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Professor e pesquisador acadêmico (membro do LEPHE/USP e do CEHAL/PUC-SP); ensaísta, escritor, jornalista
e tradutor. Doutor em História Econômica (USP/CNRS-França), tem formação em Filosofia e em Engenharia
(USP), e pós-doutorados em Ética e Filosofia Política (USP) e em História, Cultura e Trabalho (PUC-SP).
Coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre a Práxis (FFLCH-USP). Analista de política internacional e cultura
(colunista regular da Revista Fórum e da Agencia Latino-Americana de Información, e colaborador de outros meios
independentes).
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Este artigo é um dos frutos de trabalho doutoral desenvolvido sobre os pensamentos de Caio Prado e Mariátegui, o
qual apresenta de modo comparativo aspectos científico-históricos e filosóficos da obra de ambos os autores: O
marxismo de Caio Prado e Mariátegui – formação do pensamento latino-americano contemporâneo (FFLCH-
Filosofia de que muito se fala, mas que é ainda bem pouco compreendida em seus
fundamentos, entende-se o pensamento marxista como o pensamento efetivamente
“contemporâneo”, no sentido de que transcende os aspectos idealistas e superficiais do
pensamento cientificista moderno – cujo ideal positivista enxerga a razão como mero
instrumento de controle social e natural, limitando a noção de progresso tão somente ao
desenvolvimento técnico [MARTINS FONTES, 2017a]3. Superando tal concepção estreita, o
marxismo se consolida desde o século XIX como uma corrente ideológica e cognitiva que
influencia não apenas todas as correntes socialistas, mas inclusive as correntes conservadoras da
atualidade (o aparentemente “renovado” cientificismo moderno, e o supostamente “novo”
relativismo pós-moderno), estas arcaicas ideologias que, embora superadas enquanto saber,
sobrevivem e conservam, ainda hoje, o monopólio discursivo do conhecimento – ferramentais do
capital que, apesar de sua posição ainda dominante, já há muito perceberam que, se não se
adéquam minimamente à roda da história, mais depressa se desmoralizam e tendem a perecer.
No intuito de difusão e melhor compreensão dos princípios que regem o marxismo,
voltemo-nos a Caio Prado Júnior e a José Carlos Mariátegui – dois dos maiores filósofos e
cientistas humanos com que a América brindou o saber universal –, apresentando alguns tópicos
essenciais da visão destes autores acerca da filosofia marxista, a qual concebem, à semelhança de
outros grandes pensadores críticos, como sendo “a filosofia contemporânea”: a autêntica e
insuperada filosofia de nosso tempo.
USP/CNRS-França, 2015). Versão revista e atualizada desta pesquisa acadêmica foi publicada em livro, com o
título: Marx na América – a práxis de Caio Prado e Mariátegui (Alameda/Fapesp, 2017).
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 1 | Ano 2019 | p. 5
Aportes filosóficos de Mariátegui e Caio Prado ao marxismo: a filosofia contemporânea por se realizar
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que mantém o atual estado iníquo de coisas. Com tal postura ativa, pouco a pouco o socialismo
materialista-histórico – a concepção dialética da história fundada por Marx e Engels –,
pensamento filosófico e científico baseado nas contradições, conflitos e divergências de opiniões
e sentidos (que surgem no perene caminhar da história), impõe suas pautas: sociais, ambientais,
emancipatórias, democráticas, anti-imperialistas, descoloniais, de igualdade de direitos e de
oportunidades; pautas que passam então a figurar nos principais debates das cúpulas políticas do
contemporâneo, influenciando não somente outras correntes socialistas, mas a própria agenda
cada vez mais impopular das ideologias conservadoras (preocupadas em não enfraquecer ainda
mais, em não perder os últimos fios de aparente racionalidade que ainda as ligam à história
hodierna).
Efetivamente, a potência do marxismo, ou antes “dos marxismos”, no mundo
contemporâneo – pensamento que atravessou e atravessa a toda vela as insistentes difamações,
perseguições e mesmo extermínios promovidos pelo poder vigente capitalista –, encontra-se na
solidez de seus princípios “dialético” e de “práxis”; uma potência que aumenta conforme
aumentam a injustiça e a miséria humanas, conforme se aceleram os ataques do capital contra a
vida; potência que não dá nenhuma mostra de que irá arrefecer, ao menos enquanto não se
efetive, ou a catástrofe socioambiental e extinção vital completa que se anuncia, ou a resolução
dos problemas humanos mais fundamentais, já apontados pela crítica marxista – questões para as
quais já existem soluções palpáveis, objetivas, não obstante a impiedosa e mesquinha resistência
das classes privilegiadas, que obstaculizam as possibilidades de pô-las em prática.
Embora o pensamento marxista esteja ainda distante de uma necessária hegemonia
política (ou do comando do poder político direto), suas ideias permeiam cada vez mais fundo o
imaginário popular e por conseguinte as lutas sociais em suas variadas formas: classistas, étnicas,
de gênero. Isto, apesar das aparências “conjunturais” que possam obnubilar a visão de
observadores superficiais, desatentos quanto ao todo que compõe a situação histórica
contemporânea.
Veja-se a título de exemplo que a recente guinada política conservadora, que assola
todos os povos do planeta desde a crise econômica global de 2008, consiste sobretudo em uma
resposta das classes dominantes contra a força ascendente socialista (notadamente o comunismo
marxista) – que arrancou a fórceps do capital todas as mínimas reformas humanizadoras do
sistema nos últimos séculos, e que pouco a pouco ocupa as consciências populares. Ou de outro
modo: o atual giro reacionário é uma forma agressiva com que as elites, em meio à crise
estrutural do sistema capitalista, tentam manter seus privilégios incalculáveis, conservar sua
insustentável forma de produção baseada na competição desigual, na devastação dos recursos
3
Sobre o tema da razão instrumental ver: Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento (1947).
naturais finitos, na exploração do trabalho da imensa maioria por uma minúscula minoria
dominante – processo que degrada a humanidade e a natureza em ritmo exponencial.
4
Em sua XI “tese” sobre Feuerbach, Marx já fala de se superar aquela filosofia que só busca “interpretar” o mundo.
Além de Mariátegui e Caio Prado, outros tantos pensadores defenderam a ideia do marxismo enquanto o
pensamento que inaugura a filosofia contemporânea.
5
Note-se que Mariátegui (1994-1930) escreve o substancial de sua obra na década de 1920 (morre ainda muito
jovem). Já Caio Prado (1907-1990) inicia sua obra clássica historiográfica nos anos 1930, vindo a embrenhar-se no
debate propriamente teórico-filosófico nos anos 1950 (seu último ensaio filosófico data de 1977 – O que é filosofia).
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A carta de Caio foi dirigida ao “Comitê Regional de S. Paulo do PCB” (então chamado “Partido Comunista do
Brasil”), em 30 de nov. 1932.
privilégios, há tempos instaurados e ora em risco: uma “revolução passiva”, para usarmos o
conceito de Gramsci (1986), feita “pelo alto”.
Com efeito, as transformações sociais e políticas na América Latina foram feitas através
de arranjos entre facções das camadas dominantes, de conciliações entre as elites, em processos
que excluíram qualquer protagonismo das classes populares; decerto que as massas sempre se
manifestaram, mas mediante um “subversivismo esporádico e elementar” (na expressão também
gramsciana). Diante disto, as classes privilegiadas reagiram com manobras, de modo a esfriar, a
amenizar as disputas interclassistas; introduzem assim certos elementos “modernos”, a fim de
conservar os “arcaicos”, com vistas a debilitar as forças opositoras mais radicalizadas. É este o
movimento histórico chamado pelo marxista italiano de “revolução passiva”, também conhecido
pelo termo dialético “revolução-restauração”: um processo que na superfície traz algo de novo
(diferenciando-se assim das meras “contra-revoluções”), embora mantenha intacta a “estrutura”
da velha ordem (COUTINHO, 2000).
Partindo dessas ponderações, Caio Prado e Mariátegui recusam para suas nações a tese
marxista eurocêntrica que pregava o “aliancismo” – posição iludida com a ideia de que, como na
Europa Ocidental, parcela da burguesia seria nacionalista e estaria ao lado dos trabalhadores em
uma suposta primeira etapa “democrática” da luta pela revolução socialista.
Por outro lado, ambos enfatizam que nossa população camponesa era significativa, e
parte integrante da classe trabalhadora, não podendo estar fora do processo revolucionário
nacional. Nossa revolução tem portanto de ser dirigida pelos trabalhadores do campo e da
cidade, em um movimento unificado – é o que defendem tanto Mariátegui, como Caio Prado.
Todavia vale ressaltar (sobretudo em tempos de proliferação de sectarismos) que, no
caso de determinadas questões pontuais, que possam interessar a certa parcela pequeno-
burguesa, menos conservadora, os dois marxistas entendem que os trabalhadores devem admitir
apoios específicos por parte de elementos da burguesia a seus projetos – mas isto com a condição
de que sempre a direção de tais processos políticos se mantenha sob a guarda dos próprios
trabalhadores, jamais em posição subalterna, representados por seu partido comunista, parte
constitutiva do partido marxista internacional.
Em suma, sendo uma teoria da transformação social, que parte da avaliação da perene
relação conflitiva do todo, o marxismo deve enxergar a realidade em seu movimento histórico,
não podendo admitir determinismos ou análises mecanicistas. Neste percurso, pondo-se como
objetivo captar a totalidade social concreta de suas nações, Caio e Mariátegui contribuiriam com
a ampliação das fronteiras da análise dialética marxista, abarcando um amplo leque de
perspectivas do conhecimento (história, economia, geografia, sociologia, psicologia), transpondo
Como visto, é a partir de investigações sobre suas respectivas realidades nacionais que
Mariátegui e Caio Prado ingressam no âmbito filosófico da crítica marxista; visam defender a
correção de suas análises científico-históricas e políticas.
Suas filosofias seguiriam diferentes caminhos argumentativos, não obstante convirjam
na defesa da metodologia histórico-dialética (enquanto teoria do conhecimento humano pautada
por conflitos, divergências, contradições), e da práxis revolucionária (como categoria ético-
ontológica central que compreende o homem como ser-social pleno, sujeito e objeto da história):
princípios que se inter-relacionam, conformando o cerne do pensamento contemporâneo.
Dentre as maiores contribuições mariateguianas e caiopradianas à universalidade
filosófica do marxismo estão, respectivamente, os conceitos de mito e de sentido – ideias que
possuem certos elementos comuns. O sentido caiopradiano é um caminho de perspectiva realista,
com que se aponta objetivamente para a emancipação humana. O mito mariateguiano é um
sentimento vital a ser exaltado: subjetivo, romântico, que dá significado à vida e à luta pela
liberdade.
Entretanto, note-se que o sentido da história, se compreendido corretamente,
conscientiza e anima o povo à mobilização revolucionária, ao engajamento, trazendo-lhes
confiança no projeto libertador com que se busca reorientar o atual sentido equivocado da
sociedade, pois – como diz Caio Prado –, “diretrizes justas” despertam e mobilizam os “impulsos
revolucionários” das forças populares. Já do ponto de vista de Mariátegui, ele frisa que entende o
marxismo como uma espécie de “bússola” que orienta o pensamento no caminho da
emancipação humana, e neste processo o mito desempenha uma função chave, posto que
consiste em uma utopia coletiva, uma esperança racional que anima o povo a combater por sua
libertação de acordo com tal caminho. Entende-se pois que o realismo de Caio Prado comporta
uma dimensão sentimental ou subjetiva, assim como o romantismo de Mariátegui tem sua face
diretiva ou objetiva (MARTINS FONTES, 2017a).
Com efeito – e esta é a concepção de ambos – o marxismo, pensamento que almeja uma
perspectiva totalizante da realidade, comporta em si os aspectos realista e romântico: abarcando
contribuições de variadas esferas do saber, perscruta com realismo os diversos e complexos
fenômenos que compõem a sociedade; e de outro lado, compreende o ser humano como ser
7
Quando se fala na categoria de “totalidade” do marxismo, faz-se referência tanto a uma metodologia de análise
histórica (que abranje o todo conflitivo), como à plenitude humana (na qual o ser, essencialmente um ser social, é
compreendido como objeto e sujeito da história, envolto na estrutura que em parte o limita, mas que, por outro lado,
é por ele transformada, paulatinamente, em um desenvolvimento que comporta momentos de regressos). Não
confundir esta categoria com aquela de “totalitarismo”: termo ideológico com que a burguesia dita “liberal”,
pregando uma suposta “liberdade econômica” (em verdade a legalização da “libertinagem” exploratória), tenta
justificar seus ataques ao projeto humanista de planejamento econômico e democracia socialista, acusando qualquer
racionalidade produtiva como sendo do mesmo nível da irracionalidade fascista (“autoritária”, “totalitária”). Buscam
com tal argumento a difícil defesa “ética” de seu princípio reacionário. Recordemos – aliás com Mariátegui e Caio
Prado, dentre outros – que o fascismo nada mais é que o modo autoritário de administração do capitalismo, usado
em épocas de crise na qual a face pseudo-democrática do domínio do capital (adornada pelo analfabeto direito a
voto) não se sustenta por si, exigindo que a irracionalidade capitalista, até então socioeconômica (típica de seu
caótico progressismo tecnicista), se extravase também em termos políticos.
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Sobre o tema da plenitude humana, vale remeter-se as considerações dos próprios Engels e Marx, em A ideologia
alemã. Vide ainda o ensaio: “Mariátegui e a filosofia de nosso tempo”, prefácio da tradução Defesa do marxismo –
polêmica revolucionária e outros escritos (Boitempo, 2011).
Nesta direção, Mariátegui e Caio Prado tecem suas severas críticas às filosofias
idealistas, especialmente ao pensamento cientificista (hegemônico na modernidade) – com sua
ilustrada crendice na perfeição científica, na razão instrumental. Fruto do idealismo iluminista
que diviniza as capacidades humanas, este misticismo moderno influenciou fortemente, desde o
fim do século XIX, correntes do campo marxista – iludidas com um suposto evolucionismo
social que “inevitavelmente”, ou “naturalmente” conduziria ao socialismo (ainda hoje se pode
ver ranços desta crença em certas correntes socialistas). Tal postura, na prática, induz os
militantes à passividade, ao conformismo, servindo pois aos propósitos da classe burguesa, a
qual através de fetiches simplórios (caso da ideia “linear” de progresso) mantém o ser humano
escravizado, alienado de si mesmo, de sua própria capacidade e possibilidade de realização
integral9.
É sob uma concepção antimecanicista e combativa que os dois marxistas americanos
analisam o problema socioeconômico da formação e das possibilidades de desenvolvimento de
suas nações, oferecendo sólidos aportes ao que o pensamento crítico-dialético tem de mais atual:
a transcendência de uma sociedade que limita o homem, rumo a uma sociedade livre, que
permita sua realização plena: enquanto trabalhador manual, intelectual e também artista; um ser
integral, conforme o ideal da sociedade comunista que Marx e Engels já haviam sugerido n'A
ideologia alemã (2007 [1845-1846]).
Na compreensão de Mariátegui e de Caio Prado – fio condutor que permeia suas obras –
, o marxismo é sobretudo a filosofia da práxis, da efetiva transformação social que modifica as
estruturas da sociedade. Assim sendo, o marxismo, também denominado materialismo histórico
(posto que refuta abstrações puras e a-históricas), é outrossim a filosofia da liberdade, a filosofia
do poder emancipatório que permite edificar a individuação humana. Mediante sua ação coletiva,
refletida – crítica e autocrítica –, o marxismo desbasta o caminho que conduz ao reino da
liberdade, ao estado de não-fragmentação do ser humano, à sociedade em que o homem possa
ser pleno, no sentido de ser capaz de realizar a plenitude de seu potencial, de desenvolver
atividades diversas e complementares, manuais e intelectuais, tarefas que alimentem o todo de
seu ser; algo como o sugerido, com lirismo, por Marx e Engels (2007), ao imaginar a futura
sociedade comunista, na qual se pode conjugar tarefas, tais como: pescar pela manhã, cuidar da
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Note-se que não só o proletário é escravo deste sistema, mas mesmo o escravizador capitalista também se
converte em escravizado – ainda que em menor grau –, na medida em que não possui paz, não pode usufruir
plenamente da liberdade, da cultura, do bem-estar. O burguês coloca a si próprio na situação de escravo da injustiça,
do medo, da violência, enfim, da infelicidade estrutural que ele mesmo construiu e mantém; e isto, devido a uma
razão vulgar, imediatista, em longo e mesmo em médio prazo infundada, irracional, além, é claro, de uma boa dose
de niilismo e covardia, mesmo que inconscientes.
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 1 | Ano 2019 | p. 15
Aportes filosóficos de Mariátegui e Caio Prado ao marxismo: a filosofia contemporânea por se realizar
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casa pela tarde, escrever pela noite (ou seja, viver e desempenhar diferentes atividades que não
só lhe sustentem, mas lhe agradem e realizem).
Os entendimentos de ambos os latino-americanos no tocante a essa discussão sobre a
liberdade convergem significativamente: no caminho da emancipação social não cabe se apegar
a abstratas prescrições, nem se pode ausentar de tomar decisões. A liberdade é uma construção
social, é a possibilidade de se optar entre alternativas reais, concretas, e por conseguinte,
imperfeitas. É a partir da gradual conquista da liberdade que o ser humano paulatinamente
angaria poder para se superar e aprofundar suas reivindicações. Discursos retóricos, preciosismos
confortáveis, moralismos abstratos são posturas que não favorecem a necessária organização e
coletividade, fundamento para a emancipação humana. Liberdade é poder; é libertação coletiva.
É a negação da restrita liberdade individual burguesa, meramente jurídica, tolerante com os
privilégios das elites conjunturalmente fortes, e com as iniquidades que não se cometam contra a
propriedade (contra o sacralizado capital).
Para os dois marxistas, o poder, e portanto a liberdade, está na conquista política que se
dá mediante a práxis revolucionária: nas revoluções, insurgências, guerrilhas (exaltam como
exemplo inspirador a Revolução Russa, destacando também diversas outras revoluções,
resistências e revoltas populares). Entendem que a práxis revolucionária só é efetiva se fundada
em acurada análise dialética da realidade concreta. Não desdenham porém da necessidade diária,
permanente, de alimentar o sonho revolucionário também nas pequenas lutas cotidianas por
reformas e melhores condições de vida, pela conscientização das massas que torna possível a
revolução: pois a conquista da liberdade está também na tenacidade da população oprimida, que
suporta com valentia e esperança as agruras de seus dias; está na resistência do povo que se
ergue por sua existência, por seus direitos humanos mais básicos.
Em Caio, estas ideias estão aprofundadas em O que é liberdade (1980 [parte de O
mundo do socialismo, 1962]) e O que é filosofia (1981 [1977]), além de A Revolução Brasileira
(1966) e dos ensaios sobre Lévi-Strauss e Althusser (1971). Em Mariátegui, o debate se dá em
seu clássico Siete ensayos de interpretación de la realidade peruana (1989 [1928]), bem como
em Defesa do marxismo (2011 [1928-1929]) e em vários ensaios publicados em outros volumes.
A mensagem que nos foi legada – tanto por Mariátegui, como por Caio Prado – é a de
que o marxismo não é uma filosofia a mais, a compor o quadro frio da “história intelectual”, mas
consiste propriamente na filosofia contemporânea, na ativa e combativa “filosofia de nosso
tempo”: um marco ainda não realizado do pensamento atual, que supera e se opõe às concepções
meramente especulativas da dialética idealista, bem como ao ceticismo, ao niilismo do
materialismo metafísico, que desconsidera o papel do homem nos sentidos da história. Ao
contrário destas filosofias passivas, acomodadas, o marxismo é a “filosofia da práxis” (conceito
desenvolvido por vários marxistas, como Gramsci e Sánchez Vázquez): teoria que é prática e
que, na realização prática, transforma sua própria teoria, em um cíclico processo dialético.
Partindo de uma objetiva avaliação da realidade como um todo – uma totalidade
concreta –, é dever do marxista planejar a sua transformação, a superação da situação presente,
da realidade que é, rumando àquela que pode e deve ser. Tal reorientação do sentido histórico da
sociedade (no conceito caiopradiano) se dá por meio da ação subjetiva consciente,
revolucionária, animada pela energia existencial que é suscitada no homem pela utopia racional,
possível, pela fé racional na liberdade (o mito revolucionário no termo mariateguiano).
Conforme Mariátegui, o marxismo consiste em um pensamento integral que, além de
oferecer um sólido ferramental metodológico-científico, realista, para a transformação social,
tem uma feição romântica, ética, que anima o ser social humano a se bater por tal realização.
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Vide sobre o tema da concorrência (competitividade, competição, competência): Marilena Chauí,
Ideologia da competência (2014).
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 1 | Ano 2019 | p. 17
Aportes filosóficos de Mariátegui e Caio Prado ao marxismo: a filosofia contemporânea por se realizar
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Segundo Caio Prado, é com o marxismo que se inter-relacionam dialeticamente as
dimensões filosóficas e científicas do conhecimento: a filosofia orienta os sentidos da ciência; e
esta, por seu lado, ao caminhar, permite ao homem, mediante suas técnicas, ideias e realizações
produzir a nova realidade concreta, compondo o novo cenário sobre o qual a filosofia deverá
outra vez e sempre debruçar-se, para refletir sobre o real.
entre homem e natureza é um fator que não pode ser negligenciado por uma teoria que almeje
compreender a realidade.
Marx estabelece, portanto, o marco da filosofia contemporânea ao materializar a
dialética, ao tornar explícito que a ideia não tem sentido, a não ser em sua relação conflitiva com
a matéria; e que, assim sendo, teoria e prática têm de ser concebidas em sua inter-relação. Como
filosofia da práxis, o marxismo atualizou o próprio conceito de filosofia: materializou a dialética
e foi buscar a tal “natureza humana” na ação libertária, revolucionária, no devir histórico.
Filosofia que transforma a realidade social e é por ela dialeticamente transformada, o
marxismo instaura o pilar do entendimento contemporâneo acerca da atividade de filosofar; seu
princípio de práxis estabelece um novo paradigma para o pensamento: a emancipação do ser
humano, sua liberdade, a condição para a plena realização de seu potencial.
REFERENCIAS
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Vide: Flamarion Cardoso, “História e paradigmas rivais”, em Domínios da história (1997).
Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 1 | Ano 2019 | p. 19
Aportes filosóficos de Mariátegui e Caio Prado ao marxismo: a filosofia contemporânea por se realizar
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_____. O marxismo de Caio Prado e Mariátegui – formação do pensamento latino-
americano contemporâneo. Tese de Doutorado (FFLCH-USP/CNRS). São Paulo,
Universidade de São Paulo, 2015.
_____. “Mariátegui e a filosofia de nosso tempo”. In: Defesa do marxismo – polêmica
revolucionária e outros escritos. São Paulo: Boitempo, 2011.
_____. “Revolução Russa e Revolução Latino-Americana”. Projeto História, São Paulo, v. 60,
p. 78-114, out-dez, 2017b.
MARX. Karl. “Teses sobre Feuerbach” (1845). In: MARX; ENGELS. Obras escolhidas (v. I).
São Paulo: Alfa-Ômega, s/d.
MARX; ENGELS. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007 [1845-1846].
NETTO, José Paulo. “Nota sobre o marxismo na América Latina”. Marxismo 21, jul/2012.
Disp: https://marxismo21.org. Acesso: 19 mai. 2016.
PRADO JÚNIOR. Caio. A Revolução Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966.
_____. Dialética do conhecimento. São Paulo: Brasiliense, 1969 [1952].
_____. Notas introdutórias à lógica dialética. S. Paulo: Brasiliense, 1968 [1959].
_____. O estruturalismo de Lévi-Strauss, o marxismo de Louis Althusser. São Paulo:
Brasiliense, 1971.
_____. O que é filosofia. São Paulo: Brasiliense, 1981 [original publicado em Almanaque, n.4,
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_____. O que é liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1980 [ensaio publicado originalmente em
1962 como capítulo de O mundo do socialismo].
_____. URSS: um novo mundo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1934.
_____. “Diários Políticos” [anotação em diário de 10 jan. 1946]. In: Fundo Caio Prado Jr./
Arquivo IEB-USP (referência: CPJ006-067).
_____. “Carta ao Comitê Regional de S. Paulo do PCB” (30 de nov. 1932). In: Fundo Caio
Prado/ Arquivo IEB-USP (referência: CPJ-CA114).
SARTRE, Jean-Paul. Questão de método. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1966.