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babuínos ou os macacos langur se ocupam de representações, procedem cies (e a si mesmos) nos consterna. Todo aquele que já tenha olhado
a historicizações ou se entregam a práticas discursivas, então tais modos faminto para uma árvore da floresta tropical carregada de frutos, já expe-
de intencionalidade só podem ser exclusivamente humanos. Haraway rimentou uma inveja lancinante dos atributos ímpares dos macacos-ara-
não tem nenhuma dificuldade em denunciar, apontando sua vinculação nha ou dos chimpanzés. O mesmo se diga de quem quer que já tenha
com imagens culturais poderosas e perigosas, a falsa inocência de uma contemplado um gato no inverno europeu, alegremente “descalço” na
fotografia que mostra um gesto afetuoso de intimidade entre Jane Goo- neve lá fora enquanto trememos de frio dentro de nossas casas e agasa-
dall e um chimpanzé. Mas há uma questão que Haraway deixa sem res- lhos. Afinal de contas, a linguagem só serve para se falar com ela, e o
posta: o que estaria fazendo o chimpanzé nessa fotografia? O que estaria mesmo vale para a consciência. Como veremos, a consciência e a lingua-
passando em sua mente, ou pelo menos naquilo que passa por ser sua gem piro se constituem a partir dessa experiência quotidiana dos atribu-
mente?2 tos únicos das outras espécies vivas.
Com efeito, essas novas descobertas acerca da socialidade não- É nesse contexto geral que desejo explorar a questão de Morgan,
humana são de molde a provocar um profundo mal-estar, se você for um tomando o parentesco piro como consciência humana. O que faz com que
humanista clássico. Pois elas sugerem uma conclusão simples, mas dolo- os Piro, ao pensarem sobre os aspectos mais íntimos e importantes de suas
rosa para nosso orgulho. Nas palavras de Robert Foley, os humanos não relações com outrem, guiem-se por idéias tão dramaticamente conflitan-
são a espécie ímpar, primeira aos olhos de Deus ou proprietária exclusiva tes com as minhas próprias? E como essas idéias se associam à lingua-
da Razão, mas apenas mais outra espécie ímpar. A humanidade dos gem?
humanos é tão especial como a lupinidade dos lobos ou a ostritude das Para responder a estas perguntas, sigo a trilha aberta por uma série
ostras. de críticas perspicazes à análise lévi-straussiana do parentesco, que
Ao mesmo tempo, parece estar-se formando um consenso, entre os apontaram uma deficiência crucial nessa abordagem: a incapacidade de
biólogos, segundo o qual a linguagem e certas formas de consciência levar realmente em conta o papel constitutivo da subjetividade no paren-
seriam atributos específicos dos humanos. Atributos, não privilégios espe- tesco. Estou-me referindo às críticas de Anthony Wilden e Gayle Rubin,
cíficos. As línguas naturais de tipo humano parecem ser genuinamente inspiradas na reformulação lacaniana da teoria de Lévi-Strauss. Mas sigo
exclusivas de nossa espécie; não se conhece nada de remotamente seme- também uma observação decisiva de Marylin Strathern, que, desenvol-
lhante entre os animais, sequer entre os demais membros da superfamília vendo os argumentos de Wilden e Rubin, associa o fracasso da análise de
Hominoidea. A consciência, entretanto, sob as formas da consciência de si Lévi-Strauss ao uso da teoria maussiana do dom para explorar o paren-
e da existência de outrem, parece ser comum aos Hominoidea, como por tesco como uma estrutura da consciência humana3.
exemplo os humanos, os chimpanzés e os gorilas. Sua existência não pare- Prossigo aqui uma análise que publiquei há alguns anos sobre esse
ce ter sido demonstrada de modo convincente em babuínos ou em maca- problema (Gow 1989), mas agora buscando chegar mais perto de seu cen-
cos vervet — e muito menos em lobos ou ostras, tanto quanto eu saiba. tro, mediante um olhar mais atento ao modo específico pelo qual a subje-
Se olharmos para os Hominoidea, então, achamos a consciência. Os tividade é pressuposta, e posta, no e pelo mundo vivido piro. Esse traba-
excelentes estudos de Premack sobre a mente dos chimpanzés, entretan- lho anterior concentrava-se na questão de saber que espécies de sujeitos
to, indicam uma diferença fundamental entre a consciência desses ani- podem existir em uma economia como a dos Piro. Acrescento a isto, ago-
mais e a humana: os chimpanzés são conscientes [aware] de si mesmos, e ra, a questão de saber como a subjetividade pode vir a existir em geral.
de outrem, mas não parecem ser conscientes da consciência que os outros Estou razoavelmente seguro de que minha análise pode se aplicar a
têm deles mesmos. Esse tipo de recursividade generalizada da consciên- qualquer sociedade humana4. Escolhi os Piro porque este é o mundo vivi-
cia parece ser exclusivo dos humanos, e, como sugere Premack, está pro- do alheio com que tenho maior familiaridade, desde que comecei meu
vavelmente associado de modo estreito à linguagem. trabalho de campo junto a eles, em 1980. Os Piro são um povo indígena
A questão, portanto, não é a de se compensar negativamente nossos de língua aruaque (ramo maipureano) distribuído em quatro áreas da
sentimentos de superioridade, denegrindo os atributos ímpares de nossa Amazônia Ocidental, ao longo dos rios Urubamba, Cushabatay, Manú e
espécie só porque o modo como os humanos têm tratado as outras espé- Iaco. Conheço melhor os habitantes do Baixo Urubamba, no Peru. Eles
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vivem em aldeias que abrigam entre cinquenta e trezentas pessoas (exce- a morte da mãe, fracassando apenas em suas tentativas de matar sua avó,
to no caso da missão El Rosario de Sepahua, com mais de mil pessoas), que estava grávida. Os episódios subseqüentes mostram Tsla e seus
obtendo sua subsistência da agricultura itinerante, da pesca e da caça, irmãos criando os elementos básicos da existência piro. Tsla criou os
bem como do trabalho para as madeireiras e outras atividades remunera- humanos, em suas formas primárias de yine, “Humanos verdadeiros”, e
das. Todos os Piro mantêm relações intensas com povos não-Piro como os de kajine, “Brancos”, a partir de dois tipos de argila de olaria.
Campa-Asháninka, os Machiguenga e os mestizos. O leitor poderá en- Tudo que nós precisamos saber sobre o parentesco dos Piro está con-
contrar maiores informações em minha monografia sobre os Piro (Gow tido na narração dessa curta história, porque tudo que eles precisam saber
1991). está contido nesse evento. Isto é, tudo que não está na história está na
Advirto que a descrição e análise do parentesco piro apresentadas a relação entre o narrador e os ouvintes, e vice-versa. Já na história temos
seguir podem ser um tanto difíceis de acompanhar. Isto é uma conseqüên- maridos e mulheres, mães e filhos, pais, tios, avós e parentes afins. E,
cia lógica da tese enunciada mais atrás, a saber, que o parentesco piro é sobretudo, temos a linguagem, usada por Tsla para dar o estranho conse-
um sistema autopoiético: como ele dá origem a si mesmo, não há ponto lho intra-uterino à sua mãe.
privilegiado por onde se entrar nele, nem caminhos predeterminados Os processos sociais piro, e portanto o parentesco piro, podem ser
para se o percorrer. Só me resta esperar que, ao cabo da leitura destas caracterizados como a transformação de Outros em Humanos, e de Hu-
páginas, a lógica de tipo “passeio aleatório” [random-walk] de minha manos em Outros, ao longo do tempo. Para os Piro como um todo, esses
abordagem tenha se tornado clara, e, sobretudo, que a lógica do paren- processos de transformação começaram no “há muito tempo atrás” das
tesco piro tenha sido compreendida. narrativas míticas, quando o mundo foi feito, e terminarão em algum
momento no futuro, quando o mundo acabar. Para qualquer pessoa piro,
tal processo principia com a fabricação de Humanidade logo após o nasci-
Falar ou não falar mento, e termina com a produção de Alteridade logo após a morte. Para o
povo Piro, essa série complexa de processos foi iniciada pelos giyaklune,
Quando se vai contar uma história complicada, é melhor começar pelo os seres míticos; e a fala é o meio pelo qual se toma conhecimento disso.
princípio. Para os Piro, o princípio está nas tsrunnini ginkakle, aquelas Tsrunnini ginkakle, “histórias da gente de antigamente”, são uma
“histórias dos antigos” que os velhos às vezes contam para seus netinhos forma muito especializada de discurso, pois elas são a corporificação ple-
ao cair da noite. Os antropólogos não teriam muita dificuldade em identi- na da temporalidade humana na fala. Sabem-se essas histórias porque
ficá-las como mitos. Há muitas delas, e nenhum Piro afirmaria que sabe elas foram contadas pelos tsrunni, “a pobre gente velha e morta” — os
todas. Os velhos as conhecem apenas porque seus próprios avós as reci- antepassados desconhecidos dos Piro hoje vivos. Tudo que os vivos sabem
tavam para eles, quando eles eram crianças. Não temos meios de saber, dos tsrunni lhes chega somente através das histórias a seu respeito con-
e os Piro tampouco, qual começo é o verdadeiro começo; portanto, como tadas pelas pessoas mais velhas. Os velhos são a fonte dessas histórias
um narrador Piro, principio pela história mais afim ao meu tema5. porque eles próprios conviveram com pessoas mais próximas, no tempo,
dos tsrunni. Mas mesmo os velhos não sabem realmente dos tsrunni, pois
Muchikawpotgimni sato yinero ganurutatka wa mgenoklu. nunca os viram. Clotilde Gordón, de 80 anos, assim respondeu a uma de
“Há muito tempo, dizem, uma mulher casou-se com um jaguar”. minhas perguntas sobre eles, que lhe fiz no verão passado:
Esta é a sentença inicial de uma versão da “história dos antigos” que “Eu não sei; nunca vi a gente de antigamente. Só sei o que minha avó me
podemos chamar aqui de “O Nascimento de Tsla”. A história conta que ensinou quando eu era menina pequena. Só sei o que vi minha avó fazer”.
essa mulher andava, certo dia, na floresta, quando o filho que trazia no
ventre, falando-lhe, conduziu-a até a casa do marido. Ali, os afins-jaguar O que gente como a velha Clotilde diz, entretanto, é a única fonte
da mulher a mataram e devoraram, mas a sogra guardou o útero grávido, sobre os tsrunni acessível aos jovens. Apenas o que os velhos contam
do qual emergiram Tsla e seus irmãos. Estes, mais tarde, vieram a vingar (ginkaka) aos jovens sobre os tsrunni constituirá seu conhecimento sobre
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estes. Os tsrunni existem apenas na fala dos velhos. É isso que torna as reza. O acontecimento que leva os jaguares a matar e comer a mãe de
tsrunnini ginkakle tão notáveis: elas são o discurso citado de seres que só Tsla é a ânsia de vômito que a toma ao morder um piolho do marido; pois
existem no discurso citado dos velhos. Dessa forma, as narrativas míticas os piolhos do jaguar são enormes, “como besouros papaso, não como os
são um tipo de superfala, ou, nos termos de Lévi-Strauss, “elas são men- pequenos piolhos dos humanos”. Catar os piolhos do parceiro é um dos
sagens que nos chegam, a rigor, de lugar nenhum”. São os velhos, os tsru- aspectos mais íntimos da vida conjugal; a esposa humana revela sua alte-
ne, que conhecem esse discurso, sendo os únicos capazes de lhe dar a ridade ontológica em relação ao marido jaguar ao enojar-se com a natu-
forma de fala6. reza deste. Marido e mulher devem ser o mesmo, ambos devem ser Hu-
A relação dos ouvintes com a linguagem é muito diferente. Eles são manos.
crianças pequenas, que pouco sabem, e seus modos primários de lingua- Mas eles não podem ser exatamente o mesmo. Há algo a que os Piro
gem visam a comunicação de seus desejos e necessidades legítimas aos muito raramente aludem, uma possibilidade que ronda ameaçadoramen-
mais velhos. Sua linguagem básica consiste em termos de parentesco te seu mundo social: o incesto. Que eu saiba, nenhuma narrativa mítica
como (a lista é exaustiva) mama, “mamãe”, papa, “papai”, jiro, “vovó”, trata dessa questão8; nenhum Piro, tampouco, jamais a discutiu comigo,
totu, “vovô”, shapa, “titia”, koko, “tio”, e yeye, “irmã/o mais velho/a”7. exceto no caso de suas formas menos graves, como o intercurso sexual
O uso de tais termos demonstra que a criança é dotada de nshinikanchi, entre padrasto e enteada — e mesmo assim para evocar as conseqüên-
“mente, inteligência, memória, respeito, amor”. Esta qualidade, nshini- cias horrendas que se abateriam sobre os culpados. Nada ouvi sobre rela-
kanchi, pode ser despertada por certos atos das pessoas mais velhas, mas ções mãe-filho e sogra-genro, e o intercurso entre irmão e irmã só me foi
não pode ser ensinada à criança; ela precisa se desenvolver espontanea- mencionado para indicar que ele seria uma prática dos mashko, um povo
mente. Sua manifestação primeira e mais importante é a fala inteligível; distintamente não-humano que vive muito longe, a sudeste9. Dizia-se dos
o uso de termos de parentesco para se obter atenção e cuidado é o aspec- mashko: “eles não são humanos, são bichos do mato!”
to mais saliente e poderoso dessa capacidade. Não é simplesmente que os Piro não falem sobre o incesto; é que o
Quando os velhos contam “histórias dos antigos” para seus netos, incesto parece ser o oposto da linguagem. Matteson, uma missionária-
tanto o narrador como os ouvintes estão demonstrando seu nshinikanchi: lingüista do SIL [Summer Institute of Linguistics], que começou a traba-
as crianças, ao mostrar interesse no desenrolar da narrativa; os velhos, lhar entre os Piro no final dos anos 40, faz o seguinte registro: “Quando
pelo ato mesmo de contar a história, pelo fato de estarem vivos para con- se sugeriu que um menino se casasse com a filha de seu tio paterno, sua
tá-la, e de ter netos vivos a quem contá-la. Voltarei a esse ponto, depois mãe lhe disse: ‘Mas como, você seria capaz de casar com sua irmãzinha,
de discutir o mito. com a filha de seu pai mais moço? Você é mesmo um cachorro! Você não
No pequeno fragmento do mito transcrito acima, a mãe de Tsla é é gente de jeito nenhum!” (Matteson 1955: 80)10.
designada pela palavra yinero. Essa palavra é o feminino singular de Ora, um certo mito piro conta que, antigamente, os cachorros podiam
yine, “gente, Piro, seres humanos”. Assim, a personagem é marcada falar, mas que perderam essa habilidade por terem desrespeitado um
como “mulher humana”; sua feminilidade é uma característica secundá- tabu (que o mito não diz qual é). Hoje em dia, as relações entre humanos
ria que serve para estabelecer a valência da relação posterior com o e cachorros se reduzem à “linguagem” elementar das ordens dadas pelos
Outro: aqui, a Humanidade está para a Alteridade como o afim do sexo primeiros e dos variados uivos, latidos e rosnados dos segundos. Isto
feminino está para o afim do sexo masculino. Mgenoklu, o “jaguar”, por sugere que o tabu quebrado pelos cães da antiguidade é aquele que inci-
sua vez, condensa a multiplicidade do Outro nessa figura do mais peri- de sobre as relações incestuosas, e que o preço da quebra do tabu é a
goso dos mamíferos selvagens, símbolo de toda competição inteligente e perda da linguagem. O incesto e a linguagem são estados mutuamente
mortal pelo mundo vivido imediato. exclusivos: os Piro não falam sobre o incesto porque ele é, literalmente,
A história diz respeito a um mau casamento e suas conseqüências. “indizível”.
O bestialismo, o congresso sexual entre Humano e Outro, é perigoso, tra- No mito, Tsla fala à sua mãe de dentro do útero, visando fazê-la
zendo efeitos desastrosos para os implicados. Humanos devem casar-se tomar a direção errada. Neste ponto, os narradores costumam observar:
com humanos, pois a mútua compreensão depende de uma comum natu- “Kgiyaklewakleru wa Tsla”, “Tsla era um transformador miraculoso”.
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Giyaklewata, “transformar miraculosamente”, é um modo de ação com- “Ele é Humano?” O recém-nascido é inspecionado visualmente em bus-
pletamente desconhecido dos Piro contemporâneos. Só sabem dele pelas ca de evidências de sua identidade. Muitos fetos, ao emergirem, reve-
histórias: é o modo de ação característico dos seres míticos e dos brancos lam-se não-humanos: formaram-se como jabotis, peixes, ou “algum ani-
desconhecidos que moram em terras distantes. Na primeira vez em que mal que não reconhecemos”. Eles não têm futuro no mundo da Humani-
usa tal poder no mito, Tsla fala à mãe para levá-la à perdição nas garras dade, e são expulsos do espaço humano o mais rápido possível. A maio-
dos Jaguares11. Através desse ato incestuoso, esse falar intra-uterino à ria dos fetos, entretanto, revela-se espontaneamente como humana. Se
sua mãe, Tsla lhe causa a morte. as pessoas que assistem ao nascimento concordarem que se trata de um
novo humano, então o pai (se estiver presente) deve partir em busca de
um não-parente para perfazer a Humanidade do novo humano.
O corte do cordão umbilical O ato do nascimento, o “sair”, não estará completo até que todo o
feto tenha emergido. Isso significa que aquilo que, em inglês, se costu-
O que há de miraculoso, do ponto de vista piro, em um feto falante? É ma chamar de “afterbirth” [placenta, secundinas], e que popularmente
preciso aqui olharmos mais de perto para as ontogenias do feto e da lin- se imagina ser parte da mãe, os Piro afirmam enfaticamente ser parte do
guagem. feto/bebê: a placenta, geyonchi, é uma parte do corpo do feto. Uma
Os Piro têm idéias muito próprias sobre o feto; mais que isso, eles criança só é dita ter nascido quando tudo dela emergiu, inclusive o cor-
têm idéias muito próprias sobre as idéias que o feto tem. Ou melhor, eles dão umbilical e a placenta. Tal unidade é extremamente importante: a
têm idéias próprias a respeito do que seria o mundo oculto dos fetos — criança recém-nascida é uma unidade completa de “bebê” + cordão
dos fetos que, ao contrário de Tsla, não são dados à conversação —, tal umbilical + placenta. Ela é, por assim dizer, um feto desenvolvido no
como revelado pelas fases posteriores do desenvolvimento infantil. tempo e no espaço, a partir de sua condição prévia de auto-involução
O que é um feto? Um feto é manewlu, “aquilo que está tendo um dentro do útero materno. Alguém chega, então, para cortar o cordão
corpo feito”, “aquilo que está sendo encorporado”*. Ele é o paciente da umbilical, cortando, literalmente, o recém-nascido em duas metades,
ação verbal manewata, “dar forma substancial a”, “fazer um corpo para”. separando-o de si mesmo.
Por um lado, essa ação é o produto simples e direto de dois agentes, um Nesse ato — o corte do cordão — está contida toda a ontologia dos
homem e uma mulher que misturam uma certa massa de sêmen e san- Piro. Para entendê-lo, é preciso explorar os dois modos pelos quais eles
gue menstrual por meio de repetidas relações sexuais. Por outro, porém, se reconhecem como humanos. Os Piro se chamam a si mesmos de yine,
não se pode saber o que é um feto, porque ele se oculta, invisível e silen- “Humanos”; mas eles se chamam entre si de nomolene, “meu parente”.
cioso, dentro do corpo de uma mulher. Invisível, ele escapa à fonte pri- Em geral, os dois termos são co-extensivos: ser yine é ser nomolene de
mária do conhecimento para os Piro, a visão; silencioso, escapa à fonte outros yine; ser Humano é ser parente de outros Humanos. Mas em cer-
secundária, a fala. As pessoas precisam esperá-lo “surgir”, gishpaka. So- tos momentos críticos, é preciso que se achem yine que não sejam nomo-
mente quando o bebê nasce é que ele pode ser conhecido. O genitor e a lene. O parto é um desses momentos.
genitora são os agentes de seu vir a ter um corpo; mas o feto é o agente A pessoa que corta o cordão umbilical do recém-nascido separa este
de seu próprio nascimento. Os bebês “surgem de dentro”, ativamente; em dois: um Humano, yineru; e um Outro, geyonchi, a “placenta”. Ao
eles não são passivamente “paridos” ou “dados à luz”. realizar esse ato, tal pessoa entra em uma nova e poderosa relação com o
O feto só pode ser conhecido após ter emergido espontaneamente, e novo Humano. Ao mesmo tempo, ela estará afirmando sua identidade
somente então pode-se dar uma resposta satisfatória à questão crucial: como Humano e como não-Humano perante os pais da criança.
Esse momento é muito complexo; vejamos bem o que se passa ali.
Um novo Humano surgiu no mundo dos Piro. Para se tornar completa-
mente Humano, ele deve ser cortado ao meio. Mas, para cortá-lo ao meio,
* N.T. – A primeira glosa corresponde ao inglês “that which is being made to have a body”; na
segunda, traduzimos “to embody” pelo neologismo “encorporar”, visto que “incorporar”, “encar-
é preciso achar um Humano disposto a assumir que ele mesmo ou ela
nar”, ou mesmo “corporificar” são diversamente inadequados. mesma não é completamente Humano aos olhos dos pais do novo Huma-
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no. Essa pessoa deve aceitar ser vista como diferente por esses Huma- uso da palavra. Esse uso envolve um modo especial de falar, que se de-
nos. Em suma, ela deve estar disposta a assumir o papel de Outro (i.e. de senvolve dentro dos homens na adolescência.
não-Humano) perante esses outros Humanos. Com a puberdade, o corpo de um jovem incha e cresce com sangue.
O que faz uma pessoa gimole (“parente”) de outra é a mútua mani- Este sangue é endógeno, desenvolvendo-se dentro dele. Após ter estado
festação de nshinikanchi. Isso se realiza, antes de mais nada, pela mútua lentamente crescendo graças à comida ingerida durante a infância, o
acessibilidade derivada da co-residência em uma aldeia (ver Gow 1991). menino atinge finalmente um tamanho a partir do qual começa, repenti-
Mas isso também se traduz no uso de termos de parentesco e no discurso na e dramaticamente, a intumescer-se. Até esse momento, ele havia sido
polido. Qualquer conversação entre os Piro envolve necessariamente o um receptor, geralmente passivo, de alimento e de outros cuidados; mas
uso de termos de parentesco, pois estes implicam a existência de rela- agora, um órgão seu começa a crescer e a se tornar oco, e a secretar subs-
ções específicas entre os falantes12. Quando dois desconhecidos se encon- tâncias potentes. Tal órgão é a garganta, e a substância potente por ele
tram, ou estabelecem imediatamente os termos de tratamento apropria- secretada é o riso (gislunota, “sua voz se quebra, se modifica, na puber-
dos, ou se ignoram por completo. dade”). À proporção que a garganta do rapaz se avoluma, ele vai-se tor-
A convocação de um cortador de cordão umbilical é, assim, um nando capaz de dar a gargalhada alta e rascante característica dos ho-
momento delicado, pois o pai da criança deve ir até alguém, dirigir-se a essa mens adultos.
pessoa por um determinado termo de parentesco, para logo em seguida Esse riso é uma coisa poderosa: ele é a condição do meyiwlu, “far-
negar o parentesco suposto pelo termo, com o pedido de que corte o cordão rear, divertir-se, festejar”. Os bons líderes são conhecidos por sua garga-
do recém-surgido, isto é, de um ser em via de se tornar parente do pai. lhada, que se opõe ao wamonchi, “tristeza, pesar”. Mas a responsabili-
Tão logo o ato é consumado, tudo se estabiliza, pois seus protago- dade principal pelo riso cabe aos adolescentes. As pessoas mais velhas
nistas entram em uma rede de novas relações baseadas nele. Após ter lamentam a ausência dos jovens quando estes estão longe, na escola,
tido sua condição de nomolene negada pelo pai da criança, o cortador do dizendo: “a aldeia está tão triste agora, só há velhos como nós, gente que
cordão torna-se nkompate (se homem) ou nkomate (se mulher)13 dos pais, não quer fazer nada, que não tem vontade de se divertir”. Elas esperam
e nustakjeru da criança (recíproco: nustaploolu). Esses termos substituem ansiosamente a volta dos rapazes, para que a vida volte a se animar.
os termos de parentesco tanto na referência como no vocativo, e definem Os rapazes estão à procura de ganurune, “cunhados”. Um ganuru é
uma espécie de hiperparentesco, marcado por uma intensificação da alguém exatamente como você, mas que, por definição, é um outro para
memória e do respeito que caracteriza as relações entre parentes. você. O que os rapazes estão procurando são Outros humanos. A alegria
Tanto quanto eu saiba, ninguém jamais se recusa a ser o cortador do que esses adolescentes dão às pessoas mais velhas está, em parte, na des-
cordão umbilical de uma criança recém-nascida, pois receber tal pedido truição do nshinikanchi, da “memória”, por eles realizada14.
é uma honra. Na verdade, é mais fácil alguém se ofender por não ter sido A alegria tumultuária e contagiosa dos rapazes faz deles mshinika-
chamado. O problema existencial do pai não está na resposta que venha tu, “descuidados, esquecidiços, sem nshinikanchi”. Em seus gracejos
a receber, mas na própria enunciação do pedido. Este deve começar pres- recíprocos, eles se interpelam pelo termo panu, “cunhado”. Panu é uma
supondo o nshinikanchi e terminar negando-o. É como se o pai dissesse: palavra complexa. Trata-se de uma contração de panuru, “teu cunhado
“Meu parente, venha rápido deixar de ser aparentado a mim!” Posto des- (de um homem)” ou “teu marido (de uma mulher)”. À primeira vista, am-
ta forma, o dilema do pai de um recém-nascido é muito semelhante ao bas as traduções são algo problemáticas quando as aplicamos a panu:
dilema do incesto: ele é algo difícil de se falar. quem é o “tu” a quem se fala? Se panu é uma contração de “teu cunha-
do”, então o “tu” é o próprio eu que fala — “teu cunhado” sou eu mes-
mo; mas isso equivaleria a afirmar uma identidade entre os ganurune
A fala torna os Outros possíveis [cunhados], o que contradiz a definição avançada acima. Por outro lado,
se panu é uma contração de “teu marido”, então o “tu” da fórmula é uma
Na verdade, há um bom motivo para ser o pai a pessoa que faz o pedido: terceira pessoa, a saber, a irmã do falante. Nesse caso, os dois ganurune
ele é alguém que, tempos atrás, já deu fim ao incesto, mediante um certo estariam se tratando por uma contração do termo que usariam para se
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referir um ao outro ao falar a suas próprias irmãs. E este parece ser o caso, agora receber muitos convidados, que acorrem às suas casas para beber.
pois um dos métodos clássicos de se provocar uma mocinha é dizer-lhe: Bêbadas, as pessoas brincam e riem, e os rapazes se tornam “descuida-
“Gapokatka panuru!”, “Olha aí teu marido chegando!”, quando um dos, sem-vergonha” — em outras palavras, eles solicitam a cooperação
homem repugnante à menina se aproxima15. das moças adolescentes em sua busca de satisfação sexual.
Como Lévi-Strauss e outros já observaram para vários sistemas de Um rapaz e uma moça encontram-se, finalmente, dentro do mosqui-
parentesco das terras baixas sul-americanas, também para os Piro a teiro da moça, acionando então a última parte da equação, o pênis do
“cunhadez” [“brother-in-law”-ness] é uma forma logicamente primária. rapaz. Divertindo-se dessa forma, em especial quando o fazem regular-
“Marido” e “mulher”, enquanto termos específicos de parentesco, são mente, eles misturam suas substâncias sexuais, o sêmen e o sangue mens-
derivados do termo primário ganuru. A irmã do ganuru é uma ganunro trual, dentro do corpo da moça. “Casos” fortuitos, dizem os Piro, podem
potencial, uma “cunhado feminina/esposa”; e é através do estabeleci- levar à gravidez e ao nascimento de crianças17; mas é o ritmo regular e
mento de relações mútuas de ganuru entre os rapazes que estes conse- prolongado de relações sexuais entre adultos plenos que “realmente” faz
guem suas ganunro potenciais, e as moças seus ganuru potenciais. filhos.
Os Outros abundam no cosmos, e as relações dos Piro com muitos Como já discuti em detalhe alhures (Gow 1989; 1991), o casamento
destes Outros correspondem àquilo que Viveiros de Castro chamou de baseia-se em um ajuste equilibrado entre, de um lado, o trabalho produ-
“afinidade potencial”16. A Alteridade não está, de fato, em falta no mun- tivo, e, de outro, o desejo oral e sexual. O casamento é o lugar onde os
do piro; mas os rapazes devem produzir Alteridade a partir do campo dos corpos de um homem e de uma mulher podem, com efeito, ajustar-se reci-
parentes, dos nomolene. Eles precisam transformar um outro Humano procamente. Há uma canção de amor feminina que manifesta o ideal da
em algo quase, mas não completamente, idêntico a eles próprios: um sexualidade adulta: Yanasa shikale, “Cantar de Amiga”18, que diz o se-
ganuru. Precisam encontrar, dentro do campo da identidade (os Huma- guinte:
nos) aquela pequena diferença que permitirá à sua sexualidade assumir
uma forma social. Como eu disse, o incesto é indizível, e assim essa “alte- “Eu tenho uma boceta grande,
rização” de um Humano se caracteriza por uma intensificação da fala, E o meu marido um pau grande;
possibilitada pela maturação de um órgão. Tu tens uma boceta grande,
As meninas, durante a adolescência, também encorpam devido ao E o teu marido um pau grande”.
sangue, que faz um órgão interno crescer e secretar uma substância poten-
te. A vagina intumesce e produz sangue menstrual (tuxrewata, “ela mens- A imagística altamente condensada da canção afirma que as boas
trua pela primeira vez”). Isso faz com que tais meninas se tornem mais relações conjugais dependem da compatibilidade entre marido e mulher
sedentárias, restringindo-se à casa dos pais. “Gitoko twa”, “Ela fica em quanto a seu desejo sexual19. Um bom casamento é uma relação de abun-
casa”, diz-se dessas meninas. Elas se tornam o objeto do desejo sexual dos dância voluptuosa e de crescente compatibilidade mútua.
rapazes, dos ganurune de seus irmãos, que acorrem a suas casas a ver se O casamento caracteriza-se por uma transformação da linguagem.
conseguem conversar com elas, cair-lhes nas graças e dormir com elas. É O homem, ao casar, pára de falar direta e normalmente com os pais de
sempre um ganuru que faculta a um rapaz o acesso a uma dessas meni- sua esposa, em particular com a mãe dela. A comunicação entre um gen-
nas, e é como ganuru, por sua vez, que este último espera ser visto por ela. ro e sua sogra recorre ao registro vocal de respeito intenso, com emissão
Nesse momento da vida, o foco está na garganta do rapaz e na vagi- alta e aguda, ou então se faz de modo indireto, através da mediação da
na da moça. Para que se atinja a próxima etapa da sexualidade, é preciso esposa/filha. Genro e sogra são kpashiru/kpashiro, “reverenciados-proi-
que a boca da moça e o pênis do rapaz sejam ativados. Aqui, a iniciativa bidos” um para o outro. As mulheres nunca se esquecem de seus genros,
é da boca: uma moça recém-púbere é alguém que acaba de se tornar nem os genros de suas sogras. Essa intensa memória mútua é marcada
capaz de produzir grandes quantidades de cerveja de mandioca, sendo por um mútuo silêncio. Em contraste, marido e mulher “esquecem-se”
especialmente habilitada ao trabalho de mastigação da batata-doce que um do outro. As únicas formas vocativas para “esposa” e “esposo” são
ativa a fermentação da bebida. Abastecidos de cerveja, seus pais podem klojta e klujta, “como-é-mesmo-o-nome”, “coisinha”, “isso aí”. As únicas
O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO 53 54 O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO
relações que permanecem idênticas após o casamento são aquelas entre É tentador sugerir que os bebezinhos são kwamonuru, “tristes,
“cunhados” [siblings-in-law]: esquecidas desde o início, esse esqueci- angustiados, desamparados, mimosos” porque eles perderam seu “ou-
mento não precisa ser lembrado. tro”, a placenta. Nos adultos, a causa primária de wamonchi, “pesar, tris-
teza, desamparo”, é a morte de parentes próximos. Assim, seria razoável
supor que o bebê está de luto pela perda da outra metade de si. Mas isso
A transformação ampliada não parece correto, visto que wamonchi é, nos adultos, um afeto decor-
rente do nshinikanchi, faculdade que os bebês ainda não desenvolveram.
Já explicamos as implicações do intercurso sexual, da gravidez e do nas- Além do mais, a placenta não é algo a que o bebê fosse “relacionado” —
cimento de um filho. Resta agora explicarmos a gênese do nshinikanchi ela e ele eram uma coisa só.
na criança que nasceu e as conseqüências desse processo. Penso que o que une o adulto enlutado e o bebezinho não é tanto a
Em seus primeiros meses de vida, um bebê está perigosamente liga- perda que partilham, mas sua comum solidão humana. O adulto de luto
do ao interior do corpo dos pais, devido à sua identidade com os fluidos perdeu um parente querido, e assim foi deixado sozinho, abandonado20.
sexuais destes, que devem observar numerosas restrições de comporta- Um bebezinho, graças à decisão tomada no momento de sua vinda à luz,
mento até que a criança atinja um certo nível de autonomia pessoal (ver é yineru, “Humano”. Ele é um Humano que se vê em uma condição dolo-
Gow 1989; 1991). É quando pára de mamar e aprende a andar que a rosa de singularidade, a condição de não ter ninguém capaz de aplacar
criança começa a desenvolver nshinikanchi, e portanto começa a chamar seus desejos. O que lhe falta é nomolene, “meus parentes”. É nisso que
aqueles que cuidam dela por termos de parentesco ele se assemelha a um adulto enlutado, e é tal dolorosa singularidade que
Uma vez completamente desmamada, a criança é alimentada com é “vista” pelos outros.
“comida legítima”, a comida que todos os Piro comem (uma combinação O pré-requisito para que o bebê tenha parentes, pessoas para quem
de carne de caça e banana ou macaxeira). Este alimento, fornecido pelos se volta sua consciência, é a perda de parte de seu Eu originário, a saber,
pais e, através deles, por todos os parentes adultos, preenche essa nova seu Outro Primordial. Este outro eu é seqüestrado por um Humano que
interioridade formada pelas entranhas da criança. Satisfazendo sua fome, se torna o primeiro outro Humano do bebê, o nustakjeru, “meu cortador-
o alimento dirige a atenção da criança para o exterior, para o campo social do-cordão-umbilical”. Como vimos, tal pessoa, aquela que permite que a
dos “alimentadores”, isto é, daqueles que “viram aflição” na criança. criança tenha parentes, é definida como não-parente pelos pais da crian-
Na condição intra-uterina, o feto não possui interior ou exterior: ele ça. Esse Humano permite à criança ser um Humano para outros Huma-
está embrulhado em sua placenta, isto é, em suas próprias entranhas. nos, isto é, para seus nomolene, seus “parentes prospectivos” [kinspeo-
Depois do nascimento, o bebê se vê separado da placenta, processo que ple-to-be].
lhe dá um interior e um exterior. Esse interior vazio, causando-lhe fome e Perdendo o geyonchi, a nova pessoa Piro acha o nshinikanchi, e se
sofrimento, pode ser enchido de comida, a qual, ao satisfazer um desejo, volta para outros Humanos. Nshinikanchi é uma faculdade evidente que
transforma-se em nshinikanchi no exterior do corpo, faculdade de que o pode ser vista no desejo que um outro Humano manifesta de estar com o
bebê dá provas ao se mostrar atento e atraído pelos que o alimentam. Tal sujeito, e que pode ser ouvida na fala respeitosa desse outro. Como obser-
nshinikanchi manifesta-se primordialmente no uso seletivo de termos de vei anteriormente, o nshinikanchi manifesta-se pela co-presença mútua,
parentesco, isto é, na linguagem. pela co-residência em uma mesma aldeia 21. Com o passar do tempo, o
Por que as pessoas alimentam e cuidam de bebezinhos? Elas o fazem nshinikanchi se desenvolve e amplia, englobando cada vez mais gente.
porque eles são kwamonuru, “bonitinhos, tristes, coitados, pobrezinhos”. À proporção que as pessoas vão envelhecendo, elas se tornam o foco das
Isto suscita getwamonuta, “ver a tristeza, pena, desamparo, graciosidade escolhas residenciais feitas pelos mais jovens, de tal forma que as aldeias
de alguém”, o que é um aspecto do nshinikanchi. Getwamonuta, “enxer- crescem à volta do nshinikanchi dos velhos, por intermédio do nshinikan-
gar a aflição”, faz com que os parentes mais velhos busquem satisfazer chi de seus parentes mais moços. Em 1995, a maioria dos adultos resi-
os desejos do bebê, o que leva à formação de nshinikanchi à medida que dentes em Santa Clara (população total: 150) podia dar como razão prin-
ele vai crescendo. cipal para viver ali o fato de suas relações com a velha Clotilde Gordón,
O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO 55 56 O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO
que, com oitenta anos, era a única pessoa a quem todos eram explícita e antigamente, os primeiros Brancos”. Segundo as histórias dos antigos,
inequivocamente aparentados22. Tsla e os muchkajine, após ouvirem uma ave que agourava a morte, foram
O nshinikanchi se desenvolve e manifesta como uma expansão do embora rio abaixo, muito longe, “ninguém sabe para onde”, dizem os
campo social imediato, a ampliação das aldeias, a multiplicação dos narradores. Atrás de si, eles deixaram os yine, os Piro. Tsla os fez de argi-
parentes. Isso se dá, por assim dizer, como um puro produto do tempo, da la de olaria, dando-lhes vida com um sopro. Tsla lhes disse: “Fiquem nes-
experiência vivida. Nshinikanchi é algo que se desenvolve espontanea- ta terra, agora. Multipliquem-se. Multipliquem-se tendo crianças boas e
mente dentro da pessoa como uma resposta à fome saciada, mas ele leva inteligentes. Cuidem bem delas. Trabalhem. Façam roças. Derrubem
à multiplicação e ramificação dos laços entre os viventes. árvores. Plantem banana, mandioca, cana.” (Matteson 1951:52)
É, assim, o nshinikanchi que envolve a cena por onde começamos Os Piro são como Tsla. Como ele, eles fazem Humanos. Eles mode-
este artigo, com os velhos Piro contando tsrunnini ginkakle, “histórias lam novos viventes, animando-os com sua fala. Mas, ao contrário de Tsla,
dos antigos”, para seus netinhos. Uma longa vida culmina na narração os Piro não modelam novos viventes através de poderes singulares,
dessas histórias, a emissão dessa fala que, provindo dos mortos há muito “miraculosos”, nem os animam por meio de um sopro poderoso. Eles dão
olvidados, “não nos chegam, a rigor, de lugar nenhum” (Lévi-Strauss origem a seu mundo através da multiplicidade, seguindo o conselho mira-
1964:26). E ao ouvirem atentamente tais histórias, as crianças mostram culoso de Tsla para “tornarem-se muitos”.
estar desenvolvendo nshinikanchi, nesse processo contínuo de transfor- Enquanto Tsla foi capaz de manter o outro primordial junto a si sob
mação da consciência que é o parentesco piro. a forma de seus irmãos mais moços, o bebê Piro precisa perder seu outro
primordial para poder substituí-lo pelos nomolene, “meus parentes”,
uma multiplicidade de outros Humanos diferenciados. A raiz mole- signi-
Singularidade e multiplicidade fica “parente”, “amontoar uma quantidade de coisas semelhantes” e
“dez”. Ela significa, portanto, a reunião de elementos que são separada-
Voltemos à história dos antigos sobre o “Nascimento de Tsla”. Como já mente semelhantes em uma multiplicidade de elementos idênticos:
vimos, Tsla é efetivamente um kgwiyaklewakleru, um “ser miraculoso”, “parentes”, “coisas”, “números” (i.e. os dígitos das mãos). Aquilo que
da perspectiva dos xanikaka yine, o “povo de hoje em dia”, ou seja, os Tsla podia fazer sozinho, os Piro devem fazer através de sua própria mul-
Piro atuais. tiplicidade24.
Tsla emergiu espontaneamente do útero de sua mãe despedaçada, Tal multiplicidade conduz ao valor supremo dos Piro: gwashlu, o “vi-
seguido por seus “irmãozinhos”, os muchkajine. Ou seja, ele não somen- ver bem”. O termo significa, literalmente, “morar e não fazer mais nada”;
te era um agente hipersocial, falando ainda dentro do útero materno (e ele se refere à tranquilidade do dia-a-dia da vida na aldeia, a uma vida
portanto já completamente Humano antes do nascimento), mas ele tam- marcada pela ausência de qualquer tristeza, insatisfação ou ressentimen-
bém nunca se separou de seu Outro Primordial, a placenta. Com efeito, to que leve uma pessoa a querer se mudar. Esse valor se baseia na orques-
Tsla manteve junto a si esse outro, sob a forma de seus irmãozinhos e tração dos ciclos de vida de pessoas diversas pelo sexo e a idade, de tal
companheiros, os muchkajine, que emergiram do útero depois dele23. Tsla forma que os acontecimentos específicos da vida de uma pessoa (nasci-
realiza um curto-circuito radical de todo o parentesco piro, ao se auto- mento, puberdade) ramificam-se para fora, transformando a vida de
suscitar espontaneamente como um agente social completo. Ele é, assim, outros, e sendo transformados, por sua vez, por esses outros.
o criador miraculoso de si mesmo, e portanto o criador miraculoso do O que teríamos de definir como parentesco, para os Piro, é esse “vi-
mundo. Não existe nada como ele no mundo vivido contemporâneo dos ver bem”25. Ele se destaca contra um fundo cósmico de Alteridade, um
Piro. mundo de Outros com quem os Humanos de uma aldeia piro mantêm
Bem, talvez exista algo como ele. Os Piro são como ele. Tsla é enfa- uma variedade de relações, mas com quem não se pode “viver bem”.
ticamente um yineru, um Humano, um Piro. Como me disse um homem: Dentre esses Outros, os mais íntimos são os mortos, ex-Humanos que
“Tsla era baixo e de pele escura, exatamente como nós”. Seus irmãozi- tomaram o caminho da Alteridade. Meu finado compadre Artemio Fasa-
nhos, em troca, não são Humanos: eles são muchkajine, “os Brancos de bi, da aldeia de Santa Clara, assim exprimiu certo dia a essência do “vi-
O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO 57 58 O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO
ver bem”: “Eu nunca poderia ir viver longe daqui. Isso seria o mesmo Ao começar minha análise, neste artigo, por um problema de biolo-
que morrer. O que é a morte, senão que você nunca mais poderá ver seus gia, o problema da consciência e da linguagem dos humanos, procurei
parentes, seu pai, sua mãe?” evitar essa armadilha. Se, como argumentei, o parentesco piro é feito de
Não há, obviamente, nenhuma razão para que fiquemos por aqui; consciência e de linguagem, então ele é um fenômeno biológico — um
mas uma história deve parar em algum lugar, e assim este é o fim de daqueles fenômenos biológicos, aliás, sobre os quais os próprios biólogos
minha análise. Como dizem os narradores das tsrunnini ginkakle: “Seyo- admitem saber muito pouco.
katka”, “Isto é tudo, por ora”, na esperança de que mais tarde, amanhã, Começando por um problema biológico, além disso, não fiz senão
outro dia, a gente recomece de onde se parou. seguir os passos de Freud. Para Freud, o problema da consciência huma-
na sempre teve suas raízes nas ciências naturais, e especificamente na
biologia. Por mais inadequado ou absurdo que seu trabalho nos pareça
Conclusão hoje, Freud sempre esteve preocupado em ajustar as descobertas da psi-
canálise à biologia que ele conhecia. Muito do que soa esquisito ou risí-
À guisa de conclusão, gostaria de retomar rapidamente algumas das im- vel em Freud deriva da igualmente esquisita e risível biologia de sua épo-
plicações mais gerais de minha abordagem do parentesco piro e da cons- ca, anterior ao encontro de Mendel e Darwin na Nova Síntese. A única
ciência humana. Marylin Strathern observa, de uma perspectiva pós- psicanálise contemporânea que vale a pena ler, aliás, é aquela que man-
moderna, que “[p]ara o antropólogo moderno, os fatos do parentesco eram tém tal laço com a dinâmica da ciência biológica.
ao mesmo tempo fatos naturais e fatos culturais ou sociais” (1992:46). Freud também era um leitor voraz de antropologia, e sempre procu-
Isso levou os antropólogos ocidentais a projetar sobre todas as cultu- rou ligar seu trabalho às descobertas dessa disciplina. Tratava-se, mais
ras que estudam certas formulações especificamente ocidentais sobre a uma vez, da antropologia de seu tempo e lugar. Um dos maiores proble-
“natureza” e os “laços naturais”26. Foi contra tal projeção indevida que mas da antropologia de Freud era o seu “evolucionismo social” e a con-
muitos críticos da análise modernista do parentesco se levantaram; um seqüente assimilação dos selvagens das terras distantes aos antepassa-
dos mais eminentes desses críticos, David Schneider, chegou mesmo a dos remotos dos europeus, em uma tentativa de remediar, com o que se
proclamar que “o ‘parentesco’ [...] é um não-objeto, visto não existir em sabia dos primeiros, a ignorância sobre os segundos, e reciprocamente.
nenhuma cultura conhecida do homem” (1984:vii). Isso fez com que Freud (e tantos outros de sua época) reduzisse ambos a
Embora eu seja geralmente simpático a tais críticas, creio que o ver- uma massa simples e comum, o que autorizou o tratamento de todos os
dadeiro problema não está aí. O verdadeiro problema é muito mais pro- mitos dos selvagens como variantes de um único mito, o mito grego de
fundo; ele diz respeito ao modo específico pelo qual a antropologia Édipo, que se tornou o mito de origem da Humanidade. Mas, mais uma
moderna definiu o social ou o cultural em oposição ao biológico. As aná- vez, a única psicanálise contemporânea que vale a pena ler é aquela que
lises do parentesco começaram pondo a sociedade/cultura como um está comprometida com a dinâmica da antropologia.
domínio de objetos e de métodos metafisicamente distinto de seu “ou- Sabemos hoje muito mais sobre os mitos, graças às monumentais
tro”, a natureza. Assim, tais análises se viram obrigadas a demarcar rigi- Mitológicas de Lévi-Strauss. Este autor mostrou claramente que cada
damente a fronteira entre os dois domínios, abandonando à biologia mui- mito, em cada evento narrativo, é único, irredutível a uma versão mais
to do que elas gostariam de explicar. Pior ainda, o estudo da natureza antiga ou mais autêntica; ele mostrou também que os mitos de Édipo são
viva terminou por se reinfiltrar nessas análises, pois muitos antropólogos apenas um conjunto dentro de uma multidão. Todos os mitos, entretanto,
vieram a confundir a ciência da biologia com o objeto desta ciência, como estão ligados sistematicamente por meio de um sistema multidimensio-
se constata quando se os ouve falar em “parentes biológicos” ou em “fa- nal de transformações. Tal sistema, argumenta Lévi-Strauss, é o próprio
tos biológicos”. Isso sugere que a abordagem sociocultural sempre este- pensamento humano buscando apreender as transformações temporais
ve fadada ao fracasso, já que os antropólogos atribuíam uma auto-evi- do mundo onde ele se acha mergulhado27. No “Finale” de L’Homme Nu,
dência ou uma transparência à construção dos argumentos dos biólogos Lévi-Strauss recusa o reducionismo simplista da psicanálise freudiana
que eles não reivindicavam para os seus próprios. clássica, escrevendo:
O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO 59 60 O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO
“Menos confusões teriam sido suscitadas pela noção de natureza humana, Notas
que persisto em empregar, se se tivesse advertido que não a concebo como
um edifício de estruturas acabadas e imutáveis, mas sim como matrizes a
partir das quais se engendram estruturas que, embora pertencendo todas ao 1 O trabalho de campo no Bajo Urubamba foi financiado pelo Social Science
mesmo conjunto, não permanecem necessariamente idênticas ao longo da Research Council (Grã-Bretanha), pela Nuffield Foundation e pela British Acad-
existência individual ou, no caso das sociedades humanas, em todo tempo e emy. Por suas sugestões, eu gostaria de agradecer a Christina Toren, Heonik
lugar” (1971:561). Kwon, Jean Lave, Borut Telban e Andrew Holding.
6 Argumentei em outro trabalho (Gow 1991) que os velhos têm essa capaci-
dade de dar forma a essa fala especial por causa de sua posição existencial como
Peter Gow é professor da Universidade de Manchester. Em 1996, foi profes- gente que “sabe onde quer morrer”, isto é, que está completamente resignada
sor-visitante do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social diante da morte próxima.
(PPGAS) do Museu Nacional/UFRJ. Publicou Of Mixed Blood: Kinship and
History in Peruvian Amazonia, além de artigos em revistas especializadas.
O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO 61 62 O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO
magi, “cunhada”, e panu, “cunhado”. Mas estes são, por razões óbvias, pouco usa- 18 A palavra yanasa foi-me explicada como se referindo a “uma mulher mes-
8 O mito piro de origem das manchas da lua, apesar de sua semelhança com 19 As canções de amor piro são marcadas por um “deslizamento” complexo
outros mitos ameríndios sobre o tema, destaca-se por não mencionar o motivo do da posição de sujeito, de tal forma que o ouvinte preferencial deve deduzir onde
incesto. se colocar no jogo de deslizamento do sujeito. O “tu” da Yanasa shikale é a “ami-
ga”, mas a canção é dirigida aos ouvidos do marido da cantora. Trocando em miú-
9 Os mashko são usualmente identificados aos povos de língua harakmbút dos, a cantora diz ao marido que eles formam um casal sexualmente compatível,
do rio Madre de Dios, como os Amakaeri. e portanto que ele não tem por que desejar outras mulheres que, por sua vez, são
sexualmente compatíveis com seus próprios maridos. Ver Gow (1991) sobre as
10 A passagem leva a crer que a sugestão partiu de Matteson, não de um Piro. relações entre compadres e comadres.
11 O marido-Jaguar pode ser ou não o genitor de Tsla. Em algumas versões 20 Ver Gow (1991) para uma discussão das relações complexas de abandono
ele é, em outras fala-se em um genitor humano, e muitas nada dizem a respeito. e solidão entre parentes vivos e mortos.
A questão não tem muita importância, por motivos que se tornarão claros mais à
frente. Mas o Jaguar é indubitavelmente o pai de Tsla. [N.T. – O autor está aqui 21 Viver longe dos parentes é “esquecer-se” deles, e todo esquecimento entre
contrastando genitor e pater, ou “pai biológico” e “pai social”.] parentes leva ao ressentimento e, em última análise, à fragmentação das aldeias.
Ambos os resultados têm a qualidade negativa do que é mshinikatu, “esquecidi-
12 Uma pessoa mais velha pode se dirigir a outra mais moça pelo nome ou ço, desamorável, desrespeitoso, insensível”.
apelido, alternativamente ao termo genérico “parente mais jovem”, mas esta últi-
ma deve responder utilizando um termo de parentesco. 22 Ao voltar aos Piro em 1995, após sete anos de ausência, surpreendi-me ao
achar Santa Clara tão pouco mudada, apesar de todo o sofrimento causado pela
13 Esses termos são estendidos aos cônjuges dos cortadores. guerra civil peruana nessa região e da morte de dois líderes da aldeia, entre várias
outras pessoas. Tenho fortes suspeitas de que foi graças à longevidade de Clotil-
14 Nos funerais piro, esses adolescentes são convidados a beber e “divertir- de Gordón que a aldeia permaneceu unida.
se”. Durante um velório, os vivos estão atormentados pela memória (nshinikanchi)
aterrorizante do morto, assim como (e porque) o morto se lembra dos vivos. Se um 23 Poder-se-ia dizer que Tsla é miraculoso porque ele já tinha parentes antes
velório é marcado por uma tristeza excessiva, costuma-se culpar os parentes enluta- mesmo de haver nascido. Essa formulação ajuda a medir a enorme distância entre
dos, dizendo que eles não providenciaram álcool em quantidade suficiente para que as concepções piro e ocidental do parentesco.
os jovens se divertissem — o potencial de exuberância dos rapazes não foi realizado.
24 Em piro, as palavras yine, “Humanos”, e yineru/yinero, “Humano mascu-
15 Esta análise encontra eco no apelido usado comumente pelos Piro para lino/feminino”, possuem uma característica excepcional. Yine é, tecnicamente, a
falar dos Campa-Asháninka vizinhos: Pishinto, que é a forma campa para “tua forma plural da raiz nominal yi- seguida do “pluralizador”-ne, mas essa raiz nomi-
filha”. Isto seria uma contração da frase: “Pamenero pishinto!”, “Dá-me tua nal não pode tomar a forma singular (não existe a palavra yi em piro). Assim, as
filha!”, gracejo-padrão que marca as interações de homens Piro e Campa. formas singulares dos Humanos (yineru e yinero, conforme o gênero) são a singu-
larização do que é intrinsecamente um plural. Com a exceção dos “grupos nomi-
16 Um bom exemplo disso são os Conibo, de língua Pano, vizinhos setentrio- nados endógamos” (ver Gow 1991), essa situação não tem paralelo na língua piro.
nais dos Piro do Urubamba. Os Piro chamam esse povo de Chayiko, “muito cha-
yi” (da palavra conibo chai, que corresponde ao piro ganuru). Ou seja, os Piro 25 Isso não se choca, obviamente, com a identificação do parentesco à memó-
chamam os Conibo pelo aumentativo de um termo que os Conibo usam para falar ria, que avancei em trabalhos anteriores (Gow 1989; 1991). “Viver bem” é ao mes-
deles Piro. Os Conibo são, assim, os “afins potenciais plenos” dos Piro. Eles são mo tempo o produto e o produtor da memória.
também fortemente endógamos; não sei de nenhum intercasamento Piro-Conibo.
O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO 63
3322 20 SEMESTRE 95
ESTUDOS FEMINISTAS 321 N 2/95 ANO
entidade matrilinear em sua forma pura uma entidade so de concepção No que se referia a concepção eles
como essa não e viva So se torna viva atraves da simplesmente facilitavam o processo de fertilização e
nutrição paterna e dos trabalhos de outros em seu favor implantação de gametas a fonte direta das futuras
Deste modo o ser humano vivo nas Trobriands tem pais substância e identidade da criança eles proprios não
que contribuindo com caracteristicas muito diferentes eram essa fonte Em outras palavras como o pai das
para a vida do filho o introduzem em grupos muito Trobriands o clinico de fertilidade ordinariamente faz o
diferentes de relacionamentos A teoria duogenetica dos papel de facilitador Ao contrario do pai das Trobriands
euro-americanos modernos por outro lado simplesmente porem o clinico não espera que seus atos facilitadores
atribui a contribuição paterna multiplicada por dois e criem um relacionamento duradouro com a criança e
como se a pessoa tivesse dois concebedores individuais não são base de parceria com a mãe Mas se um unico
como sempre teve dois lados no reconhecimento ato de intercurso basta para deixar uma mulher gravida
bilateral dos parentes do pai e da mãe Contudo um isso pareceria impedir o ato provocativo que prepara a
elemento da Sindrome do Nascimento Virgem da deca- mulher para a maternidade
da de 90 nos convida a especular aqui sobre a assimetria Em retrospecto talvez a Sindrome do Nascimento
entre masculino e feminino Virgem nos diga alguma coisa sobre o conhecimento
Eu disse que o pai pode ser trazido ao debate da (dogma) que não foi tornado explicito e esse conheci-
Sindrome do Nascimento Virgem como a expressão de mento não era sobre paternidade mas sobre maternida-
relacionamentos Ora uma compreensão monogenetica de Talvez um dos problemas epistemologicos postos pelas
do pai como unico concebedor ou criador implicaria Trobriands tenha sido a ideia de maternidade sem sexo
que a mãe foi pouco mais que portadora ou contenedora A fusão desenvolvimental do processo biologico
(como acontece no exemplo turco que Delaney exami- da mãe dar a luz com o fato de ela ter concebido
na que tem segundo ela uma herança comum em atraves do intercurso sexual foi outrora central para as
tradições bíblicas) Mas e se o homem que cria o filho e ideias euro americanas de parentesco A gravidez
tambem em algum sentido encarado como criando a implicava ligação sexual da parte da mãe Essa ligação
mãe'? Ele seria simultaneamente a origem do ato criador não apenas vinha antes no tempo necessaria e demons-
e estaria comprometido com a mãe seria em virtude de trada pela gravidez como tambem os euro-americanos
sua singular criatividade que um relacionamento passava achavam que o desenvolvimento do embrião era um
a existir Isso combinaria com uma teoria monogenetica processo espontâneo e inevitavel que resultava do
ou duogenetica de procriação Com a ultima o homem momento da concepção O corpo da mãe reagia
podia não ser o unico gerador (genetico) mas seu ato automaticamente ao feto/embrião em crescimento
individual de intercurso e so de que se precisa para a assim que ele fosse iniciado No pacote de conceitos
mulher ficar gravida Poderiamos tomar isso como um que envolve as ideias euro-americanas de concepção
exemplo de bom senso euro-americano não fosse pelo possivelmente nos deparamos com a ideia de que o
debate sobre a Sindrome do Nascimento Virgem Na corpo materno tem de estar preparado para o filho Mas
ausência de qualquer outra intervenção criativa o clinico a preparação pode ser anterior — qualquer ato de
e comprometido por o fazerem sentir-se o unico criador intercurso serve O que preocupava os clinicos era a
Uma das preocupações que perturbaram os implantação de um embrião fertilizado em um corpo não
clinicos londrinos e foi expressa nesta Sindrome foi o preparado pelo sexo
papel quase sexual em que eles se viam colocados As Especulo que ha aqui a sugestão de um papel
mulheres se apresentavam como virgens mas os escru- sexual distinto para o gerador euro-americano não
pulos dos homens apontavam para mais que as questões relacionado a concepção em si Pareceria que não e a
tecnicas que a virgindade tornava dificeis Para repetir constituição do filho que esta em questão apenas mas a
uma expressão das Trobriands se houvesse — em algum da mãe Se assim e o gerador homem num tal pensa-
ponto — um homem (ou mesmo uma mulher) para abrir mento euro-americano não apenas faz o filho sozinho ou
o caminho o clinico da Dl não se sentiria mais a vontade na teoria duogenetica peia parceria com a mãe tom-
Ora no caso das Trobriands o ato sexual do pai bem faz a mãe
serve tanto para dar forma ao corpo da criança quanto Ha muito e convencional nas discussões antropolo-
para dar forma a passagem pela qual a criança nasce gicas acerca da parentalidade comparar os problemas
Pode-se observar talvez que os escrupulos dos cincos naturais que a cultura enfrenta na definição do pai em
britânicos aparentemente vinham de um acanhamento contraste com a mãe os processos fisicos da mãe
sexual relacionado com seus sentimentos sobre o proces- garantem continuidade com o filho enquanto as rela-
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Esse texto foi traduzido do inglês por Ethon A. S. da Fonseca. Publicado em 2002 “A vingança de Gostaria de agradecer a Rosangela Araujo, Miriam Chagas, Heloisa Paim, Ciana Vidor, e Diego Soares
Capitu: DNA, escolha e destino na família brasileira contemporânea”. In Gênero, Democracia e Silveira que, a partir de observações etnográficas realizadas no final dos anos 90 em bairros populares
Sociedade Brasileira (Cristina Bruschini e Sandra Unbehaum, orgs.). São Paulo: Editora 34. de Porto Alegre, deram importantes contribuições a este artigo, mediante observações pertinentes a
famílias da classe trabalhadora em Porto Alegre.
2
vida de todos os casais, “a ciência” alcança lá onde as novas atitudes não chegam. Dom da família moderna. No alvorecer de novos padrões de família, a tradicional psicologia
Casmurro e sua mulher, tivessem vivido neste novo milênio, certamente saberiam que freudiana passou por sérias revisões, por exemplo, abrindo mão da crença de que
poderiam pôr fim às suas dúvidas através de um teste de DNA. casamentos desfeitos estão predestinados a produzir crianças infelizes. É, sem dúvida,
Mas, numa reflexão em ligeiro descompasso com os anúncios, em geral devido a esse mesmo clima que feministas da academia passaram praticamente em
otimistas, da nova tecnologia, gostaria de perguntar: será que esta jogada – a verificação massa a desmistificar a noção de família nuclear, revelando-a como uma ideologia
da paternidade “verdadeira” da criança – teria sido recomendável? Indo mais limitada a determinadas circunstâncias históricas. Teria alcançado o seu apogeu depois
diretamente ao ponto: quais são as conseqüências potenciais desse tipo de tecnologia da 2a Guerra Mundial, entrando então num declínio definitivo 3 .
para as relações de gênero no âmbito do casal? Será que as mulheres, tais como Capitu, Seguindo essa linha de raciocínio, devemos notar que a atual ênfase na escolha e
ganham ou perdem algo no processo? Será que os homens se submetem a essa afeição não somente faz do término de certas relações familiares algo mais fácil, mas
tecnologia com a intenção de aumentar a sua responsabilidade paterna e o compromisso também permite a legitimação de formas familiares que até recentemente não eram
com o casal, ou, pelo contrário, de cortar os laços sociais negando supostas relações aceitas. O relacionamento entre pais e filhos adotivos perdeu algo de sua aura infame, e
consangüíneas? Creio que o assunto é discutível – requerendo o exame de vários a filiação adotiva que, historicamente, era estigmatizada por ser associada com o
elementos do contexto histórico particular. Assim, antes de considerar os usos da vergonhoso status de ilegitimidade, foi levantada por certos entusiastas como bandeira
tecnologia do DNA no Brasil contemporâneo, sugeriria que fizéssemos uma pausa para da “verdadeira família”. Na retórica destes últimos, as crianças adotadas, enquanto
considerar, por um momento, algumas forças que no fundo participam na modelagem filhos “escolhidos”, podem ser considerados, de alguma maneira, mais valiosas do que
das práticas familiares atuais. aquelas que são simplesmente nascidas dos seus pais. Da mesma forma, parceiros do
mesmo sexo ganharam um espaço importante; se a afeição é a verdadeira base do
Escolha e destino
relacionamento, por que o casal seria limitado a um relacionamento heterossexual
Enquanto a legitimidade versus ilegitimidade era a dicotomia reinante da era centrado em torno da reprodução biológica? O fato é que nesta era “pós-moderna”, ao
pré-contemporânea (separando esposas de concubinas, filhos legítimos de bastardos) o menos teoricamente, nenhuma forma de família em particular é descartada de antemão
sistema atual de classificação tem acentuado a divisão entre parentes “eletivos” e os como inadequada 4 .
consangüíneos (Ouellette, 1998). Dito de outra forma, a tendência atual é de comparar o Essas novas atitudes estão longe de ser universalmente aceitas. Diante delas,
“parentesco de escolha” (baseado acima de tudo na afeição mútua), com o parentesco aportam-se objeções de diferentes ordens. Terapeutas conservadores ainda prevêem
baseado naquilo que é percebido como “os fatos imutáveis da biologia”. O mais problemas nos filhos de pais divorciados e certos trabalhadores sociais ainda
3 4
consideram a adoção como, na melhor das hipóteses, uma “imitação da natureza”. vinculadas biologicamente a ambos os membros do casal (como no caso de duas
Sabemos que, para casais homossexuais, os obstáculos sociais e institucionais à mulheres, uma emprestando seu útero para o óvulo da outra)? 5 .
paternidade ou maternidade continuam incontáveis. Basta considerar, no caso brasileiro, A nova e sofisticada tecnologia reprodutiva foi cunhada para permitir
quantos homossexuais assumidos, apesar das garantias constitucionais contra a praticamente a todo indivíduo (com parceiro ou sem) a engendrar filhos de seu sangue.
discriminação, têm conseguido adotar legalmente uma criança... Por outro lado, É portanto fruto de uma fixação genealógica, mas ela também ajuda a perpetuar a
pesquisadores progressistas lembram que, para muitas pessoas, o abandono do modelo fixação. O mesmo poderia ser dito de uma multiplicidade de empreendimentos
de família nuclear não é tanto uma questão de “escolha” quanto a conseqüência científicos recentes: a atenção ao projeto genoma, as interpretações biogenéticas de
indesejada de fatores externos – antes de tudo, da pobreza. E, finalmente, existem doenças mentais, os bancos de esperma estocados com as secreções de vencedores do
críticas que questionam a própria noção de “escolha”, sugerindo que ela seja inspirada prêmio Nobel...(ver Rabinow, 1999, Finkler, 2001). Embora a maioria das pessoas
num conjunto de valores individualistas coerentes com a sociedade capitalista e evidentemente não tenha qualquer experiência direta com esses artefatos da ciência
consumista (Strathern, 1992). Sejam quais forem as objeções, é evidente que as moderna, é de supor que eles ocupam um lugar significativo no imaginário do mundo
concepções modernas da família, com a ênfase crescente na afeição e escolha, ocidental (Strathern, 1995). Assim, seja em Paris ou Porto Alegre, encontramos as
afrouxaram os elos que amarravam impreterivelmente o parentesco aos fatos “naturais” mesmas crenças básicas – quais sejam: juntamente com a afeição e a “escolha”, o
das relações consangüíneas e reprodução biológica. parentesco é uma questão de sangue e “destino”.
É curioso notar que, durante as duas últimas décadas, houve uma recrudescência Para ilustrar esses princípios estruturais do parentesco moderno, passamos agora
também das concepções biológicas de parentesco. “O sangue é mais espesso do que a para um caso concreto, embutido num contexto histórico específico. Ao descrever o
água” é um adágio de extrema importância no modo euro-americano de pensar as caso de Leila, menina decidida de treze anos, morando em um bairro periférico de Porto
relações de parentesco (ver Schneider, 1984). Hoje, como atesta o negócio emergente Alegre, espero mostrar como essas estruturas funcionam na vida de indivíduos de carne
das árvores genealógicas de família – assim como a popularidade crescente das reuniões e osso. Como veremos, embora influências “globais” também estejam presentes, há, no
de família que confrontam pessoas que não têm mais nada em comum além de um certo modo de agir dessa jovem mulher, algo de particularmente brasileiro.
sobrenome – a idéia de descendência genealógica parece não ter perdido nada do seu
apelo (ver, por exemplo, Gaunt, 1995). Enquanto a “família de escolha” descrita acima
DNA na favela brasileira
parece enquadrar o lugar da família no âmbito de uma cultura moldada pelo homem, a
noção de sangue, com toda a sua conotação genética, faz com que a família recaia nos Leila mora num distrito próximo a Porto Alegre, numa modesta mas bem
imutáveis fatos da natureza. Paradoxalmente, é precisamente nas relações familiares, construída casa de madeira, com a avó materna e uma tia celibatária. Ela vai bem na
que melhor demonstram a idéia de “escolha”, que nós vemos a reafirmação estridente escola e aparenta ser uma pré-adolescente bem ajustada. Recentemente, quando atingiu
do sangue. Por que outro motivo, por exemplo, as crianças adotadas teimariam tanto em a puberdade, contudo, decidiu levar adiante um plano longamente acalentado:
conhecer suas origens genealógicas ( Yngvesson, 2000)? Por que outro motivo identificar o seu pai. A mãe de Leila mora na casa ao lado, com seu marido dos últimos
parceiros do mesmo sexo tentariam, tão apaixonada e dolorosamente, gerar crianças sete anos, um técnico eletrônico de meia-idade. Ela nunca escondeu a identidade do pai
de Leila nem a história de seu nascimento: tinha quinze anos, não muito mais do que a
filha hoje, quando conheceu o advogado, com mais de três vezes sua idade, que veio a
5
Se laços genealógicos não fossem tão importantes, por que, por exemplo, as pessoas se prestariam ao
processo exaustivo da maternidade assistida ao invés de simplesmente adotar uma criança? (ver
5 6
ser seu amante. O envolvimento durou quase quatro anos, até que a personalidade situação, de forma a permitir a inserção legal de seu pai. Ela rapidamente ficou sabendo
tempestuosa da mãe de Leila e as obrigações do advogado para com sua “família que, para determinar a identidade de seu pai mediante o teste de DNA, teria de envolver
legítima” os levaram a romper o relacionamento. A mãe então teve outro romance, que a “mãe que me pariu”, e não a “mãe que me criou”. Assim, seu primeiro passo foi o de
durou por um espaço semelhante de tempo e que produziu uma segunda filha. A mãe de destituir, perante a corte, a avó de seu status materno, de modo a estabelecer uma nova
Leila nunca pediu pensão a nenhum dos pais de suas filhas, nem pensou em registrá-las certidão de nascimento, refletindo a ordem biológica das coisas.
em seus nomes. As duas meninas, criadas pela avó materna, foram registradas como “de Reconhecemos na situação dessa família muitos dos elementos que apontamos
pais desconhecidos”. acima como sendo típicos das “famílias pós-modernas” 6 . Aqui nós temos o
A irmã mais nova de Leila, conforme a história contada pela mãe, nunca descasamento acompanhado por fortes laços de solidariedade entre gerações; temos
pareceu muito perturbada pela ausência de um progenitor paterno em sua certidão de também uma questão de “cultura” prevalecendo sobre “fatos da natureza”: “mãe (ou
nascimento. Leila, contudo, desde muito cedo, perguntava incessantemente a respeito de pai) é quem criou”, as pessoas dirão, descolando os laços familiares da biologia 7 . De
suas origens e, à idade de treze anos, um pouco a contragosto da mãe, dirigiu-se ao fato, Leila navega entre as suas diferentes mães assim como filhos de pais divorciados,
escritório do reputado pai para anunciar seus anseios. Confrontada com a indiferença na Europa e na América do Norte, transitam entre diferentes pares de pais (Théry,
cética do homem que não acreditara ser ela sua filha, levou o caso adiante. 1993). De forma semelhante, poderíamos sugerir que o modo com que a mãe de Leila
Tivesse nascido dez anos mais cedo, Leila teria tido pouca sorte. É claro que lidou com sua primeira gravidez seja de alguma forma semelhante à “produção
investigação de paternidade não são nenhuma novidade, mas no caso de Leila haveria independente” (Dauster, 1990) ou mesmo ao “nascimento virgem” (Strathern, 1995)
poucas chances de um desfecho satisfatório. Afinal de contas, muitos anos haviam se reivindicados por mulheres em melhores condições econômicas. Por que nunca exigiu
passado desde o tempo do nascimento de Leila, seus pais biológicos nunca moraram nada dos seus companheiros? É possível que, na época do nascimento de sua primeira
juntos e sua mãe jamais fizera tentativa de negar que tinha vivido diversas aventuras filha, não soubesse ou não se sentisse autorizada a exigir seus direitos. Mas é também
amorosas durante a adolescência. No entanto, no ano de 2000, Leila sabia que havia um possível que simplesmente quisesse evitar a interferência de uma figura paterna
modo de confirmar que este homem era seu pai: o teste de DNA. incômoda na vida de sua filha.
A família “pós moderna”, como sugeri acima, mereceu toda uma gama de novos
Um dos primeiros obstáculos para declarar a identidade do pai de Leila mediante termos: “produção independente”, “descasamento”, “família de escolha” etc. Famílias
testes de DNA foi, acredite-se ou não, o estabelecimento da verdadeira identidade de dos setores mais pobres da sociedade, contudo, devem em geral se contentar com
sua mãe. Leila, de fato, tinha, como muitos de seus amigos, crescido entre diferentes termos mais antigos que, na maioria dos casos, carregam conotações pejorativas: “mães
“mães” (ver Fonseca, 1995). Neste caso em particular, a avó materna (que tinha pouco solteiras”, “famílias desestruturadas”, “filhos abandonados”, e assim por diante. No
mais de quarenta anos quando a criança nasceu) registrou a menina ilegalmente como caso de Leila, nós podemos adicionar a ilegalidade aos estigmas que podem envolver o
sendo a sua filha biológica. Leila, ao que parece, foi uma criança adoentada, e como sua comportamento de sua família, pois sua certidão é flagrantemente ilegal. Comumente
própria mãe, uma adolescente desempregada, não tinha seguro de saúde, a única conhecida como uma “adoção à brasileira”, envolve o delito de “falsidade ideológica”.
esperança de um atendimento médico adequado era registrá-la como filha de sua avó.
Embora chamasse a mulher que a criou de “mãe”, Leila acostumava visitar sua “outra” 6
Com esta reflexão, fazemos eco à análise de Judith Stacey que vê as famílias de classe trabalhadora no
mãe (sua progenitora), e parecia não fazer qualquer confusão quanto aos distintos Silicon Valley (Califórnia), que pesquisou, como pioneiras da família pós-moderna contemporânea
(1992, p.103-4).
7
papéis de ambas. Com treze anos de idade, o seu único problema era ajustar essa Seria enganador supor que a biologia desempenhou tradicionalmente pouca ou nenhuma importância na
maioria das famílias de classe trabalhadora. Convivendo ao lado de expressões como “mãe é quem
criou”, existem outras como “mãe é uma só”, e “o sangue puxa”. Contudo, sempre houve uma certa
Franklin, 1997, Oliveira, 1997, Scavone, 1998, Luna 2000). margem de manipulação em relação às atribuições de “pai real” e mesmo de “mãe real”.
7 8
Felizmente, em seu caso, como na maioria dos outros casos do tipo, o aparato judicial, dos três laboratórios locais que realizam o teste, recebe levas de pessoas de todos os
exercendo complacência para com os costumes locais que não envolvem intenções meios sociais e estilos de vida. O teste é caro – R$ 900,00 o conjunto de impressões –
maliciosas, deu mostra de cumplicidade, e o status materno foi oficialmente transferido mas, desde março de 2000 (seguindo uma tendência que já afetou muitos outros estados,
da avó para a mãe sem maiores complicações. como o Rio de Janeiro, Ceará, Paraná e São Paulo) a legislação do estado do Rio
Agora, deixando o caso de Leila, teçamos especulações acerca do impacto do Grande do Sul incluiu o teste nas medidas providenciadas pela “justiça gratuita”.
teste de DNA sobre a população como um todo. Mesmo hoje, de acordo com o diretor do laboratório, as pessoas com rendimentos
modestos, desejando evitar a espera de dois anos na lista dos serviços públicos, tomam
Mater semper certa est; pater autem incertus – nunca mais
dinheiro de empréstimo para pagar um laboratório privado e providenciar resultados
De fato, exames de sangue de um tipo ou outro têm sido usados há muito tempo mais rápidos.
para provar a filiação genética, e os códigos legais de vários países foram ajustados de O depoimento do diretor não foi inteiramente inesperado. Pesquisa etnográfica
8
modo a incluir a nova tecnologia nas decisões judiciais . A margem de erro era, a em grupos populares de Porto Alegre tinha revelado o teste como um elemento quase
princípio, muito grande, chegando a 30%. Mesmo nos testes HLA (desenvolvidos nos corriqueiro da vida cotidiana. Não era incomum encontrar mulheres reunidas em
anos cinqüenta e usados no Brasil desde os anos 80), os 92% a 95% de precisão eram círculos de fofocas trocando informações e especulando sobre os resultados de testes de
considerados ainda insuficientes; na base de uma dúvida de 5% a 8%, homens cuja paternidade. Uma assistente social, tentando informar as mulheres da favela quanto aos
paternidade havia sido legalmente declarada podiam apelar com boas chances de seus direitos, descobriu que elas conheciam mais detalhes sobre o teste do que ela. Uma
sucesso. O exame de DNA, contudo, supostamente garante resultados com 99,9999% de mulher já tinha passado por dois testes – HLA e DNA –, ambos com resultado positivo,
9
margem de acerto . Assim, não é de se surpreender que o teste de DNA, apenas cinco antes de conseguir pensão alimentícia do pai de seu filho. Outra revelou às amigas que
anos depois de sua invenção (1984), já estava sendo aperfeiçoado por cientistas estava pensando seriamente em fazer um teste com o filho, inconvenientemente louro,
brasileiros. Bastaram, então, uns poucos casos envolvendo figuras públicas – tais como para afastar as suspeitas do marido ciumento e aplacar as implacáveis línguas
Pelé, Maluf e, mais recentemente, Mick Jagger – para que o uso potencial do teste fosse fofoqueiras da vizinhança 11 . Conforme uma ONG implantada nas favelas para facilitar
reconhecido por leigos no Brasil e no resto do mundo. acesso feminino à justiça, boa parte das mulheres que fizeram uso dos seus serviços
Em janeiro de 2001, com o intuito de investigar a evolução dos usos dessa estavam movidas pela esperança de fazer valer o direito aos testes de DNA bancados
tecnologia, entrevistei o diretor de um laboratório onde esse tipo de teste é realizado, em pelo poder público (Bonetti, 2000). Uma de minhas amigas, moradora da favela,
Porto Alegre 10 . Ele lembra que, quando abriu seu estabelecimento, em dezembro de confidenciou-me que, assim como uma dúzia de outros membros da família, emprestara
1993, a maioria dos testes, evidentemente envoltos pelo segredo, eram feitos com dinheiro à sobrinha para pagar um exame de DNA. A expectativa do investimento ser
membros das classes abastadas. Contudo, pelo final do ano 2000, sua clínica, hoje um compensador era grande, assim como o medo de um resultado negativo – o que anularia
toda esperança do empréstimo ser devolvido.
8
Na França, uma lei de 3 de janeiro de 1972 introduziu a idéia de verdade biológica na discussão sobre Mesmo as pessoas que não possuem qualquer experiência pessoal têm, através
filiação (Laborde-Barbanègre, 1998); em Portugal, a reforma da lei trouxe mudanças semelhantes em
1977 (Veloso, 1997).
da televisão, amplo conhecimento sobre os testes de paternidade. Ratinho, o famoso
9
Cientistas que lidam com o assunto parecem estar convencidos de que o teste é praticamente infalível, show man da TV brasileira, é conhecido pela maneira com que paga, para certas
como demonstra o título de um artigo acadêmico: “O DNA como (única) testemunha em determinação
de paternidade” (Pena, s/d). Os críticos, por outro lado, sustentam que não há nenhuma autoridade mulheres, os testes de DNA, anunciando os resultados ao vivo durante seu programa.
externa averiguando a qualidade dos laboratórios e técnicos que conduzem os testes (Leite, 2000). Uma
associação profissional – Sociedade Brasileira para a Investigação Genética (SBIG) – fundada em 2000
com o propósito de garantir a qualidade do controle em testes DNA ainda exerce apenas uma influência
11
incipiente. Baseio-me nas anotações de campo de maio de 1999 de pesquisadores associados com o NACI
10
Agradeço Eduardo Lewis, do DNA4 por ter gentilmente concedido esta entrevista. (Núcleo de Antropologia e Cidadania): Heloísa Paim e Ciana Vidor.
9 10
Um outro acesso a esse tipo de informação é propiciado pelos anúncios comerciais O fato de os testes de paternidade terem um amplo apelo, atravessando inclusive
colocados em lugares públicos – por exemplo, na janela de trás das minivans que as fronteiras de classe, faz com que se tornem um item “quente” para o mercado – tanto
circulam pelas ruas de Porto Alegre (ver, também, Roury 2001). Existe agora uma para os jornais e apresentadores de televisão, que tentam cativar a audiência, quanto
rubrica especial nas páginas amarelas do guia telefônico de Porto Alegre, onde se lê para empreendedores financeiros buscando um investimento com lucro seguro. A oferta
“laboratórios para análises de DNA” e no interior da qual três estabelecimentos expõem desse serviço particular é, assim, regulada por diversos fatores institucionais ligados a
grandes anúncios com textos como o seguinte: “pioneira na investigação da paternidade leis e ao mercado da biotecnologia. Esses fatores, contudo, não revelam muito a respeito
no RGS, qualidade internacional.” das motivações daqueles que estão requisitando o serviço. É olhando mais de perto que,
Uma rápida verificação, nos casos de jurisprudência no estado de Rio Grande do uma vez mais, nos aproximamos de nosso interesse principal: a possível mudança nos
Sul também traz à tona dados interessantes. Durante os anos noventa, a quantidade valores envolvidos nas novas estruturas familiares.
anual dessas investigações oscilava entre 50 e 100. Esse número aumentou rapidamente
Por amor ou dinheiro?
por volta de 1996 e hoje aproxima-se da casa de 600 por ano. É importante lembrar que
esses índices abrangem apenas uma pequena parte dos casos jurídicos, ou seja, aqueles E. Bilac (1998), na sua análise do código brasileiro, sugere que até bem pouco
que chegam à corte de apelos. O diretor do laboratório que entrevistei estima que entre tempo atrás a legislação era voltada para a proteção dos homens legalmente casados,
1500 e 2000 famílias passam mensalmente pelos laboratórios locais. Esse número não para livrá-los das implicações de seus casos extraconjugais e de filhos ilegítimos não
inclui os testes realizados por intermédio dos inúmeros serviços comerciais na Internet, desejados. Em outras palavras, estava mais voltada para a manutenção dos privilégios
os quais discutirei abaixo de forma mais detalhada. de uma classe senhorial do que para a promoção do bem-estar de mães e filhos.
Conforme Bilac, esse sistema era legado da família patriarcal em que ricos
O que toda essa atividade sugere é que os testes de DNA tornaram-se um proprietários de terra acostumavam manter amantes – mulheres de baixa renda ou
negócio extremamente lucrativo para os empreendedores. O diretor do laboratório escravas.
salientou que os testes de DNA para verificação de paternidade, apesar de compor Durante o último século, filhos e filhas “naturais”, fruto ilegítimo de uniões
menos do que a metade das atividades do laboratório, são a maior fonte de rendimentos. consensuais haviam conquistado certo terreno no que diz respeito ao direito de
A disposição do Estado em arcar com o financiamento desses testes provocou, por todo reconhecimento da paternidade e da reivindicação dos direitos de herança. No entanto,
o país, uma espécie de corrida aos fundos públicos. Por exemplo, em 1999, o estado de foi somente a partir de 1949 que a lei 883 permitiu a um homem casado reconhecer a
São Paulo destinou 5,4 milhões de reais para testes DNA de paternidade. Pouco tempo criança nascida de uma relação extraconjugal e, mesmo então, apenas depois da
depois, deflagrou-se uma disputa entre os diferentes laboratórios – públicos e privados – dissolução legal (desquite) do seu casamento. Essa lei permitiu à criança nascida de
concorrendo pelo contrato. O IMESC (Instituto de Medicina Social e Criminologia do uma relação adúltera mover uma ação de reconhecimento de paternidade contra o seu
Estado de São Paulo) expandiu seus próprios equipamentos para abarcar o serviço que reputado pai. Contudo, mesmo após o reconhecimento oficial de um vínculo de
estava previamente destinado a um laboratório universitário. Para diminuir uma lista de parentesco, a criança de uma relação extraconjugal (assim como a criança adotada)
espera que incluía 13.500 famílias, estavam esperando realizar, até julho de 2000, mil somente poderia reivindicar bens e valores que não ultrapassassem a metade do
testes mensais. Mesmo com a projeção de uma baixa do preço dos exames (dos atuais montante normal de um herdeiro “legítimo” do grupo dos irmãos. Essa forma de
R$1300 para aproximadamente R$600 por família) o custo dessa atividade discriminação contra os filhos de relações extramatrimoniais esvaneceu com a lei do
provavelmente iria ultrapassar em muito os 5,4 milhões previstos. divórcio de 1977. Esta assegurava que, uma vez reconhecido em testamento fechado, o
vínculo filial era irrevogável, e assim o filho poderia aspirar aos mesmos direitos de
11 12
herança que um filho legítimo. No entanto, foi apenas com a constituição de 1988 que o Seria, contudo, injusto reduzir a investigação de paternidade à dimensão
princípio da igualdade entre todas as crianças se tornou imperativo. Hoje é econômica. Muito freqüentemente as mulheres e seus filhos recorrem aos testes de
absolutamente irrelevante sob quais condições um casal concebe seu bebê – a criança paternidade por motivos que não têm nada a ver com dinheiro. Num caso recente, por
terá plenos direitos, iguais àqueles de qualquer progenitura “legítima” nascida desta exemplo, uma menina indígena de 14 anos foi engravidada pelo guarda noturno que
mãe ou daquele pai. Além disso, desde 1992 a lei n. 8560 reforça a igualdade de direitos patrulhava o mercado onde ela e sua família vendiam artesanato. A história foi
das crianças nascidas de relações extramatrimoniais, decretando a assistência pública acompanhada dos dramas usuais – o homem em pânico alegando que sua mulher, muito
para investigações no caso de pais relutantes e proibindo a menção discriminatória de ciumenta, o mataria se ele viesse a ser o pai do bebê da menina. No entanto, uma vez
“legítimo” ou “ilegítimo” na certidão de nascimento de uma pessoa. Como Bilac confirmada a paternidade, ele parecia quase contente (ele e a esposa não tinham filhos)
expressa, “da perspectiva do direito (...) os homens nunca foram tão responsáveis por e os próprios pais da menina imediatamente entraram com uma petição para assumir a
sua reprodução biológica como no presente momento de nossa história” (p.19). guarda da criança. Ocorre que a jovem desta história, embora vivesse em condições
É uma coincidência irônica que a tecnologia envolvida nos testes DNA de miseráveis, declarou que ela não tinha nenhum interesse em receber dinheiro do pai da
paternidade se torne acessível quase ao mesmo tempo em que essas cláusulas criança, tampouco tinha qualquer intenção de envolvê-lo na criação do filho que, pouco
constitucionais começam a surtir efeito. Não apenas a lei estipula, como nunca antes, depois do nascimento, foi dado aos cuidados dos avós maternos. Por que, então, ela
obrigações do pai em relação aos seus filhos, como hoje a ciência fornece meios para requisitou o exame? O antropólogo que observou essa situação conseguiu pensar em
identificar esse pai e, assim, atribuir tais obrigações a um indivíduo preciso. uma única explicação: “eu acho que ela estava apaixonada pelo sujeito e tinha
O cenário está assim armado para o pior pesadelo do macho: ver alguém dar o esperança de que ele fosse ficar com ela”.
golpe do baú às suas custas (quando uma mulher engravida com o único propósito de Esse tipo de interesse não material torna-se ainda mais evidente no caso da
aproveitar a fortuna financeira do parceiro). A modelo brasileira que engravidou de criança que, uma vez crescida, sai em busca de suas origens. Leila, cuja história
Mick Jagger certamente levantou tais suspeitas. Tais dúvidas inevitavelmente emergem contamos acima, não estava vivendo em condições miseráveis e deu a impressão de
quando existe uma considerável defasagem sócio-econômica entre a mulher e o pai de querer do pai um relacionamento, mais do que um cheque. Lágrimas brotavam nos seus
sua criança. O diretor do laboratório, por exemplo, relembra o caso de um homem olhos quando falava dessa esperança: “ele já está bem velhinho. Não tenho muito tempo
chantageado por uma prostituta com quem alega ter saído apenas uma vez. Outro caso para conhecer ele. Tenho certeza que ele vai me receber quando tiver a prova de que
envolve o dono de uma estância que foi processado pela filha de seu capataz. E ainda, sou sua filha. Sei que o teste [de DNA] vai fazer uma diferença”. A julgar pela idade das
um outro caso diz respeito a um homem e seu filho pressionados por sua empregada crianças quando os testes são requeridos, tem-se a impressão de que muitas mulheres,
para determinar qual dos dois era o pai da criança. Certamente que uma análise mais no início de sua maternidade, não querem nada a ver com os pais de suas crianças. O
sistemática desses dossiês revelaria detalhes fascinantes sobre os costumes de nossa diretor do laboratório que entrevistamos menciona que boa parte das mulheres o procura
época 12 . Além de envolver relações sexuais e, portanto, questões ligadas à honra quando seus filhos estão com quatro ou cinco anos: “bem na idade em que a criança
feminina, os casos de paternidade envolvem impreterivelmente o resultado dessas começa a perguntar ‘quem é meu pai?’”. Acrescenta, então: “Não sei quantas vezes eu
relações, isto é, a criança. As mulheres não estão buscando apenas uma reparação pela tive uma mulher sentada aqui me dizendo: ‘não quero nenhum dinheiro dele [do pai de
perda de sua virgindade, estão também tentando garantir um nível mínimo de conforto sua criança]. Eu apenas quero que meu filho tenha o nome de seu pai na certidão’”. Um
para sua criança. levantamento informal entre alguns de meus amigos advogados, em Porto Alegre,
trouxe à tona quatro casos de paternidade – todos referentes a filhas de condição
12
Neste sentido, ver Esteves (1989) e Grossi e Teixeira (2000) para análises inspiradoras sobre casos de relativamente confortável, que procuraram seus pais logo na época de entrar na
“sedução”.
13 14
universidade. Essas jovens, evidentemente, esperaram ter idade suficiente para tomar a Os juristas, é claro, não estão todos em perfeito acordo. Uma consulta nos
investigação da paternidade em suas próprias mãos. arquivos da jurisprudência e dos pronunciamentos do Superior Tribunal de Justiça
Talvez, como o diretor do laboratório sugeriu, haja uma consideração financeira brasileiro sobre as controvérsias de paternidade revela que a importância prioritária
envolvida nessas buscas, apesar dos protestos em contrário. Depois de tudo, é com dada aos testes de DNA não é, de modo algum, consensual. As cortes ainda julgam
quatro ou cinco anos de idade que a criança começa a precisar de novos investimentos casos de acordo com evidência não genética. Por exemplo, em 2000, a Superior
materiais: uniformes, taxas escolares. Novamente, quando chegam ao final do colégio, Tribunal de Justiça decretou que “documentos fortes comprovando o relacionamento
os jovens procuram uma ajuda para pagar os custos da universidade. Mas essas idades amoroso entre o requerido e a genitora do requerente, inclusive provas testemunhais e
também podem corresponder a momentos cruciais na definição da identidade de uma documentais, [prescindiam] do exame de DNA” 14 . E há juristas que se posicionam
pessoa. Sem falar do estigma social ligado a ser um filho “de pai desconhecido” – um claramente contra a “sacralização” dos testes genéticos, pleiteando uma
estigma que parece ter diminuído consideravelmente nas últimas décadas –, essas “desbiologização da paternidade” (ver os vários artigos em Leite, 2000). Além disso,
jovens pessoas podem estar simplesmente seguindo a quimera da identidade pessoal em diversos casos, as cortes têm recusado colocar em questão o status paternal já
moderna, isto é, tentando descobrir, através da investigação de suas linhagens estabelecido de um homem, apenas porque uma nova evidência baseada no DNA
13
sangüíneas, exatamente quem elas são . É possível que o medo da “mulher negava a sua paternidade. Nas palavras de um juiz, “seria terrificante” – um convite
interesseira” – a que usa os testes de paternidade para comprometer um rico otário – para o “caos social” – se fosse abandonada a regra da coisa julgada 15 .
seja mais um produto da culpa masculina do que de fatos reais. Levantamos a hipótese Nesses casos, as considerações sociais sobrepujaram os “fatos biológicos”.
(possivelmente pesquisa futura) de que um bom número de causas de paternidade sejam Contudo, em outros julgamentos, vemos a “verdade real” construída unicamente na base
movidas por outros motivos que não financeiros – seja para ganhar a afeição de um dos fatos biológicos. Em 1997, por exemplo, o Tribunal Superior reverteu a decisão de
homem, seja para garantir a identidade da criança segundo a norma da bifiliação. uma corte menor que, com base em documentos e testemunhos, confirmara a
paternidade de um homem apesar do teste de DNA ter dado resultado negativo. Para
DNA, em benefício de quem?
justificar sua postura, o Tribunal Superior declara que: “Modernamente, a ciência
O fato de a maioria dos testes de paternidade serem instigados por mães sugere
tornou acessível meios próprios, com elevado grau de confiabilidade, para a busca da
que, de um modo ou de outro, são elas que se beneficiam da recém-encontrada certeza
verdade real”; chegou-se assim à conclusão de que “[A] falibilidade humana não pode
que a moderna tecnologia permite. Essa hipótese coincide com as intenções evidentes
justificar o desprezo pela afirmação científica”... 16
dos legisladores e juristas que apresentam as novas leis de paternidade como um meio
Ainda mais perturbadora é a idéia de usar DNA para verificar a paternidade de
para fortalecer a causa da mulher e da criança contra as clássicas prerrogativas
uma criança aparentemente legítima. Aqui devemos lembrar que, como em muitos
patriarcais (eles freqüentemente nos lembram, inclusive, que mais de 30% de todas as
outros países, uma criança brasileira nascida de um homem e uma mulher legalmente
crianças nascidas no Brasil são filhas de “mães solteiras”). Sem querer menosprezar tais
casados e residindo sob o mesmo teto tradicionalmente tinha a sua paternidade
benefícios em potencial, eu gostaria de sugerir que podem existir aspectos mais
obscuros que ainda não foram suficientemente considerados. Em outras palavras, a
14
RESP 180707/PB, 1998/0048909-6, Superior Tribunal de Justiça.
confiança crescente nas “verdades biológicas”, na determinação legal de assuntos da 15
“Se, fora dos casos nos quais a própria lei retira força da coisa julgada, pudesse o magistrado abrir as
família, pode estar abrindo uma caixa de Pandora – com resultados que ainda estão para comportas dos feitos já julgados para rever as decisões não haveria como vencer o caos social que se
instalaria. (...) Assim, a existência de um exame pelo DNA posterior ao feito já julgado, com decisão
ser vistos. transitada em julgado, reconhecendo a paternidade, não tem o condão de reabrir a questão com uma
delatoria para negar a paternidade, sendo certo que o julgado está coberto pela certeza jurídica
conferida pela coisa julgada” RESP 107248/GO, 1996/0057129-5, relator: Min. Carlos Alberto
Menezes Direito, 07/05/1998.
13 16
Ver Yngvesson 1998 sobre as raízes metafóricas da identidade pessoal. Ministro Waldemar Zweiter resp 97148/MG, 1996/0034439-6, Data da decisão: 20/05/97
15 16
garantida. Nessas condições era extremamente difícil para um marido mover uma ação Muitos juristas veriam esse tipo de mudança legal como concorrendo para os
judicial para negar seu status paterno. Ele poderia fazê-lo apenas dentro de um prazo melhores interesses da criança. Indo além do direito da criança de conhecer suas
determinado e sob circunstâncias específicas 17 . Tal política, que para muitos parecia origens, a opinião que prevalece neste momento parece implicar que uma criança não
completamente desprovida de sentido – hipócrita e legalista –, dava ao menos à criança poderia, em nenhuma circunstância, ser feliz convivendo com uma “mentira”: “A
a segurança de uma identidade pessoal com garantia vitalícia. integral tutela das crianças, em particular de sua dignidade, reflete nessa medida e ainda
As coisas agora estão mudando, como sugere o seguinte pronunciamento de hoje, tarefa primária e urgente, da qual decorre, em primeiro lugar, o conhecimento
outro juiz do Superior Tribunal de Justiça: da identidade verdadeira, e não presumida, dos progenitores.”(Moraes 2000, p.226)
“Não há como interpretar-se uma disposição (legal), ignorando as profundas Para debater com as interpretações otimistas sobre a nova virada na
modificações por que passou a sociedade, desprezando os avanços da
jurisprudência brasileira, nós invocamos a análise de Laborde-Barbanègre sobre a lei de
ciência e deixando de ter em conta as alterações de outras normas,
pertinentes aos mesmos institutos jurídicos. Nos tempos atuais não se paternidade de 1972 na França. Antes dessa data, relata a pesquisadora, a paternidade de
justifica que a contestação da paternidade, pelo marido, dos filhos nascidos
um marido era definida de modo muito similar à forma com que o código civil
de sua mulher, se restrinja às hipóteses do artigo 340 do Código Civil,
quando a ciência fornece métodos notavelmente seguros para verificar a brasileiro determina, com, basicamente, as mesmas restrições de residência e prazos de
existência de vínculo de filiação.(...) Admitindo-se a contestação da
tempo. A lei, de 1972, de modo a incorporar as novas determinações da “verdade
paternidade, ainda quando o marido coabite com a mulher, o prazo de
decadência haverá de ter, como termos inicial, a data em que disponha biológica”, colocou fim ao princípio geral que por séculos tinha governado a definição
ele de elementos seguros para supor não ser o pai de filhos de sua
dos laços filiais, isto é, o da “indisponibilité”, caráter irrevogável de uma relação
esposa.” 18
socialmente definida. Com mudanças trazidas pela nova lei, “a filiação não é mais um
Como este documento mostra, em nome da “verdade real”, a condição para a postulado construído sobre uma relação institucional (casamento) ou um ato jurídico
contestação da paternidade de um marido (ou pai declarado) se faz agora (reconhecimento oficial da paternidade); [antes pelo contrário] tornou-se um fato
consideravelmente mais flexível. Primeiro, um homem pode contestar a paternidade do demonstrável da realidade.” (1998, p.185).
filho de sua mulher, não importando quantos anos eles estiveram vivendo juntos; Embora os legisladores franceses tentem diluir essa ênfase biológica com
segundo, o prazo para que um marido conteste a paternidade do bebê foi, efetivamente, considerações sociológicas sobre quem está realmente criando a criança (possession
varrido, e, terceiro, (pelo menos, conforme certos juristas) onde, tradicionalmente, d´état), Laborde-Barbanègre alega que o resultado final, como mostrado na
apenas o marido poderia contestar sua própria paternidade, existe, agora, a tendência de jurisprudência, é uma fragilidade crescente nos laços filiais. Por volta de 1985, não
se permitir que outras pessoas envolvidas entrem com tal processo 19 . apenas o prazo de tempo para a contestação da paternidade de um homem foi estendido
a até trinta anos depois do nascimento da criança, como o processo de impugnação de
17
seu status podia ser aberto por qualquer pessoa envolvida (pelo marido, por seus
De acordo com o Código Civil Brasileiro de 1916, um homem casado era legalmente reconhecido
como pai dos filhos de sua mulher se estes fossem nascidos no mínimo 180 dias após o início da herdeiros, pela mãe e seu novo marido, só pela mãe, ou pelo filho...”) (Laborde-
convivência conjugal, ou no máximo nos 300 dias seguindo a dissolução da sociedade conjugal por
morte, desquite, ou anulação (artigo 338). Qualquer criança nascida menos de 180 dias seguindo o Barbanègre, 1998, p. 187).
casamento era presumidamente do marido se ele soubesse que a mulher estava grávida por ocasião do
casamento ou se ele voluntariamente registrasse a certidão de nascimento do filho em seu nome. Se o Citando casos diversos, a autora conclui que o deslocamento da ênfase, nas
casal vivesse sob o mesmo teto, o adultério da mulher não seria o bastante para contestar a paternidade novas disposições legais, das normas institucionais obrigatórias para o arbítrio de
de seu marido (art.343). Seu único fundamento para a negação da paternidade (e, mesmo então, havia
um limite de dois meses após o nascimento da criança para efetuá-la, cfe.art. 178) era a impotência conflitos individuais, facilita não apenas a construção como também a quebra de laços
completa ou a separação prolongada em residências separadas (art.340)
18
Ministro Eduardo Ribeiro, resp 194866/RS, 1998/0084082-6, 20/04/1999 filiais. Em outras palavras, a lei francesa de 1972, que implicitamente introduzia noções
19
“Este monopólio do marido para ingressar com ação de contestação da paternidade dos filhos
presumidamente matrimoniais já acabou nas legislações que modernizaram e atualizaram o direito da modernas de afeição e verdade genética na questão da paternidade, abriu caminho para
filiação. É nestes rumos, inexoravelmente, que caminha o direito brasileiro” (Veloso, 1997, p.64).
17 18
processos capazes de retirar a identidade paterna de um indivíduo sem deixar nada no garante “confidencialidade absoluta”, resultados a “baixo custo” através da “melhor
seu lugar. tecnologia DNA disponível” e sem nenhuma necessidade de amostras de sangue. (O
A importância simbólica das recentes mudanças jurídicas, tais como foram procedimento, que implica passar um cotonete na boca de cada indivíduo é
difundidas (da Europa e América do Norte ao Brasil) não poderia ser exagerada. F. suficientemente simples para ser realizado em poucos segundos e sem qualquer
Héritier, em 1985, destacou a precedência social na definição dos laços filiais como um conhecimento técnico em particular.) Embora o site seja inteiramente centrado em testes
dos três valores universais que governam as relações humanas: “Todas [as sociedades] de paternidade, os homens estão curiosamente ausentes do texto, que é ilustrado por
consagram a primazia do social – da convenção jurídica que funda o social – sobre o figuras de mulheres e crianças, e fala apenas em “pessoas” que “precisam” fazer um
biológico puro. A filiação não é, portanto, jamais um simples derivativo da procriação” teste de paternidade. E mesmo se referindo a uma pesquisa na qual trezentos casais
(2000, p.102). entraram num acordo consensual para fazer o teste de paternidade de seus filhos, é
As novas disposições legais parecem estar reconhecendo que hoje, pelo significativo que o guia de encomenda permita que se faça um teste com ou sem a
contrário, é a biologia que confere a validade às definições judiciais. participação da mãe. Finalmente, embora o site repita várias vezes que esse
Quanto às relações de gênero, devemos recordar que, de acordo com o Código procedimento anônimo não tenha validade legal, ele também garante aos clientes que “a
Civil Brasileiro de 1916, o adultério de uma mulher NÃO era o bastante para que um maioria dos casos nunca vai a julgamento” – sugerindo implicitamente que o mero
marido contestasse a sua relação paternal com seu rebento. Hoje, evidentemente, até conhecimento da “verdade real” é suficiente para trazer os resultados desejados 20 .
mesmo a suspeita do adultério feminino pode justificar a requisição do exame DNA. Para ilustrar o perigo potencial desses testes “anônimos”, citamos a carta
Ironicamente, a “mudança de valores” à qual o juiz do STJ se referiu acima, pode ter, de publicada numa coluna de Internet por um marido brasileiro:
fato, enfraquecido a posição de mulheres casadas (assim como aquelas vivendo em
uniões consensuais estáveis), arriscando produzir uma variedade inteiramente nova de EXAME DE DNA – ANULAÇÃO DE PATERNIDADE: Após um
namoro de 3 anos minha namorada engravidou. Apesar de acreditar
filhos “de pai desconhecido”.
que a criança era minha filha, eu não tinha certeza absoluta, mas
registrei a criança devido a pressões morais e ameaças. Após 7 anos,
fiz exame de DNA junto com a criança, sem a mãe saber, e confirmei
DÚVIDAS NO UNIVERSO VIRTUAL
não ser seu pai. De posse deste exame entrei na justiça para anular
minha paternidade e retificar o registro da criança... (mas a justiça
exigiu outro exame de DNA que a mãe da criança se negou a
É importante indicar que as mudanças sociais trazidas por novas formas de
realizar)...O que posso fazer? Além de ser enganado por esta vadia, a
biotecnologia nem sempre são fáceis de controlar. Mostramos acima como leis podem justiça ainda vai ficar a favor dela? (Valcir)
ser transformadas, por intermédio da jurisprudência, em políticas práticas que pouco
A advogada que gere a coluna respondeu que o homem em questão teria de
têm a ver com as intenções originais dos legisladores. Agora passamos a examinar um
provar que ele tinha sido iludido pela mulher e levado a acreditar que era o pai, e que
domínio onde o teste DNA funciona praticamente independente do controle público: na
ela simplesmente “usou-o para dar um nome ao seu filho”. Um modo de fazer isso, a
Internet.
advogada diz, seria a realização de um teste DNA “somente você e a criança, não há
O acesso fácil a testes de DNA na Internet é absolutamente impressionante. Por
necessidade da mãe”. Tal como nos casos onde os acusados são pais recalcitrantes, a
um preço, em dólares, mais ou menos equivalente ao que se pagaria num laboratório de
recusa de uma mulher a se submeter a um exame genético pode ser usado como um tipo
Porto Alegre, pessoas com dúvidas quanto à paternidade de suas crianças podem
de “confissão” de sua culpa. Um comentário final da advogada sobre o possível
procurar um kit de uma companhia norte-americana para realizar o seu próprio teste de
uma forma inteiramente anônima. O site (em português), chamado “DNA virtual”,
20
www.dnavirtual.com
19 20
sofrimento da criança, por causa dessa situação, se perde atrás da mensagem de que os Entre feministas da academia, houve, nos últimos anos, um deslocamento
homens “traídos” por suas mulheres não precisam mais ser vítimas passivas. curioso do estudo de relações de gênero e parentesco para o estudo da ciência e, em
Minha impressão é que, ao todo, os testes de DNA estão trazendo uma enxurrada particular da biogenética (Franklin, 1995, p.190). Poderíamos perguntar o que a atenção
de Dom Casmurros para fora do armário. Maridos que em épocas passadas teriam centrada nos fatos aparentemente neutros da tecnologia científica moderna tem a ver
agüentado suas dúvidas em silêncio, agora estão procurando conhecer “a verdade”. O com a causa da mulher? Muito, responderiam essas pesquisadoras, pois, como D.
diretor do laboratório revela que 24,6% dos testes que realiza negam a paternidade Haraway indica, os mecanismos mais persuasivos de dominação não podem ser
21
reputada . Sem dúvida, inspirados em tais amostras assumidamente parciais, compreendidos (ou combatidos) em termos de “bonzinhos contra malvados”. Esses
espalharam-se boatos de que mais de um quarto dos filhos no Brasil não são prole de mecanismos são fundamentados em sistemas de crenças que vão muito além da
seus pais socialmente reconhecidos. Com tais espectros rondando à solta e com testes definição dos papéis masculino e feminino. A noção da ciência, construída como um
anônimos convenientemente oferecidos através da Internet, não seria surpreendente empreendimento autônomo e racional que “ultrapassa as fronteiras culturais”, é um,
constatar um aumento de ansiedades paternas. quiçá o mais importante, desses sistemas de crença. Assim, valeria a pena, antes de
Aqui, podemos voltar para a heroína ficcional com a qual abrimos este artigo: concluirmos, situar o teste DNA e as atuais estruturas familiares dentro desse campo.
Capitu. De fato, como dissemos acima, o leitor nunca descobre se ela foi injustamente O que consideramos como os fatos indisputáveis da natureza? Questões de
caluniada, ou se realmente ela tinha tido um caso amoroso extraconjugal. Tratando-se gênero, assim como “a família” foram por séculos adotadas como um locus
de uma esposa fiel, o teste de DNA poderia, quiçá, tê-la beneficiado. Se, contudo, paradigmático da convergência entre natureza e cultura. As mulheres eram vistas como
Capitu teve uma relação amorosa, podemos imaginar que, com o teste DNA, as coisas “naturalmente” ligadas ao lar por causa de sua anatomia e possibilidades reprodutoras.
poderiam ter transcorrido de forma ainda pior – para ela como para a criança. Nesse Homens eram vistos como “naturalmente” promíscuos por causa da necessidade de
caso, as novas possibilidades tecnológicas trazidas à tona pelos testes DNA seriam espalhar seus genes. Pela mesma razão, pais eram vistos como “naturalmente”
apresentadas não como a vingança de Capitu, mas como o seu calcanhar de Aquiles. favorecendo sua prole biológica. Pavões, lobos e símios eram evocados para revelar o
Devemos lembrar que a incerteza a respeito da paternidade de um homem era parte lado “natural” do comportamento humano. Culturas locais e historicamente específicas
intrínseca do pacto conjugal. Poder-se-ia supor que, tradicionalmente, reconhecer a operariam sobre aquilo que era considerado como os fatos imutáveis e universais da
paternidade dos filhos de sua esposa era prova implícita da afeição e confiança do biologia.
homem em relação a ela. A mulher, por seu lado, como única guardiã do “segredo” da Strathern, tirando inspiração dos dados etnográficos sobre a Melanésia, tentou
paternidade biológica de sua criança, mantinha uma espécie de trunfo, ou uma carta na por anos demonstrar como esse modo binário de ver as coisas (a cisão natureza/cultura)
manga – isto é, podia decidir se ia ou não honrar a confiança que seu marido depositava era uma idiossincrasia dos padrões de pensamento euro-americano. Hoje em dia,
nela (Fonseca, 2000). A investigação genética da paternidade, por permitir acesso Strathern considera que as idéias pós-darwinianas sobre as relações familiares
público àquilo que até então havia sido um segredo, conhecido apenas da mulher, há “naturais” versus relações familiares culturais ou morais estão ficando caducas. As
fatalmente de modificar as relações de poder dentro do casal contemporâneo. novas tecnologias reprodutivas abalaram os alicerces do que a maioria de nós
considerava como sendo a “naturalidade” da reprodução biológica, rompendo as
A BIOLOGIZAÇÃO DOS LAÇOS FAMILIARES analogias usuais e trazendo algo daquilo que muitos feministas da academia estão
chamando de uma era “pós-natureza”, e não de pós-modernidade (Strathern, 1992).
A natureza, ela mesma, é hoje vista como uma matéria a ser aprimorada
21
Esta proporção corresponde às européias e norte-americanas onde, em média, 25% dos testes DNA dão conforme critérios baseados nos valores individualistas da sociedade de consumo –
resultados negativos (Pena s/d).
21 22
escolha pessoal e progresso científico. A gravidez causada por doação de esperma serve Seria de uma suprema ironia se as mulheres, tendo conquistado sua
como exemplo. Procura-se “boa qualidade” genética – ausência de doenças independência em relação ao determinismo biológico dos anos 1900, fossem agora
hereditárias, alta inteligência, criatividade artística. – e nada mais. O “laço familiar”, embarcar na idéia de que a biologia, via testes de paternidade de DNA, é a solução para
nesse contexto, assume uma conotação inteiramente centrada na biogenética. A idéia é seus problemas. Certamente não é possível virar as costas à “tecnologia científica
que nós sejamos dotados por nossos ancestrais biológicos com certos genes que, a moderna”, mas levando em consideração a gama de diferentes e poderosos fatores em
despeito das contingências sociais, nos deixam programados pela vida inteira. Os genes jogo, poderíamos reservar uma certa margem de criatividade no modo com que
dizem tudo que precisamos saber sobre nossa história familiar, tornando supérfluos forjamos as novas estruturas familiares no milênio vindouro.
relacionamentos com pessoas reais 22 . Assim, a procriação é retirada do âmbito dos
laços sociais. Na perspectiva de Strathern, seres humanos acabam, desse modo, com REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
“mais parentesco” (no sentido da herança biogenética) e com “menos parentes” (no BILAC, Elisabete Dória. Mãe certa, pai incerto: da construção social à normatização
jurídica da paternidade e da filiação. Caxambu, 1998. [Apres. no XX Encontro Anual da
sentido de relacionamentos sociais). Na atual abordagem consumista da procriação
ANPOCS, Caxambu, 1998. GT Família e Sociedade].
humana (na qual pais podem selecionar o doador de esperma, óvulo, embrião e útero
BONETTI, Alinne de Lima. Entre feministas e mulheristas: uma etnografia sobre
portador da criança), a escolha não é mais a antinomia do destino genético e sim o seu
promotoras legais populares e novas configurações da participação política feminina
perfeito complemento 23 . popular em Porto Alegre. Dissertação de mestrado – PPGAS - Universidade Federal de
Santa Catarina, 2000
Strathern não está sozinha a sugerir que a presente ênfase no parentesco
biotecnológico traz consigo uma “dissolução do social”. Segundo P. Rabinow, ao invés BRUSCHINI, Cristina. O trabalho da mulher brasileira em décadas recentes. Revista
Estudos Feministas, número especial, 2o semestre, p.179-99, 1994.
de a sociedade ser pensada nos moldes de uma natureza holística (como, por exemplo,
na sociobiologia), nossa visão da natureza tem sido “culturalizada”, “remodelada DAUSTER, Tania. Filho na barriga é o rei na barriga: mitos de poder, destino e projeto
nas relações entre os gêneros nas camadas médias. Revista de Cultura Vozes, v. 84, n.2,
enquanto técnica”, ditando – entre humanos – um tipo de “biossocialidade”, que
1990.
dispensa a esfera propriamente social (Rabinow apud Franklin, 1995). Tais processos
DI LEONARDO, Micaela. The female world of cards and holidays: women, families,
seriam parte de um conjunto globalizado de forças que atravessa as diferenças locais,
and the work of kinship. In: THORNE, B., YALOM, M. (orgs.). Rethinking the family:
unindo os moradores de vilas porto-alegrenses e os professores britânicos com os some feminist questions. Boston: Northeastern University Press, 1992.
clientes das clínicas de fertilidade norte-americanas. Essas observações indicam uma
ESTEVES, Martha. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no
possibilidade real de que quanto maior o uso dos testes de DNA para incorporar à Rio de Janeiro da Belle Epoque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
família o pai, enquanto elemento geneticamente relevante, mais essa figura, enquanto
FINKLER, Kaja. The kin in the gene: the medicalization of family and kinship in
interlocutor socialmente relevante, se afasta. American society. Current Anthropology, v.42, n.2, p.235-63, 2001.
22
A preocupação de pais adotivos sobre as origens de seu filho é um bom exemplo. Aqui, em geral, _____. Família, fofoca e honra. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000.
“origens” não significam o contexto social e as relações que produziram a criança, mas as disposições
genéticas (doenças, traços de personalidade etc.) que o adotado pode vir a manifestar. FRANKLIN, Sarah. Science as culture, cultures of science. Annual Review of
23
Poder-se-ia objetar, é claro, que as investigações de paternidade via testes DNA são em certos sentidos
o oposto da inseminação com doadores de gametas. Num caso, a atuação humana (escolha e intenção)
Anthropology, n.24, p.163-84, 1995.
precede o ato físico da procriação; noutro (freqüentemente não intencional), a concepção é seguida por
uma tentativa de elaborar esse “fato biológico” em termos sociais (obrigação e reconhecimento). Mas a _____. Embodied progress: a cultural account of assisted conception. New York:
seqüência de eventos não muda os princípios básicos envolvidos. Uma pessoa ainda escolhe quando e Routledge, 1997.
como fazer conhecidas as circunstâncias da concepção de seu filho ou filha, e negocia o sentido desse
“fato” no campo das crenças contemporâneas a respeito da natureza e da cultura.
23 24
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