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FESTAS

PPGAC
Programa de Pós-graduação em Ar tes Cênicas Lúcia Lobato
Érico José Souza de Oliveira
Cadernos do

GIPE-CIT
Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em
Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade

Nº 20

FESTAS

Organização:
Lúcia Lobato
Érico José Souza de Oliveira

PPGAC
Prog rama de Pós-gra duaç ão em Artes Cênica s

Escola de Teatro/Escola de Dança


Universidade Federal da Bahia
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Escola de Teatro/Escola de Dança
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas

Cadernos do GIPE–CIT N. 20
FESTAS

Maio - 2008

Coordenação Geral do GIPE-CIT


Prof. Armindo Bião

Conselho Editorial
André Carreira (UDESC), Antonia Pereira (UFBA), Betti Rabetti (UNI-Rio), Cássia Lopes (UFBA),
Christine Douxami (CNPq-UFBA), Eliana Rodrigues Silva (UFBA), Makarios Maia Barbosa (UFRN),
Sérgio Farias (UFBA)

Diagramação e Formatação
Nádia Pinho - Fast Design

Capa
Desenho de Sônia Rangel

Revisão:
Érico José Souza de Oliveira

Biblioteca Nelson de Araújo – TEATRO/UFBA

Caderno do GIPE-CIT: Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em


Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade/ Universidade Federal
da Bahia. Escola de Teatro / Escola de Dança. Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas. – N. 20, maio. 2008. Salvador (Ba): UFBA/ PPGAC, 2008.

93 p. ; 21 cm.
Periodicidade semestral
ISSN 1516-0173

1. Teatro. 2. Festas populares 3. Festas religiosas. I. Universidade


Federal da Bahia. Programa em Artes Cênicas. II. Título

Impresso no Brasil em maio de 2008 pela: Fast Design - Prog. Visual Editora e Gráfica Rápida LTDA.
CNPJ: 00.431.294/0001-06 - I.M.: 165.292/001-60 - e-mail: fast.design@terra.com.br - Tiragem: 300 exemplares
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
Lúcia Lobato e Érico José Souza de Oliveira........................................................................ 5

HOMENAGEM A JEAN DUVINGAUD


Armindo Bião......................................................................................................................... 7

FESTA: UMA TRANSGRESSÃO QUE REVELA E RENOVA


Lúcia Lobato....................................................................................................................... 13

A TRADIÇÃO E A REINVENÇÃO EM UM OLHAR SOBRE A FESTA DO CONGADO


Valeska Ribeiro Alvim.......................................................................................................... 18

REZAR, CANTAR E FESTAR – HOMENAGEM A SENHORA DO ROSÁRIO:


Pontuações sobre a congada em Uberlândia/MG
Ana Maria Pacheco Carneiro.............................................................................................. 28

FESTAS, MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES


Célia Conceição Sacramento Gomes..................................................................................... 44

DE OLHO NA LAVAGEM DO BOMFIM: transfiguração de uma festa


CÉLIDA SALUME MENDONÇA............................................................................................ 53

DIA DE FINADOS EM RIO REAL: uma festa dos vivos para os mortos
Cristiano Fontes.................................................................................................................. 67

A RODA DO CAVALO MARINHO: espaço para uma memória espetacular


de uma ancestralidade festiva
Érico José Souza de Oliveira................................................................................................78
5

Apresentação
O Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Fed-
eral da Bahia foi pioneiro no Brasil a implantar, em sua linha de pesquisa Matrizes
Culturais na Cena Contemporânea, a disciplina Etnocenologia, inaugurada
quando da fundação, em Paris, do Centro Internacional de Etnocenologia no dia
03 de maio de 1995. A partir de seu Manifesto de autoria de Jean Marie Pradier
ficou definida como “o estudo, nas diferentes culturas, das Práticas e
Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados (PCHEO) e tem como
defesa de princípios a multiculturalidade, a alteridade, a pluridisciplinaridade e,
entre outros a lógica da indistinção apresentada pelo Professor Dr. Armindo Bião
na Conferência de abertura do I Seminário Nacional sobre Performáticos, Per-
formance e Sociedade em 22.11.1995 na UNB, em Brasília.
Os professores doutores Lúcia Lobato e Érico José Souza de Oliveira,
ambos do PPGAC e com teses defendidas em Etnocenologia, no ano de 2006
inauguraram na disciplina Tópicos Especiais em Artes Cênicas um estudo
específico que denominaram de Festas e Espetacularidade. A nova proposta foi
fruto do próprio amadurecimento do Programa e conseqüente desdobramento
do bem sucedido curso em Etnocenologia.
A disciplina apresentou como conteúdo programático a conceituação de
festas e sua função civilizatória, destacando dentre seus elementos constitutivos,
o jogo, a brincadeira e o corpo festivo. Ressaltou sua dimensão espetacular, o
grotesco, o riso, o significado dos comportamentos e das práticas espetaculares
e as perspectivas de investigação das festas. Entre outros autores foram visitados
Mikhail Bakhtin, Laplatine, Jean Duvignaud, Michel Maffesoli, Clilfford Geertz,
Johan Huizinga, Renato Ortiz, Armindo Bião, Roberto da Matta entre outros.
Ao final do curso os alunos foram avaliados a partir de seminários onde
apresentavam uma descrição etnocenológica de uma festa de sua escolha. O
sucesso alcançado nesses trabalhos incentivou os professores a fazerem uma
seleção e organizar em artigos alguns dos referidos seminários que ora são
publicados nesse 20º Cadernos do GIPE-CIT.
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Homenagem a Jean Duvignaud


Em nosso livro coletivo Artes do Corpo e do espetáculo: questões
de etnocenologia (Salvador: P & A, 2007, 492 páginas), em sua Apresentação,
rendemos discreta e sincera homenagem ao líder do encontro fundador da
Etnocenologia, realizado em 1995, na UNESCO e na Maison des Sciences de
l’Homme, em Paris, França. Aqui e agora, voltamos a render mais uma sincera e
discreta homenagem a nosso grande inspirador: Jean Duvignaud (La Rochelle,
22 de Fevereiro de 1921 - La Rochelle, 17 de Fevereiro de 2007).
Essa nova iniciativa é de dois pesquisadores do Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia – PPGAC/ UFBA,
Lúcia Fernandes Lobato e Érico José Souza de Oliveira, cujos doutoramentos
tive a honra e o prazer de orientar. São eles que organizam a presente publicação.
E o veículo é nosso periódico, do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão
em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade, os Cadernos do GIPE-
CIT, que publicamos já há dez anos.
Na vida, assim como na arte e na academia, quando tudo corre bem,
andamos, voamos, navegamos, subimos em espirais, passando por muitas
encruzilhadas, o tempo todo. Por isso precisamos, sempre, fazer escolhas, usando
o verbo, aquilo que distingue uma coisa da outra. De fato, é a linguagem que nos
permite avançar. Mas é também a linguagem – nossa língua – que pode nos
prender e fazer ficar parados, empacados. Pode até mesmo nos fazer retornar
aos inumeráveis becos sem saída que existem por aí. A linguagem liberta, mas
também pode aprisionar, pois a tentação de nos direcionarmos a nossos próprios
umbigos é muito grande, nessas espirais do mundo. É a armadilha abissal por
onde nossa vaidade nos engole, é o rodamoinho das lamas movediças mais
internas de nós mesmos.
A busca do conhecimento pode nos levar a perder a alma, mas certamente
pode também nos levar a contribuir para a formação de novos pesquisadores e a
criação de conhecimento novo. A crença em nosso próprio conhecimento,
contudo, pode nos abrir os caminhos do mundo, mas também pode nos levar a
nossa própria perda, de ponto de vista, da necessária humildade e recuo, quando
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de eventuais passos falsos, tão naturais para quem anda muito. Só quem não
anda não se machuca (?), nem a si nem aos outros. Jean Duvignaud caminhou
muito, formou muita gente e nos legou obras de referência, particularmente nas
áreas das artes do espetáculo, da sociologia. É certo que somos, a todo momento,
levados a fazer escolhas, opções, eventualmente fazendo – ou perdendo – amigos
e colegas. Perdemos o professor, o colega e o amigo, mas ganhamos muito em
nossa memória.
Esse é o risco da vida, da arte, da academia e das encruzilhadas, onde
encontramos os mensageiros, os línguas – intérpretes tradutores, as crianças
perdidas, os exus e as pombagiras. É também aí que encontramos Hermes
(Trimegisto) - o três vezes grande, que nos ensina a decifrar os textos e Mercúrio,
o das asas – e capacete – alados, que protege as artes e o comércio. Pois, como
não poderia deixar de ser, foi nas encruzilhadas da vida, da arte e da academia,
que conheci Jean Duvignaud, e foi nas escolhas de palavras para nos
comunicarmos que eu cresci como pessoa, artista e acadêmico, correndo riscos,
me movimentando – muito, ganhando e perdendo, errando e acertando. Mas
não apenas eu é claro!
Tanta referência pessoal pode ser a reafirmação da tentação do doutor
Fausto, de conhecer o máximo e ser feliz para toda a eternidade. Mas, na verdade,
trata-se apenas de um recurso retórico, para dar conta da grandeza do homem
que perdemos em fevereiro de 2007. E que tanto se interressou por aquilo que
nos encanta, a festa e o teatro, por exemplo, e pelo que é, simultaneamente,
maravilhoso e também perigoso, o diferente, o diverso, o anômico.
Escritor, crítico de teatro, sociólogo, dramaturgo, ensaísta, cenógrafo e
antropólogo, francês, dirigente máximo da Maison des Cultures du Monde, Jean
Duvignaud foi um desses seres das encruzilhadas, mensageiros do conhecimento,
que nos ensinam a andar, voar, navegar, subir, falar e fazer escolhas. No caso muito
particularmente do GIPE-CIT e do PPGAC/ UFBA, nosso mestre é referência maior,
sem dúvida e nos tem – muito – inspirado, tanto antes quanto depois de maio de
1995, quando presidiu o colóquio de fundação da etnocenologia.
Com suas obras dedicadas ao teatro, numa perspectiva bastante ampla,
à festa e à diversidade cultural da humanidade, numa perspectiva de simpatia
compreensiva, Jean Duvignaud nos legou um patrimônio útil e acessível,
9

universalmente, mesmo que sua também brilhante atuação como gestor cul-
tural, na França, seja um bem mais particularmente usufruído por quem conhece
seu país. Do mesmo modo, honrado com sua participação, a convite de meu
orientador Michel Maffesoli, como presidente da comissão julgadora de minha
tese de doutorado, na Sorbonne, em 1990, eu e meus colegas presentes a esse
ritual de passagem acadêmico, na Sala Louis Liard, do histórico edifício
universitário, pudemos usufruir, mais particularmente, de sua preciosa experiência
– e expressão – acadêmica.
Por isso meu prazer é multiplicado, aqui e agora, quando mais um leitor –
deste Caderno do GIPE-CIT, de número 20, é informado que esta obra é dedicada
a Jean Duvignaud. E quando posso, num laivo deslavado de vaidade, arriscado
sem dúvida, mas que, por isso mesmo, aumenta meu prazer, pois repito o poeta
Caetano Veloso, “tudo é perigoso, tudo é divino maravilhoso”, reportar-me a três
momentos em que encontrei, nas encruzilhadas, o grande mestre.
O primeiro desses momentos – pessoais e envaidecedores, repito - ocorreu
em Salvador, Bahia, em 1979. Foi quando, na Escola de Dança da UFBA, onde
então eu começava a lecionar Filosofia da Dança, a convite dos professores
Dulce Tamara Lamego e Romélio Aquino, por sugestão da colega Maria da
Conceição Castro Franca Rocha, li, deslumbrado, a Sociologia do Comediante
(Zahar, 1972, trad. H. Facó, publicado originalmente em francês pela Gallimard,
em 1965, com o título L’acteur, sociologie du comédien). Ali, pude percorrer
um vasto panorama da história e da sociologia desses outros seres das
encruzilhadas, que são os atores, que vivem - e comunicam - entre a realidade e
a fantasia, a sedução e a crítica, a servidão e a rebeldia.
O segundo desses momentos ocorreu na cidade de Cuernavaca, no
estado de Morelos, no México, em 1996. Foi durante a realização do II Colóquio
Internacional de Etnocenologia, quando o ouvi cantar – seguidas vezes - músicas
brasileiras e falar entusiasmado de nosso povo, de nossos artistas e de nosso
país. Na companhia de Dionísio, nos luxuosos jardins de Cuernavaca, nas ruínas
de Xoxicalco e nas monumentais montanhas de Morelos, testemunhei, por
exemplo, a força do Teatro Campesino e Indígena, fundado em 1971 e que tem
suas origens em cerimônias, danças, festas e manifestações artísticas tradicionais
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dos povos e comunidades indígenas e camponesas mexicanos, com a liderança


de María Alicia Martínez Medrano. Poder acompanhar Monsieur Duvignaud em
seus comentários sobre o Brasil, o México, a Europa e a África, nessa ocasião,
encheu de sangue meu espírito e de ar meu corpo. O livro se fazia gente e
conhecimento e eu nasci de novo nesse momento.
O mais recente momento ocorreu em 2005, quando o visitei em sua casa
natal, na cidade de La Rochelle, na Charente Maritime francesa. Conheci então
sua família (como ele, também interessada pelas artes do espetáculo e pela
diversidade cultural), bem como seus objetos de estimação, espalhados por
toda a casa, muitos levados para ali daqui do Brasil. O Museu do Novo Mundo de
La Rochelle (la rebelle), um porto de circulação de bens materiais e simbólicos,
encruzilhada da anomia, registra as relações históricas entre essa cidade e o
Brasil. A casa de Jaen Duvignaud também.
Professor Duvignaud foi professor nas Universidades de Túnis, na Tunísia e
Tours e Paris Diderot (Paris 7, Jussieu), na França. Fundou várias revistas, entre as
quais Argumentos, com o filósofo Edgar Morin, nos anos 50, Causa comum, com
o escritor Georges Perec e o filósofo Paul Virilio, nos anos 70, e Internationale de
l’imaginaire, com Chérif Khannadar e François Gründ, nos anos 90.
Seus livros mais importantes são: L'Acteur, esquisse d'une sociologie
du comédien, Paris, Gallimard, 1965. Rééd. L'Archipel, 1995; Durkheim, sa
vie, son œuvre, Paris, PUF, 1965; Sociologie du théâtre, Paris, PUF, 1965.
Rééd. Quadrige, 1999; Georges Gurvitch, symbolisme social et sociologie
dynamique, Paris, Seghers, 1969; Anthologie des sociologues français
contemporains, Paris, PUF, 1970; Spectacle et société, Paris, Denoël, 1970;
Introduction à la sociologie, Paris, Gallimard, 1971; Sociologie de l'art, Paris,
PUF, 1972; L'Anomie, hérésie et subversion, Paris, Anthropos, 1973; Le
Langage perdu, essai sur la différence anthropologique, Paris, PUF, 1973;
Fêtes et civilisations, Paris, Weber, 1974; Le Théâtre contemporain, culture
et contre-culture, Paris, Larousse, 1974; Le Ça perché, Paris, Stock, 1976; Le
Don du rien, essai d'anthropologie de la fête, Paris, Plon, 1977; Le Jeu du
jeu, Paris, Balland, 1980; L' Or de la République, Paris, Gallimard, 1984; Le
Propre de l'homme, histoires du comique et de la dérision, Paris, Hachette,
11

1985; La Solidarité, liens de sang et liens de raison, Paris, Fayard, 1986;


Chebika, étude sociologique, Paris, Gallimard, 1978. Rééd. Paris, Plon, 1990;
La Genèse des passions dans la vie sociale, Paris, PUF, 1990; Dis
l'Empereur, qu'as-tu fait de l'oiseau ? (récit), Arles, Actes Sud, 1991; Fêtes et
civilisations ; suivi de La fête aujourd'hui, Arles, Actes Sud, 1991; Perec ou
La cicatrice, Arles, Actes Sud, 1993; Le singe patriote. Talma, un portrait
imaginaire (roman), Arles, Actes Sud, 1993; L'oubli ou La chute des corps,
Arles, Actes Sud, 1995; Le pandémonium du présent, idées sages, idées
folles, Paris, Plon, 1998; Le prix des choses sans prix, Arles, Actes Sud, 2001;
Les octos, béant aux choses futures, Arles, Actes Sud, 2003; Le sous-texte,
Arles, Actes Sud, 2005; La ruse de vivre, état des lieux, Arles, Actes Sud, 2006.
Seu interesse pelo teatro, pela festa e pela anomia compõe um sistema
coerente, tanto do ponto de vista conceitual quanto de sua produção literária. E é
nesse interesse que todos os leirores desse Caderno do GIPE-CIT também
poderão se encontrar e compreender a extensão da homeagem que aqui fazemos
a Jean Duvignaud.

Rio de Janeiro, 26 de outubro de 2007


Armindo Bião
Coordenador do GIPE-CIT desde 1994
13

FESTA:
Uma transgressão que revela e renova

Lúcia Lobato 1

As festas, cada vez mais, vêem sendo reconhecidas no campo das


Humanidades como um fenômeno necessário para a renovação e restauração
do equilíbrio coletivo. Autores como Jean Duvignaud e Norberto Luiz Guarinelo, a
partir de enfoques distintos, dedicaram atenção especial ao tema buscando
compreender seu significado histórico e social na transformação das vidas em
sociedade.
Ambos ressaltam o lúdico como um dos elementos constitutivos das festas.
Nesse sentido Johan Huizinga (2004, p. 234) argumenta que:
Uma verdadeira civilização não pode existir sem um certo elemento
lúdico, porque a civilização implica a limitação e o domínio de si próprio,
a capacidade de não tomar suas próprias tendências pelo fim último da
humanidade, compreendendo que esse está encerrado dentro de
certos limites livremente aceitos.
Este elemento lúdico tem expansão garantida nas festas. Digamos que os
homens, para conviver com suas limitações acordadas em sociedade,
desenvolveram uma espécie de fair play, que seriam ações realizadas de boa fé
e com um evidente sentido lúdico.
Para Duvignaud a festa estaria contemplada nesse savoir faire que destrói a
aparente normalidade da vida coletiva, pois quebra com a seqüência do cotidiano
instaurando o que sabiamente denominou “subversão exaltante” (1983, p. 31).
Estaria na essência da festa a capacidade de despertar e animar os sentidos. Nela
o participante perde o domínio da percepção e imerge no terreno das “dimensões
ocultas” que o remetem, por sua vez, à dimensão do imaginário.

1
Professora Doutora da Escola de Dança e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola
de Teatro e da Escola de Dança da UFBA.
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As “dimensões ocultas” (DUVIGNAUD, 1983, p. 55) são dimensões da


existência que deixam de corresponder às conformações tradicionais ou às
configurações estabelecidas do espaço cotidiano e em geral contestam e
destroem tais formas.
As festas acontecem em extensões existenciais que são, para o autor, por
exemplo, as ruas, as praças, os mercados, os bares, enfim, qualquer espaço
onde pessoas possam se encontrar e comemorar um acontecimento ou até
mesmo o simples encontro. É o lugar privilegiado do possível, da transgressão e
do desafio. Nele a festa promove um recorte e constrói um cenário que pode ser
social, religioso, militar entre outros, identificado pelos símbolos da tradição onde
as pessoas vão interagir se vestindo, se movendo, cantando e dançando como
personagens de uma cena.
Duvignaud sublinha na festa o elemento do transe que, segundo ele,
instaura um estado onde tudo é possível. Para o autor a festa não está vinculada
à normalidade, à funcionalidade, nem à rentabilidade, o que não a torna por essa
razão uma irracionalidade. A festa tem uma lógica interna que a constitui e para
compreendê-la é necessário o estado presencial. É preciso vivenciá-la, respirar
o seu ambiente, mesmo como um espectador com o “corpo contraído”. O
dinamismo da festa é repleto de performances e ações espetaculares, que
consagram a razão da existência e promovem a renovação. Nesse sentido, para
o autor o elemento orgiástico é o principal responsável das festas.
Norberto Luiz Guarinello, partindo de uma outra ótica, propõe pensar
a festa a partir de quatro categorias de análise: 1º- Fazer uma fenomenologia
da festa sem ignorar os sentimentos, os afetos e as emoções vivenciadas
pelos participantes; 2º- Não pensar a festa como uma instituição passível de
história; 3º- Abandonar a proposição de uma tipologia das festas; e finalmente,
na 4ª categoria, propõe entendê-la como estrutura do cotidiano e não como
uma realidade oposta. A partir dessas categorias elabora a seguinte definição
para a festa:
A festa é, portanto, sempre uma produção do cotidiano, uma
ação coletiva, que se dá num mesmo tempo e lugar definidos e
especiais, implicando a concentração de afetos e emoções em
15

torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujo


produto principal é a simbolização da unidade dos participantes
na esfera de uma determinada identidade. (GUARINELLO, 2001,
p. 972)2 .

É importante destacar que o autor não compreende o cotidiano como a


dimensão do particular, mas sim o espaço e o tempo concreto das realizações
sociais. Para Guarinelo, a festa é parte integrante deste cotidiano e implica
necessariamente uma estrutura de produção e de consumo que vai determinar
uma estrutura de poder que, por sua vez, tentará impor sua identidade, seus
gostos, sua ideologia. Mas por outro lado, reconhece que por mais controlada
e manipulada que seja uma festa, sempre é um ato de explosão coletiva e
produzirá identidades provisórias em diferentes graus. Produto da realidade
social, a festa produz identidades, mas nunca alcança o consenso, muito pelo
contrário ressalta e expressa os conflitos e as tensões dessa mesma sociedade.
Segundo Guarinelo, a festa unifica a partir de suas próprias regras e
códigos de conduta, mas também diferencia. É possível dizer que cria uma espécie
de unidade diferenciada que aglutina extremos aparentemente contraditórios
numa prática lúdica ao mesmo tempo de cooperação e competição.
Na visão de Guarinelo, resumindo, a festa implica numa produção social
que subentende um trabalho com custos, planejamento, hierarquias e funções
envolvendo uma participação coletiva que se legitima e conseqüentemente de-
fine suas regras.
Em outra direção, para Duvignaud nenhum regulamento sobrevive nas
festas, pois não será obedecido e nenhum ideal conseguirá se fixar. No
momento em que a festa se instaura se apoderando de um determinado
espaço, é estimulada à digressão e o homem se vê diante de um mundo sem
“códigos” num reinado do desregramento. Segundo o autor é nesse momento
que a festa se torna o instrumento para a comunidade alcançar a sua
finalidade última: o mundo reconciliado a partir de um estado fraternal.

2
In JANCSÓ, Istven e KANTOR, Íris. Festa: Cultura e sociabilidade na América Portuguesa.V. II. São
Paulo: Hucitec, EDUSP, Fapesp: Imprensa Oficial.
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Se relacionarmos os dois posicionamentos conceituais sobre o fenômeno


da festa e visitarmos o sentido da celebração na Antiguidade seria possível
entender a festa de Guarinelo com um olhar apolíneo enquanto a festa de
Duvignaud certamente só poderia ser apreendida sob as lentes de Dionísio.
Enquanto Guarinelo privilegia a necessidade da obediência às regras e uma
certa organização que implica acordos para o acontecimento, Duvignaud inverte
essa razão apontando que é justamente o caráter da subversão ao estabelecido
que promoverá a festa.
O Carnaval é considerado uma festa por excelência. Se tomarmos como
exemplo para nossas conjecturas o carnaval baiano e suas transformações
podemos melhor compreender as distinções propostas pelos dois autores. É
inquestionável que o carnaval baiano deixou de ser o espaço da irreverência
espontânea, da brincadeira inconseqüente e da farra coletiva. O que antes era a
realização da vontade festiva descompromissada transformou-se em exibição
no formato de uma espetacularidade produzida, permitida e controlada pelos
órgãos oficiais do poder municipal e estadual. O atual carnaval baiano,
profissionalizado e mercadológico, tornou-se um teatro vivo da sociedade,
passarela da performance dos famosos e dos políticos. Tornou-se a vitrine de
produtores, emissoras locais, nacionais e internacionais interessadas mais na
exploração dos efeitos da “imagem lucrativa” que nos registros da festa em si.
Nessa nova realidade as entidades populares, para sobreviver, têm que se
integrar e interagir com essa proposta de festa. Para tanto devem provar que têm
um produto de valor, pois são portadoras legítimas das simbologias que dão a
imagem e a digital local da festa. Tudo isso leva ao fenômeno contemporâneo
de fortalecimento de uma cultura popular peculiar que, ao contrário das culturas
de matrizes regionais tradicionais, supera os limites geográficos e se impõe
como fenômeno planetário: a cultura midiática. Esta nova cultura veicula uma
mentalidade e um conjunto de valores idênticos em qualquer parte do mundo, a
serviço de uma indústria em expansão, a indústria cultural.
A festa passa a ser um novo e atrativo produto de mercado que impõe a
todo momento a novidade e o inédito. Assim são introduzidas as técnicas que
atingem a emoção e acionam uma lógica da diversão. Nesse sentido a festa é
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cooptada para o marketing que seduza e ative esse desejo criando uma
necessidade não natural de consumir.
E é nesse momento que cabe refletir sobre as propostas dos autores de
referência nesse artigo pensando o carnaval contemporâneo de Salvador.
Estamos diante de um carnaval apolíneo ou dionisíaco? É um reflexo do cotidiano
contemporâneo da mentalidade soteropolitana? É um evento que exclui ou
inclui? Qual é a sua prática marcadamente lúdica? Quais são os elementos que
determinam a cooperação e a competitividade? Onde é possível encontrar o
espontâneo, a brincadeira, a descontração e a farra? Onde a diversidade está
estimulada? Onde há digressão e a quais códigos e padrões?
Mas, seja lá como for, a festa é sempre presencial e é renovação. Citando
Huizinga (2004, p. 222) em tempos contemporâneos, “o jogo se transforma em
negócio” e, porque não os negócios se transformam em jogo. Essas são apenas
conjecturas acadêmicas que estão ao largo da festa. E vale lembrar que muitas
vezes o que é festa para uns pode não ser para outros, mas indubitavelmente
todos sabemos o que é uma festa.

Bibliografia:
DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Fortaleza: Edições Universidade
Federal do Ceará; Rio de Janeiro Tempo Brasileiro: 1983.
GUARINELLO, Norberto Luiz. Festa Trabalho e Cotidiano. In: Jancsó,
Istvan e Kkantor, Íris Festa: Cultura e Sociabilidade na América
Portuguesa. V.II. São Paulo: Hucitec; Editora Universidade de São Paulo/
Fapesp: Imprensa Oficial, 2001.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Trad. João Paulo Monteiro. 5ª ed. São
Paulo: Editora Perspectiva, 2004.
18

A TRADIÇÃO E A REINVENÇÃO EM UM OLHAR SOBRE A


FESTA DO CONGADO
Valeska Ribeiro Alvim3

Após a ocorrência da disciplina Etnocenologia que tem como linha mestra o


estudo das práticas e dos comportamentos humanos espetaculares organizados, o
Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFBA resolve nos agraciar, com
mais uma disciplina voltada para as práticas espetaculares que se intitula Festas e
Espetacularidade4 . Tal disciplina focaliza os fenômenos das práticas festivas, suas
formas de espetacularidade e suas funções sócio-culturais e civilizatórias.
Durante a disciplina, a partir das aulas expositivas, leituras dirigidas,
seminários avançados e debates com convidados que têm vasto conhecimento
no assunto, busquei abordar uma manifestação popular como exercício para
compreender a espetacularidade5 ,como categoria filosófica, além de abordar
as questões da tradição e as reinvenções vivenciadas pelas manifestações
populares na contemporaneidade..
O avanço desses estudos traz possibilidades alternativas para a
investigação, fundamentação teórica e aperfeiçoamento dos processos criativos
de alguns profissionais da área da dança. Muitos ainda têm como referencial o
olhar eurocêntrico6 e, insistem em pensar e trabalhar as técnicas já codificadas
como, por exemplo, o Balé clássico, a Dança Moderna, como únicas
representantes da linguagem da dança, o que muita das vezes acaba excluindo
as outras formas cênicas.

3
Bacharel e Licenciada em Dança pela Universidade Federal de Viçosa (2006). Atualmente mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia.
4
Este texto foi produzido durante a Disciplina “Tópicos especiais em Artes cênicas -TEA 507” ministrada
pelos professores Lúcia Lobatto e Érico José.
5
De acordo com o professor Bião espetacularidade é “o que ultrapassa o universo rotineiro, que revela
rituais e os encontros inter-pessoais extraordinários ou extracotidiano”.
6
A tendência para julgar a realidade social, política, cultural ou antropológica de uma dada comunidade de
acordo com os critérios da cultura européia denota um ponto de vista eurocêntrico. A cultura da Europa
torna-se o contexto de referência legitimadora e exclui qualquer realidade alternativa.
19

Sob essa perspectiva de um corpo total7 , penso que a análise das formas
de produção e transformação das chamadas manifestações populares oferece
uma alternativa para as práticas redutoras e tecnicistas sob as quais aqueles que
se ocupam do oficio de dançar estão acostumados a pensar a dança e seu
ensino. Tal abordagem, que se diferencia do etnocentrismo, requer a visão do
corpo como algo simbólico dotado de pensamento, espírito e emoção, bem
como do contexto histórico-social no qual está inserido.
É sob esse enfoque que me proponho a pensar o congado como uma das
manifestações de cultura popular que possibilitam um olhar acerca da
espetacularidade.
Antes de adentrar na manifestação em questão, teço inicialmente algumas
considerações sobre o uso do termo festa. Empreendo, em seguida, a festa do
Congado tal como é experienciada pelos congadeiros de São José do Triunfo,
município de Viçosa, Minas Gerais.
Mas afinal o que é uma festa? Para Norberto Luiz Guarinello (2001, p.
969), o caráter vago desse termo pode reunir uma série de entendimentos que se
chocam: Os sentidos que o próprio senso comum atribui à festa são desta forma,
bastante fluidos, negociáveis e contestáveis. Segundo o autor, a festa é parte do
cotidiano de todas as sociedades humanas, necessária a esse cotidiano sendo,
portanto, algo integrado e não adverso a ele.
Na tentativa de entender esse termo, geralmente tratado de forma
imprecisa, Guarinello aponta algumas características sob as quais a festa
costuma ser circunscrita. Entre elas, está o fato de que implica uma determinada
estrutura social de produção; envolve a participação concreta de um coletivo,
distribuindo-se dentro de uma determinada estrutura de produção e de consumo
da festa, na qual ocupam lugares distintos e específicos; aparece como uma
interrupção do tempo social, uma suspensão temporária das atividades diárias
que pode ser cíclica, ou episódica; articula-se em torno de um objeto focal, que
pode ser um ente real ou imaginário; por fim, segundo o autor, a festa é uma

8
Não dualista, ou seja, que não vê o corpo como algo separado da mente, não eurocentrica, um corpo
dotado de emoção e, que a todo tempo intercâmbeia e dialoga com o contexto no qual está inserido.
20

produção social que pode gerar vários produtos, tanto materiais como
comunicativos ou, simplesmente, significativos.
A conclusão de Guarinello é que a festa é, portanto, sempre uma
produção do cotidiano, coletiva e que se dá num tempo e espaço definido
e especial. Tal definição assemelha-se, como admite o próprio autor, ao
caráter do jogo. Johan Huizinga (1996, p. 25) também atribui uma estreita
relação entre jogo e festa:

Em ambos predominam a alegria, embora não necessariamente,


pois também a festa pode ser séria. Ambos são limitados no tempo
e espaço. Em ambos encontramos uma combinação de regras
estritas com a mais autêntica liberdade. Em resumo, a festa e o jogo
têm em comum suas características principais. O modo mais íntimo
de união de ambos parece poder encontrar-se na dança.
O caráter espetacular da festa está presente em suas características
principais, tais como sua organização coletiva e o rompimento do cotidiano num
tempo/espaço. Para Pradier (1997, p. 02), por exemplo,
O adjetivo espetacular designa uma variável intermediária que
se refere a um modo especifico de tratamento de informação sen-
sorial, quando a intensidade de um objeto percebido contrasta
em relação ao ambiente. (...) a palavra “espetacular” só existe
para nós sob a forma adjetival, enquanto que “espetáculo” designa
um objeto finito.
Mendes (2000, p. 80) chama atenção para o fato de que uma abordagem
etnocenológica sobre manifestações populares abre a possibilidade para numa
nova visão do corpo humano que pode contribuir para as práticas cênicas: O
corpo como atividade simbólica, cujas dimensões físicas, somáticas, cognitivas,
emocionais e espirituais interagem entre si e com o contexto cultural no qual ele
se insere.

A festa do congado
O congado tem uma origem luso-afro-brasileira, uma vez que a devoção
dos negros a Nossa Senhora do Rosário foi introduzida ainda na África pelos
21

dominicanos8 no final do século XV, ao fornecer elementos europeus como


estratégia de dominação religiosa. A Igreja no Brasil, por sua vez, desde o início
da colonização reforçou essa crença, enquanto os negros juntaram esses
elementos aos rituais que sempre permearam a cultura africana para dar formato
e brilho à festa. Logo, o que conhecemos hoje como Congado é resultado do
sincretismo entre a religiosidade africana, portuguesa e, mais tarde, brasileira.
Como confirma Souza (2002, p. 179):
(...) foi na América portuguesa que a eleição de reis negros e suas
comemorações festivas esteve mais difundida, existindo
comprovadamente desde o início do séc. XVII, ganhando força no
XVIII e ocorrendo ainda hoje em várias localidades brasileiras.
Câmara Cascudo (1993, p. 44) ratifica o pensamento de Souza ao explicar
essa questão: de formação afro-brasileira, em que se destacam as tradições
históricas, os usos e costumes tribais de Angola e de Congo, com influências
ibéricas no que diz respeito à religiosidade.
Os processos históricos de sua formação e a religiosidade vivenciada no
Congado evidenciam a devoção a Nossa Senhora do Rosário.
O início de toda essa devoção dos negros africanos a Nossa Senhora do
Rosário se atribuiu à lenda, em suas muitas variantes transmitidas de geração a
geração, nas mais diversas versões regionais, tendo como a mais recorrente das
histórias a que conta o aparecimento inesperado da imagem de uma Santa no
mar que, imediatamente, foi levada pelos brancos para uma capela, construída
pelos escravos na qual, ironicamente, não podiam entrar.
A Santa, que logo recebeu preces por parte dos brancos, não ficava na
capela e por várias vezes voltou ao mar.
As várias tentativas de mantê-la na capela e a decepção com sua volta
sucessiva para as águas, fazem com que os brancos rendam-se à insistência dos
negros e permitam que eles rezem para imagem. A reza se dá quando um
moçambiqueiro9, segundo narra a tradição oral, acompanhado de seu tambor de

8
Frades da Ordem São Domingos.
9
O Moçambiqueiro é o brincante que faz parte da comitiva dos Reis e Rainhas da festa do Congado.
22

ritmo vibrante, vai até a Santa e, então, dança com seus pés descalços enquanto reza
em forma de canto, num tom que revela fé e humildade. A imagem, conforme reza a
lenda, então se movimenta nas águas e os acompanha para nunca mais voltar.
É a partir dessa crença em Nossa Senhora do Rosário que,
tradicionalmente, no mês de outubro, os devotos realizam a cerimônia do
Congado. As manifestações possuem particularidades, de acordo com cada
região que acontece, que podem envolver as cores da farda, do capacete, a
organização espacial, os ritos, os instrumentos, o modo como desenvolvem suas
seqüências coreográficas. Deste modo, é de extrema necessidade que sejam
aqui colocadas as particularidades relativas ao Congado de Nossa Senhora do
Rosário de São José do Triunfo, localizado na Zona da Mata mineira.
O Congado apresenta um caráter religioso e ritualístico, realizado na
comunidade, nos meses de maio e outubro, sendo organizado espacialmente
em forma de préstitos, cortejos. No dia da festa, os congadeiros reúnem-se em
duas filas, o Rei Congo, a Rainha Conga, o Rei e a Rainha de compromisso, os
Anjos, o Reinado, o Rei do Meio, o Príncipe e a Princesa, estes últimos
permanecem durante a organização da fila, ocupando o corredor interno.
A indumentária desta festa está correlacionada à imagem da santa
padroeira, ou seja, a fila do lado direito usa o saiote e o capacete rosa que
correspondem à cor da veste da santa; a fila do lado esquerdo usa o saiote e
capacete azul correspondentes à cor da manta. Por baixo da roupa, os
congadeiros usam blusa de manga comprida, calça e sapatos brancos.
A programação dura três dias, começando na sexta-feira e indo até o
domingo, com cantos, dança coroação de seus reis e rainhas, príncipes e
princesas, banquetes, missas e fogos de artifício. Um ritual coletivo que reúne
em sua prática tradicional todos os elementos que marcam o caráter da festa
como um ato espetacular de ressignificação do cotidiano.
Da Matta (1990, p. 24), acredita ser de grande importância uma
investigação dos rituais coletivos por proporcionarem a reprodução de valores
culturais e, ao mesmo tempo, reapresenta e discute distinções hierárquicas
presentes no cotidiano da sociedade:
23

É como se o domínio do ritual fosse uma região privilegiada para se


penetrar no coração cultural de uma sociedade, na sua ideologia
dominante e no seu sistema de valores. Porque é o ritual que permite
tomar consciência de certas cristalizações sociais mais profundas que
a própria sociedade deseja situar como parte dos seus ideais–eternos.
Em Minas Gerais, onde acontece a maioria dos festejos do Congado, a
dominação colonial esteve intimamente vinculada às ações missionárias
católicas no empreendimento colonial português. A significativa quantidade de
irmandades leigas de "homens pretos", formadas por escravos, negros e alforriados
que se estruturaram em torno de alguns santos, foram utilizadas pelo sistema
escravista como mecanismo de controle, ao mesmo tempo, as irmandades foram
um meio pelo qual os negros puderam vivenciar aspectos de sua cultura,
demonstrando elementos de sua concepção de mundo e proliferando certos
rituais africanos, como alguns dos elementos que compõem as celebrações
dramatizadas em Minas Gerais, revestindo a vivência do sagrado em um
importante identificador de resistência cultural.
A convivência dos elementos sagrados e profanos foi uma das características
mais marcantes das irmandades. A justificativa para a existência das mesmas, muitas
vezes se pauta na afirmação de que elas eram as únicas responsáveis por proporcionar
um enterro cristão a negros, que na grande maioria das vezes eram abandonados
pelos seus senhores na hora da morte. Portanto, desde a chegada em nossas terras,
essas irmandades foram reconhecidas como uma forma de afirmação cultural.
Desta forma, pode-se concluir que desde a colonização, a manifestação
cultural popular tradicional vem sofrendo inúmeras adaptações e
descontinuidades no que diz respeito à estrutura ritual, por se tratar de uma
prática dinâmica, não estática e imutável, que está em constante interação com
outros tipos de eventos, sejam eles sociais ou culturais: Não existem culturas
inteiramente isoladas e paradigmaticamente fixadas, numa relação de
determinismo histórico, a classes inteiras – embora existam formações culturais
de classe bem distintas e variáveis. (HALL, 2003, p. 262).
O Congado é considerado uma tradição porque, através da transmissão
oral de lendas ou narrativas, repassa valores e crenças de geração em geração.
24

O termo tradição constantemente relacionado com o antigo, o resistente, o


herdado vem do latim tradere, e quer dizer “trazer”. Buscar de uma época passada
e trazer para a contextualização atual, ou seja, o campo das tradições abarca
práticas que possuem seus significados primeiros em lugares do passado, mas
que se relacionam de forma intercambiável com o presente, adaptando a prática
tradicional a um contexto histórico atual.
Hobsbawm (1997) afirma que as tradições vão sendo inventadas e
reinventadas, na intenção de preservarem certa conservação em relação ao passado
diante das constantes transformações do presente. Sendo assim, muitas alterações
no conteúdo das práticas culturais tradicionais se fazem necessárias como forma de
reorganizar os sentidos, o que, de certa forma, explica a dinamicidade e reinvenção
cotidiana de manifestações da cultura popular. Por exemplo, no Congado, também é
possível perceber o diálogo dessas práticas com a atualidade sem deixar de ser vista
como referência de memória, embora abra mão de determinados aspectos por
muito tempo conservados e agrupem outros contemporâneos.
Na mesma esteira de pensamento de Hobsbawm, a autora Vicente
(2005, p. 78) coloca que sobreviver e resgatar são palavras cotidianas quando
se fala em cultura popular e, que o uso delas demonstra um desejo que a
manifestação permaneça e, ao mesmo tempo uma descrença de que aquela
cultura resistiu até os dias de hoje.
A atualidade, com seu ritmo acelerado, permitiu algumas mutações nas
tradições, mas não extinguiu o desenvolvimento das culturas tradicionais,
apenas as deixou mais sincréticas, menos cerradas, mais provocativas em
seus significados e significantes.
Nesse sentido, interessa salientar a questão da temporalidade evocada
nessas práticas culturais. Elas adquirem um caráter não linear, onde passado,
presente e futuro se interconectam a todo o momento. A manifestação do congado
rememora, no presente, práticas culturais e realidades sociais passadas que,
possivelmente no futuro, estarão em constante modificação.
As manifestações culturais populares tradicionais trazem uma recorrente
ponte transformadora entre passado e presente. Pensamento que remete à
25

perspectiva apontada por Simson (2004) que afirma que ao compartilhar a


memória os indivíduos constroem uma sólida ligação, baseada em uma bagagem
cultural comum, usando os “óculos do presente” e experiências passadas, para
então construir um gancho bem alicerçado para ações futuras.
E é nesse ato de compartilhar memória, que o aprendizado vai se dando
nas manifestações culturais, como tão bem coloca Falcão (2002, p. 52):
Todas as formas de arte (canto, dança, música) na tradição africana
possuem o mesmo processo de aprendizagem, ou seja, um processo
iniciático que ocorre desde a infância, imitando-se os mais velhos. A
aprendizagem está fundamentalmente ligada ao aspecto religioso, o
religare, em que os conteúdos culturais são transmitidos de geração a
geração.
O que se apresenta no trânsito entre gerações fica nítido nos corpos dos
manifestantes, os brincantes congueiros vivem a memória do que há muito tempo
foi vivido por seus antepassados. O Congado representa uma maneira única dos
integrantes se relacionarem com o seu corpo, memória viva de uma manifestação
de resistência cultural e fé.
Comumente as pesquisas acerca dessas manifestações populares, não
levam em consideração esse corpo simbólico, que de acordo com Ektin (2000)
é aquele marcado pelo significante, isto é, um corpo conhecido pelo outro, que
está presente em seu discurso, que o nomeia e o caracteriza, fica limitado a um
relato de vestimentas, ritmos, cores do momento festivo, deixando, muitas das
vezes, de retratar a valorização do passado coletivo, as formas orais de
transmissão dos saberes, a vivência da tradição no cotidiano, e o vínculo constante
com o sagrado.
O olhar sobre o Congado, levando em consideração esses elementos,
possibilita uma nova abordagem sobre a manifestação e principalmente sobre sua
transmissão. O ensino dos vários elementos que compõem tal manifestação difere
da prática acadêmica que, sob a perspectiva eurocêntrica, desfacela o corpo através
das técnicas montadas a partir de uma visão unicamente anatômica e física.
Muitas vezes um brincante, integrante de um folguedo como o Congado,
que cresceu fazendo parte daquela manifestação, ao levar as questões da festa
26

para o universo acadêmico, preocupado em desenvolver uma pesquisa


reconhecidamente científica, acaba por desenvolver um trabalho que é estranho
tanto para o seu universo de origem como para a própria academia. O resultado
é a descaracterização do próprio objeto de estudo e a conseqüente questão
sobre as razões e objetivos para tal abordagem.
Esse olhar crítico, sobre os fenômenos cênicos, vê as manifestações além
da mera descrição, portanto, é a tentativa de contribuir para o ensino dessas
manifestações cênicas no universo acadêmico, levando em conta esse corpo
simbólico. Uma abordagem assim, num universo ainda tão marcadamente europeu,
pode realizar com maior propriedade pesquisas sobre as manifestações populares,
pois, exige que conceitos eurocêntricos sejam revistos e redimensionados.
A disciplina apresentou-se como um convite, uma possibilidade de discutir
e buscar caminhos para a compreensão das inquietações a respeito da
espetacularidade, provocando questões a respeito da tradição, da conservação
e do novo, bem como da existência múltipla de entrelaçamentos que relacionam
o acadêmico com a cultura popular.
Em consonância com este pensamento enfatiza Vicente (205, p. 22) acerca
dos estudos das manifestações: (...) mais do que um objeto de estudo, ele se
apresenta principalmente como uma posição a partir do qual é possível enxergar
as relações simbólicas contemporâneas por vários ângulos.
Pensando assim, e ciente que o caminho não está concluído, pelo
contrário, está sendo construído e que o ato de construí-lo modifica tanto quem o
exerce quanto o produto final que se apresenta, espero que esse GIPE-CIT
produzido a partir da disciplina Festas e Espetacularidade seja o primeiro, de
muitos diálogos que emergem desse olhar que se engendrou enquanto discurso
cientifico e acadêmico para os fenômenos cênicos.

Bibliografia:
BIÃO, A. theatrelité et spectacularité.Une aventure tribale comtemporaine à
Bahia. Tomo I,tese de doutorado, Michel Maffesoli, Universidade Paris V, 1990,p.127.
27

CASCUDO L. C. Dicionário do folclore brasileiro. 10ª ed. edição ilustrada.


São Paulo: Global, 2001.
DA MATTA, R. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do
dilema brasileiro. 5ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1990.
ETKIN, G.E. O Corpo da Psicanálise. In. Cabeda, S.T. L(org) O corpo ainda é
pouco. II Seminário sobre contemporaneidade. Feira de Santana: NUC/
UEFS.2000
FALCÃO, E. F. Metolodogia da mobilização coletiva e individual. João
Pessoa: Editora da UFPB, 2002. P.28-97.
GUARINELLO, N. L. Festa, Trabalho e Cotidiano. In: Istvan Jancso; Iris
Kantor. (Org.). Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. São
Paulo: EDUSP/HUCITEC, 2001, v. 2, p. 969-975.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu
da Silva, Guaracira Lopes Louro. 9ª. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
HOBSBAWM, E.; RANGER, T. (orgs). Introdução: a invenção das tradições.
In: A invenção das tradições. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
HUIZINGA, J. Homo Ludes: o jogo como elemento da cultura.Trad.João
Paulo Monteiro.
MENDES, E. B. B. Um abraço da etnocenologia no popular brasileiro. In: I
Reunião científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2000,
Salvador. Memória ABRACE II - Anais da I Reunião Científica de Pesquisa e
Pós-Graduação em Artes Cênicas. Salvador: ABRACE,2000. p. 79-84.
PRADIER, J. M.. “Etnocenologia: a carne do espírito”. Trad. Armindo Bião.
Paris, 1997.
SOUZA, M. de M. Reis Negros do Brasil escravista: história da festa de
coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
VON SIMSON, O. R. de M.. Memória, cultura e poder na sociedade do
esquecimento. In: Revista da Faculdade de Educação e Centro de Memória
da Unicamp. São Paulo, 2004.
VICENTE, A. V. Maracatu Rural: o espetáculo como espaço social. Recife:
Ed. Associação Reviva, 2005 •.
28

REZAR, CANTAR E FESTAR — HOMENAGEM À SENHORA


DO ROSÁRIO:
pontuações sobre a Congada em Uberlândia/MG

Ana Maria Pacheco Carneiro10

De março, quando em geral os rosários são abertos, até meados de


novembro, quando então os reinos se recolhem e se fecham, os
tambores cantam em Minas e guiam pelas ruelas e pelos asfaltos, pelas
capelas e Igrejas do Rosário, pelos quintais, as nações do congo que,
com seus reis e rainhas, seus capitães e marinheiros, rematizam a
África em terras das Américas. (MARTINS, 1997)

Ao som do tambor, Tá caindo fulô


Conheci o Congado11 em 2002, quando fui trabalhar no Curso de Teatro
da UFU, Uberlândia/MG. Apesar das diversas informações recebidas sobre a
festa, fui surpreendida uma tarde pelo som de tambores que soavam ainda longe
e, depois, cada vez mais perto. Um som forte, com uma cadência marcada — o
som de um Terno de Congo que iniciava o período de rezas do terço e leilões,
preparando-se para mais uma Festa em homenagem a Senhora do Rosário.
Durante quarenta dias, o mesmo deslumbramento aconteceu. Em alguns
deles, cheguei a ver o Terno: roupas cotidianas, simples, cerca de 30 pessoas —

10
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Teatro da UFBA; Professora
efetiva do curso de teatro FAFCS/UFU.
11
De origem africana, principalmente das áreas do Congo, Angola e Moçambique, onde vivia o povo bantu,
o Congado é uma manifestação cultural católica e africana, que surge a partir da devoção à Senhora do
Rosário, disseminada pelos portugueses em suas conquistas. Devoção reforçada no Brasil, a partir do
século 18, quando os negros, utilizando-se das formas rituais cristãs — única forma de conviver com
seus mitos ancestrais —, reforçaram o culto e a festa. Origens lendárias também explicam o surgimento
do congado: a lenda de Chico Rei e a história da aparição de Nª Sª na linha do mar. www.uberlandia.gov.br;
visitado em 21/11/2006.
29

homens, mulheres, crianças e adolescentes que se dirigiam a alguma das casas


do bairro, cumprindo os rituais que todo ano se repetem.
Depois, chegou a Festa: o desfile dos Ternos, as danças e a música,
símbolo marcante da Festa do Congo

Olha São Benedito é o santo! (bis)


Viva Nossa Senhora do Rosário! (bis)
Senhor capitão, onde me mandá eu vou (bis)
No palácio da Rainha nasceu um gai de fulô (bis)
Tá caindo fulô, eh, eh
Tá caindo fulô, eh, a!
Lá no céu, cá na terra
Eh, tá caindo fulô
Lá no céu, cá na terra
Eh, tá caindo fulô
Lá na rua de baixo, lá no fundo da horta (bis)
A polícia me prende, olêlê, a Rainha me solta (bis)
Tá caindo fulô, eh, eh
Tá caindo fulô, eh, a!
Lá no céu, cá na terra
Eh, tá caindo fulô12

Junto a tudo isso, a transformação da própria Uberlândia com a festa — o


surgimento de uma cidade alegre, colorida e negra13 . Uma cidade não adivinhada,
ainda, por entre o burburinho cotidiano das movimentadas ruas de seu Centro ou
das vazias e solitárias ruas do bairro de classe média em que moro.
Para mim, vinda do Rio de Janeiro, foi um reencontro com a energia das
festas de rua, seus barulhos e sons; os cheiros das barracas de comida, os risos,

12
Congo cantado nas festas de São Benedito e Nª Sª do Rosário. Gravações: Dércio Marques e Doroty
Marques (Álbum “Monjolear”); Luis Dillah e Pena Branca, com vocal de Vagamundo e Luiz Salgado
(Álbum “ Cantigas do Cerrado”).
13
Os festejos são realizados por afrodescendentes, que constituem 42% da população da cidade. Entretanto,
esse enorme contingente passa despercebido no cotidiano de Uberlândia, só se revelando por ocasião da
Festa.
30

as falas e os olhos vivos, brilhantes de um povo cuja presença não se faz tão
determinante no cotidiano da vida na cidade. Um povo que, nesse dia, como
verdadeiro Rei Congo, domina aquele espaço.
Durante esses anos, tenho ouvido os tambores, visto a festa e apreendido
algumas poucas informações que me trazem a compreensão do quanto me
encontro realmente “no começo do princípio do início de algum conhecimento
sobre o congado. (...) que devo estar sabendo quase nada, principalmente do
essencial que é a vivência da fé em N. S. do Rosário pelos congadeiros...”14

O Santo e A Senhora: o Juizado de São Benedito e o Reinado de


Nossa Senhora
“Isso vem do começo do mundo” — assim se referem os devotos às “festas
de santo de preto” que, identificadas com o tempo das origens de rituais de
negros, são sempre associadas ao que pode haver de mais antigo, legado
imaterial ao mesmo tão presente e tão distante relacionado “à crença no santo,
à fé na festa e à tradição dos festejos.” (BRANDÃO, 1978, p.65)
Considerados como os grandes protetores do povo negro, São Benedito e
Nossa Senhora do Rosário recebem anualmente as devidas homenagens dos
congadeiros. O Juizado de São Benedito15 acontece em abril ou maio, próximo
à Festa do Divino, — realizada no Domingo de Pentecostes, que geralmente “cai”
em maio ou junho — e, juntamente com ele, abre o grande ciclo de “festas de
santo”: Santo Antonio, São João, São Pedro, que se encerra em outubro, com o
Reinado de Nossa Senhora do Rosário.
Segundo a tradição, São Benedito era escravo na África; bom cozinheiro,
nunca atrasava o almoço. Os senhores, só para vê-lo atrasar, mandavam-no
buscar as rezes no mato; mas ele ia, voltava e o almoço saía na hora certa e

14
Frei Chico, Congados: origens e identidade. http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/
congadorigem.htm ; visitado em 21 nov. 2006.
15
Os congadeiros explicam o Juizado de São Benedito pelo fato de as cabeças de seu cortejo não serem
coroadas, pois os que as recebem não são reis, são juízes (Brandão, 1978).
31

sempre saboroso. Dizem ainda, que era um homem negro muito inteligente, o
que os senhores não aceitavam e, por isso, terminaram por queimá-lo vivo. Por
suas qualidades, o santo está sempre presente na Festa de Nossa Senhora, pois
enquanto a Senhora comanda a festa, ele comanda a cozinha.
Em Uberlândia, realizado num bairro da periferia da cidade, o Juizado se
constitui ainda como uma festa “pequena”, apesar do incentivo que vem
recebendo, principalmente por parte dos congadeiros e do pároco atual. Assim,
a Festa de Nossa Senhora do Rosário, considerada como de responsabilidade
da Irmandade16 que leva o seu nome, é realmente a grande “festa de santo” da
cidade.
É ela ainda, a propiciadora da grande transformação do espaço urbano
quando, pelo breve período de sua duração, coloca em primeiro plano a
população afrodescendente, ainda hoje rejeitada pela elite local.
Em entrevista a Brasileiro (11/03/2006), João Rodrigues (vulgo Bolinho),
65 anos, morador do Bairro do Patrimônio, local reconhecido como o mais antigo
ponto de concentração de negros na cidade de Uberlândia, aponta barreiras
sociais explícitas existentes na cidade, ainda na década de 60, quando a subida
da Av. Afonso Pena (uma das principais avenidas da cidade) era dividida: do lado
direito, os bares e confeitarias freqüentados pelos brancos; do lado esquerdo, a
calçada destinada aos negros, que não podiam entrar naqueles locais. “Mesmo
no Uberlândia Clube eles não aceitavam negros, nem para lavar banheiro”,
acrescenta ele. (BRASILEIRO, 2006, p.11)
Se hoje as barreiras não são tão explícitas, reclamações e grosserias
praticadas contra os congadeiros atestam, ainda hoje, um grau bastante elevado
de rejeição às atividades culturais e religiosas praticadas pelos negros.

16
A Irmandade de Nª Sª do Rosário de Uberlândia data, conforme seu livro de Atas, de 01 de Novembro de
1916, quando foi oficialmente instituída, com a presença de 25 irmãos fundadores (Brasileiro, 2006). As
primeiras Irmandades de Nª Sª do Rosário dos Pretos, assim como as Irmandades de São Benedito no
Brasil datam possivelmente de anos não muito posteriores à chegada dos primeiros escravos para as
lavras de ouro. Seus livros de Atas, guardados na Igreja, possuem referências importantes sobre seus
participantes, quantias arrecadadas e gastos feitos. (Brandão, 1978:147, nota 69)
32

O movimento do Congado na região começou por volta de 1876, quando


os negros reuniam-se nas beiras do Rio das Velhas (Olhos D'água) — região do
distrito de Santa Maria (atual Miraporanga) e do arraial de São Pedro do
Uberabinha (atual Uberlândia) —, e saíam "batendo caixa", numa festividade
ainda sem ordenação sistemática.
Com o passar dos anos, a Festa do Congado passou a ser comemorada
na própria cidade17, sempre no último domingo do mês de outubro, quando
aconteciam, simultaneamente, a Festa da Irmandade dos Homens Pretos na
Igreja do Rosário, e a festa dos brancos na Igreja Matriz. A partir de 1917, entretanto,
os padres acharam por bem mudar o dia da festa dos negros, que passou a se
realizar no segundo domingo de novembro18 . Apenas em 2003, quando um novo
pároco entendeu que a festa devia retornar para o seu tempo “certo”, ela voltou a
ser comemorada a partir do segundo domingo de outubro19.
Disseminada pelo interior dos estados de Minas Gerais20 , Espírito Santo,
São Paulo, Goiás, a Congada apresenta-se sob diferentes formatos. Em alguns
lugares, está relacionada à escolha e coroação do Rei Congo e de sua Rainha;
em outros, acrescentam-se ainda aspectos de luta entre o Bem, representado
pelos cristãos e o Mal, representado pelo grupo de mouros. Trajados
respectivamente de azul e vermelho, nas movimentações simbólicas de
17
Conta-se que os negros chegavam das fazendas em carros de bois e se agrupavam debaixo de uma
grande árvore, no campo onde hoje se encontra a principal praça da cidade, a Praça Tubal Vilela.
Depois, seguiam por uma trilha até a Capela de Nª Sª do Rosário, e ali realizavam a Festa. Em princípios
de 1891, foi proposta a construção, na atual Praça Rui Barbosa, da segunda Capela. Ampliada em 1931,
foi tombada e restaurada (1987-1988) e hoje, como Igreja de Nª Sª do Rosário, pertence ao Patrimônio
Cultural da cidade. www.uberlândia.gov.br; visitado em 21/11/2006.
18
As trocas de datas da comemoração feita pelos negros envolvem questões conflituosas, relacionadas
a preconceitos sociais que remontam às origens da cidade, quando a comunidade branca realizava sua
comemoração de forma mais discreta, com novenas e missa na catedral, quermesses, leilões e
barraquinhas. A festa dos negros, ruidosa, com desfiles, som de tambores e danças não era bem
recebida pela elite da cidade. Ainda hoje essas questões perduram e muitas vezes causam conflitos
entre os quartéis de Congo e as comunidades onde estão inseridos.
19
Em depoimento registrado em 05/10/2003, o pároco Olimar Rodrigues justificou a mudança como uma
“tentativa de trazer novamente a união da liturgia com a manifestação popular”, afirmando ainda que a
decisão fora tomada em conjunto, em assembléia que contava com a presença de todos os capitães dos
Ternos e do Presidente da Irmandade. (cf Brasileiro, 2006:39)
21
De acordo com o Atlas de festas populares de Minas Gerais, atualmente existem no estado 326 Festas
do Rosário, presentes em diversas regiões. www.foliacultural.com.br; visitado em 21/11/2006.
33

embaixadas e cantos, os cristãos sempre vencem os mouros, que são, por fim,
batizados.
Em Uberlândia, a Congada consta principalmente do cortejo dos Ternos
de Congo — apesar de ter inseridos, em seu interior, outros momentos rituais —
, momento em que a
voz dos tambores dos moçambiques (...) remont[a] aos tempos de vida
dos escravos africanos na colônia brasileira, quando negros então
cristianizados introduzem disfarçadamente, na formação desses grupos,
todas as suas vivências do antes e do após as travessias no Atlântico.21
Participante e pesquisador das Congadas, Jeremias Brasileiro, morador
de Uberlândia, assim expressa sua compreensão sobre elas:
As Congadas são muitas coisas, principalmente um costume cultural
que propicia aos praticantes continuar mantendo um elo de
ancestralidade com uma África Memorial. Vinculados a um grupo étnico
e social de feições catolicistas, os congadeiros procuram em seus
festejos cíclicos reafirmar sua identidade com esse costume cultural tão
presente em expressiva parte da população afrodescendente, em
especial, nas cidades de Minas Gerais.22
Contando com um número variado de componentes — os Congos e
Ternos são geralmente compostos por cem pessoas, enquanto os
Moçambiques possuem aproximadamente quarenta pessoas —, os Congos
têm uma estrutura rígida e clara: o general ou comandante, o dono do Terno, é
quem possui a patente, a permissão para o grupo existir; os 1°, 2° e 3° capitães
são responsáveis pela organização do terno; o guarda ou fiscal é o zelador dos
instrumentos e das crianças nas ruas; alferes são os soldados que puxam as
filas; são caixeiros de frente os tocadores de caixa que fazem evolução na
porta da Igreja; e os soldados completam o terno.
Alguns Ternos possuem, ainda, o grupo das "Virgens do Rosário" que,
comandado pela madrinha do Terno, carrega um ou dois estandartes na frente do

21
Brasileiro, Jeremias. Um reinado que persiste com seu jeito congadeiro de festejar. Artigo. 2005.. http://
www.uberlandia.gov.br, visitado em 21/11/2006.
22
Idem.
34

cortejo. Formado por onze meninas, de acordo com a tradição todas elas devem
ser virgens, como símbolo de pureza e devoção a Nossa Senhora do Rosário.
O estandarte, com a imagem votiva, é geralmente ornamentado com fitas,
seguras pelas virgens. Faz parte, juntamente com o mastro votivo, dos elementos
simbólicos do ritual da Congada.
Levantado no início das festividades da manhã de Festa, o mastro votivo
simboliza a união entre Terra e Céu, vivos e mortos, corpo e alma. A força dessa
simbologia faz com que ele caracterize o centro energético da Festa, em torno
do qual os Ternos dançam e recriam laços ancestrais. Aquele que toca e beija o
mastro terá muita sorte e receberá muitas graças.
Em Uberlândia, são levantados mastros em homenagem a São Benedito
e Nossa Senhora do Rosário, durante ritual em que as guardas entoam cantos,
pontuando os movimentos dos congadeiros.

A Festa de Nossa Senhora do Rosário: Um Reinado que Persiste


No segundo domingo de outubro, desde cedo, a movimentação na cidade
já é grande: o som dos tambores se junta a cantos no interior de algumas casas;
homens de chapéus com fitas, bordados ou com coroas na cabeça, trajes
coloridos; mulheres com suas mais lindas roupas, elegantes, o largo sorriso
estampado no rosto; crianças e adolescentes paramentados com óculos escuros,
os jovens com suas cabeças raspadas, as moças com tranças e contas ou flores
nos cabelos — são capitães do Congo, integrantes da Congada, devotos que se
preparam para a festa.
A cada um deles, independentemente de qualquer ação mais direta que
nela possam exercer, caberá como tarefa nesse dia: rezar e cantar; praticar atos
de fé em momentos rituais; comer e beber do que simbolicamente se oferece;
deixar-se envolver pelo “espírito da festa”, com disposição para “festar”.
É principalmente essa disponibilidade que dá o tom da festa, abrindo
espaço para o riso e para a alegria. O ambiente é, portanto, mais festivo-religioso
do que contrito-religioso. É de maneira lúdica, em que não falta o riso e a
descontração, que todos distribuem, ao mesmo tempo, suas obrigações para
com a festa e as alegrias a retirar dela.
35

Abarcando um período maior que o de sua realização propriamente


dita, pode-se dizer que a festa, em seu todo, consta de um antes, um durante
e um depois.

O Antes:
Quarenta dias antes da data, têm início as campanhas, destinadas a
arrecadação de recursos. São visitas a residências, onde se reza o terço e faz-
se o leilão de prendas. Diariamente elas acontecem; a imagem da Santa é
levada a uma casa previamente contatada, em longas caminhadas pelas ruas
da cidade, muitas vezes atravessando de um bairro a outro, sempre ao som dos
tambores de Congo.
O dinheiro arrecadado servirá para os preparativos da festa: conserto de
instrumentos, renovação do estandarte e das vestimentas. Algumas famílias
costumam também, em lugar do leilão, fazer doações de cestas básicas, que
podem ser vendidas pelo grupo ou ainda contribuírem para a comida da festa.
Nove dias antes desta, é realizada a Novena a Nossa Senhora, na Igreja do
Rosário; após a novena, diariamente, na porta da Igreja, são realizados os últimos
leilões, cuja arrecadação é dividida, a cada dia, entre grupos previamente designados23.
No sábado à noite e no domingo, as guardas convidadas, vindas de outras
cidades e estados, começam a chegar.

23
São em número de 24 os ternos de congo em Uberlândia: 1 - Congo Camisa Verde, B. Aparecida; 2 -
Catupé Nª Sª do Rosário, B. Dona Zulmira; 3 - Marinheiro de Nª Sª do Rosário, B. Sta Mônica; 4 - Congo
Sainha, B. Sto Inácio; 5 - Marinheiro de São Benedito, B. Tibery; 6 - Moçambique de Belém, B. Sta
Mônica.; 7 - Moçambique Pena Branca de Nª Sª do Rosário, B. Canaã; 8 - Moçambique Princesa Isabel,
B. Patrimônio; 9 - Terno de Congado Sta Efigênia, B. Brasil; 10 - Azul de Maio, B. Roosevelt; 11 -
Moçambique do Oriente, B. Roosevelt; 12 - Congado Congo Branco, B. Tibery; 13 - Terno de Catupé Azul
e Rosa, B. Sta Mônica; 14 - Amarelo Ouro, B. Saraiva; 15 - Verde e Branco, B. Pampulha; 16 - Rosário
Santo, B. Aparecida; 17 - Moçambique Estrela Guia, B. São Jorge; 18 - Moçambique de Angola Nª Sª do
Rosário e São Benedito, B. Daniel Fonseca; 19 - Congo São Benedito, B. Tibery; 20 - Congo Prata, B.
Martins; 21 - Moçambique Guardiões de São Benedito, B. Sta Rosa; 22 - Congo São Domingo, B. Planalto;
23 - Beiramar de São Benedito, B. Morumbi; 24 - Moçambique Raízes, B. Patrimônio.
36

O durante:
A festa propriamente dita realiza uma confraternização dos ternos, com
desfile pela cidade, coroação dos novos festeiros e de Nossa Senhora do Rosário
e São Benedito, procissão com as imagens dos Santos festejados e missa solene.
É o momento em que a cidade realmente se transforma, com a presença maciça
da comunidade negra em seu Centro vital.
A primeira atividade desse dia é realizada nos quartéis — sede de cada
terno, localizados em diferentes (e muitas vezes longínquos) bairros da cidade,
para onde se dirigem todos os componentes de cada grupo. É a cerimônia da
Alvorada, realizada com a queima de fogos de artifício — a rouqueira — pelo
comandante do terno e que marca o início dos festejos.
Em seguida, em cortejo, os Ternos de Congo, com banda de músicos
formada por pífanos, violão, zabumba, caixa ou outro instrumento percussivo,
encaminham-se para o ponto de concentração, no Centro da cidade24, a partir
do qual desfilam até a Igreja do Rosário, onde as imagens de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito abençoam seus fiéis, enfeitadas com flores e tendo a
seu lado caixas ou cestos para recolhimento de oferendas.
Nesse momento, a Praça Rui Barbosa, onde se encontra a Igreja, já está
tomada: são devotos que vieram pagar dívidas e promessas com os “santos
pretos” ou simplesmente celebrar; moradores da cidade e de cidades vizinhas,
que muitas vezes participam anualmente dos festejos; homens, mulheres —
velhos, jovens, crianças — que em meio a barracas, ambulantes, mesas, sentados
nos bancos e muretas da praça, vivem a alegria de encontros e reencontros,
comem, bebem, conversam, namoram e brincam, enquanto assistem a
passagem dos Congos.
Como um rio de fluxo contínuo, um a um eles penetram no espaço da
praça — coloridos, vibrantes, com os tambores batendo ainda mais fortes — e,
na frente da Igreja, se apresentam, entoando seus cantos e danças, que

24
A concentração é feita na Praça do Forum, junto ao Terminal Rodoviário Central; os desfiles ocorrem na
Av. Floriano Peixoto, em direção à Praça Rui Barbosa, onde se encontra a Igreja do Rosário.
37

obedecem a ritmos lentos ou mais apressados, homenageando seus protetores.


Depois, seguem pela rua lateral, onde prestam homenagens aos representantes
da municipalidade — Prefeito, Secretários, dentre os quais o de Cultura,
representantes de entidades afro e demais autoridades locais e convidados,
acomodados em palanque especial.
Como um rio de fluxo contínuo, um a um eles deságuam depois, na praça,
os seus componentes, contribuindo assim para o crescimento da multidão que,
por todo o dia, até o final da noite, ocupa esse espaço.
Já no meio do dia, o cortejo retorna, sempre ao som de toques de tambor,
caixas e outros instrumentos, a seu quartel, onde não deve faltar uma “mesada
de comida e bebida”. É um tempo de congraçamento, descanso e recuperação
de forças dos integrantes de cada grupo, que entre comentários sobre o desfile,
conversas cotidianas, músicas, risos, brincadeiras das crianças, alimentam corpo
e espírito para a segunda parte de sua jornada festiva.
Às quatro horas, alguns grupos se dirigem às casas dos novos festeiros
para levá-los à Igreja, onde serão coroados. Os cortejos retornam, marchando
em direção à Igreja do Rosário. Mais uma vez os tambores soam pelas ruas da
cidade. Depois de todos marcarem com cantos e danças sua presença, têm
início as últimas atividades desse dia de festa: a coroação dos novos festeiros e
a celebração dos rituais católicos: a procissão, com as imagens de São Benedito
e Nossa Senhora e, no retorno desta, a celebração da missa, rezada pelo pároco.

O depois:
Na segunda-feira, no final da tarde, acontece a “entrega da festa”: os
ternos se reúnem nos quartéis e novamente percorrem as ruas em direção à
Igreja do Rosário, onde realizam a cerimônia de retirada dos mastros votivos, que
são guardados no interior da Igreja, agradecem a todos que colaboraram com a
realização da festa e, em sua porta, se despedem25.

25
Até o ano 2000, no encerramento da festa, era oferecido um lanche pela Secretaria Municipal de Cultura,
no espaço da Oficina Cultural, onde os capitães faziam cantorias em agradecimento ao apoio recebido
pela Municipalidade. A interrupção desse lanche pela Secretaria, levou os Ternos a procurarem outros
locais para reunirem-se após a festa, momento em que receberam apoio da Família Chatão, “a maior
família de negros de Uberlândia”. (Fábio Vladimir Chatão, em entrevista a Brasileiro - 10/04/2004)
38

O “jeito congadeiro de festejar”


É assim de maneira festiva e espetacular, que expressa uma forma de ser,
de se comportar, de se movimentar, de agir no espaço, de se emocionar, de falar,
de cantar e de se enfeitar (...) distinta das ações banais do cotidiano (PRADIER in:
GREINER; BIÃO, 1998, p. 24), que os devotos de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito celebram seus protetores.
É, portanto, a partir de uma resignificação de seu corpo — eixo de relação
com o mundo (...) e elemento mais importante do evento espetacular (...) porque é
através dele e de sua energia vital que os demais elementos adquirem sua razão
de existir (OLIVEIRA, 2006, p. 580) — que a disposição para “festar” se assenhora
de cada um dos participantes da Festa.
O corpo festivo é assim o elemento detonador do “espírito de festa” que,
associado ao riso, permite o estabelecimento de um território a parte, onde não
permanecem as questões cotidianas — mas que também não as elimina ou
subverte — e onde cada um é parte integrante de um mundo em evolução.
BRANDÃO (1978, p. 65), ao analisar a Festa do Divino de Pirenópolis/GO,
detecta o que define como os três componentes do discurso que traduz os
significados da festa: a crença no Divino, a fé na festa e a tradição dos festejos.
Reunidos, oferecem uma interpretação completa da ideologia com que os
participantes explicam sua festa e seu envolvimento pessoal nela.
Esses mesmos componentes são também perceptíveis na relação que
se estabelece entre os congadeiros e a Festa de Nossa Senhora do Rosário: ela
acontece para que o povo comemore sua crença na Santa, e isso se cumpre em
qualquer um dos acontecimentos tradicionais que a compõe. Mas ela se faz
também porque existe a fé na festa, no acreditar que a sua boa realização agrade
e traga bons frutos, na forma de bênçãos e proteção da Senhora.
Em tal contexto, como acentua BRANDÃO (1978, p. 38-39), a aparência
pessoal é investida, na festa, de alto valor simbólico: se, por um lado, estabelece
distinções de classe e riqueza em um plano de competição igualmente simbólica,
por outro, ela se constitui também como forma de homenagear a Santa.
A vestimenta de cada grupo, sempre nas cores que o simbolizam, é cuidada
para que o grupo se apresente em sua melhor forma. Constando basicamente
39

de calça e camisa, em alguns Ternos ela recebe o acréscimo de algum elemento


específico. É esse, por exemplo, o caso das marlotas usadas pelos Marinheiros,
ou ainda, dos Ternos de Sainha, de cuja indumentária faz parte uma pequena
saia, muitas vezes em cor diferente, sobreposta à calça.
Pode-se dizer que essa roupa especial, a farda, atua como uma espécie de
“fantasia”, investindo aquele que a traja de uma “nova identidade”: a de congadeiro.
Também os movimentos corporais, cantorias e ritmos exteriorizam a
maneira específica encontrada por cada grupo para homenagear a Senhora do
Rosário, uma vez que, por sua estrutura e organização, eles apresentam
características que os caracterizam e conferem determinada classificação
enquanto Congos, Moçambique, Catupês ou Catopés, Marujos ou Marinheiros,
Penachos e Vilão.
Os Congos têm cantorias mais brincantes, alegres, feitas ao som de
caixas, tamborins, reco-recos, pandeiros e acordeons. São também mais
coloridos, enfeitadores das ruas para os Moçambiques passarem. Esses trazem
as coroas, o reinado e as bandeiras dos santos protetores, sempre com ritmo e
músicas cadenciadas e uma cantoria devocional.
Antigos cantadores de pontos de influência dos terreiros de umbanda e
das ritualidades de candomblés, os capitães de Moçambiques sempre foram
associados à mística do poder espiritual herdado de seus ancestrais africanos.
Têm como instrumentos básicos as caixas, patagomes e as gungas ou paiás de
proteção que, com seus grandes guizos, marcam sonoramente o seu caminhar.
Os Catupês ou Catopés, originados por negros que se refugiaram em
aldeias indígenas, inseriram nas Congadas o jeito de vestir e dançar com eles
adquiridos. Suas cantorias são irônicas e contém críticas sociais.
Marujos e Marinheiros, com influências mouras e portuguesas, têm como
característica o uso de marlotas, espécie de capa curta que esconde as espadas
e a evolução em formação de luta, percutindo fortemente as suas maracanãs,
ripiliques e os chocalhos. São reconhecidos pela expressão "mar abaixo", que
simboliza a chegada dos negros ao Brasil como escravos, desembarcados entre
as ondas que açoitavam as praias.
40

Os Penachos representam os índios africanos inseridos nas congadas.


Suas coreografias se constituem de passos marcados de forma livre e graciosa.
O Vilão representa os jovens escravos preparados para assaltar as fazendas
e engenhos, de onde levavam animais domésticos e mantimentos, com a devida
orientação dos mais idosos, os Moçambiqueiros. Sua dança retrata conflitos,
com suas representações simbólicas coletivas: "avança e recua"; "assovios
intercalados entres os diversos capitães"; "dançar astuciosamente" e os
"entrechoques de bastões feitos de bambu".
Toda essa gama de gestos, ritmos, cores e atitudes está assim repleta de
uma carga ancestral, e faz com que a festa aconteça com um “jeito congadeiro
de festejar” — um jeito que mantém presentes simbolismos, ritualidades, processo
pedagógico de ensinamento às crianças já no colo de suas mães e também
insubmissões não verbalizadas que se apresentam ora nas gestualidades
coreográficas, ora nas percussões dos praticantes congadeiros26.
Identifica-se nesse pensamento algo bastante presente na cultura popu-
lar tradicional, onde “a aprendizagem se faz por meio da convivência, da
observação e imitação, fortalecida pela identificação que as pessoas têm com as
manifestações das quais fazem parte27.
Tendo recebido “dos antigos” as formas de prestar o culto, os realizadores
sabem que sua eficácia e significado — ou seja, aquilo que justifica manter sua
realização — depende diretamente da conservação de objetos, símbolos e padrões
rituais de conduta, porque a festa sempre perde alguma parte importante dela
mesma quando um de seus rituais desaparece.
Manter a tradição da festa é manter a permanência de suas
características mais essenciais e conservar suas qualidades. Assim, a dinâmica
criada pela modificação de algumas partes deve permitir que ela conserve a
mesma estrutura, logo o mesmo significado religioso e festivo; a mesma
solenidade e o mesmo simbolismo.

26
Brasileiro, Jeremias. Obra citada. http://www.uberlandia.gov.br, visitado em 21/11/2006.
27
Meira, Renata Bittencourt. Memória, Tradição e Aprendizagem. www.foliacultural.com.br; visitado em
21/11/2006.
41

Mesmo a substituição de alguns objetos feita anualmente — como o mastro


da bandeira do Santo festejado, obtido a cada ano — observa princípios de tradição28
. Por isso, há o cuidado de repassar aos mais jovens o patrimônio cultural dos
antepassados — e crianças e jovens sabem que estão aprendendo as lições
deixadas por seus ancestrais, quando acompanham os passos das guardas de
Congo, ouvem seus cantos ou dançam, guiados pelo ritmo dos mais velhos.
Estes, por seu lado, aceitam o uso de óculos escuros, trancinhas, tatuagens
afro — iconografias corporais que introduzem elementos modernos no interior
da Congada e apontam as possibilidades reais de seu prolongamento enquanto
costume cultural adaptado à realidade contemporânea.
É ainda o “jeito congadeiro de festejar” que, imprimindo status de festa às
homenagens prestadas aos santos protetores, articula relações entre espaços
claramente dominados pelo sagrado, pelo profano e ainda estabelece um terceiro
espaço, em que esse domínio se faz em comum.
Assim é que, embora sob o controle de princípios religiosos, onde o
sentimento coletivo da “presença do sagrado” pode ser observado em “atos de
fé” — que se traduzem no “pagamento de voto” ou cumprimento de promessa ao
santo; nos momentos de bênçãos e pedidos de proteção; no colocar-se de joelhos
e beijar a fita, a bandeira ou a imagem do santo; ou ainda, no gesto de se benzer
quando a Bandeira é erguida —, o espaço da festa abarca muitas conversas,
músicas, ruídos e risos.
Por baixo da aparente desordem com que a festa se conduz, entretanto,
há um sistema muito bem estruturado de promotores da festa — Ternos de Congo
e Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, Igreja, Prefeitura — coordenados
entre si através de relações de troca de serviço.
Se cabe à Prefeitura colaborar com a realização da festa tanto pela
liberação de verbas municipais como pela manutenção de serviços urbanos
básicos necessários a sua estrutura — serviço de transportes, coleta de lixo,
policiamento e outros —, cabe à Irmandade e aos ternos a organicidade geral de

28
O mastro deve possuir cerca de 18 a 20 metros e é pintado sempre com as mesmas cores (as cores do
Santo) e da mesma forma (listas diagonais alternadas).
42

todo o evento, cuidando do bom andamento de tudo e da beleza da festa, para


que esta se faça de forma harmoniosa.
Todos sabem que o desenrolar dos festejos servirá para avaliar, a cada
ano, a qualidade da festa. E a “festa boa” é aquela que preenche determinados
requisitos: se a inexistência de problemas, arruaças e brigas durante seu
desenrolar é sempre importante para o olhar das autoridades locais, a observação
da tradição, com rituais “como devem ser”, realizados com solenidade e pompa,
perceptíveis na quantidade e qualidade das roupas, variedade de festejos, fogos,
alimentos distribuídos é o que importa ao olhar dos Ternos de Congo e da
Irmandade.
Afinal, como pontua AMARAL29 , uma questão significativa se coloca ainda
na produção da Festa, para os congadeiros:
A festa concentra recursos dos grupos e os redistribui. A fartura e a
possibilidade de fazer uma festa cada vez mais "rica" são motivos de
orgulho de uma comunidade. É desse modo que os participantes criam
um "espelho" no qual percebem, concretamente, o que são capazes
de acumular e distribuir, ou desperdiçar, e qual a estatura do grupo na
sociedade. Em casos como estes, a festa deixa de ser a simples "válvula
de escape", como pensam muitos teóricos, para ser momento de auto-
avaliação dos grupos sociais. Ela não é unicamente manifestação
religiosa, e sim uma "parceria" entre homens, santos, orixás e outros
deuses na luta por uma vida mais digna. Desse modo, ela pode ser
uma das maneiras de enfrentar dificuldades práticas, como a falta de
creches, asilos ou escolas.

Bibliografia:
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O divino, o santo e a senhora. Rio de Janeiro,
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1978. Patrocinada pela
FUNARTE
BRASILEIRO, Jeremias. Congadas de Minas Gerais. Fundação Cultural
Palmares, 2001

29
Amaral, Rita de Cássia. A alternativa da festa à brasileira. http://www.antropologia.com.br/tribo/sextafeira/
pdf/num2/a_alternativa.pdf, visitado em 22/11/2006.
43

__________ . Congado em Uberlândia: espaço de resistência e


identidade cultural (1996-2006). Monografia. Universidade Federal de
Uberlândia. Instituto de História, Curso de Graduação, 2006.
GREINER, Christine; BIÃO, Armindo (orgs). Etnocenologia. Textos
selecionados. São Paulo: Annablume, 1998.
MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória: o reinado do Rosário no
Jatobá. Belo Horizonte, Mazza Edições, 1997.
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Editora
Unesp, 2003.
OLIVEIRA, Érico José Souza de. A roda do mundo gira: um olhar sobre o
Cavalo Marinho Estrela de Ouro (Condado-PE). Recife: SESC-
Pernambuco, 2006.

Sites:
www.foliacultural.com.br
http://www.cedefes.org.br
http:// www.minasdefato.com.br
http://www.carrancas.com.br/lendacongado.htm
http://www.mineiros-uai.com.br/ folklore.html
http://www.tambormineiro.com.br/congado.html
http://www.unicamp.br/folclore/folc7/relatori/relatorio.html
http://www.museudapessoa.com.br/escolas/hotsites/historias_da_nossa_terra/
uberlandia/festas_trad.htm
http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/congadorigem.htm
http://www.antropologia.com.br/tribo/sextafeira/pdf/num2/a_alternativa.pdf
44

FESTAS, MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES


Célia Conceição Sacramento Gomes30

Este artigo visa articular a concepção de festas como rede de memórias


que produzem significados para as representações do homem no seu contexto
social.
As festas contribuem para manter viva a memória das comunidades; como
produções sociais estão conectadas a histórias e experiências significativas,
atualizando os ritos comunitários. A multiplicidade de fenômenos encontrados no
contexto da festa implica em adaptações às situações próprias desses eventos,
realizados de diferentes formas e estilos.
Valle (2004, p. 13) considera que
como acontecimentos resultantes de diferentes processos
desenvolvidos no decorrer de ciclos temporais apropriados, segundo
o calendário religioso e solar, as festas e celebrações trazem-nos a
memória do passado, a vitalidade do presente e a visão do futuro,
oferecendo-nos a possibilidade de permanência ou mudança.
O contexto da festa permite que se construa uma re-significação do sentido
de humanidade em função das identificações culturais, que acontecem mediadas
pelo corpo.
Na visão de Chauí (2002, p. 126) quando o artista ou o historiador registram
em suas obras aspectos do humano, isto não será esquecido, passando a fazer
parte de uma experiência que não se perde no tempo.
Na concepção de festa várias situações podem ser incluídas, tais como:
eventos comemorativos de distintas ordens como aniversários, competições
esportivas; rituais que mantêm vivas as tradições de uma comunidade,
preservando o patrimônio histórico, cultural ou religioso; reunião de membros de
uma comunidade para homenagear seus santos e divindades; encontro de
pessoas para celebrar os mais importantes ciclos da vida.

30
Mestre em Artes Cênicas, UFBA. Especialista em Psicodrama, FEBRAP. Especialista em Gestão de
Pessoas, UEFS.
45

Na festa o curso da vida cotidiana dá lugar a uma experiência estética que


enseja outras formas de representação social; o corpo se prepara com figurino e
gestual apropriado, se metamorfoseando para construir cenas que denotam certa
ruptura com o contexto do dia-a-dia. Essas representações encontram-se no
limiar entre a realidade e a imaginação. O real não é um dado sensível nem um
dado intelectual, mas um processo, um movimento temporal de constituição dos
seres e de suas significações, como os homens relacionam-se entre si e com o
contexto em que vivem.
Guarinello (2001, p. 972) compreende a festa como uma produção do
cotidiano, de caráter coletivo a qual acontece em tempo e espaço exclusivos;
as pessoas se envolvem em torno de algo que é festejado, resultando na
simbolização de um significado próprio que possibilite a concepção de uma
identidade para o grupo.
Por tratar-se de espaço de encontro, celebração, compartilhamento e
cumplicidade, palco de atualização da memória coletiva, a festa torna-se realidade
comum a todos, outorgando um sentido ao grupo e em última instância à vida.
Quando uma pessoa se relaciona com outra, ela e o outro fazem uso de
seus corpos, seus sinais e mensagens, como um instrumento de comunicação.
Essas relações entre os homens constituem-se em algo produzido pelos próprios
homens, ainda que estes, muitas vezes não tenham consciência de serem os
únicos atores desse processo.
Na festa acontece uma espécie de reencantamento da vida, um jogo
espontâneo de faz-de-conta, como se a memória do grupo fosse um acervo vivo
de experiências a serem reinventadas a cada momento.
Segundo Heers (1987, p. 11), (...) a festa, reflexo duma civilização, símbolo,
veículo de mitos e lendas, não se deixa apreender com facilidade. Comporta
diferenças, conflitos, negociações, cooperação e competição, evidenciando,
por via própria, distintas realidades sociais.
Na Bahia foi significativa a influência dos povos africanos que para o
Brasil foram transladados; os distintos grupos étnicos que aqui chegaram
impregnaram com suas culturas o nosso território. Eles foram destituídos de
46

seus bens materiais; os conhecimentos e tradições foram trazidos no corpo-


memória e aqui intercambiaram com os povos nativos e com os colonizadores,
construindo novas concepções civilizatórias. Isto pode ser constatado nas artes,
na estética (cabelos, vestimentas), na linguagem falada (a exemplo de elementos
dos idiomas banto e iorubano, incorporados à língua portuguesa), na culinária,
na medicina tradicional e especialmente nas festas.
As festas populares da Bahia revelam a vitalidade, religiosidade e
sensualidade do povo desta terra. Boa parte delas acontece nas proximidades
do mar, reverenciando santos católicos, divindades das religiões de matriz
africana, reunindo-se a cidade em torno destas celebrações como se todos
fossem um só organismo.
Embora tenham se modificado, as festas tradicionais baianas conservam
seus aspectos essenciais apresentando suas versões contemporâneas. O imaginário
coletivo com ritos, histórias e tradições são a base da performance e da
representação de suas práticas e comportamentos espetaculares. A performance,
portanto, surge da recriação e reinterpretação de aspectos das matrizes culturais e
da religiosidade afro-brasileiras, evidenciando uma concepção de corpo.
Martins (2002, p. 72) considera que os ritos transmitem saberes, princípios
e convenções que conformam as performances rituais, com base nos
fragmentos de memória instalados no corpo. Isto acontece num espaço de
fronteira entre o imaginário e o real, criando um contexto de afirmação,
resistência e transformação social.
O calendário dessas festas tem início no dia 30 de novembro com a festa do
padroeiro dos estivadores, São Nicodemus. Esse evento teve início em 1943 com
o nome de Festa do Cachimbo e São Nicodemus31 do Cais do Carvão. Consta de
missa festiva, procissão pelas ruas do Comércio, na Cidade Baixa, terminando
com um caruru para os trabalhadores do Porto de Salvador e convidados.
A festa do Senhor do Bonfim é considerada uma das mais famosas; na
atualidade o ponto alto do ciclo de festejos é a Lavagem do Bonfim. A festa ocorre
em data móvel, na segunda quinta-feira do mês de janeiro.

31
Nicodemus significa “aquele que sabe lidar com o povo”.
47

Nas primeiras horas da manhã as pessoas reúnem-se em frente à Igreja


da Conceição da Praia, local de onde sai o cortejo. As baianas abrem o cortejo,
usando seus bordados e rendas, pano da costa, as contas dos seus orixás, cheias
de fé, alegria e devoção para homenagear a divindade maior (muitas delas são
oriundas de terreiros de candomblé da região metropolitana de Salvador, do
Recôncavo baiano e de outras cidades). São seguidas pelos cavaleiros, carroças
enfeitadas, bicicletas, batucadas (grupos de pessoas que tocam instrumentos
informalmente, cantam e dançam) em direção à colina do Bonfim.
Em tempos mais remotos eram as famílias da redondeza que lavavam o
interior do templo. Depois vieram os romeiros, a afluência de devotos aumentou
e começaram a trazer água em burricos, potes, além de oferendas como flores,
velas e outras. À medida que aumentava o número de pessoas crescia a confusão,
até que o Cardeal Augusto Álvaro da Silva proibiu a lavagem do interior da Basílica,
ficando esta restrita ao adro da Igreja.
A população acompanha o cortejo até a Colina Sagrada, onde as baianas
com seus jarros de flores e água perfumada lavam o adro da Igreja. Após esta
cerimônia, seguida de muitos vivas ao Senhor do Bonfim, as pessoas ocupam o
largo com samba de roda, capoeira, comidas típicas e bebidas.
De acordo com o historiador Cid Teixeira32 o comandante das tropas
portuguesas Madeira de Melo (durante as lutas pela independência da Bahia),
mandou retirar a imagem do Senhor do Bonfim da Colina Sagrada para outra
Igreja. Em 1823 a imagem retornou trazida por um grupo de mulheres descalças
e de roupa branca. Esta é a origem da Lavagem do Bonfim.
O calendário das festas tradicionais encerra-se no carnaval, ocasião em
que baianos e turistas acotovelam-se nos circuitos da festa, ou seja, o centro da
cidade, incluindo o Centro Histórico e as avenidas principais dos bairros da Barra
e Ondina, em Salvador.
Na Bahia do século XIX as mais importantes festas religiosas
assemelhavam-se a celebrações da vida. Para participar da vigília da Quinta-

32
TEIXEIRA, Cid. Entrevista concedida a Jorge Portugal em Salvador, TV Bahia, 03/07/2004.
48

Feira da Semana Santa na Catedral de Salvador famílias inteiras superlotavam a


igreja, levando esteiras, cobertores, comida e até penicos; do lado de fora,
vendedores ambulantes se misturavam a pessoas cantando e tocando flautas,
violões, cavaquinhos e harmônicas (REIS, 1991, p. 137).
A Etnocenologia lança um olhar sensível sobre esses eventos e tradições
no sentido de identificá-los como parte de um “processo de trocas entre pólos
interculturais” para estabelecer padrões de análise que lhe permitam observar os
processos de interatividade presentes nas manifestações enfocadas, adotando a
perspectiva da transculturalidade (GUINSBURG et al., 2006, p. 139); desta forma,
essa disciplina amplia o conceito de intercâmbio cultural para valorizar os saberes
específicos manifestados pelos praticantes de cultura, enfatizando a importância
da história de cada povo.
Conforme a perspectiva de Duvignaud (1983, p. 67) a festa é compreendida
como espaço de violação das regras, que são destruídas e colocam o ser humano
frente a um universo sem cultura e valores. Considera que em momentos de
crises e transformações profundas da sociedade as festas coletivas irrompem
com mais força, porque os desejos humanos precisam ser aflorados e os
regulamentos não satisfazem mais.
O autor faz referência à forma como a festa instala-se nos espaços,
aproximando pessoas, acentuando relações emocionais e contatos afetivos,
propiciando uma abertura recíproca entre os membros da coletividade. Nesse
sentido, a festa tem um fim em si mesmo, saindo do domínio da percepção, não
obstante a sua amplitude por intermédio do reconhecimento das “dimensões
ocultas” para penetrar a esfera do imaginário (Idem, 1983, p. 66).
Nas comunidades tradicionais a população organiza esses eventos numa
concepção lúdica em que privilegia a improvisação, o imprevisto, o bem-viver,
alterando, de certa forma, a simbologia das rotinas do cotidiano. A festa fortalece
a visão de mundo da coletividade, celebrando crenças e valores que tendem a
manter a coesão do grupo.
A condição de organização que expressa uma maneira de ser, de se
comportar, de apresentar uma estética distinta do cotidiano e que caracteriza a
49

espetacularidade nos estudos da Etnocenologia pode ser observada nas festas


tradicionais comunitárias; as pessoas evidenciam no seu gestual, nos cânticos, nos
rituais coletivos, os elementos que simbolizam sua cultura e sua visão de mundo.
A vivência do corpo é a vivência de impulsos, sentimentos, movimentos,
memória, que corporificada explicita os interstícios e as simbologias da trama
coletiva: Podemos conceber que todas as formas de representar o corpo, para
nós e sob o olhar do Outro, traduzem nossa maneira de ser no mundo, como se o
corpo não fosse nada sem o sujeito que o habita (JEUDY, 2002, p. 20).
Os folguedos e festejos evidenciam o modo característico com o qual as
comunidades tradicionais expressam sua concepção de cultura e re-significam
a existência da festa, alterando os limites de fronteira entre o real e o imaginário.
Desta forma, a festa se constitui numa forma criativa de tratar de temas por vezes
complexos, com leveza e descontração. O lúdico funciona como elemento
norteador da consciência de si mesmo e do outro.
Os rituais próprios da comunidade indicam a visão de mundo narrada nos
enredos que são transmitidos de uma geração a outra, mediados pela memória
coletiva que se faz ação. O corpo comunica por meio de uma linguagem simbólica
e subjetiva os saberes e experiências transmitidas simbolicamente.
A não observância de determinadas condições podem ser funestas para o
indivíduo e desastrosas para a comunidade. Eles criam formas próprias de
expressão nas quais se entrecruzam as crenças e mitos que preservam as
tradições da comunidade, evocando suas concepções místicas e cosmológicas.
A comunidade representa uma realidade concreta que é ritualizada nos
enredos construídos pelo grupo com base nas suas matrizes (culturais, religiosas,
sociais). O tempo e o espaço na festa possuem um sentido próprio distinto da
noção linear, conhecida e previsível. O compromisso de viver o momento
mantendo um diálogo entre a tradição e a contemporaneidade, engendra um
trânsito permanente que nesse contexto é complementar e renovador. O tempo
é efêmero, vivido com profundidade e significado.
As festas estão inseridas na categoria de fenômenos denominados por
Bião como “ritos espetaculares”, nos quais os participantes e os espectadores
50

participam ativamente da produção do evento. As práticas corporais extracotidianas


compreendidas como performance referem-se aqui a um entendimento do corpo
como um espaço de inscrição da memória pela performance corporal, vinculando
o homem com a cultura, a religiosidade, o lúdico e o ritual.
A memória corporal registra identificações que revelam uma representação
de si próprio e do outro; desta forma, organizam-se repertórios que indicam a
percepção do homem sobre suas circunstâncias e experiências vivenciadas no
contexto da sociedade, seus mitos, histórias e práticas culturais.
Na festa esse corpo se prepara para ser visto por um outro, num jogo de
papéis que o complementa e transforma. Essa interação é compreendida por
Bião33 como teatralidade: todo comportamento de troca humana em que a pessoa
se organiza para ser visto; é uma forma de ligação com a comunidade.
Por outro lado, Grotowski entende que o corpo é memória:
Pensa-se que a memória seja algo de independente do resto do corpo.
Na verdade, ao menos para os atores, é um pouco diferente. O corpo
não tem memória, ele é memória. (...) O “corpo-vida” ou “corpo-
memória” determina o que fazer em relação a certas experiências ou
ciclos de experiências de nossa vida (2007, p. 173).
É possível fazer um paralelo entre o teatro, como experiência coletiva e
sensível à realidade social, ao imaginário e ao ato revolucionário e criador humano
com a festa como produção de memória que em certa medida revela demandas
que se insurgem contra as convenções sociais, cria outras formas de organização,
possibilitando o acesso a um mundo de liberdade e afirmação do coletivo.
Nas manifestações culturais tradicionais, na medida em que os praticantes
de cultura atualizam seus festejos e brincadeiras, reinterpretam a realidade
construindo experiências criativas compartilhadas pelo grupo.
Analisando esses fenômenos o pesquisador penetra no campo da prática
daqueles que realizam a festa. Da convergência e até do conflito entre práticos e
teóricos constrói-se um sistema de abordagem que enriquece e aprofunda a

35
BIÃO, Armindo. Palestra proferida nos fóruns de debate do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão
em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
UFBA. Salvador, 2001.
51

sistematização de conhecimentos, com suas interfaces que se complementam


e se interpenetram.
Discutir festas, memórias e representações é colocar em evidência o
significado das tradições, o papel da memória na preservação do patrimônio
cultural e seus desdobramentos na era da informação e dos avanços tecnológicos,
analisando as rápidas mudanças do mundo contemporâneo, o dinamismo das
manifestações tradicionais, que recriam e reelaboram seus folguedos e
brincadeiras em forma de crítica, de jogo, de festa34.

Bibliografia:
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. Campinas: São Paulo:
Papirus, 1989.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12ª. ed. São Paulo: Ática, 2002.
DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações. Fortaleza: Edições Universidade
Federal do Ceará, 1983.
GOMES, Célia Conceição Sacramento. Teatralidade e performance ritual
dos folguedos da Ilha de Itaparica. Salvador: Carlos Maguari, 2004.
GOMES, Célia Conceição Sacramento. Corpo e interfaces. In: Bião, Armindo
(Org.). Artes do corpo e do espetáculo: questões de etnocenologia.
Salvador: P&A Editora, 2007, p. 175-186.
GREINER, Christine e BIÃO, Armindo, (Orgs.). Etnocenologia: textos
selecionados. São Paulo: Annablume, 1999.
GROTOWSKI, Jerzy. O teatro laboratório de Jerzy Grotowski 1959 - 1969.
Tradução Berenice Raulino. São Paulo: Perspectiva : SESC; Pontedera, IT:
Fondazione Pontedera Teatro, 2007.
GUARINELLO, Norberto L. Festa, trabalho e cotidiano. In: JACSÓ, István;
KANTOR, Íris (Orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América
Portuguesa. Vol. II. São Paulo: HUCITEC: Editora da Universidade de São
Paulo, FAPESP: Imprensa Oficial, 2001.

34
OLIVEIRA, Érico José de O. A roda do mundo gira. 2006, p. 37.
52

GUINSBURG, J.; FARIA, J. R.; LIMA, M. A, (Orgs.). Dicionário do teatro


brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva: Sesc São
Paulo, 2006.
HEERS, Jacques. Festas de loucos e carnavais. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1987.
MARTINS, Leda. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, Graciela e
ARBEX, Márcia (Orgs.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias
territoriais e textuais. Belo Horizonte: Departamento de Letras Românicas,
Faculdade de Letras/UFMG: Poslit, 2002.
OLIVEIRA, Érico José Souza de. A roda do mundo gira: um olhar sobre o
Cavalo Marinho Estrela de Ouro (Condado - Pe). Recife: SESC, 2006.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no
Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
VIANNA, Hildegardes. Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério da
Educação e Cultura, Fundação Nacional de Arte, 1981.
53

DE OLHO NA LAVAGEM DO BONFIM:


A TRANSFIGURAÇÃO DE UMA FESTA
Célida Salume Mendonça35

Num mesmo instante, joelhos, que se dobravam ante os altares,


estiravam-se agilmente nos passos e voltas de atrevido fandango.
Enquanto as vassouras chapinhavam nas lages da nave, olhares
caprinos incendiados em chammas alcoólicas, devoravam collos negros
e impantes, onde as contas do rosário vibravam como guizos de
mascarado.
Consocio Xavier Marques
Nas férias de janeiro de 2004, eu, filha de um baiano e uma catarinense
que não residem no Estado, acordo em Salvador. É quinta-feira, dia 15, e pelo
que observo não é um dia qualquer, mas sim, uma data especial: ruas desertas,
agrupamentos de pessoas caminhando, roupas predominantemente brancas,
trânsito engarrafado - meu primeiro encontro com a Lavagem do Bonfim,
considerada a segunda maior manifestação popular na Bahia, onde
aproximadamente um milhão de pessoas é esperado.
Mas, antes mesmo que o movimento da festa inicie, muitos soteropolitanos
e turistas já fizeram suas promessas ao Nosso Senhor do Bonfim. Alguns
moradores de Salvador não freqüentam mais a festa em função do caráter
comercial e turístico que adquiriu. Apronto-me para sair, tentando ficar o mais
confortável possível: roupa leve, branco e azul para entrar no clima, tênis e dinheiro
camuflado entre as roupas.
De carona, chegamos o mais próximo possível da cidade baixa, porque a
essa altura, ônibus, nem pensar. São ainda alguns quilômetros que teremos que
andar até a Igreja da Conceição da Praia, no bairro do Comércio, de onde sai a
procissão. Os rituais religiosos, em geral, partem de Igrejas e locais sagrados. O

35
Mestre em Literatura pela UFSC (Florianópolis-SC) e doutoranda no Programa de Pós-graduação em
Artes Cênicas na UFBA (Salvador-BA).
54

dia está lindo, um sol escaldante e chegando a Cidade Baixa, são agora 7 a 8
quilômetros de caminhada até a Colina Sagrada. O cortejo inicia ao final da
celebração da missa e sob chuva de fogos de artifício.
Pegamos a procissão ainda no início, tudo é novidade. No cortejo, baianas
vestidas impecavelmente de branco com suas roupas engomadas, seus jarros
de água perfumada na cabeça, afoxés, bandas de sopro, grupos de percussão,
charangas, agremiações carnavalescas, carroças ornamentadas, policiamento,
postos médicos e vendedores ambulantes durante todo o trajeto. Os romeiros,
vindos de todas as partes da Bahia e de todas as idades, incluem também os
turistas - todos estão muito bem arrumados e dispostos. As pessoas se vestem de
branco que é a cor de Oxalá36 , o Deus Yorubá sincretizado com Senhor do
Bonfim. Tal comunhão de corpos parece estabelecer uma teia que em termos
abole magicamente as divisões de classe e de crenças. Assim, temporariamente,
as diferenças se apagam. Durante o trajeto, muita adrenalina, água e suor. Nas
casas e prédios, moradores nas janelas.
Segundo o antropólogo Roberto DaMatta (1984), essas solenidades
permitem ligar a casa, a rua e um outro mundo, no qual a festa se transforma.
Tudo parece maravilhoso, inesperado, fantástico. Passo por alguns camarotes,
todos repletos de artistas e autoridades37 embaçando o caráter de festa popular
que se converte em uma espécie de desfile de carnaval, uma vitrine. O que
também faz parte da espetacularidade da festa.
Os filhos de Gandhy, todos caracterizados como o líder negro indiano
Mahatma Gandhy, entoam seu hino, cortejam e seduzem borrifando alfazema
nas mulheres que passam. Se você aceitar, pode ser conduzida para dentro do

36
Oxalá, o orixá supremo do camdomblé, simboliza a paz, é o pai maior nas nações na religião africana.
É calmo, sereno, pacificador, é o criador, respeitado por todos os orixás. A Oxalá pertence os olhos que
vêem tudo. Ele tentou fazer o homem de vários elementos. Nana veio em seu socorro e deu a Oxalá a
lama, o barro do fundo da lagoa onde ela morava, a lama sob as águas, que é Nana. Oxalá criou o
homem, o modelou no barro. Nana deu a matéria no começo, mas quer de volta no final tudo o que é seu.
Oxalá teve vários filhos com Nana e com Iemanjá.
37
Entre autoridades e povo, nessas ocasiões solenes e formais, há uma clara divisão. Seja uma cerca,
seja um espaço vazio, seja um palanquim ou outra construção qualquer que permita imediatamente saber
quem é quem (...) tais distinções ocorrem até mesmo nas grandes procissões (...) DAMATTA, Roberto.
O que faz o brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1984, p.86.
55

cordão por alguns instantes e depois acompanhar o cortejo ao lado do “tapete


branco”, como são chamados. Você pode ainda trocar com um dos integrantes,
um beijo por um colar de contas azul e branco. Nesse jogo de sedução, os
gandhys assumem uma personagem e propõem às mulheres um papel a ser
representado. Nesse sentido, podemos dialogar com Caillois (1986, p. 26-28)
reconhecendo o espírito de jogo na festa:
O domínio do jogo é, portanto, um universo reservado, fechado,
protegido – um autêntico espaço. (...) Jogos que supõem uma livre
improvisação e cujo principal atrativo advém do gozo de
desempenharmos um papel, de nos comportarmos como se fossemos
determinada pessoa ou determinada coisa...”
Transbordando charme e sensualidade, os filhos de Gandhy cortejam
quem se permite ser cortejada. Suas roupas, colares e turbante invocam uma
pessoa imaginária, um personagem que sugere outras condutas, e, portanto,
mesmo depois do final do cortejo não se permitem tirar o turbante, como se essa
ação implicasse em desmanchar a personagem, em apagar a sua magia, o seu
status. No espaço de duração da festa abre-se um vácuo no tempo, onde é
possível esquecer as desilusões, o baixo salário, ou as mínimas condições de
vida. Outras personagens podem ser ainda identificadas, como várias pessoas
representando Bel - o vocalista do Chiclete com Banana, e uma carioca que se
veste de baiana nas cores verde e rosa, homenageando sua escola de samba, a
Mangueira.
Mas é somente ao chegar na Colina Sagrada que a festa atinge seu
clímax. Ninguém revela sua fadiga, talvez porque estejam todos anestesiados.
Quando subimos a ladeira principal da Colina Sagrada podemos olhar para
todas as direções que o que se vê é um mar de gente. O hino ao Senhor do
Bonfim é entoado e uma onda de emoção invade a maioria das pessoas que lá
chegam. Num gesto simbólico de purificação, as baianas molham com água de
cheiro as cabeças dos que pedem esta bênção e os degraus da escadaria, onde
também depositam flores. É o coro formado pelo canto e as orações que
entusiasmam, e não o sentido das palavras. A multidão disputa a água de cheiro
- o privilégio de serem batizados pelas baianas. Sob esse aspecto, o de fruição,
56

Duvignaud propõe que para o entendimento da festa é preciso entrar nela por
extensões existenciais. É espacialmente que nosso corpo sente essa
potencialidade sinestésica. E é o que realmente pode-se verificar: um arrepio, uma
sensação de plenitude nos embriaga, nos emocionamos e nos enchemos de
alegria sem saber exatamente o porque. Nesse momento, é produzida uma
atmosfera que nos aproxima do transe antigo, que tinha por função reforçar o estar-
junto daqueles que participavam dos mesmos mistérios, como nos lembra o
sociólogo francês Michel Maffesoli em A contemplação do mundo (1995, p. 16):
(...) é o retorno das imagens, a importância do contágio emocional, o
recurso a esses múltiplos simbolismos que são a afirmação da
identificação religiosa, a efervescência étnica, a busca do “território”,
são coisas que servem de matriz a socialidade nascente, coisas que
constituem o caldo de cultura do qual a atualidade nos oferece muitos
exemplos...38
A festa se apodera de todos os espaços. O cheiro do perfume das flores,
do azeite de dendê, dos espetinhos, da cerveja, está por toda à parte. O largo, a
praça, as ladeiras, as ruelas, estão todos preenchidos pela multidão, todos
desempenhando um outro papel que o cotidiano, por um período no qual a vida
coletiva é extremamente acentuada. O clima de empatia que se instala intensifica
a afetividade no contato entre todos. Uma nova comunicação se estabelece
substituindo todos os códigos e estruturas impostos socialmente e
cotidianamente, por um período onde a subversão é, de certa forma, autorizada.
A festa abole as representações, as normas por meio das quais a sociedade se
defende contra a agressão natural: segundo as aparências, a festa atinge aquilo
que constitui a finalidade última das comunidades, isto é, um mundo reconciliado,
uma entidade fraternal. (DUVIGNAUD, 1983, p. 69)
Os festejos religiosos, a parte sacra da Festa do Bonfim consiste num
novenário que se encerra no segundo domingo após o Dia de Reis. Na quinta-
feira da Lavagem, a Igreja abre somente à noite, a partir das 19 horas, quando a
cerimônia religiosa acontece. Os fiéis fazem suas orações nos portões. O que já
acontece a aproximadamente vinte anos na intenção de preservar as peças da

38
Ibidem, p.24.
57

Igreja do assédio da multidão. Devotos, turistas e curiosos pagam suas promessas,


ajoelhados nas escadarias, segurando nas grades do adro e amarrando as fitinhas
de Senhor do Bonfim que são cortadas no mesmo tamanho do braço da imagem
que está no interior da Igreja.
Depois que tudo termina, o povo se espalha em várias direções: são
várias barracas com comidas típicas, acarajé, vatapá, cocadas, amendoim
cozido e bebidas de todos os tipos, espalhadas pelo Largo do Bonfim, Ribeira,
Pedra Furada e Mont Serrat. No decorrer de todos esses anos de Lavagem, as
barracas sempre traduziram uma certa excentricidade. Nas memórias da festa,
encontramos as barracas residências que sempre foram destaque pela
qualidade dos quitutes e pela decoração com o melhor efó39 e roda de samba,
apresentando nos seus nomes uma mistura religiosa e profana: “Recreio de
São Bento”, “Maria de São Pedro”, “O sol nasce para todos”, “Bosque do amor”,
“Barraca da gringa”. Segundo Duvignaud (1983, p. 63), as extensões da refeição,
os locais onde as pessoas se reúnem para, em comum, ingerirem alimentos,
teriam seu caráter fantasioso:
O alimento é um signo, assim como o signo é digerível. O sustento
ofertado em abundância exorciza a penúria e libera o estômago e o
ventre da angústia da morte. (...) Os grandes banquetes são festas
copulativas, a natureza instala-se no homem, no curso da festa, ao
mesmo tempo destruímos e regeneramos.
As barracas distribuídas pelo largo e pelas redondezas agradam a todos
os gostos. Você pode descer a ladeira de trás da igreja até a Pedra Furada ou cair
no samba, no pagode, no arrocha ou no forró, que dominam até o cair da noite.
Apesar da proibição, barracas de jogos de azar também são armadas para a
festa. Entre elas, roletas e jogos de dados, funcionando o tempo todo. Além disso,
camisetas, fitinhas do Senhor do Bonfim, rosários, escapulários e uma série de
lembranças, são vendidas a todos os preços.
Entretanto, esse é um retrato de um contato inédito – meu primeiro contato
- com a festa, o que já não ocorre da mesma forma no ano seguinte, quando

39
Prato da cozinha baiana.
58

tomados por uma outra sensação podemos observar as escadarias ocupadas


por profissionais da imprensa e o adro por autoridades e turistas. De certa forma,
com o caráter turístico da cidade, visando captação de recursos e uma difusão
dessa sua imagem, as festas têm acompanhado esse movimento. Sob o olhar de
Duvignaud, o elemento finalidade não faz parte da festa, ou melhor, sua finalidade
é zero. As festas destroem, sim, a imagem e a aparência da realidade, e
correspondem a uma subversão.
Os jornais refletem constantemente a projeção que a Lavagem ganha ano
após ano. A cada festa, adquire mais contornos de um cortejo alegórico. E nas
últimas décadas tem tornado-se praticamente um megaevento. A partir de 1998 a
parte carnavalesca do evento sofreu uma intervenção imposta pela Prefeitura Mu-
nicipal e a Arquidiocese de Salvador que, numa tentativa de defender as tradições
históricas da festa, promoveram um afastamento dos trios elétricos e caminhões
de blocos alternativos que acompanhavam o cortejo desde a Avenida Contorno. No
ano seguinte, como alternativa para os foliões de ocasião e os demais envolvidos
na promoção da parte considerada profana na festa, ficou estabelecido que nos
sábados seguintes a Lavagem, aconteceria no bairro da Barra o Farol Folia - grito
de carnaval dedicado aos blocos que ficavam fora da festa.
Hoje, até virtualmente se pode acompanhar a festa. A lavagem das
escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim também pode ser apreciada
nas páginas da internet, quando o cortejo virtual transforma os oito quilômetros
do percurso em uma peregrinação online - opção para os curiosos que não tem
fôlego para participar das comemorações. Todas estas transformações e outras,
sofridas pela Lavagem do Bonfim, podem ser identificadas através de pesquisas
e matérias publicadas em revistas e jornais locais. Em 1995, Gideon Rosa escreve
no Jornal A Tarde:
É no rebuliço profano e religioso do Bonfim que o vento sopra
forte, faz a curva na Colina Sagrada e retorna detonando uma
onda de alegria em toda a cidade. (...) A cada ano se transforma,
transfigura-se em um ritual de puro prazer gastronômico e etílico,
apesar do pretexto religioso. 40

48
JORNAL A TARDE, Salvador, 12 jan. 1995, p.03.
59

Mas nem sempre era assim que podíamos falar da Festa do Bonfim. O
ritual se repete todos os anos sempre na segunda quinta-feira do mês de janeiro,
segundo alguns autores há 252 anos, ou seja, desde 1754. Enquanto outros
consideram que, o ano de 1804 foi o ano da primeira lavagem oficial.
A Lavagem do Bonfim, muitas vezes sob suspeita de africanismo e
selvagismo teve seus precedentes históricos na velha metrópole portuguesa,
como se pode confirmar nas palavras do bispo de Évora de Portugal (1534):
Defendemos a todas as pessoas eclesiásticas populares, de qualquer
estado ou condição, que sejam, que não comam nas igrejas, nem
bebam, com mesas nem sem mesas: nem cantem nem bailem em ellas,
nem em seus adros, nem os leigos façam seus ajuntamentos dentro
dellas sobre cousas profanas, nem se façam nas ditas egrejas ou
adros dellas jogos alguns, posto que sejam em vigília de santos ou de
alguma festa, nem representações, ainda que sejam da paixão de
Nosso Senhor Jesus Christo, ou de sua Ressurreição, ou nascença,
de dia nem de noite, sem nossa especial licença, porque de taes actos
se seguem muitos inconvenientes, e muitas vezes trazem o escândalo
no coração daqueles que não estão, mui firmes na nossa santa fé
catholica, vendo as desordens e excessos que nisto se fazem. (XAVIER,
1929, p. 376)
Aqui podemos identificar os elementos constituintes da festa vistos como
foco de subversão pelo olhar da Igreja. Permitindo as pessoas chegarem a um
estado onde tudo se torna possível, a festa pode ser vista como perigosa no
sentido de perda de controle ou de saída da “normalidade”.
Os estudiosos de mitologia dizem que a Lavagem do Bonfim é uma
cerimônia que tem origem na África, em homenagem a divindade Yorubá Oxalá,
que é filho direto de Olorum, Deus criador e pai de todos os orixás. Os escravos
africanos, proibidos de cultuar seus deuses, identificavam Oxalá com o Senhor
do Bonfim, e todos os anos lhe faziam o desagravo, isto é, lavavam as escadarias
da sua igreja. Oxalá tem de ser desagravado com as águas porque sofreu sete
anos de prisão e exílio por amor a Nanã, sem se queixar ou pensar em vingança.
Câmara Cascudo discorda desta visão e considera que na Festa do Bonfim há
convergência de dezenas de festas tradicionais da Europa e da África. Enquanto
60

Roger Bastide observa que a cerimônia não é de origem africana, pois já existia
em Portugal. O culto ao Senhor do Bonfim teria origem em 1669, em Setúbal.
Uma imagem de Jesus crucificado, igual a que existe em Portugal, chegaria à
Bahia em 1745, trazida pelo oficial Theodorico Rodrigues de Faria41 para a
Igreja da Penha (Ribeira) e, em 1754, seria transferida para a Colina Sagrada
onde foi construída a atual igreja Basílica de Nosso Senhor do Bonfim 42 ,
transformando-se em objeto de devoção popular.
Foi o capitão de mar e guerra da marinha portugueza, Theodorico
Rodrigues de Faria (*) que, de viagem para o Brazil em 1745, trouxe
de Lisboa uma imagem do senhor crucificado, semelhante a que se
venera em uma capellinha das visinhanças de Setúbal – Portugal, e
como devoto que era dessa imagem, pensou em continuar aqui a sua
devoção, razão por que, trocando a nova, conseguiu que ella fosse
colocada da Egreja de Nossa Senhora da Penha na península de
Itapagipe. Esta colocação realizou-se pela Paschoa de 1745.43
A festa, teria sido então difundida no Brasil por esse português combatente
na guerra do Paraguai que fizera o voto de, caso não morresse, lavar o átrio do
Senhor do Bonfim. Acredita-se ainda, que o ritual da lavagem teve origem nos
tempos em que os escravos eram obrigados a levar água para lavar as escadarias
da Basílica para a festa dos brancos, desde esta época um agradecimento do
povo às graças concedidas pelo Senhor do Bonfim. Os negros baianos teriam
transformado a lavagem numa festa sincrética ao catolicismo e ao candomblé.
Em 1881, era outro o retrato que tínhamos do bairro do Bonfim nesses
dias de festa. O largo se povoava de caravanas vindas do Recôncavo, dos altos
Sertões da província e de além do rio São Francisco, para participarem da
representação do que era considerado um “estupendo mistério” que tinha por
teatro a Colina de Itapagipe. Na época, o evento reunia mais de trinta mil pessoas
de todas as classes e de toda parte.

41
Em alguns registros o nome do capitão consta como Theodózio Rodrigues de Faria.
42
Os fiéis devotos da imagem e o próprio Theodorico, resolveram escolher um lugar de destaque onde se
podesse erigir uma Egreja para o santo, e então, na eminência, hoje conhecida por Alto do Bonfim
antigamente – do Mont Serrat deu-se princípio a edificação da capella. CARVALHO, Carlos Alberto de.
Tradições e Milagres do Bonfim, Typ. Bahiana, de Cincinnato Melchiades, 1915, p.07.
43
Ibidem, p.07.
61

A leitura dos registros de Carlos Alberto de Carvalho em Tradições e


Milagres do Bonfim (1915) nos oferece uma série de imagens singulares de
vários aspectos da Festa do Bonfim na década de 20. Entre elas, a de um “assalto
ao Templo”, feito na última quinta-feira antes da festa, por mulheres e homens do
povo, carregando potes de água de cheiro na cabeça e empunhando vassouras
de piaçaba que zig-zagueavam de um modo infernal sobre as lages. As pessoas
cantavam “bendictos e ladainhas”, que misturavam-se com chulas e sambas: As
mulheres seminuas, os homens arregaçados até acima dos joelhos, bailavam
diabolicamente, de vez em quando distribuíam-se copos de aguardente e a
lavagem não tinha fim.44 .
O ano de 1923 foi marcado por dois acontecimentos especiais em relação
à Festa do Bonfim. No dia 24 de junho, a Igreja recebe a Sagração do altar e do
edifício, é transformada de Igreja em Basílica e a Colina do Bonfim recebe o
nome de Colina Sagrada. No mesmo ano, nas comemorações do Centenário da
Independência, o governador do Estado da Bahia, intercedendo diretamente ao
Bispo, consegue autorização para a saída da imagem do Senhor do Bonfim em
procissão. O evento veio patentear a religiosidade do povo baiano, sua fé e grande
devoção ao Senhor Bom Jesus do Bonfim, que após uma série de milagres,
como a epidemia de cholera-morbus45 , o furioso temporal46 e os muitos registros
de cura em pessoas desenganadas, passa a ser considerado protetor da Bahia.
44
Ibidem, p.50, 51.
45
“Consideremos por exemplo, esse facto da epidemia de cholera-morbus que aqui na Bahia tantas victimas
fez em 1855 (...). Tenhamos em mente pelo que nos contam os annos, aquelle espectaculo de enterrarem-
se centenas de infelizes acommettidos do mal bilioso, em poucas horas, a ponto de não serem mais
utilizadas as covas isoladas e fazerem-se inhumações na vala comum. Sabemos demasiado que as
famílias infelicitadas pela visita do mal, abandonavam apavoradas as suas casas, fazendo com um giz o
signal da cruz na porta, indicio da existência de cadáveres, e que estas casas eram depois devassadas
pelos africanos escravos, encarregados de enterrarem os infelizes. O mal reinava assustadoramente (...).
A cidade da Bahia era uma necrópole. A proteção do Senhor do Bonfim foi pedida a una você, os devotos
vindos de toda parte, ajoelhavam-se e tiravam “Senhor Deus...”, reunidos, pediam a cessação do mal,
promettendo ao misericordioso um testemunho de gratidão. Então a 6 de setembro do anno fatal fizeram a
descida da sagrada imagem do seu altar e cobriram-na de lagrimas. O Senhor do Bonfim sahiu em procissão
acompanhado de uma multidão attonita, o andor fora até a cidade e collocaram-no na Cathedral. Dias
passaram-se, preces fizeram-se e, para o qual não havia remédio e cuja marcha parecia não ter outro fim
senão a flagellação completa da população, diminuiu, mais um dia e fez-se escasso, mais outro dia, e
desappareceu radicalmente. O Senhor do Bonfim foi reconduzido jubilosamente ao sanctuario e os devotos
mandaram fazer o painel que para gloria dos que confiam alli está na casa dos milagres. Ibidem, p.108, 109.
46
Em 29 de setembro de 1905 um furioso temporal ameaça uma série de embarcações em Salvador. Na
ocasião, pescadores do Rio Vermelho imploraram ao Senhor do Bonfim sua proteção. Na praia, todos
rezavam e pediam. E sem que se possa explicar as embarcações foram trazidas a praia e o mar serenou
milagrosamente.
62

Antigamente, quando o romeiro, peregrino de longas jornadas, aportava


na Bahia por dois, três e até oito dias para render homenagens à sagrada imagem
do Cristo morto e crucificado, encontrava como parada algumas casas na região
do Bonfim. Eles costumavam descalçarem-se ao subir os degraus do Templo.
Pelos caminhos entoavam ladainhas e saudações, até chegarem à Igreja. Ali
depositavam velas, objetos de cera, trocavam as medidas de seda da sagrada
imagem e ouviam a missa. Terminada esta, saíam do templo rezando em voz alta
ou cantando e circulavam três vezes a Igreja, entrando depois para o oferecimento
da romaria.
As casas dos romeiros, em número de dezesseis, era ocupadas por
pessoas que pertenciam a “melhor sociedade”47 entre os devotos que chegavam
de Santo Amaro, Nazareth, Cachoeira, Feira e outras cidades do recôncavo e do
interior. Anos depois, com os hotéis, as pousadas, as pensões de baixo preço e os
albergues os romeiros deixaram de ocupar ou não procuraram mais as casas do
Senhor do Bonfim.
Segundo alguns registros, a partir de 1929 as peregrinações a Itapagipe
diminuíram de volume e a Lavagem da Basílica foi aos poucos desaparecendo,
tornando-se mais simples, menos nostálgica e mais moderna, mas mantendo-
se ainda como a festa religiosa mais importante da cidade. Porém, as casas dos
romeiros já eram alugadas neste período para as famílias da capital, de veraneio.
A Igreja e o Estado “uniram-se” para transformar a devoção popular do Senhor do
Bonfim em uma grande manifestação de fé. O objetivo era converter a lavagem –
rito popular que teimava em persistir – em uma exclusiva manifestação da religião
católica. No final de 1930, novas obras foram realizadas na colina, paralelo ao
projeto de valorização e modernização da festa.
Em 1932, o pessoal da limpeza pública assume a lavagem do templo,
organizando a ornamentação do adro, do largo, como também promovendo o
cortejo de auto-bombas e caminhões do referido serviço. E em 1939, as Festas
do Bonfim passaram a apresentar uma novidade: estabelece-se um contrato

47
Termo utilizado por Carlos Alberto de Carvalho em Tradições e Milagres do Bonfim: “É sempre a
melhor sociedade que ocupa esses dois lotes de casinhas de romarias”. (CARVALHO, 1915, p.30.)
63

com a rádio Sociedade da Bahia para a irradiação das novenas de quinta-feira,


sexta e sábado, bem como de toda missa da festa.
O programa da festividade externa também sofreu modificações, não
aprovadas pela grande maioria dos crentes, mas as que afinal se resignaram,
coagidos pelas proibições da Igreja. Na ocasião se fez necessário também, o
reforço da polícia armada. É por volta da década de 70 que começa a se instaurar
o mito da violência nessas festas.
Em 1989, Dom Lucas, em entrevista a Revista Veja, afirma em relação à
festa: As músicas ruidosas, a dança desrespeitosa são verdadeiras profanações,
que tenho o dever sacrossanto de evitar (1989, p.67). Mas o cardeal acaba voltando
atrás e autoriza a Festa do Bonfim, assim como já havia ocorrido na década de
50, quando Dom Augusto Álvaro da Silva decidiu fechar as portas da igreja para o
povo. Esse movimento da Igreja em relação à festa pode ser observado em
diferentes intensidades no decorrer da história da Lavagem do Bonfim.
Poderíamos identificar esta tensão estabelecida entre o sagrado e o
profano, ou o que o que é considerado sagrado e profano, como uma "harmonia
conflitante". Maffesoli aponta para uma pluralidade de valores, onde a relação
social em gestação atualmente é a de uma "harmonia conflitante". A vida social e
o acontecimento festivo, como parte dela, não pode mais ser compreendido,
como a expressão de um bem único. Se dirigirmos agora nosso olhar ao corpo
que habita esta festa, o corpo como eixo de relação com o mundo, veremos que
ele se converte no elemento mais importante do evento espetacular. O corpo é o
lugar onde se constituem e propagam as significações. É o corpo que,
manifestando-se por uma teatralização, põe em cena a ação de um drama48. As
necessidades do corpo como o beber, o comer, o jogo de sedução, o vestir-se, o
travestir-se, desdobrando-se em outras manifestações.
É a partir da presença desse corpo festivo que me arrisco a formular dois
aspectos identificados na Lavagem do Bonfim: a festa e seu poder aglutinador e
igualador e a festa e seu poder regenerador. Em Tradições Religiosas da Bahia:

48
Para Duvignaud entende-se por drama a teatralizacão coletiva da existência.
64

o culto do Senhor do Bonfim, Xavier Marques relata um momento dos festejos


vivenciado, em 1717, pelo crítico francês Mr. La Barbinais le Gentil que saltou na
Bahia e presenciou nossa festa:
O estrangeiro foi a festa com o vice-rei e os fidalgos da corte. E qual
não foi o seu espanto ao ver, no meio da turba de brancos e negros,
entre plebeus e escravos, metter-se também o vice-rei com os seus
gentis homens a dansar e a dar vivas ao santo! Então, confessa o
próprio viajante, vendo-se instado pelos grandes da cidade a deixar o
simples papel de espectador pelo de actor, teve que entrar na roda
com os devotos dansarinos.49
Não são poucos os turistas que deixam de fotografar para se entregar ao
samba de roda e a cerveja quente. Na festa, comemos, rimos e vivemos a utopia da
ausência de hierarquia, poder, dinheiro e esforço físico. Aqui todos se aproximam
por meio de conversas informais e, na construção da festa, a música que congrega
e iguala no seu ritmo e na sua melodia é algo absolutamente fundamental no caso
brasileiro (DaMatta, 1983, p. 69). Assim, esse poder que aglutina e iguala, mesmo
que momentaneamente, ou no tempo da festa, instala uma nova realidade, uma
“subversão exaltante”. A festa então, abala e desagrega as normas. Segundo
Duvignaud, nestas fases de metamorfose, as representações e os símbolos que
satisfazem os desejos humanos, não conseguem mais reter a expansão de uma
“libido” brutalmente desvelada. E, segundo as aparências, o espaço da festa propicia
um mundo reconciliado, uma convivência harmoniosa entre desconhecidos, como
o freqüentador esporádico e distante e os soteropolitanos. Passam também a “existir”
na festa, muitos que, apesar de se sentirem marginalizados, encontram nesse
lugar, a possibilidade de serem vistos como personagens “reconhecidas” e “aceitas”.
A festa revela então, seu poder regenerador:
A preta Maria Melania Ribeiro da Silva que declarou ter 110 anos de
idade, estava feliz e firme de vassoura em punho, dizendo que desde
menina se habituava a lavar a Igreja do Bonfim. Depois do exercício
que lhe matava as forças a preta Melania foi até o armazém local a
beber meio copo de cachaça, erguendo um viva a Oxalá que é o
mesmo que o Nosso Senhor do Bonfim em idioma nagô.50
49
Tradições Religiosas da Bahia: o culto do Senhor do Bomfim publicado na Revista do Instituto
Geographico e Histórico da Bahia, nº 55, Secção Gráphica da Escola de Aprendizes Artífices, 1929, p. 380.
65

Essa imagem congelada de 1937 pode ser vista ainda hoje nas ladeiras
do Bonfim. A festa transformando o estado, o espírito das pessoas. Uma festa
apreendida ao longo da história como fenômeno transcultural, como regeneração
do tempo, como meio de descoberta da energia que induz a incursão em novas
áreas da experiência livre dos constrangimentos impostos pelas culturas. Para
Mircea Eliade, não é a morfologia da festa que nos interessa, e sim a estrutura do
Tempo sagrado atualizado nas festas, tempo que é sempre o mesmo, que é uma
sucessão de eternidades. Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa,
trata-se sempre de um acontecimento sagrado que teve seu lugar de origem e
que é, ritualmente tornado presente.
Os participantes da festa “saem” de seu tempo histórico, do tempo
constituído pela soma dos eventos profanos, pessoais e intrapessoais e reúnem-
se ao tempo primordial, que é sempre o mesmo, que pertence à eternidade. É
esse tempo que permite pausar a dura realidade e cair no desregramento51 que
pode ser lido nas palavras de Carlos Alberto de Carvalho: No largo do papagaio
reuniam-se outros grupos de batuques e candomblés, pondo trégoas as durezas
da vida e louvando o Senhor do Bonfim (1915, p. 42).
Para muitos a festa sempre foi um misto de paganismo e de catolicismo.
E é justamente essa mistura que compõe sua magia.
A Lavagem do Bonfim e as festas de modo geral, permitem que seus
integrantes se entreguem ao devaneio, embora conservando um status social
“normal” e “respeitável”, sem serem julgados. Ao mesmo tempo que a festa destrói
códigos e normas estabelecidos ao colocar o homem diante de um universo
desaculturado, também transforma as relações no contato intercultural, gerando
mudanças que podem resultar de uma modificação interna, destruidora da cultura
estabelecida. Esse mergulho do homem no tempo sagrado constitui-se de uma
necessidade, pois é o tempo sagrado que torna possível o tempo ordinário, a
duração profana em que se desenrola toda a existência humana. Tempo esse,
que nos impõe a visão grandiosa e espetacular da Lavagem do Bonfim.
50
JORNAL DIÁRIO DA BAHIA. Salvador, 15 jan. 1937.
51
Ao dialogar com os elementos componentes da festa Duvignaud desenvolve a idéia de desregramento
em Caillois: “O ‘desregramento’ de que fala Caillois é o desregramento de uma sociedade que coloca
as suas regras ‘entre parênteses’ e que interpreta para si mesma a comédia de sua existência.”
(DUVIGNAUD, 1983, p. 72.)
66

Bibliografia:
CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os Homens: A Máscara e a Vertigem. Lisboa:
Edicões Cotovia, 1990.
CARVALHO, Carlos Alberto de. Tradições e Milagres do Bonfim: obra
seguida de interessante resenha histórica da península de Itapagipe.
Typ.Bahiana, de Cincinnato Melchiades, 1915.
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rocco,
1984.
DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Fortaleza: Edições Universidade
Federal do Ceará. RJ: Tempo Brasileiro, 1983.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. P.Alegre: Artes e Ofícios,
1995.
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Editora UNESP,
2003.
SANTANA, Mariely Cabral de; SILVA, Odete Dourado da; UNIVERSIDADE
FEDERAL DA BAHIA. Faculdade de Arquitetura. Alma e festa de uma cidade :
devoção e construção da Colina do Bonfim. 2002. 225 f. Dissertação
(Mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, 2002.

Periódicos
REVISTA DO INSTITUTO GEOGRAFHICO E HISTÓRICO DA BAHIA. Salvador:
Secção Gráphica da Escola de Aprendizes Artífices, Editora IHGHB, n 55, 1929.
REVISTA VEJA. São Paulo: Editora Abril, 18 de janeiro de 1989.
JORNAL A TARDE. Salvador, 12 jan. 1995.
JORNAL DIÁRIO DA BAHIA. Salvador, 15 jan. 1937.
67

DIA DE FINADOS EM RIO REAL:


UMA FESTA DOS VIVOS PARA OS MORTOS

Cristiano de Araujo Fontes52

Este artigo traz algumas questões a respeito da espetacularidade da festa


de finados que comemora o dia dos mortos, na comunidade de Rio Real. Nesse
dia há procissão, movimento constante no cemitério, muitas flores enfeitando as
carneiras, muitas orações pelas almas dos mortos, encontros e confraternizações,
ou seja, é um dia espetacular na vida daquela comunidade com muita vida pulsando.
Neste dia, a morte e vida se chocam e se confrontam de modo glorioso.
No jogo da vida cotidiana – na dramaturgia da existência – o ser-homem atua,
por vezes, no espetáculo do mundo. Espetaculariza sua existência através de um
partilhamento em comum assumido pelos membros de sua comunidade. Tal
modo se faz referenciado por um sentido de ser que também é partilhado
publicamente e se funda numa interpretação sobre o mundo, legada por uma
tradição. Trata-se dos limites hermenêuticos que referenciam uma comunidade
numa realidade passada de geração a geração. É pelo “texto do mundo”
circunscrito a cada tradição, que as práticas espetaculares podem eclodir e se
desvelar na dramaturgia da existência. Tais práticas são os objetos da
investigação etnocenológica que perscruta o modo de ser espetacular que
transcende à cena cotidiana e instaura, na dramaturgia da existência, a
espetacularidade.
Acredito ser necessário, previamente, discutir os limites da etnocenologia. A
necessidade de retomar os seus conceitos e objetivos se faz pela sua recente
existência no campo das ciências sociais. Com isso, ainda é pouco discutida e
conhecida. Os textos recentes que perseguem a trilha etnocenológica não deveriam
se esquivar dessa empreitada. É importante retomar sempre suas idéias centrais
para assim iluminar os caminhos (o meu e os daqueles que me acompanham).

52
Mestrando do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas – PPGAC, UFBA, com especializações em
Teoria da Psicologia Junguiana - IJBa, Metodologia do Ensino Superior – CEPOM, Bacharel em Turismo
– FACTUR. Professor das Faculdades Integradas Olga Mettig – FAMETTIG e pesquisador de Interpretação
do Patrimônio.
68

Assim, poderei adentrar na análise sobre a espetacularidade do dia dos


finados que se dedica a homenagens aos mortos que “são tão queridos” e que
em Rio Real é uma grande celebração dos vivos para os mortos.

Questões centrais da etnocenologia


O que é a etnocenologia? O que investiga? Como e onde surge? Quem
são os seus colaboradores que se situam no limiar das fronteiras etnocenológicas
abrindo perspectivas?
A etnocenologia possui um manifesto, onde todas essas respostas, de certo
modo, se encontram. No manifesto, cunhado por Jean-Marie Pradier, encontra-se
a seguinte definição: é o estudo, nas diferentes culturas, das Praticas e
Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados – PCHEO. Nesse sentido
ela é uma disciplina, um campo de pesquisa e uma ciência. Pradier observa:
implica em termos de aparelhamento teórico e métodos heurísticos. E continua:
como para toda ciência a etnocenologia é (...) uma direção dada, um elã, em favor
de um canteiro de investigações permanentes (PRADIER, 1995, p. 01).
Investiga as práticas e comportamentos espetaculares, extra-cotidianos, no
âmbito partilhado, ou seja, em comum. Como define Khaznadar, as formas
espetaculares que entram no campo da etnocenologia são aquelas que são próprias
de um povo, que são a expressão particular de sua cultura (BIÃO, 1999, p. 05).
A palavra etnocenologia evoca alguns significados. Tem-se: 1. Etno –
particular a um povo, a um agrupamento humano, a uma socialidade; 2. ceno
(skenós) – possui muitos significados, dos quais, para a etnocenologia, o corpo
e a cena assumem uma centralidade, numa relação imbricada, de co-
pertencimento, no qual se enraíza a espetacularidade; 3. logia – estudos
sistemáticos, tratado, um perscrutar científico de algo.
Daí pode-se inferir, sem exageros, que a etnocenologia estuda uma cena
e um corpo partilhado e significativo para uma comunidade. Ressalta-se aqui o
caráter partilhado e significativo dado ao corpo e a cena que restringe e exclui as
idiossincrasias e os momentos corriqueiros do cotidiano.53
53
Nessa perspectiva Bião diz: (...) a espetacularidade seria a colocação em cena extra-cotidiana de
relações sociais que tem lugar nos espaços sociais e públicos.” (1991: 108)
69

Por fim é importante dizer que a etnocenologia já nasce no seio de uma


instituição: o Centro Internacional de Etnocenologia. O Centro, sob os auspícios
da Unesco, é criado por iniciativa da Maison des Cultures du Monde e do
Laboratoire Interdisciplinaire de Pratiques Spetaculaires da Universidade de Paris
8. (PRADIER, 1995, p. 06).
06). Os seus colaboradores internacionais mais conhecidos além dos
acima citados são ainda Jean Duvignaud e Françoise Gründ (na França).

A etnocenologia e as ciências sociais


A etnocenologia é uma ciência que se lança na direção de objetos de
caráter extra-cotidiano da cena contemporânea, no intuito de compreendê-los,
quanto as suas constituições, sem necessariamente esgotá-los.
A etnocenologia dialoga com intimidade com a antropologia. A etimologia
da palavra antropologia fala que: 1. Antropo (anthopos) – homem; logia – estudo
sistematizado, científico. Temos então, de modo mais simples possível, a
compreensão de que é o estudo do homem e, mais precisamente, o estudo da
humanidade. É a ciência que estuda o homem e a humanidade. Porém essa
definição pouco nos diz, é muito ampla e perde-se em si mesma.
Tomemos, contudo, as subáreas da antropologia cultural, denominadas
de etnografia e etnologia. Elas muitas vezes são necessárias nos estudos e
pesquisas etnocenológicos. Muito contribui o que a etnografia e a etnologia nos
falam a partir de seus termos e conceitos.
Tanto a etnografia quanto a etnologia são ciências que investigam o homem
imerso na cultura e na relação com os seus. Assim também é a etnocenologia. A
imersão do pesquisador numa comunidade e em sua realidade cultural é funda-
mental. A Etnografia (éthnos, povo; graphein, escrever), como diz Marconi, se
preocupa com a descrição das sociedades humanas. (?) Mais adiante afirma: o
etnógrafo é o especialista (...) exaustivo da cultura material e imaterial dos grupos.
Observa e descreve, analisa e reconstitui a cultura”. (?) Já Levi-Strauss nos informa
que a etnografia consiste na observação e análise dos grupos humanos (...) e
visando à reconstituição, tão fiel quanto possível, da vida de cada um deles
70

(apud, MARCONI, 2001, p. 27). Hoebel e Frost falam que a palavra etnografia
significa, literalmente, “escrever sobre os povos” e que ela é o fundamento da
antropologia cultural. Continuam dizendo sobre ela e sua prática:
São, podemos repeti-lo, relações descritivas de dados e poucos se
interessam por comparações “per se”, hipóteses e teorias. A etnografia
fornece os blocos de construção para Antropologia Cultural, mas é
preciso buscar em outra parte a grandiosa planta. (HOEBEL e FROST,
1999, p.9)
A cultura é pública porque o significado o é (GEERTZ, 1989, p. 09). Para
Geertz o fazer etnográfico é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura
de”) um manuscrito estranho, desbotado (Idem 1989, p. 07). Com isso o autor
demarca o caráter interpretativo da cultura, que pode ser compreendido como
um texto. O que compartilho integralmente.
Se a etnografia busca descrever minuciosamente as culturas e suas formas
específicas de ser, a etnologia é o estudo desses povos por via de comparação
através das etnografias existentes. Hoebel e Frost falam: a etnologia é a “ciência”
dos povos, de suas culturas e das histórias de suas vidas como grupo (1999, p.9).
Já Marconi afirma: eminentemente comparativa, preocupa-se com a análise, a
interpretação e a comparação entre as mais variadas culturas existentes,
considerando suas semelhanças e diferenças (2001, p. 28). E, por fim, Levi-Strauss:
Etnografia, Etnologia e Antropologia não constituem três disciplinas
diferentes ou três concepções diferentes dos mesmos estudos.
São, de fato, três etapas ou três momentos de uma mesma
pesquisa, e a preferência por este ou aquele destes termos
exprime somente uma atenção predominante voltada para um
tipo de pesquisa que não poderiam nunca ser exclusivo dos dois
outros. (apud, MARCONI, 2001, p. 28)
Todas as definições trazidas aqui da etnografia, etnologia, antropologia e
etnocenologia nos indicam o sentido claro destas ciências. Serem a luz
compreensiva sobre o ser-homem, em seus diferentes modos de ser, nas
conjunturas abertas de sua tradição que se fazem a partir de uma historicidade e
de uma constituição partilhada e pública (Etno). Tais ciências estão abertas em
seus fundamentos para acolher a diversidade, multiplicidade, variância e colorido
71

constituídos por esse ser-homem no enfrentamento do mundo. Buscam


compreender o homem enredado em sua relação social, na produção de bens
simbólicos, nos afazeres cotidianos, na relação com o sagrado, em meio às
festas e às manifestações culturais. Buscam compreender as diferenças
constituídas por esse que aparenta, de certo modo, ser sempre o mesmo, em
qualquer tradição, quanto sua grandiosidade criativa, artística, mítica, lingüística,
e, poética. Capacidades hauridas da perplexidade de viver com outros no mundo.
Essa é a beleza e a poética de ser.
Contudo, na mesma intensidade de reciprocidade, essa capacidade
grandiosa do ser-homem irrompe a partir de uma interpretação constituída do
mundo, onde cada tradição pode oferecer os limites em que ele pode habitar de
modo partilhado. Nesse sentido o ser-homem, em qualquer lugar que aconteça,
traz em si os limites e as referencialidades de sua tradição. Os grandes artistas
da humanidade retrataram o mundo a partir da perspectiva que os constituiu.
A dança sagrada de um povo revela seu enredo e personagens sagrados,
pois participa de concepção constituída e partilhada por seus praticantes. A
grandiosidade pelas quais todos os povos humanizaram o mundo foi a partir de
uma abertura interpretativa. Esta que se anuncia e nos enreda desde as coisas
mais simples – quando recebemos um nome, nomeamos as coisas, ou nos
orientamos no mundo.

Por uma compreensão dos limites interpretativos de uma tradição


O ser-homem no mundo interpretou o mundo e tal interpretação, para
cada tradição, se faz mais própria que o próprio mundo. Isto não é apenas um
trocadilho, eis que a interpretação de mundo é mais concreta que o mundo. A
interpretação é o significado que aponta o que alguma coisa é, enquanto o
mundo, ao contrário, é líquido, fluido. Sempre escapa a novas interpretações.
Mas, quando interpretado torna-se concreto. O mundo é sempre determinado a
alguma interpretação, mas indeterminável à pretensão de determiná-lo numa
única interpretação.
Acredito que é de suma importância a capacidade de um pesquisador
em compreender os limites da interpretação da tradição quando se propõe a
72

uma investigação científica. Isto é, tem que contextualizar o fenômeno com a


interpretação que o concebeu e que o orienta. Um ritual sagrado só tem sentido
a partir de suas próprias regras e da narrativa mítica que o concebeu. Um jogo
também tem regras e faz parte de um conjunto maior de coisa que estão
constituídas a partir de uma interpretação de mundo. Até porque um fenômeno
cultural ou social só toma sentido e limites numa interpretação. Fora desses
limites tornam-se objetos desconectados sem um “por que” e “para que”.
Compreendidos a partir de uma interpretação participam de um todo conjuntural
e relacional, fazendo parte de um projeto futuro, pois são partes de um acontecer
e de uma história.
Compreender os limites de uma interpretação, de uma tradição, não é um
reducionismo da capacidade do homem e de uma comunidade. Ao contrário
percebe-se que são nesses limites que o indivíduo pode atuar na dramaturgia da
existência. A tradição – uma constituição em comum – é o horizonte em que seus
atores podem compartilhar a dramaturgia da existência num sentido e num modo
de ser. É por isso que uma comunidade se reconhece só no anunciar do conjunto
simbólico, pois nele não se tem apenas símbolos, mas um sentido de existir.
Isto acontece, por exemplo, com as comemorações do dia de finados
em Rio Real. Previamente a comunidade se antecipa ao próprio dia, fazendo
decorações, organizando os lugares de festejo, preparando o cenário para o
momento que vai ser partilhado em comunidade. Ou seja, o dia de finados
acontece antes mesmo do próprio dia. Além de toda a organização material,
a comunidade se prepara espiritualmente. Nessa época, ou próxima a ela,
intensifica as suas orações em intenção das almas. Os rosários e os terços,
os ofícios, as celebrações religiosas em comunidade, a adoração ao
Santíssimo (nas quintas-feiras) e as celebrações das missas são
vigorosamente acentuadas em quantidade de fiéis e no comprometimento-
participativo deles. O próprio dia em si eclode numa festa. Para quem não é
da comunidade, ou para quem está afastado e esquecido dessas festividades,
pode ser tomado pela mesma durante seu clímax. Como foi o que aconteceu
comigo e passo a relatar, pois me revelou a força desta tradição e do sentido
que se faz subjacente ao seu modo de ser:
73

Estava eu em Rio Real, no dia 01 de novembro de 2006, feliz porque ia


passar alguns dias nessa terra tão querida e, ao mesmo tempo, fazer algumas
pesquisas em função da disciplina de mestrado Festas e Espetacularidade
(PPGAC – UFBa).
Justamente, buscava alguma coisa que servisse para uma análise
etnocenológica. Procurava alguma manifestação, algum evento, alguma prática
espetacular. Porém estava completamente esquecido que era véspera do dia de
finados e dele ser uma significativa celebração da comunidade. Acordei e de
manhã cedo fui andar de bicicleta, celebrando uma satisfação particular, por me
encontrar naquela cidade, naquelas ruas, naquele contexto, e, além disso, poder
empreender algum trabalho.
Estava à procura de algo singular e significativo para a comunidade. De
algo espetacular. Em hipótese alguma esperava qualquer coisa de pronto.
Acreditava que pelos finais da tarde talvez tivesse alguma idéia que me acenasse
sobre o “objeto” que procurava. Mas, repito, naquela manhã nada procurava.
Porém, como num repente, estava a me perguntar, o que significava aquilo à
minha frente. Procissão, enterro, um evento cultural?
Na verdade, é que eu ia numa direção, e direcionado por um sentido, e a
comunidade, partilhando um modo em comum, vinha numa outra direção, num
outro sentido. O sentido da comunidade, claro para ela, dava um modo de ser
partilhado e experienciado existencialmente. Fiquei sem entender a questão,
pois estava “esquecido” deste evento. No que me informei o compreendi e aceitei
como aquilo que procurava e que veio de modo inesperado. Porém, já me
encontrava atrasado para a pesquisa, de modo inapropriado para a celebração
(ou seja, camisa e bermuda inadequada e uma bicicleta, tão importante para o
passeio, mas que naquela nova conjuntura atrapalhava mais do que ajudava) e
desorientado no que fazer (pois o que fazer: voltar para casa, me arrumar, arrumar
o material e, assim, retornar, poderia me tirar o próprio evento).
Mas, de certo modo, não tive escolha. Havia um modo de ser em
partilhamento que imputava, a quem participasse, a ser no âmbito de seus limites.
Havia, também, uma celebração direcionada às almas, uma oração em comum
às almas, e quem quisesse participar teria que respeitá-las, mesmo que não
74

comungasse a mesma crença. Vi-me enredado por uma cena espetacular indo
na direção de seu clímax e, ao mesmo tempo, tendo que me afastar.
A sorte é que uma procissão, para quem a conhece (a experienciou
na existência), na maior parte das vezes, possui um passo repousado e
leve, cadenciado num ritmo em comum. Foi isto o que me fez projetar as
minhas possibilidades de retorno com um devido sucesso. Mas, é bom
deixar claro, que se eu não estivesse esquecido desse evento, e se na
véspera já o soubesse, também me prepararia de modo adequado,
antecipadamente, pois como membro de uma tradição que partilha o que
é um dia de finados (ou seja, o seu sentido e modo de ser) eu não hesitaria
em me por em função de sua conjuntura, caso quisesse partilhá-la. Assim,
não me encontraria com tantos imprevistos.
Com isso, uma interpretação de mundo é um texto partilhado e só faz
sentido para aqueles que são constituídos pela mesma. Nela há um sentido e
modo de ser partilhado pelos membros de uma tradição. A espetacularidade,
quando eclode na dramaturgia da existência, realça esse texto e põe os limites
interpretativos numa visibilidade acentuada. O homem então passa a ser parte
do texto e conseqüentemente da história, revelando-se e assumido os limites
hermenêuticos de sua constituição.
Quando a comunidade se ajoelha para orar de modo partilhado, as-
sume um modo de ser, que já foi constituído e liberado pela sua própria tradição,
na relação com o sagrado. Alem disso, o ajoelhar não só está arremetido pelo
sentido com o sagrado, mas acentua a relação. No modo do ajoelhar o
praticante é em si parte do texto, porque tal modo é constituído por uma
interpretação do mundo. Tal atitude faz sentido porque pertence ao conjunto
de códigos que lhe constitui. Com isso, não está completamente “solto”, sem
referência, mas nos limites de uma constituição. As práticas e comportamentos
espetaculares estão circunscritos na constituição partilhada de uma
comunidade e, nesse sentido, compreender tais práticas é revelar os limites
interpretativos pelo qual a comunidade habita o mundo. É revelar, também, o
modo e o sentido de ser legado por uma tradição.
75

A espetacularidade dos vivos e a festa para os mortos


O dia dos finados é um dia especial pelo seu próprio tema: a morte. E no
caso o dia dos mortos passa a ser o dia dos vivos. Primeiro porque, para os fiéis
católicos, os mortos que são homenageados nessa tradição não são considerados
mortos, mas vivos, pois suas almas estão nos céus. Sua finitude, sua morte, é em
relação às “coisas do mundo”, da terra. A comunidade concebe que existe vida
após a morte e esta vida é realizada próxima a Deus e a Cristo. Por isso, as
orações são feitas em intenção das almas, do perdão de seus pecados, para que
Deus as aceite junto a ele.
Para tanto é necessário um conjunto de instrumentos que fortalecem a
oração e ajudam na orientação dessas almas até o seu caminho para o céu. As
velas representam a luz do Espírito Santo, o Espírito de Deus, e auxiliam na
orientação das almas para o caminho celeste. As flores ornam as carneiras onde
o corpo material ainda se faz presente. A decoração com as flores é um gesto de
carinho para aqueles que agora na terra são apenas saudades. Ali, em meio às
carneiras, muitas pessoas oram, muitas excedem o emocional, outros apenas
permanecem em silêncio, algumas conversam, crianças brincam de modo
comedido, mas todos estão orientados pela solenidade maior de celebração
das almas de seus entes queridos.
Nesse caso, acontece o “divino social”, aquilo que arregimenta e agrega
uma comunidade para Maffesoli. Todos, de certo modo, estão em função dessa
compreensão que se faz partilhada e pública numa comunidade. Tal
compreensão é uma interpretação sobre a morte, com seus específicos limites
hermenêuticos. Os povos da humanidade tiveram outras relações com a morte,
outras celebrações, pois havia outros limites interpretativos em jogo.
Não se pode esquecer que na tradição cristã e católica os limites
interpretativos da morte estão dados a partir de uma relação com os limites
interpretativos da vida. A vida é dada por Deus. Deus é o criador do mundo, da
vida, do homem, e nada há, além dele. Ele é o criador. É o fim de todas as coisas.
O homem vem ao mundo, mas volta para Deus. O sentido do homem é Deus,
assim como, o sentido de Deus é o homem. A morte em si mesma não existe. A
76

morte na tradição é representada no afastamento da alma em relação a Deus. E


o afastamento é representado pelo inferno. Ou seja, se uma alma não chegar ao
céu ela está condenada ao inferno. Por isso, também, o apelo nas orações para
o perdão das almas, e, ao mesmo tempo, a intensidade como se ora buscando
a salvação das almas em Deus.
O segundo motivo para o dia dos finados ser o dia dos vivos é o seu caráter
de estar celebrado em função dos vivos. São eles que celebram, confraternizam,
fazem a festa. Mas não é uma festa pela festa, nem uma confraternização pela
confraternização. Como já foi visto, é uma festa para os “mortos”, para a salvação
de suas almas. Esse fazer partilhado e de modo significativo, é o campo da
espetacularidade.
Quando uma comunidade se apropria de sua tradição e do que ela lega
– um modo e sentido em comum – a dramaturgia da existência se desabrocha
na espetacularidade. A espetacularidade eclode, ressaltando, justamente, o texto
interpretativo54 que amarra a comunidade em seu cotidiano. A comunidade traz
à cena os limites de uma interpretação (alma, céu, Deus, oração, casa celestial,
vida depois da morte, perdão, pecado, viver com Cristo, etc.) no seu próprio modo
de ser e de se orientar.
O que no dia-a-dia, utilizando a expressão de Maffesoli, encontra-se nos
“subterrâneos” das relações sociais – uma constituição partilhada de ser – toma
relevo e se sobressai na espetacularidade. Ou seja, o que está esquecido no ritmo
cotidiano – a constituição em comum – no modo espetacular emerge. Assim
aconteceu comigo ao estar em meio àquela procissão. Numa hora, completamente
esquecido, na outra, completamente presente. Numa hora fechado ao que vinha
de encontro, na outra me antecipando nas possibilidades futuras.
Lançado na cena espetacular, experienciando na existência a
espetacularidade, o ser-homem é interpelado pela tradição, a todo instante, num

54
Texto interpretativo é uma redundância, pois todo texto, até uma bula de remédio – completamente
informativo – é, também, uma interpretação, pois o que está em jogo é um sentido que pode ser
compreendido de modo partilhado. Mas esse caráter de redundância é aqui de suma importância. Somos
interpretação quando pedimos e solicitamos as coisas, pois elas já estão nomeadas e assim podemos nos
referencializar com algum sentido.
77

constante assumir de papéis, referenciados pelo sentido que constitui a própria


prática. Na dramaturgia da existência, por vezes, eclode a espetacularidade.
Momentos raros em que o texto, que subjaz e constitui a tradição, se sobressai,
indicando os seus limites. O sujeito, no momento em que se encontra num modo
espetacular, revela uma poética, visto que é personagem de um enredo em comum.
Essa experiência me despertou para a compreensão de como o dia de
finados em Rio Real é a festa dos vivos para os mortos. Momentos raros de
espetacularidade. Momentos de apropriação de si e da tradição.

Bibliografia:
BIÃO, Armindo. A metáfora teatral e a arte de viver em sociedade. Caderno
CRH, n. 15, p. 104 -110, jul/dez, 1991.
______________. Etnocenologia, uma introdução. In, Etnocenologia:
textos selecionados / Christine Greiner e Armindo Bião, organizadores. – São
Paulo: Annablume, 1999.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. LTC- Livros Técnicos e
Científicos Editora S.A.; RJ.
HOEBEL, E. A. e FROST, E. L. Antropologia Cultural e Social. SP: Cultrix, 1999.
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. 2ª ed – Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1998.
MARCONI, Marina de Andrade e PRESOTTO, Zélia Maria Neves. Antropologia:
uma introdução. São Paulo: Editora Atlas, 2001.
PRADIER, Jean-Marie. Etnocenologia, manifesto. In Théâtre-Public, 123,
maio-junho, 1995, pp. 46-48.
__________________. Etnocenologia: a carne do espírito. In
Etnocenologia, manifesto. In Théâtre-Public, 123, maio-junho, 1995, pp. 46-48.
78

A RODA DO CAVALO MARINHO:


ESPAÇO PARA UMA MEMÓRIA ESPETACULAR DE UMA
ANCESTRALIDADE FESTIVA.
Érico José Souza de Oliveira - UFBA55

Iniciaremos nossa comunicação sobre a festa do Cavalo Marinho, também


chamada de sambada por seus participantes, abordando três elementos
essenciais à existência humana: o jogo, a festa e o riso.
Estas três noções se complementam enquanto aspectos constitutivos: a
liberdade e a regra, a evasão temporária da realidade, o caráter cômico e crítico,
a concentração de esforços e afetos, a reinvenção da vida ordinária, a transgressão
e o reforço da ordem, além de seus elementos próprios de espetacularidade.
Para Johan Huizinga (1993, p. 53), a cultura surge sob a forma de jogo, ou
seja, ela possui certo grau de ludicidade, principalmente nos seus primórdios,
mas também nos dias atuais: A vida social reveste-se de formas suprabiológicas,
que lhe conferem uma dignidade superior sob a forma de jogo, e é através deste
último que a sociedade exprime sua interpretação da vida e do mundo.
Também encontramos este raciocínio nas reflexões de Roger Caillois
(1967, p. 34), quando o autor trata da noção de jogo atualizando-a entre as culturas
antigas e os tipos de jogos contemporâneos a ele, abordando seu domínio
espetacular e ostentatório, do qual ele define precisamente:
Tudo o que é mistério ou simulacro por natureza, está próximo do
jogo: é preciso ainda que a parte da ficção e do divertimento o faça
surgir, isto quer dizer que o mistério não seja venerado e que o simulacro
não seja início ou sinal de metamorfose e de possessão.
Para Huizinga (1993, p. 11-12), o jogo tende a se fixar rapidamente como
fenômeno cultural, como uma criação nova do espírito, um tesouro a ser
conservado pela memória. É transmitido, torna-se tradição.

55
Professor Doutor da graduação e pós-graduação da Escola de Teatro da UFBA, Pós-doutorado (em curso)
na Universidade Paris 3 – Sorbonne Nouvelle (Paris), Diretor do Grupo de Pesquisa em Encenação
Contemporânea – G-PEC (CNPq), Ator, Encenador, Iluminador, Sonoplasta e Figurinista de teatro.
79

Com relação à festa, o professor Norberto Luiz Guarinello (2001, p. 973) a


define como uma forma de ação coletiva peculiar que implica em produção. Por
isso, ela envolve uma coletividade num processo de produção e consumo de
bens materiais e imateriais que ocupam lugares específicos no seio do grupo
que a realiza, compondo uma sensorialidade identitária que se dá pelo
compartilhamento simbólico festejado.
O autor atribui à festa um caráter polissêmico e complexo:
O que quero dizer, na verdade, é que o que chamamos de festa é
parte de um jogo, é um espaço aberto no viver social para a reiteração,
produção e negociação das identidades sociais (...) um tempo de
exaltação dos sentidos sociais, regido por regras que regulam as
disputas simbólicas em seu interior e que podem, por vezes, ser bastante
agudas. A festa unifica, mas também diferencia, tanto interna quanto
externamente.56
Neste ponto, Bakhtin (1999, p. 10) nos oferece uma definição de festa como
(...) uma “forma primordial”, marcante da civilização humana (...)
As festividades tiveram sempre um conteúdo essencial, um sentido
profundo, exprimiram sempre uma concepção de mundo (...) Sua
sanção deve emanar não do mundo dos “meios” e condições
indispensáveis, mas daquele dos “fins superiores” da existência
humana, isto é, do mundo dos ideais. Sem isso não pode existir
nenhum clima de festa.
O grande fôlego investigativo de Georges Minois o faz encarar o desafio
de seguir o riso no curso da história ocidental, enquadrando-o como elemento
essencial e intransferível da existência humana. Segundo Minois (2003, p. 30), o
riso é a força motriz da festa:
Não se concebem mascaradas, travestimento, cenas de inversão,
desordens e excessos sem o riso desbragado que, de alguma
forma, imprime-lhes o selo de autenticidade. É o riso que dá sentido
e eficácia à festa arcaica. Porém, essas festas têm uma função:
reforçar a coesão social na cidade. Elas asseguram a perpetuação

56
In: JANCSÓ, István e Kantor, Iris (orgs.). Festa: Cultura e sociabilidade na América portuguesa. Volume
II. São Paulo: Hucitec/Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP: Imprensa Oficial, 2001.
80

da ordem humana, renovando o contato com o mundo divino; e o


símbolo do contato com o mundo divino é o riso (...)
Segundo o autor, o riso é implacável enquanto arma contra as questões
práticas e existencialistas do mundo, contra as incertezas e as certezas, contra
as eternas interrogações que se multiplicam durante os séculos, como uma
forma de resposta alegre às desventuras da vida, permitindo ao homem aceitar o
incompreensível, assumindo tudo sem levar nada a sério.
Diante do exposto, observamos que o que chamamos de ancestralidade
festiva é, sobretudo, uma espécie de memória física, que utiliza o próprio corpo
como instrumento que estrutura todos os sentidos com o intuito de reavivar, de
recompor um universo de liberdade e coletividade, tendo como elementos
imprescindíveis o jogo, a festa e o riso, servindo para promover uma espécie de
vida transversal que, desestruturando a ordem convencional, ajuda a organizar e
amenizar a lida com os sistemas de normas sociais vigentes.
Por isso, ela segue seu curso por entre as imposições sociais, sempre
se renovando e se transformando, porém, sem perder seus aspectos principais.
A ancestralidade festiva traz seu rastro de resistência e dinamismo, produzindo
inúmeras formas e modos de exteriorização dos anseios, alegrias e tristezas da
humanidade.
Esta sensação de distanciamento dos valores morais da sociedade,
através de uma realidade mais graciosa e rica, plena de prazer e felicidade
persegue e complementa o homem. E é no encontro deste corpo sedento de
alegria que o jogo, a brincadeira, o teatro, enfim, o espetacular se instala e recria,
revigora e fecunda a existência.
São práticas mantidas fora do funcionamento social padrão e, por isso,
tornam-se o espaço ideal para que a voz daqueles que não dispõem de poder na
sociedade em que se inserem seja projetada e brade contra todas as espécies
de injustiças e abusos.
Ao se incursionar por entre os elementos constitutivos do espetáculo
(esteja ele em que contexto estiver), é importante ter em mente que são sempre
nossos hábitos perceptivos culturais que nos dirigem para valorização deste ou
81

daquele detalhe ou recorte57, o que torna toda e qualquer análise um tanto


subjetiva, se pensarmos que é através de nosso olhar – e não há outra forma –
que os fatos tornam-se perceptíveis.
Sendo assim, situamos nossa análise sobre o Cavalo Marinho dentro de
uma perspectiva que absorve também o olhar do outro, no caso, dos brincadores,
a partir de seu entendimento do espetáculo em questão e tentamos acrescentar
nosso ponto de vista, na posição inevitável de pesquisador e praticante de teatro,
que ora rediscute as informações colhidas através dos próprios praticantes, ora
corrobora ou acrescenta, a partir de outros olhares – teóricos que venham a
contribuir ou elucidar o pensar o outro em seu caráter espetacular – na tentativa
de, mais que objetivar uma descrição do evento, refletir sobre sua importância na
estrutura sócio-cultural de quem o pratica.

O Cavalo Marinho de Pernambuco


É neste contexto que situamos nossa investigação sobre o Cavalo
Marinho de Pernambuco, através da análise de seus aspectos estéticos,
dramatúrgicos e históricos, sendo uma manifestação espetacular que funciona
no seio da sua sociedade local como um momento de integração, de prática
identitária que, através do riso, do jogo e da festa, traça um diagnóstico da relação
de poder e das diferenças sócio-econômicas existentes no Brasil.
A brincadeira do Cavalo Marinho é realizada, principalmente, na Zona
da Mata Norte de Pernambuco, região agrícola que, desde o período da
colonização do Brasil, sobrevive em torno da monocultura da cana-de-açúcar,
num sistema de latifúndios que privilegia uma pequena parcela da população e
explora de forma aviltante a grande parte dos trabalhadores rurais.
É neste cenário que o drama social oferece as bases para a construção
e o fortalecimento das identidades de um povo abandonado ao descaso e às
injustiças dos grandes proprietários de usinas de açúcar e aguardente de cana.
Historiadores sinalizam documentos que tratam de tal manifestação –
também conhecida como Bumba-meu-boi – desde o início do século XIX, mas,

57
PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Editora Perspectiva S/A, 2003, p 163.
82

certamente, ela nasceu nas senzalas dos engenhos de cana, através do hibridismo
das culturas européias, africanas e ameríndias.
De conteúdo complexo, o Cavalo Marinho pode ser considerado
um espetáculo construído a partir de várias práticas espetaculares, festas,
brincadeiras, rituais religiosos e profanos que permeiam o imaginário do
povo brasileiro, principalmente, da parcela mais desprestigiada da
população.
A dança, o canto, a récita, o drama e o improviso são elementos constitutivos
do espetáculo que possui, aproximadamente, oitenta e cinco personagens –
chamados de “figuras” pelos praticantes – com enredos, canções e danças
próprias, que se apresenta ao ar livre durante toda a noite – o espetáculo, quando
completo, começa às 21 horas e finaliza às 06 horas do dia seguinte, durando,
em média, oito ou nove horas.
A brincadeira se desenvolve em círculo – chamado de roda pelos
brincadores – no qual o público, de pé, dá forma ao espaço representacional,
enquanto, dentro dele, se desenvolvem os dramas e conflitos pertencentes aos
membros do grupo e seu entorno sócio-cultural.
Apoiando-nos no estudo do literato russo Mikhail Bakhtin (1999, p. 10),
podemos perceber que o Cavalo Marinho pernambucano lida com estruturas
similares ao que o autor observou nas práticas festivas do medievo e da
renascença européia, como, por exemplo, a necessidade de práticas festivas
como desejo humano de renovação universal, de ressurreição e de transformação,
passagem para um estado ideal em que se revestia a segunda vida do povo, o
qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade,
igualdade e abundância.
Neste tipo de evento, as imagens cômicas do princípio da vida material e
corporal – imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação de necessidades
naturais, da vida sexual, da liberdade gestual e de linguagem, revelam sua relação
entre o alto e o baixo, o céu e a terra, o grotesco e o sublime, além de servirem
como forma de inversão do statu quo, promovendo a sátira e a crítica aos padrões
rígidos e socialmente estabelecidos.
83

E é no meio da roda do Cavalo Marinho que presenciamos um ato festivo


e cômico, realizado por cortadores de cana, analfabetos em sua maioria, que
transmitem oralmente, através dos tempos, uma gama de valores, conhecimentos
e compreensão de mundo. Neste espaço, o embate entre a vida como ela é e a
vida desejada pelos participantes ganha ares espetaculares e representa um
fórum de debate acerca das condições em que se encontra tal comunidade:
Como um drama que enfatiza as relações patrão-empregado, a
subordinação e outros aspectos da autoridade rural tradicional,
o cavalo marinho pode ser interpretado como um quadro da
visão moral de seus participantes, que se vêem na transição de
um sistema tradicional, substituído pela modernização da
indústria de açúcar e da economia local. 58
Podemos dividir os personagens do Cavalo Marinho em figuras de
autoridade e populares. Entre as primeiras estão o soldado, o padre, o
engenheiro, o proprietário de terras, entre outros, que se utilizam de máscaras
grotescas e são, durante a brincadeira, ridicularizados pelos escravos Mateus,
Bastião e Catirina, que possuem o rosto pintado de negro. Os demais
personagens se dividem em trabalhadores manuais, animais e seres
sobrenaturais.
Nos corpos carnavalizados de todas as figuras do Cavalo Marinho estão
indissociáveis as imagens de nascimento e morte, pois,
...a vida se revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório.
Não há nada perfeito nem completo, é a quintessência da incompletude. Esta é
precisamente a concepção grotesca do corpo59 ,
contendo estes corpos, ao mesmo tempo, a velhice e a infância, o ventre
e o túmulo.

58
MURPHY, John. O cavalo marinho pernambucano. Trad. André Cunati de Paulo Bueno. 1994. Tese
(Ph D em Etnomusicologia) – Escola Graduada de Ciências e Artes de Nova York, Columbia University,
Nova York.
59
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade
de Brasília, 1999, p. 23.
84

E é este corpo aberto e incompleto que se expande e se confunde com


outros corpos como animais, coisas e seres de outro mundo, pois é um corpo
cósmico, uma partícula do caos, de onde brotam as trevas e a luz, a vida e a morte.
Em relação aos conteúdos do espetáculo, observamos a noção bakhtiniana
de “obras verbais”, na qual a literatura está imbuída da concepção carnavalesca
de mundo60 , e é composta tanto do aspecto religioso quanto de paródias e
escárnios ao sistema social e aos poderosos, através de travestimentos, animais,
bufões, malandros e tolos.
Tal dramaturgia abarca romances populares provindos da península
ibérica, histórias de figuras do imaginário popular brasileiro ou personagens que
se tornaram famosos por alguma característica particular, como o Valentão ou a
Velha libidinosa, e se divide em momentos versificados: toadas (cantos), loas
(récitas ou poemas), e momentos em prosa: diálogos (estruturas definidas de
discurso verbal) e improvisos (momentos de discurso livre sobre um tema).
Naturalmente, tais momentos não são estanques, mas, sim, possuem
fronteiras liminares e tênues, sempre enfatizadas pela relação que se estabelece
entre a brincadeira e o público presente, que participa de forma ativa e se vê
refletido nos episódios apresentados.
O conteúdo textual do Cavalo Marinho, que se perpetua e se atualiza de
forma oral, assim como sua estética e corporeidade, trazem em seu bojo
reminiscências de um passado e de memórias de uma ancestralidade que viabiliza
o fortalecimento das identidades atuais e suas formas de se posicionar perante o
mundo que as cerca.

Mateus, Bastião e Catirina


Dissertar sobre o todo da brincadeira do Cavalo Marinho torna-se
inviável neste momento, por isso, vamos nos ater a três figuras importantes
dentro da dinâmica da roda da manifestação popular em questão: o Mateus,
o Bastião e a Catirina.
Importantes no sentido de que são figuras que possuem uma
participação ambivalente na brincadeira, pois, ao mesmo tempo que são os
85

três escravos do Capitão, eles têm todo poder e liberdade para comandar a festa
com o consentimento do seu senhor.
Além disso, são figuras apresentadas pelos mesmos figureiros durante
sua permanência no grupo. Os brincadores responsáveis por estes tipos de figura
se especializam nos seus códigos gestuais e vocais e as apresenta durante toda
a sua vida ativa na brincadeira. Podemos dizer que, dentro das etapas de
aprendizado da brincadeira, estas figuras fazem parte do estágio mais elevado
de realização no drama.
Mateus é uma das figuras que permanece o tempo inteiro na arena, ficando
do início ao fim da brincadeira. Segundo os brincadores, é um escravo que serve
ao Capitão. Tem espírito matreiro e arredio. Seu objeto característico é uma bexiga
de boi seca e inflada com ar que usa para marcar o compasso das toadas batendo-
a na perna enquanto dança e, principalmente, para surrar as outras figuras.
Outros elementos característicos são: seu chapéu em forma de cone
coberto de papel laminado colorido, sua roupa sempre estampada e o matulão
que traz no alto das nádegas, feito de folha de bananeira, além do rosto melado
de cinza de carvão. É chamado pelo Capitão para tomar conta da festa que está
organizando.
Bastião também é uma figura permanente no terreiro e parceiro de Mateus.
É muito parecido com este, tanto nos trajes como em sua atuação no espetáculo,
com o diferencial de que o Mateus é mais ativo que ele. É chamado pelo Capitão
para ajudar seu amigo a cuidar da festa. Os dois negros se chamam de “pareia”
(parelha), devido à cumplicidade e companheirismo.
Catirina (ou Catita) é outra figura permanente da brincadeira. É a escrava
assanhada e mulher de Mateus. Alguns brincadores dizem que ela é mulher
dos dois negros, mas nosso informante, o mestre Biu Alexandre, não confirma
esta versão, apesar de haver sempre insinuações neste sentido durante o
espetáculo.
Apesar de ser uma figura feminina, é interpretada por um homem.
Também pinta o rosto de negro, usa um lenço na cabeça, um vestido simples,
um jereré (espécie de peneira para pescar) e uma boneca (a calunga) como
86

elementos de caracterização. Vem para a roda a pedido de seu marido Mateus.


É uma figura que está voltando aos poucos ao espetáculo, depois de muitos anos
de ausência e notamos que, devido a este afastamento, muita coisa em relação
a sua participação na brincadeira se perdeu (toadas, loas, enredos, etc.).
Percebemos, em todas as formas de jogos e manifestações espetaculares,
que o acentuado caráter visual é importante para a instalação da consciência de
que, naquele momento, se apresenta uma outra maneira de compreender e
narrar a vida.
Patrice Pavis (2003, p. 196-170) também atribui um importante papel aos
elementos responsáveis pela transformação do homem em seu momento
espetacular:
O figurino é, no teatro, um embreador natural entre a pessoa
física e privada do ator e a personagem da qual ele veste a pele
e os aparatos. Perfeito agente duplo, ele é levado por um corpo
real para sugerir uma personagem fictícia: podemos assim abordá-
lo a partir do organismo vivo do ator e do espetáculo, ou então,
a partir do sistema da moda que ele transmite da maneira mais
precisa possível (...)
Analisando as vestimentas das figuras do Cavalo Marinho, concordamos
com Patrice Pavis, quando este observa a questão dos limites do figurino, ou
seja, o que pode ou não ser chamado de figurino.
Segundo o autor, não é fácil definir o começo e o fim do que pode ser
chamado de vestimenta, pois, a depender do tipo de roupa, torna-se impossível
distingui-la de outros elementos como máscaras, perucas, postiços, jóias,
acessórios e maquiagem.
Tanto a relação do figurino com o corpo do ator que o utiliza, quanto com
o espaço que ele interage, assim como sua relação com os outros elementos
visuais deve ser levado em conta no momento de uma análise mais apurada do
que se convencionou chamar figurino.
O mestre Biu Alexandre, do Cavalo Marinho Estrela de Ouro, também está
de acordo com esta forma de pensar a vestimenta e sua importância para quem
a utiliza:
87

Rapaz, pra mim, tudo é importante. Eu não separo de importância.


Eu não separo nada, porque, pra mim, tudo é importante (...) o
figureiro, se ele não tiver uma roupa certa pra botar aquela figura,
ele já está achando ruim. Porque, você vê, tem figura que a
gente bota de manga de camisa, mas têm outras que não, que
são de paletó. Porque a figura só assenta com paletó. Uma figura
pesada, sem paletó, ela não é de nada. 61
Os negros Mateus e Bastião, quanto às suas vestimentas, são as figuras
mais curiosas em termos de análise, pois possuem um figurino que vem se
estilizando a um ponto em que não mais os enquadram nas suas funções de
escravos e serviçais. Não há, neste caso, como deixar de fazer uma relação entre
a roupa destas figuras com as antigas imagens de bufões, palhaços e os famosos
Arlequins da Commedia dell’arte.
Principalmente, se evidenciarmos um elemento que eles trazem nas costas
à altura das nádegas, o chamado matulão, que é feito de palha seca de bananeira.
No início de nossa pesquisa, pensávamos que a função deste objeto era de
diminuir o impacto dos tombos que as figuras levavam no decorrer das
apresentações, mas, através de entrevistas, fomos informados que seria uma
espécie de bagagem que os negros levavam consigo: Aquilo ali é a mala dele (...)
É a bagagem. Os negros, antigamente, não andavam com as bagagens? Quando
iam viajar, não levavam aquelas bagagens? A mesma coisa são os Mateus.62
O curioso é que encontramos referências longínquas sobre o emprego
deste material nas roupas de personagens cômicas, como vemos a seguir:
Por outro lado, palhaço vem do italiano paglia (palha), material usado
no revestimento de colchões, porque a primitiva roupa desse cômico
era feita do mesmo pano dos colchões: um tecido grosso e listrado, e
afofada nas partes mais salientes do corpo, fazendo de quem a
vestia um verdadeiro “colchão” ambulante, protegendo-o das
constantes quedas (RUIZ, 1987, p. 12).63

60
Idem, p. 11.
61
Entrevista do mestre Biu Alexandre concedida a Érico José Souza de Oliveira, em 17/02/2005, na cidade
do Condado, Pernambuco.
62
Entrevista do mestre Biu Alexandre concedida a Érico José Souza de Oliveira, em 16/02/2005, na cidade
do Condado, Pernambuco.
63
In: BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2001, p. 205.
88

De fato, não podemos asseverar de forma conclusiva tais relações, mas,


podemos perceber certa proximidade entre os dois casos expostos.
A roupa em si do Mateus e do Bastião também nos lembra, pelo colorido
e pela forma, as roupas mais conhecidas dos Arlequins, ficando claro que há
uma ligação muito antiga entre a graça, a diversão e a utilização de roupas
coloridas, pois, nos dois casos, estes são personagens encarregados em manter
o tom cômico dos espetáculos, além de suas origens modestas que geraram um
figurino em forma de retalhos multicores.
Também, são estas figuras, juntamente com a Catirina, que assumem a
função de inverter as relações sociais estabelecidas pelo sistema vigente, isto é,
dentro da roda, através do riso e do escárnio, são eles que dominam as outras
figuras que, na vida real, são os detentores do poder. Neste caso, o figurino
demonstra sua forma de participação na brincadeira.
Em se tratando da maquiagem que, segundo Patrice Pavis, tem a função
de vestir o corpo, assim como a alma de quem a usa, ela desempenha papéis
simples e de fácil percepção, à primeira vista, em se tratando da brincadeira do
Cavalo Marinho. Poderíamos mesmo dizer que a maquiagem se resume a rostos
pintados de preto ou branco ou o uso de máscaras.
Porém, numa análise mais apurada podemos observar significantes de
profunda relação com o imaginário que constitui o universo que permeia os
brincadores e, atentos à conduta de Pavis, tentaremos avaliar, sobretudo, a função
simbólica que a maquiagem e a máscara preenchem no momento da
espetacularização do corpo e suas conexões com o sistema sócio-cultural de
seus participantes.
Mas, antes de adentrarmos nestas questões, observemos o que Pavis
(2003, p. 170) nos diz a respeito da máscara e da maquiagem:
A maquiagem não é, no entanto, uma extensão do corpo como
podem ser a máscara, o figurino ou o acessório (...) É, melhor
dizendo, um filtro, uma película, uma fina membrana colada no
rosto: nada está mais perto do corpo do ator, nada melhor para
servi-lo ou traí-lo que esse filme tênue.
89

Esta passagem nos faz refletir sobre a utilização das máscaras,


maquiagens e rostos limpos dos integrantes do Cavalo Marinho.
A maquiagem de cor preta só é usada por três figuras no espetáculo, o
Mateus, o Sebastião e a Catirina, os negros escravos do Capitão que são
contratados para tomar conta da festa. Por mais que seus intérpretes não
sejam brancos, isto é, estejam mais próximos dos descendentes de escravos,
seus rostos são maquiados de preto, o que ressalta o branco dos olhos quase
sempre arregalados e dos dentes sempre aparentes através da ginástica
facial característica que imprime o tom zombeteiro e satírico das figuras.
Podemos, a partir disso, afirmar que, nesta estrutura do Cavalo Marinho, a
maquiagem é a personificação do elemento oprimido que se faz livre na
brincadeira, ganhando poderes acima das normas do dia-a-dia. São os antigos
escravos que, reinventados pelos brincadores, são vividos como identidade destes,
são as figuras mais próximas a eles, que se identificam com seus pesares,
sofrimentos e injustiças.
Por isso, não a máscara, nem o rosto limpo, como acontece com as
outras figuras, mas aquela fina membrana colada no rosto, simbolizando que
nada está mais próximo do universo dos brincadores que seus antepassados
escravizados e, sendo assim, seus lugares são os mais próximos possível do
corpo do brincador, na sua pele, representando o elo, as referências sociais,
econômicas e simbólicas que refletem o sistema destrutivo que permanece
por anos a fio e unem passado e presente de uma história infeliz.
Para Maria Acselrad, as figuras do Cavalo Marinho fazem alusão, ao
mesmo tempo, à realidade e ao imaginário local, trazendo em sua aparição,
tanto a história do figureiro (pessoa responsável em executar a figura) que
lhe dá vida, do povo de seu lugar como a presença de um universo mais
coletivo e imemorial.
Esta relação dinâmica se estabelece através da vivificação da memória
que atua como um elo entre o passado e o presente, conferindo uma constância
identitária para o grupo:
90

A memória cria efetivamente uma ligação temporal sensível, entre lugar


e corpo, e faz ressentir, num dado momento, o que foi ou o que teria
podido ser, na reconstrução de um passado no momento presente.64
Porém, esta noção de memória não deve ser vista como algo saudoso ou
melancólico, algo distante que não se pode resgatar, mas como experiência que
possui representatividade no agora, como complementa Pascal Roland:
A mobilização da memória se insere, consequentemente, na expressão
do instante presente e não na lembrança de um passado inexistente,
uma nostalgia.65
Neste processo de rememorização através do ato espetacular, não
importa a cronologia, o momento exato de algum fato, pois, ele já não existe
mais. Está nos elementos que transpassam o tempo e penetram nos dias atuais
a necessidade do relembrar.
Relembrar para esquecer o que passou, mas para não esquecer de si
mesmo, produzindo forças para poder seguir a diante e recriar a vida.
A brincadeira que corporifica as figuras do passado une um tempo
ancestral ao tempo atual, através de uma conjunção de ações e movimentos
que transitam entre tais temporalidades, ressignificando e atualizando a
história e neste contexto a referência ao passado só se faz no eco suscitado
no período atual e só vale por ele.66
Este acontecimento da memória se dá também na escolha dos tipos
que compõem o Cavalo Marinho como sendo um arcabouço de interseções
entre o hoje e o ontem, circulando no corpo dos participantes num fluxo infindável
de conhecimento e diversão, como explicita Helena Tenderine (2003, p. 64):

64
ROLAND, Pascal. Danse et imaginaire – Étude sócio-antropologique de l’univers chorégraphique
contemporain. Paris: EME, 2005, p. 94. Minha tradução : La mémoire crée em effet um lien temporel
sensible, entre lieu et corps, et fait ressentir, à um moment donné, ce qui a été ou aurait pu être, dans la
reconstruction d’um passe au moment présent.
65
Idem. p. 95. Minha tradução: La mobilisation de la mémoire s’insère em conséquence dans l’expression
de l’instant présent et non dans le rappel d’un passe révolu, une nostalgie.
66
Id. ibid, p. 96. Minha tradução: (...) la référence au passé ne se faisant que dans l’écho suscite dans la
période actuelle et ne valant que pour elle.
91

Eles mostram o universo em que vivem e o universo em que viveram seus


antepassados. Mesmo que alienadamente, eles estão representando e
apresentando uma realidade que foi vivida há tempos passados (na época da
escravidão) por seus ancestrais. Por isto, eles são e não são eles na brincadeira,
porque para alguns deles esta realidade está distante, guardada no passado,
mas para outros não, ela está bem viva no presente.
Maria Acselrad (2002, p. 108) desvela o caráter cósmico que
emprenha a brincadeira do Cavalo Marinho de sentido, interesse e
dinâmica, personalizado no conjunto de figuras que anima o espetáculo,
através das vielas da memória, do significado cultural e da relação
estabelecida entre elas e o público: As figuras são os outros dentro de um
só eu. A maneira como são colocadas, na maioria das vezes, sem ruptura
ou transição enfática, sugere que a multiplicidade é constitutiva da
integridade dos sujeitos que as colocam.
E mais, que tal multiplicidade é parte integrante de cada indivíduo,
permeado de tantos outros em sua suposta individualidade.

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Antropologia) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal
de Pernambuco, Recife.
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