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MANA 3(2):39-65, 1997

40 O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO

Em que consiste, exatamente, a análise do parentesco? Quando


O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA Lewis Henry Morgan a inventou, em meados do século passado, ele pro-
HUMANA: O CASO DOS PIRO curava responder a uma questão, que pode ser assim parafraseada: como
é possível que outros seres humanos, ao pensar sobre os aspectos mais
íntimos e importantes da existência, saiam-se com idéias tão dramatica-
Peter Gow1 mente conflitantes com as minhas próprias? Se descendemos todos dos
mesmos ancestrais, o que faz com que esses outros humanos não com-
partilhem minha compreensão desse laço fundamental? (ver Trautmann
1987)
Para Morgan, essa unidade (da humanidade) na diversidade (do
parentesco) era profundamente perturbadora, pois humanidade e paren-
Nada de minha substância vos esteve oculto, tesco eram uma coisa só. Um século mais tarde, Lévi-Strauss reformulou
Quando fui formado no mistério, o problema:
Quando fui tramado nas profundezas da terra,
Vossos olhos viam meu corpo informe. “A idéia [...] segundo a qual a família biológica constitui o ponto de partida
(Salmos, 138:15) utilizado por toda sociedade para elaborar seu sistema de parentesco não é,
decerto, exclusiva do mestre inglês [Radcliffe-Brown]. Há poucas outras
Neste artigo, analiso o sistema de parentesco dos Piro da Amazônia idéias, atualmente, capazes de obter maior unanimidade. Não há, tampou-
peruana como um sistema autopoiético, isto é, como um sistema que gera co, nenhuma outra tão perigosa, em minha opinião [...]. Um sistema de
suas próprias condições de existência. Meu argumento é que o parentes- parentesco não consiste nos laços objetivos de filiação ou de consangüinida-
co piro emerge espontaneamente do interior das estruturas da consciên- de entre os indivíduos. Ele só existe na consciência dos homens; é um siste-
cia humana; é isso que responde pela possibilidade de sua existência, e ma arbitrário de representações, e não o desenvolvimento espontâneo de
que o torna potencialmente inteligível para pessoas como o presente uma situação de fato” (Lévi-Strauss 1958 [1945]:61).
autor e, espero, como os eventuais leitores deste trabalho.
Persigo aqui três objetivos. Primeiro, pretendo fornecer uma expli- Passado quase meio século, com uma biologia transformada radical-
cação do parentesco piro algo mais profunda que aquela presente em mente, essa questão não perdeu nada de sua relevância; mas ela pode
meus trabalhos anteriores. Segundo, desejo tornar mais explícito um pos- agora ser novamente reformulada. Sabemos hoje uma quantidade
tulado teórico que subjaz a esses trabalhos, a saber, que o parentesco é, impressionante de coisas sobre os aspectos mais íntimos e importantes
acima de tudo, um sistema de subjetividade, pois as estruturas básicas da vida quotidiana de outras espécies, sobretudo dos outros primatas.
da consciência humana envolvem necessariamente a consciência de um Pensemos, por exemplo, nos estudos de Goodall sobre os chimpanzés
eu [self] em meio aos outros. Terceiro, e este é meu objetivo mais ambi- (Chimpanzees of Gombe), de Cheney e Seyfarth sobre o Cercopithecus
cioso, quero recuperar para a antropologia simbólica o conceito de natu- aethiops (How Monkeys See the World), de Smuts sobre os babuínos (Sex
reza humana. Os dois primeiros pontos serão explicitamente desenvolvi- and Friendship among Baboons), ou no livro de Shirley Strum, Almost
dos no artigo, enquanto o terceiro só será abordado na conclusão. Human. Quanto mais aprendemos sobre os não-humanos, menos certos
O estudo antropológico do parentesco está, hoje em dia, bastante ficamos de nossa distintividade como espécie. Mas todo esse novo conhe-
fora de moda. Isto me parece trágico, pois privou nossa disciplina de um cimento parece nos ter causado um certo mal-estar. Assim, Donna Hara-
de seus objetos mais fecundos. Haverá, certamente, muitos motivos a way, em seu livro Primate Visions, trava um combate feroz em favor da
explicar por que os antropólogos não se sentem mais interessados pelo idéia de uma intencionalidade [agency] humana especial, apelando para
parentesco; mas estou, aqui, menos preocupado com tais motivos que argumentos relativos à representação, à história e ao poder discursivo.
com tudo que se perdeu com semelhante desinteresse. Como nunca se pôde oferecer uma prova cabal de que os chimpanzés, os
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babuínos ou os macacos langur se ocupam de representações, procedem cies (e a si mesmos) nos consterna. Todo aquele que já tenha olhado
a historicizações ou se entregam a práticas discursivas, então tais modos faminto para uma árvore da floresta tropical carregada de frutos, já expe-
de intencionalidade só podem ser exclusivamente humanos. Haraway rimentou uma inveja lancinante dos atributos ímpares dos macacos-ara-
não tem nenhuma dificuldade em denunciar, apontando sua vinculação nha ou dos chimpanzés. O mesmo se diga de quem quer que já tenha
com imagens culturais poderosas e perigosas, a falsa inocência de uma contemplado um gato no inverno europeu, alegremente “descalço” na
fotografia que mostra um gesto afetuoso de intimidade entre Jane Goo- neve lá fora enquanto trememos de frio dentro de nossas casas e agasa-
dall e um chimpanzé. Mas há uma questão que Haraway deixa sem res- lhos. Afinal de contas, a linguagem só serve para se falar com ela, e o
posta: o que estaria fazendo o chimpanzé nessa fotografia? O que estaria mesmo vale para a consciência. Como veremos, a consciência e a lingua-
passando em sua mente, ou pelo menos naquilo que passa por ser sua gem piro se constituem a partir dessa experiência quotidiana dos atribu-
mente?2 tos únicos das outras espécies vivas.
Com efeito, essas novas descobertas acerca da socialidade não- É nesse contexto geral que desejo explorar a questão de Morgan,
humana são de molde a provocar um profundo mal-estar, se você for um tomando o parentesco piro como consciência humana. O que faz com que
humanista clássico. Pois elas sugerem uma conclusão simples, mas dolo- os Piro, ao pensarem sobre os aspectos mais íntimos e importantes de suas
rosa para nosso orgulho. Nas palavras de Robert Foley, os humanos não relações com outrem, guiem-se por idéias tão dramaticamente conflitan-
são a espécie ímpar, primeira aos olhos de Deus ou proprietária exclusiva tes com as minhas próprias? E como essas idéias se associam à lingua-
da Razão, mas apenas mais outra espécie ímpar. A humanidade dos gem?
humanos é tão especial como a lupinidade dos lobos ou a ostritude das Para responder a estas perguntas, sigo a trilha aberta por uma série
ostras. de críticas perspicazes à análise lévi-straussiana do parentesco, que
Ao mesmo tempo, parece estar-se formando um consenso, entre os apontaram uma deficiência crucial nessa abordagem: a incapacidade de
biólogos, segundo o qual a linguagem e certas formas de consciência levar realmente em conta o papel constitutivo da subjetividade no paren-
seriam atributos específicos dos humanos. Atributos, não privilégios espe- tesco. Estou-me referindo às críticas de Anthony Wilden e Gayle Rubin,
cíficos. As línguas naturais de tipo humano parecem ser genuinamente inspiradas na reformulação lacaniana da teoria de Lévi-Strauss. Mas sigo
exclusivas de nossa espécie; não se conhece nada de remotamente seme- também uma observação decisiva de Marylin Strathern, que, desenvol-
lhante entre os animais, sequer entre os demais membros da superfamília vendo os argumentos de Wilden e Rubin, associa o fracasso da análise de
Hominoidea. A consciência, entretanto, sob as formas da consciência de si Lévi-Strauss ao uso da teoria maussiana do dom para explorar o paren-
e da existência de outrem, parece ser comum aos Hominoidea, como por tesco como uma estrutura da consciência humana3.
exemplo os humanos, os chimpanzés e os gorilas. Sua existência não pare- Prossigo aqui uma análise que publiquei há alguns anos sobre esse
ce ter sido demonstrada de modo convincente em babuínos ou em maca- problema (Gow 1989), mas agora buscando chegar mais perto de seu cen-
cos vervet — e muito menos em lobos ou ostras, tanto quanto eu saiba. tro, mediante um olhar mais atento ao modo específico pelo qual a subje-
Se olharmos para os Hominoidea, então, achamos a consciência. Os tividade é pressuposta, e posta, no e pelo mundo vivido piro. Esse traba-
excelentes estudos de Premack sobre a mente dos chimpanzés, entretan- lho anterior concentrava-se na questão de saber que espécies de sujeitos
to, indicam uma diferença fundamental entre a consciência desses ani- podem existir em uma economia como a dos Piro. Acrescento a isto, ago-
mais e a humana: os chimpanzés são conscientes [aware] de si mesmos, e ra, a questão de saber como a subjetividade pode vir a existir em geral.
de outrem, mas não parecem ser conscientes da consciência que os outros Estou razoavelmente seguro de que minha análise pode se aplicar a
têm deles mesmos. Esse tipo de recursividade generalizada da consciên- qualquer sociedade humana4. Escolhi os Piro porque este é o mundo vivi-
cia parece ser exclusivo dos humanos, e, como sugere Premack, está pro- do alheio com que tenho maior familiaridade, desde que comecei meu
vavelmente associado de modo estreito à linguagem. trabalho de campo junto a eles, em 1980. Os Piro são um povo indígena
A questão, portanto, não é a de se compensar negativamente nossos de língua aruaque (ramo maipureano) distribuído em quatro áreas da
sentimentos de superioridade, denegrindo os atributos ímpares de nossa Amazônia Ocidental, ao longo dos rios Urubamba, Cushabatay, Manú e
espécie só porque o modo como os humanos têm tratado as outras espé- Iaco. Conheço melhor os habitantes do Baixo Urubamba, no Peru. Eles
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vivem em aldeias que abrigam entre cinquenta e trezentas pessoas (exce- a morte da mãe, fracassando apenas em suas tentativas de matar sua avó,
to no caso da missão El Rosario de Sepahua, com mais de mil pessoas), que estava grávida. Os episódios subseqüentes mostram Tsla e seus
obtendo sua subsistência da agricultura itinerante, da pesca e da caça, irmãos criando os elementos básicos da existência piro. Tsla criou os
bem como do trabalho para as madeireiras e outras atividades remunera- humanos, em suas formas primárias de yine, “Humanos verdadeiros”, e
das. Todos os Piro mantêm relações intensas com povos não-Piro como os de kajine, “Brancos”, a partir de dois tipos de argila de olaria.
Campa-Asháninka, os Machiguenga e os mestizos. O leitor poderá en- Tudo que nós precisamos saber sobre o parentesco dos Piro está con-
contrar maiores informações em minha monografia sobre os Piro (Gow tido na narração dessa curta história, porque tudo que eles precisam saber
1991). está contido nesse evento. Isto é, tudo que não está na história está na
Advirto que a descrição e análise do parentesco piro apresentadas a relação entre o narrador e os ouvintes, e vice-versa. Já na história temos
seguir podem ser um tanto difíceis de acompanhar. Isto é uma conseqüên- maridos e mulheres, mães e filhos, pais, tios, avós e parentes afins. E,
cia lógica da tese enunciada mais atrás, a saber, que o parentesco piro é sobretudo, temos a linguagem, usada por Tsla para dar o estranho conse-
um sistema autopoiético: como ele dá origem a si mesmo, não há ponto lho intra-uterino à sua mãe.
privilegiado por onde se entrar nele, nem caminhos predeterminados Os processos sociais piro, e portanto o parentesco piro, podem ser
para se o percorrer. Só me resta esperar que, ao cabo da leitura destas caracterizados como a transformação de Outros em Humanos, e de Hu-
páginas, a lógica de tipo “passeio aleatório” [random-walk] de minha manos em Outros, ao longo do tempo. Para os Piro como um todo, esses
abordagem tenha se tornado clara, e, sobretudo, que a lógica do paren- processos de transformação começaram no “há muito tempo atrás” das
tesco piro tenha sido compreendida. narrativas míticas, quando o mundo foi feito, e terminarão em algum
momento no futuro, quando o mundo acabar. Para qualquer pessoa piro,
tal processo principia com a fabricação de Humanidade logo após o nasci-
Falar ou não falar mento, e termina com a produção de Alteridade logo após a morte. Para o
povo Piro, essa série complexa de processos foi iniciada pelos giyaklune,
Quando se vai contar uma história complicada, é melhor começar pelo os seres míticos; e a fala é o meio pelo qual se toma conhecimento disso.
princípio. Para os Piro, o princípio está nas tsrunnini ginkakle, aquelas Tsrunnini ginkakle, “histórias da gente de antigamente”, são uma
“histórias dos antigos” que os velhos às vezes contam para seus netinhos forma muito especializada de discurso, pois elas são a corporificação ple-
ao cair da noite. Os antropólogos não teriam muita dificuldade em identi- na da temporalidade humana na fala. Sabem-se essas histórias porque
ficá-las como mitos. Há muitas delas, e nenhum Piro afirmaria que sabe elas foram contadas pelos tsrunni, “a pobre gente velha e morta” — os
todas. Os velhos as conhecem apenas porque seus próprios avós as reci- antepassados desconhecidos dos Piro hoje vivos. Tudo que os vivos sabem
tavam para eles, quando eles eram crianças. Não temos meios de saber, dos tsrunni lhes chega somente através das histórias a seu respeito con-
e os Piro tampouco, qual começo é o verdadeiro começo; portanto, como tadas pelas pessoas mais velhas. Os velhos são a fonte dessas histórias
um narrador Piro, principio pela história mais afim ao meu tema5. porque eles próprios conviveram com pessoas mais próximas, no tempo,
dos tsrunni. Mas mesmo os velhos não sabem realmente dos tsrunni, pois
Muchikawpotgimni sato yinero ganurutatka wa mgenoklu. nunca os viram. Clotilde Gordón, de 80 anos, assim respondeu a uma de
“Há muito tempo, dizem, uma mulher casou-se com um jaguar”. minhas perguntas sobre eles, que lhe fiz no verão passado:

Esta é a sentença inicial de uma versão da “história dos antigos” que “Eu não sei; nunca vi a gente de antigamente. Só sei o que minha avó me
podemos chamar aqui de “O Nascimento de Tsla”. A história conta que ensinou quando eu era menina pequena. Só sei o que vi minha avó fazer”.
essa mulher andava, certo dia, na floresta, quando o filho que trazia no
ventre, falando-lhe, conduziu-a até a casa do marido. Ali, os afins-jaguar O que gente como a velha Clotilde diz, entretanto, é a única fonte
da mulher a mataram e devoraram, mas a sogra guardou o útero grávido, sobre os tsrunni acessível aos jovens. Apenas o que os velhos contam
do qual emergiram Tsla e seus irmãos. Estes, mais tarde, vieram a vingar (ginkaka) aos jovens sobre os tsrunni constituirá seu conhecimento sobre
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estes. Os tsrunni existem apenas na fala dos velhos. É isso que torna as reza. O acontecimento que leva os jaguares a matar e comer a mãe de
tsrunnini ginkakle tão notáveis: elas são o discurso citado de seres que só Tsla é a ânsia de vômito que a toma ao morder um piolho do marido; pois
existem no discurso citado dos velhos. Dessa forma, as narrativas míticas os piolhos do jaguar são enormes, “como besouros papaso, não como os
são um tipo de superfala, ou, nos termos de Lévi-Strauss, “elas são men- pequenos piolhos dos humanos”. Catar os piolhos do parceiro é um dos
sagens que nos chegam, a rigor, de lugar nenhum”. São os velhos, os tsru- aspectos mais íntimos da vida conjugal; a esposa humana revela sua alte-
ne, que conhecem esse discurso, sendo os únicos capazes de lhe dar a ridade ontológica em relação ao marido jaguar ao enojar-se com a natu-
forma de fala6. reza deste. Marido e mulher devem ser o mesmo, ambos devem ser Hu-
A relação dos ouvintes com a linguagem é muito diferente. Eles são manos.
crianças pequenas, que pouco sabem, e seus modos primários de lingua- Mas eles não podem ser exatamente o mesmo. Há algo a que os Piro
gem visam a comunicação de seus desejos e necessidades legítimas aos muito raramente aludem, uma possibilidade que ronda ameaçadoramen-
mais velhos. Sua linguagem básica consiste em termos de parentesco te seu mundo social: o incesto. Que eu saiba, nenhuma narrativa mítica
como (a lista é exaustiva) mama, “mamãe”, papa, “papai”, jiro, “vovó”, trata dessa questão8; nenhum Piro, tampouco, jamais a discutiu comigo,
totu, “vovô”, shapa, “titia”, koko, “tio”, e yeye, “irmã/o mais velho/a”7. exceto no caso de suas formas menos graves, como o intercurso sexual
O uso de tais termos demonstra que a criança é dotada de nshinikanchi, entre padrasto e enteada — e mesmo assim para evocar as conseqüên-
“mente, inteligência, memória, respeito, amor”. Esta qualidade, nshini- cias horrendas que se abateriam sobre os culpados. Nada ouvi sobre rela-
kanchi, pode ser despertada por certos atos das pessoas mais velhas, mas ções mãe-filho e sogra-genro, e o intercurso entre irmão e irmã só me foi
não pode ser ensinada à criança; ela precisa se desenvolver espontanea- mencionado para indicar que ele seria uma prática dos mashko, um povo
mente. Sua manifestação primeira e mais importante é a fala inteligível; distintamente não-humano que vive muito longe, a sudeste9. Dizia-se dos
o uso de termos de parentesco para se obter atenção e cuidado é o aspec- mashko: “eles não são humanos, são bichos do mato!”
to mais saliente e poderoso dessa capacidade. Não é simplesmente que os Piro não falem sobre o incesto; é que o
Quando os velhos contam “histórias dos antigos” para seus netos, incesto parece ser o oposto da linguagem. Matteson, uma missionária-
tanto o narrador como os ouvintes estão demonstrando seu nshinikanchi: lingüista do SIL [Summer Institute of Linguistics], que começou a traba-
as crianças, ao mostrar interesse no desenrolar da narrativa; os velhos, lhar entre os Piro no final dos anos 40, faz o seguinte registro: “Quando
pelo ato mesmo de contar a história, pelo fato de estarem vivos para con- se sugeriu que um menino se casasse com a filha de seu tio paterno, sua
tá-la, e de ter netos vivos a quem contá-la. Voltarei a esse ponto, depois mãe lhe disse: ‘Mas como, você seria capaz de casar com sua irmãzinha,
de discutir o mito. com a filha de seu pai mais moço? Você é mesmo um cachorro! Você não
No pequeno fragmento do mito transcrito acima, a mãe de Tsla é é gente de jeito nenhum!” (Matteson 1955: 80)10.
designada pela palavra yinero. Essa palavra é o feminino singular de Ora, um certo mito piro conta que, antigamente, os cachorros podiam
yine, “gente, Piro, seres humanos”. Assim, a personagem é marcada falar, mas que perderam essa habilidade por terem desrespeitado um
como “mulher humana”; sua feminilidade é uma característica secundá- tabu (que o mito não diz qual é). Hoje em dia, as relações entre humanos
ria que serve para estabelecer a valência da relação posterior com o e cachorros se reduzem à “linguagem” elementar das ordens dadas pelos
Outro: aqui, a Humanidade está para a Alteridade como o afim do sexo primeiros e dos variados uivos, latidos e rosnados dos segundos. Isto
feminino está para o afim do sexo masculino. Mgenoklu, o “jaguar”, por sugere que o tabu quebrado pelos cães da antiguidade é aquele que inci-
sua vez, condensa a multiplicidade do Outro nessa figura do mais peri- de sobre as relações incestuosas, e que o preço da quebra do tabu é a
goso dos mamíferos selvagens, símbolo de toda competição inteligente e perda da linguagem. O incesto e a linguagem são estados mutuamente
mortal pelo mundo vivido imediato. exclusivos: os Piro não falam sobre o incesto porque ele é, literalmente,
A história diz respeito a um mau casamento e suas conseqüências. “indizível”.
O bestialismo, o congresso sexual entre Humano e Outro, é perigoso, tra- No mito, Tsla fala à sua mãe de dentro do útero, visando fazê-la
zendo efeitos desastrosos para os implicados. Humanos devem casar-se tomar a direção errada. Neste ponto, os narradores costumam observar:
com humanos, pois a mútua compreensão depende de uma comum natu- “Kgiyaklewakleru wa Tsla”, “Tsla era um transformador miraculoso”.
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Giyaklewata, “transformar miraculosamente”, é um modo de ação com- “Ele é Humano?” O recém-nascido é inspecionado visualmente em bus-
pletamente desconhecido dos Piro contemporâneos. Só sabem dele pelas ca de evidências de sua identidade. Muitos fetos, ao emergirem, reve-
histórias: é o modo de ação característico dos seres míticos e dos brancos lam-se não-humanos: formaram-se como jabotis, peixes, ou “algum ani-
desconhecidos que moram em terras distantes. Na primeira vez em que mal que não reconhecemos”. Eles não têm futuro no mundo da Humani-
usa tal poder no mito, Tsla fala à mãe para levá-la à perdição nas garras dade, e são expulsos do espaço humano o mais rápido possível. A maio-
dos Jaguares11. Através desse ato incestuoso, esse falar intra-uterino à ria dos fetos, entretanto, revela-se espontaneamente como humana. Se
sua mãe, Tsla lhe causa a morte. as pessoas que assistem ao nascimento concordarem que se trata de um
novo humano, então o pai (se estiver presente) deve partir em busca de
um não-parente para perfazer a Humanidade do novo humano.
O corte do cordão umbilical O ato do nascimento, o “sair”, não estará completo até que todo o
feto tenha emergido. Isso significa que aquilo que, em inglês, se costu-
O que há de miraculoso, do ponto de vista piro, em um feto falante? É ma chamar de “afterbirth” [placenta, secundinas], e que popularmente
preciso aqui olharmos mais de perto para as ontogenias do feto e da lin- se imagina ser parte da mãe, os Piro afirmam enfaticamente ser parte do
guagem. feto/bebê: a placenta, geyonchi, é uma parte do corpo do feto. Uma
Os Piro têm idéias muito próprias sobre o feto; mais que isso, eles criança só é dita ter nascido quando tudo dela emergiu, inclusive o cor-
têm idéias muito próprias sobre as idéias que o feto tem. Ou melhor, eles dão umbilical e a placenta. Tal unidade é extremamente importante: a
têm idéias próprias a respeito do que seria o mundo oculto dos fetos — criança recém-nascida é uma unidade completa de “bebê” + cordão
dos fetos que, ao contrário de Tsla, não são dados à conversação —, tal umbilical + placenta. Ela é, por assim dizer, um feto desenvolvido no
como revelado pelas fases posteriores do desenvolvimento infantil. tempo e no espaço, a partir de sua condição prévia de auto-involução
O que é um feto? Um feto é manewlu, “aquilo que está tendo um dentro do útero materno. Alguém chega, então, para cortar o cordão
corpo feito”, “aquilo que está sendo encorporado”*. Ele é o paciente da umbilical, cortando, literalmente, o recém-nascido em duas metades,
ação verbal manewata, “dar forma substancial a”, “fazer um corpo para”. separando-o de si mesmo.
Por um lado, essa ação é o produto simples e direto de dois agentes, um Nesse ato — o corte do cordão — está contida toda a ontologia dos
homem e uma mulher que misturam uma certa massa de sêmen e san- Piro. Para entendê-lo, é preciso explorar os dois modos pelos quais eles
gue menstrual por meio de repetidas relações sexuais. Por outro, porém, se reconhecem como humanos. Os Piro se chamam a si mesmos de yine,
não se pode saber o que é um feto, porque ele se oculta, invisível e silen- “Humanos”; mas eles se chamam entre si de nomolene, “meu parente”.
cioso, dentro do corpo de uma mulher. Invisível, ele escapa à fonte pri- Em geral, os dois termos são co-extensivos: ser yine é ser nomolene de
mária do conhecimento para os Piro, a visão; silencioso, escapa à fonte outros yine; ser Humano é ser parente de outros Humanos. Mas em cer-
secundária, a fala. As pessoas precisam esperá-lo “surgir”, gishpaka. So- tos momentos críticos, é preciso que se achem yine que não sejam nomo-
mente quando o bebê nasce é que ele pode ser conhecido. O genitor e a lene. O parto é um desses momentos.
genitora são os agentes de seu vir a ter um corpo; mas o feto é o agente A pessoa que corta o cordão umbilical do recém-nascido separa este
de seu próprio nascimento. Os bebês “surgem de dentro”, ativamente; em dois: um Humano, yineru; e um Outro, geyonchi, a “placenta”. Ao
eles não são passivamente “paridos” ou “dados à luz”. realizar esse ato, tal pessoa entra em uma nova e poderosa relação com o
O feto só pode ser conhecido após ter emergido espontaneamente, e novo Humano. Ao mesmo tempo, ela estará afirmando sua identidade
somente então pode-se dar uma resposta satisfatória à questão crucial: como Humano e como não-Humano perante os pais da criança.
Esse momento é muito complexo; vejamos bem o que se passa ali.
Um novo Humano surgiu no mundo dos Piro. Para se tornar completa-
mente Humano, ele deve ser cortado ao meio. Mas, para cortá-lo ao meio,
* N.T. – A primeira glosa corresponde ao inglês “that which is being made to have a body”; na
segunda, traduzimos “to embody” pelo neologismo “encorporar”, visto que “incorporar”, “encar-
é preciso achar um Humano disposto a assumir que ele mesmo ou ela
nar”, ou mesmo “corporificar” são diversamente inadequados. mesma não é completamente Humano aos olhos dos pais do novo Huma-
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no. Essa pessoa deve aceitar ser vista como diferente por esses Huma- uso da palavra. Esse uso envolve um modo especial de falar, que se de-
nos. Em suma, ela deve estar disposta a assumir o papel de Outro (i.e. de senvolve dentro dos homens na adolescência.
não-Humano) perante esses outros Humanos. Com a puberdade, o corpo de um jovem incha e cresce com sangue.
O que faz uma pessoa gimole (“parente”) de outra é a mútua mani- Este sangue é endógeno, desenvolvendo-se dentro dele. Após ter estado
festação de nshinikanchi. Isso se realiza, antes de mais nada, pela mútua lentamente crescendo graças à comida ingerida durante a infância, o
acessibilidade derivada da co-residência em uma aldeia (ver Gow 1991). menino atinge finalmente um tamanho a partir do qual começa, repenti-
Mas isso também se traduz no uso de termos de parentesco e no discurso na e dramaticamente, a intumescer-se. Até esse momento, ele havia sido
polido. Qualquer conversação entre os Piro envolve necessariamente o um receptor, geralmente passivo, de alimento e de outros cuidados; mas
uso de termos de parentesco, pois estes implicam a existência de rela- agora, um órgão seu começa a crescer e a se tornar oco, e a secretar subs-
ções específicas entre os falantes12. Quando dois desconhecidos se encon- tâncias potentes. Tal órgão é a garganta, e a substância potente por ele
tram, ou estabelecem imediatamente os termos de tratamento apropria- secretada é o riso (gislunota, “sua voz se quebra, se modifica, na puber-
dos, ou se ignoram por completo. dade”). À proporção que a garganta do rapaz se avoluma, ele vai-se tor-
A convocação de um cortador de cordão umbilical é, assim, um nando capaz de dar a gargalhada alta e rascante característica dos ho-
momento delicado, pois o pai da criança deve ir até alguém, dirigir-se a essa mens adultos.
pessoa por um determinado termo de parentesco, para logo em seguida Esse riso é uma coisa poderosa: ele é a condição do meyiwlu, “far-
negar o parentesco suposto pelo termo, com o pedido de que corte o cordão rear, divertir-se, festejar”. Os bons líderes são conhecidos por sua garga-
do recém-surgido, isto é, de um ser em via de se tornar parente do pai. lhada, que se opõe ao wamonchi, “tristeza, pesar”. Mas a responsabili-
Tão logo o ato é consumado, tudo se estabiliza, pois seus protago- dade principal pelo riso cabe aos adolescentes. As pessoas mais velhas
nistas entram em uma rede de novas relações baseadas nele. Após ter lamentam a ausência dos jovens quando estes estão longe, na escola,
tido sua condição de nomolene negada pelo pai da criança, o cortador do dizendo: “a aldeia está tão triste agora, só há velhos como nós, gente que
cordão torna-se nkompate (se homem) ou nkomate (se mulher)13 dos pais, não quer fazer nada, que não tem vontade de se divertir”. Elas esperam
e nustakjeru da criança (recíproco: nustaploolu). Esses termos substituem ansiosamente a volta dos rapazes, para que a vida volte a se animar.
os termos de parentesco tanto na referência como no vocativo, e definem Os rapazes estão à procura de ganurune, “cunhados”. Um ganuru é
uma espécie de hiperparentesco, marcado por uma intensificação da alguém exatamente como você, mas que, por definição, é um outro para
memória e do respeito que caracteriza as relações entre parentes. você. O que os rapazes estão procurando são Outros humanos. A alegria
Tanto quanto eu saiba, ninguém jamais se recusa a ser o cortador do que esses adolescentes dão às pessoas mais velhas está, em parte, na des-
cordão umbilical de uma criança recém-nascida, pois receber tal pedido truição do nshinikanchi, da “memória”, por eles realizada14.
é uma honra. Na verdade, é mais fácil alguém se ofender por não ter sido A alegria tumultuária e contagiosa dos rapazes faz deles mshinika-
chamado. O problema existencial do pai não está na resposta que venha tu, “descuidados, esquecidiços, sem nshinikanchi”. Em seus gracejos
a receber, mas na própria enunciação do pedido. Este deve começar pres- recíprocos, eles se interpelam pelo termo panu, “cunhado”. Panu é uma
supondo o nshinikanchi e terminar negando-o. É como se o pai dissesse: palavra complexa. Trata-se de uma contração de panuru, “teu cunhado
“Meu parente, venha rápido deixar de ser aparentado a mim!” Posto des- (de um homem)” ou “teu marido (de uma mulher)”. À primeira vista, am-
ta forma, o dilema do pai de um recém-nascido é muito semelhante ao bas as traduções são algo problemáticas quando as aplicamos a panu:
dilema do incesto: ele é algo difícil de se falar. quem é o “tu” a quem se fala? Se panu é uma contração de “teu cunha-
do”, então o “tu” é o próprio eu que fala — “teu cunhado” sou eu mes-
mo; mas isso equivaleria a afirmar uma identidade entre os ganurune
A fala torna os Outros possíveis [cunhados], o que contradiz a definição avançada acima. Por outro lado,
se panu é uma contração de “teu marido”, então o “tu” da fórmula é uma
Na verdade, há um bom motivo para ser o pai a pessoa que faz o pedido: terceira pessoa, a saber, a irmã do falante. Nesse caso, os dois ganurune
ele é alguém que, tempos atrás, já deu fim ao incesto, mediante um certo estariam se tratando por uma contração do termo que usariam para se
O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO 51 52 O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO

referir um ao outro ao falar a suas próprias irmãs. E este parece ser o caso, agora receber muitos convidados, que acorrem às suas casas para beber.
pois um dos métodos clássicos de se provocar uma mocinha é dizer-lhe: Bêbadas, as pessoas brincam e riem, e os rapazes se tornam “descuida-
“Gapokatka panuru!”, “Olha aí teu marido chegando!”, quando um dos, sem-vergonha” — em outras palavras, eles solicitam a cooperação
homem repugnante à menina se aproxima15. das moças adolescentes em sua busca de satisfação sexual.
Como Lévi-Strauss e outros já observaram para vários sistemas de Um rapaz e uma moça encontram-se, finalmente, dentro do mosqui-
parentesco das terras baixas sul-americanas, também para os Piro a teiro da moça, acionando então a última parte da equação, o pênis do
“cunhadez” [“brother-in-law”-ness] é uma forma logicamente primária. rapaz. Divertindo-se dessa forma, em especial quando o fazem regular-
“Marido” e “mulher”, enquanto termos específicos de parentesco, são mente, eles misturam suas substâncias sexuais, o sêmen e o sangue mens-
derivados do termo primário ganuru. A irmã do ganuru é uma ganunro trual, dentro do corpo da moça. “Casos” fortuitos, dizem os Piro, podem
potencial, uma “cunhado feminina/esposa”; e é através do estabeleci- levar à gravidez e ao nascimento de crianças17; mas é o ritmo regular e
mento de relações mútuas de ganuru entre os rapazes que estes conse- prolongado de relações sexuais entre adultos plenos que “realmente” faz
guem suas ganunro potenciais, e as moças seus ganuru potenciais. filhos.
Os Outros abundam no cosmos, e as relações dos Piro com muitos Como já discuti em detalhe alhures (Gow 1989; 1991), o casamento
destes Outros correspondem àquilo que Viveiros de Castro chamou de baseia-se em um ajuste equilibrado entre, de um lado, o trabalho produ-
“afinidade potencial”16. A Alteridade não está, de fato, em falta no mun- tivo, e, de outro, o desejo oral e sexual. O casamento é o lugar onde os
do piro; mas os rapazes devem produzir Alteridade a partir do campo dos corpos de um homem e de uma mulher podem, com efeito, ajustar-se reci-
parentes, dos nomolene. Eles precisam transformar um outro Humano procamente. Há uma canção de amor feminina que manifesta o ideal da
em algo quase, mas não completamente, idêntico a eles próprios: um sexualidade adulta: Yanasa shikale, “Cantar de Amiga”18, que diz o se-
ganuru. Precisam encontrar, dentro do campo da identidade (os Huma- guinte:
nos) aquela pequena diferença que permitirá à sua sexualidade assumir
uma forma social. Como eu disse, o incesto é indizível, e assim essa “alte- “Eu tenho uma boceta grande,
rização” de um Humano se caracteriza por uma intensificação da fala, E o meu marido um pau grande;
possibilitada pela maturação de um órgão. Tu tens uma boceta grande,
As meninas, durante a adolescência, também encorpam devido ao E o teu marido um pau grande”.
sangue, que faz um órgão interno crescer e secretar uma substância poten-
te. A vagina intumesce e produz sangue menstrual (tuxrewata, “ela mens- A imagística altamente condensada da canção afirma que as boas
trua pela primeira vez”). Isso faz com que tais meninas se tornem mais relações conjugais dependem da compatibilidade entre marido e mulher
sedentárias, restringindo-se à casa dos pais. “Gitoko twa”, “Ela fica em quanto a seu desejo sexual19. Um bom casamento é uma relação de abun-
casa”, diz-se dessas meninas. Elas se tornam o objeto do desejo sexual dos dância voluptuosa e de crescente compatibilidade mútua.
rapazes, dos ganurune de seus irmãos, que acorrem a suas casas a ver se O casamento caracteriza-se por uma transformação da linguagem.
conseguem conversar com elas, cair-lhes nas graças e dormir com elas. É O homem, ao casar, pára de falar direta e normalmente com os pais de
sempre um ganuru que faculta a um rapaz o acesso a uma dessas meni- sua esposa, em particular com a mãe dela. A comunicação entre um gen-
nas, e é como ganuru, por sua vez, que este último espera ser visto por ela. ro e sua sogra recorre ao registro vocal de respeito intenso, com emissão
Nesse momento da vida, o foco está na garganta do rapaz e na vagi- alta e aguda, ou então se faz de modo indireto, através da mediação da
na da moça. Para que se atinja a próxima etapa da sexualidade, é preciso esposa/filha. Genro e sogra são kpashiru/kpashiro, “reverenciados-proi-
que a boca da moça e o pênis do rapaz sejam ativados. Aqui, a iniciativa bidos” um para o outro. As mulheres nunca se esquecem de seus genros,
é da boca: uma moça recém-púbere é alguém que acaba de se tornar nem os genros de suas sogras. Essa intensa memória mútua é marcada
capaz de produzir grandes quantidades de cerveja de mandioca, sendo por um mútuo silêncio. Em contraste, marido e mulher “esquecem-se”
especialmente habilitada ao trabalho de mastigação da batata-doce que um do outro. As únicas formas vocativas para “esposa” e “esposo” são
ativa a fermentação da bebida. Abastecidos de cerveja, seus pais podem klojta e klujta, “como-é-mesmo-o-nome”, “coisinha”, “isso aí”. As únicas
O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO 53 54 O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO

relações que permanecem idênticas após o casamento são aquelas entre É tentador sugerir que os bebezinhos são kwamonuru, “tristes,
“cunhados” [siblings-in-law]: esquecidas desde o início, esse esqueci- angustiados, desamparados, mimosos” porque eles perderam seu “ou-
mento não precisa ser lembrado. tro”, a placenta. Nos adultos, a causa primária de wamonchi, “pesar, tris-
teza, desamparo”, é a morte de parentes próximos. Assim, seria razoável
supor que o bebê está de luto pela perda da outra metade de si. Mas isso
A transformação ampliada não parece correto, visto que wamonchi é, nos adultos, um afeto decor-
rente do nshinikanchi, faculdade que os bebês ainda não desenvolveram.
Já explicamos as implicações do intercurso sexual, da gravidez e do nas- Além do mais, a placenta não é algo a que o bebê fosse “relacionado” —
cimento de um filho. Resta agora explicarmos a gênese do nshinikanchi ela e ele eram uma coisa só.
na criança que nasceu e as conseqüências desse processo. Penso que o que une o adulto enlutado e o bebezinho não é tanto a
Em seus primeiros meses de vida, um bebê está perigosamente liga- perda que partilham, mas sua comum solidão humana. O adulto de luto
do ao interior do corpo dos pais, devido à sua identidade com os fluidos perdeu um parente querido, e assim foi deixado sozinho, abandonado20.
sexuais destes, que devem observar numerosas restrições de comporta- Um bebezinho, graças à decisão tomada no momento de sua vinda à luz,
mento até que a criança atinja um certo nível de autonomia pessoal (ver é yineru, “Humano”. Ele é um Humano que se vê em uma condição dolo-
Gow 1989; 1991). É quando pára de mamar e aprende a andar que a rosa de singularidade, a condição de não ter ninguém capaz de aplacar
criança começa a desenvolver nshinikanchi, e portanto começa a chamar seus desejos. O que lhe falta é nomolene, “meus parentes”. É nisso que
aqueles que cuidam dela por termos de parentesco ele se assemelha a um adulto enlutado, e é tal dolorosa singularidade que
Uma vez completamente desmamada, a criança é alimentada com é “vista” pelos outros.
“comida legítima”, a comida que todos os Piro comem (uma combinação O pré-requisito para que o bebê tenha parentes, pessoas para quem
de carne de caça e banana ou macaxeira). Este alimento, fornecido pelos se volta sua consciência, é a perda de parte de seu Eu originário, a saber,
pais e, através deles, por todos os parentes adultos, preenche essa nova seu Outro Primordial. Este outro eu é seqüestrado por um Humano que
interioridade formada pelas entranhas da criança. Satisfazendo sua fome, se torna o primeiro outro Humano do bebê, o nustakjeru, “meu cortador-
o alimento dirige a atenção da criança para o exterior, para o campo social do-cordão-umbilical”. Como vimos, tal pessoa, aquela que permite que a
dos “alimentadores”, isto é, daqueles que “viram aflição” na criança. criança tenha parentes, é definida como não-parente pelos pais da crian-
Na condição intra-uterina, o feto não possui interior ou exterior: ele ça. Esse Humano permite à criança ser um Humano para outros Huma-
está embrulhado em sua placenta, isto é, em suas próprias entranhas. nos, isto é, para seus nomolene, seus “parentes prospectivos” [kinspeo-
Depois do nascimento, o bebê se vê separado da placenta, processo que ple-to-be].
lhe dá um interior e um exterior. Esse interior vazio, causando-lhe fome e Perdendo o geyonchi, a nova pessoa Piro acha o nshinikanchi, e se
sofrimento, pode ser enchido de comida, a qual, ao satisfazer um desejo, volta para outros Humanos. Nshinikanchi é uma faculdade evidente que
transforma-se em nshinikanchi no exterior do corpo, faculdade de que o pode ser vista no desejo que um outro Humano manifesta de estar com o
bebê dá provas ao se mostrar atento e atraído pelos que o alimentam. Tal sujeito, e que pode ser ouvida na fala respeitosa desse outro. Como obser-
nshinikanchi manifesta-se primordialmente no uso seletivo de termos de vei anteriormente, o nshinikanchi manifesta-se pela co-presença mútua,
parentesco, isto é, na linguagem. pela co-residência em uma mesma aldeia 21. Com o passar do tempo, o
Por que as pessoas alimentam e cuidam de bebezinhos? Elas o fazem nshinikanchi se desenvolve e amplia, englobando cada vez mais gente.
porque eles são kwamonuru, “bonitinhos, tristes, coitados, pobrezinhos”. À proporção que as pessoas vão envelhecendo, elas se tornam o foco das
Isto suscita getwamonuta, “ver a tristeza, pena, desamparo, graciosidade escolhas residenciais feitas pelos mais jovens, de tal forma que as aldeias
de alguém”, o que é um aspecto do nshinikanchi. Getwamonuta, “enxer- crescem à volta do nshinikanchi dos velhos, por intermédio do nshinikan-
gar a aflição”, faz com que os parentes mais velhos busquem satisfazer chi de seus parentes mais moços. Em 1995, a maioria dos adultos resi-
os desejos do bebê, o que leva à formação de nshinikanchi à medida que dentes em Santa Clara (população total: 150) podia dar como razão prin-
ele vai crescendo. cipal para viver ali o fato de suas relações com a velha Clotilde Gordón,
O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO 55 56 O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO

que, com oitenta anos, era a única pessoa a quem todos eram explícita e antigamente, os primeiros Brancos”. Segundo as histórias dos antigos,
inequivocamente aparentados22. Tsla e os muchkajine, após ouvirem uma ave que agourava a morte, foram
O nshinikanchi se desenvolve e manifesta como uma expansão do embora rio abaixo, muito longe, “ninguém sabe para onde”, dizem os
campo social imediato, a ampliação das aldeias, a multiplicação dos narradores. Atrás de si, eles deixaram os yine, os Piro. Tsla os fez de argi-
parentes. Isso se dá, por assim dizer, como um puro produto do tempo, da la de olaria, dando-lhes vida com um sopro. Tsla lhes disse: “Fiquem nes-
experiência vivida. Nshinikanchi é algo que se desenvolve espontanea- ta terra, agora. Multipliquem-se. Multipliquem-se tendo crianças boas e
mente dentro da pessoa como uma resposta à fome saciada, mas ele leva inteligentes. Cuidem bem delas. Trabalhem. Façam roças. Derrubem
à multiplicação e ramificação dos laços entre os viventes. árvores. Plantem banana, mandioca, cana.” (Matteson 1951:52)
É, assim, o nshinikanchi que envolve a cena por onde começamos Os Piro são como Tsla. Como ele, eles fazem Humanos. Eles mode-
este artigo, com os velhos Piro contando tsrunnini ginkakle, “histórias lam novos viventes, animando-os com sua fala. Mas, ao contrário de Tsla,
dos antigos”, para seus netinhos. Uma longa vida culmina na narração os Piro não modelam novos viventes através de poderes singulares,
dessas histórias, a emissão dessa fala que, provindo dos mortos há muito “miraculosos”, nem os animam por meio de um sopro poderoso. Eles dão
olvidados, “não nos chegam, a rigor, de lugar nenhum” (Lévi-Strauss origem a seu mundo através da multiplicidade, seguindo o conselho mira-
1964:26). E ao ouvirem atentamente tais histórias, as crianças mostram culoso de Tsla para “tornarem-se muitos”.
estar desenvolvendo nshinikanchi, nesse processo contínuo de transfor- Enquanto Tsla foi capaz de manter o outro primordial junto a si sob
mação da consciência que é o parentesco piro. a forma de seus irmãos mais moços, o bebê Piro precisa perder seu outro
primordial para poder substituí-lo pelos nomolene, “meus parentes”,
uma multiplicidade de outros Humanos diferenciados. A raiz mole- signi-
Singularidade e multiplicidade fica “parente”, “amontoar uma quantidade de coisas semelhantes” e
“dez”. Ela significa, portanto, a reunião de elementos que são separada-
Voltemos à história dos antigos sobre o “Nascimento de Tsla”. Como já mente semelhantes em uma multiplicidade de elementos idênticos:
vimos, Tsla é efetivamente um kgwiyaklewakleru, um “ser miraculoso”, “parentes”, “coisas”, “números” (i.e. os dígitos das mãos). Aquilo que
da perspectiva dos xanikaka yine, o “povo de hoje em dia”, ou seja, os Tsla podia fazer sozinho, os Piro devem fazer através de sua própria mul-
Piro atuais. tiplicidade24.
Tsla emergiu espontaneamente do útero de sua mãe despedaçada, Tal multiplicidade conduz ao valor supremo dos Piro: gwashlu, o “vi-
seguido por seus “irmãozinhos”, os muchkajine. Ou seja, ele não somen- ver bem”. O termo significa, literalmente, “morar e não fazer mais nada”;
te era um agente hipersocial, falando ainda dentro do útero materno (e ele se refere à tranquilidade do dia-a-dia da vida na aldeia, a uma vida
portanto já completamente Humano antes do nascimento), mas ele tam- marcada pela ausência de qualquer tristeza, insatisfação ou ressentimen-
bém nunca se separou de seu Outro Primordial, a placenta. Com efeito, to que leve uma pessoa a querer se mudar. Esse valor se baseia na orques-
Tsla manteve junto a si esse outro, sob a forma de seus irmãozinhos e tração dos ciclos de vida de pessoas diversas pelo sexo e a idade, de tal
companheiros, os muchkajine, que emergiram do útero depois dele23. Tsla forma que os acontecimentos específicos da vida de uma pessoa (nasci-
realiza um curto-circuito radical de todo o parentesco piro, ao se auto- mento, puberdade) ramificam-se para fora, transformando a vida de
suscitar espontaneamente como um agente social completo. Ele é, assim, outros, e sendo transformados, por sua vez, por esses outros.
o criador miraculoso de si mesmo, e portanto o criador miraculoso do O que teríamos de definir como parentesco, para os Piro, é esse “vi-
mundo. Não existe nada como ele no mundo vivido contemporâneo dos ver bem”25. Ele se destaca contra um fundo cósmico de Alteridade, um
Piro. mundo de Outros com quem os Humanos de uma aldeia piro mantêm
Bem, talvez exista algo como ele. Os Piro são como ele. Tsla é enfa- uma variedade de relações, mas com quem não se pode “viver bem”.
ticamente um yineru, um Humano, um Piro. Como me disse um homem: Dentre esses Outros, os mais íntimos são os mortos, ex-Humanos que
“Tsla era baixo e de pele escura, exatamente como nós”. Seus irmãozi- tomaram o caminho da Alteridade. Meu finado compadre Artemio Fasa-
nhos, em troca, não são Humanos: eles são muchkajine, “os Brancos de bi, da aldeia de Santa Clara, assim exprimiu certo dia a essência do “vi-
O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO 57 58 O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO

ver bem”: “Eu nunca poderia ir viver longe daqui. Isso seria o mesmo Ao começar minha análise, neste artigo, por um problema de biolo-
que morrer. O que é a morte, senão que você nunca mais poderá ver seus gia, o problema da consciência e da linguagem dos humanos, procurei
parentes, seu pai, sua mãe?” evitar essa armadilha. Se, como argumentei, o parentesco piro é feito de
Não há, obviamente, nenhuma razão para que fiquemos por aqui; consciência e de linguagem, então ele é um fenômeno biológico — um
mas uma história deve parar em algum lugar, e assim este é o fim de daqueles fenômenos biológicos, aliás, sobre os quais os próprios biólogos
minha análise. Como dizem os narradores das tsrunnini ginkakle: “Seyo- admitem saber muito pouco.
katka”, “Isto é tudo, por ora”, na esperança de que mais tarde, amanhã, Começando por um problema biológico, além disso, não fiz senão
outro dia, a gente recomece de onde se parou. seguir os passos de Freud. Para Freud, o problema da consciência huma-
na sempre teve suas raízes nas ciências naturais, e especificamente na
biologia. Por mais inadequado ou absurdo que seu trabalho nos pareça
Conclusão hoje, Freud sempre esteve preocupado em ajustar as descobertas da psi-
canálise à biologia que ele conhecia. Muito do que soa esquisito ou risí-
À guisa de conclusão, gostaria de retomar rapidamente algumas das im- vel em Freud deriva da igualmente esquisita e risível biologia de sua épo-
plicações mais gerais de minha abordagem do parentesco piro e da cons- ca, anterior ao encontro de Mendel e Darwin na Nova Síntese. A única
ciência humana. Marylin Strathern observa, de uma perspectiva pós- psicanálise contemporânea que vale a pena ler, aliás, é aquela que man-
moderna, que “[p]ara o antropólogo moderno, os fatos do parentesco eram tém tal laço com a dinâmica da ciência biológica.
ao mesmo tempo fatos naturais e fatos culturais ou sociais” (1992:46). Freud também era um leitor voraz de antropologia, e sempre procu-
Isso levou os antropólogos ocidentais a projetar sobre todas as cultu- rou ligar seu trabalho às descobertas dessa disciplina. Tratava-se, mais
ras que estudam certas formulações especificamente ocidentais sobre a uma vez, da antropologia de seu tempo e lugar. Um dos maiores proble-
“natureza” e os “laços naturais”26. Foi contra tal projeção indevida que mas da antropologia de Freud era o seu “evolucionismo social” e a con-
muitos críticos da análise modernista do parentesco se levantaram; um seqüente assimilação dos selvagens das terras distantes aos antepassa-
dos mais eminentes desses críticos, David Schneider, chegou mesmo a dos remotos dos europeus, em uma tentativa de remediar, com o que se
proclamar que “o ‘parentesco’ [...] é um não-objeto, visto não existir em sabia dos primeiros, a ignorância sobre os segundos, e reciprocamente.
nenhuma cultura conhecida do homem” (1984:vii). Isso fez com que Freud (e tantos outros de sua época) reduzisse ambos a
Embora eu seja geralmente simpático a tais críticas, creio que o ver- uma massa simples e comum, o que autorizou o tratamento de todos os
dadeiro problema não está aí. O verdadeiro problema é muito mais pro- mitos dos selvagens como variantes de um único mito, o mito grego de
fundo; ele diz respeito ao modo específico pelo qual a antropologia Édipo, que se tornou o mito de origem da Humanidade. Mas, mais uma
moderna definiu o social ou o cultural em oposição ao biológico. As aná- vez, a única psicanálise contemporânea que vale a pena ler é aquela que
lises do parentesco começaram pondo a sociedade/cultura como um está comprometida com a dinâmica da antropologia.
domínio de objetos e de métodos metafisicamente distinto de seu “ou- Sabemos hoje muito mais sobre os mitos, graças às monumentais
tro”, a natureza. Assim, tais análises se viram obrigadas a demarcar rigi- Mitológicas de Lévi-Strauss. Este autor mostrou claramente que cada
damente a fronteira entre os dois domínios, abandonando à biologia mui- mito, em cada evento narrativo, é único, irredutível a uma versão mais
to do que elas gostariam de explicar. Pior ainda, o estudo da natureza antiga ou mais autêntica; ele mostrou também que os mitos de Édipo são
viva terminou por se reinfiltrar nessas análises, pois muitos antropólogos apenas um conjunto dentro de uma multidão. Todos os mitos, entretanto,
vieram a confundir a ciência da biologia com o objeto desta ciência, como estão ligados sistematicamente por meio de um sistema multidimensio-
se constata quando se os ouve falar em “parentes biológicos” ou em “fa- nal de transformações. Tal sistema, argumenta Lévi-Strauss, é o próprio
tos biológicos”. Isso sugere que a abordagem sociocultural sempre este- pensamento humano buscando apreender as transformações temporais
ve fadada ao fracasso, já que os antropólogos atribuíam uma auto-evi- do mundo onde ele se acha mergulhado27. No “Finale” de L’Homme Nu,
dência ou uma transparência à construção dos argumentos dos biólogos Lévi-Strauss recusa o reducionismo simplista da psicanálise freudiana
que eles não reivindicavam para os seus próprios. clássica, escrevendo:
O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO 59 60 O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO

“Menos confusões teriam sido suscitadas pela noção de natureza humana, Notas
que persisto em empregar, se se tivesse advertido que não a concebo como
um edifício de estruturas acabadas e imutáveis, mas sim como matrizes a
partir das quais se engendram estruturas que, embora pertencendo todas ao 1 O trabalho de campo no Bajo Urubamba foi financiado pelo Social Science

mesmo conjunto, não permanecem necessariamente idênticas ao longo da Research Council (Grã-Bretanha), pela Nuffield Foundation e pela British Acad-
existência individual ou, no caso das sociedades humanas, em todo tempo e emy. Por suas sugestões, eu gostaria de agradecer a Christina Toren, Heonik
lugar” (1971:561). Kwon, Jean Lave, Borut Telban e Andrew Holding.

2 O argumento de Haraway parece sugerir que as respostas a tais pergun-


Creio que a maioria dos biólogos reconheceria seu objeto de pesqui- tas são auto-evidentes — como se todos nós já as soubéssemos. Veja-se, entretan-
sa muito mais nessa definição de natureza humana que na “natureza” e to, o artigo de Laura Miller, “Women and Children First”, para uma crítica demo-
na “biologia” que têm freqüentado, até o presente, as páginas de tantas lidora a esse estilo “professora careta” como sendo o inimigo mortal de toda inves-
descrições antropológicas do parentesco. Essa é uma definição, ademais, tigação imaginativa. Nos passos de Miller, poderíamos ver Haraway como a pro-
que nos permitiria evitar as implicações muito discutíveis de uma con- fessora puritana dos filmes sobre o Velho Oeste, que chega para expulsar as “más
meninas” (as primatólogas) da cidade. Assim, alertada por Haraway, qualquer
cepção da Humanidade que atribuiu a unidade à biologia e a variação ao
pessoa de bem poderá constatar que essas primatólogas andam em péssima com-
“domínio” ou “nível” ontologicamente separado da “cultura” ou da “so- panhia: macacos, primatas antropóides [apes] — e homens. Isso é lamentável, pois
ciedade”. Seguindo a perspectiva de Lévi-Strauss, como fiz aqui, podere- quantos cientistas sociais estarão dispostos a parar para ler The Chimpanzees of
mos compreender a variabilidade dos sistemas de parentesco humano Gombe de Goodall, depois de Haraway lhes ter dado uma excelente razão para
como produto da natureza humana; além disso, se eles são todos estrutu- não ler esse livro?
ras que pertencem a um mesmo conjunto, isso nos garante sua inteligibi-
3 Essas questões exigiriam, obviamente, uma discussão muito mais extensa,
lidade. Como etnógrafo, posso compreender o parentesco piro, e comuni-
tanto mais porque os argumentos de Wilden, Rubin e Strathern sobre o assunto
car esta compreensão, porque sua inteligibilidade é a de um modo vivido receberam pouca atenção na literatura subseqüente. Tal discussão implicaria uma
da consciência humana. reflexão crítica sobre o papel do “dom” maussiano nos trabalhos de Lévi-Strauss
sobre o parentesco e sobre sua influência no conceito lacaniano de “simbólico”.

4 O estudo de Mimica sobre os Iqwaye e a análise de Toren sobre o amor


Recebido em 14 de maio de 1997
em Fiji foram fontes de inspiração fundamentais para o presente artigo.
Aprovado em 10 de julho de 1997
Tradução de Eduardo Viveiros de Castro 5 Admito estar aqui fazendo uma certa prestidigitação. De todos os mitos

piro, “O Nascimento de Tsla” é o que mais de perto se aparenta às narrativas


genéticas de minha própria cultura; tomei, assim, tal atalho por conveniência
expositiva. Contudo, poderia ter começado por qualquer mito piro, que chegaria
à mesma conclusão (algo que não posso provar aqui, mas apenas, mais uma vez,
prestidigitar). Na verdade, o presente artigo deriva de uma análise de outros mitos
piro: “Como o fogo foi encontrado”, “Klana pinta o rosto da Lua” e “O homem
que virou um queixada”.

6 Argumentei em outro trabalho (Gow 1991) que os velhos têm essa capaci-

dade de dar forma a essa fala especial por causa de sua posição existencial como
Peter Gow é professor da Universidade de Manchester. Em 1996, foi profes- gente que “sabe onde quer morrer”, isto é, que está completamente resignada
sor-visitante do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social diante da morte próxima.
(PPGAS) do Museu Nacional/UFRJ. Publicou Of Mixed Blood: Kinship and
History in Peruvian Amazonia, além de artigos em revistas especializadas.
O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO 61 62 O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO

17 As crianças nascidas de relações ocasionais são chamadas “filhas do ven-


to”. Uma mulher assim me falou afetuosamente de uma de suas filhas, enquanto
lhe afagava a cabeça: “Ela é só uma filha do vento. Nunca vivi com o pai dela, só
trepei com ele em festas. Sei lá onde ele anda agora”.
7 Há outros termos de parentesco, como wiwi e shte, “parente mais jovem”,

magi, “cunhada”, e panu, “cunhado”. Mas estes são, por razões óbvias, pouco usa- 18 A palavra yanasa foi-me explicada como se referindo a “uma mulher mes-

dos por crianças pequenas. tiza, amiga de uma mulher Piro”.

8 O mito piro de origem das manchas da lua, apesar de sua semelhança com 19 As canções de amor piro são marcadas por um “deslizamento” complexo

outros mitos ameríndios sobre o tema, destaca-se por não mencionar o motivo do da posição de sujeito, de tal forma que o ouvinte preferencial deve deduzir onde
incesto. se colocar no jogo de deslizamento do sujeito. O “tu” da Yanasa shikale é a “ami-
ga”, mas a canção é dirigida aos ouvidos do marido da cantora. Trocando em miú-
9 Os mashko são usualmente identificados aos povos de língua harakmbút dos, a cantora diz ao marido que eles formam um casal sexualmente compatível,
do rio Madre de Dios, como os Amakaeri. e portanto que ele não tem por que desejar outras mulheres que, por sua vez, são
sexualmente compatíveis com seus próprios maridos. Ver Gow (1991) sobre as
10 A passagem leva a crer que a sugestão partiu de Matteson, não de um Piro. relações entre compadres e comadres.

11 O marido-Jaguar pode ser ou não o genitor de Tsla. Em algumas versões 20 Ver Gow (1991) para uma discussão das relações complexas de abandono

ele é, em outras fala-se em um genitor humano, e muitas nada dizem a respeito. e solidão entre parentes vivos e mortos.
A questão não tem muita importância, por motivos que se tornarão claros mais à
frente. Mas o Jaguar é indubitavelmente o pai de Tsla. [N.T. – O autor está aqui 21 Viver longe dos parentes é “esquecer-se” deles, e todo esquecimento entre

contrastando genitor e pater, ou “pai biológico” e “pai social”.] parentes leva ao ressentimento e, em última análise, à fragmentação das aldeias.
Ambos os resultados têm a qualidade negativa do que é mshinikatu, “esquecidi-
12 Uma pessoa mais velha pode se dirigir a outra mais moça pelo nome ou ço, desamorável, desrespeitoso, insensível”.
apelido, alternativamente ao termo genérico “parente mais jovem”, mas esta últi-
ma deve responder utilizando um termo de parentesco. 22 Ao voltar aos Piro em 1995, após sete anos de ausência, surpreendi-me ao

achar Santa Clara tão pouco mudada, apesar de todo o sofrimento causado pela
13 Esses termos são estendidos aos cônjuges dos cortadores. guerra civil peruana nessa região e da morte de dois líderes da aldeia, entre várias
outras pessoas. Tenho fortes suspeitas de que foi graças à longevidade de Clotil-
14 Nos funerais piro, esses adolescentes são convidados a beber e “divertir- de Gordón que a aldeia permaneceu unida.
se”. Durante um velório, os vivos estão atormentados pela memória (nshinikanchi)
aterrorizante do morto, assim como (e porque) o morto se lembra dos vivos. Se um 23 Poder-se-ia dizer que Tsla é miraculoso porque ele já tinha parentes antes

velório é marcado por uma tristeza excessiva, costuma-se culpar os parentes enluta- mesmo de haver nascido. Essa formulação ajuda a medir a enorme distância entre
dos, dizendo que eles não providenciaram álcool em quantidade suficiente para que as concepções piro e ocidental do parentesco.
os jovens se divertissem — o potencial de exuberância dos rapazes não foi realizado.
24 Em piro, as palavras yine, “Humanos”, e yineru/yinero, “Humano mascu-

15 Esta análise encontra eco no apelido usado comumente pelos Piro para lino/feminino”, possuem uma característica excepcional. Yine é, tecnicamente, a
falar dos Campa-Asháninka vizinhos: Pishinto, que é a forma campa para “tua forma plural da raiz nominal yi- seguida do “pluralizador”-ne, mas essa raiz nomi-
filha”. Isto seria uma contração da frase: “Pamenero pishinto!”, “Dá-me tua nal não pode tomar a forma singular (não existe a palavra yi em piro). Assim, as
filha!”, gracejo-padrão que marca as interações de homens Piro e Campa. formas singulares dos Humanos (yineru e yinero, conforme o gênero) são a singu-
larização do que é intrinsecamente um plural. Com a exceção dos “grupos nomi-
16 Um bom exemplo disso são os Conibo, de língua Pano, vizinhos setentrio- nados endógamos” (ver Gow 1991), essa situação não tem paralelo na língua piro.
nais dos Piro do Urubamba. Os Piro chamam esse povo de Chayiko, “muito cha-
yi” (da palavra conibo chai, que corresponde ao piro ganuru). Ou seja, os Piro 25 Isso não se choca, obviamente, com a identificação do parentesco à memó-

chamam os Conibo pelo aumentativo de um termo que os Conibo usam para falar ria, que avancei em trabalhos anteriores (Gow 1989; 1991). “Viver bem” é ao mes-
deles Piro. Os Conibo são, assim, os “afins potenciais plenos” dos Piro. Eles são mo tempo o produto e o produtor da memória.
também fortemente endógamos; não sei de nenhum intercasamento Piro-Conibo.
O PARENTESCO COMO CONSCIÊNCIA HUMANA: O CASO DOS PIRO 63

26 Uso aqui “ocidental”, em lugar do “euro-americano” de Strathern, em


atenção à popularidade de que o primeiro termo goza, entre esse grupo de pes-
soas, como auto-identificação.

27 É significativo que a “segunda teoria do parentesco” de Lévi-Strauss,

aquela dispersa em seus escritos sobre a noção de Casa, e que se desenvolveu a


partir de suas reflexões sobre o mito e a temporalidade, dê muito menos peso ao
paradigma maussiano do dom (ver nota 3, supra).
MARILYN STRATHERN Com esses dois tipos de comparação em mente
apresento algumas reflexões sobre o gênero como
instrumento de comparação Com isso me refiro ao
modo como as diferenças entre homens e mulheres
entram em nossos calculas — tanto como antropologos

Necessidade de País, dedicados ao estudo de outras culturas quanto como


euro-americanos reagindo a possibilidades de mudanças
nas relações procnativas
Esta leitura situara o gênero na pratica procriativa
e especificamente nas diferenças percebidas entre pais

N ecessz;ãrã à mies 1 e mães Tambem extraira uma conclusão nada notavel


sobre a utilidade da comparação transcultural isto e
sobre a elucidação que isso lança sobre algumas de
nossas propnas preocupações intelectuais O nossas
tem aqui uma ressonância especial Não pretendo
recorrer ao que simplesmente pode existir em comum
entre nos como europeus Na verdade evoco um
'Agradeço ao Dr Robert Por volta de maio de 1991 estourou na Grã- universo cultural que e ao mesmo tempo maior e menor
Silman e demais anfitriões do Bretanha uma polêmica sobre mulheres que buscavam que a Europa Maior na medida em que trato do que
Simposio da Sindrome do
Nascimento Virgem
tratamentos de fertilidade alegando que desejavam considero caracteristicas de (um conjunto de) sistemas
realizado sob os auspicias contornar as relações sexuais Eram mulheres que para de parentesco que abrangem tanto a America do Norte
da Faculdade de Medicina falar sem meios termos queriam bebês mas não sexo quanto a Europa Embora talvez sejam caracteristicas
do London Hospital pela Não foi so a imprensa sensacionalista que comparou o mais do norte da Europa que do sul e mais da classe
oportunidade de refletir resultado pretendido ao Nascimento Virgem Uma das
sobre as questões suscitadas media que da operaria ou alta essa e a camada cultural
nesta Conferencia Extraio clinicas de fertilidade que sentiu que sua politica liberal que mais estreitamente inspirou modos de pensar antro-
fragmentos de minha propna atraira um numero particularmente grande desses pologicos sobre o parentesco e suas praticas de pensa-
apresentação no Simposio pedidos se perguntava se não estaria diante de uma mento são relevantes para qualquer tipo de exercia()
que sera publicada como Sindrome do Nascimento Virgem Talvez se tratasse de comparativo que os antropologos queiram empreender
ata numa série especial do
Simposio Na epoca eu
uma situação especial que exigisse atenção Os pedidos nessa area Mas tambem e um universo menor na
estava envolvida na haviam suscitado duvidas na mente dos clinicos sobre o medida em que as duas controversias que mencionei são
pesquisa sobre A Represen que eles faziam tambem se manifestaram duvidas sobre britânicas Uma trata de questões de administração de
taçao de Parentesco no as motivações das mulheres tratamentos de fertilidade que foram contextualizados
Contexto das Novas Para a antropologa o caso evoca duas compara-
Tecnologias Reprodutivas e
por uma recente Lei do Parlamento Britânico A outra foi
agradeço o prêmio do ESCR ções Uma e a que traz a mente a famosa polêmica das uma discussão sobre a natureza da paternidade e ate
(2000 23 2537) que muito decadas de 60 e 70 com um titulo semelhante a chama- onde contextualizada pela teoria do grupo de descen-
facilitou meu trabalho da Polêmica do Nascimento Virgem Tratava-se de dência britânica faz parte da tradição antropologica
Minhas dividas de longo relatos etnograficos de que na Australia abongine e em britânica Apresento as duas como exemplos locais de
alcance com os meus
colegas no projeto Jeanette
partes da Melanesia mais notadamente nas Ilhas Trobnand debates euro-americanos mais amplos
Edwards Sarah Franklin Eric a concepção não era pensada como dependente das Hoje e convencional na comparação transcultural
Hirsch e Frances Pnce nao relações sexuais A segunda comparação e a implicita envolvendo culturas euro-americanas introduzir materiais
terminam aqui A referência entre homens e mulheres quando encarados como pais não ocidentais e extrair inferências analiticas sobre sua
a seus trabalhos no prelo e Na ideia de parentesco euro-americana afirma-se que
uma obra conjunta a ser
aplicabilidade ou não ao caso euro-americano Mas vou
publicada pela Manchester existe uma relação direta entre o intercurso sexual e a fazer de um modo um pouco diferente Começo com o
University Press sob o titulo concepção levando ao parto Contudo pais e mães estão ultimo pela luz que lança sobre os modelos analiticos ja
Procreahon Kinship In the colocados de formas diferentes em relação a esse proces- , O termo parentalidade e o existentes que informam o interesse antropologico por
Context of the New so a maternidade estabelece-se tradicionalmente com a neologismo tecnico para culturas não ocidentais Minha trajetoria partira assim de
Reproductive Technologies
(Procnaçao o parentesco
mãe dando a luz enquanto a paternidade o e pela prova suprir a falta de uma palavra certos modelos populares que identifico como parte do
de relações sexuais com a mãe Desvincular sexo de portuguesa correspondente parentesco euro-americano para certas obsessões
no contexto das novas a parenthood na lingua
tecnologias reprodutivas) procriação e uma coisa as praticas anticoncepcionais inglesa Assim parentalidade teoncas na pesquisa antropologica a fim de comentar
ha muito tornaram isso possivel Mas desvincular sexo de diz resperto ao pai e a mae algumas das formas como o gênero tem sido tratado
maternidade parece um problema inteiramente diferente (Nota do revisor ) etnograficamente no contexto da parentalidade2

ESTUDOS FEMINISTAS 303 N 2/95 ANO 3304 2° SEMESTRE 95


Deveria acrescentar que grande parte da explica- os relacionamentos que se seguem a partir da procria-
ção a seguir e uma interpretação corrente do que ção Na verdade essas novas facilitações são muitas
entendo serem certas compreensões culturais Contudo vezes encaradas como liberadoras da possibilidade de
nem sempre sinalizo minhas interpretações e apresento concepção da dependência de pessoas especificas
muitas delas na forma como ocorrem na respectiva que por problemas biologicos talvez não tenham elas
cultura como propostas ou declarações sobre fatos Meu propnas condições de conceber E nisso suscitam uma
objetivo e apresentar o que e culturalmente pensavel questão Em termos muito simples a questão e que
Deste modo quando faço afirmações faço-as em nessas circunstâncias o propno processo de concepção
nome por assim dizer das culturas que descrevo não pode ser a justificação para unir pessoas e nesse
caso não cria parentalidade Os pais são criados por
Síndrome do Nascimento Virgem decisões de medicos e clinicos entre outros Surge
portanto a questão sobre quem e a recipiente adequa-
O debate sobre as chamadas Mães Virgens na da para a maternidade assistida
Grã-Bretanha começou com uma carta ao jornal medico Esta questão esta em pauta desde a epoca que o
The Lancet Inicia-se assim Parlamento Britânico examinou uma lei que estabelecia
Senhor Os clinicos e terapeutas sabem da 3 PRICE Frances Establishing as diretrizes para a pratica clinica 3 Gira em torno da
Guidelines Regulation and determinação dos arranjos conjugais e familiares que vão
patologia oculta que pode se apresentar como inferhlidade the Clinicai Management of
coisas como disturbio alimentar depressão vicio de Infertility In LEE R e tornar os pais adequados para a criança que vai nascer
droga e alcool e falência conjugal Contudo como MORGAN D (ed ) A maioria dos comentaristas supõe que o que esta em
terapeuta ligada a uma clinica de fertilidade encontrei Birthrights Law and Ethics at jogo e a proteção da família nuclear heterossexual4
the Beginings of Life Londres contudo meu interesse pessoal não esta na família como
uma situação unica para o tratamento high-tech de Routledge 1989
fertilidade — mulheres solteiras sem nenhuma experiência tal mas no que chamo de parentesco isto e na maneira
sexual e sem nenhuma intenção de ter relação sexual 4 HAIMES Eric Recreating the como os euro-americanos pensam sobre a formação de
Family'? Policy Considerations relacionamentos intimos baseados na procriação O que
que desejam ter filho por meio da concepção assistida Relating to the New
Na maioria dos casos as mulheres buscavam os Reproductive Technologies
tombem esta em jogo e a maneira muito diferente como
relativamente simples processos de inseminação de doador In MCNEIL M et ai (eds ) pais e mães nas formulações euro-americanas se
(Dl) (do inglês donor insernination) embora o tratamento The New Reproductlye envolvem na procriação
possa incluir medicamentos ovulatorios Administrada no Technologres Londres Existe o que podemos chamar de exigência de
Macmillan 1990 parentesco para a parentalidade ou seja que a criança
contexto de outros tratamentos tornados possiveis pelas CANNELLFenella Concepts
novas tecnologias de reprodução essa assistência adquire of Parenthood The Warnock tenha dois pais identificaveis iguais em termos de doa-
uma aura high-tech A psicoterapeuta citava o caso de Report the Gullek Debate ção genetica mas desiguais em termos dos papeis que
uma mulher encaminhada para aconselhamento and Modern Myths America vão representar na vida dela Os papeis sociais podem
Ethnologist 1990 17 667 686 claro ser desmembrados em vanos componentes e
A paciente não via nada de incomum em sua
solicitação Acreditava que a tecnologia medica propor- assim espalhar-se por varias pessoas individuais E se a
cionaria a resposta a todos os seus sonhos e disse que criança pode ser educada por diferentes pessoas talvez
os processos de tratamento eram cientificos e preferiveis não pareça um grande salto cultural imaginar que sua
a relações sexuais (The Times 11 3 91) concepção tombem possa distribuir-se entre muitas
As novas tecnologias reprodutivas foram em geral pessoas Contudo por mais numerosas que sejam essas
desenvolvidas como um meio de evitar prejuizos ao pessoas ou são mães ou pais Podem ser chamadas
corpo A fertilização in-vitro (FIV) e a mais conhecida de mães e pais verdadeiros ou adotivos ou delegados
Com a substituição da união fisica de gametas pela isto e de alguma forma mães e pais substitutos Mas não
união em cultura (in vitro) outras substituições lambem 5 SCHNEIDER David M ha por assim dizer nenhum outro tipo de pais' E o
American Kinship A Cultural
foram facilitadas A FIV por exemplo encorajou e tornou Account Eglewood Cliffs
gênero sempre designa pessoas para um ou outro papel
factivel a criação de embriões atraves de ovulas doados Prentice Ha» 1968 p42 O gênero entra em algumas das questões levanta-
assim como esperma doado e/ou sua implantação em das pelas novas tecnologias de reprodução tambem de
uteros substitutos Mais que isso todos esses processos outras maneiras Uma delas e o gênero da tecnologia
permitem que se contornem as relações sexuais As 6 MARTIN Emily The Womam medica um tema explorado em muitos textos feministas,
ir) the Body A Cultural
pessoas não precisam interagir diretamente a fim de Analysis of Reproduction
Outra é o gênero do clinico facilitador Reprodução sem
produzir ovulos para extração doar sêmen ou receber Boston Beacon Press 1987 sexo mas com o medico e um dos comentanos irônicos
um embrião fertilizado Ou melhor as interações que Martin fornece um panora registrados por Price (na imprensa)
ocorrem não precisam ter nenhuma consequência para ma geral Uma visão popular e de que a tecnologia e os

ESTUDOS FEMINISTAS 305 N 2/95 ANO 3306 2° SEMESTRE 95


clinicos que a empregam podem ser encarados como Diante do futuro pai — seja o que encomenda ou o
exercendo controle sobre o processo de reprodução um genetico — o clinico age como um substituto Um dos
desejo masculino que se supõe em detrimento dos motivos contudo para a ansiedade clinica em relação
femininos Isto por sua vez evoca e consubstancia a ao fenômeno do Nascimento Virgem era a posição
premissa das proprias distinções de gênero Nessas comprometedora em que alguns cincos achavam que
formulações euro-americanas pais e mães se situam certos pedidos de mulheres os colocavam Um pedido de
diferentemente em relação a parentaIrdade uma união ID para evitar relações sexuais significava que não havia
igual tambem e uma parceria assimetrica O intercurso nenhum pai pretendido o clinico não estava substituindo
7 SCHNEIDER David M op cit sexual o ato que Schneider7 sugeriu na decada de 1960 ninguem nem suas ações substituam nenhuma outra
estar no âmago do parentesco americano efetiva os que poderia de outra forma ter ocorrido
dois A relação do ato sexual com a concepção não e Esses pedidos podem ter causado preocupação
portanto simplesmente uma relação tecnica Serve para por dois motivos relacionados com o gênero Um deles
reproduzir a parentalidade como o resultado percebido acabei de mencionar As mulheres não permitiam ao
de uma união em que as partes se distinguem pelo clinico sentir que substitula outro parceiro procnativo e
gênero Fora qualquer outra coisa desempenha por isso por isso sugeriam uma equação diferente que ele era o
uma parte concettualmente significativa na procriação unico parceiro sexual Foi um problema que os clínicos
A intervenção tecnologica e muitas vezes apresen- manifestaram retornarei a ele mais adiante O outro
tada de maneira a conservar intato o mecanismo de estava impliato desconfio de que esses pedidos eram
procriação conceituai o que se diz e que a intervenção uma afronta ao propno modelamento da relação entre
simplesmente ajusta as condições físicas Contanto que intercurso sexual e concepção que e essencial para as
substâncias ou pessoas possam ser identificadas como ideias euro-americanas sobre como se fazem os pais
ocupando o lugar de ou substituindo outras substâncias Uma aura de perversão cercou os pedidos das mulheres
ou pessoas (naturais) persiste o modelo indigena de que foram identificados como uma sindrome
procriação Assim o esperma doado substitui o esperma As mulheres que procuram ter filhos por meios
defeituoso ou a mãe substituta age no lugar da mãe tecnologicos a fim de contornar relações sexuais com
pretendida Alem disso a propria intervenção tecnologica homens não apenas representam uma ameaça a
pode ser encarada como substituta do intercurso sexual paternidade — uma ameaça que lembra a que antes se
Nessa visão os clinicos apenas executam com esses PFEFFER Naoml Artificial via na propna inseminação artificial' Ao contrario elas
Insernination In Vitro
meios o que seria de outro modo realizado pelo ato Fertilisation and the Stigma
expõem o fato de que a ameaça vem por assim dizer
sexual Proporcionam diferentes condições sob as quais of Inferhlity In STANWORTH da propría tecnologia As mulheres tomam as possibilida-
pode ocorrer a fertilização Quando pensam especifica- M (ed ) Reproduchve des tecnologicas pelo que elas podem fazer — contornar
mente em seu papel tambem podem adotar um seme- Technologes Cambridge a necessidade de intercurso sexual — e não por seu valor
lhante ao do doador anônimo como agentes facilitadores Polity Press 1987 substitutivo como substitutas dele Contudo achou-se
os clinicos e medicos podem atuar como se estivessem inadequado que as mulheres desejassem a tecnologia
numa relação resultante do processo que engendram por si mesma E em geral o impeto de tecnologizar o
Ora as mulheres que procuram tratamentos de tratamento da fertilidade pode ser atribudo tanto aquelas
fertilidade a fim de evitar o contato sexual desafiam que buscam ajuda quanto aos cincos que a prestam
inteiramente essas conciliações com a ordem natural E A pergunta cultural interessante neste caso e por
ao bloquearem as substituições implicitas seus pedidos que as mulheres que aparentemente são defensoras
tiveram o efeito (para algumas pelo menos) de lançar entusiasticas das novas conquistas medicas devem ser
em maior - não menor - destaque o gênero do proprio vistas como derrubadoras da ordem moral por serem
facilitador Digo propilo porque a informação que assim E a questão que abordo primeiro
tenho se refere apenas a cincos homens embora a
consultora que primeiro suscitou o problema do Nasci- A necessidade de um pai
mento Virgem fosse mulher
Ha muito se fazem piadas sobre a função pater- Os participantes de um simposio sobre a Sindrome
na do clinico que produziu um filho com seus esforços do Nascimento Virgem realizado no Royal London
e engenhosidade Podemos considera-las como uma Hospital em junho de 1991 fanam objeção a que se visse
especie de comentario cultural sobre a relação entre a qualquer aura desse tipo em suas intenções Como os
concepção tecnologicamente assistida e o processo primeiros a identificar a sindrome chamavam a aten-
natural de concepção que torna pais os envolvidos ção para um determinado padrão de pedidos que

ESTUDOS FEMINISTAS 307 N 2/95 ANO 3308 2° SEMESTRE 95


chegavam as clinicas de fertilidade O Simposio destina- de moralidade Trata-se apenas de um caso de quem se
va-se a oferecer uma avaliação da situação a fim de dispõe a nos vender o que queremos Que tipo de
fugir do clamor que se seguiu a carta a The Lancet que mulher repeliria os homens e que tipo de criação teria o
recebera ampla cobertura dos meios de comunicação filho perguntou Gostaria de saber o que essa mulher
Embora a carta sugerisse uma patologia oculta dira sobre os homens ao filho quando ele crescer e que
os participantes do Simposio viam a principal questão Impressão causara acrescentou E perverso recusar os
clinica girando em torno de saber se ha ou não um mal meios saudaveis normais de gerar um filho numa rela-
identificavel por tras dos desejos das mulheres Segundo ção viva com um homem E um exemplo particular de
esta opinião o problema não era uma patologia ou mente deturpada e desencaminhada e revela o que nos
doença no sentido medico mas uma questão de desejo tornamos Uma sociedade em que nada funciona (Today
deslocado (Silman comunicação pessoal) ( Em outras 11 03 91 paragrafos suprimidos)
palavras estão essas mulheres expressando um desejo A outra conclusão do debate foi publicada no
genuino ou uma diferente (possivelmente frustrada ou mesmo jornal por alguem que engravidara por insemina-
reprimida) necessidade'? — carta a colaboradores do ção de doador
simposio 23 4 91 ) O desejo autêntico de ter filhos era Lisa Saffron era solteira 32 anos e desesperada
uma coisa mas desejar filhos sem intercurso sexual para ter seu proprio filho Sem inseminação artificial
indicava que essas mulheres poderiam estar usando o jamais teria tido a chance de formar uma família Deve
desejo de ter filhos como uma proteção a algum outro ser muito pior para as mulheres que engravidam esperan-
desejo que não externavam Isso levou a um dilema para do que o pai esteja por perto e assuma as responsabilida-
os clinicas que viam sua função como a de facilitar o des se eles caem fora Lisa e totalmente a favor de um
nascimento e portanto trazer crianças ao mundo Se o nascimento virgem Acho que não tem a menor
desejo fosse deslocado a mãe poderia depois desco- importância se a gente faz sexo ou não para engravidar
brir-se tendo de conviver com um ser humano real vivo disse (Today 11 03 91 paragrafos extraidos)
esperneando que jamais quisera realmente Se era a autenticidade do desejo declarado que
Embora os interesses clinicos e de consultoria se apresentava um problema especial para os clinicos
concentrassem nos problemas de tomada de decisão — então era porque eles se viam com responsabilidades
ate onde uma clinica devia corresponder a esses pedidos procriativas que estão alem da mulher que os procurou
— outros no Simposio (inclusive eu) viam na propna Por trazerem uma criança ao mundo eram responsaveis
identificação de uma sindrome um sentido de descoberta pela vida de outro ser humano Uma das motivação por
do perverso ou anormal Afinal não havia motivo algum tras do Simposio era a necessidade de pôr esses proble-
pelo qual o desejo apresentado de outras coisas como mas de tomada de decisão no contexto da legislação
o desejo de um filho se manifestasse nessas mulheres e recem-aprovada A legislação não podia estabelecer
não em outras Presumivelmente podia aplicar-se a diretrizes sobre a adequabilidade de pais Mas podia
qualquer uma que achasse que desejava se tornar mãe chamar a atenção para as necessidades do filho A
(e citaram-se outros casos de mulheres que procuraram o Secção 13(5) da Lei de Embriologia e Fertilização Huma-
aborto apos tratamento bem-sucedido de FIV) Então nas (HEF em inglês) de 1990 declara que
por que eram tão problematicas as motivações das Não se prestarão serviços de tratamentos a uma
mulheres do Nascimento Virgem "? Por que se devia mulher a menos que se tenha levado em conta o bem-
descobrir desvio nessas mulheres'? E evidente que se fazia estar de qualquer filho que possa nascer em consequên-
uma ligação com a situação social incomum delas E cia desse tratamento (inclusive a necessidade da criança
como a representavam Toda a identificação da sindrome de ter um pai) e de qualquer outra criança que possa ser
se apoiava nas declarações delas sobre relacionamentos afetada pelo parto (a ênfase e minha)
Fora da clinica o publico em geral dividia-se Na As mulheres que desejam concepção assistida
verdade o debate em toda a area da tecnologia reprodutiva sem ter experimentado nem desejar experimentar uma
se constitui de opiniões conflitantes Alguns se apressaram relação sexual aparentemente excluem exatamente o
a julgar a Sindrome do Nascimento Virgem anormal se que a criança necessita ou seja a presença do pai Isso
não perversa e um desafio a ordem moral Um critico envolve algumas comparações entre os sexos
9 CANNELL Fenella op cit franco das facilidades para o aborto disse o seguinte9 A secção da Lei que acabamos de citar supõe
Victona Gillick culpou a iniciativa privada Disse que a mulher que passa pelo tratamento sera a mãe
O setor privado cruzaria seres humanos com animais se Tambem supõe que e o desejo de ter um filho que leva
pudesse encontrar mercado para isso Não se trata mais essa mulher a procurar esses serviços A Lei ate onde sei

ESTUDOS FEMINISTAS 309 N 2/95 2° SEMESTRE 95


ANO 33 1 O
não prevê casos em que o homem que deseja ter um to muitas mulheres são desgraçadas por isso os pais
filho providencia para que uma mulher busque tratamen- podem na verdade abandonar os filhos desde o nasci-
to de fertilidade negando qualquer significado a longo mento sem serem vistos como monstros desnaturados ou
prazo a maternidade dela E inconcebivel para os euro- ameaças ao sistema social Todos os tipos de dano podem
americanos que um filho nasça sem mãe Seja quem for ser tidos como feitos ao filho — dai a Lei ao explicitar o
que substitua a mãe mais tarde na vida o fato do bem-estar da criança explicitar a sua necessidade de
relacionamento entre mãe e filho e tornado auto- ter um pai — mas ele e simplesmente relapso em seus deve-
evidente pela factualidade tambem concedida a res Os atos do homem não são encarados como perversos
compreensão euro-americana de gestação e nascimen- O homem que abandona os filhos nega as implica-
to Onde os progressos da medicina reprodutiva separam ções reprodutivas da relação sexual que os gerou
diferentes elementos do papel da mãe a nova proble- Contudo o fato de nascerem filhos da relação não
matica são as reivindicações competitivas de uma classifica a saida dele como um ato monstruoso Não se
pluralidade de mães e não a possibilidade de filhos associa a isso nenhum sentido de patologia não mais do
sem mãe Não ha necessidade de explicitar a necessi- que se considera patologico um homem ter intercurso e
dade de mãe do filho E atribui-se as mulheres por sua vez, gerar filhos dos quais pode jamais vir a saber ou cuja
a expressão de desejos naturais quando desejam ter filhos presença se recuse a reconhecer Pode simplesmente
Com os pais surge um diferente conjunto de negar que a consequência do intercurso — o filho —
suposições A paternidade não se apoia no mesmo tipo tenha alguma coisa a ver com ele
de factualidade A existência de um pai genetico na E culturalmente concebivel portanto o homem
vida do filho e presumida mas o homem que e pai não e desejar uma relação mas não o filho que dela resulta Na
conhecido pelo mesmo processo que a mãe Na verda- chamada Sindrome do Nascimento Virgem lidamos com
de a propna definição de paternidade introduz incerte- uma mulher que pode desejar um filho mas não a
za E convenção cultural imaginar que o pai jamais pode relação sexual que normalmente o gera Por que a gritaria'?
saber na verdade que o filho de uma mulher e tam- Na verdade aparentemente a solução da
bem seu — isso tem sempre de ser provado No direito parentalidade sem sexo parece a culminação logica de
consuetudinano britânico o casamento com a mãe do certos valores inerentes aos sistemas de parentesco euro-
filho e o meio aceito de validação Mas dentro ou fora americanos Enquanto a paternidade depende de
do casamento ha sempre a possibilidade de que uma ligações que têm de ser declaradas ou provadas a
criança nasça sem pai Por mais sofisticadas que sejam relação entre mãe e filho apresenta-se como um fato
as tecnicas de hoje mesmo a identidade genetica tem natural de vida As mulheres que desejam ser mães estão
de ser demonstrada e quando o e a Dl introduziu o fazendo o que se espera que as mulheres façam Assim
problema extra de saber se o pai genetico deve ser por que o estardalhaço quando algumas mulheres
reconhecido O comentano de Morgan e Lee sobre a Lei desejam negar antes da concepção do filho a relação
HEF observa que quando um homem num casamento sexual cujo resultado o homem pode negar sem gritaria
nega consentimento a esposa para buscar determinados a qualquer momento apos essa concepção' ? Sugiro que
tipos de tratamento de fertilidade a lei na verdade a declarada necessidade de um pai não pode ser
'° MORGAN Derek e LEE endossa uma categoria de filhos sem pai '° As circuns- inteiramente compreendida com referência as necessi-
Robert G Human Fetthsation tâncias referem-se a inseminação de doador em que o dades da criança A evidente implicação e o que
and Embryology Act 1990
Abottion and Embryo
doador de sêmen ja esta eliminado como o pai legal sob importa para a educação da criança e o que poderia
Research The New Law as clausulas que protegem seu anonimato Mesmo no ser melhor para ela Mas esta e uma referência fortuita
Londres Blackstone Press Ltd caso de doação de ovulo anônimo um filho não pode no contexto da contingência cultural atnbuida de
1991 p 154s ser sem mãe do mesmo modo maneira diferente a paternidade Da a impressão de que
O que quero dizer não e apenas que em certas o desejo das mulheres de evitar o intercurso sexual
circunstâncias podem nascer filhos sem pai mas que os aponta para uma questão mais ampla
euro-americanos não encaram isso como o comum Isso
pode criar problemas ternveis para a mãe ou angustia A necessidade de relações sexuais
para homens que desejam ter sua paternidade reconhe-
cida Contudo a idéia de um filho sem pai não provoca Pensem na maneira como se expressa a necessi-
um sentimento de indignação moral Na verdade dade da criança de ter um pai Quando o clamor do
descobrir quem e o pai de alguem pode ser tratado na Nascimento Virgem culminou no comunicado de um
ficção como um tipo de aventura psicologica E enquan caso (de Birmingham) na Câmara dos Comuns o Ministro

ESTUDOS FEMINISTAS 31 1 N 2/95 ANO 33 1 2 2° SEMESTRE 95


da Saude foi citado como tendo dito que as clinicas Ficanamos profundamente perturbados por
procuradas por mulheres que jamais haviam tido intercurso qualquer coisa que tirasse a parentalidade do contexto
sexual deviam colocar o bem-estar do filho isto e a necessi- de um relacionamento entre mando e mulher (porta-voz
dade da criança de ter um pai em primeiro plano (por da Igreja Catolica Romana The Times 12 03 91)
exemplo Daily Express 12 03 91) Em outras palavras a mãe O bispo de Birmingham Reverendissimo Mark
tem de demonstrar a necessidade da cnança de ter um pai Santer disse O lugar certo para receber a dadiva de
Tambem nesse caso aparentemente isso e coerente um filho e dentro da relação de um homem e uma
com a ideia de que o homem so pode reivindicar paterni- mulher que prometeram um ao outro o corpo a mente e
dade atraves do casamento com a mulher ou fora do alma para toda a vida A materia do jornal acrescenta
casamento de relação sexual com sua parceira Ele Isso descreve um ideal naturalmente mas um ideal que
depende da admissão dela do ato sexual de um modo dispensamos por nossa conta e risco (Daily Express
que ela não depende da dele Assim e culturalmente 12 03 91 e Daily Telegraph 12 03 91)
aceitavel o pai afirmar ou negar a necessidade da cnança Não poderia haver uma declaração mais clara de
de ter um pai Parecena inacertavel a mãe tirar esse exercei° que o que esta em questão e o significado stmbolico do
de opção do homem Contudo ha mais uma questão ato sexual ele assinala o compromisso do casal e o
Para alguns dos participantes dos debates pare- aponta como um ideal Com a noção de ideal vem a
ceria que o essencial não e o intercurso sexual com o pai outra de que os ideais têm de ser protegidos para se
de fato da criança — na verdade no contexto do manter o sistema social No Daily Express (12 03 91) um
tratamento de fertilidade o ato e rotineiramente contor- medico de família (GP) foi citado como tendo dito que ja
nado e a identidade do pai genetico não precisa ser a era bastante lamentavel que três quartos de milhão de
do futuro pai O que causou comentanos foi a ideia de crianças vitimas de divorcios na Grã-Bretanha houves-
que a mãe possa jamais ter tido qualquer relação sexual sem perdido todo contato com os pais portanto como
com qualquer homem ou deixe evidente que não podia alguem apoiar uma mãe que planejava desde o
deseja ter E como se procurasse ajuda reprodutiva para inicio que um filho sena sem pai'? Os pais ausentes estão
negar o componente sexual da procriação Alem disso o ausentes (estava implicito) durante todas as incertezas do
importante e o sexo como tal e não o heterossexualismo destino — mas planejar que não haja pai algum e uma
na opinião de algumas pessoas A consultora que identifi- ameaça ao ideal Contudo na união de um casal em
cou inicialmente a sindrome em The Lancet chegou a termos de seu compromisso mutuo tambem se cria um
defini-la como relacionada a mulheres que querem contra-simbolo as duas partes podem diferir no nivel do
filhos mas não um parceiro homem ou mulher (Jennings compromisso e neste ponto o compromisso do homem e
no anuncio do Simposio) A ideia de a mulher recusar convencionalmente menor que o da mulher O ideal e
qualquer tipo de relação sexual e que parece ser o problema acima de tudo expresso no desejo da mulher de ter um
Em termos tradicionais julga-se correto que as filho por intercurso sexual
crianças euro-americanas sejam criadas em famílias e Se os euro-americanos afirmam que a procriação
aprendam com os pais o que significa um relacionamen- deve ocorrer no contexto de um relacionamento em
to amoroso No contexto do circulo familiar considera-se circunstâncias normais esse relacionamento e ao mesmo
a relação sexual entre os pais como o fundamento do tempo conjugal e sexual o parceiro social tambem e um
amor conjugal no qual se baseia o amor familiar O sexo parceiro biologico A mulher que fecha a possibilidade
e assim o =bolo da naturalidade do relacionamento do de uma relação sexual aparentemente nega aquelas
par conjugal do qual o filho e encarado como um relações de parcena que formam os alicerces da vida familiar
resultado igualmente natural O intercurso sexual não se Na medida em que o intercurso sexual simboliza a
restringe ao casamento mas não e esta a questão A união de parceiros e torna essa união necessana a
questão e que numa união conjugal ele cumpre uma concepção de filhos os euro-americanos insistiriam na
importante função simbolica Tanto responde a necessi- equivalência formal dos dois pais Cada um e encarado
dade biologica como se acredita que estimule o amor como igualmente relacionado ao filho Ao mesmo
entre os pais que e tambem o amor destes pelos filhos tempo um dos pais e tombem encarado como muito
Se o sexo representa a união de mando e mulher como mais dispensavel que o outro — e o ônus da prova da
casal para a ideia de sua união o relacionamento existência da união recai mais pesadamente sobre um
sexual significa a importância de relacionamentos em parceiro que o outro Em suma as mulheres são as
geral Essa visão relacional do significado do intercurso guardiãs do ideal São elas que têm de mostrar que a
sexual foi invocada varias vezes nos debates publicos procriação e um fato natural estabelecer a possibilidade

ESTUDOS FEMINISTAS 313 N 2/95 ANO 33 1 4 2° SEMESTRE 95


de sua criança ter um pai e dispondo-se ao intercurso ignorância da paternidade fisiologica evidenciada nas
sexual mostrar que os filhos nascem necessariamente de Trobnands e em outros lugares e como se deveria
relacionamentos entender essa ignorância Hoje pode-se aproveitar o
A ligação sexual em outras palavras pareceria debate para demonstrar a natureza construída da
simbolizar a necessidade de relacionamentos como tais compreensão do processo natural pelas pessoas
Em ultimo recurso alem disso qualquer relação — do Embora cite os ilheus das Trobnands não vou
mesmo sexo ou transexo — serve para transmitir essa repetir a etnografia em detalhes Em vez disso quero
mensagem O aparente escândalo das mulheres da refletir sobre a situação das Trobnands tanto atraves da
Sindrome do Nascimento Virgem foi que elas pareciam Polêmica do Nascimento Virgem da decada de 60
negar a necessidade de relacionamentos como tais quanto da Síndrome do Nascimento Virgem dos 90 Ao
Contudo se a necessidade de um pai tombem evoca fazer isso observo como os elementos do pensamento
a contingência da paternidade no parentesco euro- sobre parentesco euro-americano foram forçados a servir
americano a necessidade de uma relação evoca a elucidação de materiais não ocidentais Faço isso no
uma contingência paralela Não e tido como certo que contexto especifico oferecido pela discussão sobre as
a criança se vera no contexto de relacionamentos um novas tecnologias reprodutivas que estão desfazendo
lar tem de ser feito A criança como os dois pais pode ser muitas dessas tradicionais suposições euro-americanas
igualmente bem conceitualizada na expressão de Franklin sobre a relação entre cultura e natureza acima de tudo
(na imprensa) como um individuo sem relacionamentos a compreensão do parentesco como construção social
Sugeri que o intercurso sexual tem um papel l, DELANEY Carol The de fatos naturais12
Meaning of Paternity and
conceituai ou simbolico alem de tecnico a desempe- the Virgin 8irth Debate Man
A Síndrome do Nascimento Virgem envolveu
nhar na concepção euro-americana e isso se deve ao (n s ) 1986 21 494 513 exatamente essa degeneração de suposições As
modo como parece criar um relacionamento entre os STRATHERN Marilyn After questões envolvendo os pedidos das mulheres destaca-
pais Na verdade eu sugeriria ainda que ha uma sensa- Nature English Ktnship In the ram algumas necessidades por baixo das relações
ção de que o intercurso faz os pais Contudo ao unir Late Twentreth Century vistas como existindo entre intercurso sexual concepção
Cambridge Cambridge
homem e mulher o ato sexual reune pessoas que ja são University Press 1992 e a presença familiar do pai pois eram essas necessida-
fidas como diferenciadas pelo gênero e essa diferencia- des que os desejos das mulheres pareciam estar evitan-
ção inclui o significado que atribuem ao proprio ato do Uma era a necessidade do filho de ter um pai outra
Supõe-se que homens e mulheres têm perspectivas era a necessidade de intercurso sexual da mãe Sugeri
diferentes de seu compromisso com relacionamentos e que ambas sinalizavam o que se poderia descrever mais
faz-se inevitavelmente a comparação entre eles A generalizadamente como necessidade de relaciona-
Sindrome do Nascimento Virgem torna isso explicito mentos A partir da diferença entre os sexos e a propa-
Desconfio que a comparação e peculiar ao parentesco gação de filhos isto e dos processos naturais os euro-
euro-americano Para elaborar a questão recorro a americanos se vêem fazendo tudo que entendem como
alguns dos fatos etnograficos que vieram a luz na Polêmi- vida social e isso inclui os relacionamentos Os relaciona-
ca do Nascimento Virgem na area da Antropologia mentos são portanto construídos e criados Seja de
acordo ou contra o processo natural sua manifestação
Polêmica do Nascimento Virgem social esta sob o controle humano Talvez o escândalo
das mulheres da Sindrome fosse que elas pareciam estar
A Polêmica do Nascimento Virgem que explodiu transformando a tecnologia num meio de contornar essa
em duas publicações antropologicas britânicas no final crucial atividade construcionistal
da decada de 60 incluiu reconsiderações da etnografia Disso ressalta um fato obvio e bastante conhecido
de Malinowski sobre as Ilhas Trobriands Desde então dos sistemas euro-americanos A relação mãe-filho em si
houve um florescimento de estudos feitos na região e por si não significa socialidade tem de haver uma
Massim da Melanesia e tanto o clima etnografico terceira pessoa E por isso segundo essa visão que as
quanto o teorico em que os antropologos hoje vêem mulheres não podem criar cultura ou sociedade por
esses problemas modificou-se Etnograficamente estão si mesmas Este axioma ha muito tempo e alvo de critica
11 BATTAGLIA Debbora We sintonizados com o conceito de sustento paterno" nos ' 3 SACKS Karen Sisters and feminista 13 Observo que a sociedade tambem aparece
Feed Our Father Paternal Wwes The Past and Future of
sistemas matrilineares daquela parte do mundo teorica- Sexual Equality Londres
como uma necessidade e que esta formulação e entre
Nurture among the Sabarl of
Papua New Guine° mente vão devagar com a ideia de que tudo e construído e Greenwood Press 1979 outras coisas um artefato de parentesco Quando a
American Ethnologtst 1985 achariam dificil recriar a tensão daquele debate anterior necessidade de sociedade ou a necessidade de
12 427 41 Aquele girava então sobre o significado da aparente relacionamentos e representada como a necessidade

ESTUDOS FEMINISTAS 315 N 2/95 ANO 331 6 2° SEMESTRE 95


(da mulher/criança) de um mando/pai duas proposições esta na sugestão de que as alegações de ignorância
então estão sendo feitas simultaneamente Uma e a eram dogma em apoio a ideias sobre relações humano-
colocação inevitavelmente assimetrica de homens e sobrenaturais na constituição da matnlineandade
mulheres como pessoas marcadas pelo gênero em O interesse original de Malinowski pela posição
relação umas as outras a outra e a suposição basica de aparentemente anômala do pai nas Trobnands surgiu no
que os relacionamentos e a propna sociedade são contexto de explicação do direito materno o sistema
posteriores aos fatos Quer dizer são construidos ou de parentesco matnlinear que ele delineou com base
impostos ou têm de ser feitos criados por obra humana nas Trobnands A delineação desse sistema se referia a
Os fatos anteriores são entidades naturais pessoas ja base da ordem social e ao exercido dual de autoridade
individuadas e homens e mulheres ja diferenciados legitima ou jundica e de influência emocional Se havia
O que o material das Trobriands nos ajuda a diferença entre o papel da mãe e do pai e entre os
compreender e como os propnos simbolos de relação parentes da mãe e do pai então isso tinha a ver com a
nas representações sobre parentesco euro-americano — diferenciação de direitos e reivindicações que as pessoas
intercurso sexual e paternidade — tambem reproduzem podiam fazer umas as outras O fato de se acreditar que
aquelas suposições não relacionadas sobre um mundo os distintos envolvimentos sexuais dos pais eram uma
natural cujos elementos primordiais são inclividuados e especie de chave refere-se ao tipo de conhecimento
diferenciados que os euro-americanos fazem sobre pais — a certeza do
envolvimento da mãe na procriação em comparação
Relacionando através de sexo com a do pai Na Antropologia britânica de meados do
seculo XX isso se transformou em evidência para afirmar
O que intrigava os primeiros comentaristas em o significado de filiação de grupos de descendentes
relação a lugares como as Ilhas Trobriands era a aparen- Na medida que a Polêmica do Nascimento Virgem
te ignorância da relação entre intercurso sexual e da decada de 60 foi alimentada por Leach incluiu uma
gravidez Desde o inicio isso foi interpretado como tentativa de revelar o interesse pela diferença de gênero
ignorância do papel do pai - não da mãe - na procria- das preocupações de antropologos britânicos interessa-
ção O papel da mãe era tido como axiomatico a dos no gênero basicamente por seu papel jundico na
questão era se essas pessoas saberiam que o pai era formação do grupo de descendência Embora a Polêmi-
necessano Na verdade a Polêmica subsequente em ca se tornasse um debate sobre ignorância dogma e
alguns pontos quase se transformou em cherchez le pere psicologia fazia parte do programa mais amplo de
o antropologo passou a procurar o substituto Isto e se o Leach apresentar o pensamento estruturalista nos
homem não era responsavel por engravidar a mulher modelos de descendência que dominavam na epoca o
então alguma outra entidade o era no caso das Trobnands os interesse britânico pelo parentesco Ele atribula autono-
14 WEINER Annette B espintos matnlineares Na verdade como Weiner14 e mia cultural as oposições e analogias percebidas na
Women of Value Men of
outros tornaram explicito o par reprodutivo nas Trobnands distribuição dos atributos de gênero Embora sempre
Renown New Perspectives in
Trobriand Exchange Austin e inteiramente humano mas não se empenha em sexo relacionasse dogma a interesse (inclusive grupos de
University of Texas Press refiro-me a cinde irmão-irmã na matnlineandade interesse como os grupos de descendência) o dogma
1976 Mas a polêmica era alimentada por um modelo em sua opinião tambem tinha uma construção interna
Sexuality among euro-americano de reprodução que tinha suas raizes nos as diferenças (como entre os gêneros) eram modeladas
Anthropologists Reproduction
among the Informants In
fatos da natureza O modelo indicava continuidade por outras diferenças (como o contraste entre a eficacia
POOLE FJP e HERDT G direta entre reprodução social concepção fisiologica e humana e a sobrenatural)
(ed ) Sexual Antagonism intercurso sexual E um dos problemas que a etnografia Nas duas visões a intervenção de espintos ances-
Gender and Social Change das Trobnands apresentara a Malinowski era que enquanto trais na criação do membro matnlinear das Trobnands
in Papua New Guinea a relação irmão-irmã era publicamente assexuada (e
Social Analysis numero
tornava logica a exclusão do papel do pai das teorias
especial 12 1982 tinha de ser visivelmente mantida assim por tabus) os conceptivas Mas recuemos um momento Num sentido
trobnandenses baseavam sua vida familiar numa relação muito profundo não foi excluido pois esse papel nunca
sexualmente ativa entre pessoas que poderiam ser estivera presente O pai so estava ausente da concep-
razoavelmente descritas como mando e mulher pessoas ção segundo um privilegiado ponto de vista euro-
que alem disso eram encaradas como relacionadas com americano O material das Trobnands apresenta uma
15 LEACH Edmund R Virgin
Birth Proceedings of the Royal os filhos da família Isto e viviam como se a função constelação de elementos que faz um corte nas noções
Anthropological Institute para fisiologica do pai fosse reconhecida Leach 15 supunha euro-americanas sobre a perfeita continuidade entre
1966 36 49 que era e seu refinamento da posição de Malinowski relações sexuais gravidez e reprodução humana Na

ESTUDOS FEMINISTAS 317 N 2/95 ANO 33 1 8 2° SEMESTRE 95


verdade poderiamos concluir que não havia absoluta- tos entre si Quando uma pessoa morre a contribuição
mente nada analogo a ideia euro-americana de con- do pai e finalmente paga e a pessoa une-se apenas a
cepção como um ato de fertilização Nas Trobnands o seus ancestrais maternos
casal reprodutivo e o irmão e irmã a implantação Portanto que significa o intercurso sexual nesse tipo
embnonana se da via espintos matnlineares o intercurso de situação'? Por um lado e separado do engravidamento
sexual e entre mando e mulher O importante e que cada mas tornado manifesto na nutrição e formação das
um desses atos implica um relacionamento as relações feições externas Por outro significa uma especie de
duradouras de membros lineares uns com outros a parceria Contudo a parceria entre os pais sempre fica a
filiação da criança a sua propna linhagem ancestral e a distância — o par conjugal conserva suas identidades
família baseada no trabalho conjunto de esposos E ha distintas cada um tem uma relação muito diferente com
outro elemento O crescimento do feto que os euro- o filho e na morte um vinculo e encarado como efêmero
americanos vêem como um processo espontâneo enquanto o outro perdura A parceria não se baseia
natural e entre os trobnandenses efetuado por meio do numa ideia de união Longe de serem unidos mando e
ato nutridor do homem que tem relações sexuais com a mãe mulher são eternamente diferenciados Os parentes da
o tntercurso e um instrumento dessa relação de sustento mulher estão em divida com o homem pela nutrição da
Em toda a Polêmica do Nascimento Virgem a criança e ele continua sendo (na expressão de Malinowski)
ausência do papel fisiologico do pai jamais foi entendida um estranho para a criança
como ausência de relacionamento Foi explicada Portanto eis uma cultura muito explicita sobre a
apenas (por alguns antropologos) como ausência de diferença entre o papel do pai e da mãe na parentalidade
conhecimento Na verdade a exclusão do pai do e onde a parceria se baseia nessa diferença O pai e
processo de implantação nas Trobnands tem um impor- excluido da existência inicial do membro matnlinear
tante papel a desempenhar ao colocar o filho no contex- relacionado como alimentador e nutridor da pessoa viva
to de outras relações Contudo se e dogma cultural que mas depois dissociado quando a pessoa um dia morre E
o intercurso sexual não contribui para a existência inicial as propnas relações separam Atraves dos presentes e outras
do filho a exclusão não e por ausência mas assumida ações os trobnandenses estão criando deliberadamente
Não se acredita que esse momento inicial dependa de a diferença — entre irmão e irmã mantidos afastados por
16 WEINER Annette B 1976 relações sexuais" tabus relativos a interação entre pai e filho que partici-
op cit p121 3
Mas os filhos têm pais Na verdade os pais trobrian- pam de transações mutuas e entre marido e mulher que
denses são extremamente importantes contudo sua WAGNER Roy Analogic são divididos pela identidade matnlinear2° Nesse contex-
ligação e mais somatica que genetica Isto e acha-se Kinship a Daribi Example to as normas que cercam o intercurso sexual correto
Amencan Ethnologist 1977
que o pai e o responsavel pela aparência externa do 4 623 42 contribuem para essas produções de diferença separan-
filho que ele cria pela alimentação depois do nascimen- do o papel do irmão e do mando do da mulher O
to e pelo intercurso sexual antes do parto O intercurso e marido não e um substituto do irmão e o intercurso não o
necessano não para a fertilização mas para que a junta a sua mulher na união
mulher gere uma criança perfeita O pai não apenas Deixem-me retornar ao papel simbolico desempe-
abre o caminho mas tambem atua moldando as nhado pelo intercurso na ideia euro-americana estimula-
feições e fazendo o feto crescer processo que continua da pela Sindrome do Nascimento Virgem
17 MALINOWSKY Bronislaw apos o nascimento" O pai das Trobnands e acima de Acreditava-se que as mulheres em busca de
op cit p 176
tudo um nutridor e criador procriação sem sexo procuravam parentesco sem
Como argumentou Malinowski o pai nutridor não relação de parentalidade nas criticas que se seguiram
esta relacionado com o filho da mesma maneira que usou-se o sexo como um simbolo de relacionamento
os parentes matnlineares Ele retem seu status como Contudo embora o intercurso sexual possa ser encarado
18 Sobre isso ver WEINER parente por afinidade" E na verdade no fim toda sua pelos euro-americanos como base e justificação da
Annette B 1976 op crt nutrição para o filho tem de ser recompensada pelos relação conjugal e procnativa seus significados certa-
p 124
parentes do lado materno do filho ou pelo propno filho A mente não se restringem aos significados que tem para
nutrição pelo pai portanto pertence literalmente a essa relação Pode ser desdobrado para sinalizar satisfa-
superficie externa do filho a substância interna como a ções basicamente individuais na natureza Na verdade e
fertilização e vista como inteiramente derivada da mãe tido como culturalmente aceitavel que alguem se
16 a critica em STRATHERN e dos parentes maternos19 A diferença entre mãe e pai aproveite sexualmente de outros Evocar a importância
Marilyn op cit p 231 s
trobnandenses e portanto muito explicita Eles gozam de de sexo para a concepção e a parentalidade não
uma relação criada pelo fluxo de presentes e pagamen apenas evoca o calor da união conjugal traz tambem

ESTUDOS FEMINISTAS 31 9 N 2/95 ANO 3320 2° SEMESTRE 95


em sua esteira um conjunto bastante diferente de ras) ela tambem tem de trabalhar — segundo a conven-
compreensões sobre desejos naturais ção euro-americana — contra alguns supostos fatos da
Pois a ironia e que enquanto o sexo pode atuar natureza que incluem o desejo do sexo pelo sexo
para os euro-americanos como um simbolo de relaciona-
mento so o faz no contexto de um relacionamento Por si Relacionando através da paternidade
mesmo e por assim dizer neutro em relação a se dele
resultara ou não um relacionamento de outra dimensão Uma diferente reinterpretação antropologica da
Alem disso como eu disse antes homens e mulheres são 2' DELANEY Carol 1986 op Polêmica do Nascimento Virgem e dada por Delaney21
convencionalmente diferenciados nesse campo Ha uma cit Ela diz que o que estava em questão não era a ignorân-
comparação padrão entre circunstâncias em que o sexo cia da paternidade como nas Trobnands mas a do
leva a uma relação duradoura (o que e culturalmente antropologo Em essência eles não conheciam sua
atnbuido aos desejos das mulheres) e aquelas em que propna cultura Primeiro não conseguiram explicar o
não (culturalmente atnbuido aos desejos dos homens) pano de fundo cristão para o simbolismo do Nascimento
Nas Trobnands pode-se encontrar imagens de intercurso Virgem com suas ideias monogeneticas de criação
sexual nas relações de sentido negativo (hostil) como Segundo ignoraram o fato de que o conhecimento
tombem positivo (alimentadoras) Nas culturas euro- genetico e muito recente e a aceitação dos chamados
americanas em contraste pode significar a presença ou fatos naturais da procriação que atribuem simultanea-
ausência de relacionamento como tal mente a mãe e ao pai poderes geradores (em oposição
Dentro de relações estabelecidos por casamento a outros tipos) e igualmente recente Um modelo mais
ou família para os euro-americanos o intercurso sexual antigo de procriação ocidental teria sido uma melhor
simboliza a união dos parceiros e o amor de um pelo base de comparação para suas questões
outro Mas o intercurso sexual tombem existe fora desses A paternidade na visão mais antiga ela observa
relacionamentos Quando se pensa na família não como jamais fora a simples contrapartida masculina da materni-
um grupo de parentes mas uma casa com bens a dispor dade Maternidade significa dar nutrição e dar a luz
o sexo pode ser um instrumento de poder e dominação 22 'Iodem p495 Paternidade significa progênie 22 Acrescenta que a
Ou quando se pensa em mãe e pai não como pais mas paternidade assim entendida implicava que havia um
amantes o sexo evoca o prazer e a satisfação que os papel basico criativo Não importa para essa visão se o
individuos buscam tanto para si mesmos quanto para pai e humano ou divino a questão e que o pai e originador
seus parceiros Estas duas dimensões tombem aparecem e cnador e esse ponto de ongem e culturalmente entendi-
em contextos inteiramente distantes da vida familiar O do como individual Essa teoria monogenetica de procria-
intercurso sexual pode ser comercializado como um bem ção observa e exemplificada pela historia cristã original
a venda (prostituição) ou imposto como um prazer a ser do Nascimento Virgem E nesse sentido não se pode dizer
usurpado sem nenhum respeito pela outra pessoa que os trobnandenses tenham o conceito de paternidade
(estupro) Como chamariz para vender produtos (propa- Ela então observa que ao contrario de Malinowski
ganda) ou um estimulo a violência pessoal ou fisica aqueles que entraram na Polêmica do Nascimento Virgem
(pornografia) Aqui longe de simbolizar relacionamentos o terão feito com uma teoria genetica de procriação e
pode-se fazer toda tentativa para divorciar o ato de portanto um modelo duo-genetico de parentalidade
qualquer significado que poderia ter para laços duradou- Contudo pareceria - e isso vem em ultima analise em
ros Em vez disso a ênfase e colocada no individuo como apoio a afirmação de Delaney - que a (antiga ociden-
objeto de satisfação tal) ideia monogenetica de uma unica origem individual
Em suma os euro-americanos vêem o sexo tão dos seres humanos aproxima-se mais da (moderna euro-
solitano como relacional Se a conclusão que os cnticos americana) opinião duogenetica de procriação que das
extrairam foi que as mulheres da Sindrome fazendo construções trobriandenses Quando os euro-americanos
pedidos de concepção sem sexo desejavam maternida- do seculo XX insistem na contribuição dos dois pais
de sem relacionamento essa conclusão so pôde ser insistem em que ha dois pontos onginanos mas cada um
extraida devido aos vinculos tradicionais e pnontanos das deles e por assim dizer singular
ideias de parentesco que ligam sexo a procriação e a Do ponto de vista das Trobnands a pessoa huma-
imagistica de gênero que torna a demonstração desse na completa e o resultado multiplo dos atos de muitas
conjunto de ligações mais tarefa da mulher que do outras e e afetada por suas interações com outras por
homem Demonstrando-o (ao transformar as relações toda a vida de uma maneira fisica Enquanto o espirito
sexuais no fundamento de relações parentais duradou- matrilinear implanta um filho implanta apenas uma

3322 20 SEMESTRE 95
ESTUDOS FEMINISTAS 321 N 2/95 ANO
entidade matrilinear em sua forma pura uma entidade so de concepção No que se referia a concepção eles
como essa não e viva So se torna viva atraves da simplesmente facilitavam o processo de fertilização e
nutrição paterna e dos trabalhos de outros em seu favor implantação de gametas a fonte direta das futuras
Deste modo o ser humano vivo nas Trobriands tem pais substância e identidade da criança eles proprios não
que contribuindo com caracteristicas muito diferentes eram essa fonte Em outras palavras como o pai das
para a vida do filho o introduzem em grupos muito Trobriands o clinico de fertilidade ordinariamente faz o
diferentes de relacionamentos A teoria duogenetica dos papel de facilitador Ao contrario do pai das Trobriands
euro-americanos modernos por outro lado simplesmente porem o clinico não espera que seus atos facilitadores
atribui a contribuição paterna multiplicada por dois e criem um relacionamento duradouro com a criança e
como se a pessoa tivesse dois concebedores individuais não são base de parceria com a mãe Mas se um unico
como sempre teve dois lados no reconhecimento ato de intercurso basta para deixar uma mulher gravida
bilateral dos parentes do pai e da mãe Contudo um isso pareceria impedir o ato provocativo que prepara a
elemento da Sindrome do Nascimento Virgem da deca- mulher para a maternidade
da de 90 nos convida a especular aqui sobre a assimetria Em retrospecto talvez a Sindrome do Nascimento
entre masculino e feminino Virgem nos diga alguma coisa sobre o conhecimento
Eu disse que o pai pode ser trazido ao debate da (dogma) que não foi tornado explicito e esse conheci-
Sindrome do Nascimento Virgem como a expressão de mento não era sobre paternidade mas sobre maternida-
relacionamentos Ora uma compreensão monogenetica de Talvez um dos problemas epistemologicos postos pelas
do pai como unico concebedor ou criador implicaria Trobriands tenha sido a ideia de maternidade sem sexo
que a mãe foi pouco mais que portadora ou contenedora A fusão desenvolvimental do processo biologico
(como acontece no exemplo turco que Delaney exami- da mãe dar a luz com o fato de ela ter concebido
na que tem segundo ela uma herança comum em atraves do intercurso sexual foi outrora central para as
tradições bíblicas) Mas e se o homem que cria o filho e ideias euro americanas de parentesco A gravidez
tambem em algum sentido encarado como criando a implicava ligação sexual da parte da mãe Essa ligação
mãe'? Ele seria simultaneamente a origem do ato criador não apenas vinha antes no tempo necessaria e demons-
e estaria comprometido com a mãe seria em virtude de trada pela gravidez como tambem os euro-americanos
sua singular criatividade que um relacionamento passava achavam que o desenvolvimento do embrião era um
a existir Isso combinaria com uma teoria monogenetica processo espontâneo e inevitavel que resultava do
ou duogenetica de procriação Com a ultima o homem momento da concepção O corpo da mãe reagia
podia não ser o unico gerador (genetico) mas seu ato automaticamente ao feto/embrião em crescimento
individual de intercurso e so de que se precisa para a assim que ele fosse iniciado No pacote de conceitos
mulher ficar gravida Poderiamos tomar isso como um que envolve as ideias euro-americanas de concepção
exemplo de bom senso euro-americano não fosse pelo possivelmente nos deparamos com a ideia de que o
debate sobre a Sindrome do Nascimento Virgem Na corpo materno tem de estar preparado para o filho Mas
ausência de qualquer outra intervenção criativa o clinico a preparação pode ser anterior — qualquer ato de
e comprometido por o fazerem sentir-se o unico criador intercurso serve O que preocupava os clinicos era a
Uma das preocupações que perturbaram os implantação de um embrião fertilizado em um corpo não
clinicos londrinos e foi expressa nesta Sindrome foi o preparado pelo sexo
papel quase sexual em que eles se viam colocados As Especulo que ha aqui a sugestão de um papel
mulheres se apresentavam como virgens mas os escru- sexual distinto para o gerador euro-americano não
pulos dos homens apontavam para mais que as questões relacionado a concepção em si Pareceria que não e a
tecnicas que a virgindade tornava dificeis Para repetir constituição do filho que esta em questão apenas mas a
uma expressão das Trobriands se houvesse — em algum da mãe Se assim e o gerador homem num tal pensa-
ponto — um homem (ou mesmo uma mulher) para abrir mento euro-americano não apenas faz o filho sozinho ou
o caminho o clinico da Dl não se sentiria mais a vontade na teoria duogenetica peia parceria com a mãe tom-
Ora no caso das Trobriands o ato sexual do pai bem faz a mãe
serve tanto para dar forma ao corpo da criança quanto Ha muito e convencional nas discussões antropolo-
para dar forma a passagem pela qual a criança nasce gicas acerca da parentalidade comparar os problemas
Pode-se observar talvez que os escrupulos dos cincos naturais que a cultura enfrenta na definição do pai em
britânicos aparentemente vinham de um acanhamento contraste com a mãe os processos fisicos da mãe
sexual relacionado com seus sentimentos sobre o proces- garantem continuidade com o filho enquanto as rela-

ESTUDOS FEMINISTAS 323 N 2/95 ANO 3324 2° SEMESTRE 95


ções do pai são descontinuas Um exemplo disso e a que pai ou mãe contornem as relações sexuais como
discussão por Houseman de diferentes entendimentos da tais A doação de ovulo ou esperma possibilita laços sem
parentalidade em Camarões na Afnca Ocidental Ele o concomitante acasalamento fisco dos pais O embrião
afirma que o que estabelece uma diferença entre os dois une por assim dizer o que o casal comumente une no
casos que compara Beti e Samo e a medida em que a intercurso mas e viavel sem que o façam Mas para
parentalidade fisica e jundica são ou não diferencia compreender o clamor que o caso da Sindrome do
das na mãe Uma identidade absoluta entre esses Nascimento Virgem criou não basta salientar as conse-
elementos diz so e possivel no caso da mãe Portanto e quências para a criança futura Retrospectivamente eu
no caso dela que se pode perguntar se a parentalidade sugeriria que o ato de intercurso parental tambem
fisica e a jundica são ou não tidas como distintas ou desempenhou importante papel na conceitualização da
idênticas No caso do pai essa identidade não e possivel mãe que vai dar a luz Talvez para alguns essa era a
(podem ser associadas mas isso jamais pode ser tomado relação em perigo Uma "mãe sem sexo" seria uma
por certo) e portanto não se pode formular a questão se especie de afronta cultural
existe uma identidade ou diferença
Ele escreve esses constrangimentos permanecem Gênero uma comparação
solidamente fundamentados em inelutaveis realidades
biologicas Assim a propna orientação dessas duas Christine Dole ouviu falar da chamada Polêmica
figuras assimetricas alem do fato de que e a distinção do Nascimento Virgem quando esta apareceu nos meios
entre maternidade fisica e jundica e não entre paterni- de comunicação em 1991 Ela e o marido haviam
dade fisica e jundica a vanavel definitiva subjacente a conversado a respeito na epoca e os dois discordaram
pertinência de uma ou outra delas deriva da dissimetria desses metodos Christine e Daniel têm quatro filhos um
sexual auto-evidente mencionada no inicio deste traba- do primeiro casamento dela dois do atual Tambem têm
lho Como consequência de gestação e parto a relação um jovem que haviam inicialmente acolhido de uma
entre identidade sexual feminina (ligada ao orgão família afro-caribenha Filhos adotados são uma caracte-
genital) e função procnativa maternal e potencialmente ristica regular na família Dole
continua enquanto entre identidade sexual masculina Acho que todo filho tem direito aos dois pais Se
(ligada ao orgão genital) e função paternal e necessaria- Deus quisesse que tivessemos filhos sendo apenas
mente descontinua Em outras palavras uma identifica- uma pessoa feriamos condições de tê-los Sei
ção absoluta de parentalidade fisica e jundica so e que muitas crianças não têm os dois pais mas
" HOUSEMAN Michael possivel no caso da maternidade 23 muitas das famílias com so um dos pais têm conta-
Towards a Complex Model Não me demoro nos detalhes dos dois casos por to com o outro ( Christine Dole citada por Hirsch
of Parenthood Two African
tales Amencan Ethnologist
mais fascinantes que sejam nem na obsessão antropolo na imprensa )
1988 15 658 77 gica pela paternidade fisica e jundica O ponto para o Estive falando sobre gênero em dois contextos
qual desejo chamar a atenção e que ele baseia a bastante diferentes Deixem-me resumi-los em relação as
identidade potencial dos papeis sexual e maternal da mulheres que têm sido apelidadas de mães de Nasci-
mãe na continuidade do processo gestacional em que mento Virgem
todo o foco esta no desenvolvimento do filho Isto e o A mulher das Trobriands não entra claro nesse
filho define a mãe como ela traz em si o crescente caso Embora haja uma semelhança superficial entre sua
aumento do corpo iniciado com o intercurso sexual e situação e a do Nascimento Virgem da teologia cristã na
terminado no parto e mãe O ato sexual anterior neces- concepção espiritual do filho seria mais adequado
sano nessa visão a concepção inicial da criança e simplesmente dizer que o filho trobriandense não e
subsumido na inevitabilidade desse modelo de desenvol- concebido Acredita-se que ele não passa a existir nem
vimento So quando o debate da Sindrome do Nascimen- por um ato de fertilização nem pelo desejo da mãe/pai
to Virgem sugere que um embrião enquanto tal e uma Ao contrario o filho se implanta na mulher porque deseja
fonte incompleta ou deficiente de identidade maternal 24 DELANEY Carol op cri' nascer" Neste sentido ja e uma pessoa viva e e a
p506
— a mãe não e mãe apenas em virtude de ter o implante intenção do filho não a dos pais que motiva a implanta-
do embrião — nos nos perguntamos sobre o papel do ção O esforço humano tem de entrar garantindo
intercurso sexual na definição da mãe que vai dar a luz posteriormente seu crescimento desenvolvimento e
Desde que se pense em paternidade ou materni- nascimento Se pai e mãe têm de assegurar que surja na
dade euro-americanas em relação a constituição da forma certa o trabalho do pai e crucial nesse processo e
criança as novas tecnologias de reprodução permitem quando o filho surge pode trazer as feições do pai no rosto

ESTUDOS FEMINISTAS 325 N 2/95 ANO 3326 20 SEMESTRE 95


Aqui portanto tanto a mãe quanto o filho ja estão que seja protegido por outros relacionamentos entre o
envolvidos num campo de relações as relações ja estão mesmo casal — como o casamento ou sua contrapartida
postas antes de se iniciar o processo de nascimento Os Em consequência disso o filho que nasce indubitavelmente
espiritos matrilineares estão la a espera de ser implanta- com um pai genefico (seja quem for existiu) continua
dos assim que isso se da os pais homem e mulher — necessitando de um pai social O filho euro-americano
mãe/irmã e o marido dela e o irmão dela — devem não nasce axiomaticamente num campo de relaciona-
seguir os caminhos certos para o parto Fazem isso mentos Embora sua concepção exigisse um relaciona-
separando-se um do outro O marido distingue-se do mento que suas caracteristicas registram em si mesmo
irmão pela atividade sexual com que trabalha para nutrir ele surge como uma pessoa individual com necessidade
a criança o irmão passa a ser o parceiro especificamen- de relacionamentos
te ausente A esposa distingue-se do marido como Nesse contexto o gênero se torna uma caractens-
26 MALINOWSKY Brontslaw relata Malinowski25 voltando para a casa dos pais (onde fica do individuo uma das muitas caractensficas pelas
op cIt p 193 4 esta sua mãe) ou a casa do irmão de sua mãe a fim de quais os euro-americanos comparam pessoas A questão
dar a luz e foram os parentes masculinos matrilineares cultural que se segue e que tipo de relação os individuos
que no passado a guardaram com lanças contra os podem estabelecer Ao conceitualizar individuos ja
feiticeiros noturnos que poderiam ameaçar a aparência diferenciados os euro-americanos conceitualizam seu
da criança matrilinear relacionamento como uma ligação e mais extremamen-
Essas disposições melanesias são estabelecidas te no caso de um casal conjugal como uma união
como separações ou oposições Pessoas separam-se de " SCHNEIDER David M op Como disse Schneider27 Como simbolo de unidade ou
pessoas e são suas relações que efetuam a separação cit p39
unicidade o amor e a união da carne de opostos
O casal que se torna marido e mulher não se une tanto macho e fêmea homem e mulher Prossegue dizendo
num relacionamento quanto estabelecem desde o inicio " STRATHERN Marilyn op cit que o filho unifica em sua pessoa unica as diferentes
a relevãncia um para o outro de sua diferença um do substâncias dos dois pais Na criação de relacionamentos
26 DAMON F H Muyuw IGnship outro (por exemplo atraves de presentes) 26 Nesse parentais o desejo individual se torna adequadamente
and the Metamorphosis of contexto podemos dizer o gênero tombem separa
Gender Labour Man (n s) expresso como amor conjugal Em consequência o
1983 18 305-26 pessoas de pessoas Nota de creditos gênero leva não tanto a uma divisão de interesse quanto
Os euro-americanos por outro lado tomam a a comparação do que cada parte traz para o relaciona-
diferença de gênero como os papeis fisiologicos que Este artigo foi apresentado mento O que cada um traz tem de incluir um compro-
reunem na noção de concepção como anteriores pela primeira vez no Institut fur misso com a ideia do propno relacionamento e dai uma
Nesta maneira de pensar as relações não são um Volkerkunde da Universidade motivação (por assim dizer) para relacionar-se E aqui
de Viena F01 publicado em
campo inevitavel para as ações das pessoas mas têm de alemao sob o titulo termino com outra nota especulativa
ser criadas atraves do esforço humano O esforço e Geschlecht Eine Frage des Se e a necessana individualidade (singularidade)
culturalmente reconhecido em termos de motivação Vergleichs ir) Hilde Diemberger da criança que os pais euro-americanos reproduzem
correta especificamente no desejo que os parceiros Andre Gingrich e Juerg talvez tambem possamos compreender a tendência a
conjugais manifestam um pelo outro e no que se supõe HeIbling (ed ) Die Different
der Anderen
unicidade da origem parental — entendida monogenefica
que manifestem por um filho Soztalanthropologische Studien ou duogeneficamente O individuo nasce de inclividuos28
Dai a importância do desejo da futura mãe e dai zum Geschlechterverhaltnis E isso e encarado como um fato natural que tombem e
a noção euro-americana da propria concepção pois o Frankfurt Suhrkamp 1995 um problema que as relações têm de negociar Uma
esforço humano se aplica em fazer o relacionamento Uma outra versao foi objeto
solução cultural por assim dizer e imaginar as partes do
de exposiçao em um
que fora o filho Isso e tão importante que se acredita seminano sobre historia da relacionamento criando uma assimetria entre si mesmas
que tudo o que se segue depois acontece automatica- maternidade organizado por Um parceiro pode ser visto como mais individuo que o
mente O crescimento e eventual aparecimento do filho Giovanna Fiume e Nancy outro A divisão sera uma divisão de gênero embora
são encarados como uma questão de processo biologi- Tnolo tendo sido publicada tanto pai quanto mãe possam estar no controle um
co que segue seu proprio caminho O aparecimento do em italiano como Mogno di
Padn Bisogno di Madri in impondo seus desejos ao outro Por convenção cultural a
filho e inevttavel (excetuando-se um acidente) e a forma Giovanna Fiume (ed ) assimetria se repete no gênero dos propnos desejos
que adquire simplesmente demonstra a união original de Madri storia di un ruolo supõe-se que o homem deseja a ligação sexual e a
gametas na relação genetica sociale Veneza Marsilio mulher o relacionamento Se pressionassemos mais um
Enquanto a biologia se desenrola os relaciona- 1995 Agradecemos aos
euro-americano ele ou ela poderia dizer que a diferença
editores das respectivas
mentos têm de ser constantemente trabalhados nesse obras a gentileza da esta na diferença fundamental de composição entre os
tipo de sistema de parentesco Assim o relacionamento permissao para publica lo sexos Não e preciso esforço para estabelecer essa
que se produziu na concepção pode não durar a menos em portugues diferença — simplesmente existe As pessoas são compa-

ESTUDOS FEMINISTAS 327 N 2/95 ANO 3


328 2° SEMESTRE 95
radas em termos do que podem trazer para um relacio-
namento No contexto da procriação o gênero contribui Ha mais de 10 anos a revista Novos Alfredo Bosi, Antonio Candido, Bons
fundamentalmente para esse exercia° euro-americano Estudos vem publicando importantes Fausto, Celso Furtado, Davi Arrigucci Jr ,
de comparação se os relacionamentos se baseiam na ensaios em quase todas as areas de Elza Berquo, Fernando Henrique Car-
comparação de pessoas nos relacionamentos procnativos humanidades, ajudando a promover o doso, Fernando Novaes, Francisco de
a comparação por gênero torna se concreta e evidente Oltvena, Frednc Jameson, Guillermo
debate cultural e teonco em torno de
pelo intercurso sexual
importantes temas nacionais e interna- O Donnell, Jose Arthur Giannotti, José
As novas tecnologias reprodutivos alteraram esse
modelo tradicional'? As praticas conceptivas separam cionais Com frequência apresentamos Paulo Paes, Jose Serra, Jurgen Haber-
sexo de procriação mas não procriação de sexo as colaborações de autores estrangeiros, mas, Levi-Strauss, Luiz Carlos Bresser
tecnologias reprodutivos mais recentes separam procria possibilitando aos leitores interessados Pereira, Luiz Felipe de Alencastro, Luiz
ção de sexo — pelo menos no que se refere a fertilização o acompanhamento da produção inter- Gonzaga Belluzzo, Mana da Conceição
e implantação de embrião Mas o debate sobre a nacional, promovemos debates sobre Tavares, Norberto Bobbio, Paul Singer,
Sindrome do Nascimento Virgem sugere que no que se temas atuais, que são transcritos inte- Paulo Arantes, Perry Anderson, Roberto
refere a definição de pais certamente não separaram gralmente na revista, contamos com Schwarz, Ruth C L Cardoso e Vilmar
procriação de relações de gênero uma seção de resenhas de livros, e Fana Dessa forma temos nos esforçado
publicamos poemas e contos ineditos para manter o alto nivel de nossos
TRADUÇÃO DE MARCOS SANTARRITA Colaboram regularmente em nossa pu- artigos, bem como para fazer uma revis-
REVISÃO TECNICA DE MARIA LUIZA HEILBORN blicação escritores da dimensão de ta insugante, com real incidência sobre
Adam Przeworski, Albert Hirschman, o debate polinco-cultural

Novos Estudos
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ESTUDOS FEMINISTAS 329 N 2/95


A vingança de Capitu: Sugiro, neste ensaio, que está na hora de acrescentar a essa lista uma quarta
DNA, escolha e destino na família brasileira contemporânea 1 descoberta. No final dos anos 1980, os testes de DNA para a verificação de laços de
paternidade passaram do mundo da fantasia ao dos fatos, trazendo consigo o potencial
Claudia Fonseca de uma nova “mudança profunda” em nossa maneira de pensar a família, relações de
gênero e parentesco. Embora essa forma de tecnologia ainda não tenha recebido muita
Diante do convite da Fundação Carlos Chagas para dar uma palestra sobre
atenção acadêmica, estou convencida – baseada em experiência etnográfica em favelas 2
“novas estruturas familiares no Brasil”, minha primeira reação foi de perplexidade.
brasileiras – que suas conseqüências são mais instantâneas e abrangentes do que as
Creio que, entre antropólogos, não sou a única a recusar chavões fáceis sobre as
rupturas e transições anteriores marcadas pela ciência. Em apenas quinze anos, desde a
“influências revolucionárias” da modernidade. A própria noção de “estrutura” vem de
sua primeira descoberta no outro lado do mundo, tanto membros da elite como homens
encontro a esses modismos, dando ênfase às idéias e práticas de “longa duração”. Na
e mulheres da classe trabalhadora incorporaram testes de DNA em seu modo de ver
antropologia francesa, por exemplo, a especialista inconteste em assuntos de família,
laços e responsabilidades familiares.
Françoise Héritier (2000), ao escrever uns quinze anos atrás sobre novas tecnologias
Para refletir sobre o impacto de testes de DNA no contexto brasileiro, resolvi
reprodutivas, conseguiu dar o recado de que “plus ça change, plus c’est la même
evocar, no título deste artigo, uma heroína bem conhecida: Capitu. A maioria de vocês
chose”. Maternidade de aluguel, casamento entre pessoas do mesmo sexo, concepção
saberá que ela é criação de Machado de Assis, novelista do século XIX. Com a
post-mortem e muitas outras práticas do gênero estiveram presentes nas sociedades não
particular sensibilidade que o tornou o cronista mais importante da sociedade de sua
ocidentais, ao que parece, desde tempos imemoriais. As estruturas básicas que giram em
época, esse autor apresenta Capitu como a esposa adorada de um homem torturado pelo
torno da reprodução bissexual e da filiação permaneceram intocadas. Assim sendo, por
ciúme. Seu pior temor, o de que ela poderia ter tido um caso com seu melhor amigo, é
que esse bulício todo a respeito de modernas revoluções nas estruturas de família?
exacerbado pelo comportamento “suspeito” da esposa – uma lágrima derramada no
Inspirada pelo convite da Fundação, resolvi, contudo, tomar neste ensaio um
funeral do suposto amante. Mesmo depois da morte prematura do rival, Dom Casmurro
outro rumo, o de uma escola de pensamento antropológico e feminista anglo-saxã que
(o marido) continua envenenando a vida da mulher, não com acusações abertas, mas
explora mudanças nos atuais valores familiares provocadas pelas novas tecnologias de
com uma estudada indiferença – dirigida também ao filho que ela engendrara. A novela
reprodução (Strathern, 1992 e Haraway, 1991). Conforme esses pesquisadores, desde a
termina tragicamente, com a morte de Capitu (exaurida pelo desdém de seu marido) e
metade do século, novas formas de tecnologia reprodutiva têm transformado nossa
com seu filho no exílio (que desafortunadamente ostenta alguma semelhança com o
maneira de pensar a cisão entre natureza e cultura, trazendo “mudanças profundas” na
falecido amigo do casal). A força da narrativa se depreende do fato de que nem o
conceituação ocidental da família. Destacam-se, na literatura científica, o impacto de
marido de Capitu, nem o leitor, jamais saberão realmente se Capitu teve ou não um
três descobertas científicas: 1) a pílula contraceptiva, que permitiu cópula sem
amante, se o filho é de D. Casmurro ou de um outro homem.
concepção; 2) a fertilização in vitro, que permitiu a gravidez sem cópula; 3) a barriga de
aluguel, que permitiu a maternidade sem gestação. Afirma-se que, uma vez desfeitas as
Sustento que o dilema de Capitu não faria mais sentido no cenário
antigas verdades da reprodução pela tecnologia moderna, a “perda da inocência” é
contemporâneo da família brasileira. Mesmo se as atitudes “modernas” – a revolução
irreversível (Strathern, 1995). Não há retorno.
sexual, ideais de auto-realização e a aceitação do divórcio – não tenham penetrado na

1 2
Esse texto foi traduzido do inglês por Ethon A. S. da Fonseca. Publicado em 2002 “A vingança de Gostaria de agradecer a Rosangela Araujo, Miriam Chagas, Heloisa Paim, Ciana Vidor, e Diego Soares
Capitu: DNA, escolha e destino na família brasileira contemporânea”. In Gênero, Democracia e Silveira que, a partir de observações etnográficas realizadas no final dos anos 90 em bairros populares
Sociedade Brasileira (Cristina Bruschini e Sandra Unbehaum, orgs.). São Paulo: Editora 34. de Porto Alegre, deram importantes contribuições a este artigo, mediante observações pertinentes a
famílias da classe trabalhadora em Porto Alegre.

2
vida de todos os casais, “a ciência” alcança lá onde as novas atitudes não chegam. Dom da família moderna. No alvorecer de novos padrões de família, a tradicional psicologia
Casmurro e sua mulher, tivessem vivido neste novo milênio, certamente saberiam que freudiana passou por sérias revisões, por exemplo, abrindo mão da crença de que
poderiam pôr fim às suas dúvidas através de um teste de DNA. casamentos desfeitos estão predestinados a produzir crianças infelizes. É, sem dúvida,
Mas, numa reflexão em ligeiro descompasso com os anúncios, em geral devido a esse mesmo clima que feministas da academia passaram praticamente em
otimistas, da nova tecnologia, gostaria de perguntar: será que esta jogada – a verificação massa a desmistificar a noção de família nuclear, revelando-a como uma ideologia
da paternidade “verdadeira” da criança – teria sido recomendável? Indo mais limitada a determinadas circunstâncias históricas. Teria alcançado o seu apogeu depois
diretamente ao ponto: quais são as conseqüências potenciais desse tipo de tecnologia da 2a Guerra Mundial, entrando então num declínio definitivo 3 .
para as relações de gênero no âmbito do casal? Será que as mulheres, tais como Capitu, Seguindo essa linha de raciocínio, devemos notar que a atual ênfase na escolha e
ganham ou perdem algo no processo? Será que os homens se submetem a essa afeição não somente faz do término de certas relações familiares algo mais fácil, mas
tecnologia com a intenção de aumentar a sua responsabilidade paterna e o compromisso também permite a legitimação de formas familiares que até recentemente não eram
com o casal, ou, pelo contrário, de cortar os laços sociais negando supostas relações aceitas. O relacionamento entre pais e filhos adotivos perdeu algo de sua aura infame, e
consangüíneas? Creio que o assunto é discutível – requerendo o exame de vários a filiação adotiva que, historicamente, era estigmatizada por ser associada com o
elementos do contexto histórico particular. Assim, antes de considerar os usos da vergonhoso status de ilegitimidade, foi levantada por certos entusiastas como bandeira
tecnologia do DNA no Brasil contemporâneo, sugeriria que fizéssemos uma pausa para da “verdadeira família”. Na retórica destes últimos, as crianças adotadas, enquanto
considerar, por um momento, algumas forças que no fundo participam na modelagem filhos “escolhidos”, podem ser considerados, de alguma maneira, mais valiosas do que
das práticas familiares atuais. aquelas que são simplesmente nascidas dos seus pais. Da mesma forma, parceiros do
mesmo sexo ganharam um espaço importante; se a afeição é a verdadeira base do
Escolha e destino
relacionamento, por que o casal seria limitado a um relacionamento heterossexual

Enquanto a legitimidade versus ilegitimidade era a dicotomia reinante da era centrado em torno da reprodução biológica? O fato é que nesta era “pós-moderna”, ao

pré-contemporânea (separando esposas de concubinas, filhos legítimos de bastardos) o menos teoricamente, nenhuma forma de família em particular é descartada de antemão

sistema atual de classificação tem acentuado a divisão entre parentes “eletivos” e os como inadequada 4 .

consangüíneos (Ouellette, 1998). Dito de outra forma, a tendência atual é de comparar o Essas novas atitudes estão longe de ser universalmente aceitas. Diante delas,

“parentesco de escolha” (baseado acima de tudo na afeição mútua), com o parentesco aportam-se objeções de diferentes ordens. Terapeutas conservadores ainda prevêem

baseado naquilo que é percebido como “os fatos imutáveis da biologia”. O mais problemas nos filhos de pais divorciados e certos trabalhadores sociais ainda

intrigante na atual configuração é que ambos os termos da equação – tanto as afinidades


eletivas quanto os dados biológicos – são altamente valorizados. 3
J. Stacey (1992) nos lembra que nos EUA., de acordo com um censo de 1986, apenas 7% das famílias
A noção de escolha é bem ilustrada por aquilo que muitos acadêmicos hoje correspondem ao modelo nuclear clássico de família – lares com crianças com menos de 18 anos
morando junto com ambos os seus parentes biológicos: um pai provedor de família e uma mãe em
chamam de “família pós-moderna”. A idéia é: à medida que as rígidas convenções tempo integral. M. Segalen e F. Zonabend (1986) consideram a família nuclear como um construto
ideológico típico do período do pós-guerra, cuja validade foi paulatinamente erodida, tanto por um
morais de outrora foram cedendo a valores recentes, centrados na auto-realização e questionamento intelectual (e antropológico) como por uma inequívoca proliferação de novos padrões
de conduta.
satisfação emocional, as relações conjugais – tanto no seu início quanto no seu final – 4
J. Stacey insiste em que é impossível caracterizar a família pós-moderna por um conjunto coerente de
termos descritivos: “A família pós-moderna não é um novo modelo de vida familiar equivalente ao da
tornaram-se abertas à negociação. Assim, ao colocar-se a afeição como principal
família moderna, não é o novo estágio de uma progressão ordenada da história da família, mas o
elemento constituinte da relação familiar, o “descasamento” aparece não como uma estágio nesta história onde a crença numa progressão lógica de estágios se rompe. Rompendo com a
teleologia das narrativas modernizantes que retratam uma história evolucionária da família, e
ruptura problemática, mas antes como uma extensão praticamente normal dos valores incorporando tanto elementos experimentais como nostálgicos, ‘a’ família pós-moderna avança e recua
para dentro de um futuro incerto” (1992, p. 94).

3 4
consideram a adoção como, na melhor das hipóteses, uma “imitação da natureza”. vinculadas biologicamente a ambos os membros do casal (como no caso de duas
Sabemos que, para casais homossexuais, os obstáculos sociais e institucionais à mulheres, uma emprestando seu útero para o óvulo da outra)? 5 .
paternidade ou maternidade continuam incontáveis. Basta considerar, no caso brasileiro, A nova e sofisticada tecnologia reprodutiva foi cunhada para permitir
quantos homossexuais assumidos, apesar das garantias constitucionais contra a praticamente a todo indivíduo (com parceiro ou sem) a engendrar filhos de seu sangue.
discriminação, têm conseguido adotar legalmente uma criança... Por outro lado, É portanto fruto de uma fixação genealógica, mas ela também ajuda a perpetuar a
pesquisadores progressistas lembram que, para muitas pessoas, o abandono do modelo fixação. O mesmo poderia ser dito de uma multiplicidade de empreendimentos
de família nuclear não é tanto uma questão de “escolha” quanto a conseqüência científicos recentes: a atenção ao projeto genoma, as interpretações biogenéticas de
indesejada de fatores externos – antes de tudo, da pobreza. E, finalmente, existem doenças mentais, os bancos de esperma estocados com as secreções de vencedores do
críticas que questionam a própria noção de “escolha”, sugerindo que ela seja inspirada prêmio Nobel...(ver Rabinow, 1999, Finkler, 2001). Embora a maioria das pessoas
num conjunto de valores individualistas coerentes com a sociedade capitalista e evidentemente não tenha qualquer experiência direta com esses artefatos da ciência
consumista (Strathern, 1992). Sejam quais forem as objeções, é evidente que as moderna, é de supor que eles ocupam um lugar significativo no imaginário do mundo
concepções modernas da família, com a ênfase crescente na afeição e escolha, ocidental (Strathern, 1995). Assim, seja em Paris ou Porto Alegre, encontramos as
afrouxaram os elos que amarravam impreterivelmente o parentesco aos fatos “naturais” mesmas crenças básicas – quais sejam: juntamente com a afeição e a “escolha”, o
das relações consangüíneas e reprodução biológica. parentesco é uma questão de sangue e “destino”.
É curioso notar que, durante as duas últimas décadas, houve uma recrudescência Para ilustrar esses princípios estruturais do parentesco moderno, passamos agora
também das concepções biológicas de parentesco. “O sangue é mais espesso do que a para um caso concreto, embutido num contexto histórico específico. Ao descrever o
água” é um adágio de extrema importância no modo euro-americano de pensar as caso de Leila, menina decidida de treze anos, morando em um bairro periférico de Porto
relações de parentesco (ver Schneider, 1984). Hoje, como atesta o negócio emergente Alegre, espero mostrar como essas estruturas funcionam na vida de indivíduos de carne
das árvores genealógicas de família – assim como a popularidade crescente das reuniões e osso. Como veremos, embora influências “globais” também estejam presentes, há, no
de família que confrontam pessoas que não têm mais nada em comum além de um certo modo de agir dessa jovem mulher, algo de particularmente brasileiro.
sobrenome – a idéia de descendência genealógica parece não ter perdido nada do seu
apelo (ver, por exemplo, Gaunt, 1995). Enquanto a “família de escolha” descrita acima
DNA na favela brasileira
parece enquadrar o lugar da família no âmbito de uma cultura moldada pelo homem, a
noção de sangue, com toda a sua conotação genética, faz com que a família recaia nos Leila mora num distrito próximo a Porto Alegre, numa modesta mas bem
imutáveis fatos da natureza. Paradoxalmente, é precisamente nas relações familiares, construída casa de madeira, com a avó materna e uma tia celibatária. Ela vai bem na
que melhor demonstram a idéia de “escolha”, que nós vemos a reafirmação estridente escola e aparenta ser uma pré-adolescente bem ajustada. Recentemente, quando atingiu
do sangue. Por que outro motivo, por exemplo, as crianças adotadas teimariam tanto em a puberdade, contudo, decidiu levar adiante um plano longamente acalentado:
conhecer suas origens genealógicas ( Yngvesson, 2000)? Por que outro motivo identificar o seu pai. A mãe de Leila mora na casa ao lado, com seu marido dos últimos
parceiros do mesmo sexo tentariam, tão apaixonada e dolorosamente, gerar crianças sete anos, um técnico eletrônico de meia-idade. Ela nunca escondeu a identidade do pai
de Leila nem a história de seu nascimento: tinha quinze anos, não muito mais do que a
filha hoje, quando conheceu o advogado, com mais de três vezes sua idade, que veio a

5
Se laços genealógicos não fossem tão importantes, por que, por exemplo, as pessoas se prestariam ao
processo exaustivo da maternidade assistida ao invés de simplesmente adotar uma criança? (ver

5 6
ser seu amante. O envolvimento durou quase quatro anos, até que a personalidade situação, de forma a permitir a inserção legal de seu pai. Ela rapidamente ficou sabendo
tempestuosa da mãe de Leila e as obrigações do advogado para com sua “família que, para determinar a identidade de seu pai mediante o teste de DNA, teria de envolver
legítima” os levaram a romper o relacionamento. A mãe então teve outro romance, que a “mãe que me pariu”, e não a “mãe que me criou”. Assim, seu primeiro passo foi o de
durou por um espaço semelhante de tempo e que produziu uma segunda filha. A mãe de destituir, perante a corte, a avó de seu status materno, de modo a estabelecer uma nova
Leila nunca pediu pensão a nenhum dos pais de suas filhas, nem pensou em registrá-las certidão de nascimento, refletindo a ordem biológica das coisas.
em seus nomes. As duas meninas, criadas pela avó materna, foram registradas como “de Reconhecemos na situação dessa família muitos dos elementos que apontamos
pais desconhecidos”. acima como sendo típicos das “famílias pós-modernas” 6 . Aqui nós temos o
A irmã mais nova de Leila, conforme a história contada pela mãe, nunca descasamento acompanhado por fortes laços de solidariedade entre gerações; temos
pareceu muito perturbada pela ausência de um progenitor paterno em sua certidão de também uma questão de “cultura” prevalecendo sobre “fatos da natureza”: “mãe (ou
nascimento. Leila, contudo, desde muito cedo, perguntava incessantemente a respeito de pai) é quem criou”, as pessoas dirão, descolando os laços familiares da biologia 7 . De
suas origens e, à idade de treze anos, um pouco a contragosto da mãe, dirigiu-se ao fato, Leila navega entre as suas diferentes mães assim como filhos de pais divorciados,
escritório do reputado pai para anunciar seus anseios. Confrontada com a indiferença na Europa e na América do Norte, transitam entre diferentes pares de pais (Théry,
cética do homem que não acreditara ser ela sua filha, levou o caso adiante. 1993). De forma semelhante, poderíamos sugerir que o modo com que a mãe de Leila
Tivesse nascido dez anos mais cedo, Leila teria tido pouca sorte. É claro que lidou com sua primeira gravidez seja de alguma forma semelhante à “produção
investigação de paternidade não são nenhuma novidade, mas no caso de Leila haveria independente” (Dauster, 1990) ou mesmo ao “nascimento virgem” (Strathern, 1995)
poucas chances de um desfecho satisfatório. Afinal de contas, muitos anos haviam se reivindicados por mulheres em melhores condições econômicas. Por que nunca exigiu
passado desde o tempo do nascimento de Leila, seus pais biológicos nunca moraram nada dos seus companheiros? É possível que, na época do nascimento de sua primeira
juntos e sua mãe jamais fizera tentativa de negar que tinha vivido diversas aventuras filha, não soubesse ou não se sentisse autorizada a exigir seus direitos. Mas é também
amorosas durante a adolescência. No entanto, no ano de 2000, Leila sabia que havia um possível que simplesmente quisesse evitar a interferência de uma figura paterna
modo de confirmar que este homem era seu pai: o teste de DNA. incômoda na vida de sua filha.
A família “pós moderna”, como sugeri acima, mereceu toda uma gama de novos
Um dos primeiros obstáculos para declarar a identidade do pai de Leila mediante termos: “produção independente”, “descasamento”, “família de escolha” etc. Famílias
testes de DNA foi, acredite-se ou não, o estabelecimento da verdadeira identidade de dos setores mais pobres da sociedade, contudo, devem em geral se contentar com
sua mãe. Leila, de fato, tinha, como muitos de seus amigos, crescido entre diferentes termos mais antigos que, na maioria dos casos, carregam conotações pejorativas: “mães
“mães” (ver Fonseca, 1995). Neste caso em particular, a avó materna (que tinha pouco solteiras”, “famílias desestruturadas”, “filhos abandonados”, e assim por diante. No
mais de quarenta anos quando a criança nasceu) registrou a menina ilegalmente como caso de Leila, nós podemos adicionar a ilegalidade aos estigmas que podem envolver o
sendo a sua filha biológica. Leila, ao que parece, foi uma criança adoentada, e como sua comportamento de sua família, pois sua certidão é flagrantemente ilegal. Comumente
própria mãe, uma adolescente desempregada, não tinha seguro de saúde, a única conhecida como uma “adoção à brasileira”, envolve o delito de “falsidade ideológica”.
esperança de um atendimento médico adequado era registrá-la como filha de sua avó.
Embora chamasse a mulher que a criou de “mãe”, Leila acostumava visitar sua “outra” 6
Com esta reflexão, fazemos eco à análise de Judith Stacey que vê as famílias de classe trabalhadora no
mãe (sua progenitora), e parecia não fazer qualquer confusão quanto aos distintos Silicon Valley (Califórnia), que pesquisou, como pioneiras da família pós-moderna contemporânea
(1992, p.103-4).
7
papéis de ambas. Com treze anos de idade, o seu único problema era ajustar essa Seria enganador supor que a biologia desempenhou tradicionalmente pouca ou nenhuma importância na
maioria das famílias de classe trabalhadora. Convivendo ao lado de expressões como “mãe é quem
criou”, existem outras como “mãe é uma só”, e “o sangue puxa”. Contudo, sempre houve uma certa
Franklin, 1997, Oliveira, 1997, Scavone, 1998, Luna 2000). margem de manipulação em relação às atribuições de “pai real” e mesmo de “mãe real”.

7 8
Felizmente, em seu caso, como na maioria dos outros casos do tipo, o aparato judicial, dos três laboratórios locais que realizam o teste, recebe levas de pessoas de todos os
exercendo complacência para com os costumes locais que não envolvem intenções meios sociais e estilos de vida. O teste é caro – R$ 900,00 o conjunto de impressões –
maliciosas, deu mostra de cumplicidade, e o status materno foi oficialmente transferido mas, desde março de 2000 (seguindo uma tendência que já afetou muitos outros estados,
da avó para a mãe sem maiores complicações. como o Rio de Janeiro, Ceará, Paraná e São Paulo) a legislação do estado do Rio
Agora, deixando o caso de Leila, teçamos especulações acerca do impacto do Grande do Sul incluiu o teste nas medidas providenciadas pela “justiça gratuita”.
teste de DNA sobre a população como um todo. Mesmo hoje, de acordo com o diretor do laboratório, as pessoas com rendimentos
modestos, desejando evitar a espera de dois anos na lista dos serviços públicos, tomam
Mater semper certa est; pater autem incertus – nunca mais
dinheiro de empréstimo para pagar um laboratório privado e providenciar resultados

De fato, exames de sangue de um tipo ou outro têm sido usados há muito tempo mais rápidos.

para provar a filiação genética, e os códigos legais de vários países foram ajustados de O depoimento do diretor não foi inteiramente inesperado. Pesquisa etnográfica
8
modo a incluir a nova tecnologia nas decisões judiciais . A margem de erro era, a em grupos populares de Porto Alegre tinha revelado o teste como um elemento quase

princípio, muito grande, chegando a 30%. Mesmo nos testes HLA (desenvolvidos nos corriqueiro da vida cotidiana. Não era incomum encontrar mulheres reunidas em

anos cinqüenta e usados no Brasil desde os anos 80), os 92% a 95% de precisão eram círculos de fofocas trocando informações e especulando sobre os resultados de testes de

considerados ainda insuficientes; na base de uma dúvida de 5% a 8%, homens cuja paternidade. Uma assistente social, tentando informar as mulheres da favela quanto aos

paternidade havia sido legalmente declarada podiam apelar com boas chances de seus direitos, descobriu que elas conheciam mais detalhes sobre o teste do que ela. Uma

sucesso. O exame de DNA, contudo, supostamente garante resultados com 99,9999% de mulher já tinha passado por dois testes – HLA e DNA –, ambos com resultado positivo,
9
margem de acerto . Assim, não é de se surpreender que o teste de DNA, apenas cinco antes de conseguir pensão alimentícia do pai de seu filho. Outra revelou às amigas que

anos depois de sua invenção (1984), já estava sendo aperfeiçoado por cientistas estava pensando seriamente em fazer um teste com o filho, inconvenientemente louro,

brasileiros. Bastaram, então, uns poucos casos envolvendo figuras públicas – tais como para afastar as suspeitas do marido ciumento e aplacar as implacáveis línguas

Pelé, Maluf e, mais recentemente, Mick Jagger – para que o uso potencial do teste fosse fofoqueiras da vizinhança 11 . Conforme uma ONG implantada nas favelas para facilitar

reconhecido por leigos no Brasil e no resto do mundo. acesso feminino à justiça, boa parte das mulheres que fizeram uso dos seus serviços

Em janeiro de 2001, com o intuito de investigar a evolução dos usos dessa estavam movidas pela esperança de fazer valer o direito aos testes de DNA bancados

tecnologia, entrevistei o diretor de um laboratório onde esse tipo de teste é realizado, em pelo poder público (Bonetti, 2000). Uma de minhas amigas, moradora da favela,

Porto Alegre 10 . Ele lembra que, quando abriu seu estabelecimento, em dezembro de confidenciou-me que, assim como uma dúzia de outros membros da família, emprestara

1993, a maioria dos testes, evidentemente envoltos pelo segredo, eram feitos com dinheiro à sobrinha para pagar um exame de DNA. A expectativa do investimento ser

membros das classes abastadas. Contudo, pelo final do ano 2000, sua clínica, hoje um compensador era grande, assim como o medo de um resultado negativo – o que anularia
toda esperança do empréstimo ser devolvido.
8
Na França, uma lei de 3 de janeiro de 1972 introduziu a idéia de verdade biológica na discussão sobre Mesmo as pessoas que não possuem qualquer experiência pessoal têm, através
filiação (Laborde-Barbanègre, 1998); em Portugal, a reforma da lei trouxe mudanças semelhantes em
1977 (Veloso, 1997).
da televisão, amplo conhecimento sobre os testes de paternidade. Ratinho, o famoso
9
Cientistas que lidam com o assunto parecem estar convencidos de que o teste é praticamente infalível, show man da TV brasileira, é conhecido pela maneira com que paga, para certas
como demonstra o título de um artigo acadêmico: “O DNA como (única) testemunha em determinação
de paternidade” (Pena, s/d). Os críticos, por outro lado, sustentam que não há nenhuma autoridade mulheres, os testes de DNA, anunciando os resultados ao vivo durante seu programa.
externa averiguando a qualidade dos laboratórios e técnicos que conduzem os testes (Leite, 2000). Uma
associação profissional – Sociedade Brasileira para a Investigação Genética (SBIG) – fundada em 2000
com o propósito de garantir a qualidade do controle em testes DNA ainda exerce apenas uma influência
11
incipiente. Baseio-me nas anotações de campo de maio de 1999 de pesquisadores associados com o NACI
10
Agradeço Eduardo Lewis, do DNA4 por ter gentilmente concedido esta entrevista. (Núcleo de Antropologia e Cidadania): Heloísa Paim e Ciana Vidor.

9 10
Um outro acesso a esse tipo de informação é propiciado pelos anúncios comerciais O fato de os testes de paternidade terem um amplo apelo, atravessando inclusive
colocados em lugares públicos – por exemplo, na janela de trás das minivans que as fronteiras de classe, faz com que se tornem um item “quente” para o mercado – tanto
circulam pelas ruas de Porto Alegre (ver, também, Roury 2001). Existe agora uma para os jornais e apresentadores de televisão, que tentam cativar a audiência, quanto
rubrica especial nas páginas amarelas do guia telefônico de Porto Alegre, onde se lê para empreendedores financeiros buscando um investimento com lucro seguro. A oferta
“laboratórios para análises de DNA” e no interior da qual três estabelecimentos expõem desse serviço particular é, assim, regulada por diversos fatores institucionais ligados a
grandes anúncios com textos como o seguinte: “pioneira na investigação da paternidade leis e ao mercado da biotecnologia. Esses fatores, contudo, não revelam muito a respeito
no RGS, qualidade internacional.” das motivações daqueles que estão requisitando o serviço. É olhando mais de perto que,
Uma rápida verificação, nos casos de jurisprudência no estado de Rio Grande do uma vez mais, nos aproximamos de nosso interesse principal: a possível mudança nos
Sul também traz à tona dados interessantes. Durante os anos noventa, a quantidade valores envolvidos nas novas estruturas familiares.
anual dessas investigações oscilava entre 50 e 100. Esse número aumentou rapidamente
Por amor ou dinheiro?
por volta de 1996 e hoje aproxima-se da casa de 600 por ano. É importante lembrar que
esses índices abrangem apenas uma pequena parte dos casos jurídicos, ou seja, aqueles E. Bilac (1998), na sua análise do código brasileiro, sugere que até bem pouco
que chegam à corte de apelos. O diretor do laboratório que entrevistei estima que entre tempo atrás a legislação era voltada para a proteção dos homens legalmente casados,
1500 e 2000 famílias passam mensalmente pelos laboratórios locais. Esse número não para livrá-los das implicações de seus casos extraconjugais e de filhos ilegítimos não
inclui os testes realizados por intermédio dos inúmeros serviços comerciais na Internet, desejados. Em outras palavras, estava mais voltada para a manutenção dos privilégios
os quais discutirei abaixo de forma mais detalhada. de uma classe senhorial do que para a promoção do bem-estar de mães e filhos.
Conforme Bilac, esse sistema era legado da família patriarcal em que ricos
O que toda essa atividade sugere é que os testes de DNA tornaram-se um proprietários de terra acostumavam manter amantes – mulheres de baixa renda ou
negócio extremamente lucrativo para os empreendedores. O diretor do laboratório escravas.
salientou que os testes de DNA para verificação de paternidade, apesar de compor Durante o último século, filhos e filhas “naturais”, fruto ilegítimo de uniões
menos do que a metade das atividades do laboratório, são a maior fonte de rendimentos. consensuais haviam conquistado certo terreno no que diz respeito ao direito de
A disposição do Estado em arcar com o financiamento desses testes provocou, por todo reconhecimento da paternidade e da reivindicação dos direitos de herança. No entanto,
o país, uma espécie de corrida aos fundos públicos. Por exemplo, em 1999, o estado de foi somente a partir de 1949 que a lei 883 permitiu a um homem casado reconhecer a
São Paulo destinou 5,4 milhões de reais para testes DNA de paternidade. Pouco tempo criança nascida de uma relação extraconjugal e, mesmo então, apenas depois da
depois, deflagrou-se uma disputa entre os diferentes laboratórios – públicos e privados – dissolução legal (desquite) do seu casamento. Essa lei permitiu à criança nascida de
concorrendo pelo contrato. O IMESC (Instituto de Medicina Social e Criminologia do uma relação adúltera mover uma ação de reconhecimento de paternidade contra o seu
Estado de São Paulo) expandiu seus próprios equipamentos para abarcar o serviço que reputado pai. Contudo, mesmo após o reconhecimento oficial de um vínculo de
estava previamente destinado a um laboratório universitário. Para diminuir uma lista de parentesco, a criança de uma relação extraconjugal (assim como a criança adotada)
espera que incluía 13.500 famílias, estavam esperando realizar, até julho de 2000, mil somente poderia reivindicar bens e valores que não ultrapassassem a metade do
testes mensais. Mesmo com a projeção de uma baixa do preço dos exames (dos atuais montante normal de um herdeiro “legítimo” do grupo dos irmãos. Essa forma de
R$1300 para aproximadamente R$600 por família) o custo dessa atividade discriminação contra os filhos de relações extramatrimoniais esvaneceu com a lei do
provavelmente iria ultrapassar em muito os 5,4 milhões previstos. divórcio de 1977. Esta assegurava que, uma vez reconhecido em testamento fechado, o
vínculo filial era irrevogável, e assim o filho poderia aspirar aos mesmos direitos de

11 12
herança que um filho legítimo. No entanto, foi apenas com a constituição de 1988 que o Seria, contudo, injusto reduzir a investigação de paternidade à dimensão
princípio da igualdade entre todas as crianças se tornou imperativo. Hoje é econômica. Muito freqüentemente as mulheres e seus filhos recorrem aos testes de
absolutamente irrelevante sob quais condições um casal concebe seu bebê – a criança paternidade por motivos que não têm nada a ver com dinheiro. Num caso recente, por
terá plenos direitos, iguais àqueles de qualquer progenitura “legítima” nascida desta exemplo, uma menina indígena de 14 anos foi engravidada pelo guarda noturno que
mãe ou daquele pai. Além disso, desde 1992 a lei n. 8560 reforça a igualdade de direitos patrulhava o mercado onde ela e sua família vendiam artesanato. A história foi
das crianças nascidas de relações extramatrimoniais, decretando a assistência pública acompanhada dos dramas usuais – o homem em pânico alegando que sua mulher, muito
para investigações no caso de pais relutantes e proibindo a menção discriminatória de ciumenta, o mataria se ele viesse a ser o pai do bebê da menina. No entanto, uma vez
“legítimo” ou “ilegítimo” na certidão de nascimento de uma pessoa. Como Bilac confirmada a paternidade, ele parecia quase contente (ele e a esposa não tinham filhos)
expressa, “da perspectiva do direito (...) os homens nunca foram tão responsáveis por e os próprios pais da menina imediatamente entraram com uma petição para assumir a
sua reprodução biológica como no presente momento de nossa história” (p.19). guarda da criança. Ocorre que a jovem desta história, embora vivesse em condições
É uma coincidência irônica que a tecnologia envolvida nos testes DNA de miseráveis, declarou que ela não tinha nenhum interesse em receber dinheiro do pai da
paternidade se torne acessível quase ao mesmo tempo em que essas cláusulas criança, tampouco tinha qualquer intenção de envolvê-lo na criação do filho que, pouco
constitucionais começam a surtir efeito. Não apenas a lei estipula, como nunca antes, depois do nascimento, foi dado aos cuidados dos avós maternos. Por que, então, ela
obrigações do pai em relação aos seus filhos, como hoje a ciência fornece meios para requisitou o exame? O antropólogo que observou essa situação conseguiu pensar em
identificar esse pai e, assim, atribuir tais obrigações a um indivíduo preciso. uma única explicação: “eu acho que ela estava apaixonada pelo sujeito e tinha
O cenário está assim armado para o pior pesadelo do macho: ver alguém dar o esperança de que ele fosse ficar com ela”.
golpe do baú às suas custas (quando uma mulher engravida com o único propósito de Esse tipo de interesse não material torna-se ainda mais evidente no caso da
aproveitar a fortuna financeira do parceiro). A modelo brasileira que engravidou de criança que, uma vez crescida, sai em busca de suas origens. Leila, cuja história
Mick Jagger certamente levantou tais suspeitas. Tais dúvidas inevitavelmente emergem contamos acima, não estava vivendo em condições miseráveis e deu a impressão de
quando existe uma considerável defasagem sócio-econômica entre a mulher e o pai de querer do pai um relacionamento, mais do que um cheque. Lágrimas brotavam nos seus
sua criança. O diretor do laboratório, por exemplo, relembra o caso de um homem olhos quando falava dessa esperança: “ele já está bem velhinho. Não tenho muito tempo
chantageado por uma prostituta com quem alega ter saído apenas uma vez. Outro caso para conhecer ele. Tenho certeza que ele vai me receber quando tiver a prova de que
envolve o dono de uma estância que foi processado pela filha de seu capataz. E ainda, sou sua filha. Sei que o teste [de DNA] vai fazer uma diferença”. A julgar pela idade das
um outro caso diz respeito a um homem e seu filho pressionados por sua empregada crianças quando os testes são requeridos, tem-se a impressão de que muitas mulheres,
para determinar qual dos dois era o pai da criança. Certamente que uma análise mais no início de sua maternidade, não querem nada a ver com os pais de suas crianças. O
sistemática desses dossiês revelaria detalhes fascinantes sobre os costumes de nossa diretor do laboratório que entrevistamos menciona que boa parte das mulheres o procura
época 12 . Além de envolver relações sexuais e, portanto, questões ligadas à honra quando seus filhos estão com quatro ou cinco anos: “bem na idade em que a criança
feminina, os casos de paternidade envolvem impreterivelmente o resultado dessas começa a perguntar ‘quem é meu pai?’”. Acrescenta, então: “Não sei quantas vezes eu
relações, isto é, a criança. As mulheres não estão buscando apenas uma reparação pela tive uma mulher sentada aqui me dizendo: ‘não quero nenhum dinheiro dele [do pai de
perda de sua virgindade, estão também tentando garantir um nível mínimo de conforto sua criança]. Eu apenas quero que meu filho tenha o nome de seu pai na certidão’”. Um
para sua criança. levantamento informal entre alguns de meus amigos advogados, em Porto Alegre,
trouxe à tona quatro casos de paternidade – todos referentes a filhas de condição
12
Neste sentido, ver Esteves (1989) e Grossi e Teixeira (2000) para análises inspiradoras sobre casos de relativamente confortável, que procuraram seus pais logo na época de entrar na
“sedução”.

13 14
universidade. Essas jovens, evidentemente, esperaram ter idade suficiente para tomar a Os juristas, é claro, não estão todos em perfeito acordo. Uma consulta nos
investigação da paternidade em suas próprias mãos. arquivos da jurisprudência e dos pronunciamentos do Superior Tribunal de Justiça
Talvez, como o diretor do laboratório sugeriu, haja uma consideração financeira brasileiro sobre as controvérsias de paternidade revela que a importância prioritária
envolvida nessas buscas, apesar dos protestos em contrário. Depois de tudo, é com dada aos testes de DNA não é, de modo algum, consensual. As cortes ainda julgam
quatro ou cinco anos de idade que a criança começa a precisar de novos investimentos casos de acordo com evidência não genética. Por exemplo, em 2000, a Superior
materiais: uniformes, taxas escolares. Novamente, quando chegam ao final do colégio, Tribunal de Justiça decretou que “documentos fortes comprovando o relacionamento
os jovens procuram uma ajuda para pagar os custos da universidade. Mas essas idades amoroso entre o requerido e a genitora do requerente, inclusive provas testemunhais e
também podem corresponder a momentos cruciais na definição da identidade de uma documentais, [prescindiam] do exame de DNA” 14 . E há juristas que se posicionam
pessoa. Sem falar do estigma social ligado a ser um filho “de pai desconhecido” – um claramente contra a “sacralização” dos testes genéticos, pleiteando uma
estigma que parece ter diminuído consideravelmente nas últimas décadas –, essas “desbiologização da paternidade” (ver os vários artigos em Leite, 2000). Além disso,
jovens pessoas podem estar simplesmente seguindo a quimera da identidade pessoal em diversos casos, as cortes têm recusado colocar em questão o status paternal já
moderna, isto é, tentando descobrir, através da investigação de suas linhagens estabelecido de um homem, apenas porque uma nova evidência baseada no DNA
13
sangüíneas, exatamente quem elas são . É possível que o medo da “mulher negava a sua paternidade. Nas palavras de um juiz, “seria terrificante” – um convite
interesseira” – a que usa os testes de paternidade para comprometer um rico otário – para o “caos social” – se fosse abandonada a regra da coisa julgada 15 .
seja mais um produto da culpa masculina do que de fatos reais. Levantamos a hipótese Nesses casos, as considerações sociais sobrepujaram os “fatos biológicos”.
(possivelmente pesquisa futura) de que um bom número de causas de paternidade sejam Contudo, em outros julgamentos, vemos a “verdade real” construída unicamente na base
movidas por outros motivos que não financeiros – seja para ganhar a afeição de um dos fatos biológicos. Em 1997, por exemplo, o Tribunal Superior reverteu a decisão de
homem, seja para garantir a identidade da criança segundo a norma da bifiliação. uma corte menor que, com base em documentos e testemunhos, confirmara a
paternidade de um homem apesar do teste de DNA ter dado resultado negativo. Para
DNA, em benefício de quem?
justificar sua postura, o Tribunal Superior declara que: “Modernamente, a ciência
O fato de a maioria dos testes de paternidade serem instigados por mães sugere
tornou acessível meios próprios, com elevado grau de confiabilidade, para a busca da
que, de um modo ou de outro, são elas que se beneficiam da recém-encontrada certeza
verdade real”; chegou-se assim à conclusão de que “[A] falibilidade humana não pode
que a moderna tecnologia permite. Essa hipótese coincide com as intenções evidentes
justificar o desprezo pela afirmação científica”... 16
dos legisladores e juristas que apresentam as novas leis de paternidade como um meio
Ainda mais perturbadora é a idéia de usar DNA para verificar a paternidade de
para fortalecer a causa da mulher e da criança contra as clássicas prerrogativas
uma criança aparentemente legítima. Aqui devemos lembrar que, como em muitos
patriarcais (eles freqüentemente nos lembram, inclusive, que mais de 30% de todas as
outros países, uma criança brasileira nascida de um homem e uma mulher legalmente
crianças nascidas no Brasil são filhas de “mães solteiras”). Sem querer menosprezar tais
casados e residindo sob o mesmo teto tradicionalmente tinha a sua paternidade
benefícios em potencial, eu gostaria de sugerir que podem existir aspectos mais
obscuros que ainda não foram suficientemente considerados. Em outras palavras, a
14
RESP 180707/PB, 1998/0048909-6, Superior Tribunal de Justiça.
confiança crescente nas “verdades biológicas”, na determinação legal de assuntos da 15
“Se, fora dos casos nos quais a própria lei retira força da coisa julgada, pudesse o magistrado abrir as
família, pode estar abrindo uma caixa de Pandora – com resultados que ainda estão para comportas dos feitos já julgados para rever as decisões não haveria como vencer o caos social que se
instalaria. (...) Assim, a existência de um exame pelo DNA posterior ao feito já julgado, com decisão
ser vistos. transitada em julgado, reconhecendo a paternidade, não tem o condão de reabrir a questão com uma
delatoria para negar a paternidade, sendo certo que o julgado está coberto pela certeza jurídica
conferida pela coisa julgada” RESP 107248/GO, 1996/0057129-5, relator: Min. Carlos Alberto
Menezes Direito, 07/05/1998.
13 16
Ver Yngvesson 1998 sobre as raízes metafóricas da identidade pessoal. Ministro Waldemar Zweiter resp 97148/MG, 1996/0034439-6, Data da decisão: 20/05/97

15 16
garantida. Nessas condições era extremamente difícil para um marido mover uma ação Muitos juristas veriam esse tipo de mudança legal como concorrendo para os
judicial para negar seu status paterno. Ele poderia fazê-lo apenas dentro de um prazo melhores interesses da criança. Indo além do direito da criança de conhecer suas
determinado e sob circunstâncias específicas 17 . Tal política, que para muitos parecia origens, a opinião que prevalece neste momento parece implicar que uma criança não
completamente desprovida de sentido – hipócrita e legalista –, dava ao menos à criança poderia, em nenhuma circunstância, ser feliz convivendo com uma “mentira”: “A
a segurança de uma identidade pessoal com garantia vitalícia. integral tutela das crianças, em particular de sua dignidade, reflete nessa medida e ainda
As coisas agora estão mudando, como sugere o seguinte pronunciamento de hoje, tarefa primária e urgente, da qual decorre, em primeiro lugar, o conhecimento
outro juiz do Superior Tribunal de Justiça: da identidade verdadeira, e não presumida, dos progenitores.”(Moraes 2000, p.226)
“Não há como interpretar-se uma disposição (legal), ignorando as profundas Para debater com as interpretações otimistas sobre a nova virada na
modificações por que passou a sociedade, desprezando os avanços da
jurisprudência brasileira, nós invocamos a análise de Laborde-Barbanègre sobre a lei de
ciência e deixando de ter em conta as alterações de outras normas,
pertinentes aos mesmos institutos jurídicos. Nos tempos atuais não se paternidade de 1972 na França. Antes dessa data, relata a pesquisadora, a paternidade de
justifica que a contestação da paternidade, pelo marido, dos filhos nascidos
um marido era definida de modo muito similar à forma com que o código civil
de sua mulher, se restrinja às hipóteses do artigo 340 do Código Civil,
quando a ciência fornece métodos notavelmente seguros para verificar a brasileiro determina, com, basicamente, as mesmas restrições de residência e prazos de
existência de vínculo de filiação.(...) Admitindo-se a contestação da
tempo. A lei, de 1972, de modo a incorporar as novas determinações da “verdade
paternidade, ainda quando o marido coabite com a mulher, o prazo de
decadência haverá de ter, como termos inicial, a data em que disponha biológica”, colocou fim ao princípio geral que por séculos tinha governado a definição
ele de elementos seguros para supor não ser o pai de filhos de sua
dos laços filiais, isto é, o da “indisponibilité”, caráter irrevogável de uma relação
esposa.” 18
socialmente definida. Com mudanças trazidas pela nova lei, “a filiação não é mais um
Como este documento mostra, em nome da “verdade real”, a condição para a postulado construído sobre uma relação institucional (casamento) ou um ato jurídico
contestação da paternidade de um marido (ou pai declarado) se faz agora (reconhecimento oficial da paternidade); [antes pelo contrário] tornou-se um fato
consideravelmente mais flexível. Primeiro, um homem pode contestar a paternidade do demonstrável da realidade.” (1998, p.185).
filho de sua mulher, não importando quantos anos eles estiveram vivendo juntos; Embora os legisladores franceses tentem diluir essa ênfase biológica com
segundo, o prazo para que um marido conteste a paternidade do bebê foi, efetivamente, considerações sociológicas sobre quem está realmente criando a criança (possession
varrido, e, terceiro, (pelo menos, conforme certos juristas) onde, tradicionalmente, d´état), Laborde-Barbanègre alega que o resultado final, como mostrado na
apenas o marido poderia contestar sua própria paternidade, existe, agora, a tendência de jurisprudência, é uma fragilidade crescente nos laços filiais. Por volta de 1985, não
se permitir que outras pessoas envolvidas entrem com tal processo 19 . apenas o prazo de tempo para a contestação da paternidade de um homem foi estendido
a até trinta anos depois do nascimento da criança, como o processo de impugnação de

17
seu status podia ser aberto por qualquer pessoa envolvida (pelo marido, por seus
De acordo com o Código Civil Brasileiro de 1916, um homem casado era legalmente reconhecido
como pai dos filhos de sua mulher se estes fossem nascidos no mínimo 180 dias após o início da herdeiros, pela mãe e seu novo marido, só pela mãe, ou pelo filho...”) (Laborde-
convivência conjugal, ou no máximo nos 300 dias seguindo a dissolução da sociedade conjugal por
morte, desquite, ou anulação (artigo 338). Qualquer criança nascida menos de 180 dias seguindo o Barbanègre, 1998, p. 187).
casamento era presumidamente do marido se ele soubesse que a mulher estava grávida por ocasião do
casamento ou se ele voluntariamente registrasse a certidão de nascimento do filho em seu nome. Se o Citando casos diversos, a autora conclui que o deslocamento da ênfase, nas
casal vivesse sob o mesmo teto, o adultério da mulher não seria o bastante para contestar a paternidade novas disposições legais, das normas institucionais obrigatórias para o arbítrio de
de seu marido (art.343). Seu único fundamento para a negação da paternidade (e, mesmo então, havia
um limite de dois meses após o nascimento da criança para efetuá-la, cfe.art. 178) era a impotência conflitos individuais, facilita não apenas a construção como também a quebra de laços
completa ou a separação prolongada em residências separadas (art.340)
18
Ministro Eduardo Ribeiro, resp 194866/RS, 1998/0084082-6, 20/04/1999 filiais. Em outras palavras, a lei francesa de 1972, que implicitamente introduzia noções
19
“Este monopólio do marido para ingressar com ação de contestação da paternidade dos filhos
presumidamente matrimoniais já acabou nas legislações que modernizaram e atualizaram o direito da modernas de afeição e verdade genética na questão da paternidade, abriu caminho para
filiação. É nestes rumos, inexoravelmente, que caminha o direito brasileiro” (Veloso, 1997, p.64).

17 18
processos capazes de retirar a identidade paterna de um indivíduo sem deixar nada no garante “confidencialidade absoluta”, resultados a “baixo custo” através da “melhor
seu lugar. tecnologia DNA disponível” e sem nenhuma necessidade de amostras de sangue. (O
A importância simbólica das recentes mudanças jurídicas, tais como foram procedimento, que implica passar um cotonete na boca de cada indivíduo é
difundidas (da Europa e América do Norte ao Brasil) não poderia ser exagerada. F. suficientemente simples para ser realizado em poucos segundos e sem qualquer
Héritier, em 1985, destacou a precedência social na definição dos laços filiais como um conhecimento técnico em particular.) Embora o site seja inteiramente centrado em testes
dos três valores universais que governam as relações humanas: “Todas [as sociedades] de paternidade, os homens estão curiosamente ausentes do texto, que é ilustrado por
consagram a primazia do social – da convenção jurídica que funda o social – sobre o figuras de mulheres e crianças, e fala apenas em “pessoas” que “precisam” fazer um
biológico puro. A filiação não é, portanto, jamais um simples derivativo da procriação” teste de paternidade. E mesmo se referindo a uma pesquisa na qual trezentos casais
(2000, p.102). entraram num acordo consensual para fazer o teste de paternidade de seus filhos, é
As novas disposições legais parecem estar reconhecendo que hoje, pelo significativo que o guia de encomenda permita que se faça um teste com ou sem a
contrário, é a biologia que confere a validade às definições judiciais. participação da mãe. Finalmente, embora o site repita várias vezes que esse
Quanto às relações de gênero, devemos recordar que, de acordo com o Código procedimento anônimo não tenha validade legal, ele também garante aos clientes que “a
Civil Brasileiro de 1916, o adultério de uma mulher NÃO era o bastante para que um maioria dos casos nunca vai a julgamento” – sugerindo implicitamente que o mero
marido contestasse a sua relação paternal com seu rebento. Hoje, evidentemente, até conhecimento da “verdade real” é suficiente para trazer os resultados desejados 20 .
mesmo a suspeita do adultério feminino pode justificar a requisição do exame DNA. Para ilustrar o perigo potencial desses testes “anônimos”, citamos a carta
Ironicamente, a “mudança de valores” à qual o juiz do STJ se referiu acima, pode ter, de publicada numa coluna de Internet por um marido brasileiro:
fato, enfraquecido a posição de mulheres casadas (assim como aquelas vivendo em
uniões consensuais estáveis), arriscando produzir uma variedade inteiramente nova de EXAME DE DNA – ANULAÇÃO DE PATERNIDADE: Após um
namoro de 3 anos minha namorada engravidou. Apesar de acreditar
filhos “de pai desconhecido”.
que a criança era minha filha, eu não tinha certeza absoluta, mas
registrei a criança devido a pressões morais e ameaças. Após 7 anos,
fiz exame de DNA junto com a criança, sem a mãe saber, e confirmei
DÚVIDAS NO UNIVERSO VIRTUAL
não ser seu pai. De posse deste exame entrei na justiça para anular
minha paternidade e retificar o registro da criança... (mas a justiça
exigiu outro exame de DNA que a mãe da criança se negou a
É importante indicar que as mudanças sociais trazidas por novas formas de
realizar)...O que posso fazer? Além de ser enganado por esta vadia, a
biotecnologia nem sempre são fáceis de controlar. Mostramos acima como leis podem justiça ainda vai ficar a favor dela? (Valcir)
ser transformadas, por intermédio da jurisprudência, em políticas práticas que pouco
A advogada que gere a coluna respondeu que o homem em questão teria de
têm a ver com as intenções originais dos legisladores. Agora passamos a examinar um
provar que ele tinha sido iludido pela mulher e levado a acreditar que era o pai, e que
domínio onde o teste DNA funciona praticamente independente do controle público: na
ela simplesmente “usou-o para dar um nome ao seu filho”. Um modo de fazer isso, a
Internet.
advogada diz, seria a realização de um teste DNA “somente você e a criança, não há
O acesso fácil a testes de DNA na Internet é absolutamente impressionante. Por
necessidade da mãe”. Tal como nos casos onde os acusados são pais recalcitrantes, a
um preço, em dólares, mais ou menos equivalente ao que se pagaria num laboratório de
recusa de uma mulher a se submeter a um exame genético pode ser usado como um tipo
Porto Alegre, pessoas com dúvidas quanto à paternidade de suas crianças podem
de “confissão” de sua culpa. Um comentário final da advogada sobre o possível
procurar um kit de uma companhia norte-americana para realizar o seu próprio teste de
uma forma inteiramente anônima. O site (em português), chamado “DNA virtual”,
20
www.dnavirtual.com

19 20
sofrimento da criança, por causa dessa situação, se perde atrás da mensagem de que os Entre feministas da academia, houve, nos últimos anos, um deslocamento
homens “traídos” por suas mulheres não precisam mais ser vítimas passivas. curioso do estudo de relações de gênero e parentesco para o estudo da ciência e, em
Minha impressão é que, ao todo, os testes de DNA estão trazendo uma enxurrada particular da biogenética (Franklin, 1995, p.190). Poderíamos perguntar o que a atenção
de Dom Casmurros para fora do armário. Maridos que em épocas passadas teriam centrada nos fatos aparentemente neutros da tecnologia científica moderna tem a ver
agüentado suas dúvidas em silêncio, agora estão procurando conhecer “a verdade”. O com a causa da mulher? Muito, responderiam essas pesquisadoras, pois, como D.
diretor do laboratório revela que 24,6% dos testes que realiza negam a paternidade Haraway indica, os mecanismos mais persuasivos de dominação não podem ser
21
reputada . Sem dúvida, inspirados em tais amostras assumidamente parciais, compreendidos (ou combatidos) em termos de “bonzinhos contra malvados”. Esses
espalharam-se boatos de que mais de um quarto dos filhos no Brasil não são prole de mecanismos são fundamentados em sistemas de crenças que vão muito além da
seus pais socialmente reconhecidos. Com tais espectros rondando à solta e com testes definição dos papéis masculino e feminino. A noção da ciência, construída como um
anônimos convenientemente oferecidos através da Internet, não seria surpreendente empreendimento autônomo e racional que “ultrapassa as fronteiras culturais”, é um,
constatar um aumento de ansiedades paternas. quiçá o mais importante, desses sistemas de crença. Assim, valeria a pena, antes de
Aqui, podemos voltar para a heroína ficcional com a qual abrimos este artigo: concluirmos, situar o teste DNA e as atuais estruturas familiares dentro desse campo.
Capitu. De fato, como dissemos acima, o leitor nunca descobre se ela foi injustamente O que consideramos como os fatos indisputáveis da natureza? Questões de
caluniada, ou se realmente ela tinha tido um caso amoroso extraconjugal. Tratando-se gênero, assim como “a família” foram por séculos adotadas como um locus
de uma esposa fiel, o teste de DNA poderia, quiçá, tê-la beneficiado. Se, contudo, paradigmático da convergência entre natureza e cultura. As mulheres eram vistas como
Capitu teve uma relação amorosa, podemos imaginar que, com o teste DNA, as coisas “naturalmente” ligadas ao lar por causa de sua anatomia e possibilidades reprodutoras.
poderiam ter transcorrido de forma ainda pior – para ela como para a criança. Nesse Homens eram vistos como “naturalmente” promíscuos por causa da necessidade de
caso, as novas possibilidades tecnológicas trazidas à tona pelos testes DNA seriam espalhar seus genes. Pela mesma razão, pais eram vistos como “naturalmente”
apresentadas não como a vingança de Capitu, mas como o seu calcanhar de Aquiles. favorecendo sua prole biológica. Pavões, lobos e símios eram evocados para revelar o
Devemos lembrar que a incerteza a respeito da paternidade de um homem era parte lado “natural” do comportamento humano. Culturas locais e historicamente específicas
intrínseca do pacto conjugal. Poder-se-ia supor que, tradicionalmente, reconhecer a operariam sobre aquilo que era considerado como os fatos imutáveis e universais da
paternidade dos filhos de sua esposa era prova implícita da afeição e confiança do biologia.
homem em relação a ela. A mulher, por seu lado, como única guardiã do “segredo” da Strathern, tirando inspiração dos dados etnográficos sobre a Melanésia, tentou
paternidade biológica de sua criança, mantinha uma espécie de trunfo, ou uma carta na por anos demonstrar como esse modo binário de ver as coisas (a cisão natureza/cultura)
manga – isto é, podia decidir se ia ou não honrar a confiança que seu marido depositava era uma idiossincrasia dos padrões de pensamento euro-americano. Hoje em dia,
nela (Fonseca, 2000). A investigação genética da paternidade, por permitir acesso Strathern considera que as idéias pós-darwinianas sobre as relações familiares
público àquilo que até então havia sido um segredo, conhecido apenas da mulher, há “naturais” versus relações familiares culturais ou morais estão ficando caducas. As
fatalmente de modificar as relações de poder dentro do casal contemporâneo. novas tecnologias reprodutivas abalaram os alicerces do que a maioria de nós
considerava como sendo a “naturalidade” da reprodução biológica, rompendo as
A BIOLOGIZAÇÃO DOS LAÇOS FAMILIARES analogias usuais e trazendo algo daquilo que muitos feministas da academia estão
chamando de uma era “pós-natureza”, e não de pós-modernidade (Strathern, 1992).
A natureza, ela mesma, é hoje vista como uma matéria a ser aprimorada
21
Esta proporção corresponde às européias e norte-americanas onde, em média, 25% dos testes DNA dão conforme critérios baseados nos valores individualistas da sociedade de consumo –
resultados negativos (Pena s/d).

21 22
escolha pessoal e progresso científico. A gravidez causada por doação de esperma serve Seria de uma suprema ironia se as mulheres, tendo conquistado sua
como exemplo. Procura-se “boa qualidade” genética – ausência de doenças independência em relação ao determinismo biológico dos anos 1900, fossem agora
hereditárias, alta inteligência, criatividade artística. – e nada mais. O “laço familiar”, embarcar na idéia de que a biologia, via testes de paternidade de DNA, é a solução para
nesse contexto, assume uma conotação inteiramente centrada na biogenética. A idéia é seus problemas. Certamente não é possível virar as costas à “tecnologia científica
que nós sejamos dotados por nossos ancestrais biológicos com certos genes que, a moderna”, mas levando em consideração a gama de diferentes e poderosos fatores em
despeito das contingências sociais, nos deixam programados pela vida inteira. Os genes jogo, poderíamos reservar uma certa margem de criatividade no modo com que
dizem tudo que precisamos saber sobre nossa história familiar, tornando supérfluos forjamos as novas estruturas familiares no milênio vindouro.
relacionamentos com pessoas reais 22 . Assim, a procriação é retirada do âmbito dos
laços sociais. Na perspectiva de Strathern, seres humanos acabam, desse modo, com REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
“mais parentesco” (no sentido da herança biogenética) e com “menos parentes” (no BILAC, Elisabete Dória. Mãe certa, pai incerto: da construção social à normatização
jurídica da paternidade e da filiação. Caxambu, 1998. [Apres. no XX Encontro Anual da
sentido de relacionamentos sociais). Na atual abordagem consumista da procriação
ANPOCS, Caxambu, 1998. GT Família e Sociedade].
humana (na qual pais podem selecionar o doador de esperma, óvulo, embrião e útero
BONETTI, Alinne de Lima. Entre feministas e mulheristas: uma etnografia sobre
portador da criança), a escolha não é mais a antinomia do destino genético e sim o seu
promotoras legais populares e novas configurações da participação política feminina
perfeito complemento 23 . popular em Porto Alegre. Dissertação de mestrado – PPGAS - Universidade Federal de
Santa Catarina, 2000
Strathern não está sozinha a sugerir que a presente ênfase no parentesco
biotecnológico traz consigo uma “dissolução do social”. Segundo P. Rabinow, ao invés BRUSCHINI, Cristina. O trabalho da mulher brasileira em décadas recentes. Revista
Estudos Feministas, número especial, 2o semestre, p.179-99, 1994.
de a sociedade ser pensada nos moldes de uma natureza holística (como, por exemplo,
na sociobiologia), nossa visão da natureza tem sido “culturalizada”, “remodelada DAUSTER, Tania. Filho na barriga é o rei na barriga: mitos de poder, destino e projeto
nas relações entre os gêneros nas camadas médias. Revista de Cultura Vozes, v. 84, n.2,
enquanto técnica”, ditando – entre humanos – um tipo de “biossocialidade”, que
1990.
dispensa a esfera propriamente social (Rabinow apud Franklin, 1995). Tais processos
DI LEONARDO, Micaela. The female world of cards and holidays: women, families,
seriam parte de um conjunto globalizado de forças que atravessa as diferenças locais,
and the work of kinship. In: THORNE, B., YALOM, M. (orgs.). Rethinking the family:
unindo os moradores de vilas porto-alegrenses e os professores britânicos com os some feminist questions. Boston: Northeastern University Press, 1992.
clientes das clínicas de fertilidade norte-americanas. Essas observações indicam uma
ESTEVES, Martha. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no
possibilidade real de que quanto maior o uso dos testes de DNA para incorporar à Rio de Janeiro da Belle Epoque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
família o pai, enquanto elemento geneticamente relevante, mais essa figura, enquanto
FINKLER, Kaja. The kin in the gene: the medicalization of family and kinship in
interlocutor socialmente relevante, se afasta. American society. Current Anthropology, v.42, n.2, p.235-63, 2001.

FONSECA, Claudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995.

22
A preocupação de pais adotivos sobre as origens de seu filho é um bom exemplo. Aqui, em geral, _____. Família, fofoca e honra. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000.
“origens” não significam o contexto social e as relações que produziram a criança, mas as disposições
genéticas (doenças, traços de personalidade etc.) que o adotado pode vir a manifestar. FRANKLIN, Sarah. Science as culture, cultures of science. Annual Review of
23
Poder-se-ia objetar, é claro, que as investigações de paternidade via testes DNA são em certos sentidos
o oposto da inseminação com doadores de gametas. Num caso, a atuação humana (escolha e intenção)
Anthropology, n.24, p.163-84, 1995.
precede o ato físico da procriação; noutro (freqüentemente não intencional), a concepção é seguida por
uma tentativa de elaborar esse “fato biológico” em termos sociais (obrigação e reconhecimento). Mas a _____. Embodied progress: a cultural account of assisted conception. New York:
seqüência de eventos não muda os princípios básicos envolvidos. Uma pessoa ainda escolhe quando e Routledge, 1997.
como fazer conhecidas as circunstâncias da concepção de seu filho ou filha, e negocia o sentido desse
“fato” no campo das crenças contemporâneas a respeito da natureza e da cultura.

23 24
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