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º   7 · s e t / d e z 0 8 issn 1646‑4990

Outros artigos
As hipóteses nas Ciências Humanas — considerações
sobre a natureza, funções e usos das hipóteses

José D’Assunção Barros


jose.assun@globo.com
Universidade Federal de Juiz de Fora (Juiz de Fora, Brasil) e Universidade Severino Sombra (USS) de Vassouras (Brasil)

Resumo:
Este artigo busca desenvolver uma reflexão acerca do uso de hipóteses nas pesquisas científicas e
na elaboração de textos nas Ciências Humanas. Busca­‑se apresentar, na primeira parte do texto,
a natureza e importância das hipóteses nas Ciências Sociais e Humanas, trazendo exemplos da
História, Sociologia, Urbanismo e outros campos do conhecimento. As hipóteses são discutidas
como recursos necessários para as ciências sociais e humanas que se baseiam em problemas. Na
seqüência do artigo, são pontuadas as funções das hipóteses para cada pesquisa em particular, e
para o Conhecimento Científico como um todo. A principal intenção do artigo é trazer uma con‑
tribuição para alunos e professores dos campos de conhecimento relacionados às ciências sociais e
humanas, oferecendo algumas sugestões práticas e meios para o entendimento e o esclarecimento
sobre como as hipóteses podem ser utilizadas nestes campos. Para clarificar a explanação, o prin‑
cipal exemplo apresentado no texto refere­‑se a um problema histórico pertinente à Conquista da
América, no século XVI, buscando mostrar como, no campo das ciências humanas, um mesmo
problema pode ensejar muitas hipóteses de trabalho e diferentes soluções.

Palavras­‑chave:
Hipótese, Ciências Humanas, Conhecimento científico, Ensino de metodologia.

Barros, José D’Assunção (2008). As hipóteses nas Ciências Humanas — considerações sobre a natu‑
reza, funções e usos das hipóteses. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 07, pp. 151-162.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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Uma das questões­‑chave para o Ensino de Ciências So‑ a partir do século XX, quando se superou a História
ciais é levar o aluno a compreender a interseção entre re‑ Narrativa ou Descritiva do século XIX em favor de uma
cursos teóricos e metodológicos, e sua aplicação prática “História­‑Problema”. Já não existe maior sentido, para
em uma Pesquisa. Aspectos como o uso de Hipóteses nas a historiografia profissional de hoje, no gesto de narrar
Ciências Sociais não são fáceis de serem ensinados, a não simplesmente uma seqüência de acontecimentos, ou de
ser já na prática direta de Pesquisa, de modo que todo descrever certo cenário histórico, se esta narrativa ou
esforço de sistematização que busque trazer exemplifi‑ esta descrição não estiverem problematizadas.
cações que facilitem o aprendizado destas interrelações Problematizar é lançar indagações, propor articula‑
mostra­‑se um contribucto importante para as Ciências ções diversas, conectar, construir, desconstruir, tentar
da Educação em sua dimensão mais prática e operacio‑ enxergar de uma nova maneira, e uma série de opera‑
nal. O presente artigo, além de atender interesses volta‑ ções que se fazem incidir sobre o material coletado e os
dos para o Ensino de Metodologia Científica, dirige­‑se dados apurados. Problematizar, nas suas formulações
em especial a estes alunos que iniciam os caminhos de mais irredutíveis, é levantar uma questão sobre algo que
investigação em ciências sociais. Busca­‑se, mais particu‑ se constatou empiricamente ou sobre uma realidade que
larmente, oferecer­‑lhes elementos para compreender e se impôs ao pesquisador.
esclarecer aspectos pertinentes ao uso de Hipóteses nas A formulação de hipóteses, no processo de investi‑
Ciências Sociais e Humanas (História, Sociologia, An‑ gação científica, é precisamente a segunda parte deste
tropologia, Geografia, Urbanismo e outras). modo de operar inaugurado pela formulação de um
Começaremos por dizer que, em uma pesquisa em problema. Antes de tudo, a hipótese corresponde a uma
modelo acadêmico, e em um texto que se destine a apre‑ resposta possível ao problema formulado — a uma su‑
sentar os resultados desta pesquisa, a Hipótese pode de‑ posição ou solução provisória mediante à qual a ima‑
sempenhar uma importância fundamental. Para sustentar ginação se antecipa ao conhecimento, e que se destina
esta proposição, vejamos, em primeiro lugar, de onde se a ser ulteriormente verificada (para ser confirmada ou
origina a necessidade de utilização nas ciências humanas. rejeitada). A hipótese é na verdade um recurso de que
A investigação científica no Ocidente, e não é dife‑ se vale o raciocínio humano diante da necessidade de
rente com as ciências sociais e humanas, tem se edifica‑ superar o impasse produzido pela formulação de um
do basicamente em torno da intenção de resolver “pro‑ problema e diante do interesse em adquirir um conhe‑
blemas” bem delineados, que grosso modo constituem cimento que ainda não se tem. É um fio condutor para
o ponto de partida do próprio processo de investigação. o pensamento, através do qual se busca encontrar uma
Com a História, desde que ela assumiu o projeto de solução adequada, ao mesmo tempo em que são descar‑
ser uma ciência, não tem sido muito diferente, e tam‑ tadas progressivamente as soluções inadequadas para o
pouco o é em ciências humanas diversificadas como a problema que se quer resolver.
Sociologia, a Antropologia, a Geografia, a Economia e Pode­‑se dizer que a Hipótese é uma asserção provi-
outras mais. Para dar o exemplo da História, essa neces‑ sória que, longe de ser uma proposição evidente por
sidade de problematização foi se fazendo cada vez mais si mesma, pode ou não ser verdadeira — e que, dentro
característica da historiografia ocidental — sobretudo de uma elaboração científica, deve ser necessariamente

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submetida a cuidadosos procedimentos de verificação e específica que está sendo concretamente realizada, como
demonstração. Constitui­‑se em um dos elos do processo no que se refere ao conhecimento científico de uma ma‑
de argumentação ou investigação (na pesquisa científica neira geral. O “Quadro 1” enumera algumas destas fun‑
ela é gerada a partir de um problema proposto e desenca‑ ções, organizando na parte sombreada aquelas funções
deia um processo de demonstração depois da sua enun‑ referentes a uma pesquisa determinada ou ao seu Plane‑
ciação). É por isto que, etimologicamente, a palavra “hi‑ jamento. Na parte não sombreada estão as funções que
pótese” significa literalmente “proposição subjacente”. a Hipótese desempenha em relação ao desenvolvimento
O que se “põe embaixo” é precisamente um enunciado científico em geral.
que será coberto por outros, ou por uma série articula‑ Em primeiro lugar, a Hipótese estabelece uma “di‑
da de enunciados, de modo que a Hipótese desempenha reção mais definida para a Pesquisa” que está sendo re‑
o papel de uma espécie de fio condutor para a constru‑ alizada — seja fixando finalidades relacionadas a etapas
ção do conhecimento. Apesar do seu caráter provisório, a serem cumpridas, seja implicando em procedimentos
a Hipótese tem sido a base da argumentação científica e metodológicos específicos. Dito de outra forma, ela
desempenha uma série de funções dentro da pesquisa e possui uma “função norteadora” (1). Assim, em uma
do desenvolvimento do conhecimento científico, como se seqüência investigativa o pesquisador pode se valer de
verá a seguir… sucessivas hipóteses, descartando as que não subsistem
à demonstração ou as que não encontram apoio nas fon‑
tes ou na articulação de dados empíricos. Cada hipótese
AS FUNÇÕES DA HIPÓTESE NA PESQUISA formulada, por vezes, pode pontuar uma etapa no en‑
frentamento do problema a ser solucionado, da mesma
São várias as funções desempenhadas pela Hipótese na forma em que cada hipótese irá implicar em métodos
Pesquisa Científica, tanto no que se refere a uma pesquisa específicos para a sua investigação.

Quadro 1
Funções da Hipótese na Pesquisa e no Conhecimento Científico

7. FUNÇÃO UNIFICADORA
1. FUNÇÃO NORTEADORA Organizar ou unificar
Dar uma direção à Pesquisa conhecimentos já adquiridos
—————————————————— ——————————————————

•  Fixando finalidades relacionadas a etapas (inclusive através de generalizações constru‑


a serem cumpridas durante a pesquisa. ídas a partir de “uniformidades empíricas”
•  Implicando em procedimentos metodoló‑ que tenham sido eventualmente verificadas
gicos específicos. em pesquisas diversas)

2. FUNÇÃO 6. FUNÇÃO
DELIMITADORA MULTIPLICADORA
Restringir o campo de Pesquisa Se potencialmente generalizável,
—————————————————— HIPÓTESES permitir uma aplicabilidade
(a Hipótese ajuda a impor
SUAS FUNÇÕES adaptada a outras pesquisas
um recorte ao Tema) ——————————————————
PRINCIPAIS (possibilitando, desta forma, o avanço ou o
enriquecimento do conhecimento científico)
3. FUNÇÃO
INTERPRETATIVA
Propor uma possível solução
5. FUNÇÃO
para o Problema investigado
COMPLEMENTADORA
4. FUNÇÃO ARGUMENTATIVA Preencher lacunas do conhecimento
——————————————————
Desencadear inferências e funcionar (ao propor explicações provisórias)
como pontos de partida para deduções
——————————————————

(encaminhamento do método
hipotético-dedutivo de raciocínio)

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Uma hipótese é norteadora precisamente porque arti‑ incluídos nas hipóteses). Se a hipótese não está articula‑
cula as diversas dimensões da pesquisa, funcionando da a algum dos aspectos do tema, ou ela é irrelevante, ou o
como um verdadeiro ponto nodal no qual se encontram recorte temático da Pesquisa não foi bem formulado com
o tema, a teoria, a metodologia e os materiais ou fon‑ relação ao que se pretendia verificar com a pesquisa. Por
tes da pesquisa. Um bom teste para verificar se estamos isto, para evitar as armadilhas de investir em uma hipótese
no caminho certo no que se refere à formulação de hi‑ inútil, desarticulada, ou irrelevante — isto é, uma hipótese
póteses é ir já associando cada hipótese aos seus pos‑ que não irá cumprir adequadamente a sua “função norte‑
síveis procedimentos de verificação ou às metodologias adora” — uma excelente estratégia é organizar imagina‑
a serem empregadas, aos materiais a partir da qual esta riamente uma espécie de quadro associando as hipóteses
verificação poderá ser empreendida, para além da sua aos procedimentos metodológicos, fontes e aspectos teó‑
base teórica e da sua articulação com o tema. Bem en‑ ricos com ela relacionados. Digamos, por exemplo, que
tendido: se não existem fontes e metodologias adequa‑ a sua pesquisa desenvolve­‑se em torno de três ou quatro
das para comprovar a hipótese, ela será inútil, pois não hipóteses, cada uma delas com os seus próprios procedi‑
ultrapassará o estado de mera conjectura. Se não exis‑ mentos e possibilidades de documentação comprobató‑
tir uma articulação teórica, há também algo errado (no ria. O quadro de articulação das hipóteses com os demais
mínimo, é preciso definir todos os termos importantes aspectos da pesquisa poderia ser algo assim:

Quadro 2
Tabela para registrar a articulação da Hipótese com outras dimensões da pesquisa

Fontes Metodologias Articulações teóricas Articulações com o tema


a serem utilizadas a serem empregadas (ex: conceitos com os quais (ex: fatores levados em
na comprovação a hipótese dialoga) consideração)
hipótese 1
hipótese 2
hipótese 3
hipótese 4

Mais adiante voltaremos a este quadro, exemplificando tentar entender como impérios tão bem organizados
com uma situação concreta. Por ora, retornemos às múl‑ como o dos astecas e o dos incas, habitados por milhões
tiplas funções da Hipótese na pesquisa. Além de impor de nativos, foram derrotados por apenas algumas cente‑
uma direção à pesquisa relacionando­‑se previamente aos nas de soldados espanhóis em tão curto espaço de tem‑
procedimentos metodológicos e recursos teóricos e do‑ po e com tão aparente facilidade1.
cumentais que serão empregados, as hipóteses cumprem As hipóteses que têm sido propostas como respostas
a finalidade de “restringir o campo de pesquisa”, impon‑ possíveis a este problema são muitas, “indo desde a infe‑
do um recorte mais específico ao Tema. Neste sentido, a rioridade do armamento indígena (Las Casas), até as di‑
hipótese possui uma “função delimitadora” (2). visões políticas no interior desses impérios (Bernal Díaz,
Assim, por exemplo, estudar a Conquista da Amé‑ Cieza de León); desde os erros de estratégia militar apon‑
rica (processo histórico que se dá a partir do século tados para explicar a derrota de Atahualpa em Cajamarca
XVI com a expansão espanhola e portuguesa através (Oviedo), até as sofisticadas explicações dos estudiosos
das grandes navegações) constitui uma temática muito modernos que consideram a derrota dos índios como
ampla, ou mesmo vaga. Para saltar da condição insatisfa‑ conseqüência de sua incapacidade de decodificar os sig‑
tória do investigador que tem diante de si um panorama nos dos conquistadores (Todorov)” (Bruit, 1994, p. 18).
de inúmeras possibilidades — e entrar na condição de Ora, a mera delimitação do problema acima propos‑
uma investigação concreta a se realizar — será preciso to já impõe um primeiro recorte ao tema mais amplo da
delimitar dentro deste campo temático um sistema de Conquista da América. Com um problema formulado,
problema e hipótese. Vejamos alguns desdobramen‑ o historiador abandona esse universo ainda vago e am‑
tos desta exemplificação. Na História da Conquista da plo que é a temática da Conquista da América como um
América, um dos problemas mais intrigantes e fascinan‑ todo, e começa a se direcionar para algo bem mais es‑
tes que têm sido enfrentados pelos historiadores é o de pecífico. Em seguida, a escolha de uma ou de algumas

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hipóteses combinadas como soluções provisórias ou Todorov a examinar com especial atenção fontes como
como caminhos para a pesquisa delimitarão ainda mais aquelas que foram produzidas pelos nativos astecas
o recorte temático. Desta maneira, quando Todorov no período imediatamente subseqüente à Conquista
formulou a hipótese da rápida e dramática derrota dos (relatos produzidos por astecas no período imediata‑
nativos mexicanos como conseqüência de sua “incapa‑ mente subseqüente à Conquista; Cantares Mexicanos
cidade de decodificar os signos dos conquistadores” e do período, entre outras fontes). Por outro lado, era
de assimilar a alteridade radical com a qual se confron‑ preciso confrontar estas fontes — representativas do
taram diante da chegada dos espanhóis, estava abrindo ponto de vista asteca, embora em alguns casos com
uma espécie de trilha em uma floresta de possibilidades. mediações — com fontes representativas do ponto de
Esta trilha, na verdade, conduziria o estudioso búlgaro a vista dos conquistadores espanhóis, como é o caso das
investigar aspectos relacionados ao imaginário, ao con‑ famosas “Cartas de Hernan Cortês ao rei de Castela”².
fronto entre as visões de mundo de conquistadores e Esta combinação de fontes permitiria compreender
conquistados, aos sistemas de signos em confronto. Da mais de perto o “choque cultural” entre as duas civili‑
mesma forma, este recorte transversal no tema apontaria zações, e as reações das partes envolvidas diante deste
para a possibilidade do uso de metodologias que dia‑ confronto (Todorov, 1993).
logam com a lingüística, com a semiótica, com a antro‑ Articulando convenientemente os aspectos acima
pologia, ou mesmo com a psicanálise, que são precisa‑ considerados, a iluminação de uma problematização
mente os campos de saber que colocam em movimento pertinente à Conquista da América, a partir de uma hi‑
aspectos discursivos, simbólicos, comportamentais. pótese bem colocada e inovadora, conduziu Todorov a
Também a escolha das fontes, que deveriam incluir produzir um dos mais interessantes livros sobre o assun‑
textos a partir dos quais fosse possível acessar tam‑ to escritos nos últimos tempos. A título de exemplifica‑
bém o discurso dos nativos mexicanos, surgiu aqui de ção, poderia ser elaborado para a Hipótese proposta por
maneira mais ou menos conseqüente — conduzindo Todorov o seguinte quadro:

Quadro 3
Articulação da hipótese de Todorov com outras dimensões da Pesquisa

Hipóteses Fontes Metodologia Articulações Teórica


A rápida e devastadora sujeição de mi‑ . Os Informantes de . Análise Semiótica Conceitos de
lhões de astecas por apenas algumas Sahagun . Abordagem comparativa . “choque cultural”
centenas de conquistadores espanhóis . Cantares Mexicanos . “alteridade”
explica-se, sobretudo, pela incapaci‑ . Cartas de Hernán Cortês
dade de os astecas assimilarem o “cho‑ . Crónica de Bernál Díaz
que cultural” produzido no confronto
entre as duas civilizações, e pela sua
incapacidade em decifrar os códigos
dos conquistadores.

O exemplo discutido nos oferece, certamente, um bom UM PROBLEMA E SUAS DIVERSAS HIPÓTESES
exemplo das funções “norteadora” e “delimitadora” de
uma hipótese de pesquisa. Estas funções articulam­‑se, Retomaremos como exemplificação o problema da Con‑
naturalmente, com a função básica da Hipótese que é quista da América. O “Quadro 4” (na página seguinte)
a de “propor uma possível solução para o Problema procura esquematizar o problema proposto — o da su‑
investigado”, e que poderíamos denominar “função in‑ jeição de milhões de nativos meso­‑americanos organi‑
terpretativa” (3). A este respeito, é preciso lembrar que zados em impérios desenvolvidos como o dos astecas,
um problema científico, sobretudo na área das ciências em tão pouco espaço de tempo e para apenas algumas
humanas, nem sempre apresenta uma única solução. centenas de conquistadores espanhóis.
Isto pode ocorrer com problemas matemáticos, mas não Pergunta­‑se pelo fator ou pela combinação de fato‑
com estudos sociais que envolvem complexas questões res que teriam favorecido este acontecimento, tão sig‑
de interpretação e leituras produzidas na interação entre nificativo para o destino subseqüente do continente.
sujeito e objeto de conhecimento. No quadro proposto, o Problema apresentado ocupa a

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Quadro 4
A Conquista da América: Um problema e algumas hipótese

A sujeição
de impérios meso-
americanos extremamente
organizados, habitados por
milhões de nativos, em tão
pouco espaço de tempo e por
apenas algumas centenas
de conquistadores
espanhóis,

7. Doenças trans‑

1. Coragem, Determinação DEVEU-SE mitidas pelos espanhóis


para as quais os nativos não
e Habilidade dos espanhóis possuíam capacidade de
resistência orgânica

6. Choque cultural
entre espanhóis e meso-
2. Superioridade bélica americanos, que teria desfa‑
dos espanhóis vorecido estes últimos devido
a uma menor capacidade de
lidar com a alteridade

5. Aspectos da mitologia
3. Superioridade dos dos povos meso-americanos,
espanhóis em estratégia que favore­ceram a identifi‑
militar cação os conquistadores
4. Divisões políticas espanhóis com deuses
no interior destes impérios
que favoreceram ou foram
exploradas habilmente
pelos espanhóis

parte de cima da imagem, enquanto a parte de baixo, em a sujeição de milhões de nativos meso­‑americanos, orga‑
sombreado, corresponderá às diversas hipóteses que se nizados em impérios centralizados e desenvolvidos como
apresentam como soluções satisfatórias para a questão o dos astecas, em curto espaço de tempo e para apenas
imaginada, ou ao menos como caminhos de investigação algumas centenas de soldados espanhóis,… deveu­‑se fun‑
possíveis. Basta substituir o segundo termo (depois das damentalmente à dificuldade dos astecas em lidar com a
reticências…) por qualquer das alternativas propostas, alteridade e com o choque cultural produzido pelo seu
ou por uma combinação de duas ou três das alternati‑ contato com os conquistadores.
vas propostas, e teremos diversas possibilidades para o
mesmo problema. O círculo no topo enquadra o pro‑ Em diversas ocasiões uma hipótese apresenta este tipo
blema proposto, que é também a primeira parte de uma de formato redacional, particularmente as que buscam
hipótese a ser redigida. Por debaixo, são apresentadas compreender as relações entre um acontecimento ou fe‑
algumas respostas possíveis para o problema, que cons‑ nômeno e os fatores dominantes que o tornaram possí‑
tituem a segunda parte da redação proposta para a Hi‑ vel. O próprio problema pode aparecer neste caso como
pótese a ser formulada. Assim, uma das várias hipóteses o primeiro termo da hipótese, e a solução provisória ou
indicadas no esquema (a hipótese de Todorov a que já resposta antecipada pode corresponder ao termo sub‑
nos referimos) poderia ser redigida da seguinte forma: seqüente. Por ora, o aspecto importante a ressaltar —

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com relação à exemplificação que propomos — é que Quando se propõe que havia previamente uma guerra
inúmeros historiadores têm proposto para o problema civil indígena que enfraquece o império asteca, e que daí
da Conquista da América diversas hipóteses, como estas surgem condições para os espanhóis impingirem sua
ou outras, e, ainda mais freqüentemente, combinações dominação, desloca­‑se o conquistador espanhol para
de hipóteses que buscariam dar uma explicação com‑ uma espécie de papel coadjuvante, e faz­‑se dos astecas
plexa ou multifatorial para o problema formulado. Para e seus inimigos indígenas os atores centrais da trama. A
sustentar as hipóteses propostas, estes historiadores têm história é contada do ponto de vista asteca, e a chegada
desenvolvido argumentações diversificadas, apoiando­ dos espanhóis entra como um acontecimento externo, e
‑se em fontes diversas, analisando­‑as com metodologias não o contrário⁵.
variadas, e abordando o problema a partir de quadros Já mencionamos a célebre hipótese de Todorov so‑
teóricos específicos. bre o choque cultural, que, embora impactante para as
A bem dizer a formulação de hipóteses explicativas duas civilizações, teria favorecido no fim das contas os
diversas para o processo da Conquista da América co‑ espanhóis, Afinal, os astecas até o momento da chegada
meça a ocorrer já desde a época dos acontecimentos. dos espanhóis à América não conheciam senão povos
Bernal Diaz, que acompanhou a expedição de Cortês, relativamente parecidos com eles mesmos. Já os espa‑
dá o ponto de partida nas hipóteses que procuram ex‑ nhóis, àquela altura de sua história, já conheciam popu‑
plicar o sucesso da Conquista em termos de uma extre‑ lações muito distintas das populações européias, como
ma habilidade e coragem dos conquistadores espanhóis, as asiáticas, africanas, islâmicas. Os espanhóis, por as‑
o que é compreensível, uma vez que este historiador e sim dizer, tinham uma inegável experiência maior com
participante da expedição não poderia senão defender o a alteridade.
ponto de vista dos conquistadores espanhóis. Bem mais Possivelmente, nunca se chegará a uma explicação da
tarde, no século XIX, veremos ressurgir vigorosamente Conquista da América que seja considerada mais perti‑
esta hipótese que buscava essencialmente enaltecer os nente do que todas as outras. Na verdade, a elaboração
conquistadores, particularmente com o setor da histo‑ do conhecimento histórico consiste precisamente neste
riografia que ficou conhecido como responsável por permanente re­‑exame do passado com base em deter‑
produzir uma “História dos Grandes Homens” — essa minadas fontes e a partir de determinados pontos de
história na qual os grandes personagens históricos eram vista. As hipóteses na História ou nas Ciências Sociais
os principais responsáveis pelos acontecimentos. As‑ dificilmente podem adquirir a aparência de verdades
sim, William Prescott, um historiador que escreve sobre absolutas (se é que existem verdades deste tipo), porque
a Conquista da América em 1843 (Prescott, 1909), iria há um espaço muito evidente de interpretação a ser pre‑
atribuir o sucesso da empresa da Conquista da América enchido pelo historiador ou pelo sociólogo na sua refle‑
às façanhas de Cortês e de seus homens, e mesmo no sé‑ xão sobre problemas sociais do presente ou do passado.
culo XX, quando ocorreria uma crítica contumaz à His‑ Em tempo: o que pode ser confirmado como afirmações
tória dos Grandes Homens, esta hipótese ainda estaria indiscutíveis são determinados dados ou enunciados
sendo reformulada algumas vezes³. empíricos, mas não as proposições problematizadas que
Já a hipótese da “superioridade bélica” (2) — que em relacionam ou interpretam estes dados empíricos⁶.
alguma medida deve entrar em qualquer análise sobre Em suma, vimos até aqui que as hipóteses desempe‑
a Conquista da América — não poderia rigorosamente, nham funções importantes para o encaminhamento de
sozinha, explicar a rapidez do processo e a intensidade uma pesquisa específica a ser realizada. Elas cumprem
da devastação, e nem tampouco o fato contundente de simultaneamente os papéis norteador (servindo de guias
que os espanhóis tiveram de enfrentar uma descomu‑ à investigação), delimitador (recortando mais o objeto
nal desproporção diante de milhões de astecas contra da investigação) e interpretativo (propondo soluções
apenas algumas centenas de soldados espanhóis. Essa provisórias para um problema). Mas, para além disto, as
hipótese, importante mas não suficiente, dificilmente hipóteses ainda desempenham dentro de um trabalho
pode ser convincente quando não articulada a outras, científico específico uma importante função argumen-
como por exemplo a hipótese indicada com o número tativa (4).
“4”, e que postula que “divisões políticas no interior das Assim, de acordo com o método de raciocínio
sociedades astecas favoreceram ou foram exploradas ha‑ “hipotético­‑dedutivo”, as hipóteses devem atuar como
bilmente pelos espanhóis”. Aliás, existem nuances pos‑ focos para o desencadeamento de inferências — no
síveis dentro desta mesma hipótese. Quando se diz que sentido de que das suas conseqüências vão ser geradas
os espanhóis souberam explorar as divisões existentes novas proposições, e de que estas mesmas proposições
nas sociedades mexicanas e as rivalidades recíprocas en‑ desdobradas da hipótese original também irão produzir
tre alguns povos da região, coloca­‑se os conquistadores novas inferências. Esta formação de uma série articula‑
espanhóis no centro do palco, como atores principais, da de enunciados, na qual cada um vai precedendo a
e escreve­‑se uma história do ponto de vista europeu⁴. outros de maneira lógica, consiste no que se denomina

sísifo 7 | josé d’assunção barros | as hipóteses nas ciências humanas considerações sobre a natureza… 157
“demonstração”. É aliás esta “função argumentativa” As três próximas funções a serem comentadas (Qua‑
da Hipótese o que autoriza seu sentido etimológico de dro 1, parte não sombreada) correspondem ao papel da
“proposição subjacente” — de proposição que se coloca Hipótese não apenas dentro de uma única pesquisa to‑
embaixo de outra. Toda hipótese apresenta grosso modo mada isoladamente, mas dentro do conjunto maior da
isto que podemos chamar de uma “potência inferencial” ciência. Falaremos por um lado da potencialidade de
(capacidade de dar origem a outras proposições). É des‑ algumas hipóteses para preencher lacunas do conheci‑
ta potência inferencial das hipóteses, em articulação às mento, e por outro lado de hipóteses que, por algumas
verificações empíricas, que vive o discurso científico. razões, acabam fazendo uma interligação entre várias
A “função argumentativa” da hipótese é desempe‑ pesquisas — seja por desdobramento de suas possibi‑
nhada, por outro lado, não apenas a partir dos desdo‑ lidades em outras pesquisas, seja por sua capacidade
bramentos de suas conseqüências, mas também através de aglutinar séries de dados empíricos produzidos por
da articulação destes desdobramentos com outras hipó‑ pesquisas diversas.
teses, de modo que duas ou mais hipóteses combinadas Em primeiro lugar consideraremos que hipóteses
também podem produzir novas inferências. Um exem‑ bem fundamentadas, mesmo que não possam ainda ser
plo de articulação lógica de enunciados hipotéticos plenamente comprovadas ou refutadas, podem apresen‑
é apresentado na obra O Suicídio de Émile Durkheim tar a significativa função de “preencher lacunas do conhe‑
(Durkheim, 1999). O problema constitui­‑se em torno de cimento”. A hipótese tem neste sentido uma espécie de
uma indagação acerca da dimensão social do suicídio, função complementadora (5). Notadamente para períodos
examinando­‑o não apenas como um evento individual, mais recuados do passado, quando começam a escassear
mas como um fenômeno social que se expressa através as fontes e as informações disponíveis, o historiador pode
do indivíduo. Cumpre investigar as motivações e as im‑ ser conclamado a preencher estes silêncios e vazios de
plicações suicídio para a experiência humana. Em pri‑ documentação, até que a sua interpretação provisória seja
meiro lugar, apresenta­‑se a hipótese de que o suicídio substituída por uma outra que tenha encontrado bases
é motivado por tensões e ansiedades não aliviadas (a). mais seguras de sustentação. De igual maneira, o cientista
Depois é proposta uma hipótese que logo virá convergir social pode se valer de procedimentos análogos para pre‑
para o problema: a “coesão social” de um grupo propor‑ encher os silêncios sociais de seu próprio tempo, ou as
ciona mecanismos para aliviar ou combater as tensões e dificuldades de acesso a fontes e dados.
ansiedades vivenciadas por alguns indivíduos (b). Em Este papel desempenhado pela hipótese no sentido
seguida, aventa­‑se a hipótese de que determinados tipos de preencher espaços vazios do conhecimento não é
de grupos sociais possuem maior coesão social do que estranho à Ciência de uma maneira geral. Sabe­‑se por
outros (uma forma de religião em contraste com outra, exemplo da existência dos intrigantes “buracos negros”
por exemplo) (c). Logo, será possível prever um índice do espaço cósmico, mas como não existem atualmente
menor de suicídios naqueles grupos de maior coesão maiores possibilidades de compreender de forma fun‑
social quando comparados com o de menor coesão (d). damentada estes fenômenos astronômicos, ou de pro‑
Naturalmente que esta cadeia de inferências a partir de duzir experimentos para testar a natureza dos “buracos
hipóteses convergentes foi sustentada nesta síntese abre‑ negros”, os cientistas não raro formulam teorias provi‑
viada de maneira exclusivamente argumentativa. Em uma sórias sobre a questão. Especula­‑se, também em forma
pesquisa, a “demonstração lógica” deve vir imbricada de hipóteses, sobre a “origem do universo” (como na
com uma “verificação empírica”. Os suportes empíricos célebre teoria do Big Bang). As próprias lacunas de co‑
devem precisamente sustentar cada uma das afirmações nhecimento concernentes à “origem do Homem” têm
com dados concretos. Pode­‑se, por exemplo, propor um gerado sucessivas hipóteses na Ciência e na Religião:
método qualquer para a mensuração de aspectos relativos o homem como criação direta de Deus (Gênesis), o ho‑
à “coesão social” em um tipo de grupo humano específi‑ mem como descendente evolutivo do macaco (Darwin),
co (os membros de uma comunidade católica, por exem‑ o homem como descendente de um “elo perdido” que
plo). Depois, quantifica­‑se os índices de suicídio neste teria dado origem simultaneamente à ramificação huma‑
grupo. Procede­‑se com as duas operações anteriores para na e à ramificação dos demais primatas (retificações na
um outro tipo de grupo que produza uma comparação Teoria da Evolução), o homem como pertencente a uma
pertinente (os membros de uma comunidade protestante, matriz evolutiva independente da do macaco (pesqui‑
por exemplo). O confronto entre os índices obtidos para sas recentes). Em cada um destes casos, uma hipótese
cada grupo, tanto os indicativos de “coesão social” como preenche um vazio gerado pela inquietação diante das
os que se materializam em taxas de suicídios, permitirão origens humanas.
confirmar ou refutar a idéia de que as suposições propos‑ Outro tipo de hipóteses que transcendem o mero âm‑
tas produzem efetivamente uma articulação pertinente (a bito da pesquisa onde foram geradas refere­‑se àquelas
hipótese articuladora de que a “coesão social” é inversa‑ que, uma vez propostas, revelam um potencial de “apli‑
mente proporcional à “quantidade de suicídios”). cabilidade a outras pesquisas”. A hipótese vem aqui

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desempenhar uma função multiplicadora (6). Quando O que Burgess fez, neste caso, foi construir — atra‑
se desenvolve para um estudo de caso específico uma vés da mediação de uma hipótese adequada — uma ge‑
argumentação bem fundamentada em torno de determi‑ neralização que enquadraria as várias “uniformidades
nada hipótese, provando­‑se a sua pertinência, pode ser empíricas” percebidas. Dito de outra forma, o sociólo‑
que esta hipótese venha a se mostrar aplicável a outros go da Escola de Chicago tratou de organizar a realidade
estudos, beneficiando desta maneira outras pesquisas sob a forma do que pode ser chamado de um “tipo ideal
possíveis e o conhecimento científico de uma maneira complexo”. Goode e Hatt (Goode & Hatt, 1968, pp. 77­
geral. Assim, ao desenvolver a hipótese da importância ‑83) alertam para o fato de que este tipo de hipótese não
predominante do “choque cultural” na sujeição das so‑ deve vir acompanhado da pretensão de generalizações
ciedades astecas, Todorov abriu a possibilidade de que absolutas, devendo­‑se deixar claro desde o início que
a mesma hipótese fosse utilizada para compreender a o padrão percebido a partir de uma dada recorrência
sujeição da sociedade inca, empreendida por Pizarro de casos verifica­‑se em determinadas condições (e não
na região do Peru, ou outras situações similares. É claro em outras). Por outro lado, Lakatos e Marconi (2000,
que, para cada caso, devem ser respeitadas as singulari‑ p. 149) assinalam de maneira bastante pertinente que
dades, o que deve ficar como um lembrete importante o principal papel das hipóteses deste tipo é o de “criar
relativo às possibilidades de se importar uma hipótese instrumentos e problemas para novas pesquisas”. As‑
de um para outro campo de pesquisa. sim, a hipótese dos “círculos concêntricos” proposta
Por fim, uma última função das hipóteses é que, em por Burgess teria dado origem a outras, como a dos
nível mais amplo, elas podem se prestar à organização “círculos múltiplos” proposta por Harris e Ullman e a
ou unificação de conhecimentos já adquiridos, inclusi‑ do “crescimento axial” proposta por Hoyt. Foi a partir
ve através de generalizações destinadas a explicar certas de transformações e retificações no modelo primordial
“uniformidades empíricas” que tenham sido eventual‑ proposto por Burgess que os chamados “ecologistas so‑
mente constatadas em pesquisas diversas. Falaremos cioculturais”, como Hoyt (1939), propuseram a imagem
aqui de uma função unificadora (7). Pode se dar o caso de uma cidade dividida em setores triangulares — como
em que uma hipótese explicativa contribua para dar as fatias de um bolo — observando que em diversos ca‑
sentido seja a um certo conjunto de dados, seja a um sos setores triangulares inteiros perdem prestígio social
conjunto de outras hipóteses. Um exemplo poderá es‑ à medida que se aproximam da periferia.
clarecer este uso das hipóteses explicativas. Já a Hipótese dos “núcleos múltiplos”, por outro
Várias pesquisas sobre crescimento urbano, toman‑ lado, questiona a própria idéia de um “centro único”, o
do como campo de estudos as cidades americanas, le‑ que corresponderia na verdade a um modelo de visua‑
varam alguns estudiosos da chamada Escola de Chicago lização que nem sempre condiz com a vida urbana. As‑
e outros sociólogos à percepção de um certo padrão de sim, Harris e Ullman (1945) procuraram assinalar a na‑
crescimento das cidades, particularmente no que con‑ tureza compósita da cidade, que estaria fundada sobre
cerne à distribuição da população (Burgess, Park & núcleos diferenciados. Buscavam conciliar desta forma,
McKenzie, 1925). Diante das uniformidades empíricas contestando­‑as no essencial, a idéia original de Burgess
percebidas, alguns autores procuraram formular hipóte‑ acerca de uma evolução concêntrica e a proposta de
ses que correlacionassem estes fenômenos — entre eles crescimento por fatias triangulares aventada por Hoyt.
Ernest Burgess, que elaborou a sua célebre hipótese dos Este exemplo pode nos ajudar a perceber que as
“círculos concêntricos”. hipóteses também têm uma função significativa como
Para sustentar sua hipótese original, Burgess idea‑ organizadoras, mesmo que provisórias, dos próprios
lizou seu famoso “ideograma de desenvolvimento ur‑ dados empíricos produzidos através do conhecimento
bano”, onde o crescimento se verifica em torno de um científico. Funcionam, neste caso, como compartimen‑
núcleo de pontos focais que se constitui predominan‑ tos que retêm de maneira organizada e coerente estes
temente pelas atividades comerciais e industriais. O dados, ou como “criadoras de sentido” que imprimem
esquema é naturalmente válido no âmbito das cidades novos significados a conhecimentos construídos a partir
tipicamente americanas da modernidade (mas não no de pesquisas diversas. Neste sentido, algumas hipóteses
âmbito das cidades européias, por exemplo), e baseia­ transcendem largamente o âmbito mais restrito de sua
‑se nos processos de “etnic sucession” e da “residential pesquisa singular, e criam unidades maiores entre várias
invasion”. A idéia básica é a de que a cidade organiza pesquisas produzidas. Não importa que em um segundo
a população a partir de zonas concêntricas, residindo a momento estas hipóteses sejam substituídas por novas
alta burguesia nos subúrbios periféricos, e neste caso a hipóteses. O importante é que através delas o conheci‑
progressão social evoluiria do centro para a periferia, de mento científico pode transitar livremente, sendo reela‑
maneira que cada grupo social vai abandonando espa‑ borado de maneira permanente.
ços mais próximos do centro e conquistando os arredo‑ É precisamente quando determinadas hipóteses con‑
res mais valorizados socialmente. seguem reunir em conjuntos maiores e coerentes uma

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diversidade de fatos, uniformidades empíricas e resulta‑ amplos do conhecimento. O enfoque nas Ciências Hu‑
dos obtidos em pesquisa — e particularmente quando se manas buscou trazer a este conjunto de observações as
mostrarem sustentáveis ou válidas as relações propostas especificidades da História, Sociologia e outros campos
para estes fatos — que ocorre a formação de uma teoria⁷. de saber.
Partindo destas relações propostas e das hipóteses pri‑
mordiais, são deduzidas novas hipóteses, de modo que
vai sendo consolidada uma nova teoria (inclusive com a Notas
elaboração de novos conceitos, sempre que necessário).
Mais uma vez podemos citar o exemplo da “Teoria 1. Sobre isto, chama atenção Fernández­‑Armesto em
da Origem das Espécies” de Charles Darwin. O que o seu artigo “Aztec’ Auguries and Memories of Conquest of
naturalista inglês fez foi precisamente reunir uma série the México” (1992). Ver também Restall, 2006.
de fatos e dados construídos a partir da observação da 2. Entre as fontes produzidas pelos próprios astecas
natureza sob a orientação de algumas novas hipóteses, em momento próximo à Conquista estão, por exemplo,
como a da “luta das espécies” e a da “seleção natural”. os depoimentos produzidos sobre a orientação do fran‑
Em seguida, sendo validadas por um determinado se‑ ciscano Bernardino Sahagun, que em 1579 coordena a fei‑
tor de cientistas as suas observações sistematizadas (não tura em náuatl de uma primeira versão destas fontes que
sem enfrentar resistências), o conjunto de hipóteses ficaram conhecidas como Os Informantes de Sahagun.
proposto saltou para o status de “teoria” — considerada Estes relatos foram publicados, e possuem, inclusive, tra‑
aqui como um corpo coerente de hipóteses e conceitos dução em português (Leon­‑Portilla, 1987). Cinco anos
que passam a constituir uma determinada visão científi‑ mais tarde, Sahagun produz uma nova versão, retificando
ca do mundo. a anterior, na qual já aparece um discurso menos autêntico
Foi também o que fizeram os sociólogos da Escola de um ponto de vista estritamente asteca, o que deve ser
de Chicago ao reunirem suas hipóteses, deduções, e ex‑ atribuído aos interesses franciscanos naquele momento,
plicações para certas uniformidades empíricas em uma bem articulados com setores espanhóis ligados à Con‑
teoria da “Ecologia Urbana” — que por sinal tem ele‑ quista (Sobre isto ver Cline, 1988). Portanto, as diferenças
mentos de transposição para o campo social de alguns entre uma e outra deixam rentrever aspectos ideológicos
aspectos da “Teoria da Origem das Espécies” proposta produzidos na interação entre a Igreja e a Coroa Espa‑
por Darwin. Aqui se percebe que uma teoria pode dar nhola. Também as Cartas de Hernan Cortês ao Impera-
origem a outras, através da incorporação de novas hi‑ dor da Espanha, relatórios que trazem o ponto de vista dos
póteses ou de novos desdobramentos de hipóteses, ou conquistadores, mereceram publicações (Cortez, 1996).
através da transferência de certos sistemas hipotéticos e Igualmente sintonizadas com este ponto de vista são as
conceituais para outros campos de aplicação (do campo crônicas de Bernal Díaz, que participou da expedição de
natural para o social, por exemplo). Cortês e publicou uma Historia Verdadera de la Conquista
De resto, deve ser lembrado que um enunciado teó‑ de la Nueva Espana (1632). Para mais um apoio ao ponto
rico deve ser considerado sempre em relação à teoria à de vista asteca, pode­‑se buscar os Cantares Mexicanos,
qual ele se articula. Um enunciado que em um momento, produzidos na mesma época (Bierhorst, 1985).
ou dentro de um determinado referencial teórico, pode 3. É o caso do livro de Hugh Thomas intitulado Mon-
ser considerado uma hipótese, em outro momento pode tezuma, Cortês e a Queda do Velho México, que — ao basear
ser considerado uma lei, e em um terceiro momento ser sua análise em fontes espanholas, sem filtrar seu ponto
encarado como uma conjectura. Assim, a hipótese da de vista — termina por reforçar esta mesma hipótese de
“seleção natural”, por exemplo, é considerada lei dentro valorização da habilidade dos conquistadores como fator
da “Teoria da Origem das Espécies” de Darwin, é con‑ principal que assegura a rapidez com que os espanhóis
siderada um princípio que deve ser combinado a outros submetem os astecas (Thomas, 1995).
fatores na “Teoria Sintética ou Moderna da Evolução”, 4. Este é o ponto de vista transmitido por Bernal Díaz,
e é considerada uma conjectura ou hipótese refutada na quando aborda a questão da aliança dos espanhóis com
“Teoria do Planejamento Bio­‑molecular Inteligente” de povos indígenas inimigos dos astecas.
Michael Behe (Behe, 1997). 5. Esse
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é o ponto de vista, e o modo de narrar, que apa‑
Para além dos usos discutidos neste artigo acerca das rece nos cantares indígenas (Bierhorst, 1985).
hipóteses de pesquisa, que na prática historiográfica e 6. Assim, é indiscutível que milhões de nativos meso­
sociológica adquirem tanta relevância, o quadro de fun‑ ‑americanos foram submetidos pelos espanhóis nas pri‑
ções atrás elaborado procurou destacar o papel decisivo meiras décadas do século XVI. Mas as razões e implica‑
das hipóteses na Pesquisa Científica de um modo geral ções deste fato serão sempre rediscutidas.
— tanto no que se refere a um trabalho específico que 7. É neste sentido que Goode e Hatt afirmam que
se realiza (uma Tese, um texto argumentativo, um Pro‑ as hipóteses podem formar um elo entre fatos e teorias
jeto de Pesquisa), como no que se refere a aspectos mais (Goode & Hatt, 1968, p. 74).

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Memories of Conquest of the México. Renaissance obras mais recentes contam­‑se os livros O Campo da História
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Goode, W & Hatt, P. K. (1968). Métodos em Pesquisa So- (Petrópolis: Vozes, 2005) e Cidade e História (Petrópolis: Vo‑
cial. São Paulo: Companhia Editora Nacional. zes, 2007). O autor possui livro publicado na área de Metodo‑
Harris, Ch. & Ullman, E. L. (1945). The Nature of Cit‑ logia Científica direcionada a História e Ciências Sociais, no
ies. Annales of American Academy of Political and So- qual discute aspectos relacionados a Pesquisa, tal como o que
cial Science, CCLII. New York, pp. 15­‑42. é apresentado neste artigo (Petrópolis: Vozes, 2007).

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