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FACULDADE DE DIREITO

JUSNATURALISMO CLÁSSICO RELEVANTE PARA O SÉCULO XXI


– DO DIREITO NATURAL TOMISTA (REVIGORADO POR JOHN
MITCHELL FINNIS) À TEORREFERÊNCIA: UM CONTRIBUTO
NEOCALVINISTA.

FILIPE ROSA CHAGAS FRANCISCO

Relatório de Filosofia do Direito - Mestrado em Direito e Ciência Jurídica,


menção de Ciências Jurídico-políticas, especialidade de Direitos
Fundamentais

LISBOA, 2018
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS JURÍDICO-POLÍTICAS –
ESPECIALIDADE DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

JUSNATURALISMO CLÁSSICO RELEVANTE PARA O SÉCULO XXI – DO


DIREITO NATURAL TOMISTA (REVIGORADO POR JOHN MITCHELL FINNIS)
À TEORREFERÊNCIA: UM CONTRIBUTO NEOCALVINISTA.

FILIPE ROSA CHAGAS FRANCISCO

Relatório submetido à Faculdade de Direito da


Universidade de Lisboa – FDUL, como requisito parcial à
aprovação na unidade curricular de Direitos Fundamentais.

Orientadora da disciplina: Senhora Professora Doutora


Sílvia Isabel dos Anjos Caetano Alves.

LISBOA

2018.
Resumo: na época pós-moderna em que estamos a viver, em que o contexto de pluralidade de
ideias, é cada vez maior, o abalroamento de ideias é frequente, inclusive no campo da ciência
jurídica. Entretanto, mesmo num contexto pós-moderno, em que, aparentemente, o positivismo
deveria ter sido de alguma forma rechaçado, há um esforço com grande ênfase, por parte dos
juristas para mantê-lo como única resposta válida, uma espécie de cientismo exacerbado. Nesta
ocasião, parece que já não há mais espaço para qualquer outra cosmovisão em relação às
ciências: ou o fundo é materialista/cientificista, ou não pode ser direito. Disso, supõe-se a ideia
frequente de que o direito natural perdeu sua vigência, entretanto, podemos ver, que os atuais
sistemas jurídicos, além de manter uma base sólida que remete ao direito natural (que
chamamos de padrão moral), não conseguem sustentar este alto padrão, mesmo com todo seu
cientismo, o que deixa evidente que também há falhas graves nesta perspetiva. Donde, todo
essa estrutura, nos leva a perguntar: será o direito natural relevante para os dias atuais? ele pode
nos oferecer algo, ainda hoje? e, qual a fonte destes direitos? Direcionados pela investigação de
John Finnis e o direito natural em Aquino e também, o contributo do neocalvinismo, iremos
investigar esse assunto tão complexo e contagiante e assim, tentar responder as questões ora
suscitadas.
Palavras-chave: Jusnaturalismo. Bem comum. Florescimento humano. Razoabilidade prática.
Neutralidade
Abstract: In the post-modern times that we are living, the context of plurality of ideas is
increasing and the collision of ideas is frequent, even in the field of legal science. However,
even in a post-modern context, im which the positivism would have been rejected, there is an
effort on the part of the jurists to keep the positivim as the only valid answer, which is a kind
of exacerbated scientism. Thus, it seems that there is no longer space for any other worldview
in relation to the sciences: or the context is materialistic / scientistic, or it cannot be in the law
field. From this, we assume the frequent idea that natural law has lost its validity, however, we
can see that the current legal systems, besides maintaining a solid base that refers to natural law
(which we call the moral standard), cannot sustain this high standard, even with all its scientism,
which makes it clear that there are also serious flaws in this perspective. With this, this whole
structure leads us to ask: is natural law relevant to the present day? Can it offer us something
still today? What is the source of these rights? Guided by the research of John Finnis and by
natural law in Aquino and also by the contribution of neocalvinism, we will investigate this
very complex and contagious subject and thus try to answer the questions raised here.
Key-words: Jusnaturalism. Common Good. Human Flourishing. Practical.
Reasonableness. Neutrality.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO. ....................................................................................................................... 4

I. DO MITO DA NEUTRALIDADE CIENTÍFICA ............................................................. 9


I.1. Positivismo e Cientificismo ............................................................................................... 12
I.2. É possível desenvolver um positivismo neutro? ................................................................ 18
I. 3 Sistemas de crenças e proposições científicas.................................................................... 20

II – CONTEXTUALIZAÇÃO DO JUSNATURALISMO CLÁSSICO ............................ 25


II.1 – O Jusnaturalismo e o mundo utópico .............................................................................. 26
II.2 Outras críticas ao jusnaturalismo ....................................................................................... 28
II.3 Respostas do jusnaturalismo .............................................................................................. 32

III - O DIREITO NATURAL PARA JOHN MITCHELL FINNIS .................................. 45


III.1 Dos Bens Humanos Básicos ............................................................................................. 45
III.2 Da Razoabilidade Prática e seus requisitos ...................................................................... 62

IV- UMA VISÃO DE GOVERNO EQUILIBRADA MEDIANTE UM


JUSNATURALISMO POSITIVISTA. ................................................................................. 69
IV.1 Comunidade plena ............................................................................................................ 69
IV.2 Governo de todos ou de alguns? ...................................................................................... 71
IV.3 Autoridade e Estado de Direito ........................................................................................ 71
IV.4 Obrigação e leis justas e injustas ...................................................................................... 73
IV.5. Lex iniusta non est lex: uma preocupação do jusnaturalismo neoclássico? ................... 76
IV.6 Um jusnaturalismo positivista? ........................................................................................ 78

V- DA TRANSPOSIÇÃO DOS BENS-BÁSICOS AUTOEVIDENTES À


TEORREFERÊNCIA ............................................................................................................ 80
V.1 Néfesh: o desejo pelo Eterno ............................................................................................. 82
V.2 Fundamento judaico-cristão para os direitos humanos...................................................... 87
V.3. O jusnaturalismo e a cosmovisão cristã: uma influência neocalvinista ............................ 89

VI – QUANDO AS COISAS NÃO CORREM BEM ........................................................... 92


VI.1 Deus e o problema da existência do mal .......................................................................... 92
VI.2 O Sofrimento na perspetiva Cristã ................................................................................... 95
VI.3. Florescimento humano para criminosos? ........................................................................ 99

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 103

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 110


4

INTRODUÇÃO.

Os dias atuais, para a ciência do direito, são preocupantes. Talvez a época das trevas não
foi a Idade Média, antes o é, este presente século. Nesse tempo e nessa cultura pós-moderna em
que tudo é relativo.

O conflito teológico/filosófico que gerou a dicotomia natureza x graça – as coisas


superiores e divinas em contraste com as coisas inferiores e humanas – culminou no
escolasticismo medieval e no cientismo e positivismo da época moderna. Sabemos que ambos
fracassaram, abrindo fissuras de magnitude extremas e tornando tudo muito propício para o
tempo tenebroso que estamos a viver, uma época pós-moderna e existencialista em que valores
não são absolutos, cada qual busca e faz o que lhe dá prazer, em que verdade é um conceito
relegado à subjetividade, às experiências são o que determinam a validade de tudo sob a
premissa carpe diem e nada mais na existência humana tem sentido, somos poeira cósmica de
passagem nesse universo que pode ou não ser cruel, mas que depois dele, nada mais haverá.

Entretanto, na mesma medida em que tudo é relativo e nada mais objetivo – mesmo
diante da exposição do fracasso de tais vertentes por filósofos da ciência, como Thomas Kum
e Michael Polayni – há uma insistência em campos científicos de resgatar um positivismo
cientista qualificando-o como uma espécie de «redentor», como se curasse toda a enfermidade
do mundo.

Esse resgatar, também é encontrado muitas vezes na ciência do direito e na positividade


da lei, sem quaisquer balizas que impõe limites a vontade do legislador. Por outro lado, nunca
se falou tanto em Direitos Humanos como nos dias atuais, nunca se falou tanto em defender
todo e cada ser humano de arbitrariedades, erradicar a fome e pobreza no mundo e maximizar
a vida, liberdade, educação, entre outros. Deixando evidente que a modernidade e os atuais
sistemas jurídicos pós-modernos não trouxeram apenas fracassos e estigmas.

Ocorre, porém, que, ao passo que temos um sistema moral absolutamente desenvolvido,
que é a busca e a defesa dos Direitos Humanos, não temos um fundamento razoável, firme e
concreto para defendê-los. Se tudo é relativo, porque preferir a vida ao assassinato? Se nada
tem sentido e a vontade do legislador é a premissa fundamental e básica sem qualquer limite,
porque ele não pode criar uma lei que autoriza matar crianças que em seu desenvolvimento até
a adolescência, apresentem alguma deficiência?
5

O facto é que, para tais respostas, necessitamos de um sistema nuclear de absolutos que
não podem ser renunciados, pois independem da vontade humana, antes, pressupõe-na.
Entretanto, onde podemos encontra-los? Será que o jusnaturalismo seria relevante para essa
discussão? Será que ele seria relevante para os dias atuais?

Sabemos que o jusnaturalismo de cariz contratualista foi em parte rechaçado, pois


nenhuma obrigação deriva do ser, ou seja, a natureza do homem, não seria suficiente para
obrigá-lo a um comportamento mais moral do que outro. Sua resposta falhou, pois tentou
excluir todo viés metafisico de sua interpretação. Entretanto, mesmo a metafísica não pode e
não tem como ser excluída por inteiro da ciência.

Por outro lado, há uma outra vertente jusnaturalista, mais antiga, porém, sofisticada, em
que os críticos, por mais que se estruturem para responde-la adequadamente, não raro se veem
em dificuldades, pois trata de bens autoevidentes e inegáveis, com a inclinação para um fim.
Esses bens, não centralizam na natureza do homem, antes na finalidade do bem e na natureza
desse bem e concretizam-se por meio de requisitos que todos estamos de um modo ou de outro
a perseguir. Este é o centro desse jusnaturalismo, um jusnaturalismo que remonta a Aristóteles
e Tomás de Aquino e na atualidade, revigorado por John Mitchell Finnis, chamado assim de
nova escola do Direito natural. É dessa teoria, que nos ocuparemos neste presente artigo.

Pode-se vislumbrar a partir disso, que será uma investigação, em parte, com um cariz
descritivo. Contudo, não nos limitaremos apenas a apresentar a teoria neoclássica do Direito
natural, avançaremos alguns passos, pois para nós, não é apenas importante saber qual a
natureza deste direito natural, mas também sua fonte, o que ao nosso ver, coaduna claramente
com o Deus da matriz judaico-cristã. Contudo, antes de explicarmos isso, compete-nos
apresentar a estrutura na qual serve como esteio para essas conclusões.

Em nossa investigação, no primeiro capítulo, partiremos da pressuposição, fundamental


de que todos, sem exceção, temos um sistema de estrutura e crenças que nos inclina para nossas
tomadas de decisões, para nossa construção de toda a realidade que nos cerca e isso não é
diferente ao se fazer direito. Donde, partiremos para desmistificação do mito da neutralidade
científica, o qual passaremos a demonstrar como que, o cientista ao produzir ciência, acaba por
imprimir sua cosmovisão de mundo e seu sistema de crenças em sua pesquisa, mesmo no campo
das ciências exatas.

Nesta ocasião será demonstrado como que foi desenvolvido essa crença absurda no
cientismo e no positivismo como o sistema que resolveria todos os problemas da humanidade
6

– e usamos a palavra crença, justamente, porque não passa disso: mero sistema de estrutura de
crenças – ocasião oportuna que investigaremos se é possível desenvolver um sistema de crenças
neutro, onde obteremos resposta obviamente negativa. Razão pela qual, por fim, seremos
conduzidos a perceber como as cosmovisões e ausência de neutralidade moldam o «fazer
científico», inclusive nas suas pressuposições de investigação, nas diversas esferas de estudo,
entre elas, o direito.

Sob esses pressupostos, estaremos preparados para ingressar o segundo capítulo de


nossa obra, que será centrado em contextualizar o jusnaturalismo clássico com suas principais
vicissitudes. Nesta altura, nos deteremos a uma das principais críticas feitas ao direito natural:
que ele ocupa o mundo das ideias, que não passa de abstrações utópicas. Ato contínuo,
apresentaremos outras críticas que o direito natural é, e sempre, foi objeto. Por fim,
apresentaremos às devidas respostas do jusnaturalismo clássico às acusações falseadas,
momento que demonstraremos como que tanto a crítica do direito natural ser uma utopia, bem
como as demais críticas, perfilham um escopo de interpretação rasa que em nada representa o
direito natural neoclássico.

Após isso, no capítulo terceiro, apresentaremos propriamente a teoria do direito natural


clássico, revigorada por John Finnis. Nesse momento, será visto como que esse filósofo do
direito de grande peso intelectual, remonta e contextualiza tão bem, àquele direito natural que
encontra seus princípios basilares nos pensamentos de Tommaso d'Aquino e Ἀριστοτέλης –
Tomás de Aquino e Aristóteles.

Nesta altura, apresentaremos os bens humanos básicos que são uma das partes nucleares
da teoria de Finnis e que se correlacionam tão bem com os modernos sistemas de Direitos
Humanos. E também, apresentaremos, outro ponto importantíssimo da teoria de Finnis – que é
inclusive, um dos bens básicos, mas que se distingue dos outros em causa, efeito e natureza, o
qual deve assim, ser tratado em subcapítulo distinto – que é a razoabilidade prática e seus
requisitos.

Após montarmos toda a estrutura inicial da teoria de Finnis, começaremos por esclarecer
suas consequências práticas, ocasião em que iremos tratar de assuntos como uma comunidade
plena de indivíduos, se o governo deve ser de todos ou de alguns, como que o Estado deve
estabelecer sua autoridade, entre outros. Tais assuntos, servirão como esteio para discutirmos o
tema de obrigação a leis justas e injustas, levando-nos àquela máxima: Lex iniusta non est lex,
porém desta vez, o direito natural por nós apresentado, demonstrará que esta máxima, é uma
preocupação secundária, subsidiária em relação ao florescimento humano e bem comum –
7

expressões próprias da teoria de Finnis. Nesta ocasião, surpresas aparecerão, como o


entendimento de que uma lei imoral, não necessariamente deva ser descumprida, com claro, a
responsabilidade do Estado rechaça-la o quanto antes.

Por fim, este abalroar de emblemas do direito natural e de sua aplicabilidade, levará
forçosamente ao grande trunfo – ao nosso ver – da teoria de Finnis: requerer e ver como
imprescindível um jusnaturalismo do tipo positivista. Obviamente, não como um positivismo
cientificista, que vê na ciência sem qualquer transcendência a resposta para todas as coisas,
antes, um positivismo que tem a inclinação em ratificar aquilo que é justo.

Assim, seguiremos a parte final de nossa obra, que é composto por dois capítulos. O
quinto, leva-nos a um certo distanciar da teoria de Finnis, pois buscamos apresentar nessa altura,
a fonte dos Direitos Humanos, correlacionando-os, ao Deus judaico-cristão. Pensamos que se
nos ocultássemos desta parte no referido artigo, além de ficar ao nosso ver incompleto, nossa
consciência seria nosso algoz, visto que, para nós, claramente o direito deriva de uma fonte
superior, mas não qualquer uma: o Deus criador do universo que deu Jesus Cristo, seu único
filho a morrer por nós pecadores.

Assim, fazemos uma transposição daqueles bens básicos autoevidentes apresentados por
Finnis à Teorreferência. Nesta ocasião, sob égide da teologia neocalvinista, desenvolvemos
nossa teoria. Destarte, começamos por mostrar como que o homem é Néfesh – fome, anseio,
desejo – e como que isso está em consonância com o ser de Deus, única fonte que a todos pode
satisfazer. Donde podemos perceber a fonte dos Direitos Humanos, como falámos e vermos
como ela se encontra tão bem expressa no Deus das Sagras Escrituras.

Por fim, podemos ver, como que a teologia que usamos como premissa e construção da
nossa análise teológico/jurídica é fundamento e influenciadora do direito natural para os dias
atuais. Assim, nos distanciamos de Finnis, de Aquino e dos Gregos, pois na nossa cosmovisão,
dois pontos divergentes são encontrados: o que ressalta a queda do homem ante ao pecado e a
dicotomia que daí decorre em separar o mundo no santo e no profano, as coisas do céu e as
coisas da terra.

Finalmente, o último capítulo do nosso artigo, circunscreve-se em uma palavra se assim


o pudéssemos dizer: esperança. Trata-se de apresentar algumas respostas aos principais desafios
daqueles que veem Deus como o autor e doador de todas as coisas, inclusive do direito. Ora,
nesta ocasião apresentaremos o antigo debate da coexistência de um Deus de amor e o problema
do mal, também apresentaremos como o sofrimento é visto por uma perspetiva cristã. E ainda,
8

terminaremos nossa investigação apresentando o direito natural na sua vertente mais prática e
humana possível: o florescimento humano para criminosos, serão brevíssimos comentários
apontando para a realidade daquilo que não apenas cremos, mas lutamos, um direito justo e que
transforme.

Concluímos nossa obra, respondendo se o Direito natural clássico é relevante para os


dias atuais.
9

I. DO MITO DA NEUTRALIDADE CIENTÍFICA

Fazer ciência1 é muito difícil. Tanto é, que para nos debruçarmos em determinada
pesquisa, não raras vezes investimos anos. Há até quem faça de determinado assunto/tema a
pesquisa da sua vida e não é uma hipérbole, sabemos de cientistas, que gastaram tudo que
tinham – recursos financeiros e emocionais, tempo, habilidade e assim por diante – em prol de
uma pesquisa. Talvez muitos assim procedam por busca de propósito ou significado para suas
vidas, ou por genuíno desejo de contribuir para o bem comum2. Independentemente da razão,
pesquisar a sério, demanda investir, doar-se, consumir-se, como bem ressaltou Martin Luther
King Jr: «se um homem não descobriu algo pelo qual morrerá, ele não está apto a viver 3», ou
seja, pesquisar implica entregar tudo de si.

E por isso iniciamos esta pesquisa com tais considerações para deixarmos claro que
nosso pequeno contributo é ainda ínfimo em relação a este assunto tão profundo, belo,
complexo, em que tantos já refletiram, escreveram, labutaram sobre ele. Contudo, «se eu pude
enxergar mais longe, foi por estar de pé sobre os ombros desses gigantes»4, ou seja, em qualquer
ideia, dedução ou proposta, estamos em dívida com uma longa linhagem de vultos históricos.

Entretanto, nosso propósito é «vermos mais longe», ainda que de forma pequena, ainda
que esse longe seja, por enquanto, insatisfatório, avançaremos, pois é assim que a pesquisa
científica nasce5. O segundo motivo de iniciarmos esta pesquisa com as ponderações
supramencionadas, é servir como escopo para as conclusões que nesse capítulo (I) extrairemos.

1
Por ciência, quero dizer, «Conjunto de conhecimentos fundados sobre princípios certos». Deriva do
latim scientia, cujo significado é «conhecimento» ou «saber». CIÊNCIA. In: Dicionário
Priberam da Língua Portuguesa, consultado em 23 de setembro de 2018, em:
«http://dicionario.priberam.org/ciência».
2
O termo «bem comum» será explanado em sua profundidade no decorrer desse artigo.
Por hora, compete-nos apenas salientar que esse termo é muito utilizado na principal obra que
aqui descreveremos, portanto de suma importância e um dos fundamentos daquilo que
denominamos de jusnaturalismo neoclássico.
3
CARSON, Clayborne; SHEPARD, Kris. A call to conscience: the landmark speeches of Dr. Martin Luther
King, Jr. New York: Grand Central Publishing, 2001, p. 67. (Tradução livre).
4
NEWTON, Isaac. [Carta] 5 fev. 1675, Cambridge [para] HOOKE, Robert. Cambridge. 2f. Discussão sobre
a teoria da luz e das cores. Simon Gratz Collection, Historical Society of Pennsylvania [recurso eletrónico].
Consultado em 27 de julho de 2018, em: «https://digitallibrary.hsp.org/index.php/Detail/objects/9792». (Tradução
livre).
5
Cfr. WEBER, Carl Emil Maximilian. A Política como vocação/a ciência como vocação. Silveira:
BookBuilders, 2017.
10

De facto, usamos o termo conclusões, para significar e expressar o nosso intento com
esse capítulo, qual seja: i) que temos convicções fundamentadas em nosso sistema de crenças6
e comprovadas por nossa volição, inclusive na própria investigação científica e ii) que isso nos
mostra que inexiste neutralidade, igualmente em tal pesquisa científica, tornando o ideal
cientificista/positivista, falacioso.

Para melhor exemplificação: estamos no início deste capítulo já a afirmar as nossas


conclusões, i.e: que inexiste neutralidade científica, ou seja, todo cientista, ao buscar ou fazer
ciência, fundamenta-se num sistema de crenças que é impresso em sua própria pesquisa. E
começamos por apresentar a conclusão, justamente porque a) nos tomamos como autoexemplo,
ou seja, nossas próprias conclusões estão fundamentadas em nosso sistema de crença (cremos
de fato na falácia da neutralidade científica) e podemos observá-la por nossos atos, como este
de escrever, e daí b) podemos denotar que a mera afirmação de qualquer leitor, de que não
estamos corretos em nossa estrutura de raciocínio, ou que não apresentamos quaisquer
pesquisas válidas para fundamentá-la, em si, a fundamenta, pois tais afirmativas seriam em si
próprias, pautadas por um sistema de crenças e c) se em qualquer momento desde a primeira
linha deste texto, até o presente, o leitor discordou ou concordou connosco, novamente a nossa
conclusão ganha força.

Toda esta ideia, pode parecer um tanto ou quanto confusa, mas o que queremos afirmar
é que o cientista, ao fazer ciência, faz opções, inclusive na seleção de dados e isso significa que
de início, suas pressuposições já estarão impressas na ref. pesquisa, ainda que o resultado seja
diferente daquele inicialmente desejado. Como bem afirmou Milford Howell, «a meu ver, a
'objetividade' não existe na ciência. Mesmo no ato de coletar dados, as decisões sobre quais
dados gravar e o que ignorar refletem a estrutura do cientista7».

É inevitável concluir que qualquer investigação não é, e nem pode ser, neutra, visto que
quando um cientista se move em direção a uma pesquisa, ele pressupõe implicitamente a
existência de, pelo menos, motivos racionais para tal, ou seja, que existe um tipo de ordem,
regulação ou estrutura mínima para investigar ou produzir, sem a qual, não faria qualquer
sentido seu investimento. Ainda que essa pressuposição não seja assimilada constantemente de

6
Quando nos referirmos a sistema de crenças, não estamos especificamente a tratar de crenças ligadas às
religiões – podendo, entretanto, contê-las – antes, estamos a falar de qualquer estrutura que molda a forma que
enxergamos todo o cosmo, estruturas estas que são guiadas por valores internos, que no fim são pautados em
convicções. Sobre isso, adiante, explanaremos melhor.
7
WOLPOFF, Milford Howell. Paleoanthropology. 2 ed. McGraw-Hill: New York. 878 pp. (Reviewed by
A. Bilsborough (2001) Clash of the Titans. Journal of Human Evolution 41:701-709 (Tradução Livre).
11

forma consciente, exemple gratia: ninguém vai ao mercado comprar leite, esperando que na
caixa contenha sumo, por mais que a maioria de nós não espreite o tipo de líquido que há dentro
da embalagem, sabemos que lá há leite, ou pelo menos que deveria haver e sabemos por causa
da informação contida na embalagem, ou pela forma ou cores da mesma. Poderíamos dizer que
o nosso saber nesse caso é condicionado por nossa experiência, mas a própria experiência está
adstrita a esse sistema de crença, não a nega; na verdade reafirma-a, pois quando nos dirigimos
ao mercado a que frequentemente costumamos ir e compramos a marca de leite que também
frequentemente compramos, cremos – mesmo que em um processo automático – que haverá
leite. Além disso, ao pagarmos o leite por exemplo com o multibanco, cremos que será retirado
saldo de nossa conta bancária e em troca poderemos levar o leite para casa, ou se pago com
dinheiro em espécie, por exemplo uma nota de 20€, faremos uma rápida conta, abatendo o valor
do leite e esperamos a devolução do saldo remanescente. Todos estes processos, por mais que
não racionalizados, todas as vezes, existem e ocorrem, são metafísicos, imateriais, mas lógicos.
O ato de racionalmente fazer contas é transcendente da matéria, mas conecta-se com ela. O ato
de esperar com convicção a entrega da caixa de leite ao efetuar o devido pagamento é também
imaterial, uma crença que se conecta nesta relação cliente/vendedor que por sua vez se
materializa na receção do bem de consumo por uma mão (a do cliente) através de outra (a do
vendedor que entrega o bem). E ainda, a crença de receber o leite ao efetuar o pagamento não
é a única: neste processo todo, como demonstrado, existe ordem, estrutura, leis lógicas que são
um quadro de pressuposições que «tem que ser aceite, pela fé, antes mesmo de se proceder a
qualquer observação e experimentação científica ou de se fazer qualquer inferência lógica 8»,
i.e., fé na respetiva ordem ou leis lógicas.

Destarte, podemos sem dúvidas dizer que o simples ato de comprar um bem de consumo,
carrega um infinito sistema de crenças e que mesmo quando estamos a tratar de ciência, estamos
a tratar também de fé.

Destarte, é a proposta central deste primeiro capítulo: deixar claro, como o cientista não
age apenas por factos objetivos e externos a ele, antes atua por meio de um sistema de crenças,
inclusive na seleção de dados. A priori, pode não parecer existir grande conexão entre os
assuntos até então discorridos, com o tema geral do presente artigo, mas como veremos,
desmistificar a neutralidade científica é um dos pilares para apresentarmos uma proposta válida

8
MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Estado constitucional e neutralidade religiosa: entre o teísmo e
o (neo)ateísmo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 106.
12

e que contribua verdadeiramente para a ciência do direito. Assim, continuemos a nossa


empreitada.

I.1. Positivismo e Cientificismo

Algo comum em toda a comunidade de indivíduos, no decorrer da história,


independentemente das divisões ou subdivisões de tais períodos, é a constante busca pela
autopreservação. Há uma inclinação natural em nós para preservarmos a nossa espécie –
obviamente que exceções sempre existiram, seja em tribos indígenas que eliminam aqueles que
nascem com algum tipo de doença degenerativa, seja o exemplo do Estado da China que por
muito tempo adotou a política do filho único e em que não raras vezes foram cometidas
atrocidades contra mães e bebés, ou recentemente a liberalização do aborto em vários
Estados. Exemplos não faltariam, mesmo que muitos utilizem o argumento de que tais atos
auxiliem a preservar a espécie, mas como veremos, na verdade são uma ofensa a bens básicos
– e essa inclinação sempre se revestiu de ideais quase como redentores da humanidade.

Por mais que alguns de nós tenham um intelecto brilhante, sejam versados nos mais
variáveis tipo de conhecimento e se doem a utilizá-los em prol do avanço humano, ainda assim,
não é tolo dizer que somos fracos e de algum modo falhamos. Falhamos em aplicar toda a
verdade, falhamos em demonstrar e fazer o bem a todo o momento, às vezes temos atitudes até
contraditórias em relação ao que defendemos9. Essa inequívoca realidade da vivência humana
quer denominada de pecado10, vício11, ou qualquer outro nome, deixa claro que o homem não
é inteiramente bom.

Esta ideia de maldade, pecado ou vício, é uma ideia fundamental na teoria do direito
natural neoclássico que iremos apresentar. Atos bons e ideais sofisticados podem nascer de um
desejo genuíno de progressão do bem e erradicação do mal, mas no decorrer desse processo se
tornar em si, mais uma forma de propagação do mal12. A nosso ver, esta inclinação corrupta,
estava também imiscuída nos ideais e filosofias basilares da modernidade.

Obviamente que o ato de produzir ciência, por mais que envolva preocupação com a
posteridade, sempre está adstrito às nuances vivenciadas no contexto e época em que foi

9
Cfr. LUNDGAARD, Kris. O mal que habita em mim. 2.ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009.
10
TRIPP, Paul David. Instrumentos nas mãos do Redentor: pessoas que precisam ser transformadas
ajudando pessoas que precisam de transformação. São Paulo: Nutra, 2016. pp. 18ss.
11
D'AQUINO, Tommaso. Summa theologiae. Tradução: Alexandre Corrêa. São Paulo: Ecclesiae, 2016. I-
II q. 71.
12
Cfr. (cap. II.3)
13

produzida ref. ciência, até porque, sem isso, não faria qualquer sentido alguém dedicar-se à
tarefa árdua de produzir ciência se essa fosse totalmente desconectada dos problemas da época.
Diante disto, entendemos que a busca positivista pelo cientificismo nasce em grande parte,
como resposta aos diversos problemas ocasionados pelo conflito antigo natureza x graça13 que
acabou por resultar no escolasticismo medieval.

Nesse período de conflito, diversos erros foram cometidos, principalmente pela Igreja,
e por isso foi o tempo de maior explosão das ideias cientificistas, o que justifica, em parte, o
nascimento e desenvolvimento das respetivas teorias, afinal, era mais uma busca do homem
limitado pela autopreservação e desejo por redenção. Não é em vão que muitos cientistas veem
o cientificismo como a resposta para todos os problemas da humanidade e há até quem afirme
que: «O objetivo da ciência é claro – nada menos que a completa interpretação do universo (…)
a ciência faz muito mais do que exigir que seja deixada na posse imperturbada qual o teólogo e
o metafísico se satisfazem em chamar de “campo legítimo. Ela alega que toda a gama de
fenómenos, tanto mentais quanto físicos - todo o universo é seu campo14». Relatos como este,
evidenciam o que alegamos anteriormente: que o pensamento moderno que nasceu em réplica
ao conflito natureza x graça, por mais que em certo sentido buscasse a preservação e o avanço
da humanidade, estava eivado de corrupção, o que é expresso de forma evidente neste anseio e
crença de redenção, por isso, por mais que eventualmente tenha nascido de um desejo legítimo,
tem ocasionado muito mais mal do que bem.

Por outro lado, não negamos que a teologia, assim como outros campos do
conhecimento, pode ser revestida de erro, pois o homem que faz ciências biológicas por
exemplo, é tão corrompido pelo pecado quanto o homem que faz teologia15. Assim, não
negamos que a Igreja errou em diversos períodos, como também vemos diversos erros na
investigação científica. No fundo, o erro, a fraqueza, é inerente a nossa natureza pecaminosa.

Destarte, pelo que até então foi exposto, é possível averiguar que existem problemas
tanto na solução escolástica medieval advinda do conflito natureza x graça, quanto na solução

13
Francis Schaeffer afirma que, «Graça [é] o nível superior, Deus o criador; o céu e as coisas celestes; o
invisível e sua influência na terra; a alma humana; a unidade [enquanto] natureza, [é] o nível inferior, a criação; a
terra e as coisas terrenas; o visível e o que fazem a natureza e o homem na terra; o corpo humano; a diversidade»
e então continua, «antes de Tomás de Aquino, dava-se esmagadora ênfase às coisas celestes, tão remotas e
transcendentes, tão santas e sublimes, representadas através de símbolos, com pouco interesse pela natureza como
tal. Com o advento de Tomás de Aquino temos o verdadeiro surto da Renascença humanista», SCHAEFFER,
Francis August. A morte da razão. 2.ed. Viçosa/MG: Ultimato, 2014. p. 15.
14
PEARSON, Karl. The grammar of science. 2nd ed. London: Adam and Charles Black, 1900. pp. 14, 24.
(Tradução livre).
15
Cfr. (cap. V.3)
14

positivista/cientificista da modernidade. Isto nos leva a uma nova pergunta: existirá uma
resposta que consiga de algum modo unificar o que parece separado: universais e particulares
– unidade e diversidade – os factos brutos com a transcendência, mesmo a despeito das
tentativas dos filósofos gregos, Aquino, Kant, Heidegger, Hegel, Kierkegaard, entre outros? Os
capítulos (V e VI) apresentarão a resposta para esta questão, principalmente para a ciência do
Direito, objeto principal do nosso interesse. Veremos que a unificação jamais poderá ocorrer
porque o problema é justamente a tentativa de unir o que nunca deveria estar separado. O
problema principal, não nasce de uma questão de valoração mecânica em detrimento da
metafísica, ou vice-versa, nasce da dicotomia entre ambas, como na dicotomia da própria
constituição do ser humano, que é um homem integral.

Pese embora respondamos a esta questão somente nos dois últimos capítulos, ela serve
como escopo para o que estamos construindo neste momento, que é justamente desmistificar o
sistema redentor cientificista, pois a ciência está tanto para a metafísica, como a metafísica
para a ciência, são interdependentes. Entretanto, essa interdependência é totalmente relegada
pelo mundo científico: «O cientificismo positivista do século XIX procurou afirmar a
exclusividade do conhecimento empírico baseado na observação e na experimentação,
supostamente objectivo e independente de qualquer visão do mundo16», ou seja, neutro, alheio
dos temas metafísicos, como Karl Larenz17 afirma:

O que, abstraindo da lógica e da matemática, é susceptível de conhecimento científico


são, na concepção positivista, os «factos» sensíveis, juntamente com as «leis» que
neles se manifestam e se comprovam na experimentação. Nesta postura revela-se
como paradigmático o modelo das ciências «exactas» da natureza. Nessa medida, o
positivismo é um «naturalismo.
Não obstante os nossos esforços até então apresentados, pode ser que o leitor não
conseguira captar o que estamos a tratar em relação ao positivismo e cientificismo. Pois bem,
o que foi dito logo acima denota porque criticamos tanto essa visão mecânica da ciência.

O positivismo surge num contexto, como ressaltamos, em que a busca de emancipação


da ciência do mundo transcendente, é uma busca constante. Entretanto, como muito próprio da
natureza humana, tal teoria acabou por cingir-se em todos os sentidos, com os piores extremos.
A mente positivista via a ciência como a resposta para todos os problemas existentes e naquela
altura, o seu desejo de redenção [da ciência] «foi buscado no pensamento matemático [:] em
um agudo contraste com a concepção grega medieval da matemática, um poder criativo foi

16
MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes, op. cit., p. 107.
17
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 7.ed. Tradução: José Lamego. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2014. p. 46
15

atribuído à análise matemática, vista como o fundamento universal da lógica18». Assim, é


importante ressaltar que a valoração das ciências exatas foi em tão grande proporção por ser
uma ciência lógica que a partir daí, foi construída toda uma interpretação científica de factos
brutos, ou seja, apenas o que é provado pelo método científico, através da investigação neutra
do investigador, pode ser chamado de ciência e é relevante para a ciência. Abstrações são
relegadas, a metafísica extirpada. Se, 2+2 é lógico, racional e tem uma resposta lógica e
racional, não vindo a necessitar (aparentemente) de quaisquer explicações transcendentais, a
ciência assim deve proceder. Isto é um tanto simplista, mas destaca bem a estrutura em que o
cientificismo foi construído – lógica, racionalismo e objetividade. Uma perfeita construção, se
fôssemos robôs! Afinal, coadunando com o que até então foi exposto, «de acordo com tal
interpretação, saber legítimo é somente aquele que pode apoiar-se nos conhecimentos aceitos
pelas ciências experimentais institucionalizadas na sociedade19».

Entretanto, cabe-nos apresentar algumas lides travados por aqueles que desejam fazer
ciência apenas a partir de factos brutos, demonstrando como é descabida tal empreitada:

As ciências matemáticas, por exemplo, conduzem aos seguintes problemas


fundamentais: o que é o número? O que é o espaço? O que é o movimento extensivo?
A física e a química conduzem ao problema: o que é energia? A biologia faz surgir o
problema: o que é vida orgânica? A jurisprudência implica o problema: qual é o modo
jurídico de experiência?20
Os problemas enunciados são problemas metafísicos, deixando já evidente que as
próprias ciências exatas são um canal condutor também para a transcendência. Afinal, deduções
lógicas e racionais das ciências exatas, não são por si isoladas, detendo correlação com valores
transcendentes, como Michael Polanyi21 explica:

Uma transição contínua da observação para a valoração pode, realmente, fazer-se


dentro da própria ciência, e, sem dúvida, dentro das ciências exatas, simplesmente
indo da física para a matemática aplicada, e depois ainda mais para a matemática pura.
Mesmo a física, embora baseada na observação, confia muito num sentido de beleza
intelectual. Ninguém insensível a tal beleza pode esperar fazer uma descoberta
importante na física matemática, ou mesmo conseguir compreender apropriadamente
as suas teorias. Em matemática aplicada – por exemplo, na aerodinâmica – a
observação é muito atenuada e o interesse matemático frequentemente predomina; e
quando chegamos à matemática pura, por exemplo, à teoria dos números, a
observação desaparece completamente e a experiência é apenas vagamente aludida na
conceção dos números inteiros. A matemática pura apresenta-se-nos com uma vasta
estrutura intelectual, construída pelo prazer de a apreciar como um lugar onde habita
a nossa compreensão. Não tem qualquer outra finalidade; quem não amar e admirar a

18
DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento do pensamento ocidental: estudos sobre a
pretensa autonomia do pensamento filosófico. São Paulo: Hagnos, 2010. pp. 100-1.
19
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2007. p. 275.
20
DOOYEWEERD, Herman, op. cit., pp. 189.
21
POLANYI, Michael. O estudo do homem. Tradução: Eduardo José Castanheira Beira. Vila Nova de Gaia
e Areias: Inovatec, 2010. pp. 38-9.
16

matemática pelo seu próprio esplendor interno, não sabe seja o que for sobre ela. E
daqui há apenas uma curta etapa às artes abstratas e à música. A música é um
complexo de sons construídos pela alegria de os compreender. A música, como a
matemática, ecoa palidamente a experiência passada, mas não tem fundamento
definido na experiência desenvolve a alegria da sua compreensão numa extensa gama
de sentimentos, só conhecida por aqueles especialmente dotados e educados para
compreender intimamente a sua estrutura. A matemática é música conceptual – a
música é matemática sensual. E assim poderíamos ir alargando a nossa perspetiva, até
que englobasse toda a escala do pensamento humano. Porque todo o universo da
sensibilidade humana – das nossas ideias intelectuais, morais, artísticas, religiosas –
é evocado, como ilustrado para a música e para a matemática, por residir dentro do
quadro da nossa herança cultural. Assim, o nosso reconhecimento da compreensão
como uma forma válida de conhecimento prefigura a transição prometida do estudo
da natureza para um confronto com o homem que atua responsavelmente, sob um
firmamento global de ideais universais.

É impossível na estrutura racional do pensamento humano, inexistirem conexões


metafísicas com os «factos brutos», na verdade, existem, são relacionais e interdependentes.
Essa ideia justifica a citação tão extensa da obra de Polanyi, visto que a mesma é muito certeira
ao notar que mesmo diante dos factos brutos, as apreciações da beleza da matemática, enquanto
matemática, ou de uma boa música, são metafísicas e como bem disse, estão a um passo das
perceções morais ou artísticas.

Richard Thomas, professor do departamento de matemática da Faculdade de Ciências


Naturais do Imperial College London, numa troca de e-mails com o eminente Professor Emérito
da Universidade de Oxford, Roger Penrose, ao tratar do tema da teoria das cordas 22 e dos
avanços ocasionados por esta pesquisa, observou:

(...) para um matemático, essas coisas [os resultados até então obtidos] não podem ser
coincidências, eles devem vir de uma razão mais alta [no sentido de autoridade, ou
seja, transcendente]. E essa razão é a suposição de que essa grande teoria matemática
descreve a natureza23.
Diante de tudo, nesta altura, já estamos aptos para uma leitura transcendente da ciência,
não nos atendo apenas a factos brutos. Os nossos esforços centralizaram-se em demonstrar
como o cientificismo é um ideal fracassado, pois e.g, se até em filmes e séries de ficção
científica – e não precisamos explicar, como é óbvio que a arte e a cultura traduzem bem o
tempo e realidade em que vivemos – que tratam de Inteligência Artificial24/25, esforçam-se ao

22
Teoria que busca unificar a teoria geral da relatividade com a mecânica quântica. Para ref., teoria, o quark
– partícula subatómica que forma a matéria – é constituído de filamentos, ou “cordas vibrantes”, que explica a
relação entre as partículas e por sua vez, a diversidade do universo. Para maiores detalhes do tema: Cfr.,
PENROSE, Roger. The road to reality: a complete guide to the laws of the universe. London: Jonathan Cape,
2004. pp. 869-926;
23
Ibid., p. 926.
24
Há muitas indicações de filmes e séries, tornando-se quase impossível relatar todas. Entretanto, dentre as
mais notáveis ao nosso ver, destacam-se: Matrix (1999); A.I. – Inteligência Artificial (2001); Ex-Machina (2015);
Fringe (2008-2013); Agents of Shield (4ª temporada – 2017); Black Mirror (2011- até ao presente); e Westworld
(2016 até ao presente).
25
Artificial intelligence, doravante, denominado simplesmente de A.I.
17

máximo para desenvolver utopicamente a autoconsciência de A.I, ou seja, propiciar-lhe certa


medida de transcendência, retratando um anseio hodierno da ciência, quem dirá nós, seres
integrais26 – racionais, emocionais e espirituais. Portanto, deve ser rechaçada por completo
aquela ideia de que somos apenas junções físico-químicas e que tudo o que diz respeito ao
universo não passa disso. Afinal, até o «(…) nosso próprio corpo tem um lugar especial no
universo: nunca atendemos ao nosso corpo como um objecto por si mesmo. Este é sempre usado
como o instrumento básico do controlo intelectual e prático sobre o ambiente envolvente27».
Factos brutos não são a única coisa no universo! E a prová-lo, por exemplo, está a completa
incapacidade de se conseguir explicar o despontar de uma ideia na mente. Qual matéria ou
processo físico-químico consegue explicar algo transcendente e imaterial?

Ainda sobre a A.I. refira-se que a forma da sua aprendizagem (machine learning) se dá
por meio de algoritmos, porém, foi descoberto que esses algoritmos não são imparciais e podem
conter preconceitos daqueles que os criaram28/29. É interessante notar que em uma das séries
acima referidas, circula a mesma pergunta em vários de seus episódios: «Você já questionou a
natureza da sua realidade?»30, pergunta essa de natureza metafísica. Mesmo sendo uma ficção,
a mensagem remetida para aqueles que desfrutam do momento de lazer de assistir a tais
episódios é: a ciência também busca a transcendência.

Diante disto, podemos indagar: a ciência «(…) constitui uma prática que determina
performativamente a medida do verdadeiro e do falso, podendo ser entendida unicamente a
partir de si mesma, ou não será ela resultado de uma história da razão que inclui, essencialmente,
as religiões mundiais?»31 (leia-se na ref. pergunta, «transcendência», quando dito «religiões
mundiais», pois o que importa nesse momento, é a natureza metafísica que reveste o saber
científico), ou ainda, em termos mais específicos, será que o positivismo é uma ciência neutra?
A resposta para tais indagações ocupará as próximas páginas.

26
Sobre o conceito de integralidade do ser, veja-se adiante (V.1)
27
POLANYI, Michael, op. cit., pp. 30-1.
28
Cfr., CRAWFORD, Kate. Artificial intelligence’s white guy problem. New York Times, 2016. Consultado
em 19 de julho de 2018, em «https://www.nytimes.com/2016/06/26/opinion/sunday/artificial-intelligences-white-
guy-problem.html».
29
Cfr., LARSON, Jeff., et al. Machine bias: There’s software used across the country to predict future
criminals. And it’s biased against blacks. ProPublica, 2016. Consultado em 19 de julho de 2018, em
«https://www.propublica.org/article/machine-bias-risk-assessments-in-criminal-sentencing».
30
NOLAN, Jonathan., et al. Westworld. New York City, NY: HBO, 2016.
31
HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 167.
18

I.2. É possível desenvolver um positivismo neutro?

No campo de estudo da filosofia da ciência, é interessante observar que Thomas Kunh32


cunha a expressão paradigma, para desenvolver a sua teoria33. Para o teórico, os paradigmas
são, «as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo,
fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência
(…) é um modelo ou padrão aceitos34». Essas realizações são pressuposições em que o cientista
desenvolve a sua pesquisa, demonstrando que até na análise de dados e na sequência da
investigação científica, inexistem «factos brutos», neutros.

Kunh35 argumenta novamente com tamanha precisão:

A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno;
na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma frequentemente nem
são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas
teorias; frequentemente mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outros.
Em vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles
fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma.
É evidente, nesta altura, o mito da neutralidade científica. Nós enquanto seres não
apenas materiais, mas também metafísicos, imprimimos a nossa cosmovisão36 em tudo quanto
fazemos. Tentar colocar a ciência à parte disso é um dos maiores erros já cometidos. Entretanto,
muitos cientistas continuam a permanecer nessa tentativa, inclusive os cientistas da ciência do
direito.

John Finnis37 comenta que um determinado assunto, objeto de estudo de uma ciência
social, como a jurisprudência analítica ou social é repleto de hábitos, práticas, ações e discursos

32
BIRD, Alexander. Thomas Kuhn. Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2011. Consultado em 13 de
agosto de 2018, em «https://plato.stanford.edu/entries/thomas-kuhn/».
33
Kunh desenvolve a sua teoria apresentando uma nova perspetiva de «ver» a ciência. Para ele, a ciência
desenvolve-se por um viés histórico e sociológico em que a comunidade científica parte de pressuposições básicas
para investigar. Essas pressuposições, nascem por meio da adição de uma linhagem histórico-social ao ato de fazer
ciência, os factos brutos são condicionados por pressupostos anteriores. Ou seja, para o teórico a ciência não é
apenas positivista, mas tem uma trajetória metafísica. A sua obra foi um marco no campo de filosofia da ciência.
Cfr., sua obra principal: KUNH, Thomas Samuel. A estrutura das revoluções científicas. 5ed. São Paulo:
Perspectiva, 1998.
34
Ibid., pp. 13, 42.
35
Ibid., p. 45.
36
O termo Weltanschauung, foi cunhado inicialmente por Immanuel Kant, em Crítica da faculdade do juízo,
«o termo foi utilizado “para designar um conjunto de crenças que fundamentam e moldam todo pensamento e toda
ação humana», SIRE, James W. Dando nome ao elefante: cosmovisão como um conceito. Brasília: Monergismo,
2012, p. 35. Traduzido na língua portuguesa por Cosmovisão. Mas o que é cosmovisão? «é o compromisso, a
orientação fundamental do coração, que pode ser expresso em uma história ou um conjunto de pressupostos
(suposições que podem ser verdadeira, verdadeiras em parte ou de todo falsas) que mantemos (de forma consciente
ou subconsciente, consistente ou inconsistente) sobre a constituição básica da realidade e que fornece o
fundamento sobre o qual vivemos, nos movemos e existimos», SIRE. James W. O universo ao lado. 4.ed. São
Paulo: Hagnos, 2009. p. 26.
37
John Mitchell Finnis é professor Emérito na Universidade de Oxford (1989 -2010) e atualmente professor
na Universidade de Notre Dame. As suas principais áreas de estudo e investigação são teoria moral, política e
19

humanos, que só podem ser entendidos por meio dos propósitos objetivos ou valores concebidos
pelo cientista, valores que estão também refletidos no seu discurso38. Desta forma, falarmos em
neutralidade científica também na ciência do direito é um «tiro no escuro».

Continuamos a apresentar a ideia do autor39:

Geralmente se supõe que uma apreciação da legislação como tipo de instituição social,
se essa avaliação tiver mesmo de ser feita, deve ser precedida por uma descrição e
uma análise livres de valores dessa instituição, conforme ela existe de facto. Mas o
desenvolvimento da moderna jurisprudência sugere, e uma reflexão sobre a
metodologia de qualquer ciência social confirma, que um teórico não pode fornecer
uma descrição teórica e uma análise de factos sociais, a menos que também participe
do processo de avaliar, de entender o que é realmente bom para as pessoas
humanas e o que é realmente requerido pela razoabilidade prática. […] Assim,
por meio de uma longa marcha através da metodologia de trabalho ou implícita da
jurisprudência analítica contemporânea, chegamos à mesma conclusão a que Max
Weber chegou com mais rapidez (embora com base em uma ciência social muito mais
ampla), qual seja, a de que as avaliações dos próprios teóricos são um componente
indispensável e decisivo na seleção ou na formação de quaisquer conceitos a serem
usados na descrição de aspectos de assuntos humanos, tais como o direito ou a
ordem jurídica. [destaque nosso].
Logo, se nem as ciências exatas estão livres de pressuposições anteriores do próprio
cientista, o que dizer da ciência do direito. Frisamos mais uma vez a ideia que até então estamos
a formular: não existe neutralidade científica em nenhum campo de estudo científico, sempre
agiremos por pressupostos e sistemas de crenças, razão pela qual, o jusnaturalismo é tanto
ciência quanto o positivismo e ambos são construídos por estruturas pautadas na cosmovisão
do cientista. Assim, um positivista-cientificista irá fazer uma leitura do direito, da lei e da moral
com referência ao seu sistema de crenças, enquanto o jusnaturalista também.

Jónatas Machado40, ao fazer um paralelo entre ambas as posições, explana:

(…) quando são ateus ou naturalistas, os filósofos políticos do Estado Constitucional


têm que postular a primazia objectiva da dignidade humana, da autonomia, da
igualdade, da solidariedade, da verdade e da justiça na conformação da comunidade
política. Também aqui a Bíblia estabelece esses postulados, ao passo que o
naturalismo não.

jurídica, bem como em direito constitucional. Em 1969, a pedido de seu ex-professor e amigo, Herbert Lionel
Adolphus Hart, Finnis iniciou um projeto que culminou na obra intitulada de «Lei natural e direitos naturais»,
consagrando-se como um dos maiores expoentes do jusnaturalismo clássico nos dias atuais. Cfr, Faculty of Law,
University of Oxford. Consultado em 02 de agosto de 2018, em «https://www.law.ox.ac.uk/people/john-finnis»;
The Law School, University of Notre Dame. Consultado em 02 de agosto de 2018, em
«https://law.nd.edu/directory/john-finnis»; FINNIS, John Mitchell. Lei natural e direitos naturais. Prefácio à
Edição Brasileira feito pelo Senhor Professor Doutor Wilson Engelmann. São Leopoldo: Unisinos, 2007;
PINHEIRO, Victor Sales; SOUZA, Elden Borges. O Laicismo e a Teoria da lei natural em Finnis: a religião como
bem humano básico; Revista Jurídica Eletrônica da UFPI, Teresina, v. 3, n. 1, pp. 2-22. Consultado em 10 de
agosto de 2018, em «http://www.ojs.ufpi.br/index.php/raj/article/view/5702/3374».;
38
FINNIS, John Mitchell. Lei natural e direitos naturais. São Leopoldo: Unisinos, 2007. p. 17.
39
Ibid., p. 17, 29.
40
MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes, op. cit., p. 106.
20

Parece que quando o cientista do direito se vê diante de direitos humanos, ele acaba
encontrando grandes problemas se não detiver uma cosmovisão jusnaturalista para fazer a
ciência do direito – sobre isso, voltaremos no capítulo (V.2) – e se de fato é assim, porque há
tanta resistência no meio académico para aceitar os jusnaturalismo como ciência? Justamente
porque existe a falácia de que o que é metafísico não pode ser visto como ciência, além das
diversas acusações descabidas que o jusnaturalismo recebe como veremos no capítulo (II).
Tudo porque debruçar-se a fazer ciência, a partir de saber quem é o homem e tentar a percebê-
lo «implica considerar as suas obrigações morais e as suas responsabilidades cívicas, algo que
a tradição positivista e objectivista da ciência tenta evitar (dado considerar isso como
subjectivo, não objectivo e impróprio para o conhecimento cientifico)41», mas inexiste ciência
do direito, sem repensar responsabilidades, sem repensar o bem comum e sem buscar a maior
propagação e proteção possível dos Direitos Humanos.

Logo, neutralidade ao fazer ciência é tão utópico como acreditar em unicórnios. Eis a
resposta à nossa pergunta inicial. Ao mesmo tempo, a pergunta de Habermas, com que
encerrámos a parte (I.1) é agora também por ele respondida:

O cientificismo, não obstante isso, entra numa verdadeira concorrência com as


doutrinas religiosas tão logo ele se propõe a desenvolver uma imagem do mundo
extraída das ciências da natureza e quando estende o olhar científico, objetivador, ao
mundo da vida, à pessoa que age e vivencia coisas exigindo dela uma auto-objetivação
da consciência do dia-a-dia42.
As proposições científicas são pautadas tanto em sistemas de crenças quanto a
metafísica abrange sistemas científicos e isso é absolutamente importante para desenvolver uma
correta teoria do jusnaturalismo neoclássico, como veremos a seguir.

I. 3 Sistemas de crenças e proposições científicas

Richard Dawkins43, uma das maiores vozes militantes do neoateísmo, em resposta à


pergunta «a ciência é uma religião?», feita pela revista periódica «The Humanist», afirma:

Está na moda ter uma raiva apocalíptica da ameaça que representa à humanidade o
vírus da AIDS, o mal da “vaca louca” e muitos outros, mas penso que demos nos
preocupar com a fé, um dos grandes males do mundo comparável ao vírus da varíola,
mas mais difícil de ser erradicado. A fé, sendo uma crença não baseada em provas, é
o vício principal de qualquer religião. (…) Bem, a ciência não é religião e não toca a
fé porque, apesar de ter muitas das virtudes da religião, não possui nenhum de seus
vícios. A ciência se baseia em evidências verificáveis. (…) Uma razão pela qual eu

41
POLANYI, Michael, op. cit., p. 95.
42
HABERMAS, Jürgen, op. cit., pp. 275-6.
43
DAWKINS, Clinton Richard. Is Science a Religion? The Humanist Magazine, 1996. Tradução: Senhora
Professora Eliana Borges Fleury Curado, Universidade Federal de Goiás. Consultado em 10 de agosto de 2018,
em «https://movimentoantireligiao.wordpress.com/2010/01/18/a-ciencia-e-uma-religiao/»
21

sou confrontado com a ideia de que a ciência é no fundo uma religião é porque eu
acredito de fato na evolução, e acredito com uma convicção apaixonada. (…) A
ciência é na verdade uma das disciplinas mais morais e honestas que existem (…) A
ciência é capaz de fornecer uma visão da vida e do universo que, como já observei,
com inspiração poética humilde, supera em muito quaisquer crenças mutuamente
contraditórias e as tradições recentes e lamentáveis das religiões no mundo. [Destaque
nosso].
O que Dawkins, infelizmente não vê, é que o seu discurso é carregado de
pressuposições, que nada mais são que fé. Suas afirmativas chicoteiam seus lombos de forma
severa, o cientificismo o cegou de tal modo, que quando escreveu «The God Delusion», recebeu
um livro como resposta, intitulado merecidamente de «The Dawkins Delusion?». Como bem
assinalou Schaeffer44:

As obras de Michael Polanyi (1891-1976) mostram a fragilidade de todas as formas


de "positivismo", a ponto de hoje esta filosofia estar teoricamente morta. Entretanto,
é preciso admitir que os cientistas materialistas e racionalistas fecharam os seus olhos
para este falecimento, continuando a construir o seu trabalho sobre esta base, como se
o positivismo continuasse vivo e passasse bem. Eles estão praticando sua ciência
materialista sem qualquer base epistemológica. No essencialíssimo campo do
conhecimento, eles estão operando não com fatos, mas com a fé.
Quer queiramos ou não, por mais que cega e obstinadamente tentemos negar, a realidade
dura como a enfrentada por Dawkins revela-nos a verdade, que cientistas «também são
influenciados no seu trabalho pelas suas próprias visões do mundo, religiosas ou naturalistas, e
pela estrutura conceitual que delas deriva. Por esse motivo a ciência está longe de ser neutra e
objetiva do ponto de vista metafísico45».

Assim, poderíamos reler os trechos de Dawkins, com alguns comentários adicionais:

Está na moda ter uma raiva apocalíptica da ameaça que representa à humanidade o
vírus da AIDS, o mal da “vaca louca” e muitos outros, mas penso que demos nos
preocupar com a fé [essa é a primeira evidência da fé neo-ateísta de Dawkins: ele crê
que o mundo sem religião será melhor e terá mais «progresso científico»], um dos
grandes males do mundo comparável ao vírus da varíola, mas mais difícil de ser
erradicado. A fé, sendo uma crença não baseada em provas [não é baseada em provas
ou as provas são rejeitadas e descredibilizadas pelo autor?], é o vício principal de
qualquer religião. (…) Bem, a ciência não é religião e não toca a fé porque, apesar de
ter muitas das virtudes da religião, não possui nenhum de seus vícios. A ciência se
baseia em evidências verificáveis [estamos diante de outra daquelas afirmativas em
que a ciência é vista como «redentora» de todos os problemas humanos. Sobre isso
nos cabe apenas indagar i) se a ciência não é um tipo de “Salvador”? e ii) Se frases
como tais, levam em consideração que uma parte dos problemas no mundo são
metafísicos]. (…) Uma razão pela qual eu sou confrontado com a ideia de que a
ciência é no fundo uma religião é porque eu acredito de facto na evolução, e acredito
com uma convicção apaixonada [dentro do que estamos a tratar, tal frase é totalmente
autoexplicativa!]. (…) A ciência é na verdade uma das disciplinas mais morais e
honestas que existem (…) A ciência é capaz de fornecer uma visão da vida e do
universo que, como já observei, com inspiração poética humilde, supera em muito

44
SCHAEFFER, Francis August. O Deus que intervém. 2.ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009. p. 83.
45
MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes, op. cit., p. 107-8.
22

quaisquer crenças mutuamente contraditórias e as tradições recentes e lamentáveis das


religiões no mundo [é visível a fé de Dawkins, neste trecho e no texto como um todo].
Diante das diversas expressões de fé de Dawkins no referido texto, chamamos a atenção
para quando o cientista afirma: «eu acredito de facto na evolução, e acredito com uma convicção
apaixonada», pois em todo o texto por mais que o sistema de crenças do cientista e a
consequente ausência de neutralidade científica apareçam, nesta parte, Dawkins chama a sua fé
de «convicção apaixonada». Isso não seria um tipo de fanatismo? Ele responde com um sonoro
“não”, ao observar:

Quero ainda retornar à acusação de que a ciência é apenas uma fé. A versão mais
extrema desta acusação – e que vejo com frequência tanto em cientistas quanto em
racionalistas – é a acusação de haver um fanatismo e uma intolerância tão grandes em
cientistas e em religiosos. Às vezes pode haver um pouco de justiça nesta acusação,
mas como fanáticos intolerantes nós cientistas somos meros amadores. Nós nos
contentamos em discutir com aqueles que discordam de nossos pontos de vista. Nós
não matamos46.
Esquece-se, entretanto, Dawkins que na página diretamente anterior a esse argumento,
havia dito:

Nós deveríamos, por exemplo, seguir o lobby do direito à vida, que está inteiramente
voltado para a vida humana, e valorizar mais a vida de um feto humano, que tem as
faculdades de um verme, que a de um chipanzé que pensa e sente? Qual é a base desta
cerca que erguemos em volta do Homo sapiens – mesmo em volta de uma pequena
peça de tecido fetal?
Nomear o nascituro de «verme» é realmente matá-lo, ou pelo menos abrir caminho para
tal, pois é desqualificá-lo de ser enquanto ser, é roubar do nascituro o direito humano da
dignidade humana. Nessa perspetiva de visão, torna-se fácil justificar o aborto, visto que o valor
de um «verme» é zero. Ainda mais no ideal da seleção natural, onde apenas os fortes subsistem.

O leitor consegue perceber como que o discurso todo de Dawkins é pautado em crenças?
Se ainda não, deixe-nos dar o nosso último contributo:

Uma coisa são as rochas, os fósseis, os isótopos, o DNA, os planetas, os cometas, as


estrelas, as galáxias, as supernovas, a velocidade da luz, a dilação gravitacional do
tempo, o campo magnético da Terra, etc., que os cientistas do presente podem
observar ou medir no presente. Outra coisa, bem diferente, são as interpretações,
inferências, extrapolações e mesmo especulações que a partir deles são feitas sobre o
passado distante e as origens. No primeiro, caso estamos diante de dados observáveis
por todos e como tal incontornáveis. No segundo caso estamos perante preposições
inevitavelmente dependentes de visões do mundo e do sistema de pressuposições e de
crenças utilizado para a sua construção e articulação47.
Ora, existem pressuposições básicas que assumimos por crença. Não raramente vejo
pessoas a afirmar alto e bom som que o evolucionismo já foi devidamente provado pela ciência,

46
DAWKINS, Clinton Richard. op. cit.,
47
MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes, op. cit., p. 110.
23

por mais que muitos cientistas ainda não consigam explicar todas as vicissitudes da ref. pesquisa
que eles denominam, com razão, de teoria. Ocorre que as pessoas que afirmam isso, no fundo
fazem-no pela sua crença. Querem acreditar que a ciência tem uma resposta cabal e definitiva
para a origem do universo, extirpando Deus da criação. No fundo, não é um imbróglio
científico, é metafísico.

A verdade é que a ciência está saturada de fé, apesar dos cientistas na sua maioria, não
conseguirem ver a sua própria fé. Enquanto a crença numa determinada religião impele o cerne
do homem ao mundo metafísico, as ciências têm-no feito desde a grande revolução do séc.
XVII, elas, no geral, também têm a narrativa de uma busca e depositam a sua fé em
pressuposições e sistema de crenças em relação a criação do universo e na organização e ordem
do mesmo48.

Existem limites para a ciência. Após determinado ponto, as questões tornam-se de


natureza metafísica. Estes limites para a ciência existem em «razão de haver perguntas que ela
não pode responder, e que nenhum avanço concebível dela a autorizaria a responder. [...]. Tenho
em mente questões do tipo: como tudo começou? Para que estamos aqui? Qual o sentido da
vida?»49

Por mais que muitos cientistas neguem todo este sistema de crenças, e as questões
metafísicas que circundam a ciência, ainda há alguns que não escondem tal realidade 50, como
expomos:

Muitos físicos, criados, como eu, numa tradição que associa ao misticismo as coisas
vagas, misteriosas e altamente não científicas, ficaram chocados ao ver suas ideias
comparadas às dos místicos. Essa atitude, felizmente, está mudando. Como o
pensamento oriental começou a interessar a um número significativo de pessoas, e
como a meditação deixou de ser vista como ridícula ou suspeita, o misticismo está
sendo encarado seriamente, mesmo no seio da comunidade científica. Um número
crescente de cientistas está consciente de que o pensamento místico fornece um
coerente e importante background filosófico para as teorias da ciência contemporânea,
uma concepção do mundo em que as descobertas científicas de homens e mulheres
podem estar em perfeita harmonia com seus desígnios espirituais e crenças
religiosas51.

48
BERLINSKI, David. The devil's delusion: Atheism and its scientific pretensions. New York: Basic Books,
2009. p. 45.
49
MEDAWAR, Peter. The limits of science. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 66. (Tradução livre).
50
Cfr. BENNET, R. Max; HACKER, Peter M.S. Fundamentos filosóficos da neurociência. Lisboa:
Instituto Piaget, 2003. p.390/405.
51
CAPRA, Fritjof. O Ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 2006. p.73.
24

Diante disso, podemos afirmar categoricamente que a ciência não é neutra e que tal
assertiva é um mito. Fazer ciência pressupõe agir conforme uma determinada cosmovisão que
é a estrutura de pensamento do cientista.

Por fim, podemos afirmar também, que a metafísica não está desassociada da
investigação científica, pelo contrário, a ciência para se desenvolver em toda sua plenitude,
invariavelmente irá deparar-se com tais questões.

Todo esse escopo nos dá agora fundamento para melhor compreendermos o


jusnaturalismo neoclássico, razão pela qual, iremos fazê-lo no próximo capítulo.
25

II – CONTEXTUALIZAÇÃO DO JUSNATURALISMO CLÁSSICO

Por mais que a historiografia, no que tange à divisão de períodos históricos, não prossiga
de forma linear e bem clarificada, e nos mostre sem dúvida, o exato momento em que começou
a valoração do cientismo, sabemos, entretanto, que em determinada época, por determinados
motivos que se desenvolveram ao longo de tempos – por isso, impossível determinar um
momento exato – ocorreu uma mudança de paradigma na sociedade como um todo. Esta
mudança apresentámos no capítulo anterior, ao falarmos de como o positivismo ganhou força,
em resposta ao antigo conflito natureza x graça que culminou no escolasticismo medieval.

Assim, o século XIX, foi positivista em excelência. O método indutivo que trouxe
excelentes resultados às ciências exatas, deveria também ser aplicado ao estudo do homem e da
sociedade. Era necessário extirpar toda a aparição da escolástica e de filósofos modernos como
Kant e Leibniz. Esse método indutivo que trouxe tanto progresso, não poderia mais aceitar
abstrações52. Daí, várias críticas emergem ao direito natural. Obviamente que assim como o
direito natural sempre teve seus adeptos, também sempre teve os seus adversários e críticas não
era algo incomum.

Entretanto, como para construir uma nova estrutura você deve destruir a anterior, o
positivismo, na ciência do direito, nasce com ferrões em face do direito natural e tenta, sem
sucesso, destruí-lo – por mais que muitos ainda hoje achem que o direito natural é algo relegado
ao passado. A sua maior crítica ao direito natural é que este é um direito de abstrações, um
direito de um mundo utópico, um direito que se preocupa com nuvens, com uma transcendência
que não mais se encaixa nos moldes cientificistas, nos ideais do progresso da humanidade,
afinal se Deus foi extirpado53 da esfera pública e foi declarado morto54, por que motivo, o
direito continuaria fundamentado numa lei eterna ou transcendente?

Dentro daquele sistema de pensamento, cientificista, em busca do progresso da


humanidade, não faria qualquer sentido. Mas, assim como Deus não foi retirado da esfera
pública, o direito natural, nunca conseguiu ser extirpado para sempre da ciência do direito.
Afinal, para se produzir a própria ciência do direito é necessário que exista o direito natural55.

52
SOUSA, José Pedro Galvão de. O positivismo jurídico e o direito natural. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1940. pp. 8-10.
53
Nos últimos anos, alguns sociólogos têm falado do retorno de Deus à esfera pública, Cfr. SCRUTON,
Roger Vernon. A alma do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2017. Por outro lado, outos autores defendem que
Deus nunca foi de facto extirpado da esfera pública, veja-se adiante (V.2).
54
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. 3.ed. Curitiba: Hemus, 2002. p. 134.
55
Veja-se adiante (III).
26

O direito positivado nunca foi um impedimento ao direito natural, na verdade, sempre


esteve de mãos estendidas para ele56. O verdadeiro inimigo do direito natural é o sistema de
crenças positivista-cientificista que firma esperança redentora para o direito na ciência, sem
lhe reconhecer qualquer transcendência. Porém, como veremos, não há razão para essa
dicotomia entre ciência x fé (cfr., cap. V) e como é equivocada essa crítica de um direito natural
abstrato, longe do mundo concreto e real.

II.1 – O Jusnaturalismo e o mundo utópico

Falámos sobre séries de ficção científica e de como elas retratam a nossa forma de viver
(I.1), citámos inclusive uma questão metafísica57 levantada por uma dessas séries, Westworld,
que em determinado episódio, um dos principais protagonistas da série, William – que começa
a gastar tanto do seu tempo no parque, um mundo próprio onde tudo é permitido – já não
consegue distinguir o que é real do que não é. Na verdade, o eu real de William é manifestado
no parque, todos seus anseios são direcionados para lá, a ponto de quando está em casa, com
sua esposa, agindo de forma fria, mais mecânico que uma máquina, ela pergunta ao mesmo:
«Isto é real? És real? Diz-me uma coisa verdadeira (…) Se continuares a fingir, não te vais
lembrar de quem és58».

Westworld é uma espécie de utopia59, talvez não aquela utopia que ansiamos quando
imaginamos uma vida perfeita; mas outro tipo de utopia, mais sombria, em que os homens ao
invés de serem bons, maximizam sua maldade. Parece que estamos sempre a buscar abstrações,
porque sabemos que de algum modo, o mundo transcende o que aqui encontramos. É como se
nos justificássemos: «o mundo tem de transcender! A realidade não pode ser apenas esta». Esse
desejo por transcendência será alvo de breve análise em (V.1). Entretanto, o que nos importa
neste momento, é que estamos a falar de um mundo abstrato. Utopia sempre será um mundo
distante de nós, da realidade, da materialização:

(…) em Utopia, onde tudo é comum a todos, uma vez tomadas as medidas necessárias
para que os celeiros públicos estejam cheios, ninguém receia que lhe falte o
necessário. A distribuição dos bens simplesmente não é um problema em Utopia, onde
não se vê nem pobre nem mendigo e, embora ninguém tenha nada de seu, todos são
ricos. Haverá maior riqueza do que levar uma existência alegre e pacifica, livre de
ansiedades e sem precisar se preocupar com a subsistência? Nenhum homem é
incomodado pelos pedidos queixosos de dinheiro de sua esposa, não precisa recear a
indigência para seu filho ou lutar para juntar um bom dote para a filha. Ao contrário,

56
Veja-se adiante (IV.6).
57
Cfr. nota nº 30: «Você já questionou a natureza da sua realidade?».
58
NOLAN, Jonathan, op. cit., 2ª temporada, 8º episódio, min, 26.
59
Palavra com origem de dois termos gregos que significa: «não lugar» ou, «lugar inexistente», criada por
Thomas More, para servir como nome de sua obra escrita no Sec. XVI.
27

todo homem sente-se seguro de sua própria subsistência, assim como do bem-estar de
toda a sua família: mulher, filhos, netos, bisnetos, até a mais longa série de
descendentes que todo nobre sente tanto gosto em contemplar. Na verdade, mesmo
aqueles, que um dia trabalharam, mas que agora estão impossibilitados, são
igualmente tratados como se continuassem ainda produtivos 60.

Quem não quer viver num mundo assim? Em que os bens são distribuídos de forma
justa, não há desigualdades, não há preocupações com o tempo, ansiedades ou relacionamentos
frustrados. Todos desejamos! Entretanto, todos sabemos, que deste lado da nossa experiência
humana, por causa da nossa fraqueza e corrupção, esse mundo perfeito não passa de abstração.
E é dessa mesma característica de abstração que o direito natural é acusado por muitos daqueles
que lhe são contrários. É abstrato, pois o jusnaturalista como o cientista da natureza, «deixou
de ler Aristóteles e se pôs a perscrutar o céu61», a acreditar em devaneios, num direito que não
é para a vida real, um direito que é mera «especulação metafísica, sem justificação científica62»,
e por isso rechaçado dos meios académicos, afinal, para os meios académicos mais sofisticados,
o direito é «um produto das ações dos seres humanos, uma prática social, enfim, uma realidade
convencional63» e sendo essa realidade convencional, desmistifica qualquer ideia de valor
transcendente, pois é função da sociologia, psicologia ou de outras ciências descritivas,
vislumbrar o que impulsiona o direito e a sua causalidade64.

Destarte, a doutrina jusnaturalista não é concreta, é «uma doutrina idealista-dualista do


direito. Ela se distingue do direito real, isto é, do direito positivo, posto pelos homens e,
portanto, mutável65», o direito que advém do legislador, por meio de uma ordem estrutural.

Assim, para os críticos do jusnaturalismo, enquanto o direito natural está para


abstrações, o direito positivo, escrito e legislado, está para a realidade. O direito natural
preocupa-se com algo que não pode tocar, enquanto as vicissitudes humanas, as dificuldades
da vida que é árdua, ocorre aqui e agora e precisam de respostas reais, que só uma ordem
normativa pode dar, de tal modo, que esse direito ideal mas não real, não acompanha o
desenvolvimento social, pois é um direito de leis eternas66, «regras imutáveis e definitivas,

60
MORE, Thomas. Utopia. Tradução. Anah de Melo Franco. Brasília: UNB, 2004. p. 127-8
61
BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na filosofia política moderna. São
Paulo: Brasiliense, 1996. p. 22.
62
ROSS, Alf. Sobre el Derecho y la Justicia. Buenos Aires: EUDEBA, 1994. p. 25 (Tradução livre).
63
BAYÓN, Juan Carlos. El contenido mínimo del positivismo jurídico. In: GÓMEZ, Virgilio Zapatero
(coord.). Horizontes de la filosofía del derecho: homenaje a Luis García San Miguel. Alcalá de Henares:
Publicaciones de la Universidad de Alcalá, 2002. pp. 33-54. (tradução livre).
64
HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de Direito. 5.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2007. pp. 210.
65
KELSEN, Hans. O problema da justiça. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 71.
66
Ibid., p. 167-117.
28

necessariamente inadaptadas aos movimentos históricos de nossa sociedade, às circunstâncias


de tempo e de lugar67».

Lembramos a afirmação do juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, que declarou
que o jusnaturalismo se preocupa com o que é justo, seguindo os modernos estudos da filosofia
do direito; entretanto, procura fundamentar aquilo que é justo não no direito positivo, mas numa
lei absoluta e ideal, enquanto, relega a lei positiva a uma importância de ordem secundária68.

Sendo assim, é evidente que toda esta abstração, leva aquele que deseja dedicar-se à
ciência do direito à negação do jusnaturalismo e uma predileção por doutrinas de cariz mais
positivista, pois de facto, na perspetiva apresentada, são aparentemente mais completas.

Mas não nos enganemos, muitas vezes ganha-se ou perde-se um debate, na definição
dos termos e não no conteúdo destes. Certamente que algo utópico, fantasioso, não chamaria a
atenção devida, ainda mais num contexto, que como vimos (I), rechaça quaisquer tipos de
misticismos, porém, não é o que ocorre com o direito natural. Ser cético, em vários contextos,
pode ser uma boa forma de desenvolver uma crença sólida69, por isso, ser cético quanto ao
direito natural não é o problema, a definição daquilo que é o direito natural que o é.

II.2 Outras críticas ao jusnaturalismo

No subcapítulo anterior, tratámos da dita abstração do direito natural, ainda que em


determinados momentos tenhamos tocados noutros outros pontos sensíveis, mas que na altura
não eram de interesse principal. Compete-nos, contudo, agora tratar das outras críticas que o
direito natural recebe na atualidade, ainda que não de forma taxativa.

Para os críticos, o jusnaturalismo pressupõe que todos objetivamente anseiam e


perseguem o bem comum, mas a realidade mostra-nos bem o contrário, pois nem todos estão
no mesmo patamar de igualdade em bondade e prossecução do bem70.

67
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.54.
68
CARDOZO, Benjamin Nathan. The nature of the judicial process. New Haven: Yale University Press,
1921. p. 132.
69
Cfr., STOTT, John Robert Walmsley. Crer é também pensar. 2.ed. São Paulo: ABU, 2012; HARRIS,
Joshua Eugene. Cave mais fundo. São Paulo: Fiel, 2011; e ainda, excelente explicação do Teólogo Canadense,
D. A. Carson, sobre as dúvidas de São Tomé: CARSON, Donald Arthur. O novo nascimento. São Paulo:
Ministério Fiel, 2016, (1 h). Consultado em 03 de setembro de 2018, em
«https://www.youtube.com/watch?v=DvxfOl0zZ8c».
70
Conforme expõe Hart, «A teoria da lei natural, no entanto, em todas as suas formas protéicas, tenta
empurrar o argumento muito além e afirmar que os seres humanos são igualmente devotados e unidos em sua
conceção de objetivos (a perseguição do conhecimento, a justiça para seus semelhantes) outro que não seja o da
sobrevivência», (HART, Herbert Lionel Adolphus. Positivism and the Separation of Law and Morals. Harvard
Law Review, Cambridge, v. 71, n. 4, pp. 593-62).
29

Além disso, para os mesmos críticos, há uma completa confusão no jusnaturalismo,


nomeadamente não saber diferenciar os conceitos de lei: existem aquelas que são «descritivas,
estabelecidas pela ciência, e leis prescritivas, endereçadas aos seres humanos71» e a esses
conceitos de lei «correspondem diferenças sistemáticas no vocabulário associado a palavras
como «ter de», «vinculado a», «ter o dever de» e «dever»72», logo, trata-se de um equívoco
semântico daquele que é crente que o impede de perceber que o deve seguido de
obrigatoriamente tem um significado, totalmente diferente do deve seguido de se73.

Hart, ao tratar da conceção teleológica da natureza, vê que as formas de vida estão em


constante desenvolvimento para atingir o seu ápice, inclusive no caso do ser humano. Para o
autor, buscamos tornar-nos aquilo que podemos ser em nossa plenitude e assim o fazemos,
porque temos uma tendência natural a buscar a nossa felicidade e também a racionalidade.
Entretanto, a nossa inclinação para esse florescimento humano não está fundamentada em
questões metafísicas, como o jusnaturalismo ressalta, antes se fundamenta na maturidade física
e biológica do próprio homem74.

Obviamente que o empenhar do nosso próprio florescimento requer que estejamos


alertas quanto à nossa sobrevivência. Assim, não há como falar em desenvolvimento humano
sem proteção da vida. Logo, é percetível que dentre os fins naturais, o instinto de sobrevivência
é o mais comum a nós colegas de humanidade.

Esta sobrevivência envolve tanto questões orgânicas como as dos animais, quanto
questões complexas que são expressas na forma da nossa comunicação com os outros, na forma
como descrevemos o mundo e também na forma como nos descrevemos.

Assim, a procura pela sobrevivência, para Hart, consegue minimamente aproximar o


direito da moral75, é o que se pode chamar de o conteúdo mínimo do direito natural. Porém,
nem por isso, para ele, o jusnaturalismo se torna ratificado. Na verdade, surgem novas críticas
à teoria do direito natural, pois esta não consegue fazer a devida separação entre direito e moral.

Um sistema jurídico desenvolvido, que tenha bem clarificada a diferença «entre a


invalidade do direito e a sua imoralidade, habilita-nos a ver a complexidade e a variedade destas

71
ROHLING, Marcos. A crítica de Hart à tradição clássica do Direito Natural / The Hart’s critique to classical
Natural law tradition. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, pp. 80-112. Consultado em 03 de
setembro de 2018, em «http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/12384».
72
HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito … cit., p. 203.
73
Ibid., p. 203.
74
Ibid., pp. 205-6.
75
Ibid., p. 208.
30

questões separadas, enquanto que um conceito restrito de direito que negue validade jurídica às
regras iníquas pode cegar-nos para elas76». Ou seja, o jusnaturalismo, por se tratar de um
sistema de crenças, não raro, leva o teórico num conflito entre ciência e fé, a pender para o
lado da sua crença, descumprindo talvez o óbvio. Por estar cego, não vê que pode existir lei que
seja moralmente iníqua, mas ainda assim ser direito.

Diante disso, repousa sobre os ombros do jusnaturalismo, como consequência da não


separação entre direito e moral, a premissa que lex iniusta non est lex77. Daí também deriva a
ideia de que o jusnaturalismo prega a desobediência às leis positivas78.

Outra crítica, é que o jusnaturalismo, por seu caráter de crenças, torna-se tão limitado
ao fazer leitura do direito que não consegue ver que «a existência e o conteúdo do direito podem
ser identificados por referências às fontes sociais do direito (por exemplo, legislação, decisões
judiciais, costumes sociais), sem referência à moral79».

Há a ideia geral de que «o indivíduo só pode ser entendido em termos de sua vida em
comum com os outros. A estrutura e a configuração do controle comportamental de um
indivíduo dependem da estrutura das relações entre os indivíduos80», assim, as estruturas das
relações humanas e sociais, são aquelas que formam as estruturas legais81.

Percetível se torna que a tendência de englobamento social em toda e cada parte da


experiência humana, também permeia o direito. Hans Kelsen não considera toda a conduta do
indivíduo como facto social, pois, segundo ele, existem ações do tipo que atingem apenas
objetos82. Por outro lado, «uma ordem normativa que regula a conduta humana na medida em
que ela está em relação com outras pessoas é uma ordem social 83». Por isso, para ele, o direito
é uma ordem de conduta humana, factos ou atos que dão luz ao que ele chama de fenómeno
social84.

Hart, no contexto da sua pesquisa, dialogando com Kelsen, desenvolve a sua teoria
plasmada em três teses: i) das fontes sociais, ii) da separação conceitual entre lei e moral85 e iii)

76
Ibid., pp. 227-8.
77
Cfr. (IV.5) e também, nota nº 325.
78
VILLEY, Michel. op. cit., p. 54.
79
HART, Herbert Lionel Adolphus. O … cit., p. 332.
80
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 57.
81
Ibid., pp. 20ss.
82
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 16.
83
Ibid., p. 17.
84
Ibid., pp. 21ss.
85
Referido pilar da teoria Hartiana foi por nós exposto, aquando apresentámos a objeção ao jusnaturalismo,
por, segundo os críticos, afirmar que lei injusta não pode ser lei.
31

discricionariedade judicial86. Para ele, o direito deriva de práticas sociais, sendo identificado
por meio de normas desenvolvidas num determinado meio social87. Justamente por isso é
antípoda do direito natural. Um direito metafísico, transcendente, não tem relação alguma com
os factos sociais, razão pela qual, não é um direito que se desenvolveu ao longo da história e
também, por ter assertivas metafísicas não admite refutação, precisamente por tais assertivas
estarem numa esfera superior, longe do nível de verificação88.

Por conseguinte, este direito cria ideias arbitrárias a respeito da existência e natureza do
homem e consequentemente ideias jurídico-morais, também arbitrárias, advindas daquela
primeira89. Isto pode ser facilmente entendido ao notarmos a fonte de validação do direito
natural, que é encontrada em um mundo mágico, utópico e que retira do legislador a
responsabilidade por seus atos, visto que esses são vontade de Deus90. Razão pela qual, não há
liberdade e direito real, apenas imposições divinas, fuga das responsabilidades pessoais e
fundamentação de quaisquer atos – inclusive bárbaros – por meio desse jusnaturalismo.

Em segundo, podemos também notar que os argumentos metafísicos do jusnaturalismo


são na verdade, «meras constituições para apoiar atitudes emocionais e a satisfação de certas
necessidades91» do homem, necessidades essas de natureza abstrata e psicológica, pois o que
sustenta e torna tão atraente a «metafísica no campo da moral e da religião é o temor das
vicissitudes da vida, a transitoriedade de todas as coisas, da inexorabilidade da morte ou,
inversamente, o desejo do absoluto, do eternamente imutável que desafia a lei da corrupção92».

86
Hart, defende que existem hard cases em que a tarefa de decidir, se torna demasiada difícil, por não haver
amparo pelo direito. Nos seus dizeres: «(…) em qualquer sistema jurídico, haverá sempre certos casos
juridicamente não regulados em que, relativamente a determinado ponto, nenhuma decisão em qualquer dos
sentidos é ditada pelo direito e, nessa conformidade, o direito apresenta-se como parcialmente indeterminado ou
incompleto. [...]. Assim, em tais casos juridicamente não previstos ou não regulados, o juiz cria direito novo e
aplica o direito estabelecido que não só confere, mas também restringe, os seus poderes de criação do direito»,
(HART, Herbert Lionel Adolphus. O … cit., p. 335). Entretanto, para Hart, essa decisão judicial, é diferente das
decisões e responsabilidades do legislativo (divergindo assim de Bentham), é uma decisão que envolve juízo de
valor e crença do magistrado e que não é arbitrária, ou seja, que tenha razões para justificar suas ações. (Cfr. p.
336 da obra supracitada). Por outro lado, Dworkin afirma sempre existir solução, visto que os princípios servem
como respaldo para levar os juízes a julgar nos casos difíceis. Assim, estes, ainda não têm opção verdadeiramente
discricionária. (Cfr., a tese da discricionariedade fraca, em: DWORKIN, Ronald Myles. Levando os direitos a
sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp. 50-72).
87
HART, Herbert Lionel Adolphus. O … cit., pp. 201ss.
88
ROSS, Alf. Sobre el Derecho y la Justiça. 2.ed. Buenos Aires: EUDEBA, 1997. p. 319.
89
Ibid., p. 319.
90
Ibid., p. 319.
91
Ibid., p. 322.
92
Ibid., p. 323.
32

Deve ainda ressaltar-se que o estado de natureza que tanto prezam os jusnaturalistas
serviu como fundamento para as maiores desigualdades já existentes, pois, nessa perspetiva, os
fortes imperam sobre os fracos, os homens sobre as mulheres e os livres sobre os escravos 93.

Em matéria política, o jusnaturalismo, combinado com o contratualismo, foram usados


para justificar as mais variadas formas de governo, desde o poder absoluto até à democracia.
Por outro lado, Grotius e Comte, também influenciados pelo jusnaturalismo, defenderam a
completa negação de direitos individuais e a criação de serviços sociais94.

É evidente assim, que à «semelhança de uma prostituta, o Direito natural está à


disposição de todos. Não há ideologia que não possa ser defendida recorrendo-se à lei
natural95». E como não poderia ser? visto que o cerne do jusnaturalismo é metafísico, porque
nossas intuições para captá-lo, seriam melhor ou pior que a de outros96?

Entretanto, dentre todas as ideologias que rementem para o jusnaturalismo, destaca-se a


que pugna que ele é «primeira e principalmente uma ideologia criada por aqueles que se
encontram no poder – os estadistas, os juristas, o clero – para legitimar e tornar robusta sua
autoridade97», assim o jusnaturalismo é uma ferramenta política.

Diante de todas estas críticas ferrenhas ao jusnaturalismo, compete-nos apresentar,


mesmo que moderadamente, uma resposta, servindo inclusive de escopo para apresentarmos
posteriormente, a teoria de Finnis.

II.3 Respostas do jusnaturalismo

Pese embora as diversas críticas fomentadas face ao direito natural, pode vislumbrar-se
que muitas delas erram ao defini-lo, ou pelo menos confundem as formas de jusnaturalismo
existentes98.

Cumpre de imediato, observar que o enfoque da nossa pesquisa não se centraliza num
jusnaturalismo de cariz racionalista-contratualista. Remontamos a ideia de direito natural,

93
Ibid., p. 320.
94
Ibid., p. 321.
95
Ibid., p. 322.
96
Ibid., p. 321-2.
97
Ibid., p. 325.
98
Sobre a distinção entre teorias jusnaturalistas, cfr., FINNIS, John Mitchell, op. cit., pp. 35ss; SOUSA, José
Pedro Galvão de. Direito natural, direito positivo e estado de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977.
pp. 13ss; LACAMBRA, Luis Legaz. Filosofía del derecho. Barcelona: Bosch, 1953. pp. 290ss.
33

influenciados por Finnis, Tommaso d'Aquino99 e Ἀριστοτέλης100 com um viés – inteiramente de


nossa parte –niano101.

De facto, não negamos existirem teorias jusnaturalistas «excessivamente abstratas e


constituídas pelo abuso do método dedutivo […] mas há também um sistema de direito natural
baseado na evidência dos primeiros princípios do conhecimento e resultante de uma análise
objetiva da natureza racional do homem102». Esse sistema de direito natural tem as «suas raízes
no mais profundo da consciência e do sentimento individuais, visto que é um direito escrito no
coração do homem103». São princípios morais universais. Morais, pois dizem respeito a uma
parte do cerne do indivíduo que direciona a ação, e universais pois comum a todo e qualquer
ser humano. Dito em outras palavras, o senso do certo ou errado, chamado de consciência
habitual, ou sindérese, está presente em todos os homens104.

Entretanto, como afirmamos, surge como crítica, a objeção de que nem todos os seres
humanos estão a comprometidos com a prossecução do bem105, porém, trata-se de um
argumento eivado, afinal, todos os jusnaturalistas partiram do pressuposto e «afirmaram com
franqueza, que os seres humanos não se dedicam igualmente à busca do conhecimento ou da
justiça e estão longe de estar unidos em sua concepção do que constitui um conhecimento que
vale a pena ou uma exigência de justiça106». Além disso, a existência e o conhecimento do mal
não são negados por nossa teoria, antes é parte central dela, como veremos mais adiante.

Continuemos a tratar dessa lei incutida no coração do homem, que aponta para o senso
de transcendência. Cícero107 conseguiu captar a ideia dessa moral absoluta e universal de forma
nevrálgica:

A razão reta, conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna,


cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandatos,
ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente
ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada;
não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo senado; não há que
procurar para ela outro comentador nem intérprete; não é uma lei em Roma e outra
em Atenas, - uma antes e outra depois, mas una, sempiterna e imutável, entre todos os
povos e em todos os tempos; uno será sempre o seu imperador e mestre, que é Deus,

99
Doravante denominado de Doctor Angelicus.
100
Doravante traduzido por Aristóteles.
101
Sobre a diferença entre as conceções do Bispo de Hipona e o Doctor Angelicus, cfr. (IV.5).
102
SOUSA, José Pedro Galvão de. Dir … cit., p. 3.
103
LACAMBRA, Luis Legaz, op. cit., p. 291. (Tradução livre).
104
PUPPINCK, Grégor. Conscientious Objection and Human Rights: A Systematic Analysis. Brill Research
Perspectives in Law and Religion, Boston, v.1, n.1, pp. 1-75.
105
Cfr. nota. nº 74.
106
FINNIS, John Mitchell, op. cit., p. 41.
107
CÍCERO, Marcus Tullius. De Re Publica. Tradução: Amador Cisneiros. Rio de Janeiro: Ediouro, 1984.
III, 17.
34

seu inventor, sancionador e publicador, não podendo o homem desconhecê-la sem


renegar-se a si mesmo, sem despojar-se do seu caráter humano e sem atrair sobre si a
mais cruel expiação, embora tenha conseguido evitar todos os outros suplícios.

Esta senso gravado no coração108 dos homens é o que os norteia e é o que


denominamos de jusnaturalismo. Como veremos na teoria de Finnis, é autoevidente e
irrefutável109. Pode parecer arrogância fazer tal afirmação, mas longe de nós tal ideia110.

Como seria arrogância dizer isto? Ou seja, como seria arrogância definir algo que não
se pode negar? Acreditamos nesta moral absoluta, com todas as nossas forças, por mais que
discursos neguem a referida afirmação, atos comprovam-na. Afinal, se não acreditássemos
nessa moral absoluta, qual a razão da «ânsia de encontrar justificativas para qualquer deslize?
A verdade é que acreditamos a tal ponto na decência e na dignidade, e sentimos com tanta força
a pressão da Soberania da Lei, que não temos coragem de encarar o fato de que a
transgredimos111».

Diante disso, é melhor é negar a existência da lei absoluta, chamá-la de abstrata, utópica,
do que depararmo-nos com seu espelho que revela as nossas faltas. E isso nada tem de abstrato.
Essa moral é real e concreta. Os bens perscrutados por ela compõem a vasta experiência
humana, motivo pelo qual não merecem apreço aqueles ataques ao jusnaturalismo que o
qualificam como uma utopia.

O jusnaturalista não se ocupa do que é abstrato. Na verdade, mutatis mutandis, como


um médico que se preocupa em estudar um corpo perfeito e a partir daí, aplicar os seus estudos
nos corpos dos seus pacientes doentes, o jusnaturalismo centraliza-se naquilo que é um sistema
jurídico sadio e dessa averiguação passa a tratar as vicissitudes que relacionam o direito e a
sociedade112. Todos sem exceção, temos algum problema de saúde, por mínimo que seja, como
alergias respiratórias, falta de sono, entre outros e, esses problemas, são devidamente tratados,
justamente porque a medicina sabe o que é uma saúde perfeita. Destarte, da mesma forma que
o corpo perfeito é requisito indispensável para a busca incessante da saúde humana, o direito
natural o é para o ordenamento jurídico. Seria o corpo perfeito, tão abstrato por não existir ou,

108
Veja-se adiante (V.1) nossa definição de coração: néfesh, anseio, desejo, centro religioso.
109
Veja-se adiante, (III.1), principalmente a nota de nº 191.
110
Timothy Keller, diz que existe uma aparência de humildade, ao afirmarmos que não podemos alcançar ou
compreender a verdade, entretanto, quando alguém nega absolutos, faz isso por meio de um absoluto. Assim, todos
defendemos a existência de uma verdade absoluta. (Cfr. KELLER, Timothy J. A fé na era de ceticismo: como a
razão explica Deus. São Paulo: Vida Nova, 2015. pp. 34-5).
111
LEWIS, Clive Staples. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2017. p. 12.
112
Cfr. PINHEIRO, Victor Sales. Razão prática e direito em John Finnis. Pará: Dialetico, 2018. Consultado
em 13 de julho de 2018, em «https://www.youtube.com/watch?v=tDJYFbe-r5A&t=1555s».
35

seria ele, o objetivo, finalidade, prossecução do bem para a medicina? Destarte, apliquemos as
mesmas perguntas ao jusnaturalismo e poderemos notar que não há nada de utópico nesta teoria.

Relacionado a esse tema, Finnis, faz uma distinção entre os casos centrais e periféricos
da vasta experiência humana em que «pode-se distinguir os assuntos humanos maduros dos
subdesenvolvidos, os sofisticados dos primitivos, os prósperos dos corrompidos, os bons
espécimes dos casos desencaminhados113», e isto, conforme Raz, se aplica também ao direito:

Os traços gerais que marcam um sistema como jurídico são vários e cada um deles
admite, em princípio, vários graus. Nos exemplos típicos de sistemas jurídicos, todas
essas características se manifestam em um grau elevado. Mas é possível encontrar
sistemas jurídicos em que todas ou algumas dessas características estão presentes
apenas em menor grau ou em que uma ou duas estão ausentes completamente […]
Quando confrontados com casos fronteiriços, é melhor admitir suas credenciais
problemáticas, enumerar suas semelhanças e dessemelhanças com os casos típicos, e
deixar as coisas como estão114.
Assim, o corpo perfeito é o caso central da medicina, enquanto, para Finnis, o direito
positivo é o caso central do direito. Pode parecer antípoda tal afirmação, diante do que estamos
a desenvolver, entretanto, o leitor não deve relacionar o direito positivado com as vertentes
positivistas-cientificistas que demonstrámos anteriormente. Na verdade, o direito positivo,
depende do direito natural e vice-versa115.

Na teoria jusnaturalista apresentada, tanto a ideia de perseguir um sistema jurídico-


social sadio, quanto a noção de casos centrais e periféricos, podem vir a dar a sensação que o
ser deriva do é (II.2), o que incorreria na falácia naturalista de David Hume116.

Evidentemente que há muitos pesquisadores dos escritos de São Tomás de Aquino que
divergem entre si. Estas divergências podem ser centralizadas em duas correntes principais que
dizem respeito à teoria do conhecimento: aqueles que defendem o conhecimento como

113
FINNIS, John Mitchell, op. cit., p. 24.
114
RAZ, Joseph. Practical reason and norms. Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 150. (Tradução
livre).
115
Cfr., (IV.6)
116
Conforme observa Hume, «Em todo sistema moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue
durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações
a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais
usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não
deve. Esta mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois como este deve ou não deve expressa uma
nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma
razão para algo que parece inteiramente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras
inteiramente diferentes.», HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método
experimental de raciocínio nos assuntos morais. Livro III, parte 3, seção 1, parágrafo 27. São Paulo: Unesp, 2000.
p. 509.
36

derivação da natureza humana por meio da metafísica (Anthony Lisska) e aqueles – os quais a
priori seguimos – que defendem o conhecimento por meio de fins (Finnis, Boyle, May) 117.

Contudo os principais críticos do jusnaturalismo, parecem desconhecer as interpretações


de autores como Finnis. Todos, afirmam que o jusnaturalismo é consequência de obrigações
morais de factos, o que não é verdade. E essas críticas, geralmente foram fomentadas como
resposta aquele jusnaturalismo de cariz racionalista relativamente ao qual já confessámos deter
abstrações.

A nova escola do direito natural deve a sua fundação, em grande parte, a Germain
Gabriel Grisez118 em que no artigo denominado de «The First Principle of Practical Reason: A
Commentary on the Summa Theologiae, 1-2, Question 94, Article 2», rebate de forma
nevrálgica o argumento do é/deve ser.

Mas não podemos pensar que o argumento de Grisez segue uma interpretação de
oposição às críticas do é/deve ser, pelo contrário, o autor demonstra que isso nunca foi uma
preocupação de São Tomás de Aquino. Fundamentado neste insight de Grisez, Finnis
desenvolve a sua teoria que abordaremos no próximo capítulo. Entretanto, cumpre antes,
voltarmos à discussão do é/deve ser.

As críticas levantadas pela interpretação do é/deve ser partem de uma premissa próxima
aos dizeres do Doctor Angelicus, que, no entanto, não correspondem à totalidade dessa
premissa. Os críticos combatem o termo «faz o bem e evite o mal», entretanto há uma sutil, mas
profunda diferença, que não é notada, com «o bem deve ser praticado e procurado, o mal deve
ser evitado119».

Parece que para os críticos, a finalidade do Doctor Angelicus é restringir o sentido de


bem e de mal à questões morais120. Quando, na verdade, ele tinha em mente as causas finais121.
Para ele, «a razão humana, em si mesma, não é a regra das coisas; mas os princípios, que lhe

117
MASSINI-CORREAS, Carlos I. Sobre bienes humanos, naturaleza humana y ley natural: Reflexiones a
partir de las ideas de Javier Hervada y John Finnis. Revista Persona y Derecho, Navarra, v.71, n.1, pp. 229-56.
Consultado em 03 de setembro de 2018, em «https://www.unav.edu/publicaciones/revistas/index.php/persona-y-
derecho/article/view/3495/3251».
118
SOUZA, Elden Borges. A fundamentação ética dos Direitos humanos em Tomás de Aquino: pessoa
humana, bem comum e Lei natural. 2017. 156 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do
Pará, Belém/PR - Brasil, 2017. p. 69. Consultado em 31 de julho de 2018, em
«http://repositorio.ufpa.br/jspui/bitstream/2011/9787/1/Dissertacao_FundamentacaoEticaDireitos.pdf».
119
D'AQUINO, Tommaso, op. cit., I-II q. 94, a.2.
120
GRISEZ, Germain Gabriel. O primeiro princípio da razão prática (1965). Revista Direito GV, São Paulo,
v.3, n.2, pp. 179-218. Consultado em 03 de setembro de 2018, em
«http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/35188/33992».
121
Ibid., pp. 179-218.
37

são naturalmente inerentes, são certas regras gerais, e medidas de tudo o que o homem deve
fazer122» e essas regras gerais ou, princípios naturalmente inerentes, podem ser sintetizados na
afirmação de que «é inerente ao homem a inclinação para o bem segundo a natureza da razão
que lhe é própria, como ter o homem uma inclinação natural para conhecer a verdade sobre
Deus e viver em sociedade123».

Entretanto, o conceito de bem no sentido utilizado pelo Doctor Angelicus é muito


diferente daquele utilizado pelos críticos ao jusnaturalismo e também diverge daquele conceito
de bem aplicado pelos voluntaristas e utilitaristas.

O bem é a inclinação a que cada coisa se direciona por ser da sua própria natureza, é um
princípio ativo que ocorre nessa inclinação natural com a finalidade de causar o bem a si e a
outrem124. Assim, entender esse bem, é entender o processo racional que o envolve, persegui-
lo e concretizá-lo, aquilo que Finnis denomina de razoabilidade prática125.

Pode parecer confuso, mas o que o Doctor Angelicus está a afirmar é que fundamentos
morais não derivam da natureza do homem, na verdade são-lhe transcendentes e podem e
devem ser percebidos pela razoabilidade prática, mas que não são obrigatórios, não no sentido
da derivação metafísica. Porém, esta afirmação só pode ser compreendida quando entendemos
o que o texto pregresso à premissa «o bem deve ser praticado e procurado, o mal deve ser
evitado», declara:

Eis por que o primeiro princípio indemonstrável é que não se pode simultaneamente
afirmar e negar, que está fundado sobre a razão do ente e do não ente. Sobre este
princípio todos os demais estão fundamentados, como se diz na Metafísica. Ora, assim
como o ente é aquilo que, primeiro, pura e simplesmente, cai sob a apreensão, assim
também o bem é aquilo que primeiro cai sob a razão prática, a qual está ordenada para
a obra, pois todo agente age em vista do fim e este é dotado da razão de bem. Dessa
forma, o primeiro princípio da razão prática está fundamentado sobre a razão de bem
e é o seguinte: “o bem é aquilo que todos apetecem”. Portanto, este é o primeiro
preceito da lei: “o bem deve ser praticado e procurado, o mal deve ser evitado”. Sobre
isso estão fundamentados todos os demais preceitos da lei da natureza, de tal modo
que tudo o que deve ser praticado ou evitado, que a razão prática naturalmente
apreende ser bem humano, pertence aos preceitos da lei da natureza. 126
Dessarte, notamos, que o Doctor Angelicus constrói a sua teoria epistemológica a partir
da similaridade com a lógica clássica da filosofia: «A é A e que A não é não A127», ou seja, que
não se pode simultaneamente afirmar e negar, princípio esse fundamentado na noção de que é

122
D'AQUINO, Tommaso, op. cit., I-II q. 91, a.3. sol.2.
123
Ibid., I-II, q. 94, a.2.
124
GRISEZ, Germain Gabriel, op. cit., pp. 179-218.
125
Cfr. (III.2).
126
D'AQUINO, Tommaso, op. cit., I-II q. 94, a.2
127
SCHAEFFER, Francis August. O Deus que se revela. 2.ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. p. 83.
38

impossível algo ser e não ser ao mesmo tempo128 e da mesma forma que «o ser é o primeiro
[princípio] a ser apreendido irrestritamente pela mente, o bem é o primeiro [princípio] a ser
apreendido pela razão prática129».

Eis que da mesma forma que temos consciência do que é, a razão prática tem consciência
do bem, conforme argumenta esta construção teleológica, «um fim deve ser alcançado não em
virtude de um desejo subjetivo da parte do agente, mas porque o próprio fim determina o bom
funcionamento do ser humano130».

Assim o primeiro objetivo da lei natural não é praticar atos bons, antes, é buscar sempre
um fim para os atos sendo que «se a lei natural impõe obrigações de se praticar atos bons, é
apenas porque ela primariamente impõe com necessidade racional que se busque um fim 131» e
esse fim se solidifica na perseguição do próprio bem e do bem da comunidade.

Daí que pode e deve, mas não que seja obrigatório no sentido de derivação metafísica,
pois para o Doctor Angelicus a prudência é que se preocuparia com as questões morais132, ela
é que distingue os homens que são virtuosos dos que não o são133. Assim, para se chegar a fazer
juízos morais é necessário chegar antes à maturidade, à idade da razão134 e por meio de um
processo de julgamento crítico, desejar o bem por ser bem em si, processo que somente o
homem virtuoso, o σπουδαῖος (spoudaíos)135 é capaz de fazer, enquanto os outros homens
acabam por perseguir o bem como fim último.

Disso percebe-se a clara diferença entre perseguir e desejar, entre o bem como fim e o
bem como conteúdo, «logo, “mal” no primeiro princípio da lei natural denota apenas as ações
que definitivamente contrariam a natureza, cuja realização é proibida, e "bem" denota apenas
as ações cuja omissão contraria definitivamente a natureza, cuja realização é ordenada 136», ou
seja, homens maus também fazem juízos, mas não juízos buscando o bem enquanto conteúdo,

128
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2002. IV, 3, 1005b20.
129
GRISEZ, Germain Gabriel, op. cit., pp. 179-218.
130
MALACARNE, Luciana. O primeiro preceito da lei natural de Tomás de Aquino: uma inferência de
“é” para “deve”? 2012. 56 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Monografia) – Curso de Filosofia, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, 2012. Disponível em:
«https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/67492/000873325.pdf?sequence=1». Acesso em 31 de julho
de 2018.
131
GRISEZ, Germain Gabriel, op. cit., pp. 179-218.
132
D'AQUINO, Tommaso, op. cit., II-II, q. 47, a.6c.
133
Ibid. I-II, q. 1.
134
FINNIS, John Mitchell, op. cit., p. 44.
135
Spoudaíos é frequentemente traduzido por homem bom, virtuoso ou maduro. Cfr., ARISTÓTELES. Ética
a Nicómaco. 3.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1992. I,7: 1098a; I,7: 1099a; III,4: 1113b
136
GRISEZ, Germain Gabriel, op. cit., pp. 179-218.
39

mas enquanto uma finalidade em si mesma, de modo egoísta, o que leva a que em muitos casos
se faça o mal mesmo praticando um bem.

Para deixarmos claro tal assunto: estamos a afirmar que o primeiro princípio da lei que
está fundamentado na premissa «o bem deve ser praticado e procurado, o mal deve ser evitado»
é concretizado até mesmo pelos homens maus, visto que a «ação imoral cumpre parcialmente
este preceito, pois mesmo os homens maus agem por conta de um bem humano ao mesmo
tempo em que aceitam a violação de outro bem humano mais adequado137», como por exemplo,
quando um homem decide forçar uma mulher à intimidade sexual com ele, ainda assim, este
homem está a buscar o bem no sentido do que até então foi exposto, visto que esse homem,
com um ato desviado daquilo que é correto, ainda assim, está a buscar os bens do prazer,
domínio e poder em detrimento do bem do consentimento da mulher, donde há um desvio do
bem daquilo que se chama último fim138, que é a beatitude, o estado de felicidade máxima, o
encontro do homem com o verdadeiro bem, Deus139.

Daí que podemos denominar esses bens desviados de bens «ilusórios e inadequados [em
contraste] aos adequados e genuínos140», por isso as obrigações morais são derivações da
prudência, que é alcançada apenas pelo homem virtuoso: aquele que submete a busca do seu
fim, o bem, não como finalidade egoísta, mas para promulgação do bem no seio de uma
comunidade, o bem comum. Este é o trunfo do argumento do Doctor Angelicus que foi
rejeitado, esquecido ou não observado pelos críticos e que a nova escola jusnaturalista
conseguiu resgatar.

Entretanto, por mais que as obrigações não sejam derivadas metafisicamente, «a


prudência é virtude soberanamente necessária à vida humana141» visto que ela leva o homem a
pensar no bem de forma geral e não egoísta, ela «permite a conjugação do fim devido aos meios
adequados. Por isso, também, a razão em Aquino não se confunde com o racionalismo
moderno142» e assim, «os primeiros princípios precisam ser complementados por outros
princípios e por um processo de raciocínio correto se quisermos chegar a conclusões
corretas143», donde é evidente que há uma clara vinculação entre o primeiro princípio da razão
prática e o cumprimento de observâncias morais, pois «as formas básicas do bem são

137
Ibid., pp. 179-218.
138
D'AQUINO, Tommaso, op. cit., I-II, q. 1, a. 7.
139
Ibid., I-II, q. 55, a. 2.
140
GRISEZ, Germain Gabriel, op. cit., pp. 179-218.
141
D'AQUINO, Tommaso, op. cit., I-II, q. 57, a.5.
142
SOUZA, Elden Borges, op. cit., p. 57.
143
GRISEZ, Germain Gabriel, op. cit., pp. 179-218.
40

oportunidades de ser, quanto mais um homem participa delas, mais ele é o que ele pode ser144»
e justamente, esse princípio da razoabilidade prática, abre caminho para diversos bens que os
homens podem provar.

Os bens são muitos, mas não são todas as coisas. No entanto, o sentido de bem é
nuclear no que se refere à vasta experiência humana, a perseguição de um deles em particular
não retrata toda essa experiência, antes, uma parte dela. Não limita as possibilidades humanas,
mas por meio da razoabilidade prática, torna estas possibilidades reais145.

De acordo com a variedade dos homens, distintos entre si, em personalidades, desejos e
sonhos, diferentes bens recebem enfoque em maior ou menor grau conforme a experiência
individual. Entretanto, «embora essas inclinações tenham uma instância individual, elas
importam aos demais na medida em que são uma forma de bem geral (ou universal)146»,
portanto, há uma parte nuclear dos bens que é transcendente aos homens, mas que é comum a
todos eles e que se aproxima daquele fim último que é a felicidade máxima, o encontro do
homem com Deus e há uma parte destes bens que é retratada na diversidade da criação divina
expressa nestes homens147.

Destarte, os argumentos supramencionados, destoam tanto da crítica do é/deve ser,


como de várias outras críticas já enunciadas e ainda clarifica sobre quais os fundamentos a
teoria de Finnis e a nova escola jusnaturalista foram construídas. Porém, antes de passarmos ao
próximo capítulo e estudarmos a teoria de Finnis, compete-nos responder outras críticas que
ficaram soltas.

Do argumento do é/deve ser e consequentemente da derivação de que o jusnaturalismo


ordena a desobediência à lei positiva, deriva o fundamento da separação entre lei e moral,
ocasião em que se pudéssemos efetuar a referida separação, o direito seria visto de forma mais
nítida. Entretanto, isso não passa de equívoco. Será que de facto conseguimos efetuar tal
separação?

Agora já sabemos que segundo a teoria do Doctor Angelicus, revigorada por Grisez e
Finnis, a moral é o meio para prossecução do fim, ela não cria uma derivação de obrigação por
meio metafísico, mas vincula aquele princípio da busca de um fim, que todos os homens
perseguem, a finalidade do bem comum e busca do fim último.

144
FINNIS, John Mitchell, op. cit., p. 107.
145
GRISEZ, Germain Gabriel, op. cit., pp. 179-218.
146
SOUZA, Elden Borges, op. cit., p. 58.
147
Esse assunto ficará mais claro no próximo capítulo.
41

E por mais que de algum modo, aparentemente, possamos incorrer na crítica Humiana,
a moral pode não ser derivada do é, mas está contida nele. Sabemos como que temos de nos
portar, os nossos discursos estão regados de moralidade e em todas as culturas podemos
encontrar bens humanos básicos148.

Esta moral é tão clara e comum aos homens que ninguém deseja, por exemplo, ser
relativista quando se põe a ler uma bula de remédio, visto que queremos acreditar que aquelas
informações ali são objetivas149. Entretanto, nunca defendemos com tanto afinco, por meio de
um sistema de linguagem moral, ideais altíssimos – maiores do que em qualquer tempo e cultura
– como justiça para todos os povos, erradicação da fome e pobreza para todo e cada ser humano,
igualdade e dignidade, entre outros, e, ao mesmo tempo, sem ter como sustentá-los, por que
somos relativistas e não acreditamos em sistemas morais absolutos150.

Os advogados são os profissionais que mais usam este sistema de linguagem moral,
ressaltando como o bem humano, comum a todos, é o objetivo último dos atos. Por isso eles
usam termos como certo e errado, bem ou mal, justo ou injusto151.

Por isso da discussão da separação entre lei e moral e do é/deve ser, há uma orientação
muito grande do direito ser visto como facto social, uma construção histórica no seio de uma
sociedade. A teoria jusnaturalista não contrapõe essa ideia totalmente. Porém, o direito, apesar
de ser representado por facto social, não o é eu sua totalidade152. E essa compreensão do direito
como facto social, que leva à correntes como a voluntarista: ora, sendo o direito o que regula a
conduta dos homens em relação uns aos outros, tudo aquilo que vir a nascer de um acordo de
vontades, assim, voluntariamente, é que deveria ser seguido, é o que daria sentindo ao direito.
Desta forma, o direito seria facto social advindo do acordo de vontades dos homens153.

Entretanto, não nos parece que o direito como apenas facto social e acordo de vontades
mereça prosperar, visto que «é claro, portanto, que as categorias nas quais a vontade encerra o

148
Cfr. (III.1).
149
CRAIG, William Lane; GORRA, Joseph E. A razão da nossa fé: respostas a perguntas difíceis sobre
Deus, o cristianismo e a Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 2018. p. 383.
150
TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Edições Loyola,
2005. pp. 41-148.
151
Cfr., FINNIS, John Mitchell, op. cit., pp. 195ss.
152
Ibid., pp. 23ss.
153
Sobre a voluntarismo no direito Cfr., KELSEN, Hans. T … cit., pp. 90ss; BONAVIDES, Paulo. Curso
de direito constitucional. 19.ed. São Paulo: Malheiros, 2006. pp. 447ss; LARENZ, Karl, op. cit., pp. 77ss.
42

homem impedem a questão sobre a natureza que mede essa vontade, uma vez que ela é, em
relação a si mesma, sua própria medida154».

Afinal, diante disso, o ser humano apenas seria visto como tal, quando o meio social
declarasse que ele assim o seria, quando ele cumprisse seu papel para isto. Ou seja, mesmo
fundamento usado por Simone de Beauvoir em relação às mulheres. Seria necessário uma
aprendizagem social para daí haver um reconhecimento do Estado que este (a) ou aquele (a) é
homem (mulher), o que é um confronto direto e absurdo ao reconhecimento fundamental da
pré-existência da natureza humana155. Isso é especialmente clarificado quando falamos de
direitos humanos, que para nós jusnaturalistas são o mesmo que os bens humanos básicos.

Bartolomé Clavero Salvador156, na sua obra «Constitucionalismo Global157», faz uma


dura crítica à fundação das declarações de direitos humanos, afirmando que estas são
colonialistas, deixando minorias e marginalizados excluídos, em detrimento de um povo
selecionado (os colonizadores), que foram estes, ironicamente, os que escreveram as cartas158.

Não concordamos com muitos dos argumentos de Bartolomé Clavero, mas parece-nos
evidente que ao se perceber o direito apenas como factos históricos e acordos de vontade, os
direitos humanos são ameaçados e, isso pode ter ocorrido, ao produzir-se as declarações,
marginalizando determinados povos.

O fundamento das declarações de direitos humanos, como veremos adiante, é a


liberdade religiosa, fundamentada no cristianismo, entretanto, não é o cristianismo a razão da
exclusão colonialista, antes, a própria corrupção do homem (V.2).

Assim, o voluntarismo é «o pior instrumento de opressão dos direitos humanos em


sentido cristão, isto é, […] dos direitos da pessoa, os direitos de cada homem e de todo
homem159», pois de acordo com um mero acordo de vontade, pautado em factos sociais, «os
direitos humanos que existiam poderiam perfeitamente não ter existido e os que não são, não
serão, já que muitos são apenas uma ilusão160».

154
TRIGEAUD, Jean Marc. Derecho natural y derechos humanos en los albores del siglo XXI. La tradición
clásica del derecho natural y su superación por el personalismo. Persona y Derecho, Navarra, v. 28, n.1, pp. 281-
303. Consultado em 31 de julho de 2018, em «http://dadun.unav.edu/handle/10171/12805» (Tradução livre).
155
Ibid. pp. 281-303.
156
Professor Catedrático em História do Direito na Universidade de Sevilha.
157
SALVADOR, Bartolomé Clavero. Constitucionalismo Global: por uma história verossímil dos direitos
humanos. Goiânia: Palavrear. ISBN: 978-85-93528-00-2, 2017. Edição do Kindle.
158
Ibid., location 587/5807.
159
TRIGEAUD, Jean Marc, op. cit., pp. 281-303.
160
Ibid., pp. 281-303.
43

Não há como entender o homem e todas as suas relações humanas, apenas do ponto de
vista histórico e do acordo de vontades que excluem a própria natureza humana, que é
preexistente às definições sociológicas, históricas ou jurídicas.

E ainda, essa natureza preexistente, não direciona o homem à transcendência por mero
medo das vicissitudes da vida. Não se trata de mera fraqueza psicológica que todos detemos.
Na verdade, como bem iniciamos este artigo, os homens que vivem melhor nesta Terra, são
aqueles que encontram uma causa para morrer161.

Clive Staples Lewis162 disse que «os grandes homens que erigiram a Idade Média, os
protestantes ingleses que aboliram o tráfico de escravos - todos deixaram sua marca sobre a
Terra precisamente porque suas mentes estavam ocupadas com o Paraíso163». E para os homens
de fé, o sofrimento é algo comum entre eles (VI.2), não que o desejem, mas sabem que faz parte
dos passos trilhados por Jesus Cristo.

Logo, não me parece então, que todos os homens pensem na eternidade por algum medo
de condenação futura ou de incertezas na vida. Há, claro, muitos que assim procedem, mas por
outro lado, há outros que perseguem o bem de uma comunidade, por ser apenas bem, como
vimos ao falar do homem virtuoso. Há aqueles que perseguem a justiça por que desejam vê-la
concretizar-se, apenas por saber que ela é melhor que a injustiça. Desejam a eternidade, não
para fugir dos seus monstros, mas para apesar deles, encontrar aquele é o fim último para o
Doctor Angelicus – o ser de Deus, fonte de toda alegria.

Ademais, como já vimos, muitos fizeram o bem pensando na vida futura, o que por si,
rechaçaria o argumento que os jusnaturalistas não se preocupam com o hoje e com o agora. E
ainda, isso não é um argumento plausível, visto que «também é possível defender o oposto. Se
este mundo é tudo que existe, e se o amor, o conforto e a riqueza que aqui desfruto são os únicos
que jamais terei, por que sacrificá-los em prol de terceiros?164». O leitor, consegue perceber
como esses argumentos são frágeis?

161
Cfr., nota nº 3.
162
Clive Staples Lewis, foi um «autor de romances famosos, [e.g, Crónicas de Nárnia] (…) escritor e
apologista cristão (…) notável professor e crítico literário de Oxford que lotava salões de palestras ao apresentar
suas reflexões espontâneas sobre a literatura inglesa e que seguiu em frente para se tornar o primeiro titular da
cadeira de Literatura Medieval e Renascentista da Universidade de Cambridge», MCGRATH, Alister Edgar. A
Vida DE C. S. Lewis: do ateísmo às terras de Nárnia. Prefácio. São Paulo: Mundo Cristão, 2013.
163
LEWIS, Clive Staples, op. cit., p. 178-9.
164
KELLER, Timothy J, op. cit., p. 94.
44

Por fim, foi apresentado o argumento de que o jusnaturalismo é fundamento para


ideologia política com a finalidade de manter o poder, mas porque outras teorias não o seriam
também?

O leitor pode contra-argumentar que o jusnaturalismo está preocupado com a justiça e


com uma moralidade (mesmo que subsidiária) que outras teorias não estão. Por isso, o
argumento ideológico aplica-se apenas a ele. O que seria apenas uma forma de dizer que aquilo
que é imoral por si, deve continuar a ser imoral, visto que não se preocupa com a moralidade.

E ainda, o que é bom pode ser desviado e utilizado com fins maus. Já vimos isso. O
jusnaturalismo ser utilizado como ideologia política não o desqualifica do que ele é. Na verdade,
prova novamente que a teoria está certa. Como observado por Guy Haarscher, os direitos
humanos foram utilizados como argumento para as maiores barbaridades ocorridas no
mundo165.

Deste modo, as principais críticas à teoria jusnaturalista, não merecem prosperar.


Passemos agora, a demonstrar como o jusnaturalismo é revigorado por Finnis.

165
HAARSCHER, Guy. Filosofia dos direitos do homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. pp. 102ss.
45

III - O DIREITO NATURAL PARA JOHN MITCHELL FINNIS

A teoria de Finnis, é fundamentada nos conceitos de bens humanos e razão prática


derivados de Aristóteles e do Doctor Angelicus e de como estes conceitos se relacionam no seio
de uma comunidade local que procura tornar-se uma comunidade plena, com o florescimento
de cada ser humano que a integra.

Pese embora alguns destes conceitos já terem sido demonstrados no capítulo anterior,
devemos ampliá-los no sentido de lhes conferir significado, aplicação e estrutura. O que
inevitavelmente é concretizado na teoria de Finnis, conforme será exposto infra.

III.1 Dos Bens Humanos Básicos

Hodiernamente, há uma distinção semântica entre valor e bem, ocasionada como


consequência do desenvolvimento de algumas teorias de pensadores como Hobbes, Hume,
Dawkins, entre outros, conforme visto anteriormente (I.1; II.2). Influenciado por estas
diferenças, John Leslie Mackie chegou à conclusão de que «não há espaço para qualidades
morais objetivas de relações neste universo estritamente materialista166». Para ele, não existe
bom ou ruim, apenas emoções e desejos167, concordando com aquele pensamento de Hobbes
de que: «seja qual for o objeto do apetite ou desejo de qualquer homem, esse objeto é aquele a
que cada um chama bom; ao objeto do seu ódio e aversão chama mau, e ao do seu desprezo
chama vil e insignificante168». Sendo assim, o valor destas cosmovisões é atribuído de modo
subjetivo, enquanto o bem seria algo objetivo169. É como se não inexistisse transcendência em
relação aos bens humanos básicos, os quais derivam da vontade, desejo, acordo entre partes e
atribuição dos indivíduos, tudo o que já rechaçámos no capítulo anterior.

Diante disto, o conceito de Robert Nozick denominado de máquina das


experiências170, surge na teoria de Finnis como teste nivelador para aferir se de facto o prazer
é o que nos dá sentido e se os sentimentos determinam a busca pelos bens básicos. Ora, esta
máquina é uma espécie de ensaio mental revelador, em que ao homem são dadas duas opções
numa espécie de escolha única de vida: i) ele pode escolher adentrar-se num tanque e ser
conectado a uma máquina, que através da estimulação do seu cérebro, lhe dará todo o tipo de

166
MACKIE, John Leslie. Hume's moral theory. London: Routledge, 1995. p. 7. (Tradução livre).
167
Ibid., pp. 7ss.
168
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 48.
169
SOUZA, Elden Borges, op. cit., pp. 32-3.
170
Cfr., NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. pp. 58ss.
46

sensações prazerosas, experiências de todo e qualquer tipo, numa infinidade de escolha ad


libitum deste homem, por toda a sua vida ou ii) não adentrar na máquina e continuar a viver
com dores e sofrimentos que contrastam com alegrias e regozijos. Seja qual for a escolha que
ele vier a fazer, é única, decisiva e não há como regressar. Ou seja, se vier a escolher a primeira
opção, flutuará naquele tanque o resto da sua miserável vida. Uma miserável vida de prazer171.

A pergunta que então se coloca é: escolheríamos entrar na máquina? Muito


provavelmente a maior parte de nós responderia com um sonoro não172. Qual o significado de
ficar imóvel num local, aproveitando todo o tipo de prazeres possíveis se eles são: i) fins em si
mesmos; ii) não estão a buscar o bem comum e; iii) não são reais?

Um dos melhores filmes feitos nos últimos anos, «Inception173», retrata bem este
impasse filosófico. Em determinada altura, os personagens dirigem-se a um local para serem
induzidos ao sono e ali, por meio de seus sonhos, realizam o que bem entenderem. Há muitas
pessoas a desfrutar da máquina de sonhos, algumas, por horas ininterruptas, o que levou um
dos personagens a indagar ao senhor responsável pela máquina: «Eles vêm cá todos os dias para
dormir? [ao que este respondeu:] Não. Vêm para ser acordados. O sonho, tornou-se a realidade
deles174». A temática principal do filme gira em torno do que é ou não realidade, onde a crítica
dura ao prazer como fuga do que é real é muito bem retratada.

A pessoa que se submetesse à máquina, deixaria de amar, odiar, sofrer e alegrar-se de


verdade. Resumidamente, deixaria de viver, razão pela qual, «conectar-se a máquina é uma
espécie de suicídio175» e todos sabemos disso, por isso a «nossa rejeição da máquina de
experiências descreve nosso entendimento prático de que o bem deve ser encontrado na
atividade176».

Assim, não pode o desejo ser o fundamento dos bens básicos, visto que os desejos dos
homens podem ser desordeiros, como vimos anteriormente. Afinal, nem todo o tipo de prazer
produz o bem comum, por mais que ele produza um bem aparente177. Como por exemplo,
num casamento, quando o marido se une a sua esposa no ato sexual, ambos provam do bem
comum de entrega mútua e de se tornarem ambos uma só carne, o que é muito diferente de que

171
Cfr., Ibid., pp. 58ss; FINNIS, John Mitchell. Fundamentos de Ética. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. pp.
38ss; FINNIS, John Mitchell. Lei N … cit., pp. 100ss;
172
FINNIS, John Mitchell. Lei N … cit., p. 100.
173
NOLAN, Jonathan., et al. Inception. Burbank, CA: Warner Bros Entertainment Incorporated, 2010.
174
Ibid., 43 min., 20-40 seg.
175
NOZICK, Robert, op. cit., p. 59.
176
FINNIS, John Mitchell. Fund … cit., p. 39.
177
O Doctor Angelicus apresenta conceitos de vício e virtude como contrapontos (Cfr, I-II q.71). Um
exemplo para clarificar tal ideia, é que o casamento seria uma virtude enquanto o adultério seria um vício.
47

mesmo casados, cada qual, praticasse o ato de masturbação178. Ou ainda, alguém que se
entregasse à pornografia em busca de aplacar o desejo sexual, ao invés de buscar o meio
legítimo para concretização de tais desejos, que é o casamento monogâmico heterossexual e
monossomático.

Desta forma, ainda que alterássemos a regra básica da máquina de experiências e fosse
permitido aos homens ligarem-se a ela, ao mesmo tempo que pudessem ser desligados quando
quisessem, qual dentre eles assim procederia? e qual dentre eles, ao estar submerso em seus
desejos alucinantes, poderia ser capaz de abrir os olhos para a realidade e cortar aquele
momento de prazer infinito? Talvez esse homem devesse combinar com um amigo, para depois
de determinada altura, desligasse a sua máquina, para que ele voltasse àquilo que é real, afinal,
todos sabemos, em nossas vidas diárias, quanto as paixões são escravizadoras179.

É evidente assim, que prazer é muito diferente de satisfação. O homem é desejo, é


anseio, (V.1), mas não é só isso. Não é guiado pelos seus prazeres, mas pela busca completa
por satisfação. Esta satisfação apenas se pode obter tendo em vista um processo da busca dos
bens humanos básicos para o florescimento humano, por meio da razoabilidade prática, «em
suma, a partir do momento que algo é compreendido como verdadeiro, a vontade passa a buscá-
lo enquanto um bem, este bem é o fim e aquilo que lhe é secundário são os meios para alcançar
esse fim180».

Por isso, como vimos, os bens são expressos e encontrados na vasta experiência humana,
não podem ser limitados, dado que os homens são diferentes entre si e por mais que exista um
núcleo mínimo comum entre esses bens, os homens perseguem objetivos diferentes (III.2),
razão pela qual, teorias que restringem esses bens humanos, como a de Rawls é uma forma de
arbitrariedade, pois elas simplesmente focam aquilo que se denomina de bens primários,
enquanto tratam os outros bens como diminutos ou apenas como manifestações das vontades e
dos desejos, quando na verdade são oportunidades para o florescer humano181.

178
FINNIS, John Mitchell. Derecho, moral, y orientación sexual. Persona y Derecho, Navarra, v.41, n.1, pp.
583-620. Consultado em 31 de julho de 2018, em «http://dadun.unav.edu/handle/10171/14112».
179
FINNIS, John Mitchell. Fund … cit., p. 48.
180
SOUZA, Elden Borges, op. cit., p. 56.
181
FINNIS, John Mitchell. Fund … cit., p. 50.
48

O florescer humano, se traduz nas potencialidades que o homem pode vir a ser182, de
forma que para entendermos melhor o homem, devemos compreender estas potencialidades e
as compreendemos a partir das ações humanas que objetivam bens humanos183.

Assim, «o bem deve ser praticado e procurado, o mal deve ser evitado», traduz-se em
buscar as potencialidades para o florescimento humano por meio da justa ponderação do que é
o bem verdadeiro e não aparente. Estes princípios abalroam o pensamento de muitos que
«acham que a moralidade só diz respeitos às relações interpessoais e que “todas as pessoas são
livres para fazer o que quiserem nas questões que só dizem respeito a elas mesmas”, ao passo
que (…) não conseguem ver que têm obrigações para com outrem 184», justamente por não
perceberem que o «bem humano básico é sempre uma razão para a ação e sempre fornece uma
"razão" para não escolher destruir, danificar ou impedir alguma combinação desse bem 185»,
razão essa pautada em princípios morais que demonstram que não se deve «preferir um exemplo
ilusório de um bem humano186», em detrimento de um bem verdadeiro: aquele «cujo desejo é
compatível com a realização humana integral: o bem de todas as pessoas e comunidades 187»,
um bem que perpassa as balizas do egoísmo humano.

Mas esses bens são realmente autoevidentes? Existe um núcleo identificável de tais
bens? Finnis responde que sim188:

É comum que os estudiosos da ética e das culturas humanas assumam que as culturas
manifestam preferências, motivações e avaliações tão amplas e caóticas em sua
variedade que não se pode dizer que quaisquer valores ou princípios práticos sejam
evidentes por si mesmos para os seres humanos, já que nenhum valor ou princípio
prático é reconhecido sempre e em todos os lugares. Mas os filósofos que
recentemente tentaram testar essa assunção pesquisando a literatura antropológica
(inclusive levantamentos gerais semelhantes feitos por antropólogos de campo)
descobriram, com surpreendente unanimidade, que essa assunção é injustificada.
Esses levantamentos certamente nos permitem fazer algumas afirmações bem seguras.
Todas as sociedades humanas demonstram uma preocupação como valor da vida
humana; em todas, a auto preservação é aceita, em geral, como um motivo apropriado
para a ação, e em nenhuma delas o homicídio é permitido sem alguma justificativa
bem definida. Todas as sociedades humanas encaram a procriação de uma nova vida
humana como, em si mesma, uma boa coisa, a menos que existam circunstâncias
especiais. Nenhuma sociedade humana deixa de restringir a atividade sexual; em todas
as sociedades existe alguma forma de proibição de incesto, algum tipo de oposição à
promiscuidade ilimitada e ao estupro, alguma preferência por estabilidade e
permanência nas relações sexuais. Todas as sociedades humanas demonstram
preocupação com a verdade por meio da educação dos jovens em questões não apenas

182
Cfr. nota, n.º 149.
183
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., pp. 105ss.
184
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., p. 42.
185
FINNIS, John Mitchell. Aristóteles, Santo Tomás y los absolutos morales. Persona y Derecho, Navarra,
v.28, n.1, pp. 9-26. Consultado em 03 de agosto de 2018, em «http://dadun.unav.edu/handle/10171/12792».
186
FINNIS, John Mitchell. Derecho … cit., pp. 583-620. (Tradução livre).
187
FINNIS, John Mitchell. Aristóteles … cit., pp. 9-26. (Tradução livre).
188
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., pp. 88-9.
49

práticas (e.g. evitação do perigo), como também especulativas ou teóricas (e.g.


religião). Os seres humanos, que só sobrevivem à infância quando são bem cuidados,
vivem em sociedade, ou às margens de alguma sociedade que invariavelmente se
estende para além da família nuclear, e todas as sociedades demonstram favorecer os
valores de cooperação, do bem comum acima do bem individual, da obrigação entre
os indivíduos e da justiça dentro dos grupos. Todas conhecem a amizade. Todas têm
alguma concepção de meu e teu, direito à propriedade ou patrimônio, e de
reciprocidade. Todas valorizam o jogo, sério e formalizado, ou informal e recreativo.
Todas tratam o corpo dos membros mortos do grupo de algum modo tradicional e
ritual que é diferente do modo como descartam o lixo. Todas demonstram interesse
por poderes ou princípios que devem ser respeitados por serem sobre-humanos; de
uma forma ou de outra, a religião é universal.

O que o leitor acaba de visualizar na citação supramencionada, ao nosso ver, é o núcleo


da teoria de Finnis, bem como o cerne da explicação do que são os bens humanos básicos e
autoevidentes. Como anteriormente ressaltado, a experiência humana é vasta, portanto, vastos
são os bens humanos, entretanto, existe um núcleo de concentração de tais bens e Finnis,
consegue resumi-los. São exaustivos, visto que conseguem captar a vasta experiência humana,
sendo outros bens apenas a soma de dois ou mais desses bens nucleares.

São apresentados em «Lei natural e direitos naturais189»: i) vida; ii) conhecimento; iii)
jogo; iv) experiência estética; v) sociabilidade (amizade); vi) razoabilidade prática; vii) religião.
Contudo, em «Nuclear Deterrence, Morality and Realism190», Finnis altera um pouco a sua
lista que passa a vigorar da seguinte forma: i) vida; ii) conhecimento; iii) experiência na
realização; iv) sociabilidade (amizade); v) razoabilidade prática; vi) religião191.

Por fim, em «Direito Natural em Tomás de Aquino192», Finnis apresenta nova mudança
à sua lista básica de bens autoevidentes que passam a ser estabelecidos da seguinte forma: i)
vida; ii) matrimónio entre homem e mulher; iii) conhecimento; iv) viver em amizade; v)
razoabilidade prática e; vi) conhecer e relacionar-se com Deus193.

189
Ibid., Ibid. pp. 87-104.
190
FINNIS, John Mitchell; GRISEZ, Germain; BOYLE, Joseph. Nuclear deterrence, morality and realism.
Oxford: Clarendon, 1989, pp. 278-81.
191
Essa nova classificação, trata-se de englobar alguns bens anteriores em grandes áreas, em que o autor
subdivide a natureza humana (de forma conceitual-teórica), são elas: a) o homem visto enquanto ser vivo e
animado que se reveste do bem da i) vida; b) o homem visto como ser racional que se reveste do bem do ii)
conhecimento e que tal bem engloba a experiência estética; c) o homem visto, ao mesmo tempo, enquanto ser
racional e animal que se reveste do bem da iii) experiência na realização e que engloba o bem do jogo e também
adiciona a noção do trabalho como bem; d) o homem visto enquanto ser de deliberação e escolha que se reveste
dos bens da iv) sociabilidade (amizade), v) razoabilidade prática e vi) religião. Cfr., OLIVEIRA, Elton Somensi
de. Bem comum, razoabilidade prática e direito. 2002. 145 f. Dissertação (Mestrado em Direito - Programa de
Pós-Graduação em Direito), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS - Brasil, 2002.
192
FINNIS, John Mitchell. Direito natural em Tomás de Aquino: sua reinserção no contexto do
juspositivismo analítico. Porto Alegre: Sérgio António Fabris, 2007. pp. 37ss.
193
De modo semelhante a «Nuclear Deterrence», Finnis apresenta essa nova divisão, pensando agora não
em quatro, mas três grandes áreas: a) o que os homens têm de comum com todas as substâncias – i) vida; b) o
que temos de comum com os animais – ii) matrimónio; c) o que são bens particulares ao ser humano pois
50

Observa-se que Finnis nessa última lista, fala que os homens, em substância, têm em
comum com os animais o bem do matrimónio, mas é importante observar que ele se refere
apenas a procriação. Os animais não têm o conceito de matrimónio que nós temos. Obviamente
a união sexual dos animais assemelha-se à dos homens no que se refere à cópula com a
finalidade de procriar como observa o Doctor Angelicus194, daí que muitos podem chegar à
conclusão de que se no reino animal, existe relação sexual contrária ao que é natural (no seio
do matrimónio, heterossexual, monogâmica e monossomática), logo há uma legitimação dessas
desordens na união entre seres humanos. Entretanto, o casamento deve ser qualificado também
como algo racional, o que se distingue daquela união dos animais que atuam apenas por
instinto. Inclusive, o que estamos a tratar a todo o momento neste artigo é que o instinto é
submetido à razão. Caso contrário, o matrimónio comportaria todo o tipo de mal, o que para
o Doctor Angelicus é inaceitável, visto que para ele, o casamento se reveste de dois preceitos
principais i) a união para a procriação e desenvolvimento das crianças e; ii) fides195 – o que não
se resume apenas à literalidade de manter-se fiel, mas também, «a prontidão e o compromisso
positivo de estar unido com seu cônjuge na mente, no corpo e em uma vida doméstica de mútua
assistência196».

Notem também, que cinco bens básicos para Finnis – vida; conhecimento; sociabilidade
(amizade); razoabilidade prática e religião – são apresentados em todas as suas três listas, razão
pela qual, o jogo, a experiência estética, a experiência de realização (que inclui jogo e o
trabalho) e o matrimónio aparecem noutros momentos. Não se trata de uma desvalorização
destes últimos bens ou que haja hierarquia entre eles, apenas que em determinados momentos
a teoria de Finnis compreende bens respeitantes a outras áreas, como o matrimónio que estava
associado ao bem da vida.

Assim, compreendemos que os bens básicos autoevidentes, resumidos por Finnis,


compreendem além daqueles cinco bens supramencionados, o bem da experiência da realização
e o bem do matrimónio, totalizando de qualquer modo, sete bens básicos autoevidentes.

Por mais que a lista de bens receba uma ou outra alteração, ainda assim trata-se de uma
lista exaustiva. Não negamos que existam outros bens, mas estes bens «ao serem analisados,
são modos ou combinações de modos de buscar (nem sempre sensatamente) e realizar (nem

dependem de apreciação por meio da razão – iii) conhecimento; iv) amizade; v) razoabilidade prática e; vi)
religião. Cfr. OLIVEIRA, Elton Somensi de, op. cit., p. 72.
194
D'AQUINO, Tommaso, op. cit., Supl. q. 41 a.1.
195
Ibid., II-II q. 153. a.2c, a.3c; q. 154 a.1c, a.2
196
FINNIS, John Mitchell. Direito nat … cit., p. 47.
51

sempre com sucesso) uma das sete formas básicas de bem, ou alguma combinação delas 197».
Além disso, se refletirmos um pouco, podemos perceber que «aspectos, tais como a coragem,
a generosidade, a moderação, a gentileza, e assim por diante, não são em si mesmos valores
básicos; são, mais exatamente, modos (não meios, mas modos) de buscar os valores básicos198».

Apesar da nomenclatura de bens básicos, todos são fundamentais e quando priorizamos


um, «quando nos concentramos nele, pode ser encarado de modo razoável como o mais
importante. Daí que não existe qualquer hierarquia objetiva entre eles199», e.g se pensarmos
num ente querido que faleceu e como desejávamos ter passado mais tempo com ele, ou se
estivermos a caminhar pela praia e vemos uma criança a afogar-se, nestes momentos, o bem da
vida terá a preponderância sobre quaisquer outros bens. O que determinará a prioridade destes
bens nas nossas vidas é a prioridade que daremos a cada um deles. Alguns de nós trataremos
um ou mais desses bens como de maior importância em nossa vida em relação a outros, isso
não significa que os bens perdem qualquer valor naquilo que eles são, na verdade, essas
mudanças, escolhas e prioridades dizem respeito aos nossos gostos, personalidades, objetivos
de vida, anseios e o plano de vida que fazemos200.

Entretanto, assim como ao lembrar um ente querido que faleceu o nosso foco se centra
no bem da vida, o nosso plano de vida, pode ser alterado pelas várias possibilidades e
impossibilidades ocorridas na nossa vida, conforme a direção e Soberania de Deus, o que pode
fazer com que um homem que se dedicava ao bem do conhecimento e buscava ser um erudito,
ter que abandonar, ainda que por breve tempo, essa empreitada para se dedicar a cuidar da sua
esposa que ficou doente201, priorizando o bem da vida.

A ideia do plano de vida é importante na teoria de Finnis. Tanto para a questão de


provar os bens por meio da vasta experiência humana, como dos requisitos da razoabilidade
prática e também, da convivência no seio de uma comunidade com governo e autoridade
estabelecidos (cfr., III.2 e IV.2).

Como dissemos anteriormente, para Finnis, esses bens básicos são evidentes e
inquestionáveis e para construir a estrutura que fundamenta tal afirmação, o autor começa por
tratar do bem do conhecimento, para de imediato arrazoar quaisquer argumentos céticos contra
a auto-evidência da existência desse bem básico, «simplesmente porque o material para análise

197
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., p. 95.
198
Ibid. p. 96.
199
Ibid. p. 97.
200
Ibid. pp. 97-8.
201
Ibid., p. 98.
52

estava prontamente disponível, em uma forma substancialmente conhecida por cada leitor [da
obra], na forma de seu próprio compromisso com entender [a obra em que estavam a ler] 202» e
para Finnis, isso é prova irrefutável do conhecimento como bem básico e comum a todos, visto
que o compromisso de cada leitor do seu livro é entender o que se lê, senão não faria sentido
gastarmos tempo nessa leitura, quando poderíamos estar a ler banda desenhada, ou até estarmos
a ver um filme. E então surge uma cadeia de questões: Porque ao invés de estarmos a ler banda
desenhada passámos os últimos meses a ler e estudar a teoria de Finnis?

Porque queremos entendê-la. E porque queremos entendê-la? Podemos apresentar


várias respostas, como: porque «“O conhecimento é algo que é bom ter”. “É bom ser bem
informado e lúcido.” “A confusão e a ignorância devem ser evitadas."203» e essas respostas
levariam inevitavelmente ao bem básico, que é o conhecimento. Por isso, para Finnis ele é
autoevidente.

Claro que nem todo o conhecimento é igualmente importante e todas as pessoas do


mundo não buscam o mesmo conhecimento, ao mesmo tempo e com a mesma intensidade. Ou
seja, algumas informações, são obviamente mais importantes que outras204. Importante é
também definir que o que é denominado de conhecimento como um bem básico, não é qualquer
conhecimento, mas somente aquele que pode ser chamado de bem básico, isto é, «aquele
considerado como desejável em si mesmo e não apenas como algo a ser buscado segundo
alguma descrição, tal como “o que irá me permitir impressionar a plateia”205», isso porque, um
conhecimento que não visa o florescimento humano, não pode ser um conhecimento no seu
sentido último de significado. Não pelo menos um conhecimento como bem básico, ou seja,
seria um bem aparente e não real.

O leitor pode estar a questionar-se sobre essa racionalidade analítica de Finnis e estar a
solicitar provas sobre o conhecimento ser um bem básico. Finnis, tem uma resposta para o seu
pedido, ainda que não seja a mais desejável, porém não deixa de ser uma resposta: «O bom do
conhecimento é evidente por si mesmo, óbvio. Não pode ser demonstrado, mas igualmente não
precisa ser demonstrado206», pois, não o demonstrar não é o mesmo que negar a sua validade e
existência, e na verdade, quando se tenta negar a validade do conhecimento como um bem

202
Ibid., p. 87.
203
Ibid., p. 70.
204
Cfr., ibid., pp. 69-70.
205
Ibid., p. 70.
206
Ibid., p. 72.
53

básico, acaba-se provando o conhecimento enquanto bem básico207 e isso pode ser um
paradoxo, mas não é uma contradição208, pois, «linguisticamente, a palavra paradoxo vem das
palavras gregas para (o oposto de) e dokeo (parecer). A palavra paradoxo simplesmente
descreve uma oração que, enquanto verdade, tem uma aparência de contradição [destaque
nosso]209». Já no que se refere a contradição, Aristóteles210 afirma que «é impossível que a
mesma coisa, ao mesmo tempo, pertença e não pertença a uma mesma coisa, segundo o mesmo
aspecto (...) Efetivamente é impossível a quem quer que seja acreditar que uma mesma coisa
seja e não seja».

Sendo assim, o paradoxo aparenta ser uma contradição, mas não o é, pois é verdade,
enquanto a contradição sempre leva ao engano. Um exemplo claro de paradoxo, na teologia
cristã, é quando tratamos do assunto da Trindade: ora, a Trindade aparenta ser uma contradição,
pois como pode existir apenas um Deus – Deus esse inclusive, que no resumo de toda a sua lei
(o decálogo), nos dá um mandamento, ordenando adoração monoteísta211 – e ao mesmo tempo
se apresentar em diversos momentos como três pessoas212? Entretanto, não há contradição
alguma, se afirmarmos que todas as três pessoas da trindade dividem uma única essência.
Haveria contradição se afirmássemos que Deus é um em pessoa e três em pessoa, ou um em

207
Finnis comenta: «A declaração cética de que o conhecimento não é um bem refuta operacionalmente a si
mesma. Pois aquele que faz tal declaração, pretendendo que ela seja uma séria contribuição para a discussão
racional, está implicitamente comprometido com a proposição de que ele acredita que sua declaração é digna de
ser feita — e digna de ser feita qua verdadeira; ele, assim, está comprometido com a proposição de que acredita
que a verdade é um bem digno de ser buscado ou conhecido. Mas o sentido de sua declaração original era
precisamente que a verdade não é um bem digno de ser buscado ou conhecido. Assim, ele implicitamente está
comprometido com crenças formalmente contraditórias», Ibid., p. 81.
208
Contradição não é o mesmo que paradoxo. Como R. C Sproul afirma, «Na filosofia clássica, o termo
antinomia é equivalente à palavra contradição. Isto é, em filosofia clássica, uma antinomia é uma contradição. (...).
Esses dois termos, contradição e antinomia, histórica e classicamente significam a mesma coisa. Infelizmente em
nossos dias, são usados diferentemente, e geralmente antinomia é usado como substituto ou equivalente a
paradoxo. Se consultarmos edições recentes de dicionários, veremos que antinomia e paradoxo são dados como
sinônimos para contradição. (...) o critério final pelo qual os lexicógrafos definem as palavras é o uso
contemporâneo. Eles mantêm seus ouvidos atentos e veem como as pessoas modernas fazem uso do termo. Se
muitas pessoas usam a palavra incorretamente, e fazem isso com muita frequência, esse uso incorreto formalizado
do termo torna-se seu significado correto. Não fico surpreso então, quando vejo alguns dicionários modernos
chamando paradoxo e antinomia de sinonimos de contradição, mesmo que historicamente exista uma grande
distinção entre eles». - (SPROUL, Robert Charles. Defendendo sua fé: uma introdução à apologética. Rio de
Janeiro: CPAD, 2012. p.39-40) [Robert Charles Sproul, foi um teólogo, filósofo, professor e pastor calvinista, com
Doutoramento pela Universidade Livre de Amsterdão e Pós-doutoramento pelo Whitefield Theological Seminary;
para mais informações biográficas, cfr., Ligonier Ministries. Dr. R.C. Sproul. Consultado em 05 de agosto de 2018,
em: «https://www.ligonier.org/about/rc-sproul/»; ainda sobre a diferença entre paradoxo e contradição, cfr.,
MADUREIRA, Jonas. Inteligência humilhada. São Paulo: Vida Nova, 2017. pp. 124ss.
209
SPROUL, Robert Charles, op. cit., p. 38.
210
ARISTÓTELES. Met… cit., IV, 1, 1005b 21-30.
211
Cfr., BÍBLIA. Português. Bíblia de Estudo de Genebra. 2.ed. Tradução de João Ferreira de Almeida.
São Paulo: Cultura Cristã, 2009. Edição Revista e Atualizada. Êxodo, XX: 1-17.
212
Inclusive no ato da criação, em Génesis, o verbo está no plural: «Façamos o homem à nossa imagem,
conforme a nossa semelhança»; em outro momento, Jesus Cristo, expressa: «(…) Quem me vê a mim vê o Pai»,
BÍBLIA. Português. Bíblia de Est… cit., Génesis, I:26; São João, XIV:9.
54

essência e três em essência213, eis então a ideia de paradoxo. Contradição e paradoxo, estão
profundamente relacionados com a ideia de bem básico de Finnis, por distinguir entre o aquilo
que é o bem real do que é o bem aparente.

Ao tentar refutar-se que o conhecimento – que é a busca pela verdade214 – é um bem


básico, o cético busca afirmar que o seu argumento é verdadeiro e com isso, incorre em negação
da sua proposição anterior, como o próprio Finnis ressalta, «algumas proposições refutam a si
mesmas ou porque contradizem diretamente a si mesmas, ou porque acarretam logicamente sua
contradição: por exemplo, "Sei que nada sei"; "Pode ser provado que nada pode ser
provado";215» e ainda, a esses exemplos, adicionaríamos outra proposição que infelizmente é
muito utilizada na atualidade: quando tratamos de assuntos complexos, muitas pessoas têm a
inclinação a afirmar que «não existe verdade absoluta», «a verdade é relativa», «isso é a sua
verdade». Levantar esses argumentos, por sua vez, é a prova básica que existe verdade absoluta,
a menos que os céticos queiram relativizar também tais frases, tornando assim, mais uma vez,
a verdade em absoluta.

Ou seja, não há como fugir, essas afirmações são como um rio que segue o seu fluxo
normal, levando quem as emite à contradição. São como casas feitas em barro, que na primeira
tempestade se desmoronam, tempestade como aquela que o famoso médico indiano radicado
nos Estados Unidos, Deepak Chopra, enfrentou no meio de um debate216 num auditório com
muitas pessoas, ao exclamar: «Toda crença é um disfarce para a insegurança». Poucos minutos
após esta afirmação, um senhor de meia-idade, participante da plateia, de forma objetiva e
simples indagou: «você há pouco, disse que toda crença é um disfarce para a insegurança. Você
acredita nisso?217». Chopra responde com um enfático «sim» e o senhor simplesmente agradece
e volta ao seu lugar em meio a gigantesca euforia e palmas de todos do auditório.

Assim, para encerrarmos tal assunto, vimos que estes bens evidentes, se submetem ao
princípio da lógica clássica da filosofia218, por isso, negá-los, acaba por afirmá-los e resistir-
lhes acaba por estabelecê-los. Também vimos que o bem do conhecimento é a busca pela
verdade como um forte propulsor do princípio da não contradição, por isso, começámos a falar

213
Cfr., MADUREIRA, Jonas, op. cit., pp. 126-7.
214
Cfr., FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., pp. 60-75.
215
Ibid., p. 80.
216
JOHNSON, Eric. Nightline face-off: Does Satan Exist? New York, NY: ABC Nightline, 2013.
Consultado em 06 de agosto de 2018, em «https://www.youtube.com/watch?v=Vg3-pwIP0X4».
217
Ibid., cfr., 54 min.
218
Cfr., nota nº 127.
55

dos bens básicos destacando-o. Entretanto, os demais bens são de suma importância tanto
quanto o conhecimento, razão pela qual, passamos a tecer alguns comentários sobre os mesmos.

a) o bem da vida: É interessante a forma como Finnis inicia e termina as três listas de
bens básicos. O primeiro bem básico citado é sempre o da vida e o último é sempre é o da
religião. Não sabemos se a ordem é, propositada, mas certamente podemos fazer uma conexão
profunda entre esses bens como se fossem as duas pontas com nó num cordão que sustentam
todo o resto. De facto, é dessa maneira que vemos.

Tanto Confúcio (ca. 551-489 a.C.), quanto o Rabi Hillel (60 a.C. – 1 d.C.), como
também Jesus Cristo, afirmaram a regra de ouro conhecida por todos nós, «fazei aos homens, o
que desejam que eles façam a você». Neste sentido, sem qualquer embaraço podemos afirmar
que a religião defende a vida e que ambas são realidades que estão unidas, afinal, todas as
grandes religiões fundamentam o preceito de não assassinar219. Não podemos esquecer de duas
coisas: i) que por volta de 1400 a.C., no terceiro livro da Bíblia Sagrada, essa regra de ouro já
era estabelecida como lei «amarás teu próximo como a ti mesmo220» e que Jesus Cristo ao dizê-
la (São Mateus VII:12 e São Lucas VI:31), informa que ela é o resumo da lei e dos profetas, ou
seja, remete para todo o conhecimento de milhares de anos que os Judeus já detinham da
respetiva lei; ii) que existe uma crítica em relação à existência de uma conexão entre violência
e religião221 (sobre esta crítica, confira as considerações tecidas em [V]).

A vida como um bem básico não está relacionada apenas à gestação e ao nascimento,
antes, «o termo "vida" aqui significa cada aspecto da vitalidade (vita, vida) que põe um ser
humano em uma boa forma para a autodeterminação222» assim, o cuidado com a saúde, tanto
física quanto mental, a ausência de dor e as profissões da área da saúde compõe esse bem 223,
além de que, obviamente, o vício que contrapõe esse bem é o assassinato224.

b) o bem do conhecimento: Já foi tratado nas linhas anteriores, razão pela qual, apenas
reiteramos que ele se resume não apenas numa busca de saber «particular ou uma ordem de
conhecimentos. Quando Finnis o arrola como um bem humano básico, tem em mente a

219
CASTILLO, José María. El reino de Dios. Por la vida y la dignidad de los seres humanos. 5ª ed. Bilbau:
Desclée de Brouwer, 2004. p. 105.
220
BÍBLIA. Português. Bíblia de Est … cit., Levítico XIX:18.
221
Cfr. GIRARD, René Noël Théophile. A violência e o Sagrado, São Paulo: Paz e Terra, 1990.
______. Aquele por quem o escândalo vem. São Paulo: É Realizações, 2011.
222
FINNIS, John Mitchell. Lei … op. cit. p. 91.
223
Ibid. p. 91.
224
D'AQUINO, Tommaso, op. cit., II-II q. 64.
56

tendência que temos à verdade em si mesma, a curiosidade, o puro desejo em saber, em evitar
a ignorância ou o erro enquanto tais225», por isso ele é a busca pela verdade.

Convém também, nesta altura explicar que o bem da experiência estética se encontra
em conjunto com o bem do conhecimento. Ora, «chamam-se belas às coisas, que, vistas,
agradam226», assim o belo diz respeito a experiência sensorial, porém, também podemos dizer
que, «o belo, nas coisas humanas, consiste em ser ordenado segundo a razão227», logo o belo
consiste na experiência intelectual. Parecem ser antípodas tais afirmações. Entretanto,
podemos aferir beleza a algo, somente quando temos o prazer de o contemplar, pelo que ele
é228, porém, essa experiência é um privilégio apenas da razão229 e esse prazer está
profundamente envolvido em procurar «compreender o seu objecto e valorizar aquilo que
encontra. Assim, tende para um juízo sobre a sua própria validade e, do mesmo modo que todo
o juízo racional, este tipo de juízo faz apelo explícito à comunidade dos seres racionais230».
Logo, é um juízo de belo que se fundamenta no assentimento de todos231, uma experiência
universal que faz derivar aquele conceito de beleza mínima, que pode ser compreendido como
um minimalismo de ordem estética, aquilo que é oposto ao caos, o núcleo do que é organização
e limpeza, perceber as coisas alinhadas e de boa aparência, um anseio por harmonia e paz232.
Assim, por mais que muitos consigam viver na sujidade, desorganização e caos, parece que a
inclinação natural dos homens no geral é partirem do caos em direção à organização, é
«esforçarem-se para encontrarem ordem na realidade que os rodeia e para estarem à vontade
num mundo partilhado233». Donde, podemos compreender que a beleza levada em consideração
de forma austera, apresenta tanto os objetos como úteis quanto estéticos, tanto experienciáveis
de modo contemplativo como recebidos de forma intelectual234 e isso compõe a experiência do
prazer humano e se apresenta como um bem básico de contemplação e conhecimento.

c) o bem da sociabilidade (amizade): As relações no meio social, são fundamentais


para o florescimento humano, mesmo que não sejam relações em níveis profundos. Todos os

225
OLIVEIRA, Elton Somensi de, op. cit., p. 68.
226
D'AQUINO, Tommaso, op. cit., I-I, q.5, a.4.
227
Ibid. II-II, q. 142, a. 2.
228
SCRUTON, Roger Vernon. Beleza. Lisboa: Guerra e Paz, 2009. p. 35.
229
Ibid. p. 40.
230
Ibid. p. 39.
231
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. São Paulo: Ícone, 2009. §22.
232
SCRUTON, Roger Vernon. Bel … cit., pp. 22-4.
233
Ibid., p. 91.
234
Ibid., p. 31-2.
57

homens precisam saber se portar no trato com os outros, utilizando o tom de voz adequado,
gentilezas e favores e recebendo como devolutiva as mesmas coisas.

Desta forma, o bem da amizade num nível superficial, é sociabilidade, que pode ser
traduzido como a «colaboração entre duas pessoas (…) para a realização, por parte de cada
uma, dos seus próprios propósitos individuais»235. Contudo, isso de forma alguma é amizade
em sentido pleno, não é o que foi destinada para ser, visto que «a amizade envolve agir no
interesse dos propósitos do amigo, do bem-estar do amigo236», portanto, amizade em sentido
pleno relaciona-se com aquele amor sacrifical, sem o qual, não poderíamos subsistir.

Os tempos são de facto diferentes e muito se debate se a tecnologia produz aproximação


ou distanciamento entre as pessoas237. Parece que não sabemos mais distinguir sociabilidade de
amizade. A nossa linguagem inclusive nos denuncia. Não raro nos referimos a pessoas como
sendo nossos amigos, quando na verdade não passam de conhecidos.

Entretanto, essa não é a amizade reconhecida na conceção tradicional, amizade em que:

A atenção estava voltada ao rosto, às palavras e aos gestos do outro. E a natureza de


indivíduo corporificado era o foco dos sentimentos de amizade que ele ou ela
inspiravam. As pessoas que se tornam amigas dessa maneira estão profundamente
cientes de que se mostram ao outro como o outro se lhes mostra. A face do outro é o
espelho no qual enxergam a si mesmas. Exatamente porque a atenção está voltada
para o outro é que existe uma oportunidade para o autoconhecimento e para a
autodescoberta, para essa expansão de liberdade diante do outro que é uma das
alegrias da vida humana. O objeto dos sentimentos de amizade remete à pessoa do
outro e responde, gratuitamente, à sua atividade livre, ampliando a consciência do
outro e a própria. Em suma, a amizade, na concepção tradicional, era uma rota para o
autoconhecimento238.
Nos dias atuais, as amizades são tão superficiais; profundidade, pressupõe expor as
nossas fraquezas, um despir da alma que dói, mas que cura. Parece que esquecemos que
«melhor é serem dois do que um (…) porque se caírem, um levanta o companheiro; ai, porém,
do que estiver só; pois, caindo, não haverá quem o levante239». Ao pensarmos em amizade,

235
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., p. 93.
236
Ibid. p. 93.
237
O Sociólogo Polonês, Zygmunt Bauman, em determinada entrevista afirmou: «Eu penso que a atratividade
desse novo tipo de amizade, o tipo de amizade de Facebook, como eu a chamo, está exatamente aí: que é tão fácil
de desconectar. É fácil conectar e fazer amigos, mas o maior atrativo é a facilidade de se desconectar. Imagine que
o que você tem não são amigos online, conexões online, compartilhamento online, mas conexões offline, conexões
reais, frente a frente, corpo a corpo, olho no olho. Assim, romper relações é sempre um evento muito traumático,
você tem que encontrar desculpas, tem que se explicar, tem que mentir com frequência, e, mesmo assim, você não
se sente seguro, porque seu parceiro diz que você não tem direitos, que você é sujo etc., é difícil. Na internet é tão
fácil, você só pressiona "delete" e pronto, em vez de 500 amigos, você terá 499, mas isso será apenas temporário,
porque amanhã você terá outros 500, e isso mina os laços humanos», BAUMAN, Zygmunt. A amizade Facebook.
Porto Alegre: Telos Cultural - Fronteiras do Pensamento, 2011. Consultado em 06 de agosto de 2018, em
«https://www.youtube.com/watch?v=5Lm2O3Q56Wg».
238
SCRUTON, Roger Vernon. Como ser um conservador. Rio de Janeiro: Record, 2015. p. 164.
239
BÍBLIA. Português. Bíblia de Est, op. cit., Eclesiastes IV:9-10.
58

esquecemos que a jornada da vida muitas as vezes é dura, que os caminhos escuros aparecem
para todos e que o consolo e auxílio de um amigo, é fundamental. Por isso Finnis questiona:
«Ter uma relação de amizade com pelo menos uma pessoa é uma forma fundamental de bem,
não é?240» e nós sabemos o quão de facto é. Lembremos da máquina de experiências e a
suposição da possibilidade de alguém a desligar. Quem faria isso, a não ser um amigo? Quem
é corajoso o suficente para nos afrontar enquanto nos lambusamos no nosso prazer destruidor
para mostrar que estamos vazios mesmo que ludibriados por esses falsos bens? Apenas um
verdadeiro amigo.

d) o bem da experiência da realização: jogo e trabalho compõe duas partes


fundamentais deste referido bem. Os moralistas geralmente têm a tendencia a ver o jogo como
algo inferior, mas a realidade é que ele compõe grande parte da experiência humana. Tratam-
se daqueles momentos de lazer que podem ser de descanso ou de atividades que consomem
todas as nossas energias, mas que não tem um fim diverso do que ser um fim em si mesmo e
podem ser feitas em grupo ou isoladamente241.

O idioma português, traduziu para jogo aquilo que no inglês tem um significado muito
mais amplo, justamente por não existir uma palavra que traduza com maior fidelidade a palavra
play. Sendo assim, quando Finnis utiliza play, ele quer referir-se ao mesmo significado utilizado
pelo Doctor Angelicus, que é por ele (Doctor Angelicus) denominado de lúdico:

Ora, assim como a fatiga corpórea desaparece pelo repouso do corpo; assim também
o cansaço da alma, pelo descanso dela. Mas, o descanso da alma é o prazer, como
estabelecemos, quando tratamos das paixões. Por onde, é necessário buscar o remédio
à fatiga da alma nalgum prazer, afrouxando o esforço com que nos entregamos à
atividade racional. […] Ora, as palavras ou obras, com as quais só buscamos a
diversão da alma, chamam–se lúdicas ou jocosas242.
Destarte, o jogo não apenas compõe parte da experiência humana, como é fundamental
para preservação de outros bens básicos, como o da vida. Inclusive, podemos notar que por
mais que os bens sejam distintos e inexistam numa ordem de preferência ou hierarquia, um
complementa outro, o que faz desse emaranhado, algo complexo de distinguir na prática.

O lúdico existe como um prazer de fruição e ao mesmo tempo, meio de recuperar as


energias que foram dispendidas no labor. Por isso o descanso sem trabalho é ociosidade e o
trabalho sem descanso leva à ruina.

240
FINNIS, John Mitchell. Lei … op. cit., p. 93.
241
Ibid., pp. 92-3.
242
D'AQUINO, Tommaso, op. cit., II-II q.168. a2.
59

A ética do trabalho, faz-nos vê-lo mais do que um meio de receber dinheiro. Trata-se de
uma vocação pela qual contribuimos com a nossa auto-realização, mas também, com a
realização do bem comum. Entretanto, nem sempre o conceito de vocação foi utilizado para
toda e qualquer profissão que produza o florescimento humano. Havia uma tendência,
especialmente na Idade Média, em relegar para segundo plano aquelas funções que não fossem
a de liderança espiritual, agricultura ou a de guerreiro, o trabalho era «considerado como uma
necessidade temporal desprezível com relação aos exercícios da piedade243», principalmente se
fossem aqueles trabalhos que se ocupavam de produzir riquezas.

Foi Martinho Lutero que ao traduzir as Sagradas Escrituras, utilizou pela primeira vez
o termo Beruf para trabalho, termo esse, que dá conotação muito maior de vocação e
cumprimento de dever do que meramente labor. Dessa forma, a ética do trabalho como bem
comum para o florescimento humano é um produto da Reforma Protestante244, visto que, até à
Reforma, o trabalho tinha um significado restrito à própria raiz etimológica da palavra que é
proveniente do latim vulgar, tripaliar que significa torturar com um instrumento de três paus.
Servia como meio para conter os animais rebeldes e também forçar os escravos a aumentar a
produção245.

Porém, nesta altura, o conceito cristão de trabalho ganha novo significado: todo homem
é chamado por Deus para exercer o seu ministério, onde Deus o colocar, segundo as suas
aptidões, inclinando-o assim à sua vocação246 e já não existe profissões mais espirituais que
outras, na verdade, todo homem, é chamado a servir a Deus, por meio de «une vocation juste
et approuvée247».

O trabalho é visto como forma ativa de oração, deixa de ser uma atividade degradante
para se tornar um meio pelo qual Deus é glorificado. Há uma outorga completa de novo
significado ao trabalho e essa é uma das mais importantes contribuições da teologia Calvinista
à cultura ocidental. Não é mais um meio meramente aborrecido, entediante e inferior, agora é
visto como uma das atividades humanas absolutamente louváveis, pois foi vocacionada pelo
próprio Deus, o que pressupõe um envolvimento em cada uma das esferas da vida secular, sem,
contudo, se render a elas, mutatis mutandis, uma forma de servir a todos buscando o

243
BIÉLER, André. A força oculta dos protestantes. São Paulo: Cultura Cristã, 1999. p. 118.
244
WEBER, Carl Emil Maximilian. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004. pp. 71-2.
245
COSTA, Hermisten Maia Pereira da. Raízes da teologia contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã,
2004. p. 117.
246
247
CAUVIN, Jehan. Institution de la religion chrestienne. Paris: Ch. Meyrueis et. Cie, 1859. IV, XIII. 16.
60

florescimento humano pelo bem comum, progredir, enriquecer, sem contudo, render-se à
corrupção do mundo, como o capitalismo sem escrúpulos248, razão pela qual, críticas em relação
ao envolvimento do Calvinismo com o capitalismo, não merecem prosperar249.

e) o bem do matrimónio: Unir dois corações em um compromisso único de alento é


uma das experiências mais profundas, humilhantes, reconfortantes e poderosas da vida humana.
Não há nada que nos humilhe mais do que alguém que conhece nossas maiores fraquezas, mas
também, não há nada que nos console mais, que diante do conhecimento dessas fraquezas, ainda
sejamos amados. Essa é a profundidade do casamento.

Não somos nenhum tipo de prosélitos do romance hollywoodesco, pelo contrário,


posicionamo-nos exatamente do lado oposto ao que insistentemente é entregue à cultura no
geral. O, viveram felizes para sempre, não raro pressupõe a ideia de uma vida sem problemas,
em que o cenário de um beijo marcante em um jardim com chuva de verão é o quadro que
retrata a vida do casal que obviamente é motivado pelo calor da paixão. Por isso que é cada vez
mais comum ouvirmos dizer que o «o amor acabou», que «se descobriram incompatíveis»,
quando na verdade, se tratava de paixão, não de amor.

O desejo ardente da paixão e o amor, encontram-se em «campos opostos. O amor é uma


rede lançada sobre a eternidade, o desejo é um estratagema para livrar-se da faina de tecer redes.
Fiéis a sua natureza, o amor se empenharia em perpetuar o desejo, enquanto este se esquivaria
aos grilhões do amor250». Por isso quem vive de desejos não consegue a firmeza e estabilidade
de coração necessárias para os votos do casamento. Com isso, não queremos opor-nos à paixão
por completo, na verdade, «foi a "paixão amorosa" que primeiro os moveu [o casal] a jurar
fidelidade recíproca. O amor sereno permite que cumpram o juramento. É através desse amor
que a máquina do casamento funciona: a paixão amorosa foi a fagulha que a pôs em
funcionamento251» e sabemos disso, entretanto, como todo o momento de euforia na vida, há
espaços corretos para os sentimentos, emoções e compromissos, e viver apenas desse açúcar da
paixão, seria uma das maiores misérias que poderíamos enfrentar. Afinal, «quem conseguiria

248
MCGRATH, Alister Edgar. A vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. pp. 249-78.
249
Sobre isso, McGrath comenta que, «Se há alguma crítica grave que possa ser feita à vasta coletânea
literária que trata da relação do Calvinismo com o Capitalismo, é a de que esta representa, de modo geral, o trabalho
de escritores que não possuíam os instrumentos teológicos necessários para avaliar as implicações de certas
posturas e doutrinas teológicas. O próprio Weber exemplifica esse problema: ao longo de seus escritos, ele tende
a passar em sua discussão, de forma indiscriminada, da “mentalidade capitalista” para a doutrina calvinista da
“vocação”. A ligação entre as duas ideias é frequentemente subentendida, raramente esclarecida e jamais
justificada a um nível teórico», Ibid., p. 269.
250
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
p. 13.
251
LEWIS, Clive Staples, op. cit., p. 144-5.
61

viver nesse estado de excitação mesmo por cinco anos? Que seria do trabalho, do apetite, do
sono, das amizades?252», é necessário que deixemos essa euforia morrer. No início sentir-nos-
emos como se estivéssemos perdendo algo de mais precioso que poderíamos ter. Sentiremos
esvaindo por nossas mãos, aquela segurança aparente e conforto produzidas pelo desejo e
paixão, mas assim que isso morrer, começarão a brotar coisas mais profundas e fortes.

Quando não deixamos a paixão morrer e tentamos prolongar os sentimentos


artificialmente, eles tornam-se mais e mais fracos, até que como viciados, busquemos novas
experiências e sensações, que inevitavelmente irão também morrer. Por isso o amor é
exatamente o oposto disso, o amor, é uma vontade que é movida pelo compromisso e pelo
hábito com a Graça de Deus253, o que nos leva a novas e vivas experiências de paixão, pois não
estamos fundamentados em emoções, mas em compromisso.

Cremos que essa breve distinção, apresenta de forma clara, o bem aparente e o bem
real do amor no matrimónio. Fundamentados naquilo que é o bem real, cumpre destacar que o
matrimónio é a base fundamental de toda a sociedade, por isso, a primeira instituição criada por
Deus.

Ainda em Génesis, o homem ao ser levado por Deus a dar nome a todos os animais,
percebeu que cada qual tinha seu par, enquanto para ele não havia quem o completasse. O
próprio Deus levou o homem a perceber sua falta254 e o interessante é que o homem ainda não
tinha pecado, o que nos deixa claro que o desejo de completar-se em um relacionamento, pode
se tornar obviamente uma idolatria por causa da tendência a pecar do homem, mas que não é
um desejo em si ilegítimo, ou consequência do pecado original. Fomos feitos para nos
relacionar e através dos relacionamentos expressamos a Glória de Deus, em especial o
casamento que é uma alegoria a união de Jesus Cristo com a Igreja, sua noiva. Esta conjuntura
remete-nos para o tema da vida partilhada em uma comunidade plena, como veremos adiante
(cfr. IV.1).

Ainda sobre os objetivos do matrimónio ressaltados anteriormente, reiteramos que são


eles, o cuidado e bem das crianças e o compromisso de fidelidade que envolve estar entregue e
unido de coração ao cônjuge. Em relação a estes, adicionamos mais um objetivo, o de «evitar a

252
LEWIS, Clive Staples, op. cit., p. 144.
253
Ibid. p. 144.
254
Cfr., BÍBLIA. Português. Bíblia de Est, op. cit., Génesis II: 18-25.
62

impureza sexual255», através de um meio legítimo de desfrute dos cônjuges de um ao outro por
meio da intimidade sexual.

f) do bem comum da religião: Anteriormente, ao falarmos dos bens que são evidentes
em toda e cada cultura, trouxemos um comentário de Finnis que arrola a religião como um
desses bens. Além disso, ao falarmos do bem da vida, tecemos breves comentários sobre a
religião. Compete, apenas, deixar claro que a religião se trata de uma experiência básica e
comum a todos os homens, como Herman Bavinck256, observa:

Quer se deseje ou não, sempre se pode encontrar nos seres humanos uma certa
propensão religiosa. Ela pode ser chamada por vários nomes: “a semente da religião”,
“a noção de divindade” (Calvino), sentimento religioso (Schleier- macher,
Opzoomer), crença (Hartmann), um sentimento pelo infinito (Tiele), etc., mas há
sempre nos seres humanos uma certa capacidade de perceber o divino, à qual a
investigação filosófica retomou e na qual deve terminar.
Essa transcendência no homem, diz respeito ao seu centro religioso, aquilo que ele é e
anseia, assunto que trataremos adiante (V.1), onde também trataremos de algumas vicissitudes
da religião em si.

Por fim, em relação ao bem comum da razoabilidade prática, deixamos para último,
pois será objeto de análise com seus requisitos, ainda que brevemente, no subcapítulo, que
passamos a expor a seguir.

III.2 Da Razoabilidade Prática e seus requisitos

Diante de todos os argumentos que foram por nós até então delineados, acreditamos que
conseguimos apresentar o conceito de razão prática. Entretanto, para que não deixemos
«pontas soltas» apresentamos neste subcapítulo, a razoabilidade prática e seus requisitos.

Por razoabilidade prática queremos dizer «a deliberação a respeito do que fazer257», é


aquele pensamento do homem, razoável na «sua decisão, na adoção de compromissos, na
escolha e na execução de projetos e, em geral, na ação258, resumidamente, é uma decisão
virtuosa259 que leva a ação.

255
ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER. Confissão de Fé de Westminster. Tradução: Bíblia de Estudo de
Genebra. 2.ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009. XXIV, 2.
256
BAVINCK, Johan Herman. Dogmática reformada: Prolegômena. v.1, São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
p. 278.
257
FINNIS, John Mitchell. Direito nat ... cit., p. 30.
258
Ibid., p. 25.
259
Virtude ao contrário de vício, como vimos, na linguagem do Doctor Angelicus, cfr. nota nº 177.
63

Anteriormente (II.3), tratámos do homem σπουδαῖος (spoudaíos), que busca o bem


enquanto fim e não apenas enquanto conteúdo, sendo que, ao captar por meio da razão esse
bem, faz tudo o que pode para praticá-lo, ou seja, a virtude por meio deste processo da
razoabilidade prática persegue aqueles que são os bens reais em detrimento dos bens
aparentes.

Entretanto, como a experiência humana é vasta, o núcleo dos bens humanos não são
poucos (no mínimo sete), os homens distinguem-se entre si em personalidade, objetivos e
anseios, sendo que nem todos os seus atos estão de facto a buscar o bem comum e o
florescimento humano e também, somos perturbados com aquele tipo de indagação do filósofo:
«Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente?260» e o somos, porque,
sabemos que esse tempo está a correr rapidamente e por essa ser a sua condição temos que, tão
logo quanto possível, decidir, ocasião em que, mesmo quando não decidimos, já estamos a
tomar uma decisões. É necessário assim, criar estruturas, padrões de escolhas e tomadas de
decisões, em suma, requisitos da razoabilidade prática. São eles, um total de nove requisitos:

a) Um plano coerente de vida: Bem sabemos que «participar completamente de


qualquer valor básico exige habilidade ou, pelo menos, um compromisso total. Mas a vida é
curta261» e essa sentença assusta-nos, o medo de não conseguirmos parece paralisar-nos. Por
isso a razão prática não pode estruturar-se sem esse bom fundamento.

Este plano trata-se de uma escolha efetuada após deliberar de forma consciente
sopesando as ações, oportunidades e consequências, portanto é racional262. O homem, entre as
suas aptidões, percebendo sua vocação, anseios, necessidades e prioridades, toma decisões, por
isso, esse princípio «requer o redireccionamento de inclinações, a alteração de hábitos, o
abandono de velhos projetos e a adoção de novos projetos, segundo as circunstâncias o exijam,
e, acima de tudo, a harmonização de todos os compromissos profundos da pessoa263», visto que
a prepara e a direciona para um determinado fim.

b) sem preferências arbitrárias por valores: Na construção que estamos a fazer,


podemos ser tentados a preferir determinados bens em detrimento de outros. Se tal predileção
for devido aos nossos gostos e aptidões, não há problemas. Contudo, como o excesso é próprio
da natureza humana decaída, temos a tendência a tratar bens que não valorizamos como

260
HIPPONENSIS, Aurelius Augustinus. Confessionum. Braga: Apostolado da Imprensa, 2008. Libre XI,
14.
261
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., p. 105.
262
RAWLS, John Bordley. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000. pp. 451-2.
263
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., p. 109.
64

inferiores ou até nem os reconhecemos como bens (e.g: o moralista no caso do jogo (III.1-d),
por isso, Finnis afirma que «uma coisa é não ter muita capacidade e mesmo nenhum "gosto"
pela erudição, ou pela amizade, ou pelo heroísmo físico, ou pela santidade; outra muito
diferente, e muito estúpida ou arbitrária, é pensar, falar ou agir como se essas não fossem
verdadeiras formas de bem264».

Rawls parece cair nesse erro quando cria a teoria do véu de ignorância265, pois, ainda
que fosse possível que os homens abdicassem das suas convicções para participarem do debate
público – o que é impossível (cfr. I) – estariam a suprimir bens básicos, em razão obviamente,
de que quem prioriza o bem do trabalho põe maior enfoque nas discussões que giram em torno
da produção de bens e riquezas, enquanto que quem prioriza a religião, põe enfoque em
discussões de outra estirpe, donde se tais homens fossem ignorantes quanto aos anseios, desejos
e enfoques uns dos outros, jamais poderiam pensar no florescimento humano pleno de uma
comunidade, visto que o princípio básico de respeitar o outro como eu desejaria ser respeitado,
já seria por tal teoria, rechaçado.

c) sem preferências arbitrárias por pessoas: A mesma inclinação que temos por tratar
aqueles bens que não perseguimos como não-bens ou bens inferiores é a que nos leva a tratar
o nosso semelhante como inferior em relação a nós por causa dos seus gostos e em relação
àqueles que têm gostos semelhantes aos nossos.

Por isso, Bartolomé Clavero, observa cláusulas de exclusão na DUDH e «que, em


consequência disso, não se apresentava de forma tão universal. “Todos os seres humanos são
iguais, mas uns são mais iguais que outros”266» afirma o autor. Talvez, daí a predileção de bens
em relação a outros cumulado com a falta de respeito com o meu semelhante, donde a
observação de Finnis se faz oportuna:

Não condene os outros por aquilo que você mesmo está propenso a fazer. Não impeça
(sem razões especiais) os outros de conseguirem para eles mesmos o que você está
tentando conseguir para você mesmo. Esses são requisitos da razão, porque ignorá-
los é ser arbitrário em relação aos indivíduos 267.

264
Ibid., p. 110.
265
Teoria que apresenta a ideia de que em determinado debate público, pessoas de todas as origens,
ideologias, posições financeiras e etc, seriam submetidas a tratar das questões mais importantes para fomentar o
bom funcionamento de uma sociedade, contudo, todas estariam vendadas por um véu de ignorância, ou seja,
nenhuma das quais, saberia quem é a outra e o que desejam, anseiam e a que causa labutam. Entretanto, para isso,
deixariam de lado todas as suas convicções (como se isso fosse possível). Cfr. RAWLS, John Bordley, op. cit.
146ss.
266
SALVADOR, Bartolomé Clavero, op. cit., location 243/5807.
267
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., p. 112.
65

Assim, a regra de ouro levada a sério, impede-nos, não apenas de relegarmos alguns
bens ao acaso, como também de relegarmos nossos semelhantes ao ostracismo.

d) desprendimento e e) compromisso: Finnis coloca o quinto (desprendimento) e o


sexto (compromisso) requisitos juntos em sua obra, razão pela qual, seguimos o mesmo
caminho neste artigo. A relação de ambos os requisitos com o requisito do plano coerente de
vida, é gigantesca. Em primeiro, quando um indivíduo faz um plano de vida, toma decisões e
se estrutura em direção a, não significa que ele será bem sucedido, visto que ela não é senhor
da sua vida, razão pela qual, se os seus planos vierem a malograr-se, ele deve desprender-se,
não considerar que a sua vida se tornou um fracasso e não há mais sentido para vivê-la268. Isso
é interessante porque nos demonstra que a observação apresentada por Jehan Cauvin, no
contexto da teologia cristã é verdadeira: «o espírito do homem é uma boutique perpétua e eterna
de forjar ídolos269». Ídolos não são estátuas – podem ser – mas o conceito de ídolo para a
teologia cristã é muito mais amplo, na verdade, «um ídolo é qualquer coisa que se olhe e diga,
no fundo do seu coração: “Se eu tiver isto, sentirei que minha vida tem um sentido, e então
saberei que tenho valor, estarei seguro e em posição de importância” (…) Tudo que nos controla
é nosso senhor270». Por isso, o ato de desprender-se e a sua descobri-lo, é um dos requisitos
fundamentais para a razoabilidade prática e para as escolhas maduras de vida.

Por outro lado, o homem que faz planos, deve na medida do possível, manter a sua
palavra, donde surge o requisito do compromisso. É bem verdade, que podemos até
determinado ponto, de forma livre, tomar decisões e fazer escolhas, ou seja, não são de forma
alguma obrigatórias. Entretanto, ao nos comprometermos com elas, aquilo que foi assumido de
livre e espontânea vontade, torna-se um dever, por isso, esse «quinto requisito estabelece o
equilíbrio entre o fanatismo e o desligar-se, a apatia, o fracasso irracional ou a recusa a "se
envolver” com qualquer coisa271». Entre idolatria e responsabilidade, centram-se escolhas
responsáveis e comprometidas.

f) a relevância (limitada) das consequências: eficiência dentro dos limites do bom


senso: O leitor já está familiarizado com esse requisito mais do que imagina, visto que ele foi
tratado no decorrer dessa obra. Mediante este princípio, as pessoas devem procurar «o bem no
mundo (em sua própria vida e na vida de outrem) por meio de ações que sejam eficientes para
seus propósitos (razoáveis). A pessoa não deve desperdiçar suas oportunidades usando métodos

268
Ibid., p. 114.
269
CAUVIN, Jehan, op. cit., I, XI, 8. (Tradução livre).
270
KELLER, Timothy J, op. cit., pp. 16, 19.
271
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., 114.
66

ineficientes272» é uma análise preferindo sempre que puder, o melhor bem a si e ao outro, são
decisões e escolhas que são tomadas, sob regras específicas como, preferir sempre o bem
humano em detrimento do bem dos animais, o bem básico da vida em detrimento do bem
instrumental de propriedade e etc273. Note por exemplo que, preferir o bem humano em
detrimento do bem dos animais não legitima a prática de crueldade com a criação Divina. Esse
requisito, apenas estabelece uma ordem prioritária que guia a razão. Contudo, é bem diferente
de preferir de modo arbitrário um bem em detrimento de outro ou uma pessoa em detrimento
de outra, como diz Finnis, «onde o dano é inevitável, é razoável preferir atordoar a ferir, ferir a
aleijar, aleijar a matar274», não se tratam de escolhas arbitrárias, antes, de escolhas razoáveis,
podendo esse princípio ser resumido em princípio da eficiência da razoabilidade prática.

g) respeito por cada valor básico em cada ato: O princípio anterior pode remeter às
para as sombras utilitarista, consequencialista ou até proporcionalista275, entretanto, todas essas
ideias são ingénuas, limitadas e não perfazem a realidade dos princípios da razoabilidade
prática276, pois, como foi visto, os bens básicos são únicos, logo não se pode ferir um bem
básico em detrimento de outro como pregam algumas dessas filosofias (e.g., quando em uma
determinada situação, um indivíduo se prontifica a ceifar a vida de alguém para salvar a vida
de vários outros). Tal ato é ilógico visto que «o ato de matar é um ato que em si nada faz a não
ser danificar o valor básico da vida277». Destarte, os atos razoáveis devem levar em
consideração cada bem básico.

Por outro lado, situação bem diferente ocorre quando uma pessoa decide investir seu
tempo e energia em um bem básico (e.g., buscar uma vida de erudição e se tornar um(a)
intelectual). Ora, obviamente que ao investir no bem básico do conhecimento, a pessoa irá
deixar para segundo plano, outros bens básicos. Ou seja, não irá ter o mesmo tempo e dedicação

272
Ibid., p. 115.
273
Ibid., p. 115.
274
Ibid., p. 115.
275
Enquanto o Utilitarismo é uma «corrente que defende a maximização de um bem (escolhido como o bem
humano) por uma ação de maior utilidade como critério moral. Teve Bentham, William James e Bertrand Russel
como expoentes. [O consequencialismo, por outro lado, é uma] corrente ética que propõe que a otimização das
consequências das próprias escolhas é ou o princípio supremo da ética, ou um princípio geral para resolver “casos
difíceis”. [E por fim, o proporcionalismo é uma,] derivação do consequencialismo que prega que “uma avaliação
global dos benefícios e danos, sem depender de qualquer outro julgamento moral” seja o critério exclusivo do
juízo moral», (LOVATO, Giovanni Marramarco. Estado, família e subsidiariedade em John Finnis. 2013. 64
f. Trabalho de Conclusão de Curso (Monografia) – Curso de Direito, Universidade Federal de Santa Maria Centro
de Ciências Sociais e Humanas, Santa Maria, RS, 2013. Consultado em 11 de agosto de 2018, em
«https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/11422/Monografia%20GIOVANNI.pdf?sequence=1&isAllowed
=y»).
276
Cfr., FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., pp. 122ss; FINNIS, John Mitchell. Fund … cit., pp. 81ss.
277
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., p. 122.
67

despendidos ao conhecimento para, por exemplo, a amizade. São escolhas inevitáveis, que
geram consequências inevitáveis278, mas qual a vida que, não é assim? feita de escolhas,
consequências, sucessos e derrotas?

O ato de escolher e dedicar-se a um bem não quer dizer que a pessoa não tenha
momentos de lazer e nem alguns amigos verdadeiros. Priorizar um bem básico e dedicar-se a
ele não quer dizer que os outros não são importantes e que não estarão presentes na vida desta
pessoa. Apenas quer dizer que ela está a seguir um plano coerente de vida.

O ponto nevrálgico desse raciocínio é que, priorizar um bem básico e a partir disso,
deixar os outros em segundo plano, é bem diferente daquelas filosofias supramencionadas que
sacrificam o bem básico, numa espécie de culto, desde que o sacrifício produza um retorno de
proteção ou proliferação de outro ou do mesmo bem básico279.

Portanto, o ato de escolher deve ser racional, eficiente e acima de tudo levar em
consideração cada bem básico, para que o indivíduo, com a sua escolha, não fira outros bens
básicos e afete outras pessoas. Essa é a regra basilar de proteção da inviolabilidade dos Direitos
Humanos, pois fim nenhum justifica os meios280 e atos humanos maus não podem, pelos
próprios seres humanos, gerar boas consequências. Sendo que, os que geram é por Graça e
Misericórdia de Deus, não podendo assim, ser desculpa para o agir imoral.

Esse requisito, é central nas atuais discussões de aborto, maternidade de substituição,


procedimentos medicamente assistidos (PMA), entre outros.

h) Os requisitos do bem comum: O presente requisito se trata de que «a maioria, de


nossas responsabilidades, obrigações e deveres morais concretos têm seu fundamento 281» na
procura do bem comum em cada comunidade a qual cada um de nós pertençamos.

i) Seguindo os ditames da própria consciência: Finalmente, as escolhas de um


indivíduo não podem ser isoladas da sua consciência. Homem algum pode tomar qualquer ato
enquanto isso não for deliberado no seu cerne e daí ser atestada por sua consciência. Por isso,
mesmo que uma escolha seja ruim, deverá ser atestada pela consciência individual, isso prova
inclusive, que a razoabilidade prática não é um mecanismo legalista de faça isso e deixe de
fazer aquilo, na verdade, trata-se de um aspeto da plenitude da existência do ser humano282.

278
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., p. 123.
279
Ibid., pp. 123-4.
280
Ibid., p. 124.
281
Ibid., p. 127.
282
Ibid., p. 128.
68

j) Não escolher bens aparentes, mesmo que eles tragam satisfações reais: Este
último requisito, surge em outra obra de Finnis283, já tratamos anteriormente (III.2) e também,
está em consonância com outros requisitos supramencionados, razão pela qual, no rol inicial
deste subcapítulo, falamos de nove, não dez requisitos.

Diante de tudo o que até então foi construído, podemos ter uma excelente noção da
teoria jusnaturalista para Finnis, permitindo avançar para as relações dela na esfera pública.

283
Cfr. FINNIS, John Mitchell. Fund … cit., pp. 38ss.
69

IV- UMA VISÃO DE GOVERNO EQUILIBRADA MEDIANTE UM


JUSNATURALISMO POSITIVISTA.

Os próximos três capítulos serão menores, não porque não mereçam mais páginas, são
assuntos deslumbrantes e há muito, a dizer sobre os mesmos, talvez numa tese de doutoramento.
Mas pelas regras de limitação de páginas – que confessamos, já termos nos excedido um
bocadinho – a serem escritas e também porque que cremos cabalmente que tudo que até então
foi exposto apresenta ferramentas suficientes para o leitor repensar a questão do jusnaturalismo
para a atualidade é que serão diminutos. Porém, mesmo que menores, são centrais à nossa
pesquisa e fazem uma conexão profunda entre a teoria e a prática de tão nobre estudo. Passemos
então a essa empreitada.

IV.1 Comunidade plena

Como visto, a experiência humana é vasta. Muitos são os bens comuns, que podem ser
sintetizados em sete grandes áreas. Além disso, por causa das diferenças entre os homens em
personalidade, anseios e etc, estes, escolhem distintos planos coerentes de vida, o que nos faz
indagar: é possível, distintos homens, perseguindo e ampliando distintos bens, viverem em
comunidade? sim, é possível, desde que, a regra de ouro seja respeitada. Antes, porém, de
tratarmos disso, é necessário definir o que queremos dizer com comunidade plena.

Não vivemos de forma isolada. Fomos criados para o relacionamento uns com os outros
e todos com Deus284, inclusive, na perseguição pessoal do seu bem individual, dependemos uns
dos outros para a sua concretização285. Isto que anteriormente (III.1c) representámos pelo bem
humano básico da sociabilidade que na sua forma mais simples, demonstra que a «função
própria da associação é ajudar os participantes da associação a ajudar a si mesmos, ou, mais
precisamente, a constituir-se a si próprios por meio das iniciativas individuais de escolher
compromissos286» e em sua forma mais profunda desabrocha em uma sólida amizade.

Portanto, a ideia de comunidade, está ligada à ideia de relacionamentos.


Relacionamentos que têm uma certa frequência e objetivos comuns287, portanto, encontrarmo-

284
Isto fica claro, já em Génesis, quando Deus ia até o Jardim do Éden ter com o homem e com a mulher.
Também fica claro, quando Deus faz uma Eva para ser a companheira de Adão. (Cfr, BÍBLIA. Português. Bíblia
de Est … cit., Génesis II:18; III:8
285
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit …, pp. 143-5.
286
Ibid., pp. 147-8.
287
Finnis apresenta um caso hipotético para explicitar essa ideia: «Considere o empregado que abre e fecha
o portão de uma fábrica para os caminhões das empreiteiras que levam suprimentos para a fábrica. Ele pode
70

nos com um número x de pessoas no metro, autocarro, ou faculdade, não faz de nós
comunidade, a menos que nos associemos para determinado fim, mutatis mutandis, podemos
dizer que um grupo «seja time, clube, sociedade, empresa, corporação ou comunidade, existe
sempre que existe, em um intervalo apreciável de tempo, uma coordenação de atividades por
parte de um certo número de pessoas, sob a forma de interações, e com vistas a um objetivo
compartilhado288». Um exemplo ideal de comunidade é a família, porém, ainda assim não é
completo. Uma família pode fortalecer os laços dos seus indivíduos, promover a paz, a saúde e
a riqueza, mas também causar destruição na vida de seus membros, (e.g. tratando o cônjuge
como posse ou decidindo qual bem básico os filhos devem escolher perseguir, toldando a
liberdade destes). Por isso, aqueles que pertencem a uma família, florescerão mais plenamente,
se a família sem se desintegrar, se envolver e participar de uma comunidade maior, como a de
vizinhos289.

Diante disso, o que seria uma união de pessoas de forma completa? É uma comunidade
que objetive a prossecução do bem comum. Nessa altura, porém, convém ressaltar que como
vimos, esse bem não é utilitarista – maior bem ao maior número de pessoas – mas também, nos
parece ficar algo solto se apenas afirmarmos que é i) a realização daqueles bens sintetizados
naquelas sete grandes áreas, em que ii) «na medida em que um número inexaurível de pessoas
pode participar deles de uma variedade inexaurível de modos ou de uma variedade inexaurível
de ocasiões» – que denominamos de vasta experiência humana. Portanto, bem comum, além
desses dois significados ou elementos, se reveste também de um terceiro, que assim estabelece
definitivamente uma comunidade plena, é ele, «um conjunto de condições que permita que os
membros de uma comunidade atinjam por si mesmos objetivos razoáveis, ou que realizem, de
modo razoável, por si mesmos, o valor em nome do qual eles têm razão de colaborar uns com
os outros290», ou seja, é um espectro de possibilidades, instrumentos que são direcionados e
concretizados numa realidade comunitária291.

interagir com os motoristas dos caminhões, e mesmo com um motorista em particular, com maior frequência do
que interage com outros empregados ou com a gerência; de fato, ele pode interagir quase que exclusivamente com
os motoristas que passam pelo portão. No entanto, ele é um membro da fábrica, e, inversamente, não há motivo
para falar de um grupo que se compõe dele e dos motoristas dos caminhões (…) Inversamente, ele e os motoristas
se tornam um grupo assim que começam a ter um objetivo em comum; se ele conspirar com eles, mesmo que
apenas piscando o olho ou acenando com a cabeça, para abrir os portões afim de permitir que eles roubem a fábrica
e fujam, então ele formou um time com eles.», Ibid., p. 152.
288
Ibid., p. 153.
289
Ibid., pp. 147-8.
290
Ibid., p. 155.
291
OLIVEIRA, Elton Somensi de, op. cit., p. 113.
71

IV.2 Governo de todos ou de alguns?

Os homens estão perseguindo bens – ainda que sejam bens aparentes – e unem-se para
tal. Afirmámos no início deste capítulo que essa coexistência dos homens numa comunidade
plena é possível e iremos tratá-la posteriormente. Entretanto, para construirmos tal ideia,
compete-nos antes, fazermos algumas ponderações.

Quando os indivíduos decidem unir-se, no que denominamos de uma comunidade


plena, há compromisso de todos os membros – ou pelo menos de grande parte deles – daí não
ser enganador dizer que o membro que se abnega, pensa no todo e é comprometido, «sempre
estará alerta para modos novos e melhores de atingir o bem comum, de coordenar a ação dos
membros de representar seu próprio papel. E o membro inteligente irá descobrir tais modos
novos e melhores, e talvez não apenas um, mas muitos modos possíveis e razoáveis292», razão
pela qual, muitas ideias surgirão, muitos líderes aparecerão, o que inevitavelmente poderá levar
a comunidade a sofrer pressões de vários lados na prossecução do bem.

Numa comunidade, há em última análise, apenas duas formas de se tomar uma decisão
que objetive o bem comum: ou por unanimidade ou por autoridade. E, levando em
consideração que cada homem, ainda que abnegado, está – por causa do seu plano de vida –
privilegiando os bens que lhe competem, razão pela qual haverá pressão de vários grupos, cada
um inclinando para seu fim determinado, o que consequentemente, a despeito da sua abnegação,
trará muitas vezes egoísmo e insensatez, a unanimidade será praticamente impossível, o que
justifica a existência de autoridade293 por meio do governo de alguns.

IV.3 Autoridade e Estado de Direito

Como localizamos a autoridade? Como reconhecer que x deve governar em relação a z,


ou o que legitima um governo? Antes de respondermos, é importante definirmos autoridade,
para isso, passemos a uma grelha explicativa:

(…) a expressão «X tem autoridade sobre S» pode ser explicado ao menos sob três
perspectivas distintas:
(1) Sentido 1: quando S o diz, isto é, quando S admite que X tem autoridade;
(2) Sentido 2: quando um Z o diz a um Q com respeito a X e S;
(3) Sentido 3: quando Z conhece bem as razões de S em razão de alguma condição
que tem.

292
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., pp. 227-8.
293
Ibid., pp. 227-9.
72

Na primeira situação, tem-se a descrição de “um ponto de vista interno”; na segunda


situação uma descrição da autoridade sob o ponto de vista externo; na terceira, o ponto
de vista técnico ou profissional294.
A segunda e terceira perspetivas podem ser explicadas e confirmadas pela primeira e
essa distinção torna-se necessária, na medida em que a explicação de autoridade só é possível
mediante a referência do bem comum, da justiça e dos direitos humanos295.

Destarte, a «autoridade (e, portanto, a responsabilidade de governar) em uma


comunidade deve ser exercida por aqueles que podem de fato, efetivamente, resolver seus
problemas de coordenação296» e levando em consideração que «a obrigatoriedade da lei positiva
se encontra vinculada à autoridade política (…) a autoridade do governante encontra-se
ancorada na responsabilidade de zelar pelo bem-comum através de prescrições de soluções
normativas297».

Entretanto, qual o tipo ideal de governo? Para Finnis, «a melhor forma de governo (ou
como nós deveríamos dizer agora, de constituição) é aquela na qual são encontradas a
“monarquia”, a “aristocracia” e a “democracia” de forma “bem misturada”298». Isso lembra-nos
inclusive a observação de Niccolò Machiavelli que refere ter sido a coexistência dessas três
formas de governo que fizeram nascer em Roma a república perfeita299. Por outro lado, mesmo
diante de sua preferência, Finnis afirma que a forma de governo pode ser qualquer uma, desde
que tenha bem definida uma autoridade, que haja por princípios da razoabilidade prática,
objetivando o bem comum300.

Portanto, «a razão é a base para distinguir a rule of law (Estado de Direito) da rule of
men (Estado arbitrário)301». Razão essa prática, tanto como instrumento do governo, quanto
banalizador do mesmo, ou seja, o Estado de Direito é também obrigado a obedecer às próprias
regras e conduzir-se pelos Direitos Humanos302. Interpretação que nos leva ao próximo
subcapítulo.

294
SGARBI, Adrian. O direito natural revigorado de John Mitchell Finnis. Revista da Faculdade de Direito,
São Paulo, v.102, n.1, pp. 661-689. Consultado em 07 de agosto de 2018, em
«http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67774/70382».
295
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., pp. 231-3.
296
Ibid., p. 240.
297
SGARBI, Adrian, op. cit., pp. 661-689.
298
FINNIS, John Mitchell. Direito nat ... cit., p. 63.
299
MACHIAVELLI, Niccolò di Bernardo dei. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio. Firenze: Gasparo
Barbèra, 1864. I.2, pp. 24-30.
300
FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., pp. 244-5.
301
SOUZA, Elden Borges, op. cit., p. 131.
302
FINNIS, John Mitchel. Lei … cit., pp. 245ss.
73

IV.4 Obrigação e leis justas e injustas

Se pudéssemos qualificar uma das esferas nucleares do direito natural, seria a existência
do mal. Obviamente que não é a única faceta nuclear de tal teoria, entretanto, desvela uma parte
dela. Pode parecer antagónico, mas de facto não o é, pois, o direito natural se preocupa com um
sistema jurídico sadio e para tal, necessita analisar as injustiças do mundo.

O mal é ausência do bem303 – obviamente que estamos a tratar do mal moral – e só é


possível percebê-lo naqueles lugares onde o direito natural é necessário. Não se trata de
contrapontos nem da dualidade taoista – yin e yang304 – em que uma força má se opõe ao que
é bom. O bem não é o oposto do mal e vice-versa e nem pode o mal ser causado pelo bem.
Antes, onde o bem não está, impera o mal.

E por que motivo só conseguimos notar o mal onde o direito natural é necessário?
Justamente porque a lei evidencia aquilo que é mal. Ela é o espelho do homem e da realidade
da experiência humana, como São Paulo305 afirma: «Na verdade, foi a lei que me mostrou meu
pecado. Eu jamais saberia que cobiçar é errado se a lei não dissesse: ´não cobice´ […] O
problema não está na lei, pois ela é espiritual e boa. O problema está em mim, pois sou humano,
escravo do pecado».

Portanto, é evidente que «não se promulga lei para quem é justo, mas para transgressores
e rebeldes306», ou seja, o direito natural está associado com a injustiça e com o mal, visto que a
«maneira de provar sua necessidade parece ser mostrar as persistentes raízes da injustiça, com
respeito às quais ele age como um remédio307», para as conter e para produzir uma sociedade
mais justa.

Porém, tudo isto, não nos responde à pergunta que muitos podem estar a fazer: uma lei
imoral deve ser incumprida ou ainda assim, gera uma obrigação de cumprimento?

Antes, de respondê-la, apresentemos a definição de Finnis, de justiça. Para ele, a justiça


está relacionada com três elementos básicos, que são: intersubjetividade, ou seja, a relação com
o outro, dever (no que se refere a debitum) e igualdade (que as vezes o autor chama de
equilíbrio, proporcionalidade ou adequação). Explicando sucintamente tais elementos: i) a

303
Cfr., (VI.1).
304
Cfr., SCHIPPER, Kristofer. O Tauismo. In: DELUMEAU, Jean. As grandes religiões do mundo. 3.ed.
Lisboa: Editorial Presença, 2002. pp. 506ss.
305
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada Nova Versão Transformadora. 1ª ed. São Paulo: Mundo Cristão,
2016. Romanos VII: 7,14.
306
BÍBLIA. Português. Bíblia de Est … op. cit., 1ª Timóteo I: 9.
307
TRIGEAUD, Jean Marc, op. cit., pp. 281-303.
74

intersubjetividade demostra que «só há uma questão de justiça ou injustiça em que há uma
pluralidade de indivíduos e alguma questão prática concernente à situação deles e/ou às
interações de uns com os outros»308, assim, é impossível mencionarmos numa questão que
envolva injustiça ou justiça, que não tenha um indivíduo que cause ou sofra algo; ii) existe
também a responsabilidade do debitum, para com todo e cada indivíduo, o que mui bem
representa a regra de ouro «fazei aos homens, o que desejam que eles façam a você». Trata-se
de um dever, pela condição natural do homem enquanto homem 309; iii) por fim, quanto à
igualdade, o jusfilósofo ressalta: «alimentar um homem grande com a mesma quantidade de
comida que é dada a uma criança pequena é e não é tratar os dois "igualmente”310», pois,
supondo que exista determinada quantidade de comida (z), quantidade essa que parte (x) seria
adequada para o homem comer, enquanto a criança comeria (y) quantidade. Neste caso só a
adequação é que não seria suficientemente igualitária, pois o respetivo homem do exemplo,
pode necessitar de ingerir toda a comida para se manter totalmente saudável (z e não x), não
deixando o quinhão da criança. Por isso, temos a ideia do equilíbrio, pois dentro da quantidade
(z) a mesma deve ser proporcionalmente dividida entre homem e criança, onde por mais que
não seja suprida a necessidade total de ambos, chegará mais perto daquilo que é o justo.

Assim, a «igualdade» é tanto aritmética (2 = 2) quanto geométrica (proporcional) (1:1


= 2:2). Esta ideia é discussão antiga da filosofia que remonta a Aristóteles: «O justo, então, é
uma das espécies do genro “proporcional” (a proporcionalidade não é uma propriedade não
apenas das quantidades numéricas e sim da quantidade em geral). Com efeito, a proporção é
uma igualdade de razões311».

Ora, sempre que a razão prática, objetivando o bem comum, não é observada por uma
lei, há uma lei injusta, ou melhor, «uma deturpação da lei312» e sendo assim, a lei injusta «afasta-
se em diversos graus dos predicados formais do conceito de lei e, conforme mais afastar-se
mais perde a razão de lei313». Entretanto, isso ainda não responde à nossa indagação.

O termo obrigação remete-nos para dois significados distintos. Como sabemos, a lei é
coerciva e tal coerção é necessária para que certas ações ou omissões ocorram com menor
frequência do que se ela não existisse, visto que todos precisam aprender quais são as exigências

308
FINNIS, John Mitchel. Lei … cit., p. 161.
309
Ibid., p. 162.
310
Ibid., p. 162.
311
ARISTÓTELES. Éti … cit., V,3: 1131a.
312
D'AQUINO, Tommaso, op. cit., I-II q. 95, a.2. sol.
313
SOUZA, Elden Borges, op. cit., p. 113.
75

de se viver em comunidade, perseguindo o bem comum, e todos de certo modo precisam de


uma ou outra atividade de incentivo para cumprir as leis visto que a incumprimos com
frequência como por exemplo no trânsito314, por isso, a lei gera obrigação. Por outro lado, o
respeito para com os mais velhos consubstancia também uma obrigação, mesmo que não esteja
positivada. Todos sabemos que devemos honrá-los315. Diante disto, ao vermos um jovem não
ceder lugar no autocarro a um idoso é algo que de algum modo fere a nossa consciência.

Nesse sentido, obrigação, está incutida na nossa linguagem tanto quanto justo e
injusto, certo e errado. Infelizmente, em muitos lugares e contextos, palavras são relegadas
ao acaso, mas isso não significa que elas não têm valor ou representatividade. Pensemos numa
proposta negocial meramente oral, que gera promessas também verbais. Esta proposta é uma
espécie de sinal representativo de aderir a uma responsabilidade ou obrigação e se não for
cumprida, aquele que a contraiu, receberá o adjetivo de enganador sendo descredibilizado316.
Ainda sobre linguagem, os advogados, como dito alhures, no exercício da sua profissão, nos
tribunais e escrita processual, são os profissionais que mais insistem nessas obrigações que não
estão positivadas, mas que perfazem regras de conduta317. Por isso, é evidente que as leis
seguem princípios morais, mediante a razoabilidade prática, sendo que se ela for imoral, é uma
corrupção da lei.

Também o governante tem o dever de exercer autoridade e fazer leis que devem ser
moralmente obrigatórias, pautado assim pela razoabilidade prática, objetivando o bem comum.
Desta forma, se ele usa a sua autoridade para atentar contra o bem comum e criar uma lei imoral,
que ultrapassa a sua autoridade definida (que é a de submeter-se aos Direitos Humanos), essas
leis imorais não conseguem criar uma obrigação moral, pois seria uma contradição318.

Por outro lado, mesmo que imoral, por essa lei estar positivada, ter passado por um
processo legislativo, ter sido acolhida no sistema jurídico, o cidadão teria uma responsabilidade
colateral ou extralegal de a cumprir, sob pena de ser um dos agentes que ajuda a atentar contra
a ordem pública do direito, fomentando que outros possam desobedecer a outras leis. Destarte,
paralelo a isso, o governante teria o dever de revogar a referida lei o mais depressa possível319.

314
FINNIS, John Mitchel. Lei … cit., pp. 254-9.
315
SGARBI, Adrian, op. cit., pp. 661-89.
316
FINNIS, John Mitchel. Lei … cit., p. 290.
317
Ibid., pp. 274 e ss.
318
Ibid., pp. 344-5.
319
Ibid., p. 346.
76

Trata-se de algo complexo, sem falar na possibilidade de objeção de consciência ou


desobediência civil.

Assim, uma lei imoral, poderia ser cumprida na mesma medida em que deveria ser
revogada, visto que jamais deveria ter sido aprovada, mediante um processo legislativo, pois se
trata de uma corrupção da lei e não uma lei real. Esta é a conceção de Finnis320. Para nós, uma
lei injusta, de forma alguma gera uma obrigação moral de a cumprir. Ora, se para os positivistas,
uma lei moral não gera obrigação, por que motivo uma lei imoral geraria?

Toda esta discussão gira em torno da famosa frase de Aurelius Augustinus


Hipponensis321, «lex iniusta non est lex» e também da discussão da lei positiva, como será
visto em seguida.

IV.5. Lex iniusta non est lex: uma preocupação do jusnaturalismo neoclássico?

Augustinus, num dos seus diálogos com Evódio, o discípulo, afirma que lex iniusta non
est lex322, ou seja, imoralidade e lei são antípodas. Prossegue então, afirmando que se
determinado povo, que no geral se comporta de forma correta e moral, decide reunir-se para
estabelecer um magistrado para os governar, esse ato é louvável e justo. Por outro lado, se esse
povo se torna devasso e vende o sufrágio universal por riquezas e favores a governantes iníquos,
a aplicação da justiça seria, que lhes fosse retirado o poder de determinação quanto à escolha
de autoridade e fosse entregue referido poder e governo nas mãos daqueles que buscam a
justiça, ainda que sejam poucos323. Logo, dar ou retirar o poder de decisão de um povo, pode
ser justo ou injusto, dependendo do contexto em que a lei for aplicada, razão pela qual é
denominada por Augustinus, de lei temporal324. Por outro lado, existe uma lei que norteia as
leis dos homens, é a lei eterna, que «é aquela lei em virtude da qual é justo que todas as coisas
estejam perfeitamente ordenadas325». Portanto, para Augustinus, existe uma ordem de valor
transcendente e moral que deve servir de guia para a legislação temporal humana.

Já nos deparámos com esse assunto, na questão do é/deve ser, mas na altura não
tínhamos toda a teoria do Doctor Angelicus referente ao bem comum e à razoabilidade prática,
por isso, poderíamos cair na contradição apresentada por Hume, sendo que já nessa altura nos

320
Ibid., pp. 340ss.
321
Doravante referido por Augustinus.
322
HIPPONENSIS, Aurelius Augustinus. De libero arbitrio. São Paulo: Paulus, 1995. Libre I. 5, 11.
323
Ibid., Libre I. 5, 14.
324
Ibid., Libre I. 6, 15.
325
Ibid. Libre I. 6, 15.
77

desvencilhamos dela. Ora, a lei transcendente não é derivada de uma obrigação moral, mas de
um juízo de razoabilidade prática, ou consciência que deve inclinar-se para o bem comum. Por
isso, quando um homem comete um ato imoral, a sua consciência acusa-o da sua imoralidade e
isso causa-lhe um dever, não externo, antes interno e perturbador.

O Doctor Angelicus em momento algum afirma que uma lei injusta não é lei, mas se
assim houvesse procedido, não nos assustaria, em virtude de que tal afirmativa ou é nonsense
como argumenta Hart ou, na verdade, é apenas uma derivação do sentido focal de lei, como
expõe o próprio Doctor Angelicus326 cuja articulação utilizada por este, para remeter aos
«conceitos de caso central e casos periféricos é sua referência à simpliciter e secundum quid327»,
assim:

A lei tirânica, não estando de acordo com a razão, não é, absolutamente falando, lei;
antes, é uma perversão dela. E, contudo, na medida em que participa da essência da
lei, tende a tornar bons os cidadãos [simpliciter]. Ora, da essência da lei não participa,
senão na medida em que é um ditame de quem governa os seus súbditos e tende a que
eles sejam obedientes à lei. O que é torná-los bons, não absolutamente, mas em relação
ao regime [secundum quid ]328.

Logo, o simpliciter de lei, é uma lei moral, justa, que procure o bem comum por meio
da razão prática, donde uma lei imoral perfaz o secundum quid de lei e, conforme observámos
no subcapítulo anterior, dado que uma lei imoral foi constituída por uma ordem jurídica válida,
ela é, ainda assim, uma norma de direito e com o «fim de preservar o respeito pelo sistema legal
como um todo329», os homens submetem-se a ela, mas isso não a torna boa, ou bons os cidadãos
como um todo, como exposto no relato do Doctor Angelicus, apenas, torna estes cidadãos bons
em relação ao governo, que mesmo despótico ou imoral, têm homens que o obedecem,
reconhecendo assim a sua autoridade.

Afirmamos, novamente, que em relação a essa perspetiva, não tratamos da objeção de


consciência, da liberdade de expressão, da desobediência civil, entre outros, institutos que
nasceram em grande parte, no Cristianismo, como oposição às leis injustas, sob a premissa que
mais «importa obedecer a Deus do que aos homens330».

Por fim, diante de tudo que até então foi apresentado, podemos afirmar que a principal
preocupação do jusnaturalismo clássico, não é definir se as leis injustas são ou não são leis, pois

326
FINNIS, John Mitchel. Lei … cit., p. 348.
327
SOUZA, Elden Borges, op. cit., p. 54.
328
D'AQUINO, Tommaso, op. cit., I-II q. 92, a.1. sol.4.
329
LIMA, Simone Alvarez; BOTTIZINI, Pedro. Principais pontos de Lei Natural e Direitos Naturais, de John
Finnis. Raízes Jurídicas, Curitiba, v.8, n.2, pp. 153-64. Consultado em 07 de agosto de 2018, em
«http://ojs.up.com.br/index.php/raizesjuridicas/article/view/385/pdf_21»
330
BÍBLIA. Português. Bíblia de Est … op. cit., Atos V: 29.
78

isso é subsidiário em relação à busca de mecanismos para o florescimento humano e do bem


comum no seio de uma ordem social que se depara constantemente com injustiças, abuso de
autoridade e promessas desfeitas331. Logo, são duas as funções primordiais do jusfilósofo ao
analisar a teoria do direito natural na visão de Finnis: i) descobrir como leis positivas, devem
ser derivadas e não deduzidas, de leis naturais332 e ii) demonstrar as fronteiras impostas a um
Estado de Direito, bem como as suas tarefas primordiais333, funções essas que serão explicitadas
no capítulo a seguir.

IV.6 Um jusnaturalismo positivista?

Guy Haarscher334, em «Filosofia dos direitos do homem», afirma que os direitos


humanos surgiram para proteger a individualidade de cada ser humano, ante aos desvios de
conduta dos seus colegas de humanidade e também, ante a opressão do Estado. Entretanto, para
que ocorra a completa execução e concretização desses direitos humanos, é necessário um poder
garantidor. Assim, homens livres e iguais, cedem uma parte de sua liberdade para que o Estado
os proteja dos ataques de seus semelhantes, enquanto esse Estado é limitado pelos mesmos
Direitos Humanos.

Esta ideia que acabamos de descrever, aproxima-se muito daquilo que é o


contratualismo, e também serve como fundamento para o jusnaturalismo racionalista.
Entretanto, mesmo o jusnaturalismo clássico nesta parte, não fica distante dessa conceção, visto
que uma comunidade plena precisa de regulação para prossecução do bem e coibir do mal.
Assim, a figura de autoridade aparece bem determinada e necessária.

Sabemos que que nem todos procuram o bem comum, pelo contrário, muitos procuram
apenas aqueles bens aparentes que satisfazem as suas próprias necessidades de modo egoísta,
sem pensar em outrem. E isso, como vimos, é um dos motivos para a necessidade da coerção
da lei. Ora, sendo a lei necessária, como será aplicada se não for positivada, por meio de uma
ordem democrática e um procedimento legislativo-constitucional?

Ressaltamos que os homens são dotados de dignidade (V.2), o que em si é um valor


transcendente. Há atributos inatos no homem, enquanto pessoa. Esses «atributos relacionados
a essa condição [de dignidade] funcionam como baliza ao Poder Político e, igualmente, à sua

331
FINNIS, John Mitchel. Lei … cit., p. 337.
332
Ibid., pp. 274ss.
333
Ibid., pp. 264ss.
334
HAARSCHER, Guy, op. cit., pp. 21.
79

função legislativa, de positivar direitos e deveres335», essa positivação deve ser conduzida pelos
princípios da razoabilidade prática, à procura de eficiência na prossecução do bem336.

Por isso para o Doctor Angelicus, as leis elaboradas pelos homens, só poderiam ser
chamadas de leis – no sentido focal – se derivadas das leis naturais337, ou seja, «os direitos
humanos devem ser respeitados pela positivação realizada pelo Poder Político338», razão pela
qual o Estado age corretamente quando decide estabelecer Direitos Fundamentais, que são
Direitos Humanos rececionados na Constituição.

Finnis vê a lei positiva como o caso focal da lei e não a lei natural 339, visto que os
profissionais da área jurídica, enquanto teóricos estão aptos para perceber que «somente aquele
direito que fosse (a) do labor humano e (b) estivesse dotado de obrigatoriedade derivada da sua
positivação teria condições de receber o rótulo de caso central. Ora, o único caso de direito que
possui estas características é o direito positivo340», razão pela qual Finnis conclui ser central.
Entretanto, tal lei positiva é conduzida pelos princípios da razoabilidade prática e pelos bens
comuns autoevidentes, que no fim, são direito natural.

Por isso vimos que para o Doctor Angelicus uma lei injusta é lei, não no seu sentido
focal, mas em sentido subsidiário, pois não está cumprindo o seu objetivo principal enquanto
lei. Desta forma o ato de fazer lei é:

(…) um ato que pode e deve ser guiado por princípios e regras "morais"; que essas
normas morais são uma questão de razoabilidade objetiva, não de capricho,
convenções ou mera "decisão"; e que essas mesmas normas morais justificam (a) a
própria instituição da lei positiva, (b) as principais instituições, técnicas e modalidades
dentro dessa instituição. (e.g., separação dos poderes), e (c) as principais instituições
reguladas e sancionadas pela lei (e.g., o governo, contratos, propriedade, casamento,
e responsabilidade criminal)341.
Assim, «é evidente que o que é justo por natureza está intrinsecamente destinado a
ratificar-se por lei ou convenção, ou seja, a concretizar-se como Direito positivo; e mais, se o
justo por natureza tem alguma forma de realização, é pelo próprio facto, uma lei positiva 342».
O direito positivo até pode vir a ser imoral, mas será assim, subsidiário, visto que estará
incumprindo o seu objetivo, que é por meio da razoabilidade prática, concretizar a realidade do
bem comum no seio social.

335
SOUZA, Elden Borges, op. cit., p. 130.
336
FINNIS, John Mitchel. Lei … cit., p. 278.
337
D'AQUINO, Tommaso, op. cit., I-II q. 95, a.2c.
338
SOUZA, Elden Borges. op. cit. p. 130.
339
FINNIS, John Mitchel. Lei … cit., pp. 276-81.
340
OLIVEIRA, Elton Somensi de. op. cit. p. 40.
341
FINNIS, John Mitchel. Lei … cit., p. 282.
342
LACAMBRA, Luis Legaz, op. cit., 304. (Tradução Livre).
80

V- DA TRANSPOSIÇÃO DOS BENS-BÁSICOS AUTOEVIDENTES À


TEORREFERÊNCIA

Timothy Keller343 proferiu recentemente uma palestra no Parlamento Britânico344


intitulada: «O que o cristianismo pode oferecer aos britânicos, ocidentais, à nossa sociedade no
século 21?» O orador começou a sua palestra citando o conhecido trecho do Evangelho de São
Mateus: «Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor?
Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens345».

A partir daí, Keller estrutura a sua palestra mostrando como o sal tem função não apenas
de dar sabor, mas de conservar, porém, para que isso ocorra, deve ser distinto da carne. De
modo semelhante, o cristianismo para ser relevante deve ser distinto do restante do mundo.
Então, Keller passa a mostrar como ao longo da história o cristianismo influenciou a sociedade
como um todo e como estamos tão encharcados da moral cristã, que é impossível negá-la. A
dado momento, o autor sintetiza a sua ideia da seguinte maneira:

(…) Em cada sociedade, Jesus diz que seus discípulos devem realçar o melhor naquela
cultura em particular e também impedir as piores tendências dela [dar sabor e
conservar]. (…) O Cristianismo não tem sido apenas sal, ele tem sido sal de uma
maneira tão intensa, que os ideais que todos nós tomamos como comuns e certos
agora, são frutos da Bíblia e do cristianismo. Portanto, até mesmo perguntar o que o
cristianismo pode fazer pela sociedade hoje é um pouco indelicado. É como dizer: «O
que você tem feito por mim ultimamente?» Mas vou sugerir o seguinte: no passado,
o cristianismo foi como sal realçando o melhor na sociedade ocidental. No futuro,
porém, ele pode agir mais como uma maneira de evitar o apodrecimento. Ele pode
funcionar mais como um conservante346.
A proposta desse capítulo, após vermos um pouco mais de perto a realidade do que é o
direito natural para os dias de hoje, é apresentar a derivação de tais direitos. Estamos desde o
início deste artigo a tratar de direitos transcendentes ao ser humano, agora é chegada a hora de
tratar da fonte de tais direitos: que para nós é o próprio Deus revelado na pessoa de Jesus Cristo
conhecido e reconhecido pelas Sagradas Escrituras.

Pensamos que não há melhor forma de explicitar a nossa preocupação com o direito
para o futuro, do que as palavras de Keller ao afirmar que o cristianismo «pode agir mais como
uma maneira de evitar o apodrecimento». As consequências de um mundo onde Deus fosse de

343
Pastor e teólogo mui influente na atualidade. para mais informações biográficas, cfr., Timothy Keller. Bio.
Consultado em 06 de setembro de 2018, em., «http://www.timothykeller.com/author/».
344
KELLER, Timothy J. O que o cristianismo pode oferecer à sociedade no século 21? São Paulo: Edições
Vida Nova, 2018. Consultado em 18 de julho de 2018, em
«https://www.youtube.com/watch?v=xQb3REo7M40&t=811s»
345
BÍBLIA. Português. Bíblia de Est, op. cit., São Mateus V:13.
346
KELLER, Timothy J. O que o cris … cit., 11min. Ss.
81

facto extirpado dele e não se relacionasse connosco, por meio das Sagradas Escrituras, não
seriam apenas devastadoras para os crentes, seriam a destruição de toda e cada sociedade. É
exatamente isso que queremos dizer: o direito para o futuro, apenas subsistirá como direito se
houver o cristianismo para conservá-lo.

Não somos nenhum tipo de idealistas hipócritas que tratam dos problemas do mundo,
mas não falam dos problemas da sua própria casa. De facto, como admitimos outrora, em nome
da fé, ocorreram e ainda ocorrem, diversas barbáries:

As nações cristãs institucionalizaram o imperialismo, a violência e a opressão, por


meio da Inquisição e do comércio de escravos africanos. O império totalitário e
militarista japonês de meados do século 20 brotou de uma cultura profundamente
influenciada pelo budismo e o xintoísmo. O islã é o terreno de boa parte do terrorismo
atual, enquanto as forças israelenses quase sempre se mostram violentas em sua
reação. Os nacionalistas hindus, em nome da religião, executam ataques sangrentos
contra igrejas cristãs e contra mesquitas muçulmanas. Todas essas provas parecem
indicar que a religião agrava as diferenças humanas até que estas explodem em guerra,
violência e opressão das minorias347.

Destarte, como diz certo crítico, «a religião não é diferente do racismo. Uma versão dela
inspira e provoca a outra (…) um tremendo multiplicador de suspeita tribal e ódio, com
membros de um grupo falando com os de outro usando exatamente a entonação do
intolerante348».

Contudo não devemos enganar-nos ao pensar que são problemas particulares da religião.
Na verdade, o século passado «deu origem a um dos maiores e mais dolorosos paradoxos da
história humana: os maiores atos de intolerância e violência daquele século foram praticados
por aqueles que acreditavam que a religião causa intolerância e violência 349». De facto,
ocorreram violências em nome da fé cristã, mas também ocorreram, inspiradas no secularismo
e absolutismo moral350. Isto porque, o problema, como já supramencionado, é uma questão do
coração caído do homem e da sua inclinação pecaminosa, não da religião em si. Deus pode ser
extirpado da esfera pública, mas o senso de religião mesmo secular351 permanecerá. Portanto,
uma vez eliminada a noção de Deus, a sociedade irá buscar transcender de outra forma352, o que

347
KELLER, Timothy J. A fé .... cit., p. 83.
348
HITCHENS, Christopher. Deus não é grande: como a religião envenena tudo. Rio de Janeiro: Ediouro,
2007, pp. 33-4.
349
McGRATH, Alister. The twilight of atheism: the rise and a fall of disbelief in the modern world. London:
Dobleday, 2004. p. 230 (Tradução livre).
350
KELLER, Timothy J. A fé .... cit., p. 84.
351
Cfr., HABERMAS, Jürgen, op. cit., pp. 115ss.
352
Como Alister McGrath diz: «(…) ao rejeitar a idéia de Deus, a sociedade tende a transcendentalizar
alternativas — como os ideais de liberdade ou igualdade. Estes se tornam imediatamente autoridades quase divinas,
que a ninguém é permitido desafiar. Talvez o exemplo mais familiar seja a Revolução Francesa, um tempo em que
as noções tradicionais de Deus foram descartadas como obsoletas e substituídas pelos valores humanos
transcendentalizados. Madame Rolande foi levada à guilhotina, em 1792, para ser executada sob falsas acusações.
82

não resolverá o problema. A religião levou ao fanatismo e consequentes barbáries, mas também
os regimes comunistas da Rússia, China e Camboja no século XX, mesmo negando e rejeitando
a religião, assumindo-se como sociedades laicas, produziram violência sem igual às
populações353.

Assim, a religião não nos parecer ser o que motiva as grandes crueldades do mundo,
antes, «existe um impulso violento tão enraizado no coração humano, que ele expressa
independentemente de crenças manifestas em qualquer sociedade, seja ela socialista,
capitalista, religiosa ou laica, individualista ou hierárquica 354.

Portanto, abandonar a fé cristã por tais críticas, é um retrocesso da própria fé, pois ao
abandoná-la, estaríamos abandonando as ferramentas para correção dos erros do passado e do
presente, uma vez que a própria moral cristã nos ensina a forma correta de agir355. E como
dissemos anteriormente, se erros foram cometidos, não é porque o cristianismo errou, mas o
crente com seu coração inclinado ao pecado errou. Pois se ele «comete injustiças em nome de
Cristo não está sendo fiel ao espírito daquele que morreu como vítima da injustiça e pediu que
seus inimigos fossem perdoados356».

Assim, a substituição de Deus por ídolos, é mais uma prova e não negação do senso de
religião inato em nós, que está em consonância com o que falaremos a seguir, tornando base
sólida para desenvolvermos o caso central desse capítulo: a relação entre Deus e o direito.

Entretanto, antes de avançarmos, devemos fazer uma observação: como o próprio nome
desse capítulo sugere, distanciamo-nos de certo modo da teoria de Finnis, transportando os bens
básicos à teo-referência. O nosso direito natural é assim, confessional, o que de modo algum
desmerece a doutrina e nem a torna menos científica, conforme já visto em capítulos anteriores,
antes é parte fundamental de tudo o que até então desenvolvemos. Assim, passemos a tratá-la.

V.1 Néfesh: o desejo pelo Eterno

Na cultura judaico-cristã, palavras como alma, mente, coração, corpo e espírito, têm um
significado próximo: retratam aspetos da totalidade do homem357. Ocorre que muitas vezes,

Quando se preparava para morrer, ela se curvou zombeteiramente para a estátua da liberdade na Place de Ia
Révolution e proferiu as palavras pelas quais é lembrada: "Liberdade, quantos crimes são cometidos em seu nome".
Todos os ideais — divinos, transcendentes, humanos ou inventados — podem ser mal-usados. Assim é a natureza
humana.», (MCGRATH, Alister. O delírio de Dawkins: uma resposta ao fundamentalismo ateísta de Richard
Dawkins. São Paulo: Mundo Cristão, 2007. p. 81).
353
KELLER, Timothy J. A fé .... cit., p.84
354
Ibid., p. 84.
355
Ibid., p. 90.
356
Ibid., p. 95.
357
Sobre isso, cfr., HOEKEMA, Antony Andrew. Criados à imagem de Deus. São Paulo: Cultura Cristã,
2010. pp. 224-48.
83

leituras equivocadas dos textos das Sagradas Escrituras, influenciadas pelo pensamento grego
e escolástico, levaram teóricos a dividirem a composição do homem em duas ou três partes, o
que denominamos de dicotomia ou tricotomia358. Assim, neste subcapítulo, ocupar-nos-emos
de tratar de que se reveste a centralidade do homem.

Qual é o cerne do homem? O que é o homem? Questões como estas ocupam o mais
profundo refletir da filosofia, teologia e também do direito, deixando inquietos mesmo aqueles
que não se ocupam, formalmente, destas ciências teóricas. Tais questões podem vir à mente do
homem nas mais diversas situações, como na constituição de uma nova família, na busca pela
transcendência, ou mesmo em momentos difíceis, como agrilhoado numa prisão à espera da
morte:

Quem sou eu? Este ou aquele?


Sou hoje este e amanhã um outro?
Sou ambos ao mesmo tempo? Diante das pessoas, um hipócrita?
E diante de mim mesmo um covarde queixoso e desprezível?
Ou aquilo que ainda há em mim será como um exército derrotado,
que foge desordenado à vista da vitória já obtida?359.

Os mais diversos ramos científicos ocuparam-se de tentar definir qual a centralidade do


homem, ainda mais depois da explosão cientista ocorrida no século XIX (I.1). Ao
desenvolverem uma definição da natureza e centralidade do homem, fizeram-no partindo de
um ponto de vista ou um aspeto particular do homem, e.g, a biologia que tratou das funções
orgânicas da vida ou a psicologia que mergulhou profundamente nos insights emocionais. Tais
ciências não erraram ao apresentar o que é o homem, mas apresentaram-no de modo
incompleto, apresentaram aspetos da experiência e existência humana, não a sua centralidade360.

O homem tem três relações centrais, que lhe fornecem sentido e, sem as quais não se
pode falar que ele é algo em si mesmo. São elas: i) a relação do seu eu com a diversidade de
aspetos do mundo no plano temporal; ii) a relação do seu eu com o eu dos seus colegas de

358
Sobre isso, Louis Berkhof: «O conceito do homem tripartido originou-se na filosofia grega, que entendia
a relação mútua entre o corpo e o espírito do homem segundo a analogia da mútua relação entre o universo material
de Deus. Pensava-se que, justamente como estes só podiam ter comunhão um com o outro por meio de uma terceira
substância ou de um ser intermediário, assim aqueles só podiam entrar em relações mútuas vitais por meio de um
terceiro elemento, ou de um elemento intermediário, a saber, a alma». (BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática.
4.ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. p. 180.
359
BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo:
Sinodal, 2003. p. 469.
360
DOOYEWEERD, Herman, op. cit., p. 248-9.
84

humanidade e; iii) a relação do homem com a transcendência, a origem da sua vida 361. As
primeiras são subsidiárias a terceira é central.

A tentativa do homem de se conhecer a partir da diversidade do mundo no plano


temporal causa mais confusão do que conhecimento. Afinal, trata-se de um caso subsidiário, ou
como empréstimo do Doctor Angelicus, um caso periférico.

Como vai o homem conhecer-se nesse viés, em que são tão diversas as experiências do
mundo temporal? Colocará o mesmo enfoque na experiência estética? Ou na experiência
histórico social? Ou em tantas outras?362 Fica assim evidente, porque uma ciência como o
direito, passou a ser lida como expusemos anteriormente, como uma ciência meramente
histórico-social. A preponderância de um aspeto do mundo no plano temporal em detrimento
de outros, acaba por resvalar para os mais diversos absurdos.

Por outro lado, o homem também não consegue conhecer-se apenas por meio do
contacto com o outro. Na relação com outro, alarga-se o conteúdo desse conhecimento, pois
relacionar-se, envolve abnegação, amor, mágoas, troca de dores e alegrias, mas tudo isso, sem
o caso central, ainda não consegue apresentar ao homem sua natureza, como de facto ele o é.
Tal tentativa, é como um cego a guiar outro. Um encontro real, de um com o outro, sem
máscaras, sem fugas, pressupõe que cada um destes polos que se encontram, saiba quem são363,
pois como dar ao outro aquilo que não se possui?

Por fim, a terceira relação é aquela que dá fundamento às anteriores. E não apenas isso,
é o que dá fundamento ao próprio homem. É chamada de relação de carater religioso e está
intrinsecamente ligada ao Ser de Deus364. É de cariz transcendente ao homem, mas que se revela
a ele. Assim, o homem apenas pode conhecer-se a si próprio se antes conhecer o Ser de Deus365.

Esse é o centro da realidade do homem: ele é um ser religioso. E essa centralidade,


explica como dissemos, as outras duas relações:

A religião é central, a ciência, a moralidade e a arte são parciais. Enquanto a religião


abrange a pessoa inteira, a ciência, a moralidade e a arte estão respectivamente
arraigadas no intelecto, na vontade e nas emoções. A religião objetiva nada menos
que a bem-aventurança eterna em comunhão com Deus366.

361
Ibid., p. 251.
362
Ibid., pp. 251-2.
363
Ibid., pp. 252-3.
364
Ibid., p. 254.
365
CAUVIN, Jehan, op. cit., I, I. 1.
366
BAVINCK, Johan Herman. Dogmática reformada: Prolegômena … cit., p. 269.
85

Essa centralidade pode ser resumida na tríade: criação-queda-redenção367, que é a


criação do homem à imagem e semelhança de Deus, o pecado original cometido por este homem
e a revelação de Deus ao mesmo, por meio de Jesus Cristo, seu amado filho, verdadeiro Deus
e verdadeiro homem, porém sem pecado, para salvar o pecador. Por isso «o judeu chegou
dizendo: 'Conhece teu Deus'. O grego chegou dizendo: 'Conhece-te a ti mesmo'. O cristão chega
dizendo: Conhece teu Deus e a ti mesmo em Jesus Cristo»368. Cristo, é a verdadeira revelação
de Deus e do homem.

Há, portanto, uma íntima relação entre Deus - criador e o homem - criatura, e sendo
Deus a origem absoluta de tudo e o homem criado à imagem e semelhança Dele, o homem é a
criatura em quem «a inteira diversidade dos aspectos e faculdades do mundo temporal está
concentrada no centro religioso de sua existência. Esse centro é aquele ao qual denominamos
eu, e o qual as Escrituras sagradas chamam, em um sentido religioso, de coração 369». Esse
coração, representa o homem na sua totalidade370: a alma, os desejos, a mente, néfesh. Mas o
que significa néfesh no contexto judaico-cristão?

Ora, a Sagrada Escritura afirma: «Então, formou o SENHOR Deus ao homem do pó da


terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma [néfesh]
vivente371», daí, se atendermos bem ao texto, podemos lê-lo de duas formas: i) que o homem
tem uma alma ou, ii) que o homem é uma alma. Se entendermos o homem como possuidor de
uma alma, incorremos no equívoco grego tricotomista372. Por outro lado, ao atentarmos ao texto

367
A referida tríade trata de todos os aspetos da vida do homem. A sua criação, mostrando assim, dependência
do seu criador, além de revelar senso de início e objetivo para o homem. A sua queda, mostrando que o homem,
deixou aquele estado de graça primeiro, em que compartilhava apenas daquilo que era bom e com ela, a sua
totalidade foi corrompida, inclusive o intelecto, mas ainda detém o senso de religião na sua centralidade e ainda
é imagem e semelhança de Deus, mesmo disforme. E por fim, a redenção do homem na pessoa de Jesus Cristo,
verdadeiro Deus e verdadeiro homem, porém sem pecado, o que por seu sacrifício naquela cruz de horror, nos
reconciliou com Deus, pagando por nossos pecados (advindos da queda) e nos creditou a sua justiça. Alguns
teólogos, falam de um quarto ponto basilar que é a consumação, pois a redenção de Jesus deu-nos novamente
livre acesso ao Senhor Deus, mas ainda estamos presos numa natureza pecaminosa, ocasião em que os crentes só
serão livres completamente da presença do pecado, na glorificação, portanto, onde será consumada a obra de Deus
para todo homem. Sobre esses pontos, cfr., BERKHOF, Louis, op. cit., pp.169ss; PACKER, J. I., et al. Do céu
Cristo veio buscá-la: a expiação definida na perspectiva histórica, bíblica, teológica e pastoral. São Paulo:
Fiel, 2017.
368
GREEN, James Benjamin apud HORN, Leonard T. Van. Estudos no breve catecismo de Westminster.
São Paulo: Os Puritanos, 2009. p. 26.
369
DOOYEWEERD, Herman, op. cit., p. 259.
370
Note que não fazemos distinção do homem como os gregos, em três partes. Vemos o homem como um
ser total, integral, composto de parte material e imaterial. O homem só é homem quando ambas as partes se
encontram. Sobre isso, cfr., HOEKEMA, Antony Andrew, op. cit., pp. 232-8.
371
BÍBLIA. Português. Bíblia de Est … cit., Génesis II:7.
372
MADUREIRA, Jonas, op. cit., p. 210.
86

no pano de fundo judaico-cristão e ao que representa de fato néfesh, poderemos entender que o
homem é uma alma.

O homem não é uma alma no sentido grego, ou seja, fantasmagórico que precisa de um
corpo, antes, ele é alma, como é corpo, pois alma é um aspeto da sua existência, assim como o
corpo, ele é um ser integral373. Temos assim que néfesh é «vida, alma, criatura, pessoa, apetite,
mente, garganta […] no seu uso mais sintético néfesh, designa a pessoa na sua totalidade374».
Note-se que garganta representa para o judeu, uma parte do corpo profundamente conexa «aos
conceitos de fome e saciedade, por exemplo, quando estamos com fome, em geral colocamos
nossas mãos na barriga. Em contrapartida, o hebreu possivelmente colocaria as mãos na
garganta para dizer que estava com fome»375. Assim, tratamos por néfesh, o mesmo que
coração, anseio, desejo, o cerne das constituições do homem, como já ressaltámos, o seu centro
religioso. Como disse Hoekema376:

O coração é o centro da vida interior de uma pessoa: dos seus sentimentos, do seu
entendimento e da sua vontade. O coração significa todo o ser interior do homem, a
sua parte mais secreta; indica o ego, a pessoa. Acima de tudo, o coração é o centro,
no homem, ao qual Deus se dirige e no qual a vida religiosa está arraigada,
determinando inclusive a sua conduta moral.

Todas estas facetas do homem representam que ele é anseio. Ele é fome, mas fome do
quê?

Se descubro em mim um desejo que nenhuma experiência deste mundo pode


satisfazer, a explicação mais provável é que fui criado para um outro mundo. Se
nenhum dos prazeres terrenos satisfaz esse desejo, isso não prova que o universo é
uma tremenda enganação. Provavelmente, esses prazeres não existem para satisfazer
esse desejo, mas só para despertá-lo e sugerir a verdadeira satisfação 377.

O homem é fome de Deus, é anseio por Deus, «pois nos fizeste para Ti, e nosso coração
está inquieto enquanto não encontrar descanso em Ti378», esse é o grito do nosso cerne, a busca
pelo Eterno, o desejo por completude e sem entendermos esse anseio, não há como entender a
transposição daqueles bens básicos autoevidentes para o ser de Deus.

373
Ibid., p. 210.
374
HARRIS, Robert Laird; ARCHER, Gleason Leonard Jr; WALTKE, Bruce K (orgs.). Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998. p. 986 [1395a].
375
MADUREIRA, Jonas, op. cit., p. 211.
376
HOEKEMA, Anthony Andrew, op. cit., p. 236.
377
LEWIS, Clive Staples. Cristianismo … cit., p. 182.
378
HIPPONENSIS, Aurelius Augustinus. Conf … cit., Libre I.1, 1.
87

V.2 Fundamento judaico-cristão para os direitos humanos.

Pese embora a ideia da dessacralização do mundo e da extirpação de Deus da esfera


pública379, há quem diga que «o Sagrado é inexpugnável 380», talvez não o Deus pessoal da
matriz judaico-cristã, mas o sentido religioso de cada homem – donde os sociólogos começaram
a falar do retorno do Sagrado381. Entretanto, esse retorno não se reveste apenas de uma
religião secular, ou seja, uma religião sem Deus, como é o caso do comunismo para Hannah
Arendt382, mas também do crescimento das grandes religiões do mundo, inclusive na Europa383.
Porém, Peter Berger384 vai adiante, e afirma, que além das religiões estarem a crescer no mundo
todo, o Sagrado na verdade, nunca foi de facto expulso do mundo, ou seja, para o autor, a ideia
de retorno é ilusória.

Independentemente disso, é consabido que a fé sempre influenciou a esfera pública.


Tanto assim é que daí surge a noção de religião civil, bem como seus efeitos no contratualismo
e também na teologia política por meio do romantismo alemão385.

Henri-Benjamin Constant386, ao tratar dos direitos humanos, faz aquela distinção antiga
e conhecidíssima entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos, em que o homem já
não encontrava mais sua valoração na πόλις (polis) – liberdade dos antigos – antes na sua
valoração derivava da vida íntima, privada e pessoal, uma maneira nova de encarar o homem,
a partir de conceções cristãs – liberdade dos modernos.

Uma das marcas da génese do próprio Estado moderno, é «o reconhecimento, com o


cristianismo, da dignidade de cada homem ou mulher como filho ou filha de Deus, do destino
e da responsabilidade individual, da unidade de género humano e da autonomia do espiritual
perante o temporal387».

379
Sobre isso, cfr. WEBER, Max. A ciência como vocação. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar,
1979. pp. 165ss.
380
KUJAWSKI, Gilberto de Mello. O sagrado existe. São Paulo: Ática, 1994. p. 8.
381
FERNANDES, António Teixeira. Formas de vida religiosa nas sociedades contemporâneas. Oeiras:
Celta, 2001.
382
ARENDT, Hannah. A dignidade da política. 4.ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. p. 399.
383
KELLER, Timothy J. A fé … cit., pp. 13-48.
384
BERGER, Peter Ludwig. The desecularization of the world: resurgent religion and world politics. Grand
Rapids: Eerdmans, 1999.
385
MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional
inclusiva. Coimbra: Coimbra, 1996. p. 156.
386
Cfr., CONSTANT, Benjamin. Curso de Política Constitucional. Vol. III. Trad. Marcial Antonio López,
Imprenta de la Companía, Don Juan José Sigilenza y Vera: Madrid, 1820. p. 58 ss.
387
MIRANDA, Jorge Manuel Moura Loureiro de. Direitos fundamentais. Coimbra: Almedina, 2017. p. 23.
88

Além disso, as «ideias de liberdade e solidariedade social, de uma conduta autônoma de


vida e emancipação, de moralidade individual de consciência, direitos humanos e democracia,
são um legado direto da ética judaica da justiça e da ética cristã do amor388».

George Jellinek389, no mesmo caminho, afirma que a ideia de consagrar por meio de um
ordenamento jurídico os direitos naturais, não surge de um sistema político, mas deriva da
própria ideia cristã. Destarte, é com o próprio cristianismo que nasce a ideia moderna de direitos
fundamentais, não na Revolução francesa390, pois é nele que «todos os seres humanos, só por o
serem sem aceção de condições, são considerados pessoas dotadas de um eminente valor.
Criados à imagem e semelhança de Deus391». E por serem criados à imagem e semelhança de
Deus, têm dignidade intrínseca.

Toda a história mostra como o princípio da dignidade da pessoa humana é o valor base
para o desenvolvimento de outros direitos fundamentais392. Sendo impossível dar um preço ao
homem, este destaca-se do resto da criação, facto que – por não ter preço – confirma a sua
dignidade393.

Ainda sobre o referido princípio, Jorge Miranda394comenta que:

Em primeiro lugar, a dignidade da pessoa é da pessoa concreta, na sua vida real e


quotidiana; não é de um ser ideal e abstracto. É o homem ou a mulher, tal como existe,
que a ordem jurídica considera irredutível e insubstituível e cujos direitos
fundamentais a Constituição enuncia e protege. Em todo o homem e em toda a mulher
estão presentes todas as faculdades da humanidade.

Não é possível no seio de uma comunidade, termos relações saudáveis e justas com os
nossos semelhantes se não vermos neles – e agirmos conforme – a dignidade da pessoa humana.
Do rico ao pobre, do senhor ao jovem, homem ou mulher, cristão ou islâmico, médico ou
camionista, todos somos absolutamente iguais no que se refere ao termo dignidade. Claro que
a dignidade e igualdade de que aqui tratamos é a nossa humanidade, fatores económicos,
políticos, sociais devem ser estabelecidos a partir desta primeira premissa e não ao contrário. O
cristianismo é um contributo importantíssimo para esse fundamento. Enquanto muitos se

388
HABERMAS, JÜRGEN. Time of transitions. New Jersey: John Wiley & Sons, 2014. pp. 150-1.
389
JELLINEK, Georg. A declaração dos direitos do homem e do cidadão: contribuição para a história do
direito constitucional moderno. São Paulo: Atlas, 2015. pp. 75ss.
390
Ibid., p. 88.
391
MIRANDA, Jorge Manuel Moura Loureiro de, op. cit., p. 24.
392
Ibid., p. 76.
393
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. 2.ed. Lisboa: Edições 70, 2008. p. 71.
394
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV. 3.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000.
p.184.
89

limitam apenas em expressar o princípio da dignidade, sem tratar da sua raiz, nós, conforme
ressaltado anteriormente, encontramos a raiz da dignidade na matriz judaico-cristã.

Tal princípio é levado tão a sério por tais religiões, que logo no primeiro capítulo do
primeiro livro da Bíblia, podemos encontrar: «Então Deus disse: “Façamos o ser humano à
nossa imagem; ele será semelhante a nós395”». Jónatas Machado396 sobre esse trecho da Bíblia,
pontua:

Na generalidade das constituições ocidentais está implícita uma responsabilidade


social que responde à velha pergunta: “Sou eu o guardador do meu irmão”? com que
Caim respondeu a Deus quando perguntado pelo seu irmão Abel que acabara de
assassinar (Gênesis 4:9). Implícita essa pergunta de Caim está a sugestão de que o ser
humano não tem para com seu semelhante qualquer dever de cuidado. Diante dela, a
resposta silenciosa de Deus a Caim é de uma profunda censura moral, deixando
subtendida a existência de uma íntima relação entre o Criador, o ser humano e toda a
natureza criada. Ela subtende já a existência de um dever de cuidado para com o
próximo. Ela deixa que Caim fique para sempre com o estigma de ter feito uma das
perguntas mais miseráveis e desumanas da história.

Sendo a dignidade, a base estrutural de todos os direitos fundamentais e, sendo que das
religiões judaica e cristã, deriva a raiz do princípio da dignidade, podemos afirmar que a base
para os direitos humanos, encontra fundamento na matriz judaico-cristã, razão pela qual,
podemos ver o direito por meio dessa cosmovisão, como será exposto a seguir.

V.3. O jusnaturalismo e a cosmovisão cristã: uma influência neocalvinista

Levando em consideração que o cientificismo não é a única resposta para tratar as


diversas vicissitudes da vida (cfr. I) e levando em consideração o conceito de cosmovisão,
propomo-nos fazer uma leitura das ciências jurídicas pelas lentes do cristianismo, com uma
influência neocalvinista397.

O cristianismo não se limita ao calvinismo, não obstante cremos que esse sistema de
interpretação é o que mais se aproxima da revelação bíblica, sendo que o neocalvinismo

395
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada N… op. cit., Génesis, I: 26.
396
MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Est… op. cit. p. 50.
397
O calvinismo, em que pese ser inspirado no nome de Jehan Cauvin, é um meio de interpretação teológico
das Sagradas Escrituras, desenvolvido desde os pais da igreja, sendo Cauvin um grande sistematizador e
compilador de tais interpretações e claro, também feitor dessa teologia, entretanto, não desenvolveu uma nova
interpretação. Sobre isso, cfr. LAWSON, Steven J. Pilares da graça: 100 a.d-1564 – longa linha de vultos
piedosos. São Paulo: Fiel, 2012. O calvinismo, é uma «doutrina que crê que Deus é o Senhor da vida e Soberano
do universo, cuja vontade é a chave da história», (BEEKE, Joel. Vivendo para a Glória de Deus. São Paulo: Fiel,
2012. p.56). Como disse, Robert Jacobus Fruin, historiador holandês, o calvinismo é um «sistema lógico de
divindade, em uma ordem eclesiástica democrática própria, impelida por um sentido rigorosamente moral, e
entusiasmado tanto pela reforma moral como pela reforma religiosa da humanidade», (FRUIN, Robert Jacobus,
apud KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. p. 18).
90

desenvolve um conceito absolutamente essencial para a nossa pesquisa, razão pela qual,
direcionamos os esforços para essa chave de interpretação.

Abraham Kuyper, primeiro ministro holandês (1901-5), preocupou-se em dar respostas


cristãs ao contexto e época em que vivia, época com «pressões ideológicas da revolução
francesa e do imperialismo bonapartista398». Sempre se afirmou fiel ao sistema teológico
calvinista, sem, no entanto, deixar de fazer uma leitura renovada do mesmo, com aplicações
criativas no meio social399. Daí se desenvolveu o conceito de neocalvinismo holandês:
fundamenta-se justamente no reinado de Cristo em todas as áreas da vida humana e em todas
as esferas da sociedade. Ao proferir uma das suas palestras mais importantes, na inauguração
da Universidade Livre de Amsterdão, Kuyper ressaltou: «Oh, nem um único espaço de nosso
mundo mental pode ser hermeticamente selado em relação ao restante e não há um único
centímetro quadrado em todos os domínios da existência humana sobre o qual Cristo, que é o
Soberano sobre tudo, não clame: é meu!400».

Essa unicidade é importante porque se posiciona em sentido contrário à dicotomia grega


da natureza x graça. Ora, essa dicotomia levou à divisão na teologia escolástica da vida
humana em duas esferas, a natural e a sobrenatural, às coisas do mundo e às coisas de Deus. O
centro do homem, que para essa visão, é a sua natureza, poderia captar algumas verdades
naturais, ainda que sem receber revelação divina, apenas por meio da razão401 e como o intelecto
nesse viés não foi afetado completamente pela queda no pecado original, ele não é corrupto,
podendo assim alcançar virtudes naturais por meio do domínio dos desejos402.

Para o Doctor Angelicus, «a vontade humana estava caída, mas não o intelecto. Dessa
noção incompleta do conceito bíblico da queda, defluíram todas as dificuldades subsequentes.
O intelecto humano se tornou autônomo. Em um aspecto era o homem agora independente,
autônomo403» de Deus. Nesse sentido, discordamos do Doctor Angelicus. Ele, ao desenvolver
toda a teoria do direito natural que estamos a tratar, foi influenciado por essa dicotomia grega,
o que acaba por gerar conflitos à própria teoria.

398
CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro de. Introdução Editorial: Herman Dooyeweerd, reformador da
razão. In: DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa
autonomia do pensamento filosófico. São Paulo: Hagnos, 2010. p. 8
399
Ibid., p. 8.
400
KUYPER, Abraham. apud CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro de. Intro... op. cit. 18.
401
DOOYEWEERD, Herman, op. cit., p. 262.
402
D'AQUINO, Tommaso, op. cit., I-II q. 85.
403
SCHAEFFER, Francis August. A mort …. cit., p. 15.
91

Finnis, consegue ir adiante do Doctor Angelicus e aplicar os conceitos de bem comum


e florescimento humano e transportá-los para o campo da teoria do direito, mas ainda assim,
parece ficar cativo à razão do homem como resposta para o jusnaturalismo.

Entretanto, se pudermos contribuir com algum argumento, podemos dizer que todo o
escopo do direito natural que até então foi tratado precisa de ser transportado à teorreferência
(VI.1) e ao centro religioso do homem (VI.2.), para que então seja de facto efetivo. A teoria
dos bens básicos autoevidentes, o florescimento humano e principalmente o bem comum, estão
associados ao desejo do homem por Deus.

Como ressaltámos, o homem é nefesh e caso não encontre satisfação naquele que é o
único que pode preenchê-lo, irá procurá-la nos falsos deuses, nos seus ídolos, ocasião em que,
para satisfazer o seu coração moribundo estará suscetível aos vícios, onde concordamos com
Augustinus404, que o pecado original foi radical, ou seja, afetou o homem por completo,
inclusive o seu intelecto405.

Não há como buscar o bem comum, quando o centro religioso está comprometido. Por
isso Caim, como dito alhures, fez a pergunta mais miserável da história humana. O seu centro
religioso estava comprometido, razão pela qual, não viu óbice em matar seu irmão. Claro que
este é um exemplo esdrúxulo, não significa que todos os homens que estão longe de Deus irão
matar o seu semelhante. No entanto, de onde vêm os «maus pensamentos, homicídio, adultério,
imoralidade sexual, roubo, mentiras e calúnias406»? – Do coração humano, responde o texto.
Um coração longe da centralidade de Deus.

A reforma protestante, maximizada pelo neocalvinismo, resgata esta ideia da


centralidade de Deus em todas as coisas e da tríade criação-queda-redenção407, donde «por meio
de Jesus Cristo, Palavra encarnada e Redentor, a imagem de Deus tem sido restaurada no centro
religioso da natureza humana408», e somente a partir daí o homem pode entender-se a si e ao
outro, ter relacionamentos saudáveis e perseguir o bem comum. Trata-se de uma inversão, o
homem não pode partir de si à transcendência, antes, partindo do centro religioso, conhecendo
a Deus, pode então retornar às relações sociais e perseguir o bem comum, florescendo.

404
HIPPONENSIS, Aurelius Augustinus. Conf … cit., Libre VII.
405
Cfr. MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Est … cit., p. 41ss; STOTT, John Robert Walmsley, op. cit.,
pp. 31ss.
406
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada N … op. cit., São Mateus, XV:19.
407
DOOYEWEERD, Herman, op. cit., pp. 204-64.
408
Ibid., p. 261.
92

VI – QUANDO AS COISAS NÃO CORREM BEM

Este capítulo final reveste-se de algumas respostas a eventuais dúvidas que possam ter
surgido no decorrer do escrito, bem como de esperança para aqueles que, ao olhar para a
realidade do mundo, do seu próprio coração, possam ser tentados pelo desânimo e, em
consequência, não lutar por uma sociedade mais justa, ou conformar-se com uma vida de
«castelos de barros no cortiço, por nunca ter passado um final de semana na praia 409».
Prossigamos assim.

VI.1 Deus e o problema da existência do mal

O mal ocorre no mundo e isso é inegável. O holocausto é a manifestação devastadora


da existência da maldade no coração do homem. Violações, assassinatos, abuso infantil, traição,
todas essas feridas estão abertas, expostas diante dos nossos olhos, na nossa sociedade. Se não
sofremos diretamente uma destas coisas, conhecemos alguém que as padeceu. Não há como
escapar. Há um lado negro na experiência humana. Mulheres são usadas como objetos em
revistas e filmes pornográficos, muitas crianças estão a passar fome e pedir esmolas pelas ruas,
governantes estão a oprimir os governados e usurpar o pouco de bens que lhes restam e assim
sucessivamente. Diante destas situações que causam um nó na garganta e deixam os nossos
olhos marejados, não é loucura perguntar, onde está Deus? será que ele não é omnipotente? e
se for, então não será bondoso? Ora, o filósofo continua:

Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem
pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus.
Se pode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus. Se nem
quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus. Se pode e quer,
o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos
males? Por que razão é que não os impede? 410.
A afirmação de que Deus pode e quer evitar o mal, é a mais próxima da teologia cristã,
no sentido de reconhecer que Ele é todo bondoso e todo poderoso, porém, isso ainda implica
aparentes problemas para o cristianismo visto que o mal é real411. Mas esses problemas jamais
poderão ser compreendidos de forma efetiva, se permanecerem num nível de linguagem eivada
pelo erro. Eis que aceitar alguma sentença próxima a «se existisse um Deus bondoso e todo
poderoso, ele não permitiria a existência do mal sem sentido» é o mesmo que assumir
pressuposições ilusórias, e.g., «um estudioso que dissesse a um colega: "Responda sim ou não:

409
LEWIS, Clive Staples. O peso da Glória. São Paulo: Vida, 2008. p. 10.
410
Epicuro. Pensamentos. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 115.
411
MADUREIRA, Jonas, op. cit., p. 120.
93

você já parou de falsificar dados para as suas pesquisas?" obteria sempre uma resposta
recriminadora, porque, uma vez aceites os termos da pergunta, seria impossível evitar o
engano412». Assim, muitos filósofos reconhecem o problema do mal, enquanto fundamento para
negar a existência ou bondade de Deus, como um raciocínio falacioso, visto que o facto de não
vermos ou compreendermos um motivo para a existência do mal não significa que tal motivo
não exista413.

Antony Flew – o maior prosélito do ateísmo do século passado –no final da sua vida,
rendeu-se à crença em Deus, reconhecendo que o argumento da existência do mal foi o que o
motivou a deixar de crer em Deus na sua juventude e se tornar o reconhecido ateu que foi, mas
também confessa que se entregou irrefletidamente a essa crença do mal, assim como no decorrer
da sua jornada, ela lhe pareceu errada e, que, mesmo após setenta anos, nunca havia encontrado
algo para a fundamentar414.

C. S. Lewis, que também seguiu essa linha de raciocínio, apresenta o cerne da discussão,
quando observa: «o meu argumento contra Deus era o de que o universo parecia injusto e cruel.
No entanto, de onde eu tirara essa idéia de justo e injusto? […] Com o que eu comparava o
universo quando o chamava de injusto?415». Ao criarmos este raciocínio, não percebemos que
a raiz dele é enganadora no sentido de que é a tentativa de adequar a moral, intramundana,
temporal, Àquele que é transcendente e eterno416, àquele do qual deriva todo código e lei moral
para agirmos. Assim, o tipo de raciocínio enfrentado por Lewis, conduz a algo próximo a
afirmação: «eis aqui, oh Deus a nossa justiça pessoal, aceite-a e aplique-a». O que seria um
verdadeiro disparate.

Além disso, o argumento da existência do mal coaduna-se com a existência de Deus e


da Sua bondade, visto que «o fato de que o ser humano é capaz de dizer “isso é mal” em si
aponta para um senso moral transcendente que a humanidade compartilha417», senso que deriva
do caráter, justiça e retidão de Deus.

412
GOMES, Davi Charles. Fides et Scientia: Indo Além da Discussão de “Fatos”. Fides Reformata, São
Paulo, v.2, n.2, pp. 129-146. (impresso).
413
KELLER, Timothy J. A fé … cit., pp. 50-1.
414
FLEW, Antony Garrard Newton. Deus existe: as provas incontestáveis de um filósofo que não acreditava
em nada. São Paulo: Ediouro, 2008. (Capítulo: a face do mal).
415
LEWIS, Clive Staples. Crist … cit., p. 51.
416
GOMES, Davi Charles. O problema do mal: Augustus Nicodemus conversa com Davi Charles Gomes.
São Paulo: TV Mackenzie – Academia em debate 33. Consultado em 07 de agosto de 2018, em
«https://www.youtube.com/watch?time_continue=1532&v=Z_Jkxrge1og».
417
Ibid.,
94

Apesar de todas estas refutações lógicas, ainda é de nosso interesse saber qual a reposta,
não estritamente apologética, que a teologia cristã dá à existência do mal. Portanto, passemos a
explicitar: enquanto alguns defendem que por Deus ser Soberano sobre todas as coisas, acaba
por ser, em última análise, o autor do mal418, outros afirmam que Ele é bondoso e criador de
todas as coisas, mas deixou o homem livre para fazer escolhas e determinar o seu próprio
caminho, donde o mal é consequência dos atos humanos419.

Para nós, entretanto, tal inquietação reveste-se de dois argumentos: i) a resposta


encontrada por Augustinus420:

De onde, pois, procede o mal se Deus, que é bom, fez boas todas as coisas? […] Ser
privado de todo o bem é o nada absoluto. De onde se segue que, enquanto as coisas
existem, elas são boas. Portanto, tudo o que existe é bom; e o mal, cuja origem eu
procurava, não é uma substância, porque se o fosse seria um bem. De facto, ou ele
seria substância incorruptível, e, portanto, um grande bem; ou seria uma substância
corruptível, que se não se poderia corromper se não fosse boa. [destaque nosso].
O mal não é uma coisa. Ele existe, mas apenas na medida de onde o bem está ausente,
resumidamente, o mal é ausência de bem. Isto não responde ainda ao porquê da existência do
mal na perspetiva cristã, mas pelo menos afasta a tendência maniqueísta de ver o mal como
uma força oposta ao bem, que cria uma espécie de «deus» do mal, o yin do yang, e rechaça
também as ideias do Deus autor do mal do híper-calvinismo bem como do Deus fraco que deixa
suas criaturas viverem à mercê da fantasiosa ideia do livre-arbítrio.

ii) O segundo argumento, faz-nos entender que este assunto é incompreensível em toda
a sua extensão à mente humana, pois a génese do «pecado é um mistério. Ele não veio de Deus
e, ao mesmo tempo, não está excluído de seu conselho. Deus decidiu conduzir a humanidade
pelo perigoso caminho da liberdade pactual, em vez de elevá-la, por um só ato de poder, acima
da possibilidade de pecado e morte421». Ou seja, assim como a Trindade, as duas naturezas de
Cristo – ele ser totalmente Deus e ao mesmo tempo totalmente homem – ou a responsabilidade
humana e a Soberania de Deus limitando-se mutuamente, a existência do mal junto com a
existência de um Deus todo poderoso, bondoso e amoroso, é incompreensível à mente humana,
por sermos limitados.

418
Teólogos mais próximos àquela corrente teológica híper-calvinista, que assumem uma espécie de
determinismo. Cfr. CLARK, Gordon Haddon. Deus e o mal: problema resolvido. Brasília: Monergismo, 2010.
419
Cfr. GEISLER, Norman Leo. Teologia sistemática. v.2, Rio de Janeiro: CPAD, 2010. pp. 70ss.
420
HIPPONENSIS, Aurelius Augustinus. Conf … cit., Libre VII. 5, 12.
421
BAVINCK, Johan Herman. Dogmática reformada: o pecado e a salvação em Cristo. v.3, São Paulo:
Cultura Cristã, 2012. p. 25.
95

Por isso, a reposta mais sincera que podemos dar, é que não sabemos em todas as suas
razões por que o mal, acontece no mundo e parece que Deus decidiu não nos revelar isso422 – a
despeito de opiniões contrárias423 – para aprendermos mais sobre submissão e confiança ao Seu
amor e governo424.

Não podemos esquecer que de facto o Deus da bíblia é bom e cheio de amor, «ele, diz
a Escritura, é justo, santo, afastado da impiedade (Dt 32.4; Jó 34.10; SI 92.15; Is 6.3; Hc 1.13),
uma luz na qual não há trevas (lJo 1.5); ele a ninguém tenta (Tg 1.13), é uma fonte transbordante
de tudo o que é bom, imaculado e puro (SI 36.9; Tg 1.17)425».

Entretanto, estas discussões filosóficas da existência do mal, não apetecem à maior parte
das pessoas. O que as preocupa é a vida como ela é426, não numa discussão académica, mas na
realidade dura que muitas vezes estão a viver, o sofrimento amargo. Não se atêm na resposta à
pergunta, «será que Deus existe?», mas sim à interrogação, «onde estavas Tu, Senhor, quando
eu sofri tamanho mal?», razão pela qual nos ocuparemos disso nas próximas linhas.

VI.2 O Sofrimento na perspetiva Cristã

O sofrimento é um aguilhão que nos fere. Muitos de nós, como dissemos, não nos
importamos tanto com as discussões filosóficas do mal, tanto quanto com a experiência do mal,
da dor e do sofrimento nas nossas vidas e na relação com o ser de Deus. São dúvidas reais,
sinceras, de pessoas que sofrem, mas que de algum modo querem, ainda assim, ter uma relação
com Deus. Esse clamor é ilustrado por um trecho de uma bela música que diz, «tantas dores
sinto em meu viver, mas não quero duvidar de Ti427», pois parece que é irracional que o Deus
bondoso e cheio de amor nos deixe padecer.

C. S. Lewis428, após perder aquela que foi o grande amor da sua vida, no seu momento
de luto, afirma:

Mas, volte-se para Deus, quando estiver em grande necessidade, quando toda outra
forma de amparo for inútil, e o que você encontrará? Uma porta fechada na sua cara,

422
Na perspetiva Cristã ortodoxa, algumas perguntas, não nos foi dada as respostas e qualquer tentativa de
respondê-las é falar além do que as Sagradas Escrituras afirmam: «As coisas encobertas pertencem ao Senhor,
nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas
as palavras desta lei.», BÍBLIA. Português. Bíblia de Est … op. cit., Deuteronómio, XXIX:29.
423
Cfr. CLARK, Gordon Haddon, op. cit., pp 9ss.
424
MADUREIRA, Jonas, op. cit., pp. 126.
425
BAVINCK, Johan Herman. Dogmática reformada: o pecado … cit., p. 29.
426
KELLER, Timothy J. A fé … cit., pp. 49ss.
427
EDUARDO MANO. Permanecer. Rio de Janeiro: Velhas Verdades Discos, 2012.
428
LEWIS, Clive Staples. A anatomia de uma dor: um luto em observação. São Paulo: Vida, 2007. pp. 31,
52.
96

ao som do ferrolho sendo passado duas vezes do lado de dentro. Depois disso, silêncio.
Bem que você poderia dar as costas e ir embora. Quanto mais espera, mais enfático o
silêncio se torna. […] É racional acreditar num Deus ruim? Ao menos, num Deus tão
mau quanto tudo aquilo? Um Sádico Cósmico, o idiota mal-intencionado?

Diante do nosso sofrimento, parece que Deus não se importa. Parece que nos momentos
duros da vida, estamos a percorrer sozinhos e que por mais que nos desatemos a chorar e que a
chaga do nosso coração seja imensa, encontraremos apenas uma porta fechada. Mas será
mesmo?

Gosto muito das obras de Rembrandt Harmenszoon van Rijn, um pintor holandês do
século XVII, uma delas, que me chama muito a atenção, foi pintada em 1633, chamada de
Christus in de storm op het meer van Galilea, ou também conhecida como De storm op het
meer van Galilea – Tempestade no mar da Galiléia. Infelizmente em 1990, dois homens
disfarçados de polícias, conseguiram entrar no Isabella Stewart Gardner Museum e efetuar um
dos maiores furtos de arte ocorrido no mundo. Entre as obras furtadas, estava esse famoso e
tocante quadro de Rembrandt429. As obras, até hoje, não foram recuperadas. Entretanto, algo
tão profundo quanto a própria beleza da obra de arte de Rembrandt é o seu significado, e ele
não se perdeu: o artista ao retratar essa passagem bíblica430, acaba por pintar catorze homens
no barco e não treze – Jesus e os doze discípulos – como era devido. Várias especulações foram
feitas sobre quem seria o décimo quarto indivíduo, as mais relevantes e tidas por verdadeiras
defendem que era o próprio Rembrandt ou, cada um de nós, como discípulos de Jesus. O que
parece que o pintor desejava retratar, é que nas intempéries das nossas vidas, nunca estamos
sós, o mestre está no barco e no fim não nos deixará sucumbir. Entretanto, Lewis enquanto
estava vivo, não voltou a encontrar-se com a sua esposa e os judeus mortos pelo regime nazi
não foram livres do sofrimento, isso não é sucumbir? acaso isso não é ser abandonado? por
isso, «onde estava Deus?» parece uma pergunta muito lógica de se fazer.

Elie Wiesel, um judeu sobrevivente dos campos de concentração nazis, relata um


episódio, profundamente comovente, que torna difícil conter as lágrimas, inclusive deste que
vos escreve. Havia uma criança, que trabalhava para um homem holandês que mantinha um
depósito secreto de armas, esse depósito foi descoberto e por causa disso, tanto o homem quanto

429
Cfr., CANELAS, Lucinda. Um roubo de 500 milhões, 13 obras de arte em parte incerta e um mafioso a
quem chamam cozinheiro. Público, 2016. Consultado em 13 de agosto de 2018, em
«https://www.publico.pt/2016/05/07/culturaipsilon/noticia/um-roubo-que-vale-500-milhoes-13-obras-de-arte-
em-parte-incerta-e-um-mafioso-a-quem-chamam-cozinheiro-1731178»; FORBES BRASIL. 10 maiores roubos de
obras de arte. Listas Forbes, 2017. Consultado em 13 de agosto de 2018, em
«https://forbes.uol.com.br/listas/2017/04/10-maiores-roubos-de-obras-de-arte/».
430
Cfr., BÍBLIA. Português. Bíblia de Est… op. cit., São Marcos, IV:35-41.
97

o menino foram torturados para revelar mais informações, entretanto, nenhum dos dois as deu,
razão pela qual, foram sentenciados à morte. Então, no dia de executarem as penas:

Os SS pareciam estar mais preocupados, mais inquietos do que era costume. Enforcar
uma criança diante de milhares de espetadores não era coisa de pouca monta. O chefe
do campo de concentração leu o veredicto. Todos os olhos se tinham fixado na criança.
Estava lívido, quase calmo, mordendo os lábios. A sombra da forca cobria-o por
completo.
O Lagerkapo, desta vez, recusou ser o carrasco. Três SS substituíram-no.
Os três condenados subiram ao mesmo tempo paras as cadeiras. Os três pescoços
foram introduzidos ao mesmo tempo nos nós corredios.
– Viva a liberdade! – gritaram os dois adultos.
O pequeno, esse, mantinha-se calado.
– Onde está o bom Deus, onde está ele? – perguntou alguém atrás de mim.
Ao sinal, as três cadeiras oscilaram.
Silêncio absoluto no campo. No horizonte, o sol punha-se.
– Destapem a cabeça! – berrou o chefe do campo. A sua voz tremia. Quanto a nós,
chorávamos.
– Cubram a cabeça!
Depois começou o desfile. Os dois adultos já estavam mortos. As suas línguas
pendiam, inchadas, azuladas. Mas a terceira corda ainda se movia: tão leve, a criança
ainda estava viva...
Assim ficou durante mais de meia hora, a lutar entre a vida e a morte, agonizando aos
nossos olhos. E nós tínhamos de o encarar bem de frente. Ainda estava vivo quando
eu passei diante dele. A sua língua ainda estava vermelha, os seus olhos tinham ainda
uma centelha vida.
Atrás de mim, ouvi o mesmo homem perguntar:
– Onde está Deus, então?
E eu senti dentro de mim uma voz que lhe respondia:
– Onde é que Ele está? Ei-lo… está aqui pendurado nesta forca...
Naquela noite, a sopa sabia a cadáver431.

Todo cuidado ainda é pouco para dizermos quaisquer palavras em relação a essa chaga
tão grande no seio da humanidade que é o holocausto. Entretanto, o que nos chama a atenção é
que a pergunta, «onde Deus está?», foi respondida por meio do que Wiesel entendeu. Ele
percebeu que Deus estava lá. Estava a receber a afronta da morte daquele pobre menino. Ele
estava com o menino!

Destarte, onde Deus está nos momentos difíceis da vida? Quando o céu se fecha, em
que a tempestade chega e que a tristeza nos assola? Ele está no mesmo lugar quando viu seu
único filho ser vítima do pior e maior vitupério de toda humanidade: a cruz. Cravaram uma

431
WIESEL, Elie. Noite. 7.ed. Lisboa: Texto Editores, 2016. p. 78-9.
98

coroa de espinhos na cabeça de Jesus, cuspiram na sua face e bateram no seu corpo432, fizeram-
no carregar a sua própria e pesada cruz433, tiraram à sorte para ver quem ficaria com as suas
vestes, deixando-o nu434, quando exclamou que tinha sede, deram-lhe vinagre para beber435 e
mesmo após ter morrido, furaram-no lateralmente com uma lança436. Naquele dia de horror,
também houve escuridão437, a terra estremeceu438 e no meio de tanta miséria, após a morte do
Senhor, viram realmente que ele era o filho de Deus439.

Jesus não encarou a morte com frieza ou destemor, não se portou como um super-herói,
ele sofreu profundamente, teve medo e muita agonia440, ele como homem e como Deus, sabe o
que é sofrer441 e é um exemplo para nós.

Antes de estar na cruz, Jesus diz a seus discípulos que ele não ficaria só, visto que o Pai
estava com ele442, mas na cruz, ele prova a amargura da separação, e declara: «‫עזבתני למה אלי אלי‬
‫[ מיׁשועתי רחוק‬Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?]443». Mas como pode, Deus ser
abandonado por Deus?, «a resposta seria, que Deus o Pai abandonou a natureza humana de seu
Filho […] Para o sofredor de alma hipersensível, esse terrível isolamento deve ter sido deveras
agonizante444».

Assim, enquanto nós sofremos o abandono aparente, Jesus sofreu o abandono real.
Enquanto nós, no meio do sofrimento, temos Deus em silêncio, a sustentar-nos por meio de
Jesus, o próprio Senhor Jesus, teve o Pai a dar-lhe as costas, por isso, esse sofrimento tão brusco.
O relacionamento de amor desde a eternidade foi interrompido para que pudéssemos ter vida,
esse é o cerne do sofrimento à luz do cristianismo.

Por isso, para o Cristão, o sofrimento não pode ser entendido sem primeiro olharmos
para nosso maior exemplo, Jesus. Ademais, o facto de não sabermos a razão para a existência

432
BÍBLIA. Português. Bíblia de Est… op. cit., São Marcos, XV: 16-20.
433
Ibid., São João, XIX: 17.
434
Ibid., São Mateus, XXVII: 35.
435
Ibid., São João, XIX: 28-9.
436
Ibid., São João, XIX:34.
437
Ibid., São Lucas, XXIII: 44.
438
Ibid., São Mateus, XXVII: 51.
439
Ibid., São Mateus, XXVII: 54.
440
KELLER, Timothy J. A fé… cit., pp. 54-5.
441
BÍBLIA. Português. Bíblia de Est… cit., Hebreus, IV: 15, V: 8.
442
Ibid., São João, XVI: 32.
443
Ibid., Salmos, XXII:1; São Mateus, XXVII: 46.
444
HENDRIKSEN, William. Comentário do novo testamento: Mateus. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã,
2010. v.2, pp. 663, 664.
99

do sofrimento, não significa que não exista, significa apenas que não compreendemos a mente
Divina.

Por fim, Lewis, responde às suas próprias perguntas, supramencionadas:

Não é possível ver nada de maneira adequada enquanto os olhos estiverem embaçados
de lágrimas. Você não pode, na maioria das situações, conseguir o que deseja se o
fizer desesperadamente: […] As melhores bebidas passam despercebidas diante de
uma sede voraz. De modo semelhante, seria a própria intensidade do anseio que cerra
a cortina de ferro a ponto de nos fazer sentir que estamos olhando fixamente no vácuo
quando pensamos sobre nossos mortos? [...] Aos poucos passei a sentir que a porta
não está mais fechada e aferrolhada. Será que foi minha necessidade frenética que a
fechou na minha cara? Quando nada há em sua alma exceto um grito de socorro talvez
seja o exato momento em que Deus não o pode atender: você é como o homem que
se afoga e que não pode ser ajudado por tanto se debater. É possível que seus gritos
repetidos o deixem surdo à voz que você esperava ouvir.

Desta forma, não podemos dizer concretamente que sofremos pelo motivo «x» ou «z»,
mas certamente, temos uma viva esperança para enfrentá-lo.

Finalmente, um último comentário sobre os sofrimentos de Cristo, é que o perdão que


ele outorgou foi real. Quando ele, Senhor do universo, perdoou aqueles que o ultrajaram, ele
viveu o seu próprio sermão e ninguém pode afirmar que o seu ensino não era prático445, pelo
que nos ocuparemos desse assunto nas últimas linhas desse artigo.

VI.3. Florescimento humano para criminosos?

Sabemos que neste mundo de maldade coisas ruins acontecem. A pergunta é: há


esperança para aqueles que praticam atos maus? Para respondermos a isso temos que nos
lembrar que no momento de maior horror, enquanto era tido como maldito446 e tratado como
ignomínia447, ainda assim, Jesus foi cheio de amor, compaixão e misericórdia, ao interceder ao
Pai para que perdoasse o povo por tamanho pecado cometido contra ele 448, preocupou-se com
a sua mãe449e acima de tudo, mostrou essa compaixão a um criminoso, ao perdoar os seus
pecados e afirmar que logo em seguida iria recebê-lo no paraíso450.

A ética cristã fundamenta-se exatamente nisso: todos somos pecadores e precisamos de


perdão e reconciliação com Deus, somente por meio desse relacionamento restabelecido
podemos de facto florescer. Diante disto, se o jusnaturalismo se preocupa com o bem comum

445
ZAHND, Brian. Perdão radical. Seixal: Letras d’Ouro, 2013. pp. 44, 41.
446
BÍBLIA. Português. Bíblia de Est… cit., Deuteronómio, XXI: 23; Gálatas, III:13.
447
Ibid., São Marcos, XV: 29-32.
448
Ibid., São Lucas, XXIII: 34.
449
Ibid., São João, XIX: 26-7.
450
Ibid., São Lucas, XXIII: 41-3.
100

e com o florescimento humano, porque não deveríamos pensar que cada homem – que é a
imagem e semelhança de Deus, ainda que deturpada – deve ser aquilo que potencialmente pode
ser? ou seja, inclinar-se para o bem comum, encontrando o fim último?

O ladrão na cruz é o maior exemplo disso. Podemos pensar que ele não floresceu nesta
vida. Entretanto, se o fim último do homem, é encontrar a Deus como o Doctor Angelicus
afirmava, como bem afirmam também os catecismos reformados, então, o ladrão da cruz
floresceu. Além do que, a sua salvação, no ato final de sua vida, mostra que não importa a
profundidade da maldade do homem, haverá esperança. Por isso, o ladrão na cruz floresceu
como uma demonstração da esperança viva do cristianismo para cada um de nós.

Entretanto, o perdão não significa que os nossos atos e escolhas não terão
consequências. O ladrão na cruz, ainda assim, foi crucificado. Deus não o livrou da pena capital,
independentemente de ela ser justa ou não451, o direito penal esteve bem presente.

A coerção da lei como ressaltámos é importante e o seu incumprimento, gera sanções


ou punições. Os atuais sistemas de direito penal têm um duplo objetivo, primeiro impedir que
«que certas formas de conduta, inclusive certas omissões, ocorram com menor frequência do
que normalmente ocorreria452», visto que o bem comum de todos os membros do seio de uma
comunidade é o objetivo a ser perseguido por essa comunidade – tanto de forma geral como
por cada um dos seus membros – é necessário que eles aprendam o caminho para a busca desse
bem, ocasião em que o drama de detenções, julgamentos e punições, para aqueles que se
esquivam da lei, pode ser didático, não apenas para o infrator que está a receber a punição, mas
também para aquele que a vê ser executada – para repensar se vale a pena seguir o caminho da
violação da lei453. Ou seja, a lei penal serve como baliza para conter o mal, mediante o assombro
da punição, bem como incentivo para a prática de atos corretos, assim uma vertente negativa e
outra positiva.

O segundo objetivo dos sistemas penais é aplicar uma justa retribuição, equilibrando
benefícios com responsabilidades para promoção do bem comum. Ora, como dissemos
anteriormente, um homem que decide efetuar um ato maldoso, está a buscar o bem, ainda que
aparente e não real, mas em todo o caso, um bem, naquele conceito de bem que trabalhámos

451
Há argumentos que a pena capital é justa naqueles crimes bárbaros contra a vida, como medida de justa
retribuição. Já defendemos isso outrora. Entretanto, nossa inclinação não é mais favorável a tal teoria, visto que
como veremos logo a seguir, a pena não tem como fim último apenas retribuir a injustiça, mas também «servir
para restituir a personalidade razoável ao infrator, regenerando-o em benefício não apenas dos outros, mas também
dele mesmo», FINNIS, John Mitchell. Lei … cit., p. 259.
452
Ibid., p. 256.
453
Ibid., pp. 256-7.
101

até aqui. Por isso, quando ele decide violar uma mulher, busca o bem do seu próprio prazer em
detrimento do bem da liberdade dela, deixando assim de lado o bem comum.

Portanto, a prática de um crime, nada mais é que a prossecução dos nossos desejos,
vontades, elevados a um grau máximo, sem respeito pela regra de ouro. É o exercer a liberdade
própria, sem sopesar a liberdade de outrem, por isso, é conceber uma desigualdade no seio
social. Razão pela qual, a punição vem «restaurar o equilíbrio distributivamente justo de
vantagens entre os criminosos e os cidadãos cumpridores das leis454», ou seja, equilibra
novamente liberdade e responsabilidade. E, conforme são variados os atos ilegais – desde dirigir
sem cinto de segurança até a prática de latrocínio – existe também uma escala punitiva que vai
desde multar alguém até retirar direitos e garantias individuais e civis, como a liberdade, até
forçar o trabalho comunitário.

Finalmente, como o empreendimento comunitário é o bem comum de todos, o criminoso


é um indivíduo para quem o bem, como supramencionado, é tão seu como de qualquer outro
cidadão, ainda que seja privado de algumas oportunidades por causa das sanções impostas aos
seus atos455. E por isso, diante de toda a ideia de bem comum que desenvolvemos, temos que
declarar que «aquele que desafia ou desacata a lei causa dano não só aos outros como também
a si mesmo456», arrefece-se de si, das suas potencialidades, bem como atinge outrem. Por isso,
a aplicação justa da pena deve levar em consideração todas estas vicissitudes, para que «possa
servir para restituir a personalidade razoável ao infrator, regenerando-o em benefício não
apenas dos outros, mas também dele mesmo: para "levar uma vida boa e útil"457», dito por
outras palavras, a punição deve ser um meio de restaurar a consciência do criminoso e levá-lo
a atos novos que produzam o florescimento humano. Ou seja, atos novos que se coadunem com
o bem comum.

Uma última observação: pode ser que na leitura deste último subtítulo, o leitor –
influenciado pela nossa forma de escrever, ou pelos seus próprios preconceitos – teve a
inclinação de ver o criminoso como alguém diferente de si mesmo. Entretanto, esses potenciais
ou reais renitentes, «inclui a maioria dos membros da sociedade em relação pelo menos a uma
ou outra atividade458», por isso, esse senso de pensar no outro e nunca em nós como o agente

454
Ibid., p. 258.
455
Ibid., p. 258.
456
Ibid., p. 259.
457
Ibid., p. 259.
458
Ibid., p. 257.
102

da maldade, não passa de um moralismo vazio459. Como bem disse Francesco Carnelutti, «senão
sempre, pelo menos nove a cada dez vezes, a pena jamais termina. Quem pecou está perdido.
Cristo perdoa, os homens não460».

Precisamos deixar a hipocrisia de lado. No fim, todos precisamos de esperança. Razão


pela qual, um jusnaturalismo que não seja eficaz em vislumbrar o florescimento humano de
todos, inclusive daqueles que praticaram atos mais graves e, portanto, estão detidos, não é um
jusnaturalismo em toda sua essência. Esse sim, poderia ser chamado de abstrato.

459
Sobre isso, cfr. KELLER, Timothy J. O Deus pródigo: uma análise completa da história mais importante
que Jesus contou. 2. ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2016; TOURNIER, Paul. Vraie ou fausse
culpabilité. Lonay – Suisse: Delachaux et Niestlé, 1958.
460
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Campinas: Edicamp, 2002. p. 92.
103

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ciência do direito, como visto, não se trata de uma ciência estática. Perpassa por vários
aspetos que compõe o núcleo central de uma comunidade. Lográmos observar que referida
ciência toca desde a composição e estabelecimento de Governo e Autoridade, até àqueles
âmbitos que para alguns é mais abstrato, como a filosofia do conhecimento, a demonstração da
caridade, inclusive para criminosos e o conhecimento de Deus.

Tocámos, em nosso trabalho, em ramos sociais, filosóficos, teológicos, relações


interpessoais, entre outros. Não com o intento de fazermos breves correlações frágeis, que
seriam em si mesmas, destoadas, por uma verdadeira ciência do Direito que é mais «técnica».
Pelo contrário, todos os assuntos que tocámos, foram pertinentes, não apenas em sua
demonstração ao afinar com o tema principal, mas também, por eles próprios perfilharem parte
essencial do estudo, razão pela qual, repisa-se: o direito não é uma ciência estática.

Nos dias atuais, é demasiado árduo, produzir ciência no campo jurídico, em que o
tecnicismo e a positivação imperam nas academias, em que matérias mais abstratas que se
ocupam da teoria, para depois avançarem ao campo prático, são relegadas ao acaso. Por isso
que, no nosso primeiro capítulo, tratámos do mito da neutralidade científica, com o intento de
demonstrarmos que sistemas de crenças – que são constituições metafísicas – moldam a
investigação.

Desta empreitada ficou evidente que o mundo é lógico, racional, objetivo, mas não só.
Ele também é transcendente. Pudemos contrastar em várias partes da nossa investigação, a
transcendência do homem e a transcendência do ser de Deus. Por isso que se diz, que pouca
filosofia, pode levar o homem ao ateísmo, mas muita, o levará até Deus. Claro, não é uma regra,
entretanto, a ideia extraída, é que a metafísica, como é por si, abstrata – e quando usamos esse
termo, por favor, não confunda com utópica – por si só, já abalroa com o cientismo.

Contudo, enquanto a metafísica conflitua com o cientismo materialista, é uma forte


aliada daquilo que é prático, concreto e objetivo. Uma coisa é credibilizar o materialismo como
fonte de resposta para todas as coisas, outra bem diferente, é a partir de pressuposições
transcendentes, chegar a conclusões não apenas teóricas, mas que levam a prática. Isto é
claramente desenvolvido na teoria do direito natural neoclássico.

Por mais que receba acusações descabidas de que se trata de um direito utópico, que se
ocupa do mundo das ideias, não da realidade dura da vida, pudemos constatar um direito real,
104

concreto e que por mais que nasça de uma origem transcendente, sua aplicabilidade é para o
hoje, para esse tempo, para cada cultura.

Portanto, pode-se chamá-lo de utópico, mas, relembrando o exemplo do médico, não se


estuda um corpo doente, para tratar dos doentes, é tão irónico, que nos relembra a ideia de um
cego que está a guiar outro. Ambos cairão no precipício. Estuda-se um corpo saudável, para
então, aplicar todo esse conhecimento nos casos diversos de doenças que surgem nos
indivíduos. Assim, o direito natural ocupa-se de uma sociedade mais justa, moral e correta e
aplica-se às vicissitudes que encontra.

Devemos ressaltar nesta altura, que esse processo do direito natural, nada tem a ver com
a crítica – muito bem dissolvida pelos autores apresentados – do é/deve ser. O Direito natural
ocupa-se daquilo que é real, mas de forma corretiva e justa. Assim, sabemos que não assassinar
é um imperativo de consciência, mesmo antes de o ser um imperativo da lei escrita e, não há
ser ou dever ser, nesta ocasião. Sempre que o bem da vida é violado, o «ser», é corrompido e,
não se trata de «deve».

Assim, podemos relembrar, que grande peso de distinção tem aqueles bens que são
aparentes, daqueles bens que de facto, o são, por sua natureza bens, e.g, relembremos que o
homem que decide violar uma mulher em busca do bem de satisfação, tem um bem por si,
aparente, visto que não produziu o bem comum.

Destarte, a busca do bem real, como vimos, perpassa por um juízo crítico, uma
razoabilidade prática, daquele que chegou a um certo grau de virtuosidade, o spoudaíos,
entretanto, o homem não consegue ser bom si mesmo, é necessário, antes, uma força externa a
ele, que o conduza ao bem. Contudo, isso não o exime de suas responsabilidades, razão pela
qual, o plano coerente de vida e todos os outros requisitos da razoabilidade prática, se fazem
imperiosos de ser aplicados, para que, por meio disso, o bem numa comunidade inclusiva
floresça.

Assim, pudemos ver, que é responsabilidade de todos – pelo menos daqueles que
chegam a maturidade e reconhecem o bem – procurar o florescer do meio onde estão inseridos.
Isso se dá, mediante, primariamente, o perseguir do desenvolver e maximizar suas próprias
qualidades e plano pessoal de vida – sempre obviamente, voltado para outro, ou seja, faço o
bem a mim, entretanto, com autossacrifício ao outro, ocasião que só assim, poderá ser chamado
de bem.
105

Desta busca do bem e maximizar um plano coerente de vida, percebemos que, nem todos
perseguem no mesmo grau e ao mesmo tempo os mesmos bens, o que faz, por exemplo, alguém
dedicar sua vida ao conhecimento e outro ao lúdico, pois indivíduos têm personalidades,
aptidões e inclinações diferentes.

Diante disso, ocorrerá que, numa comunidade inclusiva, cada qual, será inclinado na
busca daquele bem que é por natureza, próprio da sua inclinação, isso poderá levar a um conflito
em maximizações de bens ou, dito de modo mais técnico, conflitos de Direitos Fundamentais.
Assim, como vimos, o Direito natural neoclássico «conversa» com grande facilidade com o
Estado de Direito e a ideia bem fixada de Governo, Autoridade e estrutura de organização de
poder, visto que, para limitar que todos busquem bens que firam a regra de ouro, «fazei aos
homens, o que desejam que eles façam a você», o Estado se faz necessário, para por meio da
positivação da lei, coibir os vícios dos homens.

Contudo, essa positivação, remete a ideia de àquelas leis que têm a tendência natural a
serem justas. Donde as denominamos, em nosso artigo, de um «jusnaturalismo positivista».
Porém, como ressaltámos, o jusnaturalismo neoclássico, não se preocupa tanto com «lex iniusta
non est lex», antes, muito mais com o florescimento humano e o bem comum no seio de uma
ordem social, razão pela qual, muitas vezes até conclui que uma lei, injusta, pode ser cumprida.
Neste ponto, John Finnis, faz uma separação entre o rito e processo constitucional-legislativo e
o processo moral, chegando a conclusão, que em alguns casos, excecionalíssimos, pode-se
cumprir uma lei injusta, vinculando, entretanto, o governo para revogá-la o quanto antes.

Todavia, como também visto, lei injusta é lei não no seu sentido «focal», antes
subsidiário, visto não estar a cumprir seu objetivo principal. Objetivo esse que só se concretiza,
quando derivada de leis naturais. Daí o entendimento do «jusnaturalismo positivista».

Esse conjunto todo, nos faz responder de modo positivo, a pergunta que moveu a nossa
investigação: será o direito natural relevante para o século XXI?

Respondemos de modo positivo, uma vez que, o direito natural por nós apresentado, faz
um balanço entre a lei natural e a positivação da lei, entre a aplicabilidade do justo e a
concretização dele num sistema legislativo.

Quando homens falhos, com inclinação ao vício, se rendem e se deixam ser guiados
pelo caminho da virtude, conseguem retirar os próprios olhos de si e olhar para outro. E acaso
esse não é o principal problema numa comunidade inclusiva? A ausência de pensar no outro?
106

Assim, temos um padrão para nos conduzir. Um padrão, pelo menos de um núcleo
«duro» de direito, que em todo lugar e em cada cultura se faz presente e que é inalienável. Um
padrão norteador de moral – e nesta altura, não precisamos mais provar que existe uma moral
absoluta e verdadeira – que desfaz qualquer metanarrativa.

Esse padrão, vai adiante da discussão teórica de ser uma lei justa ou injusta no plano
jurídico-político, na verdade, ele foca no sentido de lei e na sua aplicabilidade. Afasta-se assim,
de uma perspetiva materialista e cientista da lei, entretanto, não se fixa em campos apenas
abstratos. Vê a lei positiva como algo impositivo a uma ordem constitucional vigente, desde
que, seja fundamentado naquela lei natural, naquele núcleo duro de direito, naqueles Direitos
ditos como humanos.

Deste modo, é evidente que os Direitos humanos, na verdade, são Direitos naturais. Não
há como dissociar a ideia de Direitos naturais, da ideia de Direitos humanos, muitos autores,
conforme ressaltámos, demonstram isso.

Logo, quando os modernos sistemas jurídicos, defendem Direitos Humanos, estão a


defender Direitos Naturais. Contudo, como também observado, nunca existiu uma época em
que se falou tanto de proteção de Direitos Humanos e mesmo labutou demasiado por isso, ao
passo que não há fundamento com que se possa sustentar tais argumentos, pois, tudo é
«relativo» e o mundo já não acredita mais em sistemas morais absolutos. Por isso que, a
negativa dos Direitos Naturais é tão veemente, pois eles pressupõem tais absolutos. Mas, é
irónica tal negativa, pois quer suprimir um absoluto e tratar do mesmo, com outro nome ou
entendimento.

Não raro, nos debates académicos sobre Direitos Naturais, a relatividade adentra os
argumentos e serve como fundamento para afirmar que «x» pode ser absoluto apenas na cultura
«y», mas que, pode não ser na cultura «z», por mais notório que nos atuais sistemas de Direitos
Humanos, a ideia destes Direitos é que são «para cada povo, cada cultura e principalmente cada
indivíduo em particular» e aqueles Estados que constantemente os violam, as pessoas usam
uma linguagem pesada para referirem-se a eles, chamando-os de imorais, injustos, indignos,
entre outros.

Num nível mais interno, entretanto, não menos válido, nosso sistema de linguagem e
comunicação também revela absolutos, desde os relacionamentos corriqueiros, até àquelas
profissões que lidam diretamente com o sistema legislativo e judiciário. Não raro, usamos
termos como «certo ou errado», «justo ou injusto» e assim por diante. E de facto, tais termos
107

não são pejorativos, acreditamos mesmo, nestas coisas, e não apenas isso, vivemo-las.
Entretanto, como já afirmámos, nós acreditamos tanto na dignidade e decência, que nos
recusamos a confessar – e não temos coragem para tal – o facto que as transgredimos.

Então ao nosso ver, o problema maior, não se trata de convicção no relativismo, mas de
hipocrisia e incongruência entre o que se diz crer, e o que se crê de facto.

Enquanto a decência e a dignidade sobrecarregar nossos diálogos, será impossível


afirmar que não existe uma lei natural. O «enquanto», neste caso, é apenas residual. Nunca
deixará de existir esse valor argumentativo moral, pois o homem, desde quando foi feito ser
vivente, não consegue deixar de explanar aquilo que está incutido em si, esse senso de moral
absoluta, que para nós, espelha o ser de Deus.

Por isso que, vamos um passo adiante de Finnis e demonstramos que a fonte dos Direitos
Humanos, se encontra no ser de Deus, o Deus revelado na matriz judaico-cristã e conhecido
pelas Sagradas Escrituras.

Sabemos que num mundo pós-moderno de metanarrativas, essa pode representar «mais
uma» dentre «várias» afirmações, contudo, o que ressaltámos anteriormente, rechaça por
completo esta ideia. A moral existente ou é absoluta, ou não pode ser moral e toda tentativa de
relativizá-la é mais uma forma de demonstrar sua existência. Como dissemos, quando alguém
afirma que «não existe moral absoluta e tudo é relativo», a pessoa que afirma, cai em
contradição, visto que, sua sentença já é por si, um absoluto.

No mais, se não tivéssemos o Cristianismo no mundo, não teríamos hoje, o


desenvolvimento dos próprios Direitos Humanos e dos Direitos Fundamentais, o primeiro,
porque, como visto, princípios como o da dignidade da pessoa humana, deriva por completo do
«imagem e semelhança de Deus», o segundo, porque, o desenvolvimento dos Direitos
Fundamentais e das constituições no sentido moderno, não se deram tanto no meio do
iluminismo, mas em meio as lutas pela liberdade religiosa, fundamentada em religiões Cristãs,
conforme Jellinek expõe, não foi obra de Revoluções, antes da Reforma Protestante, não foi
Lafayette o arauto dos Direitos Fundamentais, foi Roger Williams.

Assim, existem um núcleo duro de Direitos, que são garantidos e protegidos e que se
encontram em total consonância com o Deus da matriz judaico-cristã, por isso que, vemos em
Deus, seu fundamento.
108

Michel Villey, parece concordar connosco, ao afirmar que só entre autores cristãos, ao
longo de séculos, é que encontramos um pensamento vivo sobre os princípios do Direito e que,
somente os filósofos franceses fogem a esta regra.

Assim, o Direito e a matriz judaico-cristã, caminharam e ainda caminham de mãos


dadas, mesmo que muitos tentem a isso suprimir.

Destarte, como toda a estrutura da nossa investigação, podemos concluir que o


jusnaturalismo neoclássico é relevante para os dias atuais, podendo livrar o atual caminho de
«fazer ciência jurídica» de formas mais mecanicistas e que, rememorando Francis Schaeffer,
ao acusar a modernidade: ela pode levar o homem-máquina ao desespero, ou seja, se tudo é
aqui, hoje e agora e a vida não passa de processos químicos e físicos, vindo o homem a ser
poeira cósmica, qual a razão de tudo?

Também é relevante, por não tocar simplesmente em abstrações, fugindo da realidade,


do mundo como ele é, antes, citando novamente o exemplo do médico, é um forte aliado para
correção dos diversos problemas apresentados no mundo atual.

Contudo, para nós, sem a fonte destes Direitos, perde-se o objeto não apenas da
pesquisa, mas da própria concretização do Direito. Ou seja, um Direito sem Deus, não é um
direito em seu caso «focal», no máximo, são expressões humanas falhas, por mais que de certo
modo, sendo o homem, imagem e semelhança de Deus, revele um pouco da Glória de Deus em
tudo o que faz, mas uma imagem distorcida.

Os incrédulos, não apenas poderiam, mas como deveriam dar ouvidos a isso. Não num
viés de imposição, mas num viés de análise de toda essa doutrina e teoria, visto que, como
Jónatas Machado afirma, os principais inimigos da liberdade religiosa – que é um dos Direitos
Humanos nucleares – é o liberalismo político de Rawls, a agenda feminista do direito, a teoria
jurídica gay e lésbica, a ética comunicativa, a pós-metafísica, e o no novo ateísmo e todos sem
exceção, têm espaço no campo jurídico, todos são ouvidos e levados em consideração, é
chegado a hora de amadurecermos como cientistas e deixarmos de lado nossos preconceitos e
pelo menos, ouvir o fundamento do outro.

Finalmente, acreditamos também, que o Jusnaturalismo neoclássico, fundamentado na


matriz judaico-cristã, servirá, conforme ressaltámos, como um «conservante» para o direito e
para a cultura nos próximos anos, pois dele, não apenas emana um sistema de moral que
fundamenta os Direitos Humanos, como também, servirá como barreira de proteção dos
próprios Direitos Humanos, por sua qualidade de absoluto, diferente do relativismo que pode
109

ser um grande inimigo a tais direitos, visto que em Jesus, o Cristão encontra água viva, não
apenas para o seu interior, mas para todo e qualquer lugar onde se encontra, trazendo cura, vida
e proteção, desejos profundos de uma ciência jurídica.
110

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