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Resumo Geral do Painel

EXPERIÊNCIA FORMATIVA, MEMÓRIA PEDAGÓGICA E


FORMAÇÃO DOCENTE.
Eldon Henrique Mühl – UPF –RS – eldon@upf.br
Elisa Mianardi – UPF –RS – emainardi@upf.br
José Jackson Reis dos Santos - UESB-BA-jackson_uesb@yahoo.com.br
Lorita Maria Weschenfelder-UFP-RS - lorita@upf.br
Maria Helena Weschenfelder-UPF-RS – helena@upf.br
Thiana do Eirado Sena de Souza-UESB-BA-thysena@hotmail.com
Benedito G. Eugenio-UESB-BA-beneditoeugenio@bol.com.br

Resumo: O painel apresenta um conjunto de reflexões decorrentes de pesquisas em


desenvolvimento que utilizam o registro das experiências cotidianas, as narrativas e a
construção de memórias como práticas de formação pedagógica de educadores e
educandos. Os textos avaliam a importância e a eficácia dos registros das experiências
cotidianas e da narração oral e escrita para a formação docente. Na sociedade atual, em
decorrência do desenvolvimento das novas tecnologias e o predomínio da visão
imediatista de formação, tem-se reduzido a memória a um conhecimento secundário e
quase sem importância, priorizando-se a aprendizagem do transitório, a prática do
resultado e da eficácia produtiva. Isso reduz a capacidade do ser humano de perceber-se
como sujeito de ação no mundo e de partícipe de um processo histórico e social que se
configura pela interação entre um passado e um futuro no tempo presente. Retomar a
função da narrativa e a construção da memória como um dos fatores fundamentais da
formação humana e docente, é a finalidade deste painel. Dentre as inúmeras
modalidades de investigação sobre memória, destacamos a entrevista narrativa, que
pode configurar-se como importante meio para conhecermos a gênese e processos
sociais de fenômenos específicos tendo a coleta de informações a partir de dados
biográficos e históricos da formação de cada indivíduo. As investigações realizadas até
este momento apontam que a prática do registro e da elaboração da memória provoca a
ampliação da autonomia docente e, ao mesmo tempo, promove a autoria da narrativa e
do texto, possibilitando a construção ou reconstrução dos princípios, das concepções e
das práticas vivenciadas.

Palavras-chave: Pesquisa educacional. Experiência formativa. Memória Pedagógica.

TEXTO 1

EXPERIÊNCIA FORMATIVA, MEMÓRIA E FORMAÇÃO PEDAGÓGICA:


ALGUNS PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Eldon Henrique Mühl – UPF –RS – eldon@upf.br


Elisa Mianardi – UPF –RS – emainardi@upf.br

Resumo: O texto traz à reflexão a questão da educação enquanto experiência formativa,


destacando a escrita da memória como elemento fundamental na reconstrução e na
ressignificação do processo de formação destinado à emancipação. Tendo por referência
experiências em realização em projeto de pesquisa, o texto ressalta a importância da
narração e da escritura das próprias experiências para o desenvolvimento da formação
pedagógica de alunos e professores. Na sociedade atual, com o desenvolvimento das
novas tecnologias e o predomínio da visão imediatista de formação, tem-se reduzido a
memória a um conhecimento secundário e quase sem importância, priorizando-se a
experiência do transitório, a prática do resultado e da eficácia produtiva. Com isso,
reduz-se a capacidade do ser humano de perceber-se como sujeito de ação no mundo e
de partícipe de um processo histórico e social que se configura pela interação entre um
passado e um futuro no tempo presente. Retomar a função da memória como um dos
fatores fundamentais da formação humana e da formação docente é a finalidade deste
texto.

Palavras-chave: Experiência formativa. Memória. Formação Pedagógica

Introdução
O presente texto objetiva trazer à reflexão a questão da educação enquanto
experiência formativa, destacando a memória como elemento fundamental na
reconstrução e na ressignificação do processo formativo destinado à emancipação.
Considera, para tanto, que são práticas necessárias da formação a narração e a escritura
da própria experiência pela construção de memórias.

O desenvolvimento da memória foi uma das importantes iniciativas na


concepção educacional tradicional, pois era considerada a principal fonte de
armazenagem das informações e dela dependia o reconhecimento intelectual do
indivíduo. Na sociedade atual, com o desenvolvimento das novas tecnologias e o
predomínio da visão imediatista, reduz-se a memória a um conhecimento secundário,
sem importância para a formação, enquanto prioriza a experiência do transitório, a
prática do resultado e da eficácia produtiva. Essa forma de vida prática reduz a
capacidade do ser humano de perceber-se como sujeito de ação no mundo e de um ser
partícipe de um processo histórico e social que se configura pela interação entre um
passado e um futuro no tempo presente.

No campo da educação, a retomada da memória como elemento formativo


assume uma importância central, especialmente se quisermos fazer da ação educativa
um processo formativo, criativo e emancipador. Disso decorre a necessidade de se
retomar o exercício da construção da memória como uma prática constante na formação
de alunos e de professores.

A concepção do termo memória não é unívoca1. No projeto que desenvolvemos,


ela é entendida como a capacidade do indivíduo de relembrar ativamente fatos e
experiências, de relatá-los com a ajuda de signos – escritura - de ressignificá-los através
da sua atualização diante dos novos contextos e do processo de conscientização e, por
fim, da sistematizá-los em forma de um registro formal e acadêmico. Considera-se que
tal procedimento metodológico possibilitará que a sua ação pedagógica se torne
consciente e autônoma. A cultura da memória é considerada, portanto, um elemento
fundamental da formação humana e uma exigência indispensável para que a
compreensão das experiências, sejam as realizadas no passado como as em

1
Sobre as diferentes concepções sobre memória e seu sentido pedagógico, recomendamos o texto de
BENINCÁ e equipe de pesquisa, 2002, especialmente o capítulo “A memória como elemento educativo”,
p. 125-161.
desenvolvimento, possam ser avaliadas criticamente pelo exercício da compreensão, da
interpretação e da reinterpretação.

Um breve diagnóstico do presente educacional: a perda da capacidade de realizar


experiências e construir memórias

A perda da capacidade de realizar experiências formativas, denunciada por


Benjamin (2012) Adorno (2006) e Agamben (2008), pode ser considerada como o
principal problema da educação contemporânea. Esta constatação nos desafia a buscar
compreender a crise da educação atual e a realizar um diagnóstico que auxilie nosso
entendimento dos principais problemas que a afetam.

A pergunta que cabe fazer é acerca da razão que leva os indivíduos atuais a
perderem a capacidade de realizar experiências formativas. O próprio Adorno (2006)
fornece importantes aportes para o entendimento de tal fenômeno ao constatar a
incapacidade crescente dos indivíduos para a reflexão, considerando que a experiência
formativa decorre de um processo auto-reflexivo, em que a relação com o objeto torna-
se a mediação pela qual se forma o sujeito em sua objetividade.

Com o enfraquecimento da experiência, a sociedade capitalista tende a produzir


uma aversão a tudo que se reporta ao tradicional, ao vivido, ao experienciado, ao que é
produzido de forma artesanal, ao que emerge da prática cotidiana e que foge da
formatação racional científica e da estética imposta pelos aparatos da indústria cultural.
Isso configura o que Adorno identifica como a razão objetiva da barbárie, que consiste
na separação entre o trabalho intelectual e trabalho físico, que faz com que seja
subtraída dos homens a confiança em si e na própria cultura (Cf. 2006, p. 164).

Deve-se a Benjamin (2012) o mérito de ser um dos primeiros pensadores do


século XX a perceber o empobrecimento do ser humano contemporâneo de realizar
experiências. Em um breve texto denominado Experiência e Pobreza, publicado em
1933, constata que as pessoas estão perdendo a capacidade de relatar experiências.
Perguntando-se sobre se ainda alguém tentaria socorrer-se da experiência para lidar com
a juventude responde:

Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que
entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história universal.
Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os
combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em
experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o
mercado literário dez anos depois continham tudo menos experiências transmissíveis
de boca em boca (2012, p. 123-124).

Benjamin percebe que perder a capacidade de realizar e relatar experiências, não


é um fenômeno restrito àquela geração de soldados que voltara da 1ª Guerra Mundial,
mas uma realidade que estava tornando-se comum na sociedade do seu tempo. A
pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza cultural que se estava
desenvolvendo em decorrência dos avanços das novas formas de vida e do avanço
tecnológico. Daí sua preocupante pergunta: “Pois qual o valor de todo o nosso
patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?” (2012, p.124). Sem o
respeito a um passado e a uma geração passada, não pode haver transmissão cultural e a
experiência formativa é intensivamente prejudicada.
Agamben (2008), sustentando-se nas reflexões de Benjamin afirma que “todo o
discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que ela não é mais
algo que ainda nos seja dado a fazer. Pois, assim como o homem atual foi privado da
sua biografia, o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência” (p. 21). E
complementa: “A incapacidade de fazer e transmitir experiências talvez seja um dos
poucos dados certos de que disponha (o homem moderno) sobre si mesmo” (p. 21).

O pensador italiano constata ainda, que no contexto da atual sociedade, a


destruição da experiência já não depende mais de grandes catástrofes – como a tragédia
da Boate Kiss na cidade de Santa Maria, a catástrofe do rompimento da Barragem de
Mariana, a morte por afogamento de crianças, mulheres e homens na fuga da guerra no
mar Mediterrâneo, a matança de civis em Alepo e em diversos outros países por guerras
e conflitos étnicos - mas a “pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para
esse fim, perfeitamente suficiente” (p. 21). A destruição da experiência formativa se
realiza em razão da pobreza a que vida cotidiana foi reduzida e à ideia de que tudo o que
se opõe ao avanço da vida programada destinada ao consumo e à produção.

Retomando Benjamin, podemos identificar quatro aspectos que limitam a


experiência formativa e motivam o descarte da vida humana: o declínio da tradição, a
destruição da memória comum, a ausência crescente de experiências coletivas tanto no
trabalho quanto em outras atividades cotidianas e, por fim, o empobrecimento das
práticas comuns de linguagem e de narração.
Sustentado nesta análise de Benjamin, Bárcena (2012) destaca que na onda de
descarte do passado, tornam-se figuras proscritas o leitor, o escritor, o pensador e todas
aquelas figuras que podem trazer algum problema ao espírito capitalista globalizado: o
melancólico, o aborrecido, o infeliz, o depressivo. Afinal, “tristeza e tédio são ameaças
para o sistema”. Ao descartar estas manifestações elementares da vida humana, a atual
sociedade elimina o elemento basilar que torna a vida de cada indivíduo um
acontecimento humano original e único. Ao destruir a prática da construção da
memória, das práticas da narração, a sociedade atual vai criando as condições de uma
humanidade sem tradição, sem passado e de um futuro que é a repetição do presente.

Larrosa (2016) descreve alguns fatores que impedem a realização de


experiências formativas na atualidade: o excesso de informação, o excesso de opinião, a
falta de tempo e o excesso de trabalho. O sujeito moderno está submetido a inúmeras
informações, sabe muitas coisas, mas isso não o torna sujeito de experiências. Ao
contrário, como sujeito da sociedade da informação está cada vez mais impedido de
perceber o que ocorre com ele e de realizar suas próprias experiências. Assoberbado de
informações e ocupado em se atualizar permanentemente sobre o que há de novo, ele já
não possui tempo e poder para se ocupar com o que se passa com ele próprio. Além
disso, precisa sempre possuir uma opinião sobre tudo e sobre todos, mesmo não
possuindo um conhecimento minimamente razoável sobre o que está a ocorrer. O
sujeito moderno está submetido uma vivencia de tempo fugaz e imediatista. Tudo se
passa demasiadamente de pressa e cada fato se apresenta como único e absoluto, sem
nexo com o passado e sem relação com o futuro. O trabalho também já não é um
momento de realização de experiências formativas, ao contrário, pela forma que assume
na sociedade capitalista, ele se torna um dos principais dispositivos que a inviabilizam.
Em decorrência de todas estas circunstâncias, a educação não escapa de um destino
similar:

Nesta lógica de destruição generalizada da experiência, estou cada vez mais


convencido de que os aparatos educacionais também funcionam cada vez mais no
sentido de tornar impossível que alguma coisa nos aconteça. Não somente, como já
disse, pelo funcionamento perverso e generalizado do par informação/opinião, mas
também pela velocidade. Cada vez estamos mais tempo na escola (e a universidade e
os cursos de formação de professores são parte da escola), mas cada vez temos
menos tempo. Esse sujeito da formação permanente e acelerada, de constante
atualização, de reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o tempo como um valor ou
como uma mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre de
aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem que seguir o
passo veloz do que se passa, que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa
obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este sujeito já não tem tempo. E na
escola o currículo se organiza em pacotes cada vez mais numerosos e cada vez mais
curtos. Com isso, também na educação estamos sempre acelerados e nada nos
acontece. (LARROSA, 2016, p. 22-23).

Infelizmente a educação e, de modo especial, a escola, são lugares e tempos em


que a preocupação com o desenvolvimento da vida se limita em torna-la ordenada,
classificada, simplificada, desativada, desvitalizada, enfim, pobre e enfadonha. Em vez
de possibilitar e desenvolver experiências formativas, a escola acaba sendo o lugar e o
tempo da manipulação da vida do aluno, no sentido de evitar que ela aconteça em toda
sua potencialidade, em toda a sua criatividade, em toda sua intensidade, em toda sua
espontaneidade. Como resultado, temos uma escola pobre e pouco atraente para os
alunos e frustrante para os professores.

Formação pedagógica e o restabelecimento da experiência formativa

Neste breve diagnóstico constatamos como a falta de cultivo da memória reduz a


experiência formativa dos indivíduos: a destruição ou o empobrecimento da experiência
formativa, a figura do sujeito criador, do leitor crítico, do escritor imaginativo, do
educador inventivo. A pergunta que surge diante desse quadro é a seguinte: como
podemos situar a educação diante desse contexto e que exigências ela precisa atender
para que se possa recuperar a capacidade do indivíduo realizar experiências formativas?
Diante do espetáculo horrível da vida frustrada, “pisada, espatifada, achatada,
violentada, negada da sociedade do desempenho, do empreendedorismo, da competição,
do espetáculo”, que papel a educação precisa assumir e que possibilidades ela tem de
enfrentar a barbárie cotidianamente produzida? Como podemos desenvolver novas
modalidades de formação sustentadas na experiência, especialmente da experiência
empobrecida? Qual é a importância da elaboração da memória da experiência no
desenvolvimento do conhecimento, da ética e da estética no campo educacional?

Antes de adentramos nestas questões, precisamos esclarecer o que se entende


por experiência formativa e qual a origem deste conceito. Para tanto vamos inicialmente
buscar algumas fontes etimológicas do termo experiência para posteriormente esclarecer
a concepção de experiência formativa. Segundo Larrosa,

a palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A


experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com
algo que se experimenta, que se prova. O radical é periri, que se
encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-européia é per,
com a qual se relaciona antes de tudo a ideia de travessia, e
secundariamente a ideia de prova. Em grego há numerosos derivados
dessa raiz que marcam a travessia, o percorrido, a passagem: peirô,
atravessar; pera, mais além; peraô, passar através, perainô, ir até o
fim; peras, limite. Em nossas línguas há uma bela palavra que tem
esse per grego de travessia: a palavra peiratês, pirata (LARROSA,
2002, p. 25).
Em alemão o termo possui duas variantes: a primeira denominada Erfahrung,
que possui em sua raiz a palavra que significa viajem (Fahrt), tendo conotação com a
ideia de narrativas diversas e de acontecimento. No antigo alto-alemão, de fara também
deriva Gefahr, que significa perigo, e gefährden, pôr em perigo. Assim, tanto na língua
germânica como na latina, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão
de travessia e perigo.

A segunda, denominada Erlebnis, que tem como raiz a palavra Leben (vida), e
conjuga a fugacidade do ato de vida e a memória que o conserva e transmite. É a
vivência do indivíduo isolado em sua história pessoal cotidiana e ordinária, a impressão
forte que precisa ser assimilada às pessoas e que produz efeitos imediatos. Erlebnis
significa uma vida do imediatismo, sem laços com o passado, atropelada pelo excesso
de apelos da sociedade de consumo. Esta é a noção que melhor traduz a vida na
modernidade capitalista2.

Todos vivem de alguma forma uma consciência de vida, mesmo sendo a


consciência de uma vida danificada. Nem todos vivem, no entanto, experiências de vida
refletidas. Isso tem feito com que muitos indivíduos vivam a experiência da vida
empobrecida, sem se darem conta desta condição. Os relatos de suas vidas quase não
ocorrem, e quando acontecem, expressam lamentos de uma experiência frustrada. É a
expressão de uma vida destituída de sentido e de um processo de produção coletiva do
non sense. A anomia e o vazio da vida cotidiana de muitos indivíduos manifestam este

2
Cabe ressaltar que o uso destes dois conceitos na literatura e mesmo nas obras científicas e filosóficas é
bastante confuso. Por vezes são usados como sinônimos, às vezes como complementares, às vezes como
antônimos (Cf. LARROSA, 2002 e BÁRCENA, 2012). Em Benjamin e Adorno os dois conceitos são
utilizados para distinguir a experiência como realização cultural pública da narrativa coletiva, da
experiência privada e particular que predomina na sociedade contemporânea. Consideramos esta as duas
concepções são importantes para o entendimento do sentido da formação em desenvolvimento na atual
sociedade.
empobrecimento. Nesta circunstância, o indivíduo desenvolve uma consciência
coisificada que o torna não apto à experiência formativa.

Esse estado de ser é fatal para o campo educacional. Por isso, o restabelecimento
da experiência, seja ela como “rememoração do passado coletivo” (BENJAMIN, 1987)
ou como “elaboração do passado” (ADORNO, 2006), são desafios que os educadores
precisarão enfrentar. É preciso desenvolver uma formação que torne cada sujeito capaz
de desenvolver experiências formativas.

Mas quem será este sujeito da experiência formativa ? Para responder esta
questão, vamos apontar duas perspectivas: a perspectiva de quem tal sujeito é na
perspectiva da experiência negada ou empobrecida e a perspectiva do sujeito da
experiência formativa crítica. O sujeito da experiência negada ou empobrecida é o
sujeito da barbárie, do conhecimento dogmático e cabal, da ciência positivista e
instrumentalizada, o sujeito prenhe de informação, de opiniões, do trabalho alienado, do
ativismo e do tempo totalmente programado. É o sujeito do julgamento autoritário, do
poder burocrático ou da ordem sistêmica.

O sujeito da experiência crítica é o sujeito que se expõe, é vulnerável e se coloca


em risco. Não é alguém que imediatamente opina, apresenta certezas, toma posição, se
opõe, propõe, impõe, domina, determina. É o sujeito que deixa que as coisas apareçam,
o interpelem, o toquem, o provoquem. Não faz acontecer, mas deixa que as coisas
aconteçam. Permite que a vida ocorra em vez de querer determina-la e controla-la. É um
ser aberto a sua própria transformação. É o sujeito “um território de passagem”, um
ponto de chegada, um lugar dos acontecimentos. Ele não se define pelas suas conquistas
e seus sucessos. Antes disso, é um sujeito sofredor, padecente, receptivo, interpelado,
submetido. Não tem essência ou fundamento, apenas existe como um ser singular,
finito, histórico, imanente, contingente.

É um sujeito do desejo, da paixão que o faz padecer e, ao mesmo tempo, o torna


livre e responsável em resposta a aquilo que o interpelou. Como ser passional tem sua
própria força que o torna um ser da práxis, capaz de compreensão, de conhecimento e
de ação moral. É um ser que propõe, não impõe.

O sujeito da experiência é, ainda, - neste caso nos referimos especificamente a


Benjamin - um sujeito comprometido com uma ética da memória, que ao relatar a
história a contrapelo3, enquanto a história da caminhada da humanidade para a
catástrofe, ocupa-se em desenvolver uma compreensão do passado a partir das ruinas do
presente. É um sujeito ecológico, à medida que denuncia a natureza explorada pelo
homem moderno como uma “paisagem arruinada”. É um sujeito narrador, que “retira o
que ele conta da experiência: de sua própria experiência ou da relatada por outros (...) e
incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes” (BENJAMIN, 2012, p.
217). O narrador mantém a “forma artesanal de comunicação” e faz da narrativa um
ensinamento moral, uma sugestão prática, uma norma da vida, um conselho de
sabedoria.

O sujeito da experiência é um arqueólogo ou um cartógrafo que procura retraçar


topografias do medo, do terror, que seleciona e acumula os destroços da inesgotável
tragédia do progresso da educação ocidental. De outra parte, é o colecionador das obras
e histórias esquecidas, preocupado em produzir o renascimento de suas memórias. Sim,
ele é um sujeito criativo, um artista que desenvolve o trabalho de um compositor que
recolhe os restos fragmentários da história e reconstrói não a aparência de uma
totalidade harmônica, mas, através de um exercício atento e imaginativo sobre a
constituição dialético-histórica de cada fragmento, uma constelação em que resplandeça
a verdade histórica de cada ação e de cada obra (Cf. ZAMORA, 2008, p. 148).

A escritura do sujeito da experiência não se destina a definir conceitos fechados


e concepções orientadas por uma lógica causal e retilínea. Antes disso, o conhecimento
é concebido como um campo de força marcado pela tensão, pelo transitório, pelo
fragmento. O conceito existe de modo dinâmico e na relação múltipla com os contextos.
O texto não é um a manifestação de saber verdadeiro, definitivo, mas apenas a
expressão de um instante do gesto de um sujeito que se sente desafiado a expressar suas
memórias, seus saberes, seu fazeres, seu desejos e suas frustrações.

3
As teses de Benjamim sobre o conceito de história é uma referência importante para o entendimento da
função do pensamento crítico na sociedade moderna e contemporânea. Em seu artigo Sobre conceito de
história (2012), Benjamin conclui que a história ocidental não é uma caminhada para o progresso, mas
um andamento no interior de um tempo vazio e homogêneo que acaba sempre na barbárie e num
progresso material sem alma. Para um apropriado diagnóstico do nosso tempo, é necessário superar o
conceito dogmático da história, retomar o passado e encontrar nele as “centelhas da esperança”. A história
ocidental precisa ser lida como a história da servidão, da opressão. Benjamin recomenda a leitura da
nossa realidade a partir da opressão e dos oprimidos: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado
de exceção” (Ausnahmezustand) em que vivemos é a regra. Precisamos construir um conceito de história
que corresponda a esse ensinamento”(2012, p.245).
A experiência autêntica só pode ser realizada se for levada em consideração a
experiência danificada. O ponto de partida de reflexão deve ser a catástrofe ou o
fracasso que se apresenta cotidianamente nos diferentes contextos de ensino e
aprendizagem. Conforme bem lembra Zamora (2008), modelos de vida justa só se
podem estabelecer na condição de uma consciência sensível a sua própria precariedade
problematicidade e exige uma dupla referência: a humanidade realizada e a
autodeterminação do indivíduo (p. 265-266). Uma experiência se torna formativa
quando algo nos derruba e nos transforma. Fazer experiência não significa “fazer
acontecer”, mas antes, vivenciar e refletir intensamente sobre aquilo que nos acontece,
sobre a vida que se dá em cada momento e em cada circunstância.

Conclusão

O registro, a narração e a memória são princípios práticos básicos no


desenvolvimento do projeto Teoria e prática na formação do educador: exigências e
desafios da prática pedagógica na sociedade complexa e plural, desenvolvido na
Universidade de Passo Fundo. São momentos distintos, porém complementares entre si
e que se articulam com a visão crítica da educação acima exposta. Tal concepção
apresenta implicações não somente teóricas e conceituais, mas metodológicas e
procedimentais. A finalidade principal é realizar um processo formativo e investigativo
que resulta na consecução de uma prática pedagógica transformada em práxis.

O projeto concebe a memória como a capacidade de cada indivíduo de relembrar


ativamente fatos e experiências, de relatá-los com a ajuda de signos (escritura), de
reutilizá-los e ressignificá-los através da sua atualização diante dos novos contextos e do
processo de conscientização. O relembrar é o ponto de partida, mas esse exercício, por
si só, é insuficiente. A memória só se consolida como um testamento da própria
experiência quando se transforma em um texto em que a mesma é sistematizada e
transformada em um registro formal, textual, com a finalidade de permitir a socialização
do acontecido e em testemunhar a vida em realização. Considera-se que é somente se
transformando em um texto, onde se conjuga a narração e a reflexão, que a experiência
pedagógica pode se transformar em uma efetiva práxis. A cultura da memória e sua
escritura são consideradas, portanto, elementos fundamentais da formação humana e
uma exigência indispensável para que a compreensão das experiências realizadas no
passado, possam ser avaliadas criticamente pelo exercício da compreensão, da
interpretação, da reinterpretação.

A proposição do registro, do relato e da escritura da memória tem, também, um


caráter ético de tornar cada educador e educando protagonistas e responsáveis pela sua
ação e formação. Trata-se de desenvolver a “ética da iniciativa” (RICOEUR, 1989, p.
262), tendo como finalidade o desenvolvimento da criatividade, da auto-imagem, da
responsabilidade e dos respeito ao outro.

A memória é a obra ou o texto em que se realiza a compreensão de si, do mundo


e dos outros, à medida que o autor se coloca na posição de realizar sua reconstrução
pela aprendizagem que se realiza no cotidiano da escola ou de outros contextos de
formação. O texto que surge da construção da memória, ainda que precária e
inconsistente, é uma obra importante que traduz a construção da própria identidade do
sujeito. Nela acontece o reconhecimento de si mesmo e por ela desenvolve-se a
maturação de cada pessoa. Por ela, cada ser humano pode descobrir que ele é ainda o
autor de suas próprias experiências.

Referências

ADORNO, T. Educação e emancipação. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.


ADORNO, T W. Teoria da semicultura. Educação & Sociedade: ano XVII, n. 56,
Campinas: Editora Papirus, dez., 1996, p. 388-411.
AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
BÁRCENA, F. El aprendiz eterno: filosofia, educación y el arte de vivir. Madrid:
Miño-Dávila, 2012.
BENINCÁ et al. A memória como elemento educativo. In: BENINCÁ, E.; MÜHL, E.H.
Educação, práxis e ressignificação pedagógica. Passo Fundo: UPF Editora, 2010, p.
125-161.
BENJAMIN, W. Walter Benjamin – Obras escolhidas. (Vol. 1). Magia e técnica, arte
e política. 12 ed., São Paulo: Brasiliense, 2012.
LARROSA, J. B. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista
Brasileira de Educação, n. 19, jan/abr, 2002, p. 20-28.
LARROSA, J. B. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica,
2016.
RICOEUR, Paul. Do texto à acção. Porto: Rés-Editora, 1989.
ZAMORA, J.A. Th. W. Adorno: pensar contra a barbárie. São Leopoldo: Nova
Harmonia, 2008.
TEXTO 2

MEMÓRIA PEDAGÓGICA: SENTIDO E CONTRIBUIÇÕES PARA A


PRÁTICA DOCENTE

José Jackson Reis dos Santos - UESB-BA-jackson_uesb@yahoo.com.br


Lorita Maria Weschenfelder-UFP-RS - lorita@upf.br
Maria Helena Weschenfelder-UPF-RS – helena@upf.br

Resumo: A pesquisa inscreve-se no campo das discussões sobre formação docente,


com ênfase em processos de reflexividade crítica das práticas. A questão central que
perpassa o estudo busca analisar o papel formativo da “memória pedagógica”, suas
potencialidades e principais contribuições para as práticas docentes. De natureza
qualitativa e apoiando-se, principalmente, em Benincá (2002), a pesquisa reflete, teórica
e metodologicamente, sobre o sentido da observação, do registro, da escrita de
memórias e sua contribuição no desenvolvimento da práxis pedagógica. A formação
profissional docente, por meio da escrita de memórias pedagógicas, num contexto mais
amplo de discussão da práxis social, representa um espaço de ampliação da autonomia
docente e, ao mesmo tempo, de autoria, possibilitando (re)construir princípios,
concepções e práticas vivenciadas. A experiência com a memória pedagógica provoca
retornos mais direcionados às práticas cotidianas, articulando, colaborativamente,
diferentes níveis e modalidades educacionais em distintos espaços.

Palavras-chave: Memória pedagógica. Reflexividade crítica. Prática docente.

Introdução

A construção e a análise de práticas docentes por meio da utilização de memória


pedagógica não são ações recentes. Esta prática surgiu no início dos anos de 1980, com
a reformulação de diversos cursos de licenciatura e como uma forma de promover
mudanças das práticas pedagógicas desenvolvidas nesses cursos. A partir do final da
década de 1980, o Grupo de Pesquisa Teoria e Prática na Formação de Educadores
vem trabalhando com a memória em processos de desenvolvimento de pesquisa e de
formação inicial e continuada de professores.

Na década de 1990, a experiência com a escrita de memória se expandiu através


de atividades de extensão, especialmente por programas de educação continuada, em
vários municípios do Rio Grande do Sul e também em municípios do Estado da Bahia.
A título de exemplificação, na Bahia, a experiência se desenvolveu desde o ano 1998,
no processo de acompanhamento político-pedagógico do Programa Alfabetização
Solidária, programa, na época, voltado à alfabetização de pessoas jovens, adultas e
idosas. Nesse trabalho de alfabetização, ampliou-se a experiência de formação de
alfabetizadores, assegurando a memória pedagógica como principal dispositivo no
processo de formação docente. Esta iniciativa estava articulada ao Projeto Político-
Pedagógico, intitulado: “Nos coletivos, reencontro com a Pedagogia da Esperança”,
desenvolvida por uma instituição universitária do norte do Rio Grande do Sul.

Progressivamente a memória pedagógica tem-se tornado uma prática recorrente


nos cursos de graduação, especialmente Pedagogia e Educação Física, nos trabalhos de
extensão, assim como, na formação de novos pesquisadores, tanto em grupos de
pesquisa, quanto no cursos de pós-graduação de lato e stricto sensu.

Diante do exposto e considerando os distintos contextos anteriormente citados, o


presente trabalho analisa o papel formativo da memória pedagógica, suas
potencialidades e principais contribuições para a formação dos sujeitos

Memória pedagógica: sentido e contexto geral de seu surgimento

Benincá (2002, p.10) afirma que “[...] a memória é um momento reflexivo do


sujeito que busca explicitar e reinventar a sua própria prática”. De acordo com o
referido autor (2002, p.13), ela “[...] é mais exigente que o registro e sua estrutura é
diferente: o registro pontualiza observações, ao passo que a memória é um texto
ordenado. [...] Enquanto recurso formativo, a memória pode tornar a própria prática um
objeto de reflexão”.
A observação e o registro, afirma Benincá (2002), são anteriores à memória. A
observação das próprias práticas e seus registros (digitais, escritos etc) são ações
necessárias no processo de elaboração das memórias. Observação como atitude
permanente do partícipe no momento em que realiza as sessões coletivas de diálogo
(SANTOS, 2011). Observação como atitude de sabedoria nas escutas sensíveis
(BARBIER, 2002) em relação ao grupo de pertença. Observação crítica e atenta em
relação ao contexto político, social e cultural no qual as práticas educativas ocorrem.
Observação dos gestos, dos silêncios, das ausências em relação à temática estudada e
debatida pelo grupo colaborativo. Observação densa e detalhada como atitudes,
etnograficamente, pensada e vivida cotidianamente.

O registro pode ser entendido como a produção, em processo, de rascunhos e


observações que cada partícipe considera fundamentais para elaborar, posteriormente, a
memória. Ele pode ser feito por meio de diferentes estratégias, por exemplo: a) gravado,
transcrito e reescrito; b) gravado e transformado em memória; b) escrito na agenda, no
caderno ou no computador em forma de texto ou de tópicos. Representa a objetivação
do pensamento enquanto o outro fala, na perspectiva de quem escuta e escreve. O
registro sempre é feito em ato, no percurso de acontecimento das práticas. Muitos
registros também são cópias identificadas do discurso alheio. Outros registros podem
ser os sentidos e os significados que o partícipe atribui ao discurso alheio. Registros
podem ser, ainda, reflexões pontuais e isoladas sobre os discursos do outro. Nessa fase
anterior à memória, não existe muita preocupação com a revisão de linguagem escrita
(ortografia, pontuação, coesão, coerência etc.). (SANTOS, 2011; BENINCÁ, 2002).

Para Benincá (2002, p. 59),

A memória [...] constitui a explicitação de uma construção


subjetiva que pretende levar cada indivíduo a manifestar a sua
experiência, única e original, no processo pedagógico. Sua
finalidade é expor a compreensão que cada um tem da
experiência pedagógica em desenvolvimento e permitir a
avaliação do significado de tal processo na sua formação global.

Entendida nessa perspectiva, a memória passa a nos fazer pensar sobre nós
mesmos, sobre nossos desafios e potencialidades cotidianas, sobre o processo
educacional em construção. Nesse sentido, ela colabora também na articulação dos
encontros de estudo, por meio de um processo mais amplo de formação (tanto inicial
quanto continuada). Ela também possibilita construir redes de formação, considerando o
contexto cultural dos sujeitos, suas histórias, suas experiências. (ESTEVES, 2002).

O trabalho com a memória, na perspectiva de Benincá et al. (1998), não pode ser
realizado de forma isolada. Ela se encontra no contexto da práxis pedagógica. Conforme
Benincá et al. (1998, p.136), há movimentos constituidores de uma metodologia da
práxis, quais sejam: a) a observação documentada da prática pedagógica; b) a leitura das
memórias pedagógicas, seguida do levantamento de indicativos e de sua análise; c) a
teorização da prática e o retorno a ela de maneira intencional e transformadora.

A observação da prática pedagógica, segundo o grupo, é entendida como os


olhares intencionais lançados sobre, para e a partir da ação que, cotidianamente, se
estabelece entre educador-educando-contexto. A observação, assim, “[...] tentará
perceber como acontece a relação e porque ocorre de tal forma” (BENINCÁ et al.,
1998, p.136).

Escritas as memórias, os próximos passos incidem na contextualização da


prática pedagógica, iniciados sempre com base no diálogo problematizante.
Socializadas no grupo, as memórias possibilitam a externalização das práticas dos
sujeitos, a organização dessas práticas em indicativos, a análise coletiva das
problemáticas locais, a teorização dos indicativos e, consequentemente, a organização
de ações para retornar à prática pedagógica, intencionalmente.

As leituras de memórias pedagógicas construídas pelos pesquisadores


constituem o segundo momento dessa metodologia. Todos os pesquisadores, em tempos
e espaços definidos, nesse momento, entram num esforço coletivo e sistemático de
levantamento de indicativos e de categorização dos dados gerados, por meio da prática
pedagógica de cada um, nas suas diversas relações estabelecidas. O processo de
teorização, nesse caso, “[...] decorre de um primeiro distanciamento crítico sobre a
realidade que se expressa através da memória” (BENINCÁ et al., 1998, p.135).

O retorno à prática constitui-se no terceiro movimento metodológico.


Mediatizado pela ação-reflexão-ação, esse retorno configura-se como ações
organizadas, intencionais, construídas num processo coletivo de discussão e análise da
prática pedagógica.

De acordo com Benincá et al. (2002, p. 118-119), a metodologia proposta

[...] tem como referencial teórico a práxis pedagógica, ou o


processo de ação-reflexão-ação. A prática pedagógica é
constituída de ações efêmeras, que não podem ser recriadas
artificialmente para, então, serem analisadas repetidas vezes, até
que se produza um conhecimento exato e definitivo sobre ela.
Assim, o desafio do professor que pretende transformar a sua
prática – fragmentada, improvisada, não refletida, cotidiana –
em práxis pedagógica é comprometer-se com um método de
investigação que garanta um mínimo de distanciamento da
realidade vivenciada e a objetivação das intenções/ações/reações
que compõem o ato pedagógico.

Nos espaços-tempos de formação e de desenvolvimento de pesquisas, temos


assumidos os seguintes movimentos teórico-metodológicos: a) leitura da memória
pedagógica da sessão anterior; b) fundamentação teórico-metodológica definida
coletivamente pelo grupo de trabalho; c) o repensar da prática político-pedagógica
(através das leituras de memórias individuais); d) levantamento de indicativos,
discussão e encaminhamentos (teóricos e práticos); e) (re)construção do planejamento a
partir das leituras crítico-compreensivas das memórias individuais, que retratam, além
das práticas desenvolvidas no decorrer do trabalho, a realidade dos sujeitos. (BENINCÁ
et al., 1994; 1996; 1997; 1998).

A seguir, apresentamos fragmentos de uma memória da educadora Thaís


Almeida4, profissional atuante em um dos projetos do grupo:

Nossa atividade docente vem sendo árdua, mas gratificante, pois


é no exercício metodológico da práxis que desenvolvemos
nossos trabalhos. Manter os educandos em sala de aula
estudando por prazer se tornou, para nós, alfabetizadores, uma
questão vital, um desafio em que a qualquer custo iremos achar
a solução. A distância, a situação das estradas, as chuvas e o frio
vão contra as nossas forças e, principalmente, a dos nossos
alunos. Chegamos à conclusão de que precisamos inventar uma
estratégia que revolucione a escola. A nossa preocupação com o
desenvolvimento da aprendizagem dos alfabetizandos vai além
dos limites, pois queremos construir uma história. O surgimento
desse projeto trouxe uma alegria, uma esperança que ninguém,
somente os próprios educandos sabem explicar. [...] E sabemos
que, como o grande mestre Paulo Freire disse, também jamais
foi fraca em nós a certeza de que vale a pena lutar contra os
descaminhos que nos obstaculizam de sermos mais.

Como percebemos, a apreensão crítica dos condicionantes da prática pedagógica


docente evidencia-se na memória citada. Nela, transformamos em conteúdos concretos
para problematização o que parecia não ter relevância ou que, muitas vezes, observamos

4
Preservando o anonimato do sujeito, o nome apresentado é fictício.
superficialmente. A construção e ampliação da consciência crítica a partir da memória
possibilita reinterpretar e reconstruir realidades, no sentido de transformá-las. Esse
movimento contribui para a identificação da razão de ser de diversos desafios
educacionais e sociais. De uma prática espontânea, aos poucos, avançamos para uma
prática crítica, social e historicamente situada. Passar a pensar, tomando por base
elementos oriundos da própria prática e do próprio espaço de atuação, é um exercício
transformador e emancipante (FREIRE, 1987). Não é outro que pensa por mim, não é o
outro que faz por mim, mas nós, juntos, (re)fazemos as trilhas, tornando públicas
problemáticas que antes eram apenas do conhecimento de um único (ou de poucos)
sujeito(s). Com ética, com respeito ao outro, (re)fazemos a história, passamos a nos
incluir como homens e mulheres que agimos, refletimos, (re)escrevemos o mundo que
nos cerca, produzindo novas páginas na história da humanidade.

Palavras para (in)concluir

Para provocar a escrita de memórias, indicamos questões que provocam um


olhar para o próprio sujeito implicado em sua realidade, falando sobre suas afetações no
contexto de vivência e de produção de experiências. Temos defendido que não existe
modelo para escrever memórias. Esse dispositivo de pesquisa-formação prioriza o
desenvolvimento do princípio da reflexividade crítica sobre o processo vivido, situando-
se ética, política, estética, cultural, social e criticamente, no contexto da vivência
registrada, pesquisada, construída.
A memória pedagógica, como dispositivo central construído em nossas
experiências, explicita práticas cotidianas desenvolvidas tanto em sala de aula quanto
em outros espaços. Colocavam-se em questão condicionamentos presentes no contexto
educacional, objetivando avançar na construção e transformação crítica da realidade. A
preocupação centrada na escrita, leitura e análise da memória consiste em identificar
possibilidades de construção do conhecimento para superar compreensões mecanicistas
muitas vezes explicitadas em nossas ações imediatistas. Se tivéssemos de situar a
memória no contexto de sua produção, diríamos que se encontra entre a familiaridade e
proximidade do contexto no qual atuamos e a distância que dele fazemos para
problematizar, entender, reconstruir concepções e práticas pedagógicas.
(WESCHENFELDER, OLIVEIRA, SANTOS, 2005).
O trabalho com memórias tem apresentado resultados relevantes. Entre esses,
citamos: a) refletir e teorizar as próprias práticas; b) Distanciar-se das práticas no
movimento de reflexão e de teorização para compreendê-las, criticamente, e intervir
numa perspectiva transformadora; c) avançar no nível de consciência que se tem das
realidades (análise da natureza dos diferentes condicionamentos orientadores das
práticas); d) retornar, dialeticamente, ao contexto de atuação profissional, por meio de
um (re)planejamento das práticas; e) aprender a lidar com os processos educativos e de
pesquisa enquanto campos de (in)certezas, de conflitos, de contradições, de
(im)previsibilidades; f) desenvolver um processo crítico, reflexivo e (auto)formativo; g)
ultrapassar a dimensão de profissionais que criticam e analisam a prática dos sujeitos
para uma posição de colaboração e de aprendizagem mútua. (OLIVEIRA,
WESCHENFELDER, SANTOS, 2004).

A elaboração de uma memória possibilita revelar práticas cotidianas


desenvolvidas em sala de aula ou em outros espaços educativos, colocando em
evidência condicionamentos que acontecem no contexto educacional, oportunizando
exercitar momentos de reflexão que promovam a construção crítica da consciência
sobre si, sobre o mundo e no processo de permanente emancipação. A produção de uma
memória não se restringe à descrição de um tempo que passou; representa um espaço de
construção de processos críticos e reflexivos, permitindo o olhar para si, tomando como
referência sua própria prática. Nessa direção, a escrita de uma memória representa um
espaço de ampliação da autonomia docente e, ao mesmo tempo, de autoria,
possibilitando (re)construir princípios, concepções e práticas.

A experiência com a memória pedagógica tem provocado um retorno mais


imediato e qualificado para os partícipes envolvidos, articulando instâncias como
universidade, escolas e outros espaços de forma mais colaborativa. (DESGAGNÉ,
2003; SANTOS, 2011).

REFERÊNCIAS

BARBIER, René. A pesquisa-ação. Brasília: Líber Livro, 2002.


BENINCÁ, Elli. O senso comum pedagógico: práxis e resistência. 2002. Tese
(Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2002.
BENINCÁ, Elli el al. Em busca de um método para a ciência pedagógica. Espaço
Pedagógico, Passo Fundo: Ediupf, v. 5, n. 1, p.129-153,1998.
_________. Prática pedagógica: uma questão de método. Espaço Pedagógico, Passo
Fundo: Ediupf, v. 4, n. 1, p. 161-171, 1997.
_________. A proposta pedagógica e sua legitimidade. Espaço Pedagógico, Passo
Fundo: Ediupf, v.3, n. 1, p-97-110, 1996.
_________. Indicativos para a elaboração de uma proposta pedagógica. Espaço
Pedagógico, Passo Fundo: Ediupf, v. 1, n. 1, p. 13-33, 1994.
____. A memória como elemento formativo. In: TEDESCO, João Carlos (Org.). Usos
de memórias: política, educação e identidade. Passo Fundo/RS: UPF, 2002. p.105-140.
DESGAGNÉ, Serge. Reflexões sobre o conceito de pesquisa colaborativa. Tradução
de Adir Luiz Ferreira. Centro Interdisciplinar de Pesquisa sobre Aprendizagem e
Desenvolvimento em Educação, Université du Québec à Montreal, Canadá, out. 2003.
p. 31-46.
ESTEVES, Manuela. A investigação enquanto estratégia de formação de
professores: um estudo. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 2002.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
OLIVEIRA, Lorita Maria de; WESCHENFELDER, Maria Helena; SANTOS, José
Jackson Reis dos. Formação continuada na educação de pessoas jovens, adultas e
idosas: o processo metodológico como eixo articulador da práxis pedagógica.
FARENZENA, Rosana Coronetti (Org.). Educação de jovens e adultos: movimento
político-pedagógico. Passo Fundo: UPF, 2004, p.70-96.
SANTOS, José Jackson Reis dos Santos. Saberes necessários à docência na Educação
de Jovens e Adultos. 181f. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, 2011. Orientadora: Dra. Márcia Maria Gurgel Ribeiro;
Orientadora associada: Manuela Esteves, Universidade de Lisboa, Portugal.
WESCHENFELDER, Maria Helena; OLIVEIRA, Lorita Maria de; SANTOS, José
Jackson Reis dos. Adulto também tem direito: do analfabetismo a uma política de
educação. Passo Fundo: Ediufp, 2005.
TEXTO 3

A ENTREVISTA NARRATIVA E A PESQUISA EM EDUCAÇÃO

Thiana do Eirado Sena de Souza-UESB-BA-thysena@hotmail.com


Benedito G. Eugenio-UESB-BA-beneditoeugenio@bol.com.br

Resumo: Este trabalho apresenta uma sistematização das contribuições da entrevista


narrativa para as pesquisas em educação/ensino. O objetivo é identificar as
potencialidades e os limites dessa perspectiva metodológica e sua relevância para a
pesquisa autobiográfica e as práticas de (auto)formação dos pesquisadores. Defendemos
a concepção que a utilização das entrevistas narrativas pode se configurar como
importante meio para conhecermos a gênese e processos sociais de fenômenos
específicos tendo a coleta de informações a partir de dados biográficos e históricos. Os
resultados até aqui conseguidos revelam que as entrevistas narrativas apresentam grande
potencial para as pesquisas nas áreas de educação e ensino. Contudo, ainda
necessitamos de estudos que aprofundem a contribuição teórico-metodológica dos
estudos biográficos. Para tanto, a análise categorial apresenta-se como uma opção de
boa parte dos estudos biográficos e históricos.

Palavras-chave: Pesquisa qualitativa. Pesquisa em educação. Entrevista narrativa.

Introdução

Histórias são narradas a todo tempo e nos revelam especificidades,


particularidades e curiosidades dos seus sujeitos, oportunizando também a estes a
compreensão do vivido, do experienciado. As múltiplas experiências humanas podem
ser (re)construídas a partir de uma narrativa, na qual a marca do narrador está impressa,
seu conhecimento de mundo, as trocas que realiza e o sentido que lhes atribui. A
experiência sobre determinado fenômeno social representa não somente vivências
individuais, mas também sociais, coletivas. Nesse sentido, as narrativas estão em toda
parte e com infinitas variedades, como afirma Bauer (2013) em seus estudos.
Autores como Weller e Otte (2014), Muylaert et al (2014), Jovchelovitch e
Bauer (2013), destacam a crescente utilização das narrativas nas pesquisas qualitativas,
como pressuposto para entender a relação entre o indivíduo e a estrutura social, com
ênfase nos resultados de experiências e trajetórias, trazendo as biografias singulares para
o entendimento e compreensão dos complexos eventos/fenômenos sociais.
No campo educacional o emprego de narrativas vem sendo empregado com
maior ênfase a partir dos anos 1990. Na década seguinte, pesquisas utilizando narrativas
como teoria e método ampliam-se significativamente, conforme demonstram os anais
do Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)biográfica, já em sua VIII edição, assim
como a criação da Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica (BIOGraph), em
2008 e a Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica, em 2016.
Narramos para contar algo de nossas vidas, aquilo que foi marcante, que nos
tocou, portanto, o estudo da narrativa é o estudo da forma como nós experimentamos o
mundo, produzindo e compartilhando novos conhecimentos com os demais
interlocutores. Jovchelovitch e Bauer (2013, p. 91) relatam que “contar histórias implica
estados intencionais que aliviam, ou ao mesmo tempo tornam familiares,
acontecimentos e sentimentos que confrontam a vida normal”. Essas histórias
geralmente fazem referências à experiência pessoal, detalhando episódios e ações
sequenciais que terminam em um determinado momento. Contudo, as narrativas
(re)constroem lugares, momentos, tempos específicos que são representações simbólicas
do narrador, ao passo que apresentam-se inconclusas, construindo fundamentalmente a
noção do coletivo. Em concordância com Muylaert et al (2014, p. 194):

A narrativa é uma forma artesanal de comunicar, sem a intenção de


transmitir informações, mas conteúdos a partir dos quais as
experiências possam ser transmitidas. [...] nas narrativas o autor não
informa sobre sua experiência, mas conta sobre ela, tendo com isso a
oportunidade de pensar algo que ainda não havia pensado.

O trabalho com as narrativas tem o objetivo de contar sobre determinado


fenômeno, contribuindo para que o sujeito pense/reflita sobre suas vivências,
adquirindo, como nos relata Cunha (2009), uma dimensão dupla: de investigação e
formação. A narrativa se vincula não somente à produção de conhecimentos científicos,
mas oportuniza aos sujeitos tomarem consciência de si, das suas trajetórias de vida,
colocando-se nos papéis de autor e investigador da sua própria história (SOUZA, 2006).
Enquanto narramos, muitos fenômenos são compreendidos por nós mesmos.
Recordações, fatos e experiências são relembrados. Neste fascinante campo da
memória, reafirmamos a relação entre sociedade e pensamento, pois a memória é
também social e coletiva. Ao narrar, lembramos de vivências de âmbito social,
evocando lembranças recorrendo a outras pessoas, quer seja a família ou outros grupos
sociais (WEBER; PEREIRA, 2010).
Delgado (2006, p. 43) aponta que:

As narrativas são traduções dos registros das experiências retidas,


contêm a força da tradição e muitas vezes relatam o poder das
transformações. História e narrativa, tal qual história e memória,
alimentam-se. [...] Narrativa, sujeitos, memórias, histórias e
identidades. É a humanidade em movimento. São olhares que
permitem tempos heterogêneos. É a história em construção. São
memórias que falam.

A influência e contribuições da teoria de Halwachs para a discussão da memória


coletiva é relevante quando pensamos as narrativas como “memórias que falam”, pois
este autor nos traz a percepção que nunca estamos sós, a nossa vida acontece na relação
com o outro, onde nossa memória produz recordações, imagens e representações dos
grupos aos quais pertencemos, nos ajudando a construir nossa identidade, preservando
tradições, costumes e valores que são refletidos em nossas representações e percursos de
vida.
Neste artigo, trazemos algumas contribuições da entrevista narrativa para a
pesquisa em educação.

A entrevista narrativa e suas contribuições

A utilização das entrevistas narrativas pode se configurar como importante meio


para conhecermos a gênese e processos sociais de fenômenos específicos tendo a coleta
de informações a partir de dados biográficos e históricos. Bernard Lahire, ao abordar o
conceito de patrimônios individuais de disposições, destaca que uma disposição só é
revelada através da interpretação de múltiplos traços dos sujeitos estudados, coerentes
ou contraditórios, mas observáveis em distintos domínios práticos ou em
microcontextos (LAHIRE, 2004). As itinerâncias, as aprendizagens, a representação
social acerca da escola e do papel desta na construção de um projeto de vida futura,
imbricam-se nas narrativas de vida dos jovens negros quilombolas e de suas famílias,
reconstituindo, assim, o sentido da formação para esses sujeitos.
Na entrevista narrativa é solicitado que o entrevistado narre de forma
improvisada a história de uma determinada área de interesse; no caso peculiar das
pesquisas que vimos realizando, as trajetórias escolares de estudantes negros e também
a formação docente para o trabalho com as relações étnico-raciais, tendo como interesse
aspectos geracionais e raciais. A cada narrativa realizada percebemos as singularidades
e particularidades da vida dos sujeitos imbricados às experiências e contextos de seus
familiares.
As contribuições de Schutze (1983 apud WELLER; ZARDO, 2013) na pesquisa
biográfica, apontam para a análise das estruturas processuais dos cursos de vida,
evidenciando elementos que são centrais moldando as biografias, relevantes para
compreendermos as posições e papéis ocupados pelos sujeitos na sociedade.
Nesse aspecto, as ENs5 surgem tendo como ideia básica a reconstrução de
acontecimentos sociais pelos sujeitos entrevistados, sendo considerada “uma forma de
entrevista não estruturada, de profundidade, com características específicas”
(JOVCHELOVITCH; BAUER, 2013, p. 95). A organização da entrevista narrativa
supera o esquema pergunta-resposta característico da maioria das entrevistas. Partimos
de uma linguagem espontânea, associada a um esquema autogerador, onde os sujeitos
foram provocados a partir de um questionamento, que posteriormente, deu início a outra
fase da narração com perguntas mais detalhadas que nos ajudaram a responder as
possíveis lacunas do tópico central.
A tabela a seguir, oportuniza uma melhor sistematização das regras de
procedimentos para efetivação das entrevistas narrativas, especificando cada fase.
Nossas ENs foram promovidas, considerando os caminhos citados abaixo.

Tabela 01 – Fases principais da entrevista narrativa


Fases Regras
Preparação Exploração do campo
Formulação de questões exmanentes
1. Iniciação Formulação do tópico inicial para narração
Emprego de auxílios visuais
2. Narração central Não interromper
Somente encorajamento não verbal para continuar
a narração
Esperar para os sinais de finalização (“cada”)
3. Fase de perguntas Somente “Que aconteceu então?”
Não dar opiniões ou fazer perguntas sobre atitudes
Não discutir contradições
Não fazer perguntas do tipo “por quê?”
Ir de perguntas exmanentes para imanentes
4. Fase de perguntas Somente “Que aconteceu então?”
Não dar opiniões ou fazer perguntas sobre atitudes
Não discutir contradições

5
Abreviação do termo entrevistas narrativas.
Não fazer perguntas do tipo “por quê?”
Ir de perguntas exmanentes para imanentes
5. Fala conclusiva Parar de gravar
São permitidas perguntas do tipo “por quê?”
Fazer analogias imediatamente depois da
entrevista

Fonte: JOVCHELOVITCH; BAUER, 2013, p. 97.

Utilizada como técnica, a EN possui regras que buscam ativar o esquema da


história, provocar o entrevistado a narrar por meio de acontecimentos reais. Ao
escolhermos a entrevista narrativa, desejamos reconstituir as trajetórias escolares e/ou
formativas dos sujeitos, sejam estudantes e/ou professores da educação básica. Assim,
na fase definida como preparação nos aproximamos do campo de pesquisa, bem como,
dos sujeitos a serem entrevistados. De forma ainda preliminar, procuramos nos
aprofundar teoricamente, traçando investigações a respeito de aspectos históricos sobre
o tema, identificando autores que discutam a temática da pesquisa e, consequentemente,
adentramos o campo empírico.
Seguindo esta primeira fase, em conformidade com as orientações de
Jovchelovitch e Bauer (2013, p. 97), montamos algumas questões exmanentes que
buscavam refletir “os interesses do pesquisador, suas formulações e linguagem. [...] O
ponto crucial da tarefa é traduzir questões exmanentes em questões imanentes”.
Posteriormente, na fase de iniciação, definimos o tópico central. A introdução a
este nos permite lançar um direcionamento acerca da relação sujeitos (professores) e
vida escolar/formação/trabalho. A cada entrevista, prioritariamente, explicitamos aos
sujeitos o contexto, objetivos e justificativa da investigação. Autores como
Jovchelovitch e Bauer (2013, p.98), citam algumas regras que podem orientar a
formulação do tópico inicial.
1. O tópico inicial necessita fazer parte da experiência do
informante. Isso irá garantir seu interesse, e uma narração rica em
detalhes.
2. O tópico inicial deve ser de significância pessoal e social, ou
comunitária.
3. O interesse e o investimento do informante no tópico não deve
ser mencionados. Isso é para evitar que se tomem posições ou se
assumam papéis já desde o início.
4. O tópico deve ser suficientemente amplo para permitir ao
informante desenvolver uma história longa, que a partir de
situações iniciais, passando por acontecimentos passados, leve a
situação atual.
5. Evitar formulações indexadas. Não referir datas, nomes ou
lugares. Esses devem ser tratados somente pelo informante, como
parte de sua estrutura.

Ao formularmos o tópico central para desencadear a EN, levamos em


consideração que no decorrer desde momento fatores como nervosismo perante o
desconhecido ou mesmo dificuldade em não fugir do questionamento e interesse
principal do tópico, podem conduzir a certa timidez inicial na fala dos narradores.
Essa etapa conhecida como narração central, possibilitou a não interrupção da
narrativa. Elementos gestuais, não verbais, ajudaram um pouco na motivação dos
sujeitos ao narrarem fatos mais aprofundados da sua vida escolar, desde os primeiros
contatos com a escola até o momento presente. Os sinais indicando a finalização da fala,
quase sempre acompanhavam-se de um período de silêncio, onde o olhar dos
entrevistados sinalizavam a continuidade da entrevista passando para as próximas
perguntas.
Daí adentramos a fase de perguntas, uma etapa importante, e ao mesmo tempo,
delicada, por preconizar uma escuta atenta para que possíveis omissões fossem
retiradas. Os questionamentos feitos nesta etapa, de acordo com os objetivos traçados e
ao tópico central e, em nosso caso que vimos empregando a entrevista narrativa para a
pesquisa acerca das relações étnico-raciais, se atem não apenas a fatores presentes nas
trajetórias escolares dos sujeitos entrevistados como evasões, reprovações, desistências,
no caso dos estudantes, como também, nas discussões envolvendo preconceito, racismo,
discriminação. Questões muitas vezes não percebidas ou mesmo não ditas, vividas de
maneira inconsciente. Destacamos que “as narrativas são uma forma dos seres humanos
experienciarem o mundo, indo além da simples descrição de suas vidas, pois ao
repensarem suas histórias – as que contam ou ouvem – refletem quem são,
reconstruindo continuamente significações acerca de si” (CRESWELL apud
MUYLAERT et al, 2014, p. 197). A cautela durante a EN estava em não forçarmos
determinadas perguntas, mas em deixarmos com que os acontecimentos aparecessem
espontaneamente. Após este momento, seguindo as normas dessa técnica, o gravador foi
desligado, passando à fase conclusiva, na qual as conversas informais nos trouxeram
informações interessantes.
Nessa última fase são permitidas perguntas envolvendo o emprego do “Por
que?” e situações corriqueiras podem trazer novos elementos ricos à narrativa. Em
nossas entrevistas, esse momento nos possibilitou anotarmos alguns dados dos
informantes e compreendermos um pouco mais da história familiar deles, fazendo
relações contextualizadas sobre a estruturação da família e os avanços e/ou retrocessos
escolares vivenciados nas distintas gerações a partir de comentários informais.
Para explicitar ainda mais os caminhos metodológicos adotados nesta pesquisa,
apresentamos a seguir o roteiro de entrevista que nos orientou durante a narração dos
estudantes e de seus familiares. Para tanto, foram construídos dois roteiros que
englobaram particularidades de gerações diferentes, do mesmo modo que, histórias de
vidas corroboraram no que Schutze denominou de “estruturas de processos do curso de
vida individual” (FLICK, 2009, p. 169).
Após a realização das entrevistas narrativas, passamos ao período de transcrição.
Schutze define seis passos para que a análise das narrativas seja realizada de maneira
significativa, o primeiro é o já citado acima. Durante a transcrição nos atentamos a
descrição detalhada das narrativas, tudo que comunicado de forma verbal e explícita foi
necessário para que pudéssemos reconstituir “o sentido subjacente e implícito na fala do
entrevistado” (WELLER; OTTE, 2014, p. 328). No segundo passo, dividimos as
narrativas a partir de proposições indexadas, tendo referências concretas dos
acontecimentos, período, motivação e elementos não-indexados, em que percebemos os
valores, costumes, juízos. Nessa etapa, os componentes não indexados podem ser
apresentados de duas maneiras: descritivas e argumentativas. Weller se aporta nos
estudos de Hermanns que define algumas orientações objetivas para esta fase, a saber:

a)identificação dos diferentes esquemas de apresentação e respectiva


análise da relação e função das passagens descritivas e narrativas do
texto; b) identificação dos “episódios entrelaçados” que ora aparecem
ora desaparecem da narrativa, assim como os “círculos temáticos” de
importância para o narrador, ou seja, de contextos temáticos maiores
que estão relacionados aos episódios entrelaçados; c) a reconstrução
da linha que conduz a biografia, ou seja, as condições iniciais, os
momentos altos e baixos, o surgimento de pontos culminantes, de
situações cruciais, de recusa, de mudanças gradativas, entre outros
aspectos; d) a elaboração de categorias analíticas que caracterizem os
processos e estruturas analisadas (WELLER, 2009, p. 7).

Esta segunda fase de análise também é conhecida como descrição estrutural do


conteúdo e fundamenta-se em uma análise minuciosa da narração central e parcialmente
de alguns segmentos referentes à fase de perguntas. Buscamos identificar o que foi
narrado e como a narrativa foi construída. Assim, na fala dos entrevistados percebemos
o curso de vida, as mudanças vividas, situações dramáticas, bem com, os
acontecimentos triviais.
O terceiro passo é a organização das trajetórias, pressupomos o ordenamento dos
acontecimentos que nos permitem a reconstrução da biografia do colaborador como um
todo. No quarto passo, também intitulado análise do conhecimento, dedicamo-nos à
compreensão das teorias desenvolvidas pelo próprio entrevistado a respeito da sua
própria história de vida, do seu processo de escolarização, do que representa ser negro
na sociedade atual. Estas teorias, chamadas de operativa “são comparadas com
elementos da narrativa, pois elas representam o autoentendimento do informante”
(JOVCHELOVITCH; BAUER, 2013, p. 107).
O quinto passo pressupõe a análise comparativa das trajetórias individuais.
Partindo da proposta de Schutze, analisamos situações paralelas, considerando as
particularidades e condições estruturais vivenciadas pelos sujeitos no que toca as
trajetórias escolares buscando reconhecer as semelhanças e diferenças apresentadas em
cada uma delas. O sexto e último passo, é o desdobramento das etapas anteriores, nos
permitindo compreender a identificação das trajetórias escolares de forma coletiva,
construindo um modelo teórico fundamentado na verificação, confrontamento e
diferenciação das histórias narradas pelos sujeitos durante as entrevistas narrativas.

Considerações finais

O objetivo central deste texto foi evidenciar a contribuição da entrevista


narrativa para a produção de dados nas pesquisas em educação. Essa perspectiva
metodológica tem sido empregada por diferentes pesquisadores no campo da educação e
ensino. Pesquisas envolvendo currículo, formação docente e trajetórias de escolarização
tem recorrido a essa perspectiva metodológica.
Em nosso grupo de pesquisa Currículo, Gênero e Relações étnico-raciais temos
empregado as entrevistas narrativas em diferentes pesquisas, todas elas articuladas à
discussão das relações étnico-raciais. Três pesquisas já foram concluídas, sendo duas
abordando as ações afirmativas no ensino superior para estudantes negros cotistas e
outra discutindo as trajetórias de escolarização de estudantes negros quilombolas.
Encontram-se em andamento quatro outras pesquisas utilizando a entrevista
narrativa: uma sobre escolarização de negros surdos e o ensino de relações étnico-
raciais e três sobre formação docente para o trabalho com a educação das relações
étnico-raciais. Nessas pesquisas, temos associado também, em conjunto com as
entrevistas narrativas, outras técnicas para a produção dos dados, tais como diários de
aulas, memoriais e realização de ateliês formativos como dispositivos para a produção
de dados biográficos.
Consideramos que as entrevistas narrativas apresentam grande potencial para as
pesquisas nas áreas de educação e ensino. Contudo, ainda necessitamos de estudos que
aprofundem a contribuição teórico-metodológica dos estudos biográficos. É preciso
discutir quais os critérios para a análise das narrativas: trazê-las na íntegra ou apenas
excertos? A análise categorial tem sido a opção de boa parte dos estudos. No caso das
pesquisas por nós orientadas, ainda não conseguimos realizar a pesquisa narrativa na
perspectiva de Clandinin e Connelly (2011) ou a análise narrativa proposta por Boliva,
Domingo e Fernández (2001).
Acreditamos que as entrevistas narrativas são autoformativas e heteroformativas,
devendo ser complementadas pelo uso de grupos de discussão como possibilidade de
análise. O texto autobiográfico é sempre inacabado e incompleto, passível de múltiplas
interpretações. Assim, uma possibilidade para o emprego das entrevistas narrativas é
que após a transcrição e textualização elas sejam devolvidas e discutidas com os
entrevistados, porque permite a produção de sentidos para as experiências
vividas/narradas.

Referências

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