Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
FESTAS
PPGAC
Programa de Pós-graduação em Ar tes Cênicas Lúcia Lobato
Érico José Souza de Oliveira
Cadernos do
GIPE-CIT
Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em
Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade
Nº 20
FESTAS
Organização:
Lúcia Lobato
Érico José Souza de Oliveira
PPGAC
Prog rama de Pós-gra duaç ão em Artes Cênica s
Cadernos do GIPE–CIT N. 20
FESTAS
Maio - 2008
Conselho Editorial
André Carreira (UDESC), Antonia Pereira (UFBA), Betti Rabetti (UNI-Rio), Cássia Lopes (UFBA),
Christine Douxami (CNPq-UFBA), Eliana Rodrigues Silva (UFBA), Makarios Maia Barbosa (UFRN),
Sérgio Farias (UFBA)
Diagramação e Formatação
Nádia Pinho - Fast Design
Capa
Desenho de Sônia Rangel
Revisão:
Érico José Souza de Oliveira
93 p. ; 21 cm.
Periodicidade semestral
ISSN 1516-0173
Impresso no Brasil em maio de 2008 pela: Fast Design - Prog. Visual Editora e Gráfica Rápida LTDA.
CNPJ: 00.431.294/0001-06 - I.M.: 165.292/001-60 - e-mail: fast.design@terra.com.br - Tiragem: 300 exemplares
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Lúcia Lobato e Érico José Souza de Oliveira........................................................................ 5
DIA DE FINADOS EM RIO REAL: uma festa dos vivos para os mortos
Cristiano Fontes.................................................................................................................. 67
Apresentação
O Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Fed-
eral da Bahia foi pioneiro no Brasil a implantar, em sua linha de pesquisa Matrizes
Culturais na Cena Contemporânea, a disciplina Etnocenologia, inaugurada
quando da fundação, em Paris, do Centro Internacional de Etnocenologia no dia
03 de maio de 1995. A partir de seu Manifesto de autoria de Jean Marie Pradier
ficou definida como “o estudo, nas diferentes culturas, das Práticas e
Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados (PCHEO) e tem como
defesa de princípios a multiculturalidade, a alteridade, a pluridisciplinaridade e,
entre outros a lógica da indistinção apresentada pelo Professor Dr. Armindo Bião
na Conferência de abertura do I Seminário Nacional sobre Performáticos, Per-
formance e Sociedade em 22.11.1995 na UNB, em Brasília.
Os professores doutores Lúcia Lobato e Érico José Souza de Oliveira,
ambos do PPGAC e com teses defendidas em Etnocenologia, no ano de 2006
inauguraram na disciplina Tópicos Especiais em Artes Cênicas um estudo
específico que denominaram de Festas e Espetacularidade. A nova proposta foi
fruto do próprio amadurecimento do Programa e conseqüente desdobramento
do bem sucedido curso em Etnocenologia.
A disciplina apresentou como conteúdo programático a conceituação de
festas e sua função civilizatória, destacando dentre seus elementos constitutivos,
o jogo, a brincadeira e o corpo festivo. Ressaltou sua dimensão espetacular, o
grotesco, o riso, o significado dos comportamentos e das práticas espetaculares
e as perspectivas de investigação das festas. Entre outros autores foram visitados
Mikhail Bakhtin, Laplatine, Jean Duvignaud, Michel Maffesoli, Clilfford Geertz,
Johan Huizinga, Renato Ortiz, Armindo Bião, Roberto da Matta entre outros.
Ao final do curso os alunos foram avaliados a partir de seminários onde
apresentavam uma descrição etnocenológica de uma festa de sua escolha. O
sucesso alcançado nesses trabalhos incentivou os professores a fazerem uma
seleção e organizar em artigos alguns dos referidos seminários que ora são
publicados nesse 20º Cadernos do GIPE-CIT.
7
de eventuais passos falsos, tão naturais para quem anda muito. Só quem não
anda não se machuca (?), nem a si nem aos outros. Jean Duvignaud caminhou
muito, formou muita gente e nos legou obras de referência, particularmente nas
áreas das artes do espetáculo, da sociologia. É certo que somos, a todo momento,
levados a fazer escolhas, opções, eventualmente fazendo – ou perdendo – amigos
e colegas. Perdemos o professor, o colega e o amigo, mas ganhamos muito em
nossa memória.
Esse é o risco da vida, da arte, da academia e das encruzilhadas, onde
encontramos os mensageiros, os línguas – intérpretes tradutores, as crianças
perdidas, os exus e as pombagiras. É também aí que encontramos Hermes
(Trimegisto) - o três vezes grande, que nos ensina a decifrar os textos e Mercúrio,
o das asas – e capacete – alados, que protege as artes e o comércio. Pois, como
não poderia deixar de ser, foi nas encruzilhadas da vida, da arte e da academia,
que conheci Jean Duvignaud, e foi nas escolhas de palavras para nos
comunicarmos que eu cresci como pessoa, artista e acadêmico, correndo riscos,
me movimentando – muito, ganhando e perdendo, errando e acertando. Mas
não apenas eu é claro!
Tanta referência pessoal pode ser a reafirmação da tentação do doutor
Fausto, de conhecer o máximo e ser feliz para toda a eternidade. Mas, na verdade,
trata-se apenas de um recurso retórico, para dar conta da grandeza do homem
que perdemos em fevereiro de 2007. E que tanto se interressou por aquilo que
nos encanta, a festa e o teatro, por exemplo, e pelo que é, simultaneamente,
maravilhoso e também perigoso, o diferente, o diverso, o anômico.
Escritor, crítico de teatro, sociólogo, dramaturgo, ensaísta, cenógrafo e
antropólogo, francês, dirigente máximo da Maison des Cultures du Monde, Jean
Duvignaud foi um desses seres das encruzilhadas, mensageiros do conhecimento,
que nos ensinam a andar, voar, navegar, subir, falar e fazer escolhas. No caso muito
particularmente do GIPE-CIT e do PPGAC/ UFBA, nosso mestre é referência maior,
sem dúvida e nos tem – muito – inspirado, tanto antes quanto depois de maio de
1995, quando presidiu o colóquio de fundação da etnocenologia.
Com suas obras dedicadas ao teatro, numa perspectiva bastante ampla,
à festa e à diversidade cultural da humanidade, numa perspectiva de simpatia
compreensiva, Jean Duvignaud nos legou um patrimônio útil e acessível,
9
universalmente, mesmo que sua também brilhante atuação como gestor cul-
tural, na França, seja um bem mais particularmente usufruído por quem conhece
seu país. Do mesmo modo, honrado com sua participação, a convite de meu
orientador Michel Maffesoli, como presidente da comissão julgadora de minha
tese de doutorado, na Sorbonne, em 1990, eu e meus colegas presentes a esse
ritual de passagem acadêmico, na Sala Louis Liard, do histórico edifício
universitário, pudemos usufruir, mais particularmente, de sua preciosa experiência
– e expressão – acadêmica.
Por isso meu prazer é multiplicado, aqui e agora, quando mais um leitor –
deste Caderno do GIPE-CIT, de número 20, é informado que esta obra é dedicada
a Jean Duvignaud. E quando posso, num laivo deslavado de vaidade, arriscado
sem dúvida, mas que, por isso mesmo, aumenta meu prazer, pois repito o poeta
Caetano Veloso, “tudo é perigoso, tudo é divino maravilhoso”, reportar-me a três
momentos em que encontrei, nas encruzilhadas, o grande mestre.
O primeiro desses momentos – pessoais e envaidecedores, repito - ocorreu
em Salvador, Bahia, em 1979. Foi quando, na Escola de Dança da UFBA, onde
então eu começava a lecionar Filosofia da Dança, a convite dos professores
Dulce Tamara Lamego e Romélio Aquino, por sugestão da colega Maria da
Conceição Castro Franca Rocha, li, deslumbrado, a Sociologia do Comediante
(Zahar, 1972, trad. H. Facó, publicado originalmente em francês pela Gallimard,
em 1965, com o título L’acteur, sociologie du comédien). Ali, pude percorrer
um vasto panorama da história e da sociologia desses outros seres das
encruzilhadas, que são os atores, que vivem - e comunicam - entre a realidade e
a fantasia, a sedução e a crítica, a servidão e a rebeldia.
O segundo desses momentos ocorreu na cidade de Cuernavaca, no
estado de Morelos, no México, em 1996. Foi durante a realização do II Colóquio
Internacional de Etnocenologia, quando o ouvi cantar – seguidas vezes - músicas
brasileiras e falar entusiasmado de nosso povo, de nossos artistas e de nosso
país. Na companhia de Dionísio, nos luxuosos jardins de Cuernavaca, nas ruínas
de Xoxicalco e nas monumentais montanhas de Morelos, testemunhei, por
exemplo, a força do Teatro Campesino e Indígena, fundado em 1971 e que tem
suas origens em cerimônias, danças, festas e manifestações artísticas tradicionais
10
FESTA:
Uma transgressão que revela e renova
Lúcia Lobato 1
1
Professora Doutora da Escola de Dança e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola
de Teatro e da Escola de Dança da UFBA.
14
2
In JANCSÓ, Istven e KANTOR, Íris. Festa: Cultura e sociabilidade na América Portuguesa.V. II. São
Paulo: Hucitec, EDUSP, Fapesp: Imprensa Oficial.
16
cooptada para o marketing que seduza e ative esse desejo criando uma
necessidade não natural de consumir.
E é nesse momento que cabe refletir sobre as propostas dos autores de
referência nesse artigo pensando o carnaval contemporâneo de Salvador.
Estamos diante de um carnaval apolíneo ou dionisíaco? É um reflexo do cotidiano
contemporâneo da mentalidade soteropolitana? É um evento que exclui ou
inclui? Qual é a sua prática marcadamente lúdica? Quais são os elementos que
determinam a cooperação e a competitividade? Onde é possível encontrar o
espontâneo, a brincadeira, a descontração e a farra? Onde a diversidade está
estimulada? Onde há digressão e a quais códigos e padrões?
Mas, seja lá como for, a festa é sempre presencial e é renovação. Citando
Huizinga (2004, p. 222) em tempos contemporâneos, “o jogo se transforma em
negócio” e, porque não os negócios se transformam em jogo. Essas são apenas
conjecturas acadêmicas que estão ao largo da festa. E vale lembrar que muitas
vezes o que é festa para uns pode não ser para outros, mas indubitavelmente
todos sabemos o que é uma festa.
Bibliografia:
DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Fortaleza: Edições Universidade
Federal do Ceará; Rio de Janeiro Tempo Brasileiro: 1983.
GUARINELLO, Norberto Luiz. Festa Trabalho e Cotidiano. In: Jancsó,
Istvan e Kkantor, Íris Festa: Cultura e Sociabilidade na América
Portuguesa. V.II. São Paulo: Hucitec; Editora Universidade de São Paulo/
Fapesp: Imprensa Oficial, 2001.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Trad. João Paulo Monteiro. 5ª ed. São
Paulo: Editora Perspectiva, 2004.
18
3
Bacharel e Licenciada em Dança pela Universidade Federal de Viçosa (2006). Atualmente mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia.
4
Este texto foi produzido durante a Disciplina “Tópicos especiais em Artes cênicas -TEA 507” ministrada
pelos professores Lúcia Lobatto e Érico José.
5
De acordo com o professor Bião espetacularidade é “o que ultrapassa o universo rotineiro, que revela
rituais e os encontros inter-pessoais extraordinários ou extracotidiano”.
6
A tendência para julgar a realidade social, política, cultural ou antropológica de uma dada comunidade de
acordo com os critérios da cultura européia denota um ponto de vista eurocêntrico. A cultura da Europa
torna-se o contexto de referência legitimadora e exclui qualquer realidade alternativa.
19
Sob essa perspectiva de um corpo total7 , penso que a análise das formas
de produção e transformação das chamadas manifestações populares oferece
uma alternativa para as práticas redutoras e tecnicistas sob as quais aqueles que
se ocupam do oficio de dançar estão acostumados a pensar a dança e seu
ensino. Tal abordagem, que se diferencia do etnocentrismo, requer a visão do
corpo como algo simbólico dotado de pensamento, espírito e emoção, bem
como do contexto histórico-social no qual está inserido.
É sob esse enfoque que me proponho a pensar o congado como uma das
manifestações de cultura popular que possibilitam um olhar acerca da
espetacularidade.
Antes de adentrar na manifestação em questão, teço inicialmente algumas
considerações sobre o uso do termo festa. Empreendo, em seguida, a festa do
Congado tal como é experienciada pelos congadeiros de São José do Triunfo,
município de Viçosa, Minas Gerais.
Mas afinal o que é uma festa? Para Norberto Luiz Guarinello (2001, p.
969), o caráter vago desse termo pode reunir uma série de entendimentos que se
chocam: Os sentidos que o próprio senso comum atribui à festa são desta forma,
bastante fluidos, negociáveis e contestáveis. Segundo o autor, a festa é parte do
cotidiano de todas as sociedades humanas, necessária a esse cotidiano sendo,
portanto, algo integrado e não adverso a ele.
Na tentativa de entender esse termo, geralmente tratado de forma
imprecisa, Guarinello aponta algumas características sob as quais a festa
costuma ser circunscrita. Entre elas, está o fato de que implica uma determinada
estrutura social de produção; envolve a participação concreta de um coletivo,
distribuindo-se dentro de uma determinada estrutura de produção e de consumo
da festa, na qual ocupam lugares distintos e específicos; aparece como uma
interrupção do tempo social, uma suspensão temporária das atividades diárias
que pode ser cíclica, ou episódica; articula-se em torno de um objeto focal, que
pode ser um ente real ou imaginário; por fim, segundo o autor, a festa é uma
8
Não dualista, ou seja, que não vê o corpo como algo separado da mente, não eurocentrica, um corpo
dotado de emoção e, que a todo tempo intercâmbeia e dialoga com o contexto no qual está inserido.
20
produção social que pode gerar vários produtos, tanto materiais como
comunicativos ou, simplesmente, significativos.
A conclusão de Guarinello é que a festa é, portanto, sempre uma
produção do cotidiano, coletiva e que se dá num tempo e espaço definido
e especial. Tal definição assemelha-se, como admite o próprio autor, ao
caráter do jogo. Johan Huizinga (1996, p. 25) também atribui uma estreita
relação entre jogo e festa:
A festa do congado
O congado tem uma origem luso-afro-brasileira, uma vez que a devoção
dos negros a Nossa Senhora do Rosário foi introduzida ainda na África pelos
21
8
Frades da Ordem São Domingos.
9
O Moçambiqueiro é o brincante que faz parte da comitiva dos Reis e Rainhas da festa do Congado.
22
ritmo vibrante, vai até a Santa e, então, dança com seus pés descalços enquanto reza
em forma de canto, num tom que revela fé e humildade. A imagem, conforme reza a
lenda, então se movimenta nas águas e os acompanha para nunca mais voltar.
É a partir dessa crença em Nossa Senhora do Rosário que,
tradicionalmente, no mês de outubro, os devotos realizam a cerimônia do
Congado. As manifestações possuem particularidades, de acordo com cada
região que acontece, que podem envolver as cores da farda, do capacete, a
organização espacial, os ritos, os instrumentos, o modo como desenvolvem suas
seqüências coreográficas. Deste modo, é de extrema necessidade que sejam
aqui colocadas as particularidades relativas ao Congado de Nossa Senhora do
Rosário de São José do Triunfo, localizado na Zona da Mata mineira.
O Congado apresenta um caráter religioso e ritualístico, realizado na
comunidade, nos meses de maio e outubro, sendo organizado espacialmente
em forma de préstitos, cortejos. No dia da festa, os congadeiros reúnem-se em
duas filas, o Rei Congo, a Rainha Conga, o Rei e a Rainha de compromisso, os
Anjos, o Reinado, o Rei do Meio, o Príncipe e a Princesa, estes últimos
permanecem durante a organização da fila, ocupando o corredor interno.
A indumentária desta festa está correlacionada à imagem da santa
padroeira, ou seja, a fila do lado direito usa o saiote e o capacete rosa que
correspondem à cor da veste da santa; a fila do lado esquerdo usa o saiote e
capacete azul correspondentes à cor da manta. Por baixo da roupa, os
congadeiros usam blusa de manga comprida, calça e sapatos brancos.
A programação dura três dias, começando na sexta-feira e indo até o
domingo, com cantos, dança coroação de seus reis e rainhas, príncipes e
princesas, banquetes, missas e fogos de artifício. Um ritual coletivo que reúne
em sua prática tradicional todos os elementos que marcam o caráter da festa
como um ato espetacular de ressignificação do cotidiano.
Da Matta (1990, p. 24), acredita ser de grande importância uma
investigação dos rituais coletivos por proporcionarem a reprodução de valores
culturais e, ao mesmo tempo, reapresenta e discute distinções hierárquicas
presentes no cotidiano da sociedade:
23
Bibliografia:
BIÃO, A. theatrelité et spectacularité.Une aventure tribale comtemporaine à
Bahia. Tomo I,tese de doutorado, Michel Maffesoli, Universidade Paris V, 1990,p.127.
27
10
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Teatro da UFBA; Professora
efetiva do curso de teatro FAFCS/UFU.
11
De origem africana, principalmente das áreas do Congo, Angola e Moçambique, onde vivia o povo bantu,
o Congado é uma manifestação cultural católica e africana, que surge a partir da devoção à Senhora do
Rosário, disseminada pelos portugueses em suas conquistas. Devoção reforçada no Brasil, a partir do
século 18, quando os negros, utilizando-se das formas rituais cristãs — única forma de conviver com
seus mitos ancestrais —, reforçaram o culto e a festa. Origens lendárias também explicam o surgimento
do congado: a lenda de Chico Rei e a história da aparição de Nª Sª na linha do mar. www.uberlandia.gov.br;
visitado em 21/11/2006.
29
12
Congo cantado nas festas de São Benedito e Nª Sª do Rosário. Gravações: Dércio Marques e Doroty
Marques (Álbum “Monjolear”); Luis Dillah e Pena Branca, com vocal de Vagamundo e Luiz Salgado
(Álbum “ Cantigas do Cerrado”).
13
Os festejos são realizados por afrodescendentes, que constituem 42% da população da cidade. Entretanto,
esse enorme contingente passa despercebido no cotidiano de Uberlândia, só se revelando por ocasião da
Festa.
30
as falas e os olhos vivos, brilhantes de um povo cuja presença não se faz tão
determinante no cotidiano da vida na cidade. Um povo que, nesse dia, como
verdadeiro Rei Congo, domina aquele espaço.
Durante esses anos, tenho ouvido os tambores, visto a festa e apreendido
algumas poucas informações que me trazem a compreensão do quanto me
encontro realmente “no começo do princípio do início de algum conhecimento
sobre o congado. (...) que devo estar sabendo quase nada, principalmente do
essencial que é a vivência da fé em N. S. do Rosário pelos congadeiros...”14
14
Frei Chico, Congados: origens e identidade. http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/
congadorigem.htm ; visitado em 21 nov. 2006.
15
Os congadeiros explicam o Juizado de São Benedito pelo fato de as cabeças de seu cortejo não serem
coroadas, pois os que as recebem não são reis, são juízes (Brandão, 1978).
31
sempre saboroso. Dizem ainda, que era um homem negro muito inteligente, o
que os senhores não aceitavam e, por isso, terminaram por queimá-lo vivo. Por
suas qualidades, o santo está sempre presente na Festa de Nossa Senhora, pois
enquanto a Senhora comanda a festa, ele comanda a cozinha.
Em Uberlândia, realizado num bairro da periferia da cidade, o Juizado se
constitui ainda como uma festa “pequena”, apesar do incentivo que vem
recebendo, principalmente por parte dos congadeiros e do pároco atual. Assim,
a Festa de Nossa Senhora do Rosário, considerada como de responsabilidade
da Irmandade16 que leva o seu nome, é realmente a grande “festa de santo” da
cidade.
É ela ainda, a propiciadora da grande transformação do espaço urbano
quando, pelo breve período de sua duração, coloca em primeiro plano a
população afrodescendente, ainda hoje rejeitada pela elite local.
Em entrevista a Brasileiro (11/03/2006), João Rodrigues (vulgo Bolinho),
65 anos, morador do Bairro do Patrimônio, local reconhecido como o mais antigo
ponto de concentração de negros na cidade de Uberlândia, aponta barreiras
sociais explícitas existentes na cidade, ainda na década de 60, quando a subida
da Av. Afonso Pena (uma das principais avenidas da cidade) era dividida: do lado
direito, os bares e confeitarias freqüentados pelos brancos; do lado esquerdo, a
calçada destinada aos negros, que não podiam entrar naqueles locais. “Mesmo
no Uberlândia Clube eles não aceitavam negros, nem para lavar banheiro”,
acrescenta ele. (BRASILEIRO, 2006, p.11)
Se hoje as barreiras não são tão explícitas, reclamações e grosserias
praticadas contra os congadeiros atestam, ainda hoje, um grau bastante elevado
de rejeição às atividades culturais e religiosas praticadas pelos negros.
16
A Irmandade de Nª Sª do Rosário de Uberlândia data, conforme seu livro de Atas, de 01 de Novembro de
1916, quando foi oficialmente instituída, com a presença de 25 irmãos fundadores (Brasileiro, 2006). As
primeiras Irmandades de Nª Sª do Rosário dos Pretos, assim como as Irmandades de São Benedito no
Brasil datam possivelmente de anos não muito posteriores à chegada dos primeiros escravos para as
lavras de ouro. Seus livros de Atas, guardados na Igreja, possuem referências importantes sobre seus
participantes, quantias arrecadadas e gastos feitos. (Brandão, 1978:147, nota 69)
32
embaixadas e cantos, os cristãos sempre vencem os mouros, que são, por fim,
batizados.
Em Uberlândia, a Congada consta principalmente do cortejo dos Ternos
de Congo — apesar de ter inseridos, em seu interior, outros momentos rituais —
, momento em que a
voz dos tambores dos moçambiques (...) remont[a] aos tempos de vida
dos escravos africanos na colônia brasileira, quando negros então
cristianizados introduzem disfarçadamente, na formação desses grupos,
todas as suas vivências do antes e do após as travessias no Atlântico.21
Participante e pesquisador das Congadas, Jeremias Brasileiro, morador
de Uberlândia, assim expressa sua compreensão sobre elas:
As Congadas são muitas coisas, principalmente um costume cultural
que propicia aos praticantes continuar mantendo um elo de
ancestralidade com uma África Memorial. Vinculados a um grupo étnico
e social de feições catolicistas, os congadeiros procuram em seus
festejos cíclicos reafirmar sua identidade com esse costume cultural tão
presente em expressiva parte da população afrodescendente, em
especial, nas cidades de Minas Gerais.22
Contando com um número variado de componentes — os Congos e
Ternos são geralmente compostos por cem pessoas, enquanto os
Moçambiques possuem aproximadamente quarenta pessoas —, os Congos
têm uma estrutura rígida e clara: o general ou comandante, o dono do Terno, é
quem possui a patente, a permissão para o grupo existir; os 1°, 2° e 3° capitães
são responsáveis pela organização do terno; o guarda ou fiscal é o zelador dos
instrumentos e das crianças nas ruas; alferes são os soldados que puxam as
filas; são caixeiros de frente os tocadores de caixa que fazem evolução na
porta da Igreja; e os soldados completam o terno.
Alguns Ternos possuem, ainda, o grupo das "Virgens do Rosário" que,
comandado pela madrinha do Terno, carrega um ou dois estandartes na frente do
21
Brasileiro, Jeremias. Um reinado que persiste com seu jeito congadeiro de festejar. Artigo. 2005.. http://
www.uberlandia.gov.br, visitado em 21/11/2006.
22
Idem.
34
cortejo. Formado por onze meninas, de acordo com a tradição todas elas devem
ser virgens, como símbolo de pureza e devoção a Nossa Senhora do Rosário.
O estandarte, com a imagem votiva, é geralmente ornamentado com fitas,
seguras pelas virgens. Faz parte, juntamente com o mastro votivo, dos elementos
simbólicos do ritual da Congada.
Levantado no início das festividades da manhã de Festa, o mastro votivo
simboliza a união entre Terra e Céu, vivos e mortos, corpo e alma. A força dessa
simbologia faz com que ele caracterize o centro energético da Festa, em torno
do qual os Ternos dançam e recriam laços ancestrais. Aquele que toca e beija o
mastro terá muita sorte e receberá muitas graças.
Em Uberlândia, são levantados mastros em homenagem a São Benedito
e Nossa Senhora do Rosário, durante ritual em que as guardas entoam cantos,
pontuando os movimentos dos congadeiros.
O Antes:
Quarenta dias antes da data, têm início as campanhas, destinadas a
arrecadação de recursos. São visitas a residências, onde se reza o terço e faz-
se o leilão de prendas. Diariamente elas acontecem; a imagem da Santa é
levada a uma casa previamente contatada, em longas caminhadas pelas ruas
da cidade, muitas vezes atravessando de um bairro a outro, sempre ao som dos
tambores de Congo.
O dinheiro arrecadado servirá para os preparativos da festa: conserto de
instrumentos, renovação do estandarte e das vestimentas. Algumas famílias
costumam também, em lugar do leilão, fazer doações de cestas básicas, que
podem ser vendidas pelo grupo ou ainda contribuírem para a comida da festa.
Nove dias antes desta, é realizada a Novena a Nossa Senhora, na Igreja do
Rosário; após a novena, diariamente, na porta da Igreja, são realizados os últimos
leilões, cuja arrecadação é dividida, a cada dia, entre grupos previamente designados23.
No sábado à noite e no domingo, as guardas convidadas, vindas de outras
cidades e estados, começam a chegar.
23
São em número de 24 os ternos de congo em Uberlândia: 1 - Congo Camisa Verde, B. Aparecida; 2 -
Catupé Nª Sª do Rosário, B. Dona Zulmira; 3 - Marinheiro de Nª Sª do Rosário, B. Sta Mônica; 4 - Congo
Sainha, B. Sto Inácio; 5 - Marinheiro de São Benedito, B. Tibery; 6 - Moçambique de Belém, B. Sta
Mônica.; 7 - Moçambique Pena Branca de Nª Sª do Rosário, B. Canaã; 8 - Moçambique Princesa Isabel,
B. Patrimônio; 9 - Terno de Congado Sta Efigênia, B. Brasil; 10 - Azul de Maio, B. Roosevelt; 11 -
Moçambique do Oriente, B. Roosevelt; 12 - Congado Congo Branco, B. Tibery; 13 - Terno de Catupé Azul
e Rosa, B. Sta Mônica; 14 - Amarelo Ouro, B. Saraiva; 15 - Verde e Branco, B. Pampulha; 16 - Rosário
Santo, B. Aparecida; 17 - Moçambique Estrela Guia, B. São Jorge; 18 - Moçambique de Angola Nª Sª do
Rosário e São Benedito, B. Daniel Fonseca; 19 - Congo São Benedito, B. Tibery; 20 - Congo Prata, B.
Martins; 21 - Moçambique Guardiões de São Benedito, B. Sta Rosa; 22 - Congo São Domingo, B. Planalto;
23 - Beiramar de São Benedito, B. Morumbi; 24 - Moçambique Raízes, B. Patrimônio.
36
O durante:
A festa propriamente dita realiza uma confraternização dos ternos, com
desfile pela cidade, coroação dos novos festeiros e de Nossa Senhora do Rosário
e São Benedito, procissão com as imagens dos Santos festejados e missa solene.
É o momento em que a cidade realmente se transforma, com a presença maciça
da comunidade negra em seu Centro vital.
A primeira atividade desse dia é realizada nos quartéis — sede de cada
terno, localizados em diferentes (e muitas vezes longínquos) bairros da cidade,
para onde se dirigem todos os componentes de cada grupo. É a cerimônia da
Alvorada, realizada com a queima de fogos de artifício — a rouqueira — pelo
comandante do terno e que marca o início dos festejos.
Em seguida, em cortejo, os Ternos de Congo, com banda de músicos
formada por pífanos, violão, zabumba, caixa ou outro instrumento percussivo,
encaminham-se para o ponto de concentração, no Centro da cidade24, a partir
do qual desfilam até a Igreja do Rosário, onde as imagens de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito abençoam seus fiéis, enfeitadas com flores e tendo a
seu lado caixas ou cestos para recolhimento de oferendas.
Nesse momento, a Praça Rui Barbosa, onde se encontra a Igreja, já está
tomada: são devotos que vieram pagar dívidas e promessas com os “santos
pretos” ou simplesmente celebrar; moradores da cidade e de cidades vizinhas,
que muitas vezes participam anualmente dos festejos; homens, mulheres —
velhos, jovens, crianças — que em meio a barracas, ambulantes, mesas, sentados
nos bancos e muretas da praça, vivem a alegria de encontros e reencontros,
comem, bebem, conversam, namoram e brincam, enquanto assistem a
passagem dos Congos.
Como um rio de fluxo contínuo, um a um eles penetram no espaço da
praça — coloridos, vibrantes, com os tambores batendo ainda mais fortes — e,
na frente da Igreja, se apresentam, entoando seus cantos e danças, que
24
A concentração é feita na Praça do Forum, junto ao Terminal Rodoviário Central; os desfiles ocorrem na
Av. Floriano Peixoto, em direção à Praça Rui Barbosa, onde se encontra a Igreja do Rosário.
37
O depois:
Na segunda-feira, no final da tarde, acontece a “entrega da festa”: os
ternos se reúnem nos quartéis e novamente percorrem as ruas em direção à
Igreja do Rosário, onde realizam a cerimônia de retirada dos mastros votivos, que
são guardados no interior da Igreja, agradecem a todos que colaboraram com a
realização da festa e, em sua porta, se despedem25.
25
Até o ano 2000, no encerramento da festa, era oferecido um lanche pela Secretaria Municipal de Cultura,
no espaço da Oficina Cultural, onde os capitães faziam cantorias em agradecimento ao apoio recebido
pela Municipalidade. A interrupção desse lanche pela Secretaria, levou os Ternos a procurarem outros
locais para reunirem-se após a festa, momento em que receberam apoio da Família Chatão, “a maior
família de negros de Uberlândia”. (Fábio Vladimir Chatão, em entrevista a Brasileiro - 10/04/2004)
38
26
Brasileiro, Jeremias. Obra citada. http://www.uberlandia.gov.br, visitado em 21/11/2006.
27
Meira, Renata Bittencourt. Memória, Tradição e Aprendizagem. www.foliacultural.com.br; visitado em
21/11/2006.
41
28
O mastro deve possuir cerca de 18 a 20 metros e é pintado sempre com as mesmas cores (as cores do
Santo) e da mesma forma (listas diagonais alternadas).
42
Bibliografia:
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O divino, o santo e a senhora. Rio de Janeiro,
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1978. Patrocinada pela
FUNARTE
BRASILEIRO, Jeremias. Congadas de Minas Gerais. Fundação Cultural
Palmares, 2001
29
Amaral, Rita de Cássia. A alternativa da festa à brasileira. http://www.antropologia.com.br/tribo/sextafeira/
pdf/num2/a_alternativa.pdf, visitado em 22/11/2006.
43
Sites:
www.foliacultural.com.br
http://www.cedefes.org.br
http:// www.minasdefato.com.br
http://www.carrancas.com.br/lendacongado.htm
http://www.mineiros-uai.com.br/ folklore.html
http://www.tambormineiro.com.br/congado.html
http://www.unicamp.br/folclore/folc7/relatori/relatorio.html
http://www.museudapessoa.com.br/escolas/hotsites/historias_da_nossa_terra/
uberlandia/festas_trad.htm
http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/congadorigem.htm
http://www.antropologia.com.br/tribo/sextafeira/pdf/num2/a_alternativa.pdf
44
30
Mestre em Artes Cênicas, UFBA. Especialista em Psicodrama, FEBRAP. Especialista em Gestão de
Pessoas, UEFS.
45
31
Nicodemus significa “aquele que sabe lidar com o povo”.
47
32
TEIXEIRA, Cid. Entrevista concedida a Jorge Portugal em Salvador, TV Bahia, 03/07/2004.
48
35
BIÃO, Armindo. Palestra proferida nos fóruns de debate do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão
em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
UFBA. Salvador, 2001.
51
Bibliografia:
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. Campinas: São Paulo:
Papirus, 1989.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12ª. ed. São Paulo: Ática, 2002.
DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações. Fortaleza: Edições Universidade
Federal do Ceará, 1983.
GOMES, Célia Conceição Sacramento. Teatralidade e performance ritual
dos folguedos da Ilha de Itaparica. Salvador: Carlos Maguari, 2004.
GOMES, Célia Conceição Sacramento. Corpo e interfaces. In: Bião, Armindo
(Org.). Artes do corpo e do espetáculo: questões de etnocenologia.
Salvador: P&A Editora, 2007, p. 175-186.
GREINER, Christine e BIÃO, Armindo, (Orgs.). Etnocenologia: textos
selecionados. São Paulo: Annablume, 1999.
GROTOWSKI, Jerzy. O teatro laboratório de Jerzy Grotowski 1959 - 1969.
Tradução Berenice Raulino. São Paulo: Perspectiva : SESC; Pontedera, IT:
Fondazione Pontedera Teatro, 2007.
GUARINELLO, Norberto L. Festa, trabalho e cotidiano. In: JACSÓ, István;
KANTOR, Íris (Orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América
Portuguesa. Vol. II. São Paulo: HUCITEC: Editora da Universidade de São
Paulo, FAPESP: Imprensa Oficial, 2001.
34
OLIVEIRA, Érico José de O. A roda do mundo gira. 2006, p. 37.
52
35
Mestre em Literatura pela UFSC (Florianópolis-SC) e doutoranda no Programa de Pós-graduação em
Artes Cênicas na UFBA (Salvador-BA).
54
dia está lindo, um sol escaldante e chegando a Cidade Baixa, são agora 7 a 8
quilômetros de caminhada até a Colina Sagrada. O cortejo inicia ao final da
celebração da missa e sob chuva de fogos de artifício.
Pegamos a procissão ainda no início, tudo é novidade. No cortejo, baianas
vestidas impecavelmente de branco com suas roupas engomadas, seus jarros
de água perfumada na cabeça, afoxés, bandas de sopro, grupos de percussão,
charangas, agremiações carnavalescas, carroças ornamentadas, policiamento,
postos médicos e vendedores ambulantes durante todo o trajeto. Os romeiros,
vindos de todas as partes da Bahia e de todas as idades, incluem também os
turistas - todos estão muito bem arrumados e dispostos. As pessoas se vestem de
branco que é a cor de Oxalá36 , o Deus Yorubá sincretizado com Senhor do
Bonfim. Tal comunhão de corpos parece estabelecer uma teia que em termos
abole magicamente as divisões de classe e de crenças. Assim, temporariamente,
as diferenças se apagam. Durante o trajeto, muita adrenalina, água e suor. Nas
casas e prédios, moradores nas janelas.
Segundo o antropólogo Roberto DaMatta (1984), essas solenidades
permitem ligar a casa, a rua e um outro mundo, no qual a festa se transforma.
Tudo parece maravilhoso, inesperado, fantástico. Passo por alguns camarotes,
todos repletos de artistas e autoridades37 embaçando o caráter de festa popular
que se converte em uma espécie de desfile de carnaval, uma vitrine. O que
também faz parte da espetacularidade da festa.
Os filhos de Gandhy, todos caracterizados como o líder negro indiano
Mahatma Gandhy, entoam seu hino, cortejam e seduzem borrifando alfazema
nas mulheres que passam. Se você aceitar, pode ser conduzida para dentro do
36
Oxalá, o orixá supremo do camdomblé, simboliza a paz, é o pai maior nas nações na religião africana.
É calmo, sereno, pacificador, é o criador, respeitado por todos os orixás. A Oxalá pertence os olhos que
vêem tudo. Ele tentou fazer o homem de vários elementos. Nana veio em seu socorro e deu a Oxalá a
lama, o barro do fundo da lagoa onde ela morava, a lama sob as águas, que é Nana. Oxalá criou o
homem, o modelou no barro. Nana deu a matéria no começo, mas quer de volta no final tudo o que é seu.
Oxalá teve vários filhos com Nana e com Iemanjá.
37
Entre autoridades e povo, nessas ocasiões solenes e formais, há uma clara divisão. Seja uma cerca,
seja um espaço vazio, seja um palanquim ou outra construção qualquer que permita imediatamente saber
quem é quem (...) tais distinções ocorrem até mesmo nas grandes procissões (...) DAMATTA, Roberto.
O que faz o brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1984, p.86.
55
Duvignaud propõe que para o entendimento da festa é preciso entrar nela por
extensões existenciais. É espacialmente que nosso corpo sente essa
potencialidade sinestésica. E é o que realmente pode-se verificar: um arrepio, uma
sensação de plenitude nos embriaga, nos emocionamos e nos enchemos de
alegria sem saber exatamente o porque. Nesse momento, é produzida uma
atmosfera que nos aproxima do transe antigo, que tinha por função reforçar o estar-
junto daqueles que participavam dos mesmos mistérios, como nos lembra o
sociólogo francês Michel Maffesoli em A contemplação do mundo (1995, p. 16):
(...) é o retorno das imagens, a importância do contágio emocional, o
recurso a esses múltiplos simbolismos que são a afirmação da
identificação religiosa, a efervescência étnica, a busca do “território”,
são coisas que servem de matriz a socialidade nascente, coisas que
constituem o caldo de cultura do qual a atualidade nos oferece muitos
exemplos...38
A festa se apodera de todos os espaços. O cheiro do perfume das flores,
do azeite de dendê, dos espetinhos, da cerveja, está por toda à parte. O largo, a
praça, as ladeiras, as ruelas, estão todos preenchidos pela multidão, todos
desempenhando um outro papel que o cotidiano, por um período no qual a vida
coletiva é extremamente acentuada. O clima de empatia que se instala intensifica
a afetividade no contato entre todos. Uma nova comunicação se estabelece
substituindo todos os códigos e estruturas impostos socialmente e
cotidianamente, por um período onde a subversão é, de certa forma, autorizada.
A festa abole as representações, as normas por meio das quais a sociedade se
defende contra a agressão natural: segundo as aparências, a festa atinge aquilo
que constitui a finalidade última das comunidades, isto é, um mundo reconciliado,
uma entidade fraternal. (DUVIGNAUD, 1983, p. 69)
Os festejos religiosos, a parte sacra da Festa do Bonfim consiste num
novenário que se encerra no segundo domingo após o Dia de Reis. Na quinta-
feira da Lavagem, a Igreja abre somente à noite, a partir das 19 horas, quando a
cerimônia religiosa acontece. Os fiéis fazem suas orações nos portões. O que já
acontece a aproximadamente vinte anos na intenção de preservar as peças da
38
Ibidem, p.24.
57
39
Prato da cozinha baiana.
58
48
JORNAL A TARDE, Salvador, 12 jan. 1995, p.03.
59
Mas nem sempre era assim que podíamos falar da Festa do Bonfim. O
ritual se repete todos os anos sempre na segunda quinta-feira do mês de janeiro,
segundo alguns autores há 252 anos, ou seja, desde 1754. Enquanto outros
consideram que, o ano de 1804 foi o ano da primeira lavagem oficial.
A Lavagem do Bonfim, muitas vezes sob suspeita de africanismo e
selvagismo teve seus precedentes históricos na velha metrópole portuguesa,
como se pode confirmar nas palavras do bispo de Évora de Portugal (1534):
Defendemos a todas as pessoas eclesiásticas populares, de qualquer
estado ou condição, que sejam, que não comam nas igrejas, nem
bebam, com mesas nem sem mesas: nem cantem nem bailem em ellas,
nem em seus adros, nem os leigos façam seus ajuntamentos dentro
dellas sobre cousas profanas, nem se façam nas ditas egrejas ou
adros dellas jogos alguns, posto que sejam em vigília de santos ou de
alguma festa, nem representações, ainda que sejam da paixão de
Nosso Senhor Jesus Christo, ou de sua Ressurreição, ou nascença,
de dia nem de noite, sem nossa especial licença, porque de taes actos
se seguem muitos inconvenientes, e muitas vezes trazem o escândalo
no coração daqueles que não estão, mui firmes na nossa santa fé
catholica, vendo as desordens e excessos que nisto se fazem. (XAVIER,
1929, p. 376)
Aqui podemos identificar os elementos constituintes da festa vistos como
foco de subversão pelo olhar da Igreja. Permitindo as pessoas chegarem a um
estado onde tudo se torna possível, a festa pode ser vista como perigosa no
sentido de perda de controle ou de saída da “normalidade”.
Os estudiosos de mitologia dizem que a Lavagem do Bonfim é uma
cerimônia que tem origem na África, em homenagem a divindade Yorubá Oxalá,
que é filho direto de Olorum, Deus criador e pai de todos os orixás. Os escravos
africanos, proibidos de cultuar seus deuses, identificavam Oxalá com o Senhor
do Bonfim, e todos os anos lhe faziam o desagravo, isto é, lavavam as escadarias
da sua igreja. Oxalá tem de ser desagravado com as águas porque sofreu sete
anos de prisão e exílio por amor a Nanã, sem se queixar ou pensar em vingança.
Câmara Cascudo discorda desta visão e considera que na Festa do Bonfim há
convergência de dezenas de festas tradicionais da Europa e da África. Enquanto
60
Roger Bastide observa que a cerimônia não é de origem africana, pois já existia
em Portugal. O culto ao Senhor do Bonfim teria origem em 1669, em Setúbal.
Uma imagem de Jesus crucificado, igual a que existe em Portugal, chegaria à
Bahia em 1745, trazida pelo oficial Theodorico Rodrigues de Faria41 para a
Igreja da Penha (Ribeira) e, em 1754, seria transferida para a Colina Sagrada
onde foi construída a atual igreja Basílica de Nosso Senhor do Bonfim 42 ,
transformando-se em objeto de devoção popular.
Foi o capitão de mar e guerra da marinha portugueza, Theodorico
Rodrigues de Faria (*) que, de viagem para o Brazil em 1745, trouxe
de Lisboa uma imagem do senhor crucificado, semelhante a que se
venera em uma capellinha das visinhanças de Setúbal – Portugal, e
como devoto que era dessa imagem, pensou em continuar aqui a sua
devoção, razão por que, trocando a nova, conseguiu que ella fosse
colocada da Egreja de Nossa Senhora da Penha na península de
Itapagipe. Esta colocação realizou-se pela Paschoa de 1745.43
A festa, teria sido então difundida no Brasil por esse português combatente
na guerra do Paraguai que fizera o voto de, caso não morresse, lavar o átrio do
Senhor do Bonfim. Acredita-se ainda, que o ritual da lavagem teve origem nos
tempos em que os escravos eram obrigados a levar água para lavar as escadarias
da Basílica para a festa dos brancos, desde esta época um agradecimento do
povo às graças concedidas pelo Senhor do Bonfim. Os negros baianos teriam
transformado a lavagem numa festa sincrética ao catolicismo e ao candomblé.
Em 1881, era outro o retrato que tínhamos do bairro do Bonfim nesses
dias de festa. O largo se povoava de caravanas vindas do Recôncavo, dos altos
Sertões da província e de além do rio São Francisco, para participarem da
representação do que era considerado um “estupendo mistério” que tinha por
teatro a Colina de Itapagipe. Na época, o evento reunia mais de trinta mil pessoas
de todas as classes e de toda parte.
41
Em alguns registros o nome do capitão consta como Theodózio Rodrigues de Faria.
42
Os fiéis devotos da imagem e o próprio Theodorico, resolveram escolher um lugar de destaque onde se
podesse erigir uma Egreja para o santo, e então, na eminência, hoje conhecida por Alto do Bonfim
antigamente – do Mont Serrat deu-se princípio a edificação da capella. CARVALHO, Carlos Alberto de.
Tradições e Milagres do Bonfim, Typ. Bahiana, de Cincinnato Melchiades, 1915, p.07.
43
Ibidem, p.07.
61
47
Termo utilizado por Carlos Alberto de Carvalho em Tradições e Milagres do Bonfim: “É sempre a
melhor sociedade que ocupa esses dois lotes de casinhas de romarias”. (CARVALHO, 1915, p.30.)
63
48
Para Duvignaud entende-se por drama a teatralizacão coletiva da existência.
64
Essa imagem congelada de 1937 pode ser vista ainda hoje nas ladeiras
do Bonfim. A festa transformando o estado, o espírito das pessoas. Uma festa
apreendida ao longo da história como fenômeno transcultural, como regeneração
do tempo, como meio de descoberta da energia que induz a incursão em novas
áreas da experiência livre dos constrangimentos impostos pelas culturas. Para
Mircea Eliade, não é a morfologia da festa que nos interessa, e sim a estrutura do
Tempo sagrado atualizado nas festas, tempo que é sempre o mesmo, que é uma
sucessão de eternidades. Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa,
trata-se sempre de um acontecimento sagrado que teve seu lugar de origem e
que é, ritualmente tornado presente.
Os participantes da festa “saem” de seu tempo histórico, do tempo
constituído pela soma dos eventos profanos, pessoais e intrapessoais e reúnem-
se ao tempo primordial, que é sempre o mesmo, que pertence à eternidade. É
esse tempo que permite pausar a dura realidade e cair no desregramento51 que
pode ser lido nas palavras de Carlos Alberto de Carvalho: No largo do papagaio
reuniam-se outros grupos de batuques e candomblés, pondo trégoas as durezas
da vida e louvando o Senhor do Bonfim (1915, p. 42).
Para muitos a festa sempre foi um misto de paganismo e de catolicismo.
E é justamente essa mistura que compõe sua magia.
A Lavagem do Bonfim e as festas de modo geral, permitem que seus
integrantes se entreguem ao devaneio, embora conservando um status social
“normal” e “respeitável”, sem serem julgados. Ao mesmo tempo que a festa destrói
códigos e normas estabelecidos ao colocar o homem diante de um universo
desaculturado, também transforma as relações no contato intercultural, gerando
mudanças que podem resultar de uma modificação interna, destruidora da cultura
estabelecida. Esse mergulho do homem no tempo sagrado constitui-se de uma
necessidade, pois é o tempo sagrado que torna possível o tempo ordinário, a
duração profana em que se desenrola toda a existência humana. Tempo esse,
que nos impõe a visão grandiosa e espetacular da Lavagem do Bonfim.
50
JORNAL DIÁRIO DA BAHIA. Salvador, 15 jan. 1937.
51
Ao dialogar com os elementos componentes da festa Duvignaud desenvolve a idéia de desregramento
em Caillois: “O ‘desregramento’ de que fala Caillois é o desregramento de uma sociedade que coloca
as suas regras ‘entre parênteses’ e que interpreta para si mesma a comédia de sua existência.”
(DUVIGNAUD, 1983, p. 72.)
66
Bibliografia:
CAILLOIS, Roger. Os Jogos e os Homens: A Máscara e a Vertigem. Lisboa:
Edicões Cotovia, 1990.
CARVALHO, Carlos Alberto de. Tradições e Milagres do Bonfim: obra
seguida de interessante resenha histórica da península de Itapagipe.
Typ.Bahiana, de Cincinnato Melchiades, 1915.
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rocco,
1984.
DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Fortaleza: Edições Universidade
Federal do Ceará. RJ: Tempo Brasileiro, 1983.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. P.Alegre: Artes e Ofícios,
1995.
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Editora UNESP,
2003.
SANTANA, Mariely Cabral de; SILVA, Odete Dourado da; UNIVERSIDADE
FEDERAL DA BAHIA. Faculdade de Arquitetura. Alma e festa de uma cidade :
devoção e construção da Colina do Bonfim. 2002. 225 f. Dissertação
(Mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, 2002.
Periódicos
REVISTA DO INSTITUTO GEOGRAFHICO E HISTÓRICO DA BAHIA. Salvador:
Secção Gráphica da Escola de Aprendizes Artífices, Editora IHGHB, n 55, 1929.
REVISTA VEJA. São Paulo: Editora Abril, 18 de janeiro de 1989.
JORNAL A TARDE. Salvador, 12 jan. 1995.
JORNAL DIÁRIO DA BAHIA. Salvador, 15 jan. 1937.
67
52
Mestrando do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas – PPGAC, UFBA, com especializações em
Teoria da Psicologia Junguiana - IJBa, Metodologia do Ensino Superior – CEPOM, Bacharel em Turismo
– FACTUR. Professor das Faculdades Integradas Olga Mettig – FAMETTIG e pesquisador de Interpretação
do Patrimônio.
68
(apud, MARCONI, 2001, p. 27). Hoebel e Frost falam que a palavra etnografia
significa, literalmente, “escrever sobre os povos” e que ela é o fundamento da
antropologia cultural. Continuam dizendo sobre ela e sua prática:
São, podemos repeti-lo, relações descritivas de dados e poucos se
interessam por comparações “per se”, hipóteses e teorias. A etnografia
fornece os blocos de construção para Antropologia Cultural, mas é
preciso buscar em outra parte a grandiosa planta. (HOEBEL e FROST,
1999, p.9)
A cultura é pública porque o significado o é (GEERTZ, 1989, p. 09). Para
Geertz o fazer etnográfico é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura
de”) um manuscrito estranho, desbotado (Idem 1989, p. 07). Com isso o autor
demarca o caráter interpretativo da cultura, que pode ser compreendido como
um texto. O que compartilho integralmente.
Se a etnografia busca descrever minuciosamente as culturas e suas formas
específicas de ser, a etnologia é o estudo desses povos por via de comparação
através das etnografias existentes. Hoebel e Frost falam: a etnologia é a “ciência”
dos povos, de suas culturas e das histórias de suas vidas como grupo (1999, p.9).
Já Marconi afirma: eminentemente comparativa, preocupa-se com a análise, a
interpretação e a comparação entre as mais variadas culturas existentes,
considerando suas semelhanças e diferenças (2001, p. 28). E, por fim, Levi-Strauss:
Etnografia, Etnologia e Antropologia não constituem três disciplinas
diferentes ou três concepções diferentes dos mesmos estudos.
São, de fato, três etapas ou três momentos de uma mesma
pesquisa, e a preferência por este ou aquele destes termos
exprime somente uma atenção predominante voltada para um
tipo de pesquisa que não poderiam nunca ser exclusivo dos dois
outros. (apud, MARCONI, 2001, p. 28)
Todas as definições trazidas aqui da etnografia, etnologia, antropologia e
etnocenologia nos indicam o sentido claro destas ciências. Serem a luz
compreensiva sobre o ser-homem, em seus diferentes modos de ser, nas
conjunturas abertas de sua tradição que se fazem a partir de uma historicidade e
de uma constituição partilhada e pública (Etno). Tais ciências estão abertas em
seus fundamentos para acolher a diversidade, multiplicidade, variância e colorido
71
comungasse a mesma crença. Vi-me enredado por uma cena espetacular indo
na direção de seu clímax e, ao mesmo tempo, tendo que me afastar.
A sorte é que uma procissão, para quem a conhece (a experienciou
na existência), na maior parte das vezes, possui um passo repousado e
leve, cadenciado num ritmo em comum. Foi isto o que me fez projetar as
minhas possibilidades de retorno com um devido sucesso. Mas, é bom
deixar claro, que se eu não estivesse esquecido desse evento, e se na
véspera já o soubesse, também me prepararia de modo adequado,
antecipadamente, pois como membro de uma tradição que partilha o que
é um dia de finados (ou seja, o seu sentido e modo de ser) eu não hesitaria
em me por em função de sua conjuntura, caso quisesse partilhá-la. Assim,
não me encontraria com tantos imprevistos.
Com isso, uma interpretação de mundo é um texto partilhado e só faz
sentido para aqueles que são constituídos pela mesma. Nela há um sentido e
modo de ser partilhado pelos membros de uma tradição. A espetacularidade,
quando eclode na dramaturgia da existência, realça esse texto e põe os limites
interpretativos numa visibilidade acentuada. O homem então passa a ser parte
do texto e conseqüentemente da história, revelando-se e assumido os limites
hermenêuticos de sua constituição.
Quando a comunidade se ajoelha para orar de modo partilhado, as-
sume um modo de ser, que já foi constituído e liberado pela sua própria tradição,
na relação com o sagrado. Alem disso, o ajoelhar não só está arremetido pelo
sentido com o sagrado, mas acentua a relação. No modo do ajoelhar o
praticante é em si parte do texto, porque tal modo é constituído por uma
interpretação do mundo. Tal atitude faz sentido porque pertence ao conjunto
de códigos que lhe constitui. Com isso, não está completamente “solto”, sem
referência, mas nos limites de uma constituição. As práticas e comportamentos
espetaculares estão circunscritos na constituição partilhada de uma
comunidade e, nesse sentido, compreender tais práticas é revelar os limites
interpretativos pelo qual a comunidade habita o mundo. É revelar, também, o
modo e o sentido de ser legado por uma tradição.
75
54
Texto interpretativo é uma redundância, pois todo texto, até uma bula de remédio – completamente
informativo – é, também, uma interpretação, pois o que está em jogo é um sentido que pode ser
compreendido de modo partilhado. Mas esse caráter de redundância é aqui de suma importância. Somos
interpretação quando pedimos e solicitamos as coisas, pois elas já estão nomeadas e assim podemos nos
referencializar com algum sentido.
77
Bibliografia:
BIÃO, Armindo. A metáfora teatral e a arte de viver em sociedade. Caderno
CRH, n. 15, p. 104 -110, jul/dez, 1991.
______________. Etnocenologia, uma introdução. In, Etnocenologia:
textos selecionados / Christine Greiner e Armindo Bião, organizadores. – São
Paulo: Annablume, 1999.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. LTC- Livros Técnicos e
Científicos Editora S.A.; RJ.
HOEBEL, E. A. e FROST, E. L. Antropologia Cultural e Social. SP: Cultrix, 1999.
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. 2ª ed – Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1998.
MARCONI, Marina de Andrade e PRESOTTO, Zélia Maria Neves. Antropologia:
uma introdução. São Paulo: Editora Atlas, 2001.
PRADIER, Jean-Marie. Etnocenologia, manifesto. In Théâtre-Public, 123,
maio-junho, 1995, pp. 46-48.
__________________. Etnocenologia: a carne do espírito. In
Etnocenologia, manifesto. In Théâtre-Public, 123, maio-junho, 1995, pp. 46-48.
78
55
Professor Doutor da graduação e pós-graduação da Escola de Teatro da UFBA, Pós-doutorado (em curso)
na Universidade Paris 3 – Sorbonne Nouvelle (Paris), Diretor do Grupo de Pesquisa em Encenação
Contemporânea – G-PEC (CNPq), Ator, Encenador, Iluminador, Sonoplasta e Figurinista de teatro.
79
56
In: JANCSÓ, István e Kantor, Iris (orgs.). Festa: Cultura e sociabilidade na América portuguesa. Volume
II. São Paulo: Hucitec/Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP: Imprensa Oficial, 2001.
80
57
PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Editora Perspectiva S/A, 2003, p 163.
82
certamente, ela nasceu nas senzalas dos engenhos de cana, através do hibridismo
das culturas européias, africanas e ameríndias.
De conteúdo complexo, o Cavalo Marinho pode ser considerado
um espetáculo construído a partir de várias práticas espetaculares, festas,
brincadeiras, rituais religiosos e profanos que permeiam o imaginário do
povo brasileiro, principalmente, da parcela mais desprestigiada da
população.
A dança, o canto, a récita, o drama e o improviso são elementos constitutivos
do espetáculo que possui, aproximadamente, oitenta e cinco personagens –
chamados de “figuras” pelos praticantes – com enredos, canções e danças
próprias, que se apresenta ao ar livre durante toda a noite – o espetáculo, quando
completo, começa às 21 horas e finaliza às 06 horas do dia seguinte, durando,
em média, oito ou nove horas.
A brincadeira se desenvolve em círculo – chamado de roda pelos
brincadores – no qual o público, de pé, dá forma ao espaço representacional,
enquanto, dentro dele, se desenvolvem os dramas e conflitos pertencentes aos
membros do grupo e seu entorno sócio-cultural.
Apoiando-nos no estudo do literato russo Mikhail Bakhtin (1999, p. 10),
podemos perceber que o Cavalo Marinho pernambucano lida com estruturas
similares ao que o autor observou nas práticas festivas do medievo e da
renascença européia, como, por exemplo, a necessidade de práticas festivas
como desejo humano de renovação universal, de ressurreição e de transformação,
passagem para um estado ideal em que se revestia a segunda vida do povo, o
qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade,
igualdade e abundância.
Neste tipo de evento, as imagens cômicas do princípio da vida material e
corporal – imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação de necessidades
naturais, da vida sexual, da liberdade gestual e de linguagem, revelam sua relação
entre o alto e o baixo, o céu e a terra, o grotesco e o sublime, além de servirem
como forma de inversão do statu quo, promovendo a sátira e a crítica aos padrões
rígidos e socialmente estabelecidos.
83
58
MURPHY, John. O cavalo marinho pernambucano. Trad. André Cunati de Paulo Bueno. 1994. Tese
(Ph D em Etnomusicologia) – Escola Graduada de Ciências e Artes de Nova York, Columbia University,
Nova York.
59
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade
de Brasília, 1999, p. 23.
84
três escravos do Capitão, eles têm todo poder e liberdade para comandar a festa
com o consentimento do seu senhor.
Além disso, são figuras apresentadas pelos mesmos figureiros durante
sua permanência no grupo. Os brincadores responsáveis por estes tipos de figura
se especializam nos seus códigos gestuais e vocais e as apresenta durante toda
a sua vida ativa na brincadeira. Podemos dizer que, dentro das etapas de
aprendizado da brincadeira, estas figuras fazem parte do estágio mais elevado
de realização no drama.
Mateus é uma das figuras que permanece o tempo inteiro na arena, ficando
do início ao fim da brincadeira. Segundo os brincadores, é um escravo que serve
ao Capitão. Tem espírito matreiro e arredio. Seu objeto característico é uma bexiga
de boi seca e inflada com ar que usa para marcar o compasso das toadas batendo-
a na perna enquanto dança e, principalmente, para surrar as outras figuras.
Outros elementos característicos são: seu chapéu em forma de cone
coberto de papel laminado colorido, sua roupa sempre estampada e o matulão
que traz no alto das nádegas, feito de folha de bananeira, além do rosto melado
de cinza de carvão. É chamado pelo Capitão para tomar conta da festa que está
organizando.
Bastião também é uma figura permanente no terreiro e parceiro de Mateus.
É muito parecido com este, tanto nos trajes como em sua atuação no espetáculo,
com o diferencial de que o Mateus é mais ativo que ele. É chamado pelo Capitão
para ajudar seu amigo a cuidar da festa. Os dois negros se chamam de “pareia”
(parelha), devido à cumplicidade e companheirismo.
Catirina (ou Catita) é outra figura permanente da brincadeira. É a escrava
assanhada e mulher de Mateus. Alguns brincadores dizem que ela é mulher
dos dois negros, mas nosso informante, o mestre Biu Alexandre, não confirma
esta versão, apesar de haver sempre insinuações neste sentido durante o
espetáculo.
Apesar de ser uma figura feminina, é interpretada por um homem.
Também pinta o rosto de negro, usa um lenço na cabeça, um vestido simples,
um jereré (espécie de peneira para pescar) e uma boneca (a calunga) como
86
60
Idem, p. 11.
61
Entrevista do mestre Biu Alexandre concedida a Érico José Souza de Oliveira, em 17/02/2005, na cidade
do Condado, Pernambuco.
62
Entrevista do mestre Biu Alexandre concedida a Érico José Souza de Oliveira, em 16/02/2005, na cidade
do Condado, Pernambuco.
63
In: BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas, SP: Editora da Unicamp,
2001, p. 205.
88
64
ROLAND, Pascal. Danse et imaginaire – Étude sócio-antropologique de l’univers chorégraphique
contemporain. Paris: EME, 2005, p. 94. Minha tradução : La mémoire crée em effet um lien temporel
sensible, entre lieu et corps, et fait ressentir, à um moment donné, ce qui a été ou aurait pu être, dans la
reconstruction d’um passe au moment présent.
65
Idem. p. 95. Minha tradução: La mobilisation de la mémoire s’insère em conséquence dans l’expression
de l’instant présent et non dans le rappel d’un passe révolu, une nostalgie.
66
Id. ibid, p. 96. Minha tradução: (...) la référence au passé ne se faisant que dans l’écho suscite dans la
période actuelle et ne valant que pour elle.
91
Bibliografia:
ACSELRAD, Maria. Viva Pareia! A arte da brincadeira ou a beleza da
safadeza – uma abordagem antropológica da estética do Cavalo-
marinho. 2002. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) –
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro.
AMORIM, Maria Alice e BENJAMIN, Roberto. Carnaval: cortejos e
improvisos. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2002.
ANDRADE, Mário. Danças dramáticas do Brasil. Edição organizada por
Oneida Alvarenga. 2 edição. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; Brasília: INL,
Fundação Nacional Pró-Memória, 1982.
BACELAR, Jeferson. Etnicidade. Ser negro em Salvador. Salvador: Editora
Ianamá, 1989.
92
VIRT U T E S P I RIT U S
GIPE-CIT
Endereço: Av. Araújo Pinho, 292, Canela
CEP 40.110-150 Salvador - Bahia
Telefax: (71) 3245 0714
E-mail: ppgac@ufba.br