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VERSÃO ACTUALIZADA
Volume 1
Com o apoio de: Abbott Laboratórios, Lda.
2ª Edição
Volume
1
TRATADO
DE CLÍNICA
PEDIÁTRICA
Tratado de Clínica Pediátrica
Iº Volume
2ª Edição
VERSÃO ACTUALIZADA
Produção Gráfica
IDG – Imagem Digital Gráfica
Exemplares
5 000 ex.
2ª Edição não comercial em DVD, apoiada e distribuída por ABBOTT Laboratórios, 2013
Depósito Legal
280864/08
ISBN
978-989-96091-2-9
ADVERTÊNCIA
1. Não é permitida a reprodução total ou parcial desta edição por meio electrónico, mecânico, fotocópia ou outros sem
prévia autorização escrita dos autores e editor.
2. Sendo a Medicina uma área do conhecimento em constante e rápida evolução, nomeadamente no que respeita a fár-
macos, e embora tenha sido feito todo o esforço por parte de editor e autores quanto ao rigor no registo das respectivas
doses e formas de apresentação, salientamos que a responsabilidade final da prescrição é do médico que a institui.
3. Sendo consensual que na prática clínica existem diferentes modos de actuação, nem os autores, nem o editor poderão
ser responsabilizados por erros ou pelas consequências que advenham de informação aqui contida. Os produtos
mencionados no livro devem ser utilizados conforme a informação veiculada pelos fabricantes.
Autores (por ordenação de capítulos) – I Volume
Filipa Santos
Médica pediatra-gastrenterologista . Assistente de Pediatria na Unidade
de Gastrenterologia (UGE) do HDE.
José Cabral
Médico pediatra- gastrenterologista. Chefe de Serviço de Pediatria.
Coordenador da UGE do HDE.
Isabel Afonso
Médica pediatra. Assistente de Pediatria na UGE do HDE.
Rui Alves
Cirurgião pediatra. Assistente Graduado de Cirurgia Pediátrica no HDE.
Assistente Convidado de Pediatria da FCM/UNL.
Sara Silva
Médica pediatra e Assistente Hospitalar no HDE.
Raul Silva
Médico pediatra. Assistente Graduado de Pediatria no HDE. Assistente
Convidado de Pediatria da FCM-UNL.
Inês Pó
Médica pediatra-gastrenterologista. Assistente Graduada de Pediatria
na UGE do HDE.
Isabel Gonçalves
Médica pediatra-gastrenterologista. Chefe de Serviço de Pediatria no
Hospital Pediátrico de Coimbra.
Helena Flores
Médica pediatra-gastrenterologista. Assistente de Pediatria na UGE do
HDE.
Mário Chagas
Médico pediatra. Chefe de Serviço e Director do Serviço de Pediatria ex-
officio do Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco
Gentil (IPOLFG).
Ana Teixeira
Médica pediatra. Assistente de Pediatria no Serviço de Pediatria do
IPOLFG,Lisboa.
Duarte Salgado
Médico neurologista. Chefe de Serviço de Neurologia no IPOLFG, Lisboa.
Índice
142 Anemias hemolíticas por defeitos 163 Alterações tubulares renais . . . . . . . . . . . 778
enzimáticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 679 Isabel Castro
Liza Aguiar, Faisana Amod e Lígia Braga 164 Infecção urinária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 785
143 Anemias hemolíticas por defeitos Arlete Neto
da hemoglobina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 684 165 Anomalias congénitas do rim . . . . . . . . . 795
Lígia Braga, João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
144 Hemoglobinúria paroxística nocturna . . . 700 166 Refluxo vésico-ureteral . . . . . . . . . . . . . . . 797
João M. Videira Amaral Rui Alves
145 Anemias hemolíticas de causa 167 Uropatia obstrutiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . 801
extrínseca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 701 Rui Alves
João M. Videira Amaral 168 Diagnóstico pré-natal das uropatias
146 Policitémia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 704 malformativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 807
João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
147 Neutropénia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 705 169 Insuficiência renal aguda . . . . . . . . . . . . . 809
Ema Leal e A. Bessa Almeida Isabel Castro
148 Trombocitopénia e trombocitose . . . . . 711 170 Insuficiência renal crónica . . . . . . . . . . . . 812
Júlia Galhardo e A. Bessa Almeida Isabel Castro
149 Anomalias funcionais das plaquetas . . . 717 171 Alterações da bexiga . . . . . . . . . . . . . . . . . 815
João M. Videira Amaral Rui Alves
150 Aplasia medular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 718 172 Alterações do pénis e uretra . . . . . . . . . . . 818
João M. Videira Amaral Rui Alves
151 Hemofilias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 722 173 Alterações do conteúdo escrotal . . . . . . . 823
Andreia Teixeira e A. Bessa Almeida Rui Alves e João M. Videira Amaral
152 Doença de von Willebrand . . . . . . . . . . . 729
João M. Videira Amaral PARTE XX Endocrinologia 829
153 Hipercoagulabilidade 174 Doenças da supra-renal.
e doença trombótica . . . . . . . . . . . . . . . . . . 731 Generalidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 830
João M. Videira Amaral Maria de Lurdes Lopes
154 Coagulação intravascular 175 Hiperplasia congénita da supra-renal . . . . 832
disseminada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 734 Maria de Lurdes Lopes
Deolinda Barata e Sofia Sarafana 176 Insuficiência supra-renal . . . . . . . . . . . . . 837
155 Terapêutica transfusional . . . . . . . . . . . . . 742 Maria de Lurdes Lopes
Deonilde Espírito Santo 177 Síndroma de Cushing . . . . . . . . . . . . . . . . 842
Maria de Lurdes Lopes
PARTE XIX Nefro-Urologia 753 178 Tumores do córtex supra-renal . . . . . . . . 845
156 Introdução à Nefro-Urologia . . . . . . . . . . 754 Maria de Lurdes Lopes
Judite Batista 179 Feocromocitoma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 847
157 Glomerulonefrite aguda . . . . . . . . . . . . . . 755 João M. Videira Amaral
Ana Paula Serrão e Gisela Neto 180 Doenças da tiroideia . . . . . . . . . . . . . . . . . 849
158 Glomerulonefrite crónica . . . . . . . . . . . . . 758 Catarina Limbert
Ana Paula Serrão e Gisela Neto 181 Puberdade normal e patológica . . . . . . . 860
159 Síndroma nefrótica idiopática . . . . . . . . . 764 Guilhermina Romão
Judite Batista 182 Diabetes mellitus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 866
160 Síndroma hemolítica urémica . . . . . . . . . 769 Rosa Pina
Ana Paula Serrão 183 Cetoacidose diabética . . . . . . . . . . . . . . . . 880
161 Trombose da veia renal . . . . . . . . . . . . . . . 771 João Estrada e Maria do Carmo Vale
João M. Videira Amaral 184 Hipoglicémia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 885
162 Hipertensão arterial e doença renal . . . . 772 João M. Videira Amaral
Margarida Abranches
XIV TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Anexos 2085
Como referi no Prefácio da 1ª edição desta obra, divulgada em 2008, há muito que se
sentia em Portugal a falta de um tratado dedicado à prática clínica pediátrica.
Felizmente, o Prof. João Videira Amaral chamou a si esta hercúlea tarefa e, volvidos
quatro anos, surge a segunda edição do Tratado de Clínica Pediátrica, também em três
volumes, na versão de DVD. Como se poderá verificar pelo índice, este Tratado toca
todos os pontos da Pediatria.
Para colaborar na sua edição, o Prof. João Videira Amaral convidou alguns dos
maiores nomes da Medicina de Portugal, Espanha e Brasil; a maioria dos autores integra
colegas seus colaboradores, dado que, com o decorrer dos anos, o mesmo formou uma
esplêndida equipa.
Este tratado deve ser dedicado, não só aos alunos e aos internos de Pediatria, mas
também aos médicos de Clínica Geral, já que na grande maioria dos centros as crianças
são observadas por Médicos de Família. Também deve ser enviado para os diversos
países de língua portuguesa, especialmente Cabo Verde, Angola, Moçambique e Brasil.
Afirmei anteriormente que coordenar uma obra desta envergadura constitui um tra-
balho hercúleo. Mas, conhecendo as qualidades do Prof. João Videira Amaral, a sua per-
sistência, o seu perfeccionismo, a sua honestidade e o seu saber, acho que foi a pessoa
indicada. Além deste imenso trabalho de coordenação, o mesmo ainda intervém como
autor na publicação de numerosos capítulos do livro.
Como um dos decanos da Pediatria portuguesa, julgo que em seu nome posso
agradecer ao coordenador-editor João Videira Amaral o seu esforço. Mas quem está ver-
dadeiramente de parabéns são as crianças do nosso País. Muito e muito obrigado.
O presente livro sempre figurou na lista dos meus projectos, essencialmente por duas
ordens de razões: – a necessidade de um livro de texto, manifestada por estudantes meus
alunos e estagiários da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa
/UNL, por internos de Pediatria e de Medicina Geral e Familiar realizando estágios no
Hospital de Dona Estefânia em Lisboa, onde sempre trabalhei, e por colegas; – e o enten-
dimento da missão do professor universitário como agente disponível e facilitador de
informação científica com vista ao ensino – aprendizagem, considerando como valor incal-
culável a experiência vivida de Colaboradores e de Colegas Docentes de diversas institui-
ções com quem mais convive ou a quem esteja mais ligado.
Da abrangência com que, intencionalmente, este livro foi concebido (agora em segun-
da edição revista, actualizada e ampliada), resultou o título. O mesmo está dividido em
3 Volumes, desdobrados em grandes tópicos ou Partes, integrando na totalidade 376
Capítulos. Manteve-se nesta edição a filosofia de apresentar os tópicos fundamentais da
clínica pediátrica hospitalar e extra-hospitalar, de complexidade e frequência diversos,
de forma simples e de modo prático (clássico), estruturando-os, por razões didácticas,
em alíneas tais como, definições, importância do problema, aspectos epidemiológicos,
etiopatogénese, manifestações clínicas, diagnóstico, tratamento, prevenção e prognósti-
co.
Dado que a Medicina não é considerada uma ciência exacta, a controvérsia subsistirá
nalguns pontos e a dúvida poderá surgir noutros, pois existem variantes quanto a ati-
tudes e procedimentos. Contudo, a bibliografia seleccionada que encerra cada Capítulo
ou Parte do livro contribuirá para que o leitor interessado forme a sua opinião.
De salientar que para tornar o texto mais compreensivo tentando evitar, quer repeti-
ções, quer omissões, o editor, simultaneamente coordenador e autor ou co-autor, esfor-
çou-se por uniformizar o estilo linguístico. Sobre o assunto polémico do Novo Acordo
Ortográfico, na sequência de pareceres de filólogos de renome que consultei, a opção foi
não o adoptar.
Considerando este livro aberto à crítica e à apreciação por parte dos seus leitores,
espero vivamente que o espírito de missão com que todos os Autores o materializaram
contribua para a saúde e bem-estar da criança, adolescente, e da comunidade em geral,
e se traduza em instrumento de utilidade para os principais destinatários: alunos e esta-
giários universitários, internos de Pediatria e de Medicina Geral e Familiar, Pediatras,
Médicos de Família, e Profissionais ligados às Ciências da Saúde.
DEDICATÓRIA E MEMÓRIA
Dedico este livro a todas as Crianças e Jovens de Portugal que são o nosso futuro.
Considero incluídos os meus onze netos, todos em idade pediátrica: Lourenço, Constança,
Gonçalo, Francisco, Mafalda, Carlota, Sebastião, João Manuel, Madalena, Carolina e Leonor.
E à minha Família, especialmente à minha Mulher, Zana, a quem roubei as horas de conví-
vio devotadas ao livro.
Na minha memória tenho o exemplo do meu Pai (João José de Amaral) que era médico no
Fundão e nos deixou prematuramente; com ele muito aprendi, incutindo-me desde a minha
entrada na Universidade, o gosto pela clínica exercida com rigor e humanismo tendo como base
indispensável o estudo perseverante e a actualização permanente.
Agradecimentos
Ao Professor Doutor Nuno Cordeiro Ferreira, meu Mestre, que me honrou com o
Prefácio desta obra.
Aos Colegas e Amigos (citados por ordem alfabética do primeiro nome) pelo con-
tributo inestimável em ideias, sugestões e críticas desde o início:
À memória da Drª Maria de Jesus Feijoó que desde o início aderiu com dedicação
inexcedível a este projecto e nos deixou recentemente. O testemunho de muita mágoa e
de enorme gratidão.
Aos Drs. Lídia Gama e João Falcão Estrada, Amigos e Colegas responsáveis pelo
Núcleo Iconográfico do Hospital de Dona Estefânia, pelo trabalho minucioso e dedica-
do de selecção de imagens solicitadas, e identificadas pela sigla NIHDE. Toda a docu-
mentação fotográfica não identificada como tal é pertença e fruto da experiência de
autores, editor ou colegas devidamente assinalados que gentilmente colaboraram.
Ao Colega e Amigo Dr. Aguinaldo Cabral, pediatra de prestígio e especialista no
campo das doenças metabólicas, o testemunho de enorme reconhecimento pela orien-
tação temática e revisão dos manuscritos que integram a Parte XXXII.
Ao Dr. Francico George, Director Geral da Saúde, e à Nestlé Nutrition, por terem
autorizado a reprodução de tabelas e quadros.
Ao Dr. Marcos Gil da Veiga, pelo apoio inestimável que me propiciou no âmbito da
revisão das provas tipográficas.
À IDG – Imagem Digital Gráfica na pessoa do Sr. Carlos Didelet, seu Director, pelo
eficiente trabalho de tipografia com a colaboração empenhada dos Srs. Bruno Ribeiro e
Pedro Alves.
Glossário Geral
Na eventualidade de o texto, figuras ou quadros consultados conterem expressões e termos não sufi-
cientemente explicitados, é divulgado este glossário para facilitar a compreensõo do leitor. Determinados
capítulos integram igualmente glossários parcelares relacionados com temáticas específicas.
Aborto > Expulsão ou extracção completa (espontânea ou provocada) Alimento > Substância que, introduzida no organismo, contribui para
do corpo da mãe de embrião ou feto (idade gestacional inferior a 20- a nutrição.
22 semanas ou 140-154 dias completos) com ou sem sinais de vida. Anteversão > Considerando o plano frontal anatómico, aumento de an-
Acrocefalia > Palavra derivada do grego significando “cabeça alta”; es- gulação da cabeça e colo femoral relativamente à articulação do joe-
pecificamente trata-se de anomalia congénita craniana resultante de lho.
“fusão” precoce das suturas sagital e coronal e englobando outras Apraxia > Incapacidade de executar movimentos voluntários coorde-
alterações como turricefalia, oxicefalia, entre outras. nados, apesar de se conservarem as funções musculares e sensoriais.
Acufeno > Sensação auditiva que não tem origem em som exterior; sinó- Artrodese > Bloqueio cirúrgico da articulação.
nimo de zumbido. Artrogripose > Termo descritivo, não diagnóstico, que inclui um grupo
Adolescente ou jovem > Pessoa entre 12 e 18 anos. de quadros clínicos específicos, todos eles com contracturas congé-
Afasia > Alteração ou perda da capacidade de falar ou de compreender nitas e fraqueza muscular, e antecedentes de diminuição dos movi-
a linguagem falada ou escrita, o que é explicável por lesão cerebral, mentos fetais. Na maioria dos casos (> 300 factores etiológicos des-
sem alteração dos órgãos de fonação. critos, por ex distrofia miotónica, má-posição intrauterina, etc.) exis-
Afasia visual > O mesmo que alexia. te amioplasia, salientando-se a variabilidade das manifestações clí-
Agentes biológicos > Produtos desenvolvidos por via tecnológica, com nicas. Na forma neuropática existe défice do desenvolvimento das
indicações precisas em doenças mediadas por imunidade. São consi- células do corno anterior medular levando a hipodesenvolvimento
derados 4 tipos: anticitocinas (por ex. infliximab e etanercept); anti- muscular. As articulações das extremidades evidenciam hipomobi-
células B (rituximab, epratuzumab); inibidores da co-estimulação lidade pela fraqueza muscular e fibrose articular. A forma clássica,
(abatacept); e antimoléculas de adesão (natalizumab, efalizumab). típica, não é geneticamente transmitida e a função cognitiva está pre-
Agnosia > Impossibilidade de reconhecer objectos através das suas ca- servada.
racterísticas: forma, cor, peso, temperatura, etc., apesar de as funções Artroplastia > Reconstrução cirúrgica de determinada articulação.
sensoriais elementares (visão, olfacto, gosto, audição, sensibilidade Artrotomia > Incisão cirúrgica para abordagem directa de determina-
superficial ou profunda) estarem intactas. da articulação.
Agrafia > Incapacidade de escrever por afecção dos centros nervosos da Barreira, produtos > Tópicos cutâneos que previnem a penetração
escrita. É uma forma de apraxia. transcutânea e ou absorção de substâncias químicas potencialmen-
Água de limpeza > Produto em geral fabricado com água termal in- te irritantes, sensibilizantes ou tóxicas através da pele.
corporando detergentes, humidificantes e amaciadores, aplicados Bebé ou lactente > Criança até 1 ano de idade.
em algodão para remover loções de limpeza ou zona de fraldas. Bezoar > Termo derivado da língua árabe “bazahr” (significando, se-
Alexia > Defeito de compreensão da escrita devido a lesão cerebral sem gundo a tradição e crenças ancestrais contra – veneno ou antídoto),
qualquer afecção da acuidade visual. no sentido lato significa concreções calculosas ou “massas” de di-
Alfa 1-antitripsina (A1-AT) > É o principal inibidor sérico de enzimas versas substâncias nas vias digestivas de humanos ou certos ani-
proteolíticas tais como a elastase dos neutrófilos. O seu défice consti- mais. Na gíria médica significa diversidade de substâncias ou cor-
tui causa importante de doença hepática na idade pediátrica. Os pos estranhos amalgamados no tubo digestivo susceptíveis de ori-
doentes com deficiência na forma homozigótica (fenótipo ZZ inibi- ginarem obstrução do tubo digestivo (por ex. cabelos ingeridos).
dor, ou PiZZ) têm baixa actividade sérica de A1-AT, ~10-15% dos va- Biofilme > Termo usado em microbiologia para significar agregados de
lores normais. Raramente poderá originar, na sua forma homozigó- diferentes tipos de microrganismos (bactérias, protozoários, fungos,
tica doença pulmonar crónica, com relevância para o enfisema. microalgas, etc.) que se ligam a superfícies sólidas ou uns aos outros,
Alfa-fetoproteína (AFP) ou fetuína > Glicoproteína segregada pelo fí- estabelecendo interacções metabólicas, mantendo-se encerrados nu-
gado do feto e RN, presente também no líquido amniótico e que de- ma matriz polisacarídica e formando emaranhado de fibras ou del-
saparece quase completamente do organismo alguns meses depois gados invólucros. Tal fenómeno, que é descrito no âmbito da etio-
do nascimento. Pode reaparecer em certos casos de cancro e hepa- patogénese das otites médias com derrame, torna os agentes micro-
topatia. bianos mais resistentes aos antimicrobianos.
Alimentação > Acção de introdução de alimento no organismo. BNP > ver Péptidos natriuréticos.
XXVIII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Calcaneus > Posição de dorsiflexão do retro-pé. Disartria > Dificuldade da fala por perturbações motoras dos órgãos da
Camptodactilia > Anomalia que consiste em flexão permanente e irre- fonação: língua, lábios, véu do paladar, etc., associada a afecções bul-
dutível de um ou mais dedos. bares e cerebelosas.
Cavo (ou cavus) > Arcada plantar longitudinal do pé alta (muito afasta- Dislexia > Perturbação da capacidade de leitura que se traduz por er-
da do plano horizontal), geralmente com ante-pé plantar em flexão. ros, omissões, inversão de letras, de sílabas, ou de números, nas
Cegueira verbal > O mesmo que alexia. crianças em idade de aprender a ler, pressupondo ausência doutro
Cintigrafia (ou cintilografia ou gamagrafia) > Procedimento em que tipo de problema susceptível de explicar tal situação (visão, audi-
se injecta por via IV um produto radioactivo com afinidade selecti- ção, capacidades intelectuais normais).
va para determinado órgão o qual passará a emitir radiação gama Dispraxia > Dificuldade em executar movimentos voluntários coorde-
identificada por sistema detector/cintilador. A imagem pontilhada nados (movimentos “desajeitados”), associados a atraso psicoafec-
esquemática do órgão designa-se cintigrama, podendo detectar-se, tivo. Não existe relação com parésia ou ataxia.
por ex. nódulos, zonas necróticas, etc. No caso do rim pode empre- Doença de Kikuchi-Fujimoto > Afecção de causa desconhecida, consi-
gar-se como radionúclido (radiofármaco) o ácido dimercaptosuccí- derada benigna e auto-limitada (evolução entre 1-4 meses) cujas ca-
nico-Tc 99 (DMSA). racterísticas principais incluem febre e linfadenopatia cervical dolo-
Clinodactilia > Deformação em valgo do 5º dedo, por vezes hereditária rosa, salientando-se que a linfadenopatia pode ser generalizada; po-
e bilateral. de haver hepatosplenomegália. Os dados histopatológicos ganglio-
Comedão > Também designado por ponto negro, traduz a obliteração do nares evidenciam aspecto compatível com linfadenite necrotizante:
orifício excretor de um folículo pilossebáceo por uma espécie de rolhão, imunoblastos, monócitos plasmocitóides, pequenos linfócitos cir-
acastanhado a negro, constituído por aglomerado de células córneas e cundando áreas de necrose fibrinóide e ausência de granulócitos; ob-
sebo. A cor escura é devida à melanina presente. Pode ser aberto ou fe- servam-se igualmente filamentos extracelulares relacionados com
chado conforme existe ou não a permeação do canal infundibular. apoptose. O diagnóstico diferencial faz-se com doenças linfoproli-
Comensalismo > Este tipo de simbiose implica uma proximidade espa- ferativas, linfomas Hodgkin e não Hodgkin, doença de Kawasaki,
cial, permitindo que o comensal se alimente de nutrientes ingeridos infecções por vírus, bactérias ou protozoários (por ex. VEB, CMV,
pelo hospedeiro. Os dois intervenientes podem sobreviver inde- HSV, Yersinia, Bartonella, Toxoplasma, etc.) e doenças autoimunes.
pendentemente. Têm sido descritos casos tratados com êxito com hidroxicloroquina
Contractura congénita > Limitação do movimento de determinada área isoladamente, ou com AINE, ou ainda com corticóides.
do corpo por anomalia músculo-esquelética. Podem ser isoladas ou Doença de Lafora > Forma de epilepsia mioclónica progressiva acom-
múltiplas; o pé boto é um exemplo de contractura isolada, uni ou bi- panhada de demência e relacionada com mutações genéticas rela-
lateral. cionadas com laforina (EPM2A) e malina (EPM2B). Pode haver fo-
Creme > Forma de emulsão O/A (ver adiante) mais fluida, menos oleo- to- sensibilidade. Inicia-se na segunda infância ou, mais frequente-
sa e menos oclusiva. mente, na adolescência. Através da biopsia muscular ou da pele po-
Creme gordo > Forma de emulsão A/O mais gordurosa, mais emoliente dem ser identificadas as chamadas inclusões ou corpos de Lafora,
e mais oclusiva. PAS positivas.
Criança > Pessoa entre 0 e 11 anos. Doença de Palizaeus-Merzbacher > Doença recessiva ligada ao X, ca-
Criança andante > Criança com idade entre 1 ano e 3 anos. racterizada essencialmente por nistagmo e anomalias da mielina. É
Criança em idade pré-escolar > Criança com idade entre 4 e 5 anos. causada por mutação no gene da proteína PLP1 no cromossoma
Criança em idade escolar > criança com idade de 6 ou mais anos. Xq22, essencial para a formação da mielina e formação e diferencia-
Deformação de Sprengel > Defeito uni ou bilateral da omoplata por ção dos oligodendrócitos.
défice de abaixamento da mesma em fase precoce da embriogénese, Doença de Unvericht Lundborg > Forma de epilepsia mioclónica pro-
do nível de C4 para o de C7. O mesmo compromete a mobilidade es- gressiva acompanhada de demência e relacionada com mutação e
capulo-torácica. cistatina B. Tipicamente inicia-se na adolescência.
Dengue > A dengue é uma doença infecciosa provocada por arbovírus Doença de von Hippel-Lindau > Afecção que, afectando diversos
da família flavivirus transmitida por vectores (mosquitos, sendo o órgãos (cerebelo, espinhal medula, retina, rins, pâncreas, epidídimo)
principal o A aegypti) vivendo em locais com água estagnada e hi- resulta de mutação dum gene supressor tumoral (VHL). São mani-
giene precária. Pode surgir em epidemias de instalação súbita. As festações características os hemangioblastomas cerebelosos e os an-
manifestaçõs clínicas são essencialmente febre, artralgias, mialgias, giomas retinianos; existem frequentemente associados à doença o
cefaleias, mialgias e fadiga acentuada que se mantém na convales- feocromocitoma e lesões quísticas dos rins, pâncreas, fígado e epidí-
cença. Por vezes há exantema do tipo escarlatiniforme ("febre ver- dimo. O carcinoma renal é a causa de morte mais frequente.
melha"). Podem surgir hemorragias e complicações sistémicas. O Doenças neoplásicas e proliferativas > De acordo com a taxonomia ac-
tratamento é sintomático. tual, incluem: dermatofibroma, mastocitose e histiocitose.
Dentisteria (ou Medicina Dentária ou Odonto-Estomatologia) > Emoliente > Produto que “amolece e amacia”; na sua composição en-
Estudo e prática médico-cirúrgica de tudo o que se refere aos dentes tram lípidos que restauram a elasticidade da pele evitando a perda
e, por extensão, à boca e aos maxilares. transepidérmica de água, atraem a água para a pele, e com acção
Dermatofibroma (ou histiocitoma fibroso) > Designação que corres- oclusiva (impedem que a água se evapore). Diversas substâncias tais
ponde a pequenos nódulos vermelho acastanhados (com mm a 2 cm como emulsões, cremes, leites, pomadas, loções, soluções, sus-
de diâmetro), em geral, benignos, com tendência para se manterem. pensões ou óleos poderão ter tais características.
Diabetes lipoatrófica > Designação para várias formas de lipodistrofia Emulsão > Produto constituído por dois ou mais componentes não
associadas a resistência à insulina e diabetes. miscíveis – um aquoso, e outro oleoso ou gordo – em proporções em
Glossário geral XXIX
que pode predominar um ou outro (óleo em água → O/A; ou água Idade gestacional > Duração da gestação contada a partir do 1º dia do
em óleo → A/O). último período menstrual exprimindo-se em semanas ou dias com-
Entese > Local de inserção tendinosa no osso. pletos (40ª semana corresponde ao período entre o 280º dia e 286º dia).
Epidemiologia > Termo que tem origem no grego: epi (entre), logy (es- Incapacidade (Disability) > Termo genérico utilizado para deficiência,
tudo), demos (pessoas) e significa: no sentido estrito, estudo das limitação da actividade e restrição na participação. Corresponde a
doenças epidémicas (infecciosas); no sentido lato, estudo das doen- aspectos negativos da interacção entre um indivíduo (com determi-
ças e dos diferentes fenómenos biológicos ou sociais do ponto de vis- nada condição de saúde) no contexto de factores ambientais e pes-
ta da sua frequência, da sua distribuição e dos factores susceptíveis soais (ver Funcionalidade).
de os influenciar. Constitui a ciência básica da Saúde Pública, im- Incidência > Número ou percentagem de novos casos numa determi-
plicando multidisciplinaridade e envolvendo métodos próprios nada população e num determinado intervalo de tempo. Avalia o
(medições, comparações, etc.). risco de aparecimento de doença.
Epigenética > Termo que traduz a interface entre a genética e os factores Índice Sintético de Fecundidade (ISF) > Número médio de filhos por
ambientais. Com base em dados experimentais, determinados genes mulher. Em Inglês <> Fertility.
(epialelos) sensíveis a influências ambientais (por ex. dieta), sofrem Infibulação > Forma mais radical de mutilação genital feminina: remo-
alterações moleculares (por ex. metilação do ADN sem alterar a res- ção total ou parcial dos genitais externos seguida de sutura dos pe-
pectiva sequência nucleotídica) mantendo-se estáveis em sucessivas quenos lábios com linha, espinhos ou outros materiais com o objec-
gerações, levando a repercussão funcional daqueles (por ex. afec- tivo de estreitamento da entrada vaginal.
tando a actividade de transcrição). Janeway (lesões de) > Pequenas lesões hemorrágicas ou eritematosas
Equinus > Posição de flexão plantar do ante-pé, retro-pé ou de todo o subungueais, indolores.
pé. Lactante > Mulher (idealmente a mãe) que amamenta.
Expectativa de vida ao nascer > Número de anos que um recém-nas- Lactente > Sinónimo de bebé.
cido viveria estando sujeito aos riscos de morte prevalentes para a Leprechaunismo > Situação clínica integrando: RCIU, hipoglicemia em
amostra de população no momento do seu nascimento. jejum, hiperglicemia pós-prandial e resistência à insulina; a concen-
Flora > Ver adiante «Microbiota». Este termo deveria ser abandonado tração sérica desta última pode atingir valores 100 vezes superiores
uma vez que se refere às plantas. Esta taxonomia deriva de Lineu. aos normais.
Fómite > Objecto inanimado ou substância capaz de absorver, reter e Lesões de Janeway > ver Janeway.
transportar microrganismos e parasitas. Letalidade > Risco que uma doença apresenta de ser mortal.
Forese > Significa transporte. Em geral, trata-se dum organismo pe- Loção > Forma de emulsão O/A mais fluida e menos oleosa.
queno transportado mecanicamente por um hospedeiro, em geral de Loção de limpeza > Forma de emulsão O/A com baixa viscosidade, mas
maiores dimensões (ex. fixação de protozoários sedentários ao cor- boa capacidade emulsionante, por conter agentes tensioactivos.
po de animais aquáticos). Luxação > Perda completa (subluxação se incompleta) do contacto entre
Funcionalidade > Termo genérico utilizado para as funções e estrutu- duas superfícies articulares.
ras do corpo, actividades e participação. Corresponde aos aspectos Manchas de Roth > ver Roth.
positivos da interacção entre um indivíduo (com uma condição de Mastocitose > Grupo de doenças em que se verifica infiltração dos te-
saúde) no contexto de factores ambientais e pessoais (ver Incapa- cidos e órgãos, especialmente a pele (nódulos, placas e pápulas), por
cidade). mastócitos. A urticária pigmentosa é a forma mais comum.
Gasping > Termo da língua inglesa empregue frequentemente na gíria Melatonina > Hormona segregada pela glândula pineal ou epífise (lo-
médica, significando “movimentos respiratórios de amplitude e rit- calizada no centro do encéfalo), com regularidade e em ritmo circa-
mo irregulares, e ineficazes”. diano a partir dos 3 meses de idade. Salienta-se o papel da "escu-
Hipofosfatasia > Defeito AR salientando-se membros inferiores ar- ridão da noite ou ausência de luminosidade " como estímulo natu-
queados com rarefação metafisária/mineralização irregular, denti- ral desencadeante da secreção a partir do núcleo supra-quiasmáti-
na e cimento dos dentes deficiente com tendência para queda pre- co; assim, os níveis mais elevados atingem-se entre as zero e as oito
coce dos caducos, encerramento tardio das fontanelas com ou sem horas (horário do sono). A luz (sobretudo entre 460 e 480 nm) inibe
craniossinostose, deficiência de fosfatase alcalina (sérica e tecidual); este mecanismo. Como principais acções citam-se o relaxamento da
as formas homozigóticas têm manifestações mais acentuadas. musculatura lisa gastrintestinal e a indução do sono, comprovando-
Histiocitoses > Conjunto de afecções de etiopatogénese desconhecida se que o leite materno contém níveis substanciais da referida hor-
cuja característica comum é a proliferação e infiltração dos tecidos mona, com implicações práticas na redução das cólicas infantis.
por histiócitos (um dos tipos de células diferenciadas a partir da me- Actualmente têm sido estudados os efeitos da melatonina noutras
dula óssea, recebendo, tal como outras, designações diversas confor- situações, como perturbações do sono, PHDA, mucopolissacari-
me a morfologia e função – monócitos, células dendríticas, macró- doses tipo III, autismo, RGE, cólicas infantis, etc..
fagos, etc.) fazendo parte do sistema histiocitário – macrofágico. Microbiota ou Microbioma > Conjunto de microrganismos que se en-
Existem dois grupos de histiocitoses: de células de Langerhans e não contram geralmente associados a tecidos (pele, mucosas/boca,sis-
Langerhans. Estas últimas células, que se localizam entre as células tema digestivo, conjuntivas, vagina, etc.). Os microrganismos (>
do estrato espinhoso de Malpighi, têm papel importante como apre- 10.000 espécies incluindo triliões de bactérias e fungos, por sua vez
sentadoras de antigénios. A histiocitose de células de Langerhans transportando vírus) constituídos em colónias à superfície ou no in-
(anteriormente chamada histiocitose X) considerava três entidades terior do organismo sem produzir doença compõem a microbiota
a que correspondem termos hoje obsoletos: doença de Letterer-Siwe, normal; a microbiota transitória é composta por agentes infecciosos
doença de Hand –Schuller-Christian e granuloma eosinófilo. presentes por períodos variáveis.
XXX TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Miotonia > Contracção muscular lenta, seguida de relaxamento lento, Pasta protectora > Pasta mais gorda e oclusiva, e mais difícil de apli-
que se produz durante movimentos musculares voluntários por ex- car e retirar; por exemplo, pasta de Lassar ou mistura em partes
citabilidade e contractilidade musculares anómalas. iguais de talco de Veneza, amido, lanolina e vaselina.
Mortalidade materna > Morte de mulheres durante a gravidez ou den- Pediatria > Medicina integral de um grupo etário desde a concepção ao
tro de 42 dias completos após término da gravidez devido a causa fim da adolescência.
relacionada com a gravidez ou agravada pela mesma; excluem-se as Pediatria Social > Ramo da Medicina que diz respeito à criança saudá-
causas acidentais ou incidentais. vel e doente em função do grupo humano de que faz parte e do meio
Morte fetal > É o óbito de um produto de concepção (feto-morto) antes no qual se desenvolve. Desde que se exerça uma acção colectiva, na-
da expulsão ou extracção completa do corpo da mãe, independen- cional ou internacional, a Pediatria torna-se social.
temente da duração da gravidez. Um vez separado do corpo da mãe, Período neonatal > Período que se inicia na data de nascimento e termi-
o produto de concepção não evidencia movimentos respiratórios na após 28 dias completos de idade pós-natal. É subdividido em: pre-
nem outros sinais de vida como batimentos cardíacos, pulsação do coce (primeiros sete dias completos ou 168 horas completas) e tardio
cordão umbilical ou movimentos efectivos dos músculos de contrac- (após sétimo dia ou 168 horas completas, até 28 dias completos ou 672
ção voluntária (nado-morto). horas completas). A criança neste período é designada recém-nascido.
Morte neonatal > É o óbito ocorrido no período neonatal; considerando as Péptidos natriuréticos > Grupo de péptidos segregados pelos mióci-
subdivisões do período neonatal (precoce e tardio), as mortes neonatais tos do miocárdio, principalmente nos ventrículos, em resposta a so-
podem ser subdivididas, respectivamente, em precoces e tardias. brecarga de pressão ou volume nas cavidades cardíacas, regulando
(Nota: A data de morte ocorrida durante o primeiro dia de vida (dia ze- o volume extracelular e a pressão arterial. Salientam-se: o BNP
ro) deve ser registada em minutos completos ou horas completas de vi- (Brain-type natriuretic peptide) ou chamado péptido natriurético
da. A partir do segundo dia de vida (dia 1) e até menos de 28 dias com- B/activo; e o N-terminal-pro-BNP ou NT-proBNP/inactivo, com
pletos de vida (672 horas), a idade de morte deve ser registada em dias. maior estabilidade in vitro e com vida média mais longa. Derivam,
Mutualismo > Associação entre dois indivíduos em que cada um deles por clivagem, do Pro-BNP. Antagonistas do sistema renina-angio-
depende fisiologicamente do outro. tensina-aldosterona, provocam aumento da diurese, natriurese e va-
Mutilação genital feminina > a) Percentagem de mulheres entre 15 e sodilatação. Trata-se de marcadores biológicos com interesse na
49 anos de idade que foram submetidas a manobras cruentas de res- avaliação de diversas formas de disfunção cárdio-respiratória (por
secção de órgãos genitais externos por razões sociais; b) Percentagem ex. PDA, taquipneia transitória, hipertrofia ventricular, HDC, HPP
de mulheres com, pelo menos, uma filha genitalmente mutilada (cli- no RN, doença de Kawasaki, etc.).
toridectomia, extirpação total ou parcial do clítoris e pequenos lá- Percentagem > Proporção apresentada como parte de um todo (100%).
bios, e infibulação). No texto devem ser sempre apresentados o numerador e o deno-
Nascimento vivo (nado vivo) > Expulsão ou extracção completa do cor- minador para qualquer percentagem.
po da mãe, independentemente da duração da gravidez, de um pro- PIB per capita > Produto Interno Bruto por cabeça correspondendo à
duto de concepção que, depois da separação, respire ou apresente quantidade de bens e serviços produzidos dentro das fronteiras dum
sinais de vida tais como batimentos cardíacos, pulsação do cordão país (por nacionais e estrangeiros) dividida pela sua população.
umbilical, ou movimentos efectivos dos músculos de contracção vo- Tipifica a riqueza média dum país e os níveis relativos de desenvol-
luntária, quer o cordão umbilical tenha sido ou não cortado, quer a vimento económico. NB- Não inclui rendimentos provenientes do
placenta tenha sido ou não retirada. O produto de um nascimento exterior (por ex. remessas de emigrantes).
ocorrido nestas circunstâncias é denominado nado-vivo. PNB > Produto Nacional Bruto correspondendo à produção de bens e
Natalidade > Número de nascimentos vivos por 1.000 habitantes. serviços pelos agentes económicos nacionais. NB- Inclui remessas de
Nódulos de Osler > ver Osler. emigrantes.
Nutrição > Conjunto de processos de assimilação e desassimilação dos ali- Polidactilia > Anomalia congénita caracterizada pela presença de dedos
mentos no organismo implicando trocas entre o organismo vivo e o supranumerários nas mãos ou nos pés.
meio ambiente. Ciência que trata da alimentação e dos alimentos sob Pomada ou unguento > Forma de emulsão A/O mais gordurosa,mais
todos os seus aspectos: utilização e transformação dos alimentos no or- emoliente e mais oclusiva.
ganismo, má-nutrição, problemas de comportamento relacionados com Pós > Agentes secos, micronizados em partículas finas, com proprie-
a alimentação, produção e distribuição dos géneros alimentares, etc.. dades higroscópicas (atraindo água); por ex. talco (salicilato de ma-
Nutriente > Substância alimentar que pode ser assimilada sem sofrer gnésio), argila, amido, caolino, óxido de zinco.
transformação digestiva. Prevalência > Número ou percentagem de casos existentes numa de-
Ortótese > Aparelho ou dispositivo destinado a suplementar ou corri- terminada população e num determinado momento temporal.
gir a alteração morfológica de um órgão, de um membro ou seg- Avalia a carga que a doença representa na referida população.
mento de membro, ou a deficiência de uma função. Prevenção > Conjunto de meios médicos, médico-sociais e ambientais
Osler (nódulos de) > Nódulos intradérmicos moles nas polpas dos de- para salvaguardar a saúde dos indivíduos sãos, evitando doença
dos das mãos e pés. (prevenção 1ª), impedindo um agravamento (prevenção 2ª), ou evi-
Osteotomia > Secção cirúrgica do osso. tando sequelas tardias (prevenção 3ª) de modo a propiciar, tanto
Parasitismo > Relacionamento simbiótico entre dois organismos: o pa- quanto possível, vida próxima do normal. Trata-se dum conceito
rasita, em geral de menores dimensões (ex. verme intestinal), e o hos- mais lato que o de profilaxia.
pedeiro, do qual depende o primeiro. Produtos-barreira > Tópicos cutâneos que previnem a penetração e ou
Pasta > Forma de emulsão (pomada) onde se suspendeu pó para ab- absorção de substâncias químicas potencialmente irritantes, sensi-
sorver exsudado. bilizantes ou tóxicas através da pele.
Glossário geral XXXI
Profilaxia > Método de prevenção ou protecção dirigido contra uma tremo baixo peso) > Criança nascida com peso inferior a 1000 gra-
doença através do emprego de substância (por ex. fármacos, vaci- mas (999 ou menos) independentemente da idade gestacional.
nas, imunoglobulinas, etc.). Trata-se dum conceito mais restrito que Rendimento per capita > Soma do valor da contribuição de todos os
o de prevenção. produtores nacionais acrescido de todos os impostos(menos subsí-
Progéria > Alopécia, atrofia da gordura subcutânea, hipoplasia e dis- dios) que não são incluídos na avaliação da produção, a que são
plasia do esqueleto, atraso da dentição caduca, aterosclerose pre- acrescentadas as receitas líquidas (pagamento de assalariados e ren-
matura. das de propriedades) provenientes de fontes externas.
Proporção > Tipo específico de razão em que o numerador é parte do Renograma isotópico > Curva traduzindo, em função do tempo, a eli-
denominador, sendo que o tempo não constitui factor. Vai de 0 a 1.No minação renal dum produto com radionúclidos, injectado por via IV,
texto deve ser sempre apresentado o numerador e o denominador que emite radiação gama. Esta eliminação provoca radioactividade
de qualquer proporção. transitória dos dois rins a qual pode ser detectada por sonda de cin-
Prótese > Aparelho ou dispositivo destinado a substituir um órgão, um tilação/cintilador ao nível de cada região lombar. O gráfico tradu-
membro ou parte de um membro destruída ou gravemente afecta- zindo a eliminação permite avaliar a função de cada rim. Os ra-
da. diofármacos habitualmente utilizados são: mercaptoacetilglicina-
Rabdomiólise > Ruptura e/ou necrose das células musculares estriadas Tc99 (MAG3) depurada por secreção tubular, e o ácido dietileno tria-
por factores mecânicos ou miopatias primárias com consequente li- mino pentacético (DTPA-Tc99), filtrado pelo glomérulo.
bertação para o sangue de enzimas, electrólitos e mioglobina. O do- Resistência à insulina tipo A > Situação clínica associada a mutações
seamento da enzima cretinaquinase (CK ou CPK)permite avaliar o no gene do receptor da insulina, verificando-se concomitantemente
grau de lesão celular/necrose. hirsutismo, masculinização, ovários quísticos no sexo feminino e,
Razão (fracção) > Numerador e denominador não têm relação especí- por vezes, acanthosis nigricans não acompanhada de obesidade. Duas
fica (ex: rapazes/raparigas 1/4; risco de 1/1.000, etc.). (ver mutações específicas no gene referido originam formas graves inte-
Proporção) grando os quadros designados por leprechaunismo (ver atrás) e sín-
Recém-nascido pré-termo > Criança nascida com menos de 37 sema- droma de Rabson – Mendenhall (ver adiante).
nas completas (menos de 259 dias) de idade gestacional. Roth (manchas de) > Lesões hemorrágicas lineares subungueais.
Recém-nascido de termo > Criança nascida com idade gestacional com- Saúde > Estado de bem estar físico, mental e social ,e não apenas au-
preendida entre 37 semanas completas e 41 semanas e 6 dias (259 a sência de doença.
293 dias). Selagem > Em Dentisteria e em Ortopedia, processo de fixação dum ma-
Recém-nascido pós-termo > Criança nascida com idade gestacional terial protector do dente (Selante), ou de material de prótese ou de
igual ou superior a 42 semanas completas (294 dias ou mais). osteossíntese.
Recém-nascido leve ou pequeno para a idade gestacional (LIG) > (na Simbionte > Organismo que vive algum tempo ou toda a sua vida inti-
prática, quase sempre sinónimo de RN com restrição de crescimen- mamente ligado a outro de espécie diferente; tal relacionamento de-
to intra-uterino) – Recém-nascido (RN) com peso inferior ao que cor- signa-se por simbiose.
responde ao percentil 3 ou a dois desvios padrão abaixo da média Simbiose > Ver atrás- Simbionte. Consideram-se quatro categorias de
para a respectiva idade de gestação e género, isto é, leve para a ida- simbiose: comensalismo, forese, parasitismo e mutualismo.
de de gestação (LIG) numa curva representativa da população. Sincinésia > Tendência para executar involuntária e simultaneamente
Outros autores preferem utilizar o termo pequeno para a idade ges- um movimento similar e simétrico, numa tentativa para executar um
tacional (PIG). movimento voluntário do lado oposto, observada em certas parali-
Recém-nascido com peso adequado para a idade gestacional para a sias unilaterais.
idade gestacional (AIG) > Recém-nascido (RN) com peso entre o Sindactilia > Anomalia congénita caracterizada pela junção de dois ou
percentil 3 ou dois desvios padrão abaixo da média para a respecti- mais dedos das mãos ou dos pés; tal junção pode ser superficial
va idade de gestação e género, e o percentil 97 ou dois desvios-pa- (membranosa), muscular ou óssea.
drão acima da média para a respectiva idade de gestação e género Síndroma de Apert > Craniossinostose (coronal>lambdóide>sagital),
numa curva representativa da população. braquicefalia, acrocefalia, hipertelorismo, proptose, estrabismo, hi-
Recém-nascido grande ou pesado para a idade gestacional (GIG) > poplasia maxilar, palato estreito/ogival, sindactilia invariável(cutâ-
Considera-se que um RN teve um crescimento intrauterino excessi- nea e óssea).
vo (ou hipercrescimento) quando o peso de nascimento é superior Síndroma de Angelman > Entidade clínica explicada por deleção no
ao percentil 97 ou dois desvios padrão acima da média para a idade cromossoma 15 de origem materna estando implicado o gene activo
de gestação e género numa curva representativa da população; tal E3A (UBE3A), envolvido na degradação de proteínas cerebrais.
RN é designado grande (G) ou pesado (P) para a idade de gestação: Traduz-se essencialmente por convulsões, atraso do desenvolvi-
(GIG) ou (PIG). mento e marcha atáxica. (ver Síndroma de Prader Willi).
Recém-nascido de baixo peso de nascimento(RNBP) > Criança nasci- Síndroma de Carpenter > Acrocefalia, polidactilia e sindactilia dos pés,
da com peso inferior a 2500 gramas (2499 ou menos) independente- atraso mental, braquissindactilia das mãos com clinodactilia, obesi-
mente da idade gestacional. dade, cardiopatia congénita, hipogenitalismo, etc..
Recém-nascido de muito baixo peso de nascimento (RNMBP) > Síndroma de Cockayne > Quadro clínico de transmissão AR, descre-
Criança nascida com peso inferior a 1500 gramas (1499 ou menos) vendo-se 3 tipos: I (em relação com gene CSA), II (em relação com ge-
independentemente da idade gestacional. ne CSB); e III (em relação com gene XP-CS). Caracteriza-se por alte-
Recém-nascido de muito muito baixo peso de nascimento ou com rações do tipo senil iniciando-se pelo 1º ano de vida, degenerescên-
imaturidade extrema (RNMMBP), sinónimo de RN de EBP (ex- cia retiniana, défice auditivo, hipocrescimento e hipogonadismo com
XXXII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
criptorquidia, fotossensibilidade (aparecimento de eritema facial em cida, actualmente o diagnóstico é clínico e baseado nas principais ca-
“asa de borboleta” por acção de raios ultra-violeta). Distingue-se da racterísticas: défice cognitivo grave, epilepsia por vezes refractária,
progéria pelas anomalias oculares e pela fotossensibilidade. baixa estatura, microcefalia, dismorfia facial peculiar, deformidades
Síndroma de Cornelia de Lange > Quadro esporádico ou AD, caracte- ósseas mais notórias nas mãos e pés, e cabelo escasso.
riza-se essencialmente por restrição do crescimento fetal e pós-na- Síndroma de Noonan > Simile síndroma de Turner sem cromossomo-
tal, sinofris, lábios delgados com uma pequena “saliência” na linha patia sendo que em ~ 60% dos casos resulta de mutação em
média do lábio superior e correspondente “chanfradura”no lábio in- PTPN1/cromossoma 12q24.1. Principais características: baixa esta-
ferior, comissura bucal dirigida para baixo, micromélia, insuficiên- tura, inserção baixa posterior do cabelo, pescoço curto e ou pteri-
cia cognitiva, etc.. gium colli, hipogonadismo, criptorquidia. Afecta ambos os sexos, ao
Síndroma de Cowden > É considerado o protótipo das síndromas tu- contrário da síndroma de Turner, com padrão diverso de cardiopa-
morais PTEN (ver adiante) em que se verifica elevada susceptibili- tia congénita (estenose pulmonar, defeitos septais).
dade para cancro do endométrio, mama, e tiróide. Síndroma de Pfeiffer > De hereditariedade AD por mutação genética
Síndroma de Crouzon > De transmissão AD, integra como característi- (FGFR1 ou FGFR2), integra craniossinostose (coronal> sagital>
cas mais frequentes: craniossinostose (coronal > lambdóide > sagi- lambdóide) associada a outros defeitos como acrocefalia, hipertelo-
tal), hipertelorismo, proptose, estrabismo e hipoplasia maxilar. rismo, proptose, hipoplasia maxilar, 1ºs dedos alargados com des-
Síndroma de Hallermann-Streiff > De hereditariedade esporádica, in- vio radial. São descritos os tipos I, II e III.
tegra como mais relevantes as seguintes anomalias: dentes neona- Síndroma de Poland > Situação clínica integrando deformidades (unila-
tais, baixa estatura, cabelo escasso, cataratas, microftalmia e extre- terais) da parede torácica tais como pectus excavatum e ausência da glân-
midade nasal estreita. dula mamária, hipoplasia dos músculos grande e pequeno peitoral,
Síndroma de Holt – Oram > De transmissão AD em relação com muta- anomalias dos dedos da mão do mesmo lado (por ex. sindactilia).
ção no gene TBX5, integra anomalias do membro superior e ao ní- Síndroma de Prader-Willi > Entidade clínica explicada por deleção no
vel da cintura escapular, associadas a defeitos cardíacos tais como cromossoma 15 de origem paterna estando implicado o gene activo
dos septos ventricular e auricular, e alterações na condução auricu- E3A(UBE3A), envolvido na degradação de proteínas cerebrais.
loventricular. Traduz-se essencialmente por hipotonia neonatal acentuada, obesi-
Síndroma de Kabuki > Anomalias congénitas múltiplas com identifi- dade, mãos e pés pequenos e alteração do comportamento com atra-
cação de base molecular, salientando-se: características faciais típi- so mental. (ver Síndroma de Angelman).
cas (fendas palpebrais alongadas com eversão do terço externo da Síndroma de Rabson-Mendenhall > Entidade clínica com manifesta-
pálpebra inferior, sobrancelhas arqueadas,etc.), pavilhões auricu- ções aparentadas com leprechaunismo: resistência à insulina, ano-
lares grandes e proeminentes, défice cognitivo, hipocrescimento, malias dos dentes e unhas, e hiperplasia pineal.
susceptibilidade para doenças autoimunes, entre outros defeitos. Síndroma de Rapunzel > Situação clínica em que os cabelos deglutidos
Síndroma de Kearns – Sayre > Oftalmoplegia, retinopatia pigmentar, formam um chamado tricobezoar (ver atrás “bezoar”) de compri-
cardiomiopatia. mento considerável, desde o estômago ao intestino delgado, como
Síndroma de Landau-Kleffner > Forma grave de epilepsia associada a que uma “cauda de animal”, originando síndroma oclusiva intesti-
agnosia auditiva, disartria e afasia. nal de grau variável.
Síndroma de Larsen > Luxação articular múltipla, fácies plana, unhas Síndroma de Rett > Entidade clínica resultante de mutações no gene
dos dedos das mãos curtas, polegares em espátula, etc.. MECP2 localizado em Xq28: alterações do neurodesenvolvimento,
Síndroma de Laurence – Moon – Biedl > Como principais característi- com défice cognitivo grave, predominantemente no sexo feminino
cas há a registar: obesidade, polidactilia, retinite pigmentar, defi- (prevalência ~1/10.000 raparigas aos 12 anos).
ciência mental, diabetes insípida e baixa estatura. Admite-se here- Síndroma de Reye > Situação hoje rara, é caracterizada por encefalo-
ditariedade AR. patia aguda e disfunção hepática comportando elevada mortalida-
Síndroma de Loeffler > Condensação pulmonar fugaz detectada por de (30-40%) por edema cerebral. Em geral precedida por infecção ví-
radiografia, associada a eosinofilia, e de etiologia diversa; mais fre- rica (sobretudo varicela e influenza) 3-5 dias antes, verifica-se forte
quentemente relacionada com parasitoses, sobretudo Ascaris lum- associação com o uso de ácido acetilsalicílico.
bricoides. O substrato anatomopatológico pulmonar inclui infiltra- Síndroma de Robinow > Inclui, entre outros defeitos: hipogonadismo,
dos de eosinófilos e plasmócitos. antebraços curtos, braquidactilia, bossas frontais, hipertelorismo,
Síndroma de Mallory – Weiss > Situação clínica traduzida por hemor- longo philtrum, mento pequeno, cariótipo normal.
ragia digestiva alta resultante de vómito com esforço levando a Síndroma de Rothmund-Thomson (ou poiquilodermia congénita) >
lesão/solução de continuidade por efeito de estiramento ao nível da Quadro clínico de transmissão AR relacionado com mutações no ge-
junção gastresofágica. ne RECQL4 na maioria dos casos. Surgindo as manifestações pelos
Síndroma de McCune Albright > Hereditariamente esporádica, inclui 3 anos de idade, há a destacar: placas de eritema com ulterior hi-
determinados sintomas e sinais com frequência variável: manchas perpigmentação, atrofia, telangiectasias e alopécia. Hipogonadismo
cor de “café com leite”, hiperfunção de vários órgãos endócrinos,, e risco de cancro.
bócio multinodular, hipertiroidismo, displasia óssea poliostótica e Síndroma de Rubinstein-Taybi > Baixa estatura, polegares e dedos dos
puberdade precoce (independente de GnRH). A gonarca precoce re- pés largos, fendas palpebrais antimongolóides , hipoplasia do maxi-
sulta de hiperfunção ovárica e, por vezes, da formação de quistos le- lar com palato estreito, etc..
vando à secreção de estrogénios. Resulta de mutações da subunida- Síndroma de Seckel > De hereditariedade AR, com restrição do cresci-
de da proteína G. mento pré e pós-natal, microcefalia com sinostose prematura, insu-
Síndroma de Nicolaides-Baraitser > de base genética ainda não conhe- ficiência cognitiva, nariz proeminente, etc..
Glossário geral XXXIII
Síndroma de Smith-Lemli-Opitz > Escafocefalia, narinas em ante- Taxa de mortalidade de menores de 5 anos (TMM5) > Número de óbi-
versão, e ou ptose palpebral, sindactilia do 2º e 3º dedos do pé, hi- tos entre o nascimento e a data em que são completados os 5 anos
pospadia, criptorquidia no sexo masculino, etc.. de idade por mil (1.000) nado-vivos.
Síndroma de Sotos (Gigantismo cerebral) > Macrossomia evidente ao Taxa de mortalidade materna > Número anual de mortes de mulheres
nascer, mãos e pés grandes, maturação óssea avançada, etc.. devidas a complicações decorrentes da gravidez por 100.000 partos
Síndroma de Werner > Envelhecimento precoce símile progéria, (ma- de crianças nascidas vivas.
nifestando-se mais tarde do que esta), salientando-se esclerose vas- Taxa de mortalidade fetal tardia > Esta taxa é calculada segundo a fór-
cular e cardiomiopatia. Hereditariedade autossómica recessiva em mula:
relação com os genes WRN e LMNA. Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas
Síndroma de Wolff-Parkinson – White > Situação também designada ———————————————————— x 1000
por pré-excitação ou ante-sistolia, em que o ECG evidencia alarga- Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas + Nº de nado-vivos com >= 1.000 gramas
mento do complexo QRS e encurtamento P-R; habitualmente acom- Taxa de mortalidade neonatal (bruta) > Esta taxa é definida pela re-
panhada por crises de taquicardia paroxística, o seu prognóstico de- lação:
pende da eventualidade de cardiopatia associada. Número total de óbitos de RN ocorrendo até 28 dias completos (672 ho-
Síndroma de Wolfram > Inclui diabetes mellitus não autoimune, atrofia óp- ras) / 1.000 nado vivos (qualquer que seja o peso).
tica, diabetes insípida, surdez neurossensorial e anomalias do aparelho Esta taxa é subdividida em:
urinário e neurológicas, com prognóstico muito reservado e baixa espe- a) precoce: nº de óbitos até aos primeiros sete dias completos (ou 168 ho-
rança de vida. Mutações em dois genes relacionados com proteínas do ras completas) /1.000 nado-vivos;
retículo endoplásmico, neurónios e vasopressina, a qual é deficiente. b) tardia: nº de óbitos após sete dias completos (168 horas) e até 28 dias
Síndroma de Zollinger-Ellison > Situação rara caracterizada por doen- completos (672 horas) /1.000 nado-vivos;
ça péptica ulcerada grave e refractária ao tratamento causada por hi- Notas: a) As taxas de mortalidade total, precoce e tardia (não bruta)
persecreção de gastrina relacionada com gastrinoma (tumor neu- consideram apenas RNs com peso de nascimento igual ou superior
roendócrino). Em > 90% dos doentes são verificados níveis elevados a 1.000 gramas, quer no numerador, quer no denominador;
de gastrina em jejum. O tratamento de eleição inclui inibidores da b) Não sendo conhecido o peso, considera-se habitualmente que idade
bomba de protões e antagonistas dos receptores H2. gestacional de 28 semanas e /ou comprimento de 35 cm correspon-
Síndroma stiff-man ou do “homem rígido” > Situação clínica do SNC, dem a 1.000 gramas;
rara e autoimune, caracterizada por rigidez progressiva e espasmos
axiais e acompanhada de títulos muito elevados de anticorpos GAD- Taxa de mortalidade perinatal por 1.000 (fetos mortos+nado-vivos)
65. Em cerca de 30% dos doentes surge DM1. > Esta taxa é calculada segundo a fórmula:
Síndromas tumorais PTEN > conjunto de situações com elevada varia- Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas
bilidade na expressão clínica - incluindo diversas patologias genéti- + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 1.000 gramas)
cas - e pleiotropismo, relacionadas com disfunção do gene supres- ————————————————————————— x 1000
sor tumoral PTEN. (ver síndroma de Cowden) Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas + total de nado-vivos com >= 1.000 gramas
Sinofris > Convergência/junção das sobrancelhas na linha média ao ní-
vel da raiz nasal. Taxa de mortalidade perinatal por 1.000 (nado-vivos) > Esta taxa é
Solução > Mistura líquida homogénea duma substância sólida, líquida calculada segundo a fórmula:
ou gasosa, considerando-se, no sentido correcto do termo, soluto a Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas
substância dissolvida, e solvente o líquido (geralmente em quanti- + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 1.000 gramas)
dade elevada). ————————————————————————— x 1000
Suspensão > Preparado farmacêutico constituído pela dispersão duma Nº de nado-vivos com >= 1.000 gramas
fase sólida insolúvel numa fase líquida (ou seja, líquido no qual se
encontram partículas insolúveis finamente dispersas). Taxa de mortalidade perinatal total por 1.000 (fetos mortos+nado-
Syndet > Detergente sintético (sabão “sem sabão”) com pH neutro, fa- vivos) > Esta taxa é calculada segundo a fórmula:
zendo espuma escassa; a forma sólida designa-se por “pain”. Nº de nado-mortos com >= 500 gramas
Taxa > Tipo específico de razão em que o numerador e o denominador + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 500 gramas)
estão relacionados, constituindo o tempo uma parte intrínseca do ———————————————————————— x 1000
denominador. Nota: Segundo os epidemiologistas a designação, por Nº de nado-mortos com >= 500 gramas + Nº de nado-vivos com >= 500 gramas
ex. de taxa de mortalidade, não é correcta.
Taxa de alfabetização de adultos > Percentagem de pessoas com 15 Taxa de mortalidade perinatal total por 1.000 (nado-vivos) > Esta
anos ou mais que sabem ler e escrever. taxa é calculada segundo a fórmula:
Taxa bruta de mortalidade > Número de óbitos anuais por 1.000 pes- Nº de nado-mortos com >= 500 gramas
soas. + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 500 gramas)
Taxa bruta de natalidade > Número anual de nascimentos por 1.000 ———————————————————————— x 1000
pessoas. Nº de nado-vivos com >= 500 gramas
Taxa de letalidade > Relação entre o número de mortes por determi-
nada doença e o número total dos seus casos numa dada população. Taxa de nado-mortalidade > Número de nado-mortos com peso de nas-
Taxa de mortalidade infantil (TMI) > Número de óbitos no primeiro cimento >1000 gramas /1.000 nascimentos totais (nado-mortos + na-
ano de vida por cada 1.000 nado vivos. do-vivos pesando > 1.000 gramas) durante determinado período.
XXXIV TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Taxa total de fertilidade > Número de crianças que nasceriam por mulher,
se esta vivesse até ao fim dos seus anos férteis e tivesse filhos em cada
etapa, de acordo com as taxas prevalentes para cada grupo etário.
Trabalho infantil > Percentagem de crianças entre 5 e 14 anos de idade
recrutadas para tarefas próprias para adultos.
Valgo (ou valgus) > membro ou segmento desviado para fora.
Valores de referência em antropometria > Valores que descrevem co-
mo as crianças efectivamente crescem na realidade.
Valores – padrão em antropometria > Valores que pretendem repre-
sentar o crescimento ideal.
Varo (ou varus) > membro ou segmento desviado para dentro.
Vigilância pré-natal > Percentagem de mulheres entre 15 e 49 anos as-
sistidas pelo menos uma vez durante a gestação por profissional de
saúde treinado (médicos, enfermeiros ou parteiros); em Portugal
considera-se, pelo menos,a ocorrência de 3 consultas médicas.
Xenobióticos > São compostos estranhos ao organismo que poderão es-
tar presentes na alimentação, incluindo leite materno. Distinguem-
se 3 grandes grupos: 1] contaminantes naturais (por ex. glicoal-
calóides presentes em batatas e tomates,etc.); 2] contaminantes do
meio ambiente pela actividade humana/antropogénicos (por ex. ni-
tritos, pesticidas, metais pesados, etc.); 3] tóxicos formados durante
o processamento culinário (por ex. hidrocarbonetos policíclicos
aromáticos).
Xeroftalmia > Secura e retracção das conjuntivas bulbar e palpebral, que
se tornam esbranquiçadas e perdem o brilho. Esta situação pode ser
secundária a défice de vitamina A ou a tracoma.
Xerose > Secura da conjuntiva, muitas vezes a primeira fase da xerof-
talmia.
BIBLIOGRAFIA
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Uvarov EB, Chapman DR, Isaacs A. Dicionário de Ciência (tradução por-
tuguesa). Lisboa: Europa América Editora, 1964
Abreviaturas
BEI – iodo extraído (removido) pelo butanol (Butanol Extractable Iodine) CIA – comunicação interauricular
BERA – Brainstem evoked response audiometry CIAS – cold induced autoinflammatory syndrome ou síndroma auto-
BHCG – Gonadotrofina coriónica humana beta (ou GCHB) inflamatória induzida pelo frio
BHE – barreira hematencefálica CIAV – comunicação interauriculoventricular
Bi – bismuto CID – classificação internacional de doenças, lesões e causas de óbitos
BIPAP – bilevel positive airway pressure (OMS/WHO); ou coagulação intravascular disseminada
BK – bacilo de Koch CIM – concentração inibitória mínima
BN – bulimia nervosa CINCA – chronic infantile neurologic cutaneous and articular syndrome
BNP – B-type natriuretic peptide; ver NT- proBNP CIV – comunicação interventricular
BO – bronquiolite obliterante CK – creatinaquinase/creatinacinase
BOOP – BO com pneumonia organizativa (organizing pneumonia) CL – compliance pulmonar/distensibilidade pulmonar
BP – baixo peso (<2500 gramas) ou binding protein (factor de ligação) Cl – símbolo do cloro
BPE – baixo peso extremo(<1000 gramas) cl – centilitro
BPM ou bpm – batimentos por minuto CM – concentração máxima
Br – bromo cm – centímetro/cm2 - centímetro quadrado; cm3 - centímetro cúbico
BR – biópsia renal ou cc
BRB – bilirrubina CMH ou MHC – Complexo major de histocompatibilidade (locus no
BRD – bloqueio do ramo direito cromossoma 6 com genes que codam antigénios (glicoproteínas de
BRE – bloqueio do ramo esquerdo superfície) de histocompatibilidade (vidé adiante MHC)
BSE – bovine spongiform encephalopathy ou encefalopatia espongiforme CMO – corticosterona metil oxidase
bovina/doença das vacas “loucas” CMV – citomegalovírus ou vírus citomegálico/de inclusões
BSP – bromossulftaleína citomegálicas ou corpos multivesiculares (surfactante)
BT – bilirrubina total (B ou BRB) CO – monóxido de carbono
BUN – blood urea nitrogen ou azoto ureico do sangue CO2 – dióxido, anidrido ou gás carbónico
Co – cobalto
C CoA – coenzima A
C – Celsius, carbono Cox – cicloxigenase
Ca – cálcio, carcinoma CPAP – continuous positive airways pressure ou pressão positiva
CaBP – calcium binding protein ou proteína fixadora do cálcio contínua no final da expiração ou pressão de distensão contínua
CAD – cetoacidose diabética CPK – creatine phospho kinase ou creatina fosfo quinase (ou cinase)
Cal – kcal (quilocaloria) CPK-MB – idem – isoenzima MB (cérebro,musculo) da CPK
Cal – caloria CPRE – colangiopancreatografia retrógrada endoscópica
CAMP – adenosinamonofosfato cíclico CPT – capacidade pulmonar total
CAO (índice de cárie) – C- dentes cariados; A-ausentes; O-obturados CPV – canal peritoneovaginal
CASH – cortico adrenal stimulating hormone (hormona estimulante Cr – crómio
córtico- suprarrenal diferente da ACTH) CR – cicatriz renal
CAV – canal atrioventricular comum CREST – sigla de calcinose cutânea, fenómeno de Raynaud,
cc – centímetro cúbico (ou cm3) compromisso esofágico, esclerodermia, telangiectásias
CCI – comissão de controlo de infecção CRF – capacidade residual funcional ou corticotropin releasing factor
CCMH – concentração corpuscular média em hemoglobina (=CGMH) (factor libertador da corticotrofina)
CCU – cancro do colo do útero CRH – corticotropin releasing hormone (hormona libertadora da
Cd – cádmio corticotrofina)
CDC – Centers of Disease Control, em Atlanta, EUA CRMO – chronic recurrent multifocal osteomielitis
CDG – carbohydrate deficient glycoprotein CRP – C Reactive Protein ou PCR
CDPN – Centro de Diagnóstico Pré-natal CS – craniossinostose
CEA – corionic embrionary antigen ou antigénio embrionário coriónico 17-CS – 17 cetosteróide
CEC – circulação extracorporal CSP – cuidados de saúde primários
CERAC – Centro de Estudos e Registo de Anomalias Congénitas CTCIG – Comissão Técnica de Certificação de Interrupção da
CFRD – cystic fibrosis related diabetes Gravidez
CFTR – cystic fibrosis transmembrane conductance regulator CTG – cardiotocografia ou cardiotocograma
CGMH – concentração globular média em hemoglobina (= CCMH) Cu – cobre
CH – concentração de hemoglobina CUM – cistouretrografia miccional
CHARGE – Associação de anomalias (sigla de coloboma, heart disease, CV – capacidade vital, campo visual, coluna vertebral
atrésia dos coanos, retarded growth and development associado a CVEDT – Centro de Vigilância Epidemiológica de Doenças
anomalias do SNC, ear anomalies) Transmissíveis
CHC – carcinoma hepatocelular
CI – capacidade inspiratória D
Ci – Curiecentímetro cúbico D – dalton, densidade
Abreviaturas XXXVII
D – dia de vida (por ex. D5 ou 5º dia) ou nível de vértebra dorsal (por DTPA – dietileno-tetra-pentacético
ex. D8) DV – dador vivo
DA – dermatite atópica DVP – derivação ventriculoperitoneal
DAG – diacilglicerol
DAR – dor abdominal recorrente E
DB – decibel ou Doença de Behçet EAEC – enteroaggregative E. coli
DBP – displasia broncopulmonar EACA – ácido épsilon-aminocapróico
DC – débito cardíaco EB – epidermólise bolhosa
DCE – doença crónica do enxerto EBP – extremo baixo peso (recém-nascido de )
DD – diagnóstico diferencial EBV – Epstein-Barr virus ou vírus de Epstein-Barr
DDA – displasia de desenvolvimento da anca ECG – electrocardiograma
DDAVP – 1-deamino-8-d-arginino-vasopressina ECHO virus – ou vírus ECHO (enteric cytopathic human orphan)
DDO – doenças de declaração obrigatória ECMO – extracorporal membrane oxygenation ou oxigenação com
DDT – dicloro-difenil-tricloroetano membrana através de circulação extracorporal
DEXA – dual X ray absorptiometry ECN – enterocolite necrosante
DGPI – diagnóstico genético de pré-implantação EcoCG – ecocardiograma
DGS – Direcção Geral da Saúde EDTA – ácido edético ou etileno-diamima-tetra-acetato
DH – doença de Hirschsprung EEC – espaço ou compartimento extracelular, contendo LEC
DHA – docosahexanoic acid ou ácido docosa-hexanóico EEEPC – estudo europeu sobre a etiologia da paralisia cerebral
DHABO – doença hemolítica por incompatibilidade ABO EEG – electroencefalograma
DHEA – di-hidro-epi-andosterona EEI – esfíncter esofágico inferior
DHEAS ou DHEA-S – sulfato de di-hidro-epi-andosterona EH – esferocitose hereditária
DHPNRh – doença hemolítica perinatal por incompatibilidade Rh EHEC – enterohemorrhagic E. Coli
DHRN – doença hemolítica do recém- nascido EHI – encefalopatia hipóxico-isquémica
DHT – di-hidro-testosterona EHP – estenose hipertrófica do piloro
DI, DII, DIII – derivações bipolares electrocardiográficas EIC – espaço intracelular, contendo LIC
DI – dentinogénese imperfeita EID – espaço intercostal direito
DID – diabetes insulinodependente EIE – espaço intercostal esquerdo
DII – doença intestinal inflamatória EIEC – enteroinvasive E. Coli
DIT – diiodotirosina ELISA – enzyme-linked immunosorbent assay
DIU – dispositivo intrauterino EMG- electromiografia / electromiograma
DK – doença de Kawasaki EMLA – eutectic mixture local anesthetics
DMARD – disease modifying agents in rheumatic disease EN – eritema nodoso
DMG – diabetes mellitus gestacional EOG – electro-oculograma
DM2 – diabetes mellitus do tipo 2 EPEC – enteropathogenic E. Coli
DMJ – dermatomiosite juvenil EPI – enfisema pulmonar intersticial
DMG – diabetes mellitus gestacional EPO – eritropoietina
DMO – doença metabólica óssea ERA – Evoked response audiometry
DMSA – ácido dimercapto-succínico ERG – electrorretinograma
DNA ou ADN – ácido desoxirribonucleico ESPGHAN – European Society for Gastroenterology Hepatology and
DNM – doença neuromuscular Nutrition
DOCA – acetato de desoxicorticosterona ET – exsanguinotransfusão
DOPA – Di-hidroxi-fenilalanina ETCO – end tidal carbon monoxide
DP – desvio-padrão ou diálise peritoneal ETEC – enterotoxigenic E. Coli
DPC – doença pulmonar crónica ETP – exsanguinotransfusão parcial
DPG – diabetes pré-gestacional EUA – Estados Unidos da América do Norte
2,3 - DPG – 2,3 difosfoglicerato e.v./EV – endovenoso (ou intravenoso - IV)
DPI – doença pulmonar intersticial ex/ex: – por exemplo
DPN – diagnóstico pré-natal
DPOC – doença pulmonar obstrutiva crónica F
DPPC – dipalmitoilfosfatidilcolina FA – fosfatase alcalina
DSM-III, DSM IV – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders FAO – Food and Agricultural Organization
III , IV FC – frequência cardíaca
DRGE – doença do refluxo gastro-esofágico FCAS – familial cold autoinflammatory syndrome ou síndroma familiar
DST – doença sexualmente transmissível auto-inflamatória
DT (vacina) – antidifteria e antitétano FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia
DTN – defeito do tubo neural FDA – Food and Drug Administration
DTP (vacina) – antidifteria, antitétano e antipertussis Fe – Ferro
XXXVIII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
mcg (ug) – micrograma NIH – National Institute of Health ou Instituto Nacional de Saúde
MCV – mean corpuscular volume ou volume globular médio NIHDE – Núcleo Iconográfico do Hospital de Dona Estefânia
ME – meningoencefalite NIPS – Neonatal Infant Pain Scale
MELAS – mitochondrial myopathy encephalopaty lactic acidosis and stroke NIV – Nutrient Intake Values
like episodes nm – namómetro
MENDS – MElatonin in children with Neurodevelopmental Disorders NNN – meio de cultura de Novy, McNeal e Nicolle
and impaired Sleep NO – óxido nítrico
mEq/L – milequivalente por litro NOC – norma de orientação clínica
MERRF – mitochondrial encephalomyopathy with ragged red fibers; NP – nutrição parentérica (ou parenteral)
epilepsia mioclónica (associação a doenças hereditárias do NPT – nutrição parentérica total(ou exclusiva)
metabolism) NR – nefropatia do refluxo
Met Hb – metemoglobina NS – não significativo
MFR – Medicina Física e Reabilitação NT-proBNP – N terminal –proBNP (ver Glossário geral: péptidos
Mg – símbolo químico do magnésio natriuréticos)
mg – miligrama NV – nado vivo
MHC ou CMH – (ver atrás) NYHA – New York Heart Association
MHz – mega hertz
min – minuto O
ml – mililitro O – oxigénio
MM – mielomeningocelo OD – olho direito
MMBP – muito muito baixo peso (sinónimo de EBP), recém-nascido OE – olho esquerdo
de mmc/mmc ou por mmc ou /mm3 (= µL) OEA – oto-emissões acústicas
Mn – símbolo químico do manganês OGE – órgãos genitais externos
MNI – mononucleose infecciosa OGI – órgãos genitais internos
Mo – símbolo químico do molibdénio OI – osteogénese imperfeita
mol – mole OMA – otite média aguda ou opsoclónus, mioclónus, ataxia
mmol – milimole OMS – Organização Mundial de Saúde
mOsm – miliosmole (mOsm/kg de H2O <>mmol/L) ONSA – Observatório Nacional da Saúde
mR – mili-roentgen ORL – Otorrinolaringologia
MR – meticilina- resistente ORS – oral rehydration solute, ou SRO
mrad – mili-rad OSM – otite seromucosa
MRCP – magnetic resonance cholangiopancreatography
mRNA – RNA mensageiro (ou ARNm) P
MS – meticilina sensível P – fósforo ou Pressão ou peso
MSH – melanocyte stimulating hormone ou hormona melanotrópica ou p – pressão
melanotropina P50 – pressão à qual a Hb se encontra saturada a 50% de O2
MTD – mãe toxicodependente Pa – Pascal
MTF – metatarso-falângica PA – pressão arterial ou pancreatite aguda
MTX – metotrexato PAB ou PABA – ácido para-amino-benzóico
MV/mV/uV – mega/mili/micro Volt PAF – Platelet Activating Factor ou factor de activação plaquetária
MW/mW/uW – mega/mili/micro Watt PAH – ácido para-amino-hipúrico
MWS – Muckle-Wells syndrome PAM – pressão arterial média
PAN – poliaterite nodosa
N PANDAS – sigla de Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders
Na – sódio Associated with Streptococcal infections
NAD, NADH- nicotinamida-adenina dinucleotidofosfato (oxidado ou Pa O2 – pressão parcial arterial de O2
reduzido) PA O2 – pressão alveolar de O2
NASPGAN – North America Society for Pediatric Gastroenterology and PAO – pressão arterial ocular
Nutrition PAP – proteína associada à pancreatite
NB – note bem PAPA – sindroma englobando artrite piogénica, piodermite
NCI – National Cancer Institute gangrenosa, e acne
NEC – necrotizing enterocolitis (ou ECN-enterocolite necrosante) PAPP-A – sigla do inglês de pregnancy-associated plasma protein A
NFCS – Neonatal Facial Coding Scale PAR – pressão arterial retiniana
ng – nanograma (1 nanograma<> 1 milionésimo de mg) PAS – pressão arterial sistólica ou ácido para-amino-salicílico
NHCS – National Center for Health Statistics Paw – pressure airway ou pressão media na via aérea (ou MAP)
NIDCAP – Newborn Individualized Developmental Care Assessment Pb – chumbo
Program (Programa Individualizado de Avaliação do PB – prega bicipital
Desenvolvimento do RN) PBI – Protein Binding Iodine ou iodo ligado às proteínas
Abreviaturas XLI
1
individualizada da Medicina Geral, mantendo-se,
no entanto, durante as primeiras décadas do sécu-
lo XX, a tradição de o recém- nascido continuar a
ser seguido pelo médico que tinha realizado o
parto.
No século XIX, coincidindo com a Revolução
A CRIANÇA EM PORTUGAL Industrial e o fenómeno da emancipação da Mu-
lher, por toda a Europa começou a esboçar-se uma
E NO MUNDO. DEMOGRAFIA preocupação com os problemas sociais e a higiene
pública, relacionando-se a pobreza com a doença.
E SAÚDE Em 1875 foi publicada a Lei Roussel com o objecti-
vo de proteger as crianças dando-lhes assistência
João M. Videira Amaral separadamente dos adultos. Multiplicaram-se os
estabelecimentos para o acolhimento de crianças
abandonadas – os hospícios ou asilos de crianças
– aos quais se sucederam as instituições para
Factos históricos prestação de cuidados na doença ou verdadeiros
hospitais.
Os problemas relacionados com a criança somente Em 1802 em Paris foi inaugurado o que foi
começaram a suscitar o interesse real por parte dos considerado o primeiro hospital para crianças – o
físicos ou antigos médicos a partir de meados do Hopital des Enfants Malades.
século XVIII. A criança era considerada uma Na Europa e América do Norte, outros hospi-
miniatura do adulto e a doença era interpretada tais de crianças foram inaugurados, tais como: em
como fazendo parte dum processo de regeneração 1834 em Berlim o Charité, e em São Petersburgo o
moral sendo a elevada mortalidade um aconteci- Nicolas, em 1852 em Londres o Great Ormond
mento esperado. Após o nascimento, a sobrevivên- Street, em 1854 em Nova Iorque o Child’s Hospital
cia ficava a cargo da selecção natural e apenas a and Nursery, em 1855 em Filadélfia o Children’s
alimentação fazia parte dos cuidados a ministrar. Hospital e, em 1875 em Toronto o Hôpital Pédia-
Recuando à Antiguidade, cabe referir que na trique.
Roma antiga foi elaborada uma disposição legal Portugal foi um país que se colocou na van-
assinada por Rómulo que concedia ao pai da guarda dos que se preocupavam com a assistência
criança o poder de abandonar os filhos nascidos hospitalar de crianças. Assim, em 1877 foi inaugu-
com defeitos congénitos. Portanto, nessa época, o rado em Lisboa o Hospital de Dona Estefânia e,
infanticídio era considerado legítimo. em 1881, no Porto, o Hospital de Crianças Maria
Do séc. XV chegaram-nos pinturas da escola Pia.
francesa que testemunham a atitude de abandono No final do século XIX a Pediatria, decorrente
em locais diversos ou de lançamento ao rio de da Medicina Geral, passara sucessivamente pelas
crianças acabadas de nascer, quer com peso defi- fases históricas designadas classicamente por aná-
ciente e consideradas inviáveis, quer com diversos tomo-clínica, funcional ou fisiopatológica e etio-
problemas incuráveis. patogénica ou microbiológica, e confrontava-se
Na transição do século XVIII para o século XIX com uma elevada mortalidade, explicada sobretu-
a Medicina englobava essencialmente dois gran- do por infecções e problemas nutricionais.
des ramos: um, dedicado à realização de partos e
ao recém- nascido (Obstetrícia), e outro à Medi- Assistência à Criança
cina Geral que se ocupava da criança, do adoles-
cente e do adulto. Até ao início do século XX, a figura central na
No final do século XIX a Medicina da Criança assistência era o médico omnisciente com um pa-
(ou Pediatria, do grego pais, paidos, criança e pel crucial de amigo e conselheiro, tocando a um
iatreia, tratamento) já se encontrava relativamente só tempo, todos os instrumentos, na arte de curar;
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde 3
tológicos haja necessidade de descer até às mi- Em suma, o médico devotado à criança e ao ado-
núcias da biologia molecular, no sentido mais ri- lescente deverá ter um conjunto de atributos que
goroso do âmbito da Pediatria, esta abrange toda definem o que se chama “profissionalismo”: hones-
uma resenha de vida em determinado período, tidade e integridade, espírito de responsabilidade,
pressupondo interacção com o meio físico, bioló- respeito pelos outros (a essência do humanismo),
gico, social (a família, a sociedade, o estado, os empatia, espírito de colaboração, capacidade de
seus pares). comunicação, a noção correcta dos limites da sua
Na medida em que é assumida tal compreen- competência, a sensibilidade para a actualização e
são da Pediatria torna-se difícil delimitar com aperfeiçoamento profissional, e o espírito de altruis-
rigor as suas fronteiras, não devendo ser entendi- mo e de advocacia em prol da criança.
da como uma especialidade. O objectivo último é privilegiar o bem- estar da
O exercício da clínica da criança e do adoles- criança ou adolescente como pessoas, valorizando
cente implica, pois, para além da competência téc- as suas potencialidades e minimizando os efeitos
nica e profissional, o domínio de conhecimentos, das condições adversas da vida.
atitudes e aptidões em campos que extravasam Efectivamente, está provado que experiências
largamente o âmbito exclusivamente biomédico. emocionalmente gratificantes induzem uma pro-
Com efeito, na actualidade, para responder jecção optimista, enquanto as frustrações amorte-
cabalmente aos desafios que a profissão lhe cem e embotam todo o potencial humano de de-
impõe, o médico assistente da criança e adoles- senvolvimento.
cente (pediatra ou não) deve ter uma preparação
humanista, com domínio de matérias relacionadas O conceito global de Saúde
com Pedagogia, Direito, Ética, Psicologia, So-
ciologia, Filosofia, Antropologia, entre outras, e De acordo com o conceito clássico da Organização
com aptidões e atitudes que o capacitem para o Mundial de Saúde (OMS) datado de 1946, entende-
exercício da defesa dos direitos das referidas pes- -se por saúde o estado completo de bem – estar físi-
soas com a indispensável cooperação da família e co, mental e social e não apenas a ausência de
da comunidade. É, pois, indispensável que o mé- doença ou enfermidade.
dico em causa saiba actuar contra as ameaças de A saúde depende, pois, de um estado de equi-
diversa ordem a que, na actualidade, crianças e líbrio activo e dinâmico entre o ser humano em
adolescentes, estão sujeitos, tais como a poluição, qualquer fase de crescimento e desenvolvimento e
a violência no ambiente urbano e rodoviário, o o seu meio. Numa perspectiva didáctica, podem
sedentarismo, os erros alimentares, a toxicode- ser considerados diversos factores com interferên-
pendência etc., e compreenda a necessidade de cia em tal equilíbrio:
intervenção de todo o sistema envolvente. – factores físicos; relativamente a outras espé-
Por outro lado, torna-se necessário que o refe- cies animais o ser humano está provido de recur-
rido médico e os serviços de saúde reconheçam sos mais escassos sob o ponto de vista físico: corre
que os pais são os primeiros responsáveis pela menos, trepa menos, adapta-se mais deficiente-
saúde dos seus filhos tornando-se fundamental mente às condições adversas de temperatura e de
assegurar uma verdadeira e eficaz colaboração humidade, por exemplo. As viaturas motorizadas,
entre os primeiros e os profissionais de saúde. constituindo “corpos estranhos” nos meios urba-
Aliás, diversos estudos têm demonstrado que os nos ou rurais e utilizando formas de energia com
pais e família resolvem a grande maioria dos características de velocidade e aceleração para as
problemas dos seus filhos sem procurar os ser- quais o seu organismo não está preparado, podem
viços médicos; torna-se, por isso, fundamental conduzir a morbilidade que pode ser exemplifica-
que os pais possam ter acesso, através dos meios da pelas consequências dos acidentes de viação.
convencionais de comunicação (livros, folhetos, Outros exemplos perturbadores do equilíbrio
revistas, internet) a informação para os ajudar a com repercussões de grau diverso na saúde são o
tomar decisões esclarecidas quanto à atitude cor- deficiente ordenamento urbano, as deficientes
recta a ter quando os filhos adoecem. condições de habitação e da rede viária.
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde 5
– factores biológicos; os agentes microbianos nem as ciências médicas ditas básicas. Saúde na
convivendo com o ser humano fazem parte dum Comunidade é um termo que também se usa
ecossistema. Uma das consequências do desequi- nesta acepção. No moderno conceito de Saúde
líbrio no meio comum ao homem e aos micróbios Pública, a noção de ambiente tem um sentido mais
origina as doenças infecciosas, sabendo-se que a lato abrangendo as suas componentes social, físi-
transmissão daqueles se pode fazer, não só direc- ca, biológica, assim como aspectos como a cultura
tamente de pessoa a pessoa, como através de com- e a economia envolventes, e o próprio Estado.
ponentes do meio como a água, alimentos, vec-
tores, etc.. Hoje em dia, com a facilidade de trans- Reconhecimento dos Direitos
portes por via aérea, tal transmissão pode fazer-se da Criança
com grande rapidez.
– factores sociais; ao longo dos séculos o ser A partir do início do século XX, o mundo passou a
humano, organizado em comunidades com carac- reconhecer cada vez mais a importância do ser
terísticas diversas, deu corpo a um sistema orga- humano em crescimento e desenvolvimento o
nizativo social e económico complexo caracteriza- que, ao longo de décadas, tem sido traduzido por
do por produção e troca de bens entre as mesmas um conjunto de eventos, iniciativas e documentos
(por exemplo produção e distribuição de energia, que se encontram sintetizados cronologicamente
de água, etc.) na procura de qualidade de vida e no Quadro 1.
aumento de sobrevivência. Daqui podemos Relativamente ao documento “Saúde para
inferir as consequências, para o estado de saúde, Todos no Ano 2000” cabe referir as suas grandes
que poderão resultar da falência de tal sistema. linhas de orientação correspondendo a outros tan-
– factores culturais; o ser humano é um ser tos compromissos dos Estados Membros: – igual-
que herdou cultura dos seus antepassados uti- dade de acesso à saúde; – promoção da sáude e
lizando os instrumentos próprios da sua civiliza- prevenção da doença; – participação activa da
ção, partilhando os bens colectivos da sociedade comunidade; – cooperação de todos os respon-
onde está inserido. Ora, o estado de saúde de- sáveis da saúde promovendo políticas no sentido
pende da utilização adequada dos recursos como de reduzir os riscos provenientes do ambiente físi-
nutrientes, água e ar; poderá haver perturbação co, económico e social; – sistema de saúde privile-
neste equilíbrio se os recursos forem inadequados giando os cuidados de saúde primários; – coope-
(por excesso ou por carência) ou se o estado edu- ração internacional com vista à resolução de pro-
cacional da população não permitir uma utiliza- blemas que não têm fronteiras como a poluição e
ção racional e equilibrada daqueles. As doenças a comercialização de produtos nocivos.
relacionadas com carências de alimentos (por
exemplo subnutrição) ou com excessos (obesida- Sistema de Saúde Português
de, diabetes, dependência de drogas, hipertensão,
aterosclerose, alcoolismo, etc.) traduzem, na Portugal conheceu nos últimos 30 anos um signi-
maior parte das vezes, comportamentos desvian- ficativo processo de mudança. Houve mudança
tes relacionados, quer com aspectos culturais, não só política, como económica e social e de
quer com disfunções dos mecanismos organiza- opções internacionais com a integração na União
tivos e educacionais. (Capítulo 38) Europeia, passando de uma estrutura social de
No sentido clássico, Saúde Pública é o conjunto subdesenvolvido para país desenvolvido.
de actividades organizadas pela colectividade para A testemunhar tal mudança, o relatório da
manter, proteger e melhorar a saúde do povo ou Organização Mundial de Saúde (OMS) colocou
das comunidades e grupos de população no meio Portugal em posição destacada no “ranking”
em que vivem (criação das condições ao ajusta- mundial dos melhores sistemas de saúde.
mento ecológico: indivíduos – meio ambiente). Pode afirmar-se que os progressos realizados
Habitualmente considera-se que o conceito de em Portugal, repercutindo- se no campo da Saúde
Saúde Pública é mais limitado do que o de Saúde, em geral, e no da Saúde Infantil e Juvenil em espe-
não abrangendo a medicina clínica individual cial, tiveram como base o desenvolvimento dos
6 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
1919 – Na sequência da degradação social e económica Eliminação do Trabalho Infantil (Convenção 182
no período pós-Iª Guerra Mundial, por iniciativa da Organização Internacional do Trabalho).
de uma inglesa Eglantyne Jebb, foi criada a Union 2000 – A Declaração do Milénio da ONU definindo
for Child Welfare. Objectivos do Desenvolvimento até 2015 incluindo
1924 – A Liga das Nações adopta a Declaração de Genebra metas específicas como a redução da taxa global de
sobre Direitos da Criança elaborada pela Union for mortalidade de menores de 5 anos em dois terços, a
Child Wefare: essencialmente, direito aos recursos redução a 50% das pessoas que passam fome, inter-
para o desenvolvimento material, moral e espiritual; romper e começar a reverter a disseminação do
direito à educação, protecção contra a exploração. vírus da imunodeficiência humana(VIH), educação
1948 – No âmbito da Assembleia Geral da ONU, foi primária universal, plano de luta contra o envolvi-
aprovada a Declaração dos Direitos Humanos em mento de crianças em conflitos armados, venda de
cujo artigo 25º é referido especificamente o “direi- crianças, prostituição e pornografia infantis.
to da criança a cuidados e assistência especiais”. 2002 – Assembleia Geral da ONU com a participação de
1978 – Na Conferência Internacional de Alma –Ata é centenas de crianças como membros de delegações e
recomendado que, como parte da cobertura total o compromisso de líderes mundiais na construção de
das populações por meio de cuidados primários um “mundo para as crianças”; foi reafirmado o papel
de saúde, se conceda prioridade máxima às neces- da família na responsabilidade primária pela pro-
sidades especiais de grupos vulneráveis incluindo tecção, educação e pelo desenvolvimento da criança.
grávidas e crianças. 2004 – Estratégia global sobre regime alimentar, activi-
1979 – A ONU consagrou este ano como “Ano dade física e saúde definida pela OMS, com impli-
Internacional da Criança”. cações na criança e adolescente
1984 – Documento-Programa da OMS “ Saúde para 2007 – O relatório “Situação Mundial da Infância 2007” re-
Todos no ano 2000”. fere que a igualdade de género e o bem estar da
1989 – A Assembleia Geral da ONU aprovou por unani- criança são indissociáveis: quando a mulher tem
midade a “Convenção sobre os Direitos da Criança”. maior poder para viver de maneira plena e pro-
1990 – Na “ Cimeira Mundial pela Criança” em Nova dutiva, as crianças prosperam.
Iorque os líderes de 71 países assinaram a “Decla- 2011 – O relatório “Situação Mundial da Infância -2011”
ração Mundial sobre a Sobrevivência, Protecção e refere a necessidade de investir nos adolescentes,
o Desenvolvimento da criança”. completando o que tem sido feito relativamente à
1994 – No Ano Internacional da Família foi reafirmado o 1ª década da vida. Adverte também sobre as
papel primordial das famílias nos programas de pressões impedindo que 70 milhões de adoles-
apoio e protecção das crianças. centes beneficiem de escola, e sobre a exploração e
1999 – Foi adoptada a Convenção para a Proibição e violência de que têm sido vítimas.
diversos níveis de cuidados (os chamados cuida- Criança e do Adolescente (CNSCA) divulgou a
dos primários, os cuidados hospitalares e os cui- chamada Carta Hospitalar de Pediatria que
dados continuados) exigindo, para o respectivo definiu os requisitos mínimos para os serviços que
funcionamento, recursos humanos e materiais. prestam cuidados a crianças e jovens; neste docu-
mento são definidos 2 tipos de Serviços de
Cuidados de Saúde Primários (CSP) Pediatria: Geral e Especializada (SPG e SPE). No
mesmo documento foram estabelecidos os
Os CSP constituem a estrutura essencial do SNS seguintes princípios: 1) SPG para 60.000 indívi-
em que o médico de família exerce papel de duos até 18 anos e 1 SPE para 300.000. 2) Nos SPG,
primeira linha na prestação de cuidados à popu- quadro de 7 pediatras com < 55 anos (ou 14 pedia-
lação incluindo, claro, crianças e adolescentes, tras se existir maternidade). 3) SPE com Urgência
salientando-se que o quadro dos centros de saúde de Cirurgia Pediátrica. 4) Desenvolvimento de
(CES) não integra pediatras. Os restantes níveis de unidades de internamento de curta duração.
cuidados, de um modo geral, tradicionalmente
praticados em hospitais, constituem uma segunda Cuidados Continuados Integrados
linha de intervenção à qual o doente acede após
referenciação pelo médico de família, exceptuan- Em 2003 foi aprovada a Rede de Cuidados Con-
do nos casos de urgência e emergência em que tinuados constituída por todas as entidades públi-
está previsto o acesso directo. cas, sociais e privadas (incluindo as Misericórdias)
No âmbito dos centros de saúde (CES) ou com a finalidade de promoção de bem estar e con-
estruturas vocacionadas para a prestação dos forto aos cidadãos (incluindo crianças) portadores
cuidados primários, têm sido constituídos agru- de doenças crónicas ou de situações de limitação
pamentos (ACES) formando, juntamente com os funcional em articulação com os cuidados de saú-
hospitais em determinada área definida, as de primários e hospitalares.
chamadas unidades locais de saúde (ULS) com Tratando-se duma valência lançada em 2006,
gestão relativamente autónoma de modo a obter- cabe referir a existência de 131 unidades em 2011
se mais eficiente articulação e mais fácil acesso dos segundo dados oficiais, não especificando eventu-
utilizadores. De referir que em 2006 tivera início a ais valências pediátricas.
reforma e reconfiguração dos CSP, ocorrendo a
abertura das chamadas unidades de saúde famil- População e Recursos
iar (USF) ou centros de saúde com modelos par-
ticulares de gestão. Em 2011, de acordo com o Instituto Nacional de
Em 2010 a oferta de cuidados de saúde pri- Estatística (INE), apurou-se em Portugal uma
mários (CSP) pelo SNS em Portugal Continental população de 10.555.853 habitantes, correspon-
integrava 378 centros de saúde agrupados em 74 dendo 2.020.965 a idade inferior a 18 anos. De
ACES e 230 USF. salientar que em 2008 a faixa de população jovem
(< 15 anos) [~1,6 milhões] era inferior à da faixa
Cuidados Hospitalares senior (> 65 anos) [~1,9 milhões], o que traduz
e Extra-Hospitalares Pediátricos envelhecimento demográfico. Os custos na área
da saúde em 2010 corresponderam a 9,9% do PIB.
Em 2010 a rede hospitalar do SNS do continente inte- Nos últimos anos o sector público tem investi-
grava 103 hospitais organizados em 20 centros hos- do especialmente em CSP, aumentando a respecti-
pitalares, incluindo 83 hospitais especializados com va parcela da despesa pública em relação ao total
assistência pediátrica), 10 hospitais centrais especial- da despesa com a saúde. O peso do do sector da
izados com serviços pediátricos, e 3 hospitais centrais saúde no PIB português era de 2,5% em 1970,
especializados pediátricos. No que se refere a institu- atingindo 10,2% em 2005, acima da média
ições privadas propiciando cuidados pediátricos em europeia dos quinze países, que era 9,2%. O peso
geral, o INE referia em 2008 o número de 86. da despesa pública no total das despesas de saúde
Em 2008 a Comissão Nacional da Saúde da evoluiu entre 1970 e 2006, respectivamente de 59%
8 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
para 70,6%. salientando-se que 30% dos custos são • excessiva procura dos serviços de urgência
pagos pelos cidadãos, adicionalmente aos impos- dos hospitais centrais por oferta insuficiente
tos, os quais contribuem para o financiamento das de consultas nos hospitais e centros de
despesas de saúde. De acordo com especialistas saúde.
em economia e finanaças esta tendência crescente De facto, o modelo integrado de assistência à cri-
de despesas, superior ao ritmo de criação de ança e adolescente nos CSP pelos médicos de
riqueza pelos cidadãos contribui para a insus- família (vigilância de saúde infantil), e nos hospitais
tentabilidade do actual SNS português. por equipas pediátricas (tratamento de situações
Segundo a Ordem dos Médicos, relativamente a mais complexas e graves obrigando eventualmente
2008 há a registar os seguintes números: a) médicos- ao recurso a tecnologias sofisticadas dominadas por
38.932 (correspondendo 69% a especialistas e 28% a sub-especialistas) implica uma articulação perfeita
extra-hospitalares); ratio global de 3,7 médi- entre os diversos níveis de cuidados. Para atingir tal
cos/1.000 habitantes; b) o referido número de médi- objectivo, em 2008 a CNSCA considerou fundamen-
cos inclui 1505 pediatras (sendo 45% extra-hospita- tais determinadas linhas de actuação:
lares) permitindo ratio específico de 1/1.500 habi- 1 – dinamização das chamadas unidades coor-
tantes com < 18 anos; c) 5005 médicos de família, denadoras funcionais (UCF) criadas em 1991, con-
considerando-se que existe défice fora da zona cen- gregando profissionais do serviço de pediatria do
tro do país. Quanto à idade dos médicos importa hospital de referência do ACES e do próprio ACES
salientar as seguintes percentagens: com <35 anos - para análise e resolução de problemas diversos; 2
17%; e com > 65 anos – 11,4% (dados de 2008). – criação da figura do pediatra consultor desig-
A taxa de cobertura em saúde infantil a nível nado pelo serviço de pediatria do hospital de
nacional ronda os 90% sendo que 85% das respec- referência do ACES; 3 – aperfeiçoamento na for-
tivas consultas são efectuadas nos CSP. mação em medicina da criança e adolescente, quer
na universidade, quer na pós-graduação (interna-
Problemas organizativos e soluções to de medicina geral e familiar).
Numa tentativa de minorar as dificuldades
Diversos estudos recentes têm evidenciado alguns resultantes do excessivo afluxo de doentes pediátri-
problemas ou pontos fracos do sistema, desig- cos aos serviços de urgência nas grandes cidades, a
nadamente deficiente articulação entre os vários tutela determinou, no ano 2000, uma nova meto-
níveis de cuidados com repercussão na prestação dologia de acesso aos serviços de urgência hospita-
de cuidados à criança e adolescente: lar, considerando que o acesso ao Serviço Nacional
• listas de espera, quer nos centros de saúde, de Saúde se processava através do centro de saúde.
quer nos hospitais; Para atingir tal objectivo foi criado um serviço
• assimetrias regionais qunto à distribuição de de atendimento/consultadoria permanente por
pediatras, concentrados sobretudo nos gran- via telefónica 24 horas/dia (em 1998 em Lisboa e
des centros de Lisboa, Porto e outras grandes Coimbra e, mais tarde para todo o país) com o
cidades do litoral em contraste com a deser- nome de Saúde 24-Pediatria dirigido ao grupo
tificação do interior; etário 0-14 anos, segundo um modelo aplicado
• défice de pediatras para a organização dos nos Estados Unidos a cargo de profissionais com
serviços de urgência pediátrica de Lisboa e formação específica.
Porto; Em 2007 teve início um programa de reestru-
• elevada prevalência de pediatras com idade turação dos serviços de urgência hospitalares en-
superior a 50 anos; cerrando alguns com o objectivo de concentração
• défice de profissionais de enfermagem de recursos humanos e materiais noutros hospi-
condicionando o recurso à “importação” de tais de determinada região tendo em vista a me-
elementos estrangeiros; lhoria dos cuidados. Esta medida que contempla a
• escassa relevância dada à investigação clíni- garantia do sistema de transporte tem sido contes-
ca ligada aos cuidados de saúde nas diversas tada em zonas do interior, desertificadas e de mais
vertentes. difícil acesso.
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde 9
sequelas no que respeita a doenças como po- ma da sáude é total e brutalmente diferente do ideal que
liomielite, carência em iodo, oncocercose, traco- se pretende atingir parafraseando Kofi Annan, ao
ma, xeroftalmia, como consequência de acções tempo Secretário Geral das Nações Unidas.
específicas desenvolvidas (políticas de acessibili- Eis alguns dados expressivos dos países em
dade universal e equitativa aos serviços de saúde, desenvolvimento divulgados no referido relatório:
acesso universal à educação, maior disponibili- • os gastos militares nos países em desen-
dade de alimentos, formação de profissionais de volvimento consomem cerca de 140 biliões
saúde, e apoio de carácter técnico ou organizativo de dólares por ano, recursos suficientes para
por parte de países de maiores recursos). acabar, em dez anos, com a pobreza absoluta
Em 1994, através da Comissão de Vigilância em todo o planeta e satisfazer as suas neces-
Epidemiológica da Rússia, foi chamada a atenção sidades básicas de alimentação, água, saúde
dos gestores da saúde para o papel da estabili- e educação;
dade político-económica em diversas regiões e • cerca de 121 milhões de crianças, na imensa
países como garantia de êxito das medidas a levar maioria vivendo nos países africanos ao sul
a cabo para a melhoria do panorama da saúde em do Saará, não frequentam a escola sendo-
geral, e da saúde infantil em especial: o exemplo -lhes negado o seu direito à educação em
vem precisamente da Rússia, país em que, com a contradição com o compromisso dos gover-
degradação económica, se verificou declínio da nantes ao assinarem a Convenção sobre os
esperança de vida na população, a par do aumen- Direitos da Criança;
to da incidência de doenças infecciosas (respecti- • diariamente cerca de 30 mil crianças morrem
vamente 290% e 180% em 1993 e 1994). devido a doenças evitáveis, o que se traduz
Em 2001 a Organização Mundial de Saúde em 11 milhões de mortes infantis por ano;
(OMS) criou o Child Health Epidemiology Reference • mais de meio milhão de mães morre anual-
Group (CHERG) para a obtenção de dados sobre mente por complicações surgidas durante a
mortalidade infantil em todo o mundo. gravidez e parto;
De acordo com os estudos realizados por aque- • mais de 2 milhões de crianças de idade infe-
le grupo de estudo apurou-se que nos anos de 2005 rior a 15 anos estão infectadas com o vírus da
e 2006 morreram em todo o mundo cerca de 11 mi- imunodeficiência humana (VIH) fazendo
lhões de crianças com idade inferior a 5 anos cor- prever número superior a 18 milhões de
respondendo a grande maioria de tais óbitos (73%) crianças órfãs como consequência da síndro-
a seis causas principais: problemas respiratórios ma de imunodeficiência adquirida (SIDA)
(19%), diarreia (18%), malária (8%), infecção sisté- persistindo para além de 2015;
mica do recém-nascido (10%), parto prematuro • a malária continuará a ser uma das princi-
(10%), complicações do parto (8%). Salienta-se que pais causas de morte infantil, pois a disponi-
a infecção sistémica e a pneumonia explicaram 26% bilidade e a utilização de mosquiteiros e
de todos os óbitos no grupo etário pediátrico. medicamentos são limitadas por razões com-
Considerando a relação entre grupos nosológi- portamentais e financeiras;
cos e mortalidade nas crianças de idade inferior a • a prática da mutilação genital feminina
5 anos, foram apurados os seguintes valores per- ainda é levada a cabo em cerca de 2/3 das
centuais: má- nutrição- 53%, diarreia- 61%, pneu- crianças em países africanos desenvolvendo-
monia -52%, sarampo- 45%. se actualmente uma campanha liderada pela
Apesar do reconhecimento dos direitos das UNICEF e o patrocínio e exemplo do gover-
crianças e de todas as recomendações dos organis- no de Burquina Fasso onde uma importante
mos internacionais, designadamente da ONU, o campanha de educação pública suportada
relatório “Situação Mundial da Infância refe- por legislação conseguiu reduzir a respectiva
rente a 2005” mostra claramente que, para cerca incidência em 32%;
de 50% dos dois biliões de crianças e jovens que • nas áreas rurais mais de 1 bilião de pessoas,
vivem no mundo, com especial relevância para os (um quinto da humanidade) ainda carece de
dos países pobres em desenvolvimento, o panora- alimentação adequada, saneamento básico
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde 11
mínimo, água potável, níveis elementares da Duas situações merecem uma referência espe-
educação e de serviços básicos de saúde; cial: a obesidade e as situações de pobreza nos
• mais de 250 mil crianças continuam a morrer países ricos;
em cada semana por diarreia e desnutrição • a obesidade corresponde a uma situação da
evitáveis, não beneficiando duma medida de mais elevada prevalência nos países da
baixo custo, o soluto de reidratação oral da abundância, aparecendo, no entanto, já nos
OMS; países em desenvolvimento como a Índia;
• o sarampo, a tosse convulsa e o tétano, doen- trata-se, efectivamente da grande epidemia
ças susceptíveis de prevenção com vacinas do séc XXI (a abordar no capítulo 57) con-
de baixo custo, ainda matam diariamente 8 duzindo a uma redução da esperança de
mil crianças. vida pela co-morbilidade associada; em ter-
No cômputo geral da mortalidade no grupo mos de patologia assiste-se a uma ambiva-
etário pediátrico nas seis regiões da OMS, a sín- lência insólita pois noutras partes do globo
droma de imunodeficiência adquirida (SIDA), a muitas crianças, adolescentes e adultos mor-
infecção pelo VIH (vírus da imunodeficiência rem de fome;
humana) e a tuberculose constituem hoje os prin- • quanto às situações de pobreza nos países
cipais problemas globais da saúde. ricos, este problema foi recentemente objecto
Como pontos positivos do panorama da saúde de um documento da UNICEF levado a cabo
mundial de acordo com o relatório UNICEF 2008 pelo Innocenti Research Centre no âmbito dos
cabe particularizar: o exemplo da China onde se países da OCDE nos quais se inclui Portugal;
está a operar a Segunda Revolução – a da Saúde, nele se refere que entre os referidos países
com diminuição da TMM5 de 47% desde 1990; e o com maior taxa de pobreza se incluem os
doutros países (Butão, Bolívia, Nepal, Laos) com Estados Unidos da América do Norte e o
diminuição de 50%. México(20%); quanto aos de menor taxa,
simultaneamente menos populosos, são
Países industrializados mencionados a Dinamarca e a Finlândia,
com menos de 3%, juntamente com a Suécia
Nos países industrializados de economia evoluí- e a Noruega, com cerca de 5%. Portugal jun-
da, com uma problemática da saúde completa- tamente com o Reino Unido, Itália, Irlanda e
mente diversa, foi também possível nas duas Nova Zelândia surgem actualmente com
décadas anteriores obter progressos assinaláveis taxas consideradas altas: 15 – 17%.
face ao desenvolvimento da biologia molecular,
da tecnologia biomédica, das neurociências, da Saúde Infantil e Juvenil em Portugal
cirurgia de transplantação, do intensivismo médi-
co-cirúrgico e do projecto do genoma humano. Mortalidade e outros indicadores
Tais progressos podem ser testemunhados Como indicadores de desenvolvimento dum país
pela análise de alguns indicadores referidos são habitualmente considerados, entre outros, a
adiante, a propósito da comparação do panorama esperança média de vida da população, a capitação
português com o doutros países. do produto nacional bruto (PNB), o poderio militar,
No entanto, nestes países, a par do desenvolvi- a taxa de mortalidade infantil (TMI) e a taxa de
mento em áreas de ponta da medicina, tem emergi- mortalidade de menores de 5 anos (TMM5).
do dramaticamente outro tipo de problemas, Para avaliar o bem-estar da criança considera-
muitos deles em focos degradados das grandes ci- se actualmente que a TMM5 constitui o critério
dades como sejam: a disfunção familiar, a gravidez mais adequado, pois ele traduz, com maior confia-
na adolescência, a delinquência juvenil, o problema bilidade, as condições de desenvolvimento social
das “crianças de rua” , a toxicodependência, a infec- e económico, o grau de educação para a saúde da
ção pelo VIH, a violência e o estresse.Tais proble- família e cidadãos em geral, a disponibilidade de
mas, criando novas morbilidades, obrigam a pro- serviços de saúde materno-infantil incluindo os
gramas integrados de intervenção social. de assistência pré-natal, a disponibilidade de
12 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
saneamento básico e a segurança do meio am- de outros países como o Reino Unido, a Alemanha
biente em que a criança vive. e a França. Até então, efectivamente, tinha-se re-
Por outro lado, a TMM5 é menos influenciada gistado algum progresso no respeitante à mortali-
pela falácia dos valores traduzidos pela noção dade pós-neonatal, continuando estáveis as taxas
aritmética de “média” do que o PNB per capita. de mortalidade neonatal e fetal tardia (NV + FM).
Com efeito, para dar um exemplo, a escala natural As Figuras 1 e 2 resumem respectivamente a
não permite que a probabilidade de uma criança evolução das taxas de mortalidade infantil e peri-
rica sobreviver seja mil vezes maior do que a duma natal até 2003:
criança pobre, ainda que a escala feita pelo homem – mortalidade infantil (com taxa de 77,5/1000
lhe permita ter um rendimento mil vezes maior; ou em 1960, baixando progressivamente para
seja, é muito pouco provável que uma TMM5 7,9/1000 em 1994 e para 4,1/1000 em 2003. [entre
nacional seja afectada por uma minoria rica. 2004 e 2011 (oito anos) a evolução foi a seguinte:
A velocidade com que se avança na redução da 3,7→3,5→3,3→3,4→3,2→3,6→2,4→3,1];
TMM5 pode ser determinada pela respectiva taxa – mortalidade perinatal – considerando o limi-
média de redução anual (TMRA) devendo ser te de 28 e mais semanas – reduzindo-se de
realçado que uma diminuição de, por exemplo 31,9/1000 em 1975 para 12,4/1000 em 1990 e para
dez pontos de uma TMM5 elevada tem significa- 5,3 em 2003. [em 2004, 2010 e 2011 registaram-se
do diferente de uma mesma diminuição de dez respectivamente as taxas de: 4,4 , 3,5 e 3,9].
pontos a partir de uma TMM5 mais baixa (uma No que se refere às taxas de mortalidade infan-
diminuição na TMM5 de 10 pontos entre 100 e 90,
1975 38,9
representa uma redução de 10%,enquanto a 1980
1981
24,3
21,8
1991
1983
1987
1989
1993
2001
2003
1981
1975
1995
1997
1999
1998 5,9
15
dez e do parto. A mortalidade pós- neonatal está 1994
1995
9,2
9,0
10
1996 8,4
1991
1983
1985
1989
1993
1999
2001
2003
1995
1975
1981
1997
2001 5,5
til no nosso país, é importante salientar grandes QUADRO 2 – Taxa de mortalidade de menores
variações regionais: em 2010 as mesmas oscilaram de 5 anos referido a determinado
entre 0,5 e 5,5/1000 e a mortalidade infantil foi ano (TMM5)
comparticipada em 68% por óbitos neonatais, e (nº de óbitos entre a data de nascimento e
precisamente os 5 anos de idade por 1000
em 32% por óbitos pós-neonatais. nado-vivos no referido ano)
A evolução das taxas de mortalidade infantil e
perinatal em vários países da EU no período com- TMM5 (em 2007)*
preendido entre 1975 e 2003 pode ser observada Suécia 3
nas Figuras 3 e 4. Noruega 4
No âmbito da União Europeia (EU), como se Portugal 5
pode verificar na Figura 3, Portugal registava em Dinamarca 5
1985 a mais elevada mortalidade infantil Estados Unidos 8
(17,8/1000) relativamente aos países restantes. * Entre os 24 países do mundo, com melhores taxas, o valor mais baixo, de 3 é representado pela
Suécia, e os mais elevados respectivamente de 284 e 260, pela Serra Leoa e por Angola.
Nesse ano, a média europeia situava-se nos 9,5
óbitos até ao 1 ano de idade por mil nado vivos.
Contudo, em 2004 Portugal já registava 5ª melhor /1000 NV
30
1991
1989
1993
1995
1999
1987
1997
1975
1977
1979
1981
1983
1985
2001
2003
No referente à TMM5, em 2007, Portugal ocu-
WHO/Europe, 2005
pava o 3º lugar ex aequo com outros 11 países, entre
Fonte: Direcção Geral da Saúde
194 (Quadro 2). E em 2010 fazia parte dos países
FIG. 4
do mundo com taxas de declínio mais acentuadas
quanto à referida TMM5. Mortalidade Perinatal na Europa.
Quanto à natalidade (decrescente desde 1960
com 213895 nado vivos) há a registar os seguintes habitantes), o valor mais baixo desde que há re-
dados: em 1980, com 158352 nado vivos(nv); em gistos nacionais. Em 2010 a taxa de natalidade
1990 com 108845 nv; em 2003 com 112589 nv; e em subiu ligeiramente para 9,5/1.000 (correspon-
2009 com 99.576 (taxa de 9,4 nado vivos /1.000 dente a 101.507 nv, mais 1931 do que no ano ante-
rior) (ver glossário geral). Na EU outros dois paí-
/1000 NV
ses partilhavam em 2010 com Portugal as taxas de
45
40
natalidade mais baixas: são a Alemanha (com 7,9)
35 Finland e a Áustria (com 9,1).
France
30 Greece No que respeita ao índice sintético de fecundi-
Italy
25
Luxembourg
Portugal
dade (ISF) ou número médio de filhos por mulher,
20
15
Spain
Switzerland
no último decénio (2001-2011) manteve-se o que se
10
United Kingdom
EU members
vinha verificando desde 1982: a renovação de gera-
5 ções deixou de estar garantida, pois para que cada
0
mãe procrie uma futura mãe é necessário que as
1987
1989
1991
1993
1997
1999
1995
2003
1975
1977
1979
1981
1983
2001
1985
QUADRO 3 – Mortalidade por causas e idades perinatal representaram mais de 50% dos óbitos
(Ano de 2003) Portugal respectivos; c) os acidentes de transporte e as
causas externas foram mais frequentes entre os 15
Causas 0–<1 1–4 5–9 10–14 15–19 Total e 19 anos; d) elevada dimensão numérica do item
D. Infec. Intest. 1 1 - - - 2 doenças não classificadas traduzindo insuficiên-
Infec. Meningoc. 8 3 - 1 1 13 cia de informação clínica nos certificados de óbito
Septicemia 4 2 - - 2 8 relacionável com baixo índice de realização de
D. S. T. 1 - - 1 - 2 autópsias em Portugal em comparação com ou-
Infec. VIH - - - - 2 2 tros países; e) a relação entre o número de óbitos
Meningite 2 3 1 1 - 7 no 1º ano de vida e o número de óbitos dos 0-19
Outras D.I.P. - 1 1 1 2 5 anos foi 475/1336 ou 35,5%; f) a relação entre o
Pneumonia 7 6 2 3 4 22 número de óbitos dos 0-19 anos e o número de
D. Pulm. Crónica 2 1 1 1 2 7 óbitos em todas as idades foi 1336/109148 ou
Outras D. Resp. 3 2 1 - 2 8 1,2% (dados do Instituto Nacional de Estatís-
Tumor sólido 2 2 10 15 20 49 tica/INE).
Leucemia 1 5 5 2 1 14 São referidos seguidamente alguns indicadores
Anemia 1 - - 1 1 3 de mortalidade, morbilidade, desenvolvimento, e
D. Fígado 2 - - - - 2 taxas de imunização, comparando dados de Portu-
Diabetes mellitus - - - - 1 1 gal com os doutros países. (Quadros 4 e 5). O
D. Ment. Comport. - - - - 1 1 Quadro 6 refere-se à situação de infecção por
D. Cérebr. Vascul. 4 2 1 3 9 19 VIH/SIDA no nosso país (casos por grupo etário e
D. Card. Reum. Crón.- - - - 1 1 ano de diagnóstico entre 1983 e 2009), salientando-
D. Isquém. Card. - 1 - 1 2 4 se o decréscimo ao longo dos anos.
Outras D. Card. 7 4 3 3 10 27
D. Perinatais 238 1 - 1 - 240
Dados de morbilidade
Anomal. Congén. 117 21 11 5 7 161
Em Portugal a análise de dados sistematizados
Ac. Transporte 5 15 21 32 108 181
nacionais sobre morbilidade depara com algumas
Causas Externas 19 38 43 44 169 313
limitações, estando disponíveis apenas dados
Quedas - 3 3 2 5 13
parcelares sobre problemas específicos publicados
Afogamento - 7 6 3 10 26
por grupos de investigadores institucionais em
D. Não Classificadas 51 35 24 35 60 205
revistas científicas, ou obtidos através da consulta
Totais 475 153 133 155 420 1336
das publicações do Instituto Nacional de
Abreviaturas: Intest-intestinal; Infec.-infecção; Meningococ-meningocócica; DST-doenças Estatística (INE), do Observatório Nacional da
sexualmente transmissíveis; VIH-vírus da imunodeficiência humana; DIP-doenças infec-
ciosas e parasitárias; Resp-respiratória; Cérebr-vascul-cérebro-vascular; Card-cardíaca; Saúde (ONSA), do Centro de Vigilância Epide-
Anomal.-anomalias; Ac.-acidentes; d-doenças. (Idades em anos). D. Ment. Comport.-doenças
mentais e comportamentais. miológica das Doenças Transmissíveis (CVEDT) e
Fonte: INE/Direcção Geral da Saúde, 2003 do Centro de Estudos e Registo de Anomalias
Congénitas (CERAC) ligados ao Instituto Nacio-
nal de Saúde Dr. Ricardo Jorge, ou dos Médicos-
va: 61% no ano de 1950, 0,4% no ano de 2000 e 0,2% -Sentinela.
em 2006. No âmbito da Sociedade Portuguesa de Pe-
O Quadro 3 dizendo respeito aos óbitos por diatria (SPP) funciona desde 2001 um departa-
grupos etários e às respectivas causas (ano de mento intitulado Unidade de Vigilância Pediátrica
2003) sugere as seguintes considerações: a) as (UVP) – fazendo parte da “International Network of
quatro causas mais frequentes de mortalidade Pediatric Surveillance Units”, actualmente em par-
dos 0-19 anos foram, por ordem decrescente, ceria com o ONSA. Os seus objectivos são pro-
problemas perinatais, causas externas e acidentes mover, facilitar e desenvolver o estudo de doenças
de transporte, as anomalias congénitas e os raras ou pouco frequentes, importantes para a
tumores sólidos; b) no primeiro ano de vida as Pediatria e Saúde Infantil. Os dados são obtidos
anomalias congénitas e os problemas do período através dum sistema de notificação mensal me-
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde 15
diante envio de cartões para preenchimento de até aos três meses de vida, Encefalomielite
retorno sistemático pelos sócios da SPP e médicos /Mielite, Infecção congénita por citomegalovírus
exercendo funções em instituições prestando (CMV), Herpes zoster e Varicela com hospitaliza-
cuidados à criança e adolescente. ção, Lesões traumáticas provocadas por andaril-
Até Janeiro de 2012 foram ou estão a ser inves- hos, Paralisia cerebral aos 5 anos de idade, Surdez
tigadas as seguintes doenças: Diabetes mellitus hereditária, Infecção congénita por Toxoplasma
antes dos 5 anos, Síndroma hemolítica urémica, gondii e Acidente vascular cerebral.
Doença de Kawasaki, Infecção por Streptococcus B Portugal está entre os países da Europa mais
afectado pela infecção VIH/SIDA, sendo consid-
QUADRO 5 – Percentagem de crianças erado de elevada vulnerabilidade ao aumento da
vacinadas ao 1 ano de idade (%) incidência.
(ano de 2006) O Quadro 6, referindo dados do CVEDT,
especifica o número de casos em função de grupos
País BCG DTP Pólio Sarampo HB Hib etários até 19 anos entre os anos de 1983 e 2009
Portugal 89 99 96 96 95 93 totalizando 353.
Noruega – 90 90 84 – 94 Relativamente ao tipo de transmissão, refira-se
Austrália – 92 92 93 95 94
Áustria – 84 84 79 83 83 QUADRO 6 – Infecção por VIH /SIDA
Brasil 99 99 99 99 99 99 em Portugal – nº de casos
Canadá 91 88 95 – – 94
Egipto 98 98 98 98 98 94 Grupo 1983/ 1998/ 2001/ 2004/ 2007/ Total
USA – 96 91 93 92 94 etário 1997 2000 2003 2006 2009
França 85 97 97 86 29 87 0-11 meses 36 4 6 3 3 52
Grécia 88 88 87 88 88 88 1-4 anos 22 3 2 4 1 32
Costa Rica 87 88 88 89 86 89 5-9 anos 16 3 2 2 2 25
Eslovénia 98 92 93 94 – 97 10-12 anos 5 1 0 0 0 6
Espanha – 98 98 97 83 98 13-14 anos 13 0 2 0 1 16
HB= Hepatite B Fonte: UNICEF, 2008 15-19 anos 92 39 25 7 7 170
Hib= Hemophilus influenzae b
16 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
que, no mesmo período, em 101 casos foi compro- Boletim da Unidade de Vigilância Pediátrica da Sociedade
vada a transmissão vertical mãe/filho). Portuguesa de Pediatria. www.spp.pt/uvp (acesso em
Com base nas estatísticas do INE e da Comis- Outubro de 2007)
são Nacional de Saúde da Criança e do Adolescen- Carvalho MCA. Saúde da criança portuguesa em 1989-alguns
te, são referidas seguidamente diversas formas de indicadores. Saúde Infantil 1989; 11: 157-172
morbilidade em idade pediátrica, representativas Comissão Nacional de Saúde da Criança e do Adolescente.
da situação actual no nosso país; algumas destas Lisboa: Alto Comissariado da Saúde, 2009
situações serão retomadas noutros capítulos. Direcção Geral da Saúde (DGS)/Divisão de estatística.
– Acidentes rodoviários: rácio de 1 óbito/3 Natalidade, mortalidade infantil, fetal e perinatal
doentes crónicos com sequelas (dados de 1999/2003. Lisboa: ed. DGS, 2004
2008) Ferrinho P, Bugalho M, Pereira-Miguel J. (eds). For Better
– Lesões traumáticas por actos de violência Health in Europe – Volumes I e II. Lisboa: ed. Fundação
(2002-2004): 479 crianças (0-14 anos) hospita- Merck Sharp & Dohme, 2004
lizadas em instituições do Serviço Nacional Gomes-Pedro J, Nugent JK, Young JG, Brazelton TB. A Criança
de Saúde e a Família no Século XXI. Lisboa: Dinalivro, 2005
– Situações de risco social (incluindo casos de Lantos JD, Ward NA. A new Pediatrics for a new century.
maus tratos): cerca de 3000 crianças hospital- Pediatrics 2013; 131:S121-S126
izadas no ano de 2003, aumentando cerca de Levy ML. 50 anos de Pediatria em Portugal . Acta Pediatr Port
20% em 2004 1999; 30: 93-99
– Antes da integração dos novos países que Lobo-Antunes J. A Nova Medicina. Lisboa:Fundação Francisco
passaram a integrar a Europa dos 27, Por- Manuel dos Santos, 2012
tugal era o país da EU com maior incidência Ministério da Saúde/Direcção Geral da Saúde. Saúde em
de sífilis congénita. Portugal – Uma estratégia para o virar do século.
Em suma, pode afirmar-se que para a melhoria Orientações para 1997. Lisboa: ed. Ministério da Saúde,
dos indicadores de saúde infantil e juvenil em 1997
Portugal (salientando-se que a mortalidade infan- Ministério/Direcção Geral da Saúde. Saúde Juvenil- relatório
til baixou cerca de 75% entre 1980 e 1998, sendo sobre Programas e oferta de Cuidados-2004. Lisboa: ed.
actualmente, como a perinatal, a 2ª melhor da Ministério da Saúde, 2004
União Europeia) contribuiram, esssencialmente, Ministério/Direcção Geral da Saúde. Plano Nacional de Saúde
os progressos no nível educacional da população, 2004-2010 /volumes I e II – Prioridades. Lisboa: ed.
o desenvolvimento da rede de cuidados primá- Ministério da Saúde, 2004
rios, a melhoria da assistência ao parto e dos cui- Rosa MJ, Chitas P. Portugal: os Números. Lisboa: Fundação
dados perinatais, o programa nacional de vacina- Francisco Manuel dos Santos, 2010
ção (com taxas de cobertura que são superiores a UNICEF – The State of the World’s Children 2006. New York:
98 % conduzindo a diminuição drástica das doen- UNICEF. House Edition, 2006
ças infecciosas nos primeiros dois anos de vida), a UNICEF – The State of the World’s Children 2007. New York:
organizção da assistência perinatal, e o desen- UNICEF House Edition, 2007
volvimento do intensivismo neonatal e pediátrico UNICEF – Situação Mundial da Infância 2008. New York:
incluindo o respectivo transporte. UNICEF House Edition, 2008
No cômputo geral das causas de mortalidade Videira-Amaral JM: Mortalidade em menores de 5 anos.
em idade pediátrica sobressaem actualmente, os Considerações sobre um artigo recente na revista Lancet.
problemas perinatais (nas primeiras idades), os Acta Pediatr Port 2010;41:191-193
tumores, e os acidentes e as situações relacionadas Videira-Amaral JM: Neonatologia no Mundo e em Portugal. –
com actos violentos (na segunda infância e ado- Factos históricos. Lisboa: Angelini, 2004
lescência). www.acs.min-saude.pt (acesso em Junho de 2010)
www.dgs.pt (acesso em Julho de 2013)
BIBLIOGRAFIA www.pordata.pt (acesso em Julho de 2013)
Alto Comissariado da Saúde. Atlas do Plano Nacional de
Saúde. Lisboa: Ministério da Saúde, 2010
CAPÍTULO 2 Os superiores interesses da criança 17
2
Pais Monteiro refere, a este propósito, a asso-
ciação que S. Paulo faz da criança na sua epístola
aos Gálatas: «Enquanto o herdeiro é menor, se bem que
seja o senhor de tudo, em nada se diferencia de um
escravo».
A civilização grega que tanto inspirou e inspi-
ra, ainda, a cultura da dita civilização ocidental
OS SUPERIORES INTERESSES ignorou, quase por completo, a criança.
Sempre numa perspectiva reducionista, ao
DA CRIANÇA tratar da infância, Galeno tentou a conciliação
entre o corpo e o espírito, porém sempre numa
João Gomes-Pedro representação etimológica do mal que proviria
quer do «interior natural», quer do contexto exte-
rior que hoje identificamos à circunstância ou
envolvimento de cada criança.
A criança passou pela História quase até ao séc. XX A teologia cristã, nomeadamente em todo o
sem nunca ter visto ser reconhecida a sua natureza Antigo Testamento, estigmatiza a criança identifi-
e as suas necessidades irredutíveis, designada- cando-a inequivocamente ao mal.
mente a de ter direito a direitos fundamentais. O Novo Testamento explica muito do mal que
A conquista de uma certa visibilidade para a a criança integra em função do pecado materno
infância, foi uma penosa caminhada da existência projectado à concepção. Em termos educacionais o
humana. pecado original determina todo o mal que a
A história do destino humano é, uma história criança necessariamente vai vivenciar.
de interesses que não, de facto, os da Criança. Santo Agostinho congrega, a este propósito o
No séc. II A. C. a primeira infância mereceu de pensamento de então referido à criança – «se a
Varrão (escritor latino) uma classificação especial na deixássemos fazer o que lhe apetece, não há crime que
hierarquização das sucessivas idades do ser humano. não a víssemos cometer».
Nunca houve vocábulo latino para designar o Na História da Humanidade o interesse pela
bebé e a designação de lactente (alumnus) – focal- criança radicou-se, tão só, na simbologia do mal.
izada, tão só, na propriedade de ser alimentado – A criança foi, século a século, sem grandes varia-
determinou até há cerca de 40 anos a nomenclatu- ções conceptuais, esse símbolo do mal, da imper-
ra científica em vigor. feição, do pecado original, da culpa materna, do
Já na nossa década de 70 em concurso de lugar do erro, tal como definido na filosofia carte-
provas públicas da carreira hospitalar fui «acon- siana.
selhado» por membros de um júri de provas O eventual «amor» pela criança na era romana
públicas a não usar a designação de bebé porque só concentrava-se no interesse que os filhos repre-
era «cientificamente» tida como correcta a referida sentavam como potencial força militar necessária
nomenclatura de lactente. à máquina da guerra.
O termo mais antigo, usado para designar a Apesar da representação da criança presente
criança, foi de «puer» significando indistintamente nos sarcófagos dos Séc. III e IV, revelada na vida
quer a cria animal quer a cria humana. familiar porventura valorizadora da criança, não
A língua latina consagrou, durante muito há qualquer prova, designadamente através da
tempo, o termo «infans» significando, etimologica- arte, de amor dos pais pelos filhos, representado
mente, aquele que não fala. esse amor como sentimento de empatia, ternura,
Tanto a designação central de «puer» como a respeito ou tão só, interesse providenciado face à
designação complementar de «infirmitas» (ima- criança. Badinter sintetiza sumariamente o senti-
turidade moral e intelectual) acentuavam o estatu- mento social face à criança – «erro ou pecado, a
to deficitário da criança entendida, designada- infância é um mal».
mente, como escrava na ordem social. A morte de um filho é sentida como um aci-
18 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
dente banal que nem merece a presença dos pais influenciada que foi por uma cristianização pro-
no respectivo enterro. Montaigne, mais tarde e a gressiva dos costumes.
este propósito, confessava assim o seu sentir – O grande debate teológico da Idade Média, na
«perdi dois ou três filhos na ama, não sem pesar mas revisitação de Aristóteles, dizia respeito ao mo-
sem drama». mento em que o feto seria insuflado pelo espírito
Toda a Idade Média ignora a criança e é desse de Deus, recebendo então uma alma. Até ao sec.
testemunho a sua ausência ou porventura, a sua XV o Menino é predominantemente posicionado
representação, na arte. O culto da Virgem Maria, no colo direito da Virgem.
porém, representando, então, Nossa Senhora e o O gótico tardio consolida, então, a figura do
Menino, projecta, sobretudo, a imagem triunfante Menino Jesus do lado esquerdo do colo, configu-
da mulher criadora em oposição a Eva, a pecado- rando, porventura, o instinto materno como
ra. As crianças na proximidade da díade divina marca indelével desse sentimento maternal mais
reforçam o significado do culto já projectado na puro representado por uma Virgem Maria cada
criança. vez mais envolvida com o seu Menino.
Até fins da Idade Média, as crianças vestiam A representação de um eventual interesse pela
como os adultos, sendo, portanto, manifesta a criança trazido pela Arte terá preanunciado uma
ausência do estatuto infantil que hoje identifi- viragem na história dos sentimentos face à cri-
camos, entre outras expressões, com o vestuário ança. Velasquez retrata a criança filha da nobreza
infantil. Ainda em termos de Arte, poderá ser enquanto Goya é mais retratista da infância pro-
importante a dúvida sobre o significado da repre- letária.
sentação do putto (criança nua na pintura italiana A arte da Renascença traz-nos, como novi-
do séc. XVI), tão bem simbolizada por Ticiano, dade, as crianças (putti) na sua plena vitalidade
num retábulo pintado em 1526. O gosto do putto encarnando, porventura, a felicidade na sua iden-
terá representado um dos primeiros sinais de tificação com o Paraíso.
interesse pela criança que a Arte prodigaliza na É notório o contraste desta representação artís-
sua missão de sempre antecipar, na esfera do sen- tica face aos quadros medievais de Brughel em
sível, o que só mais tarde o social ou político se que a criança é um epifenómeno das festas exteri-
encarrega de representar? ores, posicionada num canto das telas, brincando
A cultura religiosa passou, todavia, a configu- no chão isolada do contexto social.
rar, aparentemente, algum do respeito pela infância A negligência face à criança na coerência do
identificado com a figura do Menino Jesus cujo que temos expressado, faz parte da História da
modelo os artistas do séc. XVI iam buscar a crian- Humanidade. A expressão mais constante desta
ças diferentes, designadamente com trissomia 21 negligência foi o abandono.
ou outras situações que hoje identificamos como De Mause citado por Reis Monteiro escreveu
síndromas malformativas. Objectos que o Menino que «a forma de abandono mais extrema e mais antiga
manipula, designadamente colheres, são, inequivo- é a venda directa de crianças». Esta venda era legal
camente, alguns sinais de interesse pelo comporta- no império babilónico e era, igualmente, uma con-
mento infantil. Porventura inexplicado é o posi- stante em muitas culturas da Antiguidade.
cionamento da criança ao colo da Virgem Maria. Expressão extrema do abandono era o infan-
O designado instinto maternal faz posicionar a ticídio, representado pelo deixar as crianças à
criança do lado esquerdo do colo da mãe e é essa mercê da natureza e dos predadores, nos cami-
a forma de colo que mães ou raparigas já púberes nhos do mundo. Porventura uma expressão
favorecem ao invés de homens ou raparigas pré- menos drástica do abandono foi representada pela
púberes quando solicitados a colocarem um bebé roda em que a criança era entregue, anonima-
ao seu colo. mente, a instituições ditas de caridade ou de
Do séc. X ao séc. XVII, apesar da manutenção assistência.
de uma mortalidade infantil elevadíssima, a con- Outra forma de abandono que ocupou durante
vicção da imortalidade da alma da criança passou mais tempo a história foi representado pela entre-
a ser uma verdade cada vez mais sedimentada, ga de crianças a amas. Fala-se de amas na Bíblia,
CAPÍTULO 2 Os superiores interesses da criança 19
Provavelmente, em 1872 é utilizada pela críticas tendo essencialmente como alvo o exager-
primeira vez a designação «Pediatria» mas é em ado «pedocentrismo» que situava a criança como
1900 que Ellen Kay, citada por Monteiro escreve «O um objecto jurídico.
Século da Criança» onde a autora proclama, por- A este propósito Reis Monteiro comenta ser a
ventura também pela primeira vez, que «as criança uma criança, não podendo tudo ser
crianças têm deveres e direitos tão firmemente estabeleci- Direito tal como o Direito não pode ser tudo. De
dos como os dos seus pais». Na coerência desta evolu- qualquer modo, o Direito de Família tornou-se
ção fantástica é adoptada em 1924 pela Assembleia progressivamente pedocêntrico e, a este propósi-
da Sociedade das Nações, a Declaração dos Direitos to, reza assim um texto publicado pelo Conselho
da Criança elaborada por Eglantine Jebb que cinco da Europa em 1989:
anos antes (em 1919) tinha, por sua vez, fundado o «As responsabilidades parentais são o conjunto dos
movimento internacional «Save the Children», cria- poderes e deveres destinados a assegurar o bem-estar
dor de símbolos (entre os quais gravatas promo- moral e material da criança, nomeadamente cuidando
toras do interesse pelas crianças). da personalidade da criança, mantendo relações pes-
Em 1948 é proclamada a Declaração Universal soais com ela, assegurando a sua educação, o seu sus-
dos Direitos do Homem onde se assume que a tento, a sua representação legal e a administração dos
Maternidade e a Infância têm direito a uma ajuda seus bens.»
e a uma assistência especiais (Artº. 25º. 2). A A interpretação dos vários Estados confere à
UNICEF, designação que sucede à de ICEF, nasce Convenção a extensão das suas prioridades. A
a 6 de Outubro de 1953 mas é a 20 de Novembro Santa Sé, por exemplo, interpreta os Artigos da
de 1959 que, definitivamente, á aprovada, por Convenção de modo a salvaguardar os direitos
unanimidade, (por 78 Estados-Membros da ONU) primários e inalienáveis dos pais.
a Declaração dos Direitos da Criança. A Decla- O poder parental era, assim, reportado ao
ração proclama dez Princípios Fundamentais que interesse superior da criança tal como expresso no
consagram o que se poderá entender como os Código Napoleónico que integra pela primeira
interesses Superiores da Criança designadamente vez a expressão «interesse da criança» como
face à sua protecção e desenvolvimento. norma jurídica aplicável. O interesse superior pas-
Pela primeira vez a impressão «Interesse supe- sou a ser afirmação usada no Direito Internacio-
rior da Criança» aparece num texto internacional nal a partir de múltiplas menções dos estatutos
tão significativo como é a Declaração. No seu jurídicos internos de muitos países.
Princípio 2 pode ler-se. «A Criança deve beneficiar de No Princípio 7 da Convenção é proclamado
uma protecção especial… Na adopção de leis com esse que «o interesse superior da criança deve ser o
fim, o interesse superior da Criança deve ser o factor guia daqueles que têm a responsabilidade pela
determinante». sua educação e orientação; esta responsabilidade
Mas é a 20 de Novembro de 1987 que a As- cabe, prioritariamente, aos pais». O interesse
sembleia Geral das Nações Unidas adapta e apro- superior da criança passou a ser uma «considera-
va a Convenção dos Direitos da Criança que, direi, ção primordial» que fez transcender os próprios
é uma efectiva proclamação dos Interesses Supe- direitos parentais e, porventura, até os valores cul-
riores da Criança que fazem parte do seu texto em turais de cada sociedade em função do primado
muitos dos seus 54 artigos, definitivamente con- da protecção e do desenvolvimento da criança.
sagrados em 1989. Como uma autêntica revolução, O interesse superior da criança terá sido,
toda uma literatura científica irrompe numa va- assim, uma consagração ética que coloca a criança
lorização incessante das competências infantis. não como objecto mas como sujeito de Direito.
Na mesma data da publicação da Convenção, Jacqueline Rubellin-Devichi entende que as
publicámos com a Fundação Gulbenkian uma soluções para a criança nunca são só jurídicas sem
expressão significativa da evidência científica de prejuízo do valor do direito que assegura os direi-
então: «Biopsychology of early parent-infant commu- tos de cidadania à criança desde o seu nascimen-
nication». Tal como em relação a todas as Decla- to. Para Martin Stettler não existe uma definição
rações, Convenções ou Proclamações, surgem para o «interesse da criança». Trata-se de uma
CAPÍTULO 2 Os superiores interesses da criança 21
noção com impacte afectivo e emocional que «con- em 1995, a Declaração de Lisboa de que cito, tão só,
vém deixar à apreciação dos pais ou à autoridade com- a primeira conclusão:
petente quando não há acordo» sendo este um pressu- «As famílias devem ser ajudadas a reconhecer que
posto básico para a mediação. constituem a fonte primária de amor e apoio e que são
Na Reunião de Lisboa de 1988, os Ministros da também responsáveis pela criação das forças interiores
Justiça tinham já adoptado uma Resolução tratan- de que a criança necessita para se tornar resiliente face
do da sequência dos direitos da criança no ao stress».
domínio do direito privado. Porém, quando todos os ideólogos falam dos
Neste sentido, a Convenção dos Direitos da novos direitos da criança, é preciso assimilar que
Criança deverá ser entendida como uma Nova existem equívocos que ficaram por resolver. O
Carta da Revolução dos Direitos do Homem pro- direito da criança em ter pai e mãe confronta-se
jectando na Criança a consagração fundamental com a frustração deste «interesse superior» por
da Declaração dos Direitos do Homem. A via de uma disfunção familiar cada vez mais
Convenção dos Direitos da Criança é a grande prevalente. Mais claramente ainda, a menção
proclamação ética centrada na Criança. interesse superior significará que o interesse da
A nova cultura que deverá inspirar as nossas criança deverá prevalecer sobre os interesses dos
sociedades e os nossos estados terá de ser cons- adultos ou da sociedade e sobre os interesses
truída nesta abordagem de uma ética centrada na económicos e culturais.
criança que, por sua vez, determinará todos as Será, ainda, interesse superior da criança, tal
outras disposições legais e políticas, do Ambiente como afirma Almiro Simões Rodrigues, o «direito
à Educação, da Saúde à Justiça, da Segurança ao desenvolvimento», isto é, o interesse da criança
Social à Intervenção Familiar. tem de ser entendido em função da dinâmica do
A criança não será mais, assim, o ser depen- seu desenvolvimento, ao longo do ciclo de vida da
dente, o menor cívico, o sujeito de vulnerabili- sua infância e da sua juventude. As referências da
dade. Os governos dispõem, hoje, através da Convenção à «capacidade» e ao «discernimento»,
Convenção de uma Carta de Princípios que os terão de ser entendidas na perspectiva que a
obriga a privilegiar a Criança no seu existir pleno filosofia dos «Touchpoints» consagra e que julgo
prevenindo as provações, as negligências, a vio- ser paradigmática e indispensável para o cumpri-
lência. A garantia de oportunidades de afecto, de mento das novas disposições legais.
vínculos, de harmonia familiar, de concentração A Nova Lei de Protecção a Menores de 1999, na
de interesses decorre da vivência do que é o in- leitura de Maria Amélia Jardim, integra, inequivo-
teresse superior da criança a mobilizar políticas e camente, os valores do «interesse superior da
regulamentações sociais. criança» no respeito inalienável dos significados e
O Direito não poderá ser uma regulamentação das fases de toda a dinâmica do desenvolvimen-
dos direitos sobre a criança mas outrossim, uma to infantil e juvenil. Estamos longe, porém, desta
afirmação dos direitos à Criança. Toda a circuns- Revolução Ética a inspirar todas as intervenções
tância da criança, designadamente a familiar, tem decorrentes desta prioridade do Direito que
de ser inspirada por este Direito à criança que reconhece, declaradamente, o interesse superior
pressupõe o primado da sua dignidade e o intere- da criança.
sse superior de a respeitar. A projecção deste inte- Reconheço esta distância quase infinita no que
resse em todas as expressões das Ciências respeita às práticas da nossa Saúde e da nossa
Humanas está contida num dos componentes do Educação. Se a Sociedade actual, na nossa cultura,
Preâmbulo da Convenção – … «a criança para o reconhecesse que a prioridade social era a criança
desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, tendo em conta os seus interesses superiores e se
deve crescer num ambiente familiar, em clima de felici- neste contexto estivesse garantido o pressuposto de
dade, amor e compreensão…». que o interesse superior da criança é o de ser
Foi em todo este contexto que um conjunto respeitada e amada, fundamentalmente dentro da
extremamente significativo de universitários e sua família, então todo o pensamento político ins-
investigadores consagrados elaboraram em Lisboa, pirador da actividade dos governos seria o de via-
22 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
bilizar uma cultura familiocêntrica com inequívocos Só a título de exemplo e na coerência deste pri-
investimentos na construção familiar e na relação mado, teríamos que ver garantida nos Cuidados
vinculadora desde os primeiros tempos de vida. Primários a consulta pré-natal de contexto pediá-
Ao nível dos direitos, o advogado mediador trico, teríamos de ver favorecida, ao nascer, uma
quando do divórcio, representará os pais nessa intervenção personalizada junto de cada pai e de
mediação mas o seu exercício terá que estar cen- cada mãe consolidada com a oportunidade de uma
trado no superior interesse da criança e é essa descoberta individualizada do bebé no favoreci-
advocacia que tem de prevalecer. Não chegam os mento dos seus instintos tão ferido de riscos nas
padrinhos dos ritos de passagem de que é para- nossas Maternidades, teríamos de investir em mais
digma o baptismo, nem os educadores das tempo de guarda materna, no favorecimento de
creches e dos jardins de infância que cabem por melhores horários para os pais nos primeiros dois
destino a cada criança para fazer vingar um apoio anos de vida do bebé, teríamos de ter mais e me-
tutorial complementar ou, às vezes, supletivo da lhores Serviços de Educação para os primeiros tem-
intervenção familiar. pos de vida da criança, teríamos de garantir mais
É preciso criar condições para que haja paixão jardins e parques para as nossas crianças, teríamos
na espera por cada nascer, na descoberta do de favorecer apoios fiscais, subsídios de habitação,
“quem é quem” logo que cada bebé nasce, no de aleitamento, apoios à aquisição de fraldas e de
apoio dinâmico à explosão de cada temperamento brinquedos, mas sobretudo, teríamos de investir
projectado no modo de comer, de dormir ou de mais na formação profissional para que cada acto
brincar. Usamos hoje, ainda, a expressão “bem- de consulta ou de intervenção educacional seja o
-estar” porventura para designar que nos referi- fervilhar de uma paixão continuadamente dilatada
mos aos interesses superiores da criança que, de pela magia de cada bebé em cada novo dia de uma
facto, se expressam nesse bem-estar. vida preenchida de paz, em cada família.
A linguagem jurídica abstracta que refere o A partir da década de 70, numa era inequivo-
interesse superior da criança não se esclarece, camente “bebológica”, a contribuição da Pediatria
todavia, com a nossa mera menção de bem-estar. para fazer vingar os interesses superiores do bebé
O «interesse superior da criança» é, hoje, um con- tem sido uma constante.
ceito que apela à interdisciplinidade e represen- Em 1984, a investigação que corporizou o
tará este facto a grande esperança de progresso nosso Doutoramento foi baseada no estudo sobre
para o que resta deste século. Foi numa dimensão a influência do contacto precoce mãe-bebé no
pluridisciplinar que fizemos (Conselho Técnico- comportamento da díade. As influências antropo-
Científico da Casa Pia de Lisboa) «Um Projecto de lógicas marcaram um posicionamento de maior
Esperança» confrontados com a pedofilia – proximidade na relação mãe-filho.
extremo de agressão que pode ser feita à criança, A nossa estadia em África (Guiné) representou
pressuposta a revisitação de toda uma história de um tempo ganho marcado pela aquisição de uma
desrespeito pela criança. nova cultura centrada na dignidade do respeito e
Para que haja coerência do nosso pensar à da tolerância. Fizémos, nestas últimas três déca-
nossa prática é preciso que a organização social e das, o «Nascer e Depois», fizémos o «Olá Bebé»,
política centre os seus investimentos na criança, fizémos o «Bebé XXI», fizemos o «Stress e Violên-
sobretudo quando ela é bebé. cia» e fizémos o «Mais Criança». Acreditamos hoje,
A Saúde, a Educação, o Ambiente e a Justiça sobretudo, que é preciso coerência para podermos
têm de estar unidos através de uma só estratégia corresponder aos superiores interesses da criança.
em função da Criança. O interesse superior da Vinte anos depois, todavia, a Convenção dos
criança não se compadece com a imagem de recep- Direitos da Criança ainda não chegou à Cultura
tor de direito, de cuidados ou de protecção; os do nosso tempo social e moral. No respeito pelo
interesses da criança exigem que consideremos que superior interesse da criança (artº. 3º.), o direito à
ela «contribui para a formação tanto da própria infância participação (artº. 12º.) tem de fazer garantir que
como da sociedade» e, por isso, as suas opiniões terão têm sempre de ser devidamente tomadas em con-
de ser sempre ouvidas e consideradas. sideração as opiniões da criança.
CAPÍTULO 3 Ética, humanização e cuidados paliativos 23
3
Assim, o interesse superior da criança não
pode ser, tão só, uma sentença que a Convenção
dos Direitos da Criança proporcionou, como recei-
ta, aos tribunais. O interesse superior da criança é
uma declaração do Amor pela Criança e é este
conceito que deverá inspirar o mundo e os
cidadãos deste mundo. ÉTICA, HUMANIZAÇÃO
Precisamos, mais do que nunca, de uma revo-
lução de praxis para que os interesses superiores E CUIDADOS PALIATIVOS
da criança não se inquinem com a rotina, com as
abstracções e com as sentenças. Maria do Carmo Vale e João M. Videira Amaral
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Européennes Régionales, 1992 gam” o elo de ligação destes últimos aos valores e
Winnicott DW. The Infant and Family Development. London: opções considerados correctos. Trata-se, pois, de
Tavistock Publications Limited, 1978 um método, um caminho para o pensamento, uma
forma de olhar e argumentar na perspectiva de
24 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
encontrar respostas e soluções para os dilemas que Este tópico será abordado de modo especial
enfrenta. A Ética Médica é baseada num conjunto adiante.
de princípios fundamentais os quais derivam não Nesta perspectiva a decisão médica deve ser
só da tradição hipocrática, como também do partilhada com o doente (e seus familiares), sobre-
reconhecimento dos direitos humanos. tudo quando esta decisão pode ter consequências
Destacam-se os seguintes: respeito pela vida; o para a vida do próprio.
respeito pela pessoa e sua autonomia; o princípio Em Pediatria nem sempre tal é possível;
da não maleficência e da beneficência; o princípio tratando-se de um adolescente existe autonomia,
da justiça. desde que esteja consciente e capaz de se auto –
determinar. Cabe referir, contudo, que em deter-
O Respeito pela vida e a autonomia minadas situações a revelação da verdade de um
da pessoa prognóstico reservado pode ser contraproducente
e até prejudicial para o tratamento.
O respeito pela vida do doente passa pela defi- No caso de adolescente não autónomo (por
nição e compreensão do que se entende pela vida exemplo, em coma vegetativo, persistente ou
humana, pelos seus limites, isto é, quando começa temporário), e nos restantes grupos etários pediá-
e quando termina. tricos, a decisão terá de ser tomada em colaboração
Para muitos, o início da vida corresponde ao com os familiares.
momento da concepção, enquanto para outros ao Poderão mesmo surgir situações delicadas
momento da nidação e, para outros ainda, ao quando, por exemplo familiares de doentes em
nascimento. estado crítico recusam tratamentos considerados
Do ponto de vista filosófico um ser humano é vitais pelo médico (caso das Testemunhas de Jeová).
ou passa a ser uma pessoa quando, para além da Recentemente o princípio da autonomia tem
vida biológica, existe uma vida psíquica, emocio- sido considerado um elemento perturbador na
nal, cognitiva e espiritual que lhe permite conduzir relação médico – doente: para o primeiro porque
a própria vida de forma autónoma e responsável. introduz um interlocutor activo ao questionar nor-
Análoga indefinição existe quanto ao conceito de mas relativas ao diagnóstico e decisão terapêutica
morte, o qual não é de consenso universal, sobre- tradicionalmente deixados ao critério médico; para
tudo para as pessoas sem formação ou cultura o doente, porque a inerente fragilidade e susce-
médica. A este respeito, cabe referir que a decisão ptibilidade biopsíquica geram desequilíbrio na
médica de desconectar um indivíduo do ventila- referida relação clínica, dificultando o seu prota-
dor, em princípio, não levanta problemas éticos, gonismo no processo de tomada de decisão.
uma vez que o conceito de morte cerebral é unani-
memente reconhecido e está bem estabelecido em Os princípios da beneficência
normas nacionais e internacionais. e de não maleficência
O respeito pela pessoa deve partir da prévia
definição de pessoa. Quando nos referimos ao Estes princípios têm a sua origem no código de
doente como pessoa há que considerar a sua ética hipocrática e nos princípios da moral cristã.
autonomia, isto é, a sua vontade e capacidade de De referir, aliás, que certos autores chamam a
auto – determinação. atenção para o facto de o princípio da não male-
Assim, o respeito pela pessoa do doente passa ficência ter precedência sobre o da beneficência
pela obtenção do seu consentimento prévio para porque, antes de beneficiar, há que não prejudicar.
a realização de diversos procedimentos ou Para alguns especialistas nesta área, tais princípios
intervenções médico – cirúrgicas. Ou seja, está em constituem a essência da ética profissional médica.
causa o chamado princípio da autonomia, ao A dificuldade da sua aplicação reside em
mesmo subjacente o chamado “consentimento conhecer o que é considerado benéfico para um
informado ou consentimento esclarecido” (mais determinado doente, pois este poderá ter uma
que informar, é preciso garantir que tenha havido concepção não coincidente com a do médico.
recepção da mensagem com esclarecimentos). A administração de uma transfusão de sangue
CAPÍTULO 3 Ética, humanização e cuidados paliativos 25
a um doente pode ser considerada pelo médico Quando os recursos são escassos o princípio de
como um acto bom, mas pelo doente, Testemunha justiça tem, sobretudo, o sentido de justiça distri-
de Jeová, um acto perverso. butiva, isto é, de fazer com que o maior número
Nos doentes em fase terminal, em especial do possível de indivíduos necessitados possam bene-
foro oncológico, será melhor optar por tratamento ficiar desses recursos. Desperdiçar os escassos
analgésico e paliativo, mesmo que não se prolon- recursos existentes com doentes que deles não
gue a vida do doente, ou dever-se-á prolongar esta necessitam constituirá uma injustiça para os que
à custa de maiores sofrimentos? deles podem beneficiar.
Analisemos outro exemplo: se o médico prati- Decorre desta lógica que o princípio da justiça
car determinado acto com a intenção de beneficiar tem, na sua aplicação para os médicos, um sentido
o doente, a sua atitude é eticamente irrepreensível, utilitarista, ou seja, de que deverão beneficiar dos
mesmo que desse acto resulte um efeito colateral poucos recursos existentes os doentes que maiores
indesejável. O importante é que a intenção do benefícios possam colher.
médico seja boa e a natureza intrínseca do acto seja Neste campo da decisão existem muitas arma-
também boa ou, pelo menos, neutra. Assim, se o dilhas para quem não se encontra previamente
médico administrar um analgésico narcótico a um alertado. Por exemplo, na ausência de ventilador
doente oncológico em grande sofrimento e em fase disponível, qual a decisão perante um jovem que
terminal da doença, pratica um acto moralmente chega à unidade de cuidados intensivos, com um
correcto, mesmo que essa atitude terapêutica possa traumatismo craniano, boas perspectivas de evoluir
abreviar a sua vida por algumas horas ou dias, favoravelmente, e em que simultaneamente existe
dado que a sua intenção era aliviar o sofrimento. outro acometido por acidente vascular cerebral, de
Outra questão diz respeito à distinção entre meios prognósico mau ligado ao ventilador?
ordinários e extraordinários de tratamento a qual não Deverá ser desligado o doente com prognóstico
deve ser assumida em termos absolutos, mas sim mais reservado quanto à vida e função para ceder
equacionada em termos do doente, da doença e dos o ventilador ao doente com prognóstico mais
resultados esperados. Ou seja, não existem meios de optimista?
tratamento que, à partida, se possam considerar como Este e outros exemplos podem ser comparados
ordinários e extraordinários. às situações, hoje históricas, chamadas de triagem
Segundo o princípio da proporcionalidade dos de guerra, nas quais os cirurgiões preferiam tratar
meios, considera-se um tratamento como extraor- prioritariamente os moderadamente feridos, em
dinário quando ele representa para o doente uma relação aos muito graves ou ligeiros. Também
grande desproporção entre os benefícios esperados durante a II Guerra Mundial, quando a penicilina
e os encargos (custos) para o próprio (ou sua família). era ainda muito escassa, dava-se preferência à sua
A hemodiálise, as transplantações, etc. podem utilização em soldados com doenças transmitidas
constituir meios ordinários para certos doentes ou sexualmente (pois ficando rapidamente curados
em certas doenças, e extraordinários, noutros. poderiam voltar ao campo de batalha) em relação
A metodologia das decisões conhecidas pela a outras situações infecciosas.
sigla DNR (Do Not Resuscitate) tem a ver, pre- Assim, os recursos deverão ser atribuídos aos
cisamente, com a não aplicação de meios de res- doentes que mais benefícios possam vir a colher,
suscitação em doentes nos quais os critérios tornando-se claro que a escassez de recursos impõe
médicos e científicos permitem prever, com ra- uma rotatividade no acesso à sua utilização, para
zoável segurança, que o benefício decorrente da que os benefícios dos mesmos possam ser aplicados
aplicação desses meios terapêuticos será ínfimo ao maior número de doentes deles necessitados.
para os doentes em causa. Neste contexto e aplicando o princípio da
justiça às unidades de cuidados intensivos, de-
O princípio da justiça verão ser bem definidos os critérios de admissão e
de alta dos doentes assistidos, de modo a ser
Trata-se do princípio que encerra em si mais possível aplicar os respectivos recursos ao maior
dilemas para o médico. número possível de doentes.
26 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
• Ajudar o doente a compreender a sua doença. profissional de saúde que recusa a rotina reduzida
• Transmitir-lhe a normal expectativa dos ao tecnicismo, que vê no doente uma pessoa inteira
exames e tratamentos a realizar. com emoções, angústias ou desesperos que se es-
• Atender à compreensão do doente face à sua tendem às famílias.
doença. A partir de então em quase todas as mater-
A dissensão ou persistente recusa ao assen- nidades passou a vigorar, de modo progressivo, a
timento deve ser respeitada sempre que a inter- prática de contacto precoce mãe-filho, já na sala de
venção proposta não seja essencial ao bem-estar da partos, onde o recém-nascido deveria ser colocado
pessoa ou possa ser adiada sem risco. ao peito para estimular a secreção láctea e o vín-
Em investigação é vinculativa, mesmo que os culo.
pais tenham autorizado. Ao sistema de alojamento conjunto mãe-filho
Recentemente o grupo de trabalho em ética da recém-nascido nas enfermarias de puérperas foi
Confederation of European Specialists in Paediatrics dada cada vez dada maior importância, o que tem
(CESP) publicou as linhas de actuação e recomen- conduzido à tendência para considerar obsoleto e
dações do Consentimento Informado/Assenti- anti-natural o conceito de berçário nas maternidades
mento em Pediatria e em investigação biomédica (recém-nascidos saudáveis em enfermaria separada da
envolvendo populações pediátricas. mãe).
O documento é norteado por uma preocupação A par doutras medidas relacionadas com a
de preservar a dignidade da criança e adolescente qualidade do atendimento nas diversas institui-
nas suas dimensões física, psicológica e intelectual, ções, passou igualmente a ser cada vez mais ha-
salvaguardar os seus interesses, protegê-los de bitual a mãe acompanhar o seu filho durante a hos-
riscos, assegurar e respeitar a sua privacidade pitalização em qualquer grupo etário “abrindo-se
/confidencialidade e reforçar o seu direito à ex- as portas das unidades de internamento ou de am-
pressão e cumprimento dos seus desejos e pre- bulatório às famílias segundo certas regras que
ferências sempre que possível, numa perspectiva passaram a estar incluídas nos manuais de quali-
realista. dade e consagradas por legislação, de que se desta-
ca a Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas
Humanização dos cuidados descrita adiante.
Quer a Secção de Pediatria Social da Sociedade
Em 1945, pela primeira vez Spitz descreveu a sín- Portuguesa de Pediatria (SPP), criada em 1979,
droma do hospitalismo. As manifestações clínicas quer o Instituto de Apoio à Criança (IAC), funda-
de tal situação, relacionadas com o ambiente hos- do em 1983, têm tido ao longo dos anos um papel
pitalar de separação da mãe e família da pedagógico altamente relevante, veiculando, desi-
criança, o próprio trauma e agressão emocional da gnadamente, os conceitos da humanização e de as-
doença implicando muitas vezes intervenções dia- sistência centrada na família, constituindo-se co-
gnósticas e terapêuticas, traduzem-se por carência mo grupos de pressão junto das autoridades go-
afectiva, regressão do desenvolvimento psicomo- vernamentais no sentido de as práticas de humani-
tor e afectivo, e estados depressivos. zação passarem a ter suporte legal, o que tem vin-
Foi precisamente na transição da década de 70- do a acontecer ao longo dos anos.
-80 que passou a desenvolver- se em Portugal uma
“cultura” – originária dos Estados Unidos da Cuidados paliativos
América do Norte - de encarar a criança, mais liga-
da à família e ao seu meio, mesmo quando no hos- A partir de 1960, sob os auspícios da OMS, passou
pital, tornando este meio mais acolhedor, com- a ser comum o termo de cuidados paliativos como um
preensivo, humano. Em Portugal cabe destacar o novo paradigma de assistência total e activa ao
pioneirismo na aplicação sistemática de certas doente e família por equipa multidisciplinar quan-
práticas do Instituto Português de Oncologia e do do se verifica uma de três situações:
Hospital Pediátrico de Coimbra. – doença incurável (não previsível resposta a
Assim, contribui para a “humanização” todo o qualquer terapêutica);
CAPÍTULO 3 Ética, humanização e cuidados paliativos 29
– doença avançada (prognóstico muito reser- Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas
vado e sobrevivência previsível inferior a 6 (Aprovada pela Confederação Europeia
meses); dos Sindicatos Nacionais e Associações
– doença em que se verifica fracasso da tera- de Profissionais de Pediatria, 1996)
pêutica clássica, com consequente sofrimento
do doente e família. 1. As crianças somente serão admitidas no hospital
Tal tipo de cuidados permite suprimir ou se os cuidados de que necessitam não puderem
atenuar sintomas sem actuar directamente na ser igualmente administrados no domicílio ou
doença que os provoca, dando também apoio à em regime ambulatório.
família para lidar com a doença, na tentativa de 2. As crianças hospitalizadas têm o direito de ter os
melhorar a qualidade de vida do doente na sua seus pais permanentemente com elas, desde que
relação com a mesma sem que tal signifique isso seja para maior benefício da criança. Assim,
abandono. (Capítulo 336) devem ser oferecidos alojamento a todos os pais
Salienta-se, em suma, que a noção de cuidados e estes devem ser auxiliados e encorajados a
paliativos: 1) não diz respeito exclusivamente a permanecer junto delas. De modo a com-
cuidados terminais, em fim de vida; 2) não se participar na assistência dos seus filhos, os pais
resume ao tratamento da dor; 3) exige que se devem ser informados acerca da rotina da
proceda à avaliação global da pessoa que sofre enfermaria e encorajada a sua participação activa.
atendendo à sua complexidade biológica, psicoa- 3. As crianças ou os seus pais têm o direito a uma
fectiva, familiar e social. informação apropriada à sua idade e
Constitui dever ético da equipa assistencial compreensão.
junto da família chamar a atenção de modo huma- 4. As crianças e os pais têm o direito a uma in-
nizado para certos princípios e realidades que formada participação em todas as decisões que
poderão contribuir para a compreensão de atitu- envolvem a sua assistência. Todas as crianças
des (diversas da distanásia ou encarniçamento devem ser protegidas de tratamentos médicos
terapêutico, e da eutanásia ou morte provocada desnecessários, devendo tomar-se medidas no
sem sofrimento): sentido de minorar o seu sofrimento físico e
– evolução vida – morte como processo natural emocional.
e inevitável; 5. As crianças devem ser tratadas com tacto e
– não adiamento nem aceleração da morte compreensão, e a sua privacidade sempre res-
– alívio da dor e doutros sintomas numa peitada.
relação fraterna; 6. As crianças devem ser assistidas por uma equi-
– valorização da dignidade e da qualidade de pa adequadamente treinada e plenamente cons-
vida da pessoa; ciente das necessidades físicas e emocionais de
– informação de modo individualizado, gradual cada grupo etário.
e adaptado à cultura, religião e circunstâncias 7. As crianças têm o direito de usar as suas pró-
psico-afectivas da “unidade” doente -família, a prias roupas e ter os seus pertences pessoais.
cargo da equipa que presta cuidados. 8. As crianças devem ser assistidas conjuntamente
Embora em instituições de saúde prestando com outras crianças do mesmo grupo etário,
assistência a adultos existam unidades de cuida- separadamente dos adultos em todas as va-
dos paliativos com equipa própria, separadas lências assistenciais (consulta, internamento,
doutras enfermarias e unidades, na idade pediá- serviço de urgência, etc).
trica tal assistência é propiciada em geral em 9. As crianças devem ter um ambiente guarnecido
enfermarias convencionais, embora em área re- e apetrechado de modo a satisfazer as suas ne-
servada e versátil com o recato e isolamento que a cessidades e que esteja de acordo com as normas
situação impõe. Tais situações surgem com maior conhecidas de vigilância e segurança.
frequência em unidades de cuidados intensivos 10. As crianças devem ter total oportunidade para
neonatais e pediátricas e em serviços de oncologia brincar, para diversão e educação adequadas à
pediátrica. sua idade e condição.
30 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
4
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CAPÍTULO 4 Formação em pediatria na pós-graduação 31
em Portugal, têm sido gerados consensos (não em to- tria geral evitando erros cometidos no âmbito da
das as áreas especializadas) segundo os quais as medicina geral de adultos relacionados com a for-
subespecialidades pediátricas deverão constituir mação de subespecialistas sem uma formação básica
conceptualmente um ramo derivado da Pediatria e indispensável ou tronco comum de medicina interna.
não das subespecialidades afins da Medicina Interna Quer nos hospitais centrais, quer nos hospitais
ou da Cirurgia Geral. Reconhecendo que tal impera- distritais, haverá que preparar solidamente pediatras
tivo não assume a mesma relevância em todas as es- gerais competentes, que possam assumir com toda a
pecialidades, a lógica conceptual seria que as subes- legitimidade as tarefas de médico global ou médico-
pecialidades pediátricas fossem desempenhadas, de assistente da criança, e aptos para uma triagem cor-
raiz, por pediatras que adquiririam competência em recta para o pediatra subespecialista. Tal conceito de-
determinada área específica. É evidente que numa verá ser transmitido aos estudantes universitários.
fase de arranque, tal nem sempre aconteceu- era im- Efectivamente, embora os hospitais centrais en-
perioso começar! – sendo bastantes os exemplos de globando áreas diferenciadas, sejam considerados
contributos importantes de subespecialistas anteri- por definição especializados, para a garantia duma
ormente ligados a áreas da medicina e cirurgia de pediatria de prestígio – e, por consequência, para a
adultos que transitaram para a área correspondente garantia dum melhor serviço à comunidade – os
das subespecialidades pediátricas. mesmos deverão incorporar, igualmente, a valên-
No âmbito da Sociedade Portuguesa de Pedia- cia de pediatria geral, integrando pediatras gerais
tria (SPP) foram criadas, diversas Secções espe- internistas com competências para a coordenação
cializadas, referentes a diversas valências pediá- de equipas multidisciplinares para a abordagem
tricas (Pneumologia, Neonatologia, Cardiologia, dos casos complexos, crónicos ou agudos, ideal-
Gastrenterologia, Pediatria Social, Educação mente em regime de dedicação exclusiva.
Pediátrica, Hematologia / Oncologia, Cuidados
Intensivos, Infecciologia, Endocrinologia, Nefrolo- A relação entre a Pediatria Geral
gia, Desenvolvimento, Alergologia, Reumatolo- e a Medicina Familiar
gia, Pediatria Ambulatória, Medicina do Ado-
lescente) com estatutos próprios, congregando os Em 1990, sob os auspícios da Sociedade Portu-
sócios com especial interesse na respectiva área. guesa de Pediatria, foi elaborado um documento
Tais secções ou mini-sociedades têm contribuído de análise e de recomendações, elaborado por um
para fomentar a investigação e melhorar o inter- grupo de trabalho coordenado por Fernanda
câmbio entre instituições nacionais e estrangeiras. Sampayo intitulado “ O problema da assistência à
Em Portugal, até ao final da década de 80, es- criança pelos clínicos gerais”.
tavam reconhecidas pela Ordem dos Médicos as Tendo sido considerado nesse documento, pela
subespecialidades de Pediatria Cirúrgica, de maioria dos seus membros, que em condições
Pedopsiquiatria e de Cardiologia Pediátrica. As ideais, a meta desejável seria a “generalização da
mesmas passaram a ter internato próprio, o que assistência médica ao grupo etário pediátrico por
traduz reconhecimento pelo Ministério da Saúde. pediatras” , a realidade actual, no entanto, não per-
No início de 2003 foram reconhecidas pela mite atingir tal desiderato, quer pela escassez de
Ordem dos Médicos 5 novas subespecialidades pediatras, quer pela própria legislação portugue-
pediátricas: Neonatologia, Nefrologia, Gastren- sa que considera ser o médico de família/clínico
terologia, Oncologia e Cuidados Intensivos, inte- geral o responsável pela saúde infantil no âmbito
grando programas de formação específicos. dos cuidados primários /centros de saúde.
Cabe referir, no entanto, que em tempos surgiu
Necessidade de equilíbrio entre a pediatria (apenas na legislação) a figura do chamado “pedia-
geral e as subespecialidades tra comunitário” para o exercício de funções no âm-
Aformação de novos subespecialistas deverá proces- bito dos cuidados primários de saúde, mas em es-
sar- se em função das necessidades do país acaute- treita ligação com as estruturas hospitalares em cu-
lando a subalternização dos pediatras generalistas. jas equipas estava previsto poder integrar-se.
Haverá, pois, que evitar o “esvaziamento” da pedia- Esta questão do desempenho profissional de
CAPÍTULO 4 Formação em pediatria na pós-graduação 33
5
Problemas do foro neonatológico
Recém- nascido saudável estacionado com a
mãe na maternidade, recém-nascido saudável após
a alta da maternidade, rastreio de sinais de risco.
lo impacte muito positivo daquela na assistência e tratégias de acompanhamento dos mesmos pela
na qualidade de serviços a prestar à comunidade. instituição de que dependem.
De facto, na sua essência, investigar, consiste em Diversos argumentos justificam o interesse da
verificar prospectivamente uma hipótese, em “resolver investigação aplicada nas práticas assistenciais; eis
problemas“ procurando soluções face a questões alguns: a) a investigação clínica é um processo de
que são previamente formuladas, na previsão de resolução de problemas com uma aplicação em
mudança de atitudes aplicáveis no futuro a pes- vista (por exemplo, estudo da melhor relação cus-
soas sãs ou doentes. to-efectividade de determinada terapêutica ou de
Reportando-nos a 1979, será pertinente recor- determinado exame complementar de diagnósti-
dar James Wyngaarden que chamou a atenção co); b) a investigação clínica contribui para a for-
para a importância da transposição das descober- mação do espírito crítico com implicações na práti-
tas biomédicas para a “cabeceira do doente”, o que ca clínica; c) a investigação clínica promove o
originou o conceito de investigação de translação treino na recolha e valorização das informações
(translational research), consubstanciando a apli- conducentes à decisão clínica; d) a investigação
cação dos avanços fundamentais na prática médi- clínica promove o desenvolvimento do espírito de
ca. sistematização do conhecimento.
Neste contexto, será de admitir o interesse em Torna-se evidente que as questões cruciais que
as referidas instituições de saúde criarem, man- decorrem destas noções são justamente a definição
terem e desenvolverem elos fortes de ligação com dos problemas a investigar (a resolver) implican-
outras instituições de saúde e com centros ou in- do cooperação entre clínicos e gestores institu-
stitutos de investigação de créditos formados. cionais, motivando estes últimos para tal questão.
Ou seja, intensificando tal ligação, criam-se
condições de parceria e sinergias tendo em conta, O panorama actual da investigação
por um lado, o potencial da “ base de dados clíni- no país
cos ou de material humano de doentes ” das insti-
tuições de saúde e, por outro, as potencialidades Dados do Observatoire des Sciences et des Techno-
dos institutos universitários ou laboratórios de in- logies em Paris, comparando as contribuições cien-
vestigação experimental relacionados com as ciên- tíficas relativas a diferentes países europeus con-
cias básicas (biostatística, epidemiologia, etc.). cluem que a União Europeia contribui com cerca
de 30% da produção científica no mundo. Para es-
O impacte da investigação na clínica ta parcela, Portugal contribuia até 1990 com 0,1%
em comparação com a Grécia, (0,4%), com a Es-
Analisado o âmbito da investigação clínica, pode panha (1,9%) e com a Bélgica (0,8%).
deduzir-se que a dinâmica de crescimento de tal Em 1990, Portugal publicava o equivalente apenas
vertente, como resultado de parcerias, facilita o in- a um terço da produção científica irlandesa e 1/10
tercâmbio científico com instituições congéneres da espanhola. A distância para a Espanha reduziu-
nacionais e internacionais aplicando diversas es- -se para 1/5, mas deve-se ter em conta que a po-
tratégias; estas passam necessariamente pela cri- pulação é quatro vezes maior. Entre 1990 e 2006, as
ação de “redes de investigação” viabilizando, Ciências (Química, Física, Medicina, Biologia,
nomeadamente a concretização de estudos coope- Engenharias, entre outras) produziram 55 573 pu-
rativos e prospectivos, divulgação e partilha de re- blicações.
sultados em eventos científicos, e em publicações De acordo com dados do INE (2008) registaram-se
nacionais e internacionais. progressos assinaláveis no nosso país entre 2000 e
Por outro lado, tal dinâmica facilita o estímulo 2007. Sem ser especificada a fracção que cabe às
duma nova geração de médicos e de investi- ciência básicas biomédicas versus medicina clínica
gadores com interesse pela saúde infantil, e a des- em geral, e pediatria em especial, no referido
coberta de vocações para as diversas vertentes da período (8 anos) a produção científica cresceu
investigação, no pressuposto de as medidas a levar 91,5%.
a cabo serem acompanhadas de incentivos e de es- Os artigos e outros escritos dos portugueses, referi-
36 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
dos pelo Science Citation Index (SCI), colocaram, complementar de pediatria contemple (modesta-
pela primeira vez, o país à frente da Irlanda. mente) uma valência de formação em investi-
Portugal (seria injusto não o afirmar) congrega gação, o resultado final será muito precário, na me-
alguns centros de investigação de excelência re- dida em que a valência não é obrigatória. Para re-
conhecidos internacionalmente, embora com níti- verter a situação, torna- se fundamental estimular
do predomínio na área das ciências básicas. os jovens internos, – eles são o nosso futuro – crian-
Alguns atribuem este panorama à ausência de do uma valência obrigatória (de três meses no mí-
uma cultura para investigar, quer nas universi- nimo) durante o internato, e fomentando a parti-
dades, quer nos hospitais. Para tal contribuirá, se- cipação daqueles em actividades concretas em cen-
guramente, a falta de incentivos em termos de pro- tros idóneos de investigação.
gressão de carreira hospitalar – profissional, quer Infelizmente, no quadro das administrações de
para os médicos diferenciados que ascendem na instituições específicas, hospitalares ou não, não
carreira, quer para os jovens médicos na pós-gra- está previsto que os responsáveis pelos serviços in-
duação para obtenção do título de pediatra. tegrem nos respectivos planos de actividades um
Bastará, para demonstrar tal afirmação, citar a programa anual de investigação, nem está previs-
desvalorização das actividades de investigação to, pela legislação actual, qualquer financiamento
nos concursos da carreira hospitalar (para consul- para esta valência.
tor ou para chefe de serviço) em que a publicação Cabe salientar, no entanto, os sinais positivos
de estudos é muito fracamente cotada. de mudança dos últimos anos quanto a incentivos
E qual o futuro, se as carreiras estão em vias de para a investigação clínica, quer por iniciativa da
extinção? Sociedade Portuguesa de Pediatria e suas Secções,
Outros factores têm sido apontados: falta de quer por iniciativa das Universidades e de diver-
tempo devido à pressão das funções assisten- sos Ministérios da Saúde, Educação, Ciência, etc.
ciais,falta de meios logísticos de apoio, falta de (bolsas de estudo para centros internacionais,
plano cooperativo para a resolução dos problemas prémios, etc.).
assistenciais, indefinição de objectivos das Admi- No âmbito da clínica pediátrica hospitalar e da
nistrações hospitalares na vertente de investi- medicina familiar, aos orientadores de formação e
gação, havendo apenas preocupação com os directores cabe grande responsabilidade na génese
objectivos quanto à prestação de cuidados mensu- da mudança e no estímulo dos internos no sentido
ráveis, défice de formação desde o curso univer- de aproveitamento de oportunidades para candi-
sitário, etc.. daturas a bolsas para projectos de investigação, de-
Surge, assim, certa desmotivação por se admi- signadamente sob os auspícios de fundações com es-
tir –de acordo com o espírito da legislação – que ta vocação (Gulbenkian, Champalimaud, FCT, etc.).
“investigar não é importante para o desempenho
profissional”. Modelos estratégicos para incentivar
O contexto actual é, pois, o de perda de opor- a investigação
tunidades por quem é subalterno, tem interesse,
mas não tem incentivos nem condições para ser es- Tendo em conta as ideias atrás explanadas, para in-
timulado. Esta questão tem a ver, aliás, com a im- centivar a investigação no âmbito das instituições de
portância do fomento de tal “cultura para a inves- saúde, torna-se fundamental estabelecer uma filo-
tigação” por parte de quem é orientador de for- sofia assente em determinadas linhas estruturais:
mação de médicos em fase de pós-graduação. 1) a investigação aplicada é cada vez mais bio-
Goldstein e Brown(investigadores galardoados médica envolvendo, para além dos médicos,
com prémio Nobel em 1997) traduziram este outros profissionais/investigadores como biólogos,
panorama de dificuldade ou de desmotivação para farmacêuticos,bioquímicos, biofísicos, geneticistas,
a investigação apelidando-o de “síndroma”- especialistas em epidemiologia e biostatística,
PAIDS ou “Paralyzed Academic Investigator´s Disease matemáticos, etc.;
Syndrome”. 2) a investigação biomédica deve ser centrada
Embora o programa de formação do internato na interdisciplinaridade entre as chamadas disci-
CAPÍTULO 5 Investigação e clínica pediátrica 37
INTRODUÇÃO À PARTE II
a Convenção dos Direitos da Criança ratificada por Assim, ao tipo convencional de cuidados hu-
todos os órgãos de soberania portugueses (1990), manizados de qualidade a cargo de profissionais
considera “Criança” “todo o ser humano até aos especialmente preparados, o ambiente pediátrico
18 anos”. A adolescência está, pois, incluída neste associa: equipamentos e metodologias adaptados
conceito sendo reconhecida como uma fase da vi- à condição e estádios de desenvolvimento da cri-
da com necessidades e características específicas. ança e maturidade do adolescente (por exemplo,
Considerou-se arbitrariamente o fim da ado- móveis, equipamento lúdico, música, participação
lescência aquele limite de idade por razões de or- de artistas/palhaços, espaços apropriados com en-
dem organizativa assistencial. volvência segura e integralmente reservados aos
Dado que cada vez mais adolescentes atingem jovens utilizadores, como ludotecas, etc.).
a idade adulta com patologias até há pouco quase Estas especificidades são cruciais para a garan-
desconhecidas da prática da medicina do adulto, tia da excelência da prática pediátrica hospitalar
nalgumas situações específicas, a idade de 21 anos centrada na criança e na família. Estando mais in-
é usada como limite para o atendimento nas ins- trinsecamente ligadas à própria natureza dos hos-
tituições pediátricas. pitais pediátricos onde a sua exequibilidade é mais
Com efeito, o processo de transição de um ado- fácil, elas são também desejáveis e possíveis nos
lescente com doença crónica grave para os hospi- serviços de pediatria de hospitais gerais (ideal-
tais ou serviços de adultos é difícil, por vezes mente separados dos serviços de adultos).
dramático, pela perda de acesso aos cuidados tra- O ambiente pediátrico pressupõe garantia
dicionalmente mais personalizados nos serviços prévia de qualidade assistencial; tratando-se de
ou hospitais pediátricos. De facto, tais doentes es- instituições com cuidados de alta diferenciação,
tão muitas vezes ainda dependentes da família e quer se trate de hospital pediátrico, quer de serviço
do perfil assistencial anterior. de pediatria integrado em hospital geral, torna-se
fundamental que sejam propiciadas todas as valên-
O ambiente pediátrico necessário cias compatíveis com tal nível de cuidados.
um primeiro ciclo de diferenciação com a criação desenvolvidas com o apoio em mecenato, tais co-
das unidades de hematologia, de endrocrinologia, mo: Núcleo contra a Dor, Núcleo de Apoio à
de gastrenterologia, de pneumologia, e de nefrolo- Criança e Família, Unidade de Apoio Domiciliário,
gia. No âmbito da cirurgia pediátrica outras áreas humanização dos espaços através de pinturas de
subespecializadas também foram surgindo, tais parede em todo o hospital (programa interna-
como a cirurgia neonatal, nefro-urologia, ortope- cional “Paint a Smile”), Apoio de alojamento a
dia, patologia clínica, fisiatria, imagiologia, etc.. famílias de crianças deslocadas com doença cróni-
É já no contexto de um segundo ciclo de inovação ca e tratamento prolongado (Casa Ronald Mac
ao longo da última década que se inscreve a criação Donald – a primeira em Portugal), a integração e
e consolidação de outras áreas devotadas à criança e socialização de crianças doentes particularmente
adolescente, salientando-se as seguintes: otorrino- carenciadas (Parceria com a Fundação Gil), a va-
laringologia, oftalmologia; estomatologia; neuro- lorização dos tempos lúdicos na vida da criança in-
cirurgia; cirurgia oncológica; cirurgia endoscópica; ternada (Programa “Nariz vermelho – Palhaços no
cirurgia em ambulatório; implantes cocleares; Hospital”, Programas “Música no Hospital”,
reumatologia, ortotraumatologia; o isolamento de al- Programa lúdico mensal “A hora do conto” do
ta infecciosidade (unidade de referência pediátrica Rotary Club”, Serviço de Educadoras de Infância,
no sul do país); imunoalergologia; função respi- Ludoteca Lyon’s), a informação geral à comu-
ratória desde o período de recém-nascido; ventilação nidade (sítio na Internet), o apoio humano e espi-
crónica domiciliária; rastreio auditivo universal ao ritual (Serviço de Voluntariado, Serviço Religioso),
RN; doenças metabólicas; medicina do viajante, etc.. a atenção às expectativas e necessidades especiais
Tem um corpo de cerca de 1500 funcionários das famílias (Gabinete do Utente, Serviço Social) e
dos quais, aproximadamente, 400 são efermeiros, à suas necessidades de comunicação (Gabinete de
250 são médicos distribuídos por 20 especialidades Comunicação), campos de férias para crianças dia-
médicas e cirúrgicas que, por sua vez, se diferen- béticas e asmáticas, etc..
ciam em subespecialidades e competências. A pe- Quanto à valência da formação salienta-se: o
diatria médica constitui o maior contingente com Ensino Universitário da Pediatria (5.° e 6.° anos)
cerca de 75 especialistas dos quais 25% estão dedi- em ligação à Faculdade de Ciências Médicas
cados ao intensivismo neonatal e pediátrico, com (FCM) da Universidade Nova de Lisboa (UNL) em
equipas independentes. parceria com o Hospital São Francisco Xavier en-
Trata-se de um hospital de média dimensão com globando o Centro Universitário com biblioteca
uma lotação de 235 camas das quais 200 são exclu- própria e o Centro de Simulação de Técnicas em
sivamente pediátricas, e as restantes para a área da Pediatria-CSTP; o Centro de Formação pós-gra-
mulher (medicina materno-fetal e ginecológica). duada multiprofissional (designadamente cursos
Os recursos assistenciais do hospital integram anuais para internos sob a égide da Direcção do
áreas departamentais, unidades funcionais e nú- Internato Médico); a Biblioteca do HDE engloban-
cleos técnicos dirigidos respectivamente por di- do Biblioteca – on-line; o Núcleo Iconográfico
rectores, coordenadores responsáveis (corpo médi- (acervo de milhares imagens fotográficas de pa-
co). Prestando o HDE o nível mais elevado de tologia assistida no HDE as quais são classificadas
cuidados à comunidade, a vertente de assistência e organizadas permitindo a sua utilização no ensi-
está implicitamente ligada às vertentes de ensino no pré e pós-graduado); o Gabinete de Teleme-
pré e pós-graduado, e de investigação. dicina; o Centro de Treino em Cirurgia Endos-
Trata-se dum modelo transversal de cuidados em cópica; Programa de intercâmbio de estudantes de
obediência a uma filosofia de abordagem multidis- medicina estrangeiros, etc..
ciplinar e multiprofissional coordenada, centrada No que se refere à investigação salienta-se o
nas necessidades e expectativas do doente/família e Centro de Investigação ligado ao CHLC e UNL; a
na garantia de continuidade dos cuidados prestados publicação (acompanhada de evento científico an-
a cada criança e adolescente. ual) do chamado Anuário do HDE contemplando
No âmbito da humanização cabe salientar um todos os estudos realizados no HDE com atribuição
conjunto de actividades específicas muitas delas de prémios segundo regulamento; área de investi-
CAPÍTULO 6 Clínica pediátrica hospitalar 43
Exigência institucional e expectativas Report of the FOPE II Pediatric Generalists of the Future
da comunidade Workgroup. (Suppl). Pediatrics 2000;106: 1199-1223
O padrão de qualidade a adoptar será fortemente Mateus-Marques J. Médicos e Hospitais. Tempos e Anda-
influenciado pela interpretação da utilidade dos mentos. Pensar e repensar a pediatria. Lisboa: Gradiva.
cuidados prestados às famílias que acedem ao hos- 2001; 206-222
pital; com o desenvolvimento dos sistemas de qua- Ministério da Saúde. Saúde em Portugal. Uma estratégia para
lidade organizativa e de prevenção de riscos, a o virar do século 1998-2002. Lisboa: Ministério da Saúde ed,
meta de excelência clínica será a prioridade entre 2003
os objectivos da prestação de cuidados numa per- OMS. Convenção dos Direitos da Criança. Organização das
spectiva de forte regulação económica e financeira, Nações Unidas. Genève : Ed OMS, 1989
e de influência crescente dos operadores privados. Pavão J M. O Cidadão de fraldas. Associação do Hospital de
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Coelho M e Colaboradores. Urgências Pediátricas e Casuística
do Hospital de Dona Estefânia Lisboa: Edição BIAL. Prémio
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Coelho M e colaboradores. 150 Anos de Pediatria e Meio Século
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Direcção Geral da Saúde. 1998
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Doentes. Lisboa: Direcção Geral da Saúde. 1999
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Infantil. Direcção Geral da Saúde–Divisão de Saúde
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da Saúde, 2001
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Hospital de Dona Estefânia.Comemoração dos 125 Anos do
HDE. Lisboa: Grupo Museológico do Hospital Dona
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Lisboa: Instituto de Apoio à Criança/European Association
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Lantos JD, Ward NA. A new Pediatrics for a new century.
Pediatrics 2013; 131; S121-S126
Leslie L, Rappo P, Abelson H, Jenkins RR, Sewall SR. Final
46 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
7
firmar ou excluir; 5) diagnóstico definitivo; 6) ac-
tuação, incluindo terapêutica e os cuidados gerais
a prestar; 7) prognóstico.
Embora, segundo o conceito expresso, todas as
fases devam ser seguidas, sem qualquer omissão
ou «hiato», poderá haver situações clínicas em que,
ASPECTOS METODOLÓGICOS dado o peso da anamnese e do exame objectivo é
dispensada a realização de exames complemen-
DA ABORDAGEM DE CASOS tares, para se atingir o diagnóstico definitivo; e
outras, pelo contrário, em que o diagnóstico de-
CLÍNICOS finitivo somente poderá ser estabelecido post-mor-
tem ou com exames inacessíveis ao clínico em de-
João M. Videira Amaral terminado contexto.
O objectivo deste capítulo é analisar e discutir
sucintamente algumas tendências manifestadas
pelos estudantes de medicina e médicos em for-
«The proper exercise of the five senses is often far more mação pós-graduada (internos) durante os está-
valuable in diagnosis than a handful of laboratory re- gios de prática clínica, as quais, contrariando os
ports and radiographs» princípios atrás expostos, poderão ser conside-
L Norrlin,1960 radas erros metodológicos na abordagem dos ca-
sos clínicos com eventuais repercussões negativas
Importância do problema na qualidade assistencial
exemplo exames radiológicos excessivos, ou geral, o que constitui uma perversão do respecti-
ausência de programação visando reduzir ao míni- vo processo educativo.
mo o número de colheitas de sangue e outros pro- A este propósito, Charney afirmou que, se não
dutos biológicos) com possíveis repercussões no proporcionarmos aos internos em formação as
tempo médio de internamento, nos custos, e no oportunidades para a concretização de determina-
número de consultas? dos objectivos (os quais podem ser sintetizados no
lI) Outro exemplo diz respeito à criança em es- saber, no saber estar, no saber fazer com justifi-
tado crítico internada em unidade de cuidados in- cação, no saber comunicar e no saber investigar),
tensivos, submetida a terapia complexa e assistida e não promovermos o desenvolvimento de quali-
por aparelhagem sofisticada. Nesta circunstância, dades essenciais de perspicácia, de rigor e de sen-
como se depreende, a criança terá que ser manuse- tido crítico, estaremos a criar-lhes frustrações, po-
ada com extrema cautela, pois a mesma está «sub- dendo os respectivos formadores ser culpados de
mersa» em aparelhos. Face à imensidão de dados negligência educativa.
fornecidos pelos diversos tipos de monitorização A elaboração da história clínica em moldes clás-
biofísica e bioquímica, uma tendência, nestes ca- sicos, quer na versão de relatório escrito, quer na
sos, é minimizar certos passos fundamentais do de exposição oral, constitui uma modalidade ím-
exame objectivo, sem tirar partido de certas regras par de treino clínico, sendo fundamental para o de-
da semiologia clássica aplicável aos casos especiais sempenho profissional futuro, pois permite a abor-
dos doentes em cuidados intensivos. dagem global de cada caso – problema; por outro
III) É também frequente assistir-se ao início do lado, dá resposta a grande número de objectivos
relato formal do caso começando pelo fim (por educativos no âmbito da formação do interno.
exemplo, descrição dos resultados analíticos, ima- As tendências manifestadas por vezes pelos in-
giológicos, ou dos dados fornecidos pelos moni- ternos através dos exemplos relatados, correspon-
tores), antes de se dar a conhecer os eventos clíni- dendo a aparentes desvios da metodologia clássi-
cos das últimas horas assim como os dados ca de abordagem de casos clínicos, são decorrentes
fornecidos pela observação convencional exequí- duma experiência pessoal e institucional, não de-
vel com instrumentos clássicos que, mesmo neste vendo ser consideradas, por isso, representativas,
contexto, continuam a ter o seu papel. A este do panorama nacional.
propósito valerá a pena citar uma autoridade em Poderão ser apontadas várias explicações para
intensivismo, Swyer, afirmando que a monitoriza- as mesmas. Em primeiro lugar, o desenvolvimen-
ção humana em unidades de cuidados especiais e to da tecnologia que, pelo rigoroso manancial de
intensivos é tão importante como as monitori- informação proporcionada em tempo real, leva à
zações biofísica e bioquímica. tentação de o clínico subvalorizar a semiologia
clássica, condicionando menor investimento na
Análise crítica metodologia do «crescendo» atrás referida. Fala-
-se hoje, inclusivamente, em cultura da tecnologia
Tendo como base o conceito actual da Pediatria, pela tecnologia, para utilizar a terminologia de
não como especialidade, mas como Medicina inte- KelIy o qual afirma que a tecnologia tomou conta
gral de uma época da vida que se inicia com a fe- da cultura.
cundação e se conclui com o fim da adolescência, Mesmo que se invoque o enorme potencial dos
Ballabriga chamou a atenção para o risco da perda exames complementares como meio de prevenir a
da unidade da pediatria com a multiplicação das chamada má-prática clínica por omissão de deter-
especialidades pediátricas (áreas específicas cujo minadas atitudes no acto médico, neste campo os
desempenho implica a aplicação de determinadas formadores têm uma grande responsabilidade no
técnicas). Este panorama é susceptível de gerar, se- sentido de educarem os seus estagiários a racioci-
gundo o autor, a chamada síndroma do super es- nar em termos de custo-eficácia e a estabelecer prio-
pecialista, traduzida pela tendência de transferir ridades quanto aos exames complementares a so-
a prática de tecnicismo exagerado para o período licitar, sempre em obediência à anamnese, ao exa-
de formação básica do clínico geral ou pediatra me objectivo e às hipóteses de diagnóstico formu-
48 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ladas, numa atitude permanente de humanização. geral, e eventuais novos exames complementares),
Aliás, esta noção de necessidade de procedimento sempre em função dos dados disponíveis, da lista
metódico e correcto, com uma boa relação custo- de problemas e da actualização do diagnóstico.
eficácia, está implícita numa frase de Oski, tra- Esta estratégia, de acordo com a nossa experi-
duzindo o grande saber, o bom senso, a ironia e o ência, tem diversas vantagens: obedece ao princí-
espírito crítico que caracterizavam este mestre: pio do “crescendo” atrás referido, contribui para a
«Refore ordering a test, decide what you will do if it is prática do raciocínio clínico, cria hábitos de regis-
positive or negative. If both answers are the same, don't to mais rigorosos facilitando o processo de comu-
do the test». nicação e as tarefas do interno, quer nas apresen-
Outras explicações estarão relacionadas com a tações em reuniões de discussão de casos, quer na
deficiente preparação durante o período de ensino visita clínica.
pré-graduado e com a abolição da clássica prova A prática destes gestos no dia-a-dia sob a ori-
clínica (quer na versão de relatório escrito, quer na entação do sénior-tutor, facilitam a aquisição de
versão de desempenho «ao vivo» com exposição competência clínica, em obediência aos princípios
oral perante o júri) da maioria dos concursos da fundamentais da antiquíssima tradição Hipocrá-
carreira hospitalar. Tais provas constituiam, de fac- tica, os quais podem ser sintetizados no Quadro 1.
to, um forte estímulo, quer para os formadores, Lá diz o ditado: «Oiço e esqueço; vejo e lembro-
quer para os estagiários, e permitiam, por outro la- me; faço e compreendo».
do, uma selecção mais rigorosa de competências e Em suma, se no quotidiano da enfermaria ou
de vocações. ambulatório, junto dos internos, se investir na abor-
dagem correcta dos casos clínicos, estar-se-á a con-
Estratégia tribuir para a formação de médicos competentes,
o que se traduzirá num serviço a prestar à comu-
Entre várias estratégias de abordagem e registo de nidade de melhor qualidade e mais humanizado.
dados de casos clínicos, cabe salientar uma modali-
dade baseada na orientação por problemas, co- BIBLIOGRAFIA
nhecida pela sigla SOAP com o seguinte significado. Amiel-Tison C. Clinical Neurology in neonatal units. Croatian
S = subjectivo (registo de sinais, sintomas, ocor- Med J 1998; 39: 136-146
rências, eventos); Ballabriga A. Pediatric education for specialists. In Canosa CA,
O = objectivo (registo de dados objectivos com- Vaughan VC , Lue HC, (eds). Changing Needs in Pediatric
provados através do exame físico ou de exames Education. New York: Raven Press, 1990; 20: 81-95
complementares realizados com justificação); Charney E. La formación de los pediatras para la asistencia pri-
A = avaliação (registo dos dados disponíveis maria. Pediatrics (ed esp.) 1995; 39: 75-77
com interpretação – por ex. esplenomegália Chou P, Miller L, Corro C. Writting high-quality progress notes.
porquê?; anemia porquê?, sopro cardíaco porquê? ln: Pomerance JJ, Richardson CJ, (eds). Neonatology for the
diarreia porquê? rectorragias porquê?) Clinician. Norwalk, Connecticut: Appleton & Lange, 1993:
P = plano (registo do plano de actuação in- 31-36
cluindo neste conceito não só a terapêutica e es- Galdó A, Cruz M. Exploración Clinica en Pediatria. Barcelona:
quema nutricional, como os cuidados a prestar em Editorial JIMS, 1999: 1-20
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Oski FA. Commentary. The Year Book of Pediatrics – 1985.
Chicago: Year Book Medical Publishers lnc, 1985: 29 A Imagiologia constitui hoje uma matéria vastíssi-
Palfrey S. Daring to practice low-cost Medicine in a High Tech ma assumindo um papel progressivamente cres-
era. www.NEJM.org/2 March,2011: e1-e7 cente na avaliação diagnóstica, compreensão,
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PrincipIes and Practice. Basel: S Karger, 1999 últimos 40 anos, com reflexo na variedade das té-
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sion by the European Pediatric Board. Brussels, 1996 giologista, tem determinado que este especialista
Crespo M. La formación de especialistas en Pediatria. An Esp esteja cada vez mais envolvido na selecção e ade-
Pediatr 1997; 47: 13-37 quada sequência dos exames a realizar.
As vantagens e limites desses estudos, e tam-
bém o seu custo, devem ser criteriosamente pon-
derados face às situações em avaliação, tendo sem-
pre como pano de fundo o grupo etário em apreço
que impõe redobrada atenção no reconhecido
efeito nocivo da radiação X, no eventual risco da
sedação e da anestesia, na possível alergia aos pro-
dutos de contraste iodados, sem esquecer a possi-
bilidade de trauma físico e psicológico.
Para rendibilizar vantagens e diminuir riscos, o
exame imagiológico deverá estar orientado para o
problema clínico específico da criança em estudo;
e, para essa selecção, a anamenese, o exame físico,
os dados laboratoriais e as considerações diagnós-
ticas assumem um interesse frequentemente deci-
sivo, pelo que a discussão partilhada entre o clíni-
co e o imagiologista constitui factor indispensável
para assegurar melhor qualidade nos cuidados de
saúde em Clínica Pediátrica. De referir que a uti-
lização de equipamentos topo de gama é também
determinante para o rigor do citado exame.
50 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Embora os estudos radiológicos clássicos ain- • A ecografia permite uma avaliação anatómi-
da hoje sejam os de maior utilização em Pediatria ca da medula no lactente até aos três meses
(mais de 70% dos exames), decidiu-se neste capí- de idade, antes de os arcos vertebrais com-
tulo abordar aspectos essenciais das técnicas de pletarem a ossificação. A principal indicação
imagem mais modernas em utilização corrente na para a realização deste exame é a suspeita de
investigação imagiológica: (a ecografia, a tomo- disrafismo oculto.
grafia computadorizada e a ressonância magnéti- • No pescoço, a ecografia é utilizada para es-
ca) relacionados com as suas aplicações preferen- tudo morfológico da tiroideia, das glândulas
ciais em diferentes órgãos e sistemas e com as res- salivares, timo, para diagnóstico de certas
pectivas virtualidades e limitações. massas cervicais, tais como quisto do canal
tiroglosso, anomalias dos arcos branquiais,
Ecografia torcicolo congénito, adenopatias e linfan-
gioma quístico.
A ecografia merece um lugar de destaque num • No tórax, o estudo cardíaco constitui a prin-
serviço de imagiologia pediátrica. Constitui técni- cipal indicação ecográfica, sendo, neste
ca de primeira linha em muitas situações e fre- domínio, da competência da cardiologia. A
quentemente a única a empregar face ao seu valor ecografia constitui também um importante
informativo. método imagiológico coadjuvante da radio-
Tornou-se um método de diagnóstico por ima- grafia do tórax na avaliação de lesões do
gem particularmente atractivo por não utilizar ra- parênquima pulmonar (consolidações, atele-
diação ionizante, não ter efeitos biológicos com- ctasias, abcessos, áreas de necrose e lique-
provados, ter um preço acessível, captar imagens facção), da pleura (derrames, tumores), do
em tempo real, multiplanares, não necessitar de mediastino (massas, posicionamento de
grande colaboração por parte do examinado e pro- cateteres), parede torácica e diafragma (hér-
porcionar uma excelente resolução de imagem na nias, eventração, parésia).
criança, devido à pequena quantidade de gordura • No abdómen a ecografia é primeiro exame
corporal e à sua parede de espessura reduzida. O imagiológico a realizar no estudo morfológi-
exame deve ser rápido, em ambiente calmo e co do fígado, sistema hepatobiliar, pâncreas e
agradável, proporcionando a melhor colaboração. baço. Detecta anomalias congénitas e adqui-
Os avanços tecnológicos dos novos equipa-
mentos de ecografia permitem, cada vez mais,
maior número de aplicações incluindo apoio ima-
giológico em tempo real para a realização de
biópsias, aspiração e drenagem de colecções. No
entanto, estruturas como o ar, o osso, o metal, per-
turbam a propagação da onda acústica e impossi-
bilitam a avaliação de órgãos subjacentes limitan-
do a avaliação ecográfica em determinadas áreas
como no crânio, em certos territórios do pescoço e
no tórax.
Indicam-se as principais patologias para cujo
diagnóstico a ecografia contribui:
• Na cabeça, o exame transfontanelar no
recém-nascido (RN) pré-termo tem como
principais indicações a detecção de hemorra-
gia intracerebral e seu estudo evolutivo; a
FIG. 1
ecografia transfontanelar permite também o
estudo inicial de anomalias congénitas e Estenose hipertrófica do piloro. Ecografia evidenciando canal
hidrocefalia. pilórico alongado e aumento de espessura da parede
CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica 51
FIG. 2
Invaginação intestinal ileo-cólica. Corte transversal ecográfico.
A B
FIG. 4
Teratoma quístico maduro do mediastino. Radiografia do Tórax (A) e TC após contraste (B).
ciação nos estudos após administração de con- Cabe referir ainda que se trata dum método
traste endovenoso e permitiram reconstruções bi e auxiliar importante na distinção entre processo
tridimensionais de grande qualidade, aspectos pleural e parenquimatoso em localização periféri-
com particular interesse em patologia das vias ca, e para investigar lesões da parede torácica.
aéreas, óssea, vascular, e em endoscopia virtual. • Na patologia do fígado e vias biliares são par-
• No estudo do pescoço tem sobretudo inter- ticularmente úteis os estudos com adminis-
esse na distinção de lesão supurada ou não tração endovenosa de contraste e com aquisi-
supurada, na avaliação morfológica de mas- ção rápida dos cortes, na distinção entre parên-
sas, quer para definir ponto de partida, quer quima hepático normal e anormal; assim, per-
para avaliar a extensão e repercussão das mite detectar e caracterizar tumores primi-
mesmas sobre estruturas adjacentes. tivos, metástases e abcessos. Tem indicação na
• No tórax a TC é o método de imagem prefe- doença vascular e em patologia traumática.
rencial para lesões ocupantes do espaço no Revela-se ainda auxiliar importante na ava-
mediastino, ou de anomalias ou alargamen- liação pré e pós-transplante hepático e na in-
tos mediastínicos suspeitos na radiografia do vestigação de dilatações das vias biliares.
tórax (Fig. 4). • No estudo do baço e do pâncreas, as lesões de
Em relação ao parênquima pulmonar tem par- etiologia infecciosa, tumoral e traumática
ticular indicação na doença metastática, na defi- constituem as principais indicações para o
nição anatómica de lesões complexas, eventual- emprego da TC, permitindo detectar pe-
mente congénitas com ou sem vascularização quenos nódulos e anomalias vasculares nos
normal, na caracterização da doença pulmonar di- estudos contrastados com aquisição rápida
fusa e das vias aéreas centrais e periféricas, assim dos cortes.
como na investigação de lesões focais, em particu- • No tubo digestivo a TC está reservada, so-
lar para esclarecer a relação de um nódulo ou mas- bretudo, para apreciação de processos com
sa com a pleura e diafragma. envolvimento extraluminal da parede, no
Quer em relação ao mediastino, quer ao parên- compromisso traumático, esclarecimento de
quima, a TC está indicada na avaliação do doente alterações suspeitas com outras técnicas de
politraumatizado estável com lesão torácica. imagem, no seguimento de lesões tumorais e
54 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
FIG. 6
Deformação de Sprengel à direita. Reconstrução tridimensional.
Vista posterior. (consultar glossário geral)
turas múltiplas da calote e/ou base do crânio. Em clínica pediátrica e perante um quadro
• Traumatismo vértebro-medular determinan- fortemente sugestivo de lesão encefálica vascular,
do o segmento do ráquis a ser estudado. De tumoral ou infecciosa há quem defenda, como exa-
salientar a enorme limitação da TC no dia- me prioritário a efectuar, a ressonância magnética
gnóstico e avaliação da extensão da contusão pelo seu maior rigor diagnóstico e topográfico.
medular ainda que com componente hemor- Actualmente a TC é, cada vez mais, encarada
rágico, bem como dos hematomas extra-axi- como exame complementar da ressonância mag-
ais (epidural e subdural). nética no estudo da lesão tumoral ou infecciosa do
• Traumatismo facial e/ou da órbita bem como crânio e coluna vertebral indiciada por outras té-
do osso temporal. cnicas diagnósticas, tais como a radiologia con-
• Na suspeita de corpo estranho intra-or- vencional ou a cintigrafia. A excepção é o osteoma
bitário. osteóide.
• Na criança com sinais e sintomas de dis- A TC não é, seguramente, o exame a efectuar
função aguda encefálica, em particular se na suspeita de lesão medular ou de anomalia mal-
coexistir alteração do estado de consciência. formativa da medula e/ou da cauda, não sendo
• Na suspeita clínica de hemorragia subarac- também o estudo elegível do eixo hipotálamo-
noideia ou de hematoma cerebral. hipofisário, da doença neurodegenerativa ou
• Na avaliação de hidrocefalia com anteceden- metabólica, nem da suspeita de trombose venosa
tes de derivação. a não ser que se realize angio-TC.
• Na avaliação das cavidades naso-sinusais, Ainda a salientar a supremacia da TC em re-
nomeadamente na sinusopatia inflamatória lação à RM no diagnóstico da calcificação ence-
aguda recorrente ou crónica persistente, para fálica.
detecção de alterações estruturais esqueléti- Em clínica pediátrica haverá que relembrar a
cas ou outras que expliquem o quadro pa- pertinência da dose cumulativa de radiação ioni-
tológico, assim como para detecção de conse- zante decorrente de estudos comparativos e/ou
quentes lesões secundárias. Igualmente, nas evolutivos, e a importância de se estabelecerem
complicações da sinusite aguda e na avaliação protocolos utilizando-se alternativamente as téc-
das consequências da extensão do processo nicas imagiológicas disponíveis.
infeccioso à face, à órbita e ao endocrânio. No recém-nascido a TC é um exame que, se
• Na suspeita clínica de atrésia uni ou bilateral possível, se deve evitar.
dos coanos. A tomografia com emissão de positrões
• No estudo do osso temporal na suspeita clíni- (PET/TC) é uma modalidade sofisticada de TC,
ca de anomalia de desenvolvimento, de com interesse para diagnosticar e monitorizar si-
colesteatoma congénito ou adquirido, ou de tuações de cancro com diversas localizações.
lesão tumoral (com excepção da lesão retro-
coclear), nos processos inflamatórios re c o r - Ressonância magnética
rentes e avaliação pós-cirurgia, e ainda nas
complicações por extensão endocraniana ou A introdução clínica das técnicas de ressonância
loco-regional incluindo região cervical em ca- magnética (RM) representou novo e importante
sos de otite média / otomastoidite aguda. avanço qualitativo no diagnóstico pela imagem,
• Na suspeita clínica de retinoblastoma em que obtida cada vez com maior acuidade. Hoje em dia,
a presença de calcificação em lesão intra-ocu- na clínica pediátrica a RM é indiscutivelmente a
lar numa criança com menos de 3 anos de técnica imagiológica de excelência com maior po-
idade confirma o diagnóstico. tencialidade diagnóstica na avaliação crânio-ence-
• Na avaliação crânio-facial, fundamental- fálica e vértebro-medular em particular. Nos ou-
mente órbita e base do crânio, na displasia tros compartimentos anatómicos a sua aplicabili-
óssea, e na osteopetrose. dade não está tão difundida.
• Nas anomalias congénitas crânio-faciais, da O funcionamento de um equipamento de RM
charneira crânio-vertebral e do ráquis. e a formação da imagem são processos altamente
56 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
complexos. Pode explicar-se sumariamente que a dio; na avaliação pré-cirúrgica para cirurgia en-
informação (sinal) necessária para a construção da doscópica naso-sinusal; no diagnóstico diferencial
imagem se obtém pela interacção de campos mag- entre calcificação tecidual e depósitos de outras
néticos com o campo magnético intrínseco dos áto- substâncias paramagnéticas tais como hemosside-
mos de hidrogénio que se encontram largamente rina ou ferritina; e no diagnóstico, no período agu-
distribuídos no corpo humano. do, da hemorragia subaracnoideia.
Não cabendo nos objectivos deste livro uma Como desvantagens há a salientar, entre ou-
descrição dos fundamentos tecnológicos da RM, os tras: o estudo é prolongado, o que obriga a seda-
quais estão acessíveis na bibliografia inclusa, para ção profunda ou anestesia na criança não colabo-
compreensão do leitor descreve-se o significado rante, ou com claustrofobia (explicável pelo tipo
dalguns termos: de aparelhagem); não poder ser realizada em
T1 – Tempo de relaxação longitudinal doentes portadores de estimuladores eléctricos ou
T2 – Tempo de relaxação transversal de bombas infusoras, com próteses ou implantes
DP – Nº de protões de hidrogénio num tecido metálicos, com “clips” vasculares ou outro mate-
ADC – Apparent Diffusion Coeficient ou Coefi- rial com conteúdo ferromagnético; ou ainda em
ciente de difusão aparente. doentes com certos tipos de adesivos para admi-
As imagens podem ser ponderadas em T1, den- nistração cutânea de terapêutica, podendo induzir
sidade protónica (DP) e T2. As ponderações DP e queimaduras.
T2 têm maior acuidade na detecção da alteração Uma vez que as consequências de não se res-
tecidual, e o T1 maior rigor anátomo-morfológico. peitarem as regras de segurança são sempre gra-
A RM tem como principal vantagem neste ves, podendo inclusivamente conduzir à morte,
grupo etário a não utilização de radiação ionizante, deve ter-se sempre presente a noção de possíveis
embora sejam conhecidos efeitos biológicos condi- contra-indicações optando, em caso de dúvida,
cionados pelo potente campo magnético estático e por outra técnica de imagem.
pela radiofrequência; até à data não se demonstrou A difusão associada ao mapa de ADC permite
que tivessem significativa relevância clínica. A diagnosticar as situações em que ocorre restrição
referida técnica apresenta, como atributos de su- da mobilidade da molécula de água como seja no
premacia em relação às outras tecnologias: a sua óp- edema citotóxico da lesão vascular isquémica agu-
tima resolução de contraste e resolução espacial que da, no abcesso cerebral, e nalgumas doenças
possibilita uma excelente diferenciação dos tecidos, metabólicas que cursam com edema da mielina.
nomeadamente na identificação da anormalidade Há indicação para administração endovenosa de
tecidual; o seu rigor na localização anatómica e na produto de contraste paramagnético na lesão tu-
relação topográfica lesional, consequência da moral, infecciosa e para-infecciosa, nalgumas
aquisição de imagens em diferentes planos ortogo- doenças neurodegenerativas como na doença de
nais; e a ausência de regiões anatómicas “cegas”. Alexander, na adrenoleucodistrofia e na esclerose
De destacar as suas enormes potencialidades múltipla; e igualmente sempre que se coloquem
traduzidas, nomeadamente, pela possibilidade de dúvidas de diagnóstico diferencial.
estudos dinâmicos, de aquisição volumétrica com No recém-nascido com quadro de encefalopatia
reconstrução tridimensional, de angio-RM arterial aguda é um exame de segunda intenção, geral-
e venosa, de avaliação quantitativa do fluxo do mente quando os achados ecográficos são dis-
líquor, de espectroscopia, de estudos de perfusão crepantes com a clínica ou suscitam dúvidas dia-
e de urografia. gnósticas. Ainda neste grupo etário discute-se ac-
A sua informação diagnóstica é somente infe- tualmente a aplicabilidade da RM (utilizando as téc-
rior à TC na avaliação das seguintes situações: nicas de difusão incluindo o mapa de ADC e a sua
anomalias do crânio, da face incluindo órbita, e do quantificação, a espectroscopia e as habituais pon-
ráquis; na lesão predominatemente osteoconden- derações T1 eT2) no diagnóstico na fase hiper-agu-
sante do osso ou respeitante essencialmente à cor- da da encefalopatia hipóxico-isquémica, da lesão
tical óssea; na lesão esquelética com fractura; na vascular isquémica e da leucomalácia periven-
avaliação do canal auditivo externo e ouvido mé- tricular, em particular na ausência da lesão cavitada.
CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica 57
A B
FIG. 7
Anomalia congénita da veia de Galeno. (A)Angio-RM, axial. “Fístulas” artério-venosas na parede anterior da veia prosencefálica
marcadamente dilatada, tendo como principais pedículos arteriais nutritivos as artérias pericalosas e corodeias. (B)Angio-RM
venosa, para-sagital. Proeminente dilatação da tórcula, dos seios laterais e da veia prosencefálica (veia embrionária). Marcada
hipoplasia do seio longitudinal superior.
A B
FIG. 8
Imagens de RM na Esclerose Múltipla. A) DP axial. Múltiplas lesões redondas e ovóides com hipersinal localizadas na substância
branca profunda e subcortical. B) T2 para-sagital. Múltiplas lesões redondas ou ovóides localizadas na substância branca profunda
e subcortical com expressão infra e supratentorial.
9
• Tumores pélvicos com a finalidade de detec-
tar invasão dos tecidos moles, alterações me-
dulares e extensão de massas pré-sagradas.
• Lesão infecciosa e tumoral, sobretudo óssea
e das partes moles.
• Lesões isquémicas do osso.
• Traumatismo articular (com lesão ligamen- ASPECTOS DO SERVIÇO DE
tar, capsular e da fise).
• Patologia músculo-esquelética. PATOLOGIA CLÍNICA NUM
Sublinha-se a supremacia do método na avalia-
ção comparada com a TC em processos patológi- HOSPITAL PEDIÁTRICO
cos nomeadamente tumorais, quando a adminis-
tração de contraste iodado está contra-indicada. Rosa Maria Barros, Antonieta Viveiros, Antonieta
Bento, Isabel Daniel, Isabel Peres, Isabel Griff,
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Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatric Hospital através de estudos epidemiológicos;
Pediatrics. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007 g) Ensino pré e pós – graduado, e investigação.
O SPC constitui uma área de fronteira inter-
pretativa com a actividade assistencial prestada ao
nível dos serviços de urgência, de ambulatório e
60 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
de internamento. O mesmo tem, pois, uma missão métodos que requerem pequenos volumes de
particular pelo facto de o seu modo de funciona- amostra (micrométodos).
mento poder influenciar a evolução de inúmeras Torna-se ainda fundamental que o clínico
situações clínicas em função da rapidez e quali- tenha conhecimento dos valores de referência
dade dos resultados; tal influência, para além adoptados por grupo etário e sexo, os quais são
doutros factores, poderá traduzir-se, por exemplo, fornecidos pelo mesmo SPC e constam de Anexos
na estadia média e tempo de permanência dos no 3º livro. Os equipamentos modernos permitem
doentes nas diversas áreas assistenciais, propor- utilizar pequenos volumes de amostra, aspecto de
cionando melhor desempenho dos restantes grande importância num laboratório pediátrico.
serviços, com consequências médicas, económicas, Para facilitar a colheita de sangue venoso actual-
individuais e sociais. mente nalguns centros existem aparelhos de tran-
Para o obtenção de bons resultados torna-se, siluminação utilizando luz de comprimento de on-
pois, fundamental que exista uma capacidade de da próximo do da radiação infravermelha (entre
actuação de elevado nível técnico, de actualização 700 e 1.000 nm) com ampliação de imagem das
de equipamentos e de métodos, assim como pes- veias, observada em cinescópio de TV.
soal diferenciado.
Transporte das amostras
Organograma
Como regra geral há que ter em conta que todas as
Para a prossecução dos objectivos, o SPC, com amostras devem ser transportadas ao laboratório
uma direcção clínica integrando médicos patolo- imediatamente após a colheita. É de grande im-
gistas clínicos e diversos técnicos diferenciados , portância para alguns parâmetros (como o pH e os
auxiliares e pessoal auxiliar, compreende as gases no sangue e amónia) que os respectivos tu-
seguintes Secções subdivididas em Áreas de bos com sangue sejam transportados em recipiente
Diferenciação: com gelo.
1) Secção de Hematologia (Imunofenotipa- A existência de normas de actuação no SPC, in-
gem, Hemostase, Biologia Molecular); cluindo o desenho de fluxos de trabalho em co-
2) Secção de Química Clínica (Endocrinologia, laboração com os clínicos, possibilita a melhoria
Oncologia,Marcadores Ósseos, Diagnóstico pré- da qualidade com menos custos.
natal,Infertilidade, Biologia Molecular);
3) Secção de Microbiologia (Parasitologia, Normas de higiene e protecção
Micologia, Virologia,Biologia Molecular);
4) Secção de Imunologia (Imunoalergologia, Sendo este livro devotado à clínica pediátrica e
Imunoquímica, Doenças Autoimunes, Serologia uma vez que está previsto o estágio de estudantes
de Infecções Víricas e Bacterianas, Biologia Mole- e de clínicos no laboratório, optou-se por selec-
cular. cionar algumas normas de higiene e protecção
adoptadas no SPC do HDE, as quais têm a ver com
Colheita de produtos biológicos o “saber estar” no ambiente de laboratório.
10
Após este tempo, limpar as superfícies sujas.
• O material de uso único deve ser colocado em
contentores apropriados, hermeticamente fecha-
dos, para ser eliminado; ou, se tal não for pos-
sível, deve ser descontaminado previamente.
• O material para reutilização deve ser desconta-
minado por autoclavagem. CRIANÇAS E ADOLESCENTES
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2003 que está de acordo, numa perspectiva transdisci-
Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatric Hospital plinar, com a definição de pediatria, atrás explana-
Medicine, Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007 da: medicina integral dum grupo atário compreen-
dido entre a concepção e o fim da adolescência.
A reabilitação da criança com deficiência e in-
capacidade, tarefa complexa congregando uma
série de conhecimentos e de meios, desafia a ca-
pacidade duma equipa em intervir num ser em
processo de desenvolvimento e maturação.
Assenta, por um lado, na definição dos conceitos
básicos de deficiência, incapacidade e invalidez
que englobamos no campo das menos valias e das
necessidades especiais, e nos conhecimentos actu-
ais do que se entende por desenvolvimento, de-
senvolvimento psicomotor, sequência da matu-
ração cerebral e de plasticidade cerebral, a abordar
adiante.
A organização interna dum serviço de reabili-
tação varia de acordo com os objectivos propostos
e os métodos utilizados para os alcançar. No
Hospital de Dona Estefânia (HDE), o Serviço de
Medicina Física e de Reabilitação estruturou-se fun-
CAPÍTULO 10 Crianças e adolescentes com necessidades especiais 63
cionalmente em três áreas de atendimento ao en- bros inferiores e nas alterações esfincterianas.
contro da prevalência das patologias das crianças Existe incapacidade de marcha autónoma, neces-
que a ele recorrem, áreas não estanques antes com- sitando de auxiliares, ortóteses ou cadeira de rodas
plementares: de reabilitação neurológica, orto-trau- e incapacidade de esvaziamento/retenção urinária
matológica e respiratória. Como serviço integrado necessitando de algaliação intermitente e disposi-
e concorrendo para a dinâmica hospitalar, está pre- tivos colectores de urina. Manifesta a invalidez
sente em todos os seus núcleos e consultas multi- (desvantagem) por não poder participar em todas
disciplinares, como são exemplo os de spina bífida e as actividades próprias para o seu grupo etário
de ventilação. Nesta perspectiva, apoia diariamente (poderá participar em algumas delas com algum
todos os doentes assistidos nos respectivos serviços tipo de adaptação). A médio prazo necessitará de
de pediatria médica e de cirurgia pediátrica, nas apoios educativos especiais e a longo prazo, na pre-
unidades de queimados, de cuidados intensivos visível relativa invalidez profissional; e poderá vir
pediátricos e neonatais (UCIP e UCIN) e no serviço a necessitar de algum tipo de adaptação pessoal ou
de ginecologia e medicina materno-fetal. do local de trabalho para o desempenho de activi-
dades laborais tendo em vista a auto-suficiência.
Conceitos de deficiência,
incapacidade e invalidez Desenvolvimento, desenvolvimento
psicomotor, habilitação e reabilitação
O modelo médico clássico baseia a sua concepção
no fluxograma delineado da seguinte forma: etio- O desenvolvimento pode ser definido como o
logia – patologia – sintomatologia. Procura processo maturativo das estruturas e das funções
racionalmente intervir na primeira fase e, quando da criança, que leva à aquisição e aperfeiçoamento
não o consegue, nas fases seguintes. das suas capacidades. Obedece a uma determina-
A este modelo a acrescenta, de forma comple- da sequência, com padrões de evolução variáveis e
mentar, o conceito de menos valias integrando, tal individuais. É, portanto, o resultado duma inte-
como se referiu, as noções de deficiência, inca- racção adaptativa em relação ao meio ambiente e
pacidade e invalidez definidos pela Organização influenciada por factores intrínsecos (genéticos) e
Mundial de Saúde. Tal constituiu a base da sua in- extrínsecos (ambienciais). (consultar Parte V).
tervenção como especialidade. Considera-se haver um atraso de desenvolvi-
Considera-se pessoa com deficiência aquela que, mento quando a criança não realiza as tarefas que
por motivo de perda ou anomalia, congénita ou lhe são propostas e sempre aferidas à idade pelas
adquirida, de estrutura ou função psicológica, in- escalas de neurodesenvolvimento. Quando o atra-
telectual, fisiológica ou anatómica, susceptível de so de desenvolvimento é primário, isto é, a criança
provocar diminuição de capacidade, pode estar em não atingiu os padrões do desenvolvimento nor-
condições de desvantagem para o exercício de ac- mais para a idade, a intervenção, mais do que uma
tividades consideradas normais tendo em conta a reabilitação, traduz-se numa habilitação forne-
idade, o sexo e os factores socioculturais dominantes. cendo à criança os meios e as ajudas técnicas
Incapacidade, consequência de deficiência, é a necessárias à aquisição da função, isto é mediante
diminuição ou ausência de expressão de qualquer a aquisição de experiências. Se, por outro lado, o
actividade nos limites considerados normais para atraso de desenvolvimento é secundário, provoca-
o ser humano. do por doença ou noxa de que resultou paragem
Invalidez, consequência das anteriores, traduz ou regressão dos padrões de desenvolvimento da
a impossibilidade de realização duma tarefa nor- criança, a intervenção terapêutica corresponderá,
mal, com prejuízo laboral ou social e limitando a então, a reabilitação.
integração plena da pessoa doente.
Vejamos o seguinte exemplo: criança com spina Abordagem da criança com
bifida – nível L4/L5 – (doença). Tem perda fun- deficiência e incapacidade
cional (deficiência) traduzida na diminuição de
força muscular, nas alterações sensitivas dos mem- A abordagem da reabilitação da criança com defi-
64 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ciência e incapacidade é feita duma forma estru- integração das sensibilidades (agnosias). No caso
turada com o objectivo de obter o diagnóstico etio- de dúvida será pedida a colaboração das respecti-
lógico (doença), diagnóstico funcional (deficiência, vas especialidades para caracterização qualitativa
incapacidade e invalidez) e caracterização da ma- e quantitativa das anomalias. Quando presentes,
triz relacional (afectividade, socialização e esco- as anomalias sensoriais podem ser, elas próprias,
larização). a deficiência, e necessitar de correcção adequada.
No âmbito da história clínica a anamnese será Quando associadas a outras deficiências (sin-
colhida à criança ou seus acompanhantes. É fun- dromáticas), a sua não correcção pode prejudicar
damental uma minúcia relativamente a an- o sucesso do tratamento. Especial atenção deve ser
tecedentes pessoais (AP), familiares (AF) e história prestada à avaliação do desenvolvimento psico-
sócio-familiar . Nos AP ressaltam a história pre- motor e do nível cognitivo relacionado com a
gressa da gravidez, do parto, do período neonatal, idade cronológica (Escalas de desenvolvimento de
do desenvolvimento psicomotor e de doenças an- Mary Sheridan, de desenvolvimento mental de
teriores. Nos AF salientam-se a existência de con- Ruth Griffiths e outras).
sanguinidade, de doenças com carácter heredofa- No exame ósteo – músculo – articular são re-
miliar e de situações de deficiência e/ou incapaci- gistadas as malformações e deformações ósseas e
dade. articulares e procede-se ao registo quantificado
Na colheita da anamnese sócio-familiar di- das limitações articulares (exame articular). Na
mensiona-se toda a envolvência da criança per- avaliação do movimento, motricidade fina e gros-
mitindo enquadrar a dinâmica do núcleo familiar, seira, há que registar sincinésias, compensações,
como funciona, como nele se reflecte a deficiência movimentos involuntários, com o registo das al-
da criança e a capacidade em prestar a assistência, terações do tono muscular.
e o apoio de que esta vai necessitar. O exame funcional avalia as consequências da
Na perspectiva do diagnóstico funcional deve deficiência e incapacidade nas tarefas básicas, ac-
inquirir-se sobre: independência e dependência da tividades de vida diária e na vida relacional da
criança; de que tipo de ajuda, técnica ou de terceira criança. A criança é observada a executar as diver-
pessoa necessita para realização das actividades de sas tarefas de vida diária na vertente lúdica. Ao
relação ou de vida diária como: comunicação, ali- efectuar o gesto avalia-se a lateralidade, a sua defi-
mentação, higiene, limpeza e arranjo pessoal, vestir, nição, a coordenação óculo-motora, o tempo de
descanso nocturno, transferências e mobilidade. É atenção útil e outros parâmetros. A criança finge
importante saber quem habitualmente presta essa beber um copo de água, lavar os dentes, pentear,
ajuda e disponibilidade (elemento chave). vestir, pontapear, etc.. As capacidades de transfe-
Na realização do exame objectivo a reabili- rência, marcha ou locomoção deverão ser avali-
tação partilha com as demais áreas médicas os adas na sua eficiência, procurando caracterizar o
princípios do exame físico geral com o registo sis- gasto energético que lhes está associado.
temático e comparado dos índices antropométri- Há uma série de escalas que tentam “quan-
cos: peso, comprimento e perímetro cefálico para tificar” o estado funcional do paciente, mais fáceis
além da observação somática. O exame neurológi- de utilizar umas que outras. As mais utilizadas são
co avalia de forma sistematizada os padrões de as Growing Skills e Gross Motor Function Scale. São
vigília, lucidez, comunicação, colaboração, tradu- úteis na monitorização dos progressos da reabili-
zidas pelo interesse e interacção da criança com o tação do doente, podendo servir como meio de tro-
meio, as motilidades global e fina, a força muscu- ca de informações e experiências entre centros e es-
lar (exame muscular duma forma analítica ou colas de reabilitação.
global), a coordenação, o tono muscular, os refle- Após a anamnese e o exame objectivo é formu-
xos osteotendinosos e outros, pesquisa das sensi- lado o diagnóstico etiológico provisório, (poden-
bilidades, pares cranianos e presença de movi- do exigir-se a realização de exames comple-
mentos anormais. Especial importância deve ser mentares para a sua validação), o diagnóstico fun-
prestada à avaliação sensorial. Devem ser pes- cional e o prognóstico.
quisadas anomalias da visão, audição e função de Os diagnósticos etiológico e, sobretudo, o fun-
CAPÍTULO 10 Crianças e adolescentes com necessidades especiais 65
11
registos do peso, comprimento, perímetro cefálico,
respectivos percentis e do desenvolvimento psico-
motor. Devem ainda estar referidas as doenças
agudas (diagnóstico e terapêutica), detectadas em
consulta ou episódio de urgência, seja no centro de
saúde, seja no hospital.
CONTINUIDADE DE CUIDADOS
Seguimento regular de uma criança
À CRIANÇA E ADOLESCENTE saudável
Maria do Céu Soares Machado Todas as crianças devem ter um Médico que é o seu
médico e que a criança identifica e conhece pelo
nome.
No centro de saúde, o Médico de Família e a
Importância do problema Enfermeira de Saúde Infantil são os responsáveis
pelo seguimento normal, segundo os parâmetros
A continuidade de cuidados à criança e adoles- definidos pela Direcção Geral da Saúde: Saúde
cente pode ser definida de forma longitudinal – Infantil e Juvenil - Programa Tipo de Actuação,
todos os cuidados primários devem ser prestados 2012 (www.dgsaude.pt)
pelo mesmo profissional; ou transversal – quando O Programa Nacional de Vacinação, o ensino
são necessários cuidados hospitalares ou especiais, da alimentação e de uma vida saudável são da
deve haver articulação e comunicação entre os responsabilidade do médico e da enfermeira do
profissionais envolvidos. CS, assim como os episódios de doença aguda; por
Os cuidados à criança e adolescente devem consequência, as consultas devem ser progra-
também ser centrados na família, o que pressupõe madas em horários de acordo com as necessidades
parceria com os pais nos cuidados e nas decisões, da população local ou seja, na maioria dos casos,
em ambiente adequado e apoio à mesma, de forma pós-laboral.
organizada. Para os CS, a Comissão Nacional de Saúde da
Os cuidados continuados e centrados na família Criança e Adolescente propõe um pediatra
permitem cuidados antecipados de promoção da consultor, nomeado pelo director do serviço de
saúde e prevenção da doença mais efectivos e pediatria da unidade de saúde, através das
coordenados, permitindo estilos de vida mais ade- unidades coordenadoras funcionais (UCFs). As
quados, menos comportamentos de risco, melhor suas funções são basicamente a discussão de
cumprimento do plano de vacinação, menor pro- casos–problema, a referenciação directa e a orga-
cura de apoio de urgência e maior satisfação da nização da formação contínua, com periocidade
família e dos profissionais. variável, de uma vez por semana a uma vez por
Em Portugal, os cuidados de saúde primários mês, de acordo com a disponibilidade do serviço e
são prestados no centro de saúde (CS) pelo espe- a necessidade do CS.
cialista de medicina geral e familiar e pela enfer- As UCFs têm ainda um papel preponderante
meira coordenadora de saúde infantil. Contudo, na divulgação de protocolos de referenciação
verifica-se uma percentagem significativa de discutidos e aprovados de forma abrangente.
crianças e adolescentes com vigilância de saúde O pediatra em regime privado é responsável
em regime de pediatra privado. Os cuidados hos- pelo seguimento, pelo ensino, pelos episódios de
pitalares são prestados quase exclusivamente em doença aguda e pelo aconselhamento das vacinas,
hospitais públicos. sendo a administração destas da competência do
Qualquer que seja o sistema, o Boletim de CS. Idealmente, o mesmo deve estar organizado de
Saúde Infantil (BSI) é o instrumento previligiado modo que, em caso de indisponibilidade numa
de comunicação devendo ser preenchido integral- situação de doença aguda, a família possa recorrer
mente na saúde e na doença. Nele devem constar ao substituto por ele indicado.
CAPÍTULO 11 Continuidade de cuidados à criança e adolescente 67
O processo deve ser iniciado ainda antes da Inkelas M, Schuster MA, Olson LM, Park CH, Halfon N.
adolescência, encorajando as famílias a projectar o Continuity of primary care clinician in early childhood.
futuro do filho. A passagem de testemunho, a Pediatrics 2004; 113: 1917-1725
combinação e concertação quanto a estratégias e Irigoyen M, Findley SE, Chen S, Vaughan R, Sternfels P, Caesar
terapêuticas deve ser real, discutida com o adoles- A, Metroka A. Early continuity of care and immunization
cente e a família. coverage. Child Care Health Dev 2004; 30: 265-277
Os pontos fundamentais são: O’Malley AS. Current evidence on the impact of continuity of
1. Identificação da instituição de saúde mais care. Curr Opin Pediatr 2004; 16: 693-639
apropriada à situação. Rauch DA, Percelay JM, Zipes D. Introduction to pediatric
2. Identificação do médico que passa a assumir hospital medicine. Pediatr Clin N Am 2005; 52: 963-977
a responsabilidade, a coordenação e o planeamento. Reiss JG, Gibson RW, Walker LR. Health care transition: youth,
3. Elaboração de nota de alta ou nota de transi- family and provider perspectives. Pediatrics 2005; 115:
ção escrita, concisa, contendo informação médica 1449-1450
sumária e estratégias combinadas com o jovem e Sassetti L, DGS. Programa de vigilância em Saúde Infantil e
a família. Juvenil, Revisão 2012. Acta Pediatr port 2012; 43: XXXI
Em resumo, os cuidados de saúde à criança e While A, Forbes A, Ullman R, Lewis S, Mathes L, Griffiths P.
ao jovem devem ser especializados, centrados na Good practices that address continuity during transition
família, em parceria, com continuidade, e partilha- from child to adult care: synthesis of the evidence. Child
dos, qualquer que seja o nível quanto a prestação Care Health Dev 2004; 30: 439-452
(primária ou hospitalar), e através de um esforço www.dgs.pt. Direcção Geral da Saúde: Saúde Infantil e Juvenil
interdisciplinar coordenado. – Programa Tipo de Actuação, 2012 (acesso Setembro 2013)
A continuidade de cuidados é, pois, um fenó- www.iqs.pt/cnsca (acesso Setembro 2013).
meno multifactorial que resulta da combinação de
acesso fácil aos profissionais, desempenho ade-
quado, boa capacidade de comunicação entre a
família, os profissionais e as instituições que prestam
cuidados, e excelente coordenação entre todos.
BIBLIOGRAFIA
Alpert JJ, Zuckerman PM, Zuckerman B. Mummy, who is my
doctor? Pediatrics 2004; 113: 195-97
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health care needs from pediatric to adult-centered health
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pediatrician’s role. Pediatrics 2003;112:691-96
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Hjern A, Bouvier P. Migrant children – a challenge for
European Pediatricians. Acta Paediatr 2004;93:1535-1539
Heller KS, Solomon MZ. Continuity of care and caring: what
matters to parents of children with life-threatening
conditions. J Pediatr Nurs 2005; 20:335-346
PARTE III
Genética e Dismorfologia
70 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
12
que resultam da interacção entre predisposição
genética individual e factores ambientais, proces-
sos complexos ainda pouco conhecidos (a genó-
mica).
Nas últimas décadas a prevenção primária e
secundária estava focalizada nas doenças raras. O
GENÉTICA MÉDICA desenvolvimento das tecnologias de diagnóstico e
o incremento das técnicas de diagnóstico pré-
NA CLÍNICA PEDIÁTRICA natal, de tipo invasivo e não invasivo, teve uma
grande importância na prevenção, associada a
Luís Nunes, Raquel Carvalhas e Teresa Kay outras medidas como a vacinação anti-rubéola e a
suplementação pré-concepcional com ácido fólico.
Mas a informação actualmente existente sobre a
variação genética e a sua sistematização com
Importância do problema recurso a tecnologias bioinformáticas, perspectiva
que possa vir a ter também aplicação no âmbito da
A Genética Médica representa na Medicina Saúde Pública, em doenças complexas como o
moderna uma área do conhecimento que contri- cancro, as doenças cardiovasculares ou a diabetes.
bui com abordagens inovadoras para melhorar a A contínua divulgação de novos dados na lite-
saúde das pessoas e das comunidades. O foco pre- ratura científica, o interesse dos meios de comuni-
ferencial da Genética Médica tem sido nas últimas cação social e da comunidade, a necessidade de
décadas as anomalias congénitas, as doenças referenciar de forma adequada situações com-
genéticas e as doenças raras com o objectivo do plexas, as questões de ética que continuamente
aconselhamento genético e reprodutivo. Mas a são colocadas à sociedade com as novas descober-
enorme inovação em conhecimentos e tecnologias tas e inovações, alertam para a necessidade de os
que resultaram do Projecto do Genoma Humano, médicos e muito em especial os pediatras, adqui-
alargaram o seu âmbito de intervenção às doenças rirem mais qualificação e formação em Genética
comuns de natureza multifactorial, para cuja etio- Médica. As próprias associações científicas estão
logia contribuem factores genéticos e ambientais. conscientes desta realidade e algumas têm promo-
Os instrumentos utilizados pela Genética vido iniciativas científicas de formação e actuali-
Médica interessam aos profissionais de saúde zação de conhecimentos nesta área dirigidas aos
para o diagnóstico da patologia genética, o estudo profissionais de saúde.
das doenças complexas, a prevenção a vários A Genética Médica tem uma grande importân-
níveis e, cada vez mais, pela informação genética cia para a clínica pediátrica. Os pediatras para
obtida por testes genéticos que é útil para decisões além de cuidarem de crianças e jovens com doen-
terapêuticas, por exemplo de farmacogenética. A ça genética ou de risco elevado, têm uma ligação
inovação tecnológica que tem ocorrido, particular- particular com as famílias, o que os torna uma
mente na genética molecular, permitiu identificar fonte de grande credibilidade e veículo para o
inúmeras mutações relacionadas com a etiologia aconselhamento genético. O pediatra em particu-
de doenças específicas, a par de um maior conhe- lar, e todos os clínicos que prestam assistência a
cimento da variação genómica, que se perspectiva criança e jovens, não devem perder oportuni-
como relevante para compreender a etiologia das dades de comunicação e diálogo, por vezes numa
doenças comuns de natureza multifactorial e atitude proactiva, em temas como a reprodução,
interpretar a variabilidade clínica entre os doen- os comportamentos nocivos e os estilos de vida
tes. saudáveis.
Assim, a Genética Médica abrange doenças Para que essa intervenção seja mais eficaz, os
que resultam de uma alteração específica, por médicos devem estar familiarizados com o dia-
exemplo num cromossoma ou gene particular (a gnóstico das doenças genéticas mais frequentes, o
genética), e doenças com componente genético aconselhamento genético, o acesso a fontes de
CAPÍTULO 12 Genética Médica na Clínica Pediátrica 71
informação credíveis e saber orientar os casos ha” pré-definida. Sempre que é exequível deter-
mais complexos para os serviços especializados. minado teste genético com utilidade clínica, o
mesmo deverá realizar-se por ser importante para
A consulta de Genética o doente ter o diagnóstico, o que tem implicações
a outros níveis como o aconselhamento genético, o
A consulta de Genética é uma consulta médica, plano de cuidados ou o projecto de vida.
pelo que inclui elementos comuns a toda a prática A principal responsabilidade do médico gene-
médica em que a história clínica é um elemento ticista é assegurar aos indivíduos e familiares de
essencial. risco genético, informação científica correcta,
A história pessoal inclui uma revisão porme- transmitida de forma adequada e apropriada,
norizada da gravidez, da transição e do percurso sobre a natureza genética da patologia, as técnicas
na infância, do crescimento, do desenvolvimento que permitem obter o diagnóstico e o risco genéti-
psicomotor e sensorial, das complicações médicas, co para a descendência. Nesta perspectiva, para as
precisando o início das manifestações da doença, doenças genéticas o risco corresponde à probabili-
os exames complementares e as intervenções clíni- dade de um descendente ou familiar nascer com
cas entretanto realizadas. uma doença genética particular.
A história familiar deve recolher informação O aconselhamento genético é um processo de
relativa a, pelo menos, três gerações e, nalgumas comunicação em que são discutidos riscos genéti-
circunstâncias, torna-se mesmo útil inquirir outros cos, opções reprodutivas e apoio à família e supor-
familiares. É necessário inventariar outros casos te comunitário. É um acto médico que tem três
semelhantes na família, anomalias congénitas, dimensões principais: realizar ou confirmar o dia-
doenças genéticas, atraso mental ou perturbações gnóstico de uma doença genética, avaliar o risco
neurocomportamentais, mortes fetais ou neona- genético de recorrência e apoiar o casal nas suas
tais, ainda que aparentemente não estejam relacio- opções reprodutivas. Por definição não directivo,
nados com o caso índex. Com base nestas infor- processa-se em termos de respeito pela autonomia
mações é construída a árvore genealógica simpli- e dignidade da pessoa. Porém, o papel do médico
ficada, que permite identificar rapidamente as não pode ser passivo, nem neutro ou indiferente,
relações de parentesco, perspectivar um modo de quando participa no processo de tomada de
transmissão e avaliar os riscos genéticos. decisão pelo casal.
O exame clínico é fundamental para o dia-
gnóstico, interessando quer a percepção global (a Indicação para consulta de Genética
impressão diagnóstica) e o apelo à memória de
casos semelhantes, quer a avaliação e registo das Considera-se que os indivíduos com doença gené-
particularidades do fenótipo. Estas características tica ou de risco genético elevado, e os seus fami-
são mais tarde estudadas com pormenor, e com- liares, deverão ter acesso a uma consulta de
paradas com bases de dados de imagens, progra- Genética Médica ao longo do seu ciclo de vida.
mas informáticos de diagnóstico de síndromas e a Porém, como os recursos actualmente existentes
revisão da literatura científica. A orientação e a são escassos, considera-se que as principais indi-
sequência do exame dependem, também, de um cações para o acesso são as seguintes:
diagnóstico clínico prévio. Os elementos mais a) Indivíduo com suspeita de doença genética
significativos devem ser sempre registados sob a ou anomalias congénitas múltiplas;
forma de imagem. b) Indivíduo com défice cognitivo ou pertur-
A proposta de exames complementares decorre bação neurocomportamental, com ou sem dismor-
das hipóteses diagnósticas formuladas e a sua rea- fias;
lização deve ser criteriosa e económica, tendo em c) Indivíduo com risco genético elevado pela
conta os critérios que permitem o diagnóstico da história familiar;
doença (os elementos necessários para a “definição d) Progenitores de feto cuja gravidez foi medi-
de caso”). Poderá recorrer-se a diferentes tipos de camente interrompida (IMG), ou criança falecida
estudos, mas o diagnóstico não segue uma “cartil- com suspeita de doença genética;
72 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
recta, que tenha em conta uma avaliação clínica deve obedecer a um conjunto de regras que ten-
criteriosa e o diagnóstico diferencial. O aconselha- ham em conta o interesse e as vantagens para a
mento genético prévio é essencial e o médico deve criança e jovem da realização dos exames, salva-
explicar ao doente o tipo de exame que irá realizar, guardando a sua autonomia e o direito de, na
as limitações dos resultados e os benefícios espera- maioridade, tomarem uma decisão informada.
dos. Esta intervenção, a base do consentimento Estas balizas foram tidas em conta na elaboração
livre e esclarecido, é sempre necessária de modo a dos diplomas legais e normativos que têm sido
assegurar o respeito pela personalidade, dignida- incorporados na legislação portuguesa.
de, direitos e superiores interesses da pessoa.
A finalidade dos exames tem importância em Legislação portuguesa
termos de prescrição. Em contexto hospitalar, os
médicos podem e devem prescrever os testes de A lei 12/2005 de 26 de Janeiro sobre informação
genética que são necessários para o diagnóstico. genética pessoal e de saúde é um documento
Todavia, o estudo de pessoas saudáveis para iden- importante que definiu um conjunto de princípios
tificar portadores ou como teste preditivo (pré- no âmbito da Genética Humana. Deveriam ser
sintomático ou de susceptibilidade) é competência regulamentados alguns artigos no prazo de 180
de médico geneticista de acordo com a legislação dias, o que não aconteceu até ao momento, apesar
e as boas práticas internacionais. de várias organizações científicas e a Comissão
No caso da realização de testes preditivos de Nacional de Genética terem apresentado ao
doenças genéticas de manifestação tardia, o proce- Ministério da Saúde propostas nesse sentido.
dimento clínico deverá realizar-se de acordo com
os protocolos existentes, e as melhores práticas. BIBLIOGRAFIA
A bibliografia correspondente aos capítulos 12 a 17 pode ser
Privacidade e confidencialidade consultada no fim do capítulo 17.
13
transmitir à descendência ou ter um efeito neutro,
ainda que criando biodiversidade.
As mitocôndrias são organitos (organelos) in-
tracitoplasmáticos cuja principal função é a pro-
dução da energia necessária à célula, através de
um processo designado de fosforilação oxidativa.
GENÉTICA: IMPORTÂNCIA Essa energia fica retida em moléculas de adenosi-
na trifosfato (ATP), que podem ser utilizadas nos
DO LABORATÓRIO diversos processos metabólicos da célula. Estima-
se que as mitocôndrias sejam responsáveis pela
Salomé de Almeida, Teresa Kay, Raquel Carvalhas produção de mais de 90% do ATP necessário para
e Luís Nunes cada indivíduo. As mitocôndrias também estão en-
volvidas noutras vias metabólicas como a biossín-
tese de pirimidinas, do colesterol e dos neuro-
transmissores.
Genes e genoma As mitocôndrias possuem um genoma próprio,
o ADN mitocondrial (ADNmt) atrás mencionado,
Os genes são as unidades básicas da informação que é uma molécula circular, semelhante à dos
genética de um indivíduo. Correspondem a uma plasmídeos bacterianos. O genoma mitocondrial e
realidade discreta de uma molécula de ADN (aci- o nuclear comunicam entre si, numa interacção
do desoxirribonucleico), o cromossoma, e contêm permanente, e o ADN nuclear codifica a maioria
a informação necessária para criar uma proteina. das proteínas necessárias à mitocôndria. Os genes
No cromossoma os genes ocupam uma posição mitocondriais codificam 13 polipéptidos essen-
particular que se designa por locus. A informação ciais para a cadeia respiratória, 2 ARNr (ribosso-
genética individual contida nos genes nucleares ou mais) e 22 ARNt (transferência), necessários para
das mitocôndrias, designa-se por genoma. a síntese proteica na mitocôndria.
O código genético inclui “programas” que de-
terminam a leitura dos genes, de forma sequencial Cromossomas
ou alternada, consoante a situação metabólica ou
estádio do desenvolvimento do indivíduo. Os cromossomas correspondem a moléculas de
O ADN nuclear contém cerca de três mil ADN que se formam durante o ciclo celular, quan-
milhões de nucleótidos e estima-se que existam do a célula se divide. É a forma de organizar o
cerca de 25000 genes, que correspondem a pouco ADN, através de múltiplos enrolamentos alta-
mais de 5% do genoma. O ADN mitocondrial mente controlados, envolvendo as histonas, pro-
(ADNmt) é menor, tem características diferentes e teínas nucleares com características específicas,
é constituído por 16570 nucleótidos a que corres- que formam arranjos geométricos específicos, re-
pondem 37 genes que ocupam 93% da molécula. correndo ao enrolamento e super-enrolamento he-
Os genes nucleares distribuem-se ao longo dos licoidal da cadeia. Este processo permite, entre ou-
cromossomas, intercalados por sequências de nu- tras situações, que o ADN esteja acessível, em par-
cleótidos muitas vezes repetitivas cujo significado ticular as regiões importantes para o emparelha-
e relevância biológica ainda se desconhece em mento dos cromossomas homólogos e para a trans-
grande parte. crição do ARNm.
A sequência de nucleótidos de um gene no cro- Os cromossomas, após a preparação laborato-
mossoma designa-se por alelo. Desta forma, para rial, possuem um aspecto linear e são constituídos
cada gene há dois alelos, de acordo com a origem por dois braços unidos por uma zona de constri-
parental. ção: o centrómero. O braço curto é designado por
Por vezes o ADN sofre mutações, que se podem p (petit) e o braço longo designado por q (letra que
traduzir numa vantagem para o indivíduo (o sub- se segue no alfabeto).
strato da evolução), originar doença, que se poderá Cada cromossoma tem um tamanho próprio e
76 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
um conjunto específico de genes. Por exemplo, o cadeia de aminoácidos traduzida e da proteína que
cromossoma 1 é dos maiores, contém cerca de 246 pode ser inexistente, truncada ou ter configuração
milhões de pares de bases, o que representa 8% do anómala.
ADN nuclear. Neste cromossoma existirão 2100 a As principais mutações são a deleção, inserção
2600 genes. e a substituição de nucleótidos na molécula de
As regiões terminais de ambos os braços dos ADN. Designa-se por mutação silenciosa se a alte-
cromossomas correspondem aos telómeros que ração do nucleótido permitir codificar o mesmo
têm funções específicas na replicação e manuten- aminoácido, mutação missense, se resultar num
ção do cromossoma. aminoácido diferente e mutação nonsense, quando
Cada espécie tem um total de cromossomas ca- o tripleto mutado origina um codão STOP.
racterístico. A espécie humana tem 46, que se or- Actualmente as mutações também estão a ser es-
ganizam em 23 pares, dos quais 22 autossomas tudadas a nível do ARNm.
homólogos e um par de cromossomas sexuais. A taxa de mutação do ADNmt é maior compa-
Distinguem-se pelo seu tamanho, posição do cen- rativamente ao ADN nuclear. Nalgumas regiões
trómero e padrão de bandas. O centómero pode es- hipervariáveis da região controlo, essa taxa é ain-
tar posicionado no centro e o cromossoma designa- da maior. São conhecidas dezenas de mutações
se metacêntrico; afastado do centro - submetacên- pontuais e inúmeros rearranjos associados a uma
trico; ou próximo de uma das extremidades – acro- grande variedade de doenças e vias metabólicas.
cêntrico. Se a mutação afectar os intrões, regiões de re-
Os cromossomas podem organizar-se em gru- gulação ou de imprinting, poderá também ter
pos de A a G de acordo com o seu tamanho e a po- consequências biológicas.
sição do centrómero. Actualmente, com as técnicas A mutação que ocorre nas células germinais,
de coloração existentes, foi possível obter um pa- óvulos e espermatozóides, é transmitida à descen-
drão de bandas específico para cada cromossoma, dência, o que é a base da doença genética here-
o que permite avaliar a existência de anomalias de ditária. Se as alterações ocorrem nas células somá-
estrutura. Os autossomas foram numerados do ticas, como é o caso do cancro, podem afectar ape-
maior para o menor, de 1 a 22. O estudo e a orga- nas as células filhas nesse tecido e não são here-
nização dos cromossomas em pares e tamanho de- ditárias. (consultar Glossário)
crescente, incluindo os gonossomas, designa-se
por cariótipo. Testes de Genética
Quando a célula inicia a divisão celular, os cro-
mossomas homólogos emparelham-se. Se a di- Os testes de genética, podem agrupar-se numa
visão celular ocorrer nas células germinais pode perspectiva laboratorial em três grupos: citogené-
ocorrer recombinação genética ou crossing over, tica, genética molecular e bioquímica genética.
que permite a troca de material cromossómico
entre cromossomas homólogos. Citogenética
As principais indicações para a realização de testes
Mutações de citogenética são a suspeita clínica de anomalia
cromossómica, o diagnóstico pré-natal quando
O ADN sofre alterações na sequência de nucleóti- existe um risco genético aumentado, a identifica-
dos, as mutações, que se podem traduzir ou não ção de portadores nas famílias com anomalia cro-
por doença e transmitir à descendência. As muta- mossómica equilibrada, a presença de várias mal-
ções podem ocorrer em qualquer parte do geno- formações congénitas e a patologia da reprodução.
ma, mas tornam-se relevantes em termos clínicos O cariótipo pode realizar-se a partir de vários
quando afectam regiões dos genes que codificam tecidos como o sangue, pele, medula óssea e líqui-
proteínas ou que modulam a sua expressão. do amniótico e vilosidades coriónicas no período
As alterações na região de codificação dos pré-natal. Podem identificar-se vários tipos de mu-
genes, os exões, podem alterar de forma directa a tações como aneuploidias e rearranjos equilibra-
sequência de nucleótidos (frameshift) e modificar a dos ou desequilibrados. Para o diagnóstico de al-
CAPÍTULO 13 Genética: Importância do Laboratório 77
gumas patologias específicas são necessários cas ou não, são a causa de algumas doenças gené-
meios de cultura particulares, de que é exemplo ticas como a síndroma do X-Frágil, a coreia de
conter mitomicina C para identificar a presença de Huntington e a distrofia miotónica de Steinert; es-
fracturas cromossómicas. tas mutações justificam as manifestações da doen-
Nos últimos anos comprovou-se que algumas ça, e fenómenos como a antecipação, o imprinting
doenças genéticas são provocadas por microdele- e a pré-mutação (consultar glossário).
ções cromossómicas que podem ser exploradas Actualmente já é possível estudar por biologia
através de sondas específicas por técnicas FISH, molecular centenas de genes e este número irá au-
quando o quadro clínico é sugestivo. São exemplos mentar nos próximos anos. Nem sempre têm uti-
asíndroma de Prader-Willi (15q11.2-q13) e a sín- lidade clínica; com efeito, nos casos em que foram
droma de Williams (7q11.23). Porém, nem sempre identificados vários genes é necessário que a pres-
a microdeleção explica a totalidade dos casos pelo crição seja cuidadosa e sequencial de acordo com
que é necessário recorrer a outras técnicas para critérios clínicos.
confirmar o diagnóstico, como são o caso das sín- Foram também identificados genes de suscep-
dromas de Prader-Willi e de Angelman. tibilidade implicados na etiologia de doenças mul-
tifactoriais como cancro e doenças degenerativas
Genética molecular do adulto, cuja valorização para a prática clínica
É o método de estudo mais utilizado actualmente deve ser feita caso a caso. No caso do cancro da ma-
para o diagnóstico das patologias mendelianas ma, quando existem critérios de inclusão de acor-
quando já foram identificados um ou mais genes, do com a história familiar, poderão estudar-se os
como são os casos da fibrose quística, da distrofia genes BRCA1 e BRCA2 implicados na predisposi-
muscular de Duchenne e da síndroma de Marfan. ção da doença.
Nalgumas doenças genéticas, uma única mu- Sendo uma área inovadora, a utilização da va-
tação pode ser responsável pela ocorrência da riação genómica na prática clínica deve ser pon-
doença genética quando interfere com o quadro de derada, tendo em conta a utilidade clínica.
leitura e é traduzido um aminoácido diferente; a O estudo genético realizado após a extracção
drepanocitose é um exemplo relevante (localiza- do ADN recorre a várias técnicas como a electro-
ção genética em 11p15.4 no gene HBB). Noutras forese, que se baseia na propriedade de o ADN
patologias, de que é exemplo a fibrose quística, fo- possuir carga negativa em meio neutro ou alcali-
ram descritas centenas de mutações diferentes no no, a reacção de polimerização em cadeia (PCR), a
gene CFTR que se manifestam de forma clinica- sequenciação, o CGH (comparative genomic hybrida-
mente diferente. Nas doenças com estas carac- tion), o cariótipo molecular cujo âmbito de aplica-
terísticas, são importantes os estudos de correla- ção é cada vez mais alargado e os microarrays de
ção entre o genótipo e o fenótipo. ADN que permitem analisar ao mesmo tempo cen-
A síndroma de Marfan é outro exemplo da tenas de mutações em dezenas de genes diferentes.
complexidade da utilização de estudos molecu-
lares. O gene FBN1 é o único gene que está clara- Bioquímica genética
mente associado à forma clássica desta síndroma, Várias técnicas de biologia clínica e enzimologia
mas outros genes como o TBFBR1 e TBFBR2 asso- têm indicação para o diagnóstico das doenças he-
ciam-se a fenótipos semelhantes com aneurisma reditárias do metabolismo que, na generalidade
da aorta, pectus excavatum ou ectopia do cristalino. dos casos, têm transmissão autossómica recessiva.
A valorização dos sinais clínicos é muito impor- A utilização destas técnicas bioquímicas para o dia-
tante, a par do diagnóstico diferencial exaustivo e gnóstico de heterozigotos coloca algumas dificul-
da história familiar. Porém, mesmo nos indivíduos dades por poder haver sobreposição dos valores
com o quadro clássico, apenas é identificada por biológicos com os de indivíduos normais. Quando
sequenciação uma mutação no gene FBN1 em 70- o gene da patologia já foi identificado, os testes de
93% dos casos. bioquímica são complementados com os de gené-
A ocorrência de mutações dinâmicas com re- tica molecular, o que tem vantagens para o dia-
petição de sequências de trinucleótidos, intragéni- gnóstico de portadores e o diagnóstico pré-natal.
78 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
14
Outros testes de bioquímica têm importância
para o diagnóstico de doenças genéticas, como são
o caso do doseamento do factor VIII na hemofilia
A, a electroforese das hemoglobinas ou a quantifi-
cação das hemoglobinas A2 e F nas talassémias.
Estes testes são utilizados nas etapas iniciais do
diagnóstico, a que se segue frequentemente a rea- FORMAS DE HEREDITARIEDADE
lização de testes de genética molecular.
Os tecidos biológicos em que se realizam os Salomé de Almeida, Teresa Kay, Raquel Carvalhas
exames de bioquímica variam de teste para teste e e Luís Nunes
estão padronizados. Para cada caso é desejável
contactar previamente o laboratório que irá realizar
o exame para confirmar aspectos como as condições
da colheita, o acondicionamento, a temperatura e o Os modelos mais comuns de transmissão genética
tempo do transporte até ao laboratório. correspondem aos recessivos e dominantes, com
diversas subcategorias. Mas na última década gan-
haram importância para a Genética Médica outros
tipos de transmissão hereditária, que no conjunto
são designados como “não mendelianos”.
1. HEREDITARIEDADE MENDELIANA
Definição
tossomas ou nos gonossomas, e/ou ainda tem citose, a doença de Tay Sachs, a hemocromatose e
carácter dominante ou recessivo. As formas de a hiperplasia congénita da suprarrenal.
transmissão das doenças mendelianas mais fre-
quentes são a hereditariedade autossómica reces- Hereditariedade autossómica dominante
siva e autossómica dominante, e recessiva ou do- As doenças autossómicas dominantes (AD) ocor-
minante ligada ao cromossoma X. rem quando um indivíduo apresenta uma única
cópia mutada do gene associado à doença. O ale-
Hereditariedade autossómica recessiva lo com a mutação é geralmente herdado de um dos
As doenças autossómicas recessivas (AR) ocorrem progenitores que também manifesta a doença.
quando um indivíduo apresenta nos dois alelos de Estas mutações também podem ocorrer esponta-
um gene uma mutação. Designam-se por homozi- neamente, transmitindo-se aos descendentes do
goto ou heterozigoto composto, conforme as mu- indivíduo doente (mutação de novo).
tações são semelhantes ou não. A dominância em si, não se refere a uma parti-
Uma grande parte das mutações são herdadas, cularidade do gene, mas à sua relação com o alelo
sendo os pais heterozigotos para uma das muta- homólogo, o que se pode influenciar o fenótipo.
ções. Geralmente a mutação recessiva num alelo Têm sido propostos vários mecanismos para ex-
não se traduz em doença, pois a expressão do ou- plicar a dominância. Poderá relacionar-se pela in-
tro alelo é suficiente em termos funcionais para o fluência da proteína produzida pelo alelo com a
indivíduo. Estima-se que todos os indivíduos são mutação no mecanismo de expressão do alelo
heterozigotos para vários genes recessivos. A homólogo, ou pela haploinsuficiência, que resulta
consanguinidade aumenta o risco de ocorrência de de o alelo normal não produzir o produto biológi-
uma doença AR, em particular se a sua frequência co necessário.
for rara. As principais características das doenças com
As principais características da transmissão au- transmissão autossómica dominante são:
tossómica recessiva são: a) Transmissão vertical, identificando-se casos
a) Os casos ocorrem geralmente de forma iso- em gerações consecutivas;
lada, sem referência a outros na família; b) Os homens e as mulheres são igualmente
b) Ambos os sexos são atingidos; afectados;
c) Os progenitores dos indivíduos afectados c) A descendência de um indivíduo afectado
não manifestam doença clínica; tem 50% de probabilidade de herdar o gene com a
d) Quanto mais rara for a doença, maior é a pro- mutação;
babilidade de existir consanguinidade; d) Encontra-se transmissão vertical de pai pa-
e) Na descendência de dois heterozigotos, em ra filho (género masculino);
cada gestação, 50% são heterozigotos, 25% são ho- e) A penetrância incompleta e a expressividade
mozigotos (afectados) e 25% não têm alelos muta- variável são comuns;
dos; f) Ocorrem casos espontâneos, mutação de no-
f) A descendência de um heterozigoto tem a vo, por vezes relacionados com o aumento da ida-
probabilidade de 50% de receber a mutação. de paterna.
Alguns genes recessivos são mais frequentes Nas doenças autossómicas dominantes é ne-
em populações particulares com maior proporção cessário ter ainda em consideração os seguintes
de consanguinidade. São o caso da talassémia nal- fenómenos:
gumas populações mediterrânicas e da doença de • Penetrância incompleta: refere-se à propor-
Tay-Sachs nos judeus Ashkenasi. Quando os genes ção dos indivíduos que sendo portadores de
homólogos têm mutações diferentes pode haver uma mutação, não a expressam clinicamen-
influências no fenótipo, e ser responsável por ex- te. Por exemplo, a coreia de Huntington tem
pressividade variável. uma penetrância de 98% no ciclo de vida,
São exemplos de doenças autossómicas reces- mas estima-se ser de 50% aos 40 anos. A po-
sivas a fibrose quística, a β-talassémia, a drepano- lidactilia, por sua vez, tem uma penetrância
80 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
baixa, o que tem importância para o risco de ma X se comportam como recessivas, a expressão
recorrência. da doença depende do sexo do descendente.
• Expressividade variável: significa que in- As principais características deste tipo de trans-
divíduos portadores da mesma mutação do- missão são:
minante podem expressar um fenótipo dife- a) As mulheres condutoras não expressam a
rente (variabilidade inter-familiar), com gra- doença nas situações comuns;
vidade diferente, mesmo dentro da mesma b) A doença na descendência de uma mulher
família (variabilidade intra-familiar). A es- condutora varia de acordo com o sexo do filho: se
clerose tuberosa é um exemplo de grande va- for masculino, haverá 50% de hipóteses de serem
riabilidade clínica; na acondroplasia a varia- doentes (por terem herdado o cromossoma X que
bilidade é menor. Têm sido propostas várias contém o gene mutado); se for feminino, a proba-
explicações para a expressividade variável, bilidade de ser em heterozigotas é de 50%;
desde o efeito de factores ambientais, a inter- c) Na descendência de um homem afectado, os
acção com outros genes, ou o efeito de “im- filhos são todos saudáveis, pois não herdam o cro-
printing”. mossoma X paterno; as filhas são todas conduto-
• Mutação de novo: significa que ocorreu uma ras.
mutação patológica no genoma do indivíduo
durante o desenvolvimento embrionário, não Quando surgem novos casos numa família, em
existindo história familiar dessa doença. Na geral corresponde a mutações de novo. São exem-
acondroplasia, 85% dos doentes correspon- plos a hemofilia A e B, e a distrofia muscular de
dem a mutações de novo. É um exemplo de Duchenne e de Becker.
mutação de novo associado ao aumento da
origem paterna a síndroma de Apert. Hereditariedade dominante ligada ao cromossoma X
As mutações do cromossoma X que se trans-
São exemplos de doenças autossómicas domi- mitem como dominantes são muito raras.
nantes a coreia de Huntington, a neurofibromato- As principais características desta transmissão
se tipo 1, a hipercolesterolémia familiar, a distrofia são:
miotónica e a síndroma de Marfan. a) A descendência de uma mulher heterozigo-
Para as doenças com genes identificados pode tica e que expressa a doença tem uma probabili-
recorrer-se a testes de genética molecular para efei- dade de 50% de ser afectada, independentemente
tos de diagnóstico. Nas doenças hereditárias de do sexo;
manifestação tardia, como a doença de Machado- b) Se for o pai for afectado, todas as filhas serão
Joseph ou a Coreia de Huntington, pode realizar- doentes, mas nenhum dos filhos.
se o teste preditivo em contexto pré-sintomático. São poucas as doenças que apresentam estas
características. Um dos exemplos é a síndroma de
Hereditariedade ligada ao cromossoma X Rett.
Cada um dos cromossomas sexuais contém diver-
sos genes mas no cromossoma X o número e a com- Hereditariedade ligada ao cromossoma Y
plexidade são maiores. Como acontece com as doenças dominantes liga-
Na mulher, um dos cromossomas X está inacti- das ao cromossoma X, também as patologias ge-
vado na maior parte do ciclo celular, assegurando néticas ligadas ao cromossoma Y são extrema-
o outro alelo, a globalidade das funções necessá- mente raras. Ainda que o cromossoma Y seja ape-
rias ao indivíduo. Este fenómeno de inactivação, a nas herdado pelos indivíduos do sexo masculino
“lionização”, é aparentemente aleatório, explican- do seu pai, algumas patologias resultam de rear-
do que algumas mulheres condutoras manifestem ranjos cromossómicos, identificando-se nestes,
sinais clínicos da doença. As mutações no cromos- genes translocados do cromossoma Y.
soma X podem ser recessivas ou dominantes. Um dos exemplos de patologia ligada ao cro-
Hereditariedade recessiva ligada ao cromossoma X mossoma Y é a deficiência espermática não obstru-
Quando as mutações nos genes do cromosso- tiva (nonobstructive spermatogenic failure), responsá-
CAPÍTULO 14 Formas de hereditariedade 81
vel por infertilidade masculina, e que se deve a mu- tocôndrias, que podem ter conteúdo genético se-
tações no gene USP9Y (ubiquitin-specific protease melhante (homoplasmia) ou diferente (heteroplas-
9Y), o qual está localizado no cromossoma Y. mia). Uma célula pode conter milhares de mito-
côndrias e milhares de cópias de cromossomas mi-
tocondriais; com a divisão celular originam-se ao
acaso, linhas com composição genética diferente.
2. HEREDITARIEDADE Uma mulher pode ter populações homoplás-
NÃO MENDELIANA micas para uma mutação mitocondrial, se o seu ge-
noma mitocondrial for homogéneo para a muta-
Definição e tipos de hereditariedade ção, que será transmitida à descendência.
não mendeliana Em cada célula, o genoma mitocondrial e o nu-
clear comunicam entre si, numa interacção perma-
Determinadas doenças são herdadas de modo que nente o que explica que em muitas situações, mu-
não segue o padrão clássico mendeliano, mas sim tações em genes nucleares se traduzam por mani-
um padrão designado como “não tradicional” que festações a nível da fisiopatologia da mitocôndria.
integra as entidades a seguir descritas. A neuropatia óptica hereditária de Leber
(LHON) é um exemplo de doença mitocondrial,
Hereditariedade mitocondrial normalmente associada à transmissão homoplás-
O genoma mitocondrial de um indivíduo deriva mica de uma mutação mitocondrial. Neste caso, os
inteiramente da mãe tendo em conta uma carac- descendentes de uma mulher com a mutação vão
terística do sexo masculino: o esperma contém es- herdar a mutação mas nem todos a vão expressar,
cassez de mitocôndrias. Uma mulher com doença cerca de 50% dos indivíduos do sexo masculino e
genética mitocondrial pode ter descendentes afec- 10% do sexo feminino.
tados de ambos os sexos, mas um pai afectado não Outro exemplo é uma forma de surdez genéti-
pode transmitir a doença ao descendente. ca, em que uma mutação homoplásmica no gene
Nesta perspectiva, nos seres humanos, o RNR1 que codifica uma proteína do ARN ribosso-
ADNmt é sempre transmitido pela mãe, o que cor- mal, se associa à perda de audição progressiva e
responde a uma herança materna. Como resultado, pós-lingual. Essa perda pode ser acelerada se ocor-
cada indivíduo partilha o seu ADNmt com a mãe, rer a administração de aminoglicosídeos.
os irmãos e irmãs, os avós matemos, os tios e tias As mutações no ADNmit podem provocar a
maternos, enfim com todos os familiares maternos. síntese insuficiente de ATP através da fosforilação
Por ser elevada a taxa de mutações, a variabili- oxidativa, o que compromete a produção de ener-
dade no ADNmt é elevada entre pessoas não apa- gia pelas mitocôndrias e afecta os tecidos que exi-
rentadas. No entanto, na mesma família, as se- gem maior consumo de energia. Poderão assim ser
quências de ADNmt dos familiares relacionados afectados os músculos estriados esqueléticos
com a mãe são muito semelhantes e podem facil- (miopatias mitocondriais), o cérebro (neuropatias
mente ser estudadas. Esta particularidade permi- como MELAS, MERRF, LHON e NARP), o fígado,
te que o estudo do ADNmt tenha diversas aplica- os rins (síndroma de Fanconi), o coração e as glân-
ções, como na identificação de familiares desapa- dulas endócrinas (síndroma de Pearson).
recidos, elaboração de árvores genealógicas,
confirmação de identidade em situações de rapto, Imprinting genético/genómico
entre outras. Em geral, o fenótipo decorre da expressão de ale-
O padrão de transmissão materna traduz-se em los herdados com a contribuição aparentemente
situações de doença mitocondrial, pelo facto de to- idêntica de ambos os progenitores. Há, no entan-
dos os filhos de uma mulher afectada serem afec- to, um conjunto de situações em que apenas se ex-
tados independentemente do sexo, enquanto os pressa um dos alelos, de acordo com um padrão
descendentes masculinos, mesmo afectados, não a pré-estabelecido pela sua origem parental. Ou se-
transmitir à sua descendência. ja, apenas um dos genes está activo (materno ou
Todas as células têm um número elevado de mi- paterno), ficando o outro inativo através de um
82 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
mecanismo de marcação epigenética, designado muns são os tripletos, cuja unidade é um conjunto
imprinting. de três nucleótidos (por exemplo, CGG, CAG,
Nestes casos, o imprinting resulta da modifi- CAA, TAA e GAG), que podem ocorrer intragéni-
cação histónica e/ou da metilação das citosinas de cas ou entre genes.
um dos alelos que inactivam a sua expressão, en- Em qualquer das situações, o alargamento de
quanto o outro alelo permanece desmetilado e ac- uma região nucleotídica, em particular, se incluir
tivo. pequenas sequências repetitivas, pode traduzir-se
O processo de imprinting ocorre durante a ga- por instabilidade do ADN. Esta, pode referir-se à
metogénese, antes da fertilização, através de “mar- estrutura, com a criação de pontos de fragilidade,
cas” em certos genes como provenientes do pai ou ou à função, com interferência no processo de spli-
da mãe e controlando, após a fecundação a ex- cing ou na acção do centro de imprinting.
pressão genética. O imprinting dos alelos permane- As repetições de trinucleótidos são frequente-
ce durante toda a vida do indivíduo, de modo que mente encontradas em genes que codificam fac-
em cada tecido, apenas se expresse o gene de ori- tores de transcrição (proteínas que regulam a ex-
gem materna ou paterna, como ficou determinado. pressão de outros genes) ou em genes que regulam
Na definição do imprinting a estrutura do ADN o desenvolvimento.
não é modificada; por isso este processo é epige- Ao contrário das mutações “clássicas”, nestas
nético. Na realidade, também é reversível, ocor- mutações pode ocorrer variação no número de có-
rendo a desmetilação apenas nas células germina- pias das sequências, por vezes entre gerações, com
tivas durante a embriogénese, definindo-se um no- os descendentes a apresentar alelos de tamanho di-
vo padrão de metilação para os futuros gâmetas do ferente do dos progenitores. Para que a doença se
embrião. A extensão da metilação está sob o manifeste é necessário que o gene possua um nú-
controlo de uma sequência específica de ADN, o mero de repetições acima de um “limiar” (threshold).
centro de imprinting, cuja acção de regulação e me- As principais características das mutações di-
tilação pode envolver centenas de milhares de nâmicas são:
bases adjacentes. a) O padrão de hereditariedade pode ser do-
As consequências dos erros no imprinting minante ou recessivo.
genómico incluem patologias como neoplasias, b) As mutações podem ser transmitida pelo pai
perturbações do desenvolvimento neurológico, ou pela mãe.
doenças metabólicas, síndromes e doenças psi- c) Os genes alvo não são semelhantes em ter-
quiátricas. As síndromas de Prader-Willi e de mos de função.
Angelman, conhecidas na clínica pediátrica, são d) As repetições estão localizadas em áreas di-
exemplos de imprinting, no primeiro caso de ori- ferentes, e podem manifestar por ganho ou perda
gem materna, no segundo de origem materna. de função.
O mecanismo de imprinting pode dever-se a
mutações por deleção ou não delecionais, onde a As mutações dinâmicas são responsáveis por
estrutura do ADN se mantém intacta, mas é afec- várias doenças neurológicas, como a síndroma do
tada a função do centro de imprinting, o que se tra- X-frágil (expansão CGG), a distrofia miotónica de
duz por uma alteração dos processos de metilação Steinert (expansão CTG), a doença de Friedreich
ou desmetilação. No imprinting a expressão do ge- (expansão GAA), doenças degenerativas como a
ne depende da origem do cromossoma(paterno ou atrofia muscular espinobulbar, a coreia de
materno). Huntington, a atrofia dentato-rubro-pálido-
Luysiana e ataxias espinocerebelosas (SCA), como
Mutações dinâmicas/expansão de tripletos a tipo 1 e a doença de Machado-Joseph (DMJ).
Cerca de metade do genoma humano é constituí-
do por sequências repetitivas de ADN, de dois ou Antecipação genética
mais nucleótidos, de forma intercalada ou seguin- O estudo das árvores genealógicas de famílias com
do padrões repetidos sucessivamente sem inter- doenças associadas à expansão de tripletos permi-
rupções (tandem). Uma das repetições mais co- tiu consolidar o conceito de antecipação genética.
CAPÍTULO 15 Anomalias cromossómicas 83
15
Nalguns casos parece evidente que em gerações
sucessivas ocorre um aumento da gravidade da
patologia e o seu início cada vez mais precoce.
Mas só recentemente, com o estudo das muta-
ções dinâmicas, se começou a perceber o mecanis-
mo molecular associado. Como foi referido ante-
riormente, nas patologias que envolvem a ex- ANOMALIAS
pansão dos tripletos, os indivíduos saudáveis têm
um número variável de trinucleótidos repetidos, CROMOSSÓMICAS
originando alelos com diferentes tamanhos, até
um determinado valor limite. Luís Nunes, Márcia Rodrigues, Salomé Almeida,
O limite varia conforme a doença. Por exemplo, Raquel Carvalhas e Teresa Kay
na DMJ o alelo normal contém entre 12 e 39 CAG,
enquanto no gene huntintina responsável pela co-
reia de Huntington, o alelo normal pode ter entre
6 e 26 variações e o gene FMR1 relacionado com a Importância do problema
síndroma do X-frágil, são considerados normais
alelos com 6 a 54 expansões (CGG). Em 1959 foi demonstrado pela primeira vez uma
Para algumas patologias existe uma pré-muta- aplicação médica do estudo dos cromossomas:
ção, quando o processo de expansão parece irre- Jérome Lejeune e colaboradores descobriram a
versível mas o número de tripletos ainda não é pa- presença de um cromossoma extra nas crianças
tológico. A mutação completa define-se quando o com síndroma de Down. A partir de então, foram
número de tripletos se associa à manifestação clí- reconhecidas muitas das principais síndromas
nica da doença. Aparentemente a expansão ocorre causadas por anomalias cromossómicas.
ao nível das células germinais, na formação dos gâ- Actualmente estima-se que as anomalias cro-
metas, pelo que é o óvulo ou o espermatozóide que mossómicas sejam responsáveis por 80% dos abor-
vai transportar o alelo expandido. tos espontâneos do primeiro trimestre da gestação
Observou-se que quanto maior for o tamanho e estejam presentes em 0,7% dos recém-nascidos.
do alelo mutado expandido, maior é a gravidade Os indivíduos com anomalia cromossómica
da doença e mais precoce o seu início. têm, em geral, um fenótipo característico e fre-
quentemente apresentam semelhanças com outros
com a mesma anomalia; porém têm traços fami-
liares dos seus irmãos e progenitores com quem
partilham o material genético. As características fe-
notípicas resultam do desequilíbrio genético pela
sobre ou sub expressão de genes, o que perturba o
curso natural do desenvolvimento embrionário. E
em todas as cromossomopatias desequilibradas
estão presentes dismorfias, anomalias congénitas,
défice cognitivo de grau variável ou dificuldades
de aprendizagem.
Os rearranjos estruturais equilibrados em
que a totalidade do material genético está pre-
sente embora com distribuíção anómala asso-
ciam-se, em geral, a fenotipos normais. No en-
tanto, em indivíduos com rearranjos aparente-
mente equilibrados de novo, há um excesso de
défice cognitivo por razões não completamente
esclarecidas.
84 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
quência de 1 em cada 1000 indivíduos. Uma das de materna. Em 4% dos casos, a trissomia 21 re-
translocações mais comuns ocorre entre os cro- sulta de uma translocação que pode ocorrer de no-
mossomas 13 e o 14: der (13;14) (q10;q10). Na des- vo ou relacionar-se com uma translocação num dos
cendência de um portador pode ocorrer a forma- progenitores, mais frequentemente dos cromosso-
ção de gâmetas desequilibrados. mas 14 e 21. O risco de recorrência depende dos
A inserção é um tipo raro de translocação não cromossomas envolvidos e do sexo do progenitor
recíproca, em que um segmento de um cromosso- com a translocação. Cerca de 1% dos casos são mo-
ma é inserido noutro. saico que, na maioria dos casos, se manifesta por
O isocromossoma forma-se devido à divisão fenótipos menos marcados, nomeadamente em
errada do centrómero que separa os dois braços termos cognifitivos e na dismorfia. A associação e
em vez dos dois cromatídeos, com a duplicação de a prevalência das manifestações clínicas são varia-
um dos braços do cromossoma. O tipo mais co- das (Figura 1 e Quadro 1).
mum de isocromossoma é do braço longo do cro-
mossoma X. Dos casos de síndroma de Turner, 15% Trissomia 18 (Síndroma de Edwards)
a 20%, correspondem a esta anomalia cromossó- A trissomia 18, descrita pela primeira vez por
mica. Edwards em 1960, tem uma frequência de 1 em ca-
da 8000 recém nascidos. A esperança de vida des-
Síndromas de causa cromossómica tas crianças é em média de 2 meses, apesar de al-
guns casos sobreviverem vários anos. Cerca de
Trissomia 21 (Síndroma de Down) 80% dos indivíduos são do sexo feminino. A etio-
A trissomia 21 foi descrita pela primeira vez por logia da trissomia 18 mais frequente é a não dis-
Langdon Down em 1866, mas a sua causa foi des- junção, mas cerca de 10% são mosaicos.
conhecida durante quase um século. Desde as des- As crianças com trissomia 18 têm atraso de de-
crições iniciais ressaltou que a idade materna senvolvimento grave, dismorfia facial característi-
nesses indivíduos era mais avançada do que a mé- ca (nomeadamente fronte proeminente, hipoplasia
dia. Só em 1959 foi verificado que as crianças com da mandíbula e pavilhões auriculares de baixa im-
trissomia 21 tinham 47 cromossomas, sendo o cro- plantação e malformados). O esterno é curto. As
mossoma extra um acrocêntrico, o 21. A designa-
ção de mongolismo caiu em desuso: reportava-se
ao facto de o fenótipo sugerir uma origem oriental
pela obliquidade em V das fendas palpebrais. A
trissomia 21 é geralmente diagnosticada ao nascer
ou pouco depois, pela dismorfia facial caracterís-
tica e outras características fenotípicas.
As crianças são geralmente hipotónicas o que
tem relevância nos primeiros meses de vida. Em
cerca de 40-60% dos casos existe cardiopatia
congénita, frequentemente defeito completo do
septo aurículo-ventricular. São também frequentes
anomalias do tubo digestivo e da área neuro-sen-
sorial. Todas as crianças têm défice cognitivo, ha-
bitualmente de grau moderado. A sobrevivência é
cada vez mais longa, superior aos 60 anos nos
países mais afluentes.
A trissomia 21 ocorre na forma livre, por trans-
locação ou em mosaico. A forma mais frequente é
a forma livre (95% dos casos) em que todas as cé-
FIG. 1
lulas têm 47 cromossomas. A causa principal é a
não disjunção, relacionada com o aumento da ida- Caso de trissomia 21 (fácies).
86 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Características faciais
• Face redonda/Dismorfia craniofacial
• Pregas do epicanto e inclinação em V das fendas
palpebrais
• Manchas na íris, catarata, estrabismo
• Protusão da língua
• Orelhas pequenas
Outras anomalias
• Occiput achatado
• Sulcos anormais na palma das mãos e planta dos FIG. 2
pés (dermatoglifos) Síndroma de Edwards. Inclinação antimongolóide (em A) das
• Hipotonia, obesidade, hiperlaxidão ligamentar fendas palpebrais.
• Cardiopatia congénita (40% dos casos)
• Atrésia duodenal
Problemas de manifestação tardia
• Dificuldades de aprendizagem
• Baixa estatura
• Infecções respiratórias correntes
• Défice auditivo relacionável com otite serosa
• Risco elevado de leucemia
• Risco de instabilidade atlanto – axial (rara)
• Hipotiroidismo
• Doença de Alzheimer
16
ciaram pela primeira vez, uma anomalia cro-
mossómica com o aparecimento de cancro, utili-
zando uma técnica de citogenética em tecido tu-
moral. Especificamente, foi descrito o cromossoma
Philadelphia em doentes com leucemia mielóide
crónica. Este cromossoma resulta de uma translo-
cação específica entre os cromossomas 9 e 22. DOENÇAS MULTIFACTORIAIS
As técnicas de biologia molecular permitiram
saber que no ponto de quebra, no cromossoma 9, Luís Nunes, Rui Gonçalves, Salomé Almeida
ocorre a fusão dos genes BCR e ABL, que passam e Teresa Kay
a codificar uma proteina anómala que interfere
com regulação normal do ciclo celular levando a
crescimento celular descontrolado.
Posteriormente, foram identificadas centenas Conceitos básicos
de alterações cromossómicas associadas a genes
específicos que provocam instabilidade no geno- Na maioria dos casos as doenças genéticas e as
ma. Estas anomalias são altamente variáveis em anomalias congénitas resultam da interacção entre
diferentes cancros, bem como os fenótipos resul- factores genéticos e ambientais em contexto am-
tantes. O seu estudo tem valor para confirmar o plo, que abrange comportamentos e estilos de vi-
diagnóstico e para prognóstico. da. As doenças genéticas com estas características
Algumas translocações foram associadas a di- são denominadas multifactoriais. São exemplos, a
ferentes tipos de cancro, como são o caso da generalidade das doenças cardiovasculares, o can-
t(2;5)(p23;q35) no linfoma anaplásico de célu- cro, doenças mentais, diabetes mellitus, esclerose
las grandes, e a t(8;14) no linfoma de Burkitt (ge- múltipla e algumas anomalias congénitas.
ne c-myc). Mas alguns doentes e famílias com patologia
Uma das hipóteses apontadas para explicar es- multifactorial têm características de transmissão
ta associação sugere que as primeiras alterações mendeliana, o que se relaciona com mutações em
patogénicas nas células tumorais resultam de rear- genes específicos. Porém, na generalidade dos ca-
ranjos equilibrados, que conferem à célula vanta- sos, os dados empíricos obtidos a partir de estudos
gens proliferativas. Os rearranjos interrompem familiares não mostram esse perfil de transmissão.
genes específicos envolvidos na regulação celular, Ao contrário das doenças mendelianas que são
como proto-oncogenes ou genes supressores de tu- doenças raras, as doenças multifactoriais são em geral
mores, formando genes híbridos ou interferindo frequentes, mais evidentes com a idade e encontram-
com os mecanismos de reparação de ADN. Com a se em quase todos os doentes. Estas últimas, inte-
progressão da neoplasia, surgem as mais variadas grando patologias cuja etiologia tem uma compo-
alterações cromossómicas, estruturais ou numéri- nente genética com interacção com factores am-
cas, tornando-se cada vez mais desequilibradas bientais e comportamentos, manifestam-se pela
com a progressão da doença. agregação familar de casos ou pela evolução clíni-
O estudo das formas hereditárias de cancro tem ca com características similares à de outros fami-
contribuído para a compressão dos mecanismos liares.
associados à génese tumoral, identificando-se vá- Alguns genes não causam a doença por si só,
rios genes relacionados com o desenvolvimento de mas influenciam com outros genes a predisposição
cancro familiar. As tecnologias de microarrays e genética ou susceptibilidade individual, que
CGH têm permitido obter conhecimentos impor- contribui para causar ou manifestar clinicamente
tantes nesta área (Capítulo 126). a doença. Os factores etiológicos das doenças mul-
tifactoriais, de causa genética ou ambiental, desi-
gnam-se por carga genética (liability). O modelo
multifactorial pressupõe que esta “carga” tem uma
distribuição normal na população, que é res-
CAPÍTULO 16 Doenças multifactoriais 89
ponsável por uma grande variabilidade dos fenó- etiologia da doença. O conceito de oligogenia re-
tipos. É maior nos familiares dos indivíduos afec- fere-se às situações em que um locus tem um efei-
tados, o que vai aumentar o risco de recorrência de to predominante no fenótipo, ainda que necessite
acordo com a proximidade familiar. da colaboração de outros genes para que a doença
Outro pressuposto deste modelo é o de limiar se expresse.
(threshold), ou seja, a doença manifesta-se quando Os factores ambientais implicados na origem
é ultrapassado um determinado gradiente, e o destas doenças são variados, o que decorre de os
fenótipo tem uma expressão clínica tanto mais gra- indíviduos viverem numa interacção permanente
ve em termos clínicos, quanto mais esse limiar for com outros indivíduos e com o ambiente físico en-
superado. Quando a carga genética não ultrapassa o volvente e terem comportamentos, atitudes e cren-
limiar, a doença não se expressa em termos clínicos. ças que influenciam a saúde e a doença. Aspectos
O sexo do indivíduo, a proximidade de paren- como o comportamento alimentar, o sedentarismo
tesco e a existência de vários casos na família, são ou a prática regular de exercício físico, os valores
algumas das varáveis que influenciam o limiar, o e a vivência espiritual, a capacidade de interagir
que pode aumentar ou diminuir o risco de mani- socialmente, têm sido referidos como varáveis re-
festação da doença. levantes para a etiologia e a evolução clínica de al-
A contribuição dos factores genéticos para as gumas destas doenças.
doenças multifactoriais resulta do efeito combina- Em síntese, poderemos considerar que as prin-
do de genes múltiplos, em locus diferentes. A cipais características do modelo multifactorial pa-
contribuição individual de cada gene para a pre- ra explicar a etiologia das doenças complexas em-
disposição poderá ser muito reduzido. Designa-se bora frequentes, com contribuição de factores ge-
por hereditabilidade (heritability) a proporção da néticos para a etiologia, são as seguintes:
variação fenotípica que pode ser atribuída aos fac- • Todos os genes têm um efeito no fenótipo,
tores genéticos, e é determinada por estudos po- com importância variável;
pulacionais ou em indivíduos com características • O efeito dos genes é aditivo ou sinérgico;
particulares como gémeos ou adoptados. A here- • Os genes individualmente não exprimem do-
ditabilidade varia entre 1, quando a variação de- minância ou recessividade;
pende exclusivamente da acção dos genes, e 0 se • O efeito da “carga genética” exprime-se a
depende apenas de factores ambientais. No pé bo- partir de um limiar;
to estima-se ser 0,8, na estatura de 0,8 e na inteli- • A variação dos fenótipos tem uma distribui-
gência entre 0,5 a 0,8. ção normal.
O estudo com gémeos monozigóticos e dizigó-
ticos, que partilham a totalidade ou metade do ma- Epidemiologia
terial genético tem grande utilidade. A concordân-
cia ou não da doença em vários contextos, como a Não existe uma definição consensual sobre “doen-
separação ao nascer, que não pode ser explicada ça comum” embora, de acordo com Harper em
por transmissão mendeliana, permite obter indi- 2004, possa corresponder às patologias com ex-
cações relevantes sobre a contribuição genética pa- pressão clínica cuja frequência seja superior a 1 em
ra doenças ou características contínuas, de que são cada 1000. Porém, Portugal adoptou o critério pa-
exemplos a altura ou a inteligência. Os estudos ra definir doença rara utilizado pela União
com indivíduos adoptados permitem igualmente Europeia de 1 em cada 2000, o que poderá ser tido
obter dados importantes, em condições metodoló- em conta por exclusão.
gicas rigorosas. Ao nascer, cerca de 70% das doenças genéticas
A componente genética que resulta da interac- têm uma etiologia multifactorial, em comparação
ção de genes não se traduz por critérios compatí- com 2,4% para as doenças mendelianas e 0,4% pa-
veis com a transmissão mendeliana, e não tem ma- ra as cromossómicas. De acordo com Baird et al, no
nifestação cromossómica. Têm sido identificados Canadá, a frequência destas patologias é de 46,4
em doenças multifactoriais alguns genes, como é o por 1000 indivíduos com idade inferior a 25 anos.
caso do cancro, mas não explicam apenas por si a Relativamente às anomalias congénitas, estima-se
90 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
que sejam responsáveis, pelo menos, por 50% dos destacam-se as associações entre o HLA B27 e a es-
casos. pondilite anquilosante, o DR4 e a artrite reu-
Nalgumas doenças multifactoriais a incidência matóide e o DR2 na narcolepsia. Ainda não são
varia de acordo com o género, como é o caso da es- conhecidos os mecanismos implicados na associa-
tenose do piloro, que é 5 vezes mais frequente no ção, mas deve ter-se em conta que a simples pre-
sexo masculino. As anomalias do tubo neural, pe- sença do marcador HLA não significa que o in-
lo contrário, são mais frequentes no sexo feminino. divíduo venha a manifestar a doença.
Na doença arterial coronária é conhecido que é Noa últimos anos, na sequência do Projecto do
mais frequente nos homens, e ao considerar a ori- Genoma Humano e das tecnologias de estudo mo-
gem étnica, mais frequente em indivíduos com ori- lecular que foram desenvolvidas, foram identifi-
gem africana do que em caucasianos ou asiáticos. cadas diversas associações entre genes e marca-
Com recurso a tecnologias recentes como os es- dores para doenças comuns. Muitos destes trabal-
tudos GWAS (genome-wide association studies), foi hos não foram posteriormente confirmados por
avaliada a influência do sexo na frequência de outros autores em populações diversas, o que re-
doenças comuns como a hipertensão arterial, a dia- leva questões de ordem metodológica, incluindo o
betes tipos I e II e a artrite reumatoide entre ou- tipo de estudos, a definição de caso ou a homoge-
tras. Foram encontradas associações específicas neidade dos fenótipos. Novas tecnologias como a
entre doença arterial coronária e o género mas- GWAS e instrumentos biostatísticos complexos,
culino, e entre doença de Crohn e o feminino. Estas têm permitido reapreciar os resultados de estudos
tecnologias inovadoras poderão trazer novos anteriores e reavaliar o interesse científico de al-
contributos ao conhecimento das doenças multi- gumas conclusões.
factoriais. Uma patologia muito estudada é a doença de
Algumas doenças que foram inicialmente Alzheimer, doença muito complexa cuja natureza
consideradas multifactoriais, comprovou-se mais genética não está totalmente esclarecida. Os casos
tarde terem outra etiologia. É o caso da úlcera pép- com manifestação precoce correspondem a muta-
tica antes da descoberta de um agente infeccioso, ções dominantes, mas a sua frequência é rara, en-
o Helicobacter pylori, que se associa à etiologia des- quanto os casos com manifestação tardia poderão
ta doença. explicar-se pela presença de variantes genéticas
Nem sempre é possível distinguir entre o que com uma frequência elevada mas com baixa pene-
é genético ou herdado pelo facto de os indivíduos trância. O factor genético que está estatísticamen-
partilharem condições de vida, cultura e valores, e te associado à susceptibilidade a esta doença é o
estarem incorporados na vida quotidiana das co- alelo APOE-_4. Num estudo de metanálise foram
munidades. Um exemplo clássico é o Kuru, uma identificados 20 polimorfismos em 13 genes rela-
variante da doença de Creutzfeldt-Jakob identifi- cionados com esta patologia, com um OR para o
cada em nativos da Nova Guiné cuja etiologia não risco entre 1,1 e 1,38, e com um efeito protector
foi compreendida inicialmente; mais tarde foi re- entre 0,92 e 0,67 (Beltram et al), o que sugere não
lacionda com canibalismo ritual, o que explicava a terem utilidade clínica.
distribuição e as características dos indivíduos As toxidependências , incluindo a estupefa-
afectados. cientes e álcool, são patologias complexas de outra
natureza, mas cada vez é mais evidente o contri-
Predisposição buto de factores genéticos para a sua etiologia.
Vários estudos mostram a associação de variantes
A associação entre a doença e factores genéticos genéticas com significado estatístico. A influência
pode manifestar-se em diferentes contextos e tem da variação genética na adição poderá verificar-se
suscitado um redobrado interesse. Uma das for- a vários níveis do processo comportamental, das
mas mais bem conhecidas e mais estudadas é a as- vias metabólicas e da biodistribuição dos produtos.
sociação entre algumas doenças com componente No caso da cancro da mama, a predisposição
imunológico e os antigénios HLA, cujo locus se en- tem características diferentes, com a identificação
contra no cromossoma 6. Entre outros exemplos, de dois genes o BRCA1 e BRCA2. O risco relativo
CAPÍTULO 16 Doenças multifactoriais 91
de cancro da mama nas mulheres com mutações trados em estudos epidemiológicos de base popu-
no BRCA1 é superior ao das que as têm no BRCA2, lacional em condições quase naturais. O risco empí-
mas em ambos, é maior do que se não forem iden- rico tem grande importância para o aconselha-
tificadas mutações. O risco para cancro da mama mento genético e reprodutivo, por exemplo, quan-
numa mulher ao longo do seu ciclo de vida, se ti- do um casal já tem um filho afectado ou um dos
ver uma mutação nestes genes, é de 50 a 80%, 5 a progenitores é portador de uma doença genética.
8 vezes superior em relação às restantes mulheres. O risco empírico da ocorrência de uma doença
Em 40% das mulheres com mutação no BRCA1 e multifactorial depende de vários factores, nomea-
20% no BRCA2 é diagnosticado cancro do ovário, damente:
o que constitui um risco significativo face ao da • Frequência da doença na população
população em geral. • Grau de parentesco com a pessoa afectada
Mas encontra-se uma mutação nestes genes em (maior risco nos parentes em primeiro grau)
apenas metade dos casos familiares. Estão identi- • Número de familiares afectados
ficados outros genes de predisposição para o can- • Gravidade clínica do caso índex
cro da mama, mas raramente são identificadas mu- • Sexo da pessoa afectada
tações. Estes dados contribuem para o entendi-
mento de que existem diferentes mecanismos en- Os resultados de estudos efectuados em popu-
volvidos na etiologia desta forma de cancro, en- lações e em períodos temporais diferentes mostra-
volvendo factores genéticos e ambientais. ram variações na estimativa do risco, o que deve
Outra área de investigação tem a ver com a cir- ser tomado em consideração pelo médico. Para
cunstância de a predisposição poder ter implica- além das diferenças genéticas eventualmente exis-
ções para os trabalhadores expostos a situações de tentes entre populações, questões metodológicas
risco no local de trabalho. Alguns estudos indiciam como a “definição de caso”, a nomenclatura e a
correlações entre polimorfismos e o risco profis- classificação das doenças ao longo do tempo de-
sional, mas ainda se torna necessário mais inves- vem ser ponderadas.
tigação para se obter prova científica. O interesse Alguns exemplos práticos da utilização do ris-
desta linha de investigação é interessante na pers- co empírico de recorrência no aconselhamento ge-
pectiva da segurança dos postos de trabalho. nético em situações comuns, são:
Em termos moleculares, a predisposição é com- • Lábio leporino e fenda palatina: risco global
plexa e ainda muito mal compreendida pela inter- de 4% numa futura gestação se o casal tiver
ferência de inúmeros processos que se interligam. um filho afectado e de 10% se tiver dois afec-
Alguns modelos computacionais com aplicações tados, na condição de nenhum dos progeni-
gráficas avançadas apontam para provável pre- tores ter doença; risco de 2,2% para a primei-
disposição, mas actualmente ainda sem conduzi- ra gestação se um dos progenitores tiver a
rem a um esclarecimento cabal. Com efeito, a pre- doença;
disposição não pode ser explicada por simples • Comunicação interventricular: 3,5% se o ca-
mutação ou polimorfismo dos genes, havendo que sal tiver um filho afectado e os pais forem
contar com factores biológicos como o número de saudáveis; 3-5% se um dos progenitores tiver
cópias (copy number variation – CNV), variações a cardiopatia;
epistáticas (epistatic interactions), efeitos modifi-
cadores e epigenéticos e outras interacções mal Luxação congénita da anca: risco global de 6%,
conhecidas com o ambiente. mas variando entre 1% para o sexo masculino e
11% para o feminino; se um dos progenitores for
Risco afectado, o risco de recorrência é 12%.
17
a estratégia de prevenção passa pelo afastamento
de factores nefastos, pela suplementação, ou pela
modificação dos comportamentos e estilos de vida.
Um exemplo que demonstra a possibilidade de
se intervir na prevenção das doenças multifacto-
riais corresponde à descoberta da relação entre o
ácido fólico e as anomalias do tubo neural. Nas DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL
famílias de risco, a suplementação com ácido fóli-
co no período pré-concepcional e pré-natal redu- Teresa Kay, Diana Antunes, Raquel Carvalhas
ziu a incidência destas anomalias de forma signi- e Luís Nunes
ficativa .
Actualmente a suplementação em ácido fólico
no período pré-concepcional e pré-natal faz parte
das recomendações de vigilância de saúde duran- Definição e importância do problema
te a gravidez para todas as grávidas em Portugal,
existindo campanhas a nível internacional para O conceito de diagnóstico pré-natal (DPN) abran-
que seja possível generalizar a suplementação de ge um conjunto de técnicas de diagnóstico clínico
todas as mulheres. para confirmar a integridade constitucional ou ge-
nética de um embrião ou feto em desenvolvimen-
to. Recorre a meios complementares de diagnósti-
co não invasivos como a ecografia, os radiogramas
e ressonância magnética nuclear (RMN), ou inva-
sivos como amniocentese, colheita de vilosidades
coriónicas, cordocentese e fetoscopia.
As intervenções de DPN necessitam do funcio-
namento harmonioso de uma equipa multidisci-
plinar, que inclui nomeadamente:
• Obstetras com conhecimento de medicina fe-
tal, das técnicas de DPN e dos procedimen-
tos para a realização de interrupção de gra-
videz;
• Pediatras, nomeadamente neonatologistas,
com experiência em dismorfologia e anoma-
lias congénitas;
• Geneticistas com experiência de aconselha-
mento genético e patologia do desenvolvi-
mento;
• Cirurgiões, cardiologistas pediátricos e espe-
cialistas de outras áreas clínicas, com expe-
riência no diagnóstico e tratamento de pato-
logias complexas de base genética;
• Enfermeiros, técnicos do serviço social,
psicólogos e outros profissionais.
o feto é cuidado na sua globalidade, isto é, como analítica, formação adequada dos profissionais e
doente in utero. A este propósito, há que realçar as uma comunicação adequada entre os interve-
implicações éticas de uma tão grande diversidade nientes.
de intervenções. No Quadro 1 apresenta-se a incidência de tris-
De acordo com a legislação portuguesa, os hos- somia 21 em função da idade materna.
pitais com Centros de Diagnóstico Pré-Natal 2 – Filho anterior com aneuploidia
(CDPN) têm uma Comissão Técnica de Se um casal teve um filho com aneuploidia na
Certificação de Interrupção de Gravidez (CTCIG) forma livre, de novo, o risco empírico de recorrên-
que, no âmbito da respectiva instituição, analisam cia é superior ao risco dada a idade cronológica, o
e decidem os pedidos da interrupção de gravidez que justifica a realização de cariótipo fetal.
no seguimento da realização de exames de DPN. 3 – Progenitor com translocação equilibrada
Neste contexto justifica-se realizar o cariótipo
Indicações fetal para excluir a ocorrência de translocação de-
sequilibrada no feto. O risco de recorrência de-
Sistematizando, podem ser consideradas as se- pende dos cromosssomas envolvidos e da locali-
guintes modalidade de técnicas de DPN: não in- zação no cromossoma da anomalia estrutural. Um
vasivas e invasivas. casal neste contexto poderá ter fetos com compo-
sição cromossómica normal ou anomalia igual à do
Técnicas não invasivas progenitor ou desequilibrada.
As técnicas não invasivas de DPN são aplicadas a 4 – Feto com diagnóstico de anomalia fetal
um número alargado de situações, corresponden- Os fetos com diagnóstico in utero de uma ano-
do a doenças em que ainda não foi possível locali- malia congénita major têm em 4% dos casos outras
zar o gene ou não existe um diagnóstico etiológico. anomalias morfológicas. Deste modo, é necessário
Em tais circunstâncias podem ser utilizadas a eco- realizar sempre um estudo ecográfico detalhado e
grafia em diversas modalidades, a ecocardiografia, técnicas invasivas para determinar o cariótipo fe-
e outras técnicas imagiológicas em função do tal, pois uma percentagem significativa dos fetos
contexto clínico e idade gestacional. Nos casos com tem anomalias cromossómicas.
envolvimento do sistema nervoso central, a RMN Um significado diferente tem a identificação de
CE pode dar indicações importantes tal como a eco- marcadores ecográficos, como translucência da
grafia 3D para valorizar características morfológi- nuca aumentada, apontando para risco acrescido
cas, nomeadamente, alterações crânio-faciais. de aneuploidias.
1 – Idade materna ≥35 anos 5 – Doenças genéticas específicas
A idade materna igual ou superior a 35 anos é Se tiver sido possível caracterizar em termos
a indicação mais frequente para a realização de
DPN, pois associa-se ao risco acrescido de não dis- QUADRO 1 – Incidência de trissomia 21
junção dos cromossomas. As anomalias cromossó-
micas mais frequentes ao nascer e associadas a Idade materna Risco de trissomia 21
idades maternas mais avançadas são as trissomias no parto ao nascer
21, 18 e 13. Estas mutações podem ser suspeitadas 35 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/384
por ecografia, valorizando o padrão de anomalias 36 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/307
congénitas que está presente. Porém, torna-se 37 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/242
sempre necessário confirmar o diagnóstico pela 38 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/189
realização do cariótipo fetal. 39 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/146
A identificação de marcadores bioquímicos e 40 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/112
ecográficos no primeiro e segundo trimestre de 41 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/85
gestação tem permitido desenvolver fluxogramas 42 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/65
de diagnóstico e decisão clínica com ponderação 43 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/49
do risco face à idade cronológica. Pressupõe e exis- Adaptado de Burton PR, 2006
genéticos o caso índex com a identificação da mu- contacto com a placenta, sob controlo ecográfico, e
tação responsável, é possível realizar um DPN es- a aspiração de 10-25 mg de vilosidades coriónicas.
pecífico para essa doença. Tal inclui doenças com Trata-se duma técnica de DPN do primeiro tri-
transmissão mendeliana (recessiva, recessiva liga- mestre de gestação, sendo as suas indicações, em
da ao cromossoma X ou outra) e mutações dinâ- termos genéricos, semelhantes às da amniocente-
micas como a distrofia miotónica de Steinert. se. Apesar de vários estudos realizados em vários
países terem mostrado que o risco de perda fetal é
Técnicas invasivas semelhante ao da amniocentese, actualmente é
As principais técnicas invasivas utilizadas pa- ainda aplicada por escassas equipas médicas na
ra DPN são: maioria dos países europeus.
1 – Amniocentese 3 – Cordocentese
A amniocentese, a técnica invasiva mais utili- A cordocentese ou colheita de sangue dos va-
zada, realiza-se sob controlo ecográfico entre 14- sos do cordão umbilical fetal, realiza-se a partir das
16 semanas de gestação. A sua realização tem um 18 semanas de gestação. Tem indicações muito pre-
risco de aborto de 0,5%, que é menor nos centros cisas e exige que o especialista em medicina fetal
de maior diferenciação e realizando maior núme- tenha grande experiência nesta área. As suas prin-
ro de exames invasivos. cipais indicações são a realização do cariótipo fe-
Deve ser precedida por um exame ecográfico tal, a avaliação da presença de infecção fetal, no-
para confirmar o número e a viabilidade dos fetos, meadamente de citomegalovírus, parvovírus B19
a localização da placenta e do cordão umbilical, as- e toxoplasmose, e o estudo genético de algumas
sim como a quantidade de líquido amniótico. É de doenças da coagulação e imunodeficiências. A cor-
fácil realização, com inserção de uma agulha atra- docentese é também utilizada para terapêutica fe-
vés da parede abdominal directamente no saco tal, nomeadamente, para transfusão intravascular
amniótico, e aspiração de 20-30 ml de líquido am- de produtos sanguíneos, e para a administração de
niótico. Após a amniocentese, deve verificar-se a medicamentos directamente ao feto.
actividade cardíaca fetal (idealmente deverá estar À cordocentese poderão seguir-se complica-
normal), e se existe sangramento da placenta, feto ções na grávida e no feto, embora pouco fre-
ou cordão umbilical. quentes (por ex. amnionite e hemorragia trans-
Caso não ocorra qualquer intercorrência, em plancentar). A perda fetal nas grandes séries é cer-
termos de cuidados a ter após realização da técni- ca de 1%, mas este valor aumenta 4 a 5 vezes no ca-
ca, apenas se aconselha à grávida que limite a rea- so de transfusão intravascular.
lização de esforços importantes, natação ou banho 4 – Fetoscopia e biópsia de tecidos
de imersão nas 24 a 48 horas seguintes. A fetoscopia é uma técnica invasiva que per-
Nas gestações gemelares dizigóticas, é igual- mite a visualização do feto com recurso a equipa-
mente possível realizar amniocentese, embora se- mento de endoscopia com uma lente de focagem
ja necessário proceder à injecção de um produto de associada a bandas de fibras ópticas que transmi-
contraste que permita ao obstetra identificar o sa- tem luz para a cavidade amniótica. Para a colhei-
co amniótico que vai puncionar. ta de tecidos fetais associa-se ao fetoscópio uma
De referir que a partir do líquido amniótico po- pinça de biópsia específica.
dem ser realizados exames de citogenética, de ge- As indicações para a realização desta técnica
nética molecular e de bioquímica genética, desi- são cada vez mais raras pelo desenvolvimento da
gnadamente perante contexto clínico sugestivo de biologia molecular que permite realizar o DPN es-
fibrose quística, síndroma do X-frágil ou distrofia pecífico, sem necessidade de visualização directa
muscular de Duchenne. do feto.
2 – Colheita de vilosidades coriónicas
A colheita de vilosidades coriónicas é realiza- Estudo do feto
da por via transcervical ou transabdominal entre
10-12 semanas de gestação. A colheita por via va- Os fetos com anomalias congénitas ou que resul-
ginal implica a colocação de um cateter estéril em taram de interrupção médica de gravidez, devem
CAPÍTULO 17 Diagnóstico pré-natal 95
ser estudados de forma apropriada após o parto permite obter resultados geralmente favoráveis no
implicando avaliação prévia pelos especialistas de bloqueio aurículo-ventricular completo cuja fre-
medicina fetal, de obstetrícia, de neonatologia e, quência é cerca de 1/20.000 recém-nascidos.
idealmente de genética. Devem registar-se os da- Destes, cerca de metade tem alterações cardíacas
dos essenciais do fenótipo (hábito externo), o que estruturais. A terapêutica medicamentosa com ter-
é complementado posteriormente pela autópsia e butalina, ou isoproterenol permite um sucesso re-
exame anátomo - patológico (hábito interno), com lativo e está indicada apenas, quando não existem
o objectivo de se obter o diagnóstico genético. anomalias cardíacas estruturais associadas, ou hi-
Importa realizar sempre os seguintes procedi- dropisia fetal.
mentos: 4. Síndroma das válvulas da uretra posterior
• Descrição do hábito externo e das anomalias Apresenta-se sob duas formas distintas: a) com
encontradas; obstrução unilateral ou ligeira obstrução bilateral
• Registo por imagens fotográficas em vários e líquido amniótico normal; b) com oligoâmnio
planos, desde a perspectiva global ao registo grave e rins displásicos. Os fetos com função renal
detalhado de aspectos particulares que po- não afectada são candidatos à realização de cirur-
derão ser úteis para o diagnóstico; gia in utero, com boas expectativas de sucesso te-
• Realização de radiogramas em dois planos; rapêutico. Os fetos com sinais de displasia renal si-
• Colheita de sangue do cordão ou biópsia da gnificativa não beneficiam da cirurgia fetal.
pele para estudos genéticos, nomeadamente 5. Anomalia adenomatosa quística congénita
do cariótipo. A correcção intra-uterina desta patologia po-
derá realizar-se através de toracocentese com co-
Terapêutica fetal locação de derivação para o líquido amniótico, ou
por cirurgia fetal, com histerotomia e remoção da
O progresso científico e tecnológico permite já ho- massa pulmonar torácica. Até ao momento o nú-
je a realização de intervenções sobre o feto duran- mero de intervenções cirúrgicas realizadas é es-
te a gestação, de carácter médico ou cirúrgico, com casso, pelo que se torna necessário avaliar com
impacte na sobrevivência e na qualidade de vida ponderação os resultados favoráveis que foram
do recém-nascido. Esta área corresponde, na ver- publicados.
dade, à Medicina do Feto. 6. Hérnia diafragmática congénita
Prevê-se que nalgumas das áreas venha a ocor- A hérnia diafragmática congénita é a principal
rer um maior desenvolvimento nos próximos causa de morte por falência respiratória, com hi-
anos. Eis alguns exemplos: pertensão pulmonar devida a hipoplasia pulmo-
1. Hidrocefalia nar em recém-nascidos. Nalgumas séries, a cirur-
O procedimento de registo internacional desi- gia in utero permitiu a sobrevivência de 70% a 80%
gnado por "Fetal Surgery Registry" encontrou uma dos fetos (Capítulos 308 e 309).
sobrevivência de 83% após cirurgia de drenagem
da hidrocefalia fetal. Porém, em 18 dos 34 sobrevi- Diagnóstico pré-implantação
ventes foram detectadas posteriormente alterações
importantes no desenvolvimento psicomotor. O diagnóstico genético pré-implantação (DGPI)
2. Hiperplasia congénita da supra-renal permite efectuar o diagnóstico genético a partir de
A administração de betametasona à grávida, o uma única célula embrionária, com recurso a téc-
mais precocemente possível até se determinar o nicas de reprodução medicamente assistida e
sexo fetal, pode impedir a virilização no sexo fe- transferência ou congelação dos embriões selec-
minino. cionados.
3. Disritmias cardíacas Os seus objectivos principais, são o nascimen-
Estima-se que a incidência da taquicardia su- to de um ser humano sem a alteração genética
praventricular seja entre 1/10000 e 1/25000 fetos. identificada anteriormente no caso índex ou histo-
Quando diagnosticada, deverá ser abordada como compatível para doação de material biológico ne-
uma emergência e tratada com digoxina, o que cessário à vida de outro ser humano.
96 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Esta tecnologia constitui um avanço importan- ADN se replica, os 2 filamentos separam-se e cada um, com
te da ciência. Porém, as questões éticas que levan- a ajuda da enzima ADN polimerase, forma um novo fila-
ta são ainda motivo de debate na sociedade por- mento, dando origem a 2 novas hélices, idênticas na se-
tuguesa e na comunidade científica. quência de bases:G – C/A – T.
Alelo > um dos dois genes diferentes que ocupam posições cor-
Legislação portuguesa respondentes ou idênticas (locus) em cromossomas homól-
ogos, que exercem a mesma função mas determinam carac-
A legislação portuguesa mais relevante nesta área terísticas diferentes.
é a seguinte: ARNm (mensageiro) > o ácido nucleico que transporta do nú-
Despacho 5411/97, de 8 de Setembro cleo para o citoplasma a informação genética do ADNpara
Define o âmbito e os princípios, a população ser traduzida (ver adiante o termo tradução) em proteína
em risco e os modelos de organização dos Centros (cadeia polipeptídica).
de Diagnóstico Pré-Natal, e estabelece o modo de Autossoma > qualquer cromossoma que não seja sexual.
participação da Genética nesses Centros Bandeamento cromossómico (Banding) > Processo técnico que
Despacho 10325/99, de 5 de Maio permite observar um padrão determinado de bandas claras
Complementa o Despacho anterior e define o e escuras para cada cromossoma. Descrevem-se vários
modelo de constituição dos Centros e os recursos tipos: C,G,N,Q,R,T.
de que deverá dispor. Carga genética (liability) > efeito cumulativo dos factores
Portaria 189/98, de 26 de Fevereiro genéticos na ocorrência de uma doença.
Estabelece a constituição das Comissões Clone celular > Conjunto de células geneticamente idênticas
Técnicas de Certificação da Interrupção de com origem, por divisão mitótica, numa única célula-mãe.
Gravidez e as respectivas competências. Clones de ADN > Múltiplos fragmentos iguais , obtidos por
Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho meio de técnicas de recombinação do ADN.
Actualiza a informação sobre a constituição das Codão > sinónimo de Tripleto (ver adiante).
Comissões Técnicas de Certificação da Interrupção Codominância > Situação em que há expressão individual dos
de Gravidez e as respectivas competências dois alelos de um locus, num heterozigoto.
Lei n.º 12/2005 de 26 de Janeiro Congénito > qualquer característica ou doença que esteja pre-
Sobre a informação genética pessoal e infor- sente, visível ou não, no nascimento.
mação de saúde Consanginidade > quando um casal partilha ascendentes co-
Lei n.º 32/2006 de 26 de Julho; Diário da muns.
República, 1.a série – N.o 143 – 26 de Julho de 2006 Cromossoma > estrutura intracelular que contém o material
Regula a utilização de técnicas de procriação hereditário do indivíduo. A capacidadede coloração deve-
medicamente assistida -se à cromatina.
Deleção > Tipo de aberração cromossómica em que há perda
GLOSSÁRIO de parte de um cromossoma. A nível molecular significa a
Ácidos nucleicos > constituintes da célula viva (essencialmente perda de um ou mais nucleótidos do ADN.
do núcleo), que contêm uma base púrica, um açúcar e áci- Dermatoglifos > Padrões ou tipos de distribuição das pregas
do fosfórico (sob a forma de éter). Existem 2 tipos: o ácido ou sulcos dos dedos e palmas ou plantas dos pés.
desoxirribonucleico (ADN) e o ácido ribonucleico (ARN). Diplóide > diz-se de uma célula que possui uma série dupla de
ADN > ácido desoxirribonucleico que suporta a informação cromossomas homólogos.
genéticado indivíduo. Este material consiste numa dupla Enzima de restrição > grupo de enzimas de origem bacteriana
hélice, como uma escada em espiral, na qual: o corrimão é que corta o ADN em sequências específicas.
feito de moléculas alternadas de desoxirribose (um açúcar) Exão > segmento do gene que regula a sequência de aminoá-
e fosfato; e os degraus feitos de bases purínicas e pirim- cidos duma proteína.
idínicas, mantidas juntas por pontes de hidrogénio. A “es- Expressividade > a intensidade com que se exprime um de-
cada” é torcida em dupla hélice. As bases purínicas são a terminado fenótipo.
adenina (A) e a guanina (G); e as pirimídicas: a citosina (C) Fenocópia > fenótipo devido à acção de factores ambientais,
e a timina (T). As referidas pontes de hidrogénio”garantem” mimetizando um carácter determinado geneticamente.
o emparelhamento de A com T e de G com C. Quando o Fenótipo > características físicas de um indivíduo; representa
CAPÍTULO 17 Diagnóstico pré-natal 97
a interacção entre o património genético do indivíduo e os (origem paterna ou materna). Assim, o contributo paterno
factores ambientais. ou materno para o genoma do zigoto (em termos fun-
FISH > “Fluorescent in situ hybridization”; é um método da cionais)pode não ser equivalente, provavelmente devido a
genética laboratorial. graus de metilação diferentes.
Fratria > conjunto de irmãos e irmãs descendentes de um casal. Intrão > segmento do gene que intervém na (ou concretiza) se-
Gene > unidade essencial do material hereditário (segmento de quência de aminoácidos duma proteína.
ADN) que codifica um produto que vai desempenhar uma Limiar > valor do efeito cumulativo dos factores genéticos, que
função. permite a ocorrência de uma característica multifactorial.
Gene candidato > gene que se considera estar associado a de- Linkage > situação em que genes, localizados com grande prox-
terminado carácter ou doença no decorrer de estudos mol- imidade, tendem a ser co-herdados.
eculares, face à proteína que codifica ou às suas caracterís- Locus > a localização específica de um gene específico num cro-
ticas conhecidas. mossoma.
Genoma > conjunto dos cromossomas de um gâmeta (célula Microdeleção > perda de material cromossómico com uma ex-
sexual), cujo número é característico de cada espécie e que tensão que não permite a sua visualização por microscopia
estão presentes em exemplares simples (ao contrário dos de luz.
cromossomas das células somáticas que se apresentam aos Mutação > alteração espontânea que ocorre no material hered-
pares, possuindo assim cada célula somática dois geno- itário.
mas). Na espécie humana, o genoma é formado por 23 cro- Mutação mtADN > mutação de gene mitocondrial.
mossomas. Parentesco em 1.° grau > indivíduos que partilham 50% do
Genómica > estudo do genoma e da sua acção. património genético: pais, irmãos, filhos.
Genótipo > toda a informação genética contida no ADN do in- Parentesco em 2.° grau > indivíduos que partilham 25% do
divíduo, que inclui o ADN existente nos cromossomas, nas património genético: meios-irmãos, avós, tios, sobrinhos,
mitocôndrias e noutros organelos intracelulares. netos.
Gonossoma > cromossoma sexual, o X ou o Y. PCR > técnica de biologia molecular que permite amplificar se-
Haplóide > diz-se de células que possuem apenas um exem- lectivamente sequências de ADN (Reacção da polimerase
plar de cada um dos cromossomas próprios da espécie (23 em cadeia ou Polymerase Chain Reaction).
na espécie humana). Os gâmetas são haplóides. Penetrância > expressão da frequência com que ocorre deter-
Haplótipo > sequência de locus com proximidade num cro- minado fenótipo, quando um dos alelos tem uma mutação.
mossoma que tendem a ser herdados em conjunto. Polimorfismo > característica genética em que existe mais de
Hemizigotia > presença de um único alelo no genoma, uma forma comum na população.
condição que se verifica, normalmente, para a grande maio- Portador > indivíduo heterozigoto em que um dos alelos tem
ria dos loci do cromossoma X, nos indivíduos do sexo mas- uma mutação de uma doença autossómica recessiva.
culino. Corresponde também a condições anormais (por ex. Proteonómica > técnicas que estudam as proteínas produzidas
após deleção) em que , em vez de um genótipo diploide, se pelo genoma e como interagem para determinar as funções
encontra uma única cópia de um alelo. biológicas.
Hereditabilidade > proporção da variância total de uma car- Susceptibilidade genética > representa a predisposição para
acterística que é causada pelos genes. a ocorrência de determinada doença pela presença de um
Hereditariedade mitocondrial > hereditariedade que tem por alelo particular ou combinação de alelos.
base os genes localizados nas mitocôndrias e que são trans- Telómero > a extremidade natural de um cromossoma.
mitidos exclusivamente por via materna. Tradução > processo pelo qual uma cadeia polipeptidica se
Heterozigoto > ter uma forma alélica deferente de um gene, origina a partir de um ARN.
em locus homólogos; isto é, 2 genes diferentes, com a mes- Transcrição > processo pelo qual um gene se expressa num
ma localização em cromossomas homólogos. ARN mensageiro.
Homozigoto > ter a mesma forma alélica nos dois locus homól- Transgene > gene que foi incorporado no genoma de outro or-
ogos; isto é, 2 genes idênticos com a mesma localização em ganismo.
cromossoma homólogos. Triploidia > situação de um núcleo, de uma célula, ou de um
Imprinting > fenómeno pelo qual um dos genes do par de ale- organismo cujo complemento cromossónico inclui três
los de um locus tem expressão diferente do outro gene desse genomas haplóides. A triploidia é uma das formas fre-
locus, em função do sexo do progenitor de que foi herdado quentes de poliploidia.
98 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
18
Tripleto > grupo de três bases púricas (ou purínicas) ou pir-
imídicas na molécula de ADN ou ARN, que condiciona a in-
corporação de (codifica para) um aminoácido específico na
molécula de uma proteína. Sinónimo de codão.
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lels. Hum Genet 2004; 114: 521-526 ente como causa de anomalias congénitas, que
tornaram possível não só os conhecimentos que
hoje temos da sua etiologia e epidemiologia, bem
como a utilização de métodos de prevenção cada
vez mais eficazes.
Hoje as AC são um problema de Saúde Pública
e a sua incidência é tanto mais elevada quanto
menor for a idade gestacional considerada. Se no
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 99
período pré-natal é difícil quantificar a sua im- QUADRO 1 – Anomalias congénitas – Etiologia
portância devido ao elevado número de perdas
embrionárias e fetais por AC, elas são relativa- Etiologia
mente frequentes e preocupantes no período pós- • Factores de Ambiente (Teratogénicos) (~10%)
-natal, uma vez que 2 a 3 por cento dos recém- • Factores Genéticos (~10-25%)
nascidos vivos têm uma ou várias AC de gravi- – Determinação poligénica
dade muito variável, o que justifica frequente- – Genes mutantes
mente o recurso a internamentos hospitalares pro- – Desequilíbrio genético (anomalia cromossómica)
longados; constituem, efectivamente a segunda • Factores Ambientais e Genéticos
causa de mortalidade perinatal. Numa avaliação • Factores Desconhecidos (~65-75%)
da mortalidade infantil em Portugal nos anos de Jones Kl, 1997
tão importantes como a divisão celular, a adesão responsáveis pela génese de anomalias congénitas
celular, a indução, a migração das células, a apop- de natureza e gravidade muito variáveis.
tose, o crescimento e a diferenciação. Assim, as anomalias cromossómicas de nú-
Os genes são as “ferramentas” moleculares res- mero (devidas a não-disjunção meiótica), as
ponsáveis pela organização de toda a morfogénese anomalias cromossómicas de estrutura e as mu-
e estrutura cromossómica. Convém, no entanto, ter tações génicas, podem chegar ao zigoto por via
sempre presente que num cariótipo se vêem os cro- materna, paterna, ou ambas simultaneamente.
mossomas mas não se visualizam os genes . A anomalia cromossómica mais frequente no
Cabe à biologia molecular explicar como a in- RN vivo é a trissomia 21, (Figura 1, Capítulo 15)
formação unidimensional contida na cadeia de áci- que pode revestir a forma de trissomia livre
do desoxirribonucleico (ADN) origina uma infor- (Figura 1) ou de trissomia por translocação (trans-
mação tridimensional (proteína) responsável pelas locação 21/14 na Figura 2). Neste último caso é
transformações têmporo-espaciais que caracteri- necessário provar se a anomalia é herdada de um
zam o normal desenvolvimento do embrião.
A partir do ovo, o embrião tem, pois, teorica-
mente todas as potencialidades para se desen-
volver e crescer de uma forma harmoniosa e pre-
visível. Esta evolução está dependente da inter-
acção de factores genéticos específicos de cada in-
divíduo e de factores ambientais muito diversos
com particular relevância para os factores nutri-
cionais, endócrinos e metabólicos.
O programa de crescimento e desenvolvimen-
to do embrião é muito preciso no que respeita ao
tempo e ao espaço em que ocorrem os aconteci-
mentos que irão transformar o ovo num recém-
nascido.
Com uma frequência muito maior do que seria
de esperar e do que seria desejável, existem falhas
FIG. 1
de natureza genética ou epigenética que con-
duzem a uma disrupção do programa estabeleci- Trissomia 21 – Cariótipo (forma livre).
do com consequências mais ou menos graves na
estrutura e funcionamento do embrião.
É muito útil para compreender a génese das
anomalias congénitas, relembrar os fenómenos da
fertilização e as fases do desenvolvimento embrio-
fetal , caracterizadas por uma sucessão de estádios
ininterruptos mas morfologicamente bem defini-
dos.
A fertilização é um fenómeno complexo de in-
teracção entre um óvulo e um espermatozóide,
veículos da informação genética materna e pater-
na, indispensável ao normal desenvolvimento do
embrião e do feto. A fertilização tem como conse-
quência a formação do zigoto, considerado como
o ponto zero do desenvolvimento embrionário.
Por vezes, a informação que chega ao zigoto,
FIG. 2
quer por via materna, quer por via paterna, con-
tém erros de natureza génica ou cromossómica, Trissomia 21 – Cariótipo (translocação: 21/14).
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 101
Figura 3
Feto com 20 semanas de idade gestacional, em que
se verifica um único membro inferior constituído
por 3 segmentos. O exame radiológico identificou
um único fémur alargado e achatado com 2 côndi-
los, 2 rótulas, 2 tíbias e ossos de pé rudimentares.
Havia também imperfuração anal, agenésia renal
bilateral e agenésia do útero e restantes estruturas
do aparelho genital.
A história revelou diabetes insulinodepen-
dente e gravidez seguida de forma irregular.
Trata-se de um defeito da blastogénese.
Diagnóstico – Embriopatia diabética e re-
gressão caudal com sirenomelia.
FIG. 3
Figura 4
Feto com 20 semanas de idade gestacional, com Sirenomelia / Embriopatia diabética.
cardiopatia congénita. A existência de lábios muito
finos num feto de raça negra levou-nos a pôr a
hipótese de embriofetopatia alcoólica. A história
revelou gravidez não vigiada e mãe com hábitos
alcoólicos muito acentuados. Neste caso a valo-
rização de uma anomalia minor foi o fio condutor
para o diagnóstico.
O efeito do álcool teve o seu início na embrio-
génese (cardiopatia) e prolongou-se pela fenogénese
com evidência de uma anomalia minor (lábios finos).
Diagnóstico – Embriofetopatia alcoólica
indução embrionária da qual resulta um conjunto localizadas tais como fenda palatina, hipospádia
de estruturas anatómicas. Daí decorre que o campo ou polidactilia. Mesmo assim, embora se venham
de desenvolvimento é a unidade fundamental do a manifestar durante o período da organogénese,
desenvolvimento, também definida como uma a sua origem real pode ter sido durante a blas-
unidade reactiva que responde de forma idêntica a togénese.
agressões diferentes, como anomalias cromossómi- Findo o período da embriogénese, correspon-
cas, mutações génicas ou teratogénios. dente às oito primeiras semanas de vida do
Na fase inicial da blastogénese a totalidade do embrião, as estruturas embrionárias estão for-
embrião constitui um campo de desenvolvimento madas de uma forma irreversível e assume-se que
primário que contém em si próprio o modelo geral já não será possível o desenvolvimento de ano-
do desenvolvimento. Gradualmente, o campo malias estruturais graves (ou major).
primário divide-se em vários campos progenitores, Durante a fenogénese é possível o apareci-
que são os primórdios das estruturas definitivas. mento de anomalias ligeiras (minor); refere-se que
Os campos progenitores, por sua vez, dão pequenas dismorfias faciais podem tornar-se
origem aos campos secundários que, já durante a aparentes apenas em fases mais tardias do desen-
organogénese, serão os responsáveis pelas estru- volvimento embrionário. As anomalias cromossó-
turas finais e irreversíveis do embrião. micas, que produzem os seus efeitos desde a blas-
Todo este processo aparece, pois, como um con- togénese, reunem frequentemente anomalias
junto de acontecimentos em cascata e as anomalias major e minor, o que significa que a sua acção se
serão tanto mais graves e diversificadas quanto mais prolonga durante a fenogénese (ver adiante).
precoce for o momento em que o erro acontece. Nesta
perspectiva, os erros ocorridos na blastogénese 3 – O mapa génico das anomalias congénitas
durante o estabelecimento dos campos progenitores, A enorme impacte que as técnicas de biologia
devido à sua proximidade e à partilha de mecanis- molecular tiveram no estudo do genoma humano
mos moleculares, originam anomalias que afectam permitiram a construção de um mapa que identi-
estruturas diferentes em várias regiões do corpo; são fica e localiza os genes em segmentos cromossó-
referidas como defeitos politópicos de campo, isto é, micos específicos.
envolvem dois ou mais campos progenitores. De salientar, a propósito, que o Projecto do
As anomalias da blastogénese são hetero- Genoma Humano, já em 2006 tinha identificado
géneas do ponto de vista etiológico, graves e alta- cerca de 6.000 anomalias provocadas por um
mente letais, com baixo risco de recorrência e único gene, traduzindo-se em defeitos congénitos.
afectando predominantemente as estruturas da Dado que se trata de uma ciência sempre em
linha média. Um mesmo conjunto malformativo expansão, qualquer livro estará sempre parcial-
pode ter etiologias diversas uma vez que o campo mente desactualizado nesta matéria e a consulta
de desenvolvimento reage da mesma maneira a de artigos “on-line” é indispensável para uma
agressões diferentes. actualização permanente. Não cabe no âmbito
Uma excelente revisão de J. Opitz refere uma deste livro uma referência extensa aos genes já
extensa lista de anomalias a incluir como defeitos identificados, mas pode-se dizer que mais de 50%
da blastogénese, em que sobressaem a gemelari- das doenças que constam da última edição do
dade monozigótica, os defeitos politópicos de indispensável livro “Smith’s Recognizable Patterns
campo, as associações, as anomalias aparente- of Human Malformation” já têm genes identifica-
mente monotópicas mas com provável origem na dos.
blastogénese e as anomalias da formação do Do conhecimento cada vez mais completo do
cordão umbilical e da placenta. funcionamento da embriologia molecular decor-
Por outro lado, os erros ocorridos durante a rem duas observações importantes que são a hete-
organogénese nos campos secundários originam rogeneidade alélica e a heterogeneidade génica de
anomalias limitadas a uma só estrutura ou região certas anomalias isoladas ou múltiplas.
do corpo, sendo referidos como defeitos mono- No primeiro caso, mutações diferentes no
tópicos de campo. São exemplos as anomalias mesmo gene são responsáveis por fenótipos dife-
104 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
rentes. São exemplos as mutações no gene GLI3 mais órgãos. É o que acontece, por exemplo, como
localizado no cromossoma 7, que são responsáveis consequência de uma anomalia cromossómica.
por doenças tão diferentes como a síndroma de Disrupção – depende de um acidente grave
Pallister-Hall, a síndroma de Greig ou certas for- causado por factores extrínsecos à estrutura do
mas de polidactilia isolada. Também a acon- embrião, normal até dada fase do desenvolvimen-
droplasia e o nanismo tanatóforo, situações até há to; tais factores são em geral desconhecidos. Disto
pouco tempo consideradas independentes, de- resulta um defeito morfológico de um ou mais
pendem de mutações diferentes do mesmo gene órgãos. É o que acontece, por exemplo, como con-
localizado no cromossoma 4. sequência da existência de bandas amnióticas.
No segundo caso, uma mesma síndroma com Deformação – resulta da acção de forças
quadro clínico em tudo semelhante, pode ser de- mecânicas extrínsecas ou intrínsecas ao feto, que
vida a mutações em genes diferentes. Temos como modificam a forma, o tamanho ou a posição da
exemplo a síndroma de Bardet –Biedl na qual já se totalidade do corpo ou de parte dele (com nor-
demonstrou, a relação causal com vários genes malidade prévia até se verificar a acção de tais
diferentes localizados nos cromossomas 3, 4, 11, forças). É o que acontece, por exemplo, como con-
14, 15, 16 e 20. sequência do oligoâmnio.
Ao contrário do que alguns investigadores su- Displasia – quando há morfogénese anómala
punham, o conhecimento dos genes responsáveis com alteração mais ou menos grave da organiza-
pelas AC não diminuiu, mas aumentou a impor- ção celular de um ou vários tecidos. É o que acon-
tância da observação clínica cuidadosa, assim tece, por exemplo, nas displasias renais ou nas
como a responsabilidade do sindromalogista, que displasias ósseas.
deve interpretar e construir um padrão de anoma-
lias que possa conduzir a um diagnóstico. Só Por vezes é difícil distinguir estes grupos entre
através deste será possível determinar qual o gene si. Mas essa distinção é indispensável em termos
alvo que queremos encontrar. de aconselhamento genético uma vez que as for-
mas de transmissão são diferentes, e diferente o
Classificação risco de repetição.
Para efeitos práticos as AC são divididas em major As AC podem ser únicas ou múltiplas. É neste
e minor. último grupo que existe actualmente alguma con-
As anomalias ditas major são causa de pertur- fusão no que respeita à definição, nomenclatura e
bações funcionais ou estéticas de gravidade variá- limites da variabilidade fenotípica.
vel pelo que requerem cuidados médicos ou cirúr-
gicos como terapia curativa ou paliativa. As ano- Em 1982 formou-se um Grupo de Trabalho
malias ditas minor são mais frequentes do que as Internacional (IWG) liderado por J Spranger que
major mas a sua presença não levanta problemas se debruçou sobre os erros da morfogénese, a sua
de natureza funcional ou estética, pelo que não definição e terminologia. Posteriormente, no
requerem, em geral, qualquer intervenção tera- Congresso Internacional de Genética reunido em
pêutica. No entanto, a sua valorização é impor- Berlim, em 1986, o mesmo grupo clarificou e
tante, pois podem constituir um fio condutor para redefiniu esses conceitos, de acordo com o conhe-
a procura de outras anomalias mais graves que cimento da etiologia e patogenia dos conjuntos
podem ocorrer em conjunto, como é o caso das malformativos.
anomalias renais detectadas através da existência
de anomalias minor dos pavilhões auriculares. Do ponto de vista quantitativo são consideradas
Do ponto de vista qualitativo, é útil dividir as as anomalias que contam do Quadro 3: hipo e hiper-
anomalias congénitas em quatro subgrupos: plasia, hipo e hipertrofia, atrofia, agenésia e aplasia.
Malformação – consiste num processo anor-
mal de desenvolvimento de natureza intrínseca Estes conceitos têm-se revelado de grande uti-
responsável por um defeito morfológico de um ou lidade quando se trata de compreender melhor as
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 105
desnecessários, por outro lado um diagnóstico existe morte fetal, embora no caso da biologia
errado, por falta de experiência ou precipitação, molecular seja possível utilizar material fetal obti-
pode ter consequências muito graves. Rotular uma do em certas condições para armazenamento de
criança com um diagnóstico que não corresponde ADN. Torna-se necessário, portanto, desenvolver
à sua situação invalida uma eventual intervenção protocolos de participação entre os especialistas
terapêutica, multiplica múltiplas consultas e exam- acima referidos, de forma a tornar possível o diag-
es desnecessários e pode influenciar erradamente nóstico da causa de morte fetal e o aconselhamen-
um casal quanto à sua vida reprodutiva. As conse- to genético aos pais. (ver capítulo 17).
quências podem ser, pois, muito negativas.
Nunca é demais salientar um aspecto que nos Registos Nacionais
parece muito importante e tem certamente forte e Internacionais
repercussão no aconselhamento genético aos pais
e na decisão quanto a futuras gravidezes. Trata-se Existem actualmente em muitos países registos da
do empenho que deve ser posto no esclarecimen- ocorrência e natureza das AC bem como das cir-
to etiológico de um feto ou de um recém-nascido cunstâncias pessoais, familiares e ambientais do
com uma situação malformativa muito grave seu aparecimento. Estes registos têm como objec-
mesmo quando a morte pareça ser inevitável. O tivo a determinação da prevalência nacional e
que parece ser inútil revela-se extremamente útil regional das AC e a determinação das suas causas.
para o futuro. Em Portugal, além de alguns Registos regio-
O diagnóstico pré-natal, já abordado no capí- nais ou de Registos nacionais por patologias,
tulo 17, tem tido nos últimos anos um grande habitualmente sediados em Serviços Hospitalares,
desenvolvimento como método de prevenção existe um Registo Nacional de AC da responsabil-
secundária de anomalias congénitas. Mas, se por idade do Instituto Nacional de Saúde (Centro de
um lado as anomalias que estiveram na origem da Estudos e Registo de Anomalias Congénitas –
interrupção médica de gravidez necessitam de ser CERAC), que teve o seu início em 1996.
comprovadas, por outro tem-se verificado um O CERAC é um registo de base populacional que
enorme interesse dos pais em saber as causas da recebe notificações de várias origens, principalmente
morte fetal e o grau de risco para futuras dos Serviços Hospitalares de Obstetrícia, Pediatria e
gravidezes. Isto levou ao desenvolvimento de especialidades pediátricas, mas também de outros
uma actividade multidisciplinar que é a embrio- Serviços como Anatomia Patológica e Genética
fetopatologia clínica. Esta actividade, ponto de Médica. Os seus objectivos consistem em determinar
encontro de patologistas, dismorfologistas, a prevalência das AC e a sua distribuição geográfica
geneticistas, perinatologistas e obstetras, no con- por residência das mães, observar as suas variações
texto dos Centros de Diagnóstico Pré-natal, tem e tendências espaciais e temporais e estabelecer um
protocolos próprios. Se em linhas gerais são se- sistema de vigilância epidemiológica.
melhantes aos descritos no protocolo anterior, São notificados todos os recém-nascidos vivos
para a avaliação clínica dos nado vivos, revestem- cujas anomalias sejam detectadas até ao final do
-se, como é óbvio, de alguns aspectos particulares. período neonatal, as mortes fetais com anomalias e as
Assim, mantêm-se os 5 primeiros pontos, com interrupções de gravidez por patologia malformati-
excepção naturalmente do desenvolvimento psi- va. São registadas as anomalias estruturais major mas
comotor, bem como do ponto 7. No que respeita não as minor quando isoladas (ver adiante).
ao ponto 6, está provado que a tentativa de efec- Até ao ano de 1999 a codificação das anomalias
tuar estudo citogenético após a morte tem taxas de foi feita segundo a 9ª revisão da Classificação
sucesso baixas e muito dependentes das condições Internacional de Doenças (CID 9), e a partir do
em que as colheitas são realizadas. Daí que é da ano 2000 segundo a 10ª revisão (CID 10).
maior importância enquanto o feto está vivo, col- Durante o triénio 1997-1999 a cobertura popu-
her e armazenar produtos biológicos para estu- lacional correspondeu a 75% do total de partos e a
dos de biologia molecular, bioquímicos ou outros, prevalência observada foi de 200 por 10000 nasci-
que estão naturalmente comprometidos quando mentos.
108 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
FIG. 5
Distribuição percentual do número total de anomalias congénitas pelos grandes grupos da CID 9.
betes materna e pela rubéola, a embriofetopatia Nunes L, Carvalho MCA. A contribuição das malformações
alcoólica e os defeitos do tubo neural, são exem- congénitas para a mortalidade infantil em Portugal 1991-99.
plos destas situações nas quais o controle adequa- Saúde Infantil 1995;17: 47-52
do da diabetes materna, a vacinação anti-rubéola OMIM-Online Mendelian Inheritance in Man.
em tempo útil, o combate aos hábitos alcoólicos da www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez (acesso em Março 2008)
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ácido fólico no período pré-concepcional são Churchil Livingstone, 1998
medidas decisivas para diminuir a morbilidade e Opitz JM. The development field concept in clinical genetics. J
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A prevenção de algumas anomalias congénitas Opitz JM, Zanni G, Reynolds Jr JF, Gilbert-Barness E. Defects of
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PARTE IV
Crescimento Normal e Patológico
112 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
19
Hipotálamo
Gónadas GH Tiroideia
Córtex SR
IGF
CRESCIMENTO Paratiroideias
Nutrição e
Definição Outras Má absorção
patologias
Crescimento significa aumento de volume e tama-
nho dos tecidos e órgãos como resultado do au-
mento do número e volume das células. Trata-se, Clima
Genética
pois, dum processo de modificação física desde a
fecundação (ovo) até à idade adulta passando
pelas fases de embrião, feto, criança e adolescente.
O crescimento é indissociável da noção de de- Ambiente SNC
sócio-económico Psicoafectivos
senvolvimento que, no sentido estritamente fisio-
lógico significa modificação funcional das células,
tecidos ou órgãos; de facto, as células crescendo
FIG. 1
diferenciam-se simultaneamente.
Por razões didácticas estes dois tópicos são Factores que influenciam o crescimento.
abordados separadamente.
Em termos de prática clínica, crescer é, funda- A GH é uma hormona com 191 aminoácidos pro-
mentalmente, aumentar de peso, de estatura/al- duzida pela hipófise sob controlo hipotalâmico; é
tura (ou comprimento enquanto a criança não as- mediada pelo IGF1 (insulin-like growth factor 1) verifi-
sume a posição bípede), e de perímetro cefálico; cando-se desde o nascimento à puberdade um
tais variáveis ou grandezas são mensuráveis. aumento progressivo da sua produção. O hipotála-
A antropometria ou somatometria surge neste con- mo produz não só a somatostatina ou SRIF (“soma-
texto como método que utiliza técnicas com a finali- totropin release inhibiting factor”) que inibe secreção de
dade de quantificar as dimensões corporais (cresci- GH, como o GHRF ou “growth hormone releasing fac-
mento) pela medição de parâmetros somáticos; para tor” que a estimula. A secreção de GH faz-se de
além dos já referidos, outros serão abordados adiante. forma pulsátil e predominantemente nocturna. A
A auxologia é a ciência multidisciplinar que es- GH circula ligada a proteínas de ligação e, a nível
tuda o crescimento físico na espécie humana. periférico, liga-se ao seu receptor, levando à multi-
plicação dos condrócitos e à produção de IGF-I e da
Aspectos da fisiopatologia sua principal proteína de ligação (IGFBP 3) (BP ou
do crescimento “binding protein”). O IGF-I produzido, quer no fíga-
do, quer localmente no tecido ósseo, irá induzir o
A regulação do crescimento é muito complexa, crescimento. O IGF1 é influenciado por vários fac-
estando dependente, não só de factores endócri- tores, como sejam o estado nutricional da criança, e
nos como a hormona de crescimento (growth hor- circula ligado a proteínas transportadoras, a mais
mone ou GH), de hormonas tiroideias, hormonas importante das quais é a IGF1-BP3. Como a GH tem
sexuais, neuromediadores, mas também de fac- uma libertação irregular, o doseamento do IGF1 e da
tores genéticos, metabólicos, psicossociais, etc.. IGF1-BP3 em conjunto, são indicadores mais fiáveis
CAPÍTULO 19 Crescimento 113
da produção. As hormonas tiroideias são essenciais dos 12 meses de idade, é lenta (VC ou velocidade de
para o crescimento pós-natal em geral, para o desen- crescimento = 4-8 cm/ano) e torna-se praticamente
volvimento cerebral e para a maturação óssea. Os constante a partir dos dois anos de idade. A sua reg-
esteróides gonadais, sobretudo os estrogénios, pela ulação depende, sobretudo, de factores genéticos e
sua acção sobre as cartilagens de crescimento, são da HC (hormona de crescimento= sigla GH).
responsáveis por cerca de metade do crescimento Na puberdade, última fase do crescimento li-
atingido durante a puberdade e permitem, não só a near, ocorre nova aceleração da velocidade de
maturação sexual, como a esquelética. crescimento (10-12 cm/ano) predominantemente
dependente da acção dos esteróides gonadais, con-
Fases do crescimento tinuando efectiva a acção da GH. Começa aos 10-
12 anos na rapariga, e aos 12-14 anos rapaz. O
Tratando-se de um processo dinâmico e contínuo, o crescimento pubertário termina no final da matu-
crescimento exterior, visível a “olho nu” acompa- ração sexual, coincidindo com o encerramento das
nha-se do crescimento dos diversos órgãos e sis- epífises ósseas.
temas, ocorrendo em tempos diferentes. Por exem- A avaliação do estádio pubertário (abordada
plo, 50% do crescimento craniano ocorre no 1º ano nos capítulos 43, 44 e 181) é, pois, importante para
de vida, atingindo-se 20% dos valores do adulto interpretar a evolução do crescimento. Por sua
pelos 2 anos. O crescimento dos órgãos genitais vez, para a avaliação correcta do crescimento
externos só se verifica no período da puberdade. A torna-se indispensável o recurso às chamadas
massa gorda, expressa como % da massa corporal, curvas de crescimento para ambos os sexos.
aumenta desde o nascimento até cerca dos 6-9 A avaliação do crescimento dá uma boa indi-
meses, diminuindo depois até aos 5-6 anos, com cação sobre o estado de saúde da criança. De
incremento ulterior. salientar que uma agressão que se repercute sobre
Descrevem-se quatro fases no crescimento: 1) o peso e a estatura será necessariamente mais
pré-natal; 2) desde o nascimento até aos 2 anos; 3) grave e prolongada do que aquela que apenas tem
dos 2 aos 9 anos; 4) depois dos 9 anos até ao final repercussão sobre o peso.
da puberdade. Estas fases, com velocidades de
crescimento diferentes, estão sujeitas a diversas in- Antropometria
fluências e vão condicionar de modo particular a
estatura final. A antropometria consiste na avaliação das dimen-
O crescimento in utero está dependente de sões físicas do corpo humano em diferentes idades
influências, quer maternas, quer fetais. Ao nascer, utilizando determinados parãmetros (conjunto de
o feto encontra-se já em fase de desaceleração do valores ao longo de determinado período de
referido crescimento. A principal hormona res- tempo). Para além do peso, comprimento ou estatu-
ponsável pelo crescimento fetal é a insulina, sendo ra/altura e perímetro cefálico, outros parâmetros ou
o feto relativamente resistente à GH; esta última índices (estes últimos significando relação numérica
adquire importância após 6 meses de idade. O entre duas grandezas ou parâmetros) podem ser
crescimento intra-uterino está mais dependente utilizados para avaliação do crescimento, tais como:
dos factores genéticos maternos do que dos pater- perímetro torácico, perímetro abdominal, relação
nos, razão pela qual o peso do recém-nascido tem, peso/ altura, segmento superior (SS), segmento in-
em mulheres com bom estado de nutrição, uma ferior (SI), relação SS/SI, envergadura e velocidade
correlação positiva com a estatura materna. de crescimento.
O crescimento do lactente (até 12 meses) é uma O SS é a distância entre o vértex (ou ponto mais
continuação do crescimento fetal, caracterizando- elevado da abóbada craniana no plano sagital me-
se por uma velocidade de crescimento rápida (até diano, com a cabeça direita) e o cóccix, ou seja, a
25 cm/ano), que diminui ao longo do tempo. O diferença entre o comprimento ou estatura e o SI.
crescimento neste período é essencialmente O SI mede-se pela distância entre a sínfise
dependente de factores nutricionais. pública e o pavimento estando a pessoa com os
A fase de crescimento infantil, iniciada por volta membros inferiores bem estendidos.
114 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
FIG. 5 FIG. 8
Raparigas – Altura 5-19 A. Raparigas – Perímetro cefálico 0-24 M.
FIG. 6 FIG. 9
Raparigas – IMC 0-5 A. Rapazes – Peso- 0-5 A.
FIG. 7 FIG. 10
Raparigas – IMC 5-19 A. Rapazes – Comprimento/altura 0-5 A.
116 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
FIG. 11 FIG. 14
Rapazes – Peso 5-10 A. Rapazes – IMC 5-19 A.
FIG. 12 FIG. 15
Rapazes – Altura 5-19 A. Rapazes – Perímetro cefálico - 0-24 M.
INCREMENTOS APROXIMADOS
Peso Comprimento/estatura Perímetro cefálico (PC)
1º trimestre → 200g /semana 1º ano → 25 cm 1º ano → 1 cm/mês
2º trimestre → 130 g/semana 2º ano → 12 cm 2º ano → 2 cm
3º trimestre → 85 g/semana Pelos 2 anos ~1/2 da altura em adulto Pelos 2 anos~ 80% do PC em adulto
4º trimestre → 75 g/semana
QUADRO 3 – Comparação entre idade Infantil e Juvenil. Lisboa: DGS,2013/ www.dgs.pt (Junho)
cronológica e idade óssea Guerra A. As novas curvas da OMS para avaliação do cresci-
mento do lactente e da criança. Acta Pediatr Port 2006; 37:
RN – Epífise distal do fémur, astrágalo, cubóide, 109-112
calcâneo Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger,2008
RN – Epífise distal do fémur, astrágalo, cubóide, calcâneo Mei Z, Grummer – Strawn LM. Comparison of changes in
1 ano – Carpo: 3 núcleos; Tarso: 2 núcleos growth percentiles of US children on CDC 2000 growth
2 anos – Cabeça do úmero; Carpo idem; Tarso: adição da charts with corresponding changes on WHO 2006 growth
epífise do perónio charts. Clinical Pediatrics 2011; 50:402-407
3 anos – Carpo: adição do piramidal; Tarso: adição do 1º Pereira-da-Silva L, Virella D, Videira-Amaral JM, Guerra A.
cuneiforme Antropometria no Recém-Nascido. Revisão e Perspectiva
4 anos – Carpo: adição de mais 1 núcleo; Tarso: adição de Actual. Lisboa: Nestlé Nutrition Institute, 2007
mais 2 núcleos Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph’s Pediatrics.
5 anos – Carpo: adição de mais 2 núcleos New York: McGrawHill Medical, 2011
6 anos – Carpo: adição de mais 2 núcleos Sassetti L, Direcção Geral da Saúde.Programa de vigilância em
Saúde Infantil e Juvenil. Acta Pediatr Port 2012; 43:XXXI
BIBLIOGRAFIA
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Acta Pediatr Port 2010; 41:S1-S3
Direcção Geral da Saúde/DGS. Programa Nacional de Saúde
CAPÍTULO 19 Crescimento 119
20
mento é o incremento em estatura por unidade de
tempo (cm/ano), considerando-se que o intervalo
mínimo para a podermos determinar com rigor é
6 meses. A chamada estatura alvo familiar permite
corrigir a estatura da criança em função da estatu-
ra dos pais. Calcula-se da seguinte forma:
BAIXA ESTATURA
Rapaz: (altura da mãe + 13) + altura do pai
Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina 2
proceder a um conjunto de exames auxiliares gerais Em crianças que se apresentem com uma das
(a seleccionar em função do contexto clínico) para seguintes condições: estatura inferior a -3 DP,
afirmar ou excluir causas patológicas que tenham crescimento com velocidade inferior ao per-
como manifestação a baixa estatura (Quadro 4). centil 25, IO com atraso superior a 2 anos em
Se os resultados obtidos forem normais, dever- relação à IC, haverá que admitir e investigar
se-á esperar 6 meses para determinar a velocidade causas gerais e endocrinológicas de baixa
de crescimento. estatura, nomeadamente por défice de GH.
CAPÍTULO 20 Baixa estatura 121
Seguidamente são descritas algumas situações de crescimento normal e apresenta uma maturação
clínicas acompanhadas de baixa estatura. óssea adequada à idade cronológica: o pico de
crescimento e maturação pubertário ocorrem na
idade habitual.
1. BAIXA ESTATURA FAMILIAR Sintetizando, esta situação caracteriza-se por:
– Antecedentes familiares de baixa estatura.
É uma das causas mais frequentes de baixa estatu- – Comprimento ao nascer inferior à média,
ra. O seu diagnóstico é, no entanto, de exclusão e mas adequado no contexto familiar.
obriga ao seguimento continuado da criança ao – Curva de crescimento paralela à curva de
longo do tempo, a fim de detectar atempadamente percentis, com velocidade de crescimento
qualquer desvio. normal.
A estatura final de um indíduo tem uma forte – Dados da anamnese irrelevantes e exame físi-
influência genética. É na fase de crescimento in- co sem alterações fenotípicas (nomeadamen-
fantil que essa influência é mais importante. te compatíveis com síndroma de Turner na
Assim, uma criança com baixa estatura familiar rapariga) e sem sinais de doença sistémica.
nasce habitualmente com um peso e comprimen- – Altura prevista de acordo com a estatura alvo
to adequados à sua idade gestacional, sendo du- familiar.
rante os dois primeiros anos de vida que cruza os – Idade óssea sem atraso significativo em relação
percentis de estatura até estabilizar num percentil à idade cronológica e atraso da idade estatural.
igual ou inferior ao 3, mas superior ao percentil 1. – Estatura final correspondente à estatura alvo
A partir de então a criança tem uma velocidade familiar.
122 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Baixa estatura IE < IO IC Normal • Baixa estatura familiar
intrínseca • Síndromas genéticas:
– cromossomopatias
– displasias ósseas
– síndromas dismórficas
• RCIU grave
Crescimento IO IE< IC Normal • Atraso constitucional de maturação
“atrasado” • Doença crónica ligeira
• Má-nutrição ligeira
Crescimento IO IE<< IC Abaixo do normal • Doença crónica grave
“atenuado” • Má-nutrição grave
• Doenças metabólicas
e do equilíbrio ácido-base
• Doenças endócrinas:
– Défice de GH
– Hipotiroidismo
– Síndroma de Cushing
– Hipogonadismo
• Privação emocional e abuso
(*)Adaptado de Rosenfield RL, 1996
ABREVIATURAS: IC: idade cronológica; IE: idade estatural; IO: idade óssea
puberais, peso e estatura se encontram ambos situação, cujo tratamento urgente é fundamental,
abaixo do percentil 5. não é detectada pelo rastreio neonatal (diagnósti-
– Crescimento inferior ao percentil 3 mas supe- co precoce).
rior ao percentil 1 e paralelo à curva de per- Na criança mais velha o défice traduz-se por
centis, com velocidade de crescimento nor- baixa estatura proporcionada e desaceleração pro-
mal a partir da primeira infância e até à idade gressiva do crescimento, geralmente sem quais-
pubertária. quer alterações do exame físico. Alguns casos apre-
– Na idade habitual da puberdade desacelera- sentam obesidade troncular moderada (“aspecto
ção da velocidade de crescimento. de redondinho”), fácies de boneca, voz aguda, pele
– O “pico” de crescimento pubertário ocorren- e cabelos finos, característicos do défice congénito
do tardiamente, pelos 14 anos nas raparigas e de GH; nos antecedentes pessoais destas crianças
16 anos nos rapazes. encontra-se com maior frequência restrição de
– Dados da anamnese e exame físico sem alte- crescimento intra-uterino (RCIU), asfixia neonatal
rações. com índice de Apgar baixo, apresentação pélvica e
– Idade óssea com atraso significativo em parto por cesariana. O défice de GH pode associar-
relação à idade cronológica, e de acordo com se a defeitos da linha média tais como incisivo cen-
a idade estatural. tral único, fenda palatina, lábio leporino, ou dis-
– Prognóstico de estatura de acordo com a plasia septo-óptica com nistagmo.
estatura alvo familiar.
– Estatura final normal. Diagnóstico
aorta; prolapso da mitral; mesocárdia e aneurisma Mahoney CP. Evaluating the child with short stature. Pediatr
dissecante da aorta. Clin North Am 1997; 34: 425-849, 1987
As alterações renais verificam-se em 35 a 70 % Mercedes O, Winhoven TMA, Onyango WA. Worldwide
dos casos (habitualmente rim em ferradura, rim Practices in Child Growth Monitoring. J Pediatr 2004; 1444:
pélvico unilateral e duplicação pielocalicial). 461-465
Podem também existir anomalias renovasculares. Mitchell H, Hindmarsh PC. Assessment and management of
Existe um grande número de doenças associ- short stature. Current Pediatrics 2000: 9: 237-41
adas, nomeadamente doenças autoimunes tais Palminha JM, Carrilho E. Orientação Diagnóstica em Pediatria.
como tiroidite de Hashimoto, doença de Graves, Lisboa: Lidel, 2003
vitíligo e também doutras doenças, por exemplo: Raine JE, Donaldson MDC, Gregory JW, Savage MO, Hintz RL.
doença de Crohn, colite ulcerosa, diabetes melli- Short Stature. Practical Endocrinology and Diabetes in
tus tipo 2 / intolerância à glucose. Children 2006; 3: 42-64
A forma de apresentação clínica é diferente Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
consoante a idade da criança. AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York : McGraw-Hill
No recém-nascido do sexo feminino, deve sus- Medical , 2011
peitar-se de ST quando existe edema linfático das Wright CM. The use and interpretation of growth charts.
mãos e pés e “excesso de pele” na região posterior Current Pediatrics 2002; 12: 279-282
do pescoço ou pescoço alado (“pterigium colli”)
(Figura 1). No lactente é o diagnóstico de coarc-
tação ou estenose aórtica que levantará a suspeita,
o que implica a realização de cariótipo. Em todas as
crianças do sexo feminino com baixa estatura inex-
plicada dever-se-á considerar a possibilidade do
ST. Numa adolescente com atraso pubertário (inex-
istência de botão mamário aos 13 anos), com par-
agem do desenvolvimento pubertário ou com
amenorreia primária deverá também investigar-se
esta patologia. O Quadro 5 sintetiza a frequência
dos achados clínicos associados a Turner.
Tratamento
O tratamento compreende:
• Administração de GH a iniciar a partir dos 2
anos de idade, diária, subcutânea, à noite;
• Administração de estrogénios a iniciar em
idade pubertária e no contexto do tratamen-
to com GH; dose inicialmente baixa, aumen-
tando progressivamente e associando-se
ulteriormente progestagénio.
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Hindmarsh PC. Current Indications for Growth Hormone
Therapy. London: Karger, 2010
Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
PARTE V
Desenvolvimento e Comportamento
128 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
21
duto de uma herança genética (nature) e do am-
biente (nurture).
A investigação tem demonstrado o profundo
impacte das primeiras experiências no desen-
volvimento cerebral. O cérebro compreende, à
nascença, 100 biliões de neurónios; cada neurónio
DESENVOLVIMENTO desenvolve, em média, 15.000 sinapses até aos 3
anos de vida, que se mantêm estáveis até aos 10
Maria do Carmo Vale anos, declinando depois o número dos mesmos. À
medida que se formam novas sinapses, outras
desaparecem, sendo este fenómeno condicionado
pela menor utilização.
Conceitos fundamentais Assim se explica a característica de plastici-
dade do sistema nervoso central (SNC) em caso de
"Eu sou eu e as minhas circunstâncias..." lesão estrutural: a exercitação de vias sinápticas
Ortega e Gasset acessórias viabiliza alternativas de crescimento e
reforço sináptico e neuronal que poderão
Em Pediatria, Desenvolvimento é definido geral- condicionar a substituição da função de células
mente como processo de aquisição de competên- lesadas por outras células, vias e áres do sistema
cias, habilidades e comportamentos cada vez mais nervoso central, reactivando ou regenerando áreas
complexos, o qual resulta da interacção de in- silenciosas geradoras da recuperação total ou
fluências exteriores ao indivíduo com o próprio in- parcial. Esta capacidade é máxima durante os
divíduo congregando múltiplas potencialidades. primeiros três anos de vida, reduzindo-se progres-
Para que a criança e o adolescente rendibilizem sivamente até aos 10 anos, mantendo-se durante
plenamente as suas potencialidades, é necessária toda a vida, embora com cada vez menor impacte.
a existência de condições psicossociais entre as A permanente experiência e aprendizagem do
quais se destacam: meio (nurture) influencia a estrutura cerebral
• amor e afecto gerada (nature).
• meio familiar consistente e previsível propi- Também assim se compreende que crianças
ciando a exploração e a descoberta. com diferentes talentos e temperamentos (nature)
A assimilação de todos estes estímulos psico- provoquem diferentes estímulos no meio (nurture)
afectivos pressupõe capacidade de interacção; e o e que, face a estímulos ambientais idênticos, pos-
processo que se designa por desenvolvimento sam interpretá-los e a eles reagir de forma diversa.
processa-se à medida que a criança reage aos As experiências, quer sejam positivas ou
estímulos do ambiente e aprende a fazer exi- negativas, influenciam a evolução e a capacidade
gências ao seu meio. adaptativa da criança aos futuros estímulos, isto é
A avaliação do referido processo tem como o seu desenvolvimento. São assim determinantes
objectivo, não só a obtenção de um diagnóstico, deste, as influências biológicas, ambientais, psico-
mas também a avaliação do perfil das chamadas lógicas e sociais, estas últimas designadas, mais
“áreas fortes” e “fracas”, quer da criança, quer da apropriadamente, como condicionantes sociais.
família e respectivos sistemas de suporte cultural, Para avaliar adequadamente progressos, iden-
educativo e social, a fim de se efectuar a progra- tificar variantes, atrasos ou anomalias, aconselhar
mação e integração das áreas a privilegiar. devidamente os pais e planear a intervenção,
Uma das áreas que mais atenção tem suscitado torna-se, pois, necessário que o pediatra, o clínico
é a perspectiva actual da criança como parceiro e geral e os profissionais de saúde que prestam
modulador activo do seu meio social e cultural, e cuidados a crianças e adolescentes compreendam
não como receptor passivo de socialização. o sentido abrangente do termo Desenvolvimento
Os diversos modelos biopsicossociais reconhe- e estejam a par das teorias, perspectivas e estra-
cem actualmente que o Desenvolvimento é o pro- tégias baseadas na evidência.
CAPÍTULO 21 Desenvolvimento 129
res normativos como a idade e época histórica De referir que tem sido valorizada a importância
vivenciada, e de factores não normativos relacio- de determinados factores protectores biológicos, tais
nados com acontecimentos imponderáveis (doen- como: carácter persistente, apetência por modali-
ça grave e incapacitante, acidente, morte de pro- dade desportiva, quociente de inteligência elevado,
genitor, etc.). comportamento cooperativo, eficácia, auto-estima,
Exemplo de factores normativos relacionados empatia, sentido de humor e capacidade de lide-
com factos históricos e políticos é o das crianças rança, importantes .
que crescem em zonas de guerra, instabilidade Alguns estudos sublinham ainda a importância
política e económica geradoras de fome, angústia de determinismos sociais como a existência de um
e amputadora de projectos de vida. adulto de referência – pais, avós ou professor – com
Determinados factores como o temperamento e quem a criança manteve ou mantém relaciona-
o estado de saúde influenciam o ambiente onde a mento electivo ou preferencial, bem como crença
criança cresce e se desenvolve; por sua vez a crian- religiosa, contribuindo significativamente para o
ça pode ser directamente afectada pelos condicio- incremento da resiliência.
nalismos ambientais daí decorrentes.
Um recém-nascido (RN) prematuro evidencia BIBLIOGRAFIA
longos períodos de sono e curtos períodos de Bronfenbrenner U, Morris P. The ecology of developmental
vigília, hipotonia fisiológica e menor capacidade de processes in Gomes Pedro J. Stress e Violência na Criança e
fixação do olhar na face materna, choro débil e no Jovem. Departamento de Educação Médica da
pouco frequente, comparativamente a um RN de Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 1999
termo (factores normativos). Este comportamento Gomes Pedro J, Nugent JK, Young JG, Brazelton TB. A criança
pode gerar curtos períodos de interacção e opor- e a familia no século XXI. Lisboa: Dinalivro, 2005
tunidades de vinculação, eventualmente agravados Kessen W. The Development of Behaviour in Levin MD, Carey
e potenciados por depressão materna pós-parto. WB, Crocker AC. Developmental - Behavioural Pediatrics
Pelo contrário, RN e lactentes com períodos de Philadelphia: Saunders, 1999
vigília mais longos e choro vigoroso, interpretados Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Texbook of
apelativamente pela mãe, proporcionam maiores Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
oportunidades de interacção e vinculação da díade Magnussen D. Individual Development: A Holistic, Integrated
que, quando bem funcionantes e integradas, Model Mohen P, Elder GH, Lusher K, Examinig Lives in
proporcionam elevado grau de satisfação e sensação Context: Perspectives on the Ecology of Human
de competência materna. Development. Washington DC: American Psychological
Um outro aspecto é o da desvantagem social e Association, 2003
da pobreza de certas crianças as quais são subme- Ministérios da Educação, da Saúde e do Trabalho e da
tidas, designadamente, a maior exposição a facto- Solidariedade. Despacho conjunto nº 891/99. Lisboa: IN-
res de risco, quer biológicos como a desnutrição ou CM, 1999
a intoxicação por agentes químicos, quer a dificul- Smith PK, Cowie H, Blades M. Learning in a Social Context.
dades de acesso a oportunidades e experiências Oxford: Blackwell Publishers, 2001
educativas (factores não normativos). Smith PK, Cowie H, Blades M. Understandig Children’s
Quando submetidas a programas de inter- Development. Oxford: Blackwell Publishers, 2001
venção em tempo oportuno, intensivos e suficien- Smith PK, Cowie H, Blades M. Cognition Piaget’s Theory.
temente prolongados (a que as famílias social e Oxford: Blackwell Publishers, 2001
economicamente auto-suficientes têm acesso faci- Vale MC. Autonomia em Pediatria. Tese de Mestrado.
litado), as crianças de risco mostram uma marcada Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 2001
melhoria na sua trajectória de desenvolvimento,
de capacidades.
Assim, a privação e a desvantagem decorrem
de uma complexa interacção entre factores de risco
ecológicos, culturais, históricos, demográficos e
psicológicos
CAPÍTULO 22 Desenvolvimento e intervenção 131
22
aquisições fazem-se de acordo com a maturação
orgânica e exigências exteriores, em sinergia e
continuidade. Cada aquisição é fundamental para o
desenvolvimento da seguinte, não só porque
constitui o seu substrato, mas também porque fun-
ciona como fonte de estímulo para novas apren-
dizagens.
DESENVOLVIMENTO Exemplo disto é a sequência sentar-se → elevação
para posição bípede; o aumento do tono da coluna
E INTERVENÇÃO vai permitir uma elevação do campo da visão e
necessariamente uma maior curiosidade pelo meio.
Ana Alegria, João Estrada e Maria do Carmo Vale Embora as habilidades e aquisições da criança
devam ser entendidas num todo porque são inter-
dependentes, a avaliação da criança deve ser
realizada por áreas dado que este modelo permite
Períodos, etapas e áreas uma maior pormenorização de tarefas e melhor
de desenvolvimento sistematização das alterações quando estas exis-
tem. Deste modo e, independentemente da escala
É universalmente aceite que o desenvolvimento da de desenvolvimento utilizada, são contemplados
criança se faz por etapas e que existem desempenhos globalmente os seguintes parâmetros:
característicos de cada idade. De acordo com certos • Autonomia pessoal e social – O desenvol-
autores (Piaget, Gesell, Freud, Winnicott) essas vimento pessoal envolve uma grande varie-
etapas têm fundamentos filosóficos diferentes e dade de habilidades que podem ser agrupadas
traduzem-se por aquisições em áreas ou domínio de em hábitos – alimentação, controlo de esfíncte-
funções diferentes do mesmo. res, e emoções – sorrir, noção de identidade.
A teoria desenvolvimentalista de Piaget, muito • Comunicação – A comunicação envolve mais
utilizada, baseia-se na interacção contínua do competências não verbais, como as expres-
indivíduo com o meio, num processo de adaptação sões faciais, gestos e movimentos posturais,
(acomodação-assimilação) e traduz-se por vários bem como competências verbais. A comuni-
estádios que fornecem informação acerca de cação está obviamente ligada à audição e à
capacidades e limitações da criança numa dada cognição na medida em que é a função
idade. De uma forma geral, os períodos de intelectual que analisa, quer a linguagem
desenvolvimento tendem a ser organizados em compreendida, quer a linguagem expressiva.
dois grandes grupos, do zero aos seis anos e dos • Cognição – Esta área de desenvolvimento
seis aos 12 anos. Tal deve-se ao facto de, após os inclui o leque de atenção, a noção de per-
seis anos de idade, se considerar a escolaridade manência do objecto, a noção de causalidade,
como indicativa do desenvolvimento em várias a imitação, a estruturação espacial-temporal
áreas, sendo o aproveitamento escolar demons- e o jogo, sendo através deste último que a
trativo de algumas aquisições, permitindo dar criança recria o mundo que a rodeia, apren-
muita informação sobre a criança. dendo a brincar e a jogar de formas cada vez
No entanto, estas noções devem sempre ser mais complexas. A cognição relaciona-se com
encaradas de uma forma dinâmica e contextualizada, o desenvolvimento social e emocional, e os
com o intuito de promover o acompanhamento da processos mentais superiores com o pensa-
criança, e nunca de forma a estigmatizar as falhas e mento, memória e aprendizagem.
a impor um “rótulo”. É, por isso, fundamental ter a • Motricidade grosseira – As habilidades
noção de que é essencial um suporte orgânico ou motoras globais envolvem o movimento de
alicerce para o desenvolvimento, mas também que é grandes massas musculares e incluem o
a estimulação providenciada pelo meio que permite controlo postural e os padrões locomotores
o desenvolvimento de potencialidades. As várias rudimentares – sentar-se, gatinhar, andar,
132 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Áreas/ Locomoção Pessoal e Social Audição e Linguagem Visão – manipulação Proezas e raciocínio
Parâmetros Motricidade Autonomia pessoal Comunicação Motricidade fina Cognição
Idades global e social e visão
3 meses Eleva a cabeça Segue pessoa com o olhar Emite dois ou três sons Move o olhar entre Brinca com os dedos
na posição dorsal Sorri em resposta Ouve música 2 objectos; Segue Resiste a que
a uma atitude objecto lentamente tirem objectos
6 meses Senta-se com suporte Manipula colher (a brincar) Emite mais do que Brinca com objecto Tira objecto da mesa
Rola Bebe por caneca quatro sons Segue objecto a cair
Responde quando chamado
9 meses Tenta gatinhar Tira um chapéu Galreia Faz preensão fina Brinca com pedaço
Fica sentado no chão Ajuda a segurar um copo Diz uma palavra nítida (“pinça” com o de papel
polegar e indicador) Fica com objecto
Atira para fora objectos
12 meses Gatinha Brinca com a colher Reage vocalmente Aponta um dedo Cumpre ordem simples
(sabe função) à música Pega num lápis
Anda com auxílio Bate palminhas Balbucia quando sozinho
15 meses Anda sozinho Usa a colher sozinho Usa cinco palavras Coloca objecto Indica desejos
Sobe escadas Abraça os pais Identifica objectos sobre o outro Põe e tira objectos
Rabisca livremente de uma caixa
18 meses Anda “marcha-atrás” Utiliza copo meio cheio Diz nove palavras Atira uma bola Tapa uma caixa
Trepa cadeira Tira sapatos e meias Gosta de livros ilustrados Faz uma torre Aponta uma parte
com três cubos do corpo
24 meses Chuta uma bola Ajuda a vestir-se/despir-se Nomeia quatro Atira uma bola ao cesto Desenrosca um frasco
Sobe e desce escadas Consegue abrir a porta brinquedos Faz um traço horizontal Aponta quatro partes
Usa frases do corpo
36 meses Salta com pés juntos Diz o 1º nome quando pedido Nomeia doze objectos Faz uma torre com Sabe o que é dinheiro
Equilibra-se com um pé Guarda os brinquedos Usa dois ou mais adjectivos oito cubos Distingue grande/
Copia um círculo pequeno
48 meses Marcha com música Calça meias e sapatos Usa pronomes pessoais Corta um quadrado Conta para além de quatro
Salta dois degraus Sabe a idade Conhece seis cores em dois Compara dois tamanhos
Desenha um homem e dois pesos
60 meses Corre para chutar Lava sozinho mãos e cara Define pelo uso Copia uma cruz Conhece duas moedas
uma bola Sabe morada (rua e número) seis palavras Desenha uma casa Conhece três moedas
Desce escadas Usa bem o garfo e a faca Descreve um desenho Corta papel com tesoura Conta dez cubos
como adulto grande
CAPÍTULO 22 Desenvolvimento e intervenção 133
1 - 2 meses 9 meses
– Em posição sentada: instabilidade cefálica; – Desequilíbrio em posição de sentado;
– Em posição vertical ou quando suportado pelo exami- – Imobilidade na posição de sentado, permanece imóvel;
nador em decúbito ventral, evidencia hiper ou hipo- – Ausência notória de preensão palmar, não levando os
tonicidade; objectos à boca;
– Não segue a face do observador; – Ausência de vocalização;
– Não sorri; – Ausência de contacto social;
– Não estabelece qualquer tipo de contacto social. – Engasgamento fácil.
3 - 4 meses 12 - 18 meses
– Não fixa, nem segue objectos; – Imobilidade permanente, não procura mudar de posição;
– Não dirige os olhos ou a cabeça para o som (principal- – Postura assimétrica;
mente) quando ouve a voz humana; – Não agarra os objectos ou agarra-os só com uma mão;
– Deixa cair a cabeça para trás, quando seguro pelas – Ausência de resposta à voz;
mãos e antebraços; – Não mastiga;
– Mantém as mãos sempre fechadas; – Não brinca, mantendo apatia;
– Membros rígidos em repouso; – Não “obedece” às ordens simples;
– Postura assimétrica; – Não diz palavras que se percebam.
– Reage com choro ao tacto;
– Actividade motora monótona. 2 anos
– Ausência de marcha;
6 meses – Manipulação dos objectos sem finalidade aparente;
– Não “segura” a cabeça (instabilidade) – Parece não compreender o que se lhe diz;
– Membros inferiores com rigidez; – Não diz palavras perceptíveis.
– Segue objectos;
– Assimetria na postura Mais de 3 anos
– Não reage aos sons, evidenciando “apatia”; – Hiperactividade e dificuldade de concentração;
– Ausência de vocalização; – Linguagem incompreensível;
– Ausência de preensão palmar (não agarra os objectos); – Aparenta “não ver”;
– Estrabismo constante – Alterações do comportamento (agressividade na esco-
la ou no meio familiar, dificuldade no convívio com
outras crianças, birras excessivas, reacção excessiva se
separado da mãe.
De reiterar que todos estes domínios são inter- duais de semanas ou meses no respeitante, desi-
dependentes, cada um deles influenciando e sendo gnadamente ao desenvolvimento cognitivo e
influenciado pelos outros. motor tendo como referência o padrão médio da
Após a avaliação de cada um destes domínios por idade-chave em questão, o Quadro 2 de interesse
tarefas, (sendo de referir que cada uma permite per- prático para o clínico, elucida sobre determinadas
ceber mais do que uma capacidade), é importante falhas consideradas alarmantes, implicando even-
analisar o desempenho e verificar se as falhas são tual intervenção.
pontuais ou globais e se eventualmente são alarman-
tes e carecem de encaminhamento para centro espe- Pontos de viragem “Touch points”
cializado na perspectiva de possível intervenção. No e intervenção preventiva
caso de crianças prematuras deve ter-se em conta a
idade corrigida até aos dois anos de idade. Está demonstrado que a auto-estima da criança
Chamando-se a atenção para variações indivi- poderá ser melhorada se a família adquirir conhe-
134 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
cimentos e competências sobre o desenvolvimento mente o seu sentido aos pais, tendo em vista reduzir
motor, cognitivo e emocional em idade pediátrica. a ansiedade e aumentar a confiança naqueles.
Nesta perspectiva, em colaboração com o mé- (Quadro 3)
dico e profissional de saúde seguindo, em conjun- Resumem-se a seguir, com exemplos concretos,
to a criança e discutindo assuntos relacionados, alguns aspectos relacionados os oito pontos de
haverá excelentes oportunidades para prevenir viragem considerados por Brazelton e Gomes Pedro
certas falências do desenvolvimento. (desde a gravidez até aos 12 meses):
Por outro lado reforça-se a confiança e aliança • 1º Ponto de Viragem – O 1º ponto é importante
entre profissional e família, o que contribui para o para formar uma relação com os futuros pais;
progresso do desenvolvimento. no 7º mês de gravidez o profissional tem a
É esta a filosofia do modelo dos touchpoints, oportunidade de conhecer e partilhar preo-
(pontos de viragem), que teve a sua criação em cupações com os pais establecendo-se uma
Terry Brazelton, seguido e desenvolvido em relação de confiança antes da chegada do bebé.
Portugal por Gomes Pedro. • 2º Ponto de Viragem – O 2º ponto dá-se no
Baseia-se na teoria de sistemas. Cada com- hospital ou em casa, pouco depois de o bebé
ponente deve reagir a todo e qualquer motivo de nascer; pai e mãe, participando na consulta de
estresse que possa incorrer no sistema, e dado que avaliação, poderão ser sensibilizados para o
cada membro partilha as suas reacções, a presença comportamento do bebé designadamente no
do técnico de saúde poderá reduzir o estresse tanto que respeita à sua notável capacidade para
nos pais, como na criança. Cada momento de estresse reagir ao ambiente que o rodeia.
é visto como uma oportunidade de aprendizagem, • 3º Ponto de Viragem – O 3º ponto deverá
seja para o sucesso, seja para o insucesso. ocorrer entre as 2 – 3 semanas de vida; ou seja,
O modelo dos “pontos de viragem” corresponde antes da idade de 4 – 12 semanas, período este
a um tipo de intervenção preventiva que dá relevo caracterizado por choro irritante ao fim do dia
principal aos potenciais e forças da família e que relacionado com a reacção do sistema nervoso
combina a compreensão do desenvolvimento da imaturo aos estímulos ambientais. Com a
criança com a criação de relações entre os intervenção antecipada (2–3 semanas), expli-
intervenientes (técnico, clínico, pais e criança). O cando aos pais que não deverão pegar no bebé
desenvolvimento da criança é descrito como não- (o que constitui estímulo adicional para choro
linear; é dinâmico, em surtos, com regressões, saltos irritante), o período de choro pode ser re-
e pausas, sendo que uma área de desenvolvimento duzido e o bebé fica mais calmo. É também a
influencia as outras. Os pontos de viragem são oportunidade para criar um ambiente calmo e
momentos em que uma mudança do sistema é caloroso, esclarecendo regras sobre a prática
provocada por uma alteração no desenvolvimento da do aleitamento materno. Consequentemente
criança, correspondendo a períodos previsíveis de os pais sentirão que foram bem sucedidos.
regressão que ocorrem antes de um “salto” no • 4º Ponto de Viragem – O quarto ponto
desenvolvimento. Por outro lado, o desenvolvimento corresponde aos 2 meses, data de vacinas e
é multidimensional e interdependente; um salto em que se reavalia a alimentação, o sono e os
numa área causa uma regressão temporária noutra ciclos de agitação. Se o profissional comentar
área. Estes períodos de regressão causam desor- com os pais certos padrões de comporta-
ganização no sistema no qual a criança está inserida, mento do bebé (contacto social frente a frente,
mas correspondem também a um período de actividade motora, etc.), os mesmos poderão
reorganização. É possível que os pais se sintam avaliar a aprendizagem já ocorrida no bebé,
desorientados e tenham medo de que a regressão aumentando-lhes o auto-estima e o sentido
conduza a uma alteração do comportamento. de responsabilidade.
Uma vez que estes períodos são previsíveis - um • 5º Ponto de Viragem – O 5º ponto (consulta
na gravidez, sete no primeiro ano, três no segundo dos 4 meses) antecede um período de so-
ano e dois em cada ano subsequente, é função do bressalto na consciência cognitiva do ambien-
médico e do técnico de saúde explicar antecipada- te: interrompe a refeição, olha em volta atento
CAPÍTULO 22 Desenvolvimento e intervenção 135
Idades
1) Pré-natal Preparação para a Bebé imaginado Relações familiares Pai imaginado
paternidade (idealizado/real)
2) Recém-nascido Saúde Bebé real Emoções parentais Afeição
3) 2-3 semanas Exaustão parental Alimentação Relações entre os pais Individualidade
4) 2 meses Sociabilidade Autoconfiança parental Relações com o mundo exterior
5) 4 meses Afeição Interesse pelo mundo Padrões de cuidados Exigências do bebé
6) 6 meses Capacidades motoras Alimentação Sono Permanência do objecto
7) 10 meses Mobilidade Referência social Controlo (mover/pensar) Permanência de pessoas
8) 12 meses Independência Capacidades motoras Aprendizagem (descoberta) Irritabilidade
9) 15 meses Autonomia Brincadeira (exploração) Dependência Linguagem
10) 18 meses Conhecimento Noção do “eu” Exercício do controlo Linguagem
11) 24 meses Brincadeiras Linguagem Autonomia Capacidades motoras
de “faz-de-conta”
12) 36 meses Imaginação Medos e fobias Linguagem Relações com outras crianças
aos estímulos do ambiente e começa a acordar Em suma, os pais da criança sentirão que o
de noite após período de sono seguido, com médico e o profissional de saúde se preocupam
mudança dos padrões alimentares. Esta fase não só com o progresso fisico, mas também estão
do desenvolvimento corresponde a “rápido” atentos ao seu desenvolvimento psicológico. Por
sobresalto do mesmo, ou de “desorganiza- outro lado, os referidos pontos de viragem podem
ção”. É então altura de os pais serem esclare- ser encarados como oportunidades para dar apoio
cidos que tal período é precursor de rápido aos pais preocupados.
desenvolvimento e não constitui qualquer
fracasso no que respeita aos cuidados BIBLIOGRAFIA
prestados. É sinal de que o bebé precisará de Brazelton T, Greenspan S. A criança e o seu mundo. Requisitos
refeições mais curtas sendo importante que os essenciais para o crescimento e aprendizagem, Lisboa:
pais compreendam esta evolução. No que Editorial Presença, 2002
respeita ao sono, se o bebé tiver aprendido a Brazelton T. Touchpoints: opportunities for preventing
encontrar conforto através duma forma problems in the parent-child relation chip, Acta Paediatr
independente de adormecer (por exemplo, (Suppl), 1994; 394: 35-39
chuchando no dedo ou agarrando-se ao Brazelton T. Working with families, opportunities for early
cobertor), e não habituado a adormecer ao intervation. Pediatr Clin North Am 1995; 42: 1-9
colo dos pais, haverá maior probalidade de Fonseca V. Manual de Observação Psicomotora, Lisboa:
adormecer depois de acordar de noite. Editorial Noticias, 1992
• 6, 7º e 8º Pontos de Viragem – Aos 6, 10 e 12 Gomes-Pedro J, Nugent JK, Young JG, Brazelton TB. A criança
meses ocorrem mais três pontos de viragem, e a família do século XXI. Lisboa: Dinalivro, 2005
cada um dos quais constitui uma oportunidade Percy M at al. Touchpoints. American Journal of Maternal-
para discutir questões que vão surgindo, com Child Nursery, 2002; 27, 222-228
os pais. Cada ponto de viragem antecede um Staddler A et al. Using the language of the child’s behavior in
sobressalto numa ou mais áreas. your work with families. J Pediatric Helth Care 1999; 13:
O Quadro 3 resume os aspectos principais de S13-S16
cada ponto de viragem até aos 36 meses. Wadsworth W. Piaget’s theory of cognitive and affective
Salienta-se que a data em que os pontos de development. London: Longman, 1984
viragem acontecem pode ser alterada nos
casos de prematuridade.
136 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
23
O temperamento é, assim, intrínseco à criança,
por oposição ao comportamento que é influen-
ciado pelo meio e pelo relacionamento e perfil da
mãe ou substituto materno (vinculação).
De referir que a vinculação é fundamental para
o desenvolvimento cognitivo e emocional da
criança, sendo a sua avaliação primordial para a
COMPORTAMENTO apreciação dos problemas do comportamento, so-
bretudo durante o primeiro ano de vida.
E TEMPERAMENTO A partir do segundo e terceiro anos de vida, a
criança torna-se menos dependente das figuras de
Maria do Carmo Vale vinculação.
Em 1988, Belsky e, posteriormente, Bydar e
Brooks-Gunn, concluiram que periodo superior a
20 horas semanais em creche, durante o primeiro
Definições e importância do problema ano de vida, pode pôr em risco a relação mãe-filho,
bem como o desenvolvimento cognitivo, emo-
Define-se comportamento como o conjunto de cional e comportamental da criança o que não
acções, reacções ou actividades motoras obser- acontece quando a actividade laboral materna é
váveis como resposta aos estímulos internos e adiada para o segundo ou terceiro ano de vida.
externos. Desde o nascimento as crianças apresen- A problemática da separação mãe-filho noutras
tam diferentes comportamentos: algumas choram situações como a hospitalização, institucionali-
muito, outras são mais calmas, umas mais sisudas, zação, adopção, etc., condicionou uma maior ên-
outras mais sorridentes e activas. fase no encurtamento das mesmas; sublinhou-se,
Define-se temperamento como o conjunto de por exemplo, as vantagens do hospital de dia, dos
características biológicas que influenciam o hu- internamentos de curta duração e da aceleração
mor, comportamento e emoções, correspondendo dos processos de adopção.
ao substrato biológico sob o qual se estrutura a Define-se perturbação do comportamento como
personalidade. São exemplos o nível de actividade a modificação do padrão de acções, reacções ou
motora, capacidade de adaptação à mudança, respostas aos estímulos do meio, de carácter persis-
qualidade e intensidade das respostas a novas tente ou repetitivo, em que são violados os direitos
situações, limiar sensorial, humor positivo ou básicos dos outros ou importantes regras ou normas
negativo, capacidade de atenção, concentração e sociais próprias da idade. Tal situação gera um
persistência. Temperamento é, afinal, um estilo défice clinicamente significativo na actividade social
comportamental de etiologia biológica com com- escolar ou laboral.
ponente fortemente genética. A prevalência da perturbação do comporta-
O perfil de temperamento na primeira mento parece ter aumentado nas últimas décadas;
infância é traduzido pelos ritmos de sono e é usualmente mais elevada nos meios urbanos
alimentação, reacção ao banho, adaptação a comparativamente aos rurais e varia entre menos
novos alimentos e pessoas, frequência e inten- de 1% e 10%.
sidade do choro e riso, etc..
Na segunda infância é traduzido pelo relacio- Manifestações clínicas e diagnóstico
namento com os pares, padrões de jogo, capaci-
dade de atenção e persistência nas tarefas. Foram estabelecidos dois tipos de perturbação do
Na criança em idade escolar relaciona-se com comportamento com base na idade de início (início
a adaptação à escola, à família, aos pares, às na infância ou início na adolescência), podendo
actividades lúdicas e de grupo, orientadas por apresentar-se de forma ligeira, moderada ou
educadores, ou seja, pelo reportório de inte- grave.
racção. O tipo início na infância é definido pelo menos
CAPÍTULO 23 Comportamento e temperamento 137
Padrão de comportamento repetitivo e persistente, em que são violados os direitos básicos dos outros ou importantes
regras ou normas sociais próprias da idade, manifestando-se pela presença de três ou mais dos seguintes critérios,
durante os últimos 12 meses e, pelo menos, de um critério durante os últimos 6 meses.
Destruição de propriedade
8. lançou deliberadamente fogo com intenção de causar prejuízos graves.
9. destruiu deliberadamente a propriedade alheia.
Falsificação ou roubo
10. arrombou a casa, propriedade ou automóvel de outra pessoa.
11. mente com frequência para obter ganhos ou favores ou para evitar obrigações.
12. rouba objectos de certo valor sem confrontação com a vítima
Tipos
Tipo início na segunda infância: antes dos 10 anos, início de pelo menos uma característica do critério de Perturbação do
Comportamento.
Tipo início na adolescência: antes dos 10 anos ausência de qualquer critério característico do critério de Perturbação do
Comportamento.
Perturbação do comportamento, início não especificado: a idade de início é desconhecida.
Gravidade
Ligeira: poucos ou nenhum dos problemas de comportamento para além dos requeridos para fazer o diagnóstico sendo
de referir que os problemas de comportamento causaram apenas pequenos prejuízos aos outros.
Moderada: o número de problemas de comportamento e os efeitos sobre os outros situam-se entre”ligeiros” e “graves”.
Acentuada: muitos problemas de comportamento que excedem os requeridos para fazer o diagnóstico ou os problemas
de comportamento causam consideráveis prejuízos aos outros.
por um dos critérios característicos da perturbação vidade física com os outros, relações perturbadas
do comportamento antes dos 10 anos (Quadro 1). com os companheiros, perturbação da oposição no
Trata-se habitualmente de crianças do sexo início da infância e sintomas que preenchem os
masculino, evidenciando frequentemente agressi- critérios de perturbação do comportamento antes
138 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
da fase pubertária. Muitas crianças com este tipo tira é utilizada para encobrir algo que ela não
têm também perturbação de hiperactividade com aceita no seu comportamento, conseguindo desta
défice de atenção. forma um bem estar temporário e preservação da
O tipo início na adolescência é definido pela auto-estima.
ausência de características de perturbação do A pré-delinquência é uma entidade clínica
comportamento antes dos 10 anos de idade. Com- manifestada através de vários comportamentos
parativamente ao tipo anterior manifestam-se anti-sociais como o roubo, mentira, destruição de
menos comportamentos agressivos com tendência propriedade, crueldade para com os animais,
para relações mais aproximadas do normal com os violação, crueldade física para com os outros e
companheiros. repetidas tentativas de fuga.
O comportamento de oposição é manifestado
Evolução através de comportamentos menos graves como a
birra, o desrespeito de regras, atitude de desafio
A evolução da perturbação do comportamento é permanente, culpabilização sistemática dos outros,
variável; verifica-se remissão até à idade adulta na comportamento vingativo e frequente utilização de
maior parte das crianças. Contudo existe uma linguagem obscena.
proporção que continua a revelar na idade adulta Os comportamentos de oposição e as birras
comportamentos anti-sociais. (teimosia e zanga), frequentes entre os 18 meses e
O início precoce prenuncia um mau pro- os 3 anos, são de alguma forma apelativos, na
gnóstico e risco mais elevado de evoluir para uma medida em que procuram centralizar a atenção
perturbação anti-social da personalidade ou para dos pais. A resposta desajustada, nomeadamente
perturbações associadas ao abuso de drogas na através de punição, reforça e perpetua este tipo de
idade adulta. comportamento, pelo que os pais devem dar
espaço e tempo à manifestação da criança que,
Tipos especiais depois de acalmada, deve ser chamada à razão
de comportamento social através de um diálogo profícuo, explicando o
motivo pelo qual o seu comportamento é ina-
Comportamentos considerados apropriados ou ceitável, moldando e controlando progressiva-
aceitáveis em determinadas idades passam a mente a referida conduta.
patológicos quando surgem mais tardiamente. Define-se agressão como qualquer forma de
Os espasmos do soluço, mentira, impulsivi- hostilização; é frequentemente considerada como
dade e birras são considerados normais entre os 2- um traço negativo, apesar de desempenhar papel
4 anos e devidos a uma necessidade de afirmação relevante na evolução da espécie animal.
e autonomia face à real dependência motora e A agressividade, tipo de comportamento
social, traduzindo frustração e zanga por tal facto. social, pode ser expressa de diferentes maneiras:
São analisados alguns exemplos: não verbal, sob a forma de pontapés e empurrões;
O espasmo do soluço (pausa respiratória e verbal, traduzida por apreciações mais ou menos
cianose com choro) é observado nos dois primeiros depreciativas que podem ir atá ao insulto, instru-
anos de vida e tem por objectivo o controle do mental e hostil (intencionalidade); e a individiual
meio, nomeadamente dos pais e cuidadores, nas ou de grupo.
situações de desprazer da criança. Um tipo de agressividade e violência
Este comportamento deve ser ignorado e acaba actualmente praticado em ambiente escolar é
por extinguir-se, se a criança não atinge os seus designado pelo termo, em inglês, bullying (tra-
objectivos. duzindo para português: tirania ou acto praticado
A mentira é utilizada entre os 2 e os 4 anos por tirano). Segundo estatísticas, surge em cerca de
como meio de treino da linguagem e imaginação 10% dos estudantes pré-adolescentes ou adoles-
(fabulação), expressando a criança a fantasia dos centes: agressão física ou psicológica levada a
seus desejos. efeito por colega ou grupo de colegas mais fortes
Na criança em idade escolar por vezes a men- a outros mais fracos, podendo estes últimos ficar
CAPÍTULO 23 Comportamento e temperamento 139
24
ças as quais são consideradas “treináveis” e com
capacidade de integração comunitária. Apenas 3-
4% das formas DM se classificam como Graves,
com aproveitamento mais limitado a nível pré-
escolar; e apenas 1-2% das situações correspondem
à forma DM Profunda.
A melhoria dos cuidados de saúde (e do
DEFICIÊNCIA MENTAL respectivo acesso) diminuiu a prevalência de DM.
Mas se, por um lado, o diagnóstico pré-natal e a
Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto intervenção precoce permitiram reduzir as
consequências da síndroma de Down, da fenil-
cetonúria e do hipotiroidismo congénito, assistiu-
se a um aumento de casos de DM devido ao
Definições e importância do problema aumento de exposição pré-natal a drogas de abuso
e a um aumento da sobrevivência de crianças de
Deficiência mental (DM) é definida como o alto risco perinatal (relacionado designadamente
conjunto de perturbações caracterizadas por um com prematuridade extrema e muito baixo peso).
funcionamento intelectual global (habitualmente O défice cognitivo é a patologia grave do neu-
definido por um quociente de inteligência – QI – rodesenvolvimento mais frequente, sobretudo no
obtido através de testes de inteligência) inferior à sexo masculino, comparativamente ao sexo femi-
média (défice cognitivo) acompanhado de limi- nino numa relação de 2/1 no défice cognitivo
tações do funcionamento adaptativo em, pelo ligeiro e 1.5/1 no défice cognitivo grave.
menos, duas das seguintes áreas: comunicação,
cuidados próprios, vida doméstica, competências Factores etiológicos
sociais/interpessoais, utilização de recursos co-
munitários, autocontrolo, competências académi- Como já referimos existem muitas causas de DM,
cas funcionais, trabalho, lazer, saúde e segurança. frequentemente em concomitância. A identificação
O início da DM deve ocorrer antes dos 18 anos; da causa é muitas vezes inconclusiva, pelo que não
com múltiplas etiologias, corresponde à via final é recomendada por rotina uma investigação exaus-
comum de vários processos patológicos que tiva de todas as causas possíveis, mas sim uma
afectam o funcionamento do sistema nervoso investigação orientada pela clínica.
central (SNC). Os factores a ter em consideração para
Segundo a classificação do Diagnostic and investigar um défice cognitivo são:
Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition • Gravidade do défice cognitivo (quanto mais
– DSM IV, a deficiência mental pode ser grave for, maior a possibilidade de um dia-
classificada em: gnóstico etiológico).
• Deficiência Mental Ligeira: QI> 50-55 <70 • História familiar ou semiologia sugestiva de
• Deficiência Mental Moderada: QI>35-40 <50- perturbação específica.
55 • O desejo dos pais de uma nova gravidez o
• Deficiência Mental Grave: QI >20-25 <35-40 que, por si só, justifica esforços acrescidos no
• Deficiência Mental Profunda: QI < 20-25 esclarecimento etiológico.
• Deficiência Mental, Gravidade Não • Opinião dos pais: alguns estão mais interes-
Especificada sados no tratamento e outros estão focados
Cerca de 1-3% da população apresenta DM. É na etiologia, tendo dificuldade em iniciar a
importante reconhecer que a grande maioria das intervenção antes de conhecer o diagnóstico.
crianças (85%) se situa no grupo de DM Ligeira, Na população com DM Ligeira há frequen-
crianças consideradas “educáveis”, muitas vezes temente um envolvimento de componentes gené-
apenas com “dificuldades de aprendizagem”. A ticos e ambientais (sócio-económicos, culturais,
DM Moderada representa cerca de 10% das crian- etc.) salientando-se que as causas específicas de
CAPÍTULO 24 Deficiência mental 141
25
BIBLIOGRAFIA
American Psychiatric Association. Deficiência Mental in DMS-
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Shapiro BK. Mental Retardation in Batshaw ML, Perret YM
(ed). Children with Disabilities. Baltimore: Paul H Brookes,
1992: 259-289 Definições e importância do problema
organizam para formar palavras; a semântica blemas relacionados com défice auditivo ou difi-
refere-se ao significado das palavras; a sintaxe culdades de percepção/discriminação auditiva.
refere-se à ordem por que as palavras são agru- Torna-se, pois, fundamental que estas crianças
padas para formar frases, segundo as regras gra- tenham uma avaliação completa da audição,sendo
maticais das diferentes línguas; a pragmática refere- este tópico abordado no capítulo 79.
se ao uso social e aplicação dos significados nos É importante perceber se a perturbação cor-
diferentes contextos, exigindo capacidade de responde apenas à área da linguagem e fala, se faz
antecipação e sensibilidade ao outro. parte de uma perturbação mais generalizada, ou
A linguagem é o veículo do pensamento. Sem se está associada a perturbações neurológicas ou
linguagem é difícil comunicar ideias, pensamentos comportamentais. Com efeito, é frequente tratar-
e emoções; e sem um pensamento estruturado é se duma primeira manifestação de uma deficiência
impossível transmitir verbalmente uma ideia ou mental, inserir-se num contexto de patologia do
pensamento de forma perceptível. espectro do autismo, ou associar-se a patologias
A comunicação e interacção estão presentes como a síndroma do X Frágil, a síndroma de
desde o início da vida extra-uterina, manifestando- Landau-Kleffner, ou ainda resultar de lesão cere-
se, sobretudo, a partir do final do primeiro mês, bral (afasia adquirida).
através da troca de sons, contacto físico e visual. A Excluídas estas situações o clínico fica confro-
comunicação engloba linguagem nas suas com- tado com perturbações específicas do desenvol-
ponentes verbal, gestual e de código social, vimento da linguagem que, segundo a classifi-
ultapassando-a e tornando-a extensiva aos afectos cação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental
e emoções. Os animais interagem e comunicam Disorders, Fourth Edition – DSM IV se designam por
entre si; no entanto, a linguagem é uma compe- Perturbações da Comunicação e se dividem em
tência única e característica da mente humana e grandes grupos: 1. Perturbação da Linguagem
uma das mais vulneráveis. Expressiva; 2. Perturbação Mista da Linguagem
As perturbações da comunicação constituem os Receptiva-Expressiva (mista); 3. Perturbação
problemas de desenvolvimento mais frequentes Fonológica (ou de articulação verbal); 4. Gaguez.
na idade pré-escolar, com 7 a 10% das crianças É tradicional a distinção entre a disfunção da
funcionando abaixo da média. Três a 6% das linguagem expressiva (que compromete a
crianças têm uma perturbação específica da verbalização) e a perturbação mista da linguagem
linguagem, receptiva ou expressiva e maior risco receptiva-expressiva.
de desenvolvimento posterior de dificuldades na Reportando-nos às definições caberá reiterar
leitura e escrita. que a linguagem expressiva engloba a capacidade
de formar palavras com os sons (fonologia), de
Diagnóstico combinar palavras com um significado adequado
(semântica), em frases gramaticalmente correctas
Há diversas abordagens e sistemas de classificação (sintaxe), e que são apropriadas ao contexto social
diferentes para as perturbações da linguagem e (pragmática).
fala, variando de acordo com a formação pro- Seguidamente são sintetizados aspectos rela-
fissional dos autores. As classificações ditas mé- tivos às principais perturbações da comunicação.
dicas tendem a centrar-se mais nas causas e as
ditas linguísticas nos padrões de alteração obser- 1. Perturbação da linguagem expressiva
vados. As crianças com disfunção da linguagem expres-
O diagnóstico diferencial destas perturbações siva podem evidenciar capacidade para um
é igualmente complexo uma vez que um amplo número limitado de palavras, vocabulário reduzi-
espectro de patologias pode resultar em disfunção do, dificuldades na aprendizagem de novas
do sistema neural e de estruturas periféricas, palavras e no acesso lexical, frases encurtadas, com
responsáveis pela percepção, processamento e estrutura gramatical simplificada, por vezes com
produção da linguagem. perturbação da sintaxe. As crianças com pertur-
Assim, por exemplo, há que considerar os pro- bação do tipo evolutivo geralmente começam a
CAPÍTULO 25 Perturbações da linguagem e comunicação 145
falar tarde e progridem mais lentamente, embora motora, as quais apresentam também défices na
seguindo as sequências normais de desenvol- motricidade fina e grosseira; pressupõe-se que a
vimento. Nos casos menos frequentes de lesão mesma não resulta de défice de ensino, de défice
adquirida (por patologia neurológica) a pertur- cognitivo, nem de factores socioculturais.
bação surge após um período de desenvolvimento A gaguez inclui os problemas de disfluências,
normal. conforme é indicado nos critérios apresentados a
Problemas como a memorização e recrutamento seguir e surge, como a maioria das perturbações
de palavras podem prejudicar a fluência da lingua- da linguagem, na idade pré-escolar, quando se dá
gem; apesar de as crianças apresentarem um voca- o franco crescimento da linguagem. Nestas situa-
bulário adequado, têm dificuldade em encontrar as ções é fundamental um diagnóstico precoce e uma
palavras exactas quando delas necessitam, utili- intervenção em tempo oportuno para que o pro-
zando definições substitutivas (circunlocução). blema não se torne persistente.
Esta perturbação está frequentemente asso-
ciada a perturbação fonológica. 4. Gaguez
Trata-se de uma perturbação da fluência normal e
2. Perturbação mista da linguagem da organização temporal normal da fala (inade-
receptiva-expressiva quadas para a idade do sujeito), caracterizada por
As crianças com perturbação mista da linguagem ocorrências frequentes de um ou mais dos se-
receptiva-expressiva podem ter, para além das guintes fenómenos: repetições de sons e sílabas;
dificuldades já referidas de expressão verbal, prolongamentos de sons; interjeições; palavras
dificuldade em seguir instruções, compreender fragmentadas; bloqueios audíveis ou silenciosos;
explicações verbalizadas e interpretar o que leram. circunlocuções; palavras produzidas com um
No entanto, habitualmente a expressão está mais excesso de tensão física; repetições de palavras
afectada do que a compreensão, não alteração sig- monossilábicas.
nificativa da comunicação não verbal ou empatia, A alteração na fluência interfere significativa-
o que permite o diagnóstico diferencial com as per- mente com o rendimento escolar ou laboral ou com
turbações do espectro do autismo. a comunicação social.
A perturbação mista também se associa Se coexistirem défice motor da fala ou défice
frequentemente a perturbação fonológica ou a sensorial, o problema tem maior relevância.
perturbações da aprendizagem. Pode também
estar associada a perturbação de hiperactividade e Diagnóstico diferencial
défice de atenção, a perturbação da coordenação
ou a enurese. No diagnóstico diferencial tem sido sublinhada a
importância, não só dos estádios da linguagem,
3. Perturbação fonológica mas também das competências sociais da criança
A perturbação fonológica, anteriormente designa- no desenvolvimento da linguagem.
da por perturbação da articulação verbal, engloba, A ausência, atraso ou desadequação destas
não apenas os problemas de coordenação das competências pré-verbais ou pré-linguísticas
estruturas que produzem e modulam os sons, mas (mostrar e imitar), apontam para a possibilidade
também os problemas de défice da consciência de autismo.
fonológica (noção dos fonemas e sua corres- Apesar de nem todas as crianças com dificul-
pondente representação gráfica), que resultam dades de aprendizagem apresentarem pertur-
mais tarde em dificuldade na aprendizagem da bações da linguagem, uma elevada proporção de
leitura e escrita (dislexia). Inclui alterações da crianças com perturbações específicas de lingua-
fonação, articulação, ressonância e prosódia (ou gem apresentam dificuldades de aprendizagem,
seja, a leitura é lenta,sincopada sílaba a sílaba, ou particularmente na leitura e escrita.
com erros). As perturbações adquiridas da comunicação
Este tipo de perturbação pode estar presente podem ser secundárias a lesões focais, lesões
em crianças com perturbação da coordenação associadas a convulsões (Landau-Kleffner), lesões
146 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
26
ou pronúncia difícil e defeituosa da letra S (vulgo
“sopinha de massa”). As mais frequentes pertur-
bações fonológicas são a disfonia (rouquidão), a
afonia, a hipernasalidade (rinolália) e a hiponasal-
idade. A rinolália (voz nasalada explicada pelo
escape nasal) observa-se frequentemente nas cri-
anças que nasceram com fenda palatina; mesmo
HABILITAÇÃO DA CRIANÇA após o encerramento cirúrgico desta anomalia,
muitas destas crianças mantêm rinolália devida à
COM DIFICULDADES NA insuficiência velofaríngea, necessitando de terapia
e vigilância continuadas.
COMUNICAÇÃO A gaguez pode ser funcional até aos 3 anos.
Apesar da ansiedade que gera nos pais, requer
Isabel Portugal vigilância e aconselhamento, não necessitando de
outra intervenção até essa idade.
A motricidade oral pode estar perturbada,
surgindo dificuldades, quer alimentares, quer no
O papel do Serviço de Medicina controlo da “baba”, situações que são frequentes
Física e Reabilitação (MFR) em crianças com paralisia cerebral. Quando o
ensino do treino alimentar em tempo adequado se
Todo o serviço de MFR pediátrica tem, natural- mostra ineficaz, opta-se pela gastrostomia.
mente, um sector de terapia da fala ao qual recor- Pelas exigências da integração social e se a cri-
rem crianças com perturbações da linguagem, da ança não conseguir o controlo da “baba” até à
fala, da voz e da motricidade oral.A intervenção idade escolar, recorre-se à terapêutica com toxina
da terapia da fala é na maior parte dos casos botulínica e, no caso do seu insucesso, à cirurgia.
demorada, prolongando-se, muitas vezes, em lon-
gos períodos do crescimento da criança e será BIBLIOGRAFIA
tanto mais benéfica quanto mais precoce; torna-se Feldman HM. Evolution and mangement of language and
fundamental o seu início antes da idade escolar. speech disorders in preschool children. Pediatr Rev 2005; 26:
Segundo a experiência do Serviço de MFR, as 131-141
alterações da linguagem mais frequentemente Grizzle KL, Simms MD. Early language development and
encontradas na criança são o atraso da aquisição language learning disabilities. Pediatr Rev 2005; 26: 274-283
da linguagem, as dificuldades da aprendizagem Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
da leitura e da escrita, as perturbações específicas Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
da linguagem e as afasias adquiridas. Na sua 2011
avaliação a criança é submetida a um teste de lin- Plexico L, Manning WH, Pilollo A. A phenomenological
guagem, habitualmente o “Reynell Developmen- understanding successful stuttering management. J Fluency
tal Language Scales” de Joan K Reynell, que ca- Disord 2005; 30: 1-22
racteriza a linguagem expressiva e a compreensão Rapin I, Dunn M. Update on the language disorders of
verbal. As crianças com dislexia e disortografia, individuals on the autistic spectrum. Brain Dev 2003; 25:
perturbações de abordagem complexa na sua ca- 166-172
racterização e tratamento, necessitando de um Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
tempo de intervenção muito prolongado, são AA(eds). Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
habitualmente enviadas a centros especializados Medical, 2011
no seu âmbito do seguimento.
Nas perturbações da fala as alterações articu-
latórias, fonológicas e a gaguez são as mais fre-
quentes. Nas primeiras incluem-se a dislália (troca
ou omissão de certas consoantes) e o sigmatismo
148 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
27
integração social.
A prevalência dos problemas de aprendizagem
varia de país para país, o que se pode explicar pela
inexistência de critérios consensuais quanto a
difinição e classificação.
Estima-se que cerca de 15% das crianças em
idade escolar apresentam dificuldades de apren-
APRENDIZAGEM E INSUCESSO dizagem relacionáveis com perturbações do
neurodesenvolvimento; todavia, a actual preva-
ESCOLAR lência pode ser ainda mais elevada se forem consi-
deradas certas disfunções ligeiras e auto-limita-
Maria do Carmo Vale das. O sexo masculino parece ser mais afectado
(2/1 a 4/1).
Uma variante que traduza uma área fraca (como
um problema na área da linguagem expressiva)
Importância do problema corresponde a uma disfunção. Se tal disfunção in-
terferir com a aquisição de uma determinada com-
A aprendizagem, uma das características funda- petência (como a escrita), gera-se uma incapa-
mentais da especie humana, processa-se ao longo cidade; e, se esta for particularmente impeditiva de
de toda a vida, inclusivé pré-natal. Difinida sucin- originar produtividade e gratificação, pode gerar-se
tamente como aquisição de conhecimentos, o seu um quadro de deficiência.
âmbito é muito mais lato pois o respectivo Mas as variantes podem também incluir áreas
processo implica a recepção de estímulos endó- de raro talento e força; e, ao descrever o perfil
genos e exógenos que são integrados, armazena- funcional de uma criança, é importante tomar em
dos, adaptados e aplicados ulteriormente.Toda consideração as áreas fortes que constituem os
esta dinâmica depende, quer dos estímulos, quer seus recursos para fazer face às próprias dificulda-
das competências da pessoa, as quais variam com des, (por exemplo a criatividade, a capacidade de
a maturação/evolução ou involução. Diversos organização ou a capacidade de resolução de
factores intervêm na aprendizagem: 1) extrínse- problemas não-verbais).
cos; como exemplos citam-se o ambiente e espaço
físico da escola com características diversas de Etiopatogénese
funcionamento e arquitecturais, a família, etc.; e 2)
intrínsecos; citam-se como exemplos as compe- Para a compreensão dos problemas relacionados
tências em relação ao neurodesenvolvimento (es- com o défice de aprendizagem com implicações
sencialmente, motores, sensoriais, perceptivas, de práticas no tipo de intervenção a planear, cabe
linguagem/comunicação, cognitiva, e afectivas referir os principais factores etiológicos:
como ansiedade, auto-estima, irritação, etc.. – Défice cognitivo ou atraso global do desen-
Para avaliar o neurodesenvolvimento de uma volvimento.
criança em idade escolar importa considerar as se- – Alterações sensoriais (por exemplo, défice
guintes áreas: atenção, memória, linguagem, orga- auditivo ou visual).
nização temporal-sequencial, organização espaci- – Doença motora (por exemplo, paralisia cere-
al, capacidade neuromotora, cognição social e fun- bral ou defeitos do tubo neural)
ções superiores da cognição. De referir que não – Perturbações da comunicação e da lingua-
existem duas crianças com modos iguais de fun- gem.
cionamento (Ver adiante Avalição). – Problemas comportamentais e afectivos (por
O baixo desempenho numa ou mais destas exemplo, ansiedade, inibição, défice de
áreas pode estar associado a problemas de apren- atenção).
dizagem culminando no insucesso escolar, em – Problemas em áreas específicas como a leitura,
dificuldades comportamentais, de adaptação e de a escrita / ortografia, matemática, etc..
CAPÍTULO 27 Aprendizagem e insucesso escolar 149
avalia directamente funções chave nas áreas do como a arte, linguagem, jogo, canções, metáforas
neurodesenvolvimento como a atenção, lingua- e modelos.
gem e capacidades motoras. A teoria de Vygotsky assenta essencialmente
Com os referidos testes será possível obter o no papel dos processos interpessoais e no papel
perfil funcional da criança (força e dificuldades da sociedade em que se enquadra a criança.
nas diversas áreas académicas) como base para
intervenção psico-educacional. Prevenção
As formas de apoiar e atenuar estes problemas
compreendem os seguintes passos: A prevenção dos problemas de aprendizagem em
– Desmistificação. geral, e do insucesso escolar em especial, implica
– Utilizar estratégias de acomodação (dar mais entre outras medidas melhoria dos cuidados
tempo, simplificando explicações e orien- primários e das condições, socioeconómicas, pre-
tações, reduzindo a carga académica nas venção da prematuridade extrema e detecção
áreas de menor desempenho, apresentando a precoce das alterações do desenvolvimento. Trata-
informação de forma mais atractiva. -se duma tarefa difícil para a qual todos os
– Terapias específicas: terapia da fala, profissionais de saúde, e em especial o pediatra e
ocupacional e comportamental. o médico de família, devem estar sensibilizados.
– Modificação dos currícula e conteúdos pro-
gramáticos escolares e respectiva adequação BIBLIOGRAFIA
às reais capacidades da criança (plano educa- American Psychiatric Association. Deficiência Mental in MS-
tivo individual). IV-TR. Lisboa: Climepsi Editores, 2000
– Fortalecimento das áreas “fortes” como Gouveia R. A criança e a aprendizagem escolar in Gomes
compensação das “fracas”, condicionando Pedro J (ed). Lisboa: ACSM, 2001: 160-167
um reforço da auto-estima. Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
– Medicação adaptada a cada caso e reajustada Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
em avaliações periódicas. Levine M. Neurodevelopmental Variation and Dysfunction
A ideia de aprendizagem activa, por contra- Among School-Aged Children in Developmental-
posição à passiva apontada por autores como Behavioral Pediatrics. Levine M, Carey WB, Crocker AC.
Piaget, revolucionou a metodologia de ensino; (eds). Philadelphia: Saunders, 1999:520-534
aplicando tal estratégia, a criança condicionada à Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
exploração e descoberta, constrói o seu próprio AA(eds). Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
conhecimento. O papel do professor ou educador Medical , 2011
seria o de facilitador da aprendizagem, encorajan- Sandler AD, Huff . Developmental Assessment of the School-
do a criança a questionar, especular e experimen- Aged Child in Developmental-Behavioral Pediatrics.
tar, fomentando o espírito crítico relativamente à Levine M, Carey WB, Crocker AC (eds). Philadelphia:
informação. Saunders; 1999:696-705
De acordo com Piaget é a criança que condi- Smith PK, Cowie H, Blades M. Understanding Children’s
ciona todo o processo de aquisição do conheci- Development. Oxford: Blackwell Publishers, 2001: 425-451
mento; o professor fomenta situações que desafiam
a criança a pôr questões, a formular hipóteses e a
descobrir novos conceitos.
Vygotsky ultrapassou as ideias de Piaget
atribuindo papel igualmente relevante à inte-
racção social e à comunicação e linguagem. Para
ele a aprendizagem é conseguida através da co-
operação com um largo repertório de inter-
locutores sociais – pares, professores, pais e
outros intervenientes – bem como através dos
símbolos representativos da cultura da criança,
152 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
28
70 a 100 minutos) durante o período do sono.
O registo em simultâneo dos traçados elec-
troencefalográficos,electromiográficos,dos movi-
mentos oculares (electroculograma) associado à
verificação dos vários graus de profundidade do
sono constitui o polissonograma.
O sono do lactente apresenta um predomínio
PERTURBAÇÕES DO SONO de sono REM. Com a idade, a duração relativa do
sono REM diminui, enquanto a do sono NREM
Maria do Carmo Vale e João M Videira Amaral vai aumentando até atingir 80% do tempo de sono
no adulto e idoso.
O recém-nascido (RN) dorme ainda com maior
predomínio de “sono activo”, o precursor do futuro
Classificação e importância “sono REM”. Esta é uma das razões pelas quais os
do problema primeiros meses de vida apresentam uma vulnera-
bilidade maior às situações que ocorrem ou são
O sono é um estado fisiológico, periódico e reversív- agravadas durante o sono REM. De facto, sendo os
el, caracterizado essencialmente pela suspensão tem- RN e os lactentes jovens respiradores nasais quase
porária do estado de consciência com graus variáveis obrigatórios, têm uma tendência única para episó-
de resposta a estímulos ambientais; é acompanhado dios de obstrução durante o sono, em especial
de abolição mais ou menos importante da sensibili- durante infecções das vias respiratórias superiores,
dade e abrandamento da maior parte das funções uma vez que cerca de 50% são incapazes de iniciar
orgânicas: diminuição das frequências cardíaca e res- a respiração oral alternativa antes de passarem 25
piratória, da temperatura em cerca de 0,5 ºC, relax- segundos a partir do momento em que a obstrução
amento muscular, diminuição do ritmo secretório nasal se estabeleceu. (Capítulo 29)
(exceptuando o rim), etc.. (Consultar glossário geral a A melatonina(N-acetil-5-metoxitriptimina) é uma
propósito do papel da melatonina). hormona cronobiótica segregada pela epífise ou
Classicamente são considerados dois tipos de glândula pineal com papel importante na alternância
sono, identificáveis a partir dos 6 meses de idade: sono-vigília. A sua produção, iniciando-se com o
– não REM ou abreviadamente NREM (sigla anoitecer ou diminuição da luz natural, tem pico séri-
do inglês (no rapid eye movements) chamado inacti- co máximo entre as 02.00 e 04.00 horas da madruga-
vo ou calmo sincronizado em que se verifica pre- da. Pelo contrário, tal secreção é inibida pela luz.
domínio da actividade parassimpática (redução
das frequências cardíaca e respiratória) e redução As perturbações do sono – que surgem, em
progressiva do tono muscular; idade pediátrica, numa proporção estimada entre
– sono REM, definido como sono activo ou 25-43% – são classificadas em:
paradoxal, caracterizado por intensa actividade – dissónias ou perturbações em que se verifica
cortical cerebral, predomínio da actividade sim- dificuldade em iniciar ou manter o sono e/ou
pática (aumento das frequências cardíaca e respi- sonolência excessiva; e
ratória) acompanhado de atonia muscular e movi- – parassónias correspondendo a fenómenos
mentos oculares rápidos circulares bilaterais. físicos ocorrendo predominantemente durante o
No sono não-REM são individualizados quatro sono, não constituindo, de facto, anomalias do
estádios (1-2-3-4) em função de outros tantos padrões processo sono-vigília.
electroencefalográficos (EEG). O estádio 1 corre- O termo insónia na criança, fazendo parte das
sponde ao início da transição vigília-sono, com um dissónias, refere-se à impossibilidade de manu-
baixo limiar para o despertar; os estádios 3 e 4 são tenção duma boa qualidade do sono (por exem-
chamados de sono de ondas lentas ou sono profundo. plo sono curto, interrompido ou intermitente,
Os ciclos NREM → REM → NREM → REM ... relacionável em geral com aquisição de determi-
ocorrem em ciclos (com a duração aproximada de nados hábitos ou tensão emocional).
CAPÍTULO 28 Perturbações do sono 153
estereotipados de “ranger de dentes” em qualquer mais de 5 anos (idade em que, dum modo geral, o
fase do sono podendo eventualmente conduzir ao controle dos esfíncteres deve estar estabelecido).
despertar. Com uma prevalência de cerca de 30%, Considera-se primária (ou funcional) se a
superior em crianças saudáveis, tal parassónia é criança teve sempre este tipo de comportamento,
frequentemente descrita em crianças e adoles- excluindo-se patologia de base de tipo médico,
centes com paralisia cerebral e /ou atraso mental. neurológico, urológico ou mental; considera-se
Não requer medidas terapêuticas especiais; em secundária (ou orgânica) se na criança for de-
certos casos poderá estar indicada a adminis- monstrada patologia de base, e um período míni-
tração de benzodiazepinas. mo anterior de 6 meses sem tal sintomatologia,
com recorrência ulterior de micções involuntárias.
Roncopatia primária A enurese nocturna (ou do sono) ocorre em tal
Consiste na emissão de ruído intenso, geralmente circunstância; a enurese diurna ocorre durante o
inspiratório e expiratório produzido nas vias res- dia. De referir que a enurese diurna e nocturna
piratórias superiores, não acompanhado de episó- podem coexistir
dios de apneia ou hipoventilação. A enurese primária representa cerca de 90% de
Como factores etiopatogénicos apontam-se: todos os casos. A enurese secundária ocorre mais
hipertrofia amigdalina ou das adenóides, obstru- frequentemente entre os 5 e 8 anos de idade.
ção nasal, obesidade. O tratamento é etiológico A enurese do sono, mais frequente na primeira
podendo, em casos especiais, ser necessário o parte do sono e no sexo masculino (relação 3/2),
recurso à intervenção cirúrgica. ocorre em cerca de 30% de crianças aos 4 anos,
10% aos 6 anos, 5% aos 10 anos e 3% aos 12 anos.
Síndroma de hipoventilação congénita Admite-se hereditariedade de tipo autossómico
de causa central recessivo, ou dominante com 90% de penetrân-
Esta síndroma, evidente já no recém- nascido, é cia;outros estudos identificaram anomalias nos
explicada por falência do mecanismo de regulação cromossomas 13 e 14 .
central automática da respiração, na ausência de A patogénese da enurese do sono não é bem
doença pulmonar primária ou de patologia mus- conhecida; admite-se que possa estar em causa
cular respiratória. atraso da maturação neurofisiológica, bexiga de
A etipatogenia relaciona-se com anomalia do capacidade limitada e /ou aumento da contractili-
centro respiratório do tronco cerebral onde ocorre dade, discrepância entre a secreção de hormona
a integração dos quimiorreceptores periféricos e antidiurética (HAD) nocturna e capacidade da
centrais. bexiga, alteração do ritmo circadiano da HAD,
O quadro clínico decorre da existência de hipó- etc.. Sabendo-se que ligeiras alterações da pressão
xia e hipercápnia levando a sequelas, nomea- arterial (PA) originam alteração significativa da
damente pulmonares e do sistema nervoso central. excreção urinária de água e sódio, em estudos
A manutenção da vida implica a necessidade recentes verificou-se que as situações de enurese
de assistência respiratória (pressão positiva con- nocturna são acompanhadas de diminuição da
tínua nas vias respiratórias superiores). PA.
Estima-se que em cerca de 97% das situações
Enurese do sono de enurese do sono não existe causa orgânica.
Antes de abordar esta entidade clínica (que não Em mais de 50% das situações de enurese noctur-
deve ser considerada uma perturbação do sistema na primária existem antecedentes familiares.
urinário), será importante recordar algumas O diagnóstico diferencial da enurese do sono faz-
noções básicas sobre terminologia relacionada com se com situações de enurese secundária (doenças
o fenómeno da micção. orgânicas, infecção urinária, diabetes mellitus ou
A enurese, no sentido genérico do termo, insípida, bexiga neurogénica, anomalias do tracto
define-se como a micção involuntária (incontinên- urinário tais como uréter ectópico, obstipação cróni-
cia urinária) mais do que duas vezes por semana ca, estresse emocional, etc.). De salientar que em
durante três meses consecutivos em crianças com todos os casos de enurese verificada durante o sono
CAPÍTULO 28 Perturbações do sono 155
importa proceder, como sempre, a um exame clínico dar espontaneamente para urinar, ou menor
completo da criança e, nomedamente, a detecção de quantidade de perda urinária ou aumento de in-
anomalias do foro neurológico e espinhal. gestão de líquidos durante o dia).
No âmbito da clínica geral ou da pediatria geral Nos casos de insucesso destas medidas, a
será importante a realização dum conjunto de exa- criança deverá ser encaminhada para consulta de
mes complementares mínimos,como determinação subespecialidade (neurologia pediátrica, nefro-
da glicémia, creatininémia, análise sumária de urina urologia pediátrica, etc.), em função do contexto
com especial atenção para detecção de glicosúria, clínico para ulteriores exames complementares,
pH e densidade, eventual urinocultura, etc.. nomeadamente imagiológicos.
No que respeita à actuação na criança com idade
igual ou inferior a 5 anos, há a referir um conjunto de Dissónias
medidas gerais cuja finalidade é explicar a situação,
transmitir confiança e modificar alguns hábitos: No âmbito das dissónias são consideradas as se-
– não criticar nem punir a criança, mantendo guintes situações:
atitude de ambiente calmo;
– apoio psicológico para criar auto-estima e tentar Narcolepsia
lutar contra o medo de ir à casa de banho; Trata-se duma perturbação que pode ser devida,
– nunca dormir com luz uma vez que esta segundo estudos recentes, a infecção vírica prévia
diminui a secreção da hormona antidiurética provocando destruição autoimune de neurónios
– treino de consciencialização de “bexiga secretores de hipocretina com consequente dis-
cheia” medindo a quantidade de urina que função. Caracteriza-se por sonolência excessiva
corresponde a tal sensação; diurna e outros fenómenos do sono REM.
– promover o esvaziamento regular da bexiga O diagnóstico diferencial deve ser feito com as
de 2-2 ou 3-3 horas, aumentando o supri- situações a abordar seguidamente e com certas
mento em líquidos durante o dia (bebendo formas de epilepsia.
líquidos 6-7 vezes por dia), reduzindo-o a
partir das 19 horas; Movimentos periódicos do sono
– evitar bebidas estimulantes da diurese (chá, São episódios periódicos de movimentos dos
café,chocolate, bebidas de cola, refrigerantes membros, repetitivos e estereotipados. Tais movi-
gaseificados); mentos ocorrem geralmente nos membros inferi-
– responsabilizar a criança/jovem pela sua ores e consistem em extensão do dedo grande do
higiene, incumbindo-a/o do registo dos chama- pé associada a flexão do pé, joelho e coxa. Esta
dos calendários (incluindo o miccional); situação é rara em idade pediátrica.
– retirar as fraldas e, acima dos 8 anos, retirar
também o resguardo; Síndroma de membros inferiores “ inquietos”
– incutir a rotina de esvaziamento da bexiga É uma situação também rara que consiste numa
antes de ir para a cama à noite; sensação desagradável e mal definida nos mem-
– entre os 5-7 anos preconiza-se, para além das bros inferiores surgida antes do início do sono, e
medidas gerais, a utilização de alarmes e fár- aliviada com a movimentação dos membros infe-
macos como desmopressina (DDAVP), em riores.
geral sob a forma de spray nasal (10-40 O quadro clínico obrigará ao rastreio do défice de
mcg/dia), liofilizado por via oral (0,06-012 ferritina, possível factor envolvido na patogénese
mg/dia), ou imipramina (para aumentar a dado o papel do ferro como cofactor de certos
capacidade da bexiga) na dose máxima de mecanismos de funcionamento neuronal.
2,5 mg/kg ao deitar . Pode haver associação com défice de atenção e
hiperactividade.
A estratégia que utiliza os calendários deve ter No tratamento utilizam-se agentes dopaminér-
em conta o registo de uma tarefa ou objectivo (um gicos. Confirmando-se défice de ferritina está
de cada vez: ou registo de noites secas,ou de acor- indicado tratamento com ferro.
156 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
29
Síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS)
Esta situação é abordada no capítulo seguinte.
Abreviatura: CPAP – Continuous Positive Airway Pressure ou pressão positiva contínua nas vias aéreas
alguns problemas relacionados com a pressão local Ressonar habitual > ressonar em todas as noites ou na maio-
da máscara nasal e respectivas fitas suspensoras e ria das noites (10% de todas as crianças).
com a secura/ congestão da mucosa nasal e ocular;
contudo, dum modo geral, a tolerância é boa. BIBLIOGRAFIA
Academia Americana de Pediatria.Guia de Prática Clínica:
3. Outras terapêuticas e medidas coadjuvantes Diagnóstico e terapêutica da Sindroma da Apneia
Técnicas como uvulopalatofaringoplastia, técnicas Obstrutiva do Sono. Pediatrics (edição portuguesa) 2002;
de ortodôncia e outras técnicas cirúrgicas, rara- 10:213-221
mente utilizadas na criança, têm interesse muito American Thoracic Society.Standards and indications for car-
secundário. Poderão ser adoptadas as seguintes: diopulmonary sleep studies in children. Am J Respir Crit
posicionamento durante o sono com alívio da Care Med 1996; 153: 866-878
obstrução; emagrecimento se houver excesso pon- Amorim A, Machado A, Winck JC, Almeida J. Síndroma de
deral; redução de medicamentos depressores do apneia obstrutiva do sono em crianças. Acta Pediatr Port
sistema nervoso; corticoterapia inalada; antibioti- 2004;35: 49-61
coterapia se se verificar infecção crónica local; e Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon, 2011
montelucaste (com efeito anti-inflamatório e mo- Duarte C, Santos I, Estêvão MH. Perturbações do sono na cri-
dificador do efeito dos leucotrienos) como forma ança. Acta Pediatr Port 2004; 35; 349-357
de redução das dimensões das adenóides em si- Goldbart AD, Greenberg-Dotan,Tal A. Montelukast for child-
tuações ligeiras ou moderadas, etc.. ren with obstructive sleep apnea:a double-blind,placebo-
Cabe referir, no entanto, que apesar dos controlled study. Pediatrics 2012;130: e575-e580
recentes avanços na investigação e experiência Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
adquirida nesta área da pediatria, ainda não há Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
consenso sobre vários aspectos da SAOS na crian- Saunders, 2011
ça, tais como critérios de diagnóstico mais ade- Rosen CL. Obstructive sleep apnea syndrome in children: con-
quados e terapêutica ideal. troversies in diagnosis and treatment. Pediatr Clin North
Am 2004; 51: 153-167
GLOSSÁRIO Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
Apneia > Critérios clínicos – ausência de fluxo aéreo bucal ou AA(eds). Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
nasal; tipo central (ausência de esforço respiratório); tipo Medical , 2011
obstrutivo (presença de esforço respiratório continuado,
devido a colapso das vias aéreas superiores); ou tipo misto
(apneia central e obstrutiva ocorrendo sequencialmente
sem que haja respiração normal entre os dois eventos).
Critérios polissonográficos – tipo obstrutivo (ausência de
fluxo oro-nasal na presença de esforço respiratório contí-
nuo, durando mais de 2 ciclos respiratórios; geralmente,
mas não sempre, associado a hipoxémia); tipo central (ces-
sação de esforço respiratório que dura 2 ou mais ciclos res-
piratórios).
Dessaturação (ou d éfice de saturação) > descida da SatO2 ≥4%
Hipoventilação > Critérios clínicos – redução da ventilação
pulmonar abaixo de um mínimo que assegure valores nor-
mais de O2 e CO2 sanguíneos: tipo obstrutivo (obstrução
alta parcial levando a ventilação pulmonar inadequada
com centro respiratório funcionante); ou tipo não-obstruti-
vo, (estado de depressão do centro respiratório, doença
neuromuscular ou doença pulmonar restritiva).
Índice de apneia/hipopneia > nº de episódios de apneia/
hipopneia/hora.
162 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
30
QUADRO 1 – Classificação das Perturbações
Globais do Desenvolvimento
segundo a DSM-IV
1. Perturbação Autística
2. Perturbação de Rett
PERTURBAÇÕES DO ESPECTRO 3. Perturbação Desintegrativa da Segunda Infância
(síndroma de Heller)
DO AUTISMO 4. Perturbação de Asperger
5. Perturbação Global do Desenvolvimento – sem outra
Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto especificação (PGD-SOE)
Aspectos epidemiológicos.
Importância do problema
Estudos internacionais recentes estimam uma
Em 1943 e 1944, o pedopsiquiatra americano Leo prevalência do autismo clássico oscilando entre 1 e
Kanner e o pediatra austríaco Hans Asperger des- 16/10.000 sendo que os valores têm aumentado nos
creveram uma doença infantil caracterizada pela ultimos 35 anos, com predomínio no sexo masculino
tríade: défice na comunicação, comportamento numa relação de 3/1. O aumento da prevalência em
repetitivo e défice na interacção social. A referida relação a estudos anteriores resulta de uma
doença viria posteriormente a ser designada por combinação de factores como inclusão de formas
psicopatia autística ou autismo. mais ligeiras no espectro, maior informação e
Actualmente sabe-se que o autismo não é capacidade de diagnóstico, e subida real devida a
uma doença específica, mas uma perturbação do influências ambientais. Não foi, porém, encontrada
desenvolvimento cerebral com uma forte base qualquer relação de causalidade entre o autismo e a
genética e acentuada heterogeneidade, podendo vacina contra o sarampo, papeira e rubéola (VASPR).
apresentar desde sintomas ligeiros a alterações Os estudos em gémeos mostraram uma eleva-
graves, sendo as formas ligeiras mais frequentes da concordância em gémeos monozigóticos e não
que a forma clássica. Tem sido referida a ligação em dizigóticos, sugerindo que se trata de uma
entre o autismo e algumas variantes do gene do doença genética.
transportador da serotonina, admitindo-se que a Os estudos epidemiológicos indicaram que os
susceptibilidade genética possa ser potenciada factores ambientais como a exposição a tóxicos ou
por factores ambientais. Devido às variações lesões perinatais eram responsáveis por um
qualitativas e quantitativas dos sintomas, número reduzido de casos e que as doenças
passou a considerar-se a existência de um médicas diagnosticáveis, alterações citogenéticas
espectro do autismo. Assim, o autismo clássico, ou doenças monogénicas (como a esclerose
as doenças do espectro do autismo ou tuberosa, síndroma do X frágil ou outras doenças
perturbações globais do desenvolvimento, como metabólicas mais raras) correspondem a menos de
são designadas na classificação mais recente, 10% dos casos. Os estudos sugerem que se trata de
Diagnostic and Statistical Manual of Mental uma patologia genética, provavelmente multi-
Disorders, Fourth Edition – DSM IV (Quadro 1) génica, sendo de referir que factores epigenéticos
fazem parte de um grande contínuo de pertur- e a exposição a modificadores ambientais contri-
bações cognitivas e neurocomportamentais com buem para a grande variabilidade de expressão
os mesmos critérios basilares acima referidos: fenotípica.
alteração da interacção social, da comunicação Sabe-se efectivamente que múltiplas regiões
(verbal e não verbal), e padrões de comporta- genéticas (cromossomas 16p11.2, 15q24, 11p12-
mento, interesse e actividades repetitivas, p13) e variantes de genes (por deleções, dupli-
restritas ou estereotipadas. cações, inversões, etc.) interferem negativamente
CAPÍTULO 30 Perturbação do espectro do autismo 163
A. Presença de seis (ou mais) itens de (1), (2) ou (3), com pelo menos dois de (1), e um de (2) e um de (3)
(1) défice qualitativo na interacção social, manifestado pelo incapacidade na competência para iniciar ou manter uma
menos por duas das seguintes características: conversação com os outros;
a. acentuado défice no uso de múltiplos comportamentos c. uso estereotipado ou repetitivo da linguagem ou lingua-
não verbais, tais como, contacto ocular, expressão facial, gem idiossincrática;
postura corporal e gestos reguladores da interacção social; d. ausência de jogo realista espontâneo, variado, ou de jogo
b. incapacidade para desenvolver relações com os com- social imitativo adequado ao nível de desenvolvimento;
panheiros, adequadas ao nível de desenvolvimento; (3) padrões de comportamento, interesses e actividades
c. ausência da tendência espontânea para partilhar com os restritos, repetitivos e estereotipados, que se manifestam
outros prazeres, interesses ou objectivos (por exemplo, não pelo menos por uma das seguintes características:
mostrar, trazer ou indicar objectos de interesse); a. preocupação absorvente por um ou mais padrões
d. falta de reciprocidade social ou emocional; estereotipados e restritivos de interesses que resultam
(2) défice qualitativo na comunicação manifestado, pelo anormais, quer na intensidade quer no seu objectivo;
menos, por uma das seguintes características: b. adesão, aparentemente inflexível, a rotinas ou rituais
a. atraso ou ausência total de desenvolvimento da linguagem específicos, não funcionais;
oral (não acompanhada de tentativas para compensar c. maneirismos motores estereotipados e repetitivos (por
através de modos alternativos de comunicação, tais como exemplo, sacudir ou rodar as mãos ou dedos ou movi-
gestos ou mímica); mentos complexos com todo o corpo);
b. nos sujeitos com um discurso adequado, uma acentuada d. preocupação persistente com partes de objectos.
B. Atraso ou funcionamento anormal em, pelo menos, uma das seguintes áreas, com início antes dos três anos de idade
(1) interacção social (2) comunicação (3) comportamento repetitivo
C. A perturbação não é explicada pela presença de uma perturbação de Rett ou perturbação desintegrativa da
segunda infância
31
idade escolar. Nas situações em que há uma
regressão ou perda de competências, como na
síndroma de Heller ou na síndroma de Rett, o
prognóstico é naturalmente mais reservado.
Apenas uma minoria de indivíduos atinge
autonomia social na idade adulta, sendo que a
percentagem que vem a obter emprego oscila PERTURBAÇÕES
entre 0-21,5% conforme os diversos grupos de
investigadores. De referir que cerca de 50% dos DE HIPERACTIVIDADE
casos mantêm dependência total.
E DÉFICE DE ATENÇÃO
BIBLIOGRAFIA
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Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon dever-se a uma alteração genética que determina
AA(eds). Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill uma alteração na actividade dos neurotrans-
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Wallace GL, Treffert DA. Head size and autism. Lancet 2004; um padrão comportamental característico.
363:1003-1004 Os estudos genómicos identificaram, entre
Williams JG, Higgins JPT, Brayne CEG. Systematic review of outros, 2 genes candidatos de risco nos cromos-
prevalence study of autism spectrum disorders. Arch Dis somas 16p13 e 17p11; o AT1 (gene do transportador
Child 2006; 91:8-15 da dopamina) e o DRD4 (gene de uma forma
www.learn.uptodate.com/sample [acesso em Junho de 2013] particular de receptor da dopamina – o receptor
D4). Admite-se, pois, um papel importante da
dopamina na etiopatogénese com implicações
práticas nas medidas terapêuticas, algumas das
quais são constituídas por inibidores da recaptação
da dopamina.
Os familiares de crianças com PHDA têm um
risco 6 vezes superior de PHDA relativamente à
CAPÍTULO 31 Perturbações de hiperactividade e défice de atenção 167
população normal. O ambiente, embora não tendo Para o diagnóstico da PHDA torna-se funda-
uma relação causal directa, é importante na mental recolher informação de várias fontes: dos
modulação dos sintomas e no grau de disfunção pais, dos professores, ou de outros profissionais
causada. Os sintomas podem ser atenuados por um que conhecem a criança. Como não há instru-
ambiente mais estruturado ou ser exacerbados por mentos que indiquem com confiança o grau e a
um ambiente menos favorável e mais desorga- natureza da perturbação funcional de uma forma
nizado. objectiva, devem ser utilizadas perguntas livres
genéricas, perguntas específicas sobre alguns
Manifestações clínicas e diagnóstico comportamentos, questionários semi-estrutura-
dos, assim como questionários e escalas espe-
A forma de apresentação clínica pode ser muito cíficas. A aplicação de escalas e questionários
variável, em função da diversidade de mecanismos específicos tem evidenciado sensibilidade e es-
genéticos implicados, nomeadamente. São fre- pecificidade acima de 94%, permitindo assim
quentes as queixas de insucesso escolar, alterações distinguir crianças com e sem PHDA. Estes
do comportamento na sala de aula, desatenção, questionários e escalas são aplicáveis aos pais e
problemas nas relações sociais, ou baixa auto-esti- professores, com modelos específicos para cada.
ma. Os sintomas principais da PHDA incluem De salientar que não há testes físicos especí-
essencialmente falta de atenção, hiperactividade e ficos para o diagnóstico da PHDA.
impulsividade, não associados a qualquer patolo- Várias outras perturbações podem estar asso-
gia psiquiátrica. O Quadro 1, adaptado do ciadas à PHDA, consideradas como comorbilidade,
Diagnostic and Statistical Manual of Mental sendo as mais frequentes: a perturbação de
Disorders, Fourth Edition – DSM IV, sintetiza os oposição/desafio ou a perturbação da conduta; as
critérios diagnósticos da referida entidade clínica. alterações do humor/depressão; a ansiedade e as
As crianças com os sintomas típicos de hiper- perturbações da aprendizagem/défice cognitivo
actividade e impulsividade são geralmente identi- ligeiro. Podem estar presentes em cerca de um terço
ficadas pelos professores porque perturbam a sala das crianças com PHDA. É importante a detecção
de aula. No entanto, as crianças com o subtipo destas situações uma vez que a sua identificação
desatento da PHDA, com sintomas de hipera- tem implicações na intervenção proposta.
ctividade e impulsividade ausentes ou mínimos, A existência de uma perturbação do desenvol-
podem passar despercebidas, manifestando ape- vimento da coordenação motora, concomitante com
nas insucesso escolar, sendo por vezes rotuladas a PHDA, resultando num quadro característico de
como desinteressadas ou desmotivadas em défice da coordenação motora (grosseira e fina), de
relação à escola. atenção e de percepção (visual e/ou auditiva),
Na população em geral parece haver um justificou a definição de uma entidade designada
predomínio no sexo masculino, embora possa por défice de atenção, motricidade e percepção
haver subdiagnóstico no sexo feminino, devido a (DAMP), que é actualmente considerada um
um predomínio do subtipo “desatento”. Em subtipo da PHDA. Esta entidade, cujo prognóstico é
Portugal esta entidade apenas recentemente tem mais reservado, necessita de uma intervenção mais
sido alvo de interesse pelos clínicos, o que explica abrangente, abordando as dificuldades presentes
a falta de estudos epidemiológicos nacionais, bem nas diferentes áreas. É, portanto, fundamental a sua
como uma taxa de diagnóstico seguramente identificação precoce, devendo ser sempre excluída
inferior à real. perante uma criança com PHDA.
Segundo as recomendações internacionais,
perante uma criança entre os 6 e 12 anos, com falta Intervenção
de atenção, hiperactividade, impulsividade, insu-
cesso escolar ou problemas de comportamento, o O clínico responsável pelo diagnóstico (que deve
clínico deve iniciar uma avaliação de PHDA com ser desmistificado) deve informar a família sobre
encaminhamento para uma consulta de especia- a doença, aconselhando-a e estar disponível para
lidade. prestar todos os esclarecimentos e promover a
168 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
(2) Presença de seis (ou mais) dos seguintes sintomas de hiperactividade-impulsividade persistindo, pelo menos, durante
seis meses, com uma intensidade não condizente com o nível de desenvolvimento:
Hiperactividade
(a) com frequência movimenta excessivamente as mãos e pés, mexe-se quando está sentado;
(b) com frequência levanta-se na sala de aula ou noutras situações em que se espera que esteja sentado;
(c) com frequência corre ou salta excessivamente em situações em que é impróprio fazê-lo (em adolescentes e adultos pode
limitar-se a sentimentos subjectivos de impaciência);
(d) com frequência tem dificuldade em jogar ou em se dedicar tranquilamente a actividades de ócio;
(e) com frequência “anda”, ou só actua como se estivesse “ligado a um motor”;
(f) com frequência fala “de mais”;
Impulsividade
(g) com frequência precipita as respostas antes que as perguntas tenham acabado;
(h) com frequência tem dificuldade em esperar pela sua vez;
(i) com frequência interrompe ou interfere nas actividades dos outros (por exemplo, intromete-se nas conversas ou jogos);
ligação a outras famílias, assegurando a coorde- Biederman J, Faraone SV. Attention – deficit hyperactivity
nação dos serviços de saúde e educação. disorder. Lancet 2005; 366: 237-248
A PHDA, como outras doenças crónicas, ne- Committee on Quality Improvement and Subcommittee on
cessita dum plano de tratamento específico para a Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder. American
criança, idealmente levado a cabo por uma equipa Academy of Pediatrics. Clinical Practice Guideline:
multidisciplinar, com metas definidas, formas de Diagnosis and evaluation of the child with attention-deficit
seguimento e de vigilância. A principal meta do and hyperactivity disorder. Pediatrics 2000; 105: 1158-1170
tratamento deve ser a de valorizar devidamente Committee on Quality Improvement and Subcommittee on
toda a função, melhorando a relação com os ou- Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder. American
tros, melhorando o desempenho académico, inde- Academy of Pediatrics. Clinical Practice Guideline:
pendência e auto-estima. Treatment of the school aged child with attention-deficit
Na maioria das crianças o tratamento farmaco- and hyperactivity disorder. Pediatrics 2001; 108: 1033-1044
lógico é muito eficaz, particularmente no que Floet AMW, Scheiner C, Grossman L. Attention
respeita à atenção. O tratamento comportamental deficit/hyperactivity disorder. Pediatr Rev 2010; 31:56-69
tem valor como abordagem inicial ou adjuvante. Gilberg C. Deficits in attention, motor control and perception:
Os fármacos mais utilizados são os estimulantes, a brief review. Arch Dis Child 2003; 88: 904-910
particularmente o metilfenidato, havendo em Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
Portugal disponíveis no mercado formulações de Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
acção prolongada (Concerta®, 10-12 horas, usando Levine M. Attention and Dysfunctions of Attention In Levine
a dose entre 18-72 mg uma vez por dia) e de acção M, Carey WB, Crocker AC (eds) Developmental-Behavioral
intermédia (Ritalina SR®, 3-8 horas, variando a Pediatrics: Philadelphia: Saunders, 1999
dose entre 10 e 40 mg, uma a duas vezes por dia). Mercugliano M. Attention Deficit Hyperactivity Disorder in
A dextroanfetamina é mais raramente usada. Batshaw ML, Perret YM (eds). Children with Disabilities.
Tratando-se de uma doença crónica, o trata- Baltimore: Paul H. Brookes Publishing Co, 1992
mento é prolongado. Os sintomas podem per- Silva RR, Skimming JW, Muniz R.Cardiovascular safety of
sistir até à idade adulta, geralmente com uma stimulant medications for pediatric attention-deficit
atenuação dos comportamentos mais hiperciné- hyperactivity disorder. Clinical Pediatrics 2010; 49: 840 -
ticos, mas mantendo desatenção e impulsividade. 851
De referir que os adolescentes e jovens adultos Spencer TJ. ADHD and comorbidity in Childhood. J Clin
com PHDA não tratados estão em maior risco de Psychiatry 2006: 67 supp. 8: 27-31
instabilidade familiar e laboral, de consumo de Stevens LJ, Kuczek T, Burgess JR, et al. Dietary sensitivities and
drogas de abuso, de delinquência ou de gravidez ADHD symptoms: thirty-five years of research. Clinical
indesejada. Pediatrics (Phila) 2011; 50:279-293
Chama-se a atenção para a possibilidade de
efeitos cardiovasculares adversos dos estimu-
lantes, o que obrigará, em função do contexto
clínico, a exame clínico cardiovascular antece-
dendo tal tratamento.
É possível que o futuro, com os avanços da
genética, nos venha a elucidar melhor sobre os
mecanismos etiopatogénicos da PHDA, e a permi-
tir um diagnóstico mais fácil e um tratamento não
apenas sintomático, mas sim dirigido à causa da
perturbação.
BIBLIOGRAFIA
American Psychiatric Association. Perturbação de Hiperacti-
vidade com Défice de Atenção in DMS-IV-TR. Lisboa:
Climepsi Editores, 2000
PARTE VI
Pedopsiquiatria
172 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
32
compreensão do desenvolvimento infantil como
para a integração dos dados da clínica e da obser-
vação experimental nas políticas de prevenção em
saúde mental infantil.
O conceito de vinculação foi inicialmente
introduzido por Bowlby para caracterizar a
INTRODUÇÃO À CLÍNICA relação afectiva que se estabelece entre a mãe e a
criança; constitui o ponto de partida para o desen-
PEDOPSIQUIÁTRICA volvimento duma teoria que se tornou um instru-
mento valioso na compreensão do desenvolvi-
Maria José Gonçalves mento psicológico e da psicopatologia da criança
e do jovem.
A teoria da vinculação surgiu numa altura em
que havia uma grande preocupação com os efeitos
Âmbito da Pedopsiquiatria da carência materna nas crianças e na sequência
dum relatório feito em 1948 pelo próprio Bowlby,
O campo de intervenção da Pedopsiquiatria é de a pedido da Organização Mundial de Saúde
difícil definição. Em termos gerais, o pedo- (OMS), sobre crianças sem família. Milhares de
psiquiatra interessa-se pelo bem-estar psíquico da crianças e jovens tinham ficado órfãos ou separa-
criança em cada momento, no contexto do seu dos dos familiares após a segunda guerra mundi-
desenvolvimento e no contexto do seu envolvi- al, tendo-se comprovado as graves consequências
mento relacional, quer seja na família, quer seja na psicológicas que resultaram das perdas dos pais e
escola, quer noutras situações decorrentes das cir- das separações prolongadas. Simultaneamente,
cunstâncias de vida, como no hospital ou em insti- nos Estados Unidos multiplicaram-se os estudos
tuições de acolhimento. De uma forma mais sobre os efeitos da institucionalização de crianças
específica, o campo da pedopsiquiatria define-se pequenas, de que Spitz se torna a figura de proa,
pelo estudo do funcionamento mental da criança ao descrever um quadro depressivo nos bebés que
(que ultrapassa largamente o funcionamento cere- eram separados das mães, a que chamou “de-
bral) e pela identificação e tratamento dos fenó- pressão anaclítica do lactente”.
menos psicopatológicos que põem em risco a sua Para o desenvolvimento da sua teoria, Bowlby
saúde mental. Esta define-se pelo desenvolvimen- contou ainda com o contributo dos etólogos com
to das competências afectivas, cognitivas e sociais quem se cruzou e cujos trabalhos e conclusões
que permitirão à criança tornar-se num adulto foram para ele uma fonte de inspiração. A teoria da
saudável, na plenitude das suas capacidades. vinculação agregou, ao longo dos últimos 50 anos,
Tendo pontos comuns com a Pediatria do contribuições de variados campos científicos,
Neurodesenvolvimento e disciplinas não médicas desde a psicanálise até às ciências cognitivas e
(psicologia, ciências psicossociais, pedagogia) que transformou-se, graças à importante investigação
também se interessam pelo bem-estar da criança, a a que deu origem, na mais fecunda forma de co-
dimensão médica é dada pelo uso dos conhecimen- nhecimento sobre o comportamento social e rela-
tos científicos disponíveis que permitem fazer o diag- cional da criança e sobre a transmissão transgera-
nóstico do quadro clínico e programar a intervenção cional dos modelos relacionais e da psicopatologia.
terapêutica, com vista à retomada tanto quanto pos- A vinculação é um fenómeno complexo que se
sível normal do desenvolvimento infantil. refere à ligação que se estabelece entre o dador
principal de cuidados e a criança. É uma relação
A teoria da vinculação. específica que se constrói progressivamente e se
caracteriza por comportamentos activos de apro-
Uma das contribuições mais ricas do ponto de ximação da criança, na procura de conforto, pro-
vista teórico é a teoria da vinculação. Nos dias de tecção e garantia de apoio e segurança. É a exis-
hoje é consensual a sua importância, tanto para a tência desse vínculo que origina as reacções de
CAPÍTULO 32 Introdução à Clínica Pedopsiquiátrica 173
33
Convém salientar que, sendo a ansiedade con-
siderada uma reacção normal e adaptativa às situa-
ções de estresse, as manifestações acima citadas
podem aparecer de forma transitória, com uma
intensidade moderada, relacionadas com aconteci-
mentos de vida da criança (ida para a escola, nasci-
PERTURBAÇÕES mento dum irmão, doença, separação, etc.), sendo
então consideradas como reacções de adaptação.
DA ANSIEDADE De salientar que ansiedade nem sempre é evi-
dente, isto é, nem sempre aparece sob a forma de
Maria José Gonçalves e Margarida Marques sintomas. Estes aparecem em consequência da uti-
lização pela criança de mecanismos inconscientes
cuja função é reduzir a angústia resultante dos
conflitos psíquicos. Estes sintomas podem ser con-
Definição siderados equivalentes da angústia.
Consoante o tipo de angústia e os mecanismos
A ansiedade corresponde a um vivência penosa e de defesa usados pela criança podemos classificá-los
inquietante, ligada a um sentimento de perigo imi- em sintomas de tipo: fóbico, designados por fobias,
nente e indeterminado que provoca medo e inse- obsessivo-compulsivo, histérico e de inibição.
gurança. É muitas vezes acompanhada de reacções
somáticas, tais como taquicardia, constrição respi- Sintomas fóbicos
ratória e cardíaca, palidez, diarreia, relaxamento As fobias são medos injustificados desencadeados
ou contracção muscular, etc., classicamente defi- por uma situação, objecto ou pessoa e que não
nidas como angústia. Muitas vezes usam-se os ter- representam um perigo real. A angústia desen-
mos angústia ou ansiedade indiferentemente. cadeada na presença da situação geradora de
A ansiedade é um estado afectivo considerado fobia é acompanhada de estratégias defensivas,
como um componente normal do desenvolvimen- nomeadamente os comportamentos de evitamen-
to psicológico; só adquire significado patológico to ou fuga e a utilização de manobras de tranquili-
quando, pela sua intensidade, duração e carácter zação (mecanismos contra-fóbicos), como o uso de
invasivo, determina alterações significativas na pessoas (a mãe, por ex.) ou de um objecto, para
vida da criança, interferindo em diferentes áreas enfrentar a situação sentida como perigosa.
de funcionamento (sono, socialização, aprendiza- Alguns medos aparecem durante o desenvol-
gem, etc.) e/ou impede o seu desenvolvimento. vimento normal da criança e têm uma função es-
truturante do sistema psíquico. São eles:
Manifestações clínicas • medo (ou angústia do estranho) que aparece
por volta dos 6 meses;
A ansiedade e/ou a angústia pode aparecer de • medo da separação (ou angústia de sepa-
uma forma difusa, mas raramente é referida pela ração), a partir dos 18 meses;
criança. Manifesta-se frequentemente através de: • medo do escuro, a partir dos 2 anos;
• medos (do escuro, da separação e abandono, • medo dos animais entre os 3 e os 6 anos.
de estar sozinho, medo das doenças, da Existem medos que variam ao longo do tempo,
morte dos pais); sendo a plasticidade, um sinal do seu carácter
• sintomas somáticos (cefaleias, dores abdomi- benigno.
nais, vómitos, queixas inespecíficas); As fobias são patológicas quando, isoladas ou
• perturbações do sono (oposição ao deitar, associadas a outros sintomas, pela sua intensi-
dificuldade em adormecer, insónia, acordar dade, persistência e complexidade dos mecanis-
ansioso, terrores nocturnos e pesadelos); mos contra-fóbicos, limitam a actividade da crian-
• perturbações do comportamento (instabili- ça, invadem a sua vivência psíquica, e comprome-
dade psicomotora, agitação ou inibição). tem o seu desenvolvimento.
176 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Intervenção terapêutica
34
• diminuição e falta de prazer na actividade
lúdica: incapacidade de brincar ou brin-
cadeiras pobres, do ponto de vista do con-
teúdo, e repetitivas;
• ideias de incapacidade, de desvalorização ou
de culpa, de falta de segurança nas relações,
DEPRESSÃO nomeadamente com os colegas ou com os
pais e família;
Maria José Gonçalves e Margarida Marques • diminuição da atenção, da capacidade de
memorização e do interesse intelectual, com
consequentes dificuldades escolares;
• alterações do comportamento, marcadas por
Definição irritabilidade, instabilidade, agitação psico-
motora e crises de agressividade. Estes sin-
A depressão é uma perturbação do humor mantida tomas, quando estão presentes pelo seu carác-
que se caracteriza por um estado de tristeza, mais ou ter exuberante, dominam o quadro clínico.
menos manifesto, desinteresse, lentidão psicomoto- Outros sintomas, associados ou isolados, que
ra, acompanhada de ideias de incapacidade ou culpa podem mascarar o quadro depressivo, são: insó-
e ainda perturbações do sono e/ou alimentares. nias, anorexia, enurese, encoprese, os síndromas
dolorosas.
Manifestações clínicas e intervenção A intensidade, duração e associação destes sin-
terapêutica tomas, não só pelo sofrimento que trazem à crian-
ça, mas também pelas suas repercussões na vida
São descritos os seguintes quadros e a respectiva diária, nas relações familiares e nas dificuldades
intervenção terapêutica: escolares, criam uma dinâmica de fracassos e mal-
estar e determinam o carácter patológico das mani-
1. Perturbações depressivas na infância festações e a necessidade da intervenção pedo-
A depressão na criança é um quadro clínico relati- psiquiátrica.
vamente frequente que atinge 2 a 3% da popu- As manifestações depressivas podem aparecer
lação infantil e tem gerado muita discussão, pela associadas a várias circunstâncias:
dificuldade em estabelecer o seu diagnóstico; de • saltos maturativos do desenvolvimento que
referir que não devem ser aplicados os mesmos implicam novos e mais complexos modos de
critérios das classificações dos adultos. Na popu- funcionamento mental. Trata-se de crises em
lação infantil atendida nas consultas de saúde que os sintomas depressivos, como choro
mental a frequência chega a atingir 20%. fácil, a irritabilidade, as alterações do sono, a
O polimorfismo dos seus sintomas, muito fre- instabilidade, são transitórios e não pro-
quentemente na linha da inibição, e também a duzem alterações significativas na vida da
dificuldade da criança em tomar consciência das criança. Em geral, quando necessárias, as
suas vivências de tristeza, obriga o clínico a ter intervenções são pontuais;
uma atitude activa na exploração diagnóstica. • acontecimentos de vida que funcionam
O quadro clínico apresenta um elenco variado como factor desencadeante. Os mais fre-
de sintomas, tais como: quentes implicam separações ou perdas de
• tristeza, raramente expressa como tal, mas pessoas significativas. São consideradas
manifesta pela ausência de interesse e entu- reacções depressivas, devendo ser pondera-
siasmo, raras manifestações de prazer, isola- da uma intervenção especializada e avaliado
mento, passividade. Este grupo de sintomas o prognóstico a curto e médio prazo;
ditos “negativos” é muitas vezes pouco nota- • interacções pais/crianças patológicas que se
do, atrasando o reconhecimento da existên- mantêm ao longo do tempo ou depressão pa-
cia do problema; rental crónica.
CAPÍTULO 34 Depressão 179
As tentativas de suicídio são difíceis de objecti- • perda de interesse e prazer nas actividades
var na criança, em parte, devido ao aparecimento habituais, acompanhada de um sentimento
tardio do conceito de morte em termos da sua irre- de tédio;
versibilidade e, em parte, porque muitas das con- • desempenho psicomotor feito com lentidão,
dutas suicidárias são confundidas com acidentes com mímica pobre e discurso monótono, ou
ou condutas perigosas. Entre estes acidentes ou agitação;
comportamentos de risco, verdadeiros “equiva- • fadiga fácil e dificuldades de concentração;
lentes suicidários” estão a ingestão de produtos • insónia ou hipersomnia;
tóxicos domésticos, quedas, feridas, etc.. Ocorrem • sentimentos de desvalorização, vergonha, auto-
frequentemente no contexto duma crise familiar -acusação. As ideias de desvalorização e crítica
ou de violência, mas é difícil admitir a dimensão são, por vezes, atribuídas a terceiros, nomeada-
suicidária do acto; com efeito, tal aceitação traz mente aos companheiros ou aos professores,
uma grande culpabilidade aos pais tornando difí- contribuindo para o isolamento do adolescente.
cil aceitar a ideia do desejo de morte na criança. Estes sintomas agrupam-se em quadros sin-
Antes de se elaborar um projecto terapêutico, dromáticos diferentes, segundo a forma clínica,
deve ser feita uma avaliação diagnóstica aprofun- duração, intensidade e existência, ou não, de fac-
dada do grau de sofrimento da criança, da intensi- tores desencadeantes.
dade dos sintomas e do seu impacte no funciona- Assim, consideram-se:
mento mental e desenvolvimento afectivo, bem
como dos factores desencadeantes. Em relação à cri- Depressão major, em que os sintomas devem
ança, a intervenção directa deve contemplar o apoio estar presentes pelo menos 2 semanas e em quase
psicoterapêutico ajudando a melhorar a auto-esti- toda a sua gama, com um elevado grau de inten-
ma, a lidar com a adversidade e a elaborar os con- sidade.
flitos. O uso de antidepressivos não é recomendá- Perturbação distímica, clinicamente seme-
vel, embora nalguns casos de maior gravidade pos- lhante à depressão major, em que os sintomas são
sam ser usados com precaução e vigilância. menos intensos, mas devem estar presentes no
Em relação aos pais deve ser feito um trabalho mínimo de 2 anos. Aparece com carácter insidioso
de consciencialização das necessidades de segu- e, pela sua cronicidade, provoca uma maior limi-
rança afectiva da criança, de maior tolerância para tação escolar e social do jovem.
com os seus insucessos e de flexibilização dos Depressão reactiva, relacionada com factores
comportamentos interactivos. desencadeantes, tais como acontecimentos de
vida adversos (lutos, doenças na família, etc.).
2. Perturbações depressivas no adolescente Depressão associada a outros quadros clíni-
No quadro do desenvolvimento normal do adoles- cos: comportamentos aditivos, perturbações do
cente surgem frequentemente episódios breves de comportamento alimentar ou perturbações de
perturbação do humor que se confundem com per- personalidade, nomeadamente as perturbações
turbações depressivas recorrentes de curta duração. “limite”, como um diagnóstico de comorbilidade.
A prevalência da depressão no adolescente
situa-se, segundo os diferentes estudos, entre os 3 O diagnóstico diferencial da depressão no ado-
e os 7%, com predomínio do sexo feminino. As lescente é difícil e só no enquadramento de uma
manifestações clínicas da depressão no adoles- intervenção psicoterapêutica regular se pode fazer
cente aproximam-se das do adulto e caracterizam- um diagnóstico mais preciso e avaliar os riscos.
-se por tendência para a recidiva. Cerca de 30% a Por outro lado, é também no âmbito da nova
50% dos casos diagnosticados recidivam num relação que se cria na psicoterapia que o adoles-
período de 4 anos. cente consegue exprimir o seu sofrimento e os
O quadro clínico caracteriza-se por: seus conflitos.
• humor depressivo, irritabilidade e tendên- As intervenções familiares podem ser úteis,
cia, maior que nos adultos, para a reactivi- sendo por vezes de aconselhar as intervenções de
dade e a instabilidade do humor; inspiração sistémica.
180 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
35
• anomalias do comportamento motor (este-
reotipias, gestos anómalos, alterações da
tonicidade);
• perfil psicológico desarmónico, com um fun-
cionamento intelectual particularmente desen-
volvido em certas áreas, embora num fundo de
PSICOSES atraso do desenvolvimento cognitivo.
A psicose na criança pode ter um início pre-
Maria José Gonçalves e Margarida Marques coce, antes dos 4 anos, sendo o quadro clínico
dominado por comportamentos de retirada e de
isolamento social com perda de aquisições já
adquiridas, como a linguagem, o jogo, etc..
Definição Nos casos de início mais tardio, na idade esco-
lar, são mais evidentes as perturbações do pensa-
O conceito de psicose diz respeito a afecção men- mento e do discurso que se torna por vezes incoe-
tal associada a desintegração geralmente profun- rente, impregnado de elementos de irrealidade e
da da personalidade, com perturbação da per- fantasia, muitas vezes de cariz persecutório. Estas
cepção, do julgamento, do raciocínio e do com- crianças apresentam crises de ansiedade catastró-
portamento (dos quais a pessoa não tem consciên- fica e grandes dificuldades na adaptação e rendi-
cia). mento escolar, embora possam manter as poten-
O grupo das psicoses abrange uma grande cialidades intelectuais normais.
diversidade de quadros clínicos, difícil de delimi- Actualmente o conceito de psicose desapare-
tar, cujo traço comum é a sua gravidade. De ceu das classificações diagnósticas internacionais,
salientar um predomínio das perturbações do com excepção da classificação francesa, sendo
pensamento e da emergência de angústias profun- substituído por uma nova entidade nosográfica: a
das e intensas que interferem com o funcionamen- perturbação pervasiva do desenvolvimento,
to psíquico normal da criança. deixando para segundo plano a perturbação da
ansiedade e o conflito psíquico, o que em nosso
Manifestações clínicas e intervenção entender não corresponde à realidade clínica
terapêutica desta perturbação.
Considerando os diversos quadros de psicose
São descritos os seguintes quadros e a respectiva infantil de início precoce, e em que esta polémica
intervenção terapêutica: tem sido mais viva, destaca-se pela sua gravidade a
chamada perturbação do espectro do autismo, cuja
1. Psicoses da criança a importância e prevalência foram referidas no
As perturbações psicóticas da criança são muito Capítulo 30.
diferentes das do adulto. Foi em 1961 que Creek, O quadro clínico caracteriza-se sucintamente
na Inglaterra, definiu os critérios mais específicos por alterações em 3 domínios principais do fun-
para o seu diagnóstico na infância. São eles: cionamento da criança:
• alteração duradoura das relações interpes- • as interacções sociais (isolamento, retirada
soais; do contacto, olhar periférico, ausência de
• dificuldades em reconhecer a identidade reciprocidade afectiva);
própria; • a comunicação e atraso ou ausência da lin-
• fixação exagerada em objectos particulares guagem verbal ou uso anormal da linguagem
sem relação com o seu uso habitual; (estereotipias, neologismos, agramatismo, etc.);
• resistência às mudanças de ambiente; • actividades repetitivas, estereotipadas, resis-
• crises de ansiedade intensa, frequentes, de tência extrema à mudança de ambiente, uso
início abrupto e sem motivo aparente; inapropriado de objectos, maneirismos e
• atraso ou outras perturbações da linguagem; estereotipias motoras.
182 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
36
Em função do tipo de sintomas predominantes
são considerados os seguintes subtipos:
a) Esquizofrenia paranóide, no qual predomi-
nam os sintomas positivos e habitualmente um
delírio de temática paranóide.
b) Esquizofrenia catatónica, em que o quadro
clínico é dominado por sintomas negativos psico- PERTURBAÇÕES
motores: períodos de imobilidade que pode ser
quase absoluta ou alternar com períodos de agi- DO COMPORTAMENTO
tação motora e intenso negativismo.
Podem ainda aparecer quadros mistos, formas Maria José Gonçalves e Margarida Marques
predominantemente deficitárias (esquizofrenia
hebefrénica), ou quadros que cursam com altera-
ções do humor (depressão ou mania).
Pela sua gravidade e implicações terapêuticas, Definição e importância do problema
o diagnóstico de esquizofrenia é um diagnóstico
de exclusão: para poder ser efectuado, o curso da As perturbações do comportamento constituem
doença deve ter uma duração superior a seis 30% dos pedidos de consulta psiquiátrica na
meses. criança e no adolescente; correspondem a um
O diagnóstico diferencial deve ser feito com as leque variado de situações em que os conflitos
perturbações do humor, perturbações da persona- psíquicos se exprimem através do modo de agir,
lidade, perturbações ligadas ao consumo de estu- dependendo a sua expressão, em grande parte, da
pefacientes e algumas doenças orgânicas (epilep- reacção do meio familiar ou escolar.
sia temporal, tumores cerebrais, doenças en- As perturbações do comportamento vão desde
dócrinas ou autoimunes). simples irrequietude passageira e condutas de
A evolução faz-se em cerca de 30% dos casos oposição ligadas às etapas do desenvolvimento,
para formas crónicas com incapacidade acentuada até às alterações de cariz patológico como as
que implica hospitalização. Em cerca de 50% dos fugas, furtos e violência.
casos o curso da doença permite algum grau de
reintegração social e até mesmo profissional. Manifestações clínicas
A intervenção terapêutica baseia-se na utiliza- e intervenção terapêutica
ção de fármacos antipsicóticos em monoterapia ou
em associação. A medicação deve manter-se fora São descritos sucintamente os seguintes quadros e
dos episódios agudos, numa dose de manutenção a respectiva intervenção terapêutica:
que permita evitar recaídas, dado que cada novo
surto psicótico deixa um défice no funcionamento 1. Hiperactividade
global. O internamento psiquiátrico é habitual- Uma das queixas mais frequentes é a hiperactivi-
mente necessário nos períodos críticos. A inter- dade, que, em 80% dos casos se caracteriza por
venção psicossocial é fundamental para promover uma instabilidade psicomotora; aparece como
a reintegração destes adolescentes na família e na uma manifestação sintomática das perturbações
escola, por vezes após internamentos prolonga- depressivas, de ansiedade ou ainda dos comporta-
dos. O treino de competências sociais é um traba- mentos de oposição. As atitudes de exigência
lho fundamental a desenvolver com este tipo de excessiva e de censura frequente por parte dos pais
doentes. ou, pelo contrário, a excessiva permissividade
A família deve ser sempre integrada no projec- reforçam estes comportamentos por acentuarem o
to terapêutico de modo a ser capaz de lidar em clima de conflitualidade, a insegurança da criança
sintonia com as características especiais que esta e diminuirem a sua auto-estima (Capítulo 31).
patologia determina. A hiperactividade associa-se frequentemente
às perturbações da atenção, sendo hoje em dia
184 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
uma das patologias mais frequentemente diagnos- farmacológica deve ser simultânea com outro tipo
ticadas na infância. Atinge 5 a 10% das crianças de abordagens individuais e familiares. A terapia
em idade escolar e 4 vezes mais em rapazes do relacional com a criança deve ajudá-la a ser capaz
que em raparigas. Pode aparecer associada a de pensar e expressar melhor as suas vivências e
vários tipos de patologia, como as psicoses infan- dificuldades, por forma a que a melhoria dos sin-
tis, as depressões ou as debilidades. Impõe-se tomas possa persistir e consolidar-se. O trabalho
fazer o diagnóstico da perturbação subjacente, com as famílias deve ter como objectivo ajudá-las
antes de estabelecer uma indicação terapêutica. a compreender a criança, os seus ritmos, não lhes
exigindo tarefas que ultrapassem aquilo de que a
2. Perturbação de hiperactividade e défice criança é capaz, permitindo que se crie um ciclo
de atenção (PHDA) em que predominem as experiências positivas,
Em 20% dos casos de hiperactividade verifica-se a visando melhorar a auto – estima.
existência de uma tríada sintomática constituída
para além daquela por alterações da atenção e 3. Perturbações do comportamento alimentar
impulsividade não associadas a qualquer outra As perturbações do comportamento alimentar
patologia psiquiátrica; tais manifestações são surgem em qualquer período da vida da criança e
responsáveis por grave desadaptação escolar e do jovem, sendo as mais frequentes e as mais sig-
social. Nos Estados Unidos este diagnóstico tem nificativas do ponto de vista da psicopatologia, as
vindo a banalizar-se e os respectivos critérios pro- que surgem na primeira infância e na adolescên-
gressivamente alargados e redefinidos. Na Europa cia.
e também em Portugal, os pedopsiquiatras con- Na primeira infância, pela imaturidade psi-
sideram esta entidade como um quadro clínico cológica, o corpo é um lugar privilegiado da
bem individualizado. Nestes casos tem-se verifi- expressão do sofrimento mental; na adolescência
cado que existe um forte componente hereditário, o corpo, com um papel fundamental na cons-
com vulnerabilidade genética. Nestas crianças trução da identidade sexual, é objecto de um forte
comprovou-se também alterações no sistema investimento por parte do jovem. São abordados,
dopaminérgico as quais não são, no entanto, nem pela sua gravidade e frequência, os seguintes
específicas nem determinantes (Capítulo 31). quadros:
Actualmente a ênfase tem sido dada à pertur-
bação da atenção, como o sinal mais característico Anorexia do lactente: define-se como um com-
desta patologia. Nesta perspectiva, a hiperactivi- portamento de recusa alimentar, sem causa
dade e a impulsividade podem ser entendidas orgânica; trata-se da forma mais frequente de per-
como uma consequência do défice de atenção. turbação do comportamento alimentar nesta
Os critérios diagnósticos de perturbação de idade.
hiperactividade com défice de atenção, segundo o
DSM-IV TR (Manual de Estatística e Diagnóstico Anorexia de oposição: é a forma mais comum e
das Perturbações Mentais) foram abordados em aparece a partir do 2º semestre de vida num con-
pormenor no âmbito da Parte sobre o Desenvolvi- texto de oposição, tornando-se as refeições ver-
mento e Comportamento, o que testemunha a dadeiros campos de batalha. A progressão pon-
afinidade da Pediatria do Desenvolvimento com a deral é baixa, mas constante, e a perda de peso,
Pedopsiquiatria tal como foi dito na Introdução quando se verifica, é motivo para preocupação. O
(Capítulo 32). seu início está ligado à mudança do regime ali-
Nos casos especificamente diagnosticados mentar do bebé e agrava-se durante a fase de
como de hiperactividade com défice de atenção, a aquisição do controle dos esfíncteres. Do ponto de
terapêutica apoia-se na utilização de fármacos vista psíquico, este sintoma associa-se ao processo
estimulantes (metilfenidato), que podem melho- de aquisição de autonomia da criança. Surge em
rar significativamente os sintomas, nomeada- crianças activas, com bom desenvolvimento psico-
mente a atenção e permitir, assim, uma melhoria motor, vivas e alegres. As interacções mãe-criança
franca do aproveitamento escolar. A terapêutica adquirem um carácter de imposição/oposição,
CAPÍTULO 36 Perturbações do comportamento 185
criando-se um círculo vicioso de aumento da geral uma figura apagada e submissa. As relações
ansiedade materna e de ganhos secundários por da jovem com a mãe são conflituosas e marcadas
parte da criança. A evolução é variável e depende por grande dependência, embora mascaradas por
muito da instalação de mecanismos de perpetu- uma pseudo-autonomia precoce.
ação do conflito na relação mãe-filho, não pare- Em muitos casos o início da doença está asso-
cendo haver continuidade entre esta forma de ciado a uma modificação na composição da
anorexia e a anorexia mental da adolescência (ver família (saída dum elemento da família, morte ou
capítulo 22). doença, divórcio), o que ilustra bem o carácter
Existem, no entanto, formas de anorexia de simbiótico do funcionamento familiar.
oposição, com recusas alimentares graves, de iní- Do ponto de vista individual a anorexia traduz
cio súbito e que se inscrevem no quadro de uma uma dificuldade da jovem no que respeita ao
psicopatologia precoce, como as psicoses de tipo processo psicológico que leva à construção da sua
autista, desarmonias evolutivas, ansiedade maciça identidade feminina, da aceitação da sexualidade
e invasiva. e da negociação da sua autonomia psíquica.
A anorexia caracteriza-se por uma restrição
Anorexia passiva ou de inércia: é uma forma voluntária da ingestão dos alimentos ao serviço de
grave de anorexia que se manifesta por uma uma intenção de emagrecer. O emagrecimento
rejeição silenciosa dos alimentos em bebés tristes, pode atingir níveis de caquexia sem demover a
apáticos, com desinteresse pela interacção social e jovem da sua determinação de recusar os alimen-
pelas solicitações do exterior, pouco activos na tos. Existem outros comportamentos associados,
procura de estimulação. Este quadro aparece como uso de laxantes, diuréticos, acessos de
geralmente no contexto de uma privação afectiva, bulimia com indução do vómito (50% dos casos ),
como por exemplo a insuficiência crónica da vin- prática exagerada de exercício físico, etc..
culação ou as descontinuidades e incoerências A amenorreia, habitualmente secundária, pode
nos cuidados e modos de vida da criança, preceder a perda de peso.
nomeadamente nos casos de famílias com riscos Outros elementos clínicos associados são:
múltiplos ou de patologia psiquiátrica materna • desejo de emagrecer e negação da magreza;
grave. • alteração da representação da imagem do
corpo;
Anorexia nervosa do adolescente: atinge 1% da • tendência a restringir as relações sociais;
população total adolescente e caracteriza-se por • hiperinvestimento escolar;
uma tríada sintomática que inclui anorexia, ema- • desinteresse pela sexualidade e pela imagem
grecimento (pelo menos 15% do peso normal) e corporal.
amenorreia. Tem repercussões somáticas graves Do ponto de vista orgânico, verifica-se:
provocadas pela desnutrição e uma taxa de mor- • diminuição do índice de massa corporal
talidade de 7 a 10%. Há um predomínio do sexo (IMC);
feminino (em 10 casos, apenas 1 é do sexo mas- • alterações cardiovasculares (bradicardia,
culino), com “picos” de frequência aos 14 e aos 18 hipotensão);
anos. No entanto, em cerca de 8% de casos o início • hipotermia;
verifica-se antes dos 10 anos. • Diminuição de TSH (tireotropina), FSH (hor-
Trata-se de uma patologia multifactorial que mona folículo-estimulante), T3 e T4 (tiroxi-
associa factores individuais (psicológicos e na).
biológicos) familiares e sociais. O diagnóstico é, em geral, simples de estabe-
Aparece com mais frequência nas classes mé- lecer, havendo, nos casos atípicos, que distinguir
dias e nas sociedades industrializadas. A proble- outras formas de anorexia associadas à depressão
mática familiar é complexa. Combina alguns ou ainda doenças do foro orgânico, nomeadamente
aspectos contraditórios do funcionamento fami- patologia digestiva ou da tiróide (Capítulo 44).
liar, nomeadamente uma aparente harmonia com As recaídas são frequentes embora, a longo
um funcionamento simbiótico, em que o pai é em prazo, haja tendência para o desaparecimento das
186 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Conclusão
Importância do problema
ractividade, sonolência, febre, convulsões, apneia, haveria 20 mil casos de crianças maltratadas. Por
cefaleias, dor abdominal. Podem atingir qualquer outro lado, a Comissão Nacional de Protecção de
aparelho ou sistema orgânico e sugerir uma Crianças e Jovens em Risco apurou a seguinte
variedade de processos patológicos. frequência relativa:
Por vezes existem antecedentes maternos da • Negligência e abandono: 65,8%;
referida síndroma. • Maus tratos físicos e psicológicos: 28,7%;
Classicamente a síndroma é mais frequente em • Abuso Sexual: 5,5%
crianças que ainda não falam; no entanto, estão
descritos casos no período pubertário. De salientar que o número de casos aumentou
De referir, no entanto, que por vezes existe 82% entre 1998 e 1999; provavelmente este achado
doença orgânica associada. deve-se, não a um aumento real das situações de
maus tratos, mas a uma maior inquietação e
Diagnóstico sensibilidade na detecção dos mesmos.
Face às suspeitas da situação, para além de redo- Deste estudo realça-se que em 83% dos casos,
brada vigilância estando a criança hospitalizada, os abusadores residem com a criança, sendo que
haverá que proceder a exames complementares em cerca de 65% dos casos o abusador é a mãe ou
comprovativos estritamente necessários e mini- o pai. Como se deduz, poucos casos de maus
mamente invasivos segundo o princípio de “primum tratos chegam a ser detectados e a ser objecto de
non nocere”. tratamento, sobretudo os casos de abuso intra
A propósito de exames complementares, cabe familiar, os quais se repetem frequentemente no
salientar que submeter uma criança a procedi- anonimato da família, muitas vezes com a
mentos invasivos excessivos, sem fundamentação conivência de alguns dos seus membros.
aparente, poderá ser considerado eticamente mau Os estudos epidemiológicos nesta área reali-
trato ou abuso. zados mais recentemente corroboram, no essen-
cial, os resultados referidos naquele.
Aspectos epidemiológicos
Factores de risco
É impossível determinar a verdadeira incidência
de casos de maus tratos em qualquer país e, São considerados factores de risco dos maus tratos
consequentemente, a morbilidade e mortalidade a todas as influências que aumentam a probabili-
eles associadas. Tal dificuldade deve-se ao facto dade de ocorrência ou de manutenção de tais si-
de um elevado número de casos acontecer em tuações. Contudo, na sua avaliação deve imperar
meio familiar (sendo assim de difícil visibilidade), sempre o bom senso, tendo em conta o contexto
à aceitação social de muitos deles, às dificuldades da situação, uma vez que qualquer destes factores,
no seu diagnóstico e à falta de notificação siste- isoladamente, poderá não constituir um factor de
mática dos mesmos. risco.
A maior parte dos maus tratos surge em todos Tais influências estão relacionadas com
os grupos sociais. Admite-se que acontecem com características individuais dos pais, da criança ou
maior frequência nas classes sociais mais desfa- jovem, assim como do contexto familiar, social e
vorecidas, em virtude das carências económicas a cultural.
que se associam as más condições habitacionais, o As características individuais dos pais são
baixo nível ou ausência de instrução escolar e da múltiplas, enumerando-se as mais frequentes:
promiscuidade, e a desorganização da vida profis- alcoolismo, toxicodependência; perturbação da
sional, social e familiar. saúde mental ou física; antecedentes de compor-
Algumas estimativas sugerem que o número tamento desviante; personalidade imatura e
de casos detectados corresponde apenas a 30 – impulsiva; baixo auto-controlo e reduzida tolerân-
35% do total. cia às frustrações; baixa auto-estima; antecedentes
De acordo com o estudo epidemiológico reali- de maus tratos na infância; idade muito jovem
zado em Portugal por Fausto Amaro, em 1985, (inferior a 20 anos, sobretudo as mães); baixo nível
CAPÍTULO 37 A criança maltratada 193
orienta estes casos deve pautar-se sempre por nuição da auto-estima, dificuldades no relaciona-
extrema prudência e calma, mostrando uma mento social, baixas expectativas de vida e trans-
atitude de compreensão e evitando juízos de crí- missão do mau trato às gerações futuras.
tica ou atitudes de punição da família. É
fundamental, pois, perceber que se está perante Prevenção
uma família doente e que uma intervenção de
ajuda é a mais correcta e comprovadamente mais Em todo o processo de protecção da infância, a
eficaz. prevenção dos maus tratos constitui a sua prio-
ridade fundamental. Existem três níveis de
Consequências orgânicas prevenção, consoante os objectivos e os alvos a
e psicossociais que é dirigida:
• Primária – prestação de serviços à população
Não é possível estabelecer uma relação simples em geral, tendo em vista evitar o apareci-
entre o tipo de maus tratos e as suas consequên- mento de casos de maus tratos;
cias a longo prazo, dado que na maior parte das • Secundária – prestação de serviços a grupos
vezes se trata de situações mistas, em todas elas específicos de risco, a fim de tratar ou evitar
estão subjacentes os maus tratos emocionais que, novos casos, promovendo o regresso da
pela sua natureza, são difíceis de identificar e criança à família;
controlar. • Terciária – prestação de serviços a vítimas de
Os maus tratos intrafamilares são aqueles que maus tratos, para minorar a gravidade das
mais graves consequências têm para crianças e consequências e evitar a recidiva.
jovens, dado que dos mesmos resultam uma A prevenção primária engloba vários tipos de
profunda quebra de confiança e uma importante medidas que devem ser dirigidas a dois alvos de
perda de segurança em casa, por sua vez uma níveis distintos, pelo que se designam prevenção
ameaça profunda para o desenvolvimento. primária inespecífica, ou específica.
É sabido que uma criança vítima de maus A prevenção primária inespecífica é dirigida à
tratos corre sérios riscos de morte, de lesões população em geral e deve começar por fomentar
cerebrais e sequelas graves, sobretudo no primeiro uma cultura antiviolência, passando pela infor-
ano de vida, se não for diagnosticada e não se mação da comunidade; pela promoção da saúde
providenciarem as medidas adequadas à sua materno-infantil; pela preparação de técnicos que
protecção. trabalham com crianças; pelo ensino aos futuros
A grande maioria dos casos fatais de maus pais; pela estimulação da relação mãe-filho; pela
tratos ocorre nas crianças com menos de 3 anos. protecção legal, e pela criação de estruturas sociais
As causas mais frequentes são os traumatismos de apoio à maternidade e a criança e ao jovem.
cranianos dos pequenos lactentes, seguidos pelas Deve incluir ainda medidas muito mais vastas de
lesões intra-abdominais (rotura de vísceras), cariz social, como a promoção da melhoria das
asfixia e sufocação. condições de vida, da saúde, e do emprego; e o
Nas crianças mais velhas, em idade escolar, combate ao trabalho infantil, ao alcoolismo e à
não existe geralmente risco de vida. A repetição toxicodependência, entre outras.
dos maus tratos físicos ou psicológicos vai ter, A prevenção primária específica tem como
contudo, repercussões graves na vida futura da principal objectivo a identificação das crianças e
vítima; importa, por isso, estar atento a estas famílias em risco. A estratégia de intervenção
questões no sentido de as prevenir, identificar e depende do tipo de problemas identificados em
tratar. cada família.
Em síntese, são consideradas, a longo prazo, as A identificação de crianças em risco na mater-
seguintes consequências psicossociais: atraso de nidade deve levar a maior vigilância e apoio à
crescimento, atraso de desenvolvimento, atraso de mãe: ensino de regras de puericultura; estimu-
linguagem, insucesso escolar, alterações de com- lação do aleitamento materno e da relação mãe-
portamento, risco elevado de delinquência, dimi- filho; acompanhamento mais estreito nas consul-
CAPÍTULO 37 A criança maltratada 195
tas de saúde infantil; promoção de programas de and youth: A comprehensive, national survey. Child
visitas domiciliárias; ensino da prevenção de Maltreat 2005; 10: 5-25
acidentes; tratamento da desintoxicação alcoólica Friedman SH, Friedman JB. Parents who kill their children.
ou toxicodependência dos pais; auxílio na aqui- Pediatr Rev 2010; 31: e10- e16
sição de benefícios sociais; melhoria das condições Gallardo J A: Maus tratos à criança. Porto: Porto Editora, 2005
habitacionais; integração em creches; e ocupação Giardino A, Alexander R (eds). Child Maltreatment: A Clinical
dos tempos livres. Estas medidas devem ser Guide and Reference. St. Louis: GW Medical Publishing,
desenvolvidas em todas as situações familiares de 2005
risco. Glew GM, Frey KS, Walker WO. Bullying update: are we
A prevenção secundária inclui: o tratamento making any progress?
adequado da criança e intervenção na família, e o Pediatr Rev 2010; 31:e68-e69
apoio e vigilância no domicílio e na comunidade. Hicks RA, Gaughan DC. Understanding fatal child abuse.
As visitas domiciliárias a cargo de enfermeiras, Child Abuse Negl 1995; 19: 855-863
assistentes sociais, a colaboração do médico de Hobbs CJ, Hanks HGI, Wynne JM (eds). Child Abuse and
família, e a integração das crianças em creches ou Neglect: A Clinician´s Handbook. London: Churchill
jardins de infância são medidas que devem fazer Livingstone, 1993
parte deste deste tipo de prevenção. Hornor G. Emotional maltreatment. J Pediatr Health care 2012;
As modalidades de abordagem acima referi- 26:436-442
das não terão êxito se não puderem contar com o Huertas JA. El maltrato infantil en la história. In: Niños
apoio de meios adequados e legislação que, garan- Maltratados. Madrid: Ediciones Díaz de Santos, 1997
tindo os direitos humanos, permita a sua apli- Kasim MS, Cheah I, Shafie H M. Childbook deaths from
cação. Assim, as estruturas políticas deverão ser physical abuse. Child Abuse Negl 1995;19:847-854
consideradas como parceiros sociais nas acções de Kliegman RM, Stanton BF et al (eds). Nelson Textbook of
prevenção relativas aos maus tratos. Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
A reflexão sobre os programas de prevenção Leventhal JM. Twenty years late: we do know how prevent
do mau trato permite deixar uma nota de opti- child abuse and neglect. Child Abuse Negl 1996; 20: 647-653
mismo desde que o apoio seja precoce e conti- Magalhães T. Maus tratos em crianças e jovens. Guia prático
nuado e, sobretudo, se se conseguir o estabele- para profissionais. Coimbra: Quarteto Editora, 2002: 33-36
cimento de uma relação respeitosa e de confiança McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
entre os técnicos e as famílias das crianças Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
maltratadas. Preer G, Sorrentino D, Ryznar E, et al. Child maltreatment:
Esta intervenção reestruturante da anarquia promising approaches and new directions. Curr Opin
das relações familiares consegue muitas vezes Pediatr 2013; 25: 268-274
estabilizá-las de forma a permitir o desabrochar Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
das potencialidades intelectuais e afectivas das AA(eds). Rudolph´s Pediatrics. New York : McGraw-Hill
crianças e jovens vítimas de maus tratos. Medical , 2011
Silverman FN. The roentgen manifestations of unrecognized
BIBLIOGRAFIA skeletal trauma in infants. Am J Roentgenol 1953; 69: 413-
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referência na sua recuperação. Coimbra: Quarteto Editora, Terreros IG. Los professionales de la salud ante el maltrato.
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Finkelhor D, Omrod R, Turner H. The victimization of children
196 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
38
• são passíveis de prevenção primária, secun-
dária e terciária, tal como a maioria das
doenças (Capítulo 1).
O que talvez diferencie os TFLA de outras
doenças é a rapidez da acção da causa e o pe-
queníssimo lapso de tempo entre a acção do agente
TRAUMATISMOS, FERIMENTOS e os sintomas e sinais, o que também contribui
para a dificuldade da prevenção, se analisarmos
E LESÕES ACIDENTAIS – esta numa perspectiva médica estrita.
Podemos também considerar os TFLA numa
O PAPEL DA PREVENÇÃO perspectiva ecológica, tal como por exemplo as
doenças infecciosas: o acidente resulta da inte-
Mário Cordeiro racção entre o agente, o meio humano e o meio
material, envolvendo o indivíduo. A aceitação
desta tríade (ou tétrada) traz consequências
imediatas: qualquer acção preventiva que deixe
Importância do problema de lado um dos elementos será votada ao insu-
cesso; por outro lado, a compreensão do problema
Os traumatismos, ferimentos e lesões acidentais na sua plena extensão passará obrigatoriamente
(TFLA) constituem, em quase todos os países do por uma análise aprofundada das circunstâncias e
Mundo, nos grupos etários da infância e da da história destas várias vertentes.
adolescência, a maior causa de morte, anos de O planeamento urbano e a construção, o
vida, potenciais perdidos, doença, internamento, design, a arquitectura, etc., constituem uma tarefa
recurso aos serviços de urgência, incapacidades complexa na qual é necessário ter em conta as
temporárias e definitivas. Consequentemente, diversas, e por vezes contraditórias, necessidades
constituem um dos problemas com custos socio- dos diversos grupos de cidadãos. Quando o
económicos mais elevados. desenvolvimento urbano – para citar um dos
Infelizmente, no nosso País o problema revela- exemplos actualmente mais preocupantes –, se
se de uma agudeza extrema, com taxas de baseia em interesses pouco claros ou unilaterais,
mortalidade, por exemplo, quatro vezes supe- remetendo para segundo lugar os interesses dos
riores às da Suécia. Encarar os acidentes como um cidadãos, designadamente a sua saúde, o resul-
grave problema nacional e assumir a sua tado é frequentemente um ambiente de má
resolução como uma tarefa de toda a sociedade é qualidade no qual as gerações presentes e vin-
um passo fundamental e indispensável. douras terão de viver. Acresce que os erros
A impessoalidade das cifras pode fazer-nos estruturais se traduzem geralmente por conse-
esquecer o drama humano, ao qual só damos a quências a longo prazo, sendo a sua inversão
necessária atenção quando somos confrontados extremamente dispendiosa e difícil, se não mesmo
com ele nas nossas casas ou no nosso círculo impossível.
pessoal de amigos. A origem dos acidentes que envolvem crianças
Os acidentes manifestam-se por "doenças" – os e jovens não reside assim, como veremos mais
traumatismos, ferimentos e lesões deles decor- desenvolvidamente, no "mau" comportamento
rentes (TFLA). Para aceitar esta definição basta ter daquelas ou destes mas, pelo contrário, na
presente que os TFLA: agressividade e desadaptação do ambiente às suas
• têm uma causa (um agente, a energia re- características físicas, mentais e psicológicas. Por
sultante dos impactes, do calor, do movi- outras palavras, não são as crianças e os adoles-
mento de objectos, etc.); centes que estão errados – o mundo que os rodeia
• provocam sintomas e sinais bem definidos; e onde são forçados a viver é que se torna, dia a
• têm um processo de diagnóstico; dia, mais e mais agressivo, e cada vez mais
• têm um processo de terapêutica; recheado de armadilhas.
CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção 197
será pouco adequada para o que resulta da nasce razoavelmente “inacabado” do ponto de
introdução de um corpo estranho. Porém, o que vista de maturação neuro-sensorial sendo portan-
encontramos nos serviços de urgência, nas to muito dependente do meio que o rodeia e da
consultas, nos cuidados intensivos, em casa, são protecção da sociedade. O desenvolvimento do
traumatismos, ferimentos e lesões causados por sistema nervoso central, até atingir a soma
um agente ambiental. extraordinária de um bilião de sinapses, prolonga-
Deveremos, pois, fazer um esforço para come- se após o nascimento, fundamentalmente no pri-
çar a usar, tanto quanto possível, uma terminolo- meiro quinquénio da vida. Por outro lado, para
gia mais correcta, com vista a reforçarmos e além da estrutura neurológica há a construção da
simplificarmos a compreensão do cerne do personalidade, a qual vai depender muito do
problema. A expressão "traumatismos, ferimentos ambiente nos seus diversos níveis, numa estreita
e lesões acidentais" parece a mais adequada aos relação, quer com o meio, quer interpares. Os
objectivos subjacentes às acções preventivas; e óptimos resultados da utilização das próprias
poderá chegar o dia em que as pessoas, interro- crianças como orientadoras do tráfego à saída de
gadas sobre o significado da palavra "acidente", uma escola demonstram bem o efeito estruturali-
respondam "cintos de segurança", "leis anti- zante positivo sobre os colegas, em contraponto
álcool", "protectores de tomadas", etc.. ao efeito negativo, por exemplo, dos desafios
A maioria das definições enferma um erro lançados também por colegas: "aposto que não és
substancial: o carácter "não premeditado" ou capaz de fazer isto ou aquilo!".
"inesperado" da situação, e a consequente falência É o ambiente que se deve adaptar à criança e
da "vontade humana" em a evitar. Isto seria ao jovem e não o contrário.
admitir, à partida, a impossibilidade de qualquer Qualquer programa de prevenção dos TFLA
acção preventiva, o que não corresponde à verda- terá, assim, de tomar em consideração algumas
de: é falso que os acidentes sejam imprevisíveis, características básicas do desenvolvimento infan-
já que os comportamentos das crianças e dos til, componentes indispensáveis para a compreen-
jovens fazem parte integrante do seu desenvolvi- são das várias etapas "acidentais" da criança e
mento físico, emocional e cognitivo normal. Na para, em termos de cuidados em antecipação, pro-
realidade, 90% dos TFLA são ao mesmo tempo mover as indispensáveis modificações ambientais
previsíveis e evitáveis. para que os riscos possam ser minorados, desi-
Os próprios dados epidemiológicos mostram gnadamente.
que a tipologia dos acidentes corresponde a um • a descoberta progressiva de si próprio, dos
padrão estreitamente relacionado com os conse- outros, do espaço e dos objectos que estão no
cutivos estádios de desenvolvimento e com as primeiro círculo, ou seja, ao alcance da mão
actividades do dia-a-dia da criança e do adolescente. e da visão; depois dos que estão mais longe;
Assim, sendo este padrão previsível, existem bases a seguir dos que estão escondidos para além
para intervenção e para acções preventivas, quer de outros objectos até ao mundo na sua
através de meios abstractos como a informação e totalidade; esta evolução é acompanhada
educação no sentido de melhorar comportamentos por uma correspondente capacidade motora
individuais e padrões de comportamento colectivos e de locomoção (sentar, gatinhar, pôr-se de
(nos quais se incluem as modas e a pressão social e pé, andar, trepar, correr, juntar uma cadeira e
de grupo), quer sobretudo activamente, através da um banco, etc);
construção de um ambiente seguro onde o • a curiosidade progressiva;
desenvolvimento normal possa ter lugar sem se • o uso dos cinco sentidos para conhecer o
correrem riscos inaceitáveis. mundo, incluindo a necessidade imperiosa
de mexer nos objectos e de levar tudo à boca;
3. Compreensão do desenvolvimento • as características associadas às outras idades
e comportamento humanos – escolar, adolescência –, associadas ao cres-
cimento e à maturação, quer orgânica, quer
O ser humano, ao contrário de outros mamíferos, psicológica, emocional e da personalidade.
CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção 201
As limitações fisiológicas das capacidades da ção de acidentes, com a noção de que uma criança
criança, decorrentes dos estádios do seu desen- não é um adulto em miniatura.2
volvimento neuro-psíquico-sensório-comporta- Há que dar ao conceito de “exposição ao
mental, devem ser tidas muito em conta, como se risco” um lugar fundamental, embora se tenha de
pode demonstrar através de alguns exemplos: admitir que o mesmo risco se pode expressar de
– uma criança de três anos que se debruça numa modo diferente conforme os casos. Só assim se
varanda não tem a sensação da distância até ao poderá explicar – através de um modelo compor-
solo e atirar-se-á para os braços de alguém que, tamental – a maior frequência de acidentes nesta
lá de baixo, esteja a chamá-la; ou naquela situação. Nos acidentes desportivos,
– uma criança de dois anos não tem a sensação por exemplo, há maior envolvimento de rapazes,
da profundidade: verá uma escada na con- à excepção dos TFLA sofridos na prática de
tinuação directa e plana do corredor de onde equitação, justamente porque este desporto é mais
vem a correr; praticado por raparigas.
– uma criança com menos de dez anos de ida- A opção individual face aos diferentes riscos
de poderá não ter ainda capacidade para é igualmente um elemento a considerar: sabe-se,
atravessar uma rua sozinha pois frequente- por exemplo, que para a mesma viagem o risco de
mente não entende de onde vem o som, não mortalidade ao ir de automóvel é 20 vezes su-
consegue calcular a velocidade dos automó- perior ao de ir de avião, e 600 vezes superior ao da
veis nem a distância a que se encontram; viagem de comboio. Obviamente que uma escolha
dificilmente será capaz de integrar a infor- criteriosa e informada obrigará ao conhecimento
mação recebida quando olhar para a esquer- prévio dos diversos riscos e seus graus.
da e a que seguidamente recebe quando olhar Ainda no que respeita aos comportamentos, na
para a direita sem esquecer a primeira; demo- adolescência, por exemplo, vigoram em maior ou
rará mais tempo a efectuar qualquer tipo de menor grau comportamentos experimentais ou
análise da situação em termos espaciais e condutas de ensaio naturais e normais, desejáveis
sensoriais, designadamente a exclusão de e importantes em termos de integração no grupo e
estímulos inúteis para o objectivo em causa; de avaliação das próprias capacidades num corpo
e, finalmente, distrair-se-á com estímulos que que se transforma e num espírito que se auto-
para ela são mais atractivos, como um amigo, propõe desafios constantes.
uma bola ou qualquer outra coisa. Outro aspecto a ter em linha de conta nos
Incorporar na mentalidade dos pais e profis- jovens são os comportamentos para-suicidários,
sionais estes conceitos, cientificamente demons- ou seja, aqueles em que, por diversas razões de
trados e afinal tão óbvios, não é tarefa fácil. Acres- ordem psicológica, numa idade em que podem
ce que os comportamentos associados às diversas com maior frequência ocorrer momentos frágeis
características e etapas do desenvolvimento infan- ou de maior vulnerabilidade, mormente com
til não são passíveis de "correcção" substancial, dificuldade na gestão do estresse, o risco é assu-
nem o devem ser, pois que, sem eles, a criança ver- mido de uma forma excessiva, através de compor-
se-ia privada de elementos estimulantes da sua tamentos em que um dos resultados possíveis,
criatividade, inteligência, capacidade de resolver quiçá até o mais provável, é a morte ou pelo
situações, de experimentar, numa palavra, de cres- menos um traumatismo, ferimento ou lesão grave.
cer. Por outro lado, ver-se-ia também privada de Para compreender a génese dos acidentes juvenis,
um dos seus mais elementares direitos - o de "ser designadamente os que ocorrem com veículos de
criança", no que isso implica de exploração do
mundo, de actividades lúdicas, de ausência de 2. Um exemplo bem elucidativo do que não deve ser feito relata-se
responsabilidades não adequadas à idade. É assim em breves palavras: num parque de baloiços sueco, um rapaz caiu de
entre estes dois objectivos aparentemente contra- um escorrega e partiu uma perna apesar de o chão ser de areia. Após a
ocorrência, a associação de pais desenvolveu uma acção intensa para
ditórios – a necessidade de aprender experimen- que os escorregas e demais equipamentos fossem retirados do parque.
talmente e a necessidade de ser protegido – que As entidades locais cederam às pressões e assim aconteceu.
Imediatamente as crianças começaram a brincar e a trepar para locais
teremos de desenvolver os programas de preven- muito mais perigosos, com consequências muito mais graves.
202 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
duas rodas, é necessário compreender estes com- tuações, atitudes e comportamentos perfeitos: um
portamentos. condutor, por exemplo, é confrontado em cada
Todavia, convém não esquecer que os riscos milha (1,6 km) com 200 observações e 20 decisões.
são úteis e têm mesmo uma função individual e Admitindo uma incidência perfeitamente razoá-
social – a abolição total das actividades de risco vel de um erro em cada quarenta decisões (2,5%),
significaria o fim de diversos desportos profissio- tal corresponderia a um risco de um erro por cada
nais, da aviação civil, da profissão de bombeiro, três quilómetros percorridos (cerca de 100 erros
polícia e (porque não), se calhar mesmo, a de em cada viagem de cerca de 35 km. Com o cansaço
médico. ou sob o efeito do álcool, a relação erro/decisão
De qualquer forma, cada indivíduo vê-se a si aumenta. Este tipo de análise é de grande interes-
próprio como tendo comportamentos menos se, não apenas porque demonstra a incerteza da
arriscados (ou por outras palavras, mais "ajuiza- confiabilidade humana, repudiando a teoria de
dos") do que a maioria das pessoas o que, a ser que os "maus condutores" são “loucos”, “assas-
verdade, levaria a um problema matemático sinos” ou ambas as coisas, mas também porque,
complicado, do todo ser superior à soma das correlacionando este indicador com a velocidade,
partes – se perguntarmos a cada um de nós como pode calcular-se por exemplo que a 60 km/h
classificamos o trânsito diremos que é caótico e ocorrerá um erro em cada 5-6 minutos e que a 80
que as pessoas não respeitam as regras. Mas km/h ocorrerá um erro cada 3-4 minutos. Se
diremos também que se isso acontece é porque adicionarmos a isto o facto de o erro se manifestar
"nós" respeitamos as regras e os "outros" não. Os sobre uma máquina de várias centenas de quilos,
outros responderão da mesma forma, o que levará que desloca uma massa de muitas toneladas, não
decerto o investigador a não saír da “estaca zero”. sentida por quem está confortavelmente sentado,
Ao pretendermos estudar e equacionar o ouvindo música e à temperatura desejada, sem
comportamento das crianças urge também tomar ruído e com excelentes amortecedores, é facilmen-
em consideração os comportamentos dos adultos, te compreensível o enorme risco que um condutor
designadamente: tem de sofrer um acidente. Diríamos mesmo que
• incumprimento de regras; quase se torna estranho não haver mais acidentes.
• estar-se convencido de que se cumpre Mais: quantos condutores saberão, por exemplo,
mesmo quando não se cumpre; que a 90 km/h a distância média de travagem é de
• má gestão do estresse; pelo menos 45 metros? E que, em caso de piso
• incapacidade de lidar simultaneamente com molhado, esta distância sobe para praticamente o
todos os desafios para os quais se requer dobro? E quantos saberão que, desde que se tem a
atenção e acção; noção do perigo até se travar (“distância de
• alterações comportamentais motivadas pelo reacção”), decorrem 12, 19 ou 25 segundos,
cansaço, pela frustração, pela ansiedade, etc.. conforme a velocidade é 60, 90 ou 120 km/h e que,
Só assim se explica, por exemplo, a falência de portanto, é verdadeira a afirmação de que “se não
medidas que à primeira vista poderiam ser consi- se conseguiu travar a tempo é porque se circulava
deradas fáceis e ideais, como por exemplo dos a velocidade excessiva para as circunstâncias da
sinais avisadores da proximidade de uma escola, altura”? Poder-se-á quase perguntar: como é
de redução de velocidade ou as passadeiras e os possível autorizar-se a condução a indivíduos que
semáforos junto aos portões das escolas. Se as desconhecem a máquina que conduzem, os ele-
determinações subjacentes fossem inteiramente mentos que circulam e tantos outros indicadores
cumpridas, o problema dos atropelamentos esta- que eliminariam à partida a sua capacidade de
ria praticamente resolvido; mas a prática demons- manobrar outras máquinas industriais? Poderá
tra que assim não é. Ignorar este aspecto é perder jogar xadrez quem não conhece os nomes das pe-
uma parte essencial para a compreensão global do ças, os seus movimentos e os objectivos e regras
problema. do jogo? Ou ser cirurgião quem nunca estudou
Por outro lado, não se pode exigir de seres im- anatomia ou utilizou um bisturi?
perfeitos, como os seres humanos, análises de si- Só será possível gizar e aplicar efectivamente
CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção 203
medidas de prevenção dos acidentes e consequen- Cornell, referiu que o homem interage com os
temente dos TFLA, se houver uma profunda com- diversos fluxos de energia que o rodeiam –
preensão das características do comportamento gravitacionais e mecânicos, radiantes, térmicos,
humano, quer em termos de "laboratório", quer na eléctricos e químicos. As trocas de energia, quando
vida real, perante os estímulos de ordem vária e não equilibradas, podem causar traumatismos,
perante o estresse. ferimentos e lesões. Assim, a melhor forma de
classificar os acidentes seria de acordo com o tipo de
4. O ambiente como factor energia envolvida. O problema de classificação de
fundamental alguns tipos de acidentes que não se encaixavam
em nenhum destes tipos de energia – como os
Não nos podemos esquecer de que os agentes afogamentos, a asfixia ou as lesões pelo frio – foi
envolvidos na prevenção dos TFLA – dos legis- resolvido por Haddon ao incluir o conceito de
ladores aos médicos, dos pais aos políticos, dos "agentes negativos", os quais se explicariam pelo
educadores aos arquitectos, etc. – pertencem à défice de elementos energéticos essenciais como o
espécie humana, são de "carne e osso" e, como tal, oxigénio ou o calor, nestes tipos de TFLA.
comportam-se humanamente, quer no que toca à Os estudos de Haddon constituem marcos
riqueza da sua criatividade, quer na fraqueza das essenciais para a compreensão inovadora dos aci-
suas falhas e lacunas. dentes. A sua matriz, cruzando horizontalmente
Assim, sem eliminar completamente a res- três fases (antes, durante e depois do acidente)
ponsabilidade individual – quer das crianças e com quatro elementos verticais (hospedeiro, ve-
jovens, quer sobretudo das famílias – deve ctor, ambiente físico e ambiente sócio-económico)
atribuir-se o maior peso a outros factores. permite explicar os vários condicionalismos e fac-
Hugh De Haven, um piloto de aviões da I tores que tornam cada acidente um caso diferente,
Guerra Mundial e sobrevivente de uma queda do com resultados diferentes:
avião que tripulava, dedicou-se a estudar a razão • na fase "antes" encontram-se os diversos fac-
pela qual algumas pessoas, sofrendo o mesmo tipo tores que fazem com que o acidente vá
de acidente (neste caso a queda), não sofriam ocorrer – por exemplo, segundo os quatro
praticamente qualquer lesão enquanto outras elementos verticais mencionados, o hospe-
faleciam. Os seus estudos levaram à conclusão de deiro que está ébrio, os travões do carro que
que não era a força da queda, per se, que infligia as funcionam mal, a estrada que tem uma
lesões, mas sim o ambiente estrutural que controla- curva mal desenhada e a atitude permissiva
va a desaceleração da força e a sua distribuição pelo da sociedade perante o álcool e a condução;
corpo. De Haven concluiu então que "se não fosse • na segunda fase, "durante", estão os elemen-
possível evitar a queda, pelo menos poderiam ser tos que determinam se o acidente (que entre-
tomadas medidas para reduzir o impacte e distribuir tanto ocorreu) dá ou não origem a um
as pressões de modo a aumentar as hipóteses de traumatismo, ferimento ou lesão – no exem-
sobrevida e modificar o tipo de lesões, quer ao nível plo vertente, e ainda segundo os quatro
da aviação, quer do transporte em terra". parâmetros verticais: os ocupantes da viatu-
Hugh de Haven foi, assim, o primeiro investi- ra usam cinto de segurança?, o carro é pe-
gador a compreender a importância dos limiares queno ou é grande?, o carro bate numa
traumáticos e a possibilidade de redistribuir e árvore ou num monte de feno? existe ou não
redimensionar a energia dos impactes por forma a uma lei que reforce o uso de cintos?;
torná-los menos agressivos para o corpo humano. • a terceira fase ("depois") contém elementos
Este princípio serviu de base ao uso do cinto de que determinam se a gravidade das conse-
segurança, aos air-bags e às mudanças estruturais quências pode ser minorada: A hemorragia é
nas carrocerias e habitáculos dos automóveis. Ou importante? Os primeiros socorros chegaram
seja, o problema dos TFLA passou assim a pertencer rapidamente? Os cuidados intensivos são
também ao domínio da biomecânica. Gibson, um eficientes? A sociedade investiu num sistema
psicólogo experimental da Universidade de de emergência médica?
204 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Para Haddon, modificando um ou alguns des- bientais a efectuar, de preferência nos locais onde
tes parâmetros teria implicações nas consequên- elas devem ter lugar.
cias de um acidente. Daí a importância de, por exemplo, incre-
Através da legislação, da sua fiscalização, da mentar a visitação domiciliária para cuidados de
utilização das tecnologias para alterar a conce- antecipação nesta área da prevenção, desde que os
pção e o fabrico dos produtos, os técnicos de di- agentes sejam preparados convenientemente.
versas áreas têm como objectivo evitar o contacto Os meios de comunicação constituem, por
do ser humano com quantidades de energia que outro lado um poderosíssimo meio de transmis-
lhe possam causar lesões e até a morte. Reside aí são de mensagens, de informação e de modelação
a chave da prevenção dos TFLA. de comportamentos (bem como de criação de ne-
Obviamente que não deve ser retirada ao ser cessidades), nomeadamente através de programas
humano a sua quota parte da responsabilidade. Se informativos, educativos, lúdicos ou de entreteni-
a energia de um impacte de um automóvel com mento.
uma árvore, por exemplo, é independente do con-
dutor e depende, sim, do cinto de segurança, da 5. Estratégias
estrutura do automóvel, da velocidade, do peso,
do tamanho da árvore, da travagem, de a coluna A construção de um meio ambiente de qualidade
do volante ser colapsável ou não, etc., também que permita o desenvolvimento harmonioso da
não restam dúvidas de que a atitude de o con- família e dos cidadãos é da responsabilidade de
dutor optar por conduzir sóbrio ou ébrio, ou de todos nós, requerendo um trabalho multi – e
colocar ou não o cinto de segurança, pode ser transdisciplinar.
decisiva para a sua ocorrência ou para as suas A prevenção dos acidentes passa por um pro-
consequências. Só que, em vez de uma acção "edu- grama centrado na comunidade, de acção am-
cativa" que é apenas informativa e muitas vezes biental, no qual os médicos deverão, evidente-
assustadora ou punitiva, as modificações no mente, desempenhar um papel de relevo, sendo
sentido de actuar "pensando segurança" fazem-se que não se deverão considerar os detentores
através de uma aprendizagem comportamental exclusivos do protagonismo.
que se baseia no exemplo, no ensino, na moda, e Alguns TFLA podem ser prevenidos através de
que tem de se iniciar muito precocemente, tal uma acção global, nacional ou internacional, como
como a higiene oral, o lavar das mãos, ou cumpri- certas intoxicações (se houver legislação e
mentar os pais e os amigos. Daí a prioridade que cumprimento desta no que se refere às embalagens
deve ser dada às crianças e adolescentes, grupos de segurança), ou acidentes com a criança como
etários estes que estão numa fase eminentemente passageiro do automóvel (por exemplo, se a lei
formativa da sua vida. Só incorporando a se- referente ao transporte correcto for cumprida).
gurança nos gestos banais e nos actos instintivos Outros que têm a sua génese em inadequações
poderá haver uma certa garantia de êxito. Não nos urbanísticas e arquitectónicas, necessitam de uma
podemos esquecer de que a larga maioria dos abordagem local (é o caso dos atropelamentos à
acidentes ocorre, quer numa normalíssima situa- porta das escolas, dos TFLA sofridos em parques
ção do dia-a-dia, quer numa situação de estresse, infantis, em quedas de varandas, afogamentos em
e que, em ambas, o "catálogo" das recomendações piscinas ou rios) e exigem transformações
de segurança não está presente na mente das ambientais de tipo estrutural.
pessoas. Em alguns países, como a Suécia, foi possível
A educação para a prevenção dos acidentes (graças a uma acção sistemática integrada, ini-
deverá, assim, privilegiar os meios mais adequa- ciada ainda na década de 50 que reuniu as
dos à interiorização das mensagens (e não apenas autoridades oficiais, organizações não governa-
o "bombardeamento" do alvo com mensagens) mentais, companhias de seguros e forças-vivas da
para o que são indispensáveis a utilização das sociedade) uma redução muito significativa no
técnicas de comunicação e de marketing, o con- número de óbitos e na morbilidade por TFLA, até
tacto pessoal e a demonstração das alterações am- a Suécia se tornar o país com indicadores mais
CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção 205
baixos de todo o mundo industrializado. Curiosa- O ponto 3) poderá ser concretizado com certas
mente, o ponto de partida no final da década de medidas a saber:
50, quando estas acções começaram a ter lugar, era A. Medidas com o objectivo de impedir a
muito semelhante ao de outros países, designa- troca de energia entre um e outro:
damente de Portugal. • evitar a situação ou abolir o agente (eliminar
Para tal, é indispensável, como já referimos, um pesticida perigoso)
conhecer a situação com vista a identificar • separar o agente da criança (vedar uma
prioridades, utilizando para tal a abordagem da piscina)
saúde pública, classificando os problemas se- • vigiar a criança para impedir o contacto,
gundo a sua prevalência/incidência, a sua trans- apesar de não haver separação (acompanhar
cendência (a vários níveis) e a vulnerabilidade às uma criança de casa à escola)
diversas acções e medidas. • informar a criança dos riscos (educação para a
Será também indispensável fazer uma ampla segurança)
revisão da literatura e consultar peritos de várias
instituições para identificar quais as medidas e B. Medidas que reduzem a troca de energia
acções que são verdadeiramente eficientes, se- ou melhoram a recepção da energia
parando-as das que, embora aparentemente efi- • reduzir a quantidade ou a agressividade do
cazes, não se traduzem muitas vezes por uma agente (reduzir a temperatura máxima da água
melhoria da situação. canalizada)
Outro aspecto fundamental é não desenvolver • modificar a situação e o agente (embalagens
programas demasiado alargados. "Prevenir os de segurança)
acidentes" é um conceito demasiado vago para ser • aumentar a resistência da criança (usar
entendido em termos práticos e, novamente, cadeira de segurança no automóvel)
podendo desencadear a noção de falsa-segurança. • treinar a criança para melhor enfrentar o
Em cada local haverá que identificar por ordem de agente (aprender a nadar)
prioridade quais os tipos de acidentes que estão a
produzir mais TFLA e hierarquizá-los de forma a Para além destas, é essencial desencadear
iniciar programas para os mais frequentes, mais também as medidas que, uma vez ocorrido o
graves, com maior vulnerabilidade às medidas e TFLA, poderão permitir a prevenção secundária e
acções, com maior relação benefício/custo. terciária.
Será igualmente fundamental ampliar a infor-
mação sobre os acidentes e os TFLA, de modo a Notas importantes:
sensibilizar o público, designadamente sobre as • algumas medidas devem ser tomadas “de
prioridades e as medidas propostas, a fim de obter uma vez”, como a compra por exemplo de
uma maior adesão dos cidadãos. O envolvimento um fogão no qual não haja aquecimento da
destes na definição do problema, em toda a sua porta – é relativamente fácil concretizar este
extensão, e a sua colaboração enquanto técnicos grupo de medidas (consideradas evidente-
mas também como seres humanos com experiên- mente a acessibilidade, disponibilidade e ou-
cia acumulada, não só é fundamental como tros factores);
representa o reconhecimento de um direito legí- • outras deverão ser repetidas todos os dias,
timo. como colocar o cinto de segurança –
Para além disso, no sentido de produzir as podendo, contudo ser estabelecidas desde
necessárias modificações ambientais: 1) há que que se crie o hábito;
fazer um levantamento dos recursos materiais e
humanos; 2) analisar através da matriz de 6. Legislação
Haddon quais os pontos fracos da cadeia de cada
TFLA, a fim de os "partir"; 3) redimensionar o A integração de Portugal na União Europeia
contacto entre a energia (agente + situação) e a reforçou o naipe legislativo português, pela
vítima. transposição para o Direito Interno do nosso País,
206 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
das directivas e normas europeias. Poder-se-á beçados pelos nórdicos mas também na Holanda,
dizer que, globalmente, Portugal dispõe de um Reino Unido, Alemanha e outros) a definição de
conjunto leis que, se levadas à prática, poderiam padrões sociais de exigência mesmo na ausência
contribuir para reduzir de forma muito evidente o de legislação na perspectiva do bem-estar da
número de acidentes e de TFLA. Há, no entanto, população em idade pediátrica.
alguns problemas que subsistem – a segurança no
transporte colectivo de crianças ou o uso do 7. Consciencialização dos cidadãos
capacete de bicicleta.
O problema principal no processo legislativo É imperioso aumentar o reconhecimento e a
reside no atraso registado na regulamentação das consciencialização da população e de todos os ní-
leis, (condição essencial para a sua aplicabilidade) veis dos sectores público e privado relativamente
dizendo respeito, por exemplo, ao espaço entre as à necessidade do controlo de TFLA. A natural
grades de uma cama de bebé, à altura dos degraus lentidão do processo de interiorização de concei-
de uma escada ou à altura das janelas. Refira-se, a tos novos não deverá ser impedimento à transmis-
propósito, que as Câmaras Municipais e os Ser- são de mensagens que são consideradas correctas,
viços de Saúde, designadamente, não dispõem pelo que as campanhas de educação para a saúde
ainda de meios legais para controlar aspectos e de chamada de atenção para os problemas,
essenciais relacionados com a construção de deverão incluir os TFLA (nas suas vertentes de
edifícios e com o ambiente onde as crianças vão prevenção e, cuidados de saúde agudos e reabi-
viver. litação). Claro está que, dadas as reticências que
Na Suécia, apesar de a utilização de actualmente são levantadas a estes processos,
dispositivos para transporte de crianças ter tido designadamente no que se refere à sua eficácia e
início quando Olof Palme era Ministro dos eficiência, eles deverão ser bem elaborados, com
Transportes, no final dos anos 60, por pressão dos extensa utilização das técnicas de comunicação
pediatras encabeçados por Ragnar Berfenstam, e existentes e com uma noção clara do que será
existindo programas de aluguer e outros que importante transmitir.
generalizaram o acesso a estes dispositivos (sendo Os profissionais estão frequentemente alheados
o grau de utilização de praticamente 100%), a do problema ou das formas de o resolver. Quantos
legislação só foi produzida em 1988, numa altura arquitectos e engenheiros não conhecem ou não
em que qualquer pai ou mãe suecos já não utilizam a legislação existente relativa aos materiais
admitiriam a hipótese de transportar incorrecta- de construção e à segurança da construção?
mente os filhos. Quantos médicos ignoram os ditames da segurança
No Reino Unido, foi em 1959 que, pela primei- no que toca aos medicamentos? Quantos tóxicos são
ra vez, se levantou no Parlamento a questão do vendidos sem um alerta para as condições de utili-
uso de cinto de segurança; em 1973 foi elaborada zação e armazenamento? etc.. O ensino/ apren-
a primeira proposta formal mas só em 1981 a lei dizagem da segurança deverá começar quando
foi aprovada. Passaram, pois, muitos anos. Se este começa o de outras áreas mas, dentro do percurso
lapso de tempo pode ser considerado grande e de formação profissional, importa investir mais e
levar a uma perda inútil de vidas e a TFLA melhor, em quantidade e qualidade.
evitáveis, por outro lado permite que, desde que Em suma, os acidentes custam tantos ou mais
bem utilizado, o processo legislativo seja acom- anos de vida e tanto sofrimento e dinheiro como o
panhado pela população e o articulado legal conjunto das doenças cardiovasculares e do cancro.
entendido e aceite. Levam a incapacidades permanentes. Contudo, um
A existência de Provedorias da Criança, com pouco à margem da preocupação dos cidadãos.
tanto sucesso na Escandinávia, e a inclusão dos
aspectos de segurança e prevenção dos TFLA no BIBLIOGRAFIA
capítulo dos Direitos da Criança e dos Direitos do American Academy of Pediatrics. Committee on Injury and
Cidadão (designadamente nos direitos do consu- Poison Prevention: Children in Pick up Trucks. Pediatrics
midor) permitiu também em muitos países (enca- 2000; 106: 857-859
CAPÍTULO 39 Intoxicações agudas 207
39
Committee on Injury, Violence and Poison Prevention. The
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Tremblay RE, Nagin DS, Seguin JR. Physical aggression during Intoxicação é definida como a acção exercida por
early childhood: trajectories and predictors. Pediatrics substância tóxica (veneno) no organismo e o con-
2004; 114: e 43-50 junto de pertubações daí resultantes.
Na sua forma aguda, trata-se de situações classi-
camente abordadas no capítulo sobre Urgências e
Emergências. De acordo com estudos epide-
miológicos, cerca de 3/4 dos casos surgem em
crianças com menos de 5 anos (de forma aciden-
tal) enquanto cerca 1/4 dos casos após a referida
idade (em geral de forma voluntária e inten-
cional, sobretudo na pré-adolescência e adoles-
cência).
As exposições acidentais, susceptíveis de pre-
venção através de educação cívica e campanhas
de esclarecimento, têm, na maioria dos casos,
consequências bem menos temíveis (1,4 % de
mortalidade) que as intoxicações de origem vo-
luntária (6% de mortalidade) o que se justifica,
nesta última circunstância, pela exposição a
maior número de tóxicos e a doses mais elevadas
ingeridas.
Etiopatogénese e semiologia
Abreviaturas: MCAD – Medium – Chain Acyl CoA Dehydrogenase; MDMA – Metileno- Dioxi – Metanfetamina; SNC – Sistema Nervoso Central
sódio a 8,4% (1-2 ml/kg/dia i.v. para manter pH – Remoção do tóxico (em unidades de cuida-
urinário> 7,5): para salicilatos, barbituratos, isoni- dos intensivos) por:
azida, ácido diclorofenoacético. • Diálise: moléculas com baixo peso molecular
– Irrigação intestinal completa (administração (para salicilatos, metanol, etilenoglicol, vancomi-
entérica de uma solução electrolítica osmotica- cina, lítio, isopropranolol).
mente equilibrada de polietileno glicol – 30 • Hemoperfusão: para tóxicos com solubili-
ml/Kg/ hora – para induzir fezes líquidas, dade baixa na água, grande afinidade para o
continuando tratamento até que as emissões rec- adsorvente, rapidez de equilíbrio dos tecidos peri-
tais sejam claras): para substâncias que não são féricos para o sangue e baixa afinidade para as
adsorvidas pelo carvão activado, tenham trânsito proteínas plasmáticas (carbamazepina, barbitu-
intestinal lento e apresentem risco de vida. ratos e teofilina)
210 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Tóxico Antídoto
Benzodiazepinas Flumazenil
-bloqueantes Adrenalina(infusão), glucagom
Monóxido de Carbono Oxigénio
Tetracloreto de Carbono N-acetilcisteína
Digoxina Anticorpos antidigoxina
Ferro Desferroxamina
Isoniazida Piridoxina, bicarbonato de sódio
Lítio Substituição salina, dopamina
Metemoglobinémia Azul de metileno
Metanol Etanol
Etilenoglicol Fomepizol
Metoclopramida Prociclidina
Opióides Naloxona
Organofosforados Atropina, pralidoxina, toxogonina
Paracetamol N-acetilcisteína
Tiroxina Propranolol
Anticolinérgicos Fisiostigmina
Sulfonilureias Octreotido
Antidepressivos tricíclicos Bicarbonato de sódio
• Hemofiltração: para remoção de moléculas Emerg Med Clin North Am 2003; 21: 101-119
com grande peso molecular (aminoglicosídeos, Crocetti M, Barone MA. Oski’s Essential Pediatrics.
teofilina, ferro e lítio). Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
Nota: há substâncias que tornam inúteis as téc- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
nicas extracorporais: benzodiazepinas, antide- Henry K, Harris CR. Deadly ingestions. Pediatr Clin North Am
pressivos tricíclicos, fenotiazidas, clorodiazepóxi- 2006; 53: 293-315
do e dextropropoxifeno. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
4. Antídotos: a utilização dos antídotos Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
(Quadro 3) deve ser guiada pela suspeita especí- Saunders, 2011
fica e pode constituir prova terapêutica. McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
Prevenção Michael JB, Sztajnkrycer MD. Deadly pediatric poisons: nine
common agents that kill at low doses. Emerg Clin North
Apesar de o diagnóstico precoce e as medidas de Am 2004; 22: 1019-1050
suporte conduzirem a uma recuperação na maio- Riordan M, Rylance G, Berry K. Poisoning in children. Arch
ria das situações, torna-se obrigatório falar na pre- Dis Child 2002; 87: 392-410
venção e na abordagem psicossocial das intoxi- Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph’s Pediatrics.
cações e acidentes em geral; todas as noções gerais New York: McGraw-Hill Medical, 2011
explanadas no capítulo sobre traumatismos, feri-
mentos e lesões acidentais têm perfeito cabimento
no âmbito das intoxicações (capítulo 38).
BIBLIOGRAFIA
Barry JD. Diagnosis and management of the poisoned child.
Pediatr Ann 2005; 34: 937-946
Bryant S, Singer J. Management of toxic exposure in children.
CAPÍTULO 40 Viagens 211
40
deverão andar sempre identificadas e saber o que
fazer no caso de se perderem.
No avião o barotrauma é mais frequente
durante a descida, ocorrendo otalgia numa peque-
na proporção (cerca de 15%). Aos lactentes poderá
ser oferecido um biberão enquanto as crianças mais
VIAGENS velhas poderão mascar pastilha elástica ou soprar
um balão. O uso de vasoconstritores nasais é con-
Luís Varandas troverso.
Os acidentes são a principal causa de morte
entre os viajantes. A utilização de cadeiras de
criança nos automóveis, os cintos de segurança e o
Importância do problema respeito pelas regras de trânsito contribuem para a
redução da morbilidade e mortalidade pelos aci-
Por ano partem da Europa e dos Estados Unidos dentes de viação. O hotel ou a casa onde vão ficar
da América vários milhões de pessoas, tendo devem ser cuidadosamente inspeccionados para
como destino as regiões tropicais; de tal resulta identificar e corrigir possíveis causas de acidentes.
que muitas famílias se desloquem e residam por O contacto com animais deve ser evitado.
períodos mais ou menos longos nos países em Os afogamentos são a segunda causa de morte
desenvolvimento. Apesar de as crianças repre- em crianças viajantes. Os banhos só deverão ser
sentarem uma pequena percentagem dos via- autorizados em locais considerados seguros e de
jantes, os acidentes, doenças infecciosas cos- fácil supervisão por parte dos pais. Só a água sal-
mopolitas, e outras, próprias de regiões tropicais, gada e a água clorada das piscinas são considera-
constituem de facto um risco para quem se deslo- das seguras. A exposição solar nas horas de maior
ca para essas regiões. Embora nalgumas situações calor e/ou prolongada deve ser evitada.
seja aconselhável o recurso a uma consulta de
aconselhamento pré-viagem a cargo de um médi- Alimentos e bebidas
co ou equipa experiente em Medicina das Viagens,
na generalidade das situações o pediatra deve A água deve ser sempre desinfectada [duas a qua-
estar apto a prestar esclarecimentos à família. No tro gotas de uma solução de cloro (hipoclorito de
Hospital Dona Estefânia existe desde 2002 uma sódio a 2-4% ou vulgar lixívia pura) por litro de
consulta de aconselhamento à criança e à família água], ou fervida durante três a cinco minutos;
que pretendam viajar para regiões tropicais. (Nota: pode optar-se pela engarrafada que é considerada
Uma vez que este capítulo contém matéria relacionada mais segura. As bebidas carbonatadas são de baixo
com a Parte de Infecciologia, sugere-se ao leitor a risco, mas não se deve adicionar gelo obtido a par-
respectiva consulta). tir de água não tratada. A carne, o peixe e os vege-
tais devem ser bem cozinhados e ingeridos ainda
Preparação da viagem quentes. Os vegetais a comer crus devem ser lava-
dos e mergulhados em soluções de iodo ou cloro
A viagem deverá ser preparada com o máximo durante 20 minutos. Os frutos devem ser descasca-
cuidado e com o conhecimento tão completo quan- dos de preferência pelo próprio.
to possível do local de destino. Os pais deverão
estar esclarecidos antecipadamente sobre possíveis Protecção contra insectos
problemas que possam ocorrer e estar preparados
para os resolver. Para a tradicional pergunta “e se?” Casas com ar condicionado, redes mosquiteiras nas
deverão ter a resposta preparada. Sempre que pos- janelas e nas camas (de preferência impregnadas
sível, a viagem deverá ser preparada com as crian- com permetrina), insecticidas em “spray” ou de li-
ças o que implica alteração das rotinas diárias dis- bertação lenta devem ser usados para protecção de
cutidas previamente. Durante a viagem as mesmas toda a família. As roupas de cor clara, facilitando a
212 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
mente recomendadas a quem permaneça por lon- doses e a de 5 serótipos em três doses; em ambas,
gos períodos em regiões endémicas. com intervalo mínimo de 4 semanas, a partir das
A vacina antifebre amarela é recomendada a seis semanas e, somente até às 12 semanas de
todos os viajantes para as zonas endémicas de idade.
África e América do Sul, podendo ser exigida pelas A vacina antivaricela não é recomendada como
autoridades locais. Está contraindicada nas crian- rotina embora possa ser administrada nos casos de
ças alérgicas ao ovo e imunocompremetidas. viajantes de longa duração para áreas muito iso-
A vacina anti-hepatite A é recomendada para ladas. Trata-se duma vacina de vírus vivo atenuado
quem viaja para todas as regiões tropicais e subtrop- indicada para crianças com idade superior a 12
icais, independentemente da duração da estadia. meses de idade (2 doses com 4 semanas de interva-
A vacina anticolérica (Dukoral®), tem a van- lo mínimo). (Quadro 2) (Consultar Parte XXIX e
tagem de conferir protecção cruzada contra a diar- Capítulo 116).
reia do viajante causada por algumas estirpes de E
coli. Profilaxia da malária
A vacina antipneumococo poderá ser recomen-
dada a crianças viajantes para regiões com difícil Em áreas de sensibilidade à cloroquina (Resochina®‚)
acesso aos serviços de saúde. Relativamente aos (América Central, Caraíbas, raras zonas da América
dois tipos destas vacinas comercializadas em do Sul e Médio Oriente), esta mantém-se como
Portugal, cabe salientar o seguinte: 1) A vacina com primeira escolha.
polissacáridos contendo 23 serótipos está indicada Nas áreas de resistência à cloroquina (África,
em crianças com idade superior a 2 anos (dose Sudoeste Asiático, Polinésia, bacia do Amazonas) o
única, 0,5 ml por via IM ou SC); 2) a vacina conjun- fármaco de primeira escolha é a mefloquina
gada com 7 serótipos pode ser administrada a par- (Mephaquin®‚); como alternativa pode usar-se a
tir dos 2 meses de idade com intervalos de 4 a 8 atovaquona/proguanil (Malarone®‚) e a doxiciclina
semanas; às crianças com idades entre 1-2 anos são (Quadro 3).
recomendadas, apenas, 2 doses, sem reforço. A A associação cloroquina (Resochina®‚) e
vacina anti-rotavírus poderá ser administrada sem- proguanil (Paludrina®‚) (o Savarine®‚ contém os
pre que um lactente com idade inferior a 3 meses se dois fármacos) pode ser usada em áreas sem resis-
desloque para regiões tropicais. Com efeito, nas tência ou de resistência intermédia. O Malarone®‚ e
regiões tropicais a infecção gastrintestinal ocorre o Savarine®‚ encontram-se nalguns locais onde fun-
durante todo o ano, ao contrário do que acontece cionam Consultas do Viajante; e o Malarone®‚
nos países de clima temperado, com pico de inci- pediátrico, apenas, no Hospital de Dona Estefânia
dência nos meses mais frios. em Lisboa.
Em Portugal estão comercializadas duas marcas Nenhum tratamento profiláctico é totalmente
de vacinas diferindo pelo número de serótipos, seguro, razão pela qual o diagnóstico precoce e o
podendo coincidir a sua administração com as do tratamento imediato e adequado são fundamentais
PNV. A de 2 serótipos é administrada em duas em caso de doença. Viagens que impliquem esta-
#contraindicada na presença de deficiência de G-6-PD (deficiência de desidrogenase da glucose-6-fosfato), retinopatia, epilepsia, psicose e miastenia gravis; §contraindicadas em grávidas e crianças com
menos de oito anos de idade; *contraindicada em casos de epilepsia, perturbações psiquiátricas e distúrbios da condução cardíaca.
214 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Profilaxia Autotratamento
Nenhuma Cloroquina (áreas de P vivax)
Mefloquina
Quinino
Atovaquona/proguanil
Artemether/lumefantrina*
Cloroquina ou cloroquina/proguanil Mefloquina
Quinino
Mefloquina Quinino**
Quinino+doxiciclina
Doxiciclina Mefloquina
Quinino
* não disponível em Portugal; ** reiniciar profilaxia com mefloquina uma semana após a última dose de quinino
dias prolongadas em regiões isoladas e com defi- Consulta após regresso da viagem
cientes cuidados de saúde poderão justificar o
autotratamento na suspeita de uma crise de Esta consulta recomenda-se sempre que a estadia
malária. Os fármacos a utilizar dependem da área tenha sido prolongada, sobretudo em meio rural,
geográfica, da circustância de a criança estar já sub- ou se tenham registado algumas problemas de
metida a profilaxia e do respectivo fármaco saúde. A criança que regressa doente ou adoece
(Quadro 4). Não existe ainda experiência suficiente logo após o regresso deve ser avaliada, de imedia-
sobre a utilização de atovaquona/proguanil e to, independentemente da duração e do local da
artemether/ lumefantrina para autotratamento nos estadia. Contudo, não deve ser esquecido que o
casos em que a profilaxia está já em curso com out- período de incubação das várias doenças é muito
ros antimaláricos. variável (Quadro 5). O conhecimento da epidemi-
Adaptado de Mahmoud AAF, ed. Tropical and Geographical Medicine. Singapore: McGrawHill, 1993.
CAPÍTULO 41 Acidentes de submersão 215
41
ologia e da clínica das doenças mais prevalentes
nos locais de estadia da criança permitirá estabele-
cer a lista de diagnósticos mais prováveis e a sub-
sequente investigação laboratorial.
a hipoxémia com consequente morte celular. A lidade de existência de água perto da área do aci-
mortalidade e morbilidade estão, no essencial, dente, pais distraídos ou vigilantes ainda que mo-
dependentes da duração da hipoxemia. No quase mentaneamente, rapidez e silêncio.
afogamento são frequentes o aparecimento de com- Haverá que inquirir sobre antecedentes de
plicações multiorgânicas resultantes da hipoxémia, epilepsia, doenças cardíacas, traumatismos cervi-
seja directamente relacionada com a submersão ou cais e ingestão de álcool ou drogas.
secundária a complicações, mais frequentamente Os sintomas e sinais habitualmente associados
pulmonares, cardíacas e as neurológicas. são: tosse, dispneia, sibilos, hipotermia, vómitos,
A hipovolemia é frequente por perdas de líqui- diarreia, arritmia cardíaca, alteração da consciên-
dos relacionadas com as alterações de permeabili- cia, paragem cardio-respiratória, morte. Haverá
dade vascular secundária à hipóxia. E a hipona- que avaliar a estabilidade cervical pela probabili-
tremia, quando se desenvolve, está mais rela- dade de acidentes com fractura das vértebras cer-
cionada com os líquidos deglutidos do que com os vicais. Haverá igualmente que detectar eventuais
líquidos aspirados; e, eventualmente com a sín- sinais de abuso e negligência.
droma de secreção inapropriada de hormona Em função do contexto clínico, poderá haver
antidiurética (SIHAD) no contexto de disfunção necessidade de proceder a:
pulmonar e ou do SNC. a) Monitorização contínua cardio-respiratória,
A nível pulmonar, que por alteração do surfac- da pressão arterial e da saturação O2-Hb
tante, quer por diluição do mesmo, o resultado é (oximetria de pulso), ECG.
uma acentuada diminuição da capacidade resi- b) Exames complementares: hemograma,
dual funcional, alteração na permeabilidade da gasometria, ionograma, enzimas hepáticas,
membrana alvéolo-capilar e consequente hipoxé- glicémia, doseamento de drogas e álcool.
mia, o que se pode verificar a partir de 1 a 3 c) Estudos imagiológicos: radiografia do
ml/Kg de líquido aspirado. tórax, do crânio e da coluna cervical, etc..
De referir o papel importante dos mediadores
inflamatórios, da hipersecreção nas vias respi- Procedimento
ratórias e da vasoconstrição no território da artéria
pulmonar originando hipertensão pulmonar. A actuação deve ser doseada de acordo com os
A hipoxémia, a acidose metabólica, e a hiperper- dados da história clínica e dos exames comple-
meabilidade vascular condicionam o aparecimento mentares.
de hipovolémia e disfunção cardíaca, e a breve trecho, • A medida prioritária é a administração de
hipotensão importante, muitas vezes irreversível. oxigénio suplementar a 100%, sempre e em
As questões relativas à submersão em água primeiro lugar.
muito fria (<5º C), água fria e água quente (>20º O uso de Ambú pode implicar a utilização de
C), água doce e água salgada são de nula relevân- pressões bastante superiores às habituais devido à
cia clínica.* As alterações osmóticas surgem acima baixa distensibilidade pulmonar, resultante do
de 22ml/kg aspirados, sendo que na maioria dos edema pulmonar, com compromisso do surfactante.
afogamentos não são aspirados mais de 5ml/kg. • Não esquecer a hipótese de lesão cervical e a
colocação de colar cervical.
Avaliação Pacientes com breves momentos de submersão
e sem sintomatologia podem regressar a casa após
A história clínica é importante e inclui a eventua- 4 a 6 horas de observação.
Pacientes com sinais de disfunção respiratória,
* Com efeito, na literatura tradicional era afirmado:1) a água salgada hipoxémia, alterações do estado de consciência ou
leva, por osmose, à passagem de água do espaço vascular para os pul- suspeita de abuso/negligência devem ser trans-
mões, com preenchimento alveolar e hipovolémia ;2) água doce, pelo
contrário, leva a absorção de água para o espaço vascular com conse- feridos para unidade de cuidados intensivos,
quentes hipervolémia e hemólise. Na prática tal não se verifica, pos- onde deverá proceder-se a:
sivelmente porque na maioria dos sobreviventes o tempo decorrido é
insuficiente para que se verique aspiração (suficiente) de água para • Entubação nasogástrica
provocar as referidas alterações. • Expansão vascular (soro fisiológico: 20
CAPÍTULO 41 Acidentes de submersão 217
ml/kg em 30 minutos) que, associada à oxi- Crianças em coma, continuam a ter um pro-
genação, resolve quase sempre a acidose gnóstico reservado.
metabólica.
• Entubação e ventilação mecânica se se veri- Prevenção
ficar dificuldade respiratória, alteração do
sensório, paO2 < 60 torr ou pH < 7,20. É fre- Segundo a Associação para a Promoção da Segu-
quente a necessidade de PEEP (pressão posi- rança infantil – APSI morrem anualmente em
tiva contínua no fim da expiração) elevada. Portugal, por afogamento cerca de 30 crianças por
• Algaliação ano. Ocorrem predominantemente em rapazes de
• Cateterização venosa central 1 a 4 anos e dos 15 a 19 anos. É importante notar
• Broncoscopia que por cada morte existirão cerca de 20 atendi-
Nota: Os doentes afogados em água muito fria, mentos em serviços de urgência e até 5 sobre-
< a 5ºC, devem ser observados com especial cui- viventes com alguma forma de deficiência.
dado. Devem ser aquecidos até atingirem temper- Quase sempre acidentais, as situações de
aturas normais ao mesmo tempo mantendo as afogamento podem ser prevenidas com medidas
manobras de reanimação. simples de fácil aplicação prática.
A monitorização da pressão intracraniana não • Bom senso e medidas simples: colocação de
parece ser útil nem necessária. portas de segurança, muros e redes, em
torno de poços, tanques, piscinas, etc..
Complicações • Mesmo sob vigia: as bóias devem ser evi-
tadas.
As complicações imediatas são as relacionadas • Adulto de vigia devendo saber nadar e actuar
com a hipóxia e acidose com repercussão sobre o em caso de acidente.
sistema cardiovascular, tendo em atenção a possi- • Banheiras, baldes e alguidares esvaziados
bílidade de disritmias e, em particular, fibrilhação após utilização.
ventricular e assistolia. Se a lesão cardíaca for • Nunca nadar só ou sem vigilância
muito grave o choque cardiogénico irreversível é NB – Crianças que sabem nadar constituem as de
uma possibilidade. maior risco pela sensação de segurança que trans-
As lesões do SNC dependem igualmente da mitem.
intensidade e duração da hipóxia. A sobrevivência
em estado vegetativo é uma complicação particu- BIBLIOGRAFIA
larmente grave. American Heart Association: 2005 AHA guidelines for car-
O quase afogamento associa-se muito fre- diopulmonary resuscitation and emergency cardiovascular
quentemente a pneumonia, e no caso da submer- care. Circulation 2005; 112 (suppl): IV-133-IV-138
são em piscina, a pneumonite. Bifrens JJ, Knape JT, et al. Drowning. Curr Opin Crit Care 2002;
8: 578-586
Prognóstico Helfaer MA, Nichols DG. Roger’s Handbook of Pediatric
Intensive care. Philadelphia:Lippincott Williams & Wilkins,
O prognóstico está directamente relacionado com 2009
a duração e magnitude da hipóxia e com a quali- Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
dade dos cuidados pré-hospitalares. Os doentes Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
que necessitam de ressuscitação cárdio-respi- Quan L, Cummings P. Characteristics of drowning by different
ratória no hospital têm uma taxa elevadíssima de age groups. Inj Prev 2003; 9: 163-168
mortalidade e morbilidade (35-60% morrem no Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA
serviço de urgência). Dos sobreviventes, em 60 a (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
100% poderão registar-se sequelas neurológicas. Medical , 2011
Nos doentes admitidos em estado vigil no Ruza F. Tratado de Cuidados Intensivos Pediátricos. Madrid:
serviço de urgência o prognóstico depende de Norma-Capitel, 2003
eventuais complicações pulmonares. http://www.apsi.org.pt/index.html, (acesso, Setembro 2013)
218 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
42
1 mês e 1 ano de idade. Nos Estados Unidos a
SMSL ocorre em cerca 1,3/1000 nado-vivos.
Desconhece-se a sua verdadeira dimensão em
Portugal.
A ocorrência de morte súbita é rara no primeiro
mês de vida, aumenta até um valor máximo entre
SÍNDROMA DA MORTE SÚBITA os 2 e os 4 meses, sendo de referir que cerca de
95% dos casos surgem antes dos 6 meses de idade.
DO LACTENTE Acontece geralmente no domicílio, sendo o
lactente encontrado morto no leito.
Hercília Guimarães As campanhas de sensibilização para colocar os
lactentes em decúbito dorsal no berço resultaram
numa acentuada diminuição da incidência da morte
súbita em vários países, embora esta ainda continue
Definição e importância do problema a ser a maior causa de mortalidade nos lactentes
após o período neonatal, como foi acentuado.
Em 1969 Beckwith e Bergman da Universidade de Após esta redução, o peso da exposição ao
Washington propuseram o nome de síndroma da tabaco, como factor de risco, aumentou.
morte súbita do lactente (SMSL), (SIDS – sudden No nosso país, foi efectuado um estudo retros-
infant death syndrome), que definiram como a pectivo dos casos autopsiados de lactentes vítimas
morte inesperada de qualquer recém-nascido ou de morte súbita, nos Institutos de Medicina Legal do
lactente (idade inferior a 1 ano), inexplicada pela Porto e de Coimbra, entre 1979 e 1994, que mostrou
história, exame físico, autópsia e investigação da um aumento do número de casos de 1974 a 1990,
cena da morte. com decréscimo a partir de 1992. Verificou-se um
De acordo com a definição deduz-se que se predomínio acentuado da síndroma da morte súbita
torna indispensável proceder a exame necrópsico do lactente no sexo masculino, entre ao 1 e 4 meses,
exaustivo em cada caso, pois trata-se de um diag- nos meses de Dezembro a Março, nos fins-de-sema-
nóstico de exclusão, que só poderá ser considerado na, no domicílio, em períodos de sono e à noite.
se o estudo realizado após a morte for adequado.
A morte súbita de uma criança, é, sem dúvida Etiopatogénese
alguma, um acontecimento brutal e devastador
para os pais, família, profissionais de saúde e Apesar de exaustiva investigação (laboratorial e
comunidade. clínica) sobre a etiopatogénese da SMSL, esta con-
A primeira referência escrita sobre morte súbi- tinua desconhecida, o que também limita uma
ta do lactente foi encontrada no Antigo Testa- adequada estratégia de intervenção.
mento. Posteriormente várias descrições surgi- A concepção actual de morte súbita do lactente
ram, sendo a maioria das vezes interpretadas é a de um acidente multifactorial, no qual vários
como homicídio ou sufocação na cama dos pais. aspectos serão considerados, tais como: 1) factores
Só no séc. XVIII se procurou distinguir entre genéticos/ constitucionais – maturação do contro-
morte súbita acidental e homicídio, através de lo das funções vitais (ritmo cárdio-respiratório,
uma investigação policial. Mais tarde, no séc. XIX, sono, imunidade, etc.), maturação essa, programa-
surgiu um estudo escocês que, pela primeira vez, da geneticamente, que se efectua nos primeiros
se dedicou à epidemiologia destas mortes. meses de vida, com importantes variações individ-
uais; 2) factores desencadeantes – as patologias
Aspectos epidemiológicos habituais desta faixa etária, numerosas e variadas,
por vezes acumuladas, nomeadamente infecção,
A SMSL, a causa mais comum de morte em refluxo gastresogágico, hipertonia vagal, hiperter-
lactentes nos países desenvolvidos, comparticipa mia; 3) factores predisponentes ligados ao ambi-
em cerca de 40 a 50% a taxa de mortalidade entre ente do lactente, como sejam, condições sócio-
CAPÍTULO 42 Síndroma da morte súbita do lactente 219
há controvérsias como é o caso dos doentes com ta, não interferindo com a duração da amamenta-
refluxo gastresofágico: o decúbito lateral direito ção desde que introduzido após as 2-4 semanas de
promove esvaziamento gástrico mais rápido e o idade; 3) evicção do hiperaquecimento do
lateral esquerdo diminui significativamente o con- ambiente; 4) papel benéfico das imunizações sem
teúdo gástrico refluído. Nesta situação, a que se estabeleça uma relação de causa a efeito,
recomendação para a prevenção da morte súbita verificando-se no entanto que a SMSL é mais fre-
consiste em usar um colchão não mole, firme, bem quente entre os 2 e 4 meses.
adaptado às dimensões do berço, não cobrir A monitorização no domicílio só terá lugar em
demasiado o lactente – a roupa não deve ultrapas- casos seleccionados, pois constitui um factor de
sar os ombros e evitar o sobreaquecimento. O tipo estresse para a família, e não permite a detecção
de decúbito poderá, pois, ter prescrição médica da apneia obstrutiva, porque a detecção é feita por
variável em situações específicas, como o RGE. impedância torácica e não pelo débito nasal.
Em França, nas décadas de 80 e 90, com as cam- No Hospital de S. João, com o objectivo de co-
panhas realizadas contra a posição de decúbito nhecer a informação que os pais possuem relati-
ventral, para dormir, assistiu-se a uma descida dos vamente à morte súbita do lactente, foram realiza-
casos de morte súbita de 1500 casos em 1987, para dos 134 inquéritos a puérperas do Serviço de
500 em 1995, o que corresponde a uma diminuição Obstetrícia. Verificou-se um total desconhecimen-
de 2 % para 0,5 % na taxa de mortalidade por to desta entidade clínica em 28,5 % das mães,
morte súbita. sendo que 24 % consideravam que nada poderia
Em Portugal, a divulgação dos conhecimentos ser feito para evitar tal ocorrência. Apenas 35,8 %
sobre morte súbita do lactente e a formação dos das mães conhecia a associação da morte súbita
profissionais e pais não adquiriu a dimensão que do lactente com a posição deste no berço, e 1,5 %,
decorreu das campanhas realizadas noutros países com o consumo de tabaco pela grávida e/ou lac-
da Europa. No Boletim de Saúde Infantil é referido, tante. A posição de decúbito ventral no berço foi
nos conselhos aos pais, que o bebé deve ser colocado referida como a mais indicada por 2,2 % das mães.
“preferencialmente de costas”. Este aspecto, ainda Em igual percentagem as mães agasalham os fi-
motivo de admiração de muitos pais, é confirmado lhos em caso de febre, apenas 35 % afirmavam que
muitas vezes nas consultas de saúde infantil. o lactente deve ser despido em caso de febre, e
O decúbito dorsal permite ao bebé respirar o 14 % ministravam antipirético.
ar ambiente normalmente; em caso de febre pode Este estudo mostra que continua a ser essen-
facilmente libertar-se da roupa que o cobre, não cial a divulgação das recomendações sobre as es-
correndo o risco de se sufocar. Até aos 2 anos a tratégias de evicção dos factores de risco conheci-
criança deve dormir sobre um colchão firme, dos. Esta é uma função de todos os profissionais
numa cama de grades para evitar que respire o ar de saúde que devem dar informação e formação
expirado, e sem almofada ou fralda na mão. A aos pais, aproveitando o período de permanência
temperatura do quarto deve ser entre 18º e 20ºC e, nas maternidades. De referir que durante este
em caso de febre a mesma deve ser despida período os pais estão particularmente sensibiliza-
(arrefecimento físico). Os pais devem ser igual- dos para a aprendizagem de aspectos de pre-
mente informados dos malefícios do fumo do venção em saúde e de procedimentos como os
tabaco, que também está implicado como factor relacionados com normas de reanimação básica,
de risco de SMSL. Sabe-se que um recém-nascido de grande utilidade nos casos de ALTE
ou lactente privado do sono é mais vulnerável, Em Portugal, assiste-se actualmente a uma pre-
pelo que o seu sono deve ser respeitado. ocupação sobre esta problemática e será necessário
Recomendações recentes da AAP chamam a continuar: 1) a sensibilizar os médicos para um reg-
atenção para determinados aspectos que poderão isto adequado das causas de morte e 2) a levar a
contribuir para redução do risco, tais como: 1) ali- cabo Campanhas Nacionais de Prevenção da Morte
mentação com leite materno que permite um des- Súbita, no âmbito da educação para a saúde da
pertar mais fácil comparativamente ao que decor- população, que permitam, à semelhança doutros
re da alimentação com fórmula; 2) uso de chupe- países, uma diminuição do número de casos.
222 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
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PARTE VIII
Clínica da Adolescência
224 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
43
O critério cronológico, porém, não é o mais
correcto para classificar adequadamente um
adolescente. As acentuadas mudanças que ocor-
rem nas áreas – biológica, cognitiva, afectiva, e
social, estão estreitamente ligadas entre si, embora
nem sempre decorram em simultâneo; exemplifi-
ADOLESCÊNCIA, cando: um adolescente com crescimento e desen-
volvimento físico em fase adiantada pode apre-
CRESCIMENTO E sentar ainda características emocionais da faixa
etária anterior e vice-versa.
DESENVOLVIMENTO Por este motivo a adolescência corresponde a uma
fase da vida com grande vulnerabilidade em que se
Maria do Carmo Silva Pinto manifestam dúvidas e problemas que, a não serem
devidamente resolvidos, podem deixar marcas
importantes de imaturidade na pessoa adulta.
A adolescência (do latim adolescere, significando O ritmo acelerado de crescimento nesta fase é
crescer) corresponde a um período da vida carac- consequência da secreção de hormona de cres-
terizado por um crescimento e desenvolvimento cimento e dos esteróides sexuais (estradiol e
biopsicossocial marcados, o qual decorre entre o testosterona).
final do período de criança (~10 anos) e a adultícia. A paragem do crescimento, evidenciada pelo
Neste período ocorrem várias alterações a encerramento epifisário, é influenciada pela acção
diferentes níveis: das hormonas sexuais (testosterona e estrogénios),
• biológico – correspondendo a grandes mo- parecendo ser os estrogénios os responsáveis pelo
dificações anátomo-fisiológicas; encerramento das cartilagens de crescimento em
• psicológico – correspondendo à conquista da ambos os sexos.
identidade e à aquisição de autonomia; À medida que o amadurecimento sexual
• social – correspondendo à adaptação har- avança, a aceleração do crescimento diminui. Por
moniosa ao meio social. este motivo, na avaliação do crescimento do
A idade de início do amadurecimento físico, adolescente, deve relacionar-se a sua altura e idade
bem como o intervalo de tempo decorrido até à com o seu estádio de desenvolvimento sexual e a
aquisição de maturidade psicossocial plena, é idade óssea, para se poder determinar a potencia-
variável de indivíduo para indivíduo, com lidade de crescimento.
possibilidade de desfasamento, o que dificulta a Assim, um jovem pré-adolescente de 12 anos,
delimitação do começo e do fim da adolescência. com altura no percentil 3 (P3), mas sem mani-
Contudo, quer por motivos científicos(por ex. festações pubertárias, tem maior potencialidade
comparação de resultados de estudos), quer por de crescimento do que outro com a mesma altura,
motivos burocrático-administrativos (por ex. mas desenvolvimento mais acentuado dos carac-
realização de trabalhos, programação de serviços, teres sexuais secundários.
etc.),torna-se indispensável estabelecer limites O aumento estatural durante a adolescência
cronológicos de idade para este grupo. equivale a 20-25% da altura final do adulto; tal
Assim, a OMS em 1965 definiu a adolescência resulta, em primeiro lugar, do crescimento dos
como o período que se estende aproximadamente membros inferiores e, em segundo lugar, do
dos 10-18 anos, compreendendo três fases: crescimento do tronco. Esta situação pode ser
• dos 10 a 12 – adolescência precoce; traduzida ao estilo lúdico – pela verificação do
• dos 13 a 15 – adolescência média; seguinte: começam por deixar de servir os sapatos,
• dos 16 a 18 – adolescência tardia. depois as calças e, por fim, as camisolas.
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento 225
Como resultado deste importante crescimento pré-adolescente ocorre lentamente nos dois sexos,
do tronco, é frequente o aparecimento ou diminuindo na fase do pico de crescimento, e
agravamento de desvios da coluna – escoliose do chegando a ser praticamente nula no sexo mas-
adolescente e cifose juvenil. Por este motivo, o culino. Após esta fase, a deposição de gordura
exame da coluna deve sempre fazer parte da observação volta a aumentar, sendo então mais acentuada nas
do adolescente. raparigas do que nos rapazes.
As diferenças individuais no que respeita ao As preocupações com o peso surgem no
crescimento em estatura, da sua normalidade, e da adolescente quando o mesmo estabelece compa-
forma como se relacionam com a maturação ração com os seus pares; nas raparigas é mais
sexual, devem ser transmitidas ao adolescente de frequente a preocupação com o excesso de peso
forma a reduzir ao mínimo as preocupações que (sinto-me gorda…), enquanto nos rapazes com a
habitualmente surgem nesta fase de rápidas e escassez de musculatura (tenho pouco músculo…).
muito relevantes transformações corporais.
As preocupações com a altura surgem quando Crescimento de órgãos e sistemas
o adolescente se compara com os seus pares no seu
grupo de referência, sendo mais frequente no Na adolescência verifica-se o crescimento de
rapaz de estatura baixa e nas raparigas com vários órgãos, tais como coração, pulmões, fígado,
excesso de altura. baço, rins, assim como de glândulas: pâncreas,
O ganho de peso corresponde a cerca de 50% tiróide, suprarrenais, etc.; no tecido linfóide, por
do peso adulto final. outro lado, verifica-se involução.
O ritmo de aceleração do ganho em peso é Do crescimento do tecido ósseo resulta,em
semelhante ao do ganho em altura, sendo que a diversas regiões:
curva de velocidade de crescimento se inicia 1 ano – Aumento da estatura (o de maior magnitude)
e meio mais precocemente e com menor inten- – Aumento discreto dos ossos da cabeça e face,
sidade na rapariga do que no rapaz. com consequente modificação da expressão facial,
O pico de velocidade máxima em ganho de essencialmente devido à pneumatização dos seios
peso, ocorre cerca de 6 meses após o pico de frontais;
crescimento em estatura nas raparigas, enquanto – Crescimento do nariz e maxilar superior;
nos rapazes coincide no tempo. – Aumento da distância interescapular e do
No sexo masculino, a elevação ponderal pode diâmetro transversal do tronco, mais marcado no
chegar aos 6,5 Kg – 12,5 Kg por ano, em média 9,5 sexo masculino, devido ao facto de as células
Kg/ano, fazendo-se sobretudo à custa do aumento cartilagíneas das articulações do ombro respon-
da massa muscular. O número de células derem selectivamente ao aumento da testosterona;
musculares aumenta cerca de 14 vezes desde os 5 – Aumento da distância intertrocanteriana no
aos 16 anos, e as dimensões das células aumentam sexo feminino (alargamento da cintura pélvica)
até quase ao final da 3ª década de vida sob acção nas raparigas devido à maior sensibilidade das
dos androgénios. Por esta razão o homem tem, em células cartilagíneas da articulação coxo-femoral
regra, mais 30% de massa muscular que a mulher. ao aumento dos estrogénios.
O pico do crescimento muscular coincide com Assim, verifica-se : 1) aspecto de ombros largos
o pico de velocidade máxima de peso e de altura. tipicamente masculino, com relação diâmetro
No sexo feminino o aumento de peso é cerca biacromial/diâmetro bi-ilíaco mais acentuada no
5,5 - 10,5 Kg/ano, em média 8,5 Kg/ano, fazendo- rapaz; 2) aspecto de anca larga tipicamente
se fundamentalmente por deposição de gordura feminino com relação diâmetro biacromial/
sob a influência de estrogénios. Também se verifica diâmetro bi-ilíaco menos acentuada na rapariga.
acréscimo da massa muscular, mas em menor grau No sistema nervoso central ocorre uma ver-
do que no sexo masculino. Este facto é devido ao dadeira reconstrução do cérebro. Do início da
aumento do volume das células musculares, sem puberdade até aos 15 anos desenvolvem-se sobre-
aumento do número das mesmas. tudo as regiões cerebrais ligadas à linguagem; este
A deposição de gordura subcutânea na fase período é, por isso, ideal para a aprendizagem de
226 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
línguas. O cérebro da rapariga amadurece mais secundários – botão mamário, aumento dos
cedo do que o do rapaz. Os estrogénios têm um testículos e pénis e desenvolvimento do pêlo
papel importante nesta mudança. púbico e axilar e;
No rapaz o amadurecimento é mais tardio, o • pela conquista da capacidade reprodutora;
que é explicável pela síntese mais tardia dos 2. aceleração da velocidade de crescimento –
estrogénios a partir da testosterona. A maior parte pico de crescimento pubertário
das alterações do cérebro ocorre no córtex pré- 3. alterações da composição corporal resultan-
frontal – área responsável pelo planeamento a tes:
longo prazo, pelo controlo de emoções e pelo • do desenvolvimento esquelético, muscular,
sentido de responsabilidade. Esta área desenvol- modificação da quantidade e da distribuição da
ver-se-á até por volta dos 20-25 anos. Por este gordura corporal;
motivo o adolescente na hora de tomar uma • do desenvolvimento dos diferentes órgãos e
decisão nem sempre está apto para entrar em conta sistemas, nomeadamente dos aparelhos res-
com as informações de que precisa para o fazer piratório e cardiocirculatório, com aumento da
correctamente. Não se trata, pois, duma simples força e resistência física.
oposição aos pais, mas sim duma limitação bio- De facto, não se sabe o que realmente desen-
lógica. cadeia a puberdade. Num determinado momento
No que respeita aos olhos verifica-se um do amadurecimento global do organismo, o córtex
aumento maior no seu eixo sagital, o que justifica cerebral gradualmente começa a emitir estímulos
o desenvolvimento mais frequente da miopia para receptores hipotalâmicos produtores de
durante a fase de crescimento rápido pubertário. polipéptidos – factores libertadores – os quais
Sob a influência da testosterona, a actividade promovem, ao nível da hipófise anterior, a
da eritropoietina aumenta, o que explica, no rapaz, produção de gonadotrofinas hipofisárias. Estas,
valores mais elevados do número de eritrócitos , pela via sanguínea, vão estimular as gónadas
do hematócrito e da concentração de hemoglobina. femininas e masculinas com consequente pro-
A pressão arterial sofre um aumento conse- dução de hormonas sexuais as quais, em conjunto
quente às alterações fisiológicas do sistema com os androgénios suprarrenais, vão promover
cardiovascular próprias deste período, nomeada- as diferentes alterações orgânicas, finalizando a
mente expansão do volume plasmático, aumento diferenciação sexual (iniciada in utero) e o cresci-
do débito cardíaco e da resistência vascular mento estaturo-ponderal.
periférica, com estabilização da frequência car- Nos últimos 100 anos, devido à melhoria das
díaca. A avaliação da pressão arterial deve cons- condições de vida, nomeadamente no que se refere
tituir uma rotina da consulta de adolescentes de à nutrição, tem-se verificado um aumento da
modo a permitir um diagnóstico precoce de hiper- estatura final com antecipação da idade da me-
tensão arterial (Capítulo 46). narca. A este fenómeno evolutivo , observado
principalmente a partir do início do século XIX,
Desenvolvimento biológico chama-se aceleração secular do crescimento. Nas so-
ciedades ditas desenvolvidas ou industrializadas
À componente biológica das transformações de hoje tal fenómeno parece ter terminado pois,
características da adolescência dá-se o nome de nas últimas décadas, não se têm observado
puberdade. Assim, puberdade não é sinónimo de mudanças nos parâmetros de crescimento e de
adolescência, mas apenas uma parte integrante da maturação biológica.
mesma; trata-se, pois, dum epifenómeno da ado- A variabilidade individual e populacional
lescência, traduzido fundamentalmente pela existente – não só na idade de início da puberdade,
aquisição da capacidade de reprodução. mas também na duração, sequência, combinação e
Caracteriza-se por: dimensão das diferentes modificações corporais
1. desenvolvimento do aparelho reprodutor, – parece depender de vários factores, nomea-
objectivado: damente, carga genética, meio ambiente, nutrição,
• pelo aparecimento de caracteres sexuais padrão sócio-económico e estimulação sensorial.
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento 227
No sexo feminino a puberdade pode ter início Nesta fase, a jovem muitas vezes interroga-se
entre os 10-13 anos (em média aos 11 anos). No acerca da sua nova imagem.
sexo masculino as alterações surgem mais tar- No que respeita ao desenvolvimento mamário,
diamente, começando entre os 11-14 anos (em cabe referir algumas possíveis alterações associa-
média aos 12 anos). das sem significado patológico, tais como:
Enquanto alguns jovens têm o seu desenvol- – Assimetria mamária
vimento completo em 2-3 anos, outros têm-no em Considerada fisiológica no começo do desen-
4-5 anos. volvimento mamário, em cerca de 25% dos jovens
Assim, num grupo de adolescentes com a aquela mantém-se bem notória na idade adulta.
mesma idade cronológica, pode haver: Havendo repercussão psicológica, está indicada a
– jovens em que ainda não se começou a veri- terapêutica cirúrgica, mas somente após termina-
ficar sinais de puberdade; da a puberdade;
– jovens com amadurecimento sexual já inicia- – Hipertrofia mamária
do, ou até mesmo completo. É muito frequente, podendo ser exuberante e
O desconhecimento da normalidade desta causar problemas físicos (dores no pescoço, defeito
ocorrência pode causar grande ansiedade ao postural, parestesias) e psíquicos. No final da
adolescente e preocupação para a família, levando puberdade tende a diminuir; contudo, se os pro-
a situações de instabilidade e desconforto psíquico. blemas psicológicos se mantiverem, com tendên-
cia para isolamento e diminuição da auto-estima,
Desenvolvimento estará também indicada a terapêutica cirúrgica
e maturação sexual uma vez completado o crescimento.
– Hipoplasia mamária
Na puberdade a maturação sexual inclui o desen- O tamanho reduzido das mamas pode ser
volvimento das gónadas, dos órgãos da repro- constitucional, ou consequente a problemas nutri-
dução e dos caracteres sexuais secundários. cionais ou a défice hormonal. A terapêutica cirúr-
A designação de gonadarca refere-se ao aumento gica, quando indicada, também só deve ser
da glândula mamária, útero e ovários na rapariga, efectuada no final da puberdade.
e ao aumento dos genitais externos – testículos e Simultaneamente modificam-se útero, ovários,
pénis no rapaz; tal se deve, respectivamente, à trompa, vagina e vulva.
elevação dos níveis dos estrogénios na rapariga, e Os ovários crescem progressiva e lentamente
dos androgénios no rapaz. Na rapariga, a menarca desde o nascimento, verificando-se um aumento
ou aparecimento da primeira menstruação constitui superior nos meses que antecedem a menarca.
um marco importante do desenvolvimento sexual. Nesta fase, são várias as alterações dos genitais
O termo adrenarca refere-se ao aparecimento de externos da adolescente:
pelos púbicos, axilares e faciais devido ao aumento – O comprimento da vagina aumenta, com
dos androgénios suprarrenais. espessamento, protrusão e enrugamento dos
Todos estes dois fenómenos estão interligados pequenos lábios e desenvolvimento dos grandes
verificando-se uma associação no seu tempo de lábios.
aparecimento (Capítulo 181). – O pH da vagina diminui devido a produção
do ácido láctico pelos bacilos de Doderlein que, a
No sexo feminino partir de agora passam a fazer parte da flora
A primeira manifestação da puberdade é o vaginal normal.
aparecimento do botão mamário (cerca dos 9 anos) – Surge o corrimento vaginal de cor clara e
ou telarca; inicialmente unilateral, o aparecimento cheiro inespecífico; trata-se da leucorreia fisio-
de tal transformação no lado oposto surge lógica da adolescência, também resultado da
geralmente cerca de seis meses depois; pode haver estimulação estrogénica, com maior secreção do
dor local e, nalguns casos, a telarca pode ser muco cervical e maior descamação das células da
precedida de aumento da estatura. No mesmo mucosa vaginal.
ano, em regra, aparece o pêlo púbico. A menarca é um acontecimento tardio da pu-
228 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
berdade feminina. Ela ocorre após o pico de estatura, coincidindo com a fase ascendente da
velocidade máxima de crescimento, já na fase de curva.
desaceleração da curva de crescimento. A mudança de voz – típica do sexo masculino,
As adolescentes crescem em regra 3-4 cm nos mas tardia ,surge como consequência do aumento
2-3 anos que se seguem à menarca. das dimensões da laringe por acção dos andro-
O tempo que medeia entre o aparecimento do génios.
botão mamário e a menarca varia entre 2-5 anos. Ao nível da glândula mamária verifica-se um
Os primeiros ciclos menstruais são anovula- aumento do diâmetro e da pigmentação da aréola
tórios, o que justifica a irregularidade menstrual mamária. Contudo, numa proporção importante
típica dos dois primeiros anos pós-menarca. de adolescentes (cerca de 1/3), verifica-se conco-
Após este período, na sequência do amadureci- mitantemente aumento do tecido mamário –trata-
mento do eixo hipótalamo-hipofisário e maior se da ginecomastia pubertária; é bilateral e por
número de ciclos ovulatórios, os ciclos tendem a vezes dolorosa, restringindo-se ao aumento do
tornar-se regulares. tecido mamário sub-areolar; mede geralmente 2-
O aparecimento do pêlo púbico surge cerca de 3 cm de diâmetro, no máximo 4 cm. Móvel e de
seis meses após a telarca. Os pêlos axilares apa- consistência firme, ocorre transitoriamente (meses)
recem mais tarde, acompanhados do desenvolvi- na fase de crescimento estatural rápido, não sendo
mento das glândulas sudoríparas e consequente aderente à pele nem ao tecido celular subcutâneo.
aparecimento do odor e da transpiração caracte- Deve-se ao aumento dos níveis dos androgénios
rística do adulto. testiculares.
É importante tranquilizar o adolescente, infor-
No sexo masculino mando-o a esse respeito.
A primeira manifestação de puberdade no rapaz, A ginecomastia que não regride após 24 meses,
por vezes não perceptível, é o aumento do volume provavelmente permanecerá inalterada ao longo
testicular, seguindo-se o crescimento do pénis, dos anos.
primeiro em comprimento e depois em diâmetro. O aumento da glândula mamária superior a 4
O aparecimento do pêlo púbico ocorre mais cm, designado macroginecomastia, tem frequente-
tarde; e os pêlos axilares, faciais e do restante mente importantes repercussões fisiológicas no
corpo, aparecem depois. adolescente, pois a mama adquire características
A sequência habitualmente é: femininas. A regressão espontânea nestes casos é
– pêlo púbico, cerca dos 10-11 anos; rara, podendo estar indicada terapêutica cirúrgica.
– pêlo axilar, mais ou menos aos 12-13 anos O diagnóstico diferencial da ginecomastia faz-
– pêlo do restante corpo, mais ou menos aos 14- se com:
15 anos. – Adipomastia
A sequência do aparecimento dos pêlos faciais Trata-se de aumento da mama por acumulação
é a seguinte: primeiramente nos lábios superiores de tecido adiposo sub-areolar. É comum em jovens
junto às comissuras e, posteriormente, em toda a obesos pré-púberes ou púberes
extensão da parte superior do lábio superior; pos- – Ginecomastia patológica
teriormente na porção central , debaixo do lábio Contrariamente à pubertária, é rara.
inferior; e, por fim, estendendo-se a toda região Deverá admitir-se situação patológica sempre
mentoniana. que a mesma ocorra antes do início da maturação
Tal como no sexo feminino, o desenvolvimento sexual, ou após o final da mesma. A anamnese
das glândulas sudoríparas acompanha o cresci- deve incluir um inquérito sobre a ingestão de
mento do pêlo axilar. drogas; o exame físico deverá valorizar, designa-
A próstata, glândulas bulbo-ureterais e vesí- damente, a palpação abdominal e os genitais
culas seminais também apresentam crescimento externos (fígado e testículos); para esclarecimento
acentuado na puberdade. da situação poderá haver necessidade de exames
A espermarca – idade da 1ª ejaculação – ocorre complementares.
na fase de aceleração da curva de crescimento em As principais causas de ginecomastia patológica são:
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento 229
FIG. 1 FIG. 2
Desenvolvimento Pubertário Feminino: Critérios de Tanner. Desenvolvimento Pubertário Masculino: Critérios de Tanner.
esferas de volumes variáveis) e eixo maior do tes, nomeadamente quando se pretende esclarecer
testículo > 2,5 cm (medido com uma simples os jovens quanto a dúvidas ou problemas relacio-
régua). nados com prática desportiva – nomeadamente,
Na rapariga, a menarca define o estádio P5. A tipo de actividade desportiva mais aconselhada,
avaliação da maturação da glândula mamária, dos maior risco de lesões por exercício físico eventual-
genitais externos e do pêlo púbico deve ser feita mente excessivo e não adequado relativamente a
individualmente, pois poderá não se verificar determinado período de crescimento.
concordância entre estádios. Por exemplo: uma 2. Uma vez que a composição corporal do
jovem pode estar em estádio 3 da mama e 2 de pêlo adolescente varia em função da sua maturação
púbico – isto é M3 P2 e um rapaz pode estar em sexual, os estádios de Tanner devem ser utilizados,
estádio 2 de genitais externos e estádio 1 de pêlo não só para avaliar e monitorizar o desenvolvi-
púbico – isto é G2 P1. mento pubertário, o pico de velocidade de cresci-
A classificação dos estádios de desenvolvi- mento e a idade da menarca, mas também para
mento mamário depende das características e não interpretar valores laboratoriais, como por exem-
do tamanho das mamas, o qual é determinado por plo, hemoglobina, hematócrito, ferritina e fosfas-
factores genéticos e nutricionais. tase alcalina.
Habitualmente a avaliação é efectuada durante 3. Estando as necessidades nutricionais dos
o exame físico do jovem, em ambiente de privaci- adolescentes directamente relacionadas com o
dade e após prévio esclarecimento e consenti- crescimento e sua variação dentro da normalida-
mento do mesmo. Quando o adolescente recusar a de, as necessidades poderão variar significativa-
observação pode optar-se pela auto-avaliação, em mente de jovem para jovem. Durante o pico de
que o adolescente indica num esquema/figura o velocidade máxima de crescimento existe um
estádio em que se encontra. Regra geral a corres- aumento das necessidades proteico-calóricas e
pondência entre a auto e a hetero-avaliação é boa, consequentemente do apetite, originando uma
excepto se se tratar das fases iniciais do desen- maior ingestão alimentar.
volvimento masculino. Assim, o jovem do sexo masculino durante o
De facto, os critérios de Tanner constituem um pico de crescimento – em estádio 3 e 4 – terá neces-
instrumento de avaliação muito importante pelas sidade de maior suprimento proteico e energético,
seguintes razões: do que um adolescente em estádio 1; neste último,
de acordo com os critérios de maturação sexual,
1. Existe uma relação directa entre determinado ainda não terá atingido fase a que corresponde o
estádio de maturação sexual e determinada fase de pico de crescimento e as necessidades nutricionais
crescimento e desenvolvimento, o que permite máximas.
avaliar de uma forma correcta toda a dinâmica do No sexo feminino, se já tiver ocorrido a me-
crescimento na adolescência. narca , tal significa que a adolescente já está em
Exemplificando: no sexo feminino o pico de fase de desaceleração de crescimento, o que
crescimento inicia-se em M2, atinge a velocidade implicará, por um lado, redução de alguns nu-
máxima em M3, e desacelera-se em M4 ,fase em trientes indicados na fase de pico de crescimen-
que ocorre a menarca, parando o crescimento em to e, por outro, aumento de ingestão de outros,
M5; no sexo masculino o pico de crescimento como por exemplo, ferro e ácido fólico, tendo em
começa em G3, atinge a velocidade máxima em G4 conta as perdas relacionadas com a mens-
e desacelera em G5. truação.
Assim, esta diferença temporal no pico de O médico pediatra, o médico de família e o
crescimento associado ao facto de a velocidade de profissional de saúde em geral deverão reconhe-
crescimento máxima durante o pico pubertário ser cer todas as alterações, suas variações dentro da
menor nas raparigas, explica a diferença média de normalidade e respectivas implicações na saúde
cerca de 13 cm, existente entre indivíduos do sexo do adolescente; deste modo, aqueles estarão em
masculino e feminino. condições de informar, esclarecer e ajudar o jovem
Na prática clínica estes aspectos são importan- e seus familiares.
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento 231
Precoce: 10-13 A (F); 11-14 A (M) Média: 14-17 A (F); 15-17 A (M) Tardia: >17 A (M e F)
FÍSICAS – Mudanças biológicas – Transformações corporais já – Término do crescimento e
– Telarca ocorridas maturação
– Pubarca – Modificação de composição – Atinge-se a composição
– Caracteres sexuais corporal; incremento de corporal final
secundários massa gorda e de massa
– Menarca magra
As raparigas dão maior importância aos e interdição, tornou-se nos nossos dias um aspecto
relacionamentos e os rapazes ao desempenho; no explorado e exibido.
entanto, ambos se consideram omnipotentes e Na fase de adolescência precoce e média em
invulneráveis. que é fundamental a identificação com o grupo de
Porém, ter capacidade física não significa ter pares, o jovem tem necessidade de fazer o mesmo
maturidade psíquica, o que se torna verdadeira- que os outros, levando-o a praticar uma sexua-
mente problemático. lidade realmente desprovida de afectos, bastantes
Com o aparecimento do primeiro amor – tipi- vezes “ensombrada” por gravidez ou doença
camente de duração inversamente proporcional à sexualmente transmissível (DST).Cabe referir, a
intensidade emocional – surge muitas vezes a propósito, que cerca de 25% dos adolescentes que
primeira desilusão e, posteriormente, o sentimento se tornam sexualmente activos, adquirem DST.
depressivo transitório. De facto, nos dias de hoje, a actividade sexual
A expressão “estar apaixonado” nos dias de começa cada vez mais cedo, o que pode ser
hoje quase que ficou reduzida ao simples “fazer explicado pelos seguintes factos:
amor”. Tendo a sexualidade sido alvo de repressão • início mais precoce da puberdade contra-
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento 233
pondo-se à idade mais tardia da independên- No que respeita a diferentes culturas sabe-se
cia económica; que nalgumas têm menos conflitos parentais ao
• ausência de família contentora, com regras, longo desta fase da vida; habitualmente nas cul-
valores e boas imagens de referência com as turas menos diferenciadas e menos tecnológicas
quais o jovem se possa identificar existem menos conflitos.
• características do próprio adolescente – Nas primeiras fases do seu desenvolvimento, o
indestrutibilidade jovem procura, de uma forma natural, fora do
• pressão do grupo – “se os outros fazem….” agregado, outras imagens ou figuras adultas de
• diferentes influências sócio-culturais referência. Grupos de voluntários, clubes desporti-
• influência dos meios de comunicação social vos, actividades recreativas e grupos religiosos são
– com a difusão de imagens valorizando as meios sociais através dos quais os jovens têm a
relações casuais, sem protecção e com vários possibilidade de desenvolver esses modelos de
parceiros. identificação constituindo um bom factor pro-
tector no seu desenvolvimento psicossocial.
Importância da família e dos grupos de pares No que respeita ao estresse no seio familiar, a
As crianças e os adolescentes, aprendem com o que presença do adolescente pode ser causadora do
vivem. mesmo, sendo que muitas vezes existem outras
Assim, médico que cuida de adolescentes fontes de tensão que deverão ser devidamente
deverá reconhecer a importância da compreensão valorizadas pelo clínico: problemas conjugais,
da dinâmica familiar e do potencial impacte dessa ausência frequente de um dos progenitores, inse-
dinâmica nos sintomas do adolescente. Este as- gurança no emprego, situação de doença, nomea-
pecto é particularmente importante quando o damente psiquiátrica, abuso de drogas, um
médico está a avaliar o adolescente do ponto de membro da família a cumprir pena de prisão;
vista psicológico. todas estas situações podem ter, de facto, conse-
Nesta perspectiva é importante que o referido quências graves na saúde mental do adolescente.
médico caracterize o tipo de família: se se trata de Para além da família, os pares constituem uma
tradicional, com pai como único elemento de importante influência para o adolescente, sendo
sustento,ou com os dois, pai e mãe empregados, que na construção do relacionamento com os
fora de casa; ou se se trata duma família mono pares, a maioria dos adolescentes não pretende, de
parental, cabendo avaliar o papel do outro proge- uma forma intencional, isolar-se dos pais.
nitor. Os jovens separando-se dos membros da sua
De facto, o problema do adolescente poderá ser família (pais), em regra aproximam-se dos pares
uma replicação do problema dos pais. O absen- do mesmo sexo. O adolescente precoce esforça-se
tismo escolar pode , por ex., ser modelado pelos por ser aceite entre os seus grupos de pares os
hábitos laborais dum pai alcoólico com faltas quais exercem diariamente uma poderosa influên-
frequentes ao emprego. O adolescente obeso, po- cia, não só quanto a comportamentos saudáveis,
derá ter pais obesos, com pouco tempo ou interes- mas também quanto aos não saudáveis; salienta-
se em providenciar em casa refeições adequadas e se que álcool, tabaco, uso de drogas ilícitas, são
programar actividades que envolvam exercício inicialmente experimentados no contexto dos
físico. grupos de pares.
O estrato socioeconómico e cultural da família Como se pode depreender, o decréscimo do
pode igualmente ajudar o médico a compreender envolvimento dos pais, a sua falta de comunica-
os meios de desenvolvimento do adolescente. Nas ção, de diálogo e a falta de disciplina, contribuem
classes mais elevadas os jovens viajam mais, têm para o grau de influência que os pares têm sobre
mais actividades culturais e comunitárias. Na um jovem adolescente.
classe média os adolescentes têm mais actividades Os clínicos devem chamar a atenção dos pais
desportivas e grupos de jovens. Nas classes mais para a importância do seu papel em minorar a
baixas o mais frequente é não terem qualquer tipo influência negativa dos pares e encorajá-los, bem
de actividade estruturada. como à família, a adoptar uma auto-imagem posi-
234 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
44
tiva no adolescente através de reforço positivo,
elogio e de aceitação. O elogio deverá ser dirigido
não só ao adolescente, mas também a outras
pessoas que figuram na sua vida, tais como pares
e professores. Os jovens precisam de ouvir os pais,
e outros adultos a falar positivamente de outras
pessoas em geral, pois essa é uma forma de ADOLESCÊNCIA
aprendizagem da tolerância.
A presença de doença crónica durante a E COMPORTAMENTO:
adolescência pode, independentemente das mani-
festações próprias da doença, interferir directa- ABORDAGEM CLÍNICA
mente no comportamento dos jovens. Entre as
principais alterações observam-se: interrupção na Maria do Carmo Silva Pinto
consolidação do processo de separação dos pais
comprometendo a aquisição de autonomia, modi-
ficação da imagem corporal, limitação das activi-
dades com o grupo de pares e dificuldade no Síndroma da adolescência normal
desenvolvimento da identidade. Todos estes
aspectos podem manifestar-se através de compor- As manifestações exteriores do comportamento
tamentos de risco devido à consequente baixa dos adolescentes são diferentes conforme as
auto-estima, segregação do grupo, absentismo diversas culturas, mas as bases, bem como as
escolar, disfunção sexual e sintomas depressivos. atitudes e ideias manifestas, são basicamente as
mesmas em todo o mundo. Daí a descrição da
BIBLIOGRAFIA chamada síndroma da adolescência normal a qual
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Tanner JM, Growth at Adolescence. Oxford, England: Blackwell Esta perspectiva permite ao clínico o conheci-
scientific Publications, 1962 mento do desenvolvimento psicossocial do ado-
lescente e uma maior compreensão dos compor-
tamentos que o mesmo evidencia, com implicações
práticas por permitir evitar diagnósticos errados
e, por vezes, preconceituosos. As referidas caracte-
rísticas são analisadas a seguir.
reformular o seu novo esquema corporal, o qual senvolvimento harmonioso. Com efeito, a vincu-
constitui a representação mental que o indivíduo lação ao grupo pode favorecer o espírito de equipa
faz de si mesmo, conduzindo mais tarde ao e o aparecimento de lideranças, o que será muito
sentimento de identidade. saudável se persistir na idade adulta.
Nesta fase, em que se modificam as relações Nesta fase, a ambivalência dos familiares deve
com o corpo, o pudor que o adolescente exibe deve ser evitada. Frases como “já estás suficientemente
ser devidamente respeitado. O mesmo passa crescido para…” seguidas de outras como “ainda
longas horas fechado na casa de banho, olhando- és muito criança para…” só contribuem para
se ao espelho e sentindo necessidade de se afastar tornar mais indefinidos os limites de actuação que
fisicamente dos pais; por vezes torna-se mesmo ajudam a promover uma autonomia responsável.
agressivo, antipático e até mesmo rebelde.
Os pais deverão perceber que os seus filhos 4. Desenvolvimento do pensamento formal
precisam desta mudança para que o desenvol- O desenvolvimento do pensamento formal (Piaget)
vimento se processe de forma harmoniosa. constitui, do ponto de vista cognitivo, uma das
características da adolescência.
2. Separação progressiva dos pais O desenvolvimento intelectual fá-lo pensar,
A separação progressiva dos pais tem início no pôr em causa e formular teorias. A capacidade de
nascimento, mas só se concretiza na adolescência. intelectualização leva cada vez mais o adolescente
Ao contrário da infância em que a relação de a preocupar-se com princípios éticos, problemas
dependência é a relação normal, desejável e habi- sociais e a propor reformas que tornem o mundo
tual entre pais e filhos, na adolescência, os pais melhor.
outrora considerados como seres ideais e super Nesta fase ele sente muito a necessidade de ter
valorizados, vão ser alvo de críticas surgindo a o seu próprio território (quarto, gaveta, armário,
necessidade de um afastamento (luto dos pais da diário), contribuindo para um reconhecimento da
infância) que leva a uma maior autonomia e, sua identidade.
consequentemente, à busca de outras pessoas que Neste período é importante o respeito pela
constituam figuras de identificação. privacidade e confidencialidade, aspecto funda-
Com o crescimento físico dos filhos e conquista mental no atendimento e na relação médico-
da sua independência, os pais sentem-se muitas doente.
vezes afastados, excluídos e até mesmo menos úteis.
Para que tal não aconteça, o estabelecimento de 5. Vivência temporal singular
limites pelos pais é fundamental nesta fase, pois irá O critério tempo é muito peculiar na adolescência,
permitir que o jovem compreenda a diferença entre parecendo próximo o que é distante, e vice-versa.
liberdade e permissividade, reduzindo substan- Por exemplo, o adolescente ao ser alertado para
cialmente a tendência para comportamento de risco. estudar para um exame no dia seguinte, é capaz de
O clínico poderá ajudar os pais nesta fase da responder – “ainda tenho muito tempo”, e contu-
vida dos seus filhos, esclarecendo-os de modo a do considerar “urgente ir comprar roupa nova
aceitarem a distância, mais física que psíquica. para levar à passagem de ano” daí a dois meses!
A esta característica, associa-se o imediatismo;
3. Necessidade do grupo de pares tal traduz uma incapacidade de conviver com a
Na busca da sua individualidade, o adolescente frustração da espera a qual interfere com vários
vai deslocar a dependência dos pais para o grupo factores da vida de relação e caracteriza a chamada
de companheiros e amigos no qual todos se iden- geração micro-ondas! Exemplifica-se com o que se
tificam com cada um. O adolescente veste-se de passa com a alimentação: preferência por alimen-
modo semelhante, tem gostos idênticos, pois a tos prontos ou quase prontos, nem sempre os mais
aceitação revela-se na “obediência” a regras de adequados.
grupo. Esta saída do núcleo familiar e entrada para Esta forma singular de lidar com o tempo pode
o grupo com ulterior individualização é perfeita- interferir nas propostas terapêuticas. O jovem
mente sadia, e até mesmo necessária, para um de- obeso tem frequentemente tendência para desistir
236 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
do plano terapêutico por este não ter resultados Na fase inicial da adolescência surgem os
rápidos e visíveis; interfere igualmente nas caracteres sexuais secundários e, consequen-
propostas de prevenção – tomar atitudes hoje, para temente a curiosidade acerca dessas mudanças.
prevenir coisas de amanhã – como por exemplo É a fase das fantasias sexuais (paixões imaginárias,
anticonceptivos para evitar a gravidez – sem contacto físico).
praticamente impossível nesta fase da vida. Por Na fase intermédia já está, em regra, completa a
este motivo, a orientação preventiva é muito mais maturação física. Aenergia sexual mais desenvolvida
eficaz quando envolve questões do presente – não leva ao maior interesse pelo contacto físico, sendo o
engravidar para não interromper todas as comportamento sexual de natureza exploratória. A
actividades de que gosta (desporto, música, etc.) e, negação das consequências da actividade sexual é
sobretudo, o percurso saudável de adolescente. típica e fruto da imaturidade, tornando esta fase a de
maior risco relativamente à probabilidade de ocor-
6. Flutuações do humor rência de doenças sexualmente transmitidas ou de
As flutuações do humor incluem múltiplas uma gravidez não desejada.
variações de humor que vão desde crises de- Na fase tardia o comportamento sexual torna-
pressivas, sentimentos de angústia, solidão se mais expressivo e estável, com relações íntimas
refugiando-se em si próprio, até às sensações de e trocas de afectos vividas com mais maturidade.
euforia e sucesso, durante as quais o adolescente Na adolescência pode ocorrer transitoriamente
se sente indestrutível, imortal e omnipresente. a proposta homossexual, a qual não é preditiva do
É comum a adolescente, num dado momento, comportamento sexual futuro. Nem todos os
encontrar-se triste e chorosa (após o terminar um adolescentes que estão emocionalmente atraídos
namoro ou uma nota má em exame) e momentos por um indivíduo do mesmo género se envolvem
depois já poder estar feliz, de conversa ao telefone, em actividade sexual. O jovem deverá ser infor-
falando com uma amiga, a planear novas mado da evolução que pode ter a sua identidade
conquistas, tendo esquecido o episódio de insu- sexual, de forma a podermos evitar, quer uma
cesso escolar. auto-imagem negativa com risco de depressão e
suicídio, quer um sentimento de ansiedade
7 . Comportamento contraditório gerador de comportamentos anti-sociais (por ex.
A necessidade de o adolescente experimentar uso de drogas).
diferentes papéis na busca da sua identidade de Os pais deverão igualmente ser esclarecidos,
adulto, faz com que, por vezes, tome atitudes pro- pois, na grande maioria reagem com vergonha e
fundamente contraditórias.Tal contradição é não-aceitação, exibindo frequentemente casos de
considerada normal; contudo, adolescentes com psicossomatização.
comportamentos rígidos permanentes deverão ser
alvo de preocupação, necessitando de acompanha- 9. Crises religiosas
mento. Nestes casos, o jovem poderá não estar a Estas chamadas crises caracterizam-se por atitudes
beneficiar da liberdade necessária para experimen- de radicalismo, desde situações extremas de fé, até
tar e amadurecer de forma desejável. ao ateísmo. O adolescente defende-as com grande
convicção, como se fossem realidades momen-
8. Evolução da sexualidade tâneas. O confronto religioso está frequentemente
A sexualidade existe desde o início da vida intra- ligado à contestação de padrões vigentes no
uterina, na sua dimensão biológica, baseada em momento. Muitos dos valores apregoados voltam
genes, cromossomas, hormonas, gónadas,etc.. a ser reformulados já no final da adolescência,
Na pré-adolescência a identidade de género persistindo depois na vida adulta.
(sentido de feminilidade e masculinidade) já está
estabelecida. 10. Atitude social reivindicativa
Com o início da puberdade a energia sexual Trata-se do conjunto de procedimentos ou atitudes
transforma-se juntamente com as mudanças físicas que o adolescente utiliza para reivindicar e con-
conduzindo à etapa genital adulta. testar de forma a ser reconhecido por grupos de
CAPÍTULO 44 Adolescência e comportamento: abordagem clínica 237
referência, como por exemplo, família, amigos, 2ª – Entrevista a sós com o adolescente
escola e a própria sociedade. 3ª – Exame físico do adolescente
Tais procedimentos ou atitudes são reforçados 4ª – Conversa com o adolescente
por outras características do adolescente, já 5ª – Nova entrevista com o adolescente e
descritas: tendência grupal, pensamento abstracto família
e crítico, auto-afirmação e radicalismo. 6ª – Diagnóstico e actuação
A sociedade, por vezes sentindo como que
“uma ameaça”, um incómodo ou até mesmo uma A abordagem correcta do adolescente deve
agressão, submete o adolescente a uma disciplina englobar, para além dos dados da anamnese (in-
e a um comportamento quase sempre ineficazes. cluindo anamnese psicossocial), o exame físico.
É importante que se tenha em consideração que o Nesta avaliação que, por este motivo se considera
jovem neste tipo de movimento não pretende global, deve ser estabelecida uma conversa aberta
propriamente agredir, mas sim conquistar o seu lugar, durante a consulta de vigilância de saúde, de
o que faz parte da sua caminhada para a adultícia. forma a identificar, não só problemas de saúde,
Os adultos deverão, por conseguinte, ser mais mas também factores de risco.
tolerantes, usando o diálogo e sabendo escutar a Se a anamnese psicossocial não for realizada
opinião do adolescente como formas de diminuir existirá maior dificuldade na identificação precoce
o conflito. de problemas, o que tem implicações na redução
da morbilidade.
Abordagem clínica do adolescente Cabe referir que a doença, quando ocorre, é
relacionada frequentemente com comportamentos
A abordagem clínica do adolescente, à semelhança de risco. O comportamento de risco pode, com
de outras áreas da Medicina, deve ser feita por efeito, trazer consequências trágicas. A causa mais
equipa multidisciplinar. Esta equipa deve ser frequente de mortalidade na adolescência é
composta por médico – pediatra ou médico de constituída pelos acidentes de viação os quais
clínica geral, ginecologista, endocrinologista, estão, em cerca de metade dos casos, relacionados
pedopsiquiatra, enfermeiro, dietista, assistente com o consumo de álcool e drogas.
social e outros profissionais (sociólogo, professor, A este respeito, cabe referir que o padrão de
jurista,etc.). Não existindo equipa especialmente consumo de substâncias de adição se tem alterado
criada para o efeito, o problema pode ser resolvi- significativamente nos últimos anos. Embora o
do através duma boa parceria – menos formal – tabaco e o álcool continuem a ser as substâncias
entre especialistas e técnicos com a garantia de mais consumidas, o aumento das drogas ditas
manutenção de diálogo permanente. legais (por ex. canabinóides sintéticos vendidos
como incenso), o aparecimento de novas drogas
Consulta do adolescente sintéticas ditas recreativas (por ex. gama-hidro-
O atendimento ao adolescente tem determinadas xibutirato), e de venda livre (por ex. mefedrona).
particularidades: têm colocado o pediatra face a novos problemas,
– os pais deixam de ser os únicos interlocutores salientando-se a necessidade do tratamento de
– há necessidade de maior privacidade e confi- sintomas na fase pós-consumo (por ex. agitação
dencialidade como garantia de diálogo em psicomotora, ideação delirante e alucinações), e da
ambiente de confiança prevenção das complicações a longo prazo.
– a consulta deve ser desburocratizada e de Como causas de morbilidade são referidas
fácil acessibilidade, e efectuada em espaço síndromas relacionadas com o estresse e depres-
próprio, separada da dos mais pequenos e são, doenças do comportamento alimentar e ele-
sem longas esperas. vadas taxas de doenças sexualmente transmis-
síveis.
A consulta propriamente dita contempla seis Pode depreender-se que todos estes problemas
etapas: não são facilmente abordáveis no âmbito duma
1ª – Entrevista com a família (anamnese) “consulta de rotina”.
238 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A entrevista deverá ser reservada para uma necessário, poderá realizar-se em mais que uma
ocasião em que o adolescente evidencie estado de consulta, para assim se obter melhor colaboração.
aparente estabilidade emocional (i.e. esteja “relati- Contudo, se o jovem evidenciar situação de
vamente bem”), com o objectivo de obtenção do crise quando se apresenta na consulta, ele deverá
máximo de informação com o mínimo de estresse. ser atendido de forma a sentir-se à vontade para
A forma como se começa contribui de forma falar sobre o problema que o inquieta.
decisiva para o resultado final. Sempre que Pais, outros membros da família ou acom-
panhantes não deverão estar presentes a não ser outra pessoa estarem em risco de vida, ou no caso
que o adolescente o solicite expressamente ou dê de haver implicações médico-legais. O que
autorização. Se os pais estiverem presentes, antes conversarmos ficará entre nós até que digas o
de iniciar a entrevista, o clínico deverá apresentar- contrário, ou a não ser que algum outro médico
se sempre em primeiro lugar ao adolescente; este precise de saber de ti, para poder cuidar do teu
gesto, valorizando de sobremaneira a pessoa do caso na minha ausência, garantindo de igual
jovem, corresponde a um claro sinal de que o forma a confidencialidade.”
médico está disponível para estabelecer empatia
com abertura e sem tecer juízos de valor. Avaliação psicossocial/HEADSSS
Desenvolvida por Harvey Berman (1972) e refor-
Confidencialidade mulada mais tarde por Cohen e Goldenring, a
Todo o adolescente deve ser informado acerca da metodologia de abordagem da história psicosso-
confidencialidade garantida pelo clínico no início cial do adolescente é conhecia pelo acrónimo
da entrevista e, posteriormente, antes de serem HEADSSS que significa (Quadro 1):
colocadas as questões relacionadas com sexuali- H – Home – Casa/família
dade e consumo de drogas. Deve, entretanto, E – Education – Ensino/projectos Eating
explicar-se que poderá haver alguns limites éticos Disorders – Distúrbios alimentares/ ali-
e legais relativamente à confidencialidade; eis um mentação
exemplo prático: A – Activities – Actividades de lazer, desporto,
“Nesta entrevista vou colocar-te algumas amigos, grupos, trabalho
questões que são pessoais, de forma a poder D – Drugs – Drogas (álcool, tabaco, etc.)
conhecer-te melhor. As respostas que tu deres S – Security – Segurança
podem ser importantes para a tua saúde. Mas, S – Sexuality – Sexualidade
como as questões são pessoais e delicadas, S – Suicidal ideation – Ideação suicida
prometo-te que serão confidenciais, o que quer A ordem pela qual as questões são colocadas é
dizer que ficarão só entre mim e ti Não revelarei aleatória devendo, contudo, ser deixadas para o
aos teus pais, professores, ou outras autoridades final as que envolvem maior privacidade.
nada do que me contares, a não ser que me A experiência e a sensibilidade do médico são
autorizes. Uma única excepção: no caso de tu ou fundamentais para o sucesso da avaliação psicos-
240 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
BIBLIOGRAFIA
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics. Philadelphia:
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Crowley R, Wolfe I, Lock K, McKee M. Improving transition
between paediatric and adult healthcare: a systematic review.
PARTE IX
Aspectos da Relação entre Medicina
Pediátrica e Medicina do Adulto
242 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
45
doenças do adulto (designadamente do tipo dege-
nerativo) constitui um tópico de grande actuali-
dade, o que é fundamentado em numerosos estu-
dos epidemiológicos na sequência de múltiplas
investigações, cabendo destacar o pioneirismo do
grupo de Barker no Reino Unido.
DOENÇAS DA IDADE PEDIÁ- A realização dum congresso mundial reunindo
especialistas de diversas áreas , pediatras e não
TRICA COM REPERCUSSÃO NO pediatras, sobre “doenças do adulto com origem no
feto” em 2001 em Bombaim, Índia , traduz , em
ADULTO – GENERALIDADES certa medida, a importância dum problema em
saúde pública que foi identificado.
João M. Videira Amaral Nesse mesmo congresso, tendo sido dada ênfase
ao papel do pediatra e do perinatologista num con-
junto de intervenções para inverter tendências de
“Em ciência, o importante é mudar as ideias à incremento de certo tipo de morbilidade , um dos
medida que a ciência progride” tópicos discutido foi o panorama da saúde na Índia
Claude Bernard, 1877 em que a coronariopatia e a diabetes mellitus de tipo
2 alcançaram proporções epidémicas, em associação
a uma das mais elevadas prevalências de baixo peso
de nascimento em todo o mundo – cerca de 30%.
Introdução Debateu-se igualmente a associação entre obesi-
dade, urbanismo e doenças cardiovasculares , estas
O ser humano, desde a concepção até ao termo da últimas a principal causa de mortalidade em todo o
adolescência, cresce e desenvolve-se modelado mundo, correspondendo mais de metade desta
pela interacção de factores genéticos e ambientais. parcela aos países em desenvolvimento.
Muitas vezes, estes últimos constituem verdadeiras
agressões (físicas, químicas, estresse, nutricionais, O papel da Genética
hipóxicas, etc.), sendo a resistência do concepto a
tais eventos, (que podem incidir na fase pré-natal Tratar de determinado tema com objectivo peda-
e/ou na fase pós-natal do desenvolvimento) con- gógico obriga, por vezes, a compartimentações
dicionada, quer pelo património genético, quer algo artificiais. De facto, às influências de diversos
pelas condições do ambiente nas suas diversas ver- factores ambientais intervenientes em muitas situ-
tentes (ambiente intra-uterino ou micro-ambiente, ações a abordar, sobrepõe-se a predisposição
ambiente constituído pelo organismo materno ou genética, ambas condicionando variantes quanto
matro-ambiente e ambiente extra-uterino). O resul- às manifestações clínicas e ao período da vida em
tado final, cuja expressão clínica se poderá veri- que estas emergem.
ficar apenas na idade adulta depende, designada- Feita esta ressalva, torna-se obrigatório men-
mente, do tipo de agente agressor, da intensidade cionar, tendo como base o tema em análise, um
da sua acção e do momento em que actua. conjunto de situações clínicas clássicas, de tipo
Neste capítulo são analisados alguns proble- hereditário poligénico, cuja manifestação poderá
mas clínicos que têm expressão na idade adulta ocorrer em diversas fases da vida, incluindo a
na perspectiva da sua relação com eventos surgi- idade adulta. Actualmente, com os avanços te-
dos no período pré-natal e na idade pediátrica, cnológicos e as novas atitudes de antecipação, é
com importância em saúde pública. possível fazer-se a sua identificação cada vez mais
precocemente. Como exemplos podem citar-se:
Importância do problema – Doenças cardiovasculares: aterosclerose,
doença isquémica do miocárdio, hipertensão
A relação entre certas doenças do feto e criança e arterial, doença reumática.
CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto 243
– Doenças do foro imunoalérgico: atopia, asma, dente de genes que sofreram mutações (precisa-
eczema, enxaqueca, colite ulcerosa, etc.. mente por acção dos referidos insultos) que se
– Doenças acompanhadas de obesidade. transmitem a ulteriores gerações.
– Determinadas doenças renais.
– Determinadas anomalias congénitas (por ex. O feto e doenças do adulto
luxação congénita da anca , etc.).
– Doenças cardiovasculares: aterosclerose, Doença cardiovascular e doença metabólica
doença isquémica do miocárdio, hipertensão De acordo com dados epidemiológicos, con-
arterial, doença reumática, etc.. siderando o cômputo geral de recém-nascidos
Calcula-se que mais de 400 genes estejam (RN) de peso inferior a 2500 gramas ou de baixo
implicados na regulação de muitos processos tais peso (BP) em todo o mundo, a proporção dos mes-
como função endotelial, inflamação, e metabolis- mos com restrição de crescimento intra-uterino
mo. Relativamente aos processos metabólicos, o ou RCIU (peso inferior ao correspondente ao per-
papel das lipoproteínas é seguramente o mais co- centil 10 nas curvas de Lubchenco, para qualquer
nhecido, sendo que foram identificados muitos idade gestacional) é muito maior nos países em
genes relacionados com a doença aterosclerótica desenvolvimento (cerca de 75%) em comparação
(por ex. gene do receptor das LDL, gene da LPL, com a que ocorre nos países desenvolvidos (cerca
gene da apolipoproteína e com variantes) e a de 25%).
hipertensão( por ex. genes do sistema renina- A nutrição do feto e, por consequência, o
angiotensina – evidenciando polimorfismos – com respectivo peso, depende do suprimento em
papel na regulação da pressão arterial e da home- nutrientes através da circulação materno-placen-
ostasia do sódio, e explicando certas formas de tar-fetal, por sua vez em relação com a nutrição
hipertensão com graus diversos de sensibilidade materna e o metabolismo e função placentares. A
ao sal. regulação da transferência de nutrientes para o
feto depende não só do próprio suprimento , mas
Conceito de programação também da insulina fetal e do factor de cresci-
mento designado por IGF-I (sigla de “insulin-like
Para compreendermos o papel de certos eventos growth factor I) (IGF-I).
durante a gravidez no desenvolvimento de doen- Barker, baseado em estudos anteriores, descre-
ças no adulto, será importante reter a noção de veu três padrões de hipocrescimento fetal corres-
“influência programada” (com o significado do pondentes a outros tantos mecanismos de subnu-
“efeito de certas noxas que deixam marca ou re- trição actuando em diferentes fases do crescimento
gisto – “programming”na língua inglesa), a qual fetal com implicações futuras em termos de mani-
está ligada ao fenómeno de adaptação e tem as festação de problemas clínicos na idade adulta:
suas raízes na biologia. Com efeito, tal como se a) a subnutrição na fase precoce da gravidez
comprovou em certas espécies animais, a ocorrên- (período de hiperplasia entre as 4-20 semanas
cia de determinados estímulos ou insultos rela- caracterizado por mitose activa e aumento do con-
cionados com o ambiente, actuando numa fase teúdo de DNA) que origina baixo peso de nasci-
precoce do desenvolvimento humano (na vida mento com uma relação harmónica, simétrica ou
fetal ou na infância) tem efeitos persistentes a bem proporcionada entre peso, comprimento e
longo prazo na estrutura ou na função de deter- perímetro cefálico. Este fenótipo corresponde à
minados órgãos (programação) se os mesmos forma de restrição de crescimento intra-uterino
tiverem lugar nos chamados períodos sensíveis ou inicialmente descrita por Clifford como “crónica” e
críticos. Se o mesmo insulto se verificar fora de tal afectando os tecidos moles, o esqueleto e o crânio.
período crítico, provavelmente não surgirá o A este perfil somatométrico associou-se defi-
efeito. ciente incremento ponderal no primeiro ano de
É importante referir que, a capacidade de vida, e risco elevado de subsequente desenvolvi-
resposta do organismo a determinado insulto cor- mento de hipertensão arterial e de acidente vascu-
responde a um mecanismo de adaptação depen- lar cerebral na idade adulta;
244 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
traram que, como resultado da hipóxia fetal, há mo do feto, nomeadamente em termos de sensibili-
redistribuição de sangue favorecendo a perfusão dade à insulina. Cabe citar, a propósito, um interes-
do encéfalo. Nas situações com placenta de sante trabalho realizado numa zona rural da Índia
maiores dimensões verificou-se diminuição da em que se verificou relação directamente propor-
relação comprimento/perímetro cefálico, podendo cional entre peso ao nascer e teor de suprimento
explicar-se tal desproporção por um desvio de em lípidos, legumes verdes e em frutos.
sangue do tronco para o encéfalo. A discordância
entre o peso fetal (deficiente ou baixo) e o tamanho Doença neoplásica
(grande) da placenta pode conduzir a fenómeno Diversos estudos prospectivos observacionais
de adaptação circulatória no feto, com alteração têm demonstrado uma associação positiva entre
estrutural progressiva das grandes artérias na peso de nascimento elevado, obesidade pediátrica
criança, traduzida por alterações nas escleroproteí- e risco subsequente de diversos tipos de neo-
nas com repercussão na distensibilidade e conse- plasias na idade adulta.
quente hipertensão arterial na idade adulta.
1. Cancro da mama
Diabetes mellitus gestacional Em 1990, Trichopoulos admitiu a hipótese de o can-
e doença metabólica cro da mama poder ter a sua origem in utero. Num
O peso elevado de nascimento (superior a 4000 gra- estudo realizado no Reino Unido e na Suécia, envol-
mas ou macrossomia) relacionado com diversos fac- vendo 5358 mulheres, verificou-se uma associação a
tores etiopatogénicos incluindo a diabetes mellitus risco de cancro da mama antes dos 50 anos 3,5 vezes
gestacional (DMG), comporta risco elevado de peso superior nos casos de antecedentes de macrossomia
excessivo na adolescência e idade adulta. De acordo ao nascer (peso igual ou superior a 4000 gramas), em
com os estudos do grupo de Gillman a DMG reflecte relação aos casos com idêntica idade gestacional, mas
um ambiente fetal alterado em termos de relação: peso de nascimento inferior a 3000 gramas.
metabolismo da glucose mãe – feto. Reportando- De acordo com diversas investigações demons-
nos ao conceito de programação, a DMG actuaria trou-se o papel da elevada concentração de
como um factor predisponente em relação a deter- estrogénios endógenos nas mulheres com cancro
minados insultos que poderão conduzir à obesi- da mama em idades pós-menopausa. Nos casos de
dade, e não como factor causal directo. associação entre macrossomia e ulterior cancro da
mama em idade pré-menopáusica, demonstrou-se
Nutrição materna, feto e doença metabólica que havia elevadas concentrações de IGF-I (insulin-
Os efeitos da nutrição materna na gravidez sobre like growth factor) comprovada nos casos que
o feto a longo prazo constituem matéria de contro- evoluiram para cancro da mama pré-menopáusica.
vérsia dada a grande variabilidade de resultados
traduzindo heterogeneidade das populações estu- 2. Cancro colo-rectal
dadas e diversidade das metodologias aplicadas. Relativamente a este tipo de cancro encontrou-se
Estudos epidemiológicos em populações hu- uma incidência maior nos casos associados a
manas demonstraram que a composição corporal antecedentes de macrossomia fetal. Embora a base
da grávida influencia o desenvolvimento fetal etiopatogénica não esteja ainda perfeitamente escla-
com implicações futuras em termos de risco de recida, admite-se que a sequência de eventos bio-
doenças cardiovasculares no produto de con- lógicos associados (macrossomia com hiperinsuli-
cepção na idade adulta. Mães magras tendem a ter némia) tenham papel importante na carcinogénese
filhos magros com tendência para ulterior insuli- colo-rectal. Com efeito, a IGF- I e as suas proteínas
no-resistência; e mães obesas ou com peso excessi- de ligação influenciam o crescimento fetal, podendo
vo tendem a ter filhos gordos/pesados que a insulina comparticipar a carcinogénese através da
poderão ser ter insulinodeficiência. interferência nos níveis de IGF-I circulante.
Demonstrou-se também que o regime alimentar
durante a gravidez pode ter efeitos permanentes, Doença respiratória
influenciando de modo programado o metabolis- Na investigação de Barker, estudando a função pul-
246 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
vamente com períodos de crescimento rápido estudo com leite humano. Na análise estatística
dos vasos sanguíneos, do fígado e do pâncreas dos resultados foram ponderados diversos fac-
exócrino; e que a regulação das concentrações tores de possível interferência, tais como o teor em
dos lípidos e das lipoproteínas no soro envolve sódio dos diversos leites.
vários tecidos, com especial destaque para o Este efeito foi atribuído não só ao possível
fígado e o intestino. papel de hormonas e de substâncias tróficas que
A este propósito, estudos experimentais em fazem parte da composição do leite humano, mas
diversas espécies animais demonstraram que a sobretudo aos ácidos gordos poli-insaturados de
manipulação de dietas no recém-nascido e em ani- cadeia longa (LC-PUFA) do leite humano.
mais recém – desmamados pode produzir aumen- São hoje atribuídas diversas acções aos LCPUFA,
tos a longo prazo das concentrações de lípidos, cujas reservas são deficitárias no RN pré-termo. Tais
lipoproteínas e apolipoproteínas, e assim com al- ácidos gordos são preferencialmente incorporados
terações da actividade da redutase da HMGCoA nas membranas das células neurais, o que influencia
(hidroxi-metil-glutaril coenzima A) com papel na o desenvolvimento visual e cognitivo. Os mesmos
síntese do colesterol, e da 7-alfa –hidroxilase (sín- LCPUFAs também são incorporados nas mem-
tese dos ácidos biliares). branas doutras células como as dos endotélios vas-
Outro mecanismo implicado poderá estar rela- culares, o que poderá explicar o seu efeito na disten-
cionado com o facto de o leite materno conter sibilidade da parede das artérias.Efectivamente, foi
diversas hormonas (tiroideias e esteróides) e fac- demonstrado que em adultos hipertensos o regime
tores de crescimento, os quais podem influenciar alimentar suplementado com n-3 LCPUFA é suscep-
o metabolismo dos lípidos. tível de reduzir os valores tensionais em comparação
Embora o efeito destas hormonas maternas com os que não são suplementados.
sobre o lactente seja desconhecido, estudos experi- Tendo como base a noção de que as crianças
mentais em babuínos demonstraram diferentes alimentadas com leite materno têm valores mais
níveis de tri-iodo-tironina e de cortisol conforme baixos de pressão arterial que as alimentadas com
alimentados com leite materno ou com leite fórmulas industriais (não suplementadas com
industrial. Reportando-nos aos estudos de Barker, LCPUFAs) verificou-se que da suplementação
os lactentes alimentados com leite materno para com tais ácidos gordos n-3 LCPUFA resultam
além da idade de 1 ano, continuaram , por isso, a valores mais baixos de pressão arterial na infân-
ser submetidos por mais tempo ao efeito das hor- cia, o que tem implicações na prática clínica tendo
monas maternas e doutros componentes. em conta a tendência para os referidos valores se
manterem até à idade adulta; desconhece-se, até
Alimentação com leite materno, leite indus- ao momento se, tal influência dependerá do
trial, hipertensão arterial e esclerose múltipla tempo que durou o tipo de alimentação.
A etiopatogénese da hipertensão arterial no adul- De referir ainda estudos que levantaram a
to é de tipo multifactorial englobando um compo- hipótese de o défice de LCPUFAs na alimentação
nente importante que diz respeito aos hábitos ali- da primeira infância , condicionando disfunção da
mentares em relação com o consumo elevado de membranas celular e da barreira hemato-encefáli-
sódio, e baixo de cálcio e potássio. ca, facilitar a entrada de determinados agentes
Num estudo realizado pelo grupo de Singhal infecciosos promovendo a degradação acelerada
incidindo sobre 926 crianças com antecedentes de da mielina e a génese do quadro de esclerose
prematuridade e com regimes diferentes de ali- múltipla. (consultar parte sobre Nutrição)
mentação láctea no primeiro mês de vida (com-
parando fórmula de pré-termo com fórmula para Dislipoproteinémias em idade
RN de termo, e fórmula para pré-termo com leite pediátrica e doenças cardiovasculares
humano de mistura de diversas dadoras), e Constituindo as doenças cardiovasculares um
seguidas até aos 16 anos de idade, verificou-se problema de saúde pública em todos os países,
associação de valores mais baixos de pressão arte- nomeadamente nos industrializados, e tendo em
rial nos indivíduoas alimentados no período de consideração que os factores de risco, ocorrendo
248 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
muitas vezes associados em “constelações”, estão centes com MNEP em idade reprodutiva(em
já presentes em idade pediátrica e são preditivos relação a adolescentes sem MNEP) têm um risco
de risco cardiovascular no adulto, justifica-se a de mortalidade cerca de 5 vezes superior por
sua identificação precoce na perspectiva de medi- complicações relacionadas, quer com a gravidez,
das específicas de intervenção em idade pediátri- quer com o próprio parto. Tratando-se de parturi-
ca sobre os factores relacionados com o ambiente. entes com baixo peso(inferior a 45 kg) e com baixa
De acentuar que as lesões arteriais poderão ser estatura (inferior a 145 cm), criam-se condições
já detectadas no feto, tendo a dislipoproteinémia para desproporção feto-pélvica, nomeadamente.
materna mantida durante a gravidez importância Como consequência do défice de progressão pon-
na patogénese. deral, de infecção associada e de anemia durante a
Entre diversos estudos de correspondência de gravidez, surge um quadro de RCIU e/ou BP de
perfil lipoproteico idade pediátrica – adulto, valerá nascimento. Relativamente ao BP e à RCIU já
a pena citar o Fels Longitudinal Study em que se foram abordados tópicos que relacionam esta situ-
demonstrou que o perfil aos 9-11 anos era preditivo ação com outros problemas manifestados no adul-
do perfil aos 19-21 anos, nomeadamente em relação to.
ao parâmetro colesterol total e colesterol-LDL.
2. Carências nutricionais específicas de ex-
Hipertensão arterial pressão tardia
Admite-se hoje que a hipertensão essencial tem a O suprimento inadequado de determinados
sua origem na infância sendo a sua patogénese nutrientes à criança pode originar mais que uma
relacionada com factores hereditários, estresse, doença por mecanismos diversos.
suprimento em sal e obesidade. Tais doenças, associadas a carências específicas
Gillman procedeu ao estudo evolutivo seriado manifestam-se classicamente em idade pediátrica,
de uma população de indivíduos entre os 8 anos e ou seja, após um período curto de latência uma vez
os 26 anos de idade, tendo encontrado um coefi- verificada a situação biológica de carência, não
ciente de correlação com referência àqueles limites sendo de excluir predisposição genética. São exem-
de idades, de 0.55 para a pressão sistólica e de 0.44 plos as seguintes associações, algumas das quais
para a pressão diastólica. têm elevada prevalência nos países em desenvolvi-
Este tópico é pormenorizado no capítulo 46. mento: tiamina-béri-béri, niacina-pelagra, vitamina
D-raquitismo, iodo-bócio, vitamina C-escorbuto,
Infecções respiratórias na infância e doença vitamina A – xeroftalmia e ceratomalácia, ácido
respiratória crónica no adulto fólico e ou/ vitamina B12 – anemia megaloblástica,
Em diversos estudos incidindo sobre crianças hos- fluor-cárie dentária, ferro-anemia ferripriva.
pitalizadas por infecções das vias respiratórias Embora cada micronutriente tenha um papel –
inferiores (peumonias e bronquiolites por vírus chave no metabolismo de diversos tecidos, a ma-
sincicial respiratório-VSR) verificou-se na idade nifestação que diz respeito à doença considerada
adulta uma proporção significativa de hiperreac- clássica ou “index”, traduz a maior vulnerabili-
tividade brônquica e de anomalias da função res- dade de determinado tecido.
piratória em relação aos casos-controlo. Em confronto com o conceito de doenças de
Tal tipo de evolução atribui-se ao papel da carência nutricional manifestando-se após um
infecção do tracto respiratório (com especial rele- período de latência curto, cabe referir um conjun-
vância para a infecção por VSR que pode originar to doutros problemas igualmente de tipo caren-
alterações ultra-estruturais), sobretudo se houver cial, mas de manifestação após um período de
antecedentes de atopia. latência longo, atingindo a idade adulta.
São citados três exemplos:
Doenças da nutrição a) Cálcio: foi descrito um mecanismo associan-
1. Má nutrição energético-proteica (MNEP) e do a carência em cálcio a uma elevação “para-
o ciclo de gerações doxal” de cálcio ionizado intracelular e a uma
Nos países em desenvolvimento, as adoles- diminuição da capacidade de ligação ácidos gor-
CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto 249
dos – ácidos biliares; este achado biológico é rela- Portugal, juntamente com a Irlanda e EUA detêm
cionado com cancro do cólon na idade adulta. elevadas taxas de excesso de peso , situação que
b) Vitamina D: um dos efeitos do calcitriol – para antecede a obesidade.
o qual existem receptores em muitos tecidos- é A estabilidade ou tendência para manutenção
induzir a diferenciação e regular a proliferação celu- da obesidade (tracking) da infância para a ado-
lares. O seu défice tecidual (que poderá coincidir com lescência é baixa, sendo, no entanto, elevada da
valores séricos normais) poderá ter , por isso, efeito adolescência para a idade adulta. A probabilidade
oncogénico pelo défice da regulação exercida sobre a de uma criança obesa ser um adulto obeso é tanto
proliferação celular. A este respeito, cabe referir que menor quanto maior o tempo decorrido entre o
existem investigações demonstrando uma associação início da obesidade na criança e o início da idade
entre níveis baixos de calcitriol e mais elevada adulta; e tal probabilidade aumenta se a obesi-
incidência de cancro da próstata. Chama-se a atenção dade tiver início na adolescência e se existirem
igualmente para diversas repercussões da deficiência antecedentes familiares de obesidade, nomeada-
em vitamina D, traduzindo a acção desta em vários mente na mãe. (Capítulo 57).
sistemas: risco cardiometabólico (obesidade, HTA,
hiperglicémia, cardiomiopatia, síndroma metabóli- Implicações na prevenção
ca), diabetes mellitus tipo 1,esclerose múltipla, e controvérsias
esquizofrenia, etc.. Regulando também o genoma
humano, o défice da referida vitamina tem igual- As investigações de Barker e do seu grupo chama-
mente influência na vida reprodutiva, designada- ram a atenção para a origem fetal de muitas afec-
mente em raparigas adolescentes (Capítulo 59). ções que têm expressão no adulto. Este novo para-
c) Ácido fólico: na doença – index (anemia digma , que tem implicações preventivas na práti-
megaloblástica e defeitos do tubo neural no feto ca clínica, está em perfeita sintonia com o conceito
em situações de carência na gravidez), o efeito da genuíno de Pediatria como medicina integral de
carência é explicado pela alteração da síntese de um grupo etário desde a concepção até ao fim da
DNA; no caso dos defeitos do tubo neural inter- adolescência.
vém igualmente a hiper-homocisteinémia secun- Daí a grande responsabilidade do pediatra e
dária ao défice de ácido fólico. Em termos de do médico que cuida de crianças a cujo desem-
expressão da doença após longo período de latên- penho sempre se ligou uma forte vertente preven-
cia, comprovou-se que a homocisteína tem um tiva; e agora, numa nova perspectiva face a novos
papel importante na degradação das proteínas de paradigmas, cada vez mais partilhada pelo peri-
tecido elástico, conduzindo a um processo natologista (Capítulo 324).
degenerativo do tecido conectivo com repercussão Os tópicos abordados levantam questões inte-
em vários territórios: sistema ocular (ectopia lentis), ressantes. Muitos dos resultados de investigações
tecido ósseo (osteoporose), sistema vascular nem sempre são coincidentes; por vezes são con-
(doença vascular oclusiva), sistema nervoso cen- traditórios, procedendo os autores a especulações
tral (demência). De salientar que a homocisteína, etiopatogénicas, o que gera polémica.
cujos níveis séricos se elevam com suprimento Analisemos o parâmetro “peso de nascimen-
abudante em proteínas, tem uma acção pró-oxi- to”, um dos pontos de partida nas investigações de
dante e pró-coagulante ao nível do endotélio vas- Barker. Sorensen e Seidman, separadamente, con-
cular, favorecendo a aterogénese. (consultar parte cluiram que baixo peso de nascimento e restrição
XI sobre Nutrição). de crescimento intra-uterino são factores de risco
preditivos, não de obesidade, mas sim de coronar-
3. Obesidade iopatia, de acidente vascular cerebral e de diabetes.
A obesidade na infância e adolescência consti- Oken e Gillman chamaram a atenção para o que
tui na actualidade a doença nutricional de maior foi designado por fenómeno paradoxal do aumen-
prevalência em todo o mundo(segundo alguns “a to da adiposidade central na idade adulta rela-
nova síndroma mundial”), assumindo nalgumas cionável, quer com baixo peso, quer com peso ele-
regiões as características de verdadeira epidemia. vado de nascimento.
250 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
para serem efectivas, terão que ser aplicadas de Michels K, Trichopoulos D, Robins JM, Manson JE, Hunter DJ.
geração em geração. Birth weight as a risk factor for breast cancer. Lancet
Afigura-se, pois, importante desenvolver no 1996;348:1542-1546
futuro, diversas linhas de investigação no âmbito Novak D. Nutrition in early life- how important is it? Clin
da genética molecular e da nutrição pré-natal Perinatol 2002; 29: 203-208
englobando designadamente o estudo evolutivo Oken E, Gillman MW. Fetal origins of obesity. Obes Res 2003;
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período pré-natal até ao fim da adolescência e a Robinson RJ. The fetal origins of adult disease. Br Med J 2001;
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252 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
46
Em décadas anteriores a HTA em idade
pediátrica era abordada apenas nas suas formas
secundárias relacionadas com patologia renal,
cardíaca ou endócrina. No entanto, estudos epi-
demiológicos recentes em Portugal, demon-
straram que a chamada HTA designada por
HIPERTENSÃO ARTERIAL EM “essencial” ou não secundária é mais frequente
que a secundária atingindo cerca de 16% dos
SAÚDE INFANTIL E JUVENIL jovens e adolescentes.
Como a HTA essencial na criança e adolescente
João M. Videira Amaral é habitualmente assintomática uma vez que os
níveis tensionais se encontram apenas moderada-
mente elevados embora acima do percentil 95
para o grupo etário, o seu reconhecimento só é
Definição feito se a medição da pressão arterial passar a
constituir um procedimento de rotina no âmbito
Considera-se hipertensão arterial (HTA) a situa- do exame clínico de rotina ou exame de saúde.
ção clínica acompanhada de valores de pressão É importante acentuar que a HTA não reconhe-
arterial sistólica ou diastólica correspondendo ao cida em idade pediátrica e, consequentemente não
percentil 95 ou percentil >95 para a idade e o sexo, tratada, manifesta tendência para se manter
em 3 ocasiões diferentes. durante a idade adulta; ou seja, a noção de estabili-
A chamda HTA limite corresponde às situa- dade, ou tendência para a manutenção (tracking)
ções em que os valores da pressão arterial sistóli- aplicada às dislipoproteinémias em idade pediátri-
ca ou distólica correspondem ao intervalo entre os ca aplica-se também a este problema clínico.
percentis 90 e 95 para a idade e sexo.
A pressão arterial será considerada normal se Factores etiopatogénicos
os valores da pressão arterial sistólica e diastólica
forem inferiores aos do percentil 90 para a idade e Admite-se hoje que a HTA essencial, doença
sexo (Capítulo 162). poligénica, tem a sua origem na infância, sendo a
Os valores detectados deverão ser interpreta- sua etiopatogénese relacionada com factores
dos com base nos valores das tabelas de percentis hereditários,estresse, suprimento em sal e obesi-
(Quadros 1, 2, 3, 4). dade.
O sistema renina-angiotensina tem um papel fun-
Aspectos epidemiológicos damental na regulação da pressão arterial e na
homeostase do sódio, salientando-se que os genes
A hipertensão arterial (HTA)constitui um factor que fazem parte da cascata enzimática do referido
de risco idependente e importante para doença sistema são genes candidatos para a HTA essen-
crónica do adulto, em especial para a DCV e para cial e para algumas manifestações clínicas associ-
a doença vascular cerebral. Com efeito, a elevação adas. Cita-se, a propósito, a relação entre HTA
de apenas 5mmHg na pressão diastólica resulta, sensível ao sódio e o polimorfismo do gene da
respectivamente, em aumento de risco de DCV da enzima conversora da angiotensina (ECA),
ordem de 20%, e de 35% para a doença vascular admitindo-se associação entre os genótipos II ou
cerebral. Por sua vez, a HTA constitui ainda um DI e maior prevalência de sensibilidade ao sal. A
factor de risco para doença renal terminal na HTA sensível ao sal também pode estar associada
idade adulta. a valores baixos da renina.
Relativamente a dados epidemiológicos rela- A obesidade, é reconhecida como um dos mais
cionados com este problema, cabe dizer que afec- importantes e independentes factores de risco
ta mais de 60 milhões de de pessoas nos EUA e para a HTA em crianças a partir dos 5 anos, e com
cerca de 1 milhão em Portugal. maior relevância a partir da adolescência.
CAPÍTULO 46 Hipertensão arterial em saúde infantil e juvenil 253
QUADRO 1 – Valores de pressão arterial sistólica por percentis de estatura (raparigas 1 a 17 anos)
Nota importante: Em clínica pediátrica é necessário dispor de braçadeiras/garrotes de diversas larguras a aplicar no
braço em função da idade:
– Lactentes: 2,5 cm; 1 - 4 anos: 5,6 cm; 5 - 8 anos: 9 cm; > 8 anos: 12 cm
No que respeita ao comprimento da braçadeira, o mesmo deverá ser suficiente para envolver completamente o braço. Se
a pressão arterial for determinada no membro inferior (coxa), pode utilizar-se a mesma braçadeira com o respectivo bordo
inferior a 3-5 cm do cavado popliteu.
254 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 2 – Valores de pressão arterial diastólica por percentis de estatura (raparigas 1 a 17 anos)
QUADRO 3 – Valores de pressão arterial sistólica por percentis de estatura (rapazes 1 a 17 anos)
QUADRO 4 – Valores de pressão arterial diastólica por percentis de estatura (rapazes 1 a 17 anos)
Idade Percentil Pressão arterial diastólica / percentil estatura mm Hg**
(anos) Pressão arterial* 5% 10% 25% 50% 75% 90% 95%
1 90 50 51 52 53 54 54 55
95 55 55 56 57 58 59 59
2 90 55 55 56 57 58 59 59
95 59 59 60 61 62 63 63
3 90 59 59 60 61 62 63 63
95 63 63 64 65 66 67 67
4 90 62 62 63 64 65 66 66
95 66 67 67 68 69 70 71
5 90 65 65 66 67 68 69 69
95 69 70 70 71 72 73 74
6 90 67 68 69 70 70 71 72
95 72 72 73 74 75 76 76
7 90 69 70 71 72 72 73 74
95 74 74 75 76 77 78 78
8 90 71 71 72 73 74 75 75
95 75 76 76 77 78 79 80
9 90 72 73 73 74 75 76 77
95 76 77 78 79 80 80 81
10 90 73 74 74 75 76 77 78
95 77 78 79 80 80 81 82
11 90 74 74 75 76 77 78 78
95 78 79 79 80 81 82 83
12 90 75 75 76 77 78 78 79
95 79 79 80 81 82 83 83
13 90 75 76 76 77 78 79 80
95 79 80 81 82 83 83 84
14 90 76 76 77 78 79 80 80
95 80 81 81 82 83 84 85
15 90 77 77 78 79 80 81 81
95 81 82 83 83 84 85 86
16 90 79 79 80 81 82 82 83
95 83 83 84 85 86 87 87
17 90 81 81 82 83 84 85 85
95 85 85 86 87 88 89 89
Outro factor de ordem ambiental implicado diz Crowley R, Wolfe I, McKee M. Improving the transition
respeito à ingestão de sal na alimentação; de referir, between paediatric and adult healthcare: a systematic
a propósito, alguns estudos intervenção alimentar: review. Arch Dis Child 2011; 96:548-553
a restrição de sal durante os primeiros 6 meses pro- Cruz M (ed). Manual de Pediatria. Barcelona:Ergon, 2013
move a descida dos valores de pressão sistólica. Direcção Geral da Saúde. Programa Nacional de Prevenção
O potássio também actua na regulação da das Doenças Cardiovasculares. Lisboa: DGS, 2006
pressão arterial através da indução da natriurese e Kavey R-E W, Daniels SR, Lauer RM, Latkins DL et al.
da acção sobre a renina, suprimindo a sua pro- American Heart Association guidelines for prevention of
dução e libertação. atherosclerotic cardiovascular disease beginning in child-
Dados preliminares também constituem argu- hood. J Pediatr 2003; 142: 368- 372
mento para uma correlação inversa entre supri- Kay JD, Sinaiko AR, Daniels RS. Pediatric hypertension. Am
mento de cálcio no regime alimentar e pressão ar- Heart J 2001; 142: 422- 432
terial: tal suprimento, conduzindo a maior teor em Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
cálcio intracelular, tem influência na diminuição Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011.
do tono vascular e na resistência arteriolar. Labarthe D. Nondrug interventions in hypertension preven-
Outro aspecto – abordado no capítulo 45 – diz tion and control. Cardiol Clin 2002; 20: 249-263
respeito à relação entre baixo peso de nascimento Luepker RV, Jacobs DR, Prineas RJ, et al. Secular trends of
e HTA na vida adulta. blood pressure and body size in a multi- ethnic adolescent
population: 1986 to 1996. J Pediatr 1999; 134: 668-674
Actuação Lurbe E, Sorof JM, Daniels SR. Clinical and research of ambu-
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O Programa –Tipo de Actuação em Saúde Infantil 2004; 144: 7-16
e Juvenil da Direcção Geral da Saúde recomenda a Maldonado J. Prevalência da HTA atinge 16% nos jovens e ado-
medição da pressão arterial a partir dos 4 anos, e lescentes. Tempo Medicina 2011; (12 Dez): 5
a Academia Americana de Pediatria a partir dos 3 McInerny T (ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
anos. Tal medição deverá ser levada a cabo com Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010
técnica e equipamentos adequados, tendo em McGill HC Jr, McMahan CA, Zieske AW, et al. Effects of non-
conta, nomeadamente, a aferição dos aparelhos e lipid risk factors on atherosclerosis in youth with a
a largura da braçadeira, esta útima devendo ser favourable lipoprotein profile. Circulation 2001; 103: 1546-
adaptada para cada idade. 1550
Em complemento do que é referido no Newman WP 3rd, Freedman DS, Voors AW, et al. Relation of
Capítulo 162 cuja consulta se sugere, acentuam-se serum lipoprotein levels and systolic blood pressure to
os seguintes pontos que fazem parte da actuação early atherosclerosis:the Bogalusa Heart Study. N Engl J
preventiva. Med 1986; 314: 138-144
– restrição de sal no regime alimentar (3-5 gra- Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph’s Pediatrics.
mas /dia; ~1,4 gramas/100 gramas de pão) New York: Mc Graw - Hill Medical, 2011
– prevenir e combater a obesidade Sassetti L, DGS. Programa de vigilância em Saúde Infantil e
– estimular o consumo de alimentos ricos em Juvenil. Revisão 2012. Acta Pediatr Port 2012; 43: XXXI
potássio www.dgs.pt [acesso em Julho 2013]
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258 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
47
sedentarismo, aos regimes alimentares ricos em
gorduras saturadas e colesterol, à obesidade e aos
hábitos de fumar tabaco; tal intervenção será tanto
mais eficaz quanto mais precocemente tiver início.
Tendo em conta que o estilo de vida e os
hábitos alimentares se adquirem na infância,
DOENÇA ATEROSCLERÓTICA conclui-se que o pediatra (ou o clínico que pres-
ta cuidados à pessoa em idade pediátrica) tem
João M. Videira Amaral uma grande responsabilidade na redução do
impacte da DCV.
Aterosclerose
Importância do problema
A aterosclerose é um processo crónico degenerati-
No âmbito das doenças degenerativas, a doença vo e progressivo de base genética, caracterizado
cardiovascular (DCV) constitui a principal repre- por depósito lipídico na íntima das artérias, de
sentante e, simultaneamente, a principal causa de modo mais acentuado nas de calibre grande ou
morte no mundo, seguida da doença neoplásica e médio (coronárias, cerebrais, extremidades inferi-
da doença respiratória. ores, aorta, etc.).
Nos Estados Unidos da América(EUA) cerca Apresenta-se inicialmente sob a forma de lesão
de 1 milhão de pessoas morre anualmente devido endotelial vascular englobando, sob o ponto de
a DCV, sendo de referir que cerca de 60 milhões de vista morfológico, dois tipos: as estrias gordas provo-
americanos vivem com alguma forma de DCV. cadas pela acumulação de gordura, precursoras das
A principal representante da DCV é a doença chamadas placas fibrosas que aparecem mais tarde.
coronária cardíaca(DCC), clinicamente manifesta- Tais lesões originam fenómenos obstrutivos
da como angor pectoris, enfarte do miocárdio ou vasculares com consequente isquémia nos terri-
morte súbita.Outras formas de manifestação da tórios irrigados (angor, enfarte do miocárdio, aci-
DCV incluem a doença vascular cerebral e as vas- dente vascular cerebral de tipo isquémico, lesões
culopatias renais e periféricas A causa básica é a renais, doença isquémica dos membros inferiores
aterosclerose. podendo evoluir para gangrena) manifestando-se
Em Portugal, no ano de 2008 cerca de 32% dos na idade adulta; é igualmente possível o despren-
óbitos registados foram atribuídos a DCV, número dimento de trombos de lesões vasculares ulceradas
não muito diferente do observado em 1960. No e/ou hemorrágicas.
entanto, nos anos 80 e início dos anos 90, esta As lipoproteínas LDL ou Low Density Lipo-
patologia chegou a ser responsável por cerca de proteins na sua forma oxidada desempenham
44% dos óbitos ocorridos. papel primordial na génese das estrias gordas, as
As repercussões económicas deste tipo de quais poderão ser já evidentes em exames post-
morbilidade são preocupantes tendo em conta, mortem na íntima da aorta desde a infância.
designadamente, o seu elevado custo e o aumento Stary encontrou também em exames post-
crescente da sua incidência. Com efeito, no que mortem lesões coronárias em 20% de crianças fale-
respeita à prevenção e controle da mesma, não cidas por lesões traumáticas; e, em autópsias de
tem sido possível obter resultados tão bons como soldados americanos mortos no Vietnam e Coreia
aconteceu com as doenças transmissíveis, o que se há décadas, foram detectadas lesões do tipo
pode explicar pela complexidade dos respectivos descrito em percentagens oscilando entre 45 e 70%.
factores etiopatógenicos. Em estudos realizados em adolescentes com
De acentuar que os melhores resultados obti- valores elevados de colesterol no sangue,através
dos se relacionam com programas de intervenção de exames ecográficos foi possível demonstrar
incidindo sobre mudanças do estilo de vida e de sinais de placas fibrosas nas carótidas em 10% dos
hábitos alimentares como sejam: combate ao casos.
CAPÍTULO 47 Doença aterosclerótica 259
densidade (sobretudo LDL oxidadas) estão as- peso e obesidade, e valores baixos de lipoproteína
sociados a patogénese das estrias gordas e placas HDL) de acordo com diversos estudos tem sido
fibrosas (placa de ateroma). difícil considerar os triglicéridos, de forma inde-
Diversos estudos epidemiológicos, experimen- pendente, como aterogénicos, não se recomendan-
tais, clínicos e de anatomia patológica, demons- do o seu rastreio. Contudo, salienta-se que valores
traram uma relação entre coronariopatia, enfarte muito elevados constituem risco de pancreatite e
do miocárdio e angor, e valores plasmáticos mais fazem parte da síndroma metabólica.
elevados de colesterol, por sua vez em relação Investigações muito recentes (2013) em crian-
com suprimentos alimentares mais elevados de ças, adolescentes e adultos jovens demonstraram
gorduras saturadas. que valores mais elevados da ratio TG/C-HDL se
Inversamente, foi demonstrado que os indiví- relacionam com maior rigidez da parede arterial
duos com doença aterosclerótica e coronariopatia em todas as idades, e risco mais elevado de
melhoravam com a diminuição dos valores de aterosclerose na idade adulta, sobretudo se asso-
colesterol total. Tal melhoria traduziu-se pela ciada a obesidade.
comprovação de regressão do ateroma e da dimi-
nuição da mortalidade em 2% por coronariopatia, 1. Rastreios
reduzindo em 1% o valor da colesterolémia, Classicamente, em idade pediátrica, com o objectivo
segundo o Lipid Research Clinics Program (LRP). de identificar através do perfil lipoproteico os casos
Segundo o mesmo LRP, o risco de acidente com maior risco de DCV, são descritos dois tipos de
agudo relacionado com caronariopatia de base é rastreio: o rastreio universal e o rastreio selectivo.
da ordem dos 5% aos 30 anos em indivíduos com – Rastreio universal
valores elevados de colesterolémia (total > 300 Este tipo de rastreio está hoje abandonado. Era
mg/dl e colesterol LDL > 240 mg/dl), aumentan- feito anteriormente nalguns países acompanhan-
do o risco para 50% aos 50 anos (Capítulo 374). do o exame de saúde na data de entrada para a
Noutros estudos concluiu- se que a redução escola, entre os 4-7 anos, e não antes, tendo em
em 10% dos valores da colesterolémia antes dos 40 conta as variações do colesterol total nos primei-
anos se traduziu numa diminuição da incidência ros anos de vida. Valores de colesterolémia total >
coronariopatia na ordem dos 50%. 200 mg/dL implicavam a determinação do perfil
Acontece que as lipoproteínas circulantes na lipoproteico completo.
idade pediátrica tendem a manter-se com idênti- Actualmente recomenda-se que em todos os
cos valores na idade adulta. É esta a noção de esta- indivíduos após os 18 anos de idade seja realizado
bilidade ou de “tracking” empregando a termino- o estudo do perfil lipídico.
logia muito corrente da língua inglesa. Nos estu- – Rastreio selectivo
dos de Bogalusa e Muscatine concluiu-se que: 1) Neste tipo de rastreio procede- se à colheita
os valores de colesterolémia aferidos aos 20 anos de sangue em circunstâncias específicas discrimi-
constituem um factor preditivo de risco de coro- nadas no Quadro 2 nas crianças a partir dos 2-5
nariopatia entre os 50 e 60 anos; 2) 50% das crian- anos conforme diversas escolas.
ças com valores de colesterolémia acima do per- Em geral, como primeira análise após jejum de
centil 75 evidenciavam hipercolestrolémia 10 a 15 12 horas, determina- se a colesterolémia total; se
anos mais tarde; 3) entre as crianças com valores os valores ultrapassarem 200 mg/dL, deverá pro-
baixos de colesterol HDL pelos 10-14 anos, cerca ceder-se ao estudo doutros parâmetros, designa-
de 40% apresentavam idêntica tendência 12 anos damende colesterol LDL e colesterol HDL, trigli-
mais tarde. céridos, apoA-I, apoB e, eventualmente, Lp(a).
No conjunto das hipercolesterolémias, a Se valor de colesterol-LDL(C-LDL) for < 110
capacidade aterogénica é variável entre as mes- mg/dL, a análise deverá ser repetida em função
mas. Estando a hipertrigliceridémia (valor de do contexto clínico, em geral 4-5 anos depois.
triglicéridos acima do ponto de corte entre 90 e Se C-LDL entre 110-130 mg/dL, a análise deve-
200 mg/dL) frequentemente associada a outros rá ser repetida em função do contexto clínico para
factores de risco metabólico (por ex. excesso de reavaliação.
CAPÍTULO 47 Doença aterosclerótica 261
QUADRO 3 – Perfil lipídico duma amostra de crianças e jovens sem factores de risco
primeira linha terapêutica é recomendado estilo American Heart Association guidelines for prevention of
de vida saudável (redução do peso,cessação do atherosclerotic cardiovascular disease beginning in child-
tabagismo,redução do álcool ingerido, e ingestão hood. J Pediatr 2003; 142: 368-372
de gorduras não saturadas. Valores acima de 500 Lee PJ. The management of familial hypercholesterolaemia in
mg/dL implicarão farmacoterapia [ácidos gordos chilhhood. Current Pediatrics 2002; 12: 104-109
ómega 3 (DHA,EHA), niacina, fibratos, etc.]. Lloyd JK. Cholesterol: should we screen all children or change
the diet of all children. Acat Paediatr Scand (Suppl) 1991;
3. Aspectos epidemiológicos 373:66-72
Num rastreio oportunista por nós realizado com a Medina-Urrutia A, Juarez-Rojas JG, Cardoso-Saldaña, e tal.
colaboração laboratorial do Departamento de Abnormal HDL lipoproteins in overweight adolescents
Bioquímica da FCM/UNL em crianças da clínica with atherogenic dyslipidemia. Pediatrics 2011;127:e1521-
privada e da consulta externa do Hospital Dona e1527
Estefânia (amostras de sangue obtidas na circuns- Querfeld U. Vitamin D and inflammation. Pediatric Nephrology
tância de existir prioritariamente a indicação de 2013; 28: 605-610
outros exames analíticos do sangue), foi encontra- Raitakari OT. Arterial abnormalities in children with familial
da uma prevalência de dislipoproteinémias pri- hypercholesterolemia. Lancet 2004; 363: 342-343
márias da ordem de 5%, na sua maioria hiperco- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
lesterolémia de tipo poligénico (10 casos em 203 AA(eds). Rudolph_s Pediatrics. New York : McGraw-Hill
crianças aparentemente saudáveis); havia antece- Medical , 2011
dentes familiares de hipercolesterolémia em um Shah AS, Dolan LM, Gao Z, et al. Clustering of risk factors: a
dos progenitores em 26% dos casos. simple method of detecting cardiovascular disease in
Noutra amostra constituída por 232 crianças youth. Pediatrics 2011; 127:e312-e318
aparentemente saudáveis de idade compreendida Shroff R. Phosphate is a vascular toxin. Pediatric Nephrology
entre 12 meses e 18 anos e sem factores de risco 2013; 28: 583-593
cardiovascular, foram obtidos os valores de CT, C- Silverstein J, Haller M.Coronary artery disease in youth.
LDL e de triglicéridos, que constam do Quadro 3 Present markers, future hope? J Pediatr 2010;157:523-524
sobreponíveis aos valores de referência obtidos Stary HC. Lipid and macrophage accumulations in arteries of
por outros autores. children and the development of atherosclerosis. An J Clin
Nutr 2000: 72 (suppl):1297S-1306S
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e304-e311
Kavey R-E W, Daniels SR, Lauer RM, Latkins DL et al.
PARTE X
Fluidos e Electrólitos
264 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
48
O LEC e o LIC têm composições diferentes,
sendo o respectivo volume determinado por
partículas osmoticamente activas dentro de cada
compartimento (aniões e catiões).
No LEC, entre os catiões predomina o sódio
(Na+: cerca de 140 mEq/L), seguindo-se quantita-
EQUILÍBRIO tivamente o potássio (K+: cerca de 4 mEq/L); entre
os aniões predominam o cloro (Cl–: cerca de 104
HIDROELECTROLÍTICO mEq/L), seguindo-se o bicarbonato (HCO3–: cerca
de 24 mEq/L), e as proteínas ou aniões orgânicos
E ÁCIDO-BASE (Prot–: cerca de 14 mEq/L).
No plasma a soma de catiões (154 mEq/L)
Maria do Carmo Vale, João Estrada deve ser igual à soma de aniões (154 mEq/L) para
e João M. Videira Amaral que seja mantida a neutralidade eléctrica.
A este propósito é importante abordar sucinta-
mente a noção de hiato iónico (aniões GAP) com
implicação prática importante na interpretação de
Homeostase da água, líquidos certas alterações do equilíbrio ácido-base; hiato
e electrólitos iónico é a diferença entre o valor medido do catião
Na+ e o dos aniões Cl– e HCO3–.
Líquidos corporais, compartimentos e osmoles Hiato Iónico = Na+ - [(Cl–) + (HCO–3)]
O organismo humano necessita de água e elec- (Normal: 4-11)
trólitos para manter a sua actividade metabólica. Hiato iónico é igualmente a diferença entre
Ao nascer , a água corresponde a cerca de 75- catiões não medidos (K+, Ca++, Mg++) e aniões não
80% do peso corporal, diminuido esta percentagem medidos (albumina, fosfato, urato, sulfato).
ao longo do primeiro ano de vida até 55% a 60%, A situação de acidose metabólica (ver adiante)
semelhante à do adulto. pode estar associada ou não a hiato iónico alte-
A totalidade da água corporal distribui-se rado, considerando valores normais os compreen-
principalmente por dois espaços (E) ou comparti- didos entre 4 e 11.
mentos: o intracelular (contendo LIC ou líquido No LIC entre os catiões predomina o potássio
intracelular) e o extracelular (LEC). (K+, cerca de 155 mEq/L) e entre os aniões (orgâni-
Ao nascer o LEC corresponde aproximadamente cos): o fosfato (P–: cerca de 95 mEq/L) e as proteí-
a 45% do peso corporal e o LIC a cerca de 35%. nas (Prot–: cerca de 65 mEq/L) (Quadro 1).
O LEC diminui rapidamente a partir da data do Os dois subcompartimentos do EEC (de acor-
nascimento, ao contrário do LIC que vai aumen- do com referido atrás o componente intravascular
tando, o que é relacionável com o crescimento celu- e o espaço intersticial), estão separados pela mem-
lar; atingida a idade de 1 ano, a relação entre estes brana capilar; esta possui características dialíticas,
dois compartimentos, semelhante à que se verifica permitindo a livre passagem de água e solutos,
no adulto, passa a ser a seguinte: LEC 20% a 25% permanecendo impermeável às substâncias de
do peso corporal, e LIC 30 a 40% do peso corporal. elevado peso molecular (proteínas). Estas local-
O LEC compreende a água do plasma (cerca de izam-se no espaço intravascular sem passar para o
5% do peso corporal ) e o líquido intersticial (cerca interstício, fixando a água e condicionando a dis-
de 15% do peso corporal). O volume de sangue tribuição de líquidos de acordo com a pressão
(volémia) na criança em geral, sendo o hematócrito oncótica e as leis de Starling. Ou seja, o volume
de de 40%, corresponde a cerca de 8% do peso cor- plasmático é mantido pela pressão oncótica exer-
poral (ou 80 ml x peso corporal em kg); em termos cida pelas proteínas do plasma (designadamente,
comparativos, no recém-nascido pré-termo e ou de albumina).
peso inferior a 1500 gramas, a volémia corre- No que respeita à diferença de composição
sponde a cerca de 10% do peso corporal. entre LEC e LIC quanto aos catiões K+ e Na+ , tal é
CAPÍTULO 48 Equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base 265
capacidade de alterar a percentagem de sódio fil- tenção das condições fisiológicas (homeostase),
trado no glomérulo em função da taxa de reab- torna-se fundamental conhecer as respectivas
sorção tubular. Com efeito, o aparelho justaglo- necessidades e perdas (habituais ou fisiológicas) e
merular produz renina como resposta à dimi- anormais. É igualmente importante reter as
nuição do volume intravascular; os estímulos da seguintes noções:
secreção da renina são: diminuição da pressão de 1 – o movimento e renovação (turnover) de água
perfusão ao nível da arteríola aferente do glo- no organismo (entrada/suprimento e saí-
mérulo, diminução do teor em sódio que atinge o das/perdas) são, relativamente ao peso,
túbulo distal, e a elevação do nível de agonistas tanto maiores e mais rápidos quando menor
beta-adrenérgicos como reacção à hipovolémia. a idade a velocidade do crescimento; deduz-
A renina, enzima proteolítica, produz uma cli- se que esta particularidade cria maior vul-
vagem da angiotensina, do que resulta o compos- nerabilidade e maior probabilidade de dese-
to designado por angiotensina I que, por acção da quilíbrio em crianças mais pequenas;
enzima de conversão da angiotensina, se transfor- 2 – a água é fundamental para o crescimento;
ma em angiotensina II. 3 – como resultado dos processos metabólicos
A angiotensina II tem duas acções principais: produz-se água endógena;
estimulação da reabsorção proximal tubular de 4 – ao falar-se em necessidades em fluidos em
sódio e da secreção de aldosterona pela suparar- termos gerais a noção de fluido (ou líqui-
renal; esta última, por sua vez, aumenta a reab- do) engloba igualmente os lípidos; de facto,
sorção de sódio ao nível do túbulo distal. se falarmos em necessidades hídricas (em
água) os lípidos, que são anidros, ficam
Péptido natriurético excluídos, tendo no entanto, impacte na
Este péptido, produzido no miocárdio auricular volémia e hemodinâmica; este aspecto é
sempre que se verifica distensão da cavidade auri- importante em nutrição parentérica (Capí-
cular, tem as seguintes acções: aumento da taxa de tulos 115 e 343).
filtração glomerular, inibição da reabsorção tubu-
lar de sódio, o que tem como consequência facili- Perdas
tar o aumento da excreção urinária de sódio. As perdas habituais ou fisiológicas verificam-se
principalmente através da pele e aparelho respi-
Hormona antidiurética (HAD) ratório (perdas de água sem electrólitos por eva-
A secreção da HAD aumenta como reacção à osmo- poração ou perdas insensíveis), urina (perdas
lalidade plasmática elevada; a consequência é maior urinárias) e fezes (perdas fecais).
reabsorção tubular de água e diminução do débito Em circunstâncias anómalas, para além destas
urinário. Em situações de diminuição acentuada da perdas, há ainda que contar: com as chamadas
volémia verifica-se estimulação da HAD e da sede perdas para o terceiro espaço (desvio de líquidos
independentemente osmolalidade plasmática. do espaço intravascular para o espaço intersti-
Relativamente à manutenção da volémia, con- cial); e com as perdas através de tubos de
siderando que o sódio constitui o principal catião drenagem (por exemplo, torácicos, abdominais).
extracelular, praticamente confinado a este com- Saliente-se que as perdas através da sudação
partimento(LEC), pode inferir-se que, para a não são consideradas perdas insensíveis: as per-
manutenção da volémia, se torna absolutamente das de água por evaporação não contêm electróli-
necessário o suprimento em sódio dentro de titos enquanto as perdas por sudação contêm água
determinados limites. e electólitos.
Sistematizando, apontam-se os seguintes valores:
Perdas e necessidades de fluidos
(Manutenção) perdas insensíveis
• 30 ml/kg/dia no lactente(valores superiores
Na perspectiva da administração de água e elec- no recém-nascido, sobretudo se de muito
trólitos (fluidoterapia) e da garantia de manu- baixo peso(inferior a 1500 gramas).
CAPÍTULO 48 Equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base 267
Normal 10-30 3-10 10-35 considerarar a modalidade de manutenção de
Suor Fibrose líquidos por via endovenosa .
quística 50-130 5-25 50-110 Para o cálculo do volume de líquidos de manu-
tenção há que atender também ao consumo ener-
Queimaduras 110-140 110-140 gético no pressuposto de que existe uma fonte
endógena de água – a água resultante dos proces-
sos de oxidação celular) (ver parte Nutrição).
• 12 ml/kg/dia na criança maior Na prática, para atingir o referido equilíbrio,
Como regra prática em função do contexto utiliza-se habitualmente a tabela de correspon-
clínico: 0,5 a 1 ml/kg/hora. dência de Holiday e Segar em termos de necessi-
Situações como temperatura ambiente elevada dades em volume de líquidos de manutenção na
(incremento de 12% por cada grau acima de 38ºC), base de 100 mL de água exógena por cada 100 kcal
taquipneia, traqueostomia, febre, fototerapia, etc. de energia despendida. O objectivo principal é
aumentam as perdas insensíveis; outras, como manter a normovolémia. (Quadro 3).
ambiente em incubadora com humidade relativa Por exemplo, no caso de uma criança que pese
aumentada, diminuem tais perdas. 14 kg, o cálculo será: 1000 mL para os primeiros
Refira-se que as queimaduras aumentam as 10 kg+ 50 mL/kg para os restantes 4 kg, ou seja,
perdas, não só de água , mas de electrólitos. 200mL. O total será, pois, 1200 mL para um dis-
perdas urinárias pêndio energético de 1200 kcal/dia.
• 2 ml//kg/hora (1 a 3 ml/kg/hora); cerca do
1 ano de idade: 400-500 ml/dia). Composição em electrólitos
Com base em estudos empíricos, as necessidades
perdas fecais em electrólitos a veicular em função do volume de
• 5ml/kg/dia líquidos atrás definido são assim estabelecidas:
Em situações de diarreia tais perdas de água e Por cada 100 mL de líquido administrado/ por
de electrólitos aumentam significativamente. 100 kcal despendidas:
• Na: 2 a 4 mEq (em média, 3 mEq) - Para obter soro a 1/5: adicionar a um litro de
• Cl: 2 a 4 mEq dextrose a 5% (ou 10%) 9ml de soluto de
• K: 2 mEq cloreto de sódio a 20%.
49
em regime hospitalar realizam-se determinados
exames complementares. Saliente-se, no entanto,
que a experiência clínica e a observação cuidadosa
atendendo à valorização de determinados sinais
clínicos poderá tornar dispensáveis os exames
complementares, referidos adiante.
DESIDRATAÇÃO AGUDA A proporção relativa da perda de electrólitos e
de água determina o tipo de défice e de desidra-
Mária do Carmo Vale, João Estrada tação. Este aspecto é importante, pois em função
e João M. Videira Amaral do referido tipo são adoptados procedimentos
diversos relacionados com a composição dos solu-
tos e a velocidade de administração:
50
Défice entre 3- 5%
Pode ser corrigido, em geral, com solutos por
via oral e em regime ambulatório mantendo o
regime alimentar habitual com algumas restrições
(ver adiante e Capítulo 107).
Défice entre 6-10%
REIDRATAÇÃO Pode ser corrigido, em geral, com solutos por
via endovenosa inicialmente, seguindo-se a admi-
João M Videira Amaral, Maria do Carmo Vale nistração ulterior de solutos por via oral, depen-
e João Estrada dendo da tolerância digestiva (vómitos ou não).
Défice superior a 10%
Nesta situação acompanhada ou não de cho-
que, há indicação de fluidoterapia endovenosa e
Aspectos gerais de seguimento inicial no hospital.
Para melhor compreensão do problema é des-
O esquema terapêutico da desidratação (ou rei- crita primeiramente, como modelo, a correcção
dratação) é um processo dinâmico que implica por via endovenosa.
vigilância constante ou frequente “à cabeceira do
doente”, devendo, pois ser individualizado. Reidratação endovenosa
A reidratação pode ser levada a cabo por via
oral, por via endovenosa ou pelas duas vias em 1ª Fase: reposição da volémia em situação de
combinação. défice > 10-15% (choque)
Em muitos casos poderá haver necessidade de Trata-se duma actuação prioritária tendo em vista
modificação de estratégias inicialmente planeadas a preservação da função cardiovascular para ga-
face à evolução clínica, o que é explicável: pelos rantia de eficaz perfusão dos órgãos, com especial
mecanismos de compensação do organismo que relevância para o encéfalo e rins.
variam em função da gravidade; pela possibili- Actuação prática: solução isotónica (em geral
dade de, a partir de determinada fase, o doente “soro” fisiológico ou lactato de Ringer) ao ritmo
passar a tolerar a administração de solutos por via de 10-30 mL/kg/hora; a duração desta fase, (entre
oral (nos casos de ser ter iniciado a correção por 1 a 2 horas ) variará em função do contexto clíni-
via endovenosa), ou o contrário (nos casos em que co, grau de desidratação e resposta inicial.
a correção iniciada por via oral passar a ser inviá- No caso de se tratar de situação com predo-
vel por diversos motivos). mínio de vómitos (por exemplo estenose hiper-
Numa primeira fase haverá que calcular o trófica do piloro com perdas de conteúdo gástri-
valor das perdas, ou seja, o défice em líquidos. co, ácido), dada a probabilidade de surgir alcalose
Os exames complementares considerados metabólica, não está indicado o lactato de Ringer
essenciais são: ionograma sérico, (prioritário) que pode exacerbar esta última.
determinação de ureia e creatinina no sangue, pH
e gases no sangue, análise sumária de urina (den- 2ª Fase: reposição do défice de líquidos e
sidade e osmolalidade) e hematócrito. Em casos electrólitos
especiais pode estar indicado o ionograma uriná- O plano de reposição do défice implica a obediên-
rio de 12 ou 24 horas. cia a um conjunto de princípios: administração
concomitante, nesta fase, dos líquidos e electróli-
Quantificação do défice tos para a manutenção; reposição do défice em
tempo a determinar, variando em função do tipo
Quantificando a desidratação pela percentagem de desidratação; relativamente ao catião potássio
de perda de peso relacionada com os sinais e sin- (K+), predominantemente intracelular, a compen-
tomas atrás apontados são adoptados os seguintes sação / reposição das perdas não pode ser imedia-
procedimentos para reposição do défice: ta pelos perigos que tal envolve: somente deverá
CAPÍTULO 50 Reidratação 273
ser incorporado no soluto de manutenção após défice (no exemplo atrás referido, somente após
comprovação de diurese mantida respeitando cer- as 6-8 horas, corrigido o défice após administração
tos limites no suprimento (não exceder 40 de 1000 mL);
mEq/litro de solução nem 0,5 mEq/kg/hora). c) Na desidratação hiponatrémica poderá
haver necessidade de administrar sódio extra (a
Tipo de solução acrescentar à solução atrás referida (SF diluído a
Na prática utiliza-se soluto salino fisiológico 1/2) em função da natrémia entretanto determi-
(SF ou NaCl a 0,9%) diluído a 1/2 (o chamado nada, aplicando a fórmula:
“soro a 1/2”) contendo 77 mEq de Na e 77 mEq de Défice em sódio = (130 - Na sérico) x 0,6 x
Cl). peso (em kg).
Acidose respiratória
QUADRO 5 – Alterações electrocardiográficas O tratamento da acidose respiratória será primor-
da hipo e da hiperpotassémia dialmente o da anomalia respiratória casual.
51
de adaptação e de compensação do organismo em
desenvolvimento (regulada geneticamente) quan-
to à absorção, metabolismo e excreção de determi-
nados nutrientes face à carência de outros.
Por outro lado, as chamadas “curvas ou tabe-
las “ de crescimento concebidas matematicamente
NUTRIENTES com base nos dados colhidos em grande número
de indivíduos de determinada população e região,
Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral poderão não se aplicar com rigor noutra popu-
lação com características e padrão nutricional di-
versos para avaliação da “normalidade” dos in-
crementos em peso, altura e outros parâmetros, o
Importância do problema que constitui uma limitação.
Talvez, num futuro próximo, os progressos da
Considera-se alimentação adequada aquela que biologia molecular ajudem a compreender melhor
propicia os nutrientes que promovem o cresci- a grande variabilidade dos mecanismos homeos-
mento e o desenvolvimento adequados, nomeada- táticos do metabolismo que expliquem, nomeada-
mente do sistema nervoso, o que constitui garan- mente, as variações de susceptibilidade e de tole-
tia para a saúde e bem-estar da criança, adoles- rância a carências e a excessos de nutrientes.
cente e futuro adulto.
O termo nutriente refere-se ao componente Critérios para o cálculo de nutrientes
nutritivo do alimento, sendo este último definido
como o composto ingerido; o alimento engloba, As necessidades em macronutrientes (hidratos de
por sua vez, elementos nutritivos e não nutritivos. carbono, lípidos, prótidos) e em micronutrientes
São consideradas sete categorias principais de (minerais e vitaminas) variam de indivíduo para
nutrientes: 1. água; 2. energia; 3. proteínas; 4. hi- indivíduo em função da idade, velocidade de
dratos de carbono; 5. gorduras; 6. vitaminas; 7. crescimento, grau de actividade física e de factores
minerais (minerais major e oligoelementos) genéticos interagindo com factores ambientais.
O termo nutrição diz respeito ao conjunto de Diversos organismos como a FAO, OMS,
trocas que se verficam entre o organismo vivo e o UNICEF e o Food and Nutrition Board, a National
meio que o rodeia. Academy of Sciences e o National Research Council,
Com efeito, as crianças são mais vulneráveis produzindo ao longo dos anos um acervo de
aos estados de subnutrição do que os adultos por dados científicos sobre nutrição, determinaram as
três razões fundamentais: a) mais baixas reservas necessidades nutricionais adequadas de algumas
de nutrientes, (e tanto mais quanto mais baixos substâncias susceptíveis de originarem, quando
forem o peso corporal e a idade) pelo risco de mais em défice, estados carenciais; de referir que os val-
rápido esgotamento; b)maiores necessidades para ores estabelecidos são periodicamente revistos.
o crescimento que é mais rápido, sobretudo no O mesmo Food and Nutrition Board publicou os
primeiro ano de vida (período em que o peso de chamados “valores de referência a utilizar para o cál-
nascimento triplica e o comprimento aumenta culo do regime alimentar” (Dietary Reference Intakes
50%); c) rápido desenvolvimento neuronal duran- ou DRI) relativos ao cálcio, fósforo, magnésio, vita-
te o último trimestre da gravidez e nos primeiros mina D, flúor, folato e vitaminas do complexo B,
dois anos de vida pós-natal, sendo de salientar restantes nutrientes, água e electrólitos e fibras.
que a complexidade das conexões neuronais é No conceito de DRI são abrangidos os se-
extremamente vulnerável à subnutrição guintes parâmetros:
Os princípios da nutrição na actualidade • EAR (Estimated Average Requirement) – “ne-
repousam ainda numa certa base de empirismo e cessidade média ou valor quantitativo esti-
de hábitos transmitidos de geração em geração. mado” significando o suprimento de deter-
De facto, é difícil ainda avaliar as possibilidades minado nutriente que satisfaz as necessi-
CAPÍTULO 51 Nutrientes 283
No período de recém- nascido as perdas fecais acima dos valores basais originado pela ingestão,
são escassas(5-10 ml/kg/dia) e as perdas insen- digestão e transporte dos nutrientes até à sua con-
síveis entre 30-60 ml/kg/dia. versão final em ATP, corresponde a valores entre 5
Por outro lado, mantendo o rim o equilíbrio a 10% da energia disponível. A ADE é mais eleva-
hidro- electrolítico do organismo, o mesmo pro- da para as proteínas do que para as gorduras e
move a excreção renal de água da ordem de 90 mais elevada para estas do que para os hidratos
ml/kg/dia, variando a concentração osmolar e o de carbono.
volume de urina. A osmolaridade urinária máxi- As perdas fecais correspondem a cerca de 8%
ma no RN é 600-700 mOsm/L, mais limitada que da energia, fundamentalmente como gordura não
na criança maior. absorvida.
De referir que as necessidades de água para o O metabolismo basal mede-se à temperatura
crescimento nesta fase da vida são 10 ml/kg/dia, ambiente (20ºC) entre 10 e 14 horas após uma
estabelecendo- se a relação de 1,5 ml de H2O por refeição, com o indivíduo física e emocionalmente
kcal consumida. tranquilo. Para cada grau centígrado de tempera-
tura o metabolismo basal aumenta aproximada-
2.Energia mente 10%.
Em metabolismo, a unidade de calor é a caloria Nos RN as necessidades basais correspondem
grande ou kilocaloria (1 Cal= 1 Kcal); esta medida aproximadamente a 55 kcal/kg/24 horas, dimi-
emprega-se para nos referirmos ao conteúdo nuindo progressivamente para 25-30 kcal/kg/24
energético dos alimentos. Uma kilocaloria define- horas à medida que avança o processo de maturação.
se como a quantidade de calor necessária para ele- A digestão de proteínas pode elevar o metabo-
var a temperatura de 1 kg de água, de 14.5ºC para lismo até 30% acima do nível basal excepto quan-
15.5 ºC. A produção de calor por oxidação varia do se verifica a sua deposição nos tecidos; por
com os distintos alimentos. Ora, medindo-se a outro lado, as gorduras e os hidratos de carbono
quantidade de O2 consumido, ou os produtos têm um efeito de “poupança” sobre a ADE das
finais da oxidação (CO2+H2O), são obtidos valores proteínas, produzindo incrementos mais discretos
sobreponíveis aos obtidos por calorimetria directa. daquela, respectivamente 4% e 6 %.
O kilojoule é outra medida utilizada com a Nos RN a ADE corresponde a cerca de 7-8% do
seguinte correspondência: 1 kilojoule = 4,2 kcalo- suprimento calórico, e a 5% nos lactentes e crian-
rias. ças maiores.
As necessidades energéticas das crianças variam O cálculo da energia necessária para formar
muito com as distintas idades e circunstâncias. tecido corporal (crescimento) obtém-se calculando
Cerca de 50% da energia fornecida pelos a diferença entre as calorias ingeridas e as uti-
nutrientes é destinada a cobrir as necessidades do lizadas para outros fins.
metabolismo basal. Estudos populacionais realizados pela OMS/
Por cerca de 100 kcal ingeridas são produzidos FAO e outros peritos estabeleceram a seguinte
cerca de 100 ml de água(água metabólica de acor- relação de gasto ou consumo energético para o
do com o conceito atrás descrito). crescimento: 4,8 kcal – 5,6 kcal /grama de incre-
O crescimento origina um consumo de energia mento de peso.
da ordem de 20-30 % da energia disponível. Tal As necessidades médias para a actividade física
consumo é directamente proporcional à veloci- são cerca de 15-25 kcal/kg/24 horas com máxi-
dade de crescimento (mais elevado no primeiro mos até 50-80 kcal/kg/24 horas durante períodos
ano de vida e, mais tarde, na adolescência) . curtos.
A actividade física, em regra mais elevada na Ainda que seja mais rigoroso calcular as neces-
criança que no adulto, despende cerca de 10 a 25% sidades calóricas a partir da superfície corporal do
da energia. No pequeno lactente o choro corres- que em relação ao peso e à idade, o critério final
ponde a um tipo de actividade física. para avaliar as necessidades na criança depende
A acção dinâmica específica (ADE) ou incre- do modelo de crescimento, da sensação de bem-
mento do metabolismo por dispêndio de energia estar que se verifique, e da saciedade.
286 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
o que obriga ao respectivo suprimento no regime zam-se em forma de proteínas humanas fun-
alimentar): treonina, valina, isoleucina, leucina, cionais (por ex. albumina, hemoglobina, hor-
lisina, triptofana, fenilalanina, metionina e histidi- monas) sendo que as porções nitrogenadas dos
na. Para além destes, a arginina, a cistina, a tauri- aminoácidos excedentários se convertem em ureia
na, a glicina e a tirosina são também essenciais no fígado e se excretam pelo rim.
para os recém-nascidos pré-termo. A oxidação do carbono dos aminoácidos é
Como funções essenciais das proteínas cabe muito semelhante à dos hidratos de carbono e à
citar o seu papel no incremento ou formação de das gorduras, sendo alguns glucogénicos e outros
novos tecidos (massa magra), na função imu- cetogénicos.
nitária e no desenvolvimento de capacidades rela- As proteínas não se podem armazenar de forma
cionadas com o comportamento. eficaz. Nas situações de carência proteica as proteí-
De salientar que não se pode formar tecido nas dos músculos são destruídas para servirem de
novo se todos os aminoácidos essenciais não esti- fonte de aminoácidos para utilização em zonas do
verem presentes no regime alimentar ao mesmo organismo consideradas mais importantes, como o
tempo; ou seja, a ausência ou défice de apenas um cérebro, ou para a síntese enzimática.
aminoácido essencial condiciona um balanço As anomalias do metabolismo das proteínas e
nitrogenado negativo. dos aminoácidos, que serão abordadas no capítu-
As proteínas desdobram-se durante o processo lo 369, constituem uma parte importante das enti-
digestivo em oligopéptidos e aminoácidos. O dades patológicas conhecidas vulgarmente por
ácido clorídrico do estômago propicia o pH ópti- doenças hereditárias do metabolismo.
mo para a cisão dos péptidos através da acção da O suprimento nutricional recomendado para
pepsina. A quimiosina transforma a caseína do as proteínas em diversas idades tendo como base
leite em paracaseína a qual é hidrolisada pela o teor em proteínas no leite humano, é inferior aos
pepsina juntamente com outras proteínas. As anteriormente divulgados pela OMS/FAO, com
diversas proteases têm maior apetência para especial realce para o 1º ano de vida.
uniões peptídicas específicas; algumas provocam De acordo com dados da National Academy of
rupturas de uniões no interior da cadeia peptídi- Sciences (NAS) foram etabelecidas em 2004 os
ca, e outras actuam em zonas de ligações mais ter- seguintes valores em gramas/dia: 0-6 meses→
minais . 9,1g/dia (AI) ou 1,5g/kg/dia; 7-12 meses →
No meio alcalino do intestino, a tripsina, a 11g/dia (RDA); 1-3 anos → 13g/dia (RDA); 4-8
quimiotripsina e a carboxipeptidase do pâncreas anos → 19g/dia (RDA); 9-13 anos → 34g/dia
hidrolisam estas proteínas e peptonas em pépti- (RDA); 14-18 anos → 52g/dia (M) (RDA); e →
dos e em alguns aminoácidos; outras peptidases 46g/dia (F) (RDA).
dos sucos intestinais promovem a digestão até à Quanto à EAR foram estabelecidos os seguintes
fase de aminoácidos. valores: 7-12meses → 0,98g/kg/dia; 1-3 anos →
Embora quantidades mínimas de certas proteí- 0,86g/kg/dia; 4-8 anos → 0,76g/kg/dia.
nas se possam absorver “intactas” com é demons- Admitindo-se um coeficiente de variação de 12%,
trado através das reacções imunitárias, em os valores referentes a RDA são obtidos
condições ditas normais de maturidade do tubo multiplicando os de EAR por 1,24.
digestivo, ou na ausência de patologia, são os pro- A justificação para os valores mais baixos de
dutos hidrolisados (aminoácidos) e alguns pépti- proteínas actualmente recomendados tem a ver
dos que se absorvem através da mucosa intestinal com o facto de ter sido demonstrado que nem
com a intervenção de transportadores específicos. todo o azoto não proteico é utilizado na síntese
Os oligopéptidos, de maiores dimensões, podem proteica, sendo de referir que o leite materno é
absorver-se durante os primeiros meses de vida muito rico em azoto não proteico. Por outro lado,
ou na sequência de episódios de gastrenterite. também se demonstrou que se pode obter idêntica
Os aminoácidos são transportados ao fígado eficiência da utilização das proteínas do regime
pela circulação portal e, a partir daí, são distribuí- alimentar com suprimentos mais baixos que os
dos pelos diversos tecidos. Os mesmos reorgani- anteriormente recomendados.
288 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
pequenas porções de colesterol livre e esterifica- cional: PUFA ou poly-unsaturated fatty acids)
do,vitaminas lipossolúveis e outras substâncias denominam-se conforme a posição das duplas
lipossolúveis; o invólucro membranoso contém ligações. O átomo de carbono mais afastado do
sobretudo fosfolípidos e proteínas designadas grupo carboxilo é o carbono omega ou n. Em nu-
apoproteínas. trição infantil assumem grande importância os
Os quilomicrons sofrem processo de exocitose ácidos ácidos gordos omega ou n6 e omega ou n3
para o sistema linfático intestinal em direcção à pelo facto de não serem sintetizados pelo orga-
circulação venosa por intermédio do canal toráci- nismo humano, obrigando ao seu fornecimento
co. As proteínas de transporte são proteínas de no regime alimentar (ácidos gordos essenciais).
muito baixa densidade (VLDL – “very low density O ácido linoleico, o ácido araquidónico e o
lipoproteins”), baixa densidade (LDL – “low density ácido docosapentanóico pertencem à série omega
lipoproteins”) e alta densidade (HDL – “high densi- ou n6. O ácido linolénico, o ácido eicosapentanói-
ty lipoproteins”), sintetizadas no fígado. co e o ácido docosa-hexanóico pertencem à série
Os triglicéridos de cadeia curta e média seguem omega ou n3.
outro caminho; a lipase pancreática hidrolisa-os ra- O ácido araquidónico, que tem como precursor
pidamente para ácidos gordos livres os quais são o ácido linoleico, é um importante constituinte
transportados através da célula intestinal. De acentu- dos fosfolípidos das membranas celulares e um
ar que quando a hidrólise no lume intestinal é inade- precursor das prostaglandinas, prostaciclina,
quada por défice de lipase pancreática ou de sais bi- tromboxanos e leucotrienos.
liares, estas gorduras são absorvidas e hidrolisadas O ácido docosa-hexanóico é componente dos fos-
para ácidos gordos livres dentro da célula por acção folípidos das membranas celulares, dos fotor-
da lipase da mucosa. Estes ácidos gordos livres não receptores da retina e da substância cinzenta cerebral.
são esterificados nem formam de seguida quilomi- Dum modo geral os ácidos gordos essenciais
crons; outrossim entram directamente nas veias têm acção importante nos fenómenos de neuro-
intestinais em direcção ao fígado pela via porta. transmissão, sendo necessários para o crescimento,
Esta via alternativa para os triglicéridos de o desenvolvimento cognitivo, a integridade da pele
cadeia curta e média é aproveitada na adminis- e do cabelo e a regulação do metabolismo do coles-
tração de preparados a crianças com graves pro- terol, diminuindo a adesividade das plaquetas.
blemas de absorção. De acordo com as recomendações da
Há a salientar que ao nível do lume intestinal ESPGHAN, para RN de termo não alimentados
existe uma interacção entre cálcio e gorduras: com leite materno, o suprimento em ácido linole-
maiores quantidades de cálcio comprometem a ico deve constituir 4,5- 10,8% do VCT e o de ácido
absorção de gorduras e vice- versa, pelo facto de linolénico 0,5% do mesmo VCT, para garantir uma
se formarem sabões insolúveis. relação ácido linoleico/ácido linolénico média de
Constituindo o leite materno um modelo 10/1 (com limites entre 5/1 e 15/1)
nutricional contendo cerca de 40-55% de lípidos É também recomendada a adjunção de LC (long
como parcela do VCT, com um coeficiente de chain) PUFA ou ácidos gordos poli-insaturados de
absorção de cerca de 90%, no primeiro ano de vida cadeia longa tendo como modelo o leite materno
o suprimento recomendado em lípidos deverá respeitando a relação n-6/n-3 de 2/1 ou, respecti-
contemplar aquela percentagem. vamente, 1%/0,5% do total de ácidos gordos.
De acordo com a National Academy of Sciences Nos regimes alimentares em que a % do VCT
2004 apenas foi determinado o suprimento (AI) de de ácido linoleico é inferior a 1-2% será necessário
gorduras em gramas/dia até aos 12 meses: 0-6 fornecer maior número de calorias totais para se
meses → 31g/dia; 7-12 meses → 30g/dia. obter crescimento comparável aos dos regimes
Far-se-á uma referência especial aos ácidos com aquela percentagem superior.
gordos essenciais e aos ácidos gordos trans. De referir que o excesso de ácidos insaturados
aumenta a peroxidação, do que poderá resultar
5.1 Ácidos gordos essenciais destruição das membranas celulares.
Os ácidos gordos poli-insaturados (sigla interna- Nos lactentes pequenos em fase de crescimen-
CAPÍTULO 51 Nutrientes 291
to rápido submetidos a regimes com baixo con- QUADRO 6 – Suprimento de ácidos gordos
teúdo em ácido linoleico verifica-se o aparecimen- essenciais (AI) (gramas/dia)
to de sinais cutâneos (intertrigo, secura e desca-
mação na pele). O Quadro 6 discrimina as AI para Ácido Linoleico Ácido Alfa-
o ácido linoleico e alfa-linolénico. -Linolénico
0-6 m 4,4 0,5
5.2 Ácidos gordos trans 7-12 m 4,6 0,5
Os ácidos gordos trans formam-se como resultado 1-3 a 7 0,7
da hidrogenação parcial dos óleos vegetais; desta 4-8 a 10 0,9
transformação resulta modificação das caracte- 9-13 a
rísticas físicas (maior consistência). A isomeri- M 12 1,2
zação trans dos ácidos gordos não saturados con- F 10 1
fere-lhes características semelhantes aos satura- 14-18 a
dos; daí as suas desvantagens e riscos em termos M 16 1,6
de maior predisposição para aterogénese. F 11 1,1
m= meses; a= anos; M= sexo masculino; F= sexo feminino
(National Academy of Sciences, 2004)
6. Minerais
No recém-nascido o conteúdo mineral corres-
ponde aproximadamente a 3% do peso corporal, Nesta alínea referente a minerais será dada
aumentando ao longo da infância. Por cada grama ênfase especial ao cálcio, fósforo, magnésio, ferro
de proteína retida armazena-se 0.3 gramas de e flúor discriminando-se por fim, em quadro
matéria mineral. No fim da adolescência tal con- sinóptico, os principais sinais e sintomas de situa-
teúdo corresponde a 4.3% do peso corporal dis- ções em que se verificam carências ou excessos de
tribuído, sobretudo, pelo esqueleto (cerca de 83%) minerais. Relativamente ao cloro, sódio e potássio
e pelo músculo (cerca de 10%). o Quadro 8 resume as RDA estabelecidas em
O cálcio, o sódio, o potássio e o magnésio mg/dia no primeiro ano de vida.
constituem os principais catiões. O cloro, o fós-
foro e o enxofre constituem os aniões mais impor- 6.1 Cálcio
tantes. O ferro, o cobalto e o iodo formam impor- A absorção de cálcio, que pode variar de 20 a 70%
tantes complexos orgânicos. da quantidade ingerida, relaciona-se fundamen-
Quanto a oligoelementos (por definição ele- talmente com os níveis de vitamina D e de para-
mentos cujo conteúdo no organismo constitui tormona, podendo ser facilitada por certos fac-
menos de 0.01% do peso corporal), destacam-se o tores como a presença de lactose, lisina, arginina e
zinco, flúor, manganês, cobre, cobalto, cromo (ou ácido ascórbico no regime alimentar, e pela acção
crómio), selénio e molibdénio com funções dos sais biliares.
importantes em diversos processos metabólicos; Pelo contrário, a absorção pode diminuir com
com efeito, os mesmos são componentes de sis- o suprimento excessivo de fosfato, oxalatos, e
temas enzimáticos ou actuam como componentes fibra, assim como em situações em que existe
de metaloenzimas, ou como cofactores de deter- défice de absorção de gorduras.
minadas enzimas. (Quadro 7) O leite materno fornece cerca de 300 mg de cál-
Idade Ferro Zinco Iodo Selénio Cobre Manganês Crómio Molibdénio Flúor
(meses) (mg) (mg) (mcg) (mg) (mcg) (mg) (mcg) (mcg) (mg)
0-6 0,27 (AI) 2 (AI) 110 (AI) 15 (AI) 200 (AI) 0,003 (AI) 0,2 (AI) 2 (AI) 0,01 (AI)
7-12 10 (RDA) 5 (RDA) 130 (AI) 20 (AI) 220 (AI) 0,6 (AI) 5,5 (AI) 3 (AI) 0,25 (AI)
mg= miligrama; mcg= micrograma
* Segundo a NAS, 2004
292 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 8 – Sódio, potássio e cloro (RDA NAS, 2004 no primeiro ano de vida oscilam entre
em mg/dia) 30 mg/dia (0-6 meses) e 75 mg/dia (7-12 meses).
Até aos 16 anos as doses (RDA) sobem progressi-
Idade Sódio Potássio Cloro vamente até 200 mg/dia.
(0-6 meses) 120 500 180 Salienta-se que, relativamente ao cálcio, fós-
(6-12 meses) 200 700 300 foro e magnésio, a inexistência até aos 12 meses de
dados seguros quanto aos suprimentos RDA con-
duziu à substituição por suprimento AI.
cio /dia com uma taxa de absorção de 75%; nos Após os 12 meses de idade apenas existem dados
lactentes alimentados com leites industriais (fór- sobre RDA relativamente ao fósforo e magnésio.
mulas) tal absorção é inferior :cerca de 20-50%.
De acordo com a NAS, 2004 a dose (AI) 6.4 Ferro
recomendada de cálcio a ingerir é 210 mg /dia no Embora o leite humano e o leite de vaca con-
primeiro semestre e 270 mg/dia no segundo tenham um fraco teor em ferro(respectivamente
semestre. Entre o 1 ano e 9 anos as doses aumen- 0.50 mg/litro versus 0.25-0.75 mg/litro) a sua taxa
tam respectivamente de 500 mg para 700 mg e de de absorção é cerca de 50% no caso do leite
900 para 1000 mg dos 10 aos 16 anos. humano, muito superior à que se verifica com o
Em todas as idades não devem ser ultrapas- leite de vaca(7-15%).
sadas as doses de 2500 mg/dia. O leite humano pode cobrir as necessidades
A relação Ca/P afecta a absorção mineral, va- nas primeiras oito semanas de vida após gravidez
riando largamente em diferentes alimentos: vege- de termo. No recém-nascido pré-termo há que ter
tais verdes – 2,8/1; leite humano – 2/1; leite de em conta as reservas deficitárias que se esgotam
vaca – 1,2/1; carne – 0,6/1. A relação Ca/P quando duplica o peso de nascimento.
favorável no leite humano é particularmente Os lactentes entre os 4-12 meses absorvem, em
importante para assegurar a mineralização óssea. geral, 0.8 mg/dia.
Entre os 0-6 meses a criança necessita aproxi-
6.2 Fósforo madamente de 0,27 mg/dia (AI) (Quadro 7). Entre
Relativamente ao fósforo, as doses (AI) recomen- os 14 e 18 anos as doses recomendadas oscilam
dadas pela NAS, 2004 são: 150 mg/dia dos 0-6 entre 10 e 12 mg/ dia. (RDA)
meses e 275 mg/dia dos 5-12 meses.
A ESPGHAN (European Society for Pediatric 6.5 Flúor
Gastroenterology-Hepatology and Nutrition) reco- As DRI estabelecem a ingestão adequada (AI) base-
menda suprimentos de 30 mg/100 kcal(20 ando-se em quantidades que diminuem a incidência
mg/100 ml) e um máximo de 50 mg/100 kcal com de cárie dentária e na UNL para evitar a fluorose.
uma relação Ca/P entre 1.2 e 2. Actualmente aconselha-se a suplementação em
Entre o 1 ano e 16 anos as doses sobem pro- flúor nas doses indicadas no Quadro 9 tendo em
gressivamente para valores entre 300 mg/dia e conta a necessidade de ajustar as doses em função da
850 mg/dia. água de consumo que é bebida na zona onde a cri-
Os lactentes alimentados com fórmulas de alto ança vive. O referido Quadro 9 só será aplicável em
conteúdo em fósforo, superior ao do leite mater- Portugal nas zonas onde se conhecer o teor em flúor
no(15 mg/100 ml), excretam grande parte deste na água de consumo público. (ver Capítulo 261, em
mineral pela urina com consequente aumento da que se aborda a importância do flúor tópico)
osmolalidade urinária.
Por outro lado, um excesso de fósforo pode 6.6 Zinco, Iodo, Selénio, Cobre, Manganês,
conduzir a hiperfosfatémia e, secundariamente, a Crómio e Molibdénio
hipocalcémia. O Quadro 7 resume as doses recomendadas de
ingestão (RDA e AI) destes minerais no primeiro
6.3 Magnésio ano de vida tendo como base o conteúdo dos mes-
As doses recomendadas de magnésio (AI) pela mos no leite humano.
CAPÍTULO 51 Nutrientes 293
QUADRO 9 – Suplementação de flúor (mg/dia) de acordo com a idade e o teor em ião flúor na água
de consumo público na zona onde a criança vive (ppm= partes por milhão)
Idade Tiamina Riboflavina Niacina Vit. B6 Folato Vit. B12 Ácido Biotina Colina
pantoténico
(meses) (mg) (mg) (mg) (mg) (mcg) (mcg) (mg) (mcg) (mg)
0-6 (AI) 0,2 0,3 2 0,1 65 0,4 1,7 5 125
> 6-12 (AI) 0,3 0,4 4 0,3 80 0,5 1,9 6 150
(anos)
1-18 (RDA) 0,4-1,1 0,5-1,3 5-15 0,5-1,3 150-400 0,9-2,4 2-5 (AI) 8-30 (AI) 200-400 (AI)
(NAS, 2004)
52
compromisso da absorção de vitamina B12, entre
outros (Capítulo 139).
53
plemento se se justificar, à colher, e sempre depois
da mamada, pelo facto de o biberão exigir menos
esforço, o que poderá também contribuir para a
ulterior recusa do peito.
c) a mãe deve ser esclarecida que, durante a
primeira semana, de adaptação do bebé, as neces-
sidades calóricas e em líquidos são inferiores LEITES E FÓRMULAS INFANTIS
àquelas a partir do 8º-10º dia.
Carla Rêgo e António Guerra
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lactentes saudáveis alimentados exclusivamente
com leite materno (4 – 6 meses).
Neste capítulo procede-se a uma abordagem
das fórmulas infantis disponíveis no mercado.
CAPÍTULO 53 Leites e fórmulas infantis 303
Classificação dos leites Quer para as fórmulas para lactente, quer para
e fórmulas infantis as de transição o valor energético estabelecido
oscila entre 60 e 70 Kcal / 100 ml.
Tendo por base a lei interna do país, e de acordo
com as Directivas Comunitárias, são estabelecidas Preparações à base de proteínas
algumas definições consideradas importantes do leite de vaca
para uma correcta compreensão e prescrição.
A fonte proteica deverá estar claramente defini- Proteínas
da. A classificação de “Leite” ou “Fórmula” depende O teor proteico oscila entre 1,8 e 3,0 g / 100kcal,
do facto de a fonte proteica estar respectivamente na com uma relação caseína/proteínas solúveis infe-
dependência exclusiva do leite de vaca ou não. rior a 1 e, portanto, similar à observada no leite
Existem actualmente quatro grandes grupos maduro de mulher (45/55).
de leites: os leites para lactente, os leites de tran- Desde há bastante tempo que se tem alertado
sição, os leites de continuação e os leites e fór- para o teor excessivo de proteínas nas fórmulas
mulas especiais. Incluídos nestas categorias dis- para lactentes. Na realidade, a utilização de leites
pomos de vários tipos de leites, adequados a para lactentes com um baixo teor proteico (1,8 g /
diversas situações clínicas. 100 Kcal), resulta em indicadores plasmáticos do
Leites e Fórmulas para lactente: géneros ali- metabolismo proteico mais próximos dos regista-
mentícios com indicações nutricionais específicas, dos em lactentes alimentados com leite materno,
destinados a lactentes durante os primeiros 6 independentemente da relação caseína / lactopro-
meses de vida e que satisfaçam as necessidades teínas do soro.
nutricionais deste grupo etário. Importa lembrar que o perfil de aminoácidos da
Leites e Fórmulas de transição: géneros ali- proteína bovina é claramente diferente do da pro-
mentícios com indicações nutricionais específicas, teína humana. Tais diferenças repercutem-se nos
destinados a lactentes a partir dos 6 meses, e até níveis de aminoácidos em lactentes alimentados
aos 12 meses (e eventualmente até aos 3 anos) que com leites com predomínio de proteínas do soro
constituam o componente líquido principal de um (treonina, valina, leucina, isoleucina, metionina) ou
regime progressivamente diversificado deste de caseína (tirosina, fenilalanina, valina, metionina)
grupo etário. com valores superiores aos registados em lactentes
As fórmulas para lactente recomendadas alimentados com leite materno. A indústria tem
desde o nascimento podem também ser satisfato- procurado corrigir estes desequilíbrios ajustando a
riamente utilizadas em lactentes até aos 12 meses, composição dos leites naqueles aminoácidos.
desde que sejam enriquecidas com ferro. As fór- Também o aminoacidograma e a relação entre
mulas de transição podem ser utilizadas em cri- aminoácidos essenciais e aminoácidos totais de
anças dos 12 aos 36 meses, como parte de um lactentes alimentados com leite de baixo teor pro-
regime alimentar diversificado. teico são similares ao observado nos alimentados
Todos os leites e fórmulas têm uma composição com leite materno. No entanto, apesar destas
relativa em macro e micro nutrientes que respeita similitudes, registam-se algumas diferenças relati-
os valores mínimos e máximos recomendados pela vas ao teor plasmático de alguns aminoácidos,
União Europeia (EU) para os diferentes grupos de quer por excesso (fenilalanina, metionina, isoleu-
leites (Legislação CEE 1999, 2000 e 2009). Para cina e citrulina), quer por defeito (triptofano, tau-
além da Comissão da Comunidade Europeia, tam- rina). Tais diferenças estão também dependentes
bém o Comité de Nutrição da European Society of da relação entre a caseína e as lactoproteínas do
Paediatric Gastroenterology Hepatology and Nutrition soro naquelas fórmulas, bem como do perfil quali-
(ESPGHAN) tem publicadas as recomendações tativo destas, o que tem levado a indústria a
respeitantes à composição das fórmulas para reduzir o teor de β-lactoglobulina e a aumentar o
lactentes e das fórmulas de transição, quer relati- conteúdo em α-lactalbumina, de modo a ultrapas-
vamente aos nutrientes em geral, quer a referente sar alguns desequilíbrios no perfil plasmático de
à composição de um nutriente específico. aminoácidos, o que permitiu aumentar o teor de
304 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
triptofano, precursor da serotonina, importante vamente aos alimentados com leite convencional
neurotransmissor com papel importante nos sis- sem AGP-CL, reflectem-se na composição dos
temas de alternância fome/saciedade, e de lípidos plasmáticos, da membrana do eritrócito,
sono/estado de vigília. da retina e do cérebro. Estes resultados sugerem a
Leites com teores ainda mais reduzidos de pro- necessidade de suplementação dos leites para
teínas (< 1,8 g / 100Kcal) têm também sido ensaia- lactente em AGP-CL; de acordo com alguns peri-
dos, alertando-se, no entanto, para o risco nutri- tos, os leites para lactente deverão incluir ácido
cional que tais fórmulas acarretam. araquidónico (AA) e ácido docosa-hexanóico
Desde há alguns anos que alguns leites têm (DHA) nas porporções, respectivamente, de pelo
nucleótidos incorporados nas suas composições. menos 0,35 e 0,2 do teor total de ácidos gordos.
Os nucleótidos representam 0,1 a 0,15 % do con- A inclusão nos leites, de triglicéridos incorpo-
teúdo de nitrogénio do leite materno e, ainda que rando o ácido palmítico, predominantemente na
os estudos não sejam consensuais, para além do posição β do glicerol, parece ter efeitos benéficos
seu papel na síntese de DNA e RNA, têm-lhes sido significativos relativos à absorção de gordura e
atribuídas algumas funções benéficas, nomeada- cálcio em recém-nascidos de termo saudáveis.
mente a nível imunológico, promovendo a matu-
ração dos linfócitos T. Minerais
Outras vantagens descritas dependentes da Nos leites e fórmulas para lactente, o teor de sódio
inclusão de nucleótidos nas fórmulas (aumento da e de outros minerais é inferior ao teor existente
biodisponibilidade do ferro, modificação da flora nos leites e fórmulas de transição. Refira-se ainda
intestinal, mais favorável metabolismo das lipopro- que são muito inferiores as necessidades em ferro
teínas e melhor aproveitamento metabólico dos áci- no primeiro semestre de vida em lactentes nasci-
dos gordos poli-insaturados de cadeia longa – dos de termo, pelo que é suficiente um baixo
AGP-CL, ou LC PUFA na nomenclatura inglesa), suplemento em ferro nos leites para lactentes.
ainda não estão amplamente comprovadas. Alguns leites têm sido suplementados com
Chama-se a atenção para o facto de o suprimento de selénio, um importante oligoelemento envolvido
teores elevados de proteína conduzir ao aumento de adi- em sistemas enzimáticos com acção antioxidante.
posidade em crianças avaliadas com 1 e 2 anos de idade. Tal reforço, particularmente importante nos leites
para recém-nascidos pré-termo, é feito sob a
Hidratos de carbono e pré-bióticos forma de selenito ou de selenato, com similar taxa
Relativamente aos hidratos de carbono, estes leites de retenção de selénio pelo organismo.
podem ser compostos exclusivamente por lactose
ou por uma associação de vários açúcares. Vitaminas
Têm também surgido leites para lactente e de Também o beta-caroteno, susceptível de ser
transição que incluem oligossacáridos (pré-bióti- metabolizado em vitamina A e com importante
cos) na sua composição com provavel efeito bené- acção antioxidante, tem sido incluído nalguns
fico. Concluiu-se recentemente que não há leites. Este e outros carotenóides existem no leite
objecções à inclusão até 0,8 g/100 ml, de galacto- materno; os seus níveis plasmáticos decrescem
oligossacáridos (GOS – 90%) e fruto-oligossacári- rapidamente após o parto em recém-nascidos ali-
dos (FOS – 10%) às fórmulas para lactentes e de mentados com leites não suplementados.
transição. Refira-se que o leite materno tem teores
elevados de oligossacáridos (2,2 e 1,2 g/dl respec- Probióticos
tivamente no colostro e no leite maduro). Recentemente surgiram no mercado leites para
lactentes com a adição de probióticos (micro
Lípidos organismos vivos que melhoram o equilíbrio da
Dada a limitada capacidade de síntese de AGP-CL flora intestinal).
pelo lactente nas primeiras semanas de vida, as Trata-se de espécies bacterianas particulares
diferenças entre o suprimento naqueles ácidos não patogénicas, produtoras de ácido láctico, com
gordos nos alimentados com leite materno relati- grande afinidade para a membrana apical do epi-
CAPÍTULO 53 Leites e fórmulas infantis 305
télio intestinal e com alguns efeitos benéficos para após os 6 meses e sempre após teste prévio de to-
a saúde. Entre estes destacam-se efeitos a nível lerância.
imunofisiológico intestinal com repercussão
favorável nalgumas patologias infecciosas e alér- Leites de transição
gicas, bem como a nível da biodisponibilidade de
minerais, e ainda, a nível sistémico, sobre o meta- Diferem do leite de vaca essencialmente no con-
bolismo lipídico, pressão arterial e patologia neo- teúdo proteico e em ferro (20 vezes superior), gor-
plásica. (capítulo 54). dura, hidratos de carbono, outros minerais e vita-
minas. Contêm, de uma forma geral, um teor mais
Fórmulas à base de proteínas de soja elevado de proteínas, cálcio e calorias que as fór-
mulas e leites para lactente. Sublinhe-se todavia
De acordo com estudos de peritos em nutrição que, de acordo com o Scientific Committec on food –
não é aconselhada a sua utilização na prevenção SCF, foi reduzido o teor proteico mínimo destas
de patologia alérgica. fórmulas para 1,8 g/ 100 kcal, valor idêntico ao
Relativamente à sua composição, e no que anteriormente já estabelecido para os leites para
respeita aos glúcidos, estas fórmulas são isentas lactentes. A sua riqueza em ferro e ácidos gordos
de lactose e incluem uma mistura de açúcares, essenciais justifica, por si só, a sua utilização, pelo
preferencialmente polímeros de glicose. De forma menos, até ao final do primeiro ano de vida. Têm,
a melhorar o seu valor nutricional, estas fórmulas no entanto, o inconveniente de conter ainda um
são enriquecidas em metionina e L-carnitina, elevado teor proteico condicionando uma sobre-
devendo esta última estar presente em valor supe- carga metabólica.
rior a 7,5mmol/100kcal. A composição relativa- A relação caseína/lactoproteínas do soro é
mente aos restantes nutrientes segue as mesmas superior a um, e próxima da do leite de vaca
directivas definidas para os leites para lactente. (80/20). O seu maior teor em caseína, ao condi-
Aponte-se que o elevado teor de magnésio, cionar um esvaziamento gástrico mais lento, per-
aluminio e particularmente de fitato, bem como a mite uma maior saciedade.
relação molar destes com o zinco, compromete a Não é exagero realçar a total inadequação da
absorção deste mineral, do cálcio e do ferro, sendo utilização do leite de vaca inteiro nesta idade,
pois desejável a total desfitinização da soja. A prática ainda frequente entre nós e noutros países
suplementação das fórmulas de soja com selénio europeus. Na realidade, o suprimento proteico
proporciona concentrações plasmáticas e eritroc- médio de lactentes alimentados com leite de vaca
itárias no lactente mais adequadas que as ocorri- é 20 a 100% superior à de lactentes alimentados
das com fórmulas não suplementadas. com leites para lactentes ou com leites de tran-
Existe no mercado uma fórmula hidrolisada à sição, e é 2 a 3 vezes superior ao definido como
base de proteína de soja que contém, para além “nível de segurança da ingestão proteica”.
daquela fonte de proteína vegetal, uma fonte de Por outro lado, a utilização do leite de vaca na
proteína animal, o colagénio de porco. Para além alimentação do lactente é um factor de risco
do menor valor biológico da proteína de soja importante de anemia por carência de ferro, situa-
quando comparada com a proteína do leite de ção ainda frequente mesmo nos países mais
vaca, a soja contém quantidades não desprezíveis industrializados. Por seu turno, os leites para
de isoflavonas/fitoestrogénios cujos efeitos no lactente, como oportunamente referido, podem
crescimento e maturação a médio / longo prazo ser utilizados até aos 12 meses, desde que sejam
são desconhecidos. médio/longo prazo. adequadamente enriquecidos em ferro requisito
Mais estudos serão, pois, necessários para cumprido por todos os leites 1 existentes no mer-
chegar a conclusões definitivas relativas à segu- cado português..
rança nutricional destas fórmulas que apenas Alguns leites de transição, são enriquecidos
devem ser usadas em situações de galactosemia, com probióticos; outros há que são também suple-
por questões éticas (vegetarianismo) ou em casos mentados em selénio, em β-caroteno e em nucle-
particulares de alergia à proteína do leite de vaca, ótidos.
306 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
54
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Nutr 2001; 32: S1-S31 A microbiota intestinal, o alvo principal destes
Host A, Koletzko B, Dreborg S, Muraro A, Wahn U, Aggett P, produtos que fazem parte do leite materno e de
Bresson J-L, Hernell O, Lafeber H, Michaelsen KF, Micheli algumas fórmulas, é constituida por microrganis-
J-L mos cujo habitat é o lume e a mucosa intestinal do
Koletzko B, et al.Drivers of Innovation in Pediatric Nutrition homem e de outros mamíferos. O chamado com-
(Nestlé Nutrition Institute). Basel:Karger, 2010 plexo probiótico é formado cerca de 1000 espécies
Koletzko B, et al. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: bacterianas, na maioria comensais, algumas com
Karger/Nestlé Nutrition Institute, 2008 potencialidades patogénicas, e muitas com benefí-
Osborn DA, Sinn J. Formula for prevention de Allergy and cio para o organismo do hospedeiro. Estas últimas
Food Intolerance in Infants. Cochrane Database Syst Rev encontram-se sobretudo no cólon em que 98% da
2004; (3): CD003741 microbiota é formada por 30-40 espécies, com pre-
Rigo J, Weaver L, Heymans H, Strobel S, Vandenplas Y. Dietary domínio de bactérias anaeróbias; parte importante
products used in infants for treatment and prevention of das mesmas tem influência no estado de saúde do
food allergy. Joint statment of the European Society for homem formando um eossistema microbiano.
Paediatrics Allergology and Clinical Immunology Deste ecossistema fazem parte os chamados pro-
(ESPACI) Committee on hypoallergenic formulas and the bióticos, microrganismos vivos considerados
European Society for Paediatric Gastroenterology, benéficos, por exemplo os lactobacilos e as bifi-
Hapatology and Nutrition (ESPGHAN) Committee on dobactérias, produtores de ácido láctico e vivendo
Nutrition. Arch Dis Child 1999; 81: 80-84 em simbiose (ver adiante).
Rego C, Ribeiro L, Guerra A. Leites e Fórmulas infantis: uma Outros produtos chamados pré-bióticos são
visão actualizada da realidade em Portugal. Acta Pediatr nutrientes não digeríveis que estimulam selectiva-
Port, 2002;33:279-281 mente o crescimento e a actividade das espécies
Rêgo C, Teles A, Nazareth M, Guerra A. Leites e fórmulas bacterianas benéficas. Os produtos chamados
infantis: a realidade revisitada em 2012. Acta Ped Port, in simbióticos são uma combinação dos probióticos
press e dos pré-bióticos; o uso de microrganismos vivos
em combinação com os seus substratos específicos
tem efeito sinérgico para a saúde através da ali-
mentação. A estes produtos dá-se genericamente o
nome de alimentos funcionais. O melhor exem-
plo de alimento funcional é o leite humano, o qual
contém um grande número de elementos bioac-
tivos (enzimas, factores de crescimento, aminoáci-
dos livres, imunoglobulinas, oligossacáridos, etc.)
CAPÍTULO 54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos 311
cujo efeito vai para além do puramente nutri- de medicina, em veterenária e na industria ali-
cional. mentar. Por isso, em 1999 foi elaborado pela
Recorda-se, a propósito, que a colonização do Comunidade Europeia um documento de consen-
intestino do recém-nascido pelas bactérias começa so que define probiótico como um alimento que
na altura do parto; e que o microbioma intestinal incorpora microrganismos vivos (lactobacilos,
materno é a única fonte natural de bactérias benéfi- bifidobactérias) o qual, consumido em quanti-
cas para o intestino. O desenvolvimento da mi- dades suficientes, produz efeitos benéficos para a
croflora intestinal dos lactentes alimentados com saúde e para o bem-estar, para além dos efeitos
fórmulas padrão é diferente da dos lactentes ama- nutricionais. Alguns produtos considerados como
mentados, particularmente, no que diz respeito a probióticos são constituídos por lisados bacteri-
progressão das bifidobactérias que nestes últimos anos ou produtos inactivados pelo calor que,
se tornam os microrganismos dominantes. quando ingeridos, também exercem efeitos bené-
A este propósito cabe referir alguns factos ficos para a saúde do hospedeiro pela capacidade
históricos sobre alimentos funcionais. de inibir a adesividade de bactérias patogénicas às
O iogurte e os leites fermentados foram os células da mucosa intestinal, melhorando o equi-
primeiros produtos considerados alimentos fun- líbrio microbiano intestinal do hospedeiro.
cionais. Reza a história que o iogurte mais antigo Os microrganismos que fazem parte dos pro-
era egípcio (3500 AC). bióticos mais utilizados são:
Hipócrates descreveu as propriedades benéfi- • Bactérias vivas produtoras de ácido láctico
cas do iogurte. Só muito mais tarde na Bulgária e – Lactobacillus (bulgaricus, acidophilus, casei, GG
na Turquia se vulgarizou o seu consumo. Uma das rhamnosus, plantarium), componentes importantes
bactérias usadas na sua fermentação recebeu o da microflora intestinal e dominantes no intestino
nome científico de Lactobacillus bulgaricus, e foi da delgado.
tradição oral destes povos que nos chegou o nome – Bifidobacterium (lactis, longum, bifidus), que
de “iogurte” que “contribuiu” para a enorme são dominantes no cólon, e também componentes
longevidade dos seus habitantes. importantes da microflora intestinal. Predominam
Em 1919, Isaac Carasso, fundador da Danone, no intestino dos recém-nascidos e dos lactentes
começou a produzir industrialmente o iogurte que alimentados com leite materno. As bifidobactérias
nessa época, por ser considerado um medicamen- são germes anaeróbios e utilizam uma via especí-
to, era vendido nas farmácias. Posteriormente, por fica para metabolizar a lactose da alimentação
conter bactérias cujo principal alvo era a microflo- produzindo acido láctico, (como outros probióti-
ra intestinal com efeitos benéficos para a saúde do cos), mas também acido acético com maior efeito
hospedeiro, passou a ser considerado um alimento bacteriostático.
funcional, salientando-se o estudo científico de – Streptoccocus (thermophilus, lactis, salibarius)
Metchinikoff no Instituto Pasteur de Paris. que têm uma forte actividade lactásica e que pela
Hoje em dia a área dos Alimentos Funcionais sua resistência à hidrólise, chegam em grandes
constitui uma área promissora das Ciências da quantidades ao intestino.
Nutrição. • Leveduras, células vivas
– Saccharomyces (boulardii, cerevisiae), resistente
Probióticos aos antibióticos.
O principal objectivo da utilização dos pro- desagregação dos ácidos biliares o que
bióticos é o de aumentar o número e a actividade reduz os níveis sanguíneos de amónia em
dos microrganismos intestinais com propriedades doentes com hepatopatia.
úteis ao hospedeiro. Assim, as condições a que Os probióticos têm efeitos na prevenção e
deve obedecer um probiótico são: tratamento de várias situações patológicas:
a - resistência à acidez gástrica, à bílis e às
enzimas pancreáticas; Intolerância à lactose e a outros dissacáridos
b - boa adesividade às células da mucosa Será provavelmente uma das utilizações mais
intestinal; antigas dos probióticos, pois desde há muito se
c - boa capacidade de colonização; sabe que o iogurte é muito melhor tolerado que o
d - tolerância imunológica com as bactérias leite pelos indivíduos intolerantes à lactose. Esta
autóctones; melhor tolerância tem sido atribuída à redução do
e - ausência de translocação; conteúdo em lactose no iogurte devido à fermen-
f - modulação do trânsito intestinal ajudando tação pelas bactérias produtoras de ácido láctico, à
a evitar obstipação; actividade lactásica das próprias bactérias, e tam-
g - melhor digestibilidade dos nutrientes bém à menor velocidade de esvaziamento gástrico
aumentando o seu valor nutricional; do iogurte em relação ao leite. Tal como sucede
h - comprovados efeitos benéficos para a saúde. com a intolerância à lactose, a administração de
Os mecanismos de acção dos probióticos não um probiótico como o Saccharomyces boulardii me-
estão totalmente esclarecidos, o que implica ulte- lhora a sintomatologia em indivíduos com défice
rior investigação básica e clínica, actualmente em em sacarase-isomaltase.
desenvolvimento. Os possíveis mecanismos ao
nível intestinal e sistémico são: Diarreia aguda infecciosa
a - actividade antimicrobiana contra as bac- O maior número de estudos com probióticos tem
térias patogénicas: pela inibição do cresci- incidido, quer na prevenção, quer no tratamento
mento bacteriano competindo com o con- da diarreia aguda infecciosa.
sumo de nutrientes; pela síntese de pépti- Em ensaios preventivos verificou-se nas crian-
dos e outras substâncias bactericidas; pelo ças que ingeriam leite enriquecido com a estirpe
impedimento da sua adesividade às célu- de Bifidobacterium lactis, uma diminuição significa-
las da mucosa intestinal, pela inactivação tiva da incidência de diarreia bem como de fezes
de toxinas (E. coli, V cholorae, C difficille). duras, e de dermatite de fraldas.
b - aumento da secreção de mucina com Nos ensaios terapêuticos o conjunto dos resul-
diminuição da permeabilidade intestinal ; tados aponta para diferenças significativas a favor
daí o efeito barreira contra as bactérias dos grupos com probióticos no que respeita a
patogénicas (E.coli). intensidade e duração da diarreia, ao número de
c - acidificação do pH intestinal pela produção dias de internamento e aos dias em que os vírus
de ácidos gordos de cadeia curta e conse- são eliminados pelas fezes, particularmente no
quente menor pH fecal (fezes mais ácidas). caso da diarreia por rotavírus. Entre as possíveis
d - Inibição da actividade enzimática bacteri- explicações encontram-se as propriedades imuno-
ana no cólon e aumento da actividade de lógicas conferidas pelas estirpes probióticas, a
algumas enzimas intestinais (lactase, mal- redução de produtos de putrefacção e o equilibrio
tase e sacarase); também melhor absorção ecológico da flora intestinal.
de cálcio e ferro evitando a sua utilização Tendo em conta que a diarreia é uma causa
pelas bactérias patogénicas. importante de mortalidade nos países em desen-
e - Imunomodulação do sistema imunitário volvimento, sobretudo em crianças com má-
intestinal com (estímulo da fagocitose con- -nutrição e, nos países desenvolvidos, causa de
tra os agentes patogénicos) e efeito anti- evicção escolar e de hospitalização, os probióticos,
alérgico aos alimentos. pela sua eficácia preventiva e terapêutica, são
f - Melhoria da circulação entero-hepática e da uteis em saúde pública. Em doses muito elevadas,
CAPÍTULO 54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos 313
a diarreia provocada pelo VIH parece beneficiar diminuição da absorção e do transporte do coles-
sua utilização. terol alimentar para o fígado (via quilomicrones)
e, por outro lado, pela desconjugação dos sais bi-
Diarreia associada a antibióticos liares com menor absorção do colesterol pelo
Vários estudos têm comprovado a eficácia dos intestino. A niacina formada pelas bifidobactérias
probióticos na prevenção e no tratamento da diar- reduz o fluxo de ácidos gordos livres que, ao
reia associada a antibioticoterapia. Os mais uti- diminuir a biossíntese da lipoproteína VLDL, con-
lizados têm sido as Bifidobacteria, os Lactobacillus e tribui para a redução dos níveis plasmáticos dos
o Saccharomyces boulardii. triglicéridos.
Além da acção sobre o colesterol, as bifidobac-
Diarreia do viajante térias produzem um conjunto de tripéptidos que
A diarreia do viajante é a doença mais comum foram identificados como efectivos na redução da
durante a visita às regiões tropicais. O efeito preven- angiotensina e, consequentemente, na hipertensão
tivo dos probióticos em tal contexto não está sufi- arterial.
cientemente demonstrado e os estudos são contra- Estes efeitos benéficos de combate aos factores
ditórios. No entanto, alguns ensaios clínicos referem de risco das doenças cardiovasculares levam a
uma redução de incidência da diarreia, variando fomentar a inclusão de alimentos funcionais com
consoante as regiões visitadas e as doses utilizadas. probióticos no regime preventivo.
55
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trointestinal diseases in children. JPGN 2006; 42: 454-475. mentados com leite materno, e à pressão arterial,
com valores inferiores nos amamentados.
É unanimemente reconhecida pelos peritos em
nutrição e amplamente recomendada pela OMS, a
alimentação com leite materno de modo exclusivo
nos primeiros 6 meses de vida.
Reitera-se que a alimentação do lactente deve
idealmente iniciar-se com o leite materno logo
desde os primeiros minutos de vida e durante,
pelo menos, o decurso do primeiro ano de vida.
Quando não é possível o aleitamento materno, é
recomendável a utilização de uma fórmula láctea
para lactentes ou de uma fórmula de transição
para a maioria dos lactentes, as quais foram abor-
dadas no capítulo 53. Em situações particulares,
como os casos de alergia às proteínas do leite de
CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida 317
vaca ou de refluxo gastresofágico, estão indicadas – Capacidade gástrica: o volume gástrico vai
fórmulas especiais com uma composição adequa- aumentando progressivamente, desde cerca de 20
da para tais situações. ml nas primeiras semanas de vida, até cerca de
250 ml no final do primeiro ano.
A diversificação alimentar – Maturação enzimática: nos primeiros meses
algumas enzimas importantes para a clivagem de
A partir do 6º mês de vida, não sendo possível macronutrientes não atingem ainda níveis sufi-
suprir de modo adequado todas as necessidades cientes. Tal ocorre com a amilase (ainda que a glu-
em macro e micronutrientes com o leite materno coamilase intestinal possa, em parte, participar na
como alimentação exclusiva, torna-se necessário digestão do amido ou de moléculas intermédias) e
iniciar um plano alimentar com introdução pro- com a tripsina pancreáticas. Também a concen-
gressiva de novos alimentos (começar com peque- tração de sais biliares está diminuída nas primei-
nas porções). O suprimento energético fornecido ras semanas de vida.
pelo leite materno é também claramente insufi- – Protecção imunológica: nos primeiros meses
ciente para a maioria dos lactentes a partir daque- de vida o sistema imunológico intestinal não está
la idade. Torna-se ainda importante o fornecimen- suficientemente desenvolvido, o que permite uma
to de oligoelementos a partir de outras fontes ali- maior permeabilidade à passagem de macromolé-
mentares, apontando-se como exemplo mais rele- culas proteicas com aumento do risco de sensibi-
vante o ferro. lização e ocorrência ulterior de alergias alimenta-
De salientar, no entanto, que o aleitamento res. A diminuição da proteólise intestinal e a defi-
materno a par de alimentação diversificada, pode ciência transitória da produção de IgA secretora são
continuar até aos 12 meses. Entre os 6 meses e 12 factores de maior risco de sensibilização alérgica.
meses, a par da alimentação diversificada, a ali- c) Desenvolvimento psicomotor e neurocompor-
mentação com leite não deve ultrapassar 700 tamental: a aquisição progressiva de determinadas
ml/dia nem ser inferior a 500 ml. competências no primeiro ano de vida permite que
É o período da chamada diversificação ali- a criança se vá adaptando aos alimentos semi-sóli-
mentar – conotado com a noção de alimentação dos e sólidos introduzidos na boca; pelos 4 a 6 meses
não láctea exclusiva – incluindo alimentos não – desaparecido o reflexo de extrusão que “expulsa os
líquidos com características diferentes das do alimentos não líquidos da boca”, a mobilidade
adulto correspondendo a uma programação que, ântero-posterior da língua permite empurrar aque-
não sendo rígida, deve, no entanto, nortear-se por les para a faringe, assim como a deglutição; entre 6 e
alguns princípios*. Esses princípios têm basica- 10 meses – surgem movimentos rítmicos do maxilar
mente a ver com: inferior com tendência para abrir e fechar a boca em
a) Necessidade de suprir o lactente de modo aproximação ou em fuga ao alimento; surgindo
adequado em todos os nutrientes, sem risco, quer movimentos de “mastigação” e o controlo manual e
de certas carências que neste período crítico do ocular, torna-se possível beber líquidos pelo copo;
crescimento e desenvolvimento conduziriam a entre os 10 e 12 meses – a capacidade de agarrar os
alterações irreversíveis a nível físico em diferentes alimentos (em pinça e com a mão) levando-os à boca
domínios comportamentais, psicomotores, senso- permite que, a pouco e pouco vá comendo cada vez
riais e cognitivos, quer de excessos nomea- com “mais autonomia”.
damente energético e proteico, predispondo a d) Maturação progressiva da função renal que
situações de excesso de peso e de obesidade. condiciona também a alimentação do lactente:
b) Necessidade de respeitar limitações mor- – são exemplos de imaturidade renal a inca-
fológicas e maturativas próprias dos primeiros pacidade de manuseamento de sobrecargas de
meses de vida nomeadamente do tracto digestivo. sódio e de concentração renal nas primeiras sema-
São exemplos: nas de vida; desta particularidade decorrem riscos
de ocorrência de desidratação hipernatrémica
* Como sinónimos de diversificação alimentar são frequentemente
empregues outros termos como: desmame, complementar, suplemen- com a utilização de alimentos de elevada osmo-
tar, de transição, weaning, “beikost”, “à-côtés”, solid foods, etc.. laridade.
318 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
e) Necessidade de conhecimento pormenorizado dos 5/6 meses de vida de acordo com as recomen-
da história familiar de determinadas patologias que dações internacionais*. Não há qualquer benefício
poderão condicionar a opção por determinados ali- nutricional em ser iniciada antes dos 5 meses de
mentos, quer quanto à idade indicada para a sua vida sendo vários os riscos do seu início precoce:
introdução, quer quanto à quantidade recomendada. – Interferência com a lactação materna:
É o caso da comprovação de patologia alérgica a. diminuição progressiva da produção de leite
familiar, particularmente nos progenitores e materno.
irmãos, que levam a medidas preventivas defen- b. redução da biodisponibilidade da maioria
didas pelos principais peritos em nutrição da dos macro e micronutrientes do leite materno.
ESPGHAN e da American Academy of Pediatrics – Fornecimento de alimentos com aumento da
(AAP) os quais recomendam: osmolaridade. Os alimentos sólidos têm, no geral,
– Leite materno exclusivo nos primeiros 6 um teor mais elevado em sódio, de que poderá resul-
meses de vida. tar um maior risco de ocorrência de hipernatrémia.
– Fórmula láctea de reduzida alergenicidade – Maior risco de alergia alimentar pelos
na impossibilidade de aleitamento materno. motivos já acima referidos.
– Início da diversificação alimentar após os – Suprimento energético excessivo com risco
primeiros 5/6 meses de vida. de condicionar excesso de peso ou mesmo obesi-
dade, logo desde o primeiro ano de vida.
NB: De acordo com os peritos da AAP, não está – Suprimento proteico excessivo que, para
provado que retardar a introdução de alimentos além da sobrecarga renal, parece ser também um
potencialmente alérgicos como o peixe e o ovo factor que favorece a ocorrência de obesidade.
reduza alergias, quer haja ou não história familiar – Suprimento de componentes desnecessários
de patologia alérgica. ou mesmo prejudiciais em período ainda muito
Outro exemplo em que a história familiar pode vulnerável:
levantar algumas dúvidas relativamente à selecção a. Sacarose, criando desde muito cedo uma
dos alimentos a introduzir é a que se reporta à maior apetência pelos doces, para além do poten-
existência de dislipidémia familiar, ou simples- cial risco cariogénico.
mente ao risco aterosclerótico que o consumo de b. Nitratos, com o risco de condicionar o
alguns alimentos acarreta, particularmente as fontes aparecimento de metemoglobinémia
alimentares de gordura animal. Relativamente a c. Fitatos, com interferência na absorção de
este grupo de patologia importa referir que não está micronutrientes nomeadamente de oligoelemen-
recomendada qualquer manipulação dietética tos, sobretudo ferro, cobre e zinco.
específica, já que os riscos de dietas restritivas são d. Aditivos e contaminantes presentes numa
claramente superiores aos eventuais efeitos benéfi- grande variedade de alimentos utilizados na ali-
cos relativamente à expressão fenotípica da dislipi- mentação do lactente.
demia ou ao risco de desenvolvimento da ateroscle-
rose, particularmente a médio e longo prazo. De A ordem de introdução
acordo com os peritos de nutrição essa manipulação de novos alimentos
deverá ocorrer somente a partir dos 24 a 36 meses
idade, idade a partir da qual se deve proceder ao Não existe base científica para a recomendação no
rastreio das referidas patologias. Assim, durante sentido de se respeitar uma determinada ordem
aquele período não deve haver restrições à ingestão sequencial de introdução de novos alimentos. Há
de gordura, já que os ácidos gordos e o colesterol aspectos que terão naturalmente que ser tidos em
são vitais para o desenvolvimento do sistema ner- conta, sobretudo os relacionados com hábitos
voso central e para o crescimento em geral. regionais ou com características sócio-económicas
e culturais das famílias.
A idade de início
* Segundo AAP, OMS e ESPGHAN, não antes das 17 semanas de vida
Deve, como acima já se sugeriu, ser iniciada a partir e não para além das 26 semanas (~6 meses).
CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida 319
Importa lembrar que os alimentos, de início vários cereais sem ou com glúten, sendo recomen-
fornecidos exclusivamente na forma líquida (re- dada a utilização de farinhas isentas de glúten nos
gime lácteo exclusivo nos primeiros 4/6 meses), primeiros seis meses de vida. Diversos estudos
devem evoluir na textura, que deverá progressiva- demonstraram que a introdução do glúten para
mente passar da cremosa à grumosa e à pastosa, além dos 7 meses de idade está associada a maior
antes dos alimentos fornecidos na forma sólida a risco de diabetes mellitus tipo 1.
partir do 2º ano de vida. Esta evolução é fundamen- Constituem uma fonte energética indispensá-
tal para uma correcta aprendizagem da mastigação, vel numa fase em que se verifica uma actividade
competência que se verifica progressivamente no motora progressiva a qual despende energia.
lactente a partir dos 7/8 meses de vida. Não esti- Fornecem amido, vitaminas, minerais, e ácidos
mular o lactente à transição progressiva da textura gordos essenciais. Estas farinhas são tratadas por
dos alimentos no decurso do segundo semestre de hidrólise térmica e enzimática de modo a facilitar
vida pode levar a grandes dificuldades quanto à a absorção dos seus nutrientes.
aceitação de alimentação sólida e à integração na
alimentação familiar no segundo ano de vida. Frutos
Esta evolução gradual, permitindo que a crian- São fonte importante de vitaminas e de fibras.
ça, habituada a deglutir líquidos, retenha por mais Devem privilegiar-se as frutas frescas e maduras
tempo na boca os alimentos mais consistentes, evitando as potencialmente alergénicas ou as li-
submetendo-os, por isso mais tempo à acção da bertadoras de histamina como os morangos, o kiwi
saliva, amolecendo-os, constitui um passo funda- e o pêssego. Não devem adicionar-se na sua pre-
mental da educação alimentar no que respeita à paração outros alimentos como o mel ou o açúcar.
aprendizagem da mastigação – aprender a masti- Aliás não será de esquecer a regra fundamen-
gar bem e devagar constitui uma atitude funda- tal (respeitando situações especiais): sacarose (e
mental com benefícios para toda a vida. sal) não devem ser acrescentados ao regime ali-
Relativamente ao treino dos sabores e texturas mentar no primeiro ano de vida.
cabe salientar o seguinte: 1 – a sensação gustativa Não parece haver nenhuma vantagem em ini-
para o doce e salgado/amargo é inata, registando- ciar o fornecimento de fruta sob a forma de sumos
se forte preferência para o doce; 2 – a sensação para relativamente à fruta completa. Os 4 principais
o azedo e amargo implicam aprendizagem a partir açúcares nos sumos são a sacarose, a glucose, a
do 5º mês, isto é, os mecanismos inatos de preferên- frutose e o sorbitol com diferentes percentagens
cia alimentar podem ser contrariados à medida que de absorção e em proporções variáveis de fruto
persiste a diversificação alimentar; 3 – a variabili- para fruto. A concentração global de hidratos de
dade do paladar do leite materno facilita a aceitação carbono nos sumos varia de 11 a 16 g/100 ml (0,44
de novos sabores pelo bebé; 4 – a exposição pré- a 0,64 Kcal/ml).
natal e pós-natal a determinado sabor facilita a Importa lembrar que não devem nunca ser uti-
aceitação do referido sabor em alimentos sólidos. lizadas bebidas artificiais de fruta actualmente
Cabe salientar que o comportamento alimentar disponíveis no mercado em múltiplas composi-
tem uma base de programação genética, com ções.
selecção de genes ao longo de milhões de anos. Poderá, em resumo, dizer-se que os sumos não
têm qualquer interesse nutricional no primeiro
Os alimentos a introduzir semestre de vida e não oferecem qualquer van-
tagem relativamente à fruta completa a partir do
Cereais segundo semestre podendo mesmo, se fornecidos
Os cereais enriquecidos em ferro devem ser dados em excesso, condicionar à ocorrência de distúr-
ao lactente até aos 18 – 24 meses, tendo em conta bios da nutrição.
que a ferropenia é também muito prevalente no
segundo ano de vida. Legumes e produtos hortícolas
Os cereais são fornecidos sob a forma de fari- Fornecem particularmente vitaminas, minerais e
nhas, lácteas ou não, constituídas por um ou fibras que facilitam a formação do bolo fecal exer-
320 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Leite de
crescimento
Peixe
Iogurte
Puré de legumes
com peixe (a)
Papa de
fruta
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 meses
Leite materno exclusivo Leite materno
Fórmula láctea Fórmula láctea
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 meses
Farinha de
cereais
Caldo de legumes
com carne (a)
(a)
Carne total ou peixe - 30 - 35 g/dia Gema de ovo (b)
(b) Até 2-3 gemas/semana
Arroz, massa,
leguminosas
FIG. 1
Exemplo de diversificação alimentar no primeiro ano de vida.
cendo uma acção favorável sobre o peristaltismo dade muito superior à do ferro não-hémico
intestinal. São inicialmente dados sob a forma de fornecido pelos cereais, legumes e produtos hortí-
caldos e, posteriormente, sob a forma de purés. colas. A presença de carne ou de peixe numa
Dado que o sabor doce é inato, em princípio não refeição favorece a absorção do ferro não-hémico.
requerendo treino,é importante iniciar-se a esti- O teor de gordura fornecido por estes alimen-
mulação/treino do paladar para sabores não tos de origem animal é qualitativamente variável
doces. Daí a fundamentação segundo alguns de alimento para alimento. As carnes de rumi-
autores, para o início da diversificação com caldo nantes são mais ricas em ácidos gordos saturados
de legumes, isto é, precedendo a farinha de e em ácidos gordos trans. Os peixes são fonte na-
cereais.Os legumes mais utilizados são: batata, tural mais rica de ácidos gordos poli-insaturados
cenoura, abóbora, alho francês, alface, couve bran- da série w3, particularmente de ácido eicosapen-
ca, bróculo e curgete, inicialmente agrupados 2 a 3 tanóico. É suficiente o fornecimento de 30 a 35 gra-
e, depois, 4 a 5, perfazendo o total de ~120 gramas. mas de carne ou peixe por dia, começando-se com
Outros legumes como nabo, nabiça,e beterraba, 10-15 gramas/dia aos 6 meses.
pelo elevado teor de nitrato e fitato deverão ser
reservados para idades de 11-12 meses. NB. – No Ovos
exemplo da Figura 1 considerou-se o início com a Fornecem todos os aminoácidos essenciais. A gor-
farinha de cereais. dura encontra-se na sua quase totalidade na
gema, onde se encontram também as vitaminas
Carnes e peixes lipossolúveis, estando as hidrossolúveis maiori-
A melhor fonte de ferro a partir do segundo tariamente presentes na clara.
semestre de vida é a carne. O ferro apresenta-se na A clara do ovo desencadeia com muito mais
forma de ferro hémico com uma biodisponibili- probabilidade reacções alérgicas do que a ge-
CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida 321
ma, pelo que deve ser iniciada mais tardia- Aspectos práticos
mente, ou seja a partir do primeiro ano de vida
(ou após os dois anos em situações com ante- São enumeradas a seguir algumas regras práticas
cedentes familiares de patologia alérgica). Os em relação com a alimentação diversificada.
ovos devem ser dados cozidos, alternando com 1 – Não deve forçar-se o lactente à ingestão da
carne ou peixe. totalidade do volume da refeição oferecida. É
importante que o lactente controle a ingestão ali-
Iogurtes mentar em função da sua saciedade que pode
Embora se trate um alimento obtido do leite de variar ao longo do dia e dos dias. Regimes hiper-
vaca sem modificação qualitativa, é bem tolerado proteicos e hiperenergéticos são a principal causa
pela diminuição do conteúdo em lactose e pela de excesso de peso e de obesidade logo desde o
hidrólise parcial das suas proteínas; tem, tal como primeiro ano de vida.
o leite completo, um teor elevado em ácidos gor- 2 – Não deve adicionar-se açúcar aos alimentos
dos saturados. (leite, iogurte, etc.) que, para além de criar a ape-
Recomenda-se a sua utilização a partir dos 10 tência pelo doce, tem ainda um indesejável efeito
meses. Estão actualmente disponíveis no mercado cariogénico. Também o mel, qualquer que seja a
iogurtes com uma composição qualitativa mais forma de apresentação, não traz qualquer van-
adequada ao lactente pelo que a sua utilização tagem nutricional podendo mesmo haver alguns
poderá iniciar-se um pouco mais precocemente. riscos, pelo que não deve ser dado, pelo menos no
primeiro ano de vida.
Leguminosas frescas e secas 3 – Proscrita deve ser também a adição de
Têm um teor muito mais elevado em proteínas do edulcorantes como o aspartame. Com efeito, o
que os produtos hortícolas e são também fonte aspartame inclui metanol (10%) para além do
importante de oligoelementos, vitaminas e fibras. ácido aspártico (40%) e fenilalanina (50%). A sua
Podem ser oferecidos na alimentação a partir dos adição pode provocar efeitos indesejáveis alguns
10 meses, mas em pequenas quantidades para evi- dos quais de difícil identificação no lactente.
tar flatulência e favorecer a digestão. 4 – Nunca é de mais repetir: não é necessária
nem desejável a adição de sal aos alimentos; o
Leite de vaca em natureza respectivo teor de sal intrínseco é suficiente para
O leite de vaca em natureza não deverá ser uti- suprir as necessidades diárias em sódio.
lizado no primeiro ano de vida. Com efeito, o leite 5 – A partir do início da alimentação diversifi-
de vaca não fornece os nutrientes de modo ade- cada, os alimentos não líquidos devem ser dados
quado às necessidades da criança nesta faixa à colher. Trata-se duma regra básica da educação
etária: é elevado o seu teor em ácidos gordos sa- alimentar. Para além dos aspectos estritamente
turados e é muito reduzido o conteúdo em ácidos nutricionais, há que atender à estimulação pro-
gordos essenciais. No 2º ano de vida é ainda gressiva com a aquisição de experiências sensori-
prevalente a ferropenia como se referiu, tendo o ais (tácteis, térmicas, gustativas, etc.).
leite de vaca um teor de ferro que, além de baixo, 6 – Por outro lado, para que a digestão dos ali-
é muito pouco biodisponível. mentos sólidos dados (inicialmente farinha de
Determinados estudos demonstraram que, cereais e depois legumes) se realize eficazmente é
com a ingestão de proteína sob a forma de leite de indispensável que os mesmos tenham um contac-
vaca inteiro aos 9-12 meses de idade, se verificou to relativamente prolongado com a saliva e maior
correlação positiva entre o peso e o factor de permanência na boca. Inversamente, a maior rapi-
crescimento insulin-like growth factor I /IGF-I aos dez com que os alimentos passam pela boca quan-
12 meses, o que comporta incremento do risco de do administrados por biberão, impede a sua mis-
obesidade. tura homogénea com a saliva, comprometendo,
Exemplifica-se na Figura 1, um plano de diver- por isso, a digestão.
sificação alimentar no decurso do primeiro ano de 7 – Refira-se que é possível verificar um com-
vida. (consultar capítulo 53). portamento de sensibilidade ao sódio desde a
322 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
primeira infância o que aumenta o risco de valores fontes alimentares utilizadas na composição da
elevados de pressão arterial logo desde os alimentação diversificada.
primeiros anos de vida.
8 – Sublinhe-se a este respeito que os alimentos Cereais
enlatados podem conter grandes quantidades de (composição por 100 g)
açúcar e de sal, para além de outros conservantes,
devendo, por isso, estar proscritos na alimentação Arroz Trigo Soja Milho
do lactente. O suprimento em fibras não deve ser Proteínas (g) 7,3 12,6 36,8 8,3
preocupação durante o primeiro ano de vida. Glúcidos (g) 85,8 68,5 23,5 75,3
9 – Apenas a partir dos 2 anos de vida se
recomenda um suprimento mínimo de fibra Em regra o valor calórico por 100 gramas é cerca
equivalente à idade mais 5 gramas/dia. Sugerem- de 400 kcal. A sua constituição é sobretudo à base
-se como limites de segurança para a criança, os de glúcidos, polissacáridos, amido e pequenas
valores de 5 a 10 gramas/dia. quantidades de proteínas vegetais, ácidos gordos
10 – Uma oferta variada de alimentos é outra essenciais, minerais e vitaminas do complexo B.
atitude que contribui para o estabelecimento de
bons hábitos alimentares em etapas posteriores da Cereais manipulados
vida; de notar que a monotonia do regime (composição por 100 g)
favorece a anorexia.
11 – Uma referência importante relativamente Massa Pão Pão
à consistência dos alimentos sólidos (legumes, branco de mistura
carne e peixe, etc.) e às sensações tácteis e gustati-
vas que os mesmos despertam. Tais alimentos Proteínas (g) 8,7 6,3 6,5
devem ser dados de forma progressivamente Energia (kCal) 358 246 278
menos fraccionada e mais consistente; desaconse- Cálcio (mg) 7 110 100
lha-se, por isso, a utilização por tempo muito pro-
longado de máquinas trituradoras que transfor- Frutos
mam os alimentos sólidos em semi-líquidos ou (composição por 100 g)
cremosos muito fluidos; passagem progressiva da
trituradora eléctrica para o clássico “passe-vite” Maçã Pera Banana Laranja
manual. Vitamina C (mg) 14 6 11 54
12 – É importante garantir que a alimentação Fibra (g) 1,6 2,2 1,1 1,2
diversificada forneça densidade energética ade- As papas de frutas de preparação caseira têm
quada com VCT mínimo de 25% e boas fontes de um valor calórico aproximado de 120 kcal/100 gra-
ferro, proteínas e zinco. mas; salienta-se que o valor calórico dos preparados
13 – Não deverá igualmente ser esquecida a comerciais (boiões) é cerca de 220 kcal/100 ml.
componente social dos actos alimentares e das
refeições; idealmente a criança deverá (deveria, na Legumes/hortaliças
medida do possível) ter as suas refeições con- (composição por 100 g)
vivendo com a família. Em geral as hortaliças e verduras (cenoura, batata,
14 – Com o início da diversificação alimentar abóbora, alface) têm um baixo valor calórico
deve oferecer-se água extra (~400-600 mL/dia) ao –cerca de 40 a 80 kcal/100 gramas, sendo fonte
longo do dia (não outra bebida), salientando-se importante de minerais, oligoelementos, vitami-
que os chás de ervas interferem na absorção de nas, alto conteúdo em celulose e variável de
minerais e na motilidade intestinal. fibras.
(*) A partir dos 10 meses a refeição de cereais poderá ser substituída por 1 iogurte natural, sem açúcar; g= gramas; (“) A designação de caldo ou puré de legumes relaciona-se com a consistên-
cia da refeição diversificada em função do volume de água utilizado; (# Carne: depois dos 6-7 meses, peixe depois dos 7-8 meses com incremento progressivo até 30-35 gramas/dia – fase de 2
refeições diversificadas com carne ou peixe, por dia)
refeições são pesadas somente quando se realizam prevê-se que se ofereça água por copo à criança,
os primeiros cozinhados.A prática e a utilização alternando com as colheres que vão sendo dadas.
de referências várias, como colheres,chávenas,
etc., dispensam depois tais pesagens. 2 – Puré de feijão (com carne ou peixe)
– carne –25 gramas; ou peixe-30 gramas
Como exemplo de refeição diversificada inclin- – massa /estrelinha- 20 gramas
do leguminosas secas (grão ou feijão ou ervilha ou – feijão -35 gramas
lentilha) mais consistente que o caldo ou sopa de – cebola-30 gramas
legumes (tipo puré) a introduzir cerca dos 10 meses – azeite (no fim da confecção) - 5 gramas
para substituir uma das duas sopas de legumes – água q.b.p. para se obter um volume final de 250 cc.
mencionadas no esquema anterior, são descritas
duas variedades de puré de leguminosas secas: A relação calórica/peso nesta refeição/tipo é:
1cc./ 1 kcal.
1 – Puré de lentilhas Como pormenor da confecção dos “purés de
– gema de ovo –1 leguminosas secas”, estas deverão ser postas de
– massa/estrelinha- 15 gramas molho de água desde a véspera para uma correc-
– lentilhas-35 gramas ta lavagem; depois desta operação as lentilhas
– cebola-30 gramas levam-se ao lume com os restantes ingredientes e
– tomate-40 gramas com nova água.
– azeite (no fim da confecção) - 5 gramas
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para o período após os 1-2 anos de vida em que a
criança passa progressivamente a estar integrada
no regime familiar:
1. Suprimento de gorduras não ultrapassando
~30% do valor calórico total (VCT) com um teor
de gorduras saturadas inferior a 10% do VCT,
suprimento de colesterol não excedendo 300
mg/dia ácidos gordos poli-insaturados (7-8% do
VCT), e ácidos gordos mono-insaturados (12-13%
do VCT). Utilização de óleos vegetais em vez de
326 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ÁGUA
VEGETAIS
FRUTAS
Alimentos reguladores
Fonte de vitaminas, Alimentos reguladores
minerais e fibras Fonte de vitaminas,
3 - 5 porções minerais e fibras
2 - 4 porções
FIG. 1
Pirâmide alimentar.
57
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sentaram obesidade durante aquele período); e os
elevados custos (em Portugal, 260 milhões de euros
em 2001) que a situação só por si acarreta, acrescida
dos elevados e irreversíveis custos pessoais e sociais
inerentes às suas complicações que, cada vez mais,
surgem em idades cada vez mais precoces.
É, pois, inquestionável a responsabilidade de
quem lida com crianças na educação, na saúde e
na modulação de comportamentos.
Definição
no tecido adiposo visceral; – da grelina (GHRL), lactentes alimentados com fórmulas lácteas relati-
sendo que os níveis circulantes de GHRL estão nega- vamente aos alimentados com leite materno.
tivamente correlacionados com o valor do IMC. É possível que a maior secreção de insulina
De referir que a leptina foi a primeira sub- esteja associada a um maior suprimento alimentar
stância, a que corresponde gene específico, reco- em aminoácidos de cadeia ramificada (leucina,
nhecida como um importante regulador do peso isoleucina e valina) que ocorre nos lactentes com
na espécie humana. uma maior ingestão proteica.
Também a acção anabolizante da insulina
Ambiente e factores biológicos poderá ser um factor condicionante do perfil de
Recorda-se a teoria do genótipo poupado (thrifty crescimento e de um maior risco de obesidade nos
genotype) (Capítulo 45) em que se propõe que a lactentes com níveis plasmáticos mais elevados de
genética mais favorável à sobrevivência num ambi- insulina, tendo em conta a sua acção promotora
ente energeticamente pobre e sem possibilidade de da diferenciação de pré-adipócitos em adipócitos.
armazenamento alimentar, pode ser mais tarde Actualmente coloca-se a questão do impacte
responsável por um ganho ponderal e uma acumu- do nível sócio-económico, da raça e do sexo na
lação de gordura corpora, quando “o organismo é predisposição para a ocorrência de obesidade.
confrontado” com um ambiente energeticamente Estudos populacionais revelam que um nível
rico e de “abastança”. Ou seja, admite-se que possa sócio-económico e cultural baixo, minorias raciais
estar na base da obesidade um fenómeno de inadap- e étnicas, e o sexo feminino apresentam maior
tação do organismo em indivíduos selectivamente risco de desenvolvimento de obesidade.
sobreviventes a situação anterior de “fome”(porque No que respeita ao papel da actividade física e
geneticamente poupam de energia). hábitos alimentares, estudos usando sensores de
Este evento fisiopatológico, por sua vez, consub- movimento revelam que crianças que gastam menos
stancia o conceito de programação/programming tempo em actividade física de intensidade modera-
(neste caso, metabólica) em que um estímulo (ou da a vigorosa têm maior risco de se tornarem obesas
situação de estresse) exercido durante um período na infância ou adolescência. A televisão e os jogos de
crítico do desenvolvimento precoce de certo orga- consola contribuiram para maior sedentarismo, para
nismo altera permanentemente a sua anatomofisio- além de induzirem o concomitante consumo de ali-
logia e o seu metabolismo, sendo as consequências mentos e favorecerem escolhas alimentares
observadas em fase mais tardia da vida. impróprias; regista-se uma correlação positiva entre
Assim, a alimentação neonatal e nos primeiros o número de horas em frente da televisão (por vezes
anos de vida parece desempenhar um papel ultrapassando 20 horas por semana) e o valor do
importante no risco de ocorrência de obesidade. A peso, especialmente em adolescentes.
duração do aleitamento materno e o teor de inges- A alteração dos hábitos alimentares na depen-
ta proteica são, entre outros, alguns dos factores dência da oferta publicitária conduz a uma inversão
apontados por alguns autores como, respectiva- da pirâmide alimentar, traduzindo-se numa eleva-
mente protegendo de, ou favorecendo obesidade. da ingesta de açúcar e gordura em alimentos com
Com efeito, lactentes alimentados com fórmu- elevada densidade nutricional. Omitir o pequeno-
las lácteas têm um suprimento energético e pro- almoço, ingerir grandes porções sobretudo ao jan-
teico superior ao registado em lactentes alimenta- tar, consumir regular e excessivamente bebidas
dos exclusivamente com leite materno. De igual doces e carbonatadas, pouco leite ou derivados,
modo os níveis circulantes de IGF-I são também poucos vegetais e frutos, bem como abuso de fast-
superiores nos alimentados com fórmulas lácteas, food, são algumas das modificações dos hábitos ali-
provavelmente na dependência da maior ingestão mentares registadas nas últimas décadas.
de proteínas. É possível que outros factores Admite-se que existam aparentemente períodos
biológicos fornecidos pelo leite tenham também de maior vulnerabilidade à influência do ambiente
um papel importante na produção de IGF-1. na expressão fenotípica de uma predisposição indi-
Verifica-se, por outro lado, que a relação insuli- vidual para a ocorrência de obesidade. Como foi
na/glicose é significativamente superior nos referido, o período pré-natal tem uma importância
334 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
moduladora precoce, não apenas do risco de ocor- provavelmente, uma situação de obesidade primária.
rência de obesidade, mas de patologia degenerati- No que respeita à anamnese haverá que inquirir
va e neoplásica do adulto. Ao longo do processo de sobre a história nutricional (tempo de aleitamento
crescimento regista-se uma correspondência relati- materno, idade de diversificação alimentar, quantifi-
vamente baixa entre a ocorrência de obesidade na cação da ingesta actual em termos energéticos totais e
infância precoce e a obesidade no adulto; por outro de distribuição dos diferentes grupos de nutrientes),
lado, adolescentes obesos apresentam elevado risco actividade física, índice de sedentarismo e existência
de se manterem adultos obesos. Relativamente à de indicadores sugestivos de síndroma de apneia
noção de “tendência de manutenção do problema” obstrutiva do sono tais como roncopatia, sonolência
(termos sinónimos; estabilidade ou “tracking”) diurna ou mau rendimento escolar, entre outros.
(neste caso da obesidade) em períodos ou idades O exame físico deverá incluir de uma forma
diferentes – designadamente, criança → adoles- geral, a observação do hábito externo no sentido
cente → adulto - cabe referir que o IMC é o indi- de detectar situações de suspeita de obesidade se-
cador de adiposidade com maior sensibilidade, cundária, tendo ainda em atenção a existência de
comparativamente às pregas cutâneas e à razão alterações cutâneas sugestivas de síndroma meta-
perímetro da cinta/ perímetro da anca. O ponto bólica (estrias, acantose), de alterações ortopédi-
mínimo atingido pelo IMC, por volta dos 6 anos de cas e do estádio pubertário.
idade, é denominado ressalto adipocitário. Em Finalmente, a avaliação do estado nutricional
regra, a idade em que se regista o ressalto adipoc- deverá incluir, para além da medição do peso e
itário (inicio da subida do IMC a partir do seu valor estatura, o cálculo do IMC, a medição do perímetro
mínimo) é preditiva do IMC do adulto, tendo da cinta da anca, cervical, e ainda, se possível, a com-
vários autores demonstrado que a sua precocidade posição corporal por impedância bioeléctrica (BIO).
constituirá um elevado risco de desenvolvimento Na impossibilidade da realização de impedância
de obesidade na adolescência e idade adulta. bioeléctrica, a utilização do valor da prega cutânea
Genericamente, poderá dizer-se que a capacidade tricipital associado ao do IMC aumenta a sensibi-
de previsão da obesidade do adulto com base na lidade da determinação da percentagem de massa
adiposidade na infância é apenas moderada. gorda; exige, no entanto, experiência do observador
Estudos recentes demonstraram que valores ele- e apresenta uma baixa reprodutibilidade.
vados de leptina e de adiponectina no sangue do O perímetro da cinta ou a relação perímetro da
cordão de RN de mães obesas ou com excesso de cinta/perímetro da anca têm uma forte correlação
peso poderão ter influência no peso na idade adulta. com a deposição intrabdominal de gordura e são
preditivos de risco cardiovascular e de compli-
Diagnóstico cações metabólicas como insulinorresistência, não
apenas no adulto mas também na criança e ado-
Para o diagnóstico é necessário, antes de mais, dis- lescente. Embora não existam muitos dados de
tinguir entre uma situação de obesidade primária ou referência que permitam a sua correcta interpre-
idiopática e as restantes e mais raras situações de tação em populações pediátricas, devem constar
obesidade secundária. Uma anamnese rigorosa da avaliação da criança e adolescente obeso.
inquirindo, designadamente, sobre antecedentes de Ainda, no que respeita à avaliação da gordura
obesidade familiar, o exame físico cuidado e exames corporal total, existem métodos mais específicos e
laboratoriais a ponderar em função das hipóteses for- confiáveis mas cujo custo, dificuldade de realiza-
muladas, orientarão para o diagnóstico (Quadro 1). ção na clínica diária (densitometria óssea de corpo
Na prática poderá dizer-se que uma criança ou inteiro; DXA, RMN) e elevada radiação envolvida
adolescente com uma estatura igual ou superior à (tomografia computadorizada) lhes retiram a jus-
média para o sexo e idade, com antecedentes famil- tificação para uso corrente, tornando-os indicados
iares de obesidade em um ou ambos os progenitores, apenas em casos de excepção.
com um desenvolvimento intelectual adequado e No que respeita aos exames laboratoriais, o perfil
com um exame físico sem particularidades sugesti- lipídico, as funções hepática, renal, tiroideia e adre-
vas de uma situação sindrómica apresentará, muito nal, bem como a glicémia e insulinémia em jejum
CAPÍTULO 57 Obesidade 335
devem constar de uma abordagem inicial. Os dosea- é responsável por mais de 1/5 de novos diagnósti-
mentos da glicose e insulina aos 30 minutos no perío- cos de diabetes em adolescentes. Embora não seja
do pós-prandial (ou em contexto de prova de tol- recomendado o rastreio universal, a Academia
erância oral à glicose) estão indicados em situações Americana de Pediatria e a Associação Americana
de obesidade grave, de suspeita de alterações do de Diabetes recomendam que todos os adolescentes
metabolismo da glicose (acantose) ou ainda em cri- com excesso de peso e que tenham, pelo menos, 2
anças/adolescentes com mais de 10 anos de idade. outros factores de risco, sejam avaliados aos 10
Tal facto prende-se com a não recomendação do uso anos, no início da puberdade e periodicamente cada
de fármacos antes desta idade, o que reduziria a 2 anos; entende-se por factores de risco haver
intervenção de tipo comportamental, independente- antecedentes de DM2 em pais ou avós, pertencer a
mente da existência ou não de comorbilidade. certos grupos rácicos/étnicos (afro-americano, his-
pânico, japonês) ou ainda apresentar sinais associa-
Comorbilidade dos a insulino-resistência tais como hipertensão,
dislipidemia, acantose nigricans* ou síndroma do
A obesidade é uma situação crónica, multissistémica, ovário policístico. A este propósito é importante
reconhecida como um grave problema médico e de referir que a obesidade é a causa mais comum de
saúde pública. O adipócito é uma célula metabolica- resistência à insulina em idade pediátrica.
mente activa; a acção dos seus produtos de síntese é Outra complicação frequentemente observada,
responsável por efeitos estruturais e funcionais já em idade pediátrica, é a doença cardíaca e a hi-
importantes dos quais ressaltam diversas patologias pertensão arterial. A obesidade produz uma série
em íntima dependência da obesidade. Tais patolo- de alterações estruturais cardíacas bem como alter-
gias tipificando o conceito de comorbilidade, são de ações hemodinâmicas; com efeito, é actualmente
cariz comportamental, metabólico (perfis glicémico e considerada a principal causa de hipertensão em
lipídico), cardiovascular, e respiratório (asma, SAOS). idade pediátrica, registando-se uma forte corre-
Estudos recentes nos EUA identificaram elevada lação positiva em crianças e adolescentes entre a
prevalência de deficiência em vitamina D em crian- pressão arterial sistólica e IMC, gordura sub-
ças obesas ou com excesso de peso. cutânea avaliada por pregas e relação cinta/anca.
Em idade pediátrica não é clara a associação Factores genéticos, metabólicos e hormonais
entre a magnitude do IMC e a comorbilidade tais como resistência à insulina, a elevação dos
observada. No entanto, vários estudos têm recen- níveis séricos de aldosterona, a sensibilidade ao sal
temente demonstrado um risco crescente de ocor- e alterações dos níveis de leptina poderão também
rência de patologia cardiovascular e de alterações estar relacionados com a hipertensão da obesidade.
do metabolismo da glicose se os valores de IMC Um perfil lipídico desfavorável, caracterizado
forem superiores ao percentil 85. por valores elevados de colesterol total, triglicéridos
Considerando as complicações associadas à e apolipoproteína B, e valores baixos de colesterol-
obesidade em idade pediátrica, a alterações psicos- HDL, é frequentemente observado, já em idade
sociais e comportamentais são provavelmente as pediátrica, na dependência da obesidade. Pelo que
mais precoces. Uma redução da auto-estima e uma foi referido, conclui-se que é frequente a ocorrência
crescente insatisfação com a imagem corporal de síndroma metabólica, sobretudo na adolescência,
levam frequentemente ao insucesso escolar, ao registando-se, por sua vez, uma associação entre
ostracismo e à depressão que, em casos extremos, marcadores cutâneos tais como e estrias a síndroma
são mesmo acompanhados de tentativa de suicídio. metabólica (dislipidémia e DM2).
Relativamente à patologia metabólica, cabe A síndroma metabólica integra um conjunto
salientar que na última década a diabetes mellitus de de situações (DM2, HTA, dislipidémia, outras
tipo 2 (DM2) em idade pediátrica (anteriormente alterações metabólicas) constituindo risco elevado
associada apenas ao adulto) tem registado, na de doença cardiovascular aterosclerótica na idade
Europa, América e Japão, um aumento da sua adulta. Tal tipo de problemas, atribuído ao ambi-
prevalência com uma trajectória paralela à do ente intra-uterino, relaciona-se com o conceito de
aumento da prevalência da obesidade. Actualmente programação a que atrás nos referimos.
336 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Não menos frequentes são: os problemas intervenção familiar são aqueles que evidenciam
ortopédicos (doença de Blount, necrose da cabeça maior sucesso a curto prazo, sendo a mudança de
do fémur, pé plano, espondiloslistese entre outros), atitude dos pais e famílias mantida a médio e longo
os problemas respiratórios (síndroma de apneia prazo o factor mais determinante do resultado (pro-
obstrutiva do sono, asma), a doença hepática não- gramas com estratégias diversas, de duração nunca
alcoólica (variando em termos de apresentação num inferior a 12 meses). Uma restrição calórica moder-
espectro que vai desde a esteatose hepática não pro- ada, baseada numa mudança de comportamento
gressiva e a esteato-hepatite com progressão para a familiar, não apresenta riscos e é geralmente eficaz.
fibrose e cirrose), a litíase vesicular, e as alterações Regimes altamente restritivos em calorias, incluin-
neurológicas (pseudo-tumor cerebral na dependên- do as dietas hiperproteica ou de muito baixo valor
cia de hipertensão intracraniana) entre outras. calórico conduzem a perdas ponderais mais acentu-
adas mas não devem ser efectuadas em ambulatório
Tratamento pois comportam riscos. Regimes desequilibrados
podem conduzir a situações deficitárias em vitami-
O único tratamento eficaz é, sem dúvida, a inter- nas e minerais, bem como a um compromisso do
venção preventiva; quanto mais precoce for esta, crescimento estatural e da maturação biológica.
maior a taxa de sucesso. Entretanto, pelas carac- No que respeita ao exercício físico, os seus
terísticas particulares inerentes ao processo de efeitos são mediados, pelo menos parcialmente,
crescimento, todas as estratégias deverão ser indi- pela redução nas reservas de gordura total e vis-
vidualizadas, obedecendo ao objectivo primordial ceral e pelo aumento da massa magra; este último
de restabelecer o equilíbrio entre a energia ingerida é responsável por um aumento do gasto energéti-
e a energia despendida. Um parâmetro confiável de co em repouso tendo em conta que a capacidade
seguimento das repercussões da intervenção é o individual de tolerância ao exercício diminui na
valor absoluto do IMC, ou mais sensível ainda, o proporção directa do aumento de IMC.
valor do z-score do IMC. A estabilização do peso em O tratamento farmacológico deverá ser enca-
crianças / adolescentes em crescimento é traduzida rado como um complemento da intervenção com-
por uma redução do valor absoluto do IMC e do portamental – dieta e exercício físico - em casos
valor do z-score do IMC. A redução destes valores seleccionados. São considerados 3 grandes grupos
deve ser fortemente encorajada, dado traduzir um de fármacos utilizados na terapêutica da obesi-
aumento estatural significativamente superior ao dade: os estimulantes do gasto energético, os
ponderal. Os objectivos a longo prazo do tratamen- inibidores do apetite e os que limitam a absorção e
to da obesidade pediátrica deverão incluir a / ou modulam a produção e /ou acção da insulina.
redução do z-score do IMC para um valor inferior a Do primeiro grupo, para além de um ensaio
2 e prevenir ou reverter a comorbilidade associada. recente com a associação de cafeína e efedrina
Como foi referido, as crianças e adolescentes efectuado num grupo de adolescentes, pode
obesos apresentam elevado risco de complicações dizer-se que de momento nenhum dos restantes
metabólicas, cardiovasculares e psicoafectivas. A fármacos (hormonas tiroideias, dinitrofenol, anfe-
questão que se coloca é: quando e quem tratar. taminas, fenfluramina, etc.) tem indicação ou
Estudos recentemente publicados mostram que aprovação para este uso, apresentando efeitos
existe um aumento exponencial do risco de ocor- colaterais que proscrevem a sua utilização.
rência de alterações do metabolismo da glicose, de Dos agentes inibidores do apetite, apenas a
hipertensão, de dislipidémia, se os valores de IMC sibutramina está aprovada para utilização em
forem superiores ao percentil 85. Assim, um acon- adolescentes obesos com mais de 16 anos. Vários
selhamento alimentar e de incremento da activi- estudos comprovam o seu efeito na redução pon-
dade física (diária e organizada) deverá ser pre- deral durante os primeiros 6 meses de terapêutica;
conizado e regularmente vigiado a partir do este efeito perde magnitude com a continuação do
momento em que de diagnostique uma situação de tratamento, não devendo a sua utilização continu-
excesso de peso (percentil de IMC 85 e <95). ada exceder 2 anos. A referida sibutramina é um
Os programas de redução de peso baseados na inibidor não selectivo da recaptação da serotoni-
CAPÍTULO 57 Obesidade 337
na, norepinefrina e da dopamina; por isso há que Clin Nutr 2000; 72:1032-1039
referir a ocorrência de efeitos colaterais (hiperten- Flodmark C-E, Lissau I, Moreno LA, Pietrobelli A, Widhalm K.
são, taquicardia, insónia, ansiedade, cefaleias, New insights into the field of children and adolescents`obe-
depressão) que obrigam à redução da dose e sity: the European perspective. Int J Obes 2004; 28: 1189-1196
mesmo à sua suspensão. Gaspar de Matos M e Equipa do projecto Aventura Social e
No grupo dos fármacos que limitam a Saúde. A Saúde dos adolescentes Portugueses (quatro anos
absorção de nutrientes, de referir o orlistat, único depois). Relatório Português do Estudo HBSC 2002 Lisboa:
aprovado pela FDA para utilização em adoles- FMH – Ed, 2003
centes com idade superior a 12 anos. Actuando Hatipoglu N, Mazicioglu MM, Kurtoglu S, Kendirci M. Neck
como inibidor da lipase pancreática, aumenta a circumference: na additional tool of screening overweight
perda fecal nomeadamente em triglicéridos; por and obesity in childhood. Eur J Pediatr 2010; 169:733-739
vezes é mal tolerado, e conduz à redução dos Lean M, Finer N. ABC of obesity. Part II – drugs. BMJ 2006, 333:
níveis de vitaminas A, D e E, mesmo em situações 794-797
de suplementação vitamínica. Lissau I, Overpeck MD, Ruan WJ, Due P, Holstein BE, Hediger
Finalmente, a metformina reduz o apetite e a ML. Body mass index and overweight in adolescents in 13
reserva adiposa do organismo resultando numa European countries, Israel and the United States. Arch
redução do peso corporal. É geralmente bem tole- Pediatr Adolesc Med 2004; 158: 27-33
rada, estando aprovada pela FDA para o tratamen- Mac Donald J, Goldman RE, O’Brien A, et al. Health informa-
to, não da obesidade ou da insulinorresistência, mas tion technology to guide pediatric obesity management.
da DM2. De referir que o seu uso regular conduz a Clinical Pediatrics 2011; 50: 543-549
situações deficitárias em vitaminas B1 e B6, devido a Miech RA, Kumanyika SK, Sttettler N, et al. Trends in the asso-
um aumento da respectiva excreção urinária. ciation of poverty with overweight among US adolescents,
Nas situações acompanhadas de HTA os fár- 1971-2004. JAMA 2006; 295: 2385-2393
macos de eleição são os IECA (Capítulos 46 e 162). Ogden CL, Flegal KM, Carrol MD, Johnson CL. Prevalence and
Por fim, uma referência a outra modalidade de trends in overweight among US children and adolescents,
tratamento – o cirúrgico em situações de falência 1999-2000. JAMA 2002; 288: 1728 -1732
da terapêutica comportamental e na situação de Perusse L, Rankinent T, Zuberi A, et al. The human obesity
obesidades mórbidas com complicações associa- gene map-the 2004 update. Obesity Res 2005, 13: 381-481
das. São escassos os estudos prospectivos sobre Rego C. Obesidade em Idade Pediátrica. Marcadores Clínicos e
este tópico salientando-se que a opção por tal Bioquímicos Associados a Comorbilidade. Tese de doutora-
modalidade deverá ser pontual e particularmente mento/Universidade do Porto. Porto:Abbott Laboratórios,
analisada. O balão intra-gástrico como atitude 2008
menos invasiva e reversível, ou a banda gástrica, Rego C, Guerra A, Silva D, Sinde S, Fontoura M, Aguiar A.
são duas opções a considerar. Prediction of final stature in obese children and adoles-
cents: a different growth pattern? Clin Nutr 2002; 21 (S1)
BIBLIOGRAFIA Rego C, Ganhão C, Sinde S, Silva D, Aguiar A, Guerra A.
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338 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
do um conjunto de determinações e não uma ape- de proteínas de elevado valor biológico, sem
nas isoladamente, sendo de referir que: nas situa- redução do valor calórico total).
ções agudas, para além do défice em nutrientes, Entre uma e outra situação existem vários
assumem relevância as alterações hidro-electrolíti- tipos intermédios, difíceis de caracterizar, que
cas; nas situações crónicas assumem relevância os alguns especialistas classificam de marasmo-kwa-
défices de mais que um nutriente. shiorkor.
• Composição corporal – A massa corporal inte-
gra 2 compartimentos: 1) massa gorda ou reser- Etiopatogénese
va de gordura; 2) massa magra que compreende
a água total, reserva de proteínas viscerais e Na sua origem podem ser invocados um conjunto
musculares, e de minerais. de factores com influência recíproca encerrando
As reservas de gordura subcutânea podem ser um ciclo vicioso.
avaliadas medindo a espessura das prega Em primeiro lugar a ignorância e a pobreza
cutâneas (tricipital, bicipital, subescapular e desempenham um papel decisivo; estão em
supra-ilíaca; a massa muscular esquelética é avali- causa os recursos precários em nutrientes e as
ada através da determinação da prega tricipital deficientes condições de higiene, de saneamento
em conjunto com o perímetro braquial. A medição básico e de evicção de insectos vectores. Como
da espessura da prega cutânea é difícil de deter- consequência, existe maior frequência e maior
minar em crianças pequenas. (ver anexo-Vol 3) gravidade de infecções e infestações parasitárias
• Exames laboratoriais – Os parâmetros a avaliar no grupo populacional em tais condições, contri-
são: albumina plasmática; excreção urinária de buindo para estabelecimento da má- nutrição, ou
creatinina proporcional à massa muscular, pré- para o seu agravamento. Por sua vez, a má-
albumina ligada à tiroxina, proteína ligada ao nutrição propicia o desenvolvimento de infec-
retinol, e concentração plasmática de determi- ções.
nadas vitaminas e de determinados minerais Os mecanismos determinantes dos quadros
(em circunstâncias especiais, conforme a paradigmáticos são, no entanto, diversos.
história clínica, constituem elementos adju- No caso do marasmo a situação mais típica é a
vantes para o diagnóstico). da criança que nos primeiros meses de vida é pre-
A imunodeficiência é comum nas situações de cocemente desmamada, continuando a alimen-
má-nutrição; as provas cutâneas relacionadas com tação com leite industrial (ou leite de vaca em
o estado de imunidade celular (provas cutâneas natureza na situações mais precárias), em quanti-
com antigénios como por exemplo a prova da dade insuficiente ou excessivamente diluído.
tuberculina) evidenciam anergia. Por vezes,nalgumas sociedades, este quadro
• Exames biofísicos – Em determinados centros de má- nutrição é já bem patente ao nascer tradu-
especializados é utilizada a densitometria para zindo má-nutrição fetal ou restrição do crescimen-
avaliação da massa gorda, e a bioimpedância to intra- uterino como resultado de condições nu-
para a avaliação da massa magra. tricionais deficientes da grávida.
No caso do kwashiorkor o perfil etiopatogéni-
Classificação co, na sua forma típica, é o seguinte: criança ali-
mentada ao peito para além dos 12 meses (em
A carência de suprimento calórico e proteico situações extremas a criança ainda está a ser ama-
engloba um largo espectro de situações clínicas mentada quando surge nova gravidez da mãe).
em cujos extremos se situam dois quadros clínicos Uma vez desmamada, o regime alimentar, como
bem definidos: o marasmo (com designações sinó- foi referido, tende a ser constituído por suprimen-
nimas de atrépsia ou inanição, resultante de ca- to elevado em hidratos de carbono, sobretudo de
rência calórica e de nutrientes global, com carên- farináceos (à base de milho, mandioca, etc.), tal
cia proteica proporcional), e o kwashiorkor (com como nos restantes membros da família.
designação sinónima de má-nutrição proteica, Assim, a criança recebe número suficiente da
correspondente às situações com carência apenas calorias diariamente, mas não de proteínas.
340 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Manifestações clínicas
59
lisados de proteínas do leite de vaca, glucose
como hidrato de carbono e ácidos gordos de ca-
deia média como lípidos.
Estão também indicados suplementos vita-
mínicos e ferro.
Actualmente advoga-se a utilização de agentes
antioxidantes. CARÊNCIAS VITAMÍNICAS
NB – Pela possibilidade da chamada síndroma
de realimentação (Capítulo 68) os incrementos E MINERAIS
devem ser lentos, designadamente nas formas
clínicas com peso para a altura < 70%. João M. Videira Amaral
Prognóstico
dade de os bebés amamentados receberem suple- crianças de pele negra. A carência de suprimento oral
mento de vitamina D ou, se possível, de exposição em vitamina D poderá decorrer de certas práticas de
solar (Capítulo 45). raiz cultural como dietas vegetarianas, ingestão de
leite de soja ou leite de “arroz”, por exemplo.
Etiopatogénese Se o ergocalciferol ou o colecalciferol forem
veiculados pelos alimentos, a sua absorção é rápi-
Embora a vitamina D (calciferol) activa se encon- da, verificando-se sobretudo ao nível do duode-
tre pouco difundida na natureza, os seus precur- no-jejuno e por via linfática. (Figura 1).
sores ou pró-vitaminas (esteróis) derivados do A seguir à conversão fotoquímica na pele ou à
colesterol, encontram-se largamente distribuídos, absorção intestinal, a vitamina D2 (ergocalciferol)
quer nas plantas, quer nos animais. ou a vitamina D3 (colecalciferol)são transportadas
A provitamina D das plantas (ergosterol) é sus- em direcção ao fígado com o auxílio duma globu-
ceptível de ser transformada em vitamina D2 ou lina alfa-2; no fígado sofrem uma 25-hidroxilação
ergocalciferol. ou transformação nos respectivos derivados 25-
A provitamina D animal (7-de-hidro-coles- hidroxilados por intermédio da 25-hidroxilase,
terol), produzida na mucosa intestinal, dirige-se, enzima do sistema microssómico (família das oxi-
depois, para a camada malpighiana da pele onde dases do citocrómio P450).
adquire actividade vitamínica (vitamina D3 ou A actividade da 25-hidroxilase específica é re-
colecalciferol) quando exposta aos raios ultravio- gulada por um mecanismo de retroacção repre-
letas (290-320 mm) – síntese cutânea. sentado pela taxa sérica dos compostos 25-hidro-
A fotossíntese epidérmica pode estar compro- xilados e do cálcio.
metida de vários modos: 1) inefectividade da acção Os compostos 25-hidroxilados (25-HC) ou 25
dos raios solares na época fria em que a criança usa (OH) circulam também ligados a uma globulina
mais roupa; 2) menor exposição solar face ao receio alfa-2, sendo a sua semivida de 19,6 dias (a semivida
com o cancro cutâneo; 3) pigmentação cutânea em do ergo ou cole-calciferol é apenas de 12 a 25 horas).
Fígado
Calciferol
U-V 25-Hidroxilase
Ergosterol
(Pró-Vitamina)
Aumento do
transporte de cálcio
e fosfato (intestino)
1,25-di-HC 1-alfa-hidroxilase 25-HC
Mobilização do cálcio Rim
ósseo (cooperação da 24-25-di-HC
PTH) (biologicamente Unidades de Vitamina D:
Aumento da reabsorção inerte) – 1 mg = 40.000 U.I.
Metabólitos
tubular de fosfato, de – 1 U.I. = 0,025 gama polares
sódio e cálcio (Rim) _ 1 ug (mcg) = 40 UI = 2,5 nmol inactivos
FIG. 1
Metabolismo da vitamina D (Cerca de 80% da vitamina D no organismo deriva da exposição solar e 20% da alimentação).
CAPÍTULO 59 Carências vitamínicas e minerais 345
A acção dos compostos 25-hidroxilados [25-HC Demonstrou-se que existem hormonas regu-
ou 25-OH ou 25(OH)] consiste essencialmente no ladoras dos fosfatos – as fosfatoninas – de que a
transporte de cálcio ao nível do intestino, na mobi- principal é o chamado factor de crescimento 23 do
lização do cálcio ósseo e na reabsorção tubular fibroblasto (FGF23, produzido pelos osteócitos).
proximal de sódio e fosfato. Esta fosfatonina (que tem como órgão – alvo o
Ao nível do rim gera-se, depois, a forma meta- rim) diminui a reabsorção tubular de fosfato e a
bolicamente activa, o 1-25 hidroxicolecalciferol síntese de 1-25-HC ou 1,25 (OH)2, interferindo nos
(ou 1-25 hidroxi-ergocalciferol) (1-25-HC ou cal- co-transportadores de sódio-fosfato no rim. Em
citriol) a partir do 25-HC (ou calcidiol) que sofre situações de normalidade o FGF23 é degradado
nova hidroxilação em posição 1, com o concurso em compostos inactivos, não produzindo efeitos
duma enzima que faz parte dum sistema mitocon- adversos.Tal factor é produzido no esqueleto (par-
drial das células tubulares: a 1-alfa hidroxilase. ticularmente osteoblastos e osteócitos), o que tipi-
A actividade de 1-alfa hidroxilase é regulada, fica fisiologicamente o chamado eixo osso-rim,
quer pela carência do organismo em vitamina D, regulando a homeostase do fosfato.
quer pela taxa de cálcio circulante, directamente De salientar que todos os tecidos do organismo
ou por intermédio da paratormona e calcitonina; humano (incluindo claro, o tecido ósseo, alvo mais
depende, ainda, da fosforémia e do teor em fos- reconhecido desde há muito) contêm um receptor
fatos do tecido renal. para a vitamina D. Nesta perspectiva, diversos
Em caso de normocalcémia ou hipercalcémia, estudos sugerem efeitos da vitamina D nos sis-
poderá originar-se um composto hidroxilado em temas imune, cardiovascular e pâncreas endócrino,
24-25 que não tem qualquer função específica, tendo-se demonstrado papel de protecção contra o
pois tende a degradar-se. cancro, infecções, e doenças autoimunes como
A acção dos compostos di-hidroxilados (1-25 exclerose múltipla e diabetes mellitus tipo 1.
HC) traduz-se no transporte de cálcio e fósforo ao
nível do intestino (quantitativamente a sua acção Classificação dos raquitismos
quanto a este aspecto é cerca de 1 vez e meia supe-
rior aos compostos 25-HC) e na mobilização do Se nos reportarmos ao ciclo da vitamina D será rela-
cálcio ósseo (acção cerca de 100 vezes superior à tivamente fácil deduzir uma classificação etiopato-
dos 25 HC). Quanto à reabsorção tubular de sódio, génica das síndromas raquíticas. Assim, podemos
fosfato e cálcio, o seu efeito pode considerar-se, ao estabelecer dois grandes grupos: (Quadro 1).
contrário, mínimo em relação aos 25-HC. 1. Grupo calciopénico que decorre da interferên-
Quer a vitamina D3, quer os seus derivados 25- cia num ou vários «passos» do ciclo metabólico da
hidroxilados, são susceptíveis de se armazenarem vitamina D por parte de determinados factores ou
ou constituirem em depósitos ao nível dos tecidos circunstâncias, o que condicionará uma diminuição
adiposo e muscular. Existe, no entanto, uma dife- da concentração dos metabólitos (25-HC e 1-25HC);
rença de comportamento entre os dois: enquanto a o perfil bioquímico característico deste grupo é cons-
vitamina D3 é mais lipossolúvel e se concentra tituído pela deficiência em cálcio ou interrupção no
rapidamente no tecido adiposo e por muito tempo suprimento ou utilização da vitamina D.
- cerca de 80% do seu depósito inicial pode ser 2. Grupo fosfopénico devido a suprimento
encontrado ao cabo de 3 meses – os 25 HC são inadequado de fosfato na dieta ou a perda tubular
armazenados em menor quantidade pela sua renal excessiva. (Quadro 1).
menor lipossolubilidade, constituindo as formas
circulantes por excelência (Figura 1). A maioria das situações que integram o sub-
A vitamina D não actua directamente sobre as grupo A corresponde ao chamado raquitismo
células intestinais ou ósseas; com efeito os seus carencial comum, vitamino-sensível ou vitamino-
metabólitos hidroxilados induzem a síntese duma privo; como se referiu, é o que surge com maior fre-
proteína necessária ao transporte activo do cálcio (a quência, é evitável com profilaxia correcta e é
CaBP-Calcium-Binding-Protein) e à ligação a recep- curável com doses usuais de vitamina D.
tores. As situações que integram os subgrupos B, C e
346 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Classificação dos raquitismos As manifestações do RCC podem assim ser sis-
tematizadas, salientando-se que a deficiência de
1. Calciopénico vitamina D pode ser assintomática:
A – Deficiência primária de vitamina D
• Falta de exposição ao sol, pigmentação cutânea, a) Sinais clínicos ósseos
roupa, filtros solares, poluição atmosférica (RCC) Os sinais clínicos característicos, dependendo da
• Défice de suprimento alimentar de vitamina D (RCC) idade de apresentação, decorrem de alterações
• Défice de suprimento de cálcio (RCC) ósseas indolores, simétricas, localizando- se na
B – Deficiência secundária de vitamina D zona de crescimento activo com evolução (em
• Má absorção de vitamina D geral com início desde os primeiros meses, pro-
• Antiepilépticos, corticóides, colestiramina gredindo no primeiro ano de vida no sentido crâ-
• Deficiência de 25-hidroxilase nio-caudal): cranio-tabes (consistência mole do crâ-
• Síndroma nefrótica nio evidente sobretudo ao nível da região parieto-
• Dependência de vitamina D(tipos I e II) occipital, dando a sensação de palpação de bola de
2. Fosfopénico ping-pongue – após compressão, o osso volta à
C – Primário posição inicial), atraso de encerramento das sutu-
• Dominante ligado ao X ras cranianas cujos bordos são moles, deforma-
• Autossómico dominante ções diversas do crânio relacionadas com a dimi-
• Autossómico recessivo nuição de consistência da calote craniana sus-
• Recessivo ligado ao X ceptível de deformação postural, atraso da erup-
• Hipofosfatémia hereditária com hipercalciúria ção dentária, tumefacção esferóide ao nível das
D – Secundário articulações condrocostais por hipertrofia das res-
• Osteomalácia induzida por tumores ósseos (raros)
pectivas cartilagens (por acumulação de osteóide)
produtores de FGF23
cujo conjunto ao longo do tórax aparenta um rosá-
• Síndroma de McCune Albright
rio (é o chamado rosário costal); deformação do
• Nefrotoxicidade pela ifosfamida
tórax, em sino, com alargamento da base e evi-
• Hipofosfatasia
dência do chamado sulco de Harrison; alargamen-
• Acidose tubular renal
to das epífises dos ossos longos especialmente
• Défice de suprimento de fosfato na dieta
notória ao nível dos punhos (chamados “de bone-
• Raquitismo da prematuridade (doença metabólica
ca”) e regiões tíbio- társicas; deformações dos
óssea do pré-termo)
membros inferiores (tíbias em “parêntesis”, genu
• Inibidores da mineralização (alumínio, biofosfonatos,
varum, etc.); ao nível da coluna pode verificar-se
etc.)
cifose com formação de saliência lombar típica nas
formas exuberantes – saliência ou gibosidade do
D surgem com profilaxia correcta e não são raquis, donde o nome de raquitismo).
curáveis com doses terapêuticas usuais de vitami- De referir a relação que existe entre a velocida-
na D (a designação antiga classificados como vita- de de crescimento e o aparecimento do quadro clí-
minorresistentes). Os Capítulos 163 e 344 inte- nico; ou seja, a probabilidade de aparecimento do
gram noções sucintas sobre alguns raquitismos quadro clínico é tanto maior quanto maior a velo-
carenciais não comuns. Neste capítulo é dada cidade de crescimento (Figuras 2, 3 e 4). Nos lac-
ênfase ao raquitismo carencial comum (RCC). tentes poderão surgir sinais atípicos como cardio-
miopatia e, nos adolescentes, dores e fraqueza
Manifestações clínicas, radiológicas musculares.
e laboratoriais do RCC
b) Sinais clínicos músculo- ligamentosos
O RCC constitui o exemplo paradigmático de Salienta-se a hiperlaxidão dos ligamentos e a
carência extrema de vitamina D a qual se estabele- hipotonia muscular as quais condicionam o atraso
ce de modo progressivo antes de os sinais clínicos do desenvolvimento motor(início do sentar-se e
se tornarem evidentes. da marcha), designadamente.
CAPÍTULO 59 Carências vitamínicas e minerais 347
FIG. 4
Raquitismo: “Punho de boneca”/alargamento dos punhos
(NIHDE). FIG. 5 FIG. 6
Sinal radiológico de Sinal radiológico de
raquitismo: metáfise do rádio raquitismo: esboço de apareci-
e cúbito ao nível de punho, mento da linha de calcificação
c) Sinais radiológicos
alargamento em taça, de preparatória ao nível das
As lesões ósseas com tradução radiológica têm, contorno irregular. (NIHDE). metáfises alargadas (rádio e
sobretudo, uma localização metafisária: a metáfise cúbito) como resposta do
dos osssos longos está alargada, côncava, “em tratamento (maior densidade
taça”, com aspecto franjado e limite irregular; as óssea relativamente à figura
diáfises evidenciam diminuição da densidade 5). (NIHDE).
348 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ciopénicas. A PTH está sempre aumentada nas for- outras situações acompanhadas de alterações esqueléticas.
mas calciopénicas e muitas vezes normal nas for- O craniotabes não é patognomónico do raqui-
mas fosfopénicas. tismo, podendo surgir nalgumas displasias
Valorizando o produto cálcio x fósforo séricos ósseas.
em mg/dl para o diagnóstico, classicamente consid- As deformações do tórax poderão enquadrar-
era- se: 30 (raquitismo certo); 30-40 (raquitismo pos- se em situações acompanhadas de anomalias con-
sível); 40 (raquitismo impossível ou em via de cura). génitas.
Sendo possível o doseamento dos metabólitos O rosário costal pode surgir igualmente no
da vitamina D, considera-se que o valor do meta- escorbuto (défice de vitamina C), hoje pratica-
bólito mono – hidroxilado (25-HC) ou 25-hidroxi- mente uma raridade, sendo acompanhado
vitamina D <15 ng/mL corresponde a carência ou doutras carências; no entanto, nesta última situa-
deficiência de vitamina D. Valores entre 15-30 ção o rosário costal resulta de luxação condro-
ng/mL correspondem a insuficiência, e >30 costal e os sinais radiológicos esqueléticos são
ng/mL a suficiência (Capítulo 51). diferentes: é típica a hemorragia subperióstica, e
Relacionando os sinais clínicos com os labora- as alterações esqueléticas são acompanhadas de
toriais e radiológicos, chama- se a atenção para dor. Podem também surgir hematúria e hemorra-
uma forma clínica (fase precoce) de carência de gias petequiais.
vitamina D ocorrendo habitualmente no lactente, Uma história familiar de raquitismo poderá
sobretudo antes dos 6 meses com o seguinte sugerir forma hereditária, sendo o raquitismo
quadro: sintomas de hipocalcémia- cálcio ioniza- hipofosfatémico ligado ao X o mais frequente.
do inferior a 3-4 mg/dl ou total inferior a 7-7.5 Antecedentes familiares de consanguinidade
mg/dl (irritabilidade neuromuscular incluindo poderão apontar para raquitismo vitamina D
convulsões, tetania, espasmo carpo pedal, larin- dependente do tipo II, raro.
gospasmo) com ou sem evidência radiológica de
raquitismo. É a chamada “tetania” do lactente por Prevenção
carência de vitamina D, hoje rara no nosso país.
A hipocalcémia susceptível de originar tetania O RCC (deficiência de vitamina D) é susceptível
(não manifesta ou latente) pode ser identificada atra- de prevenção através da exposição directa à luz
vés da pesquisa dos clássicos sinais de Chvos- solar (fracção leve da radiação ultra- violeta B) ou
tek,Trousseau e de Erb. Esta situação é hoje rara.* da administração de vitamina D. De acordo com
Tratando-se duma síndroma com repercussão estudos realizados, considera-se eficaz a expo-
sistémica, nas formas de deficiência extrema, tam- sição directa diária (~30 minutos) da face e mem-
bém já raras, é habitual ser acompanhada de anemia, bros superiores nas latitudes da Europa do Sul.
habitualmente hipocrómica, traduzindo carência Sobre esta questão não consensual entre os
concomitante em ferro. No entanto, poderá igual- diversos organismos e peritos internacionais (com
mente surgir anemia megaloblástica por carência de recomendações que têm variado ao longo do
vitamina B12 ou ácido fólico e anemia pluricarencial. tempo em função de estudos científicos), e tendo
Uma forma clássica, hoje rara, é a anemia de em conta a diversidade do panorama da saúde,
Von-Jaksch-Luzet ou anemia pseudo leucémica cur- dos hábitos culturais e do ambiente em diversas
sando com hiperleucocitose e hepatosplenome- latitudes do globo, cabe referir determinadas
gália, relacionável com eritropoiese compensado- noções consideradas essenciais quanto à pre-
ra ectópica. venção da deficiência/carência em vitamina D
em lactentes, crianças e adolescentes considerados
Diagnóstico diferencial saudáveis.
Assim , como regras gerais pode estabelecer-
A anamnese é fundamental para a destrinça com se que:
• a grávida e a lactante (mulher que amamen-
* A hipocalcémia sintomática é mais frequente nas idades extremas (1ª
infância e adolescência), a que correspondem períodos de crescimento
ta) devem ingerir 1.000 UI de vitamina D
rápido. diariamente.
CAPÍTULO 59 Carências vitamínicas e minerais 349
• em lactentes alimentados com leite materno a hidroxilado (25-HC vit.D), quando exequível,
maioria dos casos de raquitismo carencial serve de orientação para avaliação do resultado
comum pode ser prevenida através da admi- terapêutico, salientando-se que o valor sérico de
nistração diária de 400 UI de vitamina D. 25-HC vit. D não deverá ultrapassar 100 ng/mL.
• os lactentes e crianças que não recebam teor Para além da avaliação clínica, o efeito da tera-
adequado de vitamina D através das fórmu- pêutica poderá também ser comprovado mais
las preparadas ou da dieta, e que não te- objectivamente com doseamentos séricos e
nham exposição à luz solar directa conside- urinários de cálcio, assim como da fosfatase alcali-
rada suficiente, também devem receber 400 na (cujos valores decrescem com a melhoria).
U de vitamina D diariamente. Como alternativa, poderá optar-se por outro
• embora não haja consenso no âmbito dos esquema de administração de vitamina D: 50.000
vários organismos internacionais, é recomen- UI semanais durante 8 semanas, ou uma simples
dada a dose de 400 a 1.000 U de vitamina D dose (anteriormente designada “choque vitamíni-
durante toda a vida, devendo entrar em consi- co”) de 150.000 a 600.000 UI em função da idade do
deração com o teor em vitamina D no leite e doente e do estado clínico.
no regime alimentar em geral e igualmente Se não ocorrer resposta ao tratamento a curto
com a exposição regular e directa ao sol. prazo, tratar-se-á provavelmente, não de um RCC,
mas de uma deficiência secundária de vitamina D
Notas importantes: ou de forma fosfopénica.
a – De acordo com diversos estudos, o suple- Recorda-se que em situações de carência de
mento de vitamina D entre 200 e 400 UI por dia, cálcio, a calcémia pode ser normal ou baixa e que
garante a manutenção do nível sérico de 25- a hipocalcémia sintomática é pouco comum.
hidroxi-vitamina D > 25 nmol/ L (10 ng/ml) com- Uma vez iniciado o tratamento com vitamina
patível com ausência de deficiência de vitamina D, está indicado o suplemento de cálcio-elemento
D. Idealmente o referido nível sérico deverá ser (30-75 mg/kg/dia).
igual ou superior a 30ng/ml. O regime alimentar deverá logicamente conter
b – Dum modo geral as fórmulas para lactentes cálcio e fósforo através da ingestão de leite e pro-
contêm cerca de 400 UI/Litro, sendo de salientar dutos lácteos
que a concentração da vitamina D no leite A correcção da hipocalcémia sintomática obri-
humano é muito mais baixa, embora mais ga a terapêutica de substituição emergente com
biodisponível (cerca de 25 UI /Litro) . gluconato de cálcio, a qual é abordada no Capí-
tulo 50.
Tratamento Em situações específicas e graves acompanhadas
de deformações esqueléticas sequelares, poderá
Na criança ou adolescente, para o tratamento do haver necessidade de intervenção ortopédica.
RCC (deficiência de vitamina D, pressupondo 25-
HC < 15 ng/mL) estão indicadas doses orais
diárias de 50-150 mcg (2000-10.000 UI) de vitamina 2. CARÊNCIA DE VITAMINA A
D3 ou de 0.5-2 mcg de 1,25- di-hidroxi-colecalcifer-
ol durante 8-12 semanas; com cerca de 2-4 semanas Importância do problema
de tratamento produz-se uma melhoria dos sinais
radiológicos traduzida pelo aparecimento da Faz-se uma breve referência a este estado carencial
chamada “linha de calcificação preparatória” ao (raro em crianças saudáveis com regime alimentar
nível das metáfises (Figura 6). equilibrado) mas com elevada prevalência nos
Uma vez verificada a resposta inicial, a dose países em desenvolvimento, sobretudo da África,
diária deve ser reduzida para [400 UI (até idade de constituindo um grave problema de saúde pública.
1 ano) ou 600UI (> 1 ano)] como esquema pro- Poderá surgir igualmente como resultado de
filáctico. síndromas de má- absorção e em situações com
O doseamento sérico do metabólito mono- deficiência de ingestão em lípidos.
350 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
60
As consequências de tal carência, que surgem
insidiosamente, verificam-se sobretudo ao nível
do sistema ocular: essencialmente, xerose da con-
juntiva e da córnea com ulterior opacificação
desta; dificuldade de adaptação à escuridão e
cegueira nocturna. A pele é seca e descamativa.
O tratamento consiste na administração diária REGIMES VEGETARIANOS
de doses entre 1500 e 3000 mcg de vitamina A por
via oral com vigilância da evolução clínica tentan- E ERROS ALIMENTARES
do evitar a toxicidade. Na xeroftalmia são uti-
lizadas doses maiores. Vários organismos interna- João M. Videira Amaral
cionais e várias equipas de profissionais de saúde
colaboram em campanhas nos países mais afecta-
dos .
Regimes vegetarianos
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incluído o subgrupo designado por “vegan” ou ve-
getariano puro que exclui qualquer produto de
CAPÍTULO 60 Regimes vegetarianos e erros alimentares 351
origem animal; os seus seguidores praticam determi- alimentação saudável em qualquer idade: alimen-
nada filosofia para além das práticas estritamente ali- tação suficiente, completa, harmónica e adequada.
mentares: não usam peles, lãs ou sedas nem comem Estes erros a evitar têm particular relevância
mel. No entanto, as mães vegan em geral, amamen- no primeiro ano de vida, período fundamental de
tam, estando descritos, casos de raquitismo e de ane- aprendizagem, quer de boas, quer de más práti-
mia megaloblástica nos respectivos lactentes. cas; são salientados os seguintes:
Os regimes vegetarianos atípicos (que admi- • Não atender a que o apetite da criança varia
tem determinadas “propriedades metafísicas” de de refeição para refeição. Para além do que
determinados produtos) incluem a chamada prá- foi referido a propósito da alimentação com
tica macrobiótica com diferentes tipos de regimes, leite materno, a criança não deverá ser força-
desde o uso exclusivo de cereais, até à permissão da a terminar o biberão
de alguns produtos animais. • A noite “é para dormir”; mas, se a criança
De acordo com as regras gerais atrás explana- acordar “com fome”, a mamada ou biberão
das, o regime vegetariano exclusivo não é adequa- não deverão ser recusados
do em idade pediátrica, tratando-se dum período • Dar leite de vaca em natureza antes do 1 ano
da vida caracterizado pelo crescimento e desen- de idade
volvimento. Por exemplo, no que se refere às pro- • Administrar sal ou açúcar antes do 1 ano
teínas de origem vegetal, as mesmas são de valor • Administrar mel
biológico inferior ao das proteínas animais pelo teor • Introduzir novos alimentos diversificados
mais baixo em um ou mais aminoácidos essenciais. com intervalo inferior a 1 semana entre cada
Na perspectiva do dever ético de humanização um
e de respeito pelas diferenças culturais dos povos, • Forçar a criança a terminar a sopa de legu-
o clínico e o profissional de saúde em geral, res- mes “de que não gosta” logo nos primeiros
ponsáveis pela vigilância de saúde da criança ou dias, sem tentar que se adapte
adolescente (tendo especial atenção aos sintomas • Administrar farinha de cereais e sopa de
e sinais de determinadas carências) deverão escla- legumes por biberão
recer os pais sobre eventuais riscos e esclarecer-se • Substituir a sobremesa de fruta por doces ou
sobre o tipo de regime, mais ou menos restritivo compotas
que os pais desejam para a criança. • Substituir uma refeição com alimentos inte-
Determinadas deficiências em nutrientes grando proteínas, por fruta
poderão ter de ser corrigidas fazendo misturas de • Continuar a dar alimentos em puré, muito
diferentes vegetais. A inclusão de leite e ovos desfeitos e não granulosos, para além dos 9
afigura-se fundamental para compensar eventuais meses
carências em proteínas, ferro, cálcio e vitamina B12. • Não verificar o suprimento em ferro nem
Poderá igualmente estar indicada a suplemen- providenciar a sua eventual suplementação
tação em ácido fólico. no regime alimentar da criança que duplicou
No âmbito dos problemas de ordem nutri- o peso de nascimento, data em que as reser-
cional que traduzem défice ou excesso de nutri- vas de ferro se esgotam
entes foram abordadas já as seguintes situações • Idem nos casos em que a criança tenha sido
clínicas: síndromas de má nutrição energético- submetida a regime eventualmente desequi-
proteica, raquitismo carencial comum por défice librado e essencialmente farináceo-lácteo
de vitamina D, e cálcio e fosfato, carência de vita- • ”Premiar” a criança com doces, chocolates
mina A e obesidade. A anemia por carência de ou guloseimas em geral, na hipótese de a
ferro (ferripriva) será abordada na parte XVIII. refeição ter sido cumprida
• Dar refrigerantes em vez de água quando a
Erros alimentares mais frequentes criança tem sede, ou à refeição
• Dar leite (ou produtos lácteos como iogurte,
Enunciam-se alguns erros a evitar, os quais tradu- queijo, etc.) em quantidades excessivas (mais
zem o não cumprimento de regras fundamentais da de 1 litro por dia) ou menos de 400 ml/dia
352 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
61
• Abusar de fritos
• Não dar fruta e produtos hortícolas ao
almoço e jantar.
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– por excesso: hiperfagia paroxística, ou seja,
bulimia(ou hiperorexia ou poliorexia);
– hiperfagia regular e compulsão alimentar
conduzindo a excesso de suprimento energético e
a obesidade.
Qualitativas
– incidindo sobre a sede e a ingestão de bebidas
(potomania);
– incidindo sobre substâncias não nutritivas
(pica, geofagia, coprofagia dos deficientes profun-
dos);
– incidindo sobre substâncias tóxicas(alcoolis-
mo, toxicomania);
– incidindo sobre a escolha de alimentos (veg-
etarianismo).
ratória relacionável com diminuição do cálcio e vómito, abuso de laxantes, diuréticos, enemas,
magnésio séricos. jejum ou exercício físico excessivo;
A excessiva administração de glucose pode – ocorrência de ingestão alimentar compulsi-
levar a excesso de produção de CO2 e a insufi- va e de comportamentos de compensação com a
ciência respiratória. frequência de, pelo menos, 2 vezes por semana e
A carência em tiamina, que é habitual na má- durante, pelo menos, 3 meses;
nutrição grave, pode originar quadro de ence- – preocupação excessiva com o peso e a ima-
falopatia (estado confusional, ataxia, hipotermia, gem corporal;
coma) se a administração de glucose for rápida. São considerados dois subtipos:
Para a prevenção da síndroma de realimen- – purgativo (vómitos ou abuso de laxantes,
tação, há que respeitar certas regras, destacando: diuréticos e enemas);
a) avaliação seriada do estado hidroelectrolítico; – não purgativo (jejum ou exercício físico exces-
b) administração de tiamina antes da realimen- sivo pressupondo a não utilização de vómitos, de
tação; c) suprimento energético inicial lento abuso de laxantes, diuréticos e ou de enemas).
(<>60-70% das necessidades calculadas), com
incrementos graduais durante 3 a 4 dias. Manifestações clínicas e diagnóstico
diferencial
Intervenção psicoterapêutica
Este tipo de intervenção abrange a chamada te- No que respeita ao estado nutricional, as manifes-
rapia cognitivo-comportamental (técnicas de alte- tações de BN não são tão exuberantes como na
ração de comportamentos inadequados,reedu- AN; com efeito, os doentes com BN têm em mais
cação alimentar, etc.), psicoterapia individual ou de 80% dos casos peso normal. Raramente existe
de grupo, e orientação e/ou terapia familiar. obesidade, salientando-se que os episódios bulími-
cos nos obesos são pouco frequentes.
Intervenção psicofarmacológica Como manifestações mais típicas citam-se:
Este tipo de intervenção não colhe o consenso de perturbações gastrintestinais, como vómitos,
todos os especialistas. Em situações seleccionadas dores abdominais associadas frequentemente a
(e apenas após a fase de recuperação do peso) gastrite e esofagite, alterações da motilidade
pode utilizar-se fármacos inibidores de recaptação esofágica e gástrica, dilatação gástrica aguda, sín-
selectiva da serotonina com efeito nas pertur- droma do cólon irritável, alterações dentárias
bações do humor e ansiedade. (erosão do esmalte pela acção do suco gástrico),
risco aumentado de pancreatite, etc..
O perfil comportamental típico da pessoa com
2. BULIMIA NERVOSA BN é: mulher extrovertida, com carácter histérico,
vida sexual activa e muitas vezes dependende de
Definição e aspectos epidemiológicos drogas e/ou álcool.
O diagnóstico diferencial da BN faz-se com a
De acordo com os critérios da DSM-IV, a bulimia NA de tipo compulsivo/purgativo, síndroma
nervosa (BN) é uma perturbação do comportamen- depressiva atípica e perturbações da personalidade.
to alimentar definida por episódios recorrentes de A propósito e como nota de síntese importa reter a
ingestão alimentar compulsiva caracterizados por: seguinte noção: certos bulímicos são antigos anorécticos
– ingestão de grande quantidade de alimentos e cerca de metade dos anorécticos são bulímicos.
num período curto de tempo (até 2 horas), supe-
rior ao que a maioria das pessoas consideradas Complicações
normais comeria;
– sensação de incapacidade para controlar a As principais complicações da BN, nem sempre
quantidade e qualidade dos alimentos; fáceis de distinguir das próprias manifestações,
– comportamento de compensação no sentido (implicando, por vezes, a realização de determina-
de prevenir o incremento de peso: indução de dos exames complementares para apreciar a reper-
356 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
cussão sobre o estado geral e eliminar eventual perturbações do humor e ansiedade, e de fárma-
causa orgânica), são sistematizadas no Quadro 2. cos antidepressivos tricíclicos.
A evolução das perturbações, bem como a
Tratamento e evolução resposta ao tratamento, são muito variáveis(desde
muito boas a muito más).
As medidas gerais do tratamento da BN, que pode
ser efectivado em regime ambulatório (actuação BIBLIOGRAFIA
multidisciplinar com o apoio fundamental da American Psychiatric Association. DSM-IV.(edição em por-
equipa de pedopsiquiatria), devem implicar uma tuguês). Lisboa: Climepsi Editores, 1996
relação personalizada médico-doente, humaniza- Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics.
da e compreensiva, mas firme; os objectivos fun- Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
damentais são a alteração do padrão alimentar Goldstein MA, Dechant J, Beresin EV. Eating disorders. Pediatr
compulsivo e manobras purgativas, promover a Rev 2011; 32: 508-521
educação para a saúde sobre nutrição com a cola- Kliegman RM, Stanton BF et al (eds). Nelson Textbook of
boração da família como forma de motivação para Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
o tratamento, corrigir ideias pré-concebidas e ati- Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger, 2008
tudes disfuncionais, prevenção das recaídas e tra- Lask B, Bryant-Waught R. Anorexia Nervosa and Related
tamento da comorbilidade. Eating Disorders. London: Psychology Press, 2000
Para a prossecução destes objectivos são adop- Quevauvilliers J, Perlemuter L. Dicionário Ilustrado de
tadas resumidamente as seguintes estratégias: Medicina(edição em português). Lisboa: Climepsi Editores,
2003
Intervenção nutricional Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph´s Pediatrics.
Este tipo de intervenção consiste fundamentalmente New York: McGraw-Hill Medical, 2011
na promoção de regime alimentar equilibrado e
saudável com vista à manutenção de peso adequado.
Intervenção psicoterapêutica
Este tipo de intervenção abrange a chamada tera-
pia cognitivo-comportamental (técnicas de altera-
ção de comportamentos inadequados, reeducação
alimentar reduzindo,designadamente os regimes
restritivos, automonitorização da ingestão alimen-
tar, pesagem regular etc.), psicoterapia individual
ou de grupo, orientação e terapia familiar.
Intervenção psicofarmacológica
Este tipo de intervenção pode englobar, nomeada-
mente, a utilização de fármacos inibidores de
recaptação selectiva da serotonina com efeito nas
Alterações gastrintestinais
Dilatação e perfuração gástricas, hérnia do hiato esofági-
co,perfuração esofágica, pneumomediastino.
Alterações hidroelectrolíticas e metabólicas
Desidratação, hiponatrémia, hipoclorémia, hipomagne-
siémia,alcalose metabólica,etc..
PARTE XII
Imunoalergologia
358 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
62
exposição a antigénios ambientais ocorre por
inalação, ingestão, contacto cutâneo ou por via
parentérica.
Alergénios – São antigénios que causam aler-
gia. Muitos dos alergénios que reagem com IgE e
IgG são proteínas.
DOENÇAS ALÉGICAS NA Sensibilização – Este termo, com significado
diferente de alergia, traduz o aparecimento de
CRIANÇA – EPIDEMIOLOGIA anticorpos IgE específicos para determinado aler-
génio no soro; isto é, o indivíduo fica sensibiliza-
E PREVENÇÃO do ao referido antigénio, não significando que é
alérgico a este. Quando um indivíduo é clinica-
J. Rosado Pinto mente alérgico, os anticorpos IgE ligam-se a recp-
tores à superfície dos mastócitos de modo que a
exposição a alergénios leva a activação destes com
libertação de mediadores (histamina, prostaglan-
Importância do problema dinas, leucotrienos, etc.), e a sintomas (reacção
alérgica IgE mediada).
As doenças alérgicas correspondem a um tipo de Atopia – É uma tendência pessoal ou familiar
patologia que, pela sua frequência e importância, frequente na infância e na adolescência para se
estão na primeira linha no grupo etário pediátrico. ficar sensibilizado e produzir IgE em resposta a
Cerca de 35% da população europeia apresen- uma exposição a alergénios. Como consequência,
ta sintomas alérgicos e a tendência é para o seu nestes individuos podem desenvolver-se sin-
aumento, fruto do estilo de vida que caracteriza as tomas característicos de asma, rinoconjuntivite e
populações dos países industrializados. eczema. Os termos "atopia" e "atópico" devem ser
É importante referir o efeito das reacções alér- reservados para descrever uma predisposição
gicas no comportamento emocional e social dos genética (genes indutores) para sensibilização a
doentes e suas famílias. alergénios comuns durante uma exposição ambi-
ental sendo que, na maioria dos individuos, não se
Nomenclatura produz uma resposta prolongada mediada por
IgE.
Actualmente existe uma nomenclatura interna- Hipersensibilidade – Corresponde a um con-
cionalmente aceite e publicada pela European junto de sinais ou sintomas (reacções adversas)
Academy of Allergology and Clinical Immunology objectivamente reprodutíveis e desencadeados
recentemente actualizada pela World Allergy pela exposição a um estímulo definido tolerado
Organization que permite definir com rigor o sig- pelos indivíduos ditos normais ou saudáveis.
nificado dos termos e patologias mais frequente-
mente ligados à alergia. Discrimina-se seguida- De acordo com a classificação de Gell e Coombs são descritos os seguintes tipos
mente o significado de alguns termos relaciona- clássicos de hipersensibilidade: Tipo I (ou hipersensibilidade imediata): resul-
tante da produção de IgE contra um antigénio; estas imunoglobulinas fixam-
dos com esta problemática; algumas situações são se na membrana de mastócitos e de basófilos. A ulterior reacção antigénio-IgE
leva à desgranulação das referidas células com libertação de mediadores far-
definidas com mais pormenor noutros capítulos macologicamente muito activos. Constituem paradigmas deste mecanismo
desta Parte XII. patogénico a asma brônquica, a rinite alérgica e o eczema atópico; Tipo II(ou
hipersensibilidade citotóxica): resultante do facto de existir um antigénio
Alergia – É uma reacção de hipersensibilidade ini- estrutural que é “atacado”por um anticorpo específico;como consequência
verifica-se fagocitose das células ou a sua lise, em geral com a mediação do
ciada por mecanismos imunológicos a qual pode complemento; Tipo III (ou hipersensibilidade mediada por imunocomplexos)
ser mediada por anticorpos ou células, sendo na resultante da formação de grande quantidade de moléculas de antigénio-anti-
corpo as quais, não sendo adequadamente removidas pelos mecanismos habi-
grande maioria dos casos o anticorpo responsável tuais de fagocitose do SRE, precipitam em determinados órgãos como rins,
articulações, pele, originando respectivamente quadros clínicos diversos como
pela reacção alérgica pertencente ao isotipo IgE. glomerulonefrite, arterite e vasculite; Tipo IV (ou hipersensibilidade retarda-
Os indíviduos afectados podem ser referidos da): resultante da produção de linfocinas por linfócitos T sensibilizados em
relação a determinados antigénios. Constituem paradigmas deste tipo de
como sofrendo de uma alergia mediada por IgE. A resposta imune a reacção tuberculínica e o eczema de contacto alérgico.
CAPÍTULO 62 Doenças alérgicas na criança – Epidemiologia e prevenção 359
QUADRO 1 – Projecto ISAAC (Portugal): Resultados do inquérito sobre ambiente e estilos de vida
cada vez mais utiliza o seu tempo livre em frente (ISAAC) Steering Committee, Worldwide variations in the
da televisão e do computador. Por outro lado, a prevalence of asthma symptoms. Eur Resp J. 1998; 12: 315-
cada vez mais precoce frequência de infantários 335
por crianças mais pequenas, localizados em Johansson SG, Brebeu T, Dahl R, et al. Revised nomenclature
habitações que não estão, na maioria das situ- for allergy for global use: Report of the Nomenclature
ações, devidamente preparadas para receber tan- Review Committee of the World Allergy Organization.
tas crianças, leva a preocupações acrescidas, JACI 2004; 113: 832-836
devendo incidir-se atenção especial sobre as Johansson SG, Hourihene J, Bousquet J, et al. A revised nomen-
condições em que se encontram as salas onde per- clature for allergy - An EAACI pontion statement from the
manecem aquelas. É, no entanto, no quarto de EAACI nomenclature task force. Allergy 2001; 56: 813-824
dormir onde o jovem passa cerca de um terço da Kulif M, Bergmann R, Klettke U, et al. Natural course of sensi-
sua vida (± 8 horas/dia), que devem centrar-se tization to food and inhalant allergene during the first 6
mais as nossas preocupações. years of life. J Allergy Clin Immunol 1999; 103: 173
Os 3 níveis de prevenção: primária – que pro- Lopes da Mata P. Prevenção e ambiente: o que resulta a vários
move a prevenção de atopia; secundária – que níveis, in A Criança Asmática no Mundo da Alergia.
promove a prevenção das sensibilizações já exis- Rosado Pinto J, Morais de Almeida M (eds). Lisboa:
tentes e que são consequência da aptidão genética Euromédice, 2003; 319-336
e da exposição a alergénios; e a terciária que não é Nunes C, Ladeira S, Rosado Pinto J. Definição epidemiológica
mais que a prevenção das consequências clínicas e classificação da asma na criança, in A Criança Asmática
motivadas pelas manifestações alérgicas, devem no Mundo da Alergia. Rosado Pinto J, Morais de Almeida
ser tratados em conjunto. De um modo geral as M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 35-55
medidas ambientais exequíveis nos referidos Rosado Pinto J (ed). ISAAC – 20 anos em Portugal. Acta
níveis de prevenção passam por uma boa identifi- Pediatr Port 2011; 42: S25 – S48
cação dos alergénios em causa.
A sensibilização na criança ocorre geralmente
nos primeiros meses e até aos 2 anos, através de
alergia alimentar sobretudo às proteínas do leite
de vaca e ovos; a sensibilização IgE específica para
os alergénios alimentares é detectável em cerca de
10% das crianças de 1 ano de idade. Os alergénios
inalantes aparecem geralmente a partir dos 3
anos, passando a sensibilização a ser particular-
mente evidente aos ácaros do pó da casa, animais
domésticos, pólens e fungos; com efeito a rinite e
a asma alérgica passam a ter uma expressão clíni-
ca muito mais significativa que as alergias de
expressão cutânea.
BIBLIOGRAFIA
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Allergy, 1997
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Global Initiative for Asthma. New York: National Institute of
Health, 2002
The International Study of Asthma and Allergies in Childhood
362 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
63
tomas e circunstâncias do seu aparecimento; a pre-
sença de factores desencadeantes, como esforço físi-
co, exposição a alergénios (pó, pólens, esporos de
fungos, pêlos de animais, látex, etc.) ou ingestão de
alimentos ou fármacos; a frequência, duração e
gravidade dos sintomas, incluindo recursos ao
ASPECTOS DO DIAGNÓSTICO serviço de urgência e internamentos; as terapêuticas
efectuadas, sua eficácia e eventuais reacções adver-
DA DOENÇA ALÉRGICA sas; a variabilidade circadiana e sazonal dos sin-
tomas; o impacte sobre o estilo de vida, incluindo
Ângela Gaspar tolerância ao exercício, períodos de interrupção do
sono, perturbação de afectos familiares e sociais, e
grau de absentismo escolar. Os antecedentes pes-
soais da criança, nomeadamente a coexistência de
Aspectos básicos de imunopatogénese outras doenças alérgicas e os antecedentes familiares
de alergia apoiam o diagnóstico de doença alérgica.
O papel fundamental do sistema imune é proteger Pela anamnese deverá também inquirir-se sobre o
o organismo (hospedeiro) contra patogénios contexto ambiental em que a criança se movimenta,
microbianos e, ao mesmo tempo, manter a particularmente em termos de exposição alergénica,
tolerância de antigénios (do próprio organismo e tabagismo passivo e exposição a outros poluentes
exógenos) considerados não agressivos ou em ambiente doméstico ou fora de casa.
“inofensivos”. A disfunção deste processo conduz A sensibilização precoce na criança, por via
a respostas imunes deficientes com consequente digestiva ou inalatória, desencadeia o início da
sensibilidade aumentada a infecções; por outro chamada marcha alérgica. Segundo este conceito
lado,a falência do mecanismo de tolerância resulta clássico, como foi referido antes, a expressão clíni-
em alergia ou autoimunidade. ca da atopia varia durante a vida, iniciando-se na
Ao nível celular as células dendríticas e os lin- primeira infância sob a forma de alergia alimentar
fócitos T desempenham papel crucial na home- e dermatite atópica, com evolução ulterior, variá-
ostase imune. A este respeito salienta-se a diferen- vel segundo a experiência de vários autores, para
ciação das células T nativas em três subtipos (Th alergia respiratória, rinite e asma.
ou T”helpers”): Th1, Th2 e Th17. Algumas particularidades clínicas das doenças
As células Th1, produzindo interferão gama, e tendo alérgicas mais prevalentes na criança serão em
papel importante de cooperação na produção de anti- seguida sucintamente referidas, como comple-
corpos IgG, são essenciais na defesa contra patogénios mento do que foi referido a propósito da “Nomen-
intracelulares (vírus e bactérias). As células Th2, pro- datura das doenças” (Capítulo 62).
duzindo IL-4 e IL-13, essenciais para a produção de IgE Asma: Asma é uma situação clínica caracteriza-
pelas células B, têm papel crucial na defesa contra da por episódios recorrentes de tosse, pieira e difi-
infecções parasitárias. culdade respiratória, parcial ou completamente
As recentemente descobertas células Th17, em reversíveis, espontaneamente ou após terapêutica
associação a IL-17, desempenham papel impor- com broncodilatador; queixas induzidas pelo exer-
tante na mobilização dos neutrófilos, sendo essen- cício físico e tosse crónica, podem ocorrer isolada-
ciais contra certos patogénios como fungos(espe- mente. Apoiam o diagnóstico, a periodicidade dos
cialmente Candida). sintomas, a sintomatologia nocturna, o agrava-
mento com esforço físico, ar frio e exposição a
Anamnese alergénios, a resposta favorável à terapêutica bron-
codilatadora, e a história familiar de asma parental
O diagnóstico da doença alérgica baseia-se essen- e pessoal de rinite e dermatite atópica.
cialmente na história clínica. A anamnese é funda- Rinite alérgica: os sintomas incluem rinorreia
mental e deve esclarecer: a idade de início dos sin- serosa, prurido nasal, espirros paroxísticos e obstrução
CAPÍTULO 63 Aspectos do diagnóstico da doença alérgica 363
nasal (como aspecto característico na ausência de proces- Dermatite atópica: é frequente verificar-se
sos infecciosos). A coexistência de sintomas oculares xerose cutânea e localização das lesões eritema-
alérgicos (prurido ocular, lacrimejo) apoia fortemente tosas/exsudativas/descamativas na face, flexuras
este diagnóstico. A variabilidade sazonal, bem como a e superfícies de extensão, por vezes com liquenifi-
relação com a exposição alergénica com agravamento no cação; podem também observar-se queratose
ambiente fora de casa é característica das polinoses. pilar, reforço das pregas palmares, queilite, der-
Dermatite atópica ou síndroma eczema/der- matose plantar e pitiríase alba.
matite atópica (SEDA): inflamação local da pele. Rinite alérgica: fácies característica da criança
Esta situação surge, habitualmente, após os 3 com obstrução nasal crónica, com respiração oral
meses de vida e caracteriza-se pelo prurido cutâ- com boca entreaberta, existência de prega atópica
neo intenso, que tipicamente se agrava após o nasal e olheiras; a observação das fossas nasais
banho, com a sudação e durante a noite, e pela permite-nos visualizar habitualmente, para além
distribuição e morfologia típica das lesões da rinorreia aquosa, hipertrofia e palidez da
cutâneas, com evolução crónico-recidivante. mucosa dos cornetos inferiores.
Como na asma, o eczema surgindo em indivíduos Conjuntivite alérgica: são aspectos característica a
atópicos chama-se eczema atópico. hiperémia e a quemose (edema) conjuntivais, secreção
Alergia alimentar: trata-se da associação entre a serosa e frequentemente edema palpebral, habitual-
ingestão alimentar e o aparecimento dos sintomas; a mente bilateral; a observação da conjuntiva tarsal pode
forma de manifestação clínica mais frequente é evidenciar a presença de papilas.
mucocutânea, com urticária e angioedema; no entan- Anafilaxia, urticária e angioedema: trata-se de
to, os sintomas podem variar desde síndroma de situações que têm como base comum um quadro
alergia oral a reacção anafiláctica grave. O número de fisiopatológico que resulta da activação dos mas-
alimentos implicados é habitualmente limitado, tócitos mediada por IgE, resultando na libertação
exceptuando situações em que ocorrem fenómenos de histamina, leucotrienos e outros mediadores
de reactividade cruzada. Existem classicamente três dos mastócitos. No caso especial da anafilaxia,
grandes síndromas de reactividade cruzada entre cabe referir que em tal fenómeno está envolvido
determinados alergénios inalados e alimentares, que um antigénio que determina a produção de anti-
é importante conhecer, pela potencial gravidade de corpos constituídos por IgE, que se fixam sobre a
algumas das reacções adversas alimentares: síndro- membrana celular dos mastócitos e dos basófilos, e
ma ácaros-mariscos, síndrome látex-frutos e síndro- aí permanecem. Quando o antigénio se liga ulte-
ma pólens-frutos. Nestas circunstâncias as reacções riormente a este anticorpo ocorre destruição da
tendem a não ser graves, sendo a alergia oral a forma célula com libertação de mediadores aí existentes.
típica de apresentação clínica (Capítulo 68). A urticária e o angioedema, abordados com mais
pormenor no capítulo 66, manifestam-se funda-
Exame físico mentalmente por sinais mucocutâneos; a anafila-
xia traduz-se por reacção sistémica aguda que
O carácter intermitente da doença alérgica, de um pode levar a colapso cardiovascular (taquicardia,
modo geral, determina que na maioria das situa- hipotensão, perda de consciência e choque).
ções o exame físico da criança seja normal. Alguns
sinais característicos que podem ser detectados ao Exames complementares
realizar o exame físico são em seguida descritos. de diagnóstico in vivo
Asma: durante uma exacerbação pode veri-
ficar-se taquipneia, utilização dos músculos Testes cutâneos
acessórios da respiração, hiperinsuflação torácica, Os testes cutâneos por picada ou “prick” cons-
prolongamento do tempo expiratório e sibilos na tituem o método diagnóstico de eleição no estudo da
auscultação pulmonar; situações mais graves sensibilização alergénica, inclusive em idade pe-
podem cursar com cianose, diminuição generali- diátrica, pela facilidade de execução, rapidez de
zada do murmúrio vesicular e alterações do esta- obtenção de resultados, segurança, baixo custo e ele-
do de consciência (Capítulo 62). vada sensibilidade. No entanto, contrastando com a
364 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
facilidade de execução, estes testes podem ser influ- evidência de sensibilização alergénica foi identifi-
enciados por diversos factores, pelo que é impre- cada em vários estudos prospectivos como factor
scindível que a sua interpretação seja efectuada por de risco de persistência da sintomatologia respi-
especialista e sejam realizados com uma metodolo- ratória, isto é, de asma activa em idade escolar, com
gia correcta, obedecendo a normas padronizadas. elevado valor preditivo positivo, com valor diag-
A utilização dos testes cutâneos por picada per- nóstico e prognóstico da asma na criança. Assim, o
mite a identificação, se existente, do alergénio sen- factor etário não deve ser um factor limitante para
sibilizante. A introdução do alergénio nas camadas a execução dos testes cutâneos na criança, devendo,
superficiais da pele leva ao aparecimento de uma pelo contrário, ser considerados como rotina na
reacção imediata, dependente da desgranulação investigação de atopia. Os testes cutâneos por pica-
dos mastócitos e envolvendo também factores neu- da negativos permitem excluir a presença de atopia
rogénicos, com libertação de histamina e outros e, deste modo, evitar a utilização de medidas de
mediadores originando uma resposta de pápula e evicção de alergénios não apropriadas.
eritema; esta resposta visível é máxima aos 15 min- Apesar de identificarem a sensibilização a
utos, regredindo habitualmente aos 30 minutos. determinado alergénio, os referidos testes cutâ-
Os testes cutâneos podem ser influenciados por neos não permitem avaliar a sua relevância clínica
uma série de variáveis, que podem determinar os se valorizados independentemente da história
resultados e condicionar a precisão dos mesmos, clínica. A presença de testes cutâneos positivos em
tais como: factores técnicos, factores biológicos e pacientes assintomáticos pode ser factor de risco
factores externos não alérgicos. Os factores técni- de início de sintomatologia alérgica, mas não iden-
cos estão relacionados com a preparação do tificam, por si só, doença. Ou seja, os conceitos de
alergénio (potência, qualidade, composição e esta- sensibilização alergénica ou atopia e doença alérgi-
bilidade) e com a metodologia do teste. Os factores ca são distintos e independentes. No entanto, na
externos não alérgicos incluem fármacos, como presença de clínica sugestiva, a relação entre os
anti-histamínicos, e condições patológicas inter- testes cutâneos por picada positivos e as provas de
correntes, como neoplasias, infecções, exacerbação provocação específicas é altamente significativa.
de eczema, que podem inibir a reactividade Na alergia alimentar os testes cutâneos devem
cutânea. Os factores biológicos incluem a idade do ser realizados com os alergénios alimentares identi-
indivíduo, o factor racial e a variação sazonal rela- ficados como suspeitos pela história clínica. Os
cionada com a exposição alergénica. alergénios alimentares mais frequentemente impli-
A selecção dos extractos alergénicos a utilizar cados também variam com a população estudada.
deve estar de acordo com a história clínica e a fre- Na nossa população, em idade pediátrica, o leite e
quência de sensibilizações alergénicas na popu- o ovo são os mais importantes, seguidos do peixe,
lação. Na nossa população os alergénios mais trigo e amendoim. Os referidos testes apresentam
importantes em crianças com sibilância recorrente um excelente valor preditivo negativo, mas baixo
são os ácaros do pó (Dermatophagoides pteronysinus valor preditivo positivo, pelo que, exceptuando os
e Dermatophagoides farinae), mesmo no grupo casos em que haja uma íntima associação entre a
etário abaixo dos 3 anos de idade. Outros aeroa- ingestão do alimento e o aparecimento das queixas
lergénios comuns poderão estar implicados, ou uma reacção anafiláctica grave, a positividade
nomeadamente pólens de gramíneas, parietária, dos mesmos apenas serve para seleccionar os ali-
outras herbáceas e árvores localmente relevantes, mentos com os quais deverão ser efectuadas provas
de animais, particularmente gato, cão, baratas, e de provocação. A utilização de testes cutâneos com
de fungos (Arpergillus, Cladosporium e Alternaria). o alimento na forma natural pode ser necessária
Podem ainda ser incluídos outros testes segun- nalgumas situações, particularmente na suspeita
do a localização geográfica ou em presença de de alergia a frutos frescos, legumes e mariscos,
dados particulares fornecidos pela história clínica. quando persistir a suspeita clínica, e o extracto
Habitualmente, através da utilização de um comercial não estiver disponível ou for negativo.
número limitado de aeroalergénios comuns é pos- Os testes cutâneos intradérmicos são mais
sível confirmar ou excluir a presença de atopia. A invasivos, e menos específicos; o risco de ocorrên-
CAPÍTULO 63 Aspectos do diagnóstico da doença alérgica 365
QUADRO 1 – Testes cutâneos por picada e testes séricos de IgE específica: vantagens
Testes cutâneos (in vivo) Testes séricos de IgE específica (in vitro)
Económicos Independentes da interferência de fármacos que inibem a reactividade cutânea
Resultados imediatos Não influenciados por dermografismo ou doenças cutâneas
Valor educacional Totalmente seguros
Maior sensibilidade Maior especificidade Nota: Teste sinónimo de Prova
366 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A IgE específica não é um bom método de ras- específica e no estudo da reactividade cruzada, neste
treio, sendo os respectivos custos muito elevados. caso com utilização de técnicas de inibição.
O doseamento de IgE específicas séricas deveria
estar reservado para uma avaliação mais diferenci- Painéis de alergénios múltiplos
ada, tendo em conta a história clínica e o resultado São testes de rastreio, constituidos por uma mistura
dos testes cutâneos. Esta determinação é extrema- de vários alergénios definida pelo fabricante.
mente importante em determinadas situações Existem painéis para os alergénios inaláveis,
(Quadro 3), nomeadamente: na monitorização de AlaTOP® e Phadiatop®, e inúmeros painéis para
imunoterapia específica; na alergia alimentar, para alergénios alimentares, dos quais os mais utilizados
controlo do correcto cumprimento da dieta e para na criança por possuirem leite e clara do ovo são o
avaliar o grau de tolerância, diminuindo o risco de Fx5® e o correspondente FP5® (Quadro 4). Tendo em
provas de provocação positivas; e na suspeita de conta os valores de sensibilidade, especificidade e
alergia a venenos de himenópteros e penicilina, valor preditivo negativo, consideramos estes testes
alergénios com risco acrescido na realização dos bons métodos de rastreio, podendo ser utilizados
testes cutâneos (intradérmicos). em consultas não especializadas. Os mesmos pro-
Os alergénios também se têm desenvolvido porcionam uma informação global, qualitativa, em
quer em variedade, quer em qualidade, de modo termos de resultado positivo/negativo.
a garantir a inexistência de perdas de constituintes
essenciais durante o processo de fabrico, sendo Marcadores de inflamação
um bom exemplo desta evolução os alergénios re- O estudo dos mediadores e da sua determinação
combinantes. como marcadores de inflamação constitui um dos
A pesquisa de IgE específica pelo método campos florescentes da investigação imunoaler-
Imunoblot permite saber qual ou quais são os epíto- gológica. A introdução de novas tecnologias permi-
pos contra os quais essas IgE são dirigidas. Habi- tiu o desenvolvimento de métodos para avaliação
tualmente mais usado em investigação, é importante da libertação de mediadores produzidos pelas célu-
na caracterização do perfil de sensibilização alergéni- las intervenientes na inflamação alérgica, incluin-
ca, com implicações na selecção da terapêutica do: ECP (proteína catiónica dos eosinófilos); trip-
tase; FAST (teste de activação de basófilos por cito- minar a gravidade actual da doença. A confirmação
metria de fluxo); CAST (teste celular de estimu- do diagnóstico pode ser feita pela existência de uma
lação antigénica); formas solúveis de moléculas de prova de broncodilatação positiva, variação diurna
adesão como ICAM-1 e VCAM-1; citocinas de per- do DEMI 20% ou uma prova de broncoconstrição
fil Th2 como IL-4 e IL-13. A sua utilização é habi- positiva; na criança, a prova de broncoconstrição
tualmente restrita a estudos de investigação, sendo com maior especificidade para o diagnóstico de
potenciais instrumentos para o diagnóstico, moni- asma é a prova de esforço.
torização e prognóstico das doenças alérgicas.
Pela sua importância em termos clínicos, salien- Rinite alérgica
ta-se a determinação da triptase sérica. A triptase A realização de exames complementares de dia-
tem valor diagnóstico de anafilaxia, pelo que o seu gnóstico é habitualmente limitada aos testes cutâ-
doseamento terá importância no serviço de urgên- neos, e se necessário, à pesquisa de IgE específica
cia, durante a reanimação ou mesmo no estudo de sérica; permitem confirmar o diagnóstico de rinite
casos fatais. A sua utilização poderá ainda ter inter- alérgica, atópica, identificando os alergénios impli-
esse na monitorização de provas de provocação. cados. Em situações mais complicadas, como critério
de exclusão, a avaliação poderá ser complementada
Exames complementares por endoscopia nasal, no diagnóstico diferencial das
em situações específicas causas de obstrução nasal fixa; e por estudo imagi-
ológico, nomeadamente tomografia computadoriza-
Asma da das fossas nasais e seios perinasais nas formas de
Os exames complementares de diagnóstico incluem rinossinusite de difícil tratamento médico.
a realização de testes cutâneos, para identificação
dos alergénios implicados, e provas funcionais res- Dermatite atópica
piratórias, para quantificar as repercussões fun- Os exames complementares de diagnóstico in-
cionais ao nível das vias aéreas. A espirometria, cluem a realização de testes cutâneos, e se neces-
incluindo a realizada em idade pré-escolar, avalia a sário doseamento de IgE específicas, nomea-
existência e grau de obstrução brônquica, bem damente para aeroalergénios, particularmente
como a sua reversibilidade após inalação de bron- ácaros do pó, e alergénios alimentares. Nalgumas
codilatador; deve ser o exame de primeira linha. A situações poderá associar-se a realização de provas
pletismografia corporal, mais independente da de sensibilidade epicutâneas (testes empregando
colaboração do doente, permite a determinação da adesivo ou patch). Nas formas mais graves de
resistência das vias aéreas e dos volumes pul- eczema, poderá ter interesse a pesquisa de IgE
monares, avaliando o grau de insuflação pulmonar. específicas para agentes infecciosos, bacterianos
O ideal na avaliação do doente asmático será a real- (Staphylococcus aureus) e fúngicos (Pityrosporum
ização regular destes exames. Caso não seja possív- ovale e Candida albicans). Nos casos em que a sus-
el, e apesar das limitações conhecidas, poderá efec- peita de alergia alimentar é pertinente, deve pro-
tuar-se a determinação seriada do débito máximo ceder-se a dietas de exclusão e a provas de provo-
instantâneo (DEMI) pela utilização do debitómetro cação oral para excluir ou confirmar o diagnóstico.
(Peak Flow Meter). O estudo funcional respiratório
permite confirmar o diagnóstico clínico, efectuar o Alergia alimentar
diagnóstico diferencial em casos de dúvida, e deter- A confirmação do diagnóstico clínico, empregan-
CAPÍTULO 64 Asma 369
64
do para além da realização dos testes cutâneos, e
se necessário pesquisa de IgE específica sérica, é
efectuada em regra por prova de provocação oral.
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Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon,2011 A asma, doença que foi definida em capítulos
Gaspar A, Pires G. Alergia ao látex: sensibilização sem clínica e anteriores, afecta muitas crianças e adultos em
reactividade cruzada – que implicações? Rev Port todo o mundo; constitui um importante problema
Imunoalergol 2002;10:159-162 de Saúde Pública, quer pela sua prevalência a
Hamilton RG. Laboratory tests for allergic and immunodefi- aumentar nos últimos anos, quer pelos custos
ciency diseases. In: Allergy, Principles & Practice. Adkinson sociais e económicos que acarreta.
NF, Yunginger JH, Busse WW, Brchner BS, Holgate ST, O impacte da doença na qualidade de vida das
Simons FER (eds). St. Louis: Mosby, 2003:611-630 crianças afectadas é considerável, devido a todas
Hamilton RG, Adkinson NF Jr. In vitro assays for the diagno- as restrições físicas, emocionais e sociais que
sis of IgE mediated disorders. J Allergy Clin Immunol 2004; muitas vezes lhe estão inerentes. Importa, assim,
114: 213-225 reduzir ao mínimo tal impacte nas actividades
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). quotidianas.
Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Os custos directos relacionados com o trata-
Saunders, 2011 mento farmacológico da asma correspodem ape-
Lopes I, Fernandes JG, Loureiro V, et al. Diagnóstico de asma nas a uma pequena percentagem dos custos
na criança e os exames complementares. In: A criança globais da doença, estes muito mais afectados
asmática no mundo da alergia. Rosado Pinto J, Morais de pelos episódios de crise, pelos internamentos,
Almeida M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003: 119-228 pelo absentismo escolar e laboral, ou pela própria
Morais de Almeida M, Gaspar A, Pires G, et al. Sibilância recor- mortalidade relacionada.
rente na infância. Estudo prospectivo. Rev Port
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Morais de Almeida M, Gaspar A, Romeira A, et al. Factores de
risco para asma activa em idade escolar: estudo prospecti- Trata-se de uma doença inflamatória crónica com-
vo com oito anos de duração. Rev Port Imunoalergol plexa, envolvendo múltiplas células (linfócitos,
2004;12:20-40 mastócitos, eosinófilos, etc.) e mediadores celu-
Morais de Almeida M, Prates S, Pargana E, et al. Alergia ali- lares; as alterações inflamatórias presentes con-
mentar em crianças numa Consulta de Imunoalergologia. duzem ao edema, à hipersecreção de muco, ao
Rev Port Imunoalergol 1999; 7: 167-171 aumento da contractilidade das vias aéreas, à
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA obstrução brônquica e à hiperreactividade das vias
(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill aéreas, manifestadas pelos sintomas característicos
Medical, 2011 e bem conhecidos (tosse, dispneia, pieira, opressão
Santa Marta C, Pereira C. Síndrome de eczema / dermatite torácica). As consequências a longo prazo podem
atópica. In: A criança asmática no mundo da alergia. Rosado levar à obstrução fixa das vias aéreas e/ou a fenó-
Pinto J, Morais de Almeida M, (eds). Lisboa: Euromédice, menos de remodelação, correspondente à cica-
2003:421-31 trização sequelar do processo inflamatório.
370 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
AMBIENTE
AMBIENTE AMBIENTE
Transmissão Genética
AMBIENTE AMBIENTE
FIG. 1
A transmissão genética da predisposição para asma, hiperreactividade brônquica e atopia ocorre de modo independente; chama-
-se a atenção para a influência ambiental marcada.
CAPÍTULO 64 Asma 371
genes associados a asma ou a fenótipo atópico opressão torácica ou cansaço que surgem durante e
(IL4, IL13, CD14, ADRB2, HLA-DRB1, HLA- principalmente após cessar o exercício; estes sin-
DQB1, TNF, FCERIB, IL4RA, ADAM33) tomas são de curta duração e acompanham-se de
Entre os factores de risco que têm sido identifi- hiperinsuflação e hipoxémia arterial. A broncocon-
cados para a expressão da doença asmática na cri- strição máxima ocorre geralmente 3 a 10 minutos
ança, alguns serão dificilmente susceptíveis de pre- após o esforço físico, sendo habitual uma recuper-
venção, nomeadamente os genéticos, contrastando ação espontânea num intervalo de 30 a 60 minutos.
com os ambientais, passíveis de intervenção A prevalência de AIE é variável, podendo ocorrer
(exposição alergénica, tabagismo e outros polu- nalgumas séries em cerca de 80% dos doentes
entes, regime alimentar), de cuja modulação podem asmáticos; mais prevalente em idade pediátrica, é fre-
ser esperados ganhos significativos, nomeadamente quentemente causa de queixas e de frustração pelas
em termos de gravidade. dificuldades na integração das actividades de grupo.
Estudos também recentes demonstraram asso- A gravidade da resposta broncoconstritora ao
ciação entre o suprimento mais elevado de vita- exercício depende de vários factores, tais como da
mina D durante a gravidez e diminuição do risco intensidade do exercício, das condições climáticas
de sibilância no respectivo descendente; e níveis e da reactividade basal das vias aéreas. A magni-
mais elevados do metabólito mono-hidroxilado tude da resposta dependerá do grau de controlo da
25-OH vitamina D no sangue do cordão associa- doença, do uso prévio de medicação anti-asmática
ram-se a menor risco de sililância na infância e do intervalo de tempo que decorreu desde um
(capítulos 51 e 59). episódio anterior de broncoconstrição induzida
A assistência a crianças com doença grave, par- pelo exercício, conceito conhecido como período
ticularmente se sujeitas a internamento, deverá ser refractário. Em cerca de 50% dos asmáticos a
cuidadosamente planeada. Actualmente no resposta broncoconstritora ao exercício é atenuada
Hospital de Dona Estefânia são internadas por se este for repetido dentro de 30 minutos. A gravi-
ano, apenas cerca de 10% daquelas que eram hos- dade da AIE pode também ser indirectamente
pitalizadas por asma há 15 anos, traduzindo a influenciada pela exposição a alguns factores, tais
existência de: 1. um protocolo amplamente divul- como alergénios, poluentes e infecções víricas.
gado para o tratamento das agudizações; 2. a refe- As actividades desportivas consideradas como
rência sistemática dos casos mais preocupantes mais asmogénicas englobam os desportos que exi-
para consulta especializada e, finalmente, 3. a insti- gem altos níveis de ventilação, como a corrida de
tuição de terapêutica anti-inflamatória, incluindo fundo, o ciclismo, o futebol, o basquetebol, o rague-
as medidas de controlo ambiental precocemente, bi, e modalidades praticadas em ambiente frio e
após avaliação clínica e formulação diagnóstica. seco como vários desportos de Inverno, particular-
mente o esqui, o hóquei e a patinagem no gelo.
Asma induzida pelo exercício Relativamente à patogénese, os mecanismos
pelos quais a AIE ocorre, continuam ainda por
A asma induzida pelo exercício (AIE) define-se esclarecer. Actualmente, a desidratação da
como o aumento transitório da resistência das vias mucosa brônquica, consequência da hiperventi-
aéreas resultante da broncoconstrição que ocorre lação que ocorre durante o exercício, constitui a
após esforço físico inerente a prática desportiva, explicação etiopatogénica mais aceite. O mecanis-
mas também facilmente desencadeável após situa- mo pelo qual esta perda de água pela mucosa de-
ções fisiológicas como rir. sencadeia a broncoconstrição, resulta provavel-
Os leucotrienos são potentes mediadores de bron- mente de uma conjugação de dois mecanismos
coconstrição libertados por várias células infla- anteriormente propostos como distintos: o estí-
matórias incluindo mastócitos e eosinófilos, tendo mulo térmico e o estímulo osmótico (Figura 2).
os seus níveis sido encontrados elevados após O objectivo primordial do tratamento é pre-
broncoconstrição induzida pelo exercício. venir, ou pelo menos atenuar, a resposta bronco-
Os sintomas de AIE, semelhantes aos de outras for- constritora ao exercício de modo que não consti-
mas da doença, podem incluir tosse, pieira, dispneia, tua restrição à escolha de uma actividade física ou
372 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ao ar e ao vapor de água; provavelmente constitui ca, incluindo agudizações. Muito difícil a erradi-
a medida isolada mais eficaz (essencial). cação, particularmente em ambientes urbanos.
Lavagem da roupa da cama, idealmente a mais de – Medidas:
55ºC; existem também capas para edredão, no Inspecção e identificação dos insectos, permitindo
caso de não ser possível a sua lavagem (essencial). prever locais principais de infestação.
Remover peluches da cama / lavagem regular Localização e erradicação de fontes de alimentos e
(semanal a mensal), a 60ºC, dos que permane- de água.
cerem (essencial). Insecticidas, permitindo reduzir a população de
Remover mobiliário acolchoado e alcatifas, parti- baratas (exterminação) embora se mantenham os
cularmente se antigas, preferindo pavimentos de alergénios.
madeira, sintéticos ou aplicação de alcatifas Limpeza da casa, não deixando restos de comida
laváveis. Evitar livros no quarto (desejável). acessíveis, aspiração profunda e lavagem após
Aspiração semanal com dispositivo apropriado aplicação das medidas anteriores. Há que ter
(aspirador com filtro de alta eficiência – high-effi- cuidado com as condutas de lixo.
ciency particulate air - HEPA). • Fungos – A contaminação é habitualmente
Limpar o pó com pano húmido (desejável). efectuada do exterior através das janelas (ex.
Redução da humidade relativa – desumidifi- Alternaria), embora alguns fungos possam ser pre-
cadores e aumento da ventilação (desejável). dominantemente encontrados dentro dos edifícios.
Acaricidas – pouco relevantes em locais muito – Medidas:
infestados, sendo considerado discutível o seu Remover ou lavar materiais contaminados –
interesse clínico. Indicados no pavimento se não tapetes, mobiliário, papel de parede. Aplicação de
for possível retirar alcatifas (desejável). fungicidas.
• Animais domésticos ou de companhia – A Prevenção da contaminação do exterior – fechar
exposição mantida associa-se a maior gravidade e, janelas; recurso a ar condicionado (caro).
a exposição aguda, relaciona-se com agudizações. Controle da humidade relativa através da utiliza-
– Medidas: ção de desumidificadores, aumento da ventilação
Não ter animais de companhia ou retirá-los da (atenção às cozinhas e salas de banho).
residência (eficácia comprovada); de referir que o Uso de filtros de alta eficiência – filtração do ar e
contacto também pode ocorrer noutras habitações aspiração (HEPA).
ou mesmo no ambiente escolar. O benefício pode Secar bem as roupas antes de serem guardadas.
não ser imediato (níveis de alergénio podem Evitar plantas nos quartos de dormir.
reduzir-se progressivamente até período de 6
meses), mas será tanto mais rápido se associado a 2. Tratamento farmacológico
outras medidas (aspiração). Nos casos clínicos de Nesta alínea procede-se à descrição dos principais
sensibilização ao gato, nenhuma outra medida, se fármacos utilizados no tratamento da asma e dos
o animal estiver presente, poderá influenciar si- diversos esquemas de tratamento de acordo com
gnificativamente a exposição alergénica. os quadros clínicos (como se combinam os fárma-
Se o animal permanecer: cos em função do contexto clínico e em situações
Lavagem do(s) animal(is), permitindo reduzir específicas).
transitoriamente (uma semana) os níveis de • Fármacos
alergénios. Filtragem do ar (filtros HEPA ou ioni- – β2 -agonistas:
zadores colocados no quarto de dormir). Os β2 – agonistas são os broncodilatadores mais
Aspiração regular (aspirador com filtro HEPA). potentes, actuando por estimulação dos recep-
Aplicação de capas no colchão e na almofada. tores β-adrenérgicos. O Quadro 1 descreve os
Remoção de reservatórios de alergénios (alcatifas, efeitos dos β2 -agonistas em diferentes órgãos e
carpetes, estofos). sistemas.
Limitar a circulação dos animais nos quartos de Na prática clínica são utilizados fundamental-
dormir; porta do quarto sempre fechada. mente dois tipos destes agonistas:
• Baratas – Factor de risco de gravidade clíni- 1) de curta acção, como o salbutamol (albuterol),
CAPÍTULO 64 Asma 375
QUADRO 1 – Efeitos principais dos β2-agonistas o tratamento de primeira linha nas crises de
em diferentes órgãos/sistemas asma/agudizações (Quadro 2)
2) de acção prolongada, como formoterol e o
Tecido Resposta salmeterol com efeito broncodilatador que dura
Vias aéreas Relaxamento músculo liso – broncodi- cerca de 12 horas, aprovados para crianças acima
latação dos 4-5 anos. O formoterol tem um ínicio de acção
Aumento dos movimentos ciliares mais rápido (1-3 minutos após inalação) do que o
Aumento da secreção de muco salmeterol (cerca de 10-20 minutos).
Inibição da desgranulação mastocitária Ao cabo de 30 minutos a sua acção é comparável
à do salbutamol ( de curta acção).
Coração Aumento da frequência cardíaca Estes fármacos não devem ser usados em
monoterapia; como regra, estão indicados em
Vasos Vasodilatação associações a corticóides quando a corticoterapia
Aumento da permeabilidade vascular inalada em dose equivalente a 800μg por dia de
dipropionato de beclometasona não é suficiente
Efeitos Gluconeogénese para reverter os sintomas.
metabólicos Hipocaliémia Em crianças com idade superior a 6 anos a
Aumento da produção de lactato dose recomendada de formoterol é 4,5μg e a de
salmeterol – 50μg (ver adiante)
procaterol, terbutalina, fenoterol, etc.. – Corticóides:
Têm um início de acção rápida, em poucos minu- Os corticóides, inalados ou sistémicos, são
tos, atingindo o máximo de actividade cerca de 60- complemento essencial para o controlo do proces-
90 minutos após administração por via inalatória. so inflamatório subjacente às agudizações. O
Os seus efeitos duram cerca de 4-6 horas, sendo o Quadro 3 discrimina os corticódes inalados mais
mais relevante o relaxamento do músculo liso; são empregues e respectivas doses.
QUADRO 2 – β2-agonistas
QUADRO 4 – Corticosteróides
• Anti-inflamatórios com papel reconhecido no controlo dos processos fisiopatológicos da asma (↓ morbilidade e mortalidade)
• Melhoria da resposta aos agonistas β2 (actuação a nível dos receptores)
• Via de administração sistémica
• Início de acção em 2 a 8 horas
• Efeitos secundários (raros durante cursos terapêuticos curtos até 3 dias)
Nebulização Igual a < 1 ano < 1 ano: 125µg < 5 anos: 250µg 500µg Dose/nebulização
(solução:250 ug/2mL) ≥ 1 ano: 250µg ≥ 5 anos: 500µg (pode ser repetida
entre cada 2/2 ou 6/6horas)
NB: Deve adicionar-se na mesma nebulização com salbutamol; não deve ser utilizado como terapia de 1ª linha isoladamente.
CAPÍTULO 64 Asma 377
redução da dose deste último, necessária para o respiração nasal, os volumes correntes pequenos,
controlo clínico da asma. as frequências respiratórias elevadas e a colabo-
Entre as combinações corticosteróide inalado e ração, por vezes deficiente, entre muitos outros
β2-agonista de acção prolongada versus antago- factores, limitam frequentemente o sucesso da te-
nista dos leucotrienos e corticosteróide inalado, a rapêutica inalatória.
primeira é mais eficaz e de menor custo. A combi- Durante uma agudização de sintomas, para
nação dos broncodilatadores mais efectivos com além da idade, pode também estar comprometida
os anti-inflamatórios de primeira escolha na maio- a utilização de inaladores que fazem depender a
ria dos asmáticos (corticóides inalados), resulta disponibilidade das partículas do débito inspi-
claramente numa formulação eficaz em todo o ratório.
espectro da asma persistente moderada a grave, e Assim, para rendibilizar a extrema rapidez de
ainda nas formas ligeiras, e ainda nas formas actuação e a eficácia desta via de administração,
ligeiras (Figura 4). particularmente durante a crise, é importante que
se respeitem algumas condicionantes rela-
3. Terapêutica inalatória (particularidades) cionadas, quer com a idade da criança, quer com
Constitui actualmente o pilar fundamental no os dispositivos disponíveis.
tratamento de várias doenças respiratórias, sendo – Idade da criança > nos primeiros dois anos
consensual a escolha da via inalatória como pre- de vida, a terapêutica broncodilatadora ou anti-
ferencial para administração de fármacos no trata- inflamatória indicada por via inalatória na
mento da asma. Comparada com a via sistémica, agudização, terá de ser efectuada através de
tem uma acção mais rápida, utilizando doses nebulizador (pneumático ou ultrassónico) ou
menores. Consegue-se efeitos terapêuticos muito com aerossol de dose calibrada (Pressurized
significativos com escassos efeitos secundários. Metered Dose Inhalers – pMDI) associado a
No entanto, em idade pediátrica o reduzido cali- câmara de expansão, sempre com o uso de más-
bre da via aérea, os fluxos inspiratórios baixos, a cara.
A partir do terceiro ano de vida, logo que a
Ligeira Moderada Grave
colaboração o permita, deverá a inalação ser efec-
Intermitente tuada com o uso de peça bucal, pois a inalação do
persistente persistente persistente
fármaco através das cavidades nasais, (ou apenas
o facto de haver respiração nasal com a utilização
β2 agonistas de curta acção SOS de máscara), pode reduzir a dose que chega ao
pulmão para menos de metade. Se fôr possível a
Corticóides inalados
colaboração com a peça bucal, há que preferir o
uso de câmaras de expansão (quer nos serviços,
quer a nível das urgências e enfermarias).
β2 agonistas de acção prolongada A partir dos 6 a 8 anos, por vezes antes, é já
possível a utilização dos inaladores de pó seco,
uni ou multidose (Dry Powder Inhaler – DPI),
Antileucotrienos / Cromonas / Teofilinas
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CAPÍTULO 65 Rinite alérgica 383
65
QUADRO 1 – Classificação da Rinite Alérgica
1. Intermitente
Sintomas < 4 dias por semana ou < 4 semanas
2. Persistente
Sintomas > 4 dias por semana e > 4 semanas
RINITE ALÉRGICA 3. Ligeira
Sono normal e:
Graça Pires – actividades diárias, desportivas e de tempos livres
normais
– actividadades laborais e escolares normais
– sem sintomas perturbadores
Definição e importância do problema 4. Moderada-grave
Uma ou mais situações:
A rinite alérgica é uma doença inflamatória cróni- – sono anormal
ca da mucosa nasal, resultante de uma reacção de – repercussão nas actividades diárias, desportivas e
hipersensibilidade imunologicamente mediada, tempos livres
em que se verifica rinorreia serosa, obstrução e – problemas na escola
prurido nasais, e crises esternutatórias; por vezes
é acompanhada de irritação conjuntival.
A prevalência da rinite alérgica tem vindo a Manifestações clínicas e diagnóstico
aumentar progressivamente nos últimos anos, a
par do aumento da prevalência das outras patolo- A história clínica é essencial para o diagnóstico
gias alérgicas. Estima-se que actualmente a rinite preciso de rinite alérgica e avaliação da sua gravi-
alérgica tenha uma prevalência global de 10 a 30% dade. Os sintomas incluem obstrução nasal, rinor-
na população europeia, iniciando-se frequente- reia, prurido nasal e crises esternutatórias, poden-
mente as queixas nas primeiras décadas de vida. do cada doente apresentar predomínio de um ou
A avaliação do estudo epidemiológico ISAAC mais sintomas. Podem surgir sintomas associados,
(International Study of Asthma and Allergies in nomeadamente roncopatia e/ou distúrbios do
Childhood) demonstrou que 24% das crianças com sono, cansaço e mau rendimento escolar, corri-
6-7 anos e 27% dos adolescentes (13/14 anos) refe- mento nasal posterior, tosse crónica e perda de
riam queixas compatíveis com o diagnóstico de olfacto. O perfil temporal, a relevância dos sin-
rinite alérgica nos últimos doze meses. Trata-se, tomas e a resposta à terapêutica deverão ser avalia-
no entanto, de uma doença frequentemente não dos. É também importante investigar eventuais
diagnosticada e não tratada, com importantes factores desencadeantes e avaliar o contexto ambi-
repercussões na qualidade de vida e no desem- ental da criança, incluindo exposição alergénica e
penho escolar. tabagismo passivo. A existência de outras manifes-
tações da doença alérgica, nomeadamente asma,
Classificação conjuntivite, eczema e antecedentes familiares de
alergia apoiam o diagnóstico de rinite alérgica.
A classificação da rinite mais aceite actualmente O exame objectivo pode auxiliar no diagnósti-
baseia-se nas características temporais da doença co de rinite alérgica. Pode observar-se fácies ca-
e nas repercussões na qualidade de vida do racterística, com obstrução nasal e respiração oral
doente. Assim, a rinite é classificada em intermi- com a boca entreaberta, existência de prega atópi-
tente ou persistente, quanto à duração da ca nasal e olheiras. Em situações de maior cronici-
doença; e em ligeira ou moderada a grave, quan- dade poderá mesmo haver anomalias do desen-
to à intensidade dos sintomas e repercussão volvimento facial com má oclusão dentária.
sobre a qualidade de vida e actividades diárias O diagnóstico diferencial faz-se com outros
(Quadro 1). tipos de rinite (não alérgica) provocados por irri-
384 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
tantes ou toxinas (não dependentes de IgE), natural de uma doença das vias aéreas, considera-
infecções víricas, rinite vasomotora e síndroma de da como uma unidade.
rinite não alérgica com eosinofilia (ver adiante). Outras doenças alérgicas estão frequentemente
A observação das fossas nasais com uma fonte presentes, devendo ser investigadas e tratadas,
de luz incidindo sobre o vestíbulo nasal permite nomeadamente conjuntivite alérgica e eczema.
observar rinorreia, habitualmente aquosa, hiper- A inflamação crónica subjacente à rinite alérgi-
trofia e palidez da mucosa dos cornetos inferiores ca estende-se à mucosa de revestimento dos seios
e desvios do septo nasal. perinasais predispondo à ocorrência de quadros
Os testes cutâneos por picada, úteis a partir de rinossinusite. O bloqueio funcional dos ostiae
dos primeiros anos de vida, são largamente uti- dos seios perinasais inicia as alterações fisiopa-
lizados para confirmar o diagnóstico de rinite tológicas que levam ao aparecimento de rinossi-
alérgica-IgE mediada, permitindo identificar os nusite. Alguns factores mecânicos podem também
alergénios implicados. Em caso de discordância contribuir para quadros prolongados ou recor-
entre a história clínica e os testes cutâneos, deverá rentes de rinossinusite, dos quais o mais fre-
efectuar-se doseamento de IgE específica. quente, na criança dos dois aos sete anos, é a
A radiografia dos seios perinasais não está hipertrofia das “vegetações” em associação com
indicada no diagnóstico de rinite alérgica. A radio- desvio do septo nasal e hipertrofia dos cornetos.
grafia do cavum, de perfil, é muito utilizada para Importa, no entanto, referir que a maioria dos
demonstrar a existência de hipertrofia das quadros agudos de rinossinusite na criança é cau-
adenóides. sada por infecções víricas, com possibilidade de
As adenóides, um factor mecânico que agrava sobreinfecção bacteriana.
a obstrução nasal provocada pela rinite alérgica,
também contribuem para o aparecimento de Tratamento
quadros prolongados ou recorrentes de rinossi-
nusite infecciosa. A tomografia axial computa- A rinite alérgica é uma doença que, quando não
dorizada (TAC) é um exame radiológico impor- tratada, pode provocar alterações do ritmo do
tante para avaliar complicações ou patologias sono, sonolência diurna e dificuldades de concen-
associadas, em determinados casos. tração e de aprendizagem, impondo várias
restrições nos aspectos físico, psíquico e social da
Doenças associadas vida dos doentes. O tratamento da rinite alérgica
permite um melhor controlo da asma brônquica e
A rinite alérgica ocorre muito frequentemente diminui a frequência de episódios de rinossinusite
associada à asma brônquica, embora a natureza e otite média.
desta ligação não esteja totalmente esclarecida. O primeiro passo no tratamento da rinite alér-
Discute-se actualmente as relações entre a patolo- gica consiste na evicção alergénica, devendo ser
gia alérgica das vias aéreas superiores e inferiores, recomendada desde os primeiros sintomas da
partilhando aspectos relacionados com a infla- doença. As medidas de evicção deverão incidir
mação numa mucosa respiratória contígua. A sobre os ácaros do pó, animais domésticos, baratas,
rinite foi já identificada como factor de risco de fungos e poluentes. É fundamental a evicção de
asma em adultos. tabagismo passivo, importante factor de risco do
Num estudo prospectivo nacional, com a duração aparecimento e gravidade da doença alérgica.
de oito anos, onde foram incluídas crianças com Habitualmente o controlo ambiental não é sufi-
hiperreactividade brônquica em idade pré-escolar, ciente e existe necessidade de instituir terapêutica
a rinite foi identificada como o principal factor de médica. O tipo de fármacos a utilizar depende da
risco independente para a persistência dos sin- gravidade da doença e também dos sintomas mais
tomas, mesmo nas crianças que não eram atópicas importantes em cada doente.
na data da inclusão. Existirá, então, uma forte Os anti-histamínicos são considerados, por
relação entre rinite e asma, ficando por esclarecer alguns autores, os fármacos de primeira linha no
se a asma corresponde a uma fase na progressão tratamento da rinite alérgica. Actuam como
CAPÍTULO 65 Rinite alérgica 385
66
Calado V, Monteiro L. Rinite alérgica e rinossinusite na criança.
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sonal rhinoconjunctivitis (the PAT-study). J Allergy Clin de imediato ser avaliadas, não só as características
Immunol 2002;109:251-6 das lesões e sua distribuição, mas também a pre-
Plácido M, Gaspar A, Morais de Almeida M, et al. Rhinitis as a sença de prurido. Considerando a etiologia alérgi-
risk factor for persistence of symptoms in childhood recur- ca é necessário avaliar a sua gravidade, tendo em
rent wheezing: an 8-year prospective study. Clinical conta, não só cada episódio, mas também a prob-
Immunology and Allergy in Medicine 2003;64:437-441 abilidade da sua recorrência e o risco de eventuais
Plaut M, Valentine MD. Allergic Rhinitis. NEJM 2005; 353: reacções graves. Entre as situações consideradas
1934-1944 do foro alérgico com expresão cutânea há que dis-
Van Cauwenberge P, et al. Consensus statement on the treat- tinguir as que comportam ou não um risco subse-
ment of allergic rhinitis. Allergy 2000;55:116-134 quente de desenvolvimento de outras doenças
alérgicas, nomeadamente respiratórias. No
âmbito das situações de alergia de expressão
cutânea, são descritas as entidades clínicas derma-
tite atópica, urticária e prurigo-estrófulo. Relati-
vamente à primeira, neste capítulo foca-se essen-
cialmente a fisiopatologia e o diagnóstico diferen-
cial, abordando-se os restantes aspectos na parte
referente à Dermatologia Pediátrica (Capítulo 95).
No que respeita à anafilaxia, que tem a mesma
base fisiopatológica que a urticária e angioedema,
recorda-se que foi abordada sucintamente no capí-
tulo 63, sendo dada ênfase ao respectivo trata-
mento neste capítulo 66.
Definição e fisiopatologia
A dermatite atópica (DA) é uma doença infla-
matória crónica da pele, muito pruriginosa, que
CAPÍTULO 66 Alergia de expressão cutânea 387
com frequência ocorre em associação com proble- uma secura intensa, ou xerose, com descamação; na
mas respiratórios, para a patogenia dos quais con- fase crónica, para além do prurido associado a
tribuem mecanismos imunológicos de hipersensi- lesões em diferentes estádios, aparece outro tipo de
bilidade imediata e retardada; esta heterogeneidade lesões resultantes da inflamação persistente e do
de respostas tem levado à substituição do termo prurido, como as escoriações e a liquenificação. Os
dermatite atópica por um mais abrangente: síndro- diferentes tipos de lesões de eczema podem coexis-
ma eczema / dermatite atópica (SEDA), podendo tir nas distintas fases evolutivas.
ainda dividir-se em não alérgica e alérgica; esta últi- A evolução característica ocorre com ciclos de
ma, por sua vez, pode estar ou não associada à pre- exacerbação, por vezes associados a outras formas
sença de IgE específica (atópica ou não atópica). de doença alérgica (asma e/ou rinite alérgica que
Na SEDA existe uma resposta inflamatória, podem ocorrer em cerca de 50% destas crianças).
traduzida por um infiltrado linfo-histiocitário cir- A alteração da barreira cutânea por agentes quími-
cundando os vasos da derme superficial, mesmo cos como solventes, desinfectantes ou soluções
ao nível da pele sem lesões. alcalinas permitem a persistência de lesões e a
Na fase aguda o infiltrado linfocitário acentua-se penetração de macromoléculas.
e associa-se a fenómenos de espongiose ao nível da
epiderme, a qual, se muito intensa, condicionará a 2. Urticária e angioedema
ruptura das ligações entre queratinocitos com a con-
sequente formação de vesículas. Os linfócitos associ- Definição e fisiopatologia
ados aos processos crónicos de inflamação cutânea Urticária define-se como reacção cutânea carac-
são portadores de um antigénio à sua superfície terística constituída por pápulas fugazes (< 24
(antigénio do linfócito cutâneo), o qual, funcionando horas) edematosas, com um aspecto típico:
como receptor, se ligará ao contra receptor (E-selecti- redondas ou ovais, de dimensões variáveis, com
na) existente no endotélio vascular. superfície plana, da cor da pele ou rosa-pálido; o
Na fase crónica, ao nível da epiderme o infil- contorno é bem delimitado, por vezes com pro-
trado de células T e a espongiose são substituídos longamentos – os “pseudópodos” e, isoladas ou
por hiperplasia e hiperqueratose, com concomi- em grupos, tendem a confluir. Nas formas mais
tante aumento do número de células de exuberantes existe contorno policíclico em “mapa
Langherans com IgE à superfície. Também na geográfico”, eritematoso com centro pálido (em
derme o infiltrado linfocitário tem uma expressão anel) (Figuras 1 e 2). O prurido está presente, sendo
mais reduzida, relativamente aos macrófagos, raros a dor e desconforto. Resultam de fenómeno
mastócitos e eosinófilos. de alteração vascular com vasodilatação e aumen-
Para cada uma das fases descritas é possível to da permeabilidade de capilares e vénulas da
encontrar um padrão característico de citocinas derme superficial.
envolvidas, existindo uma mudança no perfil, ini- Por vezes os episódios de urticária repetem-se
cialmente do fenótipo Th2 (fase aguda), para o durante dias ou semanas; convencionou-se a clas-
fenótipo Th1 (fase crónica), justificando o mecani- sificação de “aguda” para os casos com recorrên-
smo retardado existente na maioria dos doentes cias < 6 semanas, e de “crónica” para aqueles
com DA. casos em que tal duração é superior.
Para além dos factores genéticos, das altera- A urticária é uma patologia comum, estiman-
ções constitucionais da pele e dos distúrbios do-se que possa afectar cerca de 15% da popu-
imunes, muitos factores exógenos, específicos e lação em qualquer idade.
inespecíficos, contribuem para a exacerbação da O angioedema (edema angioneurótico ou
doença. A tradução clínica é relativamente monó- edema de Quincke), correspondendo a um fenó-
tona, sendo o prurido o sintoma sem o qual não se meno (de aparecimento súbito) equivalente à
pode estabelecer o diagnóstico de eczema. urticária, e ocorrendo de modo circunscrito na
Na fase aguda estão presentes o eritema intenso hipoderme/tecido subcutâneo/submucoso, tem maior
e, por vezes, observam-se vesículas; na fase subse- duração (1-5 dias). A área afectada em geral é cir-
quente, ou subaguda, apresenta-se essencialmente cunscrita, está tumefacta, edematosa, mais pálida
388 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
mente envolvidos nos grupos etários pediátricos). A exposição solar, a água, o exercício, a pressão e a
reacção surge habitualmente durante os primeiros vibração. Com raras excepções, as lesões de
dez dias da administração do medicamento. urticária e/ou angioedema desenvolvem-se nas
A enzima de conversão da angiotensina meta- áreas da pele expostas, poucos minutos após a
boliza a bradicinina. Daí que a administração de aplicação do estímulo físico, ainda que possam
fármacos IECA, elevando os níveis de bradicinina, ocorrer de forma generalizada a toda a área cor-
possa estar associada a angioedema (ver atrás). poral ou com manifestações sistémicas associadas;
As reacções adversas a fármacos, imunologica- verifica-se em regra remissão espontânea, em
mente mediadas, têm uma incidência baixa poucas horas, embora existam formas mais
(menos de 10%). Apesar disso, a incidência de duradouras. As formas retardadas (adquiridas ou
exantema após utilização de fármaco na criança, familiares) frequentemente constituem problemas
nomeadamente antibióticos, é uma situação de diagnóstico, uma vez que não existe uma
comum; contudo, nestes casos o antibiótico admi- associação causal imediata.
nistrado é muitas vezes incorrectamente responsa- As urticárias desencadeadas pelo calor, essen-
bilizado, visto que na maioria das situações os sin- cialmente a urticária colinérgica*, representam 2 a
tomas são causados pela infecção concomitante. 7% das urticárias físicas e, a urticária ao frio, 3 a 5%,
Se o fármaco for essencial à terapêutica do sendo esta a forma que mais frequentemente se
doente, o diagnóstico definitivo poderá exigir a encontra na prática clínica. As formas mais raras,
realização de um teste de provocação por espe- com uma incidência inferior a 1%, correspondem às
cialista experiente, em ambiente hospitalar e com urticárias de pressão, solar, vibratória e aquagénica.
disponibilidade de meios de reanimação. A Nota: A urticária acompanha-se em geral de alter-
indução de tolerância é reservada para os casos ação da reactividade cutânea-vascular frente a estí-
em que a administração do fármaco é impres- mulos traumáticos superficiais denominada dermo-
cindível e não existe alternativa (ex. penicilina). grafismo (ocorrendo em 2 a 5% da população geral).
Pesquisa-se executando um traço na superfície da
4. Agentes biológicos: veneno de himenópteros pele com estilete de ponta romba, resultando linha
(vespa e abelha) e outros insectos eritematosa persistindo cerca de 10-15 minutos.
A picada ou mordedura com inoculação de
vários agentes biológicos pode induzir uma Diagnóstico
reacção de urticária aguda que, embora na maio- Como foi referido antes, o diagnóstico de urticária
ria das vezes seja local, pode ser acompanhada de ou angioedema é clínico, baseando-se fundamental-
manifestações sistémicas (de urticária generaliza- mente nas características das lesões, evolução e na
da a anafilaxia) em cerca de 5% dos casos. observação; a realização de biópsias cutâneas está
reservada a algumas formas crónicas da doença.
Urticária crónica Nos casos de angioedema, suspeitando-se de défice
Por definição, a urticária crónica caracteriza-se de C1INH, pode proceder-se ao respectivo rastreio
pela ocorrência de lesões diárias ou quase diárias, através da determinação da fracção C4 do comple-
com ou sem angioedema acompanhante, durante mento, a qual está diminuída em todas as formas.
um período superior a 6 semanas. Na criança a Uma vez confirmado o diagnóstico de urticá-
urticária crónica ocorre raramente. ria ou angioedema, é fundamental uma correcta
Em 30-50% dos casos de urticária crónica caracterização das lesões quanto à localização e
demonstrou-se a presença de autoanticorpos distribuição, dimensões, frequência, intensidade e
estimulando mastócitos, o que sugere mecanismo factores condicionantes. Uma análise meticulosa
autoimune, para alguns casos considerados antes deverá avaliar não apenas as características das
relacionados com urticária crónica idiopática. lesões, mas também os antecedentes pessoais da
As urticárias físicas, subgrupo das urticárias
crónicas (10 a 20%), são desencadeadas em *A designação deriva do mecanismo patogénico provável de hipersen-
sibilidade à acetilcolina endógena produzida no organismo durante o
indivíduos susceptíveis pela exposição a alguns exercício físico, quer nas placas motoras dos músculos estriados, quer
estímulos ambientais como sejam o calor, o frio, a nas glãndulas sudoríparas écrinas.
CAPÍTULO 66 Alergia de expressão cutânea 391
criança, o seu ambiente doméstico e os hábitos, assegurar uma adequada hidratação cutânea, a
nomeadamente alimentares e medicamentosos. conduta terapêutica perante um quadro de
As formas agudas, mais frequentes na infân- urticária aguda passa, em primeiro lugar, pela
cia, são habitualmente autolimitadas, raramente eventual identificação e evicção do agente causal.
necessitando de uma avaliação diagnóstica apro- Os anti-histamínicos por via oral são os fár-
fundada e respondendo adequadamente à tera- macos de eleição no tratamento farmacológico
pêutica sintomática. desta situação (a via tópica está proscrita pelo
As formas crónicas, embora menos frequentes, risco de sensibilização fotoalérgica e efeitos extra-
exigem habitualmente, pelo carácter recorrente piramidais), estando vários anti-histamínicos
das lesões, uma investigação adicional (detecção disponíveis, desde a hidroxizina à cetirizina,
de sensibilização alergénica; patologia infecciosa e loratadina, mizolastina, fexofenadina ou ebastina,
autoimune ou neoplásica). Esta abordagem orien- aos mais recentes: levocetirizina e desloratadina.
tará também a escolha de um esquema farma- O tratamento deve durar, em média, 5 a 10
cológico mais adequado à etiologia da urticária ou dias; no plano terapêutico, a monoterapia com
angioedema em questão. anti-histamínicos constitui o esquema farmaco-
A análise dos dados colhidos na história clíni- lógico, particularmente nas formas agudas, em
ca orientarão a investigação diagnóstica ulterior função da gravidade e da resposta clínica. A
que se pretende esclarecedora mas, também, eco- associação de duas moléculas distintas representa
nomicamente viável. Assim, proceder-se-á a uma o escalão de actuação seguinte.
selecção criteriosa dos exames subsidiários mais Justifica-se a utilização de corticosteróide sistémi-
indicados a cada situação particular. co nos casos mais graves, com lesões exuberantes e
Exames para avaliação do estado geral da generalizadas, quando associados a angioedema ou
criança poderão ser úteis numa primeira abor- em reacções anafilácticas, (nestas últimas após o
dagem: hemograma, determinação de parâmetros tratamento inicial com adrenalina). Devem ser usa-
bioquímicos, determinação de imunoglobulinas dos ciclos muito curtos (3 a 5 dias) de prednisolona
séricas e fracções do complemento, proteína C ou equivalente na dose de 0,5 a 1mg/Kg/dia.
reactiva, velocidade de sedimentação, exame A evicção de alimentos ricos em histamina
parasitológico de fezes, etc.. (marisco, bacalhau, morango, cacau, tomate, enlata-
As síndromas de causa física são habi- dos, charcutaria, queijos fermentados, entre outros)
tualmente identificadas pela história clínica que também têm o seu papel durante a fase aguda; de
permite reconhecer o estímulo desencadeante. A realçar o papel modesto dos alimentos na etiopatogé-
realização de testes específicos conduzirá ao dia- nese da urticária na criança (aguda ou crónica) ao
gnóstico definitivo. contrário do que é geralmente assinalado.
O estudo alergológico, quando indicado, inicia- Nas urticárias crónicas estão indicados anti-
-se habitualmente pela realização de testes cutâ- histamínicos tipo bloqueantes H2 nos casos sem
neos de alergia por picada aos aeroalergénios e/ou resposta aos de tipo anti-H1 (por exemplo cimeti-
alergénios alimentares a que o doente está exposto dina). De referir efeito sinérgico pela associação
de acordo com metodologia padronizada. dos Anti-H1 + Anti-H2.
De salientar que a urticária crónica pode surgir
como primeira manifestação de uma doença b-Angioedema hereditário
sistémica (ex: lupus eritematoso sistémico, tiroidite Esta forma de angioedema não responde aos anti-his-
autoimmune, doença do soro); outros estudos tamínicos nem aos corticóides. Tratando-se da
imunológicos poderão então estar indicados como modalidade desencadeada pelos IECA, a medida
a pesquisa de anticorpos antinucleares, imuno- prioritária é a interrupção do respectivo fármaco,
complexos circulantes ou anticorpos antitiroideus. verificando-se melhoria em 48-72 horas. A verifi-
cação de edema laríngeo/da glote (ou crise
Tratamento abdominal grave) implica administração de
a-Urticária adrenalina, e entubação traqueal no caso de
Para além de cuidados gerais, incluindo os de ineficácia da adrenalina.
392 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Este último tem tradução preferencial nas crianças Bogniewicz M. Chronic urticaria in children. Allergy Asthma
manifestando-se, por ordem decrescente de fre- Proc 2005; 26: 13-17
quência, por pápulas muito pruriginosas, vesícu- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
las, lesões pustulares e exantema semelhante ao Greaves MW, Kaplan AP (eds). Urticaria and angioedema.
eritema multiforme. New York: Marcel Rekker, 2004
O diagnóstico depende do reconhecimento das Guerra-Rodrigo F, Marques Gomes M, Mayer-da-Silva A,
lesões e, em alguns casos, da identificação do Filipe P I. Dermatologia. Lisboa: Fundação Calouste
agente causal (especialmente insectos). Não está Gulbenkian, 2010
habitualmente indicada a realização de exames Johansson SGO et al. A revised nomenclature for allergy. An
auxiliares de diagnóstico. EAACI position statment from the EAACI nomenclature
task force. Allergy 2001; 56:813-824
Prevenção e tratamento Kliegman RM, Stanton BF et (eds). Nelson Textbook of
As medidas de prevenção assentam no uso de Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
roupas que cubram áreas do corpo expostas e na Neto M, et al. Prurigo estrófulo e o risco do seu impacto.
utilização de repelentes de insecto aplicados na pele Cadernos de Imuno-Alergologia Pediátrica 2003;1/2:43-45
da criança, em pulseiras ou no próprio vestuário; Pereira C et al. Urticária na criança. In A Criança Asmática no
pode ser recomendado o uso de mosquiteiros e Mundo da Alergia. Rosado Pinto J, Morais de almeida M
insecticidas, e também a desinfestação do ambiente. (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 433-441
A terapêutica tópica, para além da aplicação de Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
emolientes, inclui a prescrição de corticóides que AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
têm um efeito anti-inflamatório; não deverão ser Medical , 2011
prescritos anti-histamínicos tópicos, que podem Santa Marta C, et al. Prurigo estrófulo. In A Criança Asmática
desencadear sintomas extrapiramidais ou der- no Mundo da Alergia. Rosado Pinto J, Morais de Almeida
matite de contacto fotoalérgica. Os anti-histamíni- M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 449-451
cos diminuem o eritema, o tamanho da pápula e, Santa Marta C. et al. Síndrome de eczema / dermatite atópica.
a intensidade do prurido; também exercem In Criança Asmática no Mundo da Alergia. Rosado Pinto J,
influência na menor expressão da reacção tardia, Morais de Almeida M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 421-
pelo que devem ser utilizados como profilácticos 431
(anti-histamínicos não sedativos) durante perío- Simon D, Lang KK. Atopic dermatitis:from new pathogenic
dos prolongados (semanas a meses) nos casos de insights toward a barrier-restoring and anti-inflamatory
agudizações sucessivas. therapy. Curr Opin Pediatr 2011; 23: 647-652
Na fase aguda o intenso prurido pode tornar von Kobyletzki LB, Bornehag C-G, Hasselgren M, et al.
preferíveis os anti-histamínicos de primeira gera- Eczema in early childhood is srongly associated with the
ção, como a hidroxizina, pelo seu efeito sedativo development of asthma and rhinitis in a prospective cohort.
adicional. Os corticóides sistémicos podem ser con- BMC Dermatology 2012; 12:11. http://www.biomedcen-
siderados apenas quando são atingidas grandes tral.com/1471-5945/12/11
áreas corporais, se verifica a reactivação de zonas
anteriormente picadas, e nos casos raros de anafi-
laxia; nestas últimas situações o uso de adrenalina
coloca-se na primeira linha de actuação (ver atrás).
BIBLIOGRAFIA
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care for atopic dermatitis. J Am Acad Dermatol 2004; 50:
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Brown S, Reynolds NJ. Atopic and non atopic eczema. BMJ
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394 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
67
comitantes são outros dos factores de risco.
Em relação ao doente destacam-se a idade, a
condição de sexo feminino e a presença de atopia.
Na criança a alergia a fármacos parece ser
menos frequente e menos grave que nos adultos, o
que se pode dever à imaturidade do sistema imu-
ALERGIA MEDICAMENTOSA nitário. O terreno atópico aumenta, no entanto, o
risco de reacções alérgicas graves mediadas por
Paula Leiria Pinto IgE, sem aumento de probabilidade de se desen-
volver um mecanismo IgE em resposta a molécu-
las de baixo peso molecular.
O termo “hipersensibilidade” destina-se a desi- As manifestações clínicas podem ser muito varia-
gnar todo o tipo de reacções a fármacos indepen- das assim como as formas de apresentação;
dentemente do mecanismo subjacente. Por outro envolvem um ou vários órgãos e sistemas. As
lado, recorda-se: “alergia” refere-se às situações manifestações cutâneas isoladas (toxidermias) são
que envolvem a activação do sistema imunológi- as mais frequentes. No entanto, quadros de anafi-
co, por mecanismo mediado ou não por IgE. laxia potencialmente fatais, assim como manifes-
As reacções de hipersensibilidade correspon- tações do tipo de doença do soro, reacções
dem aproximadamente a 15% das reacções adver- autoimunes induzidas pelo fármaco e febre isola-
sas a fármacos. Dificuldades relacionadas com o da fazem parte do espectro clínico.
diagnóstico e a deficiente notificação das reacções
a entidades responsáveis pela farmacovigilância Diagnóstico
não permitem ter informação rigorosa sobre a ver-
dadeira dimensão do problema. O diagnóstico deve ser suspeitado após o apareci-
Numa revisão de 17 estudos prospectivos reali- mento de um sinal ou sintoma não previsível,
zados em crianças) da autoria de Impicciatore veri- relacionado, no tempo, com a administração de
ficou-se que em 2,1% das crianças hospitalizadas o um fármaco. A relação de causalidade deve ser
diagnóstico principal foi reacções adversas a fár- investigada criteriosamente, existindo vários algo-
macos, sendo 39,3% graves com risco de vida. ritmos que poderão servir de orientação, como o
Neste estudo a incidência de reacções adversas foi de Jones. As questões requerendo resposta são:
9,5% nas crianças hospitalizadas, e 1,5% no ambu- – os sinais e os sintomas são compatíveis com
latório. Estes resultados mostram que as reacções uma reacção de hipersensibilidade a fármacos?
adversas a fármacos na criança constituem um – há uma relação temporal entre a adminis-
problema de saúde pública importante. tração do fármaco e o início da reacção?
– a classe e a estrutura química do medicamen-
Factores de risco to estão associadas a reacções imunológicas?
– o doente recebeu previamente o fármaco sus-
A imunogenicidade (ou capacidade de provocar peito, numa ou em várias ocasiões?
resposta imune) é um dos factores de risco mais – não há outra razão plausível para a reacção
importantes de desenvolvimento duma reacção de descrita ou observada?
hipersensibilidade a fármacos a qual está directa- – os resultados dos testes cutâneos e /ou labora-
mente relacionada com o peso molecular e as pro- toriais disponíveis são compatíveis com o
priedades químicas do respectivo fármaco. A uti- diagnóstico de reacção explicada por mecanis-
lização de doses elevadas, a via de administração mos imunológicos?
parentérica, a maior duração do tratamento, a Apesar do número limitado de testes objec-
exposição repetida ao fármaco e as doenças con- tivos in vivo e in vitro para confirmação do dia-
CAPÍTULO 67 Alergia medicamentosa 395
gnóstico, têm sido utilizados numerosos testes “in talar, consistindo na administração controlada de
vitro”, com fins de investigação. Salientam-se, doses progressivas de fármaco, com o intuito de
assim, os testes de libertação de mediadores (ex. confirmar ou excluir o diagnóstico e, em casos
triptase, metil-histamina urinária, histamina no particulares, para obtenção de alternativas tera-
plasma); testes de reactividade celular – dos lin- pêuticas consideradas necessárias.
fócitos (transformação linfocitária – TTL – ou pro-
dução de linfocinas), dos leucócitos (libertação de Tratamento
leucotrienos e marcadores de activação celular) e
ainda os testes de hemaglutinação ou hemólise na Quando há suspeita de alergia medicamentosa é
presença do fármaco e de soro do paciente. importante proceder à suspensão da adminis-
Apenas o último tem interesse clínico para a tração do fármaco em causa. Nas crianças com
avaliação das citopénias mediadas imunologica- medicações múltiplas devem ser interrompidas
mente. todas as dispensáveis e substituir as necessárias
Perante a suspeita de reacções mediadas por por fármacos sem reactividade cruzada.
IgE, pode proceder-se ao doseamento da IgE A confirmação do diagnóstico de hipersensi-
específica cujo resultado apresenta em geral bilidade implica a evicção do fármaco e dos que
menor sensibilidade quando comparado com o apresentam reactividade cruzada.
dos testes cutâneos intradérmicos; aliás os testes Raras são as situações em que há que prosseguir
estão disponíveis apenas para um número limita- a utilização do medicamento ao qual o paciente é
do de fármacos (ex. penicilina G e V, amoxicilina e alérgico, sob medicação. Nas reacções mais ligeiras
sulfonamidas). como os exantemas ligeiros, a utilização de anti-
Recentemente, os testes de estimulação por -histamínicos é em geral suficiente. Apresentações
antigénio específico dos basófilos e a utilização da mais graves ou agravamento clínico podem reque-
citometria de fluxo para detecção de marcadores rer corticoterapia para controlo, sendo a dose usual
de activação celular (ex: CD63) – Flow-CAST, de prednisolona de 2mg/Kg de peso (máximo de
assim como os TTL, simulando uma prova de 60mg/dose), uma a duas vezes por dia.
provocação in vitro, são métodos promissores no O tratamento da anafilaxia não difere do que é
diagnóstico da alergia medicamentosa. utilizado em situações com outras etiologias,
Em relação aos testes “in vivo”, os testes cutâ- sendo o fármaco de eleição a adrenalina (1/1000)
neos intradérmicos para detecção de IgE específi- por via intramuscular, na dose 0,01ml/Kg de peso
ca têm sido os únicos com valor preditivo elevado, (máximo de 0,5ml); pode repetir-se duas vezes em
sobretudo na avaliação da suspeita de alergia aos intervalos de 15 minutos, dependendo da evo-
antibióticos β-lactâmicos, relaxantes musculares e lução. Outras medidas de suporte poderão ser
anestésicos locais. A sua principal limitação necessárias (Capítulo 66).
prende-se com o facto de os determinantes anti-
génicos responsáveis pela alergia à maioria dos Indução de tolerância
fármacos serem desconhecidas; assim, aqueles
devem ser realizados por especialistas de imuno- Perante situações particulares de necessidade
alergologia e em meio hospitalar. imperiosa de utilizar um fármaco essencial num
Podem ainda utilizar-se testes epicutâneos – indivíduo com manifestações de hipersensibili-
patch tests, cujos resultados encontrados por vários dade, e em que alternativas não existem ou as
autores não têm sido superiores aos demonstra- mesmas conduzem a resultados pouco eficazes, é
dos pelos testes intradérmicos (leitura tardia), possível recorrer à indução de tolerância através
reservando-se a sua utilização para o estudo das da utilização de protocolos que envolvem a
reacções à aplicação tópica de fármacos e conser- administração de doses progressivas do medica-
vantes. mento. Na maioria das vezes este tipo de procedi-
Na maioria das situações o diagnóstico de uma mentos é feito em internamento hospitalar, numa
reacção de hipersensibilidade pressupõe a realiza- unidade de cuidados intensivos. Alguns dos pro-
ção de uma prova de provocação em meio hospi- tocolos usados podem ser encontrados na literatu-
396 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ra, nomeadamente para antibióticos β-lactâmicos, cas aos testes cutâneos são raras (<1%) embora
trimetoprim-sulfametoxazol, insulina, ácido ace- existam notificações de óbitos.
tilsalicílico, entre outros. A tolerância desaparece Em situações não mediadas por IgE os testes
após suspensão do fármaco. cutâneos não têm qualquer valor preditivo (ex:
febre medicamentosa, dermatite esfoliativa, doen-
Prevenção ça do soro, exantemas).
As determinações da IgE específica para
São de destacar algumas recomendações para a detecção de alergia à penicilina têm uma sensibili-
prevenção da alergia medicamentosa: dade muito baixa.
– prescrever apenas os fármacos essenciais; O diagnóstico de alergia à penicilina é excluído
– evitar fármacos com reacções prévias sus- através da realização de uma prova de provocação.
peitas, assim como aqueles com os quais se Ocasionalmente, indivíduos alérgicos à penicilina
verifique reactividade cruzada; necessitam de efectuar terapêuticas com a penicili-
– utilizar medicação preventiva antes e na (ex: endocardite por enterococos, neuro-sífilis)
durante a administração de fármaco; sendo necessário proceder à indução de tolerância.
– informar o paciente/família sobre a reacção
medicamentosa, procedendo ao registo mé- 2. Sulfonamidas
dico do incidente; A incidência de reacções ao sulfametoxazol-trime-
– reportar as reacções adversas graves ou ines- toprim (SMX-TMP) na população geral é cerca de
peradas, ao Infarmed, especialmente de fár- 3 a 5%, sendo de referir que em 1/10000 casos
macos recentes. podem ocorrer reacções de toxicidade idiossin-
crásica grave.
Situações particulares A patogénese é multifactorial. O aparecimento
de reacções mediadas por IgE são raras. Salienta-
São abordados seguidamente alguns dos aspectos se que os indivíduos infectados pelo Vírus da
mais importantes relativos aos principais grupos Imunodeficiência Humana (VIH) têm níveis celu-
de fármacos implicados nas reacções de hipersen- lares de glutatião-redutase diminuídos, o que con-
sibilidade em idade pediátrica, como antibióticos, tribui para aumentar a toxicidade e imunogenici-
anti-inflamatórios não esteróides (AINE) e vaci- dade dos metabolitos do SMX.
nas. Os antibióticos β-lactâmicos e as sulfonami- Os factores de risco parecem ser o grau de
das são os antimicrobianos que com maior fre- imunodeficiência (CD4+<200/mm3), duração e
quência originam reacções adversas. dose do tratamento, infecção vírica coexistente,
fenótipo acetilador lento, e atopia.
1. Antibióticos β-lactâmicos Os testes "in vitro" poderão vir a ser úteis
Em cerca de 7% das crianças expostas à penicilina como marcadores clínicos de hipersensibilidade
e outros antibióticos β-lactâmicos, refere-se o ao SMX (ex: haptenização do SMX).
aparecimento de exantema. No entanto, apenas 10 Devem realizar-se testes cutâneos com picada
a 20% dos indivíduos com “história de alergia” e intradérmicos com SMX-TMP para detecção das
são verdadeiramente alérgicos, o que significa que reacções mediadas por IgE embora o valor dos
na maioria dos casos as pessoas podem tolerar a mesmos não esteja confirmado.
exposição à penicilina sem que ocorram reacções Os protocolos de indução de tolerância são, em
adversas. geral, seguros e eficazes.
Perante uma história sugestiva de reacção alér-
gica aos β-lactâmicos devem realizar-se testes 3. Anti-inflamatórios não esteróides (AINEs)
cutâneos por picada e intradérmicos. A revisão das casuísticas mostra que os AINE’s
Estima-se que 7 a 20% dos indivíduos com sus- constituem a segunda causa de reacções adversas
peita de história de alergia à penicilina tenham a fármacos na idade pediátrica, sendo respon-
testes cutâneos positivos. O valor preditivo nega- sáveis por cerca de 10% destas.
tivo destes testes é excelente. As reacções sistémi- Estudos realizados em grupos seleccionados de
CAPÍTULO 67 Alergia medicamentosa 397
crianças asmáticas e/ou atópicas mostram um sinusopatia crónica), apenas se administrem estes
aumento da prevalência da hipersensibilidade em fármacos quando estritamente necessário e sob
função da idade. Uma revisão dos estudos sobre a vigilância clínica. Várias séries demonstram, no
asma induzida pelo ácido acetilsalicílico (AAS) e entanto, que não há risco de deterioração da asma
anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) em em crianças submetidas terapêutica analgésica ou
crianças asmáticas revela uma prevalência de 5%, anti-inflamatória por curtos períodos.
valor superior ao obtido através da história clínica.
Considera-se hoje que a hipersensibilidade 4. Vacinas
provocada pelos AINEs se deve a alterações do Como a maioria das vacinas do Programa Nacio-
metabolismo do ácido araquidónico com inibição da nal de Vacinação (PNV) são administradas em
ciclo-oxigenase (COX) e consequente aumento da população pediátrica, as reacções alérgicas às vaci-
libertação de leucotrienos com marcada actividade nas são mais frequentes neste grupo etário. As
pró-inflamatória. Questiona-se a possibilidade de reacções sugestivas de alergia são muito raras mas
formação de IgE específicas nos quadros de “anafi- ocorrem, sobretudo, na sequência da vacina anti-
laxia” associados a determinado AINE específico. difteria, tétano e pertussis, sob a forma tríplice
Na suspeita de reacção a um AINE e ausência (DTP) e associação da vacina anti-sarampo, paro-
de contraindicação preconiza-se a realização de tidite e rubéola (VASPR). Os dois principais com-
prova de provocação para confirmação do diagnós- ponentes identificados na patogénese das reacções
tico. Podem efectuar-se provas de provocação oral alérgicas foram a gelatina e as proteínas do ovo.
(PPO) com AAS ou outro AINE e provas de provo- Algumas reacções imediatas que surgem rela-
cação por inalação brônquica (PPIB) ou nasal cionadas com a administração da VASPR e da
(PPN), com acetilsalicilato de lisina. Pelo risco que DTP são justificadas pela sensibilidade à gelatina.
comportam, deverão ser efectuadas em meio hos- Em relação às proteínas do ovo, o conteúdo é
pitalar, sob vigilância cardio-respiratória e com muito elevado em vacinas de crescimento em teci-
equipa de emergência disponível. Estão reservados do extraembriónico (febre amarela), é elevado em
a casos duvidosos em que é necessário confirmar o vacinas de crescimento em embrião (parotidite,
diagnóstico e investigar fármacos alternativos. raiva e influenza), e é baixo ou indetectável em
As PPO são o método mais utilizado. vacinas de crescimento em fibroblastos de
Na presença de hipersensibilidade a um AINE embrião de galinha (rubéola, sarampo).
é importante investigar um AINE alternativo, Foram descritas ainda algumas reacções raras
atendendo à possível reactividade clínica simul- relacionadas com antibióticos associados a vacinas
tânea a diferentes fármacos do mesmo grupo ou como estreptomicina e polimixina (poliomielite
de grupos diferentes. injectável inactivada), neomicina (poliomielite oral
É consensual o recurso a provas de provocação e injectável). Em muitas outras reacções imediatas
para avaliar a tolerância a um determinado AINE. não se conseguiu provar a etiologia alérgica.
Deve optar-se pelos fármacos de menor risco, ou As reacções de hipersensibilidade retardada
seja, utilizar AINEs inibidores fracos da COX1 (ex: podem ser causadas por timerosal (nos casos de
paracetamol) ou inibidores preferenciais da COX2 vacina de anti-DTP, hepatite B), formaldeído (nos
(ex: nimesulido). casos de vacina anti-hepatite B), hidróxido de
A interdição no mercado nacional do nimesuli- alumínio (nos casos de vacinas anti-DTP, hepatite B).
do em idade pediátrica levanta problemas na A incidência de reacções anafilácticas à vacina
selecção do AINE alternativo. anti-sarampo com risco de vida é menos de 71,6
A indução de tolerância deve ser considerada /1 000 000 doses de vacina. Na metodologia de
nos pacientes com artrite ou doença arterial trom- diagnóstico os testes cutâneos não têm indicação
boembólica recorrente, tratando-se de situações porque não são fidedignos. A determinação da IgE
excepcionais. específica para a gelatina é importante.
É recomendado que, a crianças com asma e Nos doentes alérgicos ao ovo deve adoptar-se
com factores de risco clínico de hipersensibilidade o seguinte procedimento:
aos AINEs (asma persistente grave ou rino- – Todas as vacinas devem ser administradas por
398 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
equipa capaz de tratar uma reacção de anafi- Demoly P, Bousquet J. Epidemiology of drug allergy. Curr
laxia associada à administração de vacina. Opinion Allergy Clin 2001; 1: 305-310
– A alergia ao ovo não é contraindicação para a Gruchalla RS, Pirmohamed M. Antibiotic allergy. NEJM 2006;
imunização VASPR (mesmo em doentes com 354: 601-608
anafilaxia induzida pelo ovo é preconizada Guerra-Rodrigo F, Marques Gomes M, Mayer-da-Silva A,
vacina sem realização prévia de testes cutâ- Filipe P I. Dermatologia. Lisboa: Fundação Calouste
neos). Gulbenkian, 2010
– As vacinas anti-sarampo ou VASPR estão Impicciatore P, Choonara I, Clarkson A, Pandolfini C, Bonati
contraindicadas em indivíduos com antece- M. Incidence of adverse drug reactions in paediatric/out-
dentes de reacção anafiláctica à vacina anti- patients: a systemic review and meta-analysis of
sarampo (Capítulo 274). prospectve studies. Br J Clin Pharmacol 2001; 52:77-83
Jenkins C, Costello J, Hodge L. Systematic review of preva-
As reacções anafilácticas são raras ao toxóide lence of aspirin induced asthma and its implications for
tetânico, ocorrendo uma em um milhão de admi- clinical practice. BMJ 2004; 328: 434
nistrações. Vários mecanismos imunológicos estão Nanazy JA, Simon RA. Sensitivity to nonsteroidal anti-inflam-
envolvidos: atory drugs. Ann Allergy Asthma Immunol 2002; 89: 542-
– Hipersensibilidade mediada por IgE (muito 550
rara). Pichler WJ, Tilch J. The lymphocyte transformation test in the
– Reacção de hipersensibilidade tipo III. Vários diagnosis of drug hypersensitivity. Allergy 2004; 59: 809-
estudos demonstram uma correlação entre o 820
nível de IgG contra o toxóide tetânico e o Pool V, Braun MM, Kelso, JM, Mootrey G, Chen RT, Yunginger
grau de reacção local. JW, Jacobson RM Gargiullo PM. The anti-gelatine IgE anti-
– Reacção de hipersensibilidade tipo IV por bodies in people with anaphylaxis after measles mumps
presença de timerosal ou hidróxido de rubella vaccine in the United States. Pediatrics 2002; 110:71
alumínio explicando algumas reacções locais Rottem M, Shoenfeld Y. Vaccination and allergy. Curr Opin
tardias. A história de reacção anterior ao Otolaryngol Head Neck Surg 2004; 12: 223-231
toxóide tetânico, hidróxido de alumínio e Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
timerosal constitui factor de risco. AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York : McGraw-Hill
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Na metodologia de diagnóstico os testes cutâ- Sanz ML et al. Flow cytometric basophil activation test by
neos são discutíveis porque originam muitos detection of CD63 expression in patients with immediate-
resultados falsos positivos e negativos. Mesmo os type reactions to betalactam antibiotics. Clin Exp Allergy
doentes com antecedentes de anafilaxia raramente 2002; 32: 277-286
evidenciam testes positivos.
Nos casos com história anterior de reacção ao
toxóide tetânico deverá ser ponderado:
1 – Avaliar o título de IgG para verificar a
necessidade de reimunização;
2 – Usar outras formas de toxóide com diferen-
te conservante;
3 – Usar formas isoladas de toxóide tetânico e
não associações DTP e DT;
4 – Iniciar protocolo de dessensibilização sob
orientação do imunoalergologista.
BIBLIOGRAFIA
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702
CAPÍTULO 68 Alergia e intolerância alimentares 399
68
mediada pela produção de anticorpos IgE
(alergia a proteínas alimentares IgE media-
da); → ou ter subjacentes mecanismos com
envolvimento de outras células e mediadores
do sistema imunitário (alergia a proteínas ali-
mentares não-IgE mediada ou mista).
ALERGIA E INTOLERÂNCIA 2. Hipersensibilidade alimentar não alérgica/não
imune (mais prevalente e também referida
ALIMENTARES como intolerância alimentar) – inclui manifes-
tações clínicas associadas a qualquer constitu-
Sara Prates inte (não proteico) de um alimento ou a um
aditivo alimentar, resultantes de fenómenos não
imunológicos, tais como reacções metabólicas,
defeitos estruturais, reacções farmacológicas ou
Definição e importância do problema reacções idiossincrásicas.
Ou seja, “alergia” (a proteínas alimentares) faz
Ao longo dos últimos anos, coincidindo com o parte das reacções de hipersensibilidade (termo
aumento de prevalência das doenças alérgicas mais lato que alergia) em que se demonstra
(segundo alguns relacionável com mais baixas taxas mecanismo imunológico subjacente, salientando-
de incidência de infecções na primeira infância- se que há reacções de hipersensibilidade não
hipótese “higiénica”), as reacções adversas rela- imune (Quadro 1).
cionadas com a ingestão de alimentos têm vindo a
ser consideradas um importante problema de saúde Aspectos epidemiológicos
pública. Tais reacções podem ser denominadas
duma forma abrangente hipersensibilidade ali- A epidemiologia da alergia alimentar não é co-
mentar e divididas em duas categorias principais: nhecida de forma precisa, quer pela falta de estu-
1. Alergia a proteínas alimentares – compreende dos bem desenhados, quer pelos diferentes
qualquer resposta imunológica anormal critérios de diagnóstico e metodologias utilizados
secundária à ingestão: → mais frequentemente nos poucos disponíveis, dificultando comparação.
No entanto, mesmo conjugando dados clínicos lactose pode ser confirmado por regressão dos sin-
e os resultados dos exames auxiliares, não é pos- tomas com dieta sem lactose, pelo teste de
sível confirmar com segurança a hipótese de dia- hidrogénio expirado após ingestão de lactose ou,
gnóstico inicial em mais do que 30% a 40% dos em situações especiais, por biópsia.
casos, mantendo-se as provas de provocação como
gold standard na abordagem diagnóstica e na avali- Tratamento
ação evolutiva dos quadros de alergia alimentar.
Estas devem ser efectuadas em meio hospitalar, O tratamento da alergia alimentar assenta funda-
por clínicos experientes na sua realização, na inter- mentalmente na evicção dos alimentos identifica-
pretação dos sintomas eventualmente resultantes, dos e responsabilizados pelo quadro clínico detec-
e na abordagem terapêutica de emergência das tado. A terapêutica farmacológica não é habitual-
reacções potencialmente desencadeadas. mente utilizada, à excepção do tratamento de
emergência da reacção aguda.
Diagnóstico diferencial Relativamente às medidas de evicção alimen-
tar, há que salientar que na maioria dos casos
No âmbito do tópico deste capítulo e tipificando o fatais o alimento foi ingerido inadvertidamente
diagnóstico diferencial de situações cursando com pelo doente. Os pais da criança com alergia ali-
manifestações gastrintestinais, cabe uma referên- mentar devem ser alertados para este facto e ensi-
cia especial à intolerância à lactose e à alergia às nados a atitude preventiva, nomeadamente pela
proteínas do leite de vaca. leitura atenta dos rótulos e pelo cuidado na
A lactose é um dissacárido que é desdobrado manipulação dos alimentos, de forma a evitar a
em glucose e galactose por acção da lactase no contaminação inadvertida dos alimentos que o
intestino delgado(células da bordadura em esco- doente irá consumir.
va). A intolerância à lactose é mais frequentemente No que diz respeito ao tratamento de
resultante da deficiência secundária da lactase por emergência, há que salientar a necessidade de
lesão da mucosa intestinal (trata-se de formas em elaborar planos de actuação que devem incluir
geral transitórias, regredindo uma vez resolvida informação que permita ao doente e/ou aos pais
ou compensada a situação gastrintestinal de base identificar os sintomas de alarme e definir
(por ex. gastrenterite vírica, doença celíaca) critérios para utilização da terapêutica. Reacções
(Capítulos 105 e 108).Contudo, tal deficiência pode mais ligeiras poderão ser tratadas com anti-his-
ser congénita por mutações no gene LCT. tamínicos e corticóides sistémicos e, no caso de se
A não absorção da lactose resulta em fermen- tratar de um doente asmático, deve ser prevista a
tação da mesma com consequente flatulência, administração de broncodilatadores por via
diarreia, fezes ácidas e escoriação cutânea peri- inalatória. Caso se considere que se trata de um
anal. A microbiota intestinal poderá compensar doente de alto risco anafiláctico, deve ser prescrito
em grau variável a metabolização da lactose. estojo de emergência incluindo adrenalina; e as
A má absorção da lactose não deve ser con- pessoas que contactam mais de perto com a cri-
fundida clinicamente com alergia às proteínas do ança devem ser informadas e treinadas na sua uti-
leite de vaca. A restrição de lactose na dieta é lização. Após a terapêutica inicial da reacção, o
geralmente suficiente para controlar os sintomas doente deve ser observado em meio hospitalar
gastrintestinais (sabendo-se que produtos lácteos onde deverá permanecer em vigilância algumas
como queijo e iogurte têm menor teor em lactose). horas dado o risco de reacções bifásicas.
A alergia às proteínas do leite de vaca pode ser A história natural dos sintomas relacionados
IgE mediada e não IgE mediada. As proteínas com alergia alimentar é muito variável, tendendo
(antigénios) mais frequentemente implicadas são com frequência a sensibilidade a perder-se com o
a beta-lactoglobulina (major), a alfa-lactalbumina tempo. Consequentemente, a realização de provas
e a beta-caseína (para confirmação do diagnóstico, de provocação regulares constitui o seguimento
consultar capítulo 63 abordando exames comple- adequado destas formas clínicas. O cronograma
mentares in vitro). O diagnóstico de intolerância à das provas deve ser feito tendo em conta múlti-
402 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
69
mação, alergia e malignidade.
A resposta imunológica divide-se, de forma
tradicional, em 3 níveis: barreiras anatómicas e
fisiológicas, imunidade inata e imunidade adapta-
tiva (ou adquirida). Na última década foram
conhecidos avanços significativos na compreensão
IMUNODEFICIÊNCIAS dos mecanismos moleculares usados pelo sistema
inato. Assim, a imunidade inata foi dissociada do
PRIMÁRIAS seu título de “imunidade não específica” para ser
encarada como parceira da imunidade adaptativa
Conceição Neves na proteção contra infeções. Para além disso, a
imunidade inata emergiu como reguladora crítica
da doença inflamatória e parece ter um papel
activo na patogénese de muitas doenças infeciosas
Definição e aspectos epidemiológicos e inflamatórias.
O sistema imune inato é constituído por células
As imunodeficiências primárias (IDP) englobam de origem hematopoiética (macrófagos, células
um grupo de doenças heterogéneas raras que dendríticas, Natural Killer), pela pele e células
afectam as diferentes componentes do sistema epiteliais que revestem os tractos gastrintestinal,
imune, do que resulta predisposição para infec- respiratório e genito-urinário, e ainda por um
ções recorrentes com agentes patogénicos pouco componente humoral (proteínas do complemento,
comuns, potencialmente letais. proteínas de ligação aos lipopolissacáridos (LPS) e
As imunodeficiências primárias (IDP) somente péptidos antimicrobianos). As proteínas do com-
foram identificadas após a introdução dos anti- plemento são uma classe importante de mediadores
bióticos, já que a mortalidade e morbilidade solúveis da resposta imune inata contribuindo para
devidas à infecção, mesmo em indivíduos promover a inflamação e a morte de micror-
considerados saudáveis, era muito elevada. ganismos extracelulares. Relativamente a outros
Existem actualmente mais de 180 doenças des- mediadores solúveis, os mais importantes são as
critas, na sua maioria associadas a defeito genético citocinas e as quimocinas, produzidas sobretudo
identificado e ocorrendo na idade pediátrica, com pelos macrófagos e células T.
a frequência estimada em 1/600. De acordo com O sistema imune adaptativo é filogenetica-
dados dos EUA (Immune Deficiency Foundation) mente mais tardio e aparece nos organismos su-
admite-se que existam cerca de 50.000 casos periores. Envolvendo processos altamente espe-
registados e a incidência seja ~1/10.000 nasci- cíficos de reconhecimento de substâncias estra-
mentos. nhas (antigénios), integra os linfócitos e seus
Nesta perspectiva, o diagnóstico e o trata- produtos, tais como os anticorpos.
mento precoces são fundamentais para evitar a Os anticorpos produzidos pelos linfócitos B
morte e as sequelas, e melhorar a qualidade de reconhecem antigénios extracelulares, enquanto os
vida dos doentes com tal patologia. linfócitos T reconhecem antigénios produzidos por
microrganismos intracelulares. Outra diferença
Fisiopatologia importante entre ambos, baseia-se no facto de os
linfócitos T reconhecerem apenas antigénios pro-
As alterações patológicas envolvem o ramo teicos enquanto os anticorpos são capazes de
hematopoiético e o não hematopoiético da defesa reconhecer diferentes tipos de moléculas incluindo
do hospedeiro. Tais alterações influenciam o proteínas, hidratos de carbono e lípidos.
sistema imune, quer quanto ao desenvolvimento e Em suma, considera-se que o sistema imune,
ou quer quanto à função. Daqui resulta um amplo por conveniência clínica e fisiopatológica, é cons-
espectro de sinais e sintomas relacionados com tituído por:
susceptibilidade às infeções, autoimunidade, infla- • Linfócitos B (imunidade humoral)
404 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
da função das células T e B (e algumas vezes das O angioedema hereditário ocorre nos casos em
células natural killer). Caracteriza-se por infecções que se verifica défice de síntese do inibidor da
oportunistas graves, ou diarreia crónica e restrição esterase de C1 (C1INH) (Capítulo 66).
de crescimento. Cerca de metade dos casos O Quadro 2 relaciona as algumas manifesta-
corresponde à hereditariedade ligada ao X e os ções clínicas e respectiva patogénese com deter-
restantes herdados de modo autossómico recessivo. minados germes microbianos.
A síndroma de Wiskott-Aldrich é uma doença
recessiva ligada ao X; caracteriza-se por trombo- Diagnóstico
citopénia, plaquetas de volume diminuído, disfun-
ção plaquetar, eczema e susceptibilidade às infecções. Na sequência da verificação de suspeita após
As crianças apresentam-se na sua forma típica com anamnese e exame objectivo, há que proceder a
hemorragia prolongada no local de circuncisão, exames complementares prioritários ou de 1ª
diarreia sanguinolenta e equimoses generalizadas. linha, os quais podem ser realizados em consulta
Citam-se ainda: de pediatria geral, discriminando-se a seguir.
– síndroma de Omenn (variante da imunode-
ficiência grave combinada), com eritrodermia Hemograma
esfoliativa, hepatosplenomegália e linfade- Permite a avaliação das diferentes séries hematoló-
nopatia; – deficiências de adenosina deami- gicas separadamente, em valor absoluto e de acor-
nase e de purina nucleósido fosforilase; – do com a idade. Uma linfopénia pode orientar para
síndroma de Nezelof; – ataxia-telangiectasia; – o diagnóstico de um défice combinado, mas pode
trombocitopénia isolada ligada ao X;- candi- haver casos de SCID (severe combined immunodefi-
díase mucocutânea crónica; – doença linfo- ciency) associados a contagem normal de linfócitos,
proliferativa ligada ao X; como no caso de enxerto de células maternas ou em
– síndroma hiper-IgE (exantema ~dermatite caso de SCID com células B preservadas.
atópica, eosinofilia e abcessos com loca- Uma neutropenia pode, ela mesma, ser res-
lizações várias). ponsável pelo quadro clínico. A presença de ane-
mia ou trombocitopénia também orientam o dia-
3. Defeitos de fagocitose e opsonização gnóstico (por exemplo auto-imunidade em doen-
A forma mais comum é a doença granulomatosa ças como a síndroma linfoproliferativa autoimu-
crónica, afectando sobretudo o sexo masculino. O ne, ALPS, poliendocrinopatia e imunodeficiência
défice da fosfatase da nicotinamida-adenina- ligada ao X- IPEX, ou nos défices combinados).
dinucleótido nos fagócitos resulta numa elimi-
nação defeituosa dos patogénios extracelulares Imunoglobulinas
como bactérias e fungos. Os doentes são mais O doseamento das imunoglobulinas (IgG, IgA,
susceptíveis a infecções com organismos catalase- IgM e subclasses de IgG), apesar de raramente
positivos (estafilococos) que requerem actividade informativo abaixo dos 4 meses, após essa idade é
fagocítica eficaz para a sua eliminação.A causa de fundamental para o diagnóstico dos défices com-
morte mais frequente é a infecção por Aspergilus. binados ou humorais puros. A sua interpretação
deve ter ser sempre em conta a idade da criança.
4. Defeitos do complemento De referir que o doseamento de subclasses de IgG
Contribuem para 2% de todas as IDP.Os défices da e de IgA é sempre inútil e dispendioso para ava-
via clássica são os mais comuns e os doentes liação de doentes com menos de 24 meses.
apresentam-se com manifestações autoimunes
como as síndromas “lupus-like” ou semelhantes a Estudo serológico
lúpus. Os doentes com alterações da via alternativa O estudo serológico permite avaliar a produção de
têm habitualmente infecções por Neisseria. anticorpos específicos contra diferentes antigénios
Os doentes com défice de properdina estão vacinais, proteicos ou polissacarídicos. Os primei-
particularmente predispostos a infecções por N ros (anti-polio, difteria ou tétano) dependem de
meningitidis. uma interação entre células T e B, enquanto os
CAPÍTULO 69 Imunodeficiências primárias 407
segundos (anti-pneumococo da vacina polissa- exames mais sofisticados, tais como imunofenoti-
carídica) correspondem a uma resposta B isolada. pagem e estudo genético.
Salienta-se que estes últimos estão sempre defi- O Quadro 3 sintetiza, para além dos exames
citários nos primeiros dois anos de vida. complementares citadosz, outros que podem ser
Na prática, em condições de normalidade, considerados também de 1ª linha, eventualmente
verifica-se que a resposta a antigénio tetânico é a realizar em centro especializado.
mais robusta, e a resposta a antigénio pneumocó-
cico é mais fraca. Assim, a falência da resposta ao Actuação profiláctico-terapêutica
antigénio tetânico significa geralmente deficiência
de anticorpos grave, enquanto uma fraca resposta Discriminam-se, a seguir, de modo conciso aspec-
a antigénio pneumocócico poderá significar atraso tos da actuação prática (profiláctico-terapêutica)
de maturação imune, o que obrigará a ulterior pressupondo que as situações de IDP deverão ser
avaliação. seguidas num centro especializado.
As alo-hemaglutininas de grupo, sendo anti-
corpos contra polissacáridos naturais, não podem, Medidas gerais
por isso, ser avaliadas em crianças do grupo san- – Evitar transfusões com derivados do sangue
guíneo AB. [excepto se irradiados previamente ou negativos
Na maior parte dos casos os resultados dos para citomegalovírus (CMV)].
exames de primeira linha e a clínica permitirão – Evitar vacinas de vírus vivos, especialmente
seleccionar os casos mais complexos que obri- em doentes com deficiências de células T ou agama-
garão a ulterior observação em consulta de imu- globulinémia; igualmente nos conviventes.
nologia clínica onde será possível a realização de – Proceder a profilaxia de infecções por
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Pouco tempo depois de descritos os primeiros
casos em 1981, e do primeiro caso pediátrico em
1982, foram identificados os agentes responsáveis
por esta entidade clínica: primeiramente o vírus da
imunodeficiência humana do tipo 1 (VIH1), hoje dis-
seminado em todas as regiões do Mundo; e, mais
tarde, o vírus da imunodeficiência humana tipo 2
(VIH2), mais comum em determinadas regiões da
África Ocidental, designadamente Guiné.
Os agentes microbianos em causa são retrovírus
humanos ARN que se integram no genoma das
células-alvo como um pró-vírus, sendo que o geno-
410 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ma vírico é copiado durante a replicação celular, entre 2005 e 2009 registou-se proporção por
persistindo na pessoa infectada toda a vida. 100.000 habitantes variando entre 2,5-2,7 e 22,5-
106,5; de salientar que as taxas mais elevadas
Aspectos epidemiológicos ocorreram ao sul do Tejo, Estremadura e regiões
da grande Lisboa e do grande Porto, estas últimas,
Apesar de demonstrada a presença do VIH em de maior densidade populacional
estado latente em várias células e fluidos corpo- Nos países industrializados mais de 90% das
rais, só o sangue, sémen, secreções cervicais uteri- crianças infectadas com menos de 13 anos adquiri-
nas e leite humano estão implicados na transmis- ram a infecção por via perinatal. As 10% restantes
são da infecção. São, pois, três as vias de trans- incluem crianças politransfundidas, sobretudo
missão do VIH: contacto sexual; via percutânea hemofílicas, com sangue, componentes do sangue
(agulhas e instrumentos cortantes) ou exposição ou concentrados de factores da coagulação conta-
das mucosas a sangue ou outros fluidos corporais minados. Poucos casos de infecção VIH resul-
com altos títulos de VIH; transmissão vertical taram de abuso sexual.
mãe-filho, durante a gravidez, na data do parto e Nesses países incluindo Portugal actualmente
pelo aleitamento materno. quase todas as novas infecções são adquiridas por
Devido a medidas de exclusão de dadores de transmissão vertical (cerca de 25-40% dos casos
sangue potencialmente infectados, tratamentos de ocorrem no decurso da gravidez e, entre 60-75% ,
inactivação vírica de concentrados de factores da durante o parto).
coagulação, e utilização desde há alguns anos de Nos adolescentes a transmissão do VIH é
factores da coagulação recombinantes, a trans- atribuída sobretudo a exposição sexual e/ou to-
fusão de sangue ou produtos derivados tornou-se xicodependência. No nosso país, segundo dados
uma via raríssima de transmissão VIH, pelo do Centro de Vigilância Epidemiológica de
menos nos países desenvolvidos. Doenças Transmissíveis (CVEDT), nos últimos
Na ausência de contacto sexual ou de exposição anos o número de casos de infecção neste grupo
parentérica ou mucosa a sangue ou fluidos corpo- etário, tem vindo a diminuir.
rais contendo sangue, muito raramente se tem Ao aleitamento materno também é atribuído
demonstrado a transmissão do VIH em contactos papel de transmissão(determinadas estatísticas
familiares ou na prestação de cuidados em institu- apontando taxas entre 8 e 30%), salientando-se
ições de saúde. Também nunca foi demonstrada a que os maiores índices se verificam durante a
transmissão do VIH em escolas ou creches. infecção aguda da mulher lactante, em relação
De acordo com dados da OMS, no final de 2009 directa com a duração da amamentação, e com a
havia em todo o mundo cerca de 2,5 milhões de evidência de patologia mamária acompanhada de
indivíduos com menos de 15 anos infectados com eliminação de sangue pelo mamilo (fissuras).
o VIH-1, com uma taxa de incidência anual de Antes do advento da profilaxia ou tratamento
cerca de 640 mil. Estima-se que nesse ano tenham com fármacos antirretrovíricos a taxa de transmis-
morrido mais de 500 mil crianças e jovens com tal são perinatal (vertical ou mãe-filho) do VIH-1 era
problema. estimada entre 13% e 39%. Com a generalização
Dados do Instituto Nacional de Estatística de das estratégias de profilaxia ao longo do tempo
Portugal desde 1983 indicam até Dezembro de têm-se verificado progressos assinaláveis, sobre-
2010 um total de 39.347 casos de infecção pelo tudo nos países mais desenvolvidos. Em Portugal
VIH; destes, 13.700 correspondem a SIDA(0,8% também se verificou esta tendência, assinalando-
em crianças e 17,5% em mulheres, 3/4 das quais se os seguintes dados quanto a taxas de transmis-
em idade reprodutiva). Na região de Lisboa em são perinatal: 25% (em 1994); 4,9% (em 2003); e
cerca de 1% as grávidas são seropositivas para o 1,8% (em 2010). [Dados do Grupo de Trabalho
VIH, situação comparável à de certas regiões de sobre Infecção VIH na Criança (GTVIHC) da SPP].
África ao sul do Saará. Relativamente à transmissãao vertical de VIH-2,
Considerando a totalidade de casos de segundo estatísticas do INSA, no período de 1999
infecção por VIH em todas as idades em Portugal, a 2005 foi de 1,5% (2/131 crianças).
CAPÍTULO 70 Síndroma de imunodeficiência adquirida 411
Em relação ao VIH2 a taxa de transmissão esti- incluem infecções oportunistas – em geral associ-
mava-se em menos de 5%. Com a utilização dos adas a valores muito baixos de CD4+ – (pneumonia
antirretrovíricos a taxa de transmissão perinatal por Pneumocystis jiroveci, esofagite por Candida,
diminuiu cerca de 3/4. infecção disseminada por Citomegalovírus, infecções
A determinante materna de maior risco de crónicas ou disseminadas por Herpes simplex ou
transmissão do VIH à criança é uma maior carga Varicela zoster, infecção por Mycobacterium tuberculo-
vírica (infecção recente). Outros factores associa- sis, Mycobacterium avium complex, enterites crónicas
dos com um risco aumentado de transmissão por Cryptosporidium ou Isospora), atraso acentuado
incluem: número baixo de linfócitos CD4+, do desenvolvimento (Wasting Syndrome), ence-
doença materna avançada, condições intraparto falopatia, e tumores malignos (raros na criança).
com aumento da exposição do feto ao sangue De acordo com critérios propostos pelos CDC e
materno, inflamação da membrana placentária, AAP para idades <13 anos, são consideradas quatro
parto prematuro, parto prolongado e rotura pro- formas clínicas agrupando um conjunto de deter-
longada de membranas. O aleitamento materno minados sinais, sintomas e de resultados de exam-
constitui também um risco adicional importante. es complementares, a saber:
É possível hoje, tendo em conta os factores de
risco mencionadas, diminuir a transmissão verti- Forma assintomática ou N
cal do VIH para menos de 2% com intervenções Nesta forma clínica verifica-se ausência de sin-
que incluem: utilização antenatal, perinatal e pós- tomatologia ou apenas um dos parâmetros da
natal de fármacos antirretrovíricos (zidovudina, forma clínica seguinte-A.
nevirapina, lamivudina); cesariana electiva para
evitar contacto com o canal de parto; evicção do Forma ligeira ou A
aleitamento materno, a ponderar em função de Esta forma caracteriza-se pela verificação de dois
contexto económico e social. ou mais dos parâmetros seguintes desde que não
se verifique qualquer dos que fazem parte das for-
Manifestações clínicas mas B ou C.
Os parâmetros que definem a forma A são:
A infecção pelo VIH na criança e no adolescente hepatomegália, esplenomegália, parotidite, linfa-
origina um largo espectro de manifestações clíni- denopatia (de dimensões superiores a 0,5 cm em
cas e uma evolução variada, representando a duas cadeias ganglionares diferentes).
SIDA o espectro clínico terminal mais grave. A
história natural da infecção pelo VIH caracteriza- Forma moderada ou B
se por um período assintomático (mais curto nas Esta forma integra os seguintes parâmetros: Hb<
crianças infectadas por via vertical), a que se 8g/dL, neutrófilos < 1.000/mm3, meningite bac-
segue uma fase de doença progressiva, embora teriana, sépsis ou pneumonia,candidíase oral
com velocidades de progressão diferentes de cri- durando > 2 meses, miocardiopatia,febre > 1 mês,
ança para criança e até na mesma criança, depen- varicela disseminada ou complicada, toxoplas-
dendo, entre outros factores, de características do mose no RN, nefropatia, nocardiose, pneumonia
vírus, carga vírica, grau de imunossupressão, da intersticial linfocitária-PIL ou LIP, herpes zoster
terapêutica prescrita e da adesão à mesma. com 2 episódios em mais de um dermátomo, > 2
A apresentação clínica varia com o grau de episódios anuais de estomatite pelo vírus Herpes
imunossupressão. Entre outros sinais e sintomas, simplex (HSV), pneumonite ou esofagite por HSV
crianças com imunodeficiência ligeira podem apre- no RN, hepatite, diarreia recorrente ou crónica,
sentar linfadenopatia, hepatomegália, esplenome- infecção por CMV no RN.
gália, parotidite; com imunodeficiência moderada
pode haver infecções bacterianas recorrentes, can- Forma grave ou C
didíase arrastada, diarreia crónica, pneumonia Para se incluir o caso nesta forma é condição
intersticial linfóide (LIP), trombocitopénia; manifes- necessária a verificação de qualquer dos parâme-
tações de imunodeficiência grave a muito grave tros a seguir mencionados, exceptuando a LIP:
412 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
globulinémia, em criança sem evidência clínica de doenças autoimiunes ou sífilis podem originar
infecção e com resultados de estudos virológicos resultados falsos positivos ou duvidosos.
negativos. 4. Actualmente utilizam-se testes rápidos
A contagem de linfócitos T CD4+ (CD4+) por necessitando de confirmação pela técnica Western
citometria de fluxo constitui uma técnica funda- Blot (WB):
mental para determinar o estádio evolutivo da
infecção na idade pediátrica, estabelecer a data de Tratamento
início da terapêutica antirretrovírica, e também a
profilaxia das infecções oportunistas. O tratamento da infecção pelo VIH na criança
Cabe referir, a propósito, que os valores de refer- tem-se tornado cada vez mais complexo e a pres-
ência na criança até aos seis anos de idade são mais crição de antirretrovíricos deverá ser dirigida por
elevados do que no adulto; por outro lado, é impor- um especialista com experiência nesta área em
tante salientar que poderá haver discordância entre centros especializados .
ausência ou presença de sintomatologia e ausência O controlo eficaz das necessidades de uma
ou presença de sinais de imunossupressão. criança infectada obriga necessariamente à disponi-
O Quadro 1 discrimina os valores de linfocitos bilidade de uma equipa multidisciplinar incluindo
T CD4+ em três grupos etários até aos 13 anos, em Médico de família, Pediatra, Infecciologista,
relação com o grau de compromisso imunológico. Enfermeiro, Imunologista, Virologista, Psicólogo,
Assistente Social, Farmacêutico e Dietista.
Notas importantes Torna-se igualmente necessário proceder à
1. A presença de IgA ou Ig anti-VIH na circulação monitorização regular da contagem de linfócitos
pode indicar infecção por VIH, dado que as referi- CD4+ e da carga vírica no pressuposto de se ter
das imunoglobulinas não atravessam a placenta. acesso ao perfil genotípico das resistências aos
Contudo, dado que as técnicas utilizadas para a antirretrovíricos.
respectiva determinação são pouco sensíveis e Há que ter em atenção as características espe-
pouco específicas, na prática não são utilizadas. ciais da infecção pelo VIH na criança: na grande
2. A demonstração de anticorpos IgG anti-VIH maioria das crianças adquire-se o vírus por trans-
para além dos 18 meses, confirmada por método missão perinatal; a transmissão ocorre na grande
ELISA e Western blot (WB), estabelece o diagnós- maioria dos casos em período próximo do parto
tico de infecção por VIH. ou mesmo durante o parto, o que possibilita a
3. Embora o aleitamento materno esteja con- terapêutica da infecção primária.
traindicado nos casos de mães com infecção por Uma vez que a infecção perinatal ocorre durante
VIH, mas admitindo por diversas circunstâncias a o desenvolvimento do sistema imunológico, as ma-
possibilidade amamentação inadvertida, designa- nifestações clínicas e os marcadores imunológicos e
damente por desconhecimento da mãe, deve pro- virológicos são diferentes dos do adulto.
ceder-se na criança ao estudo dos anticorpos e Há factores a considerar no planeamento de um
virológico nas primeiras 12 semanas após o térmi- regime antirretrovírico: disponibilidade; tolerância;
no da amamentação para avaliar sobre eventual eficácia; formulações; perfil de efeitos secundários
transmissão deste modo. Salienta-se que certas dos medicamentos, incluindo frequência de admin-
istração e seu impacte na escola, família e vida dos alguns exemplos com siglas universais tendo
social; interacção com outros medicamentos e ali- em conta o respectivo mecanismo de acção:
mentos; detecção do genótipo HLA-B*5701, desen- • Inibidores da Transcriptase Reversa
volvimento de resistência antirretrovírica e planea- Nucleósidos – ITRN – abacavir (ABC), didanosina
mento futuro dos subsequentes regimes. (ddI), lamivudina (3TC), → estavudina (d4T),
Antes de se iniciar a terapêutica é fundamentar tenofovir (TDF), zalcitabina (ddC), zidovudina
esclarecer e formar intensivamente a família, (ZDV, ou AZT).
treinando-a na administração dos medicamentos, • Inibidores da Transcriptase Reversa Não
explicando a importância da adesão e esclarecen- Nucleósidos – ITRNN’s ITRNN– delavirdina
do dúvidas. É necessário ainda o seguimento (DLV), efavirenz (EFV), nevirapina (NVP)
intensivo durante os meses iniciais da terapêutica • Inibidores da Protease – IP – lopinavir
e a verificação da tolerância. (LPV), ritonavir (r), fosamprenavir (FPV),
darunavir (DRV), atazanavir (ATV)
Início da terapêutica antirretrovírica (TAR) • Inibidores da Fusão – enfuvirtide (T-20)
De acordo com as normas do grupo de trabalho • Inibidores da Entrada – maraviroc (MVC)
(GTVIHC) da Sociedade de Infecciologia Pediá- • Inibidores da Integrase – raltegravir (RAL)
trica da SPP (anteriormente citado), deve iniciar- Actualmente o regime de 1ª linha preferido em
se terapêutica antirretrovírica (TAR) nas seguintes crianças sem terapêutica prévia e sem evidência
situações: de resistência aos antirretrovíricos engloba: 2
– Lactentes com o diagnóstico de infecção por ITRN + 1IP* (em crianças com < 3 anos prevendo
VIH(crianças com < 12 meses de idade) indepen- adesão irregular) ou 2ITRN + 1ITRNN.
dentemente da clínica, valores de CD4+ e carga As combinações preferidas de ITRN são:
vírica: ABC+3TC se HLA-B*5701(-); e ZDV+3TC se HLA-
– Crianças com clínica significativa (formas B B*5701(+).
ou C); Relativamente a IP prefere-se a combinação
– Crianças com idade de 1 ano ou >, assin- LPV/r para crianças pequenas; e outras combi-
tomáticas ou com sintomas ligeiros (que não se nações para crianças mais velhas: FPV/r, ou
enquadram, no entanto, na forma A) perante val- ATV/r , ou DRV/r.
ores de CD4+: Quanto a ITRNN os fármacos preferidos são:
• < 25% ou < 1000/mm3 entre 1 e 3 anos de NVP para crianças com < de 3 anos e EFV para
idade; crianças acima desta idade.
• < 20% ou < 500/mm3 entre 3 e 5 anos de A terapêutica pode ser alterada nos casos de
idade; toxicidade ou falência.
• < 350-450/mm3 acima dos 5 anos Em suma a prescrição dos antirretrovíricos
– Crianças com > 12 meses e carga vírica > deve ser cuidadosamente ponderada e individua-
100.000 cópias/mL. lizada tendo em conta todos os factores aponta-
dos, pois, para além das repercussões que possa
Os objectivos da TAR são reduzir a carga vírica vir a ter na sobrevivência e na qualidade de vida
para níveis indetectáveis e preservar ou normalizar a das crianças infectadas, tem custos muito eleva-
função imune impedindo a progressão da doença e ten- dos.
tando reverter eventual doença de órgão já estabeleci-
da.Ao falar em início do tratamento e tendo como base Prevenção
os conhecimentos actuais, salienta-se que a duração do
tratamento é para toda a vida. Para a prevenção da transmissão vertical da
infecção pelo VIH na criança é importante a ado-
Fármacos e esquemas terapêuticos
São vários os fármacos antirretrovíricos disponí- *Fala-se num IP, mas refere-se LPV/r o que fará supor 2IP.De facto,
considera-se 1IP pelo facto de o lopinavir (LPV) ser o fármaco activo;
veis (por vezes em associação) para tratamento da o rotinavir encontra-se em dose baixa actuando como potenciador,
criança e adolescente.Seguidamente são assinala- incrementando a acção do LPV.
CAPÍTULO 70 Síndroma de imunodeficiência adquirida 415
pção das seguintes medidas: rastreio da infecção por citomegalovírus, Herpes simplex 2, toxoplas-
na grávida; realização de cesariana electiva, sem- mose, hepatite B e C, tuberculose, sífilis, gonorreia
pre que possível; terapêutica antirretrovírica na e Chlamydia .
grávida e recém-nascido; e evicção do aleitamento A puérpera deve ser encaminhada para uma
materno. Consulta de Planeamento Familiar.
Em relação à terapêutica antirretrovírica na Para prevenção das infecções secundárias na
grávida e recém-nascido, o esquema utilizado criança com infecção pelo VIH devem ser instituí-
durante a gravidez deverá ser sempre discutido das medidas adequadas, as quais constituem um
com a mulher, colocando à sua disposição os pilar essencial no tratamento das mesmas. A profi-
conhecimentos actuais sobre os riscos e benefícios laxia das infecções secundárias deve ser efectuada pela
da administração dos vários antirretrovíricos. Há administração de vacinas, imunoglobulinas e antimi-
que ter em conta os cenários possíveis: crobiano:
• Mulher sem qualquer terapêutica antirretro- Vacinas – Aos filhos de mulheres seropositi-
vírica anterior e sem indicação para terapêu- vas, com infecção indeterminada ou infectadas,
tica: quimioprofilaxia com zidovudina devem ser administradas todas as vacinas inacti-
recomendada a partir das 14 – 34 semanas de vadas de acordo com o actual Programa Nacional
gravidez; considerar a utilização de outros de Vacinação.
antirretrovíricos. A vacina contra o sarampo, parotidite e rubéo-
• Mulher sem qualquer terapêutica antirretro- la (VASPR) deve ser dada a crianças assintomáti-
vírica anterior e com indicação para terapêu- cas ou ligeiramente sintomáticas, com contagem
tica: terapêutica semelhante à que é instituí- de linfócitos (+) CD4 ≥15% (contraindicada , no
da em mulher não grávida, mas sempre entanto, se houver sinais de imunossupressão
incluindo zidovudina; o seu início deve ser grave, declínio rápido do número ou percentagem
diferido até às 10 – 12 semanas de gravidez, de CD4+ e em crianças com a forma grave de
de acordo com a situação clínica e a opção da doença). Deve ser administrada, de preferência,
mulher. aos 12 meses ou até antes (entre os 6 e os 9 meses)
• Mulher sob terapêutica prévia com antir- se o risco de agravamento da doença e/ou o risco
retrovíricos: manutenção da terapêutica se de exposição ao sarampo for elevado.
esta estiver a ser eficaz; suspensão da tera- A vacina contra a varicela deve ser considera-
pêutica até às 10 – 12 semanas de gravidez da em crianças assintomáticas ou ligeiramente
por decisão da mulher; associar sempre sintomáticas com contagem de linfócitos CD4+ ≥
zidovudina se esta não fizer parte do esque- 25%.
ma terapêutico, após as 14 semanas. A vacina antigripe deve ser administrada no
• Mulher que se apresenta em trabalho de princípio do Outono às crianças com mais de 6
parto sem seguimento médico anterior: meses de idade e a todos os seus contactos, in-
zidovudina intra-parto e à criança . cluindo o(s) progenitor(es) seropositivo(s).
• Recém-nascido de mãe que não recebeu tera- Em relação à vacina antipneumocócica deve
pêutica: zidovudina durante 6 semanas efectuar-se um reforço com a vacina com polis-
iniciada até às 48h após o nascimento: sacáridos 23-valente, 3 a 5 anos depois.
(2mg/kg/dose de 6-6 horas). Pode consi- A vacinação com BCG não deverá ser adminis-
derar-se a associação com outros antirretro- trada às crianças infectadas (mesmo assintomáti-
víricos). cas), pelo que a vacinação dos filhos de mulheres
seropositivas deverá ser adiada até que a infecção
Outros esquemas incluem como antirretrovíri- pelo VIH seja excluída.
cos a nevirapina ou a associação zidovudina + Imunoglobulinas – A administração regular
lamivudina. (mensal) de imunoglobulina inespecífica intra-
A grávida infectada pelo VIH deve ser seguida venosa (IGIV na dose de 400 mg/kg cada 2 a 4
em Consulta de Alto Risco, sendo ainda semanas) está indicada em situações de hipoga-
necessário rastrear outras doenças transmissíveis, maglobulinémia (IgG < 250mg/dL), ausência de
416 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
resposta humoral a antigénios comuns (vacinas, among children and youth with perinatal human immun-
por exemplo), infecções bacterianas, graves e odeficiency vírus infection, 1990-2002. Pediatr Infect Dis
recorrentes, e crianças vivendo em área endémica 2006; 25: 628-633
de sarampo e sem resposta a 2 doses de vacina. Tal Eisenhut M. An update on HIV in children. Paediatrics and
administração de imunoglobulinas cuja duração Child Health 2013; 23:109-114
varia em função do contexto clínico, deve também Feigin R, Cherry J, Demmler G, Kaplan S. (eds) Textbook of
ser considerada em situações pós-exposição a Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Saunders, 2004
hepatite B, tétano, varicela e sarampo. Grupo de Trabalho sobre Infecção VIH na Criança. Rocha G, et
Antimicrobianos – Para a prevenção da pneu- al. Sociedade de Infecciologia Pediátrica/SPP. Coimbra:
mocistose utiliza-se o trimetoprim-sulfametoxazol ASIC, 2011
(cotrimoxazol), a iniciar pelas 6 semanas de idade na Kliegman RM, BStanton BF, et al Nelson Textbook of
dose de sulfametoxazol de 40 mg/kg/dia , habi- Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
tualmente em dose única diária, trissemanalmente. Prendergast AJ. Complications of long-term antiretroviral ther-
Esta medicação é interrompida se a infecção for apy in HIV-infected children. Arch Dis Child 2013; 98: 245-
excluída (dois resultados de carga vírica na ausência 246
de sintomatologia e em crianças não amamentadas). Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA
Em adolescentes e em circunstâncias especiais (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
(serologia positiva para CMV e imunossupressão Medical, 2011
acentuada (CD4+ < 1%) utiliza-se ganciclovir em
dose semelhante à do adulto (900 mg/dia, per os).
Seguimento
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Avença AP. Tempo Medicina -Supl ECOS 2006;(1179):2E-3E
Bertooli J, HSU HW, Sukalac T, et al. Hospitalization trends
PARTE XIII
Oto-rino-laringologia
418 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
71
vírus sincicial respiratórioe VEB. As formas
bacterianas instalam-se sobre as víricas ou ocor-
rem primariamente, sendo habitualmente cau-
sadas por Streptococcus beta-hemolítico do grupo A,
Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae e
Moraxella catarrhalis.
FARINGITE De todas as bactérias a mais frequente é o
Streptococcus beta-hemolítico do grupo A pelo que
Carlos Ruah convém relembrar algumas noções básicas sobre
Streptococcus: 1) É uma bactéria gram positiva,
classificada em 18 grupos (de Lancefield) designa-
dos por uma letra maiúscula, consoante o compo-
Definições e importância do problema nente de hidrato de carbono antigénico da sua
parede celular; 2) Ainda são classificados conso-
Faringite é um termo geral usado para descrever a ante a capacidade de hemolisar eritrócitos de
inflamação ou infecção da faringe, incluindo o carneiro: o beta-hemolítico causa hemólise, o alfa-
anel de Waldeyer. Nas crianças o termo rinofarin- hemolítico causa hemólise parcial e o gama-hemo-
gite pode sobrepor-se a adenoidite. Em relação à lítico não causa hemólise; 3) A patogenicidade da
orofaringe, há autores que falam em faringo- bactéria é dada pela proteína M com 80 serotipos;
amigdalite em vez de faringite. Assim, suben- a mesma é responsável pela resistência bacteriana
tende-se que faringite é uma infecção da oro- à fagocitose; 4) A existência no hospedeiro, de
faringe com ou sem componente inflamatório das uma IgG anti-proteína M específica a um dos
amígdalas palatinas. Se este componente é pre- serotipos, confere imunidade contra esse estrepto-
dominante e domina o quadro clínico, fala-se em coco; 5) Produz cerca de 20 exotoxinas das quais 2
amigdalite. As faringites podem ser divididas em são importantes: a estreptolisina 0, antigénica, e a
agudas e crónicas estreptolisina S que não é antigénica; 6) Ainda
O estabelecimento da flora normal da faringe produz 3 endotoxinas eritrogénicas. 7) Não se iso-
inicia-se logo após o nascimento, sendo a mesma laram até hoje estreptococos resistentes à penicili-
colonizada por lactobacilos e estreptococos anae- na; no entanto já foram obtidos em laboratório,
róbios. Aos 6 meses de idade já se encontram acti- verificando-se que todos eles têm ausência de pro-
nomicetas, fusobactérias e bacteróides. As fuso- teína M (portanto, fagocitáveis).
bactérias atingem o auge com a dentição, e ao ano A faringite também pode ser provocada por
de idade, com uma relação da flora saprófita fungos, sobretudo Candida, em crianças submeti-
aeróbia e anaeróbia de 1/10. O Streptococcus do das a tratamento frequente com antibióticos ou
grupo A é um habitante normal da nasofaringe em imunocomprometidas.
15-20% das crianças. Colheitas feitas em crianças
assintomáticas demonstraram que, para além da Manifestações clínicas e diagnóstico diferencial
flora saprófita, podem existir Haemophilus influen- As infecções víricas produzem odinofagia com
zae, Streptococcus pneumoniae, Streptococcus beta- febrícula, sensação de secura, irritação faríngea
hemolítico do grupo A, Fusobacterium necrophorum, com pigarro que se pode estender à árvore
Arcanobacterium haemolyticum. Moraxella catarrhalis laringo-tráqueo-brônquica com tosse, inicial-
e Staphylococcus aureus. mente seca, e depois com expectoração. A faringe
apresenta-se ligeiramente vermelha: habitual-
1. Faringite aguda mente tais infecções não se acompanham de
adenopatias.
Etiopatogénese As infecções bacterianas produzem habitual-
As formas agudas ocorrem sobretudo na época mente dor mais intensa, febre alta, odinofagia
invernal e são frequentemente víricas, incluindo intensa, mal estar geral e, por vezes, dor abdomi-
adenovírus, rinovirus, influenza, parainfluenza nal. A faringe apresenta-se mais vermelha, por
CAPÍTULO 72 Amigdalite 419
72
vezes com exsudado que pode fluir da nasofa-
ringe; nestas situações as adenopatias cervicais
são frequentes. Frequentemente a sintomatologia
é sobreponível à das infecções víricas.
Na perspectiva do diagnóstico etiológico
através de exames complementares sugere-se a
consulta do capítulo 72. AMIGDALITE
Tratamento Carlos Ruah
As formas víricas tratam-se com repouso, hidra-
tação , analgésicos, antipiréticos e dieta adequada
à odinofagia.
As formas bacterianas obrigam a antibioti- Definição e classificação
coterapia com as seguintes opções: 1) amoxicilina
na dose de 50 mg/kg/dia dividida em 2-3 doses, Este termo refere-se vulgarmente à infecção das
durante 10 dias (eventualmente em dose única amígdalas palatinas, apesar de o mesmo processo
diária); ou 2) penicilina G benzatínica na dose de poder ocorrer nas amígdalas linguais e adenóides
50.000 unidades/kg via intramuscular (máxima (adenoidites) ou nos cordões linfóides da faringe.
dose: 1.200.000 U); em regra 600.000 U se a criança A amigdalite pode dividir-se em aguda, recidi-
tiver menos de 25 kg e 1.200.000 U se 25 kg ou vante e crónica.
mais; ou 3) como alternativa se houver alergia à
penicilina: cefalosporinas de primeira geração 1. Amigdalite aguda
como cefradina (50 mg/kg/dia em 3 tomas) ou
cefadroxil (30 mg/kg/dia em 2 tomas), durante Etiologia
10 dias, ou ainda, clindamicina(20 mg/kg/dia em A amigdalite é provocada pelos mesmos germes
3 tomas até máximo de 1,8 g/dia), também descritos na faringite aguda. A amigdalite, no
durante 10 dias. entanto, tem habitualmente uma etiologia vírica
No caso de alergia à penicilina ou cefalosporinas até aos 3 anos de idade e uma predominância bac-
devem utilizar-se macrólidos (por ex. eritromicina, teriana dos 5 aos 15 anos. O Streptococcus beta-
40-50 mg/kg/dia em 3 tomas e 10 dias ou clari- hemolítico do grupo A está presente em cerca de 5%
tromicina, 15 mg/kg/dia em 2 tomas e 10 dias, ou dos casos em crianças mais pequenas, verificando-
azitromicina, 12 mg/kg/dia em 1 toma durante 5 se as maiores incidências entre os 5-8 anos e entre
dias até máximo de 500 mg/dia). os 12-14 anos.
Sistematizando, as amigdalites agudas podem
2. Faringite crónica ser divididas duma forma empírica em:
1) Não específicas, que constituem a maioria
Enquanto a faringite aguda é mais frequente nas dos casos e são provocadas por bactérias e vírus
crianças, a crónica é rara devido à ausência de fac- comuns; e
tores de cronicidade mais frequentes no adoles- 2) Específicas as quais incluem essencialmente
cente e adulto, tais como, álcool, tabaco, e ronco- a angina de Vincent, a diftérica, do sarampo,
patia com consequente secura faríngea. escarlatina, difteria, herpética, herpangina e da
mononucleose (vírus de Epstein - Barr/VEB).
BIBLIOGRAFIA
(em conjunto com o capítulo 78). Manifestações clínicas
A maioria das amigdalites víricas origina sin-
tomas ligeiros de odinofagia e febrícula que desa-
parecem ao fim de uns dias. A favor duma etiolo-
gia vírica são a existência de rinofaringite associa-
da, de envolvimento da árvore laringo-tráqueo-
420 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
brônquica, de adenomegálias cervicais difusas e esbranquiçado. Podem ser causadas por bactérias
pouco exuberantes, de sinais gerais menos inten- ou vírus, sendo impossível distinguir a sua etiolo-
sos e de fórmula leucocitária normal ou eviden- gia, somente pelo aspecto das amígdalas (Figura 1).
ciando ligeira leucocitose com linfocitose. 2) Úlcero-necróticas em que a amígdala se apre-
Destas, salientam-se: senta com úlceras de fundo sujo e exsudado puru-
a) Herpangina (coxsackievirus A) em que lento. Se unilateral, há que admitir angina de
aparecem pequenas vesículas nos pilares amig- Vincent (associação fuso-espiralar). Se bilateral, há
dalinos e palato mole; rebentando, dão origem a que admitir mononucleose (vírus de Epstein-Barr)
ulcerações redondas de fundo cinzento. Acom- ou hemopatias como a agranulocitose e a leucemia.
panham-se de, intensa odinofagia, febre alta e não 3) Vesiculosas como acontece na herpangina.
de adenomegálias. 4) Pseudomembranosas, caracterizadas pelo
b) Mononucleose infecciosa (vírus de Epstein- aparecimento de pseudomembranas de fibrina
Barr); trata-se de uma doença sistémica que origi- sobre as amígdalas; podem ser causadas por
na amigdalite pseudomembranosa ou ulcero- agentes etiológicos bacterianos comuns e pelo
necrótica com grande astenia, febre alta, múltiplas vírus de Epstein-Barr (Figura 2).
adenopatias e hepatoesplenomegália. O leucogra-
ma mostra linfocitose, linfócitos atípicos e monoci- Diagnóstico
tose. O diagnóstico é confirmado por provas É realizado através da anamnese e observação do
serológicas, salientando-se: detecção qualitativa de doente. Os exames complementares servem para
anticorpos heterófilos (Paul Bunnell); detecção de o diagnóstico etiológico e incluem: a colheita de
anticorpos específicos VEB IgG-VCA e IgM-VCA exsudado faríngeo e amigdalino para exame cul-
(Viral Capsid Antigen) (Capítulo 298). tural, a fórmula leucocitária, as transaminases (na
Nas amigdalites bacterianas as adenopatias hipótese de mononucleose); e exames que per-
são mais confinadas às regiões jugulo-digástricas, mitem o diagnóstico rápido do Streptococcus beta
os sinais gerais mais exuberantes e a fórmula leu- hemolítico com a detecção do poliósido C da super-
cocitária apresenta leucocitose com neutrofilia. fície da bactéria (antigénio) (ver atrás capítulo 71).
Destas destacam-se: Uma vez que número significativo de bactérias
a) Angina de Vincent. Habitualmente unila- se localizada nas criptas amigdalinas, um exsuda-
teral, ocorre em crianças com má nutrição e má do com resultado negativo não exclui a presença
higiene oral, sendo causada por uma associação duma bactéria patogénica localizada na superfície
fuso-espiralar e anaérobia. da amígdala.
b) Escarlatina. Causada pelo Streptococcus beta-
hemolítico do grupo A, tem um início abrupto, com
febre alta, taquicárdia desproporcionada à febre,
vómitos e uma amigdalite eritematosa. A erupção
eritemato-papular aparece 24 horas depois nos
ombros e tórax e estende-se a todo o corpo acentuan-
do-se nas pregas de pele, poupando a planta dos pés,
a palma das mãos e face. Ao 6º dia a erupção melho-
ra e dá lugar a uma descamação cutânea que pode
durar até 6 semanas. O exantema relaciona-se com a
produção duma toxina eritrogénica cuja reacção à
injecção intradérmica diluída (teste de Dick) confir-
ma o diagnóstico (Capítulo 279).
FIG. 1 FIG. 2
A observação permite distinguir 4 tipos de
amigdalites: Amigdalite eritemato – Amigdalite pseudomembra-
1) Eritemato-pultáceas em que as amígdalas se pultácea (isolamento de nosa (mononucleose
Streptococcus A. (NIHDE) infecciosa). (NIHDE)
apresentam vermelhas com ou sem exsudado
CAPÍTULO 72 Amigdalite 421
73
6) Síndroma de Lemierre: consiste na associa-
ção de amigdalite, tromboflebite da veia jugular
interna, múltiplos abcessos metastáticos sobretu-
do no pulmão, articulações e ossos, septicémia por
Fusobacterium necrophorum (gram-negativo, anae-
róbio, habitualmente saprófita da faringe). O
tratamento consiste no internamento e na admi- ADENOIDITE
nistração de antibiótico resistente às beta-lacta-
mases e metronidazol durante 6 semanas Carlos Ruah
7) Fascite necrosante: pode ocorrer em relação,
quer com Streptococcus beta hemolítico, quer com
Staphylococcus aureus, a partir duma amigdalite.
Definição e classificação
2. Amigdalite recidivante
Adenoidite é o processo inflamatório localizado
A definição de amigdalite recidivante varia com os nas vegetações adenóides; classicamente são con-
autores. Dum modo geral define-se com base na sideradas duas formas clínicas: adenoidite aguda
verificação de 3 episódios por ano em 3 anos con- e adenoidite crónica.
secutivos, 5 episódios por ano em 2 anos consecu-
tivos, ou mais de 6 episódios num ano. As causas 1. Adenoidite aguda
das recidivas incluem a modificação do equilíbrio
ecológico entre as bactérias saprófitas e as patogéni- O quadro clínico de adenoidite aguda é sobre-
cas, a fibrose progressiva da amígdala que dificulta ponível ao da rinofaringite. Ocorre predominante-
a penetração antibiótica, aparecimento de estirpes mente em crianças dos 6 meses aos 8 anos sendo
produtoras de beta-lactamases, o não cumprimento causada em 15 a 70% dos casos por vírus (rino-,
correcto da terapêutica, e a constante reinfecção por adeno-, mixo-, e enterovírus e, nas muito jovens,
indivíduos próximos que são portadores sãos. por vírus sincicial respiratório). Nas formas bacte-
O tratamento consiste na utilização de rianas, os agentes mais frequentes são
antibióticos que atinjam as estruturas mais pro- Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniae,
fundas das amígdalas fibrosadas (clindamicina ou Streptococcus pyogenes, Staphylococcus aureus e
cefalosporinas), na detecção e tratamento dos por- Moraxella catarrhalis.
tadores sãos próximos do doente, na imuno- As manifestações clínicas compreendem febre
estimulação e na amigdalectomia. alta que, inicialmente, pode ser inexplicável até
aparecer uma rinorreia posterior branca a esver-
3. Amigdalite crónica deada, obstrução nasal por hipertrofia adenoideia
e rinorreia anterior. A infecção pode estender-se
Ocorre sobretudo em crianças mais velhas e adultos. ao ouvido médio (dando origem a otite média
Existe odinofagia, habitualmente sem febre, com ou aguda ou com derrame), à faringe e à árvore
sem rubor das amígdalas e pilares. As amígdalas são laringo-tráqueo-brônquica. O exame objectivo
habitualmente mais duras à palpação e a sua apenas detecta a presença da rinorreia anterior e
expressão liberta caseum amigdalino, uma mistura de posterior ou de otite, não sendo possível observar
alimentos retidos e pus, que dá mau hálito. a nasofaringe em crianças senão com a endos-
Habitualmente não existem adenopatias. As col- copia. A radiografia de perfil do cavum não pro-
heitas de exsudado amigdalino permitem habitual- porciona qualquer informação válida nestes casos.
mente o isolamento de flora mista aeróbia-anaeróbia. A antibioticoterapia de primeira escolha com-
O tratamento consiste na amigdalectomia. preende amoxicilina/clavulanato ou macrólido
azitromicina; como alternativa: cefalosporina de
BIBLIOGRAFIA 2ª geração. A duração da terapêutica antibiótica é
(Em conjunto com o capítulo 78). 10 dias (sendo de 5 dias para a azitromicina).
CAPÍTULO 74 Rino – Sinusite 423
74
O tratamento sintomático consiste na aspi-
ração de secreções, administração de analgésicos,
antipiréticos e anti-histaminicos se houver confir-
mação de que a criança tem antecedentes de
atopia.
A adenoidectomia é indicada nos casos recidi-
vantes, nos que se acompanham de grande RINO – SINUSITE
obstrução nasal, e nas formas complicadas: otite
aguda de repetição, otite média com derrame Vital Calado
persistente, ou associadas a complicações do trac-
to respiratório inferior.
Ocorre em crianças sujeitas a um regime de vida Rinite (termo sinónimo de coriza) é definida como
que as expõe a agressões ambientais e infecciosas a inflamação aguda ou crónica das fossas nasais a
(creches, infantários, exposição frequente a qual origina como sinais predominantes rinorreia
lareiras, pais que fumam em casa), com antece- e obstrução nasal.
dentes de atopia, ou com hipertrofia adenoideia. A rino-sinusite é um processo de inflamação da mu-
Tais crianças têm uma rinorreia anterior e poste- cosa naso-sinusal. Pode ser classificada de acordo
rior persistente que vai da hidrorreia ao exsudado com a sua evolução temporal e a intensidade dos sin-
francamente purulento; são frequentes os episó- tomas, em aguda, subaguda, crónica ou recorrente.
dios febris e a roncopatia. A rino-sinusite aguda caracteriza-se por sinais
O tratamento consiste no afastamento dos fac- e sintomas de infecção aguda das vias respi-
tores agressivos, limpeza nasal com soro fisiológi- ratórias superiores, que duram mais do que 10
co ou “água do mar” tratada e antialérgicos se dias e menos do que três semanas. Na sinusite
indicado. A colheita do exsudado nasofaríngeo crónica os sintomas persistem por mais de três
evitando a contaminação cutânea à passagem do meses, enquanto na subaguda duram entre 3 se-
estilete é útil, demonstrando, muitas vezes, a pre- manas a três meses.
sença de mais de uma bactéria patogénica. A ade- É importante referir, a propósito, que o nariz e
noidectomia tem indicação na presença de com- os seios perinasais são revestidos por um epitélio
plicações nos órgãos vizinhos (otites, sinusites ciliado pseudo-estratificado. Tendo em conta que
persistentes ou laringo-tráqueo-bronquites), ou de existe uma identidade anatómica e funcional entre
obstrução nasal persistente (Capítulo 29). a mucosa nasal e a sinusal e que ambas estão em
continuidade, a inflamação sumultânea destas
BIBLIOGRAFIA mucosas é muito frequente, razão pela qual é
(Em conjunto com o capítulo 78). preferível a designação de rino-sinusite. Portanto,
relativamente ao termo sinusite há que ter pre-
sente este conceito.
Os agentes patogénicos infecciosos mais fre-
quentemente associados a rinite são os rinovírus.
Na sinusite predominam as bactérias.
Neste capítulo é abordada a sinusite de causa
infecciosa bacteriana.
Etiopatogénese
lheita do meato médio, que por punção sinusal Também outras doenças sistémicas como a
são: S. pneumoniae, H. influenzae, Moraxella fibrose quística, a síndroma de cílio imóvel, a sín-
catarrhalis, S. aureus e Streptococcus pyogenes. droma de Down e os estados de imunodeficiência
Na sinusite crónica, predominam os Strepto- constituem importantes factores de risco. A rinite
coccus aneróbios, os Bacteróides sp e os Fusobacterium alérgica, a asma e a sinusite estão intimamente
sp. associadas. A poluição, o fumo passivo, a
A integridade da mucosa naso-sinusal, assim exposição a lareiras e a inalação de irritantes con-
como o bom funcionamento dos mecanismos de tribuem também para a eclosão ou manutenção da
transporte mucociliar, são essenciais para a sinusite.
manutenção de uma fisiologia normal. Todos os Como factores locais são de salientar os póli-
factores que alteram a composição da camada do pos nasais, os corpos estranhos, os desvios do
muco ou o funcionamento dos cílios favorecem a septo nasal, as anomalias anatómicas do meato
infecção. médio, os traumatismos, as infecções das amíg-
É importante também que a ventilação e a dalas e das adenóides.
drenagem dos seios sejam adequadas e que os Salienta-se que cerca de 14% das crianças com
orifícios de drenagem estejam funcionantes. sinusite crónica têm deficiência de IgA, de IgG ou
A unidade ostiomeatal constitui a zona chave subclasses, sindroma de cílio imóvel ou mucovis-
de toda a fisiologia dos seios: é o espaço para onde cidose. O refluxo gastresofágico está muitas vezes
drenam os seios frontais, os seios etmoidais ante- presente nas sinusites crónicas ou resistentes ao
riores e os maxilares. Corresponde a uma zona tratamento médico.
complexa e bastante estreita nas crianças, que
pode facilmente ser obstruída por edema infla- Manifestações clínicas e diagnóstico
matório da mucosa, secreções espessas, pólipos,
ou alterações anatómicas. A obstrução dos ostia Na sinusite aguda os sintomas são idênticos aos
produz dificuldades de ventilação e drenagem de uma infecção aguda por vírus das vias aéreas
dos seios, retenção de secreções e pressão negati- superiores: obstrução nasal, rinorreia anterior e
va intra-sinusal que facilita a aspiração de bac- posterior, febre, mal estar de expressão facial, e
térias patogénicas para dentro dos seios com con- tosse. Pode ser difícil o diagnóstico diferencial
sequente infecção. baseado na clínica, quer com a rinite por vírus,
A sinusite aguda é muitas vezes precedida de quer com a rinite alérgica. Se os sintomas forem
uma infecção por vírus, que prepara o terreno mais marcados do que um simples resfriado (febre
para a infecção bacteriana. Na sinusite crónica ou alta, edema peri-orbitário), durarem mais de 10
na recorrente predominam os factores gerais ou as dias ou se se agravarem alguns dias após o início,
anomalias locais. é provável que o diagnóstico seja de rino-sinusite
Os seios mais afectados são, por ordem decres- aguda bacteriana.
cente, os maxilares, os etmoidais e os esfenoidais. Na sinusite crónica existe obstrução nasal,
Os seios frontais só são afectados a partir dos 7 rinorreia purulenta anterior e posterior, tosse per-
anos. Muitas vezes há um processo de poli ou de sistente, mau hálito e dor faríngea. Muitas vezes
pansinusite. verifica-se otite sero-mucosa acompanhante. A
dor de expressão facial franca é rara na criança. Os
Factores de risco sintomas persistem por mais de 3 meses.
Prognóstico
Prevenção
BIBLIOGRAFIA
Brook I. Acute sinusitis in children. Pediatr Clin North Am
CAPÍTULO 75 Otite média aguda 427
75
com infecções víricas das vias respiratórias supe-
riores têm OMA.
Os vírus podem ser isolados em cerca de 20-30%
dos exsudados do ouvido médio, destacando-se
como de maior prevalência rinovírus, vírus sincicial
respiratório, influenzae e parainfluenzae, ade-
OTITE MÉDIA AGUDA novírus e coronavírus . A otite média aguda pre-
domina nos meses frios, quando as infecções por
Vital Calado vírus das vias aéreas superiores são mais frequentes.
A disfunção da trompa de Eustáquio desem-
penha um papel central na eclosão da otite.
Poderá resultar de uma agressão vírica que con-
Definição e importância do problema duz a obstrução da trompa por congestão da
mucosa ou por existirem factores anatómicos ou
A otite média aguda (OMA) pode ser definida fisiológicos desfavoráveis. Como consequência
como uma infecção aguda da mucosa do ouvido surge um défice de ventilação do ouvido médio.
médio (incluindo trompa de Eustáquio, cavidade A reabsorção do ar contido nesse espaço gera uma
do ouvido médio e mastóide), de instalação súbi- pressão negativa que contribui para a aspiração,
ta, acompanhando-se de sinais e sintomas tais através da trompa, dos germes patogénicos que
como otalgia e febre. colonizam o cavum faríngeo, com localização espe-
É uma doença com elevada prevalência em cial nas adenóides. O facto de a trompa de
idade pediátrica, sobretudo entre os 6 e os 11 Eustáquio nas crianças ser mais curta, mais hori-
meses de idade, decrescendo à medida que a zontal e flácida do que no adulto, favorece tam-
idade avança. Por volta dos três anos de idade bém o refluxo das secreções infectadas para o
cerca de 45% das crianças terão tido já 3 ou mais ouvido médio. Em certos casos a infecção pode
episódios de otite. fazer-se por via hematogénica ou através de per-
Fala-se em otite recorrente quando ocorrem furação do tímpano. Os vírus constituem um fac-
pelo menos 3 episódios de OMA em seis meses ou tor predisponente para a infecção bacteriana*.
4 ou mais num ano.
Trata-se da segunda doença infecciosa mais fre- Factores de risco
quente na criança e a principal causa de perda auditi-
va e de prescrição de antibióticos no nosso meio. Daí A idade constitui um factor de risco de OMA.
o enorme impacte social e económico que comporta. Quanto mais precoce for a otite maiores são as
possibilidades de recorrência. Um primeiro episó- A otoscopia é, pois, essencial. Deve ser feita
dio de otite antes dos seis meses constitui factor de com a criança confortavelmente sentada ao colo
mau prognóstico. da mãe, sobretudo se tiver menos de 3 anos, bem
Outros factores de risco incluem alergia, imobilizada e com otoscópio de luz de halogénio.
défices imunitários, fenda palatina, anomalias O canal externo deve ser limpo de detritos e de
crânio-faciais, factores genéticos e frequência de cerúmen. O espéculo deve ter um diâmetro apro-
infantários, sobretudo os superlotados com di- priado ao conduto e não deve ser introduzido pro-
mensões exíguas e funcionando em condições pre- fundamente para não lesar a fina pele do canal.
cárias de higiene. Também o fumo passivo, ambi- Sobre o critério 3 – podemos observar, de acordo
entes poluídos, a climatização artificial alterando com a evolução da doença, hiperémia difusa do
a temperatura e humidade dos espaços comuns, a tímpano e cabo do martelo (Figura 1), desapareci-
não alimentação com leite materno, o baixo nível mento do reflexo luminoso, hiperémia radiária,
socioeconómico e uso de chupeta parecem favore- edema e perda de caracteres, hiperémia e abaula-
cem a infecção. mento da membrana, traduzindo exsudado sob
pressão dentro da caixa, ou perfuração com saída
Manifestações clínicas de pus. A valorização dos dados otoscópicos é
difícil, sobretudo nos lactentes*. Outros exames
Os sintomas variam conforme a fase da doença e a complementares, habitualmente do domínio do
idade do doente. O sintoma mais específico da especialista de ORL, poderão ser utilizados: tim-
OMA é a otalgia. Em geral há otalgia moderada, panometria/timpanograma (exame seguro no
hipoacúsia e febre. Pode haver autofonia e diagnóstico de derrame na caixa do tímpano)
acufenos. Como a otite coincide muitas vezes com (Figura 2 evidenciando três dos padrões gráficos
infecções por vírus do tracto respiratório superior, mais representativos, entre outros), reflectometria
tal como foi referido antes, poderá haver obstrução acústica, otoscopia pneumática, etc..
nasal, rinorreia anterior e posterior, e tosse.
Nos lactentes predomina a febre, a irritabili-
dade e os sintomas gastrintestinais. A dor expres-
sa-se muitas vezes pelo choro ou pela recusa ali-
mentar. Por vezes a criança aparentando sofri-
mento ou mal estar ,adopta a posição de pescoço
em flexão lateral, com elevação do ombro homo-
lateral e palma da mão sobre o ouvido. Se a
doença progredir, há aumento da pressão do pus
no ouvido médio, o tímpano pode perfurar e ini-
ciar-se um período de otorreia. Com a saída do
pus a dor acalma e os sintomas gerais atenuam-se.
A cura ocorre naturalmente, ou pela acção
medicamentosa.
Diagnóstico
FIG. 1
O diagnóstico de OMA baseia-se fundamental- Otite média aguda. Fase de hiperémia (Otoscopia).
mente em três critérios:1- início abrupto de sinais
e sintomas de inflamação do ouvido médio; 2-
*Por razões históricas, justifica-se mencionar dois sinais utilizados em
presença de derrame/efusão no ouvido médio décadas passadas, os quais são falíveis: – sinal de Vachez ou dor desen-
demonstrada por qualquer dos seguintes sinais: cadeada por compressão do tragus; sinal de Savulesco ou dor desperta-
da por ligeira compressão da ponta da mastóide. NB → A hiperémia iso-
abaulamento, imobilidade ou hipomobilidade do lada do tímpano na criança com febre não constitui critério diagnóstico
tímpano, ou otorreia; 3- eritema/hiperémia do fidedigno de OMA; poderá, sim, ter origem num processo inflamatório
tímpano ou otalgia. com origem na pele que forra o canal auditivo externo.
CAPÍTULO 75 Otite média aguda 429
cefuroxima axetil (30-40mg/kg/dia em 2-3 tomas), gmoideu(seio lateral), a terceira porção do nervo
o cefaclor (30-50 mg/kg/dia em 2-3 tomas) e a cefix- facial no seu trajecto intrapetroso, e o labirinto
ima (8-12 mg/kg/dia em 1-2 tomas). posterior. Por outro lado, poderá verificar-se exte-
Nos casos de alergia à penicilina recorre-se aos riorização da infecção intra-óssea para o espaço
macrólidos (eritromicina 50 mg /kg/dia em 7-10 subcutâneo com consequente abcesso subcutâneo.
dias nas crianças com menos de 6 meses; azitro- Tais eventos patológicos poderão originar diver-
micina 10 mg /Kg/dia, dose diária durante 3 dias sos quadros clínicos: meningite, paralisia do nervo
nas crianças com mais de 6 meses). facial, abcesso,labirintite, etc..
A ceftriaxona tem sido recomendada ultima- Na era actual o prognóstico em geral é bom
mente por vários autores como tratamento das pressupondo diagnóstico e tratamento correctos e
otites resistentes ou recorrentes, na dose de 50-80 precoces.
mg/kg/dia, em injecção única intramuscular
diária durante 3 a 5 dias seguidos. A droga alcança Prevenção
altas concentrações no ouvido médio sendo,
assim, bastante eficaz. É importante reduzir ao mínimo os factores de
Em certas situações o tratamento médico é risco já referidos, assim como tratar e corrigir cor-
insuficiente e há que recorrer a tratamento cirúrgi- rectamente todas as situações agudas para se evi-
co. A paracentese do tímpano (miringotomia) com tar as recorrências e as complicações.
aspiração do exsudado do ouvido médio está indi- A prevenção prolongada (6 meses) com
cada nos casos de otalgia intensa com sinais muito antibióticos tem sido preconizada, sobretudo para
marcados de infecção, otites de repetição resis- a otite recorrente. Esta questão é polémica.
tentes à terapêutica médica, ou presença de com- As vacinas contra S. pneumoniae, têm-se revela-
plicações como a paralisia facial ou meningite. do úteis para prevenir as infecções provocadas
por essa bactéria contribuindo para diminuir a
Complicações e prognóstico prevalência atrás referida, embora de modo não
muito significativo (< 6-8%). De salientar que
Na infecção aguda do ouvido médio podem ocor- ainda não existem vacinas verdadeiramente efi-
rer complicações locais tendo em conta as relações cazes contra a maioria dos agentes patogénicos
anatómicas de vizinhança com estruturas deli- que causam OMA.
cadas, ou complicações gerais tal como em qual- Os tubos transtimpânicos (timpanostomia) e a
quer outra infecção. Embora estas últimas sejam adenoidectomia são recomendados para prevenir
hoje raras, poderão desenvolver-se designada- os casos graves de otites recorrentes.
mente em situações de imunodeficiência, ou de
agentes microbianos particularmente virulentos. BIBLIOGRAFIA
A complicação mais frequente é a perfuração (em conjunto com o capítulo 76).
timpânica persistente, com ou sem destruição de
parte da cadeia dos ossículos; a consequência será
surdez de tipo transmissão. Qualquer perfuração
que não respeite os limites da membrana do tím-
pano na porção mais alta – membrana de Shrapnell
– incorrerá no risco de epidermização invasiva do
ouvido médio a partir do canal auditivo externo, o
que comporta a probabilidade de ulterior processo
crónico e aparecimento de colesteatoma.
A mastoidite é hoje uma complicação rara. Con-
tudo cabe referir que a destruição dos tabiques
ósseos e a colecção de pus transformam o osso
numa cavidade cujas paredes estão em íntimo
contacto com a meninge, o seio cavernoso si-
CAPÍTULO 76 Otite sero-mucosa 431
76
cia para resolução espontânea, a mesma poderá
somente ter lugar 3-4 anos após início das mani-
festações tendo como critério o padrão tim-
panográfico avaliado de modo seriado(passando
de tipo B para tipo não B (Capítulo 75).
Admite-se que o facto de terem sido detec-
OTITE SERO-MUCOSA tadas bactérias intracelulares em 36% das biópsias
da mucosa do ouvido médio em doentes com
Vital Calado OSM poderá explicar a tendência para a cronici-
dade pela organização das bactérias em biofilmes
(ver Glossário geral).
O processo começa muitas vezes por uma otite
Definição e importância do problema média aguda com derrame purulento que provo-
ca alterações na mucosa do ouvido médio e da
A otite sero-mucosa (OSM) pode definir-se como trompa; o derrame ao ser esterilizado pela acção
uma inflamação subaguda ou crónica da mucosa dos antibióticos, não é eliminado ou reabsorvido*.
do ouvido médio, a tímpano fechado, que cursa Noutros casos a disfunção resulta de alterações
com derrame líquido, não purulento, de duração anatómicas ou funcionais. O mau funcionamento
superior a 8 semanas. Na actualidade é mais fre- tubário compromete a ventilação e a drenagem do
quentemente designada por otite média com der- ouvido médio, dando origem a uma pressão nega-
rame (OMD) ou efusão. tiva na caixa timpânica. Secreções infectadas exis-
O derrame pode ser seroso (fino, aquoso, tentes no cavum podem, assim, ser aspiradas para
dourado), mucoso/mucóide (espesso, viscoso, o ouvido médio e o processo reactivar-se.
tipo cola) ou sero-mucoso. Se crónico, pode conter A inflamação, a falta de arejamento, e a pressão
cristais de colesterina (capítulo 75). negativa do ouvido médio devida à reabsorção do
Trata-se de uma doença de elevada prevalên- ar, levam a alterações estruturais da mucosa
cia nas idade pediátrica. A incidência máxima traduzidas por um infiltrado celular composto
situa-se entre os 2 e 5 anos de idade. Em cerca de por macrófogos, fibroblastos e neutrófilos. Este
80% dos casos é bilateral. complexo processo gera a formação de uma gran-
de quantidade de glândulas produtoras de muco
Etiopatogénese que segregam constantemente para o interior do
ouvido médio. Com o tempo, por acção enzimáti-
A etiopatogénese é incerta. Ao agentes micro- ca, a membrana timpânica sofre um processo de
bianos implicados sobrepõem-se aos da OMA. No atrofia e de adelgaçamento. A mesma fica menos
entanto, é de salientar o isolamento de Helicobacter resistente às variações de pressão, pode deprimir-
pylori em cerca de 15% dos derrames e de se e, inclusivamente, colar-se ao fundo da caixa.
Alloiococcus otitidis em cerca de 48%, de acordo
com diversos estudos. Factores de risco
Reportando-nos ao que é referido sobre classi-
ficação e terminologia no capítulo 75, pode con- São considerados factores de risco de OSM os con-
cluir-se que existe estreita relação entre OMA e siderados para a OMA as infecções frequentes do
OSM no que respeita à história natural que, con- tracto respiratório superior, a alergia, o barotrauma-
tudo, tem pontos controversos. tismo, a disfunção da trompa de Eustáquio, a idade
Tendo em consideração determinados estudos do primeiro episódio de otite, a frequência de infan-
epidemiológicos, após um episódio de OMA trata- tários superlotados, o fumo passivo, os estados de
do com antibióticos ocorre OSM/OMD em 70% imunodeficiência e o baixo nível económico e social.
dos casos (40% após 1 mês, 20% após 2 meses e
10% após 3 meses). Por outro lado, diversas *Abstraindo a designação de OSM/OMD, de facto, o derrame neste con-
metanálises concluiram que, embora haja tendên- texto pode ser seroso, mucóide, seropurulento ou mucopurulento.
432 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A OSM é frequente nas crianças com ade- O tímpano está geralmente deprimido, com o
noidites de repetição, rinossinusites e otites recor- cabo do martelo horizontal, aspecto opaco, róseo-
rentes. amarelado claro (Figura 1), e hiperémia difusa e
Também as anomalias crânio-faciais, a síndro- radiária. Nalguns casos pode observar-se níveis
ma de Down e a fenda palatina (completa ou sub- hidro-aéreos ou bolhas de ar no ouvido médio
mucosa) constituem importantes factores de risco. através da transparência do tímpano. Os sinais
Quase todas as crianças com fenda palatina têm são geralmente bilaterais.
OSM devido a disfunção da trompa de Eustáquio. O timpanograma é um exame essencial para con-
firmar a presença de líquido no ouvido médio. Na
Manifestações clínicas otite sero-mucosa arrastada o traçado é aplanado.
O audiograma revela sinais de surdez de
Ao contrário do que se passa com a otite média transmissão de grau variável, em média de 25 a 30
aguda, as crianças com OSM não apresentam sinais dB, mas a perda pode ser muito maior.
e sintomas de infecção aguda tais como otalgias A endoscopia nasal poderá evidenciar um
intensas, febre ou mal estar. desvio do septo nasal, edema alérgico dos cornetos,
Pode ser assintomática ou revelar-se por perda pus nos meatos médios ou hipertrofia das adenóides.
de audição, perturbações do equilíbrio, alterações
do comportamento, atraso no desenvolvimento da Tratamento
fala e da linguagem e maus resultados escolares.
Em certos casos não é possível identificar pela Têm sido tentadas várias modalidades de trata-
história clínica o momento do início da doença. A mento da OSM, em geral sem qualquer eficácia.
evolução pode ser tão insidiosa que os pais das Os casos agudos podem resolver-se pela acção de
crianças ficam surpreendidos quando é feito o dia- antibióticos, descongestionantes nasais ou anti-
gnóstico de OSM. Noutras situações há um episódio inflamatórios.
agudo ou recorrente, otite ou rinite, que desen- Nas situações crónicas o problema é mais com-
cadeia os sintomas. A criança começa a ficar desaten- plicado. De notar que cerca de 10% das otites agu-
ta, apresenta alterações de comportamento, sobretu- das tratadas com antibiótico apresentam ainda um
do irritabilidade, aumenta o volume do som da tele- derrame intratimpânico, passados 3 meses. É pre-
visão, e pede para repetirem as palavras. Se a situa- ciso, por isso, vigiar e saber esperar. É possível
ção se prolongar sem que seja identificada, poderão
surgir problemas de aprendizagem da fala e da lin-
guagem e perturbações do rendimento escolar.
Diagnóstico
identificar uma bactéria patogénica (sobretudo H. eliminação dos factores de risco diagnosticados, o
influenzae ou Moraxella) em cerca de 30% dos der- correcto tratamento das infeccções das vias aéreas
rames. Poderá tentar-se tratamento com amoxicili- superiores e a otoscopia de controlo.
na / clavulânico. A tentação de prosseguir com
outros antibióticos com maior espectro de acção BIBLIOGRAFIA
deve ser desencorajada, por ser ineficaz. (referente aos Capítulos 75 e 76)
Os anti-inflamatórios, os mucolíticos e os corti- Alper CM, Bluestone CD,Casslbrant ML,Dohar JE (eds).
costeróides têm um efeito diminuto na evolução Advanced Therapy of Otitis Media. London: BC Decker
da OSM crónica. Os anti-histamínicos só devem Inc, 2004
ser usados quando existem sinais de alergia com- Baum ED. Tonsilectomy and adenoidectomy and myringoto-
provada. my with tube insertion. Pediatr Rev 2010; 31: 417-426
Se a situação não se resolver, o tratamento Brackmann DC, Shelton C, Arriaga (eds). Otologic Surgery.
recomendado consiste na aplicação de tubos de Philadelphia. Saunders, 2004
ventilação transtimpânica (timpanostomia) nos Bluestone CD, Klein JO (eds). Otitis Media in Infants and
casos em que o derrame tem duração superior a Children. Philadelphia: Saunders, 2001
3/4 meses, a perda de audição é superior a 25/30 Gould JM, Matz PS. Otitis media. Pediatr Rev 2010; 31:102-116
dB, ou existe já atrofia do tímpano, bolsas de Hall-Stoodley L, Hu FZ, Gieske A, et al. Direct detection of bac-
retracção ou ameaça de colesteatoma. terial biofilms on the middle – ear mucosa of children with
Os tubos têm a finalidade de promover a ven- chronic otitis media. JAMA 2006; 296: 202-211.
tilação e facilitar a drenagem do ouvido médio. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
São expulsos espontaneamente em geral ao cabo Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
de 6 meses a um ano. As crianças devem evitar a Saunders, 2011
entrada de água nos ouvidos durante o banho Lambert E, Roy S. Otitis media and ear tubes. Pediatr Clin
para se prevenir a infecção. Devem usar tampões North Am 2013; 60: 809 - 826
auriculares e bandas de protecção. O mergu- Lieberthal AS, Carroll AE, Chronmaitree T, et al. The diagnosis
lho(mar, piscinas) deve ser proibido. A adenoidec- and management of acute otitis media. Pediatrics 2013; 131:
tomia é feita muitas vezes no mesmo tempo ope- e964-e999
ratório que a aplicação dos tubos. McInerny T(ed). Tratado de Pediatria/American Academy of
Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010
Complicações e prognóstico Pichichero ME. Otitis media. Pediatr Clin North Am 2013; 60:
391-408
A otite sero-mucosa não tratada pode dar origem Spiro DM, Tay KY, Arnold DH, et al. Wait and see prescription
a complicações graves. A atrofia do tímpano e a for the treatment of acute otitis media. JAMA 2006; 296:
pressão negativa no ouvido médio geram os 1235-1241
mecanismos que conduzem à depressão timpâni- Robb PJ. Otitis media with effusion in children:current man-
ca, bolsas de retracção, erosão da cadeia ossicular, agement. Paediatrics and Child Health 2011; 22: 9-12
otite adesiva e colesteatoma. A audição pode ficar Ruah C, Ruah S. Otite Média. Lisboa:Lidel, 2010
gravemente comprometida. Por outro lado, a Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
membrana timpânica atrófica está em grave risco AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
de perfurar se surgir otite aguda. Medical , 2011
A aplicação dos tubos não resolve todos os Valtonen H, Tuomilehto H, Qvarnberg Y, et al. A 14-year
problemas. De facto, ulteriormente poderão surgir prospective follow-up study of children treated early in life
infecções e perfuração do tímpano. Certos doentes with tympanostomy tubes. Part 2: Hearing outcomes. Arch
terão que ser submetidos a mais do que uma tim- Otolaryngol Head Neck Surg 2005; 131: 299-303
panostomia.
Prevenção
77
a ser transformada numa grande cavidade
abcedada, cerca de 2 semanas após OMA.
A dificuldade de drenagem do pus acumulado
pode levar à exteriorização da infecção pela área
cribiforme ou pela fissura timpanomastoideia,
com sinais inflamatórios cutâneos da região mas-
OTOMASTOIDITE AGUDA toideia, apagamento do sulco retroauricular e
empurramento para diante do pavilhão auricular,
Maria Caçador, Carlos Ruah tradução semiológica de otomastoidite aguda. Se
o processo se estender ao periósteo forma-se um
abcesso do subperiósteo e periostite.
Nas últimas duas décadas foram realizados
Definição vários estudos para identificação dos agentes
implicados nos casos de otomastoidite aguda. Ao
Otomastoidite aguda é definida como processo contrário do que se poderia esperar os resultados
inflamatório agudo da mastóide, num doente sem não foram sobreponíveis aos dos estudos dos
história de otite média crónica purulenta simples agentes implicados na OMA. Os microrganismos
ou colesteatomatosa. mais frequentemente isolados foram Streptococcus
pneumoniae, Streptococcus pyogenes, Staphylococcus
Aspectos epidemiológicos aureus e Staphylococcus aureus coagulase negativo.
Estes resultados têm implicações práticas
A referida situação é mais frequente em crianças com importantes: o antibiótico escolhido na terapêutica
idade inferior a 8 anos podendo, contudo, ocorrer em inicial da otomastoidite aguda, enquanto se aguar-
qualquer idade. Um terço dos doentes com o dia- da o resultado dos exames culturais, deverá ter
gnóstico de otomastoidite aguda apresenta história uma potente acção anti-estafilocócica, para além
prévia de otite média aguda (OMA) de repetição. de dever incluir no seu espectro terapêutico os
A incidência de otomastoidite aguda diminuiu agentes mais frequentemente implicados na OMA
com a introdução da antibioticoterapia na tera- (Haemophilus influenzae e M. catarrhalis).
pêutica da OMA (de uma incidência de 0,4% dos
episódios de OMA a desenvolverem otomastoidite Manifestações clínicas
na década de 60, para 0,004% na passada década
de 90). Nos últimos anos, contudo, tem-se verifica- O quadro clínico da otomastoidite aguda é carac-
do um aumento do número de internamentos por terizado por sintomas otológicos sugestivos de
otomastoidite aguda. A explicação para este facto OMA, seguidos pelo aparecimento de sinais infla-
parece ser, por um lado, o aumento de resistências matórios sobre a mastóide (dor, eritema e edema
aos antibióticos pelo abuso destes fármacos e, por retroauricular, apagamento do sulco retroauricu-
outro lado, a redução do número de miringoto- lar com deslocamento do pavilhão para a frente e
mias durante os episódios de OMA. para baixo, e abaulamento da parede póstero-
superior do canal auditivo externo). Os sinais
Etiopatogénese inflamatórios surgem habitualmente entre o 4º e o
10º dia após o início das queixas otológicas, po-
Todos os doentes com OMA apresentam infla- dendo esse período variar de 1 a 60 dias. A febre
mação da mucosa da mastóide, com ou sem der- faz geralmente parte do quadro clínico, apesar de
rame. Quando o processo inflamatório, a nível da a sua ausência não excluir o diagnóstico.
mastóide, ultrapassa o mucoperiósteo e envolve o Para a confirmação diagnóstica e detecção pre-
osso, verifica-se desmineralização e erosão dos coce de complicações intracranianas, a maioria
septos das células mastoideias, com a formação de dos autores defende a utilização, por norma, de
empiema intramastoideu. Esta fase é descrita tomografia computadorizada (TC) do ouvido e
como otomastoidite coalescente, com a mastóide crânio-encefálica. Para o diagnóstico radiológico
CAPÍTULO 77 Otomastoidite aguda 435
78
de pediátrica podem classificar-se em infecciosas
(epiglotite, laringite espasmódica ou estridulosa,
laringite subglótica e laringo-tráqueo-bronquite
ou falso “croup”), químicas (refluxo gastresofági-
co, ingestão de caústico), traumáticas (entubação,
corpo estranho) e alérgicas.
PATOLOGIA INFLAMATÓRIA 5) Discute-se se a laringite, para além da etio-
logia infecciosa (vírica ou bacteriana) poderá
LARÍNGEA traduzir hiperreactividade da via aérea.
Neste capítulo são descritas três entidades
Carlos Ruah clínicas representativas da patologia inflamatória
da laringe, salientando-se que na literatura médi-
ca existe variabilidade na terminologia, desi-
gnadamente anglófona e francófona.
Importância do problema
sentada com hiperextensão do pescoço e incli- da febre não constitui critério para se manter a
nação do tronco para diante para melhorar a res- entubação. Assim, em regra procede-se extubação
piração, e tem uma voz “abafada” pelo edema ao fim de 48 horas do início da terapêutica.
supraglótico.
79
muscular benzathine penicillin G in low-resource settings:a
randomized controlled trial. Clinical Pediatrics(Phila) 2011;
50:535-542
Ruah S, Ruah C. O complexo faríngeo. In Ruah S, Ruah C,
Manual de Otorrinolaringologia vol. V Lisboa: edições
Laboratórios Roche, 2001
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AVALIAÇÃO AUDIOLÓGICA
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Medical, 2011 Luísa Monteiro
Scolnik D, Coates A, Stephens D et al. Controlled delivery of
high vs low humidity vs mist therapy for croup in emer-
gency departments. JAMA 2006; 1274-1280
Swedo S E, Leonard H L, Garvey M, Mittleman B, et al. Introdução
Pediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associat-
ed with streptococcal infections. Am J Psychiatry, 1998; 155: Função auditiva
264-271 A audição é uma função complexa que resulta da
integração central (e interpretação) dos sons pre-
viamente captados e processados pelo órgão peri-
férico, sendo o sinal transmitido pela via auditiva
ao córtex auditivo. Qualquer som será analisado
nas suas três principais dimensões: frequência,
amplitude e tempo. A via auditiva está completa-
mente desenvolvida na data do nascimento; no
entanto,sofre complexos fenómenos de ma-
turação. Com efeito, a plasticidade do sistema ner-
voso central permite que, por exposição ao som,
haja um desenvolvimento de conexões neuronais
a nível cortical até aos seis meses de idade. A via
auditiva sofre também maturação ao longo dos
primeiros anos de vida. Inicialmente os tempos de
condução nervosa estão diminuídos, atingindo os
valores dos adultos cerca dos dezoito meses de
idade.
O Quadro 1 refere os apectos mais significa-
tivos do desenvolvimento da via auditiva e o
Quadro 2 a relação entre audição e linguagem.
Surdez infantil
Considera-se surdez significativa a hipoacusia
permanente, superior a 40 decibeis (dB), nas fre-
quências conversacionais, no melhor ouvido.
Esta definição tem em conta que, a partir
destes valores, a hipoacusia tem repercussões ne-
gativas na aquisição de linguagem e no desen-
volvimento de competências comunicativas da
criança. Existem vários graus de hipoacusia:
ligeira, moderada, grave e profunda, correspon-
dendo a dificuldades crescentes de comunicação
audio-verbal.
440 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Desenvolvimento da Via Auditiva mente períodos mais ou menos longos (semanas,
meses ou anos) em que as crianças sofrem de
• Nos RN a via auditiva periférica está completamente hipoacusia de transmissão, bilateral ou unilateral,
desenvolvida. o que influencia o seu desenvolvimento. Estes
• O sistema auditivo é modelado durante o 1º ano de períodos correspondem a episódios de otite serosa
vida pela experiência auditiva, sobretudo pela (otite com efusão ou otite com derrame) os quais
exposição à fala. podem decorrer com hipoacusia de transmissão
• Embora as crianças só produzam palavras reco- de grau variável até 40dB, e que é reversível.
nhecíveis ao ano de idade, podem reconhecer nomes O Quadro 3 caracteriza os diferentes graus de
de objectos familiares, entoar a fala e exercer funções deficiência auditiva em relação a perda tonal mé-
auditivas muito sofisticadas muito antes de produzir a dia.
sua própria fala.
• Ao nascer,o sistema auditivo periférico possui as Importância do problema
capacidades semelhantes às do adulto, pronto a esta-
belecer as conexões neurais baseadas na experiência Estima-se que a incidência da hipoacusia infantil
auditiva.
significativa ocorra em 1-2/1000 recém-nascidos
• O tronco cerebral vai-se desenvolvendo ao longo dos
aparentemente saudáveis; trata-se da doença con-
dois primeiros anos.
génita mais frequente para a qual existe rastreio e
• A via auditiva periférica não possui plasticidade, mas
intervenção precoce. Reconhece-se a existência de
esta é mantida a nível do SNC.
factores de risco que podem aumentar a incidên-
cia de surdez.
QUADRO 2 – Audição e Linguagem Em determinadas situações de maior risco de
hipoacusia a incidência pode aumentar para
• A fala é emitida em diferentes contextos (de timbre, 1/100 recém-nascidos. Grande parte dos factores
velocidade de produção). de risco relaciona-se com ocorrências
• O ser humano pode caracterizar os sons em fonemas e desfavoráveis durante o período perinatal (muito
palavras com grande fidelidade e exactidão, começan- baixo peso, prematuridade, hipóxia perinatal,
do estas capacidades a desenvolver-se após o nasci- sépsis, ototoxicidade, hiperbilirrubinémia grave,
mento. etc.). Em idade escolar a hipoacusia significativa
• A aquisição de linguagem perceptiva precede a lin- pode ter uma prevalência de 8 por cada mil
guagem expressiva. Os bebés aprendem a organização crianças.
dos sons na sua língua nativa na 2ª metade do 1º ano As causas genéticas correspondem a cerca de 30
de vida. % dos casos de surdez congénita, relacionável na
• Pequenas alterações da audição podem alterar a maioria dos casos com transmissão autossómica
aquisição e a percepção de linguagem (sobretudo em
condições de ruído - escolas) . QUADRO 3 – Graus de Deficiência Auditiva
dos. Prevê-se que nos próximos anos surjam objectivo final que consiste em diagnosticar e
critérios normativos para as diferentes característi- habilitar/reabilitar precocemente, apoiando as
cas técnicas dos mesmos. A eclosão destes progra- famílias nas suas decisões e necessidades. Estas
mas, cujo objectivo é o diagnóstico de hipoacusia equipas deverão incluir pediatras, otorrinolarin-
significativa antes dos 3 meses de idade e o início gologistas, audiologistas, enfermeiros, terapeutas
da reabilitação até aos 6 meses, permite a muitos de fala, professores de surdos, psicólogos, assis-
recém-nascidos usufruirem dos benefícios da inter- tentes sociais e administradores hospitalares, entre
venção precoce que se traduzem em níveis de outros. É evidente que novos desafios se perfilam
aquisição de linguagem superiores aos que iriam aos profissionais envolvidos nesta área, pois, como
adquirir se o diagnóstico continuasse a ser tardio. foi dito, os grandes objectivos são a identificação, o
De salientar que estudos publicados pelo grupo do correcto diagnóstico e o início de intervenção cada
Colorado vieram demonstrar que a idade de inter- vez mais precocemente; daí a necessidade de
venção (abaixo dos seis meses de idade) constitui o meios técnicos sofisticados e de treino específico
factor que mais positivamente influencia a reabili- na área da audiologia pediátrica.
tação e aquisição de linguagem para qualquer grau O Quadro 4, adaptado do Joint Committee on
de surdez. Infant Hearing discrimina os critérios considerados
A maioria dos rastreios é organizada em 3 de alto risco que determinam o rastreio da
fases, com início ainda na maternidade, nas audição
primeiras horas de vida. São utilizadas técnicas De salientar, a propósito, a filosofia expressa
automáticas, potenciais evocados automáticos ou pelo European Consensus on Infant Screening em
oto-emissões acústicas automáticas. 1998: “.... embora os sistemas de saúde na Europa
De acordo com as recomendações do GRISI variem de país para país em termos de organiza-
(ver adiante), na instituição onde se procede ao ção e financiamento, deverão ser postos em mar-
rastreio considera-se equipamento indispensável: cha, sem atrasos, programas de rastreio de
dois aparelhos, de OEA (de diagnóstico ou audição neonatal. Assim, serão dadas aos novos
automático) e/ou de PEATC (de diagnóstico ou cidadãos da Europa mais oportunidades e melhor
automático). qualidade de vida no próximo milénio”.
Os bebés que não “passam” ou não são con-
siderados “aptos” na primeira fase (por exemplo QUADRO 4 – Critérios de alto risco para
por existência de exsudado no ouvido médio, rastreio auditivo (RN em UCIN)
colapso ou obstrução do canal auditivo externo),
serão sujeitos à segunda fase do rastreio, geral- • História familiar de surdez infantil de origem heredi-
mente uma ou duas semanas depois. Pode uti- tária.
lizar-se a mesma técnica que foi utilizada na • Infecções intrauterinas tais como por citomegalovírus,
primeira fase, verificando-se que na maioria dos rubéola, sifílis, herpes e toxoplasmose.
casos o resultado será normal. Caso contrário, a • Anomalias craniofaciais, incluindo anomalias do
criança será encaminhada para uma consulta de pavilhão auricular e canal auditivo externo.
otorrinolaringologia e sujeita a estudo através da • Peso de nascimento < 1,5 Kg.
técnica de potenciais evocados auditivos diagnós- • Hiperbilirrubinémia não conjugada atingindo níveis
ticos e impedancimetria. Esta terceira fase, dia- que necessitam de exsanguinotransfusão.
gnóstica, deverá ter lugar até aos quatro meses. • Medicações ototóxicas, incluindo, designadamente
Os programas de rastreio auditivo deverão ser aminoglicosídeos, usados em terapêuticas múltiplas
integrados, apoiados por programas de reabili- ou em combinação com diuréticos de ansa.
tação/habilitação e estimulação precoce apropria- • Meningite bacteriana.
dos que envolvem a adaptação protética, a estimu- • Índice de Apgar de 0 a 4 ao primeiro minuto ou de 0 a
lação auditiva e verbal e, por vezes, a aplicação de 6 aos 5 minutos.
implantes cocleares. Há, por isso, necessidade de • Ventilação assistida durante cinco ou mais dias.
formar equipas multiprofissionais dotadas de • Estigmas associados a síndroma conhecida por se
meios técnicos apropriados, motivadas para o associar a hipoacusia sensorial ou de condução.
CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica 443
FIG. 6
Reflexos de Orientação Condicionada – A criança é
condicionada a olhar para o brinquedo cada vez que ouve o
estímulo sonoro; recebendo um reforço positivo, o boneco
começa a mexer-se e a luz acende-se.
FIG. 7
criança volte a cooperar, por vezes no dia se-
guinte. Audiometria Lúdica (condicionada por jogos) – A criança
Pelas limitações descritas, quando as respostas coloca uma peça do jogo se, e quando, ouvir o som teste.
não são claras e consistentes, há necessidade de
complementar as provas comportamentais com Há três tipos principais de resultados obtidos
provas fisiológicas, sendo cruzados os resultados pelo timpanograma: tipo A, B e C. No tipo A, o
de ambas as provas. gráfico corresponde a um ouvido normal, com
uma mobilidade normal do sistema timpano-
Provas fisiológicas ossicular; o segundo (B) corresponde a um
No grupo das provas fisiológicas consideram-se aumento significativo da impedância do ouvido
as seguintes modalidades: provas de impedância médio, com imobilidade da cadeia tímpano-ossi-
(incluindo o timpanograma e a prova dos reflexos cular, na maior parte das vezes correspondendo à
acústicos); a prova dos potenciais evocados audi- presença de derrame dentro do ouvido médio; o
tivos (incluindo uma nova modalidade designada timpanograma do tipo C corresponde a situações
por “potenciais estáveis” – ASSR ou Auditory intermédias, com pressões negativas dentro do
Steady State Response), e a prova das oto-emissões ouvido médio, por funcionamento anómalo da
acústicas. trompa de Eustáquio (Capítulo 75).
• Timpanograma • Prova dos reflexos acústicos
Esta prova permite avaliar as condições físicas Esta prova que perdeu a importância diagnós-
do ouvido médio (mobilidade da cadeia tímpano- tica que teve no passado, com a utilização genera-
ossicular, pressão dentro do ouvido médio, meio lizada das oto-emissões acústicas e dos potenciais
de transmissão do som: gás ou exsudados). evocados auditivos a referir adiante, testa a inte-
Deverá utilizar-se uma sonda de frequência 226 gridade da via auditiva (arco reflexo da via audi-
Hz a partir dos 4 meses de idade, e de 1000 Hz em tiva-nervo facial). O princípio utilizado é o
bebés até esta idade. seguinte: apresentando um som-teste de intensi-
CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica 447
dade superior ao limiar auditivo do ouvido (+ 60 cia de 11,3 por segundo). O estímulo auditivo
dB), desencadeia-se um reflexo que consiste na mais utilizado é um “click”, estímulo transitório
contracção dos músculos do ouvido médio, no com um espectro frequencial centrado entre 2 000
ouvido testado e no ouvido contralateral (reflexos e 4 000 Hz.
ipsi e contralaterais). Como principais limitações O computador analisa as ondas, extraindo a
citam-se: tempo exigido para o teste, durante o resposta eléctrica da via auditiva da actividade
qual a criança deverá estar imóvel; não poder ser eléctrica cerebral (EEG), sendo identificadas ondas
executada na presença de líquido no ouvido positivas (I, II, III, e complexo IV-V) que represen-
médio; e imobilidade da cadeia tímpano-ossicular. tam a activação de diversas zonas da via auditiva
A presença de reflexos normais significa normali- (Quadro 7) . A intensidade do estímulo vai depois
dade das duas vias testadas (aferente e eferente), sendo diminuída, em degraus de 10 dB, até que as
mas a sua ausência não permite a afirmação de ondas se vão extinguindo progressivamente.
hipoacusia. Quando a chamada onda V se extingue (geral-
• Potenciais evocados auditivos (PEA) mente a mais resiliente), verifica-se se o limiar
São provas que avaliam as variações dos auditivo se situa cerca desta intensidade. Este lim-
potenciais eléctricos entre vários pontos da super- iar corresponde ao limiar obtido por audiometria
fície da calote craniana em resposta a um estímu- comportamental entre os 2.000 e os 4.000 Hz. Com
lo auditivo aplicado a cada um dos ouvidos. esta prova não é possível a determinação de limi-
Podem designar-se, quanto à sua latência, em ares electrofisiológicos para as restantes frequên-
potenciais de curta, média e longa latência. Muitas cias. Além do limiar electrofisiológico, podem
vezes estes potenciais são denominados quanto à medir-se as latências das ondas e os intervalos
origem das ondas que examinam (ex: potenciais entre as ondas, o que permite um diagnóstico
evocados auditivos do tronco cerebral ou PEATC). topográfico das lesões da via auditiva, contribuin-
Tais provas exigem que o doente se encontre per- do para o esclarecimento etiológico da hipoacusia.
feitamente relaxado, preferencialmente adormeci- Esta prova tem elevadas especificidade e sensi-
do, havendo muitas vezes necessidade de recorrer bilidade, estando disponível na maioria das
à sedação ou anestesia. São de extrema utilidade, unidades de audiologia desde há décadas.
pois permitem confirmar os limiares auditivos Actualmente existem no mercado aparelhos
obtidos pelas provas comportamentais; em casos automáticos com algoritmos de decisão, em que o
de crianças muito jovens, não cooperantes ou com próprio aparelho procede à identificação das
deficiência, estas provas podem ser as únicas a ondas e à sua análise, dando resultados do tipo
fornecer dados acerca das capacidades auditivas. “Apto ou que passa”, ou “Inapto ou com proble-
As respostas obtidas deverão ser interpretadas ma” que exige esclarecimento, tal como foi
por um técnico treinado e relacionadas com a descrito a propósito dos rastreios.
clínica e com os resultados das restantes provas. • Otoemissões acústicas (OEA)
Os potencias evocados auditivos mais utiliza- Com esta prova são utilizados sons de fraca
dos na clínica audiológica pediátrica são os poten- intensidade com origem nas células ciliadas exter-
ciais evocados auditivos precoces, de curta latên- nas (cóclea) ocorrendo nos ouvidos normo-
cia ou do tronco cerebral (ERA, BERA, PEATC). A ouvintes, quer espontaneamente, quer em resposta
prova consiste no seguinte: são colocados eléctro- a estímulos auditivos. Podem classificar-se em OEA
dos na superfície da calote craniana sendo regista- espontâneas (sem utilização clínica), OEA evocadas
do o traçado electroencefalográfico (EEG) do (transitórias), e OEA de produtos de distorção.
doente, o que corresponde à actividade eléctrica Após a sua produção na cóclea estas ondas
de base. Registam-se as variações da actividade sonoras “caminham” por via retrógrada, fazendo
eléctrica recolhida pelos eléctrodos, após a apre- vibrar a cadeia tímpano-ossicular, transmitindo-se
sentação de um estímulo auditivo por meio de estas vibrações ao ar do canal auditivo externo
auscultadores a cada um dos ouvidos separada- onde serão detectadas por um microfone. Após
mente, sendo este som-teste repetido rapidamente processamento destas respostas obtêm-se valores
(por exemplo, repetido 2 000 vezes, a uma cadên- que serão representados graficamente e que
448 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
80
cada lado da linha média da face anterior do
tórax, desde as costelas superiores às inferiores.
A correcção desta situação consiste no tratamento
do raquitismo com vitamina D e, eventualmente, su-
plemento de cálcio (ver Capítulo 51 Parte Nutrição).
No âmbito do raquitismo, cabe referir, a propósito:
ANOMALIAS DA PAREDE 1.1 - o chamado “pulmão raquítico”, quadro
clínico hoje praticamente inexistente, associado às
DO TÓRAX síndromas de raquitismo grave e às infecções respi-
ratórias de repetição/pneumonias no contexto de
João M. Videira Amaral tal afecção. A etipatogenia relaciona-se com as
alterações da dinâmica respiratória associadas,
quer às deformações do tórax, quer à hipotonia
muscular acompanhante; as costelas, com défice de
Neste capítulo é feita uma abordagem de conjun- calcificação, não resistem às tracções musculares e
to de determinadas anomalias de conformação do compressões deixando- se deformar (Figura 1).
tórax, quer congénitas, quer adquiridas, as quais 1.2 - a cinta raquítica ou sulco de Harrison
poderão estar ou não associadas a outras ano- A tracção exercida pelo diafragma pode ocasion-
malias congénitas, em muitos casos fazendo parte ar, na parte inferior do tórax, um pouco acima do
de diversas síndromas plurimalformativas. rebordo costal, um sulco ou depressão horizontal que
se acentua durante a inspiração. Como o raquitismo
Tórax assimétrico se acompanha de hipotonia muscular, o abdómen,
consideravelmente abaulado, impele para fora as
Alguns lactentes, em especial com antecedentes costelas situadas abaixo das inserções diafragmáti-
de prematuridade, exibem nos primeiros meses cas, assumindo, nos casos mais típicos, a forma de
de vida, tórax assimétrico, em geral associado a tórax em sino. (ver Capítulo 59 Parte Nutrição).
assimetria da cabeça.
Trata-se de crianças que permanecem durante 2. Escorbuto
muito tempo em decúbito, sempre na mesma No caso do escorbuto (situação que nos países
posição, mais inclinadas para um lado do que desenvolvidos hoje pertence à história) existe tam-
para outro. A cabeça e o tórax cedem no lado com- bém rosário costal, no entanto com etiopatogénese
primido, achatando- se e perdendo a simetria. diferente da do raquitismo.
Para corrigir tal situação bastará mudar de vez
em quando a posição da criança no berço ou virá-
la para o lado oposto durante algum tempo, para
prevenir ou corrigir a deformação.
1. Raquitismo
O ponto de união costocondral palpa-se com faci-
lidade em muitos lactentes saudáveis nos primeiros
meses de vida; no entanto, não chega a ser visível.
No raquitismo encontra-se, por vezes já no
segundo trimestre, o chamado “rosário costal”,
designação clássica para traduzir a tumefacção
FIG. 1
esferóide “em conta de rosário” na junção osteo-
cartilaginosa das costelas; com efeito, à inspecção Padrão radiográfico de pneumonia no contexto de
notam-se nódulos arredondados dispostos de raquitismo grave (“Pulmão raquítico”) (NIHDE).
CAPÍTULO 80 Anomalias da parede do tórax 451
81
Neste período formam-se os bronquíolos res-
piratórios, os ductos alveolares e os alvéolos a par-
tir dos bronquíolos terminais.
– Período sacular (26ª-36ª semana)
Os eventos importantes deste período são o
crescimento das unidades para as trocas gasosas e
ANOMALIAS CONGÉNITAS a produção de surfactante alveolar.
– Período alveolar (a partir da 36ª semana)
DO SISTEMA RESPIRATÓRIO Neste período completa- se a formação das estru-
turas envolvidas na função respiratória continuando
Julião Magalhães e João M. Videira Amaral o crescimento da superfície de trocas gasosas.
choro. Por vezes a instalação do quadro é aguda. cardíaca pela elevada probabilidade de associação
As manifestações poderão surgir mais tarde, a anomalia cardiovascular.
na idade pré-escolar. Podem ocorrer pneumonias
recorrentes. Tratamento
O quadro clínico é explicável pela compressão
exercida pelo lobo afectado sobre o pulmão normal. Uma vez comprovado o diagnóstico, o tratamento
é cirúrgico .
Exames complementares Se o quadro for de instalação aguda, pode ser
e diagnóstico diferencial necessária uma toracotomia de urgência.
Se se demonstrar que a causa da insuflação é
Esta situação pode ser diagnosticada por ecografia broncomalácia, procede- se a lobectomia. Se exis-
no período pré-natal. tir compressão extrínseca, a intervenção tem como
Através da radiografia do tórax realizada per- objectivo retirar a causa: com a remoção da causa
ante manifestações de dificuldade respiratória o lobo afectado retomará a sua função normal.
torna-se evidente o sinal de hipertransparência na Se no pré-operatório se tornar indispensável
área do lobo afectado(em geral LSE) com herni- apoio ventilatório, deve ser utilizada ventilação
ação e desvio do mediastino para o lado oposto ; oscilatória de alta frequência.
a hemicúpula diafragmática homolateral está
aplanada (Figura 1). 2. QUISTO BRONCOGÉNICO
O diagnóstico diferencial faz-se com pneu-
motórax e com anomalia adenomatóide quística Definição
na sua forma de apresentação de quisto gigante.
A tomografia axial computadorizada ajuda O quisto broncogénico gera-se a partir do
nesta destrinça, bem como esclarece a possível con- divertículo respiratório, em que um grupo de
fusão com compressão extrínseca do brônquio por células, que se desenvolve independentemente do
estruturas mediastínicas. Nestes casos a bronco- tracto respiratório, se separa deste.
scopia pré-operatória pode tornar-se indispensável. Pode ter várias localizações sendo a mais fre-
Poderá estar indicada a cintigrafia de per- quente no mediastino posterior ou médio, por de
fusão/ventilação nos casos de enfisema lobar que trás ou junto à árvore traqueo-brônquica “mãe”
se admite tenha sido adquirido após ventilação (carina, hilo pulmonar); está frequentemente liga-
com pressão positiva de longa duração. do a esta por um pedículo obliterado ou permeá-
Também está indicada a observação por car- vel. Em geral é central e único.
diologista pediátrico que procede a ecografia Pode, raramente, localizar-se no esófago, peri-
cárdio ou no próprio parênquima pulmonar, assu-
mindo nesta última localização a forma multilocular.
No que respeita a características morfológicas,
os quistos broncogénicos têm 2 a 10 cm de
diâmetro, parede bem individualizada e contêm
muco, pus ou sangue.
Manifestações clínicas
4. SEQUESTRAÇÃO PULMONAR A
Definição e etiopatogénese
82
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon, 2011
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QUADRO 1 – Germes microbianos mais frequentes como causa de pneumonia adquirida na comu-
nidade em relação com a idade
FIG. 2
Padrão radiográfico de tipo intersticial acompanhado de enfisema
importante (por vírus sincicial respiratório)-PA e perfil. (NIHDE)
1
4
3
FIG. 5
Padrão radiográfico de pneumonia lobar (identificada
etiologia pneumocócica)- (PA e perfil). (NIHDE)
FIG. 3
Caso de pneumonia do lobo superior direito (1), visualizando-se
sinais de broncograma aéreo (2); concomitância de derrame
pleural direito-obliteração do seio costofrénico direito (3).
Relativamente ao derrame há a assinalar: linha da pleura visce-
ral (4); e linha de Damoiseau (5). (Cortesia do Dr. Mário Coelho)
FIG. 6
FIG. 4 Padrão radiográfico de pneumonia “redonda” (opacidades
Pneumonia estafilocócica. Imagens de pneumatoceles (PA e arredondadas observáveis em ambos os campos pulmonares).
perfil). (NIHDE) (NIHDE)
CAPÍTULO 82 Pneumonia adquirida na comunidade 461
internadas, com menos de 2 anos de idade. adolescentes podem ser utilizadas fluoroquinolonas.
Não deve ser realizado exame bacteriológico Nas formas graves de pneumonia presumivel-
das secreções respiratórias, já que o crescimento mente bacteriana exigindo internamento hos-
bacteriano apenas reflecte a flora da nasofarin- pitalar, a terapêutica empírica inclui cefuroxima
ge, não indicativo dos agentes infectantes das (150mg/kg/dia) ou cefotaxima ou ceftriaxona IV.
vias aéreas inferiores. Deve ser reservado para Se as manifestações clínicas entretanto sugeri-
situações específicas. A radiografia de tórax só rem etiologia estafilocócica (empiema, pneumato-
deve ser repetida se houver agravamento do celos, etc.), à terapêutica inicial deve acrescentar-se
quadro ou suspeita de complicações. Não há vancomicina ou clindamicina.
necessidade de ulterior estudo radiológico (ou Nos casos de pneumonia lobar sugerindo
laboratorial) perante boa evolução clínica. Nas etiologia por S. pneumoniae ou por S. pyogenes
pneumonias complicadas. deverá ser efectuada (grupo A) os antibióticos de primeira escolha são
radiografia de controlo 4 a 6 semanas após a a penicilina G 200.000-400.000 U/kg/dia ou
alta. amoxicilina po, ou ampicilina IV. Como alter-
nativas: ceftriaxoma ou cefotaxima (+ vanco-
Tratamento micina se suspeita de S. pneumoniae de resistência
elevada à penicilina; ou penicilina G +
A decisão terapêutica deve ser tomada tendo em clindamicina (se suspeita de S. pyogenes).
conta algoritmos diagnósticos que consideram a Nos casos de pneumonia “bolhosa” detectada
idade do doente, a clínica e factores epidemioló- de início, os antibióticos de escolha são flucloxa-
gicos. Para além da terapêutica de suporte com cilina + aminoglicosídeo.
fluidoterapia, deve administrar-se oxigénio se A duração do tratamento antimicrobiano é em
houver hipoxémia com o objectivo de obter geral 7-10 dias, salientando-se a duração entre 14
saturação em O2 ≥92%; na suspeita de pneumonia e 21 dias nas pneumonias bolhosas.
bacteriana a terapêutica antibiótica dita empírica O Quadro 3 especifica as doses de alguns
(antes do eventual isolamento do agente) deve ser antimicrobianos utilizados no tratamento das
prontamente instituída. pneumonias adquiridas na comunidade, não
Recém-nascidos e lactentes com menos de 3 referidas no texto. A via endovenosa, se estabe-
meses devem ser internados para terapêutica lecida de início, deverá manter-se por 24-48 horas
endovenosa com ampicilina + ceftriaxona, ou após desaparecimento da febre.
cefotaxima, ou gentamicina. No caso de suspeita Quando não se verificar resposta à terapêutica
de pneumonia por Chlamydia trachomatis ou antibiótica, a causa mais provável é vírica. Outros
pneumonia afebril do lactente deve ser usado um agentes bacterianos devem, no entanto, ser consi-
macrólido (eritromicina, azitromicina ou clari- derados (S. aureus; pneumococos multirresistentes,
tromicina). H. influenzae ampicilina – resistente e anaeróbios)
O antibiótico de eleição de uma pneumonia tendo em conta contextos clínicos especiais.
não complicada, entre os 3 meses e os 5 anos, é a O internamento deve considerar-se nas se-
amoxicilina, mesmo considerando que 15% a 40% guintes situações:
dos pneumococos são resistentes à penicilina; – Recém-nascidos;
trata-se, no entanto de uma resistência intermédia – Lactentes até aos 6 meses com febre;
(MIC 0.06-1.0mcg/ml), o que implica o uso de – Crianças de qualquer idade com: pneumonia
doses altas de amoxicilina (de 80mg/Kg/dia a multifocal; hipoxémia; sinais de dificuldade
90mg/Kg/dia). As alternativas são a cefuroxima – respiratória ou desidratação; impossibilidade de
acetil e a amoxicilina + ácido clavulânico. se proceder a terapêutica oral; doença crónica;
Quando a suspeita diagnóstica recai sobre ausência de resposta ao tratamento iniciado;
Mycoplasma e Chlamydia pneumoniae, sobretudo nas famílias incapazes de garantir o tratamento ou a
crianças em idade escolar e adolescentes, devem ser supervisão necessária da criança; imunodefi-
usados macrólidos (azitromicina ou claritromicina); ciência: complicações (derrame pleural, abcesso
como alternativa acima dos 8 anos: doxiciclina. Nos pulmonar, pneumatocele, etc.).
CAPÍTULO 82 Pneumonia adquirida na comunidade 463
A antibioticoterapia inicial deverá ser revista que o seu uso generalizado poderá diminuir a
se houver identificação do agente etiológico e do incidência de doença pneumocócica invasiva de
seu perfil de sensibilidade aos antimicrobianos. A forma significativa. A vacinação contra o vírus
identificação de Streptococcus peumoniae de resis- influenza poderá também prevenir uma das
tência intermédia à penicilina não justifica a complicações desta infecção, a pneumonia (Capítulo
mudança de antibiótico quando a opção inicial foi 278).
a ampicilina ou amoxicilina em dose adequada.
Salienta-se o número crescente de S. pneumoniae GLOSSÁRIO
resistentes à penicilina. Broncopneumonia > Inflamação pulmonar centrada nos bron-
quíolos com formação de exsudado mucopurulento obstru-
Prognóstico e seguimento indo algumas vias aéreas de menor calibre e originando
consolidação de vários lóbulos adjacentes com pequenos
De uma maneira geral o prognóstico é excelente focos.
com a recuperação sem complicações na maior Infecção das vias respiratórias inferiores > Termo que abrange
parte dos casos. A grande maioria das pneumonias bronquite, bronquiolite, pneumonia, broncopneumonia ou
por bactérias patogénicas comuns e por germes associação de qualquer combinação destas entidades.
atípicos responde à terapêutica antimicrobiana. Pneumonia > Inflamação/infecção do tracto respiratório inferi-
Cerca de 80% dos infiltrados regridem em 3 or envolvendo as vias aéreas e parênquima, com consoli-
semanas e os restantes em 3 meses. As complicações dação dos espaços alveolares.
mais frequentes das pneumonias bacterianas são os Pneumonia atípica > Pneumonia (em que se exclui a pneumonia
derrames pleurais incluindo empiemas. lobar).
Pneumonia lobar > Pneumonia localizada a um ou mais lobos
Prevenção pulmonares.
Pneumonite > Qualquer manifestação infecciosa/inflamatória
A imunização de rotina da criança tem tido um pulmonar, geralmente benigna, associada ou não a consoli-
papel preponderante na prevenção de pneumonia dação.
em idades pediátricas em geral; e, em especial, Pneumopatia > Qualquer afecção do pulmão.
reduzindo drasticamente a fequência de
pneumonias associadas à rubéola, tosse convulsa, e BIBLIOGRAFIA
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CAPÍTULO 83 Derrame pleural 465
ca podendo, por isso, estar associados, por exem- das vibrações vocais e do murmúrio vesicular;
plo, a insuficiência cardíaca, síndroma nefrótica, raramente é detectado atrito pleural. Por vezes a
hipotiroidismo, ou obstrução do fluxo linfático. criança adopta uma atitude escoliótica côncava
Os exsudados resultam de compromisso para o lado do derrame.
inflamatório da pleura (pleurisia), com conse- O derrame pleural parapneumónico habitual-
quente aumento da permeabilidade capilar com mente surge como complicação de pneumonias
extravasão de proteínas para o espaço pleural. causadas por Streptococcus pneumoniae, Haemo-
Para a destrinça entre exsudado e transudado phylus influenzae, Staphyloccus aureus e Streptoco-
são utilizados determinados critérios (Quadro 1). ccus do grupo A. Identifica-se uma causa bacteriana
Na prática clínica são classicamente consi- em cerca de 75% dos casos, embora muitas vezes
derados os seguintes tipos de exsudados de causa não se consiga isolar o agente, ou por antibiotico-
infecciosa (Quadro 2) sobre os quais recai a abor- terapia prévia, ou nos casos de infecção por
dagem: Mycoplasma e vírus.
– Pleurisias purulentas ou empiemas (líquido O empiema corresponde a uma colecção de
pleural purulento e/ou com germe iden- pus. Distinguem-se três fases: exsudativa, que
tificado); corresponde a líquido livre, facilmente drenado;
– Derrames parapneumónicos não purulentos fibrinopurulenta, correspondendo à formação de
(geralmente serofibrinosos). septações e loculações, que pode ser díficil de
drenar; organizativa, em que só é possível o
Manifestações clínicas desbridamento cirúrgico.
QUADRO 2 – Etiologia dos derrames de causa do tórax sendo de grande utilidade nos casos em
infecciosa que a radiografia identifica sinais de hemitórax
opaco. Pode detectar pequena quantidade de
Empiemas Derrames serofibrinosos líquido a envolver o pulmão e distinguir entre
• Staphylococcus aureus • Mycobacterium pulmão não arejado e líquido ou fibrina pleurais.
tuberculosis Pode ainda: detectar loculação, dando assim boas
• Haemophilus influenzae • Mycoplasma pneumoniae informações relativamente às fases evolutivas do
• Streptococcus pneumoniae • Outras bacterias empiema; e identificar o melhor local para se
• Vírus efectuar toracocentese. Deve, no entanto, ser feita
por técnicos experientes.
A tomografia axial computadorizada diferen-
do fundo de saco costo-diafragmático nos cia complicações pleurais de processos intrapa-
derrames mínimos; hipotransparência da parte renquimatosos.
inferior do pulmão, com apagamento da cúpula A toracocentese para exame do líquido pleural
diafragmática e do fundo de saco costo- é um método seguro e determina a causa do
diafragmático, sendo o limite superior desta derrame. Quando se detecta pus (empiema) é
hipotransparência oblíquo para cima e para fora requerida drenagem.
(curva de Damoiseau), quando o derrame é A avaliação citoquímica de LP não purulento
medianamente abundante; hipotransparência de também é importante assim como a respectiva
um hemitórax com desvio do mediastino para o coloração de Gram; deste modo é possível a
lado oposto e alargamento dos espaços identificação dos agentes patogénicos implicados
intercostais, no caso de derrame abundante. em cerca de 50% dos casos.
(Figura 1) Relativamente ao estudo das células, podem
É ainda possível observar pela radiografia ser obtidos os seguintes achados: predomínio de
sinais de um foco de pneumonia, por vezes neutrófilos aponta para derrames parapneumó-
mascarado pelo derrame, pneumatoceles, pneu- nicos; predomínio de linfócitos para a tuberculose,
mopatia intersticial e adenopatias. doença do tecido conjuntivo, ou infecções
A ecografia completa os dados da radiografia fúngicas; predomínio de eosinófilos é a favor de
infecções parasitárias; e número de células
>10.000 mmc sugere exsudado (Quadro 1).
A identificação de antigénios bacterianos no
sangue ou LP é um método que pode ajudar na
escolha do antibiótico, nomeadamente através da
análise da prova da reacção em cadeia da poli-
merase (PCR) ou da imunocromatografia.
A análise do LP permite ainda definir o estádio
evolutivo do derrame parapneumónico.
O metabolismo das bactérias e dos leucócitos
presentes no LP resultam numa baixa da glucose
e do pH. O nível de LDH aumenta em resultado
da destruição dos neutrófilos e outros fagócitos
presentes.
Considera-se que o derrame é complicado
quando: – através da imagem da radiografia
torácica a respectiva extensão ultrapassa hemi-
tórax; – o pH é inferior a 7,2, – a glucose inferior a
FIG. 1
40mg/dL e/ou a cultura é positiva.
Radiografia do tórax PA: sinais de derrame pleural esquerdo A hemocultura é positiva em cerca de 20% dos
(linha de Damoiseau). (NIHDE) casos de derrame parapneumónico se a colheita
CAPÍTULO 83 Derrame pleural 467
de sangue for realizada antes do início da anti- deve continuar-se os antibióticos por mais 5 a 7
bioticoterapia. dias. O tratamento deverá ser completado com
mais uma a duas semanas de antibióticos per os.
Tratamento Salienta-se que, de um modo geral, se aplicam
neste âmbito as noções decritas a propósito da
Medidas gerais pneumonia.
O tratamento dos derrames plurais inclui os se-
guintes opções para além das medidas gerais: Drenagem
antibióticos, toracocentese, aplicação de tubo de Em caso de febre que persista por 48 horas após o
drenagem pleural com ou sem agente fibrinolítico, início do curso de antibióticos, há indicação para
descorticação por cirugia toracoscópica video drenar o derrame pleural (toracocentese evacua-
assistida (VATS), ou por toracotomia aberta. dora).
As medidas gerais incluem suprimento ade- Igualmente a verificação de características de
quado de fluidos,electrólitos e energia. derrame purulento (especificadas no Quadro 1)
A oxigenoterapia depende da observação de estabelece a indicação de se proceder a
sinais de hipoxémia e de fadiga muscular. A toracostomia com tubo/cateter de drenagem
verificação de insuficiência respiratória indica pleural fechada; o cateter deverá ter o maior
transferência para UCI (unidade de cuidados diâmetro interno possível para drenar com maior
intensivos). facilidade áreas loculadas, sendo que poderá ser
necessário aplicar mais do que um tubo-cateter.
Antibioticoterapia As múltiplas toracocenteses evacuadores devem
A presença de derrame pleural parapneumónico ser evitadas.
não altera a escolha empírica da antibioticoterapia A resposta à drenagem deve ser monitorizada
dos doentes com pneumonia. A escolha inicial pela quantidade de LP que sai e pela temperatura
recai sobre antibióticos que cubram os agentes corporal. Se o débito do LP for inferior a 10- 15 ml
patogénicos mais prevalentes de acordo com a /dia e houver melhoria clínica, deve retirar-se o
idade da criança. cateter. A duração média da drenagem é 5 a 10
Ao se isolarem os agentes patogénicos pode dias.
estreitar-se o espectro baseando-nos no resultado Se, pelo contrário, se verificar manutenção do
da coloração pelo Gram, nas provas de detectação quadro febril e da dificuldade respiratória para
de antigénios ou nas culturas do LP. Por exemplo além de 72 horas após início de antibioticoterapia
um empiema por Streptococcus A pode ser tratado e toracostomia, está indicada a descorticação
com penicilina durante 10 dias. A pneumonia cirúrgica. Ressecam-se, deste modo, as aderências
causada por estirpes de resistência intermédia à pleurais, o que contribuirá para uma drenagem
penicilina (CIM= 0,1-1,0 mcg de penicilina/ml) efectiva do espaço plural, encurtando a
respondem normalmente a penicilina em altas permanência no hospital.
doses ou a uma cefalosporina, com espectro mais A descorticação por toracotomia aberta está
alargado. A pneumonia causada por estirpes indicada nos casos em que houve formação de
resistentes ( CIM >= 2,0 mcg de penicilina/ ml ) camada fibrosa que reduz a expansão pulmonar.
pode também responder à penicilina em altas Trata-se duma técnica cirúrgica para remoção do
doses ou a cefalosporinas. Pode ainda tentar-se a tecido fibrinoso nos casos de empiema organizado
clindamicina, a vancomicina ou cloranfenicol. ou fibrinopurulento que não respondem adequa-
O empiema por Staphyloccus aureus pode ser damente aos procedimentos anteriores descritos.
tratado com uma penicilina sintética resistente à
penicilinase ou com vancomicina, pelo menos Agentes trombolíticos
durante 21 dias. Se a etiologia do empiema for Ainda existem dados insuficientes para o seu uso
Haemophylus influenzae, deve usar-se uma cefalos- por rotina nos derrames pleurais parapneumó-
porina de terceira geração por via parentérica. nicos e nos empiemas na criança. Há referência a
Após a febre ter cedido ou a drenagem retirada resultados positivos com o uso de uroquinase e
468 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
84
As pneumonias recorrentes constituem um pro-
blema comum. A maioria das crianças tem 5-10
infecções respiratórias por ano, com uma fre-
quência maior depois dos 6 meses e predo-
minando no segundo ano de vida. Geralmente
estas infecções afectam o aparelho respiratório
PNEUMONIA RECORRENTE superior, e só em 10-30% dos casos é envolvido o
aparelho respiratório inferior.
José Guimarães
Factores de risco
estado geral entre os episódios infecciosos, sem agentes etiológicos. É frequente a repercussão no
alteração no exame objectivo. Além disso, não é peso e estatura e o exame pode evidenciar
habitual que tenham infecções graves noutros fervores, deformação torácica e hipocratismo. As
locais (infecções cutâneas, gastrintestinais ou infecções surgem de forma semelhante e, por
outras). Estas particularidades ajudam a separar vezes, com a mesma localização. Nestes casos são
este grupo dos restantes. geralmente causadas por obstrução brônquica
Nestes casos é importante esclarecer os pais (corpo estranho), por compressão extrínseca
reforçando-lhes a confiança e propondo uma geralmente de origem ganglionar (tuberculose ou
vigilância atenta da evolução. Por vezes são úteis outras infecções, tumores) ou por anomalias
alguns exames complementares simples como estruturais (estenose brônquica, bronquiectasias,
hemograma, proteína C reactiva (PCR), radio- quisto broncogénico, sequestro).
grafia do tórax e eventuais exames culturais. Em algumas doenças deste grupo (Quadro 3)
pode haver alteração dos mecanismos de defesa
2. Crianças com doença alérgica predispondo para a infecção como sucede em
Este grupo também apresenta algumas caracte- situações de má-nutrição ou na drepanocitose.
rísticas distintivas constituindo cerca de 30% dos A pneumonia (recorrente) é a infecção mais
casos de infecções respiratórias recorrentes. comum mas pode haver diarreia crónica, tosse
Frequentemente há história familiar de alergia e crónica, episódios repetidos de febre, entre outras.
pieira em cada episódio de infecção respiratória. Para esclarecimento etiológico, deve proceder-
Muitos episódios decorrem em apirexia respon- se nestes doentes a exames complementares como:
dendo mal aos antibióticos. A tosse é muito hemograma, PCR, ureia e glicémia, urina, teste do
frequente, por vezes nocturna ou surgindo com o suor, radiografia do tórax, imunoglobulinas e
riso ou o esforço. Por vezes há infecções das vias exames culturais. A broncofibroscopia e TAC torá-
respiratórias superiores que desencadeiam tosse cica são geralmente necessárias. Poderá haver
importante e grande produção de muco, podendo necessidade de outros testes diagnósticos mais
levar a atelectasias ou infiltrados, sobretudo no específicos para confirmação das hipóteses dia-
lobo médio. O crescimento é normal verificando- gnósticas colocadas.
se frequentemente obstrução nasal com rinorreia,
prega nasal transversal e eczema. QUADRO 3 – Doença crónica não imunológica
Nestes casos são úteis hemograma, PCR,
doseamento de imunoglobulinas, IgE, específicas, • Síndromas de inalação (corpo estranho, refluxo
radiografia do tórax e testes cutâneos. A espirometria gastresofágic)
deve obter-se quando possível, (ver Parte XII). • Bronquiectasias (fibrose quística, síndroma de cílios
Os lactentes com pieira e pneumonias recor- imóveis)
rentes colocam alguns problemas diagnósticos, • Anomalias congénitas do aparelho respiratório
sobretudo quando respondem mal aos broncodi- • Doenças pulmonares (displasia broncopulmonar,
latadores e anti-inflamatórios. Nestes casos será bronquiolite obliterante, hemossiderose pulmonar,
necessário excluir alguns diagnósticos, nomeada- pneumonias de hipersensibilidade)
mente fibrose quística, aspiração de corpo es- • Doenças neuromusculares
tranho, refluxo gastresofágico, bronquiolite oblite- • Doenças cardíacas congénitas
rante, anomalias congénitas do aparelho respira- • Doenças genéticas/ metabólicas (síndroma de Down,
tório ou imunodeficiência. Werdnig-Hoffmann)
• Doenças hematológicas (asplenia, hemoglobinopatias,
3. Crianças com doença crónica não imunológica imunossupressão)
Correspondem a cerca de 10% das crianças com • Doenças nutricionais (má-nutrição, enteropatias)
infecções respiratórias recorrentes. Ao contrário • Doenças renais (síndroma nefrótica, insuficiência renal)
dos anteriores, este grupo tem infecções que são • Diabetes mellitus
contínuas, por vezes graves, levando ao inter- • Doenças do colagénio vascular
namento, muitas vezes sem isolamento dos
472 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
85
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Medical , 2011 e o sexto meses de idade), quase sempre com
Wacogne I, Negrine RJS. Are follow-up chest x ray examina- carácter epidémico; traduz-se clinicamente por
tions helpful in the management of children recovering polipneia com retracção costal e à auscultação
from pneumonia? Arch Dis Child 2003; 88: 457-458 pulmonar, por sibilos ou fervores; esta situação é
Wardlaw T, Salama P, White Johansson E. Pneumonia: the precedida tipicamente por quadro inflamatório
leading killer of children. Lancet 2006; 368: 1048-1050. das vias respiratórias superiores constituído por
tosse seca, rinorreia e/ou febre.
Em geral reserva-se o diagnóstico de bronquio-
lite aguda para o primeiro episódio de sibilância
com as características referidas antes, devendo
evitar-se o termo de bronquiolite para situações de
sibilância repetida.
A maioria dos casos de sibilância (quadro
acompanhado de ruídos adventícios designados
por sibilos produzidos nos brônquios e bronquí-
olos na expiração, os quais traduzem estrei-
tamento das respectivas vias aéras) relaciona-se
com processo inflamatório; contudo, tais sinais
podem surgir em situação de broncospasmo e no
contexto doutras entidades a abordar adiante.
Sendo uma doença autolimitada, pode
habitualmente ser assistida em casa com medidas
simples; com efeito, só em cerca de 1 a 2% dos
casos se torna grave a justificar internamento
hospitalar. No entanto, a sua elevada incidência e
o maior risco inerente ao grupo etário em que
predomina, justificam o elevado número de inter-
namentos hospitalares a ela associados, nomea-
damente em unidades de cuidados intensivos
(UCI).
474 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
De acordo com estatísticas da União Europeia, contacto directo das mucosas com secreções ou
estima-se uma incidência de internamentos gotas aerossolizadas infectadas, variando o
hospitalares de cerca de 30/1000. É a primeira período de incubação entre 4 e 6 dias.
causa de hospitalização antes dos 6 meses. A infecção vírica atinge particularmente os
Surgindo habitualmente nos meses de Inverno bronquíolos de calibres entre os 300 até aos 75 µ. O
e início da Primavera (nos países de clima epitélio bronquiolar é colonizado pelo vírus que
temperado), e predominando nos centros urbanos, então se replica e desencadeia uma resposta infla-
é a doença infecciosa das vias aéreas inferiores matória, induzindo necrose epitelial à qual se
mais frequente nas crianças com menos de 12 segue a proliferação de células que são despro-
meses de idade. Cerca de 60 % das crianças vidas de cílios (perdendo-se importante mecanis-
atingidas são do sexo masculino. A bronquiolite é mo de defesa).
mais frequente em crianças que vivem em Cabe salientar aspectos da resposta imune
situações de baixo nível socioeconómico expostas desencadeada pelo VSR, com papel na inflamação
ao fumo do tabaco e não alimentadas com leite bronquiolar:
materno. Em cerca de 50% das crianças com a) desgranulação de eosinófilos com libertação
bronquiolite desenvolve-se sibilância subsequente. de proteínas catiónicas com efeito citotóxico sobre
A mortalidade atinge entre 0,5 – 1% dos o epitélio da via respiratória;
doentes internados, aumentando para 3-4% nos b) libertação de IgE com papel importante na
casos de doença cardiopulmonar subjacente. sibilância;
No que respeita a custos por internamento de c) outros mediadores com papel na patogénese
crianças com esta patologia com menos de 1 ano, da inflamação da via respiratória incluem a IL-8, a
determinados estudos na América do Norte proteína inflamatória dos macrófagos 1 alfa, etc.;
divulgaram valores da ordem de 700 milhões de d) níveis mais elevados de interferão-gama e
dólares dos USA/por ano. de leucotrienos na via aérea correlacionam-se com
o grau de sibilância.
Etiopatogénese Os tecidos peribronquiolares são invadidos
por linfócitos, plasmócitos e macrófagos, surge
É habitualmente (50-90% dos casos) causada pelo edema e congestão da submucosa e tecido adven-
vírus sincicial respiratório (VSR), mas outros vírus tício e, por vezes, alteração das fibras elásticas e
podem estar implicados como os parainfluenzae musculares (o que induz algum grau de espasmo
1,2 e 3, influenzae A e B, rinovirus e adenovírus a contribuir para a obstrução). O aumento da
(cujos serótipos 3, 7 e 21 causam doença mais grave produção de muco, juntamente com a descamação
capaz de conduzir a insuficiência respiratória epitelial e a fibrina formada, podem obstruir
aguda com necessidade de suporte ventilatório). O completamente o lume bronquiolar (na razão
metapneumovírus e bocavírus humano, são causa inversa das suas dimensões) induzindo, por um
primária de infecção respiratória vírica, podendo mecanismo valvular, a retenção do ar expiratório;
associar-se ao VSR (coinfecção), o que constitui tal origina áreas de hiperinsuflação pulmonar e
factor de agravamento. áreas de atelectasia irregularmente distribuídas
Mycoplasma pneumoniae e H. influenzae com maior ou menor repercussão na ventilação/
raramente estão implicados. Aos 2 anos de idade, perfusão. Como consequência poderá surgir
a maioria das crianças foi já infectada pelo VSR. insuficiência respiratória tipo I (hipoxémia) ou de
Até mesmo recém-nascidos e adultos podem ser tipo II (com hipercápnia).
infectados, embora sem o quadro clínico típico da Outros factores próprios do lactente pequeno
doença. predispõem para a gravidade deste processo,
O VSR é altamente contagioso, ficando activo nomeadamente, ventilação alveolar colateral defi-
cerca de 6 a 10 horas em gotículas de secreções, e ciente, caixa torácica pouco rígida, imaturidade
meia hora em roupa ou papel, persistindo no das células pulmonares e dos mecanismos de
exsudado nasal mesmo após melhoria clínica. expulsão de muco.
A transmissão da infecção dá-se através do A recuperação surge a partir da camada basal
CAPÍTULO 85 Bronquiolite aguda 475
Causas anatómicas
Anel vascular, quisto pulmonar, enfisema lobar
Pneumotórax, hidrotórax, quilotórax
Aspiração de corpo estranho
Insuficiência circulatória
Doença cardíaca congénita ou adquirida
Anemia
Infecções
Pneumonia por vírus, Chlamydia, Rickettsia,
Mycoplasma, bactérias, fungos
Parasitas
Irritantes
Inalação de substâncias tóxicas
Pneumonia de aspiração
Refluxo gastresofágico
Causas metabólicas
Intoxicações (ex: salicilatos)
Acidose
Se melhorar Se melhorar
Reintroduzir alimentação Reintroduzir alimentação
Alta quando satO2 (com ar ambiente) for >90% Alta quando satO2 (com ar ambiente) for >90%
Reavaliação continuada pelo médico assistente Reavaliação continuada pelo médico assistente
semanas e ainda a presença de doença de base que deverá ser colocada em posição de tórax e cabeça
aumenta o risco de complicações da doença, são elevados a 30º, podendo ser necessária a entubação
factores decisivos para o internamento hospitalar nasogástrica para providenciar a alimentação.
da criança, ainda que apenas para vigilância de A maioria das situações evolui, assim, para a
parâmetros vitais e terapêutica de suporte. cura em 7 a 14 dias, sem complicações. Estas
A leitura da alínea sobre Tratamento ajudará a poderão surgir, sobretundo, nos casos compor-
compreender na íntegra o referido quadro. tando factores de risco de doença mais grave, tais
como antecedentes de prematuridade, patologia
Tratamento respiratória (como displasia broncopulmonar –
DBP), cardíaca, imunodeficiência ou imunossu-
Sendo a bronquiolite uma doença autolimitada, as pressão, etc. (Quadro 1).
formas ligeiras poderão requerer apenas as habituais A seguir são sistematizadas as principais
medidas de humidificação e aspiração cuidadosa medidas a aplicar com base em recomendações e
das secreções da via respiratória (que promovem a consensos recentes da Academia America de
sua drenagem e desobstrução por mecanismos Pediatria decorrentes de estudos cientifícos.
fisiológicos), dos cuidados alimentares, hidratação, (medicina baseada na evidência).
e do esclarecimento de quem presta os cuidados. Alguns procedimentos já foram descritos
A nebulização com soluto de NaCl hipertónico, a sucintamente a propósito dos critérios de gravi-
3% (não por rotina) poderá ser benéfica (ver dade (Quadro 3).
adiante).
Com o fim de diminuir o risco de aspiração de Oxigenoterapia
alimento para a via repiratória face à SDR, a criança Na bronquiolite moderada a grave, e sempre que a
478 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Pensa-se que este medicamento possa interferir Nos casos graves poderá estar indicada ven-
com o funcionamento normal do ácido nucleico tilação mecânica em UCI.
vírico. A ribavirina tem actividade contra o VSR,
vírus da gripe e da hepatite C. As revisões Outros tratamentos
sistemáticas não demontraram qualquer efeito com a Outros tratamentos incluindo o interferão, a vita-
utilização da ribavirina nas situações agudas, embora mina A e a desoxirribonuclease humana recom-
exista certo benefício (não significativo) nos binante 1 (rhDNase 1) foram experimentados mas
indivíduos com doença grave requerendo não revelaram benefício. Os produtos naturais
internamento numa unidade de cuidados inten- chineses, o surfactante, e o Heliox merecem pos-
sivos. sivelmente investigações adicionais. Com base nos
Embora as orientações iniciais surgerissem que dados actuais o surfactante o Heliox (70% de hélio
este medicamento fosse administrado sob a forma e 30% de oxigénio) e nebulização com NaCl a 3%
de aerossol durante 12-18 horas diariamente, ele devem ser reservados para os doentes internados
tem sido utilizado durante períodos mais curtos em unidades de cuidados intensivos pediátricos.
(duas horas três vezes por dia) na mesma dose de 6
g/dia. A ribavirina é administrada durante 3-5 dias. Profilaxia da infecção pelo VSR
Tratando-se duma droga potencialmente tóxica
e teratogénica para grávidas que com ela con- Não existe ainda uma vacina eficaz contra o VSR.
tactam, e igualmente dispendiosa e difícil de O anticorpo monoclonal humano recombinante
administrar, a sua utilização deve ser restringida (Palivizumab) pode reduzir a taxa de hospita-
apenas a doentes seleccionados, com risco de lização nos grupos de risco (como crianças com
infecção grave. antecedentes de prematuridade, doentes com
displasia broncopulmunar ou cardiopatia), não se
Imunoglobulina anti-VSR tendo provado redução de necessidade de venti-
A imunoglobulina anti-VSR, obtida de dadores lação mecânica. De salientar que existem normas
adultos com títulos elevados anti-VSR, comporta da Sociedade Portuguesa de Pediatria para a sua
risco baixo de transmissão vírica por via san- utilização preventiva nestes grupos de risco.
guínea devido ao processo de esterilização a que é Nas situações atrás referidas são recomendadas 5
submetida. doses mensais na chamada época fria, com ínicio
Actualmente, não é recomendada a utilização em Novembro (15mg/kg/dose) por via IM.
da imunoglobulina anti-VSR no tratamento da A grande viabilidade do vírus no meio
bronquiolite aguda. ambiente facilita a sua transmissão pelos que ro-
deiam a criança (pais e familiares, educadoras,
Palivizumab pessoal de saúde); são, assim, importantes me-
O palivizumab é um anticorpo monoclonal de didas simples mas eficazes como a correcta
origem humana produzido através de tecnologia lavagem das mãos, uso de bata, luva e máscara,
de ADN recombinante, com uma actividade seme- limitação dos contactos e quartos de isolamento
lhante contra ambas as estirpes (A e B) do VSR. Não para doentes nos quais foi isolado o VSR. Medidas
está provada eficácia no tratamento da bronquiolite ambientais como a evicção do fumo do tabaco são
aguda. Este medicamento é recomendado para pre- igualmente importantes.
venir a bronquiolite pelo VSR (ver adiante). A AAP chama atenção para a eficácia da
fricção das mãos com compressas embebidas em
Assistência respiratória álcool após lavagem convencional das mesmas.
A bronquiolite pelo VSR pode causar insuficiência As orientações dos Centers for Disease Control
respiratória grave, sendo, por vezes necessário o and Prevention sugerem que a lavagem frequente
suporte ventilatório. Muitas unidades têm facili- das mãos e a não partilha de objectos, tais como
dade em instituir aplicação de pressão positiva chávenas, copos e outros outros utensílios com as
contínua das vias aéreas (CPAP) como medida ini- pessoas com uma infecção pelo VSR podem reduzir
cial de assistência respiratória. o risco de disseminação. Admite-se que não é
480 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
86
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Secção de Neonatologia da SPP. Prevenção da infecção por alguns autores anglófonos designadas síndromas ChILD) compreen-
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www.uptodate.com (acesso Outubro 2012) de etiologia conhecida[por ex. doenças genéticas(lisossómicas, do
metabolismo do surfactante,etc.), infecção crónica, DBP,etc.]; 2) de etio-
logia desconhecida[por ex. síndromas de hemorragia alveolar
difusa(incluindo a “histórica” hemossiderose pulmonar a abordar
adiante), certas formas de bronquiolite obliterante, doenças do colagé-
nio, proteinose alveolar,etc.]; 3) formas exclusivas da infância , sobre-
tudo em crianças com < 2 anos[ por ex. hiperplasia celular neuroendó-
crina, glicogenose intersticial pulmonar, anomalias do crescimento e
desenvolvimento pulmonares, defeitos genéticos do metabolismo do
surfactante a que foi feita alusão sob outro ponto de vista noutra alínea,
hemorragia pulmonar idiopática da infância, etc.] (ver Capítulo 89).
482 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
dos tipos 3, 7 e 21. Outras infecções têm sido asso- Ocasionalmente o processo obliterativo é pre-
ciadas ao aparecimento de BO, nomeadamente dominantemente unilateral traduzido radiologi-
por Legionella, Mycoplasma, B. pertussis, vírus camente por um quadro de pulmão hipertrans-
influenza e do sarampo. Também a aspiração de parente unilateral ou síndroma de Swyer-James.
material estranho, em particular conteúdo gástri- Neste caso, um exame torácico cuidadoso pode
co ácido em casos de refluxo gastresofágico, ou a evidenciar sinais localizados no pulmão afectado.
inalação de tóxicos (por ex. NO2, NH3), podem
levar ao aparecimento de BO. Alguns casos têm Diagnóstico
sido associados a artrite reumatóide, escleroder-
mia, lúpus eritematoso e síndroma de Stevens- O diagnóstico é sugerido pela clínica de tosse
Johnson. arrastada, pieira e dificuldade respiratória variá-
Nos últimos anos a BO tem sido descrita como vel, evoluindo: com períodos de melhoria segui-
uma complicação tardia major da transplantação dos de agravamento, mais frequentemente após
pulmonar. Além disso, têm sido identificadas infecção pulmonar moderada a grave por adeno-
lesões semelhantes (nos doentes transplantados vírus ou Mycoplasma; ou com obstrução respira-
com medula óssea) associadas a doença enxerto- tória persistente respondendo mal aos broncodila-
hospedeiro. Nalguns casos não é possível deter- tadores, após transplante de medula óssea. A
minar a etiologia. recuperação clínica em geral é incompleta e o
A BO inicia-se como uma pneumonia grave doente raramente fica assintomático.
necrosante com destruição do epitélio bronquio- A radiografia do tórax evidencia sinais de
lar. Quando ocorre a cicatrização, massas de teci- insuflação com hiperclaridade pulmonar periféri-
do de granulação obstruem o lume dos pequenos ca e zonas de opacidade do interstício, espessa-
brônquios e bronquíolos, tornando-se posterior- mentos peribrônquicos e áreas dispersas de bron-
mente fibróticas e causando obliteração parcial ou copneumonia, podendo haver colapso ou consoli-
total das vias aéreas. Nos casos mais graves há dação de segmentos ou lobos.
destruição do músculo e do tecido elástico com A broncoscopia não mostra obstrução das
fibrose da parede e áreas envolventes. Existem grandes vias aéreas, e a broncografia – na época
áreas heterogéneas de distensão e outras de atelec- em que era realizada – evidenciava aspecto carac-
tasia. O calibre do leito capilar pulmonar fica terístico em “árvore de inverno” sem contraste
diminuído. Devido à obstrução, a resistência aérea nos pequenos brônquios.
e o trabalho respiratório aumentam. A perfusão de Quer a cintigrafia, quer a angiografia digital,
áreas pulmonares mal ventiladas causa hipoxé- podem evidenciar diminuição da vasculatura pul-
mia, e a diminuição na ventilação eficaz causa monar periférica. Estes aspectos geralmente são
hipercapnia. A hipoxémia crónica, obstrução aérea difusos, dispersos e bilaterais, mas podem ser
e redução do calibre do leito vascular pulmonar, localizados a um pulmão ou lobo como na síndro-
levam a edema pulmonar, o que compromete adi- ma de Swyer-James. A confirmação diagnóstica
cionalmente as trocas gasosas. poderá obter-se com biópsia pulmonar que deverá
ser cirúrgica face à natureza dispersa das lesões.
Manifestações clínicas A tomografia computadorizada de alta defi-
nição (TCAD) melhorou muito a capacidade de
Na fase aguda a doença não se distingue da diagnóstico de lesões das pequenas vias aéreas.
bronquiolite aguda: tosse, febre, pieira e dificul- Na BO frequentemente existe um padrão em
dade respiratória. Contudo, a evidência de bronco- vidro despolido bilateral, com áreas de hiperden-
pneumonia e pneumonia intersticial é mais co- sidade alternando com outras de hipodensidade e
mum. Após um período breve de aparente me- rarefação da vascularização na periferia dos cam-
lhoria ou resolução, voltam a surgir sintomas de pos pulmonares. Presentemente a história clínica
doença obstrutiva pulmonar com dispneia, ta- associada a estes aspectos típicos na TCAD tor-
quipneia e tosse crónica. A auscultação pulmonar nam desnecessária a própria biópsia pulmonar em
revela fervores e sibilos geralmente dispersos. muitos casos.
CAPÍTULO 86 Bronquiolite obliterante 483
As provas de função respiratória são impor- Contudo, geralmente são usados, podendo haver
tantes não só no diagnóstico como no seguimento benefício clínico mesmo em doentes em que não
destes doentes. Geralmente evidenciam sinais de se verifica melhoria da função respiratória.
doença pulmonar obstrutiva irreversível. O fluxo É possível que os corticóides possam limitar a
expiratório forçado a meio da expiração (FEF 25- progressão da doença modificando a resposta
75) é um bom indicador de doença das pequenas fibroblástica na fase inicial. Usam-se por via oral,
vias aéreas. A sua descida marcada abaixo de 30% por vezes durante períodos prolongados de
do valor previsível é um indicador sensível de BO. meses. Alguns doentes beneficiam desta tera-
Em doentes submetidos a transplantes de pêutica melhorando a sua função pulmonar; con-
órgãos sólidos ou medula óssea, têm sido des- tudo, outros não. Admite-se que a resposta positi-
critos quadros clínicos com pneumonite intersti- va aos broncodilatadores possa indiciar utilidade
cial aguda não infecciosa e bronquiolite. Aparen- da corticoterapia prolongada.
temente tais quadros estão relacionados com Em centros especializados têm sido utilizados
doença enxerto-hospedeiro ou são devidos à qui- agentes imunomodulares (por ex. tacrolimus),
mioterapia, respondendo à terapêutica imunomo- ciclofosfamida em aerossol e macrólidos nos casos
duladora. de BO associada a transplantes pulmonares.
A BO pode ocorrer, tal como foi referido, como Também o infliximab (anticorpo monoclonal)
complicação tardia grave do transplante pul- que se liga ao TNF-alfa, tem sido empregue nos
monar. A patogénese é desconhecida, mas parece casos de doentes transplantados com medula
tratar-se de uma forma peculiar de rejeição de óssea.
órgão. Ocorre em quase 50% dos sobreviventes de
transplante pulmonar e não responde à terapêuti- Prognóstico
ca usual, podendo ser irreversível.
Nos últimos anos uma entidade patológica A evolução dos doentes com BO varia muito: desde
diferente chamada bronquiolite obliterante- alguns com sintomas ligeiros que melhoram
pneumonia organizativa (BOOP) tem sido gradualmente sobretudo depois dos 8-10 anos, até
descrita associada a várias doenças pulmonares outros que continuam a ter significativa doença
incluindo pneumonias infecciosas, inalação de respiratória com obstrução crónica, bronquiectasias
tóxicos e doenças do colagénio vascular. O aspec- e infecções recorrentes. Mais raramente podem ter
to anatomopatológico é semelhante à BO excepto evolução rapidamente progressiva para insufi-
no que respeita a uma característica: os septos ciência respiratória e morte pouco tempo depois do
alveolares estão espessados por um infiltrado início dos sintomas. Presentemente o prognóstico
celular inflamatório crónico e existe hiperplasia em geral é razoavelmente bom com uma morta-
das células tipo II. lidade baixa. Nalguns casos graves tem sido feito
transplante pulmonar.
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pathologic findings of bronchilitis obliterans after allogenic
hematopoietic stem cell transplantation:a proposal from a
case. Case Reports in Hematology2012; doi:10.1155/2012/
957612 Definição e importância do problema
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York : McGraw-Hill A bronquite aguda consiste num processo infla-
Medical , 2011 matório agudo da mucosa dos brônquios de iní-
Wohl MEB. Bronchiolitis. In: Chernick V and Boat T (eds). cio abrupto, geralmente de origem vírica, em que
Kendig’s Disorders of the Respiratory Tract in Children. a tosse é o sinal proeminente. De acordo com
Philadelphia: Saunders, 1998; 473-484 estatísticas dos Estados Unidos, estima-se que na
Zhang L, Irion K, Kozakewich H, Reid L, Camargo JJ, Porto idade pré-escolar ocorram cerca de 2 milhões de
NS, Silva FA. Clinical course of postinfectious bronchiolitis episódios de bronquite aguda. Dum modo geral
obliterans. Pediatr Pulmonol 2000; 29; 341-350 acompanha ou surge na sequência de rinofarin-
gite aguda ou de traqueíte aguda, fazendo parte
do quadro clínico acompanhante doutras doenças
infecciosas ou do foro respiratório com localização
diversa.
A bronquite crónica corresponde a uma situa-
ção caracterizada por produção excessiva de
muco e tosse, associada a febre em períodos não
inferiores a 3 meses. De facto, surgindo como
manifestação clínica ou epifenómeno de um con-
junto doutras entidades, em idade pediátrica o
termo “bronquite crónica“ não tem a relevância
que lhe é atribuída no adulto,acabando por
prevalecer a situação de base como entidade.
Etiologia
alergénios (estes últimos abordados noutro capí- com soro fisiológico e aspiração nasal cuidadosa,
tulo) tem igualmente papel importante. mas eficaz, das secreções; antipiréticos com
Está provada a associação entre fumo do taba- prudência (paracetamol) e suprimento abundante
co (activo ou passivo), poluição do ar e bronquite, de líquidos por via oral para promover a muco-
com ou sem sibilância. lise. Os antitússicos deverão ser utilizados com
No que respeita à bronquite crónica, em ter- prudência e apenas nas situações de tosse não pro-
mos de factores etiológicos, tem perfeito cabimen- dutiva. Em circunstâncias especiais e em crianças
to, o que foi referido a propósito das pneumonias maiores poderão ser utilizados anti-histamínicos
recorrentes. durante 3-4 dias, havendo congestão nasal impor-
tante.
Manifestações clínicas Nos casos de infecção bacteriana secundária
está indicada antibioticoterapia.
Os sinais e sintomas característicos são tosse e
febre associados a processo inflamatório das vias BIBLIOGRAFIA
respiratórias superiores, sendo notória a rinite Arnold JC, Singh KK, Spector SA, et al. Human bocavirus:
mucopurulenta com obstrução nasal. A tosse é Prevalence and clinical spectrum at a children´s hospital.
inicialmente seca , irritatativa, não produtiva, tor- CID 2006; 43: 283-288
nando-se produtiva nos dias seguintes. Nos Arroll B, Kenealy T. Antibiotics for acute bronchitis. BMJ 2001;
lactentes a tosse é emetizante conduzindo a ano- 322: 939-940
rexia e , por vezes, a desidratação. Chernick V, Boat TF. Kendig’s Disorders of the Respiratory
Nas crianças maiores poderá haver expecto- Tract in Children. Philadelphia: Saunders, 1998
ração e dor torácica. Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics.
A evolução tem, em geral, a duração de uma Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
semana, com uma fase de recuperação de 1-2 Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
semanas em que é típica a tosse persistente. Trata- Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
se em geral dum processo autolimitado e beni- Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
gno. Saunders, 2011
Poderá surgir infecção bacteriana secundária. Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph´s Pediatrics.
As situações crónicas de “bronquite” obrigam ao New York: Mac Graw Hill Medical, 2011
diagnóstico diferencial com displasia broncopulmonar, Taussig LM, Landau LE. Pediatric Respiratory Medicine. St
bronquectasias e fibrose quística. Louis:Mosby, 1999
Os dados auscultatórios do tórax revelam ron-
cos dispersos mais audíveis na metade superior
da caixa torácica.
A radiografia do tórax é em geral normal na
ausência de sobreinfecção bacteriana. Os exames
complementares têm valor limitado, sugerindo
em geral processo vírico. O hemograma poderá
revelar leucocitose ligeira e, em cerca de 1/3 dos
casos, mesmo nos processos compravadamente de
etiologia vírica, neutrofilia ligeira.
Tratamento e complicações
88
QUADRO 1 – Factores etiológicos
Infecções
Vírus (adenovírus, sarampo, VIH, VSR), tuberculose,
tosse convulsa, Aspergillus, Pseudomonas, Mycoplasma.
Nos países desenvolvidos a causa mais frequente posta por situs inversus, sinusite e bronquiecta-
de bronquiectasias é a fibrose quística, devido à sias. A discinésia ciliar primária é uma doença
obstrução brônquica e infecção crónica associada autossómica recessiva caracterizada por uma
a esta doença. No entanto, os factores etiológicos diminuição de função dos cílios brônquicos que
de bronquiectasias são múltiplos, como se pode contribui para a retenção das secreções e infecções
observar no Quadro 1. recorrentes.
Devido à melhoria dos cuidados de saúde O refluxo gastresofágico e as aspirações cróni-
algumas doenças como a tuberculose, sarampo e cas secundárias às dificuldades de deglutição
tosse convulsa, que eram as principais causas de podem complicar-se com lesões brônquicas.
bronquiectasias, diminuiram significativamente A presença prolongada de corpo estranho nas
em incidência; no entanto, a infecção pulmonar vias aéreas provoca obstrução crónica e inflamação,
ainda constitui o factor predisponente mais rele- factores importantes do desenvolvimento de
vante do desenvolvimento de bronquiectasias. O bronquiectasias.
adenovírus é particularmente agressivo para o A síndroma do lobo médio, que se caracteriza
pulmão. O vírus sincicial respiratório (VSR) pode por atelectasia persistente deste lobo, é uma causa
causar bronquiectasias se a infecção ocorrer em frequente de bronquiectasias localizadas, pela au-
crianças nascidas pré-termo. sência de ventilação colateral; com efeito o brôn-
A síndroma de Kartagener é uma tríade com- quio lobar médio é mais longo e de calibre mais
CAPÍTULO 88 Bronquiectasias 487
estreito, sendo a drenagem mais difícil. Uma das em cacho de uva. Este achado encontra-se nas
principais causas desta síndroma é a asma. formas graves de bronquiectasias.
De salientar que em muitos casos a etiologia
continua desconhecida. Manifestações clínicas
As bronquiectasias, primariamente uma doen-
ça dos brônquios e bronquíolos, envolvem um Nas crianças existe habitualmente tosse que pode
ciclo vicioso de obstrução, infecção e inflamação ser produtiva (as crianças deglutem as secreções);
transmural, com libertação de mediadores. Existe por vezes a expectoração é purulenta com cheiro
uma agressão inicial das vias aéreas que com- fétido. As hemoptises são mais raras do que nos
promete os mecanismos de defesa, causando adultos. A recidiva de pneumopatia no mesmo
colonização bacteriana da árvore brônquica. Na território ou infecções brônquicas de repetição,
tentativa de eliminar estes microrganismos surge devem fazer suspeitar de bronquiectasias.
uma reacção inflamatória que é ineficaz e, por este Existem outros sinais menos específicos como
motivo, se torna crónica. Esta reacção provoca atraso do desenvolvimento estaturo-ponderal ou
destruição da parede brônquica e consequente febre inexplicada. Na anamnese é importante
alteração e compromisso dos mecanismos de defe- salientar os antecedentes familiares de doença
sa com aumento da susceptibilidade à invasão respiratória, a consanguinidade assim como os
bacteriana. Neste processo parece estarem envol- antecedentes pessoais desde o período neonatal.
vidos neutrófilos e linfócitos-T, tendo sido encon- O exame objectivo permite evidenciar sinais de
tradas na expectoração concentrações aumentadas gravidade como a alteração do estado geral,
de elastase, interleucina-8 e factor de necrose atraso estaturo-ponderal, deformação torácica,
tumoral alfa (TNF-alfa). dispneia, cianose e hipocratismo digital. A
Microscopicamente o lume brônquico encon- auscultação permite detectar fervores nas áreas
tra-se obstruído por muco, há hipertrofia e afectadas, por vezes sibilos e roncos.
hiperplasia das células caliciformes e glândulas da As provas de função respiratória revelam
submucosa, com infiltração da mucosa e sinais de obstrução, podendo ocorrer também
submucosa por células inflamatórias; verifica-se defeito restritivo nos doentes em que existe des-
também hipervascularização brônquica e truição avançada do parênquima.
destruição do tecido elástico, tecido cartilagíneo e
músculo liso, que são substituídos por tecido Diagnóstico
fibroso.
A telerradiografia de tórax poderá não revelar
Classificação quaisquer sinais anómalos nos estádios mais
precoces. As bronquiectasias são identificadas
Macroscopicamente verifica-se que os brônquios como imagens de dilatação brônquica com
são irregulares e tortuosos, e os bronquíolos dis- espessamento da respectiva parede, hiperinsu-
tais estão obstruídos por secreções, transfor- flação compensatória, impactação mucóide e
mando-se progressivamente em cordões fibrosos. formação quística. Classicamente existem dois
De acordo com o aspecto macroscópico, as sinais característicos: sinal de “anel de sinete”
bronquiectasias podem dividir-se em: (corte de topo do brônquio que é espessado e
– Cilíndricas: nesta forma as vias aéreas dila- maior que o topo da artéria adjacente, o que não
tadas surgem, por vezes, como efeito resi- acontece em situações sem patologia em que a
dual de uma pneumonia; artéria e o brônquio têm tamanhos similares); e
– Varicosas: nesta forma existem áreas constriti- “sinal do carril” (linhas espessadas paralelas que
vas focais ao longo das vias aéreas dilatadas representam corte longitudinal do brônquio). Nos
que resultam de defeitos da parede brônquica; casos mais graves pode ocorrer a imagem de
– Quísticas ou saculares: caracterizadas por pulmão em favo de mel. No entanto, devem ter-se
dilatação progressiva das vias aéreas que ter- em atenção outros sinais como uma condensação
minam em formações quísticas ou aglomerados pulmonar que permanece após antibioticoterapia.
488 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
89
Eastham KM, Fall AJ, Mitchell L et al. The need to redefine non
cystic fibrosis bronchiectasis in childhood. Thorax 2004; 59:
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non-CF bronchiectasis – do they improve outcome? Respir
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Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). SÍNDROMAS DE ASPIRAÇÃO
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Redding G et al. Early radiographic and clinical features asso-
ciated with bronchiectasis in children. Pediatr Pulmonol
2004; 37; 297-304
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon Importância do problema
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Medical , 2011 Existe uma gama muito variada de substâncias,
Silverman E. et al. Current management of bronchiectasis: produtos, corpos estranhos ou até produtos bio-
review and 3 case studies. Heart Lung 2003; 32; 59-64 lógicos (como por exemplo, secreções naso-
faríngeas e conteúdo gástrico) que podem atingir
intempestivamente a via respiratória e originar
obstrução mecânica e sinais e sintomas que po-
dem culminar em asfixia e morte na ausência de
procedimentos emergentes ou urgentes. Cabe re-
ferir ainda a possível acção de determinados
produtos tóxicos aspirados ou inalados, tais como
petróleo, naftaleno, pó de talco, vapores de
mercúrio, pesticidas, produtos clorados, goma-
laca, berílio, etc., que poderão originar, para além
de obstrução mecânica, a formação de granuloma
e pneumonite intersticial por acção crónica irri-
tativa e agressiva sobre as estruturas canaliculares
da via respiratória.
O objectivo deste capítulo é abordar sucin-
tamente as situações relacionadas com a aspiração
acidental de objectos de pequenas dimensões na
perspectiva de chamada de atenção para a
necessidade de prevenção.
Etiopatogénese
Manifestações clínicas
90
cesso educativo incidindo sobre as próprias (cuida-
do com os objectos dados às crianças pequenas para
brincar: objectos pequenos não!).
Esta acção educativa deve começar na escola
pré-primária.
1. HEMOSSIDEROSE PULMONAR
IDIOPÁTICA
Anatomia Patológica
2. SÍNDROMA DE HEINER
Fisiopatologia
existam estudos demonstrando que o género não Kaappler M, Griese M. Nutritional supplements in cystic fibro-
influencia a esperança de vida. sis. BMJ 2006; 332: 618-619
O agravamento das provas de função res- Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
piratória constitui o principal factor de mau Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
prognóstico, e a insuficiência respiratória a princi- Saunders, 2011
pal causa de morte. Konstan MW, Geller DE, Minic P, et al. Tobramycin inhalation
Como medidas em fase experimental, que são powder for P aeruginosa infection in cystic fibrosis. The
promissoras, citam-se a vacina anti-Pseudomonas EVOLVE Trial. Pediatr Pulmonol 2011; 46:230-238
aeruginosa, administração de antiprotease em O’Sullivan BP, Freedman SD. Cystic fibrosis.Lancet 2009;
aerossol, e a terapia génica, entre outras. 373:1891-1902
Rezaei N, Sabbaghian M, Liu Z,et al. Eponym. Johanson-
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CAPÍTULO 92 Reabilitação respiratória 501
92
os seus métodos estarem em grande parte condi-
cionados pela capacidade de colaboração da cri-
ança. Tal colaboração está intimamente ligada à
sua idade, e depende do entendimento que aque-
la tem do que se lhe pede e da sua capacidade de
repetir o gesto. Tal capacidade vai, em geral, mas
REABILITAÇÃO RESPIRATÓRIA não de modo uniforme, aumentando ao longo dos
anos. Crianças há colaborando precocemente no
António Teixeira que lhes é solicitado, e outras com perturbação do
desenvolvimento em que isso não é possível. Tal
facto exigirá uma grande perícia do técnico de
reabilitação com utilização de manobras em que o
Importância do problema carácter passivo e activo-assistido será predomi-
nante.
Na fisiopatologia respiratória da criança, para Para um funcionamento eficaz da função res-
além das doenças próprias do grupo etário, há piratória é necessário um conjunto de três
que considerar a sua exposição potencial a todos condições: vias aéreas permeáveis que permitam a
os agentes causadores de doença respiratória nos passagem do ar desde o exterior até aos pulmões;
adultos. Por outro lado, os mecanismos de respos- a integridade da caixa torácica associada à normal
ta broncopulmonar aos agentes agressores na acção muscular que lhe permita funcionar como
criança são diferentes, estando condicionados bomba inspiradora e expiradora do ar responden-
pelas imaturidades anatómica, funcional e do ao estímulo respiratório central com os seus
imunológica. Se doenças como a doença pul- mecanismos reguladores; uma correcta relação
monar obstrutiva crónica (DPOC) e doenças com ventilação/ perfusão o que implica um adequado
supuração são comparativamente mais raras na suprimento de sangue pela circulação pulmonar
criança, (excepto a fibrose quística e a doença de realizando-se as trocas gasosas através duma nor-
cílios imóveis) a maior susceptibilidade a algumas mal barreira alvéolo-capilar.
doenças víricas e bacterianas com grande resposta A Rrp actua principalmente na restauração da
secretora e inflamatória pode condicionar altera- primeira das condições acima enunciadas, menos
ções estruturais broncoalveolares numa fase na segunda e só indirectamente procura interferir
maturativa facilitando o aparecimento de seque- na terceira. Para conseguir tais objectivos a Rrp
las. Por outro lado, tal resposta inflamatória em utiliza as estratégias de limpeza das secreções das
vias aéreas de menor dimensão poderá explicar a vias aéreas, de treino dos tempos inspiratório,
frequência da sibilância já desde a primeira infân- expiratório e seu sincronismo, e de utilização de
cia, chegando alguns estudos a referir a sua ocor- O2 como terapêutica, promovendo a readaptação
rência em 40% do universo deste grupo etário. Daí ao esforço.
a importância da reabilitação respiratória
pediátrica (Rrp) definida como um conjunto de Actuação prática
acções duma equipa interdisciplinar dirigidas à
criança com doença respiratória com o objectivo Permeabilização das vias aéreas. É fundamental
de restaurar a anatomia e a função pulmonares, manter a permeabilidade das vias aéreas e, no que
diminuir a incapacidade, aumentar a independên- diz respeito à reabilitação das doenças broncopul-
cia individual e a integração social, e diminuir a monares, será quase invariavelmente, a primeira
frequência das exacerbações e dos internamentos acção a promover. Sem a manutenção duma via
hospitalares. aérea minimamente permeável será difícil avançar
Na Rrp aplicam-se uma série de técnicas como para outras técnicas. O aumento das secreções
a cinesiterapia respiratória, a inaloterapia, a brônquicas acontece frequentemente como resul-
readaptação ao esforço, a cinesiterapia vertebral, tado de múltiplas situações patológicas afectando
etc.. Como particularidade da Rrp está o facto de a árvore tráqueo-brônquica e o parênquima pul-
502 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
monar como laringotraqueobronquite, bronquio- deglutidas ou expelidas. Tal pode ser conseguido
lite, pneumonia, bronquiectasia e asma brônquica, com técnicas de estimulação da tosse eficaz, acel-
sobretudo na fase secretora. eração do fluxo expiratório, drenagem postural,
Na fibrose quística a presença de secreções drenagem autogénica, etc.. Estas técnicas devem
espessas e muitas vezes infectadas é uma cons- ser utilizadas na sua exigência, duração e frequên-
tante e um factor fisiopatológico fundamental na cia de acordo com a criança e a situação a tratar.
evolução da doença. Por outro lado, nas crianças com dificuldade res-
Situação particular é o caso das unidades de piratória ou com alterações gasométricas pre-
cuidados intensivos. Como se sabe, um dos efeitos sentes ou latentes, todas estas técnicas deverão ser
secundários da ventilação mecânica (iatrogénico) executadas com monitorização da saturação em
é o aumento da produção da muco e a sua acu- O2 que pode ser efectuada, de forma cómoda com
mulação por impedimento dos mecanismos fisio- pulsoxímetro, ponderando a necessidade do
lógicos de limpeza. Em qualquer situação em que ajuste ou introdução de suplemento de O2. Uma
for necessária a entubação endotraqueal e/ ou a respiração progressivamente menos rude a cami-
ventilação mecânica, mesmo sem doença bron- nho da normalidade, e mesmo uma subida dos
copulmonar de base, é fundamental promover valores da saturação em O2, podem ser sinais de
uma adequada cinesiterapia respiratória sendo cinesiterapia eficaz.
insuficiente a simples aspiração do tubo endo-
traqueal. Todas as situações que cursam com Melhoria da capacidade inspiratória. A inspi-
retenção e espessamento das secreções criam as ração é, em condições normais, a fase activa da res-
condições para o aparecimento de sobreinfecções piração com preponderância do papel do diafrag-
e o desenvolvimento de atelectasias com desequi- ma. Excluindo as doenças neuromusculares, são
líbrio da relação ventilação/ perfusão concorren- raras as situações em que há um verdadeiro défice
do para acentuar as alterações gasométricas que de força muscular dos músculos inspiratórios.
se somam às da doença base. Neste enquadra- Entre estas estão as das crianças sujeitas a longos
mento se percebe a importância desta etapa da períodos de ventilação mecânica em que poderá vir
Rrp. Situações há em que a limpeza eficaz e crite- a instalar-se um verdadeiro défice por desuso.
riosa das secreções brônquicas é o objectivo prin- Assim, para a melhoria da capacidade respiratória,
cipal, quase único da intervenção da Rrp. pode justificar-se a inclusão dum cuidadoso pro-
A maneira como a cinesiterapia respiratória grama de fortalecimento do diafragma e dos inter-
consegue restaurar a permeabilidade das vias costais externos através de manobras de facilitação
aéreas depende dum conjunto de técnicas e cargas externas manuais ou mecânicas. O que
próprias exigindo treino e arte na sua aplicação a acontece na esmagadora maioria das situações é
um grupo etário que vai desde o nascimento à uma incoordenada utilização destes músculos, tor-
adultícia e cuja descrição ultrapassa os objectivos nando-se fundamental um programa de correcção
deste livro. das assinergias ventilatórias. Nas doenças neuro-
O primeiro passo é promover uma adequada musculares da primeira infância em que haja
humidificação das secreções, sobretudo nas tendência a baixa CV (capacidade vital) pode insta-
situações em que estas se apresentam secas e ader- lar-se uma menor expansibilidade da parede torá-
entes. Pode ser conseguido tal desiderato na cri- cica por defeito com síndroma restritiva. Nesta
ança com uma abundante ingestão de líquidos, patologia os objectivos essenciais da ajuda venti-
fluidificantes ou através da humidificação do ar latória externa são manter a distensibilidade pul-
inalado. De seguida promove-se a libertação e monar e a mobilidade torácica.
mobilização de secreções podendo, para o efeito,
ser utilizadas técnicas vibratórias e de percussão Melhoria da função expiratória. A função dos
cujos efeitos acessórios devem ser rigorosamente músculos expiratórios (abdominais e intercostais
ponderados. Com as secreções soltas nas vias internos) é sobretudo importante no mecanismo
aéreas há que promover a sua deslocação da per- da tosse e no exercício físico. Para além do treino
iferia para a orofaringe a partir da qual podem ser em força (por meio do uso de objectos e apare-
CAPÍTULO 92 Reabilitação respiratória 503
lhos de treino de sopro) deve ser procurada a mente efectuados e aprendidos em repouso e, em
eficácia no treino da tosse produtiva. Em toda as fase posterior, são aplicados ao exercício e na reali-
patologia em que a acumulação de secreções seja zação das actividades de vida diária.
um problema, sobretudo quando a tosse é pouco
eficaz, será um dos treinos a realizar. Se na fase Oxigenoterapia. O oxigénio como meio tera-
expiratória se verificar um encerramento precoce pêutico é também utilizado em reabilitação tal
das vias aéreas (como no enfisema ou na fase de como por outras especialidades que tratam estes
crise da asma) será treinada a chamada expiração doentes. São diversas as patologias respiratórias
“filada” (com lábios semicerrados), lenta e suave, que cursam com hipoxémia (insuficiência respi-
para criar uma pressão expiratória positiva activa ratória) aguda ou crónica a que se pode associar
e assim facilitar o tempo expiratório combatendo ou não a hipercápnia (insuficiência ventilatória).
a hiperinsuflação. A baixa crónica de pressão arterial de oxigénio
(PaO2) na criança está habitualmente associada a
Correcção das assinergias ventilatórias. Em hipertensão pulmonar, a policitémia e a restrição
muitas das patologias respiratórias há pertur- de crescimento estaturo-ponderal. Interferindo no
bação da sinergia dos movimentos respiratórios. desenvolvimento das funções mentais superiores
Pode observar-se uma deficiente utilização do e na capacidade de esforço físico, limita o direito
diafragma, por vezes em situação funcional preju- fundamental da criança a brincar, criando inca-
dicada (em posição de distensão, como nos pacidade e desvantagem perante os seus pares. A
quadros de hiperinsuflação), esboçando um movi- correcção da hipoxémia na criança é, assim, uma
mento paradoxal de ascensão na fase inspiratória. necessidade ainda mais premente que no adulto.
Em situações de desadequada utilização dos mús- Deve procurar manter-se a PaO2 entre 65 e 90
culos inspiratóros acessórios, como é frequente mmHg e uma saturação em O2 ~92-93%. Especial
nas crises de dificuldade respiratória, há um inde- atenção deve ser prestada ao período nocturno e
vido desvio da predominância inspiratória para ao esforço físico. Durante a noite, por menor
os andares superiores do tórax, com horizontali- eficácia do centro respiratório e prejuízo funcional
zação dos arcos costais e anteversão dos ombros, do diafragma, para além do agravamento da
acrescentando-se mais um factor de desvantagem hipoxémia pode vir a associar-se a hipercápnia o
ventilatória a um quadro de dificuldade. A que coloca o problema na forma de administração
tendência do asmático em forçar a inspiração do O2. A causa para a dessaturação arterial
associada ao encurtamento e ineficácia da expi- durante o exercício pode ser múltipla e de difícil
ração tem como resultado a distensão pulmonar caracterização se não for procurada durante o
com crescente deficiência ventilatória. mesmo. Tal pode ser conseguido, nas crianças
A cinesiterapia utiliza técnicas de relaxamen- capazes de colaborar, através duma prova de
to, de posicionamento e de massagem para avaliação cárdio-respiratória, como adiante se
diminuir a tensão muscular, diminuindo o exces- desenvolve. O suplemento de O2 deverá ser
sivo gasto energético associado à incoordenada aumentado de forma a permitir uma maior tole-
utilização muscular; promove também a transfer- rância ao esforço. No dia a dia da criança a uti-
ência da parte mais importante da mecânica ven- lização de oxigénio em meios portáteis (garrafas
tilatória do andar torácico superior para o andar transportáveis) e disponibilizado através da via
abdómino-diafragmático; e utiliza o treino de nasal facilita a sua actividade e melhor integração
movimentos inspiratórios submáximos, nasais e entre os seus pares.
expiratórios suaves e prolongados com deslocação
do volume corrente para o volume de reserva O exercício físico. Como já foi referido, a activi-
expiratória. Em situações sequelares de doenças dade física, muitas vezes limitada na criança com
pleurais com retracção e assimetrias torácicas doença respiratória, é um dos factores mais
pode lançar-se mão de técnicas de correcção pos- importantes no desenvolvimento psicomotor. A
tural, cinesiterapia vertebral e tonificação mus- criança tem cansaço e dispneia e tem tendência
cular específicas. Todos estes treinos são inicial- para o sedentarismo quando não são os adultos a
504 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Nota final
93
considerados, dum modo geral, do respectivo foro
na ausência de complicações. Alguns dos proble-
mas dermatológicos são também abordados
noutras partes do livro, designadamente (Infec-
ciologia, Imunoalergologia, etc.).
INTRODUÇÃO À
DERMATOLOGIA PEDIÁTRICA
António Pinto Soares
94
podendo reapareccer no adolescente. Iniciam-se,
habitualmente, com lesões descamativas do couro
cabeludo, a chamada crosta láctea (Figura 1) cons-
tituída por crostas amareladas, untuosas, mais ou
menos aderentes ao couro cabeludo que frequente-
mente atingem também a região retroauricular. A
DERMATITE SEBORREICA erupção pode afectar a face com lesões eritematosas
e descamativas localizadas predominantemente na
Teresa Fiadeiro fronte, supracílios e sulcos nasogenianos (Figura 2).
A região cervical, sobretudo nas pregas, é um
local também frequentemente atingido.
As lesões podem envolver outras áreas do
Definição
Etiopatogénese
Manifestações clínicas
Tratamento
95
nização constante por Staphylococcus aureus, o que
facilita a instalação de quadros de impétigo.
Esta colonização tem ainda um papel relevante
na manutenção de processos inflamatórios crónicos
através da estimulação directa de linfócitos T pelos
superantigénios que estas bactérias produzem.
DERMATITE ATÓPICA Algumas proteínas estafilocócicas podem interferir
com a síntese de IgE, IL-4 e IFN-gama e podem
Maria João Paiva Lopes induzir a libertação de histamina e de leucotrienos.
Recentemente tem sido dada ênfase ao papel
de péptidos antimicrobianos chamados catelicidi-
nas (LL-37) e beta-defensinas (HBD-2) que exis-
Definição e importância do problema tem na pele humana normal e cuja expressão está
aumentada em doenças inflamatórias como a
A dermatite atópica (DA) é uma doença infla- psoríase. A combinação de LL-37 e HBD-2 tem
matória crónica exsudativa e pruriginosa de efeito sinérgístico bactericida para S. aureus. Na
expressão cutânea muito frequente na infância. pele de doentes com DA demonstrou-se uma sig-
Pode ser provocada por agentes endógenos e nificativa depleção destes péptidos, quer em
exógenos (Capítulos 62 e 63). lesões agudas quer em lesões crónicas. Estes
A sua prevalência tem vindo a aumentar nos dados indicam uma possível explicação para a fre-
últimos anos, sobretudo nos países mais desen- quente colonização da pele por S. aureus na DA.
volvidos, (cerca de 10 – 15% em crianças com menos De referir ainda o papel do metabolismo do cálcio
de 5 anos). Alguns estudos do Norte da Europa ref- e da vitamina D na imunomodulação.
erem valores mais elevados, atingindo 20%. Comparando a pele de indivíduos saudáveis
Este aumento de prevalência tem sido atribuí- com a de indivíduos com lesões agudas e crónicas
do a vários factores, como a poluição, maior de DA, notam-se as seguintes diferenças:
exposição a ácaros, aditivos alimentares, dimi- 1) Nos casos não afectados e nas situações de
nuição da prevalência do aleitamento materno e DA aguda verifica-se aumento de células
maior acuidade diagnóstica. expressando IL-4 e IL-13;
Tal como foi referido no capítulo 66 admite-se 2) Na DA aguda não se verifica número signi-
hoje como mais correcta a designação de síndro- ficativo de células que expressam IFN-gama
ma eczema/dermatite atópica (sigla: SEDA); ou IL-12.
alguns autores consideram os termos dermatite De acordo com certos estudos que valorizam a
atópica e eczema atópico sinónimos. "hipótese higiénica", a exposição a endotoxinas
em fase precoce da vida pode proteger contra
Etiopatogénese eczema atópico nos primeiros seis meses de vida.
Histologicamente verifica-se espongiose linfo-
Existe uma associação entre a DA e outras citária.
doenças, como asma e rinite alérgica; os mecanis-
mos patogénicos envolvidos nestas patologias são Manifestações clínicas
em larga medida semelhantes, sendo frequente a
agregação familiar. A importância da genética na A DA inicia-se em cerca de 75% dos doentes nos
etiologia da DA está demonstrada em vários estu- primeiros 6 meses de vida e em cerca de 90% nos
dos; foram descritas alterações genéticas rele- primeiros cinco anos; é raro o início da doença
vantes nos cromossomas (3q21, 1q21, 17q25 e após a idade pediátrica. Pode haver remissão
20p), com efeitos na inflamação e imunidade espontânea em 60% dos casos com evolução recor-
cutâneas; vários aspectos permanecem, porém, rente nos restantes. Evolui com episódios de
obscuros e continuam ainda em investigação. agudização caracterizados por prurido intenso. As
Verifica-se na pele destes doentes uma colo- localizações características variam com a idade.
510 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Terapêutica farmacológica
Corticosteróides – Em formulações tópicas (prefe-
rencialmente cremes), constituem a terapêutica efec-
tiva de primeira linha. O tipo de fármaco varia con-
soante a apresentação clínica, a localização das lesões
e o período previsível de utilização, verificando-se
maior absorção em áreas de oclusão e nas pregas.
A corticoterapia tópica não deverá ser pres-
crita em períodos prolongados, não só pelo risco
de efeitos secundários, como também pela possi-
bilidade de sensibilização. Os cremes deverão
ser reservados para lesões agudas, e as pomadas
FIG. 2 e 3
para lesões de maior cronicidade. A hidrocorti-
Eczema herpeticum (NIHDE). sona a 1%, de menor potência, é o esteróide.
tópico de primeira escolha para a face. No
restrição alimentar. As excepções a esta regra (sin- restante tegumento deverão ser preferidos corti-
tomalogia desencadeada pela ingestão de alimen- costeróides de maior potência, com reduzidos
tos), devem ser analisadas pelo médico assistente. efeitos sistémicos (metil-prednisolona a 0.1%;
No lactente e na primeira infância os alimentos fluticasona a 0.05%). Estes fármacos deverão ser
podem estar implicados na exacerbação clínica aplicados idealmente após o banho à noite.
das lesões, (10 a 40% dos casos) consoante as po- A prescrição de corticóides sistémicos deverá
pulações, estando a frequência em Portugal no reservar-se a ciclos muito curtos para permitir a
limite inferior do intervalo referido. redução da intensidade das lesões e facilitar a
Os quadros de maior gravidade e extensão, instituição de formas terapêuticas menos agres-
bem como a má resposta à terapêutica implicam a sivas; a prednisolona (1mg/Kg/dia, em perío-
detecção de sensibilização alergénica, particular- dos geralmente inferiores a 1 semana) é de ele-
mente aos ácaros domésticos. vada eficácia, podendo proceder-se a uma dimi-
nuição progressiva da dose para obviar recor-
Hidratação cutânea rências.
Emolientes – Uma formulação emoliente adequa- Antibióticos – A antibioticoterapia é frequente-
da com efeito de poupança de esteróides deverá mente necessária na terapêutica da DA. Utiliza-se
conter ácidos gordos essenciais, óleos, substâncias habitualmente ácido fusídico tópico nas situações
calmantes, suavizantes e antipruriginosas com de impetiginização ligeira das lesões de eczema,
emulsão O/A (consultar Glossário geral) . Deve sendo de evitar a aplicação tópica de produtos
ser de fácil aplicação, com textura conveniente e contendo penicilina ou sulfamidas, devido ao risco
não ser excessivamente gorda para que não cons- de sensibilização. Nos quadros de impétigo mani-
titua um factor de rejeição a uma aplicação diária festo dever-se-á optar por antibiótico sistémico
por períodos prolongados, embora suficiente- cujo espectro inclua S. aureus. Com efeito, a
mente gorda para impedir a evaporação. Podem infecçção cutânea é comum, particularmente com
512 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
96
ser “água” qb. e pouco detergente”. Excluindo as
zonas que acumulam mais sujidade, como a zona
das fraldas, um banho diário não é indispensável.
No entanto, acentuar a interacção mãe-filho, o que
é muito mais importante do que uma real
necessidade do banho.
2 – Uma vez que a hiper-hidratação pode ACNE
aumentar a espessura da camada córnea pelo
edema celular que o excesso de água provoca, Ana Macedo Ferreira
pode haver uma diminuição da sua coesão com
consequentes menor resistência e alterações da
pele. Assim, no recém-nascido e crianças peque-
nas a duração do banho não deve exceder 10 mi- Definição e importância do problema
nutos.
3 – O produto ideal para o banho deverá Define-se a acne como inflamação dos folículos
respeitar o pH cutâneo, a camada lipídica superfi- pilosos e das glândulas sebáceas, com retenção de
cial e o ecossistema da pele. sebo, geneticamente determinada, evoluindo em
4 – Podem ser utilizados sabões supergordos ciclos, com acentuado relevo na juventude.
ou “syndets”. A chamada acne vulgar é, assim, uma doença
5 – Nos casos da pele dita normal não há inflamatória crónica multifactorial da unidade
necessidade de produtos especiais para o banho. pilo-sebácea caracterizada pela formação de pá-
Devem no entanto incorporar uma base suave, pulas eritematosas, pústulas, comedões e, menos
com adição de agentes humidificantes e comple- frequentemente nódulos e pseudo-quistos, poden-
xos gordos. Na face podem usar-se leites e loções do determinar a formação de cicatrizes. Tem o seu
de limpeza sem enxaguamento e “syndets”. No início em regra na adolescência, afectando em
corpo podem usar-se sabões neutros “syndets” ou grau variável 90% dos rapazes adolescentes e
geles de banho; é admissível o uso esporádico de menor percentagem de raparigas do mesmo
emolientes suaves (leites hidratantes). grupo etário. Em regra surge mais precocemente
6 – Os emolientes devem ser usados preferen- no sexo feminino. No que respeita à nomenclatu-
cialmente após o banho, com a pele ainda húmida. ra são consideradas duas situações: acne propria-
7 – Nos casos da pele seborreica podem ser mente dita (mais frequente e como tal mais impor-
usados produtos com zinco cuja função é diminuir tante na prática clínica) e erupções acneiformes
o excesso de produção de sebo. (em regra precipitadas por agentes externos nos
8 – Nos casos de pele seca com elasticidade quais se incluem os medicamentos).
diminuída, xerose e descamação, têm prioridade a
hidratação e lubrificação. Os sabões devem ser Etiopatogénese
supergordos ou “syndets” (sólidos ou líquidos);
podem ser também usados óleos de banho e ba- Os factores genéticos podem ter influência, tanto
nhos coloidais (que utilizam cereais que removem na gravidade como na persistência da doença.
por adsorsão os detritos lipo e hidrofílicos e dei- Não constituindo uma entidade, a acne antes
xam uma camada superficial protectora). É acon- engloba um conjunto de situações que se diferen-
selhável o uso de emolientes sob a forma de emul- ciam pelos aspectos clínicos e etiopatogénicos,
sões (consultar Glossário Geral). possuindo em comum a localização pilo-sebácea
dos processos iniciais da sua patogénese.
O mecanismo acneico decorre em dois tempos:
tem início na obstrução mecânica e não infla-
matória do folículo pilo-sebáceo – com a formação
do comedão; prossegue com a fase inflamatória
que inclui manifestações clínicas diversas – pápu-
514 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
las, pústulas e nódulos. A esta diversidade asso- designada por filme lipídico, é composta por mis-
ciam-se intensidade, evolução e prognóstico extre- tura de sebo, produto de secreção das glândulas
mamente variados. sebáceas, e de lípidos derivados da desintegração
Recorda-se, a propósito, a definição de come- das células epidérmicas durante o processo de que-
dão (designação popular: ponto negro) – pequena ratinização.
saliência esbranquiçada em cujo centro há um
ponto negro, formada por substâncias gordurosas Alteração de queratinização
acumuladas numa glândula sebácea. Localizam- Na acne regista-se alteração da queratinização
se preferencialmente no rosto. infundibular com tradução histológica (micro-
As fases do desenvolvimento da afecção são comedões) e clínica (comedões abertos e fecha-
seguidamente descritas. dos). Este fenómeno depende de: alterações quali-
tativas do sebo, factores hormonais, flora micro-
Hiperprodução sebácea biana, desregulação do fenómeno de renovação
A produção activa das glândulas sebáceas sob a do epitélio pilo-sebáceo e de citocinas.
influência androgénica é a condição sine qua non da
acne. Este fenómeno poderá ocorrer na presença de: Proliferação bacteriana e inflamação
níveis aumentados de secreção hormonal; ou níveis Se bem que a acne não seja definitivamente uma
normais de secreção mas grande biodisponibilidade doença infecciosa, é indiscutível o papel etiológico
de androgénios livres;ou níveis de secreção normais do Propionibacterium acnes que, para além de pro-
mas com aumento de resposta no órgão alvo (hiper- duzir lipases, regula a produção de ácidos gordos
actividade da 5-alfa-redutase ou aumento do número livres (comedogénicos e irritantes) através do seu
de receptores androgénicos). No sexo feminino uma equipamento enzimático. Assim, este microrga-
percentagem significativa de pacientes com acne tem nismo participa na reacção inflamatória acneica
alteração do balanço hormonal androgénico e, conse- com substâncias biologicamente activas (lipases,
quentemente, apresenta também outros sinais de fosfatases e hialuronidases) que contribuem para
hiperandrogenismo (hirsutirmo, alopécia andro- o aumento da permeabilidade do epitélio folicu-
genética ou alterações menstruais). lar, e com a produção de factores quimiotáxicos
A testosterona é o androgénio mais importante que atraem polimorfonucleares neutrófilos, com
na acne por actuar simultaneamente na proliferação consequente activação do complemento.
das glândulas sebáceas e na lipogénese. A maior
parte da testosterona plasmática (> 90%) encontra-se Mitos e verdades
ligada a globulinas, pelo que só uma pequena Outros factores podem ser considerados como
porção é biologicamente activa. A testosterona livre tendo influência no processo acneico; tais factores
(~3%) liga-se a receptores celulares antes de penetrar ocupam, no entanto, um campo minado de mitos e
na célula sebácea onde, por acção da 5-alfa-redutase “verdades” populares, por vezes muito distan-
tipo I, se transforma em di-hidrotestosterona (DHT). ciados da realidade científica. Dieta: a relação
Esta, por sua vez, liga-se a um receptor, e este com- causal de certos alimentos com o aparecimento de
plexo DHT-receptor actua no núcleo celular condi- lesões carece de relevância científica. Radiação
cionando aumento da produção sebácea. ultra-violeta: a convicção generalizada do efeito
O sebo é uma mistura complexa de glicéridos, benéfico da exposição solar na acne, também carece
ácidos gordos, escaleno, colesterol e seus ésteres, de aceitação científica. Efectivamente, verifica-se
excretados por mecanismos holócrinos de forma agravamento das lesões em 20% dos doentes no
contínua. Na acne a taxa de escaleno e ceras está período estival. Estresse: é um factor reconhecido
muito elevada, havendo uma marcada diminuição de agravamento das lesões com especial enfâse na
de linolatos. O défice de linolatos torna o epitélio acne escoriada dos adultos jovens e adolescentes.
folicular mais permeável aos ácidos gordos, o que
leva a exacerbação da hiperqueratose e aumento da Manifestações clínicas
proliferação bacteriana.
Recorda-se que a superfície cutânea lipídica, Nas fases iniciais predominam ou existem apenas
CAPÍTULO 96 Acne 515
Tratamento
Medidas gerais
Para que um tratamento da acne seja bem sucedi-
do, para além de uma escolha acertada dos agen-
FIG. 3
tes terapêuticos, é indispensável que o doente
e/ou sua família compreendam a sua patologia e Acne pápulo-pustulosa marcadamente inflamatória.
516 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Cuidados cosméticos
Deverá actuar-se com suavidade, remover o óleo,
respeitando o filme hidrolipídico. Para a limpeza
de pele utilizam-se sabões supergordos ou surgras
que deixam um fino filme lipídico na pele. Trata-
-se dos chamados sabões anti-seborreia.
FIG. 4
Nos cuidados complementares incluem-se
Acne nodular grave cremes hidratantes, bases, protectores solares,
todos eles devendo cumprir o requisito de serem
não comedogénicos.
Terapêutica tópica
Está indicada nas acnes ligeiras a moderadas e
igualmente acompanha a terapêutica sistémica
nas formas graves. Compreende essencialmente
queratolíticos e, por vezes, antibióticos associa-
dos. São utilizados preparados com retinóides
tópicos (adapaleno, isotretinoína, tretinoína),
antibióticos tópicos (eritomicina e clindamicina),
outros (ácido salicílico, peróxido de benzoílo em
gel ou creme a 5% ou 10%, ácido azelaico, óxido
de alumínio).
Terapêutica oral
Está indicada nas acnes moderadas a graves, nos
doentes com dismorfofobia e quando as cicatrizes
são um evento esperado. Inclui: os antibióticos
FIG. 5
que alteram a função enzimática dos microrganis-
Acne infantil (agravada após aplicação tópica de corticóide) mos patogénicos mais do que o seu número; e a
isotretinoína que, em 1992, veio revolucionar a
adiram ao esquema proposto. terapêutica da acne. A isotretinoína é a única tera-
A primeira consulta deverá incluir uma avalia- pêutica que actua simultaneamente em todos os
ção do impacte psicológico da doença, explicação factores etiopatogénicos da acne: reduz até 90% a
sobre a sua natureza, os objectivos dos medica- secreção sebácea, tem acção comedolítica, actuan-
mentos a utilizar, como os usar, bem como sobre a do na diferenciação das células foliculares,
duração provável do tratamento. De salientar que diminui a colonização do P. acnes e, finalmente,
CAPÍTULO 97 Dermatite das fraldas 517
97
tem propriedades anti-inflamatórias ao inibir a
quimiotaxia dos neutrófilos.
Notas importantes:
1) As formas graves de acne deverão ser en-
caminhadas para o dermatologista.
2) Os antibióticos por via oral classicamente
indicados são os macrólidos e as tetracicli- DERMATITE DAS FRALDAS
nas (estas últimas a partir da adolescência).
3) A isotretinoína é teratogénica, razão pela Teresa Fiadeiro
qual somente deverá ser prescrita excluindo
gravidez.
4) Os retinóides e o peróxido de benzoílo são
irritantes, o que implica aplicação gradual e Definição
controlada em quantidades reduzidas.
5) Estudos recentes chamam a atenção para a A dermatite das fraldas (ou eritema das fraldas) é
necessidade de manter nível glicémico nor- uma dermatose exclusivamente localizada (pelo
mal e para o benefício demonstrado dos menos, nas fases iniciais) à área que está coberta
suplementos com ácidos gordos essenciais pela fralda e que só ocorre nos períodos da vida
ómega-3. em que a mesma é utilizada.
No entanto, múltiplas dermatoses podem afectar a
região anogenital das crianças nesta fase da vida,
desde as que são causadas directamente pela
acção irritativa das fraldas (dermatite de contacto
irritativa primária), a doenças raras como a histio-
citose de células de Langerhans (doença de
Letterer-Siwe), sem qualquer relação com o uso
das mesmas. Assim, a dermatite das fraldas é um
termo lato que engloba várias patologias de etio-
logia multifactorial.
Destas é, sem dúvida, a dermatite irritativa
primária, a situação mais frequente e que, por
isso, será a abordada em pormenor.
Etiopatogénese
Manifestações clínicas
Diagnóstico
FIG. 3
O diagnóstico é geralmente feito com base na Dermatite erosiva de Sevestre-Jacquet
CAPÍTULO 98 Psoríase 519
98
anamnese e na observação clínica. É de extrema
importância o conhecimento das lesões primárias,
e a sua relação com as lesões que ocorrem secun-
dariamente; igualmente importante é conhecer a
distribuição das lesões iniciais, o que pode permi-
tir diferenciar as diversas entidades. Se a der-
matose evoluir sem diagnóstico e tratamento, PSORÍASE
torna-se difusa e de características inespecíficas.
Ana Fidalgo
Tratamento
A acção de factores externos ou internos pode vas e mais pruriginosas. A face, o couro cabeludo
desencadear psoríase em indivíduos genetica- e as pregas são afectados com maior frequência
mente predispostos. comparativamente ao adulto.
• As infecções estreptocóccicas, em particular
faringites, constituindo factores desenca- As principais formas clínicas da psoríase (que
deantes ou agravantes. podem aparecer em sobreposição ou sequencial-
• O estresse psicológico pode precipitar ou mente no tempo) são as seguintes:
exacerbar a psoríase. • Psoríase guttata:
• Factores endócrinos e metabólicos: a gravi- É mais frequente em crianças e adultos jovens.
dez e a hipocalcémia podem induzir psoría- Surge de forma súbita, habitualmente 1-2 semanas
se pustulosa. após faringite estreptócoccica, sob a forma de pápu-
• Fenómeno isomorfo ou de Köbner: ocorre las, redondas ou ovais, com escama discreta ou
em 25% dos doentes; corresponde à indução ausente, dispersas de forma grosseiramente simétri-
de lesões psoriásicas em locais de trauma- ca pelo tegumento, mas com predomínio pelo tronco
tismo cutâneo. e extremidades proximais. Esta forma persiste 3 a 4
• Os fármacos : lítio, β-bloqueantes, interferão, meses e pode ter remissão espontânea e recorrências.
anti-inflamatórios não esteróides e IECA. • Psoríase em placas:
Nas crianças os fármacos mais frequente- Nesta variante existem placas eritematodesca-
mente implicados são os antimaláricos e os mativas características nas superfícies de extensão
corticóides. (joelhos e cotovelos) e/ou couro cabeludo e tron-
• Outros: o consumo elevado de álcool e taba- co. (Figuras 1 e 2)
co tem sido associado à psoríase. • Psoríase inversa:
Afecta predominante ou exclusivamente as
Na psoríase surge resposta imune efectora de áreas de atrito, em particular a área das fraldas e
perfil T helper 1. As lesões cutâneas resultam da acti- axilas (compromisso electivo das pregas). As lesões
vação local do sistema imune, e da acumulação mantêm o eritema vivo e bordo bem definido, mas
selectiva de linfócitos Th 1 (CD4+ e CD8+) que de- a escama é reduzida ou ausente. (Figura 3)
sencadeiam e mantêm a doença ao libertar citocinas • Psoríase pustulosa:
e/ou outras moléculas inflamatórias, induzindo a Variante rara na criança, quer na sua forma
hiperproliferação e diferenciação anormal de quera- generalizada, quer na forma localizada às palmas
tinócitos, de células endoteliais, fibroblastos, e mas- e plantas onde se observam pústulas.
tócitos. Sobressai igualmente inflitrado denso de • Psoríase eritrodérmica:
polimorfonucleres com característico epidermotro- É a forma rara, e habitualmente grave, com
pismo. A cronicidade resulta da estimulação linfoc- eritema e esfoliação de quase todo o tegumento.
itária persistente por antigénios de provável origem Pode ser congénita.
epidérmica ainda desconhecidos. • Psoríase artropática:
Surge artrite inflamatória seronegativa similar à
Manifestações clínicas artrite reumatóide em 5-30% dos doentes com
psoríase. O início pode ocorrer na puberdade,
O quadro clínico na criança é semelhante ao do sendo geralmente ulterior ao quadro cutâneo, na
adulto. A lesão característica é a placa eritemato- forma de artrite assimétrica mono ou oligoarticular.
descamativa, bem delimitada, com escama pratea- • Alterações ungueais:
da espessa. O eritema é vermelho vivo e a remo- A alteração mais frequente é o ponteado
ção sucessiva da escama origina pontos hemor- ungueal (40%); raramente surgem onicólise ou
rágicos (sinal de Auspitz). As placas localizam-se alterações da coloração.
predominantemente nas superfícies de extensão
das extremidades (cotovelos e joelhos), couro Diagnóstico
cabeludo e na região lombo-sagrada. Nas crianças
as lesões tendem a ser menos espessas, descamati- É essencialmente clínico, baseado no aspecto das
CAPÍTULO 98 Psoríase 521
Tratamento
Prognóstico
99 Mancha mãe
100
PEDICULOSE
Luísa Caldas Lopes
FIG. 2 FIG. 3
“Mancha mãe” (Pitiríase Erupção exantemática típica
rosada). (Pitiríase rosada). Definição e importância do problema
101
futuras desenvolve-se prontamente. Salienta-se,
assim, a possibilidade de ocorrência de surtos
epidémicos em creches e escolas. Poderão surgir
complicações (piodermites). Alguns indivíduos as-
sintomáticos podem ser considerados “portadores”.
O diagnóstico é feito pela identificação do para-
sita ou pelos ovos (lêndeas, em geral muito ESCABIOSE
numerosas) na haste do pêlo. Ocasionalmente pode
existir febre baixa, irritabilidade, linfadenopatia ou Luísa Caldas Lopes
infecção bacteriana secundária.
Tratamento
Definição e importância do problema
A escolha terapêutica é baseada na eficácia do fár-
maco, potencial de toxicidade e padrões de A escabiose (sinónimo: sarna) é uma doença cu-
resistência. Em todas as preparações tópicas, de tânea parasitária provocada por infestação pelo
preferência líquidas, devem ser realizadas 2 apli- ácaro Sarcoptes scabiei variante hominis, parasita
cações com 1 semana de intervalo, atendendo à exclusivamente humano, que não infesta animais
possibilidade de poder haver ainda eclosão larvar domésticos ou objectos inanimados.
que tenham eclodido dos ovos (lêndeas) depois Trata-se duma doença ubiquitária; todas as
do primeiro tratamento. É fundamental a remoção idades, raças e grupos sócio-económicos são sus-
mecânica da lêndeas. ceptíveis. No entanto, existem vários factores
É aconselhavel corte de cabelo (muito curto) que facilitam a sua disseminação: o atraso do
para facilitar, com pente de espaços apertados, a tratamento de casos primários, a falta de alerta
remoção das referidas lêndeas(Bug Buster Kit®). para a doença e as más condições socio-
A retirada das lêndeas das pestanas é difícil; económicas. A disseminação da infestação entre
por isso, é aconselhável aplicar pomada oftálmica membros da mesma família e contactos próxi-
com vaselina em dias consecutivos previamente. mos é frequente, e um dado que favorece o diag-
Na pediculose da cabeça são utilizados os nóstico.
seguintes fármacos em alternativa: A prevalência é maior em crianças, em adultos
– Piretrinas, das quais se isolou a permetrina com vida sexual activa e em idosos ou acamados.
(champô): aplicação durante 10 minutos, lavando
em seguida; pode repetir-se o procedimento no Etiopatogénese
dia seguinte; como precaução há que evitar con-
tacto com os olhos; ou O Sarcoptes scabiei var. hominis é um ácaro muito
– Permetrina a 1% associada a butóxido de pequeno, arredondado e translúcido, cuja fêmea
piperonilo a 2% (creme de lavagem): aplicação em mede cerca de 0.4 mm. Tem 4 pares de patas e
cabelo pouco húmido durante 10 minutos, segui- reproduz-se pela postura de ovos fecundados.
do de lavagem; pode repetir-se 1 semana depois; O ácaro fêmea penetra na epiderme onde escava
resistências frequentes. e avança lentamente originando a galeria, na
Notas importantes: qual põe os ovos e morre ao fim de 6 semanas.
1) O lindano(hexaclorociclo-hexano) actual- A duração do macho é bastante inferior. Cada
mente não é comercializado em Portugal. Muito ovo resulta numa larva de 3 pares de patas e que
eficaz, no entanto é neurotóxico; 2) Tem-se verifi- se vem transformar em ácaro adulto. Este ciclo
cado, por mutação genética de algumas estirpes dura cerca de 2 semanas. Na primeira infestação
de piolhos, resistências a pediculicidas; 3)A a sensibilização do sistema imunitário pode
pediculose do corpo obriga a desinfestação da demorar duas a seis semanas. As infestações
roupa pelo calor e a eventual aplicação tópica de subsequentes são reconhecidas em 24 a 48
permetrina. horas.
CAPÍTULO 101 Escabiose 525
102
de benzilo, optando-se por suspensão de enxofre a
5% (creme ou pomada) diariamente durante 3 a 5
dias.
– Invermectina: é o única fármaco de admi-
nistração oral. Não se encontra disponível no
mercado, apesar de ter utilidade em diversas
doenças parasitárias humanas, das quais se MOLUSCO CONTAGIOSO
destacam as filaríases. O seu uso na sarna é
restrito às formas refractárias, sobretudo se Maria João Paiva Lopes
associadas a infecção por VIH em crianças
com idade superior a 5 anos.
também atingir a face, couro cabeludo e membros. bém ter-se em atenção a vigilância de novas lesões
O aparecimento eventual de lesões em localização e a sua rápida destruição, antes que estas se mul-
anogenital não implica transmissão sexual, tipliquem. A opção pela terapêutica no domicílio,
podendo corresponder a auto-inoculação. quando exequível, é a mais favorável, evitando-se
O diagnóstico clínico é, na maior parte dos assim “traumatizar” a criança.
casos, bastante simples. Nos doentes seropositivos
para o VIH é importante o diagnóstico diferen- BIBLIOGRAFIA GERAL
cial com criptococose que assume aspectos clíni- (Parte XV – Dermatologia)
cos muito semelhantes. Uma manobra útil no dia- Brown S, Reynolds NJ. Atopic and non-atopic eczema. BMJ
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lesão, com pinça: se esta manobra produzir a Burns T, Brethnach S, Cox N (eds). Rook´s Textbook of
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advogam que não é imperativo tratar estas lesões, 25: 480 - 487
uma vez que elas são autolimitadas, ocorrendo Gehring U, Bolte G, Borte M, et al. Exposure to endotoxin
remissão espontânea em cerca de 6 a 9 meses, em decreases the risk of atopic eczema in infancy:a cohort
média. Porém, há casos com evolução arrastada study. J Allergy Clin Immunol 2001; 108:847-853
(3-4 anos), sendo frequente que a auto-inoculação Guerra-Rodrigo F, Gomes MAM, et al – Dermatologia. Lisboa:
produza sementeiras, levando ao desenvolvimen- Fundação Calouste Gulbenkian, 2010
to de mais lesões. Assim, parece preferível tentar a Hanifin et al. Guidelines of care for atopic dermatitis. J Am
terapêutica precoce, enquanto há um número Acad 2004; 50: 391-404
reduzido de lesões. O objectivo é destruir as mes- Mutgi K, Koo J. Update on the role of systemic vitamin D in
mas. As modalidades possíveis incluem espremer atopic dermatitis. Pediatric Dermatology 2013; 30: 303- 307
(com aplicação prévia de anestésico tópico) com Nguyen R, Su J, Treatment of acne vulgaris. Paediatrics and
pinça de bicos finos, curetagem, crioterapia ou Child Health 2011; 21:119-125
aplicação local de produtos como podofilotoxina, Robeva R, Assyov Y, Tomova A, et al. Acne vulgaris is associ-
cantaridina, verrucidas, tretinoína ou, mais recen- ated with intensive pubertal development and altitude of
temente, imiquimod. residence. Eur J Pediatr 2013; 172:465-471
Tratando-se de uma doença benigna e auto- Sawni A, Singh A. Complementary, holistic, and integrative
limitada, é de bom senso escolher uma terapêuti- medicine: acne. Pediatr Rev 2013; 34:91-92
ca que não seja mais agressiva ou traumatizante Sharma V, Orchard D. Paediatric psoriasis. Paediatrics and
para a criança do que a doença em si. A avaliação Child Health 2011; 21:126-131
das particularidades de cada caso (idade, localiza- Shekariah T, Kalavala M, Alfaham M. Atopic dermatitis: a
ção e número de lesões) deverá orientar a opção practical approach. Paediatrics and Child Health 2011;
terapêutica, a qual deve ser ponderada em con- 21:112-118
junto com a criança e os pais. De notar que é pos- Simon D, Lang KK. Atopic dermatitis: from new pathogenic
sível e benéfico ensinar os pais a tratar a criança insights toward a barrier-restoring and anti-inflammatory
em ambiente doméstico, seja pela aplicação de therapy. Curr Opin Pediatr 2011; 23: 647-652
tópicos, seja pela espressão com pinça com apli- Weston WL, Lane AT, Morelli JG. Color Textbook of Pediatric
cação prévia de anestésico tópico (pomada de Dermatology. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007
prilocaína cerca de 45 minutos antes). Deve tam-
PARTE XVI
Gastrenterologia e Hepatologia
530 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
103
esofágico inferior relaxa-se, alargando o orifício de
passagem. Concomitantemente as contracções
sincronizadas dos músculos da parede abdominal,
diafragma e intercostais aumentam a pressão
intrabdominal e intratorácica com consequente
expulsão do conteúdo gástrico contra a faringe e,
VÓMITOS depois, para o exterior, pela boca.
Doente desidratado ?
Sim Não
dratada. O abdómen fica distendido após as acordo com diversos estudos epidemiológicos,
refeições podendo identificar-se pela inspecção do cerca de 50% dos doentes necessita de reidratação
abdómen ondas peristálticas gástricas da esquer- endovenosa. O diagnóstico diferencial deve fazer-
da para a direita. Se não existir distensão abdo- se com situações de obstrução intestinal
minal acentuada poderá palpar-se a oliva pilórica. intermitente (volvo, má-rotação) e com certas
O diagnóstico ecográfico permite a identificação doenças metabólicas como acidémias orgânicas,
do espessamento e alongamento do canal pilórico; galactosémia e alterações do ciclo da ureia.
outros exames complementares podem orientar
como a radiografia esofagogastroduodenal que Complicações
demonstra o estômago dilatado com atraso do es-
vaziamento, e o canal pilórico estreito. As complicações mais frequentes dos vómitos
Uma referência a um quadro clínico designado mantidos são a perda de electrólitos e fluidos
por síndroma dos vómitos cíclicos (Quadro 3). Os podendo levar a alcalose hipoclorémica, ruptura
vómitos surgem de forma recorrente por períodos da pequena curvatura da junção gastresofágica
variáveis podendo eventualmente conduzir a (ruptura de Mallory-Weiss), aspiração de con-
desidratação e alterações do equílibrio hidro- teúdo gástrico para a via respiratória com conse-
electrolítico e ácido-base. Podem ser acom- quentemente pneumonia, exposição da mucosa
panhados de dores abdominais e de febre. Em esofágica ao conteúdo ácido do estômago com
geral desaparecem ou atenuam-se após perío-do risco de esofagite, etc.. As principais complicações
de sono e repouso. Estão em geral associados a metabólicas são discriminadas no Quadro 3.
história familiar da enxaqueca. Mantendo-se a
situação até à 2ª infância, as crianças mais velhas Tratamento
conseguem descrever associação de cefaleias a
antecedentes de quadro recorrente de vómitos. De A manutenção do estado de hidratação é fun-
532 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
damental. Quando é identificada a etiologia dos maioria dos lactentes e crianças com vómitos
vómitos a terapêutica é específica. A utilização de secundários a gastrenterite aguda, anomalias
fármacos anti-eméticos está contra-indicada na estruturais do tracto gastrintestinal, emergências
cirúrgicas e lesões expansivas intracraninas.
QUADRO 3 – Síndroma de vómitos cíclicos:
critérios de diagnóstico* QUADRO 4 – Complicações metabólicas
dos vómitos
– Pelo menos, 5 episódios com qualquer intervalo de tempo
ou mínimo de 3 durante período de 6 meses; Perda de Na, K, e HCl pelos vómitos
– Episódios de náuseas e vómitos durante período entre 1 Hiponatrémia, hipopotassémia e alcalose hipoclorémica
hora e 10 dias, pelo menos com uma semana de intervalo;
– Vómitos 4 ou mais vezes/hora durante > 1 hora; Consequências da alcalose
– Período assintomático entre os episódios; [Na+] → entrada para as células
– Exclusão de causas específicas; [HCO3-] → perda pela urina(pH 7-8)
– Padrão estereotipado para cada caso; [K+ e Na+] → perda pela urina(hipercaliúria e hipernatriúria)
*Verificação de TODOS os critérios [Cl- urinário diminuído] <> conservação pelo rim
CAPÍTULO 104 Refluxo gastresofágico 533
104
Os anti-eméticos estão indicados em situações
seleccionadas: pós operatório, quimioterapia,
alguns casos de síndroma de vómitos cíclicos e
alterações da motilidade gastrintestinal, etc..
Os mais utilizados são: 1) a Metoclopramida
([Primperam®]) (antagonista de dopamina) → 0,1-
0,2 mg/kg iv ou PO (até 3 vezes/dia); 2) Domperi- REFLUXO GASTRESOFÁGICO
dona [Motilium®] → 0,2-0,6 mg/kg PO (até 3
vezes/dia); 3) Dimen-Hidrinato [Dramamina®] → Gonçalo Cordeiro Ferreira
1 mg/kg antes da viagem nos casos de vómitos
com movimento ou em casos de alteração
vestibular; 4) Eritromicina (procinétrico agonista
da motilina) → 2-4 mg/kg iv ou PO até 3 Definição e importância do problema
vezes/dia; 5) Propranolol (bloqueante beta-
adrenérgico → 0,5 mg - 2 mg/kg até 2-3 vezes/dia O refluxo gastresofágico (RGE) consiste na pas-
para os vómitos ácidos); 6) Cipro-heptadina sagem retrógrada do conteúdo gástrico para o
[Periactin®] → 0,25 - 0,5 mg/kg/dia (para os esófago sem náusea e sem esforço. Esse conteúdo
vómitos cíclicos), etc.; 7) Ondansetrona (em pode ser alimentar, ácido (ou bilioso quando se
situações especiais em maiores de 4 anos) PO → 4 acompanha de refluxo duodeno-gástrico)
mg12-12 h até 5 dias, após 1ª dose IV de 5mg/m2. O material refluído pode atingir a boca e ser
expelido (situação muito frequente no lactente
BIBLIOGRAFIA pequeno) originando episódios de regurgitação,
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). ou pode ser empurrado de novo para o estômago
Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier pelo peristaltismo do esófago (episódios de refluxo
Saunders, 2011 não regurgitante). Por vezes o conteúdo refluído
Kliegman RM, Greenbaum LA, Lye PS. Practical Strategies in pode ser aspirado para a via aérea (principalmente
Pediatric Diagnosis and Therapy. Philadelphia: Elsevier, nos recém-nascidos pré-termo, recém nascidos e
2004 lactentes pequenos ou crianças com lesões neu-
McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of rológicas) originando uma série de sintomas que
Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010 vão do laringospasmo à apneia, passando por
Parashette KR, Croffie J. Vomiting. Pediatr Rev 2013; 34: 307- recorrência de sibilância ou pneumonia de as-
319 piração.
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon Se o refluxo for ácido, a permanência desse
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York : McGraw-Hill conteúdo no lume esofágico pode levar a lesão da
Medical , 2011 mucosa (esofagite) ou, através de um mecanismo
Sturm JJ, Simon HK, Khan NS, et al. The use of ondansetron for reflexo (estimulação de receptores vagais), originar
nausea and vomiting after head injury and its effect on também fenómenos de broncospasmo. Se no
return rates from the pediatric ED. Am J Emerg Med 2013; lactente a quantidade de alimentos regurgitados
31:166-172 for muito considerável, poderá surgir insuficiente
Walker W A, Goulet O, Kleinman RE. Pediatric Gastro- ganho ponderal e desnutrição.
intestinal Disease. Pathophysiology, Diagnosis, and Mana-
gement. Ontario: BC Decker, 2004 ; 12: 203-209 Epidemiologia e história natural
ginado por obstáculo anatómico gástrico (este- abdominal irá também reflectir-se na pressão
nose hipertrófica do piloro) ou infragástrico basal do esfíncter e não causará refluxo. Poder-se-
(bridas, má-rotação), ou por uma alteração da ia, pois, concluir que dois factores, isoladamente
motilidade do tubo digestivo superior causada ou em conjunto, podem estar na base do RGE:
por fenómeno inflamatório crónico de origem hipotonia do EEI e má-posição esfincteriana
infecciosa ou imunológica, mais frequentemente (esfíncter intratorácico ou hérnia do hiato). Se é
relacionado com intolerância às proteínas do leite certo que estes factores se encontram frequen-
de vaca (IPLV). temente em crianças com RGE grave e problemas
O RGE primário divide-se em: RGE funcional neurológicos, a verdade é que na maioria das
ou não complicado, traduzido apenas por re- crianças com RGE nenhum deles apresenta
gurgitação; e RGE complicado, também chamado relevância. Num estudo que efectuámos em 78
doença do refluxo gastresofágico (DRGE) que se crianças com DRGE constatámos, ao analisar o
acompanha de lesão tecidual e sintomatologia EEI por manometria esofágica, que apenas 12%
variada do foro digestivo, respiratório ou neuro- dos doentes tinham uma incompetência esfincte-
comportamental. riana (tono inferior a 5 mmHg) e que só 18%
Cinquenta por cento dos lactentes saudáveis apresentavam um esfíncter totalmente intrato-
apresentam 2 ou mais episódios de regurgitação rácico, sendo as duas anomalias simultâneas em
por dia entre os 2-10 meses de idade, com um 6% das crianças.
máximo no grupo dos 4 meses. Por volta dos 8-9 O mecanismo que assume maior relevância na
meses, com a introdução progressiva da alimen- génese dos episódios de refluxo parece ser a
tação sólida e o adquirir da posição levantada, há relaxação transitória inapropriada (fora da
uma nítida diminuição dos sintomas com deglutição) de um EEI de tono normal. Esta
progressivo desaparecimento destes entre os 18 relaxação surge mediada por mecanismos reflexos
meses (60-80% dos casos) e os 2 anos (98% dos (vago-vagais) ligados à excessiva distensão do
casos). Cerca de 5-9% das crianças apresentam um fundo gástrico, principalmente por líquidos
RGE complicado(contra uma prevalência de (mecanismo protector), ou a atraso do esvazia-
DRGE de 4-30% na população adulta). Alguns mento gástrico para líquidos ou sólidos. Na
grupos de doentes apresentam uma incidência posição supina forma-se, mesmo no período pós
superior de DRGE que deve ser sistematicamente prandial de neutralização ácida, uma bolsa de
investigada: doentes neurológicos, nomeadamente ácido na porção gástrica da junção gastro-
com paralisia cerebral (70-80%), doentes operados esofágica, o que facilita a acidificação do esófago
a atrésia do esófago (30%) e doentes com fibrose durante os episódios de relaxação transitória do
quística (26%). esfíncter que ocorrem naquela posição.
A segunda linha de defesa do esófago quando
Fisiopatologia surge um episódio de refluxo é o desencadear de
uma onda peristáltica que empurra o conteúdo
O principal mecanismo anti-refluxo , na criança refluído de novo em direcção ao estômago. A
como no adulto, é o tono basal do esfíncter eso- neutralização ácida do esófago é completada pela
fágico inferior (EEI) que se quantifica entre 14-34 deglutição da saliva. A gravidade (na posição
mmHg, valor bem superior ao gradiente de erecta) actua também, facilitando a limpeza do
pressão abdominotorácica de cerca de 6 mmHg. esófago. Na posição supina (frequente no lactente)
Este tono vai sendo progressivamente adquirido perde-se a acção da gravidade e, quando do sono,
nos primeiros 3 meses de vida e essa hipotonia perde-se também a capacidade de deglutição da
“fisiológica” reveste-se de importância no RGE do saliva, pelo que o RGE surgido nessa ocasião pode
pré-termo mais imaturo. assumir maior gravidade. No entanto, a presença
Um outro factor importante para a prevenção de dismotilidade esofágica parece ser o factor
dos episódios de refluxo é a localização intra- decisivo para a manutenção do teor em conteúdo
abdominal do EEI em 2/3 do seu comprimento. ácido do esófago. Esta dismotilidade pode ser
Assim, um aumento brusco da pressão intra- primária (nomeadamente nas situações de paralisia
CAPÍTULO 104 Refluxo gastresofágico 535
QUADRO 1 – Inibidores da secreção ácida gitation milk products for infants and young children: a
gástrica commentary by the ESPGHAN Committee on Nutrition. J
Pediatr Gastroenterol Nutr 2002; 34: 496-98
Tipo Dose Tomas Colletti R, Di Lorenzo C. Overview of pediatric gastroeso-
Antagonistas H2 phageal reflux disease and proton pump inhibitor therapy. J
Ranitidina 2-4 mg/Kg/dia 2 x dia Pediatr Gastroenterol Nutr 2003 ; 37 (Sup 1): S7-11
PPI Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. BarcelonaErgon2011
Omeprazol 0,7-3,3 mg/Kg/dia 1 x dia Kliegman RM, Greenbaum LA, Lye PS (eds). Practical
Lansoprazol 0,5-3 mg/Kg/dia 1 x dia Strategies in Pediatric Diagnosis and Therapy. Philadelphia:
Esomeprazol 0,7-3,3 mg/Kg/dia 1 x dia Elsevier, 2004
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
demonstrou uma acção consistente de redução do Saunders, 2011
número e duração dos episódios de refluxo. Lightdale J, Gremse D, Section on Gastroenterology
No entanto, a associação (se bem que rara em Hepatology and Nutrition. Gastroesophageal reflux:
Pediatria) entre este medicamento e arritmia car- management guidance for the pediatrician. Pediatrics 2013;
díaca grave por prolongamento do intervalo QT, DOI: 10.1542/peds.2013-0421 (on line)
limitou o seu uso a casos muito restritos, sob um Omari T, Barnett C, Benninga M et al. Mechanisms of Gastro-
rigoroso protocolo de segurança, e apenas aplica- oesophageal reflux in preterm and term infants with reflux
do em unidades especializadas. disease. Gut 2002; 51: 475-479
Assim, o tratamento do RGE complicado Rosbe K, Kenna M, Auerbach A. Extraesophageal reflux in
repousa essencialmente nos inibidores da secre- pediatric patients with upper respiratory symptoms. Arch
ção ácida que são de dois tipos: antagonistas dos Otolaryngol Head Neck Surg 2003; 129: 1213-220
receptores H2 e inibidores da bomba de protões Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
(PPI). (Quadro 1) AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York : McGraw-Hill
Estes últimos, pela sua acção mais eficaz ao Medical , 2011
longo das 24 horas, são os preferidos, principal- Sherman P, Hassall E, Fagundes-Neto U, et al. Evidence-based
mente nos tratamentos a longo prazo. No consensus on the definition of gastroesophageal reflux disease
tratamento da esofagite ou das manifestações in the pediatric population. Am J Gastroenterol 2009; 104:
extradigestivas ligadas ao RGE , o seu uso deve 1278-1295
ser de 6-8 semanas. Muitas vezes, no entanto, o Vandenplas Y, Rudolph C, et al. Pediatric gastroesophageal reflux
reaparecimento dos sintomas leva à necessidade clinical practice guidelines: Joint recommendations of the
de terapêutica mais prolongada. NASPGHAN and the ESPGHAN. J Pediatr Gastroenterol
O tratamento cirúrgico deve estar reservado aos Nutr 2009; 49: 498-547
casos refractários à terapêutica médica bem con-
duzida, ou com complicações graves como estenose
péptica. Os doentes com patologia neurológica e
RGE têm frequentemente necessidade de terapêutica
cirúrgica. A técnica mais eficaz é a fundoplicatura de
Nissen, com ou sem piloroplastia associada, que
pode ser efectuada por cirurgia laparoscópica em
centros com experiência. Em adultos têm sido
realizados procedimentos por via endoscópica, como
a gastroplastia endoluminal; contudo, não há ainda
experiência suficiente em crianças para avaliar o
sucesso a médio prazo desta técnica.
BIBLIOGRAFIA
Aggett P, Agostoni C, Goulet O et al. Antireflux or antiregur-
538 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
105
de alarme relativamente a doença orgânica. Mesmo
com exame físico normal, estão indicados exames
complementares de diagnóstico se houver sinais su-
gestivos de doença orgânica (Quadro 1) apontando
determinados sinais, sintomas, e quadros clínicos e
laboratoriais indiciando probalidade de determinada
DOR ABDOMINAL patologia de base (Quadro 2). No entanto, não há
estudos que tenham avaliado o uso de exames labo-
RECORRENTE ratoriais de rastreio (Quadro 3) para o diagnóstico
diferencial entre dor abdominal orgânica e funcional.
José Cabral Estes exames complementares podem também ser
considerados como uma forma de acalmar os pais,
doente e médico quando o diagnóstico mais
provável é de dor funcional, ou ser necessários se a
Importância do problema dor continuar a afectar gravemente o dia a dia do
doente. Todavia, os referidos exames complemen-
Aple, definiu há mais de 40 anos a dor abdominal tares devem ser pedidos na expectativa de resultado
recorrente (DAR), como 3 ou mais episódios de negativo para que não se crie, no seio da família e da
dor abdominal, suficientemente fortes para criança, ansiedade pelo receio de doença grave.
interferirem com a actividade diária durante um
período não inferior a 3 meses consecutivos. Critérios para a definição
Actualmente e por pressões da sociedade, a de dor abdominal funcional
maioria dos clínicos considera, erradamente, um (critérios de Roma II)
período mais curto de 1 a 2 meses para a definição
da dor abdominal recorrente (ou crónica). Em 1999 um grupo internacional de gastrentero-
Tem sido descrita uma prevalência de DAR em logistas pediátricos ligados à Rome Foundation,
10-15% das crianças em idade escolar entre os 5 e chegou a um consenso para a criação de um sis-
os 14 anos, com uma maior prevalência no sexo tema de classificação das alterações gastrintes-
feminino. Note-se que o termo dor abdominal tinais funcionais ou seja de sintomas clínicos não
recorrente se refere a uma descrição sintomática e explicáveis por anomalia estrutural ou tecidual.
não a um diagnóstico.
Sem ter a possibilidade de recorrer a exames QUADRO 1 – Sinais de alarme:
endoscópicos e com limitações nos exames radio- causas orgânicas de DAR
lógicos, Apley encontrou uma etiologia orgânica
somente em 5% dos casos de DAR mas, Dor bem localizada, longe do umbigo
actualmente, nas Unidades de Gastrenterologia Dor acordando à noite
Pediátrica, em 33% dos doentes com dor Vómitos
abdominal recorrente é identificada uma causa Alteração dos hábitos intestinais
orgânica. Assim, na grande maioria dos casos de Diarreia crónica grave
DAR, os mesmos são classificados como corres- Atraso de crescimento
pondendo a dor abdominal funcional, devendo Perda de peso
para tal ser aplicados os chamados critérios Rectorragias, febre, artralgias, exantema
diagnósticos de Roma, adiante explanados. Fístula/fissura anal
Alterações menstruais
Diagnóstico diferencial Hemorragia oculta
Alterações laboratoriais (sangue ou urina)
As variáveis que apontam para um diagnóstico fun- História familiar de doença péptica / DII
cional são um exame físico normal (pode haver dor à Idade < 4 anos
palpação profunda abdominal) e a ausência de sinais DAR: Dor Abdominal Recorrente; DII: Doença Inflamatória Intestinal
CAPÍTULO 105 Dor abdominal recorrente 539
Estes critérios diagnósticos ficaram conhecidos que se garanta disponibilidade para reavaliação se
por critérios de Roma porque a reunião se realizou houver determinados sintomas.
nessa cidade. Nesta edição são sistematizados os Um estudo recente validou que 72% das
critérios da 2ª revisão dos mesmos (Roma II), crianças com DAR podiam ser classificadas num
salientando-se que em 2006, da revisão de "Roma dos subtipos dos critérios de Roma II para as
II" resultaram os critérios de Roma III, mais doenças gastrintestinais pediátricas. Segundo
detalhados, e considerando uma subdivisão estes critérios, a dor abdominal é integrada em 5
etária: (0-4 anos; >4-18 anos). subtipos: (1) dispepsia funcional (tipo úlcera, tipo
Utilizando estes critérios baseados em sintomas, dismotilidade, não específica), (2) síndroma do
os clínicos ficam capacitados para fazer o dia- intestino irritável, (3) dor abdominal funcional, (4)
gnóstico na maioria das crianças em idade escolar enxaqueca abdominal e (5) aerofagia.
com dores abdominais, simplesmente colhendo a
história clínica e fazendo o exame objectivo (que 1. Dispepsia funcional
não revela sinais de doença). Assim, sem utilizar
exames complementares, é possível tranquilizar os Chama-se dispepsia à dor ou desconforto localiza-
pais e família com um diagnóstico baseado na expli- dos ao epigastro. O desconforto caracteriza-se por
cação dos sintomas, com o estabelecimento de um enfartamento, saciedade precoce, flatulência,
prognóstico e com um plano de tratamento, desde eructações, náuseas ou vómitos.
não preenchem nenhum dos 2 subtipos anteriores. fezes (duras ou moles/aquosas); (3) defecação
anormal (grande esforço, urgência, sensação de
Recomendações diagnósticas e clínicas evacuação incompleta); (4) passagem de muco; (5)
Na anamnese devem ser investigados factores sensação de distensão abdominal.
dietéticos, psicológicos e sociais (familiares com
doença péptica ou Helicobacter pylori). Devem os Recomendações clínicas e diagnósticas
sintomas ser caracterizados em função de pode- Avaliação nutricional, avaliação do regime
rem corresponder a lesões da mucosa (esofagite, alimentar (ingestão de fibras nos obstipados e
gastrite, úlcera duodenal), devendo estas hipóte- ingestão de açúcares como o sorbitol e a frutose
ses diagnósticas ser excluídas por endoscopia alta. naqueles com diarreia). Os sinais de alerta para a
Um episódio anterior de infecção vírica pode possibilidade de doença orgânica são: dor ou
sugerir a hipótese de gastroparésia (atraso do diarreia nocturna, perda de peso, rectorragias,
esvaziamento gástrico) pós infecção vírica. febre, artrite, atraso da puberdade e história
A suspeita de doença pancreática, hepática ou familiar de doença inflamatória intestinal. Em
biliar deve conduzir à realização de ecografia termos de exames complementares poderão ser
abdominal e doseamentos das enzimas hepatoce- realizados hemograma, velocidade de sedimen-
lulares e pancreáticas (ALT, AST, amilase e lipase). tação, coprocultura e exame parasitológico de fezes
(com pesquisa de antigénios para Giardia lamblia no
Tratamento caso de diarreia), teste do hidrogénio expirado, ou
Os medicamentos e alimentos que possam agravar prova terapêutica com dieta sem lactose (2
os sintomas devem ser interrompidos. Poderão ser semanas) na suspeita de intolerância à lactose. No
utilizados antagonistas dos H2, inibidores da bom- caso de suspeita de doença inflamatória intestinal
ba de protões (omeprazol ou lanzoprazol) ou está indicada a realização de colonoscopia com
sucralfato. Nos casos em que há enfartamento biópsias e/ou exames radiológicos (Capítulo 68).
podem ser utilizados procinéticos (domperidona
ou metoclopramida). Nalguns casos poderão ser Tratamento
utilizados antidepressivos tricíclicos em doses Os objectivos do tratamento são: tranquilizar os pais
baixas (consultar alínea seguinte: 2.). e o doente, e aliviar os sintomas. Nos doentes com
obstipação deve aumentar-se a dose de fibras na
2. Síndroma do intestino irritável dieta (dose recomendada de fibras diária = idade
em anos + 5 g), leite de magnésia ou parafinina.
Na síndroma do intestino irritável o desconforto Podem utilizar-se antidepressivos tricíclicos
abdominal ou a dor estão associados à defecação (imipramina ou amitriptilina) em doses baixas (0,2
ou a alterações dos hábitos intestinais. mg/kg ao deitar que podem ser aumentadas 0,2
mg/kg por semana até 1 mg/kg ou 50 mg/dia). A
Critérios de diagnóstico amitriptilina, pela forte acção anticolinérgica, é ideal
História precisa de dor, pelo menos durante 12 não só para reduzir a dor, mas também para
semanas, não necessariamente consecutivas, nos 12 melhorar o sono e a diarreia. Nos doentes com
meses precedentes, de (1) desconforto abdominal obstipação é preferível o uso da imipramina.
ou dor acompanhados de 2 de 3 características: (a)
alívio com a defecação, e/ou (b) início associado a 3. Dor abdominal funcional
alteração da frequência das dejecções e/ou (c)
início associado a alteração da consistência das É definida como dor abdominal persistente na
fezes; e (2) inexistência de anomalias estruturais ou ausência de doença e na qual não se reconhece
metabólicas que expliquem os sintomas. nenhum padrão de dor ou de sintomas acom-
Os sintomas seguintes fornecem suporte panhantes. A dor não se relaciona temporalmente
cumulativo ao diagnóstico: (1) frequência anormal com a ingestão de alimentos, defecação ou exer-
de dejecções (mais de 3 vezes por dia ou menos de cício. São frequentes alguns sintomas extra-
3 vezes por semana); (2) consistência anormal das abdominais como cefaleias, fadiga e dores no cor-
CAPÍTULO 105 Dor abdominal recorrente 541
po. Algumas destas crianças são perfeccionistas episódios paroxísticos de dor abdominal aguda,
enquanto outras têm dificuldades de apren- nos 12 meses precedentes, intensa, periumbilical
dizagem que os pais não reconhecem. durando de 2 horas a vários dias com intervalos
livres com a duração de semanas a meses, (2)
Critérios de diagnóstico ausência de doença bioquímica ou estrutural
Pelo menos 12 semanas de (1) dor abdominal metabólica, gastrintestinal ou do sistema nervoso
contínua ou quase contínua numa criança em central, e (3) 2 das seguintes características (a)
idade escolar ou adolescente; (2) sem nenhuma cefaleias durante os episódios, (b) fotofobia
ou quase nenhuma relação com acontecimentos durante os episódios, (c) história familiar de
fisiológicos (por exemplo: alimentação, período enxaqueca, (d) hemicrânia, (e) aura visual,
menstrual ou defecação); (3) com alguma sensorial ou motora.
interferência no dia a dia; (4) com a certeza de a
dor não ser fingida (não há simulação de doença); Recomendações clínicas e diagnósticas
e (5) não haver critérios suficientes para se colocar Quando o quadro de dor abdominal é acompa-
o diagnóstico de outra doença gastrintestinal nhado de história típica de enxaqueca, o diagnós-
funcional explicando os sintomas. tico é simples e imediato, sendo de presunção nos
outros casos. Todas as outras causas de dor
Recomendações clínicas e diagnósticas abdominal grave intermitente devem ser conside-
Devem ser investigados factores psicológicos que radas incluindo a uropatia obstrutiva, a obstrução
incluem ansiedade e/ou depressão na criança e intestinal intermitente, a pancreatite recorrente, a
família, somatização, fobia à escola, e ansiedade da doença hepatobiliar, lesão intracraniana ocupando
separação. O exame físico, o crescimento e os espaço, e doenças metabólicas. A doença péptica é
resultados dos exames complementares devem ser muitas vezes considerada no diagnóstico dife-
normais (hemograma, VS, exame sumário de urina, rencial porque uma das suas formas de apresen-
exame parasitológico e sangue oculto nas fezes, tação é o aparecimento de dor nocturna ou de
exames bioquímicos correntes, ecografia manhã cedo; diferencia-se da enxaqueca abdominal
abdominal, teste de hidrogénio expirado). Os porque nesta há períodos livres de dor entre os
exames devem ser realizados de modo criterioso episódios. O diagnóstico de enxaqueca abdominal
evitando que causem ansiedade na criança e família pode também ser sustentado pela resposta à
pelo receio de doença grave de difícil diagnóstico. medicação profiláctica para a enxaqueca.
Tratamento Tratamento
Há que tranquilizar e explicar como ocorrem os O pizotifen (antagonista dos receptores da
sintomas na ausência de alterações nos exames serotonina) tem sido utilizado como profiláctico.
complementares. Deve ser dado suporte psico-
lógico à criança e família. 5. Aerofagia
106
por Hp. Nos países desenvolvidos a prevalência é
menor, variando entre 30 e 60%. De um modo geral,
a frequência da infecção é mais elevada nos grupos
económicos mais desfavorecidos. Em Portugal é
cerca de 70 a 90% nos adultos, e 50% nas crianças.
Os dados da literatura sugerem que a taxa de
DOENÇA PÉPTICA aquisição da infecção é muito baixa na idade adulta e
que a maioria das infecções é adquirida na infância
E HELICOBACTER PYLORI (geralmente abaixo dos 5 anos), podendo persistir
durante toda a vida se não for tratada. O maior factor
José Cabral de risco de aquisição da infecção na infância são as
más condições sócio-económicas. Outros indicadores
de pobreza e de precárias condições de higiene como
a partilha de camas e um grande número de irmãos
Definições e importância do problema constituem factores de risco adicionais.
107
sobre a necessidade do organismo em sal e água
(aldosterona, VIP, HAD, etc.).
Normalmente predomina o processo de absor-
ção; em situações de doença diarreica predomina
a secreção.
Neste processo o electrólito mais importante é
GASTRENTERITE AGUDA o sódio (Na+) o qual entra na célula intestinal a
partir do lume intestinal como resultado dum
Mafalda Paiva, Filipa Santos e João M. Videira Amaral gradiente condicionado, por sua vez, pela saída
de Na+ da célula para o meio interno (plasma),
processo comparticipado por uma bomba de
sódio (Na-K-ATP-ase) que se encontra na mem-
Definição e importância do problema brana baso-lateral.
A saída activa de Na+ condiciona a electrone-
A gastrenterite aguda (GEA) é um quadro clínico gatividade necessária para a entrada de Na+ a par-
resultante da inflamação aguda das mucosas do tir do lume intestinal. Acompanhando a entrada
estômago e do intestino, o qual se traduz por vómito de sódio, entram na célula a glucose, aminoácidos,
e diarreia. di e tripéptidos, vitaminas hidrossolúveis e sais
A diarreia é um aumento da excreção fecal de biliares utilizando, para tal, determinados trans-
água e electrólitos reflectindo, dum modo geral, portadores que existem na membrana das células
alteração do transporte hidro-elecrolítico no de “bordadura em escova”.
intestino delgado e cólon, de causa infecciosa O Cl- e o K+ também são transportados, entran-
(maioria das vezes), ou em relação com perturba- do para o interior da célula.
ções da motilidade intestinal, menos frequente- No processo de secreção tomam parte o
mente. Trata-se duma patologia muito frequente em hidrogénio, o bicarbonato e, também o cloro.
idade pediátrica, estimando-se que nos países Nos processos de transporte iónico (entrada na
industrializados ocorram em média 2 a 3 episódios célula) participam mediadores intracelulares de
por ano em cada criança com idade inferior a 5 anos. regulação: por ex. AMPc, cálcio, etc..
Nos países em vias de desenvolvimento a GEA Na prática, são descritos três grandes mecanis-
é responsável anualmente por cerca de 5 milhões de mos fisiopatológicos da doença diarreica: osmóti-
óbitos em crianças com menos de 5 anos. co, secretório, e alteração da motilidade intestinal,
podendo haver associações dos mesmos em
Fisiopatologia função do factor etiológico.
Na diarreia osmótica a lesão da mucosa
O transporte de água é um fenómeno passivo e intestinal provoca uma diminuição da capacidade
secundário a gradientes osmóticos através da digestiva de absorção, fazendo com que os
parede intestinal; os referidos gradientes osmóti- nutrientes não absorvidos no intestino delgado e
cos podem ser gerados pelo transporte activo de atingindo intactos o cólon, exerçam uma força
electrólitos, ou pela presença de solutos sem elec- osmótica induzindo a saída de água e,
trólitos, como açúcares e aminoácidos. consequentemente, a diarreia. Esta é tanto mais
Em circunstâncias de normalidade existe uma grave quanto maior a concentração destes solutos.
secreção activa que contribui para manter a flu- Como na maior parte dos casos o nutriente em
idez do conteúdo intestinal facilitando, desig- questão é um hidrato de carbono, este, ao atingir
nadamente, a eliminação de subtâncias potencial- o cólon, é digerido pela microbiota normal pro-
mente citotóxicas. duzindo partículas menores exercendo assim uma
Esta secreção ocorre simultaneamente com maior força osmótica, agravando a diarreia. A
uma absorção hidroelectrolítica sendo que o diarreia, em geral, não é abundante e melhora
balanço entre absorção e secreção depende de quando se suspende a ingestão do nutriente consi-
mecanismos hormonais “informando” o intestino derado agressor.
CAPÍTULO 107 Gastrenterite aguda 547
Exemplos clássicos de diarrreia osmótica são Os agentes bacterianos são menos frequentes
os resultantes de deficiência (congénita ou nos países industrializados. Campylobacter jejunii, a
adquirida) de dissacaridases (lactase e sucrase – causa mais frequente das infecções bacterianas nos
isomaltase), de má-absorção de glucose-galactose, países industrializados, está muitas vezes associado
da ingestão excessiva de líquidos carbonatados, e a dores abdominais e a fezes com sangue. Yersinia
de ingestão excessiva de solutos não absorvíveis origina quadro semelhante. Shigella e algumas
(sorbitol, lactulose, hidróxido de magnésio). espécies de Salmonella produzem síndroma de tipo
A diarreia secretória é, em geral, provocada disentérico caracterizada por diarreia profusa com
por bactéria que pode lesar a mucosa por diversas sangue, pus, dores abdominais e tenesmo. Pode
formas (adesão/invasão do epitélio, produção de igualmente existir febre alta e convulsões.
enterotoxinas, citocinas), causando um aumento Vibrião colérico e E. coli com produção de
da secreção das células intestinais (por activação enterotoxinas podem originar diarreia abundante
do AMP-C e GMP-C). e desidratação grave surgidas de modo agudo.
A diarreia também pode ser motivada por A giardíase provoca na sua forma caracte-
alterações da motilidade do tracto gastrintestinal rística diarreia intermitente e má absorção de
as quais conduzem secundariamente a alteração gorduras.
no transporte hidro-electrolítico no intestino
delgado e no cólon. Manifestações clínicas
Embora sejam descritos separadamente estes
diferentes mecanismos, na maioria dos casos eles A apresentação clínica da GEA depende de vários
coexistem; o rotavírus constitui, com efeito, um factores, nomeadamente a idade, o estado imuni-
bom exemplo pois provoca lesão da mucosa, com tário e nutricional do hospedeiro, assim como as
alteração da absorção e formação de diarreia características do agente infeccioso (Quadro 1).
osmótica; mas, simultaneamente determinada Devem ser quantificados os vómitos e a diarreia,
proteína que faz da composição do rotavírus, que assim como as características e duração dos
actua como enterotoxina, induz aumento de mesmos. No exame objectivo é necessário pes-
secreção das células intestinais. quisar sinais de desidratação: mucosas secas,
Nota: A diarreia por alteração da motilidade diminuição do turgor cutâneo (prega cutânea),
sem repercussão no transporte hidro-electrolítico depressão da fontanela anterior, olhos encovados,
enquadra-se, de facto, em situações agudas, mas ausência de lágrimas, letargia, taquicárdia, pulso
recorrrentes: frequentes entre os 6 meses e 3 anos, fraco e hipotensão (Capítulo 49).
cessando espontaneamente pelos 2-4 anos (episó- Se a criança apresentar avidez pela água
dios de diarrreia aguda com períodos de apesar de desidratação aparentemente ligeira, há
normalidade) integrando a entidade designada que considerar a hipótese de se tratar de
por “diarreia crónica não específica”, abordada no desidratação hipernatrémica. Esta ocorre quando
capítulo 111. a diarreia é profusa e a correcção tiver sido feita à
custa de soluções hipertónicas. Frequentemente
Factores etiológicos existe dor abdominal do tipo cólica. Quando as
fezes são ácidas, pela presença de hidratos de
Nos países industrializados a causa mais frequen- carbono, ou por dejecções muito frequentes, pode
te de GEA é a infecção por rotavírus explicando surgir eritema perianal. O estado nutricional
cerca de 50% dos casos em crianças com menos de deverá ser avaliado estando o respectivo compro-
2 anos, sobretudo no Inverno. Contudo, nos EUA, misso em relação com má absorção de proteínas,
com a introdução das vacinas anti-rotavírus, os gordura ou hidratos de carbono (Capítulo 58).
norovírus suplantaram os rotavírus como causa
de GEA (cerca de 1 milhão de casos/ano). Outros Diagnóstico diferencial
vírus como adenovírus, coronavírus, calicivírus e
astrovírus têm sido igualmente implicados, No que respeita à destrinça entre GEA de causa
embora menos frequentemente. vírica e de causa bacteriana apresentam-se as
QUADRO 1 – GEA: Germes microbianos e clínica
548
QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial entre aumentar-se para 15-30ml em cada 5-10 minutos.
diarreia osmótica e secretória Posteriormente, quando a criança se tornar mais
cooperante, deverá ingerir doses crescentes du-
Diarreia Diarreia rante cerca de 4 horas.
secretória osmótica 3º) Não interromper o aleitamento materno
Substâncias redutoras* (-) (+) oferecendo suplementos com soluto SRO enquanto
Na+ fecal >70 mEq/L <70 mEq/L existir diarreia. O uso de fórmulas especiais ou
pH fecal >6 <5 diluídas não se justifica
Volume fecal >200 ml/dia <200 ml/dia 4º) Retomar o regime alimentar habitual após as
Resposta ao jejum não melhoria melhoria 4 horas de reidratação.
Nas crianças com diarreia moderada a grave
* A sucrose não é agente redutor. Antes de realizar a pesquisa com o Clinitest® deve juntar-
se à amostra de fezes, 5 gotas de HCl 0,1n. deve reduzir-se ou eliminar-se a lactose da dieta
para minorar os efeitos da deficiência transitória
de dissacaridases por lesão das células intestinais,
seguintes características como orientação; 1) na o que por vezes ocorre durante 2 a 4 semanas após
GEA de causa vírica: vómitos mais frequentes; a diarreia.A intolerância à lactose pode ser confirmada
sangue, muco e leucócitos nas fezes ausentes; pela presença de substâncias redutoras nas fezes.
febre mais raramente; 2) na GEA de causa 5º) Prevenção de nova desidratação com
bacteriana: vómitos menos frequentes; sangue, suplementos de soluto enquanto existir diarreia
muco e leucócitos nas fezes; febre mais frequente. (oferecer 10ml/Kg por cada dejecção) e vómitos
Relativamente à destrinça entre diarreia secre- (2ml/Kg por episódio).
tória e diarreira osmótica, o Quadro 2 é eluci- 6º) Evitar medicação desnecessária. Os anti-
dativo. muscarínicos (ex: loperamida) alteram a motili-
dade intestinal, diminuindo a diarreia e a disten-
Tratamento são abdominal; no entanto, na infecção por bacté-
rias invasivas ou produtoras de citotoxinas é
A identificação do agente etiológico na maioria favorecido o contacto da bactéria com a mucosa
das vezes não é necessária porque a doença é intestinal com agravamento do quadro clínico.
autolimitada e o tratamento é idêntico indepen- Por consequência, não estão recomendados nas
dentemente da causa. criança.
As medidas de suporte consistem em: Os antibióticos devem ser usados em casos
1º) Usar soro de hidratação oral para compensar específicos para diminuir a duração da doença e a
a desidratação estimada (em 3 a 4 horas). excrecção do microrganismo, sendo necessária
2º) Usar solução hipo-osmolar (Na+ 60 mEq/L) uma coprocultura com antibiograma antes de
ou de osmolaridade reduzida (Na+ 75 mEq/L) com inciar a terapêutica.
glucose (20 a 30 g/L); a glucose promove a rea- Nas situações com isolamento de Salmonella a
bsorção de sódio e água no intestino delgado (Ca- antibioticoterapia pode prolongar o tempo de
pítulo 50). excreção fecal, gerar doença sistémica e ainda
Bebidas com excesso de hidratos de carbono induzir o aparecimento de estirpes resistentes.
(cuja concentração exceda a de sódio em 2/1) Está indicada apenas na febre tifóide ou na
agravam a diarreia pelo efeito osmótico que terão gastrenterite acompanhada de sinais de doença
no intestino. sistémica, ou no doente em risco (idade inferior a
O chá também não é ideal pois tem uma baixa três meses, situações com imunodeficiência,
concentração de sódio e potássio. doença crónica, hemoglobinopatia). Nestes casos
Sempre que possível tentar a hidratação oral estão indicados os seguintes antimicrobianos:
com um soluto de reidratação oral (SRO), mesmo ampicilina, amoxicilina, TMP-SMX (trimetoprim-
na criança que não aparente sinais de desidratação. sulfametoxazol), cefotaxima ou ceftriaxona.
Deve oferecer-se pequenas doses de soluto (5ml) Situações com desidratação correspondendo a
em cada 5 minutos; e se houver tolerância pode perda de peso superior a 5%, incapacidade para se
550 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
proceder a reidratação no domicílio, não tolerância Quanto a medidas gerais em relação à alimen-
a reidratação oral, e agravamento da situação tação: evicção de carne mal cozinhada, de leite
clínica (acentuação dos vómitos e da diarreia), têm não pasteurizado, de água não tratada; as pessoas
indicação para internamento hospitalar, em geral que manuseiam carne crua deverão lavar bem as
de curta duração na ausência de complicações. mãos antes de contactar com uma criança.
A reidratação e a manutenção da hidratação até Em relação à criança viajante para áreas
que haja resolução da diarreia, assim como o endémicas: beber água engarrafada, evitar gelo,
suprimento nutricional adequado, são as pedras saladas, alimentos mal cozinhados e fruta com
fundamentais do tratamento. casca. Os lactobacillus (probióticos) produzem
A reintrodução da alimentação deve fazer-se ácidos gordos de cadeia curta e diminuem o pH
atempada e imediatamente uma vez conseguida a intestinal, o que inibe o crescimento de bactérias
hidratação. Crianças alimentadas exclusivamente das espécies Shigella e Salmonella; por isso têm
com leite materno devem manter o aleitamento. As utilidade no tratamento e prevenção da doença
que já tenham iniciado alimentos sólidos devem manter intestinal (Capítulo 54).
o seu regime habitual. Deve começar-se com alimen-
tos de absorção rápida (arroz, trigo) e banana (su- BIBLIOGRAFIA
plemento de potássio). A reintrodução da alimen- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
tação deve ser fraccionada e em curtos intervalos Dinleyici EC, Dalgic N, Guven S, et al. The effect of a
para garantir melhor absorção. multispecies synbiotic mixture on the duration of diarrhea
Os alimentos com elevado teor de açúcar não and length of hospital stay in children with acute diarrhea
são aconselhados porque podem causar diarreia in Turkey Eur J Pediatr 2013; 172:459-464
osmótica. Freedman SB, Adler M, Seshadri R, Powell EC. Oral
Ondasetron for gastroenteritis in a pediatric emergency
Prevenção department. NEJM 2006; 354: 1698-1705
Certas medidas gerais são importantes na pre- Guarino a, et al / ESPGHAN / ESPID. Evidence based
venção da transmissão de infecções em guidelines for the management of acute gastroenteritis in
infantários, escolas ou hospitais, nomeadamente, Europe. J Pediatr 2008; 46: S81- S84
a avaliação periódica do estado de saúde e de Hoekstra J H. Oral rehydration solution containing a mixture
imunização das crianças e dos prestadores de of non-digestible carbohydrates in the treatment of acute
cuidados. São fundamentais os seguintes diarrhea: a multicenter randomized placebo controlled
procedimentos: regras de limpeza e desinfecção study on behalf of the ESPGHAN working group on
de instalações sanitárias, lavagem das mãos intestinal infections. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2001; 39:
frequentemente, regras de limpeza das cozinhas e 239-245
cuidados na confecção dos alimentos, formação Johnson JE, Sullivan PB. The management of acute diarrhoea.
em serviço e vigilância do desempenho dos Current Paediatr 2003; 13: 95-100
trabalhadores destes locais, lavagem e desinfecção Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
diárias de todos os brinquedos, e comunicação Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
dos surtos de infecção às autoridades de saúde. Saunders, 2011
A exclusão ou isolamento de crianças nestes Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger, 2008
locais, na maioria dos casos não é necessária uma O’Ryan M, Diaz J, Mamani N, et al. Impact of rotavirus
vez que a transmissão já ocorreu antes do início infections on outpatient clinic visits in Chile. Pediatr Infect
dos sintomas. Existem, no entanto, alguns casos Dis J 2007; 26: 41-45
em que o isolamento é necessário o que é Payne DC, Vinjé J, Szilagyi PG, et al. Norovirus and medically
determinado pela autoridade de saúde: diarreia attended gastroenteritis in US children. N Engl J Med
com muco ou sangue, infecção por Shigella, E. coli 2013;368:_1121-1130
produtora de toxina semelhante à Shigella
(incluindo o tipo O157:H7), enquanto não se
verificarem duas coproculturas negativas para
cada caso.
CAPÍTULO 108 Diarreia crónica 551
108
derada (< 10g por dia), excepto nas situações de
défice selectivo da absorção de gorduras, bem
como a creatorreia (1-2 g por dia), excepto quando
há um forte componente de enteropatia exsuda-
tiva.
Fermentação – Nestas situações predominam
DIARREIA CRÓNICA os sintomas de má absorção de açúcares, a qual
pode ser primária ou secundária (neste caso
Gonçalo Cordeiro Ferreira acompanhando as situações de redução das
vilosidades ou na síndroma pós-gastrenterite).
Habitualmente as fezes são ácidas (pH < 5) por
conterem ácidos voláteis e ácido láctico, podendo
Definição ser detectada a presença directa de açúcares fecais
pela pesquisa de substâncias redutoras (Clinitest®
Define-se como crónica toda situação de diarreia > 1%). Apenas a sacarose não origina directa-
com duração superior a 15 dias. As diarreias mente substâncias redutoras nas fezes, necessitan-
crónicas podem acompanhar-se, ou não, de sín- do de tratamento prévio destas por ácido
droma de má absorção. clorídrico (Capítulo 107).
109
DOENÇA CELÍACA
Gonçalo Cordeiro Ferreira
FIG. 1
Definição
Lactente com doença celíaca. Distensão abdominal rela-
A doença celíaca é hoje definida como uma cionável com meteorismo. (NIHDE)
doença autoimune desencadeada pela exposição
ao glúten (mais propriamente à sua fracção de doença celíaca demonstraram uma maior
gliadina) em indivíduos geneticamente susceptí- prevalência desta (1/140 a 1/300) em relação a
veis (possuidores de antigénios de histocompati- anteriores estudos, baseados unicamente em
bilidade –HLA- de classe II DQ2 e DQ8). formas sintomáticas (1/1000 a 1/2500).
O órgão alvo desta doença é o intestino De referir as chamadas formas de doença
proximal, constituindo-se uma lesão da respectiva celíaca silenciosa (sem sintomas, mas com
mucosa caracterizada por um infiltrado linfoplas- alteração da mucosa demonstradas por biópsia
mocitário na lâmina própria, infiltrado linfocitário intestinal) e doença celíaca latente em que não há
intra-epitelial, hiperplasia das criptas e atrofia das sintomas nem alterações da mucosa intestinal,
vilosidades. embora com desenvolvimento, ao longo do
Assim, a forma “clássica” de apresentação desta tempo, de achados histológicos característicos
doença traduz-se por uma síndroma de má- (como no caso de familiares de 1º grau de doentes
absorção alguns meses após a introdução do glúten celíacos ou em grupos de risco – Quadro 2).
no regime alimentar (presente nas farinhas de trigo,
centeio ou cevada), com diarreia crónica e/ou Diagnóstico
vómitos, inflexão nas curvas ponderais e estaturais
(primeiro naquelas, depois nestas), distensão O índice de suspeita relativamente a doença
abdominal, atrofia das massas musculares e tecido celíaca deve ser bastante apurado, principalmente
celular subcutâneo, anorexia e alteração do humor para as formas paucissintomáticas ou extra-
(irritabilidade, apatia). (Figura 1) intestinais , bem como para os grupos de risco.
No entanto, e sobretudo nas crianças mais O estudo inicial (rastreio) passa pela detecção
velhas, as manifestações podem ser mais atípicas dos marcadores serológicos de classe IgA (antiglia-
(paucissintomáticas) ou mesmo predominan- dina, antiendomísio e anti transglutaminase
temente extraintestinais (Quadro 1) tecidual). Pela suas mais elevadas especificidade e
Em 161 crianças com a doença e seguidas na sensibilidade as recomendações actuais preferem o
Unidade de Gastrenterologia do Hospital Dona uso dos marcadores anti transglutaminase tecidual
Estefânia, 3.7% apresentavam quadros clínicos (TGT) em detrimento dos antiendomísio (mais
predominantemente extraintestinais. caros e não quantificáveis) ou dos antigliadina
(AAG) (menos específicos). Em crianças com menos
Aspectos epidemiológicos de 2 anos a sensibilidade dos anticorpos TGT é
menor, pelo que alguns autores recomendam o uso
Rastreios sistemáticos em populações europeias simultâneo de uma segunda geração de AAG, os
avaliando a presença de marcadores serológicos anti-DGP (Deaminated Gliadin Peptide) caso de
CAPÍTULO 109 Doença celíaca 555
110
de quistos ou antigénio (por ELISA) de Giardia, ou
do trofozoíto no aspirado duodenal, ou na própria
biópsia intestinal (coloração pelo método de
Giemsa).
A detecção de quistos nas fezes é muito difícil
pela excreção descontínua do parasita, pelo que se
GIARDÍASE torna necessário proceder a colheitas sucessivas
de amostras.
Gonçalo Cordeiro Ferreira
Tratamento
Manifestações clínicas
Diagnóstico
111
As causas deste quadro permanecem ainda
inexplicadas admitindo-se que possa haver uma
alteração da motilidade digestiva levando a uma
maior rapidez do trânsito intestinal com a
chegada ao cólon de uma maior quantidade de
líquidos e sais biliares, provocando uma diarreia
DIARREIA CRÓNICA secretória.
Esta resposta motora inapropriada pode ser
NÃO ESPECÍFICA desencadeada pela percepção de determinados
estímulos, quer a nível do sistema nervoso central,
Gonçalo Cordeiro Ferreira quer a nível periférico, mediados ou não por
fenómenos inflamatórios locais.
Os estímulos podem ser de origem luminal,
incluindo componentes exógenos da dieta (como
Aspectos epidemiológicos o excesso de frutose ou sorbitol em crianças com
consumo exagerado de sumos de fruta indus-
A diarreia crónica não específica é um quadro de triais), ou factores de tensão emocional relaciona-
causa não orgânica o qual se insere na patologia dos com o ambiente psicossocial.
funcional do tubo digestivo, integrando a alínea G
5 (diarreia funcional) dos chamados critérios de Diagnóstico
Roma III (alterações funcionais gastrintestinais em
idade pediátrica) (Capítulo 105). O diagnóstico é essencialmente clínico, devendo
É a causa mais frequente de diarreia crónica efectuar-se um mínimo de exames complementares,
na infância, tendo início entre os 6 meses e os 3 os quais podem incluir a avaliação do grau de
anos de idade, desaparecendo entre os 2 anos (nos digestão de fezes para excluir esteatorreia ou má
casos de começo mais precoce) e os 4 anos. absorção de açúcares, e pesquisa de quistos de
Giardia ou antigénio de Giardia lamblia nas fezes. Um
Manifestações clínicas teste de H2 expirado sob regime com lactose para
excluir intolerância a este dissacárido (ou uma
A diarreia crónica não específica revela-se muitas prova clínica de evicção da lactose na dieta) podem
vezes após um episódio de diarreia aguda ou de revestir-se de utilidade.
uma infecção respiratória medicada com anti-
bióticos; caracteriza-se por um quadro de diarreia Tratamento
com 5-6 dejecções líquidas ou pastosas, por vezes
com muco ou restos alimentares não digeridos Em primeiro lugar, deve-se tranquilizar os pais,
(lienteria). explicando-lhes que se trata de uma situação beni-
O tipo de dejecções varia ao longo do tempo, gna e limitada, a qual não afectará o crescimento
com períodos sem diarreia, ou até com obstipação. da criança.
Ao longo do dia, é habitual as primeiras dejecções Em segundo lugar, retornar a uma alimentação
serem mais formadas, seguindo-se fezes mais normal, sem recurso a dietas de exclusão (ditas
líquidas. Não há dejecções durante o sono. Não se adstringentes“anti-diarreicas” que só conduzem,
encontra eritema do períneo nem distensão pela monotonia, a anorexia). O suprimento de
abdominal. sumos de fruta deve ser limitado, devendo
A criança apresenta um bom estado geral, com aumentar-se a ingestão de gorduras (azeite) e de
humor e vitalidade conservados, sem perda de fibras solúveis pelo seu efeito de promoção da
peso (se bem que ao fim de algum tempo de uma diminuição da velocidade do trânsito no intestino
alimentação muito estrita e com uma dieta “anti delgado, com melhoria sintomática.
diarreica” comece a ter anorexia e a evidenciar Não está aconselhado o uso de produtos anti-
ligeira inflexão da curva ponderal). diarreicos.
558 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
112
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Gastrointestinal Direase. Hamilton, Ontario, BC: Decker, racção entre microbiota intestinal, mucosa e sis-
2004 tema imune, assim como alterações epigenéticas
http://www.romecriteria.org (acesso em Julho de 2013) (por ex metilação do ADN) com impacte no de-
senvolvimento intestinal.
A inflamação crónica no intestino leva a várias
alterações fisiopatológicas que resultam essencial-
mente em diarreia, enteropatia exsudativa, he-
morragia, dor abdominal e estenoses. É im-
CAPÍTULO 112 Doença inflamatória do intestino 559
portante o papel das citocinas e dos eicosanóides ulcerosa localiza-se apenas na mucosa. Inicia-se
pró-inflamatórios os quais aumentam a permea- praticamente sempre no recto, em continuidade
bilidade vascular e originam vasodilatação, (isto é, sem zonas afectadas intercaladas com zonas
provocando secreção de electrólitos e aumento da não afectadas), atingindo extensões variáveis e
contractilidade do músculo liso. O epitélio infla- diminuindo de gravidade em direcção ao cego.
mado leva a perda de proteínas e outros nu- São frequentes os abcessos das criptas, as alte-
trientes, principalmente ferro e zinco. As citocinas rações da arquitectura e a depleção das células
promovem o recrutamento e a actividade de caliciais.
células formadoras de colagénio, levando à A incidência varia conforme as regiões do globo:
proliferação de tecido fibroso com consequente ~2/100.000 no Japão e ~15/100.000 nos EUA.
espessamento da parede e formação de estenoses.
Manifestações clínicas
1. Doença de Crohn As manifestações clínicas por ordem decrescente
de frequência são:
Classicamente, o íleo terminal é o segmento – Rectorragia
atingido com maior frequência (50%), embora – Diarreia – Artralgia / artrite
qualquer área do tracto gastrintestinal desde a – Dor abdominal – Febre
boca ao ânus [incluindo, claro está, o colon – Perda de peso – Restrição do
(~20%), o esófago, o estômago, e o duodeno] crescimento
possa estar envolvida. Pode ocorrer envolvimento Existem várias manifestações extraintestinais
isolado do cólon nalguns doentes. Os termos da DII que podem, quer preceder os sintomas
sinónimos são ileíte terminal ou regional, ileoco- gastrintestinais, quer coexistir ou aparecer meses
lite ou enterocolite granulomatosa. ou anos após o diagnóstico (Quadro 1).
O intestino apresenta-se espessado, nodular,
muitas vezes com franca ulceração. Os granulomas Diagnóstico
sem caseificação são muito característicos. Quando a
inflamação, que é transmural, se estende para além A DII deverá ser sempre admitida como hipótese de
da serosa, podem existir fístulas para estruturas adja- diagnóstico nas seguintes situações: dor abdominal
centes, como o intestino, bexiga, vagina ou períneo. crónica, hipocrescimento, diarreia crónica com ou
Esta doença tem características de desconti- sem sangue, rectorragias, história familiar de DII,
nuidade quanto às áreas afectadas, manifestando-se anemia inexplicada na criança maior e adoles-
pela alternância de zonas sãs com zonas afectadas. cente, e manifestações extraintestinais, mesmo
Calcula-se uma incidência anual de 6 casos por com manifestações gastrintestinais mínimas.
100.000 habitantes. O diagnóstico da DII é assim sugerido pela
combinação de manifestações clínicas, sendo
Manifestações clínicas necessária confirmação por exames laboratoriais,
Discriminam-se as manifestações clínicas mais imagiológicos, endoscópicos e histológicos.
típicas por ordem decrescente de frequência: Na fase inicial da DII é difícil a destrinça entre
– Dor abdominal – Restrição do colite ulcerosa e doença de Crohn, classificando-se
– Perda de peso crescimento tal situação como colite indeterminada.
– Diarreia – Úlceras orais Os exames laboratoriais habitualmente reque-
– Sangue nas fezes – Artralgia / artrite ridos para a avaliação global dos casos são essen-
– Lesões perianais – Lesões cutâneas cialmente: hemograma, plaquetas, velocidade de
– Febre sedimentação, doseamento de proteína C reactiva,
de orosomucóide, de ANCA e ASCA. Salienta-se a
2. Colite ulcerosa importância da avaliação nutricional e do dosea-
mento do zinco e ferro, em geral com valores
Ao contrário da doença de Crohn em que a inflama- diminuídos devido a perdas em fase precoce da
ção é transmural, o processo inflamatório na colite doença.
560 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
113
tronidazol, ciprofloxacina)
– Corticóides
– Imunossupressores (azatioprina, metotrexato,
ciclosporina, etc.)
– Anticorpos anti-factor necrosante tumoral
(Anti – TNF-alfa) e monoclonais (infliximab).
Estes fármacos deverão ser utilizados de OBSTIPAÇÃO
acordo com as características da doença, gravida-
de e resposta terapêutica. Gonçalo Cordeiro Ferreira
À terapêutica médica deve sempre associar-se,
apoio psicológico e, quando indicada, terapêutica
cirúrgica (em cerca de 60% dos casos na doença de
Crohn e em 25 % - 40% dos casos de colite ulcerosa Definições e importância do problema
em situações complicadas).
A obstipação pode ser definida por dois critérios:
Prognóstico 1) diminuição da frequência da defecação
considerando-se anómalo o caso com menos
A DII é um processo inflamatório crónico que não de três dejecções por semana; ou
pode ser curado por terapêutica médica ou 2) defecação acompanhada de sintomas suge-
cirúrgica, mas pode ser controlado, permitindo rindo dor ou desconforto, geralmente asso-
que a criança tenha uma boa qualidade de vida. ciada à passagem de fezes duras, mesmo
para uma frequência superior à considerada
BIBLIOGRAFIA inicialmente.
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bowell disease. Clinical Pediatrics(Phila) 2011; 50:488-492 e pré- escolares apresentando fezes duras
562 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Lactulose
1-3 ml/Kg/dia 2 doses diárias Obstipação ligeira
Lactitol
1-3 ml/Kg/dia 1 - 2 doses diárias Obstipação ligeira ou moderada
Leite de magnésia
1-3 ml/Kg/dia 1 - 2 doses diárias Obstipação ligeira Idade > 6 meses
Parafina líquida
1-3 ml/Kg/dia 2 doses diárias Obstipação moderada Idade > 12 meses
Sene
1 - 5 anos: 5ml/dose Máximo: 2 doses diárias Obstipação moderada Evitar uso prolongado
5 - 10 anos: 10ml/dose
Solução de lavagem intestinal
14-40 ml/Kg/hora até saída Em meio hospitalar Esvaziamento em obstipação
de líquido pelo ânus (oral ou por sonda nasogástrica) grave com encoprese
PEG* com ou sem electrólitos
0,26 - 0,84g/kg/dia 1 dose/dia em 100 ml de água Obstipação moderada ou grave Idade > 2 anos
* Poli – Etileno – Glicol
566 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Obstipação ligeira
Medidas dietéticas Lactulose ou Lactitol
Obstipação moderada
Medidas dietéticas Lactitol + Parafina líquida+ Sene Evitar uso prolongado de Sene
Obstipação grave
Medidas dietéticas PEG + Parafina líquida + Sene Evitar uso prolongado de Sene
Obstipação + encoprese
Limpeza intestinal: (enemas de fosfato e salinos) PEG + Parafina líquida + Sene Evitar uso prolongado de Sene
e/ou solução de lavagem intestinal
com os pés bem apoiados para aumentar a pressão occult constipation in children with lower urinary tract
intrabdominal, deve ser explicada a crianças e pais. symptoms. J Urol 2013; 189: 1519-1523
A presença de frequentes recaídas nestas NASPGHAN. Clinical practice guideline. Evaluation and
situações deve também ser abordada, pelo que o treatment of constipation in infants and children. JPGN
cumprimento do plano deve ser rigoroso e 2006; 43: e1- e13
prolongado, sem abandonos causados pela Roma E, Adamidis D, Nikolara R, et al. Diet and chronic
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CAPÍTULO 114 Doença de Hirschsprung 567
114
de diferenciação celular após a migração completa
devido a alterações da matriz extracelular onde
neuroblastos se fixam e se diferenciam; e mecanis-
mo imunogénico mediado pelo “complexo major
de histocompatibilidade”, responsável por for-
mação de anticorpos antineuroblastos.
DOENÇA DE HIRSCHSPRUNG A migração e diferenciação das células da
crista neural é regulada por uma variedade de
Rui Alves factores neuropáticos segregados pelas células
mesenquimatosas. A expressão destas moléculas,
por sua vez, é regulada por vários genes ou vias
genéticas (por ex. gene RET e via do receptor da
Definição endotelina tipo B). O padrão de hereditariedade é
variável, relacionando-se com o comprimento do
A doença de Hirschsprung (DH) ou megacólon intesino envolvido.
aganglionar congénito é caracterizada pela ausên- Assim, os factores genéticos têm uma impor-
cia de células ganglionares na porção mais distal tância fulcral na patogénese da doença de
do cólon e recto, característica anatomopatológica Hirschsprung, nomeadamente após a identificação
que se pode estender proximalmente de modo da variação genética responsável pela supressão da
variável. Tal afecção é uma causa frequente de expressão celular das células pluripotenciais da
obstrução intestinal no recém-nascido (RN) e na crista neural. A doença de Hirschsprung é, pois,
primeira infância. englobada no grupo das neurocristopatias, estando
A doença de Hirschsprung é classificada como intimamente associada a outras doenças ou síndro-
clássica (envolvimento recto-sigmóide: 75% dos mas que partilham a mesma natureza genética
casos); longa (envolvimento até ao cólon trans- como a síndroma de Waardenburg, a síndroma de
verso: 17% dos casos), e extralonga (envolvimento Von Recklinghausen, a síndroma de Smith-Lemli-
até à válvula íleocecal com possível compromisso Opitz, etc.. Aproximadamente 8% a 16% dos casos
do íleo terminal: 8% dos casos). A aganglionose de DH têm concomitantemente síndroma de Down.
intestinal total, a forma mais grave de doença, é O aspecto fisiopatólogico básico desta doença
extremamente rara. é a ausência de coordenação celular da actividade
A DH surge com uma incidência de cerca de motora das fibras colinérgicas pré-ganglionares, e
1/5000 nascimentos, sendo mais frequente no do efeito inibitório das fibras adrenérgicas pós-
sexo masculino (4/1). Tem uma incidência ganglionares. Assim, desenvolve-se hiperplasia
familiar entre 4% e 7%. nervosa colinérgica com aumento de produção
não inibida de acetilcolina pelos neurónios
Etiopatogénese colinérgicos, e aumento de sensibilidade do mús-
culo liso a esta substância; tal se explica pela
As células ganglionares entéricas são originárias ausência de receptores alfa-2 da mediação nora-
da crista neural. Estas células estão presentes no drenérgica, o que impede a contractilidade do
intestino anterior à 4ª semana de gestação e segmento agangliónico.
iniciam a sua migração na direcção crânio-caudal O aspecto patológico macroscópico caracterís-
entre a 5ª e a 12ª semana. tico deste problema é a dilatação e hipertrofia do
Após a 12ª semana de gestação é iniciada a mi- cólon proximal, com abrupta ou gradual transição
gração transmural das células para se formarem (cone de transição), para a porção distal, de
os plexos mientéricos e os plexos submucosos, dimensão normal ou diminuída.
processo que termina cerca da 16ª semana.
A causa da ausência de células neurais na Anatomia patológica
parede intestinal deriva de vários factores, como:
interrupção da migração crânio-caudal; falência O aspecto histológico é caracterizado por uma
568 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
115
do que no adulto dada a potencialidade do cres-
cimento intestinal no primeiro caso.
Factores etiológicos
Du
Ferro
ode
nutrientes às enzimas hidrolíticas da mucosa Cálcio
no
intestinal, assim como às secreções pancreáticas e Magnésio
Folato
biliares. Nutrientes (Glucose)
Cada segmento intestinal tem diferentes Vitaminas hidrossolúveis
(Tiamina, vitamina C)
funções de absorção:
Jejuno
Secretina
– Duodeno: glucose, ferro, folato, cálcio, Colecistocinina
magnésio e vitaminas hidrossolúveis. Nutrientes (Aminoácidos)
– Jejuno: lípidos e aminoácidos. Nutrientes (Gorduras)
Ileo
Zinco
lipossolúveis, zinco, fósforo. Fósforo
Ácidos Biliares
Deste modo, o quadro de má-absorção Sais biliares conjugados
dependerá do segmento intestinal ressecado e da Vitamina B12 – Factor Intrínseco
sua extensão. Será mais importante quando a Vitaminas A, D, E, K
Colesterol
ressecção envolver o jejuno, uma vez que no
direitn
Cólo
H2O
indivíduo saudável quase toda a digestão e HCO3-
absorção se completam nos primeiros 100 a 150
o
K+
Na+
cm de intestino.
esquern
Oxalato
O íleo, para além das suas funções de absorção
Cólo
Absorção
funções, nomeadamente secreção de substâncias
hormonais, e maior capacidade de adaptação
designadamente para substituir o jejuno nas suas
FIG. 1
funções essenciais.
A válvula íleo-cecal tem duas funções Locais de absorção e secreção/excreção no tracto
principais: regulação do trânsito intestinal e gastrintestinal (Adaptado de Hwang ST et al).
prevenção do refluxo bacteriano do cólon para o
intestino delgado. A sua ausência diminui o ácidos gordos de cadeia curta que são produzidos
tempo do trânsito intestinal (com exacerbação das pela fermentação dos hidratos de carbono
perdas de líquidos e nutrientes) e aumenta o risco dependente das bactérias no cólon. (Figura 1)
de crescimento bacteriano no intestino delgado. A Após ressecção intestinal extensa, o intestino
colonização bacteriana do intestino delgado pode restante tem a capacidade de se adaptar ana-
provocar desconjugação dos ácidos biliares tómica e funcionalmente, de modo a aumentar as
alterando a formação de micelas, o que poderá suas funções de digestão e absorção. Estas alte-
agravar a esteatorreia. rações iniciam-se nas primeiras 24 a 48 horas após
A presença do cólon é importante para a a ressecção e podem prolongar-se para além de
absorção dos ácidos gordos de cadeia curta, água um ano. Vários factores parecem mediar estes
e electrólitos. Este segmento intestinal tem a efeitos; o mais importante parece ser a presença de
capacidade de aumentar até 5 vezes a absorção de nutrição entérica que leva a um aumento de
água e electrólitos; por outro lado, pode fornecer nutrientes não digeridos a nível distal, provo-
energia suplementar através da absorção de cando um aumento na libertação de hormonas
572 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
intestinais (péptido YY, substância P, CCK, glucagon- fases de nutrição parentérica /entérica e intro-
like peptide 2). As alterações de adaptação tradu- dução de alimentos sólidos.
zem-se essencialmente em: aumento do diâmetro,
espessura e comprimento intestinais, aumento da Fase 1: Nutrição parentérica (NP)
altura das vilosidades, da profundidade das A nutrição parentérica é administrada por cateter
criptas, e mais intensa proliferação e migração venoso central e deve ser constituída por uma
celulares para a extremidade das vilosidades. mistura equilibrada de glúcidos, proteínas,
Esta resposta adaptativa, que é mais acentuada lípidos, electrólitos, vitaminas, minerais e oligoe-
nas crianças, verifica-se sobretudo no íleo em lementos de modo a promover o crescimento
relação ao jejuno. adequado. Calculadas as necessidades de fluidos
Nos doentes com SIC, a colestase e disfunção em função do peso e idade, as necessidades caló-
hepática são complicações frequentes que alteram ricas são aumentadas progressivamente, até se
a capacidade de absorção e utilização de nu- atingir 100 Kcal/Kg/dia.
trientes. A colestase nestas situações é geralmente A glicose deve ser iniciada ao ritmo de 5-7
multifactorial, sendo a sépsis, atrofia da mucosa e mg/Kg/min, com incrementos de 1-3 mg/Kg/min
o hipercrescimento bacteriano factores predis- até se atingir 12-14 mg/Kg/min, evitando hipergli-
ponentes importantes. cémia e glicosúria.
Os aminoácidos são iniciados na dose de 1
Tratamento g/Kg/dia, e aumentados até 3 mg/Kg/dia, em 2-
3 dias.
Actualmente, mais de 90% dos doentes com SIC Os lípidos iniciam-se na dose de 1 g/Kg/dia
sobrevivem, recorrendo à NPT. O tratamento é com incrementos de 1 g/Kg/dia até 3 g/Kg/dia,
complexo e requer uma abordagem multidisciplinar em crianças até ao 1 ano de idade, e até 2
em centro especializado. g/Kg/dia em crianças acima de 1 ano. Não devem
Diz respeito essencialmente ao suporte nu- exceder 30-40% do valor calórico total, de modo a
tricional, cujo objectivo é manter o crescimento da prevenir a hiperlipidémia.
criança dentro dos parâmetros normais, promover Os sais minerais e as vitaminas devem ser
a adaptação intestinal e evitar as complicações fornecidos de acordo com as necessidade diárias e
resultantes da ressecção intestinal e da referida grupo etário.
NPT (soluções preparadas pelo serviço far- Na fase inicial (primeiras 3 semanas) deve ter-se
macêutico em condições de assépsia em câmara em especial atenção os electrólitos, em particular o
de fluxo laminar). sódio, sendo por vezes necessário fornecer soluções
A primeira etapa inicia-se com a intervenção com sódio (80-100 mEq / litro da solução)
cirúrgica cujo objectivo é salvar a vida e preservar dependendo das perdas pelo estoma ou do grau de
a maior extensão possível de intestino viável. diarreia. Também nesta fase, por haver hiper-
Geralmente dura 1 a 3 semanas após ressecção gastrinémia, inicia-se terapêutica com ranitidina
cirúrgica, sendo caracterizada pelo início da NPT, (0.75-1.5 mg/Kg/dia, por via endovenosa de 6/6h
com especial atenção ao equilíbrio hidro-electro- ou 8/8h). Esta fase prolonga-se por cerca de 1 ano,
lítico e à hipergastrinémia. pelo que se deve manter a terapêutica. Pode
Na segunda fase procede-se ao início da também ser administrado o omeprazol.
nutrição entérica contínua, com redução progres- Durante a fase de nutrição parentérica, após
siva da NPT. estabilização clínica, é importante a vigilância
A terceira fase corresponde à adaptação à laboratorial (Quadro 2).
nutrição entérica e ao início da nutrição oral.
A transição de uma fase para outra é variável Fase 2: Nutrição entérica (NE)
de doente para doente, dependendo da evolução A segunda da fase caracteriza-se pelo início da
clínica e da eficiência e qualidade do crescimento. nutrição entérica, fundamental para estimular a
Pode durar meses ou anos. adaptação intestinal uma vez garantida a estabi-
Sintetizam-se, a seguir, os procedimentos nas lidade hidroelectrolítica. É fornecida por sonda
CAPÍTULO 115 Síndroma do intestino curto 573
QUADRO 4 – Monitorização laboratorial (vitaminas e oligoelementos) nos doentes com SIC, após
suspensão da NPT
Parâmetros Frequência
Vitamina B12 e folato 3/3 meses, nos primeros 6 meses; depois, de 6/6 meses
Zinco, crómio, cobre, magnésio, selénio, manganês 6/6 meses
Vitaminas A, E, D 3 meses após suspensão da NPT; depois de 6/6 meses
ção ileal. Geralmente, após 2 anos, fase em que os locação bacteriana. Define-se pela presença no
doentes já toleram fórmulas complexas, estes intestino delgado de bactérias do cólon em
alimentos podem ser fornecidos em maior número igual ou superior a 105/ml. Clinicamente
quantidade. Nos doentes sem íleo, mas com cólon manifesta-se por anorexia, vómitos, distensão
intacto, devem ser evitados alimentos ricos em abdominal, hematoquesia, dificuldade em tolerar
oxalatos, tais como chá, colas, chocolate, vegetais de a NE e perda de peso. Por vezes pode ocorrer um
folha verde, aipo, morangos, para prevenir o quadro neurológico caracterizado por alteração
aparecimento de cálculos renais de oxalato de cálcio. do estado de consciência (incluindo coma),
À medida que a NE vai substituindo a NP, hiperventilação, acidose metabólica com hiato
deve ter-se particular atenção aos défices de aniónico elevado, resultante da acumulação de
vitaminas lipossolúveis – A, D, E e K – for- ácido D-láctico, (substância não metabolizável na
necendo-as sob forma hidrossolúvel: ADEK® espécie humana), resultante da fermentação
1ml/dia dos 0-1 ano, 2ml/dia dos 1-3 anos, 3-4 bacteriana dos hidratos de carbono da alimen-
ml/dia após os 4 anos. Deve também proceder-se tação. O diagnóstico é sugerido pela determinação
aos doseamentos séricos dos oligoelementos e da sérica do D-lactato, e não do lactato total.
vitamina B12, tendo em atenção as manifestações Deve suspeitar-se de proliferação bacteriana no
clínicas dos respectivos défices para tratamento intestino delgado em doentes sem válvula íleocecal, e
correcto e atempado (Quadros 4 e 5). ou com dismotilidade, ou com segmentos intestinais
Tratamento das complicações mais comuns dilatados. O diagnóstico é difícil, podendo ser confir-
1. Proliferação bacteriana no intestino delgado mado por cultura de líquido duodenal, coprocultura
Trata-se duma complicação frequente que e pelo teste do hidrogénio expirado.
provoca lesão da mucosa, má-absorção e trans- Dos vários esquemas terapêuticos pode utilizar-
se por via oral: metronidazol (15 mg/Kg/dia, até prova em contrário. Deve proceder-se a culturas
8/8h) isolado ou associado ao cotrimoxazol (40-50 de sangue colhido de dois locais simultaneamente
mg/Kg/dia, 12/12h); ou gentamicina (5 mg/Kg/ (cateter central e veia periférica) e iniciar
dia), durante 5 dias; deve, entretanto, reduzir-se a antibioticoterapia de largo espectro, mantendo-a até
NE e suspender-se os antiácidos. conhecimento do resultado das hemoculturas. Se a
Esta situação pode ser prevenida, nos doentes infecção for fúngica está indicada anfotericina B
de risco, administrando nos primeiros 5 dias de lipossómica, removendo-se o cateter. Nas infecções
cada mês um dos antibióticos acima referidos, bacterianas não há, em princípio, necessidade de
alternando-os para evitar resistências bacterianas. remover o cateter, a não ser em situações de
Em casos de dilatação intestinal acentuada pode recorrência de sépsis, choque séptico ou persistência
ser necessário proceder a intervenção cirúrgica – de hemocultura positiva.
ressecção, modelagem ou alongamento intestinal
– para resolução desta complicação. Perspectivas terapêuticas
Tem-se demonstrado que os probióticos têm
efeito na redução da necessidade de antibióticos e 1. Factores tróficos: o uso de factores tróficos,
no controlo de sintomas relacionados com a nomeadamente glutamina combinada com hor-
proliferação bacteriana intestinal. mona de crescimento, associados à NE, parece ter
2. Colestase relacionada com NPT efeitos positivos na adaptação intestinal. Em fase
É uma situação frequente nos doentes com SIC de investigação, a sua utilização é ainda contro-
e, juntamente com a sépsis, uma das principais versa, parecendo, no entanto, ser promissora
causas de morte. Admite-se que a causa é multi- quanto ao prognóstico da situação em análise.
factorial, sendo determinantes a ausência de NE, a 2. Transplantação intestinal: a transplantação
presença de endotoxinas bacterianas e a intestinal tornou-se uma opção terapêutica para os
hepatotoxicidade directa associada aos compo- doentes com insuficiência intestinal permanente em
nentes da NPT. Manifesta-se por icterícia e que o crescimento fica na dependência da NPT. A
hepatomegália, associadas a elevação das tran- decisão de indicar o transplante deve ser extre-
saminases, fosfatase alcalina e bilirrubina con- mamente bem ponderada, após esgotar todas as
jugada. A melhor actuação consiste na introdução opções terapêuticas, nomeadamente a NPT, o uso de
progressiva de NE, se possível; em geral a coles- factores tróficos, e as terapêuticas cirúrgicas alterna-
tase resolve-se com a suspensão da NPT. Deve tivas, devido aos riscos e à qualidade de vida
prevenir-se a proliferação bacteriana intestinal e a associada ao transplante intestinal. A Associação
sépsis, garantir uma mistura adequada de glicose, Americana de Transplantação considera como
proteínas, lípidos e oligoelementos na NPT e indicações para transplantação intestinal na criança:
realizar esta última de modo cíclico. Como doença hepática irreversível associada à NPT
terapêutica dirigida utiliza-se o ácido ursodesoxi- (hiperbilirrubinémia com bilirrubina conjugada
cólico (10-40 mg/Kg/dia, 12/12h, por via oral). superior a 3mg/dl persistindo para além de 3-4
3. Sépsis meses acompanhada de sinais de hipertensão portal
É uma complicação comum que põe em risco a tais como esplenomegália, trombocitopénia ou
vida dos doentes com SIC. São considerados factores circulação venosa superficial colateral marcada),
etiológicos importantes a contaminação externa dos sépsis recorrente e falta de acessos venosos centrais.
cateteres e a migração bacteriana intestinal. Os Na situação de doença hepática irreversível, poderá
agentes etiológicos são geralmente Staphylococcus estar indicada a transplantação hepática e intestinal
aureus e enterobactérias. Por vezes são isolados combinada.
fungos como Candida albicans, que devem ser sempre
considerados como hipótese etiológica em doentes Prognóstico
que terminaram recentemente antibioticoterapia.
Qualquer doente com SIC, com cateter central, em O prognóstico após ressecção intestinal depende
que se inicie febre, letargia ou outros sinais de da respectiva extensão, da função e capacidade
infecção, deve ser considerado como tendo sépsis, adaptativa do intestino residual, das complica-
576 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ções, nomeadamente da doença hepática associa- tinal failure. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2004; 38: 250-269
da a NPT, da proliferação bacteriana intestinal, e Hwang ST, Shulman RJ, Update on management and treat-
do número de episódios de sépsis. ment of short gut. Clin Perinatol 2002; 29: 181-194
Considera-se de bom prognóstico a situação Javid PJ, Sanchez SE, Horslen SP, et al. Intestinal lengthening
em que se verifica crescimento adequado, não and nutritional outcomes in children with short bowel syn-
dependente da NPT. Em geral, o melhor prognós- drome. Am J Surg 2013; 205: 576-580
tico verifica-se em casos de SIC com 40-80 cm de Kauffman SS, Atkinson JB, Bianchi A, et al. Indications for
intestino delgado residual e com válvula íleocecal pediatric intestinal transplantation: A position paper of the
intacta; nestes, a independência da NPT durante 1 American Society of Transplantation. Pediatr Transplant
ano é atingida em 80% dos casos; os doentes com 2001; 5: 80-87
menos de 40 cm de intestino residual e sem Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger, 2008
válvula íleo-cecal permanecem dependentes da Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
NPT para além dos 8 anos. No entanto, há casos AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw -Hill
descritos de SIC com menos de 15 cm de intestino Medical, 2011
residual que se tornaram independentes da NPT. Sanchez SE, Javid PJ, Healey PJ, et al. Ultrashort bowel syn-
O crescimento e o desenvolvimento dos doentes drome in children. JPGN 2013; 56: 36-39
com SIC são adequados na generalidade, embora na Sigalet DL. Short bowel syndrome in infants and children: An
sua grande maioria se verifique menor estatura overview. Semin Pediatr Surg 2001; 10: 49-55
comparativamente à população geral; verifica-se Vanderhoof JA, Young RJ. Enteral nutrition in short bowel syn-
ainda: maior número de dejecções diárias (com vál- drome, Semin Pediatr Surg 2001; 10: 65-71
vula íleo-cecal, cerca de 2 dejecções/dia; sem vávu- Vanderhoof JA, Young RJ, Thompson JS. New and emerging
la, 2-10 dejecções/dia). São comuns a dificuldade de therapies for short bowel syndrome in children. Paediatr
digestão e absorção de hidratos de carbono, bem Drugs 2003; 5: 525-531
como a intolerância ao leite e a alimentos condi- Walker WA, Goulet O, Kleinman RE, et al (eds). Pediatric
mentados. Existe risco aumentado de colelitíase, Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004
sobretudo nos casos submetidos a ressecção ileal
importante. A hiperoxalúria e os cálculos renais são
mais frequentes nos adultos.
Em suma, os importantes avanços conseguidos
com a terapêutica nutricional, a terapêutica médico-
cirúrgica e o transplante intestinal contribuiram
decisivamente para melhorar as perspectivas dos
doentes com síndroma do intestino curto.
BIBLIOGRAFIA
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Goulet O, Ruemmele F, Lacaille F, Colomb V. Irreversible intes-
CAPÍTULO 116 Hepatite vírica 577
116
Os agentes víricos hepatotrópicos causadores
de hepatite aguda são os designados por vírus A
(VHA), B (VHB), C (VHC), D (VHD), E (VHE); de
referir que apenas os vírus B,C e D causam he-
patite crónica. (Quadro 1)
São também agentes de hepatite aguda, no
HEPATITE VÍRICA contexto de compromisso multiorgânico, os vírus
de Epstein-Barr, citomegalovírus, herpes simplex
Gonçalo Cordeiro Ferreira 1, adenovírus, enterovírus, arbovírus e paramy-
xovírus.
1. Hepatite A
Formas de apresentação
e agentes etiológicos Epidemiologia
São considerados 3 padrões epidemiológicos de
Na criança as hepatites víricas apresentam-se sob acordo com as condições socioeconómicas e sani-
duas formas: tárias de regiões e países:
Endemicidade elevada: países em desenvolvi-
Hepatites agudas em que, após o período de mento (Ásia, África, América do Sul e Central). A
maior ou menor grau de lesão hepática, há uma exposição ao VHA produz-se na infância, estando
recuperação funcional completa (excepto quando a população adulta imune. A infecção é, na maioria
evoluem para hepatite fulminante, situação que dos casos, assintomática e causada por contacto
acarreta uma alta morbilidade); interpessoal. Raramente surgem epidemias dado o
Hepatites crónicas a que corresponde processo elevado grau de protecção da população que
de inflamação hepática que persiste após a atinge 90% das crianças abaixo dos 5 anos em áreas
infecção inicial e se mantém por um período hiperendémicas, ou 90% aos 10 anos noutras;
superior a 6 meses. Endemicidade intermédia: observa-se nos países
com melhoria das condições sanitárias nos últmos Ocasionalmente podem surgir formas colestá-
anos (Europa mediterrânica e de Leste). Nestes ticas em que predominam sintomas como acolia e
casos a exposição produz-se na adolescência ou prurido, ou hepatite de evolução a dois tempos
no adulto jovem, podendo surgir surtos em que, após melhoria clínica e laboratorial, surge
epidémicos relacionados com transmissão pessoal novamente agravamento, mas de menor duração.
ou águas contaminadas; 90 % dos adultos têm Cerca de 1 em cada mil casos de hepatite por
marcadores de seroconversão; VHA na criança pode evoluir para um quadro de
Endemicidade baixa: nos países muito desenvol- insuficiência hepatocelular aguda – hepatite
vidos (Europa Ocidental ou do Norte, Japão, fulminante – com alta mortalidade e necessidade
América do Norte) em que há uma baixa taxa de frequente de transplante hepático. São sinais
seroconversão mesmo nos adultos, havendo indicativos desta evolução a manutenção e
susceptibilidade a surtos epidémicos por águas ou agravamento dos sintomas gerais; e, no período
alimentos contaminados, ou por viagens a países ictérico, a intensificação da icterícia, o apareci-
menos desenvolvidos. mento de alterações comportamentais (irritabili-
Portugal passou, nas últimas décadas, de um dade, sonolência) sugestivas de encefalopatia, e
padrão de endemicidade alta para um de de alterações clínicas da coagulação (discrasia
endemicidade intermédia, e mesmo, nalguns hemorrágica).
grupos socioeconómicos (estudo em estudantes
com idade média de 20 anos), de endemicidade Diagnóstico
baixa (Quadro 2) O diagnóstico de toda e qualquer hepatite aguda
faz-se se se verificar elevação das enzimas de
Manifestações clínicas citólise hepática : ALT e AST. Os respectivos
Em crianças com idade inferior a 6 anos verifica-se valores são habitualmente 10 vezes superiores aos
cerca de 70% formas anictéricas (assintomáticas valores normais, mas podem ser 100 vezes
ou paucissintomáticas com clínica semelhante a superiores (geralmente entre a terceira e sexta
gastrenterite aguda). semana de doença), sem que haja alguma relação
Nos adolescentes e adultos em 70% dos casos com o prognóstico final. A sua normalização
surgem formas sintomáticas. Estas caracterizam- costuma indicar o final da doença (pela oitava
se por dois períodos: pré-ictérico com sintomas semana de doença); contudo a sua queda abrupta
gerais tais como mal-estar, fadiga, anorexia, na presença de icterícia agravada pode ser
náuseas e vómitos, o qual corresponde à maior sugestiva de evolução para hepatite fulminante.
excreção do vírus nas fezes e, por isso, à máxima A bilirrubina, usualmente a directa, (mas por
contagiosidade. Subsequentemente surge o vezes a directa e a indirecta) encontra-se modera-
período ictérico com colúria em apenas 5 % das damente aumentada na fase ictérica da doença bem
crianças e em 30% de adolescentes e adultos. Há, como as enzimas de colestase (gama - glutamil –
então, melhoria franca da sintomatologia geral e transpeptidase ou GGT e fosfatase alcalina); estas
redução da excreção fecal do vírus (1-2 semanas), últimas podem, no entanto, estar bastante elevadas
seguindo-se um período de convalescença com nas formas colestáticas da infecção.
melhoria da icterícia e diminuição das alterações A síntese proteica (albumina e factores da coa-
das enzimas hepáticas. gulação) não está geralmente afectada, podendo, no
anos de vida (2-10%), aumentando subse- bioquímica). Desta forma, obvia-se a progressão
quentemente (8-12% por ano). A taxa de depuração da lesão hepática para cirrose e risco de carcinoma
espontânea do VHB com seroconversão anti HBs é hepatocelular (CHC). No entanto, sabendo-se que,
muito baixa(6% num seguimento de 20 anos). mesmo na ausência de cirrose e de replicação víri-
Apesar da aparente benignidade da evolução ca activa, a infecção crónica pelo VHB pode a
da HB na criança, há casos descritos de cirrose longo prazo originar o CHC (provavelmente após
precoce com risco acrescido de carcinoma hepato a integração do genoma do vírus no DNA do
celular (10-40%) quer na idade pediátrica, quer no hepatócito), será necessário analisar a mais longo
adulto. Um subgrupo restrito de crianças evoluin- prazo os efeitos desta terapêutica limitada para
do com depuração do Ag HBe pode apresentar avaliar os seus reais benefícios.
reactivação ou manutenção das alterações hepá- Os fármacos mais utilizados nos últimos anos
ticas, comportando risco de evolução na idade no tratamento da HB crónica da criança são o
adulta para cirrose ou carcinoma hepatocelular. interferão alfa e a lamivudina. (Quadro 4).Ambos
A experiência portuguesa é semelhante à das têm autorização da FDA para a idade pediátrica.
séries europeias, predominando as formas Devem ser utilizados em doentes em fase de
adquiridas por via intrafamiliar. Num estudo imunoactivação (transaminases elevadas pelo menos
efectuado no Hospital Dona Estefânia compre- duas vezes, ADN VHB > 20.000 UI/mL ou 105)
endendo 187 crianças infectadas comprovou-se cópias/mL, habitualmente com Ag HBe positivo,
que em 42,7% dos casos a transmissão fôra mas ocasionalmente negativo com reactivação). O
horizontal, contra 6,4% de transmissão vertical. interferão está contraindicado nos casos de doença
O rastreio sistemático do Ag HBs nas grávidas, hepática avançada, de doença autoimune
administrando imunoglobulina e vacinando os seus concomitante ou de crianças transplantadas.
recém nascidos, e a introdução da vacinação contra Em fase experimental encontram-se estudos
VHB, (inicialmente nos pré-adolescentes e actual- combinando interferão com lamivudina, uso de
mente desde o nascimento), levaram a uma redução interferão peguilado (uma só injecção semanal) e
dos novos casos (redução de 80% dos casos até aos uso de outros análogos dos nucleótidos/nucleósidos
14 anos comunicados à Direcção Geral da Saúde – (adefovir, entecavir, tenofovir) O adefovir, aprovado
DGS entre 1995-1999). Assim, para além das crian- pela FDA para adolescentes com > 12 anos, tem sido
ças infectadas antes destas mudanças nas normas utilizado em casos de fracasso ou resistência ao tra-
de actuação, os novos casos recebidos nos centros tamento com lamivudina. O tenofovir e o entecavir,
pediátricos correspondem fundamentalmente a respectivamente licenciados para adolescentes com
crianças de famílias oriundas de zonas endémicas, idades > 12 e > 16 anos, parecem ser fármacos
nomeadamente das ex colónias africanas. seguros e eficazes sem o potencial indutor de
aparecimento de mutantes da lamivudina.
Tratamento Os resultados da terapêutica com interferão ou
O tratamento de um agente infeccioso deverá ter com lamivudina são semelhantes e apresentam a
como objectivo a sua eliminação do organismo.No curto prazo efeitos positivos em relação ao curso
entanto, a constatada impossibilidade de qualquer natural da doença, sendo necessários estudos de
pauta terapêutica utilizada levar consistentemente maior duração para comprovar esses benefícios a
à eliminação do VHB com seroconversão anti HBs longo prazo. Tal como noutras séries europeias, a
torna os objectivos terapêuticos mais limitados. casuística do Hospital Dona Estefânia mostra que,
O tratamento de crianças com HB crónica tem a longo prazo, a seroconversão AgHBs-AcHBs é
como finalidade a diminuição da actividade ne- semelhante nas crianças tratadas e não tratadas,
croinflamatória hepática através da eliminação da mas que, a curto prazo, há uma resposta virológica
replicação vírica traduzida pela eliminação do Ag mais precoce no grupo tratado.
HBe (com ou sem seroconversão anti e), e desapa- A lamivudina apresenta menos efeitos secun-
recimento dos níveis séricos detectáveis do DNA dários, menos custos e é de mais cómoda admi-
VHB (resposta virológica). Adicionalmente procu- nistração que o interferão; poder-se-á, por isso,
ra-se a normalização das transaminases (resposta considerar o tratamento de primeira escolha na
582 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 4 – Tratamento da HB
5. Hepatite E
manter as transaminases normais. Nas primeiras 8 Após suspensão da terapêutica há que manter
semanas de tratamento a avaliação das transami- uma vigilância rigorosa das transaminases pelo
nases deve ser semanal, fazendo-se os ajustes perigo de recidiva. Há autores que recomendam
necessários da dose de corticóide. O tratamento nas hepatites auto-imunes LKM positivas,
deve ser iniciado imediatamente, não se esperando manutenção da terapêutica durante toda a vida.
pelos 6 meses, critério habitual nas hepatites víricas. Está indicada transplantação hepática se surgir
Se não houver normalização das transaminases insuficiência hepática fulminante, complicações
ou se a evolução não permitir reduzir a dose de da cirrose hepática, falência da terapêutica mé-
corticóide, acrescenta-se azatioprina na dose de 0,5- dica, ou aparecimento de efeitos secundários
2mg/kg/dia. Começa-se com a dose mais baixa. intoleráveis da medicação.
Apesar de, na maior parte dos casos, as Estes doentes devem ser sempre seguidos em
transaminases começarem a baixar logo que se centros especializados.
inicia a terapêutica, a sua completa normalização
poderá surgir somente ao cabo de alguns meses. BIBLIOGRAFIA
As recidivas são frequentes obrigando a novos Clemente MG, Schwarz K. Hepatitis:general principles. Pediatr
acertos terapêuticos. Se não se conseguir remissão Rev 2011;32: 333-340
da doença, a cirrose é a evolução. A evolução para Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
cirrose depende também dos achados iniciais da Gracey M, Burke V (eds). Pediatric Gastroenterology and
biópsia: se na data do diagnóstico já forem evi- Hepatology. London: Blackwell, 1993
dentes os quadros morfológigicos de “bridging” e Kelly DA (ed). Diseases of the Liver and Biliary System in
da chamada “piecemeal necrosis”, é provável que, Children. Oxford: Blackwell Publishing 2004
apesar do tratamento, se verifique tal evolução. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
A eficácia da terapêutica é determinada pelo Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
valor das transaminases e gamaglobulinas, e não Krawitt EL. Autoimmune hepatitis. NEJM 2006; 354:54-66
pelo título dos auto-anticorpos. Oettinger R, Brunnberg A, Gerner P, et al. Clinical features and
Nos casos que não respondem a esta imu- biochemical data of Caucasian children at diagnosis of
nossupressão poderão ser tentadas outras drogas autoimmune hepatitis. J Autoimmun 2005; 24: 79-84
imunossupressoras (ciclosporina, tacrolimus). Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA(eds).
A maior parte dos autores recomenda actual- Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw -Hill Medical , 2011
mente que o tratamento se mantenha, pelo menos, Suchy FJ, Sokol RJ, Balistreri WF, (eds). Liver Diseases in
5 anos após a normalização das transaminases. Children. Philadelphia: Lippincott, Williams & Wilkins, 2001
CAPÍTULO 118 Colestase do recém-nascido e lactente 587
118
corresponde à etiologia mais frequente. Dum modo
geral podem estar em causa agentes exógenos e
condições patológicas congénitas específicas.
Manifestações clínicas
Síndroma de Rotor
durante 10 dias ou mais sugere atrésia das vias biliares. O geralmente até aos 3 meses), boa vitalidade e fezes
perfil clínico da AVBHE é, em regra: RN de despigmentadas até à acolia, bem patente pelas 3
termo,de peso adequado à idade gestacional, com semanas de vida.
boa progressão ponderal nas 1ªs semanas (e A avaliação de parâmetros bioquímicos que
CAPÍTULO 118 Colestase do recém-nascido e lactente 589
fundamentam a colestase deve ser feita por defeitos anatómicos, como o quisto do colédoco. A
etapas. Numa primeira fase avalia-se a função inexistência de vesícula biliar pode sugerir atrésia
hepática (incluindo o estudo da coagulação), das vias biliares sendo de salientar que a
começando por se excluir as situações mais importância deste método depende muito da
frequentes. Numa segunda fase, há que proceder experiência do imagiologista.
ao diagnóstico etiológico, (Quadro 2), o que é A cintigrafia hepatobiliar com tecnécio marca-
facilitado pelo algoritmo apresentado. (Quadro 3). do por análogos do ácido iminodiacético pode dar
Não há nenhuma análise bioquímica que seja contributo para estabelecer a destrinça entre a
patognomónica. Durante muito tempo usou-se a atrésia das vias biliares e colestase não obstruti-
elevação da GGT para o diagnóstico diferencial de vas. Para aumentar a excreção biliar do isótopo e
atrésia das vias biliares/hepatite neonatal. A aumentar a sensibilidade do exame, procede-se a
grande variabilidade dos resultados tornou o seu administração prévia de fenobarbital na dose de 5
uso controverso. No entanto, se a GGT evidenciar mg/Kg/dia durante 5 dias.
valores normais e a fosfatase alcalina estiver A biópsia hepática é o exame mais importante
elevada, poderá tratar-se de colestase intracelular. na avaliação dum lactente com colestase. Nas
A ecografia é importante para o diagnóstico de crianças com menos de 6 semanas de vida os
achados histológicos característicos de atrésia das
QUADRO 2 – Fases do estudo da colestase vias biliares (proliferação ductular, alargamento
neonatal dos espaço porta com escasso infiltrado
inflamatório, fibrose portal, rolhões biliares e estase
1ª fase biliar) poderão ainda não estar presentes, sendo
História clínica então necessário repetir a biópsia hepática após
Exame objectivo algumas semanas. A biópsia pode também sugerir
Avaliação diária do aspecto macroscópico das fezes doenças metabólicas ou de depósito (tesauris-
(dejecção a dejecção) moses) como causa da colestase (Parte XXXII).
Sangue: hemograma, estudo da coagulação, bilirrubina Nos casos em que não é possível estabelecer o
total e directa, AST, ALT, GGT, Fosfatase alcalina; diagnóstico de certeza de atrésia das vias biliares,
LDH, amónia, glicemia, alfa-fetoproteína, deve ser feita uma laparatomia exploradora com
colesterol, triglicéridos, siderémia, ferritina, ácidos colangiografia intraoperatória. Este procedimento
biliares, fenótipo de alfa-1-antitripsina, serologia deverá ser feito por cirurgiões pediátricos com
TORCHES, vírus da hepatite B, hemoculturas experiência deste tipo de patologia. Recentemente
Urina: cultura, pesquisa de substâncias redutoras, tem-se usado a colangiorressonância que, apesar
succinil-acetona de necessitar de anestesia, é uma técnica menos
Imagem: ecografia, cintigrafia hepatobiliar, radiografia invasiva que a anterior.
do esqueleto
Histologia: biópsia hepática Tratamento
Outros: paracentese (se ascite)
LDH: Desidrogenase láctica)
TORCHES: Toxoplasmose e outros rubéola; citomegalovírus; herpes; Epstein-Barr; sífilis O tratamento das síndromas colestáticas do recém-
2ª fase nascido e lactente depende do diagnóstico e da
Sangue: proteinograma, cortisol, função tiroideia, data em que o mesmo é realizado.
aminoácidos, galactose-1-fosfato, Os doentes com atrésia das vias biliares extra-
uridiltransferase, cariótipo, serologia VIH, hepáticas devem ser operados até às 6 semanas
lactato, piruvato, estudos genéticos de vida. Depois dos 3 meses de idade há que pon-
Urina: aminoácidos, ácidos orgânicos derar a indicação operatória, pois estes doentes
Imagem: CPRE, colangiorressonância necessitarão de transplante hepático precoce
Outros: prova de suor, estudos enzimáticos nos (Consultar Anexos com algoritmo especificando:
leucócitos, fibroblastos (biópsia da pele), Icterícia após os 14 dias de vida).
fígado, músculo, medula óssea. Algumas doenças metabólicas também têm
indicação para transplante hepático (deficiência
590 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Icterícia neonatal
Gamagrafia hepática
Normal Elevada Colangiografia trans-hepática
Colangiorressonância
Biópsia
hepática
Patente Ausente
Ácidos biliares
séricos
Biópsia
hepática
Elevados Diminuídos
ou normais Hepatite AVBIH AVBEH
neonatal
ABREVIATURAS:
Não sindromática
AST – Aspartato amino transferase (transaminase glutâmico – oxalacética ou SGOT)
ALT – Alanina amino transferase (transaminase glutâmico – piróvica ou SGPT)
GGT – Gama glutamil transpeptidase
FA – Fosfatase alcalina
AVBIH – Atrésia das vias biliares intra-hepáticas
AVBEH – Atrésia das vias biliares extra-hepáticas
BT – Bilirrubina total
BD – Bilirrubina directa (conjugada)
S – Síndroma (Adaptado de Manzanares & Benitez, 2003)
119
(A:5.000-25.000 U/dia; D:800-5.000 U/dia, ou cal-
cidiol:3-5 mcg/kg/dia; E(D-alfa-tocoferol):25-200
UI/kg/dia; K:2,5 mg duas vezes/semana).
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Suchy FJ. Neonatal cholestasis. Pediatr Rev 2004; 25:388-396
O gene da doença de Wilson (de que se
conhecem mais de 250 mutações) codifica uma
ATP-ase do tipo-P (ATP7B) que se expressa
principalmente (mas não exclusivamente) nos
hepatócitos e que se admite ter papel crucial na
excreção biliar do cobre e na incorporação deste
na ceruloplasmina.
As alterações do funcionamento dos órgãos
ocorrem por depósito anormal de cobre nos
lisossomas devido a excreção biliar inadequada.
Tal resulta de incorporação anormal do cobre em
proteínas hepáticas tais como a ceruloplasmina.
Na doença de Wilson a acumulação de cobre
ocorre primariamente no fígado, após a 1ª/2ª
década de vida. O cobre é libertado do fígado
quando a capacidade de acumulação é excedida,
sendo então depositado noutros tecidos.
A peroxidação lipídica das mitocôndrias como
resultado da sobrecarga em cobre conduz a
alterações funcionais de carácter tóxico, inibindo
diversos processos enzimáticos.
592 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
O gene anormal ligado à doença de Wilson hepática, manifestações neurológicas e anel de Kayser-
localiza-se no braço longo do cromossoma 13 Fleischer, o diagnóstico torna-se mais fácil.
(13q14.3). Contudo, tal raramente ocorre, pelo que se torna
necessário um elevado índice de suspeita decor-
Manifestações clínicas rente da anamnese e do exame objectivo.
A suspeita clínica implica o encaminhamento
As manifestações clínicas relacionam-se com o para centros especializados para a realização dum
depósito de cobre em órgãos específicos, mais conjunto de exames complementares tais como
frequentemente no fígado e no sistema nervoso hemograma, provas da função hepática, dosea-
central. A forma de apresentação é variável nas mentos séricos de acido úrico, fosfato, cobre,
crianças, sendo rara antes dos cinco anos. As ceruloplasmina, e doseamento do cobre em urina
manifestações hepáticas precedem habitualmente de 24 horas, e no tecido hepático (biópsia).
as manifestações neurológicas durante vários De acordo com o contexto clínico poderá ser
anos. necessário recorrer a exames de imagem (TAC e
A doença hepática manifesta-se habitualmente RMN crânio-encefálica e abdominal).
por icterícia recorrente, hepatite aguda auto- Os dados histológicos obtidos por biópsia
limitada, hepatite autoimune, falência hepática hepática são sobreponíveis aos encontrados na
aguda ou doença hepática crónica. hepatite crónica activa: degenerência gorda,
As lesões neurológicas manifestam-se por hepatócitos em “balão”, grânulos de glicogénio e
alterações do movimento (tremores, incoordena- células de Küpfer de maiores dimensões. A
ção motora, perda de controlo da motricidade microscopia electrónica permite identificar grandes
fina, coreia e coreoatetose) ou distonia rígida (ri- mitocôndrias. Na doença de Wilson o conteúdo do
gidez, alterações da marcha e compromisso pseu- cobre hepático excede 250 mcg/grama. Nas formas
dobulbar). heterozigóticas os valores são inferiores.
As alterações psiquiátricas manifestam-se A análise da mutação do gene ATP7B é
habitualmente por depressão, comportamentos particularmente útil quando as alterações clínicas
neuróticos, alterações da personalidade e, ocasio- e bioquímicas não são específicas.
nalmente, deterioração intelectual. (Quadro 1) O diagnóstico diferencial das alterações hepá-
ticas detectadas faz-se com a hepatite autoimune e
Diagnóstico outras formas de hepatite crónica e cirrose cripto-
génica.
O diagnóstico poderá ser difícil. O melhor rastreio As manifestações neurológicas podem simular
consiste em determinar o valor da ceruloplas- esclerose múltipla e diversas alterações psiquiá-
mina: na maioria dos casos de doença de Wilson tricas.
está diminuída. Numa fase precoce o cobre sérico
está elevado e a sua excreção urinária (normal- Tratamento
mente inferior a 40 mcg/dia) elevada (100-1000
mcg/dia). Agentes quelantes do cobre ou zinco podem
Se estiver presente a tríade clássica de doença prevenir o desenvolvimento das alterações hepá-
120
ticas, neurológicas e psiquiátricas em indivíduos
assintomáticos afectados, e reduzir as manifes-
tações em indivíduos sintomáticos.
A D-penicilamina (0,5-0,75 gramas/dia) é a
droga mais segura e eficaz (associada a suplemen-
to de vitamina B6 por se tratar do antimetabólito
desta vitamina). É tomada oralmente e geralmente CIRROSE HEPÁTICA
bem tolerada. Em doentes com hipersensibilidade
à penicilamina, a trientina (0,5-2 gramas/dia) Maria de Lurdes Torre
pode ser usada (di-hidrocloreto de trietileno
tetramida). Está também indicado o acetato de
zinco cujo efeito é bloquear a absorção intestinal
do cobre. De atender igualmente aos riscos Definição e importância do problema
decorrentes de alimentos cozinhados em material
de cobre e de água distribuída por canalização à A cirrose hepática, o estádio final de muitas doen-
base de cobre. ças hepáticas, é um processo de fibrose difusa em
Deverão ser evitados o chocolate, frutos secos, bandas ligando áreas centrais e portais, con-
mariscos e nozes pelo elevado teor em cobre. A duzindo à formação de nódulos parenquimatosos
transplantação hepática poderá estar indicada se com consequente distorção da arquitectura he-
ocorrer insuficiência hepática fulminante. pática, alteração das estruturas vasculares, desen-
volvimento de hipertensão portal e suas conse-
Prognóstico quências.
121
QUADRO 1 – Causas de hipertensão portal
Pré-hepáticas
Trombose da veia porta
Trombose da veia esplénica
Complicação Tratamento
Hemorragia por varizes esofágicas Octreotido intravenoso. Tamponamento com balão para controlar
hemorragia activa. O propranolol pode ser útil na prevenção de
hemorragias recorrentes. Escleroterapia ou laqueação de varizes.
Nos casos de hemorragia mantida está indi- Narayann-menon KV, Shah V, Kamath PS. The Budd Chiari
cada a administração de vasopressina ou de syndrome. NEJM 2004; 350: 578-584
análogos, com objectivo de aumentar o tono vas- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
cular esplâncnico e, consequentemente, o débito AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw -Hill
sanguíneo portal: bolus de 0,33U/Kg em 20 minu- Medical , 2011
tos, seguido por administração IV contínua Shneider BL, Abel B, Haber B, et al. Portal hypertension in
(0,2U/1,73m2/minuto). children and young adults with biliary atresia. JPGN 2012;
Com idêntica acção farmacológica pode 55:567-573
utilizar-se o octreotido (análogo da somatostatina) Shneider BL, Bosch J, de Franchis R, et al. Portal hypertension
IV na dose de 1-5 mcg/kg/hora. in children: Methodology of diagnosis and therapy.
Outra medida emergente é a aplicação do tubo Pediatr Transplant 2012; 16: 426-437
com balão para tamporamento (tubo de Walker WA, Goulet O, Kleinman RE (eds). Pediatric
Sengstaken-Blakemore). Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004
Outras medidas são referidas no mesmo
quadro, salientando-se que este tipo de problema
deverá ser tratado num centro especializado.
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CAPÍTULO 122 Insuficiência hepática aguda 599
122
QUADRO 1 – Causas de insuficiência hepática
aguda
Período neonatal
Infecciosa
Herpes vírus
INSUFICIÊNCIA HEPÁTICA Echovírus
Adenovírus
AGUDA Metabólica
Hemocromatose neonatal
Galactosémia
Maria de Lurdes Torre
Doenças mitocrondriais
Isquémia
Doença cardíaca congénita
Miocardite
Definição e importância do problema Asfixia grave
O Quadro 1 discrimina as principais causas de A destruição maciça dos hepatócitos pode ser
insuficiência hepatica aguda. Salienta-se que as explicada, quer por efeito citotóxico directo, quer
hepatites por vírus C e E são causas raras de por resposta autoimune/hiperimune aos anti-
insuficiência hepática fulminante na maioria das génios víricos.
séries publicadas. No que respeita a outros vírus Outros factores associados à lesão do hepa-
incluem-se: VEB, herpes simples, adenovírus, tócito incluem: alteração do processo de regenera-
enterovírus, CMV, parvovírus B19, varicela-zoster. ção, hipoperfusão sanguínea do parênquima,
De referir ainda as formas ditas idiopáticas que endotoxémia, e depressão da função do SRE.
explicam cerca de 40-50% dos casos pediátricos. O mecanismo da encefalopatia pode rela-
O mecanismo que conduz à insuficiência cionar-se com a hiperamoniémia, incremento da
hepática fulminante não está completamente actividade dos receptores de GABA e incremento
esclarecido, desconhecendo-se designadamente a de nivéis circulantes de compostos endógenos
razão pela qual somente em cerca de 1-2 % de formados, semelhantes a benzodiazepinas; todos
doentes com hepatite vírica surge o referido quadro. estes produtos têm o seu processo de depuração
600 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
123
cia hepática excepto a transplantação hepática.
O tratamento com a aplicação de medidas gerais
tem por objectivo a prevenção e tratamento das
complicações enquanto o doente aguarda a recupe-
ração espontânea, ou um dador compatível para a
referida transplantação hepática. Estes doentes
devem ser internados em unidades de cuidados TRANSPLANTAÇÃO HEPÁTICA
intensivos e encaminhados precocemente para
centros especializados. Isabel Gonçalves
Prognóstico
cida obterão apenas, com este procedimento uma transplantadas 155 crianças, a que correspondem
“ponte” para o transplante definitivo. 180 transplantes; estes incluem, desde 2001, 24
Até à data foram efectuados transplantes de casos com DV. A sobrevida global actual é de 84%,
hepatócitos num número reduzido de doentes com um seguimento em mediana de 10 anos. O
pediátricos com as seguintes patologias: doença de processo de transição para os adultos é efectuado
Crigler-Najjar, acidémias orgânicas e hepatites ful- entre os 17 e 18 anos, salientando-se que a maioria
minantes. Tecnicamente é um procedimento destes jovens tem uma boa qualidade de vida e
simples, seguro e pouco invasivo para o doente, já uma integração social plena.
que é apenas necessário inserir um cateter na veia
porta para injecção diária de uma suspensão de Indicações e contraindicações
hepatócitos (máximo 1x108 células / kg peso da
criança). Na prática a fundamentação é baseada na A atrésia das vias biliares extra-hepáticas
verificação de que em poucos dias os hepatócitos (AVBEH) constitui 40 – 50 % das indicações para
injectados no fígado receptor proliferam e são TH em idade pediátrica (80% se considerarmos a
capazes de substituir a função dos hepatócitos nati- faixa etária abaixo dos 2 anos). A falência hepática
vos. A médio-longo prazo esperava-se que as célu- aguda representa 10-15%, e o grupo das doenças
las injectadas se tornassem a população dominante, metabólicas, cerca de 20%. Os restantes 20%
assumindo as funções metabólicas deficitárias. englobam várias situações como colestases pro-
Tal como no transplante clássico, é necessário gressivas intra-hepáticas, tumores, hepatites víri-
usar imunossupressão em esquemas sobreponí- cas, hepatites autoimunes.
veis. De referir que a procura de fígados para As contraindicações absolutas têm vindo a
obter hepatócitos viáveis enferma dos problemas diminuir ao longo do tempo e actualmente dizem
da TH clássica, embora permita utilizar alguns respeito a: coexistência de sépsis e falência mul-
segmentos de parênquima que seriam eliminados tiorgânica nos casos de insuficiência hepática
por anomalias biliares ou vasculares. No trans- aguda ou crónica agudizada, disseminação
plante de hepatócitos o laboratório de células é metastática tumoral e lesão neurológica grave
uma estrutura fundamental e o maior investimen- associada. Os dados são ainda insuficientes para
to a ter em conta quando se opta por aceder a esta validar a indicação em doenças com envolvimen-
técnica em determinada instituição. Por este moti- to multissistémico como nas deleções de DNA
vo, raros centros na Europa a iniciaram, mantendo mitocondrial de expressão inicial hepática . Os
uma actividade clínica e de investigação nesta doentes com infecção pelo vírus VIH e as síndro-
área. Uma década passada sobre o uso deste pro- mas portopulmonares têm vindo a ser incluídos
cedimento em vários centros não permite manter com critérios restritos.
a euforia inicial já que vários mecanismos impe- No Quadro 1 estão representadas as principais
dem a fixação prolongada dos hepatócitos de indicações de TH em três centros europeus.
modo a libertar o doente totalmente da sua terapia
de base seja a fototerapia (C. Najjar 1) ou as dietas A avaliação pré-TH, peri
restritivas no caso de doenças metabólicas. e pós-operatória
Espera-se que as células progenitoras hepáticas
contornem este problema de manutenção e proli- A avaliação pré-TH pressupõe um diálogo dinâ-
feração de uma massa hepatocitária saudável e mico entre a instituição que referencia a criança e
permanente. o centro que procede à transplantação, tentando
prever em cada doente um ponto em que o risco
TH em Portugal na idade pediátrica do referido problema é inferior ao da espera em
lista. Constitui ainda uma oportunidade de
Em Portugal o TH pediátrico com DC foi iniciado revisão diagnóstica, identificação de possíveis
em 1994 em Coimbra pela equipa de Transplan- contraindicações , melhoria do estado nutricional
tação dos Hospitais da Universidade de Coimbra, e avaliação psicossocial da família. O estado nutri-
chefiada por A. Linhares Furtado. Até 2012 foram cional dos receptores condiciona grande parte da
604 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
morbilidade e mortalidade pós-TH , sendo funda- seguir) os principais problemas a destacar são a
mental a intervenção nesta área enquanto se incidência de tumores em particular os relaciona-
aguarda a cirurgia. dos com primoinfecção ou reactivação do vírus de
A cirurgia de transplantação é complexa, pro- Epstein-Barr (EBV). Este agente pode induzir,
longada (8-15 horas), inevitavelmente invasiva e sobretudo nas crianças com menos de 5 anos, a
seguida de várias complicações, com um padrão síndroma de proliferação desregulada de linfóci-
previsível no tempo. No entanto a maioria dos tos B, ou síndroma linfoproliferativa (acrónimo
Centros demonstra uma curva de aprendizagem PTLD). A incidência tem diminuído de 12 a 20 %
que reflecte sobretudo um menor tempo cirúrgico (máximo registado na década de 90) para 2 a 4%
e de isquémia do enxerto, a par da diminuição da graças ao uso de imunossupressão mais reduzida
necessidade de transfusão, factores que, em e a uma atitude de vigilância intensiva da carga
conjunto, permitem atingir 98 a 100% de sobrevi- vírica de EBV. A mortalidade é muito baixa quan-
da no primeiro ano pós transplante e uma quase do comparada com outros linfomas utilizando
ausência de PNF, acrónimo que significa ausência uma estratégia de abordagem baseada na sus-
primária de função de enxerto. pensão da imunossupressão (excepto corticóides)
uso de valgangiclovir por períodos prolongados e
Complicações protocolos modificados de quimioterapia.
Rejeição: A última década foi marcada por
As complicações precoces (até 3 meses) podem enormes avanços na área da imunossupressão. Na
subdividir-se em 2 períodos: A – fase de estadia em maioria dos centros os doentes pediátricos rece-
UCI, reflectindo o grau de função do enxerto, ava- bem imunossupressão dupla geralmente tacroli-
liada em termos de recuperação neurológica, mus (CNi, inibidor da calcineurina) e corticóide
valor de protrombinémia, alcalose ou acidose. ou anticorpos monoclonais (anti-receptor da IL2)
Podem ainda ocorrer insuficiência renal, hiper- e tacrolimus em dose diminuída, não usando cor-
tensão arterial grave, sépsis e falência multiórgão. ticóide. A evicção dos corticóides tem vantagens
B – fase pós-UCI, até 3 meses: 30% dos doentes são óbvias nos pacientes pediátricos mas os estudos
reoperados por: problemas vasculares (4 a 20%), mais recentes dividem-se quanto à possibilidade
biliares (15 a 30%), perfuração intestinal e perito- de terapias universais sem corticóide. Na verdade,
nite ou drenagem de coleções ou hematomas. As enxertos estáveis aos 5 anos , que passam a mono-
infecções com ponto de partida abdominal ou terapia com tacrolimus, podem agravar a fibrose
relacionadas com cateteres centrais são também nos 5 anos seguintes. Estudos multicêntricos alea-
muito frequentes (pelo menos um episódio em torizados são fundamentais para clarificar esta
60% dos doentes), apesar da profilaxia antibiótica questão, bem como para uma melhor racionaliza-
de largo espectro instituída na primeira semana. ção na prescrição dos novos imunossupressores
As complicações tardias (> 3meses): – Para disponíveis. A chamada e proclamada “imunossu-
além da rejeição e das hepatites auto /aloimunes pressão por medida” continua a ter protocolos
de novo (a que será feita referência especial a pouco baseados na evidência sobretudo pela falta
CAPÍTULO 123 Transplantação hepática 605
de marcadores biológicos e imunológicos que tra- tias e, simultaneamente, uma nova doença crónica
duzam, de forma mantida e confiável, o estado de com inúmeras complicações. Consegue-se, apesar
imunossupressão de cada paciente individual. de tudo, uma sobrevida de 90% a 95% no 1º ano
Apesar de persistirem algumas limitações na pós-cirurgia, estimando-se um acréscimo de mor-
compreensão e suporte teórico dos protocolos talidade/ano de 0,5 % nos anos subsequentes. O
actuais de imunossupressão assiste-se a uma objectivo primordial em termos de investigação é
redução da taxa de rejeição celular aguda nas pri- criar um imunossupressor que, actuando nas pri-
meiras 6 semanas ( de 50 para 30 % ), e a uma me- meiras horas ou dias pós-cirurgia permite uma
lhor abordagem da disfunção crónica de enxerto interacção “quimérica” vitalícia na relação enxer-
de causa desconhecida /imune. A taxa de rejeição to / receptor. Viver sem imunossupressão e me-
crônica mantém-se na taxa 3-5 %, mas a necessi- lhores marcadores desta relação imunológica
dade de retransplante precoce (< 6 meses) por parece ainda ser utópico quando relemos e reve-
rejeição crónica em doentes com boa adesão tera- mos tudo o que se publica nesta área. É aparente-
pêutica é substancialmente menor. mente um Futuro distante, mas a ciência sur-
Hepatites auto/aloimunes de novo: Em 4% dos preende-nos sempre.
doentes pode surgir no 2º ano pós TH uma dis- Do ponto de vista prático os grandes avanços e
função de enxerto , similar serológica e histologi- preocupações na área da transplantação já não são
camente à hepatite autoimune. Designa-se como técnicos, mas sim estabelecer modelos de inter-
autoimune de novo embora na verdade seja um venção que melhorem a qualidade de vida dos
processo aloimune. Pouco se sabe ainda da sua pequenos sobreviventes. Falamos de integração e
fisiopatologia, sendo o seu tratamento sobreponí- sucesso escolar, de métodos para facilitar a adesão
vel ao usado na hepatite autoimune (essencial- terapêutica (tão preocupante nos adolescentes), de
mente reforço da corticoterápia e reintrodução da fertilidade e de procriação. No fundo, a medicina
azatioprina ou de micofenolato de mofetil). de transplantação foi crescendo com os seus
pequenos doentes e atingiu a idade adulta. Mais
Seguimento uma vezes construir esta ponte é uma preocupa-
ção e um trabalho dos Pediatras. Sobreviver é uma
Em ambulatório as crianças são observadas sema- realidade crescente, mas é fundamental ajudar a
nalmente nos primeiros 3 meses. Progressiva- sobreviver (Viver) com qualidade e plena integra-
mente as consultas vão sendo alargadas, realizan- ção social e laboral. Parte deste trabalho é extra-
do-se em mediana, de 3 - 3 meses a partir do 1º hospitalar e vai exigir o apoio da comunidade
ano pós-cirurgia. Uma larga maioria (> 80%) tem onde o doente reside. Para tal há que ter tempo
uma vida activa e “quase normal” abstraindo que para formação e sensibilização desta segunda rede
se mantém a doença crónica, nomeadamente o de cuidados, tão essencial como a hospitalar.
“fantasma” da rejeição ou da disfunção crónica do
enxerto. As famílias têm muitas vezes muito
receio da integração escolar e social dos pequenos BIBLIOGRAFIA
transplantados. Tratando-se de crianças imunode- Anthony SJ, Pollock Barziv S, Ng VL. Quality of life after
primidas, salienta-se que as banais infecções da pediatric solid organ transplantation. Pediatr Clin North
comunidade, não se manifestam com incidência Am 2010; 57:559-574
mais elevada. Aujoulat I, Deccache A, Charles AS, Janssen M, Struyf C,
As vacinas de vírus vivo e vivo atenuado têm Pélicand J, Ciccarelli O, Dobbels F, Reding R. Non-adheren-
sido contraindicadas pós-transplante. Deve ser ce in adolescent transplant recipients: the role of uncertain-
feito um esforço de cumprir/antecipar o progra- ty in health care providers. Pediatr Transplant 2011; 15:148-
ma de vacinação no 1º ano de vida quando se 156
prevê que o transplante ocorra entre os 12 e 18 Broering DC, Kim JS, Mueller T, Fischer L, Ganschow R, Bicak
meses. T, Mueller L,Hillert C, Wilms C, Hinrichs B, Helmke K,
Em suma, o TH é uma terapia curativa para Pothmann W, Burdelski M, Rogiers X. One hundred thirty-
mais de 80 % das crianças com diversas hepatopa- two consecutive pediatric liver transplants without hospi-
606 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
124
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tation 2003; 27:735-738. ciadas a mutações genéticas), e a pancreatite autoi-
Venick RS, Farmer DG, McDiarmid SV, Duffy JP, Gordon SA, mune (cursando com elevação de gamaglobulinas,
Yersiz H, Hong JC,Vargas JH, Ament ME, Busuttil RW. de IgG ou IgG4 e a presença de autoanticorpos).
Predictors of survival following liver transplantation in A chamada PA recorrente é observada em
infants: a single-center analysis of more than 200 cases. cerca de 10% das crianças após um primeiro
Transplantation 2010; 89: 600-615 episódio de PA sendo mais frequente em crianças
com alterações estruturais, ou associada a doença
CAPÍTULO 124 Pancreatite 607
hereditária (anteriormente referida) e outras formas imagiológico, salientando-se que, entre estes três
de pancreatite que ocorrem em famílias com uma parâmetros, se exige pelo menos a positividade de
incidência de PA superior à da população em dois, incluindo sempre a amilase ou a lipase
geral. A forma hereditária relaciona-se com séricas (pelo menos 3 vezes o limite superior do
mutações do gene PRSS1 levando a auto-activação normal), constitui ainda o parâmetro biológico
da tripsina e outras enzimas nas células acinares. mais clássico. No entanto, em cerca de 10-15% dos
Nos últimos anos alguns factores genéticos tais casos, ambas as enzimas podem evidenciar
como mutações no gene do tripsinogénio catióni- inicialmente níveis normais coincidindo com
co (PRSS1), mutações do CFTR (cystic fibrosis sinais clínicos e radiológicos de PA. De referir que
transmembrane conductance regulator), e mutações valores mais elevados não estão relacionados com
no inibidor da tripsina pancreática (serine protease a etiologia, gravidade ou prognóstico da doença.
inhibitor, Kazal type 1- SPINK1) foram identifica- A amilasémia está elevada quando surgem os
dos como importantes na génese da pancreatite. primeiros sintomas e assim permanece na maioria
Apesar de a pancreatite idiopática ser ainda a dos casos durante 5 a 10 dias. Por sua vez, o
pancreatite mais frequente, à medida que, cada doseamento urinário da amilase está aumentado
vez mais, exames genéticos e do foro imunológico em todas as situações de hiperamilasémia, mas tal
estejam disponíveis, a percentagem de crianças aumento é mais tardio.
com pancreatite familiar ou associada a mutações Sendo a lipase quase exclusivamente sinteti-
genéticas e de causa autoimune irá seguramente zada pelo pâncreas, as respectivas sensibilidade e
aumentar. especificidade são superiores às da amilase. Está
aumentada no início da pancreatite e permanece
Manifestações clínicas elevada durante mais tempo (respectivamente 8-
14 dias versus 1-4 dias).
A dor abdominal é o sintoma mais frequente. Salienta-se, a propósito, que a amilasémia pode
Geralmente de início súbito, intensa e localizada estar aumentada, entre outras afecções, na
ao epigastro pode, contudo, ser gradual, constante parotidite, anorexia nervosa, bulimia, litíase biliar,
ou intermitente, difusa ou localizada noutros perfuração de úlcera péptica, e certas doenças
quadrantes. A irradiação típica para o dorso sistémicas (acidose metabólica, insuficiência renal,
referida nos adultos é observada em apenas 10% a queimadura, traumatismo craniano). Quanto à
30 % das crianças. Os sintomas acompanhantes lipasémia, o seu aumento pode verificar-se em
mais comuns são os vómitos, as náuseas e a situações como úlcera péptica, esofagite,
anorexia. As refeições são um factor agravante da isquémia/obstrução intestinal, colecistite aguda, etc.
dor e dos vómitos. Outras enzimas como a fosfolipase A2, a tri-
O achado mais frequente é a dor abdominal psina, a elastase, a proteína específica do pâncreas
aguda, especialmente na região epigástrica, por (PSP), e a proteína associada à pancreatite (PAP),
vezes irradiando para a região dorsolombar. O estão elevadas na PA, mas não têm superioridade
abdómen pode estar distendido, com diminuição diagnóstica em relação à amilase ou à lipase.
dos ruídos hidro-aéreos (quadro de íleo Observa-se frequentemente leucocitose, au-
paralítico). A criança assume muitas vezes uma mento das transaminases, hiperglicémia, hipocal-
posição anti-álgica, com flexão dos joelhos e das cémia, hiperbilirrubinémia, elevação da fosfatase
ancas. Febre baixa, taquicárdia, hipotensão e alcalina e da glutamil transpeptidase (GGT).
icterícia, podem estar presentes. Equimoses nos A IgG4, quando elevada, sugere mecanismo
flancos (sinal de Grey Turner) ou na região autoimune.
periumbilical (sinal de Cullen), são raramente A ecografia endocóspica e a tomografia com-
observadas nas pancreatites hemorrágicas graves. putadorizada (TAC) abdominais são os exames
mais usados para documentar a PA, determinar a
Diagnóstico gravidade e identificar complicações. Os achados
ecográficos mais frequentes são o aumento de
O diagnóstico de PA é clínico, laboratorial e volume do pâncreas e a diminuição da ecoge-
CAPÍTULO 124 Pancreatite 609
nicidade. A TAC é o exame radiológico de escolha Contudo, estudos recentes revelam que a nutrição
para avaliar a gravidade e detectar complicações entérica por sonda jejunal é bem tolerada. As
quando a doença se prolonga. De salientar que complicações implicam vigilância clínica rigorosa.
uma TAC com contraste realizada precocemente
no início da doença pode diminuir o fluxo san- Complicações e prognóstico
guíneo às áreas já isquémicas e, deste modo,
aumentar as regiões de necrose. Nos casos de PA não complicada verifica-se em
A colangiopancreatografia retrógrada endos- geral recuperação em 4-5 dias.
cópica (CPRE) ou a colangiopancreatografia por Durante a primeira semana as potenciais
ressonância magnética (MRCP) devem ser reali- complicações são em geral as sistémicas: hipergli-
zadas apenas nos casos de episódios recorrentes cémia, hipocalcémia, hiperlipidémia, hipercalié-
de pancreatite, na suspeita de defeito estrutural, mia, acidose metabólica e coagulação intravas-
de distorção ou ruptura ductal e, nalguns casos, cular disseminada.
de pancreatite litiásica. As complicações tardias ocorrem após a se-
Em 30% dos casos, a radiografia simples do gunda semana de doença e incluem os pseudo-
abdómen evidencia o clássico sinal da “ansa quistos e os abcessos. O risco de se desenvolver
sentinela”. quisto ou pseudoquisto é maior na PA causada
por traumatismo abdominal (39%) do que naque-
Tratamento las com outras causas (5%).
As manifestações clínicas dos pseudoquistos
O tratamento da PA, essencialmente de suporte, são dores abdominais com náuseas e vómitos e,
depende da gravidade da doença. mais raramente, icterícia. Uma massa epigástrica é
Os critérios de gravidade estabelecidos para os muitas vezes palpável. A ecografia permite o
adultos não são aplicáveis na idade pediátrica. diagnóstico.
Recentemente, o Midwest Multicenter Pancreatic A remissão espontânea dos pseudoquistos é
Study Group, baseado nos critérios de Ranson e frequente, mas estão descritas complicações:
Glasgow, propôs um índice de gravidade para a abcesso, hemorragia, fístulas e ruptura. A punção
criança atribuindo 1 ponto a cada um dos percutânea sob controle ecográfico pode permitir
seguintes parâmetros: idade (< 7 anos), peso (< 23 a evacuação definitiva do quisto; por vezes é
Kg), leucocitose (> 18.500/mmc), lactato-desi- necessário tratamento endoscópico ou cirúrgico.
drogenase (> 2.000 IU/L), sequestração de fluidos
durante 48 horas (> 75ml/Kg/48h), ureia elevada BIBLIOGRAFIA
durante 48 horas, PA associada a doença sistémica Benifla M,Weizman Z. Acute pancreatitis in childhood:
grave. analysis of literature data. J Clin Gastroenterol 2003; 37:
Das crianças com 0 a 2 pontos, 8.6% têm PA 169-172
grave com mortalidade de 1.4%. Com 2 a 4 pontos, Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
38.5% têm PA grave e mortalidade de 5.8%. Com 5 De Banto JR, Goday PS, Pedroso MRA, et al. Acute pancreatitis
a 7 pontos 80% têm PA grave e mortalidade de in children. Am J Gastroenterol 2002; 97: 1726-1731
10%. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
As crianças com PA grave devem ser tratadas Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
em unidades de cuidados intensivos. Saunders, 2011
A terapêutica da PA ligeira a moderada inclui: Lautz TB, Chin AC, Radhakrishnan J. Acute pancreatitis in
analgesia (meperidina 1 a 2 mg/Kg por via intra- children: spectrum of disease and predictors of severity. J
muscular ou endovenosa), fluidos endovenosos e Pediatr Surg 2011; 46: 1144-1149
“descanso” da glândula. Nas formas autoimunes, Lowe ME, Greer JB. Pancreatitis in children and adolescents.
independentemente dos valores de IgG4, há Curr Gastroenterol rep 2008; 10: 128-135
resposta à corticoterapia. Makola D, Krenitsky J, Parrish C, et al. Efficacy of enteral
Até há relativamente pouco tempo a nutrição nutrition for the treatment of pancreatitis using standard
parentérica total era considerada a única opção. enteral formula. Am J Gastroenteral 2006; 101: 2347-2355
610 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Aspectos epidemiológicos
126
noutro, são elucidativos. O primeiro estudo foi
feito nos EUA e o segundo nos países nórdicos.
Em ambos, as populações estudadas em que tinha
sido suspenso o tratamento havia pelo menos 5
anos, estavam sem doença. Curiosamente os
resultados são sobreponíveis nos dois grupos e
mostram que 10% destes ex-doentes virão a fale- TUMORES, AMBIENTE
cer nos anos seguintes, a maior parte por recidiva
tumoral (cerca de 67%), outros por segundas neo- E GENÉTICA
plasias (12%), outros por toxicidade do tratamen-
to (8%) e os restantes por causas diversas não rela- Mário Chagas
cionadas com a doença ou o tratamento. Nestes
estudos verificou-se que 90% dos antigos doentes
estão vivos, sem doença, e com padrões de vida
muito semelhantes a grupos testemunha. Influência do ambiente
molecular e não em genética convencional. Sucede ça, convém notar, contudo, que estes casos são
que estes mesmos rearranjos genéticos são excepcionais e que para a maioria dos tumores
descritos como característicos de neoplasias pediátricos a relação com supostos factores
secundárias da criança mais velha e do adulto, ambientais não se conseguiu ainda estabelecer.
que foram tratados alguns anos antes, para uma
primeira neoplasia, com citostáticos dos grupos Genética
das epipodofilotoxinas ou das antraciclinas. O que
há de comum entre as epipodofilotoxinas e as Na génese dos tumores intervêm fundamental-
antraciclinas é que são ambas inibidoras da topoi- mente três tipos de genes: 1) os genes supressores
somerase II. Ora, algumas substâncias químicas dos tumores; 2) os oncogenes, derivados dos
entram ainda que em pequenas doses na indústria proto-oncogenes, que promovem a transformação
alimentar, e alguns antibióticos de uso corrente, maligna de determinadas células; e 3) os genes
do grupo dos inibidores da topoisomerase II, que promovem a estabilidade e a reparação do
poderão fazer parte da dieta ou da prescrição ADN.
medicamentosa da grávida. Naturalmente que Os genes supressores dos tumores (designada-
nem todas as grávidas que se expõem a estas subs- mente GST, TSG ou PTEN) em situações de nor-
tâncias durante a gestação terão um filho com malidade controlam a proliferação celular e pro-
leucemia. Admite-se ter de haver uma predis- movem a apoptose (morte celular programada).
posição genética na mulher grávida que a tornará Se houver inactivação de ambos os alelos de um
particularmente sensível a estes fármacos. TSG por mutação ou deleção, surgirá proliferação
O terceiro exemplo diz respeito a substâncias celular descontrolada, contribuindo para a for-
químicas que, consumidas ou usadas durante a mação de tumores. A disfunção do gene PTEN
gravidez, são implicadas no aparecimento de neo- origina um conjunto de doenças com elevada vari-
plasias no filho, tais como a marijuana, o álcool, o abilidade de expressão clínica – nomeadamente
benzeno e os pesticidas. genética – e pleiotropismo (síndromas tumorais
À semelhança do adulto, também algumas PTEN com hamartoma ou PHTS). O protótipo das
infecções víricas estão na origem de certas formas PHTS é a síndroma de Cowden em que se verifica
de cancro na criança: são bem conhecidas as elevada susceptibilidade a cancro da tiróide,
relações entre a infecção pelo vírus da hepatite B e mama e endométrio. Os oncogenes normalmente
o carcinoma hepatocelular, pelo vírus do papilo- potenciam a proliferação celular, sendo que a
ma (HPV) e o cancro do colo do útero, e as mutação de um só alelo é suficiente para produzir
relações entre o vírus de Epstein Barr e o linfoma crescimento celular descontrolado. Por outro lado,
de Burkitt africano ou a doença de Hodgkin. os genes de reparação e estabilidade do ADN, se
Finalmente, a relação entre as radiações ioni- forem inactivados, permitirão que as células por-
zantes e as neoplasias é conhecida desde o final do tadoras de ADN alterado se transformem em célu-
século dezanove (Marie Curie terá falecido com las malignas e proliferem.
leucemia). Ficaram tristemente célebres as crian- Abordando aspectos básicos de genética asso-
ças que, após irradiação do crânio para tratamen- ciados à oncologia, terá interesse para o clínico
to de infestação por pedículos capitis, surgiram com conhecer o significado da sigla da língua inglesa –
tumores do SNC ou que, após irradiação dum MEN, muitas vezes citada na literatura: neoplasia
timo hiperplásico, surgiram com tumores deste endócrina múltipla. Tal conceito integra 3 dife-
órgão. rentes doenças: MEN tipo 1(MEN 1) causada por
Actualmente o oncologista moderno conhece mutação no gene supressor; e MEN 2A e MEN 2B,
bem o risco de incidência de tumores das partes causadas por mutações no proto-oncogene (desi-
moles, do osso, ou do SNC, em crianças previa- gnado RET). Como exemplo prático, e relativa-
mente irradiadas para tratamento de neoplasias mente ao feocromocitoma, a situação de MEN 2A
anteriores. comporta um risco deste tumor ~ 50%, e a de
Se os factores ambientais acima referidos são MEN 2B superior a 50%.
hoje associados à génese das neoplasias da crian- Há tumores de transmissão hereditária em que
616 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
é possível encontrar história familiar: é o caso do frequência na última década, em leucemias, linfo-
retinoblastoma e de certos adenocarcinomas da mas e tumores sólidos.
tiroideia de tipo medular em que, (40%, e 50 a 80% Com o novíssimo advento da genética molecu-
dos casos, respectivamente), há antecedentes de lar percebeu-se que estas alterações são respon-
igual doença num dos progenitores. sáveis por rearranjos do material genético, típicos
Há famílias em que a incidência de determi- de cada tumor, e com importância na oncogénese.
nadas neoplasias é muito superior à da população Os progressos obtidos nesta nova ciência torna-
em geral. Cita-se a síndroma de Li- Fraumeni em ram-se tão importantes que actualmente muitos
que a frequência de leucemia, de tumores das diagnósticos são feitos, não pelos métodos clássi-
partes moles, nomeadamente rabdomiossarcoma, cos da morfologia e imunocitoquímica, mas por
e de carcinoma da mama é em várias gerações da Genética.
mesma família muito superior à habitual. À medida que os conhecimentos em Genética
Há crianças com determinadas alterações vão progredindo, novas noções sobre oncogénese
genéticas em que há maior incidência de neo- vão surgindo, ultrapassando o âmbito deste capí-
plasias. É o que sucede na síndroma de Down em tulo.
que o risco de aparecimento de leucemia é vinte Justifica-se, no entanto, fazer referência à teo-
vezes superior ao das outras crianças. É também o ria de Greaves, pela visão global que lança sobre
caso da síndroma WAGR, síndroma caracterizada as eventuais causas de uma forma “nova” de
por aniridia e atraso do desenvolvimento intelec- leucemia aguda da criança, que poderá ser con-
tual, em que é muito grande a probabilidade de siderada como paradigma da oncogénese.
tumor do rim (tumor de Wilms). É ainda o que Nos países ocidentais regista-se um pico de
sucede nas síndromas de instabilidade cro- incidência de leucemia aguda linfoblástica na
mossómica como a síndroma de Bloom, a ataxia- criança entre os dois e os quatro anos de idade,
telangiectasia e a anemia de Fanconi, em que a não descrito noutras zonas do mundo. Trata-se de
ocorrência de linfomas é superior à da população uma leucemia particularmente quimiossensível e,
pediátrica em geral. portanto, de melhor prognóstico. Curiosamente,
Em todos os casos acima referidos há altera- esta forma particular de leucemia da criança,
ções genéticas que predispõem para o apareci- descrita pela primeira vez na Grã-Bretanha no
mento de neoplasias por mecanismos ainda mal final da década passada de 40, só foi encontrada
conhecidos. nos EUA na década de 60, primeiro nas crianças
Nas últimas décadas foram-se descrevendo de raça branca, e só depois nas crianças de raça
alterações genéticas nas células tumorais, não ve- negra, tendo atingido apenas nos anos 80 o Japão.
rificadas nas células normais. Algumas dessas A teoria de Greaves admite como possível uma
alterações são aleatórias, traduzindo apenas uma relação entre o aparecimento deste tipo novo de
grande instabilidade genética e, portanto, sem sig- leucemia e alterações registadas na vida das crian-
nificado particular. Outras são, no entanto, especí- ças destes países, a partir do final da segunda
ficas e têm hoje importância no diagnóstico, guerra mundial. Assim, o parto hospitalar em
prognóstico e compreensão da génese do tumor. condições de assepsia em substituição do parto no
A primeira alteração genética característica de domicílio, o curto período de aleitamento materno
uma neoplasia foi descrita na década de sessenta e sua substituição por leites dietéticos, a redução
do século passado. Trata-se de uma translocação das fratrias e a substituição precoce do ambiente
entre o cromossoma 9 e o cromossoma 22 no clone familiar pelo ambiente do infantário, condiciona-
celular da leucemia mielóide crónica. Este cro- riam uma anormal estimulação dum sistema imu-
mossoma recebeu o nome de Philadelphia em ho- nitário ainda imaturo que levaria à neoplasia.
menagem à cidade onde foi inicialmente descrito. Mais recentemente verificou-se que muitas
Muitas outras alterações cromossómicas estrutu- crianças com este tipo «novo» de leucemia apre-
rais (translocações, deleções) e quantitativas, ou sentam no seu clone leucémico uma translocação
seja com variação do número de cromossomas, se envolvendo os cromossomas 12 e 21, a t (12;21), o
foram descrevendo posteriormente, com maior que condiciona uma fusão dos genes TEL e AML1.
CAPÍTULO 127 Aspectos básicos do diagnóstico oncológico 617
127
Greaves demonstrou, através do exame do
sangue destas crianças armazenado nos cartões de
papel de filtro, (usados para o diagnóstico precoce
de certas doenças no período neonatal e que con-
têm sangue capilar), que esta t (12;21) era já detec-
tável à nascença, ou seja, 2 a 4 anos antes de as
mesmas adoecerem. Verificou-se posteriormente
que apenas cerca de 1% das crianças nas quais é ASPECTOS BÁSICOS DO
detectada esta translocação no período neonatal
adoecerá, de facto, com leucemia, admitindo-se, DIAGNÓSTICO ONCOLÓGICO
assim, ser necessário outro ou outros factores
(infecciosos, na teoria de Greaves) para continuar o Mário Chagas
processo de oncogénese.
A teoria multifactorial desenvolvida por este
autor para explicar a génese deste tipo de
leucemia já era aplicada a outras neoplasias como Manifestações clínicas
o retinoblastoma. Na verdade, segundo a teoria
de Knudson, são necessárias duas deleções suces- Os sinais e sintomas dos tumores da criança são
sivas no cromossoma 13 para que o retinoblas- em geral incaracterísticos, pelo que poderá haver
toma surja. Se ambas as mutações ocorrerem um período de latência relativamente longo entre
numa célula somática da retina, o tumor é o início das manifestações e o diagnóstico, que
esporádico, unilateral e mais tardio. Se a primeira pode ser de semanas ou, nalguns casos, de meses.
mutação se der na célula progenitora, e a segunda Uma das características da maioria dos
na célula somática da retina, o tumor é hered- tumores da criança é a de serem embrionários,
itário, muitas vezes bilateral, e surge muito preco- derivados da mesoderme ou da neuroectoderme
cemente nos primeiros meses de vida. sendo por isso, do ponto de vista histológico, sar-
Reportando-nos ao papel dos genes, (onco- comas. Por este facto, a sua localização raramente
genes e genes supressores) cabe referir que o HPV se verifica num órgão específico, ao contrário do
19 induz transformação maligna inactivando o que acontece com os tumores do adulto que são
gene supressor do tumor. predominantemente carcinomas de um determi-
O desenvolvimento do cancro pode ainda nado órgão. Há, naturalmente, excepções, como o
estar ligado ao imprinting do genoma que consiste retinoblastoma, quase sempre localizado no globo
na inactivação selectiva de um de dois alelos de ocular, ou o osteossarcoma que é o tumor ósseo
certo gene. mais frequente, ou ainda o tumor de Wilms, loca-
Verifica-se, assim, haver uma relação entre lizado habitualmente num rim. Mas o rabdomios-
Genética e ambiente, aspecto subjacente na onco- sarcoma e outros sarcomas das partes moles, o
génese da generalidade dos tumores pediátricos, sarcoma de Ewing/PNET, o neuroblastoma, os
desconhecendo-se, no entanto, muitos dos meca- teratomas e muitos outros tumores designados
nismos íntimos de tal relação. por “sólidos”, podem ter topografia diversa,
sendo a sua sintomatologia variável consoante a
sua localização.
Nestes tumores sólidos a primeira manifes-
tação resulta, em regra, de um efeito de massa que
o tumor exerce sobre as estruturas adjacentes:
assim, o crescimento do tumor provoca dor, quer
por compressão das raízes nervosas vizinhas,
quer por estiramento da cápsula do órgão que o
contém; pode induzir alterações neurológicas
focais, quer por lesão de raízes nervosas, quer por
618 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
128
material permitem, muitas vezes, um diagnóstico
seguro. Nos tumores de localização profunda esta
punção terá que ser feita com controlo imagiológi-
co e o doente anestesiado.
Nalguns casos a colheita de líquido ascítico ou
pleural permite obter um número suficiente de
células neoplásicas para se fazer o diagnóstico,
como sucede frequentemente nos linfomas. ASPECTOS BÁSICOS
Outras vezes o material obtido é insuficiente e
torna-se necessário recorrer a biópsia. DO TRATAMENTO
Por qualquer destes meios, o material colhido
é estudado em microscopia óptica e caracterizado ONCOLÓGICO
por técnicas de imunofenotipagem, de genética e
biologia molecular e, por vezes, de microscopia Mário Chagas e Ana Teixeira
electrónica; desta forma é possível obter infor-
mações conducentes a um diagnóstico seguro e
identificar factores prognósticos que permitam
optar pela terapêutica mais adequada. Generalidades
outro lado, podem conduzir a desequilíbrio hidro- das leucemias) ou ser consequência da quimiote-
electrolítico grave e a má-nutrição. rapia. A incidência de infecções aumenta de forma
Há, todavia, antieméticos muito potentes que inversamente proporcional ao número de neutró-
ultrapassam estas complicações com relativa facil- filos, considerando-se risco grave de infecção se se
idade. Preferencialmente, a terapêutica anti- verificar número absoluto de neutrófilos inferior a
emética deve ser instituída antecipadamente, 0,5 x 109/L. As infecções são a complicação mais
antes da quimioterapia, e não apenas após o início grave e a principal causa de morte durante a
dos sintomas. Os antieméticos mais utilizados em quimioterapia, exigindo um elevado nível de sus-
oncologia pediátrica são os antagonistas da sero- peição clínica, atendendo a que os sinais e sin-
tonina e a metoclopramida, podendo combinar-se tomas inflamatórios clássicos podem estar
com a dexametasona e uma benzodiazepina de ausentes em doentes neutropénicos. Sempre que o
forma a obter potenciação de efeitos. A duração da nível de neutropénia o justifique, estes doentes
terapêutica antiemética deve prolongar-se pelo devem ser isolados, evitando-se o contacto com
menos 24 horas após a administração de citostáti- fontes exógenas potencialmente infectantes.
cos muito emetizantes, como sejam a cisplatina, a Como foi já referido anteriormente, a integridade
ifosfamida e o melfalan. da mucosa digestiva deve ser preservada através
A mucosite, sobretudo a nível da orofaringe, de uma correcta higiene oral e peri-rectal; é igual-
esófago e mucosa intestinal, é um dos efeitos mente importante evitar a utilização de termóme-
secundários mais vulgarmente observados mani- tros por via rectal, assim como a administração de
festando-se por secura e palidez das mucosas, supositórios e enemas em doentes neutropénicos.
aparecimento de placas esbranquiçadas, ulcera- Nas crianças com cateteres venosos centrais os
ções, disfagia, dores abdominais, diarreia e proc- cuidados de assépsia devem ser rigorosos em
tite. Os fármacos mais frequentemente implicados todas as manipulações do cateter, aplicando-se o
são as antraciclinas, a citosina-arabinosido, a acti- mesmo princípio em todos os procedimentos que
nomicina D e o metotrexato em alta dose. Nos impliquem lesão da barreira cutânea, como
doentes pancitopénicos a lesão da mucosa do tubo punções venosas, lombares ou biópsias ósseas.
digestivo pode funcionar como “porta de entra- A imunossupressão a que estão sujeitas pela
da” para infecções oportunistas potencialmente quimioterapia, impede que estas crianças sejam
graves, sobretudo fúngicas e bacterianas (E. coli, imunizadas, particularmente com vacinas vivas; e,
Klebsiella e Pseudomonas). É importante que as se os seus irmãos tiverem que ser vacinados contra
crianças que recebem quimioterapia mantenham a poliomielite, deverão sê-lo usando uma estirpe
hábitos regulares de higiene oral, com utilização morta. Na verdade, a vacina viva permitindo a
de escovas suaves e dentífricos adequados. A tera- eliminação do vírus pelas fezes, pode ter conse-
pêutica com nistatina tópica é eficaz nas situações quências neurológicas graves no doente. Problema
de mucosite fúngica por Candida, podendo ser idêntico se põe com a vacina contra a varicela, já
necessária, em casos mais graves, a utilização de que as lesões exantemáticas que podem surgir na
antifúngicos sistémicos, antibióticos e antivíricos criança vacinada são contagiosas (Capítulo 274).
nas crianças neutropénicas febris. Quando as crianças frequentam escolas, (e
As queixas álgicas causadas pela mucosite não devem ser incentivadas a fazê-lo fora dos períodos
devem ser negligenciadas, uma vez que podem de neutropénia), os pais e médicos responsáveis
perturbar francamente o bem-estar da criança e o devem ser imediatamente avisados sobre o contac-
seu estado nutricional. Devem ser utilizados anal- to com crianças com varicela ou sarampo, doenças
gésicos de acordo com a gravidade da situação que podem ter um efeito devastador, a fim de
clínica que incluem, desde anestésicos tópicos, até serem tomadas medidas de suporte adequadas.
perfusões sistémicas de opiáceos; deve igual- Nas situações de trombocitopénia grave,
mente ser instituída uma dieta de consistência e sobretudo se o número de plaquetas for inferior a
conteúdo adequados. (ver adiante) 10-15 x 109/L, o risco de hemorragia gastrintesti-
A depressão medular pode resultar da pro- nal e do sistema nervoso central é elevado. Estas
gressão da doença oncológica em si (como no caso crianças devem evitar actividades físicas que pos-
CAPÍTULO 128 Aspectos básicos do tratamento oncológico 625
sam causar traumatismos, assim como fármacos incidência variando entre 3% a 22%, poderá surgir
que interfiram com o número e actividade das pla- insuficiência renal e morte.
quetas, como o ácido acetilsalicílico e o ibupro- As medidas profiláctico-terapêuticas incluem,
feno. Sempre que se julgue necessário, a tromboc- para além de elevado índice de suspeita)
itopénia deve ser corrigida através da transfusão hidratação, alcalinização da urina (pH entre 7 e
de concentrado plaquetário (geralmente, 1 7,5), alopurinol (ou, em alternativa, rasburicase).
Unidade / 10 kg de peso). A transfusão de pla-
quetas associa-se com frequência a reacções carac- Radioterapia
terizadas por febre e tremores, o que se obvia com
a irradiação sistemática do material transfundido A radioterapia consiste na administração de radia-
e com a utilização de terapêutica prévia com ções ionizantes com o objectivo de destruir as
hidrocortisona e clemastina. (ver Parte XVIII) células tumorais, por lesão directa a nível do
A anemia é um problema comum nas crianças DNA, e por acção indirecta através da ionização
com doença neoplásica sob tratamento. A decisão da água intracelular, o que causa a formação de
de transfundir (geralmente, 10 ml de concentrado radicais livres tóxicos.
eritrocitário / kg peso) deve ter em conta, não só Pode ser administrada: externamente (a forma
os critérios definidos por cada instituição, mas mais habitual) sendo o feixe de radiações emitido
também os sinais e sintomas que a criança apre- a uma determinada distância do doente; ou inter-
sente tais como, hemorragia activa, cansaço namente (braquiterapia), a partir de uma fonte de
extremo ou dispneia. Os mesmos cuidados de radiações colocada no tumor.
irradiação do produto a transfundir e de terapêu- Um terceiro tipo de técnica consiste na
tica prévia atrás indicados devem ser tomados. administração sistémica de um radioisótopo que é
A alopécia é um dos efeitos secundários da captado preferencialmente pelas células tumorais,
quimioterapia mais frequentemente observados como é exemplo a 131I-metaiodobenzilguanidina
(sobretudo com as antraciclinas, a actinomicina, o (MIBG terapêutica) em certos estádios de neuro-
etoposido e os agentes alquilantes). Habitual- blastoma.
mente, é reversível com o fim da terapêutica cito-
tóxica. Efeitos secundários da radioterapia
Tem sido descrito o aparecimento de tumores
secundários, principalmente após a administração As radiações ionizantes lesam todas as células,
de citostáticos alquilantes, epipodofilotoxinas e tumorais e não tumorais, dentro do território irra-
antraciclinas, diagnosticando-se alguns anos após diado. Os efeitos secundários dependem do tipo
a utilização destes fármacos. São habitualmente de radiação, da dose, da duração do tratamento,
leucemias mieloblásticas agudas ou linfomas não da região anatómica, do volume corporal exposto
Hodgkin, as primeiras por vezes precedidas por e da tolerância individual. A pele, o couro cabelu-
síndromas mielodisplásicas. O prognóstico é geral- do, a medula óssea e o tracto gastrintestinal são
mente muito reservado. especialmente sensíveis às radiações. No entanto,
A síndroma de lise tumoral (SLT) é uma os efeitos adversos tendem a desaparecer após o
emergência oncológica grave e potencialmente término da radioterapia, pela capacidade de reno-
fatal se não for tratada, resultante da destruição vação/cicatrização destes tecidos. Pelo contrário,
maciça de células malignas com elevado potencial órgãos com limitada replicação celular, como o
mitótico/proliferação rápida (por ex linfoma encéfalo, a medula espinal, o coração e os rins,
Burkitt e leucemia de células T) sendo classica- podem sofrer lesões que tendem a aparecer mais
mente associada à quimioterapia. Como resultado tardiamente e a ser irreversíveis. A idade da crian-
surgem hiperuricémia, hiperpotassémia podendo ça é igualmente um factor importante, já que
originar arritmia, hiperfosfatémia, hipocalcémia, quando um órgão é irradiado durante a sua fase
esta última podendo originar quadro de hiperx- de crescimento, as sequelas são mais graves. São
citabilidade/tetania. Poderá surgir hipercalcémia exemplos as assimetrias de crescimento dos ossos
por destruição óssea. Sendo descrita com uma irradiados antes do encerramento das cartilagens
626 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
129
entre os 2 e os 4 anos, que corresponde a uma
forma particular de leucemia com características
fenotípicas (linhagem B, CALLA +) e de quimios-
sensibilidade particulares, que lhe conferem um
bom prognóstico. São menos frequentes antes ou
depois deste grupo etário: no adolescente a LLA
de linhagem T é mais habitual; pelo contrário, no
LEUCEMIAS lactente predomina a LLA de linhagem B, muito
indiferenciada e, em regra, de mau prognóstico.
Mário Chagas A LMA tem um pico de incidência ao longo dos
dois primeiros anos de vida, altura em que é quase
tão frequente como a LLA, tornando-se depois
menos frequente (15 a 25% das LA), só voltando a
Definição e aspectos aumentar de frequência na adolescência.
epidemiológicos
Etiopatogénese
As leucemias podem ser definidas como um
grupo de doenças malignas provocadas por ano- O capítulo 126, dedicado ao Ambiente e Genética
malias genéticas de células precursoras hemato- resume os conhecimentos actuais sobre a oncogé-
poiéticas, do que resulta proliferação clonal anár- nese em geral, referindo os aspectos particulares
quica, com diferenciação e maturação anormais de relacionados com as leucemias. Como foi aí referi-
células (clone leucémico). Poderá tratar-se de uma do, para a generalidade das neoplasias e também
célula precursora hematopoiética, quer da lin- para a generalidade das leucemias não há uma
hagem linfóide, T ou B (leucemia linfoblástica causa identificada. Em situações muito pontuais,
aguda, LLA T ou LLA B), quer da linhagem identificam-se certos agentes microbianos víricos,
mielóide (leucemia mieloblástica aguda, LMA). químicos, e radiações ionizantes, bem como
As células que constituem o clone leucémico alterações genéticas, que se encontrarão envolvi-
têm uma taxa aumentada de proliferação e uma dos na génese das leucemias.
taxa diminuída de apoptose espontânea, o que A proliferação incontrolada do clone leucé-
leva a disfunção e falência da medula óssea. mico num espaço fechado como é aquele em que
As leucemias agudas (LA) representam cerca está contida a medula óssea, a sua incapacidade
de um terço das neoplasias da criança. de diferenciação e maturação em células hemato-
Cerca de três quartos das leucemias das crianças são poiéticas normais, e a disseminação por via san-
linfoblásticas agudas, sendo as restantes mieloblásticas guínea com fixação noutros orgãos, traduzem-se
agudas. As leucemias mielóides crónicas são muito nas manifestações típicas das leucemias agudas
raras na criança. As leucemias linfocíticas crónicas descritas a seguir.
não se verificam.
A incidência anual de novos casos de leucemia Manifestações clínicas e exames
aguda nos países ocidentais é cerca de 40 por mi- de imagem nas LA
lhão de crianças com menos de quinze anos. No
nosso País estima-se que haverá cerca de 60 a 70 As manifestações clínicas das LA são fundamen-
casos novos por ano. Destes, aproximadamente 50 talmente:
serão leucemias linfoblásticas agudas. • Dor: tipicamente nos ossos longos ou na
O Quadro 2 do capítulo 125 mostra a casuísti- região lombar, corresponde à localização da
ca do Serviço de Pediatria do IPOFG de Lisboa re- medula óssea. A criança tem alguma dificuldade
ferente a 3 anos. em a localizar com precisão. Ela não está relacio-
A LLA tem um pico de incidência máximo nada com os movimentos e as articulações não
apresentam, em regra, sinais inflamatórios. Por
* M3, M4, M5 (ver explicação adiante) vezes é incapacitante e pode ser a única manifestação
628 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
durante algum tempo, levando ao diagnóstico dife- Numa radiografia do tórax pode encontrar-se uma
rencial com doenças reumáticas. massa mediastínica, o que é muito sugestivo de
• Diátese hemorrágica: é a tradução clínica da LLA de fenótipo T, mais habitual no adolescente
trombocitopénia; valores plaquetários inferiores a do sexo masculino; tal traduz infiltração do timo
10.000/mm3 são responsáveis por hemorragias ou dos gânglios linfáticos dos hilos pulmonares.
nas mucosas oral e/ou nasal (gengivorragia e/ou Nas LMA não é raro haver infiltração cutânea
epistaxe); valores entre 10.000 e 50.000/mm3, por inicial pelas células neoplásicas (leucemia cutis).
petéquias (pequenas hemorragias punctiformes Esta infiltração também se pode encontrar nas
de origem capilar), equimoses (hemorragias mul- LLA, mas em formas terminais.
tipetéquiais) e hematomas (hemorragias volumo- • Cloromas: são massas tumorais de tamanho
sas) intramusculares ou subcutâneos. variável que se encontram com relativa frequência
Por vezes outras causas se podem associar a nas LMA, principalmente de tipo M4 e M5(*).
este mecanismo de hemorragia, tornando a etiolo- Localizando-se preferencialmente na região perior-
gia da diátese mais complexa, como a falência he- bitária ou ao longo da coluna vertebral, podem
pática por infiltração leucémica, ou a libertação então originar manifestações neurológicas. Algu-
pelas células neoplásicas de proteínas com activi- mas vezes estes cloromas precedem o diagnóstico
dade anticoagulante, como sucede nalgumas for- de leucemia, tendo sido descritos em crianças, ainda
mas particulares de LMA, em especial a leucemia antes de haver envolvimento da medula óssea.
promielocítica (LMA M3).(*) Nestes casos o início Ainda nas LMA M4 ou M5(*) pode haver
da quimioterapia, com destruição maciça dos hiperplasia gengival por infiltração.
promieloblastos e libertação destas proteínas, pode • SNC: encontra-se igualmente atingido muitas
originar uma diátese hemorrágica devastadora. vezes no início da doença pela migração dos blas-
• Anemia: traduz uma progressiva diminuição tos que, por via sanguínea, se vão fixar preferen-
do número de glóbulos vermelhos e da hemoglo- cialmente na pia-máter. O número de células neo-
bina por falência de produção; manifesta-se por plásicas é, no entanto, insuficiente para originar
palidez da pele e mucosas, taquicardia, tonturas, sintomas na generalidade dos casos. É a chamada
etc.. De referir que os valores de hemoglobina en- doença subclínica do SNC. Mas se houver infil-
contrados são por vezes muito baixos (3 ou 4 g/dl) tração maciça, particularmente a partir dos plexos
mas relativamente bem tolerados, devido à lenta coroideus, especialmente ricos em vasos sanguí-
instalação da anemia. neos, podem surgir sinais de hipertensão intracra-
• Febre, em regra não muito elevada, está rela- niana, tais como cefaleias e vómitos, ou sinais neu-
cionada com os mecanismos fisiopatológicos da rológicos focais.
leucemia: libertação de pirogénios pelos blastos • Exames de imagem, como a ecografia ou a
ou pelos macrófagos e linfócitos que procuram tomografia axial computadorizada mostram igual-
controlar o clone leucémico. Desaparece com o iní- mente que outros órgãos como os rins ou os ovários
cio do tratamento. No entanto, pode ser conse- estão frequentemente infiltrados no início da doen-
quência de infecção, facilitada pela redução do ça, apresentando-se de dimensões aumentadas.
número de leucócitos normofuncionantes. Na No sexo masculino, embora raramente, pode
verdade, muitas crianças podem ter como uma detectar-se no início da doença aumento do volu-
das primeiras manifestações da doença, infecções me testicular que é indolor, sem sinais infla-
recorrentes ou de evolução arrastada, mais habi- matórios, sendo os testículos de consistência dura.
tualmente do foro ORL, que respondem mal à
antibioticoterapia. Diagnóstico das LLA
• Organomegália que traduz a infiltração de
vários órgãos pelos blastos circulantes: hepatome- O hemograma revela alterações sugestivas: ane-
gália, esplenomegália e adenomegálias (gânglios mia normocítica e normocrómica, quase sempre
linfáticos maiores que 1 cm) localizadas ou genera- trombocitopénia e leucopénia ou leucocitose. O
lizadas, e de dimensões variáveis, são encontradas exame do esfregaço do sangue periférico pode
com frequência no exame objectivo da criança. mostrar a existência de blastos circulantes. Por
CAPÍTULO 129 Leucemias 629
vezes não há alterações significativas no hemogra- va para obtenção de melhores resultados. Este acha-
ma. do é mais frequente em adolescentes do sexo mas-
O diagnóstico é feito a partir de colheita de culino com LLA de fenótipo T, ou em lactentes com
medula óssea, em geral numa crista ilíaca. As LLA hiperleucocitária de linhagem B muito indifer-
células assim obtidas são sujeitas a exame mor- enciada. O achado de um número de blastos inferior
fológico e citoquímico usando os corantes clássi- a cinco por campo tem actualmente um significado
cos, a tipagem imunológica através de painéis de não totalmente compreendido, dividindo-se os cen-
anticorpos monoclonais, a estudos de genética tros oncológicos sobre a necessidade de intensificar
convencional para determinação de alterações no ou não o tratamento.
número e estrutura dos cromossomas e, mais
modernamente, a estudos de genética molecular, Tratamento das LLA
mais sensíveis e específicos que os anteriores.
Assim, é possível diagnosticar uma leucemia se O tratamento das LLA é uma história de sucesso
o número de blastos na medula óssea for superior a que se foi construindo ao longo dos últimos
25% da celularidade total, e classificá-la recorrendo cinquenta anos. Actualmente é possível curar
aos estudos morfológicos e imunológicos, de acordo cerca de 75% a 85% das crianças com LLA.
com a linhagem afectada (linfoblástica, de linhagem Os protocolos de quimioterapia, com algumas
B ou T). As alterações genéticas encontradas, quer variações subtis, compreendem uma fase inicial
em cariótipo convencional, quer em genética mole- de indução e de remissão que dura cerca de um
cular, confirmam o diagnóstico, já que muitas são mês. No final a criança deve estar assintomática,
específicas de um tipo de leucemia e estabelecem com observação normal, sem alterações no sangue
também o prognóstico. Por exemplo, um clone periférico, e com percentagem de blastos inferior a
leucémico hiperdiplóide, em que o número de cro- 5% na medula óssea. Seguem-se uma fase de ter-
mossomas é superior a 50, é particularmente sen- apêutica da doença subclínica do SNC, uma fase
sível à quimioterapia com citostáticos do grupo dos de intensificação/consolidação, e um período
antimetabolitos, sendo de bom prognóstico. Por final de manutenção. Globalmente a terapêutica
outro lado, o achado da translocação (t) (9;22), o dura cerca de dois anos.
chamado cromossoma de Philadelphia, a que corres- Muito esquematicamente, a evolução da tera-
ponde a fusão molecular BCR-ABL, indica só por si, pêutica ao longo dos anos, até à obtenção dos
a necessidade de recorrer a transplantação de excelentes resultados actuais foi a seguinte:
medula óssea (TMO) uma vez obtida a remissão, já – no final de década de 40 do século passado
que os resultados obtidos com quimioterapia con- iniciaram-se as primeiras tentativas terapêuticas
vencional são maus. Da mesma forma a t (4;11) com com citostáticos em monoterapia, tendo o pedia-
alterações envolvendo o gene MLL, frequentemente tra Farber em Boston, obtido pela primeira vez
encontrada em lactentes com LLA, implica um uma remissão de curta duração usando um
prognóstico ominoso, que não parece sequer me- antimetabolito, a aminopterina;
lhorar com TMO. Ao invés, a t (12;21) envolvendo – na década de 50 foram induzidas associações
os genes TEL-AML1 parece conferir à LLA, pelo de fármacos: antimetabolitos, vincristina, pre-
menos com alguns protocolos de quimioterapia, um dnisolona e asparaginase; as remissões obtidas
prognóstico mais favorável. eram mais longas, mas a doença recidivava passa-
Diagnosticada a leucemia, torna-se imprescindível dos alguns meses, sendo metade das recidivas a
detectar a existência de blastos no SNC, um dos factores nível do SNC;
prognósticos mais importantes, o que se consegue – iniciou-se então na década de 60 a terapêuti-
por exame morfológico, citoquímico e, se necessário, ca da doença subclínica do SNC com radioterapia
imunológico, das células encontradas no liquor após crânio-encefálica e do neuro-eixo numa primeira
centrifugação. Em geral não há blastos detectáveis: é fase e, posteriormente, apenas craniana, associada
a chamada doença subclínica do SNC. Um número a quimioterapia intratecal, o que permitiu a
de blastos superior a cinco por campo implica pior redução do número de recidivas no SNC para
prognóstico e obriga a uma terapêutica mais intensi- cerca de 5%;
630 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
forma de leucemia, preferindo a maioria dos cen- co. Esta forma de LA é também um bom exemplo
tros proceder antes a quimioterapia intensiva que da importância que a monitorização genética tem
se prolonga por seis a oito meses, com associações no prognóstico dos doentes, já que a fusão PML-
de citostáticos, alguns em altas doses, originando RARA deverá deixar de ser detectada a partir de
longos períodos de aplasia medular. determinada fase do tratamento; a sua persistência,
Embora ainda em discussão, de acordo com a ou reaparecimento, prenuncia uma má evolução.
experiência dos maiores grupos cooperativos,
podem ser considerados actualmente três grupos
de risco: risco médio, que corresponderá aos tipos
M1 e M2 com corpos de Auer, e M4 com eosinófi-
los, em que a probabilidade de cura é vizinha dos
65%; risco alto, que corresponderá aos restantes
tipos FAB em que a probabilidade de cura não
ultrapassará os 30%, e em que se propõe TMO em
primeira remissão; risco muito alto, que corres-
ponde às LMA em que a contagem inicial de
leucócitos é superior a 100.000/mm3, de muito
mau prognóstico; nestas, as terapêuticas são
decepcionantes, mesmo com TMO.
Duas formas particulares de LMA são, contu-
do, excepção neste panorama pessimista.
A primeira diz respeito a crianças com síndro-
ma de Down que adoecem com LMA que é, em
regra, M7 (classificação FAB). Os megacarioblas-
tos destas crianças são particularmente sensíveis
ao Ara C por razões genéticas, tendo estes doentes
uma muito boa probabilidade de cura com
quimioterapia não muito intensiva.
A segunda diz respeito à LMA M3 (promie-
locítica) que apresenta quase sempre t(15;17), e a
que corresponde uma arranjo genético envolven-
do os genes PML e RARA. É hoje possível induzir,
no início do tratamento, a maturação dos
promieloblastos típicos desta forma de LMA, com
a administração de ácido transretinóico, o que
permite reduzir o risco de coagulopatia caracterís-
tico da fase inicial da terapêutica, já que a destrui-
ção dos blastos induzida pelos citostáticos liberta
grandes quantidades de proteínas anticoagu-
lantes. O uso de ácido transretinóico ao longo da
indução e, posteriormente, na manutenção, nesta
forma particular de LMA, adquiriu grande
importância permitindo uma probabilidade de
cura vizinha dos 75%.
A LMA M3 é, pois, um bom exemplo dos pro-
gressos registados no tratamento das neoplasias
com a utilização de fármacos que actuam, não por
destruição celular como é típico dos citostáticos,
mas por indução da maturação do clone neoplási-
632 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
130
dem, na classificação da Organização Mundial de
Saúde, uma das classificações antigas mais usa-
das, as categorias histológicas de linfoma de
Burkitt, Burkitt like e linfoma B de grandes células.
Aos linfomas T de células maduras, corres-
ponde a categoria histológica de linfoma anaplási-
LINFOMAS NÃO HODGKIN co de grandes células na mesma classificação.
Aos linfomas pré T ou pré B, a categoria de lin-
Mário Chagas foma linfoblástico.
Como sucede com outras neoplasias, são
descritas algumas situações predisponentes de lin-
fomas, em geral relacionadas com imunodeficiên-
Definição e aspectos epidemiológicos cia congénita ou adquirida. No entanto, para a
maioria dos casos diagnosticados, não se consegue
Os linfomas não Hodgkin são neoplasias de lin- encontrar uma causa, como sucede para a general-
fócitos maduros ou de células precursoras dos lin- idade das neoplasias da criança.
fócitos que, por mutação genética, perderam as
capacidades de maturação e de apoptose, ou seja, 1. LINFOMAS B: Linfoma de Burkitt,
de autodestruição. Ao contrário dos linfomas não Linfoma Burkitt like e linfoma B
Hodgkin do adulto, são de grande agressividade. de grandes células
Os linfomas não Hodgkin são muito menos
frequentes na criança do que no adulto, aumen- Definição
tando a incidência de forma progressiva, com a
idade. Podem encontrar-se, no entanto, em crian- O linfoma de Burkitt é, como se referiu uma neo-
ças muito jovens, por vezes lactentes. plasia de linfócitos B maduros que se apresenta
Depois das leucemias agudas e dos tumores do morfologicamente como um linfoma de pequenas
SNC, os linfomas (de Hodgkin e não Hodgkin) células redondas, não clivadas.
são as neoplasias mais frequentes, representando É muito provavelmente o tumor pediátrico
cerca de 15% da globalidade dos tumores da com multiplicação celular mais rápida e cresci-
criança. mento mais veloz.
A caracterização imunológica dos linfócitos A sua forma endémica foi a primeira a ser descrita,
patológicos veio originar uma classificação sim- na década de 50 do século passado na África equa-
ples dos linfomas não Hodgkin da criança, o que torial pelo cirurgião irlandês Burkitt, de quem
tem vindo a permitir abandonar progressiva- recebeu o nome. É o tumor mais frequente naque-
mente as inúmeras classificações clássicas, basea- la região de África; caracteriza-se pela localização
das na morfologia e nas características citoquími- preferencial no maxilar superior, podendo atingir igual-
cas, pouco claras e em regra sem grande relação mente o abdómen e o SNC. Mais tarde relacionou-se
com a clínica. este tumor com o vírus de Epstein-Barr, cujo geno-
De forma resumida, os linfomas não Hodgkin ma se encontra quase constantemente no núcleo
pediátricos classificam-se hoje de acordo com a do linfócito B neoplásico e, também, com a malá-
linhagem linfóide afectada em linfomas B de lin- ria, já que a área endémica desta doença é também
fócitos maduros, linfomas T igualmente de linfóc- a área endémica do linfoma de Burkitt. Admite-se
itos maduros, e linfomas pré T ou pré B que, como que a infecção pelo plasmódio facilite, pela
o nome indica, são linfomas de células precurso- imunossupressão que lhe é inerente, a proliferação
ras não maduras de linhagem T ou B. incontrolada dos linfócitos B infectados pelo vírus
Aos linfomas B de células maduras correspon- de Epstein-Barr, causando a doença.
CAPÍTULO 130 Linfomas não Hodgkin 633
Na União Europeia e nos EUA esta neoplasia é mutação. Os protocolos clássicos revelaram-se,
muito menos frequente, sendo a forma típica de assim, ineficazes e, excluindo as raras formas
apresentação clínica a de um tumor abdominal de tumorais localizadas que era possível ressecar, nos
crescimento muito rápido, localizado de início na restantes casos a única hipótese de cura era a rela-
fossa ilíaca direita e estendendo-se depois rapida- cionada com megaterapia seguida de transplante
mente a todo o abdómen, o qual se apresenta de medula ósea (TMO), o que só era viável se hou-
muito distendido e doloroso. À palpação encon- vesse um dador compatível. Actualmente, com os
tram-se várias formações tumorais de consistência modernos protocolos de quimioterapia intensiva, a
dura. A ecografia ou a TAC revelam várias massas probabilidade de cura é superior a 80%.
tumorais intrabdominais, por vezes infiltração É importante, para além do diagnóstico, ca-
nodular do fígado, baço, ou rins, e adenomegalias racterizar o estádio da doença, já que os protoco-
mesentéricas e retroperitoneais. Pode haver ascite los de quimioterapia actuais possuem vários
e derrame pleural. ramos de intensidade crescente. Os estádios inter-
Mais raramente a massa linfóide tumoral, que médios tratam-se durante cerca de 4 meses, e as
se localiza de início preferencialmente na região formas mais graves, em que há invasão da medu-
terminal do íleo, pode originar um íleos mecânico la óssea ou do SNC, durante cerca de 8 meses. Os
precocemente, que é então a manifestação clínica resultados finais acabam por ser semelhantes.
inaugural. Neste caso, é a cirurgia para resolução O linfoma B de grandes células e o linfoma
do íleos que permite o diagnóstico. Burkitt like são variantes histológicas na classifi-
Em estádios avançados o linfoma pode atingir cação da Organização Mundial de Saúde; mas são
o SNC, com massas tumorais que se localizam igualmente neoplasias de linfócitos B maduros.
principalmente no espaço epidural, e também na Surgem em crianças de grupo etário superior e
medula óssea (comportando-se então como LLA caracterizam-se pelo aparecimento, não de
de linfócitos B maduros). Menos frequentemente, grandes massas tumorais como no linfoma de
o linfoma de Burkitt pode surgir com outras loca- Burkitt, mas de gânglios linfáticos aumentados
lizações: mediastino, gânglios linfáticos cervicais, (adenomegálias) preferencialmente em territórios
anel de Waldeyer. periféricos, ou profundos (intrabdominais e/ou
torácicos). A localização mediastínica (Figura 1) é
Diagnóstico mais frequente na forma de linfoma B de grandes célu-
las do que no linfoma de Burkitt; neste último é tipica-
O diagnóstico é feito por estudos morfológicos, mente abdominal, como foi dito.
citoquímicos, imunológicos e genéticos. Os dois Embora haja diferenças morfológicas entre estes
primeiros revelam a existência de um tumor de linfomas B e o linfoma de Burkitt, o tratamento é
pequenas células redondas, não clivadas; os méto- semelhante e os resultados são igualmente bons.
dos imunológicos permitem a detecção de mar-
cadores de maturidade do linfócito B, e a genética 2. LINFOMAS PRÉ T e PRÉ B: Linfoma
revela as translocações típicas: t(8;14), t(2;8) e linfoblástico
t(8;22). O material para estes estudos pode obter-
se por citologia do tumor por agulha fina, ou por O linfoma pré T, constituído por linfoblastos pre-
estudo das células existentes em suspensão no cursores de linhagem T, é tipicamente supra
líquido ascítico ou no derrame pleural. diafragmático, atingindo o mediastino numa
grande percentagem de casos, e também os
Tratamento gânglios dos territórios cervicais, supra clavicu-
lares e axilares. Dor torácica, dispneia e disfagia
O tratamento do linfoma de Burkitt/LLA B cons- por compressão das vias aéreas ou do esófago,
titui um dos maiores sucessos da oncologia moder- edema e estase venosa do pescoço e parte superi-
na. O elevadíssimo número de células neoplásicas or do tórax por compressão da veia cava superior
em divisão acompanha-se de uma enorme capaci- – síndroma da veia cava – são as manifestações
dade de adquirir resistência à quimioterapia, por mais frequentes. (Figura 1)
634 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
131
nomegálias podem confluir, formando conglome-
rados mais ou menos volumosos. As adeno-
megálias do mediastino são assintomáticas de iní-
cio, podendo ser um achado ocasional em radio-
grafia feita por intercorrência. Mais tarde os
gânglios comprimem as estruturas vizinhas,
LINFOMA DE HODGKIN podendo originar dispneia, disfagia e rouquidão
(Figura 1). A progressão da doença faz-se em regra
Mário Chagas por via linfática, atingindo sucessivamente os ter-
ritórios ganglionares vizinhos.
A presença de várias manifestações sistémicas
(temperatura superior a 38ºC durante pelo menos
Definição e aspectos epidemiológicos três dias, emagrecimento superior a 10% do peso
nos últimos seis meses, prurido e sudação noctur-
O linfoma de Hodgkin, com a designação antiga na), está associada a prognóstico mais reservado, o
de doença de Hodgkin, abandonada pela OMS, que obriga a terapêutica mais intensiva.
tem o nome do médico que primeiro o descreveu
no início do século XIX. Trata-se dum processo Diagnóstico
maligno do sistema linforreticular.
Constituindo cerca de 5% dos casos de cancro O diagnóstico é feito por biópsia de um gânglio
em idade pediátrica, surge nos países industriali- que revela as células de Reed-Sternberg e suas
zados com um primeiro pico de incidência por variantes, num fundo de células inflamatórias
volta dos vinte anos, e outro a partir dos cinquen- (linfócitos, plasmócitos, eosinófilos, histiócitos),
ta anos. É, portanto, muito menos frequente na com fibrose. As células de Reed-Sternberg, de
criança que no adulto. Na idade pediátrica surge origem desconhecida durante muito tempo,
principalmente na pré-adolescência ou adolescên- foram identificadas imunologicamente como célu-
cia, sendo raro antes dos 7 anos de idade ao con- las linfóides de linhagem B, englobando-se esta
trário dos outros linfomas. doença actualmente no grupo dos linfomas.
As relações entre esta doença e o vírus de As referidas células têm grande diâmetro (15-
Epstein Barr são conhecidas, já que o genoma do 45 µm) e são multinucleadas ou com núcleo multi-
vírus se encontra com grande frequência na célula
neoplásica.
O linfoma de Hodgkin é mais frequente em
crianças com imunodeficiência e tem sido descrito
o seu aparecimento em “epidemias” familiares,
porventura relacionadas com infecções víricas.
Manifestações clínicas
Manifestações clínicas
Bernard Horner, por exemplo), devido à com- são abdominal, desidratação, etc.. Está em geral
pressão das estruturas anatómicas pelo tumor. associada a ganglioneuroma ou ganglioneuroblas-
Nalguns casos, porém, poderá ser um achado oca- toma]; 2) OMA (opsomioclonus-mioclonus-ataxia) –
sional numa radiografia do tórax feita por uma associada a autoanticorpos antineuronais [abalos
intercorrência. mioclónicos erráticos, movimentos oculares
Na região cervical, uma massa tumoral asso- descontrolados e ”olhos e pés dançarinos”, por
ciada ou não a dor, é o sinal mais frequente. vezes, ataxia cerebelosa]; 3) SEC (secreção excessiva
Como resultado da localização na pelve de catecolaminas) [taquicárdia, HTA, palpitações,
surgem alterações do trânsito intestinal ou sudação profusa, crises de rubor, sintomatologia
queixas urinárias, resultantes da compressão do que é clássica no feocromocitoma. Enquanto a
recto ou da bexiga. patogénese da HTA no caso de neuroblastoma
Mas, independentemente das localizações tem forte componente de causa renovascular, no
anatómicas anteriormente referidas, tratando-se feocromocitoma é sobretudo comparticipada
de um tumor paravertebral, pode sempre mani- pelas catecolaminas em excesso].
festar-se inicialmente por sinais neurológicos de Um forma clínica designada especificamente
gravidade variável, quer por compressão das por estádio 4S (em crianças com < 1 ano de idade,
raízes nervosas, quer por invasão do canal medu- com tumor primário pequeno e metástases limi-
lar. Neste último caso o tratamento torna-se ver- tadas à pele, fígado ou medula óssea) está associ-
dadeiramente urgente a fim de evitar sequelas ada a prognóstico mais favorável.
neurológicas graves. Considerando a verificação de massa abdomi-
Para além destas manifestações relacionadas nal, sob o ponto de vista semiológico há a salien-
com o tumor primitivo, outras podem surgir tar que no caso de neuroblastoma a mesma classi-
resultantes da metastisação tumoral: dor óssea, camente se apresenta de consistência endurecida,
por invasão óssea; anemia e trombopénia por com superfície lisa, lobulada, fixa, ultrapassando a
invasão da medula óssea; nódulos cutâneos por linha média, ocupando a loca renal e deslocando o
invasão da pele; proptose e equimoses palpebrais rim para baixo e para fora. O diagnóstico diferen-
por infiltração da órbita; e, em fases muito cial pode fazer-se com o tumor de Wilms, salien-
avançadas da doença, pode assistir-se a metasti- tando-se que nesta última situação a massa não
sação pulmonar ou no SNC. ultrapassa a linha média, sendo em cerca de 5%
Uma forma peculiar de apresentação que dos casos bilateral (Capítulo 133).
merece referência é a síndroma de Pepper: surge O Quadro 1 resume as manifestações clínicas
no lactente e caracteriza-se por um tumor locali- mais frequentes e menos frequentes do neuroblas-
zado na supra-renal havendo, simultaneamente, toma. A Figura 1 montra um lactente com disten-
infiltração maciça do fígado. A hepatomegália são abdominal e hepatomegádia.
resultante é então a primeira manifestação da
doença, observando-se um lactente com estado
geral em regra bom, com abdómen volumoso em
que se palpa o fígado aumentado de volume.
Algumas vezes esta hepatomegalia é de tal forma
exuberante que se instala um quadro de dificul-
dade respiratória, e/ou edema do escroto e mem-
bros inferiores, e/ou vómitos frequentes e má-
nutrição, devidos à compressão exercida pelo fíga-
do aumentado sobre as estruturas vizinhas.
Em cerca de 1 a 3% dos doentes podem fazer
parte das manifestações clínicas 3 tipos de síndro-
FIG. 1
mas paraneoplásicas por: 1)VIP (Vasoactive intes-
tinal peptide) – por secreção tumoral de VIP [diar- Lactente com distensão abdominal por hepatomegália
reia secretória intratável, hipopotassémia,disten- relacionada com neuroblastoma (NIHDE).
CAPÍTULO 132 Neuroblastoma 639
Exames complementares
e diagnóstico diferencial
Tratamento
134
outras vantagens, permite reduzir o volume tumoral
tornando a cirurgia mais fácil.
A radioterapia é hoje reservada para os está-
dios mais avançados em que, após a cirurgia se
verificou tumor residual, ou em que houve rup-
tura da cápsula do rim, ou ainda para os tumores
cujo tipo histológico é desfavorável. Da mesma TUMORES DO SISTEMA
forma o grau de intensidade da quimioterapia
depende da histologia do tumor. NERVOSO CENTRAL
Prognóstico Mário Chagas e Duarte Salgado
Manifestações clínicas
e exames complementares
no soro e liquor e que permitem o diagnóstico sem for a disease of many faces. Paediatr Drugs 2004; 6: 107-122
necessidade de biópsia. O germinoma é menos Hallett A, Traunecker H. A review and update on neuroblas-
agressivo, curável, sendo também o mais fre- toma. Paediatrics and Child Health 2012; 22: 103-107
quente (2/3 dos casos). Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
A terapêutica convencional do germinoma é a Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
radioterapia do tumor e de todo o SNC, dada a 2011
facilidade de metastisação pelo liquor. Quanto aos Kowsky PL. Manual of Pediatric Hematology and Oncology.
tumores secretores tem-se tentado combinações Amsterdam: Academic Press, 2005
de quimioterapia seguida de radioterapia com Koh YW, Kang HJ, Park C, et al. Prognostic significance of the
resultados menos animadores. ratio of absolute neutrophil count to absolute lymphocyte
count in classic Hodgkin lymphoma. Am J Clin Pathol 2012;
Notas finais sobre o tratamento dos tumores 138:846-854
do SNC Lacerda AF, Chagas M, Neto A,Vieira E, Ribeiro MJ, Pereira F,
1) O tratamento deste tipo de patologia deve Ambrósio A, Sousinha M. Leucemia linfoblástica aguda na
ser individualizado em função da localiza- criança – experiência de 10 anos com o protocolo DFCI
ção,dimensões e sintomatologia associada. 81/01. Acta Med Port 1999;12: 287-292
2) Em muitos casos a administração de dexa- Morley-Jacob C, Gallop-Evans E. Un update on lymphoma in
metasona em doses elevadas constitui pro- children and young adults. Paediatrics and Child Health
cedimento a efectuar de imediato após 2012; 22: 92-97
confirmação diagnóstica com o objectivo de McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
redução do edema acompanhante do tumor. Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
3) No âmbito da terapêutica cirúrgica, o objec- Poplack DG, Pizzo PA (eds.) Principles and Pratice of Pediatric
tivo é proceder à excisão completa do tumor, Oncology. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins,
o mais radical possível. 2006.
4) A propósito da descrição dos tipos histoló- Pritchard - Jones K, Pritchard J. Success of clinical trials in
gicos e sua relação com a clínica foram da- childhood Wilms’ tumor around the world. Lancet 2004;
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