Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
Comitê editorial
Profª Drª Almiralva Ferraz Gomes (DCSA/VC), Prof. Ms. Cândido Requião Ferreira
(DQE/Jequié), Prof. Dr. Cézar Augusto Casotti (DS/Jequié), Prof. Dr. Cláudio Lúcio
Fernandes Amaral (DCB/Jequié), Adm. Jacinto Braz David Filho (Editor - Edições
UESB/VC), Prof. Dr. Joaquim Perfeito da Silva (DFCH/VC), Prof. Ms. Jorge Luiz
Santos Fernandes (DCSA/VC), Profª Ms. Lídia Nunes Cunha (DH/VC), Profª Maria
Dalva Rosa Silva (Diretora - Edições UESB/VC), Profª Ms. Maria Madalena Souza dos
Anjos Neta (proex/VC), Profª Drª Patrícia Anjos Bittencourt Barreto (DEAS/VC).
805 FLOEMA - Caderno de Teoria e História Literária. Ano IX, n. 11, jul./dez. 2015.
809.005 Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2015. Dossiê: Graciliano Ramos.
ISSN 1807-541X (versão impressa)
ISSN 2177-3629 (versão eletrônica)
Início: janeiro de 2005 (semestral). Interrompeu em 2012, 2013 e 2014.
Site da revista: http://periodicos.uesb.br/index.php/floema
1. Letras - Periódicos 2. História e Crítica Literária. I. Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia. II. Título.
Entrevista
Silviano Santiago por Ângela Maria Dias, Daniela Birman e
Wander Melo Miranda...................................................................................11
Artigos
Depoimento de Leitura
Resenha
Ficções
EDITORIAL
Daniela Birman
Lúcia Ricotta
Floema - Ano IX, n. 11, p. 11-21, jul./dez. 2015.
Entrevista
Entrevistadores:
Daniela Birman (Unicamp)
Ângela Maria Dias (UFF)
Wander Melo Miranda (UFMG)
margem do rio”. Quando o marido está para tomar a canoa, sua mulher
lhe diz: “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!”.
No caso do testimonio hispano-americano, o problema da riqueza
vocabular e sintática foi resolvido pela adoção de um segundo autor, o
entrevistador e copista. É o caso da vida de Rigoberta Menchú, escrita
por Elisabeth Burgos (então, esposa de Régis Debray), a partir de
entrevistas com a “personagem”.
Não estou querendo dizer que Graciliano fosse alheio ao potencial
de riqueza semântica, proporcionado pela fala oral brasileira. A citação
é longa, mas se impõe a fim de evitar simplificações. Em carta à esposa
Heloísa, de 1932, escreve “O [romance] S. Bernardo está pronto, mas
foi escrito quase todo em português, como você viu. Agora está sendo
traduzido para o brasileiro, um brasileiro encrencado, muito diferente
desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto,
com uma quantidade enorme de expressões inéditas, belezas que eu
mesmo nem suspeitava que existissem. [...] O velho Sebastião, Otávio,
Chico e José Leite [amigos do romancista] me servem de dicionário”.
A sintaxe não é passível de aperfeiçoamento, só o vocabulário,
ou o dicionário, como diria também Carlos Drummond.
Nesse sentido, o grande diálogo com a estética do testimonio teria de
ser feito a partir de Guimarães Rosa. Mas isso já são outros quinhentos.
DIAS. Na minha tese de doutorado, em 1989, defendi que, à
diferença dos padrões dominantes no romance de 1930 ― ora fixados
no passado rural, ora atraídos pela perspectiva de um futuro radiante
de mudanças, no espectro entre a melancolia de Zé Lins e a utopia
de Jorge Amado ― a obra de Graciliano Ramos busca promover a
desformalização do romance, entendido convencionalmente como
“forma de desenraizamento transcendental”, numa direção em que o
impulso de introspecção narrativa passa a plasmar a exterioridade do
contexto, cada vez mais confundindo ficção com confissão. O que você
pensa sobre isso?
SANTIAGO. A formulação está correta. Para discuti-la, basta
começar pela análise do uso original e notável do futuro do pretérito (na
Entrevista 17
Artigos
A Vida, Um Fiapo
Luiz Costa Lima1
Abstract: This article points out the inadequacy of the categories of realism and
document to evaluate the Graciliano Ramos’s dilemmas related to writing. And
suggest that there are in critical fortune of the author instead of a solid block
conventional undermining the undisputed presence of realism contrary ways
that defies generic definitions of Ramos’s realism, pointing to the undeniable
fictional maneuver on the meaning of jealousy from Paul Honorius and the
silence that follows the life and death of whale. These are the poles within which
the supposed uniqueness of Graciliano’s realism is rotten, which lets us point to
his particular place within the Brazilian literary tradition linked to regionalism.
1
Professor emérito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), é autor
de mais de vinte livros. Entre estes, História. Ficção. Literatura (2006) e Trilogia do Controle (2007).
24 Luiz Costa Lima
Referências
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 92. ed. Rio de Janeiro: Editora Record,
2012. Edição original: 1934.
Luís Bueno 1
Abstract: This article aims at presenting as from the critical texts by Graciliano
Ramos the specific position of the author in the literary and political debate
of his time. It can be considered as a “disagreement in accordance” with the
well-known intellectuals partisans of the left of whom he had at the same time
approached ideologically and differed.
É certo que as criaturas que nos rodeiam são ordinárias, mas também
pode ser que o Raskolnikoff e a Sônia de Dostoiévski fossem na
realidade um assassino comum e uma prostituta vagabunda, sem
nenhuma espécie de grandeza. Vendo-se impressos, talvez não se
reconhecessem.
(Graciliano Ramos, “Um romancista do nordeste”).
1962, p. 274), o que ele faz é repelir o que lhe parece ser o puro jogo
formal – “enfeites”, para usar palavra que usa recorrentemente – sejam
eles de que tipo forem. Mas como com Graciliano Ramos nada é simples,
mesmo a noção de “correção” precisa ser vista com calma. A correção
de sua própria língua de romancista não afasta o uso de termos extraídos
da oralidade e mesmo dos palavrões. Ao justificar o voto dado ao conto
“Coração de D. Iaiá”, de José Carlos Borges, em um outro concurso de
contos, este promovido pelo jornal Dom Casmurro, o escritor irá tratar
do problema da ligação da literatura com o real por meio da noção de
verossimilhança. O conto é composto por uma sequência de cartas de
uma senhora que vive no interior, D. Iaiá, dirigidas ao filho, que estuda
no Recife e estaria namorando uma moça “mal falada”. Essas cartas são
escritas com o que poderíamos classificar como“correção”, mas também
com as “incorreções” da oralidade, tais como o uso do pronome reto no
lugar “inconveniente” de objeto – “Seu pai proibiu ele de ir tão cedo”
– ou a regência estropiada do pronome relativo – “Por que não estuda
muito aquela matéria que está com nota baixa?” (BORGES, 1939, p. 3).
Se Graciliano indica o conto como o primeiro colocado no
concurso é porque o considerou bom, e eis o que nos diz sobre sua
linguagem:
bom romance. A existência desse desacordo fica clara nos dois primeiros
artigos críticos que publica sobre seus companheiros de geração. Em
1934, ao tratar de Doidinho, ele deixará claro que a objetividade não é
sinônimo de qualidade:
Referências
Elizabeth Ramos1
1
Professora da Universidade Federal da Bahia. Organizou, ao lado de Erwin Torralbo, a edição
comemorativa dos 80 anos de Caetés (2013). Pesquisa atualmente as diferentes traduções do romance
São Bernardo, de Graciliano Ramos.
50 Elizabeth Ramos
1 Memórias de angústia
possam ser guardados tesouros de dias antigos, pelo simples fato de não
haver tesouros. Do passado, a lembrança acumula apenas monturo. O
espaço que o protagonista adulto habita reflete o abandono dos tempos
idos. Inexiste o conforto das lembranças de proteção. Confirmam-se as
mesmas tonalidades do espaço da infância e da juventude que, quando
evocado, acrescenta valor de pesadelo à existência de Luís da Silva. Não
há poesia perdida. Os primeiros espaços do narrador não se perdem,
vivem e insistem em reviver em sua imaginação e na sua visão de mundo,
com o poder de desencadear a desintegração.
Aos trinta e cinco anos de idade, apesar de admitir que os lugares
onde vivera tinham influenciado o seu caráter, Luís da Silva afirma que a
casa onde moramos não tem importância grande demais. Seu horizonte
é o quintal da casa à direita, com roseiras acanhadas e rosas miúdas,
monturo, água parada e fétida. Tudo feio, pobre, sujo.
Referências
Jobst Welge 1
narrative, and thematic aspects, such as the confessional mode, the self-
representation of a solipsistic subjectivity bordering on madness, a homicidal
crime as the manifestation of dark and ethically problematic impulses, as well
as a characteristic meta-narrative involution. More specifically, in drawing on
discussions of novelistic representations of introspection, the article explores
the link between pathological interiority and a specific experience of modernity.
Introspecção e Incoerência
Deslocamento, Modernidade
que morou por gerações no sertão. Aos vinte anos ele chega à cidade
de Maceió, a capital provincial do estado de Alagoas, no nordeste do
Brasil, onde encontra, finalmente, uma posição modesta na burocracia.
Em Angústia, o sentido de desenraizamento traduz-se em estratos
temporais e na fragmentação formal do romance. Como na segunda
parte de Notas do Subsolo, a narrativa move-se continuamente em direção
ao passado em “monólogos autobiográficos,” como assinala Dorrit Cohn
(1978). Essas formas de discurso “criam um efeito retórico altamente
estilizado, porque a narrativa de sua própria biografia para si mesmo
não aparece razoável psicologicamente. Ou antes, aparece razoável
apenas se o falante segue uma intenção específica com esta narrativa, a
de uma confissão pública, de autojustificação” (COHN, 1978, p. 181).
Tipicamente situada em um presente eterno, a consideração retrospectiva
do passado é marcada pela intersecção do presente do indicativo e do
presente imperfeito – o que Cohn chama de “um presente iterativo-
durativo” (COHN, 1978, p. 193): “Ponho-me a vagabundear em
pensamento pela vila distante, entro na igreja, escuto os sermões e os
desaforos que padre Inácio pregava aos matutos” (RAMOS, 2008, p. 18).
Ao mesmo tempo, o narrador, mesmo que os seus pensamentos
regridam ao passado, é ele mesmo inteiramente consciente de que existe
uma brecha entre o mundo velho e aquele novo, e de que também ele
não pode simplesmente voltar ao lugar de sua infância: “Entro no quarto,
procuro um refúgio no passado. Mas não me posso esconder inteiramente
nele. Não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranquilidade, falta-me
inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou”
(RAMOS, 2008, p. 24). Mais uma vez, se o narrador nos confronta
com pensamentos de isolamento e regressão no presente, ele também
oferece um discernimento analítico sobre sua própria situação. Além
disso, é significativo que o mundo do passado não corresponda apenas
a um fundamento perdido, mas já esteja marcado por signos de declínio.
Enquanto o avô do protagonista, Trajano, simboliza o apogeu do poder
patriarcal, o pai de Luís também já se encontra marcado pela decadência,
como se pode ver na sua própria evasão para mundos irreais e literários:
74 Jobst Welge
A literatura nos afastou: o que sei deles foi visto nos livros.
Comovo-me lendo os sofrimentos alheios, [...]. Eu é que não
podia entendê-las. — “Sim senhor. Não senhor.” Entre elas
não havia esse señor que nos separava. Eu era um sujeito de fala
arrevesada e modos de parafuso (RAMOS, 2008, p. 142-143).
Escritura, Repetição
Referências
BUENO, Luís. Uma História do Romance de 30. São Paulo: EDUSP, 2006.
Desejo
Fillers
Retórica
Referências
MORETTI, Franco. The serious century. In: ______. (Org.). The Novel.
Princeton: Princeton University Press, 2006. p. 364-400. Volume 1:
History, Geography, and Culture.
Honório deve reivindicar para si. Não é à toa que o personagem procura
subestimar a inexatidão de sua data de nascimento, a qual pode haver
sido alguns meses antes ou depois da data registrada, não configurando
realmente grande diferença. “Isto vale nada,” Paulo Honório conclui,
uma vez que “acontecimentos importantes estão nas mesmas condições”
(RAMOS, 1997b, p. 11). Sem demonstrar preocupação com o que diz o
documento, Paulo Honório tem aparentemente a mesma atitude frente
aos nomes de seus pais. Que diferença eles podem fazer? Não seriam
eles também, como no caso de sua data de nascimento, apenas um
pouco mais ou menos do que os nomes reais? Não quereria isto dizer
que qualquer nome serviria e que, no fim das contas, pouco valeriam?
Coisas importantes – as que realmente definem uma pessoa – não
acontecem a despeito das incertezas que poderiam marcar até certos
índices fundamentais da identidade, tais como o nome ou a data de
nascimento? Ainda assim, Paulo Honório tem de admitir que sente
“alguma decepção” por não saber ao certo (RAMOS, 1997b, p. 11),
o que ressalta o fato de que a incerteza gera sentimentos e modos de
percepção ambíguos. A narrativa de Paulo Honório evidencia enfim que
não há nada mais certo que a incerta transferência de um nome e que os
legados que nomeiam frequentemente se perdem de uma geração a outra.
É isto, em certo sentido, o que Paulo Honório diz a Luís Padilha,
cuja fazenda Honório adquire ao emprestar um dinheiro que, ele bem
sabe, Padilha jamais será capaz de pagar de volta. “Seu pai esbagaçou a
propriedade” (RAMOS, 1997b, p. 18), afirma Honório quando Padilha
lhe pede um empréstimo para plantar mandioca. Seu comentário
certamente faz parte de um jogo para tomar posse da fazenda, a parca
herança que cabia a Padilha. Na verdade, Honório está ganhando tempo
para que possa avaliar a situação da fazenda, especialmente em relação às
disputas de terras com um fazendeiro vizinho. No entanto, o comentário
também aponta para a incerteza inerente à passagem de um bem de um
proprietário aos seus descendentes. Embora Salustiano, pai de Padilha,
tenha realmente arruinado a sua propriedade, não se pode dizer que
não tivera visão, ambição, ou mesmo entendimento dos processos
114 Fernando de Sousa Rocha
de que tanto Henry Ford como Delmiro Gouveia viveram antes de Paulo
Honório e que, por conseguinte, poderiam ser tomados como modelos.
Pelo contrário, é na própria prática de citação, potencialmente infinita
em suas regressões, que o embasamento de toda autoridade constitui-se
como um diferimento sem fim (BUTLER, 1993, p. 107-108). Não é de
se admirar que o que permanece implícito na narrativa de Paulo Honório
sejam analogias não mencionadas, já que ele não revela que aspectos
de seu empreendedorismo Gondim compara aos de Ford e Gouveia.
É como se tudo fosse escusado dizer e, se assim for, fica substanciado
não só o caráter de transmutabilidade das citações, mas também a
possibilidade de se garantir um futuro de reiterabilidade para as mesmas.
Um olhar atento para as narrativas (autobiográficas ou não) tanto sobre
Ford como sobre Gouveia sugere justamente esta transmutabilidade e
reiterabilidade da citação dos nomes de ambos os industrialistas para a
narrativa pessoal de Paulo Honório.6
Antes de mais nada, há o poder generativo do nome. Em Today
and tomorrow, publicado em 1926, Forde Crowther apontam para o fato
de que, em menos de duas décadas, sua companhia já havia produzido
dez milhões de automóveis, mas que estes números, por si sós, eram
pouco interessantes. O que realmente importava era que, ao aumentar
a produção, aumentava também o número de homens, mulheres e
crianças que viviam de uma mesma ideia, ou seja, o carro Ford (FORD;
CROWTHER, 1988, p. 2-3). O mesmo também pode ser dito em
relação a Delmiro Gouveia, que se autodefinia como “a salvação das
populações pobres do interior e recurso profícuo [...] durante as secas
flageladoras” (GOUVEIA, 1899, p. 5), e com relação a Paulo Honório
em São Bernardo, já que sua riqueza começa com um empréstimo de
cem mil-réis que eventualmente “estiraram como borracha” (RAMOS,
1997b, p. 105), vindo a trazer conforto material a todos os que viviam
em sua fazenda. O que cada um destes nomes identifica, portanto, é uma
6
O próprio texto de Graciliano Ramos (1984, p. 119) sobre Delmiro Gouveia, intitulado
“Recordações de uma indústria morta”, serviria aqui de exemplo destas características da citação.
Poderíamos mencionar, entre outros trechos: Gouveia “passou a infligir a criadores e intermediários
as regras a que se havia sujeitado em tempos duros” (p. 118); Gouveia exercia um “domínio [...]
sobre as vontades alheias”; ele “torturava, [...] manejava despoticamente e [...] estirava pelos arredores
uma autoridade sem limites” (p. 120); em sua organização funcional do trabalho, “instrumentos e
pessoas” viviam “em roda viva” (p. 120), etc.
120 Fernando de Sousa Rocha
Referências
ALTHUSSER, Louis. Lenin and philosophy and other essays. New York:
Monthly Review Press, 1971.
BORDIEU, Pierre. The rules of art: genesis and structure of the literary
field. Stanford: Stanford University Press, 1995.
Abstract: Writing a “rural” novel or writing a rural “novel”? The aim of this
paper is the investigation of the different relations established between the
‘book’ and rural realism in the novel S. Bernardo (by Graciliano Ramos). In the
book, narrated in first person, the discussion and figuration of the book and
the enunciation leap to the eye, forming a strong contrast between - in terms
1
Doutorando pela Universidade Federal do Paraná, onde desenvolve pesquisa sobre “A escrita em
São Bernardo”. Publicou ensaios literários na imprensa do Paraná, de Santa Catarina e do Distrito
Federal. E atualmente integra o corpo docente da Faculdade Guarapuava.
128 Ricardo Luiz Pedrosa Alves
of Angel Rama - the ‘literate city’ (the novel) and ‘real city’ (rural matter under
capitalist impact). In the book, discussing method and function of the book
and of the writer it is an inseparable problem from the proper fictional work of
recreating the reality (or reconstitution, for the purposes of most authors of the
1930’s). In this sense, Graciliano Ramos’ novel presents as a limiting case, to the
extent that the ‘writing’ goes beyond mere thematic approach, and structuring
itself, with better results, as form. The angle chosen for interpretation is the
‘poetics’ of the novel in relation to rural fiction itself as symbolic construction
of the socio historical, dealing with the demands of denying the ‘literary’, typical
of the 1930s. Such denial of the ‘literary’, in addition to its alleged ‘ethical’
constituents (intellectual’s mission, the emphasis on the ideological project), it
is ‘literary’ itself, a ‘school’. Thus, the aimed result is the discussion of some
specific strains of literary and intellectual self-legitimation in operation in S.
Bernardo.
ser feita hoje, mas com certeza não o foi à época dos romances, tanto
assim que os romancistas de 30 (e a exceção é, de novo, Graciliano
Ramos) não tiveram real consciência do procedimento, pois tentaram
orientar a leitura no sentido exclusivo da representação ‘sem literatura’. A
discussão aqui, portanto, deve ser a do significado da discussão literária
através de um narrador supostamente confessional (e aí a relação entre
forma literária e ‘deformação’ subjetiva é importante).
Com relação ao romance rural, a investigação aqui se concentra
nas relações entre a força da ‘letra’ e a rusticidade da matéria. Trata-se
de uma operação de signos, e as considerações de Angel Rama em A
cidade das letras (1985) podem servir como baliza, verificando-se até
que ponto a construção simbólica do rural serve aos propósitos da
ordem social, mas também, e principalmente, aos da própria casta de
produção literária. Há importantes questões teóricas no gênero, sendo
a principal a discussão da matéria rural como forma ficcional. Quem
narra o rural? Qual o significado de narrar o rural a partir da primeira
pessoa e da estratégia discursiva confessional? O que isso nos diz
sobre o significado do romance e do papel do escritor para Graciliano
Ramos? A resposta a tais questões é importante, na medida em que o
rural é uma matéria que, paradoxalmente, opera por atração e repulsão
nos termos de sua formalização nos romances. Se o mais ‘verdadeiro’ e
o mais ‘brasileiro’ foram associados ideologicamente ao rural, sempre
houve também o reverso dessa operação centrípeta, uma vez que o rural
representa também o passado a ser abandonado com a modernidade.
Desse modo, justifica-se a afirmação de Rama, propondo que a ‘cidade
letrada’, sob a égide positivista, quis matar o rural e o oral. Na literatura
anterior à de Graciliano Ramos, contistas como Afonso Arinos, Hugo
Carvalho Ramos e Valdomiro Silveira trabalharam com a ideia da
inexorabilidade do apagamento regional em nome da modernidade. A
formulação da função intelectual no pensamento de Gramsci, enquanto
pedagogia recíproca (o intelectual organizaria, sistematizaria, depuraria as
fragmentadas – pois sem noção de totalidade – concepções simbólicas
populares), parece mesmo descrever um movimento da ficção rural
Escrevero Romance Rural 135
modo pelo qual o escritor fez tal testemunho foi também objeto de
sua intensa reflexão. Assim, há testemunho, mas há também reflexão
sobre o testemunho. Romances dentro de romances, romances sobre
romances. O que dá um caráter cosmopolita ao texto de proposta
regionalista, inserindo-o no debate culto e urbano. A metalinguagem seria
o instrumento de que se serviu Graciliano para o combate às formas
estereotipadas do discurso literário, seja a transparência pretendida
pelos romancistas de trinta, seja o formalismo modernista da década de
1920, o que, no limite, seria um combate também ideológico contra as
formas de discursos de reprodução social. Ora, temos aqui a primeira
etapa da análise da metalinguagem, pois, na mesma medida em que é
posicionamento literário, é também um recurso que situa Graciliano
Ramos como realista que não aceita bem o texto, isto é, que pensa
ser frustrada de antemão a possibilidade de redenção pelo literário
‘tradicional’. A metalinguagem dá conta justamente da frustração diante
da falta de lugar no mundo social para a sensibilização. Exige-se do
escritor, portanto, a postura de fazer a literatura agir como negatividade
diante do mundo administrado, pois a escrita condicionada seria
cumplicidade com a barbárie.
S. Bernardo parece articular,em um todo complexo, a discussão
sobre o fazer literário e a investigação sobre as relações entre desejo e
reificação. Essa discussão ocorre no livro basicamente pelo contraponto
insistente e tenso entre procedimentos da forma e figurações específicas
da formação social. Parece haver no romance, a partir de procedimentos
formais modernistas (para além de outras influências), como a simulação
irônica (o livro dentro do livro e a escrita como matéria ficcional) e como
o procedimento do corte, (a depuração, algo fragmentário da sintaxe
encaminhando o discurso à síntese), um travamento social específico que
a eles se contrapõe. A marcação histórica, que vai da crônica do interior
rural aos dilemas revolucionários do Brasil e do mundo naquele período,
aliada à justificativa social da existência (a tirada ideológica do homem
feito pela ‘profissão’) e à onipotência – caracterizando-se pelo discurso
vingativo do enjeitado em um mundo condicionado – parecem constituir
Escrevero Romance Rural 137
Referências
RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
A Língua de Fabiano
Abstract: The article intents to read the novel Vidas secas, by Graciliano Ramos, as
approaching the concept of hospitality developed from certain presuppositions
by the french thinkers Jacques Derrida and Emmanuel Lévinas’s philosophy.
The central concept important here is the accomodation, in the work of the
Brazilian writer, to the matter of the language – its possession, use, limitations
and significance less evident.
Tal ruptura, tão decisiva para a obra do próprio Derrida como para
a de muitos de seus contemporâneos, deve-se, entre outras coisas, ao fato
de que Lévinas subverteu a hierarquia tradicional do pensamento sobre
a alteridade3 e os saberes a ela correlatos, como a ética e a ontologia, por
exemplo4, ao invés de considerar que o sujeito e o logos são anteriores
2
Inspiramo-nos também, é preciso reconhecer, na obra crítica e nas considerações metodológicas
feitas pelo português Abel Barros Baptista, renomado interlocutor contemporâneo da literatura
brasileira, que tem, em diversos artigos e conferências, tomado a questão da hospitalidade como
ponto de diálogo privilegiado para a leitura de autores e obras-chave da cultura literária do Brasil.
3
A tradição filosófica do Ocidente tendeu a tratar a diferença, o outro, como aquilo que é excessivo,
que não pode ser controlado e que, por isso, deve permanecer silenciado. Por esse motivo a mulher, a
criança, o louco, o gozo, o êxtase (mesmo o religioso) sempre ocuparam as margens do tecido social,
permanecendo também ao largo dos problemas filosóficos que mobilizavam os debates intelectuais.
4
Lévinas (2000, p. 18) propõe que a ética, e não mais a ontologia, seja considerada a peça chave
do trabalho filosófico, ou o que ele vai chamar de “filosofia primeira”. Segundo argumenta, a
filosofia concentrou-se no mesmo, no ipse, por estar fundada na procura (metafísica) da verdade
A Língua de Fabiano 149
Referências
Abstract: The present work aims to analyze the murder narrated in Angústia,
by Graciliano Ramos. The proximity between the sphere of narrative and the
sphere of action and dream and invention, place this scene within the unstable
frontiers between dream and reality. Those elements create ambiguities, which
make impossible to know if the protagonist in fact committed the crime or
if he has just imagined it. Although a definitive answer to this question does
not exist, because Angústia is a “vanguardist autobiography” (FEDERMAN,
1993) in which memory and imagination are equally important, that imprecision
points to an interesting relationship between writing and action, that reflects
the modernity of this novel.
1
Professora de Literatura da Universidade Federal de Uberlândia. Suas pesquisas de mestrado e
de doutorado, realizadas na UNICAMP, debruçaram-se sobre alguns alcances da metalinguagem
na obra de Graciliano Ramos e de Osman Lins. O artigo publicado faz parte de sua dissertação
de mestrado, “A função da escrita em Angústia, de Graciliano Ramos” (financiada pela FAPESP),
que deu origem a outras publicações: “Ficção e experiência: o papel da escrita em Angústia, de
Graciliano Ramos”. Revista Letras (2011); "Apontamentos sobre o lugar da ficção em Angústia,
de Graciliano Ramos". Sínteses (2006); e “Linguagem e deslocamento em Angústia, de Graciliano
Ramos”. Intersecções (2011).
164 Carolina Duarte Damasceno Ferreira
8
A esse respeito, Antonio Candido (1992, p. 34) defende que, em Angústia, a vida é vista como um
pesadelo, “onde as visões desnorteiam e suprimem a distinção do real e do fantástico”.
172 Carolina Duarte Damasceno Ferreira
depois, sem hesitar, afirma que era seguido por pessoas que queriam
denunciá-lo 9. Depois, encontra um vagabundo e faz a seguinte
ponderação: “Eu ia perseguido por criaturas inexistentes, mas a
presença daquele vagabundo não me produziu medo” (RAMOS, 1953,
p. 220). Ele conclui que as pessoas que supostamente o espionavam
não o seguiam de fato? Ou elas sequer existiam, sendo mero fruto de
sua imaginação? Não cabe aqui optar pela interpretação mais cabível,
mas sim ressaltar o jogo entre suposição e certeza presente no discurso
do narrador. Essas contradições aumentam quando volta a sua casa,
em estado febril:
10
Antonio Candido (1992, p. 40), por exemplo, entende o assassinato como uma frágil tentativa
de equilíbrio: “Luís da Silva se anula pela auto-punição e só consegue equilibrar-se assassinando
seu rival, equilíbrio precário que o deixa arrasado, mas de qualquer modo é a única maneira de
afirmar-se”.
11
Ivan Teixeira (2000, página?) questiona a importância dada à leitura política: “Embora engenhosa,
essa interpretação força alguns elementos indiscutíveis da estrutura do romance, valendo-se
principalmente de circunstâncias culturais e biográficas em que foi escrito. A se acreditar nessa
hipótese, o romance deveria ser interpretado como espécie de propaganda literária do comunismo,
o que contraria as convicções do próprio narrador, que não partilhava das idéias de seu amigo
Moisés, este sim partidário da revolução armada”.
O Assassinato de Julião Tavares em Angústia, de Graciliano Ramos 175
Referências
Daniela Birman 1
1
Professora de Literatura Brasileira da Unicamp. Desenvolveu nesta mesma instituição o estudo
de pós-doutorado intitulado “Confinados: escrita e experiência do cárcere em Lima Barreto e
Graciliano Ramos”, com apoio da FAPESP.
180 Daniela Birman
Introdução
2
Este manuscrito não é, evidentemente, aquele no qual se apoiou a publicação das Memórias do
cárcere. Este livro se baseia na cópia datilografada que se encontra hoje guardada na Fundação Casa
de Rui Barbosa (ver MIRANDA, 2008). Já o documento faz parte do Arquivo Graciliano Ramos
do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). Ele possui 11 folhas,
utilizadas nos dois lados, e divide-se em três capítulos, numerados em romano. O documento
integra, neste arquivo, o conjunto de manuscritos referentes às Memórias do cárcere, no qual ele é
indicado como uma “versão não publicada”. Abrangendo o período de 1937 a 1951, o conjunto é
composto por cerca de 450 folhas que incluem registros distintos, apontados como versões-base
para publicação, fragmento da versão publicada, entre outras descrições. Ao mencionarmos uma
data para o documento aqui examinado, baseamo-nos no Catálogo de Manuscritos do Arquivo Graciliano
Ramos (LIMA; REIS, 1992). Com efeito, este indica, por meio de nota de seus pesquisadores, o ano
de 1937 para o documento, suposto por referências no texto. Deste modo, ainda que o manuscrito
não esteja datado, assinalamos o ano de 1937 em todas as citações que fazemos a ele no corpo de
nosso artigo. Lembramos ainda que, em sua biografia do escritor, Dênis de Moraes, ao se referir
ao ensaio de redação das memórias da cadeia, em 1937, menciona, entre outros documentos, este
esboço da “versão inicial dos três primeiros capítulos do volume I” (MORAES, 2012, p. 216).
Ressaltamos, por fim, que ao reproduzirmos ao longo do texto trechos do manuscrito de Graciliano
Ramos enfocado neste trabalho, atualizamos, sempre que necessário, sua ortografia. Eventuais
correções também foram realizadas.
Memória, Ficção e Imaginação na Escrita da Cadeia: Apontamentos sobre um Manuscrito... 181
O documento
aqui, que Graciliano não redigiu o final das Memórias do cárcere, optando
por não narrar sua saída da cadeia e seus primeiros dias de liberdade.4
E é justamente este momento aquele vivido pelo autor ao escrever o
manuscrito. Ele reaprendia, pois, a ser livre, ainda que, evidentemente,
não integralmente. A ditadura estava só no seu início e o escritor sabia
bem, como nos recordará mais tarde em frase célebre, que “liberdade
completa ninguém desfruta” (RAMOS, 2008, p. 12).
Movimentando-se de novo pela cidade, Graciliano dificilmente
conseguiria romper com o impacto do recente aprisionamento, chegando
a estremecer ao ver certas pessoas na rua, imaginando já ter estado em
“contato com elas, que vão falar-me, restringir-me os movimentos,
obrigar-me a viagens e a mudanças” (RAMOS, 1937). Um simples ato de
determinação, como, por exemplo, o de ser atendido pelo motorista de
táxi ao lhe passar o endereço de seu destino, causa-lhe surpresa.
Escrito sob o calor dos fatos, o texto é bastante diferente, nesse
sentido, do depoimento consolidado nas Memórias do cárcere, redigido com
um distanciamento temporal de cerca de dez anos. E esta característica
pode ser tomada como um dos motivos de o autor tê-lo abandonado
- ao lado de outros, claro, como as exigências financeiras, que lhe
obrigavam a se ocupar com trabalhos diversos, e a ditadura vigente. De
qualquer modo, a escrita sob a pressão do momento destoa da obra
memorialística do escritor, realizada com grande afastamento temporal
dos acontecimentos; de sua conhecida lentidão no ato de escrever; da
objeção em fazer algo com “ares de reportagem” (RAMOS, 1937); da
busca pela sedimentação da experiência na sua literatura.5
Articulando questões duradouras e efetuando um trabalho de
memória distinto daquele que seria realizado na obra publicada, o
4
Embora não possamos assegurar que Graciliano Ramos tenha se decidido por deixar suas memórias
incompletas, tendemos a acreditar nesta hipótese por motivos vários. Entre estes, estão o extenso
adiamento do seu capítulo final – lembramos que o autor parou a escrita do livro em setembro
de 1951, mais de um ano antes, portanto, de sua morte (cf. MORAES, 2012); os conflitos entre
o escritor e o PCB a respeito das Memórias do cárcere, levando Graciliano a interromper, diante das
censuras (veladas ou não) ao texto, mais de uma vez o trabalho de escrita (ver MORAES, 2012);
a possível escolha por uma obra explicitamente aberta, perfurada em seu final. Sobre as sugestões
da não conclusão desta narrativa e a ausência de uma palavra final, ver ainda Miranda (2009).
5
Cf., por exemplo, a aproximação estabelecida por Miranda (2009) entre o narrador das Memórias
do cárcere e aquele de Walter Benjamin, entendido como capaz de partilhar experiências.
184 Daniela Birman
7
As memórias da cadeia de Graciliano Ramos trazem, ao todo, 237 personagens, segundo
levantamento realizado por Nelson Pereira dos Santos e citado por Dênis de Moraes (2012,
p. 218). As cinco relações de nomes aqui citadas estão disponíveis para consulta no Arquivo
Graciliano Ramos do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).
Os documentos têm, ao todo, seis folhas. Há neles nomes que se repetem, aparecendo em mais
de uma lista. Nenhum dos registros está datado ou traz indicação de localidade.
186 Daniela Birman
8
A problemática das gírias da cadeia, vale lembrar, já tem percurso na nossa literatura carcerária.
Esta se faz presente tanto na escrita de “presos políticos” que dividem o espaço prisional com
os chamados “presos comuns”, convivendo com o jargão próprio destes e da polícia, quanto
naquela destes últimos. Em obra que denuncia as condições carcerárias dos últimos dois anos do
governo Artur Bernardes (1924-1926), por exemplo, o jornalista e militante pioneiro do movimento
operário Everardo Dias dedica um pequeno capítulo, de três páginas, às gírias das prisões. Neste, ele
expõe o significado de uma série de termos originado do “vocabulário completamente ignorado e
desconhecido no meio em que vivemos” (DIAS, 1927, p. 119). As formas e os sentidos do emprego
da “linguagem da cadeia” também constitui elemento indispensável à análise de obras da chamada
literatura carcerária contemporânea, de autoria dos “presos comuns”. Para uma análise de quatro
títulos desta literatura carcerária contemporânea, publicados entre 2000 e 2001, ver Palmeira (2009).
Memória, Ficção e Imaginação na Escrita da Cadeia: Apontamentos sobre um Manuscrito... 187
ficção de Luís da Silva. A memória, neste caso, será atravessada por esta
imaginação que “funcionava à toa”.
Considerações finais
Referências
Fontes de Arquivo
Daniela Birman
Fonte: Prontuário de Graciliano Ramos. Dops/GB 11.473. Fundo Polícias Políticas, Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ)
Documentos da Cadeia e da Repressão 199
Fonte: Prontuário de Graciliano Ramos. Dops/GB 11.473. Fundo Polícias Políticas, APERJ.
200 Daniela Birman
Fonte: Prontuário de Graciliano Ramos. Dops/GB 11.473. Fundo Polícias Políticas, APERJ.
Documentos da Cadeia e da Repressão 201
Fonte: Prontuário de Graciliano Ramos. Dops/GB 11.473. Fundo Polícias Políticas, APERJ.
202 Daniela Birman
Fonte: Prontuário de Graciliano Ramos. Dops/GB 11.473. Fundo Polícias Políticas, APERJ.
Documentos da Cadeia e da Repressão 203
Fonte: Prontuário de Graciliano Ramos. Dops/GB 11.473. Fundo Polícias Políticas, APERJ.
Floema - Ano IX, n. 11, p. 205-212, jul./dez. 2015.
Depoimentos
Referências
Resenha
pois falar num discurso como falo nos livros” (RAMOS, 2013, p. 239).
A fala de seu discurso político, semelhante aos seus livros de prosa,
reage aos ditos ofensivos atualizados por “forças reacionárias ocultas
ou ostensivas” dos “jornais brancos”.
Com esse tom aplicado, Graciliano inclui o lavor literário no
âmbito da crítica e interpretação social do Brasil interiorano, pois se
tratava efetivamente de pensar a literatura na esteira do faro sociológico
da época, em particular na convergência entre produção literária e
particularização cultural do país face às mazelas da nossa formação.
Isto lhe ocasiona a seguinte autocrítica em “Solilóquio derramado”, de
1947: “As minhas narrativas, confessemos, são chinfrins, mas foram
construídas na terra, as minhas mãos bisonhas pretenderam cavar
alicerces” (RAMOS, 2013, p. 298). E igualmente lhe ocasiona o juízo
acerca de José Lins do Rego em “Um romancista do Nordeste”. Neste,
ele encontrará a realização da cena dramática realista em “pequena
Comédia Humana nordestina”, pois, segundo pensa, José Lins extrai
toda a esfera social “do seu interior”, criando os escassos tipos do
“professor brutíssimo”, da preta, dos meninos medíocres e da “meretriz
assanhada”, “num ambiente de estreiteza lastimosa” (RAMOS, 2013,
p. 135). Ambiente limitado e passado, entretanto animado pela criação
literária. Graciliano cuidou ainda de distinguir a descrição pitoresca
de caracteres das particularidades vivas que compõem a fatura do
personagem principal no romance Menino de engenho. O pressentimento
sobre o desenvolvimento da disposição interior do rapaz é o nexo
capaz de revelar a maior complexidade das relações sociais ali: “mostra-
nos o rapaz por dentro”, exibe-o “movendo-se desordenadamente e
transformando, com os olhos e os ouvidos muito abertos, o mundo
exterior num universo novo” (RAMOS, 2013, p. 135).
Aí vemos a valorização, por Graciliano, da técnica artística de
abrir os olhos e os ouvidos para o outro. Técnica que ele aprofundará, seja
em torno da representação dos sertões de vidas secas “à margem da
história”, seja em tornodahumana-Baleia que pré-figura a diferença
bestialno humano. Ao ajustar os espaços da língua e da literatura do
Resenha 219
Ficções
Milton Hatoum
1
Originalmente publicada na revista EntreLivros (n. 13, maio 2006), esta crônica foi recentemente
reunida em Um solitário à espreita (Companhia de Bolso, 2013).
222 Milton Hatoum
Ficções
Perdido no círculo
Ronaldo Brito
embora tenha levado com ela a metade alegre de mim, só agora descubro.
E logo a quem confesso, ao outro eu mesmo suspeito com quem me
confundo. Que frase. Outro momento marcante foi a ausência de sentido
da vida. Volta e meia retorna e enche tudo de um imenso vazio.O pior
é a presença exorbitante do mundo. A maneira como invade nossa
privacidade, nosso íntimo. Toda manhã, ao acordar. Lá está ele, impávido
colosso. Bem a propósito, no caso em pauta. Não houve tempo para
arrematá-lo, acabou assim meio onipotente, meio totalmente carente,
ao mesmo tempo. Foi o que faltou, e ainda falta, a não ser quando sobra.
E aí sobra muito. O espaço é menos possessivo, dá-se lá um jeito. O tão
famoso tempo, falsa matéria-prima do narrador insosso, a rifar minhas
palavras, largá-las assim sem graça, natimortas na página. Logo elas, tão
vívidas, ágeis, bem-dispostas ao natural. É só convocá-las, prestas
acorrem e acabam traídas, coitadas, sozinhas no coletivo. Pena. Nunca
tive um cavalo, é o que mais me entristece. Ficou faltando o contato
fluente com o cosmo, pelo lado de dentro e pelo lado de fora. Ainda
por cima carrego uma arcaica alma moderna, sobrecarregada de nada.
Nada portátil. Não reclamaria quatro ou cinco destinos pós-modernos
descartáveis, que alívio. Talvez oprimissem, é muito destino, matéria
trabalhosa, cansativa. Um único destino romântico virou coisa obsoleta,
só em horas soltas, perdidas, o cultivo às escondidas. Meu pai, para citar
um exemplo aleatório, não acabava de crer o que vinha a ser o filho.
Assistia com assombro, compassivo, o florescer do alienígena. Em
compensação, o resto da escola o estranhava ao infinito. Sentimento
mútuo, recíproco. Quem sabe me aguardasse uma proficiente carreira
no crime. Não, seria trivial, previsível, de móveis tangíveis. O romantismo
sadio consiste em exercício maníaco, inofensivo, cultivar uma fatalidade
gratuita. Vejam o meu velho gato, romântico empedernido. Nunca fez
planos em nenhuma das sete vidas. Está falido, como era de se esperar.
Nem por isto demonstra amargura e olhem que, pelas suas contas, é a
última tentativa. Temos, afinal, algo em comum. Fui um dia ao campo
desfrutar sua célebre paz de espírito. Angustiou-me um pouco, bastante
naturalmente, volto sempre que posso. Cultuo a nostalgia desse lugar
Perdido no círculo 227
qual, duas ou três vezes, não casei nunca. Quando saio de férias, lastimo
o sofrimento perdido. Tal é nossa condição hodierna, vocábulo horrível
que resume tudo. Contento-me em escarnecer do narrador consciencioso,
a registrar – desastradamente, é infalível – o que dito. Não cogito a
ordem estapafúrdia dos eventos traiçoeiros que detém a essência inefável
do meu destino. Por exemplo: uma tarde, garoto, fui à rua, voltei outro,
irreconhecível. Ninguém percebeu, talvez minha mãe, que, como todas
as outras, guardou o segredo consigo. Este, com certeza, será operário
do onírico, labutará ao léu, funcionário público da poesia. É uma carreira,
igual a qualquer outra, um pouco mais próxima do hospício. O que dirá
São Tomás? Dançarão, provocantes, as Eríneas? Os lúbricos anacoretas
da política? Outra espécie de missão gravíssima, da qual todos se
escangalham de rir, é a faina escolástica da Academia. Conservo-me ali
à margem, irreal, irrelevante, serenamente insano. Passar a vida
despercebido, um pouco à maneira de Napoleão, fazer o voto de
Prometeu. Desentendam a sentença profética como preferirem, não é
tarefa minha. Pego o prumo e desando a escrever o que me dá na telha
do inconsciente, cabotino de quem há muito desconfio. Terá tratos com
o capcioso narrador, falam outra língua. Numa excelente oportunidade,
ao crepúsculo, li Baudelaire: crédulo, ingênuo, de boa índole, acreditei
no que li. Deu no que deu. Argumentarão os magistrados que fiz de
propósito, o gesto era por demais acintoso. O próprio Baudelaire ficou
em cima do muro. É o que fazem os livros: silentes, em seu canto na
estante, exercem seu insidioso feitiço. Culpar os outros é condenar-se
ao ostracismo. Culpar a si mesmo é topar com um inimigo à altura, no
entanto, muito superior em número. Em boa lógica bivalente. Numa
biografia neoplasticista, sem perspectiva, o objetivo é prender a atenção
arredia do escritor sem rumo. Fui, no inverno, à Roma, morrerei
tranquilo, quites com Hollywood. Preciso mesmo é de um bom cavalo
que me leve ao léu, lugar seguro e acessível, quase sem turistas. Em lá
aportando, descanso um pouco, como teria feito Ulisses. Doppo, ritorno
e dou palestras lucrativas, a popularizar a língua do país. Projeto
circunspecto, sólido realismo onírico. Sempre ouço rumores, realidade
Perdido no círculo 229
Onde saiu a notícia? Nesse caso, meu duplo seria um pioneiro, precursor
indiscutível, nunca deu a menor bola à lógica, a razão sempre lhe pareceu
uma coqueterieremanescente dos anos 20. Leitor voraz dos quadrinhos,
mulherengo conspícuo, sofre apenas pelo Vasco e pelo eventual desfecho
infeliz dos filmecos e novelas que, religiosamente, assiste. Amiúde,
porém, tranca-se na biblioteca a estudar Platão a fundo, no intuito óbvio
de me aturdir: quem serei esse outro Eu? A questão é retórica, ecoam
juntos o gato e o cavalo, que abominam o modo interrogativo.
Denunciam a humanidade por depreciar a supremacia do presente do
indicativo, da alfafa e da sardinha, respectivamente. Vil materialismo, se
insurge o censor, para quem Catão era um devasso impenitente e sem
escrúpulos. O narrador mostra-se agente moderado, há espaço para
todos, as ideias divergentes se equivalem, concorrem em harmonia ao
Bem do universo. A recém-chegada estagiária de matemática faz um
cálculo rápido: esse cara é cri-cri, o beabá da álgebra. Com tal equipe,
nem a Leibniz desmentimos! Em circunstâncias contemporâneas, impõe-
se o approach quântico. Do contrário, cantem os parabéns, assoprem as
velinhas, ponham-se a recordar uma a uma as famigeradas primaverinhas.
Os homens são todos iguais, românticos na primeira noite, a sussurrar
fractais e conjuntos vazios, logo recaem no rame-rame do cotidiano
newtoniano. Pago o pato, como sempre, pelo camaleonismo do duplo,
em matéria de mulheres, capaz de infâmias inauditas. Retrocedamos,
intempestivos, àquele instante da minha biografia quando descobri a
tardia vocação de estadista. Num sábado à tarde, sob a módica influência
de um ácido. Li muito Borges, conheço o ofício. Quase quinze minutos
durou a empreitada exaustiva de consertar, no geral, o mundo. A
encomenda era maçante, repetitiva. Enfiei a cara nos livros a buscar o
que sempre busco – a solução poética da vida. A mesmíssima que
descubro e perco de novo todo dia. É frustrante, tem lá seus momentos,
como tudo na vida. A solução não virá, por milagre, graças a
autobiografias postiças, o narrador avisa. Desde o princípio eu lhes
suplico, olho no sujeitinho. Muito à vontade, trotando, Sertão comenta
airoso: é o que dá misturar um romântico doentio e um realista sadio,
Perdido no círculo 247
9. Diagramação do conteúdo
9.1. Elementos pré-textuais
a) Título e sub-título: separados por dois pontos, na primeira linha,
centralizados, em negrito, fonte Garamond, 12, maiúscula em ambos.
b) Nome do Autor: duas linhas abaixo do título, à direita, em maiúsculas
somente as iniciais dos nomes em ordem direta. Garamond 11, itálico. A
instituição e a titulação devem ser inseridas em nota de rodapé (fonte Garamond,
tamanho 10) alinhada à esquerda. Pode-se inserir, ainda, nas notas de rodapé,
a instituição financiadora do projeto e o endereço eletrônico dos autores, se
existentes. Usar quantos asteriscos forem necessários para distinguir os dados
relativos a cada autor.
c) Resumo. A palavra RESUMO, em letra maiúscula, seguida de dois
pontos. O resumo deve ser apresentado a partir da linha seguinte, em um
único parágrafo, espaço simples, justificado, contendo, no máximo, 80
(oitenta) palavras, em Garamond 12.
d) Palavras-chave. Imediatamente após o Resumo, apresentar até cinco
palavras-chave, apenas a primeira letra em maiúscula. Estas deverão estar em
ordem alfabética e separadas por ponto.
9.2. Elementos Textuais
a) Texto. Os textos deverão ser digitados em espaço 1.5, fonte Garamond,
tamanho 12, papel A4. Os trabalhos não deverão ultrapassar vinte e cinco
páginas, no caso de artigos e ensaio, e, oito páginas, no caso de resenhas,
excetuando-se as referências.
As margens terão as seguintes dimensões: superior e inferior 2,5cm;
esquerda e direita 2,5cm. Todo parágrafo deve ser iniciado a 1,5 cm, a partir
da margem esquerda. Os números de página devem ser colocados na margem
superior externa. Subdivisões internas do texto deverão ser alinhadas à
esquerda em maiúscula, em negrito e com a mesma fonte utilizada no corpo
do trabalho.
Normas para apresentação de trabalhos 253