impressionismo, também o simbolismo),
como montagem de fragmentos da realidade efetiva, em estado
bruto (neorrealismo), como corrente associativa (surrealismo),
etc. (LUKÁCS, 1960, p. 61).

Apesar da enorme extensão temporal dada ao par antagônico,


nenhum dos dois termos é apropriado para Graciliano. Qual a razão
de negá-lo? Não é pela designação de realista que tem sido conhecido
entre seus companheiros de geração? E a denominação “realismo” não
é ainda hoje considerada por muitos críticos como elogiosa?
Em favor da agilidade argumentativa, recorde-se a cena capital
de seu romance de estreia. Como seu título insinua, o protagonista João
Valério se propõe a compor um romance histórico, que teria por base
os índios caetés, os habitantes originais do atual estado de Alagoas.
Mas a distância entre os modos de vida de um modesto funcionário de
uma cidadezinha interiorana e do que teria sido próprio dos indígenas,
já então dizimados, leva a proposta de romance histórico ao fracasso.
26 Luiz Costa Lima

Há muitos anos, eu interpretava o fracasso do personagem como a


encenação irônico-zombeteira por Graciliano do que se fizera, entre
nós, com Gonçalves Dias e Alencar: a criação literária de uma fantasia
indigenista. Hipótese bastante diversa só me veio à cabeça ao reler, há
poucos anos, o Memórias do cárcere. Descrevendo as atrocidades que via
serem cometidas ou que lhe contavam, Graciliano observava que, para
infelicidade sua, era escritor em um país em que “essas coisas – as cenas
expostas nos romances – eram vistas com atenção por uma pequena
minoria de sujeitos mais ou menos instruídos que buscavam nas obras de
arte apenas o documento” (RAMOS, 1979, p. 132-133, grifo meu).
A interpretação que então dera ao Caetés se invertia por
completo: que miséria a deste país em que os poucos mais ou menos
instruídos só veem na obra de arte o documento. E o que teriam sido
Os Timbiras, O Guarani e Iracema senão tentativas de documentar, por
certo imaginativamente, a vida das populações primitivas do país e/
ou sua aproximação com o branco conquistador? Já, portanto, em
seu primeiro romance, por certo ainda distante da qualidade de sua
ficção realizada, Graciliano intuía haver algo errado na apreciação
literária vigente em seu país. Mas, contra essa segunda leitura, não era
precisamente o documento que aparecia, para um crítico contemporâneo
conhecido como Lukács, como característica da obra realista? E em
que a valorização do documento varia quanto ao critério mais recente
que louva a obra como testemunho de uma desastrosa situação social?
Seria irrelevante a diferença que se pretendesse fundada em o louvor
do documento supor o respaldo marxista, o que não mais sucede no
realce do testemunho. Ora, como Graciliano foi reconhecido como
um escritor realista, a correta seria a minha primeira leitura do Caetés.
E era como documento que eu mesmo lia o São Bernardo em meu livro
de estreia, Por que literatura (1966).
Por sorte dos leitores de Graciliano, sua interpretação grosseira
foi ultrapassada pela leitura que Abel Barros Baptista (2005) fez de
São Bernardo. De seu estudo exemplar, destaco duas passagens capitais.
Na primeira, é ressaltada a excelência do capítulo 19. Paulo Honório
A Vida, Um Fiapo 27

e Madalena haviam se casado há pouco. Mas, como assinala o crítico


português, o pequeno intervalo entre a cena do casamento e o capítulo
destacado, e o fato de ser o livro escrito a posteriori são indicativos de que
a felicidade durara bem pouco. Sentia-se Paulo Honório não só agredido
pelas disposições progressistas tomadas por Madalena como enciumado
de todos. A matéria do capítulo não faz, contudo, que o romance assuma
a forma de recordação, como, de acordo com os moldes realistas, deveria
estar. Já a leitura atenta da abertura expõe sua discordância:

Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci


tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se
revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi
desta vida agreste, que me deu uma alma agreste. – E, falando
assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa
o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa?
Para nada, mas sou forçado a escrever (RAMOS, 2012, p. 117).

As brigas contínuas, o suicídio de Madalena, a separação então


dolorosa, tudo isso já se dera. No entanto, o segundo parágrafo aparece
com verbos no presente, a terminarem com a cláusula “sou forçado
a escrever”. “Forçado por quê? Qual a força que o impele ou obriga
a escrever? [...] Forçado a escrever mesmo sabendo de antemão que
nunca atingirá o retrato moral de Madalena, ou forçado a escrever para
o procurar, sem critério viável para aferir o êxito da busca?”, pergunta-
se o crítico (BAPTISTA, 2005, p. 111-112). E o capítulo prossegue
com a observação da alternância dos tempos verbais: “La fora os sapos
arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas
negras. – Casimiro!” (RAMOS, 2012, p. 118).
Com a entrada de Casimiro Lopes, os verbos passam para o
presente. Mas a ação narrada decorre no presente ou no passado? [...]
Tudo se esclarece, então: os verbos no presente dão conta da presença
do passado no presente (BAPTISTA, 2005, p. 113).
A frase, simples e incisiva, é suficiente para decretar a insuficiência
do realismo. Que testemunha a substituição do tempo verbal, o presente
ocupando o lugar do passado, senão que a recordação não se confunde
28 Luiz Costa Lima

com o tempo da memória, pois o tempo que efetivamente vigora é o


tempo da narrativa?
A segunda passagem que destaco completa o desmonte do
realismo. Até aqui ainda podíamos entender o ciúme como decorrência
da diferença dos níveis de cultura do casal. Mais precisamente, do
“sentimento de propriedade” do macho sertanejo. Sem que se refira a
um momento específico do relato senão que a seu todo, escreve o crítico:

O ciúme não é variante da desconfiança ou do sentimento de


propriedade imputáveis à profissão, mas uma paixão que não
depende delas, que até as contraria, e que radicalmente se liga ao
sentimento amoroso, que já levara Paulo Honório a fazer algo
diverso do que projetara… (BAPTISTA, 2005, p. 125).

O que vale dizer: o ciúme não se encaixa em uma cadeia de causas


e efeitos que efetuaria o transporte para o plano da linguagem do que
já se dera na sociedade, matéria-prima do romance. O ciúme nos lança
noutro plano que não o da mera transmissão da realidade. Por isso,
o São Bernardo, como toda ficção de qualidade, não se restringe a ser
documento ou testemunho de algo que já antes dela existia.
Até este momento, demos a entender que o ensaio de Abel
Barros Baptista (2005) estabeleceu um dique contra a interpretação
habitual de Graciliano Ramos. Procuro a seguir mostrar que, sendo
correta, essa ainda é uma compreensão parcial. Para mostrá-lo, recorro
a umas mínimas passagens que Antonio Candido (1992) dedicou a
Vidas secas.
A primeira ressalta a singularidade do escritor alagoano entre
seus companheiros “regionalistas.” Para fazê-lo, recorda a formulação
de Aurélio Buarque de Holanda (apud CANDIDO, 1992, p. 102): “Cada
uma das obras de Graciliano Ramos (é) um tipo diferente de romance”.
E daí parte para refletir sobre Vidas secas. Aproveitando agora uma
observação de Lúcia Miguel Pereira, Candido acentuava “a força de
Graciliano ao construir um discurso poderoso a partir de personagens
quase incapazes de falar, dada à rusticidade extrema, para os quais o
A Vida, Um Fiapo 29

narrador elabora uma linguagem virtual a partir do silêncio” (PEREIRA apud


CANDIDO, 1992, p. 104-105, grifo meu).
Na verdade, na rusticidade de toda a curtíssima narrativa, a falta
de palavras é quase a regra absoluta. O tratamento da falta, contudo,
apresenta uma diferença básica: se o proprietário da fazenda abandonada,
a que chegam os retirantes, Fabiano, sua família e a cachorrinha Baleia,
não tem do que se queixar, nem por isso deixa de gritar e dar ordens.
O que ele tem a dizer é nada, pois Fabiano é um vaqueiro exemplar.
Mas os desaforos são a linguagem do dono da terra. Do mesmo modo,
se o Soldadinho amarelo e a guarnição a que pertence têm poucas
palavras em reação ao “desacato à autoridade” de que acusam Fabiano,
em troca as pancadas com que malham suas costas e a prisão a que o
recolhem são a linguagem da autoridade. Portanto, ainda que sejam
escassas suas palavras, o senhor das terras e as autoridades policiais
não precisam de muitas. A semiologia brutal do mando as substitui.
Em troca, que palavras tem Fabiano para contestar ao pedido de uma
cama razoavelmente decente por sinhá Vitória? Que palavras tem a
mulher quanto às perguntas dos dois pequenos filhos? Como o mais
velho podia expressar a admiração pelo pai em sua plena roupagem de
vaqueiro senão tentando cavalgar o bode velho? A família de Fabiano,
em suma, está reduzida a umas mínimas palavras, que não têm o apoio
dos sinais de mando.
O silêncio que habita o humano sem posses prolonga-se até à
cachorrinha Baleia e nela alcança seu auge. A ausência de palavras na
cena de sua morte é um dos maiores capítulos da literatura brasileira.
Por temer que os sinais da doença que nela se manifestavam indicassem
que ela estivesse hidrofóbica, Fabiano, para proteger os filhos de serem
contagiados, persegue-a, para matá-la. Mas o tiro que dispara não é
mortal; entre surpresa e espantada, a cachorrinha se arrasta. O capítulo
“Baleia” é quase tão só formado pela lenta agonia do animal. Baleia
procura fugir, ou se esconder, ou escapar dos sinais da morte que dela
se avizinham.
30 Luiz Costa Lima

Podemos mesmo estabelecer, do ponto de vista de


disponibilidade de linguagem, uma hierarquia entre os personagens.
Para o fazendeiro e os policiais, muito poucas palavras são suficientes,
pois, sob a forma de gritos e pancadas, os sinais de mando são
bastantes. Para Fabiano e sua família, a espoliação, a falta, a fuga
(da seca e, sempre que possível, dos outros homens), dão lugar ao
resmungo aflito ou raivoso, com que fala o silêncio. Para Baleia,
enquanto esteve saudável, o silêncio tem o cheiro dos preás, que,
caçados por ela, diminuía a fome dos retirantes, ou se exprime nas
brincadeiras em que se envolve com as crianças. À medida que a
morte dela se aproxima, o silêncio se confunde com o negror que
se espalha a seu redor, com a fantasia que nela cresce, antes que
os urubus venham bicar seus olhos mortos: “Baleia queria dormir.
Acordaria feliz, num mundo cheio de preás” (RAMOS, 1953, p. 109).
Em suma, se houve um tempo em que a crítica considerava
inconteste a presença do realismo em Graciliano Ramos, a partir da
abordagem de Abel Barros Baptista (2005) podemos voltar atrás e
verificar que, em vez de um bloco maciço, a crítica anterior já mostrava
vias contrárias ao que a tradição postulava. Apenas considerando São
Bernardo e Vidas secas, a compreensão do significado do ciúme de Paulo
Honório e o silêncio que acompanha a vida e a morte de Baleia são os
polos dentro dos quais a suposta unicidade do realismo de Graciliano
é carcomida.
Rio, novembro, 2012.

Referências

BAPTISTA, Abel Barros. O Livro agreste. Ensaio de curso de literatura


brasileira. Campinas: Editora Unicamp, 2005.

CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. Ensaios sobre Graciliano Ramos.


São Paulo: Editora 34, 1992. Edição original: 1956.
A Vida, Um Fiapo 31

LUKÁCS, Georg. Wider den missverstanden Realismus. Trad. de Maurice


Gandillac. La signification présente du réalisme critique. Paris: Gallimard, 1960.
Edição original: 1958.

RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 92. ed. Rio de Janeiro: Editora Record,
2012. Edição original: 1934.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de janeiro: Livraria José Olympio


Editora, 1953. Edição original: 1938.

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: Livraria José


Olympio Editora, 1979. Edição original: 1953. v. 3.
Floema - Ano IX, n. 11, p. 33-47, jul./dez. 2015.

“É o que Penso, Mas Talvez me Engane”: Notas sobre o


Crítico Graciliano Ramos

Luís Bueno 1

Resumo: Este artigo objetiva apresentar, a partir de textos de crítica de


Graciliano Ramos, a posição específica do autor no debate literário e político
de seu tempo. Esta pode ser examinada como um “desacordo no acordo”
com os intelectuais de esquerda, de quem se aproximava ideologicamente e
mantinha, ao mesmo tempo, independência.

Palavras-chave: Graciliano Ramos. Crítica. Romance.

Abstract: This article aims at presenting as from the critical texts by Graciliano
Ramos the specific position of the author in the literary and political debate
of his time. It can be considered as a “disagreement in accordance” with the
well-known intellectuals partisans of the left of whom he had at the same time
approached ideologically and differed.

Keywords: Graciliano. Critic. Novel.

É certo que as criaturas que nos rodeiam são ordinárias, mas também
pode ser que o Raskolnikoff e a Sônia de Dostoiévski fossem na
realidade um assassino comum e uma prostituta vagabunda, sem
nenhuma espécie de grandeza. Vendo-se impressos, talvez não se
reconhecessem.
(Graciliano Ramos, “Um romancista do nordeste”).

Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida.


Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada.
(Graciliano Ramos, carta a Marili Ramos de 23/11/1949).
1
Professor da Universidade Federal do Paraná, é autor de Uma história do romance de 30 (Edusp/Ed.
Unicamp, 2006). Em 2007, coorganizou A Confederação dos Tamoios – Edição fac-similar seguida
da polêmica sobre o poema (UFPR, 2007), idealizada nos 150 anos de comemoração ao épico de
Gonçalves de Magalhães.
34 Luís Bueno

Graciliano Ramos não exerceu a crítica de modo continuado, mas


publicou um conjunto de textos que não podem ser classificados de
outra forma que não como de crítica. Sua atividade mais intensa nesse
campo se deu entre 1937 e 1939, logo após sair da cadeia e começar
sua vida no Rio de Janeiro. É natural que seja assim, já que se trata de
período em que contribuiu, com certa assiduidade, nos jornais, como
forma de ganhar algum dinheiro para manter-se na capital2. Mas ele se
ocupara disso antes e voltaria a ocupar-se depois. No entanto, desse
conjunto pouco numeroso – cerca de 30 artigos – é possível extrair uma
visão bastante coerente do que seria romance para ele3. E isso não é tão
comum naqueles tempos, em que o ofício era praticado em condições
pouco favoráveis, na correria do rodapé ou da coluna semanal, ao
sabor dos lançamentos – e sem maiores necessidades de sistematização.
Lafetá (1974), por exemplo, em seu estudo sobre a crítica na década de
30, constata uma ausência de critérios perceptíveis nos textos de um
outro romancista que praticou a crítica, Octávio de Faria, ainda que vá
encontrá-los dispersos aqui e ali, inclusive na sua prática ficcional.
Não que Graciliano Ramos chegue a definir explicitamente o que
seria o romance para ele, mas, como se disse, faz uso de certas ideias-
chave que revelam uma visão sólida do que seja o gênero. É evidente
que esses textos são atravessados, todo o tempo, pelo debate ideológico
da época. Se a leitura de Lafetá o leva a afirmar que, em Octávio de
2
As cartas que escreveu para sua mulher e para seus tradutores argentinos dão claro testemunho das
dificuldades financeiras de Graciliano nesse período (ver RAMOS, 1994, p. 170-202; MAIA, 2008).
3
Consideramos de crítica literária os seguintes textos, que indicamos em sua publicação em livro:
em Linhas tortas (RAMOS, 1962): “O romance de Jorge Amado”, p. 94-98,17/02/1935; “Porão”,
p. 99-101, 07/1937; “Livros”, p. 106-107, s.d.; “Os amigos de Machado de Assis”, p. 108-110,
s.d.; “Machado de Assis”, p. 111-112, s. d.; “Uma personagem sem-vergonha”, p. 113-115, s.d.;
“Uma personagem curiosa”, p. 116-117, s.d.; “As mulheres do sr. Amando Fontes”, p. 118-119,
s.d.; “Bahia de todos os santos”, p. 120-121, s.d.; “Classe média”, p. 122-123, s. d.; “Norte e sul”,
p. 138, 04/1937; “Caminho de pedras”, p. 141-142, s.d.; “Pureza, p. 143-145, s.d.; “Romances”,
p. 148-149, s.d.; “Justificação de voto”, p. 150-154, s.d.; “Um livro inédito”, p. 155-156, s.d.; “O
romance das tuberculosas”, p. 165-166, s.d.; “Conversa de livraria”, p. 167-168, s.d.; “O teatro de
Oswald de Andrade”, p. 169-170, 09/1937; “Os sapateiros da literatura”, p. 190-191, s.d.; “Os
tostões do sr. Mário de Andrade”, p. 192-193, 1939; “Alguns tipos sem importância”, p. 196-199,
08/1939; “Conversa de bastidores”, p. 249-252, 16/05/1944; “O fator econômico no romance
brasileiro”, p. 256-262, 09/12/1945; “Antônio Olavo”, p. 265-267, 06/08/1950; “Simão Dias”,
p. 273, s.d.; “Dois mundos”, p. 274-276, s.d. Em Garranchos (RAMOS, 2012. Org. de Thiago Mio
Salla): “Um romancista do nordeste”, p. 133-136, 20/07/1934; “O romance do nordeste”, p. 138-
141, 10/03/1935; “A literatura de 30”, p. 146-147, s.d.; “Jorge Amado”, p. 155-157, s.d.; “Um livro
inédito II”, p. 179, s.d.; “Decadência do romance brasileiro, p. 262-267, 12/1941.
“É o que Penso, Mas Talvez me Engane”: Notas sobre o Crítico Graciliano Ramos 35

Faria, haveria “um disfarce ideológico sob a aparência desinteressada e


objetiva” (LAFETÁ, 1974, p. 183), no caso de Graciliano, esse disfarce
não há. O que há é um compromisso ideológico claro de esquerda, sem
pretensão de desinteresse, mas que se desvia aqui e ali do que em geral
os intelectuais de mesmo enquadramento consideravam bom romance.
Essa independência do escritor permite que ele chegue a avaliações que
destoam da visão geral da crítica (e não só a de esquerda). Sua resenha
de Pureza, de José Lins do Rego, é exemplo claro disso. Quando o livro
surgiu, em 1937, todos apontaram uma diferença em relação aos volumes
do chamado ciclo da cana-de-açúcar. Graciliano Ramos, no entanto, viu
uma continuidade que parece bastante palpável. Dá o devido relevo ao
fato de que não só o protagonista, Lourenço, pertence a uma tradicional
família de senhores de engenho – o pobre chefe da estação de trens da
localidade de Pureza, onde Lourenço vai buscar a cura de uma doença
do pulmão, também faz parte da linhagem dos tradicionais Cavalcantis.
Isso o leva a concluir: “Os primeiros romances de Lins do Rego tratam
da decadência econômica da família rural do nordeste. Vemos agora a
decadência moral da mesma família. Pureza completa admiravelmente
o Ciclo da Cana-de-Açúcar” (RAMOS, 1962, p. 145).
Esse desacordo no acordo, no entanto, tem consequências
que vão muito além do julgamento pontual desta ou daquela obra, e
estrutura, ajudando-nos a compreendê-la, a posição específica da crítica
de Graciliano Ramos no debate literário – que é também explicitamente
político – de seu tempo.
Comecemos pelo acordo. Em abril de 1937, o escritor alagoano
escreveria “Norte e sul”, um texto polêmico – tanto que acabou
merecendo resposta do próprio Octávio de Faria – que se assentava
na polarização entre autores de esquerda e direita, aqueles usualmente
referidos como do norte e estes do sul. Depois de afirmar que a geografia
nada teria com isso, lança: “O que há é que algumas pessoas gostam de
escrever sobre coisas que existem na realidade, outras preferem tratar de
fatos existentes na imaginação” (RAMOS, 1962, p. 138). Sua simpatia,
é evidente, fica com os primeiros. Aos segundos acusa de “inimigos da
36 Luís Bueno

vida”, acrescentando, mordaz: “Querem que se fabrique nos romances


um mundo diferente deste, uma confusa humanidade só de almas, cheias
de sofrimentos atrapalhados que o leitor comum não entende. Põem
essas almas longe da terra, soltas no espaço. Um espiritismo literário
excelente como tapeação” (RAMOS, 1962, p. 139).
Os termos em que o artigo se coloca são os que se esperavam
no momento, ou seja, colocando em um polo realidade e no outro,
imaginação –. No ano seguinte, Rodrigues Alves Filho lançaria um livro
sobre o tema que se chamaria exatamente O sociologismo e a imaginação no
romance brasileiro (1938), assim como, alguns anos antes, Gilberto Freyre
saudara os novos romancistas “do norte”, afirmando que seus livros se
caracterizavam por um “tom de reportagem social e quase sociológica”
(FREYRE, 1936, p. 15).
A resposta de Octávio de Faria também fica no campo do
esperado. Se a literatura que o autor de Mundos mortos apreciava fora
caracterizada de “espiritismo literário”, a que o autor de S. Bernardo
apreciava seria definida por ele como “obras de propaganda esquerdista,
de documentários sociológicos (“tendenciosos ou não”), de geografia
pitoresca” (FARIA, 1937, quarta seção, p. 1). Em suma, ambos negam
que o problema seja uma oposição entre norte e sul e reafirmam suas
posições em termos que, de maneira geral, eram familiares para quem
acompanhava o debate literário daqueles anos.
Acontece que, para além da provocação deste “Norte e sul”,
Graciliano Ramos utilizaria a proximidade com o real como uma espécie
de conceito ativo em sua crítica. E é possível transformá-lo em conceito
crítico porque sempre aparece aliado a outro elemento, este de estilo, de
arte literária: a escrita direta, concisa. Note-se que a economia verbal é
um ponto fundamental para ele – e, quase nem é preciso acrescentar,
marca de sua própria escrita. Com base nesse princípio, ele dirá sobre
Dinah Silveira de Queirós, em sua estreia com Floradas na serra: “a jovem
paulista não escreve bem” (RAMOS, 1962, p. 138). E cita um breve
período, de 18 palavras, extraído do livro, em que a preposição “para”
aparece cinco vezes.
“É o que Penso, Mas Talvez me Engane”: Notas sobre o Crítico Graciliano Ramos 37

A conexão entre proximidade ao real e concisão está na base de


um artigo publicado três meses depois de “Norte e sul” e dedicado a
um trabalho de Newton Freitas, “Porão”, acerca do qual dirá:

Newton Freitas conta uma história pavorosa em linguagem


simples. Alguns idiotas que admiram o palavreado ficarão
surpreendidos, mas a gente sensata achará nele a expressão justa
que produz emoção e convence.
Digamos que não se trata de literatura. Esta palavra no mundo
inteiro exprime qualquer coisa séria, mas aqui se acanalhou,
desgraçadamente. Porão é muito boa literatura, mas, para não
prejudicá-lo, convençamos o público de que é apenas reportagem
(RAMOS, 1962, p. 99).

Como se trata de história passada na cadeia, o crítico tem


experiência profunda e recente para atestar aquela ligação ao real ― “sou
um dos que podem atestar as misérias, as infâmias que aqui se praticaram
em 1936” (RAMOS, 1962, p. 99)―, sem, no entanto, que isso baste para
que o trabalho em análise possa ser considerado boa literatura. Isso só
foi alcançado pelo uso econômico da linguagem. E a ideia de “expressão
justa” ajuda a construir um conceito de economia verbal que recusa não
apenas as repetições de Dinah Silveira de Queirós, mas também os excessos
verbais de outra natureza. A isso ele se referirá repetidamente como
linguagem “campanuda”. Ele localizará esses excessos em Sezão, a versão
inicial de Sagarana, apresentada em concurso da José Olympio, no qual
atuara como jurado, e explicam seu voto contrário ao livro: “dois contos
e algumas páginas campanudas, entre elas uma que cheira a propaganda
de soro antiofídico, me deram arrepios” (RAMOS, 1962, p. 155).
Mas é preciso notar que o julgamento do que seja ou não
excesso não se restringe à mera contabilidade. Se aqui e ali Graciliano
chega a condenar o uso exagerado de adjetivos, é capaz também de
reconhecer no excesso um procedimento que pode ter sentido – em
outras considerações sobre Guimarães Rosa, agora em um artigo saído
na época da publicação de Sagarana, isso ficará bem claro – e, mais uma
vez, ser ligado à aproximação com o real:
38 Luís Bueno

Esse doloroso interesse de surpreender a realidade nos mais


leves pormenores induz o autor a certa dissipação naturalista
– movimentar, por exemplo, uma boiada com vinte adjetivos
mais ou menos desconhecidos do leitor, alargar-se talvez um
pouco nas descrições. Se isto é defeito, confesso que o defeito
me agrada (RAMOS, 1962, p. 252).

Como se nota perfeitamente aqui, a concisão não é um fetiche
para o escritor alagoano. É um caminho preferencial, mas que, às vezes,
pode não ser o mais adequado. Só uma visão, assim, aberta, é que pode
reconhecer no estilo de Guimarães Rosa – que certos críticos reputam
como o antípoda do seu próprio –, ao qual não repugna o excesso,
sentido e valor a algo que ele próprio enuncia como “defeito”. Graciliano
embirra é com a exposição gratuita de virtuosismo verbal, a ponto de
igualar escritores do passado e seus contemporâneos modernistas. É
sobre isso que ele se alongará nas considerações sobre o livro de contos
de Aurélio Buarque de Holanda, Dois mundos (1942):

Vistas, julgadas, condenadas com rigor e sem apelação


numerosas obras nacionais, decidiu-se que todas se achavam
redigidas em português direito – e isso se considerou uma das
razões da falência delas. Tornou-se a razão principal, chegou a
ser a razão única. […] Não se provou a ruindade completa dos
livros postos no índex. Alguns tinham páginas legíveis. Também
não se demonstrou existir neles ausência de incorreções. Vários
capengavam. Mas foram reputados inteiramente corretos – e
péssimos. Essas generalizações muitas vezes são indispensáveis,
quando alguém precisa defender tese difícil. Originou-se
uma certeza – e sobre ela se ergueu parte de nossa literatura
contemporânea. Liberdade. Carta de alforria. Abaixo o galego.
Os direitos do homem. Caímos no exagero. Desejando libertar-
nos, reforçamos a dependência escrevendo regularmente contra
as normas (RAMOS, 1962, p. 274).

Ao louvar a correção da escrita de Aurélio Buarque de Holanda,


que em seu entender tem “as palavras que o sentido requer, instaladas
nos lugares convenientes e com as flexões exigidas pela regra” (RAMOS,
“É o que Penso, Mas Talvez me Engane”: Notas sobre o Crítico Graciliano Ramos 39

1962, p. 274), o que ele faz é repelir o que lhe parece ser o puro jogo
formal – “enfeites”, para usar palavra que usa recorrentemente – sejam
eles de que tipo forem. Mas como com Graciliano Ramos nada é simples,
mesmo a noção de “correção” precisa ser vista com calma. A correção
de sua própria língua de romancista não afasta o uso de termos extraídos
da oralidade e mesmo dos palavrões. Ao justificar o voto dado ao conto
“Coração de D. Iaiá”, de José Carlos Borges, em um outro concurso de
contos, este promovido pelo jornal Dom Casmurro, o escritor irá tratar
do problema da ligação da literatura com o real por meio da noção de
verossimilhança. O conto é composto por uma sequência de cartas de
uma senhora que vive no interior, D. Iaiá, dirigidas ao filho, que estuda
no Recife e estaria namorando uma moça “mal falada”. Essas cartas são
escritas com o que poderíamos classificar como“correção”, mas também
com as “incorreções” da oralidade, tais como o uso do pronome reto no
lugar “inconveniente” de objeto – “Seu pai proibiu ele de ir tão cedo”
– ou a regência estropiada do pronome relativo – “Por que não estuda
muito aquela matéria que está com nota baixa?” (BORGES, 1939, p. 3).
Se Graciliano indica o conto como o primeiro colocado no
concurso é porque o considerou bom, e eis o que nos diz sobre sua
linguagem:

Se ele [o autor] nos exibisse os bilhetes dessa criatura com a


sua ortografia e a sua pontuação, a história seria horrorosa. A
redação não é da velha, mas parece-nos que é. A correspondência
tem, portanto, verossimilhança, uma verossimilhança obtida
à custa de repetições oportunas e dum vocabulário pequeno,
presumivelmente o que adotam as senhoras de escassos recursos
intelectuais e muita devoção. O sr. José Carlos Borges repetiu as
frases indispensáveis (RAMOS, 1962, p. 154).

Segundo ele, então, as incorreções, se cruamente reproduzidas,


redundariam em fracasso da narrativa. Ora, isso não implica que a forma
de se expressar do narrador tivesse que ser completamente aplainada
em nome da correção, alçada a critério absoluto. Se isso fosse feito, o
pacto com o real, a verossimilhança, estaria quebrado e a história seria
40 Luís Bueno

“horrível” por outro motivo. O compromisso entre as duas coisas –


correção e concisão de um lado, ligação ao real por outro – é o que
garantiu o voto de Graciliano Ramos a esse conto.
O apego ao real, para ele, portanto, não se confunde com o
fetiche documental, como Octávio de Faria poderia fazer crer, ou
com fanatismo de grupo político ou literário. Trata-se, isso sim,
de uma forma radical de encarar a literatura e a seriedade da tarefa
do escritor. Há em Graciliano Ramos uma consciência profunda
da responsabilidade que têm aqueles que se dedicam à literatura.
Essa consciência se manifesta em um de seus mais contundentes
artigos, “Decadência do romance brasileiro”, em que ele denunciará
o acomodamento dos escritores brasileiros no início dos anos 1940,
exatamente dos que lhe eram mais próximos: Rachel de Queiroz, Jorge
Amado, José Lins do Rego e Amando Fontes. A provocação, que em
“Norte e sul”, visava aos escritores “do sul”, agora se volta para os do
“norte”. Quem lê sua produção crítica em ordem cronológica pode
se surpreender com os julgamentos ali expressos.
Em 1937, ele se espantara com os ataques que o romance
Caminho de pedras, de Rachel de Queiroz, recebera na imprensa.4 E
publica um artigo elogioso sobre o livro, em que ataca “os figurões
gordos” – que se identificam com os “inimigos da vida” de “Norte e
sul” (RAMOS, 1962, p. 141-142.). Da mesma maneira, em um artigo
sobre Oswald de Andrade, compara o escritor paulista a José Lins
do Rego, e fecha o texto com uma referência elogiosa a Riacho Doce:
“José Lins nunca foi à Suécia, creio eu. Entretanto é na Suécia que se
localiza a primeira parte do seu último livro, um romance magnífico”
(RAMOS, 1962, p. 168).
Em 1941, esses livros aparecerão sob uma ótica muito diferente
em “Decadência do romance brasileiro”. Aqui, a questão não é mais a
de formar corpo contra uma visão de literatura localizada como oposta
ou incompatível – que aqui tipificamos grosseiramente em Octávio de
4
“Uns sujeitos desconhecidos têm atacado estupidamente o Caminho de Pedras. Ainda ontem O
Jornaltrouxe uma coisa besta que tentava escangalhar esse livro, uma opinião integraloide como a
de Sucupira” (RAMOS, 1994, p. 187).
“É o que Penso, Mas Talvez me Engane”: Notas sobre o Crítico Graciliano Ramos 41

Faria –, mas a de incitar os confrades que enfileiravam com ele a retomar


algo que haviam perdido. Neste novo contexto, então, o julgamento
muda. Caminho de pedras é descrito como “livro demagógico. Tem
partes excelentes – a morte de uma criança, o monólogo de uma
criatura que deixa o marido – mas quase sempre é intencional e frio”
(RAMOS, 2012, p. 264). Já o romance de José Lins do Rego seria
criticado exatamente por aquilo que fora elogiado: “a primeira parte
de Riacho Doce passa-se toda na Suécia. Embrenhando-se nessas regiões
desconhecidas, José Lins do Rego repetiu muito do que já havia dito”
(RAMOS, 2012, p. 265).
A explicação para essa mudança de opinião vem daquilo que ele
descreve, no fecho do artigo, como um enorme recuo desses confrades:

Os nossos melhores romancistas viviam na província, miúdos


e isentos de ambição. Contaram o que viram, o que ouviram,
sem imaginar êxitos excessivos. Subiram muito – e devem sentir-
se vexados por terem sido tão sinceros. […] Não conseguem
recobrar a pureza e a coragem primitivas. Transformaram-se.
Foram transformados. Sabem que a linguagem que adotavam
não convém. Calam-se. Não tinham nenhuma disciplina, nem
na gramática, nem na política. Diziam às vezes coisas absurdas
– e excelentes. Já não fazem isso (RAMOS, 2012, p. 266-267).

Linguagem e posição ideológica se mesclam. As “inconveniências”


e a indisciplina seriam sim necessárias, tanto as políticas quanto as
gramaticais – o “absurdo” estaria mesmo na base da excelência desses
escritores, e era isso que espantava os tais “senhores gordos”. O
problema de Caminho de pedras e Riacho doce residiria na artificialidade
de sua construção, baseada em um posicionamento político prévio, no
caso de Rachel de Queiroz, ou em algo que pertence a uma realidade à
qual não pertence o autor, no caso de José Lins, seja essa realidade qual
for a realidade sueca, por exemplo. A aproximação com o real, para ele,
tinha de ser orgânica.
E, tratando disso, já estamos com um pé dentro daquele desacordo
em relação ao que em geral os intelectuais de esquerda consideravam
42 Luís Bueno

bom romance. A existência desse desacordo fica clara nos dois primeiros
artigos críticos que publica sobre seus companheiros de geração. Em
1934, ao tratar de Doidinho, ele deixará claro que a objetividade não é
sinônimo de qualidade:

O que há é que no primeiro, o Menino de engenho celebradíssimo,


existem descrições que poderiam desaparecer sem desvantagem,
uma queimada e uma enchente por exemplo, bem feitas, mas
que já foram exploradas por literatos de outras épocas, o finado
José de Alencar e o finado Graça Aranha inclusive. Esta opinião
não tem importância. De ordinário o que se julga melhor no
romance é exatamente a parte objetiva, e é provável que essas
duas tiradas, ricas em minudências, semelhantes às fotografias
que Balzac e os realistas aproveitaram, hajam concorrido para
tornar Menino de engenho uma história admirada por toda a gente.
A verdade é que o Sr. Lins do Rego não precisa recorrer ao
pitoresco para dar vida às suas criações. Nesse Doidinho excelente
não há excesso de tintas. As coisas não nos aparecem como são
(e quem sabe lá como são as coisas?), mas como o personagem
principal as vê. Esse personagem, sujeito inteligente e com um
parafuso frouxo, transmite-nos ampliados e interessantes os fatos
mais corriqueiros (RAMOS, 2012, p. 134-135).

Muito ao contrário. A excelência de Doidinho está no filtro


subjetivo que apresenta os fatos ao leitor. Em uma palavra: a
introspecção. O que dá sustentação ao romance é a subjetividade
das personagens, e não as peripécias que vivem; a realidade que elas
veem e sentem, e não uma realidade objetiva com valor absoluto que
independe do indivíduo.
O mesmo se revela na apreciação de Suor, feita no início de 1935.
É bem verdade que a realidade observada e vivida pelo escritor em um
casarão da ladeira do Pelourinho, em Salvador, será fundamental, na
visão de Graciliano Ramos, para o bom resultado que o livro atinge, já
que ele inicia suas considerações tratando de “uma literatura antipática
e insincera, que só usa expressões corretas, só se ocupa de coisas
agradáveis” (RAMOS, 1962, p. 94), à qual Jorge Amado se oporia, e
“É o que Penso, Mas Talvez me Engane”: Notas sobre o Crítico Graciliano Ramos 43

termina o artigo dizendo que em “Suor há um personagem de carne e


osso muito mais importante que os outros; é Jorge Amado, que morou
na ladeira do Pelourinho, 68 e lá conheceu Maria Cabassu e todos
aqueles seres estragados que lhe forneceram material para um excelente
romance” (RAMOS, 1962, p. 98).Mas, por outro lado, combate a visão do
próprio Jorge Amado – que, naquela altura, pode ser considerada a visão
privilegiada do que seria o romance da esquerda no Brasil – segundo a
qual o romance novo, proletário, aboliria o herói para poder tratar dos
movimentos coletivos.5 Diria Graciliano:

O Sr. Jorge Amado tem dito várias vezes que o romance


moderno vai suprimir o personagem, matar o indivíduo. O que
interessa é o grupo – uma cidade inteira, um colégio, uma fábrica,
um engenho de açúcar. Se isso fosse verdade, os romancistas
ficariam em grande atrapalhação. Toda a análise introspectiva
desapareceria. A obra ganharia em superfície, perderia em
profundidade.
Ora, em Suor há personagens, personagens pouco numerosos
(RAMOS, 1962, p. 97).

Mais uma vez, o que o escritor enxerga como excelência vem
da exploração da psicologia individual, dos personagens isolados em
seus quartos e não da totalidade dos habitantes do casarão, no caso
de Suor. Em um tempo em que a oposição entre norte e sul também
era a oposição entre literatura social e literatura psicológica, pode-se
ver claramente que Graciliano Ramos não se sente à vontade para
excluir nem uma coisa nem outra. Sim, a realidade precisa estar na
base do romance. Mas o que é a realidade no romance? É aquilo que o
personagem percebe individualmente como realidade. Não há realidade
fora do indivíduo, ou seja, não há separação entre realidade objetiva e
subjetividade. Todos os esforços no sentido de manter essa separação
serão inúteis, gerarão obras falhas.
É exatamente por isso que aquele “Porão”, de Newton Freitas, é
boa literatura, por ser realidade vivida. Ao mesmo tempo, falta-lhe algo:
Ver: Amado (1933, p. 292). Neste artigo ele sumariza sua concepção de romance proletário.
5
44 Luís Bueno

O autor só nos mostra a parte externa dos indivíduos. As suas


personagens andam bem, falam, mexem-se. Notamos os seus
movimentos e vemos onde elas pisam, mas não percebemos o
interior delas. […] Seria preferível que, em vez de vermos um
soldado empurrando brutalmente os presos por uma escada,
com o cano de uma pistola, sentíssemos as reações que o soldado,
a pistola e a escada provocaram na mente dos prisioneiros. Tendo
da multidão que nos descreve uma visão puramente objetiva,
Newton esgotou o assunto depressa, e a narrativa saiu curta
(RAMOS, 1962, p. 100-101).

A literatura de ficção não se realiza plenamente sem que a


psicologia individual se desenvolva – é isso que Graciliano Ramos afirma
aqui com todas as letras.
Ora, Octávio de Faria enjoou de fazer afirmações compatíveis
com essa, de repetir que o verdadeiro romance, para ele, teria uma
profundidade que não pode ser entendida como outra coisa que não
densidade psicológica. Ocorre, no entanto, que, para o romancista da
Tragédia burguesa, o que define essa densidade psicológica é um grande
conflito moral em que vive o sujeito moderno, dividido entre o apelo
de Deus e o da carne, entre o espírito que quer viver a mensagem de
Cristo e o apego ao prazer terreno. Ele chega a criar dois personagens
que tipificam essas tendências, Branco e Pedro Borges, cuja luta dá corpo
ao seu romance cíclico.
E, para Graciliano Ramos, de onde viria essa profundidade
psicológica? Em mais um curto-circuito conceitual que seu pensamento
crítico nos propõe, ela viria da própria realidade. E isso ele explicita em
um artigo tardio, considerando sua pequena produção crítica, publicado
apenas em dezembro de 1945: “O fator econômico no romance
brasileiro”. Este texto se abre com uma afirmação bastante direta e
incisiva: “a leitura dos romances brasileiros, até dos melhores, quase
sempre nos dá a impressão de que os nossos escritores não conseguem
fazer senão trabalhos incompletos” (RAMOS, 1962, p. 256). Essa
incompletude viria da ignorância de “tudo quanto se refere à economia”
(RAMOS, 1962, p. 256).
“É o que Penso, Mas Talvez me Engane”: Notas sobre o Crítico Graciliano Ramos 45

Isso, é claro, afetaria os romances “espiritualistas”, em que se


veriam dramas imotivados: “Ignoramos, porém, se os sofrimentos
daqueles homens requintados têm uma origem puramente religiosa
ou se eles criam desgostos por falta de ocupação” (RAMOS, 1962, p.
258). Segundo ele, isso se dá porque “alguns escritores se habituam a
utilizar em romance apenas coisas de natureza subjetiva” (RAMOS,
1962, p. 259).
Mas não só. Essa incompletude também marcaria presença na
literatura voltada para a realidade social brasileira, e aqui mais uma vez, ele
não teria pudor em apontar o dedo para seus confrades mais próximos,
como Jorge Amado: “em Jubiabá mexe-se uma gente vagabunda, que vive
de pequenos furtos e contrabandos. O trabalho aparece aí quase como
um prazer e torna meio inconsequente esse livro notável” (RAMOS,
1962, p. 258).
Ninguém se salva.6 E isso acontece porque, se é preciso ir além
da subjetividade, o dado objetivo também é insuficiente. Repugna-lhe
a explicação apressada, fruto do senso comum: “dizer que um ato
reprovável foi praticado porque o seu autor obedeceu a um impulso
irresistível é pouco: isso satisfaz o leitor de notas policiais” (RAMOS,
1962, p. 261). O que seria necessário fazer, então? A resposta que dá
é a seguinte: “romanceando, por exemplo, o crime e a loucura, está
visto que ele [o romancista] deve visitar os seus heróis na cadeia e no
hospício, mas se quiser realizar obra completa, precisa conhecê-los antes
de chegar aí, acompanhá-los na fábrica ou na loja, no escritório ou no
campo de plantação” (RAMOS, 1962, p. 261). Afinal, “a obrigação do
romancista não é condenar nem perdoar a malvadez: é analisá-la, explicá-
la” (RAMOS, 1962, p. 261-262).
Registrar os atos das personagens é apenas parte da tarefa. É
preciso descobrir-lhes as motivações, capturar aquilo que lhes deu
origem. Um dado indivíduo pode ser malvado, criminoso ou louco.
Mas o que o levou a isso? Graciliano indica que a resposta está na vida
6
Note-se, de passagem, que não seria falha exclusiva dos autores brasileiros, e ele o aponta até
mesmo em Dostoiévski, que teria feito, em Crime e castigo, Svidrigailoff suicidar-se “expressamente
com o fim de deixar alguns milhares de rublos àquela gente [Raskolnikoff e a irmã, Sônia e o resto
da família do bêbedo] sem recursos” (RAMOS, 1962, p. 260).
46 Luís Bueno

cotidiana, em que esses indivíduos se veem apertados pelo patrão e


pelas dívidas. O romance se funda no real, que, por sua vez, funda-se
na psicologia individual que, fechando o circuito, funda-se novamente
no real. Essa concepção revela inequivocamente o credo marxista
do escritor, sua confiança em uma base econômica objetiva para os
dramas humanos. Não podemos, todavia, esquecer que o crítico deste
artigo é o mesmo que duvida constantemente do dado objetivo e
chegou a se perguntar “quem sabe lá como as coisas são?” (RAMOS,
2012, p. 135).
Revela, sobretudo, uma percepção muito fina de que o romance
é um gênero que só se realiza plenamente quando se detém sobre
o indivíduo e captura, dentro dele, como aquela base econômica é
percebida e se transforma em motor para atos concretos, os quais,
sozinha, a base econômica seria incapaz de produzir. Assim, não há
propriamente oposição, para retomar os termos utilizados em “Norte
e sul”, entre “coisas que existem na realidade” e “fatos existentes na
imaginação”. Os escritores não estão obrigados a optar por umas
ou pelos outros. Ou, antes, não devem fazê-lo. Necessitam é de um
compromisso entre esses elementos que um contexto específico de
luta política e literária no Brasil alojou em lugares opostos. Em outras
palavras, o necessário é que a imaginação opere sobre uma base sólida de
experiência, que tenha os pés fortemente plantados na realidade. Assumir
a responsabilidade como artista, para o crítico e para o romancista
Graciliano Ramos, vem desse gesto complexo que é uma visão sobre a
sociedade e é uma visão sobre a arte.

Referências

ALVES FILHO, F. M. Rodrigues. O sociologismo e a imaginação no romance


brasileiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.

AMADO, Jorge. P. S. Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, v. 2, n. 11, p. 292,


ago. 1933.
“É o que Penso, Mas Talvez me Engane”: Notas sobre o Crítico Graciliano Ramos 47

BORGES, José Carlos Cavalcanti. Coração de d. Iaiá. Dom Casmurro,


Rio de Janeiro, p. 3, 15 jul. 1939.

FARIA, Octávio de. O defunto se levanta. O Jornal, Rio de Janeiro, 30


maio 1937, quarta seção, p. 1.

FREYRE, Gilberto. Sociologia e literatura. Lanterna Verde, Rio de Janeiro,


n. 4, p. 15, nov. 1936.

LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas


Cidades, 1974.

MAIA, Pedro Moacir. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores


argentinos Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Salvador: Edufba, 2008.

RAMOS, Graciliano. Cartas. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 1994.

RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. São Paulo: Martins, 1962.

RAMOS, Graciliano. Garranchos. Organização de Thiago Mio Salla. Rio


de Janeiro: Record, 2012.
Floema - Ano IX, n. 11, p. 49-60, jul./dez. 2015.

O Espaço na Construção de Angústia

Elizabeth Ramos1

Resumo: Angústia, terceiro romance de Graciliano Ramos, foi publicado em


agosto de 1936. O sentimento que dá título à obra reflete a própria inquietação
do autor perseguido pela ditadura getulista, conforme registrado no seu Memórias
do cárcere, livro que começa a compor dez anos após libertado da prisão. A
tessitura da narrativa do romance e a construção do crescente sentimento de
angústia se dão a partir da visão de mundo do personagem central, Luís da
Silva, das repetições e introspecção, além do espaço degradado que sufoca e
aflige o leitor.

Palavras-chave: Graciliano Ramos. Angústia. Espaço.

Abstract: Angústia, Graciliano Ramos’s third novel was published in Brazil, in


August 1936. The feeling, which gives title to the book, reflects the author’s own
uneasiness resulted from the Vargas’s dictatorship persecution, as conveyed in
his Memórias do cárcere, work which Graciliano begins ten years after being set
free from prison. The knitting of the novel’s narrative and the growing feeling
of anguish are set from the perspective of the protagonist Luís da Silva, as
well as by the use of repetitions, introspection and the degraded spaces which
suffocate and afflict the reader.

Keywords: Graciliano Ramos. Anguish. Space.

Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos.


(Graciliano Ramos, Angústia)

1
Professora da Universidade Federal da Bahia. Organizou, ao lado de Erwin Torralbo, a edição
comemorativa dos 80 anos de Caetés (2013). Pesquisa atualmente as diferentes traduções do romance
São Bernardo, de Graciliano Ramos.
50 Elizabeth Ramos

1 Memórias de angústia

O panorama político do Brasil, entre 1935 e 36, move a urdidura


de Angústia, terceiro romance de Graciliano Ramos. A inquietude gerada
pela opressão imposta pela ditadura getulista e pelas perseguições,
ameaças veladas e insultos, dos quais o autor se via alvo, possibilitam a
construção quase catártica da obra.

No começo de 1936, funcionário na instrução pública de


Alagoas, tive a notícia de que misteriosos telefonemas, com
veladas ameaças, me procuravam o endereço. Desprezei as
ameaças: ordinariamente o indivíduo que tenciona ofender outro
não o avisa. Mas os telefonemas continuaram. Mandei responder
que me achava na repartição diariamente, das nove horas ao
meio-dia, das duas às cinco da tarde. Não era o que pretendiam.
Nada de requerimentos: queriam visitar-me em casa. Pedi que
não me transmitissem mais essas tolices, com certeza picuinhas
de algum inimigo débil, e esqueci-me: nem um minuto supus
que tivessem cunho oficial (RAMOS, 2008, p. 17).

É, portanto, em um espaço permeado por perseguições, delações


e apatia intelectual que Angústia é tecido com as fibras da convicção do
autor de que “só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos,
a nossa vida” (RAMOS, 2011b, p. 293). Assim, o abafamento, a
insegurança, a falta de humor, o ressentimento, a dor e a ferida
psicológica diante da antecipação da prisão do escritor são injetados no
protagonista Luís da Silva, confirmando a opinião do Velho Graça de
que “as nossas personagens são pedaços de nós mesmos”.

No dia seguinte, 3 de março, entreguei pela manhã os originais


a d. Jeni, datilógrafa. Ao meio-dia uma parenta me visitou – e
este caso insignificante exerceu grande influência na minha vida,
talvez haja desviado o curso dela. Essa pessoa indiscreta deu-me
conselhos e aludiu a crimes vários praticados por mim. Agradeci
e pedi-lhe que me denunciasse, caso ainda não o tivesse feito. A
criatura respondeu-me com quatro pedras na mão e retirou-se.
[...] Nesse ponto surgiu Luccarini. Entrou sem pedir licença,
O Espaço na Construção de Angústia 51

atarantado, cochichou rapidamente que iriam prender-me [...]


(RAMOS, 2008, p. 23).

Os registros da inquietação de Graciliano, só bem mais tarde, dez


anos após ser posto em liberdade – foram organizados quando do início
da composição de Memórias do cárcere, obra publicada postumamente,
em 1953, que constrói com Angústia estreita relação intertextual. As
reflexões do autor durante o período em que se vê preso possibilitam
ao estudioso fazer a arqueologia da construção e da sua relação com
o romance, associando o sentimento de angústia às experiências
extremamente difíceis vivenciadas pelo Velho Graça, antes e durante a
supressão da sua liberdade.
Na data em que entregou à datilógrafa os manuscritos de Angústia,
ainda bastante sapecados, Graciliano Ramos foi preso. Era dia 3 de
março de 1936.

Na casinha da Pajuçara fiquei até a madrugada consertando as


últimas páginas do romance. Os consertos não me satisfaziam:
indispensável recopiar tudo, suprimir as repetições excessivas.
Alguns capítulos não me pareciam muito ruins, e isto fazia que
os defeitos medonhos avultassem. O meu Luís da Silva era um
falastrão, vivia a badalar à toa reminiscências da infância, vendo
cordas em toda a parte. Aquele assassinato, realizado em vinte
e sete dias de esforço, com razoável gasto de café e aguardente,
dava-me impressão de falsidade. Realmente eu era um assassino
bem chinfrim. O delírio final se atamancara numa noite, e
fervilhava de redundâncias. Enfim não era impossível canalizar
esses derramamentos. O diabo é que no livro abundavam
desconexões, talvez irremediáveis. Necessário ainda suar muito
para minorar as falhas evidentes (RAMOS, 2008, p. 21-22).

Na rememoração do passado em suas Memórias, Graciliano vê-se


sentado à mesa, escrevendo o longo capítulo do assassinato.

[...] vinte e sete dias de esforço para matar uma personagem,


amarrar-lhe o pescoço, elevá-la a uma árvore, dar-lhe aparência
de suicídio. Esse crime extenso enjoava-me. Necessário os
52 Elizabeth Ramos

excitantes para concluí-lo. O maço de cigarros ao alcance da


mão, o café e a aguardente em cima do aparador. Estirava-me às
vezes pela madrugada, queria abandonar a tarefa e obstinava-me
nela, as ideias a pingar mesquinhas, as mãos trêmulas. Rumor das
ondas, do vento. Pela janela aberta entravam folhas secas, um
sopro salgado; a enorme folhagem de um sapotizeiro escurecia
o quintal (RAMOS, 2008, p. 166).

Na noite daquele início de março, um carro parou diante da


porta de sua casa, e um oficial do exército cumpriu a ordem de levar
preso o escritor. Começava a série de deslocamentos involuntários, que
durariam quase um ano: um quartel em Maceió, outro em Recife, a
viagem que o transportou como se fosse gado, em um ambiente fétido
sob temperatura de caldeira no porão do navio Manaus, o presídio Frei
Caneca no Rio de Janeiro, a Colônia Penal da Ilha Grande, a Casa de
Correção da penitenciária carioca.

Provavelmente não havia lugar para nós [os presos políticos],


éramos fantasmas, rolaríamos de cárcere em cárcere,
findaríamos num campo de concentração. Nenhuma utilidade
representávamos na ordem nova. Se nos largassem, vagaríamos
tristes, inofensivos e desocupados, farrapos vivos, velhos
prematuros; desejaríamos enlouquecer, recolher-nos ao hospício
ou ter coragem de amarrar uma corda ao pescoço e dar o
mergulho decisivo (RAMOS, 2008, p. 160-161).

No Pavilhão dos Primários, já no Rio de Janeiro, Graciliano


recebeu de Rodolfo Ghioldi o recado de Jorge Amado, com quem havia
se encontrado na sala de detidos da Polícia Central: o editor José Olímpio
oferecia a publicação de Angústia, com direito a adiantamento de valores.
O entusiasmo inicial se esvaiu, pois o lançamento do romance parecia
leviandade aos olhos do seu autor.

Havia nele muito defeito, eram precisos cortes e emendas sem


conta. Sem falar em mutilações e enganos infalíveis, cometidos
pela datilógrafa. Indispensável examinar, rever tudo, comparar
o original à cópia. Eu nem sabia onde paravam essas coisas
O Espaço na Construção de Angústia 53

enterradas em algum buraco de Alagoas; talvez já nem existissem:


uma denúncia anônima as teria revelado, jogado ao fogo. Não
me preocupava em demasia a perda, realmente pequena. Se
o livro se salvasse, ocupar-me-ia mais tarde em corrigi-lo,
sobretudo amputar-lhe numerosas excrescências. Antes disso,
consideravam-nos objeto de comércio, desejavam transformá-lo
em dinheiro (RAMOS, 2008, p. 247-248).

Cinco meses após a prisão, em agosto do mesmo ano, o romance


foi publicado. Na ocasião, o autor continuava ‘hóspede’ da repressão na
Casa de Correção, mais especificamente, na enfermaria da penitenciária
Frei Caneca, no Rio de Janeiro.

Enfim o romance encrencado veio a lume, brochura feia de


capa azul. A tiragem, de dois milheiros, rendia-me um conto e
quatrocentos e esta ninharia ainda significava para mim grande
vantagem. [...] A leitura me revelou coisas medonhas: pontuação
errada, lacunas, trocas horríveis de palavras. A datilógrafa,
o linotipista e o revisor tinham feito no livro sérios estragos
(RAMOS, 2008, p. 612).

Para Graciliano, anunciava-se um enterro. Um enterro literário.


Não se venderiam cem cópias do Angústia.

2 Angústia: catarse da memória

Como nos entram na cabeça maluqueiras semelhantes? Queremos


extingui-las, voltar a ser viventes normais, e as miseráveis insistem.
(Graciliano Ramos, Memórias do cárcere)

Em face das perturbações, mudanças, perseguições e encrencas de


todo gênero, o escritor passou a nutrir sentimento de repugnância morna
e indeterminada pelo seu estado natal. Narrado em primeira pessoa,
Angústia recria, nos espaços ficcionalizados, a agonia de seu autor – “Não
me acusavam, suprimiam-me” (RAMOS, 2008, p. 31) – suplementada
na reflexão do narrador do romance que vive na cidade grande e quente,
sem plantas e sem trabalho, com calçadas ocupadas por corpos que
54 Elizabeth Ramos

iam e vinham, sem despertarem interesse uns nos outros. “Falta-me


tranquilidade, falta-me inocência, estou feito um molambo que a cidade
puiu demais e sujou”. No espaço urbano desprovido da cordialidade, o
homem solitário não consegue encontrar a voz do acolhimento.
Como acreditava que “arte é sangue, é carne” e que “além disso
não há nada” (RAMOS, 2011b, p. 293), Graciliano desloca para Maceió
o lócus ficcional do seu terceiro romance que deixa de ser um mero
espaço geográfico, para se tornar metáfora da degradação: “Romance
desagradável, abafado, ambiente sujo, povoado de ratos, cheio de
podridões, de lixo” (RAMOS, 2008, p. 250).
No âmbito do espaço, o desassossego adquire valor simbólico
e catártico – “Só me abalanço a expor a coisa observada e sentida”
(RAMOS, 2008, p. 41) – permeando as articulações, as experiências e
os valores sociais recriados por meio dos personagens. Informações
históricas e sociais são, assim, suplementadas pela ficção e desdobradas
no imaginário do leitor a partir da miséria física, onde se insere e desfila
a miséria humana.

Diante da igreja, nos bancos da praça miúda, gente esquisita:


homens sujos, mulheres sem companhia. E crianças abandonadas
pelos cantos. Cochilos, palavrões, descontentamento, frases
incendiárias. Na calçada estreita da igreja as crianças abandonadas
apinhavam-se. Automóveis parados, chauffeurs adormecidos,
vagabundos, exposição de prostitutas à entrada da rua da Lama
(RAMOS, 2011a, p. 105).

Tempo e espaço são articulados por meio das idas, vindas e da


introspecção presentes na narrativa. Luís da Silva, importunado pelos
defuntos e acontecimentos antigos, conduz o leitor a reconstruir uma
história de abandono e solidão de um personagem que sempre brincou
só, habitou-se a viver em chiqueiros, cresceu entre redes encardidas, que
fediam a bode, em uma casa de fazenda onde o cupim roía os mourões
do curral e os caibros da casa, onde os bichos bodejavam no chiqueiro,
o gado mostrava-se escuro de carrapatos, o cavalo era lazarento e os
O Espaço na Construção de Angústia 55

bodes definhavam na morrinha. O silêncio incômodo e a solidão, que


envolviam o menino Luís, forçavam-no a tossir, para que se convencesse
de que não era surdo.
A decadência da família transmitia-se ao longo das gerações: o
avô Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, fazendeiro falido e
bebedor inveterado de cachaça; o pai, reduzido a Camilo Pereira da
Silva, que passava dias inteiros refestelado em uma rede, ignorando o
esfacelamento da terra, do gado, da casa, do mundo que o cercava; e ele,
meramente Luís da Silva, que crescera besta e mofino, um funcionário
público, arremedo de jornalista, revisor e escritor, “raça de cachorro
com porco”, como pregava o padre aos matutos.

A cada momento as intervenções subversivas da memória rural


do personagem fazem a linearidade impulsiva da memória
urbana explodir, redirecionando-a para o passado remoto. Em
outras palavras: a lembrança dos acontecimentos recentes na
capital é alicerçada e, ao mesmo tempo, quebrada e explicada
pela lembrança de acontecimentos e de figuras humanas do
antigo mundo sertanejo, dominado pelos coronéis (SANTIAGO,
2009, p. 290).

As lembranças do narrador conduzem o leitor ao velório de


Camilo Pereira da Silva, cujo corpo, coberto por um lençol branco,
pequeno para o defunto, exibia pés enormes, sujos, cheios de calos.
Moscas cobriam a mancha de sangue na altura do rosto. Luís, então
com catorze anos, abandonado e assustado, sentia frio e pena de si,
temendo o que teria que suportar sozinho no mundo. A casa não era
sua, o defunto não era seu, ninguém o percebia. A morte do pai não
o fazia chorar. Foi o cuidado de Rosenda, ao trazer-lhe uma xícara de
café, que o levou a “soluçar como um desgraçado”.
Os sentimentos de abandono, autopiedade, medo e insignificância
irão, pois, marcar o protagonista ao longo da narrativa.
Para Gaston Bachelard (1978, p. 201), “pelos sonhos, as diversas
moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias
antigos”. No entanto, a vida de Luís da Silva não tem moradas onde
56 Elizabeth Ramos

possam ser guardados tesouros de dias antigos, pelo simples fato de não
haver tesouros. Do passado, a lembrança acumula apenas monturo. O
espaço que o protagonista adulto habita reflete o abandono dos tempos
idos. Inexiste o conforto das lembranças de proteção. Confirmam-se as
mesmas tonalidades do espaço da infância e da juventude que, quando
evocado, acrescenta valor de pesadelo à existência de Luís da Silva. Não
há poesia perdida. Os primeiros espaços do narrador não se perdem,
vivem e insistem em reviver em sua imaginação e na sua visão de mundo,
com o poder de desencadear a desintegração.
Aos trinta e cinco anos de idade, apesar de admitir que os lugares
onde vivera tinham influenciado o seu caráter, Luís da Silva afirma que a
casa onde moramos não tem importância grande demais. Seu horizonte
é o quintal da casa à direita, com roseiras acanhadas e rosas miúdas,
monturo, água parada e fétida. Tudo feio, pobre, sujo.

Fico de pé, encostado à mesa da sala de jantar, olhando a janela,


a porta aberta, os degraus de cimento que dão para o quintal.
Água estagnada, lixo, o canteiro de alfaces amarelas, a sombra
da mangueira. Por cima do muro baixo ao fundo veem-se pipas,
montes de cisco e cacos de vidro, um homem triste que enche
dornas sob um telheiro, uma mulher magra que lava garrafas
(RAMOS, 2011a, p. 34).

No café, um espaço de dez metros no centro da cidade, Luís da


Silva passa uma hora diariamente. Ali, sentado à mesa, junto à vitrine
dos cigarros, encolhido perto da porta, distrai-se observando a conversa
dos médicos, advogados, comerciantes, políticos, desembargadores.
Conversa com Moisés, sujeito bom e inteligente, que se interessa pelas
histórias sobre a sua terra, o sofrimento dos flagelados, a tragédia das
secas, picha muros, distribui folhetos incendiários, calando-se apenas
quando o chefe de polícia aparece para cochichar. Graciliano traz o
personagem de Maceió para a ficção a partir de Jacob, judeu encarregado
de receber as prestações na venda do tio e que talvez estivesse preso
como ativista da Juventude Comunista. Tanto quanto o escritor, o
O Espaço na Construção de Angústia 57

personagem não considera repugnante a ideia de fuzilar um proprietário,


por ser proprietário (RAMOS, 2008, p. 25).
No café, aparece também o gordo Julião Tavares, sujeito inútil,
que vestia casacas, falava alto, era amável em demasia e contava lorotas,
“um parasita burguês de discurso empolado e arrogância de pavão, [...]
resumo de tudo o que oprime Luís: o dinheiro fácil, o berço de ouro, a
convivência social, a mediocridade intelectual, o poder de corromper e
sair ileso” (PÓLVORA, 1992), atributos que justificam seu assassinato.
O sentimento do escritor, mais uma vez, confunde-se com a
angústia do narrador, ambos solitários. Vivente de espaços desprezíveis,
onde tempo e lugar se confundem, Luís da Silva vê o dia “dividido em
quatro partes desiguais: uma parede, uma cama estreita, alguns metros de
tijolo, outra parede” (RAMOS, 2011a, p. 222). O narrador protagonista
carrega na casa em que vive os demônios domésticos da juventude. Nela
repete os pesadelos que permanecem, mesmo quando as terras do Cavalo
Morto já não mais existem. Repetem-se nos espaços do presente o tédio,
a solidão e o abandono que jamais se apagarão e são revividos no delírio
final do romance. As lembranças dos lugares habitados no passado e
revisitados no presente dão a Luís da Silva a sensação de instabilidade.
Repetições de representações angustiantes do espaço, no sentido
amplo, intensificam a sensação de inquietude ao longo do ato de leitura.
As imagens recorrentes da cascavel enrolada ao pescoço do avô, de
seu Evaristo enforcado, da corda recebida como presente de seu Ivo,
do afogamento nas lições de natação dadas por seu pai parecem ter o
objetivo de sufocar o leitor, tirar-lhe o ar. As repetições excessivas que
incomodavam Graciliano concorrem, portanto, para acirrar a angústia.
Em resenha publicada no Boletim de Ariel, em novembro de 1936,
Jorge Amado escreve:

Sei de alguém que não conseguiu passar da página 30 desse


romance com medo de enlouquecer. E esse é o maior elogio que
pode ser feito ao romancista que descreve exatamente o processo
interior que leva um pobre funcionário público ao assassinato
e ao delírio. Mais uma vez eu quero dizer aqui uma coisa que já
58 Elizabeth Ramos

escrevi a respeito de Graciliano Ramos: os romancistas em geral


nos dão diversas sensações fortes ou amáveis: nos comovem, por
vezes nos fazem chorar, nos revoltam, nos põem melancólicos,
enfim, fazem muita coisa. Porém, o romancista de Angústia
nos arranca o estômago. Nos põe meio-alucinados, doentes,
enraivecidos, nervosos. Todas as sensações juntas ele nos dá. Aí
é que está a sua força (AMADO, 1936, p. 42-3).

Associam-se aos traços estilísticos da obra, estampas de


degradação: a pobreza, as excrescências, a falta de beleza. Tudo parece
sujo: o quintal com o esgoto aberto; os canteiros murchos, os ratos que
não sossegavam na casa cheia de pulgas e que roíam, sem escrúpulo,
a madeira do guarda-comida, destruindo manuscritos, mijando-lhe a
literatura, enterrando sonetos em um cemitério de roedores putrefatos.
Ao ser aberto, do móvel saltavam três ou quatros ratos, que logo
escapavam pelos buracos da parede. Voltavam, em seguida, ruidosos,
silenciando somente quando encontravam pedaços de miolo de pão
espalhados pela sala. Assim, o armário, compreendido por Bachelard
(1978) como espaço interior poético de intimidade, é, em Angústia,
destituído do seu caráter de centro de ordem e harmonia que protege
a casa da desordem.
Angústia é construído sob o signo da morte, da ruptura, da perda,
do decadente, signos constantemente marcados pela repetição de fatos
que o narrador julga não terem qualquer relação com as coisas que o
cercam. A vida monótona do protagonista puído pelo espaço urbano, que
observa e se reflete no homem triste que enche dornas sob um telheiro,
uma mulher magra que lava garrafas – mesma cena que Graciliano
via a bocejar pela janela, quando trabalhava na Imprensa Oficial de
Alagoas (RAMOS, 2008, p. 36) – nas criaturas que não suporta, como
Julião Tavares, o sujeito gordo, vermelho, risonho, patriota, falador e
escrevedor, que citava os coqueiros, as praias, o céu azul, os canais e
outras preciosidades alagoanas, e que veio perturbá-lo e bulir com os seus
nervos; nos lugares odiosos onde os bancos das praças disfarçam casais
que, descaradamente, se atracam em público; nos vizinhos esquisitos;
O Espaço na Construção de Angústia 59

na criada Vitória, surda e desdentada, que passa o tempo a ler no jornal


o nome dos navios que chegam e partem do porto de Maceió, a tentar
educar um papagaio mudo e a enterrar moedas do ordenado, no fundo
de um quintal sujo e maltratado; na casa infestada por ratos que pareciam
roer-lhe qualquer coisa por dentro; nas noites medonhas, importunadas
pelos galos a marcar o tempo e pelas pulgas; pelo resfolegar de Dona
Rosália na cama, amando escandalosa o homem calvo e moreno, sem se
importar com a curiosidade da vizinhança; em Marina, a única beleza,
transformada em uma cabritinha enxerida, mulher sem dono, mulher
de ninguém.
No último capítulo, o leitor é conduzido ao quarto de Luís da
Silva, para o encontrar acuado, culpado, angustiado, em um grande
delírio. Aqui, o espaço não é de intimidade familiar ou amorosa,
mas de profunda perturbação mental e emocional. Aqui, aloja-se a
angústia, configurada em um animal imóvel, inseguro, que se refugia
para esconder o segredo do seu crime. As mãos que haviam enforcado
Julião Tavares de repente pareciam ao personagem mais curtas e mais
largas do que aquelas que costumavam escrever sonetos e artigos para
o jornal.
Ao fim de um texto não linear de treze páginas, composto por
períodos dispostos sem um único parágrafo para recriar o delírio do
protagonista, o leitor, também angustiado, é levado de volta às primeiras
páginas: “Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não
me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas
noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam
à realidade e me produzem calafrios” (RAMOS, 2011a, p. 21).
O romance se fecha como as extremidades de uma corda, desta
vez para sufocar aquele que tem em mãos as páginas da narrativa.
A condição que oprime o escritor que se pergunta “Viria a calma?”
(RAMOS, 2008, p. 51), mistura-se com as lembranças que oprimem o
narrador, contagiam o leitor, forjando, em espaços degradados, o perigo
do poder e da traição, gradativa e repetidamente.
60 Elizabeth Ramos

Referências

AMADO, Jorge. Notícia de dois romances. Boletim de Ariel, Rio de Janeiro,


ano 6, n. 2, p. 42-43, nov. 1936.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Joaquim José Moura


Ramos et al. Seleção de textos: José Américo Motta Pessanha. São Paulo:
Abril Cultural, 1978.

PÓLVORA, Hélio. O anti-herói trágico de Graciliano Ramos. A Tarde


Cultural, Salvador, 23 out. 1992.

RAMOS, Graciliano. Angústia. Edição Comemorativa dos 75 anos. Rio


de Janeiro: Record, 2011a.

RAMOS. Cartas. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011b.

RAMOS. Memórias do cárcere. 44. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.

SANTIAGO, Silviano. Posfácio. In: ____. RAMOS, Graciliano. Angústia.


64. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.
Floema - Ano IX, n. 11, p. 61-84, jul./dez. 2015.

Introspecção e Deslocamento em Angústia

Jobst Welge 1

Resumo: O romance Angústia de Graciliano Ramos foi caracterizado


como “existencialista avant la lettre” (A. Bosi); na crítica brasileira, Angústia
é geralmente discutido no contexto de um certo “romance de urbanização”
ou de uma linha brasileira de “romance intimista.” A presente contribuição
pretende demonstrar detalhadamente o quanto o romance deve a uma herança
dostoievskiana, e indicar o quanto partilha com outros textos latino-americanos
nessa linhagem “existencialista.” Isso inclui aspectos formais, narrativas e
temáticas, como a forma confissão, a autorrepresentação de uma subjetividade
solipsista à margem da loucura, o homicídio/crime como afirmação de pulsões
obscuras e moralmente problemáticas ao lado da prática de arte/escritura.
Mais especificamente, quero analisar como Angústia ganha complexidade
psicológica através de uma representação da interioridade, servindo-me de
estudos sobre a figuração de processos mentais no romance moderno – e
como esta interioridade patológica corresponde a uma experiência específica
da modernidade.

Palavras-chave: Angústia. Dostoievski. Existencialismo.

Abstract: The novel Angústia has been characterized as “existentialist avant


la lettre” (A. Bosi). In Brazilian criticism, this novel if often discussed in the
context of the so-called “novel of urbanization,” or within the lineage of the
psychological novel. The present contribution seeks to demonstrate the novel’s
indebtedness to the legacy of Dostoiewski, as well as its general similarity to
other Latin American texts in an “existentialist” mold. This includes formal,
1
Professor Visitante de Teoria de Cultura e Metodologias de Estudos Culturais na Universidade de
Konstanz (Alemanha). Tem vários trabalhos sobre literatura brasileira, italiana e ibero-americana.
Um estudo comparativo sobre o romance moderno, incluindo vários exemplos lusófonos,
Genealogical Fictions: Cultural Periphery and Historical Change in the Modern Novel, será publicado pela
Johns Hopkins University Press (Baltimore, 2014). O presente artigo faz parte de um projeto atual
sobre “Sujeitos deslocados no romance brasileiro”.
“Como em Caetés e São Bernardo, a narrativa está na primeira pessoa; mas só aqui podemos falar
propriamente em monólogo interior, em palavras que não visam o interlocutor e decorrem de
necessidade própria” (CANDIDO, 1992, p. 40).
62 Jobst Welge

narrative, and thematic aspects, such as the confessional mode, the self-
representation of a solipsistic subjectivity bordering on madness, a homicidal
crime as the manifestation of dark and ethically problematic impulses, as well
as a characteristic meta-narrative involution. More specifically, in drawing on
discussions of novelistic representations of introspection, the article explores
the link between pathological interiority and a specific experience of modernity.

Keywords: Angústia. Dostoievski. Existencialism.

Enquanto o romance Angústia (1936), de Graciliano Ramos,


compartilha muitos traços com os outros romances do autor, a crítica,
habitualmente, insiste sobre a excentricidade desse romance dentro
do contexto da obra do autor, especialmente em relação às técnicas
modernistas de narração. Por exemplo, comparando Angústia com os
romances psicológicos de Graciliano (São Bernardo e Caetés), Antonio
Candido (Candido, 1992) nota que apenas Angústia é caracterizado
pelo uso consistente do monólogo interior, com relativamente poucas
cenas dialógicas. Candido (Candido, 2006, p. 101) também afirma, em
outra ocasião, que “tecnicamente Angústia é o livro mais complexo
de Graciliano Ramos”,2 visto que é o romance mais psicológico de
Graciliano, igualmente associado à chamada tendência “intimista”
do romance brasileiro. Tudo isto vale como confirmação de um
estado fora do comum, em um contexto sociocultural dominado pela
ideologia e pela prática do regionalismo literário. Ao mesmo tempo, os
estudos mais criteriosos do romance têm insistido em como os traços
formais refletem uma específica situação sociocultural. Minha análise
segue essa linha geral de argumentação, mas, em relação ao primeiro
aspecto, isto é, à representação de uma interioridade psicológica, quero
confrontar a técnica da representação da interioridade com uma breve
consideração sobre o papel da introspecção na morfologia do romance
moderno, especialmente para o paradigma dostoievskiano. Depois,
discuto os modos pelos quais a ênfase do romance na introspecção e na
2
“Como em Caetés e São Bernardo, a narrativa está na primeira pessoa; mas só aqui podemos falar
propriamente em monólogo interior, em palavras que não visam o interlocutor e decorrem de
necessidade própria” (CANDIDO, 1992, p. 40).
Introspecção e Deslocamento em Angústia 63

fragmentação podem ser entendidos como o índice de uma alienação,


que é o resultado de um processo de deslocamento geográfico e
social, isto é, uma resposta específica à experiência da modernidade
latino-americana. Se Alfredo Bosi tem se referido à Angústia como
um “romance existencialista avant la lettre” (BOSI, 1994, p. 403) e
Antonio Candido tenha já indicado como o protagonista torturado,
autonegador de Graciliano pode ser visto como uma versão do homem
subterrâneo (CANDIDO, 2006, p. 93), quero aqui demonstrar de que
modo o romance de Graciliano pertence, temática e formalmente, a
uma assimilação do romance existencialista na trilha do modelo de
Dostoievski. Finalmente, veremos como isto é reforçado por certas
estratégias metaliterárias do romance, no modo pelo qual a tópica da
autorreferência, bem como a técnica da escritura reúnem os dois aspetos
centrais do romance, a introspecção e o deslocamento.

Introspecção e Incoerência

Em contraste com as suas técnicas complexas e labirínticas de


narração, a trama de Angústia, em si, é bastante simples: Luís da Silva é
um burocrata insignificante, sexualmente atraído por sua vizinha Marina,
que se mudou recentemente com os seus pais para uma casa junto à
sua. Eventualmente, a atração inicial que os levou aos preparativos do
casamento, culminou em um conflito entre a avidez material de Marina e
os meios bastante limitados de Luís. Seja como for, o casamento fracassa
muito rapidamente, porque Marina torna-se vítima de um homem muito
rico, falador, superficialmente chamejante, o Julião Tavares. Em um
momento posterior, quando Luís compreende que Tavares engravidou
Marina e que ela teve um aborto, sua inveja e ódio crescem de tal maneira
que planeja matar Julião. Finalmente, sufoca-o com uma corda, que lhe
é dada pelo vagabundo Seu Ivo. Depois do assassínio, Luís experimenta
um estado de delírio, um colapso psíquico e físico (como em Crime e
Castigo, de Dostoievski), do qual se recupera após alguns dias, e então,
supostamente, começa a escritura do texto que lemos. O fato de Luís
64 Jobst Welge

também trabalhar como jornalista e escritor, e de se apresentar várias


vezes como leitor de romances (RAMOS, 2008, p. 140), cria o efeito
de uma relação circular entre literatura e vida. A técnica narrativa mais
importante do romance consiste no relato retrospectivo dos “eventos”,
até o ato do assassínio, frequentemente intercalado com as memórias da
sua vida anterior, especialmente da sua infância na zona rural, no sertão,
memórias que podem, aliás, ser caracterizadas como “micronarrativas
autobiográficas” (SANTIAGO, 2008, p. 288). Mas as memórias da
infância e de um cosmos tradicional e patriarcal se referem menos a uma
base de inocência e seguridade, pois este momento consiste de fato na
primeira manifestação, a origem da dificuldade de Luís de estabelecer
relações sociais significativas: “Saíamos numa algazarra. Eu ia jogar pião,
sozinho, ou empinar papagaio. Sempre brinquei só” (RAMOS, 2008,
p. 15). Se o passado faz parte de um universo distante e separado, a
disposição antissocial e isolada do protagonista tem, efetivamente, uma
continuidade. O sentido de atemporalidade da circularidade temporal é
também fortalecido pelo fato de que o narrador insere, desde o início,
certas intimações ao futuro (a saber, o seu desejo por Marina, o assassínio
de Tavares), que, da perspectiva do narrador, são eventos que já tinham
ocorrido. A impressão do leitor de que o protagonista/narrador está
preso em um círculo temporal, em que os eventos traumáticos acontecem
repetidamente em um presente aprisionado, cria a sensação de que não
estamos apenas ouvindo a voz de um sujeito, mas estamos literalmente
dentro da consciência desse sujeito. Tudo isso, claro, sendo um efeito
da performance verbal da voz narrativa (TEIXEIRA, 2004, p. 196-
197). A forte conotação subjetiva da narrativa foi notada por Antonio
Candido (2006), que escreveu que Angústia se distingue no modo pelo
qual uma realidade naturalística é substituída por uma contrarrealidade
fantasmagórica e alucinatória: “Constrói-se aos poucos, num ritmo de
vai e vem entre a realidade presente, descrita com saliência naturalista, a
constante evocação do passado, a fuga para o devaneio e a deformação
expressionista” (CANDIDO, 2006, p. 101). A esse respeito, Candido
(Candido, 2006, p.102) também tem observado que o protagonista
Introspecção e Deslocamento em Angústia 65

torturado e com desejo de autoaniquilamento pode ser comparado ao


tipo do “homem subterrâneo” de Notas do Subsolo, de Dostoievski (1864).
Na verdade, Graciliano esteve familiarizado com a obra do escritor
russo em sua juventude, a partir do ano 1904 (OLIVEIRA, 1988, p.
88).3 Mas o protagonista de Graciliano não é só um eco do tipo do
“homem subterrâneo,” pois a ficção de Dostoievski tem, em geral, uma
importância central para o desenvolvimento da técnica de introspecção
no romance da Europa e da América Latina.
No romance brasileiro, a tendência a substituir a representação
coerente da realidade pelos processos de consciência radicalmente
subjetivos ganhou certo impacto com Machado de Assis e Raúl Pompeia.
A interioridade psicológica foi geralmente uma característica do romance
simbolista na América Latina do fim do século, quando, em um contexto
de positivismo cientificista, enfatizaram-se as manifestações “irracionais”
de desejos inconscientes e de fantasias (PHILIPPS-LÓPEZ, 1996, p.
142). Essa opção narrativa, no contexto do regionalismo modernista
dos anos 30, é certamente interessante, mas Angústia não é a única obra
que explora essa possibilidade, e na verdade contém muitos paralelos
com outros representantes do que muitas vezes é chamado romance
intimista, como o quase perfeitamente contemporâneo O amanuense
Belmiro (1937), de Cyro dos Anjos.4 Na tradição do romance europeu,
a técnica da introspecção psicológica foi uma possibilidade sempre
aberta desde a Princesse de Clèves, de Madame de Lafayette (MAZZONI,
2011, p. 335). Mas a variante especificamente modernista do romance
introspectivo deve muito à influência de Dostoievski, um autor muito
3
A comparação de Angústia com Notas do Subsolo (como também Crime e Castigo) é intrigante por
conta de certas semelhanças biográficas: escrevendo esta novela curta, Dostoievski estava ainda
sob a impressão da sua trágica experiência na prisão (1850-1854), enquanto Angústia, publicado em
agosto de 1936, marca o momento em que Graciliano Ramos foi preso pelo governo Getúlio Vargas,
por supostas atividades políticas(TEIXEIRA, 2004, p. 197). Um romance como El túnel (1948),
de Ernesto Sabato, com várias semelhanças com Angústia, revela a sua linhagem dostoievskana
desde o início, quando o leitor compreende que o narrador na primeira pessoa, Castel, narra a sua
história dentro da prisão.
4
Cf. Bueno (2006, p. 621): [...]“Angústia é o romance de um autor de esquerda, na década de 30, que
mais se aproximou das experiências de autores católicos como Lúcio Cardoso e Cornélio Penna,
porque apesar das muitas diferenças que se podem apontar, nele, Graciliano Ramos trabalhou
com elementos com que esses autores também trabalharam ou desejaram trabalhar, tais como a
introspecção exercitada em vertiginosa profundidade, o aspecto fantasmagórico que muitas vezes
toma a narrativa e uma psicologia que extrapola qualquer previsibilidade[...] .”
66 Jobst Welge

apreciado no Brasil dos anos 30 (BUENO, 2006, p. 77). No seu livro


recente Teoria do Romance (2011), o crítico italiano Guido Mazzoni
discutiu as várias transformações históricas do romance introspectivo,
e ele vê a diferença específica do indivíduo de Dostoievski nas suas
contradições interiores e irracionais: “Na medida em que têm escondido
e inconsciente uma parte de si mesmas, as personagens criadas por
Dostoievski tem um direito à incoerência, que os heróis do romance
europeu nunca haviam tido antes” (MAZZONI, 2011, p. 330).5 Neste
sentido, Dostoievski possibilita uma representação caracteristicamente
modernista da vida interior, de quem Graciliano – assim como outros
autores modernistas, a exemplo de Gide ou Faulkner – é claramente
devedor: “Se Tolstoi e a tradição analítica de origem francesa apresentam
personagens através uma análise psicológica do narrador, Dostoievski
faz com que as suas personagens apresentem a si mesmas através de suas
ações e do discurso em primeira pessoa” (Mazzoni, 2011, p. 333). A ideia
dostoievskiana de um sujeito “incoerente” é refletida na técnica narrativa
do monólogo interior, que serve para dissolver a coerência subjetiva,
resultando em uma “mimese do magma psicológico” (Mazzoni, 2011, p.
333). No contexto do realismo do século 1800, a posição anti-idealista
de Dostoievski é uma ocorrência particular, sobretudo ao separar os
indivíduos não assimilados, os instáveis da sociedade circunstante, e,
enquanto esses seres impulsivos fracassem e não ganhem uma autonomia
“interior,” sequer podem ser explicados e determinados através do seu
meio social.6 A personagem de Dostoievski é o marco de um ponto de
partida significativo na história do romance moderno: se este gênero
esteve sempre preocupado com a mimese séria da vida “ordinária,”
Dostoievski introduziu um anti-herói, marcadamente excêntrico (em
sua versão mais extrema: o assassínio, o louco), um herói “irregular”
que resiste ao regime da regular modernidade, e que é marcado por uma
específica “intensidade narrativa,” por meio da qual a vida ordinária
representa-se através de um “estado de exceção” (MAZZONI, 2011, p.
5
Todas as traduções são minhas.
6
Cf. Pavel (2003, p. 340): “Tout aussi essentiel que le rejet de l’autonomie est le rejet symétrique de
la réduction des êtres humains à leur milieu ambiant.” Uma crítica explícita da ideologia naturalista
do milieu se encontra no capítulo III.5 de Crime e Castigo.
Introspecção e Deslocamento em Angústia 67

343-44).7 Assim, em Notas de Subsolo o narrador diz explicitamente que


ele e a sua estirpe não podem ser medidos por suas ações aparentes ou
pela coerência pessoal: “[...] o seu inteligente homem do século 1800 tem
que ser e é de fato moralmente obrigado a ser, por essência, sem caráter;
um homem de caráter, um homem de ação, é fundamentalmente uma
criatura bastante limitada” (DOSTOIEVSKI, 2009, p. 5). O “homem
subterrâneo” tem uma vida interior complicada.
Thomas Pavel (2003) enfatizou outro aspeto da arte novelística
de Dostoievski, isto é, não só a incoerência e a irracionalidade das
suas personagens, mas o grau em que o discurso interior delas resulta
em um tipo de autoilusão. Do ponto de vista de Dostoievski, de
uma ortodoxia cristã, os seus anti-heróis aflitos erigem apenas uma
miragem de autonomia e liberdade, e o divórcio e a contradição entre
palavras e ações consiste, no final das contas, em um signo de suas
imperfeições e de seus fracassos em se autogovernar. A caracterização
do anti-herói dostoievskiano por Pavel é sobremaneira sugestiva para
Luís da Silva também: “A exaltação verbal, que anima esses seres e
faz com que falem sem parar, ou falem desconexamente, não é de
modo algum a marca de uma subjetividade livre que se amplifica
no discurso, como aponta Bakhtin, mas é simplesmente o signo
de uma aflição profunda que impede esses seres de ver sua própria
interioridade e de expressar os seus tormentos com simplicidade”
(PAVEL, 2003, p. 339).
Mas, voltando agora à Angústia, podemos observar como
esta forma de autoilusão combina com uma determinada medida
de autocompreensão. A perspectiva radicalmente subjetivista de
Angústia confronta o leitor com os sinais irracionais de um delírio,
mas a representação do estado solipsista e onírico da consciência de
Luís combina com – e é mediada por –, uma autocompreensão de
seu estado excêntrico, apresentada como se fosse por um narrador da
terceira pessoa:
7
No período do modernismo, a subjetividade interiorizada se afirma com relativa independência,
mas até o romance modernista mantém-se um conflito característico entre uma consciência
particularizada e uma visão mais geral e universal (MAZZONI, 2011, p. 395-397).
68 Jobst Welge

Assaltam-me dúvidas idiotas. Estarei à porta de casa ou já terei


chegado à repartição? Em que ponto do trajeto me acho? Não
tenho consciência dos movimentos, sinto-me leve. Ignoro
quanto tempo fico assim. Provavelmente um segundo, mas um
segundo, mas um segundo que parece eternidade. Está claro
que todo o desarranjo é interior. Por favor devo ser um cidadão
como os outros, um diminuto cidadão que vai para o trabalho
maçador, um Luís da Silva qualquer (RAMOS, 2008, p. 25-26).

Por ora, esse discernimento possibilitado pela distância auto-


observadora de Luís sobre seu estado mental de confusão interna envolve
uma duplicação alienante do “eu”, resultando em um discurso cujo efeito
lhe devolve uma perspectiva “lógica” de seu estado de desorientação e
confusão. Ou em outras palavras, o sujeito narrador fala sobre o sujeito
narrado como se fosse outra pessoa. No entanto, isto não implica, como
costumeiramente ocorre em textos autobiográficos e confessionais,
uma brecha temporal entre um self passado e um self presente (digamos,
da confusão à representação retrospectiva, racional), antes a alienação
reside no distúrbio mental que sucede no mesmo presente eterno como
a auto-observação distanciada: “Há nas minhas recordações estranhos
hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase
completo. As minhas ações surgem baralhadas e esmorecidas como se
fossem de outra pessoa. Penso nelas com indiferença” (RAMOS, 2008,
p. 130). De fato, a natureza contraditória da consciência do narrador, a
divisão desse sujeito, é anunciada bem no início do romance, quando
o protagonista aparece suspenso entre a sua recuperação gradual do
colapso recente e a simultânea consciência “racional” de que ele ainda
não recuperou todo o controle mental: “Levantei-me há cerca de trinta
dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das
visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras
permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem
calafrios” (RAMOS, 2008, p. 7).
Essa ideia de que o fundamento estável da realidade objetiva
desarticula-se em prol das impressões subjetivas e dos pontos de vista é
outra vez uma radicalização de uma tendência geral do romance europeu
Introspecção e Deslocamento em Angústia 69

moderno, um segundo “inward turn” que o caracteriza, geralmente, até


o fim do século 1800 (MAZZONI, 2011, p. 352). Assim, em Angústia,
estamos não apenas confrontados com as percepções subjetivas de
um monólogo interior, mas com o próprio narrador dramatizando
repetidamente o deslocamento da realidade pela imaginação interior.
Por exemplo, o passeio com o bonde no início do romance significa
um movimento no espaço da cidade -“O bonde roda para oeste, dirige-
se ao interior” (RAMOS, 2008, p. 12) – que metaforicamente articula
os movimentos do protagonista longe do mundo exterior, presente.
As primeiras páginas do romance sugerem como Luís, depois de ter
cometido o assassinato, é assombrado pela imagem de Tavares enquanto
está escrevendo no escritório. Esta ideia é literalmente representada
como um processo de superimposição:

Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório, para


datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante
a cara balofa de Julião Tavares aparece em cima do original, e
os meus dedos encontram no teclado uma resistência mole de
carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão, capricho
em não usar a borracha. Concluo o trabalho, mas a resma de
papel fica muito reduzida (RAMOS, 2008, p. 8).

Neste trecho, a atividade de escrita do narrador é assombrada pelo


aparecimento da carne gorda do morto Tavares, dando, desse modo, à
imagem mental, uma qualidade quase material, confundindo a distinção
entre realidade e imaginação. Um movimento oposto, um corpo físico
dissolvendo-se em ideias imateriais aparece na cena em que a figura de
Marina é transformada e dividida em letras: “Em duas horas escrevo
uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo
coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar” (RAMOS, 2008, p. 8).
Assim, a lembrança traumática, obsessiva destas duas figuras é, desde
o início, associada à atividade de escrita, seja do trabalho alienador no
escritório, seja da desfiguração sonhadora do nome de Marina; e o ato
de escrever é visto literalmente em conjunto com a imaginação, bem
como com a deformação da realidade.
70 Jobst Welge

Mais que isso, a divisão combinatória das letras do nome de


Marina (que lembram, em certa medida, o jogo com o nome da amada
na poesia petrarquista) antecipa as várias fantasias do protagonista acerca
da desfiguração e objetificação do corpo dela. A percepção visual de
Marina por parte de Luís equivale à fragmentação do seu corpo (como
na técnica petrarquista do blazon), como acontece na imaginação de Luís:

De repente a franguinha surgiu dentro do meu reduzido campo


de observação. [...] Para ir ao quintal, sapato de sair e meia de
seda esticada no pernão bem feito. Ótimas pernas. As coxas e
as nádegas, apertadas na saia estreita, estavam com vontade de
rebentar as costuras. [...] Parecia-me que aquilo estava chiando
dentro de mim, que a minha carne se assava e chiava (RAMOS,
2008, p. 71, grifos meus).

Aqui, como em outros trechos, é muito evidente que a aparência


física do corpo de Marina é inteiramente moldada e controlada pela
imaginação interior de Luís: “[...] gastei meses construindo esta Marina
que vive dentro de mim” (RAMOS, 2008, p. 82). Essas citações mostram
o estado ambivalente das personagens do romance, quer dizer, suas
funções são tanto origem quanto consequência das projeções imaginárias
de Luís. De modo geral, portanto, a figuração da introspecção psíquica
no romance, o uso abrangente do monólogo interior, do modo imediato,
subjetivista ,“parcial e confuso em que estados de mente se manifestam”
(MAZZONI, 2011, p. 311) é algo que o romance compartilha com o
romance do modernismo europeu (Joyce, Woolf). Mais especificamente,
Graciliano segue aqui o modelo de Dostoievski, no sentido de que
constrói uma perspectiva narrativa dividida e alienada, uma voz que,
no final das contas, torna impossível a ideia mesma de um sujeito
coerente e que comunica a sua própria desilusão na medida em que
fala constantemente “sobre” a perda de controle racional e a qualidade
das construções imaginárias como se fosse um outro.8 Paradoxalmente,
como no caso do homem subterrâneo de Dostoievski, o autorretrato
8
Em Crime e Castigo, Dostoievski usa style indirect libre com narrador na terceira pessoa, que
frequentemente enfatiza uma perspectiva do final (“como Raskolnikov va a se lembrar depois”).
Introspecção e Deslocamento em Angústia 71

fragmentário e contraditório do narrador, se não representa uma


subjetividade “livre,” equivale, no entanto, à imagem de um “ser único
e de um tipo representativo” (BROMBERT, 1999, p. 31). Embora o
narrador de Graciliano seja menos dado a pronunciamentos gerais do
que o de Dostoiesvski, a voz particular é significativa contra o fundo
de uma situação sócio-histórica mais ampla.

Deslocamento, Modernidade

Por isso, depois de ter verificado de que modo Angústia segue


Dostoievski em representar uma consciência incoerente e contraditória,
precisamos examinar largamente as razões pelas quais Angústia, e certa
linhagem do romance “existencialista” na América Latina, assimilaram
técnicas e temas de Dostoievski, e um contexto topográfico e sócio-
histórico diverso. Enquanto críticos, muitas vezes, invocam o nome de
Dostoievski, nota-se menos frequentemente certa afinidade do romance
de Graciliano com outras ficções latino-americanas, especialmente
as argentinas. El jorobadito, de Roberto Arlt (1933), El pozo, de Juan
Carlos Onetti (1939), e El túnel, de Ernesto Sábato (1948), são obras
em que a solidão e a incapacidade de comunicação do protagonista
masculino desembocam em violência contra as mulheres, traço, aliás,
que retoma a relação tortuosa do homem subterrâneo com a prostituta
Liza. Formalmente, todos estes romances compartilham uma mistura
característica da retórica da confissão e da autojustificação por um autor
ou “artista criminoso”, e, tematicamente, compartilham o enfoque sobre
a realidade urbana, que é implícita ou explicitamente figurada como
deslocamento das formas de vida rural e regional.9 Mesmo que este
tipo de ficção existencialista seja fortemente influenciado por modelos
europeus (Dostoievski, Camus), ele também está endereçado aos
particulares problemas da modernidade dos países da América Latina
(MERRIM, 2011, p. 98).
9
Cf. Merrim (2011, p. 98): “Indeed, Latin America owes to existentialism the advent of a literature
that dislocates an entrenched rurally based regionalism and gives voice to the soul of Latin American
cities, as manifested the works of Mallea, Onetti, and Sábato.“Por a linhagem dostojewskiana do
“artista criminoso” (LUDMER, 2009, p. 253).
72 Jobst Welge

Nesse contexto mais amplo, Angústia se distingue por sua


representação certamente única e abrangente do passado rural lado a
lado com a cena urbana. Segundo observação de Fernando Gil (1999)
sobre Angústia e sobre o que ele chama de “o romance da urbanização”,
a representação da interioridade psíquica é aqui atravessada pela
fratura histórica, “o conflito de dois tempos históricos distintos
que correspondem a espaços e valores sociais e culturais também
diversos e que, até certo ponto, formalizam-se no nível estético como
irreconciliáveis para a vida do nosso protagonista” (GIL, 1999, p. 73).
Isso quer dizer que no contexto brasileiro, mais especificamente das
cidades semiprovinciais, a introspecção no romance é formada sob a
constelação específica do passado rural e da nova modernidade urbana:
“Assim, na base do aprofundamento da subjetivização do romance
como forma literária, no Brasil, estaria, por assim dizer, esta espécie
de trauma original de nossa formação social” (GIL, 1999, p. 41).
Certamente, essa experiência singular de desenraizamento do contexto
rural espelha-se na própria biografia de Graciliano, mesmo sendo sua
posição burocrática decididamente mais prestigiosa como diretor do
ensino público do que a posição inferior ocupada por Luís da Silva em
Maceió (OLIVEIRA, 1988, p. 69-70).10 No contexto brasileiro, o sentido
em ser desenraizado é notável no fato de que essas personagens, muitas
vezes, trabalhando como empregados, eram descendentes de famílias
outrora poderosas, proprietárias de terras e escravos, e que se encontram
agora mal ajustadas às suas novas posições sociais no contexto anônimo,
urbano, de onde desenvolvem uma patologia específica: “[...] eles
viviam atormentados pelos fantasmas do passado rural, deslocados
no contexto da modernização. Sem o prestígio das origens, sofriam
pela condição perdida” (MARQUES, 2011, p. 46).11 Luís da Silva é o
último representante de uma família patriarcal de fazendeiros de gado
10
Outros paralelos biográficos emergem quando o romance se compara com Infância e as suas
estórias explicitamente autobiográficas.
11
Mesmo que Ivan Marques (2011) se refira aqui a escritores modernistas de Minas Gerais, com
seus narradores muitas vezes na primeira pessoa, essa observação vale também para o protagonista
de Angústia, para quem o declínio social é especialmente dramático. Sobre a comparação entre
Angústia e O amanuense Belmiro, ver Bueno (2006, p. 624). Sobre o papel do empregado neste contexto
literário e social, ver Welge (2013).
Introspecção e Deslocamento em Angústia 73

que morou por gerações no sertão. Aos vinte anos ele chega à cidade
de Maceió, a capital provincial do estado de Alagoas, no nordeste do
Brasil, onde encontra, finalmente, uma posição modesta na burocracia.
Em Angústia, o sentido de desenraizamento traduz-se em estratos
temporais e na fragmentação formal do romance. Como na segunda
parte de Notas do Subsolo, a narrativa move-se continuamente em direção
ao passado em “monólogos autobiográficos,” como assinala Dorrit Cohn
(1978). Essas formas de discurso “criam um efeito retórico altamente
estilizado, porque a narrativa de sua própria biografia para si mesmo
não aparece razoável psicologicamente. Ou antes, aparece razoável
apenas se o falante segue uma intenção específica com esta narrativa, a
de uma confissão pública, de autojustificação” (COHN, 1978, p. 181).
Tipicamente situada em um presente eterno, a consideração retrospectiva
do passado é marcada pela intersecção do presente do indicativo e do
presente imperfeito – o que Cohn chama de “um presente iterativo-
durativo” (COHN, 1978, p. 193): “Ponho-me a vagabundear em
pensamento pela vila distante, entro na igreja, escuto os sermões e os
desaforos que padre Inácio pregava aos matutos” (RAMOS, 2008, p. 18).
Ao mesmo tempo, o narrador, mesmo que os seus pensamentos
regridam ao passado, é ele mesmo inteiramente consciente de que existe
uma brecha entre o mundo velho e aquele novo, e de que também ele
não pode simplesmente voltar ao lugar de sua infância: “Entro no quarto,
procuro um refúgio no passado. Mas não me posso esconder inteiramente
nele. Não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranquilidade, falta-me
inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou”
(RAMOS, 2008, p. 24). Mais uma vez, se o narrador nos confronta
com pensamentos de isolamento e regressão no presente, ele também
oferece um discernimento analítico sobre sua própria situação. Além
disso, é significativo que o mundo do passado não corresponda apenas
a um fundamento perdido, mas já esteja marcado por signos de declínio.
Enquanto o avô do protagonista, Trajano, simboliza o apogeu do poder
patriarcal, o pai de Luís também já se encontra marcado pela decadência,
como se pode ver na sua própria evasão para mundos irreais e literários:
74 Jobst Welge

Volto a ser criança, revejo a figura de meu avô, Trajano Pereira de


Aquino Cavalcante e Silva, que alcancei velhíssimo. Os negócios
na fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira
da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada
nos esteios do copiar, cortando palha de milho para cigarros,
lendo o Carlos Magno, sonhando com a vitória do partido que
padre Inácio chefiava (RAMOS, 2008, p. 12-13).

Quanto à sua própria pessoa, Luís chega explicitamente a rejeitar


a modernidade e o intelectualismo, e cria uma fantasia na qual regressa
à imagem do passado de seu pai: “Para que me habituei a ler papel
impresso, a ouvir o rumor de linotipos? Desejaria calçar alpercatas,
descansar numa rede armada no copiar, não ler nada ou ler inocentemente
a história dos doze pares de França” (RAMOS, 2008, p. 195). Já o homem
subterrâneo de Dostoievski concebe o dilema do homem moderno a
partir do problema da inércia e de sua consciência hiper-refinada (a
opinião de Dostoievski é a de que as reformas de Pedro, o Grande,
levaram à alienação dos intelectuais em relação ao povo russo), e, como
consequência, defende uma “volição independente” dos princípios do
racionalismo iluminista do Ocidente (BROMBERT, 1999, p. 38). O
homem subterrâneo exemplifica a forma indireta e “voluptuosa” de
sofrer que, a seu ver, é ao mesmo tempo altamente individualizada e
representativa da condição do homem moderno, que sofre “não como
um rude camponês, mas como um homem tocado pela indiferença da
civilização iluminista europeia, como uma pessoa divorciada da terra e
de suas raízes natais, como se diz nestes dias” (DOSTOIEVSKI, 2009,
p. 14). Nessa situação de deslocamento sócio-intelectual, também se
encontra Luís da Silva, que repetidamente contrasta o seu próprio
intelectualismo tanto em relação ao seu passado quanto em relação ao
povo “primitivo,” supostamente mais próximo de sua natureza originária.
Não surpreende que sua atitude para com essa gente “primitiva” seja
ambígua. Em suas memórias, ele inclui o episódio de conversação com
um antigo caso amoroso seu, Berta, no qual ele se autodescreve como
incivilizado e bruto, “sou um sertanejo” (RAMOS, 2008, p. 45). Na
Introspecção e Deslocamento em Angústia 75

primeira página do romance, Luís expressa seu desgosto em relação aos


“vagabundos” – “Há criaturas que não suporto” – (RAMOS, 2008, p.
7). Mas, em um momento posterior, ele demonstra certa simpatia por
pessoas pobres da cidade, os marginalizados da sociedade (RAMOS,
2008, p. 140), ainda que qualquer sentido de solidariedade para com os
“vagabundos” esteja prejudicado por sua posição superior de intelectual.
Quando tenta, sem êxito, dizer a essa gente que ele também havia sido
um vagabundo: “a minha raça vagabunda”, Ramos (2008, p. 26), vagando
nas ruas com fome, ele se dá conta de que a distância social se manifesta
acima de tudo pela diferença na linguagem:

A literatura nos afastou: o que sei deles foi visto nos livros.
Comovo-me lendo os sofrimentos alheios, [...]. Eu é que não
podia entendê-las. — “Sim senhor. Não senhor.” Entre elas
não havia esse señor que nos separava. Eu era um sujeito de fala
arrevesada e modos de parafuso (RAMOS, 2008, p. 142-143).

A sua relação com os marginalizados, então, é caracterizada pela


similaridade e diferença, e os sentimentos contraditórios de Luís são
emblemáticos de seu deslocamento existencial. Assim, é significativo
nesse contexto que ele, depois do assassinato e do seu colapso em um
estado de completa abjeção, é rapidamente ajudado por um “vagabundo”
que lhe oferece um cigarro. Apesar de Luís se encontrar em inteira
desordem e sujo de lama, ele trai sua diferença social de novo por meio
da linguagem “Mas usava palavras de gente bem vestida” (RAMOS, 2008,
p. 250). Ao mesmo tempo, entretanto, é revelador que, ao falar sobre
esses marginalizados da sociedade, ele também chega a falar sobre si
mesmo, visto que ele também se encontra constrangido na cidade que
lhe apareceu assustadora quando, ainda jovem, chegou lá pela primeira
vez (RAMOS, 2008, p. 144). Por exemplo, um vizinho de Luís chamado
“o Lobisomem” ganhou este nome por causa dos rumores de que ele
mantinha relações incestuosas com as suas três filhas. Luís demonstra
empatia para com essa figura universalmente evitada, à qual é e não é
semelhante:
76 Jobst Welge

Pobre do Lobisomem! [...] Ora para um lado, ora para outro,


sem destino. Que vida! Nem um hábito. Esta ideia de uma
pessoa viver sem hábitos era para mim extremamente dolorosa.
Apesar de haver atravessado uma existência horrível, sempre
encontrara nela, mesmo nos tempos mais duros, ocupações que
me entretinham. Comparava-me a Lobisomem. Eu era quase
feliz, e a comparação me atenazava (RAMOS, 2008, p. 79-80).

Ademais, o caso do Lobisomem faz Luís lembrar a anedota acerca de


um sertanejo de muitos anos atrás, quando um “indivíduo desafortunado”
fora condenado e aprisionado pela justiça por ter supostamente violado a
sua filha de quatros anos, uma coisa que depois mostrou ser resultado de
falsas impressões (RAMOS, 2008, p. 81-82). O episódio serve para Luís
se apresentar como alguém habilitado para questionar os preconceitos da
sociedade, e que também implicitamente situa o seu próprio ato de violência
sexualmente motivado em um contexto mais amplo de homens socialmente
deslocados. Especialmente, pensando nos costumes de seu passado rural,
ele repetidamente enfatiza o contraste claro entre os diferentes códigos de
moralidade sexual. Por exemplo, invoca a sexualidade devota e sem vontade
de sua avó, Sinhá Germana, cuja mentalidade tradicional se encontra em
choque com a modernidade da cidade, que, por sua vez, alienou o narrador
do seu passado familial (“Como a cidade me afastara de meus avós!”)
(RAMOS, 2008, p. 125):

Sinhá Germana só tinha aberto os olhos diante do velho Trajano.


Sem dúvida. Mas eu queria ver Sinhá Germana agora, no cinema,
ou correndo as ruas, com uma pasta debaixo do braço, e mais
tarde no escritório, batendo no teclado da máquina, ouvindo as
cantigas dos marmanjos. Hábitos diferentes, necessidades novas
(RAMOS, 2008, p. 127).

Em uma conversação posterior com o seu Ramalho, o pai de


Marina, que representa para Luís a confirmação patriarcal da decadência
moral de sua filha, é mais uma vez o cinema que é acusado de ser o
responsável pela corrupção da moralidade sexual feminina: “O cinema
é o diabo, seu Ramalho. O senhor não imagina. [...] Provavelmente as
moças saem de lá esquentadas” (RAMOS, 2008, p. 132).
Introspecção e Deslocamento em Angústia 77

A alienação do sujeito resulta do fato de que não é só impossível


voltar ao passado, mas que Luís nunca deixou completamente os
códigos morais deste mundo velho, patriarcal, onde cresceu e onde seu
avô decretou justiça pessoal em conjunto com os cangaçeiros (RAMOS,
2008, p. 190, 234). Por isso, o ato de assassinar Julião Tavares torna
Luís um tipo de cangaçeiro urbano que estabelece, de um jeito pré-
moderno, a justiça vingativa, como se movido pelo orgulho e pelo
modelo arcaico de seu avô. O mundo violento do sertão reemerge na
cidade, por meio da narrativa de Seu Ramalho acerca do moleque que
violou a filha do seu patrão e, como punição, foi “cortado em pedaços”
(RAMOS, 2008, p. 173). Evidentemente, a “amizade” entre Ramalho
e Luís, a atitude misógina de ambos é construída precisamente sobre a
experiência compartilhada pelos dois do código conservador, patriarcal
e pré-moderno de comportamento que, por outro lado, é condenado
à invalidez na cidade. Além disso, o relato sobre a punição do moleque
lembra claramente as repetidas fantasias de Luís de uma Marina dividida
ou cortada em pedaços - “dividida numa grande quantidade de pedaços
de mulher” (RAMOS, 2008, p. 82), de tal modo que o leitor é levado
a estabelecer uma conexão entre o passado psíquico-biográfico do
protagonista e a forma específica de sua imaginação solipsista. O ato
culminante do assassínio é assim descrito como um momentâneo
descarte de sua condição social, e como um ato de autoafirmação que
transforma a sua fraqueza e humildade em ilusão de poder:

O homenzinho da repartição e do jornal não era eu. [...] Uma


alegria enorme encheu-me. Pessoas que aparecessem ali seriam
figurinhas insignificantes, todos os moradores da cidade eram
figurinhas insignificantes. Tinham-me enganado. Em trinta e
cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer
pela vontade dos outros (RAMOS, 2008, p. 238).

A ambivalência de Luís acerca da condição da modernidade


urbana é tipificada segundo o espaço particular que define a sua
condição, e que é testemunho de uma das cenas mais sintomáticas do
romance – o espaço do quintal ao lado de sua casa. Este é o espaço
78 Jobst Welge

intermediário, meio-privado, meio-público, de onde avista Marina pela


primeira vez, e de onde observa os seus vizinhos.12 A importância desse
espaço é revelada por Luís: “Afinal, para minha história, o quintal vale
mais que a casa” (RAMOS, 2008, p. 47). Em certo sentido, o espaço do
quintal, situado entre campo e cidade, pelos critérios da proximidade
e da comunidade “anônima” de seus habitantes, é protegido da massa
anônima da sociedade da modernidade urbana.13 O espaço simbólico
do quintal, então, significa a qualidade específica do deslocamento do
protagonista, que se relaciona também com uma transição entre ordens
temporais diferentes, entre o passado rural e o presente urbano. Além
disso, esse espaço serve como imagem do isolamento do protagonista,
a interpenetração de um espaço interior e exterior, através do qual o
sujeito interior é espacializado, e o mundo exterior aparece como uma
figuração de uma condição psíquica:

O meu horizonte ali era o quintal da casa à direita: as roseiras,


o monte de lixo, o mamoeiro. Tudo feio, pobre, sujo. Até as
roseiras eram mesquinhas: algumas rosas apenas, miúdas.
Monturos próximos, águas estagnadas, mandavam para cá
emanações desagradáveis. Mas havia silêncio, havia sombra
(RAMOS, 2008, p. 47).

Apesar das diferenças, o romance de Graciliano partilha com


obras de escritores mineiros, seus contemporâneos, a narrativa central
do deslocamento social e geográfico do protagonista, com a consequente
alienação do indivíduo no novo mundo urbano (MARQUES, 2011),
em relação ao qual seus pensamentos são ambíguos: “Adquiro ideias
novas, mas estas ideias brigam com sentimentos que não me deixam”
(RAMOS, 2008, p. 226).
Como em outras narrativas (proto-)existencialistas da América
Latina, Angústia nos apresenta o autorretrato de um assassino preso ao seu
12
Cf., por exemplo, Ramos (2008, p. 127): “Que me importa o que se passa nas casas alheias?
O que se passava na cama de d. Rosália era quase público, pelo menos estava no conhecimento
dos vizinhos”.
13
Cf. Saramago (2009, p. 466): “É como se os habitantes tentassem recriar um foco rural na
cidade grande, mais por não saberem viver de outra forma do que por algum espírito efetivo de
união ou genealogia”.
Introspecção e Deslocamento em Angústia 79

ressentimento solipsista e deslocado pelo processo localmente específico


de modernização que o deixa sem um sentido de pertencimento.
Finalmente, é importante enfatizar que esse amplo contexto sociológico,
obviamente de relevância central para a desintegração psíquica e social
do protagonista, não opera no nível narrativo de modo realisticamente
determinado, mas a nossa impressão do “contexto” social é inteiramente
(re-)criada pela voz do narrador, e, desta maneira, está intimamente
confinada às memórias distorcidas e traumáticas do puro protagonista.

Escritura, Repetição

De fato, como um romance pseudoautobiográfico, Angústia é um


texto radicalmente subjetivista, em que tudo o que o leitor é levado a saber
está filtrado pela percepção individual do narrador. Isso significa que o
leitor tem uma ideia da subjetividade de Luís, que é, em certo sentido,
um efeito do seu próprio ato (ficcional) de escrever.14 Entretanto, o ato
de narrar cria não só um sujeito ficcional, mas também um destinatário
imaginário, a figura de um leitor que deve ser “persuadido” pela voz do
narrador. Ocasionalmente, tal destinatário imaginário é até diretamente
interpelado.15 Mais uma vez, é útil comparar o drama interiorizado do
romance de um narrador essencialmente inconfiável com o modelo do
homem subterrâneo de Dostoievski. Como Victor Brombert (1999) tem
observado, o discurso do homem subterrâneo depende da presença de
uma testemunha virtual – ele, repetidas vezes, fala aos leitores implícitos
como “senhores” – como se pode ver no “monólogo dialógico do
homem subterrâneo, que inventa ou imagina o outro, mas argumenta
essencialmente com si mesmo” (BROMBERT, 1999, p. 36). De modo
análogo, isso vale também para o Luís, que interage menos com os
outros do que os observa. Apesar de não ter relações diretas com os
seus vizinhos (D. Rosália, D. Mercedes, o Lobisomem), ele informa
ao leitor o que sabe e observa sobre eles (BUENO, 2006, p. 624-625).
14
Cf. Teixeira (2004, p. 199): “[...] o homem que redigiu Angústia pode e, em certo sentido, deve
ser concebido como criação de suas páginas”.
15
Por exemplo, em uma cena Luís explica a sua tendência de estabelecer relações “sentimentais”
com mulheres, do seguinte modo: “Trabalhos, compreendem? Trabalhos e pobreza” (RAMOS,
2008, p. 42).
80 Jobst Welge

Nisso consiste outro aspecto que o protagonista de Graciliano


tem em comum com a linhagem dostoievskiana de narrativa mencionada
acima, quer dizer, a sua condição como escritor (virtual), a would-be-
writer. Mais do que notar o tema do autor-referencialidade, podemos
distinguir entre vários modos diferentes de o narrador tematizar o seu
próprio status como escritor. É certamente significativo que a transição
de Luís do campo à cidade reflete-se em seu abandono da escrita de
poesia a favor de sua nova associação com os gêneros mais comumente
“urbanos”, como o romance e o jornalismo (RAMOS, 2008, p. 467) –
isso lembra o homem subterrâneo, que é posicionado entre o realismo
e o romantismo. Considerando que o homem subterrâneo escreve
só para si mesmo, com um público imaginário apenas como ficção
de autosserventia (DOSTOIEVSKI, 2009, p. 36), Luís nos revela –
precisamente no momento em que seu ódio por Julião e Marina cresce
– que ele nutre o desejo de escrever um romance, e com ele a fantasia
que está especialmente dirigida à recepção do romance:

Enquanto estou ali fumando, nu, as pernas estiradas, dão-se


grandes revoluções na minha vida. Escrevo um livro, um
livro notável, um romance. Os jornais gritam, uns me atacam,
outros me defendem. O diretor olha-me com raiva, mas sei
perfeitamente que aquilo é ciúme e não me incomodo. Vou
crescer muito. Quando o homem me repreender por causa da
informação errada, compreenderei que se zanga porque o meu
livro é comentado nas cidades grandes (RAMOS, 2008, p. 63).

Neste sentido, a atividade da escrita é concebida enquanto


forma de autoafirmação. A mesma ideia, com “o livro circulando em
muitos países” (RAMOS, 2008, p. 263-268), é repetida no delírio final.
Também em momento anterior, quando se lembra de uma atraente
“datilógrafa” e imagina uma relação estável com ela, Luís sonha com a
ideia de produzir literatura: “Eu escreveria um livro de contos, que ela
datilografaria nas horas vagas, [...]” (RAMOS, 2008, p. 118). A leitura
de romances, a identificação imaginária com personagens ficcionais,
confere ao narrador uma proteção contra a multidão “hostil” (RAMOS,
Introspecção e Deslocamento em Angústia 81

2008, p. 144, 208) e, ao contrário do marxista judeu Moysés, ele rejeita


qualquer noção de literatura servindo à causa proletária (óbvia alusão à
tendência do realismo socialista dominante nos anos 30).
Se o projeto de Luís, de escrever e publicar um romance é
apresentado como uma possível forma de autoafirmação, depois ele
é qualificado com “crises de megalomania” (RAMOS, 2008, p. 108),
quer dizer, ele analisa o seu próprio desejo fantasmagórico. Mais do
que isso, as associações da literatura com fantasia e evasão têm que
ser confrontadas com outras considerações do narrador, polemizando
contra a ocupação profissional com literatura em geral (RAMOS,
2008, p. 108); ou com a imagem recorrente dos ratos que destroem e
corrompem os seus livros e a sua interioridade: “Afinal íamos encontrar
o armário dos livros transformado em cemitério de ratos. [...] Mijavam-
me a literatura toda, comiam-me os sonetos inéditos. [...]. Os ratos é
que me roíam a paciência. Corrote, corrode – era como se roessem
dentro de mim” (RAMOS, 2008, p. 109). Mas se Luís herdou a paixão
por “papel impresso” de seu pai (RAMOS, 2008, p. 174), a sua própria
posição decadente é também associada à prática de escrever como parte
do trabalho alienador no escritório, que é o lado oposto da projetada
autoafirmação literária: “De que me servia aquela verbiagem? [...] Seu
Luís arrumava no papel as ideias e os interesses dos outros”; “a bater
no teclado da máquina, a redigir artigos bestas” (RAMOS, 2008, p. 176,
270). Em uma característica modelar para o anti-herói fraco do romance
moderno, Luís recorre à literatura como uma forma de escape, mas,
ao mesmo tempo, apresenta a sua associação com a escritura como
signo da decadência física e psíquica, como o marco mais visível da
sua alienação. Por isso, o “livro notável” que Luís imagina escrever não
pode simplesmente ser visto como igual ao livro que estamos lendo,
porque Angústia é centrado sobretudo no desejo do protagonista de
escrever um tal romance que afirmasse o seu próprio ser. Se Angústia
segue a característica combinação de confissão e autojustificação – como
em Crime e Castigo de Dostoievski – o discurso retrospectivo de Luís
equivale à situação de antecipação constante. Por exemplo, desde o início,
82 Jobst Welge

símbolos como a cobra ou a corda fazem alusão ao ato futuro/passado


do assassínio, e a percepção torcida da realidade por parte de Luís é efeito
da antecipação, mas também é já resultado do ato. A esse respeito, Ivan
Teixeira (2004) nota de que modo o narrador encontra-se engajado em
uma cadeia de estratégias de autojustificação, e que as suas emoções e
percepções fragmentadas aspiram a uma lógica mais alta de ação: “Luís da
Silva transforma-se numa espécie de homem-arte: matou para produzir
literatura; inventou um amor para motivar o crime; depois, justificou
o crime para fundar uma ética” (TEIXEIRA, 2004, p. 198). O ato de
escrever cria um momento atemporal de autoafirmação, mas também
de desintegração psíquica; essa impressão de uma repetição eterna é
significado simbolicamente através de um motivo recorrente, a imagem
do parafuso. Nesse sentido, o romance ganha um senso de circularidade
que, como na novela de Dostoievski sobre o homem subterrâneo,
privilegia “o nível vertical, metafórico, ao contrário da narração linear”
(BROMBERT, 1999, p. 35). De fato, a famosa secção final do romance,
com o delírio crescente de Luís, começa com o comentário explícito
do narrador sobre a dissolução do tempo linear do relógio, a favor da
copresença de temporalidades distintas, e a delimitação de um espaço
físico, exterior, que associa o estado de introspecção intensa à tendência
de espacialização:

A réstia descia a parede, viajava em cima da cama, saltava no tijolo


– e era por aí que se via que o tempo não havia horas. O relógio
da sala de jantar tinha parado. Certamente fazia semanas que eu
me estirava no colchão duro, longe de tudo. Nos rumores que
vinham de fora as pancadas dos relógios da vizinhança morriam
durante o dia. E o dia estava dividido em quatro partes desiguais:
uma parede, uma cama estreita, alguns metros de tijolo, outra
parede. Depois, a escuridão cheia de pancadas, que às vezes não
se podiam contar porque batiam vários relógios simultaneamente
[...] (RAMOS, 2008, p. 272).

Se essa dissolução de um tempo cronológico ocorre ao final do


romance, o começo do texto enfatizou como a “vida monótona” de Luís
Introspecção e Deslocamento em Angústia 83

empregado é governada pelo “relógio oficial” (RAMOS, 2008, p. 10,


25). Do mesmo modo que o romance registra aqui tanto o tempo oficial
do trabalho alienado quanto a dissolução do tempo, a transformação
da linearidade em espaço, Angústia é, geralmente, a obra de uma voz
narrativa que simultaneamente nos apresenta, com a imediaticidade
de uma mente perturbada, certa distância em relação ao delírio do self.
Esses movimentos contraditórios equivalem a mimeses tipicamente
modernistas das sensações mais recônditas de um sujeito incoerente – e
apontam para o sentido específico de um deslocamento experimentado
por alguém desenraizado de um modo arcaico de vida e perdendo-se a
si mesmo na paisagem urbana da modernidade.

Referências

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1994.

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84 Jobst Welge

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WELGE, Jobst. Unfähigkeit. Die Figur des Angestellten als schwacher


Held im Roman der Moderne (Italo Svevo/Cyro dos Anjos). Arcadia,
Berlin, n. 45, v. 2, p. 401-420, jan. 2013.
Floema - Ano IX, n. 11, p. 85-108, jul./dez. 2015.

Graciliano Ramos e o Romance (numa leitura de Caetés)

Pedro Dolabela Chagas 1

Resumo: Apresentação de Caetés, de Graciliano Ramos, em um diálogo com os


conceitos de “desejo” e de “romance romanesco”, de René Girard, de “retórica”
e de filler, de Franco Moretti. Caracterização girardiana de João Valério; discussão
do solo social que fundamenta o seu desejo por Luísa. A partir da caracterização
morettiana da técnica narrativa do filler, discussão da ficcionalização do círculo
de classe média da cidade de província. Discussão sobre a retórica como modo
de veiculação dos valores regentes da representação da matéria social através
da manipulação da técnica literária. Para a conceitualização da representação
da sociedade brasileira contemporânea em Caetés, comparação com Raízes do
Brasil, de Sérgio B. de Holanda. Discussão da condição de Graciliano Ramos
como romancista, como romancista brasileiro e como teórico do Brasil: a
variabilidade interna da sua obra; o seu lugar na história literária brasileira.

Palavras-chave: Franco Moretti. Graciliano Ramos. História da literatura


brasileira. René Girard. Sérgio Buarque de Holanda.

Abstract: Presentation of Graciliano Ramos’s Caetés through a dialogue with


René Girard’s concepts of “desire” and “romanesque novel” and with Franco
Moretti’s concepts of “rethoric” and “filler”. Girardian characterization of
João Valério; discussion of the social foundations of his desire for Luísa.
From the Morettian characterization of the narrative technique of the
“filler”; discussion of Ramos’s fictionalization of a provincial middle class
environment. Discussion about rethoric as a means to communicate values that
will give shape to the literary representation of the social matter through the
manipulation of the literary technique. To conceptualize Caetés’s representation
of contemporary Brazilian society, comparison with Sérgio B. de Holanda’s
Raízes do Brasil. Discussion of Graciliano Ramos’s condition as a novelist, as
a Brazilian novelist and as theorist of Brazil: his work’s internal variability; his
place in the history of Brazilian literature.
1
Professor de Literatura Brasileira e Teoria Literária da UFPR, tem experiência na área de Letras e
Filosofia, com ênfase em epistemologia do pensamento estético, teoria literária, literatura brasileira
e norte-americana. Desenvolve atualmente uma série de estudos relacionando as teorias do romance
e da narrativa às teorias da contingência como os estudos da complexidade e da evolução.
86 Pedro Dolabela Chagas

Keywords: Brazilian literary history. Franco Moretti. Graciliano Ramos. René


Girard. Sérgio Buarque de Holanda.

Desejo

Logo no início da ação de Caetés, João Valério capta no olhar da


esposa do chefe uma ligeira ambiguidade, que ele prontamente interpreta
da maneira como lhe interessa: não seria aquilo uma rápida insinuação
de afeto, não seria possível que Luísa secretamente correspondesse à
paixão que ele sentia por ela? Não havia como saber, mas o efeito da
hipótese é imediato; da mera conjetura, ele salta para uma visão acabada
do seu futuro em comum:

Se ela me preferisse ao marido, não fazia mau negócio. E quando


o velhote morresse, [...] eu amarrava-me a ela, passava a sócio da
firma e engendrava filhos muito bonitos. Embrenhei-me numa
fantasia doida por aí além, de tal sorte que em poucos minutos
Adrião se finou, padre Atanásio pôs a estola sobre a minha
mão e a de Luísa, os meninos cresceram, gordos, vermelhos,
dois machos e duas fêmeas. À meia-noite andávamos pelo Rio
de Janeiro; os rapazes estavam na academia, tudo sabido, quase
doutor; uma pequena tinha casado com um médico, a outra com
um fazendeiro – e nós íamos no dia seguinte visitá-las em São
Paulo (RAMOS, 2006, p. 24-25).

Está tudo equacionado, fechado. Pula-se em um átimo da


insinuação de uma possibilidade para a sua concretização perfeita: Luísa
já não é mais objeto de uma paixão fugaz, mas de um amor seguro,
oficializado, adequado – ou pelo menos assim poderíamos pensar até que,
18 páginas mais tarde, uma certa Marta, filha de d. Engrácia, surgisse no
horizonte. Herdeira solteira, que tocava piano, fazia flores de parafina e
falava francês, ante a súbita sugestão de uma possibilidade, João Valério
se põe mais uma vez a sonhar:

Ficávamos noivos, casávamos, d. Engrácia morria. Imaginei-me


proprietário, vendendo tudo, arredondando aí uns quinhentos
Graciliano Ramos e o Romance (numa leitura de Caetés) 87

contos, indo viver no Rio de Janeiro com Marta, entre romances


franceses, papéis de música e flores de parafina. Onde iria morar?
Na Tijuca, em Santa Teresa, ou em Copacabana, um dos bairros
que vi nos jornais. Eu seria um marido exemplar e Marta uma
companheira deliciosa, dessas fabricadas por poetas solteiros.
Atribuí-lhe os filhos dedicados a Luísa, quatro diabretes fortes
e espertos (RAMOS, 2006, p. 42-43).

Mudam as esposas, mas a fórmula permanece. João Valério projeta


um final ótimo sem considerar o processo da sua realização: o seu desejo
opera um salto, sem levá-lo a imaginar as ações interpostas até a sua
concretização. É tudo simples: a situação financeira será resolvida pela
herança ou pela apropriação do patrimônio, o modelo de felicidade – o
local de residência, o status social, o modelo de família – está informado
pelas revistas. O que isso diz, em Caetés, sobre as relações de Graciliano
Ramos com o Brasil e sobre as suas relações com o romance?
René Girard (2009) nos sugere situar o delineamento do desejo
de João Valério dentro da tradição romanesca, à qual Girard contrapunha
o “romance romântico”. Movimentam os enredos dos “romances
romanescos” as ações de personagens movidos pelo desejo, mas que
demonstram não desejarem por si mesmos, emulando o desejo de
outrem. Eles revelam assim a função estrutural adquirida, no romance
romanesco, pela compreensão do desejo que Girard vê predominar nas
trocas sociais em geral: desejamos aquilo que é desejado por alguém
(por quem sentimos inveja ou a quem tomamos como modelo). Em
um enredo “romanesco”, se o objeto do desejo é desejado por um
terceiro, então o desejo do personagem é “triangular”, sendo que esse
“terceiro” pode ser interior ou exterior à ação romanesca (que pode
abrigar simultaneamente as duas variantes): em Caetés, em relação à
Luísa (objeto desejado), o “terceiro” é naturalmente Adrião, seu marido
e patrão do narrador, sujeito desejante.
A este “terceiro”, fonte de estímulo ao desejo e de sanção do valor
do objeto desejado, Girard (2009) dá o nome de “mediador”. O herói
sente pelo mediador uma admiração que pode levar à concorrência e à
88 Pedro Dolabela Chagas

raiva; na condição de “modelo do desejo”, o mediador, percebido como


“inalcançável”, pode chegar a produzir no sujeito desejante até mesmo
um sentimento de humilhação – que jamais se confundirá, porém,
com a impotência paralisante, uma vez que a humilhação impulsiona
o personagem à ação, propulsionando o desenvolvimento do enredo.
Tal entrelaçamento entre a admiração, a concorrência e a raiva revela
como, em Caetés, assim como em Proust (que Girard (2009) toma como
paradigma), a admiração de João Valério não recai sobre Adrião em
si, mas sobre a sua posição social. Tal como na atração que Mme. de
Guermantes desperta em Mme. de Verdurin, é forte a concorrência de
João Valério com Adrião, ainda que a sua raiva por ele não possa ganhar
plena vazão: a bondade e a ingenuidade de Adrião obrigam João Valério,
no limite, a cobrir-se de culpa pelo assédio à sua esposa, a sua raiva é
refreada pelo menosprezo que ele sente por si mesmo ao manifestar
o seu desejo. Notabilizará, pois, a construção do desejo em Caetés a
recorrência da autocrítica que o desejo tantas vezes desperta no narrador:
ao invés de deixar-se mover pela raiva despertada pela tensão entre a
veneração submissa e o rancor por reconhecer-se submisso à veneração
(que tanto motiva os movimentos estratégicos nos salons proustianos),
João Valério sente-se como um traidor, não apenas de Adrião, mas de
todo o círculo à sua volta, cindindo-se moralmente entre a vergonha
solitária e a fome pela satisfação do desejo.
Esta autocrítica não se confunde, porém, com qualquer
consciência da mediação triangular do desejo: a exemplo dos personagens
discutidos por Girard (2009), João Valério não conhece conscientemente
as mediações do próprio desejo, escondendo de si mesmo o elemento de
cálculo da sua paixão por Luísa. O leitor é assim convencido da realidade
da sua paixão, isto é: ele é convencido de que o desejo parte do sujeito
desejante, e não do desejo do outro. João Valério não apenas se convence,
mas nos convence do seu amor por Luísa; a verdade sobre o seu desejo
é tanto desvelada quanto obscurecida ao longo da narrativa: se o leitor
entrevê o seu componente de ambição (por riqueza e prestígio), ela é
simultaneamente obscurecida pela aparência de verdade com que João
Graciliano Ramos e o Romance (numa leitura de Caetés) 89

Valério a reveste. É esta complexidade o que nos permite identificar


em Caetés um enredo que (pela terminologia de Girard) não se apoia na
ilusão “romântica” do sujeito dono do próprio desejo: seja nas projeções
da mediação “externa”, “venerada abertamente” (como o era Amadís
de Gaula por D. Quixote ou a figura genérica do “proprietário” por
João Valério), seja nas projeções da “mediação interna”, cuja atração
é dissimulada pelo sujeito desejante (como faz Mme. de Verdurin em
relação a Mme. de Guermantes ou João Valério em relação a Adrião,
ao travestir seu ciúme como “crítica”), tem-se na “transfiguração do
objeto desejado” a projeção última da “unidade” das mediações externa
e interna, que em conjunto comandam as ações e o posicionamento
do sujeito desejante em relação ao seu próprio universo cotidiano
(GIRARD, 2009, p. 36).
Se há elementos suficientes para situar Caetés na tradição do
“romanesco” girardiano, isso permite retirar momentaneamente esse
romance do debate interno à historiografia literária brasileira para
localizá-lo na história de uma tradição globalmente disseminada – sem
retirá-lo, para tanto, do seu óbvio pertencimento ao sistema literário
brasileiro. Fora da endogenia própria aos estudos da literatura brasileira
Caetés aparece em uma relação complexa com o Brasil, com a literatura
brasileira e com o gênero romanesco. Como romance, Caetés não dava
continuidade à projeção – por longo tempo predominante no sistema
literário brasileiro – da literatura como instrumento de investigação da
identidade local através da representação do entorno social imediato,
nem à projeção – por longo tempo majoritária nos sistemas literários
centrais – da literatura como meio de exploração formal dos seus próprios
códigos estéticos. Ao problematizar as estruturas sociais circundantes,
Caetés o fazia mediante a exploração da dinâmica (individual, social) do
desejo, cuja dinâmica, ao revelar o estado da sociedade por entre a mecânica
das suas relações sociais, nunca é meramente individual (ou “subjetiva”):
por ela descortina-se o estado da sociedade, ou de certa porção dela; por
ela descortinam-se, em Caetés, o Brasil e a sua classe média. O desejo
aparece ali sob um verniz especificamente brasileiro, ou melhor: ele
90 Pedro Dolabela Chagas

coloca em ação a versão do Brasil que Caetés pretendia projetar, e que


não se confundiria com outras versões do Brasil construídas pelo próprio
Graciliano Ramos em outros de seus romances. Mas que versão seria
essa; o que a particulariza?

Fillers

Em uma reunião de rotina na casa de Adrião, Nazaré reage a


um elogio feito por Vitorino às obras de um certo Cassiano, escultor
que ela critica como analfabeto. A acusação desperta a reação do padre
Atanásio, editor do jornal católico, que se manifesta contra a necessidade
da educação formal para o saber prático. A controvérsia se coloca assim:

– Quem é bom já nasce feito. [...] Vejam o Miguel Ângelo. Agora


mesmo, no livro de um francês... [...] E Tubalcaim, homem, e
Jubel, Noé, essa gente da Bíblia? Quem ensinou o Noé a fabricar
vinho? Ora, o livro do francês... E a torre de Babel, a embrulhada
das línguas? São fatos, estão nas escrituras.
– Que diz o livro? perguntou Adrião.
– Diz muito, respondeu o editor da Semana. É de um francês
extraordinariamente instruído. Sabe tudo. Aquelas embromações
do Laplace. Nebulosas, potocas. Porque o Gênese... Enfim uma
sabedoria imensa. Trata do sol, da lua, das estrelas, de uns bichos
brabos que existiam antigamente. Dinossauros, seu Miranda? É
isso mesmo. [...]
– Mas afinal, objetou Nazaré, que relação tem isso com os
bonecos do aleijado [as esculturas de Cassiano]?
– Relação? fez o vigário, espantado. Ora essa! Tem relação. Eu
ainda não acabei.
Coçou a testa, aflito, tentando recordar-se. De repente, com
uma alegria infantil:
– Ah! sim. É que há no livro umas estatuetas desenterradas lá
por onde Judas perdeu as botas, uns bisões que têm muitos
milhares de anos. Ótimos.
– O dr. Liberato afirma que as imagens do Cassiano também
são ótimas, observei eu.
– O dr. Liberato? inquiriu Adrião com azedume. Que entende
disso o dr. Liberato?
– Que entende? Deve entender. Não é médico? Se as imagens
estivessem erradas, ele sabia (RAMOS, 2006, p. 55).
Graciliano Ramos e o Romance (numa leitura de Caetés) 91

É vertiginosa a rarefação intelectual da conversa: não bastasse


a incapacidade de fundamentar os seus juízos argumentativamente, os
falantes sequer conseguem manter a linearidade do diálogo, que pula
de uma coisa a outra sem qualquer amarração. As referências surgem e
logo desaparecem, enquanto as opiniões – que vêm suprir a ausência de
argumentação – assumem a forma do juízo peremptório, cuja enunciação
pressupõe sempre algum exercício de poder determinado não pelo
mérito intelectual, mas pela posição hierárquica do falante em meio
àquele ambiente. É em cenas como esta, que se sucedem às dezenas,
que vemos emergir o Brasil de Caetés.
Tal cena exemplifica o procedimento narrativo que Franco
Moretti chamaria de filler. Situados entre os (relativamente poucos) turning
points, que determinam os pontos de bifurcação do enredo, os fillers
correspondem àquilo que acontece entre aqueles pontos de bifurcação.
No romance moderno a quantidade de fillers supera amplamente a de
turning points. Em Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, Moretti (2006)
contabiliza nada menosque 110 episódios daquele tipo: “they really
don’t do much: they enrich and nuance the progress of the story, yes,
but without ever modifying what the turning points have established,
because they are indeed too ‘weak’ to do so” (MORETTI, 2006, p.
368). “Fracos demais” para alterar significativamente o enredo, qual
seria a sua importância? Por que desenvolver tamanha quantidade de
cenas que pouco acrescentam ao enredo? Isso contradiz a impressão
final que a leitura ordinariamente desperta: enquanto a lembrança
posterior se concentrará na recapitulação dos poucos momentos em
que eventos decisivos acontecem – eventos que nos parecerão resumir
retrospectivamente a estória como um todo –, a experiência real da
leitura, em seu desenrolar, é maciçamente ocupada por sequências em
que quase nada acontece.
Mas fillers não são irrelevantes; pelo contrário, eles desempenham
uma função decisiva. Nas palavras de Moretti (2006, p. 368),

Narration: but of the everyday. This is the secret of fillers.


Narration, because these episodes always contain a certain
dose of uncertainty [...]; but the uncertainty remains local,
92 Pedro Dolabela Chagas

circumscribed, without long-term consequences “for the


development of the story”. [Fillers] are both mechanisms
designed to keep the “narrativity” of life under control – to give
a regularity, a “style” to existence.

Conferir “regularidade” e “estilo” à existência cotidiana: tal é


a função dos fillers. Eles dão forma às rotinas individuais e coletivas,
conferindo-lhes ritmo, caracterizando os seus códigos de valor e
de expectativa, além das suas bases materiais e institucionais, assim
apresentando, através das pequenas interações cotidianas, os hábitos, os
padrões de comportamento, os modos de abertura e de constrição de
possibilidades característicos do microcosmo ficcional. Produzindo um
corte notável em relação à tradição romanesca anterior – que primava por
enfatizar as sequências de ações –, os fillers começaram a ser utilizados
entre o final do século XVIII e o começo do XIX, e a partir daí tudo
mudou: se antes a representação do cotidiano (que sempre aparece
de alguma forma) era logo abandonada para que a estória – isto é, as
grandes ações e acontecimentos – pudesse ser contada, Austen inovou ao
localizar os acontecimentos relevantes em uns poucos pontos de inflexão
da trama, fazendo as rotinas cotidianas preencherem todo o restante da
narrativa (MORETTI, 2006, p. 372). Esta técnica conheceria um enorme
sucesso; ainda raros em 1800, consolidando-se ao longo do século XIX,
os fillers chegariam a ocupar a quase totalidade dos romances europeus da
primeira metade do século XX, especialmente a partir de Budden brooks.
Para Moretti (2006), o que os teria tornado inicialmente tão atraentes para
o leitor do século XIX foi a sua aptidão em representar o habitus de uma
classe média crescente, organizada na intimidade da residência unifamiliar
e cujo comportamento público passava a se pautar pela regularidade e
contenção, na expressão dos afetos e das opiniões (em detrimento da
liberdade de manifestação dos sentimentos), estimulado por uma ética
impessoal de trabalho: em outras palavras, os fillers ofereciam “the kind
of narrative pleasure compatible with the new regularity of bourgeois
life. [They] are an attempt at rationalizing the novelistic universe: turning
it into a world of few surprises, fewer adventures, and no miracles at
all” (MORETTI, 2006, p. 381).
Graciliano Ramos e o Romance (numa leitura de Caetés) 93

No momento inicial da sua exploração, os fillers ainda davam


vazão a um novo senso de possibilidade localizado na vida cotidiana:
Goethe, Austen, Scott, Balzac, “‘reawaken’ the everyday, making it feel
alive, promising: and although the promises will not all be kept, [...] that
sense of openness will never be lost” (MORETTI, 2006, p. 376). Mas em
meados do século XIX – com Madame Bovary à frente – a maré viraria,
com o predomínio de um cotidiano opressivo, repetitivo, ordinário,
medíocre (MORETTI, 2006, p. 378): é esta a herança à qual Graciliano
Ramos daria continuidade em Caetés. Na cena anteriormente transcrita,
abundam a tagarelice, a superficialidade, a fofoca e a perda de tempo,
periodicamente temperados pelo juízo autoritário e inculto. Tal será
a tônica dos fillers naquele romance, onde eles se sucedem na mesma
intensidade que em Jane Austen: há uma relação forte de proporção
entre o tempo tomado pela sua leitura e o ritmo da vida daquela
província, em sua lentidão, em sua mesmice... É o mundo da fixidez,
da falta de mobilidade, do cronotopo que dilata a duração de uma rotina
que é, porém, circunscrita a um espaço reduzido de deslocamento, as
suas personagens indo e vindo de uns poucos bares, praças, locais de
trabalho, salas de visitas... A passagem lenta do tempo incide, portanto,
sobre um espaço exíguo e uma paisagem quase inerte: “Na calçada [...]
duas mulheres iam e vinham; à direita vultos esquivos esgueiravam-se
para o Pernambuco-Novo; à esquerda um automóvel rodava silencioso;
[...] além da estrada da Lagoa [...], tremiam ao longe pequeninos pontos
luminosos” (RAMOS, 2006, p. 60).
Este cronotopo adquire o seu componente crítico quando o
imobilismo espacial da cidade pequena é emparelhado ao imobilismo
intelectual daquela comunidade. A representação daquela mesmice e
daquela mediocridade efetua uma “desfaçatez de classe” semelhante
àquela que Roberto Schwarz (2000) localizou em Memórias Póstumas de
Brás Cubas, ao propugnar uma crítica a um certo entorno social (à classe
de origem do autor e do herói do romance) operada a partir de dentro
daquele próprio entorno, ao qual o personagem pertence e do qual ele
não se dissocia. É claro que os narradores são diferentes: Brás Cubas
94 Pedro Dolabela Chagas

criticava o seu próprio meio como se fosse um observador externo,


mesmo que seguisse pertencendo a ele; João Valério, por sua vez, é por
demais inserido para se autodistanciar com tamanha desenvoltura. Ainda
assim, ao abordar os círculos de sociabilidade que a sua classe produz e
os padrões de inserção que ela propicia e estimula, ao contrário do que
se vê em Vidas Secas – em sua observação do retirante como outro – a
narração de Caetés perfaz, dentro da classe social à qual tanto o autor
quanto o narrador pertencem, um giro autorreflexivo comparável ao do
narrador machadiano, operado mediante um procedimento estilístico
simples, discreto, e por isso facilmente reiterado ao longo da obra:
sempre que o entorno social assume o primeiro plano, a narração em
primeira pessoa cede lugar aos diálogos entre os personagens, permitindo
que a apresentação daquele microcosmo deixe de se pautar pela mediação
no narrador-personagem, para adquirir a aparência de “neutralidade”
própria à narração onisciente, assim favorecendo o distanciamento do
leitor. À narração em primeira pessoa de João Valério somam-se, pois,
as vozes de outras personagens, conferindo dialogismo à apresentação
da comunidade e, por este meio, dotando Caetés do verniz crítico que
apenas a voz de João Valério não poderia conferir-lhe.
Esta polifonia de vozes produz um leitor que compreende aquela
ambiência social melhor do que os personagens o fariam, aprendendo
a criticá-la, ao mesmo tempo em que compreende os motivos da
incapacidade dos personagens em fazê-lo. Daí que a autocrítica de João
Valério, ao final da obra, surja, para o leitor, como uma apercepção, na
qual o personagem mostra ter finalmente aprendido a interpretar a sua
própria mediocridade como o leitor há muito aprendera a fazer. Mas
a apercepção apresenta um viés que o leitor não necessariamente teria
formulado por conta própria, uma vez que, extrapolando a ambiência
do enredo, a crítica passa a incidir também sobre ele, leitor: se João
Valério aprendera a criticar a si mesmo (e à sua posição na mediocridade
circundante), ele não se mostrava em nada superior a ela, uma vez que
a sua apercepção não despertava nele qualquer desejo de escape, mas
sim de inserção – e por este meio Graciliano Ramos sugeria, conforme
Graciliano Ramos e o Romance (numa leitura de Caetés) 95

veremos, a indistinção entre o personagem principal do seu romance e


todo e qualquer brasileiro.
A esta derivação voltaremos mais tarde; por ora, sintetizemos
este ponto do percurso: através dos fillers, com a sua representação da
repetição e do estrangulamento próprios àquele microcosmo social,
Graciliano Ramos constrói, em Caetés, a representação de um certo modus
operandi próprio à classe média brasileira da época. À caracterização deste
modus dedicaremos a seção seguinte, procurando compreender, para
tanto, o aspecto preciso sob o qual o Brasil é apresentado na obra: de que
maneira a versão ficcional do Brasil apresentada em Caetés fundamenta
a dinâmica do desejo condutora do seu enredo? Ao qualificarmos como
“desejo” a paixão de João Valério por Luísa, de que maneira ela aparece
formatada pelas condições especificamente brasileiras que orientam
os seus objetivos estratégicos? Tais perguntas nos fazem perceber que
o Brasil, em Caetés, não aparece como physis, isto é: não se pressupõe,
naquela obra, que a identidade nacional brasileira esteja imediatamente
encarnada na paisagem (natural ou urbana) do país. Não se tem ali um
Brasil visto, mas sim perspectivado sob um modo de relação social próprio
às suas classes médias – ecoando a “desfaçatez” machadiana. Veremos
que este modo é caracterizado pela indistinção entre a sociabilidade e a
mobilidade social: desta indistinção de fundo despontará, no momento
final de apercepção do narrador, a reflexão que disporia os brasileiros
sob a imagem-síntese do “caeté”.

Retórica

Os fillers apresentam o solo social do desejo de João Valério ao


mostrarem um círculo social que, em sua mediania, não estabelece
distinção entre a sociabilidade e a mobilidade social: isso nos sugere que
eles se comportam como estratégias retóricas de expressão dos conteúdos
sociais, pelo menos na acepção que Moretti (2007) confere ao termo. Ao
situar a retórica na interface entre a história social e os estilos literários,
Moretti (2007) encontra nela um “caráter social, emotivo, partidário;
96 Pedro Dolabela Chagas

em suma, um caráter avaliador. Persuadir é o contrário de convencer.


A meta não é determinar uma verdade intersubjetiva, mas obter apoio
para um sistema específico de valores” (MORETTI, 2007, p. 16). Mais
especificamente, é retórica toda mobilização seletiva de códigos (textuais,
no caso da literatura) com vistas à veiculação de valores capazes de dar
visibilidade às aporias latentes da experiência histórica: nesta acepção,
a “persuasão” é empreendida mediante a ficcionalização da vivência de
problemas que as estruturas e as instituições sociais dominantes (na
política, no saber, na economia...) provocam, mas não propriamente
tematizam. Pelo contrário, a tematização dos problemas latentes
tende a ser operada fora das práticas normais das grandes instituições,
encontrando na arte e na produção intelectual um campo de expressão
particularmente fecundo. No caso da literatura, ao tentar persuadir o
leitor da “verdade” dos valores pelos quais o procedimento retórico tenta
evidenciar e equacionar aquelas latências, mais eficaz será o código que
menos atenção chamar para si mesmo: “quanto mais uma formulação
retórica se transforma em lugar-comum ([...] quanto mais se torna
‘implícita’, despercebida por nós) mais persuasiva será” (MORETTI,
2007: 18). No limite, a obra que recorre a códigos imediatamente
assimiláveis pelo leitor contemporâneo parecerá estar comunicando
objetivamente a vivência social e histórica do período: desaparecendo sob
o representado, códigos persuasivos são menos perceptíveis enquanto
códigos, assemelhando-se assim “aos pressupostos profundos, encobertos
e invisíveis de todas as visões de mundo. [...] Sua eficácia duradoura e
impercebida aponta para o amplo campo de estudos da cultura inconsciente,
do conhecimento implícito de toda civilização” (MORETTI, 2007, p. 19).
Aí reside a interface que Moretti estabelece entre a análise
estilística e a história social: se os códigos literários permitem a encenação
de tensões latentes em uma certa época, o conhecimento do contexto
sócio-histórico é “o ponto de partida da interpretação, fornecendo-lhe
a hipótese inicial sem a qual os mecanismos retóricos seriam difíceis
de entender. [...] textos literários são produtos históricos organizados
segundo critérios retóricos” (MORETTI, 2007, p. 22). Especificamente na
Graciliano Ramos e o Romance (numa leitura de Caetés) 97

abordagem do nosso objeto, fazer coincidir a estilística e a análise social


na análise da construção, em Caetés, de uma certa versão da realidade
social brasileira, implica identificar, no texto, uma convergência (ou
adequação) entre o modo da expressão e a realidade social ficcionalizada:
implica, em outras palavras, tratar os seus procedimentos narrativos
como os correlatos formais das latências – das tensões, das aporias,
dos conflitos – que estruturavam certos aspectos da experiência do
cotidiano de classe média no país, identificando-se a correlação entre a
apresentação crítica dos elementos que estruturavam aquele cotidiano
(e as possibilidades de inserção social que ela oferecia) e as estratégias
formais, estilísticas ou retóricas do romance, isto é, a adequação forte
entre o procedimento estilístico e a matéria tematizada.
Ao tentarmos fazê-lo, para que o delineamento da ficcionalização
da matéria social em Caetés adquira consistência conceitual, é oportuno
estabelecer relações não genericamente entre a obra e a sua “época
histórica” – o que seria vago demais para conferir concretude à análise
–, mas com os modos de interpretação de si mesma que a sua época
produziu. Apesar de operarem com estratégias e objetivos diferentes, a
literatura e o pensamento social, colocados à distância das instituições
dominantes e em seu apelo ao senso comum letrado, comportam-se como
meios complementares de investigação das insatisfações e ansiedades
latentes: tal como na literatura, as sínteses oferecidas pelo pensamento
social reduzem a complexidade do real para focalizarem, em sua máxima
potência, as propriedades específicas de alguns de seus problemas
centrais – em especial daqueles que não ocupam as comunicações oficiais
e que não estão formuladas com clareza nas comunicações interpessoais,
permanecendo como o impensado da época. As sínteses explicativas
das humanidades fertilizam a análise literária ao se revelarem como um
modo diferente, mas não divergente, de posicionamento em relação a
realidades comuns, fornecendo determinado lastro conceitual para a
apreciação do modo de pertencimento ao tempo próprio às obras literárias:
encontrar sensibilidades comuns, na literatura e no pensamento social,
para as latências que dão forma à vivência social, é identificar modos
98 Pedro Dolabela Chagas

de interpretação que, de maneiras diferentes, mas complementares,


respondem àquelas latências retoricamente, isto é, mediante o recurso a
estratégias de convencimento quanto a certas “verdades” – as verdades
pelas quais as humanidades procuram conceitualizar o tempo histórico e
a literatura procura encenar a sua experiência.
É assim que, ao encenar algo daquilo que mais tarde fundamentaria
a interpretação do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, o romance
inaugural de Graciliano Ramos mostrava o seu co-pertencimento aos
modos de teorização do país então em vias de elaboração – com a
diferença óbvia de que nada ali era propriamente “teorizado”, mas
construído retoricamente. Se falamos de encenação, é porque os seus
procedimentos formais – estilísticos – almejavam “colocar em cena” a
vivência social: o máximo coloquialismo das falas, a elocução ignorante
e rude, a ironia e a autoironia, que rasuram a seriedade e a importância
dos lugares, das atividades e das pessoas, a ligeireza com que o narrador
aborda temas importantes (o casamento, o projeto literário, o futuro
profissional, as relações de amizade...), que acabam soando indiferentes.
Todas estas são estratégias, diferentes entre si, mas mutuamente
complementares, de encenação retórica das verdades relativas ao mundo
onde João Valério vivia, ou melhor, se hospedava, pois essas estratégias
concorrem para insinuar que aquele mundo não era integralmente seu,
mas dos outros: apesar de inserido, ele frequentemente o observa,
com indolência, a meia-distância; inseguro quanto à própria posição,
ele se movimenta com preguiça, como um estrategista preguiçoso que vai
conformando as suas ambições ao mais imediato, àquilo que está ao
alcance da mão. Decerto o seu afastamento parcial não é plenamente
consciente, pois ele emerge, sobretudo, no seu comportamento e nos
seus afetos, e não na sua consciência: muito tempo passará até a sua
autocrítica final, que continuará, ainda assim, permeada de cinismo,
dado que João Valério não procura por qualquer alternativa. Pelo
contrário, o seu objetivo continua sendo o de se inserir e, uma vez inserido,
prosseguir no seu atavismo: a sua autocrítica, com isso, se autocorrói;
ele compreende a dinâmica, mas escolhe o caminho mais fácil. À sua
maneira, tudo isso se aproxima de Raízes do Brasil.
Graciliano Ramos e o Romance (numa leitura de Caetés) 99

De saída, não seria João Valério um exemplar perfeito do “tipo


ideal” do “aventureiro”, em oposição ao “trabalhador”? Enquanto o
trabalhador “enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a
alcançar”, para o aventureiro “o objeto final, a mira de todo esforço, o
ponto de chegada, assume relevância tão capital, que chega a dispensar,
por secundários, quase supérfluos, todos os processos intermediários.
Seu ideal será colher o fruto sem plantar a árvore” (HOLANDA,
1995, p. 44). Não é exatamente esta a relação de João Valério com o
seu projeto literário? Ao iniciar um romance histórico sobre os índios
caetés, ele se depara com um problema previsível, que resolve assim:
“Talvez não fosse mau aprender um pouco de história para concluir o
romance. Mas não posso aprender história sem estudar. E viver como
o Dr. Liberato e Nazaré, curvados sobre livros, matutando, anotando,
ganhando corcunda, é terrível. Não tenho paciência” (RAMOS, 2006,
p. 191). Isso é o exato oposto da ação do “trabalhador”, para quem “O
esforço lento, pouco compensador e persistente, [...] tem sentido bem
nítido. [...] Seu campo visual é naturalmente restrito. A parte maior que o
todo” (HOLANDA, 1995, p. 44). O “aventureiro”, por sua vez, “ignora
as fronteiras. [...] onde quer que se erija um obstáculo a seus propósitos
ambiciosos, sabe transformar esse obstáculo em trampolim. Vive dos
espaços ilimitados, dos projetos vastos, dos horizontes distantes”
(HOLANDA, 1995, p. 44). No caso de João Valério, o “trampolim”
para os “horizontes distantes” nem de longe adquire o caráter “épico”
que o desbravamento do Brasil pode ter assumido para o colonizador
português, pois se resumia à sua pequena estratégia de inserção social,
para a qual o romance serviria de instrumento: “Sorria-me [...] a
esperança de poder transformar esse material arcaico numa brochura
de cem a duzentas páginas, cheia de lorotas em bom estilo, editada no
Ramalho” (RAMOS, 2006, p. 191).
A confissão da própria preguiça e da própria ignorância nos indica
a relação entre a sua “ética” de trabalho e a formulação do seu desejo:
na citação logo acima, o seu trabalho como escritor aparece direcionado
para uma inserção social idealizada, a ser impulsionada pela imagem que
100 Pedro Dolabela Chagas

o “homem de letras” alcançaria em seu círculo social imediato – João


Valério não pensa para além da paróquia – e não pelo mérito intrínseco
da sua realização ou pelo montante de trabalho investido. Uma vez
consolidada uma imagem pública positiva, o status social de João Valério
estaria assegurado indefinidamente, garantindo-lhe um poder local
amparado não pelo mérito, mas por uma reputação a ser reafirmada, a
partir daí, pelo seu bom relacionamento pessoal com a “boa sociedade”:
é esta a “ética do trabalho” do “homem cordial”, para quem a busca do
sucesso profissional é guiada pelo interesse em firmar, de uma vez e para
sempre e sem grande esforço, uma posição social e relações pessoais
satisfatórias. A competência real e sua confirmação reiterada não entram
no cálculo, submergindo por detrás da imagem pública proporcionada
pela reputação alcançada: “essa ânsia de prosperidade sem custo, de
títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis, tão notoriamente
característica da gente de nossa terra, não é bem uma das manifestações
mais cruas do espírito de aventura?” (HOLANDA, 1995, p. 46).
Ao fim e ao cabo, é este padrão de mobilidade social que motiva
o cronotopo em que a duração temporal é dilatada na morosidade do
cotidiano, mas, restrita a um deslocamento espacial comprimido, além
de quase nulo no plano informacional (por se restringir à frequentação
repetida dos mesmos lugares que, desse modo, pouco acrescentam de
novo, enquanto o universo para além da paróquia subsiste apenas na
imaginação). A representação do lugar não interessa pelo lugar em si,
mas pela sua exposição como epifenômeno de uma condição estrutural
profunda: trata-se de um cronotopo que busca representar a experiência,
vividamente brasileira, de uma passagem do tempo lentíssima que em
nada altera as relações pessoais e as relações de poder estabelecidas – que
em nada altera, em outras palavras, as estruturas sociais que o brasileiro
aprende a perceber e a descrever como arraigadas. Neste imobilismo,
posições conquistadas são tudo, pois, uma vez estabelecidas, nada muda
nunca. Uma vez inserido, a posição do indivíduo estará para sempre
assegurada: bastará então tocar a inércia, a improdutividade, a falta de
inventividade – a imobilidade que satura o espaço ficcional de Caetés.
Graciliano Ramos e o Romance (numa leitura de Caetés) 101

Não era isso que Sérgio Buarque de Holanda identificava no “vício do


bacharelismo” que grassava pelo país? Tal “vício” existiria porque

A dignidade e importância que confere o título de doutor


permitem ao indivíduo atravessar a existência com discreta
compostura e, em alguns casos, podem libertá-lo da necessidade
de uma caça incessante aos bens materiais, que subjuga e humilha
a personalidade. [...] Não é outro [...] o motivo da ânsia pelos
meios de vida definitivos, que dão segurança e estabilidade,
exigindo, ao mesmo tempo, um mínimo de esforço pessoal,
de aplicação e sujeição da personalidade (HOLANDA, 1995,
p. 157).

Pois é justamente esta a relação de João Valério com o trabalho. Ao


longo do romance, vemos que o seu cotidiano profissional é monótono
e medíocre: “É um ofício que se presta às divagações do espírito, este
meu. Enquanto se vão acumulando cifras à direita, cifras à esquerda [...],
a imaginação foge dali. [...] para molhar o papel de seda, enxugá-lo, pôr a
fatura ao lado [...], não é necessário esforço de pensamento” (RAMOS,
2006, p. 41). Mas mesmo esta rotina tão ordinária poderia proporcionar
uma estabilidade que, para ele, apresentava-se como um bem maior e
um objetivo a ser alcançado – desde que, é claro, ele passasse a ocupar
a posição do chefe, pois o chefe pode viver aquela exata rotina sem
ter a sua imagem rebaixada, uma vez que a mediocridade da função é
amplamente compensada pelo enriquecimento que ela proporciona.
É esta estabilidade fácil e honrada – e não o desafio profissional ou a
satisfação no trabalho – que provoca no subalterno o desejo de tomar
o lugar do patrão. Que o desejo de João Valério pela sua esposa se
confundia com o desejo pela tranquilidade e segurança da sua posição
social, isso fica claro quando, em um lance imprevisto, Adrião se suicida
e Luísa fica desimpedida: ao invés, então, de passar a cortejá-la após o
intervalo respeitoso do luto, o seu desejo subitamente murcha. Ele passa
a evitá-la até chegar a esquecê-la, uma vez que, agora desimpedido de
assumir a posição do chefe, a sua ambição maior está satisfeita: “Passei
a sócio da casa, [...] Luísa é hoje comanditária; a razão social não foi
102 Pedro Dolabela Chagas

alterada. Abandonei definitivamente os caetés: um negociante não se


deve meter em coisas de arte” (RAMOS, 2006, p. 245). Agora inserido,
ele não mais precisa sequer se autodistinguir como “jovem intelectual”
e “futuro escritor”, artifício pelo qual, como um perfeito personagem
“romanesco”, ele inicialmente procurara transformar em superioridade
o seu senso de humilhação: agora livre para ascender socialmente, ele
será apenas mais um brasileiro-caeté.
Nesta interseção entre a forma literária (o cronotopo espacialmente
estático, porém dilatado na passagem morosa do tempo; os fillers
como técnica de representação da mediocridade cotidiana; o narrador
afetivamente cindido entre o pertencimento e o autodistanciamento do
seu meio social) e as latências sociais contemporâneas (a pouca mobilidade
hierárquica, a indistinção entre a mobilidade e a sociabilidade “cordial”,
a ética “aventureira” do trabalho, a confusão entre mérito e reputação)
situamos a condição específica de Caetés como construção retórica do
Brasil, em sintonia com outra grande interpretação contemporânea do
país: aquela apresentada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do
Brasil. Antes de passarmos ao item final – onde discutiremos o lugar
de Graciliano Ramos na história da literatura brasileira –, vale notar
que Moretti (2007), em sua teorização da retórica literária, lançou
uma proposição surpreendente ao afirmar que, ao encenar as tensões
não-enunciadas da sua época – trazendo-as à tona sem propriamente
“debatê-las” ou “conceitualizá-las” –, “a real função da literatura [seria]
garantir o acordo: fazer os indivíduos se sentirem ‘à vontade’ no mundo
que por acaso habitam, conciliá-los, de forma agradável e imperceptível,
com suas normas culturais predominantes” (MORETTI, 2007, p.
41). Se a proposição faz sentido, no caso em questão seria preciso
compreender que, pela perspectiva crítica de Graciliano Ramos, fazer
com que o leitor se sentisse “à vontade em seu mundo” significava fazer
com que ele se sentisse distante dos hábitos e valores do universo social
ao qual ele pertencia, identificando-se como outro em relação àquela
imagem do Brasil mediano. Não teria Graciliano Ramos tocado aí em
uma ambiguidade fundamental das “normas culturais predominantes”
Graciliano Ramos e o Romance (numa leitura de Caetés) 103

no Brasil, a saber: a predisposição do brasileiro a sentir-se outro em


relação ao “brasileiro mediano”, cegando-se reiteradamente quanto à sua
própria semelhança com a imagem rejeitada do seu conterrâneo? Mas,
em Caetés, a posição de conforto que o brasileiro encontra ao se definir
como não brasileiro chega a um impasse, pois o autor impede que o
leitor se sinta “superior” à versão oferecida do Brasil: na autocrítica final
de João Valério, todos os brasileiros estão incluídos, e o que se pedia ao
leitor é que a sua eventual autocrítica enquanto brasileiro o levasse a fazer
aquilo que João Valério jamais faria: tornar-se menos brasileiro. Mas tal
possibilidade é, no máximo, lançada ao mar como uma mensagem na
garrafa: que um leitor contemporâneo acompanhasse a fundamentação
social do desejo de João Valério até o seu limiar de esvaziamento e
autoreflexão, derivando disso uma autocrítica enquanto brasileiro; esta
era uma possibilidade bastante incerta... O que apenas aprofundava
o impasse, pois era isso que lhe caberia fazer; se o brasileiro instruído
tende a sentir-se diferente e a rejeitar os brasileiros “comuns” – os
“brasileiros-caetés” –, João Valério ao menos não se autoenganava: ele
sabia ser aquilo que ele tanto rejeitava.

História da literatura brasileira

Sob a inspiração de René Girard (2007), descrevemos Caetés


como um “romance romanesco”, em que o desejo propulsor das ações
do personagem principal se fundamenta em uma dinâmica social
apresentada ao leitor através de fillers que, conforme a tradição narrativa
consolidada no século XIX, informam o ritmo e as características da
vida cotidiana e das relações pessoais do universo ficcional. Os fillers
são um procedimento, uma estratégia retórica pela qual os problemas
latentes na sociedade contemporânea eram naturalizados no universo
ficcional, naturalização que apelava, negativamente, para que o leitor
a desnaturalizasse, permitindo, assim, que as latências fossem, afinal,
percebidas, experienciadas e criticadas por ele – ainda que, ao final da
leitura, Graciliano Ramos não o colocasse em uma posição de conforto,
104 Pedro Dolabela Chagas

pois nenhum brasileiro poderia se excluir, com a consciência tranquila,


da sua identificação como “caeté”; apesar de enunciada em primeira
pessoa, a apercepção final de João Valério claramente remete aos
brasileiros em geral:

Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com


uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de
civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não
sabia o que se passava na alma de um caeté! Provavelmente o que
se passa na minha, com algumas diferenças. Um caeté de olhos
azuis, que fala português ruim, sabe escrituração mercantil, lê
jornais, ouve missas. É isto, um caeté. Estes desejos excessivos
que desaparecem bruscamente... Esta inconstância que me faz
doidejar em torno de um soneto incompleto, [...] um romance
que não posso acabar... O hábito de vagabundear por aqui, por
ali, por acolá [...]... Esta inteligência confusa, pronta a receber
sem exame o que lhe impingem... [...] Explosões súbitas de dor
teatral, logo substituídas por indiferença completa... (RAMOS,
2006, p. 250).

A passagem da máxima singularização (a autocrítica do


personagem) à totalização (a remissão ao país) não se faz pelo conteúdo
específico da passagem – que a rigor se resume a João Valério –, mas
pela sua relação de contiguidade com o modo social apresentado ao longo
do romance, em sua compatibilidade com a interpretação do Brasil
de Sérgio Buarque de Holanda e de outros autores do movimento de
renovação da interpretação do país que, eclodindo na década de 1930,
incluiria também o romancista estreante Graciliano Ramos. Tal como
os grandes intelectuais da sua geração, Ramos intuía – e se incomodava
– com o fundo de arcaísmo sobre o qual se assentava a identidade do país
e do seu povo, cujos padrões de ação e de comportamento (social,
familiar, econômico, institucional...) pareciam revelar, no presente,
as consequências de marcas de origem longamente sedimentadas:
tais foram, em que pese os seus diferentes matizes de otimismo, as
conclusões de Raízes do Brasil, de Casa-Grande e Senzala, de Formação do
Brasil Contemporâneo, estendendo-se mais tarde a Raymundo Faoro, a
Graciliano Ramos e o Romance (numa leitura de Caetés) 105

Celso Furtado... Desde a sua formulação inicial por Sérgio Buarque de


Holanda e Caio Prado Jr. – desde então jamais plenamente superada
–, o dilema central do arcaísmo pode ser equacionado desta maneira
sucinta, proposta por José Miguel Wisnik (2008, p. 419):

[...] sem atar nem desatar o nó e o imbróglio da ambivalência


brasileira, [...] o país foi, de certo modo, se modernizando sem
deixar de ser Brasil e sendo Brasil sem se modernizar, isto é,
entrando de maneira arrevesada numa modernidade compulsória
que nem a realiza nem o realiza: o país [...] sem tradição que não
seja a da sua invenção, sem passado que não seja o seu futuro,
girando em falso na modernidade nunca atingida

Para modernizar o Brasil é preciso deixar os arcaísmos para trás;


contudo, sem a presença cotidiana dos arcaísmos, o Brasil continuaria
sendo Brasil? Não são os nossos arcaísmos – “culturais”, “sociais”,
“econômicos”, “étnicos”... – que dão ao país a sua especificidade –
a sua identidade? Para que o Brasil se modernizasse ele deveria se
tornar menos brasileiro: tal era, como ainda é, o paradoxo do arcaísmo
inicialmente enunciado por alguns intelectuais centrais da geração de 30;
a ele Graciliano Ramos responderia com a imagem do “brasileiro-caeté”.
É claro que, no escopo daquela obra despretensiosa, em nada
postulante ao enciclopedismo de um Macunaíma, o João Valério “caeté”,
em sua radicação pessoal e social específica (jovem solteiro de classe
média, funcionário de nível médio, morador da cidade de província...),
não poderia (nem pretendia) atuar como uma síntese global da nossa
cultura (como aquela sugerida pelo “herói sem caráter”). Não se trata,
aqui, de “cultura” (entendida como um conjunto não refletido, mas
espontaneamente praticado, de hábitos, preconceitos, atividades,
produções, comportamentos, interpretações da realidade...), mas de
“sociedade” (materializada nos padrões dominantes de ação e de
atribuição de sentido à ação característicos de uma dada coletividade,
em um dado momento histórico), observada em um de seus segmentos
específicos (no caso, a chamada “classe média”, de constituição ainda
106 Pedro Dolabela Chagas

incipiente naquele período da história brasileira). Com isso, o João Valério


“caeté” se avizinhava de uma das grandes descrições, produzidas em
sua época, das consequências da ação individual do brasileiro para a
construção da sociedade brasileira, ao se assemelhar ao agente para o qual
“Tudo quanto dispense qualquer trabalho mental aturado e fatigante, as
idéias claras, lúcidas, definitivas, que favorecem uma espécie de atonia da
inteligência, parecem-nos constituir a verdadeira essência da sabedoria”
(HOLANDA, 1995, p. 158). Tal como em Sérgio Buarque de Holanda,
era o entrelaçamento entre um modo de pensar (pragmaticamente) e
um modo de agir (para a obtenção de seus objetivos) que caracterizava
João Valério como brasileiro.
Deste co-pertencimento à teorização contemporânea do
Brasil, teorização que orientava a caracterização, através dos fillers, da
mediocridade da cidade provinciana, mediocridade na qual, por sua vez,
se radicava socialmente o desejo do narrador, emerge uma somatória
de perspectivas em meio às quais se imiscuíam, retoricamente, os
valores que estruturavam a versão do Brasil construída em Caetés. Da
somatória daqueles elementos surge também uma imagem compósita
de Graciliano Ramos como romancista ecomo romancista brasileiro, alheia
tanto à dicotomia entre o “naturalismo” e o “romance psicológico”
(ou entre as poéticas do “indivíduo” e da “sociedade”) operantes
nos anos 30, quanto à posição que a historiografia literária brasileira
lhe daria em meio ao “realismo” e à “crítica social” do período: pelo
cotejo das proposições de Girard (2009) e Moretti (2007), Graciliano
Ramos é subitamente retirado tanto dos termos predominantes na
autodescrição do romance brasileiro dos anos 30 quanto da descrição
que a historiografia posterior majoritariamente faria da sua obra. Mas ele
tampouco é catapultado a uma posição qualquer em meio a uma vaga
e ambígua “literatura universal”, como Abel de Barros Baptista (2003)
fez recentemente com Machado de Assis ao retirá-lo da companhia de
Alencar e Macedo para lançá-lo, sem qualquer solução de mediação,
à de Cervantes e Melville. Romancista e romancista brasileiro, o lugar de
Graciliano Ramos deve ser investigado por uma crítica exploratória, que
Graciliano Ramos e o Romance (numa leitura de Caetés) 107

saiba descrever a variação da sua produção ao longo do tempo como


uma variação das suas relações com o Brasil e com o romance. Se foi
como romancista que Graciliano Ramos se manifestou como brasileiro
– como teórico do Brasil –, as diferenças entre os Brasis de Caetés, de
Angústia, de São Bernardo e de Vidas secas estão materializadas retoricamente
de maneira diferente, e altamente singularizada, em cada um desses
romances. De imediato fica claro, por exemplo, que nem todos eles são
“romances romanescos”: se em cada obra surge uma versão diferente
do Brasil, ela virá em uma construção retórica própria, formando um
conjunto estilisticamente heterogêneo de narrativas.
Com isso, a identificação do lugar de Graciliano Ramos dentro
da história da literatura (nacional?global?) daria lugar à análise da
variabilidade interna à sua obra, passando-se a tomar a relação do
autor com o romance (nacional, global) como um elemento orientador
da investigação da sua relação com o Brasil. Aí as suas relações com
o “realismo” e o “psicologismo” interessariam não como índice de
pertencimento a “estilos de época”, mas como explicação das suas
estratégias de autodescrição do seu próprio trabalho, circunscritas a
momentos específicos da sua produção – nada mais explicando além
disso. Ao invés de situá-lo em uma história (nacional ou global) que lhe
seria externa e maior do que ele, a história da literatura (nacional, global)
importaria como um dos elementos interiorizados por Graciliano Ramos
ao longo da sua relação com o gênero romanesco: ele foi um romancista
diferente em momentos diferentes. A isso se soma a sua trajetória de
interpretações do Brasil, que talvez revelem, em comparação com as suas
metamorfoses como romancista, uma maior constância: nesta somatória,
veríamos Graciliano Ramos surgir simultaneamente como teórico do
Brasil, como romancista e como um romancista especificamente inserido
no sistema literário brasileiro, estas três facetas evoluindo em conjunto,
ao longo do tempo, dentro de uma produção dotada das suas próprias
linhas internas de continuidade e de variação.
108 Pedro Dolabela Chagas

Referências

BAPTISTA, Abel de Barros. Autobibliografias. Campinas: Unicamp, 2003.

GIRARD, René. Mensonge romantique et verité romanesque. Paris: Hachette


Littératures, 2009.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia


das Letras, 1995.

MORETTI, Franco. The serious century. In: ______. (Org.). The Novel.
Princeton: Princeton University Press, 2006. p. 364-400. Volume 1:
History, Geography, and Culture.

MORETTI, Franco. A alma e a harpia. In: ______. Signos e estilos da


modernidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 11-56.

RAMOS, Graciliano. Caetés. Rio de Janeiro: Record, 2006.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo:


Editora 34/Duas Cidades, 2000.

WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo:


Companhia das Letras, 2008.
Floema - Ano IX, n. 11, p. 109-126, jul./dez. 2015.

Tudo o que Era Sólido se Desmancha no “Eu”:


Construção da Identidade e Produção Material em Torno
de São Bernardo

Fernando de Sousa Rocha 1

Resumo: Neste artigo, busco salientar as relações que se estabelecem entre


construção da identidade e produção material a partir do romance São Bernardo,
de Graciliano Ramos. Tido como um romance de crítica ao modo capitalista de
produção econômica, São Bernardo também aponta, no entanto, para as diferentes
transposições que se realizam entre identidade e produção material. O enfoque
deste artigo recai, particularmente, sobre as questões do nome e dos legados,
das transferências entre sujeitos e objetos, da alienação resultante da produção
e do processo de citações que permeia a construção identitária.

Palavras-chave: Citação. Identidade. Nome. Produção material.

Abstract: In this article I attempt to highlight the relations established between


identity construction and material production, based on the novel São Bernardo,
by Graciliano Ramos. Read as a novel in which the author develops a critique of
the capitalist mode of production, São Bernardo also points, however, the different
transpositions that take place between identity and material production. The
focus of this article especially lies on the questions of the name and legacies,
the transferences between subjects and objects, the alienation resulting from
production as well as from the citationality process that permeate the identity
construction.

Keywords: Citationality. Identity. Material production. Name.

É difícil o leitor simpatizar com Paulo Honório, protagonista de São


Bernardo. Através do personagem, Graciliano Ramos exacerba sua crítica
1
Ph.D. em Literatura Comparada pela University of Southern California (EUA), é professor associado
do Middlebury College (EUA). Publicou recentemente um livro sobre Graciliano Ramos intitulado
Subaltern Writings: Readingson Graciliano Ramos’s Novels (Peter Lang, 2013).
110 Fernando de Sousa Rocha

tanto às relações de poder que estruturavam o universo rural nordestino


quanto ao papel que a forma capitalista de produção econômica iria
desempenhar nesta mesma estrutura. Acima de tudo, Paulo Honório
representa a reificação do ser humano diante de uma lógica na qual
prevalece a acumulação de capital sobre as relações humanas, baseadas
em parâmetros outros que não a produção de excedente de capital.
Não obstante, pondo de lado as considerações éticas, por si mesmas
tão evidentes na narrativa de Graciliano Ramos, o que vemos é uma
habilidosa indicação, no próprio texto, da inevitável interdependência
entre construção identitária e produção material. Esta interdependência
não é, contudo, exclusiva de um personagem como Paulo Honório,
fazendeiro, terratenente, produtor rural. O que vemos, neste conturbado
espelho que é São Bernardo, é justamente a imagem da nossa própria
construção do “eu”, de nossa inserção também neste universo de
produção econômica e das transposições que necessariamente se dão
entre uma esfera e outra. O que se reflete no romance são nomes
que perpassam o espaço do próprio e do corporativo, e que dizem as
incertezas dos legados e da alienação que se instaura, a despeito de
qualquer impulso ideológico, no seio mesmo da produção material (e
da construção de identidade); são escritas e textualidades que procuram
evitar o esgarçamento do “eu” pela alienação, mas que se convertem
em traços espectrais; são, enfim, outros nomes que, embora apenas
mencionados, precisam ser ditos, já que o processo de citação é parte
fundamental da construção identitária.
Comecemos, pois, pela questão do nome e com uma pergunta
inicial: como podemos dar conta de nosso próprio nome, daquilo que
deveria nos identificar, encapsulando uma identidade em uma sequência
de letras e fonemas à qual devemos responder? “Meu nome é” e “eu
sou” não são exatamente a mesma fórmula, embora as tomemos
frequentemente como intercambiáveis. “Meu nome é” introduz uma
diferença, um distanciamento entre “Eu” e o nome, entre quem quer
seja (ou o que quer que seja) que me serve de ponto de apoio para
que eu possa me identificar e as não-palavras (pois um nome nunca
Tudo o que Era Sólido se Desmancha no “Eu”: Construção da Identidade e Produção Material ... 111

significa nada ou ninguém em particular) que mais apropriadamente nos


designam: um nome próprio. “Meu nome” pode ser dito por outros em
meu nome, nas formas de identificação previstas pela gramática, como “o
nome dele é”. Desta forma, “meu/seu (etc.) nome” sempre nos antecede,
na voz paterna ou materna que nos anuncia ao mundo: “O seu nome vai
ser”. Nosso futuro estar no mundo está selado, desde o princípio, por um
nome. “Eu sou”, por outro lado, constitui uma promessa: a de desfazer
o mesmo distanciamento entre nome e ser. Implícito nesta fórmula do
“eu sou” está um vir-a-ser, uma trajetória ôntica que leva, a partir de
um certo momento, a uma série de formulações do “Eu sou”, as quais
nunca são idênticas, embora possam ser proferidas com a mesma força
definidora. Apenas a experiência vivida pode arrastar o sujeito da fala
inarticulada de um infansao investimento em uma identidade, quando o
sujeito, interpelado por um nome, deve responder ao mesmo.2
Que os nossos nomes nos precedam, com o desejo de nossos
pais – isto é, o fato de que os nossos nomes nos são dados por estes
Outros – apenas reforça o fato de que os nomes nos situam em uma
rede de relações familiares e que, acima de tudo, indicam uma dívida.
Nós nascemos na nossa relação com uma dívida que os nossos nomes
endossam. Nossos nomes constituem índices de uma transferência que
tem de se dar entre diferentes gerações. Em nossos nomes próprios vêm
inscritas as contradições de tal transferência, na medida em que sempre
representamos uma linhagem ao mesmo tempo em que divergimos dela.
Nossos prenomes deveriam, antes de mais nada, inserir uma variação no
legado que recebemos, mesmo quando há uma flagrante continuidade no
esperado processo de identificação entre o sujeito e o legado. Em outras
palavras, os prenomes garantem ao sujeito um certopoder “autorial” em
relação ao legado, mas ao mesmo tempo não podem existir sem este.
Nenhum prenome é completo sem um sobrenome, um suplemento que
localiza o sujeito mais precisamente ao mesmo tempo em que confere
ao legado a continuidade que o nome próprio, enquanto excedente,
2
Judith Butler aponta para o fato de que ser chamado por um nome, nas diferentes formas desta
ação, constitui um exemplo da noção althusseriana de interpelação. No entanto, Butler (1993)
insiste que o chamado da lei produz uma série de consequências que extrapolam e confundem o
que, aparentemente, seria a intenção disciplinadora por detrás da lei.
112 Fernando de Sousa Rocha

pareceria romper. Implícito em nossos nomes está o fato de que se


espera que nos definamos (e que, portanto, construamos um “eu” para
ser definido) em relação ao que deveríamos aceitar como herança. Um
sobrenome é, neste sentido, a garantia paradoxal de um “si mesmo”
para um “eu” que ainda está por vir.3
Mas o que fazer quando não há legados nem prenomes ou
sobrenomes que indiquem ao sujeito a herança que deve abraçar?
Pelo status problemático das heranças nos três primeiros romances de
Graciliano Ramos, fica evidente que não há nada mais incerto do que
as transferências inerentes à transmissão de um legado. Em Caetés, João
Valério tem de vender a casa e o gado que herdara, já que não tinha
dinheiro para se sustentar. Em Angústia, Luís da Silva nada tem o que
vender. Tudo o que pertencera a sua família é confiscado pelos credores
uma vez que seu pai falece. Nos dois casos, o sangramento ou completa
exaustão de capital determina um legado que vem marcado pela falta.
Esta falta enquanto legado, salientada em Angústia pelo encurtamento do
nome, exacerba-se em São Bernardo.4 Ao contrário dos protagonistas de
Caetés e Angústia, Paulo Honório tem um nome “importante” (ao menos
a seus olhos), mas sem nenhum ascendente a quem tal nome se refira.
Conforme ele mesmo afirma ao narrar sua trajetória de vida, os nomes
de seus pais não aparecem escritos em sua certidão de nascimento, o que
ele justifica dizendo que “[p]rovavelmente eles tinham motivo para não
desejarem ser conhecidos” (RAMOS, 1997b, p. 10). Mas que motivos
exatamente poderiam levar pai e mãe a abdicar de sua paternidade e
maternidade? Seria demasiado suspeitar que Paulo Honório seria, na
verdade, um filho bastardo?
Tal incerteza, inscrita no próprio nome de Paulo Honório, não
seria apenas falta de informação ou sua relutância em admitir sua
condição de filho ilegítimo. Mais importante do que isto, a incerteza
constitui a noção mesma, a que sua existência, no seu decorrer, irá se
apegar; é ela, afinal, o legado de seus pais ausentes, a herança que Paulo
3
Sobre a questão do nome, ver Kripke (1980), Bourdieu (1994) e Derrida (1995).
4
É o próprio Luís da Silva quem afirma que o nome de seu pai ficara “reduzido a Camilo Pereira
da Silva” (RAMOS, 1997a, p. 11). Tal redução do nome, de avô para pai e de pai para filho, já foi
salientada por críticos como Antonio Candido (1992, p. 38).
Tudo o que Era Sólido se Desmancha no “Eu”: Construção da Identidade e Produção Material ... 113

Honório deve reivindicar para si. Não é à toa que o personagem procura
subestimar a inexatidão de sua data de nascimento, a qual pode haver
sido alguns meses antes ou depois da data registrada, não configurando
realmente grande diferença. “Isto vale nada,” Paulo Honório conclui,
uma vez que “acontecimentos importantes estão nas mesmas condições”
(RAMOS, 1997b, p. 11). Sem demonstrar preocupação com o que diz o
documento, Paulo Honório tem aparentemente a mesma atitude frente
aos nomes de seus pais. Que diferença eles podem fazer? Não seriam
eles também, como no caso de sua data de nascimento, apenas um
pouco mais ou menos do que os nomes reais? Não quereria isto dizer
que qualquer nome serviria e que, no fim das contas, pouco valeriam?
Coisas importantes – as que realmente definem uma pessoa – não
acontecem a despeito das incertezas que poderiam marcar até certos
índices fundamentais da identidade, tais como o nome ou a data de
nascimento? Ainda assim, Paulo Honório tem de admitir que sente
“alguma decepção” por não saber ao certo (RAMOS, 1997b, p. 11),
o que ressalta o fato de que a incerteza gera sentimentos e modos de
percepção ambíguos. A narrativa de Paulo Honório evidencia enfim que
não há nada mais certo que a incerta transferência de um nome e que os
legados que nomeiam frequentemente se perdem de uma geração a outra.
É isto, em certo sentido, o que Paulo Honório diz a Luís Padilha,
cuja fazenda Honório adquire ao emprestar um dinheiro que, ele bem
sabe, Padilha jamais será capaz de pagar de volta. “Seu pai esbagaçou a
propriedade” (RAMOS, 1997b, p. 18), afirma Honório quando Padilha
lhe pede um empréstimo para plantar mandioca. Seu comentário
certamente faz parte de um jogo para tomar posse da fazenda, a parca
herança que cabia a Padilha. Na verdade, Honório está ganhando tempo
para que possa avaliar a situação da fazenda, especialmente em relação às
disputas de terras com um fazendeiro vizinho. No entanto, o comentário
também aponta para a incerteza inerente à passagem de um bem de um
proprietário aos seus descendentes. Embora Salustiano, pai de Padilha,
tenha realmente arruinado a sua propriedade, não se pode dizer que
não tivera visão, ambição, ou mesmo entendimento dos processos
114 Fernando de Sousa Rocha

de acumulação de capital. Como o próprio Paulo Honório observa,


Salustiano estivera investindo na educação de seu filho e, se o mesmo
houvesse investido tanto quanto o pai, os dois poderiam ter assegurado
uma posição social privilegiada. No entanto, Padilha apenas esbanjara
o capital da família, como se este não precisasse ser reproduzido. Se
Salustiano “esbagaçou a propriedade” foi porque não reconheceu em
seu filho o herdeiro que capital e propriedades requeriam. Dada esta
divergência entre proprietário, herança e descendente, abre-se um
espaço no qual um “verdadeiro” herdeiro pode reclamar o direito de
se apropriar de um capital mal aproveitado. Se Padilha não sabe como
transformar a fazenda que herdara de seu pai em um empreendimento
lucrativo, alguém o deveria fazê-lo.
Uma fazenda esbagaçada também indica, contudo, outro tipo
de transferência pertinente à reprodução de capital e de propriedades,
já que o verbo “esbagaçar” refere-se ao processo de produção que
deixa, como resto, o bagaço. Nenhum tipo de produção, a escolha de
palavras de Honório sugere, pode ocorrer sem a transferência de energia
e matéria produtiva ou sem resultar também em matéria improdutiva.
Neste sentido, o bagaço funciona como objetivação da força humana que
deve ser aplicada e transferida a qualquer produto durante o processo
de produção, como Marx aponta n’O capital. Sendo assim, ao relembrar
sua infância, Honório declara: “Até os dezoito anos gastei muita enxada
ganhando cinco tostões por doze horas de serviço” (RAMOS, 1997b, p.
11, grifo nosso). Entretanto, não são apenas objetos, como enxadas, que
são gastos na produção. Tendo trabalhado no eito, precisamente para
o pai de Padilha, Paulo Honório sabe muito bem que os trabalhadores,
e sua energia e força de trabalho, também são gastos. Ainda menino,
vivendo com mãe Margarida, Honório areava o tacho que usavam para
cozinhar; em compensação, “dele receb[eu] sustento” (RAMOS, 1997b,
p. 57). E conclui: “Margarida utilizou-o [o tacho] durante quase toda
a vida. Ou foi ele que a utilizou” (RAMOS, 1997b, p. 57). Sem que
constituam uma pergunta, as duas asserções de Paulo Honório não são
mutuamente excludentes. Não se trata de escolher entre as duas ou de
Tudo o que Era Sólido se Desmancha no “Eu”: Construção da Identidade e Produção Material ... 115

se chegar a uma revelação do que “realmente” acontece no processo


de criação, em cujo caso a segunda assertiva suplantaria o que seria tão
somente uma percepção superficial na primeira. Ao contrário, as duas
asserções, conectadas por um “ou” um tanto quanto ambíguo, devem
ser entendidas como possibilidades que se alternam ou que se fundem
em sua indecidibilidade. Os produtores estão sempre se usando à medida
em que usam os objetos, e, portanto, a questão da posse se impõe, mas
de uma maneira que não está dissociada à do nome.
Receber o sustento não implica um futuro para além do âmbito
individual, uma vez que, ao produzir para os outros, a força humana
ou o corpo usado transfere-se para um objeto que estampa o nome de
outro. Neste sentido, também o mundo objetivo, pelo caráter excessivo
da propriedade (e, portanto, do próprio), pode fazer com que um nome
seja mais do que um legado em si mesmo, reduzido ao vazio dos nomes.
Se o nome de Paulo Honório não se refere a antepassados, não é de
se estranhar que sua narrativa esteja pontuada pelo olhar. Honório
frequentemente volta o olhar para o mundo que ele criara a fim de
contemplar os animais, os edifícios ou as estradas. Ao lembrar da surra
que dera no jornalista Costa Brito por difamar seu nome, Honório
afirma que não houvera necessidade de nenhum xingamento, já que as
palavras nem aumentavam nem diminuíam o valor da surra. Cingido
por um nome que, em si mesmo, nada mais é do que um vazio, Honório
concentra-se na produção material e nas transferências que a constituem
para que um “eu” possa emergir no processo.
A contabilidade, neste sentido, torna-se uma tecnologia e
discurso úteis, uma vez que é a escritura da produção, registro das
transferências que, sem serem anotadas, põem em risco o próprio
processo de produção.5 En passant, Honório menciona em sua narrativa
o ato de registrar uma transferência de capital. Era princípio de mês, e
ele tinha de pagar João Nogueira, o advogado, por seus serviços. Sem
que Honório lhe pedisse, o guarda-livros, seu Ribeiro, toma nota dos
valores, ajustando as contas a fim de que os livros refletissem fielmente
5
Sobre a relação entre o nascimento da escrita e a contabilidade, ver Schmandt-Besserat (1989)
e Olson (1994).
116 Fernando de Sousa Rocha

a realidade econômica. Tudo isto, no entanto, vem narrado de maneira


sutil, quase imperceptível. Honório faz sua observação de passagem e
seu Ribeiro, uma vez feito o registro, retira-se discretamente, o que vem
a corroborar a ideia de que a escrita permanece à margem da produção
material. Mesmo em relação à contabilidade, é como se a escritura
constituísse uma projeção espectral sobre (e da) produção material,
como as práticas contábeis de seu Ribeiro atestam. Nestas também
se inscrevem uma disputa pelos espaços de construção da identidade.
Seu Ribeiro é, de acordo com a história que ele conta a Paulo
Honório (e que este por sua vez nos conta), um homem que havia
sido suplantado pelo progresso e pela modernização, tendo perdido
gradualmente todo o poder simbólico e econômico que exercia sobre
os outros habitantes do lugarejo. Depois de virar indigente, tudo que
lhe restava, ao ser contratado por Honório, era escrever, desenhar
cuidadosamente as letras que incluía nos livros de contabilidade.
“Escrevia neles com amor lançamentos complicados,” Honório relata,
“e gastava quinze minutos para abrir um título, em letras grandes e
curvas, um pouco trêmulas, as iniciais cheias de enfeites” (RAMOS,
1997b, p. 98). Estes livros, nos quais parte da história da acumulação e
produção de capital de Paulo Honório está inscrita, eram o único legado
de seu Ribeiro, pois mesmo que os registros se referissem às transações
econômicas de seu patrão, a letra era sua. Esta talvez revelasse a mão que
as escrevera, o homem por detrás da caligrafia, visto que, como Honório
mesmo reconhece, “[o] reduzido calor que [seu Ribeiro] ainda guardava
servia para aquecer aqueles livros grossos, de cantos e lombadas de
couro” (RAMOS, 1997b, p. 98). O que está em jogo aqui não é apenas o
uso da força humana para garantir a produção de riqueza, mas também
uma transferência de energia quase mágica.
Ao tocar naqueles livros, quem os abrisse deveria poder entrar
em contato com seu Ribeiro, sentir-lhe a energia ainda presente em uma
outra matéria. Seu Ribeiro pouco se importa com a técnica contábil.
Embora não esteja completamente de acordo com o método que
Madalena empregaria, se fosse substituí-lo, reconhece que esta poderia
encarregar-se da escritura, já que conhece o assunto e tem boa caligrafia.
Tudo o que Era Sólido se Desmancha no “Eu”: Construção da Identidade e Produção Material ... 117

Como forma de arte, a escrituração contábil de seu Ribeiro requer uma


herdeira apropriada. Morreria em paz, diz ele, se pudesse deixar os livros
para “uma pessoa que não viesse estragá-los com raspadelas” (RAMOS,
1997b, p. 98). Em meio aos registros de transações econômicas, como
num palimpsesto, deveríamos poder ler, ao tocar as páginas dos livros, a
presença física de seu Ribeiro transposta a outra matéria. Seria preciso,
em certo sentido, ler nas entrelinhas ou no preto da tinta para se poder
sentir, lado a lado com o capital registrado, a persistente existência de seu
Ribeiro. Toda produção material, a escrituração de seu Ribeiro parece
demonstrar, é também a produção de nomes espectrais e de uma matéria
fantasmagórica que só se revela como uma presença constante, agindo
sobre as supostas realidades e transformando-as, conforme sugere a
socióloga Avery Gordon (1997, p. 8). Em todo objeto reside o espectro
do Outro, e não só o dos enjeitados da história; aí também estão as
marcas de um “eu” que se quer constantemente Outro.
Até certo ponto, isto está implícito na afirmação de Honório
de que tudo está fora dele, todas as vantagens que, supostamente,
conquistara na vida, tais como casas, terras, móveis, gado, e até mesmo
o respeito dos políticos. Tudo isto, ele admite, não fizera dele uma
pessoa melhor. Este reconhecimento de que tudo está fora dele é, de
certa maneira, uma lição aprendida nos percalços da vida, mas também
toca na questão da alienação. “As coisas são,” Marx aponta, “em si e
para si, externas ao homem e, portanto, alienáveis” (MARX, 1996, p.
212). É, portanto, o caráter de coisa dos objetos que torna possível
o distanciamento e a alienação entre os seres humanos e os objetos
resultantes de sua produção. A alienação é sempre, neste sentido, parte
integrante da objetividade do mundo, mas só se torna constitutiva
de nossa autopercepção uma vez que “os homens se defront[a]m,
tacitamente, como proprietários privados daquelas coisas alienáveis e
portanto, por intermédio disso, como pessoas independentes entre si”
(MARX, 1996, p. 212). Tomar posse do que está fora de nós é justamente
o que produz a nossa alienabilidade frente às coisas e, consequentemente,
em relação uns aos outros. Tal processo é resumido na forma dinheiro.
“Por ser a figura alienada de todas as outras mercadorias ou o produto
118 Fernando de Sousa Rocha

da sua alienação geral,” propõe Marx, “é o dinheiro a mercadoria


absolutamente alienável” (MARX, 1996, p. 233). Enquanto objetivação
de uma abstração, o dinheiro reflete-se “em todos os corpos das
mercadorias como o material ofertado à sua própria conversão em
mercadoria” (MARX, 1996, p. 233). Sem forma nem corpo, o dinheiro
é a própria incorporação do espaçamento da alienação bem como do
entre-lugar que diz um vazio e o lugar incerto da produção da identidade.
O dinheiro é, no fim das contas, a forma econômica da identidade,
com seus tipos específicos de transferência, o espelhamento de que
fala Marx. Os objetos apenas podem ser possuídos na medida em que
fazem parte dos reflexos e projeções subjacentes à formação identitária
e, consequentemente, às práticas de citação que, segundo as teorias de
Judith Butler (1993), são elemento fundamental nesta formação.
É isto justamente o que vemos na propaganda pessoal de Paulo
Honório. De modo a poder levar seus produtos ao mercado, constrói
uma estrada, sobre a qual o jornalista Azevedo Gondim escreve dois
artigos, citando tanto Henry Ford quanto Delmiro Gouveia. Sem
dúvida alguma, uma citação apropriada, ela extrapola, no entanto, o caso
particular da distribuição de produtos. O que importa para Honório, no
que concerne a estes nomes e a suas relações com o seu próprio nome,
é a citação mesma. “Azevedo Gondim compôs sobre ela [a estrada
de rodagem] dois artigos, chamou-me patriota, citou Ford e Delmiro
Gouveia” (RAMOS, 1997b, p. 40, grifo nosso). Ao invés de não ser
marcada (ou ser dissimulada), como Butler sugere (1997, p. 51), aqui,
o processo de citação é apontado; ele é chamado precisamente de uma
citação, mas feita por outro falante, o que estabelece precisamente a base
para uma definição tão direta. Em outras palavras, a citação do próprio
Honório só pode permanecer dissimulada e, portanto, eficaz, na medida
em que a de Gondim é explicitada. Ao citar a citação de outro, Honório
reforça o fato de que o que está em jogo é uma relação que vai além da
mera dívida ou afiliação.
Fica evidente, através desta citação do processo mesmo de citação,
a instabilidade de uma autoridade “anterior” cuja ascendência não pode
ser pensada em termos cronológicos. Não se trata simplesmente do fato
Tudo o que Era Sólido se Desmancha no “Eu”: Construção da Identidade e Produção Material ... 119

de que tanto Henry Ford como Delmiro Gouveia viveram antes de Paulo
Honório e que, por conseguinte, poderiam ser tomados como modelos.
Pelo contrário, é na própria prática de citação, potencialmente infinita
em suas regressões, que o embasamento de toda autoridade constitui-se
como um diferimento sem fim (BUTLER, 1993, p. 107-108). Não é de
se admirar que o que permanece implícito na narrativa de Paulo Honório
sejam analogias não mencionadas, já que ele não revela que aspectos
de seu empreendedorismo Gondim compara aos de Ford e Gouveia.
É como se tudo fosse escusado dizer e, se assim for, fica substanciado
não só o caráter de transmutabilidade das citações, mas também a
possibilidade de se garantir um futuro de reiterabilidade para as mesmas.
Um olhar atento para as narrativas (autobiográficas ou não) tanto sobre
Ford como sobre Gouveia sugere justamente esta transmutabilidade e
reiterabilidade da citação dos nomes de ambos os industrialistas para a
narrativa pessoal de Paulo Honório.6
Antes de mais nada, há o poder generativo do nome. Em Today
and tomorrow, publicado em 1926, Forde Crowther apontam para o fato
de que, em menos de duas décadas, sua companhia já havia produzido
dez milhões de automóveis, mas que estes números, por si sós, eram
pouco interessantes. O que realmente importava era que, ao aumentar
a produção, aumentava também o número de homens, mulheres e
crianças que viviam de uma mesma ideia, ou seja, o carro Ford (FORD;
CROWTHER, 1988, p. 2-3). O mesmo também pode ser dito em
relação a Delmiro Gouveia, que se autodefinia como “a salvação das
populações pobres do interior e recurso profícuo [...] durante as secas
flageladoras” (GOUVEIA, 1899, p. 5), e com relação a Paulo Honório
em São Bernardo, já que sua riqueza começa com um empréstimo de
cem mil-réis que eventualmente “estiraram como borracha” (RAMOS,
1997b, p. 105), vindo a trazer conforto material a todos os que viviam
em sua fazenda. O que cada um destes nomes identifica, portanto, é uma
6
O próprio texto de Graciliano Ramos (1984, p. 119) sobre Delmiro Gouveia, intitulado
“Recordações de uma indústria morta”, serviria aqui de exemplo destas características da citação.
Poderíamos mencionar, entre outros trechos: Gouveia “passou a infligir a criadores e intermediários
as regras a que se havia sujeitado em tempos duros” (p. 118); Gouveia exercia um “domínio [...]
sobre as vontades alheias”; ele “torturava, [...] manejava despoticamente e [...] estirava pelos arredores
uma autoridade sem limites” (p. 120); em sua organização funcional do trabalho, “instrumentos e
pessoas” viviam “em roda viva” (p. 120), etc.
120 Fernando de Sousa Rocha

produção significativa das condições de reprodução da vida humana,


de modo que diversas existências transcorrem sob os auspícios de um
só nome que, pode-se dizer, é corporativo.
Citar o processo de citação é, neste sentido, nada mais do que a
performance linguística da “verdadeira” produção, qual seja, a geração de
um nome público sob o qual existências privadas podem ser vividas.
Tais nomes produzem as condições de sua reprodução, o que justifica a
afirmação de Honório de que era “o iniciador de uma família” (RAMOS,
1997b, p. 11).7 Nenhum outro exemplo ilustra melhor esta geração do
que os deslizamentos verificados no uso de nomes próprios, que acabam
por se distender pelo mundo objetivo. Ford passa a ser o nome de um
carro e de uma companhia; Delmiro Gouveia torna-se o nome de uma
cidade e de um município, onde o industrialista viveu parte de sua vida,
e delmirenses, seus habitantes. No entanto, precisamente porque os
nomes de “verdadeiros” produtores podem ser distendidos, dependem
ainda mais da figura do “iniciador” e do “eu” por trás do nome, como
vemos no caso de Gouveia.8
Construções identitárias baseiam-se no ideologema biográfico
do projeto, o qual é indicado linguisticamente através de marcadores
temporais, tais como “desde sempre” e “sempre” (BOURDIEU, 1994, p.
81). Por serem altamente ambíguos, estes marcadores também apontam
para uma presença quase a-histórica e, apesar desta atemporalidade, para
um fato ou momento biográfico quando o “eu” do iniciador passa a
existir. Assim, ao escrever sobre o desejo de Gouveia de diminuir ou
eliminar o sofrimento de “tantos irmãos, nordestinos como ele, vítimas
da seca, dos maus governos, dos cangaceiros, das questões de família”,
Lima Júnior associa a intenção do industrialista com tudo o que o próprio
Gouveia padeceu como órfão (LIMA Jr, 1963, p. 169). Embora possa ser
uma raiz para o cuidado que Gouveia parecia ter com os descamisados,
este traço biográfico não é, contudo, o momento quando o “eu”
7
F. Magalhães Martins (1963) define Delmiro Gouveia como um pater famílias, devido à sua “missão
patriarcal e educadora”, estendendo assim a noção de família para além dos laços sanguíneos. Sobre
a noção de parentela dentro do coronelismo nordestino, ver Queiroz (1976).
8
Esta distenção do nome é evidente quando Delmiro Gouveia, para defender-se de ataques aos seus
empreendimentos comerciais, menciona “melhoramentos a que seu nome estáligado” (GOUVEIA,
1899, p. 5, grifo nosso); do mesmo modo, o título do texto de Graciliano sobre Delmiro refere-se
a uma indústria, substituindo o iniciador pela coisa iniciada.
Tudo o que Era Sólido se Desmancha no “Eu”: Construção da Identidade e Produção Material ... 121

finalmente encontraria sua possível tradução no mundo objetivo. Este


momento, no entender de Lima Júnior, só acontece quando Gouveia vê
a cachoeira de Paulo Afonso pela primeira vez (1963, p. 102) ou talvez,
recuando ainda mais no tempo, conforme sugerem outros biógrafos,
devido à presença de outra queda-d’água, a Bica do Ipu, próxima à cidade
natal de Gouveia (ROCHA, 1970, p. 35; MARTINS, 1963, p. 33, 68).
Para Mauro Mota (1960, p. 66), foi talvez “[a] visão desse desperdício”
– as águas do riacho do Ipuçaba despencando de um paredão sem
que ninguém se beneficiasse disso – que ficara marcada na memória
do menino a fim de o homem pudesse vir a compensá-lo; e, para F.
Magalhães Martins (1963, p. 33), tal visão tornar-se-ia uma obsessão
ou fatalidade na vida de Gouveia. Repetir-se-ia quando o industrialista
viajasse a Niagara Falls e quando decidisse mudar-se para o sertão de
Alagoas e morar perto de outra cachoeira: Paulo Afonso (MARTINS,
1963, p. 33, 68). Esta repetição biográfica indicaria uma coerência no
“eu” do sujeito, visto que podemos ler na reconstrução de uma trajetória
de vida a presença insistente de um traço definidor que, nas biografias
mais convencionais, os subtítulos, frequentemente, revelam.9
No entanto, a repetição também indica um processo de superação,
uma vez que a recorrência do mesmo em diferentes situações representa
o momento teleológico de uma transposição do “eu” ao mundo objetivo.
A convenção fotográfica que determina que as pessoas estejam no
primeiro plano e as paisagens em segundo sugere tal transposição.
Tendo sido fotografado em Niagara Falls, que serve de fundo na foto,
Gouveia superpõe-se à cachoeira, o que sugere que homem e geografia
guardam uma relação que vai além da mera coincidência no tempo
e no espaço.10 Conforme aponta o romancista Josué Montello), “[o]
cantochão ensurdecedor da Paulo Afonso, clamando por servir ao Brasil
[...], encontraria eco nesse sertanejo arguto”(LIMA Jr., 1963, p. 160).11
Ecoando a perspicácia de Gouveia, a cachoeira encontraria nas ações
9
Vejam-se, por exemplo, as três biografias de Delmiro Gouveia citadas neste artigo. Dada a narrativa
de Paulo Honório, poderíamos também ficcionalizar possíveis títulos para uma biografia do dono de
São Bernardo: Paulo Honório: o iniciador de uma família ou, quem sabe, Paulo Honório: o Delmiro de Viçosa.
10
A foto de Delmiro Gouveia em Niagara Falls vem reproduzida à página 80-III do livro de Tadeu
Rocha (1970).
11
Lima Júnior esquece-se, em sua bibliografia, de incluir a fonte de onde tira a citação de Josué
Montello.
122 Fernando de Sousa Rocha

do empreendedor a sua própria raison d’être do mesmo modo como


Gouveia descobriria em Paulo Afonso a possibilidade de objetivar o seu
ser. Também o governador, ao visitar São Bernardo, pede a Honório
que lhe enviasse fotos. Sem dúvida funcionando como uma forma
de testemunho ocular, as fotos selam também a sobreposição entre o
iniciador e seu mundo criado.
Isto não quer dizer, no entanto, que as transposições estejam
limitadas por uma coesão identitária nem que esta coíba uma
subjetividade disseminada, multifacetada, a qual o consumo fomenta
como uma forma de autoconstrução. Tanto quanto os posicionamentos
ideológicos, jardins, salas ou um descaroçador de algodão – tudo através
do qual nossas vidas são objetivadas ganha extrema importância, como
podemos ver na descrição que Lima Júnior faz da Vila Anunciada,
a mansão que Gouveia construiu para sua esposa. Relatar uma vida
é, neste sentido, uma prática quase museológica, na medida em que
devemos propiciar aos ouvintes ou leitores a possibilidade de performances
imaginárias, como a que Lima Júnior põe em jogo em sua biografia
de Gouveia. “Se fecharmos os olhos por alguns minutos,” diz Lima
Júnior, “veremos, de certo, Delmiro e Dna. Anunciada [...] na entrada
do salão principal recebendo, com distinção e fidalguia raras, [...] os
convidados” (LIMA Jr., 1963, p. 49). O que este ato de imaginação
realiza é uma materialização absoluta, na medida em que Lima Júnior
não apenas traduz a certeza de uma aparição espectral, mas também
demonstra que ela deve ocorrer in corpore. A imaginação instila nas
visões espectrais uma existência corpórea que só pode se desdobrar
como uma cena indefinidamente reiterável ao mesmo tempo em que
a corporealidade une o nome às projeções tanto no universo privado
quanto no da produção material.
Neste sentido, “[t]udo está fora de mim” (RAMOS, 1997b, p.
186), uma das conclusões de Paulo Honório sobre sua própria trajetória
pessoal, não é apenas uma lição aprendida, favorecida pela illusio inerente
a construções retrospectivas.12 A afirmação também resignifica a famosa
12
Estou usando aqui illusio no sentido que lhe confere Bourdieu (1995), ou seja, como uma adesão
ao jogo enquanto jogo, incluindo aí a aceitação de uma premissa fundamental: a de que o jogo
merece ser jogado e ser levado a sério.
Tudo o que Era Sólido se Desmancha no “Eu”: Construção da Identidade e Produção Material ... 123

máxima de Marx e Engels (1998, p. 55) no Manifesto comunista de que “[t]udo


o que era tido como sólido e estável se desmancha no ar”. Se “os homens
são obrigados, enfim, a encarar de frente, sem ilusões, suas condições
de existência e suas relações recíprocas” (MARX; ENGELS, 1998, p.
55), o que veem é um comércio entre nomes, corpos e objetos, o qual
implica todo tipo de transposições. Novamente, a produção de Gouveia
é paradigmática, conforme se vê em um cartão-propaganda para sua Cia.
Agro Fabril Mercantil, que produziu a famosa marca de linhas Estrella.13
O cartão está dividido em duas metades. Do lado esquerdo, vê-se
uma criança rasgando, sem esforços, uma peça de roupa, que lembra,
assim, uma folha de papel, igualmente fácil de ser rasgada. Sob a figura
da criança, escrito em um pergaminho, lê-se que a peça fora feita com
“linhas de outras marcas e procedências”. Já no lado direito, dois homens
nus e musculosos tentam, em vão, despedaçar outra peça de roupa. Sob
a figura, em outro pergaminho, lê-se: “Linha da Pedra, Marca Estrella”.
Agindo contra a força natural do homem – o cartão-propaganda sugere
– encontra-se o poder de um tecido bem cosido, um texto cuja coesão é
derivada daquela existente entre o nome de uma marca, um nome próprio
e as transferências de energia implicadas na produção econômica. Se o
tecido resiste a forças contrárias (os dois homens nus estão puxando
a peça de roupa em direções contrárias) é porque o uso diligente das
máquinas na feitura da roupa corresponde à força do nome “Delmiro
Gouveia”. É, portanto, toda uma textualidade que o cartão-propaganda
promove, incluindo aí a produção de bens de consumo, os nomes da
marca e da companhia bem como uma trajetória pessoal, uma biografia.
Sem esta produção interconectada, aparentemente sólida, a textualidade
pode ser reduzida à matéria que se esgarça facilmente, como o tecido
que a criança rasga, infantil. Contra esta debilidade e para evitar que
o sujeito se perca em meio às fissuras que as construções identitárias
abrem, um “eu” aborve todo tipo de fabricação da existência, formando
uma textualidade que parece justamente erradicar a alienação inerente
a qualquer ato de produção.
13
Uma reprodução do cartão-propaganda vem entre as páginas 152 e 153 do livro de Lima Júnior
(1963).
124 Fernando de Sousa Rocha

E, no entanto, produzir é, necessariamente, alienar. Para


reproduzirmos continuamente as nossas condições de existência,
estamos sempre nos alienando, dando-nos, a nós mesmos, ao mundo
objetivo que nos circunda. Porém, ao mesmo tempo, também
procuramos sempre reapropriarmo-nos de nossos “eus” objetivados,
engajando-nos em diferentes práticas reiterativas, que a própria noção
de processo de citação sugere. Tais práticas podem assumir a forma de
uma estranha representação que traz à baila uma memória fora do tempo,
Nachträglichkeit, como se diz em psicanálise: nomes citados, indicando
uma sensação estranha de que, de alguma forma, Outros já viveram
traços de nossa existência.14 Ou, por outro lado, poder-se-ia falar de
um relembrar o futuro que ainda está para ser: um herdeiro. Honório
admite que não se sente inclinado a casar com nenhuma mulher em
particular, dadas suas experiências erótico-amorosas anteriores, e que
o que ele realmente sentia “era desejo de preparar um herdeiro para as
terras de S. Bernardo” (RAMOS, 1997b, p. 57). Honório, evidentemente,
não menciona nem filhos nem esposa. Sua família, aquela de que era o
iniciador, constrói-se a partir de São Bernardo, ou seja, a partir de um
“eu” que apenas existe, perceptivelmente, em sua exterioridade, em
sua forma mais objetivada. Se tudo está fora de Honório é porque o
“eu” só existe, enquanto forma perceptível, no seu “de-fora” e na sua
capacidade de se aferrar a qualquer coisa que esteja neste espaço exterior.
Um herdeiro, neste sentido, não é apenas agente de continuidade; um
herdeiro institui o reconhecimento absoluto, a confirmação de que
nossos “eus” objetivados merecem sobreviver à nossa própria existência.
São Bernardo é, neste sentido, prova de si mesmo, produção
material em torno da qual um “eu”, nomeado Graciliano Ramos,
parcialmente se constrói e se aliena. Espelho levantado diante de seus
herdeiros-leitores, São Bernardo nos convida a buscar os jogos especulares,
os mais improváveis, como um coronel alagoano, terratenente, mas
nos quais reconhecemos, estranhamente, nossas próprias construções
identitárias. São Bernardo – sem nunca chegar totalmente a ser – é “eu”.
14
Para uma discussão da noção de Nachträglichkeit, ver Laplanche (1999). Dentro deste campo
conceitual psicanalítico, refiro-me também ao estranho familiar (Umheimliche) quando falo numa
estranha representação ou sensação. Sobre o conceito de Umheimliche, ver Freud (1976).
Tudo o que Era Sólido se Desmancha no “Eu”: Construção da Identidade e Produção Material ... 125

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Floema - Ano I, n. 11, p. 127-146, jul./dez. 2015.

Escrever o Romance Rural

Ricardo Luiz Pedrosa Alves 1

Resumo: Escrever o romance “rural” ou escrever o “romance rural”? O


objetivo do artigo é a investigação das diferentes relações que se estabelecem
entre o ‘livro’ e o realismo rural no romance S. Bernardo (Graciliano Ramos). No
livro, narrado na primeira pessoa, a discussão, a figuração e a enunciação saltam
aos olhos, formando um contraste intenso entre – nos termos estabelecidos
por Angel Rama (1985) – a ‘cidade letrada’ (o romance) e a ‘cidade real’ (a
matéria rural sob impacto capitalista). No livro, discutir método e função do
livro e do escritor é problema indissociável do próprio trabalho ficcional de
recriação (ou reconstituição, para os propósitos da maioria dos autores de 30)
do real. Nesse sentido, o romance de Graciliano Ramos apresenta-se como o
caso limite, na medida em que a ‘escrita’ ultrapassa a mera abordagem temática,
estruturando-se com melhores resultados como forma. O ângulo escolhido
para a interpretação é o da ‘poética’ do romance em relação à própria ficção
rural enquanto construção simbólica de uma dimensão sócio histórica, às voltas
com as demandas de negação do ‘literário’, próprias do contexto da década
de 1930. Tal negação do ‘literário’, para além de seus alegados componentes
‘éticos’ (a missão do intelectual, a ênfase no projeto ideológico), é ela mesma
‘literária’, uma ‘escola’. Assim, o resultado a que se quer chegar é o da discussão
de algumas tensões específicas da autolegitimação literária e intelectual em
operação em S. Bernardo.

Palavras-chave: Livro. Romance rural. S. Bernardo

Abstract: Writing a “rural” novel or writing a rural “novel”? The aim of this
paper is the investigation of the different relations established between the
‘book’ and rural realism in the novel S. Bernardo (by Graciliano Ramos). In the
book, narrated in first person, the discussion and figuration of the book and
the enunciation leap to the eye, forming a strong contrast between - in terms
1
Doutorando pela Universidade Federal do Paraná, onde desenvolve pesquisa sobre “A escrita em
São Bernardo”. Publicou ensaios literários na imprensa do Paraná, de Santa Catarina e do Distrito
Federal. E atualmente integra o corpo docente da Faculdade Guarapuava.
128 Ricardo Luiz Pedrosa Alves

of Angel Rama - the ‘literate city’ (the novel) and ‘real city’ (rural matter under
capitalist impact). In the book, discussing method and function of the book
and of the writer it is an inseparable problem from the proper fictional work of
recreating the reality (or reconstitution, for the purposes of most authors of the
1930’s). In this sense, Graciliano Ramos’ novel presents as a limiting case, to the
extent that the ‘writing’ goes beyond mere thematic approach, and structuring
itself, with better results, as form. The angle chosen for interpretation is the
‘poetics’ of the novel in relation to rural fiction itself as symbolic construction
of the socio historical, dealing with the demands of denying the ‘literary’, typical
of the 1930s. Such denial of the ‘literary’, in addition to its alleged ‘ethical’
constituents (intellectual’s mission, the emphasis on the ideological project), it
is ‘literary’ itself, a ‘school’. Thus, the aimed result is the discussion of some
specific strains of literary and intellectual self-legitimation in operation in S.
Bernardo.

Keywords: Book. Rural Novel. S. Bernardo.

Analisar o romance rural brasileiro implica estabelecer relações


entre os três termos desse gênero: a especificidade do gênero (romance),
a qualificação de um determinado realismo (rural), a implicação
ideológica de um posicionamento discursivo. Para tanto, observações
quanto ao campo literário, aos procedimentos discursivos e aos aspectos
ideológicos permitiram-nos definir algumas linhas de pesquisa. Entre
elas, destacamos a questão da ambivalência entre os intelectuais que
escreveram tais romances e a matéria de que trataram ficcionalmente. A
parte que nos coube deste latifúndio literário foi a da relação entre ‘livro’
e ‘rural’. O que significou, para alguns escritores, o fato de precisarem
falar do ‘livro’ (particularmente, do ‘romance’) em um contexto que
passou à história, como o do romance realista, estruturado na busca da
transparência e da desestetização? A questão do livro, que pode parecer
ao leitor interessado na trama uma mera curiosidade, naturalizada em
função da origem social de quem lê, muda de aparência, se observada de
perto na dinâmica diferenciada que estabelece. A paradoxal conjugação
de matéria brutalizada e fetichização do livro aponta significativamente
para as contradições sociais do lugar do escritor, e, por extensão, da
Escrevero Romance Rural 129

autoria. Se há um sujeito implicado no enunciado (os personagens), mais


ainda há o sujeito implicado na enunciação. Quem é esse narrador do
rural? Quem é esse autor do romance? A discussão do autor implica uma
identidade civil-profissional de proprietário. Paulo Honório, por exemplo,
o narrador-protagonista de S. Bernardo, diz ter sido a ‘profissão’ o que
o estragou para a sensibilização. Como fica isso quanto à profissão de
‘escritor’ que ele quer nos fazer crer não praticar? Há uma desconfiança
da autoevidência do autor. Como ficam as propostas de autoria com
relação ao questionamento de que a autoria está implicada na reprodução
social das desigualdades, como aponta a crítica marxista, ao propor
a substituição da autoria liberal por categorias como representação,
ideologia, apropriação, personificação social? Nossos encaminhamentos
não desprezarão a textualidade, embora essa seja sempre uma estratégia
falha, que se abdica da historicidade. Não se trata, pois, da aceitação do
autor-presença que as teorias pós-Saussure, como Barthes e Foucault
vieram negar, mas de uma leitura histórico-ideológica do problema,
buscando ver a autoria como uma contradição social.
S. Bernardo, lançado em 1934, possibilita uma análise muita
ilustrativa do limite (e penso aqui em outros romances rurais do
período que também figuram a discussão do livro, como Cacau, de
Jorge Amado, e Banguê, de José Lins do Rego), das relações, de um
lado, entre o romancista brasileiro e o seu contexto sócio histórico e,
de outro, de certos dilemas entre o romance realista e o campo literário
brasileiro, com consequências para a própria definição e legitimação do
escritor. Nesse contexto, a discussão sobre os motivos e sobre como
‘escrever o romance rural’ configurou-se como significativa mediação
entre o universo letrado dos escritores (e, em um plano imediato, dos
narradores-protagonistas do romance) e a simbolização da matéria
rural. Em termos de sistema literário, o momento é importante, pois
se trata da consagração do romance como mercadoria e do escritor
como profissional, ainda que tal processo tenha forte indução estatal:
o Estado, após a Revolução de 30, torna-se direta e indiretamente um
empregador de intelectuais. Estamos no auge do debate entre literatura
130 Ricardo Luiz Pedrosa Alves

e política, entre forma e formação, debate que a censura, a coerção e a


perseguição do fechamento político irão calar na sequência.
A história literária não se faz sem o entrecruzamento de
linearidades e descontinuidades. A questão do realismo traz, a reboque,
a do engajamento (se Jorge Amado é um caso extremo, pode-se lembrar,
aqui, da discussão de Lins do Rego em torno da conquista do romance
nacional como uma ‘ida ao povo’) e sua generalização enquanto missão
social do escritor na literatura brasileira, que acontece no momento de
consolidação da racionalização do processo da implantação burguesa
no Brasil, uma vez que ali o Estado conseguiria, pela primeira vez,
centralizar o nacional através da emersão oficial do popular como
ideologia. A literatura de 30 é justamente aquela que, com especial
ênfase no romance, a epopeia burguesa assumiria como bandeira, a
desestetização da arte, configurando, em uma virada ideológica (o que
não é a simples ‘mudança de ênfase’ proposta por João Luiz Lafetá
em 1930: a crítica e o Modernismo), a incorporação do Modernismo aos
discursos corporativos em confluência no Estado após a ascensão
de Getúlio Vargas. Mas será realmente válido insistir no romance
de 30 como o momento de desestetização? A maior maldade que os
desafetos das vanguardas dos anos vinte fizeram foi impingir-lhes a
fama de autores de projetos mais do que de obras. O alvo preferencial
dessa crítica são os manifestos (e sua consequência antiprofissional:
as facções literárias). A literatura de Graciliano Ramos, por exemplo,
destacou-se pela crítica ao culto do estético dos modernistas de 22, e
o fato de optar por romances rurais (não só em S. Bernardo ou Vidas
Secas: também Angústia tem forte presença da temporalidade rural) diz
muito da associação entre matéria retratada e desestetização. Negar a
escrita pela ‘escrita’, como fez em seus romances ao discutir o ‘livro’,
é assim altamente contraditório. Pode-se dizer que há verdadeiros
‘manifestos’ dentro de seus romances.
É natural o congelamento crítico em torno de um realismo bruto
no contexto dos anos 30. A discussão só alcançou os problemas de
verossimilhança (particularmente no caso de S. Bernardo, considerado
Escrevero Romance Rural 131

bem escrito, o que destoava de seu suposto autor-narrador bronco) de


Álvaro Lins a Lúcia Miguel-Pereira (1992). Impõe-se, porém, a revisão
dessa perspectiva e a consideração do papel da escrita como fundamental
nessa operação. A própria escrita moderna é contraditória, pois seria da
ordem da disseminação democrática, como propõe Rancière (1995): cabe
aos escritores controlar tal disseminação ou fazê-la obra de liberação
dos desejos políticos, estéticos etc. O imperativo ético da ida ao Outro,
da missão social, que fez com que a leitura dos romances em questão se
fixasse nos aspectos da representação realista (medindo sua aproximação
a uma realidade bastante questionável), impediu que se visse a construção
simbólica como proteção ou controle da ameaça, mesmo dos desvios
democráticos da escrita. Coube aos intelectuais do período, sempre às
voltas com uma visão rebaixada (ou de disformidade) da matéria local,
dado o distanciamento ambivalente da ‘cidade letrada’ em relação à
sociedade real (nos termos de Rama em A cidade das letras), a tarefa
de dar formas a essa matéria (por isso os princípios de organização
serão tão valorizados ideologicamente). Essa operação é nitidamente
de autolegitimação, embora aparentemente opere pela negação do
intelectual e do ‘literário’. Nesse contexto, talvez nos valha a proposta
de Rancière (1995, p. 13):

Então, é um jogo muito mais complexo que é jogado entre os


poderes do escrito e a ordem ou a desordem social. Não são,
de modo algum, as vozes de abaixo ou o tumulto dos corpos
populares que vêm irromper no palco do discurso do alto.
São antes, na verdade, as palavras e as frases evadidas desse
discurso que vêm separar deles mesmos os corpos populares
e instituir neles a perturbação democrática da letra sem corpo.
(…) Então, é com a invenção de novas máquinas de escrita
que o ‘discurso do alto’ deve, incessantemente, se proteger dos
próprios efeitos de disseminação. Mas essas máquinas de escrita,
é claro, não param de realimentar a inquietação que gostariam de
conjurar, na multiplicação dos jogos entre os mitos renovados
da verdadeira escrita, que dão à comunidade seu corpo glorioso,
e as casualidades daquilo que a escrita, interminavelmente, deixa
escapar para mãos a que elas não são ‘destinadas’.
132 Ricardo Luiz Pedrosa Alves

Uma das discussões importantes para essa investigação é a da


especificidade do trabalho do escritor na modernidade. Especificidade
dupla, dizendo tanto da profissionalização que o rebaixa ao ponto
da mão-de-obra e o faz competir no mercado (que por certo não é
apenas econômico, e quase todas as teorias do intelectual apontam o
problema), mas também da novidade que é a escrita na modernidade.
O escritor moderno é aquele que escreve implicando o leitor no texto
(do mesmo modo, trata-se do escritor que ‘lê ao escrever’). Desse modo,
a linguagem reflexiva aponta para uma consciência da leitura que não
é apenas histórica ou social, sendo também cultural, isto é, do plano
intertextual da história das formas. Entende-se assim a boutade de Jorge
Luis Borges, no livro Discussão:

[...] a poesia gauchesca, que produziu – me apresso a repetir


– obras admiráveis, é um gênero literário tão artificial como
qualquer outro. [...] O culto argentino da cor local é um recente
culto europeu que os nacionalistas deveriam rechaçar por
forasteiro (BORGES, 1986, p. 117).

Em outras palavras, é o que sugere Pascale Casanova (2002, p.


274):

O povo não é uma entidade constituída da qual os escritores


se tornariam porta-vozes: é, antes de tudo, para os escritores,
uma construção literária (ou literária e política), uma espécie
de instrumento de emancipação literária e política para usos
distintos, uma maneira de produzir, quando estão em um estado
de grande despojamento literário, a diferença e, portanto, o
capital literário. A difusão da ideologia e da crença comunistas a
partir do início do século XX nos meios literários e intelectuais
– e principalmente entre os militantes nacionalistas das regiões
em luta por sua emancipação política – favorece o surgimento de
novas normas políticas, estéticas e literárias em nome das quais
se afirmará o caráter ‘popular’ da literatura. (…) As primeiras
lutas cristalizam-se a propósito da definição ‘certa’ do povo e
do caráter ‘popular’ ou não das produções literárias.
Escrevero Romance Rural 133

Nossa discussão também precisa tratar dos ideologemas da


escrita: autor, leitor, escrita, literatura, intelectual, realismo etc. Esses
tópicos são significantes e sobre eles se estabelece o debate cultural e
ideológico (com o passado e com a contemporaneidade). Sendo parte da
realidade social, no texto literário conservam o caráter social como uma
função textual estrutural. Ao mesmo tempo, são objetos em disputa no
campo literário. A relação que estabelecem entre sua enunciação ficcional
e o papel na estratégia de autolegitimação intelectual deve ser destacada
e matizada. Assim, vemos o regionalismo de 30 como ‘problemático’,
não apenas no sentido levantado por Antonio Candido em Literatura e
subdesenvolvimento, isto é, como regionalismo que põe em questão a cisão
social de sua matéria, enquanto pré-consciência do atraso estrutural, mas
problemático também por ter de se haver mais explicitamente com a
fatura literária em si. O desafio de escritores como Graciliano Ramos
(e é ele quem leva ao extremo a questão) foi o da conciliação entre a
fidelidade ao local e a literatura universalmente válida (o que impõe
a discussão da técnica narrativa e, por consequência, a discussão do
‘livro’ e dos outros ideologemas). Assim, se o referente é explicitado,
por outro lado, a discussão do livro e, principalmente, a digressão
metalinguística presente em S. Bernardo instituem uma ambiguização da
referencialidade. Por mais que a maioria dos romancistas do período
proponha a relação unívoca com a dimensão social, não há como
excluir da equação a consciência da historicidade da linguagem. Isso
não significa o desaparecimento dos dados da realidade, pelo contrário,
embora seja nítido, por exemplo, no tocante à descrição da paisagem,
um enxugamento sintético (de novo Graciliano Ramos é o mestre da
redução e do fragmento sinedóquico) em relação aos derramamentos
descritivos em autores antecessores (penso no peso do sublime em José
de Alencar, ou nos retorcimentos descritivos de A Carne). O que parece
ocorrer é uma tensão do ficcional operada pela metalinguagem: são os
procedimentos literários e a estrutura da linguagem, que trazem melhor
as marcas históricas, na medida em que a própria história é formalmente
conformada e mesmo posta sob suspeita. Essa é uma leitura possível de
134 Ricardo Luiz Pedrosa Alves

ser feita hoje, mas com certeza não o foi à época dos romances, tanto
assim que os romancistas de 30 (e a exceção é, de novo, Graciliano
Ramos) não tiveram real consciência do procedimento, pois tentaram
orientar a leitura no sentido exclusivo da representação ‘sem literatura’. A
discussão aqui, portanto, deve ser a do significado da discussão literária
através de um narrador supostamente confessional (e aí a relação entre
forma literária e ‘deformação’ subjetiva é importante).
Com relação ao romance rural, a investigação aqui se concentra
nas relações entre a força da ‘letra’ e a rusticidade da matéria. Trata-se
de uma operação de signos, e as considerações de Angel Rama em A
cidade das letras (1985) podem servir como baliza, verificando-se até
que ponto a construção simbólica do rural serve aos propósitos da
ordem social, mas também, e principalmente, aos da própria casta de
produção literária. Há importantes questões teóricas no gênero, sendo
a principal a discussão da matéria rural como forma ficcional. Quem
narra o rural? Qual o significado de narrar o rural a partir da primeira
pessoa e da estratégia discursiva confessional? O que isso nos diz
sobre o significado do romance e do papel do escritor para Graciliano
Ramos? A resposta a tais questões é importante, na medida em que o
rural é uma matéria que, paradoxalmente, opera por atração e repulsão
nos termos de sua formalização nos romances. Se o mais ‘verdadeiro’ e
o mais ‘brasileiro’ foram associados ideologicamente ao rural, sempre
houve também o reverso dessa operação centrípeta, uma vez que o rural
representa também o passado a ser abandonado com a modernidade.
Desse modo, justifica-se a afirmação de Rama, propondo que a ‘cidade
letrada’, sob a égide positivista, quis matar o rural e o oral. Na literatura
anterior à de Graciliano Ramos, contistas como Afonso Arinos, Hugo
Carvalho Ramos e Valdomiro Silveira trabalharam com a ideia da
inexorabilidade do apagamento regional em nome da modernidade. A
formulação da função intelectual no pensamento de Gramsci, enquanto
pedagogia recíproca (o intelectual organizaria, sistematizaria, depuraria as
fragmentadas – pois sem noção de totalidade – concepções simbólicas
populares), parece mesmo descrever um movimento da ficção rural
Escrevero Romance Rural 135

brasileira que, com soluções diferentes, segue o mesmo caminho: vamos


do distanciamento do sobrevoo de Alencar (tanto quanto em Euclides da
Cunha) ao informante dos contistas, em um primeiro momento; depois, o
romance de 30 tenta uma maior horizontalidade da perspectiva, indo em
direção ao Outro e à ‘língua franca’ do romance brasileiro (como na tese
de Luís Bueno, 2006); em outro momento, assistimos à ‘reciprocidade’ (a
situação narrativa é justamente uma espécie de ‘conversa’, como escreve
Willi Bolle (2004) entre oralidade e literaturidade de Guimarães Rosa, na
constituição paradoxal de um narrador ‘jagunço letrado’. Se há de fato
um movimento ideologicamente positivo nesse encaminhamento para
a ruptura da distinção entre intelectual e povo (aqui, visto como classe),
ou para a acentuação de sua irredutibilidade (como propõe Buenocom
relação a Graciliano Ramos), não deixa de ser evidente também que o
intelectual está sempre ali, comandando, pela ‘letra’, a reprodução de sua
necessidade social de detentor legítimo e exclusivista da manipulação
dos bens simbólicos, em um verdadeiro auto mandato popular em
relação ao simbólico.
De que forma S. Bernardo entra nessa discussão? Devemos atentar
para os modos com que o romancista articulou, na obra, a escrita e o
trabalho da escrita, a escrita e o momento literário, a escrita e o tempo
histórico e a escrita e a sensibilização (instituindo o que chamo aqui de
antieconomia da escrita). Interessam-nos, portanto, os modos pelos
quais a obra instaura e discute sentidos para o ato da escrita. Sentidos
esses que também indiciam o posicionamento do autor no campo
literário brasileiro, em discussões sobre as questões do engajamento, do
documento, do regionalismo, do modernismo enquanto estética e do
discurso culturalmente hegemônico, o discurso do poder identificado
por Graciliano Ramos à linguagem descolada do real (a ideologia
dos bacharéis e do ornamento): ora, todo discurso sobre a política
da literatura institui-se também como discussão da formação social
específica que a configura.
A construção em abismo, a escrita sobre a escrita, é uma constante
na obra de Graciliano Ramos. Deve-se atentar para o fato de que o
136 Ricardo Luiz Pedrosa Alves

modo pelo qual o escritor fez tal testemunho foi também objeto de
sua intensa reflexão. Assim, há testemunho, mas há também reflexão
sobre o testemunho. Romances dentro de romances, romances sobre
romances. O que dá um caráter cosmopolita ao texto de proposta
regionalista, inserindo-o no debate culto e urbano. A metalinguagem seria
o instrumento de que se serviu Graciliano para o combate às formas
estereotipadas do discurso literário, seja a transparência pretendida
pelos romancistas de trinta, seja o formalismo modernista da década de
1920, o que, no limite, seria um combate também ideológico contra as
formas de discursos de reprodução social. Ora, temos aqui a primeira
etapa da análise da metalinguagem, pois, na mesma medida em que é
posicionamento literário, é também um recurso que situa Graciliano
Ramos como realista que não aceita bem o texto, isto é, que pensa
ser frustrada de antemão a possibilidade de redenção pelo literário
‘tradicional’. A metalinguagem dá conta justamente da frustração diante
da falta de lugar no mundo social para a sensibilização. Exige-se do
escritor, portanto, a postura de fazer a literatura agir como negatividade
diante do mundo administrado, pois a escrita condicionada seria
cumplicidade com a barbárie.
S. Bernardo parece articular,em um todo complexo, a discussão
sobre o fazer literário e a investigação sobre as relações entre desejo e
reificação. Essa discussão ocorre no livro basicamente pelo contraponto
insistente e tenso entre procedimentos da forma e figurações específicas
da formação social. Parece haver no romance, a partir de procedimentos
formais modernistas (para além de outras influências), como a simulação
irônica (o livro dentro do livro e a escrita como matéria ficcional) e como
o procedimento do corte, (a depuração, algo fragmentário da sintaxe
encaminhando o discurso à síntese), um travamento social específico que
a eles se contrapõe. A marcação histórica, que vai da crônica do interior
rural aos dilemas revolucionários do Brasil e do mundo naquele período,
aliada à justificativa social da existência (a tirada ideológica do homem
feito pela ‘profissão’) e à onipotência – caracterizando-se pelo discurso
vingativo do enjeitado em um mundo condicionado – parecem constituir
Escrevero Romance Rural 137

a ferrugem social formativa local que se impõe ao procedimento formal


universal, configurando importantes aspectos na crise moderna da
literatura nacional. A precisão formal modernista, portanto, é posta em
xeque, mostrando-se tensionada por certo expressionismo de fundo
social. Por outro lado, o discurso formativo, de configuração de uma
dada situação sócio histórica, especificamente orientada pela perspectiva
rural, nesse sentido, apresenta-se travado por uma dificuldade de forma,
tal qual expressa nas inúmeras passagens de metalinguagem.
Abordemos inicialmente essa dificuldade da forma: a literatura,
para o narrador e protagonista Paulo Honório, resume-se aparentemente
a um fazer, e é com essa obsessão pela condição da escrita como um
trabalho penoso, psicológica e fisicamente, que Paulo Honório irá
escrever o romance que supostamente já está escrevendo, resultando
na “prosa áspera” de que fala Antonio Candido (2006, p. 21). Afirmar
a escrita como um fazer opõe-se nitidamente a qualquer concepção
idealista da obra literária, ou seja, da escrita como intuição e expressão.
E apesar de, ficcionalmente, S. Bernardo ser um livro escrito por um
personagem que assume não saber escrever literariamente, a obra
escrita por Graciliano Ramos quer ser, como qualquer livro, um modo
perfeito e exemplar do fazer literário, impondo-nos a disjunção crítica
entre autor e narrador. Assim, a complexa articulação entre uma
escrita supostamente pobre e uma fatura nitidamente clássica pelo seu
despojamento é um dos problemas que o livro propõe e resolve. Há
todo um estudo do processo operativo da escrita, o que aproxima e,
ao mesmo tempo, distancia o autor do engajamento via materialismo
histórico, tão presente no horizonte de muitos escritores da década
de trinta. Aproxima pela similitude do fazer literário ao fazer material.
E distancia, pois a metalinguagem funciona como ironia ao mero
reducionismo da obra reflexa.
Em S. Bernardo, a discussão sobre a linguagem se dá na
contraposição entre a linguagem de quem não sabe, mas é autêntica, à de
quem sabe, e que, por isso, deve ser vista como dissimulada. Trata-se, no
plano diegético, da desconfiança do iletrado em relação ao letrado. Assim,
138 Ricardo Luiz Pedrosa Alves

até o ciúme de Paulo Honório por Madalena torna-se ciúme intelectual,


envolvendo, basicamente, todos os letrados de seu meio social: o padre, o
juiz, o jornalista, o advogado, o guarda-livros, o professor. Inicialmente,
a figura que Paulo Honório dá de si é a do açambarcador que se vale
da racionalidade e do cálculo para dominar. Todo o projeto literário,
porém, desfaz-se diante de sua insatisfação. Para quem pretendia citações
latinas no projeto inicial, assumir a língua falada como modelo para sua
escrita é uma mudança e tanto. O narrador ressalta, a todo o tempo,
seu despreparo para a atividade com a linguagem, como nas passagens
seguintes (retiradas da edição de 2008 do romance): “isto vai arranjado
sem nenhuma ordem”, “Não pretendo bancar escritor”, “Sou incapaz
de imaginação”, “Escutei uma hora, desejoso de instruir-me. Não me
instruí”, “Encontrei diversas palavras desconhecidas, outras conhecidas
de vista, e a disposição delas, terrivelmente atrapalhada, muito me
dificultava a compreensão”, “Li-a saltando pedaços e naturalmente
compreendendo pela metade, porque topava a cada passo aqueles
palavrões que a minha ignorância evita”, “depois de vacilar um instante,
porque nem sabia começar a tarefa, redigi um capítulo”.
Apesar disso, Paulo Honório tem clara a direção estética de suas
memórias, contrapondo-a explicitamente às posições “literárias” da
escrita. A escrita, para Paulo Honório, é um ser estranho, diferente da
naturalidade com que lidam com ela os personagens intelectualizados. É
significativo o fato de ter adquirido a escrita em confinamento na cadeia,
com alguém que não sabia ensinar. A estratégia do rebaixamento é um
artifício de convencimento, em um plebeísmo que se quer modelo de
escrita brasileira. Em tal sentido, Graciliano Ramos expõe o narrador
Paulo Honório vociferando contra todos os personagens letrados da
trama, mostrando, paradoxalmente ao seu rebaixamento intelectual,
notável noção estética.
Muitos intérpretes analisaram a figura de Paulo Honório mais
por seu passado, o homem que tudo quer possuir, inclusive pessoas, do
que por seu presente de escrita, isto é, um indivíduo que quer ser levado
pela escrita, uma conquista inútil em termos de posse, um despossuir-
Escrevero Romance Rural 139

se. A escrita é a aceitação de uma antieconomia, por isso, contraria a


intenção de lógica burguesa presente na proposta inicial da escrita de
Paulo Honório. Ora, o que ajuda a garantir autenticidade crítica à prosa
de S. Bernardo é a própria ação de narrar enquanto se escreve, ou seja,
o recurso à metalinguagem. A pobreza da linguagem (sem recursos
‘literários’) implica a aceitação do prosaico em detrimento do lírico. Paulo
Honório não dispõe de garantias prévias de que sairá vitorioso da escrita
do livro (e assim chegar ao nó que o suicídio de Madalena lhe impôs), o
que lhe dá uma possível liberdade de ação, escrevendo, assim, a partir de
sua suposta ignorância. A análise de Rui Mourão (2003) aponta como
diferencial o fato de Paulo Honório comparecer na trama ‘enquanto’
a escreve, ou seja, o fato de que a estrutura da narrativa se dá pela
consciência de sua implantação. Mourão (2003) aponta que Graciliano
Ramos teria simulado a sintaxe mental do outro, Paulo Honório, e seu
estilo de claudicante inabilidade, mas que a objetividade da confissão é
inevitável diante do senso de praticidade do fazendeiro.
Mas quem é de fato Paulo Honório? Um alter-ego (ou um
pseudônimo a complicar a autoria) de Graciliano? Como isso se
resolve na fatura literária, em termos de construção de personagem
e de linguagem? É possível verificar que há forte homologia entre a
linguagem de Graciliano e a de seu personagem. Graciliano faz pobre
a linguagem de Paulo Honório. Parece defender uma ética da literatura
simples e prática, clássica, embora o fragmento seja o seu reino. A
escrita em S. Bernardo é descontínua, fragmentária de enunciados,
sempre incompletos. A consciência de Paulo Honório (bem como a
estrutura do livro) é descontínua, com elementos heteróclitos do discurso
do poder (a naturalização introjetada da violência) e do discurso da
servidão (em sua ‘inferioridade’ intelectual). Descontinuidade que ocorre
também entre a realidade e os devaneios de sua abordagem. Recursos
ficcionais modernos para trabalhar um mundo arcaico sob o impacto da
modernidade. A apresentação das imagens no livro é analítica, fazendo-
se também por elipses e lacunas. Assim, na leitura, vamos recebendo
pouco a pouco fragmentos da imagem do todo, seja da paisagem ou
140 Ricardo Luiz Pedrosa Alves

dos personagens. Ora, o próprio romance nasce como proposta de


fragmentação, de decomposição do processo literário. O relato em
primeira pessoa, por sua vez, ajuda a criar a dimensão de uma literatura
‘sem literatura’ na medida em que potencializa a instabilidade sobre a
autoria do discurso (a paternidade é do autor ou do personagem?). No
reconhecimento de suas feridas humanas é que Paulo Honório se dá à
escrita, o que, por si só, dá conta do ascetismo de Graciliano. A escrita
é assim a mortificação necessária ao luto de Paulo Honório, outro modo
de inseri-lo no mundo da realidade física. Por outro lado, escrever o
romance S. Bernardo implica o posicionamento superior do narrador,
sendo a discussão do livro (enquanto autolegitimação) instrumento de
controle do narrador sobre os fatos. Nada é mostrado (nem a carta de
Madalena, nem os trechos do livro produzidos pela ‘divisão social’),
tudo é narrado. Só há Paulo Honório, ele é o livro. Portanto, algumas
perguntas se abrem. Há autonomia entre a narrativa e a constituição
do personagem? Há autonomia entre livro e personagem? Um realismo
diferente surge aqui (aceitando que há vários realismos e que a formação
histórica vinculada e dependente impõe um modelo diferenciado) e é
preciso desvendá-lo mais a fundo.
Impõe-se aqui uma discussão dos aspectos formativos abordados
no romance. Graciliano Ramos insistiu sempre na existência de duas
literaturas no Brasil: a dos letrados, identificados ao poder, e os novos
escritores, marcados pela literatura suada e ordinária. Há toda uma
mitologia à moda vanguardista de escritores bárbaros, ‘sertanejos’ e
retirantes, cangaceiros que afrontariam o poder (e o poder literário)
burguês. Em termos do sistema literário nacional, porém, a proposição
de uma literatura bárbara vai na contramão do suposto formalismo dos
modernistas do Sudeste. Luís Bueno (2006) escreve que 22 e 30 partem
do mesmo desejo de fazer arte brasileira com linguagem coloquial e
aproximação da realidade nacional, mas que a realização estética é muito
diferente. Cita a substituição de prestígio no campo literário e cultural, no
predomínio da poesia em 22 e da prosa romanesca em 30 (esta também
é a opinião de Lúcia Miguel-Pereira (1992), de que teria havido mudança
Escrevero Romance Rural 141

de mentalidade e a necessidade de explorar as existências possíveis em um


ambiente revolucionado) e a mudança de escala da produção literária com
o mercado de trabalho estatal e privado para a intelectualidade, onde a
própria literatura passaria a oferecer a possibilidade da profissionalização.
Além disso, o mundo de 30 seria o do desencanto com o liberalismo e
o do enfrentamento com a incompletude do presente.
Sabemos que uma das conquistas das vanguardas do Modernismo,
a pesquisa estética livre, envolvia o apagamento de fronteiras entre
prosa e poesia, acentuando-lhes a dimensão textual. A entrada em cena
dos autores da década seguinte se faz quase sempre pela reintrodução
das marcas distintivas de gênero, encaminhando-se, porém, para outras
misturas (como a crônica, a reportagem etc.). A ideia de que a prosa
de 22 rompe com a concepção tradicional de romance, instaurando a
noção de trabalho textual, fruto da reflexão irônica sobre o alcance da
linguagem, não exclui a constatação de que o grau de referencialidade
foi também intensificado. Ora, a prosa de 30 parte também daquelas
referências: também vai conceber textualmente a criação, através
da forma sincrética, aparentemente não-literária, o que justamente
serve à simulação de uma luta com a realidade, e não com o texto. O
sincretismo marca, de certa forma, parte de toda a prosa nacional, que
se vale muito da incorporação, em maior ou menor grau narrativo, de
formas não ficcionais, como a memória e o documental, para esvaziar-
se da literatura, a literatura torna-se texto documentário, o que, em si,
também não passa de ‘texto’. O interesse da literatura pelo ‘problema’
não exclui o problema do ‘como’.
E o que acontece em S. Bernardo? Permanece a chave irônica
ou se assume o realismo, mesmo que subjetivo? Aparentemente, há a
mudança para o realismo, embora a discussão textual e principalmente
a apresentação do romance venham de uma concepção também
fragmentada. Assim, a leitura que aqui se propõe é de que o realismo é
ainda uma permanência no texto, embora se trate de uma permanência
em conflito. O escritor realista luta contra o texto, sua vontade final é
de que o texto não existisse, que fosse transparência para o real. No
142 Ricardo Luiz Pedrosa Alves

caso, o real exterior em tensão com a subjetividade, que com a realidade


interage através daqueles “desordenados impulsos interiores” (Candido,
2006, p. 83). A luta contra o texto aparece na folclórica insatisfação e
mesmo aversão de Graciliano por seus próprios escritos, mas é no texto
mesmo de S. Bernardo que a podemos captar, através da interpenetração
entre drama de fundo documental e metalinguagem. A literatura da
modernidade é aquela que se faz com os escritores lendo ao escrever, o
que implica sempre em uma dimensão reflexiva da literatura e em um
posicionamento particular no campo literário. O que postula o lugar-
comum da opção generalizada pelo documento direto nos escritores
do romance de 30, não importa se documento social ou psicológico, é
que tal literatura é mais ‘autêntica’ do que a literatura das vanguardas,
pautada em ‘artificialidade’ textual. Então, qual o porquê do livro dentro
do livro, dos narradores-autores que estão o tempo todo a verificar a
instabilidade, mesmo da palavra escrita? O que temos é a politização
da estética (que não é a mesma coisa que o realismo socialista), uma
tentativa de criar a inteligibilidade material do texto, o que implica,
no limite, em propor uma obra literária que esclarecesse sua própria
materialidade, demandando o leitor, ultrapassando a mera ruptura de
linguagem em direção a uma necessidade de socialização da recepção do
literário. Ora, integrar a arte na vida é a utopia de toda a vanguarda do
século XX. A continuidade relativa entre 22 e 30 expressa, por exemplo,
em Lafetá (2000), que a modernidade é a base dos dois momentos, mas
o funcionamento estético é privilégio da década de vinte, enquanto os
autores posteriores estariam sob a órbita do projeto ideológico. Sim, mas
não só (e Bueno (2006) o demonstra, propondo a distinção utópicos X
pós-utópicos). A literatura, enquanto parte da sociedade em que atua,
continua funcionando enquanto um campo artístico, isto é, também
sob critérios de definição interna, logo, também estéticos, mesmo em
momentos de pressão ideológica. Assim, a negação do Modernismo
que muitos autores iniciantes na década de 30 fazem, como é o caso de
Graciliano Ramos, é também posicionamento estético, estratégia frente
ao campo literário.
Escrevero Romance Rural 143

O problema da possibilidade e do valor da escrita é parte estrutural


da composição de Graciliano. Além de ser uma discussão da relação
entre literatura e sociedade, é também um posicionamento literário. É
nesse sentido que pensamos no funcionamento híbrido de documento
e metalinguagem em S. Bernardo, explicitando a tensão entre formação e
forma. A autenticidade é o sonho da modernidade de uma escrita ‘sem
escrita’, ligada ao fôlego vivo da enunciação. A metalinguagem seria,
portanto, também, uma discussão de Graciliano com o campo literário,
propondo um engajamento não tendencioso, mas crítico.
Havia, é claro, um mal-estar no Brasil da década de 1930, que
ia da desconfiança no liberalismo às instabilidades revolucionárias.
Naquele período, tudo parece ser depoimento, como se os escritores
estivessem diante do processo definitivo, sob investigação ou julgamento.
Ora, um dos modos de articulação entre a matéria bruta, regional e a
recepção urbana das obras é justamente pelas referências à escrita em
um contexto arcaico. É a modernidade que permite a constatação do
fracasso da modernização, pois, é justamente o contato conflituoso do
mundo arcaico com a modernização que permitirá a Paulo Honório a
escrita, isto é, a abertura para a sensibilidade: se todo contato com a
modernização técnica era exaltado, a modernidade das relações humanas
se mostrou impossível, mas foi seu sacrifício que criou a abertura,
mesmo que aparentemente inútil ou antieconômico. Por isso, é crítico
o realismo em S. Bernardo, em uma avaliação negativa do presente,
pois nem a escrita o redime. O culpado, na literatura de Graciliano, é
a modernidade, o movimento. Paulo Honório, no seu malogro final,
idealiza o retorno ao primitivo, à suposta estabilidade da imobilidade.
Há uma relação ambígua com a modernidade na maioria dos autores
regionais de 30. A modernidade é negativa (ou pelo menos ambígua), por
exemplo, no Lúcio de A Bagaceira, em que o contato com a palavra escrita
desencaixa o homem da terra. Ocorre que o enfoque crítico de Graciliano
é proporcionado justamente pelo aprofundamento na subjetividade do
atraso. Aqui concordamos com Adorno (1983), em seu texto “Posição
do narrador no romance contemporâneo”, para quem é possível captar
144 Ricardo Luiz Pedrosa Alves

melhor a totalidade social da modernidade a partir da imersão subjetiva


mais exasperada, pois é ali que o eu, o antissocial, reverbera.
Para nossos objetivos, será instrutiva a verificação de que o
modo pelo qual Paulo Honório chega à escrita em S. Bernardo destoa
completamente daquele indivíduo calculista e incorporador, que sabe
duelar nos diálogos com o vizinho poderoso ou com o bacharel falido
que lhe vende a fazenda (em parte, é o que propõem Rui Mourão (2003),
Lafetá (2000) e Costa Lima (1966): para eles, trata-se de homologia
proprietário-escritor). Sua escrita é, para ele, algo impossível de se definir,
uma vez que é pela via do irracional, do irrefletido e mesmo do acaso
que ela acontece. Apesar dessa submissão ao acaso, aos “de repente”, o
processo de escrita é sempre descrito como incômodo e fisicamente
doloroso. A memória simula o documental, mas espraia-se em múltiplos
alvos, pois é percepção e lembrança; porém é também desejo e asserção,
uma vez que parte da desorganização típica do real interiorizado (é
importante distinguir, no entanto, o que é seu projeto de escrita daquilo
que realmente se efetiva). Assim, nas passagens mais factuais de S.
Bernardo, ali está sempre Paulo Honório escrevendo, aparentemente
‘ao vivo’ e inseguro sobre o sentido de seu fazer. É pela escrita que
ele vai se dar conta daquele nó em sua relação com a sensibilidade. A
constatação, talvez, é de que sem a escrita (sem a arte, portanto) não
se aprende a refazer o percurso do problema (o que talvez o ajudasse a
desfazê-lo), porém a escrita não pode, sozinha, desfazer o travamento
da sensibilidade. A escrita se produz modificando um suporte, o papel;
atividade em que o tato, a vida física da escrita, é tão importante quanto
a abstração que ela impõe à realidade pela manipulação da linguagem.
Escrever é o modo de apreender, de tomar posse do sentido, da memória,
da existência. É no próprio fazer físico da escrita que se dá tal posse.
Imbricam-se ali o ato e o personagem. A escrita é uma posse: ela cristaliza
as palavras, os pensamentos. Ela os detém e a eles se impõe. Trata-se, no
entanto, de uma posse inversa àquela forma de violência contra o outro
e contra as coisas, delineada por Antonio Candido (2006) na análise do
livro. É uma posse, digamos, antieconômica, ou de uma economia das
Escrevero Romance Rural 145

perdas, de uma economia negativa. O que se retém, portanto, na escrita,


é o inverso daquele processo de tomada de posse sobre as pessoas e
sobre a fazenda, daquela formação do burguês brasileiro que muitos
críticos leram no romance. A escrita, como insinua Antonio Candido
(2006), é o movimento de violência contra o próprio Paulo Honório.
Nesse sentido, portanto, a escrita é a antieconomia: ciente de
sua conquista-derrota, Paulo Honório termina o livro na combinação
da escrita como trabalho físico e como inevitabilidade de um vazio. A
objetividade que parece tomar as ações e a caracterização do personagem
na primeira metade do livro passa a ser contaminada pelo veneno
da linguagem humanista de Madalena na segunda metade. O tempo
objetivo dos enunciados passa a ceder espaço para o tempo impreciso
da enunciação, tomado por vazios, zonas escuras, pios de coruja,
uma carta de suicida de que só se leem trechos, fragmentos, elipses,
rupturas. A subjetividade narrativa, nesse sentido, entra em choque com
a objetividade inicial, deslocando a caracterização de Paulo Honório e
deixando-o, inevitavelmente, na solidão escura de sua selva selvagem, que
não é frondosa, mas essencial e áspera. A escrita que é figurada a partir do
lugar da emissão, especificamente rural, explicita o dilema entre forma e
formação, discutindo a literatura como possível mediação. A figuração da
escrita no mundo rural, desse modo, é essencialmente um lugar de tensão
(ou de conciliação problemática) entre forma literária e discurso sobre a
formação social. Rural e livro são mundos contraditórios, porém parece
só ser possível tratar esteticamente do rural a partir das considerações
do literário (do livro).

Referências

ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. São


Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores).

BORGES, Jorge Luis. Discussão. São Paulo: Difel, 1986.


146 Ricardo Luiz Pedrosa Alves

BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Universidade de


São Paulo; Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. Ensaios sobre Graciliano Ramos.


Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

CASANOVA, Pascale. A república mundial das letras. São Paulo: Estação


Liberdade, 2002.

FILHO, Adonias. O romance brasileiro de 30. Rio de Janeiro: Edições


Bloch, 1969.

LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas


Cidades; Ed. 34, 2000.

LIMA, Luiz Costa. Por que literatura. Petrópolis: Vozes, 1966.

MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. A leitora e seus personagens. Rio de Janeiro:


Graphia Editorial, 1992.

MOURÃO, Rui. Estruturas: ensaios sobre o romance de Graciliano.


Curitiba: Ed. UFPR, 2003.

RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

RAMOS, Graciliano. S. Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008.

RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.


Floema - Ano IX, n. 11, p. 147-162, jul./dez. 2015.

A Língua de Fabiano

Gustavo Silveira Ribeiro1

Resumo: O artigo pretende ler o romance Vidas secas, de Graciliano Ramos,


aproximando-se do conceito de hospitalidade desenvolvido a partir de
certos pressupostos da filosofia dos pensadores franceses, Jacques Derrida e
Emmanuel Lévinas. O conceito central aqui é o acolhimento, associado, na
obra do escritor brasileiro, à questão da linguagem – sua posse, uso, limitações
e significados menos evidentes.

Palavras-chave: Vidas secas. Acolhimento. Hospitalidade. Jacques Derrida.


Linguagem.

Abstract: The article intents to read the novel Vidas secas, by Graciliano Ramos, as
approaching the concept of hospitality developed from certain presuppositions
by the french thinkers Jacques Derrida and Emmanuel Lévinas’s philosophy.
The central concept important here is the accomodation, in the work of the
Brazilian writer, to the matter of the language – its possession, use, limitations
and significance less evident.

Keywords: Vidas secas. Accueil. Hospitality. Jacques Derrida. Language.

Literatura pensante, a obra de Graciliano Ramos se coloca, no


âmbito da tradição brasileira, como um dos mais fecundos encontros
entre experimentação estética e potência reflexiva. Em um só lance
narrativo, em poucas cenas ou reduzidos diálogos, seus textos são
capazes de expor as limitações e impossibilidades da representação
1
Professor Adjunto de Literatura Brasileira da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Publicou
recentemente Abertura entre as nuvens: uma interpretação de Infância, de Graciliano Ramos
(Annablume, 2012) e, ao lado de Eduardo Horta Nassif Veras, Por uma literatura pensante: ensaios
de filosofia e literatura (Fino Traço, 2012). É autor ainda de O drama ético na obra de Graciliano Ramos
(Ed. UFMG, no prelo) e de uma série de artigos.
148 Gustavo Silveira Ribeiro

literária, bem como desfazer, pela ironia, certezas e conceitos estáveis


sobre o homem, a língua e o pensamento. Muitas são as portas de
entrada que seus livros oferecem para o crítico interessado em uma
leitura, por assim dizer, filosófica de seus escritos. No espaço que nos
é aberto neste artigo, procuraremos refletir sobre o entrelaçamento
sutil e decisivo entre ética e estética levado a cabo por Graciliano no
romance Vidas secas, cotejando, para isso, vários de seus elementos
estruturais – a questão da linguagem em primeiro lugar – com certos
temas recorrentes do pensamento do filósofo franco-argelino Jacques
Derrida, em especial as reflexões que teceu em torno da questão do
acolhimento e da hospitalidade2.
Debruçando-se sobre a obra de Emmanuel Lévinas, um de seus
interlocutores mais frequentes e também um amigo pessoal, Derrida
(2004a) reflete sobre os novos rumos da filosofia inaugurados por esse
pensador, por meio do que ele chamou de “um outro pensamento sobre
o outro”. Segundo afirma, Lévinas

[...] mudou o curso da reflexão filosófica de nosso tempo, e da


reflexão sobre a filosofia, sobre o que ordena a filosofia à ética,
a um outro pensamento sobre a ética, sobre a responsabilidade,
sobre a justiça, sobre o Estado, etc., um outro pensamento sobre o
outro (DERRIDA, 2004a, p. 18, grifo nosso).

Tal ruptura, tão decisiva para a obra do próprio Derrida como para
a de muitos de seus contemporâneos, deve-se, entre outras coisas, ao fato
de que Lévinas subverteu a hierarquia tradicional do pensamento sobre
a alteridade3 e os saberes a ela correlatos, como a ética e a ontologia, por
exemplo4, ao invés de considerar que o sujeito e o logos são anteriores
2
Inspiramo-nos também, é preciso reconhecer, na obra crítica e nas considerações metodológicas
feitas pelo português Abel Barros Baptista, renomado interlocutor contemporâneo da literatura
brasileira, que tem, em diversos artigos e conferências, tomado a questão da hospitalidade como
ponto de diálogo privilegiado para a leitura de autores e obras-chave da cultura literária do Brasil.
3
A tradição filosófica do Ocidente tendeu a tratar a diferença, o outro, como aquilo que é excessivo,
que não pode ser controlado e que, por isso, deve permanecer silenciado. Por esse motivo a mulher, a
criança, o louco, o gozo, o êxtase (mesmo o religioso) sempre ocuparam as margens do tecido social,
permanecendo também ao largo dos problemas filosóficos que mobilizavam os debates intelectuais.
4
Lévinas (2000, p. 18) propõe que a ética, e não mais a ontologia, seja considerada a peça chave
do trabalho filosófico, ou o que ele vai chamar de “filosofia primeira”. Segundo argumenta, a
filosofia concentrou-se no mesmo, no ipse, por estar fundada na procura (metafísica) da verdade
A Língua de Fabiano 149

ao outro. Assujeitando-o, portanto, às suas demandas e valores, Lévinas


mostra que é o outro, o estrangeiro, o desconhecido, quem condiciona
o pensamento, impondo a sua presença e transtornando a razão. É ele
quem chama, quem exige uma resposta, e não o contrário. A soberania
do eu (do mesmo), sua consciência ordenadora do mundo vê-se assim
abalada, uma vez que os fundamentos de sua posição, de sua centralidade,
são postos em dúvida. O outro o direciona, inapelavelmente, a lugares
que ele, em princípio, desconhece ou teme.
A proposição de Lévinas, por mais estranha que possa parecer à
primeira leitura (e convém reconhecer, de antemão, que se trata de um
pensamento um tanto hermético, calcado em nuances conceituais ou de
linguagem de difícil reprodução), funda-se na ideia de que a alteridade
não pode ser tomada como um complemento ou como um simples
contraponto do logos. Ela impõe-se sobre o sujeito porque não constitui
parte lateral, diminuída ou secundária do pensamento e da identidade do
sujeito racional. Ela habita o coração daquilo mesmo de que ele é feito:
todos os seus desejos, todos os afetos, todo pensamento que não é mera
repetição de ideias pré-concebidas, tudo isso, enfim, é atravessado pela
alteridade, na medida em que qualquer dessas ações passa naturalmente
pela saída de si, pela renúncia ao já estabelecido: só se deseja aquilo que
não se tem, e o desejo é, por excelência, falta e lacuna - busca incessante
de um outro inalcançável; só se pode verdadeiramente pensar (e não
apenas refletir o mundo, no sentido de oferecer dele uma imagem fiel)
se houver uma abertura para o inesperado, para o novo, com o que a
razão deixa de reproduzir infinitamente a si mesma e passa a integrar-
se na diversidade e na multiplicidade do mundo. Está-se diante, nesse
caso, do que Derrida (2004a, p. 44, grifos do autor) vai chamar, mais
uma vez, na esteira de Lévinas, de “razão capacitada a receber”: um estado
em que, sem abrir mão de princípios racionais, o pensamento se vê
livre das constrições de uma razão totalizante e pode aproximar-se das
aporias da alteridade, do incalculável e do an-econômico que o contato
com o outro traz.
do ser, campo de ação da ontologia. A ética, terreno por definição do outro, da alteridade, foi
alçada em sua obra a esse ponto basilar da filosofia, organizando, a partir daí, a compreensão que
se tem de todos os grandes temas e áreas do saber filosófico como a estética, a fenomenologia e
a filosofia da linguagem.
150 Gustavo Silveira Ribeiro

A noção de acolhimento, retomada por Derrida, surge então nesse


contexto de ruptura com uma maneira tradicional de pensar a alteridade.
De fundamental importância para o progressivo deslocar-se que a obra
do pensador francês operou em direção a problemas do campo ético, o
conceito vai nos servir aqui como provocação teórica para a leitura de
Vidas secas, de modo especial, para as relações que o narrador estabelece
com seus personagens, ampliando o espectro – é o que propomos – das
análises que já se fizeram dessa questão. Buscamos expandir, com isso,
o significado, por assim dizer, filosófico dos posicionamentos éticos e
ideológicos do escritor, além de muitas de suas escolhas estéticas. Antes
de mais nada, porém, é preciso definir melhor o que se entende, neste
ensaio, por acolhimento e também, lateralmente, por hospitalidade –
termo que vai acompanhar o desenvolvimento dos argumentos que
proporemos a seguir.
O acolhimento e a hospitalidade são, em simples definição, um
sim ao desconhecido e ao estranho: oui, à l’etranger, para dizer com Jacques
Derrida. São uma abertura irrestrita ao outro, um gesto incondicional, no
limite, impossível, mas que, entretanto, deve ser buscado sem descanso.
Por seu caráter afirmativo, o acolhimento é o gesto inicial que deflagra a
relação com a alteridade. É a “porta aberta” (DERRIDA, 2004a, p. 44)
que dá acesso ao outro. É uma “acolhida sem reserva e sem cálculo, uma
exposição sem limite àquele que chega” (DERRIDA, 2004b, p. 249).
Sem ela, todo contato com o novo seria, desde já, hostil e nocivo, uma
ameaça à autodeterminação do eu, que trataria de reduzir a diferença aos
lugares comuns e valores já conhecidos e, por isso mesmo, inofensivos.
O acolhimento é o contrário dessa tendência. Um dos elementos que o
instituem é, justamente, a aproximação do outro enquanto totalmente
outro, sem escolhas ou preferências, sem cuidados ou restrições jurídicas.
O outro, o estrangeiro, é quem, paradoxalmente, elege aquele que o vai
acolher.
O acolhimento e a hospitalidade são também conceitos que se
podem comparar à ideia de tradução, na medida em que ela [a tradução]
seria “a experiência enigmática do acolhimento do estrangeiro, da língua
A Língua de Fabiano 151

de um outro” (BERNARDO, 2005, p. 174). Assim como ocorre na


transcrição (cf. CAMPOS, 1981) de uma língua para outra, a relação
do eu com a alteridade se dá de modo tenso, negociado, mas sempre
necessário. O ato de receber o outro, deixar-se penetrar por ele, tem
algo do esforço e da passividade que caracterizam, contraditoriamente,
a tarefa da tradução – e insistimos aqui na comparação proposta por
Fernanda Bernardo por considerar que ela ilumina justamente o aspecto
ambíguo do acolhimento, o mesmo que Lévinas (2000, p. 67) vai propor
em uma brevíssima abordagem do conceito: “Acolhimento do outro – o
termo expressa uma simultaneidade de atividade e de passividade – que
situa a relação com o outro fora das dicotomias válidas para as coisas: a
do a priori e a do a posteriori, da atividade e da passividade”.
Se traduzir um determinado enunciado é, em si mesmo, um
gesto criativo, uma ação que exige dos que a praticam imensos
esforços, traduzir é também esquecer a sua língua materna, deixando-se
contaminar, o mais completamente possível, pelo idioma alheio, em um
ato que envolve abandono de si e atenção ao outro (cf. BENJAMIN,
2011). Algo semelhante pode ser dito das noções de acolhimento
e hospitalidade. Acolher o estrangeiro exige considerável dose de
despersonalização (Derrida (2004a, p. 68), inclusive, refere-se a esse
ato como “uma interrupção de si”: além das prováveis dificuldades
práticas do acolhimento – prover alimento, abrigo, respeito às diferenças
culturais, religiosas e linguísticas – sempre existe o risco da morte, que
não pode ser desconsiderado. O estrangeiro, um completo desconhecido,
pode muito bem portar consigo a violência e o assassinato. Apesar
disso, o acolhimento é também um dever, algo que não se escolhe
(completamente) realizar. Em que pese todo o risco inerente, o apelo sem
destino certo, enviado pelo outro, é uma força irresistível, capturando
mesmo aqueles que dele tentam fugir.
Por fim, um dos aspectos importantes dos conceitos em tela (e
que, também, não convém esquecer) diz respeito à ligação que mantém
com a política e a realidade concreta dos últimos dois decênios da vida
de Jacques Derrida. Se ele resgata, como já notamos, essas noções da
152 Gustavo Silveira Ribeiro

complexa obra de Emmanuel Lévinas, o faz, entre outras coisas, para


construir com elas instrumentos de análise, luta e solidariedade. Atento
à preocupante condição dos emigrantes e dos estrangeiros ilegais na
França – situação que só se agrava, ante os nossos olhos, com os terríveis
desdobramentos da crise do capital financeiro deflagrada nos EUA em
2008 – Derrida intervém, frequentemente, na cena pública francesa,
armado do arsenal teórico que ora discutimos aqui, levantando-se contra
leis de antiemigração e contra políticas de criminalização de emigrantes
não legalizados e de ativistas dos direitos humanos que porventura
militem pela causa do cosmopolitismo.
Um dos episódios mais conhecidos desse período gira em torno
da aprovação de um conjunto de leis punitivas que visavam dificultar (se
não mesmo impedir) qualquer tipo de solidariedade a emigrantes que,
fosse como fosse, tivessem conseguido alcançar o território nacional da
França. Instituindo o chamado “delito de hospitalidade” (DERRIDA,
2003, p. 73), essa lei condenava à prisão todo cidadão da República que
oferecesse ajuda de qualquer espécie (até mesmo, ou principalmente,
ajuda humanitária) a emigrantes ilegais. Estes, chamados sans-papiers,
formavam, como é fácil imaginar, o estrato mais baixo da hierarquia
social francesa e europeia, a quem só restava o silêncio e a deportação.
Contrapondo o delito de hospitalidade às “leis da hospitalidade”
(DERRIDA, 2003, p. 45), o autor se opõe a essa contradição linguística
e moral, colocando em evidência aquelas estruturas de pensamento
que pressupõem o acolhimento incondicional e que precisam plasmar-
se também (e,  paradoxalmente) , em legislações específicas, segundo
as quais os Estados nacionais e mesmo os indivíduos devem debater,
o mais abertamente possível, as condições de entrada e vida dos
emigrantes Trata-se, segundo o autor, de um contínuo processo de
negociação, que inclui tanto o cálculo econômico, pragmático, quando
o salto para o infinito, o incomensurável contido na questão: “calcular
os riscos, sim, mas sem fechar a porta ao incalculável, ou seja, ao
porvir e ao estrangeiro, eis a dupla lei da hospitalidade” (DERRIDA,
2004b, p. 250).
A Língua de Fabiano 153

No fundo, o que Derrida propõe é que filosofia e política voltem


a misturar-se em nível profundo, e que, a partir de reflexões conceituais
acadêmicas (e muitas vezes puramente abstratas), se possam elaborar
formas de resposta às muitas contradições trazidas pelo presente
histórico. Seus aportes sobre os limites das democracias modernas, de
sua necessidade de constante perfectibilidade (cf. DERRIDA, 2004c),
sobre a questão do cosmopolitismo e o direito internacional, realizada
em diálogo constante com a A paz perpétua, de Kant, são exemplos disso.
Tendo em mente esse panorama, buscaremos, ao trabalhar na
abordagem do texto literário, a partir dos conceitos de acolhimento e
hospitalidade, não perdendo o foco de sua dupla inscrição: ao mesmo
tempo em que estão fincados no cotidiano, estão postos fora dele. Da
mesma forma, quando nos voltarmos para a obra de Graciliano Ramos
e observamos como, ali, são mobilizados os diversos saberes filosóficos,
estéticos e políticos que a agitam, não perderemos (não devemos perder)
de vista o fato de que nela também a reflexão sobre os dilemas históricos
não se separa da prospecção teórica, formando ambas um único e
indissolúvel movimento textual.
Acolher, ser habitado (momentaneamente) pelo outro, deixar-se
perpassar por ele e por sua linguagem. Esta, como afirma Derrida (2004c,
p. 60) (comentando Totalidade e infinito), é “interpelação do outro, é, na sua
essência, amizade e hospitalidade”. Se a linguagem, pois, é já, em si mesma,
hospitalidade, lugar em que se dá, em primeiro plano, a relação eu-outro,
é lícito eleger justamente a questão da língua como ponto de entrada no
romance Vidas secas. Sendo nosso intuito verificar a produtividade de certos
conceitos de Jacques Derrida como caminhos de leitura válidos para a
obra do escritor alagoano, nada mais natural, portanto, que observar o
funcionamento de um dos pontos-chave da narrativa de 1938, a fim de
demonstrar que nele se esconde mais do que um conjunto de escolhas
vocabulares e de procedimentos estilísticos. Muito do sentido ético do
texto, acreditamos, ali se dá a ver de modo direto.
Muito já se disse sobre o uso da língua em Graciliano Ramos,
particularmente em Vidas secas. A maior parte dos comentadores e
154 Gustavo Silveira Ribeiro

analistas, entretanto, concentra-se na extrema concisão com que foi


escrito o livro, apontando, acertadamente, o seu permanente combate
à verborragia e à ornamentação desnecessária5 como uma das suas
contribuições mais originais. Adotando caminho diverso, mas não
necessariamente oposto, gostaríamos de centrar nosso foco em outro
lugar. Pretendemos investigar como a língua é o ponto em que se
encontram, no romance, o autor e seus personagens, em que estes
últimos – portadores de uma alteridade radical em relação a Graciliano
e seu narrador –infiltram-se sub-repticiamente no texto, sendo acolhidos
por ele e modificando, a partir daí, a sua feitura.
A língua de Fabiano, de sinha Vitória e dos meninos não é a
mesma em que o romance foi feito. É preciso, desde já, afirmar. Quando
dizemos que a linguagem é a mediação, o ponto de encontro entre
Graciliano e seus personagens, referimo-nos ao fato de que o autor,
um homem de letras culto, difícil e particularmente atento aos perigos e
mistificações da linguagem, deixou-se invadir pela sintaxe e pela prosódia
dos sertanejos, construindo com elas a prosa enxuta que caracteriza o
livro. É claro que não se trata aqui de uma simples e acrítica reprodução
da fala e do pensamento dos personagens. Graciliano conhece os perigos
e os limites de uma tal prática. As intervenções feitas pelo escritor no
corpo da narrativa e a distância que procura guardar em relação ao
universo ficcional que apresenta são índices da aguda consciência que
tinha tanto do seu lugar de fala quanto dos cuidados necessários que é
preciso ter no contato com a alteridade, uma vez que não ignorava o risco
do paternalismo ou de posicionamentos autoritários. Ele, Graciliano,
assumiu aqui, e no restante de sua obra, o papel de mediador (de tradutor)
que lhe cabia. O espaço entre a consciência dos personagens (sua voz
e linguagem), seres quase mudos que viviam à margem das instituições
oficiais e dos locais de fala consagrados, só podiam ser preenchidos
por alguém que, como o escritor, se dispusesse a traduzir – escutando,
inventando, reelaborando – a linguagem dos sertanejos, alteridade
5
Otto M. Carpeaux (1999, p. 443), sobre isso, chega a afirmar que o autor gostaria de “eliminar
tudo o que não é essencial: as descrições pitorescas, o lugar-comum das frases feitas, a eloquência
tendenciosa. Seria capaz de eliminar ainda páginas inteiras, eliminar os seus romances inteiros,
eliminar o próprio mundo”.
A Língua de Fabiano 155

absoluta em relação ao universo da lei e da letra em que estava posto o


autor. O acolhimento que atribuímos à sua relação com a língua do outro,
no entanto, não significa uma entrega total e sem reservas. Ele indica,
antes, uma abertura, “uma interrupção de si”: ao invés da linguagem
articulada e até erudita do escritor cuidadoso, o que se vê no romance
é uma reelaboração sofisticada da fala entrecortada, das frases curtas
e nominais, das onomatopeias, dos vocábulos de sonoridade estranha,
típicos da oralidade nordestina.
Uma relação fundamentalmente dissimétrica entre o escritor e seus
personagens surge então nesse processo. A hierarquia tradicionalmente
estabelecida se inverte, e é o sertanejo aquele que oferece o modelo,
diríamos até o paradigma, da linguagem literária. Não há equilíbrio nesse
jogo de forças: apesar de o poder institucional, socialmente reconhecido,
estar ligado à figura do escritor e à posição que ocupa, a influência e a
força da língua do outro é nítida em todos os passos do romance. O
trecho a seguir dá uma amostra do que afirmamos:

Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a


cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão não se trepa.
Consumidos os legumes, roídas as espigas de milho, recorria
à gaveta do amo, cedia por preço baixo o produto das sortes.
Resmungava, rezingava, numa aflição, tentando espichar os
recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco (RAMOS,
2008, p. 93).

A cena é conhecida. Fabiano vai acertar com o patrão as contas do


período de trabalho. Como saberemos pouco depois, é sistematicamente
enganado pelo fazendeiro, que, desse modo, o explora ainda uma segunda
vez. Relatando os momentos que antecedem o encontro, o narrador
nos apresenta a cena ora com objetividade, ora tecendo comentários
breves sobre o episódio. As divagações do personagem também
aparecem, ainda que rapidamente. Como se vê, as frases são curtas.
O vocabulário é bastante simples, apresentando tão somente algumas
palavras desconhecidas pelo leitor não familiarizado com termos do
156 Gustavo Silveira Ribeiro

sertão: os verbos espichar e rezingar. No entanto, em meio a toda essa


aparente simplicidade encontram-se as marcas da língua de Fabiano.
Em primeiro lugar, a irrupção de sua voz se dá de modo
característico, com uma expressão típica da oralidade camponesa:
“Tolice, quem é do chão não se trepa.” A resignação e o pragmatismo
da sentença se acentuam pela força de sua enunciação. Como nos
lembra Walter Benjamin no célebre “O narrador”, a concisão lapidar,
verdadeiramente poética do pensamento se materializa em provérbios
e frases-síntese, como essa, que condensam, em uma formulação
brevíssima, a experiência acumulada pela observação e pela imersão
no mundo do trabalho. Elemento central aqui é o despojamento dos
termos em foco, em especial do verbo “trepar”, nesse trecho usado de
maneira invulgar, obediente à regência particular da fala nordestina, que
ao mesmo tempo combina arcaísmos cultos e construções coloquiais.
Em um segundo momento, é à sua voz, de Fabiano, a que devemos o
tom do trecho, entre rigoroso e coloquial. O uso de expressões como
“roídas as espigas” e “produtos das sortes”, por exemplo, apontam
nessa direção, uma vez que não fazem parte do repertório tradicional da
literatura canônica, mesmo a dos companheiros de geração de Graciliano,
romancistas que despontaram na década de 1930. Elas pertencem, assim
como muitas outras no romance, à fala dos retirantes, e é com fragmentos
como esse, marcados por dura oralidade, que o autor vai costurando
Vidas secas, habitado que está pela língua e pela mentalidade sertaneja.
O próprio parágrafo de abertura do romance, sobejamente
conhecido pelos leitores do escritor, pode fornecer uma imagem da
diferença que, ao mesmo, tempo habita e é habitada pelo texto de
Graciliano Ramos. A linguagem direta, a frase cortante e quase sem
adjetivos, restrita ao mínimo possível da comunicação de um mundo
narrativo, é expressão do contato com a língua de Fabiano e o modo
particular de capturar a realidade circundante. Em um ambiente em que
as relações sociais se esgarçam pela atomização da economia semi-feudal
e pela acentuada brutalização dos indivíduos – submetidos a um regime
de exploração e iletramento –, a fala, o uso e posse da linguagem são
A Língua de Fabiano 157

regidos por regras claras. De um modo geral, resumem-se ao essencial,


em uma aparente incapacidade para a grandiloquência que deixa entrever
pelo menos duas coisas: de um lado, a virtual ausência de palavras
expressa a relação tensa com o mundo exterior, que torna-se opaco,
de difícil compreensão e simbolização. De outro, é possível perceber
também que o lugar reservado a homens e mulheres como Fabiano
e sinha Vitória é marcado pelo silêncio, pela imposição da linguagem
do poder com seus sons e sentidos sibilinos, que, ao mesmo tempo,
intimidam e fazem calar.
Desse modo, como se observa nos trechos iniciais de Vidas
secas, “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas
verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e
famintos” (RAMOS, 2008, p. 9), e em tantos outros trechos do romance,
estabelece-se uma contiguidade entre a linguagem escolhida pelo autor
e aquela que caracteriza o universo mental dos seus personagens. Essa
linha estendida entre eles não se dá, conforme afirmamos anteriormente,
com base apenas na imitação mais ou menos bem realizada da oralidade
nordestina. Graciliano revela-se como que invadido pela visão de mundo
(que se traduz, em primeiro lugar, em uma linguagem específica) das
suas criaturas, invertendo assim o panorama inicialmente idealizado: de
hospedeiro, sujeito que detém o controle absoluto na sua casa-texto,
o escritor se viu estrangeiro em seus próprios domínios, hóspede da
linguagem e do pensamento do outro.
Tomemos mais um exemplo. Entre muitos outros, o episódios
das aves de arribação, que anuncia o fim de um período de sedentarismo
e o início de nova peregrinação pelo semiárido, apresenta trechos em
que a presença do que vimos chamando até aqui “língua de Fabiano”
se deixa ver com nitidez.

O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal,


provavelmente o sertão ia pegar fogo. Vinham em bandos,
arranchavam-se nas árvores da beira do rio, descansavam, bebiam
e, como em redor não havia comida, seguiam viagem para o sul.
O casal agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os poços, e
158 Gustavo Silveira Ribeiro

aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar


o gado (RAMOS, 2008, p. 109).

Em quase todo o trecho, somente o autor tem a palavra. A


presença e a voz de sinha Vitória insinuam-se apenas nas frases finais,
vazadas no discurso indireto livre que, espantosamente, o escritor
maneja e utiliza. Entretanto, se se olha com atenção, o episódio parece
contado pelos personagens. Grande parte dos termos utilizados e do
ritmo seco das frases remete ao seu universo, ao elemento primitivo que
o constitui. A sonoridade truncada, pouco musical, é a mesma da fala
gutural e nada fluente dos sertanejos. É como se Graciliano procurasse,
entre as diversas opções que se abriam à sua frente durante a escrita
dessas linhas, aquela que melhor se ajustasse à mentalidade de Fabiano
e sinha Vitória, reforçando a homologia buscada entre as palavras e
as coisas em Vidas secas. Pouco importa, para o que estamos tentando
mostrar aqui, que o escritor tenha submetido (nesse e em muitos outros
momentos da narrativa) a linguagem oral que o inspira a uma rigorosa
e original reelaboração formal. Pouco importa, também, que ele recuse,
quase sempre, o erro, o descompasso entre a língua padrão e a variante
praticada pelos sertanejos. O que afirmamos é de outra ordem.
Se, conforme propomos, a questão da língua em Vidas secas pode
ser pensada a partir do conceito de acolhimento, a relação mesmo-outro
entrevista na escrita do romance mobiliza outros significados, que vão
além das dicotomias tradicionais já evocadas por boa parte dos críticos
do livro: saber letrado e iletrado, o intelectual e os excluídos, correção
gramatical e desvio da norma. A língua de Fabiano coloca o escritor
em um estado de suspensão, impondo-se a ele. A contaminação que se
processa a partir daí faz com que o autor veja seu texto irresistivelmente
atravessado pelas palavras e valores dos retirantes, que lhe deixam restrito
espaço de manobra. Todo o inegável trabalho que faz de recriação
da cultura de seus personagens e aproximação ao seu universo, não
pode, na verdade, ser lido (apenas) como desdobramento dos conflitos
ideológicos, políticos e estéticos oriundos da sua posição como escritor
A Língua de Fabiano 159

frente à alteridade que se lhe apresenta. Presa dessa mesma alteridade,


obrigado a responder ao chamado que sua presença (mesmo imaginária)
lhe dirigia, Graciliano enfrenta, antes dos dilemas relacionados à escrita,
o drama ético que o “traumatismo do outro” (DERRIDA, 2004a, p. 27)
inaugurara em si. Para melhor explicarmos o que acabamos de expor, é
preciso recorrer antes, e brevemente, a uma nota biográfica.
Como se sabe, o período anterior à redação de Vidas secas foi
marcado, na vida do autor, pela experiência carcerária, momento no
qual ele viu-se irresistivelmente impelido a um processo de revisão de si,
de seus valores morais e dos posicionamentos políticos que, até aquele
momento, havia assumido. O contato direto, sem a mediação da literatura
ou da participação política, com o outro, abala-o profundamente. Sai
da cadeia disposto a refletir sobre aquilo, e o primeiro texto de fôlego
a que se entrega é, justamente, o romance de Fabiano, sinha Vitória
e da cadelinha Baleia. Não há transposição direta dessa experiência
para o papel, não há confissões ou memórias no texto de Vidas secas.
Há, entretanto, uma maneira diversa de relacionar-se com a alteridade,
maneira que, acreditamos, forjou-se a partir do dilema ético, logo
transformado em reflexão estética, em torno da representação do
outro. Debatendo-se, já àquela altura, para encontrar a forma justa,
exata, de narrar os meses de sofrimento e solidariedade vividos na
prisão, ele entrega-se à escrita do romance marcado pelo contato (tenso
e comovido) com o outro, já atravessado por ele e levado, talvez sem
o saber, a responder afirmativamente (“oui, à l’étranger”) às suas mudas
solicitações.
Desse modo, podemos concluir, depois de esboçada essa breve
hipótese interpretativa, que o campo da linguagem, em Vidas secas, é a
placa sensível em que se fixam, em signos moventes, as idas e vindas
do escritor, sua abertura incondicional ao outro, que, entretanto,
aparece, aos nossos olhos, como movimento pendular de aproximação
e distanciamento. Os eventos que presenciou (sobre os quais oferecerá,
de diversas maneiras e em diferentes livros, testemunho) serviram para
demarcar o ponto de partida de uma série de reflexões marcadas pela
160 Gustavo Silveira Ribeiro

questão da hospitalidade e do acolhimento, conceitos que se desdobram


em Vidas secas – e em outros livros do escritor – a partir do problema da
linguagem, mas, também, a partir de temas relacionados aos pontos que
se destacam em muitos dos seus textos, em Vidas secas principalmente: a
possibilidade da voz do outro, as condições de existência do intelectual
e as relações (o mais das vezes ambíguas) que ele mantém com os
excluídos. Por fim, outro elemento do romance pode também ser
interpretado à luz da noção de acolhimento, remetendo, contudo, a
outros problemas: a reflexão acerca das fronteiras da relação homem/
animal, mote para um dos personagens mais conhecidos de Graciliano
Ramos: a cadelinha Baleia. Este, no entanto, é assunto para um outro
momento.

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Floema - Ano IX, n. 11, p. 163-178, jul./dez. 2015.

O Assassinato de Julião Tavares em Angústia, de


Graciliano Ramos: Entre a Memória e a Imaginação

Carolina Duarte Damasceno Ferreira 1

Resumo: Este artigo se propõe a analisar o assassinato narrado em Angústia,


de Graciliano Ramos. A proximidade entre os planos da narração e da ação e
da memória e da invenção situa essa cena nas instáveis fronteiras entre sonho
e realidade. Esses elementos geram ambiguidades, que impossibilitam saber
se o protagonista de fato cometeu o crime ou se este só ocorreu na esfera da
imaginação. Embora essa questão não possa ser respondida, pois Angústia é
uma “autobiografia de vanguarda” (FEDERMAN, 1993), em que a memória
e a imaginação ocupam o mesmo espaço, essas imprecisões instauram uma
interessante relação entre escrita e ação, que evidencia a modernidade desse
romance.

Palavras-chave: Angústia. Autobiografia de vanguarda. Graciliano Ramos.


Imaginação. Memória.

Abstract: The present work aims to analyze the murder narrated in Angústia,
by Graciliano Ramos. The proximity between the sphere of narrative and the
sphere of action and dream and invention, place this scene within the unstable
frontiers between dream and reality. Those elements create ambiguities, which
make impossible to know if the protagonist in fact committed the crime or
if he has just imagined it. Although a definitive answer to this question does
not exist, because Angústia is a “vanguardist autobiography” (FEDERMAN,
1993) in which memory and imagination are equally important, that imprecision
points to an interesting relationship between writing and action, that reflects
the modernity of this novel.
1
Professora de Literatura da Universidade Federal de Uberlândia. Suas pesquisas de mestrado e
de doutorado, realizadas na UNICAMP, debruçaram-se sobre alguns alcances da metalinguagem
na obra de Graciliano Ramos e de Osman Lins. O artigo publicado faz parte de sua dissertação
de mestrado, “A função da escrita em Angústia, de Graciliano Ramos” (financiada pela FAPESP),
que deu origem a outras publicações: “Ficção e experiência: o papel da escrita em Angústia, de
Graciliano Ramos”. Revista Letras (2011); "Apontamentos sobre o lugar da ficção em Angústia,
de Graciliano Ramos". Sínteses (2006); e “Linguagem e deslocamento em Angústia, de Graciliano
Ramos”. Intersecções (2011).
164 Carolina Duarte Damasceno Ferreira

Keywords: Graciliano Ramos. Angústia. Memory. Imagination. Vanguardist


autobiography.

Angústia, de Graciliano Ramos, assumiu, ao longo do tempo,


uma instável posição no discurso crítico nacional (FERREIRA,
2006). Seu deslocamento diante do romance de 30 parece vincular-se
ao desconforto que sua classificação suscita, pois, além de desafiar
dicotomias tradicionalmente cristalizadas, como regional ou universal,
romance social ou intimista, apresenta uma considerável modernidade
em relação ao contexto literário brasileiro de então. Sua peculiaridade é
forte a ponto de criar a ideia de que esse livro, de 1936, prenunciaria, de
certa forma, técnicas e o tom de movimentos literários ocidentais. Esse
posicionamento é compartilhado por diversos estudiosos, como Bosi
(1985, p. 455), para quem Angústia é um “romance existencialista avant
lalettre” e Otto Maria Carpeaux (1996, p. 232), que afirma que “Caetés é
de um Eça brasileiro; São Bernardo tem algo de um Balzac rural; Angústia
antecipa o nouveau roman e Vidas Secas lembra certos contistas russos,
Babel por exemplo”. Não cabe aqui analisar a pertinência de comparar
esse romance com o existencialismo ou com o nouveau Roman, mas
sim assinalar o quanto o cotejo com produções literárias das décadas
posteriores reforça seu caráter inovador.
De fato, esse instigante romance de Graciliano lança mão de
procedimentos característicos do romance moderno do século XX,
como o monólogo interior e o tempo psicológico. É possível também
vislumbrar, no relato de Luís da Silva, uma proximidade entre os planos
da ação e da escrita, bem como uma justaposição entre memória e
imaginação. Tendo essas observações no horizonte, o intuito do presente
estudo é analisar as ambiguidades e efeitos instaurados por esses recursos
estilísticos na cena em que o protagonista supostamente assassina seu
rival, Julião Tavares.
Esta discussão tomará como ponto de partida um dos aspectos
mais relevantes na análise de narrativas em primeira pessoa: o grau
O Assassinato de Julião Tavares em Angústia, de Graciliano Ramos 165

de distanciamento existente entre o momento da escrita e os eventos


narrados. Dorrit Cohn (1981), valendo-se da distinção de Sptizer entre o
“eu narrador” e o “eu herói”, sustenta que os relatos nesse foco narrativo
são predominantemente marcados pela dissonância ou consonância entre
esses dois sujeitos. No primeiro caso, quem narra interpreta e ordena suas
lembranças à luz do conhecimento adquirido posteriormente, afastando-
se, de certa forma, da experiência vivida. No segundo, predominante
no romance moderno (ROUSSET, 1973), o recuo narrativo é mínimo,
pois o narrador confunde-se com o herói e revive os acontecimentos
passados, resgatando seus sentimentos e indagações de então.
Salvo as passagens metalinguísticas, naturalmente associadas ao
momento da narração, raros são os trechos em Angústia em que a voz
do “eu narrador” predomina. Na maior parte do romance, a história
amorosa com Marina e a morte de Julião Tavares são contadas como se
fizessem parte do presente de Luís da Silva, e não de seu passado, o qual
remete principalmente à sua infância e juventude. Há, com efeito, uma
tendência de presentificar o passado recente, como se o protagonista
revivesse-o, ao invés de interpretá-lo. Algumas marcas reforçam essa
impressão, como a citação de pensamentos antigos sem marcas de
distanciamento (como “Eu me dizia”, “Eu acreditava”)2 e previsões
equivocadas, conforme se verá na sequência, que negam o inevitável
conhecimento posterior do “eu narrador” sobre o desdobramento
dos fatos.
O emprego desses recursos evidencia uma identificação entre
quem narra e quem viveu e revela o quanto Luís da Silva ainda é
tocado pelos episódios relatados. Além disso, atribui ao relato traços de
simulacro, por apresentar momentos passados como se fizessem parte
do presente. Os diálogos, abundantes em algumas páginas3, reforçam
a ideia de encenação, pois os personagens parecem conversar sob os
olhos do leitor, hic et nunc.
2
“Método, perfeitamente, tudo se arranjaria. Saía dali, ia olhar as vitrinas e os cartazes. Bacharel
idiota, aperreando um bom inquilino. Porcaria. _ Quem andou por este mundo roendo chifre se
engancha em bobagens. Porcaria. Tenho comido toicinho com mais cabelo” (RAMOS, 1953, p.
122). Todas as citações de Angústia neste artigo tomam como base a 5ª edição.
3
Como nas páginas 54, 94-95 e 157, entre outras.
166 Carolina Duarte Damasceno Ferreira

Não seria descabido supor que, devido à tamanha proximidade


entre o protagonista e a matéria narrada, houvesse maior fidelidade aos
acontecimentos, cujos contornos estariam menos apagados pelo tempo.
Essa hipótese, entretanto, não é pertinente:

Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas


insignificantes. Depois, um esquecimento quase completo. As
minhas ações surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem
de outra pessoa. Penso nelas com indiferença. Certos atos
parecem inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por
onde andei perdem a nitidez. Tudo aquilo era uma confusão, em
que se avultava a idéia de reaver Marina (RAMOS, 1953, p. 115).

O trecho, além de lançar luz sobre o processo da memorização,


que apresenta um caráter fragmentário e outro sistema de valoração,
mostra como o narrador vê seu passado recente com uma lente distorcida
e fora de foco. Essa constatação traz à tona uma instigante pergunta:
como ele conseguiu restituir cada passo de sua trajetória com uma
memória tão fraca e oscilante? Outra passagem de Angústia sugere um
esboço de resposta: “Procuro recordar-me dos verões sertanejos, que
duram anos. A lembrança chega misturada com episódios agarrados
aqui e ali, em romances. Dificilmente poderia distinguir a realidade da
ficção” (RAMOS, 1953, p. 28).
Nos romances em primeira pessoa de Graciliano Ramos, a
proximidade entre presente e passado, lembrança e delírio, é bastante
explorada. É o que ocorre, por exemplo, no capítulo XI de São Bernardo,
em que o passado e o presente passam a se imbricar no relato de Paulo
Honório: “Penso que chamei Casimiro Lopes. A cabeça dele [...] assoma
de quando em quando à janela, mas ignoro se a visão que me dá é atual
ou remota” (RAMOS, 1976, p. 107). Essa relação entre imaginação e
memória, abordada pelo grande escritor alagoano, perpassa as reflexões
sobre textos autobiográficos.
Segundo Philippe Lejeune (1996), nenhum elemento formal
permite distinguir romances escritos em forma de autobiografia de
“autênticos” textos autobiográficos. Como essa distinção se dá somente
O Assassinato de Julião Tavares em Angústia, de Graciliano Ramos 167

por elementos extratextuais, que não estão em pauta aqui, é pertinente


utilizar considerações teóricas sobre a literatura pessoal para analisar
Angústia, que não é propriamente uma autobiografia.
Feito esse esclarecimento, vale se debruçar sobre as considerações
do teórico francês sobre os relatos em questão, que costumam se
comprometer, de forma mais ou menos explícita, a contar a verdade.
Porém, como assinalam Jean Yves e Marc Tadié (1999), todo relato
do passado falsifica as recordações, pois o ato rememorativo não
distingue com clareza o verdadeiro do falso. A tendência de todo texto
autobiográfico desembocar na invenção é também destacada por Jean
Starobinski (1970), para quem esses dois domínios necessariamente
se entrelaçam, ainda que o memorialista prometa ser fiel ao ocorrido.
A ausência dessas promessas é uma das marcas das autobiografias
modernas. John Eakin (1985), ao tecer um breve panorama sobre as
mudanças desse gênero, pontua que, para Poe e Rousseau, a fidelidade
traduzia-se na coragem de contar tudo, mesmo os episódios pouco
louváveis da vida. Não estava em jogo o problema epistemológico
da verdade nem a possibilidade de atingi-la através da memória. As
narrativas autobiográficas modernas, por sua vez, caracterizam-se
pela consciência de que o relato do passado é moldado pela memória
e pela imaginação. Assim, embora esse gênero sempre tenha tido um
caráter ficcional, este só foi assumido pelos escritores do século XX.
Essas “autobiografias de vanguarda”, que assumem o caráter fictício
da memória, utilizam, segundo Federman (1993), procedimentos
para tornar imprecisa a veracidade do relato. Dentre eles, podem ser
destacados, no romance estudado, a utilização da primeira pessoa, a
justaposição dos planos da ação e da narração e, por fim, a aproximação
daquilo que o protagonista apresenta como mundo “real” de sua vida
interior. Esses elementos se intensificam na cena do suposto assassinato,
que passa a ser o foco desta reflexão.
A fim de iniciar esse ponto da análise, convém destacar uma
passagem na qual Luís da Silva prevê o destino de seu rival dali a dez anos,
em um contexto revolucionário: “E Julião Tavares? Julião Tavares estaria
168 Carolina Duarte Damasceno Ferreira

expatriado, fuzilado ou enforcado. Enforcado, Julião Tavares enforcado”


(RAMOS, 1953, p. 131). Essa antecipação, juntamente com outra de
mesma ordem4, ressalta a predominância do “eu herói”, mencionada
anteriormente. Assim, a previsão do enforcamento de seu inimigo
uma década depois pode ser uma mera reprodução de seu pensamento
antes do desfecho de Angústia. Entretanto, é importante frisar que a
tímida presença da visão retrospectiva do “eu narrador”, o qual alude à
concretização do assassinato em raríssimos momentos, produz alguns
efeitos. Como antes das passagens finais não há quase referência ao
crime5, é somente a partir delas que o leitor toma conhecimento do
destino de Julião. Vale, portanto, deter-se nas peculiaridades do episódio
em questão, ressaltando suas ambiguidades.
Ao longo do romance, o desejo de Luís da Silva de matar seu rival
transforma-se em uma obsessão. Certa noite, segue-o até Bebedouro,
onde morava sua nova namorada. Essa região, bastante afastada, é escura
e silenciosa. Em sua descrição, a noite e o sono parecem se estender
sobre tudo: além de sua própria sonolência (“Ando meio adormecido”),
o cenário também aparenta dormir (“[...] o café estava fechado, na
praça deserta as luzes cochilavam”). O trecho seguinte reforça o caráter
onírico da cena:

A necessidade de fumar atrapalhava-me os movimentos. Julião


Tavares flutuava para a cidade, no ar denso e leitoso. Estaria
longe ou perto? Aparecia vagamente nos pontos iluminados,
em seguida o nevoeiro engolia-o, e eu tinha a impressão de que
ele ia voar, sumir-se. Um balão colorido em noite de S. João,
boiando no céu escuro (RAMOS, 1953, p. 204).

Sob a forte neblina, configura-se um cenário de alucinação.


Seu inimigo ora é engolido pelo nevoeiro, ora aparece rapidamente,
como uma visão ou miragem. O protagonista não consegue sequer
4
“Julião Tavares, apertado no smoking, parecia menos gordo. Dentro de alguns anos estaria
enforcado, mas agora estava bem vivo” (RAMOS, 1953, p. 133).
5
As escoriações na mão, mencionadas no início do relato, poderiam ser uma evidente referência
ao crime. No entanto, em outro momento, Luís da Silva ficou com as mãos machucadas somente
por apertar uma corda: “E apertava a corda com força. Quando retirava a mão do bolso, via nos
dedos os sinais que ela deixava, marcas roxas na pele suada” (RAMOS, 1953, p. 170).
O Assassinato de Julião Tavares em Angústia, de Graciliano Ramos 169

medir a distância que os separa, pois as dimensões espaciais tornam-se


imprecisas.
A mesma imprecisão atinge a dimensão temporal. Ao comparar
seu rival com um balão de São João, resgata sua infância. Essa retomada,
muito frequente, aproxima seu passado remoto do relato do crime6.
Quando volta a sua casa, sintetiza o tratamento dado ao tempo em uma
bela imagem: não consegue ver as horas porque havia “uma neblina
diante do mostrador” (RAMOS, 1953, p. 236).
No final de Angústia, o narrador move-se livremente no tempo,
pois os processos psíquicos não seguem a ordem de um calendário
(HUMPHREY, 1954). Como o tempo convencional remete à realidade
empírica, seu longo fluxo de consciência é marcado por outra modalidade
temporal, associada à interioridade: “No tempo não havia horas”
(RAMOS, 1953, p. 240). Ao enfatizar o tempo psicológico, insere sua
narrativa mais no campo da realidade psíquica do que nos domínios da
dita realidade objetiva7.
Luís da Silva, portanto, configura Bebedouro como um lugar
à parte. Esse cenário, atrelado ao mundo dos desejos e do sonho, é
fortemente marcado pela presença de seu passado longínquo, que
intercepta em diversos momentos o presente da ação, aproximando
memória e experiência. É nesse espaço recortado de sua realidade
corriqueira que, em um gesto de autoafirmação, supostamente comete
o assassinato:

Retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silenciosos como


os das onças de José Baía, estava ao pé de Julião Tavares. Tudo
isso é absurdo, é incrível, mas realizou-se naturalmente. A corda
enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas
afastaram-se. Houve uma luta rápida, um gorgolejo, braços a
debater-se. Exatamente o que eu havia imaginado (RAMOS,
1953, p. 210).
6
Nesse sentido, é significativa a associação estabelecida pelo narrador entre os momentos em
Bebedouro e o tempo em que seus “olhos se enevoavam pela fome e descobriam entre as árvores
cenas irreais” (RAMOS, 1953, p. 200).
7
Convém precisar que o termo “realidade”, ao longo desse estudo, remeterá ao universo apresentado
por Luiz da Silva como sua realidade empírica; “experiência”, por sua vez, será entendido como
aquilo que o narrador diz ter vivenciado. Ambos os termos serão, portanto, utilizados no sentido
próprio que assumem em um texto ficcional.
170 Carolina Duarte Damasceno Ferreira

Ele vence rapidamente a considerável distância entre ambos e,


em poucos movimentos, estrangula Julião. Este é facilmente derrotado,
apesar de seu tamanho, como na cena imaginada no café (RAMOS, 1953).
Essa passagem, em que idealiza pela primeira vez a forma do crime,
é marcada por forte devaneio: seu inimigo seria vencido sem muito
esforço, como por um passe de mágica. O mesmo tom se faz presente
nos acontecimentos transcorridos em Bebedouro. Luís da Silva chega
a reconhecer o caráter aparentemente fantasioso da narrativa, porém,
ainda assim, reivindica sua verossimilhança: “Tudo isso é absurdo, é
incrível, mas realizou-se naturalmente”.
O fato de o estrangulamento ter sido exatamente como ele havia
imaginado evidencia a contiguidade entre imaginação e ação. Ao armar
um cenário, traçando um lugar regido por outra realidade, também
atribui a seu assassinato o aspecto de algo construído. Nesse mundo
fabricado, com ares oníricos, resgata as imagens de força de sua infância,
simbolizadas pelo cangaceiro José Baía.
Após o assassinato, uma grande instabilidade acomete o narrador:
inicialmente, em um movimento de autoafirmação, tem a impressão
de que todos seus problemas dissiparam-se como fumaça; em seguida,
sente-se amedrontado e fraco. Enquanto tenta levantar o corpo de Julião
Tavares, acredita ouvir vozes:

Apareceram vozes na estrada. Vozes? Ou seria que eu estava


transvariando? Alucinação. Não queria acreditar que pessoas
normais se avizinhassem de mim sossegadamente. Agarrava-me
com desespero à corda [...].
- Vão-se embora. Vão-se embora. Não venham, que se
desgraçam. Um homem perdido não respeita nada [...].
As vozes cada vez mais distintas, grossas, finas. Machos e fêmeas.
Mentira, tudo mentira. Eu não tinha trinta e cinco anos: tinha
dez e estudava a lição difícil na sala de nossa casa na vila. A sala
enchia-se de rumores estranhos que vinham de fora e saíam
das paredes. Provavelmente, eram os sapos do açude da Penha.
Não eram sapos: eram homens e mulheres que se aproximavam
(RAMOS, 1953, p. 216).
O Assassinato de Julião Tavares em Angústia, de Graciliano Ramos 171

Destaca-se aqui um jogo de possibilidade e certeza também


presente em outros momentos do desfecho do romance: Luís da Silva
faz afirmações sobre as vozes e depois as coloca em dúvida. Questiona
seu estado mental e a palavra “alucinação”, escrita sem nenhuma
marca de interrogação, reforça a hipótese de tresvario. Instaura-se um
impasse entre alucinação e realidade: ao dirigir-se imaginariamente às
pessoas, desponta um forte teor de delírio; a afirmação de que as vozes
tornavam-se distintas, entretanto, parece indicar um fato real. As linhas
finais inserem novas ambiguidades nesse trecho. A frase “mentira, tudo
mentira” pode ter várias interpretações: o que, afinal, era mentira? A
presença das vozes? O fato de ele ter trinta e cinco anos, pois se sentia
criança? Ou as duas coisas? A utilização do pronome indefinido “tudo”
pode até mesmo qualificar como mentiroso todo o relato até então. Uma
passagem seguinte, na qual narra a aproximação de um grupo do corpo
de seu rival, insere outras matizes nesta análise:

Ia adormecer entre as folhas, com os braços estirados, afastando-


me da árvore para fazer contrapeso ao corpo de Julião Tavares
[...]. Julião Tavares teria subido, ou a corda mergulhara no
pescoço balofo? [...] Subitamente notei que o corpo subia e
balançava [...]. Enorme preguiça e enorme sono prendiam-me
ao galho. Creio que dormi uns minutos [...] Teria dormido?
(RAMOS, 1953, p. 217).

O personagem não apenas menciona seu sono, como já fizera em


Bebedouro, como se pergunta mais de uma vez se havia dormido. Ao
assumir a incapacidade de responder a essa questão, situa sua narrativa
entre o sonho e a dita realidade. A estrutura circular do romance, que
termina com o sono do narrador (“um colchão de paina”) e se inicia
com um despertar (“Levantei-me há cerca de trinta dias...”), reforça
essa instável posição.
A presença de uma fronteira pouco nítida entre o delírio e fatos
reais ajuda a compreender parte de suas contradições. Poucas páginas
8

8
A esse respeito, Antonio Candido (1992, p. 34) defende que, em Angústia, a vida é vista como um
pesadelo, “onde as visões desnorteiam e suprimem a distinção do real e do fantástico”.
172 Carolina Duarte Damasceno Ferreira

depois, sem hesitar, afirma que era seguido por pessoas que queriam
denunciá-lo 9. Depois, encontra um vagabundo e faz a seguinte
ponderação: “Eu ia perseguido por criaturas inexistentes, mas a
presença daquele vagabundo não me produziu medo” (RAMOS, 1953,
p. 220). Ele conclui que as pessoas que supostamente o espionavam
não o seguiam de fato? Ou elas sequer existiam, sendo mero fruto de
sua imaginação? Não cabe aqui optar pela interpretação mais cabível,
mas sim ressaltar o jogo entre suposição e certeza presente no discurso
do narrador. Essas contradições aumentam quando volta a sua casa,
em estado febril:

Uma felicidade estar com febre. Os rumores externos eram os


mesmos de todos os dias. [...]. Nenhuma novidade [...] Se alguém
entrasse de repente e me visse desfiando pedaços de pano? [...].
Sentia um medo horrível e ao mesmo tempo desejava que um
grito me anunciasse qualquer acontecimento extraordinário.
Aquele silêncio, aqueles rumores comuns, espantavam-me.
Seria tudo ilusão? Findei a tarefa, ergui-me, desci os degraus
e fui espalhar no quintal os fios da gravata. Seria tudo ilusão?
(RAMOS, 1953, p. 230).

Espanta-se com a ausência de modificações em seu cotidiano,


pois as mudanças ocorridas devem-se somente a sua febre e ao medo
de ser descoberto. Apesar do temor de ser preso, deseja a confirmação
de que algo excepcional realmente aconteceu. Como essa confirmação
não vem, e as alterações parecem se restringir ao seu estado psíquico,
indaga-se repetidamente: seria tudo ilusão? Essa é a primeira vez que
Luís da Silva questiona diretamente seu próprio crime. Dali em diante,
passa a constantemente colocar em dúvida sua história: “As mãos
doíam-me, as pernas doíam-me, os pés dos cabelos doíam-me. Não
queria imaginar o que aconteceria lá fora, o que tinha acontecido. Fatos
possíveis misturavam-se a coisas absurdas. Evidentemente...” (RAMOS,
1953, p. 234). Essa passagem faz transparecer a ambiguidade presente
na narrativa: a dor nas mãos e nos pés podem ser consequências
9
“Estava certo de que homens e mulheres me acompanhavam. Tinham passado por baixo da
árvore, visto o homem enforcado, iam encontrar-me e denunciar-me” (RAMOS, 1953, p. 219).
O Assassinato de Julião Tavares em Angústia, de Graciliano Ramos 173

físicas dos acontecimentos em Bebedouro; porém, como questionou o


estrangulamento e declarou que “fatos possíveis” e “coisas absurdas”
se misturavam, não fica claro para o leitor quais pontos devem ser
enquadrados em cada categoria acima. O que realmente aconteceu?
O que foi sonho, delírio? Essas perguntas permanecem em suspenso,
pairando sobre suas contraditórias declarações.
Seguem então passagens em que sua culpa parece evidente:
justifica a falta de impacto da morte de Julião (“Todos os dias nasce
gente, morre gente. Isso não tem importância” e aguarda a chegada da
polícia (“Porque não se acabava logo aquilo? [...] Porque não me vinham
buscar os miseráveis da polícia?”). Na sequência, o assassinato assume
novamente um caráter duvidoso:

As flores não me davam nenhum prazer. Deseja livrar-me delas,


interromper aquelas viagens para cima e para baixo, andar na
Terra. Escancarava os olhos [...]. Sem memória, um idiota.
Chorava, batia com a cabeça no ferro da cama, puxava os cabelos.
Olhava as mãos. As unhas crescidas e sujas, a escoriação da palma
secando e cicatrizando, os dedos compridos, escuros, com uns
nós muito grossos. Sem memória. Que havia acontecido antes?
(RAMOS, 1953, p. 242).

Seu estado delirante e a vontade de andar na Terra, ou no mundo


real, reforçam o caráter pouco confiável do narrador. As últimas linhas
abalam ainda mais a fidedignidade de seu relato, pois ele diz estar “sem
memória”. Massaud Moisés (1978) questiona a versão do crime por este
ser contado exclusivamente a partir da memória do protagonista. Seu
questionamento ganha maior alcance nas linhas finais do trecho citado,
as quais retomam um ponto já explorado neste artigo: com uma memória
fraca, quiçá inexistente, seria possível narrar todos os acontecimentos em
Bebedouro? A proximidade entre memória e imaginação, característica
das autobiografias de vanguarda, volta a se evidenciar. Despontam, assim,
algumas perguntas sobre os atos de Luís da Silva: o que foi realmente
vivido? O que foi apenas lido ou escrito? Onde termina a experiência?
Onde se inicia a invenção?
174 Carolina Duarte Damasceno Ferreira

Essas questões não têm respostas definitivas, uma vez que as


autobiografias de vanguarda não almejam desfazer essa imprecisão.
Contribuem, todavia, para colocar em evidência a ambiguidade do
assassinato, realizado em um lugar à parte, marcado por forte teor
onírico, onde vigoravam leis de tempo e espaço vinculados à realidade
psíquica. As cenas finais do romance exploram, de maneira ainda mais
enfática, o jogo entre certezas e especulações e a aproximação entre quem
escreve e quem viveu. Com o lugar central dado ao “eu herói”, Luís da
Silva revive, ou vive, sua experiência através da narração, transformada
em ação. Feitas essas considerações, cabe mencionar sucintamente os
comentários da crítica sobre o episódio analisado.
O crime é frequentemente entendido como uma tentativa
fracassada de autoafirmação10. Há também uma tendência de leitura
política, presente, em maior ou menor grau, em diversas análises, na
qual esse ato é visto como uma alegoria revolucionária, por simbolizar
a morte do Burguês11.
A leitura de Massaud Moisés (1978) merece destaque, pois é o
primeiro a desconfiar do assassinato realizado pelo protagonista. Tenta
explicar sua extraordinária força física no estrangulamento, atribuindo-a
a “forças recalcadas”. Essa explicação, independentemente de sua
pertinência, vale por seu pressuposto: ele sente necessidade de esclarecer
a origem do súbito e extraordinário poder de Luís da Silva, que o permite
matar seu rival com tanta facilidade. O autor esboça algumas indagações
sobre as cenas finais do romance, mas não as leva a cabo. Ivan Teixeira
(2000), por sua vez, partindo do caráter não confiável do narrador, cogita
a possibilidade de o crime sequer ter acontecido.

10
Antonio Candido (1992, p. 40), por exemplo, entende o assassinato como uma frágil tentativa
de equilíbrio: “Luís da Silva se anula pela auto-punição e só consegue equilibrar-se assassinando
seu rival, equilíbrio precário que o deixa arrasado, mas de qualquer modo é a única maneira de
afirmar-se”.
11
Ivan Teixeira (2000, página?) questiona a importância dada à leitura política: “Embora engenhosa,
essa interpretação força alguns elementos indiscutíveis da estrutura do romance, valendo-se
principalmente de circunstâncias culturais e biográficas em que foi escrito. A se acreditar nessa
hipótese, o romance deveria ser interpretado como espécie de propaganda literária do comunismo,
o que contraria as convicções do próprio narrador, que não partilhava das idéias de seu amigo
Moisés, este sim partidário da revolução armada”.
O Assassinato de Julião Tavares em Angústia, de Graciliano Ramos 175

Em linhas gerais, os críticos que se debruçaram sobre esse


inovador romance de Graciliano Ramos não põem em dúvida o relato
apresentado. Não acompanham, pois, as indagações presentes no
discurso do próprio narrador. Destaca-se também que, apesar das
diferenças de enfoque, a maioria concorda sobre um ponto: o assassinato,
se tomado como projeto de realização do protagonista, fracassa12:

Um funcionário. Pus-me a rir como um idiota. Continuaria a


escrever informações, a bater no teclado da máquina, a redigir
artigos bestas – “Perfeitamente”. Não tinha praticado nenhuma
façanha, não tinha conversado com o vagabundo, na véspera.
Eu? (RAMOS, 1953, p. 239).

Na passagem, transparece sua frustração: ao voltar à sua realidade


cotidiana, continua sentindo-se insignificante. Mais uma vez, é difícil
discernir se as coisas permaneceram inalteradas porque ele não matou
efetivamente seu rival; ou se a ausência de mudança o faz duvidar do
assassinato realmente cometido. Seja o que for, pouca coisa mudou
em sua vida, fora o aumento dos delírios. Se o estrangulamento não
foi suficiente para acarretar uma grande mudança e uma afirmação de
identidade, o que mais ele pode fazer? Se, tendo acontecido ou não,
seu assassinato parece um efêmero sonho, onde buscar um pouco de
realização? As linhas seguintes sugerem uma resposta: “Nada havia
acontecido comigo. Senti-me vítima de uma grande injustiça e tive desejo
de chorar [...]. – Não fui eu. Escrevo, invento mentiras sem dificuldade.
Mas as minhas mãos são fracas, e nunca realizo o que imagino” (RAMOS,
1953, p. 240).
O narrador nega novamente ter assassinado seu rival, talvez na
tentativa de se eximir da culpa e de suas consequências. Ao justificar-se,
declara que escreve e inventa histórias facilmente, aproximando escrita e
mentira. Em seguida, lembra a fraqueza de suas mãos e sua incapacidade
de realizar o que imagina. Além de possibilitar a leitura do crime como
uma grande obra de imaginação, o trecho possui outros desdobramentos:
qual a relação entre a escrita e suas ações? Escrever seria um modo de
12
É o que defende Sônia Brayner (1977), Luís Bueno (2006) e Massaud Moisés (1978), entre outros.
176 Carolina Duarte Damasceno Ferreira

viver o que não vivenciou na vida real? Ou reviver uma experiência,


tornando-a mais completa? O trecho abaixo contribui com esta reflexão:

Faria um livro na prisão. Amarelo, papudo, faria um grande livro,


que seria traduzido e circularia em muitos países. Escrevê-lo-ia a
lápis, em papel de embrulho, nas margens de jornais velhos. O
carcereiro me pediria umas explicações. Eu responderia: “– Isto
é assim e assado”. Teria consideração, deixar-me-iam escrever o
livro (RAMOS, 1953, p. 232).

Diante da possibilidade de ser preso, relaciona diretamente prisão


e criação literária. Em suas especulações, vê a escrita como uma fonte
de realização e respeito. Ao sonhar com publicação de sua grande obra,
volta a vivenciar um poderoso, e um tanto megalomaníaco, sentimento
de autoafirmação, parecido com o qual lhe acometeu após a suposta
morte de Julião. É como se escrever fosse um modo menos fugaz de
afirmar sua identidade.
Para Ivan Teixeira (2000), o crime impulsiona Luís da Silva a
realizar seu sonho de criação artística. Sob esse enfoque, a maior função
do assassinato parece ser a escrita de sua confissão. Os comentários de
Sônia Brayner (1977), por sua vez, ampliam o alcance desta discussão.
Para ela, em Angústia, a “única atividade que se apresenta como ‘real’ e
presente é a de escrever” (BRAYNER, 1977, p. 210).
As ambiguidades das cenas analisadas, decorrentes da proximidade
entre memória e imaginação, sonho e realidade, trazem empecilhos à ideia
de que o assassinato seria o grande acontecimento na vida do narrador. A
existência do livro de confissão, por sua vez, é inquestionável, tornando
plausível defender que seu grande ato é a criação literária. Assim, a morte
de Julião Tavares, talvez vivenciada apenas na esfera da imaginação,
estaria subjugada ao desejo de tornar-se herói de seu próprio livro. Nesse
sentido, importa pouco o grau de verdade ou de falsidade em seu relato,
como sugere o trecho de Camus (1956, p.125-126):

Je sais ce que vous pensez: il est bien difficile de démêler le vrai


du faux dans ce que je raconte. Je confesse que vous avez raison
O Assassinato de Julião Tavares em Angústia, de Graciliano Ramos 177

[...]. Qu’importe après tout? Les mensonges ne mettent-ils pas


finalement sur la voie de la vérité? Et mes histoires, vraies ou
fausses, netendent-elles pas toutes à la même fin, n’ont-elles
pas le même sens? Alors, qu’importe qu’elles soient vraies ou
fausses si, dans les deux cas, elles sont significatives de ce que
j’ai été et de ce que je suis? 13

Essa passagem de A queda mostra como, nas autobiografias de


vanguarda, com seu assumido teor de invenção, as habituais distinções
entre mentira e verdade são matizadas. Nesse sentido, importa pouco se
o crime de fato ocorreu ou não. Independentemente dessa questão, cuja
resposta definitiva é impossível, o amálgama entre memória e invenção,
que perpassa o relato, faz com que o protagonista possa apresentar
outras faces de sua identidade, escamoteadas em sua realidade cotidiana.
O inovador livro de Graciliano legitima, assim, a importância da vida
psíquica e dos sonhos e sugere, como esclarece Sébastien Hubier (2003),
que a imaginação também é um meio de acesso à verdade.

Referências

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3. ed. São Paulo:


Cultrix, 1985.

BRAYNER, Sônia. Graciliano Ramos e o romance trágico. In: ____


(Org.). Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p.
204-217.

BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. Campinas: Editora da


UNICAMP, 2006.

CAMUS, Albert. La chute. Paris: Gallimard, 1956.

CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre a obra de Graciliano


Ramos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
13
“Sei o que você está pensando: é bem difícil separar o verdadeiro do falso no meu relato. Confesso
que você tem razão [...] O que importa, no final das contas? As mentiras, enfim, não nos colocam
no caminho da verdade? E minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tendem todas para o mesmo
fim, não têm o mesmo sentido? Então, o que importa se elas são verdadeiras ou falsas se, nos dois
casos, elas são significativas para aquilo que fui e sou?” (tradução da autora).
178 Carolina Duarte Damasceno Ferreira

CARPEAUX, Otto Maria. Visão de Graciliano Ramos. In: ______.


Ramos, Graciliano. Angústia. 46. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p.
231-239.
COHN, Dorrit. La transparence intérieure: modes de répresentation de la
vie psychique dans le roman. Paris: Éditions du Seuil, 1981.
EAKIN, Paul John. Fictions in autobiography: studies in the Art of Self-
Invention.22. ed. Princeton: Princeton University Press, 1985.
FEDERMAN, Raymond. Criticfiction: postmodern essays. Albany: State
of New York Press, 1993.
FERREIRA, Carolina Duarte Damasceno. Apontamentos sobre o lugar
da ficção em Angústia, de Graciliano Ramos. Revista Sínteses, Campinas,
v. 11, p. 139-152, 2006.
HUBIER, Sébastien. Littératures intimes: les expressions du moi, de
l’autobiographie à l’autofiction. Paris: Armand Colin, 2003.
HUMPHREY, Robert. Stream of consciousness in the modern novel. Berkeley:
University of California Press, 1954.
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. 2. ed. Paris: Seuil, 1996.
MOISÉS, Massaud. A gênese do crime em Angústia, de Graciliano
Ramos. In: ______. BRAYNER, Sônia (Org.). Graciliano Ramos. 2. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 220-231.

RAMOS, Graciliano. Angústia. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.

RAMOS, Graciliano. São Bernardo. São Paulo: Círculo do Livro, 1976.

ROUSSET, Jean. Narcisse romancier. Paris: J. Corti, 1973.

STAROBINSKI, Jean. Le style de l`autobiographie. Poétique, Paris:


Éditions du Seuil, v.1, n. 3, p. 257-265, 1970.

TEIXEIRA, Ivan. Angústia: uma teoria do romance de Graciliano


Ramos.O Estado de S. Paulo, São Paulo, 10 de set. de 2000. Caderno
Cultura, p. Q2.

YVES, Jean; TADIÉ, Marc. Le sens de la mémoire. Paris: Éditions


Gallimard, 1999.
Floema - Ano IX, n. 11, p. 179-195, jul./dez. 2015.

Memória, Ficção e Imaginação na Escrita da Cadeia:


Apontamentos sobre um Manuscrito de Graciliano Ramos

Daniela Birman 1

Resumo: Neste artigo, iremos explorar os vínculos da ficção e da imaginação


com as memórias da cadeia de Graciliano Ramos. Para isto, partiremos de um
antigo testemunho manuscrito do autor, supostamente datado de 1937, no qual
Graciliano reflete sobre “certas coincidências” envolvendo a ideia da prisão:
obsessão do personagem Luís da Silva que acaba por se concretizar em sua
própria vida. Ao explorarmos os citados vínculos, nos apoiaremos ainda em um
segundo manuscrito do escritor, referente ao infantil A terra dos meninos pelados.

Palavras-chave: Graciliano Ramos. Memórias do cárcere. Manuscrito. Angústia.


A terra dos meninos pelados.

Abstract: In this article, we will explore the connections of fiction and


imagination with the memorial’s narrative of Graciliano Ramos’s experience
in jail. For this, we depart from an ancient manuscript of the author testimony
from prision, probably appeared in 1937 in which Graciliano reflects on “certain
coincidences” involving the idea of prison: the obsession of the Luis da Silva’s
character which ultimately realized in your own life. Yet, by reflecting on the
connections indicated above, we will find support in second manuscript notes
of the writer, referring to A terra do meninos pelados.

Keywords: Graciliano Ramos. Memórias do cárcere. Manuscript. Angústia. A terra


dos meninos pelados.

Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência


deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos
vendo (Guimarães Rosa, “O espelho”. Primeiras estórias).

1
Professora de Literatura Brasileira da Unicamp. Desenvolveu nesta mesma instituição o estudo
de pós-doutorado intitulado “Confinados: escrita e experiência do cárcere em Lima Barreto e
Graciliano Ramos”, com apoio da FAPESP.
180 Daniela Birman

Introdução

Duas obsessões do personagem Luís da Silva, a cadeia e a


ideia de escrever um livro “além das grades”, acabaram por se repetir,
diferencialmente, na vida de Graciliano Ramos. A “coincidência”,
evidentemente, não passará despercebida pelo autor. Num testemunho
manuscrito que nos deixou sobre a prisão, Graciliano refletirá brevemente
sobre ela. Recusando-se a acreditar em “presságios”, ele relembrará
como, ao se dedicar à redação de Angústia, esforçou-se, em vão, para se
livrar das “grades pretas e sujas”. “[...] a desagradável constante resistiu
e tornou-se preponderante na orientação do romance”, conclui o autor
no citado documento, supostamente datado de 1937.2
Invertendo uma questão cara à fortuna crítica de Graciliano
Ramos, aquela a respeito do material de sua ficção, recolhido em parte na
experiência do autor, este exemplo, segundo buscaremos sustentar, nos
permite explorar, em sentido contrário, a relação entre imaginação, ficção
e memória, indagando sobre o papel das duas primeiras na consolidação
da última. Ao seguirmos este caminho, opomo-nos à leitura que, ao
identificar a presença da memória na obra romanesca de Graciliano,
examina esta última como documento, operação característica de um
campo literário marcado pela divisão entre “confissão” e “ficção”.

2
Este manuscrito não é, evidentemente, aquele no qual se apoiou a publicação das Memórias do
cárcere. Este livro se baseia na cópia datilografada que se encontra hoje guardada na Fundação Casa
de Rui Barbosa (ver MIRANDA, 2008). Já o documento faz parte do Arquivo Graciliano Ramos
do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). Ele possui 11 folhas,
utilizadas nos dois lados, e divide-se em três capítulos, numerados em romano. O documento
integra, neste arquivo, o conjunto de manuscritos referentes às Memórias do cárcere, no qual ele é
indicado como uma “versão não publicada”. Abrangendo o período de 1937 a 1951, o conjunto é
composto por cerca de 450 folhas que incluem registros distintos, apontados como versões-base
para publicação, fragmento da versão publicada, entre outras descrições. Ao mencionarmos uma
data para o documento aqui examinado, baseamo-nos no Catálogo de Manuscritos do Arquivo Graciliano
Ramos (LIMA; REIS, 1992). Com efeito, este indica, por meio de nota de seus pesquisadores, o ano
de 1937 para o documento, suposto por referências no texto. Deste modo, ainda que o manuscrito
não esteja datado, assinalamos o ano de 1937 em todas as citações que fazemos a ele no corpo de
nosso artigo. Lembramos ainda que, em sua biografia do escritor, Dênis de Moraes, ao se referir
ao ensaio de redação das memórias da cadeia, em 1937, menciona, entre outros documentos, este
esboço da “versão inicial dos três primeiros capítulos do volume I” (MORAES, 2012, p. 216).
Ressaltamos, por fim, que ao reproduzirmos ao longo do texto trechos do manuscrito de Graciliano
Ramos enfocado neste trabalho, atualizamos, sempre que necessário, sua ortografia. Eventuais
correções também foram realizadas.
Memória, Ficção e Imaginação na Escrita da Cadeia: Apontamentos sobre um Manuscrito... 181

Para realizarmos esta análise, deteremo-nos, inicialmente, no


testemunho manuscrito que traz a citada reflexão do autor sobre
a repetição da obra ficcional em sua vida. Ao apresentarmos este
documento, daremos especial atenção à abertura do texto, capítulo
no qual o escritor discute os principais empecilhos a serem por ele
enfrentados na escrita de sua memória da cadeia e nos conta quais foram
os únicos manuscritos que ele trouxe da prisão. Bastante diferentes
entre eles, estes escritos, formados por assinaturas, contos e um
“pequeno vocabulário de malandros”, segundo sugeriremos, devem ter
formado uma memória inicial na qual ele iria se apoiar para articular os
acontecimentos vividos na cadeia. A consolidação desta memória teria
sido atravessada, desse modo, não por narrativas “puras”, mas antes
incluiria a escrita ficcional e imaginativa.
Após termos brevemente exposto este testemunho inicial de
Graciliano sobre a prisão, indicando semelhanças e diferenças entre este
documento e as Memórias do cárcere, trataremos da instigante passagem
na qual o autor menciona “certas coincidências” entre a sua vida e
aquela de Luís da Silva. Em seguida, enfatizaremos os vínculos entre
ficção, imaginação e memória na produção do autor, apresentando um
segundo manuscrito de Graciliano, referente à história infantil A terra
dos meninos pelados. Mais uma vez, buscaremos mostrar como a ficção
pode ser compreendida como suporte para a elaboração e constituição
da memória da cadeia.

O documento

É um erro supor que aquilo (a prisão) nos produz medo e


nos torna razoáveis e bem-comportados. Produz irritação e
desespero, desespero e irritação que levam à revolta e ao suicídio.
[...] A prisão só seria eficiente se fosse como o inferno, qualquer
coisa medonha e inatingível (RAMOS, 1937).

Logo de início, chama-nos a atenção, no manuscrito sobre a


cadeia. a precoce e acurada consciência demonstrada por Graciliano
Ramos dos obstáculos com os quais lidará na elaboração das suas
182 Daniela Birman

memórias. E de fato, já neste documento, supostamente datado de


1937, o autor expõe, assim como fará no livro publicado mais de 15
anos depois, a série de oposições por ele encaradas em sua tarefa:
a perda das notas tomadas na prisão; o dever de narrar, e a aguda
dificuldade em fazê-lo; a escolha pelo uso da primeira pessoa do
singular no seu relato; o esforço em compreender companheiros tão
diferentes dele próprio; o assumido ponto de vista perspectivo na
orientação de suas memórias.3
Diante desses empecilhos, ele levanta a dúvida com qual inicia seu
texto: “Serei capaz de arrumar direito no papel os fatos estranhos que se
passaram comigo nesses onze meses de sofrimento? Acho que não sou
capaz. Por isso hesitei muito tempo e agarrei-me a pretextos mais ou
menos fúteis [...]” (RAMOS, 1937). E Graciliano retoma, desse modo,
a indagação que possivelmente continuará a atormentá-lo durante anos,
pelo menos até que conseguisse prosseguir ou concluir seu depoimento.
Mas apesar das perguntas e do tormento, ele percebe, já em 1937, não
conseguir se livrar das lembranças da cadeia, fato que lhe provoca, ao
mesmo tempo, alegria e decepção. “[...] o material que desejava aproveitar
existia ainda, existia sempre na minha memória, era um tesouro que
eu queria guardar com avareza, mas um tesouro de podridões. [...] Era
necessário trazê-lo para cima, sujar as mãos naquelas imundícies [...]”
(ibidem). A impossibilidade de afastar as recordações do seu “tesouro de
podridões” reaviva, assim, a sensação de dever e o remorso. E mesmo
obrigando-o a encarar a incerteza sobre sua capacidade de concretizar
o trabalho, ela também lhe assegura da existência deste.
Além de mostrar a persistência de problemáticas que atravessarão
a escrita da obra, o documento merece ser lido sob outro aspecto.
Ele pode ser considerado, pois, um testemunho do estado apático e
impotente em que se encontrava Graciliano naquele ano em que deixou
o cárcere, momento de enfrentamento do “vazio” e da “escuridão” no
“cérebro”, termos empregados pelo próprio autor no texto. Lembro,
3
A escrita das Memórias do cárcere se inicia efetivamente em janeiro de 1946, prosseguindo até 1º
de setembro de 1951 (MORAES, 2012). O livro será lançado, em edição póstuma e incompleta,
em 1953.
Memória, Ficção e Imaginação na Escrita da Cadeia: Apontamentos sobre um Manuscrito... 183

aqui, que Graciliano não redigiu o final das Memórias do cárcere, optando
por não narrar sua saída da cadeia e seus primeiros dias de liberdade.4
E é justamente este momento aquele vivido pelo autor ao escrever o
manuscrito. Ele reaprendia, pois, a ser livre, ainda que, evidentemente,
não integralmente. A ditadura estava só no seu início e o escritor sabia
bem, como nos recordará mais tarde em frase célebre, que “liberdade
completa ninguém desfruta” (RAMOS, 2008, p. 12).
Movimentando-se de novo pela cidade, Graciliano dificilmente
conseguiria romper com o impacto do recente aprisionamento, chegando
a estremecer ao ver certas pessoas na rua, imaginando já ter estado em
“contato com elas, que vão falar-me, restringir-me os movimentos,
obrigar-me a viagens e a mudanças” (RAMOS, 1937). Um simples ato de
determinação, como, por exemplo, o de ser atendido pelo motorista de
táxi ao lhe passar o endereço de seu destino, causa-lhe surpresa.
Escrito sob o calor dos fatos, o texto é bastante diferente, nesse
sentido, do depoimento consolidado nas Memórias do cárcere, redigido com
um distanciamento temporal de cerca de dez anos. E esta característica
pode ser tomada como um dos motivos de o autor tê-lo abandonado
- ao lado de outros, claro, como as exigências financeiras, que lhe
obrigavam a se ocupar com trabalhos diversos, e a ditadura vigente. De
qualquer modo, a escrita sob a pressão do momento destoa da obra
memorialística do escritor, realizada com grande afastamento temporal
dos acontecimentos; de sua conhecida lentidão no ato de escrever; da
objeção em fazer algo com “ares de reportagem” (RAMOS, 1937); da
busca pela sedimentação da experiência na sua literatura.5
Articulando questões duradouras e efetuando um trabalho de
memória distinto daquele que seria realizado na obra publicada, o
4
Embora não possamos assegurar que Graciliano Ramos tenha se decidido por deixar suas memórias
incompletas, tendemos a acreditar nesta hipótese por motivos vários. Entre estes, estão o extenso
adiamento do seu capítulo final – lembramos que o autor parou a escrita do livro em setembro
de 1951, mais de um ano antes, portanto, de sua morte (cf. MORAES, 2012); os conflitos entre
o escritor e o PCB a respeito das Memórias do cárcere, levando Graciliano a interromper, diante das
censuras (veladas ou não) ao texto, mais de uma vez o trabalho de escrita (ver MORAES, 2012);
a possível escolha por uma obra explicitamente aberta, perfurada em seu final. Sobre as sugestões
da não conclusão desta narrativa e a ausência de uma palavra final, ver ainda Miranda (2009).
5
Cf., por exemplo, a aproximação estabelecida por Miranda (2009) entre o narrador das Memórias
do cárcere e aquele de Walter Benjamin, entendido como capaz de partilhar experiências.
184 Daniela Birman

manuscrito revela também dois outros elementos que merecem ser


destacados. O primeiro deles constitui o “pequeno vocabulário de
malandros” que o autor afirma ter trazido da prisão, junto com os três
contos lá redigidos e as assinaturas autógrafas de antigos colegas de
cadeia.
Os contos e as assinaturas são conhecidos. Os primeiros
integram hoje o volume Insônia, após terem saído inicialmente em
outras publicações. Em dois deles, “Paulo” e “O relógio do hospital”,
Graciliano recria as lembranças de sua internação hospitalar em 1932, que
retornam com força na prisão. Repletas de relações com a experiência
carcerária, as duas narrativas podem ter auxiliado o escritor não apenas
a elaborar a situação de sofrimento físico experimentado cinco anos
antes, mas também a formar uma memória do momento traumático do
presente, atravessado por ele na cadeia.6 “As dores no pé da barriga e a
dormência da coxa traziam-me ao espírito enfermeiros e serventes [...].
[...] achava-me na verdade perto disso”, escreve o autor nas Memórias do
cárcere (RAMOS, 2008, p. 546).
Os autógrafos também são mencionados por Graciliano em suas
memórias prisionais. Depois de ler na cadeia o romance Usina, presenteado
por José Lins do Rego, ele decide encadernar o livro e recolher assinaturas de
seus colegas nele. “Perdidas as notas, essas letras me avivariam recordações
mais tarde”, justifica (RAMOS, 2008, p. 576). E, com efeito, ao reler estes
nomes no quarto em que se hospeda, após sair do Complexo Frei Caneca,
o escritor sente como se estivesse de novo junto à “sombra” onde seus
companheiros se movimentam. Lendo os autógrafos, percebe tanto figuras
apagadas quanto outras nítidas. “Irei chamá-las do fundo do cárcere, falarei
com elas, as que ressaltam em primeiro plano e as que desbotaram na minha
lembrança, as que me entraram no coração e as que se tornaram minhas
inimigas” (RAMOS, 1937).
Reiterando o papel não desprezível que estes autógrafos devem ter
exercido na elaboração do livro (que reúne mais de 200 “personagens”),
6
Para uma aproximação entre a experiência hospitalar e aquela da cadeia, cf. Wander Melo Miranda
(2009). A respeito do apoio de Graciliano Ramos em uma situação radical vivida no passado para
a elaboração do sofrimento do presente, ver Birman (2012).
Memória, Ficção e Imaginação na Escrita da Cadeia: Apontamentos sobre um Manuscrito... 185

lembro que Graciliano organizou, provavelmente preparando-se para


a futura tarefa de escrita, cinco relações de nomes.7 Duas destas listas,
de acordo com o Catálogo de Manuscritos do Arquivo Graciliano Ramos
(LIMA; REIS, 1992), são relativas ao primeiro volume da edição
original da obra intitulada “Viagens” (1953). Uma traz escrito no seu
alto: “Alagoas”, estado em que a narrativa se inicia e de onde vinha
parte dos personagens que o autor encontrou ao longo da narrativa. Na
outra lista, também lemos, em seu alto, uma indicação de procedência:
“Rio-Grande-do-Norte”. Das outras três relações de nomes restantes,
cada uma delas se refere a um dos volumes da primeira edição do livro,
ainda segundo o citado catálogo. Todas trazem, em seu alto, um dos
locais de aprisionamento do escritor: “Pavilhão dos Primários”, na Casa
de Detenção; “Colônia Correcional”, referente à terrível prisão da Ilha
Grande; e “Sala da Capela”, na Casa de Correção.
Já o citado “vocabulário de malandros” me parece novidade.
Mesmo sem conhecermos o documento, podemos supor que este reunia
termos e expressões da “prosa obscura” (RAMOS, 2008, p. 451) que
emperrava as conversas de Graciliano com Gaúcho, ladrão com quem
fizera amizade na Ilha Grande: “Gaúcho começou a procurar-me.
A noite acocorava-se junto à minha esteira, [...] a entreter-me com a
narração das suas complicadas aventuras. Esforçava-me por entendê-
lo, às vezes o interrompia buscando compreender alguma expressão de
gíria” (RAMOS, 2008, p. 451). Na Colônia Correcional, o escritor se
tornaria também amigo de Cubano, preso que auxiliava os guardas na
repressão e acabou por se mostrar detentor de uma “bondade estranha”
(RAMOS, 2008, p. 462). Tendo tomado conhecimento de que Graciliano
pretendia escrever um livro sobre a cadeia, Cubano o apresentou ainda
a Paraíba, “vigarista” respeitado no seu meio por quem Graciliano não
nutria a menor simpatia:

7
As memórias da cadeia de Graciliano Ramos trazem, ao todo, 237 personagens, segundo
levantamento realizado por Nelson Pereira dos Santos e citado por Dênis de Moraes (2012,
p. 218). As cinco relações de nomes aqui citadas estão disponíveis para consulta no Arquivo
Graciliano Ramos do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).
Os documentos têm, ao todo, seis folhas. Há neles nomes que se repetem, aparecendo em mais
de uma lista. Nenhum dos registros está datado ou traz indicação de localidade.
186 Daniela Birman

― Paraíba, disse o negro, aqui seu Fulano vai escrever uma


história e vem pedir a você algumas informações.
[...]
― Informações? estranhou Paraíba interrompendo os cochichos.
― Sim, coisas de vigarismo. Diga como é que você trabalha”
(RAMOS, 2008, p. 486).

Assim, provavelmente extraído das conversas com Gaúcho,


Cubano e Paraíba na Ilha Grande, o “vocabulário de malandros” deve ter
auxiliado o escritor a relembrar os causos, os atritos e o companheirismo
dos seus antigos colegas de cadeia, histórias que seriam posteriormente
retransmitidas nas Memórias do cárcere e/ou no conto “Um ladrão”
(RAMOS, 2003, p. 17-31). “Tenho agora diante dos olhos o pequeno
vocabulário de malandros e as assinaturas de algumas dezenas de
companheiros. Toda aquela gente começa a viver dentro de mim”,
escreve no manuscrito de 1937.
É possível, porém, que o pequeno glossário não tenha sido
redigido na Ilha Grande, uma vez que Graciliano abandonou na própria
Colônia as notas ali tomadas, com receio de que estas fossem apreendidas
na revista. Desse modo, podemos supor que ele foi escrito na Casa
de Correção, último lugar de aprisionamento do autor. Teria sido lá,
portanto, que além de ter criado os três contos e pedido os autógrafos
dos companheiros no exemplar de Usina, Graciliano teria relembrado
e redigido as gírias e expressões aprendidas com os antigos colegas da
ilha.8 Estas anotações e narrativas esparsas, somadas ao “tesouro de
podridões” que ele carregava, formavam a memória à qual o autor iria
recorrer e consolidar para transmitir sua experiência da cadeia.

8
A problemática das gírias da cadeia, vale lembrar, já tem percurso na nossa literatura carcerária.
Esta se faz presente tanto na escrita de “presos políticos” que dividem o espaço prisional com
os chamados “presos comuns”, convivendo com o jargão próprio destes e da polícia, quanto
naquela destes últimos. Em obra que denuncia as condições carcerárias dos últimos dois anos do
governo Artur Bernardes (1924-1926), por exemplo, o jornalista e militante pioneiro do movimento
operário Everardo Dias dedica um pequeno capítulo, de três páginas, às gírias das prisões. Neste, ele
expõe o significado de uma série de termos originado do “vocabulário completamente ignorado e
desconhecido no meio em que vivemos” (DIAS, 1927, p. 119). As formas e os sentidos do emprego
da “linguagem da cadeia” também constitui elemento indispensável à análise de obras da chamada
literatura carcerária contemporânea, de autoria dos “presos comuns”. Para uma análise de quatro
títulos desta literatura carcerária contemporânea, publicados entre 2000 e 2001, ver Palmeira (2009).
Memória, Ficção e Imaginação na Escrita da Cadeia: Apontamentos sobre um Manuscrito... 187

“Coincidências” entre vida e obra

O segundo elemento do manuscrito de 1937 a ser destacado


ganhará aqui exame mais detido. Trata-se da menção de Graciliano a
“coincidências” entre sua vida e obra. Vale a pena reproduzir a passagem:

Se eu acreditasse em presságios, diria que um aviso misterioso


me perturbou o sossego durante meses. É estranho como certas
coincidências tomam vulto e nos levam a fantasiar absurdos.
Muito antes que essa transformação (a cadeia) se operasse na
minha vida, num tempo em que de forma nenhuma eu podia
prever semelhantes ocorrências, a ideia da prisão começou a
perseguir-me e tornou-se quase uma obsessão. Numa história
que então escrevi as grades pretas e sujas aparecem com
insistência espantosa. Aquilo me irritava. Muitas vezes tentei
libertar-me disso, mas a desagradável constante resistiu e tornou-
se preponderante na orientação do romance. Naturalmente eu
não podia supor que ia familiarizar-me com as grades. Percebo
agora que naquele tempo a minha imaginação funcionava à
toa. Grades úmidas e frias, pedras sujas. Com tão pouco não
se poderia construir nada. Nenhuma criatura existia realmente
nesses lugares, que eu conhecia mal (RAMOS, 1937).

Pouco após retomar sua liberdade, Graciliano se detém, assim,


nas conexões entre o livro concluído no dia do seu aprisionamento ―
no qual o protagonista, Luís da Silva, encontra-se obcecado pela cadeia
e pela ideia de “escrever um romance além das grades úmidas e pretas”
(RAMOS, 2008, p. 24) ― e seu próprio encarceramento, durante o qual
foi lançado Angústia. Se já é bastante conhecida pela crítica a fonte da
experiência e da memória nos romances de Graciliano, o que chama a
atenção aqui é a repetição da obra na vida, invertendo a ordem de uma
equação incessantemente reproduzida. Sem buscar interpretar mistérios
e “fantasiar absurdos”, o que o próprio autor recusa, este exemplo pode
nos ajudar a examinar melhor o emaranhado entre ficção, memória
e imaginação na produção do escritor. Ele reforçaria, pois, segundo
buscamos sustentar aqui, a objeção à redução da sobreposição da
188 Daniela Birman

memória e do romance a uma literatura entendida como documental,


caracterização típica de um campo literário marcado pela oposição entre
“confissão” e “ficção”.
Lembramos ainda que, ao criar, na ficção, um mundo que se
tornou possível em sua própria vida, Graciliano não estava escrevendo
sobre algo que julgava, ao menos conscientemente, verossímil acontecer
com ele. Caso contrário, ao ser avisado por um ex-colega de trabalho de
sua prisão iminente, em vez de colocar em dúvida que esta realmente
se realizasse, é possível que seguisse o conselho de seu amigo e fugisse.
“[...] a ideia que me veio, talvez um pouco extravagante, foi que a ameaça
era enormemente ridícula e fugir dela seria tornar-me ridículo também”,
relembra (RAMOS, 1937). A escolha de permanecer em casa, aguardando
a concretização (ou não) do aviso, como hoje sabemos, não foi das mais
acertadas. “Das tolices que tenho praticado foi esta a maior”, resume
(RAMOS, 1937).
Não se tratou, portanto, de falta de aviso. Nem mesmo de
conhecimento sobre o assunto. Graciliano Ramos havia se dedicado,
para elaborar Angústia, ao estudo da criminologia, discorrendo à vontade,
segundo conta seu filho Ricardo Ramos, sobre autores como Ferri,
Beccaria, Lombroso e Garofalo (RAMOS, Ricardo, 2011, p. 137). Seu
domínio sobre o tema não o impediu, contudo, de esquecer um princípio
do qual indivíduos sem proteção social não costumam se descuidar: “a
prova mais evidente da culpabilidade dum indivíduo é o fato de ele estar
preso” (RAMOS, 1937). E assim, mesmo sem acreditar por completo,
seu aprisionamento não só se realizou como durou muito mais tempo
do que poderia supor. Julgando que este não estenderia nem mesmo
por uma semana, Graciliano permaneceu confinado, sem processo, por
dez meses. “Comecei a perceber que as minhas prerrogativas bestas de
pequeno-burguês iam cessar, ou tinham cessado”, escreve já no terceiro
capítulo das Memórias do cárcere, quando o tenente que lhe efetua a prisão
aconselha-o a levar mais roupa (RAMOS, 2008, p. 27).
A coincidência entre obra e vida, a primeira se repetindo
na segunda, parece nos fornecer, assim, não a evidência do caráter
Memória, Ficção e Imaginação na Escrita da Cadeia: Apontamentos sobre um Manuscrito... 189

confessional da ficção de Graciliano, mas a abertura de um mundo


possível e imaginário que se tornou real no futuro após o livro – o escritor
de província perseguido, concreta ou psicologicamente, pela polícia.
Criadora de novos mundos, a literatura não pode ser resumida
ao laço, maior ou menor, que mantém com os campos de referência
extratextuais. Isto mesmo quando “certas coincidências” se impõem.
Sua especificidade, como nos mostra a teoria da ficção de Wolfgang
Iser (1999, p. 67), pode ser identificada na “fusão do fictício e do
imaginário”. Assim, para que esse mundo outro seja concebido,
visualizado, o fictício precisa impelir o imaginário a assumir uma
forma. Ele não exercerá, porém, nenhum controle sobre as operações
realizadas pelo imaginário. Este se desdobra ao mesmo tempo anulando
o que foi duplicado (como as realidades referenciais, cuja organização é
cancelada, ou o mundo do texto, com seu caráter irreal explicitado) – “de
modo que as possibilidades inerentes ao que é dado sejam liberadas”
(ISER, 1999, p. 74) – e substituindo o que foi cancelado, “[...] o fictício
permite ao imaginário expandir-se como decomposição e ‘possibilitação’
simultâneas” (ISER, 1999, p. 75).
Livre do controle do fictício, o imaginário acabou dando forma,
em Angústia, à obsessão pela cadeia, à revelia da intenção do seu autor.
Ao elaborar o romance, Graciliano não tinha, porém, como extrair da
prisão a consistência desejada, de acordo com a avaliação do escritor:
“Com tão pouco não se poderia construir nada” (RAMOS, 1937). E,
assim, sem apoio na experiência da cadeia, a imaginação de Graciliano,
segundo ele próprio, trabalhou “à toa”. Foi dessa forma, porém, que ela
impôs a abertura de um terrível mundo ao protagonista Luís da Silva,
mundo este que, mesmo desconhecido do autor, revelou-se certeiro,
no livro e fora dele.
Graciliano Ramos, como sabemos, viverá o ano seguinte à
conclusão do romance atrás das grades, período em que passará a
conhecer os locais que perseguiam seu protagonista e reunirá material
para outra obra. No entanto, segundo sugeriremos no próximo item,
ao sedimentar sua memória da prisão, o autor também se apoiará na
190 Daniela Birman

ficção de Luís da Silva. A memória, neste caso, será atravessada por esta
imaginação que “funcionava à toa”.

Graciliano, Luís da Silva e Raimundo

Outro exemplo intrigante do emaranhado entre vida e obra em


Graciliano Ramos pode ser extraído de um manuscrito do primeiro livro
escrito por ele ao deixar a prisão: A terra dos meninos pelados.9 Incentivado
a concorrer ao prêmio de Literatura Infantil do Ministério da Educação e
Saúde, o escritor redigiu esta narrativa ainda em 1937.10 Nela, as relações
com a experiência atravessada recentemente são bastante evidentes
(RAMOS, 1979, 1992). Isto não significa, porém, que ela deva ser lida
na chave da “confissão”, segundo buscaremos sustentar a partir da
apresentação de um detalhe do citado manuscrito.
Em A terra dos meninos pelados, Graciliano conta a história do
menino Raimundo, que tem a cabeça pelada e um olho de cada cor.
Perseguido pelos garotos da sua idade, Raimundo acaba descobrindo
uma terra fantástica, na qual todos também são calvos e possuem os olhos
iguais aos deles. Nela, mora a princesa “Caralâmpia”, personagem que
cita explicitamente Nise da Silveira, antiga companheira de Graciliano,
na Casa de Correção. Apelido desde os tempos de menina da psiquiatra
alagoana, o nome “Caralâmpia” está ligado à potência imaginativa dela,
à sua capacidade de se proteger em um outro mundo, quando o daqui
apavora. E no livro de Graciliano, a princesa Caralâmpia tinha acabado
de chegar justamente de um lugar bastante diferente da sua fantástica
terra. Nele, as árvores cresciam “com as folhas para baixo e as raízes para
cima” (RAMOS, 2007, p. 65); os homens, de duas cabeças, tinham oito
olhos, “uma boca no peito” e “uma perna só” (RAMOS, 2007, p. 67).
Até aqui, mantemo-nos em referências ao vivido na prisão e/
ou fora dela, como o estigma, a menção à psiquiatra alagoana e ao
9
Este manuscrito autógrafo também integra o Arquivo Graciliano Ramos do Instituto de Estudos
Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). O documento, com 19 folhas, não traz data
nem indicação do local onde foi redigido.
10
Lembramos que, embora A terra dos meninos pelados só tenha saído em livro em 1939, a história
foi premiada e, segundo afirmamos, escrita no mesmo ano em que Graciliano Ramos foi libertado,
em 1937. Com ela, o autor obteve o terceiro lugar no citado concurso.
Memória, Ficção e Imaginação na Escrita da Cadeia: Apontamentos sobre um Manuscrito... 191

seu mundo-refúgio, a cabeça raspada, o tema do duplo. Seria possível


permanecer, portanto, na equação que iguala a obra literária à experiência
atravessada anteriormente, lendo-a a partir da ideia de “confissão”. Um
pequeno detalhe do citado manuscrito embaralha, porém, esta passagem
do “autobiográfico à literatura”. Neste, vemos escrito à mão, no alto da
primeira folha, disposta como uma espécie de folha de rosto, em letra
que se assemelha àquela do autor: “L. Silva”. Embaixo deste nome,
que parece ser aquele do protagonista de Angústia, Luís da Silva, lemos,
desta vez datilografado, o título com que o livro foi publicado, A terra
dos meninos pelados. Este mesmo título será repetido, autografado, na
página em que a narrativa se inicia.
Evidentemente não temos como alcançar com segurança os
sentidos deste “L. Silva”, afirmando a existência de determinada
intenção do autor por trás de sua inclusão ou descartando a existência
de qualquer significado pertinente, supondo este autógrafo ser fruto de
mero erro ou aproveitamento de papel anteriormente utilizado (ainda
que, pela disposição do nome na página, esta última hipótese não nos
pareça provável). Mas mesmo sem garantias, iremos atrás de algumas
sugestões a respeito desta camada de escrita que carrega a inicial de Luís
e o sobrenome do protagonista de Angústia.
E assim, perseguindo estas sugestões, podemos supor que o
angustiado funcionário público dos anos 30 aparece neste manuscrito
como autor, personagem e/ou título imaginários da história infantil
sobre o preconceito e a exclusão. Neste caso não se trataria, mais uma
vez, de mera transposição do vivido ao fictício, e sim de novos fios no
emaranhado entre ficção e memória.
Tentemos, pois, ler o “L. Silva” como uma espécie de título
imaginário ou menção ao personagem Raimundo, uma indicação que
Graciliano poderia ter feito sem mesmo a intenção de tornar pública.
Nela, ele sobrepõe dois personagens seus, Raimundo e Luís da Silva,
que partilharam experiências similares, inclusive próximas à dele. A
identificação, neste caso, do autor com o personagem concebido após a
prisão parece ser atravessada pelo personagem inventado num momento
192 Daniela Birman

em que ele “não podia supor que ia familiarizar-me com as grades”


(RAMOS, 1937). Esta passa, pois, pelo resultado de um processo de
fusão do fictício e do imaginário livre de qualquer intenção confessional,
no que diz respeito pelo menos à obsessão de Luís da Silva pela cadeia.
A ficção que sugeriu um mundo possível e desconhecido do seu autor
em Angústia, mundo este cuja realidade se sobrepôs à verossimilhança,
torna-se veículo de compreensão e elaboração da experiência passada,
suporte para elaboração e constituição da memória.
Outra possibilidade seria identificarmos em “L. da Silva” uma
espécie de pseudônimo do autor. Por meio dele, Graciliano proporia
um jogo (ainda que sem a intenção de torná-lo público) no qual um
personagem inventado por ele próprio, cujo destino repetiu, ainda que
diferenciadamente, assinaria sua obra de ficção. Ao fazer isto, ele intercala
entre seu nome, sua assinatura e sua obra um segundo nome, somando
assim mais uma camada ficcional à história do menino Raimundo. A
ligação deste com o sujeito empírico e com o autor Graciliano Ramos
seria atravessada então pelo escritor de província Luís da Silva.
Soldadas com mais esta camada de ficção, as relações da novela
infanto-juvenil com a vida de Graciliano não poderão ser lidas de modo
causal, direto, nem serem reduzidas à noção de “confissão”. Mais do
que isto. O vínculo com a experiência da cadeia deverá ser examinado a
partir de um ato de criação ficcional que inventou não apenas “a terra dos
meninos pelados”, mas também o autor-personagem capaz de fabular
aquela história. Ou seja: se há “confissão” de Graciliano, esta passa
pela “confissão” de Luís da Silva. Assim, por um lado vida e obra são
descoladas, saindo de uma relação direta e causal; por outro, elas se atam
por meio da ficção, instrumento potente para a elaboração da memória.

Considerações finais

A imaginação que trabalhou, ao mesmo tempo certeira e à toa


em Angústia, fugindo à intenção de Graciliano Ramos, impôs a abertura
do mundo prisional a Luís da Silva. Este funcionário público e escritor
Memória, Ficção e Imaginação na Escrita da Cadeia: Apontamentos sobre um Manuscrito... 193

de província não se tornou apenas obcecado pela ideia da cadeia, mas


também por aquela de escrever um romance atrás das grades. “O livro
só poderia ser escrito na prisão, em cima das pedras, na esteira, na rede,
sob as cortinas de pucumã. Um livro escrito a lápis, nas margens de
jornais velhos” (RAMOS, 2011, p. 219).
Ao ser preso, Graciliano também imagina, ingenuamente, que
obteria, no cárcere, a tranquilidade necessária para revisar o então inédito
romance Angústia, concluído no dia do seu confinamento. E apega-se
ao desejo de “fazer um livro na cadeia” (RAMOS, 2008, p. 39). Ele não
precisará de muito tempo, porém, para se deparar com a dificuldade
gigantesca deste projeto: “Havia chumbo na minha cabeça”, resume
(RAMOS, 2008, p. 78). Apesar disso, o escritor se empenhará em redigir
suas notas da prisão, sendo obrigado a se livrar delas “num momento
de aperto” (RAMOS, 2008, p. 14).
Graciliano Ramos deixou, portanto, o cárcere sem os seus
apontamentos, carregando consigo apenas os três contos, as assinaturas
de antigos companheiros e o “pequeno vocabulário de malandros”. Os
dois últimos, como vimos, devem ter auxiliado o escritor a relembrar seus
antigos companheiros, da Casa de Correção e da Ilha Grande. Podemos
supor, no entanto, que ele se apoiou não apenas nestes registros para
consolidar suas memórias carcerárias. Seguindo as conjecturas aqui
expostas, o escritor teria ainda recorrido à ficção da cadeia. Esta incluiria
tanto o romance escrito antes do seu confinamento quanto a história
infantil composta já em liberdade e os dois contos do hospital, redigidos
“atrás das grades”. Muito mais do que “confissão”, a memória não se
confunde com a ficção, mas dialoga e se deixa atravessar por esta.

Referências

BIRMAN, Daniela. Trauma e repetição: o sinistro e suas formas


literárias em três momentos da nossa história. Confluenze. Rivistadi Studi
Iberoamericani, Bolonha, v. 4, n. 2, p. 209-231, 2012.
194 Daniela Birman

DIAS, Everardo. Bastilhas modernas. São Paulo: Ed. de Obras Sociaes e


Literarias, [1927].

ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. In: ROCHA, João Cezar de


Castro (Org.). Teoria da ficção: indagações à obra de Wolfgang Iser. Rio
de Janeiro: EdUERJ, 1999. p. 65-77.

LIMA, Yêdda Dias; REIS, Zenir Campos. Catálogo de manuscritos do


Arquivo Graciliano Ramos. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo,
1992.
MIRANDA, Wander Melo. Posfácio. In: RAMOS, Graciliano. Memórias
do cárcere. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 681-695.

MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos. São Paulo: Ed. da Universidade


de São Paulo, 2009.

MORAES, Denis. O velho Graça. São Paulo: Boitempo, 2012.

PALMEIRA, Maria Rita Sigaud Soares. Cada história, uma sentença:


narrativas contemporâneas do cárcere brasileiro. 2009. Tese (Doutorado
em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

RAMOS, Clara. Mestre Graciliano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


1979.

RAMOS, Clara. Cadeia. Rio de Janeiro: José Olympio/Secretaria de


Cultura, 1992.

RAMOS, Graciliano. Insônia. Rio de Janeiro: Record, 2003.

RAMOS, Graciliano. A terra dos meninos pelados. Rio de Janeiro: Record,


2007.
RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: Record, 2008.
RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro: Record, 2011.
RAMOS, Ricardo. Explicação final. In: RAMOS, Graciliano. Memórias
do cárcere. Rio de Janeiro: Record, 2008.

RAMOS, Ricardo. Retrato fragmentado. São Paulo: Globo, 2011.


Memória, Ficção e Imaginação na Escrita da Cadeia: Apontamentos sobre um Manuscrito... 195

Fontes de Arquivo

[“Iniciando estas memórias” (...) “porta do meu quarto”]. Fundo:


Arquivo Graciliano Ramos. Série: Manuscritos. Título: MEMÓRIAS
DO CÁRCERE. Localidade: [Rio de Janeiro, RJ, BRA]. Data: [1937?].
Número de folhas: 11. Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade
de São Paulo (IEB/USP). Código de Ref: GR-M-06.001.

A terra dos meninos pelados. Fundo: Arquivo Graciliano Ramos. Série:


Manuscritos. Título: A TERRA DOS MENINOS PELADOS –
PEQUENA HISTÓRIA DA REPÚBLICA. Localidade: s.l. Data: s.d.
Número de folhas: 19. Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade
de São Paulo (IEB/USP). Código de Ref: GR-M-04.01.

“Alagoas”. (Relação de nomes). Fundo: Arquivo Graciliano Ramos.


Série: Manuscritos. Título: MEMÓRIAS DO CÁRCERE. Localidade:
s.l. Data: s.d. Número de folhas: 1. Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de São Paulo (IEB/USP). Código de Ref: GR-M-06.005.

“Colônia Correcional”. (Relação de nomes). Fundo: Arquivo Graciliano


Ramos. Série: Manuscritos. Título: MEMÓRIAS DO CÁRCERE.
Localidade: s.l. Data: s.d. Número de folhas: 1. Instituto de Estudos
Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). Código de Ref:
GR-M-06.003.

“Pavilhão dos Primários”. (Relação de nomes). Fundo: Arquivo


Graciliano Ramos. Série: Manuscritos. Título: MEMÓRIAS DO
CÁRCERE. Localidade: s.l. Data: s.d. Número de folhas: 2. Instituto de
Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). Código
de Ref: GR-M-06.002.

“Rio-Grande-do-Norte”. (Relação de nomes). Fundo: Arquivo


Graciliano Ramos. Série: Manuscritos. Título: MEMÓRIAS DO
CÁRCERE. Localidade: s.l. Data: s.d. Número de folhas: 1. Instituto de
Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). Código
de Ref: GR-M-06.006.

“Sala da Capela”. (Relação de nomes). Fundo: Arquivo Graciliano


Ramos. Série: Manuscritos. Título: MEMÓRIAS DO CÁRCERE.
Localidade: s.l. Data: s.d. Número de folhas: 1. Instituto de Estudos
Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). Código de Ref:
GR-M-06.004.
Floema - Ano IX, n. 11, p. 197-203, jul./dez. 2015.

Documentos da Cadeia e da Repressão

Daniela Birman

Os documentos aqui reunidos são uma pequena amostra da massa


de registros policiais feitos sobre Graciliano Ramos. Eles foram extraídos
do prontuário de número 11.473, aberto para o escritor em 1948 pela
antiga Divisão de Polícia Política e Social, subordinada ao Departamento
Federal de Segurança Pública, e nos revelam momentos-chave da
repressão ao autor, incluindo aqueles relativos a seu encarceramento
pela ditadura de Getúlio Vargas.
As anotações policiais aqui apresentadas vão desde a demissão de
Graciliano do cargo de diretor da Instrução Pública de Alagoas, passando
por tranferências de prisão, até a libertação do escritor. Os registros
não se encerram, porém, com a saída da cadeia. A vigilância sobre os
movimentos de Graciliano Ramos se estenderão, como se percebe
facilmente, ao longo da sua vida. No último documento selecionado,
datado de 1949, uma informação é adicionada posteriormente: “Faleceu
em 1953-RJ”. Preso e solto sem processo, o escritor já havia se
convencido no cárcere que “ali domina o capricho despótico” (Memórias
do cárcere): “Certos crimes não desaparecem nunca; um infeliz ajusta
contas com o juiz e fica sujeito ao arbítrio policial” (Memórias do cárcere).
Ou, como zombou dele o antigo companheiro de prisão Walter Pompeu:
“– [...] Vai sair daqui marcado. E lá fora, quando houver uma greve de
barbeiros, agarram-no” (Memórias do cárcere).
O citado prontuário, bem mais extenso do que esta amostra,
integra o Fundo Polícias Políticas do Rio de Janeiro, guardado pelo
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ/RJ).
198 Daniela Birman

Chegada ao Rio de Janeiro

Registro no verso das fichas datiloscópicas de Graciliano Ramos, feito


17 dias após sua prisão em Alagoas e seis dias depois de sua transferência para
o Rio de Janeiro. O item “motivo”não foi preenchido na ficha.

Fonte: Prontuário de Graciliano Ramos. Dops/GB 11.473. Fundo Polícias Políticas, Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ)
Documentos da Cadeia e da Repressão 199

Anotações se iniciam com a demissão de Graciliano Ramos

Fonte: Prontuário de Graciliano Ramos. Dops/GB 11.473. Fundo Polícias Políticas, APERJ.
200 Daniela Birman

Continuação dos registros no seu prontuário da Polícia Política:


de novembro de 1949 a janeiro de 1953

Fonte: Prontuário de Graciliano Ramos. Dops/GB 11.473. Fundo Polícias Políticas, APERJ.
Documentos da Cadeia e da Repressão 201

Apontamento: morte do escritor é anunciada na imprensa

Fonte: Prontuário de Graciliano Ramos. Dops/GB 11.473. Fundo Polícias Políticas, APERJ.
202 Daniela Birman

Graciliano às vésperas da libertação

Neste telegrama, o secretário do Interior de Alagoas, Corrêa das Neves,


informa não existir nenhum inconveniente na soltura do preso Graciliano
Ramos. A ordem de libertação vem logo em seguida, expedida pelo então
chefe de polícia do Distrito Federal, Filinto Müller: “Ponha-se em liberdade”.

Fonte: Prontuário de Graciliano Ramos. Dops/GB 11.473. Fundo Polícias Políticas, APERJ.
Documentos da Cadeia e da Repressão 203

Na planilha de 1949, a anotação posterior da morte do escritor, em 1953

Em abril de 1949, Graciliano Ramos solicita passaporte para viagem à


França. Ele não obteve, contudo, o visto para a viagem. Como o biógrafo do
autor, Dênis de Moraes, chama a atenção no seu livro O velho Graça, o formulário
traz dois erros: “Graciliano era identificado como solteiro (casara-se no civil
duas vezes!) e com instrução superior
(só tinha o curso ginasial)”.

Fonte: Prontuário de Graciliano Ramos. Dops/GB 11.473. Fundo Polícias Políticas, APERJ.
Floema - Ano IX, n. 11, p. 205-212, jul./dez. 2015.

Depoimentos

Caetés: a História de um Conformista Melancólico

Ângela Maria Dias 1

Reler Caetés, depois de tantos anos, é uma experiência renovadora.


Na minha tese de doutorado, defendida em 1989, sobre os romances em
primeira pessoa de Graciliano Ramos, fiz uma releitura da importância
do autor na segunda fase do Modernismo brasileiro, pela criação de
personas problemáticas e pelo redimensionamento do romance, na
perspectiva benjaminiana da narrativa como saber de experiências
feitas; o que foi interpretado como uma maneira altamente original de
distanciamento formal das exigências objetivistas, inerentes à convenção
do romance realista.
Na ocasião, postulei que a obra de Ramos foge da encruzilhada
entre as recriações memorialistas de um passado rural idílico, na trilha de
José Lins do Rego, e as projeções de um futuro radiante de mudanças,
como atestam as primeiras obras de Jorge Amado, ao instaurar uma
temporalidade narrativa diferente das duas, capaz de desformalizar o
rememorar romanesco, e escapar à dualidade que instaura entre o sentido
do tempo e a vida narrada. Assim ao eximir-se do estatuto naturalista,
e do “desenraizamento transcendental” (LUCKÁCS, 1965) que lhe é
característico, para recriar a crise da identidade social e psicológica do
1
Professora de Literatura Brasileira e Literatura Comparada da UFF, é autora da tese de doutorado
“Identidade e memória: os estilos Graciliano Ramos e Rubem Fonseca” (1989). Além de vários
artigos em periódicos especializados e da organização de duas coletâneas de ensaios ― Estéticas
da crueldade (Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2004) e Valores do abjeto (Niterói: EdUFF, 2008)
― publicou nos últimos anos Cruéis Paisagens Literatura Brasileira e Cultura Contemporânea (EdUFF,
2007) e A forma da emoção Nelson Rodrigues e o melodrama (Ed. 7Letras, 2013). Atualmente trabalha
com Figurações do Excesso e Poéticas do Melodrama na Arte e na Literatura Contemporâneas.
206 Ângela Maria Dias

período, subjacente à fratura do poder senhorial, o escritor alagoano


recorre à ironia, como alternativa entre a melancolia e a utopia.
Ao invés do sociologismo culturalista e da teleologia materialista,
Graciliano prefere desconfiar de toda verdade abstrata e aposta na
própria experiência. Nem a perspectiva culturalista do passado, nem a
visão materialista do futuro, mas a progressiva dissolução de qualquer
certeza apriorística, ao ritmo da própria narrativa.
Desde Caetés (2009), em que a profusão de eventos sociais e cenas
dialogadas aparece bem orquestrada pela persona narrativa, a notação
pitoresca da vida em uma pacata cidade do interior não sobrepuja o
impulso da introspecção narrativa, mas com ela se conjuga. A figura
contraditória de João Valério, espremida entre o sentimento de menos
valia e o desejo de reconhecimento social, vai gradativamente tomando
a cena e subordinando os seus contornos ao desencanto irônico de uma
subjetividade já sem ilusões ou autossuficiência.
Se o amor por Luísa e o projeto do romance histórico sobre os
caetés constituem os vetores existenciais do personagem-narrador, a
própria experiência da escrita deste amor e das batalhas indígenas passa
a produzir outras verdades. Assim a história dos caetés, se, ao início do
relato, concretiza um segundo romance dentro do primeiro, aos poucos,
vai-se com ele confundindo e, por meio dele, termina por consumar-se,
ainda que, aparentemente, frustrando-se.
Como anota Antonio Candido “os caetés” se transformam.
De “refúgio para onde correr” contra a inferioridade social de órfão e
ex-latifundiário, despojado da herança, progressivamente os ancestrais
bárbaros passam a recurso e método de autorreconhecimento
(CANDIDO, 1965, p. 26):

Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente


polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos
anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que
não sabia o que se passava na alma de um caeté! Provavelmente
o que se passa na minha, com algumas diferenças. Um caeté de
olhos azuis, que fala português ruim, sabe escrituração mercantil,
Caetés: a História de um Conformista Melancólico 207

lê jornais, ouve missas. É isto, um caeté. Estes desejos excessivos


que desaparecem bruscamente... Esta inconstância que me faz
doidejar em torno de um soneto incompleto, um artigo que se
esquiva, um romance que não posso acabar... (RAMOS, 2009,
p. 188).

O aprofundamento da introspecção, ao conviver com o desenho


dos costumes, inaugura o traço dominante na obra de Graciliano: a
íntima vinculação entre experiência e impulso narrativo. Desde João
Valério, passando por Paulo Honório até Luís da Silva, todos os
narradores-personagens ou pseudo-autores escrevem, sobretudo por
uma imperiosa necessidade de reencontrarem-se consigo mesmos,
através da reconstituição do próprio enredo existencial.
Antonio Candido (1965) já observou que a “ideia de situação
parece uma das chaves para compreender a obra de Graciliano”.
Certamente porque este entrelaçamento entre fatos e personagens,
desdobrado em um enfoque altamente pessoal, engendra a temporalidade
da experiência:

A experiência supõe uma temporalidade de natureza muito


diferente. Não precisamente um tempo circular. É errôneo e
simplista contrapor a reta realidade do tempo homogêneo (o
Nacheinander kantiano) à circularidade de um tempo repetitivo
que eternamente retorna. A ideia adequada não seria o círculo,
mas a variação musical: sempre repete o mesmo tema, somente
que cada vez numa chave diferente, numa disposição distinta
dos elementos que o compõem. De fato, o tema seria o halo
que desprende o movimento sempre aberto da variação; nunca
seria um princípio originário, um modelo (TRIAS, 1978, p. 127).

Por isso, este primeiro romance apresenta um perfil francamente


transitivo, entre o descritivismo das cenas de província e a perspectiva
evasionista do trabalho ficcional inerente ao episódio aventuresco
dos caetés, que aos poucos reverte-se em metáfora dos subterrâneos
incontroláveis do homem na arena da representação social. Em um certo
sentido, o projeto caetés, durante a sua vigência, termina por funcionar
208 Ângela Maria Dias

como alegoria da ficção, transformada em travessia imaginária do cerco


subjetivo, na superação de falsas fronteiras egocêntricas e convencionais.
É bem verdade que a complacência conformista e a vocação
demissionária do narrador-personagem interrompem o percurso,
apesar da constatação final do caeté pressentido em si mesmo e do
reconhecimento desta afinidade reprimida.
Por aí, a ruína do “projeto caeté” como ficção talvez possa ser
apreciada em alguns níveis. No primeiro, a rejeição do “imaginário sem
disfarces”, certamente equivale à sua inabilitação como fantasia ou
evasão pitoresca. A própria autoironia do narrador diante das próprias
dificuldades na escrita do romance apoia esta perspectiva.

Continuei. Suando, escrevi dez tiras salpicadas de maracás,


igaçabas, penas de arara, cestos, redes de caroá, jiraus, cabaças,
arcos e tacapes. [...] Fiz do morubixaba um bicho feroz, pintei-
lhe o corpo e enfeitei-o. Mas aqui surgiu uma dúvida: fiquei
sem saber se devia amarrar-lhe na cintura o enduape ou o
canitar. Vacilei alguns minutos e afinal me resolvi a pôr-lhe o
enduape na cabeça e o canitar entre parênteses. [...] Embrenhei-
me novamente nas selvas. Li a última tira e balancei a cabeça,
desgostoso. Catei algumas expressões infelizes e introduzi na
floresta, batida pelo vento, uma quantidade considerável de
pássaros a cantar, macacos e saguis em dança acrobática pelos
ramos, cutias ariscas espreitando à beira da caiçara. Mas isto veio
espremido e rebuscado (RAMOS, 2009, p. 36-37).

Salta aos olhos a enumeração dos chavões literários românticos,


entre o descritivismo pitoresco da natureza e a pintura exótica da
cultura indígena. É como se ao provincianismo literário de João Valério
só restasse o arremedo dos estereótipos do romantismo. O romance,
iniciado em 1925, de certa forma ecoa com ceticismo e ironia, os
manifestos oswaldianos do Modernismo paulista: o da Poesia Pau-Brasil,
de 1924, e o Antropófago, de 1928.
O índio de tacape da primeira fase modernista, ainda que agressivo
ou desmistificador, não mobiliza o autor de Caetés. A faina demolidora de
sua festiva iconografia, sem dúvida, desafina diante de um ritmo narrativo
Caetés: a História de um Conformista Melancólico 209

mais a fim da explosão contida, que da extrovertida revolução. Nenhum


vestígio de pitoresco, nenhuma concessão ao motivo ensolarado se
observa no horizonte narrativo do escritor que desponta. Já se pressente,
neste primeiro romance, em sua morna descrença, a inclinação pelo
abismo, a vocação do homem subterrâneo para mergulhar em trevas
inconfessáveis.
Num segundo nível, ao distanciar-se da combatividade bem
humorada do primeiro modernismo, este romance sobre os antepassados
antropófagos realiza-se como ruína, a ruína da paixão amorosa e a
falência do projeto literário. Nesse sentido, o colapso do “projeto caeté”
alude, tanto pela desistência da reconstituição histórica, quanto por sua
frustrada introspecção, para um conceito mais impuro de identidade,
em que se delineiam a crise e a incerteza.
De início, João Valério constata decepcionado, sua impossibilidade
de imaginar a alteridade, ao mesmo tempo em que, pela negação irônica,
delineia a possibilidade do romance que, de fato, termina por escrever:

Caciques. Que entendia eu de caciques? Melhor seria compor


uma novela em que arrumasse padre Atanásio, o dr. Liberato,
Nicolau Varejão, o Pinheiro, d. Engrácia. Mas como achar
enredo, dispor as personagens, dar-lhes vida? Decididamente
não tinha habilidade para a empresa: por mais que me esforçasse,
só conseguiria garatujar uma narrativa embaciada e amorfa
(RAMOS, 2009, p. 17-18).

Os últimos adjetivos, sem dúvida, resumem o tom geral do


romance, como expressão de um temperamento conformista e
acomodado, volúvel e pouco dado a iniciativas, que caracteriza uma
vontade certamente “embaciada e amorfa”. O “fazendeiro do ar”, filho
desterrado do latifúndio perdido e da herança extraviada, considera-
se “incapaz de saber o que se passa na alma de um antropófago”
(RAMOS, 2009, p. 85), e “cheio de uma vaga tristeza por não ser
selvagem” (RAMOS, 2009, p. 91). Mas o fato é que, a ruína do projeto,
paradoxalmente, constitui o atestado de sua realização: “Outras raças,
outros costumes, quatrocentos anos. Mas no íntimo, um caeté. Um caeté
210 Ângela Maria Dias

descrente” (RAMOS, 2009, p. 190). Da mesma forma que o personagem-


narrador de Memórias do cárcere, João Valério já acredita que é “impossível
conceber o sofrimento alheio se não sofremos” (RAMOS, 1969, p. 207).
A ruína do projeto alude à melancolia conformista e desapaixonada
do narrador que, após a perda da herança, vê-se obrigado a trabalhar
como guarda-livros e vive entre “largos intervalos de embrutecimento e
preguiça” (RAMOS, 2009, p. 17). Por sofrer de baixa autoestima, sente-
se fraco, considera-se preguiçoso e tem ambições modestas. Resolve
escrever o romance, ao mesmo tempo em que nutre uma paixão secreta
pela mulher de Adrião Teixeira, um de seus patrões, porque ambos os
movimentos o compensam da situação social pouco confortável. O
romance o faria conseguir “um triunfo caseiro e transitório” (RAMOS,
2009, p. 42), capaz de impressionar os seus conterrâneos, enquanto a
conquista de Luísa o faria colocar-se no patamar do patrão, como seu
concorrente no afeto da mulher e em situação de vantagem.
A desistência do livro e o desapego a Luísa, depois do suicídio
de Adrião e da inesperada ascensão do escritor frustrado e apaixonado
como sócio de Vitorino, o irmão do falecido, na firma dos Teixeira,
são sintomas do conformismo e da mediocridade de João Valério,
perfeitamente sintonizado às expectativas limitadas da província.
O novo sócio de Vitorino Teixeira, futuro marido de sua
filha, depois do abandono de uma Luísa desconsolada, “abandona
definitivamente os caetés porque um negociante não se deve meter em
coisas de arte [...] e julga inconveniente escrever” (RAMOS, 2009, p. 91).
Se o temperamento acomodado e apático de João Valério, e o
egoísmo de sua índole, “incapaz de sofrer por muito tempo” (RAMOS,
2009, p. 187) não impedem o vislumbre da soterrada alteridade, também
não favorece o exercício de sua libertação. A morna tranquilidade do
narrador, ao final do romance, sem paixão e sem desafios, coincide com
a sua mesma recusa da literatura.
A obra termina porque seu narrador não tem mais o que contar.
E não apenas por ter renunciado ao projeto ficcional, mas, sobretudo,
porque, ao dimensioná-lo como a outra margem de si mesmo, não sabe,
não quer ou não pode continuar a própria travessia.
Caetés: a História de um Conformista Melancólico 211

A problemática do ex-latifundiário desterrado e despossuído,


apesar de sua nula capacidade de mover-se e assumir iniciativas
ou responsabilidades, resolve-se pelas trapaças da sorte, e ele, ao
ver-se subitamente promovido a proprietário e negociante, desiste
imediatamente dos antigos projetos, que não passavam de estratagemas
para compensar a carência econômica e o sentimento de humilhação
social.
Como por encanto, Luísa deixa de interessá-lo e despe-se da antiga
“abundância de virtudes raras” (RAMOS, 2009, p. 48), porque afinal, o
seu marido-patrão ― quem, embora complacente, fazia Valério sentir-se
apequenado e mesquinho ― já não mais existe. E como se não bastasse,
os caetés, de súbito, descolam-se do passado imemorial, perdem a antiga
majestade da lenda heroica e ficam do tamanho de Pedro Antonio e
Balbino, índios remanescentes da Cafurna, “pobres degenerados, (que)
bebem como raposas e não comem gente” (RAMOS, 2009, p. 84-85).
O “caeté” que restou é apenas o João Valério, descrente, que,
agora, liberado da obrigação de “criar deuses que morrem logo”
(RAMOS, 2009, p. 190), pode finalmente viver em paz a própria
inconstância medíocre: “Um caeté de olhos azuis, que fala português
ruim, sabe escrituração mercantil, lê jornais, ouve missas” (RAMOS,
2009, p. 188).

Referências

CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. In: RAMOS, Graciliano. Caetés.


7. ed. São Paulo: Martins, 1965. p. 11-71.

DIAS, Ângela Maria. Identidade e memória: os estilos Graciliano Ramos


e Rubem Fonseca.1989. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de
Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras, UFRJ, Rio de
Janeiro, 1989.

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 6. ed. São Paulo: Martins, 1969.


2 v.
212 Ângela Maria Dias

RAMOS, Graciliano. Caetés. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.

TRÍAS, Eugenio. La memoria perdida de las cosas. Madrid: Taurus, 1978.


Floema - Ano IX, n. 11, p. 213-220, jul./dez. 2015.

Resenha

RAMOS, Graciliano. Garranchos.


Textos Inéditos. Organização de Thiago Mio Salla. 2. ed.
Rio de Janeiro: Record, 2013.

Por Lúcia Ricotta 1

Garranchos. Textos inéditos de Graciliano Ramos, organizado por


Thiago Mio Salla, reúne escritos breves e registros orais do escritor,
particularmente notáveis para a consideração histórica de sua produção
literária e cultural. Encontramos, nesta publicação, 81 textos publicados
na imprensa de Alagoas, Pernambuco, Rio de Janeiro e em vários
periódicos do país, o que nos permite reconstruir a materialidade dos
discursos e a escrita pública e militante de Graciliano, ampliando a
percepção que temos dos contextos de memória peculiares ao Brasil
da década de 10 à década de 50 do século XX.
Em duas instituições de arquivo brasileiras, o arquivo Graciliano
Ramos, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP), e o arquivo
Casa Museu Graciliano Ramos, de Palmeira dos Índios, foi garimpada
uma coleção de manuscritos, cópias datilografadas e documentos.
Não há propriamente rigor filológico e textualista que acompanhe,
desde a feitura até a publicação, as alterações sofridas pelo material em
questão, cabendo às notas do organizador, reunidas aos “garranchos”,
comentários gerais sobre os meios de sua divulgação impressa. A ordem
e a disposição dos excertos obedecem à sequencialidade linear do tempo:
1
Professora de Teoria Literária da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. É autora
de Natureza, Ciência e Estética em Alexander von Humboldt (Mauad, 2003). Atualmente pesquisa as
ressonâncias da geografia, enquanto arte do espaço, para o rendimento do tópos das cenas da
natureza na produção artística e cultural do romantismo brasileiro.
214 Lúcia Ricotta

“Anos 1910”, “Anos 1920”, “Anos 1930 Ainda em Maceió”, “Depois


da saída do cárcere”, “Depois da entrada no PCB” e a última parte
intitulada “Vida e obra de Graciliano Ramos”, dividida em bibliografia
de e sobre Graciliano, notícias de antologias, entrevistas e obras em
colaboração e obras traduzidas.
Decididamente, a leitura deste volume nos devolve a figura
plural de escritor, político, articulista, ensaísta e de homem mesmo,
construída mediante os posicionamentos de Graciliano sobre a criação
artística, os autores, a narrativa literária e sobre as questões de instrução
e administração públicas, quando fora prefeito de Palmeira dos Índios,
encarcerado do governo Vargas e comunista.
Ao contrário do que o título manifestamente evoca, os
“garranchos”de Graciliano não produzem a ilegibilidadeda letra “ruim”,
antes apontam para as distintas figurações desteescritor, de acordo com
as fronteiras discursivas por meio deles percorridas. Pelos garranchos,
vemos Graciliano praticando os modos retóricos dos discursos
políticos, a crônica, a confissão dos depoimentos, o conto, o texto
dramático, a recepção crítica de obras e autores e o combate na imprensa
comunista. Trata-se de uma sobreposição de distintas narrativas. Há,
por exemplo, o primeiro ato da interessante peça “Ideias novas” bem
como a publicação de um conto inédito, “O ladrão”. Esta sobreposição
possibilita, ao pesquisador, a verificação de uma relação entre distintos
gêneros discursivos e a sua literatura magistral, revelando-nos como uma
configuração cultural mais ampla integrará os contornos de sua ficção
em prosa. E mais: como no processo de consagração de seu nome e
estilo no âmbito da literatura brasileira outras conformações textuais do
intelectual brasileiro dos anos 10 aos anos 50, com seus fins específicos
de intervenção política, jornalística e de comunicação instrumental,
tomaram lugar.
Vale dizer que “Garranchos” é o título da seção do jornal O Índio,
de Palmeira dos Índios, em que Graciliano cooperou com 14 textos,
ora publicados aqui. Esta série, de janeiro a maio de 1921, consiste
em amostragem também dos procedimentos de autorização do nome
Resenha 215

Graciliano Ramos, em larga utilização de pseudônimos, iniciais e


abreviaturas para assinatura de seus textos.
Os múltiplos artigos e assuntos desta coletânea formam, pode-
se dizer, enredos e desenredos. Alguns discutem questões isoladas de
acontecimentos fortuitos, outros, no entanto, representam momentos
de um pensamento importante do escritor, que vem sendo encadeado
por sucessivas tematizações. Um possível enredo, a se constituir na
leitura, desdobra-se nos juízos críticos de Graciliano sobre a formação
dos estilos artísticos no Brasil e sobre o significado social da narrativa
literária pelos romancistas nordestinos.
Onde a crítica de Graciliano se espessa é no balanço crítico das
simbolizações culturais e literárias herdadas do romantismo, em especial
nas suas descrições dos tipos. Ele sublinha indignado o estatismo
cristalizador rondando o matuto, o caboclo, os negros, os “ladrões de
todos os tipos” e os sertanejos. Condena a “sintaxe encrencadíssima”
de Peri, Iracema, Timbira, escrava Isaura e do alemão Lenz, a seu
ver, “falsos, contrafeitos, mal traduzidos do francês e pessimamente
arrumados numa terra que ninguém estudava convenientemente”
(“Jorge Amado”). E manifesta seu distanciamento ao tratamento que
as figuras historicamente marginais à sociedade receberam no romance
romântico, considerando, portanto necessário desarticular o substrato
romantizado dos “viventes ordinários” (RAMOS, 2013, p. 263), desde
um vínculo da criação artística com a observação honesta da realidade
(RAMOS, 2013, p.262).
O habitante do litoral, compreende Graciliano em “Sertanejos”,
convencionou a pintura de caracteres do sertanista. Esta lhe fixou apenas
o verniz literário do pitoresco; “mistura de retirante, beato e cangaceiro,
enfeitada com patuá, duas alpercatas e muitas figuras de retórica”
(RAMOS, 2013, p. 155). Uma vida humana construída formalmente, no
que ela produz de imagem sensível, tal é a invenção que o Graciliano-
crítico acharia boa para o romance realista. Insistia, além do mais, na
necessidade do realismo crítico penetrar profundamente no drama das
personagens, transformando o sertanejo em uma pessoa viva e definida
do ponto de vista social e moral.
216 Lúcia Ricotta

Veja, a título de exemplo, Graciliano reconstruindo os descaminhos


dramáticos da história dos sertanejos, pela alarmante devastação que a
ilusão do progresso lhe trouxe: “Os sertanejos dos campos estiveram
no Amazonas, em São Paulo e no Espírito Santo; tiraram borracha,
plantaram café, voltaram com maços de notas e dispostos a esbanjá-
las depressa. Alguns, incapazes de exercícios pesados, entraram-se no
exército e na marinha, e os que haviam ido à cadeia e levado pancada
entraram na polícia e vingaram-se” (RAMOS, 2013, p. 115).
Com o romance de 1930, afeito à necessidade histórico-social
da vida no interior, assistimos, segundo Graciliano, à formação de uma
arte narrativa produto da experiência dos escritores e de sua observação
em uma “sociedade que se decompõe”. Em “romance do Nordeste”,
publicado no Diário de Pernambuco, em 1935, e em “A literatura de 30”, o
autor, entusiasmado com a “honesta reportagem sobre a vida do interior”
de Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Jorge Amado, reconhece a
existência de uma linhagem literária – “o romance do Nordeste existe
e vai para diante”(RAMOS, 2013, p. 141) – que deu nova importância à
verossimilhança artística e ao moderno método de composição estética
das figuras de existência social, tipicamente brasileiras.
A situação muda literariamente com este romance, segundo
Graciliano. E muda, inclusive, a intensidade da geografia literária,
agora do Sul em direção ao Norte, em um movimento “de dentro
para fora”. Da perspectiva de Graciliano, os romances escritos no
Rio pecavam pela falta de autenticidade, pelo “academicismo estéril”,
artificialismo e alheamento das mazelas dos sertões. A partir da geração
de 30, os escritores nortistas teriam produzido uma inovação narrativa
na contramão do purismo sulista, inovação que se estabelece quando
contam simplesmente o que veem e ouvem, sem se afastarem de seus
rincões natais. A literatura nordestina daria a ver, então, as terras dos
interiores, seus tipos sociais e dramas históricos, desde um significativo
encontro com a “realidade brasileira”, no que ela apresenta de contra
tempo moderno.
Resenha 217

O entusiasmo de Graciliano com essa inovação, no entanto,


arrefecerá. Em 1941, ele escreve “Decadência do romance brasileiro”,
publicado no mesmo ano em Montevidéu e, só em 1946, no Brasil.
Retomando a enunciação nordestina e seus quatro épicos, Rachel de
Queirós, José Lins do Rego, Amando Fontes e Jorge Amado, Graciliano
identifica uma “queda” no desenvolvimento de suas obras. Supondo
um esfriamento das agitações em torno da revolução de outubro, o
autor nota como eles “estacaram, como se tivessem perdido o fôlego.
(...) Subiram até 1935. Aí veio a decadência” (RAMOS, 2013, p. 263).
Ele se exprime também muito claramente sobre o modo como cada um
desses escritores foi sendo moral e sintaticamente tolhido, em nítido
contraste com a luminosa e ingênua coragem que os levou, no início,
a testemunhar a destruição em decorrência do desenvolvimento das
forças sociais do capitalismo. O fato é que Graciliano percebe o quanto
as conveniências transformaram problematicamente esses autores e o
quanto eles perderam da acentuação própria de suas naturais aptidões,
para conformarem-se ao artificioso sem vida da forma literária. É
propriamente da perda do sentido de humanização dessa literatura que
ele também fala.
Veja, nesse sentido, ainda, a reivindicação reiterada ao realismo
dos fatos dramáticos nos escritos mais combativos da década de 40,
presentes em “O Partido Comunista e a criação literária”, “Carta aos
alagoanos” e “Discurso de Graciliano Ramos”, e também em alguns
artigos da década de 30, como em “O romance do Nordeste”, “Um
romancista do Nordeste” e “Sertanejos”. Nestes, a ênfase na virtude
realista da literatura repisa a fala de um discurso político reativo à
retórica do pitoresco, “afinal”, diz ele: “para expormos as misérias desta
sociedade meio decomposta não precisamos de longo esforço nem
talento extraordinário: abrimos os olhos e ouvidos, jogamos no papel
honestamente os fatos” (RAMOS, 2013, p. 260). E perceba, igualmente,
a defesa de uma prosa viva a intimar ações reais dos homens tal qual
o discurso político é capaz de convocar. Em carta de 1945 a seu filho,
destacada em “A tarefa principal: Constituinte!”, ele afirma: “Decidi,
218 Lúcia Ricotta

pois falar num discurso como falo nos livros” (RAMOS, 2013, p. 239).
A fala de seu discurso político, semelhante aos seus livros de prosa,
reage aos ditos ofensivos atualizados por “forças reacionárias ocultas
ou ostensivas” dos “jornais brancos”.
Com esse tom aplicado, Graciliano inclui o lavor literário no
âmbito da crítica e interpretação social do Brasil interiorano, pois se
tratava efetivamente de pensar a literatura na esteira do faro sociológico
da época, em particular na convergência entre produção literária e
particularização cultural do país face às mazelas da nossa formação.
Isto lhe ocasiona a seguinte autocrítica em “Solilóquio derramado”, de
1947: “As minhas narrativas, confessemos, são chinfrins, mas foram
construídas na terra, as minhas mãos bisonhas pretenderam cavar
alicerces” (RAMOS, 2013, p. 298). E igualmente lhe ocasiona o juízo
acerca de José Lins do Rego em “Um romancista do Nordeste”. Neste,
ele encontrará a realização da cena dramática realista em “pequena
Comédia Humana nordestina”, pois, segundo pensa, José Lins extrai
toda a esfera social “do seu interior”, criando os escassos tipos do
“professor brutíssimo”, da preta, dos meninos medíocres e da “meretriz
assanhada”, “num ambiente de estreiteza lastimosa” (RAMOS, 2013,
p. 135). Ambiente limitado e passado, entretanto animado pela criação
literária. Graciliano cuidou ainda de distinguir a descrição pitoresca
de caracteres das particularidades vivas que compõem a fatura do
personagem principal no romance Menino de engenho. O pressentimento
sobre o desenvolvimento da disposição interior do rapaz é o nexo
capaz de revelar a maior complexidade das relações sociais ali: “mostra-
nos o rapaz por dentro”, exibe-o “movendo-se desordenadamente e
transformando, com os olhos e os ouvidos muito abertos, o mundo
exterior num universo novo” (RAMOS, 2013, p. 135).
Aí vemos a valorização, por Graciliano, da técnica artística de
abrir os olhos e os ouvidos para o outro. Técnica que ele aprofundará, seja
em torno da representação dos sertões de vidas secas “à margem da
história”, seja em tornodahumana-Baleia que pré-figura a diferença
bestialno humano. Ao ajustar os espaços da língua e da literatura do
Resenha 219

intelectual à sintaxe peculiar dos outros, Graciliano fez coexistir, em


um caso raro, o princípio estético da literatura com o evento ético e
social que é a vida. E, seria o caso de perguntar: por que o afago pela
língua e pela linguagem dos despossuídos, em sua prosa, o levou ao
cárcere? Parece haver uma simetria, no Brasil, entre a solidão inocente
dos “sujeitos inofensivos” e a solidão do escritor; nesse país, pois, o
Estado, com a instituição sanguessuga do cárcere, destina o que não
acolhe na sua peculiar verdade a vagar solitariamente em cadência
de almas mortas: “O nosso pequenino fascismo tupinambá encheu
os cárceres e o campo de concentração da Ilha Grande, meteu neles
sujeitos inofensivos, até devotos do padre Cícero, gente de penitência
e rosários, pobres seres tímidos que nos perguntavam com surpresa
verdadeira: – Por que é que estamos presos?” (RAMOS, 2013, p. 233).
As muitas vozes, perguntando a mesma pergunta – “Por que é que
estamos presos?” –, produzem no silêncio da resposta, um exército de
aflitos que, no entanto a ela acrescentam a fraternidade dos silenciados.
Graciliano alude, enfim, ao novo vínculo no cárcere: “A fraternidade
nos deu 1936. Realmente confraternizamos, na Colônia Correcional de
Dois Rios, no porão do “Manaus”, no porão do Campos, em outros
lugares semelhantes, políticos, malandros, vagabundos, ladrões de
todos os tipos, do ventanista ao escroque internacional, e sujeitos que
não eram nada disso e se achavam ali não se sabe como nem por quê”
(RAMOS, 2013, p. 236).
Contemporaneamente, discutem-se as narrativas memorialísticas
e autobiográficas de Graciliano desde um regime de ficcionalidade,
permeando os testemunhos de sua vida. A recente recepção crítica
fixada nas simetrias inopinadas entre a vida e a criação, porém, não
invalida a preocupação que estes “garranchos” deflagram. Percebe-
se muito nitidamente, em um conjunto de textos denominado pelo
organizador de: “Depois da entrada no PCB”, a preocupação do autor
com o destino dos romancistas, o indiscutível dever da inteligência e os
direitos pecuniários reservados ao livro como mercadoria.
220 Lúcia Ricotta

Vê-se, pois, o quanto ele assimilou criticamente o decorrer


contingente e histórico do autoritarismo de Vargas, o avanço do
integralismo, a agenda comunista, a redemocratização nas eleições
presidenciais de 1945 e a formação da Assembleia Nacional Constituinte.
Ao atuar como militante do Partido Comunista, inclusive como
candidato à Assembleia Constituinte pelo PCB de Alagoas, em 1945, o
espectro de sua ação como intelectual ampliou-se. Deixou as instâncias
municipais e estaduais para colaboração em patamares nacionais. Ao
lado disso, surgiu um Graciliano diretor da célula comunista do Rio
de Janeiro, mas desconfortável com a fraca projeção alcançada no
mercado pelo trabalho e “trabalhadores da palavra escrita”. Desconforto,
porém, que lhe permitiu fortalecer, em “Discurso à célula Teodoro
Dreiser I” e “Discurso à célula Teodoro Dreiser II”, o argumento
sobre o profissionalismo dos autores de ficção, até mesmo contra uma
das diretrizes do partido, que elegeu o operário como modelo para o
trabalho do escritor.
Temos a impressão, nesse momento, de que nele se equilibram o
militante ferrenho e o crítico assíduo à desdenhosa atitude do partido
para os que vivem criativamente de “escrever contos e romances”.
Leiamos a parte relativa à crítica ao partido comunista: “Apenas
desejamos resguardar um pouco de nossas horas e de nossa solidão para
gastá-lo em nossa literatura, em nossa incoercível necessidade de criar
nossos personagens e nossas histórias – coisa que muitos de nós nunca
mais conseguiram, desde que se filiaram ao Partido” (p. 288).
Além desta vontade e consciência de Graciliano, há um princípio
basilar, inalienável para ele, que salta aos olhos do leitor dos “Garranchos”,
o de que para o escritor entregar ao mundo o melhor de si é necessário
um engajamento esteticamente produtivo na criação artística. Isto seria
uma espécie de excedente do criador, que simultaneamente vive dentro e
ao lado das personagens, em um assento vantajoso para contemplar o
desenrolar da existência brasileira em suspensões e rebaixamentos, nas
quais nós leitores podemos imaginariamente participar.
Floema - Ano IX, n. 11, p. 221-224, jul./dez. 2015.

Ficções

Um Jovem, o Velho e um Livro 1

Milton Hatoum

Para Maria da Luz e João Jonas

Ontem o Velho morreu. Dizem que ele passara dos noventa


anos sem perder a noção do espaço e do tempo. Sempre usava um
paletó branco e encardido, na lapela, um broto de antúrio que, de longe,
parecia um objeto vermelho cravado no lado esquerdo do peito. De
perto, o broto invocava um membro diminuto e obsceno que irradiava
comentários maldosos.
Sabíamos pouco de sua vida: era um professor aposentado,
solteirão e invisível nas noites de Manaus. Aos sábados, visitava filhos
e netos de amigos, porque os amigos, mesmo, já repousavam no fundo
do rio, como ele costumava dizer.
Fazia tempo que eu não o via, e não sei se ele teria reconhecido
um dos meninos que o rodeavam para ouvir sua voz.
Eu o conheci em 1964, quando ele sentava em um banco da
praça Balbi, contava histórias, gracejava com as garças e trocava olhares
com os jacaretingas no laguinho, inertes como troncos apodrecidos.
Quantas histórias! Sobretudo trechos de uma ficção que ele recitava a
conta-gotas. Lembro que, no fim dessa récita, minha infância dobrou a
esquina e deu um salto de braços abertos no purgatório da vida e nas
páginas de um grande livro.

1
Originalmente publicada na revista EntreLivros (n. 13, maio 2006), esta crônica foi recentemente
reunida em Um solitário à espreita (Companhia de Bolso, 2013).
222 Milton Hatoum

Ontem era 30 de março de 1973. Eu morava em São Paulo


e participava de uma festa maluca, em que o rock alternava com a
bossa-nova e ninguém se entendia com ninguém, porque não valia
a pena falar. Melhor ouvir música e dançar, não para esquecer, e
sim para expelir a tristeza e a revolta dos que tinham ido à missa
do sétimo dia de Alex, vulgo Minhoca: um estudante do curso de
geologia (usp), executado covardemente em uma das celas sujas do
subsolo da cidade.
Naquela noite, a dança e os sons foram interrompidos por uma
chamada de muito longe, e a voz de minha tia informou, séria e sem
tremor, que o Velho acabara de morrer. Disse assim mesmo: “O Velho
da praça foi embora e vai ser enterrado amanhã”. Desligou antes de
mim, não por pressa ou descaso, mas por ter sido sempre concisa e exata
quando a notícia era alarmante. Então saí da festa e dos anos 1970 e
caminhei na madrugada quieta do bairro paulistano ainda sem prédios,
andando de volta no tempo e no espaço, lembrando as palavras do Velho
na praça e sua caminhada à livraria Acadêmica, onde esperava os livros
que iam chegar do sul.
O sul era o Rio, nossa ponte aérea afetiva e histórica, nosso
destino sonhado na poltrona de algum Constellation da Panair ou Super-G
da Real Aerovias.
No fim da manhã eu descia a escada do Ginásio Amazonense,
enrolava a manga comprida da camisa suada, afrouxava a gravata e
caminhava fardado e faminto na direção do banco sombreado por um
flamboyant. Então o Velho falava de uma infância maior que o mundo,
porque não era uma infância qualquer, e sim uma das mais poderosas e
belas ficções autobiográficas da nossa literatura. Recitava com a memória
de ator de teatro: a primeira lembrança era um vaso de vidro, cheio de
pitombas, e em seguida, as caras e palavras insensatas, e assim o Velho
ia desfiando cenas e seres em tempos e lugares entrelaçados. Isso me
fascinava. Quantas vidas e dramas cabiam nas páginas memorizadas pelo
Velho! Quanto sofrimento e humilhação! Quantas cenas de perplexidade,
dor e brutalidade!
Um Jovem, o Velho e um Livro 223

Tudo de cor e salteado, como se dizia.


Ainda se diz?
“A palavra foi feita para dizer.”
As palavras de Infância diziam um mundo desconhecido que
transitava de Alagoas a Pernambuco e chegava ao Amazonas por meio
de uma voz áspera. Um mundo povoado por personagens inesquecíveis:
padres, professores, advogados, senhores de engenho, mucamas, sinhás,
pequenos comerciantes, primos, tios, pais, avós, irmãos, uma bela irmã
natural, crianças. E uma criança. Um menino perplexo, tímido e tantas
vezes humilhado. Pequeno diante do mundo adverso, que aos poucos
será nomeado por “sons estranhos, sílabas, palavras misteriosas”. E
também por adjetivos, o sal que dá relevo e profundidade à matéria e ao
espírito. O ex-professor, agora ator, havia decorado quadros inteiros do
livro: “D. Maria”, “José da Luz”, “Jerônimo Barreto”, “Venta-Romba”,
“A criança infeliz”. No entanto, o que mais me impressionou foi “O
inferno”.
“A senhora esteve lá?”, pergunta o menino à mãe.
“Desprezou a interrogação inconveniente e prosseguiu com
energia... Minha mãe estragara a narração com uma incongruência...”
Silêncio ou respostas arrevesadas, incompletas. O narrador adulto
percebe que a explicação hesitante da mãe não passa de uma aporia.
Mas há incongruência e dúvida em tudo, pois a memória não recupera
o passado com exatidão: lembra e deslembra, diz e desdiz, afirma para
negar ou contrariar. A memória é o lugar da hesitação e da ambiguidade:
o móvel da imaginação. O movimento é sinuoso, construído por quadros
que formam microcosmos, mas que se remetem a outros quadros e se
relacionam com o todo. Uma técnica de montagem, arquitetura que
lembra a de Vidas secas. Mas, em Infância, a vida se expande para fora
e para dentro, como se fosse um mergulho nas brumas e na incerteza,
no mundo hostil dos adultos, na escola, na casa, na fazenda, na cidade.
Movimento de uma origem ágrafa à leitura e à escrita, que se tornam
apuradas com o tempo e se constroem como visão crítica de si mesmo
e dos outros.
224 Milton Hatoum

Ter escutado essas histórias antes de ler o livro nesse mesmo


ginásio me parecia um milagre. Até o dia — era meio-dia e nossas
sombras pediam trégua — em que ele trouxe o livro e ofereceu-o ao
grupo de ginasianos que iam lê-lo dois anos depois.
Quanto tempo, Velho. Você não foi meu professor, mas lançou
ao ar palavras que nos atraíram para sempre. No centro da praça e na
hora mais escaldante, você estava lá, suportando olhares e comentários:
“Vai ver que está biruta ou senil, vai ver as duas coisas”.
E você nem ligava para essas vozes.
“Querem saber mais do Graciliano? Leiam Angústia. Assim, de
memória, só sei pedaços de Infância. De tanto ler, de tanto viver… Porque
vim de lá, sou de lá. Fui aquele menino.”
Pensava nisso naquela madrugada de 1973, caminhando na
calçada do bairro silencioso até subir uma rua íngreme para depois
descer na escuridão de breu e entrar na casinha verde onde morava.
Temia que fantasmas diabólicos me perseguissem: quem não via
camburões e vultos armados naquelas noites de medo?
A música da festa se apagou, os pares dançantes sumiram, não
lembro se fazia frio ou calor, mas não podia ser uma noite amena. Ainda
fiquei espreitando o silêncio, à espera da manhã, a voz da minha tia
ecoando no meio de imagens, o tempo galopando de 1964 até 1973 e as
duas figuras misturando-se na minha memória: o jovem Alex, tombado
para sempre, e o Velho no velório, em Manaus.
Pensando e lembrando até o amanhecer, quando abri todas as
janelas para clarear o fundo da sala. Só então sentei na soleira da porta
e abri o livro roto do velho Graça.
Quem já não esteve no inferno?
Floema - Ano IX, n. 11, p. 225-250, jul./dez. 2015.

Ficções

Perdido no círculo

Ronaldo Brito

O Narrador é suspeito, desde logo advirto. Quase tudo será dito


pelas costas do sujeitinho. Leia às avessas, a contrapelo, nas entrelinhas,
aproveite os lapsos, as lacunas, equívocos e mal-entendidos. Em suma,
conte com a sorte: as distrações e a legião de preconceitos do dito cujo.
Também é desprezível o autor de uma autobiografia: dar-se a tal
importância é signo do ridículo. Isto aqui, vejam lá, não é nada disso
– são fatos voláteis, inconsequentes, eventos exigentes, passagens
fortuitas que descrevem com rigor um método de vida. Meu avô paterno
mexia as orelhas, habilidade de todo inconcebível. Pois é, meu avô mexia
as orelhas e nos divertia. Minha amiga é um enigma. O que pensará da
vida? Pensará muito, enquanto cala, cala e não fala, o que mais faria?
Pensará tanto, não dá tempo pra falar. É uma hipótese. Talvez se cale a
compensar tudo o que falaram as outras, e como. Ou por um ditame
divino, poupe-o, poupe-o, ao mesmo tempo assim o torture. Paraíso
Perdido consta dos seguintes itens: o galope fluido a cavalo, uma página
lida com afinco, inteiramente lúcido, dois ou três versos de delírio puro,
cristalino; um intenso silêncio súbito, estrelas e estrelas acima; as figuras
perfeitas do acaso geométrico, a invocar a verdadeira vida. Esta que não
existe, por isto mesmo se chama vida. Por outro lado, morte é certeza
implausível. Como será não ser? O narrador põe a perder as melhores
dicas. Formar frases, funesto destino. Ele só faz transcrevê-las em seu
estilo insípido, despido de poesia. Uma vida não se conta, uma vida não
conta. E vice-versa. Estranhamente, não sinto saudades da minha mãe,
226 Ronaldo Brito

embora tenha levado com ela a metade alegre de mim, só agora descubro.
E logo a quem confesso, ao outro eu mesmo suspeito com quem me
confundo. Que frase. Outro momento marcante foi a ausência de sentido
da vida. Volta e meia retorna e enche tudo de um imenso vazio.O pior
é a presença exorbitante do mundo. A maneira como invade nossa
privacidade, nosso íntimo. Toda manhã, ao acordar. Lá está ele, impávido
colosso. Bem a propósito, no caso em pauta. Não houve tempo para
arrematá-lo, acabou assim meio onipotente, meio totalmente carente,
ao mesmo tempo. Foi o que faltou, e ainda falta, a não ser quando sobra.
E aí sobra muito. O espaço é menos possessivo, dá-se lá um jeito. O tão
famoso tempo, falsa matéria-prima do narrador insosso, a rifar minhas
palavras, largá-las assim sem graça, natimortas na página. Logo elas, tão
vívidas, ágeis, bem-dispostas ao natural. É só convocá-las, prestas
acorrem e acabam traídas, coitadas, sozinhas no coletivo. Pena. Nunca
tive um cavalo, é o que mais me entristece. Ficou faltando o contato
fluente com o cosmo, pelo lado de dentro e pelo lado de fora. Ainda
por cima carrego uma arcaica alma moderna, sobrecarregada de nada.
Nada portátil. Não reclamaria quatro ou cinco destinos pós-modernos
descartáveis, que alívio. Talvez oprimissem, é muito destino, matéria
trabalhosa, cansativa. Um único destino romântico virou coisa obsoleta,
só em horas soltas, perdidas, o cultivo às escondidas. Meu pai, para citar
um exemplo aleatório, não acabava de crer o que vinha a ser o filho.
Assistia com assombro, compassivo, o florescer do alienígena. Em
compensação, o resto da escola o estranhava ao infinito. Sentimento
mútuo, recíproco. Quem sabe me aguardasse uma proficiente carreira
no crime. Não, seria trivial, previsível, de móveis tangíveis. O romantismo
sadio consiste em exercício maníaco, inofensivo, cultivar uma fatalidade
gratuita. Vejam o meu velho gato, romântico empedernido. Nunca fez
planos em nenhuma das sete vidas. Está falido, como era de se esperar.
Nem por isto demonstra amargura e olhem que, pelas suas contas, é a
última tentativa. Temos, afinal, algo em comum. Fui um dia ao campo
desfrutar sua célebre paz de espírito. Angustiou-me um pouco, bastante
naturalmente, volto sempre que posso. Cultuo a nostalgia desse lugar
Perdido no círculo 227

que, com razão, erroneamente, se pretende fora do mundo: faz parte


da engrenagem tanto quanto a Avenida Paulista. Teríamos que ir ao
campo sem ir juntos, sozinhos, sem carregar a gente consigo. Um dia
consigo. Cochila o narrador, eis aí, consigo. Frase tremendamente
significativa. O mar destina-se a outro gênero gregário de misantropos.
Avessos ao pensamento, penetram mais fundo no raso dilema humano.
Nadei muito, adorava, sem saber que obedecia a uma fantasia ancestral.
Náufrago, lutava pela vida. Expediente útil, portanto. Perdeu a graça,
dei-me conta, o esforço se resumia em voltar à praia do princípio, ou
pior, à borda de qualquer reles piscina.Tarefa de todo inepta. Observem,
não recordo o passado, constructo falaz, mera alegoria, reescrevo por
linhas tortas uma vida contrita, clara e distinta, espécie bem diversa de
desvario. Basta: partamos de vez, radiantes, ao futuro. O tal que não
chega nunca. E, no entanto, envelhecemos, como é que pode. Enigma
banal, típico de Cronos, o Grande Frívolo. Vero enigma é o consagrado
dia a dia, o mistério insolúvel do mundo em comum. Ao que tudo indica,
me foi vedado o acesso às artes herméticas do humano convívio. A
solidão é a companhia ideal, cortês, expansiva. Como dividir a si mesmo,
por princípio hostil, irredutível a compromissos. Diante do outro intruso,
recomenda o bom senso, a loucura compartida. Donde a sagrada família.
Ocorreu-me, numa ocasião, à sombra, deslumbrar-me com a maravilha
da vida. Teria eu cinco, seis anos, nunca me esqueceu aquilo, nem lembro
bem o que fosse. O fenômeno. Viver é buscar consolo da vida. Meu
outro avô, que não cheguei a conhecer, sempre me dizia. A transmissão
familiar da sabedoria é insubstituível, daí o twitter e o espiritismo. De
noite, costumo, a sós, considerar – meditar sobre as estrelas, de acordo
com a etimologia – agora pálidas e poluídas. As conclusões são
invariavelmente desanimadoras, recorro então ao místico – uma cerveja
e um gordo sanduíche. Rima rica. De uma feita, percorri inteira a parábola
da madrugada com intuito regenerativo. Funcionou: já desperto, não
acordei de manhã. Notemos, a título de ilustração, o desespero gramatical
dos maridos. Perplexos no presente, desorientados no passado, conjugam
somente o pretérito imperfeito do futuro. No condicional. Razão pela
228 Ronaldo Brito

qual, duas ou três vezes, não casei nunca. Quando saio de férias, lastimo
o sofrimento perdido. Tal é nossa condição hodierna, vocábulo horrível
que resume tudo. Contento-me em escarnecer do narrador consciencioso,
a registrar – desastradamente, é infalível – o que dito. Não cogito a
ordem estapafúrdia dos eventos traiçoeiros que detém a essência inefável
do meu destino. Por exemplo: uma tarde, garoto, fui à rua, voltei outro,
irreconhecível. Ninguém percebeu, talvez minha mãe, que, como todas
as outras, guardou o segredo consigo. Este, com certeza, será operário
do onírico, labutará ao léu, funcionário público da poesia. É uma carreira,
igual a qualquer outra, um pouco mais próxima do hospício. O que dirá
São Tomás? Dançarão, provocantes, as Eríneas? Os lúbricos anacoretas
da política? Outra espécie de missão gravíssima, da qual todos se
escangalham de rir, é a faina escolástica da Academia. Conservo-me ali
à margem, irreal, irrelevante, serenamente insano. Passar a vida
despercebido, um pouco à maneira de Napoleão, fazer o voto de
Prometeu. Desentendam a sentença profética como preferirem, não é
tarefa minha. Pego o prumo e desando a escrever o que me dá na telha
do inconsciente, cabotino de quem há muito desconfio. Terá tratos com
o capcioso narrador, falam outra língua. Numa excelente oportunidade,
ao crepúsculo, li Baudelaire: crédulo, ingênuo, de boa índole, acreditei
no que li. Deu no que deu. Argumentarão os magistrados que fiz de
propósito, o gesto era por demais acintoso. O próprio Baudelaire ficou
em cima do muro. É o que fazem os livros: silentes, em seu canto na
estante, exercem seu insidioso feitiço. Culpar os outros é condenar-se
ao ostracismo. Culpar a si mesmo é topar com um inimigo à altura, no
entanto, muito superior em número. Em boa lógica bivalente. Numa
biografia neoplasticista, sem perspectiva, o objetivo é prender a atenção
arredia do escritor sem rumo. Fui, no inverno, à Roma, morrerei
tranquilo, quites com Hollywood. Preciso mesmo é de um bom cavalo
que me leve ao léu, lugar seguro e acessível, quase sem turistas. Em lá
aportando, descanso um pouco, como teria feito Ulisses. Doppo, ritorno
e dou palestras lucrativas, a popularizar a língua do país. Projeto
circunspecto, sólido realismo onírico. Sempre ouço rumores, realidade
Perdido no círculo 229

é sonho, sonho de sonho, daí a preponderância do animal político, malta


seleta de ilusionistas. Conhecem que, no fundo, no fundo, não há fundo.
Já a superfície é linha errante, hipotética, adiada ao infinito. Quem
domina o assunto são os antigos sábios chineses extintos. Resta a força
progressiva, generosa, incontida dos amores desiludidos. O tema é
espinhoso, deixemo-lo de lado. Formidável expressão, exponencialmente
vaga – lado, qual lado, de que polígono? Atenderia a quais percursos
existenciais inconfessáveis? Deixemos de lado, nada de inquéritos
indiscretos. Fitemos o horizonte, somos todos adultos, a menos que
obtenhamos junto aos deuses misericordiosos indultos. De todo modo,
desde Júpiter submetemo-nos a uma implacável ordem de ser judiciária.
Cui Bono? Careço da cidade para sonhar com o mato e lá fruir o
pensamento puro, até que apeio e sofro, ansioso, a planejar um futuro
que nunca terá sido. O problema é o que fazer consigo, a mente o tempo
inteiro mente, às vezes, contudo, mente de verdade. Meu tio Jaime era
um virtuose no gênero. Venderia centauros a Diógenes, o Cínico, em
plena polis, ao meio dia. No entanto, como todo mundo, morreu de
verdade. Levando junto magníficas mentiras. Autêntico museu de falsas
obras-primas que, forçosamente, inexiste. Acaso existisse, se desmentiria.
Bravo silogismo. Basta invocar a virtuosa figura lógica e tudo se arranja
no Ocidente. Outro cochilo do narrador, outra sentença digna. De resto,
perdi há muito a mania bizantina de transtornar verbos e adjetivos,
limito-me a desgastar a gramática psicótica convencional. Como qualquer
um, não me faço entender, vivemos todos felizes, irmanados por
grandiosos e mesquinhos equívocos. É o melhor regime, a gerar filhos
e mal-entendidos. Nesta ordem. Confiantes no reconfortante absurdo.
Sofri, entretanto, momentos de intenso lirismo. Multiplicados por mil,
esboçariam quase um arremedo de projeto de vida. Por onde anda o
aqui e agora, li a pergunta oportuna no taciturno vespertino. Suspendi
de imediato o juízo e acedi a um nirvana aflito, altamente neurótico.
Promessas, somente às avessas: no passado, farei decidido isto e aquilo;
haja o que houver, no passado, cuidarei do meu futuro. O presente é
sonso e serpentino, entregue a fúteis desígnios. Cavilosos ardis. O
230 Ronaldo Brito

instante é diferente, coisa duradoura, há que cultivá-lo com carinho.


Jardim de Monet, a essa altura, um tanto murcho. Cansados instantes
são agora os nossos, dobrados sob o peso dos anos pelo excesso de
sabedoria. Instantes, amáveis dionisos, fortuitos, sem autoria narrativa.
Outro dia encontrei um deles, vagando, integralmente puro. Ganhei o
dia. Prometeu-me, solene, retornar. Talvez houvesse aí um grão de ironia.
Pelo menos não era o claustro inviolável da internet, sob o patrocínio
do dadivoso Thanatos. De tudo e todos dispor ao alcance da mão
desmoraliza a realidade, concorre ao niilismo. Prefiro a contemplação
das esferas sublimes do chão do apartamento, o terra a terra delírio
caseiro, a me instruir sobre a conduta ilibada do sólido cidadão
inadaptado, que encontra no computador e na televisão dois escrupulosos
espias. Desligados, mudos, denunciam às autoridades nosso descaso
para com o real instituído. Crime inafiançável, punido com o unânime
escárnio público. Desterro é ofício vocacional, desses que vêm do berço.
Em uma outra noite, a quarta delas, conheci minha segunda identidade
secreta –mensageiro pontual, de mãos vazias e itinerário arbitrário.
Prosador do vácuo era o felizardo Beckett, trazia a boa nova do nada,
substância de eficácia terapêutica reconhecida. Escrevo, somente apago,
contagio angústia e apatia. Na métrica clássica elegíaca. Foi o que me
disse Ana Luísa ao despedir-se. O episódio não deixou sequelas, me
lembro dele todo dia. Existir plenamente acontece de repente, a despeito
da observância dos vizinhos. Ocorre a toda hora o fenômeno raríssimo,
vá entender. Só mesmo Pessoa, que concentrava no próprio nome
próprio o enigma. Graças ao infatigável treino diuturno, tornei-me um
desportista blasé do niilismo. Espírito lúdico, lúgubre, desencantado por
algum alegre motivo obscuro. Tarde demais para corrigir-me, a vida foi
me desencaminhando pelo caminho. Esta o narrador corta impiedoso:
mau português. Eu acordava alegre, agora acordo triste, em suma. Muda
tudo. A começar pela vida, e vai se agravando até o final do crepúsculo.
Há pausas regulares de euforia que não enganam ninguém. Palavrinha
mequetrefe, resume tudo em duas sílabas, a tal de vida, todo mundo a
utiliza. Aleatoriamente, é verdade, sem saber bem o sentido. O que, aliás,
Perdido no círculo 231

é virtude. Acordava alegre, agora acordo triste, em resumo. Uma vida


onírica salubre, repito a meus filhos putativos, é impreterível. E não me
refiro a heroicos pesadelos, estarrecedores, sinistros, estimulantes enfim,
e sim aos pequenos sonhos mesquinhos, mal contados, dos quais saímos
diminuídos. Convencionais, surrealistas. Nenhum Mondrian, nem um
único Malevitch. Propícios em particular a quem mora no Rio, onde o
caos grego, o original, jamais pisaria, bobo ele não é. Com o tempo,
parece que é a ordem natural das coisas, sonhamos mais e mais com
gente que não existe mais. A morte não guarda lugar, mete-se vida
adentro, vida afora, triste topologia. Por essa, Moebius não contava. Ele,
o narrador, permanece impassível, sua função é estritamente heurística:
cuida dos escritos, o que vai neles não é sua província. Declama. O Ser
para o homem é a vida, pontificou Aristóteles, insuperável pleonasmo,
até hoje dá o que falar. Vejam vocês a falta de assunto. Meu gato, que
já foi heiddegeriano e hoje torce por Wittgenstein – as cores do uniforme
são menos berrantes, justifica – defende uma tese radical: mal a
equilibrar-se de pé, quase na vertical, perde o homem contato com a
multiplicidade dos sentidos, a visão periférica, o perverso tato polimorfo.
Em uma palavra, se lhe escapa entre os cascos o mundo prodigioso,
torrencial. A rigor, limita-se a fitar o ar, ou seja, de novo a rigor, nada.
Daí a acídia crônica, incurável, da qual trivialmente padece. A arvorar-se
imponentes ares niilistas. Saem sôfregos a tudo inventar quando tudo
desde sempre já aí está, profetiza o gato pré-socrático, que gastou seis
vidas inteiras, bem locupletadas. Longe da terra, perdem sua pulsação,
nem por isto ficam perto das nuvens. Buscam refúgio na fala ociosa e
compulsiva. A perseguir a felicidade, o verbo proclama em alto e bom
som o patético da empreitada, ao ver do gato, o empecilho mor para a
beatitude. O que é ser feliz, conclui o filósofo. Desabilita o ponto de
interrogação, outro déficit humano, falta de tirocínio. Nada existe no
interrogativo, sequer um poodle...Ninguém a define com a acurácia
devida, a humanidade se sente quase sempre bem infeliz, isto sim. E
disto ninguém duvida, exulta. Seis vidas garantem uma aura de
originalidade a qualquer lugar-comum. O que adiantaria andar de quatro,
232 Ronaldo Brito

retruco eu? Agora é tarde, consumou-se a metamorfose. Caniços


pensantes, debochou o tal de Pascal, com dose considerável de otimismo.
A mania doentia de pensar, assevera o felino, trava o livre envolvimento
das formas contínuas e descontínuas. O pensamento não se presta, em
definitivo, ao usufruto do mundo. Escrevo a me evadir em vão. Gostaria
de dedicar-me a outro tema, menos leviano que o assunto batido do
mundo. Detesto paradoxos, acompanhemos com simplicidade o curso
dadaísta da rotina. Outra matéria, menos óbvia, que não fosse a vida.
Rousseau empregava um simpático sucedâneo- herborizava - delicado
ensaio de misantropia aplicada. Quando o correto seria encará-la
frontalmente, a espécie, dar-lhe as merecidas costas. Com a idade,
reparem bem, todo mundo lembra todo mundo. Falha a vista, é inegável,
mas a variedade das fisionomias não há de ser infinita. Tendo visto
tanta gente, uma lembrará a outra. Tanto atentamos ao semelhante,
talvez por vingança, acabamos semelhantes. No entanto, dado alarmante,
nos tornamos esquecidos. Mistério. Sempre a lembrar alguém que
esquecemos em seguida. Sentença de ressonâncias machadianas, consinta
o censor. Vida que segue, retrocede. Avançamos, progredimos, reaparece
o passado intruso, o abelhudo, a sabotar o pretensioso futuro. O presente
é um estroina, só quer saber do momento. Morre cedo, evidente, no
auge da juventude. O resto é fantasia, parte importante da realidade. O
remédio é viver e despachar ao diabo a vida. Ou, ao contrário, parar de
vez e meditar ad aeternum, modo de existência outrora insigne, anda em
baixa. Interagimos, participamos, agora solitários, desvalidos,
consequência lógica. Cada um só pensa em si, todos juntos, contudo.
Resultado, falta o real. Vira um clube, negócio fácil de fechar. Vai ver
acabou o mundo na acepção estrita. Nem por isto ressurge o saudável
caos, viria bem a calhar. Quem sabe agora funciona. Se bem que
funcionar, funciona, até em demasia. Não agrada, verbo de outro teor.
Papo longo, amigo querido do tédio mortal. Um dos grandes prazeres,
teorizar à toa, ficar à toa também não é mal, viver à toa, esfalfa. Seria a
ocasião propícia de citar Sêneca, trecho lapidar de um sereno discurso
a trovejar no Senado. A desdita metafísica é um regionalismo sem sentido
Perdido no círculo 233

no mundo global. Tendo em mira a cura de nossos insubstituíveis


fragmentos divinos, cacos velhos de estimação votiva, diria Cícero. E
talvez o tenha mesmo dito, quem provará o contrário? Continua, leitor
hipócrita, meu semelhante, meu irmão, Baudelaire pega pesado, no
próximo capítulo, anterior ao que ora o narrador ou eu teríamos redigido.
Sigo à risca a irregular narrativa moderna, triste sina de irrevogáveis
desencontros e equívocos. E assim sucessiva, aleatoriamente.

De modo algum encerro aqui esta sóbria recapitulação despida


de saudosismo; pelo contrário, avanço célere em direção ao passado que
virá pelas costas. Acorram, auspiciosos ouvintes, venham já à praça
ensolarada onde se reúnem contentes melancólicos de várias estirpes a
trocar opiniões entusiasmadas sobre as pequenas misérias da vida. Há
raves de todo gênero, por que não haveria uma a celebrar o mau agouro
e a misantropia. Aperfeiçoemos a democracia. Punks não contam,
missionários contritos, elaboram programas de governo bem definidos.
Decepcionaram-se na puberdade, coitadinhos, queriam o melhor dos
mundos. Proponho uma enérgica resistência passiva: ouçamos
Thelonious, corrigindo o ritmo do mundo, dezoito horas por dia. Com
parcimônia, atentos ao vento e às nuvens. Desde a infância cultivo um
inseparável amigo cavalo. Costumamos dividir cogumelos mágicos, a
conversar acerca do grande pasto do mundo. Foi quem me confiou: o
segredo reside em ler com atenção o vento e as nuvens. Como assim,
decifrei. Nesses momentos, azula a gramática, num átimo o universo se
esclarece, a lógica bisonha não turva a clarividência do delírio. A certa
altura, intuo o nexo equino e sua incontestável superioridade, plácido a
pastar, enquanto giram as rodas belicosas do mundo. Quem sabe,
Schopenhauer teria sido de fato uma besta bem-sucedida, se bem que
só em teoria. Fiz-lhe um rápido resumo de sua doutrina, ao que Sertão
replicou, por que então o pessimismo? É cavalo sensato, chegado à
boemia, mas de boa andadura. O seu herói não é Pégaso, a quem acusa
234 Ronaldo Brito

de mau gosto exibicionista, e sim o cavalo anônimo de qualquer faroeste,


a roubar a cena de John Wayne. No fundamental, em essência, marcha
correto o universo, na síncope de seu galope ora brando, ora desabrido.
Concordo, Sertão, desde que o mundo é mundo, é mundo. Como mundá-
lo? Outra que o censor depressa suprime, constrangido, quem você
pensa que é, Guimarães, Joyce, não amole, atenha-se aos dados
elementares de sua rala biografia. Mas não os há, retruco, não os há,
tudo já vem confundido pela erosão do uso. O pateta sequer dormitou
sobre as Investigações, ao contrário do meu gato que não faz outra coisa.
O homem era um felino, exclama, com ele não sobrava passarinho.
Desde criança me intrigam as criaturas, voando à toa e construindo
ninhos, ao ver do povo, sabendo perfeitamente o motivo. Bem, pelo
menos me abstive de mencionar cachorros cretinos, creio que isto
encerra a inesperada digressão zoológica. Algum filósofo engraçadinho
declarou, com toda razão, que o homem é o mais perfeito dos animais
domésticos. Numa tarde de outono, encontrei por acaso o meu outro,
meu duplo. De cara, era de se prever, nos estranhamos muitíssimo.
Fizemos planos divergentes no intuito de ampliar nossa latitude: vá cada
qual para um lado do bairro, pelo menos, da rua. Somaríamos assim
dois esquizos, o que daria, portanto, menos um, a mais, aproximativamente.
Altas aritméticas. A única ciência exata é o pretenso spleen dos poetas a
nos fiarmos na estimativa da mídia especializada em tudo. O narrador
foi taxativo: isto aqui não é nenhuma Recherche esnobe, recheada de
madeleines alucinógenas. Até onde consiga enxergar, não perdi tempo
algum, como iria eu procurá-lo? Onde? Quando? Probo, inflexível,
homem de minha época, fiel a um traiçoeiro Universo Relativo, relato
o passado conforme vai me ditando a amnésia dos dias. Quem domaria
o curso selvagem do tempo, a sombra irrecuperável das tardes macias,
a luz amena do crepúsculo que nos convoca aos rituais inúteis da poesia?
Ninguém senão os deuses vaidosos das existências fluidas que não se
deixam medir pela lei da escrita. O censor tem desses rompantes à la
César, desculpem-me. Voltemos ao que interessa, à menor partícula de
nêutron cabível. Lá pelos nove anos, talvez dez, completei minha
Perdido no círculo 235

educação sentimental; aos doze, rematei com louvor minha Bildung.


Prematuramente, portanto, desnorteei-me em definitivo. Daí em diante,
remoço a cansados olhos vistos. Vejo-me assim míope, destemido, a
enfrentar o ocaso do passado. Do presente, seria temerário afirmá-lo;
quanto ao ocaso do futuro, nem cogito. Uma coisa de cada vez, pondera
o arguto senso comum. Não canso de enaltecer sua sabedoria dionisíaca.
Pessoalmente, prefiro Apolo: é mais apolíneo. Há aqueles que encontram
Cristo, que não era lá muito cristão, mesmo porque era judeu, também
a contragosto. A bíblia consagrou, em minha modesta opinião, a boataria.
Disse-não-disse interminável, mixórdia de profecias perversas e
inverossímeis. Eis o livro em que devemos todos acreditar piamente.
Faz sentido. Oremos, é o jeito. Tenho por hábito, de quando em quando,
ingressar em estágio clínico de delírio. A preceito, notem bem, seguindo
os manuais canonizados do gênero. Do Saara, no centro do Rio,
translado-me com desenvoltura a seu símile, a empreender a travessia
escaldante e instrutiva. Padeço dias à fio a tão decantada sede do deserto,
enlevado, diviso miragens sensacionais, produtivas, miragens de fato
reais, inequívocas, ao contrário da realidade tendenciosa, que não passa
de fantasia arbitrária ao sabor do gosto vulgar de todo mundo. E que,
fatalmente, engana, ilude. De natureza coloquial, nem por isso
desprezível, são minhas periódicas incursões à Saint-Germain
existencialista dos idos de 50. A tomar pernods consecutivos, em terraços
aprazíveis, cogitando o suicídio. O que me transforma, de súbito, em
um sarado pós-suicida, como o provam, de modo insofismável, estas
mesmas linhas. Daquele venerando boulevard, sob o influxo de sua
angústia erudita, que histórica perspectiva! A sensação de missão
cumprida. Podemos todos nos despreocupar, sobressaltados, acerca do
curso do mundo. Já àquela época, com enorme lucidez, eu antecipara,
tudo caminharia espontaneamente do péssimo ao horrível. Tanto que
me suicidei, conforme pregava a doutrina. Não é, do ponto de vista
prático, um mau delírio. Se bem ministrado, até rentável. Sob uma ótica
póstuma, necessariamente ascética, é econômica a vida, mínimo o
consumo. Também aprecio delírios miúdos, rapsódias irresistíveis que
236 Ronaldo Brito

duram de cinco a dez minutos. O exercício ascético de Cavaleiro Errante,


por exemplo, no engarrafamento dentro do túnel. Costumo apelar ao
budismo, e até ao hinduísmo, em situações desesperadoras à frente da
temível televisão e sua excêntrica visão de mundo. Sim, sim, está ao
nosso alcance, em fração de segundos, encarnarmos dalai-lamas de
improviso. Sorriso sábio nos lábios, gaia ciência inconsequente, a salvar
do enxurro os últimos cinco neurônios restantes. De uma a outra lua,
por higiene mental, três vezes ao dia, delire, delire, receitou-me o Médico
e o Monstro. De maneira sóbria, nada de histrionismos. O narrador,
inclusive, é de opinião que a um tipo como o meu, bem, o que melhor
lhe conviria seria entrar de vez na pele de outro conviva. O cavalo e o
gato concordam que a proposta é frívola, nada acrescentaria: tanto faz
um como o outro. O meu duplo discorda, mas só porque é sua função
precípua. Dissente também, com veemência, do narrador. Quedamos,
o leitor e eu, sem compreender patavinas. Ora, compreender por quê,
qual o motivo, emenda o revisor tinhoso, mania de perseguição
racionalista! É por si só evidente que uma humana biografia não haveria
de guardar sentido, mesmo sob a égide do delírio. Formula egrégia
petição de princípio, círculo vicioso que todo e qualquer Sócrates
perceberia. O ideal, desde Sileno, é domínio público: não nascer. Agora
nascer e, ainda por cima, escrever uma autobiografia, francamente, é o
fim. Em absoluto, defendo-me, há também o meio e o início, como o
observador imparcial pode constatar. Diligente, relato passo a passo
minha alta formação de idiota esclarecido, quiçá, um mau exemplo para
a juventude. O saudoso tio Jaime obraria em outro estilo: à força de
persuasivas mentiras procuraria desviá-la do caminho justo, sensaboria
capaz de entorpecer as imaginações mais ilustres. Mintam crianças,
mintam e desfrutem a graça da vida, a verdade é por demais cacete,
tediosa ao infinito. Mintam e mintam maldosamente se possível, armem
intrigas, cabalas, tudo enfim que ponha em risco o descalabro da figura
quadrada da sociedade. Era ótima pessoa, coerente, personificava sua
doutrina – nunca foi pego a espalhar verdades de espécie alguma. Em
datas festivas, no intuito de ludibriar e confundir, contava uma verdade
Perdido no círculo 237

inverossímil que, ato contínuo, passava por mentira e descabelava a


família. Chamava-nos a um canto, com generosa solicitude, explicava
os procedimentos operacionais de rotina. A regra de ouro era conhecer
a versão da verdade, na íntegra, só então desmoralizá-la mediante uma
bem aplicada mentira. É infalível, meninos! Infelizmente, por
temperamento, jamais me adaptei aos rigores de uma disciplina que não
consente atalhos ou subterfúgios. O Cavalo nasce imune a tais dualismos
risíveis, Sertão garantiu-me. Nosso livro de cabeceira é Folhas de Relva,
mais panteísta, impossível. Achei pobre a metáfora, com subtom
alimentício, calei-me, contudo, um tombo no momento traria eventuais
complicações bíblicas. Da última vez que caí, há um decênio, o fiz dos
cumes alpinos de minha alegria matutina. De lá pra cá, ao more estoico,
repasso humilde os acontecimentos diários à noitinha, embora não
encontre interesse em semelhante escrutínio – ao contrário do que reza
a doutrina, tudo podia perfeitamente não ter ocorrido, a começar por
mim. Acresce que moro no Rio de Janeiro, onde a causalidade é malvista:
interfere com o bom andamento do acaso. A maresia teria sido, aventam
os iniciados, a origem do cisma: é incompatível com os axiomas da
geometria. Ou o inverso. Daí porque escreva eu a ermo, que não pertence
a nenhum município por questão gramatical de princípio. Recanto
remoto, de fronteiras vagas e incertas e precipícios invisíveis. Dez léguas
dista, cinco minutos a pé, duas horas a cavalo: gosto de cavalgar. Sou o
autor, metam-se vocês com suas respectivas biografias, meu método
errático é cá comigo. Cacófato medonho, de pronto rasurado do
manuscrito. Pouco importa desde que passe a mensagem clara a uma
humanidade, principalmente, enxerida. Deste pecado ninguém há de
me acusar, desde os quatro anos tracei ao redor um limite nítido de cem
centímetros cúbicos. Que, aliás, carrego comigo onde quer que vá ou
deixe de ir. Assim nunca me extravio junto a terceiros, ou mesmo,
segundos. Já o meu duplo é homem do mundo que, por sua vez, nem
liga. Talvez não seja mundo do homem, desconheço os detalhes. Saio
às vezes a me divertir no lugar do duplo, a quem abandono em casa
debruçado, soturno, sobre um livro. Ao retornar, ele se mandou, despreza
238 Ronaldo Brito

protocolos de despedida. O convívio é truncado, sem maiores luzes. De


seu compreensível ponto de vista, sendo eu o duplo, ele é que me
enxotara, deixe-me em paz a ler, suma. Desde quando trocamos missivas,
meu caro Rotariano vetusto? Sua tese sumária é de que sou uma relíquia.
A minha é de que não fica bem falar mal de si mesmo em público.
Sobrevivemos cada um na sua, fingindo de desentendidos. Na verdade,
mal nos conhecemos, ele ou eu surgimos alguns parágrafos acima. O
narrador investe com ímpeto: assim é inviável, a reportagem vai se
enrolando, a cada página mais tortuosa, abstrusa e críptica. Ainda ontem
interceptei um lacônico e-mail do operoso escriba à esposa – Estou
perdidinho, bs. Ao ver do duplo, em seu palavreado chulo, o cara é beleza,
mas careta, todo arrumadinho. E eu com isto? Uma vez que decidi partir
– o gesto foi daqueles inspirados, visionários, irreprimíveis – nada me
impede de ficar em casa a descansar de mim e do mundo. Mente resoluta,
pragmática, jamais hesito em tomar decisões urgentes que possa
postergar com otimismo ao infinito. Abro ao acaso o mapa e localizo,
por exemplo, Sossego, metrópole diminuta nos confins do Judas, entre a
Madison e a Quinta Avenida. Há, por sorte, um clube de jazz na esquina.
Sossego não vai escapulir, até pelo imperativo do patronímico; breve, com
a devida calma, inicio os preparativos. Enquanto isso. Em dois ou três
momentos convenientes, atravessei a urbe noturna sob uma deliciosa
garoa a tirar conclusões definitivas sobre o curso ulterior do destino.
Basicamente, nada concluí, concorde a lógica do assunto. Ressalte-se,
saí do incidente incólume, fortalecido, úmido até a medula. Previdentes,
nem cavalo nem gato acompanharam-me na aventura que reputam tola,
diversionista, com uma pitada de loucura. O duplo me seguiu fielmente
ao longo de oito quadras e desgarrou satisfeito em direção a um
inferninho. O narrador apreciou, afinal, algo de pitoresco, chega de
circunlóquios mórbidos. A chuva, repito, é variegada e educativa; o sol,
uma mesmice. Daí sua repercussão junto ao consumidor médio. Por
mim, ele se restringiria ao solstício, a palavra me agrada, é bonita. De
emprego judicioso, não me lembro de tê-la empenhado, por exemplo,
a respeito da vida. Descortina uma cosmologia primitiva, quando as
Perdido no círculo 239

aparências resplandeciam, brilhavam sem culpa. O solstício, apurando o


ouvido, não se pode falar em eufonia. O narrador condoído me considera
uma alma singela que saiu torta por questão de milímetros. Corria tudo
às mil maravilhas até a véspera natalícia, aí interveio a fatídica mala fortuna.
O gato aposta que foi o Cão, o cavalo bota a culpa em Descartes e seu
fraco pelo raciocínio analítico. O duplo, sucinto, me acha prescindível.
Recorro de imediato à célebre skepsis, suspendo o juízo – je suis comme je
suis, pernóstico rumino. A vaia foi ouvida até nas coxias. Mas hei de me
redimir junto ao leitor de boa fé que sabe muito bem que, numa
autobiografia atemporal, o importante é o que se agita em surdina sob
a escrita. Ofenderia eu finas sensibilidades literárias com a descrição
enfadonha de cenas verídicas? O papel inédito que lhes reservo, senhoras,
senhores, é o de Adivinho: outrossim, ficassem a espionar o apartamento
dos vizinhos. Cerimonioso, polido, o narrador aprova a ementa; pelas
costas, ironiza o que denomina meu sub-hermetismo. Por inveja, pressinto.

Façamos, nesta bela encruzilhada, breve síntese retrospectiva.


Constatemos, idôneos, que o caráter singular da personagem veio a
revelar-se, in totum, graças a episódios que me recusei a narrar sob
hipótese alguma. A viagem a um grotesco mosteiro, em Minas, obcecado
por uma namorada mística que necessitava e carecia, segundo seus
insistentes e quase inaudíveis murmúrios, se descobrir. Ao termo de meses
e meses de abstinência e jejum, obteve a recompensa merecida. Sumiu:
especula-se que não teria gostado nadinha do que viu. Nesse ínterim,
eu voltara apressado a Paris, onde nunca pusera os pés, emigrado ávido
de cultura – faltava o pecúlio de família que me permitisse desfrutar os
proverbiais infortúnios do exílio político. Exatamente lá, naquela mítica
Arcádia algo enxovalhada, onde reinavam minha ausência e a do meu
duplo, decidira a sorte madrasta encaminhar-me à prestigiosa carreira
de Inútil Escriba Público, sem o saber ou a intuí-lo por meios escusos,
confirmando os vaticínios daquele avô desvelado que, porventura,
240 Ronaldo Brito

jamais conheci. Vinte e poucos anos transcorreram até alcançarmos


esse acme existencial do qual ignoro o percurso labiríntico. Viria eu
a descrevê-lo em minúcias? O contrassenso salta à vista. Se bem que
não esteja lá muito seguro quanto aos particípios verbais em litígio nas
linhas acima. Cure o revisor desse quesito, se for capaz, do que duvido.
Repassasse palmo a palmo o enredo estéril, desenxabido, que papel faria
eu aos olhos perspicazes de leitores calejados na alta poesia especulativa
de fulano ou sicrano, quem sabe, do próprio Virgílio? Acaso fomentaria
o robusto entendimento dessas páginas que, pela estrita profissão de fé
pietista, coíbem invencionices ou caprichos? Omiti, confesso, voto de
puro altruísmo e, sobretudo, meritório discernimento estético; o mesmo,
ipsis literis, que me forçou a pular o venturoso regresso a cavalo de Minas.
Oito dias ensandecidos de meditação ininterrupta no lombo de um
matungo, passarinheiro contumaz, histérico à passagem das menores
nuvenzinhas. E eu a remoer, gravemente, nada menos que o futuro.
Àquela altura, Clarinha, a Obscura, já constava entre as pálidas lembranças
destinadas ao popular olvido, em rodas de elite famoso, sob o título de
recalque, e passível de severa punição psicanalítica. Altivo, não parei aí:
escusei-me, convicto, a narrar meu tórrido romance frustrado com a
noiva do duplo, criatura insinuante, perfidiosa ao estilo de Lady MacBeth,
de quem copiava os trejeitos e o cabelo. Peremptório, não o fiz, não o
faço, saem vocês sobejamente ganhando senão por um ou outro detalhe
sórdido de natureza libidinosa. A quem interessar possa. Era engenhosa
a trama, em particular, a moral dúbia da história. Tampouco subscrevo as
idiossincrasias do duplo, que venera fofocas e rumores efusivos. Às custas
de nós ambos, sorri o parvo, é mais divertido. Vibraria ele, sem rebuços,
ao ver estampado, numa dessas inomináveis revistas de variedades que
aviltam a dignidade da espécie, o telegrama à antiga que sepultou nosso
entrevero lírico: Finito. Quando queria, a calculista MacBeth dispensava
ardilosas tramoias políticas: ia direto ao ponto, precisa. O mesmo não ouso
afirmar, compungido, de minhas mirabolantes habilidades linguísticas,
inclinadas à caridosa maledicência e ao humanismo ferino. Não fora o
censor e sua notável presença de espírito, estaria eu aqui a esmiuçar, todo
Perdido no círculo 241

prosa, as lendárias escapadelas de tia Catarina, a ultrapoderosa matriarca


ninfômana da família. Sequer esconderia a lista de destratos, humilhações
e agruras a que venho me submetendo nas mãos cruéis, inclementes, da
poesia. Encareceu-me em tom ameno, com doçura, o velho cavalo amigo:
por favor, poupe-nos, é uma chatice.

Numa psicobiografia contemporânea, isenta de misticismo, a


prioridade caberá naturalmente a fatos positivos, à conduta verificável
da pessoa na calçada ou em domicílio. O jeito como se vira em meio
a suas vicissitudes geopolíticas. O presente sempre foi e será assunto
exclusivo do vulgo; o futuro, aos deuses pertence, diga-se em favor
deles, há séculos e séculos enfastiados da sinecura – não acontece nada
de novo, estrilam. Perdoem-me a hipérbole: o passado é tudo de bom
– eclético, ecumênico, dúctil, presta-se cordato a fabulações ultrajantes,
edificantes, não reclama nunca. Com inteira justiça, constrói soberano
a grandiosa Farsa Universal: impérios de fausto, míseros impropérios,
imperadores taradinhos e cidadãos menos que comezinhos, putos da vida
perante as normas austeras do senso comum, que não hesita em alterar
ao bel prazer sua agenda leviana e ilegível. Amável passado, louvável,
todo enfeitado de mentiras deslavadas, fruto dos humores biliosos de
escribas venais, ávidos investidores no mercado futuro do espírito.
O narrador é homem de fé, conserva a crença inabalável na origem
divina da burocracia: és um blásfemo, berra. O que de nós sobraria, eis
a bastarda verdade impoluta, à falta das fábulas lunáticas que tecemos
e entretecemos e nos guiam pela árdua jornada ao redor do planeta
mixuruca, num sistema solar politicamente incorreto, sob a acusação
unânime de heliocentrismo. Morderão as más línguas – isto é, todas as
que se pronunciam e algumas outras ignotas até aqui – que exagero,
extrapolo minhas plebeias origens. Nego. Componho este memorial
muito, muito relativo em condições adversas, acuado por companheiros
acerbos. Meu duplo turista o qualifica de mero shrip (sic?), enquanto aperta
242 Ronaldo Brito

o baseado de costume: sou obrigado, portanto, a trabalhar dobrado. O gato


Witts aproveita a desforrar-se da História, composto fictício de crendices
pós-fabricadas. O cavalo boceja, quando muito, relincha. O narrador é
sincero: precisa da grana. É pai de cinco filhas, sexualmente problemáticas,
cada qual com síndrome diferente, só uma delas lucrativa. O pior é que, a
sós, me desavenho comigo, perco as estribeiras, rancoroso, passo semanas
sem falar sozinho. Há que telefonar ao duplo, conciliador nato, menos por
talento que por preguiça. Ah, conspiro em silêncio a vendetta, na acepção
siciliana escorreita: minhas fábulas inovadoras, contributos substanciais
à literatura milenar de autoajuda, não as transmitirei jamais, nunca, nem a
pau. Primeiro, seria entregar o ouro ao bandido, fornecer de graça o mapa
da mina, torná-la quase suportável, a vida adorável. Depois, há a iminente
pendência judicial com o tempestuoso Cronos. Trâmites atrozes, terríveis,
me aguardam à descoberta pelos coreutas de que trapaceio e furto: em
vez de acompanhá-lo em sua surrada e monótona saga, divago, divago,
me lixo para sua autoridade olímpica. Terzo, tópico conclusivo, por conta
das futuras ex-mulheres, em conluio escancarado com os críticos – quem
ousará calá-las quando estourar o bochicho? A melhor viagem foi, de
longe, à pacata Istambul, no âmago da tumultuada Suíça. A conjunção de
contrários é profícua no que respeita a produção de fluidos vitais. O surto
dura segundos, não se dorme a bordo, contudo sonha-se na plenitude.
Ali desempenhei o papel solene de pró-cônsul no país dos Yahoo, graças
ao prestígio literário do cavalo Sertão e suas memoráveis Veredas. Na
região se escreve a quatro patas, entre outras benesses, multiplica os
Royalties e os programas de entrevista. Há também pequeninas fábulas
que promovem conquistas eróticas. Variam desde apetitosas passantes
– descendentes diretas, por linha materna, daquelazinha cantada por
Baudelaire – até estrelas de cinema e modelos com impressionante índice
de celebridade acéfala. Ou o inverso. Não vos enganai: sou homem capaz
de materializar em sonho, espremido num abarrotado coletivo, uma
bucólica vida no campo pelo resto dos dias. Extasiado, na expectativa do
aborrecimento letal que me aguarda ao crepúsculo e das magníficas auroras
que, sem sombra de dúvida, hei de aturar. Depois do almoço, prescreve
Perdido no círculo 243

o pergaminho, empreendo uma sesta produtiva: fantasio projetos de


grande envergadura, envolvendo metas e programas comuns, com vistas
ao que se convencionou chamar, desde o gajo Montesquieu, o Progresso
da Humanidade. Dorminhoco inveterado, para contrabalançar, Witts
sonha um programa que agrupará todos os felinos em torno da ideia de
mútua e absoluta indiferença universal. Inspirado em seu pirado mestre
Wittgenstein, ça va sans dire, o objetivo é interromper o processo nefasto, em
pleno curso, de Caninização dos bichanos, descaracterizados pelo contato
degradante com criancinhas, a vegetar em casinhas, cerceados por um sem
número de diminutivos. A Caninização, impreca o gato com asco, que atribui
a culpa ao Vaticano e suas trapalhadas maquiavélicas. Basta de devaneios
irresponsáveis, o exercício da memória é matéria séria, advertia o avô
bondoso, a nos incutir as lições indispensáveis ao cumprimento virtuoso
do currículo da vida. Cedo ou tarde, podem contar, meninos, ela arranja
um meio de foder de vez com suas esperanças tenras ou maduras. E ria,
bonachão. Sujeito terno, circunspecto, dado a estranhas temperanças. Aqui
entre nós, na surdina, era um católico diabólico, em ambos os sentidos.
Arguidores melífluos, filiados ao Partido, que ora abundam na Ágora,
me acusam de disseminar uma crise de identidade de consequências
sociais incalculáveis – seus caracteres carecem de ínfima consistência,
misturam disparatados hábitos, qualidades e atributos, enfim, qualquer
um podia ser qualquer um. Perplexo, indago: não radica aí a essência
da democracia? Voltam à carga os brutos: contradições, discrepâncias e
antíteses deformam seus perfis a ponto de torná-los – a eles, caracteres,
bem entendido – irreconhecíveis. Politicamente imprestáveis, fuzilam.
Sintam vocês, na pele, o verbo.

Contra tudo e todos, todavia, prossigo e prossigo até o fim,


embora não faça a menor ideia de onde fique. Ninguém nessas paragens
parece preocupado com isso. Livinha, dita a Doidinha, que lhes
apresentei acima, hoje funcionária pública às vésperas da aposentadoria
244 Ronaldo Brito

e recognominada a Comedida, expressa um conceito abrasivo: é patético,


o textonão sabe sequer pra onde ir. Minha réplica estala na ponta da língua:
todo e qualquer texto termina na página escrita. O resto é farisaísmo de
ninfas em vias de declínio. Respeito a opinião alheia desde que não me
chegue aos ouvidos. O narrador referenda o aforismo, mas alerta que é
plágio de Nietzsche. Nove, dez mil vezes descompôs-me, com o apoio
irrestrito do cavalo Sertão: basta de aliterações e rimas compulsórias,
oriundas de um arcaico automatismo psíquico de baixa extração
surrealista. Isto é sólida prosa ou frustre poesia? Reúno-me incontinente
ao cavalo na pradaria para extensos conciliábulos literários. Esta rixa em
torno de aliterações e rimas é fato comprovado? Nem tanto, nem tanto,
matreiro troca de mãos ao assunto o matungo. Quando menos espero,
desfecha o coice sutil. Insisto, garoto, há que ouvir a música do vento;
em matéria de consistência, imite as três formas canônicas de nuvens:
cirrus, stratus e cumulus. Deixe de lado o supérfluo, paste em claro,
durma no escuro. Em suma, minha é a culpa e só minha, conquanto
seja este ensaio experimental de metabiografia um produto híbrido,
transgenérico, posto que dele participam um cavalo e um gato. E ainda
uma namorada intrusa que, enquanto durmo, corrige concordâncias e
acrescenta trechos à minha revelia, aliás, aqueles melhores escritos.
Trata-se, enfim, de uma cooperativa, a evocar a época gloriosa do
socialismo utópico nos vários condados onde logrou implantar um
regime de renovado conformismo. Detratoras e detratores, vigilantes,
rebatem em cima: cooperativa utópica uma ova, franco-maçonaria. Por
ordem de entrada, figuram o narrador, o censor e o revisor proativos,
a interagir criativamente, isto quando não brigam. Ao longe, ouço a
plateia subreptícia, clandestina, a uivar paranoico baixinho. Reacionária,
reza pela cartilha do narcisismo burguês simplório - o Eu será idêntico
a si mesmo, reizinho, intacta personalidade destacada do cenário maluco,
no mínimo, do mundo. Enquanto me mato para retratar, fidedignas, as
múltiplas facetas controversas de minha personagem íntegra, dois passos
à frente, três atrás de seu tempo. Do contra, o duplo caminha de través,
como é de seu feitio. O gato e o cavalo constituem fatores autônomos,
Perdido no círculo 245

intrínsecos. É verdade que talvez eu dissesse o mesmo de minha prima


Regina, rebelde, semi-incestuosa comigo, se se dignasse a dar as caras
por aqui. A volúvel Divinha, outrora desenfreada, aos cinquenta e poucos
fã ardorosa de Aristóteles, desdenha cortante e ríspida: não admira,nesta
zona todo o mundo é bem-vindo. Mente atilada, lábil, perita em avaliar minutas
quiméricas e documentos ilícitos, Divinha ou Livinha – jovem, gozava
à farta graças à ambiguidade nominal deliberada – acabou traída pelo
excesso de zelo hermenêutico. Cândida, desapercebeu a ironia: ao intervir
com tal ênfase, enfiou-se de moto próprio na orgia literária que,
sobremaneira, a irrita e conduzàs raias da indignação cívica. Calasse,
estaria a salvo, fora de perigo. Repudio o epíteto – orgia – aqui presente
de forma pejorativa. Jamais cometeria a indelicadeza de relembrá-la que
antigamente, em outro contexto, este sim pertinente à etimologia, o
termo lhe soava bastante atraente. Ao que dizem. De resto, relaxe
Livinha, o censor pode muito bem aliviá-la de suas aflições, afeito que
é a cortar falas exaltadas em nome do bom-tom. Que querem, a figuraça
é antiquada, só o que faltava eraum censor transgressivo, no auge da
moda. O revisor é farinha de outro saco, vinho de outra pipa: espaçoso,
sofista, para ele, viver é se intrometer. Divinha, com quem sabidamente
confraternizava, se não confraterniza ainda, que se cuide. Alheio ao
texto, que só me granjeia desafetos e antipatias, inspeciono províncias
idílicas com vistas a meu iminente recolhimento do mundo em comum,
soma imponderável de súcias antagônicas, repleto de egoístas
irredimíveis. Reparem, não é esta, em absoluto, a opinião do autor. Ao
final da frase, algum forasteiro lhe conferiu um caráter sombrio,
ressentido, de todo inadmissível. Discordo, discordo e assim contradigo
minhas clementes expectativas: confirmo, involuntariamente, que o
mundo é lugar da discórdia. Não é mole a lógica, tem lógica própria,
concluo. Por essas e outras, me retiro a ler e ouvir música, afastado de
minha companhia. Certa matemática amicíssima, no entanto, assegura:
tresandou a lógica, sim e não foram banidos, caíram em desuso. Reina
o mais ou menos, ingênuo, pergunto. Ora, seria iníquo, pueril, esqueça,
nadamos em profundas águas turvas. Não preside a lógica mais o mundo?
246 Ronaldo Brito

Onde saiu a notícia? Nesse caso, meu duplo seria um pioneiro, precursor
indiscutível, nunca deu a menor bola à lógica, a razão sempre lhe pareceu
uma coqueterieremanescente dos anos 20. Leitor voraz dos quadrinhos,
mulherengo conspícuo, sofre apenas pelo Vasco e pelo eventual desfecho
infeliz dos filmecos e novelas que, religiosamente, assiste. Amiúde,
porém, tranca-se na biblioteca a estudar Platão a fundo, no intuito óbvio
de me aturdir: quem serei esse outro Eu? A questão é retórica, ecoam
juntos o gato e o cavalo, que abominam o modo interrogativo.
Denunciam a humanidade por depreciar a supremacia do presente do
indicativo, da alfafa e da sardinha, respectivamente. Vil materialismo, se
insurge o censor, para quem Catão era um devasso impenitente e sem
escrúpulos. O narrador mostra-se agente moderado, há espaço para
todos, as ideias divergentes se equivalem, concorrem em harmonia ao
Bem do universo. A recém-chegada estagiária de matemática faz um
cálculo rápido: esse cara é cri-cri, o beabá da álgebra. Com tal equipe,
nem a Leibniz desmentimos! Em circunstâncias contemporâneas, impõe-
se o approach quântico. Do contrário, cantem os parabéns, assoprem as
velinhas, ponham-se a recordar uma a uma as famigeradas primaverinhas.
Os homens são todos iguais, românticos na primeira noite, a sussurrar
fractais e conjuntos vazios, logo recaem no rame-rame do cotidiano
newtoniano. Pago o pato, como sempre, pelo camaleonismo do duplo,
em matéria de mulheres, capaz de infâmias inauditas. Retrocedamos,
intempestivos, àquele instante da minha biografia quando descobri a
tardia vocação de estadista. Num sábado à tarde, sob a módica influência
de um ácido. Li muito Borges, conheço o ofício. Quase quinze minutos
durou a empreitada exaustiva de consertar, no geral, o mundo. A
encomenda era maçante, repetitiva. Enfiei a cara nos livros a buscar o
que sempre busco – a solução poética da vida. A mesmíssima que
descubro e perco de novo todo dia. É frustrante, tem lá seus momentos,
como tudo na vida. A solução não virá, por milagre, graças a
autobiografias postiças, o narrador avisa. Desde o princípio eu lhes
suplico, olho no sujeitinho. Muito à vontade, trotando, Sertão comenta
airoso: é o que dá misturar um romântico doentio e um realista sadio,
Perdido no círculo 247

ou um sadio romântico e um doentio realista, pouco importa - a ordem


dos fatores não altera o produto. Depois desta, derrotada, a jeitosa
matemática que, fora do laboratório atende por Dulcinha, despencou-se
pra China ou pra Minas. A baixa foi sentida, em especial pelo duplo,
incapaz de sublimação ou renúncia: sou fascinado por números, ruge.
Em plano superior, o gato Witts polemiza – neófita, Dulce segue presa
ao platonismo ortodoxo de Oxford ou Cambridge, atrelada a Bertrand
Russel. Deslumbrada pela Verdade, achava-se deslocada na companhia.
O que depreender de semelhante assertiva? Grassam entre nós somente
eméritos mentirosos? E o leitor, como, quando, onde fica? Declaradamente,
este é um tratado de autobiografia no gênero tão apreciado da autoajuda.
Um tantinho difuso, alucinado, admito. Mesmo assim. A sua intenção
não será, por certo, atormentar e desiludir, induzir à mendacidade e ao
fratricídio. Firmo meus protestos junto ao intendente do censor, numa
saleta estreita, nos fundos do quartel, consoante a hierarquia. Sabe Deus
quando, em meio ao papelório, virá a tomar ciência a personagem
atarefada do censor, sempre a pretextar o senso do dever kantiano. O
que não o impede, segundo as más línguas, de novo elas, de cumprir
missão tergiversa com Livinha, ultimamente coligindo dados arcanos
no afã de reescrever a História Subversiva da Ditadura. E com isso
conspurcar a memória do pai e dois ou três tios. Sagrada é a República,
doa a quem doer, não transijo. Em determinadas áreas, revela-se uma
purista. E eu a suportar a catilinária da unidade de estilo! Admoestado sem
clemência por causa do Deus ex-Machina! Vilipendiado por uma plateia
néscia, acrescida de irados representantes revanchistas do Partido.
Nenhum deles, em nosso entender, destros em autocrítica. E grifo o nosso
com muito orgulho, pela primeira vez entramos em consenso, gato,
censor, narrador, cavalo e revisor, eu mesmo e o intermitente duplo.
Nem menciono colaboradores arrivistas, a namorada intruja, a
matemática de vanguarda, uma ou outra subpersona mascarada que não
passou pelo crivo. Em franca reação aos onipresentes estraga-prazeres,
a clamar por uma biografia nos moldes, nos trinques, acanhada, adstrita
à sala de visitas, nos rebelamos todos em favor da escrita livre, fronteiriça
248 Ronaldo Brito

ao generoso delírio, uma das derradeiras conquistas sobreviventes do


Iluminismo. Porque nos escravizar à tabela de Lombroso, aos traços
atávicos da personalidade? Senhoras, senhores, não cabe à literatura
julgar o propósito da vida, tolo acidente implausível ou enteléquia
metafísica segundo ideologias concorrentes e igualmente frívolas.
Tampouco caberia, convenhamos, deslindar o propósito logo da minha,
sob o sério risco de expô-la ao ridículo. Peço vênia: embora seja eu o
autor, a ideia não foi minha. O projeto teria sido encaminhado pelo
Super-Ego, em parceria com o Id, arrojada joint-venture, instâncias que,
por tradição, fogem ao controle da consciência. Ao leitor experto, astuto,
ficou patente o esforço de minha pena – que digo eu, o sacrifício – na
lida com uma vida recalcitrante que sob vários ângulos me é estrangeira,
com frequência, abertamente molesta. Só um imbecil se reconcilia com
a própria vida, em aparte desapaixonado, sentencia o concílio. O que,
nas entrelinhas, transpira: você é vulgar, você é comum. Nada há de
errado com a mediocridade, consolou-me Sertão, resigne-se. No mundo
pop, é o que há de chique. Num desses ditirambos herméticos, nos quais
prodigaliza, o gato Witts enuncia: a média é, por definição, comparativa.
Padeces de filosofia enfermiça, espaireças durante três semanas, bebendo
leite, recluso na montanha. Em desespero de causa, vou tomar chope
na calçada com o duplo a me inteirar sobre as recentes calamidades e
os últimos absurdos que, pelo visto, estimulam a turba a redobrar o
barulho. A algazarra e a balbúrdia talvez não incomodem os astros e a
lua, conjecturo. Alá sabe o que faz. Nesse recinto aconchegante,
convidativo à reflexão, resmungo – chique é torpe, chinfrim: sou o
honesto relator de uma existência decente que cumpre sua missão para
consigo e para com seus concidadãos. A missão, esta sim, é inglória,
talvez pífia. Mereço o pronto esquecimento, nunca o opróbrio e o
martírio. Se o concílio assim o desejar, de bom grado, tornar-me-ei
invisível. O exato oposto do chique, deduzo. Creio exposto, com clareza,
o dilema: quem teria rabiscado tais linhas eloquentes, de nítidos acentos
sadomasoquistas - o censor no exercício legítimo de seu sadismo
plutocrata ou eu mesmo, em desalinho, vítima momentânea de volúpias
Perdido no círculo 249

masoquistas? Vou pegar uma praia, descolar um bagulho, desnecessário


identificar ao leitor essa fala arrastada, puxando os erres, marca registrada
da tribo. O dilema inexiste: pela lei das patentes, a formulação autoral
é só minha, o narrador pretende dirimir a priori quaisquer dúvidas.
Entediados, cavalo e gato se entretêm com o puzzle, emitem pareceres
díspares. Um deles opina que o problema é de etiqueta e se alastra devido
às gafes clássicas da chancelaria; o outro entrevê na questão uma
complexidade escolástica, já dissecada, aliás, pelo escólio que examina a
relação custo-benefício – de que maneira passar um camelo pelo buraco
da agulha? Tonto, atônito, quase desisto. Invoco a tempo o expedito
Jaime, senão o Pai, o Tio da Mentira: com exceção da verdade, pontifica,
tudo tem saída. Suprimirei o indigesto parágrafo acima, portanto, na
encarnação seguinte. Vamos adiante, o passado urge, ávido de novidades.
Houve um tempo em que eu trocava, tranquilamente, a felicidade pela
poesia. Daí a cisão perene com o duplo – você desperdiçou nossos
melhores anos com essa frescura! Agora é tarde, contemporizo, com
um risinho mordaz, vingativo. Ele é desses que encaram envelhecer
como uma afronta pessoal, golpe covarde do destino - justo comigo?
Por outro lado, seu otimismo inato, aliado à aversão mais inata ainda ao
raciocínio, o leva a considerar a idade um epifenômeno, fugaz, efêmero,
sem futuro –dia desses amanheço novinho em folha, aos vinte. Tudo
não passou de um sonho ruim, como eu previa. Minha atitude é frontal,
categórica, positiva: envelhecer é acumular, em vão, sabedoria inútil. O
provérbio me parece digno de Confúcio; de ressaca, numa manhã aziaga,
ressalva o concílio. A que vem esse inopinado concílio, que se outorga
poderes monarcais risíveis, interpela o gato em sua peculiar forma
afirmativa. Desagradam ao cavalo, livre-pensador arquetípico, complôs
palacianos e tramas subterrâneas que complicam o percurso e esburacam
a pista. Contrairá o censor partes nisso, implica. Até onde eu perscrute,
trata-se de entidade mágico-estatal, uma dessas Ongs de longínquas
inflexões kafkianas, de acordo com os emissários shakespearianos do
Ministério Público. O que a vincula, na letra e no espírito, ao Vaticano,
ao tráfico e à indústria emergente da infraliteratura, em vídeo e outras
250 Ronaldo Brito

mídias. O seu logotipo, originalíssimo, é o pôster do Che fumando


charuto. Divinha, sim, militaria garbosa nesse concílio não fora o passado
depravado e o presente demasiado casto, o que confunde as sinapses e
desregula o metabolismo. O concílio é órgão público! Seja lá o que a
metáfora despudorada signifique! Metáfora coisa alguma, paralogismo,
o gato retifica. Hilária ou depressiva, dependendo da perspectiva, a
verdade providencial ou vexatória há de ser dita – não sou o protagonista
de minha própria autobiografia. Mal consigo vislumbrar-me, vulto ao
fundo, andando e gesticulando em círculos.
NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS

1. FLOEMA. Caderno de Teoria e História Literária é uma


publicação semestral editada sob a responsabilidade da Área de Teoria e
Literatura do Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários (Dell) da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

2. Serão publicados trabalhos inéditos, concernentes a questões de Teoria


e História Literária, na forma de artigos, ensaios, ficção, traduções e resenhas.
A critério da Direção Executiva do periódico, poderão, excepcionalmente, ser
aceitos trabalhos já divulgados anteriormente.

3. Somente serão publicados os trabalhos que obtiverem parecer favorável


emitido por membro do Conselho Editorial do Caderno. Na cópia encaminhada
para análise e parecer, serão omitidos os dados relativos à identidade do autor
e de sua instituição. Os editores do Caderno comprometem-se a informar
aos autores a aceitação ou não de seus artigos para publicação. Os trabalhos
encaminhados ao Caderno não serão devolvidos.

4. Serão aceitos artigos em português, espanhol, francês, inglês e italiano.


Os trabalhos deverão ser enviados por e-mail, em programa Word for
Windows, com identificação contendo o nome do(s) proponente(s) e o título
do trabalho.

5. Deve anteceder o artigo ou a resenha uma folha de rosto impressa,


contendo título e subtítulo do trabalho, nome do autor e titulação, unidade e
departamento, cidade, estado e país, bem como seus endereços eletrônico e
residencial e telefones para contato.

6. O e-mail enviado deve conter um segundo arquivo com um currículo


do autor, de 06 linhas, no máximo, fornecendo, inclusive, referência às suas
últimas publicações.
252 Normas para apresentação de trabalhos

7. Nos casos de textos que utilizem caracteres especiais (grego, árabe,


por exemplo) o autor do trabalho deverá encaminhar, ainda, juntamente com
o artigo, arquivo da fonte utilizada compatível com Windows.

8. Os textos deverão ser enviados para o e-mail:


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9. Diagramação do conteúdo
9.1. Elementos pré-textuais
a) Título e sub-título: separados por dois pontos, na primeira linha,
centralizados, em negrito, fonte Garamond, 12, maiúscula em ambos.
b) Nome do Autor: duas linhas abaixo do título, à direita, em maiúsculas
somente as iniciais dos nomes em ordem direta. Garamond 11, itálico. A
instituição e a titulação devem ser inseridas em nota de rodapé (fonte Garamond,
tamanho 10) alinhada à esquerda. Pode-se inserir, ainda, nas notas de rodapé,
a instituição financiadora do projeto e o endereço eletrônico dos autores, se
existentes. Usar quantos asteriscos forem necessários para distinguir os dados
relativos a cada autor.
c) Resumo. A palavra RESUMO, em letra maiúscula, seguida de dois
pontos. O resumo deve ser apresentado a partir da linha seguinte, em um
único parágrafo, espaço simples, justificado, contendo, no máximo, 80
(oitenta) palavras, em Garamond 12.
d) Palavras-chave. Imediatamente após o Resumo, apresentar até cinco
palavras-chave, apenas a primeira letra em maiúscula. Estas deverão estar em
ordem alfabética e separadas por ponto.
9.2. Elementos Textuais
a) Texto. Os textos deverão ser digitados em espaço 1.5, fonte Garamond,
tamanho 12, papel A4. Os trabalhos não deverão ultrapassar vinte e cinco
páginas, no caso de artigos e ensaio, e, oito páginas, no caso de resenhas,
excetuando-se as referências.
As margens terão as seguintes dimensões: superior e inferior 2,5cm;
esquerda e direita 2,5cm. Todo parágrafo deve ser iniciado a 1,5 cm, a partir
da margem esquerda. Os números de página devem ser colocados na margem
superior externa. Subdivisões internas do texto deverão ser alinhadas à
esquerda em maiúscula, em negrito e com a mesma fonte utilizada no corpo
do trabalho.
Normas para apresentação de trabalhos 253

b) Notas Explicativas. A numeração das notas explicativas é feita em


algarismos arábicos, devendo ter numeração única e consecutiva. Deverão ser
listadas no rodapé da respectiva página. Fonte Garamond, 10, espaço simples.
c) Citações. As citações de até três linhas devem aparecer no corpo do
texto entre aspas duplas. As citações que excederem três linhas devem ser
destacadas em parágrafo com recuo de 4cm da margem esquerda, em fonte
Garamond 11.
d) Notas Bibliográficas. As Notas Bibliográficas deverão ser especificadas
pelo sistema autor-data, no corpo do texto, de acordo com a NBR 10520. Ex:
(BARBOSA, 1980, p. 35). Segundo Morais (1955).
Quando houver coincidência de sobrenome de autores, acrescentam-se as
iniciais de seus prenomes: Ex. (BARBOSA, C., 1956) e (BARBOSA, O., 1956).
Se ainda assim persistir coincidência, colocam-se os prenomes por extenso.
Documentos de um mesmo autor, publicados em um mesmo ano,
são distinguidos pelo acréscimo de letras minúsculas após a data e sem
espacejamento, seqüenciadas de acordo com a ordem de aparecimento no
texto. Ex. (REESIDE, 1927a) e (REESIDE, 1927b)
Na citação de citação, identifica-se a obra diretamente consultada; o autor
e a obra citada é indicada por: (SILVA, 1986, p. 12 apud PESSOA, 1982, p. 222).
e) Tabelas, Quadros e Gráficos e Figuras. As tabelas, quadros e gráficos
e figuras, em preto e branco, devem ser inseridos no texto, numerados
seqüencialmente, contendo a devida explicação na parte inferior dos mesmos.
9.3. Elementos pós-textuais
a) Título e subtítulo em língua estrangeira (inglês ou francês, desde que
não seja a língua do corpo do texto).
b) Resumo em língua estrangeira (inglês ou francês, desde que não seja a
língua do corpo do texto).
O Abstract ou Résumé deverá ser apresentado logo após o resumo,
obedecendo a mesma norma da versão na língua original.
c) Palavras-chave em língua estrangeira (inglês ou francês, desde que não
seja a língua do corpo do texto).
d) Referências (NBR 6023) - Exemplos:
Artigo em periódico: HANSEN, J. A. Apresentação dos Epitáfios Joco-
Sérios Portugueses e Castelhanos. Revista da ABEM, São Paulo, v. 3, p. 75-99, 2001.
Livros e folhetos: HOLANDA, S. B. Livros dos Prefácios. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
254 Normas para apresentação de trabalhos

Capítulos de livros: COSTA LIMA, Luiz. Acerca do Discurso sobre


lírica e sociedade. In: Francisco Venceslau dos Santos; Carlinda F. Pate Nuñez.
(Org.). Encontro com Adorno. Rio de Janeiro 2005, v. 1. p. 69-81.
Monografias, dissertações e teses: KOSSOVITCH, Leon. Condillac
Lúcido e Translúcido. 1982. n. f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
1982.
Congresso, Conferências, Encontros e outros eventos: CONGRESSO
BRASILEIRO DE FLORESTAS TROPICAIS, 1., 1985, Belém. Anais...
Belém: Livros Técnicos, 1985. 320p.
Documentos eletrônicos: ROCHA, Marília Librandi. João Guimarães Rosa.
Disponível em: <http://www.vidaslusofonas.pt/joao_guimaraes_rosa.htm>
Acesso em: 14 abr. 2005.
CD-ROM. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio
eletrônico século XXI versão 3.0. São Paulo: Nova Fronteira, 1999. 1CD ROM.
Produzido por Lxikon Informática.
Filme. POETA de sete faces. Direção: Paulo Thiago. Produção: Gláucia
Camargos. Roteiro: Paulo Thiago. Interpretes: Carlos Gregório, Paulo José,
Paulo Autran e outros. [S.L]: CaradeCão; Estúdio Line; Vitória Produções
Cinematográficas, 2001. 1 filme, son., color., 35 mm.

10. Condições Contratuais


Os autores dos trabalhos publicados no Caderno deverão abdicar
dos direitos autorais sobre o artigo em favor da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia e receberão doação de 2 (dois) exemplares do número do
Caderno em que ele estiver incluído.

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