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Daquilo que os médicos quase não falam: transe e êxtase
na cena de parto. Experiências e percepções dissidentes de saúde
e de bem-estar na contemporaneidade
Rosamaria Carneiro 1
Abstract For the groups of women devotees of Resumo Para os grupos de mulheres adeptas de
ways of giving birth other than cesarean section outros modos de parir que não a cesárea e o mo-
and the technocratic hospital model, the pain of delo tecnocrático-hospitalar, a dor do trabalho de
labor seems to operate at another register, quite parto parece operar em outro registro, que não o
different from disorder and something to be avoid- da desordem e de algo a ser evitado. Dispostas a
ed. Fully prepared to “experience the birth,” they “sentir o parto”, parecem ir ao encontro das con-
seem to eagerly embrace the contractions, the trações, das emoções e do descontrole, dando pas-
emotions and lack of control, giving expression to sagem para percepções de saúde que seriam atra-
perceptions of health that appear to be permeated vessadas pela sexualidade e pela espiritualidade,
by sexuality and spirituality and by elements of por noções de êxtase e de transe. Diante disso,
ecstasy and trance. Therefore, the scope of this pretende-se explorar se e de que maneiras tais ex-
paper is to explore whether and in what ways periências e percepções têm desalojado a prática
these experiences and perceptions have dislodged médica da “biopolítica”, tematizando, para tan-
the medical practice of “biopolitics,” thereby ex- to, suas impressões e atitudes à luz da lógica das
amining their impressions and attitudes in light intensidades e dos afetos, de novos modos de sub-
of the logic of the intense emotions and affection, jetivação e da possibilidade de outras moralida-
namely of new modes of subjectivity and possibil- des, que não mais a da histeria e a da fragilidade
ity of other moralities, other than hysteria and dos corpos das mulheres.
the fragility of women’s bodies. Palavras-chave Parturição, Representações, Fe-
Key words Parturition, Representations, Femi- minilidade e corporalidade
ninity and corporality
1
Departamento de Saúde
Coletiva, FCE/UnB. QNN
14, Ceilândia. 72.222-140
Brasília DF.
rosagiatti@yahoo.com.br
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Carneiro R
Situando o leitor: quem, onde e como valor, simplesmente para diferenciá-lo do pri-
meiro grupo, dado ser uma proposta encami-
Em tempos de tomografias computadoriza- nhada por três mulheres de modo alheio a insti-
das, do primeiro transplante integral de rosto e tuições legalmente reconhecidas. Durante dois
de técnicas cada vez mais sofisticadas de prolon- anos, participei das reuniões semanais dos dois
gamento da vida, um conjunto de mulheres bra- grupos, ambos sediados no Estado de São Paulo
sileiras parece “nadar contra a maré” quando a e, a partir delas, pude encontrar mulheres dis-
temática é a assistência médica ao parto. Entre postas a concederem entrevistas sobre experiên-
elas, “as adeptas do parto humanizado”, circula cias gestacionais e de parturição. A pesquisa toda
o desejo de um parto “mais natural”, desprovido deve ter contado, estimativamente, com a parti-
de intervenções médicas e farmacológicas de ro- cipação de 30 mulheres, entre entrevistas detidas
tina. Essa naturalidade, propalada praticamente e conversas informais. Em razão deste trabalho
em todos os estados brasileiros, tem sido nota- possuir registro etnográfico bastante marcado,
damente criticada por profissionais da saúde que esclarece-se, de saída, que o aporte qualitativo
a entendem como insanidade e retrocesso cultu- importara-nos muito mais do que o quantitati-
ral e também por alguns cientistas sociais que a vo. Além disso, ressalta-se que a pesquisa junto
vêem como um “retorno à natureza” e, por con- ao grupo “institucional” contou com a prévia
sequência, como a reiteração de categorias de autorização do CEP (Comitê de Ética em Pesqui-
pensamento tidas como já superadas. Entre os sa) do hospital onde acontece. Não obstante, neste
últimos, estariam principalmente algumas femi- artigo não serão mencionados nomes, nem de
nistas importantes1,2 abrindo fogo contra a ques- informantes, nem de grupos e muito menos de
tão, na medida em que entendem a questão como instituições, haja vista o compromisso assumi-
uma ameaça aos avanços políticos das mulheres do entre a pesquisadora e suas fontes/informan-
ao reiterar a naturalidade da reprodução. tes durante a etnografia.
Nessa oportunidade minhas lentes recaem Portadores de dinâmicas e de abordagens di-
numa dinâmica específica, na tensão médicos x ferentes, os dois grupos buscam difundir infor-
mulheres, em suas narrativas e percepções acerca mação sobre “outros modos de parir na contem-
do ato de parir, no que congregaria e em suas poraneidade”, por isso discutem a prática da atu-
representações simbólicas. O Brasil é o recordis- al obstetrícia brasileira, os exames e os procedi-
ta mundial no número de cesáreas/ano, com um mentos de rotina, protocolos nacionais e interna-
índice de 84,5% da rede privada e de quase 40% cionais de assistência do nascimento; a atuação
na rede pública de saúde3. Esses números supe- de profissionais “humanizados”; a atuação de
ram, em ambos os casos, a recomendação da “parteiras urbanas”; dor, contrações, trabalho de
OMS4, de 15% de partos cirúrgicos ao ano. Por parto, cesárea, medos, inseguranças, conjugali-
isso, essa realidade parece ter adquirido contor- dade e relação com a mãe da gestante, entre tan-
nos de um problema de saúde pública, quando e tos outros pontos. Discorre-se, ainda, sobre a
se notamos a existência e a persistência de cam- possibilidade do parto domiciliar. Os encontros
panhas governamentais, tanto na mídia impres- são semanais, mas as gestantes comunicam-se
sa quanto falada, para o incentivo do “parto também diariamente por uma lista de debate vir-
normal”, tido como sinônimo de “parto natu- tual. Pode-ser dizer, na realidade, que o computa-
ral” ou “parto vaginal”. Esse artigo tratará da dor é uma ferramenta importante na agregação e
rede privada de atenção à saúde, das mulheres sociabilidade dos grupos e que, por isso, a capaci-
que dela poderiam fazer uso – mas não têm feito dade de escrita e de acesso à internet caracteriza as
–, optando por outros modelos de parturição. mulheres que têm buscado outros modos de dar
Procurando compreender os motivos de um à luz. Se assim é, quem são essas mulheres que
parto “mais natural”, em tempos de promessa buscam outras experiências de parto?
de supressão da “dor do parto”, de rapidez e se- Procurei “mapeá-las” a partir de um conjun-
gurança da cesárea, busquei grupos de preparo to de marcadores analíticos5,6 (raça, classe, etnia,
para o “parto humanizado” nos quais pudesse religião, estilo de vida, profissão e etc.), mas an-
realizar minha observação participante e, depois, gustiei-me com a impossibilidade de encontrar
conseguir entrevistas no pré e no imediato pós- uma franja comum. No entanto, decidi, depois,
parto. Dois foram os escolhidos: um “institucio- expor essa ausência de unidade entre as adeptas
nal”, iniciativa de um hospital escola e orientado do parto humanizado enquanto uma qualidade,
ao público em geral, e outro que tenho denomi- ressaltando, entretanto, a preponderância de um
nado de “independente”, sem qualquer juízo de recorte de classe – classe média –, o acesso à in-
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cesso de cultura”9, compreendida como tecnolo- estar, tendo realçado mais o seu perigo e patolo-
gia e conhecimento científico e, por consequên- gia do que a crença em sua funcionalidade e ca-
cia, como o controle de um acontecimento mui- pacidade de reação, como bem pontua uma das
to mais do que fisiológico; sobretudo, psíquico, adeptas do parto humanizado que conhecemos:
sexual, corporal, pessoal, social e cultural. Nessa “nossa medicina é assim, vibra na doença.” (no-
esteira, há inclusive quem interprete o modelo tas de campo, mar.2008)
hospitalar como equivalente à lógica fabril: o
hospital seria a fábrica, a parturiente a máquina Dor: um mosaico de percepções
e o recém-nascido a mercadoria, a ser resguarda
e avaliada em sua qualidade10. Se essas práticas femininas contemporâneas
Para pensar sobre essa lógica de atenção ao são, por um lado, críticas, e, de outro, propositi-
parto em nossa sociedade, a noção de “biopolíti- vas, ambas as frentes têm me posto diante de
ca” me tem sido bastante útil. A ideia de biopolí- representações dissonantes daquilo que compõe
tica teria surgido no século 19 para o controle do uma cena de parto. Um desses conjuntos de per-
“corpo de múltiplas cabeças”, dando novos con- cepções dissonantes é o da tão famosa “dor do
tornos à teoria da soberania antes operante, a trabalho de parto”. Para um médico, recentemente
saber, a do “deixar viver e fazer morrer”, para entrevistado, tratar-se-ia da “pior dor do mun-
uma perspectiva de que ao Estado caberia o po- do, equivalente somente a cólica renal e, ainda
der de “fazer viver e deixar morrer”. Em outras assim, multiplicada por 1000”14. De fato, a ideia
palavras, morrer teria deixado de ser algo corri- de que parir dói não é algo circunscrito somente
queiro ou “natural”, passando a ser algo evitado. à categoria médica, é algo veiculado também pe-
E assim a vida teria passado a ser prolongada e, las próprias mulheres – mães, avós e tias de par-
portanto, objeto de intervenção e de controle do turientes. Existe quase um consenso social de que
poder, ao lado dos corpos que, sob os mecanis- dar à luz dói e que pode ser perigoso para a díade
mos disciplinares, já vinham sendo controlados parturiente/recém-nascido; vigorando, ainda ou
para tornarem-se “dóceis e produtivos”11,12. conjuntamente, ideias como as de que a mulher
“Biopolítica” e “biopoder”13 teriam passado, perderá a integridade de seu assoalho pélvico, de
desde então, a coexistir, atuando um no mais mi- que passará a ter problemas para relacionar-se
cro, nas instituições, e o outro num sentido mais sexualmente e de que o sentido durante as con-
geral, tendo na medicina e na demografia os seus trações figura algo realmente insuportável. Esse,
mais ativos aliados. E nessa ânsia por controlar a ao menos, tem sido o discurso que grande parce-
quantidade e a qualidade da vida, os nascimen- la da categoria médica tem propalado com a in-
tos, como era de se esperar, teriam também pas- tenção de oferecer às gestantes a opção por uma
sado a ser foco de sua atuação. Nesse processo, a cesárea, rápida, segura e indolor.
compreensão que se tinha de doença/saúde tam- Em campo, pude constatar que “o medo da
bém teria sofrido alterações: a doença – tida como dor”, de fato, existe. Nos encontros e conversas
inevitável – teria se tornado objeto de resistência, informais com médicos e parteiras urbanas ou
de combate, de restabelecimento da ordem e a mesmo entre as próprias gestantes, recorrente-
saúde teria se transformado em algo a ser cons- mente, pude perceber a apreensão quanto ao que
truído diariamente. Quanto a isso, vale dizer que se sentiria durante o trabalho de parto. Fala-se
os hospitais, antes tidos como “morredouros” ou muito sobre o “medo da dor”, sustenta-se que a
locais para onde eram derivados os “desviantes”, “dor é subjetiva”, “que cada uma tem um limite
passaram a se caracterizar como o local da cura, próprio” e que algumas técnicas corporais po-
do resgate da ordem e da salvação. E nesse con- dem ser úteis para o suavizo dessas sensações
texto, de “estatização do biológico” ou de valori- durante o trabalho de parto. No pré-parto, mo-
zação do “corpo-espécie”, a medicina ganha espa- mento dos encontros e da preparação da gestan-
ço como a polícia da higiene pública, do cuidado te e do casal, a dor opera como um fantasma,
e da medicalização da população. principalmente para as primigestas. Entretanto,
Pensando sobre nossa atualidade, a crítica mesmo temida, porque ainda desconhecida, fi-
feminina à padronização da atenção hospitalar gura como sensação corpórea a ser enfrentada e
ao parto parece vir carregada dessa ideia de um suportada em nome de algo maior: a experiência
corpo tratado de maneira massificada, “corpo- de parir e sentir tudo o que nela se vê envolvido.
espécie”, cerceado e constantemente ameaçado E na realidade parece pesar mais esse desejo de
pela morte e pela doença. Um corpo a ser, por “sentir” o trabalho de parto, do que o próprio
isso, monitorado em nome da saúde e do bem- medo da dor, existindo, assim, certo “apresen-
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Referências