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CAPOEIRA

APORTES FILOSÓFICOS DE MARIÁTEGUI


E CAIO PRADO AO MARXISMO: A
FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA POR SE
REALIZAR
Revista de Humanidades e Letras _____________________________________
ISSN: 2359-2354
RESUMO
Vol. 5 | Nº. 1 | Ano 2019 O artigo expõe conceitos centrais das filosofias de Mariátegui e de
Caio Prado, pioneiras do pensamento latino-americano
contemporâneo, explanando suas defesas dos princípios
“dialético” e da “práxis”, cernes da concepção crítica de Marx,
categorias que guiam a ampla e crescente corrente marxista do
Yuri Martins Fontes conhecimento, a qual eles concebem, à semelhança de outros
pensadores clássicos, como sendo a filosofia contemporânea: a
ainda não realizada e portanto insuperada filosofia de nosso
tempo. Apresenta-se aportes ao âmbito filosófico do marxismo
legados por esses dois marcos do pensamento de nossa América,
visando oferecer uma melhor compreensão dos fundamentos que
compõem a corrente filosófica começada por Marx e Engels – e
que há muito desponta como a principal contestadora da
irracionalidade lógica e ética da ideologia capitalista, sendo ainda
mais pertinente nos tempos de violência que se abrem com o
agravamento da crise estrutural do sistema.
Palavras-chave: Marxismo, José Carlos Mariátegui, Caio Prado
Júnior, filosofia contemporânea, práxis, dialética
____________________________________
ABSTRACT
The article exposes central concepts of the philosophies of
Mariátegui and Caio Prado, pioneers of contemporary Latin
American thought, explaining their defenses of the principles
“dialectic” and “praxis”, the heart of Marx's critical conception,
categories that guide the broad and growing Marxist current of
knowledge, which they conceive, like other classical thinkers, as
being the contemporary philosophy: the still unrealized and
therefore not surpassed philosophy of our time. This paper
Site/Contato
presents contributions to the philosophical scope of Marxism
www.capoeirahumanidadeseletras.com.br
capoeira.revista@gmail.com bequeathed by these two milestones of the thought of our
Editores America, in order to offer a better understanding of the
Marcos Carvalho Lopes
marcosclopes@unilab.edu.br foundations that constitute the philosophical current begun by
Marx and Engels – which has long emerged as the main opponent
Pedro Acosta-Leyva
leyva@unilab.edu.br of the logical and ethical irrationality of the capitalist ideology,
being even more pertinent in times of violence that are established
with the worsening of the structural crisis of the system.
Keywords: Marxism, José Carlos Mariátegui, Caio Prado Júnior,
contemporary philosophy, praxis, dialectics.
Aportes filosóficos de Mariátegui e Caio Prado ao marxismo: a filosofia contemporânea por se realizar
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APORTES FILOSÓFICOS DE MARIÁTEGUI E CAIO


PRADO AO MARXISMO:
a filosofia contemporânea por se realizar

Yuri Martins Fontes1

Vivemos um momento histórico de ápice da crise estrutural da modernidade capitalista;


um declínio “civilizacional” que se anuncia há alguns séculos, fenômeno que exige do ser
humano conscientização e tomadas de decisões urgentes; um contexto no qual o sistema
produtivo dominado pelo capital – detentor do poder com maior ou menor hegemonia em suas
variadas esferas – padece de um irreversível desequilíbrio socioeconômico, com sérias
repercussões éticas, ambientais e geopolíticas, motivado pela irracionalidade de suas
“estruturas”: por sua incapacidade de superar as próprias contradições internas de seu modelo
produtivo, ou seja, uma crise que se origina na irracionalidade mesma de sua lógica interna, de
seus princípios.
Diante deste cenário, acuradas críticas marxistas – como aquelas ainda tão atuais
desenvolvidas por José Carlos Mariátegui La Chira e Caio da Silva Prado Júnior – têm um papel
civilizatório primordial. Para que possamos tomar as decisões que a história nos exige, é preciso
conhecer com mais profundidade nossas realidades históricas em sua variedade e complexidade
de elementos, e para tanto o marxismo é valorosa ferramenta teórica e prática2.

1
Professor e pesquisador acadêmico (membro do LEPHE/USP e do CEHAL/PUC-SP); ensaísta, escritor, jornalista
e tradutor. Doutor em História Econômica (USP/CNRS-França), tem formação em Filosofia e em Engenharia
(USP), e pós-doutorados em Ética e Filosofia Política (USP) e em História, Cultura e Trabalho (PUC-SP).
Coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre a Práxis (FFLCH-USP). Analista de política internacional e cultura
(colunista regular da Revista Fórum e da Agencia Latino-Americana de Información, e colaborador de outros meios
independentes).
2
Este artigo é um dos frutos de trabalho doutoral desenvolvido sobre os pensamentos de Caio Prado e Mariátegui, o
qual apresenta de modo comparativo aspectos científico-históricos e filosóficos da obra de ambos os autores: O
marxismo de Caio Prado e Mariátegui – formação do pensamento latino-americano contemporâneo (FFLCH-

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Yuri Martins Fontes

Filosofia de que muito se fala, mas que é ainda bem pouco compreendida em seus
fundamentos, entende-se o pensamento marxista como o pensamento efetivamente
“contemporâneo”, no sentido de que transcende os aspectos idealistas e superficiais do
pensamento cientificista moderno – cujo ideal positivista enxerga a razão como mero
instrumento de controle social e natural, limitando a noção de progresso tão somente ao
desenvolvimento técnico [MARTINS FONTES, 2017a]3. Superando tal concepção estreita, o
marxismo se consolida desde o século XIX como uma corrente ideológica e cognitiva que
influencia não apenas todas as correntes socialistas, mas inclusive as correntes conservadoras da
atualidade (o aparentemente “renovado” cientificismo moderno, e o supostamente “novo”
relativismo pós-moderno), estas arcaicas ideologias que, embora superadas enquanto saber,
sobrevivem e conservam, ainda hoje, o monopólio discursivo do conhecimento – ferramentais do
capital que, apesar de sua posição ainda dominante, já há muito perceberam que, se não se
adéquam minimamente à roda da história, mais depressa se desmoralizam e tendem a perecer.
No intuito de difusão e melhor compreensão dos princípios que regem o marxismo,
voltemo-nos a Caio Prado Júnior e a José Carlos Mariátegui – dois dos maiores filósofos e
cientistas humanos com que a América brindou o saber universal –, apresentando alguns tópicos
essenciais da visão destes autores acerca da filosofia marxista, a qual concebem, à semelhança de
outros grandes pensadores críticos, como sendo “a filosofia contemporânea”: a autêntica e
insuperada filosofia de nosso tempo.

Introdução: o marxismo enquanto a filosofia contemporânea

Na disputa ideológica contemporânea, que se acirra já no início do século XIX (quando


se faz visível o declínio da modernidade), o socialismo desponta como protagonista. Por sua vez,
dentre as filosofias socialistas, o marxismo é aquela corrente filosófica que se estabelece com
maior solidez e, em uma perspectiva de longa duração, a que cresce com mais vigor,
paulatinamente tornando realidade – enquanto filosofia da práxis que é – seus propósitos
socialistas concretos, de transformação e emancipação social, ainda que em um ritmo que possa
nos parecer lento no ligeiro espaço de uma vida.
Pensamento crítico e combativo, o marxismo almeja compreender o todo das relações
presentes na sociedade em seu movimento histórico; partindo desta percepção totalizante da
realidade, visa promover uma efetiva transformação social, capaz de reconstruir as estruturas

USP/CNRS-França, 2015). Versão revista e atualizada desta pesquisa acadêmica foi publicada em livro, com o
título: Marx na América – a práxis de Caio Prado e Mariátegui (Alameda/Fapesp, 2017).
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Aportes filosóficos de Mariátegui e Caio Prado ao marxismo: a filosofia contemporânea por se realizar
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que mantém o atual estado iníquo de coisas. Com tal postura ativa, pouco a pouco o socialismo
materialista-histórico – a concepção dialética da história fundada por Marx e Engels –,
pensamento filosófico e científico baseado nas contradições, conflitos e divergências de opiniões
e sentidos (que surgem no perene caminhar da história), impõe suas pautas: sociais, ambientais,
emancipatórias, democráticas, anti-imperialistas, descoloniais, de igualdade de direitos e de
oportunidades; pautas que passam então a figurar nos principais debates das cúpulas políticas do
contemporâneo, influenciando não somente outras correntes socialistas, mas a própria agenda
cada vez mais impopular das ideologias conservadoras (preocupadas em não enfraquecer ainda
mais, em não perder os últimos fios de aparente racionalidade que ainda as ligam à história
hodierna).
Efetivamente, a potência do marxismo, ou antes “dos marxismos”, no mundo
contemporâneo – pensamento que atravessou e atravessa a toda vela as insistentes difamações,
perseguições e mesmo extermínios promovidos pelo poder vigente capitalista –, encontra-se na
solidez de seus princípios “dialético” e de “práxis”; uma potência que aumenta conforme
aumentam a injustiça e a miséria humanas, conforme se aceleram os ataques do capital contra a
vida; potência que não dá nenhuma mostra de que irá arrefecer, ao menos enquanto não se
efetive, ou a catástrofe socioambiental e extinção vital completa que se anuncia, ou a resolução
dos problemas humanos mais fundamentais, já apontados pela crítica marxista – questões para as
quais já existem soluções palpáveis, objetivas, não obstante a impiedosa e mesquinha resistência
das classes privilegiadas, que obstaculizam as possibilidades de pô-las em prática.
Embora o pensamento marxista esteja ainda distante de uma necessária hegemonia
política (ou do comando do poder político direto), suas ideias permeiam cada vez mais fundo o
imaginário popular e por conseguinte as lutas sociais em suas variadas formas: classistas, étnicas,
de gênero. Isto, apesar das aparências “conjunturais” que possam obnubilar a visão de
observadores superficiais, desatentos quanto ao todo que compõe a situação histórica
contemporânea.
Veja-se a título de exemplo que a recente guinada política conservadora, que assola
todos os povos do planeta desde a crise econômica global de 2008, consiste sobretudo em uma
resposta das classes dominantes contra a força ascendente socialista (notadamente o comunismo
marxista) – que arrancou a fórceps do capital todas as mínimas reformas humanizadoras do
sistema nos últimos séculos, e que pouco a pouco ocupa as consciências populares. Ou de outro
modo: o atual giro reacionário é uma forma agressiva com que as elites, em meio à crise
estrutural do sistema capitalista, tentam manter seus privilégios incalculáveis, conservar sua
insustentável forma de produção baseada na competição desigual, na devastação dos recursos

3
Sobre o tema da razão instrumental ver: Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento (1947).

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naturais finitos, na exploração do trabalho da imensa maioria por uma minúscula minoria
dominante – processo que degrada a humanidade e a natureza em ritmo exponencial.

Caio Prado e Mariátegui no panorama filosófico contemporâneo

Na segunda metade do século XIX, o marxismo começa a se desenvolver na América, e


especialmente a partir do ânimo insuflado nos povos de todo o planeta pela grande Revolução
Russa de 1917, ganha rápido vigor, logo chegando a assumir o protagonismo dentre os
movimentos socialistas, críticos da sociedade moderna capitalista (NETTO, 2012; MARTINS
FONTES, 2017b).
Por estes tempos, a derivação “industrial” do iluminismo, o cientificismo moderno,
doutrina que pregava a crença em uma suposta razão absoluta que guiaria o desenvolvimento
humano através do progresso técnico, consolidara-se como a ideologia do poder capitalista,
divinizando as capacidades humanas de controle social e da natureza. Todavia, este pensamento
cientificista burguês, até então pretensamente senhor da razão, a partir do fenômeno trágico da
Primeira Guerra – carnificina inter-imperialista irracional e ilógica (mesmo segundo a rasa lógica
economicista do sistema) – passa a evidenciar seu declínio, sua limitação cognitiva, sua
incapacidade de compreender e dar sentido à totalidade que compõe a humanidade.
Dentre os pensadores pioneiros do marxismo na América, Mariátegui e Caio Prado se
destacam dentre aqueles que primeiro alcançaram realizar uma leitura propriamente latino-
americana do marxismo, investigando com acuidade suas nações e região continental, traduzindo
para a nossa realidade periférica o pensamento crítico iniciado por Marx e Engels. Por entre a
ampla contribuição legada à concepção dialética da história pelos dois marxistas americanos há
diversos pontos de convergência, tanto no tocante às ciências humanas, ou mais precisamente
ciências históricas, quanto propriamente à filosofia em sentido mais estrito – ressaltando-se aqui
que, desde a perspectiva marxista, estas duas formas de conhecer são inseparáveis, inter-
relacionando-se dialeticamente. Isto posto, dentre suas afinidades, destacam-se: no campo das
ciências históricas, as rigorosas análises “dialéticas” que elaboram acerca da questão nacional de
seus respectivos países, em especial abordando âmbitos da historiografia e da ciência política,
mas também da sociologia e psicologia, dentre outras frentes do conhecimento; e no campo da
filosofia, a centralidade categórica que ambos conferem tanto à metodologia dialético-histórica
de viés totalizante (base para suas acima mencionadas análises científicas), como à categoria
ética da práxis, enquanto cerne de um pensamento combativo que transcende a passividade

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Aportes filosóficos de Mariátegui e Caio Prado ao marxismo: a filosofia contemporânea por se realizar
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intelectual das filosofias anteriores (cientificistas, relativistas), preocupadas apenas em “pensar o
mundo”, não em “transformá-lo” (MARX, s/d [1845])4.
Como mencionado, na obra de pensadores marxistas não se pode separar os aspectos
científicos e os filosóficos; assim foi a incursão de Caio Prado e de Mariátegui na seara do
debate filosófico mais estrito. Tal percurso se dá para ambos de forma bastante similar: no calor
de polêmicas intelectuais e políticas contra marxistas e reformistas afetados pelo positivismo de
viés eurocêntrico subalternamente encerrados em dogmas, em modelos normativos espelhados
na história europeia-ocidental. A filosofia foi para eles uma forma de respaldar o valor cognitivo
de suas originais interpretações científicas da realidade histórica de suas nações periféricas, e por
conseguinte, de reforçar sobre bons alicerces suas antidogmáticas opções político-
revolucionárias, que se originam destas interpretações. Enveredam pelo debate filosófico
justamente quando se acirram os embates científicos e políticos, suscitados a partir de suas
leituras não padronizadas da questão nacional de seus respectivos países, ou seja, no momento
em que suas ideias adquirem força discursiva (MARTINS FONTES, 2017a)5.
Quanto a Mariátegui, as polêmicas se remontam a meados da década de 1920: no
impactante ensaio de tom antipositivista “El hombre y el mito” (1925) afirma que a “filosofia
contemporânea varreu o medíocre edifício positivista” e “demarcou os modestos limites da
razão”; já em sua Defesa do marxismo – polêmica revolucionária (1928-1929), denuncia o
reformismo “desenganado” de Henri de Man, quem, denunciando o economicismo vulgar
(desvio positivista dos social-democratas, centrados apenas em parlamentares reformas político-
econômicas, desligadas de ações revolucionárias), acabava ele mesmo por recair em erro no
extremo oposto: um psicologismo idealista, “misticismo” que desconsidera a realidade material
econômica (MARIÁTEGUI, 2011, p. 47 ss).
Já Caio Prado, nascido 13 anos após seu par peruano, ingressa na discussão filosófica
específica cerca de duas décadas mais tarde, a partir dos anos 1950, com sua Dialética do
conhecimento (1952); embora desde o início dos anos 1930 já se observe em sua obra elementos
filosóficos, caso de sua reflexão sobre a práxis enquanto categoria nuclear do marxismo,
presente em polêmica que trava com um comitê regional do PCB, na qual critica a “absurda”
concepção de etapismo (PRADO JÚNIOR, 1932)6.

4
Em sua XI “tese” sobre Feuerbach, Marx já fala de se superar aquela filosofia que só busca “interpretar” o mundo.
Além de Mariátegui e Caio Prado, outros tantos pensadores defenderam a ideia do marxismo enquanto o
pensamento que inaugura a filosofia contemporânea.
5
Note-se que Mariátegui (1994-1930) escreve o substancial de sua obra na década de 1920 (morre ainda muito
jovem). Já Caio Prado (1907-1990) inicia sua obra clássica historiográfica nos anos 1930, vindo a embrenhar-se no
debate propriamente teórico-filosófico nos anos 1950 (seu último ensaio filosófico data de 1977 – O que é filosofia).
6
A carta de Caio foi dirigida ao “Comitê Regional de S. Paulo do PCB” (então chamado “Partido Comunista do
Brasil”), em 30 de nov. 1932.

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O objetivo principal dos dois latino-americanos é atacar a ilusão do cientificismo


asséptico, positivista, que tencionava reduzir o conhecimento a supostas leis naturais; em sua
elaboração filosófica, defendem o ponto de vista marxista enquanto pensamento totalizante: o
materialismo histórico está fundado em uma dialética da práxis, em uma dinâmica que relaciona
a teoria e a prática, o que implica na necessidade da atitude combativa, da política
revolucionária; trata-se de uma concepção de mundo que recusa as abstrações “puras”,
metafísicas, exigindo que a objetividade da análise científica da realidade esteja intrinsecamente
relacionada com a subjetividade, ou seja, com a organização e conscientização popular capaz de
levar a cabo as propostas planejadas objetivamente.
Com tal postura independente, ambos enfrentariam as principais correntes dogmáticas
(e eurocêntricas) que detiveram a hegemonia política do socialismo marxista à época: o
reformismo parlamentar passivo da Segunda Internacional; e o mecanicismo etapista rígido da
Terceira Internacional, com seu evolucionismo-social simplista, incapaz de dar conta da
diversidade de realidades históricas. Para os pensadores latino-americanos, é na análise acurada
de cada realidade concreta e na subsequente ação consciente do homem sobre sua história que se
encontra o cerne do pensamento marxista.
Note-se contudo que, não obstante as fundamentais convergências entre o marxismo de
Caio Prado e Mariátegui, verifica-se também certas divergências, notadamente em seus enfoques
filosóficos: o brasileiro prioriza a objetividade analítica, necessária à precisão, à correção
interpretativa da totalidade concreta, base que deve guiar a ação revolucionária; já o peruano dá
ênfase à subjetividade, à força coletiva sustentada pela esperança, pela utopia, pela fé racional na
liberdade, energia que anima os povos oprimidos e os fazem resistir [MARTINS FONTES,
2017a].

O marxismo periférico latino-americano: refutação do eurocentrismo

A Primeira Guerra, tendo sido um conflito essencialmente europeu-ocidental, acaba por


dilacerar os maiores impérios europeus – o que abriria caminho para sua capitulação enquanto
potências mundiais, fato que se consuma com a Segunda Guerra e a ascensão estadunidense e
soviética. Este declínio civilizacional trouxe uma lição aos povos do mundo, que começam a se
levantar contra a hegemônica dominação europeia: socioeconômica, político-militar, técnico-
científica e cultural.
Neste movimento histórico do começo do século XX, nas várias periferias do
capitalismo, grandes pensadores do campo marxista – como Vladimir Lenin, Antonio Gramsci,
Mao Tsé-Tung e Ho Chi Minh – passam a elaborar autênticas interpretações materialistas-

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Aportes filosóficos de Mariátegui e Caio Prado ao marxismo: a filosofia contemporânea por se realizar
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históricas da realidade concreta de suas nações. Desprendidos de dogmas ocidentais-
eurocêntricos, iniciam a descolonização do pensamento marxista, traduzindo-o para suas
próprias realidades periféricas: atrasadas, oprimidas, ora camponesas, ora indígenas, ora
mestiças; algumas escravizadas, outras servis; realidades em maior ou menor grau colonizadas e,
muitas delas, recolonizadas logo após sua “independência” política formal (obtida em processos
revolucionários interrompidos, controlados e tolhidos pelas elites, liberdade de fachada que
acaba por conformar semi-nações, satélites socioeconômicos das potências imperialistas).
Na América, este protagonismo descolonial é começado por marxistas como Mariátegui
e Caio Prado, ao lado de tantos outros nomes imprescindíveis à filosofia da práxis americana,
como o cubano Julio Mella ou o argentino Sergio Bagú. Estas perspectivas do marxismo desde
óticas latino-americanas erguem-se em coro como recusa aos modelos hegemônicos europeus-
ocidentais e suas derivações no próprio pensamento marxista, contaminados por esses padrões
pretensamente “universais”, tais como: o evolucionismo-social etapista (enquanto base
interpretativa que toma por molde a evolução histórica da Europa Ocidental, pretendendo que o
mundo cumprisse as mesmas “etapas”); e o aliancismo interclassista (enquanto estratégia política
que submete os trabalhadores mediante alianças com supostas “burguesias nacionais”).
É na investigação da realidade nacional de seus respectivos países periféricos que as
obras mariateguiana e caiopadiana angariam reconhecimento no meio intelectual. No tocante à
questão nacional, os estudos dos dois pensadores convergem em sua recusa dos modelos prontos
europeus, alheios a nossas nações. Na visão de ambos, tais moldes foram indevidamente
absorvidos por alguns pioneiros marxistas latino-americanos que de forma artificial tentaram
enquadrar nossas histórias em padrões analíticos que não nos dizem respeito. Nossa evolução
histórica latino-americana em diversos aspectos diverge daquela europeia-ocidental, até então
tida por muitos marxistas como “padrão universal” a ser seguido sem contestação por todos os
povos.
Mariátegui e Caio Prado passam então a pesquisar a especificidade concreta da
evolução histórica de suas nações: nas quais jamais houve uma “burguesia nacional” interessada
na emancipação de seu povo, mas antes uma burguesia interna branca, de ascendência europeia,
mais identificada com a Europa de que com seus próprios conterrâneos, e que desde a formação
da nação sempre foi aliada a interesses externos. Assim sendo, não se poderia crer, senão com
muita ingenuidade, que tal burguesia antinacional e sócia menor do centro capitalista pudesse
estar ao lado da população no processo de “complementação” de nossas independências políticas
nacionais interrompidas. Nossa independência política fora apenas formal; as reformas realizadas
não passaram de formas de ceder o mínimo possível, para lograr manter a dominação e

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privilégios, há tempos instaurados e ora em risco: uma “revolução passiva”, para usarmos o
conceito de Gramsci (1986), feita “pelo alto”.
Com efeito, as transformações sociais e políticas na América Latina foram feitas através
de arranjos entre facções das camadas dominantes, de conciliações entre as elites, em processos
que excluíram qualquer protagonismo das classes populares; decerto que as massas sempre se
manifestaram, mas mediante um “subversivismo esporádico e elementar” (na expressão também
gramsciana). Diante disto, as classes privilegiadas reagiram com manobras, de modo a esfriar, a
amenizar as disputas interclassistas; introduzem assim certos elementos “modernos”, a fim de
conservar os “arcaicos”, com vistas a debilitar as forças opositoras mais radicalizadas. É este o
movimento histórico chamado pelo marxista italiano de “revolução passiva”, também conhecido
pelo termo dialético “revolução-restauração”: um processo que na superfície traz algo de novo
(diferenciando-se assim das meras “contra-revoluções”), embora mantenha intacta a “estrutura”
da velha ordem (COUTINHO, 2000).
Partindo dessas ponderações, Caio Prado e Mariátegui recusam para suas nações a tese
marxista eurocêntrica que pregava o “aliancismo” – posição iludida com a ideia de que, como na
Europa Ocidental, parcela da burguesia seria nacionalista e estaria ao lado dos trabalhadores em
uma suposta primeira etapa “democrática” da luta pela revolução socialista.
Por outro lado, ambos enfatizam que nossa população camponesa era significativa, e
parte integrante da classe trabalhadora, não podendo estar fora do processo revolucionário
nacional. Nossa revolução tem portanto de ser dirigida pelos trabalhadores do campo e da
cidade, em um movimento unificado – é o que defendem tanto Mariátegui, como Caio Prado.
Todavia vale ressaltar (sobretudo em tempos de proliferação de sectarismos) que, no
caso de determinadas questões pontuais, que possam interessar a certa parcela pequeno-
burguesa, menos conservadora, os dois marxistas entendem que os trabalhadores devem admitir
apoios específicos por parte de elementos da burguesia a seus projetos – mas isto com a condição
de que sempre a direção de tais processos políticos se mantenha sob a guarda dos próprios
trabalhadores, jamais em posição subalterna, representados por seu partido comunista, parte
constitutiva do partido marxista internacional.

Em suma, sendo uma teoria da transformação social, que parte da avaliação da perene
relação conflitiva do todo, o marxismo deve enxergar a realidade em seu movimento histórico,
não podendo admitir determinismos ou análises mecanicistas. Neste percurso, pondo-se como
objetivo captar a totalidade social concreta de suas nações, Caio e Mariátegui contribuiriam com
a ampliação das fronteiras da análise dialética marxista, abarcando um amplo leque de
perspectivas do conhecimento (história, economia, geografia, sociologia, psicologia), transpondo

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Aportes filosóficos de Mariátegui e Caio Prado ao marxismo: a filosofia contemporânea por se realizar
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assim as especialidades herméticas que desviam o conhecimento de seus fins e limitam as
possibilidades do indivíduo contemporâneo – ser restrito, alienado, alijado da crítica
universalista e do protagonismo histórico.

Aportes latino-americanos à universalidade do marxismo: mito e sentido

Como visto, é a partir de investigações sobre suas respectivas realidades nacionais que
Mariátegui e Caio Prado ingressam no âmbito filosófico da crítica marxista; visam defender a
correção de suas análises científico-históricas e políticas.
Suas filosofias seguiriam diferentes caminhos argumentativos, não obstante convirjam
na defesa da metodologia histórico-dialética (enquanto teoria do conhecimento humano pautada
por conflitos, divergências, contradições), e da práxis revolucionária (como categoria ético-
ontológica central que compreende o homem como ser-social pleno, sujeito e objeto da história):
princípios que se inter-relacionam, conformando o cerne do pensamento contemporâneo.
Dentre as maiores contribuições mariateguianas e caiopradianas à universalidade
filosófica do marxismo estão, respectivamente, os conceitos de mito e de sentido – ideias que
possuem certos elementos comuns. O sentido caiopradiano é um caminho de perspectiva realista,
com que se aponta objetivamente para a emancipação humana. O mito mariateguiano é um
sentimento vital a ser exaltado: subjetivo, romântico, que dá significado à vida e à luta pela
liberdade.
Entretanto, note-se que o sentido da história, se compreendido corretamente,
conscientiza e anima o povo à mobilização revolucionária, ao engajamento, trazendo-lhes
confiança no projeto libertador com que se busca reorientar o atual sentido equivocado da
sociedade, pois – como diz Caio Prado –, “diretrizes justas” despertam e mobilizam os “impulsos
revolucionários” das forças populares. Já do ponto de vista de Mariátegui, ele frisa que entende o
marxismo como uma espécie de “bússola” que orienta o pensamento no caminho da
emancipação humana, e neste processo o mito desempenha uma função chave, posto que
consiste em uma utopia coletiva, uma esperança racional que anima o povo a combater por sua
libertação de acordo com tal caminho. Entende-se pois que o realismo de Caio Prado comporta
uma dimensão sentimental ou subjetiva, assim como o romantismo de Mariátegui tem sua face
diretiva ou objetiva (MARTINS FONTES, 2017a).
Com efeito – e esta é a concepção de ambos – o marxismo, pensamento que almeja uma
perspectiva totalizante da realidade, comporta em si os aspectos realista e romântico: abarcando
contribuições de variadas esferas do saber, perscruta com realismo os diversos e complexos
fenômenos que compõem a sociedade; e de outro lado, compreende o ser humano como ser

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integral, reivindicando, enquanto filosofia da práxis que é, a dimensão romântica,


revolucionária, da teoria marxista.

Filosofia da liberdade e plenitude humana: o pensamento a se realizar

Mediante tais posicionamentos filosóficos, os dois pensadores contribuem fortemente


para o desenvolvimento do marxismo, não só latino-americano, como universal: marxismo
compreendido como a filosofia contemporânea – ou o mais alto grau a que alcançou o
pensamento humano.
Mariátegui (1970; 2011) acusa a falência do racionalismo cientificista, característico do
pensamento moderno; afirma que o marxismo destruiu o “medíocre edifício positivista”,
demarcando os “modestos limites” da razão, e que enquanto a crítica marxista das contradições
da ordem social vigente não estiver suplantada, não nos cabe pensar em desenvolver a filosofia
segundo outros prismas ou “cânones” espirituais – psicológicos, artísticos.
Caio Prado (1968) defende o marxismo como o pensamento mais completo já
desenvolvido, uma expressão “condensada do conhecimento”. Para ele, Marx e Engels eram
“homens de ação”, pensadores que se inspiraram “consciente e sistematicamente” em sua
filosofia (dialética e de práxis), de forma que o marxismo, diz o filósofo brasileiro, é a
“expressão máxima” do saber atingido pelo homem; com o desenvolvimento do conhecimento, o
“materialismo vulgar” está completamente superado; o que interessa agora ao homem é a
compreensão dos processos dialéticos, daquilo que “se passa”, e não daquilo que “é”.

Observe-se aqui o paralelismo que há entre estas concepções e a de Jean-Paul Sartre


(1966), quem afirma o marxismo como a “filosofia de nosso tempo”, destacando que a superação
da preocupação filosófica com o problema estrutural econômico, rumo a um pensamento
centrado no desenvolvimento pleno do indivíduo, só poderá se efetivar quando estiverem
superadas as atuais contradições de nossa “sociedade de escassez”. Não se poderá transcender a
crítica socioeconômica marxista – rumo a uma filosofia futura que possa se centrar nas
possibilidades de realização humana em sua plenitude de potências –, senão quando a sociedade
humana superar esse obstáculo restritivo de sua própria plenitude, a saber: a economia
capitalista caracterizada pela eterna escassez. Nesta futura possível configuração social, a
relação dialética entre liberdade e necessidade deverá ocorrer em outro nível, no qual já não será
essencial se ater à questão da escassez material, apesar de que, decerto, sempre haverá outras
contraposições entre a necessidade e a liberdade – posto que inerentes à condição humana;
problemas que possivelmente já não serão gerados por conflitos de ordem material, mas que

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Aportes filosóficos de Mariátegui e Caio Prado ao marxismo: a filosofia contemporânea por se realizar
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existirão enquanto problemas “comuns”, de comunhão existencial, de colaboração, problemas
ligados à arte, aos sentimentos, à realização plena da individuação a que cada ser almeja e em
certa medida pode alcançar.
Outra perspectiva convergente, que contribui com este debate, é a de Florestan
Fernandes (1995): para o marxista uspiano, a “atualidade” do marxismo reside no “apelo para
estudar e reinterpretar o concreto como totalidade histórica”; atualidade significa “ir além”,
reflete, mas respeitando “os mesmos princípios”, utilizando-se dos “métodos interpretativos” que
fundamentam sua teoria. Quanto à crise da civilização hegemônica ocidental, Florestan afirma
que se sobrevivem as “crises de longa duração”, e se persiste o “clamor rancoroso dos que
sofrem os dilemas sociais”, então “a ordem está condenada”: “generaliza-se o saber de que na
civilização vigente fica a gênese das iniquidades, das psicoses e do padrão de desumanização da
pessoa”7.
Em síntese, posto que o desenvolvimento humano como ser total, pleno, restrinja-se
ainda hoje – mesmo com o formidável desenvolvimento tecnológico – ao problema da escassez
material que ameaça a sobrevivência da imensa maioria da espécie (o que também afeta
indiretamente àqueles poucos que não estão sujeitos à crueza da escassez), a questão
socioeconômica ainda ocupa o centro do problema humano. Enquanto não se resolva a questão
material da sociedade humana, o pleno desenvolvimento do homem seguirá sendo uma
abstração, assim como o são os conceitos, hoje tão vazios, de liberdade, felicidade, democracia,
dentre outros nomes ainda quase sem sentido. Não se pode superar a crítica socioeconômica
rumo a uma filosofia centrada no indivíduo criador, pleno, enquanto não se superar os problemas
mais fundamentais da sobrevivência do ser humano: antes disto, pensar-se o indivíduo é pensar
em um indivíduo doente e em sua cura. Um pensamento que hoje não se proponha a uma efetiva
transformação da realidade socioeconômica, trata-se na realidade de um velado retrocesso
humanístico – um regresso ao abstrato idealismo8.

7
Quando se fala na categoria de “totalidade” do marxismo, faz-se referência tanto a uma metodologia de análise
histórica (que abranje o todo conflitivo), como à plenitude humana (na qual o ser, essencialmente um ser social, é
compreendido como objeto e sujeito da história, envolto na estrutura que em parte o limita, mas que, por outro lado,
é por ele transformada, paulatinamente, em um desenvolvimento que comporta momentos de regressos). Não
confundir esta categoria com aquela de “totalitarismo”: termo ideológico com que a burguesia dita “liberal”,
pregando uma suposta “liberdade econômica” (em verdade a legalização da “libertinagem” exploratória), tenta
justificar seus ataques ao projeto humanista de planejamento econômico e democracia socialista, acusando qualquer
racionalidade produtiva como sendo do mesmo nível da irracionalidade fascista (“autoritária”, “totalitária”). Buscam
com tal argumento a difícil defesa “ética” de seu princípio reacionário. Recordemos – aliás com Mariátegui e Caio
Prado, dentre outros – que o fascismo nada mais é que o modo autoritário de administração do capitalismo, usado
em épocas de crise na qual a face pseudo-democrática do domínio do capital (adornada pelo analfabeto direito a
voto) não se sustenta por si, exigindo que a irracionalidade capitalista, até então socioeconômica (típica de seu
caótico progressismo tecnicista), se extravase também em termos políticos.
8
Sobre o tema da plenitude humana, vale remeter-se as considerações dos próprios Engels e Marx, em A ideologia
alemã. Vide ainda o ensaio: “Mariátegui e a filosofia de nosso tempo”, prefácio da tradução Defesa do marxismo –
polêmica revolucionária e outros escritos (Boitempo, 2011).

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Nesta direção, Mariátegui e Caio Prado tecem suas severas críticas às filosofias
idealistas, especialmente ao pensamento cientificista (hegemônico na modernidade) – com sua
ilustrada crendice na perfeição científica, na razão instrumental. Fruto do idealismo iluminista
que diviniza as capacidades humanas, este misticismo moderno influenciou fortemente, desde o
fim do século XIX, correntes do campo marxista – iludidas com um suposto evolucionismo
social que “inevitavelmente”, ou “naturalmente” conduziria ao socialismo (ainda hoje se pode
ver ranços desta crença em certas correntes socialistas). Tal postura, na prática, induz os
militantes à passividade, ao conformismo, servindo pois aos propósitos da classe burguesa, a
qual através de fetiches simplórios (caso da ideia “linear” de progresso) mantém o ser humano
escravizado, alienado de si mesmo, de sua própria capacidade e possibilidade de realização
integral9.
É sob uma concepção antimecanicista e combativa que os dois marxistas americanos
analisam o problema socioeconômico da formação e das possibilidades de desenvolvimento de
suas nações, oferecendo sólidos aportes ao que o pensamento crítico-dialético tem de mais atual:
a transcendência de uma sociedade que limita o homem, rumo a uma sociedade livre, que
permita sua realização plena: enquanto trabalhador manual, intelectual e também artista; um ser
integral, conforme o ideal da sociedade comunista que Marx e Engels já haviam sugerido n'A
ideologia alemã (2007 [1845-1846]).
Na compreensão de Mariátegui e de Caio Prado – fio condutor que permeia suas obras –
, o marxismo é sobretudo a filosofia da práxis, da efetiva transformação social que modifica as
estruturas da sociedade. Assim sendo, o marxismo, também denominado materialismo histórico
(posto que refuta abstrações puras e a-históricas), é outrossim a filosofia da liberdade, a filosofia
do poder emancipatório que permite edificar a individuação humana. Mediante sua ação coletiva,
refletida – crítica e autocrítica –, o marxismo desbasta o caminho que conduz ao reino da
liberdade, ao estado de não-fragmentação do ser humano, à sociedade em que o homem possa
ser pleno, no sentido de ser capaz de realizar a plenitude de seu potencial, de desenvolver
atividades diversas e complementares, manuais e intelectuais, tarefas que alimentem o todo de
seu ser; algo como o sugerido, com lirismo, por Marx e Engels (2007), ao imaginar a futura
sociedade comunista, na qual se pode conjugar tarefas, tais como: pescar pela manhã, cuidar da

9
Note-se que não só o proletário é escravo deste sistema, mas mesmo o escravizador capitalista também se
converte em escravizado – ainda que em menor grau –, na medida em que não possui paz, não pode usufruir
plenamente da liberdade, da cultura, do bem-estar. O burguês coloca a si próprio na situação de escravo da injustiça,
do medo, da violência, enfim, da infelicidade estrutural que ele mesmo construiu e mantém; e isto, devido a uma
razão vulgar, imediatista, em longo e mesmo em médio prazo infundada, irracional, além, é claro, de uma boa dose
de niilismo e covardia, mesmo que inconscientes.
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casa pela tarde, escrever pela noite (ou seja, viver e desempenhar diferentes atividades que não
só lhe sustentem, mas lhe agradem e realizem).
Os entendimentos de ambos os latino-americanos no tocante a essa discussão sobre a
liberdade convergem significativamente: no caminho da emancipação social não cabe se apegar
a abstratas prescrições, nem se pode ausentar de tomar decisões. A liberdade é uma construção
social, é a possibilidade de se optar entre alternativas reais, concretas, e por conseguinte,
imperfeitas. É a partir da gradual conquista da liberdade que o ser humano paulatinamente
angaria poder para se superar e aprofundar suas reivindicações. Discursos retóricos, preciosismos
confortáveis, moralismos abstratos são posturas que não favorecem a necessária organização e
coletividade, fundamento para a emancipação humana. Liberdade é poder; é libertação coletiva.
É a negação da restrita liberdade individual burguesa, meramente jurídica, tolerante com os
privilégios das elites conjunturalmente fortes, e com as iniquidades que não se cometam contra a
propriedade (contra o sacralizado capital).
Para os dois marxistas, o poder, e portanto a liberdade, está na conquista política que se
dá mediante a práxis revolucionária: nas revoluções, insurgências, guerrilhas (exaltam como
exemplo inspirador a Revolução Russa, destacando também diversas outras revoluções,
resistências e revoltas populares). Entendem que a práxis revolucionária só é efetiva se fundada
em acurada análise dialética da realidade concreta. Não desdenham porém da necessidade diária,
permanente, de alimentar o sonho revolucionário também nas pequenas lutas cotidianas por
reformas e melhores condições de vida, pela conscientização das massas que torna possível a
revolução: pois a conquista da liberdade está também na tenacidade da população oprimida, que
suporta com valentia e esperança as agruras de seus dias; está na resistência do povo que se
ergue por sua existência, por seus direitos humanos mais básicos.
Em Caio, estas ideias estão aprofundadas em O que é liberdade (1980 [parte de O
mundo do socialismo, 1962]) e O que é filosofia (1981 [1977]), além de A Revolução Brasileira
(1966) e dos ensaios sobre Lévi-Strauss e Althusser (1971). Em Mariátegui, o debate se dá em
seu clássico Siete ensayos de interpretación de la realidade peruana (1989 [1928]), bem como
em Defesa do marxismo (2011 [1928-1929]) e em vários ensaios publicados em outros volumes.

Posto que a liberdade se alimenta no cotidiano, na luta pela sobrevivência, os


pensadores defendem o apoio dos comunistas às demandas imediatas por reformas
humanizadoras, e mesmo alianças pontuais com elementos burgueses mais conscientes, frisando
contudo que jamais uma aliança pode implicar em submissão a qualquer facção das classes
privilegiadas. Têm portanto a sensibilidade de perceber que há questões urgentes que precedem a
discussão (sectária) sobre o “mais perfeito” dos caminhos rumo aos objetivos principais do

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comunismo. Se há de fato a possibilidade de uma insurreição súbita, que o comunista se alinhe


com a insurgência; mas não sendo este o caso, que ele promova a sublevação com paciência,
perseverança, sempre ao lado dos sindicatos, dos movimentos sociais por direitos trabalhistas e
humanos (MARIÁTEGUI, 1928; PRADO JÚNIOR, 1946; e 1966).
Finalmente, vale ainda mencionar a convergência das ideias de Mariátegui e Caio Prado
acerca da solidariedade – enquanto atitude fundamental do comunista, ideia estruturante da nova
sociedade comunista. Para o marxista peruano, no ensaio “O problema do índio”, a
“solidariedade” é uma característica essencialmente revolucionária; frisa sua presença nas
tradições indígenas e nos movimentos emancipatórios, em contraponto à competitividade e ao
individualismo louvados na ideologia burguesa (MARIÁTEGUI, 1989 [1928]). Já o brasileiro
afirma que, na superação da sociedade de exploração do homem pelo homem é preciso substituir
a ideia de “concorrência”, a tendência à disputa, por uma fraternal “solidariedade” (PRADO
JÚNIOR, 1934; 1971)10.

A mensagem que nos foi legada – tanto por Mariátegui, como por Caio Prado – é a de
que o marxismo não é uma filosofia a mais, a compor o quadro frio da “história intelectual”, mas
consiste propriamente na filosofia contemporânea, na ativa e combativa “filosofia de nosso
tempo”: um marco ainda não realizado do pensamento atual, que supera e se opõe às concepções
meramente especulativas da dialética idealista, bem como ao ceticismo, ao niilismo do
materialismo metafísico, que desconsidera o papel do homem nos sentidos da história. Ao
contrário destas filosofias passivas, acomodadas, o marxismo é a “filosofia da práxis” (conceito
desenvolvido por vários marxistas, como Gramsci e Sánchez Vázquez): teoria que é prática e
que, na realização prática, transforma sua própria teoria, em um cíclico processo dialético.
Partindo de uma objetiva avaliação da realidade como um todo – uma totalidade
concreta –, é dever do marxista planejar a sua transformação, a superação da situação presente,
da realidade que é, rumando àquela que pode e deve ser. Tal reorientação do sentido histórico da
sociedade (no conceito caiopradiano) se dá por meio da ação subjetiva consciente,
revolucionária, animada pela energia existencial que é suscitada no homem pela utopia racional,
possível, pela fé racional na liberdade (o mito revolucionário no termo mariateguiano).
Conforme Mariátegui, o marxismo consiste em um pensamento integral que, além de
oferecer um sólido ferramental metodológico-científico, realista, para a transformação social,
tem uma feição romântica, ética, que anima o ser social humano a se bater por tal realização.

10
Vide sobre o tema da concorrência (competitividade, competição, competência): Marilena Chauí,
Ideologia da competência (2014).
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Aportes filosóficos de Mariátegui e Caio Prado ao marxismo: a filosofia contemporânea por se realizar
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Segundo Caio Prado, é com o marxismo que se inter-relacionam dialeticamente as
dimensões filosóficas e científicas do conhecimento: a filosofia orienta os sentidos da ciência; e
esta, por seu lado, ao caminhar, permite ao homem, mediante suas técnicas, ideias e realizações
produzir a nova realidade concreta, compondo o novo cenário sobre o qual a filosofia deverá
outra vez e sempre debruçar-se, para refletir sobre o real.

Considerações finais: Marx e a entrada da consciência na história

Depreende-se, a partir do exposto, que a partir de Marx rompe-se a hierarquia entre


filosofia e ciência. Este feito foi decerto uma audácia que ofendeu e até hoje ofende certa
filosofia acadêmica, professoral, encastelada no altíssimo palco intelectual. Consequência disto é
que a filosofia marxista vem sendo sistematicamente excluída dos herméticos e elitizados
círculos filosóficos acadêmico-profissionais, que têm por pretensão mensurar, hierarquizar os
saberes (sempre de acordo com os interesses da ideologia dominante).
Desde que a concepção dialética da história, iniciada por Marx e Engels, começa a
desanuviar o olhar crítico sobre o mundo moderno e sua soberba doutrina técnico-progressista, a
filosofia já não pode mais ser posta acima da ciência (como o era para Aristóteles), bem como a
ciência não pode eliminar o valor crítico da filosofia (disparate pregado ainda hoje por
tecnocratas da razão instrumental, neopositivistas arraigados ao economicismo vulgar que
degrada a civilização em uma crise permanente que se agudiza). Ademais, o que não é menos
relevante (e cada vez mais deve ser pontuado no mundo contemporâneo que se autodegenera
humana e ambientalmente): as atividades intelectuais científicas ou filosóficas não estão “acima”
dos conhecimentos técnicos, práticos, tradicionais, não são superiores ao trabalho manual, mas
antes, cada qual desses modos de conhecimento humano, cada qual desses modos de agir, de ser
no mundo, dialeticamente se inter-relaciona na totalidade social.
Avaliando-se reciprocamente, examinando-se entre si e complementando-se, trabalho
intelectual e manual (divisão aliás superficial e abstrata) constroem seus passos de forma
inseparável – nessa trilha que se abre na direção da nova sociedade, em que o ser humano,
enquanto ser integral que é, tenha a possibilidade de desempenhar com vitalidade suas máximas
virtudes, realizando o homem novo.
Veja-se ainda que a preocupação “totalizante” ou “holística” do marxismo transcende o
âmbito estritamente humano: natureza e história humanas são partes inerentes da realidade,
interligadas em um movimento dialético11. Diante da crise estrutural e civilizacional atual, que
ao problema socioeconômico, impõe o problema ecológico e ético-cultural, o vínculo metabólico

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entre homem e natureza é um fator que não pode ser negligenciado por uma teoria que almeje
compreender a realidade.
Marx estabelece, portanto, o marco da filosofia contemporânea ao materializar a
dialética, ao tornar explícito que a ideia não tem sentido, a não ser em sua relação conflitiva com
a matéria; e que, assim sendo, teoria e prática têm de ser concebidas em sua inter-relação. Como
filosofia da práxis, o marxismo atualizou o próprio conceito de filosofia: materializou a dialética
e foi buscar a tal “natureza humana” na ação libertária, revolucionária, no devir histórico.
Filosofia que transforma a realidade social e é por ela dialeticamente transformada, o
marxismo instaura o pilar do entendimento contemporâneo acerca da atividade de filosofar; seu
princípio de práxis estabelece um novo paradigma para o pensamento: a emancipação do ser
humano, sua liberdade, a condição para a plena realização de seu potencial.

Compreende-se assim que a filosofia marxista se consolida no contemporâneo como a


crítica objetiva e a proposta utópica mais refinada que foi produzida pelo ser humano: o clímax a
que alcançou o desenvolvimento do conhecimento, em sua fusão entre a ideia e o real concreto.
Com Marx, dá-se efetivamente a entrada da consciência na história da humanidade.

REFERENCIAS

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11
Vide: Flamarion Cardoso, “História e paradigmas rivais”, em Domínios da história (1997).
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 1 | Ano 2019 | p. 19
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Prado/ Arquivo IEB-USP (referência: CPJ-CA114).
SARTRE, Jean-Paul. Questão de método. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1966.

Yuri Martins Fontes


Professor e pesquisador acadêmico (membro do
LEPHE/USP e do CEHAL/PUC-SP); ensaísta,
escritor, jornalista e tradutor. Doutor em História
Econômica (USP/CNRS-França), tem formação em
Filosofia e em Engenharia (USP), e pós-doutorados
em Ética e Filosofia Política (USP) e em História,
Cultura e Trabalho (PUC-SP). Coordenador do Núcleo
de Pesquisas sobre a Práxis (FFLCH-USP). Analista
de política internacional e cultura (colunista regular da
Revista Fórum e da Agencia Latino-Americana de
Información, e colaborador de outros meios
independentes).
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