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2ª Edição

VERSÃO ACTUALIZADA

Tratado de Clínica Pediátrica


João M. Videira Amaral
Esta obra, de cariz prático, pretende apresentar de forma concisa dados actuais sobre
tópicos fundamentais da clínica pediátrica de complexidade variável, quer no âmbito
do ambulatório, quer no âmbito da prática hospitalar.

Concretizada com a colaboração de uma plêiade de autores convidados, é apresentada


em 3 volumes compreendendo 33 partes e 376 capítulos.

O Tratado de Clínica Pediátrica (nesta segunda edição, revista, actualizada, ampliada e


em DVD) tem como principais destinatários estudantes de Medicina e de áreas relacio-
nadas com as Ciências da Saúde, internos de medicina geral e familiar e de pediatria,
médicos de família, pediatras gerais, assim como profissionais da saúde interessados na
área da Medicina da Criança e do Adolescente. A bibliografia seleccionada, que encerra
cada capítulo ou parte, contribuirá para esclarecimento complementar do leitor inter-
essado.

O coordenador-editor espera que o conteúdo, escrito em espírito de missão por todos


os autores, seja útil aos leitores, quer no âmbito da formação pré/pós-graduada e
contínua, quer no âmbito do desempenho profissional. O objectivo último é contribuir
para a saúde e bem-estar da criança e adolescente, e da comunidade em geral. João M. Videira Amaral
VERSÃO ACTUALIZADA
João M. Videira Amaral
O coordenador-editor (João M. Videira Amaral) é médico-pediatra e professor catedrático jubilado da
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Até Outubro de 2007 foi director da
Clínica Universitária de Pediatria no Hospital de Dona Estefânia, Lisboa e regente das disciplinas de
Pediatria e de Clínica Pediátrica da mesma Universidade. É autor ou co-autor de cerca de 260 artigos em
revistas científicas e em livros de texto, sobretudo na área da Pediatria Neonatal e da Educação Médica.
Foi Presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria (1989-92) e actualmente é Director da Acta
Pediátrica Portuguesa, revista científica da referida Sociedade.

Volume 1
Com o apoio de: Abbott Laboratórios, Lda.
2ª Edição

Volume
1
TRATADO
DE CLÍNICA
PEDIÁTRICA
Tratado de Clínica Pediátrica

Iº Volume

2ª Edição
VERSÃO ACTUALIZADA

JOÃO M. VIDEIRA AMARAL


Editor-Coordenador
© João M Videira Amaral
Tratado de Clínica Pediátrica, 2008

Produção Gráfica
IDG – Imagem Digital Gráfica

Exemplares
5 000 ex.

2ª Edição não comercial em DVD, apoiada e distribuída por ABBOTT Laboratórios, 2013

Abbott Laboratórios, Lda.


Estrada de Alfragide, 67, Alfrapark, Edifício D – 2610-008 AMADORA
Tel.: 21 472 71 00 Fax: 21 471 44 82
Contribuinte e Matrícula na Conserv. do Reg. Com. da Amadora sob Nº 500 006 148
Capital Social: € 3 396 850
www.abbott.com
O conteúdo desta publicação é da inteira responsabilidade dos seus autores.

Depósito Legal
280864/08

ISBN
978-989-96091-2-9

ADVERTÊNCIA

1. Não é permitida a reprodução total ou parcial desta edição por meio electrónico, mecânico, fotocópia ou outros sem
prévia autorização escrita dos autores e editor.

2. Sendo a Medicina uma área do conhecimento em constante e rápida evolução, nomeadamente no que respeita a fár-
macos, e embora tenha sido feito todo o esforço por parte de editor e autores quanto ao rigor no registo das respectivas
doses e formas de apresentação, salientamos que a responsabilidade final da prescrição é do médico que a institui.

3. Sendo consensual que na prática clínica existem diferentes modos de actuação, nem os autores, nem o editor poderão
ser responsabilizados por erros ou pelas consequências que advenham de informação aqui contida. Os produtos
mencionados no livro devem ser utilizados conforme a informação veiculada pelos fabricantes.
Autores (por ordenação de capítulos) – I Volume

João M. Videira Amaral Isabel Daniel


Professor Catedrático Jubilado de Pediatria da Faculdade de Ciências Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE.
Médicas da Universidade Nova de Lisboa (FCM/UNL). Médico-pe-
diatra. Chefe de Serviço e Director ex-officio da Clínica Universitária Isabel Peres
de Pediatria do Hospital de Dona Estefânia (HDE), Lisboa. Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE.

João Carlos Gomes-Pedro Isabel Griff


Professor Catedrático Jubilado de Pediatria da Faculdade de Medicina Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE.
da Universidade de Lisboa (FM/UL). Médico-pediatra. Chefe de
Serviço e Director ex-officio do Departamento da Criança e da Margarida Guimarães
Família, e da Clínica Universitária de Pediatria do Hospital de Santa Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE.
Maria, Lisboa.
Virgínia Loureiro
Maria do Carmo Vale Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE.
Mestre em Bioética pela FM/UL. Assistente Convidada de Clínica
Pediátrica da FCM/UNL. Médica-pediatra. Assistente Graduada de Vitória Matos
Pediatria. Coordenadora da Unidade de Desenvolvimento (UD) do Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE.
HDE, Lisboa.
Maria Helena Portela
Mário Coelho Médica fisiatra. Chefe de Serviço e Directora do Serviço de Medicina
Médico pediatra. Assistente Graduado de Pediatria no Serviço 1 do Física e Reabilitação (SMFR) do HDE (1998-2006).
HDE. Assistente Convidado da FCM/UNL (1995-1999). Director
Clínico do HDE (2000-2006). Maria do Céu Soares Machado
Professora Agregada de Pediatria da Faculdade de Medicina da
Francisco Abecasis Universidade de Lisboa. Médica-pediatra neonatologista. Chefe de
Médico radiologista. Chefe de Serviço e Director do Serviço de Radio- Serviço e Directora do Departamento de Pediatria do Hospital de
logia (SR) do HDE ex-officio. Santa Maria.

Eugénia Soares Luís Nunes


Médica radiologista. Chefe de Serviço e Directora do Serviço de Radiolo- Professor Agregado de Saúde Pública da FCM/UNL. Médico-pediatra
gia no SR do HDE. geneticista. Chefe de Serviço e Director do Serviço de Genética (SG)
do HDE.
Leonor Bastos Gomes
Médica neurorradiologista.Chefe de Serviço de Neurorradiologia no SR Salomé Almeida
do HDE. Geneticista Molecular e Responsável pelo Gabinete de Apoio aos
Projectos e Investigadores no SG do HDE. Doutorada pela Univer-
Rosa Maria Barros sidade de Lisboa.
Médica patologista clínica. Chefe de Serviço e Directora do Serviço de
Patologia Clínica (SPC) do HDE. Márcia Rodrigues
Médica-interna de Genética Médica no SG do HDE.
Antonieta Viveiros
Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE. Rui Gonçalves
Médico-interno de Genética Médica no SG do HDE.
Antonieta Bento
Médica patologista clínica. Assistente Graduada no SPC do HDE. Diana Antunes
Médica-interna de Genética Médica no SG do HDE.
VI TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Teresa Kay António Marques


Médica geneticista. Assistente Graduada no SG do HDE. Assistente livre Médico pediatra intensivista. Assistente Graduado de Pediatria na UCIP
de Pediatria da FCM/UNL. do HDE. Coordenador do Serviço de Urgência Externa do HDE.

Raquel Carvalhas Margarida Santos


Citogeneticista no SG do HDE. Médica pediatra intensivista. Assistente Graduada de Pediatria na UCIP
do HDE.
Maria de Jesus Feijoó 
Médica pediatra-geneticista. Directora do Serviço de Genética Médica Luís Varandas
do Hospital Egas Moniz ex-officio. Coordenadora do CERAC. Médico pediatra. Professor Auxiliar de Pediatria da FCM/UNL e do
Instituto de Higiene e Medicina Tropical/UNL. Médico pediatra.
Maria de Lurdes Lopes Assistente Graduado de Pediatria no HDE. Regente da área de
Médica pediatra-endocrinologista. Assistente Graduada de Endocrino- Clínica Pediátrica (Estágio pré-licenciatura).
logia Pediátrica no HDE. Doctorat pela Universidade de Genève,
Suíça. Assistente Convidada de Pediatria da FCM/UNL (1999- José Ramos
2006). Médico pediatra intensivista. Assistente Graduado de Pediatria na UCIP
do HDE.
Rosa Pina
Médica pediatra-endocrinologista.Assistente Graduada de Endocrino- Isabel Fernandes
logia Pediátrica no HDE. Assistente Convidada de Pediatria da Médica pediatra intensivista. Assistente Graduada de Pediatria na UCIP
FCM/UNL (1995- 2006). do HDE.

Ana Alegria Hercília Guimarães


Médica pediatra no Hospital Fernanado Fonseca/Amadora-Sintra. Professora Agregada de Pediatria da Faculdade de Medicina da
Universidade do Porto. Médica pediatra neonatologista. Chefe de
João Estrada Serviço e Directora do Serviço de Neonatologia do Hospital de São
Médico pediatra intensivista. Assistente Graduado de Pediatria da UCIP João (HSJ), Porto.
e Unidade de Desenvolvimento no HDE.
Maria do Carmo Silva Pinto
Mónica Pinto Médica pediatra. Assistente Graduada de Pediatria e Coordenadora da
Médica pediatra. Assistente de Pediatria do Desenvolvimento no Hos- Unidade de Adolescentes no HDE.
pital Beatriz Ângelo/Loures.
Ignacio Villa Elizaga
Isabel Portugal Professor catedrático jubilado de Pediatria e Neonatologia da Faculdade
Médica fisiatra. Assistente Graduada no SMFR de Medicina Física e de Medicina da Universidade Autónoma de Madrid,Espanha.
Reabilitação do HDE. Médico-pediatra neonatologista. Director ex-officio do Departamen-
to de Pediatria e Centro de Investigação do Hospital Universitário
Maria José Gonçalves Gregorio Marañon de Madrid, Espanha.
Médica pedopsiquiatra. Chefe de Serviço e Directora do Departamento
de Pedopsiquiatria do HDE (2001-2007). Carla Rêgo
Médica -pediatra no Hospital Cuf-Porto. Professora Auxiliar de Pediatria
Margarida Marques pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP).
Médica-pedopsiquiatra. Assistente Graduada de Pedopsiquiatria no Assistente Graduada de Pediatria da Unidade de Gestão da Mulher
HDE. e da Criança/Departamento Universitário no Hospital de São João,
Porto.
Deolinda Barata
Médica pediatra intensivista. Chefe de Serviço de Pediatria e Coorde- António Guerra
nadora da UCIP do HDE ex-officio. Membro do Núcleo de Apoio à Médico pediatra. Professor Agregado de Pediatria da FMUP. Professor-
Família no HDE e do Instituto de Apoio à Criança. regente da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da UP.
Chefe de Serviço de Pediatria da Unidade de Gestão da Mulher e da
Ana Leça Criança/Departamento Universitário no Hospital de São João,
Médica pediatra .Assistente Graduada de Pediatria no HDE. Membro Porto.
do Núcleo de Apoio à Criança e Família no HDE. Directora dos
Serviços de Prevenção e Controlo de Doenças da DGS. Aires Cleofas da Silva
Médico pediatra gastrenterologista. Chefe de Serviço de Pediatria/
Mário Cordeiro Gastrenterologia ex-officio da Clínica Universitária de Pediatria e
Professor Auxiliar de Saúde Pública da FCM/UNL. Médico-pediatra. Departamento da Criança e da Família do Hospital de Santa Maria,
Lisboa.
Autores VII

J. Rosado Pinto Julião Magalhães


Professor Auxiliar Convidado da FCM/UNL ex-officio. Médico-pediatra Cirurgião pediatra. Chefe de Serviço de Cirurgia Pediátrica no HDE.
imunoalergologista. Chefe de Serviço e Director do Serviço de Assistente Convidado de Clínica Pediátrica da FCM/UNL ex-officio.
Imunoalergologia (SIA) do HDE ex-officio. Membro do Board da UEMS.
Laura Oliveira
Ângela Gaspar Médica pediatra. Assistente de Pediatria no HDE.
Médica imunoalergologista. Assistente de Imunoalergologia no SIA do
HDE. Fátima Abreu
Médica pediatra. Assistente Graduada de Pediatria na Unidade de
Mário Morais de Almeida Pneumologia (UP) do HDE.
Médico imunoalergologista. Assistente Graduado de Imunoalergologia
no SIA do HDE. José Guimarães
Professor Auxiliar Convidado de Pediatria da FCM/UNL. Médico- pe-
Graça Pires diatra. Chefe de Serviço e Director do Serviço Universitário de
Médica imunoalergologista. Assistente de Imunoalergologia no SIA do Pediatria do Hospital de São Francisco Xavier (HSFX), Lisboa.
HDE.
António Amador
Cristina Santa Marta Médico pediatra. Assistente de Pediatria no HDE.
Médica imunoalergologista. Assistente de Imunoalergologia no SIA do
HDE. Joaquim Sequeira
Médico pediatra- pneumologista. Assistente Graduado de Pediatria na
Paula Leiria Pinto Unidade de Pneumologia (UP) do HDE ex-officio.
Mestre em Imunoalergologia pela FCM/UNL. Médica- imunoalergolo-
gista. Assistente de Pediatria da FCM/UNL. Assistente Graduada Ana Margarida Reis
de Imunoalergologia e Directora do SIA do HDE. Médica imunoalergologista no SIA do HDE.

Sara Prates José Cavaco


Médica imunoalergologista. Assistente de Imunoalergologia no SIA do Médico pediatra- pneumologista. Assistente Graduado de Pediatria na
HDE. UP do HDE.

Conceição Neves Mafalda Paiva


Médica pediatra. Assistente Graduada de Pediatria no HDE. Médica pediatra e Assistente Hospitalar no HDE.

António Bessa de Almeida Ana Maia Pita


Médico pediatra. Chefe de Serviço de Pediatria no Serviço 1 do HDE. Médica pediatra e Assitente Hospitalar no HDE.
Assistente Convidado de Clínica Pediátrica da FCM/UNL. Coorde-
nador da Consulta Externa de Pediatria Médica do HDE. António Teixeira
Médico-fisiatra. Assistente Graduado no SMFR do HDE.
Júlia Gallhardo
Médica interna de Pediatria do HDE. Aluna de doutoramento e investi- António Pinto Soares
gadora na Universidade de Bristol (Reino Unido). Médico dermatologista. Chefe de Serviço e Director ex-officio do Serviço
de Dermatologia (SD) do Centro Hospitalar de Lisboa/Capuchos.
Ema Leal
Médica pediatra. Assistente Hospitalar no HDE. Teresa Fiadeiro
Médica dermatologista. Assistente Graduada no SD do Centro Hospi-
Carlos Ruah talar de Lisboa/Capuchos ex-officio.
Doutor em Medicina-ORL pela FCM/UNL. Médico oto-rino-laringologista.
Maria João Paiva Lopes
Vital Calado Médica dermatologista. Assistente no SD do Centro Hospitalar de
Médico oto-rino-laringologista. Chefe de Serviço e Director do serviço Lisboa/Capuchos.
de ORL do HDE ex-officio.
Ana Macedo Ferreira
Maria Caçador Médica dermatologista. Assistente no SD do Centro Hospitalar de
Médica oto-rino-laringologista. Serviço de ORL do Hospital Cuf, Lisboa. Lisboa/Capuchos.

Luísa Monteiro Ana Fidalgo


Mestre em Medicina/ORL pela FM/UL. Médica- oto-rino-laringologis- Médica dermatologista. Assistente no SD do Centro Hospitalar de
ta. Chefe de Serviço e Directora do Serviço de ORL do HDE. Lisboa/Capuchos.
VIII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Luísa Caldas Lopes


Médica dermatologista. Assistente no SD do Centro Hospitalar de
Lisboa/Capuchos.

Filipa Santos
Médica pediatra-gastrenterologista . Assistente de Pediatria na Unidade
de Gastrenterologia (UGE) do HDE.

Gonçalo Cordeiro Ferreira


Professor Auxiliar Convidado de Pediatria da FCM/UNL. Médico- pe-
diatra gastrenterologista. Director da Área de Pediatria Médica do
HDE.

José Cabral
Médico pediatra- gastrenterologista. Chefe de Serviço de Pediatria.
Coordenador da UGE do HDE.

Isabel Afonso
Médica pediatra. Assistente de Pediatria na UGE do HDE.

Rui Alves
Cirurgião pediatra. Assistente Graduado de Cirurgia Pediátrica no HDE.
Assistente Convidado de Pediatria da FCM/UNL.

Sara Silva
Médica pediatra e Assistente Hospitalar no HDE.

Raul Silva
Médico pediatra. Assistente Graduado de Pediatria no HDE. Assistente
Convidado de Pediatria da FCM-UNL.

Inês Pó
Médica pediatra-gastrenterologista. Assistente Graduada de Pediatria
na UGE do HDE.

Maria de Lurdes Torre


Médica pediatra. Assistente de Pediatria no Departamento da Criança
do HFF, Amadora/Sintra.

Isabel Gonçalves
Médica pediatra-gastrenterologista. Chefe de Serviço de Pediatria no
Hospital Pediátrico de Coimbra.

Helena Flores
Médica pediatra-gastrenterologista. Assistente de Pediatria na UGE do
HDE.

Mário Chagas
Médico pediatra. Chefe de Serviço e Director do Serviço de Pediatria ex-
officio do Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco
Gentil (IPOLFG).

Ana Teixeira
Médica pediatra. Assistente de Pediatria no Serviço de Pediatria do
IPOLFG,Lisboa.

Duarte Salgado
Médico neurologista. Chefe de Serviço de Neurologia no IPOLFG, Lisboa.
Índice

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXI 10 Crianças e adolescentes com necessidades


Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXIII especiais – Aspectos gerais da habilitação
Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXV e reabilitação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
Glossário Geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXVII Maria Helena Portela
Abreviaturas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXXV 11 Continuidade de cuidados à criança e
adolescente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
Maria do Céu Soares Machado

PARTE III Genética e Dismorfologia 69


I VOLUME 12 Genética Médica na Clínica Pediátrica . . 70
Luís Nunes, Raquel Carvalhas e Teresa Kay
PARTE I Introdução à Clínica Pediátrica 1 13 Genética: Importância do laboratório . . . 75
1 A Criança em Portugal e no Mundo. Salomé Almeida, Teresa Kay, Raquel Carvalhas e Luís Nunes
Demografia e Saúde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 14 Formas de hereditariedade . . . . . . . . . . . . . 78
João M. Videira Amaral Salomé Almeida, Teresa Kay, Raquel Carvalhas e Luís Nunes
2 Os superiores interesses da criança . . . . . 17 15 Anomalias cromossómicas . . . . . . . . . . . . . 83
João Gomes-Pedro Luís Nunes, Márcia Rodrigues, Salomé Almeida,
3 Ética, humanização Raquel Carvalhas e Teresa Kay
e cuidados paliativos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 16 Doenças multifactoriais . . . . . . . . . . . . . . . 88
Maria do Carmo Vale e João M. Videira Amaral Luís Nunes, Rui Gonçalves, Salomé Almeida e Teresa Kay
4 Formação em Pediatria 17 Diagnóstico pré-natal . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
na pós-graduação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 Teresa Kay, Diana Antunes, Raquel Carvalhas e Luís Nunes
João M. Videira Amaral 18 Anomalias congénitas . . . . . . . . . . . . . . . . . 98
5 Investigação e clínica pediátrica . . . . . . . . 34 Maria de Jesus Feijoó e João M. Videira Amaral
João M. Videira Amaral
PARTE IV Crescimento Normal
PARTE II Clínica Pediátrica Hospitalar e Patológico 111
e Extra-Hospitalar 39 19 Crescimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112
6 Clínica pediátrica hospitalar . . . . . . . . . . . 40 Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina
Mário Coelho 20 Baixa estatura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119
7 Aspectos metodológicos da abordagem Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina
de casos clínicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
João M. Videira Amaral PARTE V Desenvolvimento
8 A Imagiologia em Clínica Pediátrica . . . . 49 e Comportamento 127
Francisco Abecasis, Eugénia Soares e Leonor Bastos Gomes 21 Desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
9 Aspectos do Serviço de Patologia Clínica Maria do Carmo Vale
num hospital pediátrico . . . . . . . . . . . . . . . 59 22 Desenvolvimento e intervenção . . . . . . . 131
Rosa Maria Barros, Antonieta Viveiros, Antonieta Bento, Ana Alegria, João Estrada e Maria do Carmo Vale
Isabel Daniel, Isabel Griff, Margarida Guimarães, Virgínia 23 Comportamento e temperamento . . . . . . 136
Loureiro, Vitória Matos Maria do Carmo Vale
X TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

24 Deficiência mental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140 PARTE VIII Clínica da Adolescência 223


Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto 43 Adolescência, crescimento
25 Perturbações da linguagem e desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 224
e comunicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143 Maria do Carmo Silva Pinto
Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto 44 Adolescência e comportamento:
26 Habilitação da criança com dificuldades abordagem clínica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 234
na comunicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147 Maria do Carmo Silva Pinto
Isabel Portugal
27 Aprendizagem e insucesso escolar . . . . . 148 PARTE IX Aspectos da Relação entre Medicina
Maria do Carmo Vale Pediátrica e Medicina do Adulto 241
28 Perturbações do sono . . . . . . . . . . . . . . . . 152 45 Doenças da idade pediátrica com
Maria do Carmo Vale e João M. Videira Amaral repercussão no adulto . . . . . . . . . . . . . . . . 242
29 Síndroma da apneia obstrutiva do sono João M. Videira Amaral
(SAOS) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156 46 Hipertensão arterial em saúde infantil
Mário Coelho e juvenil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 252
30 Perturbações do espectro do autismo . . 162 João M. Videira Amaral
Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto 47 Doença aterosclerótica . . . . . . . . . . . . . . . 258
31 Perturbações de hiperactividade João M. Videira Amaral
e défice de atenção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166
Mónica Pinto e Maria do Carmo Vale PARTE X Fluidos e Electrólitos 263
48 Equilíbrio hidroelectrolítico
PARTE VI Pedopsiquiatria 171 e ácido-base . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 264
32 Introdução à Clínica Pedopsiquiátrica . . . 172 Maria do Carmo Vale, João Estrada e João M. Videira Amaral
Maria José Gonçalves 49 Desidratação aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . 270
33 Perturbações da ansiedade . . . . . . . . . . . . 175 Maria do Carmo Vale, João Estrada e João M. Videira Amaral
Maria José Gonçalves e Margarida Marques 50 Reidratação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272
34 Depressão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178 Maria do Carmo Vale, João Estrada e João M. Videira Amaral
Maria José Gonçalves e Margarida Marques
35 Psicoses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181 PARTE XI Nutrição 281
Maria José Gonçalves e Margarida Marques 51 Nutrientes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 282
36 Perturbações do comportamento . . . . . . 183 Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral
Maria José Gonçalves e Margarida Marques 52 Alimentação com leite materno . . . . . . . 296
João M. Videira Amaral
PARTE VII Ambiente, Risco e Morbilidade 187 53 Leites e fórmulas infantis . . . . . . . . . . . . . 302
37 A criança maltratada . . . . . . . . . . . . . . . . . 188 Carla Rego e António Guerra
Deolinda Barata e Ana Leça 54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos . 310
38 Traumatismos, ferimentos e lesões Aires Cleofas da Silva
acidentais – O papel da prevenção . . . . . 196 55 Alimentação diversificada
Mário Cordeiro no primeiro ano de vida . . . . . . . . . . . . . . 316
39 Intoxicações agudas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207 António Guerra
António Marques e Margarida Santos 56 Alimentação após o primeiro ano de vida
40 Viagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211 incluindo as idades pré-escolar, escolar
Luís Varandas e adolescência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325
41 Acidentes de submersão . . . . . . . . . . . . . . 215 Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral
José Ramos e Isabel Fernandes 57 Obesidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 329
42 Sindroma da morte súbita do lactente . . 218 Carla Rêgo
Hercília Guimarães 58 Síndromas de má-nutrição
energético-proteica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338
Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral
Índice XI

59 Carências vitamínicas e minerais . . . . . . 343 79 Avaliação audiológica . . . . . . . . . . . . . . . . 439


João M. Videira Amaral Luísa Monteiro
60 Regimes vegetarianos
e erros alimentares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 350 PARTE XIV Pneumologia 449
João M. Videira Amaral 80 Anomalias da parede do tórax . . . . . . . . . 450
61 Alterações do comportamento João M. Videira Amaral
alimentar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 352 81 Anomalias congénitas do sistema
João M. Videira Amaral respiratório . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 452
Julião Magalhães e João M. Videira Amaral
PARTE XII Imunoalergologia 357 82 Pneumonia adquirida
62 Doenças alérgicas na criança – na comunidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 456
Epidemiologia e prevenção . . . . . . . . . . . 358 Laura Oliveira e Fátima Abreu
J. Rosado Pinto 83 Derrame pleural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 464
63 Aspectos do diagnóstico Fátima Abreu
da doença alérgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 362 84 Pneumonia recorrente . . . . . . . . . . . . . . . . 469
Ângela Gaspar José Guimarães
64 Asma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 369 85 Bronquiolite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . 473
Mário Morais de Almeida António Amador e Joaquim Sequeira
65 Rinite alérgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 383 86 Bronquiolite obliterante . . . . . . . . . . . . . . 481
Graça Pires José Guimarães
66 Alergia de expressão cutânea . . . . . . . . . 386 87 Bronquite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 484
Cristina Santa Marta João M. Videira Amaral
67 Alergia medicamentosa . . . . . . . . . . . . . . 394 88 Bronquiectasias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 486
Paula Leiria Pinto Ana Margarida Reis e José Cavaco
68 Alergia e intolerância alimentares . . . . . 399 89 Síndromas de aspiração . . . . . . . . . . . . . . 489
Sara Prates João M. Videira Amaral
69 Imunodeficiências primárias . . . . . . . . . . 403 90 Hemossiderose pulmonar e síndromas
Conceição Neves de hemorragia alveolar difusa . . . . . . . . . 491
70 Síndroma de imunodeficiência Mafalda Paiva e A. Bessa Almeida
adquirida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 409 91 Fibrose quística . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 495
António Bessa Almeida, Júlia Galhardo e Ema Leal Ana Maia Pita e José Cavaco
92 Reabilitação respiratória . . . . . . . . . . . . . . 501
PARTE XIII Otorrinolaringologia 417 António Teixeira
71 Faringite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 418
Carlos Ruah PARTE XV Dermatologia 505
72 Amigdalite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 419 93 Introdução à Dermatologia pediátrica . . . 506
Carlos Ruah António Pinto Soares
73 Adenoidite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 422 94 Dermatite seborreica . . . . . . . . . . . . . . . . . 507
Carlos Ruah Teresa Fiadeiro
74 Rino- sinusite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 423 95 Dermatite atópica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 509
Vital Calado Maria João Paiva Lopes
75 Otite média aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 427 96 Acne . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 513
Vital Calado Ana Macedo Ferreira
76 Otite sero- mucosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 431 97 Dermatite das fraldas . . . . . . . . . . . . . . . . 517
Vital Calado Teresa Fiadeiro
77 Otomastoidite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . 434 98 Psoríase . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 519
Maria Caçador e Carlos Ruah Ana Fidalgo
78 Patologia inflamatória aguda laríngea . . 436 99 Pitiríase rosada (doença de Gibert) . . . . 522
Carlos Ruah Ana Fidalgo
XII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

100 Pediculose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 523 123 Transplantação hepática . . . . . . . . . . . . . . 601


Luísa Caldas Lopes Isabel Gonçalves
101 Escabiose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 524 124 Pancreatite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 606
Luísa Caldas Lopes Helena Flores
102 Molusco contagioso . . . . . . . . . . . . . . . . . . 526
Maria João Paiva Lopes PARTE XVII Oncologia 611
125 Introdução à Oncologia Pediátrica . . . . . 612
PARTE XVI Gastrenterologia Mário Chagas
e Hepatologia 529 126 Tumores, ambiente e genética . . . . . . . . . 614
103 Vómitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 530 Mário Chagas
Mafalda Paiva e Filipa Santos 127 Aspectos básicos do diagnóstico
104 Refluxo gastresofágico . . . . . . . . . . . . . . . 533 oncológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 617
Gonçalo Cordeiro Ferreira Mário Chagas
105 Dor abdominal recorrente . . . . . . . . . . . . 538 128 Aspectos básicos do tratamento
José Cabral oncológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 621
106 Doença péptica e Helicobacter pylori . . . 543 Mário Chagas e Ana Teixeira
José Cabral 129 Leucemias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 627
107 Gastrenterite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . 546 Mário Chagas
Mafalda Paiva, Filipa Santos e João M. Videira Amaral 130 Linfomas não Hodgkin . . . . . . . . . . . . . . . 632
108 Diarreia crónica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 551 Mário Chagas
Gonçalo Cordeiro Ferreira 131 Linfomas de Hodgkin . . . . . . . . . . . . . . . . 635
109 Doença celíaca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 554 Mário Chagas
Gonçalo Cordeiro Ferreira 132 Neuroblastoma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 637
110 Giardíase . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 556 Mário Chagas
Gonçalo Cordeiro Ferreira 133 Tumor de Wilms . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 640
111 Diarreia crónica inespecífica . . . . . . . . . . 557 Mário Chagas
Gonçalo Cordeiro Ferreira 134 Tumores do sistema nervoso central . . . . 642
112 Doença inflamatória do intestino . . . . . . 558 Mário Chagas e Duarte Salgado
Isabel Afonso
113 Obstipação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 561
Gonçalo Cordeiro Ferreira II VOLUME
114 Doença de Hirschprung . . . . . . . . . . . . . . 567
Rui Alves PARTE XVIII Hematologia 647
115 Síndroma do intestino curto . . . . . . . . . . 570 135 Hematopoiese . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 648
Sara Silva e Raul Silva Ema Leal e A. Bessa Almeida
116 Hepatite vírica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 577 136 Síndromas hematológicas em idade
Gonçalo Cordeiro Ferreira pediátrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 652
117 Hepatite autoimune . . . . . . . . . . . . . . . . . . 584 João M. Videira Amaral
Gonçalo Cordeiro Ferreira 137 Anemias. Generalidades . . . . . . . . . . . . . 658
118 Colestase do recém-nascido e lactente . . . 587 João M. Videira Amaral
Inês Pó 138 Anemia ferropénica . . . . . . . . . . . . . . . . . . 661
119 Doença de Wilson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 591 Júlia Galhardo e A. Bessa Almeida
Isabel Afonso 139 Anemia megaloblástica . . . . . . . . . . . . . . . 670
120 Cirrose hepática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 593 João M. Videira Amaral
Maria de Lurdes Torre 140 Anemias hemolíticas. Generalidades . . 673
121 Hipertensão portal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 596 Lígia Braga
Maria de Lurdes Torre 141 Esferocitose hereditária . . . . . . . . . . . . . . 674
122 Insuficiência hepática aguda . . . . . . . . . . 599 Lígia Braga
Maria de Lurdes Torre
Índice XIII

142 Anemias hemolíticas por defeitos 163 Alterações tubulares renais . . . . . . . . . . . 778
enzimáticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 679 Isabel Castro
Liza Aguiar, Faisana Amod e Lígia Braga 164 Infecção urinária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 785
143 Anemias hemolíticas por defeitos Arlete Neto
da hemoglobina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 684 165 Anomalias congénitas do rim . . . . . . . . . 795
Lígia Braga, João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
144 Hemoglobinúria paroxística nocturna . . . 700 166 Refluxo vésico-ureteral . . . . . . . . . . . . . . . 797
João M. Videira Amaral Rui Alves
145 Anemias hemolíticas de causa 167 Uropatia obstrutiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . 801
extrínseca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 701 Rui Alves
João M. Videira Amaral 168 Diagnóstico pré-natal das uropatias
146 Policitémia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 704 malformativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 807
João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
147 Neutropénia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 705 169 Insuficiência renal aguda . . . . . . . . . . . . . 809
Ema Leal e A. Bessa Almeida Isabel Castro
148 Trombocitopénia e trombocitose . . . . . 711 170 Insuficiência renal crónica . . . . . . . . . . . . 812
Júlia Galhardo e A. Bessa Almeida Isabel Castro
149 Anomalias funcionais das plaquetas . . . 717 171 Alterações da bexiga . . . . . . . . . . . . . . . . . 815
João M. Videira Amaral Rui Alves
150 Aplasia medular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 718 172 Alterações do pénis e uretra . . . . . . . . . . . 818
João M. Videira Amaral Rui Alves
151 Hemofilias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 722 173 Alterações do conteúdo escrotal . . . . . . . 823
Andreia Teixeira e A. Bessa Almeida Rui Alves e João M. Videira Amaral
152 Doença de von Willebrand . . . . . . . . . . . 729
João M. Videira Amaral PARTE XX Endocrinologia 829
153 Hipercoagulabilidade 174 Doenças da supra-renal.
e doença trombótica . . . . . . . . . . . . . . . . . . 731 Generalidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 830
João M. Videira Amaral Maria de Lurdes Lopes
154 Coagulação intravascular 175 Hiperplasia congénita da supra-renal . . . . 832
disseminada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 734 Maria de Lurdes Lopes
Deolinda Barata e Sofia Sarafana 176 Insuficiência supra-renal . . . . . . . . . . . . . 837
155 Terapêutica transfusional . . . . . . . . . . . . . 742 Maria de Lurdes Lopes
Deonilde Espírito Santo 177 Síndroma de Cushing . . . . . . . . . . . . . . . . 842
Maria de Lurdes Lopes
PARTE XIX Nefro-Urologia 753 178 Tumores do córtex supra-renal . . . . . . . . 845
156 Introdução à Nefro-Urologia . . . . . . . . . . 754 Maria de Lurdes Lopes
Judite Batista 179 Feocromocitoma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 847
157 Glomerulonefrite aguda . . . . . . . . . . . . . . 755 João M. Videira Amaral
Ana Paula Serrão e Gisela Neto 180 Doenças da tiroideia . . . . . . . . . . . . . . . . . 849
158 Glomerulonefrite crónica . . . . . . . . . . . . . 758 Catarina Limbert
Ana Paula Serrão e Gisela Neto 181 Puberdade normal e patológica . . . . . . . 860
159 Síndroma nefrótica idiopática . . . . . . . . . 764 Guilhermina Romão
Judite Batista 182 Diabetes mellitus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 866
160 Síndroma hemolítica urémica . . . . . . . . . 769 Rosa Pina
Ana Paula Serrão 183 Cetoacidose diabética . . . . . . . . . . . . . . . . 880
161 Trombose da veia renal . . . . . . . . . . . . . . . 771 João Estrada e Maria do Carmo Vale
João M. Videira Amaral 184 Hipoglicémia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 885
162 Hipertensão arterial e doença renal . . . . 772 João M. Videira Amaral
Margarida Abranches
XIV TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

PARTE XXI Neurologia 891 206 Coarctação da aorta . . . . . . . . . . . . . . . . . . 995


185 Cefaleias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 892 Hugo Vinhas, Conceição Trigo e Sashicanta Kaku
José Pedro Vieira 207 Estenose aórtica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 998
186 Ataxia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 898 António Fiarresga e Sashicanta Kaku
José Pedro Vieira 208 Síndroma do coração
187 Epilepsia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 903 esquerdo hipoplásico . . . . . . . . . . . . . . . 1002
Ana Isabel Dias Sofia Ferreira, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku
188 Acidentes vasculares cerebrais . . . . . . . . 913 209 Estenose pulmonar . . . . . . . . . . . . . . . . . 1005
Clara Abadesso e José Pedro Vieira Anabela Paixão, Marisa Peres e Sashicanta Kaku
189 Paralisia cerebral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 920 210 Tetralogia de Fallot . . . . . . . . . . . . . . . . . 1007
Eulália Calado e Sandra Jacinto Isabel Freitas, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku
190 Defeitos do tubo neural . . . . . . . . . . . . . . 927 211 Transposição completa
Eulália Calado das grandes artérias . . . . . . . . . . . . . . . . . 1011
191 Habilitação para a marcha e ajudas técnicas Sashicanta Kaku e Miguel Pacheco
em crianças com spina bifida . . . . . . . . . . 934 212 Doença de Kawasaki e doença cardíaca –
Clara Loff Abordagem multidisciplinar . . . . . . . . . 1014
192 Discranias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 937 Anabela Paixão e Sashicanta Kaku (Cardiologia)
João M. Videira Amaral Júlia Galhardo e Ana Leça (Pediatria Médica)
193 Alterações da migração neuronal 213 Cardite reumática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1021
e outras anomalias do SNC . . . . . . . . . . . 942 António J. Macedo e Sashicanta Kaku
João M. Videira Amaral 214 Endocardite infecciosa . . . . . . . . . . . . . . 1029
194 Síndromas neurocutâneas . . . . . . . . . . . . . 944 Isabel Freitas, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku
Elisabete Gonçalves, Rita Silva e Eulália Calado 215 Miocardite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1031
195 Doenças neuromusculares . . . . . . . . . . . . 949 José Diogo Martins e Sashicanta Kaku
Fernando Tapadinhas e José Pedro Vieira 216 Pericardite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1033
196 Doenças neurodegenerativas . . . . . . . . . . 960 José Diogo Martins e Sashicanta Kaku
Carla Moço e Ana Moreira 217 Cardiomiopatias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1035
197 Reabilitação neurológica . . . . . . . . . . . . . . 965 José Diogo Martins e Sashicanta Kaku
Aldina Alves
PARTE XXIII Reumatologia 1041
PARTE XXII Cardiologia 971 218 Introdução à clínica das doenças
198 Introdução à Cardiologia Pediátrica . . . 972 reumáticas juvenis . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1042
Sashicanta Kaku J. A. Melo Gomes
199 Cardiologia fetal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 973 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) . . . . . 1043
Graça Nogueira e António J. Macedo J. A. Melo Gomes
200 Não doença e pseudodoença cardíaca 220 Doenças reumáticas juvenis englobadas
em idade pediátrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . 976 no grupo das AIJ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1067
Fátima F. Pinto e Sashicanta Kaku J.A. Melo Gomes
201 Cardiopatias congénitas. 221 Síndromas auto-inflamatórias juvenis . . 1074
Grupos fisiopatológicos . . . . . . . . . . . . . . 978 Sónia Melo Gomes, Marta Conde e J.A. Melo Gomes
Anabela Paixão e Sashicanta Kaku 222 Lúpus eritematoso sistémico infantil
202 Persistência do canal arterial . . . . . . . . . . 981 e juvenil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1081
Ana Cristina Ferreira, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku Maria Manuela Costa
203 Comunicação interauricular . . . . . . . . . . . 984 223 Dermatomiosite e polimiosite juvenis . 1092
Ana Carriço, Fátima F. Pinto e Sashicanta Kaku Margarida P. Ramos
204 Comunicação interventricular . . . . . . . . . 987 224 Esclerodermias juvenis . . . . . . . . . . . . . . 1097
Anabela Paixão, Ana Cristina Ferreira e Sashicanta Kaku Rui Figueiredo e J. A. Melo Gomes
205 Defeitos do septo aurículo-ventricular . . . 990 225 Vasculites sistémicas . . . . . . . . . . . . . . . . 1101
Mónica Rebelo e António J. Macedo Margarida P. Ramos
Índice XV

226 Febre reumática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1119 245 Reabilitação de anomalias congénitas


Maria Teresa Ramos Ascensão Terreri da mão. Noções gerais . . . . . . . . . . . . . . . 1196
227 Dores de crescimento . . . . . . . . . . . . . . . 1125 Maria José Costa
J. A. Melo Gomes 246 Reabilitação de anomalias congénitas e
adquiridas dos membros inferiores.
PARTE XXIV Osteocondrodisplasias 1127 Noções gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1200
228 Displasias esqueléticas e doenças afins. M. Madalena de Quinhones Levy
Conceitos fundamentais . . . . . . . . . . . . . 1128
Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral PARTE XXVI Oftalmologia 1203
229 Osteogénese imperfeita . . . . . . . . . . . . . 1137 247 Introdução à Oftalmologia Pediátrica . . 1204
Ignacio Villa Elizaga João Goyri O’Neill
230 Dentinogénese imperfeita . . . . . . . . . . . 1141 248 Exame oftalmológico
Ignacio Villa Elizaga na idade pediátrica . . . . . . . . . . . . . . . . . 1208
231 Síndromas de Ehlers-Danlos . . . . . . . . . 1142 João Goyri O’Neill
Ignacio Villa Elizaga 249 Anomalias de refracção (ametropia) . . 1216
232 Síndroma de Alport . . . . . . . . . . . . . . . . . 1145 João Goyri O’Neill
Ignacio Villa Elizaga 250 Estrabismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1217
233 Epidermólise bolhosa . . . . . . . . . . . . . . . 1146 Ana Xavier
Ignacio Villa Elizaga 251 Ambliopia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1219
234 Síndroma de Marfan e aracnodactilia João Goyri O’Neill e J.L. Dória
congénita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1148 252 Obstrução do aparelho lacrimal . . . . . . 1221
Ignacio Villa Elizaga João Goyri O’Neill e J.L. Dória
235 Cutis laxa, pseudoxantoma elástico 253 Glaucoma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1224
e síndroma de Williams . . . . . . . . . . . . . 1150 Cristina Brito
Ignacio Villa Elizaga 254 Síndroma do “olho vermelho” . . . . . . . 1227
José Nepomuceno
PARTE XXV Ortopedia 1155 255 Doenças da retina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1232
236 Introdução à Ortopedia Pediátrica . . . . 1156 Cristina Brito
J. de Salis Amaral 256 Catarata . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1244
237 Osteomielite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1161 Cristina Brito e J. Mesquita
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 257 Traumatismos óculo-orbitários . . . . . . . 1246
238 Artrite séptica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1164 J. Mesquita
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo
239 Tumores ósseos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1167 PARTE XXVII Estomatologia 1251
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 258 Crescimento e desenvolvimento
240 Desvios axiais dos membros . . . . . . . . . 1169 maxilo-facial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1252
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo Rosário Malheiro
241 Patologia regional específica 259 Oclusão e aspectos da relação molar
do membro superior . . . . . . . . . . . . . . . . 1172 e da relação incisiva . . . . . . . . . . . . . . . . . 1257
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo Rosário Malheiro
242 Patologia regional específica 260 Traumatologia alvéolo-dentária . . . . . . 1259
do membro inferior . . . . . . . . . . . . . . . . . 1173 Rosário Malheiro
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 261 Cárie dentária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1268
243 Patologia regional específica do tronco . 1186 Rosário Malheiro
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 262 Principais síndromas alvéolo-dentárias . 1276
244 Patologia traumática . . . . . . . . . . . . . . . . . 1191 Rosário Malheiro
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 263 Infecções odontogénicas . . . . . . . . . . . . . 1278
Rosário Malheiro
XVI TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

III VOLUME 282 Infecçções por Haemophilus influenzae . . 1434


Maria João Brito
PARTE XXVIII Urgências e Emergências. 283 Tosse convulsa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1440
Tópicos seleccionados 1285 Ana Leça e João Farela Neves
264 Serviços de Urgência e Emergência. 284 Doença meningocócica . . . . . . . . . . . . . . 1446
Aspectos organizativos . . . . . . . . . . . . . . 1286 João M. Videira Amaral
Deolinda Barata e António Marques 285 Infecções por Salmonella . . . . . . . . . . . . 1450
265 Reanimação cárdio-respiratória . . . . . . 1293 João M. Videira Amaral
Margarida Santos e António Marques 286 Brucelose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1459
266 Estado de mal epiléptico . . . . . . . . . . . . 1305 Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
Rosalina Valente e Gabriela Pereira 287 Meningite bacteriana pós-neonatal . . . 1464
267 Coma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1309 Ana Leça
Gabriela Pereira e Rosalina Valente 288 Riquetsioses (excluindo febre
268 Choque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1315 escaronodular) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1474
Lurdes Ventura e Deolinda Barata Ana Leça e Mónica Baptista
269 Sépsis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1323 289 Febre escaronodular . . . . . . . . . . . . . . . . 1477
Lurdes Ventura e Deolinda Barata Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
270 Hipertermia e Hipotermia . . . . . . . . . . . 1329 290 Febre Q . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1481
Isabel Fernandes e Sérgio Lamy Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
271 Traumatismos cranioencefálicos . . . . . . 1336 291 Doença do arranhão do gato . . . . . . . . . 1483
Sérgio Lamy e Isabel Fernandes Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
272 Queimaduras. Abordagem 292 Leptospirose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1486
multidisciplinar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1344 Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
Rui Alves (Cirurgia) e Maria José Costa (Medicina 293 Doença de Lyme . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1489
Física e Reabilitação) Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
273 Mordeduras e picadas . . . . . . . . . . . . . . . 1355 294 Febre recorrente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1493
João M. Videira Amaral Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
295 Tuberculose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1496
PARTE XXIX Infecciologia 1361 Ana Leça
274 Imunizações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1362 296 Infecções por Mycoplasma . . . . . . . . . . . 1513
Ana Leça e João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
275 Princípios gerais da terapêutica 297 Infecções por Parvovírus B19 . . . . . . . . 1515
antimicrobiana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1381 Conceição Neves
A. Bessa Almeida e Ana Rute Ferreira 298 Infecções por Vírus Herpes
275 Doenças infecciosas exantemáticas (Varicela-Zóster, Citomegalovírus
– Uma visão global . . . . . . . . . . . . . . . . . 1393 e Epstein-Barr) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1520
Andrea Teixeira e Luís Varandas Ana Leça e Raquel Ferreira
277 Febre sem foco de infecção detectável . . . 1397 299 Infecções por Enterovírus
Ana Leça e Cristina Henriques (excluindo Poliovírus) . . . . . . . . . . . . . . . 1531
278 Doença pneumocócica . . . . . . . . . . . . . . . 1403 Ana Leça e Paula Kjollerstrom
Maria João Brito 300 Meningoencefalites víricas . . . . . . . . . . 1537
279 Escarlatina e outras infecções Rute Neves, Dora Gomes e João Baldaia,
por Streptococcus pyogenes . . . . . . . . . . 1409 301 Parasitoses. Abordagem global . . . . . . . 1541
Ana Serrão Neto e Filomena Cândido Luís Varandas
280 Infecções da pele e dos tecidos moles . . . 1416 302 Calazar (Leishmaniose viseral) . . . . . . . 1553
Leonor Carvalho e Ana Leça João M. Videira Amaral
281 Celulites periorbitárias e orbitárias . . . 1430 303 Malária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1558
Ana Leça e Leonor Carvalho Luís Varandas
Índice XVII

304 Infecções por fungos . . . . . . . . . . . . . . . . 1564 PARTE XXXI Perinatologia


Raquel Ferreira e João M. Videira Amaral e Neonatologia 1669
305 Infecções e cuidados de saúde . . . . . . . 1582 *Feto e recém-nascido
Paula Kjollerstrom, Cristina Henriques e João M. Videira 324 Aspectos da Medicina Perinatal . . . . . . 1670
Amaral Ricardo Jorge Fonseca
325 Introdução à Neonatologia . . . . . . . . . . . 1677
PARTE XXX Cirurgia 1587 João M. Videira Amaral
306 Anomalias bucofaciais . . . . . . . . . . . . . . 1588 326 Adaptação fetal à vida extra-uterina . . 1687
Julião Magalhães João M. Videira Amaral
307 Fístulas e quistos da cabeça e pescoço . . . 1591 327 Exame clínico do recém-nascido . . . . . . 1702
Julião Magalhães João M. Videira Amaral
308 Hérnia diafragmática congénita . . . . . . 1595 328 Cuidados ao recém-nascido aparentemente
Julião Magalhães, Rui Alves e João M. Videira Amaral saudável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1718
309 Hérnia diafragmática congénita como Cláudia Santos, Helena Carreiro e Maria do Céu Machado
modelo em investigação. Implicações
clínicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1602 *Recém-nascido de alto risco
Jorge Correia-Pinto, Maria João Baptista e Cristina 329 Reanimação do recém-nascido
Nogueira-Silva no bloco de partos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1722
310 Eventração diafragmática . . . . . . . . . . . . 1608 Filomena Pinto, Isabel Santos, Teresa Costa e A. Marques
João M. Videira Amaral Valido e João M. Videira Amaral
311 Atrésia do esófago . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1610 330 Alterações do crescimento fetal . . . . . . 1735
Rui Alves e João M. Videira Amaral Luís Pereira da Silva e João M. Videira Amaral
312 Onfalocele . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1614 331 Prematuridade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1742
Rui Alves Graça Henriques, Fernando Chaves e João M. Videira Amaral
313 Gastrosquise e outros defeitos 332 Recém-nascidos de gestação múltipla . . . 1752
da parede abdominal . . . . . . . . . . . . . . . . 1617 Daniel Virella e Ana Dias Alves
Rui Alves 333 Embriofetopatia diabética . . . . . . . . . . . 1762
314 Hérnias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1621 M.R.G Carrapato, S. Tavares, C. Prior e T. Caldeira
Julião Magalhães 334 Recém-nascido de mãe
315 Síndromas de oclusão do tubo digestivo 1626 toxicodependente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1771
Julião Magalhães João M. Videira Amaral
316 Estenose hipertrófica do piloro . . . . . . . 1638 335 Dor no recém-nascido . . . . . . . . . . . . . . . 1778
Julião Magalhães João M. Videira Amaral e Luís Pereira da Silva
317 Anomalias ano-rectais . . . . . . . . . . . . . . . 1641 336 Cuidados paliativos ao recém-nascido . . . 1784
Rui Alves João M. Videira Amaral
318 Hemorragias do tubo digestivo . . . . . . . 1644 337 Transporte do recém-nascido . . . . . . . . . 1785
João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
319 Divertículo de Meckel . . . . . . . . . . . . . . 1647
Julião Magalhães *Problemas hidroelectrolíticos e metabólicos
320 Apendicite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1649 338 Balanço hidroelectrolítico
Julião Magalhães no recém-nascido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1790
321 Enterocolite necrosante . . . . . . . . . . . . . . 1652 João M. Videira Amaral
Rui Alves e João M. Videira Amaral 339 Alterações do metabolismo do cálcio,
322 Aspectos da Ginecologia Pediátrica . . . 1661 fósforo e magnésio . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1799
Rui Alves Maria João Lage, Cristina Henriques e João M. Videira
323 Idades recomendadas para intervenção Amaral
cirúrgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1667 340 Alterações do metabolismo da glucose . . 1806
Julião Magalhães Maria João Lage, Cristina Henriques e João M. Videira
Amaral
XVIII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

341 Insuficiência renal aguda 356 Trombocitopénia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1919


no recém-nascido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1814 António Vieira Macedo e João M. Videira Amaral
João M. Videira Amaral 357 Doença hemorrágica por défice
de vitamina K . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1925
*Alimentação e nutrição no recém-nascido João M. Videira Amaral
de alto risco 358 Icterícia neonatal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1928
342 Nutrição entérica no recém-nascido João M. Videira Amaral
pré-termo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1822
João M. Videira Amaral *Infecção do feto e recém-nascido
343 Nutrição parentérica 359 Aspectos gerais da infecção
no recém-nascido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1828 no recém-nascido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1950
Luís Pereira-da-Silva Maria Teresa Neto
344 Doença metabólica óssea 360 Infecção congénita . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1953
da prematuridade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1840 Maria Teresa Neto
João M. Videira Amaral 361 Infecção bacteriana de origem materna . . 1964
Maria Teresa Neto
*Problemas respiratórios do recém-nascido 362 Infecção associada à prestação
345 Problemas respiratórios do recém-nascido. de cuidados de saúde . . . . . . . . . . . . . . . 1967
Generalidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1845 Maria Teresa Neto
Marta Nogueira, J. Nona, A. Marques Valido
e João M. Videira Amaral *Problemas neurológicos e traumáticos
346 Doença da membrana hialina . . . . . . . . 1856 363 Traumatismo de parto . . . . . . . . . . . . . . . 1970
Marta Nogueira, J. Nona, A. Marques Valido e João Lincoln Justo Silva
M. Videira Amaral 364 Convulsões no recém-nascido . . . . . . . . 1982
347 Taquipneia transitória . . . . . . . . . . . . . . . 1865 Leonor Duarte e João M. Videira Amaral
Marta Nogueira, J. Nona, A. Marques Valido e João 365 Encefalopatia hipóxico-isquémica . . . . 1988
M. Videira Amaral Leonor Duarte
348 Síndroma de aspiração meconial . . . . . 1868 366 Hemorragia intraperiventricular . . . . . . 1994
Marta Nogueira, J. Nona, A. Marques Valido e João Leonor Duarte
M. Videira Amaral 367 Leucomalácia periventricular . . . . . . . . 2001
349 Síndromas de ar ectópico . . . . . . . . . . . . 1873 Leonor Duarte
Marta Nogueira, J. Nona, A. Marques Valido e João
M. Videira Amaral PARTE XXXII Doenças Hereditárias
350 Hemorragia pulmonar . . . . . . . . . . . . . . 1880 do Metabolismo 2005
João M.Videira Amaral 368 Introdução à clínica das doenças
351 Hipertensão pulmonar persistente . . . . 1882 hereditárias do metabolismo . . . . . . . . . 2006
João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
352 Assistência ventilatória 369 Defeitos do metabolismo
no recém-nascido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1887 dos aminoácidos e proteínas . . . . . . . . . 2008
J. Nona, A. Marques Valido e João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
353 Displasia broncopulmonar . . . . . . . . . . 1897 370 Defeitos do metabolismo dos hidratos
Marta Nogueira, A.Marques Valido e João M. Videira Amaral de carbono . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2017
João M. Videira Amaral
*Problemas hematológicos e afins 371 Doenças do ácido nucleico e do
354 Anemia neonatal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1908 metabolismo do heme . . . . . . . . . . . . . . . 2024
Ana Nunes e João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
355 Policitémia e hiperviscosidade . . . . . . . 1914 372 Doenças dos organelos . . . . . . . . . . . . . . 2027
Ana Nunes, Maria dos Anjos Bispo e João M. Videira João M. Videira Amaral
Amaral
Índice XIX

373 Doenças do metabolismo energético


mitocondrial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2044
João M. Videira Amaral
374 Defeitos do metabolismo dos lípidos
incluindo dislipoproteinémias . . . . . . . .2057
João M. Videira Amaral

PARTE XXXIII Clínica Pediátrica e Novos


Paradigmas 2073
375 Medicina baseada na evidência-princípios
e aplicações em Pediatria . . . . . . . . . . . . 2074
Paulo Sousa e Isabel Saraiva de Melo
376 Qualidade e segurança em cuidados
de saúde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2079
Maria João Lage e Idalina Bordalo

Anexos 2085

Índice remissivo 2103


Prefácio

Como referi no Prefácio da 1ª edição desta obra, divulgada em 2008, há muito que se
sentia em Portugal a falta de um tratado dedicado à prática clínica pediátrica.

Felizmente, o Prof. João Videira Amaral chamou a si esta hercúlea tarefa e, volvidos
quatro anos, surge a segunda edição do Tratado de Clínica Pediátrica, também em três
volumes, na versão de DVD. Como se poderá verificar pelo índice, este Tratado toca
todos os pontos da Pediatria.

Como particularidades relativamente à 1ª edição, cumpre-me salientar que a obra foi


actualizada e ampliada, quer no que respeita a conteúdos nucleares, quer quanto a
glossário geral e índice remissivo.

São indiscutíveis as vantagens pedagógicas da divulgação do Tratado em DVD.


Considerando esta estratégia mais abrangente pela possibilidade de atingir mais desti-
natários, será também mais atractiva para as novas gerações de estudantes e jovens
médicos, habituadas a lidar com as modernas tecnologias.

Para colaborar na sua edição, o Prof. João Videira Amaral convidou alguns dos
maiores nomes da Medicina de Portugal, Espanha e Brasil; a maioria dos autores integra
colegas seus colaboradores, dado que, com o decorrer dos anos, o mesmo formou uma
esplêndida equipa.

Este tratado deve ser dedicado, não só aos alunos e aos internos de Pediatria, mas
também aos médicos de Clínica Geral, já que na grande maioria dos centros as crianças
são observadas por Médicos de Família. Também deve ser enviado para os diversos
países de língua portuguesa, especialmente Cabo Verde, Angola, Moçambique e Brasil.

Afirmei anteriormente que coordenar uma obra desta envergadura constitui um tra-
balho hercúleo. Mas, conhecendo as qualidades do Prof. João Videira Amaral, a sua per-
sistência, o seu perfeccionismo, a sua honestidade e o seu saber, acho que foi a pessoa
indicada. Além deste imenso trabalho de coordenação, o mesmo ainda intervém como
autor na publicação de numerosos capítulos do livro.

Como um dos decanos da Pediatria portuguesa, julgo que em seu nome posso
agradecer ao coordenador-editor João Videira Amaral o seu esforço. Mas quem está ver-
dadeiramente de parabéns são as crianças do nosso País. Muito e muito obrigado.

Nuno Cordeiro Ferreira


Apresentação da 2ª edição

“O conhecimento é como uma esfera –


quanto maior, mais contacto com o desconhecido”
Pascal

O presente livro sempre figurou na lista dos meus projectos, essencialmente por duas
ordens de razões: – a necessidade de um livro de texto, manifestada por estudantes meus
alunos e estagiários da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa
/UNL, por internos de Pediatria e de Medicina Geral e Familiar realizando estágios no
Hospital de Dona Estefânia em Lisboa, onde sempre trabalhei, e por colegas; – e o enten-
dimento da missão do professor universitário como agente disponível e facilitador de
informação científica com vista ao ensino – aprendizagem, considerando como valor incal-
culável a experiência vivida de Colaboradores e de Colegas Docentes de diversas institui-
ções com quem mais convive ou a quem esteja mais ligado.

É, pois, de admitir que tal informação (supostamente mais personalizada) podendo


servir de suporte à prática clínica durante os estágios no âmbito da pré- e pós gradua-
ção, e no desempenho profissional, suscite o confronto com outra informação congéne-
re internacional ou nacional, incluindo a veiculada pela net, alargando horizontes.

Da abrangência com que, intencionalmente, este livro foi concebido (agora em segun-
da edição revista, actualizada e ampliada), resultou o título. O mesmo está dividido em
3 Volumes, desdobrados em grandes tópicos ou Partes, integrando na totalidade 376
Capítulos. Manteve-se nesta edição a filosofia de apresentar os tópicos fundamentais da
clínica pediátrica hospitalar e extra-hospitalar, de complexidade e frequência diversos,
de forma simples e de modo prático (clássico), estruturando-os, por razões didácticas,
em alíneas tais como, definições, importância do problema, aspectos epidemiológicos,
etiopatogénese, manifestações clínicas, diagnóstico, tratamento, prevenção e prognósti-
co.

Dado que a Medicina não é considerada uma ciência exacta, a controvérsia subsistirá
nalguns pontos e a dúvida poderá surgir noutros, pois existem variantes quanto a ati-
tudes e procedimentos. Contudo, a bibliografia seleccionada que encerra cada Capítulo
ou Parte do livro contribuirá para que o leitor interessado forme a sua opinião.

A obra é o resultado dum esforço colectivo e dedicado de uma plêiade de Autores


convidados, Colegas e Amigos de reconhecida competência a quem foi distribuída a
grande série de tópicos de acordo com as respectivas áreas de interesse e de experiência.
XXIV TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

De salientar que para tornar o texto mais compreensivo tentando evitar, quer repeti-
ções, quer omissões, o editor, simultaneamente coordenador e autor ou co-autor, esfor-
çou-se por uniformizar o estilo linguístico. Sobre o assunto polémico do Novo Acordo
Ortográfico, na sequência de pareceres de filólogos de renome que consultei, a opção foi
não o adoptar.

Desejo expressar aqui o testemunho do meu enorme reconhecimento a todos os


Colegas e Amigos que aceitaram colaborar com grande empenho, neste projecto. Bem
hajam pelo inestimável e imprescindível contributo. Ao longo do tempo, sacrificando
momentos de lazer e de convívio familiar, saliento o prazer da permuta de ideias com que
muito aprendi em múltiplos encontros, imprescindíveis para a prossecução da tarefa.

Considerando este livro aberto à crítica e à apreciação por parte dos seus leitores,
espero vivamente que o espírito de missão com que todos os Autores o materializaram
contribua para a saúde e bem-estar da criança, adolescente, e da comunidade em geral,
e se traduza em instrumento de utilidade para os principais destinatários: alunos e esta-
giários universitários, internos de Pediatria e de Medicina Geral e Familiar, Pediatras,
Médicos de Família, e Profissionais ligados às Ciências da Saúde.

João Manuel Videira Amaral

DEDICATÓRIA E MEMÓRIA

Dedico este livro a todas as Crianças e Jovens de Portugal que são o nosso futuro.
Considero incluídos os meus onze netos, todos em idade pediátrica: Lourenço, Constança,
Gonçalo, Francisco, Mafalda, Carlota, Sebastião, João Manuel, Madalena, Carolina e Leonor.
E à minha Família, especialmente à minha Mulher, Zana, a quem roubei as horas de conví-
vio devotadas ao livro.
Na minha memória tenho o exemplo do meu Pai (João José de Amaral) que era médico no
Fundão e nos deixou prematuramente; com ele muito aprendi, incutindo-me desde a minha
entrada na Universidade, o gosto pela clínica exercida com rigor e humanismo tendo como base
indispensável o estudo perseverante e a actualização permanente.
Agradecimentos

Ao Professor Doutor Nuno Cordeiro Ferreira, meu Mestre, que me honrou com o
Prefácio desta obra.

Aos Colegas e Amigos (citados por ordem alfabética do primeiro nome) pelo con-
tributo inestimável em ideias, sugestões e críticas desde o início:

Prof. Doutor Álvaro de Aguiar Prof. Dr. José Guimarães


Prof. Doutor António Guerra Dr. José Mesquita
Dr. António Gama Brandão Prof. Dr. José Rosado Pinto
Dr. António Pinto Soares Drª Judite Batista
Dr. António Valido Dr. Julião Magalhães
Dr. Carlos Vasconcelos Profª Doutora Lígia Braga
Prof. Doutor Carlos Ruah Prof. Doutor Luís Nunes
Drª. Deolinda Barata Prof. Doutor MRG Carrapato
Drª. Eulália Calado Drª. Maria dos Anjos Bispo
Drª. Felisberta Barrocas Drª Maria do Carmo Silva Pinto
Dr. Francisco Abecasis Mestre Drª Maria do Carmo Vale
Prof. Dr. Gonçalo Cordeiro Ferreira Profª Doutora Maria do Céu Machado
Drª. Guilhermina Romão Drª Maria de Jesus Feijoó
Drª. Helena Portela Drª Maria de Lurdes Lopes
Prof. Doutor Henrique Carmona da Mota Drª Maria José Gonçalves
Profª Doutora Hercília Guimarães Dr. Mário Chagas
Prof. Doutor Ignacio Villa Elizaga Drª Micaela Serelha
Drª Isabel de Castro Dr. Vital Calado
Prof. Doutor João Gomes-Pedro Drª. Rosa Maria Barros
Prof. Doutor João Goyri O´Neill Drª. Rosário Malheiro
Dr. José António Melo Gomes Prof. Doutor Sashicanta Kaku
Prof. Doutor José de Salis Amaral Drª. Sílvia Sequeira

À memória da Drª Maria de Jesus Feijoó que desde o início aderiu com dedicação
inexcedível a este projecto e nos deixou recentemente. O testemunho de muita mágoa e
de enorme gratidão.

Aos Drs. Lídia Gama e João Falcão Estrada, Amigos e Colegas responsáveis pelo
Núcleo Iconográfico do Hospital de Dona Estefânia, pelo trabalho minucioso e dedica-
do de selecção de imagens solicitadas, e identificadas pela sigla NIHDE. Toda a docu-
mentação fotográfica não identificada como tal é pertença e fruto da experiência de
autores, editor ou colegas devidamente assinalados que gentilmente colaboraram.
Ao Colega e Amigo Dr. Aguinaldo Cabral, pediatra de prestígio e especialista no
campo das doenças metabólicas, o testemunho de enorme reconhecimento pela orien-
tação temática e revisão dos manuscritos que integram a Parte XXXII.

Ao Dr. Francico George, Director Geral da Saúde, e à Nestlé Nutrition, por terem
autorizado a reprodução de tabelas e quadros.

Ao Prof. Doutor Renato Procianoy, meu Amigo e interlocutor junto da Sociedade


Brasileira de Pediatria, pela permissão em reproduzir alguns quadros e figuras.

Ao Dr. Marcos Gil da Veiga, pelo apoio inestimável que me propiciou no âmbito da
revisão das provas tipográficas.

À Drª M. Dulce Barreto, Responsável pela Biblioteca do Hospital de Dona Estefânia


e à sua colaboradora Margarida Vicente, pela eficiência na obtenção de material bibli-
ográfico, fundamental para concretizar a presente versão actualizada.

À Direcção da ABBOTT Laboratórios e ao Sr. Pedro Moreira, pelo apoio em espírito de


grande cordialidade desde a primeira hora. Numa fase ulterior, e relativamente ao patro-
cínio da 2ª edição, o agradecimento é extensivo a D. Alexandra Madeira que passou a cola-
borar também.

À IDG – Imagem Digital Gráfica na pessoa do Sr. Carlos Didelet, seu Director, pelo
eficiente trabalho de tipografia com a colaboração empenhada dos Srs. Bruno Ribeiro e
Pedro Alves.
Glossário Geral

Na eventualidade de o texto, figuras ou quadros consultados conterem expressões e termos não sufi-
cientemente explicitados, é divulgado este glossário para facilitar a compreensõo do leitor. Determinados
capítulos integram igualmente glossários parcelares relacionados com temáticas específicas.

Aborto > Expulsão ou extracção completa (espontânea ou provocada) Alimento > Substância que, introduzida no organismo, contribui para
do corpo da mãe de embrião ou feto (idade gestacional inferior a 20- a nutrição.
22 semanas ou 140-154 dias completos) com ou sem sinais de vida. Anteversão > Considerando o plano frontal anatómico, aumento de an-
Acrocefalia > Palavra derivada do grego significando “cabeça alta”; es- gulação da cabeça e colo femoral relativamente à articulação do joe-
pecificamente trata-se de anomalia congénita craniana resultante de lho.
“fusão” precoce das suturas sagital e coronal e englobando outras Apraxia > Incapacidade de executar movimentos voluntários coorde-
alterações como turricefalia, oxicefalia, entre outras. nados, apesar de se conservarem as funções musculares e sensoriais.
Acufeno > Sensação auditiva que não tem origem em som exterior; sinó- Artrodese > Bloqueio cirúrgico da articulação.
nimo de zumbido. Artrogripose > Termo descritivo, não diagnóstico, que inclui um grupo
Adolescente ou jovem > Pessoa entre 12 e 18 anos. de quadros clínicos específicos, todos eles com contracturas congé-
Afasia > Alteração ou perda da capacidade de falar ou de compreender nitas e fraqueza muscular, e antecedentes de diminuição dos movi-
a linguagem falada ou escrita, o que é explicável por lesão cerebral, mentos fetais. Na maioria dos casos (> 300 factores etiológicos des-
sem alteração dos órgãos de fonação. critos, por ex distrofia miotónica, má-posição intrauterina, etc.) exis-
Afasia visual > O mesmo que alexia. te amioplasia, salientando-se a variabilidade das manifestações clí-
Agentes biológicos > Produtos desenvolvidos por via tecnológica, com nicas. Na forma neuropática existe défice do desenvolvimento das
indicações precisas em doenças mediadas por imunidade. São consi- células do corno anterior medular levando a hipodesenvolvimento
derados 4 tipos: anticitocinas (por ex. infliximab e etanercept); anti- muscular. As articulações das extremidades evidenciam hipomobi-
células B (rituximab, epratuzumab); inibidores da co-estimulação lidade pela fraqueza muscular e fibrose articular. A forma clássica,
(abatacept); e antimoléculas de adesão (natalizumab, efalizumab). típica, não é geneticamente transmitida e a função cognitiva está pre-
Agnosia > Impossibilidade de reconhecer objectos através das suas ca- servada.
racterísticas: forma, cor, peso, temperatura, etc., apesar de as funções Artroplastia > Reconstrução cirúrgica de determinada articulação.
sensoriais elementares (visão, olfacto, gosto, audição, sensibilidade Artrotomia > Incisão cirúrgica para abordagem directa de determina-
superficial ou profunda) estarem intactas. da articulação.
Agrafia > Incapacidade de escrever por afecção dos centros nervosos da Barreira, produtos > Tópicos cutâneos que previnem a penetração
escrita. É uma forma de apraxia. transcutânea e ou absorção de substâncias químicas potencialmen-
Água de limpeza > Produto em geral fabricado com água termal in- te irritantes, sensibilizantes ou tóxicas através da pele.
corporando detergentes, humidificantes e amaciadores, aplicados Bebé ou lactente > Criança até 1 ano de idade.
em algodão para remover loções de limpeza ou zona de fraldas. Bezoar > Termo derivado da língua árabe “bazahr” (significando, se-
Alexia > Defeito de compreensão da escrita devido a lesão cerebral sem gundo a tradição e crenças ancestrais contra – veneno ou antídoto),
qualquer afecção da acuidade visual. no sentido lato significa concreções calculosas ou “massas” de di-
Alfa 1-antitripsina (A1-AT) > É o principal inibidor sérico de enzimas versas substâncias nas vias digestivas de humanos ou certos ani-
proteolíticas tais como a elastase dos neutrófilos. O seu défice consti- mais. Na gíria médica significa diversidade de substâncias ou cor-
tui causa importante de doença hepática na idade pediátrica. Os pos estranhos amalgamados no tubo digestivo susceptíveis de ori-
doentes com deficiência na forma homozigótica (fenótipo ZZ inibi- ginarem obstrução do tubo digestivo (por ex. cabelos ingeridos).
dor, ou PiZZ) têm baixa actividade sérica de A1-AT, ~10-15% dos va- Biofilme > Termo usado em microbiologia para significar agregados de
lores normais. Raramente poderá originar, na sua forma homozigó- diferentes tipos de microrganismos (bactérias, protozoários, fungos,
tica doença pulmonar crónica, com relevância para o enfisema. microalgas, etc.) que se ligam a superfícies sólidas ou uns aos outros,
Alfa-fetoproteína (AFP) ou fetuína > Glicoproteína segregada pelo fí- estabelecendo interacções metabólicas, mantendo-se encerrados nu-
gado do feto e RN, presente também no líquido amniótico e que de- ma matriz polisacarídica e formando emaranhado de fibras ou del-
saparece quase completamente do organismo alguns meses depois gados invólucros. Tal fenómeno, que é descrito no âmbito da etio-
do nascimento. Pode reaparecer em certos casos de cancro e hepa- patogénese das otites médias com derrame, torna os agentes micro-
topatia. bianos mais resistentes aos antimicrobianos.
Alimentação > Acção de introdução de alimento no organismo. BNP > ver Péptidos natriuréticos.
XXVIII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Calcaneus > Posição de dorsiflexão do retro-pé. Disartria > Dificuldade da fala por perturbações motoras dos órgãos da
Camptodactilia > Anomalia que consiste em flexão permanente e irre- fonação: língua, lábios, véu do paladar, etc., associada a afecções bul-
dutível de um ou mais dedos. bares e cerebelosas.
Cavo (ou cavus) > Arcada plantar longitudinal do pé alta (muito afasta- Dislexia > Perturbação da capacidade de leitura que se traduz por er-
da do plano horizontal), geralmente com ante-pé plantar em flexão. ros, omissões, inversão de letras, de sílabas, ou de números, nas
Cegueira verbal > O mesmo que alexia. crianças em idade de aprender a ler, pressupondo ausência doutro
Cintigrafia (ou cintilografia ou gamagrafia) > Procedimento em que tipo de problema susceptível de explicar tal situação (visão, audi-
se injecta por via IV um produto radioactivo com afinidade selecti- ção, capacidades intelectuais normais).
va para determinado órgão o qual passará a emitir radiação gama Dispraxia > Dificuldade em executar movimentos voluntários coorde-
identificada por sistema detector/cintilador. A imagem pontilhada nados (movimentos “desajeitados”), associados a atraso psicoafec-
esquemática do órgão designa-se cintigrama, podendo detectar-se, tivo. Não existe relação com parésia ou ataxia.
por ex. nódulos, zonas necróticas, etc. No caso do rim pode empre- Doença de Kikuchi-Fujimoto > Afecção de causa desconhecida, consi-
gar-se como radionúclido (radiofármaco) o ácido dimercaptosuccí- derada benigna e auto-limitada (evolução entre 1-4 meses) cujas ca-
nico-Tc 99 (DMSA). racterísticas principais incluem febre e linfadenopatia cervical dolo-
Clinodactilia > Deformação em valgo do 5º dedo, por vezes hereditária rosa, salientando-se que a linfadenopatia pode ser generalizada; po-
e bilateral. de haver hepatosplenomegália. Os dados histopatológicos ganglio-
Comedão > Também designado por ponto negro, traduz a obliteração do nares evidenciam aspecto compatível com linfadenite necrotizante:
orifício excretor de um folículo pilossebáceo por uma espécie de rolhão, imunoblastos, monócitos plasmocitóides, pequenos linfócitos cir-
acastanhado a negro, constituído por aglomerado de células córneas e cundando áreas de necrose fibrinóide e ausência de granulócitos; ob-
sebo. A cor escura é devida à melanina presente. Pode ser aberto ou fe- servam-se igualmente filamentos extracelulares relacionados com
chado conforme existe ou não a permeação do canal infundibular. apoptose. O diagnóstico diferencial faz-se com doenças linfoproli-
Comensalismo > Este tipo de simbiose implica uma proximidade espa- ferativas, linfomas Hodgkin e não Hodgkin, doença de Kawasaki,
cial, permitindo que o comensal se alimente de nutrientes ingeridos infecções por vírus, bactérias ou protozoários (por ex. VEB, CMV,
pelo hospedeiro. Os dois intervenientes podem sobreviver inde- HSV, Yersinia, Bartonella, Toxoplasma, etc.) e doenças autoimunes.
pendentemente. Têm sido descritos casos tratados com êxito com hidroxicloroquina
Contractura congénita > Limitação do movimento de determinada área isoladamente, ou com AINE, ou ainda com corticóides.
do corpo por anomalia músculo-esquelética. Podem ser isoladas ou Doença de Lafora > Forma de epilepsia mioclónica progressiva acom-
múltiplas; o pé boto é um exemplo de contractura isolada, uni ou bi- panhada de demência e relacionada com mutações genéticas rela-
lateral. cionadas com laforina (EPM2A) e malina (EPM2B). Pode haver fo-
Creme > Forma de emulsão O/A (ver adiante) mais fluida, menos oleo- to- sensibilidade. Inicia-se na segunda infância ou, mais frequente-
sa e menos oclusiva. mente, na adolescência. Através da biopsia muscular ou da pele po-
Creme gordo > Forma de emulsão A/O mais gordurosa, mais emoliente dem ser identificadas as chamadas inclusões ou corpos de Lafora,
e mais oclusiva. PAS positivas.
Criança > Pessoa entre 0 e 11 anos. Doença de Palizaeus-Merzbacher > Doença recessiva ligada ao X, ca-
Criança andante > Criança com idade entre 1 ano e 3 anos. racterizada essencialmente por nistagmo e anomalias da mielina. É
Criança em idade pré-escolar > Criança com idade entre 4 e 5 anos. causada por mutação no gene da proteína PLP1 no cromossoma
Criança em idade escolar > criança com idade de 6 ou mais anos. Xq22, essencial para a formação da mielina e formação e diferencia-
Deformação de Sprengel > Defeito uni ou bilateral da omoplata por ção dos oligodendrócitos.
défice de abaixamento da mesma em fase precoce da embriogénese, Doença de Unvericht Lundborg > Forma de epilepsia mioclónica pro-
do nível de C4 para o de C7. O mesmo compromete a mobilidade es- gressiva acompanhada de demência e relacionada com mutação e
capulo-torácica. cistatina B. Tipicamente inicia-se na adolescência.
Dengue > A dengue é uma doença infecciosa provocada por arbovírus Doença de von Hippel-Lindau > Afecção que, afectando diversos
da família flavivirus transmitida por vectores (mosquitos, sendo o órgãos (cerebelo, espinhal medula, retina, rins, pâncreas, epidídimo)
principal o A aegypti) vivendo em locais com água estagnada e hi- resulta de mutação dum gene supressor tumoral (VHL). São mani-
giene precária. Pode surgir em epidemias de instalação súbita. As festações características os hemangioblastomas cerebelosos e os an-
manifestaçõs clínicas são essencialmente febre, artralgias, mialgias, giomas retinianos; existem frequentemente associados à doença o
cefaleias, mialgias e fadiga acentuada que se mantém na convales- feocromocitoma e lesões quísticas dos rins, pâncreas, fígado e epidí-
cença. Por vezes há exantema do tipo escarlatiniforme ("febre ver- dimo. O carcinoma renal é a causa de morte mais frequente.
melha"). Podem surgir hemorragias e complicações sistémicas. O Doenças neoplásicas e proliferativas > De acordo com a taxonomia ac-
tratamento é sintomático. tual, incluem: dermatofibroma, mastocitose e histiocitose.
Dentisteria (ou Medicina Dentária ou Odonto-Estomatologia) > Emoliente > Produto que “amolece e amacia”; na sua composição en-
Estudo e prática médico-cirúrgica de tudo o que se refere aos dentes tram lípidos que restauram a elasticidade da pele evitando a perda
e, por extensão, à boca e aos maxilares. transepidérmica de água, atraem a água para a pele, e com acção
Dermatofibroma (ou histiocitoma fibroso) > Designação que corres- oclusiva (impedem que a água se evapore). Diversas substâncias tais
ponde a pequenos nódulos vermelho acastanhados (com mm a 2 cm como emulsões, cremes, leites, pomadas, loções, soluções, sus-
de diâmetro), em geral, benignos, com tendência para se manterem. pensões ou óleos poderão ter tais características.
Diabetes lipoatrófica > Designação para várias formas de lipodistrofia Emulsão > Produto constituído por dois ou mais componentes não
associadas a resistência à insulina e diabetes. miscíveis – um aquoso, e outro oleoso ou gordo – em proporções em
Glossário geral XXIX

que pode predominar um ou outro (óleo em água → O/A; ou água Idade gestacional > Duração da gestação contada a partir do 1º dia do
em óleo → A/O). último período menstrual exprimindo-se em semanas ou dias com-
Entese > Local de inserção tendinosa no osso. pletos (40ª semana corresponde ao período entre o 280º dia e 286º dia).
Epidemiologia > Termo que tem origem no grego: epi (entre), logy (es- Incapacidade (Disability) > Termo genérico utilizado para deficiência,
tudo), demos (pessoas) e significa: no sentido estrito, estudo das limitação da actividade e restrição na participação. Corresponde a
doenças epidémicas (infecciosas); no sentido lato, estudo das doen- aspectos negativos da interacção entre um indivíduo (com determi-
ças e dos diferentes fenómenos biológicos ou sociais do ponto de vis- nada condição de saúde) no contexto de factores ambientais e pes-
ta da sua frequência, da sua distribuição e dos factores susceptíveis soais (ver Funcionalidade).
de os influenciar. Constitui a ciência básica da Saúde Pública, im- Incidência > Número ou percentagem de novos casos numa determi-
plicando multidisciplinaridade e envolvendo métodos próprios nada população e num determinado intervalo de tempo. Avalia o
(medições, comparações, etc.). risco de aparecimento de doença.
Epigenética > Termo que traduz a interface entre a genética e os factores Índice Sintético de Fecundidade (ISF) > Número médio de filhos por
ambientais. Com base em dados experimentais, determinados genes mulher. Em Inglês <> Fertility.
(epialelos) sensíveis a influências ambientais (por ex. dieta), sofrem Infibulação > Forma mais radical de mutilação genital feminina: remo-
alterações moleculares (por ex. metilação do ADN sem alterar a res- ção total ou parcial dos genitais externos seguida de sutura dos pe-
pectiva sequência nucleotídica) mantendo-se estáveis em sucessivas quenos lábios com linha, espinhos ou outros materiais com o objec-
gerações, levando a repercussão funcional daqueles (por ex. afec- tivo de estreitamento da entrada vaginal.
tando a actividade de transcrição). Janeway (lesões de) > Pequenas lesões hemorrágicas ou eritematosas
Equinus > Posição de flexão plantar do ante-pé, retro-pé ou de todo o subungueais, indolores.
pé. Lactante > Mulher (idealmente a mãe) que amamenta.
Expectativa de vida ao nascer > Número de anos que um recém-nas- Lactente > Sinónimo de bebé.
cido viveria estando sujeito aos riscos de morte prevalentes para a Leprechaunismo > Situação clínica integrando: RCIU, hipoglicemia em
amostra de população no momento do seu nascimento. jejum, hiperglicemia pós-prandial e resistência à insulina; a concen-
Flora > Ver adiante «Microbiota». Este termo deveria ser abandonado tração sérica desta última pode atingir valores 100 vezes superiores
uma vez que se refere às plantas. Esta taxonomia deriva de Lineu. aos normais.
Fómite > Objecto inanimado ou substância capaz de absorver, reter e Lesões de Janeway > ver Janeway.
transportar microrganismos e parasitas. Letalidade > Risco que uma doença apresenta de ser mortal.
Forese > Significa transporte. Em geral, trata-se dum organismo pe- Loção > Forma de emulsão O/A mais fluida e menos oleosa.
queno transportado mecanicamente por um hospedeiro, em geral de Loção de limpeza > Forma de emulsão O/A com baixa viscosidade, mas
maiores dimensões (ex. fixação de protozoários sedentários ao cor- boa capacidade emulsionante, por conter agentes tensioactivos.
po de animais aquáticos). Luxação > Perda completa (subluxação se incompleta) do contacto entre
Funcionalidade > Termo genérico utilizado para as funções e estrutu- duas superfícies articulares.
ras do corpo, actividades e participação. Corresponde aos aspectos Manchas de Roth > ver Roth.
positivos da interacção entre um indivíduo (com uma condição de Mastocitose > Grupo de doenças em que se verifica infiltração dos te-
saúde) no contexto de factores ambientais e pessoais (ver Incapa- cidos e órgãos, especialmente a pele (nódulos, placas e pápulas), por
cidade). mastócitos. A urticária pigmentosa é a forma mais comum.
Gasping > Termo da língua inglesa empregue frequentemente na gíria Melatonina > Hormona segregada pela glândula pineal ou epífise (lo-
médica, significando “movimentos respiratórios de amplitude e rit- calizada no centro do encéfalo), com regularidade e em ritmo circa-
mo irregulares, e ineficazes”. diano a partir dos 3 meses de idade. Salienta-se o papel da "escu-
Hipofosfatasia > Defeito AR salientando-se membros inferiores ar- ridão da noite ou ausência de luminosidade " como estímulo natu-
queados com rarefação metafisária/mineralização irregular, denti- ral desencadeante da secreção a partir do núcleo supra-quiasmáti-
na e cimento dos dentes deficiente com tendência para queda pre- co; assim, os níveis mais elevados atingem-se entre as zero e as oito
coce dos caducos, encerramento tardio das fontanelas com ou sem horas (horário do sono). A luz (sobretudo entre 460 e 480 nm) inibe
craniossinostose, deficiência de fosfatase alcalina (sérica e tecidual); este mecanismo. Como principais acções citam-se o relaxamento da
as formas homozigóticas têm manifestações mais acentuadas. musculatura lisa gastrintestinal e a indução do sono, comprovando-
Histiocitoses > Conjunto de afecções de etiopatogénese desconhecida se que o leite materno contém níveis substanciais da referida hor-
cuja característica comum é a proliferação e infiltração dos tecidos mona, com implicações práticas na redução das cólicas infantis.
por histiócitos (um dos tipos de células diferenciadas a partir da me- Actualmente têm sido estudados os efeitos da melatonina noutras
dula óssea, recebendo, tal como outras, designações diversas confor- situações, como perturbações do sono, PHDA, mucopolissacari-
me a morfologia e função – monócitos, células dendríticas, macró- doses tipo III, autismo, RGE, cólicas infantis, etc..
fagos, etc.) fazendo parte do sistema histiocitário – macrofágico. Microbiota ou Microbioma > Conjunto de microrganismos que se en-
Existem dois grupos de histiocitoses: de células de Langerhans e não contram geralmente associados a tecidos (pele, mucosas/boca,sis-
Langerhans. Estas últimas células, que se localizam entre as células tema digestivo, conjuntivas, vagina, etc.). Os microrganismos (>
do estrato espinhoso de Malpighi, têm papel importante como apre- 10.000 espécies incluindo triliões de bactérias e fungos, por sua vez
sentadoras de antigénios. A histiocitose de células de Langerhans transportando vírus) constituídos em colónias à superfície ou no in-
(anteriormente chamada histiocitose X) considerava três entidades terior do organismo sem produzir doença compõem a microbiota
a que correspondem termos hoje obsoletos: doença de Letterer-Siwe, normal; a microbiota transitória é composta por agentes infecciosos
doença de Hand –Schuller-Christian e granuloma eosinófilo. presentes por períodos variáveis.
XXX TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Miotonia > Contracção muscular lenta, seguida de relaxamento lento, Pasta protectora > Pasta mais gorda e oclusiva, e mais difícil de apli-
que se produz durante movimentos musculares voluntários por ex- car e retirar; por exemplo, pasta de Lassar ou mistura em partes
citabilidade e contractilidade musculares anómalas. iguais de talco de Veneza, amido, lanolina e vaselina.
Mortalidade materna > Morte de mulheres durante a gravidez ou den- Pediatria > Medicina integral de um grupo etário desde a concepção ao
tro de 42 dias completos após término da gravidez devido a causa fim da adolescência.
relacionada com a gravidez ou agravada pela mesma; excluem-se as Pediatria Social > Ramo da Medicina que diz respeito à criança saudá-
causas acidentais ou incidentais. vel e doente em função do grupo humano de que faz parte e do meio
Morte fetal > É o óbito de um produto de concepção (feto-morto) antes no qual se desenvolve. Desde que se exerça uma acção colectiva, na-
da expulsão ou extracção completa do corpo da mãe, independen- cional ou internacional, a Pediatria torna-se social.
temente da duração da gravidez. Um vez separado do corpo da mãe, Período neonatal > Período que se inicia na data de nascimento e termi-
o produto de concepção não evidencia movimentos respiratórios na após 28 dias completos de idade pós-natal. É subdividido em: pre-
nem outros sinais de vida como batimentos cardíacos, pulsação do coce (primeiros sete dias completos ou 168 horas completas) e tardio
cordão umbilical ou movimentos efectivos dos músculos de contrac- (após sétimo dia ou 168 horas completas, até 28 dias completos ou 672
ção voluntária (nado-morto). horas completas). A criança neste período é designada recém-nascido.
Morte neonatal > É o óbito ocorrido no período neonatal; considerando as Péptidos natriuréticos > Grupo de péptidos segregados pelos mióci-
subdivisões do período neonatal (precoce e tardio), as mortes neonatais tos do miocárdio, principalmente nos ventrículos, em resposta a so-
podem ser subdivididas, respectivamente, em precoces e tardias. brecarga de pressão ou volume nas cavidades cardíacas, regulando
(Nota: A data de morte ocorrida durante o primeiro dia de vida (dia ze- o volume extracelular e a pressão arterial. Salientam-se: o BNP
ro) deve ser registada em minutos completos ou horas completas de vi- (Brain-type natriuretic peptide) ou chamado péptido natriurético
da. A partir do segundo dia de vida (dia 1) e até menos de 28 dias com- B/activo; e o N-terminal-pro-BNP ou NT-proBNP/inactivo, com
pletos de vida (672 horas), a idade de morte deve ser registada em dias. maior estabilidade in vitro e com vida média mais longa. Derivam,
Mutualismo > Associação entre dois indivíduos em que cada um deles por clivagem, do Pro-BNP. Antagonistas do sistema renina-angio-
depende fisiologicamente do outro. tensina-aldosterona, provocam aumento da diurese, natriurese e va-
Mutilação genital feminina > a) Percentagem de mulheres entre 15 e sodilatação. Trata-se de marcadores biológicos com interesse na
49 anos de idade que foram submetidas a manobras cruentas de res- avaliação de diversas formas de disfunção cárdio-respiratória (por
secção de órgãos genitais externos por razões sociais; b) Percentagem ex. PDA, taquipneia transitória, hipertrofia ventricular, HDC, HPP
de mulheres com, pelo menos, uma filha genitalmente mutilada (cli- no RN, doença de Kawasaki, etc.).
toridectomia, extirpação total ou parcial do clítoris e pequenos lá- Percentagem > Proporção apresentada como parte de um todo (100%).
bios, e infibulação). No texto devem ser sempre apresentados o numerador e o deno-
Nascimento vivo (nado vivo) > Expulsão ou extracção completa do cor- minador para qualquer percentagem.
po da mãe, independentemente da duração da gravidez, de um pro- PIB per capita > Produto Interno Bruto por cabeça correspondendo à
duto de concepção que, depois da separação, respire ou apresente quantidade de bens e serviços produzidos dentro das fronteiras dum
sinais de vida tais como batimentos cardíacos, pulsação do cordão país (por nacionais e estrangeiros) dividida pela sua população.
umbilical, ou movimentos efectivos dos músculos de contracção vo- Tipifica a riqueza média dum país e os níveis relativos de desenvol-
luntária, quer o cordão umbilical tenha sido ou não cortado, quer a vimento económico. NB- Não inclui rendimentos provenientes do
placenta tenha sido ou não retirada. O produto de um nascimento exterior (por ex. remessas de emigrantes).
ocorrido nestas circunstâncias é denominado nado-vivo. PNB > Produto Nacional Bruto correspondendo à produção de bens e
Natalidade > Número de nascimentos vivos por 1.000 habitantes. serviços pelos agentes económicos nacionais. NB- Inclui remessas de
Nódulos de Osler > ver Osler. emigrantes.
Nutrição > Conjunto de processos de assimilação e desassimilação dos ali- Polidactilia > Anomalia congénita caracterizada pela presença de dedos
mentos no organismo implicando trocas entre o organismo vivo e o supranumerários nas mãos ou nos pés.
meio ambiente. Ciência que trata da alimentação e dos alimentos sob Pomada ou unguento > Forma de emulsão A/O mais gordurosa,mais
todos os seus aspectos: utilização e transformação dos alimentos no or- emoliente e mais oclusiva.
ganismo, má-nutrição, problemas de comportamento relacionados com Pós > Agentes secos, micronizados em partículas finas, com proprie-
a alimentação, produção e distribuição dos géneros alimentares, etc.. dades higroscópicas (atraindo água); por ex. talco (salicilato de ma-
Nutriente > Substância alimentar que pode ser assimilada sem sofrer gnésio), argila, amido, caolino, óxido de zinco.
transformação digestiva. Prevalência > Número ou percentagem de casos existentes numa de-
Ortótese > Aparelho ou dispositivo destinado a suplementar ou corri- terminada população e num determinado momento temporal.
gir a alteração morfológica de um órgão, de um membro ou seg- Avalia a carga que a doença representa na referida população.
mento de membro, ou a deficiência de uma função. Prevenção > Conjunto de meios médicos, médico-sociais e ambientais
Osler (nódulos de) > Nódulos intradérmicos moles nas polpas dos de- para salvaguardar a saúde dos indivíduos sãos, evitando doença
dos das mãos e pés. (prevenção 1ª), impedindo um agravamento (prevenção 2ª), ou evi-
Osteotomia > Secção cirúrgica do osso. tando sequelas tardias (prevenção 3ª) de modo a propiciar, tanto
Parasitismo > Relacionamento simbiótico entre dois organismos: o pa- quanto possível, vida próxima do normal. Trata-se dum conceito
rasita, em geral de menores dimensões (ex. verme intestinal), e o hos- mais lato que o de profilaxia.
pedeiro, do qual depende o primeiro. Produtos-barreira > Tópicos cutâneos que previnem a penetração e ou
Pasta > Forma de emulsão (pomada) onde se suspendeu pó para ab- absorção de substâncias químicas potencialmente irritantes, sensi-
sorver exsudado. bilizantes ou tóxicas através da pele.
Glossário geral XXXI

Profilaxia > Método de prevenção ou protecção dirigido contra uma tremo baixo peso) > Criança nascida com peso inferior a 1000 gra-
doença através do emprego de substância (por ex. fármacos, vaci- mas (999 ou menos) independentemente da idade gestacional.
nas, imunoglobulinas, etc.). Trata-se dum conceito mais restrito que Rendimento per capita > Soma do valor da contribuição de todos os
o de prevenção. produtores nacionais acrescido de todos os impostos(menos subsí-
Progéria > Alopécia, atrofia da gordura subcutânea, hipoplasia e dis- dios) que não são incluídos na avaliação da produção, a que são
plasia do esqueleto, atraso da dentição caduca, aterosclerose pre- acrescentadas as receitas líquidas (pagamento de assalariados e ren-
matura. das de propriedades) provenientes de fontes externas.
Proporção > Tipo específico de razão em que o numerador é parte do Renograma isotópico > Curva traduzindo, em função do tempo, a eli-
denominador, sendo que o tempo não constitui factor. Vai de 0 a 1.No minação renal dum produto com radionúclidos, injectado por via IV,
texto deve ser sempre apresentado o numerador e o denominador que emite radiação gama. Esta eliminação provoca radioactividade
de qualquer proporção. transitória dos dois rins a qual pode ser detectada por sonda de cin-
Prótese > Aparelho ou dispositivo destinado a substituir um órgão, um tilação/cintilador ao nível de cada região lombar. O gráfico tradu-
membro ou parte de um membro destruída ou gravemente afecta- zindo a eliminação permite avaliar a função de cada rim. Os ra-
da. diofármacos habitualmente utilizados são: mercaptoacetilglicina-
Rabdomiólise > Ruptura e/ou necrose das células musculares estriadas Tc99 (MAG3) depurada por secreção tubular, e o ácido dietileno tria-
por factores mecânicos ou miopatias primárias com consequente li- mino pentacético (DTPA-Tc99), filtrado pelo glomérulo.
bertação para o sangue de enzimas, electrólitos e mioglobina. O do- Resistência à insulina tipo A > Situação clínica associada a mutações
seamento da enzima cretinaquinase (CK ou CPK)permite avaliar o no gene do receptor da insulina, verificando-se concomitantemente
grau de lesão celular/necrose. hirsutismo, masculinização, ovários quísticos no sexo feminino e,
Razão (fracção) > Numerador e denominador não têm relação especí- por vezes, acanthosis nigricans não acompanhada de obesidade. Duas
fica (ex: rapazes/raparigas 1/4; risco de 1/1.000, etc.). (ver mutações específicas no gene referido originam formas graves inte-
Proporção) grando os quadros designados por leprechaunismo (ver atrás) e sín-
Recém-nascido pré-termo > Criança nascida com menos de 37 sema- droma de Rabson – Mendenhall (ver adiante).
nas completas (menos de 259 dias) de idade gestacional. Roth (manchas de) > Lesões hemorrágicas lineares subungueais.
Recém-nascido de termo > Criança nascida com idade gestacional com- Saúde > Estado de bem estar físico, mental e social ,e não apenas au-
preendida entre 37 semanas completas e 41 semanas e 6 dias (259 a sência de doença.
293 dias). Selagem > Em Dentisteria e em Ortopedia, processo de fixação dum ma-
Recém-nascido pós-termo > Criança nascida com idade gestacional terial protector do dente (Selante), ou de material de prótese ou de
igual ou superior a 42 semanas completas (294 dias ou mais). osteossíntese.
Recém-nascido leve ou pequeno para a idade gestacional (LIG) > (na Simbionte > Organismo que vive algum tempo ou toda a sua vida inti-
prática, quase sempre sinónimo de RN com restrição de crescimen- mamente ligado a outro de espécie diferente; tal relacionamento de-
to intra-uterino) – Recém-nascido (RN) com peso inferior ao que cor- signa-se por simbiose.
responde ao percentil 3 ou a dois desvios padrão abaixo da média Simbiose > Ver atrás- Simbionte. Consideram-se quatro categorias de
para a respectiva idade de gestação e género, isto é, leve para a ida- simbiose: comensalismo, forese, parasitismo e mutualismo.
de de gestação (LIG) numa curva representativa da população. Sincinésia > Tendência para executar involuntária e simultaneamente
Outros autores preferem utilizar o termo pequeno para a idade ges- um movimento similar e simétrico, numa tentativa para executar um
tacional (PIG). movimento voluntário do lado oposto, observada em certas parali-
Recém-nascido com peso adequado para a idade gestacional para a sias unilaterais.
idade gestacional (AIG) > Recém-nascido (RN) com peso entre o Sindactilia > Anomalia congénita caracterizada pela junção de dois ou
percentil 3 ou dois desvios padrão abaixo da média para a respecti- mais dedos das mãos ou dos pés; tal junção pode ser superficial
va idade de gestação e género, e o percentil 97 ou dois desvios-pa- (membranosa), muscular ou óssea.
drão acima da média para a respectiva idade de gestação e género Síndroma de Apert > Craniossinostose (coronal>lambdóide>sagital),
numa curva representativa da população. braquicefalia, acrocefalia, hipertelorismo, proptose, estrabismo, hi-
Recém-nascido grande ou pesado para a idade gestacional (GIG) > poplasia maxilar, palato estreito/ogival, sindactilia invariável(cutâ-
Considera-se que um RN teve um crescimento intrauterino excessi- nea e óssea).
vo (ou hipercrescimento) quando o peso de nascimento é superior Síndroma de Angelman > Entidade clínica explicada por deleção no
ao percentil 97 ou dois desvios padrão acima da média para a idade cromossoma 15 de origem materna estando implicado o gene activo
de gestação e género numa curva representativa da população; tal E3A (UBE3A), envolvido na degradação de proteínas cerebrais.
RN é designado grande (G) ou pesado (P) para a idade de gestação: Traduz-se essencialmente por convulsões, atraso do desenvolvi-
(GIG) ou (PIG). mento e marcha atáxica. (ver Síndroma de Prader Willi).
Recém-nascido de baixo peso de nascimento(RNBP) > Criança nasci- Síndroma de Carpenter > Acrocefalia, polidactilia e sindactilia dos pés,
da com peso inferior a 2500 gramas (2499 ou menos) independente- atraso mental, braquissindactilia das mãos com clinodactilia, obesi-
mente da idade gestacional. dade, cardiopatia congénita, hipogenitalismo, etc..
Recém-nascido de muito baixo peso de nascimento (RNMBP) > Síndroma de Cockayne > Quadro clínico de transmissão AR, descre-
Criança nascida com peso inferior a 1500 gramas (1499 ou menos) vendo-se 3 tipos: I (em relação com gene CSA), II (em relação com ge-
independentemente da idade gestacional. ne CSB); e III (em relação com gene XP-CS). Caracteriza-se por alte-
Recém-nascido de muito muito baixo peso de nascimento ou com rações do tipo senil iniciando-se pelo 1º ano de vida, degenerescên-
imaturidade extrema (RNMMBP), sinónimo de RN de EBP (ex- cia retiniana, défice auditivo, hipocrescimento e hipogonadismo com
XXXII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

criptorquidia, fotossensibilidade (aparecimento de eritema facial em cida, actualmente o diagnóstico é clínico e baseado nas principais ca-
“asa de borboleta” por acção de raios ultra-violeta). Distingue-se da racterísticas: défice cognitivo grave, epilepsia por vezes refractária,
progéria pelas anomalias oculares e pela fotossensibilidade. baixa estatura, microcefalia, dismorfia facial peculiar, deformidades
Síndroma de Cornelia de Lange > Quadro esporádico ou AD, caracte- ósseas mais notórias nas mãos e pés, e cabelo escasso.
riza-se essencialmente por restrição do crescimento fetal e pós-na- Síndroma de Noonan > Simile síndroma de Turner sem cromossomo-
tal, sinofris, lábios delgados com uma pequena “saliência” na linha patia sendo que em ~ 60% dos casos resulta de mutação em
média do lábio superior e correspondente “chanfradura”no lábio in- PTPN1/cromossoma 12q24.1. Principais características: baixa esta-
ferior, comissura bucal dirigida para baixo, micromélia, insuficiên- tura, inserção baixa posterior do cabelo, pescoço curto e ou pteri-
cia cognitiva, etc.. gium colli, hipogonadismo, criptorquidia. Afecta ambos os sexos, ao
Síndroma de Cowden > É considerado o protótipo das síndromas tu- contrário da síndroma de Turner, com padrão diverso de cardiopa-
morais PTEN (ver adiante) em que se verifica elevada susceptibili- tia congénita (estenose pulmonar, defeitos septais).
dade para cancro do endométrio, mama, e tiróide. Síndroma de Pfeiffer > De hereditariedade AD por mutação genética
Síndroma de Crouzon > De transmissão AD, integra como característi- (FGFR1 ou FGFR2), integra craniossinostose (coronal> sagital>
cas mais frequentes: craniossinostose (coronal > lambdóide > sagi- lambdóide) associada a outros defeitos como acrocefalia, hipertelo-
tal), hipertelorismo, proptose, estrabismo e hipoplasia maxilar. rismo, proptose, hipoplasia maxilar, 1ºs dedos alargados com des-
Síndroma de Hallermann-Streiff > De hereditariedade esporádica, in- vio radial. São descritos os tipos I, II e III.
tegra como mais relevantes as seguintes anomalias: dentes neona- Síndroma de Poland > Situação clínica integrando deformidades (unila-
tais, baixa estatura, cabelo escasso, cataratas, microftalmia e extre- terais) da parede torácica tais como pectus excavatum e ausência da glân-
midade nasal estreita. dula mamária, hipoplasia dos músculos grande e pequeno peitoral,
Síndroma de Holt – Oram > De transmissão AD em relação com muta- anomalias dos dedos da mão do mesmo lado (por ex. sindactilia).
ção no gene TBX5, integra anomalias do membro superior e ao ní- Síndroma de Prader-Willi > Entidade clínica explicada por deleção no
vel da cintura escapular, associadas a defeitos cardíacos tais como cromossoma 15 de origem paterna estando implicado o gene activo
dos septos ventricular e auricular, e alterações na condução auricu- E3A(UBE3A), envolvido na degradação de proteínas cerebrais.
loventricular. Traduz-se essencialmente por hipotonia neonatal acentuada, obesi-
Síndroma de Kabuki > Anomalias congénitas múltiplas com identifi- dade, mãos e pés pequenos e alteração do comportamento com atra-
cação de base molecular, salientando-se: características faciais típi- so mental. (ver Síndroma de Angelman).
cas (fendas palpebrais alongadas com eversão do terço externo da Síndroma de Rabson-Mendenhall > Entidade clínica com manifesta-
pálpebra inferior, sobrancelhas arqueadas,etc.), pavilhões auricu- ções aparentadas com leprechaunismo: resistência à insulina, ano-
lares grandes e proeminentes, défice cognitivo, hipocrescimento, malias dos dentes e unhas, e hiperplasia pineal.
susceptibilidade para doenças autoimunes, entre outros defeitos. Síndroma de Rapunzel > Situação clínica em que os cabelos deglutidos
Síndroma de Kearns – Sayre > Oftalmoplegia, retinopatia pigmentar, formam um chamado tricobezoar (ver atrás “bezoar”) de compri-
cardiomiopatia. mento considerável, desde o estômago ao intestino delgado, como
Síndroma de Landau-Kleffner > Forma grave de epilepsia associada a que uma “cauda de animal”, originando síndroma oclusiva intesti-
agnosia auditiva, disartria e afasia. nal de grau variável.
Síndroma de Larsen > Luxação articular múltipla, fácies plana, unhas Síndroma de Rett > Entidade clínica resultante de mutações no gene
dos dedos das mãos curtas, polegares em espátula, etc.. MECP2 localizado em Xq28: alterações do neurodesenvolvimento,
Síndroma de Laurence – Moon – Biedl > Como principais característi- com défice cognitivo grave, predominantemente no sexo feminino
cas há a registar: obesidade, polidactilia, retinite pigmentar, defi- (prevalência ~1/10.000 raparigas aos 12 anos).
ciência mental, diabetes insípida e baixa estatura. Admite-se here- Síndroma de Reye > Situação hoje rara, é caracterizada por encefalo-
ditariedade AR. patia aguda e disfunção hepática comportando elevada mortalida-
Síndroma de Loeffler > Condensação pulmonar fugaz detectada por de (30-40%) por edema cerebral. Em geral precedida por infecção ví-
radiografia, associada a eosinofilia, e de etiologia diversa; mais fre- rica (sobretudo varicela e influenza) 3-5 dias antes, verifica-se forte
quentemente relacionada com parasitoses, sobretudo Ascaris lum- associação com o uso de ácido acetilsalicílico.
bricoides. O substrato anatomopatológico pulmonar inclui infiltra- Síndroma de Robinow > Inclui, entre outros defeitos: hipogonadismo,
dos de eosinófilos e plasmócitos. antebraços curtos, braquidactilia, bossas frontais, hipertelorismo,
Síndroma de Mallory – Weiss > Situação clínica traduzida por hemor- longo philtrum, mento pequeno, cariótipo normal.
ragia digestiva alta resultante de vómito com esforço levando a Síndroma de Rothmund-Thomson (ou poiquilodermia congénita) >
lesão/solução de continuidade por efeito de estiramento ao nível da Quadro clínico de transmissão AR relacionado com mutações no ge-
junção gastresofágica. ne RECQL4 na maioria dos casos. Surgindo as manifestações pelos
Síndroma de McCune Albright > Hereditariamente esporádica, inclui 3 anos de idade, há a destacar: placas de eritema com ulterior hi-
determinados sintomas e sinais com frequência variável: manchas perpigmentação, atrofia, telangiectasias e alopécia. Hipogonadismo
cor de “café com leite”, hiperfunção de vários órgãos endócrinos,, e risco de cancro.
bócio multinodular, hipertiroidismo, displasia óssea poliostótica e Síndroma de Rubinstein-Taybi > Baixa estatura, polegares e dedos dos
puberdade precoce (independente de GnRH). A gonarca precoce re- pés largos, fendas palpebrais antimongolóides , hipoplasia do maxi-
sulta de hiperfunção ovárica e, por vezes, da formação de quistos le- lar com palato estreito, etc..
vando à secreção de estrogénios. Resulta de mutações da subunida- Síndroma de Seckel > De hereditariedade AR, com restrição do cresci-
de da proteína G. mento pré e pós-natal, microcefalia com sinostose prematura, insu-
Síndroma de Nicolaides-Baraitser > de base genética ainda não conhe- ficiência cognitiva, nariz proeminente, etc..
Glossário geral XXXIII

Síndroma de Smith-Lemli-Opitz > Escafocefalia, narinas em ante- Taxa de mortalidade de menores de 5 anos (TMM5) > Número de óbi-
versão, e ou ptose palpebral, sindactilia do 2º e 3º dedos do pé, hi- tos entre o nascimento e a data em que são completados os 5 anos
pospadia, criptorquidia no sexo masculino, etc.. de idade por mil (1.000) nado-vivos.
Síndroma de Sotos (Gigantismo cerebral) > Macrossomia evidente ao Taxa de mortalidade materna > Número anual de mortes de mulheres
nascer, mãos e pés grandes, maturação óssea avançada, etc.. devidas a complicações decorrentes da gravidez por 100.000 partos
Síndroma de Werner > Envelhecimento precoce símile progéria, (ma- de crianças nascidas vivas.
nifestando-se mais tarde do que esta), salientando-se esclerose vas- Taxa de mortalidade fetal tardia > Esta taxa é calculada segundo a fór-
cular e cardiomiopatia. Hereditariedade autossómica recessiva em mula:
relação com os genes WRN e LMNA. Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas
Síndroma de Wolff-Parkinson – White > Situação também designada ———————————————————— x 1000
por pré-excitação ou ante-sistolia, em que o ECG evidencia alarga- Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas + Nº de nado-vivos com >= 1.000 gramas
mento do complexo QRS e encurtamento P-R; habitualmente acom- Taxa de mortalidade neonatal (bruta) > Esta taxa é definida pela re-
panhada por crises de taquicardia paroxística, o seu prognóstico de- lação:
pende da eventualidade de cardiopatia associada. Número total de óbitos de RN ocorrendo até 28 dias completos (672 ho-
Síndroma de Wolfram > Inclui diabetes mellitus não autoimune, atrofia óp- ras) / 1.000 nado vivos (qualquer que seja o peso).
tica, diabetes insípida, surdez neurossensorial e anomalias do aparelho Esta taxa é subdividida em:
urinário e neurológicas, com prognóstico muito reservado e baixa espe- a) precoce: nº de óbitos até aos primeiros sete dias completos (ou 168 ho-
rança de vida. Mutações em dois genes relacionados com proteínas do ras completas) /1.000 nado-vivos;
retículo endoplásmico, neurónios e vasopressina, a qual é deficiente. b) tardia: nº de óbitos após sete dias completos (168 horas) e até 28 dias
Síndroma de Zollinger-Ellison > Situação rara caracterizada por doen- completos (672 horas) /1.000 nado-vivos;
ça péptica ulcerada grave e refractária ao tratamento causada por hi- Notas: a) As taxas de mortalidade total, precoce e tardia (não bruta)
persecreção de gastrina relacionada com gastrinoma (tumor neu- consideram apenas RNs com peso de nascimento igual ou superior
roendócrino). Em > 90% dos doentes são verificados níveis elevados a 1.000 gramas, quer no numerador, quer no denominador;
de gastrina em jejum. O tratamento de eleição inclui inibidores da b) Não sendo conhecido o peso, considera-se habitualmente que idade
bomba de protões e antagonistas dos receptores H2. gestacional de 28 semanas e /ou comprimento de 35 cm correspon-
Síndroma stiff-man ou do “homem rígido” > Situação clínica do SNC, dem a 1.000 gramas;
rara e autoimune, caracterizada por rigidez progressiva e espasmos
axiais e acompanhada de títulos muito elevados de anticorpos GAD- Taxa de mortalidade perinatal por 1.000 (fetos mortos+nado-vivos)
65. Em cerca de 30% dos doentes surge DM1. > Esta taxa é calculada segundo a fórmula:
Síndromas tumorais PTEN > conjunto de situações com elevada varia- Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas
bilidade na expressão clínica - incluindo diversas patologias genéti- + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 1.000 gramas)
cas - e pleiotropismo, relacionadas com disfunção do gene supres- ————————————————————————— x 1000
sor tumoral PTEN. (ver síndroma de Cowden) Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas + total de nado-vivos com >= 1.000 gramas
Sinofris > Convergência/junção das sobrancelhas na linha média ao ní-
vel da raiz nasal. Taxa de mortalidade perinatal por 1.000 (nado-vivos) > Esta taxa é
Solução > Mistura líquida homogénea duma substância sólida, líquida calculada segundo a fórmula:
ou gasosa, considerando-se, no sentido correcto do termo, soluto a Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas
substância dissolvida, e solvente o líquido (geralmente em quanti- + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 1.000 gramas)
dade elevada). ————————————————————————— x 1000
Suspensão > Preparado farmacêutico constituído pela dispersão duma Nº de nado-vivos com >= 1.000 gramas
fase sólida insolúvel numa fase líquida (ou seja, líquido no qual se
encontram partículas insolúveis finamente dispersas). Taxa de mortalidade perinatal total por 1.000 (fetos mortos+nado-
Syndet > Detergente sintético (sabão “sem sabão”) com pH neutro, fa- vivos) > Esta taxa é calculada segundo a fórmula:
zendo espuma escassa; a forma sólida designa-se por “pain”. Nº de nado-mortos com >= 500 gramas
Taxa > Tipo específico de razão em que o numerador e o denominador + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 500 gramas)
estão relacionados, constituindo o tempo uma parte intrínseca do ———————————————————————— x 1000
denominador. Nota: Segundo os epidemiologistas a designação, por Nº de nado-mortos com >= 500 gramas + Nº de nado-vivos com >= 500 gramas
ex. de taxa de mortalidade, não é correcta.
Taxa de alfabetização de adultos > Percentagem de pessoas com 15 Taxa de mortalidade perinatal total por 1.000 (nado-vivos) > Esta
anos ou mais que sabem ler e escrever. taxa é calculada segundo a fórmula:
Taxa bruta de mortalidade > Número de óbitos anuais por 1.000 pes- Nº de nado-mortos com >= 500 gramas
soas. + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 500 gramas)
Taxa bruta de natalidade > Número anual de nascimentos por 1.000 ———————————————————————— x 1000
pessoas. Nº de nado-vivos com >= 500 gramas
Taxa de letalidade > Relação entre o número de mortes por determi-
nada doença e o número total dos seus casos numa dada população. Taxa de nado-mortalidade > Número de nado-mortos com peso de nas-
Taxa de mortalidade infantil (TMI) > Número de óbitos no primeiro cimento >1000 gramas /1.000 nascimentos totais (nado-mortos + na-
ano de vida por cada 1.000 nado vivos. do-vivos pesando > 1.000 gramas) durante determinado período.
XXXIV TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Taxa total de fertilidade > Número de crianças que nasceriam por mulher,
se esta vivesse até ao fim dos seus anos férteis e tivesse filhos em cada
etapa, de acordo com as taxas prevalentes para cada grupo etário.
Trabalho infantil > Percentagem de crianças entre 5 e 14 anos de idade
recrutadas para tarefas próprias para adultos.
Valgo (ou valgus) > membro ou segmento desviado para fora.
Valores de referência em antropometria > Valores que descrevem co-
mo as crianças efectivamente crescem na realidade.
Valores – padrão em antropometria > Valores que pretendem repre-
sentar o crescimento ideal.
Varo (ou varus) > membro ou segmento desviado para dentro.
Vigilância pré-natal > Percentagem de mulheres entre 15 e 49 anos as-
sistidas pelo menos uma vez durante a gestação por profissional de
saúde treinado (médicos, enfermeiros ou parteiros); em Portugal
considera-se, pelo menos,a ocorrência de 3 consultas médicas.
Xenobióticos > São compostos estranhos ao organismo que poderão es-
tar presentes na alimentação, incluindo leite materno. Distinguem-
se 3 grandes grupos: 1] contaminantes naturais (por ex. glicoal-
calóides presentes em batatas e tomates,etc.); 2] contaminantes do
meio ambiente pela actividade humana/antropogénicos (por ex. ni-
tritos, pesticidas, metais pesados, etc.); 3] tóxicos formados durante
o processamento culinário (por ex. hidrocarbonetos policíclicos
aromáticos).
Xeroftalmia > Secura e retracção das conjuntivas bulbar e palpebral, que
se tornam esbranquiçadas e perdem o brilho. Esta situação pode ser
secundária a défice de vitamina A ou a tracoma.
Xerose > Secura da conjuntiva, muitas vezes a primeira fase da xerof-
talmia.

BIBLIOGRAFIA
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Clássica Editora, 1995
Uvarov EB, Chapman DR, Isaacs A. Dicionário de Ciência (tradução por-
tuguesa). Lisboa: Europa América Editora, 1964
Abreviaturas

A ALTE – apparent life threatening event (episódio associado a risco de


AA – aminoácidos vida)
AAG – anticorpos antigliadina AME – atrofia muscular espinhal
AAP – American Academy of Pediatrics (Academia Americana de Pediatria) AMP – adenosina-5-monofosfato (monophosphate)
AAS – ácido acetil-salicílico (Aspirina®) AMPc – AMP cíclico
A1-AT – alfa 1-antitripsina AN – anorexia nervosa
ABO – grupos sanguíneos ABO (AB zero) ANA – anticorpos antinucleares (anti nuclear antibodies)
Ac ou AC – anticorpo, anticorpos ANCA – anticorpos anticitoplasma do neutrófilo
Ác – ácido ou ácidos ANDAI – Associação Nacional de Doentes com Artrite Infantil e Juvenil
ACE – angiotensin converting enzyme ou enzima de conversão da ANP – atrial natriuretic peptide ou PNA
angiotensina A-P – ântero-posterior
ACF – anemia de células falciformes APIR – agregação plaquetária induzida pela ristocetina (RIPA em
ACG – angiocardiograma inglês)
ACJ – artrite crónica juvenil AR – artrite reumatóide
ACo – acetilcolina ARA – arachidonic acid ou ácido araquidónico
AcoE – acetilcolinesterase ARC – AIDS related complex (complexo relacionado com SIDA)
ACOG – American College of Obstetricians and Gynecologists (Colégio ARDS – adult respiratory distress syndrome (SDR tipo adulto)
Americano de Obstetras e Ginecologistas) ARJ – artrite reumatóide juvenil
ACR – American College of Rheumatology ARM – angiorressonância magnética
ACTH – corticotrofina ou hormona corticotrópica hipofisária- ARN – ácido ribonucleico
adrenocorticotropic hormone ARNm – ARN mensageiro
AD – aurícula direita ARNs – ARN solúvel ou de transferência
ADE – acção dinâmica específica ARP – actividade da renina palsmática
ADH – antidiuretic hormone (ou HDA-hormona antidiurética) As – símbolo químico do arsénio
ADN – ácido desoxirribonucleico AST – aspartato aminotransferase/transaminase glutâmico-pirúvica
ADP – adenosine diphosphate (ou adenosinadifosfato) ASCA – anticorpos anti Saccharomyces cervisae
AE – alimentação entérica (ou enteral) AT – antitrombina, ajudas técnicas, apoio tecnológico
aEEG – EEG de amplitude integrada ATM – articulação temporomandibular
AESP – actividade eléctrica sem pulso ATP – adenosina trifosfato (Adenosine Tri Phosphate)
AFP – alfa-fetoproreína ATPase-Na+/K+ – bomba de sódio
Ag – antigénio; símbolo químico de prata Au – símbolo químico do ouro
A/G – relação albumina-globulina AUS – azoto ureico no sangue (vidé BUN)
AGL – ácido gordo livre AV – nódulo auriculoventricular
AGNE – ácido gordo não esterificado ou PUFA (poly unsaturated fatty A-V – diferença arteriovenosa
acid) AVB – atrésia das vias biliares
AGS – adrenogenital syndrome; SAG-síndroma adrenogenital AVBEH – AVB extra-hepáticas
AHA – American Heart Association AVC – acidente vascular cerebral
AHAI – anemia hemolítica autoimune AVP – arginina-vasopressina
AIA – acidente isquémico arterial AZT – azidotimidina (zidovudina segundo denominação
AIDS – acquired immunodeficiency syndrome; ou SIDA-síndroma de internacional)
imunodeficiência adquirida
AIE – asma induzida pelo esforço B
AIG – peso do RN adequado para a idade gestacional B1 – primeiro ruído do coração (=S1)
AIJ – artrite idiopática juvenil Ba – bário
AINE – anti-inflamatórios não esteróides BAV – bloqueio auriuloventricular
ALT – alanina aminotransferase/transaminase glutâmico-oxalacética- BCC – bloqueante dos canais do cálcio
TGO BCG – bacilo Calmette-Guérin
XXXVI TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

BEI – iodo extraído (removido) pelo butanol (Butanol Extractable Iodine) CIA – comunicação interauricular
BERA – Brainstem evoked response audiometry CIAS – cold induced autoinflammatory syndrome ou síndroma auto-
BHCG – Gonadotrofina coriónica humana beta (ou GCHB) inflamatória induzida pelo frio
BHE – barreira hematencefálica CIAV – comunicação interauriculoventricular
Bi – bismuto CID – classificação internacional de doenças, lesões e causas de óbitos
BIPAP – bilevel positive airway pressure (OMS/WHO); ou coagulação intravascular disseminada
BK – bacilo de Koch CIM – concentração inibitória mínima
BN – bulimia nervosa CINCA – chronic infantile neurologic cutaneous and articular syndrome
BNP – B-type natriuretic peptide; ver NT- proBNP CIV – comunicação interventricular
BO – bronquiolite obliterante CK – creatinaquinase/creatinacinase
BOOP – BO com pneumonia organizativa (organizing pneumonia) CL – compliance pulmonar/distensibilidade pulmonar
BP – baixo peso (<2500 gramas) ou binding protein (factor de ligação) Cl – símbolo do cloro
BPE – baixo peso extremo(<1000 gramas) cl – centilitro
BPM ou bpm – batimentos por minuto CM – concentração máxima
Br – bromo cm – centímetro/cm2 - centímetro quadrado; cm3 - centímetro cúbico
BR – biópsia renal ou cc
BRB – bilirrubina CMH ou MHC – Complexo major de histocompatibilidade (locus no
BRD – bloqueio do ramo direito cromossoma 6 com genes que codam antigénios (glicoproteínas de
BRE – bloqueio do ramo esquerdo superfície) de histocompatibilidade (vidé adiante MHC)
BSE – bovine spongiform encephalopathy ou encefalopatia espongiforme CMO – corticosterona metil oxidase
bovina/doença das vacas “loucas” CMV – citomegalovírus ou vírus citomegálico/de inclusões
BSP – bromossulftaleína citomegálicas ou corpos multivesiculares (surfactante)
BT – bilirrubina total (B ou BRB) CO – monóxido de carbono
BUN – blood urea nitrogen ou azoto ureico do sangue CO2 – dióxido, anidrido ou gás carbónico
Co – cobalto
C CoA – coenzima A
C – Celsius, carbono Cox – cicloxigenase
Ca – cálcio, carcinoma CPAP – continuous positive airways pressure ou pressão positiva
CaBP – calcium binding protein ou proteína fixadora do cálcio contínua no final da expiração ou pressão de distensão contínua
CAD – cetoacidose diabética CPK – creatine phospho kinase ou creatina fosfo quinase (ou cinase)
Cal – kcal (quilocaloria) CPK-MB – idem – isoenzima MB (cérebro,musculo) da CPK
Cal – caloria CPRE – colangiopancreatografia retrógrada endoscópica
CAMP – adenosinamonofosfato cíclico CPT – capacidade pulmonar total
CAO (índice de cárie) – C- dentes cariados; A-ausentes; O-obturados CPV – canal peritoneovaginal
CASH – cortico adrenal stimulating hormone (hormona estimulante Cr – crómio
córtico- suprarrenal diferente da ACTH) CR – cicatriz renal
CAV – canal atrioventricular comum CREST – sigla de calcinose cutânea, fenómeno de Raynaud,
cc – centímetro cúbico (ou cm3) compromisso esofágico, esclerodermia, telangiectásias
CCI – comissão de controlo de infecção CRF – capacidade residual funcional ou corticotropin releasing factor
CCMH – concentração corpuscular média em hemoglobina (=CGMH) (factor libertador da corticotrofina)
CCU – cancro do colo do útero CRH – corticotropin releasing hormone (hormona libertadora da
Cd – cádmio corticotrofina)
CDC – Centers of Disease Control, em Atlanta, EUA CRMO – chronic recurrent multifocal osteomielitis
CDG – carbohydrate deficient glycoprotein CRP – C Reactive Protein ou PCR
CDPN – Centro de Diagnóstico Pré-natal CS – craniossinostose
CEA – corionic embrionary antigen ou antigénio embrionário coriónico 17-CS – 17 cetosteróide
CEC – circulação extracorporal CSP – cuidados de saúde primários
CERAC – Centro de Estudos e Registo de Anomalias Congénitas CTCIG – Comissão Técnica de Certificação de Interrupção da
CFRD – cystic fibrosis related diabetes Gravidez
CFTR – cystic fibrosis transmembrane conductance regulator CTG – cardiotocografia ou cardiotocograma
CGMH – concentração globular média em hemoglobina (= CCMH) Cu – cobre
CH – concentração de hemoglobina CUM – cistouretrografia miccional
CHARGE – Associação de anomalias (sigla de coloboma, heart disease, CV – capacidade vital, campo visual, coluna vertebral
atrésia dos coanos, retarded growth and development associado a CVEDT – Centro de Vigilância Epidemiológica de Doenças
anomalias do SNC, ear anomalies) Transmissíveis
CHC – carcinoma hepatocelular
CI – capacidade inspiratória D
Ci – Curiecentímetro cúbico D – dalton, densidade
Abreviaturas XXXVII

D – dia de vida (por ex. D5 ou 5º dia) ou nível de vértebra dorsal (por DTPA – dietileno-tetra-pentacético
ex. D8) DV – dador vivo
DA – dermatite atópica DVP – derivação ventriculoperitoneal
DAG – diacilglicerol
DAR – dor abdominal recorrente E
DB – decibel ou Doença de Behçet EAEC – enteroaggregative E. coli
DBP – displasia broncopulmonar EACA – ácido épsilon-aminocapróico
DC – débito cardíaco EB – epidermólise bolhosa
DCE – doença crónica do enxerto EBP – extremo baixo peso (recém-nascido de )
DD – diagnóstico diferencial EBV – Epstein-Barr virus ou vírus de Epstein-Barr
DDA – displasia de desenvolvimento da anca ECG – electrocardiograma
DDAVP – 1-deamino-8-d-arginino-vasopressina ECHO virus – ou vírus ECHO (enteric cytopathic human orphan)
DDO – doenças de declaração obrigatória ECMO – extracorporal membrane oxygenation ou oxigenação com
DDT – dicloro-difenil-tricloroetano membrana através de circulação extracorporal
DEXA – dual X ray absorptiometry ECN – enterocolite necrosante
DGPI – diagnóstico genético de pré-implantação EcoCG – ecocardiograma
DGS – Direcção Geral da Saúde EDTA – ácido edético ou etileno-diamima-tetra-acetato
DH – doença de Hirschsprung EEC – espaço ou compartimento extracelular, contendo LEC
DHA – docosahexanoic acid ou ácido docosa-hexanóico EEEPC – estudo europeu sobre a etiologia da paralisia cerebral
DHABO – doença hemolítica por incompatibilidade ABO EEG – electroencefalograma
DHEA – di-hidro-epi-andosterona EEI – esfíncter esofágico inferior
DHEAS ou DHEA-S – sulfato de di-hidro-epi-andosterona EH – esferocitose hereditária
DHPNRh – doença hemolítica perinatal por incompatibilidade Rh EHEC – enterohemorrhagic E. Coli
DHRN – doença hemolítica do recém- nascido EHI – encefalopatia hipóxico-isquémica
DHT – di-hidro-testosterona EHP – estenose hipertrófica do piloro
DI, DII, DIII – derivações bipolares electrocardiográficas EIC – espaço intracelular, contendo LIC
DI – dentinogénese imperfeita EID – espaço intercostal direito
DID – diabetes insulinodependente EIE – espaço intercostal esquerdo
DII – doença intestinal inflamatória EIEC – enteroinvasive E. Coli
DIT – diiodotirosina ELISA – enzyme-linked immunosorbent assay
DIU – dispositivo intrauterino EMG- electromiografia / electromiograma
DK – doença de Kawasaki EMLA – eutectic mixture local anesthetics
DMARD – disease modifying agents in rheumatic disease EN – eritema nodoso
DMG – diabetes mellitus gestacional EOG – electro-oculograma
DM2 – diabetes mellitus do tipo 2 EPEC – enteropathogenic E. Coli
DMJ – dermatomiosite juvenil EPI – enfisema pulmonar intersticial
DMG – diabetes mellitus gestacional EPO – eritropoietina
DMO – doença metabólica óssea ERA – Evoked response audiometry
DMSA – ácido dimercapto-succínico ERG – electrorretinograma
DNA ou ADN – ácido desoxirribonucleico ESPGHAN – European Society for Gastroenterology Hepatology and
DNM – doença neuromuscular Nutrition
DOCA – acetato de desoxicorticosterona ET – exsanguinotransfusão
DOPA – Di-hidroxi-fenilalanina ETCO – end tidal carbon monoxide
DP – desvio-padrão ou diálise peritoneal ETEC – enterotoxigenic E. Coli
DPC – doença pulmonar crónica ETP – exsanguinotransfusão parcial
DPG – diabetes pré-gestacional EUA – Estados Unidos da América do Norte
2,3 - DPG – 2,3 difosfoglicerato e.v./EV – endovenoso (ou intravenoso - IV)
DPI – doença pulmonar intersticial ex/ex: – por exemplo
DPN – diagnóstico pré-natal
DPOC – doença pulmonar obstrutiva crónica F
DPPC – dipalmitoilfosfatidilcolina FA – fosfatase alcalina
DSM-III, DSM IV – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders FAO – Food and Agricultural Organization
III , IV FC – frequência cardíaca
DRGE – doença do refluxo gastro-esofágico FCAS – familial cold autoinflammatory syndrome ou síndroma familiar
DST – doença sexualmente transmissível auto-inflamatória
DT (vacina) – antidifteria e antitétano FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia
DTN – defeito do tubo neural FDA – Food and Drug Administration
DTP (vacina) – antidifteria, antitétano e antipertussis Fe – Ferro
XXXVIII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

FeNa – fracção excretada de Na (sódio) urinário H


FeNo – fracção expirada de NO h – hora
FETENDO – sigla em inglês de Fetal Endoscopy H – hidrogénio
FEV – forced expired volume HA – hemaglutinação ou hepatite A
FFA – free fatty acids ou ácidos gordos livres HAD – hormona antidiurética (arginina-vasopressina)
FG – fosfatidilglicerol HAI – hepatite autoimune
FGR – filtração glomerular renal ou GFR HAP – hospital de apoio perinatal
FhO2 – fracção ou concentração de oxigénio na hipofaringe HAPD – hospital de apoio perinatal diferenciado
FI – fosfatidil inositol Hb ou Hgb – hemoglobina
FiO2 – fracção ou concentração de oxigénio no ar inspirado HB – hepatite B
FISH – Fluorescence in situ hybridation HbGM ou HGM – hemoglobina globular média
FIV – fertilização in vitro HBIG – imunoglobulina específica para o vírus da HB
FM – feto morto HbO2 – oxiemoglobina
FMF – febre mediterrânica familiar HBsAg – antigénio de superfície do vírus da hepatite B
FO – fundo do olho HC – hidrato de carbono
FQ – fibrose quística (mucoviscidose) HCG – gonadotrofina coriónica humana (human chorionic gonadotropin)
FR – frequência respiratória, factor reumatóide ou febre reumática HCl – ácido clorídrico (anteriormente Cl H)
FSF – factor XIII de coagulação (fibrin stabilizing factor) HCS – somatotrofina coriónica humana
FSH – gonadotrofina A, hormona foliculostimulante (follicle-stimulating Hct – hematócrito; ou Ht
hormone) HDC – hérnia diafragmática congénita
FSH-RH – idem hormona libertadora d FSH… releasing hormone HDE – Hospital de Dona Estefânia
FTE – fístula tráqueo-esofágica HDL – high density lipoprotein ou lipoprotéina de alta densidade
FVSP – fibrilhação ventricular sem pulso He – hélio
FvW – factor de von Willebrand HELLP syndrome – Hemolysis, Elevated Liver Enzymes, Low Platelets ou
síndroma com hemólise, enzimas hepáticas elevadas e plaquetas
G baixas
g – grama HFF – Hospital Fernando Fonseca
GABA – ácido gama-amino-butírico HFV – high frequency ventilation (VAF em português)
GADA – anticorpos antidescarboxilase do ácido glutâmico Hg – mercúrio
Gal – galactose HIC – hipertensão intracraniana
GBM – glomerular basement membrane HIDS – hyper IgD syndrome ou síndroma hiper IgD
G-CSF – granulocyte colony stimulating factor HIV – hemorragia intraventricular ou Human Immunodeficiency Virus
GEA – gastrenterite aguda HLA – human leucocyte antigen ou antigénio de histocompatibilidade
GFR – glomerular filtration rate HMGCoA – Hidroxi-metil-glutaril-coenzima A
GGT – gama glutamil transferase Hp – Helicobacter pylori
GH – growth hormone (hormona do crescimento) HPC – Hospital Pediátrico de Coimbra
GHRF – growth hormone releasing factor ou factor de libertação da GH HPP – hipertensão pulmonar persistente
GH-RIH – growth hormone release inhibiting hormone ou somatostatina HPT – hormona paratiroideia (ou paratormona- PTH)
ou hormona inibidora da libertação da hormona de crescimento HPV – vírus do papiloma humano
GI – gastrintestinal HSD – hidroxi-esteróide desidrogenase
GIG – RN grande para a idade gestacional HSJ – Hospital de São João
GINA – global initiative for asthma HSM – Hospital de Santa Maria
GMP – guanosinamonofosfato HSV – herpes simplex vírus ou vírus herpes simples
GMPc – guanosina-monofosfato cíclico Ht – o mesmo que Hct
GM-CSF – granulocyte macrophage colony stimulating factor HT – hormonas tiroideias
GNA – glomerulonefrite aguda HTA – hipertensão arterial
GNAPE – GNA pós-estreptocócica Htc ou Ht – hematócrito
GnRH – gonadotropin releasing hormone ou hormona libertadora das HTP – hipertensão pulmonar
gonadotrofinas HV – hepatite vírica
GNRT – GN rapidamente terminal HVA – ácido homovanílico
GOT – glutamato-oxalacetato-transaminase ou ALT HVD – hipertrofia ventricular direita
G-6PD – glucose 6 fosfato desidrogenase HVE – hipertrofia ventricular esquerda
GPT – glutamato-piruvato-transaminase ou AST Hz – Hertz
GRISI – Grupo de Rastreio e Intervenção da Surdez Infantil
GST – genes supressores de tumores (ou TSG) I
GWAS – genome-wide association studies I – símbolo químico do iodo
Gy – unidade de radiação usada em radioterapia (1 Gy <> 100 rads) IAA – anticorpos anti-insulina
IACS – infecção associada à prestação dos cuidados de saúde
Abreviaturas XXXIX

ICA – anticorpos anti-células B dos ilhéus KR – quiloroentgen


ICC – insuficiência cardíaca congestiva ou imunocomplexos Kt – constante de tempo
circulantes kV – quilovolt
ICSH – interstitial-cell stimulating hormone ou gonadotrofina B, kW – quilowatt
hormona estimulante das células intersticiais
IDP – imunodeficiência primária L
IECA – inibidor da enzima de conversão da angiotensina l – litro
IF – interfalângicas L – nível de vértebra lombar (L3 = 3ª vértebra), ou litro
IFA – immunofluorescent antibody ou anticorpo imunofluorescente LA – leucemia aguda ou líquido amniótico
IFD – interfalângica distal Lactente – no sentido restrito, a criança alimentada com leite ou que
IFN – interferão “recebe” leite; no sentido lato, criança pequena em geral até ao 1
IFP – interfalângica proximal ano
IFR – índice de falência renal (ou de insuficiência renal) Lactante – pessoa (em geral a mãe) que amamenta ou “dá” o leite
Ig – imunoglobulina natural
IL – interleucina LAF – lymphocyte activating factor ou factor de activação linfocitária
ILAE – International League Against Epilepsy LCPUFA – long chain polyunsaturated fatty acid ou ácido gordo poli-
IGF – insulin-like growth factor ou IGF /Factor de crescimento insaturado de longa cadeia
semelhante à insulina LCR – líquido céfalorraquidiano
IGFBP – insulin-like growth factor binding protein (proteína de ligação) LDH – lácticodesidrogenase
IGIV – imunoglobulina intravenosa LDL – low density lipoproteins
IGSC/ou SCIG) – imunoglobulina subcutânea LEC – líquido extracelular contido no EEC
ILAR – International League Against Rheumatism LES – lúpus eritematoso sistémico
ILGF – insulin-like growth factor ou IGF /Factor de crescimento LH – luteinizing hormone ou hormona luteinizante ou gonadotrofina B
semelhante à insulina LHR – sigla do inglês right lung area to head circumference ratio
im/ IM – intramuscular Li – lítio
IMC – índice de massa corporal LIC – líquido intracelular contido no EIC
IMV – ventilação “mandatória”/obrigatória intermitente LIG – RN leve para a idade gestacional
IN – infecção nososcomial (ou adquirida no hospital) LIP – lymphocytic interstitial pneumonia ou pneumonia intersticial
INE – Instituto Nacional de Estatística linfocitária (PIL)
iNO – óxido nítrico inalado Lis – lisina
IO – idade óssea, índice de oxigenação LLC – leucemia linfóide crónica
IOTF – International Obesity Task Force LM – lesões mínimas
IP – índice ponderal no RN: razão peso (gramas)/comprimento (cm)3 x LMA – leucemia mielóide aguda
100 ou inibidor das proteases LP – líquido pleural
IPLV – intolerância às proteínas do leite de vaca LPF – líquido pulmonar fetal
IPPV ou IPPB – intermitent positive pressure ventilation/breathing ou LPR – Lipid Research Program
ventilação com pressão positiva intermitente LPS – lipopolissacárido
IPR – índice de produção reticulocitária LPV – leucomalácia periventricular ou leucocidina de Panton e
IRA – insuficiência renal aguda Valentine
IRC – insuficiência renal crónica LRG – leucine – rich alpha-2-glycoprotein
IRCT – insuficiência renal crónica terminal LSD – dietilamida do ácido lisérgico
IRIDA – iron resistant iron-deficiency anemia LTH – luteotropic hormone ou prolactina
ISAAC – International Study of Asthma and Allergies in Chidhood
IU – infecção urinária M
iv/IV – intravenoso (ou endovenoso) M – molar
IVD – insuficiência ventricular direita M1 a M7 – tipos morfológicos da classificação das LMA
IVE – insuficiência ventricular esquerda MAG3 – mercaptoacetil triglicina
IVG – interrupção voluntária da gravidez MALT – mucosa associate lymphoid tissue
MAP – mean airway pressure (ou Paw) ou pressão média na via aérea
J MAPA – monitorização ambulatória da pressão arterial
J – Joule MAR – manometria ano-rectal
MAS – síndroma de activação macrofágica
K MBE – Medicina Baseada na Evidência
K – símbolo de potássio, ou Kelvin MBP – muito baixo peso (<1500 gramas)
Kcal – quilocaloria MCF – metacarpo-falângica
Kg – quilograma MCH – mean corpuscular hemoglobin ou hemoglobina globular média
Km – quilómetro MCHC – mean corpuscular hemoglobin concentration ou concentração de
kPa – capa pascal (medida de pressão); (kPa x 7.5 = mmHg) hemoglobina globular média
XL TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

mcg (ug) – micrograma NIH – National Institute of Health ou Instituto Nacional de Saúde
MCV – mean corpuscular volume ou volume globular médio NIHDE – Núcleo Iconográfico do Hospital de Dona Estefânia
ME – meningoencefalite NIPS – Neonatal Infant Pain Scale
MELAS – mitochondrial myopathy encephalopaty lactic acidosis and stroke NIV – Nutrient Intake Values
like episodes nm – namómetro
MENDS – MElatonin in children with Neurodevelopmental Disorders NNN – meio de cultura de Novy, McNeal e Nicolle
and impaired Sleep NO – óxido nítrico
mEq/L – milequivalente por litro NOC – norma de orientação clínica
MERRF – mitochondrial encephalomyopathy with ragged red fibers; NP – nutrição parentérica (ou parenteral)
epilepsia mioclónica (associação a doenças hereditárias do NPT – nutrição parentérica total(ou exclusiva)
metabolism) NR – nefropatia do refluxo
Met Hb – metemoglobina NS – não significativo
MFR – Medicina Física e Reabilitação NT-proBNP – N terminal –proBNP (ver Glossário geral: péptidos
Mg – símbolo químico do magnésio natriuréticos)
mg – miligrama NV – nado vivo
MHC ou CMH – (ver atrás) NYHA – New York Heart Association
MHz – mega hertz
min – minuto O
ml – mililitro O – oxigénio
MM – mielomeningocelo OD – olho direito
MMBP – muito muito baixo peso (sinónimo de EBP), recém-nascido OE – olho esquerdo
de mmc/mmc ou por mmc ou /mm3 (= µL) OEA – oto-emissões acústicas
Mn – símbolo químico do manganês OGE – órgãos genitais externos
MNI – mononucleose infecciosa OGI – órgãos genitais internos
Mo – símbolo químico do molibdénio OI – osteogénese imperfeita
mol – mole OMA – otite média aguda ou opsoclónus, mioclónus, ataxia
mmol – milimole OMS – Organização Mundial de Saúde
mOsm – miliosmole (mOsm/kg de H2O <>mmol/L) ONSA – Observatório Nacional da Saúde
mR – mili-roentgen ORL – Otorrinolaringologia
MR – meticilina- resistente ORS – oral rehydration solute, ou SRO
mrad – mili-rad OSM – otite seromucosa
MRCP – magnetic resonance cholangiopancreatography
mRNA – RNA mensageiro (ou ARNm) P
MS – meticilina sensível P – fósforo ou Pressão ou peso
MSH – melanocyte stimulating hormone ou hormona melanotrópica ou p – pressão
melanotropina P50 – pressão à qual a Hb se encontra saturada a 50% de O2
MTD – mãe toxicodependente Pa – Pascal
MTF – metatarso-falângica PA – pressão arterial ou pancreatite aguda
MTX – metotrexato PAB ou PABA – ácido para-amino-benzóico
MV/mV/uV – mega/mili/micro Volt PAF – Platelet Activating Factor ou factor de activação plaquetária
MW/mW/uW – mega/mili/micro Watt PAH – ácido para-amino-hipúrico
MWS – Muckle-Wells syndrome PAM – pressão arterial média
PAN – poliaterite nodosa
N PANDAS – sigla de Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders
Na – sódio Associated with Streptococcal infections
NAD, NADH- nicotinamida-adenina dinucleotidofosfato (oxidado ou Pa O2 – pressão parcial arterial de O2
reduzido) PA O2 – pressão alveolar de O2
NASPGAN – North America Society for Pediatric Gastroenterology and PAO – pressão arterial ocular
Nutrition PAP – proteína associada à pancreatite
NB – note bem PAPA – sindroma englobando artrite piogénica, piodermite
NCI – National Cancer Institute gangrenosa, e acne
NEC – necrotizing enterocolitis (ou ECN-enterocolite necrosante) PAPP-A – sigla do inglês de pregnancy-associated plasma protein A
NFCS – Neonatal Facial Coding Scale PAR – pressão arterial retiniana
ng – nanograma (1 nanograma<> 1 milionésimo de mg) PAS – pressão arterial sistólica ou ácido para-amino-salicílico
NHCS – National Center for Health Statistics Paw – pressure airway ou pressão media na via aérea (ou MAP)
NIDCAP – Newborn Individualized Developmental Care Assessment Pb – chumbo
Program (Programa Individualizado de Avaliação do PB – prega bicipital
Desenvolvimento do RN) PBI – Protein Binding Iodine ou iodo ligado às proteínas
Abreviaturas XLI

PC – paralisia cerebral /doença motora cerebral ppm – partes por milhão


PCA – persistência do canal arterial PPN – prova de provocação nasal
PCE – poliartrite crónica evolutiva PPO – prova de provocação oral
PCI – paralisia cerebral infantil PR – poliartrite reumatóide
PCP – poliartrite crónica primária ou pneumocistose pulmonar ou PRH – prolactin releasing hormone
Pneumocystis pneumonia PRINTO – Pediatric Rheumatology International Trials Organization
PCR – proteína C reactiva ou polymerase chain reaction (reacção de PRIST – paper radio immune sorbent test
polimerização em cadeia) ou paragem cárdio-respiratória PSE – prega subescapular
PCT – procalcitonina PSI – prega supra-ilíaca
PDA – persistência do ductus arteriosus ou canal arterial (PCA) PSP – phenol sulpha phtalein ou fenolsulfaftaleína ou proteína específica
PDAY – pathobiological determinants of atherosclerosis in youth do pâncreas na pancreatite aguda
PDE – phosphodiesterase ou fosfodiesterase PT – prega tricipital
PDF – produtos de degradação do fibrinogénio PTA – plasma thromboplastin antecedent ou factor XI de coagulação
PDGF – platelet derived growth factor, ou factor de crescimento derivado PTC – plasma thromboplastin component ou factor IX de coagulação
das plaquetas Ptc – pressão transcutânea
PDHC – pyruvate dehydrogenase complex PTH – paratormona ou hormona paratiroideia (HPT)
PEATC – potenciais evocados auditivos do tronco cerebral PTHrP – parathyroid hormone-related peptide
PEG – polietilenoglicol PTI – púrpura trombocitopénica idiopática
PEEP, PEP – Pressão expiratória positiva ou positive end expiratory PTT – púrpura trombocitopénica trombótica ou tempo de
pressure tromboplastina parcial
PET – positron emission tomography ou tomografia por emissão
depositrões Q
PFAPA – síndroma englobando febre periódica, aftas, faringite e q b p – quanto baste para
adenopatias QG – quociente geral
PG – prostaglandina ou fosfatidil glicerol (phosphatidyl glycerol) QI – quociente de inteligência
PGE – prostaglandina E (outras PG associadas a outras letras) QR – quociente respiratório
pg – picograma QRS – complexo QRS
pH – logaritmo decimal do inverso da concentração hidrogeniónica
em hidrogeniões - grama por litro R
Phe – fenilalanina R – roentgen
PHS – púrpura de Henoch Schonlein RA – reserva alcalina
PI – perda insensível de água RAA – reumatismo articular agudo ou sistema renina – angiotensina-
PIC – pressão intracraniana aldosterona
PIF – prolactin inhibiting factor ou factor inibidor da prolactina RANU – rastreio auditivo neonatal universal
PIG – RN pequeno para a idade gestacional (na prática, sinónimo de LIG) RAST – rádio allergo sorbent test ou doseamento sérico
PIO – pressão intra-ocular radioimunológico das IgE específicas de antigénios
PIP – pico de pressão inspiratória/peak inspiratory pressure RCIU – restrição de crescimento intrauterino
PIVKA – protein induced in vitamin K absence RDS – respiratory distress syndrome ou síndroma de dificuldade
PL – punção lombar respiratória/SDR
PlGF – placental growth factor REM – rapid eye movements ou fase de movimentos rápidos dos olhos
PLUG – sigla do inglês Plug the Lung Until it Grows durante o sono (sono paradoxal, sonho)
PLV – ventilação líquida parcial (sigla do inglês) RER – retículo endoplásmico rugoso
PM – polimiosite juvenil RF – releasing factor ou factor libertador
PMI – protecção materno-infantil RFC – reacção de fixação do complemento
Pn – peso de nascimento RFI – renal failure índex ou IFR
PNA – péptido natriurético auricular (ou ANP) RGE – refluxo gastresofágico
PNB – Produto Nacional Bruto RH – releasing hormone ou hormona libertadora
PNET – peripheral primitive neuroectodermal tumors (tumores Rh – Rhesus
neuroectodérmicos primitivos periféricos) RIA – radio-immunoassay
po- per os ou por via oral RIPA – ver APIR
PO2 – pressão parcial de CO2 (anidrido carbónico) no sangue RMN – ressonância magnética nuclear
PO2 – pressão parcial de O2 ( oxigénio) no sangue RMS – rabdomiossarcoma (sarcoma das partes moles mais frequente
PPB – prova de provocação brônquica na Criança)
PPC – puberdade precoce central RN – recém-nascido
PPF – puberdade precoce periférica RNA – ribonucleic acid ou ácido ribonucleico
PPGSS – sigla de papular purpuric gloves and socks syndrome RNBP – recém-nascido de baixo peso
PPI- pressão positiva intermitente ou IPPV ou IPPB ou inibidor da bomba RNMBP – recém-nascido de muito baixo peso
de protões (pump proton inhibitor) ou prova de provocação inalatória RNBMPE – recém-nascido de muito baixo peso extremo
XLII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

RNMD – recém-nascido de mãe diabética SNV – sistema nervoso vegetativo


RNMTD – recém-nascido de mãe toxicodependente SP – surfactante pulmonar
ROP – retinopathy of prematurity (ver RP) SPA – single photon absorptiometry
ROT – reflexo osteotendinoso SPCA – serum prothrombin conversion accelerator ou pró-convertina
RP – retinopatia da prematuridade SPP – Sociedade Portuguesa de Pediatria
RRAI – reflexo recto-anal inibidor SR – supra-renal
Rrp – reabilitação respiratória pediátrica SRAA – sistema renina-angiotensina-aldosterona
rT3 – T3 reversa, inactiva SRE – sistema retículo-endotelial
rTPA – activador recombinante do plasminogénio tecidual SRH – somatopropin releasing hormone ou hormona libertadora da
RT-PCR – reverse transcription polymerase chain reaction omatotropina
RVP – resistência vascular pulmonar SRIF – somatotropin release inhibiting factor ou somatostatina (factor
RVU – refluxo vésico-ureteral inibidor da libertação da somatotropina
SRO – solução de reidratação oral, ou ORS
S STA – síndroma torácica aguda
S – som cardíaco (por ex. S1 ou 1º som cardíaco) ou semana STAN – análise computadorizada do segmento ST do ECG fetal
Sa ou Sat – saturação associada ao CTG
SA – síndroma de Alport STH – somatotropic hormone ou somatotropina ou hormona
SAEET – síndroma de ar ectópico extratorácico somatotrópica, ou hormona do crescimento ou GH
SAEIT – síndroma de ar ectópico intratorácico SUG – seio urogenital
SALT – skin associated lymphoid tissue ou tecido linfóide da pele Sv – Sviert
SAMR – Staphylococcus aureus meticilina - resistente SWM – síndroma de Wilson-Mikity
SAN – síndroma de abstinência neonatal
SAOS – síndroma da apneia obstrutiva do sono T
SaO2 ou SatO2 – saturação da hemoglobina em oxigénio T3 – triiodotironina (activa, ao contrário da rT3)
SAPHO – síndroma englobando sinovite, acne, pustulose, hiperostose T4 – tetraiodotironina (tiroxina)
e osteíte TA – tensão (ou pressão) arterial
SARA – sigla de Sistema de Alerta e Resposta Adequada TAB – (vacina) anti-tifóide – paratifóide A e B
SB – spina bifida TAC – tomografia axial computadorizada ou TC
SC ou sc – subcutâneo TAR – terapêutica antirretrovírica
SCEH – síndroma do coração esquerdo hipoplásico TASO – título de anti-estreptolisinas O
SCHAD – short chain hydroxyacyl CoA dehydrogenase hyperinsulinism TB-MR – tuberculose multirresistente
SCN – Staphylococcus coagulase negativo TB, TBC – tuberculose
SCPE – surveillance of cerebral palsy in Europe TBG – tyroxine binding globulin ou globulina que fixa a tiroxina
SDR – síndroma de dificuldade respiratória (RDS-sigla do inglês) TC – tomografia computadorizada, sinónimo de TAC
Se – símbolo químico do selénio TCAD – TC de alta definição
SEC – secreção em excesso de catecolaminas TCE – traumatismo cranioencefálico
SED – síndroma de Ehlers-Danlos TCM – triglicéridos de cadeia média
SEDA – síndroma de eczema dermatite atópica TCL – triglicéridos de cadeia longa
SF – soro fisiológico ou soluto salino (NaCl a 0,9%) TC/PET – sigla em inglês de TC com emissão de positrões
SGOT – transaminase glutâmico – oxalo- acética TD – toxicodependente
SGPT – transaminase glutâmico-pirúvica Te – tempo expiratório
SHU – síndroma hemolítica urémica TEACCH – treatment and education of autistic and related
SIADH – síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética communications of handicapped children
SIC – síndroma do intestino curto TeTAB – (vacina) antitetânica-tifóide-paratifóide
SIDA – síndroma de imunodeficiência adquirida TFG –taxa de filtração glomerular ou simplesmente FGR/GFR
SIHAD – idem Tg – tiroglobulina
SIR – síndroma de insuficiência respiratória TG – triglicéridos
SIRS – síndroma de resposta inflamatória sistémica TGA – thromboplastin generation accelerator ou acelerador da formação
SLEDAI – systemic lupus erythematous disease activity index da tromboplastina
SLICC – Systemic Lupus International Collaborating Clinics TGO – transaminase glutâmico-oxalacética (GOT ou ALT)
SM – síndroma de Marfan TGP – Transaminase glutâmico-pirúvica (GPT ou AST)
SMSL – síndroma da morte súbita do lactente TGT – transglutaminase tecidual
SN – síndroma nefrótica TH – transplantação hepática (ou transplante)
SNA – sistema nervosos autónomo Ti – tempo inspiratório
SNC – sistema nervoso central TINU – tubulointerstitial nephritis with uveitis
SNG – sonda nasogástrica TIR – tripsina imunorreactiva
SNN – Secção de Neonatologia TIT – teste de imobilização de treponemas
SNS – Sistema/Serviço Nacional de Saúde, sistema nervoso simpático TLV – ventilação líquida total (sigla do inglês)
Abreviaturas XLIII

TMI – taxa de mortalidade infantil VATS – vídeo assisted thoracoscopic surgery


TMM5 – taxa de mortalidade em menores de 5 anos Vc – volume corrente
TMO – transplante de medula óssea VC – velocidade de crescimento
TMPN – taxa de mortalidade perinatal VCA – viral capsid antigen
TMP-SMZ – trimetoprim-sulfametoxazol ou cotrimoxazol) VCI – veia cava inferior
TMRA – taxa média de redução anual VCS – veia cava superior
TN – translucência da nuca VCT – valor calórico total (propiciado pelos vários nutrientes em %)
TNF – tumor necrosis factor ou factor de necrose tumoral VD – ventrículo direito
TORCHES- sigla de infecções pré-natais (toxoplasmose, outras, VDRL – reacção de aglutinação da sífilis (Venereal Diseases Research
rubéola, citomegalovírus, herpes simples, Epstein-Barr. sífilis, etc.) Laboratories)
Torr – abreviatura de medida de pressão (Torricelli); 1Torr = 1 mmHg VE – ventrículo esquerdo
TP – tempo de protrombina VEB – vírus de Epstein Barr
TPI – teste de Nelson (Treponema pallidum immobilization test) ou teste VEGF-1 ou -2 – sigla do inglês: vascular endothelial growth factor 1 ou 2
de imobilização treponémica VEGFR – receptor do VEGF
TPN – trifosfopiridinanucleótido VEMS – volume expiratório máximo por segundo
TPNH – trifosfopiridinanucleótido reduzido VG – volume globular, volume garantido
Tracking – estabilidade ou tendência para manutenção de determinada VGM – volume globular médio
situação ou parâmetro ao longo do tempo VH – vírus da hepatite (A, B, C, D, E, G)
TRAPS – TNF receptor associated periodic syndrome VIH – vírus da imunodeficiênca humana
TRBAb – thyrotropin receptor blocking antibody VIP – polipéptido vasoactivo intestinal (vasoactive intestinal polypeptide)
TRF – thyrotropin releasing factor (factor libertador de tirotrofina) VLDL – lipoproteínas de muito baixa densidade (Very Low Density
TRH – thyrotropin releasing hormone (hormona libertadora da tirotrofina) Lipoproteins)
TRSAb – thyrotropin receptor stimulating antibody VM – ventilação máxima (ou ventilação mecânica)
TSA – teste de sensibilidade aos antibióticos VMA – ácido vanil mandélico (Vanyl Mandelic Acid)
TSG – o mesmo que GST VO – via oral (o mesmo que po)
TSH – thyroid stimulating hormone (hormona tirostimulante) VRE – volume de reserva expiratória
TVR – trombose da veia renal VRI – volume de reserva inspiratória
TVSP – taquicardia ventricular sem pulso VS ou VSG – velocidade de sedimentação (globular)
TXR – transplante renal VSR – vírus sincicial respiratório (ou VRS)
VTEC – verotoxin-producing E. coli
U VUP – válvulas da uretra posterior
U – urânio, unidade VVZ – vírus da varicela-zoster
UB – unidades Bodansky
UCF – unidade coordenadora funcional W
UCI – unidade de cuidados intensivos W – watt
UCIN – UCI neonatais WB – western immunoblot test
UCIP – UCI pediátricos WHO – World Health Organization ou OMS (Organização Mundial da
UDP – uridina-di-fosfato Saúde)
UDPG – uridina-di-fosfo-glicose WISC – Wechsler Intelligence Scale
UDPGT – uridina-di-fosfo-glucoronil-transferase WPW – síndroma de Wolff-Parkinson-White
UFF – urticária familiar pelo frio
UI – unidade internacional X
UIV – urografia intravenosa ou de eliminação X – cromossoma X
UM – uropatia malformativa Y – cromossoma Y
UNICEF – Agência das Nações Unidas para a Infância e Família
UNL – Universidade Nova de Lisboa ou Upper Nutrient Level Z
USF – Unidade de Saúde Familiar Zn – zinco
UTP – uridina-tri-fosfato
UV – ultra-violetas (radiações) Símbolos
UVP – Unidade de Vigilância Pediátrica > : maior que
< : menor que
V ~ : próximo, semelhante ou cerca de
V – volt, velocidade, ventilação, valência <> : correspondente a
VACTERL – sigla do inglês: vertebral, ano-rectal, cardíaco, tráqueo-
esofágico, renal, limb/membro
VAF – ventilação de alta frequência
VATERR – sigla do inglês: vertebral, anal, traqueal, esofágico, radial,
renal
PARTE I
Introdução à Clínica Pediátrica
2 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

1
individualizada da Medicina Geral, mantendo-se,
no entanto, durante as primeiras décadas do sécu-
lo XX, a tradição de o recém- nascido continuar a
ser seguido pelo médico que tinha realizado o
parto.
No século XIX, coincidindo com a Revolução
A CRIANÇA EM PORTUGAL Industrial e o fenómeno da emancipação da Mu-
lher, por toda a Europa começou a esboçar-se uma
E NO MUNDO. DEMOGRAFIA preocupação com os problemas sociais e a higiene
pública, relacionando-se a pobreza com a doença.
E SAÚDE Em 1875 foi publicada a Lei Roussel com o objecti-
vo de proteger as crianças dando-lhes assistência
João M. Videira Amaral separadamente dos adultos. Multiplicaram-se os
estabelecimentos para o acolhimento de crianças
abandonadas – os hospícios ou asilos de crianças
– aos quais se sucederam as instituições para
Factos históricos prestação de cuidados na doença ou verdadeiros
hospitais.
Os problemas relacionados com a criança somente Em 1802 em Paris foi inaugurado o que foi
começaram a suscitar o interesse real por parte dos considerado o primeiro hospital para crianças – o
físicos ou antigos médicos a partir de meados do Hopital des Enfants Malades.
século XVIII. A criança era considerada uma Na Europa e América do Norte, outros hospi-
miniatura do adulto e a doença era interpretada tais de crianças foram inaugurados, tais como: em
como fazendo parte dum processo de regeneração 1834 em Berlim o Charité, e em São Petersburgo o
moral sendo a elevada mortalidade um aconteci- Nicolas, em 1852 em Londres o Great Ormond
mento esperado. Após o nascimento, a sobrevivên- Street, em 1854 em Nova Iorque o Child’s Hospital
cia ficava a cargo da selecção natural e apenas a and Nursery, em 1855 em Filadélfia o Children’s
alimentação fazia parte dos cuidados a ministrar. Hospital e, em 1875 em Toronto o Hôpital Pédia-
Recuando à Antiguidade, cabe referir que na trique.
Roma antiga foi elaborada uma disposição legal Portugal foi um país que se colocou na van-
assinada por Rómulo que concedia ao pai da guarda dos que se preocupavam com a assistência
criança o poder de abandonar os filhos nascidos hospitalar de crianças. Assim, em 1877 foi inaugu-
com defeitos congénitos. Portanto, nessa época, o rado em Lisboa o Hospital de Dona Estefânia e,
infanticídio era considerado legítimo. em 1881, no Porto, o Hospital de Crianças Maria
Do séc. XV chegaram-nos pinturas da escola Pia.
francesa que testemunham a atitude de abandono No final do século XIX a Pediatria, decorrente
em locais diversos ou de lançamento ao rio de da Medicina Geral, passara sucessivamente pelas
crianças acabadas de nascer, quer com peso defi- fases históricas designadas classicamente por aná-
ciente e consideradas inviáveis, quer com diversos tomo-clínica, funcional ou fisiopatológica e etio-
problemas incuráveis. patogénica ou microbiológica, e confrontava-se
Na transição do século XVIII para o século XIX com uma elevada mortalidade, explicada sobretu-
a Medicina englobava essencialmente dois gran- do por infecções e problemas nutricionais.
des ramos: um, dedicado à realização de partos e
ao recém- nascido (Obstetrícia), e outro à Medi- Assistência à Criança
cina Geral que se ocupava da criança, do adoles-
cente e do adulto. Até ao início do século XX, a figura central na
No final do século XIX a Medicina da Criança assistência era o médico omnisciente com um pa-
(ou Pediatria, do grego pais, paidos, criança e pel crucial de amigo e conselheiro, tocando a um
iatreia, tratamento) já se encontrava relativamente só tempo, todos os instrumentos, na arte de curar;
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde 3

na transição para o séc. XX esboçavam-se dois nominada Revista Portuguesa de Pediatria e


ramos da Medicina: a Medicina Geral e a Cirurgia Puericultura sendo seu fundador Carlos Salazar
Geral, esta última abrangendo os partos. de Sousa. Mantendo-se ininterrupta tal publicação
A necessidade de especialização médica, dado desde o seu início, mudou de nome duas vezes:
o universo de conhecimentos armazenados pela em 1980 para Revista Portuguesa de Pediatria e,
ciência contemporânea, somente começou a criar mais recentemente, em 1993, para Acta Pediátrica
força em Portugal na primeira metade do século Portuguesa com o subtítulo de “Revista de Medi-
XX; com efeito, a partir da década de 30, certo cina da Criança e do Adolescente”.
número de médicos passou a dedicar-se às crian- A criação da SPP, forum privilegiado para troca
ças incluindo recém-nascidos. Isto ocorreu de de experiências e de convívio científicos entre os
modo progressivo e paralelamente à criação, nos pediatras, marca um momento alto na evolução
grandes centros, de serviços hospitalares de pe- da Pediatria no nosso país. Da sua primeira direc-
diatria incipientes, correspondendo à separação ção (1948-1950) fizeram parte os pediatras mais
progressiva das áreas para assistência às crianças representativos desta área da medicina na época:
das dos adultos. Os primeiros especialistas de Almeida Garrett, do Porto (presidente) assessora-
Pediatria reconhecidos pela Ordem dos Médicos do por Lúcio de Almeida (Coimbra), Manuel
surgiram em 1944. Cordeiro Ferreira, Castro Freire, Carlos Salazar de
Sousa e Abel da Cunha (Lisboa).
O ensino pioneiro da Pediatria Considerando os objectivos da SPP, cabe refe-
nas Universidades portuguesas rir essencialmente: a promoção e difusão dos pro-
gressos da Pediatria nas vertentes assistencial, pe-
Nas Universidades portuguesas o ensino das disci- dagógica e de investigação; o intercâmbio científi-
plinas de “Gravidez e Partos” e de “Medicina da co com associações congéneres internacionais e
Criança” passou a ser independente do da Medicina países de expressão portuguesa; intervenção junto
e da Cirurgia a partir de 1898. Na Escola Médico- dos poderes públicos e da sociedade civil na pers-
Cirúrgica de Lisboa o primeiro regente da disci- pectiva de resolução dos problemas relacionados
plina de “Gravidez e Partos” foi Alfredo da Costa. com a criança e o adolescente.
A disciplina de “Medicina da Criança” foi criada
pela Reforma de 1911, tendo como primeiro regente Âmbito da Pediatria
Jaime Salazar de Sousa (Avô), considerado o criador
da Pediatria portuguesa e, particularmente, da Na actualidade, a Pediatria deve ser entendida
Pediatria Cirúrgica, no Hospital Dona Estefânia. como medicina integral dum período do ser
Na Escola Médico-Cirúrgica do Porto o pri- humano compreendido entre a concepção e o final
meiro professor de Pediatria, a partir de 1917, foi da adolescência.
A. Dias de Almeida Jr. que já se dedicava às crian- De acordo com esta concepção abrangente, a
ças desde 1894. Em Coimbra o ensino da Pediatria pediatria compreende toda uma problemática de
começou em 1917 com Morais Sarmento. saúde de um período da existência humana que se
inicia mesmo antes da decisão de procriar; efecti-
Sociedade Portuguesa de Pediatria vamente estão hoje provadas as repercussões das
doenças do embrião e do feto e recém-nascido na
Entre os eventos que influenciaram o desenvolvi- criança e no adulto.
mento da Pediatria em Portugal a partir do final No aspecto conceptual, esta área da medicina
da década de 30 do século XX contam-se,em 1938, não deverá ser, pois, entendida numa perspectiva
o início de publicação regular de uma revista exclusivamente biológica, nem limitar-se à abor-
dedicada à pediatria e aos pediatras e, em 1948, a dagem de episódios bem delimitados do ser hu-
fundação duma associação científica de pediatras mano (uma pessoa) em crescimento e desenvolvi-
que foi designada por Sociedade Portuguesa de mento, caracterizado por vulnerabilidades de
Pediatria (SPP), mantida até aos nosssos dias. diversa ordem.
A referida revista, órgão oficial da SPP foi de- Embora para a compreensão dos processos pa-
4 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

tológicos haja necessidade de descer até às mi- Em suma, o médico devotado à criança e ao ado-
núcias da biologia molecular, no sentido mais ri- lescente deverá ter um conjunto de atributos que
goroso do âmbito da Pediatria, esta abrange toda definem o que se chama “profissionalismo”: hones-
uma resenha de vida em determinado período, tidade e integridade, espírito de responsabilidade,
pressupondo interacção com o meio físico, bioló- respeito pelos outros (a essência do humanismo),
gico, social (a família, a sociedade, o estado, os empatia, espírito de colaboração, capacidade de
seus pares). comunicação, a noção correcta dos limites da sua
Na medida em que é assumida tal compreen- competência, a sensibilidade para a actualização e
são da Pediatria torna-se difícil delimitar com aperfeiçoamento profissional, e o espírito de altruis-
rigor as suas fronteiras, não devendo ser entendi- mo e de advocacia em prol da criança.
da como uma especialidade. O objectivo último é privilegiar o bem- estar da
O exercício da clínica da criança e do adoles- criança ou adolescente como pessoas, valorizando
cente implica, pois, para além da competência téc- as suas potencialidades e minimizando os efeitos
nica e profissional, o domínio de conhecimentos, das condições adversas da vida.
atitudes e aptidões em campos que extravasam Efectivamente, está provado que experiências
largamente o âmbito exclusivamente biomédico. emocionalmente gratificantes induzem uma pro-
Com efeito, na actualidade, para responder jecção optimista, enquanto as frustrações amorte-
cabalmente aos desafios que a profissão lhe cem e embotam todo o potencial humano de de-
impõe, o médico assistente da criança e adoles- senvolvimento.
cente (pediatra ou não) deve ter uma preparação
humanista, com domínio de matérias relacionadas O conceito global de Saúde
com Pedagogia, Direito, Ética, Psicologia, So-
ciologia, Filosofia, Antropologia, entre outras, e De acordo com o conceito clássico da Organização
com aptidões e atitudes que o capacitem para o Mundial de Saúde (OMS) datado de 1946, entende-
exercício da defesa dos direitos das referidas pes- -se por saúde o estado completo de bem – estar físi-
soas com a indispensável cooperação da família e co, mental e social e não apenas a ausência de
da comunidade. É, pois, indispensável que o mé- doença ou enfermidade.
dico em causa saiba actuar contra as ameaças de A saúde depende, pois, de um estado de equi-
diversa ordem a que, na actualidade, crianças e líbrio activo e dinâmico entre o ser humano em
adolescentes, estão sujeitos, tais como a poluição, qualquer fase de crescimento e desenvolvimento e
a violência no ambiente urbano e rodoviário, o o seu meio. Numa perspectiva didáctica, podem
sedentarismo, os erros alimentares, a toxicode- ser considerados diversos factores com interferên-
pendência etc., e compreenda a necessidade de cia em tal equilíbrio:
intervenção de todo o sistema envolvente. – factores físicos; relativamente a outras espé-
Por outro lado, torna-se necessário que o refe- cies animais o ser humano está provido de recur-
rido médico e os serviços de saúde reconheçam sos mais escassos sob o ponto de vista físico: corre
que os pais são os primeiros responsáveis pela menos, trepa menos, adapta-se mais deficiente-
saúde dos seus filhos tornando-se fundamental mente às condições adversas de temperatura e de
assegurar uma verdadeira e eficaz colaboração humidade, por exemplo. As viaturas motorizadas,
entre os primeiros e os profissionais de saúde. constituindo “corpos estranhos” nos meios urba-
Aliás, diversos estudos têm demonstrado que os nos ou rurais e utilizando formas de energia com
pais e família resolvem a grande maioria dos características de velocidade e aceleração para as
problemas dos seus filhos sem procurar os ser- quais o seu organismo não está preparado, podem
viços médicos; torna-se, por isso, fundamental conduzir a morbilidade que pode ser exemplifica-
que os pais possam ter acesso, através dos meios da pelas consequências dos acidentes de viação.
convencionais de comunicação (livros, folhetos, Outros exemplos perturbadores do equilíbrio
revistas, internet) a informação para os ajudar a com repercussões de grau diverso na saúde são o
tomar decisões esclarecidas quanto à atitude cor- deficiente ordenamento urbano, as deficientes
recta a ter quando os filhos adoecem. condições de habitação e da rede viária.
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde 5

– factores biológicos; os agentes microbianos nem as ciências médicas ditas básicas. Saúde na
convivendo com o ser humano fazem parte dum Comunidade é um termo que também se usa
ecossistema. Uma das consequências do desequi- nesta acepção. No moderno conceito de Saúde
líbrio no meio comum ao homem e aos micróbios Pública, a noção de ambiente tem um sentido mais
origina as doenças infecciosas, sabendo-se que a lato abrangendo as suas componentes social, físi-
transmissão daqueles se pode fazer, não só direc- ca, biológica, assim como aspectos como a cultura
tamente de pessoa a pessoa, como através de com- e a economia envolventes, e o próprio Estado.
ponentes do meio como a água, alimentos, vec-
tores, etc.. Hoje em dia, com a facilidade de trans- Reconhecimento dos Direitos
portes por via aérea, tal transmissão pode fazer-se da Criança
com grande rapidez.
– factores sociais; ao longo dos séculos o ser A partir do início do século XX, o mundo passou a
humano, organizado em comunidades com carac- reconhecer cada vez mais a importância do ser
terísticas diversas, deu corpo a um sistema orga- humano em crescimento e desenvolvimento o
nizativo social e económico complexo caracteriza- que, ao longo de décadas, tem sido traduzido por
do por produção e troca de bens entre as mesmas um conjunto de eventos, iniciativas e documentos
(por exemplo produção e distribuição de energia, que se encontram sintetizados cronologicamente
de água, etc.) na procura de qualidade de vida e no Quadro 1.
aumento de sobrevivência. Daqui podemos Relativamente ao documento “Saúde para
inferir as consequências, para o estado de saúde, Todos no Ano 2000” cabe referir as suas grandes
que poderão resultar da falência de tal sistema. linhas de orientação correspondendo a outros tan-
– factores culturais; o ser humano é um ser tos compromissos dos Estados Membros: – igual-
que herdou cultura dos seus antepassados uti- dade de acesso à saúde; – promoção da sáude e
lizando os instrumentos próprios da sua civiliza- prevenção da doença; – participação activa da
ção, partilhando os bens colectivos da sociedade comunidade; – cooperação de todos os respon-
onde está inserido. Ora, o estado de saúde de- sáveis da saúde promovendo políticas no sentido
pende da utilização adequada dos recursos como de reduzir os riscos provenientes do ambiente físi-
nutrientes, água e ar; poderá haver perturbação co, económico e social; – sistema de saúde privile-
neste equilíbrio se os recursos forem inadequados giando os cuidados de saúde primários; – coope-
(por excesso ou por carência) ou se o estado edu- ração internacional com vista à resolução de pro-
cacional da população não permitir uma utiliza- blemas que não têm fronteiras como a poluição e
ção racional e equilibrada daqueles. As doenças a comercialização de produtos nocivos.
relacionadas com carências de alimentos (por
exemplo subnutrição) ou com excessos (obesida- Sistema de Saúde Português
de, diabetes, dependência de drogas, hipertensão,
aterosclerose, alcoolismo, etc.) traduzem, na Portugal conheceu nos últimos 30 anos um signi-
maior parte das vezes, comportamentos desvian- ficativo processo de mudança. Houve mudança
tes relacionados, quer com aspectos culturais, não só política, como económica e social e de
quer com disfunções dos mecanismos organiza- opções internacionais com a integração na União
tivos e educacionais. (Capítulo 38) Europeia, passando de uma estrutura social de
No sentido clássico, Saúde Pública é o conjunto subdesenvolvido para país desenvolvido.
de actividades organizadas pela colectividade para A testemunhar tal mudança, o relatório da
manter, proteger e melhorar a saúde do povo ou Organização Mundial de Saúde (OMS) colocou
das comunidades e grupos de população no meio Portugal em posição destacada no “ranking”
em que vivem (criação das condições ao ajusta- mundial dos melhores sistemas de saúde.
mento ecológico: indivíduos – meio ambiente). Pode afirmar-se que os progressos realizados
Habitualmente considera-se que o conceito de em Portugal, repercutindo- se no campo da Saúde
Saúde Pública é mais limitado do que o de Saúde, em geral, e no da Saúde Infantil e Juvenil em espe-
não abrangendo a medicina clínica individual cial, tiveram como base o desenvolvimento dos
6 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Reconhecimento dos Direitos da Criança

1919 – Na sequência da degradação social e económica Eliminação do Trabalho Infantil (Convenção 182
no período pós-Iª Guerra Mundial, por iniciativa da Organização Internacional do Trabalho).
de uma inglesa Eglantyne Jebb, foi criada a Union 2000 – A Declaração do Milénio da ONU definindo
for Child Welfare. Objectivos do Desenvolvimento até 2015 incluindo
1924 – A Liga das Nações adopta a Declaração de Genebra metas específicas como a redução da taxa global de
sobre Direitos da Criança elaborada pela Union for mortalidade de menores de 5 anos em dois terços, a
Child Wefare: essencialmente, direito aos recursos redução a 50% das pessoas que passam fome, inter-
para o desenvolvimento material, moral e espiritual; romper e começar a reverter a disseminação do
direito à educação, protecção contra a exploração. vírus da imunodeficiência humana(VIH), educação
1948 – No âmbito da Assembleia Geral da ONU, foi primária universal, plano de luta contra o envolvi-
aprovada a Declaração dos Direitos Humanos em mento de crianças em conflitos armados, venda de
cujo artigo 25º é referido especificamente o “direi- crianças, prostituição e pornografia infantis.
to da criança a cuidados e assistência especiais”. 2002 – Assembleia Geral da ONU com a participação de
1978 – Na Conferência Internacional de Alma –Ata é centenas de crianças como membros de delegações e
recomendado que, como parte da cobertura total o compromisso de líderes mundiais na construção de
das populações por meio de cuidados primários um “mundo para as crianças”; foi reafirmado o papel
de saúde, se conceda prioridade máxima às neces- da família na responsabilidade primária pela pro-
sidades especiais de grupos vulneráveis incluindo tecção, educação e pelo desenvolvimento da criança.
grávidas e crianças. 2004 – Estratégia global sobre regime alimentar, activi-
1979 – A ONU consagrou este ano como “Ano dade física e saúde definida pela OMS, com impli-
Internacional da Criança”. cações na criança e adolescente
1984 – Documento-Programa da OMS “ Saúde para 2007 – O relatório “Situação Mundial da Infância 2007” re-
Todos no ano 2000”. fere que a igualdade de género e o bem estar da
1989 – A Assembleia Geral da ONU aprovou por unani- criança são indissociáveis: quando a mulher tem
midade a “Convenção sobre os Direitos da Criança”. maior poder para viver de maneira plena e pro-
1990 – Na “ Cimeira Mundial pela Criança” em Nova dutiva, as crianças prosperam.
Iorque os líderes de 71 países assinaram a “Decla- 2011 – O relatório “Situação Mundial da Infância -2011”
ração Mundial sobre a Sobrevivência, Protecção e refere a necessidade de investir nos adolescentes,
o Desenvolvimento da criança”. completando o que tem sido feito relativamente à
1994 – No Ano Internacional da Família foi reafirmado o 1ª década da vida. Adverte também sobre as
papel primordial das famílias nos programas de pressões impedindo que 70 milhões de adoles-
apoio e protecção das crianças. centes beneficiem de escola, e sobre a exploração e
1999 – Foi adoptada a Convenção para a Proibição e violência de que têm sido vítimas.

cuidados primários definidos como “cuidados linhas de actuação, nomeadamente o conceito de


essenciais baseados em métodos de trabalho e tec- sistema de saúde englobando o SNS e todas as
nologias de natureza prática, cientificamente entidades públicas desenvolvendo actividades de
credíveis e socialmente aceitáveis, universalmente promoção, de prevenção e de tratamento, bem
acessíveis na comunidade aos indivíduos e fa- como entidades privadas e os profissionais libe-
mílias, com a sua total participação e a um custo rais que estabeleceram acordos com o SNS para a
comportável para as comunidades e para os paí- realização de todas ou de algumas daquelas
ses à medida que eles se desenvolvem num espíri- actividades.
to de autonomia.” Em 1993 foi aprovado o estatuto do SNS pas-
Com efeito, em 1979 foi criado o Serviço sando a englobar cinco Administrações Regionais
Nacional de Saúde (SNS) integrando diversos de Saúde (ARS) às quais foi conferida a máxima
níveis de cuidados de acesso universal, incluindo autonomia e competência para coordenar a activi-
os relacionados com a promoção da saúde, a vigi- dade de todos os serviços de saúde, incluindo,
lância e a prevenção da doença. pela primeira vez, os hospitais.
A Lei de Bases da Saúde em 1990 definiu novas Concretizando, o conceito de SNS engloba
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde 7

diversos níveis de cuidados (os chamados cuida- Criança e do Adolescente (CNSCA) divulgou a
dos primários, os cuidados hospitalares e os cui- chamada Carta Hospitalar de Pediatria que
dados continuados) exigindo, para o respectivo definiu os requisitos mínimos para os serviços que
funcionamento, recursos humanos e materiais. prestam cuidados a crianças e jovens; neste docu-
mento são definidos 2 tipos de Serviços de
Cuidados de Saúde Primários (CSP) Pediatria: Geral e Especializada (SPG e SPE). No
mesmo documento foram estabelecidos os
Os CSP constituem a estrutura essencial do SNS seguintes princípios: 1) SPG para 60.000 indívi-
em que o médico de família exerce papel de duos até 18 anos e 1 SPE para 300.000. 2) Nos SPG,
primeira linha na prestação de cuidados à popu- quadro de 7 pediatras com < 55 anos (ou 14 pedia-
lação incluindo, claro, crianças e adolescentes, tras se existir maternidade). 3) SPE com Urgência
salientando-se que o quadro dos centros de saúde de Cirurgia Pediátrica. 4) Desenvolvimento de
(CES) não integra pediatras. Os restantes níveis de unidades de internamento de curta duração.
cuidados, de um modo geral, tradicionalmente
praticados em hospitais, constituem uma segunda Cuidados Continuados Integrados
linha de intervenção à qual o doente acede após
referenciação pelo médico de família, exceptuan- Em 2003 foi aprovada a Rede de Cuidados Con-
do nos casos de urgência e emergência em que tinuados constituída por todas as entidades públi-
está previsto o acesso directo. cas, sociais e privadas (incluindo as Misericórdias)
No âmbito dos centros de saúde (CES) ou com a finalidade de promoção de bem estar e con-
estruturas vocacionadas para a prestação dos forto aos cidadãos (incluindo crianças) portadores
cuidados primários, têm sido constituídos agru- de doenças crónicas ou de situações de limitação
pamentos (ACES) formando, juntamente com os funcional em articulação com os cuidados de saú-
hospitais em determinada área definida, as de primários e hospitalares.
chamadas unidades locais de saúde (ULS) com Tratando-se duma valência lançada em 2006,
gestão relativamente autónoma de modo a obter- cabe referir a existência de 131 unidades em 2011
se mais eficiente articulação e mais fácil acesso dos segundo dados oficiais, não especificando eventu-
utilizadores. De referir que em 2006 tivera início a ais valências pediátricas.
reforma e reconfiguração dos CSP, ocorrendo a
abertura das chamadas unidades de saúde famil- População e Recursos
iar (USF) ou centros de saúde com modelos par-
ticulares de gestão. Em 2011, de acordo com o Instituto Nacional de
Em 2010 a oferta de cuidados de saúde pri- Estatística (INE), apurou-se em Portugal uma
mários (CSP) pelo SNS em Portugal Continental população de 10.555.853 habitantes, correspon-
integrava 378 centros de saúde agrupados em 74 dendo 2.020.965 a idade inferior a 18 anos. De
ACES e 230 USF. salientar que em 2008 a faixa de população jovem
(< 15 anos) [~1,6 milhões] era inferior à da faixa
Cuidados Hospitalares senior (> 65 anos) [~1,9 milhões], o que traduz
e Extra-Hospitalares Pediátricos envelhecimento demográfico. Os custos na área
da saúde em 2010 corresponderam a 9,9% do PIB.
Em 2010 a rede hospitalar do SNS do continente inte- Nos últimos anos o sector público tem investi-
grava 103 hospitais organizados em 20 centros hos- do especialmente em CSP, aumentando a respecti-
pitalares, incluindo 83 hospitais especializados com va parcela da despesa pública em relação ao total
assistência pediátrica), 10 hospitais centrais especial- da despesa com a saúde. O peso do do sector da
izados com serviços pediátricos, e 3 hospitais centrais saúde no PIB português era de 2,5% em 1970,
especializados pediátricos. No que se refere a institu- atingindo 10,2% em 2005, acima da média
ições privadas propiciando cuidados pediátricos em europeia dos quinze países, que era 9,2%. O peso
geral, o INE referia em 2008 o número de 86. da despesa pública no total das despesas de saúde
Em 2008 a Comissão Nacional da Saúde da evoluiu entre 1970 e 2006, respectivamente de 59%
8 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

para 70,6%. salientando-se que 30% dos custos são • excessiva procura dos serviços de urgência
pagos pelos cidadãos, adicionalmente aos impos- dos hospitais centrais por oferta insuficiente
tos, os quais contribuem para o financiamento das de consultas nos hospitais e centros de
despesas de saúde. De acordo com especialistas saúde.
em economia e finanaças esta tendência crescente De facto, o modelo integrado de assistência à cri-
de despesas, superior ao ritmo de criação de ança e adolescente nos CSP pelos médicos de
riqueza pelos cidadãos contribui para a insus- família (vigilância de saúde infantil), e nos hospitais
tentabilidade do actual SNS português. por equipas pediátricas (tratamento de situações
Segundo a Ordem dos Médicos, relativamente a mais complexas e graves obrigando eventualmente
2008 há a registar os seguintes números: a) médicos- ao recurso a tecnologias sofisticadas dominadas por
38.932 (correspondendo 69% a especialistas e 28% a sub-especialistas) implica uma articulação perfeita
extra-hospitalares); ratio global de 3,7 médi- entre os diversos níveis de cuidados. Para atingir tal
cos/1.000 habitantes; b) o referido número de médi- objectivo, em 2008 a CNSCA considerou fundamen-
cos inclui 1505 pediatras (sendo 45% extra-hospita- tais determinadas linhas de actuação:
lares) permitindo ratio específico de 1/1.500 habi- 1 – dinamização das chamadas unidades coor-
tantes com < 18 anos; c) 5005 médicos de família, denadoras funcionais (UCF) criadas em 1991, con-
considerando-se que existe défice fora da zona cen- gregando profissionais do serviço de pediatria do
tro do país. Quanto à idade dos médicos importa hospital de referência do ACES e do próprio ACES
salientar as seguintes percentagens: com <35 anos - para análise e resolução de problemas diversos; 2
17%; e com > 65 anos – 11,4% (dados de 2008). – criação da figura do pediatra consultor desig-
A taxa de cobertura em saúde infantil a nível nado pelo serviço de pediatria do hospital de
nacional ronda os 90% sendo que 85% das respec- referência do ACES; 3 – aperfeiçoamento na for-
tivas consultas são efectuadas nos CSP. mação em medicina da criança e adolescente, quer
na universidade, quer na pós-graduação (interna-
Problemas organizativos e soluções to de medicina geral e familiar).
Numa tentativa de minorar as dificuldades
Diversos estudos recentes têm evidenciado alguns resultantes do excessivo afluxo de doentes pediátri-
problemas ou pontos fracos do sistema, desig- cos aos serviços de urgência nas grandes cidades, a
nadamente deficiente articulação entre os vários tutela determinou, no ano 2000, uma nova meto-
níveis de cuidados com repercussão na prestação dologia de acesso aos serviços de urgência hospita-
de cuidados à criança e adolescente: lar, considerando que o acesso ao Serviço Nacional
• listas de espera, quer nos centros de saúde, de Saúde se processava através do centro de saúde.
quer nos hospitais; Para atingir tal objectivo foi criado um serviço
• assimetrias regionais qunto à distribuição de de atendimento/consultadoria permanente por
pediatras, concentrados sobretudo nos gran- via telefónica 24 horas/dia (em 1998 em Lisboa e
des centros de Lisboa, Porto e outras grandes Coimbra e, mais tarde para todo o país) com o
cidades do litoral em contraste com a deser- nome de Saúde 24-Pediatria dirigido ao grupo
tificação do interior; etário 0-14 anos, segundo um modelo aplicado
• défice de pediatras para a organização dos nos Estados Unidos a cargo de profissionais com
serviços de urgência pediátrica de Lisboa e formação específica.
Porto; Em 2007 teve início um programa de reestru-
• elevada prevalência de pediatras com idade turação dos serviços de urgência hospitalares en-
superior a 50 anos; cerrando alguns com o objectivo de concentração
• défice de profissionais de enfermagem de recursos humanos e materiais noutros hospi-
condicionando o recurso à “importação” de tais de determinada região tendo em vista a me-
elementos estrangeiros; lhoria dos cuidados. Esta medida que contempla a
• escassa relevância dada à investigação clíni- garantia do sistema de transporte tem sido contes-
ca ligada aos cuidados de saúde nas diversas tada em zonas do interior, desertificadas e de mais
vertentes. difícil acesso.
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde 9

Organização perinatal c) a necessidade de formação de pediatras com com-


petência em Neonatologia; d) acções de formação
Com a década de 80, coincidindo com uma fase de com chamada de atenção para a enorme importân-
sensibilização dos órgãos do poder para a necessi- cia do conceito de transporte in utero.
dade de reformas na saúde materno-infantil e de No âmbito deste plano foram redefinidos em
melhoria dos indicadores de saúde perinatal, ini- pormenor, quer o equipamento técnico necessário,
ciara-se uma fase de diferenciação da Pediatria em quer o número de pediatras, obstetras,anestesis-
Portugal. Desde então até à actualidade regista- tas, outros especialistas e enfermeiros, considera-
ram-se progressos notórios no panorama assisten- dos indispensáveis para o funcionamento dos
cial, quer no âmbito dos cuidados primários (in- HAP e HAPD.
cluindo a assistência à grávida), quer no âmbito
dos cuidados hospitalares (distritais e centrais). Saúde Infantil e Juvenil no Mundo
Avançou-se na reorganização da assistência à grá-
vida e recém-nascido, na modernização e reequi- O estado de saúde duma população pode ser
pamento das instituições, e numa mais efectiva avaliado por certos índices (dados estatísticos rela-
cooperação entre obstetras, pediatras e outros pro- cionados com a mortalidade, morbilidade, condi-
fissionais da área biomédica. ções de vida e de salubridade do ambiente, entre
Pode afirmar-se que este período representa a outros). Seguidamente faz-se referência sucinta a
conclusão dos passos fundamentais do modelo alguns dados de mortalidade e morbilidade no
clássico sequencial de assistência perinatal clássico âmbito da idade pediátrica traduzindo o panora-
iniciado com os progressos dos cuidados pré-natais ma dos países em desenvolvimento, dos países
e da assistência ao parto em condições de seguran- industrializados, e de Portugal (que, segundo esta-
ça (pessoal treinado e equipamento adequado) e tísticas internacionais, faz parte dos 38 países in-
que culminou com o arranque das unidades de cui- dustrializados e desenvolvidos do mundo).
dados intensivos neonatais e do sistema de trans-
porte do recém-nascido, da regionalização, e dos Países em desenvolvimento
centros de diagnóstico pré-natal.
Diversos grupos de trabalho e comissões nacio- No início da década de 80 a mortalidade no período
nais tiveram um papel crucial, apontando estraté- neonatal (primeiras 4 semanas) representava cerca
gias indispensáveis para tornar efectivos conceitos de 45% da mortalidade no primeiro ano de vida em
anteriormente delineados, tendo sido e tomadas todas as regiões excepto em África onde a proporção
medidas consideradas corajosas e inovadoras. inferior (26%) era explicada pelo elevado número de
Salientam-se as grandes linhas de actuação: a) óbitos pós-neonatais resultantes da malária.
encerramento das maternidades com número de No mesmo período, considerando as seis
partos inferior a 1500/ano, sendo que em 2012 o regiões definidas pela OMS, no que respeita à
processo é retomado, prevendo-se o encerramento mortalidade no grupo etário 0-5 anos, salienta-se
de mais blocos de partos; b) definição das estruturas que 42% dos óbitos ocorreram em África e 29 % no
nucleares de assistência materno-neonatal reclassifi- sueste asiático.
cando os hospitais, em dois grandes grupos: hospi- Entretanto, na década de 90, eram divulgados
tais de apoio perinatal (HAP) correspondendo, em alguns resultados considerados animadores quan-
geral, aos hospitais distritais, integrando unidades to a indicadores de saúde testemunhando con-
de cuidados intermédios, com competência para cretização de algumas metas (que pareciam ina-
prestar cuidados a grávidas e recém-nascidos tingíveis na década de 70) em zonas do globo de
saudáveis e de médio risco; hospitais de apoio peri- recursos muito precários: a) diminuição significa-
natal diferenciado (HAPD) correspondendo, em tiva da incidência de seis doenças com elevadas
geral, aos hospitais centrais, com competência para taxas de mortalidade nalguns países mais pobres
prestar cuidados a recém-nascidos e grávidas de alto (mais de 8 milhões de mortes anuais) – sarampo,
risco, integrando unidades de cuidados intermédios pneumonia, gastrenterite, tétano, tosse convulsa,
e intensivos englobando cirurgia do recém-nascido; subnutrição; b) melhorias quanto à gravidade de
10 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

sequelas no que respeita a doenças como po- ma da sáude é total e brutalmente diferente do ideal que
liomielite, carência em iodo, oncocercose, traco- se pretende atingir parafraseando Kofi Annan, ao
ma, xeroftalmia, como consequência de acções tempo Secretário Geral das Nações Unidas.
específicas desenvolvidas (políticas de acessibili- Eis alguns dados expressivos dos países em
dade universal e equitativa aos serviços de saúde, desenvolvimento divulgados no referido relatório:
acesso universal à educação, maior disponibili- • os gastos militares nos países em desen-
dade de alimentos, formação de profissionais de volvimento consomem cerca de 140 biliões
saúde, e apoio de carácter técnico ou organizativo de dólares por ano, recursos suficientes para
por parte de países de maiores recursos). acabar, em dez anos, com a pobreza absoluta
Em 1994, através da Comissão de Vigilância em todo o planeta e satisfazer as suas neces-
Epidemiológica da Rússia, foi chamada a atenção sidades básicas de alimentação, água, saúde
dos gestores da saúde para o papel da estabili- e educação;
dade político-económica em diversas regiões e • cerca de 121 milhões de crianças, na imensa
países como garantia de êxito das medidas a levar maioria vivendo nos países africanos ao sul
a cabo para a melhoria do panorama da saúde em do Saará, não frequentam a escola sendo-
geral, e da saúde infantil em especial: o exemplo -lhes negado o seu direito à educação em
vem precisamente da Rússia, país em que, com a contradição com o compromisso dos gover-
degradação económica, se verificou declínio da nantes ao assinarem a Convenção sobre os
esperança de vida na população, a par do aumen- Direitos da Criança;
to da incidência de doenças infecciosas (respecti- • diariamente cerca de 30 mil crianças morrem
vamente 290% e 180% em 1993 e 1994). devido a doenças evitáveis, o que se traduz
Em 2001 a Organização Mundial de Saúde em 11 milhões de mortes infantis por ano;
(OMS) criou o Child Health Epidemiology Reference • mais de meio milhão de mães morre anual-
Group (CHERG) para a obtenção de dados sobre mente por complicações surgidas durante a
mortalidade infantil em todo o mundo. gravidez e parto;
De acordo com os estudos realizados por aque- • mais de 2 milhões de crianças de idade infe-
le grupo de estudo apurou-se que nos anos de 2005 rior a 15 anos estão infectadas com o vírus da
e 2006 morreram em todo o mundo cerca de 11 mi- imunodeficiência humana (VIH) fazendo
lhões de crianças com idade inferior a 5 anos cor- prever número superior a 18 milhões de
respondendo a grande maioria de tais óbitos (73%) crianças órfãs como consequência da síndro-
a seis causas principais: problemas respiratórios ma de imunodeficiência adquirida (SIDA)
(19%), diarreia (18%), malária (8%), infecção sisté- persistindo para além de 2015;
mica do recém-nascido (10%), parto prematuro • a malária continuará a ser uma das princi-
(10%), complicações do parto (8%). Salienta-se que pais causas de morte infantil, pois a disponi-
a infecção sistémica e a pneumonia explicaram 26% bilidade e a utilização de mosquiteiros e
de todos os óbitos no grupo etário pediátrico. medicamentos são limitadas por razões com-
Considerando a relação entre grupos nosológi- portamentais e financeiras;
cos e mortalidade nas crianças de idade inferior a • a prática da mutilação genital feminina
5 anos, foram apurados os seguintes valores per- ainda é levada a cabo em cerca de 2/3 das
centuais: má- nutrição- 53%, diarreia- 61%, pneu- crianças em países africanos desenvolvendo-
monia -52%, sarampo- 45%. se actualmente uma campanha liderada pela
Apesar do reconhecimento dos direitos das UNICEF e o patrocínio e exemplo do gover-
crianças e de todas as recomendações dos organis- no de Burquina Fasso onde uma importante
mos internacionais, designadamente da ONU, o campanha de educação pública suportada
relatório “Situação Mundial da Infância refe- por legislação conseguiu reduzir a respectiva
rente a 2005” mostra claramente que, para cerca incidência em 32%;
de 50% dos dois biliões de crianças e jovens que • nas áreas rurais mais de 1 bilião de pessoas,
vivem no mundo, com especial relevância para os (um quinto da humanidade) ainda carece de
dos países pobres em desenvolvimento, o panora- alimentação adequada, saneamento básico
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde 11

mínimo, água potável, níveis elementares da Duas situações merecem uma referência espe-
educação e de serviços básicos de saúde; cial: a obesidade e as situações de pobreza nos
• mais de 250 mil crianças continuam a morrer países ricos;
em cada semana por diarreia e desnutrição • a obesidade corresponde a uma situação da
evitáveis, não beneficiando duma medida de mais elevada prevalência nos países da
baixo custo, o soluto de reidratação oral da abundância, aparecendo, no entanto, já nos
OMS; países em desenvolvimento como a Índia;
• o sarampo, a tosse convulsa e o tétano, doen- trata-se, efectivamente da grande epidemia
ças susceptíveis de prevenção com vacinas do séc XXI (a abordar no capítulo 57) con-
de baixo custo, ainda matam diariamente 8 duzindo a uma redução da esperança de
mil crianças. vida pela co-morbilidade associada; em ter-
No cômputo geral da mortalidade no grupo mos de patologia assiste-se a uma ambiva-
etário pediátrico nas seis regiões da OMS, a sín- lência insólita pois noutras partes do globo
droma de imunodeficiência adquirida (SIDA), a muitas crianças, adolescentes e adultos mor-
infecção pelo VIH (vírus da imunodeficiência rem de fome;
humana) e a tuberculose constituem hoje os prin- • quanto às situações de pobreza nos países
cipais problemas globais da saúde. ricos, este problema foi recentemente objecto
Como pontos positivos do panorama da saúde de um documento da UNICEF levado a cabo
mundial de acordo com o relatório UNICEF 2008 pelo Innocenti Research Centre no âmbito dos
cabe particularizar: o exemplo da China onde se países da OCDE nos quais se inclui Portugal;
está a operar a Segunda Revolução – a da Saúde, nele se refere que entre os referidos países
com diminuição da TMM5 de 47% desde 1990; e o com maior taxa de pobreza se incluem os
doutros países (Butão, Bolívia, Nepal, Laos) com Estados Unidos da América do Norte e o
diminuição de 50%. México(20%); quanto aos de menor taxa,
simultaneamente menos populosos, são
Países industrializados mencionados a Dinamarca e a Finlândia,
com menos de 3%, juntamente com a Suécia
Nos países industrializados de economia evoluí- e a Noruega, com cerca de 5%. Portugal jun-
da, com uma problemática da saúde completa- tamente com o Reino Unido, Itália, Irlanda e
mente diversa, foi também possível nas duas Nova Zelândia surgem actualmente com
décadas anteriores obter progressos assinaláveis taxas consideradas altas: 15 – 17%.
face ao desenvolvimento da biologia molecular,
da tecnologia biomédica, das neurociências, da Saúde Infantil e Juvenil em Portugal
cirurgia de transplantação, do intensivismo médi-
co-cirúrgico e do projecto do genoma humano. Mortalidade e outros indicadores
Tais progressos podem ser testemunhados Como indicadores de desenvolvimento dum país
pela análise de alguns indicadores referidos são habitualmente considerados, entre outros, a
adiante, a propósito da comparação do panorama esperança média de vida da população, a capitação
português com o doutros países. do produto nacional bruto (PNB), o poderio militar,
No entanto, nestes países, a par do desenvolvi- a taxa de mortalidade infantil (TMI) e a taxa de
mento em áreas de ponta da medicina, tem emergi- mortalidade de menores de 5 anos (TMM5).
do dramaticamente outro tipo de problemas, Para avaliar o bem-estar da criança considera-
muitos deles em focos degradados das grandes ci- se actualmente que a TMM5 constitui o critério
dades como sejam: a disfunção familiar, a gravidez mais adequado, pois ele traduz, com maior confia-
na adolescência, a delinquência juvenil, o problema bilidade, as condições de desenvolvimento social
das “crianças de rua” , a toxicodependência, a infec- e económico, o grau de educação para a saúde da
ção pelo VIH, a violência e o estresse.Tais proble- família e cidadãos em geral, a disponibilidade de
mas, criando novas morbilidades, obrigam a pro- serviços de saúde materno-infantil incluindo os
gramas integrados de intervenção social. de assistência pré-natal, a disponibilidade de
12 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

saneamento básico e a segurança do meio am- de outros países como o Reino Unido, a Alemanha
biente em que a criança vive. e a França. Até então, efectivamente, tinha-se re-
Por outro lado, a TMM5 é menos influenciada gistado algum progresso no respeitante à mortali-
pela falácia dos valores traduzidos pela noção dade pós-neonatal, continuando estáveis as taxas
aritmética de “média” do que o PNB per capita. de mortalidade neonatal e fetal tardia (NV + FM).
Com efeito, para dar um exemplo, a escala natural As Figuras 1 e 2 resumem respectivamente a
não permite que a probabilidade de uma criança evolução das taxas de mortalidade infantil e peri-
rica sobreviver seja mil vezes maior do que a duma natal até 2003:
criança pobre, ainda que a escala feita pelo homem – mortalidade infantil (com taxa de 77,5/1000
lhe permita ter um rendimento mil vezes maior; ou em 1960, baixando progressivamente para
seja, é muito pouco provável que uma TMM5 7,9/1000 em 1994 e para 4,1/1000 em 2003. [entre
nacional seja afectada por uma minoria rica. 2004 e 2011 (oito anos) a evolução foi a seguinte:
A velocidade com que se avança na redução da 3,7→3,5→3,3→3,4→3,2→3,6→2,4→3,1];
TMM5 pode ser determinada pela respectiva taxa – mortalidade perinatal – considerando o limi-
média de redução anual (TMRA) devendo ser te de 28 e mais semanas – reduzindo-se de
realçado que uma diminuição de, por exemplo 31,9/1000 em 1975 para 12,4/1000 em 1990 e para
dez pontos de uma TMM5 elevada tem significa- 5,3 em 2003. [em 2004, 2010 e 2011 registaram-se
do diferente de uma mesma diminuição de dez respectivamente as taxas de: 4,4 , 3,5 e 3,9].
pontos a partir de uma TMM5 mais baixa (uma No que se refere às taxas de mortalidade infan-
diminuição na TMM5 de 10 pontos entre 100 e 90,
1975 38,9
representa uma redução de 10%,enquanto a 1980
1981
24,3
21,8

mesma redução de 10 pontos, entre 20 e 10, repre- 1982


1983
19,8
19,3
/1000 NV
1984 16,7
senta uma redução de 50%). 1985
1986
17,1
15,9
45

Cabe referir, a propósito, que a não verificação 1987


1988
14,2
13,0
40
35

de uma relação fixa entre a TMRA e a taxa de 1989


1990
12,1
10,9
30
25
1991 10,8
crescimento anual do PNB leva a concluir que há 1992
1993
9,2
8,6
20
15

necessidade de reajustamentos nas políticas de 1994


1995
7,9
7,4
10
5
saúde e nas prioridades tendo em vista o progres- 1996
1997
6,8
6,4 0
1985

1991
1983

1987

1989

1993

2001

2003
1981
1975

1995

1997

1999
1998 5,9

so económico e o progresso social. 1999


2000
5,5
5,4
DGS/DSIA
Escasseando em Portugal as estatísticas na- 2001
2002
4,9
5,0
2003 4,1
cionais de morbilidade sistematizada, a taxa de
Fonte: Direcção Geral da Saúde
mortalidade infantil é ainda o indicador mais uti-
FIG. 1
lizado para reflectir a saúde infantil. A mortali-
dade infantil é analisada, geralmente, em função Mortalidade Infantil em Portugal.
de duas componentes: a mortalidade neonatal,
que se refere aos óbitos de crianças com menos de 1975
1980
31,9
23,9
1981 22,8

28 dias de vida, e a mortalidade pós-neonatal, rel- 1982


1983
22,1
21,1
/100000 (NV+FM)
ativa aos óbitos com idade compreendida entre 28 1984
1985
19,2
19,8
35
1986 18,2

dias e um ano (consultar glossário). 1987


1988
16,6
15,1
30

A mortalidade neonatal encontra-se associada 1989


1990
14,5
12,4
25
1991 12,1

a anomalias congénitas e a complicações da gravi- 1992


1993
10,8
10,1
20

15
dez e do parto. A mortalidade pós- neonatal está 1994
1995
9,2
9,0
10
1996 8,4

associada às condições de vida, a deficiências sa- 1997


1998
7,2
6,7 5

nitárias e a acidentes diversos. 1999


2000
6,3
6,1 0
1987

1991
1983

1985

1989

1993

1999

2001

2003
1995
1975

1981

1997

2001 5,5

O chamado ponto de civilização (conceito 2002


2003
5,9
5,1
DGS/DSIA
relacionado com progresso), ou seja o ano a partir
Fonte: Direcção Geral da Saúde
do qual a mortalidade pós-neonatal passou a ter
FIG. 2
uma taxa inferior à da mortalidade neonatal, foi
atingido em Portugal em 1974, muitos anos depois Mortalidade Perinatal (28 e mais semanas) em Portugal.
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde 13

til no nosso país, é importante salientar grandes QUADRO 2 – Taxa de mortalidade de menores
variações regionais: em 2010 as mesmas oscilaram de 5 anos referido a determinado
entre 0,5 e 5,5/1000 e a mortalidade infantil foi ano (TMM5)
comparticipada em 68% por óbitos neonatais, e (nº de óbitos entre a data de nascimento e
precisamente os 5 anos de idade por 1000
em 32% por óbitos pós-neonatais. nado-vivos no referido ano)
A evolução das taxas de mortalidade infantil e
perinatal em vários países da EU no período com- TMM5 (em 2007)*
preendido entre 1975 e 2003 pode ser observada Suécia 3
nas Figuras 3 e 4. Noruega 4
No âmbito da União Europeia (EU), como se Portugal 5
pode verificar na Figura 3, Portugal registava em Dinamarca 5
1985 a mais elevada mortalidade infantil Estados Unidos 8
(17,8/1000) relativamente aos países restantes. * Entre os 24 países do mundo, com melhores taxas, o valor mais baixo, de 3 é representado pela
Suécia, e os mais elevados respectivamente de 284 e 260, pela Serra Leoa e por Angola.
Nesse ano, a média europeia situava-se nos 9,5
óbitos até ao 1 ano de idade por mil nado vivos.
Contudo, em 2004 Portugal já registava 5ª melhor /1000 NV

30

posição quanto a taxas de mortalidade infantil e


25
de mortalidade perinatal. Finland
France

De assinalar que o nosso país, (1985 – 2001), 20 Greece


Italy

entre todos os estados membros da EU, registou a 15


Luxembourg
Portugal

maior variação na descida da mortalidade infantil, 10


Spain
Switzerland

neonatal e perinatal (redução de 71,9%) em con- United Kingdom


EU members
5
fronto com as médias respectivas da EU (menos
51,6%). 0

1991
1989

1993

1995

1999
1987

1997
1975

1977

1979

1981

1983

1985

2001

2003
No referente à TMM5, em 2007, Portugal ocu-
WHO/Europe, 2005
pava o 3º lugar ex aequo com outros 11 países, entre
Fonte: Direcção Geral da Saúde
194 (Quadro 2). E em 2010 fazia parte dos países
FIG. 4
do mundo com taxas de declínio mais acentuadas
quanto à referida TMM5. Mortalidade Perinatal na Europa.
Quanto à natalidade (decrescente desde 1960
com 213895 nado vivos) há a registar os seguintes habitantes), o valor mais baixo desde que há re-
dados: em 1980, com 158352 nado vivos(nv); em gistos nacionais. Em 2010 a taxa de natalidade
1990 com 108845 nv; em 2003 com 112589 nv; e em subiu ligeiramente para 9,5/1.000 (correspon-
2009 com 99.576 (taxa de 9,4 nado vivos /1.000 dente a 101.507 nv, mais 1931 do que no ano ante-
rior) (ver glossário geral). Na EU outros dois paí-
/1000 NV
ses partilhavam em 2010 com Portugal as taxas de
45

40
natalidade mais baixas: são a Alemanha (com 7,9)
35 Finland e a Áustria (com 9,1).
France
30 Greece No que respeita ao índice sintético de fecundi-
Italy
25
Luxembourg
Portugal
dade (ISF) ou número médio de filhos por mulher,
20

15
Spain
Switzerland
no último decénio (2001-2011) manteve-se o que se
10
United Kingdom
EU members
vinha verificando desde 1982: a renovação de gera-
5 ções deixou de estar garantida, pois para que cada
0
mãe procrie uma futura mãe é necessário que as
1987

1989

1991

1993

1997

1999
1995

2003
1975

1977

1979

1981

1983

2001
1985

WHO/Europe, 2005 mulheres tenham em média 2,1 filhos. Ora, este


número em 2011 foi muito inferior (1,3), em con-
Fonte: Direcção Geral da Saúde
traste com o do ano de 1971: 2,9.
FIG. 3
Relativamente à proporção de partos sem
Mortalidade Infantil na Europa. assistência, também a evolução é muito significati-
14 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Mortalidade por causas e idades perinatal representaram mais de 50% dos óbitos
(Ano de 2003) Portugal respectivos; c) os acidentes de transporte e as
causas externas foram mais frequentes entre os 15
Causas 0–<1 1–4 5–9 10–14 15–19 Total e 19 anos; d) elevada dimensão numérica do item
D. Infec. Intest. 1 1 - - - 2 doenças não classificadas traduzindo insuficiên-
Infec. Meningoc. 8 3 - 1 1 13 cia de informação clínica nos certificados de óbito
Septicemia 4 2 - - 2 8 relacionável com baixo índice de realização de
D. S. T. 1 - - 1 - 2 autópsias em Portugal em comparação com ou-
Infec. VIH - - - - 2 2 tros países; e) a relação entre o número de óbitos
Meningite 2 3 1 1 - 7 no 1º ano de vida e o número de óbitos dos 0-19
Outras D.I.P. - 1 1 1 2 5 anos foi 475/1336 ou 35,5%; f) a relação entre o
Pneumonia 7 6 2 3 4 22 número de óbitos dos 0-19 anos e o número de
D. Pulm. Crónica 2 1 1 1 2 7 óbitos em todas as idades foi 1336/109148 ou
Outras D. Resp. 3 2 1 - 2 8 1,2% (dados do Instituto Nacional de Estatís-
Tumor sólido 2 2 10 15 20 49 tica/INE).
Leucemia 1 5 5 2 1 14 São referidos seguidamente alguns indicadores
Anemia 1 - - 1 1 3 de mortalidade, morbilidade, desenvolvimento, e
D. Fígado 2 - - - - 2 taxas de imunização, comparando dados de Portu-
Diabetes mellitus - - - - 1 1 gal com os doutros países. (Quadros 4 e 5). O
D. Ment. Comport. - - - - 1 1 Quadro 6 refere-se à situação de infecção por
D. Cérebr. Vascul. 4 2 1 3 9 19 VIH/SIDA no nosso país (casos por grupo etário e
D. Card. Reum. Crón.- - - - 1 1 ano de diagnóstico entre 1983 e 2009), salientando-
D. Isquém. Card. - 1 - 1 2 4 se o decréscimo ao longo dos anos.
Outras D. Card. 7 4 3 3 10 27
D. Perinatais 238 1 - 1 - 240
Dados de morbilidade
Anomal. Congén. 117 21 11 5 7 161
Em Portugal a análise de dados sistematizados
Ac. Transporte 5 15 21 32 108 181
nacionais sobre morbilidade depara com algumas
Causas Externas 19 38 43 44 169 313
limitações, estando disponíveis apenas dados
Quedas - 3 3 2 5 13
parcelares sobre problemas específicos publicados
Afogamento - 7 6 3 10 26
por grupos de investigadores institucionais em
D. Não Classificadas 51 35 24 35 60 205
revistas científicas, ou obtidos através da consulta
Totais 475 153 133 155 420 1336
das publicações do Instituto Nacional de
Abreviaturas: Intest-intestinal; Infec.-infecção; Meningococ-meningocócica; DST-doenças Estatística (INE), do Observatório Nacional da
sexualmente transmissíveis; VIH-vírus da imunodeficiência humana; DIP-doenças infec-
ciosas e parasitárias; Resp-respiratória; Cérebr-vascul-cérebro-vascular; Card-cardíaca; Saúde (ONSA), do Centro de Vigilância Epide-
Anomal.-anomalias; Ac.-acidentes; d-doenças. (Idades em anos). D. Ment. Comport.-doenças
mentais e comportamentais. miológica das Doenças Transmissíveis (CVEDT) e
Fonte: INE/Direcção Geral da Saúde, 2003 do Centro de Estudos e Registo de Anomalias
Congénitas (CERAC) ligados ao Instituto Nacio-
nal de Saúde Dr. Ricardo Jorge, ou dos Médicos-
va: 61% no ano de 1950, 0,4% no ano de 2000 e 0,2% -Sentinela.
em 2006. No âmbito da Sociedade Portuguesa de Pe-
O Quadro 3 dizendo respeito aos óbitos por diatria (SPP) funciona desde 2001 um departa-
grupos etários e às respectivas causas (ano de mento intitulado Unidade de Vigilância Pediátrica
2003) sugere as seguintes considerações: a) as (UVP) – fazendo parte da “International Network of
quatro causas mais frequentes de mortalidade Pediatric Surveillance Units”, actualmente em par-
dos 0-19 anos foram, por ordem decrescente, ceria com o ONSA. Os seus objectivos são pro-
problemas perinatais, causas externas e acidentes mover, facilitar e desenvolver o estudo de doenças
de transporte, as anomalias congénitas e os raras ou pouco frequentes, importantes para a
tumores sólidos; b) no primeiro ano de vida as Pediatria e Saúde Infantil. Os dados são obtidos
anomalias congénitas e os problemas do período através dum sistema de notificação mensal me-
CAPÍTULO 1 A criança em Portugal e no Mundo. Demografia e Saúde 15

QUADRO 4 – Indicadores Básicos (ano de 2006)

País TMM5 TMI População Nascimentos PNB /USD Esperança de vida


(milhares) (Milhares/ano) (per capita) (anos)
Portugal 5 3,3 10579 105 18170 78*
Noruega 4 3 4533 56 43350 80
Austrália 6 5 20731 255 21650 81
Áustria 5 3,5 8316 71 26720 80
Brasil 34 32 183913 3728 3090 72
Canadá 6 5 31958 338 36170 80
Egipto 36 26 72642 1890 1350 70
USA 8 7 305410 4234 44400 78
França 5 4 60257 763 34770 80
Grécia 5 4 10976 113 26610 79
Costa Rica 10 8 4173 80 4980 79
Eslovénia 4 4 1967 17 18810 78
Espanha 5 3,5 43646 468 27570 81
* Em 2010:sexo masculino-82 e sexo feminino -76
USD: dólares dos Estados Unidos Fonte: UNICEF, 2008

diante envio de cartões para preenchimento de até aos três meses de vida, Encefalomielite
retorno sistemático pelos sócios da SPP e médicos /Mielite, Infecção congénita por citomegalovírus
exercendo funções em instituições prestando (CMV), Herpes zoster e Varicela com hospitaliza-
cuidados à criança e adolescente. ção, Lesões traumáticas provocadas por andaril-
Até Janeiro de 2012 foram ou estão a ser inves- hos, Paralisia cerebral aos 5 anos de idade, Surdez
tigadas as seguintes doenças: Diabetes mellitus hereditária, Infecção congénita por Toxoplasma
antes dos 5 anos, Síndroma hemolítica urémica, gondii e Acidente vascular cerebral.
Doença de Kawasaki, Infecção por Streptococcus B Portugal está entre os países da Europa mais
afectado pela infecção VIH/SIDA, sendo consid-
QUADRO 5 – Percentagem de crianças erado de elevada vulnerabilidade ao aumento da
vacinadas ao 1 ano de idade (%) incidência.
(ano de 2006) O Quadro 6, referindo dados do CVEDT,
especifica o número de casos em função de grupos
País BCG DTP Pólio Sarampo HB Hib etários até 19 anos entre os anos de 1983 e 2009
Portugal 89 99 96 96 95 93 totalizando 353.
Noruega – 90 90 84 – 94 Relativamente ao tipo de transmissão, refira-se
Austrália – 92 92 93 95 94
Áustria – 84 84 79 83 83 QUADRO 6 – Infecção por VIH /SIDA
Brasil 99 99 99 99 99 99 em Portugal – nº de casos
Canadá 91 88 95 – – 94
Egipto 98 98 98 98 98 94 Grupo 1983/ 1998/ 2001/ 2004/ 2007/ Total
USA – 96 91 93 92 94 etário 1997 2000 2003 2006 2009
França 85 97 97 86 29 87 0-11 meses 36 4 6 3 3 52
Grécia 88 88 87 88 88 88 1-4 anos 22 3 2 4 1 32
Costa Rica 87 88 88 89 86 89 5-9 anos 16 3 2 2 2 25
Eslovénia 98 92 93 94 – 97 10-12 anos 5 1 0 0 0 6
Espanha – 98 98 97 83 98 13-14 anos 13 0 2 0 1 16
HB= Hepatite B Fonte: UNICEF, 2008 15-19 anos 92 39 25 7 7 170
Hib= Hemophilus influenzae b
16 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

que, no mesmo período, em 101 casos foi compro- Boletim da Unidade de Vigilância Pediátrica da Sociedade
vada a transmissão vertical mãe/filho). Portuguesa de Pediatria. www.spp.pt/uvp (acesso em
Com base nas estatísticas do INE e da Comis- Outubro de 2007)
são Nacional de Saúde da Criança e do Adolescen- Carvalho MCA. Saúde da criança portuguesa em 1989-alguns
te, são referidas seguidamente diversas formas de indicadores. Saúde Infantil 1989; 11: 157-172
morbilidade em idade pediátrica, representativas Comissão Nacional de Saúde da Criança e do Adolescente.
da situação actual no nosso país; algumas destas Lisboa: Alto Comissariado da Saúde, 2009
situações serão retomadas noutros capítulos. Direcção Geral da Saúde (DGS)/Divisão de estatística.
– Acidentes rodoviários: rácio de 1 óbito/3 Natalidade, mortalidade infantil, fetal e perinatal
doentes crónicos com sequelas (dados de 1999/2003. Lisboa: ed. DGS, 2004
2008) Ferrinho P, Bugalho M, Pereira-Miguel J. (eds). For Better
– Lesões traumáticas por actos de violência Health in Europe – Volumes I e II. Lisboa: ed. Fundação
(2002-2004): 479 crianças (0-14 anos) hospita- Merck Sharp & Dohme, 2004
lizadas em instituições do Serviço Nacional Gomes-Pedro J, Nugent JK, Young JG, Brazelton TB. A Criança
de Saúde e a Família no Século XXI. Lisboa: Dinalivro, 2005
– Situações de risco social (incluindo casos de Lantos JD, Ward NA. A new Pediatrics for a new century.
maus tratos): cerca de 3000 crianças hospital- Pediatrics 2013; 131:S121-S126
izadas no ano de 2003, aumentando cerca de Levy ML. 50 anos de Pediatria em Portugal . Acta Pediatr Port
20% em 2004 1999; 30: 93-99
– Antes da integração dos novos países que Lobo-Antunes J. A Nova Medicina. Lisboa:Fundação Francisco
passaram a integrar a Europa dos 27, Por- Manuel dos Santos, 2012
tugal era o país da EU com maior incidência Ministério da Saúde/Direcção Geral da Saúde. Saúde em
de sífilis congénita. Portugal – Uma estratégia para o virar do século.
Em suma, pode afirmar-se que para a melhoria Orientações para 1997. Lisboa: ed. Ministério da Saúde,
dos indicadores de saúde infantil e juvenil em 1997
Portugal (salientando-se que a mortalidade infan- Ministério/Direcção Geral da Saúde. Saúde Juvenil- relatório
til baixou cerca de 75% entre 1980 e 1998, sendo sobre Programas e oferta de Cuidados-2004. Lisboa: ed.
actualmente, como a perinatal, a 2ª melhor da Ministério da Saúde, 2004
União Europeia) contribuiram, esssencialmente, Ministério/Direcção Geral da Saúde. Plano Nacional de Saúde
os progressos no nível educacional da população, 2004-2010 /volumes I e II – Prioridades. Lisboa: ed.
o desenvolvimento da rede de cuidados primá- Ministério da Saúde, 2004
rios, a melhoria da assistência ao parto e dos cui- Rosa MJ, Chitas P. Portugal: os Números. Lisboa: Fundação
dados perinatais, o programa nacional de vacina- Francisco Manuel dos Santos, 2010
ção (com taxas de cobertura que são superiores a UNICEF – The State of the World’s Children 2006. New York:
98 % conduzindo a diminuição drástica das doen- UNICEF. House Edition, 2006
ças infecciosas nos primeiros dois anos de vida), a UNICEF – The State of the World’s Children 2007. New York:
organizção da assistência perinatal, e o desen- UNICEF House Edition, 2007
volvimento do intensivismo neonatal e pediátrico UNICEF – Situação Mundial da Infância 2008. New York:
incluindo o respectivo transporte. UNICEF House Edition, 2008
No cômputo geral das causas de mortalidade Videira-Amaral JM: Mortalidade em menores de 5 anos.
em idade pediátrica sobressaem actualmente, os Considerações sobre um artigo recente na revista Lancet.
problemas perinatais (nas primeiras idades), os Acta Pediatr Port 2010;41:191-193
tumores, e os acidentes e as situações relacionadas Videira-Amaral JM: Neonatologia no Mundo e em Portugal. –
com actos violentos (na segunda infância e ado- Factos históricos. Lisboa: Angelini, 2004
lescência). www.acs.min-saude.pt (acesso em Junho de 2010)
www.dgs.pt (acesso em Julho de 2013)
BIBLIOGRAFIA www.pordata.pt (acesso em Julho de 2013)
Alto Comissariado da Saúde. Atlas do Plano Nacional de
Saúde. Lisboa: Ministério da Saúde, 2010
CAPÍTULO 2 Os superiores interesses da criança 17

2
Pais Monteiro refere, a este propósito, a asso-
ciação que S. Paulo faz da criança na sua epístola
aos Gálatas: «Enquanto o herdeiro é menor, se bem que
seja o senhor de tudo, em nada se diferencia de um
escravo».
A civilização grega que tanto inspirou e inspi-
ra, ainda, a cultura da dita civilização ocidental
OS SUPERIORES INTERESSES ignorou, quase por completo, a criança.
Sempre numa perspectiva reducionista, ao
DA CRIANÇA tratar da infância, Galeno tentou a conciliação
entre o corpo e o espírito, porém sempre numa
João Gomes-Pedro representação etimológica do mal que proviria
quer do «interior natural», quer do contexto exte-
rior que hoje identificamos à circunstância ou
envolvimento de cada criança.
A criança passou pela História quase até ao séc. XX A teologia cristã, nomeadamente em todo o
sem nunca ter visto ser reconhecida a sua natureza Antigo Testamento, estigmatiza a criança identifi-
e as suas necessidades irredutíveis, designada- cando-a inequivocamente ao mal.
mente a de ter direito a direitos fundamentais. O Novo Testamento explica muito do mal que
A conquista de uma certa visibilidade para a a criança integra em função do pecado materno
infância, foi uma penosa caminhada da existência projectado à concepção. Em termos educacionais o
humana. pecado original determina todo o mal que a
A história do destino humano é, uma história criança necessariamente vai vivenciar.
de interesses que não, de facto, os da Criança. Santo Agostinho congrega, a este propósito o
No séc. II A. C. a primeira infância mereceu de pensamento de então referido à criança – «se a
Varrão (escritor latino) uma classificação especial na deixássemos fazer o que lhe apetece, não há crime que
hierarquização das sucessivas idades do ser humano. não a víssemos cometer».
Nunca houve vocábulo latino para designar o Na História da Humanidade o interesse pela
bebé e a designação de lactente (alumnus) – focal- criança radicou-se, tão só, na simbologia do mal.
izada, tão só, na propriedade de ser alimentado – A criança foi, século a século, sem grandes varia-
determinou até há cerca de 40 anos a nomenclatu- ções conceptuais, esse símbolo do mal, da imper-
ra científica em vigor. feição, do pecado original, da culpa materna, do
Já na nossa década de 70 em concurso de lugar do erro, tal como definido na filosofia carte-
provas públicas da carreira hospitalar fui «acon- siana.
selhado» por membros de um júri de provas O eventual «amor» pela criança na era romana
públicas a não usar a designação de bebé porque só concentrava-se no interesse que os filhos repre-
era «cientificamente» tida como correcta a referida sentavam como potencial força militar necessária
nomenclatura de lactente. à máquina da guerra.
O termo mais antigo, usado para designar a Apesar da representação da criança presente
criança, foi de «puer» significando indistintamente nos sarcófagos dos Séc. III e IV, revelada na vida
quer a cria animal quer a cria humana. familiar porventura valorizadora da criança, não
A língua latina consagrou, durante muito há qualquer prova, designadamente através da
tempo, o termo «infans» significando, etimologica- arte, de amor dos pais pelos filhos, representado
mente, aquele que não fala. esse amor como sentimento de empatia, ternura,
Tanto a designação central de «puer» como a respeito ou tão só, interesse providenciado face à
designação complementar de «infirmitas» (ima- criança. Badinter sintetiza sumariamente o senti-
turidade moral e intelectual) acentuavam o estatu- mento social face à criança – «erro ou pecado, a
to deficitário da criança entendida, designada- infância é um mal».
mente, como escrava na ordem social. A morte de um filho é sentida como um aci-
18 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

dente banal que nem merece a presença dos pais influenciada que foi por uma cristianização pro-
no respectivo enterro. Montaigne, mais tarde e a gressiva dos costumes.
este propósito, confessava assim o seu sentir – O grande debate teológico da Idade Média, na
«perdi dois ou três filhos na ama, não sem pesar mas revisitação de Aristóteles, dizia respeito ao mo-
sem drama». mento em que o feto seria insuflado pelo espírito
Toda a Idade Média ignora a criança e é desse de Deus, recebendo então uma alma. Até ao sec.
testemunho a sua ausência ou porventura, a sua XV o Menino é predominantemente posicionado
representação, na arte. O culto da Virgem Maria, no colo direito da Virgem.
porém, representando, então, Nossa Senhora e o O gótico tardio consolida, então, a figura do
Menino, projecta, sobretudo, a imagem triunfante Menino Jesus do lado esquerdo do colo, configu-
da mulher criadora em oposição a Eva, a pecado- rando, porventura, o instinto materno como
ra. As crianças na proximidade da díade divina marca indelével desse sentimento maternal mais
reforçam o significado do culto já projectado na puro representado por uma Virgem Maria cada
criança. vez mais envolvida com o seu Menino.
Até fins da Idade Média, as crianças vestiam A representação de um eventual interesse pela
como os adultos, sendo, portanto, manifesta a criança trazido pela Arte terá preanunciado uma
ausência do estatuto infantil que hoje identifi- viragem na história dos sentimentos face à cri-
camos, entre outras expressões, com o vestuário ança. Velasquez retrata a criança filha da nobreza
infantil. Ainda em termos de Arte, poderá ser enquanto Goya é mais retratista da infância pro-
importante a dúvida sobre o significado da repre- letária.
sentação do putto (criança nua na pintura italiana A arte da Renascença traz-nos, como novi-
do séc. XVI), tão bem simbolizada por Ticiano, dade, as crianças (putti) na sua plena vitalidade
num retábulo pintado em 1526. O gosto do putto encarnando, porventura, a felicidade na sua iden-
terá representado um dos primeiros sinais de tificação com o Paraíso.
interesse pela criança que a Arte prodigaliza na É notório o contraste desta representação artís-
sua missão de sempre antecipar, na esfera do sen- tica face aos quadros medievais de Brughel em
sível, o que só mais tarde o social ou político se que a criança é um epifenómeno das festas exteri-
encarrega de representar? ores, posicionada num canto das telas, brincando
A cultura religiosa passou, todavia, a configu- no chão isolada do contexto social.
rar, aparentemente, algum do respeito pela infância A negligência face à criança na coerência do
identificado com a figura do Menino Jesus cujo que temos expressado, faz parte da História da
modelo os artistas do séc. XVI iam buscar a crian- Humanidade. A expressão mais constante desta
ças diferentes, designadamente com trissomia 21 negligência foi o abandono.
ou outras situações que hoje identificamos como De Mause citado por Reis Monteiro escreveu
síndromas malformativas. Objectos que o Menino que «a forma de abandono mais extrema e mais antiga
manipula, designadamente colheres, são, inequivo- é a venda directa de crianças». Esta venda era legal
camente, alguns sinais de interesse pelo comporta- no império babilónico e era, igualmente, uma con-
mento infantil. Porventura inexplicado é o posi- stante em muitas culturas da Antiguidade.
cionamento da criança ao colo da Virgem Maria. Expressão extrema do abandono era o infan-
O designado instinto maternal faz posicionar a ticídio, representado pelo deixar as crianças à
criança do lado esquerdo do colo da mãe e é essa mercê da natureza e dos predadores, nos cami-
a forma de colo que mães ou raparigas já púberes nhos do mundo. Porventura uma expressão
favorecem ao invés de homens ou raparigas pré- menos drástica do abandono foi representada pela
púberes quando solicitados a colocarem um bebé roda em que a criança era entregue, anonima-
ao seu colo. mente, a instituições ditas de caridade ou de
Do séc. X ao séc. XVII, apesar da manutenção assistência.
de uma mortalidade infantil elevadíssima, a con- Outra forma de abandono que ocupou durante
vicção da imortalidade da alma da criança passou mais tempo a história foi representado pela entre-
a ser uma verdade cada vez mais sedimentada, ga de crianças a amas. Fala-se de amas na Bíblia,
CAPÍTULO 2 Os superiores interesses da criança 19

no código de Hamurabi, nos papiros egípcios, na Surgem então na Europa e especialmente em


literatura grega e romana, na tradição burguesa da França os dispensários de saúde infantil centrados
Europa renascentista. No séc. XVII a procura era na confiança entre os profissionais e a mãe. Nesses
excedentária face à oferta. Mal nasciam, as crian- dispensários e nos consultórios eram afixados
ças eram levadas para amas, muitas vezes locali- quadros relatando a atenção pública e privada
zadas longe das residências familiares. devotada à díade mãe-bebé. De qualquer modo,
Mais de 10% das crianças emigradas em não era ainda consistente a mudança, em pleno
função de uma oferta mercenária, morria pelo séc. XIX. No popular «livre de famille» em França,
caminho. De uma forma mais discreta, o aban- a criança era cruel e egoísta e «só era anjo quando
dono com infanticídio continuava, porém, a ser a estava a dormir».
regra. Por outro lado, a criança passa a ser alvo de
Não era socialmente dignificada, na aristocra- outro interesse por parte dos artistas do Realismo
cia, a evidência do amor maternal e daí a razoa- e do Naturalismo nas Artes Plásticas do séc. XIX.
bilidade da tese de que era o clima cultural que A iconografia da Sagrada Família, até então do-
ofuscava o instinto em oposição ao conceito de minante, desaparece no início do séc. XIX.
Badinter de não ser o amor materno, ele próprio, Aumentam, entretanto, e a ritmo crescente, as
um instinto humano. encomendas de quadros de representação das
O abandono infantil, sobretudo nas classes famílias burguesas.
sociais mais elevadas era expresso, também, pela Chegamos aos primórdios do séc. XX irrom-
entrega das crianças a governantas, a preceptoras pendo, então, as primeiras expressões do denomi-
e a colégios internos. nado interesse pela criança. Esta nova mo-
O processo de emancipação da mulher nos séc. dernidade inspira os artistas do simbolismo, desi-
XVII e XVIII inspirava, de facto, muitos dos com- gnadamente António Carneiro, que intitula uma
portamentos familiares impondo o interesse dos sua tela temática de «A vida – Esperança, Amor,
progenitores a qualquer interesse da criança ainda Saudade». A criança surge valorizada em si
sem direitos, sem privilégios, sem amor. mesma, nomeadamente através do direito a um
No séc. XVII, a infância não suscitava, ainda, novo significado do seu bem-estar.
nenhum interesse particular e poderá ter sido É extraordinária a mudança de conceito
causa parcial desta evidência a alta mortalidade expresso, por exemplo, no pensamento, direi
infantil que fazia poupar sentimentos vincu- pediátrico, de Winnicott – «a criança está de boa
ladores dentro da família. saúde quando pode brincar ao pé da sua mãe ou
Com Rousseau opera-se uma revolução do de um adulto que valorize a sua criatividade». Em
modelo. Ele afirmava: «É preciso deixar amadurecer termos sociológicos, poder-se-á dizer que é a par-
a infância dentro de cada criança». É assim que, no tir do séc. XIX e, consolidadamente, a partir do
séc. XVIII passaram as famílias a dar largas à sua séc. XX, que os poderes públicos passam a consi-
euforia sentimental passando as alegrias e as vir- derar alguns dos interesses das crianças, prin-
tudes familiares a invadir a Arte e a Literatura. Da cipalmente reportados às suas necessidades espe-
realidade social passou-se à realidade sentimental ciais, garantidas quando da evidência de qualquer
passando a arte a representar o idílico da família vulnerabilidade e desamparo.
em todo o seu esplendor. Como escreveu Reis Monteiro, «a descoberta da
Rousseau influencia, de facto, decisivamente, criança, vítima da família e da sociedade, tornou-a
muita da cultura parental, representada nas objecto de protecção pública e privada». É curioso,
relações sociais. Da mãe deslavada de amor à porém, constatar que, na segunda metade do séc.
«mãe-pelicano» há todo um caminho que, progres- XIX, surgem, pela primeira vez, Sociedades
sivamente, faz nascer o reino da «criança-rainha» Protectoras da Infância, porém depois de criadas
conforme expressão de Badinter. O nascimento da as Sociedades Protectoras dos Animais. A expres-
Puericultura em 1866 com Caron representa o iní- são «Direitos da Criança» encontra-se, pela pri-
cio do caminho para a escola de virtudes em que meira vez, num artigo publicado em 1852 nos
são decisivos o médico e a professora. EUA intitulado «The Rights of the children».
20 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Provavelmente, em 1872 é utilizada pela críticas tendo essencialmente como alvo o exager-
primeira vez a designação «Pediatria» mas é em ado «pedocentrismo» que situava a criança como
1900 que Ellen Kay, citada por Monteiro escreve «O um objecto jurídico.
Século da Criança» onde a autora proclama, por- A este propósito Reis Monteiro comenta ser a
ventura também pela primeira vez, que «as criança uma criança, não podendo tudo ser
crianças têm deveres e direitos tão firmemente estabeleci- Direito tal como o Direito não pode ser tudo. De
dos como os dos seus pais». Na coerência desta evolu- qualquer modo, o Direito de Família tornou-se
ção fantástica é adoptada em 1924 pela Assembleia progressivamente pedocêntrico e, a este propósi-
da Sociedade das Nações, a Declaração dos Direitos to, reza assim um texto publicado pelo Conselho
da Criança elaborada por Eglantine Jebb que cinco da Europa em 1989:
anos antes (em 1919) tinha, por sua vez, fundado o «As responsabilidades parentais são o conjunto dos
movimento internacional «Save the Children», cria- poderes e deveres destinados a assegurar o bem-estar
dor de símbolos (entre os quais gravatas promo- moral e material da criança, nomeadamente cuidando
toras do interesse pelas crianças). da personalidade da criança, mantendo relações pes-
Em 1948 é proclamada a Declaração Universal soais com ela, assegurando a sua educação, o seu sus-
dos Direitos do Homem onde se assume que a tento, a sua representação legal e a administração dos
Maternidade e a Infância têm direito a uma ajuda seus bens.»
e a uma assistência especiais (Artº. 25º. 2). A A interpretação dos vários Estados confere à
UNICEF, designação que sucede à de ICEF, nasce Convenção a extensão das suas prioridades. A
a 6 de Outubro de 1953 mas é a 20 de Novembro Santa Sé, por exemplo, interpreta os Artigos da
de 1959 que, definitivamente, á aprovada, por Convenção de modo a salvaguardar os direitos
unanimidade, (por 78 Estados-Membros da ONU) primários e inalienáveis dos pais.
a Declaração dos Direitos da Criança. A Decla- O poder parental era, assim, reportado ao
ração proclama dez Princípios Fundamentais que interesse superior da criança tal como expresso no
consagram o que se poderá entender como os Código Napoleónico que integra pela primeira
interesses Superiores da Criança designadamente vez a expressão «interesse da criança» como
face à sua protecção e desenvolvimento. norma jurídica aplicável. O interesse superior pas-
Pela primeira vez a impressão «Interesse supe- sou a ser afirmação usada no Direito Internacio-
rior da Criança» aparece num texto internacional nal a partir de múltiplas menções dos estatutos
tão significativo como é a Declaração. No seu jurídicos internos de muitos países.
Princípio 2 pode ler-se. «A Criança deve beneficiar de No Princípio 7 da Convenção é proclamado
uma protecção especial… Na adopção de leis com esse que «o interesse superior da criança deve ser o
fim, o interesse superior da Criança deve ser o factor guia daqueles que têm a responsabilidade pela
determinante». sua educação e orientação; esta responsabilidade
Mas é a 20 de Novembro de 1987 que a As- cabe, prioritariamente, aos pais». O interesse
sembleia Geral das Nações Unidas adapta e apro- superior da criança passou a ser uma «considera-
va a Convenção dos Direitos da Criança que, direi, ção primordial» que fez transcender os próprios
é uma efectiva proclamação dos Interesses Supe- direitos parentais e, porventura, até os valores cul-
riores da Criança que fazem parte do seu texto em turais de cada sociedade em função do primado
muitos dos seus 54 artigos, definitivamente con- da protecção e do desenvolvimento da criança.
sagrados em 1989. Como uma autêntica revolução, O interesse superior da criança terá sido,
toda uma literatura científica irrompe numa va- assim, uma consagração ética que coloca a criança
lorização incessante das competências infantis. não como objecto mas como sujeito de Direito.
Na mesma data da publicação da Convenção, Jacqueline Rubellin-Devichi entende que as
publicámos com a Fundação Gulbenkian uma soluções para a criança nunca são só jurídicas sem
expressão significativa da evidência científica de prejuízo do valor do direito que assegura os direi-
então: «Biopsychology of early parent-infant commu- tos de cidadania à criança desde o seu nascimen-
nication». Tal como em relação a todas as Decla- to. Para Martin Stettler não existe uma definição
rações, Convenções ou Proclamações, surgem para o «interesse da criança». Trata-se de uma
CAPÍTULO 2 Os superiores interesses da criança 21

noção com impacte afectivo e emocional que «con- em 1995, a Declaração de Lisboa de que cito, tão só,
vém deixar à apreciação dos pais ou à autoridade com- a primeira conclusão:
petente quando não há acordo» sendo este um pressu- «As famílias devem ser ajudadas a reconhecer que
posto básico para a mediação. constituem a fonte primária de amor e apoio e que são
Na Reunião de Lisboa de 1988, os Ministros da também responsáveis pela criação das forças interiores
Justiça tinham já adoptado uma Resolução tratan- de que a criança necessita para se tornar resiliente face
do da sequência dos direitos da criança no ao stress».
domínio do direito privado. Porém, quando todos os ideólogos falam dos
Neste sentido, a Convenção dos Direitos da novos direitos da criança, é preciso assimilar que
Criança deverá ser entendida como uma Nova existem equívocos que ficaram por resolver. O
Carta da Revolução dos Direitos do Homem pro- direito da criança em ter pai e mãe confronta-se
jectando na Criança a consagração fundamental com a frustração deste «interesse superior» por
da Declaração dos Direitos do Homem. A via de uma disfunção familiar cada vez mais
Convenção dos Direitos da Criança é a grande prevalente. Mais claramente ainda, a menção
proclamação ética centrada na Criança. interesse superior significará que o interesse da
A nova cultura que deverá inspirar as nossas criança deverá prevalecer sobre os interesses dos
sociedades e os nossos estados terá de ser cons- adultos ou da sociedade e sobre os interesses
truída nesta abordagem de uma ética centrada na económicos e culturais.
criança que, por sua vez, determinará todos as Será, ainda, interesse superior da criança, tal
outras disposições legais e políticas, do Ambiente como afirma Almiro Simões Rodrigues, o «direito
à Educação, da Saúde à Justiça, da Segurança ao desenvolvimento», isto é, o interesse da criança
Social à Intervenção Familiar. tem de ser entendido em função da dinâmica do
A criança não será mais, assim, o ser depen- seu desenvolvimento, ao longo do ciclo de vida da
dente, o menor cívico, o sujeito de vulnerabili- sua infância e da sua juventude. As referências da
dade. Os governos dispõem, hoje, através da Convenção à «capacidade» e ao «discernimento»,
Convenção de uma Carta de Princípios que os terão de ser entendidas na perspectiva que a
obriga a privilegiar a Criança no seu existir pleno filosofia dos «Touchpoints» consagra e que julgo
prevenindo as provações, as negligências, a vio- ser paradigmática e indispensável para o cumpri-
lência. A garantia de oportunidades de afecto, de mento das novas disposições legais.
vínculos, de harmonia familiar, de concentração A Nova Lei de Protecção a Menores de 1999, na
de interesses decorre da vivência do que é o in- leitura de Maria Amélia Jardim, integra, inequivo-
teresse superior da criança a mobilizar políticas e camente, os valores do «interesse superior da
regulamentações sociais. criança» no respeito inalienável dos significados e
O Direito não poderá ser uma regulamentação das fases de toda a dinâmica do desenvolvimen-
dos direitos sobre a criança mas outrossim, uma to infantil e juvenil. Estamos longe, porém, desta
afirmação dos direitos à Criança. Toda a circuns- Revolução Ética a inspirar todas as intervenções
tância da criança, designadamente a familiar, tem decorrentes desta prioridade do Direito que
de ser inspirada por este Direito à criança que reconhece, declaradamente, o interesse superior
pressupõe o primado da sua dignidade e o intere- da criança.
sse superior de a respeitar. A projecção deste inte- Reconheço esta distância quase infinita no que
resse em todas as expressões das Ciências respeita às práticas da nossa Saúde e da nossa
Humanas está contida num dos componentes do Educação. Se a Sociedade actual, na nossa cultura,
Preâmbulo da Convenção – … «a criança para o reconhecesse que a prioridade social era a criança
desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, tendo em conta os seus interesses superiores e se
deve crescer num ambiente familiar, em clima de felici- neste contexto estivesse garantido o pressuposto de
dade, amor e compreensão…». que o interesse superior da criança é o de ser
Foi em todo este contexto que um conjunto respeitada e amada, fundamentalmente dentro da
extremamente significativo de universitários e sua família, então todo o pensamento político ins-
investigadores consagrados elaboraram em Lisboa, pirador da actividade dos governos seria o de via-
22 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

bilizar uma cultura familiocêntrica com inequívocos Só a título de exemplo e na coerência deste pri-
investimentos na construção familiar e na relação mado, teríamos que ver garantida nos Cuidados
vinculadora desde os primeiros tempos de vida. Primários a consulta pré-natal de contexto pediá-
Ao nível dos direitos, o advogado mediador trico, teríamos de ver favorecida, ao nascer, uma
quando do divórcio, representará os pais nessa intervenção personalizada junto de cada pai e de
mediação mas o seu exercício terá que estar cen- cada mãe consolidada com a oportunidade de uma
trado no superior interesse da criança e é essa descoberta individualizada do bebé no favoreci-
advocacia que tem de prevalecer. Não chegam os mento dos seus instintos tão ferido de riscos nas
padrinhos dos ritos de passagem de que é para- nossas Maternidades, teríamos de investir em mais
digma o baptismo, nem os educadores das tempo de guarda materna, no favorecimento de
creches e dos jardins de infância que cabem por melhores horários para os pais nos primeiros dois
destino a cada criança para fazer vingar um apoio anos de vida do bebé, teríamos de ter mais e me-
tutorial complementar ou, às vezes, supletivo da lhores Serviços de Educação para os primeiros tem-
intervenção familiar. pos de vida da criança, teríamos de garantir mais
É preciso criar condições para que haja paixão jardins e parques para as nossas crianças, teríamos
na espera por cada nascer, na descoberta do de favorecer apoios fiscais, subsídios de habitação,
“quem é quem” logo que cada bebé nasce, no de aleitamento, apoios à aquisição de fraldas e de
apoio dinâmico à explosão de cada temperamento brinquedos, mas sobretudo, teríamos de investir
projectado no modo de comer, de dormir ou de mais na formação profissional para que cada acto
brincar. Usamos hoje, ainda, a expressão “bem- de consulta ou de intervenção educacional seja o
-estar” porventura para designar que nos referi- fervilhar de uma paixão continuadamente dilatada
mos aos interesses superiores da criança que, de pela magia de cada bebé em cada novo dia de uma
facto, se expressam nesse bem-estar. vida preenchida de paz, em cada família.
A linguagem jurídica abstracta que refere o A partir da década de 70, numa era inequivo-
interesse superior da criança não se esclarece, camente “bebológica”, a contribuição da Pediatria
todavia, com a nossa mera menção de bem-estar. para fazer vingar os interesses superiores do bebé
O «interesse superior da criança» é, hoje, um con- tem sido uma constante.
ceito que apela à interdisciplinidade e represen- Em 1984, a investigação que corporizou o
tará este facto a grande esperança de progresso nosso Doutoramento foi baseada no estudo sobre
para o que resta deste século. Foi numa dimensão a influência do contacto precoce mãe-bebé no
pluridisciplinar que fizemos (Conselho Técnico- comportamento da díade. As influências antropo-
Científico da Casa Pia de Lisboa) «Um Projecto de lógicas marcaram um posicionamento de maior
Esperança» confrontados com a pedofilia – proximidade na relação mãe-filho.
extremo de agressão que pode ser feita à criança, A nossa estadia em África (Guiné) representou
pressuposta a revisitação de toda uma história de um tempo ganho marcado pela aquisição de uma
desrespeito pela criança. nova cultura centrada na dignidade do respeito e
Para que haja coerência do nosso pensar à da tolerância. Fizémos, nestas últimas três déca-
nossa prática é preciso que a organização social e das, o «Nascer e Depois», fizémos o «Olá Bebé»,
política centre os seus investimentos na criança, fizémos o «Bebé XXI», fizemos o «Stress e Violên-
sobretudo quando ela é bebé. cia» e fizémos o «Mais Criança». Acreditamos hoje,
A Saúde, a Educação, o Ambiente e a Justiça sobretudo, que é preciso coerência para podermos
têm de estar unidos através de uma só estratégia corresponder aos superiores interesses da criança.
em função da Criança. O interesse superior da Vinte anos depois, todavia, a Convenção dos
criança não se compadece com a imagem de recep- Direitos da Criança ainda não chegou à Cultura
tor de direito, de cuidados ou de protecção; os do nosso tempo social e moral. No respeito pelo
interesses da criança exigem que consideremos que superior interesse da criança (artº. 3º.), o direito à
ela «contribui para a formação tanto da própria infância participação (artº. 12º.) tem de fazer garantir que
como da sociedade» e, por isso, as suas opiniões terão têm sempre de ser devidamente tomadas em con-
de ser sempre ouvidas e consideradas. sideração as opiniões da criança.
CAPÍTULO 3 Ética, humanização e cuidados paliativos 23

3
Assim, o interesse superior da criança não
pode ser, tão só, uma sentença que a Convenção
dos Direitos da Criança proporcionou, como recei-
ta, aos tribunais. O interesse superior da criança é
uma declaração do Amor pela Criança e é este
conceito que deverá inspirar o mundo e os
cidadãos deste mundo. ÉTICA, HUMANIZAÇÃO
Precisamos, mais do que nunca, de uma revo-
lução de praxis para que os interesses superiores E CUIDADOS PALIATIVOS
da criança não se inquinem com a rotina, com as
abstracções e com as sentenças. Maria do Carmo Vale e João M. Videira Amaral

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Tavistock Publications Limited, 1978 um método, um caminho para o pensamento, uma
forma de olhar e argumentar na perspectiva de
24 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

encontrar respostas e soluções para os dilemas que Este tópico será abordado de modo especial
enfrenta. A Ética Médica é baseada num conjunto adiante.
de princípios fundamentais os quais derivam não Nesta perspectiva a decisão médica deve ser
só da tradição hipocrática, como também do partilhada com o doente (e seus familiares), sobre-
reconhecimento dos direitos humanos. tudo quando esta decisão pode ter consequências
Destacam-se os seguintes: respeito pela vida; o para a vida do próprio.
respeito pela pessoa e sua autonomia; o princípio Em Pediatria nem sempre tal é possível;
da não maleficência e da beneficência; o princípio tratando-se de um adolescente existe autonomia,
da justiça. desde que esteja consciente e capaz de se auto –
determinar. Cabe referir, contudo, que em deter-
O Respeito pela vida e a autonomia minadas situações a revelação da verdade de um
da pessoa prognóstico reservado pode ser contraproducente
e até prejudicial para o tratamento.
O respeito pela vida do doente passa pela defi- No caso de adolescente não autónomo (por
nição e compreensão do que se entende pela vida exemplo, em coma vegetativo, persistente ou
humana, pelos seus limites, isto é, quando começa temporário), e nos restantes grupos etários pediá-
e quando termina. tricos, a decisão terá de ser tomada em colaboração
Para muitos, o início da vida corresponde ao com os familiares.
momento da concepção, enquanto para outros ao Poderão mesmo surgir situações delicadas
momento da nidação e, para outros ainda, ao quando, por exemplo familiares de doentes em
nascimento. estado crítico recusam tratamentos considerados
Do ponto de vista filosófico um ser humano é vitais pelo médico (caso das Testemunhas de Jeová).
ou passa a ser uma pessoa quando, para além da Recentemente o princípio da autonomia tem
vida biológica, existe uma vida psíquica, emocio- sido considerado um elemento perturbador na
nal, cognitiva e espiritual que lhe permite conduzir relação médico – doente: para o primeiro porque
a própria vida de forma autónoma e responsável. introduz um interlocutor activo ao questionar nor-
Análoga indefinição existe quanto ao conceito de mas relativas ao diagnóstico e decisão terapêutica
morte, o qual não é de consenso universal, sobre- tradicionalmente deixados ao critério médico; para
tudo para as pessoas sem formação ou cultura o doente, porque a inerente fragilidade e susce-
médica. A este respeito, cabe referir que a decisão ptibilidade biopsíquica geram desequilíbrio na
médica de desconectar um indivíduo do ventila- referida relação clínica, dificultando o seu prota-
dor, em princípio, não levanta problemas éticos, gonismo no processo de tomada de decisão.
uma vez que o conceito de morte cerebral é unani-
memente reconhecido e está bem estabelecido em Os princípios da beneficência
normas nacionais e internacionais. e de não maleficência
O respeito pela pessoa deve partir da prévia
definição de pessoa. Quando nos referimos ao Estes princípios têm a sua origem no código de
doente como pessoa há que considerar a sua ética hipocrática e nos princípios da moral cristã.
autonomia, isto é, a sua vontade e capacidade de De referir, aliás, que certos autores chamam a
auto – determinação. atenção para o facto de o princípio da não male-
Assim, o respeito pela pessoa do doente passa ficência ter precedência sobre o da beneficência
pela obtenção do seu consentimento prévio para porque, antes de beneficiar, há que não prejudicar.
a realização de diversos procedimentos ou Para alguns especialistas nesta área, tais princípios
intervenções médico – cirúrgicas. Ou seja, está em constituem a essência da ética profissional médica.
causa o chamado princípio da autonomia, ao A dificuldade da sua aplicação reside em
mesmo subjacente o chamado “consentimento conhecer o que é considerado benéfico para um
informado ou consentimento esclarecido” (mais determinado doente, pois este poderá ter uma
que informar, é preciso garantir que tenha havido concepção não coincidente com a do médico.
recepção da mensagem com esclarecimentos). A administração de uma transfusão de sangue
CAPÍTULO 3 Ética, humanização e cuidados paliativos 25

a um doente pode ser considerada pelo médico Quando os recursos são escassos o princípio de
como um acto bom, mas pelo doente, Testemunha justiça tem, sobretudo, o sentido de justiça distri-
de Jeová, um acto perverso. butiva, isto é, de fazer com que o maior número
Nos doentes em fase terminal, em especial do possível de indivíduos necessitados possam bene-
foro oncológico, será melhor optar por tratamento ficiar desses recursos. Desperdiçar os escassos
analgésico e paliativo, mesmo que não se prolon- recursos existentes com doentes que deles não
gue a vida do doente, ou dever-se-á prolongar esta necessitam constituirá uma injustiça para os que
à custa de maiores sofrimentos? deles podem beneficiar.
Analisemos outro exemplo: se o médico prati- Decorre desta lógica que o princípio da justiça
car determinado acto com a intenção de beneficiar tem, na sua aplicação para os médicos, um sentido
o doente, a sua atitude é eticamente irrepreensível, utilitarista, ou seja, de que deverão beneficiar dos
mesmo que desse acto resulte um efeito colateral poucos recursos existentes os doentes que maiores
indesejável. O importante é que a intenção do benefícios possam colher.
médico seja boa e a natureza intrínseca do acto seja Neste campo da decisão existem muitas arma-
também boa ou, pelo menos, neutra. Assim, se o dilhas para quem não se encontra previamente
médico administrar um analgésico narcótico a um alertado. Por exemplo, na ausência de ventilador
doente oncológico em grande sofrimento e em fase disponível, qual a decisão perante um jovem que
terminal da doença, pratica um acto moralmente chega à unidade de cuidados intensivos, com um
correcto, mesmo que essa atitude terapêutica possa traumatismo craniano, boas perspectivas de evoluir
abreviar a sua vida por algumas horas ou dias, favoravelmente, e em que simultaneamente existe
dado que a sua intenção era aliviar o sofrimento. outro acometido por acidente vascular cerebral, de
Outra questão diz respeito à distinção entre meios prognósico mau ligado ao ventilador?
ordinários e extraordinários de tratamento a qual não Deverá ser desligado o doente com prognóstico
deve ser assumida em termos absolutos, mas sim mais reservado quanto à vida e função para ceder
equacionada em termos do doente, da doença e dos o ventilador ao doente com prognóstico mais
resultados esperados. Ou seja, não existem meios de optimista?
tratamento que, à partida, se possam considerar como Este e outros exemplos podem ser comparados
ordinários e extraordinários. às situações, hoje históricas, chamadas de triagem
Segundo o princípio da proporcionalidade dos de guerra, nas quais os cirurgiões preferiam tratar
meios, considera-se um tratamento como extraor- prioritariamente os moderadamente feridos, em
dinário quando ele representa para o doente uma relação aos muito graves ou ligeiros. Também
grande desproporção entre os benefícios esperados durante a II Guerra Mundial, quando a penicilina
e os encargos (custos) para o próprio (ou sua família). era ainda muito escassa, dava-se preferência à sua
A hemodiálise, as transplantações, etc. podem utilização em soldados com doenças transmitidas
constituir meios ordinários para certos doentes ou sexualmente (pois ficando rapidamente curados
em certas doenças, e extraordinários, noutros. poderiam voltar ao campo de batalha) em relação
A metodologia das decisões conhecidas pela a outras situações infecciosas.
sigla DNR (Do Not Resuscitate) tem a ver, pre- Assim, os recursos deverão ser atribuídos aos
cisamente, com a não aplicação de meios de res- doentes que mais benefícios possam vir a colher,
suscitação em doentes nos quais os critérios tornando-se claro que a escassez de recursos impõe
médicos e científicos permitem prever, com ra- uma rotatividade no acesso à sua utilização, para
zoável segurança, que o benefício decorrente da que os benefícios dos mesmos possam ser aplicados
aplicação desses meios terapêuticos será ínfimo ao maior número de doentes deles necessitados.
para os doentes em causa. Neste contexto e aplicando o princípio da
justiça às unidades de cuidados intensivos, de-
O princípio da justiça verão ser bem definidos os critérios de admissão e
de alta dos doentes assistidos, de modo a ser
Trata-se do princípio que encerra em si mais possível aplicar os respectivos recursos ao maior
dilemas para o médico. número possível de doentes.
26 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Os princípios e a prática clínica Exemplificando, com um caso clínico: uma


adolescente de 16 anos portadora de fibrose
O consentimento informado, alicerçado no prin- quística, com história anterior de 2 transplantes
cípio da autonomia, define-se como a livre aceita- cardiopulmonares, entra pela terceira vez conse-
ção e autorização pelo doente de intervenção cutiva em fase de rejeição aguda e é internada
médica ou participação em programa de inves- numa unidade de cuidados intensivos pediá-
tigação, após adequada explicação pelo médico da tricos. Apesar da terapêutica adequada, a si-
natureza daquelas, relação custos/benefícios e tuação clínica deteriora-se e é necessário decidir
alternativas. Apresenta duas vertentes fundamen- ou não pela ventilação mecânica. Ouvindo a
tais: a legal e a relacional. família, o pediatra está de acordo em não ven-
A vertente legal é a regra social de consentimento tilar, atendendo ao mau prognóstico, mas adia a
em instituições que devem obter legalmente con- decisão final até à realização de conferência entre
sentimento válido para doentes e pessoas, pre- a doente e o médico assistente. Lúcida, ciente da
viamente à realização de procedimentos terapêuticos irreversibilidade da sua situação clínica, convicta
ou de programas de investigação. No entanto, iso- da ineficácia de medidas terapêuticas invasivas
ladamente, não legitima a decisão ou actuação adicionais, recusa a ventilação, sendo a decisão
terapêutica e só corporiza integralmente a decisão do integralmente respeitada.
doente quando devidamente associada à vertente Este caso clínico é um exemplo do exercício de
relacional que a fundamenta e complementa. autonomia, aparentemente isento de paterna-
A vertente relacional diz respeito à expressão lismo. A visão global do diagnóstico, situação
das preferências e opções do doente. Tal expressão clínica e evolução da criança, aliada ao sentido
viabiliza escolhas racionais e partilha da decisão, ético do exercício da medicina, permitiu à equipa
bem como contínua permuta interactiva e negocial clínica autonomizar a doente e simultaneamente
reforçando, modificando ou anulando o consenti- ter a atitude responsável e profissional de a poupar
mento inicial. a um prolongamento inútil de vida.
Esta interacção sedimentadora da aliança tera- Assim, o exercício da autonomia não implica
pêutica médico/doente rendibiliza, por sua vez, o crueldade no confronto com a realidade de vida e
trabalho do médico porque o doente estará mais de morte ao permitir que o doente se pronuncie e
apto a colaborar, terá expectativas mais realistas e eventualmente decida, quando tem condições
estará mais preparado para eventuais complicações. para tal, sobre questões que influenciam de forma
O consentimento informado tem sido geral- decisiva a vivência do seu corpo na doença.
mente considerado um dever parental, apesar de O pediatra ou outro médico ao dialogar em
questionável e moralmente desajustado relativa- paridade com uma adolescente que, por doença
mente ao doente pediátrico competente. grave e prolongada, admite as hipóteses de vida
Dado que a autonomia é baseada na capa- ou de morte que se lhe deparam, deve demonstrar
cidade de o doente compreender as consequências capacidade de diálogo e humildade. Deve também
e alternativas possíveis à sua escolha e que muitas revelar respeito pelo princípio da beneficência ao
crianças em idade escolar e adolescentes já pos- reconhecer o sofrimento físico, psicológico e
suem essa capacidade, esse facto pode gerar confli- espiritual de crianças e adolescentes os quais têm
tos, atendendo ao direito legal de supervisão direito a protecção e alívio da dor. É este o funda-
parental em matéria de saúde. mento dos cuidados paliativos.
O número de adolescentes que necessitam de Importa, no entanto, sublinhar que a auto-
cuidados hospitalares tem progressivamente nomia não é um princípio que retira à criança ou
aumentado, tendo sido publicados poucos estudos adolescente resiliência, fragilizando-a e tornando-
que foquem problemas éticos durante a hospi- a indefesa face à doença e à morte. Muito pelo
talização neste grupo etário, sendo que alguns dos contrário, pode constituir um factor de cresci-
dilemas éticos surgidos na população adolescente mento de interioridade e intimidade daqueles,
não se enquadram adequadamente nas orien- reconhecendo-lhes direitos e capacidade de pro-
tações existentes referentes a crianças e adultos. tecção contra a imensidão de normas, regras,
CAPÍTULO 3 Ética, humanização e cuidados paliativos 27

teorias e tecnologias de que a medicina dispõe Consentimento informado


actualmente. e esclarecido
Ou seja, o exercício da autonomia contém de
uma maneira ou de outra, quiçá de forma comple- Sublinhando a importância do triângulo relacional
mentar, os princípios da beneficência e da não “criança, pais e médico” é reconhecido o direito ao
maleficência. consentimento informado e confidencialidade em
De referir que a informação dada ao doente adolescentes maiores de 14 anos relativamente à
pelo médico deve pautar-se pela preocupação de contracepção oral, ao tratamento de doenças
comunicação através de linguagem simples, sexualmente transmissíveis e ainda nos casos de
fluida, isenta de termos técnicos, adequada e comportamento aditivo (alcoolismo, ou toxicode-
acessível, que consiga transmitir a verdade àquele, pendência), sem necessidade de consentimento
devidamente enquadrada por empatia e solicitude parental.
que o médico deve disponibilizar de modo Em caso de terapêutica com baixo risco de
personalizado. mortalidade e morbilidade (tratamento da acne, por
Contudo, a preocupação do total esclareci- exemplo) poderá também ser dispensado o consen-
mento relativamente à doença não deve sobrepor- timento parental. Pelo contrário, nos casos em que a
se à compaixão face ao doente doseando-a (ou até, terapêutica envolva considerável risco (intervenções
por vezes, omitindo-a e adaptando-a à idade, cirúrgicas ou terapêutica do foro oncológico com
perfil e momento psicológico). Isto é, cada doente citostáticos) é exigido o consentimento informado e
tem direito à verdade que pode suportar. esclarecido do doente, caso este se situe no grupo
etário superior aos 18 anos, ou o consentimento
A legislação em Portugal parental se se tratar de menor de 18 anos, não
legalmente emancipado.
Em Portugal a legislação portuguesa confere o Exemplificando, é também necessário permis-
direito à autodeterminação em saúde aos menores são informada em caso de:
de 18 anos, mediante a portaria nº 52/85 que • Imunizações.
permite o acesso às consultas de planeamento • Exames diagnósticos invasivos (cateterismo
familiar a todos os jovens em idade fértil, bem cardíaco, broncoscopia).
como o artigo 141º da lei nº 6/84 DR-Iª série nº 109- • Terapêutica prolongada com anticonvul-
11/5/1988 que reconhece o direito ao consenti- santes para controlo da epilepsia.
mento de interrupção voluntária de gravidez em • Correcção cirúrgica de anomalias esquelé-
jovens dos 16 aos 18 anos, desde que nas situações ticas.
contempladas na lei. • Remoção cirúrgica de massa tumoral suspeita.
Por sua vez a autonomia da criança é • Punção lombar (mesmo em situações de
reconhecida no Código Penal – decreto-lei nº emergência).
48/95 de 15/3/1995 ao " Reconhecer no domínio O assentimento da criança e permissão infor-
dos bens jurídicos livremente disponíveis, como mada e esclarecida dos pais será aconselhável em
causa de exclusão de ilicitude, o consentimento situações como:
prestado por quem tiver mais de 14 anos e • Punção venosa numa criança depois dos 10
possuir o discernimento necessário para avaliar anos.
o seu sentido e alcance no momento em que o • Exames complementares diagnósticos nos
presta". casos de dor abdominal recorrente numa
Também o Código Deontológico da Ordem dos criança depois dos 10 anos.
Médicos refere que "No caso de crianças ou • Medicação psicotrópica para controlar a
incapazes, o médico procurará respeitar, na medi- perturbação da atenção grave.
da do possível, as opções do doente, de acordo Ou seja, em medicina da criança e do adoles-
com as capacidades de discernimento que lhes cente o assentimento reconhece e assume o doente
reconhece, actuando sempre em consciência na como pessoa com capacidade de ser integrada
defesa dos interesses do doente”. num processo decisional e pressupõe:
28 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

• Ajudar o doente a compreender a sua doença. profissional de saúde que recusa a rotina reduzida
• Transmitir-lhe a normal expectativa dos ao tecnicismo, que vê no doente uma pessoa inteira
exames e tratamentos a realizar. com emoções, angústias ou desesperos que se es-
• Atender à compreensão do doente face à sua tendem às famílias.
doença. A partir de então em quase todas as mater-
A dissensão ou persistente recusa ao assen- nidades passou a vigorar, de modo progressivo, a
timento deve ser respeitada sempre que a inter- prática de contacto precoce mãe-filho, já na sala de
venção proposta não seja essencial ao bem-estar da partos, onde o recém-nascido deveria ser colocado
pessoa ou possa ser adiada sem risco. ao peito para estimular a secreção láctea e o vín-
Em investigação é vinculativa, mesmo que os culo.
pais tenham autorizado. Ao sistema de alojamento conjunto mãe-filho
Recentemente o grupo de trabalho em ética da recém-nascido nas enfermarias de puérperas foi
Confederation of European Specialists in Paediatrics dada cada vez dada maior importância, o que tem
(CESP) publicou as linhas de actuação e recomen- conduzido à tendência para considerar obsoleto e
dações do Consentimento Informado/Assenti- anti-natural o conceito de berçário nas maternidades
mento em Pediatria e em investigação biomédica (recém-nascidos saudáveis em enfermaria separada da
envolvendo populações pediátricas. mãe).
O documento é norteado por uma preocupação A par doutras medidas relacionadas com a
de preservar a dignidade da criança e adolescente qualidade do atendimento nas diversas institui-
nas suas dimensões física, psicológica e intelectual, ções, passou igualmente a ser cada vez mais ha-
salvaguardar os seus interesses, protegê-los de bitual a mãe acompanhar o seu filho durante a hos-
riscos, assegurar e respeitar a sua privacidade pitalização em qualquer grupo etário “abrindo-se
/confidencialidade e reforçar o seu direito à ex- as portas das unidades de internamento ou de am-
pressão e cumprimento dos seus desejos e pre- bulatório às famílias segundo certas regras que
ferências sempre que possível, numa perspectiva passaram a estar incluídas nos manuais de quali-
realista. dade e consagradas por legislação, de que se desta-
ca a Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas
Humanização dos cuidados descrita adiante.
Quer a Secção de Pediatria Social da Sociedade
Em 1945, pela primeira vez Spitz descreveu a sín- Portuguesa de Pediatria (SPP), criada em 1979,
droma do hospitalismo. As manifestações clínicas quer o Instituto de Apoio à Criança (IAC), funda-
de tal situação, relacionadas com o ambiente hos- do em 1983, têm tido ao longo dos anos um papel
pitalar de separação da mãe e família da pedagógico altamente relevante, veiculando, desi-
criança, o próprio trauma e agressão emocional da gnadamente, os conceitos da humanização e de as-
doença implicando muitas vezes intervenções dia- sistência centrada na família, constituindo-se co-
gnósticas e terapêuticas, traduzem-se por carência mo grupos de pressão junto das autoridades go-
afectiva, regressão do desenvolvimento psicomo- vernamentais no sentido de as práticas de humani-
tor e afectivo, e estados depressivos. zação passarem a ter suporte legal, o que tem vin-
Foi precisamente na transição da década de 70- do a acontecer ao longo dos anos.
-80 que passou a desenvolver- se em Portugal uma
“cultura” – originária dos Estados Unidos da Cuidados paliativos
América do Norte - de encarar a criança, mais liga-
da à família e ao seu meio, mesmo quando no hos- A partir de 1960, sob os auspícios da OMS, passou
pital, tornando este meio mais acolhedor, com- a ser comum o termo de cuidados paliativos como um
preensivo, humano. Em Portugal cabe destacar o novo paradigma de assistência total e activa ao
pioneirismo na aplicação sistemática de certas doente e família por equipa multidisciplinar quan-
práticas do Instituto Português de Oncologia e do do se verifica uma de três situações:
Hospital Pediátrico de Coimbra. – doença incurável (não previsível resposta a
Assim, contribui para a “humanização” todo o qualquer terapêutica);
CAPÍTULO 3 Ética, humanização e cuidados paliativos 29

– doença avançada (prognóstico muito reser- Carta de Direitos das Crianças Hospitalizadas
vado e sobrevivência previsível inferior a 6 (Aprovada pela Confederação Europeia
meses); dos Sindicatos Nacionais e Associações
– doença em que se verifica fracasso da tera- de Profissionais de Pediatria, 1996)
pêutica clássica, com consequente sofrimento
do doente e família. 1. As crianças somente serão admitidas no hospital
Tal tipo de cuidados permite suprimir ou se os cuidados de que necessitam não puderem
atenuar sintomas sem actuar directamente na ser igualmente administrados no domicílio ou
doença que os provoca, dando também apoio à em regime ambulatório.
família para lidar com a doença, na tentativa de 2. As crianças hospitalizadas têm o direito de ter os
melhorar a qualidade de vida do doente na sua seus pais permanentemente com elas, desde que
relação com a mesma sem que tal signifique isso seja para maior benefício da criança. Assim,
abandono. (Capítulo 336) devem ser oferecidos alojamento a todos os pais
Salienta-se, em suma, que a noção de cuidados e estes devem ser auxiliados e encorajados a
paliativos: 1) não diz respeito exclusivamente a permanecer junto delas. De modo a com-
cuidados terminais, em fim de vida; 2) não se participar na assistência dos seus filhos, os pais
resume ao tratamento da dor; 3) exige que se devem ser informados acerca da rotina da
proceda à avaliação global da pessoa que sofre enfermaria e encorajada a sua participação activa.
atendendo à sua complexidade biológica, psicoa- 3. As crianças ou os seus pais têm o direito a uma
fectiva, familiar e social. informação apropriada à sua idade e
Constitui dever ético da equipa assistencial compreensão.
junto da família chamar a atenção de modo huma- 4. As crianças e os pais têm o direito a uma in-
nizado para certos princípios e realidades que formada participação em todas as decisões que
poderão contribuir para a compreensão de atitu- envolvem a sua assistência. Todas as crianças
des (diversas da distanásia ou encarniçamento devem ser protegidas de tratamentos médicos
terapêutico, e da eutanásia ou morte provocada desnecessários, devendo tomar-se medidas no
sem sofrimento): sentido de minorar o seu sofrimento físico e
– evolução vida – morte como processo natural emocional.
e inevitável; 5. As crianças devem ser tratadas com tacto e
– não adiamento nem aceleração da morte compreensão, e a sua privacidade sempre res-
– alívio da dor e doutros sintomas numa peitada.
relação fraterna; 6. As crianças devem ser assistidas por uma equi-
– valorização da dignidade e da qualidade de pa adequadamente treinada e plenamente cons-
vida da pessoa; ciente das necessidades físicas e emocionais de
– informação de modo individualizado, gradual cada grupo etário.
e adaptado à cultura, religião e circunstâncias 7. As crianças têm o direito de usar as suas pró-
psico-afectivas da “unidade” doente -família, a prias roupas e ter os seus pertences pessoais.
cargo da equipa que presta cuidados. 8. As crianças devem ser assistidas conjuntamente
Embora em instituições de saúde prestando com outras crianças do mesmo grupo etário,
assistência a adultos existam unidades de cuida- separadamente dos adultos em todas as va-
dos paliativos com equipa própria, separadas lências assistenciais (consulta, internamento,
doutras enfermarias e unidades, na idade pediá- serviço de urgência, etc).
trica tal assistência é propiciada em geral em 9. As crianças devem ter um ambiente guarnecido
enfermarias convencionais, embora em área re- e apetrechado de modo a satisfazer as suas ne-
servada e versátil com o recato e isolamento que a cessidades e que esteja de acordo com as normas
situação impõe. Tais situações surgem com maior conhecidas de vigilância e segurança.
frequência em unidades de cuidados intensivos 10. As crianças devem ter total oportunidade para
neonatais e pediátricas e em serviços de oncologia brincar, para diversão e educação adequadas à
pediátrica. sua idade e condição.
30 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

4
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Factos Históricos. Lisboa: Angelini, 2004 plementar, foi criado um único internato médico a
CAPÍTULO 4 Formação em pediatria na pós-graduação 31

cujo período inicial de formação de 12 meses foi Ciclos de estudos especiais


dado o nome de internato do ano comum (IAC). Os chamados ciclos de estudos especiais definidos por
Este último passou a substituir o antigo internato legislação em 1982 constituem uma modalidade de
geral (que tinha a duração de 2 anos), seguindo-se treino pós-graduado, após exame final do internato
ao curso de Medicina e precedendo o internato complementar de pediatria, para obtenção de com-
complementar. O referido IAC integra cinco petências em determinadas áreas específicas, mediante
blocos:Medicina Interna, Pediatria Geral, Obste- estágios práticos e um programa de formação especí-
trícia, Cirurgia Geral e Cuidados de Saúde Pri- fica em hospitais centrais. Existe um processo de can-
mários (englobando Clínica Geral e Saúde Pública). didatura. De um modo geral têm constituído um dos
A formação em Pediatria Geral no âmbito do critérios a ponderar nas candidaturas para obtenção de
IAC tem a duração de 2 meses e inclui treino tute- determinada competência ou subespecialidade.
lado em serviço de pediatria considerado idóneo:
1- em serviço de urgência pediátrica (12 horas por A Pediatria Geral
semana); e 2- em consulta externa. Obedecendo a e as Subespecialidades Pediátricas
objectivos pedagógicos de conhecimento e de de-
sempenho, pretende-se que o interno do IAC / es- Como resultado da expansão progressiva dos co-
tagiário adquira conhecimentos, atitudes e ap- nhecimentos no campo da Pediatria (cujo âmbito foi
tidões para o diagnóstico e tratamento das situ- abordado anteriormente) têm desta emergido as
ações pediátricas mais comuns tendo em conside- chamadas subespecialidades pediátricas que corres-
ração a importância da articulação e comunicação pondem a modos diferenciados de assistência médi-
com “outros prestadores de cuidados”. A avaliação ca no referido período evolutivo aplicados a apare-
é contínua e baseada em determinados parâmet- lhos e sistemas (critério anátomo- fisiológico) ou a
ros.No termo do bloco é atribuída a classificação certas fases do desenvolvimento: perinatal/neona-
de Apto ou não Apto (se < 10 valores). tal, escolar, adolescência (critério cronológico).
Tais áreas, que envolvem, designadamente, a
O internato complementar /da especialidade aquisição de competências para a realização de téc-
Até 1996 a formação básica propiciada aos inter- nicas e procedimentos, começaram a surgir na dé-
nos de Pediatria, futuros pediatras, não estava es- cada de 50 nos Estados Unidos da América do
truturada nem regulamentada, condicionando Norte (EUA) com programas de formação elabo-
oportunidades heterogéneas de treino clínico para rados pela Academia Americana de Pediatria
aquisição de competências básicas em função do (AAP). Esta tendência teve mais tarde o seu segui-
grau de investimento de cada instituição nesta área mento na Europa com diversos modelos fun-
do ensino; de referir que o candidato a pediatra cionais e de oficialização obedecendo a critérios
praticava sempre numa única instituição hospita- definidos pelas Comissões Europeias, os designa-
lar. dos European Boards, ligados à Union Européenne des
O “Programa de Formação do Internato Com- Médecins Spécialistes – UEMS.
plementar de Pediatria”, que constitui um marco im- Em obediência à nomenclatura habitualmente
portante da história da educação médica em adoptada pela Ordem dos Médicos e pelos orga-
Portugal, entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1997. nismos da União Europeia (Confédération Euro-
Actualmente é designado por "de Formação Especí- péenne des Spécialistes de Pédiatrie – CESP) e UEMS
fica". Com o mesmo passaram a ser definidos es- que consideram a Pediatria uma especialidade, as
pecificamente, quer objectivos pedagógicos em ter- respectivas modalidades diferenciadas, contri-
mos de conhecimentos e competências, quer critérios buindo para uma melhor qualidade no serviço à
de avaliação e períodos de formação em diversas prestar à comunidade, são, de facto, consideradas
valências. Neste modelo a maior inovação consistiu subespecialidades pediátricas.
na descentralização do estágio, passando o médico
em formação(interno do internato complementar) a O desenvolvimento das subespecialidades
rodar por diversas instituições, para além de hospi- pediátricas
tais centrais, hospitais distritais e centros de saúde. Quer na América, quer na Europa, e designadamente
32 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

em Portugal, têm sido gerados consensos (não em to- tria geral evitando erros cometidos no âmbito da
das as áreas especializadas) segundo os quais as medicina geral de adultos relacionados com a for-
subespecialidades pediátricas deverão constituir mação de subespecialistas sem uma formação básica
conceptualmente um ramo derivado da Pediatria e indispensável ou tronco comum de medicina interna.
não das subespecialidades afins da Medicina Interna Quer nos hospitais centrais, quer nos hospitais
ou da Cirurgia Geral. Reconhecendo que tal impera- distritais, haverá que preparar solidamente pediatras
tivo não assume a mesma relevância em todas as es- gerais competentes, que possam assumir com toda a
pecialidades, a lógica conceptual seria que as subes- legitimidade as tarefas de médico global ou médico-
pecialidades pediátricas fossem desempenhadas, de assistente da criança, e aptos para uma triagem cor-
raiz, por pediatras que adquiririam competência em recta para o pediatra subespecialista. Tal conceito de-
determinada área específica. É evidente que numa verá ser transmitido aos estudantes universitários.
fase de arranque, tal nem sempre aconteceu- era im- Efectivamente, embora os hospitais centrais en-
perioso começar! – sendo bastantes os exemplos de globando áreas diferenciadas, sejam considerados
contributos importantes de subespecialistas anteri- por definição especializados, para a garantia duma
ormente ligados a áreas da medicina e cirurgia de pediatria de prestígio – e, por consequência, para a
adultos que transitaram para a área correspondente garantia dum melhor serviço à comunidade – os
das subespecialidades pediátricas. mesmos deverão incorporar, igualmente, a valên-
No âmbito da Sociedade Portuguesa de Pedia- cia de pediatria geral, integrando pediatras gerais
tria (SPP) foram criadas, diversas Secções espe- internistas com competências para a coordenação
cializadas, referentes a diversas valências pediá- de equipas multidisciplinares para a abordagem
tricas (Pneumologia, Neonatologia, Cardiologia, dos casos complexos, crónicos ou agudos, ideal-
Gastrenterologia, Pediatria Social, Educação mente em regime de dedicação exclusiva.
Pediátrica, Hematologia / Oncologia, Cuidados
Intensivos, Infecciologia, Endocrinologia, Nefrolo- A relação entre a Pediatria Geral
gia, Desenvolvimento, Alergologia, Reumatolo- e a Medicina Familiar
gia, Pediatria Ambulatória, Medicina do Ado-
lescente) com estatutos próprios, congregando os Em 1990, sob os auspícios da Sociedade Portu-
sócios com especial interesse na respectiva área. guesa de Pediatria, foi elaborado um documento
Tais secções ou mini-sociedades têm contribuído de análise e de recomendações, elaborado por um
para fomentar a investigação e melhorar o inter- grupo de trabalho coordenado por Fernanda
câmbio entre instituições nacionais e estrangeiras. Sampayo intitulado “ O problema da assistência à
Em Portugal, até ao final da década de 80, es- criança pelos clínicos gerais”.
tavam reconhecidas pela Ordem dos Médicos as Tendo sido considerado nesse documento, pela
subespecialidades de Pediatria Cirúrgica, de maioria dos seus membros, que em condições
Pedopsiquiatria e de Cardiologia Pediátrica. As ideais, a meta desejável seria a “generalização da
mesmas passaram a ter internato próprio, o que assistência médica ao grupo etário pediátrico por
traduz reconhecimento pelo Ministério da Saúde. pediatras” , a realidade actual, no entanto, não per-
No início de 2003 foram reconhecidas pela mite atingir tal desiderato, quer pela escassez de
Ordem dos Médicos 5 novas subespecialidades pediatras, quer pela própria legislação portugue-
pediátricas: Neonatologia, Nefrologia, Gastren- sa que considera ser o médico de família/clínico
terologia, Oncologia e Cuidados Intensivos, inte- geral o responsável pela saúde infantil no âmbito
grando programas de formação específicos. dos cuidados primários /centros de saúde.
Cabe referir, no entanto, que em tempos surgiu
Necessidade de equilíbrio entre a pediatria (apenas na legislação) a figura do chamado “pedia-
geral e as subespecialidades tra comunitário” para o exercício de funções no âm-
Aformação de novos subespecialistas deverá proces- bito dos cuidados primários de saúde, mas em es-
sar- se em função das necessidades do país acaute- treita ligação com as estruturas hospitalares em cu-
lando a subalternização dos pediatras generalistas. jas equipas estava previsto poder integrar-se.
Haverá, pois, que evitar o “esvaziamento” da pedia- Esta questão do desempenho profissional de
CAPÍTULO 4 Formação em pediatria na pós-graduação 33

pediatras nos cuidados de saúde primários foi em Problemas do foro cardiovascular:


2005- 2006 foi revisitada, quer pela Comissão Sopros inocentes, situações de hipertensão mo-
Nacional de Saúde da Criança e do Adolescente, derada em adolescentes obesos, obesidade na ado-
quer pela Sociedade Portuguesa de Pediatria, de- lescência.
fendendo o papel do pediatra (hospitalar) como
consultor nos centros de saúde na área de influên- Problemas do foro gastrintestinal:
cia respectiva, e não como substituto do médico de Regurgitação e vómitos do lactente, refluxo
família, pressupondo uma correcta articulação en- gastresogágico, obstipação, encoprese, diarreia,
tre as respectivas instituições. dor abdominal, infestações intestinais.
Como é fácil depreender, a relação profissional
entre pediatras gerais e médicos de família, e en- Problemas do foro genito-urinário:
tre pediatras gerais e pediatras subespecialistas, Enurese diurna e nocturna, infecções recor-
tem implicações na formação que é propiciada a rentes do tracto urinário no sexo feminino, refluxo
“cada grupo profissional”, na medida em que se vesico-ureteral(graus 1,2,3), micro-hematúria, pro-
torna desejável um articulação funcional harmo- teinúria postural, testículos retrácteis.
niosa de programas formativos; efectivamente,
uma melhor formação conduzirá seguramente a Problemas do foro hematológico:
um melhor serviço aos cidadãos. Anemia ferropénica, trombocitopénia transi-
tória idiopática.
Competências clínicas do foro
da Pediatria Geral Problemas do foro endocrinológico:
Obesidade e baixa estatura constitucional.
Não se podendo nem se devendo estabelecer bar-
reiras muito estanques, e abstraindo os grandes Problemas músculo-esqueléticos:
tópicos considerados nucleares e específicos da Torcicolo, entorse, escoliose ligeira, pés planos,
medicina da criança e do adolescente, será perti- joelhos varo e valgo.
nente discriminar as situações que classicamente
têm sido consideradas no âmbito da pediatria Problemas do foro dermatológico:
geral e não no das subespecialidades pediátricas. Dermatite atópica, dermatite das fraldas, der-
Este critério, por sua vez, poderá servir de base ao matite seborreica, acne, urticária, tinha, escabiose,
planeamento formativo das competências dos inter- verrugas, queimaduras ligeiras, picadas e morde-
nos do internato complementar (da especialidade) de duras, impetigo, hemangioma, púrpura de
medicina familiar / clínica geral, tendo sempre em Henoch-Schonlein.
perspectiva a correcta e harmoniosa articulação assis-
tencial. Como se deve depreender, haverá que ter em Problemas do foro neurológico:
conta, sempre, o bom senso na aplicação de tal es- Cefaleia, enxaqueca, convulsões febris simples,
tratégia, necessariamente versátil. De facto, a compar- convulsões típicas do tipo grande mal, convulsões
timentação excessiva de competências é prejudicial do tipo pequeno mal, atraso mental, défice de
para o doente e cidadão que necessitam de cuidados atenção acompanhado de hiperactividade, disle-
de saúde; pelo contrário, haverá que fomentar a co- xia, tiques menores.
municação interprofissional e a multidisciplinaridade.
Problemas do foro comportamental:
Problemas das vias respiratórias: As chamadas “cólicas” do lactente, os chama-
Otite média aguda, otite média com derrame dos “espasmos do soluço”, perturbações do sono,
crónico, défice auditivo de condução relacionado fobia escolar, depressão ligeira.
com efusão, hipertrofia amigdalina, hipertrofia das
adenódes, apneia obstrutiva em períodos breves, Problemas do foro alérgico:
rinite vasomotora, rinite alérgica sazonal, rino- Reacções alimentares adversas e a maioria das
faringites frequentes, pneumonia, bronquiolite. situações de asma não complicada.
34 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

5
Problemas do foro neonatológico
Recém- nascido saudável estacionado com a
mãe na maternidade, recém-nascido saudável após
a alta da maternidade, rastreio de sinais de risco.

Na verdade, os subespecialistas deverão reser-


var a sua disponibilidade para os problemas cada INVESTIGAÇÃO
vez mais complexos relacionados, por exemplo, com
uma cada vez maior sobrevivência de recém- -nasci- E CLÍNICA PEDIÁTRICA
dos de muito baixo peso, com as situações de doença
crónica de maior gravidade que obrigam a estadias João M. Videira Amaral
médias cada vez de maior duração e com a necessi-
dade de realização de técnicas e procedimentos com-
plexos envolvendo apoio multidisciplinar.
O conceito de investigação em Saúde
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às universidades, em função do grau de diferencia-
ção, fazem parte, para além da valência prioritária
do serviço assistencial à comunidade, as do ensi-
no e da investigação .
Como corolário, caberá dizer que o desen-
volvimento devidamente estruturado da vertente
de investigação numa instituição de saúde, traz
seus dividendos a curto, médio e longo prazo pe-
CAPÍTULO 5 Investigação e clínica pediátrica 35

lo impacte muito positivo daquela na assistência e tratégias de acompanhamento dos mesmos pela
na qualidade de serviços a prestar à comunidade. instituição de que dependem.
De facto, na sua essência, investigar, consiste em Diversos argumentos justificam o interesse da
verificar prospectivamente uma hipótese, em “resolver investigação aplicada nas práticas assistenciais; eis
problemas“ procurando soluções face a questões alguns: a) a investigação clínica é um processo de
que são previamente formuladas, na previsão de resolução de problemas com uma aplicação em
mudança de atitudes aplicáveis no futuro a pes- vista (por exemplo, estudo da melhor relação cus-
soas sãs ou doentes. to-efectividade de determinada terapêutica ou de
Reportando-nos a 1979, será pertinente recor- determinado exame complementar de diagnósti-
dar James Wyngaarden que chamou a atenção co); b) a investigação clínica contribui para a for-
para a importância da transposição das descober- mação do espírito crítico com implicações na práti-
tas biomédicas para a “cabeceira do doente”, o que ca clínica; c) a investigação clínica promove o
originou o conceito de investigação de translação treino na recolha e valorização das informações
(translational research), consubstanciando a apli- conducentes à decisão clínica; d) a investigação
cação dos avanços fundamentais na prática médi- clínica promove o desenvolvimento do espírito de
ca. sistematização do conhecimento.
Neste contexto, será de admitir o interesse em Torna-se evidente que as questões cruciais que
as referidas instituições de saúde criarem, man- decorrem destas noções são justamente a definição
terem e desenvolverem elos fortes de ligação com dos problemas a investigar (a resolver) implican-
outras instituições de saúde e com centros ou in- do cooperação entre clínicos e gestores institu-
stitutos de investigação de créditos formados. cionais, motivando estes últimos para tal questão.
Ou seja, intensificando tal ligação, criam-se
condições de parceria e sinergias tendo em conta, O panorama actual da investigação
por um lado, o potencial da “ base de dados clíni- no país
cos ou de material humano de doentes ” das insti-
tuições de saúde e, por outro, as potencialidades Dados do Observatoire des Sciences et des Techno-
dos institutos universitários ou laboratórios de in- logies em Paris, comparando as contribuições cien-
vestigação experimental relacionados com as ciên- tíficas relativas a diferentes países europeus con-
cias básicas (biostatística, epidemiologia, etc.). cluem que a União Europeia contribui com cerca
de 30% da produção científica no mundo. Para es-
O impacte da investigação na clínica ta parcela, Portugal contribuia até 1990 com 0,1%
em comparação com a Grécia, (0,4%), com a Es-
Analisado o âmbito da investigação clínica, pode panha (1,9%) e com a Bélgica (0,8%).
deduzir-se que a dinâmica de crescimento de tal Em 1990, Portugal publicava o equivalente apenas
vertente, como resultado de parcerias, facilita o in- a um terço da produção científica irlandesa e 1/10
tercâmbio científico com instituições congéneres da espanhola. A distância para a Espanha reduziu-
nacionais e internacionais aplicando diversas es- -se para 1/5, mas deve-se ter em conta que a po-
tratégias; estas passam necessariamente pela cri- pulação é quatro vezes maior. Entre 1990 e 2006, as
ação de “redes de investigação” viabilizando, Ciências (Química, Física, Medicina, Biologia,
nomeadamente a concretização de estudos coope- Engenharias, entre outras) produziram 55 573 pu-
rativos e prospectivos, divulgação e partilha de re- blicações.
sultados em eventos científicos, e em publicações De acordo com dados do INE (2008) registaram-se
nacionais e internacionais. progressos assinaláveis no nosso país entre 2000 e
Por outro lado, tal dinâmica facilita o estímulo 2007. Sem ser especificada a fracção que cabe às
duma nova geração de médicos e de investi- ciência básicas biomédicas versus medicina clínica
gadores com interesse pela saúde infantil, e a des- em geral, e pediatria em especial, no referido
coberta de vocações para as diversas vertentes da período (8 anos) a produção científica cresceu
investigação, no pressuposto de as medidas a levar 91,5%.
a cabo serem acompanhadas de incentivos e de es- Os artigos e outros escritos dos portugueses, referi-
36 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

dos pelo Science Citation Index (SCI), colocaram, complementar de pediatria contemple (modesta-
pela primeira vez, o país à frente da Irlanda. mente) uma valência de formação em investi-
Portugal (seria injusto não o afirmar) congrega gação, o resultado final será muito precário, na me-
alguns centros de investigação de excelência re- dida em que a valência não é obrigatória. Para re-
conhecidos internacionalmente, embora com níti- verter a situação, torna- se fundamental estimular
do predomínio na área das ciências básicas. os jovens internos, – eles são o nosso futuro – crian-
Alguns atribuem este panorama à ausência de do uma valência obrigatória (de três meses no mí-
uma cultura para investigar, quer nas universi- nimo) durante o internato, e fomentando a parti-
dades, quer nos hospitais. Para tal contribuirá, se- cipação daqueles em actividades concretas em cen-
guramente, a falta de incentivos em termos de pro- tros idóneos de investigação.
gressão de carreira hospitalar – profissional, quer Infelizmente, no quadro das administrações de
para os médicos diferenciados que ascendem na instituições específicas, hospitalares ou não, não
carreira, quer para os jovens médicos na pós-gra- está previsto que os responsáveis pelos serviços in-
duação para obtenção do título de pediatra. tegrem nos respectivos planos de actividades um
Bastará, para demonstrar tal afirmação, citar a programa anual de investigação, nem está previs-
desvalorização das actividades de investigação to, pela legislação actual, qualquer financiamento
nos concursos da carreira hospitalar (para consul- para esta valência.
tor ou para chefe de serviço) em que a publicação Cabe salientar, no entanto, os sinais positivos
de estudos é muito fracamente cotada. de mudança dos últimos anos quanto a incentivos
E qual o futuro, se as carreiras estão em vias de para a investigação clínica, quer por iniciativa da
extinção? Sociedade Portuguesa de Pediatria e suas Secções,
Outros factores têm sido apontados: falta de quer por iniciativa das Universidades e de diver-
tempo devido à pressão das funções assisten- sos Ministérios da Saúde, Educação, Ciência, etc.
ciais,falta de meios logísticos de apoio, falta de (bolsas de estudo para centros internacionais,
plano cooperativo para a resolução dos problemas prémios, etc.).
assistenciais, indefinição de objectivos das Admi- No âmbito da clínica pediátrica hospitalar e da
nistrações hospitalares na vertente de investi- medicina familiar, aos orientadores de formação e
gação, havendo apenas preocupação com os directores cabe grande responsabilidade na génese
objectivos quanto à prestação de cuidados mensu- da mudança e no estímulo dos internos no sentido
ráveis, défice de formação desde o curso univer- de aproveitamento de oportunidades para candi-
sitário, etc.. daturas a bolsas para projectos de investigação, de-
Surge, assim, certa desmotivação por se admi- signadamente sob os auspícios de fundações com es-
tir –de acordo com o espírito da legislação – que ta vocação (Gulbenkian, Champalimaud, FCT, etc.).
“investigar não é importante para o desempenho
profissional”. Modelos estratégicos para incentivar
O contexto actual é, pois, o de perda de opor- a investigação
tunidades por quem é subalterno, tem interesse,
mas não tem incentivos nem condições para ser es- Tendo em conta as ideias atrás explanadas, para in-
timulado. Esta questão tem a ver, aliás, com a im- centivar a investigação no âmbito das instituições de
portância do fomento de tal “cultura para a inves- saúde, torna-se fundamental estabelecer uma filo-
tigação” por parte de quem é orientador de for- sofia assente em determinadas linhas estruturais:
mação de médicos em fase de pós-graduação. 1) a investigação aplicada é cada vez mais bio-
Goldstein e Brown(investigadores galardoados médica envolvendo, para além dos médicos,
com prémio Nobel em 1997) traduziram este outros profissionais/investigadores como biólogos,
panorama de dificuldade ou de desmotivação para farmacêuticos,bioquímicos, biofísicos, geneticistas,
a investigação apelidando-o de “síndroma”- especialistas em epidemiologia e biostatística,
PAIDS ou “Paralyzed Academic Investigator´s Disease matemáticos, etc.;
Syndrome”. 2) a investigação biomédica deve ser centrada
Embora o programa de formação do internato na interdisciplinaridade entre as chamadas disci-
CAPÍTULO 5 Investigação e clínica pediátrica 37

plinas básicas e disciplinas clínicas, designações 8) necessidade de sistema de avaliação externa


que hoje se podem considerar ultrapassadas pois das actividades por peritos de idoneidade com-
a” interpenetração mútua” é cada vez maior; provada, nacionais e internacionais;
3) a investigação clínica somente se torna 9) continuação da abertura de concursos orien-
rendível em termos de aquisição de “dimensão ou tados para a área clínica da investigação em Saúde.
massa crítica” se forem criados grupos inter-insti-
tuições e um sistema funcional de “rede” interli- Seria injusto não reconhecer o papel que a
gada; Sociedade Portuguesa de Pediatria e a Ordem dos
4) para além do aspecto quantitativo que Médicos têm tido na formação em investigação e na
decorre da associação de pequenos grupos inter- criação de bolsas e prémios para os médicos e médi-
institucionais, é necessário que entre os mesmos cos pediatras interessados em progredir na investi-
existam afinidades,lealdade, capacidade de inte- gação. A maior vulnerabilidade recai, de facto nas
gração e projectos bem delineados; próprias instituições de saúde, verificando-se défice
5) necessidade de apoio oficial e de mobilização de sensibilização para tal problemática: são defi-
de fundos monetários nacionais e no estrangeiro nidos, em geral, objectivos em termos de resultados
para garantir o funcionamento do “sistema”; assistencias sem estabelecer objectivos no âmbito da
6) ao nível de cada instituição ou grupo de investigação. A mudança é, pois, necessária.
instituições haverá que criar “centros” funcionais No âmbito do Centro Hospitalar de Lisboa
a regulamentar (com médicos/investigadores), Central (CHLC) que integra a instituição onde
com um coordenador responsável, que garantam sempre trabalhou o autor (HDE), cabe realçar um
a logística de promoção,dinamização e coorde- facto muito positivo: a criação de um Centro de
nação das actividades de investigação e o com- Investigação, coordenado pelo Prof. Luís Pereira da
promisso de “ligação à rede” de outros centros na- Silva, pediatra e investigador no referido HDE, que
cionais e internacionais. responde aos aspectos estratégicos atrás referidos e
Para a concretização dos princípios atrás referi- que tem tido adesão das restantes instituições do
dos, ao nível das instituições de saúde é necessário CHLC, com resultados já demonstrados.
o compromisso da tutela e de determinados orga-
nismos para a adopção de determinadas medidas: BIBLIOGRAFIA
1) informatização dos serviços clínicos com Abzug MJ, Esterl EA. Establishment of a clinical trials office at
criação de “base de dados”; a children’s hospital. Pediatrics 2001; 108; 1129- 1134
2) possibilidade de consultadoria estatística e Barros-Veloso AJ. A investigação como dimensão constitutiva
de “software”; da medicina contemporânea (Palestra). Tempo Medicina
3) criação de prémios e de bolsas para jovens 2006; XXIII (1154/13 Fevereiro): 18-19
investigadores; Butler D. Translational research; crossing the valley of
4) maior valorização das actividades de inves- death.Nature 2008; 453:840-842
tigação na avaliação curricular dos concursos ou Coutinho A. O interesse da investigação clínica na actividade dos
contratações; hospitais. In Forum de Lisboa de Administração de Saúde.
5) maior envolvimento das sociedades científi- Lisboa, Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1998
cas, nomeadamente na organização de redes, na Gil AC. Como elaborar projectos de pesquisa. São Paulo,
mobilização de fundos e na definição de priori- Editora Atlas AS, 2002
dades; Goldstein JL, Brown MS. The clinical investigator: bewitched,
6) maior envolvimento das universidades, das bothered and bewildered-but still beloved. J Clin Invest
administrações hospitalares, e das direcções dos 1997;99:2803-2812
serviços hospitalares na formação em investigação INE – Produção Científica em Portugal. www.ine.pt. (acesso em
e no apoio à investigação clínica estabelecendo Março de 2012)
parcerias com as empresas da indústria farmacêu- Kuehn BM. PhD programs adopt bench -to- bedside model to
tica segundo princípios éticos. speed translational research. JAMA 2006;295:1506-1507
7) necessidade de maior parcela do Produto Lantos JD, Ward NA. A new Pediatrics for a new century.
Interno Bruto (PIB) devotado à investigação; Pediatrics 2013; 131: S121-S126
38 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

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Procianoy RS. O factor de impacto no contexto actual. J Pediatr
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link in the medical research chain. J Clin Invest 1999; 103:
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paediatric research. Current Paediatrics 2002;12:232-237
Videira-Amaral JM. Incentivar a investigação – um modelo es-
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Wyngaarden JB. The clinical investigator as an endangered
species. NEJM 1979; 301:1254-1259
PARTE II
Clínica Pediátrica Hospitalar
e Extra-Hospitalar
40 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

INTRODUÇÃO À PARTE II

Nesta parte são focados aspectos relacionados com


a clínica pediátrica hospitalar tendo como base a
experiência e certas valências dum hospital pediá-
trico central especializado com ensino universitário:
6
o Hospital de Dona Estefânia em Lisboa. De facto, CLÍNICA PEDIÁTRICA
este modelo de prestação de cuidados à comu-
nidade tipifica o âmbito da Pediatria já referido em HOSPITALAR
capítulo anterior, permitindo, por outro lado, com-
preender o enquadramento dos tópicos a abordar Mário Coelho
neste livro. Chama-se, entretanto, a atenção para as
três missões primordiais de um hospital central: as-
sistência, ensino e investigação.
Uma vez que a filosofia actual de prestação de As particularidades da idade
cuidados hospitalares prevê tempo de estadia re- pediátrica
duzido ao mínimo indispensável, tal implica uma
cooperação multiprofissional estreita com os hos- As crianças não são adultos pequenos a quem se
pitais de nível menos diferenciado de cuidados, administram pequenas doses de medicamentos;
com os centros de saúde (cuidados primários) e são, pelo contrário, seres em constante evolução,
com os médicos assistentes e outros profissionais com características peculiares. Com efeito:
na comunidade no sentido de garantir a con- a) a sua fisiologia difere da dos adultos e altera-
tinuidade dos cuidados com qualidade, desig- -se à medida que crescem e se desenvolvem, o que
nadamente nas situações de doença crónica. implica maior vulnerabilidade na doença e face ao
João M Videira Amaral estresse;
b) as mesmas podem ser afectadas por um es-
pectro de doenças diferente do dos adultos, com
especial realce para as doenças congénitas e here-
ditárias;
c) a sua capacidade de compreensão relativa-
mente ao corpo, à doença e à morte é diversa da
dos adultos, evoluindo ao longo do tempo;
d) utilizam os serviços de saúde geralmente
acompanhados pela mãe ou outro adulto respon-
sável que tem as suas próprias necessidades e di-
reitos, como o de ser informado e tomar parte em
decisões; destas circunstâncias decorre um es-
tatuto legal diverso do do adulto;
e) são fortemente influenciadas pelo ambiente
ou sistema envolvente em que crescem e se de-
senvolvem (família, escola, grupos de amigos e a
comunidade em geral);
f) sendo afectadas pelas doenças que também
surgem na idade adulta(por exemplo mucovisci-
dose, drepanocitose), adultos e crianças não cons-
tituem populações comparáveis, pois em idade
pediátrica existe risco mais elevado de mortali-
dade.
Em sintonia com o conceito global de Pediatria,
CAPÍTULO 6 Clínica pediátrica hospitalar 41

a Convenção dos Direitos da Criança ratificada por Assim, ao tipo convencional de cuidados hu-
todos os órgãos de soberania portugueses (1990), manizados de qualidade a cargo de profissionais
considera “Criança” “todo o ser humano até aos especialmente preparados, o ambiente pediátrico
18 anos”. A adolescência está, pois, incluída neste associa: equipamentos e metodologias adaptados
conceito sendo reconhecida como uma fase da vi- à condição e estádios de desenvolvimento da cri-
da com necessidades e características específicas. ança e maturidade do adolescente (por exemplo,
Considerou-se arbitrariamente o fim da ado- móveis, equipamento lúdico, música, participação
lescência aquele limite de idade por razões de or- de artistas/palhaços, espaços apropriados com en-
dem organizativa assistencial. volvência segura e integralmente reservados aos
Dado que cada vez mais adolescentes atingem jovens utilizadores, como ludotecas, etc.).
a idade adulta com patologias até há pouco quase Estas especificidades são cruciais para a garan-
desconhecidas da prática da medicina do adulto, tia da excelência da prática pediátrica hospitalar
nalgumas situações específicas, a idade de 21 anos centrada na criança e na família. Estando mais in-
é usada como limite para o atendimento nas ins- trinsecamente ligadas à própria natureza dos hos-
tituições pediátricas. pitais pediátricos onde a sua exequibilidade é mais
Com efeito, o processo de transição de um ado- fácil, elas são também desejáveis e possíveis nos
lescente com doença crónica grave para os hospi- serviços de pediatria de hospitais gerais (ideal-
tais ou serviços de adultos é difícil, por vezes mente separados dos serviços de adultos).
dramático, pela perda de acesso aos cuidados tra- O ambiente pediátrico pressupõe garantia
dicionalmente mais personalizados nos serviços prévia de qualidade assistencial; tratando-se de
ou hospitais pediátricos. De facto, tais doentes es- instituições com cuidados de alta diferenciação,
tão muitas vezes ainda dependentes da família e quer se trate de hospital pediátrico, quer de serviço
do perfil assistencial anterior. de pediatria integrado em hospital geral, torna-se
fundamental que sejam propiciadas todas as valên-
O ambiente pediátrico necessário cias compatíveis com tal nível de cuidados.

Dois modelos de prestação de cuidados pediátri- O Hospital de Dona Estefânia –


cos hospitalares do nível mais diferenciado se con- Aspectos históricos, organizativos
frontam: 1) o modelo de hospital geral (prestando e demográficos
cuidados a todos os grupos etários) integrando
serviço de pediatria; 2) o modelo de hospital O Hospital de Dona Estefânia (HDE), integrado no
pediátrico autónomo embora integrado numa Centro Hospitalar de Lisboa Central(CHLC), foi
área com outras instituições ligadas à prestação de sede da primeira escola pediátrica no nosso país e
cuidados ou campus sanitário. o primeiro hospital construído de raiz em Portugal
As experiências vividas na infância e juventude pela mão do arquitecto britânico Humbert (como
têm um impacte crucial na vida de cada indivíduo; foi referido, inaugurado em 1877 com a placa iden-
por isso, os contactos com os serviços de saúde em tificativa da Pedra de Armas Reais de Dom Pedro
tal período da vida influenciam significativamente e Dona Estefânia – HRE). Em 1969, com a inte-
as atitudes futuras do mesmo em relação a esses gração da Maternidade Magalhães Coutinho, con-
serviços. cretizou-se a sua transformação em hospital
Não dependendo a saúde apenas da prestação materno-infantil médico-cirúrgico, vocação que
de cuidados, mas também do ambiente social, tem assumido na sua plenitude. Na década de 80
biofísico e ecológico, e estando estabelecido que nele teve início o intensivismo neonatal e pediátri-
os estímulos lúdicos, afectivos e emocionais são co, e em 1992 recebeu o antigo Serviço de Saúde
factores determinantes no processo terapêutico, Mental Infantil de Lisboa, integrando hoje o novo
assume a maior importância a criação do chama- Departamento de Pedopsiquiatria.
do ambiente pediátrico. Aliás, a criação de tal am- Na sequência do forte impulso reformista ini-
biente está implícita na Declaração dos Direitos da ciado nos anos 60 acompanhado de obras de re-
Criança Hospitalizada. modelação arquitectónica e de ampliação, surgiu
42 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

um primeiro ciclo de diferenciação com a criação desenvolvidas com o apoio em mecenato, tais co-
das unidades de hematologia, de endrocrinologia, mo: Núcleo contra a Dor, Núcleo de Apoio à
de gastrenterologia, de pneumologia, e de nefrolo- Criança e Família, Unidade de Apoio Domiciliário,
gia. No âmbito da cirurgia pediátrica outras áreas humanização dos espaços através de pinturas de
subespecializadas também foram surgindo, tais parede em todo o hospital (programa interna-
como a cirurgia neonatal, nefro-urologia, ortope- cional “Paint a Smile”), Apoio de alojamento a
dia, patologia clínica, fisiatria, imagiologia, etc.. famílias de crianças deslocadas com doença cróni-
É já no contexto de um segundo ciclo de inovação ca e tratamento prolongado (Casa Ronald Mac
ao longo da última década que se inscreve a criação Donald – a primeira em Portugal), a integração e
e consolidação de outras áreas devotadas à criança e socialização de crianças doentes particularmente
adolescente, salientando-se as seguintes: otorrino- carenciadas (Parceria com a Fundação Gil), a va-
laringologia, oftalmologia; estomatologia; neuro- lorização dos tempos lúdicos na vida da criança in-
cirurgia; cirurgia oncológica; cirurgia endoscópica; ternada (Programa “Nariz vermelho – Palhaços no
cirurgia em ambulatório; implantes cocleares; Hospital”, Programas “Música no Hospital”,
reumatologia, ortotraumatologia; o isolamento de al- Programa lúdico mensal “A hora do conto” do
ta infecciosidade (unidade de referência pediátrica Rotary Club”, Serviço de Educadoras de Infância,
no sul do país); imunoalergologia; função respi- Ludoteca Lyon’s), a informação geral à comu-
ratória desde o período de recém-nascido; ventilação nidade (sítio na Internet), o apoio humano e espi-
crónica domiciliária; rastreio auditivo universal ao ritual (Serviço de Voluntariado, Serviço Religioso),
RN; doenças metabólicas; medicina do viajante, etc.. a atenção às expectativas e necessidades especiais
Tem um corpo de cerca de 1500 funcionários das famílias (Gabinete do Utente, Serviço Social) e
dos quais, aproximadamente, 400 são efermeiros, à suas necessidades de comunicação (Gabinete de
250 são médicos distribuídos por 20 especialidades Comunicação), campos de férias para crianças dia-
médicas e cirúrgicas que, por sua vez, se diferen- béticas e asmáticas, etc..
ciam em subespecialidades e competências. A pe- Quanto à valência da formação salienta-se: o
diatria médica constitui o maior contingente com Ensino Universitário da Pediatria (5.° e 6.° anos)
cerca de 75 especialistas dos quais 25% estão dedi- em ligação à Faculdade de Ciências Médicas
cados ao intensivismo neonatal e pediátrico, com (FCM) da Universidade Nova de Lisboa (UNL) em
equipas independentes. parceria com o Hospital São Francisco Xavier en-
Trata-se de um hospital de média dimensão com globando o Centro Universitário com biblioteca
uma lotação de 235 camas das quais 200 são exclu- própria e o Centro de Simulação de Técnicas em
sivamente pediátricas, e as restantes para a área da Pediatria-CSTP; o Centro de Formação pós-gra-
mulher (medicina materno-fetal e ginecológica). duada multiprofissional (designadamente cursos
Os recursos assistenciais do hospital integram anuais para internos sob a égide da Direcção do
áreas departamentais, unidades funcionais e nú- Internato Médico); a Biblioteca do HDE engloban-
cleos técnicos dirigidos respectivamente por di- do Biblioteca – on-line; o Núcleo Iconográfico
rectores, coordenadores responsáveis (corpo médi- (acervo de milhares imagens fotográficas de pa-
co). Prestando o HDE o nível mais elevado de tologia assistida no HDE as quais são classificadas
cuidados à comunidade, a vertente de assistência e organizadas permitindo a sua utilização no ensi-
está implicitamente ligada às vertentes de ensino no pré e pós-graduado); o Gabinete de Teleme-
pré e pós-graduado, e de investigação. dicina; o Centro de Treino em Cirurgia Endos-
Trata-se dum modelo transversal de cuidados em cópica; Programa de intercâmbio de estudantes de
obediência a uma filosofia de abordagem multidis- medicina estrangeiros, etc..
ciplinar e multiprofissional coordenada, centrada No que se refere à investigação salienta-se o
nas necessidades e expectativas do doente/família e Centro de Investigação ligado ao CHLC e UNL; a
na garantia de continuidade dos cuidados prestados publicação (acompanhada de evento científico an-
a cada criança e adolescente. ual) do chamado Anuário do HDE contemplando
No âmbito da humanização cabe salientar um todos os estudos realizados no HDE com atribuição
conjunto de actividades específicas muitas delas de prémios segundo regulamento; área de investi-
CAPÍTULO 6 Clínica pediátrica hospitalar 43

O Quadro 1 resume alguns aspectos demográ-


ficos (valores médios referentes a 3 anos: 2009 –
2011)

A clínica pediátrica hospitalar no futuro

Se, de acordo com a Organização das Nações


Unidas (ONU), os sistemas de saúde e as institui-
ções que prestam cuidados à criança e adolescente
forem centrados no “melhor interesse” destes cida-
dãos, os países e os profissionais devem preparar-
-se para os desafios que se esperam no futuro em
diversas vertentes:
FIG. 1
Hospital com Acreditação Internacional / HQS. Demográfica
Haverá que encarar as consequências das alterações
gação opcional aberta a estudantes de medicina da demográficas tendo em conta a redução continua-
FCM/UNL e outras universidades, etc.. da da natalidade e fecundidade,a idade mais tardia
A área de governação clínica (clinical gover- da mulher no primeiro parto e as novas formas de
nance) segue uma orientação baseada em determi- organização familiar; aumentarão as tensões para a
nados vectores tais como: a melhor evidência cien- adopção de políticas migratórias mais liberais com
tífica disponível para o desenvolvimento de políti- risco de alargamento de bolsas de exclusão e de
cas de intervenção e recomendações de boas práti- degradação das respectivas condições de saúde.
cas sob forma de Normas de Orientação Clínica; a
realização de auditorias clínicas sistemáticas por Técnico-profissional
pares; e a avaliação e redução do risco profissional A prática clínica respeitará cada vez mais as re-
e dos doentes. comendações emanadas de comissões de peritos e
O Arquivo Clínico é centralizado, dispondo de de sociedades científicas; crescerá a exigência social
uma zona específica de alta segurança para proces- e institucional sobre a qualidade e diferenciação dos
sos que a requeiram; com a informatização de to- profissionais. A certificação regular das competên-
dos os serviços do HDE está em desenvolvimento cias profissionais e a presença assídua de advoga-
o Processo Clínico Informatizado. dos na relação médico-doente e instituição-doente
O HDE desenvolve um Programa de Melhoria serão provavelmente realidades muito próximas.
Contínua de Qualidade organizacional cuja avalia-
ção externa lhe conferiu a acreditação interna- QUADRO 1 – Aspectos demográficos
cional (Fig. 1) de qualidade global (Health Quality HDE 2009/2011
Service/Instituto da Qualidade em Saúde).
A instituição privilegia formas actuantes de N.° de hospitalizações* 5.750
convivência com a comunidade, designadamente Demora média 6,8 dias
a unidade coordenadora funcional, os centros de Taxa de ocupação 71%
saúde, serviços de segurança social, autarquias lo- Cirurgias 4.900
(32,6% de ambulatório)
cais, instituições académicas, escolas de formação
Hospitais de dia (sessões) 5.100
profissional, instituições particulares de soli-
Episódios de Urgência 88.000
dariedade social, associações de doentes, entida-
Partos 2.050
des nacionais e internacionais de interesse públi-
Consultas externas 125.000
co, mecenas e instituições beneméritas privadas. A
Postos de internamento 170
qualidade das parcerias estabelecidas com este úl-
timo sector conferiu ao Hospital o prémio *Não incluindo Pedopsiquiatria

“Hospital do Futuro – 2005”.


44 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Formativa a pressão de aliciamento das entidades privadas


Será em breve realidade o ensino com recurso aos sobre os técnicos formados nos serviços públicos.
simuladores médico-cirúrgicos e à endonavegação
virtual; a especialização será apenas uma parte do Filosofia e estrutura dos hospitais
processo de formação e a educação médica con- O hospital irá integrar-se em redes e ele próprio
tínua ganhará decisiva importância nos processos funcionará com redes baseadas nas suas especiali-
de manutenção e actualização das competências; dades; a maior proporção de doentes crónicos
os especialistas generalistas, como por exemplo os levará à necessidade de substituir encontros técni-
pediatras, incluirão cada vez mais competências cos com especialistas durante episódios de doença
tecnológicas na sua formação e desempenho. por programas de relacionamento consistentes e
duradouros; ampliação das áreas de hospital de
Inovação tecnológica dia, ambulatório e cirurgia do ambulatório; a par
Num contexto de contínua explosão tecnológica da redução das áreas de internamento os novos
será dada especial atenção às áreas de grande po- hospitais não serão como os grandes edifícios dos
tencial e rápido desenvolvimento como a investi- anos 60-70 e irão adoptar dimensões geríveis e
gação genómica, a neuropsicobiologia e a biologia rendíveis com arquitecturas seguras, em especial
molecular; transplantações e terapêutica com para doentes com limitações de mobilidade; as
linhas celulares estaminais; surgirão novos veícu- áreas de medicina materno-fetal e obstétricas serão
los terapêuticos a nível celular; crescerão expo- programadas para uma carga anual ideal entre
nencialmente os meios de diagnóstico e inter- 1500 e 3000 partos; cada vez mais os equilíbrios en-
venção pela imagem; estarão disponíveis novas tre volume do edifíco, a facilidade de acesso, a re-
técnicas anestésicas e equipamentos de ventilação lação com a cidade em que se implanta o hospital
inteligentes; continuarão os problemas de re- e o conhecimento das necessidades das crianças
sistência aos antimicrobianos e de infecção noso- condicionarão a concepção arquitectónica; a im-
comial; a prevenção das doenças pediátricas com portância de um ambiente adequado à criança;
repercussão no adulto e a pediatria preditiva con- sendo a habitual atmosfera familiar (“homelike”) e
stituirão áreas de forte investigação e desenvolvi- a privacidade factores terapêuticos importantes, os
mento; a robótica tenderá a revolucionar as arquitectos e engenheiros hospitalares tomá-los-ão
metodologias de treino técnico e autoformação; a em conta nos novos projectos de construção e re-
globalização da informação científica, a comuni- abilitação dos hospitais pediátricos; crescerá o con-
cação em telemedicina e teleconsulta irão trazer ceito de “hospital verde” tirando o máximo par-
novos desafios ao nível da segurança de dados in- tido das fontes energéticas naturais; será con-
formáticos dos doentes e da deontologia médica; e cretizada uma significativa redução do uso de pa-
o nível de aceitação dos riscos iatrogénicos e o pel e uma menor produção de resíduos com im-
avanço nos suportes de vida levarão a novos dile- portantes repercussões sobre as formas de registo
mas éticos e de responsabilidade médica e institu- clínico, o acesso a dados do doente e a informação
cional. médica em geral.

Sistema de saúde Prestação de cuidados e governação clínica


Haverá maior desenvolvimento das redes na- O internamento será quase residual e apenas
cionais e internacionais de referenciação de para os casos muito complexos; será impulsion-
doentes; desenvolver-se-á o transporte pediátrico ada a figura do médico ou enfermeiro gestor do
e a rede de trauma; generalizar-se-á o uso de sis- doente crónico; a informatização dos dados clíni-
temas e índices de monitorização clínica para com- cos e a prescrição por computador serão regra; a
paração de centros diferenciados; crescerá a diver- efectivação de programas específicos de tran-
sidade e diferenciação dos profissionais que par- sição dos adolescentes para unidades de adultos
ticipam nos cuidados à criança; o financiamento será inevitável; o controlo da qualidade passará
hospitalar estará em progressiva correspondência da apreciação entre pares para a análise de re-
com a produção de actos facturáveis; e aumentará sultados.
CAPÍTULO 6 Clínica pediátrica hospitalar 45

Exigência institucional e expectativas Report of the FOPE II Pediatric Generalists of the Future
da comunidade Workgroup. (Suppl). Pediatrics 2000;106: 1199-1223
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cuidados prestados às famílias que acedem ao hos- 2001; 206-222
pital; com o desenvolvimento dos sistemas de qua- Ministério da Saúde. Saúde em Portugal. Uma estratégia para
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meta de excelência clínica será a prioridade entre 2003
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Leslie L, Rappo P, Abelson H, Jenkins RR, Sewall SR. Final
46 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

7
firmar ou excluir; 5) diagnóstico definitivo; 6) ac-
tuação, incluindo terapêutica e os cuidados gerais
a prestar; 7) prognóstico.
Embora, segundo o conceito expresso, todas as
fases devam ser seguidas, sem qualquer omissão
ou «hiato», poderá haver situações clínicas em que,
ASPECTOS METODOLÓGICOS dado o peso da anamnese e do exame objectivo é
dispensada a realização de exames complemen-
DA ABORDAGEM DE CASOS tares, para se atingir o diagnóstico definitivo; e
outras, pelo contrário, em que o diagnóstico de-
CLÍNICOS finitivo somente poderá ser estabelecido post-mor-
tem ou com exames inacessíveis ao clínico em de-
João M. Videira Amaral terminado contexto.
O objectivo deste capítulo é analisar e discutir
sucintamente algumas tendências manifestadas
pelos estudantes de medicina e médicos em for-
«The proper exercise of the five senses is often far more mação pós-graduada (internos) durante os está-
valuable in diagnosis than a handful of laboratory re- gios de prática clínica, as quais, contrariando os
ports and radiographs» princípios atrás expostos, poderão ser conside-
L Norrlin,1960 radas erros metodológicos na abordagem dos ca-
sos clínicos com eventuais repercussões negativas
Importância do problema na qualidade assistencial

Numa perspectiva prática, como introdução à Exemplos


abordagem dos casos clínicos, será pertinente vei-
cular algumas ideias-chave relacionadas com a I) Em relação à metodologia da abordagem dos ca-
Semiologia, classicamente definida como o estudo sos clínicos na área de internamento (ou ambu-
dos métodos de colheita dos sintomas e sinais de latório) tem-se comprovado que nem sempre é
doença, de lesão de órgão ou de perturbação de aplicado o esquema sequencial «em crescendo»
função. atrás referido. Com efeito, no âmbito da apresen-
Aquela integra duas partes: 1) a Semiotécnica tação dos casos, verifica-se muitas vezes a tendên-
ou técnica da pesquisa dos sintomas e sinais (con- cia para não explicitar, de modo fundamentado, as
siderada a «arte» de abordar o doente ou pessoa); hipóteses de diagnóstico e ou lista de problemas
e 2) a Clínica Propedêutica, (a ciência da intro- nos registos clínicos, sendo frequente, ao ser des-
dução à observação clínica, ao raciocínio crítico e crito o caso (oralmente ou por escrito) a “pas-
à síntese) através da qual se integram os elemen- sagem” da anamnese e do exame objectivo para a
tos obtidos pela Semiotécnica para se chegar ao solicitação dum conjunto de exames comple-
diagnóstico e deduzir o prognóstico. mentares, por vezes com uma lista excessiva, sem
O processo de integração dos dados colhidos prioridades, e desajustada ao caso real.
deve fazer-se numa sequência lógica, por fases, em Quantas vezes, somente após a verificação de
crescendo; 1) anamnese; 2) exame objectivo; 3) sín- dados muito notórios colhidos pelo exame objec-
tese dos dados colhidos pela anamnese e pelo ex- tivo (por exemplo, icterícia, dispneia ou palidez
ame objectivo, com formulação justificada de acentuadas) se vai aprofundar a anamnese?
hipóteses de diagnóstico, ponderando sempre de- Quantas vezes se solicita uma ecografia abdomi-
vidamente os dados que as favorecem, assim co- nal ou outro exame complementar sem prévia e
mo os dados que as contrariam; 4) solicitação de minuciosa palpação do abdómen e sem justificar o
exames complementares indispensáveis segundo pedido? Quantas vezes se procede a pedidos de
uma escala de prioridades e sempre em concor- exames sem definir uma estratégia de prioridades,
dância com as hipóteses formuladas, para as con- envolvendo riscos vários e “agressividade” (por
CAPÍTULO 7 Aspectos metodológicos da abordagem de casos clínicos 47

exemplo exames radiológicos excessivos, ou geral, o que constitui uma perversão do respecti-
ausência de programação visando reduzir ao míni- vo processo educativo.
mo o número de colheitas de sangue e outros pro- A este propósito, Charney afirmou que, se não
dutos biológicos) com possíveis repercussões no proporcionarmos aos internos em formação as
tempo médio de internamento, nos custos, e no oportunidades para a concretização de determina-
número de consultas? dos objectivos (os quais podem ser sintetizados no
lI) Outro exemplo diz respeito à criança em es- saber, no saber estar, no saber fazer com justifi-
tado crítico internada em unidade de cuidados in- cação, no saber comunicar e no saber investigar),
tensivos, submetida a terapia complexa e assistida e não promovermos o desenvolvimento de quali-
por aparelhagem sofisticada. Nesta circunstância, dades essenciais de perspicácia, de rigor e de sen-
como se depreende, a criança terá que ser manuse- tido crítico, estaremos a criar-lhes frustrações, po-
ada com extrema cautela, pois a mesma está «sub- dendo os respectivos formadores ser culpados de
mersa» em aparelhos. Face à imensidão de dados negligência educativa.
fornecidos pelos diversos tipos de monitorização A elaboração da história clínica em moldes clás-
biofísica e bioquímica, uma tendência, nestes ca- sicos, quer na versão de relatório escrito, quer na
sos, é minimizar certos passos fundamentais do de exposição oral, constitui uma modalidade ím-
exame objectivo, sem tirar partido de certas regras par de treino clínico, sendo fundamental para o de-
da semiologia clássica aplicável aos casos especiais sempenho profissional futuro, pois permite a abor-
dos doentes em cuidados intensivos. dagem global de cada caso – problema; por outro
III) É também frequente assistir-se ao início do lado, dá resposta a grande número de objectivos
relato formal do caso começando pelo fim (por educativos no âmbito da formação do interno.
exemplo, descrição dos resultados analíticos, ima- As tendências manifestadas por vezes pelos in-
giológicos, ou dos dados fornecidos pelos moni- ternos através dos exemplos relatados, correspon-
tores), antes de se dar a conhecer os eventos clíni- dendo a aparentes desvios da metodologia clássi-
cos das últimas horas assim como os dados ca de abordagem de casos clínicos, são decorrentes
fornecidos pela observação convencional exequí- duma experiência pessoal e institucional, não de-
vel com instrumentos clássicos que, mesmo neste vendo ser consideradas, por isso, representativas,
contexto, continuam a ter o seu papel. A este do panorama nacional.
propósito valerá a pena citar uma autoridade em Poderão ser apontadas várias explicações para
intensivismo, Swyer, afirmando que a monitoriza- as mesmas. Em primeiro lugar, o desenvolvimen-
ção humana em unidades de cuidados especiais e to da tecnologia que, pelo rigoroso manancial de
intensivos é tão importante como as monitori- informação proporcionada em tempo real, leva à
zações biofísica e bioquímica. tentação de o clínico subvalorizar a semiologia
clássica, condicionando menor investimento na
Análise crítica metodologia do «crescendo» atrás referida. Fala-
-se hoje, inclusivamente, em cultura da tecnologia
Tendo como base o conceito actual da Pediatria, pela tecnologia, para utilizar a terminologia de
não como especialidade, mas como Medicina inte- KelIy o qual afirma que a tecnologia tomou conta
gral de uma época da vida que se inicia com a fe- da cultura.
cundação e se conclui com o fim da adolescência, Mesmo que se invoque o enorme potencial dos
Ballabriga chamou a atenção para o risco da perda exames complementares como meio de prevenir a
da unidade da pediatria com a multiplicação das chamada má-prática clínica por omissão de deter-
especialidades pediátricas (áreas específicas cujo minadas atitudes no acto médico, neste campo os
desempenho implica a aplicação de determinadas formadores têm uma grande responsabilidade no
técnicas). Este panorama é susceptível de gerar, se- sentido de educarem os seus estagiários a racioci-
gundo o autor, a chamada síndroma do super es- nar em termos de custo-eficácia e a estabelecer prio-
pecialista, traduzida pela tendência de transferir ridades quanto aos exames complementares a so-
a prática de tecnicismo exagerado para o período licitar, sempre em obediência à anamnese, ao exa-
de formação básica do clínico geral ou pediatra me objectivo e às hipóteses de diagnóstico formu-
48 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Competência clínica e pressupostos

Competência clínica Pressupostos/Condições indispensáveis


Colheita da história clínica Formação básica/ Aquisição de conhecimentos
Exame físico/observação Treino/ Aquisição de aptidões
Diagnóstico Lógica indutiva / Raciocínio hipotético-dedutivo
Actuação/tratamento Aquisição de atitudes
Prognóstico Experiência

ladas, numa atitude permanente de humanização. geral, e eventuais novos exames complementares),
Aliás, esta noção de necessidade de procedimento sempre em função dos dados disponíveis, da lista
metódico e correcto, com uma boa relação custo- de problemas e da actualização do diagnóstico.
eficácia, está implícita numa frase de Oski, tra- Esta estratégia, de acordo com a nossa experi-
duzindo o grande saber, o bom senso, a ironia e o ência, tem diversas vantagens: obedece ao princí-
espírito crítico que caracterizavam este mestre: pio do “crescendo” atrás referido, contribui para a
«Refore ordering a test, decide what you will do if it is prática do raciocínio clínico, cria hábitos de regis-
positive or negative. If both answers are the same, don't to mais rigorosos facilitando o processo de comu-
do the test». nicação e as tarefas do interno, quer nas apresen-
Outras explicações estarão relacionadas com a tações em reuniões de discussão de casos, quer na
deficiente preparação durante o período de ensino visita clínica.
pré-graduado e com a abolição da clássica prova A prática destes gestos no dia-a-dia sob a ori-
clínica (quer na versão de relatório escrito, quer na entação do sénior-tutor, facilitam a aquisição de
versão de desempenho «ao vivo» com exposição competência clínica, em obediência aos princípios
oral perante o júri) da maioria dos concursos da fundamentais da antiquíssima tradição Hipocrá-
carreira hospitalar. Tais provas constituiam, de fac- tica, os quais podem ser sintetizados no Quadro 1.
to, um forte estímulo, quer para os formadores, Lá diz o ditado: «Oiço e esqueço; vejo e lembro-
quer para os estagiários, e permitiam, por outro la- me; faço e compreendo».
do, uma selecção mais rigorosa de competências e Em suma, se no quotidiano da enfermaria ou
de vocações. ambulatório, junto dos internos, se investir na abor-
dagem correcta dos casos clínicos, estar-se-á a con-
Estratégia tribuir para a formação de médicos competentes,
o que se traduzirá num serviço a prestar à comu-
Entre várias estratégias de abordagem e registo de nidade de melhor qualidade e mais humanizado.
dados de casos clínicos, cabe salientar uma modali-
dade baseada na orientação por problemas, co- BIBLIOGRAFIA
nhecida pela sigla SOAP com o seguinte significado. Amiel-Tison C. Clinical Neurology in neonatal units. Croatian
S = subjectivo (registo de sinais, sintomas, ocor- Med J 1998; 39: 136-146
rências, eventos); Ballabriga A. Pediatric education for specialists. In Canosa CA,
O = objectivo (registo de dados objectivos com- Vaughan VC , Lue HC, (eds). Changing Needs in Pediatric
provados através do exame físico ou de exames Education. New York: Raven Press, 1990; 20: 81-95
complementares realizados com justificação); Charney E. La formación de los pediatras para la asistencia pri-
A = avaliação (registo dos dados disponíveis maria. Pediatrics (ed esp.) 1995; 39: 75-77
com interpretação – por ex. esplenomegália Chou P, Miller L, Corro C. Writting high-quality progress notes.
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P = plano (registo do plano de actuação in- 31-36
cluindo neste conceito não só a terapêutica e es- Galdó A, Cruz M. Exploración Clinica en Pediatria. Barcelona:
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CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica 49

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sion by the European Pediatric Board. Brussels, 1996 giologista, tem determinado que este especialista
Crespo M. La formación de especialistas en Pediatria. An Esp esteja cada vez mais envolvido na selecção e ade-
Pediatr 1997; 47: 13-37 quada sequência dos exames a realizar.
As vantagens e limites desses estudos, e tam-
bém o seu custo, devem ser criteriosamente pon-
derados face às situações em avaliação, tendo sem-
pre como pano de fundo o grupo etário em apreço
que impõe redobrada atenção no reconhecido
efeito nocivo da radiação X, no eventual risco da
sedação e da anestesia, na possível alergia aos pro-
dutos de contraste iodados, sem esquecer a possi-
bilidade de trauma físico e psicológico.
Para rendibilizar vantagens e diminuir riscos, o
exame imagiológico deverá estar orientado para o
problema clínico específico da criança em estudo;
e, para essa selecção, a anamenese, o exame físico,
os dados laboratoriais e as considerações diagnós-
ticas assumem um interesse frequentemente deci-
sivo, pelo que a discussão partilhada entre o clíni-
co e o imagiologista constitui factor indispensável
para assegurar melhor qualidade nos cuidados de
saúde em Clínica Pediátrica. De referir que a uti-
lização de equipamentos topo de gama é também
determinante para o rigor do citado exame.
50 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Embora os estudos radiológicos clássicos ain- • A ecografia permite uma avaliação anatómi-
da hoje sejam os de maior utilização em Pediatria ca da medula no lactente até aos três meses
(mais de 70% dos exames), decidiu-se neste capí- de idade, antes de os arcos vertebrais com-
tulo abordar aspectos essenciais das técnicas de pletarem a ossificação. A principal indicação
imagem mais modernas em utilização corrente na para a realização deste exame é a suspeita de
investigação imagiológica: (a ecografia, a tomo- disrafismo oculto.
grafia computadorizada e a ressonância magnéti- • No pescoço, a ecografia é utilizada para es-
ca) relacionados com as suas aplicações preferen- tudo morfológico da tiroideia, das glândulas
ciais em diferentes órgãos e sistemas e com as res- salivares, timo, para diagnóstico de certas
pectivas virtualidades e limitações. massas cervicais, tais como quisto do canal
tiroglosso, anomalias dos arcos branquiais,
Ecografia torcicolo congénito, adenopatias e linfan-
gioma quístico.
A ecografia merece um lugar de destaque num • No tórax, o estudo cardíaco constitui a prin-
serviço de imagiologia pediátrica. Constitui técni- cipal indicação ecográfica, sendo, neste
ca de primeira linha em muitas situações e fre- domínio, da competência da cardiologia. A
quentemente a única a empregar face ao seu valor ecografia constitui também um importante
informativo. método imagiológico coadjuvante da radio-
Tornou-se um método de diagnóstico por ima- grafia do tórax na avaliação de lesões do
gem particularmente atractivo por não utilizar ra- parênquima pulmonar (consolidações, atele-
diação ionizante, não ter efeitos biológicos com- ctasias, abcessos, áreas de necrose e lique-
provados, ter um preço acessível, captar imagens facção), da pleura (derrames, tumores), do
em tempo real, multiplanares, não necessitar de mediastino (massas, posicionamento de
grande colaboração por parte do examinado e pro- cateteres), parede torácica e diafragma (hér-
porcionar uma excelente resolução de imagem na nias, eventração, parésia).
criança, devido à pequena quantidade de gordura • No abdómen a ecografia é primeiro exame
corporal e à sua parede de espessura reduzida. O imagiológico a realizar no estudo morfológi-
exame deve ser rápido, em ambiente calmo e co do fígado, sistema hepatobiliar, pâncreas e
agradável, proporcionando a melhor colaboração. baço. Detecta anomalias congénitas e adqui-
Os avanços tecnológicos dos novos equipa-
mentos de ecografia permitem, cada vez mais,
maior número de aplicações incluindo apoio ima-
giológico em tempo real para a realização de
biópsias, aspiração e drenagem de colecções. No
entanto, estruturas como o ar, o osso, o metal, per-
turbam a propagação da onda acústica e impossi-
bilitam a avaliação de órgãos subjacentes limitan-
do a avaliação ecográfica em determinadas áreas
como no crânio, em certos territórios do pescoço e
no tórax.
Indicam-se as principais patologias para cujo
diagnóstico a ecografia contribui:
• Na cabeça, o exame transfontanelar no
recém-nascido (RN) pré-termo tem como
principais indicações a detecção de hemorra-
gia intracerebral e seu estudo evolutivo; a
FIG. 1
ecografia transfontanelar permite também o
estudo inicial de anomalias congénitas e Estenose hipertrófica do piloro. Ecografia evidenciando canal
hidrocefalia. pilórico alongado e aumento de espessura da parede
CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica 51

FIG. 2
Invaginação intestinal ileo-cólica. Corte transversal ecográfico.

ridas como sejam as inflamátorias/infeccio-


FIG. 3
sas, infiltrativas e tumorais.
• No estudo do aparelho digestivo tem particu- Hidronefrose. Corte sagital ecográfico pré-natal.
lar interesse no diagnóstico de estenose
hipertrófica do piloro (Fig. 1), (dispensando ticas dos rins, nos tumores renais, com especial
outros métodos de diagnóstico), na invagi- destaque se existir suspeita do tumor de Wilms,
nação intestinal (Fig. 2) permitindo seguir a traumatismos, e hipertensão arterial.
desinvaginação, quer por clister hidrostático, • As glândulas supra-renais são bem visíveis
quer por método pneumático; esta particu- no RN, tornando-se de difícil caracterização
laridade poupa a criança a radiação desne- por ecografia a partir de um mês de idade. A
cessária induzida pelos métodos conven- ecografia pode demonstrar sinais de hemor-
cionais. Actualmente é um exame de referên- ragia, abcessos, quistos e tumores sólidos co-
cia na suspeita de apendicite, na má rotação mo o neuroblastoma.
intestinal, na enterocolite necrosante, na du- • No aparelho genital feminino, a ecografia
plicação entérica, espessamentos e infil- permite caracterizar a morfologia do útero e
trações da parede intestinal, anomalias ano- dos ovários, detectar anomalias congénitas,
rectais, quistos abdominais, tumores abdo- alterações do desenvolvimento (em particu-
minais incluindo adenomegálias, e nos trau- lar relacionadas com a puberdade), patologia
matismos abdominais. tumoral, infecciosa, isquémica (torção do
• No aparelho urinário: demonstração de ovário).
anomalias do tracto superior (agenesia renal, • Nos orgãos genitais masculinos, a ecografia
anomalias de posição, bifidez, duplicidade), é o método de escolha para examinar o
nas anomalias do tracto inferior, do uréter escroto e os testículos, alterações congénitas,
distal (megauréter primário, uréter ectópico, escroto agudo, tumores testiculares e extra
ureterocele), da bexiga (anomalias do úraco, testiculares.
duplicação da bexiga, divertículos), da cloa- • No sistema músculo-esquelético a ecografia é
ca, da uretra (válvulas da uretra posterior). indicada para detectar displasia da anca, sendo
Em estudos pré-natais tem indicação para considerada o exame de primeira linha antes
avaliar anomalias detectadas (dilatação piélica, da ossificação dos núcleos epifisários femorais.
hidronefrose (Fig. 3), megauréter, rim multiquísti- No serviço de urgência é frequentemente re-
co). Na infecção urinária comprovada: para de- querida para o diagnóstico de sinovite tran-
tecção de anomalias morfológicas do aparelho uri- sitória da anca e lesões traumáticas dos tecidos
nário, litíase, lesões directas do parênquima renal, moles. A ecografia também contribui para o
nefronia lobar, abcessos. A ecografia renal é ainda diagnóstico de patologia inflamatória/infec-
informativa nas seguintes situações: doenças quís- ciosa e tumoral dos tecidos moles.
52 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

• A osteossonografia é uma modalidade de ou maligno. Por outro lado, permite avaliar o


ecografia utilizando o método chamado ampli- estádio evolutivo de alguns tumores ao demons-
tude – dependent speed of sound com interesse na trar a invasão vascular; é o caso do tumor de Wilms
avaliação da mineralização óssea, desde o RN que pode originar trombose da veia renal e da veia
pré-termo ao adolescente. cava inferior.
No serviço de urgência o eco-doppler tem apli-
Ecografia Doppler cações importantes na avaliação do traumatismo
abdominal fechado, no abdómen agudo, na
A ecografia Doppler (eco-doppler) actualmente pielonefrite aguda e no escroto agudo (diagnósti-
não deve ser dissociada da ecografia, pois o estu- co diferencial entre torção testicular e orquiepi-
do doppler pode acrescentar em todas as áreas es- didimite).
tudadas e apontadas anteriormente mais dados
semiológicos, designadamente possibilitando de Tomografia computadorizada
forma rápida informar se existe vascularização e
caracterizá-la. Sendo a patologia vascular periféri- A tomografia computadorizada (TC) utiliza radia-
ca menos frequente que no adulto, o eco-doppler ção X; a mesma veio modificar a investigação ima-
é mais requisitado na suspeita de complicações de giológica em múltiplas situações patológicas em
cateterismos. Pediatria, independentemente da menor aplicação
No RN o eco-doppler é solicitado no estudo e desenvolvimento em relação ao verificado no es-
transfontanelar para avaliar a vascularização cere- tudo do adulto, tendo em conta aspectos específi-
bral arterial e venosa, verificar se determinada es- cos do grupo etário em estudo: menor quantidade
trutura corresponde a vaso, e para apreciar o efeito de gordura, estruturas anatómicas mais finas e di-
da hidrocefalia na circulação cerebral. É requerido ficuldades de mobilização, necessidade frequente
principalmente: na pesquisa de trombo após de administração endovenosa de contraste e de
cateterismo dos vasos umbilicais, devido à eleva- sedação/anestesia.
da incidência de trombo aórtico nestes doentes; e Contudo, a reconhecida resolução espacial, o
na suspeita de trombose da veia renal em crianças pormenor anatómico e capacidade de avaliação
com problemas perinatais graves apresentando tecidual proporcionadas pelos cortes seccionais da
massa abdominal, hematúria e hipertensão arterial TC, a utilização de cortes de espessuras de 1-2 mm
transitória. (alta resolução), a possibilidade de se proceder a
Nos exames programados, tem um papel in- reconstruções bi e tridimensionais, tornaram-na
discutível na avaliação dos transplantes renal e uma técnica de imagem muito importante e, por
hepático. Nas crianças com hepatopatia crónica vezes, indispensável para aplicação em patologia
possibilita a detecção de hipertensão portal, neurológica, na doença neoplásica, na criança poli-
demonstra alterações do calibre e do fluxo de veias traumatizada, e para visualização de estruturas
esplâncnicas, a presença de circulação venosa co- aéreas, ósseas e vasculares, apenas para citar al-
lateral (shunts espontâneos porta-sistémicos, guns exemplos. Em casos seleccionados a TC pode
salientando-se as varizes esofágicas). também orientar a realização de biópsias ou drena-
Este exame constitui ainda um bom indicador gens.
da permeabilidade dos vasos renais arteriais e Os últimos avanços em TC, nomeadamente no
venosos e da vascularização do parênquima renal. final da década de 90 com aquisição volumétrica
Entre outras situações, permite identificar sinais na utilização helicoidal (espiral) e, nos anos mais
de necrose tubular aguda, pielonefrite aguda e recentes, através do emprego da tecnologia de
obstrução aguda do uréter. multidetectores, embora à custa de maior dose de
Na patologia tumoral, o exame por eco- radiação, vieram encurtar de forma significativa o
doppler pode realçar a hipervascularização de de- tempo de aquisição das imagens, diminuindo o
terminados tumores como o hemangioendote- número de sedações/anestesias.
lioma hepático. De referir, no entanto, que não per- Por outro lado, aumentaram a capacidade de
mite o diagnóstico diferencial entre tumor benigno detecção de pequenas lesões, melhoraram a apre-
CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica 53

A B

FIG. 4
Teratoma quístico maduro do mediastino. Radiografia do Tórax (A) e TC após contraste (B).

ciação nos estudos após administração de con- Cabe referir ainda que se trata dum método
traste endovenoso e permitiram reconstruções bi e auxiliar importante na distinção entre processo
tridimensionais de grande qualidade, aspectos pleural e parenquimatoso em localização periféri-
com particular interesse em patologia das vias ca, e para investigar lesões da parede torácica.
aéreas, óssea, vascular, e em endoscopia virtual. • Na patologia do fígado e vias biliares são par-
• No estudo do pescoço tem sobretudo inter- ticularmente úteis os estudos com adminis-
esse na distinção de lesão supurada ou não tração endovenosa de contraste e com aquisi-
supurada, na avaliação morfológica de mas- ção rápida dos cortes, na distinção entre parên-
sas, quer para definir ponto de partida, quer quima hepático normal e anormal; assim, per-
para avaliar a extensão e repercussão das mite detectar e caracterizar tumores primi-
mesmas sobre estruturas adjacentes. tivos, metástases e abcessos. Tem indicação na
• No tórax a TC é o método de imagem prefe- doença vascular e em patologia traumática.
rencial para lesões ocupantes do espaço no Revela-se ainda auxiliar importante na ava-
mediastino, ou de anomalias ou alargamen- liação pré e pós-transplante hepático e na in-
tos mediastínicos suspeitos na radiografia do vestigação de dilatações das vias biliares.
tórax (Fig. 4). • No estudo do baço e do pâncreas, as lesões de
Em relação ao parênquima pulmonar tem par- etiologia infecciosa, tumoral e traumática
ticular indicação na doença metastática, na defi- constituem as principais indicações para o
nição anatómica de lesões complexas, eventual- emprego da TC, permitindo detectar pe-
mente congénitas com ou sem vascularização quenos nódulos e anomalias vasculares nos
normal, na caracterização da doença pulmonar di- estudos contrastados com aquisição rápida
fusa e das vias aéreas centrais e periféricas, assim dos cortes.
como na investigação de lesões focais, em particu- • No tubo digestivo a TC está reservada, so-
lar para esclarecer a relação de um nódulo ou mas- bretudo, para apreciação de processos com
sa com a pleura e diafragma. envolvimento extraluminal da parede, no
Quer em relação ao mediastino, quer ao parên- compromisso traumático, esclarecimento de
quima, a TC está indicada na avaliação do doente alterações suspeitas com outras técnicas de
politraumatizado estável com lesão torácica. imagem, no seguimento de lesões tumorais e
54 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

FIG. 6
Deformação de Sprengel à direita. Reconstrução tridimensional.
Vista posterior. (consultar glossário geral)

• Na cavidade pélvica a TC tem particular in-


FIG. 5
teresse na avaliação dos estádios evolutivos
Tumor de Wilms do rim direito. TC após contraste endovenoso. de doença maligna com ponto de partida
ginecológico e na caracterização de massas
na avaliação de extensão e complicações da complexas.
doença inflamatória intestinal. • No sistema músculo-esquelético saliente-se a
• A TC contribui para a caracterização do en- aplicação da TC em problemas ortopédicos
volvimento peritoneal na ascite, nos abcessos seleccionados, nas anomalias congénitas ou
ou na doença neoplásica predominantemen- de desenvolvimento ósseo (Fig. 6) de que são
te secundária. exemplo a displasia das ancas sobretudo
• No rim as principais indicações para a rea- aquelas com reduções instáveis, na ante e
lização de estudos por TC são a determinação retroversão do colo do fémur e nas sinostoses
com maior rigor do ponto de partida e carac- társicas. É igualmente importante em patolo-
terização morfológica das massas detectadas gia traumática, no estudo de fracturas em
em estudo ecográfico prévio e, também, a áreas anatómicas complexas e na avaliação
avaliação de extensão do traumatismo renal. de complicações pós-traumáticas, nomeada-
Assume particular relevo para determinar os es- mente de natureza infecciosa. Desempenha
tádios evolutivos do tumor de Wilms (Fig. 5) e, desi- finalmente papel de relevo na apreciação da
gnadamente os limites da lesão, com ou sem in- doença neoplásica óssea e das partes moles.
vasão capsular, a relação da massa com órgãos ad- • No diagnóstico neurorradiológico com o ad-
jacentes e estruturas vasculares, a apreciação do rim vento da ressonância magnética tem-se vindo
contralateral e eventual envolvimento ganglionar. a verificar um crescente declínio do papel da
Tem ainda indicação na doença do parênquima tomografia computadorizada, fundamental-
renal de natureza inflamatória/infecciosa, na mente na avaliação do sistema nervoso cen-
uropatia obstrutiva e em anomalias congénitas e tral. No entanto, a TC continua a ser a técnica
vasculares. de eleição de abordagem neurorradiológica
• Na investigação imagiológica retroperitoneal em situações de urgência/emergência.
tem papel importante na avaliação evolutiva do Sem se pretender ser exaustivo ou estabelecer
neuroblastoma, com implicações importantes algoritmos de decisão clínico-imagiológica, é rela-
no planeamento terapêutico. A TC tem igual- tivamente consensual que a TC continua a ser o
mente indicação para avaliar o compromisso exame de primeira intenção na investigação ima-
adenopático retroperitoneal, quer em relação a giológica nas seguintes circunstâncias:
patologia tumoral loco-regional, linfoma ou • Traumatismo crânio-encefálico acidental
neoplasias com outra localização primária, • Traumatismo crânio-encefálico no contexto
quer em relação a anomalias vasculares ou al- de criança sujeita a maus tratos para detecção,
teração dos tecidos moles retroperitoneais. para além de lesões intracranianas, de frac-
CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica 55

turas múltiplas da calote e/ou base do crânio. Em clínica pediátrica e perante um quadro
• Traumatismo vértebro-medular determinan- fortemente sugestivo de lesão encefálica vascular,
do o segmento do ráquis a ser estudado. De tumoral ou infecciosa há quem defenda, como exa-
salientar a enorme limitação da TC no dia- me prioritário a efectuar, a ressonância magnética
gnóstico e avaliação da extensão da contusão pelo seu maior rigor diagnóstico e topográfico.
medular ainda que com componente hemor- Actualmente a TC é, cada vez mais, encarada
rágico, bem como dos hematomas extra-axi- como exame complementar da ressonância mag-
ais (epidural e subdural). nética no estudo da lesão tumoral ou infecciosa do
• Traumatismo facial e/ou da órbita bem como crânio e coluna vertebral indiciada por outras té-
do osso temporal. cnicas diagnósticas, tais como a radiologia con-
• Na suspeita de corpo estranho intra-or- vencional ou a cintigrafia. A excepção é o osteoma
bitário. osteóide.
• Na criança com sinais e sintomas de dis- A TC não é, seguramente, o exame a efectuar
função aguda encefálica, em particular se na suspeita de lesão medular ou de anomalia mal-
coexistir alteração do estado de consciência. formativa da medula e/ou da cauda, não sendo
• Na suspeita clínica de hemorragia subarac- também o estudo elegível do eixo hipotálamo-
noideia ou de hematoma cerebral. hipofisário, da doença neurodegenerativa ou
• Na avaliação de hidrocefalia com anteceden- metabólica, nem da suspeita de trombose venosa
tes de derivação. a não ser que se realize angio-TC.
• Na avaliação das cavidades naso-sinusais, Ainda a salientar a supremacia da TC em re-
nomeadamente na sinusopatia inflamatória lação à RM no diagnóstico da calcificação ence-
aguda recorrente ou crónica persistente, para fálica.
detecção de alterações estruturais esqueléti- Em clínica pediátrica haverá que relembrar a
cas ou outras que expliquem o quadro pa- pertinência da dose cumulativa de radiação ioni-
tológico, assim como para detecção de conse- zante decorrente de estudos comparativos e/ou
quentes lesões secundárias. Igualmente, nas evolutivos, e a importância de se estabelecerem
complicações da sinusite aguda e na avaliação protocolos utilizando-se alternativamente as téc-
das consequências da extensão do processo nicas imagiológicas disponíveis.
infeccioso à face, à órbita e ao endocrânio. No recém-nascido a TC é um exame que, se
• Na suspeita clínica de atrésia uni ou bilateral possível, se deve evitar.
dos coanos. A tomografia com emissão de positrões
• No estudo do osso temporal na suspeita clíni- (PET/TC) é uma modalidade sofisticada de TC,
ca de anomalia de desenvolvimento, de com interesse para diagnosticar e monitorizar si-
colesteatoma congénito ou adquirido, ou de tuações de cancro com diversas localizações.
lesão tumoral (com excepção da lesão retro-
coclear), nos processos inflamatórios re c o r - Ressonância magnética
rentes e avaliação pós-cirurgia, e ainda nas
complicações por extensão endocraniana ou A introdução clínica das técnicas de ressonância
loco-regional incluindo região cervical em ca- magnética (RM) representou novo e importante
sos de otite média / otomastoidite aguda. avanço qualitativo no diagnóstico pela imagem,
• Na suspeita clínica de retinoblastoma em que obtida cada vez com maior acuidade. Hoje em dia,
a presença de calcificação em lesão intra-ocu- na clínica pediátrica a RM é indiscutivelmente a
lar numa criança com menos de 3 anos de técnica imagiológica de excelência com maior po-
idade confirma o diagnóstico. tencialidade diagnóstica na avaliação crânio-ence-
• Na avaliação crânio-facial, fundamental- fálica e vértebro-medular em particular. Nos ou-
mente órbita e base do crânio, na displasia tros compartimentos anatómicos a sua aplicabili-
óssea, e na osteopetrose. dade não está tão difundida.
• Nas anomalias congénitas crânio-faciais, da O funcionamento de um equipamento de RM
charneira crânio-vertebral e do ráquis. e a formação da imagem são processos altamente
56 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

complexos. Pode explicar-se sumariamente que a dio; na avaliação pré-cirúrgica para cirurgia en-
informação (sinal) necessária para a construção da doscópica naso-sinusal; no diagnóstico diferencial
imagem se obtém pela interacção de campos mag- entre calcificação tecidual e depósitos de outras
néticos com o campo magnético intrínseco dos áto- substâncias paramagnéticas tais como hemosside-
mos de hidrogénio que se encontram largamente rina ou ferritina; e no diagnóstico, no período agu-
distribuídos no corpo humano. do, da hemorragia subaracnoideia.
Não cabendo nos objectivos deste livro uma Como desvantagens há a salientar, entre ou-
descrição dos fundamentos tecnológicos da RM, os tras: o estudo é prolongado, o que obriga a seda-
quais estão acessíveis na bibliografia inclusa, para ção profunda ou anestesia na criança não colabo-
compreensão do leitor descreve-se o significado rante, ou com claustrofobia (explicável pelo tipo
dalguns termos: de aparelhagem); não poder ser realizada em
T1 – Tempo de relaxação longitudinal doentes portadores de estimuladores eléctricos ou
T2 – Tempo de relaxação transversal de bombas infusoras, com próteses ou implantes
DP – Nº de protões de hidrogénio num tecido metálicos, com “clips” vasculares ou outro mate-
ADC – Apparent Diffusion Coeficient ou Coefi- rial com conteúdo ferromagnético; ou ainda em
ciente de difusão aparente. doentes com certos tipos de adesivos para admi-
As imagens podem ser ponderadas em T1, den- nistração cutânea de terapêutica, podendo induzir
sidade protónica (DP) e T2. As ponderações DP e queimaduras.
T2 têm maior acuidade na detecção da alteração Uma vez que as consequências de não se res-
tecidual, e o T1 maior rigor anátomo-morfológico. peitarem as regras de segurança são sempre gra-
A RM tem como principal vantagem neste ves, podendo inclusivamente conduzir à morte,
grupo etário a não utilização de radiação ionizante, deve ter-se sempre presente a noção de possíveis
embora sejam conhecidos efeitos biológicos condi- contra-indicações optando, em caso de dúvida,
cionados pelo potente campo magnético estático e por outra técnica de imagem.
pela radiofrequência; até à data não se demonstrou A difusão associada ao mapa de ADC permite
que tivessem significativa relevância clínica. A diagnosticar as situações em que ocorre restrição
referida técnica apresenta, como atributos de su- da mobilidade da molécula de água como seja no
premacia em relação às outras tecnologias: a sua óp- edema citotóxico da lesão vascular isquémica agu-
tima resolução de contraste e resolução espacial que da, no abcesso cerebral, e nalgumas doenças
possibilita uma excelente diferenciação dos tecidos, metabólicas que cursam com edema da mielina.
nomeadamente na identificação da anormalidade Há indicação para administração endovenosa de
tecidual; o seu rigor na localização anatómica e na produto de contraste paramagnético na lesão tu-
relação topográfica lesional, consequência da moral, infecciosa e para-infecciosa, nalgumas
aquisição de imagens em diferentes planos ortogo- doenças neurodegenerativas como na doença de
nais; e a ausência de regiões anatómicas “cegas”. Alexander, na adrenoleucodistrofia e na esclerose
De destacar as suas enormes potencialidades múltipla; e igualmente sempre que se coloquem
traduzidas, nomeadamente, pela possibilidade de dúvidas de diagnóstico diferencial.
estudos dinâmicos, de aquisição volumétrica com No recém-nascido com quadro de encefalopatia
reconstrução tridimensional, de angio-RM arterial aguda é um exame de segunda intenção, geral-
e venosa, de avaliação quantitativa do fluxo do mente quando os achados ecográficos são dis-
líquor, de espectroscopia, de estudos de perfusão crepantes com a clínica ou suscitam dúvidas dia-
e de urografia. gnósticas. Ainda neste grupo etário discute-se ac-
A sua informação diagnóstica é somente infe- tualmente a aplicabilidade da RM (utilizando as téc-
rior à TC na avaliação das seguintes situações: nicas de difusão incluindo o mapa de ADC e a sua
anomalias do crânio, da face incluindo órbita, e do quantificação, a espectroscopia e as habituais pon-
ráquis; na lesão predominatemente osteoconden- derações T1 eT2) no diagnóstico na fase hiper-agu-
sante do osso ou respeitante essencialmente à cor- da da encefalopatia hipóxico-isquémica, da lesão
tical óssea; na lesão esquelética com fractura; na vascular isquémica e da leucomalácia periven-
avaliação do canal auditivo externo e ouvido mé- tricular, em particular na ausência da lesão cavitada.
CAPÍTULO 8 A imagiologia em clínica pediátrica 57

A B

FIG. 7
Anomalia congénita da veia de Galeno. (A)Angio-RM, axial. “Fístulas” artério-venosas na parede anterior da veia prosencefálica
marcadamente dilatada, tendo como principais pedículos arteriais nutritivos as artérias pericalosas e corodeias. (B)Angio-RM
venosa, para-sagital. Proeminente dilatação da tórcula, dos seios laterais e da veia prosencefálica (veia embrionária). Marcada
hipoplasia do seio longitudinal superior.

De salientar que na suspeita de lesão intra- • Doença metabólica ou neurodegenerativa.


raquidiana a RM é o único exame não invasivo • Disfunção do eixo hipótalamo-hipofisário.
com maior sensibilidade diagnóstica; de destacar • Complicação de meningite.
ainda a elevada especificidade da RM no diagnós- • Hidrocefalia.
tico do hematoma subagudo e na trombose venosa • Lesão expansiva intra-orbitária e estudo das
aguda e subaguda. vias ópticas.
A RM está indicada como estudo comple- • Complicação endocraniana da otite média /
mentar da TC, ou como primeira abordagem ima- otomastoidite e da sinusite.
giológica, na criança com manifestações clínicas • Lesão medular traumática, infecciosa ou tu-
sugestivas de: moral.
• Doença vascular isquémica ou hemorrágica • Disrafismo incluindo estudo da medula, cau-
de etiologia arterial ou venosa, chamando-se da equina e charneira crânio-vertebral.
a atenção para a importância da angio-RM • Tumor vertebral ou paravertebral.
(Fig. 7) como primeira abordagem não inva- • Espondilodiscite (Fig. 9).
siva dos vasos cervicais e endocranianos. De destacar ainda a importância da RM nas
• Tumor intracraniano. seguintes situações:
• Encefalite. • Estudo evolutivo da lesão tumoral para
• Infecção bacteriana ou fúngica (granuloma; avaliação de eficácia terapêutica, na detecção
cerebrite ou abcesso; ventriculite; empiema precoce de recidiva e na deteção de metás-
sub ou epidural). tases ao longo do neuro-eixo, como por
• Encefalomielite aguda disseminada. exemplo no meduloblastoma.
• Anomalia malformativa encefálica. • Avaliação pós-cirúrgica da anomalia malfor-
• Facomatoses. mativa.
• Hipomielinização, atraso de mielinização. • Avaliação das lesões sequelares de trauma-
• Esclerose múltipla (Fig. 8). tismo crânio-encefálico ou vértebro-medular,
58 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

A B

FIG. 8
Imagens de RM na Esclerose Múltipla. A) DP axial. Múltiplas lesões redondas e ovóides com hipersinal localizadas na substância
branca profunda e subcortical. B) T2 para-sagital. Múltiplas lesões redondas ou ovóides localizadas na substância branca profunda
e subcortical com expressão infra e supratentorial.

de hipóxia-isquémia neonatal, de prematuri-


dade, de lesão vascular ou infecciosa.
• Criança com infecção por VIH (vírus da
imunodeficiência humana) com sinais focais
ou deterioração cognitiva.
• Diagnóstico etiológico da epilepsia.
Por fim, refere-se particular interesse da RM
nas seguintes situações:
• Investigação de massas cervicais com sus-
peita de extensão intra-raquidiana.
• Patologia cardíaca congénita e vascular torá-
cica.
• Massas mediastínicas.
• Sequestro pulmonar.
• Patologia infecciosa e tumoral da parede
torácica.
• Doenças do tubo digestivo incluindo doença
inflamatória intestinal, do pâncreas e atrésia
ano-rectal.
FIG. 9 • Neoplasias abdominais e retroperitoneais.
• Avaliação hepática prévia ao transplante ou
Imagem de RM na Espondilodiscite . FSE T2 sagital. Marcada a shunts vasculares.
redução da altura do espaço inter- somático D12/L1 traduzin-
• Anomalias vasculares abdominais.
do destruição discal associada a erosão dos planaltos verte-
brais. Lesão hiper-intensa envolvendo focalmente ambos os • Anomalias congénitas pélvicas, nomeada-
corpos vertebrais e o disco intervertebral em relação com mente em alterações ginecológicas suspeitas
colecção abcedada. Pequeno abcesso pré-vertebral. através de avaliação ecográfica.
CAPÍTULO 9 Aspectos do serviço de patologia clínica num hospital pediátrico 59

9
• Tumores pélvicos com a finalidade de detec-
tar invasão dos tecidos moles, alterações me-
dulares e extensão de massas pré-sagradas.
• Lesão infecciosa e tumoral, sobretudo óssea
e das partes moles.
• Lesões isquémicas do osso.
• Traumatismo articular (com lesão ligamen- ASPECTOS DO SERVIÇO DE
tar, capsular e da fise).
• Patologia músculo-esquelética. PATOLOGIA CLÍNICA NUM
Sublinha-se a supremacia do método na avalia-
ção comparada com a TC em processos patológi- HOSPITAL PEDIÁTRICO
cos nomeadamente tumorais, quando a adminis-
tração de contraste iodado está contra-indicada. Rosa Maria Barros, Antonieta Viveiros, Antonieta
Bento, Isabel Daniel, Isabel Peres, Isabel Griff,
BIBLIOGRAFIA Margarida Guimarães, Virgínia Loureiro e Vitória Matos
Barkovich, AJ. Pediatric Neuroimaging. Philadelphia:
Lippincott Williams & Wilkins, 2005
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Melki Ph, Helenon O, Cornud F, Attlan E, Boyer JC, Moreau JF. Nesta perspectiva, o SPC do HDE engloba
Echo-doppler vasculaire et viscerale. Paris: Masson, 2001 essencialmente as seguintes actividades:
Pfluger T, Czekalla R, Hundt C, Schubert M, Craulmer U, a) Colheita de produtos biológicos;
Leinsinger G, Scheck R, Haln K. MR Angiography versus b) Execução dos exames analíticos diversos in-
Color Doppler Sonography in the evaluation of renal ves- cluindo farmacocinética e farmacodinâmica das
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Siegel M, Uker GD. Pediatric Applications of Helical (Spiral) c) Relatório e validação dos resultados obtidos;
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Taylor KJW, Burns PN, Wells PNT. Clinical applications of e) Apoio às comissões técnicas, designada-
Doppler ultrasound. New York: Raven Press, 1995 mente comissão de controlo de infecção hospitalar
Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatric Hospital através de estudos epidemiológicos;
Pediatrics. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007 g) Ensino pré e pós – graduado, e investigação.
O SPC constitui uma área de fronteira inter-
pretativa com a actividade assistencial prestada ao
nível dos serviços de urgência, de ambulatório e
60 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

de internamento. O mesmo tem, pois, uma missão métodos que requerem pequenos volumes de
particular pelo facto de o seu modo de funciona- amostra (micrométodos).
mento poder influenciar a evolução de inúmeras Torna-se ainda fundamental que o clínico
situações clínicas em função da rapidez e quali- tenha conhecimento dos valores de referência
dade dos resultados; tal influência, para além adoptados por grupo etário e sexo, os quais são
doutros factores, poderá traduzir-se, por exemplo, fornecidos pelo mesmo SPC e constam de Anexos
na estadia média e tempo de permanência dos no 3º livro. Os equipamentos modernos permitem
doentes nas diversas áreas assistenciais, propor- utilizar pequenos volumes de amostra, aspecto de
cionando melhor desempenho dos restantes grande importância num laboratório pediátrico.
serviços, com consequências médicas, económicas, Para facilitar a colheita de sangue venoso actual-
individuais e sociais. mente nalguns centros existem aparelhos de tran-
Para o obtenção de bons resultados torna-se, siluminação utilizando luz de comprimento de on-
pois, fundamental que exista uma capacidade de da próximo do da radiação infravermelha (entre
actuação de elevado nível técnico, de actualização 700 e 1.000 nm) com ampliação de imagem das
de equipamentos e de métodos, assim como pes- veias, observada em cinescópio de TV.
soal diferenciado.
Transporte das amostras
Organograma
Como regra geral há que ter em conta que todas as
Para a prossecução dos objectivos, o SPC, com amostras devem ser transportadas ao laboratório
uma direcção clínica integrando médicos patolo- imediatamente após a colheita. É de grande im-
gistas clínicos e diversos técnicos diferenciados , portância para alguns parâmetros (como o pH e os
auxiliares e pessoal auxiliar, compreende as gases no sangue e amónia) que os respectivos tu-
seguintes Secções subdivididas em Áreas de bos com sangue sejam transportados em recipiente
Diferenciação: com gelo.
1) Secção de Hematologia (Imunofenotipa- A existência de normas de actuação no SPC, in-
gem, Hemostase, Biologia Molecular); cluindo o desenho de fluxos de trabalho em co-
2) Secção de Química Clínica (Endocrinologia, laboração com os clínicos, possibilita a melhoria
Oncologia,Marcadores Ósseos, Diagnóstico pré- da qualidade com menos custos.
natal,Infertilidade, Biologia Molecular);
3) Secção de Microbiologia (Parasitologia, Normas de higiene e protecção
Micologia, Virologia,Biologia Molecular);
4) Secção de Imunologia (Imunoalergologia, Sendo este livro devotado à clínica pediátrica e
Imunoquímica, Doenças Autoimunes, Serologia uma vez que está previsto o estágio de estudantes
de Infecções Víricas e Bacterianas, Biologia Mole- e de clínicos no laboratório, optou-se por selec-
cular. cionar algumas normas de higiene e protecção
adoptadas no SPC do HDE, as quais têm a ver com
Colheita de produtos biológicos o “saber estar” no ambiente de laboratório.

Num hospital pediátrico/HAPD são prestados Higiene pessoal


cuidados a uma população de doentes, desde Em todas as zonas de trabalho onde se verifique
recém-nascidos de muito baixo peso (inferior a risco de contaminação por agentes biológicos:
1500 gramas), a crianças em todos os estádios • Deve praticar-se a mais rigorosa higiene no tra-
de desenvolvimento incluindo adolescentes, a balho (prioridade para a lavagem das mãos).
adultos jovens (na área de medicina materno- • Não deve ser permitido comer, beber ou fumar.
-fetal). • Devem estar devidamente cobertas e protegidas
Num laboratório que dá apoio a esta popu- as feridas ou outras lesões cutâneas.
lação, é da maior importância a colheita correcta • Deve evitar-se tocar com as mãos nos olhos, na-
das amostras, a selecção de equipamentos e de riz ou boca, enquanto se trabalha.
CAPÍTULO 9 Aspectos do serviço de patologia clínica num hospital pediátrico 61

Cuidados na recolha, manipulação balhadores, assim como das medidas tomadas


e tratamento de produtos biológicos ou a tomar a fim de solucionar a situação.
• Devem estar definidos os processos para a reco-
lha, manipulação e tratamento de amostras de Equipamento protector
origem humana e animal. Estão incluídos nesta categoria as batas, os aven-
• Não deve ser permitida a pipetagem à boca, sub- tais impermeáveis, as luvas, os óculos e as más-
stituindo-a por processos automáticos ou manuais. caras.
• Os procedimentos técnicos devem ser executa- • É obrigatório o uso de bata para uso exclusivo
dos de modo a evitar a formação de aerossóis ou nas áreas de trabalho; por isso, a mesma não
gotículas. Sempre que seja possível a formação deve ser usada em locais fora do laboratório (se-
de aerossóis, devem ser usados meios de pro- cretárias, biblioteca, cantinas, salas de convívio,
tecção ocular e respiratória, ou trabalhar as etc.).
amostras em câmara de segurança. • A bata deve fechar atrás, e deve ter mangas com-
• Deve evitar-se flamejar as ansas. Utilizar, de pridas e punhos apertados.
preferência, ansas de uso único ou micro-incine- • O vestuário de protecção não deve ser arruma-
radores. do no mesmo cacifo que o vestuário pessoal.
• O material lascado ou partido deve ser elimina- • Deve haver cabides para pendurar as batas “em
do com segurança. uso”, situados perto da saída da sala de trabalho.
• Os frascos e ampolas de vidro devem ser ma- • Todo o vestuário utilizado no laboratório deve
nipulados com cuidado para não derramar o seu ser enviado para a lavandaria como roupa conta-
conteúdo e/ou não provocar aerossóis. Utilizar, minada.
de preferência, tubos e frascos com tampa rosca- • O vestuário protector existente deve ser sufi-
da. ciente para assegurar a mudança regular (pelo
• O uso de agulhas deve ser evitado, quando pos- menos duas vezes por semana ou diariamente e,
sível. ainda, para uso de visitantes ocasionais).
• As agulhas não devem ser recapsuladas. • Deve haver número suficiente de protectores
• As agulhas devem ser colocadas em contentores para os olhos (preferencialmente na forma de vi-
para corto-perfurantes, sem ultrapassar 3/4 da sor).
capacidade dos mesmos. • Todo o vestuário contaminado por agentes bio-
lógicos no decurso do trabalho deve ser muda-
Atitudes em caso de acidente do imediatamente e descontaminado por méto-
• As picadas ou cortes ocorridos durante o traba- dos apropriados antes de ser enviado para a la-
lho devem ser imediatamente tratados. Devem vandaria.
ser deixados sangrar (mas não chupar!) e lava-
dos com água corrente, sem serem esfregados. Descontaminação e limpeza
• Se as mucosas dos olhos, nariz ou boca forem • O plano geral de limpeza para todo o laboratório
atingidas por salpicos, devem ser muito bem deve ser compatível com o horário de laboração
lavadas com água corrente. Deve existir um es- do mesmo, e feito de acordo com a coordenado-
pelho por cima do lavatório para facilitar o “au- ra do serviço.
to-tratamento” dos salpicos. • Os pavimentos, as bancadas e outras superfícies
• Em caso de perfuração ou ruptura das luvas, es- de trabalho devem ser limpos no fim do dia.
tas devem ser removidas; em seguida deve • Devem ser limpos periodicamente os tectos e as
lavar-se as mãos antes de calçar novas luvas. paredes, assim como as janelas e fontes de luz arti-
• Qualquer acidente ou incidente que possa ter ficial, de acordo com o programa anual de limpeza.
provocado a disseminação de um agente bio- • Qualquer área de contaminação acidental com
lógico susceptível de causar uma infecção e/ou sangue ou líquidos orgânicos, culturas bacterio-
doença no homem, deve ser imediatamente co- lógicas, etc., deve ser coberta com toalhetes de
municado ao responsável pela segurança. Deve papel ou tecido, e sobre eles verter hipoclorito de
ser dado conhecimento do facto a todos os tra- sódio a 1%, deixando actuar durante 30 minutos.
62 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

10
Após este tempo, limpar as superfícies sujas.
• O material de uso único deve ser colocado em
contentores apropriados, hermeticamente fecha-
dos, para ser eliminado; ou, se tal não for pos-
sível, deve ser descontaminado previamente.
• O material para reutilização deve ser desconta-
minado por autoclavagem. CRIANÇAS E ADOLESCENTES
BIBLIOGRAFIA COM NECESSIDADES ESPECIAIS
Cuper NJ, Verdaasdonk RM, de Rode, et al. Visualizing veins
with near-infrared light to facilitate blood withdrawl in chl- – ASPECTOS GERAIS DA
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Sonnenwirth AC, Jarrett L. Gradwohl´s Clinical Laboratory A reabilitação pediátrica é uma valência da espe-
Methods and Diagnosis. St. Louis: Mosby, 2005 cialidade de medicina física e de reabilitação (MFR)
Vaughan L. Biomarkers in acute medicine. Medicine 2013; 41: ou fisiatria, sendo delimitada no seu universo pelo
136-140 grupo etário do doente compreendido entre o
Wallach J. Interpretation of Pediatric Tests- A Handbook nascimento até ao final da adolescência. Preocupa-
Synopsis of Pediatric, Fetal, and Obstetric Laboratory se igualmente com a saúde da grávida designada-
Medicine. Boston/Toronto: Little, Brown and Company, mente no que respeita à preparação para o parto, o
2003 que está de acordo, numa perspectiva transdisci-
Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatric Hospital plinar, com a definição de pediatria, atrás explana-
Medicine, Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007 da: medicina integral dum grupo atário compreen-
dido entre a concepção e o fim da adolescência.
A reabilitação da criança com deficiência e in-
capacidade, tarefa complexa congregando uma
série de conhecimentos e de meios, desafia a ca-
pacidade duma equipa em intervir num ser em
processo de desenvolvimento e maturação.
Assenta, por um lado, na definição dos conceitos
básicos de deficiência, incapacidade e invalidez
que englobamos no campo das menos valias e das
necessidades especiais, e nos conhecimentos actu-
ais do que se entende por desenvolvimento, de-
senvolvimento psicomotor, sequência da matu-
ração cerebral e de plasticidade cerebral, a abordar
adiante.
A organização interna dum serviço de reabili-
tação varia de acordo com os objectivos propostos
e os métodos utilizados para os alcançar. No
Hospital de Dona Estefânia (HDE), o Serviço de
Medicina Física e de Reabilitação estruturou-se fun-
CAPÍTULO 10 Crianças e adolescentes com necessidades especiais 63

cionalmente em três áreas de atendimento ao en- bros inferiores e nas alterações esfincterianas.
contro da prevalência das patologias das crianças Existe incapacidade de marcha autónoma, neces-
que a ele recorrem, áreas não estanques antes com- sitando de auxiliares, ortóteses ou cadeira de rodas
plementares: de reabilitação neurológica, orto-trau- e incapacidade de esvaziamento/retenção urinária
matológica e respiratória. Como serviço integrado necessitando de algaliação intermitente e disposi-
e concorrendo para a dinâmica hospitalar, está pre- tivos colectores de urina. Manifesta a invalidez
sente em todos os seus núcleos e consultas multi- (desvantagem) por não poder participar em todas
disciplinares, como são exemplo os de spina bífida e as actividades próprias para o seu grupo etário
de ventilação. Nesta perspectiva, apoia diariamente (poderá participar em algumas delas com algum
todos os doentes assistidos nos respectivos serviços tipo de adaptação). A médio prazo necessitará de
de pediatria médica e de cirurgia pediátrica, nas apoios educativos especiais e a longo prazo, na pre-
unidades de queimados, de cuidados intensivos visível relativa invalidez profissional; e poderá vir
pediátricos e neonatais (UCIP e UCIN) e no serviço a necessitar de algum tipo de adaptação pessoal ou
de ginecologia e medicina materno-fetal. do local de trabalho para o desempenho de activi-
dades laborais tendo em vista a auto-suficiência.
Conceitos de deficiência,
incapacidade e invalidez Desenvolvimento, desenvolvimento
psicomotor, habilitação e reabilitação
O modelo médico clássico baseia a sua concepção
no fluxograma delineado da seguinte forma: etio- O desenvolvimento pode ser definido como o
logia – patologia – sintomatologia. Procura processo maturativo das estruturas e das funções
racionalmente intervir na primeira fase e, quando da criança, que leva à aquisição e aperfeiçoamento
não o consegue, nas fases seguintes. das suas capacidades. Obedece a uma determina-
A este modelo a acrescenta, de forma comple- da sequência, com padrões de evolução variáveis e
mentar, o conceito de menos valias integrando, tal individuais. É, portanto, o resultado duma inte-
como se referiu, as noções de deficiência, inca- racção adaptativa em relação ao meio ambiente e
pacidade e invalidez definidos pela Organização influenciada por factores intrínsecos (genéticos) e
Mundial de Saúde. Tal constituiu a base da sua in- extrínsecos (ambienciais). (consultar Parte V).
tervenção como especialidade. Considera-se haver um atraso de desenvolvi-
Considera-se pessoa com deficiência aquela que, mento quando a criança não realiza as tarefas que
por motivo de perda ou anomalia, congénita ou lhe são propostas e sempre aferidas à idade pelas
adquirida, de estrutura ou função psicológica, in- escalas de neurodesenvolvimento. Quando o atra-
telectual, fisiológica ou anatómica, susceptível de so de desenvolvimento é primário, isto é, a criança
provocar diminuição de capacidade, pode estar em não atingiu os padrões do desenvolvimento nor-
condições de desvantagem para o exercício de ac- mais para a idade, a intervenção, mais do que uma
tividades consideradas normais tendo em conta a reabilitação, traduz-se numa habilitação forne-
idade, o sexo e os factores socioculturais dominantes. cendo à criança os meios e as ajudas técnicas
Incapacidade, consequência de deficiência, é a necessárias à aquisição da função, isto é mediante
diminuição ou ausência de expressão de qualquer a aquisição de experiências. Se, por outro lado, o
actividade nos limites considerados normais para atraso de desenvolvimento é secundário, provoca-
o ser humano. do por doença ou noxa de que resultou paragem
Invalidez, consequência das anteriores, traduz ou regressão dos padrões de desenvolvimento da
a impossibilidade de realização duma tarefa nor- criança, a intervenção terapêutica corresponderá,
mal, com prejuízo laboral ou social e limitando a então, a reabilitação.
integração plena da pessoa doente.
Vejamos o seguinte exemplo: criança com spina Abordagem da criança com
bifida – nível L4/L5 – (doença). Tem perda fun- deficiência e incapacidade
cional (deficiência) traduzida na diminuição de
força muscular, nas alterações sensitivas dos mem- A abordagem da reabilitação da criança com defi-
64 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ciência e incapacidade é feita duma forma estru- integração das sensibilidades (agnosias). No caso
turada com o objectivo de obter o diagnóstico etio- de dúvida será pedida a colaboração das respecti-
lógico (doença), diagnóstico funcional (deficiência, vas especialidades para caracterização qualitativa
incapacidade e invalidez) e caracterização da ma- e quantitativa das anomalias. Quando presentes,
triz relacional (afectividade, socialização e esco- as anomalias sensoriais podem ser, elas próprias,
larização). a deficiência, e necessitar de correcção adequada.
No âmbito da história clínica a anamnese será Quando associadas a outras deficiências (sin-
colhida à criança ou seus acompanhantes. É fun- dromáticas), a sua não correcção pode prejudicar
damental uma minúcia relativamente a an- o sucesso do tratamento. Especial atenção deve ser
tecedentes pessoais (AP), familiares (AF) e história prestada à avaliação do desenvolvimento psico-
sócio-familiar . Nos AP ressaltam a história pre- motor e do nível cognitivo relacionado com a
gressa da gravidez, do parto, do período neonatal, idade cronológica (Escalas de desenvolvimento de
do desenvolvimento psicomotor e de doenças an- Mary Sheridan, de desenvolvimento mental de
teriores. Nos AF salientam-se a existência de con- Ruth Griffiths e outras).
sanguinidade, de doenças com carácter heredofa- No exame ósteo – músculo – articular são re-
miliar e de situações de deficiência e/ou incapaci- gistadas as malformações e deformações ósseas e
dade. articulares e procede-se ao registo quantificado
Na colheita da anamnese sócio-familiar di- das limitações articulares (exame articular). Na
mensiona-se toda a envolvência da criança per- avaliação do movimento, motricidade fina e gros-
mitindo enquadrar a dinâmica do núcleo familiar, seira, há que registar sincinésias, compensações,
como funciona, como nele se reflecte a deficiência movimentos involuntários, com o registo das al-
da criança e a capacidade em prestar a assistência, terações do tono muscular.
e o apoio de que esta vai necessitar. O exame funcional avalia as consequências da
Na perspectiva do diagnóstico funcional deve deficiência e incapacidade nas tarefas básicas, ac-
inquirir-se sobre: independência e dependência da tividades de vida diária e na vida relacional da
criança; de que tipo de ajuda, técnica ou de terceira criança. A criança é observada a executar as diver-
pessoa necessita para realização das actividades de sas tarefas de vida diária na vertente lúdica. Ao
relação ou de vida diária como: comunicação, ali- efectuar o gesto avalia-se a lateralidade, a sua defi-
mentação, higiene, limpeza e arranjo pessoal, vestir, nição, a coordenação óculo-motora, o tempo de
descanso nocturno, transferências e mobilidade. É atenção útil e outros parâmetros. A criança finge
importante saber quem habitualmente presta essa beber um copo de água, lavar os dentes, pentear,
ajuda e disponibilidade (elemento chave). vestir, pontapear, etc.. As capacidades de transfe-
Na realização do exame objectivo a reabili- rência, marcha ou locomoção deverão ser avali-
tação partilha com as demais áreas médicas os adas na sua eficiência, procurando caracterizar o
princípios do exame físico geral com o registo sis- gasto energético que lhes está associado.
temático e comparado dos índices antropométri- Há uma série de escalas que tentam “quan-
cos: peso, comprimento e perímetro cefálico para tificar” o estado funcional do paciente, mais fáceis
além da observação somática. O exame neurológi- de utilizar umas que outras. As mais utilizadas são
co avalia de forma sistematizada os padrões de as Growing Skills e Gross Motor Function Scale. São
vigília, lucidez, comunicação, colaboração, tradu- úteis na monitorização dos progressos da reabili-
zidas pelo interesse e interacção da criança com o tação do doente, podendo servir como meio de tro-
meio, as motilidades global e fina, a força muscu- ca de informações e experiências entre centros e es-
lar (exame muscular duma forma analítica ou colas de reabilitação.
global), a coordenação, o tono muscular, os refle- Após a anamnese e o exame objectivo é formu-
xos osteotendinosos e outros, pesquisa das sensi- lado o diagnóstico etiológico provisório, (poden-
bilidades, pares cranianos e presença de movi- do exigir-se a realização de exames comple-
mentos anormais. Especial importância deve ser mentares para a sua validação), o diagnóstico fun-
prestada à avaliação sensorial. Devem ser pes- cional e o prognóstico.
quisadas anomalias da visão, audição e função de Os diagnósticos etiológico e, sobretudo, o fun-
CAPÍTULO 10 Crianças e adolescentes com necessidades especiais 65

cional, sustentarão o estabelecimento do plano de Análise e Processamento de Sinais do Instituto


reabilitação e as respectivas orientações terapêuti- Superior Técnico, a Unidade de Missão e Inovação
cas nas áreas funcionais de fisioterapia, terapia de Conhecimento, e a Unidade de Técnicas Alter-
ocupacional e terapia da fala. Este plano terapêu- nativas e Aumentativas de Comunicação.
tico deverá ser ajustado à criança, às suas múlti- Os resultados da intervenção terapêutica deve-
plas condicionantes e orientado para a resolução rão ser reavaliados periodicamente, podendo
dos seus problemas. Estes serão hierarquizados e aproveitar-se para tal as idades-chave do desen-
reavaliados ao longo do tempo, abrangendo as volvimento da criança. Poderá haver necessidade
vertentes pessoal, familiar e escolar. Tal programa de reformulação do plano terapêutico e dos objec-
pode passar pela aplicação de agentes físicos tivos inicialmente propostos de acordo com a
(situação menos frequente na criança que no ado- evolução da situação clínica. Toda a intervenção
lescente e no adulto), pela aplicação de técnicas de será prioritariamente, orientada para a resolução
propriocepção (usando o frio e massagem), por dos problemas da criança e da família.
técnicas normalizadoras do tono muscular e es- Com base na experiência do Serviço de Medici-
timulação do desenvolvimento, de que são exem- na Física e Reabilitação do Hospital Dona Estefânia
plo os métodos de Bobath e de Votja. Podem usar- – Lisboa são abordados noutros capítulos aspectos
se métodos de fortalecimento muscular e dife- específicos da reabilitação e habilitação, de modo
rentes técnicas de cinesiterapia e posicionamento. integrado, a saber:
O plano terapêutico pode passar, igualmente, • Reabilitação respiratória
pela prescrição de próteses, ortóteses e ajudas téc- • Reabilitação na linguagem ou “habilitação na
nicas, incluindo as decorrentes das novas tecnolo- criança com dificuldades na comunicação”
gias destinadas a compensar a deficiência da crian- • Reabilitação neurológica
ça ou atenuar-lhe as consequências, e permitindo- – Sequelas de prematuridade
lhe o exercício das actividades de vida diária e a – Habilitação para a marcha e ajudas técnicas
integração na vida escolar, social e profissional. É na criança com spina bifida
o caso das crianças com deficiência motora deter- • Reabilitação ortopédica
minada por amputação, sequela de poliomielite, • Reabilitação do doente com sequelas de quei-
traumatismo vértebro-medular ou paralisia cere- maduras
bral necessitando de ajudas na função de loco-
moção. Expressa-se a ajuda na prótese, no apare- BIBLIOGRAFIA
lho curto ou longo para o membro inferior, em Forsyth R, Newton R, Paediatric Neurology. Oxford: Oxford
auxiliares de marcha, ou na cadeira de rodas com University Press, 2007
adaptação individual. É o caso ainda das crianças Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
com disfunção auditiva e da linguagem, com atra- Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
so escolar e lentidão na aquisição da leitura ou es- Lissauer T, Clayden G. Illustrated Textbook of Pediatrics.
crita e a quem os meios aumentativos ou alterna- Edinburgh: Mosby Elsevier, 2007
tivos de comunicação serão indispensáveis. Na cri- Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds) Rudolph’s Pediatrics.
ança com desvantagem associada a deficiência vi- New York: McGraw-Hill Medical, 2011
sual, a ajuda técnica pode passar pelo computador Vale MC. Classificação internacional da funcionalidade:con-
com visor adaptado à ambliopia e com reforço sim- ceitos, preconceitos e paradigmas. Acta Pediatr Port 2009;
bólico de linguagem Braille. O estudo da necessi- 40: 229-236
dade e adequação das diversas ajudas técnicas às Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatric Hospital
deficiências da criança pode ser efectuado num Medicine. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007
serviço de reabilitação que tenha desenvolvido ex- Zonta MB, Ramalho-Júnior A, Santos LHC. Avaliação funcional
periência neste campo. Porém, há situações es- na paralisia cerebral. Acta Pediatr Port 2011; 42: 27-32
pecíficas e complexas que exigem a aplicação de
ajudas técnicas inovadoras ou decorrentes das no-
vas tecnologias. Em tais situações justifica-se o re-
curso a instituições externas como o Centro de
66 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

11
registos do peso, comprimento, perímetro cefálico,
respectivos percentis e do desenvolvimento psico-
motor. Devem ainda estar referidas as doenças
agudas (diagnóstico e terapêutica), detectadas em
consulta ou episódio de urgência, seja no centro de
saúde, seja no hospital.
CONTINUIDADE DE CUIDADOS
Seguimento regular de uma criança
À CRIANÇA E ADOLESCENTE saudável

Maria do Céu Soares Machado Todas as crianças devem ter um Médico que é o seu
médico e que a criança identifica e conhece pelo
nome.
No centro de saúde, o Médico de Família e a
Importância do problema Enfermeira de Saúde Infantil são os responsáveis
pelo seguimento normal, segundo os parâmetros
A continuidade de cuidados à criança e adoles- definidos pela Direcção Geral da Saúde: Saúde
cente pode ser definida de forma longitudinal – Infantil e Juvenil - Programa Tipo de Actuação,
todos os cuidados primários devem ser prestados 2012 (www.dgsaude.pt)
pelo mesmo profissional; ou transversal – quando O Programa Nacional de Vacinação, o ensino
são necessários cuidados hospitalares ou especiais, da alimentação e de uma vida saudável são da
deve haver articulação e comunicação entre os responsabilidade do médico e da enfermeira do
profissionais envolvidos. CS, assim como os episódios de doença aguda; por
Os cuidados à criança e adolescente devem consequência, as consultas devem ser progra-
também ser centrados na família, o que pressupõe madas em horários de acordo com as necessidades
parceria com os pais nos cuidados e nas decisões, da população local ou seja, na maioria dos casos,
em ambiente adequado e apoio à mesma, de forma pós-laboral.
organizada. Para os CS, a Comissão Nacional de Saúde da
Os cuidados continuados e centrados na família Criança e Adolescente propõe um pediatra
permitem cuidados antecipados de promoção da consultor, nomeado pelo director do serviço de
saúde e prevenção da doença mais efectivos e pediatria da unidade de saúde, através das
coordenados, permitindo estilos de vida mais ade- unidades coordenadoras funcionais (UCFs). As
quados, menos comportamentos de risco, melhor suas funções são basicamente a discussão de
cumprimento do plano de vacinação, menor pro- casos–problema, a referenciação directa e a orga-
cura de apoio de urgência e maior satisfação da nização da formação contínua, com periocidade
família e dos profissionais. variável, de uma vez por semana a uma vez por
Em Portugal, os cuidados de saúde primários mês, de acordo com a disponibilidade do serviço e
são prestados no centro de saúde (CS) pelo espe- a necessidade do CS.
cialista de medicina geral e familiar e pela enfer- As UCFs têm ainda um papel preponderante
meira coordenadora de saúde infantil. Contudo, na divulgação de protocolos de referenciação
verifica-se uma percentagem significativa de discutidos e aprovados de forma abrangente.
crianças e adolescentes com vigilância de saúde O pediatra em regime privado é responsável
em regime de pediatra privado. Os cuidados hos- pelo seguimento, pelo ensino, pelos episódios de
pitalares são prestados quase exclusivamente em doença aguda e pelo aconselhamento das vacinas,
hospitais públicos. sendo a administração destas da competência do
Qualquer que seja o sistema, o Boletim de CS. Idealmente, o mesmo deve estar organizado de
Saúde Infantil (BSI) é o instrumento previligiado modo que, em caso de indisponibilidade numa
de comunicação devendo ser preenchido integral- situação de doença aguda, a família possa recorrer
mente na saúde e na doença. Nele devem constar ao substituto por ele indicado.
CAPÍTULO 11 Continuidade de cuidados à criança e adolescente 67

Os cuidados continuados e centrados na famí- área pediátrica deve ser da responsabilidade do


lia têm uma dimensão especialmente importante médico do hospital ou da institução.
nas crianças de famílias com pobreza e exclusão A equipa hospitalar deve fazer um plano
social ou em situação ilegal (filhos de imigrantes). preciso da terapêutica e seguimento, sendo dis-
A integração e a acessibilidade são as caracterís- cutido com a família e com o médico assistente.
ticas fundamentais dos cuidados básicos de saúde, Não menos importante é o cuidado na cen-
praticadas no contexto da família e da comuni- tralização da informação e da orientação. O doente
dade. crónico ou com necessidades especiais precisa de
A lei portuguesa garante o direito aos cuidados um profissional que centralize o processo de modo
de saúde e à educação facilitando a atribuição de a não haver duplicações e perdas para a família, a
um médico de família. Se apenas forem propi- qual necessita de perceber a quem se dirigir e quais
ciados cuidados de urgência com diferentes médi- as prioridades para o seu filho.
cos, o diagnóstico e intervenção, por exemplo nos Cada um dos profissionais de saúde deve
casos de atrasos do desenvolvimento estaturo- constituir-se advogado ou provedor da criança;
ponderal, psicomotor e nas doenças crónicas, po- mas, nos casos de doença crónica deve existir o
dem ficar comprometidos. “gestor” do doente, a sugerir pela equipa, o que
facilita a comunicação com os pais.
Continuidade de cuidados A comunicação pode ser facilitada por contacto
no internamento hospitalar telefónico ou através do BSI de modo que o médico
assistente esteja suficientemente informado e pos-
A continuidade de cuidados implica manter con- sa esclarecer dúvidas dos pais.
tacto com o médico que presta os cuidados fora do
hospital. Se a criança for internada com doença Transição do jovem com deficiência,
aguda, durante o internamento deve haver con- doença crónica ou necessidades
tacto com o médico assistente, que conhece a famí- especiais para o médico de adultos
lia e em quem os pais confiam.
Na alta deve ser discutida a nota de alta com os O início da idade adulta determina novas neces-
pais e enviada cópia directamente ao médico as- sidades médicas e pessoais, com cuidados médicos
sistente, seja do CS, seja privado. apropriados à idade, mantendo-se os princípios de
Sempre que possível, deve ainda haver articu- continuidade e transdisciplinaridade.
lação entre a enfermeira do hospital e a coorde- A transição efectiva de cuidados é cada vez mais
nadora de saúde infantil do CS. importante, pois cada vez é maior o contingente da
população pediátrica com doença crónica (~15-20%)
Criança com doença crónica e/ou que chega à idade adulta e que, por ter limitações
necessidades especiais funcionais com consequências sociais, emocionais e
de comportamento, experimenta dificuldades na
O seguimento de uma criança/adolescente com passagem dos cuidados pediátricos para os de
doença crónica e/ou necessidades especiais é adultos. Tal transição depende da maturidade,
muito mais do que cumprir prescrições. Envolve independência, capacidade funcional dos cuidados
uma equipa multidisciplinar: criança-pais- médico médicos de adultos, e das diferenças entre a me-
do hospital/cuidados primários/ especialista- dicina pediátrica e a medicina orientada para o
enfermeiro-psicólogo-fisioterapeuta-professor. adulto, as quais constituem duas culturas distintas.
Os cuidados devem ser partilhados com uma Deve acontecer no final da idade pediátrica ou
responsabilidade bem definida de cada elemento seja aos 18 anos mas, em casos especiais, pode ser
da equipa. prolongada até aos 21. Poderá haver resistência
O especialista de medicina geral e familiar ou por parte do adolescente a qual é devida à
o pediatra assistente devem ser responsáveis pelas percepção de que os cuidados na medicina de
vacinas, alimentação, desenvolvimento e doença adultos são deficitários quanto à preocupação de
aguda. O seguimento por outra especialidade ou continuidade e envolvimento da família.
68 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

O processo deve ser iniciado ainda antes da Inkelas M, Schuster MA, Olson LM, Park CH, Halfon N.
adolescência, encorajando as famílias a projectar o Continuity of primary care clinician in early childhood.
futuro do filho. A passagem de testemunho, a Pediatrics 2004; 113: 1917-1725
combinação e concertação quanto a estratégias e Irigoyen M, Findley SE, Chen S, Vaughan R, Sternfels P, Caesar
terapêuticas deve ser real, discutida com o adoles- A, Metroka A. Early continuity of care and immunization
cente e a família. coverage. Child Care Health Dev 2004; 30: 265-277
Os pontos fundamentais são: O’Malley AS. Current evidence on the impact of continuity of
1. Identificação da instituição de saúde mais care. Curr Opin Pediatr 2004; 16: 693-639
apropriada à situação. Rauch DA, Percelay JM, Zipes D. Introduction to pediatric
2. Identificação do médico que passa a assumir hospital medicine. Pediatr Clin N Am 2005; 52: 963-977
a responsabilidade, a coordenação e o planeamento. Reiss JG, Gibson RW, Walker LR. Health care transition: youth,
3. Elaboração de nota de alta ou nota de transi- family and provider perspectives. Pediatrics 2005; 115:
ção escrita, concisa, contendo informação médica 1449-1450
sumária e estratégias combinadas com o jovem e Sassetti L, DGS. Programa de vigilância em Saúde Infantil e
a família. Juvenil, Revisão 2012. Acta Pediatr port 2012; 43: XXXI
Em resumo, os cuidados de saúde à criança e While A, Forbes A, Ullman R, Lewis S, Mathes L, Griffiths P.
ao jovem devem ser especializados, centrados na Good practices that address continuity during transition
família, em parceria, com continuidade, e partilha- from child to adult care: synthesis of the evidence. Child
dos, qualquer que seja o nível quanto a prestação Care Health Dev 2004; 30: 439-452
(primária ou hospitalar), e através de um esforço www.dgs.pt. Direcção Geral da Saúde: Saúde Infantil e Juvenil
interdisciplinar coordenado. – Programa Tipo de Actuação, 2012 (acesso Setembro 2013)
A continuidade de cuidados é, pois, um fenó- www.iqs.pt/cnsca (acesso Setembro 2013).
meno multifactorial que resulta da combinação de
acesso fácil aos profissionais, desempenho ade-
quado, boa capacidade de comunicação entre a
família, os profissionais e as instituições que prestam
cuidados, e excelente coordenação entre todos.

BIBLIOGRAFIA
Alpert JJ, Zuckerman PM, Zuckerman B. Mummy, who is my
doctor? Pediatrics 2004; 113: 195-97
Blum RW. Improving transition for adolescents with special
health care needs from pediatric to adult-centered health
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pediatrician’s role. Pediatrics 2003;112:691-96
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between paediatric and adult healthcare: a systematic
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the continuum of children’s healthcare. Child Care Health
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Hjern A, Bouvier P. Migrant children – a challenge for
European Pediatricians. Acta Paediatr 2004;93:1535-1539
Heller KS, Solomon MZ. Continuity of care and caring: what
matters to parents of children with life-threatening
conditions. J Pediatr Nurs 2005; 20:335-346
PARTE III
Genética e Dismorfologia
70 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

12
que resultam da interacção entre predisposição
genética individual e factores ambientais, proces-
sos complexos ainda pouco conhecidos (a genó-
mica).
Nas últimas décadas a prevenção primária e
secundária estava focalizada nas doenças raras. O
GENÉTICA MÉDICA desenvolvimento das tecnologias de diagnóstico e
o incremento das técnicas de diagnóstico pré-
NA CLÍNICA PEDIÁTRICA natal, de tipo invasivo e não invasivo, teve uma
grande importância na prevenção, associada a
Luís Nunes, Raquel Carvalhas e Teresa Kay outras medidas como a vacinação anti-rubéola e a
suplementação pré-concepcional com ácido fólico.
Mas a informação actualmente existente sobre a
variação genética e a sua sistematização com
Importância do problema recurso a tecnologias bioinformáticas, perspectiva
que possa vir a ter também aplicação no âmbito da
A Genética Médica representa na Medicina Saúde Pública, em doenças complexas como o
moderna uma área do conhecimento que contri- cancro, as doenças cardiovasculares ou a diabetes.
bui com abordagens inovadoras para melhorar a A contínua divulgação de novos dados na lite-
saúde das pessoas e das comunidades. O foco pre- ratura científica, o interesse dos meios de comuni-
ferencial da Genética Médica tem sido nas últimas cação social e da comunidade, a necessidade de
décadas as anomalias congénitas, as doenças referenciar de forma adequada situações com-
genéticas e as doenças raras com o objectivo do plexas, as questões de ética que continuamente
aconselhamento genético e reprodutivo. Mas a são colocadas à sociedade com as novas descober-
enorme inovação em conhecimentos e tecnologias tas e inovações, alertam para a necessidade de os
que resultaram do Projecto do Genoma Humano, médicos e muito em especial os pediatras, adqui-
alargaram o seu âmbito de intervenção às doenças rirem mais qualificação e formação em Genética
comuns de natureza multifactorial, para cuja etio- Médica. As próprias associações científicas estão
logia contribuem factores genéticos e ambientais. conscientes desta realidade e algumas têm promo-
Os instrumentos utilizados pela Genética vido iniciativas científicas de formação e actuali-
Médica interessam aos profissionais de saúde zação de conhecimentos nesta área dirigidas aos
para o diagnóstico da patologia genética, o estudo profissionais de saúde.
das doenças complexas, a prevenção a vários A Genética Médica tem uma grande importân-
níveis e, cada vez mais, pela informação genética cia para a clínica pediátrica. Os pediatras para
obtida por testes genéticos que é útil para decisões além de cuidarem de crianças e jovens com doen-
terapêuticas, por exemplo de farmacogenética. A ça genética ou de risco elevado, têm uma ligação
inovação tecnológica que tem ocorrido, particular- particular com as famílias, o que os torna uma
mente na genética molecular, permitiu identificar fonte de grande credibilidade e veículo para o
inúmeras mutações relacionadas com a etiologia aconselhamento genético. O pediatra em particu-
de doenças específicas, a par de um maior conhe- lar, e todos os clínicos que prestam assistência a
cimento da variação genómica, que se perspectiva criança e jovens, não devem perder oportuni-
como relevante para compreender a etiologia das dades de comunicação e diálogo, por vezes numa
doenças comuns de natureza multifactorial e atitude proactiva, em temas como a reprodução,
interpretar a variabilidade clínica entre os doen- os comportamentos nocivos e os estilos de vida
tes. saudáveis.
Assim, a Genética Médica abrange doenças Para que essa intervenção seja mais eficaz, os
que resultam de uma alteração específica, por médicos devem estar familiarizados com o dia-
exemplo num cromossoma ou gene particular (a gnóstico das doenças genéticas mais frequentes, o
genética), e doenças com componente genético aconselhamento genético, o acesso a fontes de
CAPÍTULO 12 Genética Médica na Clínica Pediátrica 71

informação credíveis e saber orientar os casos ha” pré-definida. Sempre que é exequível deter-
mais complexos para os serviços especializados. minado teste genético com utilidade clínica, o
mesmo deverá realizar-se por ser importante para
A consulta de Genética o doente ter o diagnóstico, o que tem implicações
a outros níveis como o aconselhamento genético, o
A consulta de Genética é uma consulta médica, plano de cuidados ou o projecto de vida.
pelo que inclui elementos comuns a toda a prática A principal responsabilidade do médico gene-
médica em que a história clínica é um elemento ticista é assegurar aos indivíduos e familiares de
essencial. risco genético, informação científica correcta,
A história pessoal inclui uma revisão porme- transmitida de forma adequada e apropriada,
norizada da gravidez, da transição e do percurso sobre a natureza genética da patologia, as técnicas
na infância, do crescimento, do desenvolvimento que permitem obter o diagnóstico e o risco genéti-
psicomotor e sensorial, das complicações médicas, co para a descendência. Nesta perspectiva, para as
precisando o início das manifestações da doença, doenças genéticas o risco corresponde à probabili-
os exames complementares e as intervenções clíni- dade de um descendente ou familiar nascer com
cas entretanto realizadas. uma doença genética particular.
A história familiar deve recolher informação O aconselhamento genético é um processo de
relativa a, pelo menos, três gerações e, nalgumas comunicação em que são discutidos riscos genéti-
circunstâncias, torna-se mesmo útil inquirir outros cos, opções reprodutivas e apoio à família e supor-
familiares. É necessário inventariar outros casos te comunitário. É um acto médico que tem três
semelhantes na família, anomalias congénitas, dimensões principais: realizar ou confirmar o dia-
doenças genéticas, atraso mental ou perturbações gnóstico de uma doença genética, avaliar o risco
neurocomportamentais, mortes fetais ou neona- genético de recorrência e apoiar o casal nas suas
tais, ainda que aparentemente não estejam relacio- opções reprodutivas. Por definição não directivo,
nados com o caso índex. Com base nestas infor- processa-se em termos de respeito pela autonomia
mações é construída a árvore genealógica simpli- e dignidade da pessoa. Porém, o papel do médico
ficada, que permite identificar rapidamente as não pode ser passivo, nem neutro ou indiferente,
relações de parentesco, perspectivar um modo de quando participa no processo de tomada de
transmissão e avaliar os riscos genéticos. decisão pelo casal.
O exame clínico é fundamental para o dia-
gnóstico, interessando quer a percepção global (a Indicação para consulta de Genética
impressão diagnóstica) e o apelo à memória de
casos semelhantes, quer a avaliação e registo das Considera-se que os indivíduos com doença gené-
particularidades do fenótipo. Estas características tica ou de risco genético elevado, e os seus fami-
são mais tarde estudadas com pormenor, e com- liares, deverão ter acesso a uma consulta de
paradas com bases de dados de imagens, progra- Genética Médica ao longo do seu ciclo de vida.
mas informáticos de diagnóstico de síndromas e a Porém, como os recursos actualmente existentes
revisão da literatura científica. A orientação e a são escassos, considera-se que as principais indi-
sequência do exame dependem, também, de um cações para o acesso são as seguintes:
diagnóstico clínico prévio. Os elementos mais a) Indivíduo com suspeita de doença genética
significativos devem ser sempre registados sob a ou anomalias congénitas múltiplas;
forma de imagem. b) Indivíduo com défice cognitivo ou pertur-
A proposta de exames complementares decorre bação neurocomportamental, com ou sem dismor-
das hipóteses diagnósticas formuladas e a sua rea- fias;
lização deve ser criteriosa e económica, tendo em c) Indivíduo com risco genético elevado pela
conta os critérios que permitem o diagnóstico da história familiar;
doença (os elementos necessários para a “definição d) Progenitores de feto cuja gravidez foi medi-
de caso”). Poderá recorrer-se a diferentes tipos de camente interrompida (IMG), ou criança falecida
estudos, mas o diagnóstico não segue uma “cartil- com suspeita de doença genética;
72 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

e) Grávida de risco genético ou com diagnósti- QUADRO 1 – Árvore genealógica: simbologia


co de anomalia embrionária ou fetal; utilizada
f) Mulher com abortos recorrentes;
g) Casal com patologia da reprodução. Simbologia Significado
Homem
Árvore genealógica
Mulher
Ao longo dos anos foram-se uniformizando os
símbolos utilizados para construir uma árvore Casamento
genealógica, seja no âmbito da consulta de
Genética, seja da comunicação científica. Os sím-
bolos que são usados com maior frequência,
encontram-se descritos no Quadro 1. Pais e Filhos
A árvore genealógica é geralmente representa-
da em três gerações, embora nalgumas famílias
seja conveniente ser mais abrangente quando exis-
tirem vários indivíduos afectados ou consanguini- Gémeos dizigóticos
dade. Deve ser construída de maneira simples e
revelar o máximo de informação possível, tendo
em conta a doença particular em estudo. É Gémeos monozigóticos
necessário incluir os dois lados da família e indi-
car na árvore o caso índex e os laços de parentes- Sexo indeterminado
co.
Na árvore genealógica as gerações são repre- Indíviduos afectados
sentadas em números romanos e da vertical para
a horizontal (I, II, III, etc.). Os indivíduos da 2 ?
Número de crianças de sexo
mesma geração são representados por numeração determinado e indeterminado
árabe, da esquerda para a direita, geralmente no
lado direito do símbolo a que se refere. Condutora (doenças recessivas

A árvore genealógica pode ser elaborada ligadas ao X)
durante a consulta a partir da informação que o
doente faculta, o que permite desde logo ter uma Morto
compreensão global dos dados relevantes da
família. Quando existem relações mais complexas, Caso index

ou vários casos de consanguinidade, podem ser


registados sequencialmente os dados essenciais Aborto ou feto-morto de sexo
de cada membro da família e, posteriormente, indeterminado
construir-se a árvore genealógica.
Casamento consanguíneo
Os testes de Genética

Os testes de genética têm por objectivo realizar o


diagnóstico de doenças genéticas ou identificar Indicações
pessoas de risco elevado. A realização dos testes As principais indicações para realizar testes de
de genética processa-se com recurso a várias tec- genética na prática clínica, são:
nologias laboratoriais de acordo com procedimen- a) Confirmação do diagnóstico de uma doença
tos técnicos normalizados e normas éticas e de genética;
segurança que garantam a qualidade dos cuida- b) Identificação do estado de portador de uma
dos. doença genética numa pessoa saudável, mas em
CAPÍTULO 12 Genética Médica na Clínica Pediátrica 73

risco pela história familiar; Nas doenças genéticas de manifestação tardia,


c) Estudo na fase pré-sintomática de indiví- como a doença de Machado-Joseph ou a parami-
duos de risco elevado pela história familiar, em loidose familiar, o resultado do teste pré-sintomá-
doenças genéticas de manifestação tardia; tico assegura ao indivíduo a oportunidade para
d) Rastreio e diagnóstico neonatal, particular- perspectivar a sua vida profissional e reprodutiva,
mente para doenças genéticas que necessitam de quer seja afectado ou não, o que é muito relevante
terapêutica precoce (por exemplo a fenilcetonúria); para o seu projecto de vida.
e) Diagnóstico pré-natal e diagnóstico genético
pré-implantação (DGPI); Limitações
f) Estudos de farmacogenética. A utilização de testes de genética também tem
limitações importantes que o médico deve conhe-
Para se obter o diagnóstico, por vezes é necessá- cer e ter bem presentes na prática clínica. Por
rio realizar vários testes de acordo com o critério clí- outro lado, com a inovação constante nesta área,
nico e uma estratégia, considerando os recursos dis- estão disponíveis continuamente novos testes cuja
poníveis e o estado da arte. A certeza do diagnósti- utilidade clínica e custo/benefício não é evidente,
co é essencial em Genética, pois o médico assume as pelo que o seu uso sem critério pode aumentar os
consequências do diagnóstico em termos de acon- custos de forma significativa sem ganhos para o
selhamento genético e reprodutivo. Colocar um dia- doente. Algumas das limitações são:
gnóstico implica que o doente preencha os critérios a) Não permitem confirmar o diagnóstico de
obrigatórios da “definição de caso”, o que nem certeza em todas as doenças;
sempre é possível com as tecnologias actualmente b) Alguns genes são demasiado extensos para
existentes. Em genética molecular, muitas vezes são serem estudados na totalidade, pelo que a pesqui-
identificadas mutações ou variantes ainda não des- sa de mutações se limita a alguns exões ou a algu-
critas e cujo significado patológico não pode ser mas mutações específicas;
garantido, mesmo com recurso a tecnologias c) Nem sempre a presença de uma mutação
informáticas que simulam o efeito previsível que significa que a doença se venha a manifestar, por
terá na configuração da proteína. penetrância incompleta;
Na neurofibromatose tipo 1 e na síndroma de d) O significado patológico de algumas muta-
Marfan, por exemplo, o diagnóstico é clínico/ ções não é conhecido e nem sempre são responsá-
/laboratorial, de acordo com critérios de consenso veis pela doença;
definidos por peritos. Nestas situações, a realiza- e) A identificação de uma alteração genética
ção de testes de genética molecular não é obri- implicada na predisposição, por exemplo nos
gatória, apenas quando têm utilidade clínica, por genes BRCA1 e BRCA2 relacionados com o cancro
exemplo para fins de reprodução. da mama e do ovário, aumenta o risco do indiví-
duo mas não significa que o indivíduo venha a ter
Vantagens essa doença; e o inverso também é verdade, por
Os testes genéticos constituem em muitos casos o estarem implicadas na etiologia diversas vias
único método que permite obter um diagnóstico fisiopatológicas;
correcto para algumas doenças complexas. Mas, f) O impacte do teste genético nem sempre se
pelas suas particularidades, é necessário saber traduz por benefícios, antes por discriminação
usar este instrumento de diagnóstico de forma social por motivos genéticos, e nem sempre se tra-
adequada. duz por alteração de comportamentos ou mais
Para o pediatra e o clínico geral, o diagnóstico protecção da saúde por parte do doente. (ver
correcto tem a vantagem para estabelecer um pro- Glossário)
grama mais personalizado de cuidados de saúde
que tenha em conta a história natural da doença, Contexto de realização dos testes
prever o recurso a outras formas de apoios como
terapias, ou antecipar mudanças de comporta- Deve ser assegurado um conjunto de critérios para
mentos e estilos de vida. que os testes de genética se realizem de forma cor-
74 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

recta, que tenha em conta uma avaliação clínica deve obedecer a um conjunto de regras que ten-
criteriosa e o diagnóstico diferencial. O aconselha- ham em conta o interesse e as vantagens para a
mento genético prévio é essencial e o médico deve criança e jovem da realização dos exames, salva-
explicar ao doente o tipo de exame que irá realizar, guardando a sua autonomia e o direito de, na
as limitações dos resultados e os benefícios espera- maioridade, tomarem uma decisão informada.
dos. Esta intervenção, a base do consentimento Estas balizas foram tidas em conta na elaboração
livre e esclarecido, é sempre necessária de modo a dos diplomas legais e normativos que têm sido
assegurar o respeito pela personalidade, dignida- incorporados na legislação portuguesa.
de, direitos e superiores interesses da pessoa.
A finalidade dos exames tem importância em Legislação portuguesa
termos de prescrição. Em contexto hospitalar, os
médicos podem e devem prescrever os testes de A lei 12/2005 de 26 de Janeiro sobre informação
genética que são necessários para o diagnóstico. genética pessoal e de saúde é um documento
Todavia, o estudo de pessoas saudáveis para iden- importante que definiu um conjunto de princípios
tificar portadores ou como teste preditivo (pré- no âmbito da Genética Humana. Deveriam ser
sintomático ou de susceptibilidade) é competência regulamentados alguns artigos no prazo de 180
de médico geneticista de acordo com a legislação dias, o que não aconteceu até ao momento, apesar
e as boas práticas internacionais. de várias organizações científicas e a Comissão
No caso da realização de testes preditivos de Nacional de Genética terem apresentado ao
doenças genéticas de manifestação tardia, o proce- Ministério da Saúde propostas nesse sentido.
dimento clínico deverá realizar-se de acordo com
os protocolos existentes, e as melhores práticas. BIBLIOGRAFIA
A bibliografia correspondente aos capítulos 12 a 17 pode ser
Privacidade e confidencialidade consultada no fim do capítulo 17.

A possibilidade de se realizar o estudo directo do


material hereditário constitui um avanço científico
relevante, mas coloca igualmente novos desafios à
sociedade e aos profissionais de saúde.
Caso a informação que resulta da realização dos
testes se torne acessível a empresas ou instituições
de direito privado ou público exteriores ao sistema
de saúde, poderão ocorrer situações de discrimina-
ção na vida privada, no emprego e no acesso a ser-
viços. Este risco de violação da privacidade e de
discriminação pode reportar-se à própria pessoa,
aos familiares e mesmo aos futuros descendentes.
Existe assim, o imperativo ético de o Estado e
os estabelecimentos de saúde salvaguardarem a
informação genética relevante dos doentes,
nomeadamente, no acesso, circulação interna e
arquivamento nos diferentes formatos. Os proce-
dimentos deverão ser rigorosos de acordo com a
legislação em vigor e auditados regularmente.

Realização de testes a crianças


e adolescentes

A realização de testes de genética para fins clínicos


CAPÍTULO 13 Genética: Importância do Laboratório 75

13
transmitir à descendência ou ter um efeito neutro,
ainda que criando biodiversidade.
As mitocôndrias são organitos (organelos) in-
tracitoplasmáticos cuja principal função é a pro-
dução da energia necessária à célula, através de
um processo designado de fosforilação oxidativa.
GENÉTICA: IMPORTÂNCIA Essa energia fica retida em moléculas de adenosi-
na trifosfato (ATP), que podem ser utilizadas nos
DO LABORATÓRIO diversos processos metabólicos da célula. Estima-
se que as mitocôndrias sejam responsáveis pela
Salomé de Almeida, Teresa Kay, Raquel Carvalhas produção de mais de 90% do ATP necessário para
e Luís Nunes cada indivíduo. As mitocôndrias também estão en-
volvidas noutras vias metabólicas como a biossín-
tese de pirimidinas, do colesterol e dos neuro-
transmissores.
Genes e genoma As mitocôndrias possuem um genoma próprio,
o ADN mitocondrial (ADNmt) atrás mencionado,
Os genes são as unidades básicas da informação que é uma molécula circular, semelhante à dos
genética de um indivíduo. Correspondem a uma plasmídeos bacterianos. O genoma mitocondrial e
realidade discreta de uma molécula de ADN (aci- o nuclear comunicam entre si, numa interacção
do desoxirribonucleico), o cromossoma, e contêm permanente, e o ADN nuclear codifica a maioria
a informação necessária para criar uma proteina. das proteínas necessárias à mitocôndria. Os genes
No cromossoma os genes ocupam uma posição mitocondriais codificam 13 polipéptidos essen-
particular que se designa por locus. A informação ciais para a cadeia respiratória, 2 ARNr (ribosso-
genética individual contida nos genes nucleares ou mais) e 22 ARNt (transferência), necessários para
das mitocôndrias, designa-se por genoma. a síntese proteica na mitocôndria.
O código genético inclui “programas” que de-
terminam a leitura dos genes, de forma sequencial Cromossomas
ou alternada, consoante a situação metabólica ou
estádio do desenvolvimento do indivíduo. Os cromossomas correspondem a moléculas de
O ADN nuclear contém cerca de três mil ADN que se formam durante o ciclo celular, quan-
milhões de nucleótidos e estima-se que existam do a célula se divide. É a forma de organizar o
cerca de 25000 genes, que correspondem a pouco ADN, através de múltiplos enrolamentos alta-
mais de 5% do genoma. O ADN mitocondrial mente controlados, envolvendo as histonas, pro-
(ADNmt) é menor, tem características diferentes e teínas nucleares com características específicas,
é constituído por 16570 nucleótidos a que corres- que formam arranjos geométricos específicos, re-
pondem 37 genes que ocupam 93% da molécula. correndo ao enrolamento e super-enrolamento he-
Os genes nucleares distribuem-se ao longo dos licoidal da cadeia. Este processo permite, entre ou-
cromossomas, intercalados por sequências de nu- tras situações, que o ADN esteja acessível, em par-
cleótidos muitas vezes repetitivas cujo significado ticular as regiões importantes para o emparelha-
e relevância biológica ainda se desconhece em mento dos cromossomas homólogos e para a trans-
grande parte. crição do ARNm.
A sequência de nucleótidos de um gene no cro- Os cromossomas, após a preparação laborato-
mossoma designa-se por alelo. Desta forma, para rial, possuem um aspecto linear e são constituídos
cada gene há dois alelos, de acordo com a origem por dois braços unidos por uma zona de constri-
parental. ção: o centrómero. O braço curto é designado por
Por vezes o ADN sofre mutações, que se podem p (petit) e o braço longo designado por q (letra que
traduzir numa vantagem para o indivíduo (o sub- se segue no alfabeto).
strato da evolução), originar doença, que se poderá Cada cromossoma tem um tamanho próprio e
76 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

um conjunto específico de genes. Por exemplo, o cadeia de aminoácidos traduzida e da proteína que
cromossoma 1 é dos maiores, contém cerca de 246 pode ser inexistente, truncada ou ter configuração
milhões de pares de bases, o que representa 8% do anómala.
ADN nuclear. Neste cromossoma existirão 2100 a As principais mutações são a deleção, inserção
2600 genes. e a substituição de nucleótidos na molécula de
As regiões terminais de ambos os braços dos ADN. Designa-se por mutação silenciosa se a alte-
cromossomas correspondem aos telómeros que ração do nucleótido permitir codificar o mesmo
têm funções específicas na replicação e manuten- aminoácido, mutação missense, se resultar num
ção do cromossoma. aminoácido diferente e mutação nonsense, quando
Cada espécie tem um total de cromossomas ca- o tripleto mutado origina um codão STOP.
racterístico. A espécie humana tem 46, que se or- Actualmente as mutações também estão a ser es-
ganizam em 23 pares, dos quais 22 autossomas tudadas a nível do ARNm.
homólogos e um par de cromossomas sexuais. A taxa de mutação do ADNmt é maior compa-
Distinguem-se pelo seu tamanho, posição do cen- rativamente ao ADN nuclear. Nalgumas regiões
trómero e padrão de bandas. O centómero pode es- hipervariáveis da região controlo, essa taxa é ain-
tar posicionado no centro e o cromossoma designa- da maior. São conhecidas dezenas de mutações
se metacêntrico; afastado do centro - submetacên- pontuais e inúmeros rearranjos associados a uma
trico; ou próximo de uma das extremidades – acro- grande variedade de doenças e vias metabólicas.
cêntrico. Se a mutação afectar os intrões, regiões de re-
Os cromossomas podem organizar-se em gru- gulação ou de imprinting, poderá também ter
pos de A a G de acordo com o seu tamanho e a po- consequências biológicas.
sição do centrómero. Actualmente, com as técnicas A mutação que ocorre nas células germinais,
de coloração existentes, foi possível obter um pa- óvulos e espermatozóides, é transmitida à descen-
drão de bandas específico para cada cromossoma, dência, o que é a base da doença genética here-
o que permite avaliar a existência de anomalias de ditária. Se as alterações ocorrem nas células somá-
estrutura. Os autossomas foram numerados do ticas, como é o caso do cancro, podem afectar ape-
maior para o menor, de 1 a 22. O estudo e a orga- nas as células filhas nesse tecido e não são here-
nização dos cromossomas em pares e tamanho de- ditárias. (consultar Glossário)
crescente, incluindo os gonossomas, designa-se
por cariótipo. Testes de Genética
Quando a célula inicia a divisão celular, os cro-
mossomas homólogos emparelham-se. Se a di- Os testes de genética, podem agrupar-se numa
visão celular ocorrer nas células germinais pode perspectiva laboratorial em três grupos: citogené-
ocorrer recombinação genética ou crossing over, tica, genética molecular e bioquímica genética.
que permite a troca de material cromossómico
entre cromossomas homólogos. Citogenética
As principais indicações para a realização de testes
Mutações de citogenética são a suspeita clínica de anomalia
cromossómica, o diagnóstico pré-natal quando
O ADN sofre alterações na sequência de nucleóti- existe um risco genético aumentado, a identifica-
dos, as mutações, que se podem traduzir ou não ção de portadores nas famílias com anomalia cro-
por doença e transmitir à descendência. As muta- mossómica equilibrada, a presença de várias mal-
ções podem ocorrer em qualquer parte do geno- formações congénitas e a patologia da reprodução.
ma, mas tornam-se relevantes em termos clínicos O cariótipo pode realizar-se a partir de vários
quando afectam regiões dos genes que codificam tecidos como o sangue, pele, medula óssea e líqui-
proteínas ou que modulam a sua expressão. do amniótico e vilosidades coriónicas no período
As alterações na região de codificação dos pré-natal. Podem identificar-se vários tipos de mu-
genes, os exões, podem alterar de forma directa a tações como aneuploidias e rearranjos equilibra-
sequência de nucleótidos (frameshift) e modificar a dos ou desequilibrados. Para o diagnóstico de al-
CAPÍTULO 13 Genética: Importância do Laboratório 77

gumas patologias específicas são necessários cas ou não, são a causa de algumas doenças gené-
meios de cultura particulares, de que é exemplo ticas como a síndroma do X-Frágil, a coreia de
conter mitomicina C para identificar a presença de Huntington e a distrofia miotónica de Steinert; es-
fracturas cromossómicas. tas mutações justificam as manifestações da doen-
Nos últimos anos comprovou-se que algumas ça, e fenómenos como a antecipação, o imprinting
doenças genéticas são provocadas por microdele- e a pré-mutação (consultar glossário).
ções cromossómicas que podem ser exploradas Actualmente já é possível estudar por biologia
através de sondas específicas por técnicas FISH, molecular centenas de genes e este número irá au-
quando o quadro clínico é sugestivo. São exemplos mentar nos próximos anos. Nem sempre têm uti-
asíndroma de Prader-Willi (15q11.2-q13) e a sín- lidade clínica; com efeito, nos casos em que foram
droma de Williams (7q11.23). Porém, nem sempre identificados vários genes é necessário que a pres-
a microdeleção explica a totalidade dos casos pelo crição seja cuidadosa e sequencial de acordo com
que é necessário recorrer a outras técnicas para critérios clínicos.
confirmar o diagnóstico, como são o caso das sín- Foram também identificados genes de suscep-
dromas de Prader-Willi e de Angelman. tibilidade implicados na etiologia de doenças mul-
tifactoriais como cancro e doenças degenerativas
Genética molecular do adulto, cuja valorização para a prática clínica
É o método de estudo mais utilizado actualmente deve ser feita caso a caso. No caso do cancro da ma-
para o diagnóstico das patologias mendelianas ma, quando existem critérios de inclusão de acor-
quando já foram identificados um ou mais genes, do com a história familiar, poderão estudar-se os
como são os casos da fibrose quística, da distrofia genes BRCA1 e BRCA2 implicados na predisposi-
muscular de Duchenne e da síndroma de Marfan. ção da doença.
Nalgumas doenças genéticas, uma única mu- Sendo uma área inovadora, a utilização da va-
tação pode ser responsável pela ocorrência da riação genómica na prática clínica deve ser pon-
doença genética quando interfere com o quadro de derada, tendo em conta a utilidade clínica.
leitura e é traduzido um aminoácido diferente; a O estudo genético realizado após a extracção
drepanocitose é um exemplo relevante (localiza- do ADN recorre a várias técnicas como a electro-
ção genética em 11p15.4 no gene HBB). Noutras forese, que se baseia na propriedade de o ADN
patologias, de que é exemplo a fibrose quística, fo- possuir carga negativa em meio neutro ou alcali-
ram descritas centenas de mutações diferentes no no, a reacção de polimerização em cadeia (PCR), a
gene CFTR que se manifestam de forma clinica- sequenciação, o CGH (comparative genomic hybrida-
mente diferente. Nas doenças com estas carac- tion), o cariótipo molecular cujo âmbito de aplica-
terísticas, são importantes os estudos de correla- ção é cada vez mais alargado e os microarrays de
ção entre o genótipo e o fenótipo. ADN que permitem analisar ao mesmo tempo cen-
A síndroma de Marfan é outro exemplo da tenas de mutações em dezenas de genes diferentes.
complexidade da utilização de estudos molecu-
lares. O gene FBN1 é o único gene que está clara- Bioquímica genética
mente associado à forma clássica desta síndroma, Várias técnicas de biologia clínica e enzimologia
mas outros genes como o TBFBR1 e TBFBR2 asso- têm indicação para o diagnóstico das doenças he-
ciam-se a fenótipos semelhantes com aneurisma reditárias do metabolismo que, na generalidade
da aorta, pectus excavatum ou ectopia do cristalino. dos casos, têm transmissão autossómica recessiva.
A valorização dos sinais clínicos é muito impor- A utilização destas técnicas bioquímicas para o dia-
tante, a par do diagnóstico diferencial exaustivo e gnóstico de heterozigotos coloca algumas dificul-
da história familiar. Porém, mesmo nos indivíduos dades por poder haver sobreposição dos valores
com o quadro clássico, apenas é identificada por biológicos com os de indivíduos normais. Quando
sequenciação uma mutação no gene FBN1 em 70- o gene da patologia já foi identificado, os testes de
93% dos casos. bioquímica são complementados com os de gené-
A ocorrência de mutações dinâmicas com re- tica molecular, o que tem vantagens para o dia-
petição de sequências de trinucleótidos, intragéni- gnóstico de portadores e o diagnóstico pré-natal.
78 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

14
Outros testes de bioquímica têm importância
para o diagnóstico de doenças genéticas, como são
o caso do doseamento do factor VIII na hemofilia
A, a electroforese das hemoglobinas ou a quantifi-
cação das hemoglobinas A2 e F nas talassémias.
Estes testes são utilizados nas etapas iniciais do
diagnóstico, a que se segue frequentemente a rea- FORMAS DE HEREDITARIEDADE
lização de testes de genética molecular.
Os tecidos biológicos em que se realizam os Salomé de Almeida, Teresa Kay, Raquel Carvalhas
exames de bioquímica variam de teste para teste e e Luís Nunes
estão padronizados. Para cada caso é desejável
contactar previamente o laboratório que irá realizar
o exame para confirmar aspectos como as condições
da colheita, o acondicionamento, a temperatura e o Os modelos mais comuns de transmissão genética
tempo do transporte até ao laboratório. correspondem aos recessivos e dominantes, com
diversas subcategorias. Mas na última década gan-
haram importância para a Genética Médica outros
tipos de transmissão hereditária, que no conjunto
são designados como “não mendelianos”.

1. HEREDITARIEDADE MENDELIANA

Definição

Por transmissão mendeliana entende-se a trans-


missão hereditária controlada pelos genes de um
único locus.
Os estudos de Gregor Mendel (em 1865) sobre
os padrões de hereditariedade nas ervilheiras, pa-
ra além de terem permitido enunciar as primeiras
leis da hereditariedade, constituem ainda uma ba-
se para compreender as doenças provocadas por
alterações num único gene (doenças monogéni-
cas). As designadas por mendelianas (ou de trans-
missão mendeliana), são transmitidas nas famílias
de geração em geração.

Tipos de hereditariedade mendeliana

O estudo de árvores genealógicas com muitos in-


divíduos afetados por uma patologia em várias
gerações, é útil para determinar o tipo de trans-
missão hereditária se a patologia tiver um fenóti-
po homogéneo, ainda que com alguma variabili-
dade nas manifestações clínicas.
As doenças mendelianas são classificadas con-
forme o gene está localizado nos cromossomas. au-
CAPÍTULO 14 Formas de hereditariedade 79

tossomas ou nos gonossomas, e/ou ainda tem citose, a doença de Tay Sachs, a hemocromatose e
carácter dominante ou recessivo. As formas de a hiperplasia congénita da suprarrenal.
transmissão das doenças mendelianas mais fre-
quentes são a hereditariedade autossómica reces- Hereditariedade autossómica dominante
siva e autossómica dominante, e recessiva ou do- As doenças autossómicas dominantes (AD) ocor-
minante ligada ao cromossoma X. rem quando um indivíduo apresenta uma única
cópia mutada do gene associado à doença. O ale-
Hereditariedade autossómica recessiva lo com a mutação é geralmente herdado de um dos
As doenças autossómicas recessivas (AR) ocorrem progenitores que também manifesta a doença.
quando um indivíduo apresenta nos dois alelos de Estas mutações também podem ocorrer esponta-
um gene uma mutação. Designam-se por homozi- neamente, transmitindo-se aos descendentes do
goto ou heterozigoto composto, conforme as mu- indivíduo doente (mutação de novo).
tações são semelhantes ou não. A dominância em si, não se refere a uma parti-
Uma grande parte das mutações são herdadas, cularidade do gene, mas à sua relação com o alelo
sendo os pais heterozigotos para uma das muta- homólogo, o que se pode influenciar o fenótipo.
ções. Geralmente a mutação recessiva num alelo Têm sido propostos vários mecanismos para ex-
não se traduz em doença, pois a expressão do ou- plicar a dominância. Poderá relacionar-se pela in-
tro alelo é suficiente em termos funcionais para o fluência da proteína produzida pelo alelo com a
indivíduo. Estima-se que todos os indivíduos são mutação no mecanismo de expressão do alelo
heterozigotos para vários genes recessivos. A homólogo, ou pela haploinsuficiência, que resulta
consanguinidade aumenta o risco de ocorrência de de o alelo normal não produzir o produto biológi-
uma doença AR, em particular se a sua frequência co necessário.
for rara. As principais características das doenças com
As principais características da transmissão au- transmissão autossómica dominante são:
tossómica recessiva são: a) Transmissão vertical, identificando-se casos
a) Os casos ocorrem geralmente de forma iso- em gerações consecutivas;
lada, sem referência a outros na família; b) Os homens e as mulheres são igualmente
b) Ambos os sexos são atingidos; afectados;
c) Os progenitores dos indivíduos afectados c) A descendência de um indivíduo afectado
não manifestam doença clínica; tem 50% de probabilidade de herdar o gene com a
d) Quanto mais rara for a doença, maior é a pro- mutação;
babilidade de existir consanguinidade; d) Encontra-se transmissão vertical de pai pa-
e) Na descendência de dois heterozigotos, em ra filho (género masculino);
cada gestação, 50% são heterozigotos, 25% são ho- e) A penetrância incompleta e a expressividade
mozigotos (afectados) e 25% não têm alelos muta- variável são comuns;
dos; f) Ocorrem casos espontâneos, mutação de no-
f) A descendência de um heterozigoto tem a vo, por vezes relacionados com o aumento da ida-
probabilidade de 50% de receber a mutação. de paterna.

Alguns genes recessivos são mais frequentes Nas doenças autossómicas dominantes é ne-
em populações particulares com maior proporção cessário ter ainda em consideração os seguintes
de consanguinidade. São o caso da talassémia nal- fenómenos:
gumas populações mediterrânicas e da doença de • Penetrância incompleta: refere-se à propor-
Tay-Sachs nos judeus Ashkenasi. Quando os genes ção dos indivíduos que sendo portadores de
homólogos têm mutações diferentes pode haver uma mutação, não a expressam clinicamen-
influências no fenótipo, e ser responsável por ex- te. Por exemplo, a coreia de Huntington tem
pressividade variável. uma penetrância de 98% no ciclo de vida,
São exemplos de doenças autossómicas reces- mas estima-se ser de 50% aos 40 anos. A po-
sivas a fibrose quística, a β-talassémia, a drepano- lidactilia, por sua vez, tem uma penetrância
80 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

baixa, o que tem importância para o risco de ma X se comportam como recessivas, a expressão
recorrência. da doença depende do sexo do descendente.
• Expressividade variável: significa que in- As principais características deste tipo de trans-
divíduos portadores da mesma mutação do- missão são:
minante podem expressar um fenótipo dife- a) As mulheres condutoras não expressam a
rente (variabilidade inter-familiar), com gra- doença nas situações comuns;
vidade diferente, mesmo dentro da mesma b) A doença na descendência de uma mulher
família (variabilidade intra-familiar). A es- condutora varia de acordo com o sexo do filho: se
clerose tuberosa é um exemplo de grande va- for masculino, haverá 50% de hipóteses de serem
riabilidade clínica; na acondroplasia a varia- doentes (por terem herdado o cromossoma X que
bilidade é menor. Têm sido propostas várias contém o gene mutado); se for feminino, a proba-
explicações para a expressividade variável, bilidade de ser em heterozigotas é de 50%;
desde o efeito de factores ambientais, a inter- c) Na descendência de um homem afectado, os
acção com outros genes, ou o efeito de “im- filhos são todos saudáveis, pois não herdam o cro-
printing”. mossoma X paterno; as filhas são todas conduto-
• Mutação de novo: significa que ocorreu uma ras.
mutação patológica no genoma do indivíduo
durante o desenvolvimento embrionário, não Quando surgem novos casos numa família, em
existindo história familiar dessa doença. Na geral corresponde a mutações de novo. São exem-
acondroplasia, 85% dos doentes correspon- plos a hemofilia A e B, e a distrofia muscular de
dem a mutações de novo. É um exemplo de Duchenne e de Becker.
mutação de novo associado ao aumento da
origem paterna a síndroma de Apert. Hereditariedade dominante ligada ao cromossoma X
As mutações do cromossoma X que se trans-
São exemplos de doenças autossómicas domi- mitem como dominantes são muito raras.
nantes a coreia de Huntington, a neurofibromato- As principais características desta transmissão
se tipo 1, a hipercolesterolémia familiar, a distrofia são:
miotónica e a síndroma de Marfan. a) A descendência de uma mulher heterozigo-
Para as doenças com genes identificados pode tica e que expressa a doença tem uma probabili-
recorrer-se a testes de genética molecular para efei- dade de 50% de ser afectada, independentemente
tos de diagnóstico. Nas doenças hereditárias de do sexo;
manifestação tardia, como a doença de Machado- b) Se for o pai for afectado, todas as filhas serão
Joseph ou a Coreia de Huntington, pode realizar- doentes, mas nenhum dos filhos.
se o teste preditivo em contexto pré-sintomático. São poucas as doenças que apresentam estas
características. Um dos exemplos é a síndroma de
Hereditariedade ligada ao cromossoma X Rett.
Cada um dos cromossomas sexuais contém diver-
sos genes mas no cromossoma X o número e a com- Hereditariedade ligada ao cromossoma Y
plexidade são maiores. Como acontece com as doenças dominantes liga-
Na mulher, um dos cromossomas X está inacti- das ao cromossoma X, também as patologias ge-
vado na maior parte do ciclo celular, assegurando néticas ligadas ao cromossoma Y são extrema-
o outro alelo, a globalidade das funções necessá- mente raras. Ainda que o cromossoma Y seja ape-
rias ao indivíduo. Este fenómeno de inactivação, a nas herdado pelos indivíduos do sexo masculino
“lionização”, é aparentemente aleatório, explican- do seu pai, algumas patologias resultam de rear-
do que algumas mulheres condutoras manifestem ranjos cromossómicos, identificando-se nestes,
sinais clínicos da doença. As mutações no cromos- genes translocados do cromossoma Y.
soma X podem ser recessivas ou dominantes. Um dos exemplos de patologia ligada ao cro-
Hereditariedade recessiva ligada ao cromossoma X mossoma Y é a deficiência espermática não obstru-
Quando as mutações nos genes do cromosso- tiva (nonobstructive spermatogenic failure), responsá-
CAPÍTULO 14 Formas de hereditariedade 81

vel por infertilidade masculina, e que se deve a mu- tocôndrias, que podem ter conteúdo genético se-
tações no gene USP9Y (ubiquitin-specific protease melhante (homoplasmia) ou diferente (heteroplas-
9Y), o qual está localizado no cromossoma Y. mia). Uma célula pode conter milhares de mito-
côndrias e milhares de cópias de cromossomas mi-
tocondriais; com a divisão celular originam-se ao
acaso, linhas com composição genética diferente.
2. HEREDITARIEDADE Uma mulher pode ter populações homoplás-
NÃO MENDELIANA micas para uma mutação mitocondrial, se o seu ge-
noma mitocondrial for homogéneo para a muta-
Definição e tipos de hereditariedade ção, que será transmitida à descendência.
não mendeliana Em cada célula, o genoma mitocondrial e o nu-
clear comunicam entre si, numa interacção perma-
Determinadas doenças são herdadas de modo que nente o que explica que em muitas situações, mu-
não segue o padrão clássico mendeliano, mas sim tações em genes nucleares se traduzam por mani-
um padrão designado como “não tradicional” que festações a nível da fisiopatologia da mitocôndria.
integra as entidades a seguir descritas. A neuropatia óptica hereditária de Leber
(LHON) é um exemplo de doença mitocondrial,
Hereditariedade mitocondrial normalmente associada à transmissão homoplás-
O genoma mitocondrial de um indivíduo deriva mica de uma mutação mitocondrial. Neste caso, os
inteiramente da mãe tendo em conta uma carac- descendentes de uma mulher com a mutação vão
terística do sexo masculino: o esperma contém es- herdar a mutação mas nem todos a vão expressar,
cassez de mitocôndrias. Uma mulher com doença cerca de 50% dos indivíduos do sexo masculino e
genética mitocondrial pode ter descendentes afec- 10% do sexo feminino.
tados de ambos os sexos, mas um pai afectado não Outro exemplo é uma forma de surdez genéti-
pode transmitir a doença ao descendente. ca, em que uma mutação homoplásmica no gene
Nesta perspectiva, nos seres humanos, o RNR1 que codifica uma proteína do ARN ribosso-
ADNmt é sempre transmitido pela mãe, o que cor- mal, se associa à perda de audição progressiva e
responde a uma herança materna. Como resultado, pós-lingual. Essa perda pode ser acelerada se ocor-
cada indivíduo partilha o seu ADNmt com a mãe, rer a administração de aminoglicosídeos.
os irmãos e irmãs, os avós matemos, os tios e tias As mutações no ADNmit podem provocar a
maternos, enfim com todos os familiares maternos. síntese insuficiente de ATP através da fosforilação
Por ser elevada a taxa de mutações, a variabili- oxidativa, o que compromete a produção de ener-
dade no ADNmt é elevada entre pessoas não apa- gia pelas mitocôndrias e afecta os tecidos que exi-
rentadas. No entanto, na mesma família, as se- gem maior consumo de energia. Poderão assim ser
quências de ADNmt dos familiares relacionados afectados os músculos estriados esqueléticos
com a mãe são muito semelhantes e podem facil- (miopatias mitocondriais), o cérebro (neuropatias
mente ser estudadas. Esta particularidade permi- como MELAS, MERRF, LHON e NARP), o fígado,
te que o estudo do ADNmt tenha diversas aplica- os rins (síndroma de Fanconi), o coração e as glân-
ções, como na identificação de familiares desapa- dulas endócrinas (síndroma de Pearson).
recidos, elaboração de árvores genealógicas,
confirmação de identidade em situações de rapto, Imprinting genético/genómico
entre outras. Em geral, o fenótipo decorre da expressão de ale-
O padrão de transmissão materna traduz-se em los herdados com a contribuição aparentemente
situações de doença mitocondrial, pelo facto de to- idêntica de ambos os progenitores. Há, no entan-
dos os filhos de uma mulher afectada serem afec- to, um conjunto de situações em que apenas se ex-
tados independentemente do sexo, enquanto os pressa um dos alelos, de acordo com um padrão
descendentes masculinos, mesmo afectados, não a pré-estabelecido pela sua origem parental. Ou se-
transmitir à sua descendência. ja, apenas um dos genes está activo (materno ou
Todas as células têm um número elevado de mi- paterno), ficando o outro inativo através de um
82 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

mecanismo de marcação epigenética, designado muns são os tripletos, cuja unidade é um conjunto
imprinting. de três nucleótidos (por exemplo, CGG, CAG,
Nestes casos, o imprinting resulta da modifi- CAA, TAA e GAG), que podem ocorrer intragéni-
cação histónica e/ou da metilação das citosinas de cas ou entre genes.
um dos alelos que inactivam a sua expressão, en- Em qualquer das situações, o alargamento de
quanto o outro alelo permanece desmetilado e ac- uma região nucleotídica, em particular, se incluir
tivo. pequenas sequências repetitivas, pode traduzir-se
O processo de imprinting ocorre durante a ga- por instabilidade do ADN. Esta, pode referir-se à
metogénese, antes da fertilização, através de “mar- estrutura, com a criação de pontos de fragilidade,
cas” em certos genes como provenientes do pai ou ou à função, com interferência no processo de spli-
da mãe e controlando, após a fecundação a ex- cing ou na acção do centro de imprinting.
pressão genética. O imprinting dos alelos permane- As repetições de trinucleótidos são frequente-
ce durante toda a vida do indivíduo, de modo que mente encontradas em genes que codificam fac-
em cada tecido, apenas se expresse o gene de ori- tores de transcrição (proteínas que regulam a ex-
gem materna ou paterna, como ficou determinado. pressão de outros genes) ou em genes que regulam
Na definição do imprinting a estrutura do ADN o desenvolvimento.
não é modificada; por isso este processo é epige- Ao contrário das mutações “clássicas”, nestas
nético. Na realidade, também é reversível, ocor- mutações pode ocorrer variação no número de có-
rendo a desmetilação apenas nas células germina- pias das sequências, por vezes entre gerações, com
tivas durante a embriogénese, definindo-se um no- os descendentes a apresentar alelos de tamanho di-
vo padrão de metilação para os futuros gâmetas do ferente do dos progenitores. Para que a doença se
embrião. A extensão da metilação está sob o manifeste é necessário que o gene possua um nú-
controlo de uma sequência específica de ADN, o mero de repetições acima de um “limiar” (threshold).
centro de imprinting, cuja acção de regulação e me- As principais características das mutações di-
tilação pode envolver centenas de milhares de nâmicas são:
bases adjacentes. a) O padrão de hereditariedade pode ser do-
As consequências dos erros no imprinting minante ou recessivo.
genómico incluem patologias como neoplasias, b) As mutações podem ser transmitida pelo pai
perturbações do desenvolvimento neurológico, ou pela mãe.
doenças metabólicas, síndromes e doenças psi- c) Os genes alvo não são semelhantes em ter-
quiátricas. As síndromas de Prader-Willi e de mos de função.
Angelman, conhecidas na clínica pediátrica, são d) As repetições estão localizadas em áreas di-
exemplos de imprinting, no primeiro caso de ori- ferentes, e podem manifestar por ganho ou perda
gem materna, no segundo de origem materna. de função.
O mecanismo de imprinting pode dever-se a
mutações por deleção ou não delecionais, onde a As mutações dinâmicas são responsáveis por
estrutura do ADN se mantém intacta, mas é afec- várias doenças neurológicas, como a síndroma do
tada a função do centro de imprinting, o que se tra- X-frágil (expansão CGG), a distrofia miotónica de
duz por uma alteração dos processos de metilação Steinert (expansão CTG), a doença de Friedreich
ou desmetilação. No imprinting a expressão do ge- (expansão GAA), doenças degenerativas como a
ne depende da origem do cromossoma(paterno ou atrofia muscular espinobulbar, a coreia de
materno). Huntington, a atrofia dentato-rubro-pálido-
Luysiana e ataxias espinocerebelosas (SCA), como
Mutações dinâmicas/expansão de tripletos a tipo 1 e a doença de Machado-Joseph (DMJ).
Cerca de metade do genoma humano é constituí-
do por sequências repetitivas de ADN, de dois ou Antecipação genética
mais nucleótidos, de forma intercalada ou seguin- O estudo das árvores genealógicas de famílias com
do padrões repetidos sucessivamente sem inter- doenças associadas à expansão de tripletos permi-
rupções (tandem). Uma das repetições mais co- tiu consolidar o conceito de antecipação genética.
CAPÍTULO 15 Anomalias cromossómicas 83

15
Nalguns casos parece evidente que em gerações
sucessivas ocorre um aumento da gravidade da
patologia e o seu início cada vez mais precoce.
Mas só recentemente, com o estudo das muta-
ções dinâmicas, se começou a perceber o mecanis-
mo molecular associado. Como foi referido ante-
riormente, nas patologias que envolvem a ex- ANOMALIAS
pansão dos tripletos, os indivíduos saudáveis têm
um número variável de trinucleótidos repetidos, CROMOSSÓMICAS
originando alelos com diferentes tamanhos, até
um determinado valor limite. Luís Nunes, Márcia Rodrigues, Salomé Almeida,
O limite varia conforme a doença. Por exemplo, Raquel Carvalhas e Teresa Kay
na DMJ o alelo normal contém entre 12 e 39 CAG,
enquanto no gene huntintina responsável pela co-
reia de Huntington, o alelo normal pode ter entre
6 e 26 variações e o gene FMR1 relacionado com a Importância do problema
síndroma do X-frágil, são considerados normais
alelos com 6 a 54 expansões (CGG). Em 1959 foi demonstrado pela primeira vez uma
Para algumas patologias existe uma pré-muta- aplicação médica do estudo dos cromossomas:
ção, quando o processo de expansão parece irre- Jérome Lejeune e colaboradores descobriram a
versível mas o número de tripletos ainda não é pa- presença de um cromossoma extra nas crianças
tológico. A mutação completa define-se quando o com síndroma de Down. A partir de então, foram
número de tripletos se associa à manifestação clí- reconhecidas muitas das principais síndromas
nica da doença. Aparentemente a expansão ocorre causadas por anomalias cromossómicas.
ao nível das células germinais, na formação dos gâ- Actualmente estima-se que as anomalias cro-
metas, pelo que é o óvulo ou o espermatozóide que mossómicas sejam responsáveis por 80% dos abor-
vai transportar o alelo expandido. tos espontâneos do primeiro trimestre da gestação
Observou-se que quanto maior for o tamanho e estejam presentes em 0,7% dos recém-nascidos.
do alelo mutado expandido, maior é a gravidade Os indivíduos com anomalia cromossómica
da doença e mais precoce o seu início. têm, em geral, um fenótipo característico e fre-
quentemente apresentam semelhanças com outros
com a mesma anomalia; porém têm traços fami-
liares dos seus irmãos e progenitores com quem
partilham o material genético. As características fe-
notípicas resultam do desequilíbrio genético pela
sobre ou sub expressão de genes, o que perturba o
curso natural do desenvolvimento embrionário. E
em todas as cromossomopatias desequilibradas
estão presentes dismorfias, anomalias congénitas,
défice cognitivo de grau variável ou dificuldades
de aprendizagem.
Os rearranjos estruturais equilibrados em
que a totalidade do material genético está pre-
sente embora com distribuíção anómala asso-
ciam-se, em geral, a fenotipos normais. No en-
tanto, em indivíduos com rearranjos aparente-
mente equilibrados de novo, há um excesso de
défice cognitivo por razões não completamente
esclarecidas.
84 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Classificação das anomalias síndroma do Cri-du-Chat, descrito por Lejeune e


cromossómicas colaboradores, bem conhecido dos pediatras. As
crianças afectadas, nos primeiros meses de vida
As anomalias cromossómicas podem ser numéri- têm o choro semelhante ao “miar de gato”. Esta
cas ou estruturais e afectar um ou mais cromosso- síndroma é caracterizada por uma deleção do bra-
mas, autossomas ou sexuais, ou ambos. Uma de- ço curto do cromossoma 5: del (5) (p15.3).
terminada anomalia pode estar presente em todas O cromossoma em anel resulta de uma deleção
as células do indivíduo, ou existir em duas ou mais de ambas as extremidades do cromossoma e união
linhas celulares, das quais, pelo menos uma, é anó- das extremidades, dando ao cromossoma a forma
mala, constituindo um mosaico. Estes, originam- citogenética característica.
se por não disjunção numa fase precoce da divisão A duplicação consiste na presença de um seg-
do zigoto, e a proporção de células normais e anó- mento duplicado do próprio cromossoma. São co-
malas pode variar de tecido para tecido. De ocor- muns e geralmente provocam menos alterações fe-
rência muito rara são os casos em que um indiví- notípicas que as deleções. Podem ser directas ou
duo tem células provenientes de dois zigotos dife- invertidas; os mecanismos que as originam são
rentes, o que se designa por quimera. complexos.
A inversão corresponde a uma ruptura dum
Anomalias numéricas cromossoma em dois pontos de quebra e sua re-
Surgem principalmente por não disjunção, na pri- constituição com inversão de 180º do segmento. Se
meira ou na segunda divisão meiótica, fenómeno a inversão envolver apenas um dos braços do cro-
que é ainda mal conhecido e susceptível de contro- mossoma designa-se por paracêntrica; se incluir a
vérsia. região centromérica, é pericêntrica. A inversão iso-
O total de cromossomas de um gâmeta (n=23) lada habitualmente não origina alterações no fenó-
designa-se por haplóide, o dobro do número ha- tipo, o que pode ocorrer se os pontos de quebra se
plóide por euplóide, ou seja com 46 cromossomas. situarem dentro de genes ou sequências regulado-
Os múltiplos de n superiores a 2n, designam-se po- ras. As inversões podem ter consequências no pro-
liplóides: um cariótipo com 3n designa-se triplói- cesso de reprodução, pois algumas crianças em
de e, com 4n, tetraplóide. As triploidias são conhe- que um dos progenitores é portador de uma in-
cidas no homem embora poucos indivíduos com versão, apresentam cromossomas recombinantes
esta anomalia tenham nascido vivos. As tetraploi- com duplicações ou deleções.
dias foram encontradas apenas em abortos pre- A translocação ou deslocamento de um ou
coces. A poliploidia ocorre por mecanismos ainda mais segmentos de cromossoma pode ser de dois
mal esclarecidos. tipos: recíproca ou robertsoniana. A translocação
Qualquer número de cromossomas num carió- recíproca consiste na troca de fragmentos de cro-
tipo que não seja um múltiplo exacto do número matina entre cromossomas não homólogos, o que
haplóide designa-se por aneuplóide. Estas, podem normalmente dá origem a fenotipos normais. O
ocorrer nos autossomas e nos gonossomas. cromossoma formado chama-se derivado (der). Os
descendentes de um indivíduo com translocação equili-
Anomalias estruturais brada podem ter cariótipo normal, herdar a transloca-
A deleção consiste na perda de uma região do cro- ção com fenótipo normal, ou originar gâmetas desequi-
mossoma, que pode ser terminal, se tiver ocorrido librados cuja manifestação será um aborto espontâneo
apenas um ponto de quebra; ou intersticial, se ti- ou um recém-nascido com cromossomopatia complexa.
verem existido dois pontos de quebra. A parte de- A translocação robertsoniana ocorre entre dois
lecionada, se não contiver centrómero (fragmento cromossomas acrocêntricos (13, 14, 15, 21, 22,) que
acêntrico), em geral perde-se numa divisão celular se fundem na região do centrómero e perdem os
posterior. seus braços curtos heterocromáticos, mostrando o
As deleções nas regiões subteloméricas asso- cariotipo 45 cromossomas. Este tipo de transloca-
ciam-se a vários sindromas com défice cogniti- ção, descrito por Robertson, é o rearranjo equili-
vo.Um exemplo comum de deleção terminal é a brado mais comum na população, com uma fre-
CAPÍTULO 15 Anomalias cromossómicas 85

quência de 1 em cada 1000 indivíduos. Uma das de materna. Em 4% dos casos, a trissomia 21 re-
translocações mais comuns ocorre entre os cro- sulta de uma translocação que pode ocorrer de no-
mossomas 13 e o 14: der (13;14) (q10;q10). Na des- vo ou relacionar-se com uma translocação num dos
cendência de um portador pode ocorrer a forma- progenitores, mais frequentemente dos cromosso-
ção de gâmetas desequilibrados. mas 14 e 21. O risco de recorrência depende dos
A inserção é um tipo raro de translocação não cromossomas envolvidos e do sexo do progenitor
recíproca, em que um segmento de um cromosso- com a translocação. Cerca de 1% dos casos são mo-
ma é inserido noutro. saico que, na maioria dos casos, se manifesta por
O isocromossoma forma-se devido à divisão fenótipos menos marcados, nomeadamente em
errada do centrómero que separa os dois braços termos cognifitivos e na dismorfia. A associação e
em vez dos dois cromatídeos, com a duplicação de a prevalência das manifestações clínicas são varia-
um dos braços do cromossoma. O tipo mais co- das (Figura 1 e Quadro 1).
mum de isocromossoma é do braço longo do cro-
mossoma X. Dos casos de síndroma de Turner, 15% Trissomia 18 (Síndroma de Edwards)
a 20%, correspondem a esta anomalia cromossó- A trissomia 18, descrita pela primeira vez por
mica. Edwards em 1960, tem uma frequência de 1 em ca-
da 8000 recém nascidos. A esperança de vida des-
Síndromas de causa cromossómica tas crianças é em média de 2 meses, apesar de al-
guns casos sobreviverem vários anos. Cerca de
Trissomia 21 (Síndroma de Down) 80% dos indivíduos são do sexo feminino. A etio-
A trissomia 21 foi descrita pela primeira vez por logia da trissomia 18 mais frequente é a não dis-
Langdon Down em 1866, mas a sua causa foi des- junção, mas cerca de 10% são mosaicos.
conhecida durante quase um século. Desde as des- As crianças com trissomia 18 têm atraso de de-
crições iniciais ressaltou que a idade materna senvolvimento grave, dismorfia facial característi-
nesses indivíduos era mais avançada do que a mé- ca (nomeadamente fronte proeminente, hipoplasia
dia. Só em 1959 foi verificado que as crianças com da mandíbula e pavilhões auriculares de baixa im-
trissomia 21 tinham 47 cromossomas, sendo o cro- plantação e malformados). O esterno é curto. As
mossoma extra um acrocêntrico, o 21. A designa-
ção de mongolismo caiu em desuso: reportava-se
ao facto de o fenótipo sugerir uma origem oriental
pela obliquidade em V das fendas palpebrais. A
trissomia 21 é geralmente diagnosticada ao nascer
ou pouco depois, pela dismorfia facial caracterís-
tica e outras características fenotípicas.
As crianças são geralmente hipotónicas o que
tem relevância nos primeiros meses de vida. Em
cerca de 40-60% dos casos existe cardiopatia
congénita, frequentemente defeito completo do
septo aurículo-ventricular. São também frequentes
anomalias do tubo digestivo e da área neuro-sen-
sorial. Todas as crianças têm défice cognitivo, ha-
bitualmente de grau moderado. A sobrevivência é
cada vez mais longa, superior aos 60 anos nos
países mais afluentes.
A trissomia 21 ocorre na forma livre, por trans-
locação ou em mosaico. A forma mais frequente é
a forma livre (95% dos casos) em que todas as cé-
FIG. 1
lulas têm 47 cromossomas. A causa principal é a
não disjunção, relacionada com o aumento da ida- Caso de trissomia 21 (fácies).
86 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Síndroma de Down.


Algumas características

Características faciais
• Face redonda/Dismorfia craniofacial
• Pregas do epicanto e inclinação em V das fendas
palpebrais
• Manchas na íris, catarata, estrabismo
• Protusão da língua
• Orelhas pequenas
Outras anomalias
• Occiput achatado
• Sulcos anormais na palma das mãos e planta dos FIG. 2
pés (dermatoglifos) Síndroma de Edwards. Inclinação antimongolóide (em A) das
• Hipotonia, obesidade, hiperlaxidão ligamentar fendas palpebrais.
• Cardiopatia congénita (40% dos casos)
• Atrésia duodenal
Problemas de manifestação tardia
• Dificuldades de aprendizagem
• Baixa estatura
• Infecções respiratórias correntes
• Défice auditivo relacionável com otite serosa
• Risco elevado de leucemia
• Risco de instabilidade atlanto – axial (rara)
• Hipotiroidismo
• Doença de Alzheimer

mãos fecham-se de um modo característico, com o


segundo e o quinto dedo sobrepondo-se ao pri-
FIG. 3
meiro e ao quarto. Os pés são arqueados com cal-
canhares proeminentes. São frequentes os defeitos Síndroma de Edwards. Aspecto de calcanhar saliente, “em
cardíacos (Quadro 2 e Figuras 2 e 3). martelo”.

Outras anomalias do cromossoma 18 Trissomia 13 (Síndroma de Patau)


Foram identificadas outras anomalias, como dele- A trissomia 13 foi pela primeira vez descrita por
ções parciais do braço curto e longo, trissomia do Patau em 1960; os indivíduos afectados apresen-
braço longo, e cromossoma 18 em anel. Os fenóti- tam um conjunto característico de anomalias fe-
pos são característicos de cada anomalia, mas a notípicas e cerca de metade dos recém-nascidos
manifestação individual é particular. morre no período neonatal. As anomalias mais fre-
quentes são: holoprosencefalia, fenda palatina e lá-
QUADRO 2 – Síndroma de Edwards bio leporino (60-80% dos casos), microftalmia, po-
lidactilia, defeitos cardíacos e renais. Cerca de 20%
• Maxilar inferior hipoplásico dos casos ocorrem por translocação (Figura 4).
• Orelhas de implantação baixa
• Sobreposição dos dedos das mãos (polegar sobre a Síndroma de Klinefelter (47,XXY)
palma, sobreposição do médico com o anelar) Esta síndroma foi descrita em 1942 por Klinefelter e
• Calcanhar saliente (em forma de “martelo”) caracteriza-se por imaturidade no desenvolvimento
• Defeitos congénitos cardíacos e renais sexual, testículos pequenos, alterações ou ausência
de espermatogénese e ginecomastia; alguns indiví-
CAPÍTULO 15 Anomalias cromossómicas 87

QUADRO 3 – Síndroma de Turner

• Linfedema das mãos e pés no recém – nascido


• Baixa estatura
• Prega do pescoço (pterigium colli)
• Cúbito valgo
• Mamilos muito afastados da linha média
• Defeitos cardíacos congénitos (particularmente coarc-
tação da aorta)
• Disgenésia ovárica com consequente infertilidade
• Desenvolvimento cognitivo normal

loquacidade verbal e grande sociabilidade. A voz


rouca é um sinal esperado.
FIG. 4
Síndroma de Patau em RN com holoprosencefalia. Síndroma de Prader-Willi
É causado em cerca de 70% dos por uma deleção
duos são altos e de tipo eunuco. Cerca de 15% dos em 15q11-13 no cromossoma de origem paterna;
casos correspondem a mosaicos, com duas ou mais nos casos restantes, uma parte tem origem em dis-
linhas celulares, nomeadamente 46,XY/47,XXY. somia parental materna. O fenótipo é relativa-
Existem outras variantes de aneuploidias dos cro- mente característico, com hipotonia e dificuldades
mossomas sexuais como 48,XXYY, 48,XXXY, e na alimentação desde o nascer, dismorfia facial,
49,XXXXY. Geralmente os indivíduos têm algum dé- atraso do desenvolvimento psicomotor ligeiro a
fice cognitivo ou dificuldade de aprendizagem e al- moderado, e compulsão para a comida que se po-
terações fenotípicas que se relacionam com o total de traduzir em obesidade e hipocrescimento.
de cromossomas X e Y no cariótipo.
Síndroma de Angelman
Síndroma de Turner (45,X) Resulta de uma deleção em 15q11-13 em 60% dos
A síndroma de Turner foi descrita em 1938 por casos, no cromossoma de origem materna, e geral-
Turner. As raparigas afectadas têm um grau variá- mente de novo. Os casos restantes são causados por
vel de baixa estatura, pescoço largo, baixa implan- dissomia uniparental paterna e outros mecanismos
tação dos cabelos, infantilismo sexual e dificul- moleculares não delecionais (20% dos casos). Esta
dades de aprendizagem. Na maioria dos casos há patologia caracteriza-se por um atraso cognitivo
infertilidade e amenorreia. Cerca de 40% corres- grave, défice importante da linguagem e microce-
pondem a mosaicos. Esta anomalia encontra-se falia. As etapas de desenvolvimento estão afecta-
frequentemente associada a hydropsia fetal e abor- das precocemente estando descritas alterações neu-
tos espontâneos (Quadro 3). rológicas e no EEG muito características.

Síndroma de Williams Síndroma de Smith-Magenis


Resulta de uma deleção do gene da elastina em É uma microdeleção na região 17p11.2. Os indiví-
7q11, na maior parte dos casos de novo. Os indiví- duos têm défice cognitivo, fenótipo comportamen-
duos têm um fenótipo que varia ao longo da vida. tal com auto-agressividade e perturbação no padrão
As dismorfias mais características são aspecto de do sono. É frequente a baixa estatura e a obesidade.
“enchimento” das órbitas, irís estrelada, ponte na-
sal plana e boca grande. As manifestações cardía- Alterações cromossómicas
cas são estenose aórtica supravalvular e estenoses somáticas no cancro
periféricas da artéria pulmonar. Os indivíduos têm
défice cognitivo e um perfil comportamental com Em 1960, Peter Nowell e David Hungerford asso-
88 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

16
ciaram pela primeira vez, uma anomalia cro-
mossómica com o aparecimento de cancro, utili-
zando uma técnica de citogenética em tecido tu-
moral. Especificamente, foi descrito o cromossoma
Philadelphia em doentes com leucemia mielóide
crónica. Este cromossoma resulta de uma translo-
cação específica entre os cromossomas 9 e 22. DOENÇAS MULTIFACTORIAIS
As técnicas de biologia molecular permitiram
saber que no ponto de quebra, no cromossoma 9, Luís Nunes, Rui Gonçalves, Salomé Almeida
ocorre a fusão dos genes BCR e ABL, que passam e Teresa Kay
a codificar uma proteina anómala que interfere
com regulação normal do ciclo celular levando a
crescimento celular descontrolado.
Posteriormente, foram identificadas centenas Conceitos básicos
de alterações cromossómicas associadas a genes
específicos que provocam instabilidade no geno- Na maioria dos casos as doenças genéticas e as
ma. Estas anomalias são altamente variáveis em anomalias congénitas resultam da interacção entre
diferentes cancros, bem como os fenótipos resul- factores genéticos e ambientais em contexto am-
tantes. O seu estudo tem valor para confirmar o plo, que abrange comportamentos e estilos de vi-
diagnóstico e para prognóstico. da. As doenças genéticas com estas características
Algumas translocações foram associadas a di- são denominadas multifactoriais. São exemplos, a
ferentes tipos de cancro, como são o caso da generalidade das doenças cardiovasculares, o can-
t(2;5)(p23;q35) no linfoma anaplásico de célu- cro, doenças mentais, diabetes mellitus, esclerose
las grandes, e a t(8;14) no linfoma de Burkitt (ge- múltipla e algumas anomalias congénitas.
ne c-myc). Mas alguns doentes e famílias com patologia
Uma das hipóteses apontadas para explicar es- multifactorial têm características de transmissão
ta associação sugere que as primeiras alterações mendeliana, o que se relaciona com mutações em
patogénicas nas células tumorais resultam de rear- genes específicos. Porém, na generalidade dos ca-
ranjos equilibrados, que conferem à célula vanta- sos, os dados empíricos obtidos a partir de estudos
gens proliferativas. Os rearranjos interrompem familiares não mostram esse perfil de transmissão.
genes específicos envolvidos na regulação celular, Ao contrário das doenças mendelianas que são
como proto-oncogenes ou genes supressores de tu- doenças raras, as doenças multifactoriais são em geral
mores, formando genes híbridos ou interferindo frequentes, mais evidentes com a idade e encontram-
com os mecanismos de reparação de ADN. Com a se em quase todos os doentes. Estas últimas, inte-
progressão da neoplasia, surgem as mais variadas grando patologias cuja etiologia tem uma compo-
alterações cromossómicas, estruturais ou numéri- nente genética com interacção com factores am-
cas, tornando-se cada vez mais desequilibradas bientais e comportamentos, manifestam-se pela
com a progressão da doença. agregação familar de casos ou pela evolução clíni-
O estudo das formas hereditárias de cancro tem ca com características similares à de outros fami-
contribuído para a compressão dos mecanismos liares.
associados à génese tumoral, identificando-se vá- Alguns genes não causam a doença por si só,
rios genes relacionados com o desenvolvimento de mas influenciam com outros genes a predisposição
cancro familiar. As tecnologias de microarrays e genética ou susceptibilidade individual, que
CGH têm permitido obter conhecimentos impor- contribui para causar ou manifestar clinicamente
tantes nesta área (Capítulo 126). a doença. Os factores etiológicos das doenças mul-
tifactoriais, de causa genética ou ambiental, desi-
gnam-se por carga genética (liability). O modelo
multifactorial pressupõe que esta “carga” tem uma
distribuição normal na população, que é res-
CAPÍTULO 16 Doenças multifactoriais 89

ponsável por uma grande variabilidade dos fenó- etiologia da doença. O conceito de oligogenia re-
tipos. É maior nos familiares dos indivíduos afec- fere-se às situações em que um locus tem um efei-
tados, o que vai aumentar o risco de recorrência de to predominante no fenótipo, ainda que necessite
acordo com a proximidade familiar. da colaboração de outros genes para que a doença
Outro pressuposto deste modelo é o de limiar se expresse.
(threshold), ou seja, a doença manifesta-se quando Os factores ambientais implicados na origem
é ultrapassado um determinado gradiente, e o destas doenças são variados, o que decorre de os
fenótipo tem uma expressão clínica tanto mais gra- indíviduos viverem numa interacção permanente
ve em termos clínicos, quanto mais esse limiar for com outros indivíduos e com o ambiente físico en-
superado. Quando a carga genética não ultrapassa o volvente e terem comportamentos, atitudes e cren-
limiar, a doença não se expressa em termos clínicos. ças que influenciam a saúde e a doença. Aspectos
O sexo do indivíduo, a proximidade de paren- como o comportamento alimentar, o sedentarismo
tesco e a existência de vários casos na família, são ou a prática regular de exercício físico, os valores
algumas das varáveis que influenciam o limiar, o e a vivência espiritual, a capacidade de interagir
que pode aumentar ou diminuir o risco de mani- socialmente, têm sido referidos como varáveis re-
festação da doença. levantes para a etiologia e a evolução clínica de al-
A contribuição dos factores genéticos para as gumas destas doenças.
doenças multifactoriais resulta do efeito combina- Em síntese, poderemos considerar que as prin-
do de genes múltiplos, em locus diferentes. A cipais características do modelo multifactorial pa-
contribuição individual de cada gene para a pre- ra explicar a etiologia das doenças complexas em-
disposição poderá ser muito reduzido. Designa-se bora frequentes, com contribuição de factores ge-
por hereditabilidade (heritability) a proporção da néticos para a etiologia, são as seguintes:
variação fenotípica que pode ser atribuída aos fac- • Todos os genes têm um efeito no fenótipo,
tores genéticos, e é determinada por estudos po- com importância variável;
pulacionais ou em indivíduos com características • O efeito dos genes é aditivo ou sinérgico;
particulares como gémeos ou adoptados. A here- • Os genes individualmente não exprimem do-
ditabilidade varia entre 1, quando a variação de- minância ou recessividade;
pende exclusivamente da acção dos genes, e 0 se • O efeito da “carga genética” exprime-se a
depende apenas de factores ambientais. No pé bo- partir de um limiar;
to estima-se ser 0,8, na estatura de 0,8 e na inteli- • A variação dos fenótipos tem uma distribui-
gência entre 0,5 a 0,8. ção normal.
O estudo com gémeos monozigóticos e dizigó-
ticos, que partilham a totalidade ou metade do ma- Epidemiologia
terial genético tem grande utilidade. A concordân-
cia ou não da doença em vários contextos, como a Não existe uma definição consensual sobre “doen-
separação ao nascer, que não pode ser explicada ça comum” embora, de acordo com Harper em
por transmissão mendeliana, permite obter indi- 2004, possa corresponder às patologias com ex-
cações relevantes sobre a contribuição genética pa- pressão clínica cuja frequência seja superior a 1 em
ra doenças ou características contínuas, de que são cada 1000. Porém, Portugal adoptou o critério pa-
exemplos a altura ou a inteligência. Os estudos ra definir doença rara utilizado pela União
com indivíduos adoptados permitem igualmente Europeia de 1 em cada 2000, o que poderá ser tido
obter dados importantes, em condições metodoló- em conta por exclusão.
gicas rigorosas. Ao nascer, cerca de 70% das doenças genéticas
A componente genética que resulta da interac- têm uma etiologia multifactorial, em comparação
ção de genes não se traduz por critérios compatí- com 2,4% para as doenças mendelianas e 0,4% pa-
veis com a transmissão mendeliana, e não tem ma- ra as cromossómicas. De acordo com Baird et al, no
nifestação cromossómica. Têm sido identificados Canadá, a frequência destas patologias é de 46,4
em doenças multifactoriais alguns genes, como é o por 1000 indivíduos com idade inferior a 25 anos.
caso do cancro, mas não explicam apenas por si a Relativamente às anomalias congénitas, estima-se
90 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

que sejam responsáveis, pelo menos, por 50% dos destacam-se as associações entre o HLA B27 e a es-
casos. pondilite anquilosante, o DR4 e a artrite reu-
Nalgumas doenças multifactoriais a incidência matóide e o DR2 na narcolepsia. Ainda não são
varia de acordo com o género, como é o caso da es- conhecidos os mecanismos implicados na associa-
tenose do piloro, que é 5 vezes mais frequente no ção, mas deve ter-se em conta que a simples pre-
sexo masculino. As anomalias do tubo neural, pe- sença do marcador HLA não significa que o in-
lo contrário, são mais frequentes no sexo feminino. divíduo venha a manifestar a doença.
Na doença arterial coronária é conhecido que é Noa últimos anos, na sequência do Projecto do
mais frequente nos homens, e ao considerar a ori- Genoma Humano e das tecnologias de estudo mo-
gem étnica, mais frequente em indivíduos com ori- lecular que foram desenvolvidas, foram identifi-
gem africana do que em caucasianos ou asiáticos. cadas diversas associações entre genes e marca-
Com recurso a tecnologias recentes como os es- dores para doenças comuns. Muitos destes trabal-
tudos GWAS (genome-wide association studies), foi hos não foram posteriormente confirmados por
avaliada a influência do sexo na frequência de outros autores em populações diversas, o que re-
doenças comuns como a hipertensão arterial, a dia- leva questões de ordem metodológica, incluindo o
betes tipos I e II e a artrite reumatoide entre ou- tipo de estudos, a definição de caso ou a homoge-
tras. Foram encontradas associações específicas neidade dos fenótipos. Novas tecnologias como a
entre doença arterial coronária e o género mas- GWAS e instrumentos biostatísticos complexos,
culino, e entre doença de Crohn e o feminino. Estas têm permitido reapreciar os resultados de estudos
tecnologias inovadoras poderão trazer novos anteriores e reavaliar o interesse científico de al-
contributos ao conhecimento das doenças multi- gumas conclusões.
factoriais. Uma patologia muito estudada é a doença de
Algumas doenças que foram inicialmente Alzheimer, doença muito complexa cuja natureza
consideradas multifactoriais, comprovou-se mais genética não está totalmente esclarecida. Os casos
tarde terem outra etiologia. É o caso da úlcera pép- com manifestação precoce correspondem a muta-
tica antes da descoberta de um agente infeccioso, ções dominantes, mas a sua frequência é rara, en-
o Helicobacter pylori, que se associa à etiologia des- quanto os casos com manifestação tardia poderão
ta doença. explicar-se pela presença de variantes genéticas
Nem sempre é possível distinguir entre o que com uma frequência elevada mas com baixa pene-
é genético ou herdado pelo facto de os indivíduos trância. O factor genético que está estatísticamen-
partilharem condições de vida, cultura e valores, e te associado à susceptibilidade a esta doença é o
estarem incorporados na vida quotidiana das co- alelo APOE-_4. Num estudo de metanálise foram
munidades. Um exemplo clássico é o Kuru, uma identificados 20 polimorfismos em 13 genes rela-
variante da doença de Creutzfeldt-Jakob identifi- cionados com esta patologia, com um OR para o
cada em nativos da Nova Guiné cuja etiologia não risco entre 1,1 e 1,38, e com um efeito protector
foi compreendida inicialmente; mais tarde foi re- entre 0,92 e 0,67 (Beltram et al), o que sugere não
lacionda com canibalismo ritual, o que explicava a terem utilidade clínica.
distribuição e as características dos indivíduos As toxidependências , incluindo a estupefa-
afectados. cientes e álcool, são patologias complexas de outra
natureza, mas cada vez é mais evidente o contri-
Predisposição buto de factores genéticos para a sua etiologia.
Vários estudos mostram a associação de variantes
A associação entre a doença e factores genéticos genéticas com significado estatístico. A influência
pode manifestar-se em diferentes contextos e tem da variação genética na adição poderá verificar-se
suscitado um redobrado interesse. Uma das for- a vários níveis do processo comportamental, das
mas mais bem conhecidas e mais estudadas é a as- vias metabólicas e da biodistribuição dos produtos.
sociação entre algumas doenças com componente No caso da cancro da mama, a predisposição
imunológico e os antigénios HLA, cujo locus se en- tem características diferentes, com a identificação
contra no cromossoma 6. Entre outros exemplos, de dois genes o BRCA1 e BRCA2. O risco relativo
CAPÍTULO 16 Doenças multifactoriais 91

de cancro da mama nas mulheres com mutações trados em estudos epidemiológicos de base popu-
no BRCA1 é superior ao das que as têm no BRCA2, lacional em condições quase naturais. O risco empí-
mas em ambos, é maior do que se não forem iden- rico tem grande importância para o aconselha-
tificadas mutações. O risco para cancro da mama mento genético e reprodutivo, por exemplo, quan-
numa mulher ao longo do seu ciclo de vida, se ti- do um casal já tem um filho afectado ou um dos
ver uma mutação nestes genes, é de 50 a 80%, 5 a progenitores é portador de uma doença genética.
8 vezes superior em relação às restantes mulheres. O risco empírico da ocorrência de uma doença
Em 40% das mulheres com mutação no BRCA1 e multifactorial depende de vários factores, nomea-
20% no BRCA2 é diagnosticado cancro do ovário, damente:
o que constitui um risco significativo face ao da • Frequência da doença na população
população em geral. • Grau de parentesco com a pessoa afectada
Mas encontra-se uma mutação nestes genes em (maior risco nos parentes em primeiro grau)
apenas metade dos casos familiares. Estão identi- • Número de familiares afectados
ficados outros genes de predisposição para o can- • Gravidade clínica do caso índex
cro da mama, mas raramente são identificadas mu- • Sexo da pessoa afectada
tações. Estes dados contribuem para o entendi-
mento de que existem diferentes mecanismos en- Os resultados de estudos efectuados em popu-
volvidos na etiologia desta forma de cancro, en- lações e em períodos temporais diferentes mostra-
volvendo factores genéticos e ambientais. ram variações na estimativa do risco, o que deve
Outra área de investigação tem a ver com a cir- ser tomado em consideração pelo médico. Para
cunstância de a predisposição poder ter implica- além das diferenças genéticas eventualmente exis-
ções para os trabalhadores expostos a situações de tentes entre populações, questões metodológicas
risco no local de trabalho. Alguns estudos indiciam como a “definição de caso”, a nomenclatura e a
correlações entre polimorfismos e o risco profis- classificação das doenças ao longo do tempo de-
sional, mas ainda se torna necessário mais inves- vem ser ponderadas.
tigação para se obter prova científica. O interesse Alguns exemplos práticos da utilização do ris-
desta linha de investigação é interessante na pers- co empírico de recorrência no aconselhamento ge-
pectiva da segurança dos postos de trabalho. nético em situações comuns, são:
Em termos moleculares, a predisposição é com- • Lábio leporino e fenda palatina: risco global
plexa e ainda muito mal compreendida pela inter- de 4% numa futura gestação se o casal tiver
ferência de inúmeros processos que se interligam. um filho afectado e de 10% se tiver dois afec-
Alguns modelos computacionais com aplicações tados, na condição de nenhum dos progeni-
gráficas avançadas apontam para provável pre- tores ter doença; risco de 2,2% para a primei-
disposição, mas actualmente ainda sem conduzi- ra gestação se um dos progenitores tiver a
rem a um esclarecimento cabal. Com efeito, a pre- doença;
disposição não pode ser explicada por simples • Comunicação interventricular: 3,5% se o ca-
mutação ou polimorfismo dos genes, havendo que sal tiver um filho afectado e os pais forem
contar com factores biológicos como o número de saudáveis; 3-5% se um dos progenitores tiver
cópias (copy number variation – CNV), variações a cardiopatia;
epistáticas (epistatic interactions), efeitos modifi-
cadores e epigenéticos e outras interacções mal Luxação congénita da anca: risco global de 6%,
conhecidas com o ambiente. mas variando entre 1% para o sexo masculino e
11% para o feminino; se um dos progenitores for
Risco afectado, o risco de recorrência é 12%.

Nas doenças multifactoriais o risco empírico re- Prevenção


presenta a probabilidade de ocorrer uma doença
genética particular na população. Esse risco obtém- Quando são conhecidos os factores ambientais as-
se, em grande parte, a partir dos resultados encon- sociados com a etiologia de uma doença genética,
92 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

17
a estratégia de prevenção passa pelo afastamento
de factores nefastos, pela suplementação, ou pela
modificação dos comportamentos e estilos de vida.
Um exemplo que demonstra a possibilidade de
se intervir na prevenção das doenças multifacto-
riais corresponde à descoberta da relação entre o
ácido fólico e as anomalias do tubo neural. Nas DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL
famílias de risco, a suplementação com ácido fóli-
co no período pré-concepcional e pré-natal redu- Teresa Kay, Diana Antunes, Raquel Carvalhas
ziu a incidência destas anomalias de forma signi- e Luís Nunes
ficativa .
Actualmente a suplementação em ácido fólico
no período pré-concepcional e pré-natal faz parte
das recomendações de vigilância de saúde duran- Definição e importância do problema
te a gravidez para todas as grávidas em Portugal,
existindo campanhas a nível internacional para O conceito de diagnóstico pré-natal (DPN) abran-
que seja possível generalizar a suplementação de ge um conjunto de técnicas de diagnóstico clínico
todas as mulheres. para confirmar a integridade constitucional ou ge-
nética de um embrião ou feto em desenvolvimen-
to. Recorre a meios complementares de diagnósti-
co não invasivos como a ecografia, os radiogramas
e ressonância magnética nuclear (RMN), ou inva-
sivos como amniocentese, colheita de vilosidades
coriónicas, cordocentese e fetoscopia.
As intervenções de DPN necessitam do funcio-
namento harmonioso de uma equipa multidisci-
plinar, que inclui nomeadamente:
• Obstetras com conhecimento de medicina fe-
tal, das técnicas de DPN e dos procedimen-
tos para a realização de interrupção de gra-
videz;
• Pediatras, nomeadamente neonatologistas,
com experiência em dismorfologia e anoma-
lias congénitas;
• Geneticistas com experiência de aconselha-
mento genético e patologia do desenvolvi-
mento;
• Cirurgiões, cardiologistas pediátricos e espe-
cialistas de outras áreas clínicas, com expe-
riência no diagnóstico e tratamento de pato-
logias complexas de base genética;
• Enfermeiros, técnicos do serviço social,
psicólogos e outros profissionais.

Esta equipa congrega conhecimentos e saberes


diversificados em termos científicos, e competên-
cias para prestar cuidados especializados ao feto
desde a realização de técnicas de diagnóstico até
intervenções complexas de medicina fetal em que
CAPÍTULO 17 Diagnóstico pré-natal 93

o feto é cuidado na sua globalidade, isto é, como analítica, formação adequada dos profissionais e
doente in utero. A este propósito, há que realçar as uma comunicação adequada entre os interve-
implicações éticas de uma tão grande diversidade nientes.
de intervenções. No Quadro 1 apresenta-se a incidência de tris-
De acordo com a legislação portuguesa, os hos- somia 21 em função da idade materna.
pitais com Centros de Diagnóstico Pré-Natal 2 – Filho anterior com aneuploidia
(CDPN) têm uma Comissão Técnica de Se um casal teve um filho com aneuploidia na
Certificação de Interrupção de Gravidez (CTCIG) forma livre, de novo, o risco empírico de recorrên-
que, no âmbito da respectiva instituição, analisam cia é superior ao risco dada a idade cronológica, o
e decidem os pedidos da interrupção de gravidez que justifica a realização de cariótipo fetal.
no seguimento da realização de exames de DPN. 3 – Progenitor com translocação equilibrada
Neste contexto justifica-se realizar o cariótipo
Indicações fetal para excluir a ocorrência de translocação de-
sequilibrada no feto. O risco de recorrência de-
Sistematizando, podem ser consideradas as se- pende dos cromosssomas envolvidos e da locali-
guintes modalidade de técnicas de DPN: não in- zação no cromossoma da anomalia estrutural. Um
vasivas e invasivas. casal neste contexto poderá ter fetos com compo-
sição cromossómica normal ou anomalia igual à do
Técnicas não invasivas progenitor ou desequilibrada.
As técnicas não invasivas de DPN são aplicadas a 4 – Feto com diagnóstico de anomalia fetal
um número alargado de situações, corresponden- Os fetos com diagnóstico in utero de uma ano-
do a doenças em que ainda não foi possível locali- malia congénita major têm em 4% dos casos outras
zar o gene ou não existe um diagnóstico etiológico. anomalias morfológicas. Deste modo, é necessário
Em tais circunstâncias podem ser utilizadas a eco- realizar sempre um estudo ecográfico detalhado e
grafia em diversas modalidades, a ecocardiografia, técnicas invasivas para determinar o cariótipo fe-
e outras técnicas imagiológicas em função do tal, pois uma percentagem significativa dos fetos
contexto clínico e idade gestacional. Nos casos com tem anomalias cromossómicas.
envolvimento do sistema nervoso central, a RMN Um significado diferente tem a identificação de
CE pode dar indicações importantes tal como a eco- marcadores ecográficos, como translucência da
grafia 3D para valorizar características morfológi- nuca aumentada, apontando para risco acrescido
cas, nomeadamente, alterações crânio-faciais. de aneuploidias.
1 – Idade materna ≥35 anos 5 – Doenças genéticas específicas
A idade materna igual ou superior a 35 anos é Se tiver sido possível caracterizar em termos
a indicação mais frequente para a realização de
DPN, pois associa-se ao risco acrescido de não dis- QUADRO 1 – Incidência de trissomia 21
junção dos cromossomas. As anomalias cromossó-
micas mais frequentes ao nascer e associadas a Idade materna Risco de trissomia 21
idades maternas mais avançadas são as trissomias no parto ao nascer
21, 18 e 13. Estas mutações podem ser suspeitadas 35 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/384
por ecografia, valorizando o padrão de anomalias 36 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/307
congénitas que está presente. Porém, torna-se 37 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/242
sempre necessário confirmar o diagnóstico pela 38 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/189
realização do cariótipo fetal. 39 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/146
A identificação de marcadores bioquímicos e 40 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/112
ecográficos no primeiro e segundo trimestre de 41 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/85
gestação tem permitido desenvolver fluxogramas 42 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/65
de diagnóstico e decisão clínica com ponderação 43 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1/49
do risco face à idade cronológica. Pressupõe e exis- Adaptado de Burton PR, 2006

tência de condições como controlo de qualidade


94 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

genéticos o caso índex com a identificação da mu- contacto com a placenta, sob controlo ecográfico, e
tação responsável, é possível realizar um DPN es- a aspiração de 10-25 mg de vilosidades coriónicas.
pecífico para essa doença. Tal inclui doenças com Trata-se duma técnica de DPN do primeiro tri-
transmissão mendeliana (recessiva, recessiva liga- mestre de gestação, sendo as suas indicações, em
da ao cromossoma X ou outra) e mutações dinâ- termos genéricos, semelhantes às da amniocente-
micas como a distrofia miotónica de Steinert. se. Apesar de vários estudos realizados em vários
países terem mostrado que o risco de perda fetal é
Técnicas invasivas semelhante ao da amniocentese, actualmente é
As principais técnicas invasivas utilizadas pa- ainda aplicada por escassas equipas médicas na
ra DPN são: maioria dos países europeus.
1 – Amniocentese 3 – Cordocentese
A amniocentese, a técnica invasiva mais utili- A cordocentese ou colheita de sangue dos va-
zada, realiza-se sob controlo ecográfico entre 14- sos do cordão umbilical fetal, realiza-se a partir das
16 semanas de gestação. A sua realização tem um 18 semanas de gestação. Tem indicações muito pre-
risco de aborto de 0,5%, que é menor nos centros cisas e exige que o especialista em medicina fetal
de maior diferenciação e realizando maior núme- tenha grande experiência nesta área. As suas prin-
ro de exames invasivos. cipais indicações são a realização do cariótipo fe-
Deve ser precedida por um exame ecográfico tal, a avaliação da presença de infecção fetal, no-
para confirmar o número e a viabilidade dos fetos, meadamente de citomegalovírus, parvovírus B19
a localização da placenta e do cordão umbilical, as- e toxoplasmose, e o estudo genético de algumas
sim como a quantidade de líquido amniótico. É de doenças da coagulação e imunodeficiências. A cor-
fácil realização, com inserção de uma agulha atra- docentese é também utilizada para terapêutica fe-
vés da parede abdominal directamente no saco tal, nomeadamente, para transfusão intravascular
amniótico, e aspiração de 20-30 ml de líquido am- de produtos sanguíneos, e para a administração de
niótico. Após a amniocentese, deve verificar-se a medicamentos directamente ao feto.
actividade cardíaca fetal (idealmente deverá estar À cordocentese poderão seguir-se complica-
normal), e se existe sangramento da placenta, feto ções na grávida e no feto, embora pouco fre-
ou cordão umbilical. quentes (por ex. amnionite e hemorragia trans-
Caso não ocorra qualquer intercorrência, em plancentar). A perda fetal nas grandes séries é cer-
termos de cuidados a ter após realização da técni- ca de 1%, mas este valor aumenta 4 a 5 vezes no ca-
ca, apenas se aconselha à grávida que limite a rea- so de transfusão intravascular.
lização de esforços importantes, natação ou banho 4 – Fetoscopia e biópsia de tecidos
de imersão nas 24 a 48 horas seguintes. A fetoscopia é uma técnica invasiva que per-
Nas gestações gemelares dizigóticas, é igual- mite a visualização do feto com recurso a equipa-
mente possível realizar amniocentese, embora se- mento de endoscopia com uma lente de focagem
ja necessário proceder à injecção de um produto de associada a bandas de fibras ópticas que transmi-
contraste que permita ao obstetra identificar o sa- tem luz para a cavidade amniótica. Para a colhei-
co amniótico que vai puncionar. ta de tecidos fetais associa-se ao fetoscópio uma
De referir que a partir do líquido amniótico po- pinça de biópsia específica.
dem ser realizados exames de citogenética, de ge- As indicações para a realização desta técnica
nética molecular e de bioquímica genética, desi- são cada vez mais raras pelo desenvolvimento da
gnadamente perante contexto clínico sugestivo de biologia molecular que permite realizar o DPN es-
fibrose quística, síndroma do X-frágil ou distrofia pecífico, sem necessidade de visualização directa
muscular de Duchenne. do feto.
2 – Colheita de vilosidades coriónicas
A colheita de vilosidades coriónicas é realiza- Estudo do feto
da por via transcervical ou transabdominal entre
10-12 semanas de gestação. A colheita por via va- Os fetos com anomalias congénitas ou que resul-
ginal implica a colocação de um cateter estéril em taram de interrupção médica de gravidez, devem
CAPÍTULO 17 Diagnóstico pré-natal 95

ser estudados de forma apropriada após o parto permite obter resultados geralmente favoráveis no
implicando avaliação prévia pelos especialistas de bloqueio aurículo-ventricular completo cuja fre-
medicina fetal, de obstetrícia, de neonatologia e, quência é cerca de 1/20.000 recém-nascidos.
idealmente de genética. Devem registar-se os da- Destes, cerca de metade tem alterações cardíacas
dos essenciais do fenótipo (hábito externo), o que estruturais. A terapêutica medicamentosa com ter-
é complementado posteriormente pela autópsia e butalina, ou isoproterenol permite um sucesso re-
exame anátomo - patológico (hábito interno), com lativo e está indicada apenas, quando não existem
o objectivo de se obter o diagnóstico genético. anomalias cardíacas estruturais associadas, ou hi-
Importa realizar sempre os seguintes procedi- dropisia fetal.
mentos: 4. Síndroma das válvulas da uretra posterior
• Descrição do hábito externo e das anomalias Apresenta-se sob duas formas distintas: a) com
encontradas; obstrução unilateral ou ligeira obstrução bilateral
• Registo por imagens fotográficas em vários e líquido amniótico normal; b) com oligoâmnio
planos, desde a perspectiva global ao registo grave e rins displásicos. Os fetos com função renal
detalhado de aspectos particulares que po- não afectada são candidatos à realização de cirur-
derão ser úteis para o diagnóstico; gia in utero, com boas expectativas de sucesso te-
• Realização de radiogramas em dois planos; rapêutico. Os fetos com sinais de displasia renal si-
• Colheita de sangue do cordão ou biópsia da gnificativa não beneficiam da cirurgia fetal.
pele para estudos genéticos, nomeadamente 5. Anomalia adenomatosa quística congénita
do cariótipo. A correcção intra-uterina desta patologia po-
derá realizar-se através de toracocentese com co-
Terapêutica fetal locação de derivação para o líquido amniótico, ou
por cirurgia fetal, com histerotomia e remoção da
O progresso científico e tecnológico permite já ho- massa pulmonar torácica. Até ao momento o nú-
je a realização de intervenções sobre o feto duran- mero de intervenções cirúrgicas realizadas é es-
te a gestação, de carácter médico ou cirúrgico, com casso, pelo que se torna necessário avaliar com
impacte na sobrevivência e na qualidade de vida ponderação os resultados favoráveis que foram
do recém-nascido. Esta área corresponde, na ver- publicados.
dade, à Medicina do Feto. 6. Hérnia diafragmática congénita
Prevê-se que nalgumas das áreas venha a ocor- A hérnia diafragmática congénita é a principal
rer um maior desenvolvimento nos próximos causa de morte por falência respiratória, com hi-
anos. Eis alguns exemplos: pertensão pulmonar devida a hipoplasia pulmo-
1. Hidrocefalia nar em recém-nascidos. Nalgumas séries, a cirur-
O procedimento de registo internacional desi- gia in utero permitiu a sobrevivência de 70% a 80%
gnado por "Fetal Surgery Registry" encontrou uma dos fetos (Capítulos 308 e 309).
sobrevivência de 83% após cirurgia de drenagem
da hidrocefalia fetal. Porém, em 18 dos 34 sobrevi- Diagnóstico pré-implantação
ventes foram detectadas posteriormente alterações
importantes no desenvolvimento psicomotor. O diagnóstico genético pré-implantação (DGPI)
2. Hiperplasia congénita da supra-renal permite efectuar o diagnóstico genético a partir de
A administração de betametasona à grávida, o uma única célula embrionária, com recurso a téc-
mais precocemente possível até se determinar o nicas de reprodução medicamente assistida e
sexo fetal, pode impedir a virilização no sexo fe- transferência ou congelação dos embriões selec-
minino. cionados.
3. Disritmias cardíacas Os seus objectivos principais, são o nascimen-
Estima-se que a incidência da taquicardia su- to de um ser humano sem a alteração genética
praventricular seja entre 1/10000 e 1/25000 fetos. identificada anteriormente no caso índex ou histo-
Quando diagnosticada, deverá ser abordada como compatível para doação de material biológico ne-
uma emergência e tratada com digoxina, o que cessário à vida de outro ser humano.
96 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Esta tecnologia constitui um avanço importan- ADN se replica, os 2 filamentos separam-se e cada um, com
te da ciência. Porém, as questões éticas que levan- a ajuda da enzima ADN polimerase, forma um novo fila-
ta são ainda motivo de debate na sociedade por- mento, dando origem a 2 novas hélices, idênticas na se-
tuguesa e na comunidade científica. quência de bases:G – C/A – T.
Alelo > um dos dois genes diferentes que ocupam posições cor-
Legislação portuguesa respondentes ou idênticas (locus) em cromossomas homól-
ogos, que exercem a mesma função mas determinam carac-
A legislação portuguesa mais relevante nesta área terísticas diferentes.
é a seguinte: ARNm (mensageiro) > o ácido nucleico que transporta do nú-
Despacho 5411/97, de 8 de Setembro cleo para o citoplasma a informação genética do ADNpara
Define o âmbito e os princípios, a população ser traduzida (ver adiante o termo tradução) em proteína
em risco e os modelos de organização dos Centros (cadeia polipeptídica).
de Diagnóstico Pré-Natal, e estabelece o modo de Autossoma > qualquer cromossoma que não seja sexual.
participação da Genética nesses Centros Bandeamento cromossómico (Banding) > Processo técnico que
Despacho 10325/99, de 5 de Maio permite observar um padrão determinado de bandas claras
Complementa o Despacho anterior e define o e escuras para cada cromossoma. Descrevem-se vários
modelo de constituição dos Centros e os recursos tipos: C,G,N,Q,R,T.
de que deverá dispor. Carga genética (liability) > efeito cumulativo dos factores
Portaria 189/98, de 26 de Fevereiro genéticos na ocorrência de uma doença.
Estabelece a constituição das Comissões Clone celular > Conjunto de células geneticamente idênticas
Técnicas de Certificação da Interrupção de com origem, por divisão mitótica, numa única célula-mãe.
Gravidez e as respectivas competências. Clones de ADN > Múltiplos fragmentos iguais , obtidos por
Portaria 741-A/2007, de 21 de Junho meio de técnicas de recombinação do ADN.
Actualiza a informação sobre a constituição das Codão > sinónimo de Tripleto (ver adiante).
Comissões Técnicas de Certificação da Interrupção Codominância > Situação em que há expressão individual dos
de Gravidez e as respectivas competências dois alelos de um locus, num heterozigoto.
Lei n.º 12/2005 de 26 de Janeiro Congénito > qualquer característica ou doença que esteja pre-
Sobre a informação genética pessoal e infor- sente, visível ou não, no nascimento.
mação de saúde Consanginidade > quando um casal partilha ascendentes co-
Lei n.º 32/2006 de 26 de Julho; Diário da muns.
República, 1.a série – N.o 143 – 26 de Julho de 2006 Cromossoma > estrutura intracelular que contém o material
Regula a utilização de técnicas de procriação hereditário do indivíduo. A capacidadede coloração deve-
medicamente assistida -se à cromatina.
Deleção > Tipo de aberração cromossómica em que há perda
GLOSSÁRIO de parte de um cromossoma. A nível molecular significa a
Ácidos nucleicos > constituintes da célula viva (essencialmente perda de um ou mais nucleótidos do ADN.
do núcleo), que contêm uma base púrica, um açúcar e áci- Dermatoglifos > Padrões ou tipos de distribuição das pregas
do fosfórico (sob a forma de éter). Existem 2 tipos: o ácido ou sulcos dos dedos e palmas ou plantas dos pés.
desoxirribonucleico (ADN) e o ácido ribonucleico (ARN). Diplóide > diz-se de uma célula que possui uma série dupla de
ADN > ácido desoxirribonucleico que suporta a informação cromossomas homólogos.
genéticado indivíduo. Este material consiste numa dupla Enzima de restrição > grupo de enzimas de origem bacteriana
hélice, como uma escada em espiral, na qual: o corrimão é que corta o ADN em sequências específicas.
feito de moléculas alternadas de desoxirribose (um açúcar) Exão > segmento do gene que regula a sequência de aminoá-
e fosfato; e os degraus feitos de bases purínicas e pirim- cidos duma proteína.
idínicas, mantidas juntas por pontes de hidrogénio. A “es- Expressividade > a intensidade com que se exprime um de-
cada” é torcida em dupla hélice. As bases purínicas são a terminado fenótipo.
adenina (A) e a guanina (G); e as pirimídicas: a citosina (C) Fenocópia > fenótipo devido à acção de factores ambientais,
e a timina (T). As referidas pontes de hidrogénio”garantem” mimetizando um carácter determinado geneticamente.
o emparelhamento de A com T e de G com C. Quando o Fenótipo > características físicas de um indivíduo; representa
CAPÍTULO 17 Diagnóstico pré-natal 97

a interacção entre o património genético do indivíduo e os (origem paterna ou materna). Assim, o contributo paterno
factores ambientais. ou materno para o genoma do zigoto (em termos fun-
FISH > “Fluorescent in situ hybridization”; é um método da cionais)pode não ser equivalente, provavelmente devido a
genética laboratorial. graus de metilação diferentes.
Fratria > conjunto de irmãos e irmãs descendentes de um casal. Intrão > segmento do gene que intervém na (ou concretiza) se-
Gene > unidade essencial do material hereditário (segmento de quência de aminoácidos duma proteína.
ADN) que codifica um produto que vai desempenhar uma Limiar > valor do efeito cumulativo dos factores genéticos, que
função. permite a ocorrência de uma característica multifactorial.
Gene candidato > gene que se considera estar associado a de- Linkage > situação em que genes, localizados com grande prox-
terminado carácter ou doença no decorrer de estudos mol- imidade, tendem a ser co-herdados.
eculares, face à proteína que codifica ou às suas caracterís- Locus > a localização específica de um gene específico num cro-
ticas conhecidas. mossoma.
Genoma > conjunto dos cromossomas de um gâmeta (célula Microdeleção > perda de material cromossómico com uma ex-
sexual), cujo número é característico de cada espécie e que tensão que não permite a sua visualização por microscopia
estão presentes em exemplares simples (ao contrário dos de luz.
cromossomas das células somáticas que se apresentam aos Mutação > alteração espontânea que ocorre no material hered-
pares, possuindo assim cada célula somática dois geno- itário.
mas). Na espécie humana, o genoma é formado por 23 cro- Mutação mtADN > mutação de gene mitocondrial.
mossomas. Parentesco em 1.° grau > indivíduos que partilham 50% do
Genómica > estudo do genoma e da sua acção. património genético: pais, irmãos, filhos.
Genótipo > toda a informação genética contida no ADN do in- Parentesco em 2.° grau > indivíduos que partilham 25% do
divíduo, que inclui o ADN existente nos cromossomas, nas património genético: meios-irmãos, avós, tios, sobrinhos,
mitocôndrias e noutros organelos intracelulares. netos.
Gonossoma > cromossoma sexual, o X ou o Y. PCR > técnica de biologia molecular que permite amplificar se-
Haplóide > diz-se de células que possuem apenas um exem- lectivamente sequências de ADN (Reacção da polimerase
plar de cada um dos cromossomas próprios da espécie (23 em cadeia ou Polymerase Chain Reaction).
na espécie humana). Os gâmetas são haplóides. Penetrância > expressão da frequência com que ocorre deter-
Haplótipo > sequência de locus com proximidade num cro- minado fenótipo, quando um dos alelos tem uma mutação.
mossoma que tendem a ser herdados em conjunto. Polimorfismo > característica genética em que existe mais de
Hemizigotia > presença de um único alelo no genoma, uma forma comum na população.
condição que se verifica, normalmente, para a grande maio- Portador > indivíduo heterozigoto em que um dos alelos tem
ria dos loci do cromossoma X, nos indivíduos do sexo mas- uma mutação de uma doença autossómica recessiva.
culino. Corresponde também a condições anormais (por ex. Proteonómica > técnicas que estudam as proteínas produzidas
após deleção) em que , em vez de um genótipo diploide, se pelo genoma e como interagem para determinar as funções
encontra uma única cópia de um alelo. biológicas.
Hereditabilidade > proporção da variância total de uma car- Susceptibilidade genética > representa a predisposição para
acterística que é causada pelos genes. a ocorrência de determinada doença pela presença de um
Hereditariedade mitocondrial > hereditariedade que tem por alelo particular ou combinação de alelos.
base os genes localizados nas mitocôndrias e que são trans- Telómero > a extremidade natural de um cromossoma.
mitidos exclusivamente por via materna. Tradução > processo pelo qual uma cadeia polipeptidica se
Heterozigoto > ter uma forma alélica deferente de um gene, origina a partir de um ARN.
em locus homólogos; isto é, 2 genes diferentes, com a mes- Transcrição > processo pelo qual um gene se expressa num
ma localização em cromossomas homólogos. ARN mensageiro.
Homozigoto > ter a mesma forma alélica nos dois locus homól- Transgene > gene que foi incorporado no genoma de outro or-
ogos; isto é, 2 genes idênticos com a mesma localização em ganismo.
cromossoma homólogos. Triploidia > situação de um núcleo, de uma célula, ou de um
Imprinting > fenómeno pelo qual um dos genes do par de ale- organismo cujo complemento cromossónico inclui três
los de um locus tem expressão diferente do outro gene desse genomas haplóides. A triploidia é uma das formas fre-
locus, em função do sexo do progenitor de que foi herdado quentes de poliploidia.
98 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

18
Tripleto > grupo de três bases púricas (ou purínicas) ou pir-
imídicas na molécula de ADN ou ARN, que condiciona a in-
corporação de (codifica para) um aminoácido específico na
molécula de uma proteína. Sinónimo de codão.

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orders are not always carriers of the respective mutant al- e o reconhecimento de factores nocivos do ambi-
lels. Hum Genet 2004; 114: 521-526 ente como causa de anomalias congénitas, que
tornaram possível não só os conhecimentos que
hoje temos da sua etiologia e epidemiologia, bem
como a utilização de métodos de prevenção cada
vez mais eficazes.
Hoje as AC são um problema de Saúde Pública
e a sua incidência é tanto mais elevada quanto
menor for a idade gestacional considerada. Se no
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 99

período pré-natal é difícil quantificar a sua im- QUADRO 1 – Anomalias congénitas – Etiologia
portância devido ao elevado número de perdas
embrionárias e fetais por AC, elas são relativa- Etiologia
mente frequentes e preocupantes no período pós- • Factores de Ambiente (Teratogénicos) (~10%)
-natal, uma vez que 2 a 3 por cento dos recém- • Factores Genéticos (~10-25%)
nascidos vivos têm uma ou várias AC de gravi- – Determinação poligénica
dade muito variável, o que justifica frequente- – Genes mutantes
mente o recurso a internamentos hospitalares pro- – Desequilíbrio genético (anomalia cromossómica)
longados; constituem, efectivamente a segunda • Factores Ambientais e Genéticos
causa de mortalidade perinatal. Numa avaliação • Factores Desconhecidos (~65-75%)
da mortalidade infantil em Portugal nos anos de Jones Kl, 1997

1991 a 1993, L Nunes e MCA Carvalho encon-


traram uma percentagem de 27,3% de óbitos no
primeiro ano de vida e de 15% entre 1 e 4 anos, de- QUADRO 2 – Anomalias congénitas – Factores
vidos a AC. ambientais
É, no entanto, de prever que a criação e desen-
volvimento de Centros de Diagnóstico Pré-natal Factores Ambientais (Teratogénicos)
bem organizados e equipados venham a ter, cada • Germes Microbianos
vez mais, um impacte considerável sobre a pre- – Agentes TORCH
venção de anomalias graves e não tratáveis no – Vírus da varicela
recém-nascido. • Doenças Maternas
É clássica a comparação das AC a um iceberg. – Diabetes mellitus
As que se evidenciam após o nascimento, repre- – Fenilcetonúria materna
sentadas pela parte visível da massa gelada, são – Hipertemia
apenas uma pequena parcela da realidade. Na ver- • Agentes Químicos, Físicos, Drogas
dade, a maioria das AC, particularmente as mais – Álcool
devastadoras, são letais no período pré-natal: – Aminopterina e metotrexato
– cerca de 40% dos zigotos não sobrevivem – Anticonvulsantes
devido a erros de desenvolvimento, particu- – Dietilestilestrol
larmente durante as primeiras oito semanas; – Lítio
– 2 a 3% dos recém-nascidos (RN) têm anoma- – Metil-mercúrio
lias congénitas, a maioria das quais de na- – Radiações
tureza genética; – Tetraciclina
– das mais de 4000 doenças mendelianas – Talidomida
indexadas no catálogo de doenças hered- – Análogos da Vitamina A (ácido retinóico)
itárias de McKusick, cerca de 1900 têm alter- – Varfarina
ações da morfogénese, sendo para cima de – Cocaína
Jones Kl, 1997
1000 as descritas com conjuntos malforma-
tivos complexos.
1 – Desenvolvimento embriofetal normal
Factores etiológicos e patológico – Breves conceitos
O genoma que o zigoto recebe dos seus progeni-
O Quadro 1 resume os factores etiológicos mais tores constitui um conjunto de regras que permite
frequentemente implicados: genéticos e ambien- construir um embrião. Essas regras, que cons-
tais (teratogénicos), por vezes associados; pode tituem o mecanismo regulador do desenvolvi-
concluir-se que, na maioria dos casos não é pos- mento embrionário, estão na base de uma sucessão
sível identificar o factor causal. muito complexa de acontecimentos minuciosa-
No Quadro 2 são referidos alguns exemplos de mente programados no tempo e no espaço.
factores teratogénicos. Desses acontecimentos fazem parte processos
100 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

tão importantes como a divisão celular, a adesão responsáveis pela génese de anomalias congénitas
celular, a indução, a migração das células, a apop- de natureza e gravidade muito variáveis.
tose, o crescimento e a diferenciação. Assim, as anomalias cromossómicas de nú-
Os genes são as “ferramentas” moleculares res- mero (devidas a não-disjunção meiótica), as
ponsáveis pela organização de toda a morfogénese anomalias cromossómicas de estrutura e as mu-
e estrutura cromossómica. Convém, no entanto, ter tações génicas, podem chegar ao zigoto por via
sempre presente que num cariótipo se vêem os cro- materna, paterna, ou ambas simultaneamente.
mossomas mas não se visualizam os genes . A anomalia cromossómica mais frequente no
Cabe à biologia molecular explicar como a in- RN vivo é a trissomia 21, (Figura 1, Capítulo 15)
formação unidimensional contida na cadeia de áci- que pode revestir a forma de trissomia livre
do desoxirribonucleico (ADN) origina uma infor- (Figura 1) ou de trissomia por translocação (trans-
mação tridimensional (proteína) responsável pelas locação 21/14 na Figura 2). Neste último caso é
transformações têmporo-espaciais que caracteri- necessário provar se a anomalia é herdada de um
zam o normal desenvolvimento do embrião.
A partir do ovo, o embrião tem, pois, teorica-
mente todas as potencialidades para se desen-
volver e crescer de uma forma harmoniosa e pre-
visível. Esta evolução está dependente da inter-
acção de factores genéticos específicos de cada in-
divíduo e de factores ambientais muito diversos
com particular relevância para os factores nutri-
cionais, endócrinos e metabólicos.
O programa de crescimento e desenvolvimen-
to do embrião é muito preciso no que respeita ao
tempo e ao espaço em que ocorrem os aconteci-
mentos que irão transformar o ovo num recém-
nascido.
Com uma frequência muito maior do que seria
de esperar e do que seria desejável, existem falhas
FIG. 1
de natureza genética ou epigenética que con-
duzem a uma disrupção do programa estabeleci- Trissomia 21 – Cariótipo (forma livre).
do com consequências mais ou menos graves na
estrutura e funcionamento do embrião.
É muito útil para compreender a génese das
anomalias congénitas, relembrar os fenómenos da
fertilização e as fases do desenvolvimento embrio-
fetal , caracterizadas por uma sucessão de estádios
ininterruptos mas morfologicamente bem defini-
dos.
A fertilização é um fenómeno complexo de in-
teracção entre um óvulo e um espermatozóide,
veículos da informação genética materna e pater-
na, indispensável ao normal desenvolvimento do
embrião e do feto. A fertilização tem como conse-
quência a formação do zigoto, considerado como
o ponto zero do desenvolvimento embrionário.
Por vezes, a informação que chega ao zigoto,
FIG. 2
quer por via materna, quer por via paterna, con-
tém erros de natureza génica ou cromossómica, Trissomia 21 – Cariótipo (translocação: 21/14).
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 101

dos progenitores ou se é uma situação de novo a Durante a quarta semana do desenvolvimento


fim de poder calcular riscos de repetição. têm lugar transformacões muito complexas e rápi-
Mas a não-disjunção pode também ser mitóti- das que marcam a passagem para a organogénese.
ca (pós-zigótica) conduzindo à formação de mo- A estas quatro primeiras semanas, em que se
saicos. De igual modo, as mutações génicas podem dão os acontecimentos mais importantes em ter-
aparecer só nas primeiras fases do desenvolvi- mos de desenvolvimento embrionário, dá-se o
mento, com consequências variáveis em termos de nome genérico de blastogénese. Embora muitos
expressão fenotípica. embriologistas não atribuam muita importância à
Nas primeiras 24 horas que se seguem à fusão individualização destas primeiras quatro semanas
dos pronúcleos feminino e masculino, inicia-se no contexto da embriogénese, o facto é que o seu
uma série de divisões mitóticas de forma que no conhecimento é indispensável para compreender
4ºdia existe um conjunto de 32 células constituin- a génese das anomalias congénitas.
do a mórula. Assim, é nesta fase que se estabelecem os cam-
Na fase de mórula, cada uma das células que a pos de desenvolvimento, os eixos do embrião, a
compõem pode exprimir todo o potencial genéti- linha média, a lateralidade e a segmentação, que
co do novo indivíduo e uma só célula pode dar ocorre a neurulação, a cardioangiogénese, a meso-
origem a um indivíduo. Estas células pluripoten- nefrogénese e aparecem os esboços dos membros.
ciais totipotentes, quando confrontadas com erros A placenta, que também inicia a sua formação du-
genéticos ou agressões ambientais, têm uma rante a blastogénese é naturalmente determinante
grande capacidade de se intersubstituir podendo, para a sobrevivência do feto (ver adiante).
assim, compensar esses erros. Se não forem ca- Os campos de desenvolvimento têm um enor-
pazes de o fazer, o destino do embrião será a morte. me interesse na compreensão da génese das ano-
Este fenómeno que é conhecido como “a lei do tu- malias congénitas.
do ou nada”, tem muita importância quando é Os defeitos mais graves do desenvolvimento
necessário avaliar o risco de aparecimento de estabelecem-se na blastogénese. Os erros ocorridos
anomalias congénitas em caso de agressão ter- nesta fase podem naturalmente dar origem à
atogénica nesta fase do desenvolvimento. morte do embrião, ou mais tardiamente do feto,
A partir do 4º dia de vida a mórula começa a mas podem também conduzir ao nascimento de
absorver líquido dando lugar à formação de uma crianças com anomalias congénitas gravíssimas in-
cavidade interna; toma então o nome de blasto- teressando um ou mais campos de desenvolvi-
cisto que se vai implantar na parede uterina por mento.
volta do 6º dia. No fim da primeira semana o em- A partir da quinta semana começa a organogé-
brião é unilaminar. nese que decorre entre o 28º e o 56º dias. São ou-
Entretanto a capacidade totipotente das células tras quatro semanas, durante as quais se vão for-
perde-se e, com o blastocisto, começa uma fase de mar todos os órgãos, organizando-se em aparelhos
especialização celular. As células tornam-se ou sistemas. Nesta fase cada órgão e cada sistema
pluripotentes, isto é, são capazes de se diferenciar tem um momento ou período crítico de formação
em quase todos os tecidos embrionários excluindo cujo conhecimento volta a ter muita importância
a placenta e anexos. na avaliação do risco teratogénico.
A partir da segunda semana dá-se a formação Na organogénese distinguem-se dois processos
do embrioblasto, cujo destino é o desenvolvimen- fundamentais: a morfogénese – formação dos
to do embrião e do trofoblasto originando o de- órgãos – e a histogénese – diferenciação das célu-
senvolvimento da placenta. No fim da segunda se- las e organização dos tecidos.
mana o embrião é bilaminar. No fim da oitava semana termina organogé-
Durante a terceira semana forma-se o embrião nese, última fase embriogénese.
trilaminar com o disco embrionário tridérmico que O período entre as nove semanas e o nasci-
dará origem à ectoderme, mesoderme e endo- mento, (período fetal) é dominado pelo cresci-
derme e, posteriormente, a todos os tecidos e mento e maturação do feto.
órgãos definitivos. A fenogénese, terceira e última parte do desen-
102 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

volvimento, prolonga-se para além da vida fetal ter-


minando quando se atinge a maturidade sexual.
Nas Figuras 3 e 4 são apresentados alguns
exemplos de anomalias congénitas.

Figura 3
Feto com 20 semanas de idade gestacional, em que
se verifica um único membro inferior constituído
por 3 segmentos. O exame radiológico identificou
um único fémur alargado e achatado com 2 côndi-
los, 2 rótulas, 2 tíbias e ossos de pé rudimentares.
Havia também imperfuração anal, agenésia renal
bilateral e agenésia do útero e restantes estruturas
do aparelho genital.
A história revelou diabetes insulinodepen-
dente e gravidez seguida de forma irregular.
Trata-se de um defeito da blastogénese.
Diagnóstico – Embriopatia diabética e re-
gressão caudal com sirenomelia.
FIG. 3
Figura 4
Feto com 20 semanas de idade gestacional, com Sirenomelia / Embriopatia diabética.
cardiopatia congénita. A existência de lábios muito
finos num feto de raça negra levou-nos a pôr a
hipótese de embriofetopatia alcoólica. A história
revelou gravidez não vigiada e mãe com hábitos
alcoólicos muito acentuados. Neste caso a valo-
rização de uma anomalia minor foi o fio condutor
para o diagnóstico.
O efeito do álcool teve o seu início na embrio-
génese (cardiopatia) e prolongou-se pela fenogénese
com evidência de uma anomalia minor (lábios finos).
Diagnóstico – Embriofetopatia alcoólica

2 – Campos de desenvolvimento e sua relação


com a génese das anomalias congénitas
Na primeira metade do século XX os trabalhos de
embriologia experimental de H Spemann e JS
Huxley introduziram a noção de campo de desen-
volvimento. Em 1982 JM Opitz propunha a sua
aplicação em genética clínica e, a partir desse ano,
um grupo de trabalho internacional propunha
uma nova terminologia para os erros da morfogé-
nese adoptando o conceito de campo de desen-
volvimento para explicar a génese da maioria das
anomalias congénitas.
Assim, um campo morfogenético ou de desen-
FIG. 4
volvimento é constituído por uma parte do em-
brião representando uma unidade coordenada de Embriofetopatia alcoólica.
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 103

indução embrionária da qual resulta um conjunto localizadas tais como fenda palatina, hipospádia
de estruturas anatómicas. Daí decorre que o campo ou polidactilia. Mesmo assim, embora se venham
de desenvolvimento é a unidade fundamental do a manifestar durante o período da organogénese,
desenvolvimento, também definida como uma a sua origem real pode ter sido durante a blas-
unidade reactiva que responde de forma idêntica a togénese.
agressões diferentes, como anomalias cromossómi- Findo o período da embriogénese, correspon-
cas, mutações génicas ou teratogénios. dente às oito primeiras semanas de vida do
Na fase inicial da blastogénese a totalidade do embrião, as estruturas embrionárias estão for-
embrião constitui um campo de desenvolvimento madas de uma forma irreversível e assume-se que
primário que contém em si próprio o modelo geral já não será possível o desenvolvimento de ano-
do desenvolvimento. Gradualmente, o campo malias estruturais graves (ou major).
primário divide-se em vários campos progenitores, Durante a fenogénese é possível o apareci-
que são os primórdios das estruturas definitivas. mento de anomalias ligeiras (minor); refere-se que
Os campos progenitores, por sua vez, dão pequenas dismorfias faciais podem tornar-se
origem aos campos secundários que, já durante a aparentes apenas em fases mais tardias do desen-
organogénese, serão os responsáveis pelas estru- volvimento embrionário. As anomalias cromossó-
turas finais e irreversíveis do embrião. micas, que produzem os seus efeitos desde a blas-
Todo este processo aparece, pois, como um con- togénese, reunem frequentemente anomalias
junto de acontecimentos em cascata e as anomalias major e minor, o que significa que a sua acção se
serão tanto mais graves e diversificadas quanto mais prolonga durante a fenogénese (ver adiante).
precoce for o momento em que o erro acontece. Nesta
perspectiva, os erros ocorridos na blastogénese 3 – O mapa génico das anomalias congénitas
durante o estabelecimento dos campos progenitores, A enorme impacte que as técnicas de biologia
devido à sua proximidade e à partilha de mecanis- molecular tiveram no estudo do genoma humano
mos moleculares, originam anomalias que afectam permitiram a construção de um mapa que identi-
estruturas diferentes em várias regiões do corpo; são fica e localiza os genes em segmentos cromossó-
referidas como defeitos politópicos de campo, isto é, micos específicos.
envolvem dois ou mais campos progenitores. De salientar, a propósito, que o Projecto do
As anomalias da blastogénese são hetero- Genoma Humano, já em 2006 tinha identificado
géneas do ponto de vista etiológico, graves e alta- cerca de 6.000 anomalias provocadas por um
mente letais, com baixo risco de recorrência e único gene, traduzindo-se em defeitos congénitos.
afectando predominantemente as estruturas da Dado que se trata de uma ciência sempre em
linha média. Um mesmo conjunto malformativo expansão, qualquer livro estará sempre parcial-
pode ter etiologias diversas uma vez que o campo mente desactualizado nesta matéria e a consulta
de desenvolvimento reage da mesma maneira a de artigos “on-line” é indispensável para uma
agressões diferentes. actualização permanente. Não cabe no âmbito
Uma excelente revisão de J. Opitz refere uma deste livro uma referência extensa aos genes já
extensa lista de anomalias a incluir como defeitos identificados, mas pode-se dizer que mais de 50%
da blastogénese, em que sobressaem a gemelari- das doenças que constam da última edição do
dade monozigótica, os defeitos politópicos de indispensável livro “Smith’s Recognizable Patterns
campo, as associações, as anomalias aparente- of Human Malformation” já têm genes identifica-
mente monotópicas mas com provável origem na dos.
blastogénese e as anomalias da formação do Do conhecimento cada vez mais completo do
cordão umbilical e da placenta. funcionamento da embriologia molecular decor-
Por outro lado, os erros ocorridos durante a rem duas observações importantes que são a hete-
organogénese nos campos secundários originam rogeneidade alélica e a heterogeneidade génica de
anomalias limitadas a uma só estrutura ou região certas anomalias isoladas ou múltiplas.
do corpo, sendo referidos como defeitos mono- No primeiro caso, mutações diferentes no
tópicos de campo. São exemplos as anomalias mesmo gene são responsáveis por fenótipos dife-
104 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

rentes. São exemplos as mutações no gene GLI3 mais órgãos. É o que acontece, por exemplo, como
localizado no cromossoma 7, que são responsáveis consequência de uma anomalia cromossómica.
por doenças tão diferentes como a síndroma de Disrupção – depende de um acidente grave
Pallister-Hall, a síndroma de Greig ou certas for- causado por factores extrínsecos à estrutura do
mas de polidactilia isolada. Também a acon- embrião, normal até dada fase do desenvolvimen-
droplasia e o nanismo tanatóforo, situações até há to; tais factores são em geral desconhecidos. Disto
pouco tempo consideradas independentes, de- resulta um defeito morfológico de um ou mais
pendem de mutações diferentes do mesmo gene órgãos. É o que acontece, por exemplo, como con-
localizado no cromossoma 4. sequência da existência de bandas amnióticas.
No segundo caso, uma mesma síndroma com Deformação – resulta da acção de forças
quadro clínico em tudo semelhante, pode ser de- mecânicas extrínsecas ou intrínsecas ao feto, que
vida a mutações em genes diferentes. Temos como modificam a forma, o tamanho ou a posição da
exemplo a síndroma de Bardet –Biedl na qual já se totalidade do corpo ou de parte dele (com nor-
demonstrou, a relação causal com vários genes malidade prévia até se verificar a acção de tais
diferentes localizados nos cromossomas 3, 4, 11, forças). É o que acontece, por exemplo, como con-
14, 15, 16 e 20. sequência do oligoâmnio.
Ao contrário do que alguns investigadores su- Displasia – quando há morfogénese anómala
punham, o conhecimento dos genes responsáveis com alteração mais ou menos grave da organiza-
pelas AC não diminuiu, mas aumentou a impor- ção celular de um ou vários tecidos. É o que acon-
tância da observação clínica cuidadosa, assim tece, por exemplo, nas displasias renais ou nas
como a responsabilidade do sindromalogista, que displasias ósseas.
deve interpretar e construir um padrão de anoma-
lias que possa conduzir a um diagnóstico. Só Por vezes é difícil distinguir estes grupos entre
através deste será possível determinar qual o gene si. Mas essa distinção é indispensável em termos
alvo que queremos encontrar. de aconselhamento genético uma vez que as for-
mas de transmissão são diferentes, e diferente o
Classificação risco de repetição.

Para efeitos práticos as AC são divididas em major As AC podem ser únicas ou múltiplas. É neste
e minor. último grupo que existe actualmente alguma con-
As anomalias ditas major são causa de pertur- fusão no que respeita à definição, nomenclatura e
bações funcionais ou estéticas de gravidade variá- limites da variabilidade fenotípica.
vel pelo que requerem cuidados médicos ou cirúr-
gicos como terapia curativa ou paliativa. As ano- Em 1982 formou-se um Grupo de Trabalho
malias ditas minor são mais frequentes do que as Internacional (IWG) liderado por J Spranger que
major mas a sua presença não levanta problemas se debruçou sobre os erros da morfogénese, a sua
de natureza funcional ou estética, pelo que não definição e terminologia. Posteriormente, no
requerem, em geral, qualquer intervenção tera- Congresso Internacional de Genética reunido em
pêutica. No entanto, a sua valorização é impor- Berlim, em 1986, o mesmo grupo clarificou e
tante, pois podem constituir um fio condutor para redefiniu esses conceitos, de acordo com o conhe-
a procura de outras anomalias mais graves que cimento da etiologia e patogenia dos conjuntos
podem ocorrer em conjunto, como é o caso das malformativos.
anomalias renais detectadas através da existência
de anomalias minor dos pavilhões auriculares. Do ponto de vista quantitativo são consideradas
Do ponto de vista qualitativo, é útil dividir as as anomalias que contam do Quadro 3: hipo e hiper-
anomalias congénitas em quatro subgrupos: plasia, hipo e hipertrofia, atrofia, agenésia e aplasia.
Malformação – consiste num processo anor-
mal de desenvolvimento de natureza intrínseca Estes conceitos têm-se revelado de grande uti-
responsável por um defeito morfológico de um ou lidade quando se trata de compreender melhor as
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 105

QUADRO 3 – Alterações quantitativas que aconteceu com a já mencionada associação


da morfogénese CHARGE depois de recentes investigações de-
monstrando várias mutações no gene CHDZ
Hipoplasia/Hiperplasia localizado em 8q12, responsáveis por grande
• Hipo ou hiperdesenvolvimento de um tecido, órgão número de casos da associação CHARGE.
ou organismo em função, respectivamente, do n.° Sequência – define-se como um conjunto de
diminuído ou aumentado de células. anomalias que tem a sua origem numa única
Hipotrofia/Hipertrofia anomalia que constitui o acidente primário e que
• Hipo ou hiperdesenvolvimento em função das di- é responsável por um conjunto de acontecimentos
mensões diminuídas ou aumentadas das células. em cascata. A etiologia, conhecida ou não, é hete-
Agenésia rogénea e os mecanismos patogénicos são, evi-
• Ausência de uma parte do corpo devido a ausência dentemente, conhecidos. Temos como exemplo o
do “primordium” mielomeningocele cuja sequência será: defeito de
Aplasia encerramento do tubo neural – desenvolvimento
• Ausência de uma parte do corpo por não desenvolvi- incompleto dos ossos da coluna vertebral com
mento do “primordium” exteriorização da medula (anomalia de Arnold-
Atrofia Chiari) – hidrocefalia e pés botos.
• Diminuição das dimensões e/ou n.° das células de
órgão(s) ou tecido(s) normalmete desenvolvido(s). Defeito Politópico de campo – este tipo de
defeito já foi referido atrás; as anomalias rela-
cionam-se com alterações de dois ou mais campos
AC, calcular riscos de repetição e planear dia- progenitores.
gnóstico pré-natal em futuras gravidezes. As anomalias múltiplas, no seu conjunto, estão
intimamente relacionadas com os campos de
São descritas quatro formas de conjuntos de desenvolvimento e os seus erros.
anomalias (múltiplas):
Síndroma – define-se como um conjunto de Avaliação clínica
anomalias relacionadas entre si, constituindo um
entidade etiologicamente bem definida (génica, A avaliação clínica das anomalias únicas ou múlti-
cromossómica, teratogénica), embora a patogenia plas, além do seu interesse académico, tem como
nem sempre possa ser esclarecida. Daqui decorre objectivo último um diagnóstico que permita
que a trissomia 21 e a embriofetopatia alcoólica esclarecer os pais quanto às causas do seu apare-
são exemplos de síndromas, e também que “sín- cimento, à história natural da doença, à eficácia
droma de etiologia desconhecida”, frase tantas de eventuais terapêuticas médicas ou cirúrgicas,
vezes utilizada, não tem sentido. às formas de transmissão e riscos de recorrência e
Associação – define-se como a ocorrência de à possibilidade de eventual diagnóstico pré-natal
um conjunto de anomalias de uma forma mais fre- numa futura gravidez. Este conjunto de activi-
quente do que o acaso faria supor, e cuja etiologia e dades define o chamado aconselhamento genéti-
patogenia são desconhecidas. Este grupo poderia co; e para que ele seja possível, torna-se indispen-
também ser designado como defeitos da blastogé- sável uma avaliação clínica pormenorizada e a uti-
nese de natureza idiopática. Uma associação é lização de meios complementares de diagnóstico
habitualmente designada por acrónimos, como por adequados.
exemplo a associação VACTERL (Vertebral, Anal, O protocolo habitualmente utilizado no estudo
Cardiac, fístula Tráqueo-Esofágica, Renal, Limbs) e diagnóstico das anomalias congénitas não é
e a associação CHARGE (Coloboma, Heart, diferente do habitualmente usado em Pediatria,
Choanal Atresia, Retardation, Genital, Ears). mas envolve algumas particularidades relaciona-
Mas a etiologia das associações tende natural- das com a necessidade de construir um padrão
mente a ser esclarecida e quando isso acontece, a dismorfológico que seja um fio condutor para o
associação dá lugar a síndroma. Exemplo disso é o diagnóstico de uma entidade conhecida.
106 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Assim, o protocolo deverá incluir: mos e de limites para a expressão fenotípica de


1 – história pessoal e familiar com represen- uma determinada entidade nem sempre tem
tação gráfica da árvore genealógica. reunido o consenso dos dismorfologistas. A tudo
2 – observação dos parâmetros de desenvolvi- isto acresce a contínua publicação de casos clíni-
mento físico, psicomotor e sensorial. cos cuja interpretação também nem sempre é coin-
3 – observação e descrição da dismorfologia cidente. Com algum sentido de humor, A Verloes
facial. apontava recentemente que os sindromalogistas
4 – observação e descrição pormenorizada das se podem dividir: nos que separam entidades até
anomalias presentes. aí bem definidas em vários subgrupos a que dão
5 – registo fotográfico da face e das anomalias novos nomes (“splitters”); nos que reunem numa
relevantes. entidade única várias outras doenças até aí con-
O estudo clínico orientará para os exames sideradas como independentes (“lumpers”); e nos
complementares necessários a cada caso, salien- que mudam certos conjuntos de anomalias de
tando-se: uma síndroma para outra (“cutters and pasters”).
6 – exame citogenético com eventual recurso a Num futuro próximo e à medida que se forem
citogenética molecular. identificando os genes responsáveis pela génese
7 – exame radiológico e outros registos imagio- das AC estes problemas vão perder a sua
lógicos. importância.
8 – exames de natureza hematológica, bio- Convém, contudo, não esquecer que, em ter-
química, enzimática ou outra. mos de aconselhamento genético e de diagnóstico
9 – estudo génico orientado pela hipótese pré-natal, o reconhecimento clínico de uma enti-
diagnóstica proposta para cada caso. dade e o conhecimento da sua história natural terá
Na observação de uma criança com AC sempre importância. Mutações diferentes no
reveste-se de particular importância a apreciação mesmo gene podem corresponder a situações
do seu aspecto geral (características faciais, forma clínicas de gravidade muito variável; e, se a varia-
do corpo, postura, movimento, linguagem e com- ção intrafamiliar não é significativa, não é a pre-
portamento ), de forma a identificá-la por meio de sença de uma determinada mutação génica, mas
uma comparação subjectiva com outras cujo diag- sim o quadro clínico esperado, que poderá influ-
nóstico é conhecido. Esta impressão global ou enciar a decisão dos pais de optar por uma inter-
gestalt que se apoia no facto de as várias rupção de gravidez (Capítulos 13 e 14).
impressões isoladas (visuais, auditivas e outras) No contexto da observação clínica a apreciação
estarem de tal forma organizadas que são perce- das anomalias morfológicas faciais assume uma
bidas como um todo e não como fenómenos dis- importância muito particular. Assim, em presença
sociados, leva-nos a identificar uma pessoa co- de uma criança dismórfica, o aspecto facial pode
nhecida quando a vemos sem necessidade de identificar uma determinada doença, reconhecer
analisar as suas várias componentes. outra já vista anteriormente, mas não imediata-
A primeira tarefa do “especialista em anoma- mente identificável, ou simplesmente revelar uma
lias da forma do organismo” ou dismorfologista é, situação completamente nova para nós. Nas situa-
pois, interpretar uma dada constelação de sinais ções difíceis, a comparação com outros casos pu-
observados no seu doente de forma a identificar blicados, o recurso a programas informatizados
uma síndroma, uma associação ou uma sequência. de diagnóstico diferencial com imagem, e a dis-
A parte mais difícil desta tarefa reside no facto de cussão clínica com outros colegas com experiência
não haver, em geral, sinais patognomónicos, o em dismorfologia, poderão ser de grande utili-
espectro de anomalias poder ser restrito ou vasto dade. Como noutras áreas da Medicina é preciso
dentro de uma mesma entidade, e várias doenças conhecer para diagnosticar.
etiologicamente bem definidas partilharem ano- Convém ter sempre presente que, se por um
malias comuns. A dismorfologia é uma ciência em lado, um diagnóstico correcto tem todas as vanta-
evolução permanente. gens não só em termos de uma adequada inter-
A indispensável definição de critérios míni- venção terapêutica como na dispensa de exames
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 107

desnecessários, por outro lado um diagnóstico existe morte fetal, embora no caso da biologia
errado, por falta de experiência ou precipitação, molecular seja possível utilizar material fetal obti-
pode ter consequências muito graves. Rotular uma do em certas condições para armazenamento de
criança com um diagnóstico que não corresponde ADN. Torna-se necessário, portanto, desenvolver
à sua situação invalida uma eventual intervenção protocolos de participação entre os especialistas
terapêutica, multiplica múltiplas consultas e exam- acima referidos, de forma a tornar possível o diag-
es desnecessários e pode influenciar erradamente nóstico da causa de morte fetal e o aconselhamen-
um casal quanto à sua vida reprodutiva. As conse- to genético aos pais. (ver capítulo 17).
quências podem ser, pois, muito negativas.
Nunca é demais salientar um aspecto que nos Registos Nacionais
parece muito importante e tem certamente forte e Internacionais
repercussão no aconselhamento genético aos pais
e na decisão quanto a futuras gravidezes. Trata-se Existem actualmente em muitos países registos da
do empenho que deve ser posto no esclarecimen- ocorrência e natureza das AC bem como das cir-
to etiológico de um feto ou de um recém-nascido cunstâncias pessoais, familiares e ambientais do
com uma situação malformativa muito grave seu aparecimento. Estes registos têm como objec-
mesmo quando a morte pareça ser inevitável. O tivo a determinação da prevalência nacional e
que parece ser inútil revela-se extremamente útil regional das AC e a determinação das suas causas.
para o futuro. Em Portugal, além de alguns Registos regio-
O diagnóstico pré-natal, já abordado no capí- nais ou de Registos nacionais por patologias,
tulo 17, tem tido nos últimos anos um grande habitualmente sediados em Serviços Hospitalares,
desenvolvimento como método de prevenção existe um Registo Nacional de AC da responsabil-
secundária de anomalias congénitas. Mas, se por idade do Instituto Nacional de Saúde (Centro de
um lado as anomalias que estiveram na origem da Estudos e Registo de Anomalias Congénitas –
interrupção médica de gravidez necessitam de ser CERAC), que teve o seu início em 1996.
comprovadas, por outro tem-se verificado um O CERAC é um registo de base populacional que
enorme interesse dos pais em saber as causas da recebe notificações de várias origens, principalmente
morte fetal e o grau de risco para futuras dos Serviços Hospitalares de Obstetrícia, Pediatria e
gravidezes. Isto levou ao desenvolvimento de especialidades pediátricas, mas também de outros
uma actividade multidisciplinar que é a embrio- Serviços como Anatomia Patológica e Genética
fetopatologia clínica. Esta actividade, ponto de Médica. Os seus objectivos consistem em determinar
encontro de patologistas, dismorfologistas, a prevalência das AC e a sua distribuição geográfica
geneticistas, perinatologistas e obstetras, no con- por residência das mães, observar as suas variações
texto dos Centros de Diagnóstico Pré-natal, tem e tendências espaciais e temporais e estabelecer um
protocolos próprios. Se em linhas gerais são se- sistema de vigilância epidemiológica.
melhantes aos descritos no protocolo anterior, São notificados todos os recém-nascidos vivos
para a avaliação clínica dos nado vivos, revestem- cujas anomalias sejam detectadas até ao final do
-se, como é óbvio, de alguns aspectos particulares. período neonatal, as mortes fetais com anomalias e as
Assim, mantêm-se os 5 primeiros pontos, com interrupções de gravidez por patologia malformati-
excepção naturalmente do desenvolvimento psi- va. São registadas as anomalias estruturais major mas
comotor, bem como do ponto 7. No que respeita não as minor quando isoladas (ver adiante).
ao ponto 6, está provado que a tentativa de efec- Até ao ano de 1999 a codificação das anomalias
tuar estudo citogenético após a morte tem taxas de foi feita segundo a 9ª revisão da Classificação
sucesso baixas e muito dependentes das condições Internacional de Doenças (CID 9), e a partir do
em que as colheitas são realizadas. Daí que é da ano 2000 segundo a 10ª revisão (CID 10).
maior importância enquanto o feto está vivo, col- Durante o triénio 1997-1999 a cobertura popu-
her e armazenar produtos biológicos para estu- lacional correspondeu a 75% do total de partos e a
dos de biologia molecular, bioquímicos ou outros, prevalência observada foi de 200 por 10000 nasci-
que estão naturalmente comprometidos quando mentos.
108 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

1 – Sistema nervoso central 8 – Aparelho urogenital


2 – Aparelho ocular 9 – Membros
3 – Aparelho auditivo 10 – Aparelho músculo – esquelético
4 – Aparelho cardiovascular 11 – Anomalias cromossómicas
5 – Lábio leporino/Fenda palatina 12 – Aparelho respiratório
6 – Aparelho digestivo 13 – Pele
7 – Genitais externos 14 – Outros
Dados do CERAC: MJ Feijoó, 2000

FIG. 5
Distribuição percentual do número total de anomalias congénitas pelos grandes grupos da CID 9.

A Figura 5 mostra a distribuição percentual Prevenção


de anomalias pelos grandes grupos da Classi-
ficação Internacional de Doenças (CID 9), bem Num contexto global da prevenção cabe aos
como a respectiva média durante o triénio profissionais de saúde que trabalham na comu-
1997-1999. nidade um papel muito importante. O seu co-
Na Europa existem outros Registos de AC, nhecimento da patologia familiar, das condições
nacionais ou regionais. O EUROCAT (European ambientais porventura perigosas em que decorre
Registry of Congenital Anomalies and Twins) é um a vida das famílias e o papel que desempenham
Projecto financiado pela Comissão Europeia, cons- nas consultas de planeamento familiar, tornam-
tituído por uma rede de vários Registos regionais nos interlocutores privilegiados no contexto das
europeus que trabalham com a mesma metodolo- actividades que contribuem para a prevenção das
gia e publicam os seus dados em conjunto. anomalias congénitas.
Portugal colabora no Eurocat desde 1990 com a Se, pelo conhecimento do contexto familiar, os
Região a sul do Tejo. mesmos podem identificar anomalias ou síndro-
É ainda de assinalar a existência de um impor- mas hereditárias e situações de risco durante a
tante Registo com uma participação populacional gravidez e providenciar o recurso a consultas
muito mais alargada, a International especializadas, por outro lado podem ter um
Clearinghouse for Birth Defects Monitoring papel decisivo na prevenção primária de algumas
Systems, que reúne vários países da Europa, Ásia situações frequentes mas evitáveis.
e Américas do Norte, Centro e Sul. Assim, as embriopatias ocasionadas pela dia-
CAPÍTULO 18 Anomalias congénitas 109

betes materna e pela rubéola, a embriofetopatia Nunes L, Carvalho MCA. A contribuição das malformações
alcoólica e os defeitos do tubo neural, são exem- congénitas para a mortalidade infantil em Portugal 1991-99.
plos destas situações nas quais o controle adequa- Saúde Infantil 1995;17: 47-52
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PARTE IV
Crescimento Normal e Patológico
112 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

19
Hipotálamo

Gónadas GH Tiroideia
Córtex SR

IGF

CRESCIMENTO Paratiroideias

Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina Gravidez Pâncreas


gemelar

Nutrição e
Definição Outras Má absorção
patologias
Crescimento significa aumento de volume e tama-
nho dos tecidos e órgãos como resultado do au-
mento do número e volume das células. Trata-se, Clima
Genética
pois, dum processo de modificação física desde a
fecundação (ovo) até à idade adulta passando
pelas fases de embrião, feto, criança e adolescente.
O crescimento é indissociável da noção de de- Ambiente SNC
sócio-económico Psicoafectivos
senvolvimento que, no sentido estritamente fisio-
lógico significa modificação funcional das células,
tecidos ou órgãos; de facto, as células crescendo
FIG. 1
diferenciam-se simultaneamente.
Por razões didácticas estes dois tópicos são Factores que influenciam o crescimento.
abordados separadamente.
Em termos de prática clínica, crescer é, funda- A GH é uma hormona com 191 aminoácidos pro-
mentalmente, aumentar de peso, de estatura/al- duzida pela hipófise sob controlo hipotalâmico; é
tura (ou comprimento enquanto a criança não as- mediada pelo IGF1 (insulin-like growth factor 1) verifi-
sume a posição bípede), e de perímetro cefálico; cando-se desde o nascimento à puberdade um
tais variáveis ou grandezas são mensuráveis. aumento progressivo da sua produção. O hipotála-
A antropometria ou somatometria surge neste con- mo produz não só a somatostatina ou SRIF (“soma-
texto como método que utiliza técnicas com a finali- totropin release inhibiting factor”) que inibe secreção de
dade de quantificar as dimensões corporais (cresci- GH, como o GHRF ou “growth hormone releasing fac-
mento) pela medição de parâmetros somáticos; para tor” que a estimula. A secreção de GH faz-se de
além dos já referidos, outros serão abordados adiante. forma pulsátil e predominantemente nocturna. A
A auxologia é a ciência multidisciplinar que es- GH circula ligada a proteínas de ligação e, a nível
tuda o crescimento físico na espécie humana. periférico, liga-se ao seu receptor, levando à multi-
plicação dos condrócitos e à produção de IGF-I e da
Aspectos da fisiopatologia sua principal proteína de ligação (IGFBP 3) (BP ou
do crescimento “binding protein”). O IGF-I produzido, quer no fíga-
do, quer localmente no tecido ósseo, irá induzir o
A regulação do crescimento é muito complexa, crescimento. O IGF1 é influenciado por vários fac-
estando dependente, não só de factores endócri- tores, como sejam o estado nutricional da criança, e
nos como a hormona de crescimento (growth hor- circula ligado a proteínas transportadoras, a mais
mone ou GH), de hormonas tiroideias, hormonas importante das quais é a IGF1-BP3. Como a GH tem
sexuais, neuromediadores, mas também de fac- uma libertação irregular, o doseamento do IGF1 e da
tores genéticos, metabólicos, psicossociais, etc.. IGF1-BP3 em conjunto, são indicadores mais fiáveis
CAPÍTULO 19 Crescimento 113

da produção. As hormonas tiroideias são essenciais dos 12 meses de idade, é lenta (VC ou velocidade de
para o crescimento pós-natal em geral, para o desen- crescimento = 4-8 cm/ano) e torna-se praticamente
volvimento cerebral e para a maturação óssea. Os constante a partir dos dois anos de idade. A sua reg-
esteróides gonadais, sobretudo os estrogénios, pela ulação depende, sobretudo, de factores genéticos e
sua acção sobre as cartilagens de crescimento, são da HC (hormona de crescimento= sigla GH).
responsáveis por cerca de metade do crescimento Na puberdade, última fase do crescimento li-
atingido durante a puberdade e permitem, não só a near, ocorre nova aceleração da velocidade de
maturação sexual, como a esquelética. crescimento (10-12 cm/ano) predominantemente
dependente da acção dos esteróides gonadais, con-
Fases do crescimento tinuando efectiva a acção da GH. Começa aos 10-
12 anos na rapariga, e aos 12-14 anos rapaz. O
Tratando-se de um processo dinâmico e contínuo, o crescimento pubertário termina no final da matu-
crescimento exterior, visível a “olho nu” acompa- ração sexual, coincidindo com o encerramento das
nha-se do crescimento dos diversos órgãos e sis- epífises ósseas.
temas, ocorrendo em tempos diferentes. Por exem- A avaliação do estádio pubertário (abordada
plo, 50% do crescimento craniano ocorre no 1º ano nos capítulos 43, 44 e 181) é, pois, importante para
de vida, atingindo-se 20% dos valores do adulto interpretar a evolução do crescimento. Por sua
pelos 2 anos. O crescimento dos órgãos genitais vez, para a avaliação correcta do crescimento
externos só se verifica no período da puberdade. A torna-se indispensável o recurso às chamadas
massa gorda, expressa como % da massa corporal, curvas de crescimento para ambos os sexos.
aumenta desde o nascimento até cerca dos 6-9 A avaliação do crescimento dá uma boa indi-
meses, diminuindo depois até aos 5-6 anos, com cação sobre o estado de saúde da criança. De
incremento ulterior. salientar que uma agressão que se repercute sobre
Descrevem-se quatro fases no crescimento: 1) o peso e a estatura será necessariamente mais
pré-natal; 2) desde o nascimento até aos 2 anos; 3) grave e prolongada do que aquela que apenas tem
dos 2 aos 9 anos; 4) depois dos 9 anos até ao final repercussão sobre o peso.
da puberdade. Estas fases, com velocidades de
crescimento diferentes, estão sujeitas a diversas in- Antropometria
fluências e vão condicionar de modo particular a
estatura final. A antropometria consiste na avaliação das dimen-
O crescimento in utero está dependente de sões físicas do corpo humano em diferentes idades
influências, quer maternas, quer fetais. Ao nascer, utilizando determinados parãmetros (conjunto de
o feto encontra-se já em fase de desaceleração do valores ao longo de determinado período de
referido crescimento. A principal hormona res- tempo). Para além do peso, comprimento ou estatu-
ponsável pelo crescimento fetal é a insulina, sendo ra/altura e perímetro cefálico, outros parâmetros ou
o feto relativamente resistente à GH; esta última índices (estes últimos significando relação numérica
adquire importância após 6 meses de idade. O entre duas grandezas ou parâmetros) podem ser
crescimento intra-uterino está mais dependente utilizados para avaliação do crescimento, tais como:
dos factores genéticos maternos do que dos pater- perímetro torácico, perímetro abdominal, relação
nos, razão pela qual o peso do recém-nascido tem, peso/ altura, segmento superior (SS), segmento in-
em mulheres com bom estado de nutrição, uma ferior (SI), relação SS/SI, envergadura e velocidade
correlação positiva com a estatura materna. de crescimento.
O crescimento do lactente (até 12 meses) é uma O SS é a distância entre o vértex (ou ponto mais
continuação do crescimento fetal, caracterizando- elevado da abóbada craniana no plano sagital me-
se por uma velocidade de crescimento rápida (até diano, com a cabeça direita) e o cóccix, ou seja, a
25 cm/ano), que diminui ao longo do tempo. O diferença entre o comprimento ou estatura e o SI.
crescimento neste período é essencialmente O SI mede-se pela distância entre a sínfise
dependente de factores nutricionais. pública e o pavimento estando a pessoa com os
A fase de crescimento infantil, iniciada por volta membros inferiores bem estendidos.
114 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

A relação SS/SI tem interesse clínico em situa-


ções acompanhadas de defeitos esqueléticos. Em
condições de normalidade tal relação é tanto maior
quanto menor a idade. No adolescente entre 16-18
anos é ~0,92.
Envergadura é a distância máxima entre as ex-
tremidades dos dedos médios de cada mão (com
os membros superiores estendidos na horizontal à
altura dos ombros), isto é, paralelamente ao pavi-
mento. Este parâmetro permite avaliar a relação
entre o comprimento/altura e o comprimento dos
membros superiores.
Velocidade de crescimento corresponde ao in-
cremento em centímetros e milímetros em deter-
FIG. 2
minado período (em geral 1 ano).
Uma vez que medir é comparar, deduz-se que Raparigas – Peso 0-5 A.
as curvas de crescimento (de percentis, ou de mé-
dia +- desvio padrão) constituem um instrumento
fundamental para avaliar o estado de nutrição e o
crescimento de crianças e adolescentes. No âmbito
do Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil
de 2013, a DGS recomendou, pelas suas vantagens,
a adopção das curvas da OMS (sucedendo-se às
anteriores, inicialmente do NCHS e, mais tarde, do
CDC), passando a fazer parte do novo Boletim de
Saúde.
As Figuras 2 a 15 representam curvas de cresci-
mento em percentis em diversas idades relativas
aos parâmetros peso, comprimento/altura, perí-
metro cefálico, relação peso/altura (relação peso
FIG. 3
em kg/altura ao quadrado em metros ou índice de
massa corporal-IMC), decalcadas da OMS (2006 e Raparigas – Comprimento/altura 0-5 A.
2007) e já testadas em quatro países.
A Figura 16 representa a curva da velocidade de
crescimento reproduzida de publicações da Socie-
dade Brasileira de Pediatria com autorização*.
A propósito das vantagens das curvas da OMS
a que atrás se aludiu, importa referir, designada-

*Torna-se importante estabelecer com aproximação a correspondência


entre curvas de crescimento com base em percentis e DP (desvios-
padrão):
• + 1 DP <> percentil 85 • - 1 DP <> percentil 15
• + 1,6 DP <> percentil 95 • - 1,6 DP <> percentil 5
• + 2 DP <> percentil 3 • - 2 DP <> percentil 97
• + 3 DP <> percentil 99,7 • - 3 DP <> percentil 0,3
– Os dados da avaliação individual ou populacional devem ser apre-
sentados sob a forma de percentis , em percentagens para o percentil
50, ou ainda, preferencialmente, em Z-scores
– Resultados da avaliação em % para o percentil 50 = valor actual
/valor do percentil 50x100 FIG. 4
– Resultados da avaliação em Z-score = valor actual – valor do per-
centil 50/desvio-padrão de referência (ver Capítulo 57) Raparigas – Peso 5-10 A.
CAPÍTULO 19 Crescimento 115

FIG. 5 FIG. 8
Raparigas – Altura 5-19 A. Raparigas – Perímetro cefálico 0-24 M.

FIG. 6 FIG. 9
Raparigas – IMC 0-5 A. Rapazes – Peso- 0-5 A.

FIG. 7 FIG. 10
Raparigas – IMC 5-19 A. Rapazes – Comprimento/altura 0-5 A.
116 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

FIG. 11 FIG. 14
Rapazes – Peso 5-10 A. Rapazes – IMC 5-19 A.

FIG. 12 FIG. 15
Rapazes – Altura 5-19 A. Rapazes – Perímetro cefálico - 0-24 M.

mente: 1) – o facto de permitirem uma mais cor-


recta avaliação do crescimento dos lactentes ali-
mentados com leite materno (com crescimento
"menos exuberante", mas mais fisiológico) traduzi-
do por desaceleração do crescimento pelos 3-4
meses de idade, podendo evitar-se suplementação
desnecessária com fórmula; 2) – o facto de, por out-
ro lado, permitirem identificar mais precocemente
crianças com excesso de peso, problema preocu-
pante e de elevada prevalência na população por-
tuguesa.
Os imagens gráficas das curvas, integrando as
Figuras de 2 a 15 podem ser consultadas no sítio
FIG. 13
da internet
Rapazes – IMC 0-5 A. http://www.who.int/childgrowth/en/
CAPÍTULO 19 Crescimento 117

QUADRO 1 – Velocidade de crescimento linear

Idade Velocidade de crescimento


em cm/ano
0-12 meses 20-25
13-24 meses 12
25-36 meses 8
37 meses-idade pré-púbere 5-7
Idade púbere 8-10

químicos, outros métodos poderão ser utilizados


para avaliar o crescimento. Os que são mais fre-
quentemente aplicados fundamentam-se na valo-
rização de aspectos da semiologia (clínica e radio-
lógica) do crescimento ósseo*

Exame das fontanelas


No lactente as fontanelas constituem um mar-
cador do estado de ossificação do esqueleto.
Considerando as seis fontanelas, a que mais inte-
ressa no âmbito do tópico em análise é a fontanela
FIG. 16
anterior ou bregmática. A sua exploração (que
Curva de velocidade de crescimento para a estatura con- deverá ter sempre em consideração, em con-
siderando os diversos segmentos do corpo (SBP). comitância, o valor do perímetro cefálico) faz-se
por palpação anotando-se em centímetros a medi-
O Quadro 1 concretiza os valores médios de da das diagonais ântero-posterior e transversal.
crescimento linear por grupos etários. (ver capítulo 192 – Discranias).
A velocidade de crescimento inferior a 4
cm/ano é considerada dado anómalo. Dentição
Como exemplos extremos de anomalias do Este tópico é analisado na parte XXVII sobre
crescimento citam-se: por défice, a baixa estatura- Estomatologia Pediátrica.
abordada em ulterior capítulo; e, por excesso, a Determinação da idade óssea por método
acromegália e o gigantismo; este último é definido radiológico
como situação clínica caracterizada por cresci- Através deste método procede-se ao estudo dos
mento exagerado do esqueleto, tanto em altura co- núcleos de ossificação e do estado de calcificação
mo em largura, em comparação com o crescimen- das áreas de junção diáfise – epífise dos ossos lon-
to normal de indivíduos da mesma raça e idade. gos; com base na idade cronológica do caso-pro-
Gigantismo pode estar associado a perturbações blema e estabelecendo comparação com tabelas,
endócrinas hipofisárias. na prática procede-se à radiografia da mão e do
A acromegália, em geral associada a adenoma carpo ou membro superior, em geral a partir do 1
da hipófise, é o aumento anormal das dimensões ano; e do membro inferior desde o nascimento até
do nariz, orelhas, maxilar inferior, mãos e pés, re- àquela idade. Valoriza-se o aparecimento de
lativamente ao resto do corpo (ver Quadro 2). núcleos de ossificação, assim como o seu tama-
nho, textura e contorno. Determinadas alterações
Outros métodos de avaliação
do crescimento
*As pregas cutâneas e o perímetro braquial, também parâmetros
antropométricos, são classicamente abordados a propósito da “ava-
Para além da antropometria e de métodos bio- liação nutricional” (Capítulo 58).
118 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Regras práticas sobre o crescimento em crianças saudáveis, nascidas de termo

INCREMENTOS APROXIMADOS
Peso Comprimento/estatura Perímetro cefálico (PC)
1º trimestre → 200g /semana 1º ano → 25 cm 1º ano → 1 cm/mês
2º trimestre → 130 g/semana 2º ano → 12 cm 2º ano → 2 cm
3º trimestre → 85 g/semana Pelos 2 anos ~1/2 da altura em adulto Pelos 2 anos~ 80% do PC em adulto
4º trimestre → 75 g/semana

QUADRO 3 – Comparação entre idade Infantil e Juvenil. Lisboa: DGS,2013/ www.dgs.pt (Junho)
cronológica e idade óssea Guerra A. As novas curvas da OMS para avaliação do cresci-
mento do lactente e da criança. Acta Pediatr Port 2006; 37:
RN – Epífise distal do fémur, astrágalo, cubóide, 109-112
calcâneo Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger,2008
RN – Epífise distal do fémur, astrágalo, cubóide, calcâneo Mei Z, Grummer – Strawn LM. Comparison of changes in
1 ano – Carpo: 3 núcleos; Tarso: 2 núcleos growth percentiles of US children on CDC 2000 growth
2 anos – Cabeça do úmero; Carpo idem; Tarso: adição da charts with corresponding changes on WHO 2006 growth
epífise do perónio charts. Clinical Pediatrics 2011; 50:402-407
3 anos – Carpo: adição do piramidal; Tarso: adição do 1º Pereira-da-Silva L, Virella D, Videira-Amaral JM, Guerra A.
cuneiforme Antropometria no Recém-Nascido. Revisão e Perspectiva
4 anos – Carpo: adição de mais 1 núcleo; Tarso: adição de Actual. Lisboa: Nestlé Nutrition Institute, 2007
mais 2 núcleos Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph’s Pediatrics.
5 anos – Carpo: adição de mais 2 núcleos New York: McGrawHill Medical, 2011
6 anos – Carpo: adição de mais 2 núcleos Sassetti L, Direcção Geral da Saúde.Programa de vigilância em
Saúde Infantil e Juvenil. Acta Pediatr Port 2012; 43:XXXI

podem conduzir ao diagnóstico de situações


como, por exemplo, disgenésia no hipotiroidismo,
em que se verifica atraso de crescimento ósseo.
Em geral considera-se dentro da normalidade
desvio de ± 20% da relação idade óssea-idade
cronológica. (± 2 anos).
Na prática clínica são mais frequentes as situa-
ções de atraso de ossificação (por exemplo, hi-
potiroidismo, prematuridade, etc.) relativamente
às de avanço (por exemplo puberdade, hiper-
tiroidismo, displasia fibrosa poliostótica de
Albright, etc.).
O Quadro 3 sintetiza a relação entre idade
cronológica e o aparecimento sequencial de nú-
cleos de ossificação (idade óssea desde o nasci-
mento até aos 7 anos) o que implicará, por parte do
leitor, a consulta de bibliografia suplementar.

BIBLIOGRAFIA
de Onis M. WHO growth standards for children 0-5 years.
Acta Pediatr Port 2010; 41:S1-S3
Direcção Geral da Saúde/DGS. Programa Nacional de Saúde
CAPÍTULO 19 Crescimento 119

20
mento é o incremento em estatura por unidade de
tempo (cm/ano), considerando-se que o intervalo
mínimo para a podermos determinar com rigor é
6 meses. A chamada estatura alvo familiar permite
corrigir a estatura da criança em função da estatu-
ra dos pais. Calcula-se da seguinte forma:
BAIXA ESTATURA
Rapaz: (altura da mãe + 13) + altura do pai
Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina 2

Rapariga: altura da mãe + (altura do pai-13)


2
Definição e factores etiológicos
Na avaliação inicial de uma criança não se dis-
A baixa estatura é definida como estatura inferior põe, muitas vezes, de estaturas anteriores, o que
a 2 DP abaixo da média. As causas são múltiplas dificulta muito o estudo. É, por isso, muito impor-
(Quadro 1); cerca de 80% dos casos corresponde a tante registar sempre no Boletim de Saúde Infantil
variantes da normalidade: baixa estatura familiar e Juvenil todas as avaliações do crescimento reali-
e atraso constitucional do crescimento. Assumir zadas.
que baixa estatura traduz variante da normalidade Com base nestes elementos é possível definir 3
é por vezes difícil, devendo sempre fazer-se com padrões de crescimento diferentes:
base na avaliação da integridade de todos os 1* Baixa estatura intrínseca
mecanismos de de crescimento. 2* Crescimento “atrasado”
3* Crescimento “atenuado”
Avaliação
Diagnóstico diferencial e exames
No pressuposto de ter sido identificado a priori de- complementares
terminado caso de baixa estatura, com realização
prévia da anamnese e exame objectivo, cabe salien- Os referidos padrões de crescimento permitem
tar determinados aspectos neste contexto; é o que dirigir o diagnóstico diferencial e decidir sobre a
consta do Quadro 2. necessidade da realização de outros exames
A medição correcta da criança, procedimento auxiliares de diagnóstico (Quadro 3).
especificado nos livros de semiologia, constitui Por outro lado, é também importante conside-
uma manobra fundamental, sendo necessário um rar se o peso se encontra mais ou menos afectado
observador treinado, um instrumento de medição do que a estatura. Na primeira hipótese trata-se
adequado e a colocação da criança em posição cor- geralmente de doenças crónicas ou de suprimento
recta (deitada até aos 3-4 anos). Tal procedimento calórico insuficiente. Na segunda hipótese, po-
deverá ser sistematizado e continuado no tempo. derá tratar-se, com maior probabilidade, de causa
Na avaliação de uma criança identificada como endocrinológica.
de baixa estatura devem considerar-se vários Outro dado importante do exame objectivo é
parâmetros, tais como idade cronológica (IC), es- verificar se a normal proporcionalidade entre os
tatural (IE), idade óssea (IO), velocidade de cresci- vários segmentos se encontra ou não mantida; a
mento e estatura-alvo familiar. existência de desproporção apontará para displasia
A idade estatural é a idade que, para a estatu- óssea ou síndroma de raquitismo. A existência de
ra da criança, corresponde ao percentil 50. A idade dismorfias levará a admitir uma das várias síndro-
óssea é a idade a que corresponde a maturação mas acompanhadas de baixa estatura.
óssea observada numa radiografia da mão e pu- Em todas as crianças com estatura entre o per-

nho esquerdo da criança quando comparada com centil 3 e o percentil 1 e IO IE < IC, para além da
o Atlas de Greulich & Pyle. A velocidade de cresci- anamnese e exame objectivo exaustivos, haverá que
120 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Causas de baixa estatura

I. Baixa estatura intrínseca


A. Genética E. Respiratórias
a) Familiar a) Asma
b) Anomalias cromossómicas b) Fibrose quística
– trissomia 13, 18, 21 F. Renais
– 45 XO e variantes a) Acidose tubular renal isolada ou associada a outras
c) Displasias esqueléticas/condrodistrofias alterações da função tubular (Síndroma de Fanconi e
– acondroplasia variantes)
– outras b) Insuficiência renal crónica
B. Restrição do crescimento intrauterino (RCIU) i. congénita: uropatia obstrutiva
a) Associado a insuficiência placentar ii. adquirida: glomerulonefite crónica; pielonefrite
b) Associado a infecções intrauterinas crónica
c) Associado a outras anomalias somáticas G. Hematológicas
i. Síndroma de Russell-Silver a) Anemias crónicas congénitas ou adquiridas
ii. Síndroma de Prader-Willi H. Sistema reticuloendotelial
iii. Síndroma de Cornelia de Lange a) Mucopolissacaridoses
iv. Síndroma de Seckel b) Gangliosidoses
v. Síndroma de Cockayne I. Endocrinológicas
a) Hipopituitarismo
II. Atraso constitucional do crescimento e de maturação b) Hipotiroidismo
a) Raquitismo hipofosfatémico vitamino-resistente
III. Doenças sistémicas b) Diabetes insulinodependente mal controlada
A. Atraso de crescimento psicossocial c) Pseudo-hipoparatiroidismo
B. Nutricionais d) Hipercortisolémia
1. Kwashiorkor e) Puberdade precoce
2. Marasmo f) Défice de hormona de crescimento (GH)
3. Défice de zinco/ferro i – genético: ausência do gene da GH; associado a
C. Gastrintestinais défice de IgG; insensibilidade à GH do tipo da
1. Má-absorção Síndroma de Laron; pigmeus africanos
a) Doença celíaca ii – adquirido
b) Doença inflamatória do intestino (enterite regional, J. Outras doenças crónicas
colite ulcerosa) a) Atraso mental
c) Fibrose quística L. Drogas (corticóides)
2. Doença hepática
a) Hepatite crónica IV. Doenças hereditárias do metabolismo
b) Doenças de armazenamento do glicogénio a) Aminoacidúrias e aminoacidémias
D. Cardiovasculares b) Cetoacidúrias
a) Cardiopatias congénitas graves cianóticas ou acianóticas c) Outras doenças
b) Cardiopatias adquiridas (febre reumática)

proceder a um conjunto de exames auxiliares gerais Em crianças que se apresentem com uma das
(a seleccionar em função do contexto clínico) para seguintes condições: estatura inferior a -3 DP,
afirmar ou excluir causas patológicas que tenham crescimento com velocidade inferior ao per-
como manifestação a baixa estatura (Quadro 4). centil 25, IO com atraso superior a 2 anos em
Se os resultados obtidos forem normais, dever- relação à IC, haverá que admitir e investigar
se-á esperar 6 meses para determinar a velocidade causas gerais e endocrinológicas de baixa
de crescimento. estatura, nomeadamente por défice de GH.
CAPÍTULO 20 Baixa estatura 121

QUADRO 2 – Avaliação de uma criança com baixa estatura

Anamnese e exame objectivo


• Antecedentes familiares:
– Estatura dos pais e irmãos (medir toda a família, se possível)
– Puberdade dos pais e irmãos – menarca? início de barba?
• Antecedentes pessoais:
– Gestação – RCIU, ingestão de drogas, infecções?
– Parto – pélvico? forceps?
– Peso e comprimento ao nascer, índice de apagar
– Problemas/anomalias congénitas detectadas durante o período neonatal?
– Doenças anteriores – infecções urinárias de repetição, cardiopatias, infecções respiratórias de repetição, diarreia cróni-
ca, asma e seu tratamento (corticóides?)
– Desenvolvimento psicomotor
• Doença actual:
– Construir a curva de crescimento anterior com base nos dados existentes no Boletim de Saúde Infantil
– Revisão por sistemas e aparelhos, nomeadamente: sinais e sintomas de alteração da função tiroideia, lesão cerebral,
fenótipo de síndroma de Cushing?
• Exame objectivo:
– Peso, estatura (comprimento/altura), relação peso/estatura
– Proporção entre os vários segmentos (tronco, membros superiores e inferiores)
– Estádio pubertário
– Dismorfias (fenótipo sugestivo de síndroma de Turner na rapariga?) – descrever exaustivamente as alterações en-
contradas e, se possível, fotografar
– Dentes – mudou já os caninos? incisivo central único?
– Pressão arterial e frequência cardíaca
– Palpação da tiroideia

Seguidamente são descritas algumas situações de crescimento normal e apresenta uma maturação
clínicas acompanhadas de baixa estatura. óssea adequada à idade cronológica: o pico de
crescimento e maturação pubertário ocorrem na
idade habitual.
1. BAIXA ESTATURA FAMILIAR Sintetizando, esta situação caracteriza-se por:
– Antecedentes familiares de baixa estatura.
É uma das causas mais frequentes de baixa estatu- – Comprimento ao nascer inferior à média,
ra. O seu diagnóstico é, no entanto, de exclusão e mas adequado no contexto familiar.
obriga ao seguimento continuado da criança ao – Curva de crescimento paralela à curva de
longo do tempo, a fim de detectar atempadamente percentis, com velocidade de crescimento
qualquer desvio. normal.
A estatura final de um indíduo tem uma forte – Dados da anamnese irrelevantes e exame físi-
influência genética. É na fase de crescimento in- co sem alterações fenotípicas (nomeadamen-
fantil que essa influência é mais importante. te compatíveis com síndroma de Turner na
Assim, uma criança com baixa estatura familiar rapariga) e sem sinais de doença sistémica.
nasce habitualmente com um peso e comprimen- – Altura prevista de acordo com a estatura alvo
to adequados à sua idade gestacional, sendo du- familiar.
rante os dois primeiros anos de vida que cruza os – Idade óssea sem atraso significativo em relação
percentis de estatura até estabilizar num percentil à idade cronológica e atraso da idade estatural.
igual ou inferior ao 3, mas superior ao percentil 1. – Estatura final correspondente à estatura alvo
A partir de então a criança tem uma velocidade familiar.
122 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Padrões de crescimento e diagnóstico diferencial de baixa estatura (*)

Padrão Relação entre Velocidade Diagnóstico


de crescimento IC, IO e IE de crescimento diferencial


Baixa estatura IE < IO IC Normal • Baixa estatura familiar
intrínseca • Síndromas genéticas:
– cromossomopatias
– displasias ósseas
– síndromas dismórficas
• RCIU grave


Crescimento IO IE< IC Normal • Atraso constitucional de maturação
“atrasado” • Doença crónica ligeira
• Má-nutrição ligeira


Crescimento IO IE<< IC Abaixo do normal • Doença crónica grave
“atenuado” • Má-nutrição grave
• Doenças metabólicas
e do equilíbrio ácido-base
• Doenças endócrinas:
– Défice de GH
– Hipotiroidismo
– Síndroma de Cushing
– Hipogonadismo
• Privação emocional e abuso
(*)Adaptado de Rosenfield RL, 1996
ABREVIATURAS: IC: idade cronológica; IE: idade estatural; IO: idade óssea

QUADRO 4 – Baixa estatura e exames 2. ATRASO CONSTITUCIONAL


complementares DO CRESCIMENTO

Sangue Trata-se duma situação de incidência familiar cujas


– hemograma completo e velocidade de sedimentação causas não estão completamente esclarecidas. É pos-
– creatinina, ionograma sivelmente a segunda maior causa de baixa estatura.
– pH e gases As crianças com esta situação caracterizam-se por
– cálcio, fósforo e fosfatase alcalina terem somatometria ao nascer adequada à idade
– provas de função hepática gestacional, cruzando habitualmente percentis nos
– anticorpos antigliadina e antiendomísio, etc. anos pré-puberais. Verifica-se nestes casos um atraso
– T3, T4 e TSH da maturação óssea e sexual. O seu diagnóstico é
– IGF-I e IGFBP3 também de exclusão, nomeadamente de formas
– cariótipo ( nas raparigas ) ligeiras de doença crónica (doença de Crohn, doença
celíaca, acidose tubular renal, etc.).
Urina Caracteriza-se por:
– análise sumária e urocultura – Antecedentes familiares de crescimento lento
ou atraso pubertário, nomeadamente mãe
Fezes com menarca tardia.
– exame parasitológico das fezes com pesquisa de Giardia – Comprimento ao nascer normal assistindo-se,
depois, a uma diminuição lenta do crescimen-
to linear e ponderal até que, nos anos pré-
CAPÍTULO 20 Baixa estatura 123

puberais, peso e estatura se encontram ambos situação, cujo tratamento urgente é fundamental,
abaixo do percentil 5. não é detectada pelo rastreio neonatal (diagnósti-
– Crescimento inferior ao percentil 3 mas supe- co precoce).
rior ao percentil 1 e paralelo à curva de per- Na criança mais velha o défice traduz-se por
centis, com velocidade de crescimento nor- baixa estatura proporcionada e desaceleração pro-
mal a partir da primeira infância e até à idade gressiva do crescimento, geralmente sem quais-
pubertária. quer alterações do exame físico. Alguns casos apre-
– Na idade habitual da puberdade desacelera- sentam obesidade troncular moderada (“aspecto
ção da velocidade de crescimento. de redondinho”), fácies de boneca, voz aguda, pele
– O “pico” de crescimento pubertário ocorren- e cabelos finos, característicos do défice congénito
do tardiamente, pelos 14 anos nas raparigas e de GH; nos antecedentes pessoais destas crianças
16 anos nos rapazes. encontra-se com maior frequência restrição de
– Dados da anamnese e exame físico sem alte- crescimento intra-uterino (RCIU), asfixia neonatal
rações. com índice de Apgar baixo, apresentação pélvica e
– Idade óssea com atraso significativo em parto por cesariana. O défice de GH pode associar-
relação à idade cronológica, e de acordo com se a defeitos da linha média tais como incisivo cen-
a idade estatural. tral único, fenda palatina, lábio leporino, ou dis-
– Prognóstico de estatura de acordo com a plasia septo-óptica com nistagmo.
estatura alvo familiar.
– Estatura final normal. Diagnóstico

Face à suspeita clínica de défice de GH, a criança


deverá ser dirigida a uma consulta de
3. DÉFICE DE HORMONA Endocrinologia Pediátrica, pois o diagnóstico
DO CRESCIMENTO (GH) implica, não só a verificação de critérios clínicos e
O défice de GH ou hipopituitarismo é, na maior auxológicos, mas também a comprovação dos
parte dos casos, idiopático. Pode associar-se a resultados das provas de estimulação da pro-
causas orgânicas tais como tumores cerebrais, em dução de GH. A realização de RMN crânio-ence-
especial craniofaringeoma, intervenção cirúrgica e fálica deve ser realizada em todos os casos de
/ou irradiação do sistema nervoso central, alter- défice confirmado para estudo da região
ações anatómicas, nomeadamente displasia septo- hipotálamo-hipofisária e exclusão de patologia do
óptica e síndroma da sela turca vazia. Pode ainda SNC, nomeadamente tumoral.
resultar de um défice de secreção ou de alteração
da acção da GH de causa genética. Tratamento

Manifestações clínicas Em Portugal, o tratamento com GH está sujeito a


critérios definidos, sendo os casos submetidos a
O quadro clínico do défice de GH é variável con- avaliação por uma Comissão Nacional.
soante a idade da criança. A hormona de crescimento, biossintética, é
Assim, no período neonatal o défice de GH administrada diariamente, em injecção sub-
acompanha-se de outros défices do eixo hipo- cutânea única, à noite, até ser atingida a idade óssea
tálamo-hipofisário, traduzindo-se por hipoglice- de 14 anos na rapariga, e de 16 anos no rapaz.
mia neonatal (défice de GH e ACTH / cortisol),
micropénis (défice de gonadotrofinas) e icterícia
neonatal prolongada. O quadro clínico de hipo- 4. SÍNDROMA DE TURNER
glicemia associado a micropénis deve chamar a
atenção para o diagnóstico de défice hipotálamo- Importância do problema
hipofisário o qual se acompanha também de dé-
fice de TSH (hipotiroidismo de causa central). Esta A síndroma de Turner (ST) ocorre em 1/1500 a
124 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 5 – Manifestações clínicas da


Síndroma de Turner

• Alterações do crescimento esquelético


Baixa estatura 100 %
Pescoço curto 40 %
Alteração relação segmento
superior/inferior 97 %
Cubitus valgus 47 %
Encurtamento dos metacárpicos 37 %
Deformidade de Madelung* 8%
Escoliose 13 %
Genu valgum 35 %
FIG. 1 Fácies característica: micrognatia 60 %
Síndroma de Turner. Pescoço curto alado/pterigium colli. (NIHDE) palato em ogiva 38 %

1/2500 indivíduos do sexo feminino e deve-se a • Obstrução linfática


alteração numérica ou estrutural de um dos cro- Pescoço alado (pterigium colli) 25 %
mossomas X. Em 60% dos casos verifica-se a Inserção baixa do cabelo e
ausência de um dos cromossomas X, e em cerca de orelhas rodadas 42 %
20 % dos casos de ST existem anomalias estrutu- Edema das mãos e pés 22 %
rais de um dos cromossomas X: deleção do braço Displasia das unhas 13 %
curto [p-] ou do braço longo (q-), cromossomas em Dermatoglifos característicos 35 %
anel, isocromossomas. Em 20 % dos casos tam-
bém existe um mosaicismo em duas ou mais • Defeitos das células germinais
Falência gonadal 96 %
linhas celulares, podendo mesmo existir linhas
Infertilidade 99 %
com Y, a que se associa um risco acrescido de
gonadoblastoma, obrigando a gonadectomia pro-
• Defeitos vários
filáctica. De referir que os mosaicos podem
Estrabismo 18 %
somente ser detectados se forem contadas mitoses
Ptose 11 %
suficientes ou se forem utilizadas técnicas avan-
Nevi pigmentados múltiplos 26 %
çadas de genética molecular (ver Capítulos 15 e
Anomalias cardiovasculares 55 %
17).
Hipertensão 7%
Anomalias renais e renovasculares 39 %
Manifestações clínicas
• Doenças associadas
A baixa estatura é um sinal clínico major, encon-
Tiroidite de Hashimoto 34 %
trando-se em 95 - 100 % dos casos. O comprimen-
Hipotiroidismo 10 %
to e o peso ao nascer são cerca de 48 cm e 2800 g
Doenças gastrintestinais 3%
em média, respectivamente. Ulteriormente, o
Intolerância à glucose 40 %
crescimento processa-se a uma velocidade normal
até cerca dos 3 anos, idade a partir da qual se * Deformidade de Madelung: deformação do punho traduzida por angulações radial e
palmar da extremidade distal do rádio.
assiste a uma diminuição progressiva daquela
entre os 3 - 14 anos, não havendo também “pico”
pubertário. Assim, sem tratamento, a estatura As alterações cardiovasculares traduzem-se
final (que só é atingida na terceira década e que por cardiopatia congénita e hipertensão arterial.
depende também da estatura dos progenitores) é, Os defeitos cardíacos ocorrem em cerca de 1/3 dos
em média, 143 cm, correspondendo o “efeito casos e atingem mais frequentemente o coração
Turner” a uma perda de 20 cm. esquerdo: válvula aórtica bicúspide; coarctação da
CAPÍTULO 20 Baixa estatura 125

aorta; prolapso da mitral; mesocárdia e aneurisma Mahoney CP. Evaluating the child with short stature. Pediatr
dissecante da aorta. Clin North Am 1997; 34: 425-849, 1987
As alterações renais verificam-se em 35 a 70 % Mercedes O, Winhoven TMA, Onyango WA. Worldwide
dos casos (habitualmente rim em ferradura, rim Practices in Child Growth Monitoring. J Pediatr 2004; 1444:
pélvico unilateral e duplicação pielocalicial). 461-465
Podem também existir anomalias renovasculares. Mitchell H, Hindmarsh PC. Assessment and management of
Existe um grande número de doenças associ- short stature. Current Pediatrics 2000: 9: 237-41
adas, nomeadamente doenças autoimunes tais Palminha JM, Carrilho E. Orientação Diagnóstica em Pediatria.
como tiroidite de Hashimoto, doença de Graves, Lisboa: Lidel, 2003
vitíligo e também doutras doenças, por exemplo: Raine JE, Donaldson MDC, Gregory JW, Savage MO, Hintz RL.
doença de Crohn, colite ulcerosa, diabetes melli- Short Stature. Practical Endocrinology and Diabetes in
tus tipo 2 / intolerância à glucose. Children 2006; 3: 42-64
A forma de apresentação clínica é diferente Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
consoante a idade da criança. AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York : McGraw-Hill
No recém-nascido do sexo feminino, deve sus- Medical , 2011
peitar-se de ST quando existe edema linfático das Wright CM. The use and interpretation of growth charts.
mãos e pés e “excesso de pele” na região posterior Current Pediatrics 2002; 12: 279-282
do pescoço ou pescoço alado (“pterigium colli”)
(Figura 1). No lactente é o diagnóstico de coarc-
tação ou estenose aórtica que levantará a suspeita,
o que implica a realização de cariótipo. Em todas as
crianças do sexo feminino com baixa estatura inex-
plicada dever-se-á considerar a possibilidade do
ST. Numa adolescente com atraso pubertário (inex-
istência de botão mamário aos 13 anos), com par-
agem do desenvolvimento pubertário ou com
amenorreia primária deverá também investigar-se
esta patologia. O Quadro 5 sintetiza a frequência
dos achados clínicos associados a Turner.

Tratamento

O tratamento compreende:
• Administração de GH a iniciar a partir dos 2
anos de idade, diária, subcutânea, à noite;
• Administração de estrogénios a iniciar em
idade pubertária e no contexto do tratamen-
to com GH; dose inicialmente baixa, aumen-
tando progressivamente e associando-se
ulteriormente progestagénio.

BIBLIOGRAFIA
Comissão Nacional de Normalização da Hormona de Cresci-
mento (CNNHC). Avaliação de Crianças e Adolescentes
com Baixa Estatura. Lisboa Ministério da Saúde 2004.
Hindmarsh PC. Current Indications for Growth Hormone
Therapy. London: Karger, 2010
Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
PARTE V
Desenvolvimento e Comportamento
128 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

21
duto de uma herança genética (nature) e do am-
biente (nurture).
A investigação tem demonstrado o profundo
impacte das primeiras experiências no desen-
volvimento cerebral. O cérebro compreende, à
nascença, 100 biliões de neurónios; cada neurónio
DESENVOLVIMENTO desenvolve, em média, 15.000 sinapses até aos 3
anos de vida, que se mantêm estáveis até aos 10
Maria do Carmo Vale anos, declinando depois o número dos mesmos. À
medida que se formam novas sinapses, outras
desaparecem, sendo este fenómeno condicionado
pela menor utilização.
Conceitos fundamentais Assim se explica a característica de plastici-
dade do sistema nervoso central (SNC) em caso de
"Eu sou eu e as minhas circunstâncias..." lesão estrutural: a exercitação de vias sinápticas
Ortega e Gasset acessórias viabiliza alternativas de crescimento e
reforço sináptico e neuronal que poderão
Em Pediatria, Desenvolvimento é definido geral- condicionar a substituição da função de células
mente como processo de aquisição de competên- lesadas por outras células, vias e áres do sistema
cias, habilidades e comportamentos cada vez mais nervoso central, reactivando ou regenerando áreas
complexos, o qual resulta da interacção de in- silenciosas geradoras da recuperação total ou
fluências exteriores ao indivíduo com o próprio in- parcial. Esta capacidade é máxima durante os
divíduo congregando múltiplas potencialidades. primeiros três anos de vida, reduzindo-se progres-
Para que a criança e o adolescente rendibilizem sivamente até aos 10 anos, mantendo-se durante
plenamente as suas potencialidades, é necessária toda a vida, embora com cada vez menor impacte.
a existência de condições psicossociais entre as A permanente experiência e aprendizagem do
quais se destacam: meio (nurture) influencia a estrutura cerebral
• amor e afecto gerada (nature).
• meio familiar consistente e previsível propi- Também assim se compreende que crianças
ciando a exploração e a descoberta. com diferentes talentos e temperamentos (nature)
A assimilação de todos estes estímulos psico- provoquem diferentes estímulos no meio (nurture)
afectivos pressupõe capacidade de interacção; e o e que, face a estímulos ambientais idênticos, pos-
processo que se designa por desenvolvimento sam interpretá-los e a eles reagir de forma diversa.
processa-se à medida que a criança reage aos As experiências, quer sejam positivas ou
estímulos do ambiente e aprende a fazer exi- negativas, influenciam a evolução e a capacidade
gências ao seu meio. adaptativa da criança aos futuros estímulos, isto é
A avaliação do referido processo tem como o seu desenvolvimento. São assim determinantes
objectivo, não só a obtenção de um diagnóstico, deste, as influências biológicas, ambientais, psico-
mas também a avaliação do perfil das chamadas lógicas e sociais, estas últimas designadas, mais
“áreas fortes” e “fracas”, quer da criança, quer da apropriadamente, como condicionantes sociais.
família e respectivos sistemas de suporte cultural, Para avaliar adequadamente progressos, iden-
educativo e social, a fim de se efectuar a progra- tificar variantes, atrasos ou anomalias, aconselhar
mação e integração das áreas a privilegiar. devidamente os pais e planear a intervenção,
Uma das áreas que mais atenção tem suscitado torna-se, pois, necessário que o pediatra, o clínico
é a perspectiva actual da criança como parceiro e geral e os profissionais de saúde que prestam
modulador activo do seu meio social e cultural, e cuidados a crianças e adolescentes compreendam
não como receptor passivo de socialização. o sentido abrangente do termo Desenvolvimento
Os diversos modelos biopsicossociais reconhe- e estejam a par das teorias, perspectivas e estra-
cem actualmente que o Desenvolvimento é o pro- tégias baseadas na evidência.
CAPÍTULO 21 Desenvolvimento 129

De salientar, em síntese, que a avaliação do ço de comunicação e maior permeabilidade às


desenvolvimento deve ser individualizada, dinâ- opiniões e preferências da criança; neste último
mica e compartilhada com a criança e sua familia. caso as circunstâncias que estimulam os filhos à
criatividade e sentido de responsabilidade.
Influências psicológicas Ou seja, para que uma criança se desenvolva é
necessário que esta inicie uma actividade, que esta
Erik Erikson identificou o primeiro ano de vida co- seja regularmente reactivada por períodos de
mo o período de estabelecimento de uma ligação tempo razoáveis e que haja reciprocidade nas per-
de confiança e afecto mútuo adquiridos através de mutas afectivas, lúdicas e sociais. Daí a necessi-
resposta atempada e adaptada às necessidades e dade de cuidadosa atenção à gama de estímulos
estímulos da criança. presentes no meio ambiente geradoras de expe-
A noção de vinculação diz respeito à tendência riências e de novas aprendizagens.
do lactente em procurar a proximidade dos pais, Os considerandos referidos integram a definição
quando colocado em risco, e à relação que lhe de ecossistema subdividido em micro e macros-
permite utilizar os pais como pessoas com capa- sistema. No primeiro incluem-se as características
cidade para restabeler conforto, segurança e bem- dos pais, amigos, professores, etc., que participam
estar após uma experiência desagradável. activamente na vida da criança, regularmente e por
Em todos os estádios evolutivos, a criança períodos extensos; e, no segundo, o padrão ideoló-
necessita de um adulto com quem estabeleça uma gico subjacente à organização política e socio-eco-
ligação afectiva electiva e que corresponda ade- nómica da sociedade em que estão inseridas.
quadamente aos seus reptos verbais e não verbais, Mas, o modelo bioecológico é ainda mais
mantendo simultaneamente um estado de rece- abrangente ao englobar na estrutura do micros-
ptividade e de auto-regulação da sua progressiva sistema, não só a interacção com pessoas, mas
autonomia. também com objectos, símbolos, conceitos, crité-
rios, estruturas e instituições que particularizam o
Influências sociais e família ambiente nos denominados processos proximais,
como modelo ecológico ampliando-o; constitui-se, assim, o macrossistema.
Entre os dois sistemas, localiza-se mesossis-
O centro deste modelo pressupõe a existência de tema (ou exossistemas), que integra estruturas: em
formas específicas de interacção entre a criança e que a criança participa activamente, como a escola
o ambiente (os chamados processos proximais) viabilizando e interacção com os pares; e estru-
que actuam através do tempo e são considerados turas que, sem intervenção directa, têm repercus-
prioritários para o desenvolvimento humano; na- são na qualidade de vida da criança – por exemplo
turalmente que estes ocorrem preferencial e electi- a estabilidade laboral e económica dos pais,
vamente no âmbito da interacção familiar. viabilizando disponibilidade e qualidade de cui-
Exemplos paradigmáticos deste tipo de proces- dados parentais.
sos são os cuidados alimentares e de higiene pres-
tados pela mãe ao recém-nascido e o reforço da Risco, resiliência e modelo
díade e vinculação que proporcionam no dia a dia. transaccional (de transigência)
Mais tarde será a actividade lúdica (só ou em
grupo), a leitura, a resolução de problemas, a idea- Em Pediatria define-se risco como a presença de
ção e execução de planos, assim como a aquisição factores biopsicossociais adversos, e resiliência como
de novos conhecimentos. a capacidade de resistir ou ultrapassar factores adver-
A família funciona como sistema com ligações sos ao longo do ciclo de vida da criança; por oposição
internas e externas, subsistemas, papéis e regras de à resiliência define-se vulnerabilidade como parti-
interacção. Em famílias com subsistema parental cular susceptibilidade aos referidos factores.
rígido e autoritário é geralmente negada à criança O modelo proposto por Baltes defende que a
capacidade de decisão, incitando à rebeldia e deso- criança é função da interacção entre as influências
bediência, comparativamente a famílias com espa- biológicas e sociais, sublinhando o papel de facto-
130 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

res normativos como a idade e época histórica De referir que tem sido valorizada a importância
vivenciada, e de factores não normativos relacio- de determinados factores protectores biológicos, tais
nados com acontecimentos imponderáveis (doen- como: carácter persistente, apetência por modali-
ça grave e incapacitante, acidente, morte de pro- dade desportiva, quociente de inteligência elevado,
genitor, etc.). comportamento cooperativo, eficácia, auto-estima,
Exemplo de factores normativos relacionados empatia, sentido de humor e capacidade de lide-
com factos históricos e políticos é o das crianças rança, importantes .
que crescem em zonas de guerra, instabilidade Alguns estudos sublinham ainda a importância
política e económica geradoras de fome, angústia de determinismos sociais como a existência de um
e amputadora de projectos de vida. adulto de referência – pais, avós ou professor – com
Determinados factores como o temperamento e quem a criança manteve ou mantém relaciona-
o estado de saúde influenciam o ambiente onde a mento electivo ou preferencial, bem como crença
criança cresce e se desenvolve; por sua vez a crian- religiosa, contribuindo significativamente para o
ça pode ser directamente afectada pelos condicio- incremento da resiliência.
nalismos ambientais daí decorrentes.
Um recém-nascido (RN) prematuro evidencia BIBLIOGRAFIA
longos períodos de sono e curtos períodos de Bronfenbrenner U, Morris P. The ecology of developmental
vigília, hipotonia fisiológica e menor capacidade de processes in Gomes Pedro J. Stress e Violência na Criança e
fixação do olhar na face materna, choro débil e no Jovem. Departamento de Educação Médica da
pouco frequente, comparativamente a um RN de Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 1999
termo (factores normativos). Este comportamento Gomes Pedro J, Nugent JK, Young JG, Brazelton TB. A criança
pode gerar curtos períodos de interacção e opor- e a familia no século XXI. Lisboa: Dinalivro, 2005
tunidades de vinculação, eventualmente agravados Kessen W. The Development of Behaviour in Levin MD, Carey
e potenciados por depressão materna pós-parto. WB, Crocker AC. Developmental - Behavioural Pediatrics
Pelo contrário, RN e lactentes com períodos de Philadelphia: Saunders, 1999
vigília mais longos e choro vigoroso, interpretados Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Texbook of
apelativamente pela mãe, proporcionam maiores Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
oportunidades de interacção e vinculação da díade Magnussen D. Individual Development: A Holistic, Integrated
que, quando bem funcionantes e integradas, Model Mohen P, Elder GH, Lusher K, Examinig Lives in
proporcionam elevado grau de satisfação e sensação Context: Perspectives on the Ecology of Human
de competência materna. Development. Washington DC: American Psychological
Um outro aspecto é o da desvantagem social e Association, 2003
da pobreza de certas crianças as quais são subme- Ministérios da Educação, da Saúde e do Trabalho e da
tidas, designadamente, a maior exposição a facto- Solidariedade. Despacho conjunto nº 891/99. Lisboa: IN-
res de risco, quer biológicos como a desnutrição ou CM, 1999
a intoxicação por agentes químicos, quer a dificul- Smith PK, Cowie H, Blades M. Learning in a Social Context.
dades de acesso a oportunidades e experiências Oxford: Blackwell Publishers, 2001
educativas (factores não normativos). Smith PK, Cowie H, Blades M. Understandig Children’s
Quando submetidas a programas de inter- Development. Oxford: Blackwell Publishers, 2001
venção em tempo oportuno, intensivos e suficien- Smith PK, Cowie H, Blades M. Cognition Piaget’s Theory.
temente prolongados (a que as famílias social e Oxford: Blackwell Publishers, 2001
economicamente auto-suficientes têm acesso faci- Vale MC. Autonomia em Pediatria. Tese de Mestrado.
litado), as crianças de risco mostram uma marcada Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 2001
melhoria na sua trajectória de desenvolvimento,
de capacidades.
Assim, a privação e a desvantagem decorrem
de uma complexa interacção entre factores de risco
ecológicos, culturais, históricos, demográficos e
psicológicos
CAPÍTULO 22 Desenvolvimento e intervenção 131

22
aquisições fazem-se de acordo com a maturação
orgânica e exigências exteriores, em sinergia e
continuidade. Cada aquisição é fundamental para o
desenvolvimento da seguinte, não só porque
constitui o seu substrato, mas também porque fun-
ciona como fonte de estímulo para novas apren-
dizagens.
DESENVOLVIMENTO Exemplo disto é a sequência sentar-se → elevação
para posição bípede; o aumento do tono da coluna
E INTERVENÇÃO vai permitir uma elevação do campo da visão e
necessariamente uma maior curiosidade pelo meio.
Ana Alegria, João Estrada e Maria do Carmo Vale Embora as habilidades e aquisições da criança
devam ser entendidas num todo porque são inter-
dependentes, a avaliação da criança deve ser
realizada por áreas dado que este modelo permite
Períodos, etapas e áreas uma maior pormenorização de tarefas e melhor
de desenvolvimento sistematização das alterações quando estas exis-
tem. Deste modo e, independentemente da escala
É universalmente aceite que o desenvolvimento da de desenvolvimento utilizada, são contemplados
criança se faz por etapas e que existem desempenhos globalmente os seguintes parâmetros:
característicos de cada idade. De acordo com certos • Autonomia pessoal e social – O desenvol-
autores (Piaget, Gesell, Freud, Winnicott) essas vimento pessoal envolve uma grande varie-
etapas têm fundamentos filosóficos diferentes e dade de habilidades que podem ser agrupadas
traduzem-se por aquisições em áreas ou domínio de em hábitos – alimentação, controlo de esfíncte-
funções diferentes do mesmo. res, e emoções – sorrir, noção de identidade.
A teoria desenvolvimentalista de Piaget, muito • Comunicação – A comunicação envolve mais
utilizada, baseia-se na interacção contínua do competências não verbais, como as expres-
indivíduo com o meio, num processo de adaptação sões faciais, gestos e movimentos posturais,
(acomodação-assimilação) e traduz-se por vários bem como competências verbais. A comuni-
estádios que fornecem informação acerca de cação está obviamente ligada à audição e à
capacidades e limitações da criança numa dada cognição na medida em que é a função
idade. De uma forma geral, os períodos de intelectual que analisa, quer a linguagem
desenvolvimento tendem a ser organizados em compreendida, quer a linguagem expressiva.
dois grandes grupos, do zero aos seis anos e dos • Cognição – Esta área de desenvolvimento
seis aos 12 anos. Tal deve-se ao facto de, após os inclui o leque de atenção, a noção de per-
seis anos de idade, se considerar a escolaridade manência do objecto, a noção de causalidade,
como indicativa do desenvolvimento em várias a imitação, a estruturação espacial-temporal
áreas, sendo o aproveitamento escolar demons- e o jogo, sendo através deste último que a
trativo de algumas aquisições, permitindo dar criança recria o mundo que a rodeia, apren-
muita informação sobre a criança. dendo a brincar e a jogar de formas cada vez
No entanto, estas noções devem sempre ser mais complexas. A cognição relaciona-se com
encaradas de uma forma dinâmica e contextualizada, o desenvolvimento social e emocional, e os
com o intuito de promover o acompanhamento da processos mentais superiores com o pensa-
criança, e nunca de forma a estigmatizar as falhas e mento, memória e aprendizagem.
a impor um “rótulo”. É, por isso, fundamental ter a • Motricidade grosseira – As habilidades
noção de que é essencial um suporte orgânico ou motoras globais envolvem o movimento de
alicerce para o desenvolvimento, mas também que é grandes massas musculares e incluem o
a estimulação providenciada pelo meio que permite controlo postural e os padrões locomotores
o desenvolvimento de potencialidades. As várias rudimentares – sentar-se, gatinhar, andar,
132 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

correr. Numerosos autores, especialmente se manifesta. Nesta perspectiva, a motricidade


Wallon, deram grande importância ao tono passa a ser compreendida nas estruturas
no desenvolvimento motor e psicológico. O associativas que a planificam, elaboram, regu-
desenvolvimento é acompanhado de um lam, executam e integram. O desenvolvimento
aumento do tono axial e processa-se a par da das habilidades motoras finas (preensão,
diminuição progressiva da hipertonicidade manipulação) é uma aquisição que distingue o
dos membros; é uma certa extensibilidade ser humano das outras espécies animais. A
que permite o jogo harmonioso dos músculos visão está intimamente associada à motricidade
para a realização das sinergias motoras. fina, permitindo avaliar, entre outros, designa-
• Motricidade fina e visão – A motricidade, é o damente a capacidade visual, a persistência e a
meio através do qual a consciência se edifica e dominância (Quadro 1).

QUADRO 1 – Etapas do desenvolvimento psicomotor (dos 3 aos 60 meses)

Áreas/ Locomoção Pessoal e Social Audição e Linguagem Visão – manipulação Proezas e raciocínio
Parâmetros Motricidade Autonomia pessoal Comunicação Motricidade fina Cognição
Idades global e social e visão
3 meses Eleva a cabeça Segue pessoa com o olhar Emite dois ou três sons Move o olhar entre Brinca com os dedos
na posição dorsal Sorri em resposta Ouve música 2 objectos; Segue Resiste a que
a uma atitude objecto lentamente tirem objectos
6 meses Senta-se com suporte Manipula colher (a brincar) Emite mais do que Brinca com objecto Tira objecto da mesa
Rola Bebe por caneca quatro sons Segue objecto a cair
Responde quando chamado
9 meses Tenta gatinhar Tira um chapéu Galreia Faz preensão fina Brinca com pedaço
Fica sentado no chão Ajuda a segurar um copo Diz uma palavra nítida (“pinça” com o de papel
polegar e indicador) Fica com objecto
Atira para fora objectos
12 meses Gatinha Brinca com a colher Reage vocalmente Aponta um dedo Cumpre ordem simples
(sabe função) à música Pega num lápis
Anda com auxílio Bate palminhas Balbucia quando sozinho
15 meses Anda sozinho Usa a colher sozinho Usa cinco palavras Coloca objecto Indica desejos
Sobe escadas Abraça os pais Identifica objectos sobre o outro Põe e tira objectos
Rabisca livremente de uma caixa
18 meses Anda “marcha-atrás” Utiliza copo meio cheio Diz nove palavras Atira uma bola Tapa uma caixa
Trepa cadeira Tira sapatos e meias Gosta de livros ilustrados Faz uma torre Aponta uma parte
com três cubos do corpo
24 meses Chuta uma bola Ajuda a vestir-se/despir-se Nomeia quatro Atira uma bola ao cesto Desenrosca um frasco
Sobe e desce escadas Consegue abrir a porta brinquedos Faz um traço horizontal Aponta quatro partes
Usa frases do corpo
36 meses Salta com pés juntos Diz o 1º nome quando pedido Nomeia doze objectos Faz uma torre com Sabe o que é dinheiro
Equilibra-se com um pé Guarda os brinquedos Usa dois ou mais adjectivos oito cubos Distingue grande/
Copia um círculo pequeno
48 meses Marcha com música Calça meias e sapatos Usa pronomes pessoais Corta um quadrado Conta para além de quatro
Salta dois degraus Sabe a idade Conhece seis cores em dois Compara dois tamanhos
Desenha um homem e dois pesos
60 meses Corre para chutar Lava sozinho mãos e cara Define pelo uso Copia uma cruz Conhece duas moedas
uma bola Sabe morada (rua e número) seis palavras Desenha uma casa Conhece três moedas
Desce escadas Usa bem o garfo e a faca Descreve um desenho Corta papel com tesoura Conta dez cubos
como adulto grande
CAPÍTULO 22 Desenvolvimento e intervenção 133

QUADRO 2 – Desenvolvimento psicomotor e sinais de alarme

1 - 2 meses 9 meses
– Em posição sentada: instabilidade cefálica; – Desequilíbrio em posição de sentado;
– Em posição vertical ou quando suportado pelo exami- – Imobilidade na posição de sentado, permanece imóvel;
nador em decúbito ventral, evidencia hiper ou hipo- – Ausência notória de preensão palmar, não levando os
tonicidade; objectos à boca;
– Não segue a face do observador; – Ausência de vocalização;
– Não sorri; – Ausência de contacto social;
– Não estabelece qualquer tipo de contacto social. – Engasgamento fácil.

3 - 4 meses 12 - 18 meses
– Não fixa, nem segue objectos; – Imobilidade permanente, não procura mudar de posição;
– Não dirige os olhos ou a cabeça para o som (principal- – Postura assimétrica;
mente) quando ouve a voz humana; – Não agarra os objectos ou agarra-os só com uma mão;
– Deixa cair a cabeça para trás, quando seguro pelas – Ausência de resposta à voz;
mãos e antebraços; – Não mastiga;
– Mantém as mãos sempre fechadas; – Não brinca, mantendo apatia;
– Membros rígidos em repouso; – Não “obedece” às ordens simples;
– Postura assimétrica; – Não diz palavras que se percebam.
– Reage com choro ao tacto;
– Actividade motora monótona. 2 anos
– Ausência de marcha;
6 meses – Manipulação dos objectos sem finalidade aparente;
– Não “segura” a cabeça (instabilidade) – Parece não compreender o que se lhe diz;
– Membros inferiores com rigidez; – Não diz palavras perceptíveis.
– Segue objectos;
– Assimetria na postura Mais de 3 anos
– Não reage aos sons, evidenciando “apatia”; – Hiperactividade e dificuldade de concentração;
– Ausência de vocalização; – Linguagem incompreensível;
– Ausência de preensão palmar (não agarra os objectos); – Aparenta “não ver”;
– Estrabismo constante – Alterações do comportamento (agressividade na esco-
la ou no meio familiar, dificuldade no convívio com
outras crianças, birras excessivas, reacção excessiva se
separado da mãe.

De reiterar que todos estes domínios são inter- duais de semanas ou meses no respeitante, desi-
dependentes, cada um deles influenciando e sendo gnadamente ao desenvolvimento cognitivo e
influenciado pelos outros. motor tendo como referência o padrão médio da
Após a avaliação de cada um destes domínios por idade-chave em questão, o Quadro 2 de interesse
tarefas, (sendo de referir que cada uma permite per- prático para o clínico, elucida sobre determinadas
ceber mais do que uma capacidade), é importante falhas consideradas alarmantes, implicando even-
analisar o desempenho e verificar se as falhas são tual intervenção.
pontuais ou globais e se eventualmente são alarman-
tes e carecem de encaminhamento para centro espe- Pontos de viragem “Touch points”
cializado na perspectiva de possível intervenção. No e intervenção preventiva
caso de crianças prematuras deve ter-se em conta a
idade corrigida até aos dois anos de idade. Está demonstrado que a auto-estima da criança
Chamando-se a atenção para variações indivi- poderá ser melhorada se a família adquirir conhe-
134 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

cimentos e competências sobre o desenvolvimento mente o seu sentido aos pais, tendo em vista reduzir
motor, cognitivo e emocional em idade pediátrica. a ansiedade e aumentar a confiança naqueles.
Nesta perspectiva, em colaboração com o mé- (Quadro 3)
dico e profissional de saúde seguindo, em conjun- Resumem-se a seguir, com exemplos concretos,
to a criança e discutindo assuntos relacionados, alguns aspectos relacionados os oito pontos de
haverá excelentes oportunidades para prevenir viragem considerados por Brazelton e Gomes Pedro
certas falências do desenvolvimento. (desde a gravidez até aos 12 meses):
Por outro lado reforça-se a confiança e aliança • 1º Ponto de Viragem – O 1º ponto é importante
entre profissional e família, o que contribui para o para formar uma relação com os futuros pais;
progresso do desenvolvimento. no 7º mês de gravidez o profissional tem a
É esta a filosofia do modelo dos touchpoints, oportunidade de conhecer e partilhar preo-
(pontos de viragem), que teve a sua criação em cupações com os pais establecendo-se uma
Terry Brazelton, seguido e desenvolvido em relação de confiança antes da chegada do bebé.
Portugal por Gomes Pedro. • 2º Ponto de Viragem – O 2º ponto dá-se no
Baseia-se na teoria de sistemas. Cada com- hospital ou em casa, pouco depois de o bebé
ponente deve reagir a todo e qualquer motivo de nascer; pai e mãe, participando na consulta de
estresse que possa incorrer no sistema, e dado que avaliação, poderão ser sensibilizados para o
cada membro partilha as suas reacções, a presença comportamento do bebé designadamente no
do técnico de saúde poderá reduzir o estresse tanto que respeita à sua notável capacidade para
nos pais, como na criança. Cada momento de estresse reagir ao ambiente que o rodeia.
é visto como uma oportunidade de aprendizagem, • 3º Ponto de Viragem – O 3º ponto deverá
seja para o sucesso, seja para o insucesso. ocorrer entre as 2 – 3 semanas de vida; ou seja,
O modelo dos “pontos de viragem” corresponde antes da idade de 4 – 12 semanas, período este
a um tipo de intervenção preventiva que dá relevo caracterizado por choro irritante ao fim do dia
principal aos potenciais e forças da família e que relacionado com a reacção do sistema nervoso
combina a compreensão do desenvolvimento da imaturo aos estímulos ambientais. Com a
criança com a criação de relações entre os intervenção antecipada (2–3 semanas), expli-
intervenientes (técnico, clínico, pais e criança). O cando aos pais que não deverão pegar no bebé
desenvolvimento da criança é descrito como não- (o que constitui estímulo adicional para choro
linear; é dinâmico, em surtos, com regressões, saltos irritante), o período de choro pode ser re-
e pausas, sendo que uma área de desenvolvimento duzido e o bebé fica mais calmo. É também a
influencia as outras. Os pontos de viragem são oportunidade para criar um ambiente calmo e
momentos em que uma mudança do sistema é caloroso, esclarecendo regras sobre a prática
provocada por uma alteração no desenvolvimento da do aleitamento materno. Consequentemente
criança, correspondendo a períodos previsíveis de os pais sentirão que foram bem sucedidos.
regressão que ocorrem antes de um “salto” no • 4º Ponto de Viragem – O quarto ponto
desenvolvimento. Por outro lado, o desenvolvimento corresponde aos 2 meses, data de vacinas e
é multidimensional e interdependente; um salto em que se reavalia a alimentação, o sono e os
numa área causa uma regressão temporária noutra ciclos de agitação. Se o profissional comentar
área. Estes períodos de regressão causam desor- com os pais certos padrões de comporta-
ganização no sistema no qual a criança está inserida, mento do bebé (contacto social frente a frente,
mas correspondem também a um período de actividade motora, etc.), os mesmos poderão
reorganização. É possível que os pais se sintam avaliar a aprendizagem já ocorrida no bebé,
desorientados e tenham medo de que a regressão aumentando-lhes o auto-estima e o sentido
conduza a uma alteração do comportamento. de responsabilidade.
Uma vez que estes períodos são previsíveis - um • 5º Ponto de Viragem – O 5º ponto (consulta
na gravidez, sete no primeiro ano, três no segundo dos 4 meses) antecede um período de so-
ano e dois em cada ano subsequente, é função do bressalto na consciência cognitiva do ambien-
médico e do técnico de saúde explicar antecipada- te: interrompe a refeição, olha em volta atento
CAPÍTULO 22 Desenvolvimento e intervenção 135

QUADRO 3 – Aspectos principais de cada ponto de viragem (touchpoints)

Idades
1) Pré-natal Preparação para a Bebé imaginado Relações familiares Pai imaginado
paternidade (idealizado/real)
2) Recém-nascido Saúde Bebé real Emoções parentais Afeição
3) 2-3 semanas Exaustão parental Alimentação Relações entre os pais Individualidade
4) 2 meses Sociabilidade Autoconfiança parental Relações com o mundo exterior
5) 4 meses Afeição Interesse pelo mundo Padrões de cuidados Exigências do bebé
6) 6 meses Capacidades motoras Alimentação Sono Permanência do objecto
7) 10 meses Mobilidade Referência social Controlo (mover/pensar) Permanência de pessoas
8) 12 meses Independência Capacidades motoras Aprendizagem (descoberta) Irritabilidade
9) 15 meses Autonomia Brincadeira (exploração) Dependência Linguagem
10) 18 meses Conhecimento Noção do “eu” Exercício do controlo Linguagem
11) 24 meses Brincadeiras Linguagem Autonomia Capacidades motoras
de “faz-de-conta”
12) 36 meses Imaginação Medos e fobias Linguagem Relações com outras crianças

aos estímulos do ambiente e começa a acordar Em suma, os pais da criança sentirão que o
de noite após período de sono seguido, com médico e o profissional de saúde se preocupam
mudança dos padrões alimentares. Esta fase não só com o progresso fisico, mas também estão
do desenvolvimento corresponde a “rápido” atentos ao seu desenvolvimento psicológico. Por
sobresalto do mesmo, ou de “desorganiza- outro lado, os referidos pontos de viragem podem
ção”. É então altura de os pais serem esclare- ser encarados como oportunidades para dar apoio
cidos que tal período é precursor de rápido aos pais preocupados.
desenvolvimento e não constitui qualquer
fracasso no que respeita aos cuidados BIBLIOGRAFIA
prestados. É sinal de que o bebé precisará de Brazelton T, Greenspan S. A criança e o seu mundo. Requisitos
refeições mais curtas sendo importante que os essenciais para o crescimento e aprendizagem, Lisboa:
pais compreendam esta evolução. No que Editorial Presença, 2002
respeita ao sono, se o bebé tiver aprendido a Brazelton T. Touchpoints: opportunities for preventing
encontrar conforto através duma forma problems in the parent-child relation chip, Acta Paediatr
independente de adormecer (por exemplo, (Suppl), 1994; 394: 35-39
chuchando no dedo ou agarrando-se ao Brazelton T. Working with families, opportunities for early
cobertor), e não habituado a adormecer ao intervation. Pediatr Clin North Am 1995; 42: 1-9
colo dos pais, haverá maior probalidade de Fonseca V. Manual de Observação Psicomotora, Lisboa:
adormecer depois de acordar de noite. Editorial Noticias, 1992
• 6, 7º e 8º Pontos de Viragem – Aos 6, 10 e 12 Gomes-Pedro J, Nugent JK, Young JG, Brazelton TB. A criança
meses ocorrem mais três pontos de viragem, e a família do século XXI. Lisboa: Dinalivro, 2005
cada um dos quais constitui uma oportunidade Percy M at al. Touchpoints. American Journal of Maternal-
para discutir questões que vão surgindo, com Child Nursery, 2002; 27, 222-228
os pais. Cada ponto de viragem antecede um Staddler A et al. Using the language of the child’s behavior in
sobressalto numa ou mais áreas. your work with families. J Pediatric Helth Care 1999; 13:
O Quadro 3 resume os aspectos principais de S13-S16
cada ponto de viragem até aos 36 meses. Wadsworth W. Piaget’s theory of cognitive and affective
Salienta-se que a data em que os pontos de development. London: Longman, 1984
viragem acontecem pode ser alterada nos
casos de prematuridade.
136 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

23
O temperamento é, assim, intrínseco à criança,
por oposição ao comportamento que é influen-
ciado pelo meio e pelo relacionamento e perfil da
mãe ou substituto materno (vinculação).
De referir que a vinculação é fundamental para
o desenvolvimento cognitivo e emocional da
criança, sendo a sua avaliação primordial para a
COMPORTAMENTO apreciação dos problemas do comportamento, so-
bretudo durante o primeiro ano de vida.
E TEMPERAMENTO A partir do segundo e terceiro anos de vida, a
criança torna-se menos dependente das figuras de
Maria do Carmo Vale vinculação.
Em 1988, Belsky e, posteriormente, Bydar e
Brooks-Gunn, concluiram que periodo superior a
20 horas semanais em creche, durante o primeiro
Definições e importância do problema ano de vida, pode pôr em risco a relação mãe-filho,
bem como o desenvolvimento cognitivo, emo-
Define-se comportamento como o conjunto de cional e comportamental da criança o que não
acções, reacções ou actividades motoras obser- acontece quando a actividade laboral materna é
váveis como resposta aos estímulos internos e adiada para o segundo ou terceiro ano de vida.
externos. Desde o nascimento as crianças apresen- A problemática da separação mãe-filho noutras
tam diferentes comportamentos: algumas choram situações como a hospitalização, institucionali-
muito, outras são mais calmas, umas mais sisudas, zação, adopção, etc., condicionou uma maior ên-
outras mais sorridentes e activas. fase no encurtamento das mesmas; sublinhou-se,
Define-se temperamento como o conjunto de por exemplo, as vantagens do hospital de dia, dos
características biológicas que influenciam o hu- internamentos de curta duração e da aceleração
mor, comportamento e emoções, correspondendo dos processos de adopção.
ao substrato biológico sob o qual se estrutura a Define-se perturbação do comportamento como
personalidade. São exemplos o nível de actividade a modificação do padrão de acções, reacções ou
motora, capacidade de adaptação à mudança, respostas aos estímulos do meio, de carácter persis-
qualidade e intensidade das respostas a novas tente ou repetitivo, em que são violados os direitos
situações, limiar sensorial, humor positivo ou básicos dos outros ou importantes regras ou normas
negativo, capacidade de atenção, concentração e sociais próprias da idade. Tal situação gera um
persistência. Temperamento é, afinal, um estilo défice clinicamente significativo na actividade social
comportamental de etiologia biológica com com- escolar ou laboral.
ponente fortemente genética. A prevalência da perturbação do comporta-
O perfil de temperamento na primeira mento parece ter aumentado nas últimas décadas;
infância é traduzido pelos ritmos de sono e é usualmente mais elevada nos meios urbanos
alimentação, reacção ao banho, adaptação a comparativamente aos rurais e varia entre menos
novos alimentos e pessoas, frequência e inten- de 1% e 10%.
sidade do choro e riso, etc..
Na segunda infância é traduzido pelo relacio- Manifestações clínicas e diagnóstico
namento com os pares, padrões de jogo, capaci-
dade de atenção e persistência nas tarefas. Foram estabelecidos dois tipos de perturbação do
Na criança em idade escolar relaciona-se com comportamento com base na idade de início (início
a adaptação à escola, à família, aos pares, às na infância ou início na adolescência), podendo
actividades lúdicas e de grupo, orientadas por apresentar-se de forma ligeira, moderada ou
educadores, ou seja, pelo reportório de inte- grave.
racção. O tipo início na infância é definido pelo menos
CAPÍTULO 23 Comportamento e temperamento 137

QUADRO 1 – Perturbação do Comportamento: Critérios de Diagnóstico

Padrão de comportamento repetitivo e persistente, em que são violados os direitos básicos dos outros ou importantes
regras ou normas sociais próprias da idade, manifestando-se pela presença de três ou mais dos seguintes critérios,
durante os últimos 12 meses e, pelo menos, de um critério durante os últimos 6 meses.

Agressão a pessoas ou animais


1. com frequência insulta, ameaça ou intimida as outras pessoas.
2. com frequência inicia lutas físicas.
3. utilizou uma arma que pode causar graves prejuízos aos outros.
4. manifestou crueldade física para com as pessoas.
5. manifestou crueldade física para com os animais.
6. roubou confrontando-se com a vítima.
7. forçou alguém a uma actividade sexual.

Destruição de propriedade
8. lançou deliberadamente fogo com intenção de causar prejuízos graves.
9. destruiu deliberadamente a propriedade alheia.

Falsificação ou roubo
10. arrombou a casa, propriedade ou automóvel de outra pessoa.
11. mente com frequência para obter ganhos ou favores ou para evitar obrigações.
12. rouba objectos de certo valor sem confrontação com a vítima

Violação grave das regras


13. com frequência permanece fora de casa de noite apesar da proibição dos pais, iniciando este comportamento antes dos
treze anos de idade.
14. fuga de casa durante a noite, pelo menos duas vezes, enquanto vive em casa dos pais ou em lugar substitutivo da casa
paterna.
15. faltas frequentes à escola com início antes dos treze anos.

Tipos
Tipo início na segunda infância: antes dos 10 anos, início de pelo menos uma característica do critério de Perturbação do
Comportamento.
Tipo início na adolescência: antes dos 10 anos ausência de qualquer critério característico do critério de Perturbação do
Comportamento.
Perturbação do comportamento, início não especificado: a idade de início é desconhecida.

Gravidade
Ligeira: poucos ou nenhum dos problemas de comportamento para além dos requeridos para fazer o diagnóstico sendo
de referir que os problemas de comportamento causaram apenas pequenos prejuízos aos outros.
Moderada: o número de problemas de comportamento e os efeitos sobre os outros situam-se entre”ligeiros” e “graves”.
Acentuada: muitos problemas de comportamento que excedem os requeridos para fazer o diagnóstico ou os problemas
de comportamento causam consideráveis prejuízos aos outros.

por um dos critérios característicos da perturbação vidade física com os outros, relações perturbadas
do comportamento antes dos 10 anos (Quadro 1). com os companheiros, perturbação da oposição no
Trata-se habitualmente de crianças do sexo início da infância e sintomas que preenchem os
masculino, evidenciando frequentemente agressi- critérios de perturbação do comportamento antes
138 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

da fase pubertária. Muitas crianças com este tipo tira é utilizada para encobrir algo que ela não
têm também perturbação de hiperactividade com aceita no seu comportamento, conseguindo desta
défice de atenção. forma um bem estar temporário e preservação da
O tipo início na adolescência é definido pela auto-estima.
ausência de características de perturbação do A pré-delinquência é uma entidade clínica
comportamento antes dos 10 anos de idade. Com- manifestada através de vários comportamentos
parativamente ao tipo anterior manifestam-se anti-sociais como o roubo, mentira, destruição de
menos comportamentos agressivos com tendência propriedade, crueldade para com os animais,
para relações mais aproximadas do normal com os violação, crueldade física para com os outros e
companheiros. repetidas tentativas de fuga.
O comportamento de oposição é manifestado
Evolução através de comportamentos menos graves como a
birra, o desrespeito de regras, atitude de desafio
A evolução da perturbação do comportamento é permanente, culpabilização sistemática dos outros,
variável; verifica-se remissão até à idade adulta na comportamento vingativo e frequente utilização de
maior parte das crianças. Contudo existe uma linguagem obscena.
proporção que continua a revelar na idade adulta Os comportamentos de oposição e as birras
comportamentos anti-sociais. (teimosia e zanga), frequentes entre os 18 meses e
O início precoce prenuncia um mau pro- os 3 anos, são de alguma forma apelativos, na
gnóstico e risco mais elevado de evoluir para uma medida em que procuram centralizar a atenção
perturbação anti-social da personalidade ou para dos pais. A resposta desajustada, nomeadamente
perturbações associadas ao abuso de drogas na através de punição, reforça e perpetua este tipo de
idade adulta. comportamento, pelo que os pais devem dar
espaço e tempo à manifestação da criança que,
Tipos especiais depois de acalmada, deve ser chamada à razão
de comportamento social através de um diálogo profícuo, explicando o
motivo pelo qual o seu comportamento é ina-
Comportamentos considerados apropriados ou ceitável, moldando e controlando progressiva-
aceitáveis em determinadas idades passam a mente a referida conduta.
patológicos quando surgem mais tardiamente. Define-se agressão como qualquer forma de
Os espasmos do soluço, mentira, impulsivi- hostilização; é frequentemente considerada como
dade e birras são considerados normais entre os 2- um traço negativo, apesar de desempenhar papel
4 anos e devidos a uma necessidade de afirmação relevante na evolução da espécie animal.
e autonomia face à real dependência motora e A agressividade, tipo de comportamento
social, traduzindo frustração e zanga por tal facto. social, pode ser expressa de diferentes maneiras:
São analisados alguns exemplos: não verbal, sob a forma de pontapés e empurrões;
O espasmo do soluço (pausa respiratória e verbal, traduzida por apreciações mais ou menos
cianose com choro) é observado nos dois primeiros depreciativas que podem ir atá ao insulto, instru-
anos de vida e tem por objectivo o controle do mental e hostil (intencionalidade); e a individiual
meio, nomeadamente dos pais e cuidadores, nas ou de grupo.
situações de desprazer da criança. Um tipo de agressividade e violência
Este comportamento deve ser ignorado e acaba actualmente praticado em ambiente escolar é
por extinguir-se, se a criança não atinge os seus designado pelo termo, em inglês, bullying (tra-
objectivos. duzindo para português: tirania ou acto praticado
A mentira é utilizada entre os 2 e os 4 anos por tirano). Segundo estatísticas, surge em cerca de
como meio de treino da linguagem e imaginação 10% dos estudantes pré-adolescentes ou adoles-
(fabulação), expressando a criança a fantasia dos centes: agressão física ou psicológica levada a
seus desejos. efeito por colega ou grupo de colegas mais fortes
Na criança em idade escolar por vezes a men- a outros mais fracos, podendo estes últimos ficar
CAPÍTULO 23 Comportamento e temperamento 139

afectados física e psicologicamente (depressão, soluções, perspectiva do outro, etc.) em sessões


ansiedade, etc.). Por vezes verifica-se fenómeno de suficientes para obter resultados (nunca menos de
retaliação 20-30 sessões).
Tal como já foi referido, a agressividade da O treino parental envolve o ensino de princípios
criança ou adolescente pode ser condicionada pela e técnicas educativas que promovam comporta-
dificuldade de relacionamento com os pares ou mentos ajustados, de que são exemplo o reforço
pais, sendo, importante investigar as causas e positivo ou condicionado (premiar ou louvar o
motivos. comportamento adequado), cobrar ou “multar” a
As crianças e jovens sem comportamento empá- resposta inadequada (por exemplo com a perda de
tico ou pró-social são frequentemente agressivos e pontuação) e plano de contingência adaptado.
podem necessitar de intervenção de equipa de saúde Existem diferentes tipos de intervenção
mental. centrada no apoio e ensino dos pais englobando os
Nas crianças expostas a modelos de agressi- seguintes aspectos:
vidade nos meios audiovisuais como a televisão • Observar, identificar e monitorizar o compor-
desenvolve-se mais frequentemente comporta- tamento do filho.
mento de agressividade, comparativamente a • Reforçar o comportamento adequado e pró-
crianças não expostas. social.
• Lutar contra comportamentos agressivos ou
Intervenção de ruptura, ignorando-os.
• Dar directivas claras e concisas.
Na maior parte dos casos as perturbações de com- • Avisar uma única vez as consequências do
portamento são transitórias e regridem, ou espon- não cumprimento de uma ordem ou
taneamente, ou através de atitudes educativas directiva.
como o reforço positivo de comportamentos pró- • Utilizar tempo limitado para o cumprimento
sociais e adequados. de uma ordem (3-5 minutos).
Contudo, tais perturbações exigem maior aten-
ção para prevenir situações graves (delinquência), BIBLIOGRAFIA
ou do foro psicopatológico. American Psychiatric Association. Perturbações Dissruptivas
Existem diferentes modos de lidar com a do Comportamento e de Défice de Atenção in DSM-IV-TR.
conflitualidade, comportamento anti-social ou Lisboa: Climepsi, 2002: 94-103
pré-delinquência; por exemplo ignorar o compor- Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
tamento em causa, separação das outras crianças Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
para evitar reforçar o referido comportamento, Lewis M. Child and Adolescent Psychiatry. Baltimore:
recompensar a atitude não agressiva, reforçar Lipincott, Williams & Wilkins, 2002
regras, efectuar manobras de diversão, explicar a Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph’s Pediatrics.
igualdade de direitos, incentivar a autodefesa, New York: McGraw-Hill Medical, 2011
sugerir soluções, encorajar a amizade, ensinar boas Vitulano LA, Tebes JK. Child and Adolescent Behavior Therapy
maneiras, desaprovar, etc.. in Lewis M (ed). Child and Adolescent Psychiatry.
A intervenção só se justifica se a agressividade Baltimore: Lipincott Williams & Wilkins, 2002: 998-1112
for mantida, condicionando ruptura com o meio Yancy WS. Aggressive Behaviour and Delinquency in Levine
familiar, escolar ou social. MD, Carey WB, Crocker AC (eds). Developmental-
Dois tipos de intervenção podem ser utilizados Behavioral Pediatrics. Philadelphia: Saunders, 1999: 471-476
com sucesso nas perturbações de comportamento:
treino da criança na capacidade de solucionar
problemas e treino dos pais.
O primeiro utiliza a modelo comportamental,
do tipo “role-playing”, através da análise das boas
razões, da correcção de conduta, e de reforço social
de comportamentos adequados (imaginação de
140 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

24
ças as quais são consideradas “treináveis” e com
capacidade de integração comunitária. Apenas 3-
4% das formas DM se classificam como Graves,
com aproveitamento mais limitado a nível pré-
escolar; e apenas 1-2% das situações correspondem
à forma DM Profunda.
A melhoria dos cuidados de saúde (e do
DEFICIÊNCIA MENTAL respectivo acesso) diminuiu a prevalência de DM.
Mas se, por um lado, o diagnóstico pré-natal e a
Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto intervenção precoce permitiram reduzir as
consequências da síndroma de Down, da fenil-
cetonúria e do hipotiroidismo congénito, assistiu-
se a um aumento de casos de DM devido ao
Definições e importância do problema aumento de exposição pré-natal a drogas de abuso
e a um aumento da sobrevivência de crianças de
Deficiência mental (DM) é definida como o alto risco perinatal (relacionado designadamente
conjunto de perturbações caracterizadas por um com prematuridade extrema e muito baixo peso).
funcionamento intelectual global (habitualmente O défice cognitivo é a patologia grave do neu-
definido por um quociente de inteligência – QI – rodesenvolvimento mais frequente, sobretudo no
obtido através de testes de inteligência) inferior à sexo masculino, comparativamente ao sexo femi-
média (défice cognitivo) acompanhado de limi- nino numa relação de 2/1 no défice cognitivo
tações do funcionamento adaptativo em, pelo ligeiro e 1.5/1 no défice cognitivo grave.
menos, duas das seguintes áreas: comunicação,
cuidados próprios, vida doméstica, competências Factores etiológicos
sociais/interpessoais, utilização de recursos co-
munitários, autocontrolo, competências académi- Como já referimos existem muitas causas de DM,
cas funcionais, trabalho, lazer, saúde e segurança. frequentemente em concomitância. A identificação
O início da DM deve ocorrer antes dos 18 anos; da causa é muitas vezes inconclusiva, pelo que não
com múltiplas etiologias, corresponde à via final é recomendada por rotina uma investigação exaus-
comum de vários processos patológicos que tiva de todas as causas possíveis, mas sim uma
afectam o funcionamento do sistema nervoso investigação orientada pela clínica.
central (SNC). Os factores a ter em consideração para
Segundo a classificação do Diagnostic and investigar um défice cognitivo são:
Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition • Gravidade do défice cognitivo (quanto mais
– DSM IV, a deficiência mental pode ser grave for, maior a possibilidade de um dia-
classificada em: gnóstico etiológico).
• Deficiência Mental Ligeira: QI> 50-55 <70 • História familiar ou semiologia sugestiva de
• Deficiência Mental Moderada: QI>35-40 <50- perturbação específica.
55 • O desejo dos pais de uma nova gravidez o
• Deficiência Mental Grave: QI >20-25 <35-40 que, por si só, justifica esforços acrescidos no
• Deficiência Mental Profunda: QI < 20-25 esclarecimento etiológico.
• Deficiência Mental, Gravidade Não • Opinião dos pais: alguns estão mais interes-
Especificada sados no tratamento e outros estão focados
Cerca de 1-3% da população apresenta DM. É na etiologia, tendo dificuldade em iniciar a
importante reconhecer que a grande maioria das intervenção antes de conhecer o diagnóstico.
crianças (85%) se situa no grupo de DM Ligeira, Na população com DM Ligeira há frequen-
crianças consideradas “educáveis”, muitas vezes temente um envolvimento de componentes gené-
apenas com “dificuldades de aprendizagem”. A ticos e ambientais (sócio-económicos, culturais,
DM Moderada representa cerca de 10% das crian- etc.) salientando-se que as causas específicas de
CAPÍTULO 24 Deficiência mental 141

DM ligeira/moderada são diagnosticáveis em e médico de família na sua vigilância regular de


menos de 30% dos casos. saúde infantil perceber se os desempenhos são
Na população com DM grave e profunda é próprios da idade cronológica.
mais provável a possibilidade de identificação de As perturbações do comportamento adapta-
causas orgânicas e, uma vez que o impacte na tivo são também frequentemente o sintoma
família pode ser determinante, devem ser desen- revelador da DM. O comportamento adaptativo
volvidos mais esforços no sentido de identificar refere-se à maneira como as crianças lidam com as
uma possível etiologia; neste grupo as etiologias necessidades da vida diária e ao grau de indepen-
pré-natais são predominantes. As causas peri- dência pessoal em relação ao esperado para um
natais e pós-natais comparticipam apenas 10-25% indivíduo do seu grupo etário.
dos casos nas formas mais graves de défice O médico deve inquirir e observar a criança em
cognitivo. relação ao seu comportamento e desenvolvimento
Exemplos de factores causais referentes ao de forma a fazer uma detecção precoce e
período pré-natal incluem as anomalias cromos- orientação adequada. Pode usar testes simples de
sómicas e doenças genéticas com múltiplas ano- rastreio (como o Denver II) ou questionários diri-
malias congénitas major/minor, e causas não gidos aos pais.
genéticas como a exposição a tóxicos (álcool ou Entre os 6 e os 18 meses são mais frequentemente
drogas de abuso), infecções maternas (rubéola, detectados problemas nas áreas motoras, hipotonia
toxoplasmose e citomegalovírus), alterações ou hipertonia, com atraso nas aquisição de
estruturais do SNC (perturbações da migração competências como o sentar-se, gatinhar ou andar.
neuronal, agenésia do corpo caloso, hidrocefalia). Os problemas de linguagem e comportamentais, são
Exemplos de etiologia perinatal incluem o queixas referidas, sobretudo, após os 18 meses.
sofrimento fetal, hipóxia ou complicações da Algumas situações mais ligeiras, podem só ser
prematuridade. detectadas com o início do infantário ou mesmo da
As causas de DM pós-natal incluem as in- escolaridade. Por outro lado, quanto mais grave for
fecções do SNC, hipotiroidismo, má nutrição, o défice cognitivo, mais precoce será o diagnóstico e
trauma e exposição a toxinas (chumbo), etc.. maior a necessidade imediata de intervenção.
Em geral, quanto mais precocemente ocorrer a Assim, numa criança em que se verifique a
noxa, mais graves as consequências como é o caso suspeita de DM (com ou sem orientação etiológica
das perturbações que afectam a embriogénese definida), deve ser programada uma avaliação
precoce: anomalias cromossómicas (trissomia 21, completa do desenvolvimento por profissionais
X frágil), doenças hereditárias do metabolismo/ especializados, idealmente numa equipa multidis-
perturbações neurodegenerativas (mucopolissaca- ciplinar.
ridose) e anomalias do desenvolvimento do SNC Esta avaliação não se limita apenas à realização
(défice de migração neuronal, lisencefalia) (Capí- de testes psicológicos individuais, que permitem a
tulo 193 e Parte XXXII). definição do QI e consequentemente a classificação
nosológica, mas deve resultar na defição de um
Manifestações clínicas e diagnóstico perfil funcional individual.
Assim, é possível diagnosticar DM em crianças
Excluindo as situações de dismorfia (síndroma com QI≥70 e ≤75 se existirem concomitantemente
genética, como por exemplo a trissomia 21 ou défices significativos no comportamento adaptativo.
microcefalia isolada), patologia já identificada ou Inversamente, não será diagnosticada DM em criança
situações de risco (como a prematuridade), a maior com QI≤70 se não coexistirem défices ou perturbações
parte das crianças com DM recorre ao pediatra ou significativas do comportamento adaptativo.
médico de família por não cumprir as metas de Naturalmente, os instrumentos de avaliação
desenvolvimento nas idades esperadas. Nalguns deverão ter em conta factores limitantes como por
casos em que não há estigma físico que permita uma exemplo o nível sócio-cultural, língua materna e a
orientação etiológica, os pais podem sentir que algo associação de limitações nas áreas da comuni-
está errado com a sua criança, cabendo ao pediatra cação, motora e sensorial.
142 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Na maioria dos testes são avaliadas diferentes QUADRO 1 – Anomalias cromossómicas


sub-áreas: motricidade grosseira, motricidade associadas a défice cognitivo
fina, socialização, autonomia pessoal e comuni-
tária, a linguagem e a comunicação verbal e não- SÍNDROMA DO X FRÁGIL
verbal, a cognição verbal e não verbal, o comporta- Quadro clínico
mento e a atenção, etc.. • Deficiência mental/Dismorfia crânio-facial caracte-
É de uma caracterização extensa e pormeno- rística (QI:20-80; média ~50).
rizada destes múltiplos desempenhos que é pos- • Macrocrânia, pavilhões auriculares proeminentes.
sível construir um perfil quanto ao desenvolvi- • Hiperextensibilidade articular/hipotonia.
mento. Este perfil permite, não apenas confirmar • Macrorquidismo
o diagnóstico e avaliar a presença de co-mor- • Prolapso da válvula mitral.
bilidades (de notar que pode haver DM concomi- • Perturbação da comunicação
tantemente com défices específicos em determina- • Hiperactividade
das áreas), mas conhecer as áreas “fortes e fracas”
NB – Nas crianças pequenas os sinais dismórficos faciais poderão não ser evidentes; as
da criança, o que é imprescindível para a elabora- orelhas salientes poderão ser a única característica mais exuberante.

ção de um programa de intervenção adequado e


eficaz. SÍNDROMA DE TURNER (XO)
A investigação etiológica inclui, geralmente SÍNDROMA DE KLINEFELTER (XXY)
estudos neuroimagiológicos (anomalias do SNC,
doenças neurodegenerativas, anomalias de desen-
volvimento do SNC), estudos cromossómicos Quando o diagnóstico é precoce, deve ser de
(cromossomopatias), moleculares (X frágil) e imediato sinalizada para uma equipa em centro
metabólicos (mucopolissacaridoses, doenças do especializado e iniciar-se um programa de inter-
ciclo da ureia, outras doenças metabólicas). venção definido de acordo com as dificuldades e
As crianças com défice cognitivo apresentam potencialidades da criança. A intervenção deve
frequentemente problemas de visão, audição, ser feita no domicílio ou na instituição que a
emocionais e comportamentais associados. Se não criança frequenta e ser sobretudo centrada no
forem atempada e adequadamente diagnosticados apoio indirecto aos pais, que deverão sempre ser
e tratados tais problemas associados potenciam considerados parceiros fundamentais na estimu-
adversamente a evolução destes casos. lação da criança.
Por outro lado, conhecer a etiologia do défice De acordo com o modelo inclusivo que é
cognitivo pode ajudar a diagnosticar problemas actualmente defendido a nível mundial, as
associados na medida em são habituais em crianças devem ser integradas em estabeleci-
determinados casos: por exemplo na trissomia 21 mentos de ensino regular, com apoio de educação
é frequente a coexistência de hipotiroidismo, especial. Só este modelo de integração permite que
subluxação atlantoaxial e défices sensoriais; e na elas desenvolvam um comportamento conven-
síndroma de X frágil e síndroma fetal-alcoólica são cional e adaptativo, que é a chave para a sua
frequentes os problemas comportamentais. aceitação na comunidade.
O Quadro 1 refere-se a anomalias cromos- O programa de intervenção deve ser reavaliado
sómicas frequentemente associadas a défice e reajustado periodicamente; por isso o pediatra
cognitivo (três exemplos). (ver Parte III) do desenvolvimento deve elaborar um plano de
vigilância e seguimento, em colaboração com o
Intervenção pediatra geral ou médico de família, a equipa de
técnicos, e os pais.
Independentemente do maior ou menor sucesso Um diagnóstico em tempo oportuno e uma
na identificação da etiologia, a intervenção na intervenção, o mais precoce possível, poderão
DM deve ser iniciada imediatamente uma vez permitir minorar as dificuldades da criança
feito o diagnóstico de DM e definido o perfil de ajudando-a a rendibilizar as suas potencialidades
desenvolvimento da criança. e a encontrar o seu lugar na comunidade.
CAPÍTULO 25 Perturbações da linguagem e comunicação 143

25
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1992: 259-289 Definições e importância do problema

A fala tem várias componentes e qualidades: a


articulação, que está relacionada com o som
produzido pelos movimentos das estruturas orais;
a voz, ou fonação, que resulta da produção de som
pela vibração das cordas vocais; a ressonância, que
resulta da amplificação ou filtração do som
emitido pela vibração das cordas vocais (cavidade
oral e nasal); a fluência que se refere ao ritmo e
fluxo apropriados da fala (um exemplo de dis-
fluência é a gaguez); e a prosódia, que se refere à
entoação, inflexão e cadência da fala.
A elevada prevalência de perturbações da
linguagem e problemas de aprendizagem nas
famílias de crianças com perturbações da lingua-
gem condicionou a hipótese de etiopatogénese
genética para os problemas evolutivos da lingua-
gem.
Mais de metade das crianças com pertur-
bações da comunicação apresenta problemas
emocionais ou comportamentais. Alguns auto-
res reportaram que cerca de dois terços de
crianças recorrendo à consulta de pedopsiquia-
tria apresentavam problemas relacionados com
linguagem.
Para compreender melhor a complexidade
desta patologia é importante abordar a termino-
logia: Linguagem é um sistema de representação
simbólica usado para comunicar sentimentos,
ideias e intenções; a fala é a expressão da lin-
guagem na forma verbal pela emissão de sinais
acústicos; os fonemas são as unidades de som na
fala; a fonologia refere-se à forma como os sons se
144 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

organizam para formar palavras; a semântica blemas relacionados com défice auditivo ou difi-
refere-se ao significado das palavras; a sintaxe culdades de percepção/discriminação auditiva.
refere-se à ordem por que as palavras são agru- Torna-se, pois, fundamental que estas crianças
padas para formar frases, segundo as regras gra- tenham uma avaliação completa da audição,sendo
maticais das diferentes línguas; a pragmática refere- este tópico abordado no capítulo 79.
se ao uso social e aplicação dos significados nos É importante perceber se a perturbação cor-
diferentes contextos, exigindo capacidade de responde apenas à área da linguagem e fala, se faz
antecipação e sensibilidade ao outro. parte de uma perturbação mais generalizada, ou
A linguagem é o veículo do pensamento. Sem se está associada a perturbações neurológicas ou
linguagem é difícil comunicar ideias, pensamentos comportamentais. Com efeito, é frequente tratar-
e emoções; e sem um pensamento estruturado é se duma primeira manifestação de uma deficiência
impossível transmitir verbalmente uma ideia ou mental, inserir-se num contexto de patologia do
pensamento de forma perceptível. espectro do autismo, ou associar-se a patologias
A comunicação e interacção estão presentes como a síndroma do X Frágil, a síndroma de
desde o início da vida extra-uterina, manifestando- Landau-Kleffner, ou ainda resultar de lesão cere-
se, sobretudo, a partir do final do primeiro mês, bral (afasia adquirida).
através da troca de sons, contacto físico e visual. A Excluídas estas situações o clínico fica confro-
comunicação engloba linguagem nas suas com- tado com perturbações específicas do desenvol-
ponentes verbal, gestual e de código social, vimento da linguagem que, segundo a classifi-
ultapassando-a e tornando-a extensiva aos afectos cação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental
e emoções. Os animais interagem e comunicam Disorders, Fourth Edition – DSM IV se designam por
entre si; no entanto, a linguagem é uma compe- Perturbações da Comunicação e se dividem em
tência única e característica da mente humana e grandes grupos: 1. Perturbação da Linguagem
uma das mais vulneráveis. Expressiva; 2. Perturbação Mista da Linguagem
As perturbações da comunicação constituem os Receptiva-Expressiva (mista); 3. Perturbação
problemas de desenvolvimento mais frequentes Fonológica (ou de articulação verbal); 4. Gaguez.
na idade pré-escolar, com 7 a 10% das crianças É tradicional a distinção entre a disfunção da
funcionando abaixo da média. Três a 6% das linguagem expressiva (que compromete a
crianças têm uma perturbação específica da verbalização) e a perturbação mista da linguagem
linguagem, receptiva ou expressiva e maior risco receptiva-expressiva.
de desenvolvimento posterior de dificuldades na Reportando-nos às definições caberá reiterar
leitura e escrita. que a linguagem expressiva engloba a capacidade
de formar palavras com os sons (fonologia), de
Diagnóstico combinar palavras com um significado adequado
(semântica), em frases gramaticalmente correctas
Há diversas abordagens e sistemas de classificação (sintaxe), e que são apropriadas ao contexto social
diferentes para as perturbações da linguagem e (pragmática).
fala, variando de acordo com a formação pro- Seguidamente são sintetizados aspectos rela-
fissional dos autores. As classificações ditas mé- tivos às principais perturbações da comunicação.
dicas tendem a centrar-se mais nas causas e as
ditas linguísticas nos padrões de alteração obser- 1. Perturbação da linguagem expressiva
vados. As crianças com disfunção da linguagem expres-
O diagnóstico diferencial destas perturbações siva podem evidenciar capacidade para um
é igualmente complexo uma vez que um amplo número limitado de palavras, vocabulário reduzi-
espectro de patologias pode resultar em disfunção do, dificuldades na aprendizagem de novas
do sistema neural e de estruturas periféricas, palavras e no acesso lexical, frases encurtadas, com
responsáveis pela percepção, processamento e estrutura gramatical simplificada, por vezes com
produção da linguagem. perturbação da sintaxe. As crianças com pertur-
Assim, por exemplo, há que considerar os pro- bação do tipo evolutivo geralmente começam a
CAPÍTULO 25 Perturbações da linguagem e comunicação 145

falar tarde e progridem mais lentamente, embora motora, as quais apresentam também défices na
seguindo as sequências normais de desenvol- motricidade fina e grosseira; pressupõe-se que a
vimento. Nos casos menos frequentes de lesão mesma não resulta de défice de ensino, de défice
adquirida (por patologia neurológica) a pertur- cognitivo, nem de factores socioculturais.
bação surge após um período de desenvolvimento A gaguez inclui os problemas de disfluências,
normal. conforme é indicado nos critérios apresentados a
Problemas como a memorização e recrutamento seguir e surge, como a maioria das perturbações
de palavras podem prejudicar a fluência da lingua- da linguagem, na idade pré-escolar, quando se dá
gem; apesar de as crianças apresentarem um voca- o franco crescimento da linguagem. Nestas situa-
bulário adequado, têm dificuldade em encontrar as ções é fundamental um diagnóstico precoce e uma
palavras exactas quando delas necessitam, utili- intervenção em tempo oportuno para que o pro-
zando definições substitutivas (circunlocução). blema não se torne persistente.
Esta perturbação está frequentemente asso-
ciada a perturbação fonológica. 4. Gaguez
Trata-se de uma perturbação da fluência normal e
2. Perturbação mista da linguagem da organização temporal normal da fala (inade-
receptiva-expressiva quadas para a idade do sujeito), caracterizada por
As crianças com perturbação mista da linguagem ocorrências frequentes de um ou mais dos se-
receptiva-expressiva podem ter, para além das guintes fenómenos: repetições de sons e sílabas;
dificuldades já referidas de expressão verbal, prolongamentos de sons; interjeições; palavras
dificuldade em seguir instruções, compreender fragmentadas; bloqueios audíveis ou silenciosos;
explicações verbalizadas e interpretar o que leram. circunlocuções; palavras produzidas com um
No entanto, habitualmente a expressão está mais excesso de tensão física; repetições de palavras
afectada do que a compreensão, não alteração sig- monossilábicas.
nificativa da comunicação não verbal ou empatia, A alteração na fluência interfere significativa-
o que permite o diagnóstico diferencial com as per- mente com o rendimento escolar ou laboral ou com
turbações do espectro do autismo. a comunicação social.
A perturbação mista também se associa Se coexistirem défice motor da fala ou défice
frequentemente a perturbação fonológica ou a sensorial, o problema tem maior relevância.
perturbações da aprendizagem. Pode também
estar associada a perturbação de hiperactividade e Diagnóstico diferencial
défice de atenção, a perturbação da coordenação
ou a enurese. No diagnóstico diferencial tem sido sublinhada a
importância, não só dos estádios da linguagem,
3. Perturbação fonológica mas também das competências sociais da criança
A perturbação fonológica, anteriormente designa- no desenvolvimento da linguagem.
da por perturbação da articulação verbal, engloba, A ausência, atraso ou desadequação destas
não apenas os problemas de coordenação das competências pré-verbais ou pré-linguísticas
estruturas que produzem e modulam os sons, mas (mostrar e imitar), apontam para a possibilidade
também os problemas de défice da consciência de autismo.
fonológica (noção dos fonemas e sua corres- Apesar de nem todas as crianças com dificul-
pondente representação gráfica), que resultam dades de aprendizagem apresentarem pertur-
mais tarde em dificuldade na aprendizagem da bações da linguagem, uma elevada proporção de
leitura e escrita (dislexia). Inclui alterações da crianças com perturbações específicas de lingua-
fonação, articulação, ressonância e prosódia (ou gem apresentam dificuldades de aprendizagem,
seja, a leitura é lenta,sincopada sílaba a sílaba, ou particularmente na leitura e escrita.
com erros). As perturbações adquiridas da comunicação
Este tipo de perturbação pode estar presente podem ser secundárias a lesões focais, lesões
em crianças com perturbação da coordenação associadas a convulsões (Landau-Kleffner), lesões
146 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

associadas a tumores, infecção ou radiação, e abranja as perturbações associadas, um plano de


traumatismo crânio-encefálico. seguimento e reavaliações periódicas.
Por sua vez, as crianças expostas no período pré- O prognóstico será dependente das dificul-
natal a cocaína ou outras drogas de abuso podem dades encontradas, da patologia associada e da
apresentar perturbações da linguagem. Tal se resposta à intervenção. No entanto, não se deve
verifica também em crianças com baixo peso de esquecer que a chave para um sucesso nas
nascimento, prematuridade, restrição de cresci- crianças com perturbações da linguagem reside
mento intrauterino, ou reduzido perímetro cefálico. na detecção precoce dos problemas, no diagnós-
tico preciso e na aplicação de intervenções apro-
Intervenção e prognóstico priadas.

Como foi referido, o diagnóstico das pertur- GLOSSÁRIO


bações da comunicação não é fácil e exige um Para as definições de agnosia, disartria, dislexia, afasia e síndro-
grande conhecimento sobre a patologia do desen- ma de Landau-Kleffner sugere-se a consulta do Glossário
volvimento, para permitir a exclusão de outros Geral no início de cada volume.
diagnósticos e a avaliação das perturbações asso-
ciadas. BIBLIOGRAFIA
Cabe ao pediatra e aos clínicos gerais, médicos American Psychiatric Association. Perturbações da
– assistentes de crianças e adolescentes, fazerem a Comunicação In DMS-IV-TR. Lisboa: Climepsi Editores,
detecção o mais precoce possível destas situações. 2000: 58-66
Testes de rastreio como o Denver II ou o ELM Cruz M. Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon, 2011
(Early Language Milestones) são simples e podem Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
ser usados pelos clínicos na consulta de saúde Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
infantil. É importante estar atento ao cumprimento 2011
dos marcos de desenvolvimento e aos sinais de Levine MD, Carey WB, Crocker AC. Developmental-Behavioral
alarme não adiando uma avaliação mais pormeno- Pediatrics. Philadelphia: Saunders, 1999
rizada ou o envio à consulta de desenvolvimento Lewis M (ed).Child and Adolescent Psychiatry. Baltimore:
quando estes surgem. Williams & Wilkins, 1996: 510-519
A ausência do palrar aos 10 meses, do uso de McQuiston S, Kloczko N. Speech and language development:
palavras isoladas aos 18 meses ou de frases aos 24 monitoring process and problems. Pediatr Rev 2011; 32:230-
meses, ou a presença de padrões atípicos de 239
linguagem com ecolália e discurso ininteligível aos Rudolph CD, Rudolph AM, et al(eds) Rudolph´s Pediatrics.
4 anos, obrigam a uma pronto de encaminhamento New York McGraw-Hill Medical, 2011
para centro especializado. A noção que durante Smith PK, Cowie H, Blades M (ed). Language in Understanding
muito tempo perdurou, de que a criança “iria Children’s Development. Oxford: Blackwell Publishers,
libertar-se quando entrasse para o infantário” tem- 2001: 299-331.
se mostrado muito prejudicial e deverá abandonada.
A criança deve ser avaliada por uma equipa
multidisciplinar que inclua terapeuta da fala
para uma avaliação completa da linguagem. Esta
avaliação pretende esclarecer o diagnóstico dife-
rencial, avaliar comorbilidade, e competências
cognitivas, e excluir problemas médicos asso-
ciados. Quando for justificado pode ser neces-
sário proceder a avaliação por neurologista ou
otorrinolaringologista, sendo em todos os casos
recomendada uma avaliação formal da audição.
Deve ser, em suma, planeada uma intervenção
adequada às dificuldades de cada criança, que
CAPÍTULO 26 Habilitação da criança com dificuldades na comunicação 147

26
ou pronúncia difícil e defeituosa da letra S (vulgo
“sopinha de massa”). As mais frequentes pertur-
bações fonológicas são a disfonia (rouquidão), a
afonia, a hipernasalidade (rinolália) e a hiponasal-
idade. A rinolália (voz nasalada explicada pelo
escape nasal) observa-se frequentemente nas cri-
anças que nasceram com fenda palatina; mesmo
HABILITAÇÃO DA CRIANÇA após o encerramento cirúrgico desta anomalia,
muitas destas crianças mantêm rinolália devida à
COM DIFICULDADES NA insuficiência velofaríngea, necessitando de terapia
e vigilância continuadas.
COMUNICAÇÃO A gaguez pode ser funcional até aos 3 anos.
Apesar da ansiedade que gera nos pais, requer
Isabel Portugal vigilância e aconselhamento, não necessitando de
outra intervenção até essa idade.
A motricidade oral pode estar perturbada,
surgindo dificuldades, quer alimentares, quer no
O papel do Serviço de Medicina controlo da “baba”, situações que são frequentes
Física e Reabilitação (MFR) em crianças com paralisia cerebral. Quando o
ensino do treino alimentar em tempo adequado se
Todo o serviço de MFR pediátrica tem, natural- mostra ineficaz, opta-se pela gastrostomia.
mente, um sector de terapia da fala ao qual recor- Pelas exigências da integração social e se a cri-
rem crianças com perturbações da linguagem, da ança não conseguir o controlo da “baba” até à
fala, da voz e da motricidade oral.A intervenção idade escolar, recorre-se à terapêutica com toxina
da terapia da fala é na maior parte dos casos botulínica e, no caso do seu insucesso, à cirurgia.
demorada, prolongando-se, muitas vezes, em lon-
gos períodos do crescimento da criança e será BIBLIOGRAFIA
tanto mais benéfica quanto mais precoce; torna-se Feldman HM. Evolution and mangement of language and
fundamental o seu início antes da idade escolar. speech disorders in preschool children. Pediatr Rev 2005; 26:
Segundo a experiência do Serviço de MFR, as 131-141
alterações da linguagem mais frequentemente Grizzle KL, Simms MD. Early language development and
encontradas na criança são o atraso da aquisição language learning disabilities. Pediatr Rev 2005; 26: 274-283
da linguagem, as dificuldades da aprendizagem Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
da leitura e da escrita, as perturbações específicas Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
da linguagem e as afasias adquiridas. Na sua 2011
avaliação a criança é submetida a um teste de lin- Plexico L, Manning WH, Pilollo A. A phenomenological
guagem, habitualmente o “Reynell Developmen- understanding successful stuttering management. J Fluency
tal Language Scales” de Joan K Reynell, que ca- Disord 2005; 30: 1-22
racteriza a linguagem expressiva e a compreensão Rapin I, Dunn M. Update on the language disorders of
verbal. As crianças com dislexia e disortografia, individuals on the autistic spectrum. Brain Dev 2003; 25:
perturbações de abordagem complexa na sua ca- 166-172
racterização e tratamento, necessitando de um Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
tempo de intervenção muito prolongado, são AA(eds). Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
habitualmente enviadas a centros especializados Medical, 2011
no seu âmbito do seguimento.
Nas perturbações da fala as alterações articu-
latórias, fonológicas e a gaguez são as mais fre-
quentes. Nas primeiras incluem-se a dislália (troca
ou omissão de certas consoantes) e o sigmatismo
148 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

27
integração social.
A prevalência dos problemas de aprendizagem
varia de país para país, o que se pode explicar pela
inexistência de critérios consensuais quanto a
difinição e classificação.
Estima-se que cerca de 15% das crianças em
idade escolar apresentam dificuldades de apren-
APRENDIZAGEM E INSUCESSO dizagem relacionáveis com perturbações do
neurodesenvolvimento; todavia, a actual preva-
ESCOLAR lência pode ser ainda mais elevada se forem consi-
deradas certas disfunções ligeiras e auto-limita-
Maria do Carmo Vale das. O sexo masculino parece ser mais afectado
(2/1 a 4/1).
Uma variante que traduza uma área fraca (como
um problema na área da linguagem expressiva)
Importância do problema corresponde a uma disfunção. Se tal disfunção in-
terferir com a aquisição de uma determinada com-
A aprendizagem, uma das características funda- petência (como a escrita), gera-se uma incapa-
mentais da especie humana, processa-se ao longo cidade; e, se esta for particularmente impeditiva de
de toda a vida, inclusivé pré-natal. Difinida sucin- originar produtividade e gratificação, pode gerar-se
tamente como aquisição de conhecimentos, o seu um quadro de deficiência.
âmbito é muito mais lato pois o respectivo Mas as variantes podem também incluir áreas
processo implica a recepção de estímulos endó- de raro talento e força; e, ao descrever o perfil
genos e exógenos que são integrados, armazena- funcional de uma criança, é importante tomar em
dos, adaptados e aplicados ulteriormente.Toda consideração as áreas fortes que constituem os
esta dinâmica depende, quer dos estímulos, quer seus recursos para fazer face às próprias dificulda-
das competências da pessoa, as quais variam com des, (por exemplo a criatividade, a capacidade de
a maturação/evolução ou involução. Diversos organização ou a capacidade de resolução de
factores intervêm na aprendizagem: 1) extrínse- problemas não-verbais).
cos; como exemplos citam-se o ambiente e espaço
físico da escola com características diversas de Etiopatogénese
funcionamento e arquitecturais, a família, etc.; e 2)
intrínsecos; citam-se como exemplos as compe- Para a compreensão dos problemas relacionados
tências em relação ao neurodesenvolvimento (es- com o défice de aprendizagem com implicações
sencialmente, motores, sensoriais, perceptivas, de práticas no tipo de intervenção a planear, cabe
linguagem/comunicação, cognitiva, e afectivas referir os principais factores etiológicos:
como ansiedade, auto-estima, irritação, etc.. – Défice cognitivo ou atraso global do desen-
Para avaliar o neurodesenvolvimento de uma volvimento.
criança em idade escolar importa considerar as se- – Alterações sensoriais (por exemplo, défice
guintes áreas: atenção, memória, linguagem, orga- auditivo ou visual).
nização temporal-sequencial, organização espaci- – Doença motora (por exemplo, paralisia cere-
al, capacidade neuromotora, cognição social e fun- bral ou defeitos do tubo neural)
ções superiores da cognição. De referir que não – Perturbações da comunicação e da lingua-
existem duas crianças com modos iguais de fun- gem.
cionamento (Ver adiante Avalição). – Problemas comportamentais e afectivos (por
O baixo desempenho numa ou mais destas exemplo, ansiedade, inibição, défice de
áreas pode estar associado a problemas de apren- atenção).
dizagem culminando no insucesso escolar, em – Problemas em áreas específicas como a leitura,
dificuldades comportamentais, de adaptação e de a escrita / ortografia, matemática, etc..
CAPÍTULO 27 Aprendizagem e insucesso escolar 149

– Doença crónica (em relação essencialmente memória ao criar estratégias compensadoras


com efeitos acessórios de medicamentos, e (mnemónicas, técnicas facilitadoras do registo e
absentismo, hospitalizações ou actos médi- de consolidação de dados em múltiplas categorias
cos repetidos em ambulatório). pré-existentes de conhecimento), para visualiza-
rem o que se ouviu ou verbalizarem o que se viu,
Áreas-chave para a avaliação preparando e facilitando o seu armazenamento na
do insucesso escolar mesma.

Analisam-se seguidamente as áreas consideradas 3. Linguagem


chave para avaliação da aprendizagem e do A linguagem é o veículo do pensamento e muitas
insucesso escolar. capacidades da mente e pensamento humanos são
organizadas e transmitidas através da linguagem.
1. Atenção As crianças linguisticamente (ou verbalmente)
A disfunção da atenção constitui o problema de competentes representam um grupo de sucesso es-
neurodesenvolvimento mais frequente em crian- colar, porque todas as capacidades académicas con-
ças, com um largo impacte no desempenho esco- vergem para a linguagem verbalizada, e muito do
lar diário. que aprendem é codificado em linguagem escrita.
Há muitas formas de disfunção da linguagem:
2. Memória algumas crianças têm problemas com a fonologia,
Existem fundamentalmente dois tipos de memória apreciação e manipulação dos diferentes sons da
importantes para o bom desempenho académico: a linguagem, outras na discriminação e associação
de curta duração e a de longa duração. de sons; mais recentemente foram descritos pro-
Muitas crianças apresentam dificuldades na blemas na memorização de fonemas (sons da
memória de curta duração, nomeadamente na linguagem), grafemas (combinações específicas de
memória de trabalho. Esta consiste na capacidade letras) e palavras (consciência fonológica), aponta-
de manter em mente, todas as diferentes compo- dos como a causa mais comum de problemas de
nentes de uma tarefa, como por exemplo durante leitura e escrita. Estas crianças têm dificuldade em
a resolução de um problema de matemática. descodificar palavras durante a leitura e a
A memória de trabalho permite, por exemplo, codificá-las durante a soletração. Para muitas
que, após a memorização de um número, o delas é difícil reter sons na memória, decompor
utilizemos imediatamente (como por exemplo um palavras nos respectivos sons, e reutilizar estes
número de telefone), e a memorização do início de para descodificar novos vocábulos.
um parágrafo ao chegar ao seu termo. A semântica pode constituir outra dificuldade:
Assim, as crianças com perturbações da repertório rígido e limitado do significado das
memória de trabalho têm dificuldade em efectuar palavras e difícil aquisição de vocabulário novo,
cálculos de matemática ou em memorizar ou importante em fases académicas mais diferencia-
reproduzir o que leram. das em que a linguagem tecnológica é fundamental
Quando tentam escrever experimentam uma para a compreensão de diferentes matérias.
sobrecarga exagerada que se traduz, nomeada- Outros problemas da linguagem são a compre-
mente, em ilegibilidade, pontuação incorrecta, de- ensão e utilização da sintaxe (ordenação de
ficiente soletração, etc.. palavras), a limitada compreensão das regras lin-
Outras crianças têm dificuldade em consolidar guísticas (metalinguística), a utilização de lingua-
a informação na memória de longa duração. gem abstracta, a linguagem simbólica (metáforas,
Este problema pode ter consequências graves analogias) na formação de conceitos abstractos, e
no que diz respeito à escrita, que necessita de o domínio de uma segunda língua.
memorização de curta e longa duração quanto a A falta de aquisição de um determinado nível
soletração, formação das letras, pontuação, factos, de sofisticação da linguagem condiciona o insu-
ideias, vocabulário, para dar alguns exemplos. cesso académico e está frequentemente associada
Os progressos académicos desenvolvem a a dificuldades de comportamento adaptativo.
150 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

4. Organização espacial longo da maturação destes, do desenvolvimento


Grande parte dos dados referentes ao espaço são da capacidade de destrinça e relação entre uma
adquiridos através de sensações proprioci- ideia e um conceito. Infelizmente muitas crianças
néticas e de concepção abstracta, não verbal: o adquirindo poucos conceitos, na maior parte das
tamanho, posição, forma, constância da forma vezes por deficiente estruturação do meio
(independentemente da sua posição no espaço), (famílias com elevado grau de iliteracia, condições
as relações entre os corpos, são alguns dos pila- socio-económicas pouco propícias à troca de
res da organização visual-espacial. É evidente a informação e interacção e ao consequente desen-
repercussão que as perturbações nesta área po- volvimento cognitivo) apresentarão naturalmente
dem ter, por exemplo, na aprendizagem da maiores dificuldades nas aprendizagens escolares.
leitura e escrita. A capacidade de resolver problemas é fun-
As crianças com este tipo de disfunção evi- damental para todos os conteúdos e actividades
denciam dificuldades de discriminação direita- escolares. As crianças com esta capacidade bem
esquerda a que se associam frequentemente difi- desenvolvida mostram a sua criatividade na selec-
culdades de coordenação motora fina e coorde- ção e monitorização das várias técnicas possíveis
nação motora global (crianças desajeitadas). para a solução de um problema, diferentes ideias
e valores, permeabilizando-as à mudança, ino-
5. Organização temporal-sequencial vação ou diferença, fundamentais ao respeito para
A incapacidade de soletração, narrativa e se- com os seus pares e a sociedade em geral, permi-
quenciação (do maior para o menor e vice-versa) tindo-lhe flexibilizar ideias, regras e atitudes.
pode ter consequências a diferentes níveis e áreas Uma vez que todas as áreas referidas apresen-
académicas como a escrita, matemática, tempo, tam diferente expressividade na mesma criança,
hierarquização de tarefas por prioridades, ou limi- sucesso académico pressupõe que as mais fortes
tação de tempos para a sua execução. compensam e equilibram as mais fracas.

6. Função neuromotora Intervenção


As competências motoras da criança podem ter
um papel significativo num largo repertório de Durante muito tempo a Pediatria avaliou o desen-
actividades. volvimento psicomotor e cognitivo das crianças
Ao aspecto motor da escrita denomina-se fun- em idade pré-escolar, monitorizando a progres-
ção grafo-motora, que assenta numa boa coorde- são nas áreas motora, cognitiva, adaptativa, lin-
nação motora fina, embora distinta desta; efectiva- guística e social, com vista ao diagnóstico e orien-
mente, há crianças com bom desempenho na área tação dos problemas de desenvolvimento.
da coordenação motora fina e que apresentam um Mas o desenvolvimento infantil não termina
mau funcionamento na escrita. aos 5 anos de idade e a diminuição de prevalência
A escrita exige uma rápida e precisa coordena- de outro tipo de patologia permitiu ao pediatra
ção grafo-motora e a disfunção desta pode condi- estar mais disponível para outras áreas como as
cionar perturbações importantes do desempenho dificuldades de aprendizagem, comportamento de
académico. desadaptação, desajustamento social, compor-
tamental e perturbação da atenção, potencialmente
7. Desenvolvimento cognitivo superior responsáveis pelo insucesso escolar.
Sob esta designação incluem-se a capacidade de O diagnóstico e proposta terapêutica do insu-
abstracção (da qual depende a aquisição de con- cesso escolar exigem uma equipa multidisciplinar
ceitos), a solução de problemas, o pensamento que inclui o médico-pediatra, o psicólogo clínico e
crítico, a metacognição, várias formas de raciocínio, educacional, o pedopsiquiatra, o neuropediatra, o
o reconhecimento de regras e a sua aplicação. médico de família, entre outros.
A variabilidade no funcionamento de cada A observação inclui a aplicação de determina-
criança determina que a aquisição de novos con- dos testes designados PEEP, PEER, PEEX 2, e
ceitos dependa de conceitos pré-existentes e, ao PEERAMID 2, através dos quais se observa e
CAPÍTULO 27 Aprendizagem e insucesso escolar 151

avalia directamente funções chave nas áreas do como a arte, linguagem, jogo, canções, metáforas
neurodesenvolvimento como a atenção, lingua- e modelos.
gem e capacidades motoras. A teoria de Vygotsky assenta essencialmente
Com os referidos testes será possível obter o no papel dos processos interpessoais e no papel
perfil funcional da criança (força e dificuldades da sociedade em que se enquadra a criança.
nas diversas áreas académicas) como base para
intervenção psico-educacional. Prevenção
As formas de apoiar e atenuar estes problemas
compreendem os seguintes passos: A prevenção dos problemas de aprendizagem em
– Desmistificação. geral, e do insucesso escolar em especial, implica
– Utilizar estratégias de acomodação (dar mais entre outras medidas melhoria dos cuidados
tempo, simplificando explicações e orien- primários e das condições, socioeconómicas, pre-
tações, reduzindo a carga académica nas venção da prematuridade extrema e detecção
áreas de menor desempenho, apresentando a precoce das alterações do desenvolvimento. Trata-
informação de forma mais atractiva. -se duma tarefa difícil para a qual todos os
– Terapias específicas: terapia da fala, profissionais de saúde, e em especial o pediatra e
ocupacional e comportamental. o médico de família, devem estar sensibilizados.
– Modificação dos currícula e conteúdos pro-
gramáticos escolares e respectiva adequação BIBLIOGRAFIA
às reais capacidades da criança (plano educa- American Psychiatric Association. Deficiência Mental in MS-
tivo individual). IV-TR. Lisboa: Climepsi Editores, 2000
– Fortalecimento das áreas “fortes” como Gouveia R. A criança e a aprendizagem escolar in Gomes
compensação das “fracas”, condicionando Pedro J (ed). Lisboa: ACSM, 2001: 160-167
um reforço da auto-estima. Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
– Medicação adaptada a cada caso e reajustada Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
em avaliações periódicas. Levine M. Neurodevelopmental Variation and Dysfunction
A ideia de aprendizagem activa, por contra- Among School-Aged Children in Developmental-
posição à passiva apontada por autores como Behavioral Pediatrics. Levine M, Carey WB, Crocker AC.
Piaget, revolucionou a metodologia de ensino; (eds). Philadelphia: Saunders, 1999:520-534
aplicando tal estratégia, a criança condicionada à Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
exploração e descoberta, constrói o seu próprio AA(eds). Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
conhecimento. O papel do professor ou educador Medical , 2011
seria o de facilitador da aprendizagem, encorajan- Sandler AD, Huff . Developmental Assessment of the School-
do a criança a questionar, especular e experimen- Aged Child in Developmental-Behavioral Pediatrics.
tar, fomentando o espírito crítico relativamente à Levine M, Carey WB, Crocker AC (eds). Philadelphia:
informação. Saunders; 1999:696-705
De acordo com Piaget é a criança que condi- Smith PK, Cowie H, Blades M. Understanding Children’s
ciona todo o processo de aquisição do conheci- Development. Oxford: Blackwell Publishers, 2001: 425-451
mento; o professor fomenta situações que desafiam
a criança a pôr questões, a formular hipóteses e a
descobrir novos conceitos.
Vygotsky ultrapassou as ideias de Piaget
atribuindo papel igualmente relevante à inte-
racção social e à comunicação e linguagem. Para
ele a aprendizagem é conseguida através da co-
operação com um largo repertório de inter-
locutores sociais – pares, professores, pais e
outros intervenientes – bem como através dos
símbolos representativos da cultura da criança,
152 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

28
70 a 100 minutos) durante o período do sono.
O registo em simultâneo dos traçados elec-
troencefalográficos,electromiográficos,dos movi-
mentos oculares (electroculograma) associado à
verificação dos vários graus de profundidade do
sono constitui o polissonograma.
O sono do lactente apresenta um predomínio
PERTURBAÇÕES DO SONO de sono REM. Com a idade, a duração relativa do
sono REM diminui, enquanto a do sono NREM
Maria do Carmo Vale e João M Videira Amaral vai aumentando até atingir 80% do tempo de sono
no adulto e idoso.
O recém-nascido (RN) dorme ainda com maior
predomínio de “sono activo”, o precursor do futuro
Classificação e importância “sono REM”. Esta é uma das razões pelas quais os
do problema primeiros meses de vida apresentam uma vulnera-
bilidade maior às situações que ocorrem ou são
O sono é um estado fisiológico, periódico e reversív- agravadas durante o sono REM. De facto, sendo os
el, caracterizado essencialmente pela suspensão tem- RN e os lactentes jovens respiradores nasais quase
porária do estado de consciência com graus variáveis obrigatórios, têm uma tendência única para episó-
de resposta a estímulos ambientais; é acompanhado dios de obstrução durante o sono, em especial
de abolição mais ou menos importante da sensibili- durante infecções das vias respiratórias superiores,
dade e abrandamento da maior parte das funções uma vez que cerca de 50% são incapazes de iniciar
orgânicas: diminuição das frequências cardíaca e res- a respiração oral alternativa antes de passarem 25
piratória, da temperatura em cerca de 0,5 ºC, relax- segundos a partir do momento em que a obstrução
amento muscular, diminuição do ritmo secretório nasal se estabeleceu. (Capítulo 29)
(exceptuando o rim), etc.. (Consultar glossário geral a A melatonina(N-acetil-5-metoxitriptimina) é uma
propósito do papel da melatonina). hormona cronobiótica segregada pela epífise ou
Classicamente são considerados dois tipos de glândula pineal com papel importante na alternância
sono, identificáveis a partir dos 6 meses de idade: sono-vigília. A sua produção, iniciando-se com o
– não REM ou abreviadamente NREM (sigla anoitecer ou diminuição da luz natural, tem pico séri-
do inglês (no rapid eye movements) chamado inacti- co máximo entre as 02.00 e 04.00 horas da madruga-
vo ou calmo sincronizado em que se verifica pre- da. Pelo contrário, tal secreção é inibida pela luz.
domínio da actividade parassimpática (redução
das frequências cardíaca e respiratória) e redução As perturbações do sono – que surgem, em
progressiva do tono muscular; idade pediátrica, numa proporção estimada entre
– sono REM, definido como sono activo ou 25-43% – são classificadas em:
paradoxal, caracterizado por intensa actividade – dissónias ou perturbações em que se verifica
cortical cerebral, predomínio da actividade sim- dificuldade em iniciar ou manter o sono e/ou
pática (aumento das frequências cardíaca e respi- sonolência excessiva; e
ratória) acompanhado de atonia muscular e movi- – parassónias correspondendo a fenómenos
mentos oculares rápidos circulares bilaterais. físicos ocorrendo predominantemente durante o
No sono não-REM são individualizados quatro sono, não constituindo, de facto, anomalias do
estádios (1-2-3-4) em função de outros tantos padrões processo sono-vigília.
electroencefalográficos (EEG). O estádio 1 corre- O termo insónia na criança, fazendo parte das
sponde ao início da transição vigília-sono, com um dissónias, refere-se à impossibilidade de manu-
baixo limiar para o despertar; os estádios 3 e 4 são tenção duma boa qualidade do sono (por exem-
chamados de sono de ondas lentas ou sono profundo. plo sono curto, interrompido ou intermitente,
Os ciclos NREM → REM → NREM → REM ... relacionável em geral com aquisição de determi-
ocorrem em ciclos (com a duração aproximada de nados hábitos ou tensão emocional).
CAPÍTULO 28 Perturbações do sono 153

Parassónias Terror nocturno


Esta situação surge em cerca de 3% das crianças
No âmbito das parassónias são consideradas: com maior prevalência entre os 4 e 12 anos de idade,
– as perturbações do despertar (incluindo o na primeira parte da noite, no sono não REM.
despertar confusional, o sonambulismo, o terror Os episódios, variando entre 1 a 30 minutos,
nocturno, as perturbações da transição vigília- são caracterizados por intensa descarga auto-
sono e as parassónias associadas ao sono REM); nómica com taquicárdia, taquipneia, erecção
– as perturbações da transição vigília-sono pilosa, midríase, etc.. A criança senta-se na cama
(incluindo as perturbações dos movimentos rítmi- assutada, chorando e gritando, e não responden-
cos ou jactatio capitis nocturna e a sonilóquia); do a estímulos evidenciando estado confusional
– as perturbações associadas ao sono REM uma vez acordada.
(incluindo o pesadelo, o bruxismo do sono, a enu- O diagnóstico diferencial faz-se essencialmente
rese do sono, a roncopatia primária, a síndroma de com estado confusional, pesadelo e epilepsia.
hipoventilação congénita de causa central, a mio- As medidas terapêuticas são semelhantes às
clonia neonatal benigna do sono e a distonia paro- mencionadas para o sonambulismo.
xística nocturna). A síndroma de morte súbita do
lactente/recém-nascido, ocorrendo em cerca de Perturbações dos movimentos rítmicos
80% dos casos enquanto a criança dorme, é abor- Trata-se de movimentos repetitivos e estereotipa-
dada no capítulo 42. dos envolvendo a cabeça, o pescoço e, por vezes, o
Relativamente a parassónias é dada ênfase às tronco,pouco antes do início e por vezes mantidos
seguintes situações: durante o sono leve(estádio 1 não-REM); mais de
2/3 das crianças evidenciam este padrão compor-
Sonambulismo tamental aos 9 meses de idade,diminuindo depois
Mais frequente no sexo masculino entre os 4 e 15 a prevalência.
anos (prevalência ~17%), consiste numa série de Dum modo geral não se torna necessária qual-
actividades comportamentais complexas tais quer terapêutica.
como: sentar-se na cama ou deambulação
durante o sono, sem consciência, podendo levar Sonilóquia
à tentativa de sair do quarto ou de casa; se o A sonilóquia consiste na emissão de palavras e fras-
doente for acordado, verifica-se estado confu- es desconexas emitidas involuntariamente durante
sional, sem se lembrar do ocorrido. Esta situação o sono; está associada ao sono REM e não REM.
pode associar-se a terror nocturno e a soni- Podendo surgir em qualquer idade, como fac-
lóquia. tores etiológicos apontam- se ansiedade, estresse e
Na sua base exitem factores genéticos de febre. Não necessita de qualquer medida terapêu-
ordem maturativa. tica.
O diagnóstico diferencial faz- se com a epilep-
sia parcial complexa nocturna. Pesadelo
Como medidas terapêuticas apontam- se a psi- Trata-se de sonho com algo que, provocando
coterapia incluindo tranquilização dos pais e, em medo e ansiedade, desperta a criança do sono
casos especiais, administração de benzodiazepi- REM (segunda parte da noite).
nas por períodos curtos. Estando provado que as crianças sonham já
pelos 14 meses, os pesadelos são mais frequentes
Despertar confusional entre os 3 e os 6 anos, surgindo em cerca de 10 a
Também por vezes associado a outras parassó- 50% das crianças.
nias, em certos casos há que fazer o diagnóstico Como medidas preventivas haverá que evitar
diferencial com epilepsia parcial complexa. situações que originem tensão emocional.
Como medidas terapêuticas apontam- se a dis-
ciplina nos horários do sono,e a evicção de activi- Bruxismo
dades físicas excessivas. O bruxismo do sono consiste em movimentos
154 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

estereotipados de “ranger de dentes” em qualquer mais de 5 anos (idade em que, dum modo geral, o
fase do sono podendo eventualmente conduzir ao controle dos esfíncteres deve estar estabelecido).
despertar. Com uma prevalência de cerca de 30%, Considera-se primária (ou funcional) se a
superior em crianças saudáveis, tal parassónia é criança teve sempre este tipo de comportamento,
frequentemente descrita em crianças e adoles- excluindo-se patologia de base de tipo médico,
centes com paralisia cerebral e /ou atraso mental. neurológico, urológico ou mental; considera-se
Não requer medidas terapêuticas especiais; em secundária (ou orgânica) se na criança for de-
certos casos poderá estar indicada a adminis- monstrada patologia de base, e um período míni-
tração de benzodiazepinas. mo anterior de 6 meses sem tal sintomatologia,
com recorrência ulterior de micções involuntárias.
Roncopatia primária A enurese nocturna (ou do sono) ocorre em tal
Consiste na emissão de ruído intenso, geralmente circunstância; a enurese diurna ocorre durante o
inspiratório e expiratório produzido nas vias res- dia. De referir que a enurese diurna e nocturna
piratórias superiores, não acompanhado de episó- podem coexistir
dios de apneia ou hipoventilação. A enurese primária representa cerca de 90% de
Como factores etiopatogénicos apontam-se: todos os casos. A enurese secundária ocorre mais
hipertrofia amigdalina ou das adenóides, obstru- frequentemente entre os 5 e 8 anos de idade.
ção nasal, obesidade. O tratamento é etiológico A enurese do sono, mais frequente na primeira
podendo, em casos especiais, ser necessário o parte do sono e no sexo masculino (relação 3/2),
recurso à intervenção cirúrgica. ocorre em cerca de 30% de crianças aos 4 anos,
10% aos 6 anos, 5% aos 10 anos e 3% aos 12 anos.
Síndroma de hipoventilação congénita Admite-se hereditariedade de tipo autossómico
de causa central recessivo, ou dominante com 90% de penetrân-
Esta síndroma, evidente já no recém- nascido, é cia;outros estudos identificaram anomalias nos
explicada por falência do mecanismo de regulação cromossomas 13 e 14 .
central automática da respiração, na ausência de A patogénese da enurese do sono não é bem
doença pulmonar primária ou de patologia mus- conhecida; admite-se que possa estar em causa
cular respiratória. atraso da maturação neurofisiológica, bexiga de
A etipatogenia relaciona-se com anomalia do capacidade limitada e /ou aumento da contractili-
centro respiratório do tronco cerebral onde ocorre dade, discrepância entre a secreção de hormona
a integração dos quimiorreceptores periféricos e antidiurética (HAD) nocturna e capacidade da
centrais. bexiga, alteração do ritmo circadiano da HAD,
O quadro clínico decorre da existência de hipó- etc.. Sabendo-se que ligeiras alterações da pressão
xia e hipercápnia levando a sequelas, nomea- arterial (PA) originam alteração significativa da
damente pulmonares e do sistema nervoso central. excreção urinária de água e sódio, em estudos
A manutenção da vida implica a necessidade recentes verificou-se que as situações de enurese
de assistência respiratória (pressão positiva con- nocturna são acompanhadas de diminuição da
tínua nas vias respiratórias superiores). PA.
Estima-se que em cerca de 97% das situações
Enurese do sono de enurese do sono não existe causa orgânica.
Antes de abordar esta entidade clínica (que não Em mais de 50% das situações de enurese noctur-
deve ser considerada uma perturbação do sistema na primária existem antecedentes familiares.
urinário), será importante recordar algumas O diagnóstico diferencial da enurese do sono faz-
noções básicas sobre terminologia relacionada com se com situações de enurese secundária (doenças
o fenómeno da micção. orgânicas, infecção urinária, diabetes mellitus ou
A enurese, no sentido genérico do termo, insípida, bexiga neurogénica, anomalias do tracto
define-se como a micção involuntária (incontinên- urinário tais como uréter ectópico, obstipação cróni-
cia urinária) mais do que duas vezes por semana ca, estresse emocional, etc.). De salientar que em
durante três meses consecutivos em crianças com todos os casos de enurese verificada durante o sono
CAPÍTULO 28 Perturbações do sono 155

importa proceder, como sempre, a um exame clínico dar espontaneamente para urinar, ou menor
completo da criança e, nomedamente, a detecção de quantidade de perda urinária ou aumento de in-
anomalias do foro neurológico e espinhal. gestão de líquidos durante o dia).
No âmbito da clínica geral ou da pediatria geral Nos casos de insucesso destas medidas, a
será importante a realização dum conjunto de exa- criança deverá ser encaminhada para consulta de
mes complementares mínimos,como determinação subespecialidade (neurologia pediátrica, nefro-
da glicémia, creatininémia, análise sumária de urina urologia pediátrica, etc.), em função do contexto
com especial atenção para detecção de glicosúria, clínico para ulteriores exames complementares,
pH e densidade, eventual urinocultura, etc.. nomeadamente imagiológicos.
No que respeita à actuação na criança com idade
igual ou inferior a 5 anos, há a referir um conjunto de Dissónias
medidas gerais cuja finalidade é explicar a situação,
transmitir confiança e modificar alguns hábitos: No âmbito das dissónias são consideradas as se-
– não criticar nem punir a criança, mantendo guintes situações:
atitude de ambiente calmo;
– apoio psicológico para criar auto-estima e tentar Narcolepsia
lutar contra o medo de ir à casa de banho; Trata-se duma perturbação que pode ser devida,
– nunca dormir com luz uma vez que esta segundo estudos recentes, a infecção vírica prévia
diminui a secreção da hormona antidiurética provocando destruição autoimune de neurónios
– treino de consciencialização de “bexiga secretores de hipocretina com consequente dis-
cheia” medindo a quantidade de urina que função. Caracteriza-se por sonolência excessiva
corresponde a tal sensação; diurna e outros fenómenos do sono REM.
– promover o esvaziamento regular da bexiga O diagnóstico diferencial deve ser feito com as
de 2-2 ou 3-3 horas, aumentando o supri- situações a abordar seguidamente e com certas
mento em líquidos durante o dia (bebendo formas de epilepsia.
líquidos 6-7 vezes por dia), reduzindo-o a
partir das 19 horas; Movimentos periódicos do sono
– evitar bebidas estimulantes da diurese (chá, São episódios periódicos de movimentos dos
café,chocolate, bebidas de cola, refrigerantes membros, repetitivos e estereotipados. Tais movi-
gaseificados); mentos ocorrem geralmente nos membros inferi-
– responsabilizar a criança/jovem pela sua ores e consistem em extensão do dedo grande do
higiene, incumbindo-a/o do registo dos chama- pé associada a flexão do pé, joelho e coxa. Esta
dos calendários (incluindo o miccional); situação é rara em idade pediátrica.
– retirar as fraldas e, acima dos 8 anos, retirar
também o resguardo; Síndroma de membros inferiores “ inquietos”
– incutir a rotina de esvaziamento da bexiga É uma situação também rara que consiste numa
antes de ir para a cama à noite; sensação desagradável e mal definida nos mem-
– entre os 5-7 anos preconiza-se, para além das bros inferiores surgida antes do início do sono, e
medidas gerais, a utilização de alarmes e fár- aliviada com a movimentação dos membros infe-
macos como desmopressina (DDAVP), em riores.
geral sob a forma de spray nasal (10-40 O quadro clínico obrigará ao rastreio do défice de
mcg/dia), liofilizado por via oral (0,06-012 ferritina, possível factor envolvido na patogénese
mg/dia), ou imipramina (para aumentar a dado o papel do ferro como cofactor de certos
capacidade da bexiga) na dose máxima de mecanismos de funcionamento neuronal.
2,5 mg/kg ao deitar . Pode haver associação com défice de atenção e
hiperactividade.
A estratégia que utiliza os calendários deve ter No tratamento utilizam-se agentes dopaminér-
em conta o registo de uma tarefa ou objectivo (um gicos. Confirmando-se défice de ferritina está
de cada vez: ou registo de noites secas,ou de acor- indicado tratamento com ferro.
156 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

29
Síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS)
Esta situação é abordada no capítulo seguinte.

NOTA FINAL: A melatonina, podendo em


geral ser eficaz na melhoria dos padrões de sono
nas crianças, não constitui uma panaceia nem
deve ser usada como primeira escolha. A este
respeito, salienta-se a prioridade das medidas de SÍNDROMA DA APNEIA
higiene do sono e das estratégias de mudança de
comportamentos, algumas das quais já foram OBSTRUTIVA DO SONO (SAOS)
citadas anteriormente.
De acordo com estudos recentes, apesar de se Mário Coelho
tratar dum fármaco seguro se utilizado a curto e
médio prazo, a melatonina está particularmente
indicada nas perturbações do neurodesenvolvi-
mento acompanhadas de perturbações do sono Definição
(sigla MENDS ou MElatonin in children with
Neurodevelopmental Disorders). A SAOS é uma perturbação respiratória caracte-
rizada por episódios recorrentes de obstrução
BIBLIOGRAFIA parcial prolongada e/ou obstrução completa in-
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torácicas (nasofaringe, laringe e traqueia) têm
CAPÍTULO 29 Síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS) 157

tendência ao colapso inspiratório e obstrução. Em


condições fisiológicas existem forças de sentido con- Adormecer
Redução tono
trário que levam à dilatação dessa via aérea, impedi- das VAS O2/CO2 Normal

do o colapso. Essas forças dilatadoras são geradas


por cerca de 40 músculos que fixam e puxam para Obstrução Desobstrução

diante, quer a língua (por ex: genioglosso), quer a Actividade


Apneia
laringe (por ex: aparelho muscular e osso hióide). aumentada
obstrutiva
dos musculos
Com frequência existem causas estruturais respiratórios
(vegetações adenóides e amígdalas palatinas hi-
“Despertar”
pertrofiadas, obesidade, macroglossia, etc.) e/ou Redução do fluxo
aéreo Hipoxémia
funcionais (doenças neuromusculares com hipoto- Hipercápnia Esforço respiratório
nia, incoordenação neuromuscular local, hipos- aumentado

sensibilidade dos centros respiratórios do lactente,


fases do sono, etc.) que, actuando sinergicamente
FIG. 1
e por múltiplos mecanismos, acabam por poten-
ciar a vertente colapsante. Fisiopatologia da SAOS
Neste caso, a obstrução instala-se, a resistência
intraluminal aumenta desproporcionadamente músculos dilatadores da faringe que conseguem
(Lei de Laplace), o fluxo aéreo torna-se mais turbu- abrir o lume e, por vezes, tornar o sono mais
lento, os tecidos moles envolventes vibram e pro- superficial (“microdespertar”, “despertar”; “arous-
duz-se o característico ruído de obstrução parcial al”), recuperação do tono das VAS, desobstrução,
das vias aérea superiores – o “roncar” ou “res- retoma do fluxo ventilatório e normalização do
sonar” (“snoring”). PH e gases no sangue. Este ciclo repete-se a ritmos
O grau de “obstrução das vias aéreas supe- variáveis que podem chegar até dezenas de
riores”, síndroma designada por “obstructive apneias/hora (índice de apneia).
sleep disorder breathing“ dos autores ingleses Quanto maior o índice de apneia, mais vezes o
pode situar-se entre dois extremos: uma expressão sono profundo é interrompido por “despertares”.
de gravidade mínima que cursa com obstrução Tal fenómeno leva à “fragmentação do sono”
ligeira sem outras repercussões aparentes – o “res- reduzindo a duração das fases de sono reparador.
sonar primário”, roncopatia primária, já referida
noutro capítulo; e, no extremo oposto, a obstrução SAOS na criança e no adulto
completa intermitente com apneia e repercussões
multissistémicas graves – a “síndroma de apneia Apesar de muitos aspectos da fisiopatologia da
obstrutiva do sono” (SAOS). SAOS serem comuns ao adulto e à criança, a SAOS
Entre os dois extremos existe um espectro de na criança não é uma forma infantil da SAOS do
situações clínicas resultantes de graus diversos de adulto. De facto, os factores de risco, manifes-
obstrução a que correspondem nosologias como tações clínicas e complicações, critérios de diag-
por exemplo “síndroma de resistência aumentada nóstico e prioridades terapêuticas são muito dis-
da vias aéreas superiores” (SRAVAS) e “síndroma tintos entre ambos. O Quadro 1 realça este aspec-
de hipopneia obstrutiva do sono” (SHOS). to comparando algumas das características da
A Figura 1 procura representar o ciclo fisiopa- SAOS na criança e no adulto.
tológico da SAOS. Após o adormecer inicial, esta-
belece-se normal e progressiva hipotonia das VAS Factores predisponentes
que, nestes casos, condiciona a sua obstrução e a
ocorrência de redução significativa (hipopneia) ou Deve ter-se em conta que existem algumas situa-
paragem duradoura do fluxo ventilatório (apneia). ções predisponentes de SAOS; daí a importância
A hipoxémia e retenção de CO2 resultantes são da sua identificação para o rastreio da SAOS.
estímulos efectivos para o centro respiratório, O Quadro 2 dá exemplos de algumas das situa-
levando a um novo aumento da actividade dos ções que requerem particular atenção.
158 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – SAOS na criança e SAOS no adulto

Sexo SAOS no Adulto SAOS na Criança


Sexo M/ Sexo F: 10/1 Sexo M/ Sexo F: 1/1
Respiração oral diurna Pouco comum Comum
Obesidade Comum Pouco comum
Má progressão ponderal/emagrecimento Não Comum

Alterações neurocomportamentais Alterações neurocognitivas e Hiperactividade, irritabilidade,


diminuição da concentração atraso do desenvolvimento
Excessiva sonolência diurna Sinal major Pouco comum
Factor etiológico mais comum Obesidade Hipertrofia das vegetações adenóides
Tratamento Uvulopalatofaringoplastia Amígdalo-adenoidectomia
CPAP CPAP (raro; casos seleccionados)

Abreviatura: CPAP – Continuous Positive Airway Pressure ou pressão positiva contínua nas vias aéreas

Manifestações clínicas Pela anamnese há que pesquisar um conjunto


de sintomas que, embora inespecíficos, devem ser
A história clínica é um instrumento fundamental valorizados no âmbito do diagnóstico de uma
para a abordagem de uma criança com suspeita de eventual SAOS:
SAOS (ou qualquer outra entidade do espectro da – Sintomas nocturnos/durante o sono
obstrução das vias aéreas superiores). – Ressonar: especialmente se crónico e/ou
intenso: manifestação major cuja pesquisa
QUADRO 2 – Factores predisponentes de SAOS deve fazer parte da anamnese nas consultas
de rotina da criança de qualquer idade.
I – Excesso ponderal e obesidade. – Esforço respiratório aumentado: graus diver-
II – Estreitamento ou compressão das vias aéreas; dis- sos de taquipneia, adejo nasal, retracção
função neuromuscular; hipertrofia das vegetações inspiratória, movimento paradoxal tóraco-
adenóides e amígdalas palatinas*; disfunção dos múscu- abdominal, cianose
los das vias aéreas (doenças neuromusculares); – Episódios de apneia
hipotiroidismo; macroglossia; micrognatia*; retrognatia; – Estertor: no retomar da ventilação após
nasofaringe estreita*; pólipos nasais; drepanocitose; apneia
tumor laríngeo; obesidade*; status pós reparação de – Posição particular a dormir (ex: extensão do
fenda palatina; laringomalácia; etc.. pescoço)
III – Doenças neurológicas; disfunção neurológica de – Sono muito agitado
qualquer origem; paralisia cerebral; doenças neuromus- – Sudação profusa
culares*; defeitos do tronco cerebral (anomalia de – Acordar frequente e parassónias (terrores
Arnold-Chiari; hidrocefalia; mielomeningocele; distrofia nocturnos, pesadelos)
miotónica; etc.) – Dificuldade ao acordar e confusão
IV - Supressão do controle das vias aéreas (álcool; – Cefaleia
anestesia; narcóticos; sedativos). – Boca seca
V – Anomalias genéticas e defeitos congénitos com – Obstrução nasal e/ou respiração bucal
hipoplasia do maciço facial (acondroplasia; síndroma de – Náusea e vómito frequentes, dificuldade de
Down*; síndroma de Apert; artrogripose; síndroma de deglutição, anorexia
Beckwith-Wiedemann; doença de Crouzon; síndroma de
Marfan; síndroma de Pierre-Robin*; mucopolissacaridoses;
Há que ter em conta as comorbilidades que, a
etc.)
*risco major
longo prazo, se podem associar a SAOS, e se po-
dem tornar parcialmente reversíveis, tais como:
CAPÍTULO 29 Síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS) 159

– Desregulação neurocomportamental(várias Trata-se do único exame susceptível de fornecer


formas de hiperactividade e défice de indicações simultâneas e quantificadas sobre
atenção, mau humor, impulsividade, agres- importantes parâmetros biológicos durante o sono,
sividade, enurese) permitindo obter índices funcionais indispensáveis
– Perturbações neurocognitivas (problemas à completa classificação e avaliação da situação
escolares,dificuldades de memória, concen- (índice de apneia, índice de hipopneia, índice de
tração e aprendizagem) despertares, eficácia do sono, estádios do sono,
– Alterações cardiovasculares tipos de apneia – central, obstrutiva, mista) – e dar
– Atraso de crescimento indicações quanto à terapêutica mais adequada.
– Depressão e sonolência diurna marcadas, – Técnicas “abreviadas” ou de “rastreio”
comprometendo a qualidade de vida Tais técnicas incluem, designadamente PSN
– Utilização elevada dos serviços de saúde parcial, oximetria de pulso nocturna contínua ou
de uma sesta, gravação áudio do ressonar, video-
Ao realizar o exame objectivo há que dar espe- grama do sono, registo dos movimentos dos
cial atenção aos seguintes aspectos: membros (actigrafia), inquéritos do sono, várias
– Exame geral na vigília é “normal”na maioria combinações de técnicas, etc..
dos casos – o que não exclui o diagnóstico. Estas técnicas abreviadas são úteis se os resul-
– Índice de massa corporal aumentado ou atra- tados forem positivos (valor preditivo positivo:
so de crescimento oximetria de pulso isoladamente: 70 a 100%;
– Fácies adenoideia videograma do sono isoladamente: 83%; audio-
– Nariz, septo e fossas nasais (rinite, pólipos, grama do sono utilizado isoladamente: 50-75%). O
desvios) valor preditivo negativo é, pelo contrário, muito
– Orofaringe (volume das adenóides e amíg- fraco. De salientar que um resultado negativo em
dalas), anomalias do palato e úvula criança clinicamente suspeita de SAOS deve ser
– Estruturas craniofaciais: micrognatia, hipopla- sempre ser confirmado por PSN.
sia do andar médio, hipoplasia mandibular
– Sistema cardiovascular (pressão arterial, 2. Repercussões sistémicas da perturbação
sinais de hipertrofia do ventrículo direito) ventilatória
– Atraso de desenvolvimento, atraso de cresci- – Para avaliar a repercussão sistémica da pertur-
mento. bação ventilatória, está indicado um conjunto de
– Manifestações de síndromas do neurodesen- exames complementares essenciais tais como:
volvimento (por ex.: síndroma de Down), hemograma (para detecção de eventual polici-
anomalias do tórax, cardíacas ou neurológicas. témia), estudo do pH e gases no sangue (para
avaliar as eventuais alterações da relação venti-
Exames complementares lação/perfusão V/P), electrocardiograma (ECG),
ecocardiograma/doppler, etc. em função do con-
Os exames complementares enquadram-se em dois texto clínico e, nomeadamente, da identificação de
grandes grupos, sendo dirigidos à avaliação de: factores predisponentes.
Face à escassez de meios humanos e de
1. Obstrução significativa e parâmetros do sono equipamento para responder em tempo útil às cri-
- Polissonografia nocturna (PSN) anças com suspeita de patologia do sono, há que
Constitui o método de “ouro” ou de excelência (gold estabelecer prioridades nas indicações para real-
standard) para o diagnóstico. Requerendo tecnologia ização de uma investigação clínico-laboratorial
e profissionais diferenciados assim como equipa- exaustiva, nomeadamente de PSN.
mentos sofisticados, implica algum incómodo para Assim, devem ser prioritariamente encami-
a criança e acompanhante. A polissonografia é cara nhadas para um centro com experiência no trata-
e de acesso difícil aos escassos laboratórios de sono mento de perturbações respiratórias do sono as
existentes. A execução e interpretação dos resulta- crianças que ressonam e nas quais se verifique um
dos é mais difícil na criança. ou mais dos critérios referidos no Quadro 3.
160 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Critérios prioritários de QUADRO 4 – Factores de risco pós-operatório


encaminhamento para centro em crianças com SAOS
especializado (suspeita de SAOS) submetidas a
adenoamigdalectomia
1 – Descrição pelos pais de pausas e/ou estertores
durante o sono • idade inferior a 2-3 anos
2 – Sonolência diurna excessiva ou alteração neurocom- • SAOS grave detectada por PSN (índice de apneia/
portamental /hipopneia>10/h; Saturação em O2 <70%)
3 – Redução do rendimento escolar • complicações cardíacas da SAOS
4 – Hipertrofia das adenóides • atraso de crescimento/má progressão ponderal
5 – Infecções recorrentes das vias aéreas superiores • obesidade
6 – Deficiente progressão ponderal • história de prematuridade
• infecção respiratória recente
• anomalias craniofaciais
Em suma, no final da avaliação de uma criança • hipotonia muscular
que ressona havendo suspeita de SAOS, o médi-
co deve estar em condições de identificar:
a) Uma de duas situações “extremas”: 1. Amigdalo-adenoidectomia
– “Ronco primário”, se não existirem outras Resultando em 75% a 100% de curas, é o trata-
manifestações clínicas de perturbação ventilatória mento de primeira linha em crianças com hiper-
no sono, não existirem episódios de défice de satu- trofia adenoamigdalina e ausência de contra-indi-
ração em O2, de apneia ou de hipopneia significa- cações para cirurgia. Algumas crianças (Quadro 4)
tiva. Trata-se de diagnóstico de exclusão; com SAOS, pelo risco elevado de complicações
– “SAOS” se, pelo contrário, as referidas per- pós-operatórias (edema das VAS, edema pul-
turbações incluirem episódios de hipopneia e monar, pneumotórax, morte, etc.) devem ser sub-
apneia em número que cumpram os critérios de metidas a plano anestésico-cirúrgico especial e a
SAOS. vigilância pós-operatória prolongada até ao dia
b) ou situações “intermédias” com manifes- seguinte, com monitorização por oximetria de
tações na fronteira das duas anteriores: pulso.
– “SRAVAS (síndroma de resistência aumenta-
da das VAS ), em que existe clínica de obstrução e 2. Ventilação por pressão positiva contínua
défice de saturações em O2 nocturnas, mas índices (CPAP ou BiPAP)
de apneia e/ou hipopneia normais; Permite o controlo da situação em 85% a 90% dos
– “SHOS” (síndroma de hipopneia obstrutiva casos. A evolução tecnológica dos aparelhos na
do sono), com índices de hipopneia acima do limi- última década permitindo o seu uso domiciliário
te superior do normal, mas sem apneias significa- seguro a custos comportáveis: o aparecimento de
tivas. máscaras nasais cada vez mais confortáveis e
À medida que maior número de crianças que adaptáveis às dimensões faciais da criança com o
ressonam forem sujeitas a avaliação clínico-labo- crescimento, vieram transformar esta forma de
ratorial, a proporção das situações incluídas em b) ventilação não invasiva numa opção eficaz no
será cada vez maior. tratamento da SAOS. É utilizada, quer em
primeira linha (doenças médicas, patologia neuro-
Tratamento muscular, dismorfias faciais, obesidade, contra-
indicações para cirurgia, persistência de SAOS
O tratamento da SAOS deve ser o tratamento das após intervenção cirúrgica etc.), quer como alter-
situações ou causas predisponentes, nomeada- nativa à cirurgia ou à ventilação por traqueosto-
mente das causas obstrutivas das VAS. As medi- mia, quer ainda de forma transitória (“tratamento
das terapêuticas mais comuns são: em ponte”) quando é necessária uma estabilização
clínica antes da intervenção cirúrgica. Persistem
CAPÍTULO 29 Síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS) 161

alguns problemas relacionados com a pressão local Ressonar habitual > ressonar em todas as noites ou na maio-
da máscara nasal e respectivas fitas suspensoras e ria das noites (10% de todas as crianças).
com a secura/ congestão da mucosa nasal e ocular;
contudo, dum modo geral, a tolerância é boa. BIBLIOGRAFIA
Academia Americana de Pediatria.Guia de Prática Clínica:
3. Outras terapêuticas e medidas coadjuvantes Diagnóstico e terapêutica da Sindroma da Apneia
Técnicas como uvulopalatofaringoplastia, técnicas Obstrutiva do Sono. Pediatrics (edição portuguesa) 2002;
de ortodôncia e outras técnicas cirúrgicas, rara- 10:213-221
mente utilizadas na criança, têm interesse muito American Thoracic Society.Standards and indications for car-
secundário. Poderão ser adoptadas as seguintes: diopulmonary sleep studies in children. Am J Respir Crit
posicionamento durante o sono com alívio da Care Med 1996; 153: 866-878
obstrução; emagrecimento se houver excesso pon- Amorim A, Machado A, Winck JC, Almeida J. Síndroma de
deral; redução de medicamentos depressores do apneia obstrutiva do sono em crianças. Acta Pediatr Port
sistema nervoso; corticoterapia inalada; antibioti- 2004;35: 49-61
coterapia se se verificar infecção crónica local; e Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon, 2011
montelucaste (com efeito anti-inflamatório e mo- Duarte C, Santos I, Estêvão MH. Perturbações do sono na cri-
dificador do efeito dos leucotrienos) como forma ança. Acta Pediatr Port 2004; 35; 349-357
de redução das dimensões das adenóides em si- Goldbart AD, Greenberg-Dotan,Tal A. Montelukast for child-
tuações ligeiras ou moderadas, etc.. ren with obstructive sleep apnea:a double-blind,placebo-
Cabe referir, no entanto, que apesar dos controlled study. Pediatrics 2012;130: e575-e580
recentes avanços na investigação e experiência Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
adquirida nesta área da pediatria, ainda não há Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
consenso sobre vários aspectos da SAOS na crian- Saunders, 2011
ça, tais como critérios de diagnóstico mais ade- Rosen CL. Obstructive sleep apnea syndrome in children: con-
quados e terapêutica ideal. troversies in diagnosis and treatment. Pediatr Clin North
Am 2004; 51: 153-167
GLOSSÁRIO Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
Apneia > Critérios clínicos – ausência de fluxo aéreo bucal ou AA(eds). Rudolph´s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
nasal; tipo central (ausência de esforço respiratório); tipo Medical , 2011
obstrutivo (presença de esforço respiratório continuado,
devido a colapso das vias aéreas superiores); ou tipo misto
(apneia central e obstrutiva ocorrendo sequencialmente
sem que haja respiração normal entre os dois eventos).
Critérios polissonográficos – tipo obstrutivo (ausência de
fluxo oro-nasal na presença de esforço respiratório contí-
nuo, durando mais de 2 ciclos respiratórios; geralmente,
mas não sempre, associado a hipoxémia); tipo central (ces-
sação de esforço respiratório que dura 2 ou mais ciclos res-
piratórios).
Dessaturação (ou d éfice de saturação) > descida da SatO2 ≥4%
Hipoventilação > Critérios clínicos – redução da ventilação
pulmonar abaixo de um mínimo que assegure valores nor-
mais de O2 e CO2 sanguíneos: tipo obstrutivo (obstrução
alta parcial levando a ventilação pulmonar inadequada
com centro respiratório funcionante); ou tipo não-obstruti-
vo, (estado de depressão do centro respiratório, doença
neuromuscular ou doença pulmonar restritiva).
Índice de apneia/hipopneia > nº de episódios de apneia/
hipopneia/hora.
162 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

30
QUADRO 1 – Classificação das Perturbações
Globais do Desenvolvimento
segundo a DSM-IV

1. Perturbação Autística
2. Perturbação de Rett
PERTURBAÇÕES DO ESPECTRO 3. Perturbação Desintegrativa da Segunda Infância
(síndroma de Heller)
DO AUTISMO 4. Perturbação de Asperger
5. Perturbação Global do Desenvolvimento – sem outra
Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto especificação (PGD-SOE)

Aspectos epidemiológicos.
Importância do problema
Estudos internacionais recentes estimam uma
Em 1943 e 1944, o pedopsiquiatra americano Leo prevalência do autismo clássico oscilando entre 1 e
Kanner e o pediatra austríaco Hans Asperger des- 16/10.000 sendo que os valores têm aumentado nos
creveram uma doença infantil caracterizada pela ultimos 35 anos, com predomínio no sexo masculino
tríade: défice na comunicação, comportamento numa relação de 3/1. O aumento da prevalência em
repetitivo e défice na interacção social. A referida relação a estudos anteriores resulta de uma
doença viria posteriormente a ser designada por combinação de factores como inclusão de formas
psicopatia autística ou autismo. mais ligeiras no espectro, maior informação e
Actualmente sabe-se que o autismo não é capacidade de diagnóstico, e subida real devida a
uma doença específica, mas uma perturbação do influências ambientais. Não foi, porém, encontrada
desenvolvimento cerebral com uma forte base qualquer relação de causalidade entre o autismo e a
genética e acentuada heterogeneidade, podendo vacina contra o sarampo, papeira e rubéola (VASPR).
apresentar desde sintomas ligeiros a alterações Os estudos em gémeos mostraram uma eleva-
graves, sendo as formas ligeiras mais frequentes da concordância em gémeos monozigóticos e não
que a forma clássica. Tem sido referida a ligação em dizigóticos, sugerindo que se trata de uma
entre o autismo e algumas variantes do gene do doença genética.
transportador da serotonina, admitindo-se que a Os estudos epidemiológicos indicaram que os
susceptibilidade genética possa ser potenciada factores ambientais como a exposição a tóxicos ou
por factores ambientais. Devido às variações lesões perinatais eram responsáveis por um
qualitativas e quantitativas dos sintomas, número reduzido de casos e que as doenças
passou a considerar-se a existência de um médicas diagnosticáveis, alterações citogenéticas
espectro do autismo. Assim, o autismo clássico, ou doenças monogénicas (como a esclerose
as doenças do espectro do autismo ou tuberosa, síndroma do X frágil ou outras doenças
perturbações globais do desenvolvimento, como metabólicas mais raras) correspondem a menos de
são designadas na classificação mais recente, 10% dos casos. Os estudos sugerem que se trata de
Diagnostic and Statistical Manual of Mental uma patologia genética, provavelmente multi-
Disorders, Fourth Edition – DSM IV (Quadro 1) génica, sendo de referir que factores epigenéticos
fazem parte de um grande contínuo de pertur- e a exposição a modificadores ambientais contri-
bações cognitivas e neurocomportamentais com buem para a grande variabilidade de expressão
os mesmos critérios basilares acima referidos: fenotípica.
alteração da interacção social, da comunicação Sabe-se efectivamente que múltiplas regiões
(verbal e não verbal), e padrões de comporta- genéticas (cromossomas 16p11.2, 15q24, 11p12-
mento, interesse e actividades repetitivas, p13) e variantes de genes (por deleções, dupli-
restritas ou estereotipadas. cações, inversões, etc.) interferem negativamente
CAPÍTULO 30 Perturbação do espectro do autismo 163

no crescimento neuronal, sináptico e na mielini- plinar, com recolha de informação de vários


zação. contextos (casa, escola, actividades de tempos
No maior estudo epidemiológico realizado em livres, etc.) e sob várias formas (inquéritos, ques-
Portugal por Guiomar Oliveira e colaboradores, tionários específicos, escalas específicas e testes),
divulgado em 2005, a prevalência de perturbações de forma a poder ser definido o perfil de desen-
do espectro do autismo foi de 0,92/1.000 com volvimento e planeada uma intervenção de acordo
predomínio no sexo masculino (75%). com as potencialidades e dificuldades da criança.
Uma vez que se trata de uma patologia definida O desenvolvimento aberrante das competên-
por sintomas comportamentais, e com um peso cias sociais é a base das perturbações do espectro
negativo importante para os pais, tem havido uma do autismo. Pode incluir alteração do contacto
dificuldade em fazer um diagnóstico precoce, da visual, isolamento, não responder ao seu nome,
parte dos técnicos, por receio, sobretudo, de não usar o gesto para apontar ou mostrar, não ter
diagnóstico incorrecto. Assim, o diagnóstico de jogo interactivo e não manifestar interesse pelos
autismo geralmente não é colocado antes dos 3 anos, seus pares.
idade em que os problemas de socialização ou da A criança com autismo tem, frequentemente,
linguagem (comunicação) se tornam mais flagrantes. alterações da linguagem expressiva, que podem ir
No estudo português atrás referido 93% dos do mutismo à fluência verbal, embora com per-
casos foram identificados até aos 2 anos de idade. turbação da semântica e pragmática. O atraso na
fala e alguns problemas de comportamentos bi-
A criança em risco zarros ou atípicos constituem preocupações fre-
quentes dos pais nas crianças entre 1 e 3 anos.
Em cada consulta de saúde infantil, é importante No autismo, o valor do quociente intelectual
que os clínicos identifiquem as crianças em risco de realização (QIR) quantifica o desempenho nas
de desenvolvimento atípico, usando métodos de áreas não verbais; é habitualmente superior ao do
rastreio adequados e, inquirindo sobre a comuni- quociente intelectual verbal (QIV). No entanto, a
cação, o comportamento e a interacção social. Se a diferença entre QIR e QIV depende da gravidade
criança não atinge um dos seguintes marcos: do défice intelectual. O perfil cognitivo típico nos
palrar aos 12 meses; usar o gesto para apontar ou casos de autismo clássico avaliado através da
dizer adeus aos 12 meses; dizer palavras isoladas prova WISC (escala de inteligência de Wechsler
aos 16 meses; juntar palavras (espontâneo e não para crianças) caracteriza-se por resultados eleva-
ecolálico) aos 24 meses. Se se verificar perda de dos na construção de cubos e baixos na compre-
competências sociais ou da linguagem em qual- enção e composição de figuras.
quer idade, deve ser feito um rastreio específico As perturbações da motricidade fina e gros-
do autismo (usando testes como a Checklist for seira são também frequentes, associando-se a
Autism in Toddlers – CHAT e um rastreio audio- maneirismos e estereotipias motoras.
lógico para excluir défice auditivo. Caso o referido O processamento sensorial pode estar alterado
rastreio confirme alterações ou no caso de o clínico provocando respostas atípicas aos diferentes estí-
não ter conhecimentos específicos sobre esta área, mulos, com hiper ou hiporreactividade. Há difi-
a criança deve ser encaminhada para um especia- culdades acrescidas nas actividades que requerem
lista em patologia do desenvolvimento. Os irmãos processos conceptuais complexos, raciocínio e
deverão ser alvo de uma vigilância rigorosa uma interpretação, integração e abstracção, estando as
vez que o risco de repetição é cerca de 10-20%, ou competências que dependem de memória e
seja, 50 vezes superior ao da população em geral. repetição automática ou de processos perceptuais
mais conservadas.
Manifestações clínicas Reportando-nos ao Quadro 1, caberá uma
referência a certas especificidades da perturbação
O diagnóstico de perturbação autística (cujos de Rett, da síndroma de Heller e da perturbação
critérios estão especificados no Quadro 2) não é de Asperger:
fácil e deve ser feito por uma equipa multidisci- – Na perturbação de Rett, situação de here-
164 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Critérios de Diagnóstico de Perturbação Autística segundo a DSM-IV

A. Presença de seis (ou mais) itens de (1), (2) ou (3), com pelo menos dois de (1), e um de (2) e um de (3)
(1) défice qualitativo na interacção social, manifestado pelo incapacidade na competência para iniciar ou manter uma
menos por duas das seguintes características: conversação com os outros;
a. acentuado défice no uso de múltiplos comportamentos c. uso estereotipado ou repetitivo da linguagem ou lingua-
não verbais, tais como, contacto ocular, expressão facial, gem idiossincrática;
postura corporal e gestos reguladores da interacção social; d. ausência de jogo realista espontâneo, variado, ou de jogo
b. incapacidade para desenvolver relações com os com- social imitativo adequado ao nível de desenvolvimento;
panheiros, adequadas ao nível de desenvolvimento; (3) padrões de comportamento, interesses e actividades
c. ausência da tendência espontânea para partilhar com os restritos, repetitivos e estereotipados, que se manifestam
outros prazeres, interesses ou objectivos (por exemplo, não pelo menos por uma das seguintes características:
mostrar, trazer ou indicar objectos de interesse); a. preocupação absorvente por um ou mais padrões
d. falta de reciprocidade social ou emocional; estereotipados e restritivos de interesses que resultam
(2) défice qualitativo na comunicação manifestado, pelo anormais, quer na intensidade quer no seu objectivo;
menos, por uma das seguintes características: b. adesão, aparentemente inflexível, a rotinas ou rituais
a. atraso ou ausência total de desenvolvimento da linguagem específicos, não funcionais;
oral (não acompanhada de tentativas para compensar c. maneirismos motores estereotipados e repetitivos (por
através de modos alternativos de comunicação, tais como exemplo, sacudir ou rodar as mãos ou dedos ou movi-
gestos ou mímica); mentos complexos com todo o corpo);
b. nos sujeitos com um discurso adequado, uma acentuada d. preocupação persistente com partes de objectos.

B. Atraso ou funcionamento anormal em, pelo menos, uma das seguintes áreas, com início antes dos três anos de idade
(1) interacção social (2) comunicação (3) comportamento repetitivo

C. A perturbação não é explicada pela presença de uma perturbação de Rett ou perturbação desintegrativa da
segunda infância

ditariedade dominante ligada ao X e causada evidentes: dificuldade em criar empatia, hi-


por mutações no gene MECP2 em Xq28, persensibilidade aos estímulos sensoriais
poderá verificar-se desenvolvimento psico- (luz, som, olfacto, tacto), e actividades repe-
motor normal até aos 6-18 meses, seguido de titivas.
“estagnação” e ulteriormente de regressão na A alínea 5 do Quadro 1 refere-se às situações
linguagem, no tono muscular e na motri- que não preenchem os critérios perturbação de
cidade. Asperger nem de perturbação autística.
– Na perturbação de Heller, também chamada
demência infantil,verifica-se um período de, Diagnóstico diferencial
pelo menos, 2 anos em que o desenvol-
vimento é aparentemente normal, o qual é Os instrumentos de diagnóstico classificam-se em 2
seguido de marcada regressão em múltiplas grupos: questionários ou entrevistas e escalas de
áreas do desenvolvimento. observação directa; ambos os métodos se
– Na perturbação de Asperger há a salientar complementam. Citam-se alguns daqueles instru-
sinais mais discretos de de compromisso da mentos mais utilizados: a Gilliam Autism Ratig Scale,
linguagem em relação à perturbação a Parent Interview for Autism, o Pervasive
autística: aparente desenvolvimento normal Developmental Disorders Screening Test – Stage 3, a
da linguagem com palavras simples pelos 2 Autism Diagnostic Interview – Revised, a Childhood
anos e construção de frases que permitem Autism Rating Scale, a Screening Tool for Autism in
comunicação pelos 3 anos. Por outro lado são Two-Year-Olds, ou o Autism Diagnostic Observation
CAPÍTULO 30 Perturbação do espectro do autismo 165

Schedule – Generic. Devem ser complementados, Intervenção


quando necessário, por avaliações mais específicas
da linguagem e avaliações cognitivas e do compor- A intervenção requer, como foi salientado, coope-
tamento adaptativo, de forma a elaborar o perfil ração multidisciplinar. Nesta perspectiva, este
funcional da criança. Posteriormente, deve haver um tópico é também abordado na parte referente
cuidado de observação continuada e reavaliação, Pedopsiquiatria.
pelo menos com periodicidade anual. Segundo as revisões recentes as estratégias
A maioria das crianças com doença do es- presentemente aceites são: 1. A melhoria do nível
pectro do autismo idiopática evidencia um exame funcional global da criança, envolvendo-a num
físico normal. programa apropriado de intervenção educativa
No entanto, o autismo poderá coexistir com que promova o desenvolvimento das competên-
sintomalogia neurológica decorrente de disfunção cias comunicativas, sociais, adaptativas, comporta-
cerebral difusa ou de imaturidade neurológica. mentais e académicas (como por exemplo o
São exemplos de tal comorbilidade o défice in- programa TEACCH ou “Treatment and education of
telectual e outros défices cognitivos, a epilepsia, autistic and related communications of handicapped
problemas auditivos, visuais, sensoriomotores, children); 2. A redução dos comportamentos de-
perturbações do sono, perturbações do foro psi- sajustados e repetitivos através de controle far-
quiátrico (tiques, hiperactividade e défice de macológico, nomeadamente com antidepressivos
atenção) e sinais dismórficos. Muitas crianças têm como a fluoxetina ou neurolépticos como a ris-
“cabeça grande”, somente preenchendo os crité- peridona, ou comportamentais; 3. Apoio à família
rios de macrocefalia associada a neuropatologia no sentido de gerir o estresse, fornecendo informa-
uma pequena percentagem. ção e fomentando apoio de grupos de pais.
De referir igualmente a relação possível entre Em suma, o diagnóstico precoce associado a
doença celíaca e autismo, não consensual para al- uma intervenção precoce, (idealmente pelos 2 ou 3
guns investigadores. Assim, o recurso a determi- anos de idade) consistente e intensiva e com
nados exames complementares deve ser ponde- ensino entre 15-40 horas/semanais, educacional e
rado caso a caso, designadamente na perspectiva comportamental, tem contribuído para melhorar
do diagnóstico diferencial. o prognóstico.
Poderá ser recomendado um estudo genético, De notar que tem havido um número crescente
nomeadamente cariótipo de alta resolução e aná- de terapias alternativas não provadas cientifi-
lise de ADN para X Frágil nas crianças com défice camente.
cognitivo, com antecedentes familiares relevantes São exemplos o treino de integração auditiva ou
ou dismorfias. a comunicação facilitada, modificações dietéticas, a
A investigação metabólica deve ser iniciada integração sensorial, recurso a vários tipos de fár-
segundo a clínica, sobretudo nos casos de letargia, macos ou estimulação pelo contacto com animais*.
vómitos cíclicos, convulsões precoces, dismorfias,
ou défice cognitivo. Prognóstico
O EEG não deve ser feito por rotina, mas está
indicado se houver convulsões, suspeita de con- Dada a grande heterogeneidade da população com
vulsões subclínicas ou história de regressão do perturbação do espectro do autismo, o prognóstico
desenvolvimento. Embora as crianças com autismo é igualmente variável e tem vindo a melhorar, o
possam ter, como foi referido, aumento do perímetro que é explicável pelo diagnóstico e intervenção
cefálico, não há evidência clínica que defenda o precoces. O prognóstico é francamente melhor nos
recurso por rotina à neuroimagiologia. Também não indivíduos com QI acima de 60-65 na infância e
se justifica o estudo por rotina para para investigar, que adquirem linguagem funcional no início da
por exemplo, doença celíaca, atopia, alterações
imunológicas ou neuroquímicas, micronutrientes, * Como curiosidade citam-se alguns exemplos de medidas referidas na
literatura médica como terapêuticas alternativas: melatonina, secreti-
função tiroideia, estudos de permeabilidade intesti- na, ácidos gordos ómega 3, dieta sem glúten e sem caseína, vitamina
nal ou doenças mitocondriais. B6, probióticos, oxigénio hiperbárico, etc..
166 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

31
idade escolar. Nas situações em que há uma
regressão ou perda de competências, como na
síndroma de Heller ou na síndroma de Rett, o
prognóstico é naturalmente mais reservado.
Apenas uma minoria de indivíduos atinge
autonomia social na idade adulta, sendo que a
percentagem que vem a obter emprego oscila PERTURBAÇÕES
entre 0-21,5% conforme os diversos grupos de
investigadores. De referir que cerca de 50% dos DE HIPERACTIVIDADE
casos mantêm dependência total.
E DÉFICE DE ATENÇÃO
BIBLIOGRAFIA
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Child 2006; 91:8-15 da dopamina) e o DRD4 (gene de uma forma
www.learn.uptodate.com/sample [acesso em Junho de 2013] particular de receptor da dopamina – o receptor
D4). Admite-se, pois, um papel importante da
dopamina na etiopatogénese com implicações
práticas nas medidas terapêuticas, algumas das
quais são constituídas por inibidores da recaptação
da dopamina.
Os familiares de crianças com PHDA têm um
risco 6 vezes superior de PHDA relativamente à
CAPÍTULO 31 Perturbações de hiperactividade e défice de atenção 167

população normal. O ambiente, embora não tendo Para o diagnóstico da PHDA torna-se funda-
uma relação causal directa, é importante na mental recolher informação de várias fontes: dos
modulação dos sintomas e no grau de disfunção pais, dos professores, ou de outros profissionais
causada. Os sintomas podem ser atenuados por um que conhecem a criança. Como não há instru-
ambiente mais estruturado ou ser exacerbados por mentos que indiquem com confiança o grau e a
um ambiente menos favorável e mais desorga- natureza da perturbação funcional de uma forma
nizado. objectiva, devem ser utilizadas perguntas livres
genéricas, perguntas específicas sobre alguns
Manifestações clínicas e diagnóstico comportamentos, questionários semi-estrutura-
dos, assim como questionários e escalas espe-
A forma de apresentação clínica pode ser muito cíficas. A aplicação de escalas e questionários
variável, em função da diversidade de mecanismos específicos tem evidenciado sensibilidade e es-
genéticos implicados, nomeadamente. São fre- pecificidade acima de 94%, permitindo assim
quentes as queixas de insucesso escolar, alterações distinguir crianças com e sem PHDA. Estes
do comportamento na sala de aula, desatenção, questionários e escalas são aplicáveis aos pais e
problemas nas relações sociais, ou baixa auto-esti- professores, com modelos específicos para cada.
ma. Os sintomas principais da PHDA incluem De salientar que não há testes físicos especí-
essencialmente falta de atenção, hiperactividade e ficos para o diagnóstico da PHDA.
impulsividade, não associados a qualquer patolo- Várias outras perturbações podem estar asso-
gia psiquiátrica. O Quadro 1, adaptado do ciadas à PHDA, consideradas como comorbilidade,
Diagnostic and Statistical Manual of Mental sendo as mais frequentes: a perturbação de
Disorders, Fourth Edition – DSM IV, sintetiza os oposição/desafio ou a perturbação da conduta; as
critérios diagnósticos da referida entidade clínica. alterações do humor/depressão; a ansiedade e as
As crianças com os sintomas típicos de hiper- perturbações da aprendizagem/défice cognitivo
actividade e impulsividade são geralmente identi- ligeiro. Podem estar presentes em cerca de um terço
ficadas pelos professores porque perturbam a sala das crianças com PHDA. É importante a detecção
de aula. No entanto, as crianças com o subtipo destas situações uma vez que a sua identificação
desatento da PHDA, com sintomas de hipera- tem implicações na intervenção proposta.
ctividade e impulsividade ausentes ou mínimos, A existência de uma perturbação do desenvol-
podem passar despercebidas, manifestando ape- vimento da coordenação motora, concomitante com
nas insucesso escolar, sendo por vezes rotuladas a PHDA, resultando num quadro característico de
como desinteressadas ou desmotivadas em défice da coordenação motora (grosseira e fina), de
relação à escola. atenção e de percepção (visual e/ou auditiva),
Na população em geral parece haver um justificou a definição de uma entidade designada
predomínio no sexo masculino, embora possa por défice de atenção, motricidade e percepção
haver subdiagnóstico no sexo feminino, devido a (DAMP), que é actualmente considerada um
um predomínio do subtipo “desatento”. Em subtipo da PHDA. Esta entidade, cujo prognóstico é
Portugal esta entidade apenas recentemente tem mais reservado, necessita de uma intervenção mais
sido alvo de interesse pelos clínicos, o que explica abrangente, abordando as dificuldades presentes
a falta de estudos epidemiológicos nacionais, bem nas diferentes áreas. É, portanto, fundamental a sua
como uma taxa de diagnóstico seguramente identificação precoce, devendo ser sempre excluída
inferior à real. perante uma criança com PHDA.
Segundo as recomendações internacionais,
perante uma criança entre os 6 e 12 anos, com falta Intervenção
de atenção, hiperactividade, impulsividade, insu-
cesso escolar ou problemas de comportamento, o O clínico responsável pelo diagnóstico (que deve
clínico deve iniciar uma avaliação de PHDA com ser desmistificado) deve informar a família sobre
encaminhamento para uma consulta de especia- a doença, aconselhando-a e estar disponível para
lidade. prestar todos os esclarecimentos e promover a
168 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Critérios de diagnóstico de perturbação de hiperactividade e défice de atenção


segundo a DSM-IV

Critérios (1) ou (2)


(1) Presença de seis (ou mais) dos seguintes sintomas de falta de atenção persistindo, pelo menos durante seis meses, com
uma intensidade inconsistente com o nível de desenvolvimento:
Falta de atenção
(a) com frequência não presta atenção suficiente aos pormenores ou comete erros por descuido nas tarefas escolares, no trabalho
ou noutras actividades;
(b) com frequência tem dificuldade em estar atento no desempenho de tarefas ou actividades;
(c) com frequência parece não ouvir quando se lhe fala directamente;
(d) com frequência não segue as instruções e não termina os trabalhos escolares, tarefas ou deveres no local de trabalho (não por
comportamentos de oposição ou por incompreensão das instruções);
(e) com frequência tem dificuldades em organizar tarefas ou actividades;
(f) com frequência evita, sente repugnância ou está relutante em envolver-se em tarefas que requeiram esforço mental mantido
(tais como trabalhos escolares ou de índole administrativa);
(g) com frequência perde objectos necessários a tarefas ou actividades (por exemplo, brinquedos, exercícios escolares, lápis,
livros ou ferramentas);
(h) com frequência distrai-se facilmente;
(i) esquece-se com frequência das actividades quotidianas;

(2) Presença de seis (ou mais) dos seguintes sintomas de hiperactividade-impulsividade persistindo, pelo menos, durante
seis meses, com uma intensidade não condizente com o nível de desenvolvimento:
Hiperactividade
(a) com frequência movimenta excessivamente as mãos e pés, mexe-se quando está sentado;
(b) com frequência levanta-se na sala de aula ou noutras situações em que se espera que esteja sentado;
(c) com frequência corre ou salta excessivamente em situações em que é impróprio fazê-lo (em adolescentes e adultos pode
limitar-se a sentimentos subjectivos de impaciência);
(d) com frequência tem dificuldade em jogar ou em se dedicar tranquilamente a actividades de ócio;
(e) com frequência “anda”, ou só actua como se estivesse “ligado a um motor”;
(f) com frequência fala “de mais”;
Impulsividade
(g) com frequência precipita as respostas antes que as perguntas tenham acabado;
(h) com frequência tem dificuldade em esperar pela sua vez;
(i) com frequência interrompe ou interfere nas actividades dos outros (por exemplo, intromete-se nas conversas ou jogos);

Codificação baseada no tipo


314.01 – Perturbação de Hiperactividade com Défice da Atenção, Tipo Misto: se preenchidos os critérios 1 e 2 durante os últimos
seis meses.
314.00 – Perturbação de Hiperactividade com Défice da Atenção, Tipo Predominantemente Desatento: se preenchido o critério
1 mas não o critério 2 durante os últimos seis meses.
341.01 – Perturbação de Hiperactividade com Défice da Atenção, Tipo Predominantemente Hiperactivo-Impulsivo: se critério 2
preenchido mas não o critério 1 durante os últimos seis meses.
Nota de codificação: Para sujeitos (especialmente adolescentes e adultos), actualmente com sintomas que já não preencham
todos os critérios, deve especificar-se “em remissão parcial”. (Associação Psiquiátrica Americana, 1994))
CAPÍTULO 31 Perturbações de hiperactividade e défice de atenção 169

ligação a outras famílias, assegurando a coorde- Biederman J, Faraone SV. Attention – deficit hyperactivity
nação dos serviços de saúde e educação. disorder. Lancet 2005; 366: 237-248
A PHDA, como outras doenças crónicas, ne- Committee on Quality Improvement and Subcommittee on
cessita dum plano de tratamento específico para a Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder. American
criança, idealmente levado a cabo por uma equipa Academy of Pediatrics. Clinical Practice Guideline:
multidisciplinar, com metas definidas, formas de Diagnosis and evaluation of the child with attention-deficit
seguimento e de vigilância. A principal meta do and hyperactivity disorder. Pediatrics 2000; 105: 1158-1170
tratamento deve ser a de valorizar devidamente Committee on Quality Improvement and Subcommittee on
toda a função, melhorando a relação com os ou- Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder. American
tros, melhorando o desempenho académico, inde- Academy of Pediatrics. Clinical Practice Guideline:
pendência e auto-estima. Treatment of the school aged child with attention-deficit
Na maioria das crianças o tratamento farmaco- and hyperactivity disorder. Pediatrics 2001; 108: 1033-1044
lógico é muito eficaz, particularmente no que Floet AMW, Scheiner C, Grossman L. Attention
respeita à atenção. O tratamento comportamental deficit/hyperactivity disorder. Pediatr Rev 2010; 31:56-69
tem valor como abordagem inicial ou adjuvante. Gilberg C. Deficits in attention, motor control and perception:
Os fármacos mais utilizados são os estimulantes, a brief review. Arch Dis Child 2003; 88: 904-910
particularmente o metilfenidato, havendo em Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
Portugal disponíveis no mercado formulações de Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
acção prolongada (Concerta®, 10-12 horas, usando Levine M. Attention and Dysfunctions of Attention In Levine
a dose entre 18-72 mg uma vez por dia) e de acção M, Carey WB, Crocker AC (eds) Developmental-Behavioral
intermédia (Ritalina SR®, 3-8 horas, variando a Pediatrics: Philadelphia: Saunders, 1999
dose entre 10 e 40 mg, uma a duas vezes por dia). Mercugliano M. Attention Deficit Hyperactivity Disorder in
A dextroanfetamina é mais raramente usada. Batshaw ML, Perret YM (eds). Children with Disabilities.
Tratando-se de uma doença crónica, o trata- Baltimore: Paul H. Brookes Publishing Co, 1992
mento é prolongado. Os sintomas podem per- Silva RR, Skimming JW, Muniz R.Cardiovascular safety of
sistir até à idade adulta, geralmente com uma stimulant medications for pediatric attention-deficit
atenuação dos comportamentos mais hiperciné- hyperactivity disorder. Clinical Pediatrics 2010; 49: 840 -
ticos, mas mantendo desatenção e impulsividade. 851
De referir que os adolescentes e jovens adultos Spencer TJ. ADHD and comorbidity in Childhood. J Clin
com PHDA não tratados estão em maior risco de Psychiatry 2006: 67 supp. 8: 27-31
instabilidade familiar e laboral, de consumo de Stevens LJ, Kuczek T, Burgess JR, et al. Dietary sensitivities and
drogas de abuso, de delinquência ou de gravidez ADHD symptoms: thirty-five years of research. Clinical
indesejada. Pediatrics (Phila) 2011; 50:279-293
Chama-se a atenção para a possibilidade de
efeitos cardiovasculares adversos dos estimu-
lantes, o que obrigará, em função do contexto
clínico, a exame clínico cardiovascular antece-
dendo tal tratamento.
É possível que o futuro, com os avanços da
genética, nos venha a elucidar melhor sobre os
mecanismos etiopatogénicos da PHDA, e a permi-
tir um diagnóstico mais fácil e um tratamento não
apenas sintomático, mas sim dirigido à causa da
perturbação.

BIBLIOGRAFIA
American Psychiatric Association. Perturbação de Hiperacti-
vidade com Défice de Atenção in DMS-IV-TR. Lisboa:
Climepsi Editores, 2000
PARTE VI
Pedopsiquiatria
172 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

32
compreensão do desenvolvimento infantil como
para a integração dos dados da clínica e da obser-
vação experimental nas políticas de prevenção em
saúde mental infantil.
O conceito de vinculação foi inicialmente
introduzido por Bowlby para caracterizar a
INTRODUÇÃO À CLÍNICA relação afectiva que se estabelece entre a mãe e a
criança; constitui o ponto de partida para o desen-
PEDOPSIQUIÁTRICA volvimento duma teoria que se tornou um instru-
mento valioso na compreensão do desenvolvi-
Maria José Gonçalves mento psicológico e da psicopatologia da criança
e do jovem.
A teoria da vinculação surgiu numa altura em
que havia uma grande preocupação com os efeitos
Âmbito da Pedopsiquiatria da carência materna nas crianças e na sequência
dum relatório feito em 1948 pelo próprio Bowlby,
O campo de intervenção da Pedopsiquiatria é de a pedido da Organização Mundial de Saúde
difícil definição. Em termos gerais, o pedo- (OMS), sobre crianças sem família. Milhares de
psiquiatra interessa-se pelo bem-estar psíquico da crianças e jovens tinham ficado órfãos ou separa-
criança em cada momento, no contexto do seu dos dos familiares após a segunda guerra mundi-
desenvolvimento e no contexto do seu envolvi- al, tendo-se comprovado as graves consequências
mento relacional, quer seja na família, quer seja na psicológicas que resultaram das perdas dos pais e
escola, quer noutras situações decorrentes das cir- das separações prolongadas. Simultaneamente,
cunstâncias de vida, como no hospital ou em insti- nos Estados Unidos multiplicaram-se os estudos
tuições de acolhimento. De uma forma mais sobre os efeitos da institucionalização de crianças
específica, o campo da pedopsiquiatria define-se pequenas, de que Spitz se torna a figura de proa,
pelo estudo do funcionamento mental da criança ao descrever um quadro depressivo nos bebés que
(que ultrapassa largamente o funcionamento cere- eram separados das mães, a que chamou “de-
bral) e pela identificação e tratamento dos fenó- pressão anaclítica do lactente”.
menos psicopatológicos que põem em risco a sua Para o desenvolvimento da sua teoria, Bowlby
saúde mental. Esta define-se pelo desenvolvimen- contou ainda com o contributo dos etólogos com
to das competências afectivas, cognitivas e sociais quem se cruzou e cujos trabalhos e conclusões
que permitirão à criança tornar-se num adulto foram para ele uma fonte de inspiração. A teoria da
saudável, na plenitude das suas capacidades. vinculação agregou, ao longo dos últimos 50 anos,
Tendo pontos comuns com a Pediatria do contribuições de variados campos científicos,
Neurodesenvolvimento e disciplinas não médicas desde a psicanálise até às ciências cognitivas e
(psicologia, ciências psicossociais, pedagogia) que transformou-se, graças à importante investigação
também se interessam pelo bem-estar da criança, a a que deu origem, na mais fecunda forma de co-
dimensão médica é dada pelo uso dos conhecimen- nhecimento sobre o comportamento social e rela-
tos científicos disponíveis que permitem fazer o diag- cional da criança e sobre a transmissão transgera-
nóstico do quadro clínico e programar a intervenção cional dos modelos relacionais e da psicopatologia.
terapêutica, com vista à retomada tanto quanto pos- A vinculação é um fenómeno complexo que se
sível normal do desenvolvimento infantil. refere à ligação que se estabelece entre o dador
principal de cuidados e a criança. É uma relação
A teoria da vinculação. específica que se constrói progressivamente e se
caracteriza por comportamentos activos de apro-
Uma das contribuições mais ricas do ponto de ximação da criança, na procura de conforto, pro-
vista teórico é a teoria da vinculação. Nos dias de tecção e garantia de apoio e segurança. É a exis-
hoje é consensual a sua importância, tanto para a tência desse vínculo que origina as reacções de
CAPÍTULO 32 Introdução à Clínica Pedopsiquiátrica 173

ansiedade e depressão da criança face à separação As perturbações reactivas da vinculação pro-


do prestador de cuidados e possibilita a activi- priamente ditas são já contempladas nas dife-
dade exploratória livre. rentes classificações diagnósticas e os estudos
Os comportamentos de vinculação da criança existentes demonstram tratar-se de quadros clíni-
definem-se como sendo todas as manifestações cos bem individualizados que apresentam pertur-
que tendem a favorecer a proximidade com a figu- bações da socialização e/ou intensa angústia do
ra de vinculação. A figura de vinculação, por estranho, e que se distinguem claramente da
definição, é aquela em relação à qual a criança depressão e do “estresse” traumático. Há também
dirige o seu comportamento de vinculação. A evidência clínica de que, com elevada frequência,
organização dos comportamentos de vinculação, as perturbações “limite” estão relacionadas com
cujo objectivo é manter a proximidade, faz-se em histórias de vida em que as relações de vinculação
função de determinados contextos específicos de são extremamente precárias.
vida da criança e em torno duma figura particular.
Os comportamentos básicos, inatos, descritos ini- Avaliação diagnóstica
cialmente por Bowlby, nos quais se funda a liga-
ção da criança à mãe, são o olhar, o sorrir, o chorar, Em Pedopsiquiatria, a abordagem diagnóstica é
o agarrar e o chupar. Também a mãe desenvolve longa e complexa. Consiste na entrevista com os
em relação à criança uma relação afectiva de pais (anamnese), no exame objectivo, na obser-
grande intensidade a que se chama “bonding”. O vação da relação pais/criança, e na observação da
sistema de vinculação tem um carácter estável e criança em contexto livre e semi-estruturado.
permanente tornando-se operativo entre os 9 e os Deve ter em linha de conta a perspectiva evoluti-
12 meses de idade da criança. va e multifactorial da patologia, pelo que agrega à
A teoria da vinculação tem uma vasta apli- informação clínica, a informação escolar e social.
cação clínica, nomeadamente nos casos de carên- Os elementos colhidos, que deverão permitir a
cia afectiva, de multiplicação dos dadores de formulação dum diagnóstico e a elaboração dum
cuidados e ainda nos casos das separações e dos projecto terapêutico, têm de ser avaliados em
lutos precoces; efectivamente, começou a haver função de certos parâmetros que passamos a
uma maior atenção e preocupação dos profissio- descrever:
nais em detectar estas situações e levar a cabo
medidas terapêuticas e preventivas. Um exemplo 1. Sinais e sintomas: devem ser valorizados
foi a introdução da melhoria nas condições de caso a caso. Os mesmos sintomas podem ter sig-
acompanhamento das crianças nos hospitais e nificados patológicos diferentes consoante:
noutras instituições de acolhimento de menores. a) o nível do desenvolvimento – é necessário
O conceito de vinculação foi posto em prática ter em mente as fases de desenvolvimento infantil
graças à classificação dos seus vários tipos, a partir e as tarefas do desenvolvimento próprias de cada
das diferentes reacções da criança face à separação e fase para se poder avaliar até que ponto os sin-
à presença do estranho, feita por M. Ainsworth, dis- tomas interferem com essas tarefas e/ou impe-
cípula de Bowlby. Desde então a investigação nesta dem a passagem à fase seguinte. Várias vertentes
área tem tido um grande desenvolvimento e os do desenvolvimento devem ser avaliadas,
estudos longitudinais realizados com base nas nomeadamente a psicomotora, cognitiva, afectiva,
diferentes categorias do comportamento de vincu- socialização, grau de autonomia, jogo, etc..
lação (segura, insegura/evitante, insegura/ansiosa, b) a estrutura do sintoma – os sintomas devem
desorganizada) têm demonstrado existir uma corre- ser avaliados de acordo com a sua intensidade,
lação significativa entre o desenvolvimento da resi- factores desencadeantes, modo de início, duração,
liência e a vinculação segura. associação de sintomas de várias áreas de fun-
Por outro lado, são as crianças maltratadas e cionamento e grau de limitação da actividade.
carenciadas que mais evidenciam vinculações de
tipo desorganizado e que desenvolvem mais tarde 2. Antecedentes familiares: há que ter em
perturbações de comportamento. linha de conta os acontecimentos de vida, espe-
174 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

cialmente os relacionados com rupturas ou trau- mento valioso no estabelecimento do diagnóstico.


mas: separações precoces, doenças incapacitantes Exige treino na capacidade de auto-observação,
dos pais, lutos, violência, abusos. mas o seu reconhecimento contribui para a evitar
A integração social da família e a sua capaci- erros grosseiros que podem enviesar o processo
dade para utilizar os recursos da comunidade são de avaliação. É relativamente frequente, por
igualmente factores a considerar. exemplo, a tendência a fazer “alianças” imediatas
quer com os pais, quer com a criança, ou a trans-
3. Observação das relações pais-criança: abran- portar para a observação elementos transmitidos
ge os aspectos comportamentais, verbais e afectivos. por terceiros, sem tomar as distâncias necessárias.
Destes destacamos: Nos capítulos seguintes são abordados os qua-
a) as expectativas e as percepções subjectivas dros clínicos mais frequentes em Clínica Pedopsi-
dos pais em relação à criança bem como as quiátrica.
reacções das crianças;
b) a qualidade afectiva das interacções (desli- BIBLIOGRAFIA
gada, ansiosa, hostil, preocupada, etc.); A bibliografia (geral) referente à Parte VI pode ser consultada
c) a capacidade de os pais transmitirem pa- no final do Capítulo 36.
drões estruturantes de funcionamento, tais como:
distinção clara dos diferentes papéis desempe-
nhados pelos seus membros; respeito pela dife-
rença entre gerações; consciência das necessidades
básicas da criança em termos de segurança afecti-
va e dos limites, bem como da sua diferente per-
cepção do mundo e do tempo.

4. Observação da criança: nem sempre a


criança observada corresponde à criança descrita
pelos pais, pelo que, tanto quanto possível, e com
as limitações impostas pela faixa etária, a criança
deve ser observada sozinha.
Na observação da criança devem ser valoriza-
dos os seguintes elementos, de acordo com a
idade: a qualidade da relação estabelecida com o
observador, a motricidade e postura, o discurso,
em termos formais e de conteúdo, o humor, a
capacidade de brincar e nível do jogo (imitação,
funcional, simbólico), o nível do desenho do
ponto de vista gráfico e da capacidade de repre-
sentação simbólica, a estrutura do pensamento,
bem como o grau, tipo de ansiedade (separação
dos pais, situação estranha, etc.) e estratégias de
superação.

5. Subjectividade: um dos aspectos da ava-


liação clínica que o pedopsiquiatra não pode des-
curar é o seu carácter relacional. Existe sempre
subjacente um factor de subjectividade a equa-
cionar. A relação que se estabelece com os pais e
com a criança tem um impacte afectivo no obser-
vador, maior ou menor, o qual constitui um ele-
CAPÍTULO 33 Perturbações da ansiedade 175

33
Convém salientar que, sendo a ansiedade con-
siderada uma reacção normal e adaptativa às situa-
ções de estresse, as manifestações acima citadas
podem aparecer de forma transitória, com uma
intensidade moderada, relacionadas com aconteci-
mentos de vida da criança (ida para a escola, nasci-
PERTURBAÇÕES mento dum irmão, doença, separação, etc.), sendo
então consideradas como reacções de adaptação.
DA ANSIEDADE De salientar que ansiedade nem sempre é evi-
dente, isto é, nem sempre aparece sob a forma de
Maria José Gonçalves e Margarida Marques sintomas. Estes aparecem em consequência da uti-
lização pela criança de mecanismos inconscientes
cuja função é reduzir a angústia resultante dos
conflitos psíquicos. Estes sintomas podem ser con-
Definição siderados equivalentes da angústia.
Consoante o tipo de angústia e os mecanismos
A ansiedade corresponde a um vivência penosa e de defesa usados pela criança podemos classificá-los
inquietante, ligada a um sentimento de perigo imi- em sintomas de tipo: fóbico, designados por fobias,
nente e indeterminado que provoca medo e inse- obsessivo-compulsivo, histérico e de inibição.
gurança. É muitas vezes acompanhada de reacções
somáticas, tais como taquicardia, constrição respi- Sintomas fóbicos
ratória e cardíaca, palidez, diarreia, relaxamento As fobias são medos injustificados desencadeados
ou contracção muscular, etc., classicamente defi- por uma situação, objecto ou pessoa e que não
nidas como angústia. Muitas vezes usam-se os ter- representam um perigo real. A angústia desen-
mos angústia ou ansiedade indiferentemente. cadeada na presença da situação geradora de
A ansiedade é um estado afectivo considerado fobia é acompanhada de estratégias defensivas,
como um componente normal do desenvolvimen- nomeadamente os comportamentos de evitamen-
to psicológico; só adquire significado patológico to ou fuga e a utilização de manobras de tranquili-
quando, pela sua intensidade, duração e carácter zação (mecanismos contra-fóbicos), como o uso de
invasivo, determina alterações significativas na pessoas (a mãe, por ex.) ou de um objecto, para
vida da criança, interferindo em diferentes áreas enfrentar a situação sentida como perigosa.
de funcionamento (sono, socialização, aprendiza- Alguns medos aparecem durante o desenvol-
gem, etc.) e/ou impede o seu desenvolvimento. vimento normal da criança e têm uma função es-
truturante do sistema psíquico. São eles:
Manifestações clínicas • medo (ou angústia do estranho) que aparece
por volta dos 6 meses;
A ansiedade e/ou a angústia pode aparecer de • medo da separação (ou angústia de sepa-
uma forma difusa, mas raramente é referida pela ração), a partir dos 18 meses;
criança. Manifesta-se frequentemente através de: • medo do escuro, a partir dos 2 anos;
• medos (do escuro, da separação e abandono, • medo dos animais entre os 3 e os 6 anos.
de estar sozinho, medo das doenças, da Existem medos que variam ao longo do tempo,
morte dos pais); sendo a plasticidade, um sinal do seu carácter
• sintomas somáticos (cefaleias, dores abdomi- benigno.
nais, vómitos, queixas inespecíficas); As fobias são patológicas quando, isoladas ou
• perturbações do sono (oposição ao deitar, associadas a outros sintomas, pela sua intensi-
dificuldade em adormecer, insónia, acordar dade, persistência e complexidade dos mecanis-
ansioso, terrores nocturnos e pesadelos); mos contra-fóbicos, limitam a actividade da crian-
• perturbações do comportamento (instabili- ça, invadem a sua vivência psíquica, e comprome-
dade psicomotora, agitação ou inibição). tem o seu desenvolvimento.
176 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

As fobias aparecem em geral associadas a tem em comportamentos efectuados de forma


quadros de neurose infantil e necessitam de acom- repetitiva e com carácter imperativo, sempre nas
panhamento psicoterapêutico. mesmas circunstâncias, como por exemplo os ri-
As fobias atípicas são sintomas de tipo fóbico tuais de higiene, para comer, para se vestir, etc..
com características bizarras que estão inseridas Estes rituais, por vezes, invadem toda a vida da
em quadros de psicoses infantis ou quadros de criança, que passa grande parte do seu tempo a
tipo autista. realizá-los, entrando num estado de grande
Um dos quadros clínicos mais complexo é a ansiedade, por vezes catastrófica se for impedida
fobia escolar. Caracteriza-se por um comporta- de os realizar.
mento de recusa de ir à escola, acompanhado de As compulsões são comportamentos ou actos
intensas manifestações de angústia (choro, suores, mentais repetitivos submetidos igualmente a
opressão cardíaca) e manifestações somáticas regras inflexíveis que não podem ser alteradas.
(cefaleias, vómitos, diarreias), podendo chegar às Algumas compulsões mais frequentes são as de
manifestações de pânico. Todos estes sintomas verificação, de tocar, de repetição de gestos.
desaparecem quando cessa a obrigatoriedade de ir Certos comportamentos de tipo obsessivo são
à escola, dando lugar a um estado de tranquili- frequentes e normais em certas fases do desen-
dade normal. Podem existir sintomas associados, volvimento:
nomeadamente da linha fóbico-obsessiva ou • rituais de adormecimento, a partir do 1º ano
depressiva. Este quadro aparece em crianças em de vida
idade escolar, que já tinham frequentado anterior- • rituais de higiene e de verificação, entre os 6
mente a escola sem problemas, com bom rendi- e os 10 anos
mento escolar, mas dificuldade em aceitar maus • coleccionismo na idade escolar
resultados. Estas crianças apresentam um grau de É mais uma vez a intensidade, o carácter inva-
dependência materna acentuada e uma fraca sivo dos sintomas, a sua associação entre si ou
autonomia. com outros sintomas e os constrangimentos que
O diagnóstico diferencial faz-se, nos casos das impõem no quotidiano da criança e da família que
crianças mais novas, com os casos de angústia de conferem o carácter patológico, sendo os 11 anos a
separação, que se manifesta desde a entrada para idade média de aparecimento deste quadro clíni-
a escola; e, nas crianças mais velhas, com os casos co.
de faltas à escola por existência de dificuldades
escolares (perturbações da conduta ou dificul- Sintomas de tipo histérico
dades de aprendizagem). São sintomas da esfera corporal sem substrato
A fobia escolar necessita de uma intervenção orgânico que traduzem um conflito psíquico de
pedopsiquiátrica rápida e incisiva, de forma a não que a criança não tem consciência. Neste caso, a
prolongar a situação de absentismo escolar, a evi- ansiedade, que não chega a ser vivida pela crian-
tar a cronicidade da situação e o risco de perda da ça, é convertida num sintoma somático. Os sin-
inserção social. A intervenção terapêutica deve tomas histéricos podem aparecer sob a forma de
incidir na criança e na família, sendo por vezes crise histérica, com queda, corpo em opistótono,
necessário o recurso a fármacos. movimentos desordenados de contracção e exten-
são dos membros, semelhantes às crises epilépti-
Sintomas obsessivo – compulsivos cas. Outros sintomas, localizados e permanentes,
Neste grupo de sintomas incluem-se as obsessões, são as paralisias funcionais, afonias, parestesias,
os rituais e as compulsões que podem aparecer perturbações da visão, etc.. Há ainda as manifes-
isoladamente ou associados. tações ditas somatoformes, tais como as cefaleias,
As obsessões são pensamentos e ideias que se dores abdominais, algias osteoarticulares e outras
impõem de forma recorrente e contra a vontade síndromas dolorosas. Em todas estas situações
da criança. As obsessões mais frequentes são as do este diagnóstico só deve ser feito após exclusão de
medo da contaminação e da doença ou da orde- patologia orgânica. O seu carácter involuntário
nação/arrumação de objectos. Os rituais consis- permite diferenciá-los das simulações, se bem que
CAPÍTULO 33 Perturbações da ansiedade 177

os benefícios secundários possam estar presentes dos sintomas de tipo obsessivo-compulsivo,


em ambas as situações. nas fobias escolares e nas crises de pânico,
Os sintomas histéricos predominam no sexo mas só deverão ser utilizados antes dos 13
feminino, na idade escolar ou na adolescência, e anos de idade, em situações graves e sempre
aparecem isolados ou associados à neurose histéri- com vigilância pedopsiquiátrica.
ca, situação relativamente rara na criança (0,5%). Na família, e concretamente com os pais,
haverá que ter em linha de conta:
Inibição • os modos como os sintomas da criança são
A inibição consiste na manifestação de uma limi- interpretados (maldade, manipulação, defei-
tação, mais ou menos intensa, que pode atingir to, benefício secundário, etc.) e as respectivas
vários sectores da vida da criança, nomeadamente reacções parentais;
a área motora, os comportamentos sociais, a lin- • as interacções patológicas pais - crianças que
guagem, a aprendizagem e o pensamento. Pode perpetuam os sintomas;
manifestar-se em geral crianças ou adolescentes • as repercussões dos sintomas na dinâmica
com boas capacidades intelectuais e boas poten- familiar.
cialidades cognitivas. Os comportamentos de Cada um destes aspectos deverá ser abordado
inibição correspondem a mecanismos reguladores em entrevistas com os pais, juntos ou separados,
da ansiedade; e podem ter uma função adaptati- sob a forma de aconselhamento, orientação, ou
va, aparecendo de forma circunscrita a certas mesmo consultas de acompanhamento psicotera-
situações (por ex. na adaptação a novos ambi- pêutico regular.
entes). A inibição, como sintoma, tem múltiplas
configurações clínicas e pode prejudicar grave-
mente a aprendizagem escolar e as competências
sociais da criança.

Intervenção terapêutica

A intervenção terapêutica nas situações de


ansiedade deve incidir na criança e na família,
sendo dada maior ou menor ênfase a cada uma
destas vertentes consoante os casos.
Na criança recomenda-se:
• a intervenção psicoterapêutica: que favorece
a compreensão do sintoma, como uma mani-
festação inconsciente dos seus conflitos rela-
cionais e necessidade de regulação da sua
auto-estima. Esta intervenção pode ter uma
frequência variável, mas deve ser regular e
prolongada. Permite uma resolução do sin-
toma mais definitiva e um salto maturativo
no desenvolvimento afectivo da criança;
• a terapêutica farmacológica que pode ser
usada nos casos em que, pela sua intensi-
dade, rigidez e fixação, os sintomas afectam
gravemente a vida da criança e da família.
São usados neurolépticos, em doses sedati-
vas, ou pontualmente benzodiazepinas na
redução dos níveis de ansiedade. Os antide-
pressivos revelam alguma eficácia nos casos
178 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

34
• diminuição e falta de prazer na actividade
lúdica: incapacidade de brincar ou brin-
cadeiras pobres, do ponto de vista do con-
teúdo, e repetitivas;
• ideias de incapacidade, de desvalorização ou
de culpa, de falta de segurança nas relações,
DEPRESSÃO nomeadamente com os colegas ou com os
pais e família;
Maria José Gonçalves e Margarida Marques • diminuição da atenção, da capacidade de
memorização e do interesse intelectual, com
consequentes dificuldades escolares;
• alterações do comportamento, marcadas por
Definição irritabilidade, instabilidade, agitação psico-
motora e crises de agressividade. Estes sin-
A depressão é uma perturbação do humor mantida tomas, quando estão presentes pelo seu carác-
que se caracteriza por um estado de tristeza, mais ou ter exuberante, dominam o quadro clínico.
menos manifesto, desinteresse, lentidão psicomoto- Outros sintomas, associados ou isolados, que
ra, acompanhada de ideias de incapacidade ou culpa podem mascarar o quadro depressivo, são: insó-
e ainda perturbações do sono e/ou alimentares. nias, anorexia, enurese, encoprese, os síndromas
dolorosas.
Manifestações clínicas e intervenção A intensidade, duração e associação destes sin-
terapêutica tomas, não só pelo sofrimento que trazem à crian-
ça, mas também pelas suas repercussões na vida
São descritos os seguintes quadros e a respectiva diária, nas relações familiares e nas dificuldades
intervenção terapêutica: escolares, criam uma dinâmica de fracassos e mal-
estar e determinam o carácter patológico das mani-
1. Perturbações depressivas na infância festações e a necessidade da intervenção pedo-
A depressão na criança é um quadro clínico relati- psiquiátrica.
vamente frequente que atinge 2 a 3% da popu- As manifestações depressivas podem aparecer
lação infantil e tem gerado muita discussão, pela associadas a várias circunstâncias:
dificuldade em estabelecer o seu diagnóstico; de • saltos maturativos do desenvolvimento que
referir que não devem ser aplicados os mesmos implicam novos e mais complexos modos de
critérios das classificações dos adultos. Na popu- funcionamento mental. Trata-se de crises em
lação infantil atendida nas consultas de saúde que os sintomas depressivos, como choro
mental a frequência chega a atingir 20%. fácil, a irritabilidade, as alterações do sono, a
O polimorfismo dos seus sintomas, muito fre- instabilidade, são transitórios e não pro-
quentemente na linha da inibição, e também a duzem alterações significativas na vida da
dificuldade da criança em tomar consciência das criança. Em geral, quando necessárias, as
suas vivências de tristeza, obriga o clínico a ter intervenções são pontuais;
uma atitude activa na exploração diagnóstica. • acontecimentos de vida que funcionam
O quadro clínico apresenta um elenco variado como factor desencadeante. Os mais fre-
de sintomas, tais como: quentes implicam separações ou perdas de
• tristeza, raramente expressa como tal, mas pessoas significativas. São consideradas
manifesta pela ausência de interesse e entu- reacções depressivas, devendo ser pondera-
siasmo, raras manifestações de prazer, isola- da uma intervenção especializada e avaliado
mento, passividade. Este grupo de sintomas o prognóstico a curto e médio prazo;
ditos “negativos” é muitas vezes pouco nota- • interacções pais/crianças patológicas que se
do, atrasando o reconhecimento da existên- mantêm ao longo do tempo ou depressão pa-
cia do problema; rental crónica.
CAPÍTULO 34 Depressão 179

As tentativas de suicídio são difíceis de objecti- • perda de interesse e prazer nas actividades
var na criança, em parte, devido ao aparecimento habituais, acompanhada de um sentimento
tardio do conceito de morte em termos da sua irre- de tédio;
versibilidade e, em parte, porque muitas das con- • desempenho psicomotor feito com lentidão,
dutas suicidárias são confundidas com acidentes com mímica pobre e discurso monótono, ou
ou condutas perigosas. Entre estes acidentes ou agitação;
comportamentos de risco, verdadeiros “equiva- • fadiga fácil e dificuldades de concentração;
lentes suicidários” estão a ingestão de produtos • insónia ou hipersomnia;
tóxicos domésticos, quedas, feridas, etc.. Ocorrem • sentimentos de desvalorização, vergonha, auto-
frequentemente no contexto duma crise familiar -acusação. As ideias de desvalorização e crítica
ou de violência, mas é difícil admitir a dimensão são, por vezes, atribuídas a terceiros, nomeada-
suicidária do acto; com efeito, tal aceitação traz mente aos companheiros ou aos professores,
uma grande culpabilidade aos pais tornando difí- contribuindo para o isolamento do adolescente.
cil aceitar a ideia do desejo de morte na criança. Estes sintomas agrupam-se em quadros sin-
Antes de se elaborar um projecto terapêutico, dromáticos diferentes, segundo a forma clínica,
deve ser feita uma avaliação diagnóstica aprofun- duração, intensidade e existência, ou não, de fac-
dada do grau de sofrimento da criança, da intensi- tores desencadeantes.
dade dos sintomas e do seu impacte no funciona- Assim, consideram-se:
mento mental e desenvolvimento afectivo, bem
como dos factores desencadeantes. Em relação à cri- Depressão major, em que os sintomas devem
ança, a intervenção directa deve contemplar o apoio estar presentes pelo menos 2 semanas e em quase
psicoterapêutico ajudando a melhorar a auto-esti- toda a sua gama, com um elevado grau de inten-
ma, a lidar com a adversidade e a elaborar os con- sidade.
flitos. O uso de antidepressivos não é recomendá- Perturbação distímica, clinicamente seme-
vel, embora nalguns casos de maior gravidade pos- lhante à depressão major, em que os sintomas são
sam ser usados com precaução e vigilância. menos intensos, mas devem estar presentes no
Em relação aos pais deve ser feito um trabalho mínimo de 2 anos. Aparece com carácter insidioso
de consciencialização das necessidades de segu- e, pela sua cronicidade, provoca uma maior limi-
rança afectiva da criança, de maior tolerância para tação escolar e social do jovem.
com os seus insucessos e de flexibilização dos Depressão reactiva, relacionada com factores
comportamentos interactivos. desencadeantes, tais como acontecimentos de
vida adversos (lutos, doenças na família, etc.).
2. Perturbações depressivas no adolescente Depressão associada a outros quadros clíni-
No quadro do desenvolvimento normal do adoles- cos: comportamentos aditivos, perturbações do
cente surgem frequentemente episódios breves de comportamento alimentar ou perturbações de
perturbação do humor que se confundem com per- personalidade, nomeadamente as perturbações
turbações depressivas recorrentes de curta duração. “limite”, como um diagnóstico de comorbilidade.
A prevalência da depressão no adolescente
situa-se, segundo os diferentes estudos, entre os 3 O diagnóstico diferencial da depressão no ado-
e os 7%, com predomínio do sexo feminino. As lescente é difícil e só no enquadramento de uma
manifestações clínicas da depressão no adoles- intervenção psicoterapêutica regular se pode fazer
cente aproximam-se das do adulto e caracterizam- um diagnóstico mais preciso e avaliar os riscos.
-se por tendência para a recidiva. Cerca de 30% a Por outro lado, é também no âmbito da nova
50% dos casos diagnosticados recidivam num relação que se cria na psicoterapia que o adoles-
período de 4 anos. cente consegue exprimir o seu sofrimento e os
O quadro clínico caracteriza-se por: seus conflitos.
• humor depressivo, irritabilidade e tendên- As intervenções familiares podem ser úteis,
cia, maior que nos adultos, para a reactivi- sendo por vezes de aconselhar as intervenções de
dade e a instabilidade do humor; inspiração sistémica.
180 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

A terapêutica farmacológica está indicada nas As tentativas de suicídio ocorrem na maioria


situações em que as manifestações depressivas dos casos no decurso de uma depressão diagnos-
apresentam maior intensidade; a mesma deve ser ticada (cerca de 80%). Em muitos casos, a
sempre acompanhada dum apoio psicoterapêuti- depressão surge associada a perturbações do com-
co individual e deve ser prescrita no quadro de portamento alimentar, dependência de drogas ou
um acordo entre o médico, o adolescente e os pais. de uma perturbação da personalidade, pelo que o
Usam-se medicamentos antidepressivos, tendo plano de cuidados deverá ter em conta as pertur-
sempre presente que a respectiva potencialidade bações subjacentes.
de activação pode desencadear uma tentativa de Não é raro que a tentativa de suicídio seja o
suicídio até aí não concretizada. acontecimento inaugural do quadro depressivo;
Os neurolépticos são por vezes usados com o contudo, mesmo nestes casos, existem quase sem-
objectivo de diminuir a impulsividade e de estabi- pre sinais preocupantes que antecedem o acto sui-
lizar o humor. cidário. Assim, embora as ideias suicidárias sejam
As benzodiazepinas são de uso limitado pela bastante frequentes na adolescência, a sua verba-
dependência que podem criar e pela ausência de lização não deve ser banalizada e deve alertar os
efeitos a médio prazo. familiares, professores e amigos próximos do
jovem para a existência de risco, sobretudo se
3. Perturbação bipolar acompanhadas de isolamento, evitando a família
Nos adolescentes cerca de 20% dos quadros depres- e os amigos, períodos de ausência ou fugas,
sivos entram na categoria diagnóstica da pertur- queixas somáticas várias e inespecíficas (cefaleias,
bação bipolar. Esta patologia caracteriza-se pelo astenia, falta de apetite, etc.).Há também que sub-
facto de as alterações depressivas do humor linhar que existe uma elevada taxa de recidiva
alternarem com períodos de humor expansivo, (cerca de 20%,), o que mostra a importância de
exaltado, chamados episódios maníacos. Estes valorizar do ponto de vista clínico estas manifes-
episódios são acompanhados frequentemente de tações, fazendo a sua avaliação diagnóstica e
irritabilidade, logorreia, ideias de grandeza, fuga de prognóstica.
ideias, redução da necessidade de sono, desinibição A ideação e a tentativa de suicídio constituem
social e sexual. Nos episódios maníacos francos, as um apelo do adolescente e reflectem uma situação
alterações observadas sugerem uma perda de con- de impasse psíquico, que nem sempre está associa-
tacto com a realidade, enquanto noutros casos, do a factores de risco externos familiares. Ladame
chamados hipomaníacos, as ideias delirantes não considera potencialmente traumáticos do ponto de
estão presentes e o disfuncionamento psíquico não vista do impacte suicidário, dois tipos de aconte-
é tão grave. As perturbações bipolares apresentam cimentos: o suicídio de uma pessoa da família ou
uma forte incidência familiar e pertencem ao grupo de amigos, e as situações de abuso ou de incesto.
das psicoses. Têm uma evolução crónica havendo, Perante uma tentativa de suicídio, a boa práti-
por vezes, necessidade de internamento hospitalar. ca recomenda o internamento hospitalar cuja
Actualmente estão descritos casos de pertur- duração pode ir de uma a várias semanas por
bações bipolares em crianças de idade escolar. forma a potenciar os efeitos terapêuticos de uma
O tratamento das perturbações bipolares com- intervenção em crise junto do adolescente e da
bina o tratamento das perturbações depressivas família, e permitir uma avaliação aprofundada
com o carbonato de lítio e outros estabilizadores diagnóstica e prognóstica.
do humor.

4. Ideias e comportamentos suicidários no


adolescente
O suicídio representa a segunda causa de morte
na adolescência, sendo mais frequente no rapaz
do que na rapariga, embora nestas sejam mais fre-
quentes as tentativas de tal acto.
CAPÍTULO 35 Psicoses 181

35
• anomalias do comportamento motor (este-
reotipias, gestos anómalos, alterações da
tonicidade);
• perfil psicológico desarmónico, com um fun-
cionamento intelectual particularmente desen-
volvido em certas áreas, embora num fundo de
PSICOSES atraso do desenvolvimento cognitivo.
A psicose na criança pode ter um início pre-
Maria José Gonçalves e Margarida Marques coce, antes dos 4 anos, sendo o quadro clínico
dominado por comportamentos de retirada e de
isolamento social com perda de aquisições já
adquiridas, como a linguagem, o jogo, etc..
Definição Nos casos de início mais tardio, na idade esco-
lar, são mais evidentes as perturbações do pensa-
O conceito de psicose diz respeito a afecção men- mento e do discurso que se torna por vezes incoe-
tal associada a desintegração geralmente profun- rente, impregnado de elementos de irrealidade e
da da personalidade, com perturbação da per- fantasia, muitas vezes de cariz persecutório. Estas
cepção, do julgamento, do raciocínio e do com- crianças apresentam crises de ansiedade catastró-
portamento (dos quais a pessoa não tem consciên- fica e grandes dificuldades na adaptação e rendi-
cia). mento escolar, embora possam manter as poten-
O grupo das psicoses abrange uma grande cialidades intelectuais normais.
diversidade de quadros clínicos, difícil de delimi- Actualmente o conceito de psicose desapare-
tar, cujo traço comum é a sua gravidade. De ceu das classificações diagnósticas internacionais,
salientar um predomínio das perturbações do com excepção da classificação francesa, sendo
pensamento e da emergência de angústias profun- substituído por uma nova entidade nosográfica: a
das e intensas que interferem com o funcionamen- perturbação pervasiva do desenvolvimento,
to psíquico normal da criança. deixando para segundo plano a perturbação da
ansiedade e o conflito psíquico, o que em nosso
Manifestações clínicas e intervenção entender não corresponde à realidade clínica
terapêutica desta perturbação.
Considerando os diversos quadros de psicose
São descritos os seguintes quadros e a respectiva infantil de início precoce, e em que esta polémica
intervenção terapêutica: tem sido mais viva, destaca-se pela sua gravidade a
chamada perturbação do espectro do autismo, cuja
1. Psicoses da criança a importância e prevalência foram referidas no
As perturbações psicóticas da criança são muito Capítulo 30.
diferentes das do adulto. Foi em 1961 que Creek, O quadro clínico caracteriza-se sucintamente
na Inglaterra, definiu os critérios mais específicos por alterações em 3 domínios principais do fun-
para o seu diagnóstico na infância. São eles: cionamento da criança:
• alteração duradoura das relações interpes- • as interacções sociais (isolamento, retirada
soais; do contacto, olhar periférico, ausência de
• dificuldades em reconhecer a identidade reciprocidade afectiva);
própria; • a comunicação e atraso ou ausência da lin-
• fixação exagerada em objectos particulares guagem verbal ou uso anormal da linguagem
sem relação com o seu uso habitual; (estereotipias, neologismos, agramatismo, etc.);
• resistência às mudanças de ambiente; • actividades repetitivas, estereotipadas, resis-
• crises de ansiedade intensa, frequentes, de tência extrema à mudança de ambiente, uso
início abrupto e sem motivo aparente; inapropriado de objectos, maneirismos e
• atraso ou outras perturbações da linguagem; estereotipias motoras.
182 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

O prognóstico é reservado. Um quociente inte- do multifactorialmente. Estão reconhecidamente


lectual abaixo da média, a associação a doenças implicados factores biológicos [genéticos
orgânicas e a ausência do aparecimento de lingua- (microdeleções), biquímicos], psicossociais e rela-
gem antes dos 5 anos são considerados factores de cionais, cujo peso relativo é difícil de atribuir. Em
mau prognóstico estudos imagiológicos do SNC com RMN foram
De uma maneira geral, a evolução da maioria identificadas alterações, tais como maior volume do
dos casos de psicoses diagnosticados na infância é ventrículo lateral e dos gânglios basais, possivel-
crónica, mantendo-se o diagnóstico de psicose em mente relacionadas com medicação a longo prazo.
mais de 50% dos casos na adolescência e na idade A referida psicose (esquizofrenia) caracteriza-
adulta. Destes, um número reduzido de casos tem se por um vasto leque de sintomas relacionados
uma evolução demencial grave. com o pensamento, emoções e comportamentos
Em cerca de 20% dos casos há evolução para que se agrupam, classicamente, em dois tipos:
perturbações da personalidade de tipo esquizóide positivos e negativos.
e só em cerca de 10% se pode considerar uma Entre os sintomas positivos encontram-se as
evolução para a normalidade. alucinações que são alterações da percepção. As
A gravidade do quadro clínico obriga a uma mais frequentes e características da esquizofrenia
intervenção intensiva com a criança e com a são as alucinações auditivas, habitualmente sob a
família. forma de vozes. Por vezes associam-se aluci-
Com a criança impõe-se uma intervenção mul- nações tácteis olfactivas ou visuais. A existência de
ticêntrica, intensiva, que inclui vários tipos de alucinações visuais isoladas é extremamente rara
apoio consoante as áreas afectadas: psicoterapia, e deve levar a considerar outra hipótese de diag-
psicomotricidade, terapia da fala, apoio educati- nóstico, nomeadamente uma perturbação histeri-
vo. Nalguns casos é necessário o recurso ao hospi- forme.
tal de dia. Os delírios constituem alterações do pensa-
Pode ser necessário utilizar fármacos neu- mento determinando convicções que não são, em
rolépticos nas crianças mais velhas e quando a princípio, postas em causa através dos dados da
desorganização do pensamento e a ansiedade são realidade. Podem apresentar uma temática perse-
mais graves. cutória, religiosa, grandiosa ou sexual.
Com a família, o apoio e aconselhamento são As alterações formais do pensamento incluem
indispensáveis para ajudar os pais a lidar com a a perda da coerência associativa, bloqueios do
própria ansiedade causada pelo comportamento pensamento (traduzidos frequentemente por uma
da criança e para melhorar as interacções entre paragem súbita do discurso) e pensamento hiper
pais e filhos. inclusivo.
Podem surgir também sintomas de tipo obses-
2. Psicoses da adolescência sivo-compulsivo, com um cariz bizarro e ausência
A esquizofrenia é a forma de psicose mais frequente e de angústia, o que os diferencia do tipo que surge
mais grave com início na adolescência; é provavel- no contexto de perturbações da ansiedade.
mente a doença psicológica mais grave e incapac- Os sintomas negativos incluem um empobreci-
itante, com consequências dramáticas para o mento dos afectos e da sua expressão (fácies inex-
próprio e para a família. pressiva, mímica facial pobre, restrição do contac-
Atinge cerca de 1% da população, tendo um to visual e da motricidade geral), pobreza verbal,
curso habitualmente crónico, com períodos de com aumento do tempo de latência das respostas
remissão mais ou menos prolongados, mas rara- e desadequação geral nos contactos sociais.
mente isentos de sintomas. Na ausência de trata- Surgem ainda alterações acentuadas na atenção e
mento conduz a uma deterioração intelectual; daí anedonia (incapacidade para sentir prazer).
a sua denominação inicial de Demência Precoce, O modo de início da esquizofrenia pode ser
(Morel, 1860). O termo esquizofrenia só foi utiliza- insidioso, numa personalidade já com alguns
do a partir de 1911 por Bleuler. traços de sintomas negativos, ou agudo, com um
O processo esquizofrénico parece ser determina- quadro inaugural de delírios e alucinações.
CAPÍTULO 36 Perturbações do comportamento 183

36
Em função do tipo de sintomas predominantes
são considerados os seguintes subtipos:
a) Esquizofrenia paranóide, no qual predomi-
nam os sintomas positivos e habitualmente um
delírio de temática paranóide.
b) Esquizofrenia catatónica, em que o quadro
clínico é dominado por sintomas negativos psico- PERTURBAÇÕES
motores: períodos de imobilidade que pode ser
quase absoluta ou alternar com períodos de agi- DO COMPORTAMENTO
tação motora e intenso negativismo.
Podem ainda aparecer quadros mistos, formas Maria José Gonçalves e Margarida Marques
predominantemente deficitárias (esquizofrenia
hebefrénica), ou quadros que cursam com altera-
ções do humor (depressão ou mania).
Pela sua gravidade e implicações terapêuticas, Definição e importância do problema
o diagnóstico de esquizofrenia é um diagnóstico
de exclusão: para poder ser efectuado, o curso da As perturbações do comportamento constituem
doença deve ter uma duração superior a seis 30% dos pedidos de consulta psiquiátrica na
meses. criança e no adolescente; correspondem a um
O diagnóstico diferencial deve ser feito com as leque variado de situações em que os conflitos
perturbações do humor, perturbações da persona- psíquicos se exprimem através do modo de agir,
lidade, perturbações ligadas ao consumo de estu- dependendo a sua expressão, em grande parte, da
pefacientes e algumas doenças orgânicas (epilep- reacção do meio familiar ou escolar.
sia temporal, tumores cerebrais, doenças en- As perturbações do comportamento vão desde
dócrinas ou autoimunes). simples irrequietude passageira e condutas de
A evolução faz-se em cerca de 30% dos casos oposição ligadas às etapas do desenvolvimento,
para formas crónicas com incapacidade acentuada até às alterações de cariz patológico como as
que implica hospitalização. Em cerca de 50% dos fugas, furtos e violência.
casos o curso da doença permite algum grau de
reintegração social e até mesmo profissional. Manifestações clínicas
A intervenção terapêutica baseia-se na utiliza- e intervenção terapêutica
ção de fármacos antipsicóticos em monoterapia ou
em associação. A medicação deve manter-se fora São descritos sucintamente os seguintes quadros e
dos episódios agudos, numa dose de manutenção a respectiva intervenção terapêutica:
que permita evitar recaídas, dado que cada novo
surto psicótico deixa um défice no funcionamento 1. Hiperactividade
global. O internamento psiquiátrico é habitual- Uma das queixas mais frequentes é a hiperactivi-
mente necessário nos períodos críticos. A inter- dade, que, em 80% dos casos se caracteriza por
venção psicossocial é fundamental para promover uma instabilidade psicomotora; aparece como
a reintegração destes adolescentes na família e na uma manifestação sintomática das perturbações
escola, por vezes após internamentos prolonga- depressivas, de ansiedade ou ainda dos comporta-
dos. O treino de competências sociais é um traba- mentos de oposição. As atitudes de exigência
lho fundamental a desenvolver com este tipo de excessiva e de censura frequente por parte dos pais
doentes. ou, pelo contrário, a excessiva permissividade
A família deve ser sempre integrada no projec- reforçam estes comportamentos por acentuarem o
to terapêutico de modo a ser capaz de lidar em clima de conflitualidade, a insegurança da criança
sintonia com as características especiais que esta e diminuirem a sua auto-estima (Capítulo 31).
patologia determina. A hiperactividade associa-se frequentemente
às perturbações da atenção, sendo hoje em dia
184 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

uma das patologias mais frequentemente diagnos- farmacológica deve ser simultânea com outro tipo
ticadas na infância. Atinge 5 a 10% das crianças de abordagens individuais e familiares. A terapia
em idade escolar e 4 vezes mais em rapazes do relacional com a criança deve ajudá-la a ser capaz
que em raparigas. Pode aparecer associada a de pensar e expressar melhor as suas vivências e
vários tipos de patologia, como as psicoses infan- dificuldades, por forma a que a melhoria dos sin-
tis, as depressões ou as debilidades. Impõe-se tomas possa persistir e consolidar-se. O trabalho
fazer o diagnóstico da perturbação subjacente, com as famílias deve ter como objectivo ajudá-las
antes de estabelecer uma indicação terapêutica. a compreender a criança, os seus ritmos, não lhes
exigindo tarefas que ultrapassem aquilo de que a
2. Perturbação de hiperactividade e défice criança é capaz, permitindo que se crie um ciclo
de atenção (PHDA) em que predominem as experiências positivas,
Em 20% dos casos de hiperactividade verifica-se a visando melhorar a auto – estima.
existência de uma tríada sintomática constituída
para além daquela por alterações da atenção e 3. Perturbações do comportamento alimentar
impulsividade não associadas a qualquer outra As perturbações do comportamento alimentar
patologia psiquiátrica; tais manifestações são surgem em qualquer período da vida da criança e
responsáveis por grave desadaptação escolar e do jovem, sendo as mais frequentes e as mais sig-
social. Nos Estados Unidos este diagnóstico tem nificativas do ponto de vista da psicopatologia, as
vindo a banalizar-se e os respectivos critérios pro- que surgem na primeira infância e na adolescên-
gressivamente alargados e redefinidos. Na Europa cia.
e também em Portugal, os pedopsiquiatras con- Na primeira infância, pela imaturidade psi-
sideram esta entidade como um quadro clínico cológica, o corpo é um lugar privilegiado da
bem individualizado. Nestes casos tem-se verifi- expressão do sofrimento mental; na adolescência
cado que existe um forte componente hereditário, o corpo, com um papel fundamental na cons-
com vulnerabilidade genética. Nestas crianças trução da identidade sexual, é objecto de um forte
comprovou-se também alterações no sistema investimento por parte do jovem. São abordados,
dopaminérgico as quais não são, no entanto, nem pela sua gravidade e frequência, os seguintes
específicas nem determinantes (Capítulo 31). quadros:
Actualmente a ênfase tem sido dada à pertur-
bação da atenção, como o sinal mais característico Anorexia do lactente: define-se como um com-
desta patologia. Nesta perspectiva, a hiperactivi- portamento de recusa alimentar, sem causa
dade e a impulsividade podem ser entendidas orgânica; trata-se da forma mais frequente de per-
como uma consequência do défice de atenção. turbação do comportamento alimentar nesta
Os critérios diagnósticos de perturbação de idade.
hiperactividade com défice de atenção, segundo o
DSM-IV TR (Manual de Estatística e Diagnóstico Anorexia de oposição: é a forma mais comum e
das Perturbações Mentais) foram abordados em aparece a partir do 2º semestre de vida num con-
pormenor no âmbito da Parte sobre o Desenvolvi- texto de oposição, tornando-se as refeições ver-
mento e Comportamento, o que testemunha a dadeiros campos de batalha. A progressão pon-
afinidade da Pediatria do Desenvolvimento com a deral é baixa, mas constante, e a perda de peso,
Pedopsiquiatria tal como foi dito na Introdução quando se verifica, é motivo para preocupação. O
(Capítulo 32). seu início está ligado à mudança do regime ali-
Nos casos especificamente diagnosticados mentar do bebé e agrava-se durante a fase de
como de hiperactividade com défice de atenção, a aquisição do controle dos esfíncteres. Do ponto de
terapêutica apoia-se na utilização de fármacos vista psíquico, este sintoma associa-se ao processo
estimulantes (metilfenidato), que podem melho- de aquisição de autonomia da criança. Surge em
rar significativamente os sintomas, nomeada- crianças activas, com bom desenvolvimento psico-
mente a atenção e permitir, assim, uma melhoria motor, vivas e alegres. As interacções mãe-criança
franca do aproveitamento escolar. A terapêutica adquirem um carácter de imposição/oposição,
CAPÍTULO 36 Perturbações do comportamento 185

criando-se um círculo vicioso de aumento da geral uma figura apagada e submissa. As relações
ansiedade materna e de ganhos secundários por da jovem com a mãe são conflituosas e marcadas
parte da criança. A evolução é variável e depende por grande dependência, embora mascaradas por
muito da instalação de mecanismos de perpetu- uma pseudo-autonomia precoce.
ação do conflito na relação mãe-filho, não pare- Em muitos casos o início da doença está asso-
cendo haver continuidade entre esta forma de ciado a uma modificação na composição da
anorexia e a anorexia mental da adolescência (ver família (saída dum elemento da família, morte ou
capítulo 22). doença, divórcio), o que ilustra bem o carácter
Existem, no entanto, formas de anorexia de simbiótico do funcionamento familiar.
oposição, com recusas alimentares graves, de iní- Do ponto de vista individual a anorexia traduz
cio súbito e que se inscrevem no quadro de uma uma dificuldade da jovem no que respeita ao
psicopatologia precoce, como as psicoses de tipo processo psicológico que leva à construção da sua
autista, desarmonias evolutivas, ansiedade maciça identidade feminina, da aceitação da sexualidade
e invasiva. e da negociação da sua autonomia psíquica.
A anorexia caracteriza-se por uma restrição
Anorexia passiva ou de inércia: é uma forma voluntária da ingestão dos alimentos ao serviço de
grave de anorexia que se manifesta por uma uma intenção de emagrecer. O emagrecimento
rejeição silenciosa dos alimentos em bebés tristes, pode atingir níveis de caquexia sem demover a
apáticos, com desinteresse pela interacção social e jovem da sua determinação de recusar os alimen-
pelas solicitações do exterior, pouco activos na tos. Existem outros comportamentos associados,
procura de estimulação. Este quadro aparece como uso de laxantes, diuréticos, acessos de
geralmente no contexto de uma privação afectiva, bulimia com indução do vómito (50% dos casos ),
como por exemplo a insuficiência crónica da vin- prática exagerada de exercício físico, etc..
culação ou as descontinuidades e incoerências A amenorreia, habitualmente secundária, pode
nos cuidados e modos de vida da criança, preceder a perda de peso.
nomeadamente nos casos de famílias com riscos Outros elementos clínicos associados são:
múltiplos ou de patologia psiquiátrica materna • desejo de emagrecer e negação da magreza;
grave. • alteração da representação da imagem do
corpo;
Anorexia nervosa do adolescente: atinge 1% da • tendência a restringir as relações sociais;
população total adolescente e caracteriza-se por • hiperinvestimento escolar;
uma tríada sintomática que inclui anorexia, ema- • desinteresse pela sexualidade e pela imagem
grecimento (pelo menos 15% do peso normal) e corporal.
amenorreia. Tem repercussões somáticas graves Do ponto de vista orgânico, verifica-se:
provocadas pela desnutrição e uma taxa de mor- • diminuição do índice de massa corporal
talidade de 7 a 10%. Há um predomínio do sexo (IMC);
feminino (em 10 casos, apenas 1 é do sexo mas- • alterações cardiovasculares (bradicardia,
culino), com “picos” de frequência aos 14 e aos 18 hipotensão);
anos. No entanto, em cerca de 8% de casos o início • hipotermia;
verifica-se antes dos 10 anos. • Diminuição de TSH (tireotropina), FSH (hor-
Trata-se de uma patologia multifactorial que mona folículo-estimulante), T3 e T4 (tiroxi-
associa factores individuais (psicológicos e na).
biológicos) familiares e sociais. O diagnóstico é, em geral, simples de estabe-
Aparece com mais frequência nas classes mé- lecer, havendo, nos casos atípicos, que distinguir
dias e nas sociedades industrializadas. A proble- outras formas de anorexia associadas à depressão
mática familiar é complexa. Combina alguns ou ainda doenças do foro orgânico, nomeadamente
aspectos contraditórios do funcionamento fami- patologia digestiva ou da tiróide (Capítulo 44).
liar, nomeadamente uma aparente harmonia com As recaídas são frequentes embora, a longo
um funcionamento simbiótico, em que o pai é em prazo, haja tendência para o desaparecimento das
186 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

perturbações alimentares. Em cerca de 15 a 20% a família todas as intervenções devem ter um


dos casos há evolução para formas crónicas com cariz terapêutico.
limitações psicológicas e físicas importantes. 5. O valor dos sintomas deve ser avaliado em
A intervenção terapêutica deve obrigatoria- função da fase de desenvolvimento, da função
mente incidir em 3 polos simultaneamente: que lhe é atribuída na dinâmica familiar e do
1 – O tratamento da alteração do comporta- contexto familiar.
mento alimentar e a retoma de peso que devem 6. As intervenções (farmacológicas, sociais, familia-
ser uma prioridade, pela gravidade das conse- res) devem ter sempre um suporte psicotera-
quências orgânicas e pelo risco de tal comporta- pêutico.
mento se perpetuar, tornando-se crónico. A 7. A evolução terapêutica é avaliada em função da
retoma de peso não pode ser obtida por meios capacidade de a criança retomar o seu desen-
puramente médicos considerando-se que tal volvimento.
estratégia tem um cariz persecutório cujos benefí-
cios são de muito curta duração. BIBLIOGRAFIA GERAL (Pedopsiquiatria)
Deve ser acordado com a jovem e com a fa- Ajuriaguerra J. Manuel de Psychiatrie de L`Enfant. Paris:
mília um contrato em que são definidos os objec- Masson, 1970
tivos em relação ao peso, (com a ajuda dum nutri- American Psychiatric Association. DSM- IV-TR (tradução por-
cionista que estabelecerá o plano dietético), e em tuguesa). Lisboa: Climepsi Editores, 2000
fases bem definidas. Andreasen N, Black D. Introductory Textbook of Psychiatry.
O internamento está indicado nos casos de não New York: American Psychiatric Publishing, Inc., 2001
adesão a este tipo de contrato ou quando o IMC College National des Universitares de Psychiatrie. Psychiatrie
é inferior a 14; poderá ter vantagem na promoção de L`Enfant et de L’Adolescent. Paris: Presse Editions, 2000
da autonomia da adolescente e no estabelecimen- Floet AMW, Scheiner C, Grossman L. Attention-deficit/hype-
to de novos modelos relacionais. ractivity disorder. Pediatr Rev 2010; 31: 56-69
2 – Tratamento psicoterapêutico da pertur- Guedeney N, Guedeney A. Vinculação. Conceitos e Aplica-
bação psicológica e farmacoterapia nos casos de ções. Lisboa: Climepsi, 2001
depressão ou ansiedade associada. Houzel, D Emmanuelli M, Moggio F. Dicionário de
3 – Tratamento das interacções familiares dis- Psicopatologia da Criança e do Adolescente, (tradução por-
torcidas através de entrevistas familiares regu- tuguesa). Lisboa: Climepsi, 2004
lares ou mesmo terapia familiar. A inclusão da Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
família no projecto terapêutico e a sua adesão ao Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
tratamento é essencial para o sucesso terapêutico Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph´s Pediatrics.
e para o prognóstico. (Ver parte sobre Nutrição). New York: McGraw-Hill Medical, 2011

Conclusão

Para terminar, é importante salientar alguns


princípios estruturantes da intervenção clínica em
saúde mental infantil:
1. O funcionamento psíquico da criança tem como
substrato o funcionamento cerebral, mas ultra-
passa-o largamente.
2. As relações de vinculação, uma vez estabeleci-
da, tendem a manter as suas características ao
longo da vida e constituem a base para a cons-
trução da personalidade.
3. A subjectividade é um elemento inerente a toda
a intervenção.
4. Desde o primeiro contacto com a criança e com
PARTE VII
Ambiente, Risco e Morbilidade
188 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

INTRODUÇÃO À PARTE VII

Reiterando o que atrás foi referido a propósito de


Desenvolvimento, José Ortega e Gasset (1883-
-1955) ensinou-nos que “cada pessoa é ela própria
e a sua circunstância”. Considera-se circunstância
37
da criança e adolescente o ambiente que os rodeia, A CRIANÇA MALTRATADA
classicamente considerado num contexto físico e
social; no entanto, cabe salientar que o conceito de Deolinda Barata e Ana Leça
ambiente, na sua essência, integra também aspec-
tos morais, afectivos e de mudança.
Esta parte do livro é dedicada à abordagem de
alguns dos tópicos que exemplificam a influência Definição
do ambiente potencialmente adverso na saúde da
criança e do adolescente. Noutros capítulos (sobre De uma forma genérica, os maus tratos podem ser
Imunoalergologia, Urgências, Cirurgia, Ortopedia, definidos como qualquer forma de actuação física
etc.) ressalta igualmente o papel do ambiente na e/ou emocional, não acidental e inadequada,
morbilidade pediátrica. resultante de disfunções e/ou carências nas rela-
João M Videira Amaral ções entre crianças e jovens, e pessoas mais velhas,
num contexto de uma relação de responsabilidade,
confiança e/ou poder.
Podem traduziu-se por comportamentos
activos (físicos, emocionais ou sexuais) ou passivos
(omissão ou negligência nos cuidados e/ou
afectos). Pela maneira reiterada como geralmente
acontecem, privam o menor dos seus direitos e
liberdades afectando, de forma concreta ou
potencial, a sua saúde e o desenvolvimento (físico,
psicológico e social) e/ou dignidade.

Importância do problema

Tais comportamentos deverão sempre ser


analisados tendo em conta a cultura e a época em
que têm lugar, sendo importante conhecer as
práticas e as ideias que apoiavam e promoviam
muitos actos socialmente aceites em determinada
época, relativamente à infância. Ao longo do
tempo tem-se comprovado que tais práticas
inadequadas e as agressões, sob as mais diversas
formas, têm sido comuns desde os tempos mais
remotos; ainda num período relativamente re-
cente, há cerca de um ou dois séculos, eram
considerados correctos e, como tal, socialmente
aceites.
Foram necessárias profundas modificações
culturais, sociais e de sensibilidades até que fos-
sem reconhecidos a individualidade e os direitos
próprios da criança.
CAPÍTULO 37 A criança maltratada 189

Nota histórica definitivamente, no século XIX, como consequên-


cia da Revolução Industrial, apesar de esta ter tra-
A história da violência exercida sobre a Criança, zido consigo a exploração da criança pelo trabalho
ao longo dos tempos, confunde-se com a história e de, ainda nesta época, ser frequente o infanti-
da própria Humanidade. Quanto mais recuamos cídio dos filhos ilegítimos.
no tempo, maiores são as atrocidades cometidas Em 1860, em França, começaram a ser denun-
contra as crianças. Assim, na Antiguidade o infan- ciados os casos de maus tratos infantis. Nesse ano,
ticídio era uma prática habitual que perdurou nas Ambroise Tardieu fez a primeira grande descrição
culturas orientais e ocidentais até ao século IV DC. cientifica da síndroma da criança maltratada no
Realizava-se por diversos motivos, entre os quais seu livro “Étude médico-legal sur les sevices et
se contam: eliminar filhos ilegítimos, deficientes mauvais traitements exercés sur les enfants”. O seu
ou prematuros; dar resposta a crenças religiosas trabalho não foi valorizado pela comunidade cien-
(salvar a vida do rei em perigo, acalmar a fúria tífica durante quase cem anos, mas conseguiu
dos deuses, demonstrar-lhes devoção ou pedir-lhe despertar a consciência social naquele país, aca-
graças); controlar a natalidade, etc.. bando por levar à promulgação de uma lei de pro-
Na Roma antiga, o direito à vida era outorgado tecção das crianças maltratadas.
em ritual, habitualmente pelo pai, sendo ilimi- A I Guerra Mundial, pelos seus efeitos sobre a
tados os seus direitos sobre os filhos. Os recém- população civil e sobre a infância, teve uma in-
nascidos eram não só sacrificados em altares dedi- fluência decisiva nesta matéria, sendo fundada em
cados exclusivamente a este fim como também Genebra, em 1920, a “União Internacional de So-
projectados contra as paredes ou abandonados corros às Crianças” a qual criou uma carta de
sem qualquer vestimento às intempéries. princípios, conhecida pela “Carta dos Direitos da
O aparecimento do Cristianismo e a con- Criança ou Declaração de Genebra”.
versão do Imperador Constantino ao mesmo, A II Guerra Mundial veio dar novo impulso à
provocou uma mudança fundamental da atitude evolução nesta matéria. Foram então criados em
da sociedade para com as pessoas mais débeis. 1947 organismos como a UNICEF ou “Fundo
Este Imperador, autor da primeira lei contra o Internacional de Socorro da Infância”. Em 1948,
infanticídio, influenciou decisivamente o per- foi aprovada a “Declaração Universal dos Direitos
curso histórico da questão da violência exercida Humanos” e, em 1959, a Assembleia Geral das
sobre os menores, através do conhecimento dos Nações Unidas aprovou a “Declaração dos Direi-
seus direitos, contribuindo para a redução dos tos da Criança” que constituiu um importante
casos de infanticídio. avanço. (Parte I – Introdução à Clínica Pediátrica).
Durante a Idade Média, face às numerosas guer- Já a partir de 1939 Caffey, detectando fracturas
ras e à precariedade económica, muitas crianças dos e hematomas subdurais em certas crianças, veio
grupos sociais mais carenciados eram vítimas de definir uma entidade clínica que designou
infanticídio ou abandono. “traumatismo de origem desconhecida”. Na se-
Nas classes abastadas verificava-se mais o quência desses estudos, Silverman, em 1953,
abandono afectivo e as manifestações do poder do admitiu que tais casos, acompanhados de sinais
pai como dono da criança. As práticas sexuais com de traumatismo, poderiam ser provocados pelos
adolescentes eram naturalmente admitidas. pais tendo outros autores demonstrado que as
Durante os séculos XVII e XVIII, a protecção lesões melhoravam com o afastamento da criança
das crianças era feita através do seu internamento do seu núcleo familiar.
em instituições. Nesse período a infância começou Em 1961, H. Kempe começou a usar a
finalmente a ser encarada como uma etapa expressão “battered child” ou “criança batida” e,
específica da vida, necessitando de atenções espe- em 1962, juntamente com os seus colaboradores,
ciais. No entanto, ainda no século XVIII, foi criada publicou um artigo sobre crianças maltratadas
a “Roda”, onde as crianças abandonadas eram considerando esta situação como uma síndroma
expostas, acabando muitas delas por perecer. clínica (“the battered child syndrome”), relativa-
O interesse pela protecção infantil apareceu, mente à qual previa já a necessidade de uma
190 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

intervenção multidisciplinar e o afastamento tem- pelo infanticídio ou homicídio), abuso emocional


porário dos pais. ou psicológico, abuso sexual, negligência, aban-
Depois de Kempe os resultados de muitos dono, exploração no trabalho, exercício abusivo
estudos vieram reforçar a importância da da autoridade e tráfico de crianças e jovens, entre
protecção à infância e da sua defesa nos seus outras formas de exploração. Esta violência pode
múltiplos e variados aspectos. observar-se em diferentes contextos, designada-
Na década de setenta do século XX foram mente familiar, social e institucional.
criados em muitos hospitais grupos multidiscipli- Assim, as crianças e jovens podem ser mal-
nares, tendo como objectivos o diagnóstico e a tratados por um dos progenitores ou por ambos,
orientação das crianças maltratadas. por um cuidador, por um irmão ou outro familiar,
Em 1989, na Assembleia Geral das Nações por uma pessoa conhecida ou por um estranho. O
Unidas foi aprovada a Convenção sobre os Direi- abusador pode ser um adulto ou um jovem mais
tos da Criança, onde se defende que as crianças, velho.
devido à sua vulnerabilidade, necessitam de Apenas em situações de muita gravidade se
cuidados e atenções especiais, sendo dada consideram como situação de maus tratos os que
especial ênfase aos cuidados primários e às acontecem fora do contexto familiar ou institu-
responsabilidades da família. cional.
Em Portugal, foi na década de oitenta passada Pela sua frequência e relevância apenas serão
que este assunto passou a merecer atenção consideradas as seguintes formas de maus tratos:
especial com a criação dos primeiros núcleos de negligência, maus tratos físicos, abuso sexual e
estudo e apoio à criança maltratada, integrando abuso emocional, e a chamada síndroma de Mun-
pediatras, técnicos do serviço social, enfermeiras, chausen por procuração.
psicólogos, pedopsiquiatras, representantes dos
tribunais de menores e outros profissionais. 1. Negligência
Em 1990 foi ratificada, na Assembleia da A negligência constitui um comportamento de
República, a Convenção sobre os Direitos da omissão relativamente aos cuidados a ter com as
Criança, em sintonia com a deliberação anterior crianças e jovens, não lhes sendo proporcionada a
da Assembleia Geral da Nações Unidas. satisfação das suas necessidades em termos de
Em 1991 foram criadas as Comissões de cuidados básicos e de higiene, alimentação, segu-
Protecção dos Menores, com sede nas autarquias rança, educação, saúde, estimulação e apoio.
locais, integradas por representantes dos tribu- Pode ser voluntária (com a intenção de causar
nais, técnicos de serviço social, médicos e elemen- dano) ou involuntária (resultante da incompetência
tos da autarquia e da comunidade. dos pais para assegurar os cuidados necessários e
Em 1998 a Comissão Interministerial para o adequados). Inclui diversos tipos como a negligência
estudo da articulação entre os Ministérios da intra-uterina (durante a gravidez), física, emocional e
Justiça e da Solidariedade e Segurança Social, escolar, além da mendicidade e do abandono.
passou a utilizar o termo “criança em risco”. Deste comportamento resulta dano para a
Em 1999 foi redigida a Lei de Protecção de saúde e/ou desenvolvimento físico e psicossocial
Crianças e Jovens em Perigo (entrada em vigor em da criança e do jovem.
1 de Janeiro de 2001), substituindo as Comissões
de Protecção de Menores pelas Comissões de 2. Maus tratos físicos
Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, estando Esta forma de maus tratos corresponde a qualquer
previstas novas formas para a sua protecção. acção, não acidental, por parte dos pais ou pessoa
com responsabilidade, poder ou confiança, que
Tipologia dos maus tratos provoque ou possa provocar dano físico na
criança ou jovem.
A violência para com as crianças e jovens ma- O dano resultante pode traduzir-se em lesões
nifesta-se por formas muito diferentes, como físicas de natureza traumática, doença, sufocação,
maus tratos físicos (que, no limite, se traduzem intoxicação e a síndroma da criança abanada.
CAPÍTULO 37 A criança maltratada 191

3. Abuso sexual criança implica também a referência especial a


O abuso sexual traduz-se pelo envolvimento da uma situação designada por síndroma de
criança ou jovem em práticas que visam a Munchausen por procuração. Trata-se dum qua-
gratificação e satisfação sexual do adulto ou jovem dro clínico em que um dos progenitores- invaria-
mais velho, numa posição de poder ou de velmente a mãe – está implicado, simulando ou
autoridade sobre aquele. causando doença no filho. Esta situação é perpe-
Trata-se de práticas que a criança e o jovem, trada em crianças incapazes ou não desejosas de
dado o seu estádio de desenvolvimento, não con- identificar a agressão e o agressor
seguem compreender e para as quais não estão
preparados. Etiopatogénese
Pode ser intra ou extra familiar, (muito mais Existem várias possibilidades quanto à etiopato-
frequente o primeiro) e ser repetido, ao longo da génese: o progenitor propicia uma história clínica
infância. inventada; poderá falsificar os resultados ou o
São exemplos deste tipo de abuso: a obrigação nome do titular de exames complementares labora-
de a criança e o jovem conhecerem e presenciarem toriais; poderá provocar sintomatologia na criança
conversas ou escritos obscenos, espectáculos ou através de diversos estratagemas: lesão traumática
objectos pornográficos ou actos de carácter exi- em condições especiais, administração de
bicionista; a utilização do menor em fotografias, determinados fármacos tirando partido de
filmes, gravações pornográficas, ou em práticas determinados efeitos dos mesmos; simulação de
sexuais de relevo; a realização de coito (penetra- síndroma febril exibindo o termómetro previa-
ção oral, anal e/ou vaginal). mente introduzido em líquido quente; exposição
repetida a determinada toxina; apneia e convulsões
4. Abuso emocional provocadas, por exemplo, por sufocação; coloração
Esta forma de abuso constitui um acto de natureza de fezes e urina com o sangue simulando
intencional caracterizado pela ausência ou ina- respectivamente rectorragias e hematúria, etc..
dequação, persistente ou significativa, activa ou Muitas vezes a mãe tem experiência de am-
passiva, do suporte afectivo e do reconhecimento biente médico-assistencial, estando familiarizada
das necessidades emocionais da criança ou jovem. com nomes e sintomas de determinadas doenças.
Do referido abuso resultam efeitos adversos no As manifestações estão sempre associadas à
desenvolvimento físico e psicossocial da criança proximidade entre a mãe e a criança.
ou jovem e na estabilidade das suas competências Noutras circunstâncias a mãe incute no filho a
emocionais e sociais, com consequente diminui- ideia de situação de risco ou mesmo de doença, o
ção da sua auto-estima. que origina da parte da criança o desejo de mais
São citados como exemplos insultos verbais, dependência e de estar com ela , implicando, por
humilhação, ridicularização, desvalorização, exemplo, absentismo escolar.
ameaças, indiferença, discriminação, rejeição, cul- Neste contexto, o cenário habitual é o de um
pabilização, críticas, etc.. pai que tem um papel passivo e distante deixan-
Como se depreende, este tipo de maus tratos do a cargo da mãe todas as diligências relativas
está presente em todas as outras situações de maus aos cuidados a prestar ao filho.
tratos, pelo que só deve ser considerado isola-
damente quando constituir a única forma de abuso. Manifestações clínicas
O diagnóstico de qualquer destas situações A detecção da síndroma de Munchausen por
requer, em geral, um exame médico e psicológico procuração requer um elevado índice de suspeita;
da vítima, e uma avaliação social e do seu contexto os sintomas e sinais, atípicos e incompatíveis com
familiar. processos mórbidos naturais e reconhecidos, po-
derão ser indiciadores.
5. Síndroma de Munchausen por procuração As manifestações são diversas e dedutíveis
Definição das circunstâncias etiopatogénicas atrás referidas,
Abordar a problemática dos maus tratos na conforme a idade da criança; por exemplo: hipe-
192 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ractividade, sonolência, febre, convulsões, apneia, haveria 20 mil casos de crianças maltratadas. Por
cefaleias, dor abdominal. Podem atingir qualquer outro lado, a Comissão Nacional de Protecção de
aparelho ou sistema orgânico e sugerir uma Crianças e Jovens em Risco apurou a seguinte
variedade de processos patológicos. frequência relativa:
Por vezes existem antecedentes maternos da • Negligência e abandono: 65,8%;
referida síndroma. • Maus tratos físicos e psicológicos: 28,7%;
Classicamente a síndroma é mais frequente em • Abuso Sexual: 5,5%
crianças que ainda não falam; no entanto, estão
descritos casos no período pubertário. De salientar que o número de casos aumentou
De referir, no entanto, que por vezes existe 82% entre 1998 e 1999; provavelmente este achado
doença orgânica associada. deve-se, não a um aumento real das situações de
maus tratos, mas a uma maior inquietação e
Diagnóstico sensibilidade na detecção dos mesmos.
Face às suspeitas da situação, para além de redo- Deste estudo realça-se que em 83% dos casos,
brada vigilância estando a criança hospitalizada, os abusadores residem com a criança, sendo que
haverá que proceder a exames complementares em cerca de 65% dos casos o abusador é a mãe ou
comprovativos estritamente necessários e mini- o pai. Como se deduz, poucos casos de maus
mamente invasivos segundo o princípio de “primum tratos chegam a ser detectados e a ser objecto de
non nocere”. tratamento, sobretudo os casos de abuso intra
A propósito de exames complementares, cabe familiar, os quais se repetem frequentemente no
salientar que submeter uma criança a procedi- anonimato da família, muitas vezes com a
mentos invasivos excessivos, sem fundamentação conivência de alguns dos seus membros.
aparente, poderá ser considerado eticamente mau Os estudos epidemiológicos nesta área reali-
trato ou abuso. zados mais recentemente corroboram, no essen-
cial, os resultados referidos naquele.
Aspectos epidemiológicos
Factores de risco
É impossível determinar a verdadeira incidência
de casos de maus tratos em qualquer país e, São considerados factores de risco dos maus tratos
consequentemente, a morbilidade e mortalidade a todas as influências que aumentam a probabili-
eles associadas. Tal dificuldade deve-se ao facto dade de ocorrência ou de manutenção de tais si-
de um elevado número de casos acontecer em tuações. Contudo, na sua avaliação deve imperar
meio familiar (sendo assim de difícil visibilidade), sempre o bom senso, tendo em conta o contexto
à aceitação social de muitos deles, às dificuldades da situação, uma vez que qualquer destes factores,
no seu diagnóstico e à falta de notificação siste- isoladamente, poderá não constituir um factor de
mática dos mesmos. risco.
A maior parte dos maus tratos surge em todos Tais influências estão relacionadas com
os grupos sociais. Admite-se que acontecem com características individuais dos pais, da criança ou
maior frequência nas classes sociais mais desfa- jovem, assim como do contexto familiar, social e
vorecidas, em virtude das carências económicas a cultural.
que se associam as más condições habitacionais, o As características individuais dos pais são
baixo nível ou ausência de instrução escolar e da múltiplas, enumerando-se as mais frequentes:
promiscuidade, e a desorganização da vida profis- alcoolismo, toxicodependência; perturbação da
sional, social e familiar. saúde mental ou física; antecedentes de compor-
Algumas estimativas sugerem que o número tamento desviante; personalidade imatura e
de casos detectados corresponde apenas a 30 – impulsiva; baixo auto-controlo e reduzida tolerân-
35% do total. cia às frustrações; baixa auto-estima; antecedentes
De acordo com o estudo epidemiológico reali- de maus tratos na infância; idade muito jovem
zado em Portugal por Fausto Amaro, em 1985, (inferior a 20 anos, sobretudo as mães); baixo nível
CAPÍTULO 37 A criança maltratada 193

económico e cultural; desemprego; perturbações no subdurais nos lactentes, particularmente se as-


processo de vinculação com o filho (especialmente sociados à presença de hemorragias retinianas; as
mãe/filho no período pós-natal precoce); excesso fracturas dos membros no primeiro ano de vida; a
de vida social ou profissional que dificulta o detecção de várias fracturas com diferentes
estabelecimento de relações positivas com os filhos. estádios de calcificação ou de fracturas de arcos
As características da criança ou jovem mais costais (Capítulos 255 e 257).
frequentemente associadas ao tópico em análise Em suma, uma história clínica inverosímil,
são: a vulnerabilidade em termos de idade e de com contradições ou diferentes versões e, sobre-
necessidades; a personalidade e temperamento tudo, as discrepâncias entre a história relatada e o
não ajustados aos pais; a prematuridade; baixo tipo de lesões observadas, aliados ao atraso na
peso de nascimento; perturbação da saúde mental procura de cuidados médicos, constituem a chave
ou física (anomalias congénitas, doença crónica), para o diagnóstico.
etc..
As características do contexto familiar, isto é, Intervenção
as fontes de tensão facilitadoras dos maus tratos
são: gravidez não desejada; família mono paren- Na suspeita de maus tratos, a criança (ou jovem)
tal, reconstituída com filhos de outras ligações, deve ser internada ou temporariamente afastada
com muitos filhos, não estruturada (relação dis- do meio familiar, com um duplo objectivo: em
funcional entre os pais, crises na vida familiar, primeiro lugar, a sua protecção, impedindo que os
mudança frequente de residência ou emigração); maus tratos continuem e provoquem lesões mais
famílias com problemas socioeconómicos e graves; em segundo lugar, dispor de tempo
habitacionais (extrema pobreza, situações profis- suficiente para um estudo familiar e social com-
sionais instáveis, isolamento social), entre outras. pleto. Esta actuação vai permitir que se tomem as
Também as características do contexto social e diligências necessárias ao seu encaminhamento
cultural, tais como a atitude social para com as correcto. Contudo, nalgumas situações de maus
crianças, as famílias e atitude social em relação à tratos perpetrados por alguém não próximo da
conduta violenta, são factores de intensificação do criança/jovem em que não são necessários cuida-
trauma. dos médicos, pode ponderar-se a eventualidade de
a criança/jovem voltar ao seu domicílio, desde que
Diagnóstico os pais sejam “de confiança” e protectores,
permitindo um acompanhamento seguro em si-
As manifestações clínicas são muito variadas, tuação de não internamento.
dependendo do tipo de mau trato; com efeito, não A observação do comportamento dos pais, da
existindo lesões patognomónicas, tornam-se ne- criança, e da relação entre ambos, pode fornecer
cessários uma particular atenção e um elevado elementos adicionais importantes para a formu-
índice de suspeita diagnóstica. lação do diagnóstico de maus tratos. Ao contrário
Assim, para além duma anamnese minuciosa e do que acontece com as situações acidentais em
com bom senso, obtida, por técnico de saúde que os pais se mostram geralmente preocupados
experiente, em ambiente de privacidade, tentando com o estado de saúde da criança, nas situações de
obter o maior número possível de informações maus tratos devem ser considerados suspeitos: os
dos diferentes elementos da família, ouvidos em que recusam o tratamento ou o internamento dos
separado e confidencialmente, é indispensável filhos; os que se mostram indiferentes ou agres-
efectuar um exame físico completo, no sentido de sivos; ou os que colocam as suas preocupações
identificar o tipo de lesões mais frequentes ou acima do estado de saúde da criança.
mais sugestivas: as equimoses ou hematomas com Por sua vez, as crianças podem mostrar-se
estádios de evolução diferentes e de localização demasiado assustadas, não acalmando com a
preferencial na face, pescoço, pavilhões auricu- presença ou com as carícias dos pais ou assumin-
lares, tronco e nádegas, as queimaduras circulares do posturas de defesa à aproximação de adultos.
ou de limites muito bem definidos, os hematomas A atitude da equipa (multidisciplinar) que
194 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

orienta estes casos deve pautar-se sempre por nuição da auto-estima, dificuldades no relaciona-
extrema prudência e calma, mostrando uma mento social, baixas expectativas de vida e trans-
atitude de compreensão e evitando juízos de crí- missão do mau trato às gerações futuras.
tica ou atitudes de punição da família. É
fundamental, pois, perceber que se está perante Prevenção
uma família doente e que uma intervenção de
ajuda é a mais correcta e comprovadamente mais Em todo o processo de protecção da infância, a
eficaz. prevenção dos maus tratos constitui a sua prio-
ridade fundamental. Existem três níveis de
Consequências orgânicas prevenção, consoante os objectivos e os alvos a
e psicossociais que é dirigida:
• Primária – prestação de serviços à população
Não é possível estabelecer uma relação simples em geral, tendo em vista evitar o apareci-
entre o tipo de maus tratos e as suas consequên- mento de casos de maus tratos;
cias a longo prazo, dado que na maior parte das • Secundária – prestação de serviços a grupos
vezes se trata de situações mistas, em todas elas específicos de risco, a fim de tratar ou evitar
estão subjacentes os maus tratos emocionais que, novos casos, promovendo o regresso da
pela sua natureza, são difíceis de identificar e criança à família;
controlar. • Terciária – prestação de serviços a vítimas de
Os maus tratos intrafamilares são aqueles que maus tratos, para minorar a gravidade das
mais graves consequências têm para crianças e consequências e evitar a recidiva.
jovens, dado que dos mesmos resultam uma A prevenção primária engloba vários tipos de
profunda quebra de confiança e uma importante medidas que devem ser dirigidas a dois alvos de
perda de segurança em casa, por sua vez uma níveis distintos, pelo que se designam prevenção
ameaça profunda para o desenvolvimento. primária inespecífica, ou específica.
É sabido que uma criança vítima de maus A prevenção primária inespecífica é dirigida à
tratos corre sérios riscos de morte, de lesões população em geral e deve começar por fomentar
cerebrais e sequelas graves, sobretudo no primeiro uma cultura antiviolência, passando pela infor-
ano de vida, se não for diagnosticada e não se mação da comunidade; pela promoção da saúde
providenciarem as medidas adequadas à sua materno-infantil; pela preparação de técnicos que
protecção. trabalham com crianças; pelo ensino aos futuros
A grande maioria dos casos fatais de maus pais; pela estimulação da relação mãe-filho; pela
tratos ocorre nas crianças com menos de 3 anos. protecção legal, e pela criação de estruturas sociais
As causas mais frequentes são os traumatismos de apoio à maternidade e a criança e ao jovem.
cranianos dos pequenos lactentes, seguidos pelas Deve incluir ainda medidas muito mais vastas de
lesões intra-abdominais (rotura de vísceras), cariz social, como a promoção da melhoria das
asfixia e sufocação. condições de vida, da saúde, e do emprego; e o
Nas crianças mais velhas, em idade escolar, combate ao trabalho infantil, ao alcoolismo e à
não existe geralmente risco de vida. A repetição toxicodependência, entre outras.
dos maus tratos físicos ou psicológicos vai ter, A prevenção primária específica tem como
contudo, repercussões graves na vida futura da principal objectivo a identificação das crianças e
vítima; importa, por isso, estar atento a estas famílias em risco. A estratégia de intervenção
questões no sentido de as prevenir, identificar e depende do tipo de problemas identificados em
tratar. cada família.
Em síntese, são consideradas, a longo prazo, as A identificação de crianças em risco na mater-
seguintes consequências psicossociais: atraso de nidade deve levar a maior vigilância e apoio à
crescimento, atraso de desenvolvimento, atraso de mãe: ensino de regras de puericultura; estimu-
linguagem, insucesso escolar, alterações de com- lação do aleitamento materno e da relação mãe-
portamento, risco elevado de delinquência, dimi- filho; acompanhamento mais estreito nas consul-
CAPÍTULO 37 A criança maltratada 195

tas de saúde infantil; promoção de programas de and youth: A comprehensive, national survey. Child
visitas domiciliárias; ensino da prevenção de Maltreat 2005; 10: 5-25
acidentes; tratamento da desintoxicação alcoólica Friedman SH, Friedman JB. Parents who kill their children.
ou toxicodependência dos pais; auxílio na aqui- Pediatr Rev 2010; 31: e10- e16
sição de benefícios sociais; melhoria das condições Gallardo J A: Maus tratos à criança. Porto: Porto Editora, 2005
habitacionais; integração em creches; e ocupação Giardino A, Alexander R (eds). Child Maltreatment: A Clinical
dos tempos livres. Estas medidas devem ser Guide and Reference. St. Louis: GW Medical Publishing,
desenvolvidas em todas as situações familiares de 2005
risco. Glew GM, Frey KS, Walker WO. Bullying update: are we
A prevenção secundária inclui: o tratamento making any progress?
adequado da criança e intervenção na família, e o Pediatr Rev 2010; 31:e68-e69
apoio e vigilância no domicílio e na comunidade. Hicks RA, Gaughan DC. Understanding fatal child abuse.
As visitas domiciliárias a cargo de enfermeiras, Child Abuse Negl 1995; 19: 855-863
assistentes sociais, a colaboração do médico de Hobbs CJ, Hanks HGI, Wynne JM (eds). Child Abuse and
família, e a integração das crianças em creches ou Neglect: A Clinician´s Handbook. London: Churchill
jardins de infância são medidas que devem fazer Livingstone, 1993
parte deste deste tipo de prevenção. Hornor G. Emotional maltreatment. J Pediatr Health care 2012;
As modalidades de abordagem acima referi- 26:436-442
das não terão êxito se não puderem contar com o Huertas JA. El maltrato infantil en la história. In: Niños
apoio de meios adequados e legislação que, garan- Maltratados. Madrid: Ediciones Díaz de Santos, 1997
tindo os direitos humanos, permita a sua apli- Kasim MS, Cheah I, Shafie H M. Childbook deaths from
cação. Assim, as estruturas políticas deverão ser physical abuse. Child Abuse Negl 1995;19:847-854
consideradas como parceiros sociais nas acções de Kliegman RM, Stanton BF et al (eds). Nelson Textbook of
prevenção relativas aos maus tratos. Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
A reflexão sobre os programas de prevenção Leventhal JM. Twenty years late: we do know how prevent
do mau trato permite deixar uma nota de opti- child abuse and neglect. Child Abuse Negl 1996; 20: 647-653
mismo desde que o apoio seja precoce e conti- Magalhães T. Maus tratos em crianças e jovens. Guia prático
nuado e, sobretudo, se se conseguir o estabele- para profissionais. Coimbra: Quarteto Editora, 2002: 33-36
cimento de uma relação respeitosa e de confiança McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
entre os técnicos e as famílias das crianças Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
maltratadas. Preer G, Sorrentino D, Ryznar E, et al. Child maltreatment:
Esta intervenção reestruturante da anarquia promising approaches and new directions. Curr Opin
das relações familiares consegue muitas vezes Pediatr 2013; 25: 268-274
estabilizá-las de forma a permitir o desabrochar Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
das potencialidades intelectuais e afectivas das AA(eds). Rudolph´s Pediatrics. New York : McGraw-Hill
crianças e jovens vítimas de maus tratos. Medical , 2011
Silverman FN. The roentgen manifestations of unrecognized
BIBLIOGRAFIA skeletal trauma in infants. Am J Roentgenol 1953; 69: 413-
Asnes AG, Leventhal JM. Managing child abuse:general 427.
principles. Pediatr Rev 2010; 31: 47-55 Teicher MH, Samson JA, Polcari A, McGreenery CE. Sticks,
Bair-Merritt MH. Intimate partner violence. Pediatr Rev 2010; stones, and hurtful words: relative effects of various forms
31:145-150 of childhood maltreatment. Am J Psychiatry 2006; 163: 993-
Canha J. Criança maltratada. O papel de uma pessoa de 1000
referência na sua recuperação. Coimbra: Quarteto Editora, Terreros IG. Los professionales de la salud ante el maltrato.
2000: 17-27 Granada: Editorial Comares, 1997
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011 UNICEF. A League Table of Child Maltreatment in Rich
De Mause (ed). The History of Childhood. New York: Harper Nations. Innocenti Report Card nº 5. New York: Unicef, 2003
and Row Publishers Inc, 1974
Finkelhor D, Omrod R, Turner H. The victimization of children
196 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

38
• são passíveis de prevenção primária, secun-
dária e terciária, tal como a maioria das
doenças (Capítulo 1).
O que talvez diferencie os TFLA de outras
doenças é a rapidez da acção da causa e o pe-
queníssimo lapso de tempo entre a acção do agente
TRAUMATISMOS, FERIMENTOS e os sintomas e sinais, o que também contribui
para a dificuldade da prevenção, se analisarmos
E LESÕES ACIDENTAIS – esta numa perspectiva médica estrita.
Podemos também considerar os TFLA numa
O PAPEL DA PREVENÇÃO perspectiva ecológica, tal como por exemplo as
doenças infecciosas: o acidente resulta da inte-
Mário Cordeiro racção entre o agente, o meio humano e o meio
material, envolvendo o indivíduo. A aceitação
desta tríade (ou tétrada) traz consequências
imediatas: qualquer acção preventiva que deixe
Importância do problema de lado um dos elementos será votada ao insu-
cesso; por outro lado, a compreensão do problema
Os traumatismos, ferimentos e lesões acidentais na sua plena extensão passará obrigatoriamente
(TFLA) constituem, em quase todos os países do por uma análise aprofundada das circunstâncias e
Mundo, nos grupos etários da infância e da da história destas várias vertentes.
adolescência, a maior causa de morte, anos de O planeamento urbano e a construção, o
vida, potenciais perdidos, doença, internamento, design, a arquitectura, etc., constituem uma tarefa
recurso aos serviços de urgência, incapacidades complexa na qual é necessário ter em conta as
temporárias e definitivas. Consequentemente, diversas, e por vezes contraditórias, necessidades
constituem um dos problemas com custos socio- dos diversos grupos de cidadãos. Quando o
económicos mais elevados. desenvolvimento urbano – para citar um dos
Infelizmente, no nosso País o problema revela- exemplos actualmente mais preocupantes –, se
se de uma agudeza extrema, com taxas de baseia em interesses pouco claros ou unilaterais,
mortalidade, por exemplo, quatro vezes supe- remetendo para segundo lugar os interesses dos
riores às da Suécia. Encarar os acidentes como um cidadãos, designadamente a sua saúde, o resul-
grave problema nacional e assumir a sua tado é frequentemente um ambiente de má
resolução como uma tarefa de toda a sociedade é qualidade no qual as gerações presentes e vin-
um passo fundamental e indispensável. douras terão de viver. Acresce que os erros
A impessoalidade das cifras pode fazer-nos estruturais se traduzem geralmente por conse-
esquecer o drama humano, ao qual só damos a quências a longo prazo, sendo a sua inversão
necessária atenção quando somos confrontados extremamente dispendiosa e difícil, se não mesmo
com ele nas nossas casas ou no nosso círculo impossível.
pessoal de amigos. A origem dos acidentes que envolvem crianças
Os acidentes manifestam-se por "doenças" – os e jovens não reside assim, como veremos mais
traumatismos, ferimentos e lesões deles decor- desenvolvidamente, no "mau" comportamento
rentes (TFLA). Para aceitar esta definição basta ter daquelas ou destes mas, pelo contrário, na
presente que os TFLA: agressividade e desadaptação do ambiente às suas
• têm uma causa (um agente, a energia re- características físicas, mentais e psicológicas. Por
sultante dos impactes, do calor, do movi- outras palavras, não são as crianças e os adoles-
mento de objectos, etc.); centes que estão errados – o mundo que os rodeia
• provocam sintomas e sinais bem definidos; e onde são forçados a viver é que se torna, dia a
• têm um processo de diagnóstico; dia, mais e mais agressivo, e cada vez mais
• têm um processo de terapêutica; recheado de armadilhas.
CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção 197

As principais vítimas de um ambiente anos de vida, potenciais perdidos, idas ao


insalubre e perigoso são sempre os grupos psi- serviço de urgência, internamentos, dados do
cológica ou fisicamente mais vulneráveis, ou com Sistema ADELIA (Acidentes Domésticos e de
menores capacidades adaptativas, seja decorren- Lazer – Informação Adequada), e também de
tes da sua própria vulnerabilidade e das suas outras fontes menos ligadas à Saúde (Instituto de
características bio-psico-sociais (designadamente Socorros a Náufragos, Companhias de Seguros,
do seu grau de resiliência), seja dos seus estilos de Ministério da Educação, Serviço de Bombeiros,
vida próprios. As crianças, os idosos e os cidadãos etc). (Quadro 1)
com deficiência estão no epicentro deste problema Além do escasso âmbito ou representatividade
e é nestes grupos que se tornam mais evidentes e de alguns dos dados, a metodologia adoptada por
mais graves as consequências da desadequação cada uma, designadamente em parâmetros tão
entre o “continente” e o “conteúdo”, ou seja, entre básicos como os grupos etários, as definições de
o mundo onde os seres humanos têm que viver e caso, etc., não é frequentemente a mesma,
as capacidades e necessidades desses mesmos impedindo muitas vezes a junção ou a com-
seres humanos. paração1. Falta assim fazer um trabalho de recolha
O ambiente constitui pois, actualmente, a dos indicadores existentes e sua análise crítica,
maior ameaça à vida e à saúde das crianças e dos identificação de eventuais áreas com lacunas e
jovens. Culpar a criança dos acidentes será, afinal, propostas metodológicas consensuais para que,
culpar a vítima e desculpar o "criminoso". sem um esforço acrescido, se possam obter
informações mais amplas e fiáveis, portanto mais
Aspectos epidemiológicos úteis. Este problema não é, contudo, exclusi-
vamente português.
Na abordagem dos TFLA, revela-se indispensável No que respeita ao impacte económico do
um conhecimento epidemiológico aprofundado, problema em Portugal, designadamente, foi
pois será certamente muito difícil delinear uma estimado que os acidentes de viação, por exemplo,
estratégia pertinente e adequada para controlo de somando todos os tipos de custos, custaram ao
um problema quando se desconhece a sua País, quase 4% do PIB, ou seja, cerca de 25.000
verdadeira dimensão e, ainda mais importante, os milhões € por ano, algo como cinco mil euros por
pormenores e as circunstâncias que rodeiam o minuto. Admitindo um gasto equivalente nos
acontecimento. Este facto é tanto mais gravoso acidentes domésticos de lazer (ADL) – mais
quanto é verdade estarmos na presença de um frequentes mas globalmente menos graves –, os
conjunto de situações de origens várias, em que acidentes custariam, em Portugal, mais de uma vez
causas distintas podem gerar o mesmo efeito ou, e meia o orçamento do Ministério da Saúde, sendo
ao invés, causas semelhantes efeitos diferentes: a maior parcela equivalente a gastos com TFLA.
uma queda pode ter etiologias díspares e gerar
diversos traumatismos ou lesões; por outro lado, a Prevenção
mesma lesão – uma fractura de um membro, por 1. Obrigação da Sociedade
exemplo – pode ser causada por agentes
diferentes, como um choque de automóveis, um A opção por medidas modificadoras do ambiente
coice de cavalo ou uma queda de uma árvore. são geralmente caras, mais radicais e de maiores
A diversidade de local para local, relacionada custos políticos, em comparação com a fácil,
com distintas identidades culturais, constitui
outro factor de importância inegável, não
1. É sintomática (e preocupante) a “anarquia” reinante em items tão
podendo ser subvalorizado. simples como as idades consideradas: depois dos 4 anos de vida
Num capítulo de um livro como este, não é cada sistema utiliza a sua classificação etária, dividindo em grupos
de 5 anos ou juntando dos 5 aos 14, uns terminando aos 16, outros
possível desenvolver exaustivamente a questão aos 17, 18 ou 19 anos. Outro exemplo elucidativo diz respeito à
dos indicadores epidemiológicos. Entendemos, no mortalidade por acidente de viação, considerada por algumas
entanto, justificar-se encarar os TFLA nas suas entidades como a ocorrendo no local do acidente, por outras como
indo até às 48 horas após o evento e, por outras ainda, como a
diversas vertentes: mortalidade, morbilidade, resultante do acidente, não importando o lapso de tempo decorrido.
198 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Colheita de dados conceito desenvolveu-se não apenas em termos de


epidemiológicos sobre TFLA disponibilidade e adequação de cuidados – saúde,
educação, segurança social, entre outras – como
Sistemas nacionais de colheita de dados também em termos ambientais – provimento de ar
Mortalidade (Instituto Nacional de Estatística) puro, água potável, nutrição correcta, etc..
Viação (Observatório Rodoviário e IMTT) Paralelamente, depois do reconhecimento
ADELIA (Observatório Nacional de Saúde) gradual e sequencial dos direitos dos homens, dos
Inquéritos complementares (Instituto do Consumidor) trabalhadores e das mulheres, registou-se neste
Inquérito Nacional de Saúde (Observatório Nacional de século um movimento crescente a favor dos
Saúde) direitos das crianças e dos adolescentes, tão bem
resumidos na Convenção sobre os Direitos da
Fontes complementares Criança, aprovada na Assembleia Geral da ONU a
Instituto de Medicina Legal de Lisboa 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal.
Centro de Reabilitação do Alcoitão A Convenção reconhece que as crianças têm o
direito de crescer e de se desenvolver normal-
Dados colhidos a nível nacional e de forma contínua mente, sem limitações desnecessárias, e o direito à
Acidentes escolares (Ministério da Educação) protecção, os quais devem ser garantidos pelo
Acidentes desportivos (Ministério da Educação) Estado através de medidas de vária ordem.
Intoxicações (Centro de Informação Anti-Venenos) Portugal, tendo ratificado a Convenção em 1990,
está comprometido com a sua população infantil e
Dados recolhidos a nível nacional ou regional de juvenil, e não poderá ignorar as suas responsabi-
fontes relacionadas com os serviços de saúde ou de lidades. A sociedade portuguesa, de onde emana o
emergência Estado, tem igualmente de assumir de forma global
Projecto "médicos-sentinela" (Observatório Nacional de a protecção da sua população infantil e juvenil.
Saúde)
Cruz Vermelha Portuguesa 2. Perspectiva dinâmica e inovadora
Serviço Nacional de Bombeiros / Protecção Civil
Instituto Nacional de Emergência Médica Os acidentes sempre acompanharam a vida dos
Polícia de Segurança Pública homens; e, se por um lado esse facto permitiu
Polícias Municipais acumular conhecimentos e experiências mile-
Instituto de Socorros a Náufragos nárias, conduziu, por outro, à aceitação dos
acidentes como parte da própria existência e à
Inquéritos ad-hoc locais ou regionais interiorização do problema como algo de inson-
(vários) dável e superior à força humana. Por outro lado,
as tentativas para os evitar, pecando talvez por
Outras fontes timidez mas condicionadas pelo ritmo humano,
Acidentes pessoais/trabalho (Companhias de Seguros e
foram rapidamente ultrapassadas pela extraor-
Segurança Social), etc..
dinária rapidez da evolução tecnológica e pelo
aparecimento de forças que, se bem que conce-
bidas pela mente do Homem, se afastam da sua
barata e tradicional (mas muitas vezes ineficiente) própria escala – tenha-se em consideração a
“educação para a saúde”. Há, muito claramente, velocidade dos automóveis, as alturas dos
uma relação inversamente proporcional entre o prédios, a energia da electricidade e tantos outros
dinheiro atribuído às várias medidas e a sua exemplos de como nos deslocamos, vivemos e
eficiência. utilizamos dimensões e forças totalmente es-
Praticamente em todas as culturas, à semelhança tranhas às nossas características biológicas e
do que acontece na maioria das espécies animais, mesmo psicológicas, com o consequente desfasa-
é considerado natural proteger a vida e a saúde mento entre as necessidades e capacidades, por
das crias. No chamado "Mundo Ocidental", este um lado, e a realidade, por outro.
CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção 199

Os próprios estilos de vida, geradores de que existe devido a um acto incontrolável e


estresse e de uma vida "acelerada", contribuiram incontornável do destino, ou seja, que aconteceu
para o aumento dos riscos e para uma maior "por acidente". Quantas pessoas vacinam os
incapacidade de lidar com eles "a tempo e horas", filhos, dão-lhes vitaminas e, afinal, olham para a
não havendo para muitos destes riscos, o prevenção dos TFLA como algo desnecessário ou
verdadeiro conhecimento da sua existência. pouco importante, considerando até as conse-
Assim, embora não se possa dizer que as crianças quências do acidente como uma punição inevi-
e os jovens de sociedades anteriores à nossa tável e “normal” para um erro que se cometeu?
estivessem livres de sofrer TFLA – basta recordar Actualmente as pessoas, ao serem questionadas
os ataques das feras na idade das cavernas ou o sobre o que significa a palavra "acidente",
trabalho infantil em condições precárias nos responderão provavelmente: "serviço de urgência".
tempos da revolução industrial – pode contudo A esta resposta não será estranho o facto de as
afirmar-se que as crianças e os adolescentes de consequências imediatas de um acidente grave
hoje estão mais expostos aos riscos, sendo serem médicas. Contudo, o que fica subvalorizado
também provavelmente detentores de uma resi- nesta atitude é a vertente preventiva (ambiental),
liência menor. ignorada pela maioria, ao contrário do que
O estresse representa, assim, um factor acontece com outros grandes problemas de saúde
fundamental para a compreensão do problema pública como a hipertensão, a diabetes, a obesidade
dos TFLA. Felizmente, nos últimos anos, muitos (em que os termos evocarão ao cidadão comum
autores têm dedicado tempo e reflexão ao estresse outros como “açúcar”, “sal”, “exercício físico”,
e, principalmente, à gestão do estresse. Este “gorduras” – afinal elementos inerentes à acti-
elemento tão importante, tão presente e tão vidade preventiva). A utilização da palavra
condicionante das opções de vida, ocupou duran- "acidente" para definir os eventos de que estamos a
te muito tempo um lugar quase ridículo na falar é parcialmente responsável por esta atitude.
construção fisiopatológica dos TFLA, bem como Não foi por acaso que os autores de língua
de muitas outras situações de doença ou de falta anglo-saxónica optaram pela palavra "injury" em
de saúde. Importa analisar e sistematizar o vez de "accident", pois esta escolha não só permite
estresse e traçar os princípios mestres da sua boa fugir à noção fatalista da palavra "acidente", como
gestão e aproveitamento enquanto energia posi- também concentrar as atenções sobre o principal
tiva e mobilizadora, transformando-o em factor aspecto da questão e que importa enfatizar – as
de resiliência em vez de factor de risco. lesões, os ferimentos e os traumatismos que
Com a evolução tecnológica e as consequentes decorrem dos referidos acidentes. Por outras
mudanças nos estilos de vida – designadamente a palavras, se por absurdo (como nos filmes de
entrada das crianças em massa no mundo dos desenhos animados ou de super-heróis), um
adultos desde idades muito precoces (inclusiva- indivíduo não fosse minimamente afectado
mente no mundo laboral) e a ausência de um quando caísse do alto de um prédio ou quando
espaço próprio infantil para crescerem -, os riscos fosse atropelado por um camião, o acontecimento
aumentaram ou pelo menos tornaram-se mais em si – o "acidente" afinal –, deixaria de nos
"acessíveis" à maioria das crianças e dos adoles- interessar em termos de problema de saúde. As
centes. Os acidentes passaram assim a fazer de tal suas consequências, ou seja, os traumatismos,
modo parte da nossa vida quotidiana que, por ferimentos e lesões resultantes da queda do
impregnação e habituação, deixaram de nos tocar prédio ou do atropelamento é que representam a
no plano colectivo – só somos verdadeiramente fonte de preocupação e de interesse.
afectados se nos atingem directamente ou pelo Infelizmente, a língua portuguesa não tem
menos a quem nos está próximo. uma palavra que expresse totalmente o que se
Por outro lado, a própria palavra "acidente" pretende. A palavra “ferimento”, por exemplo,
desencadeia mecanismos psicológicos adaptati- exprime mal as consequências de um afogamento.
vos tendentes a integrar o conceito como associa- “Traumatismo” não descreve bem o que se passa
do a fatalismo, determinismo, um acontecimento no decurso de uma intoxicação. A palavra “lesão”
200 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

será pouco adequada para o que resulta da nasce razoavelmente “inacabado” do ponto de
introdução de um corpo estranho. Porém, o que vista de maturação neuro-sensorial sendo portan-
encontramos nos serviços de urgência, nas to muito dependente do meio que o rodeia e da
consultas, nos cuidados intensivos, em casa, são protecção da sociedade. O desenvolvimento do
traumatismos, ferimentos e lesões causados por sistema nervoso central, até atingir a soma
um agente ambiental. extraordinária de um bilião de sinapses, prolonga-
Deveremos, pois, fazer um esforço para come- se após o nascimento, fundamentalmente no pri-
çar a usar, tanto quanto possível, uma terminolo- meiro quinquénio da vida. Por outro lado, para
gia mais correcta, com vista a reforçarmos e além da estrutura neurológica há a construção da
simplificarmos a compreensão do cerne do personalidade, a qual vai depender muito do
problema. A expressão "traumatismos, ferimentos ambiente nos seus diversos níveis, numa estreita
e lesões acidentais" parece a mais adequada aos relação, quer com o meio, quer interpares. Os
objectivos subjacentes às acções preventivas; e óptimos resultados da utilização das próprias
poderá chegar o dia em que as pessoas, interro- crianças como orientadoras do tráfego à saída de
gadas sobre o significado da palavra "acidente", uma escola demonstram bem o efeito estruturali-
respondam "cintos de segurança", "leis anti- zante positivo sobre os colegas, em contraponto
álcool", "protectores de tomadas", etc.. ao efeito negativo, por exemplo, dos desafios
A maioria das definições enferma um erro lançados também por colegas: "aposto que não és
substancial: o carácter "não premeditado" ou capaz de fazer isto ou aquilo!".
"inesperado" da situação, e a consequente falência É o ambiente que se deve adaptar à criança e
da "vontade humana" em a evitar. Isto seria ao jovem e não o contrário.
admitir, à partida, a impossibilidade de qualquer Qualquer programa de prevenção dos TFLA
acção preventiva, o que não corresponde à verda- terá, assim, de tomar em consideração algumas
de: é falso que os acidentes sejam imprevisíveis, características básicas do desenvolvimento infan-
já que os comportamentos das crianças e dos til, componentes indispensáveis para a compreen-
jovens fazem parte integrante do seu desenvolvi- são das várias etapas "acidentais" da criança e
mento físico, emocional e cognitivo normal. Na para, em termos de cuidados em antecipação, pro-
realidade, 90% dos TFLA são ao mesmo tempo mover as indispensáveis modificações ambientais
previsíveis e evitáveis. para que os riscos possam ser minorados, desi-
Os próprios dados epidemiológicos mostram gnadamente.
que a tipologia dos acidentes corresponde a um • a descoberta progressiva de si próprio, dos
padrão estreitamente relacionado com os conse- outros, do espaço e dos objectos que estão no
cutivos estádios de desenvolvimento e com as primeiro círculo, ou seja, ao alcance da mão
actividades do dia-a-dia da criança e do adolescente. e da visão; depois dos que estão mais longe;
Assim, sendo este padrão previsível, existem bases a seguir dos que estão escondidos para além
para intervenção e para acções preventivas, quer de outros objectos até ao mundo na sua
através de meios abstractos como a informação e totalidade; esta evolução é acompanhada
educação no sentido de melhorar comportamentos por uma correspondente capacidade motora
individuais e padrões de comportamento colectivos e de locomoção (sentar, gatinhar, pôr-se de
(nos quais se incluem as modas e a pressão social e pé, andar, trepar, correr, juntar uma cadeira e
de grupo), quer sobretudo activamente, através da um banco, etc);
construção de um ambiente seguro onde o • a curiosidade progressiva;
desenvolvimento normal possa ter lugar sem se • o uso dos cinco sentidos para conhecer o
correrem riscos inaceitáveis. mundo, incluindo a necessidade imperiosa
de mexer nos objectos e de levar tudo à boca;
3. Compreensão do desenvolvimento • as características associadas às outras idades
e comportamento humanos – escolar, adolescência –, associadas ao cres-
cimento e à maturação, quer orgânica, quer
O ser humano, ao contrário de outros mamíferos, psicológica, emocional e da personalidade.
CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção 201

As limitações fisiológicas das capacidades da ção de acidentes, com a noção de que uma criança
criança, decorrentes dos estádios do seu desen- não é um adulto em miniatura.2
volvimento neuro-psíquico-sensório-comporta- Há que dar ao conceito de “exposição ao
mental, devem ser tidas muito em conta, como se risco” um lugar fundamental, embora se tenha de
pode demonstrar através de alguns exemplos: admitir que o mesmo risco se pode expressar de
– uma criança de três anos que se debruça numa modo diferente conforme os casos. Só assim se
varanda não tem a sensação da distância até ao poderá explicar – através de um modelo compor-
solo e atirar-se-á para os braços de alguém que, tamental – a maior frequência de acidentes nesta
lá de baixo, esteja a chamá-la; ou naquela situação. Nos acidentes desportivos,
– uma criança de dois anos não tem a sensação por exemplo, há maior envolvimento de rapazes,
da profundidade: verá uma escada na con- à excepção dos TFLA sofridos na prática de
tinuação directa e plana do corredor de onde equitação, justamente porque este desporto é mais
vem a correr; praticado por raparigas.
– uma criança com menos de dez anos de ida- A opção individual face aos diferentes riscos
de poderá não ter ainda capacidade para é igualmente um elemento a considerar: sabe-se,
atravessar uma rua sozinha pois frequente- por exemplo, que para a mesma viagem o risco de
mente não entende de onde vem o som, não mortalidade ao ir de automóvel é 20 vezes su-
consegue calcular a velocidade dos automó- perior ao de ir de avião, e 600 vezes superior ao da
veis nem a distância a que se encontram; viagem de comboio. Obviamente que uma escolha
dificilmente será capaz de integrar a infor- criteriosa e informada obrigará ao conhecimento
mação recebida quando olhar para a esquer- prévio dos diversos riscos e seus graus.
da e a que seguidamente recebe quando olhar Ainda no que respeita aos comportamentos, na
para a direita sem esquecer a primeira; demo- adolescência, por exemplo, vigoram em maior ou
rará mais tempo a efectuar qualquer tipo de menor grau comportamentos experimentais ou
análise da situação em termos espaciais e condutas de ensaio naturais e normais, desejáveis
sensoriais, designadamente a exclusão de e importantes em termos de integração no grupo e
estímulos inúteis para o objectivo em causa; de avaliação das próprias capacidades num corpo
e, finalmente, distrair-se-á com estímulos que que se transforma e num espírito que se auto-
para ela são mais atractivos, como um amigo, propõe desafios constantes.
uma bola ou qualquer outra coisa. Outro aspecto a ter em linha de conta nos
Incorporar na mentalidade dos pais e profis- jovens são os comportamentos para-suicidários,
sionais estes conceitos, cientificamente demons- ou seja, aqueles em que, por diversas razões de
trados e afinal tão óbvios, não é tarefa fácil. Acres- ordem psicológica, numa idade em que podem
ce que os comportamentos associados às diversas com maior frequência ocorrer momentos frágeis
características e etapas do desenvolvimento infan- ou de maior vulnerabilidade, mormente com
til não são passíveis de "correcção" substancial, dificuldade na gestão do estresse, o risco é assu-
nem o devem ser, pois que, sem eles, a criança ver- mido de uma forma excessiva, através de compor-
se-ia privada de elementos estimulantes da sua tamentos em que um dos resultados possíveis,
criatividade, inteligência, capacidade de resolver quiçá até o mais provável, é a morte ou pelo
situações, de experimentar, numa palavra, de cres- menos um traumatismo, ferimento ou lesão grave.
cer. Por outro lado, ver-se-ia também privada de Para compreender a génese dos acidentes juvenis,
um dos seus mais elementares direitos - o de "ser designadamente os que ocorrem com veículos de
criança", no que isso implica de exploração do
mundo, de actividades lúdicas, de ausência de 2. Um exemplo bem elucidativo do que não deve ser feito relata-se
responsabilidades não adequadas à idade. É assim em breves palavras: num parque de baloiços sueco, um rapaz caiu de
entre estes dois objectivos aparentemente contra- um escorrega e partiu uma perna apesar de o chão ser de areia. Após a
ocorrência, a associação de pais desenvolveu uma acção intensa para
ditórios – a necessidade de aprender experimen- que os escorregas e demais equipamentos fossem retirados do parque.
talmente e a necessidade de ser protegido – que As entidades locais cederam às pressões e assim aconteceu.
Imediatamente as crianças começaram a brincar e a trepar para locais
teremos de desenvolver os programas de preven- muito mais perigosos, com consequências muito mais graves.
202 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

duas rodas, é necessário compreender estes com- tuações, atitudes e comportamentos perfeitos: um
portamentos. condutor, por exemplo, é confrontado em cada
Todavia, convém não esquecer que os riscos milha (1,6 km) com 200 observações e 20 decisões.
são úteis e têm mesmo uma função individual e Admitindo uma incidência perfeitamente razoá-
social – a abolição total das actividades de risco vel de um erro em cada quarenta decisões (2,5%),
significaria o fim de diversos desportos profissio- tal corresponderia a um risco de um erro por cada
nais, da aviação civil, da profissão de bombeiro, três quilómetros percorridos (cerca de 100 erros
polícia e (porque não), se calhar mesmo, a de em cada viagem de cerca de 35 km. Com o cansaço
médico. ou sob o efeito do álcool, a relação erro/decisão
De qualquer forma, cada indivíduo vê-se a si aumenta. Este tipo de análise é de grande interes-
próprio como tendo comportamentos menos se, não apenas porque demonstra a incerteza da
arriscados (ou por outras palavras, mais "ajuiza- confiabilidade humana, repudiando a teoria de
dos") do que a maioria das pessoas o que, a ser que os "maus condutores" são “loucos”, “assas-
verdade, levaria a um problema matemático sinos” ou ambas as coisas, mas também porque,
complicado, do todo ser superior à soma das correlacionando este indicador com a velocidade,
partes – se perguntarmos a cada um de nós como pode calcular-se por exemplo que a 60 km/h
classificamos o trânsito diremos que é caótico e ocorrerá um erro em cada 5-6 minutos e que a 80
que as pessoas não respeitam as regras. Mas km/h ocorrerá um erro cada 3-4 minutos. Se
diremos também que se isso acontece é porque adicionarmos a isto o facto de o erro se manifestar
"nós" respeitamos as regras e os "outros" não. Os sobre uma máquina de várias centenas de quilos,
outros responderão da mesma forma, o que levará que desloca uma massa de muitas toneladas, não
decerto o investigador a não saír da “estaca zero”. sentida por quem está confortavelmente sentado,
Ao pretendermos estudar e equacionar o ouvindo música e à temperatura desejada, sem
comportamento das crianças urge também tomar ruído e com excelentes amortecedores, é facilmen-
em consideração os comportamentos dos adultos, te compreensível o enorme risco que um condutor
designadamente: tem de sofrer um acidente. Diríamos mesmo que
• incumprimento de regras; quase se torna estranho não haver mais acidentes.
• estar-se convencido de que se cumpre Mais: quantos condutores saberão, por exemplo,
mesmo quando não se cumpre; que a 90 km/h a distância média de travagem é de
• má gestão do estresse; pelo menos 45 metros? E que, em caso de piso
• incapacidade de lidar simultaneamente com molhado, esta distância sobe para praticamente o
todos os desafios para os quais se requer dobro? E quantos saberão que, desde que se tem a
atenção e acção; noção do perigo até se travar (“distância de
• alterações comportamentais motivadas pelo reacção”), decorrem 12, 19 ou 25 segundos,
cansaço, pela frustração, pela ansiedade, etc.. conforme a velocidade é 60, 90 ou 120 km/h e que,
Só assim se explica, por exemplo, a falência de portanto, é verdadeira a afirmação de que “se não
medidas que à primeira vista poderiam ser consi- se conseguiu travar a tempo é porque se circulava
deradas fáceis e ideais, como por exemplo dos a velocidade excessiva para as circunstâncias da
sinais avisadores da proximidade de uma escola, altura”? Poder-se-á quase perguntar: como é
de redução de velocidade ou as passadeiras e os possível autorizar-se a condução a indivíduos que
semáforos junto aos portões das escolas. Se as desconhecem a máquina que conduzem, os ele-
determinações subjacentes fossem inteiramente mentos que circulam e tantos outros indicadores
cumpridas, o problema dos atropelamentos esta- que eliminariam à partida a sua capacidade de
ria praticamente resolvido; mas a prática demons- manobrar outras máquinas industriais? Poderá
tra que assim não é. Ignorar este aspecto é perder jogar xadrez quem não conhece os nomes das pe-
uma parte essencial para a compreensão global do ças, os seus movimentos e os objectivos e regras
problema. do jogo? Ou ser cirurgião quem nunca estudou
Por outro lado, não se pode exigir de seres im- anatomia ou utilizou um bisturi?
perfeitos, como os seres humanos, análises de si- Só será possível gizar e aplicar efectivamente
CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção 203

medidas de prevenção dos acidentes e consequen- Cornell, referiu que o homem interage com os
temente dos TFLA, se houver uma profunda com- diversos fluxos de energia que o rodeiam –
preensão das características do comportamento gravitacionais e mecânicos, radiantes, térmicos,
humano, quer em termos de "laboratório", quer na eléctricos e químicos. As trocas de energia, quando
vida real, perante os estímulos de ordem vária e não equilibradas, podem causar traumatismos,
perante o estresse. ferimentos e lesões. Assim, a melhor forma de
classificar os acidentes seria de acordo com o tipo de
4. O ambiente como factor energia envolvida. O problema de classificação de
fundamental alguns tipos de acidentes que não se encaixavam
em nenhum destes tipos de energia – como os
Não nos podemos esquecer de que os agentes afogamentos, a asfixia ou as lesões pelo frio – foi
envolvidos na prevenção dos TFLA – dos legis- resolvido por Haddon ao incluir o conceito de
ladores aos médicos, dos pais aos políticos, dos "agentes negativos", os quais se explicariam pelo
educadores aos arquitectos, etc. – pertencem à défice de elementos energéticos essenciais como o
espécie humana, são de "carne e osso" e, como tal, oxigénio ou o calor, nestes tipos de TFLA.
comportam-se humanamente, quer no que toca à Os estudos de Haddon constituem marcos
riqueza da sua criatividade, quer na fraqueza das essenciais para a compreensão inovadora dos aci-
suas falhas e lacunas. dentes. A sua matriz, cruzando horizontalmente
Assim, sem eliminar completamente a res- três fases (antes, durante e depois do acidente)
ponsabilidade individual – quer das crianças e com quatro elementos verticais (hospedeiro, ve-
jovens, quer sobretudo das famílias – deve ctor, ambiente físico e ambiente sócio-económico)
atribuir-se o maior peso a outros factores. permite explicar os vários condicionalismos e fac-
Hugh De Haven, um piloto de aviões da I tores que tornam cada acidente um caso diferente,
Guerra Mundial e sobrevivente de uma queda do com resultados diferentes:
avião que tripulava, dedicou-se a estudar a razão • na fase "antes" encontram-se os diversos fac-
pela qual algumas pessoas, sofrendo o mesmo tipo tores que fazem com que o acidente vá
de acidente (neste caso a queda), não sofriam ocorrer – por exemplo, segundo os quatro
praticamente qualquer lesão enquanto outras elementos verticais mencionados, o hospe-
faleciam. Os seus estudos levaram à conclusão de deiro que está ébrio, os travões do carro que
que não era a força da queda, per se, que infligia as funcionam mal, a estrada que tem uma
lesões, mas sim o ambiente estrutural que controla- curva mal desenhada e a atitude permissiva
va a desaceleração da força e a sua distribuição pelo da sociedade perante o álcool e a condução;
corpo. De Haven concluiu então que "se não fosse • na segunda fase, "durante", estão os elemen-
possível evitar a queda, pelo menos poderiam ser tos que determinam se o acidente (que entre-
tomadas medidas para reduzir o impacte e distribuir tanto ocorreu) dá ou não origem a um
as pressões de modo a aumentar as hipóteses de traumatismo, ferimento ou lesão – no exem-
sobrevida e modificar o tipo de lesões, quer ao nível plo vertente, e ainda segundo os quatro
da aviação, quer do transporte em terra". parâmetros verticais: os ocupantes da viatu-
Hugh de Haven foi, assim, o primeiro investi- ra usam cinto de segurança?, o carro é pe-
gador a compreender a importância dos limiares queno ou é grande?, o carro bate numa
traumáticos e a possibilidade de redistribuir e árvore ou num monte de feno? existe ou não
redimensionar a energia dos impactes por forma a uma lei que reforce o uso de cintos?;
torná-los menos agressivos para o corpo humano. • a terceira fase ("depois") contém elementos
Este princípio serviu de base ao uso do cinto de que determinam se a gravidade das conse-
segurança, aos air-bags e às mudanças estruturais quências pode ser minorada: A hemorragia é
nas carrocerias e habitáculos dos automóveis. Ou importante? Os primeiros socorros chegaram
seja, o problema dos TFLA passou assim a pertencer rapidamente? Os cuidados intensivos são
também ao domínio da biomecânica. Gibson, um eficientes? A sociedade investiu num sistema
psicólogo experimental da Universidade de de emergência médica?
204 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Para Haddon, modificando um ou alguns des- bientais a efectuar, de preferência nos locais onde
tes parâmetros teria implicações nas consequên- elas devem ter lugar.
cias de um acidente. Daí a importância de, por exemplo, incre-
Através da legislação, da sua fiscalização, da mentar a visitação domiciliária para cuidados de
utilização das tecnologias para alterar a conce- antecipação nesta área da prevenção, desde que os
pção e o fabrico dos produtos, os técnicos de di- agentes sejam preparados convenientemente.
versas áreas têm como objectivo evitar o contacto Os meios de comunicação constituem, por
do ser humano com quantidades de energia que outro lado um poderosíssimo meio de transmis-
lhe possam causar lesões e até a morte. Reside aí são de mensagens, de informação e de modelação
a chave da prevenção dos TFLA. de comportamentos (bem como de criação de ne-
Obviamente que não deve ser retirada ao ser cessidades), nomeadamente através de programas
humano a sua quota parte da responsabilidade. Se informativos, educativos, lúdicos ou de entreteni-
a energia de um impacte de um automóvel com mento.
uma árvore, por exemplo, é independente do con-
dutor e depende, sim, do cinto de segurança, da 5. Estratégias
estrutura do automóvel, da velocidade, do peso,
do tamanho da árvore, da travagem, de a coluna A construção de um meio ambiente de qualidade
do volante ser colapsável ou não, etc., também que permita o desenvolvimento harmonioso da
não restam dúvidas de que a atitude de o con- família e dos cidadãos é da responsabilidade de
dutor optar por conduzir sóbrio ou ébrio, ou de todos nós, requerendo um trabalho multi – e
colocar ou não o cinto de segurança, pode ser transdisciplinar.
decisiva para a sua ocorrência ou para as suas A prevenção dos acidentes passa por um pro-
consequências. Só que, em vez de uma acção "edu- grama centrado na comunidade, de acção am-
cativa" que é apenas informativa e muitas vezes biental, no qual os médicos deverão, evidente-
assustadora ou punitiva, as modificações no mente, desempenhar um papel de relevo, sendo
sentido de actuar "pensando segurança" fazem-se que não se deverão considerar os detentores
através de uma aprendizagem comportamental exclusivos do protagonismo.
que se baseia no exemplo, no ensino, na moda, e Alguns TFLA podem ser prevenidos através de
que tem de se iniciar muito precocemente, tal uma acção global, nacional ou internacional, como
como a higiene oral, o lavar das mãos, ou cumpri- certas intoxicações (se houver legislação e
mentar os pais e os amigos. Daí a prioridade que cumprimento desta no que se refere às embalagens
deve ser dada às crianças e adolescentes, grupos de segurança), ou acidentes com a criança como
etários estes que estão numa fase eminentemente passageiro do automóvel (por exemplo, se a lei
formativa da sua vida. Só incorporando a se- referente ao transporte correcto for cumprida).
gurança nos gestos banais e nos actos instintivos Outros que têm a sua génese em inadequações
poderá haver uma certa garantia de êxito. Não nos urbanísticas e arquitectónicas, necessitam de uma
podemos esquecer de que a larga maioria dos abordagem local (é o caso dos atropelamentos à
acidentes ocorre, quer numa normalíssima situa- porta das escolas, dos TFLA sofridos em parques
ção do dia-a-dia, quer numa situação de estresse, infantis, em quedas de varandas, afogamentos em
e que, em ambas, o "catálogo" das recomendações piscinas ou rios) e exigem transformações
de segurança não está presente na mente das ambientais de tipo estrutural.
pessoas. Em alguns países, como a Suécia, foi possível
A educação para a prevenção dos acidentes (graças a uma acção sistemática integrada, ini-
deverá, assim, privilegiar os meios mais adequa- ciada ainda na década de 50 que reuniu as
dos à interiorização das mensagens (e não apenas autoridades oficiais, organizações não governa-
o "bombardeamento" do alvo com mensagens) mentais, companhias de seguros e forças-vivas da
para o que são indispensáveis a utilização das sociedade) uma redução muito significativa no
técnicas de comunicação e de marketing, o con- número de óbitos e na morbilidade por TFLA, até
tacto pessoal e a demonstração das alterações am- a Suécia se tornar o país com indicadores mais
CAPÍTULO 38 Traumatismos, ferimentos e lesões acidentais – o papel da prevenção 205

baixos de todo o mundo industrializado. Curiosa- O ponto 3) poderá ser concretizado com certas
mente, o ponto de partida no final da década de medidas a saber:
50, quando estas acções começaram a ter lugar, era A. Medidas com o objectivo de impedir a
muito semelhante ao de outros países, designa- troca de energia entre um e outro:
damente de Portugal. • evitar a situação ou abolir o agente (eliminar
Para tal, é indispensável, como já referimos, um pesticida perigoso)
conhecer a situação com vista a identificar • separar o agente da criança (vedar uma
prioridades, utilizando para tal a abordagem da piscina)
saúde pública, classificando os problemas se- • vigiar a criança para impedir o contacto,
gundo a sua prevalência/incidência, a sua trans- apesar de não haver separação (acompanhar
cendência (a vários níveis) e a vulnerabilidade às uma criança de casa à escola)
diversas acções e medidas. • informar a criança dos riscos (educação para a
Será também indispensável fazer uma ampla segurança)
revisão da literatura e consultar peritos de várias
instituições para identificar quais as medidas e B. Medidas que reduzem a troca de energia
acções que são verdadeiramente eficientes, se- ou melhoram a recepção da energia
parando-as das que, embora aparentemente efi- • reduzir a quantidade ou a agressividade do
cazes, não se traduzem muitas vezes por uma agente (reduzir a temperatura máxima da água
melhoria da situação. canalizada)
Outro aspecto fundamental é não desenvolver • modificar a situação e o agente (embalagens
programas demasiado alargados. "Prevenir os de segurança)
acidentes" é um conceito demasiado vago para ser • aumentar a resistência da criança (usar
entendido em termos práticos e, novamente, cadeira de segurança no automóvel)
podendo desencadear a noção de falsa-segurança. • treinar a criança para melhor enfrentar o
Em cada local haverá que identificar por ordem de agente (aprender a nadar)
prioridade quais os tipos de acidentes que estão a
produzir mais TFLA e hierarquizá-los de forma a Para além destas, é essencial desencadear
iniciar programas para os mais frequentes, mais também as medidas que, uma vez ocorrido o
graves, com maior vulnerabilidade às medidas e TFLA, poderão permitir a prevenção secundária e
acções, com maior relação benefício/custo. terciária.
Será igualmente fundamental ampliar a infor-
mação sobre os acidentes e os TFLA, de modo a Notas importantes:
sensibilizar o público, designadamente sobre as • algumas medidas devem ser tomadas “de
prioridades e as medidas propostas, a fim de obter uma vez”, como a compra por exemplo de
uma maior adesão dos cidadãos. O envolvimento um fogão no qual não haja aquecimento da
destes na definição do problema, em toda a sua porta – é relativamente fácil concretizar este
extensão, e a sua colaboração enquanto técnicos grupo de medidas (consideradas evidente-
mas também como seres humanos com experiên- mente a acessibilidade, disponibilidade e ou-
cia acumulada, não só é fundamental como tros factores);
representa o reconhecimento de um direito legí- • outras deverão ser repetidas todos os dias,
timo. como colocar o cinto de segurança –
Para além disso, no sentido de produzir as podendo, contudo ser estabelecidas desde
necessárias modificações ambientais: 1) há que que se crie o hábito;
fazer um levantamento dos recursos materiais e
humanos; 2) analisar através da matriz de 6. Legislação
Haddon quais os pontos fracos da cadeia de cada
TFLA, a fim de os "partir"; 3) redimensionar o A integração de Portugal na União Europeia
contacto entre a energia (agente + situação) e a reforçou o naipe legislativo português, pela
vítima. transposição para o Direito Interno do nosso País,
206 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

das directivas e normas europeias. Poder-se-á beçados pelos nórdicos mas também na Holanda,
dizer que, globalmente, Portugal dispõe de um Reino Unido, Alemanha e outros) a definição de
conjunto leis que, se levadas à prática, poderiam padrões sociais de exigência mesmo na ausência
contribuir para reduzir de forma muito evidente o de legislação na perspectiva do bem-estar da
número de acidentes e de TFLA. Há, no entanto, população em idade pediátrica.
alguns problemas que subsistem – a segurança no
transporte colectivo de crianças ou o uso do 7. Consciencialização dos cidadãos
capacete de bicicleta.
O problema principal no processo legislativo É imperioso aumentar o reconhecimento e a
reside no atraso registado na regulamentação das consciencialização da população e de todos os ní-
leis, (condição essencial para a sua aplicabilidade) veis dos sectores público e privado relativamente
dizendo respeito, por exemplo, ao espaço entre as à necessidade do controlo de TFLA. A natural
grades de uma cama de bebé, à altura dos degraus lentidão do processo de interiorização de concei-
de uma escada ou à altura das janelas. Refira-se, a tos novos não deverá ser impedimento à transmis-
propósito, que as Câmaras Municipais e os Ser- são de mensagens que são consideradas correctas,
viços de Saúde, designadamente, não dispõem pelo que as campanhas de educação para a saúde
ainda de meios legais para controlar aspectos e de chamada de atenção para os problemas,
essenciais relacionados com a construção de deverão incluir os TFLA (nas suas vertentes de
edifícios e com o ambiente onde as crianças vão prevenção e, cuidados de saúde agudos e reabi-
viver. litação). Claro está que, dadas as reticências que
Na Suécia, apesar de a utilização de actualmente são levantadas a estes processos,
dispositivos para transporte de crianças ter tido designadamente no que se refere à sua eficácia e
início quando Olof Palme era Ministro dos eficiência, eles deverão ser bem elaborados, com
Transportes, no final dos anos 60, por pressão dos extensa utilização das técnicas de comunicação
pediatras encabeçados por Ragnar Berfenstam, e existentes e com uma noção clara do que será
existindo programas de aluguer e outros que importante transmitir.
generalizaram o acesso a estes dispositivos (sendo Os profissionais estão frequentemente alheados
o grau de utilização de praticamente 100%), a do problema ou das formas de o resolver. Quantos
legislação só foi produzida em 1988, numa altura arquitectos e engenheiros não conhecem ou não
em que qualquer pai ou mãe suecos já não utilizam a legislação existente relativa aos materiais
admitiriam a hipótese de transportar incorrecta- de construção e à segurança da construção?
mente os filhos. Quantos médicos ignoram os ditames da segurança
No Reino Unido, foi em 1959 que, pela primei- no que toca aos medicamentos? Quantos tóxicos são
ra vez, se levantou no Parlamento a questão do vendidos sem um alerta para as condições de utili-
uso de cinto de segurança; em 1973 foi elaborada zação e armazenamento? etc.. O ensino/ apren-
a primeira proposta formal mas só em 1981 a lei dizagem da segurança deverá começar quando
foi aprovada. Passaram, pois, muitos anos. Se este começa o de outras áreas mas, dentro do percurso
lapso de tempo pode ser considerado grande e de formação profissional, importa investir mais e
levar a uma perda inútil de vidas e a TFLA melhor, em quantidade e qualidade.
evitáveis, por outro lado permite que, desde que Em suma, os acidentes custam tantos ou mais
bem utilizado, o processo legislativo seja acom- anos de vida e tanto sofrimento e dinheiro como o
panhado pela população e o articulado legal conjunto das doenças cardiovasculares e do cancro.
entendido e aceite. Levam a incapacidades permanentes. Contudo, um
A existência de Provedorias da Criança, com pouco à margem da preocupação dos cidadãos.
tanto sucesso na Escandinávia, e a inclusão dos
aspectos de segurança e prevenção dos TFLA no BIBLIOGRAFIA
capítulo dos Direitos da Criança e dos Direitos do American Academy of Pediatrics. Committee on Injury and
Cidadão (designadamente nos direitos do consu- Poison Prevention: Children in Pick up Trucks. Pediatrics
midor) permitiu também em muitos países (enca- 2000; 106: 857-859
CAPÍTULO 39 Intoxicações agudas 207

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2004; 114: e 43-50 junto de pertubações daí resultantes.
Na sua forma aguda, trata-se de situações classi-
camente abordadas no capítulo sobre Urgências e
Emergências. De acordo com estudos epide-
miológicos, cerca de 3/4 dos casos surgem em
crianças com menos de 5 anos (de forma aciden-
tal) enquanto cerca 1/4 dos casos após a referida
idade (em geral de forma voluntária e inten-
cional, sobretudo na pré-adolescência e adoles-
cência).
As exposições acidentais, susceptíveis de pre-
venção através de educação cívica e campanhas
de esclarecimento, têm, na maioria dos casos,
consequências bem menos temíveis (1,4 % de
mortalidade) que as intoxicações de origem vo-
luntária (6% de mortalidade) o que se justifica,
nesta última circunstância, pela exposição a
maior número de tóxicos e a doses mais elevadas
ingeridas.

Etiopatogénese e semiologia

Algumas particularidades caracterizam o risco na


criança mais jovem: maior susceptibilidade à
hipóxia e à falência respiratória (devido a taxas
metabólicas mais elevadas e a menores reservas
compensatórias), à desidratação por perdas insen-
síveis mais significativas, e à hipoglicémia devido
a escassez de reservas de glicogénio.
Na criança mais jovem a substância em causa é
mais facilmente identificável, embora a quanti-
dade o seja menos (Quadro 1). Se mais do que
208 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Substâncias potencialmente tóxicas

Agentes frequentemente envolvidos


Paracetamol Gases, fumos e vapores
Produtos de limpeza Analgésicos e antipiréticos
Benzodiazepinas e antidepressivos Cáusticos
Álcool Antidepressivos
Antiasmáticos Tóxicos cardiovasculares
Anti-histamínicos Drogas de abuso (adolescentes)
Anti-inflamatórios
Pesticidas

uma criança está envolvida, há que partir do Abordagem terapêutica


princípio de que cada uma tomou a quantidade
máxima possível e não o contrário. Na mais velha, A maioria da crianças apresenta-se assintomática
poderão não ser óbvios nem o(s) produto(s), nem no serviço de urgência, sendo necessário um
as quantidades, devendo ser investigadas todas as período de observação determinado pela situação
hipóteses e circunstâncias, incluindo as drogas de clínica com que se depara. A metodologia de abor-
abuso. Em ingestões deliberadas deve fazer-se o dagem deve compreender:
rastreio, não só dos tóxicos comuns, mas também 1. Ressuscitação: a primeira preocupação deve-
de outros menos óbvios que ponham em risco a rá ser a estabilidade ventilatória (incluindo a pro-
vida. tecção das vias aéreas) e circulatória. Aquando da
transferência para uma unidade de cuidados mais
Manifestações clínicas diferenciados deverá acautelar-se essa estabilidade.
e exames complementares 2. Descontaminação: na possibilidade de con-
taminação cutânea é imprescindível a lavagem
O Quadro 2 discrimina um conjunto de sintomas total, incluindo o cabelo e os olhos. Nas ingestões,
e sinais relacionáveis com a exposição a determi- não é preconizada a administração de antieméti-
nadas substâncias. Tais sinais e sintomas integram cos e a lavagem gástrica não deve ser feita de roti-
determinadas síndromas (s) sendo que determina- na. Este último procedimento apenas tem indi-
da sintomatologia obriga a estabelecer o diagnós- cação se a apresentação do caso fôr muito pre-
tico diferencial com as situações assinaladas por coce, estando contraindicado nas ingestões de
(DD). corrosivos e substâncias voláteis (hidrocarbone-
A natureza, a quantidade e as circunstâncias tos). De referir a necessidade de assegurar a pro-
do contacto devem ser tomadas em conta, incluin- tecção das vias aéreas.
do a possibilidade de abuso ou negligência. A administração de carvão activado (15-30
Em todas as ingestões potencialmente tóxicas a gramas “per os”) é útil na maioria das ingestões,
avaliação deve compreender, para além do exame mas não deve ser feita se a mesma anular, por
geral (que inclui o neurológico, da pele e mucosas, adsorção, a acção de antídotos orais tais como a N-
pesquisa de ruídos intestinais e de sinais de acetilcisteína.
retenção vesical), uma atenção especial aos sinais 3. Aumento da excreção - Doses repetidas de
vitais dada a possibilidade de alterações respi- carvão activado (0,5 g/Kg de 6/6 horas “per os”):
ratórias e cárdio-circulatórias. para carbamazepina, barbituratos, dapsone, quini-
A avaliação laboratorial compreenderá sempre no, teofilina, salicilatos, amanita phalloides,
um painel bioquímico de base. Os restantes preparações de libertação lenta, digitálicos, fenilbu-
exames deverão basear-se no padrão sintoma- tazona, fenitoína, sotalol, piroxicam. É ineficaz para
tológico para confirmar ou excluir a situação clíni- álcoois, óleos de essências, ferro, lítio e lixívia.
ca e guiar o tratamento. – Alcalinização da urina com bicarbonato de
CAPÍTULO 39 Intoxicações agudas 209

QUADRO 2 – Síntomas e sinais relacionáveis com intoxicações agudas e diagnóstico diferencial

Sindroma (S) ou Sintomas e sinais Causas


diagnóstico diferencial
(DD) com
Anticolinérgica (S) Hipersecreção exócrina, sede, rubor, Alcalóides da beladona, alguns cogumelos,
midríase, hipertermia, retenção urinária, anti-histamínicos, antidepressivos tricícli-
delírio, alucinações, taquicardia, insuficiên- cos, escopolamina
cia respiratória
Colinérgica (S) Hipersecreção exócrina, incontinência Insecticidas organofosforados e carbamatos,
(muscarínica e urinária, náuseas, vómitos, diarreia, fascicu- alguns cogumelos, tabaco, envenenamentos
nicotínica) lações musculares, miose, fraqueza muscu- por aranhas “viúvas negras”
lar ou paralisia, broncospasmo, taquicardia
ou bradicardia, convulsões, coma
Extrapiramidal (S) Tremor, rigidez, opistótono, torcicolo, disfo- Fenotiazidas, haloperidol, metoclopramida
nia, crises oculógiras,
Hipermetabólica (S) Febre, taquicardia, hiperpneia, prostração, Salicilatos, alguns fenóis, triatilina, clor-
convulsões, acidose metabólica fenoxi-herbicidas
Opióides (S) Depressão do SNC, hipotermia, hipotensão Todos os opióides, propoxifeno, heroína
arterial, hipoventilação, miose
Simpaticomimética (S) Excitação, psicose, convulsões, hipertensão Anfetaminas, fenilciclina, cocaína, “crack”,
arterial, taquipneia, hipertermia, midríase fenilpropanolamina, metilfenidato, teofili-
na, cafeína
Abstinência (S) Cólicas abdominais, diarreia, lacrimejo, Cessação de álcool, barbituratos, benzo-
sudação, “pele de galinha”, bocejos, diazepinas e opióides
taquicardia, prostração, alucinações
MCAD, doença de Colapso, hipoglicémia não cetótica Etanol
armazenamento de
glicogénio (DD)
Insuficiência hepática Insuficiência hepática aguda Paracetamol
idiopática (DD)
Cetoacidose diabética Hiperglicémia, cetose, depressão do SNC Acetona; teofilina
(DD)
Convulsão febril (DD) Depressão do SNC; tremor, febre MDMA (“Ecstasy”)
Pneumopatia (DD) Hipertermia, taquipneia, início súbito Salicilatos

Abreviaturas: MCAD – Medium – Chain Acyl CoA Dehydrogenase; MDMA – Metileno- Dioxi – Metanfetamina; SNC – Sistema Nervoso Central

sódio a 8,4% (1-2 ml/kg/dia i.v. para manter pH – Remoção do tóxico (em unidades de cuida-
urinário> 7,5): para salicilatos, barbituratos, isoni- dos intensivos) por:
azida, ácido diclorofenoacético. • Diálise: moléculas com baixo peso molecular
– Irrigação intestinal completa (administração (para salicilatos, metanol, etilenoglicol, vancomi-
entérica de uma solução electrolítica osmotica- cina, lítio, isopropranolol).
mente equilibrada de polietileno glicol – 30 • Hemoperfusão: para tóxicos com solubili-
ml/Kg/ hora – para induzir fezes líquidas, dade baixa na água, grande afinidade para o
continuando tratamento até que as emissões rec- adsorvente, rapidez de equilíbrio dos tecidos peri-
tais sejam claras): para substâncias que não são féricos para o sangue e baixa afinidade para as
adsorvidas pelo carvão activado, tenham trânsito proteínas plasmáticas (carbamazepina, barbitu-
intestinal lento e apresentem risco de vida. ratos e teofilina)
210 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Tóxicos e antídotos

Tóxico Antídoto
Benzodiazepinas Flumazenil
-bloqueantes Adrenalina(infusão), glucagom
Monóxido de Carbono Oxigénio
Tetracloreto de Carbono N-acetilcisteína
Digoxina Anticorpos antidigoxina
Ferro Desferroxamina
Isoniazida Piridoxina, bicarbonato de sódio
Lítio Substituição salina, dopamina
Metemoglobinémia Azul de metileno
Metanol Etanol
Etilenoglicol Fomepizol
Metoclopramida Prociclidina
Opióides Naloxona
Organofosforados Atropina, pralidoxina, toxogonina
Paracetamol N-acetilcisteína
Tiroxina Propranolol
Anticolinérgicos Fisiostigmina
Sulfonilureias Octreotido
Antidepressivos tricíclicos Bicarbonato de sódio

• Hemofiltração: para remoção de moléculas Emerg Med Clin North Am 2003; 21: 101-119
com grande peso molecular (aminoglicosídeos, Crocetti M, Barone MA. Oski’s Essential Pediatrics.
teofilina, ferro e lítio). Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
Nota: há substâncias que tornam inúteis as téc- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
nicas extracorporais: benzodiazepinas, antide- Henry K, Harris CR. Deadly ingestions. Pediatr Clin North Am
pressivos tricíclicos, fenotiazidas, clorodiazepóxi- 2006; 53: 293-315
do e dextropropoxifeno. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
4. Antídotos: a utilização dos antídotos Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
(Quadro 3) deve ser guiada pela suspeita especí- Saunders, 2011
fica e pode constituir prova terapêutica. McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
Prevenção Michael JB, Sztajnkrycer MD. Deadly pediatric poisons: nine
common agents that kill at low doses. Emerg Clin North
Apesar de o diagnóstico precoce e as medidas de Am 2004; 22: 1019-1050
suporte conduzirem a uma recuperação na maio- Riordan M, Rylance G, Berry K. Poisoning in children. Arch
ria das situações, torna-se obrigatório falar na pre- Dis Child 2002; 87: 392-410
venção e na abordagem psicossocial das intoxi- Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph’s Pediatrics.
cações e acidentes em geral; todas as noções gerais New York: McGraw-Hill Medical, 2011
explanadas no capítulo sobre traumatismos, feri-
mentos e lesões acidentais têm perfeito cabimento
no âmbito das intoxicações (capítulo 38).

BIBLIOGRAFIA
Barry JD. Diagnosis and management of the poisoned child.
Pediatr Ann 2005; 34: 937-946
Bryant S, Singer J. Management of toxic exposure in children.
CAPÍTULO 40 Viagens 211

40
deverão andar sempre identificadas e saber o que
fazer no caso de se perderem.
No avião o barotrauma é mais frequente
durante a descida, ocorrendo otalgia numa peque-
na proporção (cerca de 15%). Aos lactentes poderá
ser oferecido um biberão enquanto as crianças mais
VIAGENS velhas poderão mascar pastilha elástica ou soprar
um balão. O uso de vasoconstritores nasais é con-
Luís Varandas troverso.
Os acidentes são a principal causa de morte
entre os viajantes. A utilização de cadeiras de
criança nos automóveis, os cintos de segurança e o
Importância do problema respeito pelas regras de trânsito contribuem para a
redução da morbilidade e mortalidade pelos aci-
Por ano partem da Europa e dos Estados Unidos dentes de viação. O hotel ou a casa onde vão ficar
da América vários milhões de pessoas, tendo devem ser cuidadosamente inspeccionados para
como destino as regiões tropicais; de tal resulta identificar e corrigir possíveis causas de acidentes.
que muitas famílias se desloquem e residam por O contacto com animais deve ser evitado.
períodos mais ou menos longos nos países em Os afogamentos são a segunda causa de morte
desenvolvimento. Apesar de as crianças repre- em crianças viajantes. Os banhos só deverão ser
sentarem uma pequena percentagem dos via- autorizados em locais considerados seguros e de
jantes, os acidentes, doenças infecciosas cos- fácil supervisão por parte dos pais. Só a água sal-
mopolitas, e outras, próprias de regiões tropicais, gada e a água clorada das piscinas são considera-
constituem de facto um risco para quem se deslo- das seguras. A exposição solar nas horas de maior
ca para essas regiões. Embora nalgumas situações calor e/ou prolongada deve ser evitada.
seja aconselhável o recurso a uma consulta de
aconselhamento pré-viagem a cargo de um médi- Alimentos e bebidas
co ou equipa experiente em Medicina das Viagens,
na generalidade das situações o pediatra deve A água deve ser sempre desinfectada [duas a qua-
estar apto a prestar esclarecimentos à família. No tro gotas de uma solução de cloro (hipoclorito de
Hospital Dona Estefânia existe desde 2002 uma sódio a 2-4% ou vulgar lixívia pura) por litro de
consulta de aconselhamento à criança e à família água], ou fervida durante três a cinco minutos;
que pretendam viajar para regiões tropicais. (Nota: pode optar-se pela engarrafada que é considerada
Uma vez que este capítulo contém matéria relacionada mais segura. As bebidas carbonatadas são de baixo
com a Parte de Infecciologia, sugere-se ao leitor a risco, mas não se deve adicionar gelo obtido a par-
respectiva consulta). tir de água não tratada. A carne, o peixe e os vege-
tais devem ser bem cozinhados e ingeridos ainda
Preparação da viagem quentes. Os vegetais a comer crus devem ser lava-
dos e mergulhados em soluções de iodo ou cloro
A viagem deverá ser preparada com o máximo durante 20 minutos. Os frutos devem ser descasca-
cuidado e com o conhecimento tão completo quan- dos de preferência pelo próprio.
to possível do local de destino. Os pais deverão
estar esclarecidos antecipadamente sobre possíveis Protecção contra insectos
problemas que possam ocorrer e estar preparados
para os resolver. Para a tradicional pergunta “e se?” Casas com ar condicionado, redes mosquiteiras nas
deverão ter a resposta preparada. Sempre que pos- janelas e nas camas (de preferência impregnadas
sível, a viagem deverá ser preparada com as crian- com permetrina), insecticidas em “spray” ou de li-
ças o que implica alteração das rotinas diárias dis- bertação lenta devem ser usados para protecção de
cutidas previamente. Durante a viagem as mesmas toda a família. As roupas de cor clara, facilitando a
212 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Precauções no uso de repelentes duração de acção é de quatro a oito horas. O


Quadro 1 resume algumas precauções a ter com os
• Aplicar apenas na pele exposta repelentes.
• Não inalar, ingerir ou permitir o contacto com os olhos
• Não aplicar repelentes nas mãos das crianças, para Vacinas
evitar contacto com a boca e com os olhos
• Usar calças e camisas de manga comprida aplicando No que respeita às vacinas do programa nacional
repelente na roupa de vacinação (PNV), as anti poliomielite, tríplice e
• Nunca aplicar repelentes em feridas ou na pele irritada anti Haemophilus influenzae tipo b podem antecipar-
• Não os usar em excesso, pois aplicações muito fre- se para as 6, 10 e 14 semanas ou completar-se a pri-
quentes não aumentam a eficácia (uma aplicação movacinação com intervalos de quatro semanas.
exerce efeito durante 4-8 horas) A vacina anti-sarampo isolada ou, se não for
• Remover o repelente, ao regressar ao hotel/casa possível, combinada (sarampo, rubéola e para-
todite) pode administrar-se a partir dos seis meses
de idade. Se administrada antes do ano de idade
visualização dos insectos, as camisas de manga deve manter-se o esquema habitual de vacinação
comprida e calças em detrimento dos calções, são com mais duas doses.
outras medidas de protecção individual contra a A vacina conjugada antimeningocócica do sero-
picada dos insectos. As crianças podem ainda usar grupo C é recomendada do segundo modo: 2 doses
repelentes. O mais eficaz e menos tóxico é o DEET (aos 3 e 5 meses de idade) e reforço aos 15 meses. A
(N,N-dietil-meta-toluamida) em concentrações não vacina anti-hepatite B pode ser administrada aos 0,
superiores a 30%. Para alguns autores, até aos 12 1, 2 com reforço aos 12 meses.
anos de idade, esta não deve ultrapassar os 10%; e Das vacinas não incluídas no PNV (Quadro 2),
em crianças com idade inferior a dois anos deve ser as vacinas anti-encefalite japonesa, vacinas anti-
efectuada apenas uma aplicação diária. A sua febre tifóide, meningocócica e rábica são, habitual-

QUADRO 2 – Vacinas não incluídas no PNV disponíveis em Portugal

Vacina Esquema recomendado Inicio da eficácia Reforço


Cólera 0, 1-6 semanas (> 6 anos) 7 dias 3 anos
(Dukoral®) 0, 1-6 sem, 1-6 semanas(2-6 anos) 6 meses
Encefalite japonesa 0, 7, 21 a 28 dias, sc 10 a 14 dias 1 - 4 anos
Febre amarela1 Toma única, sc 10 dias 10 - 10 anos
Febre tifóide Toma única, im 7 a 10 dias 2 - 3 anos
Hepatite A2 (Havrix® Júnior
e Adulto; Epaxal®) Toma única, im 2 - 4 semanas 6 - 24 meses
Meningocócica polissacárida Toma única, im 15 dias 3 - 5 anos
Pneumocócica polissacárida Toma única, im (?) 3 anos
Pneumocócica conjugada
(Prevenar®) 2, 4, 6, 15-18 meses, im (?) (?)
Raiva 0, 7, 21, 28 dias após a 3ª dose 2 - 5 anos
Rotavírus
Rotarix® 2, 4 meses (?)
RotaTeq® 2, 4, 6 meses
Varicela Duas doses (?) (?)
(Varilrix®; Varivax®) separadas, no mínimo, 4 semanas

Abreviatura: sc = subcutânea; im = intramuscular; ? = assunto em debate


1
Países que exigem a vacina a todos os viajantes: Angola, Benin, Burkina Faso, Camarões, República Centro Africana, Congo,República Democrática do Congo, Costa do Marfim, Guiana Francesa, Gabão,
Gana, Libéria, Mali, Níger, Ruanda, S. Tomé e Príncipe, Serra Leoa, Togo, Zimbabué; 2 pode ser administrada mesmo na véspera da partida.
CAPÍTULO 40 Viagens 213

mente recomendadas a quem permaneça por lon- doses e a de 5 serótipos em três doses; em ambas,
gos períodos em regiões endémicas. com intervalo mínimo de 4 semanas, a partir das
A vacina antifebre amarela é recomendada a seis semanas e, somente até às 12 semanas de
todos os viajantes para as zonas endémicas de idade.
África e América do Sul, podendo ser exigida pelas A vacina antivaricela não é recomendada como
autoridades locais. Está contraindicada nas crian- rotina embora possa ser administrada nos casos de
ças alérgicas ao ovo e imunocompremetidas. viajantes de longa duração para áreas muito iso-
A vacina anti-hepatite A é recomendada para ladas. Trata-se duma vacina de vírus vivo atenuado
quem viaja para todas as regiões tropicais e subtrop- indicada para crianças com idade superior a 12
icais, independentemente da duração da estadia. meses de idade (2 doses com 4 semanas de interva-
A vacina anticolérica (Dukoral®), tem a van- lo mínimo). (Quadro 2) (Consultar Parte XXIX e
tagem de conferir protecção cruzada contra a diar- Capítulo 116).
reia do viajante causada por algumas estirpes de E
coli. Profilaxia da malária
A vacina antipneumococo poderá ser recomen-
dada a crianças viajantes para regiões com difícil Em áreas de sensibilidade à cloroquina (Resochina®‚)
acesso aos serviços de saúde. Relativamente aos (América Central, Caraíbas, raras zonas da América
dois tipos destas vacinas comercializadas em do Sul e Médio Oriente), esta mantém-se como
Portugal, cabe salientar o seguinte: 1) A vacina com primeira escolha.
polissacáridos contendo 23 serótipos está indicada Nas áreas de resistência à cloroquina (África,
em crianças com idade superior a 2 anos (dose Sudoeste Asiático, Polinésia, bacia do Amazonas) o
única, 0,5 ml por via IM ou SC); 2) a vacina conjun- fármaco de primeira escolha é a mefloquina
gada com 7 serótipos pode ser administrada a par- (Mephaquin®‚); como alternativa pode usar-se a
tir dos 2 meses de idade com intervalos de 4 a 8 atovaquona/proguanil (Malarone®‚) e a doxiciclina
semanas; às crianças com idades entre 1-2 anos são (Quadro 3).
recomendadas, apenas, 2 doses, sem reforço. A A associação cloroquina (Resochina®‚) e
vacina anti-rotavírus poderá ser administrada sem- proguanil (Paludrina®‚) (o Savarine®‚ contém os
pre que um lactente com idade inferior a 3 meses se dois fármacos) pode ser usada em áreas sem resis-
desloque para regiões tropicais. Com efeito, nas tência ou de resistência intermédia. O Malarone®‚ e
regiões tropicais a infecção gastrintestinal ocorre o Savarine®‚ encontram-se nalguns locais onde fun-
durante todo o ano, ao contrário do que acontece cionam Consultas do Viajante; e o Malarone®‚
nos países de clima temperado, com pico de inci- pediátrico, apenas, no Hospital de Dona Estefânia
dência nos meses mais frios. em Lisboa.
Em Portugal estão comercializadas duas marcas Nenhum tratamento profiláctico é totalmente
de vacinas diferindo pelo número de serótipos, seguro, razão pela qual o diagnóstico precoce e o
podendo coincidir a sua administração com as do tratamento imediato e adequado são fundamentais
PNV. A de 2 serótipos é administrada em duas em caso de doença. Viagens que impliquem esta-

QUADRO 3 – Fármacos utilizados na profilaxia da malária

Fármaco Dose Esquema de profilaxia


Atovaquona/proguanil 3,1 a 5,7 mg/kg de atovaquona/dia Um dia antes da partida até sete depois
Cloroquina# 5 mg/kg de cloroquina base/semana Uma semana antes até quatro depois
Doxiciclina§ 1,5 mg/kg/dia Uma semana antes até quatro depois
Mefloquina* 5 mg/kg/semana Uma semana antes até quatro depois
Proguanil 3 mg/kg/dia Um dia antes até quatro semanas depois

#contraindicada na presença de deficiência de G-6-PD (deficiência de desidrogenase da glucose-6-fosfato), retinopatia, epilepsia, psicose e miastenia gravis; §contraindicadas em grávidas e crianças com
menos de oito anos de idade; *contraindicada em casos de epilepsia, perturbações psiquiátricas e distúrbios da condução cardíaca.
214 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 4 – Autotratamento da malária (OMS)

Profilaxia Autotratamento
Nenhuma Cloroquina (áreas de P vivax)
Mefloquina
Quinino
Atovaquona/proguanil
Artemether/lumefantrina*
Cloroquina ou cloroquina/proguanil Mefloquina
Quinino
Mefloquina Quinino**
Quinino+doxiciclina
Doxiciclina Mefloquina
Quinino

* não disponível em Portugal; ** reiniciar profilaxia com mefloquina uma semana após a última dose de quinino

dias prolongadas em regiões isoladas e com defi- Consulta após regresso da viagem
cientes cuidados de saúde poderão justificar o
autotratamento na suspeita de uma crise de Esta consulta recomenda-se sempre que a estadia
malária. Os fármacos a utilizar dependem da área tenha sido prolongada, sobretudo em meio rural,
geográfica, da circustância de a criança estar já sub- ou se tenham registado algumas problemas de
metida a profilaxia e do respectivo fármaco saúde. A criança que regressa doente ou adoece
(Quadro 4). Não existe ainda experiência suficiente logo após o regresso deve ser avaliada, de imedia-
sobre a utilização de atovaquona/proguanil e to, independentemente da duração e do local da
artemether/ lumefantrina para autotratamento nos estadia. Contudo, não deve ser esquecido que o
casos em que a profilaxia está já em curso com out- período de incubação das várias doenças é muito
ros antimaláricos. variável (Quadro 5). O conhecimento da epidemi-

QUADRO 5 – Períodos de incubação médios de algumas doenças prevalentes em regiões tropicais

Curto Intermédio Longo Muito Longo


(< 1 semana) (1-4 semanas) (1 a 6 meses) (2 meses a anos)
Tripanossomose Amebose Ascaridose Cisticercose
(cancro de inoculação) Brucelose Buba Equinococose
Chikungunya Doença de Chagas Hepatite B Fasciolose
Cólera Febres hemorrágicas Hepatite C Filariose
Dengue Febre tifóide Leishmaniose cutânea Leishmaniose vísceral
Diarreia aguda Giardiose Loiose Lepra
Ébola Hepatite A Malária Schistosomose
Febre amarela Hepatite E Pinta SIDA
Febre recorrente Leptospirose Raiva Tripanossomose (gambiense)
Legionelose Malária Teniose
Peste Riquetsioses Tracoma
Salmonelose Schistosomose aguda Tricuriose
Shigelose Estrongiloidose
Tétano Tripanossomose (rhodesiense)

Adaptado de Mahmoud AAF, ed. Tropical and Geographical Medicine. Singapore: McGrawHill, 1993.
CAPÍTULO 41 Acidentes de submersão 215

41
ologia e da clínica das doenças mais prevalentes
nos locais de estadia da criança permitirá estabele-
cer a lista de diagnósticos mais prováveis e a sub-
sequente investigação laboratorial.

SÍTIOS A CONSULTAR NA INTERNET


(acesso Outubro de 2013) ACIDENTES DE SUBMERSÃO
• www.who.int.ith (World Health Organization)
• www.cdc.gov.travel (Centers for Disease Control and José Ramos e Isabel Fernandes
Prevention, USA)
• www.istm.org (International Society of Travel Medicine)
• www.csih.org (Canadian Society for International Health)
• www.paho.org (Organização de Saúde Pan-Americana) Definição e importância do problema

BIBLIOGRAFIA O afogamento é a morte por asfixia nas primeiras


Fox TG, Manaloor JJ, Christenson JC. Travel-related infections 24 horas após submersão ou imersão em líquido.
in children. Pediatr Clin North Am 2013; 60: 507-528 No quase afogamento há sobrevivência por
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson mais de 24 horas após a submersão. Este tipo de
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, problema comporta elevado número de casos
2011 fatais e de sequelas graves nos sobreviventes.
Koren G, Matsui D, Bailey B. DEET-based insect repellents: Salienta-se que a lesão neurológica devida a
safety implications for children and pregnant and lactating hipóxia-isquémia constitui a causa principal de
women. CMAJ 2003;169: 209-212 mortalidade e de morbilidade a longo prazo.
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA
(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Aspectos epidemiológicos
Medical, 2011
Stauffer WM, Konop RJ, Kamat D.Traveling with infants and De acordo com dados da OMS, estima-se que cerca
young children. Part I: Anticipatory guidance: travel prepa- de 450.000 pessoas morrem anualmente em todo o
ration and preventive health advice. J Travel Med 2001; 8: mundo (cerca de uma pessoa por minuto) o que o
254-259 que corresponde a uma taxa de mortalidade apro-
Stauffer WM, Kamat D.Traveling with infants and children. ximada de 6,8/100.000. Na Europa a referida taxa
Part 2: immunizations. J Travel Med 2002; 9:82-90 ronda 3-4/100.000; em Portugal a incidência esti-
Stauffer WM, Konop RJ, Kamat D.Traveling with infants and mada é 2-3/100.000. De facto, a incidência actual
young children. Part III: travelers' diarrhea. J Travel Med não é perfeitamente conhecida na medida em que
2002; 9:141-150 muitos casos fatais não são notificados. Salienta-se,
Stauffer WM, Kamat D, Magill AJ.Traveling with infants and a propósito, que as medidas de reanimação imedia-
children. Part IV: insect avoidance and malaria prevention. tas precoces por pessoal treinado antes da admis-
J Travel Med 2003; 10:225-240 são hospitalar reduzem a mortalidade relacionada
Varandas L. Viajar com crianças para regiões tropicais. Lisboa: com as consequências cardiorrespiratórias.
GSK editora, 2007
Fisiopatologia

Ocorrendo submersão todos os órgãos e tecidos


correm o risco de hipóxia-isquémia. Em minutos a
hipóxia-isquémia pode levar a paragem cardíaca a
que se poderá associar laringospasmo e aspiração
de água para a via respiratória, o que contribui
para agravar a hipóxia.
Seja por aspiração ou por laringospasmo surge
216 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

a hipoxémia com consequente morte celular. A lidade de existência de água perto da área do aci-
mortalidade e morbilidade estão, no essencial, dente, pais distraídos ou vigilantes ainda que mo-
dependentes da duração da hipoxemia. No quase mentaneamente, rapidez e silêncio.
afogamento são frequentes o aparecimento de com- Haverá que inquirir sobre antecedentes de
plicações multiorgânicas resultantes da hipoxémia, epilepsia, doenças cardíacas, traumatismos cervi-
seja directamente relacionada com a submersão ou cais e ingestão de álcool ou drogas.
secundária a complicações, mais frequentamente Os sintomas e sinais habitualmente associados
pulmonares, cardíacas e as neurológicas. são: tosse, dispneia, sibilos, hipotermia, vómitos,
A hipovolemia é frequente por perdas de líqui- diarreia, arritmia cardíaca, alteração da consciên-
dos relacionadas com as alterações de permeabili- cia, paragem cardio-respiratória, morte. Haverá
dade vascular secundária à hipóxia. E a hipona- que avaliar a estabilidade cervical pela probabili-
tremia, quando se desenvolve, está mais rela- dade de acidentes com fractura das vértebras cer-
cionada com os líquidos deglutidos do que com os vicais. Haverá igualmente que detectar eventuais
líquidos aspirados; e, eventualmente com a sín- sinais de abuso e negligência.
droma de secreção inapropriada de hormona Em função do contexto clínico, poderá haver
antidiurética (SIHAD) no contexto de disfunção necessidade de proceder a:
pulmonar e ou do SNC. a) Monitorização contínua cardio-respiratória,
A nível pulmonar, que por alteração do surfac- da pressão arterial e da saturação O2-Hb
tante, quer por diluição do mesmo, o resultado é (oximetria de pulso), ECG.
uma acentuada diminuição da capacidade resi- b) Exames complementares: hemograma,
dual funcional, alteração na permeabilidade da gasometria, ionograma, enzimas hepáticas,
membrana alvéolo-capilar e consequente hipoxé- glicémia, doseamento de drogas e álcool.
mia, o que se pode verificar a partir de 1 a 3 c) Estudos imagiológicos: radiografia do
ml/Kg de líquido aspirado. tórax, do crânio e da coluna cervical, etc..
De referir o papel importante dos mediadores
inflamatórios, da hipersecreção nas vias respi- Procedimento
ratórias e da vasoconstrição no território da artéria
pulmonar originando hipertensão pulmonar. A actuação deve ser doseada de acordo com os
A hipoxémia, a acidose metabólica, e a hiperper- dados da história clínica e dos exames comple-
meabilidade vascular condicionam o aparecimento mentares.
de hipovolémia e disfunção cardíaca, e a breve trecho, • A medida prioritária é a administração de
hipotensão importante, muitas vezes irreversível. oxigénio suplementar a 100%, sempre e em
As questões relativas à submersão em água primeiro lugar.
muito fria (<5º C), água fria e água quente (>20º O uso de Ambú pode implicar a utilização de
C), água doce e água salgada são de nula relevân- pressões bastante superiores às habituais devido à
cia clínica.* As alterações osmóticas surgem acima baixa distensibilidade pulmonar, resultante do
de 22ml/kg aspirados, sendo que na maioria dos edema pulmonar, com compromisso do surfactante.
afogamentos não são aspirados mais de 5ml/kg. • Não esquecer a hipótese de lesão cervical e a
colocação de colar cervical.
Avaliação Pacientes com breves momentos de submersão
e sem sintomatologia podem regressar a casa após
A história clínica é importante e inclui a eventua- 4 a 6 horas de observação.
Pacientes com sinais de disfunção respiratória,
* Com efeito, na literatura tradicional era afirmado:1) a água salgada hipoxémia, alterações do estado de consciência ou
leva, por osmose, à passagem de água do espaço vascular para os pul- suspeita de abuso/negligência devem ser trans-
mões, com preenchimento alveolar e hipovolémia ;2) água doce, pelo
contrário, leva a absorção de água para o espaço vascular com conse- feridos para unidade de cuidados intensivos,
quentes hipervolémia e hemólise. Na prática tal não se verifica, pos- onde deverá proceder-se a:
sivelmente porque na maioria dos sobreviventes o tempo decorrido é
insuficiente para que se verique aspiração (suficiente) de água para • Entubação nasogástrica
provocar as referidas alterações. • Expansão vascular (soro fisiológico: 20
CAPÍTULO 41 Acidentes de submersão 217

ml/kg em 30 minutos) que, associada à oxi- Crianças em coma, continuam a ter um pro-
genação, resolve quase sempre a acidose gnóstico reservado.
metabólica.
• Entubação e ventilação mecânica se se veri- Prevenção
ficar dificuldade respiratória, alteração do
sensório, paO2 < 60 torr ou pH < 7,20. É fre- Segundo a Associação para a Promoção da Segu-
quente a necessidade de PEEP (pressão posi- rança infantil – APSI morrem anualmente em
tiva contínua no fim da expiração) elevada. Portugal, por afogamento cerca de 30 crianças por
• Algaliação ano. Ocorrem predominantemente em rapazes de
• Cateterização venosa central 1 a 4 anos e dos 15 a 19 anos. É importante notar
• Broncoscopia que por cada morte existirão cerca de 20 atendi-
Nota: Os doentes afogados em água muito fria, mentos em serviços de urgência e até 5 sobre-
< a 5ºC, devem ser observados com especial cui- viventes com alguma forma de deficiência.
dado. Devem ser aquecidos até atingirem temper- Quase sempre acidentais, as situações de
aturas normais ao mesmo tempo mantendo as afogamento podem ser prevenidas com medidas
manobras de reanimação. simples de fácil aplicação prática.
A monitorização da pressão intracraniana não • Bom senso e medidas simples: colocação de
parece ser útil nem necessária. portas de segurança, muros e redes, em
torno de poços, tanques, piscinas, etc..
Complicações • Mesmo sob vigia: as bóias devem ser evi-
tadas.
As complicações imediatas são as relacionadas • Adulto de vigia devendo saber nadar e actuar
com a hipóxia e acidose com repercussão sobre o em caso de acidente.
sistema cardiovascular, tendo em atenção a possi- • Banheiras, baldes e alguidares esvaziados
bílidade de disritmias e, em particular, fibrilhação após utilização.
ventricular e assistolia. Se a lesão cardíaca for • Nunca nadar só ou sem vigilância
muito grave o choque cardiogénico irreversível é NB – Crianças que sabem nadar constituem as de
uma possibilidade. maior risco pela sensação de segurança que trans-
As lesões do SNC dependem igualmente da mitem.
intensidade e duração da hipóxia. A sobrevivência
em estado vegetativo é uma complicação particu- BIBLIOGRAFIA
larmente grave. American Heart Association: 2005 AHA guidelines for car-
O quase afogamento associa-se muito fre- diopulmonary resuscitation and emergency cardiovascular
quentemente a pneumonia, e no caso da submer- care. Circulation 2005; 112 (suppl): IV-133-IV-138
são em piscina, a pneumonite. Bifrens JJ, Knape JT, et al. Drowning. Curr Opin Crit Care 2002;
8: 578-586
Prognóstico Helfaer MA, Nichols DG. Roger’s Handbook of Pediatric
Intensive care. Philadelphia:Lippincott Williams & Wilkins,
O prognóstico está directamente relacionado com 2009
a duração e magnitude da hipóxia e com a quali- Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
dade dos cuidados pré-hospitalares. Os doentes Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
que necessitam de ressuscitação cárdio-respi- Quan L, Cummings P. Characteristics of drowning by different
ratória no hospital têm uma taxa elevadíssima de age groups. Inj Prev 2003; 9: 163-168
mortalidade e morbilidade (35-60% morrem no Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA
serviço de urgência). Dos sobreviventes, em 60 a (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
100% poderão registar-se sequelas neurológicas. Medical , 2011
Nos doentes admitidos em estado vigil no Ruza F. Tratado de Cuidados Intensivos Pediátricos. Madrid:
serviço de urgência o prognóstico depende de Norma-Capitel, 2003
eventuais complicações pulmonares. http://www.apsi.org.pt/index.html, (acesso, Setembro 2013)
218 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

42
1 mês e 1 ano de idade. Nos Estados Unidos a
SMSL ocorre em cerca 1,3/1000 nado-vivos.
Desconhece-se a sua verdadeira dimensão em
Portugal.
A ocorrência de morte súbita é rara no primeiro
mês de vida, aumenta até um valor máximo entre
SÍNDROMA DA MORTE SÚBITA os 2 e os 4 meses, sendo de referir que cerca de
95% dos casos surgem antes dos 6 meses de idade.
DO LACTENTE Acontece geralmente no domicílio, sendo o
lactente encontrado morto no leito.
Hercília Guimarães As campanhas de sensibilização para colocar os
lactentes em decúbito dorsal no berço resultaram
numa acentuada diminuição da incidência da morte
súbita em vários países, embora esta ainda continue
Definição e importância do problema a ser a maior causa de mortalidade nos lactentes
após o período neonatal, como foi acentuado.
Em 1969 Beckwith e Bergman da Universidade de Após esta redução, o peso da exposição ao
Washington propuseram o nome de síndroma da tabaco, como factor de risco, aumentou.
morte súbita do lactente (SMSL), (SIDS – sudden No nosso país, foi efectuado um estudo retros-
infant death syndrome), que definiram como a pectivo dos casos autopsiados de lactentes vítimas
morte inesperada de qualquer recém-nascido ou de morte súbita, nos Institutos de Medicina Legal do
lactente (idade inferior a 1 ano), inexplicada pela Porto e de Coimbra, entre 1979 e 1994, que mostrou
história, exame físico, autópsia e investigação da um aumento do número de casos de 1974 a 1990,
cena da morte. com decréscimo a partir de 1992. Verificou-se um
De acordo com a definição deduz-se que se predomínio acentuado da síndroma da morte súbita
torna indispensável proceder a exame necrópsico do lactente no sexo masculino, entre ao 1 e 4 meses,
exaustivo em cada caso, pois trata-se de um diag- nos meses de Dezembro a Março, nos fins-de-sema-
nóstico de exclusão, que só poderá ser considerado na, no domicílio, em períodos de sono e à noite.
se o estudo realizado após a morte for adequado.
A morte súbita de uma criança, é, sem dúvida Etiopatogénese
alguma, um acontecimento brutal e devastador
para os pais, família, profissionais de saúde e Apesar de exaustiva investigação (laboratorial e
comunidade. clínica) sobre a etiopatogénese da SMSL, esta con-
A primeira referência escrita sobre morte súbi- tinua desconhecida, o que também limita uma
ta do lactente foi encontrada no Antigo Testa- adequada estratégia de intervenção.
mento. Posteriormente várias descrições surgi- A concepção actual de morte súbita do lactente
ram, sendo a maioria das vezes interpretadas é a de um acidente multifactorial, no qual vários
como homicídio ou sufocação na cama dos pais. aspectos serão considerados, tais como: 1) factores
Só no séc. XVIII se procurou distinguir entre genéticos/ constitucionais – maturação do contro-
morte súbita acidental e homicídio, através de lo das funções vitais (ritmo cárdio-respiratório,
uma investigação policial. Mais tarde, no séc. XIX, sono, imunidade, etc.), maturação essa, programa-
surgiu um estudo escocês que, pela primeira vez, da geneticamente, que se efectua nos primeiros
se dedicou à epidemiologia destas mortes. meses de vida, com importantes variações individ-
uais; 2) factores desencadeantes – as patologias
Aspectos epidemiológicos habituais desta faixa etária, numerosas e variadas,
por vezes acumuladas, nomeadamente infecção,
A SMSL, a causa mais comum de morte em refluxo gastresogágico, hipertonia vagal, hiperter-
lactentes nos países desenvolvidos, comparticipa mia; 3) factores predisponentes ligados ao ambi-
em cerca de 40 a 50% a taxa de mortalidade entre ente do lactente, como sejam, condições sócio-
CAPÍTULO 42 Síndroma da morte súbita do lactente 219

económico-culturais precárias, o tabagismo e a


posição de dormir no berço. Disfunção /imaturidade do tronco cerebral
O Quadro 1 discrimina os factores ambientais
associados a risco elevado de SMSL.
Apesar da etiologia multifactorial deste pro-
blema, a disfunção do tronco cerebral é considera- Sono/vigília cárdio-respiratória Ritmo
temperatura circadiano
da o factor mais importante na génese da SMSL
(Figura 1). Todas as crianças acordam durante o
sono calmo em resposta à hipercápnia, mas as cri-
anças normais acordam com uma pCO2 (pressão Apneia prolongada/ bradicardia
parcial de CO2) significativamente mais baixa.
Nos exames necrópsicos das vítimas de SMSL SMSL
observa-se astrogliose focal, anomalias dendríti-
cas e anomalias do desenvolvimento no tronco
FIG. 1
cerebral, havendo evidência de asfixia crónica em
66 % dos casos. Hipótese do controlo cárdio-respiratório para a SMSL.
Estudos recentes primitiram demonstrar carac-
terísticas genéticas diferentes nas crianças vítimas de SMSL em comparação com grupos de controle
(polimorfismos relacionandos com certos genes
QUADRO 1 – Factores de risco de SMSL designadamente nos implicados com o desen-
e ambiente volvimento do sistema nervoso autónomo, o
canais de sódio e potássio no miocárdio – por ex
Factores maternos e pré-natais SCN5A, KCNE2, KCNH2, etc. – e com a proteína
• Restrição do crescimento intrauterino transportadora da serotonina – 5HTT).
• Intervalo curto intergravidezes De salientar que, em crianças predispostas, o
• Separação marital risco de SMSL é maior nas primeiras 24 horas de
• Idade mais jovem vida.
• Estado sócio-económico precário O aumento da temperatura corporal e do
• Gravidez não vigiada ambiente associa-se, também como foi referido, a
• Subnutrição SMSL. Há interacções entre a regulação da tem-
• Toxicodependência peratura, sensibilidade dos químio-receptores,
• Tabagismo controlo cardíaco e o acordar.
• Alfa-fetoproteina sérica elevada no 2º trimestre da Estudos realizados ao nível dos neurotrans-
gravidez. missores no nucleus arcuato identificaram anoma-
lias nos respectivos receptores (défice de capaci-
Factores de risco do lactente dade de captação/ligação) com implicações fun-
• Posição de dormir (decúbito ventral e lateral) cionais no que respeita ao controlo autonómico da
• Ausência de uso de chupeta respiração e à capacidade de resposta a estímulos.
• Idade (2-4 meses) Nas crianças vítimas de SMSL foram encontra-
• Sexo masculino dos níveis elevados de interleucina 1-beta (IL-1B)
• Hipocrescimento no arcuato e nos núcleos vagais.
• Antecedentes de prematuridade Uma percentagem pequena de casos de SMSL
• Doença febril recente está associada a um prolongamento do intervalo
• Exposição ao fumo do tabaco (pré e pós-natal) QT (síndroma do QT longo), o que sugere que a
• Colchão do berço mole repolarização cardíaca também está prolongada,
• Dormir na cama dos pais ou com outra pessoa podendo condicionar o aparecimento de arritmia
• Aquecimento exagerado do quarto ventricular. (ver adiante nota sobre ALTE)
• Baixa temperartura do quarto / estação fria. Cabe aos pediatras em especial o estudo exaus-
tivo dos doentes dos grupos de risco, bem como o
220 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

correcto diagnóstico das causas de morte, com a Prevenção


realização sistemática da autópsia anátomo-clínica
ou médico-legal. Tivémos a oportunidade de Como foi referido, conhecem-se vários factores de
demonstrar que a autópsia modifica o diagnóstico risco de SMSL, classificados em pré-natais, neo-
clínico da causa de morte, ou acrescenta algo a este, natais e pós-natais. De todos eles, o que mais tem
em cerca de 30 % dos casos (dados não publicados). sido referido na literatura é a posição de dormir
Em suma, pode afirmar-se que o grande desa- no berço dos recém-nascidos e lactentes.
fio no âmbito da investigação sobre SMSL é Está demonstrado actualmente que a posição
procurar uma prova/exame complementar de em decúbito ventral no berço constitui um factor
rastreio que permita identificar as crianças com de risco (o risco relativo passa de 3,5 para 9,3) de
risco de morte por SMSL. Refira-se que os estudos SMSL. Esta relação foi sugerida, pela primeira vez,
polissonográficos não têm especificidade nem por Carpenter et al em 1965. Posteriormente vários
sensibilidade suficientes para serem recomenda- autores têm-se dedicado ao estudo da relação entre
dos por rotina na identificação de futuras vítimas posição no berço e risco de morte súbita.
de SMSL (capítulo 28). Estudos epidemiológicos demonstram que a
NOTA IMPORTANTE: A abordagem da publicidade contra a posição ventral permitiu
SMSL implica uma nota sobre a chamada ALTE reduções de SMSL entre 20 % e 67 %, sem aumen-
(sigla de apparent life-threatening event/episódio to do número de mortes por aspiração de vómito.
agudo com risco de vida ). Tal problema clínico Em Abril de 1992 a Academia Americana de
que não tem qualquer relação com SMSL, não con- Pediatria, baseada na avaliação cuidadosa dos
stitui um diagnóstico e pode surgir em lactentes estudos publicados, passou a recomendar o
com uma incidência ~0,05-1%; define-se pelo decúbito dorsal para os lactentes. Esta recomen-
aparecimento inesperado, súbito e alarmante para dação foi também publicada no mesmo ano, em
o observador, de um ou mais dos seguintes sinais: Portugal, pela Direcção Geral da Saúde e consta
apneia, cianose, rubor, palidez, alteração do tono do Boletim de Saúde Infantil e Juvenil.
muscular/hipotonia ou hipertonia. Por vezes o Recentemente Angeline Chong et al, demonstra-
evento é descrito como sufocação , engasgamento, ram que a posição em decúbito ventral tem um
ou aparência de morte iminente, verificando-se efeito mensurável no controlo circulatório, com
recuperação da normalidade com reanimação ou redução do tono vasomotor resultando em vaso-
estimulação. dilatação periférica, aumento da temperatura
A etiologia é variável (e controversa), sendo cutânea, hipotensão e taquicardia. Como o tono
mais frequente a associação com RGE, infecção vasomotor é fundamental no controlo circulatório,
das vias respiratórias inferiores (por ex. por o mesmo pode ser considerado um factor de risco
Bordetella pertussis e VSR), síndroma de QT de morte súbita.
longo, e convulsão. De acordo com a literatura Numa era em que a chamada Medicina Base-
consultada comprovou-se, nos casos de ALTE, ada na Evidência assumiu um papel importante
défice permanente da secreção de melatonina e valorizando os resultados de estudos epidemi-
maior frequência de aparecimento no período ológicos em situações em que a fisiopatologia não
diurno, ao contrário da SMSL. permite ainda uma explicação de certos fenóme-
Perante tal situação a criança deverá ficar nos, as provas acumuladas legitimam que nos
monitorizada durante 24 horas, estando indicados serviços e unidades assistenciais em que se pres-
exames complementares em função dos dados tam cuidados a recém-nascidos/lactentes , os mes-
colhidos pela anamnese e exame físico. mos sejam colocados no berço em decúbito dor-
De acordo com diversos estudos, e apesar da sal.Torna-se lógico, pois, que tais recomendações
independência do quadro descrito com SMSL, sejam feitas igualmente a pais e profissionais res-
existe risco mais elevado de SMSL nos casos de ponsáveis pela assistência a essas crianças, incluin-
mãe fumadora. Contudo, no que respeita à pre- do no ambulatório.
venção, a mesma comporta normas idênticas às Mas… na Medicina como no Amor nem sempre
aconselhadas para a SMSL.(ver adiante) nem nunca, e situações particulares existem em que
CAPÍTULO 42 Síndroma da morte súbita do lactente 221

há controvérsias como é o caso dos doentes com ta, não interferindo com a duração da amamenta-
refluxo gastresofágico: o decúbito lateral direito ção desde que introduzido após as 2-4 semanas de
promove esvaziamento gástrico mais rápido e o idade; 3) evicção do hiperaquecimento do
lateral esquerdo diminui significativamente o con- ambiente; 4) papel benéfico das imunizações sem
teúdo gástrico refluído. Nesta situação, a que se estabeleça uma relação de causa a efeito,
recomendação para a prevenção da morte súbita verificando-se no entanto que a SMSL é mais fre-
consiste em usar um colchão não mole, firme, bem quente entre os 2 e 4 meses.
adaptado às dimensões do berço, não cobrir A monitorização no domicílio só terá lugar em
demasiado o lactente – a roupa não deve ultrapas- casos seleccionados, pois constitui um factor de
sar os ombros e evitar o sobreaquecimento. O tipo estresse para a família, e não permite a detecção
de decúbito poderá, pois, ter prescrição médica da apneia obstrutiva, porque a detecção é feita por
variável em situações específicas, como o RGE. impedância torácica e não pelo débito nasal.
Em França, nas décadas de 80 e 90, com as cam- No Hospital de S. João, com o objectivo de co-
panhas realizadas contra a posição de decúbito nhecer a informação que os pais possuem relati-
ventral, para dormir, assistiu-se a uma descida dos vamente à morte súbita do lactente, foram realiza-
casos de morte súbita de 1500 casos em 1987, para dos 134 inquéritos a puérperas do Serviço de
500 em 1995, o que corresponde a uma diminuição Obstetrícia. Verificou-se um total desconhecimen-
de 2 % para 0,5 % na taxa de mortalidade por to desta entidade clínica em 28,5 % das mães,
morte súbita. sendo que 24 % consideravam que nada poderia
Em Portugal, a divulgação dos conhecimentos ser feito para evitar tal ocorrência. Apenas 35,8 %
sobre morte súbita do lactente e a formação dos das mães conhecia a associação da morte súbita
profissionais e pais não adquiriu a dimensão que do lactente com a posição deste no berço, e 1,5 %,
decorreu das campanhas realizadas noutros países com o consumo de tabaco pela grávida e/ou lac-
da Europa. No Boletim de Saúde Infantil é referido, tante. A posição de decúbito ventral no berço foi
nos conselhos aos pais, que o bebé deve ser colocado referida como a mais indicada por 2,2 % das mães.
“preferencialmente de costas”. Este aspecto, ainda Em igual percentagem as mães agasalham os fi-
motivo de admiração de muitos pais, é confirmado lhos em caso de febre, apenas 35 % afirmavam que
muitas vezes nas consultas de saúde infantil. o lactente deve ser despido em caso de febre, e
O decúbito dorsal permite ao bebé respirar o 14 % ministravam antipirético.
ar ambiente normalmente; em caso de febre pode Este estudo mostra que continua a ser essen-
facilmente libertar-se da roupa que o cobre, não cial a divulgação das recomendações sobre as es-
correndo o risco de se sufocar. Até aos 2 anos a tratégias de evicção dos factores de risco conheci-
criança deve dormir sobre um colchão firme, dos. Esta é uma função de todos os profissionais
numa cama de grades para evitar que respire o ar de saúde que devem dar informação e formação
expirado, e sem almofada ou fralda na mão. A aos pais, aproveitando o período de permanência
temperatura do quarto deve ser entre 18º e 20ºC e, nas maternidades. De referir que durante este
em caso de febre a mesma deve ser despida período os pais estão particularmente sensibiliza-
(arrefecimento físico). Os pais devem ser igual- dos para a aprendizagem de aspectos de pre-
mente informados dos malefícios do fumo do venção em saúde e de procedimentos como os
tabaco, que também está implicado como factor relacionados com normas de reanimação básica,
de risco de SMSL. Sabe-se que um recém-nascido de grande utilidade nos casos de ALTE
ou lactente privado do sono é mais vulnerável, Em Portugal, assiste-se actualmente a uma pre-
pelo que o seu sono deve ser respeitado. ocupação sobre esta problemática e será necessário
Recomendações recentes da AAP chamam a continuar: 1) a sensibilizar os médicos para um reg-
atenção para determinados aspectos que poderão isto adequado das causas de morte e 2) a levar a
contribuir para redução do risco, tais como: 1) ali- cabo Campanhas Nacionais de Prevenção da Morte
mentação com leite materno que permite um des- Súbita, no âmbito da educação para a saúde da
pertar mais fácil comparativamente ao que decor- população, que permitam, à semelhança doutros
re da alimentação com fórmula; 2) uso de chupe- países, uma diminuição do número de casos.
222 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

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PARTE VIII
Clínica da Adolescência
224 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

43
O critério cronológico, porém, não é o mais
correcto para classificar adequadamente um
adolescente. As acentuadas mudanças que ocor-
rem nas áreas – biológica, cognitiva, afectiva, e
social, estão estreitamente ligadas entre si, embora
nem sempre decorram em simultâneo; exemplifi-
ADOLESCÊNCIA, cando: um adolescente com crescimento e desen-
volvimento físico em fase adiantada pode apre-
CRESCIMENTO E sentar ainda características emocionais da faixa
etária anterior e vice-versa.
DESENVOLVIMENTO Por este motivo a adolescência corresponde a uma
fase da vida com grande vulnerabilidade em que se
Maria do Carmo Silva Pinto manifestam dúvidas e problemas que, a não serem
devidamente resolvidos, podem deixar marcas
importantes de imaturidade na pessoa adulta.

Definição e importância do problema Crescimento estaturo-ponderal

A adolescência (do latim adolescere, significando O ritmo acelerado de crescimento nesta fase é
crescer) corresponde a um período da vida carac- consequência da secreção de hormona de cres-
terizado por um crescimento e desenvolvimento cimento e dos esteróides sexuais (estradiol e
biopsicossocial marcados, o qual decorre entre o testosterona).
final do período de criança (~10 anos) e a adultícia. A paragem do crescimento, evidenciada pelo
Neste período ocorrem várias alterações a encerramento epifisário, é influenciada pela acção
diferentes níveis: das hormonas sexuais (testosterona e estrogénios),
• biológico – correspondendo a grandes mo- parecendo ser os estrogénios os responsáveis pelo
dificações anátomo-fisiológicas; encerramento das cartilagens de crescimento em
• psicológico – correspondendo à conquista da ambos os sexos.
identidade e à aquisição de autonomia; À medida que o amadurecimento sexual
• social – correspondendo à adaptação har- avança, a aceleração do crescimento diminui. Por
moniosa ao meio social. este motivo, na avaliação do crescimento do
A idade de início do amadurecimento físico, adolescente, deve relacionar-se a sua altura e idade
bem como o intervalo de tempo decorrido até à com o seu estádio de desenvolvimento sexual e a
aquisição de maturidade psicossocial plena, é idade óssea, para se poder determinar a potencia-
variável de indivíduo para indivíduo, com lidade de crescimento.
possibilidade de desfasamento, o que dificulta a Assim, um jovem pré-adolescente de 12 anos,
delimitação do começo e do fim da adolescência. com altura no percentil 3 (P3), mas sem mani-
Contudo, quer por motivos científicos(por ex. festações pubertárias, tem maior potencialidade
comparação de resultados de estudos), quer por de crescimento do que outro com a mesma altura,
motivos burocrático-administrativos (por ex. mas desenvolvimento mais acentuado dos carac-
realização de trabalhos, programação de serviços, teres sexuais secundários.
etc.),torna-se indispensável estabelecer limites O aumento estatural durante a adolescência
cronológicos de idade para este grupo. equivale a 20-25% da altura final do adulto; tal
Assim, a OMS em 1965 definiu a adolescência resulta, em primeiro lugar, do crescimento dos
como o período que se estende aproximadamente membros inferiores e, em segundo lugar, do
dos 10-18 anos, compreendendo três fases: crescimento do tronco. Esta situação pode ser
• dos 10 a 12 – adolescência precoce; traduzida ao estilo lúdico – pela verificação do
• dos 13 a 15 – adolescência média; seguinte: começam por deixar de servir os sapatos,
• dos 16 a 18 – adolescência tardia. depois as calças e, por fim, as camisolas.
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento 225

Como resultado deste importante crescimento pré-adolescente ocorre lentamente nos dois sexos,
do tronco, é frequente o aparecimento ou diminuindo na fase do pico de crescimento, e
agravamento de desvios da coluna – escoliose do chegando a ser praticamente nula no sexo mas-
adolescente e cifose juvenil. Por este motivo, o culino. Após esta fase, a deposição de gordura
exame da coluna deve sempre fazer parte da observação volta a aumentar, sendo então mais acentuada nas
do adolescente. raparigas do que nos rapazes.
As diferenças individuais no que respeita ao As preocupações com o peso surgem no
crescimento em estatura, da sua normalidade, e da adolescente quando o mesmo estabelece compa-
forma como se relacionam com a maturação ração com os seus pares; nas raparigas é mais
sexual, devem ser transmitidas ao adolescente de frequente a preocupação com o excesso de peso
forma a reduzir ao mínimo as preocupações que (sinto-me gorda…), enquanto nos rapazes com a
habitualmente surgem nesta fase de rápidas e escassez de musculatura (tenho pouco músculo…).
muito relevantes transformações corporais.
As preocupações com a altura surgem quando Crescimento de órgãos e sistemas
o adolescente se compara com os seus pares no seu
grupo de referência, sendo mais frequente no Na adolescência verifica-se o crescimento de
rapaz de estatura baixa e nas raparigas com vários órgãos, tais como coração, pulmões, fígado,
excesso de altura. baço, rins, assim como de glândulas: pâncreas,
O ganho de peso corresponde a cerca de 50% tiróide, suprarrenais, etc.; no tecido linfóide, por
do peso adulto final. outro lado, verifica-se involução.
O ritmo de aceleração do ganho em peso é Do crescimento do tecido ósseo resulta,em
semelhante ao do ganho em altura, sendo que a diversas regiões:
curva de velocidade de crescimento se inicia 1 ano – Aumento da estatura (o de maior magnitude)
e meio mais precocemente e com menor inten- – Aumento discreto dos ossos da cabeça e face,
sidade na rapariga do que no rapaz. com consequente modificação da expressão facial,
O pico de velocidade máxima em ganho de essencialmente devido à pneumatização dos seios
peso, ocorre cerca de 6 meses após o pico de frontais;
crescimento em estatura nas raparigas, enquanto – Crescimento do nariz e maxilar superior;
nos rapazes coincide no tempo. – Aumento da distância interescapular e do
No sexo masculino, a elevação ponderal pode diâmetro transversal do tronco, mais marcado no
chegar aos 6,5 Kg – 12,5 Kg por ano, em média 9,5 sexo masculino, devido ao facto de as células
Kg/ano, fazendo-se sobretudo à custa do aumento cartilagíneas das articulações do ombro respon-
da massa muscular. O número de células derem selectivamente ao aumento da testosterona;
musculares aumenta cerca de 14 vezes desde os 5 – Aumento da distância intertrocanteriana no
aos 16 anos, e as dimensões das células aumentam sexo feminino (alargamento da cintura pélvica)
até quase ao final da 3ª década de vida sob acção nas raparigas devido à maior sensibilidade das
dos androgénios. Por esta razão o homem tem, em células cartilagíneas da articulação coxo-femoral
regra, mais 30% de massa muscular que a mulher. ao aumento dos estrogénios.
O pico do crescimento muscular coincide com Assim, verifica-se : 1) aspecto de ombros largos
o pico de velocidade máxima de peso e de altura. tipicamente masculino, com relação diâmetro
No sexo feminino o aumento de peso é cerca biacromial/diâmetro bi-ilíaco mais acentuada no
5,5 - 10,5 Kg/ano, em média 8,5 Kg/ano, fazendo- rapaz; 2) aspecto de anca larga tipicamente
se fundamentalmente por deposição de gordura feminino com relação diâmetro biacromial/
sob a influência de estrogénios. Também se verifica diâmetro bi-ilíaco menos acentuada na rapariga.
acréscimo da massa muscular, mas em menor grau No sistema nervoso central ocorre uma ver-
do que no sexo masculino. Este facto é devido ao dadeira reconstrução do cérebro. Do início da
aumento do volume das células musculares, sem puberdade até aos 15 anos desenvolvem-se sobre-
aumento do número das mesmas. tudo as regiões cerebrais ligadas à linguagem; este
A deposição de gordura subcutânea na fase período é, por isso, ideal para a aprendizagem de
226 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

línguas. O cérebro da rapariga amadurece mais secundários – botão mamário, aumento dos
cedo do que o do rapaz. Os estrogénios têm um testículos e pénis e desenvolvimento do pêlo
papel importante nesta mudança. púbico e axilar e;
No rapaz o amadurecimento é mais tardio, o • pela conquista da capacidade reprodutora;
que é explicável pela síntese mais tardia dos 2. aceleração da velocidade de crescimento –
estrogénios a partir da testosterona. A maior parte pico de crescimento pubertário
das alterações do cérebro ocorre no córtex pré- 3. alterações da composição corporal resultan-
frontal – área responsável pelo planeamento a tes:
longo prazo, pelo controlo de emoções e pelo • do desenvolvimento esquelético, muscular,
sentido de responsabilidade. Esta área desenvol- modificação da quantidade e da distribuição da
ver-se-á até por volta dos 20-25 anos. Por este gordura corporal;
motivo o adolescente na hora de tomar uma • do desenvolvimento dos diferentes órgãos e
decisão nem sempre está apto para entrar em conta sistemas, nomeadamente dos aparelhos res-
com as informações de que precisa para o fazer piratório e cardiocirculatório, com aumento da
correctamente. Não se trata, pois, duma simples força e resistência física.
oposição aos pais, mas sim duma limitação bio- De facto, não se sabe o que realmente desen-
lógica. cadeia a puberdade. Num determinado momento
No que respeita aos olhos verifica-se um do amadurecimento global do organismo, o córtex
aumento maior no seu eixo sagital, o que justifica cerebral gradualmente começa a emitir estímulos
o desenvolvimento mais frequente da miopia para receptores hipotalâmicos produtores de
durante a fase de crescimento rápido pubertário. polipéptidos – factores libertadores – os quais
Sob a influência da testosterona, a actividade promovem, ao nível da hipófise anterior, a
da eritropoietina aumenta, o que explica, no rapaz, produção de gonadotrofinas hipofisárias. Estas,
valores mais elevados do número de eritrócitos , pela via sanguínea, vão estimular as gónadas
do hematócrito e da concentração de hemoglobina. femininas e masculinas com consequente pro-
A pressão arterial sofre um aumento conse- dução de hormonas sexuais as quais, em conjunto
quente às alterações fisiológicas do sistema com os androgénios suprarrenais, vão promover
cardiovascular próprias deste período, nomeada- as diferentes alterações orgânicas, finalizando a
mente expansão do volume plasmático, aumento diferenciação sexual (iniciada in utero) e o cresci-
do débito cardíaco e da resistência vascular mento estaturo-ponderal.
periférica, com estabilização da frequência car- Nos últimos 100 anos, devido à melhoria das
díaca. A avaliação da pressão arterial deve cons- condições de vida, nomeadamente no que se refere
tituir uma rotina da consulta de adolescentes de à nutrição, tem-se verificado um aumento da
modo a permitir um diagnóstico precoce de hiper- estatura final com antecipação da idade da me-
tensão arterial (Capítulo 46). narca. A este fenómeno evolutivo , observado
principalmente a partir do início do século XIX,
Desenvolvimento biológico chama-se aceleração secular do crescimento. Nas so-
ciedades ditas desenvolvidas ou industrializadas
À componente biológica das transformações de hoje tal fenómeno parece ter terminado pois,
características da adolescência dá-se o nome de nas últimas décadas, não se têm observado
puberdade. Assim, puberdade não é sinónimo de mudanças nos parâmetros de crescimento e de
adolescência, mas apenas uma parte integrante da maturação biológica.
mesma; trata-se, pois, dum epifenómeno da ado- A variabilidade individual e populacional
lescência, traduzido fundamentalmente pela existente – não só na idade de início da puberdade,
aquisição da capacidade de reprodução. mas também na duração, sequência, combinação e
Caracteriza-se por: dimensão das diferentes modificações corporais
1. desenvolvimento do aparelho reprodutor, – parece depender de vários factores, nomea-
objectivado: damente, carga genética, meio ambiente, nutrição,
• pelo aparecimento de caracteres sexuais padrão sócio-económico e estimulação sensorial.
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento 227

No sexo feminino a puberdade pode ter início Nesta fase, a jovem muitas vezes interroga-se
entre os 10-13 anos (em média aos 11 anos). No acerca da sua nova imagem.
sexo masculino as alterações surgem mais tar- No que respeita ao desenvolvimento mamário,
diamente, começando entre os 11-14 anos (em cabe referir algumas possíveis alterações associa-
média aos 12 anos). das sem significado patológico, tais como:
Enquanto alguns jovens têm o seu desenvol- – Assimetria mamária
vimento completo em 2-3 anos, outros têm-no em Considerada fisiológica no começo do desen-
4-5 anos. volvimento mamário, em cerca de 25% dos jovens
Assim, num grupo de adolescentes com a aquela mantém-se bem notória na idade adulta.
mesma idade cronológica, pode haver: Havendo repercussão psicológica, está indicada a
– jovens em que ainda não se começou a veri- terapêutica cirúrgica, mas somente após termina-
ficar sinais de puberdade; da a puberdade;
– jovens com amadurecimento sexual já inicia- – Hipertrofia mamária
do, ou até mesmo completo. É muito frequente, podendo ser exuberante e
O desconhecimento da normalidade desta causar problemas físicos (dores no pescoço, defeito
ocorrência pode causar grande ansiedade ao postural, parestesias) e psíquicos. No final da
adolescente e preocupação para a família, levando puberdade tende a diminuir; contudo, se os pro-
a situações de instabilidade e desconforto psíquico. blemas psicológicos se mantiverem, com tendên-
cia para isolamento e diminuição da auto-estima,
Desenvolvimento estará também indicada a terapêutica cirúrgica
e maturação sexual uma vez completado o crescimento.
– Hipoplasia mamária
Na puberdade a maturação sexual inclui o desen- O tamanho reduzido das mamas pode ser
volvimento das gónadas, dos órgãos da repro- constitucional, ou consequente a problemas nutri-
dução e dos caracteres sexuais secundários. cionais ou a défice hormonal. A terapêutica cirúr-
A designação de gonadarca refere-se ao aumento gica, quando indicada, também só deve ser
da glândula mamária, útero e ovários na rapariga, efectuada no final da puberdade.
e ao aumento dos genitais externos – testículos e Simultaneamente modificam-se útero, ovários,
pénis no rapaz; tal se deve, respectivamente, à trompa, vagina e vulva.
elevação dos níveis dos estrogénios na rapariga, e Os ovários crescem progressiva e lentamente
dos androgénios no rapaz. Na rapariga, a menarca desde o nascimento, verificando-se um aumento
ou aparecimento da primeira menstruação constitui superior nos meses que antecedem a menarca.
um marco importante do desenvolvimento sexual. Nesta fase, são várias as alterações dos genitais
O termo adrenarca refere-se ao aparecimento de externos da adolescente:
pelos púbicos, axilares e faciais devido ao aumento – O comprimento da vagina aumenta, com
dos androgénios suprarrenais. espessamento, protrusão e enrugamento dos
Todos estes dois fenómenos estão interligados pequenos lábios e desenvolvimento dos grandes
verificando-se uma associação no seu tempo de lábios.
aparecimento (Capítulo 181). – O pH da vagina diminui devido a produção
do ácido láctico pelos bacilos de Doderlein que, a
No sexo feminino partir de agora passam a fazer parte da flora
A primeira manifestação da puberdade é o vaginal normal.
aparecimento do botão mamário (cerca dos 9 anos) – Surge o corrimento vaginal de cor clara e
ou telarca; inicialmente unilateral, o aparecimento cheiro inespecífico; trata-se da leucorreia fisio-
de tal transformação no lado oposto surge lógica da adolescência, também resultado da
geralmente cerca de seis meses depois; pode haver estimulação estrogénica, com maior secreção do
dor local e, nalguns casos, a telarca pode ser muco cervical e maior descamação das células da
precedida de aumento da estatura. No mesmo mucosa vaginal.
ano, em regra, aparece o pêlo púbico. A menarca é um acontecimento tardio da pu-
228 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

berdade feminina. Ela ocorre após o pico de estatura, coincidindo com a fase ascendente da
velocidade máxima de crescimento, já na fase de curva.
desaceleração da curva de crescimento. A mudança de voz – típica do sexo masculino,
As adolescentes crescem em regra 3-4 cm nos mas tardia ,surge como consequência do aumento
2-3 anos que se seguem à menarca. das dimensões da laringe por acção dos andro-
O tempo que medeia entre o aparecimento do génios.
botão mamário e a menarca varia entre 2-5 anos. Ao nível da glândula mamária verifica-se um
Os primeiros ciclos menstruais são anovula- aumento do diâmetro e da pigmentação da aréola
tórios, o que justifica a irregularidade menstrual mamária. Contudo, numa proporção importante
típica dos dois primeiros anos pós-menarca. de adolescentes (cerca de 1/3), verifica-se conco-
Após este período, na sequência do amadureci- mitantemente aumento do tecido mamário –trata-
mento do eixo hipótalamo-hipofisário e maior se da ginecomastia pubertária; é bilateral e por
número de ciclos ovulatórios, os ciclos tendem a vezes dolorosa, restringindo-se ao aumento do
tornar-se regulares. tecido mamário sub-areolar; mede geralmente 2-
O aparecimento do pêlo púbico surge cerca de 3 cm de diâmetro, no máximo 4 cm. Móvel e de
seis meses após a telarca. Os pêlos axilares apa- consistência firme, ocorre transitoriamente (meses)
recem mais tarde, acompanhados do desenvolvi- na fase de crescimento estatural rápido, não sendo
mento das glândulas sudoríparas e consequente aderente à pele nem ao tecido celular subcutâneo.
aparecimento do odor e da transpiração caracte- Deve-se ao aumento dos níveis dos androgénios
rística do adulto. testiculares.
É importante tranquilizar o adolescente, infor-
No sexo masculino mando-o a esse respeito.
A primeira manifestação de puberdade no rapaz, A ginecomastia que não regride após 24 meses,
por vezes não perceptível, é o aumento do volume provavelmente permanecerá inalterada ao longo
testicular, seguindo-se o crescimento do pénis, dos anos.
primeiro em comprimento e depois em diâmetro. O aumento da glândula mamária superior a 4
O aparecimento do pêlo púbico ocorre mais cm, designado macroginecomastia, tem frequente-
tarde; e os pêlos axilares, faciais e do restante mente importantes repercussões fisiológicas no
corpo, aparecem depois. adolescente, pois a mama adquire características
A sequência habitualmente é: femininas. A regressão espontânea nestes casos é
– pêlo púbico, cerca dos 10-11 anos; rara, podendo estar indicada terapêutica cirúrgica.
– pêlo axilar, mais ou menos aos 12-13 anos O diagnóstico diferencial da ginecomastia faz-
– pêlo do restante corpo, mais ou menos aos 14- se com:
15 anos. – Adipomastia
A sequência do aparecimento dos pêlos faciais Trata-se de aumento da mama por acumulação
é a seguinte: primeiramente nos lábios superiores de tecido adiposo sub-areolar. É comum em jovens
junto às comissuras e, posteriormente, em toda a obesos pré-púberes ou púberes
extensão da parte superior do lábio superior; pos- – Ginecomastia patológica
teriormente na porção central , debaixo do lábio Contrariamente à pubertária, é rara.
inferior; e, por fim, estendendo-se a toda região Deverá admitir-se situação patológica sempre
mentoniana. que a mesma ocorra antes do início da maturação
Tal como no sexo feminino, o desenvolvimento sexual, ou após o final da mesma. A anamnese
das glândulas sudoríparas acompanha o cresci- deve incluir um inquérito sobre a ingestão de
mento do pêlo axilar. drogas; o exame físico deverá valorizar, designa-
A próstata, glândulas bulbo-ureterais e vesí- damente, a palpação abdominal e os genitais
culas seminais também apresentam crescimento externos (fígado e testículos); para esclarecimento
acentuado na puberdade. da situação poderá haver necessidade de exames
A espermarca – idade da 1ª ejaculação – ocorre complementares.
na fase de aceleração da curva de crescimento em As principais causas de ginecomastia patológica são:
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento 229

FIG. 1 FIG. 2
Desenvolvimento Pubertário Feminino: Critérios de Tanner. Desenvolvimento Pubertário Masculino: Critérios de Tanner.

– Drogas: – Desenvolvimento mamário na rapariga (M)


hormonas, fármacos psicoactivos, agentes car- – Desenvolvimento dos genitais externos no
diovasculares, antagonistas de testosterona, tuber- rapaz (G)
culostáticos, citostáticos, drogas ilícitas,etc.; – Desenvolvimento do pêlo púbico em ambos
– Doenças endocrinológicas: os sexos (P).
hipogonadismo, hipotiroidismo, tumores da
hipófise, supra-renal, testículos, e do fígado. A classificação compreende 5 estádios (corres-
– Doenças crónicas: pondentes a outras tantas características) referen-
hepática (cirrose, hepatoma), renal (insufi- tes a cada parâmetro (de 1 a 5), e designados como
cência renal, tumor, etc.). se segue: M1 a M5, G1 a G5 e P1 a P5. As Figuras 1
e 2 são elucidativas. (DGS, 2002)
Avaliação da maturação sexual Por definição o estádio 1 corresponde à ine-
xistência de desenvolvimento dos caracteres
A sequência do desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários e o estádio M2/G2 ao apare-
sexuais secundários foi sistematizada por Tanner cimento de botão mamário / aumento do volume
(estádios de Tanner) entrando em conta com os testicular > 4 ml (este último avaliado com o
seguintes parâmetros: chamado orquidómetro de Prader (conjunto de
230 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

esferas de volumes variáveis) e eixo maior do tes, nomeadamente quando se pretende esclarecer
testículo > 2,5 cm (medido com uma simples os jovens quanto a dúvidas ou problemas relacio-
régua). nados com prática desportiva – nomeadamente,
Na rapariga, a menarca define o estádio P5. A tipo de actividade desportiva mais aconselhada,
avaliação da maturação da glândula mamária, dos maior risco de lesões por exercício físico eventual-
genitais externos e do pêlo púbico deve ser feita mente excessivo e não adequado relativamente a
individualmente, pois poderá não se verificar determinado período de crescimento.
concordância entre estádios. Por exemplo: uma 2. Uma vez que a composição corporal do
jovem pode estar em estádio 3 da mama e 2 de pêlo adolescente varia em função da sua maturação
púbico – isto é M3 P2 e um rapaz pode estar em sexual, os estádios de Tanner devem ser utilizados,
estádio 2 de genitais externos e estádio 1 de pêlo não só para avaliar e monitorizar o desenvolvi-
púbico – isto é G2 P1. mento pubertário, o pico de velocidade de cresci-
A classificação dos estádios de desenvolvi- mento e a idade da menarca, mas também para
mento mamário depende das características e não interpretar valores laboratoriais, como por exem-
do tamanho das mamas, o qual é determinado por plo, hemoglobina, hematócrito, ferritina e fosfas-
factores genéticos e nutricionais. tase alcalina.
Habitualmente a avaliação é efectuada durante 3. Estando as necessidades nutricionais dos
o exame físico do jovem, em ambiente de privaci- adolescentes directamente relacionadas com o
dade e após prévio esclarecimento e consenti- crescimento e sua variação dentro da normalida-
mento do mesmo. Quando o adolescente recusar a de, as necessidades poderão variar significativa-
observação pode optar-se pela auto-avaliação, em mente de jovem para jovem. Durante o pico de
que o adolescente indica num esquema/figura o velocidade máxima de crescimento existe um
estádio em que se encontra. Regra geral a corres- aumento das necessidades proteico-calóricas e
pondência entre a auto e a hetero-avaliação é boa, consequentemente do apetite, originando uma
excepto se se tratar das fases iniciais do desen- maior ingestão alimentar.
volvimento masculino. Assim, o jovem do sexo masculino durante o
De facto, os critérios de Tanner constituem um pico de crescimento – em estádio 3 e 4 – terá neces-
instrumento de avaliação muito importante pelas sidade de maior suprimento proteico e energético,
seguintes razões: do que um adolescente em estádio 1; neste último,
de acordo com os critérios de maturação sexual,
1. Existe uma relação directa entre determinado ainda não terá atingido fase a que corresponde o
estádio de maturação sexual e determinada fase de pico de crescimento e as necessidades nutricionais
crescimento e desenvolvimento, o que permite máximas.
avaliar de uma forma correcta toda a dinâmica do No sexo feminino, se já tiver ocorrido a me-
crescimento na adolescência. narca , tal significa que a adolescente já está em
Exemplificando: no sexo feminino o pico de fase de desaceleração de crescimento, o que
crescimento inicia-se em M2, atinge a velocidade implicará, por um lado, redução de alguns nu-
máxima em M3, e desacelera-se em M4 ,fase em trientes indicados na fase de pico de crescimen-
que ocorre a menarca, parando o crescimento em to e, por outro, aumento de ingestão de outros,
M5; no sexo masculino o pico de crescimento como por exemplo, ferro e ácido fólico, tendo em
começa em G3, atinge a velocidade máxima em G4 conta as perdas relacionadas com a mens-
e desacelera em G5. truação.
Assim, esta diferença temporal no pico de O médico pediatra, o médico de família e o
crescimento associado ao facto de a velocidade de profissional de saúde em geral deverão reconhe-
crescimento máxima durante o pico pubertário ser cer todas as alterações, suas variações dentro da
menor nas raparigas, explica a diferença média de normalidade e respectivas implicações na saúde
cerca de 13 cm, existente entre indivíduos do sexo do adolescente; deste modo, aqueles estarão em
masculino e feminino. condições de informar, esclarecer e ajudar o jovem
Na prática clínica estes aspectos são importan- e seus familiares.
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento 231

Desenvolvimento psicossocial dividida em 3 etapas – precoce, média e tardia –


em cada uma delas podem ser consideradas,
Generalidades respectivamente, as características de ordem psi-
No adolescente, a par do desenvolvimento bio- cológica e social em correspondência com as carac-
lógico, verifica-se igualmente evolução nas áreas terísticas de ordem física; salienta-se, a propósito,
psicológica e social. É nesta fase que uma pessoa que alguns autores consideram a divisão em
se torna física e psiquicamente madura e capaz subgrupos etários, diversa da adoptada pela
de se tornar independente. (OMS) (Quadro 1).
Embora alguns dados recentes demonstrem
que cerca de 75% dos adolescentes e suas famílias Impacte da puberdade no adolescente
têm uma experiência de transição considerada sem As mudanças físicas operadas são vividas pelos
problemas, muitos descrevem este período como jovens com ansiedade e, muitas vezes, de uma
sendo um período de estresse e conflitos. forma aparentemente desordenada, levando o
Embora as alterações biológicas que ocorrem adolescente a perder a noção do seu esquema
nesta fase da vida sejam universais, as modifi- corporal. Na prática fica como que desajeitado,
cações ligadas ao desenvolvimento psicossocial derrubando e pisando tudo e todos. Concomi-
são vividas de modo diferente de indivíduo para tantemente com estas alterações biológicas do pico
indivíduo em função do tipo de família e de de crescimento, poderão surgir fadiga e hipersónia.
sociedade em que os mesmos estão inseridos. Os pais, nesta fase, deverão reconhecer que o
Nas sociedades primitivas a passagem da adolescente passa a ter necessidade de mais sono,
infância para a idade adulta é facilitada pelos promovendo horas de deitar regulares, e tentando
rituais, definindo o momento a partir do qual o reduzir ao mínimo distracções na cama (TV,
adolescente fica capacitado para desempenhar o telemóveis, jogos de computador).
papel de adulto. Nesta fase, uns crescem mais, outros menos,
Nas sociedades mais desenvolvidas e evoluídas parecendo que o corpo fica parado enquanto a
tecnicamente o amadurecimento biológico (tipifica- “cabeça vai amadurecendo” progressivamente.
do por ex. com a idade cada vez mais precoce da Quanto menor a auto-estima, mais defeitos o
menarca), assim como o desenvolvimento inte- jovem assume e encontra em si próprio.
lectual, são atingidos cada vez mais cedo. Pelo As raparigas têm mais tendência para partilhar
contrário, a maturidade social é alcançada cada vez as suas preocupações, e os rapazes para passar por
mais tarde; verifica-se mesmo uma tendência para uma fase de timidez que por vezes os leva ao
os jovens permanecerem na dependência paterna, isolamento.
nomeadamente no que se refere ao apoio financeiro: Tanto nos adolescentes “com maturação mais
é o contexto da chamada geração canguru. precoce” como naqueles com “maturação mais
Nas regiões com desenvolvimento precário – tardia” existe maior probabilidade de surgirem
por vezes determinadas áreas de países desen- perturbações da imagem corporal. Contudo, os
volvidos e altamente industrializados – quanto adolescentes “precoces” têm maior tendência para
mais baixo for o estrato sócio-económico do in- problemas de saúde mental (depressão), início
divíduo, menor duração terá o período da adoles- mais precoce de actividade sexual, (nomeada-
cência, uma vez que, ao ser obrigado a trabalhar mente relações sexuais com número variável de
para sobreviver, o adolescente se vê forçado a parceiros) e para a marginalidade.
assumir as obrigações da adultícia, mesmo antes A rapariga quer ter o seu grupo de amigas,
de ter terminado o seu desenvolvimento físico. sendo que a tendência poderá indiciar algo anó-
malo quanto a comportamento.
Etapas do desenvolvimento psicossocial O rapaz, nesta fase, tipicamente “com muita
À semelhança do desenvolvimento da criança, o hormona e pouco cérebro”, apresenta mais modi-
adolescente também passa por etapas no desen- ficações físicas do que comportamentais, fazendo
volvimento biopsicossocial. valer o seu ponto de vista, mesmo que ainda não
Considerando a adolescência arbitrariamente o tenha.
232 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Adolescência: características físicas, psicológicas e sociais

Precoce: 10-13 A (F); 11-14 A (M) Média: 14-17 A (F); 15-17 A (M) Tardia: >17 A (M e F)
FÍSICAS – Mudanças biológicas – Transformações corporais já – Término do crescimento e
– Telarca ocorridas maturação
– Pubarca – Modificação de composição – Atinge-se a composição
– Caracteres sexuais corporal; incremento de corporal final
secundários massa gorda e de massa
– Menarca magra

Precoce Média Tardia


PSICOLÓGICAS – Reformulação do esquema e – Preocupação pela aparência – Consolida-se a identidade
da imagem corporal – Grande influência do exterior – Separação final do núcleo
– Busca de identidade – Continua o processo de familiar
– Tentativa de independência, separação dos pais – Responsabilidades e papéis
rebeldia – Desenvolvimento intelectual, de adulto asumidos
– Má aceitação dos conselhos visão crítica da sociedade e
dos adultos busca de novos valores
– Desenvolvimento do – Predomínio do pensamento
pensamento formal formal

Precoce Média Tardia


SOCIAIS – Interesse reduzido pelas – Vinculação principal com o – Retoma do interesse pelas
actividades paternas grupo actividades paternas
– Relações interpessoais – Comportamentos de risco – Estabelecimento da
sustentadas por grupos de por necessidade de identidade sexual com
pares do mesmo sexo experimentar o que é novo e relação mais madura e
– Sexualidade: comportamento de desafiar o perigo estável
exploratório – Sexualidade: necessidade de – Momento de escolha
– Ambivalência entre busca de experimentação sexual; profissional
identidade e relações mais estáveis
responsabilidade
Abreviaturas: A = anos; M = sexo masculino; F = sexo feminino

As raparigas dão maior importância aos e interdição, tornou-se nos nossos dias um aspecto
relacionamentos e os rapazes ao desempenho; no explorado e exibido.
entanto, ambos se consideram omnipotentes e Na fase de adolescência precoce e média em
invulneráveis. que é fundamental a identificação com o grupo de
Porém, ter capacidade física não significa ter pares, o jovem tem necessidade de fazer o mesmo
maturidade psíquica, o que se torna verdadeira- que os outros, levando-o a praticar uma sexua-
mente problemático. lidade realmente desprovida de afectos, bastantes
Com o aparecimento do primeiro amor – tipi- vezes “ensombrada” por gravidez ou doença
camente de duração inversamente proporcional à sexualmente transmissível (DST).Cabe referir, a
intensidade emocional – surge muitas vezes a propósito, que cerca de 25% dos adolescentes que
primeira desilusão e, posteriormente, o sentimento se tornam sexualmente activos, adquirem DST.
depressivo transitório. De facto, nos dias de hoje, a actividade sexual
A expressão “estar apaixonado” nos dias de começa cada vez mais cedo, o que pode ser
hoje quase que ficou reduzida ao simples “fazer explicado pelos seguintes factos:
amor”. Tendo a sexualidade sido alvo de repressão • início mais precoce da puberdade contra-
CAPÍTULO 43 Adolescência, crescimento e desenvolvimento 233

pondo-se à idade mais tardia da independên- No que respeita a diferentes culturas sabe-se
cia económica; que nalgumas têm menos conflitos parentais ao
• ausência de família contentora, com regras, longo desta fase da vida; habitualmente nas cul-
valores e boas imagens de referência com as turas menos diferenciadas e menos tecnológicas
quais o jovem se possa identificar existem menos conflitos.
• características do próprio adolescente – Nas primeiras fases do seu desenvolvimento, o
indestrutibilidade jovem procura, de uma forma natural, fora do
• pressão do grupo – “se os outros fazem….” agregado, outras imagens ou figuras adultas de
• diferentes influências sócio-culturais referência. Grupos de voluntários, clubes desporti-
• influência dos meios de comunicação social vos, actividades recreativas e grupos religiosos são
– com a difusão de imagens valorizando as meios sociais através dos quais os jovens têm a
relações casuais, sem protecção e com vários possibilidade de desenvolver esses modelos de
parceiros. identificação constituindo um bom factor pro-
tector no seu desenvolvimento psicossocial.
Importância da família e dos grupos de pares No que respeita ao estresse no seio familiar, a
As crianças e os adolescentes, aprendem com o que presença do adolescente pode ser causadora do
vivem. mesmo, sendo que muitas vezes existem outras
Assim, médico que cuida de adolescentes fontes de tensão que deverão ser devidamente
deverá reconhecer a importância da compreensão valorizadas pelo clínico: problemas conjugais,
da dinâmica familiar e do potencial impacte dessa ausência frequente de um dos progenitores, inse-
dinâmica nos sintomas do adolescente. Este as- gurança no emprego, situação de doença, nomea-
pecto é particularmente importante quando o damente psiquiátrica, abuso de drogas, um
médico está a avaliar o adolescente do ponto de membro da família a cumprir pena de prisão;
vista psicológico. todas estas situações podem ter, de facto, conse-
Nesta perspectiva é importante que o referido quências graves na saúde mental do adolescente.
médico caracterize o tipo de família: se se trata de Para além da família, os pares constituem uma
tradicional, com pai como único elemento de importante influência para o adolescente, sendo
sustento,ou com os dois, pai e mãe empregados, que na construção do relacionamento com os
fora de casa; ou se se trata duma família mono pares, a maioria dos adolescentes não pretende, de
parental, cabendo avaliar o papel do outro proge- uma forma intencional, isolar-se dos pais.
nitor. Os jovens separando-se dos membros da sua
De facto, o problema do adolescente poderá ser família (pais), em regra aproximam-se dos pares
uma replicação do problema dos pais. O absen- do mesmo sexo. O adolescente precoce esforça-se
tismo escolar pode , por ex., ser modelado pelos por ser aceite entre os seus grupos de pares os
hábitos laborais dum pai alcoólico com faltas quais exercem diariamente uma poderosa influên-
frequentes ao emprego. O adolescente obeso, po- cia, não só quanto a comportamentos saudáveis,
derá ter pais obesos, com pouco tempo ou interes- mas também quanto aos não saudáveis; salienta-
se em providenciar em casa refeições adequadas e se que álcool, tabaco, uso de drogas ilícitas, são
programar actividades que envolvam exercício inicialmente experimentados no contexto dos
físico. grupos de pares.
O estrato socioeconómico e cultural da família Como se pode depreender, o decréscimo do
pode igualmente ajudar o médico a compreender envolvimento dos pais, a sua falta de comunica-
os meios de desenvolvimento do adolescente. Nas ção, de diálogo e a falta de disciplina, contribuem
classes mais elevadas os jovens viajam mais, têm para o grau de influência que os pares têm sobre
mais actividades culturais e comunitárias. Na um jovem adolescente.
classe média os adolescentes têm mais actividades Os clínicos devem chamar a atenção dos pais
desportivas e grupos de jovens. Nas classes mais para a importância do seu papel em minorar a
baixas o mais frequente é não terem qualquer tipo influência negativa dos pares e encorajá-los, bem
de actividade estruturada. como à família, a adoptar uma auto-imagem posi-
234 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

44
tiva no adolescente através de reforço positivo,
elogio e de aceitação. O elogio deverá ser dirigido
não só ao adolescente, mas também a outras
pessoas que figuram na sua vida, tais como pares
e professores. Os jovens precisam de ouvir os pais,
e outros adultos a falar positivamente de outras
pessoas em geral, pois essa é uma forma de ADOLESCÊNCIA
aprendizagem da tolerância.
A presença de doença crónica durante a E COMPORTAMENTO:
adolescência pode, independentemente das mani-
festações próprias da doença, interferir directa- ABORDAGEM CLÍNICA
mente no comportamento dos jovens. Entre as
principais alterações observam-se: interrupção na Maria do Carmo Silva Pinto
consolidação do processo de separação dos pais
comprometendo a aquisição de autonomia, modi-
ficação da imagem corporal, limitação das activi-
dades com o grupo de pares e dificuldade no Síndroma da adolescência normal
desenvolvimento da identidade. Todos estes
aspectos podem manifestar-se através de compor- As manifestações exteriores do comportamento
tamentos de risco devido à consequente baixa dos adolescentes são diferentes conforme as
auto-estima, segregação do grupo, absentismo diversas culturas, mas as bases, bem como as
escolar, disfunção sexual e sintomas depressivos. atitudes e ideias manifestas, são basicamente as
mesmas em todo o mundo. Daí a descrição da
BIBLIOGRAFIA chamada síndroma da adolescência normal a qual
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scientific Publications, 1962 mento do desenvolvimento psicossocial do ado-
lescente e uma maior compreensão dos compor-
tamentos que o mesmo evidencia, com implicações
práticas por permitir evitar diagnósticos errados
e, por vezes, preconceituosos. As referidas caracte-
rísticas são analisadas a seguir.

1. Busca de identidade e de si próprio


Com o início da puberdade, as transformações
corporais vão-se sucedendo. Vive a perda do corpo
de infância (luto do corpo infantil), tendo que
CAPÍTULO 44 Adolescência e comportamento: abordagem clínica 235

reformular o seu novo esquema corporal, o qual senvolvimento harmonioso. Com efeito, a vincu-
constitui a representação mental que o indivíduo lação ao grupo pode favorecer o espírito de equipa
faz de si mesmo, conduzindo mais tarde ao e o aparecimento de lideranças, o que será muito
sentimento de identidade. saudável se persistir na idade adulta.
Nesta fase, em que se modificam as relações Nesta fase, a ambivalência dos familiares deve
com o corpo, o pudor que o adolescente exibe deve ser evitada. Frases como “já estás suficientemente
ser devidamente respeitado. O mesmo passa crescido para…” seguidas de outras como “ainda
longas horas fechado na casa de banho, olhando- és muito criança para…” só contribuem para
se ao espelho e sentindo necessidade de se afastar tornar mais indefinidos os limites de actuação que
fisicamente dos pais; por vezes torna-se mesmo ajudam a promover uma autonomia responsável.
agressivo, antipático e até mesmo rebelde.
Os pais deverão perceber que os seus filhos 4. Desenvolvimento do pensamento formal
precisam desta mudança para que o desenvol- O desenvolvimento do pensamento formal (Piaget)
vimento se processe de forma harmoniosa. constitui, do ponto de vista cognitivo, uma das
características da adolescência.
2. Separação progressiva dos pais O desenvolvimento intelectual fá-lo pensar,
A separação progressiva dos pais tem início no pôr em causa e formular teorias. A capacidade de
nascimento, mas só se concretiza na adolescência. intelectualização leva cada vez mais o adolescente
Ao contrário da infância em que a relação de a preocupar-se com princípios éticos, problemas
dependência é a relação normal, desejável e habi- sociais e a propor reformas que tornem o mundo
tual entre pais e filhos, na adolescência, os pais melhor.
outrora considerados como seres ideais e super Nesta fase ele sente muito a necessidade de ter
valorizados, vão ser alvo de críticas surgindo a o seu próprio território (quarto, gaveta, armário,
necessidade de um afastamento (luto dos pais da diário), contribuindo para um reconhecimento da
infância) que leva a uma maior autonomia e, sua identidade.
consequentemente, à busca de outras pessoas que Neste período é importante o respeito pela
constituam figuras de identificação. privacidade e confidencialidade, aspecto funda-
Com o crescimento físico dos filhos e conquista mental no atendimento e na relação médico-
da sua independência, os pais sentem-se muitas doente.
vezes afastados, excluídos e até mesmo menos úteis.
Para que tal não aconteça, o estabelecimento de 5. Vivência temporal singular
limites pelos pais é fundamental nesta fase, pois irá O critério tempo é muito peculiar na adolescência,
permitir que o jovem compreenda a diferença entre parecendo próximo o que é distante, e vice-versa.
liberdade e permissividade, reduzindo substan- Por exemplo, o adolescente ao ser alertado para
cialmente a tendência para comportamento de risco. estudar para um exame no dia seguinte, é capaz de
O clínico poderá ajudar os pais nesta fase da responder – “ainda tenho muito tempo”, e contu-
vida dos seus filhos, esclarecendo-os de modo a do considerar “urgente ir comprar roupa nova
aceitarem a distância, mais física que psíquica. para levar à passagem de ano” daí a dois meses!
A esta característica, associa-se o imediatismo;
3. Necessidade do grupo de pares tal traduz uma incapacidade de conviver com a
Na busca da sua individualidade, o adolescente frustração da espera a qual interfere com vários
vai deslocar a dependência dos pais para o grupo factores da vida de relação e caracteriza a chamada
de companheiros e amigos no qual todos se iden- geração micro-ondas! Exemplifica-se com o que se
tificam com cada um. O adolescente veste-se de passa com a alimentação: preferência por alimen-
modo semelhante, tem gostos idênticos, pois a tos prontos ou quase prontos, nem sempre os mais
aceitação revela-se na “obediência” a regras de adequados.
grupo. Esta saída do núcleo familiar e entrada para Esta forma singular de lidar com o tempo pode
o grupo com ulterior individualização é perfeita- interferir nas propostas terapêuticas. O jovem
mente sadia, e até mesmo necessária, para um de- obeso tem frequentemente tendência para desistir
236 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

do plano terapêutico por este não ter resultados Na fase inicial da adolescência surgem os
rápidos e visíveis; interfere igualmente nas caracteres sexuais secundários e, consequen-
propostas de prevenção – tomar atitudes hoje, para temente a curiosidade acerca dessas mudanças.
prevenir coisas de amanhã – como por exemplo É a fase das fantasias sexuais (paixões imaginárias,
anticonceptivos para evitar a gravidez – sem contacto físico).
praticamente impossível nesta fase da vida. Por Na fase intermédia já está, em regra, completa a
este motivo, a orientação preventiva é muito mais maturação física. Aenergia sexual mais desenvolvida
eficaz quando envolve questões do presente – não leva ao maior interesse pelo contacto físico, sendo o
engravidar para não interromper todas as comportamento sexual de natureza exploratória. A
actividades de que gosta (desporto, música, etc.) e, negação das consequências da actividade sexual é
sobretudo, o percurso saudável de adolescente. típica e fruto da imaturidade, tornando esta fase a de
maior risco relativamente à probabilidade de ocor-
6. Flutuações do humor rência de doenças sexualmente transmitidas ou de
As flutuações do humor incluem múltiplas uma gravidez não desejada.
variações de humor que vão desde crises de- Na fase tardia o comportamento sexual torna-
pressivas, sentimentos de angústia, solidão se mais expressivo e estável, com relações íntimas
refugiando-se em si próprio, até às sensações de e trocas de afectos vividas com mais maturidade.
euforia e sucesso, durante as quais o adolescente Na adolescência pode ocorrer transitoriamente
se sente indestrutível, imortal e omnipresente. a proposta homossexual, a qual não é preditiva do
É comum a adolescente, num dado momento, comportamento sexual futuro. Nem todos os
encontrar-se triste e chorosa (após o terminar um adolescentes que estão emocionalmente atraídos
namoro ou uma nota má em exame) e momentos por um indivíduo do mesmo género se envolvem
depois já poder estar feliz, de conversa ao telefone, em actividade sexual. O jovem deverá ser infor-
falando com uma amiga, a planear novas mado da evolução que pode ter a sua identidade
conquistas, tendo esquecido o episódio de insu- sexual, de forma a podermos evitar, quer uma
cesso escolar. auto-imagem negativa com risco de depressão e
suicídio, quer um sentimento de ansiedade
7 . Comportamento contraditório gerador de comportamentos anti-sociais (por ex.
A necessidade de o adolescente experimentar uso de drogas).
diferentes papéis na busca da sua identidade de Os pais deverão igualmente ser esclarecidos,
adulto, faz com que, por vezes, tome atitudes pro- pois, na grande maioria reagem com vergonha e
fundamente contraditórias.Tal contradição é não-aceitação, exibindo frequentemente casos de
considerada normal; contudo, adolescentes com psicossomatização.
comportamentos rígidos permanentes deverão ser
alvo de preocupação, necessitando de acompanha- 9. Crises religiosas
mento. Nestes casos, o jovem poderá não estar a Estas chamadas crises caracterizam-se por atitudes
beneficiar da liberdade necessária para experimen- de radicalismo, desde situações extremas de fé, até
tar e amadurecer de forma desejável. ao ateísmo. O adolescente defende-as com grande
convicção, como se fossem realidades momen-
8. Evolução da sexualidade tâneas. O confronto religioso está frequentemente
A sexualidade existe desde o início da vida intra- ligado à contestação de padrões vigentes no
uterina, na sua dimensão biológica, baseada em momento. Muitos dos valores apregoados voltam
genes, cromossomas, hormonas, gónadas,etc.. a ser reformulados já no final da adolescência,
Na pré-adolescência a identidade de género persistindo depois na vida adulta.
(sentido de feminilidade e masculinidade) já está
estabelecida. 10. Atitude social reivindicativa
Com o início da puberdade a energia sexual Trata-se do conjunto de procedimentos ou atitudes
transforma-se juntamente com as mudanças físicas que o adolescente utiliza para reivindicar e con-
conduzindo à etapa genital adulta. testar de forma a ser reconhecido por grupos de
CAPÍTULO 44 Adolescência e comportamento: abordagem clínica 237

referência, como por exemplo, família, amigos, 2ª – Entrevista a sós com o adolescente
escola e a própria sociedade. 3ª – Exame físico do adolescente
Tais procedimentos ou atitudes são reforçados 4ª – Conversa com o adolescente
por outras características do adolescente, já 5ª – Nova entrevista com o adolescente e
descritas: tendência grupal, pensamento abstracto família
e crítico, auto-afirmação e radicalismo. 6ª – Diagnóstico e actuação
A sociedade, por vezes sentindo como que
“uma ameaça”, um incómodo ou até mesmo uma A abordagem correcta do adolescente deve
agressão, submete o adolescente a uma disciplina englobar, para além dos dados da anamnese (in-
e a um comportamento quase sempre ineficazes. cluindo anamnese psicossocial), o exame físico.
É importante que se tenha em consideração que o Nesta avaliação que, por este motivo se considera
jovem neste tipo de movimento não pretende global, deve ser estabelecida uma conversa aberta
propriamente agredir, mas sim conquistar o seu lugar, durante a consulta de vigilância de saúde, de
o que faz parte da sua caminhada para a adultícia. forma a identificar, não só problemas de saúde,
Os adultos deverão, por conseguinte, ser mais mas também factores de risco.
tolerantes, usando o diálogo e sabendo escutar a Se a anamnese psicossocial não for realizada
opinião do adolescente como formas de diminuir existirá maior dificuldade na identificação precoce
o conflito. de problemas, o que tem implicações na redução
da morbilidade.
Abordagem clínica do adolescente Cabe referir que a doença, quando ocorre, é
relacionada frequentemente com comportamentos
A abordagem clínica do adolescente, à semelhança de risco. O comportamento de risco pode, com
de outras áreas da Medicina, deve ser feita por efeito, trazer consequências trágicas. A causa mais
equipa multidisciplinar. Esta equipa deve ser frequente de mortalidade na adolescência é
composta por médico – pediatra ou médico de constituída pelos acidentes de viação os quais
clínica geral, ginecologista, endocrinologista, estão, em cerca de metade dos casos, relacionados
pedopsiquiatra, enfermeiro, dietista, assistente com o consumo de álcool e drogas.
social e outros profissionais (sociólogo, professor, A este respeito, cabe referir que o padrão de
jurista,etc.). Não existindo equipa especialmente consumo de substâncias de adição se tem alterado
criada para o efeito, o problema pode ser resolvi- significativamente nos últimos anos. Embora o
do através duma boa parceria – menos formal – tabaco e o álcool continuem a ser as substâncias
entre especialistas e técnicos com a garantia de mais consumidas, o aumento das drogas ditas
manutenção de diálogo permanente. legais (por ex. canabinóides sintéticos vendidos
como incenso), o aparecimento de novas drogas
Consulta do adolescente sintéticas ditas recreativas (por ex. gama-hidro-
O atendimento ao adolescente tem determinadas xibutirato), e de venda livre (por ex. mefedrona).
particularidades: têm colocado o pediatra face a novos problemas,
– os pais deixam de ser os únicos interlocutores salientando-se a necessidade do tratamento de
– há necessidade de maior privacidade e confi- sintomas na fase pós-consumo (por ex. agitação
dencialidade como garantia de diálogo em psicomotora, ideação delirante e alucinações), e da
ambiente de confiança prevenção das complicações a longo prazo.
– a consulta deve ser desburocratizada e de Como causas de morbilidade são referidas
fácil acessibilidade, e efectuada em espaço síndromas relacionadas com o estresse e depres-
próprio, separada da dos mais pequenos e são, doenças do comportamento alimentar e ele-
sem longas esperas. vadas taxas de doenças sexualmente transmis-
síveis.
A consulta propriamente dita contempla seis Pode depreender-se que todos estes problemas
etapas: não são facilmente abordáveis no âmbito duma
1ª – Entrevista com a família (anamnese) “consulta de rotina”.
238 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

A entrevista deverá ser reservada para uma necessário, poderá realizar-se em mais que uma
ocasião em que o adolescente evidencie estado de consulta, para assim se obter melhor colaboração.
aparente estabilidade emocional (i.e. esteja “relati- Contudo, se o jovem evidenciar situação de
vamente bem”), com o objectivo de obtenção do crise quando se apresenta na consulta, ele deverá
máximo de informação com o mínimo de estresse. ser atendido de forma a sentir-se à vontade para
A forma como se começa contribui de forma falar sobre o problema que o inquieta.
decisiva para o resultado final. Sempre que Pais, outros membros da família ou acom-

QUADRO 1 – HEADSSS – Avaliação psicossocial

Home / Casa Activities / Actividades


• Com quem vives? Onde? Tens quarto próprio? • Com os pares (Que fazes com os teus amigos nos
• Como é o ambiente em casa? tempos livres? Onde, quando e com quem?)
• Qual a profissão dos pais? • Tens grupo de amigos? Melhor amigo/a? Mudaste de
• Vives em instituição? Em qual? Tentaste fugir? Porque amigos recentemente?
motivo? • Em casa? Em associações?
• Mudaste de casa recentemente? • Desporto – praticas com regularidade?
• Tens pessoas novas com quem coabitas? • Actividades religiosas; recreativas? Quais? Onde?
• Com quem tens confidências? Em quem confias? • Actividades preferidas (hobbies)
• Tens hábitos de leitura? De que tipo?
Education / Escola • Músicas preferidas
• Que escola frequentas? • Tens viatura própria?
• Em que ano estás? • Estiveste envolvido em problemas com as autoridades?
• Mudaste recentemente de escola? Porquê? Quais as consequências?
• Tiveste experiências marcantes no passado?
• Disciplinas preferidas? Drugs / Drogas
• Disciplinas de que menos gostas; e que notas ? • Os teus amigos consomem drogas? E tu, já experimen-
• Alguma vez reprovaste e em que anos? taste? (inclusive álcool e tabaco)
• Já foste suspenso? E expulso? Abandono escolar? • Sabes se alguém na família consome? (inclusivé álcool e
• No futuro: planos de emprego ou profissionalização? E tabaco)
que objectivos? • E tu, que quantidade consomes? Com que frequência?
• Tiveste ou tens emprego? Que tipo de utilização (esporádica/habitual)?
• Relacionamento com os colegas, professores e outros • Que fonte? Como costumas pagar?
elementos da escola/ou colegas de trabalho? • Conduzes quando consomes?
• Mudança de escola? Quantas escolas frequentaste nos
últimos 4 anos? Security/Segurança
• Quando conduzes usas cinto de segurança ou capacete?
Eating disorders / Alimentação • Quando tens relações sexuais sabes que tipo de
• Quantas refeições habitualmente fazes por dia? prevenção deves ter? Qual costumas utilizar?
• Nos fins-de-semana? Quando sais com os amigos?
• Quando praticas desporto? Sexuality / Sexualidade
• Alimentos preferidos? De quais menos gostas? • Orientação? Estás apaixonado? Por quem?
• Alguma vez fizeste dietas? Porquê? Com que duração? • Grau e tipos de actividade sexual e relações sexuais?
• Quantas refeições fazes em família? E fora de casa ou na • Número de parceiros?
escola? • Doenças sexualmente transmissíveis: Sabes sobre esta
questão?Como as prevines?
• Contracepção? Frequência, uso?
• Conforto, prazer com a actividade sexual?
• História de abuso psíquico ou físico?
CAPÍTULO 44 Adolescência e comportamento: abordagem clínica 239

QUADRO 1 – HEADSSS – Avaliação psicossocial (cont.)

Suicidal Ideation / Ideação suicida


1. Perturbação do sono – problemas na indução, interrupção frequente no início, hipersónia e queixas de fadiga
progressiva?
2. Perturbações do comportamento alimentar ou do apetite?
3. Sentimentos de aborrecimento, tristeza?
4. Explosões emocionais e comportamento altamente impulsivo?
5. História de afastamento/isolamento?
6. Sentimentos de desespero/abandono?
7. História de depressão, tentativa de suicídio?
8. História de depressão, tentativa de suicídio na família ou pares?
9. História de abuso de álcool, drogas, inaproveitamento e abandono escolares ou crimes?
10. História de acidentes graves recorrentes?
11. Sintomatologia psicossomática?
12. Ideação suicida (incluindo perdas significativas actuais ou no passado)?
13. Desinteresse na entrevista evitando encarar de frente o entrevistador– postura depressiva?
14. Preocupação com a morte (roupa, música, meios de comunicação social, arte)?

panhantes não deverão estar presentes a não ser outra pessoa estarem em risco de vida, ou no caso
que o adolescente o solicite expressamente ou dê de haver implicações médico-legais. O que
autorização. Se os pais estiverem presentes, antes conversarmos ficará entre nós até que digas o
de iniciar a entrevista, o clínico deverá apresentar- contrário, ou a não ser que algum outro médico
se sempre em primeiro lugar ao adolescente; este precise de saber de ti, para poder cuidar do teu
gesto, valorizando de sobremaneira a pessoa do caso na minha ausência, garantindo de igual
jovem, corresponde a um claro sinal de que o forma a confidencialidade.”
médico está disponível para estabelecer empatia
com abertura e sem tecer juízos de valor. Avaliação psicossocial/HEADSSS
Desenvolvida por Harvey Berman (1972) e refor-
Confidencialidade mulada mais tarde por Cohen e Goldenring, a
Todo o adolescente deve ser informado acerca da metodologia de abordagem da história psicosso-
confidencialidade garantida pelo clínico no início cial do adolescente é conhecia pelo acrónimo
da entrevista e, posteriormente, antes de serem HEADSSS que significa (Quadro 1):
colocadas as questões relacionadas com sexuali- H – Home – Casa/família
dade e consumo de drogas. Deve, entretanto, E – Education – Ensino/projectos Eating
explicar-se que poderá haver alguns limites éticos Disorders – Distúrbios alimentares/ ali-
e legais relativamente à confidencialidade; eis um mentação
exemplo prático: A – Activities – Actividades de lazer, desporto,
“Nesta entrevista vou colocar-te algumas amigos, grupos, trabalho
questões que são pessoais, de forma a poder D – Drugs – Drogas (álcool, tabaco, etc.)
conhecer-te melhor. As respostas que tu deres S – Security – Segurança
podem ser importantes para a tua saúde. Mas, S – Sexuality – Sexualidade
como as questões são pessoais e delicadas, S – Suicidal ideation – Ideação suicida
prometo-te que serão confidenciais, o que quer A ordem pela qual as questões são colocadas é
dizer que ficarão só entre mim e ti Não revelarei aleatória devendo, contudo, ser deixadas para o
aos teus pais, professores, ou outras autoridades final as que envolvem maior privacidade.
nada do que me contares, a não ser que me A experiência e a sensibilidade do médico são
autorizes. Uma única excepção: no caso de tu ou fundamentais para o sucesso da avaliação psicos-
240 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

social e consequentemente, da investigação de Arch Dis Child 2011; 96: 548-553


comportamentos de risco (Capítulo 36). Fonseca H. Compreender os adolescentes - Um desafio para
Perguntas mal elaboradas, baseadas em termos pais e educadores. Lisboa: Editorial Presença, 2002
técnicos ou colocadas de forma insegura por parte Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
do entrevistador, podem gerar respostas (falsa- Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
mente) negativas por parte do jovem, levando ao Saunders, 2011
encerramento precoce do diálogo. Merenstein LS. Adolescent Health Care – A practical guide.
As perguntas devem ser feitas com clareza, Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins,2002
ainda que seja necessário repeti-las ou formular de Miklowitz DJ. Family treatment for bipolar disorder and sub-
novo a questão, explicando o porquê da pergunta stance abuse in late adolescence. J Clin Psychol 2012; 68:
e as vantagens em saber-se a resposta; efecti- 512-513
vamente o adolescente pode sentir-se “intimi- Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph´s Pediatrics.
dado”, ansioso, envergonhado ou assustado com New York: McGraw-Hill Medical, 2011
a possibilidade de revelar a sua intimidade. Swendsen J, Burstein M, Case B, et al. Use and abuse of alcohol
A qualidade do vínculo estabelecido entre o and illicit drugs in US adolescents. JAMA Psychiatry 2012;
médico e o adolescente será determinante para que 69:390-398
sejam abordadas questões mais pessoais e in- Urrutia A, Juarez-Rojas JG, Cardoso-Saldaña G, et tal.
clusive para uma melhor aceitação de esclareci- Abnormal HDL in overweight adolescents with dyslipi-
mentos e doutras questões muitas vezes não demia. Pediatrics 2011;127:e1521-e1527
consideradas importantes pelo jovem.
Um dos principais objectivos da entrevista
psicossocial é procurar identificar elementos que
se relacionem com a ansiedade e depressão, fre-
quentes precursores do suicídio nos adolescentes.
Na avaliação de risco, mais do que estabelecer
um diagnóstico de perturbação de saúde mental,
é fundamental que seja identificada a suspeita ou
perturbação de comportamento para que o ado-
lescente possa ser correctamente orientado e pos-
teriormente acompanhado .
Por vezes acontece ser o profissional de saúde
o único adulto que interage repetida e confiden-
cialmente com o adolescente ao longo do seu
desenvolvimento.
Compete, pois, àquele saber atender e enten-
der de forma integral o referido adolescente, pro-
curando reconhecer as suas necessidades específi-
cas de acordo com a idade e contexto (familiar,
social e religioso) em que está inserido.

BIBLIOGRAFIA
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics. Philadelphia:
Lippincott Williams & Wilkins, 2004
Dawson G, Burner K. Behavioral interventions in children and
adolescents with autism spectrum disorder: a review of
recent findings. Curr Opin Pediatr 2011; 23: 616-620
Crowley R, Wolfe I, Lock K, McKee M. Improving transition
between paediatric and adult healthcare: a systematic review.
PARTE IX
Aspectos da Relação entre Medicina
Pediátrica e Medicina do Adulto
242 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

45
doenças do adulto (designadamente do tipo dege-
nerativo) constitui um tópico de grande actuali-
dade, o que é fundamentado em numerosos estu-
dos epidemiológicos na sequência de múltiplas
investigações, cabendo destacar o pioneirismo do
grupo de Barker no Reino Unido.
DOENÇAS DA IDADE PEDIÁ- A realização dum congresso mundial reunindo
especialistas de diversas áreas , pediatras e não
TRICA COM REPERCUSSÃO NO pediatras, sobre “doenças do adulto com origem no
feto” em 2001 em Bombaim, Índia , traduz , em
ADULTO – GENERALIDADES certa medida, a importância dum problema em
saúde pública que foi identificado.
João M. Videira Amaral Nesse mesmo congresso, tendo sido dada ênfase
ao papel do pediatra e do perinatologista num con-
junto de intervenções para inverter tendências de
“Em ciência, o importante é mudar as ideias à incremento de certo tipo de morbilidade , um dos
medida que a ciência progride” tópicos discutido foi o panorama da saúde na Índia
Claude Bernard, 1877 em que a coronariopatia e a diabetes mellitus de tipo
2 alcançaram proporções epidémicas, em associação
a uma das mais elevadas prevalências de baixo peso
de nascimento em todo o mundo – cerca de 30%.
Introdução Debateu-se igualmente a associação entre obesi-
dade, urbanismo e doenças cardiovasculares , estas
O ser humano, desde a concepção até ao termo da últimas a principal causa de mortalidade em todo o
adolescência, cresce e desenvolve-se modelado mundo, correspondendo mais de metade desta
pela interacção de factores genéticos e ambientais. parcela aos países em desenvolvimento.
Muitas vezes, estes últimos constituem verdadeiras
agressões (físicas, químicas, estresse, nutricionais, O papel da Genética
hipóxicas, etc.), sendo a resistência do concepto a
tais eventos, (que podem incidir na fase pré-natal Tratar de determinado tema com objectivo peda-
e/ou na fase pós-natal do desenvolvimento) con- gógico obriga, por vezes, a compartimentações
dicionada, quer pelo património genético, quer algo artificiais. De facto, às influências de diversos
pelas condições do ambiente nas suas diversas ver- factores ambientais intervenientes em muitas situ-
tentes (ambiente intra-uterino ou micro-ambiente, ações a abordar, sobrepõe-se a predisposição
ambiente constituído pelo organismo materno ou genética, ambas condicionando variantes quanto
matro-ambiente e ambiente extra-uterino). O resul- às manifestações clínicas e ao período da vida em
tado final, cuja expressão clínica se poderá veri- que estas emergem.
ficar apenas na idade adulta depende, designada- Feita esta ressalva, torna-se obrigatório men-
mente, do tipo de agente agressor, da intensidade cionar, tendo como base o tema em análise, um
da sua acção e do momento em que actua. conjunto de situações clínicas clássicas, de tipo
Neste capítulo são analisados alguns proble- hereditário poligénico, cuja manifestação poderá
mas clínicos que têm expressão na idade adulta ocorrer em diversas fases da vida, incluindo a
na perspectiva da sua relação com eventos surgi- idade adulta. Actualmente, com os avanços te-
dos no período pré-natal e na idade pediátrica, cnológicos e as novas atitudes de antecipação, é
com importância em saúde pública. possível fazer-se a sua identificação cada vez mais
precocemente. Como exemplos podem citar-se:
Importância do problema – Doenças cardiovasculares: aterosclerose,
doença isquémica do miocárdio, hipertensão
A relação entre certas doenças do feto e criança e arterial, doença reumática.
CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto 243

– Doenças do foro imunoalérgico: atopia, asma, dente de genes que sofreram mutações (precisa-
eczema, enxaqueca, colite ulcerosa, etc.. mente por acção dos referidos insultos) que se
– Doenças acompanhadas de obesidade. transmitem a ulteriores gerações.
– Determinadas doenças renais.
– Determinadas anomalias congénitas (por ex. O feto e doenças do adulto
luxação congénita da anca , etc.).
– Doenças cardiovasculares: aterosclerose, Doença cardiovascular e doença metabólica
doença isquémica do miocárdio, hipertensão De acordo com dados epidemiológicos, con-
arterial, doença reumática, etc.. siderando o cômputo geral de recém-nascidos
Calcula-se que mais de 400 genes estejam (RN) de peso inferior a 2500 gramas ou de baixo
implicados na regulação de muitos processos tais peso (BP) em todo o mundo, a proporção dos mes-
como função endotelial, inflamação, e metabolis- mos com restrição de crescimento intra-uterino
mo. Relativamente aos processos metabólicos, o ou RCIU (peso inferior ao correspondente ao per-
papel das lipoproteínas é seguramente o mais co- centil 10 nas curvas de Lubchenco, para qualquer
nhecido, sendo que foram identificados muitos idade gestacional) é muito maior nos países em
genes relacionados com a doença aterosclerótica desenvolvimento (cerca de 75%) em comparação
(por ex. gene do receptor das LDL, gene da LPL, com a que ocorre nos países desenvolvidos (cerca
gene da apolipoproteína e com variantes) e a de 25%).
hipertensão( por ex. genes do sistema renina- A nutrição do feto e, por consequência, o
angiotensina – evidenciando polimorfismos – com respectivo peso, depende do suprimento em
papel na regulação da pressão arterial e da home- nutrientes através da circulação materno-placen-
ostasia do sódio, e explicando certas formas de tar-fetal, por sua vez em relação com a nutrição
hipertensão com graus diversos de sensibilidade materna e o metabolismo e função placentares. A
ao sal. regulação da transferência de nutrientes para o
feto depende não só do próprio suprimento , mas
Conceito de programação também da insulina fetal e do factor de cresci-
mento designado por IGF-I (sigla de “insulin-like
Para compreendermos o papel de certos eventos growth factor I) (IGF-I).
durante a gravidez no desenvolvimento de doen- Barker, baseado em estudos anteriores, descre-
ças no adulto, será importante reter a noção de veu três padrões de hipocrescimento fetal corres-
“influência programada” (com o significado do pondentes a outros tantos mecanismos de subnu-
“efeito de certas noxas que deixam marca ou re- trição actuando em diferentes fases do crescimento
gisto – “programming”na língua inglesa), a qual fetal com implicações futuras em termos de mani-
está ligada ao fenómeno de adaptação e tem as festação de problemas clínicos na idade adulta:
suas raízes na biologia. Com efeito, tal como se a) a subnutrição na fase precoce da gravidez
comprovou em certas espécies animais, a ocorrên- (período de hiperplasia entre as 4-20 semanas
cia de determinados estímulos ou insultos rela- caracterizado por mitose activa e aumento do con-
cionados com o ambiente, actuando numa fase teúdo de DNA) que origina baixo peso de nasci-
precoce do desenvolvimento humano (na vida mento com uma relação harmónica, simétrica ou
fetal ou na infância) tem efeitos persistentes a bem proporcionada entre peso, comprimento e
longo prazo na estrutura ou na função de deter- perímetro cefálico. Este fenótipo corresponde à
minados órgãos (programação) se os mesmos forma de restrição de crescimento intra-uterino
tiverem lugar nos chamados períodos sensíveis ou inicialmente descrita por Clifford como “crónica” e
críticos. Se o mesmo insulto se verificar fora de tal afectando os tecidos moles, o esqueleto e o crânio.
período crítico, provavelmente não surgirá o A este perfil somatométrico associou-se defi-
efeito. ciente incremento ponderal no primeiro ano de
É importante referir que, a capacidade de vida, e risco elevado de subsequente desenvolvi-
resposta do organismo a determinado insulto cor- mento de hipertensão arterial e de acidente vascu-
responde a um mecanismo de adaptação depen- lar cerebral na idade adulta;
244 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

b) a subnutrição, entre as 20-28 semanas, (pe- na e promovem alterações morfofuncionais ao


ríodo caracterizado por hiperplasia e hipertrofia) nível da parede vascular. As referidas alterações
condicionando baixo peso de nascimento com um são consideradas benéficas se a escassez nutricional
baixo índice ponderal (relação peso em gramas x se mantiver após o nascimento dado que o organis-
100/ comprimento em centímetros elevado ao mo ficara “preparado” geneticamente para viver
cubo), inferior a 2.32. em situação de “fome”. No entanto, se na vida
Neste grupo verificou-se risco ulterior, na extra-uterina a alimentação for abundante, as
idade adulta, de hipertensão arterial, de corona- referidas alterações endócrino-metabólicas podem
riopatia e de diabetes não insulinodependente; predispor a obesidade ou a peso excessivo e a
c) a subnutrição no final da gravidez, após as anomalias da tolerância à glucose. Esta associação
28 semanas; é a fase da hipertrofia em que, em constitui, na actualidade um problema importante
condições normais, se acumula tecido adiposo e de saúde pública na Índia, onde têm sido realiza-
ocorre aumento das dimensões celulares. dos numerosos estudos concluindo que os RN com
A forma clínica resultante é designada por RCIU são particularmente sensíveis à progra-
RCIU assimétrica ou desarmónica (sub-aguda na mação.
nomenclatura de Clifford) com crescimento relati- Relacionando ainda o peso de nascimento com
vamente mantido da cabeça , tronco e esqueleto , problemas na idade adulta, cabe referir a associ-
mas hipotrofia das massas musculares e do tecido ação entre baixo peso de nascimento e hipocresci-
celular subcutâneo. mento no primeiro ano de vida, com osteoporose
A este fenótipo associou-se o risco, na vida e diminuição da massa óssea no adulto, e risco de
adulta, de hipertensão, de dislipidémias (sobretu- fractura do colo do fémur na idade avançada.
do hipercolesterolémia à custa das lipoproteínas Com efeito, foi estabelecida uma correlação entre
de baixa densidade – LDL), doença coronária e baixo peso de nascimento no sexo feminino e con-
acidente vascular cerebral. (consultar capítulo 47 e teúdo mineral ósseo e densidade mineral óssea
parte XI) deficitários 70 anos mais tarde.
Este modelo proposto por Barker foi questio- Outro aspecto merece ser realçado – o que se
nado por outros investigadores concluindo que: refere à acumulação de gordura intrabdominal
no sexo masculino foi o peso ao 1 ano e não o profunda, nos casos de RCIU a maior acumulação
baixo peso ao nascer que se associou a corona- de gordura intrabdominal ou visceral (detectável
riopatia; no sexo feminino, pelo contrário, verifi- e quantificada por RMN) relaciona-se com even-
cou-se associação entre o baixo peso ao nascer e tos adversos durante a gravidez e com ulterior
coronariopatia, intolerância à glucose e colesterol resistência à insulina*; não se verificando eventos
-LDL elevado, mas não com outros factores como adversos há maior tendência para acumulação de
hipertensão arterial e hiperfibrinogenémia). gordura subcutânea em vez de abdominal, o que
A evidência da associação entre baixo peso de condicionada melhor prognóstico em termos
nascimento (com ou sem RCIU) e determinados metabólicos futuros.
problemas metabólicos (essencialmente diabetes de
tipo 2 e obesidade de tipo central) e/ou corona- Relação feto/placenta e hipertensão arterial
riopatia na idade adulta, levaram à criação do con- Barker e colaboradores verificaram maior preva-
ceito de “fenótipo da “ poupança” ou da “frugali- lência de hipertensão arterial em adultos com
dade” resultante da mutação de genes a que atrás antecedentes perinatais de RCIU e/ou BP e dis-
nos referimos a propósito da “programação” pre- cordância com o tamanho e peso da placenta (pla-
parando o organismo para o ambiente de “fome” centa de grandes dimensões).
(genes promovendo a “poupança”). Assim, as Por outro lado, estudos experimentais demons-
alterações neuro-endócrino-metabólicas (mediadas
através de alterações do eixo hipotálamo-hipo- * A gordura visceral é metabolicamente activa e é em grande parte
fisário, e surgidas como resposta de adaptação à responsável pela dislipidémia aterogénica, pela hiperinsulinémia,
hipertensão arterial, estado inflamatório crónico endotelial e estado
subnutrição fetal), mantendo-se na vida extra-ute- protrombótico (síndroma metabólica e risco cardiovascular como no adul-
rina influenciam ulteriormente a secreção de insuli- to) já verificados em adolescentes.
CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto 245

traram que, como resultado da hipóxia fetal, há mo do feto, nomeadamente em termos de sensibili-
redistribuição de sangue favorecendo a perfusão dade à insulina. Cabe citar, a propósito, um interes-
do encéfalo. Nas situações com placenta de sante trabalho realizado numa zona rural da Índia
maiores dimensões verificou-se diminuição da em que se verificou relação directamente propor-
relação comprimento/perímetro cefálico, podendo cional entre peso ao nascer e teor de suprimento
explicar-se tal desproporção por um desvio de em lípidos, legumes verdes e em frutos.
sangue do tronco para o encéfalo. A discordância
entre o peso fetal (deficiente ou baixo) e o tamanho Doença neoplásica
(grande) da placenta pode conduzir a fenómeno Diversos estudos prospectivos observacionais
de adaptação circulatória no feto, com alteração têm demonstrado uma associação positiva entre
estrutural progressiva das grandes artérias na peso de nascimento elevado, obesidade pediátrica
criança, traduzida por alterações nas escleroproteí- e risco subsequente de diversos tipos de neo-
nas com repercussão na distensibilidade e conse- plasias na idade adulta.
quente hipertensão arterial na idade adulta.
1. Cancro da mama
Diabetes mellitus gestacional Em 1990, Trichopoulos admitiu a hipótese de o can-
e doença metabólica cro da mama poder ter a sua origem in utero. Num
O peso elevado de nascimento (superior a 4000 gra- estudo realizado no Reino Unido e na Suécia, envol-
mas ou macrossomia) relacionado com diversos fac- vendo 5358 mulheres, verificou-se uma associação a
tores etiopatogénicos incluindo a diabetes mellitus risco de cancro da mama antes dos 50 anos 3,5 vezes
gestacional (DMG), comporta risco elevado de peso superior nos casos de antecedentes de macrossomia
excessivo na adolescência e idade adulta. De acordo ao nascer (peso igual ou superior a 4000 gramas), em
com os estudos do grupo de Gillman a DMG reflecte relação aos casos com idêntica idade gestacional, mas
um ambiente fetal alterado em termos de relação: peso de nascimento inferior a 3000 gramas.
metabolismo da glucose mãe – feto. Reportando- De acordo com diversas investigações demons-
nos ao conceito de programação, a DMG actuaria trou-se o papel da elevada concentração de
como um factor predisponente em relação a deter- estrogénios endógenos nas mulheres com cancro
minados insultos que poderão conduzir à obesi- da mama em idades pós-menopausa. Nos casos de
dade, e não como factor causal directo. associação entre macrossomia e ulterior cancro da
mama em idade pré-menopáusica, demonstrou-se
Nutrição materna, feto e doença metabólica que havia elevadas concentrações de IGF-I (insulin-
Os efeitos da nutrição materna na gravidez sobre like growth factor) comprovada nos casos que
o feto a longo prazo constituem matéria de contro- evoluiram para cancro da mama pré-menopáusica.
vérsia dada a grande variabilidade de resultados
traduzindo heterogeneidade das populações estu- 2. Cancro colo-rectal
dadas e diversidade das metodologias aplicadas. Relativamente a este tipo de cancro encontrou-se
Estudos epidemiológicos em populações hu- uma incidência maior nos casos associados a
manas demonstraram que a composição corporal antecedentes de macrossomia fetal. Embora a base
da grávida influencia o desenvolvimento fetal etiopatogénica não esteja ainda perfeitamente escla-
com implicações futuras em termos de risco de recida, admite-se que a sequência de eventos bio-
doenças cardiovasculares no produto de con- lógicos associados (macrossomia com hiperinsuli-
cepção na idade adulta. Mães magras tendem a ter némia) tenham papel importante na carcinogénese
filhos magros com tendência para ulterior insuli- colo-rectal. Com efeito, a IGF- I e as suas proteínas
no-resistência; e mães obesas ou com peso excessi- de ligação influenciam o crescimento fetal, podendo
vo tendem a ter filhos gordos/pesados que a insulina comparticipar a carcinogénese através da
poderão ser ter insulinodeficiência. interferência nos níveis de IGF-I circulante.
Demonstrou-se também que o regime alimentar
durante a gravidez pode ter efeitos permanentes, Doença respiratória
influenciando de modo programado o metabolis- Na investigação de Barker, estudando a função pul-
246 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

monar de 825 homens nascidos entre 1911 e 1930, A criança, o adolescente


concluiu-se que o volume expiratório forçado em 1 e doenças do adulto
segundo (FEV 1) era tanto maior quanto menor
tinha sido o peso de nascimento. Este achado, inter- Aleitamento materno e perfil lipídico
pretado como resultado dos efeitos a longo prazo Estudos de há três décadas demonstraram que o
do ambiente pré-natal adverso durante um período tipo de leite utilizado nas primeiros dois anos de
crítico de rápido desenvolvimento pulmonar in vida e a idade do desmame podem ter influência
útero, está de acordo com os resultados de estudos permanente no perfil lipoproteico sérico (com es-
experimentais em ratos. Verificou-se, com efeito, pecial realce para o teor do colesterol – LDL) com
que o estado de má-nutrição provocado em perío- repercussões futuras em termos de risco de morte
do anterior ao parto ou no final da gravidez, reduz por coronariopatia no adulto.
permanentemente as dimensões pulmonares e o O grupo de Barker avaliou adultos que per-
conteúdo de DNA pulmonar. tenceram a uma época em que era habitual o aleita-
Mais recentemente diversos estudos têm ava- mento materno exclusivo mais prolongado e o pro-
liado se o peso de nascimento influencia o aparec- longamento deste para além de 1 ano de idade.
imento de manifestações de asma em idade Comprovou que o aleitamento materno prolonga-
pediátrica e no adulto. Estudos realizados no do para além de 1 ano conduziu na idade adulta a
Canadá demonstraram que o peso de nascimento elevadas concentrações de colesterol-LDL e a
elevado, sobretudo a partir de 4500 gramas, se maiores taxas de mortalidade por doença isquémi-
associou a maior risco de asma na adolescência e ca do miocárdio independentemente dos valores
no adulto. O mecanismo etiopatogénico desta doutros parâmetros lipoproteicos; e que o efeito era
associação parece ser multifactorial relacionando- semelhante ao que se obtinha com leite industrial
se com a maior tendência para obesidade infantil, dado exclusivamente durante o primeiro ano de
juvenil e na idade adulta em indivíduos com vida. Pelo contrário, os valores de colesterol-LDL
antecedentes de macrossomia ao nascer. eram mais baixos nos casos de aleitamento mater-
Com efeito, a adiposidade interfere adversa- no exclusivo apenas até ao 1 ano de vida.
mente na função pulmonar, nomeadamente no Face a estes resultados, poderá argumentar-se
que respeita ao débito expiratório, ao calibre das que o regime alimentar realizado durante o período
vias aéreas e à função dos músculos respiratórios. pós-desmame e na idade adulta tenha influenciado
Demonstrou-se também que os adipócitos o perfil lipoproteico no adulto. No entanto, Barker
têm um papel regulador na produção de várias demonstrou que todos os grupos estudados evolu-
citocinas pró-inflamatórias (leptina, interleucina tivamente com regimes alimentares diferentes até à
6, factor de necrose tumoral alfa); tais citocinas idade do desmame, eram homogéneos sob o ponto
comparticipam, por isso, a inflamação da vias de vista de classe social, de regimes alimentares
aéreas e a activação dos mastócitos predispondo pós-desmame, assim como de factores de risco car-
ao broncospasmo. diovascular, incluindo o índice de massa corporal e
Aparentemente os resultados do estudo cana- a concentração do factor de coagulação VII.
diano estão em desacordo com os de Barker ante- O mecanismo desta evidência não está com-
riormente mencionados, em que se associou pletamente esclarecido, mas poderá eventual-
maior incidência de asma no adulto e adolescên- mente extrapolar-se com base na análise doutros
cia ao baixo peso de nascimento. De facto, a popu- parâmetros. Com efeito, demonstrou-se que a
lação de RN de BP estudada por Barker incluia pressão sanguínea, os valores de fibrinogénio,
casos de RN pré-termo (idade gestacional inferior de factor VII, de glucose são parcialmente deter-
a 37 semanas). Em estudos mais recentes, a associ- minados ou programados durante determinados
ação BP de nascimento a maior incidência de asma períodos críticos da vida fetal e da primeira
no adolescente e adulto, demonstrou-se apenas infância. Embora existam dados incompletos
nos casos com antecedentes de BP de nascimento que exigem ulterior investigação, cabe referir
acompanhados de prematuridade e não nos ex- que: o período crítico poderá ser diferente de
RN de BP não pré-termo. variável para variável relacionando-se respecti-
CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto 247

vamente com períodos de crescimento rápido estudo com leite humano. Na análise estatística
dos vasos sanguíneos, do fígado e do pâncreas dos resultados foram ponderados diversos fac-
exócrino; e que a regulação das concentrações tores de possível interferência, tais como o teor em
dos lípidos e das lipoproteínas no soro envolve sódio dos diversos leites.
vários tecidos, com especial destaque para o Este efeito foi atribuído não só ao possível
fígado e o intestino. papel de hormonas e de substâncias tróficas que
A este propósito, estudos experimentais em fazem parte da composição do leite humano, mas
diversas espécies animais demonstraram que a sobretudo aos ácidos gordos poli-insaturados de
manipulação de dietas no recém-nascido e em ani- cadeia longa (LC-PUFA) do leite humano.
mais recém – desmamados pode produzir aumen- São hoje atribuídas diversas acções aos LCPUFA,
tos a longo prazo das concentrações de lípidos, cujas reservas são deficitárias no RN pré-termo. Tais
lipoproteínas e apolipoproteínas, e assim com al- ácidos gordos são preferencialmente incorporados
terações da actividade da redutase da HMGCoA nas membranas das células neurais, o que influencia
(hidroxi-metil-glutaril coenzima A) com papel na o desenvolvimento visual e cognitivo. Os mesmos
síntese do colesterol, e da 7-alfa –hidroxilase (sín- LCPUFAs também são incorporados nas mem-
tese dos ácidos biliares). branas doutras células como as dos endotélios vas-
Outro mecanismo implicado poderá estar rela- culares, o que poderá explicar o seu efeito na disten-
cionado com o facto de o leite materno conter sibilidade da parede das artérias.Efectivamente, foi
diversas hormonas (tiroideias e esteróides) e fac- demonstrado que em adultos hipertensos o regime
tores de crescimento, os quais podem influenciar alimentar suplementado com n-3 LCPUFA é suscep-
o metabolismo dos lípidos. tível de reduzir os valores tensionais em comparação
Embora o efeito destas hormonas maternas com os que não são suplementados.
sobre o lactente seja desconhecido, estudos experi- Tendo como base a noção de que as crianças
mentais em babuínos demonstraram diferentes alimentadas com leite materno têm valores mais
níveis de tri-iodo-tironina e de cortisol conforme baixos de pressão arterial que as alimentadas com
alimentados com leite materno ou com leite fórmulas industriais (não suplementadas com
industrial. Reportando-nos aos estudos de Barker, LCPUFAs) verificou-se que da suplementação
os lactentes alimentados com leite materno para com tais ácidos gordos n-3 LCPUFA resultam
além da idade de 1 ano, continuaram , por isso, a valores mais baixos de pressão arterial na infân-
ser submetidos por mais tempo ao efeito das hor- cia, o que tem implicações na prática clínica tendo
monas maternas e doutros componentes. em conta a tendência para os referidos valores se
manterem até à idade adulta; desconhece-se, até
Alimentação com leite materno, leite indus- ao momento se, tal influência dependerá do
trial, hipertensão arterial e esclerose múltipla tempo que durou o tipo de alimentação.
A etiopatogénese da hipertensão arterial no adul- De referir ainda estudos que levantaram a
to é de tipo multifactorial englobando um compo- hipótese de o défice de LCPUFAs na alimentação
nente importante que diz respeito aos hábitos ali- da primeira infância , condicionando disfunção da
mentares em relação com o consumo elevado de membranas celular e da barreira hemato-encefáli-
sódio, e baixo de cálcio e potássio. ca, facilitar a entrada de determinados agentes
Num estudo realizado pelo grupo de Singhal infecciosos promovendo a degradação acelerada
incidindo sobre 926 crianças com antecedentes de da mielina e a génese do quadro de esclerose
prematuridade e com regimes diferentes de ali- múltipla. (consultar parte sobre Nutrição)
mentação láctea no primeiro mês de vida (com-
parando fórmula de pré-termo com fórmula para Dislipoproteinémias em idade
RN de termo, e fórmula para pré-termo com leite pediátrica e doenças cardiovasculares
humano de mistura de diversas dadoras), e Constituindo as doenças cardiovasculares um
seguidas até aos 16 anos de idade, verificou-se problema de saúde pública em todos os países,
associação de valores mais baixos de pressão arte- nomeadamente nos industrializados, e tendo em
rial nos indivíduoas alimentados no período de consideração que os factores de risco, ocorrendo
248 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

muitas vezes associados em “constelações”, estão centes com MNEP em idade reprodutiva(em
já presentes em idade pediátrica e são preditivos relação a adolescentes sem MNEP) têm um risco
de risco cardiovascular no adulto, justifica-se a de mortalidade cerca de 5 vezes superior por
sua identificação precoce na perspectiva de medi- complicações relacionadas, quer com a gravidez,
das específicas de intervenção em idade pediátri- quer com o próprio parto. Tratando-se de parturi-
ca sobre os factores relacionados com o ambiente. entes com baixo peso(inferior a 45 kg) e com baixa
De acentuar que as lesões arteriais poderão ser estatura (inferior a 145 cm), criam-se condições
já detectadas no feto, tendo a dislipoproteinémia para desproporção feto-pélvica, nomeadamente.
materna mantida durante a gravidez importância Como consequência do défice de progressão pon-
na patogénese. deral, de infecção associada e de anemia durante a
Entre diversos estudos de correspondência de gravidez, surge um quadro de RCIU e/ou BP de
perfil lipoproteico idade pediátrica – adulto, valerá nascimento. Relativamente ao BP e à RCIU já
a pena citar o Fels Longitudinal Study em que se foram abordados tópicos que relacionam esta situ-
demonstrou que o perfil aos 9-11 anos era preditivo ação com outros problemas manifestados no adul-
do perfil aos 19-21 anos, nomeadamente em relação to.
ao parâmetro colesterol total e colesterol-LDL.
2. Carências nutricionais específicas de ex-
Hipertensão arterial pressão tardia
Admite-se hoje que a hipertensão essencial tem a O suprimento inadequado de determinados
sua origem na infância sendo a sua patogénese nutrientes à criança pode originar mais que uma
relacionada com factores hereditários, estresse, doença por mecanismos diversos.
suprimento em sal e obesidade. Tais doenças, associadas a carências específicas
Gillman procedeu ao estudo evolutivo seriado manifestam-se classicamente em idade pediátrica,
de uma população de indivíduos entre os 8 anos e ou seja, após um período curto de latência uma vez
os 26 anos de idade, tendo encontrado um coefi- verificada a situação biológica de carência, não
ciente de correlação com referência àqueles limites sendo de excluir predisposição genética. São exem-
de idades, de 0.55 para a pressão sistólica e de 0.44 plos as seguintes associações, algumas das quais
para a pressão diastólica. têm elevada prevalência nos países em desenvolvi-
Este tópico é pormenorizado no capítulo 46. mento: tiamina-béri-béri, niacina-pelagra, vitamina
D-raquitismo, iodo-bócio, vitamina C-escorbuto,
Infecções respiratórias na infância e doença vitamina A – xeroftalmia e ceratomalácia, ácido
respiratória crónica no adulto fólico e ou/ vitamina B12 – anemia megaloblástica,
Em diversos estudos incidindo sobre crianças hos- fluor-cárie dentária, ferro-anemia ferripriva.
pitalizadas por infecções das vias respiratórias Embora cada micronutriente tenha um papel –
inferiores (peumonias e bronquiolites por vírus chave no metabolismo de diversos tecidos, a ma-
sincicial respiratório-VSR) verificou-se na idade nifestação que diz respeito à doença considerada
adulta uma proporção significativa de hiperreac- clássica ou “index”, traduz a maior vulnerabili-
tividade brônquica e de anomalias da função res- dade de determinado tecido.
piratória em relação aos casos-controlo. Em confronto com o conceito de doenças de
Tal tipo de evolução atribui-se ao papel da carência nutricional manifestando-se após um
infecção do tracto respiratório (com especial rele- período de latência curto, cabe referir um conjun-
vância para a infecção por VSR que pode originar to doutros problemas igualmente de tipo caren-
alterações ultra-estruturais), sobretudo se houver cial, mas de manifestação após um período de
antecedentes de atopia. latência longo, atingindo a idade adulta.
São citados três exemplos:
Doenças da nutrição a) Cálcio: foi descrito um mecanismo associan-
1. Má nutrição energético-proteica (MNEP) e do a carência em cálcio a uma elevação “para-
o ciclo de gerações doxal” de cálcio ionizado intracelular e a uma
Nos países em desenvolvimento, as adoles- diminuição da capacidade de ligação ácidos gor-
CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto 249

dos – ácidos biliares; este achado biológico é rela- Portugal, juntamente com a Irlanda e EUA detêm
cionado com cancro do cólon na idade adulta. elevadas taxas de excesso de peso , situação que
b) Vitamina D: um dos efeitos do calcitriol – para antecede a obesidade.
o qual existem receptores em muitos tecidos- é A estabilidade ou tendência para manutenção
induzir a diferenciação e regular a proliferação celu- da obesidade (tracking) da infância para a ado-
lares. O seu défice tecidual (que poderá coincidir com lescência é baixa, sendo, no entanto, elevada da
valores séricos normais) poderá ter , por isso, efeito adolescência para a idade adulta. A probabilidade
oncogénico pelo défice da regulação exercida sobre a de uma criança obesa ser um adulto obeso é tanto
proliferação celular. A este respeito, cabe referir que menor quanto maior o tempo decorrido entre o
existem investigações demonstrando uma associação início da obesidade na criança e o início da idade
entre níveis baixos de calcitriol e mais elevada adulta; e tal probabilidade aumenta se a obesi-
incidência de cancro da próstata. Chama-se a atenção dade tiver início na adolescência e se existirem
igualmente para diversas repercussões da deficiência antecedentes familiares de obesidade, nomeada-
em vitamina D, traduzindo a acção desta em vários mente na mãe. (Capítulo 57).
sistemas: risco cardiometabólico (obesidade, HTA,
hiperglicémia, cardiomiopatia, síndroma metabóli- Implicações na prevenção
ca), diabetes mellitus tipo 1,esclerose múltipla, e controvérsias
esquizofrenia, etc.. Regulando também o genoma
humano, o défice da referida vitamina tem igual- As investigações de Barker e do seu grupo chama-
mente influência na vida reprodutiva, designada- ram a atenção para a origem fetal de muitas afec-
mente em raparigas adolescentes (Capítulo 59). ções que têm expressão no adulto. Este novo para-
c) Ácido fólico: na doença – index (anemia digma , que tem implicações preventivas na práti-
megaloblástica e defeitos do tubo neural no feto ca clínica, está em perfeita sintonia com o conceito
em situações de carência na gravidez), o efeito da genuíno de Pediatria como medicina integral de
carência é explicado pela alteração da síntese de um grupo etário desde a concepção até ao fim da
DNA; no caso dos defeitos do tubo neural inter- adolescência.
vém igualmente a hiper-homocisteinémia secun- Daí a grande responsabilidade do pediatra e
dária ao défice de ácido fólico. Em termos de do médico que cuida de crianças a cujo desem-
expressão da doença após longo período de latên- penho sempre se ligou uma forte vertente preven-
cia, comprovou-se que a homocisteína tem um tiva; e agora, numa nova perspectiva face a novos
papel importante na degradação das proteínas de paradigmas, cada vez mais partilhada pelo peri-
tecido elástico, conduzindo a um processo natologista (Capítulo 324).
degenerativo do tecido conectivo com repercussão Os tópicos abordados levantam questões inte-
em vários territórios: sistema ocular (ectopia lentis), ressantes. Muitos dos resultados de investigações
tecido ósseo (osteoporose), sistema vascular nem sempre são coincidentes; por vezes são con-
(doença vascular oclusiva), sistema nervoso cen- traditórios, procedendo os autores a especulações
tral (demência). De salientar que a homocisteína, etiopatogénicas, o que gera polémica.
cujos níveis séricos se elevam com suprimento Analisemos o parâmetro “peso de nascimen-
abudante em proteínas, tem uma acção pró-oxi- to”, um dos pontos de partida nas investigações de
dante e pró-coagulante ao nível do endotélio vas- Barker. Sorensen e Seidman, separadamente, con-
cular, favorecendo a aterogénese. (consultar parte cluiram que baixo peso de nascimento e restrição
XI sobre Nutrição). de crescimento intra-uterino são factores de risco
preditivos, não de obesidade, mas sim de coronar-
3. Obesidade iopatia, de acidente vascular cerebral e de diabetes.
A obesidade na infância e adolescência consti- Oken e Gillman chamaram a atenção para o que
tui na actualidade a doença nutricional de maior foi designado por fenómeno paradoxal do aumen-
prevalência em todo o mundo(segundo alguns “a to da adiposidade central na idade adulta rela-
nova síndroma mundial”), assumindo nalgumas cionável, quer com baixo peso, quer com peso ele-
regiões as características de verdadeira epidemia. vado de nascimento.
250 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Reportando-nos ainda ao parâmetro peso de gir casos de resistência à insulina em crianças,


nascimento, será interessante analisar outro acha- adolescentes e adultos jovens.
do curioso: enquanto o baixo peso de nascimento O mesmo grupo comprovou que a má-nutrição
foi correlacionado com risco elevado de coronari- fetal com microssomia é explicada por défice pre-
opatia, o peso elevado associou-se a maior risco dominante de massa muscular e não de massa gorda,
de cancro da mama. o que poderá conduzir na idade adulta, se houver
Alguns resultados discrepantes poderão ex- excesso alimentar, a obesidade central coincidindo
plicar-se pela diversidade metodológica (dimen- com incremento deficitário da massa muscular.
são das amostras, factores de interferência residu- c) O dilema da intervenção nutricional pós-natal
ais, etc.) e pela interacção de factores genéticos e Em termos de estratégias nutricionais, outro
ambientais cujo peso relativo por vezes é de difícil dilema é posto hoje em dia aos neonatologistas
determinação. Gillman, a este propósito , pôs duas nos casos de RCIU com BP. De facto , demonstrou-
questões muito pertinentes: Os genes com influên- se que um suprimento mais “agressivo”, propi-
cia no baixo peso de nascimento são os mesmos ciando maior quociente energético e maior incre-
que determinam a doença cardiovascular? Qual o mento ponderal a curto prazo, comporta maior
efeito dos vários nutrientes sobre a embriogénese e risco metabólico e cardiovascular a curto e médio
sobre o crescimento fetal? prazo. A este propósito, considerou-se da maior
Em 2003, em San Diego (EUA), num congresso importância a noção de “crescimento rápido no
organizado pela Society for International Nutrition primeiro ano de vida , preditivo de maior risco
Research foi retomado o debate sobre as origens metabólico e cardiovascular” (Capítulos 330 e 342).
das doenças do adulto, revisitando muitos dos d) Outros aspectos
tópicos discutidos dois anos antes em Mumbai, Em Portugal no ano de 2009 registaram-se
Índia. cerca de 31.000 óbitos por doença cardiovascular
Novos contributos de investigações mais (DCV), correspondendo 20% a doença cerebrovas-
recentes levaram a questionar alguns princípios cular e 9% a doença isquémica do miocárdio. No
defendidos por Barker e a confirmar outros. mesmo ano a prevalência de hipertensão arterial,
Eis alguns dos temas que tiveram maior o principal factor de risco de DCV, foi 43%. Dados
impacte em tal evento mais recente: recentes do INE (2008) apontam para o facto de a
a) a modificação dos hábitos alimentares nas zonas hipercolesterolémia na população portuguesa
urbanas dos países em desenvolvimento afectar cerca de 3,9 milhões em todas as idades
O fenómeno actual da epidemia da obesidade (mais de 25%).
está a atingir actualmente as zonas urbanas dos Com a aplicação do conhecimento científico na
países em desenvolvimento como a Índia e Brasil, actualidade, está provado que é possível evitar
o que contribuirá em futuras gerações e após 50% dos óbitos por DCV, sendo de referir que
vários ciclos de mais adequada nutrição para que parte importante das estratégias exequíveis para
mais mulheres, melhor nutridas, com peso e atingir tal objectivo têm ponto de partida no pe-
altura progressivamente mais elevados, com ríodo perinatal e em idade pediátrica com exten-
úteros cada vez de maiores dimensões, venham a são ao adulto: nutrição adequada (rica em fibra
ter filhos de peso progressivamente mais elevado, evitando excesso de sal e o regime hipercalórico) e
reduzindo progressivamente a taxa de RCIU, mas estilo de vida saudável dos progenitores para evi-
com risco metabólico crescente. tar a obesidade, vigilância pré-natal no sentido de
b) Os dilemas da intervenção nutricional no perío- promover crescimento adequado do feto para pre-
do pré-natal. venir quer o baixo peso, quer o peso excessivo do
As intervenções nutricionais ditas agressivas recém-nascido, promoção do aleitamento materno
na grávida subnutrida tentando reverter o quadro até aos 6 meses, exames de saúde em idade infan-
de má-nutrição fetal conduziram na Índia, ao fenó- til e juvenil incluindo vigilância da pressão arteri-
meno do bébé magro-gordo com incremento rápido al a partir dos 3-4 anos (ou antes em situações
da massa gorda. Como consequência, de acordo específicas), nutrição adequada e estilo de vida
com as investigações de Yajnik, começaram a sur- saudável. Trata-se, portanto de estratégias que,
CAPÍTULO 45 Doenças da idade pediátrica com repercussão no adulto 251

para serem efectivas, terão que ser aplicadas de Michels K, Trichopoulos D, Robins JM, Manson JE, Hunter DJ.
geração em geração. Birth weight as a risk factor for breast cancer. Lancet
Afigura-se, pois, importante desenvolver no 1996;348:1542-1546
futuro, diversas linhas de investigação no âmbito Novak D. Nutrition in early life- how important is it? Clin
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englobando designadamente o estudo evolutivo Oken E, Gillman MW. Fetal origins of obesity. Obes Res 2003;
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252 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

46
Em décadas anteriores a HTA em idade
pediátrica era abordada apenas nas suas formas
secundárias relacionadas com patologia renal,
cardíaca ou endócrina. No entanto, estudos epi-
demiológicos recentes em Portugal, demon-
straram que a chamada HTA designada por
HIPERTENSÃO ARTERIAL EM “essencial” ou não secundária é mais frequente
que a secundária atingindo cerca de 16% dos
SAÚDE INFANTIL E JUVENIL jovens e adolescentes.
Como a HTA essencial na criança e adolescente
João M. Videira Amaral é habitualmente assintomática uma vez que os
níveis tensionais se encontram apenas moderada-
mente elevados embora acima do percentil 95
para o grupo etário, o seu reconhecimento só é
Definição feito se a medição da pressão arterial passar a
constituir um procedimento de rotina no âmbito
Considera-se hipertensão arterial (HTA) a situa- do exame clínico de rotina ou exame de saúde.
ção clínica acompanhada de valores de pressão É importante acentuar que a HTA não reconhe-
arterial sistólica ou diastólica correspondendo ao cida em idade pediátrica e, consequentemente não
percentil 95 ou percentil >95 para a idade e o sexo, tratada, manifesta tendência para se manter
em 3 ocasiões diferentes. durante a idade adulta; ou seja, a noção de estabili-
A chamda HTA limite corresponde às situa- dade, ou tendência para a manutenção (tracking)
ções em que os valores da pressão arterial sistóli- aplicada às dislipoproteinémias em idade pediátri-
ca ou distólica correspondem ao intervalo entre os ca aplica-se também a este problema clínico.
percentis 90 e 95 para a idade e sexo.
A pressão arterial será considerada normal se Factores etiopatogénicos
os valores da pressão arterial sistólica e diastólica
forem inferiores aos do percentil 90 para a idade e Admite-se hoje que a HTA essencial, doença
sexo (Capítulo 162). poligénica, tem a sua origem na infância, sendo a
Os valores detectados deverão ser interpreta- sua etiopatogénese relacionada com factores
dos com base nos valores das tabelas de percentis hereditários,estresse, suprimento em sal e obesi-
(Quadros 1, 2, 3, 4). dade.
O sistema renina-angiotensina tem um papel fun-
Aspectos epidemiológicos damental na regulação da pressão arterial e na
homeostase do sódio, salientando-se que os genes
A hipertensão arterial (HTA)constitui um factor que fazem parte da cascata enzimática do referido
de risco idependente e importante para doença sistema são genes candidatos para a HTA essen-
crónica do adulto, em especial para a DCV e para cial e para algumas manifestações clínicas associ-
a doença vascular cerebral. Com efeito, a elevação adas. Cita-se, a propósito, a relação entre HTA
de apenas 5mmHg na pressão diastólica resulta, sensível ao sódio e o polimorfismo do gene da
respectivamente, em aumento de risco de DCV da enzima conversora da angiotensina (ECA),
ordem de 20%, e de 35% para a doença vascular admitindo-se associação entre os genótipos II ou
cerebral. Por sua vez, a HTA constitui ainda um DI e maior prevalência de sensibilidade ao sal. A
factor de risco para doença renal terminal na HTA sensível ao sal também pode estar associada
idade adulta. a valores baixos da renina.
Relativamente a dados epidemiológicos rela- A obesidade, é reconhecida como um dos mais
cionados com este problema, cabe dizer que afec- importantes e independentes factores de risco
ta mais de 60 milhões de de pessoas nos EUA e para a HTA em crianças a partir dos 5 anos, e com
cerca de 1 milhão em Portugal. maior relevância a partir da adolescência.
CAPÍTULO 46 Hipertensão arterial em saúde infantil e juvenil 253

QUADRO 1 – Valores de pressão arterial sistólica por percentis de estatura (raparigas 1 a 17 anos)

Idade Percentil Pressão arterial sistólica / percentil estatura mm Hg**


(anos) Pressão arterial* 5% 10% 25% 50% 75% 90% 95%
1 90 97 98 99 100 102 103 104
95 101 102 103 104 105 107 107
2 90 99 99 100 102 103 104 105
95 102 103 104 105 107 108 109
3 90 100 100 102 103 104 105 106
95 104 104 105 107 108 109 110
4 90 101 102 103 104 106 107 108
95 105 106 107 108 109 111 111
5 90 103 103 104 106 107 108 109
95 107 107 108 110 111 112 113
6 90 104 105 106 107 109 110 111
95 108 109 110 111 112 114 114
7 90 106 107 108 109 110 112 112
95 110 110 112 113 114 115 116
8 90 108 109 110 111 112 113 114
95 112 112 113 115 116 117 118
9 90 110 110 112 113 114 115 116
95 114 114 115 117 118 119 120
10 90 112 112 114 115 116 117 118
95 116 116 117 119 120 121 122
11 90 114 114 116 117 118 119 120
95 118 118 119 121 122 123 124
12 90 116 116 118 119 120 121 122
95 120 120 121 123 124 125 126
13 90 118 118 119 121 122 123 124
95 121 122 123 125 126 127 128
14 90 119 120 121 122 124 125 126
95 123 124 125 126 128 129 130
15 90 121 121 122 124 125 126 127
95 124 125 126 128 129 130 131
16 90 122 122 123 125 126 127 128
95 125 126 127 128 130 131 132
17 90 122 123 124 125 126 128 128
95 126 126 127 129 130 131 132

* Percentil de presão arterial determinada por uma única leitura


** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento
(Adaptado da DGS com autorização, 2007)

Nota importante: Em clínica pediátrica é necessário dispor de braçadeiras/garrotes de diversas larguras a aplicar no
braço em função da idade:
– Lactentes: 2,5 cm; 1 - 4 anos: 5,6 cm; 5 - 8 anos: 9 cm; > 8 anos: 12 cm
No que respeita ao comprimento da braçadeira, o mesmo deverá ser suficiente para envolver completamente o braço. Se
a pressão arterial for determinada no membro inferior (coxa), pode utilizar-se a mesma braçadeira com o respectivo bordo
inferior a 3-5 cm do cavado popliteu.
254 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Valores de pressão arterial diastólica por percentis de estatura (raparigas 1 a 17 anos)

Idade Percentil Pressão arterial diastólica / percentil estatura mm Hg**


(anos) Pressão arterial* 5% 10% 25% 50% 75% 90% 95%
1 90 53 53 53 54 55 56 56
95 57 57 57 58 59 60 60
2 90 57 57 58 58 59 60 61
95 61 61 62 62 63 64 65
3 90 61 61 61 62 63 63 64
95 65 65 65 66 67 67 68
4 90 63 63 64 65 65 66 67
95 67 67 68 69 69 70 71
5 90 65 66 66 67 68 68 69
95 69 70 70 71 72 72 73
6 90 67 67 68 69 69 70 71
95 71 71 72 73 73 74 75
7 90 69 69 69 70 71 72 72
95 73 73 73 74 75 76 76
8 90 70 70 71 71 72 73 74
95 74 74 75 75 76 77 78
9 90 71 72 72 73 74 74 75
95 75 76 76 77 78 78 79
10 90 73 73 73 74 75 76 76
95 77 77 77 78 79 80 80
11 90 74 74 75 75 76 77 77
95 78 78 79 79 80 81 81
12 90 75 75 76 76 77 78 78
95 79 79 80 80 81 82 78
13 90 76 76 77 78 78 79 80
95 80 80 81 82 82 83 84
14 90 77 77 78 79 79 80 81
95 81 81 82 83 83 84 85
15 90 78 78 79 79 80 81 82
95 82 82 83 83 84 85 86
16 90 79 79 79 80 81 82 82
95 83 83 83 84 85 86 86
17 90 79 79 79 80 81 82 82
95 83 83 83 84 85 86 86

* Percentil de presão arterial determinada por uma única leitura


** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento
(Adaptado da DGS com autorização, 2007)
CAPÍTULO 46 Hipertensão arterial em saúde infantil e juvenil 255

QUADRO 3 – Valores de pressão arterial sistólica por percentis de estatura (rapazes 1 a 17 anos)

Idade Percentil Pressão arterial sistólica / percentil estatura mm Hg**


(anos) Pressão arterial* 5% 10% 25% 50% 75% 90% 95%
1 90 94 95 97 98 100 102 102
95 98 99 101 102 104 106 106
2 90 98 99 100 102 104 105 106
95 101 102 104 106 108 109 110
3 90 100 101 103 105 107 108 109
95 104 105 107 109 111 112 113
4 90 102 103 105 107 109 110 111
95 106 107 109 111 113 114 115
5 90 104 105 106 108 110 112 112
95 108 109 110 112 114 115 116
6 90 105 106 108 110 111 113 114
95 109 110 112 114 115 117 117
7 90 106 107 109 111 113 114 115
95 110 111 113 115 116 118 119
8 90 107 108 110 112 114 115 116
95 111 112 114 116 118 119 120
9 90 109 110 112 113 115 117 117
95 113 114 116 117 119 121 121
10 90 110 112 113 115 117 118 119
95 114 115 117 119 121 122 123
11 90 112 113 115 117 119 120 121
95 116 117 119 121 123 124 125
12 90 115 116 117 119 121 123 123
95 119 120 121 123 125 126 127
13 90 117 118 120 122 124 125 126
95 121 122 124 126 128 129 130
14 90 120 121 123 125 126 128 128
95 124 125 127 128 130 132 132
15 90 123 124 125 127 129 131 131
95 127 128 129 131 133 134 135
16 90 125 126 128 130 132 133 134
95 129 130 132 134 136 137 138
17 90 128 129 131 133 134 136 136
95 132 133 135 136 138 140 140

* Percentil de presão arterial determinada por uma única leitura


** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento
(Adaptado da DGS com autorização, 2007)
256 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 4 – Valores de pressão arterial diastólica por percentis de estatura (rapazes 1 a 17 anos)
Idade Percentil Pressão arterial diastólica / percentil estatura mm Hg**
(anos) Pressão arterial* 5% 10% 25% 50% 75% 90% 95%
1 90 50 51 52 53 54 54 55
95 55 55 56 57 58 59 59
2 90 55 55 56 57 58 59 59
95 59 59 60 61 62 63 63
3 90 59 59 60 61 62 63 63
95 63 63 64 65 66 67 67
4 90 62 62 63 64 65 66 66
95 66 67 67 68 69 70 71
5 90 65 65 66 67 68 69 69
95 69 70 70 71 72 73 74
6 90 67 68 69 70 70 71 72
95 72 72 73 74 75 76 76
7 90 69 70 71 72 72 73 74
95 74 74 75 76 77 78 78
8 90 71 71 72 73 74 75 75
95 75 76 76 77 78 79 80
9 90 72 73 73 74 75 76 77
95 76 77 78 79 80 80 81
10 90 73 74 74 75 76 77 78
95 77 78 79 80 80 81 82
11 90 74 74 75 76 77 78 78
95 78 79 79 80 81 82 83
12 90 75 75 76 77 78 78 79
95 79 79 80 81 82 83 83
13 90 75 76 76 77 78 79 80
95 79 80 81 82 83 83 84
14 90 76 76 77 78 79 80 80
95 80 81 81 82 83 84 85
15 90 77 77 78 79 80 81 81
95 81 82 83 83 84 85 86
16 90 79 79 80 81 82 82 83
95 83 83 84 85 86 87 87
17 90 81 81 82 83 84 85 85
95 85 85 86 87 88 89 89

* Percentil de presão arterial determinada por uma única leitura


** Percentil de estatura determinado nas curvas-padrão de crescimento
(Adaptado da DGS com autorização, 2007)
CAPÍTULO 46 Hipertensão arterial em saúde infantil e juvenil 257

Outro factor de ordem ambiental implicado diz Crowley R, Wolfe I, McKee M. Improving the transition
respeito à ingestão de sal na alimentação; de referir, between paediatric and adult healthcare: a systematic
a propósito, alguns estudos intervenção alimentar: review. Arch Dis Child 2011; 96:548-553
a restrição de sal durante os primeiros 6 meses pro- Cruz M (ed). Manual de Pediatria. Barcelona:Ergon, 2013
move a descida dos valores de pressão sistólica. Direcção Geral da Saúde. Programa Nacional de Prevenção
O potássio também actua na regulação da das Doenças Cardiovasculares. Lisboa: DGS, 2006
pressão arterial através da indução da natriurese e Kavey R-E W, Daniels SR, Lauer RM, Latkins DL et al.
da acção sobre a renina, suprimindo a sua pro- American Heart Association guidelines for prevention of
dução e libertação. atherosclerotic cardiovascular disease beginning in child-
Dados preliminares também constituem argu- hood. J Pediatr 2003; 142: 368- 372
mento para uma correlação inversa entre supri- Kay JD, Sinaiko AR, Daniels RS. Pediatric hypertension. Am
mento de cálcio no regime alimentar e pressão ar- Heart J 2001; 142: 422- 432
terial: tal suprimento, conduzindo a maior teor em Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
cálcio intracelular, tem influência na diminuição Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011.
do tono vascular e na resistência arteriolar. Labarthe D. Nondrug interventions in hypertension preven-
Outro aspecto – abordado no capítulo 45 – diz tion and control. Cardiol Clin 2002; 20: 249-263
respeito à relação entre baixo peso de nascimento Luepker RV, Jacobs DR, Prineas RJ, et al. Secular trends of
e HTA na vida adulta. blood pressure and body size in a multi- ethnic adolescent
population: 1986 to 1996. J Pediatr 1999; 134: 668-674
Actuação Lurbe E, Sorof JM, Daniels SR. Clinical and research of ambu-
latory blood pressure monitoring in children. J Pediatr
O Programa –Tipo de Actuação em Saúde Infantil 2004; 144: 7-16
e Juvenil da Direcção Geral da Saúde recomenda a Maldonado J. Prevalência da HTA atinge 16% nos jovens e ado-
medição da pressão arterial a partir dos 4 anos, e lescentes. Tempo Medicina 2011; (12 Dez): 5
a Academia Americana de Pediatria a partir dos 3 McInerny T (ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
anos. Tal medição deverá ser levada a cabo com Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010
técnica e equipamentos adequados, tendo em McGill HC Jr, McMahan CA, Zieske AW, et al. Effects of non-
conta, nomeadamente, a aferição dos aparelhos e lipid risk factors on atherosclerosis in youth with a
a largura da braçadeira, esta útima devendo ser favourable lipoprotein profile. Circulation 2001; 103: 1546-
adaptada para cada idade. 1550
Em complemento do que é referido no Newman WP 3rd, Freedman DS, Voors AW, et al. Relation of
Capítulo 162 cuja consulta se sugere, acentuam-se serum lipoprotein levels and systolic blood pressure to
os seguintes pontos que fazem parte da actuação early atherosclerosis:the Bogalusa Heart Study. N Engl J
preventiva. Med 1986; 314: 138-144
– restrição de sal no regime alimentar (3-5 gra- Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph’s Pediatrics.
mas /dia; ~1,4 gramas/100 gramas de pão) New York: Mc Graw - Hill Medical, 2011
– prevenir e combater a obesidade Sassetti L, DGS. Programa de vigilância em Saúde Infantil e
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258 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

47
sedentarismo, aos regimes alimentares ricos em
gorduras saturadas e colesterol, à obesidade e aos
hábitos de fumar tabaco; tal intervenção será tanto
mais eficaz quanto mais precocemente tiver início.
Tendo em conta que o estilo de vida e os
hábitos alimentares se adquirem na infância,
DOENÇA ATEROSCLERÓTICA conclui-se que o pediatra (ou o clínico que pres-
ta cuidados à pessoa em idade pediátrica) tem
João M. Videira Amaral uma grande responsabilidade na redução do
impacte da DCV.

Aterosclerose
Importância do problema
A aterosclerose é um processo crónico degenerati-
No âmbito das doenças degenerativas, a doença vo e progressivo de base genética, caracterizado
cardiovascular (DCV) constitui a principal repre- por depósito lipídico na íntima das artérias, de
sentante e, simultaneamente, a principal causa de modo mais acentuado nas de calibre grande ou
morte no mundo, seguida da doença neoplásica e médio (coronárias, cerebrais, extremidades inferi-
da doença respiratória. ores, aorta, etc.).
Nos Estados Unidos da América(EUA) cerca Apresenta-se inicialmente sob a forma de lesão
de 1 milhão de pessoas morre anualmente devido endotelial vascular englobando, sob o ponto de
a DCV, sendo de referir que cerca de 60 milhões de vista morfológico, dois tipos: as estrias gordas provo-
americanos vivem com alguma forma de DCV. cadas pela acumulação de gordura, precursoras das
A principal representante da DCV é a doença chamadas placas fibrosas que aparecem mais tarde.
coronária cardíaca(DCC), clinicamente manifesta- Tais lesões originam fenómenos obstrutivos
da como angor pectoris, enfarte do miocárdio ou vasculares com consequente isquémia nos terri-
morte súbita.Outras formas de manifestação da tórios irrigados (angor, enfarte do miocárdio, aci-
DCV incluem a doença vascular cerebral e as vas- dente vascular cerebral de tipo isquémico, lesões
culopatias renais e periféricas A causa básica é a renais, doença isquémica dos membros inferiores
aterosclerose. podendo evoluir para gangrena) manifestando-se
Em Portugal, no ano de 2008 cerca de 32% dos na idade adulta; é igualmente possível o despren-
óbitos registados foram atribuídos a DCV, número dimento de trombos de lesões vasculares ulceradas
não muito diferente do observado em 1960. No e/ou hemorrágicas.
entanto, nos anos 80 e início dos anos 90, esta As lipoproteínas LDL ou Low Density Lipo-
patologia chegou a ser responsável por cerca de proteins na sua forma oxidada desempenham
44% dos óbitos ocorridos. papel primordial na génese das estrias gordas, as
As repercussões económicas deste tipo de quais poderão ser já evidentes em exames post-
morbilidade são preocupantes tendo em conta, mortem na íntima da aorta desde a infância.
designadamente, o seu elevado custo e o aumento Stary encontrou também em exames post-
crescente da sua incidência. Com efeito, no que mortem lesões coronárias em 20% de crianças fale-
respeita à prevenção e controle da mesma, não cidas por lesões traumáticas; e, em autópsias de
tem sido possível obter resultados tão bons como soldados americanos mortos no Vietnam e Coreia
aconteceu com as doenças transmissíveis, o que se há décadas, foram detectadas lesões do tipo
pode explicar pela complexidade dos respectivos descrito em percentagens oscilando entre 45 e 70%.
factores etiopatógenicos. Em estudos realizados em adolescentes com
De acentuar que os melhores resultados obti- valores elevados de colesterol no sangue,através
dos se relacionam com programas de intervenção de exames ecográficos foi possível demonstrar
incidindo sobre mudanças do estilo de vida e de sinais de placas fibrosas nas carótidas em 10% dos
hábitos alimentares como sejam: combate ao casos.
CAPÍTULO 47 Doença aterosclerótica 259

Mais recentemente, no âmbito dos estudos de de estudos epidemiológicos) as características


Bogalusa em 1992, e no estudo PDAY (Pathobio- identificáveis que, quando presentes, se associam
logical Determinants of Atherosclerosis in Youth) em a mais elevada incidência da doença, relativa-
2002, foram detectadas lesões ateroscleróticas na mente à aterosclerose foram estabelecidos os dis-
aorta a partir dos 3 anos de idade e nas coronárias criminados no Quadro 1 englobados, numa per-
na segunda década da vida, tendo sido possível spectiva prática, em factores modificáveis e não
relacionar o maior grau de défice da função modificáveis; noutra perspectiva, a referida lista
endotelial com o mais baixo peso de nascimento. engloba factores genéticos e factores ambientais,
Através da ecografia não invasiva de alta reso- (Capítulo 45).
lução e desde idades precoces pode avaliar-se a Nem todas as crianças, com estrias gordas ape-
estrutura e função das grandes artérias (por ex. nas, desenvolvem aterosclerose na idade adulta,
carótida, artéria braquial) através de determina- do que resulta o papel de conjugação de outros
dos marcadores pré-clínicos, designadamente: factores. De facto, para além dos factores de risco
medição da espessura da íntima-média, grau de clássicos, influências de tipo metabólico, infecção,
distensibilidade com o fluxo sanguíneo, e inflamação, assim como a influência programada
diâmetro interno (lume vascular). Tal procedi- desde a vida fetal, podem afectar a função
mento, a realizar em centros especializados, tem endotelial vascular e o consequente desenvolvi-
grande interesse em situações com factores de mento de aterosclerose.
risco de aterosclerose associados desde idades Serão abordadas, a seguir, as questões funda-
jovens para detecção de sinais precoces de doença mentais relacionadas com os referidos factores , os
vascular, na perspectiva de intervenção preventi- quais podem actuar associados, registando-se, por
va. Com a tecnologia actualmente disponível foi outro lado,correlação entre os factores de risco na
possível demonstrar em diversos estudos o papel criança e nos progenitores. Pode concluir-se,
benéfico do exercício físico, o qual, promovendo a reportando-nos ao Quadro 1, que a prevenção fica
libertação de NO endotelial durante e após o limitada à intervenção sobre os factores de risco
mesmo, melhora o fluxo sanguíneo pela vasodi- ambiental.
latação e diminuição da resistência vascular que
daí resulta. Dislipoproteinémias
Salienta-se a importância das células progeni-
toras ou estaminais endoteliais que se formam na As dislipoproteinémias são situações clínicas cara-
medula óssea, as quais têm potencialidades para cterizadas por alterações do nível plasmático de
reparar a parede endotelial quando esta é lesada. colesterol total, (CT), triglicéridos, e das lipopro-
Através de técnicas especiais é hoje possível teínas habitualmente determinadas: LDL, VLDL,
proceder à determinação quantitativa de tais célu- HDL, apo A, apo B, Lp (a).
las progenitoras, sendo de referir que indivíduos Os valores elevados de colesterol, principal-
com mais elevado número de células progeni- mente do transportado pelas proteínas de baixa
toras, em presença de factores de risco, têm maior
probabilidade de manter a normalidade da função QUADRO 1 – Factores de risco de aterosclerose
endotelial cardiovascular.
Em suma, a aterosclerose é uma doença que Não Modificáveis Modificáveis
tem início na idade pediátrica, apesar de habi- Hereditariedade Dislipoproteinémias
tualmente só ter expressão clínica na idade do Género Hipertensão arterial
adulto. Por consequência, a prevenção da Idade Tabagismo
aterosclerose e das suas complicações deve ini- Raça Obesidade
ciar-se desde a idade pediátrica. Sedentarismo
Estresse
Factores de risco Diabetes
Baixo peso de nascimento
Considerando factores de risco (noção decorrente
260 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

densidade (sobretudo LDL oxidadas) estão as- peso e obesidade, e valores baixos de lipoproteína
sociados a patogénese das estrias gordas e placas HDL) de acordo com diversos estudos tem sido
fibrosas (placa de ateroma). difícil considerar os triglicéridos, de forma inde-
Diversos estudos epidemiológicos, experimen- pendente, como aterogénicos, não se recomendan-
tais, clínicos e de anatomia patológica, demons- do o seu rastreio. Contudo, salienta-se que valores
traram uma relação entre coronariopatia, enfarte muito elevados constituem risco de pancreatite e
do miocárdio e angor, e valores plasmáticos mais fazem parte da síndroma metabólica.
elevados de colesterol, por sua vez em relação Investigações muito recentes (2013) em crian-
com suprimentos alimentares mais elevados de ças, adolescentes e adultos jovens demonstraram
gorduras saturadas. que valores mais elevados da ratio TG/C-HDL se
Inversamente, foi demonstrado que os indiví- relacionam com maior rigidez da parede arterial
duos com doença aterosclerótica e coronariopatia em todas as idades, e risco mais elevado de
melhoravam com a diminuição dos valores de aterosclerose na idade adulta, sobretudo se asso-
colesterol total. Tal melhoria traduziu-se pela ciada a obesidade.
comprovação de regressão do ateroma e da dimi-
nuição da mortalidade em 2% por coronariopatia, 1. Rastreios
reduzindo em 1% o valor da colesterolémia, Classicamente, em idade pediátrica, com o objectivo
segundo o Lipid Research Clinics Program (LRP). de identificar através do perfil lipoproteico os casos
Segundo o mesmo LRP, o risco de acidente com maior risco de DCV, são descritos dois tipos de
agudo relacionado com caronariopatia de base é rastreio: o rastreio universal e o rastreio selectivo.
da ordem dos 5% aos 30 anos em indivíduos com – Rastreio universal
valores elevados de colesterolémia (total > 300 Este tipo de rastreio está hoje abandonado. Era
mg/dl e colesterol LDL > 240 mg/dl), aumentan- feito anteriormente nalguns países acompanhan-
do o risco para 50% aos 50 anos (Capítulo 374). do o exame de saúde na data de entrada para a
Noutros estudos concluiu- se que a redução escola, entre os 4-7 anos, e não antes, tendo em
em 10% dos valores da colesterolémia antes dos 40 conta as variações do colesterol total nos primei-
anos se traduziu numa diminuição da incidência ros anos de vida. Valores de colesterolémia total >
coronariopatia na ordem dos 50%. 200 mg/dL implicavam a determinação do perfil
Acontece que as lipoproteínas circulantes na lipoproteico completo.
idade pediátrica tendem a manter-se com idênti- Actualmente recomenda-se que em todos os
cos valores na idade adulta. É esta a noção de esta- indivíduos após os 18 anos de idade seja realizado
bilidade ou de “tracking” empregando a termino- o estudo do perfil lipídico.
logia muito corrente da língua inglesa. Nos estu- – Rastreio selectivo
dos de Bogalusa e Muscatine concluiu-se que: 1) Neste tipo de rastreio procede- se à colheita
os valores de colesterolémia aferidos aos 20 anos de sangue em circunstâncias específicas discrimi-
constituem um factor preditivo de risco de coro- nadas no Quadro 2 nas crianças a partir dos 2-5
nariopatia entre os 50 e 60 anos; 2) 50% das crian- anos conforme diversas escolas.
ças com valores de colesterolémia acima do per- Em geral, como primeira análise após jejum de
centil 75 evidenciavam hipercolestrolémia 10 a 15 12 horas, determina- se a colesterolémia total; se
anos mais tarde; 3) entre as crianças com valores os valores ultrapassarem 200 mg/dL, deverá pro-
baixos de colesterol HDL pelos 10-14 anos, cerca ceder-se ao estudo doutros parâmetros, designa-
de 40% apresentavam idêntica tendência 12 anos damende colesterol LDL e colesterol HDL, trigli-
mais tarde. céridos, apoA-I, apoB e, eventualmente, Lp(a).
No conjunto das hipercolesterolémias, a Se valor de colesterol-LDL(C-LDL) for < 110
capacidade aterogénica é variável entre as mes- mg/dL, a análise deverá ser repetida em função
mas. Estando a hipertrigliceridémia (valor de do contexto clínico, em geral 4-5 anos depois.
triglicéridos acima do ponto de corte entre 90 e Se C-LDL entre 110-130 mg/dL, a análise deve-
200 mg/dL) frequentemente associada a outros rá ser repetida em função do contexto clínico para
factores de risco metabólico (por ex. excesso de reavaliação.
CAPÍTULO 47 Doença aterosclerótica 261

QUADRO 2 – Rastreio selectivo 2. Intervenção e recomendações


de dislipoproteinémias Nos primeiros 2 anos não está indicada a restrição
no suprimento em colesterol tendo em conside-
História familiar de: ração o crescimento rápido do sistema nervoso
– Coronariopatia ou doença cerebrovascular antes dos central e o facto de os lípidos constituirem o sub-
55 anos em progenitor ou avô strato essencial para a mielinização.
– Hipercolesterolémia > 240 mg/dl em progenitor Após este período etário há que respeitar as
– Dislipoproteinémia primária em progenitor ou familiar recomendações de consenso international publi-
– Morte súbita cadas por diversos organismos: (American Heart
– História familiar desconhecida e/ou factores de risco Association, American Academy of Pediatrics,
associados ESPGHAN, etc.) referidas na parte Nutrição.
Estilo de vida de risco da criança/adolescente: De acordo com normas de actuação de consen-
– Hábitos tabágicos so internacional são considerados ideais valores de
– Sedentarismo colesterolémia total (CT) < 170 mg/dl e de C-LDL
– Obesidade < 110 mg/dl, C-HDL > 35 mg/dl ( relação C-LDL/
– Hipertensão arterial C-HDL < 3.0 ) e de triglicéridos < 125 mg/dl.
– Fármacos com efeito dislipoproteinémico Reiterando o que foi já explanado são mencio-
nadas as seguintes medidas dietéticas que inter-
ferem nos níveis plasmáticos de lipoproteínas:
Se C-LDL > 130 mg/dL, está indicado regime – As fibras, além de diminuirem a absorção do
alimentar restritivo e eventual farmacoterapia em colesterol e de ácidos gordos saturados, com-
função do contexto clínico conforme está especifi- petem com a síntese hepática de LDL;
cado no Capítulo 374. – As frutas e os vegetais, possuindo proprie-
Nos casos com anomalias bioquímicas detec- dades antioxidantes e preservando a estrutu-
tadas deverá ser estabelecido um esquema de ra e função do endotélio vascular, contri-
vigilância periódica incluindo determinações do buem para prevenir a formação de placas de
perfil lipoproteico cada 2 a 3 anos, para além do ateroma.
esquema alimentar restritivo quanto a suprimento Relativamente ao estilo de vida, deverão ser
de gorduras e doutros tipos de intervenção referi- promovidas a actividade física de forma regular e
dos na parte sobre Nutrição. contínua (30 minutos diários, pelo menos 5 dias
A propósito do rastreio selectivo, cabe dizer por semana), a prevenção do consumo de álcool e
que pelo critério “antecedentes familiares“ dei- de tabaco nos adolescentes como formas de pre-
xam de ser rastreadas 50% de crianças portadoras venir e controlar as dislipoproteinémias.
de dislipoproteinémias. Os fármacos (estatinas, colestiramina, etc.) são
Nos casos de hipercolesterolémia familiar ho- abordados a propósito das Doenças Hereditárias
mozigótica está indicado o rastreio no recém- do Metabolismo (Parte XXXII).
nascido (sangue do cordão umbilical). Relativamente às hipertrigliceridémias, como

QUADRO 3 – Perfil lipídico duma amostra de crianças e jovens sem factores de risco

Colesterol Total Colesterol LDL Triglicéridos


Idades Nº Média (DP) Média (DP) Média (DP)
12-24 M 23 185 (15) 102 (29) 89 (33)
> 2-4 A 57 173 (28) 97 (25) 76 (32)
5-9 A 83 174 (31) 102 (23) 67 (22)
10-14 A 59 180 (28) 103 (25) 71 (44)
15-18 A 10 172 (25) 99 (12) 64 (32)

Valores em mg/dl; DP = desvio-padrão; A= anos; M= meses (JMV Amaral, 2005)


262 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

primeira linha terapêutica é recomendado estilo American Heart Association guidelines for prevention of
de vida saudável (redução do peso,cessação do atherosclerotic cardiovascular disease beginning in child-
tabagismo,redução do álcool ingerido, e ingestão hood. J Pediatr 2003; 142: 368-372
de gorduras não saturadas. Valores acima de 500 Lee PJ. The management of familial hypercholesterolaemia in
mg/dL implicarão farmacoterapia [ácidos gordos chilhhood. Current Pediatrics 2002; 12: 104-109
ómega 3 (DHA,EHA), niacina, fibratos, etc.]. Lloyd JK. Cholesterol: should we screen all children or change
the diet of all children. Acat Paediatr Scand (Suppl) 1991;
3. Aspectos epidemiológicos 373:66-72
Num rastreio oportunista por nós realizado com a Medina-Urrutia A, Juarez-Rojas JG, Cardoso-Saldaña, e tal.
colaboração laboratorial do Departamento de Abnormal HDL lipoproteins in overweight adolescents
Bioquímica da FCM/UNL em crianças da clínica with atherogenic dyslipidemia. Pediatrics 2011;127:e1521-
privada e da consulta externa do Hospital Dona e1527
Estefânia (amostras de sangue obtidas na circuns- Querfeld U. Vitamin D and inflammation. Pediatric Nephrology
tância de existir prioritariamente a indicação de 2013; 28: 605-610
outros exames analíticos do sangue), foi encontra- Raitakari OT. Arterial abnormalities in children with familial
da uma prevalência de dislipoproteinémias pri- hypercholesterolemia. Lancet 2004; 363: 342-343
márias da ordem de 5%, na sua maioria hiperco- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
lesterolémia de tipo poligénico (10 casos em 203 AA(eds). Rudolph_s Pediatrics. New York : McGraw-Hill
crianças aparentemente saudáveis); havia antece- Medical , 2011
dentes familiares de hipercolesterolémia em um Shah AS, Dolan LM, Gao Z, et al. Clustering of risk factors: a
dos progenitores em 26% dos casos. simple method of detecting cardiovascular disease in
Noutra amostra constituída por 232 crianças youth. Pediatrics 2011; 127:e312-e318
aparentemente saudáveis de idade compreendida Shroff R. Phosphate is a vascular toxin. Pediatric Nephrology
entre 12 meses e 18 anos e sem factores de risco 2013; 28: 583-593
cardiovascular, foram obtidos os valores de CT, C- Silverstein J, Haller M.Coronary artery disease in youth.
LDL e de triglicéridos, que constam do Quadro 3 Present markers, future hope? J Pediatr 2010;157:523-524
sobreponíveis aos valores de referência obtidos Stary HC. Lipid and macrophage accumulations in arteries of
por outros autores. children and the development of atherosclerosis. An J Clin
Nutr 2000: 72 (suppl):1297S-1306S
BIBLIOGRAFIA Trigona B, Aggoun Y, Maggio A, et al. Preclinical noninvasive
Austin MA, Hutter CH, Zimmern RL, et al. Familial markers of atherosclerosis in children and adolescents with
Hypercholesterolemia and Coronary Heart Disease: A huge type 1 diabetes are influenced by physical activity. J Pediatr
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e304-e311
Kavey R-E W, Daniels SR, Lauer RM, Latkins DL et al.
PARTE X
Fluidos e Electrólitos
264 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

48
O LEC e o LIC têm composições diferentes,
sendo o respectivo volume determinado por
partículas osmoticamente activas dentro de cada
compartimento (aniões e catiões).
No LEC, entre os catiões predomina o sódio
(Na+: cerca de 140 mEq/L), seguindo-se quantita-
EQUILÍBRIO tivamente o potássio (K+: cerca de 4 mEq/L); entre
os aniões predominam o cloro (Cl–: cerca de 104
HIDROELECTROLÍTICO mEq/L), seguindo-se o bicarbonato (HCO3–: cerca
de 24 mEq/L), e as proteínas ou aniões orgânicos
E ÁCIDO-BASE (Prot–: cerca de 14 mEq/L).
No plasma a soma de catiões (154 mEq/L)
Maria do Carmo Vale, João Estrada deve ser igual à soma de aniões (154 mEq/L) para
e João M. Videira Amaral que seja mantida a neutralidade eléctrica.
A este propósito é importante abordar sucinta-
mente a noção de hiato iónico (aniões GAP) com
implicação prática importante na interpretação de
Homeostase da água, líquidos certas alterações do equilíbrio ácido-base; hiato
e electrólitos iónico é a diferença entre o valor medido do catião
Na+ e o dos aniões Cl– e HCO3–.
Líquidos corporais, compartimentos e osmoles Hiato Iónico = Na+ - [(Cl–) + (HCO–3)]
O organismo humano necessita de água e elec- (Normal: 4-11)
trólitos para manter a sua actividade metabólica. Hiato iónico é igualmente a diferença entre
Ao nascer , a água corresponde a cerca de 75- catiões não medidos (K+, Ca++, Mg++) e aniões não
80% do peso corporal, diminuido esta percentagem medidos (albumina, fosfato, urato, sulfato).
ao longo do primeiro ano de vida até 55% a 60%, A situação de acidose metabólica (ver adiante)
semelhante à do adulto. pode estar associada ou não a hiato iónico alte-
A totalidade da água corporal distribui-se rado, considerando valores normais os compreen-
principalmente por dois espaços (E) ou comparti- didos entre 4 e 11.
mentos: o intracelular (contendo LIC ou líquido No LIC entre os catiões predomina o potássio
intracelular) e o extracelular (LEC). (K+, cerca de 155 mEq/L) e entre os aniões (orgâni-
Ao nascer o LEC corresponde aproximadamente cos): o fosfato (P–: cerca de 95 mEq/L) e as proteí-
a 45% do peso corporal e o LIC a cerca de 35%. nas (Prot–: cerca de 65 mEq/L) (Quadro 1).
O LEC diminui rapidamente a partir da data do Os dois subcompartimentos do EEC (de acor-
nascimento, ao contrário do LIC que vai aumen- do com referido atrás o componente intravascular
tando, o que é relacionável com o crescimento celu- e o espaço intersticial), estão separados pela mem-
lar; atingida a idade de 1 ano, a relação entre estes brana capilar; esta possui características dialíticas,
dois compartimentos, semelhante à que se verifica permitindo a livre passagem de água e solutos,
no adulto, passa a ser a seguinte: LEC 20% a 25% permanecendo impermeável às substâncias de
do peso corporal, e LIC 30 a 40% do peso corporal. elevado peso molecular (proteínas). Estas local-
O LEC compreende a água do plasma (cerca de izam-se no espaço intravascular sem passar para o
5% do peso corporal ) e o líquido intersticial (cerca interstício, fixando a água e condicionando a dis-
de 15% do peso corporal). O volume de sangue tribuição de líquidos de acordo com a pressão
(volémia) na criança em geral, sendo o hematócrito oncótica e as leis de Starling. Ou seja, o volume
de de 40%, corresponde a cerca de 8% do peso cor- plasmático é mantido pela pressão oncótica exer-
poral (ou 80 ml x peso corporal em kg); em termos cida pelas proteínas do plasma (designadamente,
comparativos, no recém-nascido pré-termo e ou de albumina).
peso inferior a 1500 gramas, a volémia corre- No que respeita à diferença de composição
sponde a cerca de 10% do peso corporal. entre LEC e LIC quanto aos catiões K+ e Na+ , tal é
CAPÍTULO 48 Equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base 265

QUADRO 1 – Iões e compartimentos corporais la] como mecanismo compensatório de normali-


zação da natrémia; pelo contrário, o volume do
Plasma Plasma Líquido Líquido LIC diminui (retracção celular) quando a concen-
intersticial intracelular tração de Na+ plasmático aumenta (hiperna-
Catiões (mEq/L) trámia) levando a movimento de fluido no senti-
Na+ 140 138 9 do [célula → plasma] como mecanismo compen-
K+ 5 8 155 satório de normalização da natrémia.
Ca++ 5 8 4 Existem diversos mecanismos que regulam a
Mg++ 4 6 32 normal manutenção, quer da volémia, quer da
Aniões (mEq/L) composição dos LIC e LEC em electrólitos , quer
Cl– 100 119 5 da osmolalidade do plasma a qual deverá oscilar
HCO3– 26 26 10 entre 285 e 295 mOsm/L. Tal corresponderá a den-
Proteínas 19 7 65 sidade urinária de cerca de 1.010 ou osmolalidade
Ác. Orgânicos 6 6 – urinária de 280- 310 mOsm/L (urina isotónica)*.
HPO4= 2 1 95 A chamada osmolalidade efectiva (que corres-
SO4= 1 1 2 ponde à força osmótica que determina o movi-
mento de água entre o espaço EC e o espaço IC)
calcula-se através da fórmula:
explicável pela actividade energética duma bomba Osmolalidade efectiva = 2 x [Na] + [Glucose]/18
ATPase que promove, respectivamente, a entrada
de potássio para o espaço intracelular e a saída de Em situações de hiperglicémia, a qual é
sódio para o espaço extracelular. Relativamente responsável por elevação da osmolalidade plas-
aos restantes iões, as diferenças relacionam-se mática, ocorre movimento de água do espaço in-
com permeabilidade ou impermeabilidade da tracelular (IC) para o extracelular (EC) o que pode
membrana celular aos mesmos. levar a hiponatrémia (de diluição).
Ocorrem alterações do volume dos LIC e LEC A magnitude deste efeito pode ser calculada
como consequência do movimento de água através através da fórmula:
da membrana celular, a qual possui canalículos [Na] corrigido = [Na] valor laboratorial + 1.6 x ([Glucose] - 100
intramembranares (chamados aquaporinas), de mg/dL)/100
modo a estabelecer o equilíbrio osmótico. Uma
alteração na concentração de sódio (Na+) no sector O valor de [Na] corrigido constitui um achado mais
plasmático do LEC rompe o equilíbrio osmótico representativo da verdadeira concentração de Na
entre o LIC e LEC, o que leva a movimentação de plasmático.
água através da membrana, para restabelecer novo Habitualmente a diferença entre a osmolali-
equilíbrio osmótico. A osmolalidade extracelular é dade medida laboratorialmente e a calculada pela
efectivamente determinada pela concentração de fórmula atrás referida não ultrapassa 10 mOsm/L.
Na+ no LEC. Tal facto, por sua vez, influencia o Os mecanismos homeostáticos que dizem res-
volume do LIC, pois o volume total dos fluidos peito aos movimentos da água entre a célula e o es-
(solutos) corporais é relativamente constante. paço extracelular são regulados pela intervenção
O volume do LIC quase sempre aumenta dum conjunto de processos integrando hormonas
(edema celular) quando a concentração de Na+ e outros componentes de características hormo-
plasmático diminui (hiponatrémia) levando a nais, os quais têm particularidades e limitações no
movimento de fluido no sentido [plasma → célu- recém-nascido (RN).
Conceitos fundamentais: Em tais mecanismos intervêm essencialmente:
• Osmolalidade – concentração de partículas osmoticamente activas o rim e o sistema renina-angiotensina, o péptido
existentes numa solução, expressa em osmoles por kg de solvente.
• Osmolaridade – tensão osmótica expressa pela quantidade de
natriurético e a hormona antidiurética (HAD).
moléculas-grama existentes num litro de solução.
• Mole – molécula-grama O rim e o sistema renina – angiotensina
• Soluto-Uma substância que é dissolvida num líquido (solvente) para
formar uma solução. (Ver Capítulo 50) De modo sucinto, pode afirmar-se que o rim tem a
266 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

capacidade de alterar a percentagem de sódio fil- tenção das condições fisiológicas (homeostase),
trado no glomérulo em função da taxa de reab- torna-se fundamental conhecer as respectivas
sorção tubular. Com efeito, o aparelho justaglo- necessidades e perdas (habituais ou fisiológicas) e
merular produz renina como resposta à dimi- anormais. É igualmente importante reter as
nuição do volume intravascular; os estímulos da seguintes noções:
secreção da renina são: diminuição da pressão de 1 – o movimento e renovação (turnover) de água
perfusão ao nível da arteríola aferente do glo- no organismo (entrada/suprimento e saí-
mérulo, diminução do teor em sódio que atinge o das/perdas) são, relativamente ao peso,
túbulo distal, e a elevação do nível de agonistas tanto maiores e mais rápidos quando menor
beta-adrenérgicos como reacção à hipovolémia. a idade a velocidade do crescimento; deduz-
A renina, enzima proteolítica, produz uma cli- se que esta particularidade cria maior vul-
vagem da angiotensina, do que resulta o compos- nerabilidade e maior probabilidade de dese-
to designado por angiotensina I que, por acção da quilíbrio em crianças mais pequenas;
enzima de conversão da angiotensina, se transfor- 2 – a água é fundamental para o crescimento;
ma em angiotensina II. 3 – como resultado dos processos metabólicos
A angiotensina II tem duas acções principais: produz-se água endógena;
estimulação da reabsorção proximal tubular de 4 – ao falar-se em necessidades em fluidos em
sódio e da secreção de aldosterona pela suparar- termos gerais a noção de fluido (ou líqui-
renal; esta última, por sua vez, aumenta a reab- do) engloba igualmente os lípidos; de facto,
sorção de sódio ao nível do túbulo distal. se falarmos em necessidades hídricas (em
água) os lípidos, que são anidros, ficam
Péptido natriurético excluídos, tendo no entanto, impacte na
Este péptido, produzido no miocárdio auricular volémia e hemodinâmica; este aspecto é
sempre que se verifica distensão da cavidade auri- importante em nutrição parentérica (Capí-
cular, tem as seguintes acções: aumento da taxa de tulos 115 e 343).
filtração glomerular, inibição da reabsorção tubu-
lar de sódio, o que tem como consequência facili- Perdas
tar o aumento da excreção urinária de sódio. As perdas habituais ou fisiológicas verificam-se
principalmente através da pele e aparelho respi-
Hormona antidiurética (HAD) ratório (perdas de água sem electrólitos por eva-
A secreção da HAD aumenta como reacção à osmo- poração ou perdas insensíveis), urina (perdas
lalidade plasmática elevada; a consequência é maior urinárias) e fezes (perdas fecais).
reabsorção tubular de água e diminução do débito Em circunstâncias anómalas, para além destas
urinário. Em situações de diminuição acentuada da perdas, há ainda que contar: com as chamadas
volémia verifica-se estimulação da HAD e da sede perdas para o terceiro espaço (desvio de líquidos
independentemente osmolalidade plasmática. do espaço intravascular para o espaço intersti-
Relativamente à manutenção da volémia, con- cial); e com as perdas através de tubos de
siderando que o sódio constitui o principal catião drenagem (por exemplo, torácicos, abdominais).
extracelular, praticamente confinado a este com- Saliente-se que as perdas através da sudação
partimento(LEC), pode inferir-se que, para a não são consideradas perdas insensíveis: as per-
manutenção da volémia, se torna absolutamente das de água por evaporação não contêm electróli-
necessário o suprimento em sódio dentro de titos enquanto as perdas por sudação contêm água
determinados limites. e electólitos.
Sistematizando, apontam-se os seguintes valores:
Perdas e necessidades de fluidos
(Manutenção) perdas insensíveis
• 30 ml/kg/dia no lactente(valores superiores
Na perspectiva da administração de água e elec- no recém-nascido, sobretudo se de muito
trólitos (fluidoterapia) e da garantia de manu- baixo peso(inferior a 1500 gramas).
CAPÍTULO 48 Equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base 267

QUADRO 2 – Composição aproximada de Líquidos de manutenção


fluidos orgânicos em electrólitos Tendo em consideração as perdas atrás referi-
das (perdas ordinárias), em condições de normali-
Proveniência Na+ K+ Cl– dade– criança apirética, em estado de normo-
mEq/L mEq/L mEq/L volémia, sem que seja necessária compensação
Suco Gástrico 20-80 5-20 100-150 renal atrás descrita, produzindo urina isotónica
Suco 120-140 5-15 90-120 (densidade ~1.010), as mesmas deverão ser com-
Pancreático pensadas (para que não se gere desequilíbrio)
Intestino 100-140 5-15 90-130 através do suprimento de líquidos e electrólitos
Delgado (líquidos de manutenção).
Bílis 120-140 5-15 80-120 Para melhor compreensão do problema da
Fezes fluidoterapia a realizar nos casos de desequilíbrio
de Diarreia 10-90 10-80 10-110 (desidratação ou outros problemas), opta-se por


Normal 10-30 3-10 10-35 considerarar a modalidade de manutenção de
Suor Fibrose líquidos por via endovenosa .
quística 50-130 5-25 50-110 Para o cálculo do volume de líquidos de manu-
tenção há que atender também ao consumo ener-
Queimaduras 110-140 110-140 gético no pressuposto de que existe uma fonte
endógena de água – a água resultante dos proces-
sos de oxidação celular) (ver parte Nutrição).
• 12 ml/kg/dia na criança maior Na prática, para atingir o referido equilíbrio,
Como regra prática em função do contexto utiliza-se habitualmente a tabela de correspon-
clínico: 0,5 a 1 ml/kg/hora. dência de Holiday e Segar em termos de necessi-
Situações como temperatura ambiente elevada dades em volume de líquidos de manutenção na
(incremento de 12% por cada grau acima de 38ºC), base de 100 mL de água exógena por cada 100 kcal
taquipneia, traqueostomia, febre, fototerapia, etc. de energia despendida. O objectivo principal é
aumentam as perdas insensíveis; outras, como manter a normovolémia. (Quadro 3).
ambiente em incubadora com humidade relativa Por exemplo, no caso de uma criança que pese
aumentada, diminuem tais perdas. 14 kg, o cálculo será: 1000 mL para os primeiros
Refira-se que as queimaduras aumentam as 10 kg+ 50 mL/kg para os restantes 4 kg, ou seja,
perdas, não só de água , mas de electrólitos. 200mL. O total será, pois, 1200 mL para um dis-
perdas urinárias pêndio energético de 1200 kcal/dia.
• 2 ml//kg/hora (1 a 3 ml/kg/hora); cerca do
1 ano de idade: 400-500 ml/dia). Composição em electrólitos
Com base em estudos empíricos, as necessidades
perdas fecais em electrólitos a veicular em função do volume de
• 5ml/kg/dia líquidos atrás definido são assim estabelecidas:
Em situações de diarreia tais perdas de água e Por cada 100 mL de líquido administrado/ por
de electrólitos aumentam significativamente. 100 kcal despendidas:

As perdas para o chamado “terceiro espaço” QUADRO 3 – Necessidades em volume


são difíceis de quantificar. Manifestam-se por de líquidos de manutenção
edema e/ou ascite, podendo o clínico confrontar-
se com uma situação especial: sinais de hipo- Peso (kg) kcal ou mL/kg/dia mL/kg/hora
volémia e aumento do peso explicado pelo 1-10 100 ~4
edema. 11-20 1000+50x(Peso Kg-10) 40+2x(Peso Kg-10)
O Quadro 2 discrimina o conteúdo em elec- 21-80 1500+20x(Peso Kg-20) 60+1x(Peso Kg-20)
trólitos de vários líquidos orgânicos, a considerar (100 mL/100 kcal despendidas)

em caso de perdas anormais.


268 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

• Na: 2 a 4 mEq (em média, 3 mEq) - Para obter soro a 1/5: adicionar a um litro de
• Cl: 2 a 4 mEq dextrose a 5% (ou 10%) 9ml de soluto de
• K: 2 mEq cloreto de sódio a 20%.

À água que serve de veículo acrescenta-se 5 Equilíbrio Ácido – Base


gramas de dextrose por cada 100 mL (dextrose a
5%), o que permite suprimento calórico suficiente Fisiopatologia (Noções fundamentais)
para impedir o catabolismo proteico e a cetose. Tendo em conta o papel importante do pulmão e
Em situações especiais utiliza-se a 10 %. do rim na regulação do equilíbrio ácido-base, é
Em suma, o modelo recomendado de solução a importante recordar:
administrar por via endovenosa para a manuten- – O conceito básico de pH: número que expri-
ção contém: quer Cl, quer Na → 20 a 40 mEq/L me o logaritmo do inverso da concentração
(média 30 mEq/L); K→ 20 mEq/L; dextrose → 50 hidrogeniónica em hidrogeniões – grama/litro.
gramas/L. (pH= log 1/[H+])
Na prática, trata-se dum soluto de “soro” fisio- – O conceito de reacção de equilíbrio (anidrase
lógico diluído a 1/5 (SF a 1/5) acrescentado de 20 carbónica)
mEq/L de cloreto de potássio(KCl). CO2 + H2O → H2CO3 → H+ + HCO3–
Uma vez que o Cl é também veiculado pelo (A maior parte do CO2 é transportado pelo
“soro”, ou melhor, soluto fisiológico(NaCl a sangue sob a forma de HCO3–, havendo apenas uma
9/1000 ou SF-isotónico), o conteúdo de Cl excede, pequena porção de CO2 livre dissolvido no plasma.
de facto as necessidades; na prática, tal excesso – A equação do Henderson – Hasselbalch: pH =
face aos cálculos efectuados é irrelevante,sem pH + log [H CO–3]/[PCO2]
qualquer implicação. O pH do sangue depende, em cada momento,
O Quadro 4 resume vários tipos de solutos uti- da quantidade de base (HCO–3) e de CO2 livre
lizados em fluidoterapia endovenosa. – As funções do túbulo renal
A obtenção de “soros” a 1/2, 1/3, etc., pode al- • Proximal
cançar-se por simples mistura “soro” salino fisio- Reabsorção passiva da maior parte da água fil-
lógico a “soro” glicosado ou dextrosado a 5 ou a trada, do sódio, do potássio e do bicarbonato
10%. Por ser mais prático, utilizamos o soluto de • Distal
cloreto de sódio a 20%, que adicionamos nas Reabsorção activa do sódio
quantidades referidas ao soro glicosado. Assim: Concentração da urina
– Para obter soro a 1/2: adicionar a um litro de Excreção de [iões H+] e acidificação da urina
dextrose a 5% (ou 10%) 22ml de soluto de
cloreto de sódio a 20% O pulmão, eliminando através da respiração o
– Para obter soro a 1/3: adicionar a um litro de CO2, impede a acumulação de CO2 produzido pelo
dextrose a 5% (ou 10%) 15ml de soluto de metabolismo normal do organismo.
cloreto de sódio a 20% Assim, a hiperventilação promove a elimi-
nação de CO2, assim como a hipoventilação con-
QUADRO 4 – Composição de solutos utilizados tribui para diminuir a eliminação de CO2 aumen-
em fluidoterapia endovenosa tando a sua acumulação no organismo.
Enquanto o pulmão regula o CO2, o rim regula
Na+ Cl– K+ Ca++ Lactato Osmolalidade a concentração de bicarbonato sérico por um pro-
SF 154 154 – – – 308 cesso em que simultaneamente, por um lado, os
SF a 1/2 77 77 – – – 154 túbulos renais reabsorvem o bicarbonato que é fil-
SF a 1/5 34 34 – – – ~60 trado no glomérulo e, por outro, os túbulos excre-
Lactato de tam hidrogeniões.
Ringer 130 109 4 3 28 271 Por sua vez, a excreção urinária de hidro-
Electrólitos e lactato em mEq /L; Osmolaridade em mOsm/L geniões gera bicarbonato que vai neutralizar a
produção de ácido endógeno.
CAPÍTULO 48 Equilíbrio hidroelectrolítico e ácido-base 269

Assim, o aumento de CO2 (acidose respirató- anomalia bioquímica do pH em contraposição,


ria) conduz ao aumento da reabsorção tubular respectivamente, a acidose e alcalose que tradu-
proximal de bicarbonato, enquanto a redução de zem o processo fisiopatológico subjacente. Por
CO2 (alcalose respiratória) diminui a reabsorção exemplo: a acidémia é sempre acompanhada de
tubular proximal de bicarbonato. acidose; contudo, determinado doente pode apre-
Por outro lado, a perda excessiva de bicarbonatos sentar acidose com pH normal se se tiver proces-
pelas fezes em caso de diarreia pode condicionar aci- sado a compensação respiratória.
dose metabólica, secundariamente compensada por
uma eliminação de CO2 (acidose metabólica com- Valores de referência no sangue (equilíbrio
pensada respiratoriamente). Neste caso a redução do ácido-base,PCO2 e PO2).
pH sérico aumenta a frequência respiratória causan- São descritos seguidamente os valores dos parâ-
do descida de CO2, condicionando, por outro lado, metros classicamente considerados:
subida compensadora de pH sérico. – Défice de base:
A subida de CO2 pode, assim, ser devida a uma RN: (-10) a (-2) mmol/L
alcalose respiratória primária, ou secundária a Lactente: (-7) a (-1) mmol/L
compensação respiratória por acidose metabólica. Criança/adolescente: (-4) a (+3) mmol/L
Por sua vez, a compensação respiratória de uma – Bicarbonato:
alcalose metabólica primária traduz-se pela reten- 21 a 28 mmol/L (sangue arterial)
ção respiratória de CO2. 22 a 29 mmol/L(sangue venoso)
Num processo respiratório primário há uma – PCO2: 32 a 48 mmHg
compensação renal; com efeito, se se verificar aci- – PaO2 (sangue arterial):
dose respiratória (hipoventilação), o rim aumenta RN (1 hora - 1 dia): 55 a 95 mmHg
a produção de bicarbonatos, enquanto numa Após período neonatal: 80 a 108 mmHg
situação de alcalose respiratória (hiperventilação), – pH: 7.34 a 7.46
por ansiedade ou crise asmática ligeira, o rim ex-
creta maior quantidade de bicarbonatos, reduzin- BIBLIOGRAFIA
do a concentração sérica de bicarbonatos durante A bibliografia referente à Parte X é descrita no final do
cerca de 72 a 96 horas. Capítulo 50.
Comparativamente, cabe referir que a com-
pensação respiratória de processos metabólicos
decorre em tempo mais curto: 12 a 20 horas.
Na maior parte das situações surgem altera-
ções de tipo misto; são exemplos a criança com
displasia broncopulmonar, em que podem coexis-
tir acidose respiratória (pela patologia pulmonar
crónica) e alcalose metabólica iatrogénica secun-
dária à utilização de furosemido (por falência car-
díaca direita).
Outro exemplo é o da sépsis, situação emer-
gente, em que podem coexistir acidemia e acidose
metabólica grave por acidose láctica devido a
hipoperfusão, bem como, acidose respiratória por
falência respiratória.
Define-se acidose metabólica como diminuição
do pH sérico (< 7.35) secundária a um aumento de
hidrogeniões.
Define-se alcalose metabólica como elevação do
pH sérico (>7.42) secundária a excesso de bases.
Os termos acidémia e alcalémia referem-se a
270 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

49
em regime hospitalar realizam-se determinados
exames complementares. Saliente-se, no entanto,
que a experiência clínica e a observação cuidadosa
atendendo à valorização de determinados sinais
clínicos poderá tornar dispensáveis os exames
complementares, referidos adiante.
DESIDRATAÇÃO AGUDA A proporção relativa da perda de electrólitos e
de água determina o tipo de défice e de desidra-
Mária do Carmo Vale, João Estrada tação. Este aspecto é importante, pois em função
e João M. Videira Amaral do referido tipo são adoptados procedimentos
diversos relacionados com a composição dos solu-
tos e a velocidade de administração:

Etiopatogénese e manifestações Hipotónica


clínicas Na desidratação hipotónica há um desvio de água
do compartimento extracelular EEC para o EIC, o
Condições anómalas podem causar perda aguda que condiciona um agravamento da depleção
excessiva para o exterior, ou desvio para espaço intravascular e clínica exuberante de desidratação.
não funcional, de água e electrólitos, em propor- Neste tipo o sódio sérico é inferior a 130
ções variadas (desidratação aguda). mEq/L e a osmolalidade sérica é inferior a 270.
Exemplos: diarreia, vómitos, fibrose quística, Os sinais clínicos são sobreponíveis aos da desi-
golpe de calor, queimaduras, peritonite, ascite, etc.. dratação isotónica, embora mais notórios. Na
De todas as etiologias referidas a mais frequente é hipotónica e na isotónica a desidratação é pre-
a causada por diarreia. dominantemente extracelular. (Quadro 1).
Para calcular o défice hidro-electrolítico a cor-
rigir, ou o valor das perdas, é necessário avaliar o Hipertónica
grau de desidratação de acordo com a semiologia Pelo contrário, na desidratação hipertónica há um
clínica e a perda de peso (%): desvio de água do EIC para o EEC com a conse-
• Desidratação ligeira (3-5%) – frequência quente preservação de volume intravascular,
cardíaca normal ou aumentada, diminuição quadro clínico de desidratação menos exuberante,
do débito urinário, secreção lacrimal manti- manutenção do débito urinário e pressão arterial
da, observação clínica normal. até estádios mais avançados de desidratação.
• Desidratação moderada (6-10%) – taquicar- Neste tipo, a natrémia é superior a 150 mEq/L
dia, diurese escassa ou ausente, olhos (osmolalidade sérica superior a 310), chamando-
encovados e fontanela deprimida, diminui- se a atenção para os sinais clínicos diversos dos
ção de lágrimas, mucosas secas, prega cu- da desidratação hipotónica.
tânea moderada, pele fria e pálida, tempo de Trata-se duma desidratação predominante-
recoloração capilar aumentado e letargia ou mente intracelular com elevada morbilidade na
irritabilidade. ausência de tratamento correcto por exempo: trom-
• Desidratação grave (> 10%) – pulso rápido e bose, hemorragia intracraniana, etc.. (Quadro 1)
filiforme, pressão arterial diminuida, ausên-
cia de débito urinário, olhos e fontanela Isotónica
muito deprimidos, ausência de lágrimas, Neste tipo, caracterizado pelos sinais e sintomas
mucosas muito secas, prega cutânea marca- resumidos no Quadro 1 o sódio sérico encontra-se
da, pele fria e marmoreada (choque). dentro dos limites da normalidade (Na+ : 130- 150
Para o cálculo deste défice é, pois, fundamen- mEq/L) explicável por perda proporcional de
tal, em primeiro lugar proceder à anamnese e ao água e de electrólitos. A osmolalidade sérica varia
exame objectivo; em casos especiais de interpre- entre 270-300). Trata-se do tipo mais frequente
tação mais difícil, de gravidade comprovada e/ou (cerca de 85% dos casos).
CAPÍTULO 49 Desidratação aguda 271

QUADRO 1 – Sinais e sintomas de desidratação

Desidratação hipertónica Desidratação hipotónica Desidratação isotónica

Perda acentuada de peso Perda de Peso Perda de Peso


Irritabilidade Prostração Prostração
Hipertonia / convulsões
Meningismo Hipotonia muscular Hipotonia muscular
Pele quente Pele acinzentada e fria Pele pálida e fria
Fontanela deprimida/normal Fontanela deprimida Fontanela deprimida
Língua muito seca (~”lixa”) Língua pastosa Língua seca
Sede intensa Ausência de sede Sede moderada
Olhos pouco encovados Olhos encovados Olhos encovados
Febre Febre inconstante Febre inconstante
Perda de turgor ligeira Perda de turgor acentuada Perda de turgor acentuada
Prega abdominal + Prega abdominal ++++ Prega abdominal +++
Oligúria Oligúria Oligúria
Escleredema Taquicardia Taquicardia
Pressão arterial +/-mantida Hipotensão acentuada Hipotensão
Respiração de Kussmaul Respiração de Kussmaul Respiração de Kussmaul
Choque Choque
N. B.
Nos casos de obesidade é mais frequente a desidratação hipertónica:
São importantes os sinais a pesquisar:
– Olhos encovados
– Mucosas secas
– Turgor mantido (o tecido adiposo tem menor quantidade de água)

Nos casos de subnutrição são importantes os seguintes sinais de desidratação:


– Taquicardia (o subnutrido hidratado tem habitualmente bradicárdia)
– Fontanela deprimida
– Mucosas secas
– Olhos encovados
– Prega abdominal

Na desidratação isotónica ambos os mecanis- renal aguda em que se observa desidratação


mos descritos atrás estão presentes. iso/hiponatrémica hipertónica condicionada
pelos elevados níveis séricos de ureia.
De referir que a concentração de sódio sérico e
a osmolalidade de sérica permitem, em princípio,
Conceitos fundamentais:
determinar o tipo de desidratação. • Osmole – Unidade de medida de pressão osmótica. É a pressão osmótica
No entanto, se este facto se verifica na maior exercida pour uma molécula-grama dum corpo (substância) não
ionizado dissolvido em 1 litro de água; ou por um ião-grama se se tratar
parte das patologias, tal não acontece nalgumas dum corpo completamente ionizado, dissolvido em 1 litro de água.
situações (por exemplo na cetoacidose diabética) • Miliosmole – É a milésima parte do osmole. Trata-se da unidade
em que ocorre desidratação hipertónica hipona- empregue em biologia para exprimir a pressão osmótica dos
diferentes corpos(substâncias) dissolvidos nos líquidos do organismo,
trémica (a hipertonia ou hiperosmolalidade é em função da sua concentração molecular ou iónica. Para traduzir em
condicionada pela hiperglicémia e não pela hiper- miliosmole (mosM) a pressão duma solução cuja concentração é
conhecida em peso, divide-se o nº de miligramas / litro pelo peso
natrémia). Este aspecto relaciona-se com o papel molecular do corpo (substância) [se se tratar de corpo não ionizado]
dos osmoles*. Outro exemplo é a insuficiência ou pelo peso atómico do ião [se se tratar de corpo ionizado].
272 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

50
Défice entre 3- 5%
Pode ser corrigido, em geral, com solutos por
via oral e em regime ambulatório mantendo o
regime alimentar habitual com algumas restrições
(ver adiante e Capítulo 107).
Défice entre 6-10%
REIDRATAÇÃO Pode ser corrigido, em geral, com solutos por
via endovenosa inicialmente, seguindo-se a admi-
João M Videira Amaral, Maria do Carmo Vale nistração ulterior de solutos por via oral, depen-
e João Estrada dendo da tolerância digestiva (vómitos ou não).
Défice superior a 10%
Nesta situação acompanhada ou não de cho-
que, há indicação de fluidoterapia endovenosa e
Aspectos gerais de seguimento inicial no hospital.
Para melhor compreensão do problema é des-
O esquema terapêutico da desidratação (ou rei- crita primeiramente, como modelo, a correcção
dratação) é um processo dinâmico que implica por via endovenosa.
vigilância constante ou frequente “à cabeceira do
doente”, devendo, pois ser individualizado. Reidratação endovenosa
A reidratação pode ser levada a cabo por via
oral, por via endovenosa ou pelas duas vias em 1ª Fase: reposição da volémia em situação de
combinação. défice > 10-15% (choque)
Em muitos casos poderá haver necessidade de Trata-se duma actuação prioritária tendo em vista
modificação de estratégias inicialmente planeadas a preservação da função cardiovascular para ga-
face à evolução clínica, o que é explicável: pelos rantia de eficaz perfusão dos órgãos, com especial
mecanismos de compensação do organismo que relevância para o encéfalo e rins.
variam em função da gravidade; pela possibili- Actuação prática: solução isotónica (em geral
dade de, a partir de determinada fase, o doente “soro” fisiológico ou lactato de Ringer) ao ritmo
passar a tolerar a administração de solutos por via de 10-30 mL/kg/hora; a duração desta fase, (entre
oral (nos casos de ser ter iniciado a correção por 1 a 2 horas ) variará em função do contexto clíni-
via endovenosa), ou o contrário (nos casos em que co, grau de desidratação e resposta inicial.
a correção iniciada por via oral passar a ser inviá- No caso de se tratar de situação com predo-
vel por diversos motivos). mínio de vómitos (por exemplo estenose hiper-
Numa primeira fase haverá que calcular o trófica do piloro com perdas de conteúdo gástri-
valor das perdas, ou seja, o défice em líquidos. co, ácido), dada a probabilidade de surgir alcalose
Os exames complementares considerados metabólica, não está indicado o lactato de Ringer
essenciais são: ionograma sérico, (prioritário) que pode exacerbar esta última.
determinação de ureia e creatinina no sangue, pH
e gases no sangue, análise sumária de urina (den- 2ª Fase: reposição do défice de líquidos e
sidade e osmolalidade) e hematócrito. Em casos electrólitos
especiais pode estar indicado o ionograma uriná- O plano de reposição do défice implica a obediên-
rio de 12 ou 24 horas. cia a um conjunto de princípios: administração
concomitante, nesta fase, dos líquidos e electróli-
Quantificação do défice tos para a manutenção; reposição do défice em
tempo a determinar, variando em função do tipo
Quantificando a desidratação pela percentagem de desidratação; relativamente ao catião potássio
de perda de peso relacionada com os sinais e sin- (K+), predominantemente intracelular, a compen-
tomas atrás apontados são adoptados os seguintes sação / reposição das perdas não pode ser imedia-
procedimentos para reposição do défice: ta pelos perigos que tal envolve: somente deverá
CAPÍTULO 50 Reidratação 273

ser incorporado no soluto de manutenção após défice (no exemplo atrás referido, somente após
comprovação de diurese mantida respeitando cer- as 6-8 horas, corrigido o défice após administração
tos limites no suprimento (não exceder 40 de 1000 mL);
mEq/litro de solução nem 0,5 mEq/kg/hora). c) Na desidratação hiponatrémica poderá
haver necessidade de administrar sódio extra (a
Tipo de solução acrescentar à solução atrás referida (SF diluído a
Na prática utiliza-se soluto salino fisiológico 1/2) em função da natrémia entretanto determi-
(SF ou NaCl a 0,9%) diluído a 1/2 (o chamado nada, aplicando a fórmula:
“soro a 1/2”) contendo 77 mEq de Na e 77 mEq de Défice em sódio = (130 - Na sérico) x 0,6 x
Cl). peso (em kg).

Planos Em lactentes com perdas de carácter grave, os


I) Desidratação isotónica ou hipotónica em doentes défices prováveis, por Kg peso, são os descritos no
com peso < 25 kg Quadro 1.
– SF diluído a 1/2 em dextrose a 5%
– Volume: correspondente ao défice(por exem- II) Desidratação isotónica ou hipotónica em doentes
plo doente de 10 kg e desidratação <> 10%, será com peso ≥ 25 kg
1000 mL ); Como particularidade nesta situação, está
– Débito ou “velocidade” de administração: 6- implícita a estratégia de reposição do défice mais
8 horas (chamando-se a atenção para a necessi- lenta, e de contabilização concomitante, já nesta
dade de vigilância constante para avaliação da fase, das necessidades de manutenção.
resposta do doente e, eventualmente, modificação – SF diluído a 1/2 em dextrose a 5%
da actuação) tentando corrigir, neste tempo, o dé- – Volume: correspondente a metade do défice
fice; planeando para 8 horas, o débito será acrescentado das necessidades de manutenção (por
125mL/hora; exemplo doente de 26 kg e desidratação <> 10%,
– Cloreto de potássio (K Cl) a acrescentar ao será 2600 mL + 1620 mL ) (consultar Quadro 3 do
soluto na proporção, em regra empírica, de 20 capítulo 48);
mEq/L de solução após o doente ter tido duas – Débito ou “velocidade” de administração: 6-
micções; 8 horas(chamando-se a atenção para a necessi-
Notas importantes: dade de vigilância constante para avaliação da
a) Este plano implicando, administração de resposta do doente e , eventualmente, modificação
“grande volume” de soluto em ritmo relativamente da actuação) tentando corrigir, neste tempo, o
rápido não é aplicável em doentes com mais de 25 défice; assim, o débito nas primeiras 8 horas será
kg, adolescentes, desidratação com défice/perda metade de 2600 mL, isto é 1300 mL, acrescentan-
de peso superior a 10%, com cetoacidose diabética do-se, para as 16 horas seguintes (ou 24 horas
nem com desidratação hipernatrémica. menos 8 horas = 16 horas) os restantes 1300 mL
b) Com este plano, está implícita a estratégia aos cálculos da manutenção: (ou seja, 1300 mL +
de considerar a contabilização das necessidades 1620 mL = 2920 mL) o que corresponde a um
de manutenção somente após a correcção do ritmo ou débito de 182 ml /hora.

QUADRO 1 – Défices prováveis / kg de peso em lactentes com quadro de desidratação grave

Desidratação H2O(mL) Na (mEq) K (mEq) Cl (mEq)


Isótónica 100 – 120 8 – 10 8 – 10 5 – 10
Hipertónica 100 – 120 2–4 0–4 (-2) a (-6)
Hipotónica 100 – 120 10 – 12 8 – 10 10 – 12
Vómitos
(Estenose do piloro) 100 – 120 8 – 10 10 – 12 10 – 12
274 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Alguns autores contabilizam o volume calcula- posição do soluto é a lentidão da correcção do


do para as 24 horas seguintes; no exemplo citado, défice).
para o volume calculado o débito seria, então – Volume inicial: correspondente a metade do
121,6 mL/hora. défice, acrescentado das necessidades de manuten-
– Cloreto de potássio (K Cl) a acrescentar ao ção (por exemplo doente de 10 kg e desidratação
soluto na proporção, em regra empírica de 20 <> 10%, com valor de natrémia de 160 mEq/L
mEq/L de solução após o doente ter tido duas implicando reposição do défice em 48 horas), será:
micções; → 500 mL (metade do défice para as primeiras
Notas importantes: 24 horas + 1000 mL de soluto de manutenção);
Quer o plano I , quer o plano II poderão ser → a restante metade do défice nas restantes 24
aplicados em casos de doentes com desidratação horas (ou os restantes 500 mL do défice) + 1000 mL
hipotónica ou isotónica em geral, mas não em de soluto de manutenção (consultar Quadro 3 do
crianças e lactentes com quadro de desidratação capítulo 48);
hipertónica. – Cloreto de potássio (KCl) a acrescentar
segundo a regra empírica de 20 mEq/L de solução
III) Desidratação hipertónica após o doente ter tido duas micções (diurese >
No caso da desidratação hipertónica a repo- 1ml/kg/hora);
sição do défice de líquidos e electrólitos tem par- Complicações que podem ocorrer no contex-
ticularidades relacionadas essencialmente com a to da desidratação hipernatrémica/hipertónica:
necessidade de duração superior à referida para – hipocalcémia; se fôr sintomática, deve pro-
a forma iso-hipotónica;por outro lado, a particu- ceder-se à sua correcção administrando gluconato
laridade de manifestação dos sinais subestima de cálcio por via endovenosa com monitorização
muitas vezes a gravidade da situação. cardíaca (ver tratamento da hipocalcémia) sendo
Tratando- se duma forma de desidratação em que na solução de gluconato de cálcio (Ca) a 10%:
que há predomínio de perda de água em relação 1 mL <> 100 mg de gluconato de cálcio e 9 mg de
ao sódio(Na) com consequentes hipernatrémia e Ca elemento <> 0,45 mEq de Ca++ ionizado;
hiperosmolaridade séricas, para a correcção não – acidose metabólica (ver tratamento da aci-
deverão ser utilizados solutos hipotónicos pelo dose);
risco de passagem rápida de água para o espaço – hiperglicémia (relacionada com défice de
intracelular, e de edema celular com implicações secreção de insulina e diminuição da sensibilidade
graves ao nível do sistema nervoso central (edema dos receptores celulares à mesma). Ao avaliar a taxa
cerebral podendo originar, por exemplo, convul- de declínio da natrémia, há que entrar em linha de
sões). Com efeito, neste tipo de desidratação pre- conta com o efeito da hiperglicémia; ou seja, o valor
dominantemente intracelular o encéfalo “gera” de Na sérico/natrémia determinado é mais baixo
osmoles idiogénicos para manter o volume celu- que a “verdadeira natrémia” em cerca de 1,6
lar; assim, a correcção do défice deve ser realiza- mEq/L por cada 100 mg/dL de glicémia acima de
da de modo muito lento. 100 mg/dL. Exemplificando: o valor de uma
Na prática, e não existindo sinais de choque natrémia de 170 mEq/L determinada em situação
(cujo tratamento é prioritário e semelhante ao de glicémia de 600 mg/dL corresponde, de facto, a
que foi referido noutras formas de desidratação), um valor real de 178 mEq/L de Na sérico.
procede-se do seguinte modo:
– Soluto: SF diluído a 1/2 em dextrose a 5% Monitorização
– Débito ou “velocidade” de administração Sendo a reidratação um processo dinâmico,
sempre superior a 24 horas, dependendo da chama-se a atenção para a necessidade de vigilân-
natrémia(Na em mEq/L): cia permanente com avaliação dos seguintes
145-157 → em 24 horas; parâmetros:
158- 170 → em 48 horas; – sinais vitais (frequência cardíaca/pulso, fre-
> 170 mEq/L → superior a 48 horas. quência respiratória, pressão arterial)
(Salienta-se que mais importante do que a com- – peso
CAPÍTULO 50 Reidratação 275

– temperatura corporal pósito das situações de desidratação hiperna-


– balanço com registo de suprimento e de “saí- trémica e de desidratação em casos de peso igual
das” de líquidos (fezes, urina, perdas insensíveis, ou superior a 25 kg de peso.
líquidos de drenagem, perdas para o “terceiro – Débito ou “velocidade” de administração: os
espaço”) cálculos são feitos tendo como base as necessi-
– natrémia, osmolalidade sérica, densidade dades em líquidos para 24 horas, contabilizando
urinária (elevada inicialmente entre 1020 e 1030) também, tanto quanto possível, as perdas para o
– eventualmente: azotémia, creatinina e hema- “terceiro espaço”.
tócrito, etc.. – Soluto: soluto de manutenção (SF diluído a
Estes procedimentos têm em vista possível 1/5) em volume discriminado no Quadro 3 do capí-
reajustamento do débito e do volume em cada 8, tulo 48, acrescentado de KCl na dose de 20 mEq/L
12 horas e 24 horas em função do tipo de respos- desde que haja garantia de diurese mantida.
ta do doente. – Duração: em função da situação clínica, ini-
O débito de administração deve ser ajustado ciando-se, logo que possível em concomitância, a
de modo que se verifique diminuição da natrémia reidratação oral (ver adiante).
ao ritmo aproximado de 0,5 mEq/L/hora ou 12 – Particularidades: se as perdas para o terceiro
mEq/L/dia (caso específico da desidratação espaço forem significativas e prolongadas, dever-
hipertónica hipernatrémica). se-á determinar a composição em electrólitos das
Em cada 24 horas, no mínimo, deverá proce- mesmas sendo necessário proceder à compen-
der-se a nova programação de débito e de volume sação em volume e em composição.
contabilizando as necessidades de manutenção.
Concretizando com várias hipóteses: Reidratação oral / entérica
a) se o doente evidenciar taquicardia persis-
tente mantendo-se os sinais de desidratação, o Indicações
grau de desidratação poderá ter sido subavaliado A reidratação com solutos por via oral, utilizada
inicialmente ou poderá haver perdas superiores às actualmente na maioria dos casos, está indicada
inicialmente previstas.Em tais circunstâncias o nos casos de desidratação ligeira a moderada por
débito da administração deverá ser aumentado; diarreia aguda (desidratação correspondente a
b) se o doente melhorar rapidamente e a den- perda de menos de 10% do peso); por vezes, se a
sidade urinária diminuir progressivamente, a fase situação o permitir, poderá ser levada a cabo con-
da reposição do défice poderá ser encurtada, pas- comitantemente com a reidratação por via endo-
sando-se para 3ª fase. (ver adiante) venosa, contabilizando com rigor o suprimento
c) se a natrémia (Na) diminuir rapidamente, dos respectivos solutos.
diminuir o débito ou aumentar a concentração de
Na no soluto; Contraindicações
d) se o Na diminuir muito lentamente (< Esta modalidade de reidratação está contraindica-
12mEq/L/dia ou < 0,5 mEq/L/hora), diminuir a da nas seguintes situações: desequilíbrios hidro-
concentração de Na do soluto, ou aumentar o electrolíticos importantes, choque, sépsis, íleo
débito do mesmo. paralítico, vómitos incoercíveis, perdas fecais
Salienta-se que as perdas, entretanto verifi- superiores a 10 mL/kg/hora, disfunção renal,
cadas, deverão ser sempre contabilizadas ao longo alterações da consciência, idade inferior a 3 meses
do processo de correcção do défice. e falência de reidratação oral prévia.

3ª Fase: manutenção Fundamentação


A abordagem desta fase considerada separada- A base fisiológica que legitima a administração
mente, por razões de melhor compreensão, da de soluções (água e electrólitos) por via oral rela-
fase de reposição do défice, é aplicável nas situ- ciona-se com a verificação de que a absorção de
ações de desidratação iso-hipotónica (plano I) água e sódio por via intestinal pode ser rendibi-
pois, de facto já foi feita referência à mesma a pro- lizada com a adição de glucose.
276 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

De acordo com estudos realizados demons- lógicos e os procedimentos a realizar perante as


trou-se que as soluções de reidratação oral (SRO) alterações mais frequentes do equilíbrio hidro-
podem corrigir com maior segurança a desidra- electrolítico e ácido-base associadas, por vezes, a
tação hipernatrémica do que os solutos por via quadros clínicos de desidratação.
endovenosa, havendo menor risco de convulsões.
Acidose metabólica na desidratação (hipertónica
Preparados comerciais ou iso-hipotónica)
Existe grande variedade de preparados comerciais Substituir parcialmente o soro fisiológico (Na Cl
de soluções para reidratação oral (sigla ORS em 0,9% em que 1 ml=0,154 mEq de Cl e 0,154mEq de
inglês). Na+) por bicarbonato de sódio a 8,4% em que 1
A composição-tipo por litro (/L) é a seguinte: ml=1 mEq de H– CO3 e 1 mEq de Na+).
glicose /hidrato de carbono → 20 a 30 gramas; Na Aplicar as fórmulas:
→ 75 a 60 mEq; Cl → 35 a 80 mEq; k → 20 a 25 nº de mEq de H– CO3 a administrar: peso em
mEq; citrato → 30 a 34 mEq; e 200 a 330 mOsm; Kg x Défice de Base x 0,3 (ou 0,5 se se tratar de
(ver parte XVI – Gastrenterologia, capítulo 107) recém – nascido).
Como particularidades há a salientar diferença Se pH < 7.2: administrar 1/2 da dose calcu-
entre a solução tipo OMS/UNICEF (cuja relação lada em injecção intravenosa (i.v). directa diluída
Na/K em mEq/L é 90/20) e a solução tipo como se referiu atrás e 1/2 em perfusão lenta a
ESPGHAN em que a mesma relação é 60/20. O juntar à perfusão prescrita.
soluto OMS/UNICEF foi inicialmente concebido Se pH > 7.2: 1/3 da dose em injecção i.v. direc-
para o tratamento de situações de cólera em África ta diluída, e 2/3 da dose na perfusão que está a
e países em desenvolvimento; daí o seu teor supe- correr
rior em sódio. N.B.
No nosso meio, segundo a ESPGHAN (Portu- – Após correcção da acidose, administrar Ca++
gal e países desenvolvidos sem aquele problema) (0,5 mEq/Kg/dia a dividir por 3 doses)=1
estão mais indicadas as SRO com teor mais baixo ml/Kg/dia de gluconato de cálcio a 10%
em sódio; com efeito, a diarreia fora daquela situa- – Nunca juntar no mesmo frasco bicarbonato
ção (cólera) é constituída por líquido hipotónico. de sódio com gluconato de cálcio a 10%.
– O défice de base de 0 a 5 não necessita de cor-
Procedimento recção
Na prática: – A acidose metabólica pode ser acompanhada
– desidratação ligeira → alternar SRO com ali- ou não de hiato aniónico alterado.
mentação; – Na hipótese de hiato aniónico > 11 com
– desidratação moderada → SRO na dose de clorémia normal há que admitir a possibili-
15-25 ml/kg/hora (1 a 2 colheres das de chá de 5 dade de acumulação de compostos tóxicos
em 5 minutos) durante 4 horas, mantendo alimen- ácidos (por ex. ácidos orgânicos e respectivos
tação por via oral (com leite materno ou fórmula). metabolitos, ou de lactato e corpos cetónicos).
Em regra considera-se necessário o suprimen- – Na hipótese de hiato aniónico entre 4 e11
to de cerca de 10 mL/kg por cada dejecção. associado a pH urinário alcalino, na ausência
Quando a reidratação oral não é possível, pode de ácido láctico aumentado e de hipogliémia,
recorrer-se à reidratação por via entérica por há que admitir a probabilidade de acidose
sonda gástrica (oro ou naso-), tão ou mais eficaz tubular renal.
que a via endovenosa; com efeito, comporta – Na hipótese de acidose metabólica não com-
menor risco de reacções adversas, obrigando em pletamente esclarecida e acompanhada de
geral a menor duração do internamento. hiato aniónico > 11, há que admitir a probabi-
lidade de doença hereditária do metabolismo.
Situações especiais
Hiponatrémia (Na+ inferior a 130 mEq/l)
Seguidamente são sintetizados aspectos semio- a) de depleção (protidémia e hematócrito normais
CAPÍTULO 50 Reidratação 277

QUADRO 2 – Diagnóstico de Síndroma de QUADRO 3 – Principais causas de SIADH


Secreção Inapropriada de
Hormona Antidiurética (SIADH) • Patologia intracraniana (tumores, meningite, trauma,
hemorragias,etc.)
• Osmolalidade urinária > 100 mOsm/Kg (em geral • Patologia torácica (infecções, tumores, etc..)
superior à sérica) • Outras causas (leucemia, SIDA, fármacos-carba-
• Osmolalidade sérica < 280 mOsm/Kg mazepina,vincristina,vinblastina, etc.)
• Natrémia < 135 mEq/L
• Natriúria normal ou > 30 mEq/L
Ausência de insuficiência renal, suprarrenal, 1mg/Kg); b) Perfusão i.v. de dextrose a 5%; c)
hipotiroidismo, insuficiência cardíaca, síndroma Administração de sais de potássio (K+); d) Even-
nefrótica, cirrose, ingestão de diuréticos, desidratação tualmente diálise peritoneal para natrémias supe-
Diagnóstico diferencial laboratorial:
*Padrão de natrémia e osmolalidade sérica diminuídas (simile SIADH); intoxicação pela
riores a 175 mEq/L.
água,hipoaldosteronismo,perda renal de sódio,suprimento insuficiente de sódio, e
SIADH associada a depleção de sódio
*Osmolalidade urinária: diminuída na intoxicação pela água e na perda renal de sódio; e
aumentada na SIADH,hipoaldosteronismo, SIADH associada a depleção de sódio, e
Hiperpotassémia (K+ superior a 6 mEq/L)
suprimento insuficiente de sódio As etiologias mais frequentes relacionam-se com:
insuficiência suprarrenal (hiperplasia SR), supri-
mento em excesso, hemólise, hipotermia, acidose,
ou aumentados); perda de Na+ por: vómitos e/ou etc.). Sinais: apatia, bradicárdia colapso, ondas T
diarreia; pelo rim (causa renal – tubulopatia; – ou pontiagudas (Quadros 4 e 5). O procedimento é o
suprarrenal); ou pela administração de NH4 Cl. seguinte:
Sinais de desidratação. • Lutar contra o choque hipovolémico quando
• Procedimento: Para elevar a natrémia (Na presente;
ordem dos 10 mEq): P em Kg x0,6x10=nº de mEq • Alcalinização rápida (Preferir HNaCO3
de NaCl a administrar. M/2, em que 1 ml=0,5 mEq de bicarbonato),
b) de diluição (protidémia e hematócrito dando 2 a 4 mEq/Kg/em 1 hora;
diminuídos); intoxicação pela água ou SIADH • Dextrose a 30% - (40 a 50 ml em 1/2 hora) +
(síndroma de secreção inapropriada de hormona Hidrocortisona (1 mg por cada grama de
antidiurética) (Quadros 2 e 3). dextrose) + Insulina (I U. I. Por cada 5 gra-
– SIADH: coma, ausência de sinais de desidra- mas de dextrose);
tação, convulsões ou letargia, ausência de edema. • Aspiração gástrica;
– Intoxicação pela água: salivação, secreção • Resinas permutadoras;
lacrimal, vómitos, edema, convulsões. • Diálise peritoneal. N.B. No caso de estar em
• Procedimento na SIADH: restringir líquidos; causa insuficiência suprarrenal, dar NaCl:
administrar sódio, sob a forma de NaCl isotónico 1g/Kg/dia + Hidrocortisona: 10mg/Kg/dia.
(ou hipertónico se houver coma ou convulsões
segundo a fórmula e esquema referido antes). Hipotassémia (K+ inferior a 3,5 mEq/L; grave se
• Procedimento na intoxicação aquosa: a) inferior a 2,5 mEq/L)
Manitol a 10%:10ml/Kg que pode ser repetido; b) As etiologias mais frequentes são: vómitos e/ou
Administrar Na+ segundo a fórmula atrás referida; diarreia, tubulopatias, coma diabético, adminis-
em caso de convulsões, administrar NaCl a 3%, tração excessiva de fluidos endovenosos pro-
1ml/min. até máximo de 12ml ou até que cessem movendo diurese excessiva e arrastando K+)
as convulsões. (Quadros 4 e 5).
O Quadro 3 resume as principais causas de • O aspecto clínico mais relevante da hipotas-
SIADH. sémia iatrogénica é a inoperância duma reidrata-
ção aparentemente correcta com persistência do
Hipernatrémia sem sinais de desidratação ou desequilíbrio hidroelectrolítico.
intoxicação salina (Na+ superior a 150 mEq/L) • Sinais de alerta: hipotonia, íleo paralítico,
Procedimentos: a) Diuréticos (Furosemido 0,5- dispneia, taquicárdia, poliúria, diminuição da
278 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 4 – Manifestações clínicas da hiper e abstenção de injecções directas de KCl com


hipotassémia seringa.
No caso de existir acidose hiperclorémica,
Hiperpotassémia optar por outro sal de K, v.g. acetato ou lactato de
Apatia, torpor, obnubilação K; ou
Formigueiros →Aplicar a fórmula seguinte para calcular a
Pele pálida e fria dose de KCl a administrar:
Bradicárdia e arritmia KCl (em mg)=74,6 x (3,5 – potassémia do
Colapso periférico com tons cardíacos apagados doente) x volémia
Paralisia flácida dos membros (raramente) Volémia = 80 ml x peso em Kg
Síncope cardíaca 1 mEq de K+ = 74,6mg de K
NB – Verificando-se carência de potássio (K+) o
Hipopotassémia rim “poupa” este catião à custa de H+, o qual é
Hipotonia muscular ou paralisia eliminado pela urina criando-se assim uma situ-
Dispneia e cianose ação de alcalose metabólica com urina paradoxal-
Taquicardia mente ácida. O problema é agravado pela hipona-
Distensão abdominal, náuseas e vómitos trémia. Verifica-se situação de acidose intracelular
Dilatação cardíaca, tensão venosa elevada por mecanismo semelhante: o K+ intracelular que
Síncope cardíaca se perde é substituído por H+ e Na+

Acidose respiratória
QUADRO 5 – Alterações electrocardiográficas O tratamento da acidose respiratória será primor-
da hipo e da hiperpotassémia dialmente o da anomalia respiratória casual.

Hiperpotassémia ( > 6 mEq/L) Alcalose respiratória


Onda T pontiaguda Não precisa de correcção por ser auto – limitada.
Intervalo P-R alargado
Ausência de onda P Alcalose metabólica (pH > 7,5 e paCO2 entre 30-
Alargamento do QRS 50mmHg)
Fibrilhação ventricular terminal • A substância acidificante mais utilizada é o
NH4Cl (solução a 9% (1/6 M) que contém 167 mEq
Hipopotassémia ( < 3,5 mEq/L) de Cl– e de NH+4. Cada 1 ml/Kg faz baixar o bicar-
Onda T de baixa voltagem bonato de 0,5 mEq/L, e cada 2 ml elevam o Cl–
Presença da onda U plasmático em 1 mEq/L.
Depressão de S-T • Precauções: contraindicação na insuficiência
Achatamento da onda T com onda U proeminente hepática; aumenta as perdas de K+; evitar que o Cl–
Paragem cardíaca terminal ultrapasse 85-90 mEq/L.
• Como alternativa ao NH4Cl pode empregar-
se KCl (3-5 mEq/Kg), até se obter urina alcalina
amplitude até ao desaparecimento das ondas T, (dado que na situação a corrigir existe acidúria
depressão negativa de ST, ondas U. paradoxal).
• Procedimento: A correcção deve ser lenta,
podendo durar 3 – 4 dias; a finalidade será obter Hipocalcémia (convulsões, colapso, apneia, etc.).
potassémias de segurança (3,5 mEq/L), com vigi- A normalização da acidose seguida de alcalose
lância seriada dos sinais do ECG. (iatrogénica) diminui a fracção ionizada do cálcio,
• Podem ser adoptados dois esquemas práticos: o que poderá determinar a chamada “tetania pós
→ Administrar K+ (KCl) na dose de 4 – 5 – acidótica”.
mEq/Kg/dia (ou 0,2 – 0,3mEq/Kg/hora em per- • Tratamento de emergência: gluconato de
fusão i.v. não ultrapassando 50 mEq/litro); cálcio a 10%, na dose de (2 ml/Kg) i.v. em 10
CAPÍTULO 50 Reidratação 279

QUADRO 6 – Factores de Conversão • Natriúria inferior a 10 mEq/L, associada a


hipopotassémia → provável causa supra –
Unidade Factor Unidade renal.
Fósforo mg/dl 0,32 mmol/L NB • A perda de sal de causa suprarrenal é
Magnésio mg/dl 0,41 mmol/L mais frequente nos primeiros meses.
mEq/L 0,50 mmol/L • A perda de sal de causa renal é mais fre-
mg/dl 0,82 mEq/L quente após os primeiros meses,
Cálcio mg/dl 0,25 mmol/L excepção feita para o chamado pseudo
mEq/L 0,50 mmol/L – hipo-aldosteronismo congénito.
mg/dl 0,50 mEq/L O Quadro 6 elucida de modo prático sobre a con-
versão de unidades mg/dl – mEq/L – mmol/L,
Nota: Os valores em unidades da coluna da esquerda relativamente ao cálcio, fósforo e magnésio.
são convertidos em unidades da coluna da direita mul-
tiplicando-os pelo factor de conversão; os valores em BIBLIOGRAFIA (capítulos 48 a 50)
unidades da coluna da direita são convertidos em Berman S. Pediatric Decision Making. St Louis: Mosby, 2003
unidades da coluna da esquerda dividindo-os pelo fac- Burg FD, Polin RA, Ingelfinger JR, Gershon AA. Gellis&
tor de conversão. Kagan’s Current Pediatric Therapy. Philadelphia: Saunders,
2002
Crocetti M, Barone MA. Oski’s Essential Pediatrics.
minutos; excepcionalmente, 5 ml de gluconato de Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
cálcio a 10% + 5 ml de dextrose a 5% , i.v. directo, Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
ao ritmo de 1 ml/minuto, com vigilância de Guarino A, et al/ESPGHAN.Evidence-based guidelines for the
ECG. management of acute gastroenteritis in children in Europe.
• Dose de manutenção: 700 - 800 mg de glu- JPGN 2008; 46:S81-S184
conato de cálcio/kg/dia. Johnson JE, Sullivan PB. The management of acute diarrhoea.
• ECG nas hipocalcémias: aRaT/RR superior Current Paediatrics 2003; 13:95-100
a 0,50 (referências: vértices de R e de T). Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Texbook of
NB: 1 – A fracção ionizada do cálcio é inversa- Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
mente proporcinal ao pH do plasma. 2- A Lissauer T, Clayden G. Illustrated Textbook of Pediatrics.
hipoproteinémia pode levar ao falso diagnóstico Edinburg: Mosby Elsevier, 2007
de hipocalcémia porque o cálcio total sérico está McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
baixo, embora o cálcio ionizado esteja normal. Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
Nitu M, Montgomery G, Eigen H. Acid-base disorders. Pediatr
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no tratamento da desidratação Pearson F, Johnson MJ, Leaf AA. Milk osmolality: does it mat-
ter? Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2013; 98: F166-F169
– No decurso duma desidratação é frequente ve- Rudolph CD, Rudolph AM, et al(eds). Rudolphs’s. Pediatrics.
rificar-se alteração transitória da função renal; New York: McGraw-EHill Medical, 2011
assim, são frequentes os achados de hipera- Simpson JN, Teach SJ. Pediatric rapid fluid resuscitation. Curr
zotémia, albuminúria, glicosúria, etc.. Opin Pediatr 2011; 23: 286-292
– Se surgir hipo-osmolalidade urinária (tradu-
zida por densidade inferior a 1005) associada a
hipernatrémia (Na+ superior a 150 mEq/L), há que
admitir poliúria insípida.
– Admitir síndromas de perda de sal se natré-
mia inferior a 130 mEq/L com:
• Natriúria superior a 20 mEq/L, pH urinário
superior a 6, pH sanguíneo inferior a 7.2 (aci-
dose) → provável uropatia/tubulopatia.
PARTE XI
Nutrição
282 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

51
de adaptação e de compensação do organismo em
desenvolvimento (regulada geneticamente) quan-
to à absorção, metabolismo e excreção de determi-
nados nutrientes face à carência de outros.
Por outro lado, as chamadas “curvas ou tabe-
las “ de crescimento concebidas matematicamente
NUTRIENTES com base nos dados colhidos em grande número
de indivíduos de determinada população e região,
Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral poderão não se aplicar com rigor noutra popu-
lação com características e padrão nutricional di-
versos para avaliação da “normalidade” dos in-
crementos em peso, altura e outros parâmetros, o
Importância do problema que constitui uma limitação.
Talvez, num futuro próximo, os progressos da
Considera-se alimentação adequada aquela que biologia molecular ajudem a compreender melhor
propicia os nutrientes que promovem o cresci- a grande variabilidade dos mecanismos homeos-
mento e o desenvolvimento adequados, nomeada- táticos do metabolismo que expliquem, nomeada-
mente do sistema nervoso, o que constitui garan- mente, as variações de susceptibilidade e de tole-
tia para a saúde e bem-estar da criança, adoles- rância a carências e a excessos de nutrientes.
cente e futuro adulto.
O termo nutriente refere-se ao componente Critérios para o cálculo de nutrientes
nutritivo do alimento, sendo este último definido
como o composto ingerido; o alimento engloba, As necessidades em macronutrientes (hidratos de
por sua vez, elementos nutritivos e não nutritivos. carbono, lípidos, prótidos) e em micronutrientes
São consideradas sete categorias principais de (minerais e vitaminas) variam de indivíduo para
nutrientes: 1. água; 2. energia; 3. proteínas; 4. hi- indivíduo em função da idade, velocidade de
dratos de carbono; 5. gorduras; 6. vitaminas; 7. crescimento, grau de actividade física e de factores
minerais (minerais major e oligoelementos) genéticos interagindo com factores ambientais.
O termo nutrição diz respeito ao conjunto de Diversos organismos como a FAO, OMS,
trocas que se verficam entre o organismo vivo e o UNICEF e o Food and Nutrition Board, a National
meio que o rodeia. Academy of Sciences e o National Research Council,
Com efeito, as crianças são mais vulneráveis produzindo ao longo dos anos um acervo de
aos estados de subnutrição do que os adultos por dados científicos sobre nutrição, determinaram as
três razões fundamentais: a) mais baixas reservas necessidades nutricionais adequadas de algumas
de nutrientes, (e tanto mais quanto mais baixos substâncias susceptíveis de originarem, quando
forem o peso corporal e a idade) pelo risco de mais em défice, estados carenciais; de referir que os val-
rápido esgotamento; b)maiores necessidades para ores estabelecidos são periodicamente revistos.
o crescimento que é mais rápido, sobretudo no O mesmo Food and Nutrition Board publicou os
primeiro ano de vida (período em que o peso de chamados “valores de referência a utilizar para o cál-
nascimento triplica e o comprimento aumenta culo do regime alimentar” (Dietary Reference Intakes
50%); c) rápido desenvolvimento neuronal duran- ou DRI) relativos ao cálcio, fósforo, magnésio, vita-
te o último trimestre da gravidez e nos primeiros mina D, flúor, folato e vitaminas do complexo B,
dois anos de vida pós-natal, sendo de salientar restantes nutrientes, água e electrólitos e fibras.
que a complexidade das conexões neuronais é No conceito de DRI são abrangidos os se-
extremamente vulnerável à subnutrição guintes parâmetros:
Os princípios da nutrição na actualidade • EAR (Estimated Average Requirement) – “ne-
repousam ainda numa certa base de empirismo e cessidade média ou valor quantitativo esti-
de hábitos transmitidos de geração em geração. mado” significando o suprimento de deter-
De facto, é difícil ainda avaliar as possibilidades minado nutriente que satisfaz as necessi-
CAPÍTULO 51 Nutrientes 283

dades de 50% da população considerada Agriculture Organization/FAO da Organização Mundial


saudável em relação aos critérios utilizados de Saúde), European Society for Pediatric Gastroen-
como referência. Dum modo geral são con- terology Hepatology and Nutrition/ESPGHAN) abran-
siderados os valores diários durante uma gendo estudos populacionais representativos de
semana ou durante uma etapa concreta da todas as partes do globo, na prática é recomenda-
vida. do que se utilizem quanto aos suprimentos em
• RDA (Recommended Dietary Allowance) ou nutrientes, os critérios DRI ou RDA.
“suprimento nutricional recomendado” sig- Dado que para algumas substâncias essenciais
nificando o valor quantitativo de determina- ainda não se conhecem estes dados, poderá admi-
do nutriente que satisfaz as necessidades da tir-se que um regime alimentar variado seja a
maioria 97% – 98% da população saudável. única forma prudente de as fornecer após o perío-
A relação quantitativa entre RDA e EAR é do da lactação. O leite humano parece fornecer
estabelecida pela seguinte equação: RDA = todos os elementos essenciais durante um período
EAR + 2 DP(desvios-padrão). prolongado. Ainda que alguns nutrientes essenci-
• AI (Adequate Intake) ou “suprimento adequa- ais devam ser incluídos no regime alimentar
do” ou Nutrient Intake Values (NIV). diário, outros são armazenados pelo organismo,
Nos casos em que não se dispõe de dados sufi- podendo, por consequência ser administrados
cientes para calcular o EAR, emprega-se a AI para periodicamente.
determinar o consumo médio de nutrientes (por
ex., nos recém-nascidos a AI baseia-se no consumo Necessidades nutricionais
diário de nutrientes de um lactente saudável e recomendações
nascido de termo e alimentado exclusivamente
com leite materno); globalmente pode afirmar- se 1. Água
que a AI se baseia no suprimento diário de deter- A água (o solvente do nosso organismo) é essen-
minado nutriente em indivíduos saudáveis. cial para a existência, surgindo a morte por carên-
De acordo com os peritos dos organismos cia absoluta em número variável de dias. O con-
anteriormente referidos foi recomendado que se teúdo em água é maior nas crianças mais peque-
empreguem as AI para todos os nutrientes em nas em relação às maiores e aos adultos - cerca de
crianças com menos de 1 ano, e, para o cálcio, vita- 75-80% do peso corporal nos recém-nascidos (RN)
mina D e flúor, em todas as etapas da vida. contra 55-60% nos adultos.
• ULs (Tolerable Upper Limits) ou “limite supe- A água corporal total distribui-se pelos
rior tolerável“ do nutriente que não compor- seguintes compartimentos: intracelular(IC) e
ta risco de efeitos adversos em indivíduos extracelular (EC); o EC, por sua vez, compreende
saudáveis; ou seja, o risco de efeitos adversos o interstício e o plasma.
e de toxicidade aumenta com o aumento de No adulto as respectivas proporções são as
consumo do nutriente acima de tal limite. seguintes: IC <> 2/3; EC<> 1/3. No EC: 3/4 <> ao
É provável que, com o desenvolvimento de interstício e 1/4 <> ao plasma.
estudos e o conhecimento de mais resulta- Na criança a água corporal está diferentemente
dos, os EAR venham a substituir os RDA. distribuída. No recém- nascido o EC <> 45% do
• UNL (Upper Nutrient Level) ou “suprimento peso corporal e o IC<> 35%. Com a idade a pro-
máximo tolerável“ significando o suprimen- porção do IC vai aumentando e a do EC dimi-
to máximo diário de determinado nutriente nuindo, atingindo-se os valores semelhantes aos
que não origina efeitos adversos na quase do adulto quando é atingido o peso de 15 kg
totalidade de um grupo da população (EC<> 20-25%; IC<>30-40%.
saudável. Embora os líquidos administrados constituam
De acordo com as recomendações dos peritos o principal suprimento em água, parte desta
internacionais em nutrição em idade pediátrica obtém-se da oxidação dos alimentos (os regimes
dos organismos atrás referidos assim como dou- alimentares mistos fornecem aproximadamente
tros (American Academy of Pediatrics/AAP, Food and 12 gramas de H2O/100 Kcal) e, em caso de neces-
284 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

sidade, dos próprios tecidos corporais (fonte QUADRO 1 – Necessidades de água


endógena: cerca de 5-10 ml/kg/dia).
A oxidação de 100 gramas de gordura, de Idade Peso médio(kg) Água (ml/kg/24 horas)
hidratos de carbono e de proteínas produz respec- 3d 3,0 80-100
tivamente 107, 55 e 41 gramas de água 10 d 3,2 125-150
As necessidades de água dos seres humanos 3m 5,4 140-160
dependem do consumo de energia (calorias), das 6m 7,3 130-155
perdas globais de líquidos incluindo as perdas 9m 8,6 125-145
insensíveis, e do funcionamento renal, o que pode 12 m 9,5 120-135
ser avaliado de modo sumário e fora de situações 2a 11,8 115-125
patológicas, pela densidade urinária. 4a 16,2 100-110
O valor de RDA para a água actualmente não 6a 20,0 90-100
está determinado, esperando- se no futuro que o 10 a 28,7 70-85
Food and Nutrition Board defina o DRI. 14 a 45,0 50-60
O Quadro 1 resume globalmente as necessi- 18 a 54,0 40-50
dades em água no grupo etário pediátrico. d= dias; m= meses; a= anos

O Quadro 2 resume as necessidades diárias de


manutenção em líquidos aplicáveis na idade QUADRO 2 – Necessidades de líquidos
pediátrica. /Líquidos de manutenção
Recorda-se, a propósito, o que foi referido no
capítulo 48 a propósito da terminologia água/hídri- 1- 10 kg . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .100 ml/kg
co versus fluidos/líquidos, assumindo relevância 11-20 kg . . . . . . . .100 ml + 50 ml / cada kg acima de 10
quando se trata de administração por via IV. 21 kg e mais . . . 1500 ml + 20 ml / cada kg acima de 20
O consumo diário de líquidos por parte do RN
saudável equivale a 10-15% do peso corporal, em
comparação com 2-4% no adulto. De referir que o regime alimentar o qual, por sua vez, determina a
alimento habitual dos recém-nascidos e crianças carga de solutos a ser submetida a excreção renal,
mais pequenas (o leite) tem um grande conteúdo as taxas metabólica e respiratória, e a temperatura
em água (cerca de 89%) o qual aumenta para 95% corporal.
como resultado da oxidação a que atrás nos referi- A osmolaridade do plasma traduz a osmolari-
mos; a maior parte dos alimentos sólidos do dade do organismo a qual é mantida em valores
regime alimentar duma criança contém cerca de da ordem de 287mOsm/L para que o volume
60-70% de água e, muitas das verduras e frutas celular se mantenha constante.
cerca de 90%. O RN consome quantidades de água por
A água absorve-se, em grau variável, em todo unidade de peso corporal muito maiores que o
o trajecto do tubo intestinal. A quantidade de água adulto; contudo, fazendo os cálculos por unidade
que existe no compartimento intersticial muda de ingestão calórica, as quantidades necessárias
com facilidade para manter o equilíbrio homeos- são quase idênticas . Como regra geral pode esta-
tático entre os compartimentos intracelular e vas- belecer-se que as necessidades são 60 ml/kg no
cular. As trocas de água entre estes compartimen- primeiro dia de vida, atingindo-se 125-150
tos dependem das respectivas concentrações de ml/kg/dia no 7º dia.
proteínas e de electrólitos. Em função da veloci- No RN de muito baixo peso (RNBP ou de peso
dade de crescimento, fica “retida” no organismo inferior a 2500 gramas) e idade gestacional
um percentagem variável do suprimento em líqui- inferior a 37 semanas em circunstâncias considera-
dos (entre 0.5-3%). Num “lactente de referência do das de estabilidade clínica, em crescimento, e de
sexo masculino”, a retenção de água varia entre 9- ambiente de termoneutralidade com uma humi-
25 mL/24 horas durante o primeiro ano de vida. dade entre 50-80%, as necessidades oscilam entre
O equilíbrio hídrico depende de variáveis tais 130- 180 ml/kg/dia para um suprimento energéti-
como o conteúdo de proteínas e minerais no co de 130 kcal/kg/dia (ver adiante).
CAPÍTULO 51 Nutrientes 285

No período de recém- nascido as perdas fecais acima dos valores basais originado pela ingestão,
são escassas(5-10 ml/kg/dia) e as perdas insen- digestão e transporte dos nutrientes até à sua con-
síveis entre 30-60 ml/kg/dia. versão final em ATP, corresponde a valores entre 5
Por outro lado, mantendo o rim o equilíbrio a 10% da energia disponível. A ADE é mais eleva-
hidro- electrolítico do organismo, o mesmo pro- da para as proteínas do que para as gorduras e
move a excreção renal de água da ordem de 90 mais elevada para estas do que para os hidratos
ml/kg/dia, variando a concentração osmolar e o de carbono.
volume de urina. A osmolaridade urinária máxi- As perdas fecais correspondem a cerca de 8%
ma no RN é 600-700 mOsm/L, mais limitada que da energia, fundamentalmente como gordura não
na criança maior. absorvida.
De referir que as necessidades de água para o O metabolismo basal mede-se à temperatura
crescimento nesta fase da vida são 10 ml/kg/dia, ambiente (20ºC) entre 10 e 14 horas após uma
estabelecendo- se a relação de 1,5 ml de H2O por refeição, com o indivíduo física e emocionalmente
kcal consumida. tranquilo. Para cada grau centígrado de tempera-
tura o metabolismo basal aumenta aproximada-
2.Energia mente 10%.
Em metabolismo, a unidade de calor é a caloria Nos RN as necessidades basais correspondem
grande ou kilocaloria (1 Cal= 1 Kcal); esta medida aproximadamente a 55 kcal/kg/24 horas, dimi-
emprega-se para nos referirmos ao conteúdo nuindo progressivamente para 25-30 kcal/kg/24
energético dos alimentos. Uma kilocaloria define- horas à medida que avança o processo de maturação.
se como a quantidade de calor necessária para ele- A digestão de proteínas pode elevar o metabo-
var a temperatura de 1 kg de água, de 14.5ºC para lismo até 30% acima do nível basal excepto quan-
15.5 ºC. A produção de calor por oxidação varia do se verifica a sua deposição nos tecidos; por
com os distintos alimentos. Ora, medindo-se a outro lado, as gorduras e os hidratos de carbono
quantidade de O2 consumido, ou os produtos têm um efeito de “poupança” sobre a ADE das
finais da oxidação (CO2+H2O), são obtidos valores proteínas, produzindo incrementos mais discretos
sobreponíveis aos obtidos por calorimetria directa. daquela, respectivamente 4% e 6 %.
O kilojoule é outra medida utilizada com a Nos RN a ADE corresponde a cerca de 7-8% do
seguinte correspondência: 1 kilojoule = 4,2 kcalo- suprimento calórico, e a 5% nos lactentes e crian-
rias. ças maiores.
As necessidades energéticas das crianças variam O cálculo da energia necessária para formar
muito com as distintas idades e circunstâncias. tecido corporal (crescimento) obtém-se calculando
Cerca de 50% da energia fornecida pelos a diferença entre as calorias ingeridas e as uti-
nutrientes é destinada a cobrir as necessidades do lizadas para outros fins.
metabolismo basal. Estudos populacionais realizados pela OMS/
Por cerca de 100 kcal ingeridas são produzidos FAO e outros peritos estabeleceram a seguinte
cerca de 100 ml de água(água metabólica de acor- relação de gasto ou consumo energético para o
do com o conceito atrás descrito). crescimento: 4,8 kcal – 5,6 kcal /grama de incre-
O crescimento origina um consumo de energia mento de peso.
da ordem de 20-30 % da energia disponível. Tal As necessidades médias para a actividade física
consumo é directamente proporcional à veloci- são cerca de 15-25 kcal/kg/24 horas com máxi-
dade de crescimento (mais elevado no primeiro mos até 50-80 kcal/kg/24 horas durante períodos
ano de vida e, mais tarde, na adolescência) . curtos.
A actividade física, em regra mais elevada na Ainda que seja mais rigoroso calcular as neces-
criança que no adulto, despende cerca de 10 a 25% sidades calóricas a partir da superfície corporal do
da energia. No pequeno lactente o choro corres- que em relação ao peso e à idade, o critério final
ponde a um tipo de actividade física. para avaliar as necessidades na criança depende
A acção dinâmica específica (ADE) ou incre- do modelo de crescimento, da sensação de bem-
mento do metabolismo por dispêndio de energia estar que se verifique, e da saciedade.
286 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Relação de necessidades QUADRO 4 – Relação entre estados mórbidos


energéticas em kcal/kg/dia diversos e variação
das necessidades calóricas
Idade Suprimento energético
(Kcal/kg/dia) recomendado (RDI) (*) Estado mórbido Variação das necessidades
0-1 m 80-125 (110-165 no RN pré-termo) calóricas
2-3 m 90-116 Inanição -20 a + 20%
4-5 m 84-103 Estado pós-operatório +10 a + 20%
6-9 m 84-95 Fracturas/politraumatismo + 7 a + 25%
10-12 m 93-101 Infecção sistémica grave +15 a + 50%
1-3 a 90-110 Queimaduras do 3º grau com
4-6 a 80-90 >20% de área da pele afectada +35 a + 100%
7-9 a 70-80
10-12 a 45-70
13-18 a 40-60 kcal e 1 grama de ácidos gordos de cadeia longa, 9
adulto 40-50 kcal. Um suprimento calórico continuado supe-
m= meses; a= anos; RN= recém nascido
(*) Em função da actividade (ligeira ou moderada) o coeficiente de variação é +- 20%
rior ou inferior ao consumo do organismo con-
duzirá a que a gordura corporal aumente ou dimi-
nua. Em geral, um desequilíbrio calórico cons-
De acordo com a OMS/FAO e estudos de peri- tante de 500 kcal/dia modifica o peso corporal na
tos internacionais as necessidades energéticas em proporção de cerca de 450 gramas /semana.
kcal/kg/dia são resumidas no Quadro 3. De referir que no primeiro ano de vida as cur-
Globalmente, pode afirmar-se que as neces- vas de referência baseadas em estudos de lactentes
sidades diárias após o primeiro ano de vida dimi- alimentados com leite materno exclusivo nos
nuem cerca de 10 kcal/kg por cada três anos. primeiros 6 meses de vida não se sobrepõem às
Nos períodos de crescimento e desenvolvi- baseadas em estudos de lactentes alimentados com
mento rápidos em torno da puberdade, haverá leite industrial no mesmo período da vida, con-
que incrementar o consumo de calorias. cluindo-se que as necessidades energéticas no
Como regra geral é estabelecido que, por cada primeiro caso-alimentação com leite materno- são
100 kcal, devem ser fornecidos 120 ml de água. inferiores (menos 10-25 kcal/kg/dia) (Capítulo 19).
O Quadro 4 relaciona estados mórbidos diver-
sos com variação das necessidades calóricas. 3.Proteínas
A distribuição calórica de proteínas, gorduras As proteínas, (moléculas que contêm azoto e cons-
e hidratos de carbono(percentagem do valor tituídas por unidades básicas chamadas aminoáci-
calórico total ou % VCT) no leite humano é seme- dos) correspondem aproximadamente a 20% do
lhante à que se verifica na maioria dos leites in- peso corporal do adulto.
dustriais para lactentes num regime alimentar Na idade pediátrica o processo de síntese e de
considerado equilibrado. proteólise estão aumentados, sendo que o proces-
Assim, considera-se regime equilibrado aquele so de síntese predomina sobre o de proteólise com
em que cerca de 7-15% das calorias derivam das consequente acréscimo de proteínas que se traduz
proteínas, 35-55% dos hidratos de carbono, e 30- em crescimento e em balanço azotado positivo.
55% das gorduras. Um dos mecanismos de regulação do metabolis-
Na criança maior, 10-15% das calorias devem mo proteico depende da insulina que tem papel
proceder das proteínas, 55-60% dos hidratos de anabolisante contribuindo para o incremento de
carbono e, aproximadamente 30%, das gorduras. peso.
Cada grama de proteína ou hidrato de carbono No adulto saudável o balanço de azoto é nulo.
ingerido proporciona 4 kcal. Um grama de ácidos Foram identificados 24 aminoácidos que são
gordos de cadeia curta proporciona 5.3 kcal; um utilizados na síntese das proteínas; destes, 9 são
grama de ácidos gordos de cadeia média gera 8.3 essenciais (isto é, não sintetizados pelo organismo,
CAPÍTULO 51 Nutrientes 287

o que obriga ao respectivo suprimento no regime zam-se em forma de proteínas humanas fun-
alimentar): treonina, valina, isoleucina, leucina, cionais (por ex. albumina, hemoglobina, hor-
lisina, triptofana, fenilalanina, metionina e histidi- monas) sendo que as porções nitrogenadas dos
na. Para além destes, a arginina, a cistina, a tauri- aminoácidos excedentários se convertem em ureia
na, a glicina e a tirosina são também essenciais no fígado e se excretam pelo rim.
para os recém-nascidos pré-termo. A oxidação do carbono dos aminoácidos é
Como funções essenciais das proteínas cabe muito semelhante à dos hidratos de carbono e à
citar o seu papel no incremento ou formação de das gorduras, sendo alguns glucogénicos e outros
novos tecidos (massa magra), na função imu- cetogénicos.
nitária e no desenvolvimento de capacidades rela- As proteínas não se podem armazenar de forma
cionadas com o comportamento. eficaz. Nas situações de carência proteica as proteí-
De salientar que não se pode formar tecido nas dos músculos são destruídas para servirem de
novo se todos os aminoácidos essenciais não esti- fonte de aminoácidos para utilização em zonas do
verem presentes no regime alimentar ao mesmo organismo consideradas mais importantes, como o
tempo; ou seja, a ausência ou défice de apenas um cérebro, ou para a síntese enzimática.
aminoácido essencial condiciona um balanço As anomalias do metabolismo das proteínas e
nitrogenado negativo. dos aminoácidos, que serão abordadas no capítu-
As proteínas desdobram-se durante o processo lo 369, constituem uma parte importante das enti-
digestivo em oligopéptidos e aminoácidos. O dades patológicas conhecidas vulgarmente por
ácido clorídrico do estômago propicia o pH ópti- doenças hereditárias do metabolismo.
mo para a cisão dos péptidos através da acção da O suprimento nutricional recomendado para
pepsina. A quimiosina transforma a caseína do as proteínas em diversas idades tendo como base
leite em paracaseína a qual é hidrolisada pela o teor em proteínas no leite humano, é inferior aos
pepsina juntamente com outras proteínas. As anteriormente divulgados pela OMS/FAO, com
diversas proteases têm maior apetência para especial realce para o 1º ano de vida.
uniões peptídicas específicas; algumas provocam De acordo com dados da National Academy of
rupturas de uniões no interior da cadeia peptídi- Sciences (NAS) foram etabelecidas em 2004 os
ca, e outras actuam em zonas de ligações mais ter- seguintes valores em gramas/dia: 0-6 meses→
minais . 9,1g/dia (AI) ou 1,5g/kg/dia; 7-12 meses →
No meio alcalino do intestino, a tripsina, a 11g/dia (RDA); 1-3 anos → 13g/dia (RDA); 4-8
quimiotripsina e a carboxipeptidase do pâncreas anos → 19g/dia (RDA); 9-13 anos → 34g/dia
hidrolisam estas proteínas e peptonas em pépti- (RDA); 14-18 anos → 52g/dia (M) (RDA); e →
dos e em alguns aminoácidos; outras peptidases 46g/dia (F) (RDA).
dos sucos intestinais promovem a digestão até à Quanto à EAR foram estabelecidos os seguintes
fase de aminoácidos. valores: 7-12meses → 0,98g/kg/dia; 1-3 anos →
Embora quantidades mínimas de certas proteí- 0,86g/kg/dia; 4-8 anos → 0,76g/kg/dia.
nas se possam absorver “intactas” com é demons- Admitindo-se um coeficiente de variação de 12%,
trado através das reacções imunitárias, em os valores referentes a RDA são obtidos
condições ditas normais de maturidade do tubo multiplicando os de EAR por 1,24.
digestivo, ou na ausência de patologia, são os pro- A justificação para os valores mais baixos de
dutos hidrolisados (aminoácidos) e alguns pépti- proteínas actualmente recomendados tem a ver
dos que se absorvem através da mucosa intestinal com o facto de ter sido demonstrado que nem
com a intervenção de transportadores específicos. todo o azoto não proteico é utilizado na síntese
Os oligopéptidos, de maiores dimensões, podem proteica, sendo de referir que o leite materno é
absorver-se durante os primeiros meses de vida muito rico em azoto não proteico. Por outro lado,
ou na sequência de episódios de gastrenterite. também se demonstrou que se pode obter idêntica
Os aminoácidos são transportados ao fígado eficiência da utilização das proteínas do regime
pela circulação portal e, a partir daí, são distribuí- alimentar com suprimentos mais baixos que os
dos pelos diversos tecidos. Os mesmos reorgani- anteriormente recomendados.
288 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

O chamado “valor biológico”(VB) ou “qualidade” bono complexos são desdobrados em estruturas


das proteínas relaciona-se com o perfil de aminoá- mais simples. As amilases salivar e pancreática
cidos que as constituem. O mesmo indica a eficá- desempenham um papel fundamental na decom-
cia da sua utilização. Uma proteína de elevado VB posição do amido em oligossacáridos (dextrinas) e
deve conter, além dos aminoácidos não essenciais, dissacáridos (fundamentalmente maltose). A ami-
todos os nove aminoácidos essenciais em pro- lase intestinal pode estar diminuída durante os
porção aproximada à existente em proteínas de primeiros quatro meses de vida. Os dissacáridos
referência (do ovo e do leite humano). Esta carac- absorvem-se intactos através das células intesti-
terística permite sintetizar, de novo, tecidos cor- nais da “bordadura em escova” por acção das dis-
porais com mínimo de resíduos de acordo com os sacaridases das microvilosidades as quais comple-
estudos do balanço nitrogenado. tam a hidrólise até monossacáridos: uma molécu-
Compreende-se, assim, que os suprimentos la de maltose transforma-se em duas moléculas de
recomendados para o lactente alimentado com glucose; a sacarose, em glucose e frutose; a lactose
leite industrial (segundo a ESPGHAN: 1,8-2,8 g/ em glucose e galactose.
100 kcal) sejam superiores aos que se verificam no Os monossacáridos absorvem-se rapidamente;
lactente alimentado com leite materno. a glucose e a galactose são absorvidas em função
Nos países desenvolvidos o suprimento em de gradientes de concentração, enquanto a
proteínas é abundante, ao contrário dos países absorção da frutose é passiva. Durante a absorção,
com escassos recursos; por conseguinte, da os radicais “transportadores” de ácido fosfórico
ingestão inadequada de proteínas em qualidade e unem-se às hexoses na mucosa intestinal para
quantidade poderão surgir diversos quadro clíni- atravessar a membrana celular. Quando a concen-
cos patológicos. tração extra-intestinal de açúcar é baixa, é
necessário que haja sódio para que continue a
4. Hidratos de carbono (ou glúcidos) absorção. Estes fosfatos de hexoses voltam a sepa-
Os hidratos de carbono dividem-se em dois rar-se nos seus componentes, permitindo que o
grandes grupos: digeríveis e não digeríveis. açúcar se difunda na circulação sanguínea portal.
Os hidratos de carbono digeríveis, para além Parte da glucose pode ser oxidada directa-
de fornecerem a massa necessária para o regime mente, como ocorre no cérebro e no coração. A
alimentar, proporcionam a maior parte da energia maior parte do açúcar absorvido converte-se em
necessária para o organismo. Na sua ausência, o glicogénio, ainda que noutros tecidos também se
organismo utiliza as proteínas e gorduras para verifique a glicogénese. Até cerca de 15% do peso
obter energia. No entanto, a energia fornecida do fígado e 3% da massa muscular podem ser
pelos hidratos de carbono a médio e longo prazo constituídos por glicogénio, encontrando-se
não pode ser substituída por energia obtida ape- pequenas quantidades, inferiores àquelas, em
nas através das fontes de gorduras e de proteínas. todos os órgãos.
Na sua maioria de origem vegetal, com ex- A glicogenólise, que tem lugar no fígado, pro-
cepção da lactose, são armazenados fundamental- duz glicose como principal produto, ao passo que
mente como glicogénio no fígado e nos músculos; a decomposição do glicogénio nos músculos gera
provavelmente os hidratos de carbono não cons- ácido láctico. A oxidação global da glucose tem
tituem mais do que 1% do peso corporal. duas fases: a anaeróbia(glucólise) e a aeróbia(ciclo
Os hidratos de carbono oxidam-se sob a forma dos ácidos tricarboxílicos). Na primeira, a glucose
de glucose (dextrose), mas consomem-se de diver- decompõe-se em ácido pirúvico; na segunda, o
sos modos: monossacáridos (glucose, frutose, ácido pirúvico é completamente oxidado em CO2
galactose), dissacáridos (sacarose, lactose, mal- e H2O. De referir que neste processo participam a
tose, isomaltose) e polissacáridos (amidos, dextri- insulina, e as hormonas hipofisárias e suprar-
nas, glicogénio, gomas, celulose). As pentoses renais; nas reacções enzimáticas participam igual-
absorvem-se deficientemente. mente o ácido nicotínico, a tiamina, a riboflavina e
Mediante uma série de reacções enzimáticas e o ácido pantoténico.
químicas no tubo digestivo, os hidratos de car- Os hidratos de carbono que não se oxidam nem
CAPÍTULO 51 Nutrientes 289

se armazenam como glucose são convertidos em QUADRO 5 – Suprimento de hidratos


gordura. Os não digeríveis ou fibras alimentares de carbono (gramas/dia)
(constituídos por polissacáridos e lenhinas) estão
presentes nas paredes celulares de todas as plan- 0-6 m 60 (AI)
tas. Podem ser solúveis (por ex. pectinas, gomas, 7-12 m 95 (AI)
mucilagens, algumas hemiceluloses, farelo de 1-3 a 130 (RDA)
aveia, cevada, legumes, etc.) e insolúveis (cuja 4-8 a 130 (RDA)
principal fonte é constituída pelo invólucro dos 9-13 a
grãos de sementes de cereais). M 130 (RDA)
Os chamados SCFAs (short chain fatty acids ou F 130 (RDA)
ácidos gordos de cadeia curta) são subprodutos da 14-18 a
fermentação de hidratos de carbono não digerí- M 130 (RDA)
veis que, ao nível do cólon estimulam a absorção F 130 (RDA)
de fluidos e electrólitos(sobretudo sódio); foi m= meses; a= anos; M= sexo masculino; F= sexo feminino
(National Academy of Sciences, 2004)
demonstrada uma acção trófica (através de factor
de crescimento) ao nível do cólon.
As principais anomalias do metabolismo dos um comprimento em função do número de áto-
hidratos de carbono (abordadas noutros capítu- mos de carbono, variando entre 4 e 24. O coefi-
los) são a diabetes mellitus, as doenças por ciente de absorção parece depender do ponto de
depósito de glicogénio (glicogenoses), a galac- fusão, do grau de insaturação e da posição dos áci-
tosémia, a intolerância à frutose e a intolerância à dos gordos na molécula de glicerol; ela é directa-
glucose (Capítulos 182 e 370). mente proporcional ao número de duplas ligações
As situações clínicas associadas a défices de (grau de insaturação) e inversamente propor-
enzimas que promovem a degradação de açúcares cional ao número de átomos de carbono da sua
no intestino(lactase, maltase, isomaltase) associam- cadeia.
se a diarreia e má absorção, secundárias ao efeito Os triglicéridos ingeridos são parcialmente
osmótico do açúcar não absorvido, do que resulta hidrolisados pela lipase lingual e emulsionados
fermentação dos hidratos de carbono pelas bac- no estômago. No duodeno a lipase pancreática
térias intestinais. (parte Gastrenterologia). O promove a hidrólise dos triglicéridos formando
Quadro 5 discrimina as DRI para os hidratos de monoglicéridos e ácidos gordos os quais, junta-
carbono em gramas/dia. mente com os sais biliares constituem micelas, o
que aumenta a solubilidade das gorduras. Os
5.Gorduras triglicéridos (e os diglicéridos) não cindidos são
As gorduras ou seus produtos metabólicos, efi- insolúveis.
cientes reservas de energia, constituem parte inte- Como particularidade no recém-nascido de
grante das membranas celulares cuja permeabili- baixo peso refere-se a diminuição da quantidade
dade e fluidez depende das primeiras . Tais nutri- de bílis e mais baixa taxa de absorção de gorduras.
entes dão sabor aos alimentos e servem de veícu- Provavelmente, os ácidos gordos de cadeia
lo para as vitaminas lipossolúveis como por exem- longa (ou long chain poly unsaturated fatty acids ou
plo a vitamina K. Aproximadamente 98% das gor- LC-PUFA) e os monoglicéridos (com mais de 10
duras naturais encontram-se na forma de glicéri- átomos de carbono), convertidos em micelas, são
dos (ou seja, conjunto de três ácidos gordos natu- absorvidos para o interior das células da mucosa
rais combinados com o glicerol). A parcela restan- intestinal por difusão. Para o transporte através
te de 2% é formada pelos ácidos gordos livres, os da célula, estes ácidos gordos terão de ser esterifi-
monoglicéridos, os diglicéridos, o colesterol e ou- cados de novo (ácidos gordos e monoglicéridos,
tros compostos lipídicos como lecitina, cefalina, em triglicéridos). Constituem-se, assim, depois, os
esfingomielina e cerebrósidos. quilomicrons, composto lipídico com uma parte
As gorduras da natureza contêm ácidos gor- interna com um invólucro membranoso. A parte
dos de cadeia linear, saturados e insaturados, com interna inclui predominantemente triglicéridos e
290 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

pequenas porções de colesterol livre e esterifica- cional: PUFA ou poly-unsaturated fatty acids)
do,vitaminas lipossolúveis e outras substâncias denominam-se conforme a posição das duplas
lipossolúveis; o invólucro membranoso contém ligações. O átomo de carbono mais afastado do
sobretudo fosfolípidos e proteínas designadas grupo carboxilo é o carbono omega ou n. Em nu-
apoproteínas. trição infantil assumem grande importância os
Os quilomicrons sofrem processo de exocitose ácidos ácidos gordos omega ou n6 e omega ou n3
para o sistema linfático intestinal em direcção à pelo facto de não serem sintetizados pelo orga-
circulação venosa por intermédio do canal toráci- nismo humano, obrigando ao seu fornecimento
co. As proteínas de transporte são proteínas de no regime alimentar (ácidos gordos essenciais).
muito baixa densidade (VLDL – “very low density O ácido linoleico, o ácido araquidónico e o
lipoproteins”), baixa densidade (LDL – “low density ácido docosapentanóico pertencem à série omega
lipoproteins”) e alta densidade (HDL – “high densi- ou n6. O ácido linolénico, o ácido eicosapentanói-
ty lipoproteins”), sintetizadas no fígado. co e o ácido docosa-hexanóico pertencem à série
Os triglicéridos de cadeia curta e média seguem omega ou n3.
outro caminho; a lipase pancreática hidrolisa-os ra- O ácido araquidónico, que tem como precursor
pidamente para ácidos gordos livres os quais são o ácido linoleico, é um importante constituinte
transportados através da célula intestinal. De acentu- dos fosfolípidos das membranas celulares e um
ar que quando a hidrólise no lume intestinal é inade- precursor das prostaglandinas, prostaciclina,
quada por défice de lipase pancreática ou de sais bi- tromboxanos e leucotrienos.
liares, estas gorduras são absorvidas e hidrolisadas O ácido docosa-hexanóico é componente dos fos-
para ácidos gordos livres dentro da célula por acção folípidos das membranas celulares, dos fotor-
da lipase da mucosa. Estes ácidos gordos livres não receptores da retina e da substância cinzenta cerebral.
são esterificados nem formam de seguida quilomi- Dum modo geral os ácidos gordos essenciais
crons; outrossim entram directamente nas veias têm acção importante nos fenómenos de neuro-
intestinais em direcção ao fígado pela via porta. transmissão, sendo necessários para o crescimento,
Esta via alternativa para os triglicéridos de o desenvolvimento cognitivo, a integridade da pele
cadeia curta e média é aproveitada na adminis- e do cabelo e a regulação do metabolismo do coles-
tração de preparados a crianças com graves pro- terol, diminuindo a adesividade das plaquetas.
blemas de absorção. De acordo com as recomendações da
Há a salientar que ao nível do lume intestinal ESPGHAN, para RN de termo não alimentados
existe uma interacção entre cálcio e gorduras: com leite materno, o suprimento em ácido linole-
maiores quantidades de cálcio comprometem a ico deve constituir 4,5- 10,8% do VCT e o de ácido
absorção de gorduras e vice- versa, pelo facto de linolénico 0,5% do mesmo VCT, para garantir uma
se formarem sabões insolúveis. relação ácido linoleico/ácido linolénico média de
Constituindo o leite materno um modelo 10/1 (com limites entre 5/1 e 15/1)
nutricional contendo cerca de 40-55% de lípidos É também recomendada a adjunção de LC (long
como parcela do VCT, com um coeficiente de chain) PUFA ou ácidos gordos poli-insaturados de
absorção de cerca de 90%, no primeiro ano de vida cadeia longa tendo como modelo o leite materno
o suprimento recomendado em lípidos deverá respeitando a relação n-6/n-3 de 2/1 ou, respecti-
contemplar aquela percentagem. vamente, 1%/0,5% do total de ácidos gordos.
De acordo com a National Academy of Sciences Nos regimes alimentares em que a % do VCT
2004 apenas foi determinado o suprimento (AI) de de ácido linoleico é inferior a 1-2% será necessário
gorduras em gramas/dia até aos 12 meses: 0-6 fornecer maior número de calorias totais para se
meses → 31g/dia; 7-12 meses → 30g/dia. obter crescimento comparável aos dos regimes
Far-se-á uma referência especial aos ácidos com aquela percentagem superior.
gordos essenciais e aos ácidos gordos trans. De referir que o excesso de ácidos insaturados
aumenta a peroxidação, do que poderá resultar
5.1 Ácidos gordos essenciais destruição das membranas celulares.
Os ácidos gordos poli-insaturados (sigla interna- Nos lactentes pequenos em fase de crescimen-
CAPÍTULO 51 Nutrientes 291

to rápido submetidos a regimes com baixo con- QUADRO 6 – Suprimento de ácidos gordos
teúdo em ácido linoleico verifica-se o aparecimen- essenciais (AI) (gramas/dia)
to de sinais cutâneos (intertrigo, secura e desca-
mação na pele). O Quadro 6 discrimina as AI para Ácido Linoleico Ácido Alfa-
o ácido linoleico e alfa-linolénico. -Linolénico
0-6 m 4,4 0,5
5.2 Ácidos gordos trans 7-12 m 4,6 0,5
Os ácidos gordos trans formam-se como resultado 1-3 a 7 0,7
da hidrogenação parcial dos óleos vegetais; desta 4-8 a 10 0,9
transformação resulta modificação das caracte- 9-13 a
rísticas físicas (maior consistência). A isomeri- M 12 1,2
zação trans dos ácidos gordos não saturados con- F 10 1
fere-lhes características semelhantes aos satura- 14-18 a
dos; daí as suas desvantagens e riscos em termos M 16 1,6
de maior predisposição para aterogénese. F 11 1,1
m= meses; a= anos; M= sexo masculino; F= sexo feminino
(National Academy of Sciences, 2004)
6. Minerais
No recém-nascido o conteúdo mineral corres-
ponde aproximadamente a 3% do peso corporal, Nesta alínea referente a minerais será dada
aumentando ao longo da infância. Por cada grama ênfase especial ao cálcio, fósforo, magnésio, ferro
de proteína retida armazena-se 0.3 gramas de e flúor discriminando-se por fim, em quadro
matéria mineral. No fim da adolescência tal con- sinóptico, os principais sinais e sintomas de situa-
teúdo corresponde a 4.3% do peso corporal dis- ções em que se verificam carências ou excessos de
tribuído, sobretudo, pelo esqueleto (cerca de 83%) minerais. Relativamente ao cloro, sódio e potássio
e pelo músculo (cerca de 10%). o Quadro 8 resume as RDA estabelecidas em
O cálcio, o sódio, o potássio e o magnésio mg/dia no primeiro ano de vida.
constituem os principais catiões. O cloro, o fós-
foro e o enxofre constituem os aniões mais impor- 6.1 Cálcio
tantes. O ferro, o cobalto e o iodo formam impor- A absorção de cálcio, que pode variar de 20 a 70%
tantes complexos orgânicos. da quantidade ingerida, relaciona-se fundamen-
Quanto a oligoelementos (por definição ele- talmente com os níveis de vitamina D e de para-
mentos cujo conteúdo no organismo constitui tormona, podendo ser facilitada por certos fac-
menos de 0.01% do peso corporal), destacam-se o tores como a presença de lactose, lisina, arginina e
zinco, flúor, manganês, cobre, cobalto, cromo (ou ácido ascórbico no regime alimentar, e pela acção
crómio), selénio e molibdénio com funções dos sais biliares.
importantes em diversos processos metabólicos; Pelo contrário, a absorção pode diminuir com
com efeito, os mesmos são componentes de sis- o suprimento excessivo de fosfato, oxalatos, e
temas enzimáticos ou actuam como componentes fibra, assim como em situações em que existe
de metaloenzimas, ou como cofactores de deter- défice de absorção de gorduras.
minadas enzimas. (Quadro 7) O leite materno fornece cerca de 300 mg de cál-

QUADRO 7 – Doses recomendadas de alguns oligoelementos*

Idade Ferro Zinco Iodo Selénio Cobre Manganês Crómio Molibdénio Flúor
(meses) (mg) (mg) (mcg) (mg) (mcg) (mg) (mcg) (mcg) (mg)
0-6 0,27 (AI) 2 (AI) 110 (AI) 15 (AI) 200 (AI) 0,003 (AI) 0,2 (AI) 2 (AI) 0,01 (AI)
7-12 10 (RDA) 5 (RDA) 130 (AI) 20 (AI) 220 (AI) 0,6 (AI) 5,5 (AI) 3 (AI) 0,25 (AI)
mg= miligrama; mcg= micrograma
* Segundo a NAS, 2004
292 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 8 – Sódio, potássio e cloro (RDA NAS, 2004 no primeiro ano de vida oscilam entre
em mg/dia) 30 mg/dia (0-6 meses) e 75 mg/dia (7-12 meses).
Até aos 16 anos as doses (RDA) sobem progressi-
Idade Sódio Potássio Cloro vamente até 200 mg/dia.
(0-6 meses) 120 500 180 Salienta-se que, relativamente ao cálcio, fós-
(6-12 meses) 200 700 300 foro e magnésio, a inexistência até aos 12 meses de
dados seguros quanto aos suprimentos RDA con-
duziu à substituição por suprimento AI.
cio /dia com uma taxa de absorção de 75%; nos Após os 12 meses de idade apenas existem dados
lactentes alimentados com leites industriais (fór- sobre RDA relativamente ao fósforo e magnésio.
mulas) tal absorção é inferior :cerca de 20-50%.
De acordo com a NAS, 2004 a dose (AI) 6.4 Ferro
recomendada de cálcio a ingerir é 210 mg /dia no Embora o leite humano e o leite de vaca con-
primeiro semestre e 270 mg/dia no segundo tenham um fraco teor em ferro(respectivamente
semestre. Entre o 1 ano e 9 anos as doses aumen- 0.50 mg/litro versus 0.25-0.75 mg/litro) a sua taxa
tam respectivamente de 500 mg para 700 mg e de de absorção é cerca de 50% no caso do leite
900 para 1000 mg dos 10 aos 16 anos. humano, muito superior à que se verifica com o
Em todas as idades não devem ser ultrapas- leite de vaca(7-15%).
sadas as doses de 2500 mg/dia. O leite humano pode cobrir as necessidades
A relação Ca/P afecta a absorção mineral, va- nas primeiras oito semanas de vida após gravidez
riando largamente em diferentes alimentos: vege- de termo. No recém-nascido pré-termo há que ter
tais verdes – 2,8/1; leite humano – 2/1; leite de em conta as reservas deficitárias que se esgotam
vaca – 1,2/1; carne – 0,6/1. A relação Ca/P quando duplica o peso de nascimento.
favorável no leite humano é particularmente Os lactentes entre os 4-12 meses absorvem, em
importante para assegurar a mineralização óssea. geral, 0.8 mg/dia.
Entre os 0-6 meses a criança necessita aproxi-
6.2 Fósforo madamente de 0,27 mg/dia (AI) (Quadro 7). Entre
Relativamente ao fósforo, as doses (AI) recomen- os 14 e 18 anos as doses recomendadas oscilam
dadas pela NAS, 2004 são: 150 mg/dia dos 0-6 entre 10 e 12 mg/ dia. (RDA)
meses e 275 mg/dia dos 5-12 meses.
A ESPGHAN (European Society for Pediatric 6.5 Flúor
Gastroenterology-Hepatology and Nutrition) reco- As DRI estabelecem a ingestão adequada (AI) base-
menda suprimentos de 30 mg/100 kcal(20 ando-se em quantidades que diminuem a incidência
mg/100 ml) e um máximo de 50 mg/100 kcal com de cárie dentária e na UNL para evitar a fluorose.
uma relação Ca/P entre 1.2 e 2. Actualmente aconselha-se a suplementação em
Entre o 1 ano e 16 anos as doses sobem pro- flúor nas doses indicadas no Quadro 9 tendo em
gressivamente para valores entre 300 mg/dia e conta a necessidade de ajustar as doses em função da
850 mg/dia. água de consumo que é bebida na zona onde a cri-
Os lactentes alimentados com fórmulas de alto ança vive. O referido Quadro 9 só será aplicável em
conteúdo em fósforo, superior ao do leite mater- Portugal nas zonas onde se conhecer o teor em flúor
no(15 mg/100 ml), excretam grande parte deste na água de consumo público. (ver Capítulo 261, em
mineral pela urina com consequente aumento da que se aborda a importância do flúor tópico)
osmolalidade urinária.
Por outro lado, um excesso de fósforo pode 6.6 Zinco, Iodo, Selénio, Cobre, Manganês,
conduzir a hiperfosfatémia e, secundariamente, a Crómio e Molibdénio
hipocalcémia. O Quadro 7 resume as doses recomendadas de
ingestão (RDA e AI) destes minerais no primeiro
6.3 Magnésio ano de vida tendo como base o conteúdo dos mes-
As doses recomendadas de magnésio (AI) pela mos no leite humano.
CAPÍTULO 51 Nutrientes 293

QUADRO 9 – Suplementação de flúor (mg/dia) de acordo com a idade e o teor em ião flúor na água
de consumo público na zona onde a criança vive (ppm= partes por milhão)

Idade < 0,3 ppm 0,3-0,6 ppm > 0,6 ppm


6 m-3 anos 0,25 0 0
> 3-6 anos 0,50 0,25 0
> 6-16 anos 1,00 0,50 0
Obs.: 2,2 mg de fluoreto de sódio contém 1 mg de ião flúor; 1ppm= 1 mg/Litro (segundo CDC).

6.7 Carência e excesso de minerais QUADRO 10 – Sintomas e sinais de carência


O Quadro 10 resume os principais sinais e sin- e de excesso de minerais
tomas de carência e de excesso de minerais
– Alumínio (excesso: alterações do sistema nervoso central)
7. Vitaminas – Boro (deficiência: anomalias de calcificação)
As vitaminas são substâncias indispensáveis ao – Cálcio (deficiência: tetania, osteomalácia; excesso: obsti-
crescimento e ao funcionamento dos órgãos, for- pação, bloqueio cardíaco)
necidas, na sua maior parte, em pequena quanti- – Cloro (deficiência: alcalose)
dade pela alimentação, que o organismo não é – Crómio (deficiência: diabetes em animais)
capaz de sintetizar. Com actividades muito diver- – Cobalto (deficiência: carência de vitamina B12 e hipo-
sas, actuam em doses mínimas, participando tiroidismo; excesso: cardiomiopatia)
como cofactores no metabolismo celular, na elabo- – Cobre (deficiência: anemia,osteoporose; excesso:cirrose)
ração de hormonas e de enzimas,quer favorecen- – Iodo (deficiência e carência: bócio)
do a sua produção,quer entrando directamente na – Ferro (deficiência:anemia, alterações do comportamen-
sua composição química. to; excesso: hemossiderose)
As vitaminas de origem alimentar classificam- – Chumbo (excesso: neuropatia)
se como: vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K) e – Magnésio (deficiência:hipocalcémia, hipocaliémia)
hidrossolúveis (vitaminas do grupo B e vitamina – Molibdénio (pouco conhecidos os efeitos de excesso ou
C). de deficiência)
As necessidades de vitaminas foram estabele- – Fósforo (deficiência: raquitismo; excesso: carência em
cidas no Codex Alimentarius. cálcio)
O Food and Nutrition Board, através das RDA – Potássio (deficiência: fraqueza muscular; excesso: blo-
queio cardíaco)
(Recommended Dietary Allowances) em 1998 modifi-
– Selénio (deficiência: cardiomiopatia; excesso: alterações
cou as doses de ingestão respeitantes a vitaminas
das unhas e cabelo, odor a alho)
hidrossolúveis e vitamina D.
– Sódio (deficiência: hipotensão; excesso: edema)
Antes duma abordagem sucinta sobre as vita-
– Enxofre (deficiência: hipocrescimento; excesso: desco-
minas hidrossolúveis e lipossolúveis é importante
nhecido)
referir três noções importantes em Nutrição na
– Zinco (deficiência: hipocrescimento, dermatite; excesso:
idade pediátrica:
vómitos, diarreia, dermatose)
• o leite materno é deficitário em vitamina D e
em vitamina K nos primeiros dias;
• a modalidade de fórmula adaptada (tópico a 7.1 Vitaminas lipossolúveis
analisar em mais pormenor no capítulo 53) Vitamina D
cobre as necessidades se o lactente receber A vitamina D é uma verdadeira hormona se-
como mínimo 750 ml por dia; costeróide, com receptores em todos os tecidos
• os suplementos vitamínicos são desneces- humanos, salientando-se a sua acção ao nível do
sários a partir do primeiro ano de vida com- esqueleto, há muito conhecida. Actualmente diver-
pleto no pressuposto de que a alimentação sos estudos demonstraram igualmente efeitos na
variada cobre todas as necessidades. função imune, na protecção contra o cancro, doenças
294 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

cardiovasculares, infecções e em doenças autoi- A vitamina A somente se encontra em produ-


munes como diabetes mellitus tipo 1 e esclerose tos de origem animal (óleo de fígado de peixes
múltipla. Em estudos recentes verificou-se associ- como pescada, bacalhau, atum, etc.). As pró-vita-
ação entre deficiência em vitamina D, obesidade e minas(ou carotenóides, cujo representante princi-
excesso de peso, e positividade de marcadores da pal é o beta-caroteno) encontram-se, sobretudo,
inflamação, com impacte ao nível cardiovascular. em vegetais (cenouras, espinafres,couves), mas
Como marcador do património ou “estado” da vita- também em órgãos (como rim, fígado, baço). A
mina D no organismo utiliza-se a concentração do bílis é indispensável para a sua absorção.
respectivo metabólito 25(OH) D: deficiente se < 15 A vitamina A desempenha um papel impor-
ng/mL; insuficiente se entre 15 e 30 ng/mL; e sufi- tante: na manutenção da integridade dos epitélios
ciente se > 30 ng/mL (Capítulo 59). O estado de defi- favorecendo a síntese de mucopolissacáridos e a
ciência implica dose de tratamento com vitamina D. secreção de muco; como indutor enzimático com
O estado de insuficiência, correspondendo a casos especial relevância ao nível dos microssomas
assintomáticos, implica dose dita de prevenção/ hepáticos; e na formação do pigmento vermelho
/suplementação. O estado de suficiência obrigará retiniano ou rodopsina, receptor da luz para a
apenas a estilo de vida saudável. visão de fracas intensidades (visão crepuscular). A
Salienta-se que valores > 100 ng/mL são conside- dose diária recomendada de vitamina A (que é
rados excessivos, obrigando a paragem do even- armazenada no fígado e requerendo uma proteína
tual tratamento, se for o caso. de ligação para circular) é 60 mcg de equivalentes
As principais acções bioquímicas (de tipo hor- de retinol (EAR) por 100 kcal (200 UI), sendo de
monal) são: a formação de uma proteína de liga- referir que 1 mcg de retinol corresponde a 3.31 UI.
ção e de transporte do cálcio nas células epiteliais Na prática considera-se: dos 0-12 meses → 400-
da mucosa duodenal; absorção do fósforo e a reab- 500 mcg/dia (AI); entre 1 e 18 anos → 300-900
sorção óssea. Estas acções dependem da parator- mcg/dia (RDA).
mona e da ingestão de cálcio.
De acordo com a NAS, foi estabelecida a Vitamina K (naftoquinonas)
ingestão recomendada (AI) de 200 UI/dia (5 Tem papel fundamental na coagulação do sangue
mcg/dia de colecalciferol)) no pressuposto de que é contribuindo para a formação dos factores II, VII,
insuficiente, ou se desconhece, ou não existe IX, X, e das proteínas C, Z, S. Sintetizada pelas
exposição à luz solar. O nível máximo foi estabeleci- bactérias intestinais, a bílis é indispensável para a
do em 1000 UI /dia (25 mcg/dia de colecalciferol). sua absorção.
A maioria das fórmulas contém 1.5 mcg(60 UI) Ao contrário doutras vitaminas, as reservas e
de vitamina D por 100 kcal (ou 10 mcg/Litro) os níveis séricos de vitamina K dos recém-nascidos
(Capítulo 59). de mães bem nutridas são baixos. Nesta conformi-
Em países como os EUA e Canadá é recomen- dade, constitui rotina a administração de vitamina
dada a suplementação em vitamina D nos casos K a todos os recém-nascidos no pós-parto (0.5-1
de alimentação ao peito exclusiva. Por outro lado, mg) para prevenção da doença hemorrágica do
diversos estudos demonstraram que a referida recém-nascido. Posteriormente aconselham-se
não suplementação em tal circunstância comporta doses (AI) de 2 mcg/dia até aos 6 meses e 2.5
risco de deficiência em vitamina D entre os 2 e 3 mcg/dia até ao 1 ano. A partir desta idade as doses
meses de idade. sobem progressivamente entre 30 e 75 mcg/dia até
ao final da adolescência e idade adulta.
Vitamina A A vitamina K está presente na maioria das fór-
A vitamina A (retinol,axeroftalmol) é um álcool de mulas, não necessitando o lactente de suplemento.
cadeia pesada que se encontra na natureza essen- De referir que o teor em vitamina K no leite materno
cialmente sob a forma de ésteres de ácidos gordos; é inferior ao das fórmulas infantis. (ver capítulo 52).
pode apresentar- se sob 16 formas isómeras;
destas, o chamado retinol “all trans” é a forma bio- Vitamina E (tocoferol)
logicamente mais activa. É um vitamina antioxidante com papel impor-
CAPÍTULO 51 Nutrientes 295

QUADRO 11 – Suprimento diário (RDA) e (AI) de vitaminas hidrossolúveis (complexo B e colina)

Idade Tiamina Riboflavina Niacina Vit. B6 Folato Vit. B12 Ácido Biotina Colina
pantoténico
(meses) (mg) (mg) (mg) (mg) (mcg) (mcg) (mg) (mcg) (mg)
0-6 (AI) 0,2 0,3 2 0,1 65 0,4 1,7 5 125
> 6-12 (AI) 0,3 0,4 4 0,3 80 0,5 1,9 6 150
(anos)
1-18 (RDA) 0,4-1,1 0,5-1,3 5-15 0,5-1,3 150-400 0,9-2,4 2-5 (AI) 8-30 (AI) 200-400 (AI)
(NAS, 2004)

tante na estabilização das membranas biológicas QUADRO 12 – Sintomas e sinais de carência


prevenindo a peroxidação dos ácidos gordos poli- ou excesso de vitaminas
insaturados. A sua absorção depende da acção da
bílis e do suco pancreático. Vitamina A (carência: pele áspera, xeroftalmia, cegueira,
Os lactentes de termo requerem aproximada- predisposição para infecções; excesso: dores ósseas,
mente 0.7 UI de acetato de alfa-tocoferol (sendo 1 UI pseudo tumor cerebri)
= 1 mg) por 100 kcal. As necessidades aumentam Vitamina D (carência ou deficiência: raquitismo, desmi-
com a a administração de grandes quantidades de neralização óssea; excesso: obstipação, hipercalcémia,
calcificações renais, insuficiência renal)
ácidos gordos poli-insaturados. Entre os 0-12 meses
Vitamina E (carência: hemólise no recém-nascido pré-
as doses (AI) oscilam entre 4 e 5 mg/dia. Entre o 1
termo, neuropatia; excesso: interferência com o metabo-
ano e a idade adulta as doses (RDA) sobem propor-
lismo da vitamina K predispondo a hemorragias)
cionalmente à idade entre 6 e 10 mg/dia.
Vitamina K (carência: hipoprotrombinémia, hemorra-
A vitamina está largamente distribuída nos
gias, hematomas; excesso: hemólise)
óleos vegetais e nas sementes de cereais.
Tiamina / vitamina B1 (carência : ataxia, beribéri)
Riboflavina / vitamina B2 (carência: queilose, seborreia)
7.2 Vitaminas hidrossolúveis
Niacina / vitamina B3 ou PP (carência: pelagra ; exces-
As necessidades em vitaminas hidrossolúveis
so: rubor)
(complexo B e colina) são resumidas no Quadro 11.
Piridoxina / vitamina B6 (carência: convulsões, anemia;
Dum modo geral pode afirmar-se que as
excesso: neuropatia)
carências em vitaminas hidrossolúveis são raras
Biotina / vitamina B8 ou H (carência: dermatite)
em crianças alimentadas, quer com leite materno,
Folato (carência:anemia megaloblástica)
quer com fórmulas.
Vitamina B12 / cianocobalamina (carência: anemia
As vitaminas do complexo B são essenciais
megaloblástica, acidúria metilmalónica)
para o metabolismo das proteínas, gorduras e Vitamina C / ácido ascórbico [carência: escorbuto, gen-
hidratos de carbono; actuam igualmente nas givite ulcerosa, hemorragia subperióstica, rosário con-
reacções de oxidação-redução, transaminação, drocostal, hematúria, etc.; excesso: nefrolitíase, compro-
descarboxilação, glicólise e hematopoiese. misso da absorção da vitamina B12]
A vitamina C é absorvida por simples difusão.
Quanto às acções bioquímicas, desconhecem-se os
mecanismos exactos, sendo de salientar o seu dado o suplemento de 35 mg/dia, durante o pri-
papel no metabolismo da folacina, na biossíntese meiro ano de vida e ulteriormente;saliente-se que
do colagénio, na absorção e transporte do ferro, e as doses recomendadas para o adulto são cerca de
no metabolismo da tirosina. 70 mg/dia (RDA/AI).
No leite materno existe quantidade de vitamina Uma chamada de atenção para os riscos da
C necessária para cobrir as necessidades da criança ingestão de doses exageradas de vitamina C (500
durante o período de aleitamento exclusivo. mg–1500 mg) nos adultos (eventualmente extra-
Tendo em conta que o teor em vitamina C poláveis para a idade pediátrica) durante período
varia com o regime alimentar da mãe, é recomen- superior a duas semanas: risco de nefrolitíase e de
296 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

52
compromisso da absorção de vitamina B12, entre
outros (Capítulo 139).

8. Carência e excesso de vitaminas


O Quadro 12 resume os principais sintomas e
sinais de carência e de excesso de vitaminas.
ALIMENTAÇÃO COM LEITE
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diture, nutrition and growth. Arch Dis Child 2011; 96:567-572 uma mudança radical no modo tradicional de ali-
mentar a criança nos primeiros meses explicada
pelo número crescente de mulheres trabalhadoras
fora de casa. No entanto, a partir da década de 70
do séc. passado a situação em Portugal (e no
CAPÍTULO 52 Alimentação com leite materno 297

mundo) inverteu-se por circunstâncias diversas- QUADRO 1 – Composição média em nutrientes


designadamente pela legislação produzida propi- por litro
ciando maior disponibilidade da mãe por força da
licença de parto, por campanhas a favor do aleita- Leite Humano Leite de Vaca
mento materno, e pelo papel desempenhado pelos Energia (Kcal) 670-740 600-880
profissionais de saúde chamando a atenção para Proteínas (g) 9 35
as vantagens do leite materno, cada vez mais fun- Gorduras (g) 45 37
damentadas por estudos científicos (ver adiante). Hidratos de carbono (g) 68 49
No estado actual dos conhecimentos conside- Lactose (g) 68 49
ra-se situação ideal a que permite que o bebé seja Minerais
amamentado exclusivamente nos primeiros 6 Cálcio (mg) 340 1170
meses de vida; caso tal não seja possível, pelo Fósforo (mg) 140 920
menos nos primeiros 4 meses. Sódio (mEq) 7 22
Potássio (mEq) 13 35
Composição do leite materno Cloro (mEq) 11 29
Ferro (mg) 0,5 0,45
Não cabe no âmbito deste livro uma análise por- Zinco (mg) 1,1 3,9
menorizada da composição do leite humano; no Vitaminas
entanto, de modo sucinto, pela observação do A (UI) 1898 1025
Quadro 1 pode concluir-se que existem diferenças Tiamina (µg) 160 440
qualitativas e qualificativas relativamente ao leite Ribofiavina (µg) 360 1750
de vaca. Globalmente, o teor em proteínas e em Niacina (mg) 1,5 0,9
minerais é superior no leite de vaca e o de hidratos Piridoxina (µg) 100 640
Ácido fólico (µg) 52 55
de carbono é inferior. Por outro lado, é importante
B 12 (µg) 0,3 4
notar que a composição é variável desde o início
C (mg) 43 11
ao fim da mamada e que existem também dife-
D (UI) 22 14
renças de composição comparando o leite da mãe
E (UI) 2 0,4
que teve o parto de termo com a que o teve pré –
K (µg) 15 60
termo.
Adaptado de Michaelsen, 2011
Com efeito, o leite materno pré-termo tem uma
carga energética superior, teor superior em proteí-
nas, sódio, cloro, e teor inferior em lactose relati- bactérias e de lactobacilos os quais bloqueiam a
vamente ao leite materno de termo ou “maturo”. adesão de bactérias patogénicas às células do
Embora tais diferenças que persistem durante o endotélio intestinal), macrófagos, neutrófilos, lin-
primeiro mês pós-parto sejam consideradas bené- fócitos T e B, lactoferrina (com acção anti-infec-
ficas para todas as crianças nascidas prematura- ciosa fúngica, vírica e bacteriana, antioxidante e
mente, após este período o referido leite humano antiproteases), lisozima, interleucinas, imunoglo-
pré-termo não satisfaz completamente as necessi- bulinas (predominantemente IgA secretórias, com
dades dos lactentes pré-termo em crescimento, menor quantidade de IgM e IgG), factores de
nomeadamente no que respeita a proteínas, cálcio, crescimento, hormonas, etc.. Muitos destes com-
fósforo, sódio, ferro, cobre, zinco e algumas vita- ponentes têm, para além do efeito anti-inflama-
minas. Daí a necessidade de, em tais circunstân- tório, de bloqueio de toxinas e de agentes micro-
cias, o leite materno ser suplementado com “ali- bianos, acção na modulação do desenvolvimento
mentos de reforço” ou “fortificantes. imunológico e na homeostase de tipo metabóli-
Para além dos nutrientes mencionados, deve co(por exemplo manutenção da euglicémia no
salientar-se a presença doutros componentes lactente amamentado cujo risco de hipoglicémia
como probióticos (sintetizando ácidos gordos nos intervalos e entre refeições é vinte vezes
ómega 3 com acção na função imunitária), pré- menor do que nos lactentes alimentados com fór-
bióticos (induzindo a proliferação de bífido- mulas).
298 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Em estudos recentes verificou-se que a admi- QUADRO 2 – Vantagens do aleitamento


nistração de prolactina recombinante humana (r- materno
hPRL) induz maior volume de leite e aumento da
concentração em oligossacáridos com actividade • Reforço da ligação afectiva mãe – filho (vinculação)
antimicrobiana. • Menor incidência de infecções nomeadamente
gastrintestinais, intestinais, e de otite média
Vantagens (protecção imunitária)
• Menor incidência de enterocolite necrosante e de
O Quadro 2 é suficientemente elucidativo. De facto, doença inflamatória intestinal, doença celíaca
não é apenas o aspecto nutricional que deve ser val- • Menor incidência de diabetes mellitus 1 e 2,
orizado mas outros não menos importantes: está e obesidade
provado que a incidência de infecções e de proble- • Menor probabilidade de HTA e hipercolesterolémia
mas alérgicos, pelo menos enquanto a criança está • Desenvolvimento psicomotor, sensorial e comporta-
a ser amamentada é, significativamente menor rel- mental mais adequados
ativamente àquela alimentada com leite industrial. • Menor probabilidade de cólicas pelo teor mais eleva-
As vantagens do leite materno em relação aos do em melatonina
leites industriais são mais difíceis de demonstrar • Condições de higiene mais segura, e mais económico
nos países desenvolvidos, por um lado dada a
impossibilidade de levar a cabo estudos aleato-
rizados e, por outro, dada a existência dos chama- do de extraordinária sensibilidade, pressupondo-
dos “factores de confusão” interferindo no signifi- se um esclarecimento prévio por parte do obstetra
cado dos resultados como a classe social, o nível e outros profissionais desde a primeira consulta
educacional e os hábitos de tabagismo. pré-natal e, se possível, antecedendo a gravidez.
Outro aspecto relacionado com as vantagens Idealmente, a decisão não deverá ser deixada para
diz respeito ao desenvolvimento psicomotor e o período pós – parto.
sensorial, sobretudo nas crianças com anteceden- Tomada a decisão de amamentar, é fundamen-
tes de prematuridade tendo em conta o papel cru- tal realizar o exame das glândulas mamárias com o
cial dos ácidos gordos PUFA. objectivo de detectar eventuais anomalias como
A alimentação natural, por outro lado, associa- por exemplo, mamilos invertidos ou retrácteis ou
se a menor incidência futura de doença infla- sinais de técnicas cirúrgicas já levadas a cabo ante-
matória intestinal e de diabetes mellitus, de obesi- riormente (como a mamiloplastia que poderá ter
dade, e de cancro da mama na lactante. comprometido, quer as estruturas ductulares, quer
As hipóteses de redução da incidência de as nervosas) as quais poderão contribuir para o
transtornos alérgicos a longo prazo e de síndroma insucesso da lactação.
de morte súbita no lactente(SMSL) não se confir- Embora ao pediatra, e médico de família não
maram em estudos realizados. esteja classicamente cometido este papel, eles
poderão de algum modo motivar o obstetra, no sen-
Período pré-natal tido de o referido exame se concretizar, de modo sis-
tematizado.
O acto de amamentar é um processo activo inte- Como deverá, então, ser feita a preparação do
grando dois participantes. Para que a alimentação mamilo?
ao peito venha a ter sucesso é fundamental que a Existem várias técnicas que poderão ser ensi-
mãe tenha sido motivada (e educada desde os ban- nadas à grávida; as mais práticas incluem:
cos de escola) e não coagida. É igualmente de a) rolar os mamilos entre o polegar e indicador
grande utilidade que a mulher neo – lactante obte- algumas vezes durante o dia;
nha os conselhos e apoio doutras mães com expe- b) expor ao ar os mamilos durante alguns mi-
riência para a resolução das primeiras dificuldades. nutos;
Idealmente, a decisão de amamentar deverá c) expressão diária de algumas gotas de colos-
ser tomada numa fase precoce da gravidez, perío- tro durante o último trimestre.
CAPÍTULO 52 Alimentação com leite materno 299

Tais manipulações contribuem para alongar e QUADRO 3 – Factores de sucesso e insucesso


tornar mais elástico o mamilo, constituindo impli-
citamente um treino da técnica de expressão man- Factores de insucesso
ual que poderá ser usada mais tarde. – Separação mãe – filho (pós parto e depois)
Está desaconselhado o uso de tópicos irritantes – Horário rígido
como sabão e álcool que contribuem para secar a – Suplementos de leite industrial (intempestivos)
pele e para o aparecimento de fissuras. A partir do – Biberão de noite
2º trimestre o sutiã deverá ser mole e confortável. – Oferta de leite industrial (amostras) antes da alta
É importante que o profissional de saúde incu- – Não esclarecimento prévio da mãe
ta na futura mãe a noção de que o tratamento da – Não respeito pela opção da mãe; a mãe poderá even-
mama não tem qualquer relação com a capacidade tualmente(e raramente) não desejar amamentar;
de amamentar. haverá que respeitar tal opção
Caso tenham sido detectados no período pré – Factores de sucesso
natal mamilos invertidos, há um certo número de – Técnica correcta de amamentação
medidas que poderão ser tomadas. As mais fáceis – Transmissão de confiança à mãe
de executar constituem a chamada “manobra de – RN ao peito na sala de partos (pele com pele)
Hoffman” que consiste em colocar dois dedos dia- – Verdadeiros estímulos: sucção vigorosa e frequente/
metralmente opostos sobre as margens da aréola esvaziamento da glândula mamária
exercendo, depois tracção no sentido centrífugo, – Horário livre
alternadamente, segundo os diâmetros vertical e
horizontal.
O objectivo desta manobra, a executar várias tando a “subida do leite” e a eliminação do
vezes por dia, e que poderá ser intensificada no 3º mecónio.
trimestre da gravidez, é desfazer as aderências da
base do mamilo que contribuem para a sua Técnicas da mamada
umbilicação.
A posição (de conforto e de descontracção) que a
Período intraparto mãe deve adoptar durante a mamada é a seguinte:
sentada sobre almofada mole e estável, apoiando
O sucesso ou insucesso do aleitamento materno os pés num pequeno banco a poucos centímetros
depende dum certo número de factores que estão do chão.
discriminados no Quadro 3. O braço que sustem a cabeça da criança deve
Os factores que influenciam de modo mais também assentar sobre uma superfície mole (por
negativo a amamentação são a rigidez de horários exemplo, uma pequena almofada).
e a administração intempestiva de leite para A cabeça da criança deve ficar no alinhamento
lactentes(leite industrial/fórmula). da glândula mamária com a face voltada para a
Nesta fase, mais uma vez o profissional de mãe. Com a mão livre, a mãe comprime com dois
saúde desempenha papel primordial quanto ao dedos o bordo da aréola procurando tornar o
apoio e confiança que pode transmitir à mãe. Dado mamilo mais procidente de forma que a criança
que os verdadeiros estímulos da secreção láctea são introduza na boca(bem aberta com o lábio inferior
a sucção vigorosa e frequente, e o esvaziamento dobrado bem para fora) não só o mamilo mas tam-
completo da glândula mamária, assume particular bém a aréola. A posição da boca da criança deve
importância a aplicação da norma de rotina, em ser tal que a porção superior da aréola deve ficar
todas as maternidades de “pôr o RN ao peito, logo mais visível que a sua porção inferior.
na sala de partos”, “ pele com pele”. Assim sendo, as fossas nasais ficarão livres do
De facto, essa atitude de a mãe ver e sentir o contacto com a pela da mama e a respiração
seu filho desde as primeiras horas estimula não processar-se-á normalmente.
só o vínculo mãe – filho, mas também permite Para desencadear o reflexo da sucção a mãe
uma ingestão mais precoce do colostro, facili- deve passar o mamilo sobre os lábios do bebé
300 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

procurando não o introduzir bruscamente na QUADRO 4 – Actuação prática


boca.
Durante a estadia na maternidade a mãe RN com a mãe
poderá dar de mamar deitada, colocando-se em (alojamento conjunto ou “rooming – in”)
decúbito lateral; a posição da mãe e bebé deverá
ser ajustada de modo que a criança e peito do – Primeira mamada na sala de partos (se possível na 1ª
mesmo lado fiquem em plano superior. hora pós-parto)
No fim da mamada (e ainda com o mamilo + – 2º dia: 2 – 5 minutos de cada lado (alternar) – colostro
aréola dentro da boca da criança) neutralizar de – 2º dia e seguintes: no máximo: 10 minutos em cada
modo progressivo o vácuo bucal criado, contri- lado (alternar)
buindo para que se evite o traumatismo do mami- • Frequência: horário livre; sempre que “chore com
lo por repuxamento brusco e intempestivo do fome”; respeitar o “apetite”; em regra o lactente sau-
mesmo no fim da mamada. dável não pré-termo necessita entre 6-8 mamadas/24
As alterações do mamilo, nomeadamente do horas; quanto mais curtas forem as mamadas, maior a
probabilidade de maior número de mamadas. Não é
mamilo invertido impedindo a penetração deste e
consensual a rotina de acordar o bébé saudável e de
da aréola na boca, dificultam a sucção e provocam
termo, de noite para mamar; determinados factores de
ingurgitamento dos seios com maior probalidade
crescimento no leite materno garantem a estabilização da
de fissuras por traumatismo.
glicémia.
• Limites a respeitar:
Esquema de amamentação
– intervalo mínimo entre mamadas: 1 hora
– duração máxima (total) da mamada: 20 minutos
O Quadro 4 resume os aspectos fundamentais do
• Precaução – lavagem da aréola e mamilo com água
esquema prático da amamentação.
fervida no fim da mamada; secagem antes de tapar a
Nunca será de mais repetir:
mama. A aplicação do próprio leite materno no mami-
a) que o horário rígido deve ser desencorajado
lo-aréola previne as fissuras, dado o efeito cicatrizante
e que a preocupação inicial no pós – parto é, não
do mesmo (recordar os factores de crescimento ante-
propiciar calorias, mas estimular a sucção;
riormente referidos)
b) que o RN deve estar sempre junto da mãe
– a vigilância da glicémia apenas está indicada nos casos
Classicamente aconselha-se “dar” em cada
de dificuldades na lactação e/ou suspeita de hipo-
mamada os dois peitos, começando de um lado e galactia, baixo peso de nascimento, macrossomia, etc.
terminando no outro; na mamada seguinte o peito • Êxito da lactogénese se: estímulo da sucção; esvazia-
a ser dado em primeiro lugar será o que foi último mento mamário completo
na mamada anterior. • Nota importante:
São desaconselhadas as mamadas prolongadas O choro (estímulo sonoro) da criança junto da mãe, anteci-
que contribuem para maceração do mamilo e for- pando a mamada, estimulando o hipotálamo e a hipófise,
mação de fissuras. promove a secreção da ocitocina (contracção do útero e
Após a “subida do leite”, está provado, nos esvaziamento da glândula) e da prolactina (estímulo da
bebés de termo, saudáveis e vigorosos, que a secreção láctea).
sucção a ritmo rápido(de 1 sucção por segundo),
em 5 – 7 minutos permite a extracção de leite para
as necessidades, por cada mamada. Desaconselha- ao bebé, dado que o leite materno tem 87% de
-se a mamada de duração total superior a 20 mi- água e a criança saudável terá ingesta ad libitum.
nutos pela probabilidade crescente à medida que São excepções: períodos de calor/Verão, febre ou
se desenrola a mamada, de o bebé “perder” a outras situações específicas avaliadas pelo médi-
força de sucção e passar a deglutir mais ar do que co. De notar também que, enquanto não se veri-
leite, o que contribui para meteorismo e mal estar. ficar a”subida do leite” ou secreção láctea “em
Em situações de aleitamento materno exclusivo e pleno” notada pela mãe, a não ingestão de água
desde que se tenha já verificado a chamada “subi- suplementar nas primeiras horas poderá levar a
da do leite” não se torna necessário dar água extra desidratação hipernatrémica.
CAPÍTULO 52 Alimentação com leite materno 301

Avaliação do aleitamento Atropina, anticoagulantes, antitiroideus, citos-


táticos, di-hidro-taquiferol, iodetos, narcóticos,
O papel do profissional de saúde (médico, enfer- substâncias radioactivas, brometos, tetraciclinas,
meiro ou outro) é fundamental nos primeiros dias metronidazol, cimetidina.
após o parto no sentido de manter confiança da 2 – Fármacos que obrigam a vigilância do
mãe, tentando diminuir-lhe a ansiedade e o receio lactente no caso de a lactante os tomar,
pela eventual insuficiência do leite. não sendo necessária a suspensão da ama-
Em regra, no 5º dia de vida já haverá uma ideia mentação:
sobre a evolução do aleitamento tendo sempre em Corticóides, diuréticos, contraceptivos orais,
conta o decréscimo fisiológico no peso de nascimen- ácido nalidíxico, sulfonamidas, carbonato de lítio,
to que, por vezes, é cerca de 5-7%; por isso, torna-se reserpina, difenil-hidantoína, barbitúricos, cuma-
fundamental que haja uma comunicação com a mãe. rinas, heparina, tiroxina.
Por outro lado, há também que desdramatizar o 3 – Fármacos ou substâncias sem qualquer
problema da evolução ponderal. Refira- se que, dum efeito sobre o lactente:
modo geral, a evolução ponderal nos lactentes ali- Insulina, epinefrina, administração ocasional
mentados ao peito é mais discreta do que nos ali- de paracetamol ou ácido acetil-salicílico, uso
mentados com leite industrial(argumento positivo, moderado de álcool, cafeína, chá.
pois a probabilidade de obesidade nas crianças ali- NB – Relevando as incontestáveis vantagens
mentadas com leite materno é menor). do aleitamento materno, há que referir no entanto,
Reitera-se que a mãe deverá ser informada de e em contextos especiais, a probabilidade de con-
que, em condições fisiológicas, existe sempre taminação da lactante com determinados polu-
perda de peso inicial, e que se poderá considerar entes ambientais que, sendo lipossolúveis, se acu-
satisfatório se houver recuperação do peso de mulam no tecido mamário e constituem risco
nascimento pelo 8º-12º dia. para o bebé. Tal poderá comprovado por estudos
Desaconselha-se a pesagem diária pela analíticos realizados na lactante.
ansiedade que origina na mãe; em geral e em
condições normais será suficiente, nas primeiras Infecção e aleitamento materno
semanas a verificação semanal do peso. A chupe-
ta é desaconselhada. Embora o leite materno tenha um papel crucial na
profilaxia das infecções, há que referir, no entanto
Fármacos contaminantes ambientais algumas infecções maternas raras que são limitati-
e aleitamento materno vas da amamentação. Trata-se essencialmente,
(para citar as principais) das infecções pelo vírus
Nos casos em que a mãe lactante está submetida a da imunodeficiência humana (VIH), pelo vírus
determinados tratamentos com fármacos, há que humano da leucemia de células T (VHLT tipos I e
atender a que os mesmos podem ser transferidos II), de infecções mamárias pelo vírus herpes, da
para o leite, quer por difusão passiva, quer por varicela materna e de formas de tuberculose
transporte activo, variando a concentração do materna evolutiva.
medicamento no leite de diversos factores tais
como a concentração sanguínea materna e o Casos especiais
tempo decorrido entre a administração e a mama-
da. Na prática, são raras as situações em que se É importante chamar a atenção para dois pontos:
deverá interromper o aleitamento. a) a administração de soluto glucosado, desi-
Nesta perspectiva, os clínicos responsáveis gnadamente no pós-parto, antes da subida do
pela assistência à lactante e ao lactente deverão leite, dum modo geral não deverá ser fomentada.
consultar as normas de actuação que consideram De facto, a técnica de administração de soluto
essencialmente três tipos de fármacos: adocicado poderá desmotivar o bebé para receber
1 – Fármacos que não devem ser administra- o colostro que tem sabor “salgado”;
dos à lactante: b) a mãe deve ser ensinada a dar eventual su-
302 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

53
plemento se se justificar, à colher, e sempre depois
da mamada, pelo facto de o biberão exigir menos
esforço, o que poderá também contribuir para a
ulterior recusa do peito.
c) a mãe deve ser esclarecida que, durante a
primeira semana, de adaptação do bebé, as neces-
sidades calóricas e em líquidos são inferiores LEITES E FÓRMULAS INFANTIS
àquelas a partir do 8º-10º dia.
Carla Rêgo e António Guerra
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Neste capítulo procede-se a uma abordagem
das fórmulas infantis disponíveis no mercado.
CAPÍTULO 53 Leites e fórmulas infantis 303

Classificação dos leites Quer para as fórmulas para lactente, quer para
e fórmulas infantis as de transição o valor energético estabelecido
oscila entre 60 e 70 Kcal / 100 ml.
Tendo por base a lei interna do país, e de acordo
com as Directivas Comunitárias, são estabelecidas Preparações à base de proteínas
algumas definições consideradas importantes do leite de vaca
para uma correcta compreensão e prescrição.
A fonte proteica deverá estar claramente defini- Proteínas
da. A classificação de “Leite” ou “Fórmula” depende O teor proteico oscila entre 1,8 e 3,0 g / 100kcal,
do facto de a fonte proteica estar respectivamente na com uma relação caseína/proteínas solúveis infe-
dependência exclusiva do leite de vaca ou não. rior a 1 e, portanto, similar à observada no leite
Existem actualmente quatro grandes grupos maduro de mulher (45/55).
de leites: os leites para lactente, os leites de tran- Desde há bastante tempo que se tem alertado
sição, os leites de continuação e os leites e fór- para o teor excessivo de proteínas nas fórmulas
mulas especiais. Incluídos nestas categorias dis- para lactentes. Na realidade, a utilização de leites
pomos de vários tipos de leites, adequados a para lactentes com um baixo teor proteico (1,8 g /
diversas situações clínicas. 100 Kcal), resulta em indicadores plasmáticos do
Leites e Fórmulas para lactente: géneros ali- metabolismo proteico mais próximos dos regista-
mentícios com indicações nutricionais específicas, dos em lactentes alimentados com leite materno,
destinados a lactentes durante os primeiros 6 independentemente da relação caseína / lactopro-
meses de vida e que satisfaçam as necessidades teínas do soro.
nutricionais deste grupo etário. Importa lembrar que o perfil de aminoácidos da
Leites e Fórmulas de transição: géneros ali- proteína bovina é claramente diferente do da pro-
mentícios com indicações nutricionais específicas, teína humana. Tais diferenças repercutem-se nos
destinados a lactentes a partir dos 6 meses, e até níveis de aminoácidos em lactentes alimentados
aos 12 meses (e eventualmente até aos 3 anos) que com leites com predomínio de proteínas do soro
constituam o componente líquido principal de um (treonina, valina, leucina, isoleucina, metionina) ou
regime progressivamente diversificado deste de caseína (tirosina, fenilalanina, valina, metionina)
grupo etário. com valores superiores aos registados em lactentes
As fórmulas para lactente recomendadas alimentados com leite materno. A indústria tem
desde o nascimento podem também ser satisfato- procurado corrigir estes desequilíbrios ajustando a
riamente utilizadas em lactentes até aos 12 meses, composição dos leites naqueles aminoácidos.
desde que sejam enriquecidas com ferro. As fór- Também o aminoacidograma e a relação entre
mulas de transição podem ser utilizadas em cri- aminoácidos essenciais e aminoácidos totais de
anças dos 12 aos 36 meses, como parte de um lactentes alimentados com leite de baixo teor pro-
regime alimentar diversificado. teico são similares ao observado nos alimentados
Todos os leites e fórmulas têm uma composição com leite materno. No entanto, apesar destas
relativa em macro e micro nutrientes que respeita similitudes, registam-se algumas diferenças relati-
os valores mínimos e máximos recomendados pela vas ao teor plasmático de alguns aminoácidos,
União Europeia (EU) para os diferentes grupos de quer por excesso (fenilalanina, metionina, isoleu-
leites (Legislação CEE 1999, 2000 e 2009). Para cina e citrulina), quer por defeito (triptofano, tau-
além da Comissão da Comunidade Europeia, tam- rina). Tais diferenças estão também dependentes
bém o Comité de Nutrição da European Society of da relação entre a caseína e as lactoproteínas do
Paediatric Gastroenterology Hepatology and Nutrition soro naquelas fórmulas, bem como do perfil quali-
(ESPGHAN) tem publicadas as recomendações tativo destas, o que tem levado a indústria a
respeitantes à composição das fórmulas para reduzir o teor de β-lactoglobulina e a aumentar o
lactentes e das fórmulas de transição, quer relati- conteúdo em α-lactalbumina, de modo a ultrapas-
vamente aos nutrientes em geral, quer a referente sar alguns desequilíbrios no perfil plasmático de
à composição de um nutriente específico. aminoácidos, o que permitiu aumentar o teor de
304 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

triptofano, precursor da serotonina, importante vamente aos alimentados com leite convencional
neurotransmissor com papel importante nos sis- sem AGP-CL, reflectem-se na composição dos
temas de alternância fome/saciedade, e de lípidos plasmáticos, da membrana do eritrócito,
sono/estado de vigília. da retina e do cérebro. Estes resultados sugerem a
Leites com teores ainda mais reduzidos de pro- necessidade de suplementação dos leites para
teínas (< 1,8 g / 100Kcal) têm também sido ensaia- lactente em AGP-CL; de acordo com alguns peri-
dos, alertando-se, no entanto, para o risco nutri- tos, os leites para lactente deverão incluir ácido
cional que tais fórmulas acarretam. araquidónico (AA) e ácido docosa-hexanóico
Desde há alguns anos que alguns leites têm (DHA) nas porporções, respectivamente, de pelo
nucleótidos incorporados nas suas composições. menos 0,35 e 0,2 do teor total de ácidos gordos.
Os nucleótidos representam 0,1 a 0,15 % do con- A inclusão nos leites, de triglicéridos incorpo-
teúdo de nitrogénio do leite materno e, ainda que rando o ácido palmítico, predominantemente na
os estudos não sejam consensuais, para além do posição β do glicerol, parece ter efeitos benéficos
seu papel na síntese de DNA e RNA, têm-lhes sido significativos relativos à absorção de gordura e
atribuídas algumas funções benéficas, nomeada- cálcio em recém-nascidos de termo saudáveis.
mente a nível imunológico, promovendo a matu-
ração dos linfócitos T. Minerais
Outras vantagens descritas dependentes da Nos leites e fórmulas para lactente, o teor de sódio
inclusão de nucleótidos nas fórmulas (aumento da e de outros minerais é inferior ao teor existente
biodisponibilidade do ferro, modificação da flora nos leites e fórmulas de transição. Refira-se ainda
intestinal, mais favorável metabolismo das lipopro- que são muito inferiores as necessidades em ferro
teínas e melhor aproveitamento metabólico dos áci- no primeiro semestre de vida em lactentes nasci-
dos gordos poli-insaturados de cadeia longa – dos de termo, pelo que é suficiente um baixo
AGP-CL, ou LC PUFA na nomenclatura inglesa), suplemento em ferro nos leites para lactentes.
ainda não estão amplamente comprovadas. Alguns leites têm sido suplementados com
Chama-se a atenção para o facto de o suprimento de selénio, um importante oligoelemento envolvido
teores elevados de proteína conduzir ao aumento de adi- em sistemas enzimáticos com acção antioxidante.
posidade em crianças avaliadas com 1 e 2 anos de idade. Tal reforço, particularmente importante nos leites
para recém-nascidos pré-termo, é feito sob a
Hidratos de carbono e pré-bióticos forma de selenito ou de selenato, com similar taxa
Relativamente aos hidratos de carbono, estes leites de retenção de selénio pelo organismo.
podem ser compostos exclusivamente por lactose
ou por uma associação de vários açúcares. Vitaminas
Têm também surgido leites para lactente e de Também o beta-caroteno, susceptível de ser
transição que incluem oligossacáridos (pré-bióti- metabolizado em vitamina A e com importante
cos) na sua composição com provavel efeito bené- acção antioxidante, tem sido incluído nalguns
fico. Concluiu-se recentemente que não há leites. Este e outros carotenóides existem no leite
objecções à inclusão até 0,8 g/100 ml, de galacto- materno; os seus níveis plasmáticos decrescem
oligossacáridos (GOS – 90%) e fruto-oligossacári- rapidamente após o parto em recém-nascidos ali-
dos (FOS – 10%) às fórmulas para lactentes e de mentados com leites não suplementados.
transição. Refira-se que o leite materno tem teores
elevados de oligossacáridos (2,2 e 1,2 g/dl respec- Probióticos
tivamente no colostro e no leite maduro). Recentemente surgiram no mercado leites para
lactentes com a adição de probióticos (micro
Lípidos organismos vivos que melhoram o equilíbrio da
Dada a limitada capacidade de síntese de AGP-CL flora intestinal).
pelo lactente nas primeiras semanas de vida, as Trata-se de espécies bacterianas particulares
diferenças entre o suprimento naqueles ácidos não patogénicas, produtoras de ácido láctico, com
gordos nos alimentados com leite materno relati- grande afinidade para a membrana apical do epi-
CAPÍTULO 53 Leites e fórmulas infantis 305

télio intestinal e com alguns efeitos benéficos para após os 6 meses e sempre após teste prévio de to-
a saúde. Entre estes destacam-se efeitos a nível lerância.
imunofisiológico intestinal com repercussão
favorável nalgumas patologias infecciosas e alér- Leites de transição
gicas, bem como a nível da biodisponibilidade de
minerais, e ainda, a nível sistémico, sobre o meta- Diferem do leite de vaca essencialmente no con-
bolismo lipídico, pressão arterial e patologia neo- teúdo proteico e em ferro (20 vezes superior), gor-
plásica. (capítulo 54). dura, hidratos de carbono, outros minerais e vita-
minas. Contêm, de uma forma geral, um teor mais
Fórmulas à base de proteínas de soja elevado de proteínas, cálcio e calorias que as fór-
mulas e leites para lactente. Sublinhe-se todavia
De acordo com estudos de peritos em nutrição que, de acordo com o Scientific Committec on food –
não é aconselhada a sua utilização na prevenção SCF, foi reduzido o teor proteico mínimo destas
de patologia alérgica. fórmulas para 1,8 g/ 100 kcal, valor idêntico ao
Relativamente à sua composição, e no que anteriormente já estabelecido para os leites para
respeita aos glúcidos, estas fórmulas são isentas lactentes. A sua riqueza em ferro e ácidos gordos
de lactose e incluem uma mistura de açúcares, essenciais justifica, por si só, a sua utilização, pelo
preferencialmente polímeros de glicose. De forma menos, até ao final do primeiro ano de vida. Têm,
a melhorar o seu valor nutricional, estas fórmulas no entanto, o inconveniente de conter ainda um
são enriquecidas em metionina e L-carnitina, elevado teor proteico condicionando uma sobre-
devendo esta última estar presente em valor supe- carga metabólica.
rior a 7,5mmol/100kcal. A composição relativa- A relação caseína/lactoproteínas do soro é
mente aos restantes nutrientes segue as mesmas superior a um, e próxima da do leite de vaca
directivas definidas para os leites para lactente. (80/20). O seu maior teor em caseína, ao condi-
Aponte-se que o elevado teor de magnésio, cionar um esvaziamento gástrico mais lento, per-
aluminio e particularmente de fitato, bem como a mite uma maior saciedade.
relação molar destes com o zinco, compromete a Não é exagero realçar a total inadequação da
absorção deste mineral, do cálcio e do ferro, sendo utilização do leite de vaca inteiro nesta idade,
pois desejável a total desfitinização da soja. A prática ainda frequente entre nós e noutros países
suplementação das fórmulas de soja com selénio europeus. Na realidade, o suprimento proteico
proporciona concentrações plasmáticas e eritroc- médio de lactentes alimentados com leite de vaca
itárias no lactente mais adequadas que as ocorri- é 20 a 100% superior à de lactentes alimentados
das com fórmulas não suplementadas. com leites para lactentes ou com leites de tran-
Existe no mercado uma fórmula hidrolisada à sição, e é 2 a 3 vezes superior ao definido como
base de proteína de soja que contém, para além “nível de segurança da ingestão proteica”.
daquela fonte de proteína vegetal, uma fonte de Por outro lado, a utilização do leite de vaca na
proteína animal, o colagénio de porco. Para além alimentação do lactente é um factor de risco
do menor valor biológico da proteína de soja importante de anemia por carência de ferro, situa-
quando comparada com a proteína do leite de ção ainda frequente mesmo nos países mais
vaca, a soja contém quantidades não desprezíveis industrializados. Por seu turno, os leites para
de isoflavonas/fitoestrogénios cujos efeitos no lactente, como oportunamente referido, podem
crescimento e maturação a médio / longo prazo ser utilizados até aos 12 meses, desde que sejam
são desconhecidos. médio/longo prazo. adequadamente enriquecidos em ferro requisito
Mais estudos serão, pois, necessários para cumprido por todos os leites 1 existentes no mer-
chegar a conclusões definitivas relativas à segu- cado português..
rança nutricional destas fórmulas que apenas Alguns leites de transição, são enriquecidos
devem ser usadas em situações de galactosemia, com probióticos; outros há que são também suple-
por questões éticas (vegetarianismo) ou em casos mentados em selénio, em β-caroteno e em nucle-
particulares de alergia à proteína do leite de vaca, ótidos.
306 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Leites “de crescimento” cia de alergia às proteínas do leite de vaca durante


ou de continuação a infância; contudo, a mesma pode ocorrer,
mesmo em lactentes amamentados exclusiva-
Os chamados leites de “crescimento” ou de conti- mente com leite materno, com uma incidência,
nuação, qualitativamente sobreponíveis aos leites menor (cerca de 0,5%).
de transição, são destinados a crianças na faixa Os leites parcialmente hidrolisados, corrente-
etária dos 1 aos 3 anos. Estes leites oferecem rela- mente designados de hipo-alergénicos (HA), são
tivamente ao leite de vaca claras vantagens nutri- leites em que as proteínas, embora hidrolisadas,
cionais, dado o seu menor teor proteico e um contêm ainda fragmentos de dimensão suficiente
maior valor relativamente a alguns oligoelemen- para induzir reacção alérgica em crianças sensibi-
tos (ferro e zinco), ácidos gordos essenciais e algu- lizadas. As proteínas são parcialmente hidrolisa-
mas vitaminas, nomeadamente vitamina D. das pela acção combinada da hidrólise enzimática
e do tratamento térmico a altas temperaturas, per-
Leites especiais mitindo a degradação dos péptidos até um peso
molecular de 5.000 Daltons. A sua composição
Leites acidificados relativamente aos restantes nutrientes é muito
O aparecimento da flora no tubo digestivo do recém- semelhante à do leite com proteínas não modifi-
-nascido depende essencialmente das bactérias cadas.
procedentes da mãe e do meio ambiente. No lactente Estes leites não são, de facto, verdadeiramente
alimentado com leite materno, após um período ini- hipo-alergénicos já que não garantem ausência de
cial de predominio de colibacilos, as bifidobactérias reacções em, pelo menos, 90 % dos lactentes ou
passam a predominar, contrariamente ao que ocorre crianças que os tomam, com comprovada alergia
em lactentes alimentados com leite/fórmula, em às proteínas do leite de vaca.
que a flora é mais heterogénea. Mais do que a com- Salienta-se que a Directiva 96/4/EC de 16 de
posição da preparação, parece ser o pH e o poder Fevereiro de 1996 exige dados objectivos e cien-
tampão do leite/ fórmula e das fezes que determi- tificamente comprovados da redução do risco de
nam a composição da coproflora, sendo o escasso alergia às proteínas do leite, para que seja utiliza-
poder tampão do leite materno o responsável pela da a terminologia de fórmulas lácteas hipo-
criação de um meio intestinal ácido favorável ao alergénicas (ou hipo-antigénicas).
crescimento de bifidobactétrias, e desfavorável aos Não sendo possível o aleitamento materno,
germes potencialmente patogénicos. segundo as recomendações da European Society for
Sendo a sua composição muito parecida com a Paediatric Allergology and Clinical Immunology
do leite para lactentes, tais leites são caracteriza- (ESPACI) e a European Society for Paediatric
dos pelo facto de serem enriquecidos em bífidus, e Gastroenterology, Hepatology and Nutrition
de na sua composição entrarem fermentos lácti- (ESPGHAN), para a prevenção das reacções
cos, factores que favorecem a presença de bifi- adversas às proteínas do leite de vaca em lactentes
dobactérias na microbiota intestinal do lactente. com risco hereditário documentado de atopia
Por outro lado, esta acidificação tem a vantagem (progenitor ou irmão) é recomendada a alimen-
de acelerar a digestão das proteínas, aumentar a tação com uma fórmula reduzida alergenicidade
acção da pepsina, favorecer a absorção do cálcio e, ou seja, parcialmente hidrolisada, até aos 6 meses
transformando a lactose restante em ácido láctico, de idade. De facto, alguns estudos evidenciaram a
criar condições para o desenvolvimento de uma eficácia dos leites parcialmente hidrolisados na
flora com bifidobactérias predominantes. prevenção da doença atópica e alergia alimentar;
Embora se trate de leites com baixo teor de lac- de referir, no entanto, que a eficácia da prevenção
tose e com fermentos lácticos, não estão, no entanto, da doença atópica em lactentes com história famil-
especificamente indicados no decurso das diarreias. iar positiva parece depender não apenas do grau
de hidrólise, como também do tipo das proteínas
Leites parcialmente hidrolisados hidrolisadas com vantagens demonstradas para a
Estudos prospectivos estimam em 2-3% a incidên- hidrólise parcial da lactoproteína do soro.
CAPÍTULO 53 Leites e fórmulas infantis 307

Dietas baseadas em proteínas não modificadas de semente de alfarroba. A farinha de alfarroba


do leite de outras espécies (ex. cabra e ovelha ou (polímeros de glúcidos não metabolizáveis),
de cereais (aveia, centeio, arroz)), não devem ser acalórica, é resistente à hidrólise digestiva, poden-
utilizadas no tratamento da alergia às proteínas do ocasionalmente provocar sintomatologia dis-
do leite de vaca. péptica, tal como diarreia, cólicas e flatulência.
De acordo com estudos realizados, em termos Os amidos de milho, de arroz ou de batata, rela-
ideais, as fórmulas lácteas hidrolisadas devem tivamente fluidos em pH neutro, tornam-se
conter péptidos tão curtos quanto possível para extremamente viscosos em pH ácido a 37ºC (propor-
diminuir a alergenicidade das proteínas, e tão lon- cionado pelo meio gástrico), sendo bem tolerados.
gos quanto possível para melhorar o seu valor O teor mais elevado destes leites em hidratos
nutricional (consultar parte Imunoalergologia). de carbono, e menor em gordura, acelera o
esvaziamento gástrico, o que também contribui
Leites extensamente hidrolisados para a diminuição dos episódios de refluxo.
Trata-se de alimentos desprovidos de proteínas Para além da eficácia anti-refluxo importa tam-
alergizantes, pelo que as proteínas do leite de vaca bém que estes leites sejam seguros do ponto de
são extensamente hidrolisadas por tecnologia vista nutricional. Tem sido discutida a interferência
complexa (a maior parte do nitrogénio encontra- dos diferentes espessantes utilizados pelas fórmu-
se na forma de aminoácidos e péptidos inferiores las anti-refluxo com a biodisponibilidade dos prin-
a 1500 Daltons). Assim, é reduzida marcadamente cipais macro e microminerais. A biodisponibilidade
a alergenicidade, embora não totalmente elimina- do cálcio, ferro e zinco parece superior nas fórmu-
da, dado que existem certos antigénios de pesos las espessadas com hidratos de carbono digeríveis
moleculares <3 000 D que são resistentes às técni- comparativamente às espessadas com hidratos de
cas aplicadas. Devem apenas ser prescritas como carbono não digeríveis. Regista-se também uma
terapêutica da alergia à proteína do leite de vaca. diminuição mais evidente da absorção de minerais
por fibras solúveis nos leites com predomínio de
“Dieta” semi-elementar caseína relativamente às lactoproteínas do soro.
Em lactentes com alergia às proteínas do leite de Alguns destes leites são suplementados em
vaca ou com reacções adversas a outras proteínas selénio, em β-caroteno e em nucleótidos. Não são
alimentares e síndromas de má-absorsão, deve fórmulas standard, pelo que devem apenas ser
utilizar-se uma fórmula extensamente hidrolisada prescritas em situações de refluxo comprovado
(ou mistura de aminoácidos), sem lactose e com que comprometa o crescimento ou se associe a sin-
triglicéridos de cadeia média; é este o conceito de tomatologia respiratória, e sempre em associação
“dieta” semi-elementar. com medidas posturais e farmacológicas.
Excepcionalmente certas crianças podem apre-
sentar alergia a estes hidrolisados, ou mesmo Leites para recém-nascidos
intolerâncias a múltiplas proteínas da dieta, pre- pré-termo (PT) ou de baixo
conizando-se nestes casos uma fórmula contendo peso (BP), com ou sem restrição
aminoácidos livres. de crescimento intra-uterino (RCIU)

Leites anti-regurgitação O recém-nascido (RN) pré-termo PT é caracteriza-


O tratamento médico do refluxo inclui entre ou- do por imaturidade das suas funções vitais e dos
tras medidas a utilização de fórmulas lácteas sistemas reguladores (enzimáticos, excretores,
industrialmente espessadas. etc.) o que o torna muito mais sensível a situações
A composição destes leites aproxima-se global- de carência ou de sobrecarga. O perfil de cresci-
mente da dos leites para lactente ou de transição, mento é claramente diferente do registado no
residindo a diferença na sua composição glucídi- recém-nascido de termo, verificando-se um cresci-
ca. O objectivo é atribuir-lhe a capacidade de mento de recuperação particularmente evidente
espessamento, o que é conseguido com a adição nos primeiros 2-3 meses de vida.
de amido de milho, ou amido de batata ou farinha Na ausência de leite materno, os leites para
308 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

recém-nascidos pré-termo ou recém-nascidos de vitamina E o principal antioxidante biológico,


baixo peso deveriam garantir um crescimento torna-se vital a existência de um teor adequado
semelhante ao ocorrido in útero. Trata-se duma daquela vitamina nas fórmulas lácteas. Aquele
questão polémica. O teor proteico dos referidos valor é, assim, definido tendo por base o teor de
leites é mais elevado do que o observado nos leites ácidos gordos poli-insaturados dos leites. O
para lactentes (cerca de 3,0 g/100 Kcal), ocupando respeito por este pressuposto poderá justificar a
as proteínas solúveis um lugar maioritário de ausência de efeitos adversos relativamente à
forma a ser obtido o melhor coeficiente de utiliza- biodisponibilidade dos aminoácidos de leites
ção digestiva possível. enriquecidos com AGP-CL.
O leite de mãe de RN pré-termo, embora adap- De igual modo, um teor equilibrado em AA e
tado às necessidades destes recém-nascidos, dado DHA e uma adequada protecção antioxidante,
ser mais rico em proteínas e minerais que o leite não interfere com o crescimento nem tem outros
de mãe de recém-nascido de termo, necessita efeitos adversos.
todavia de ser suplementado. Cerca de 20% do seu teor lipídico deverá ser
Têm sido utilizados leites para recém-nascidos suprido sob a forma de triglicéridos de cadeia
pré-termo (RNPT) com proteína parcialmente média (TCM) que são rapidamente metabolizados
hidrolisada ou extensamente hidrolisada. Embora e preferencialmente utilizados como fonte
não dispondo de resultados de estudos prospec- energética.
tivos suficientemente prolongados, os resultados Tendo em conta a limitada actividade lactásica
de algumas investigações têm apontado no senti- nos RNPT, parte da lactose destes leites é substi-
do de não se registarem diferenças relativamente tuída por polímeros de glicose (5 a 10 moléculas
ao crescimento, marcadores do metabolismo pro- de glicose) que são clivados por acção da maltase
teico e perfil plasmático de aminoácidos entre ou glucoamilase, esta última com uma elevada
RNPT alimentados com fórmula hidrolisada, com actividade já pelas 28 semanas de gestação.
fórmula convencional para PT e com leite materno O conteúdo em minerais está aumentado, no-
suplementado ou enriquecido. Todavia estes meadamente em sódio, fósforo e cálcio, permitin-
resultados não são totalmente consensuais. do assim uma maior retenção cálcica e uma me-
Nos RNPT e nos com RCIU as reservas de lhor absorção das gorduras.
ácido araquidónico (AA) e de ácido docosa-hexa- Tem sido advogado o uso de fórmulas espe-
nóico (DHA) são muito reduzidas. Acresce ainda ciais para lactentes com antecedentes de baixo
o facto de aqueles recém-nascidos não terem peso de nascimento e destinados ao período que
capacidade enzimática para a “elongação” e se segue à alta hospitalar: as chamadas PDF ou
dessaturação dos ácidos linoleico e alfa-linolénico “Post-Discharge Formula”. São fórmulas com
naqueles ácidos gordos poli-insaturados de cadeia uma densidade proteica mais elevada e com um
longa (AA e DHA). De acordo com as recomen- maior teor em macrominerais, nomeadamente em
dações de um grupo de peritos, as fórmulas para cálcio. Embora em alguns estudos se tenha regis-
RNPT devem incluir, pelo menos, 0,35 % de DHA tado um efeito benéfico no crescimento, particu-
e 0,4 % de AA relativamente ao teor total de ácidos larmente nos primeiros meses de vida, os estudos
gordos. não são consensuais no tocante, quer ao cresci-
A suplementação dos leites para RNPT com mento estaturo-ponderal, quer à composição cor-
aqueles ácidos, na proporção da existente no leite poral nos primeiros 18 meses de vida. De igual
materno, resulta num perfil plasmático e na incor- modo não se observaram diferenças relativamente
poração daqueles ácidos nos fosfolípidos da mem- a nível comportamental e de desenvolvimento
brana celular, semelhante ao registado com psicomotor registados também até aos 18 meses
lactentes alimentados com leite materno. em lactentes com fórmulas PDF relativamente a
A adição de AGP-CL aos leites aumenta o risco fórmulas convencionais. A análise dos resultados
potencial de agressão oxidante não apenas aos conhecidos permitiu concluir que os dados até à
restantes componentes do leite como também aos data são limitados e não ligitimam a recomen-
próprios lactentes com ele alimentados. Sendo a dação de fórmulas com elevado teor proteico-
CAPÍTULO 53 Leites e fórmulas infantis 309

energético relativamente às fórmulas conven- ingestão de leite acrescida da ingestão de alimen-


cionais no momento da alta em RNBP (Ver capítu- tos semi-sólidos
lo 45).
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biberões, sendo prescrito o volume de água em al for a council directive on the approximation of the laws
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do “leite” em pó com a água (concentração padrão up milks. Com 1986:564
de uma medida rasa para 30ml de água ou ~15%), ESPGAN Committee on Nutrition. Comment on the composi-
em geral não se ultrapassa 180 ml/biberão. tion of cow’s milk based follow-up formulas. Acta Paediatr
Após o início da alimentação deversificada os Scand 1990;79:250-254
cálculos em volume total/ 24 horas contemplam a ESPGAN Committee on Nutrition. Comment on the content
310 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

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Nutr 2001; 32: S1-S31 A microbiota intestinal, o alvo principal destes
Host A, Koletzko B, Dreborg S, Muraro A, Wahn U, Aggett P, produtos que fazem parte do leite materno e de
Bresson J-L, Hernell O, Lafeber H, Michaelsen KF, Micheli algumas fórmulas, é constituida por microrganis-
J-L mos cujo habitat é o lume e a mucosa intestinal do
Koletzko B, et al.Drivers of Innovation in Pediatric Nutrition homem e de outros mamíferos. O chamado com-
(Nestlé Nutrition Institute). Basel:Karger, 2010 plexo probiótico é formado cerca de 1000 espécies
Koletzko B, et al. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: bacterianas, na maioria comensais, algumas com
Karger/Nestlé Nutrition Institute, 2008 potencialidades patogénicas, e muitas com benefí-
Osborn DA, Sinn J. Formula for prevention de Allergy and cio para o organismo do hospedeiro. Estas últimas
Food Intolerance in Infants. Cochrane Database Syst Rev encontram-se sobretudo no cólon em que 98% da
2004; (3): CD003741 microbiota é formada por 30-40 espécies, com pre-
Rigo J, Weaver L, Heymans H, Strobel S, Vandenplas Y. Dietary domínio de bactérias anaeróbias; parte importante
products used in infants for treatment and prevention of das mesmas tem influência no estado de saúde do
food allergy. Joint statment of the European Society for homem formando um eossistema microbiano.
Paediatrics Allergology and Clinical Immunology Deste ecossistema fazem parte os chamados pro-
(ESPACI) Committee on hypoallergenic formulas and the bióticos, microrganismos vivos considerados
European Society for Paediatric Gastroenterology, benéficos, por exemplo os lactobacilos e as bifi-
Hapatology and Nutrition (ESPGHAN) Committee on dobactérias, produtores de ácido láctico e vivendo
Nutrition. Arch Dis Child 1999; 81: 80-84 em simbiose (ver adiante).
Rego C, Ribeiro L, Guerra A. Leites e Fórmulas infantis: uma Outros produtos chamados pré-bióticos são
visão actualizada da realidade em Portugal. Acta Pediatr nutrientes não digeríveis que estimulam selectiva-
Port, 2002;33:279-281 mente o crescimento e a actividade das espécies
Rêgo C, Teles A, Nazareth M, Guerra A. Leites e fórmulas bacterianas benéficas. Os produtos chamados
infantis: a realidade revisitada em 2012. Acta Ped Port, in simbióticos são uma combinação dos probióticos
press e dos pré-bióticos; o uso de microrganismos vivos
em combinação com os seus substratos específicos
tem efeito sinérgico para a saúde através da ali-
mentação. A estes produtos dá-se genericamente o
nome de alimentos funcionais. O melhor exem-
plo de alimento funcional é o leite humano, o qual
contém um grande número de elementos bioac-
tivos (enzimas, factores de crescimento, aminoáci-
dos livres, imunoglobulinas, oligossacáridos, etc.)
CAPÍTULO 54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos 311

cujo efeito vai para além do puramente nutri- de medicina, em veterenária e na industria ali-
cional. mentar. Por isso, em 1999 foi elaborado pela
Recorda-se, a propósito, que a colonização do Comunidade Europeia um documento de consen-
intestino do recém-nascido pelas bactérias começa so que define probiótico como um alimento que
na altura do parto; e que o microbioma intestinal incorpora microrganismos vivos (lactobacilos,
materno é a única fonte natural de bactérias benéfi- bifidobactérias) o qual, consumido em quanti-
cas para o intestino. O desenvolvimento da mi- dades suficientes, produz efeitos benéficos para a
croflora intestinal dos lactentes alimentados com saúde e para o bem-estar, para além dos efeitos
fórmulas padrão é diferente da dos lactentes ama- nutricionais. Alguns produtos considerados como
mentados, particularmente, no que diz respeito a probióticos são constituídos por lisados bacteri-
progressão das bifidobactérias que nestes últimos anos ou produtos inactivados pelo calor que,
se tornam os microrganismos dominantes. quando ingeridos, também exercem efeitos bené-
A este propósito cabe referir alguns factos ficos para a saúde do hospedeiro pela capacidade
históricos sobre alimentos funcionais. de inibir a adesividade de bactérias patogénicas às
O iogurte e os leites fermentados foram os células da mucosa intestinal, melhorando o equi-
primeiros produtos considerados alimentos fun- líbrio microbiano intestinal do hospedeiro.
cionais. Reza a história que o iogurte mais antigo Os microrganismos que fazem parte dos pro-
era egípcio (3500 AC). bióticos mais utilizados são:
Hipócrates descreveu as propriedades benéfi- • Bactérias vivas produtoras de ácido láctico
cas do iogurte. Só muito mais tarde na Bulgária e – Lactobacillus (bulgaricus, acidophilus, casei, GG
na Turquia se vulgarizou o seu consumo. Uma das rhamnosus, plantarium), componentes importantes
bactérias usadas na sua fermentação recebeu o da microflora intestinal e dominantes no intestino
nome científico de Lactobacillus bulgaricus, e foi da delgado.
tradição oral destes povos que nos chegou o nome – Bifidobacterium (lactis, longum, bifidus), que
de “iogurte” que “contribuiu” para a enorme são dominantes no cólon, e também componentes
longevidade dos seus habitantes. importantes da microflora intestinal. Predominam
Em 1919, Isaac Carasso, fundador da Danone, no intestino dos recém-nascidos e dos lactentes
começou a produzir industrialmente o iogurte que alimentados com leite materno. As bifidobactérias
nessa época, por ser considerado um medicamen- são germes anaeróbios e utilizam uma via especí-
to, era vendido nas farmácias. Posteriormente, por fica para metabolizar a lactose da alimentação
conter bactérias cujo principal alvo era a microflo- produzindo acido láctico, (como outros probióti-
ra intestinal com efeitos benéficos para a saúde do cos), mas também acido acético com maior efeito
hospedeiro, passou a ser considerado um alimento bacteriostático.
funcional, salientando-se o estudo científico de – Streptoccocus (thermophilus, lactis, salibarius)
Metchinikoff no Instituto Pasteur de Paris. que têm uma forte actividade lactásica e que pela
Hoje em dia a área dos Alimentos Funcionais sua resistência à hidrólise, chegam em grandes
constitui uma área promissora das Ciências da quantidades ao intestino.
Nutrição. • Leveduras, células vivas
– Saccharomyces (boulardii, cerevisiae), resistente
Probióticos aos antibióticos.

A designação de probióticos é conhecida desde Um preparado probiótico pode conter uma ou


1965 (Lilley & Stilwell), mas foi Fuller que em 1989, mais estirpes de microrganismos. Os probióticos
definiu probióticos como microrganismos vivos, mais utilizados na alimentação humana são estir-
componentes de alimentos que produzem efeitos pes de bactérias produtoras de ácido láctico como
benéficos no hospedeiro através da melhoria do os Lactobacillus e as Bifidobacteria que preenchem
balanço microbiano da sua microbiota intestinal. as condições efectivas de probiótico. O Saccharo-
Os probióticos, pelo seu interesse, constituem myces boulardii é outro probiótico também utiliza-
um motivo de investigação actual em varias áreas do com frequência.
312 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

O principal objectivo da utilização dos pro- desagregação dos ácidos biliares o que
bióticos é o de aumentar o número e a actividade reduz os níveis sanguíneos de amónia em
dos microrganismos intestinais com propriedades doentes com hepatopatia.
úteis ao hospedeiro. Assim, as condições a que Os probióticos têm efeitos na prevenção e
deve obedecer um probiótico são: tratamento de várias situações patológicas:
a - resistência à acidez gástrica, à bílis e às
enzimas pancreáticas; Intolerância à lactose e a outros dissacáridos
b - boa adesividade às células da mucosa Será provavelmente uma das utilizações mais
intestinal; antigas dos probióticos, pois desde há muito se
c - boa capacidade de colonização; sabe que o iogurte é muito melhor tolerado que o
d - tolerância imunológica com as bactérias leite pelos indivíduos intolerantes à lactose. Esta
autóctones; melhor tolerância tem sido atribuída à redução do
e - ausência de translocação; conteúdo em lactose no iogurte devido à fermen-
f - modulação do trânsito intestinal ajudando tação pelas bactérias produtoras de ácido láctico, à
a evitar obstipação; actividade lactásica das próprias bactérias, e tam-
g - melhor digestibilidade dos nutrientes bém à menor velocidade de esvaziamento gástrico
aumentando o seu valor nutricional; do iogurte em relação ao leite. Tal como sucede
h - comprovados efeitos benéficos para a saúde. com a intolerância à lactose, a administração de
Os mecanismos de acção dos probióticos não um probiótico como o Saccharomyces boulardii me-
estão totalmente esclarecidos, o que implica ulte- lhora a sintomatologia em indivíduos com défice
rior investigação básica e clínica, actualmente em em sacarase-isomaltase.
desenvolvimento. Os possíveis mecanismos ao
nível intestinal e sistémico são: Diarreia aguda infecciosa
a - actividade antimicrobiana contra as bac- O maior número de estudos com probióticos tem
térias patogénicas: pela inibição do cresci- incidido, quer na prevenção, quer no tratamento
mento bacteriano competindo com o con- da diarreia aguda infecciosa.
sumo de nutrientes; pela síntese de pépti- Em ensaios preventivos verificou-se nas crian-
dos e outras substâncias bactericidas; pelo ças que ingeriam leite enriquecido com a estirpe
impedimento da sua adesividade às célu- de Bifidobacterium lactis, uma diminuição significa-
las da mucosa intestinal, pela inactivação tiva da incidência de diarreia bem como de fezes
de toxinas (E. coli, V cholorae, C difficille). duras, e de dermatite de fraldas.
b - aumento da secreção de mucina com Nos ensaios terapêuticos o conjunto dos resul-
diminuição da permeabilidade intestinal ; tados aponta para diferenças significativas a favor
daí o efeito barreira contra as bactérias dos grupos com probióticos no que respeita a
patogénicas (E.coli). intensidade e duração da diarreia, ao número de
c - acidificação do pH intestinal pela produção dias de internamento e aos dias em que os vírus
de ácidos gordos de cadeia curta e conse- são eliminados pelas fezes, particularmente no
quente menor pH fecal (fezes mais ácidas). caso da diarreia por rotavírus. Entre as possíveis
d - Inibição da actividade enzimática bacteri- explicações encontram-se as propriedades imuno-
ana no cólon e aumento da actividade de lógicas conferidas pelas estirpes probióticas, a
algumas enzimas intestinais (lactase, mal- redução de produtos de putrefacção e o equilibrio
tase e sacarase); também melhor absorção ecológico da flora intestinal.
de cálcio e ferro evitando a sua utilização Tendo em conta que a diarreia é uma causa
pelas bactérias patogénicas. importante de mortalidade nos países em desen-
e - Imunomodulação do sistema imunitário volvimento, sobretudo em crianças com má-
intestinal com (estímulo da fagocitose con- -nutrição e, nos países desenvolvidos, causa de
tra os agentes patogénicos) e efeito anti- evicção escolar e de hospitalização, os probióticos,
alérgico aos alimentos. pela sua eficácia preventiva e terapêutica, são
f - Melhoria da circulação entero-hepática e da uteis em saúde pública. Em doses muito elevadas,
CAPÍTULO 54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos 313

a diarreia provocada pelo VIH parece beneficiar diminuição da absorção e do transporte do coles-
sua utilização. terol alimentar para o fígado (via quilomicrones)
e, por outro lado, pela desconjugação dos sais bi-
Diarreia associada a antibióticos liares com menor absorção do colesterol pelo
Vários estudos têm comprovado a eficácia dos intestino. A niacina formada pelas bifidobactérias
probióticos na prevenção e no tratamento da diar- reduz o fluxo de ácidos gordos livres que, ao
reia associada a antibioticoterapia. Os mais uti- diminuir a biossíntese da lipoproteína VLDL, con-
lizados têm sido as Bifidobacteria, os Lactobacillus e tribui para a redução dos níveis plasmáticos dos
o Saccharomyces boulardii. triglicéridos.
Além da acção sobre o colesterol, as bifidobac-
Diarreia do viajante térias produzem um conjunto de tripéptidos que
A diarreia do viajante é a doença mais comum foram identificados como efectivos na redução da
durante a visita às regiões tropicais. O efeito preven- angiotensina e, consequentemente, na hipertensão
tivo dos probióticos em tal contexto não está sufi- arterial.
cientemente demonstrado e os estudos são contra- Estes efeitos benéficos de combate aos factores
ditórios. No entanto, alguns ensaios clínicos referem de risco das doenças cardiovasculares levam a
uma redução de incidência da diarreia, variando fomentar a inclusão de alimentos funcionais com
consoante as regiões visitadas e as doses utilizadas. probióticos no regime preventivo.

Síndroma do cólon irritável Outras situações clínicas


Está referida a diminuição de dor abdominal e da Embora com resultados ainda mal definidos, os
diarreia nesta patologia frequente nas consultas probióticos estão a ser utilizados na candidíase
de gastrenterologia. mucocutânea, na fibrose quística, nas infecções
urogenitais e nas vaginites, tendo em conta a sua
Doença inflamatória crónica do intestino acção imunostimulante, inibição da actividade
e outras situações gastrenterológicas enzimática bacteriana e recolonização do tracto
Parece bastante promissor o uso de probióticos, vaginal com lactobacilos.
especialmente de Saccharomyces boulardii e do Quanto à tolerância, uma extensa revisão de
Lactobacillus casei, na doença de Crohn, na colite ensaios com probióticos contendo Lactobacillus,
ulcerosa e na inflamação crónica da bolsa ileal, Bifidobacterium, Streptococcus thermophilus, Saccha-
pela influencia benéfica na microflora intestinal. romyces boulardii não evidencia quaisquer efeitos
Têm sido referidos resultados animadores com indesejáveis. Não estão também referidos quais-
a utilização de probióticos na síndroma do intesti- quer efeitos adversos em lactentes alimentados
no curto e em casos de alergia alimentar, provavel- com fórmulas incorporando probióticos.
mente pela diminuição da permeabilidade intes- Centenas de anos de experiência com o uso de
tinal e da imunomodulação. Está referida a eficácia productos lácteos fermentados e do iogurte ates-
dos probióticos (L. casei e S. boulardii) no tratamen- tam a sua inocuidade. A administração controlada
to e a profilaxia de recidivas da colite pseudomem- de probióticos pode ser muito útil para reduzir o
branosa induzida pelo Clostridium difficile. potencial patogénico da microflora intestinal.
Assim os probióticos pelos seus efeitos na pre-
Dislipidémias e hipertensão arterial venção dos factores de risco e no tratamento de
Uma das propriedades das bifidobactérias é a sua algumas situações patológicas, representam um
influência no metabolismo lipídico. Alguns estu- contributo promissor para a Saúde pela Nutrição.
dos clínicos apresentam como resultado de uti-
lização dos probióticos reduções significativas dos Pré-bióticos
níveis do colesterol total pela diminuição do coles-
terol-LDL, enquanto os níveis de colesterol-HDL Os pré-bióticos são fibras solúveis ou glúcidos
aumentam ligeiramente. O efeito hipocoles- complexos, ingredientes alimentares não dige-
terolemiante das bifidobactérias resulta da ríveis e não metabolizados no intestino delgado
314 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

funcionando como substâncias de escolha para o Os oligossacáridos do leite materno, estimu-


desenvolvimento de um certo número de bac- lando o desenvolvimento de bifidobactérias e lac-
térias endógenas benéficas do intestino, sobretudo tobacilos, modificam as condições do meio intes-
do cólon, particularmente das bifidobactérias e tinal, sobretudo no que diz respeito a colonização
dos lactobacilos. Estimulando o crescimento e a pelas bactérias patogénicas e a permeabilidade da
actividade das bactérias benéficas da microflora mucosa intestinal, o que diminui o risco de
intestinal, os pré-bióticos podem contribuir para infecções e de atopias.
melhorar a saúde do hospedeiro. Estudos duplamente cegos, aleatórios e multi-
Os pré-bióticos mais utilizados nas fórmulas cêntricos (Rigo e col., Schmelze e col., Knoll e col.,
resultam do estudo intensivo dos oligossacáridos Moro e col.) permitiram, a partir de 2000, demon-
do leite materno em lactentes com a flora intes- strar na mistura GOS/FOS as seguintes pro-
tinal em que predominam bifidobactérias e lacto- priedades:
bacilos; tal levou ao desenvolvimento de uma a) efeito bifidogénico rápido e estável com
mistura de fibras solúveis e não digeríveis no aumento significativo no número de bifidobactérias
intestino delgado com oligossacáridos neutros: na flora fecal e diminuição de bactérias putrefacti-
• Galacto-oligossacáridos (oligo-galactose) – vas; efeito selectivo das bactérias benéficas estimu-
GOS – de baixo peso molecular lando o seu crescimento e o desenvolvimento na
• Fruto-oligossacáridos (oligo-frutose) – FOS – microflora intestinal;
de elevado peso molecular b) eficácia nutricional avaliada por antropome-
Estes oligossacáridos têm efeitos comparáveis tria: crescimento similar ao dos lactentes amamen-
a alguns oligossacáridos do leite humano que tados, mesmo nos recém-nascidos pré-termo;
estimulam o desenvolvimento da microflora c) consistência das fezes idêntica à dos lacten-
intestinal bifidogénica. Os glicoconjugados com tes alimentados com leite materno;
proteína têm algumas propriedades semelhantes. d) resistência à hidrólise na saliva e no tracto
(Figura 1) gastrintestinal e hidrólise somente no intestino
O leite materno é muito rico oligossacáridos distal, o que dá origem ao substrato ideal para o
complexos que são o seu componente maioritário desenvolvimento das bifidobactérias dificultando
depois da lactose e dos lípidos, e em quantidades o crescimento da flora patogénica;
similares às das proteínas. Ao contrário, o leite de e) bloqueio da adesividade das bactérias exó-
vaca contém uma quantidade inferior de oligos- genas aos enterócitos e participação nos sistemas
sacáridos complexos, e os seus isómeros são dife- de defesa contra as infecções;
rentes do leite materno. f) regulação da motilidade intestinal, melhoria
de absorção de alguns minerais (Ca, Mg) e dimi-
nuição de enzimas redutoras;
g) oligossacáridos como fonte de monossacári-
dos como a fucose e o ácido siálico, utilizados na
síntese de glicoproteínas e de glicolípidos cere-
brais;
Cadeias glicosídicas, principalmente β (1-4) e β (1-6) de galactose ligadas, com terminal glucose
h) boa tolerância, sem efeitos adversos, parti-
-2 a 7 monómeros cularmente no respeitante ao balanço azotado.
Estes estudos permitiram, nalguns centros de
investigação em nutrição infantil, o desenvolvi-
mento de uma mistura destas fíbras GOS/FOS
como pré-bióticos para enriquecer as fórmulas de
Cadeias glicosídicas β -1, 2 de frutose ligadas com/sem terminal de glucose – 5 a 60
monómeros
continuação para lactentes com 0,8gr/dl de
oligossacáridos (90% de GOS+10% de FOS).
A Comissão Científica dos Alimentos da
FIG. 1
Comissão Europeia aceitou em Dezembro de 2001
Estrutura química de oligossacáridos pré-bióticos. a utilização de GOS/FOS como ingredientes nas
CAPÍTULO 54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos 315

fórmulas de continuação, numa concentração até volvimento daqueles microrganismos bené-


0,8gr/100ml do produto final. ficos da microflora intestinal;
A eficácia pré-biótica está relacionada com a c) se combinar o probiótico e o pré-biótico para
maior ou menor capacidade de estimular o cresci- obter um simbiótico com efeito sinérgico e
mento de estirpes benéficas para a microflora consequente aumento da eficácia das bifi-
intestinal, sobretudo do cólon, em detrimento de dobactérias e dos lactobacilos.
outras potencialmente patogénicas. Os conhecimentos relativos ao mecanismo de
O leite materno contém uma complexa mistu- acção dos probióticos e dos pré-bióticos, embora
ra de mais de 100 oligossacáridos que, além de bastante avançados, são ainda restritos. São
outras funções, servem como substratos para o necessários mais estudos com rigor científico para
desenvolvimento de uma microflora intestinal determinar a sua verdadeira eficácia e segurança.
benéfica pelo alto conteúdo em bifidobactérias. Em suma, a possibilidade de aumentar a eficá-
Quanto à tolerância dos pré-bióticos existem cia dos probióticos pela sua associação aos pre-
diversos estudos que demonstram a inocuidade bióticos parece vantajosa, mas deve ser mais
de oligossacáridos GOS/FOS em doses recomen- averiguada. A suplementação das fórmulas com
dadas e o normal crescimento e desenvolvimento os mesmos tem sido proposta como meio de
de lactentes alimentados com fórmulas com este reconstituição da microflora intestinal e, assim,
tipo de suplemento funcional. recriar o estado ecológico protector do intestino
tanto quanto possivel próximo do dos bebés ali-
Simbióticos mentados ao peito.

A combinação de probióticos e de pré-bióticos BIBLIOGRAFIA


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com valores inferiores nos amamentados.
É unanimemente reconhecida pelos peritos em
nutrição e amplamente recomendada pela OMS, a
alimentação com leite materno de modo exclusivo
nos primeiros 6 meses de vida.
Reitera-se que a alimentação do lactente deve
idealmente iniciar-se com o leite materno logo
desde os primeiros minutos de vida e durante,
pelo menos, o decurso do primeiro ano de vida.
Quando não é possível o aleitamento materno, é
recomendável a utilização de uma fórmula láctea
para lactentes ou de uma fórmula de transição
para a maioria dos lactentes, as quais foram abor-
dadas no capítulo 53. Em situações particulares,
como os casos de alergia às proteínas do leite de
CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida 317

vaca ou de refluxo gastresofágico, estão indicadas – Capacidade gástrica: o volume gástrico vai
fórmulas especiais com uma composição adequa- aumentando progressivamente, desde cerca de 20
da para tais situações. ml nas primeiras semanas de vida, até cerca de
250 ml no final do primeiro ano.
A diversificação alimentar – Maturação enzimática: nos primeiros meses
algumas enzimas importantes para a clivagem de
A partir do 6º mês de vida, não sendo possível macronutrientes não atingem ainda níveis sufi-
suprir de modo adequado todas as necessidades cientes. Tal ocorre com a amilase (ainda que a glu-
em macro e micronutrientes com o leite materno coamilase intestinal possa, em parte, participar na
como alimentação exclusiva, torna-se necessário digestão do amido ou de moléculas intermédias) e
iniciar um plano alimentar com introdução pro- com a tripsina pancreáticas. Também a concen-
gressiva de novos alimentos (começar com peque- tração de sais biliares está diminuída nas primei-
nas porções). O suprimento energético fornecido ras semanas de vida.
pelo leite materno é também claramente insufi- – Protecção imunológica: nos primeiros meses
ciente para a maioria dos lactentes a partir daque- de vida o sistema imunológico intestinal não está
la idade. Torna-se ainda importante o fornecimen- suficientemente desenvolvido, o que permite uma
to de oligoelementos a partir de outras fontes ali- maior permeabilidade à passagem de macromolé-
mentares, apontando-se como exemplo mais rele- culas proteicas com aumento do risco de sensibi-
vante o ferro. lização e ocorrência ulterior de alergias alimenta-
De salientar, no entanto, que o aleitamento res. A diminuição da proteólise intestinal e a defi-
materno a par de alimentação diversificada, pode ciência transitória da produção de IgA secretora são
continuar até aos 12 meses. Entre os 6 meses e 12 factores de maior risco de sensibilização alérgica.
meses, a par da alimentação diversificada, a ali- c) Desenvolvimento psicomotor e neurocompor-
mentação com leite não deve ultrapassar 700 tamental: a aquisição progressiva de determinadas
ml/dia nem ser inferior a 500 ml. competências no primeiro ano de vida permite que
É o período da chamada diversificação ali- a criança se vá adaptando aos alimentos semi-sóli-
mentar – conotado com a noção de alimentação dos e sólidos introduzidos na boca; pelos 4 a 6 meses
não láctea exclusiva – incluindo alimentos não – desaparecido o reflexo de extrusão que “expulsa os
líquidos com características diferentes das do alimentos não líquidos da boca”, a mobilidade
adulto correspondendo a uma programação que, ântero-posterior da língua permite empurrar aque-
não sendo rígida, deve, no entanto, nortear-se por les para a faringe, assim como a deglutição; entre 6 e
alguns princípios*. Esses princípios têm basica- 10 meses – surgem movimentos rítmicos do maxilar
mente a ver com: inferior com tendência para abrir e fechar a boca em
a) Necessidade de suprir o lactente de modo aproximação ou em fuga ao alimento; surgindo
adequado em todos os nutrientes, sem risco, quer movimentos de “mastigação” e o controlo manual e
de certas carências que neste período crítico do ocular, torna-se possível beber líquidos pelo copo;
crescimento e desenvolvimento conduziriam a entre os 10 e 12 meses – a capacidade de agarrar os
alterações irreversíveis a nível físico em diferentes alimentos (em pinça e com a mão) levando-os à boca
domínios comportamentais, psicomotores, senso- permite que, a pouco e pouco vá comendo cada vez
riais e cognitivos, quer de excessos nomea- com “mais autonomia”.
damente energético e proteico, predispondo a d) Maturação progressiva da função renal que
situações de excesso de peso e de obesidade. condiciona também a alimentação do lactente:
b) Necessidade de respeitar limitações mor- – são exemplos de imaturidade renal a inca-
fológicas e maturativas próprias dos primeiros pacidade de manuseamento de sobrecargas de
meses de vida nomeadamente do tracto digestivo. sódio e de concentração renal nas primeiras sema-
São exemplos: nas de vida; desta particularidade decorrem riscos
de ocorrência de desidratação hipernatrémica
* Como sinónimos de diversificação alimentar são frequentemente
empregues outros termos como: desmame, complementar, suplemen- com a utilização de alimentos de elevada osmo-
tar, de transição, weaning, “beikost”, “à-côtés”, solid foods, etc.. laridade.
318 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

e) Necessidade de conhecimento pormenorizado dos 5/6 meses de vida de acordo com as recomen-
da história familiar de determinadas patologias que dações internacionais*. Não há qualquer benefício
poderão condicionar a opção por determinados ali- nutricional em ser iniciada antes dos 5 meses de
mentos, quer quanto à idade indicada para a sua vida sendo vários os riscos do seu início precoce:
introdução, quer quanto à quantidade recomendada. – Interferência com a lactação materna:
É o caso da comprovação de patologia alérgica a. diminuição progressiva da produção de leite
familiar, particularmente nos progenitores e materno.
irmãos, que levam a medidas preventivas defen- b. redução da biodisponibilidade da maioria
didas pelos principais peritos em nutrição da dos macro e micronutrientes do leite materno.
ESPGHAN e da American Academy of Pediatrics – Fornecimento de alimentos com aumento da
(AAP) os quais recomendam: osmolaridade. Os alimentos sólidos têm, no geral,
– Leite materno exclusivo nos primeiros 6 um teor mais elevado em sódio, de que poderá resul-
meses de vida. tar um maior risco de ocorrência de hipernatrémia.
– Fórmula láctea de reduzida alergenicidade – Maior risco de alergia alimentar pelos
na impossibilidade de aleitamento materno. motivos já acima referidos.
– Início da diversificação alimentar após os – Suprimento energético excessivo com risco
primeiros 5/6 meses de vida. de condicionar excesso de peso ou mesmo obesi-
dade, logo desde o primeiro ano de vida.
NB: De acordo com os peritos da AAP, não está – Suprimento proteico excessivo que, para
provado que retardar a introdução de alimentos além da sobrecarga renal, parece ser também um
potencialmente alérgicos como o peixe e o ovo factor que favorece a ocorrência de obesidade.
reduza alergias, quer haja ou não história familiar – Suprimento de componentes desnecessários
de patologia alérgica. ou mesmo prejudiciais em período ainda muito
Outro exemplo em que a história familiar pode vulnerável:
levantar algumas dúvidas relativamente à selecção a. Sacarose, criando desde muito cedo uma
dos alimentos a introduzir é a que se reporta à maior apetência pelos doces, para além do poten-
existência de dislipidémia familiar, ou simples- cial risco cariogénico.
mente ao risco aterosclerótico que o consumo de b. Nitratos, com o risco de condicionar o
alguns alimentos acarreta, particularmente as fontes aparecimento de metemoglobinémia
alimentares de gordura animal. Relativamente a c. Fitatos, com interferência na absorção de
este grupo de patologia importa referir que não está micronutrientes nomeadamente de oligoelemen-
recomendada qualquer manipulação dietética tos, sobretudo ferro, cobre e zinco.
específica, já que os riscos de dietas restritivas são d. Aditivos e contaminantes presentes numa
claramente superiores aos eventuais efeitos benéfi- grande variedade de alimentos utilizados na ali-
cos relativamente à expressão fenotípica da dislipi- mentação do lactente.
demia ou ao risco de desenvolvimento da ateroscle-
rose, particularmente a médio e longo prazo. De A ordem de introdução
acordo com os peritos de nutrição essa manipulação de novos alimentos
deverá ocorrer somente a partir dos 24 a 36 meses
idade, idade a partir da qual se deve proceder ao Não existe base científica para a recomendação no
rastreio das referidas patologias. Assim, durante sentido de se respeitar uma determinada ordem
aquele período não deve haver restrições à ingestão sequencial de introdução de novos alimentos. Há
de gordura, já que os ácidos gordos e o colesterol aspectos que terão naturalmente que ser tidos em
são vitais para o desenvolvimento do sistema ner- conta, sobretudo os relacionados com hábitos
voso central e para o crescimento em geral. regionais ou com características sócio-económicas
e culturais das famílias.
A idade de início
* Segundo AAP, OMS e ESPGHAN, não antes das 17 semanas de vida
Deve, como acima já se sugeriu, ser iniciada a partir e não para além das 26 semanas (~6 meses).
CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida 319

Importa lembrar que os alimentos, de início vários cereais sem ou com glúten, sendo recomen-
fornecidos exclusivamente na forma líquida (re- dada a utilização de farinhas isentas de glúten nos
gime lácteo exclusivo nos primeiros 4/6 meses), primeiros seis meses de vida. Diversos estudos
devem evoluir na textura, que deverá progressiva- demonstraram que a introdução do glúten para
mente passar da cremosa à grumosa e à pastosa, além dos 7 meses de idade está associada a maior
antes dos alimentos fornecidos na forma sólida a risco de diabetes mellitus tipo 1.
partir do 2º ano de vida. Esta evolução é fundamen- Constituem uma fonte energética indispensá-
tal para uma correcta aprendizagem da mastigação, vel numa fase em que se verifica uma actividade
competência que se verifica progressivamente no motora progressiva a qual despende energia.
lactente a partir dos 7/8 meses de vida. Não esti- Fornecem amido, vitaminas, minerais, e ácidos
mular o lactente à transição progressiva da textura gordos essenciais. Estas farinhas são tratadas por
dos alimentos no decurso do segundo semestre de hidrólise térmica e enzimática de modo a facilitar
vida pode levar a grandes dificuldades quanto à a absorção dos seus nutrientes.
aceitação de alimentação sólida e à integração na
alimentação familiar no segundo ano de vida. Frutos
Esta evolução gradual, permitindo que a crian- São fonte importante de vitaminas e de fibras.
ça, habituada a deglutir líquidos, retenha por mais Devem privilegiar-se as frutas frescas e maduras
tempo na boca os alimentos mais consistentes, evitando as potencialmente alergénicas ou as li-
submetendo-os, por isso mais tempo à acção da bertadoras de histamina como os morangos, o kiwi
saliva, amolecendo-os, constitui um passo funda- e o pêssego. Não devem adicionar-se na sua pre-
mental da educação alimentar no que respeita à paração outros alimentos como o mel ou o açúcar.
aprendizagem da mastigação – aprender a masti- Aliás não será de esquecer a regra fundamen-
gar bem e devagar constitui uma atitude funda- tal (respeitando situações especiais): sacarose (e
mental com benefícios para toda a vida. sal) não devem ser acrescentados ao regime ali-
Relativamente ao treino dos sabores e texturas mentar no primeiro ano de vida.
cabe salientar o seguinte: 1 – a sensação gustativa Não parece haver nenhuma vantagem em ini-
para o doce e salgado/amargo é inata, registando- ciar o fornecimento de fruta sob a forma de sumos
se forte preferência para o doce; 2 – a sensação para relativamente à fruta completa. Os 4 principais
o azedo e amargo implicam aprendizagem a partir açúcares nos sumos são a sacarose, a glucose, a
do 5º mês, isto é, os mecanismos inatos de preferên- frutose e o sorbitol com diferentes percentagens
cia alimentar podem ser contrariados à medida que de absorção e em proporções variáveis de fruto
persiste a diversificação alimentar; 3 – a variabili- para fruto. A concentração global de hidratos de
dade do paladar do leite materno facilita a aceitação carbono nos sumos varia de 11 a 16 g/100 ml (0,44
de novos sabores pelo bebé; 4 – a exposição pré- a 0,64 Kcal/ml).
natal e pós-natal a determinado sabor facilita a Importa lembrar que não devem nunca ser uti-
aceitação do referido sabor em alimentos sólidos. lizadas bebidas artificiais de fruta actualmente
Cabe salientar que o comportamento alimentar disponíveis no mercado em múltiplas composi-
tem uma base de programação genética, com ções.
selecção de genes ao longo de milhões de anos. Poderá, em resumo, dizer-se que os sumos não
têm qualquer interesse nutricional no primeiro
Os alimentos a introduzir semestre de vida e não oferecem qualquer van-
tagem relativamente à fruta completa a partir do
Cereais segundo semestre podendo mesmo, se fornecidos
Os cereais enriquecidos em ferro devem ser dados em excesso, condicionar à ocorrência de distúr-
ao lactente até aos 18 – 24 meses, tendo em conta bios da nutrição.
que a ferropenia é também muito prevalente no
segundo ano de vida. Legumes e produtos hortícolas
Os cereais são fornecidos sob a forma de fari- Fornecem particularmente vitaminas, minerais e
nhas, lácteas ou não, constituídas por um ou fibras que facilitam a formação do bolo fecal exer-
320 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Leite de
crescimento
Peixe
Iogurte
Puré de legumes
com peixe (a)
Papa de
fruta

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 meses
Leite materno exclusivo Leite materno
Fórmula láctea Fórmula láctea

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 meses

Farinha de
cereais
Caldo de legumes
com carne (a)
(a)
Carne total ou peixe - 30 - 35 g/dia Gema de ovo (b)
(b) Até 2-3 gemas/semana
Arroz, massa,
leguminosas

FIG. 1
Exemplo de diversificação alimentar no primeiro ano de vida.

cendo uma acção favorável sobre o peristaltismo dade muito superior à do ferro não-hémico
intestinal. São inicialmente dados sob a forma de fornecido pelos cereais, legumes e produtos hortí-
caldos e, posteriormente, sob a forma de purés. colas. A presença de carne ou de peixe numa
Dado que o sabor doce é inato, em princípio não refeição favorece a absorção do ferro não-hémico.
requerendo treino,é importante iniciar-se a esti- O teor de gordura fornecido por estes alimen-
mulação/treino do paladar para sabores não tos de origem animal é qualitativamente variável
doces. Daí a fundamentação segundo alguns de alimento para alimento. As carnes de rumi-
autores, para o início da diversificação com caldo nantes são mais ricas em ácidos gordos saturados
de legumes, isto é, precedendo a farinha de e em ácidos gordos trans. Os peixes são fonte na-
cereais.Os legumes mais utilizados são: batata, tural mais rica de ácidos gordos poli-insaturados
cenoura, abóbora, alho francês, alface, couve bran- da série w3, particularmente de ácido eicosapen-
ca, bróculo e curgete, inicialmente agrupados 2 a 3 tanóico. É suficiente o fornecimento de 30 a 35 gra-
e, depois, 4 a 5, perfazendo o total de ~120 gramas. mas de carne ou peixe por dia, começando-se com
Outros legumes como nabo, nabiça,e beterraba, 10-15 gramas/dia aos 6 meses.
pelo elevado teor de nitrato e fitato deverão ser
reservados para idades de 11-12 meses. NB. – No Ovos
exemplo da Figura 1 considerou-se o início com a Fornecem todos os aminoácidos essenciais. A gor-
farinha de cereais. dura encontra-se na sua quase totalidade na
gema, onde se encontram também as vitaminas
Carnes e peixes lipossolúveis, estando as hidrossolúveis maiori-
A melhor fonte de ferro a partir do segundo tariamente presentes na clara.
semestre de vida é a carne. O ferro apresenta-se na A clara do ovo desencadeia com muito mais
forma de ferro hémico com uma biodisponibili- probabilidade reacções alérgicas do que a ge-
CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida 321

ma, pelo que deve ser iniciada mais tardia- Aspectos práticos
mente, ou seja a partir do primeiro ano de vida
(ou após os dois anos em situações com ante- São enumeradas a seguir algumas regras práticas
cedentes familiares de patologia alérgica). Os em relação com a alimentação diversificada.
ovos devem ser dados cozidos, alternando com 1 – Não deve forçar-se o lactente à ingestão da
carne ou peixe. totalidade do volume da refeição oferecida. É
importante que o lactente controle a ingestão ali-
Iogurtes mentar em função da sua saciedade que pode
Embora se trate um alimento obtido do leite de variar ao longo do dia e dos dias. Regimes hiper-
vaca sem modificação qualitativa, é bem tolerado proteicos e hiperenergéticos são a principal causa
pela diminuição do conteúdo em lactose e pela de excesso de peso e de obesidade logo desde o
hidrólise parcial das suas proteínas; tem, tal como primeiro ano de vida.
o leite completo, um teor elevado em ácidos gor- 2 – Não deve adicionar-se açúcar aos alimentos
dos saturados. (leite, iogurte, etc.) que, para além de criar a ape-
Recomenda-se a sua utilização a partir dos 10 tência pelo doce, tem ainda um indesejável efeito
meses. Estão actualmente disponíveis no mercado cariogénico. Também o mel, qualquer que seja a
iogurtes com uma composição qualitativa mais forma de apresentação, não traz qualquer van-
adequada ao lactente pelo que a sua utilização tagem nutricional podendo mesmo haver alguns
poderá iniciar-se um pouco mais precocemente. riscos, pelo que não deve ser dado, pelo menos no
primeiro ano de vida.
Leguminosas frescas e secas 3 – Proscrita deve ser também a adição de
Têm um teor muito mais elevado em proteínas do edulcorantes como o aspartame. Com efeito, o
que os produtos hortícolas e são também fonte aspartame inclui metanol (10%) para além do
importante de oligoelementos, vitaminas e fibras. ácido aspártico (40%) e fenilalanina (50%). A sua
Podem ser oferecidos na alimentação a partir dos adição pode provocar efeitos indesejáveis alguns
10 meses, mas em pequenas quantidades para evi- dos quais de difícil identificação no lactente.
tar flatulência e favorecer a digestão. 4 – Nunca é de mais repetir: não é necessária
nem desejável a adição de sal aos alimentos; o
Leite de vaca em natureza respectivo teor de sal intrínseco é suficiente para
O leite de vaca em natureza não deverá ser uti- suprir as necessidades diárias em sódio.
lizado no primeiro ano de vida. Com efeito, o leite 5 – A partir do início da alimentação diversifi-
de vaca não fornece os nutrientes de modo ade- cada, os alimentos não líquidos devem ser dados
quado às necessidades da criança nesta faixa à colher. Trata-se duma regra básica da educação
etária: é elevado o seu teor em ácidos gordos sa- alimentar. Para além dos aspectos estritamente
turados e é muito reduzido o conteúdo em ácidos nutricionais, há que atender à estimulação pro-
gordos essenciais. No 2º ano de vida é ainda gressiva com a aquisição de experiências sensori-
prevalente a ferropenia como se referiu, tendo o ais (tácteis, térmicas, gustativas, etc.).
leite de vaca um teor de ferro que, além de baixo, 6 – Por outro lado, para que a digestão dos ali-
é muito pouco biodisponível. mentos sólidos dados (inicialmente farinha de
Determinados estudos demonstraram que, cereais e depois legumes) se realize eficazmente é
com a ingestão de proteína sob a forma de leite de indispensável que os mesmos tenham um contac-
vaca inteiro aos 9-12 meses de idade, se verificou to relativamente prolongado com a saliva e maior
correlação positiva entre o peso e o factor de permanência na boca. Inversamente, a maior rapi-
crescimento insulin-like growth factor I /IGF-I aos dez com que os alimentos passam pela boca quan-
12 meses, o que comporta incremento do risco de do administrados por biberão, impede a sua mis-
obesidade. tura homogénea com a saliva, comprometendo,
Exemplifica-se na Figura 1, um plano de diver- por isso, a digestão.
sificação alimentar no decurso do primeiro ano de 7 – Refira-se que é possível verificar um com-
vida. (consultar capítulo 53). portamento de sensibilidade ao sódio desde a
322 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

primeira infância o que aumenta o risco de valores fontes alimentares utilizadas na composição da
elevados de pressão arterial logo desde os alimentação diversificada.
primeiros anos de vida.
8 – Sublinhe-se a este respeito que os alimentos Cereais
enlatados podem conter grandes quantidades de (composição por 100 g)
açúcar e de sal, para além de outros conservantes,
devendo, por isso, estar proscritos na alimentação Arroz Trigo Soja Milho
do lactente. O suprimento em fibras não deve ser Proteínas (g) 7,3 12,6 36,8 8,3
preocupação durante o primeiro ano de vida. Glúcidos (g) 85,8 68,5 23,5 75,3
9 – Apenas a partir dos 2 anos de vida se
recomenda um suprimento mínimo de fibra Em regra o valor calórico por 100 gramas é cerca
equivalente à idade mais 5 gramas/dia. Sugerem- de 400 kcal. A sua constituição é sobretudo à base
-se como limites de segurança para a criança, os de glúcidos, polissacáridos, amido e pequenas
valores de 5 a 10 gramas/dia. quantidades de proteínas vegetais, ácidos gordos
10 – Uma oferta variada de alimentos é outra essenciais, minerais e vitaminas do complexo B.
atitude que contribui para o estabelecimento de
bons hábitos alimentares em etapas posteriores da Cereais manipulados
vida; de notar que a monotonia do regime (composição por 100 g)
favorece a anorexia.
11 – Uma referência importante relativamente Massa Pão Pão
à consistência dos alimentos sólidos (legumes, branco de mistura
carne e peixe, etc.) e às sensações tácteis e gustati-
vas que os mesmos despertam. Tais alimentos Proteínas (g) 8,7 6,3 6,5
devem ser dados de forma progressivamente Energia (kCal) 358 246 278
menos fraccionada e mais consistente; desaconse- Cálcio (mg) 7 110 100
lha-se, por isso, a utilização por tempo muito pro-
longado de máquinas trituradoras que transfor- Frutos
mam os alimentos sólidos em semi-líquidos ou (composição por 100 g)
cremosos muito fluidos; passagem progressiva da
trituradora eléctrica para o clássico “passe-vite” Maçã Pera Banana Laranja
manual. Vitamina C (mg) 14 6 11 54
12 – É importante garantir que a alimentação Fibra (g) 1,6 2,2 1,1 1,2
diversificada forneça densidade energética ade- As papas de frutas de preparação caseira têm
quada com VCT mínimo de 25% e boas fontes de um valor calórico aproximado de 120 kcal/100 gra-
ferro, proteínas e zinco. mas; salienta-se que o valor calórico dos preparados
13 – Não deverá igualmente ser esquecida a comerciais (boiões) é cerca de 220 kcal/100 ml.
componente social dos actos alimentares e das
refeições; idealmente a criança deverá (deveria, na Legumes/hortaliças
medida do possível) ter as suas refeições con- (composição por 100 g)
vivendo com a família. Em geral as hortaliças e verduras (cenoura, batata,
14 – Com o início da diversificação alimentar abóbora, alface) têm um baixo valor calórico
deve oferecer-se água extra (~400-600 mL/dia) ao –cerca de 40 a 80 kcal/100 gramas, sendo fonte
longo do dia (não outra bebida), salientando-se importante de minerais, oligoelementos, vitami-
que os chás de ervas interferem na absorção de nas, alto conteúdo em celulose e variável de
minerais e na motilidade intestinal. fibras.

Fontes alimentares Carne, peixe e ovo


(composição por 100 g)
Especifica-se, a seguir, a composição de algumas Relativamente a estes alimentos salienta-se a com-
CAPÍTULO 55 Alimentação diversificada no primeiro ano de vida 323

posição em ferro (respectivamente em mg/100 de regimes alimentares aplicáveis a crianças


gramas) das seguintes variedades: saudáveis até ao 1 ano de idade.

Frango Vaca Porco Plano de refeições


Ferro (mg) 0,7 1 0,8
Coelho Pescada Linguado • 1.º Trimestre
Ferro (mg) 1,7 1,0 0,6 Refeições de leite:
– Materno (n.º variável) ou
A carne e o peixe contêm cerca de 15-20% de – Fórmula: 6 biberões
proteínas/100 gramas e, entre 5-10% de gordu-
ra/100 gramas. • 2.º e 3.º Trimestre
Um ovo de 60 gramas fornece cerca de 80 kcal Refeições de leite:
e a mesma quantidade de proteínas que 10 gramas – Materno (n.º variável) ou
de carne ou peixe. – Fórmula: 3 biberões
Alimentos sólidos:
Leguminosas – Farinha / cereais: 1
(composição por 100 g) – Refeição diversificada (caldo de legumes): 1
Quanto a estes alimentos (fornecendo cerca de 8- – Introduzir fruta a partir dos 6 meses
16 gramas de proteínas/100 gramas) salienta-se a
composição em ferro, cálcio, magnésio, fósforo e • 4.º Trimestre
fibra das seguintes variedades: Refeições de leite:
– Fórmula: 1 biberão
Ervilha Feijão Lentilha Grão Alimentos sólidos:
Ferro (mg) 1,5 6 3,5 1,2 – Farinha de cereais: 1
Cálcio (mg) 19 89 22 0,4 – Refeição diversificada com sobremesa de fruta: 2
Magnésio (mg) 29 150 34 – Nota: Tratando-se de alimentação com fórmu-
Fósforo (mg) 130 360 130 – la/leite, o nº de biberões pode variar (± 1) em fun-
Fibra (g) 4,5 10 3,8 2,5 ção do volume de leite distribuído pelo número de
biberões/dia.
O Quadro 1 exemplifica um esquema alimentar
Produtos lácteos diário para criança de 6-7 meses.
(composição por 100 g) Nesta refeição tipo os legumes podem ser cozi-
dos no vapor empregando um utensílio apropria-
Iogurte Leite Queijo do ou um simples passador de rede que se coloca
inteiro numa caçarola com água fervente. No passador ,
Proteínas (g) 3,2 30 30 que não deve mergulhar na água, colocam-se os
Glúcidos (g) 4,3 4,6 0,2 legumes que devem ser cozidos tapados. Depois
Lípidos (g) 3,2 3,0 14 de cozidos, os legumes passam-se na trituradora
Cálcio (mg) 125 126 850 manual ou eléctrica.
A refeição designada por “◊ Fruta” poderá ser
Leites (valor energético) dada duas vezes por dia, a seguir a cada uma das
sopas, em função do apetite e características da

Leite (fórmula padrão): 500 ml ◊ 335 Kcal criança.
Neste esquema a que corresponde o valor

Leite materno: 500 ml ◊ 335 - 370 Kcal calórico total (VCT) de 696 kcal/dia para o peso ~
7.700 gramas <> 93 kcal/kg/dia, as percentagens

Leite de vaca em natureza: ◊ 300 - 438 Kcal de VC estão assim distribuídas: Glúcidos ~64%;
Proteínas ~11%; Lípidos~ 25%.
Seguidamente são referidos exemplos práticos As quantidades dos ingredientes destas
324 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Exemplo de esquema alimentar diário para criança de 6 –7 meses

Proteínas (g) Gorduras (g) Hidratos de Carbono (g)


◊ Fórmula/Leite de transição 8,9 12,2 31,8
a 15% (2 x 200 ml)
◊ Farinha não láctea (*) 3,6 2,7 41,0
pó de farinha: 40 g 2,0 0,6 35,6
leite de transição: 2 medidas 1,6 2,1 5,4
Água: 200 ml
◊ Caldo de legumes(2x 200 ml) (“) 6,9 5,0 29,7
Cenoura: 50 g 0,3 – 3,2
Cebola: 50 g 0,5 0,1 1,9
Batata: 120 g 3,0 – 24,0
Hortaliça: 30 g 1,0 0,3 0,6
Carne ou peixe: 10 g (#) 2,1 0,6 –
Azeite cru (no fim da cozedura) – 4,0 –
(1 colher das de sobremesa)
◊ Fruta: 60 g 0,4 – 8,0
Total: 19,6 19,6 110,2

(*) A partir dos 10 meses a refeição de cereais poderá ser substituída por 1 iogurte natural, sem açúcar; g= gramas; (“) A designação de caldo ou puré de legumes relaciona-se com a consistên-
cia da refeição diversificada em função do volume de água utilizado; (# Carne: depois dos 6-7 meses, peixe depois dos 7-8 meses com incremento progressivo até 30-35 gramas/dia – fase de 2
refeições diversificadas com carne ou peixe, por dia)

refeições são pesadas somente quando se realizam prevê-se que se ofereça água por copo à criança,
os primeiros cozinhados.A prática e a utilização alternando com as colheres que vão sendo dadas.
de referências várias, como colheres,chávenas,
etc., dispensam depois tais pesagens. 2 – Puré de feijão (com carne ou peixe)
– carne –25 gramas; ou peixe-30 gramas
Como exemplo de refeição diversificada inclin- – massa /estrelinha- 20 gramas
do leguminosas secas (grão ou feijão ou ervilha ou – feijão -35 gramas
lentilha) mais consistente que o caldo ou sopa de – cebola-30 gramas
legumes (tipo puré) a introduzir cerca dos 10 meses – azeite (no fim da confecção) - 5 gramas
para substituir uma das duas sopas de legumes – água q.b.p. para se obter um volume final de 250 cc.
mencionadas no esquema anterior, são descritas
duas variedades de puré de leguminosas secas: A relação calórica/peso nesta refeição/tipo é:
1cc./ 1 kcal.
1 – Puré de lentilhas Como pormenor da confecção dos “purés de
– gema de ovo –1 leguminosas secas”, estas deverão ser postas de
– massa/estrelinha- 15 gramas molho de água desde a véspera para uma correc-
– lentilhas-35 gramas ta lavagem; depois desta operação as lentilhas
– cebola-30 gramas levam-se ao lume com os restantes ingredientes e
– tomate-40 gramas com nova água.
– azeite (no fim da confecção) - 5 gramas
– água q.b.p. para se obter um volume final de 250 BIBLIOGRAFIA
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Karger/Nestlé Nutrition Institute, 2008 natural que as necessidades nutricionais da crian-
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Williams CL, Bollella M, Wynder EL. A new recommendation São definidos alguns princípios a seguir para uma
for dietary fiber in childhood.Pediatrics 1995; 96: 985-958 alimentação saudável, com especial incidência
para o período após os 1-2 anos de vida em que a
criança passa progressivamente a estar integrada
no regime familiar:
1. Suprimento de gorduras não ultrapassando
~30% do valor calórico total (VCT) com um teor
de gorduras saturadas inferior a 10% do VCT,
suprimento de colesterol não excedendo 300
mg/dia ácidos gordos poli-insaturados (7-8% do
VCT), e ácidos gordos mono-insaturados (12-13%
do VCT). Utilização de óleos vegetais em vez de
326 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

gordura de origem animal (privilegiando, desig- produtos como recompensa ou entretenimento,


nadamente o azeite “em natureza, cru, não aque- quer a sua proibição absoluta, em favor de uma
cido” e nunca óleo de palma nem óleo de coco). As diminuição escalonada sob pena de fracasso tendo
crianças com menos de 2 anos são, como foi dito em conta o fácil acesso e o “poder” da publicidade.
excluídas, destas recomendações específicas dado
que as gorduras constituem uma fonte importante Promoção de um bom pequeno almoço
de energia para o regime alimentar. 1. O dia deve ser iniciado com um pequeno al-
2. Consumo diário de frutas e verduras, moço garantindo um suporte nutricional adequa-
aumentando-o progressivamente; a partir dos 2 do em quantidade e qualidade. As principais van-
anos o consumo de fibras. tagens são, por um lado, melhorar o rendimento
3. Consumo de lácteos ou derivados: 500 a 750 físico e intelectual com repercussão positiva no
ml diários, em função da idade. Refira- se que trabalho escolar e, por outro, diminuir a probabi-
depois do primeiro ano de vida o leite de vaca lidade de consumo de “snacks” prevenindo a
inteiro dá um contributo importante ao regime ali- obesidade.
mentar da maioria das crianças. 2. É de realçar que a omissão do pequeno
4. Fomentar o consumo de carne magra branca almoço interfere nos processos cognitivo e de
(por ex. frango sem pele), peixe, evitando a inges- aprendizagem, sobretudo nas crianças conside-
tão de enchidos. radas de risco nutricional.
5. Incrementar a ingestão de alimentos ricos 3. Esta refeição deve conter hidratos de car-
em hidratos de carbono complexos e com resídu- bono complexos em detrimento dos alimentos
os como arroz, cereais, farinha de milho, reduzin- ricos em gorduras. Aconselha- se a tríade de gru-
do, por outro lado, o consumo de açúcares refina- pos de alimentos composta respectivamente por
dos (máximo de sacarose: 20-30 gramas, em fun- lácteos (leite, iogurte), cereais ou pão, e frutas frescas
ção da idade). com o objectivo de se alcançar, com tal suprimen-
6. Consumo de sal (3-5 gramas/dia) e, caso to, 20-25% do VCT diário.
possível, eliminá-lo do regime alimentar. 4. É igualmente desejável que tal refeição não
7. Promover um regime variado ao longo do seja rápida, dedicando-lhe entre 15-20 minutos e
dia incluindo alimentos de todos os grupos e um seja realizada em ambiente calmo, com a criança
máximo de três ovos por semana. sentada à mesa com a família.
8. Às refeições utilizar água em detrimento de 5. Torna-se evidente que todas as acções de
sumos não naturais. educação alimentar dirigidas à criança serão mais
9. Realizar quatro ou cinco refeições diárias eficazes se igualmente forem praticadas pelos
incluindo uma a meio da manhã e uma a meio da restantes membros do agregado familiar.
tarde (intercalares), se possível à base de fruta
10. Evitar comer entre as refeições. A merenda
11. Estimular que a criança coma por si só, Nesta refeição intercalar a meio da tarde são
habituando- a a normas de higiene. desaconselhadas igualmente bebidas derivadas da
12. Estimular a actividade física, (designada- cola, sumos não naturais ou “snacks”. Haverá que
mente evitando o sedentarismo, tipificado, por evitar os alimentos hipercalóricos e com ácidos gor-
exemplo pelo número excessivo de horas à frente dos saturados (certas margarinas, pastelaria indus-
da televisão ou do computador a jogar e a comer trial e enchidos, etc.) procurando que se realize a
snacks ou sumos hipercalóricos). uma hora que não produza saciedade para garantir
13. Estabelecer um equilíbrio entre o supri- a não interferência com a refeição seguinte (o jantar).
mento alimentar e o consumo energético para
garantir um peso saudável. Exemplo de ementa
14. Suprimir o consumo de bebidas de cola, com (criança de 1-2 anos)
edulcorantes, de guloseimas ou de bolos de paste-
laria em geral confeccionados à base de gorduras Discrimina-se, a seguir, um exemplo de regime
saturadas, evitando quer a estratégia de utilizar tais alimentar a realizar num dia para uma criança de
CAPÍTULO 56 Alimentação após o primeiro ano de vida incluindo as idades pré-escolar, escolar e adolescência 327

1-2 anos concretizando, na prática, alguns dos – cor de tijolo → frutos


princípios gerais anteriormente mencionados. – cor azul → leite e derivados
– cor roxa → carne e leguminosas secas
Pequeno almoço – cor amarela → gorduras
– 1 prato com leite gordo /leite de continuação
(80-100 c.c.+cereais (± 100 gramas) ou 1 ovo cozi- A imagem “Pirâmide” pretende significar que
do não existe um só guia alimentar para todos os
– 1 copo de sumo de fruta natural (100-120 c.c.) ou indivíduos; efectivamente as necessidades em
banana média ou 2-3 morangos grandes (ou nutrientes variam conforme a idade, sexo, peso,
outra fruta). altura e tipo de actividade física.
Cada indivíduo pode, assim, aceder à sua
Refeição intercalar (a meio da manhã ) pirâmide através do sítio “my pyramid.gov”.
– Fatia de pão torrado ou 1 papo-seco (de prefe- Este programa permite planear um esquema
rência de pão escuro) com queijo fresco (5 gra- alimentar adaptado a cada caso/pessoa no que
mas) ou manteiga de girassol sem sal (5 gramas) respeita aos nutrientes atrás discriminados.
ou Tendo em consideração a realidade actual da
– 1 sumo de fruta natural (100-120 c.c.). “fast-food” e os períodos em que a criança e jovem
estão fora de casa, a ingestão de alimentos do
Almoço referido tipo não deverá verificar-se mais de 2
– 1 prato de sopa de legumes (100-120 c.c.); vezes/semana.
– 1 prato à base de arroz ou massa ou batata ~ 200
gramas, incluindo legumes verdes, reforçado Alimentação na adolescência
com: peixe; ou carne (40-50 gramas/refeição); ou
ovo cozido, este último até 3 vezes/semana Na adolescência (~11 -18 anos) as necessidades
– 1/2 a 1 peça de fruta ralada (natural ou cozida) nutricionais têm em consideração as característi-
sem açúcar. cas especiais de crescimento rápido e o tipo de
actividade física desenvolvida, verificando-se
Merenda (a meio da tarde) maior vulnerabilidade para carências em ferro e
– 1/2 a 1 papo-seco com queijo freco ou manteiga cálcio. Com efeito, durante a adolescência há
de girassol sem sal ou com fiambre magro e 1 incremento da massa esquelética (cerca de 45%); e,
copo de leite idem ou 1 iogurte natural com 1 igualmente, incremento das necessidades em ferro
peça de fruta ou 1 chávena de leite idem com 4- relacionadas com a maturação sexual, e a men-
5 colheres de cereais e 1 peça de fruta. struação no sexo feminino.
As DRI para o cálcio são ~1.300 mg/dia, e para o
Jantar ferro ~15 mg/dia no sexo feminino, e ~11 mg/dia
– Semelhante ao almoço, variando os ingredientes no sexo masculino.
e o tipo de sopa. Salienta-se que o zinco é fundamental para o
crescimento e maturação sexual(DRI ~7-9,5
A partir da idade dos 6 anos é desejável que a mg/dia). Relativamente às vitaminas hánecessi-
criança, com o apoio da família, receba ensina- dades aumentadas de vitaminas B6, B12, D, A, e C,
mentos tomando como exemplo chamada com as respectivas DRI:1-1,5 mg/dia; 1,2-1,5
“Pirâmide dos alimentos”(Figura 1). mcg/dia; 7,5 mcg/dia; 600-900 mg de equivalente
Com esta simbologia é apresentada uma pirâ- de retinol; 35-35-40 mg/dia.
mide com diversas faces, com “escadas” da base De acordo com o Food Nutrition Board-National
para o vértice cada uma com a sua cor, sendo que Research Council dos Estados Unidos, as RDA
cada cor representa determinado tipo de nutri- (Recommended Dietary Allowances) apontam para
ente: os seguintes valores:
– cor de laranja → cereais 11-14 anos
– cor verde → vegetais (peso médio: 45 kg)
328 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ÁGUA

GORDURA, ÓLEOS E DOCES


Alimentos altamente calóricos; Podem levar à
obesidade, doença cardiovascular e outras
patologias
Use moderadamente

CARNE, PEIXE, OVOS, LEG.


LEITE, IOGURTE E QUEIJO
SECAS E FRUTOS SECOS
Importante fonte de proteínas e
Importante fonte de proteínas e
minerais
minerais
2 - 3 porções
2 - 3 porções

VEGETAIS
FRUTAS
Alimentos reguladores
Fonte de vitaminas, Alimentos reguladores
minerais e fibras Fonte de vitaminas,
3 - 5 porções minerais e fibras
2 - 4 porções

PÃO, ARROZ, CEREAIS E MASSAS ALIMENTÍCIAS


Ricos em hidratos de carbono complexos
importante fonte de energia
6 - 11 porções NB: A água é considerada alimento

FIG. 1
Pirâmide alimentar.

– proteínas: 45g–46 g Pequeno almoço-20 %


– kcal: 2200-2700 Refeição intercalar da manhã-10%
(sexo F - sexo M) Almoço-30%
15-18 anos Merenda ou refeição intercalar da tarde-10%
(peso médio: 55-65 kg) Jantar-30%.
– proteínas: 46-56 g Poderá realizar-se eventualmente uma sexta
– kcal: 2100-2800 refeição à noite(ceia constando de leite e 1-2
(sexo F - sexo M) bolachas sem açúcar), devendo a percentagem do
VCT atribuída ao jantar ser distribuída por este e
O suprimento de hidratos de carbono deverá cor- pela ceia.
responder a 50% do valor calórico total (VCT); de-
duzindo-se o suprimento energético em proteínas BIBLIOGRAFIA
atrás referido (globalmente entre 45-56 g/dia), atri- American Academy of Pediatrics. Committee on Nutrition.
bui-se às gorduras a restante percentagem do VCT. The Use and Misuse of Fruit Juice in Pediatrics. Pediatrics
Ao longo do dia a ingestão deverá ser dividida 2001; 107: 1210-1213
por cinco refeições com a seguinte repartição do Blankson KL, Thompson AM, Ahrendt DM, et al.Energy
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CAPÍTULO 57 Obesidade 329

57
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New York: Mc Graw-Hill Medical, 2011 alterações físicas, psíquicas e sociais graves, com a
Wharton B. Patterns of Complementary feeding (Weaning) in sua génese na idade pediátrica.
Countries of the European Union: Topics for research. De ressaltar dois factos importantes: uma com-
Pediatrics 2000: 106 (supll): 1273-1274 provada associação de maior risco de obesidade no
Williams CL, Bollella M, Wynder EL. A new recommendation adulto quando esta ocorre em idade pediátrica
for dietary fiber in childhood.Pediatrics 1995; 96: 985-958 (aproximadamente 50-75% dos adultos obesos apre-
sentaram obesidade durante aquele período); e os
elevados custos (em Portugal, 260 milhões de euros
em 2001) que a situação só por si acarreta, acrescida
dos elevados e irreversíveis custos pessoais e sociais
inerentes às suas complicações que, cada vez mais,
surgem em idades cada vez mais precoces.
É, pois, inquestionável a responsabilidade de
quem lida com crianças na educação, na saúde e
na modulação de comportamentos.

Definição

Por definição simples, obesidade é um excesso


patológico de tecido adiposo corporal total, capaz
de condicionar doença e reduzir a esperança de
vida (OMS,2000). Em idade pediátrica a distinção
entre excesso de peso e obesidade é ainda uma
questão em debate devido às características dinâ-
micas do processo de crescimento e maturação.
Esta dificuldade é acrescida por outras duas
razões: a inexistência de um método simples, de
330 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

baixo custo, confiável e reprodutível, de quantifi- Aspectos epidemiológicos


cação da gordura corporal total, e a inexistência de
padrões de referência para valores de massa gorda A obesidade atingiu proporções epidémicas em
durante o crescimento que permitam identificar todo o mundo registando-se, sobretudo nas últimas
indivíduos consideradas de risco, moderado ou duas décadas, um aumento transversal da sua pre-
elevado, de patologia cardiovascular ou metabóli- valência a nível mundial. Em 2009, segundo a
ca na infância e adolescência. OMS, em cerca de 1,6 mil milhões de pessoas veri-
O índice de massa corporal (IMC = peso em Kg ficava-se obesidade. Considerando a idade escolar,
/ estatura2 em metros) foi recentemente recomenda- no mesmo ano eram apontados os seguintes núme-
do pela OMS como um método simples e barato ros: cerca de 155 milhões com excesso de peso e 30-
para o rastreio da obesidade, nomeadamente da 40 milhões com obesidade; e, abaixo dos 5 anos,
obesidade pediátrica, devido à sua forte corre- cerca de 22 milhões com escesso de peso. Também
lação com a magnitude da adiposidade, quer em a OMS aponta para o aumento de 4,2% para 6,7%
crianças/ adolescentes, quer em adultos. O valor na prevalência da de excesso de peso e obesidade
do IMC em idade pediátrica deve ser considerado ao nível mundial entre 1990 e 2010, sendo esperado
em curvas de percentis ou de Z-score e em função um valor de 9,1% em 2020. Embora a prevalência
do sexo e da idade, tendo como base tabelas de seja mais elevada na América do Norte e Europa, a
referência** (Capítulo 19). Valores de IMC superi- emergência pandémica da obesidade não se regista
ores ou iguais ao percentil 85 (Z-score de 1,01) e apenas nos países desenvolvidos, pois em África é
inferiores ao 95 (Z-score de 1,62) definem uma estimado um aumento da prevalência de 8,5%, em
situação de excesso de peso / risco de obesidade, 2010 para 12,7%, em 2020.
enquanto valores superiores ou iguais ao per- Pela primeira vez na história do Homem, a sua
centil 95 definem uma situação de obesidade. prevalência excedeu a da desnutrição, tendo
Valores superiores ao percentil 99 (Z-score de adquirido o estatuto da patologia do foro nutricio-
2,85) traduzem uma situação de obesidade grave. nal mais frequente, não só em países tecnologica-
A maior adequação ao padrão de crescimento mente desenvolvidos como em países em desen-
saudável traduzida pelas novas curvas da OMS volvimento. Trata-se da chamada transição nutri-
leva à recomendação da sua utilização por rotina cional à escala mundial. Um dos exemplos mais
na vigilância do estado nutricional da criança e extremos reporta-se aos Estados Unidos onde,
adolescente. Segundo as recomendações da entre a avaliação de 1976-1980 (National Health and
International Obesity Task Force (IOTF) – Childhood Nutrition Examination Survey IV) e a recentemente
Obesity Group, deverão ser adoptados as tabelas efectuada entre 1999-2002, a prevalência de exces-
de Cole por duas razões: para se comparar taxas so de peso duplicou em crianças (6-11 anos) e tri-
de prevalência entre diferentes países; e para rela- plicou nos adolescentes (12-17 anos). No que
cionar os valores do percentil de IMC 85 e 95 respeita à obesidade, cerca de 14-15% dos adoles-
respectivamente com os valores 25 e 29,9 do adul- centes de 15 anos nos EUA são obesos, registando-
to possibilitando extrapolar, já na idade pediátri- se uma predisposição particularmente elevada
ca, os riscos futuros da obesidade na idade adulta. entre os afro-americanos, hispânicos e índios Pima.
Recorde-se, a propósito, os critérios utilizados De acordo com estudos efectuados em vários paí-
para a definição de excesso de peso e de obesi- ses europeus verificou-se maior prevalência de
dade com base no IMC, no adulto: excesso de peso nos países do ocidente e sul, atin-
– Execesso de peso: 25 - 29,9 gindo valores entre 20-40% nos países que rodeiam
– Obesidade: ≥ 30 a bacia do Mediterrâneo, enquanto os do norte
apresentam taxas na ordem dos 10-20%.
Relativamente a Portugal, salientam-se dois
* Acantose é o espessamento da camada de Malpighi da epiderme, que
se observa também em afecções como por ex. as verrugas. estudos transversais na região norte do país (anos
** O z-score (ZS) de uma variável é calculado através da razão entre: o 1999-2000) na idade pediátrica: – um, referindo
respectivo valor determinado no indivíduo (VI), subtraído do valor de
referência (VR), e o desvio padrão (DP) da população de referência. prevalência de obesidade (8-13 anos) oscilando
Fórmula: ZS=[(VI-VR)/DP]. entre 4 e 11%; – e outro, apontando para uma
CAPÍTULO 57 Obesidade 331

prevalência de 21% de excesso de peso, e de 6% sidade, na dependência de causa diagnosticada.


quanto a obesidade, valores muito semelhantes Classicamente são consideradas as seguintes causas:
aos verificados num estudo americano. Em 2008- • sindrómicas e ou genéticas (especificadas
2009 decorreram os dois primeiros estudos adiante);
nacionais de prevalência da obesidade pediátrica: • hormonais (défice de hormona do cresci-
um estudo de vigilância da OMS entre os 6 e 10 mento, hipotiroidismo, afecção hipotalâmi-
anos (Childhood Obesity Surveillance Iniciative- ca, síndroma de Cushing, etc.);
COSI), e um outro da Sociedade Portuguesa para • neurológicas (sequelas neurológicas de
os Estudo da Obesidade-SPEO abrangendo os gru- etiopatogénese variada);
pos etários 2-5 anos e 11-15 anos, não publicado. • farmacológicas ou iatrogénicas (antidepres-
Neste contexto são apontados valores de prevalên- sivos tricíclicos, antiepilépticos, corticóides).
cia de excesso de peso de 30% e de obesidade de
cerca de 12%.Os Açores (40,3%), a Madeira (30,2%) O Quadro 1 sintetiza os critérios clínicos que
e a região norte do continente(30,2%) são as zonas suportam a suspeição diagnóstica da etiologia da
de maior prevalência, enquanto no Algarve se ver- obesidade em idade pediátrica.
ificou a menor prevalência (16,5%).
Regista-se uma forte estabilidade (ou tendência Sistema neuroendócrino
para se manter a situação) entre a ocorrência de O conteúdo em energia do corpo humano está sob
obesidade na infância e na idade adulta. Sendo con- controlo de uma série de sistemas reguladores. Os
hecida a elevada comorbilidade associada à obesi- referidos sistemas produzem diferentes sinais,
dade na idade adulta, é de referir que o aumento da sendo as principais mensagens integradas no
prevalência mundial de obesidade na idade hipotálamo onde o apetite e a saciedade, bem como
pediátrica tem sido também acompanhado de um a actividade do sistema simpático e parassimpático,
aumento das complicações médicas a ela associ- o eixo hipotálamo-hipofisário-tiroideu e outros
adas. Para além dos elevados custos que acarreta sistemas endócrinos são controlados.
esta doença crónica, ela cursa com elevada mortal- Um exemplo da acção destes sinais, neste caso
idade em todas as idades. As estratégias de pre- particular associado ao apetite, é dado pela greli-
venção, a detecção e intervenção precoces e a avali- na. Este péptido produzido no estômago e duode-
ação das tendências de prevalência na população no, com receptores no núcleo arqueado, para além
mundial são imprescindíveis para a redução do
compromisso da saúde das gerações futuras. QUADRO 1 – Classificação da obesidade
pediátrica
Etiopatogénese
Primária Secundária
Obesidade primária e secundária Prevalência 95-97% 3-5%
A obesidade é uma doença heterogénea, classifi- Causa Desequilíbrio do Síndromas
cando-se em primária e secundária. De facto, balanço energético genéticas
parecerá mais correcto falar em obesidades do que Lesões do SNC
em obesidade. Doenças endócrinas
A obesidade primária significa a ausência de qual- Fármacos
quer causa evidente ou diagnosticável que justi- Critérios de Estatura igual Baixa estatura
fique a sua ocorrência. Actualmente admite-se que diagnóstico ou superior à média Disfunção
esteja na dependência da expressão individual de Maturação sexual cognitiva
uma predisposição genética, necessariamente na adequada ou precoce Ausência de
presença de factores ambientais desencadeantes. Desenvolvimento história familiar
Como sinónimos, empregam-se também os termos normal de obesidade
de obesidade exógena ou nutricional. História familiar
A obesidade secundária, por outro lado, diz res- de obesidade
peito à acumulação excessiva e patológica de adipo-
332 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

de estimular a secreção da hormona do crescimen- Genética


to (GH), estimula igualmente o apetite e a ingestão No que respeita à base genética da obesidade
de alimentos. Outro efeito da grelina é a interfe- humana importa referir que existem 3 grandes
rência na utilização energética, levando a ganho grupos de causas genéticas, com implicações na
ponderal por redução da utilização da gordura, o prevenção e na terapêutica. (ver atrás-classificação
que traduz perda de adequada contra-regulação. da obesidade).
No que respeita aos sistemas reguladores, cabe – As causas monogénicas (<1% de todos os
referir os sinais reguladores do sistema digestivo casos de obesidade) relacionam-se com as formas
(isto é, a quantidade e qualidade dos nutrientes no raras de obesidade na dependência de um único
estômago) e os sinais gerados durante a metabo- gene, estando actualmente identificados 6 genes
lização dos alimentos, os quais são responsáveis responsáveis a que correspondem outras tantas
pela informação veiculada ao SNC, regulando entidades clínicas.
assim a fome e a saciedade. Por exemplo, está Trata-se de formas de obesidade de expressão
demonstrada uma relação entre distensão gástrica precoce na infância e refractárias a qualquer tipo de
e saciedade. Assim, hormonas gastrintestinais tais abordagem comportamental para controlo do peso.
como a colecistocinina (CCK) e o péptido 1 simi- Entre estas salientam-se duas: – a forma depen-
le glucagom (GLP-1 ou glucagon-like peptide 1) li- dente de mutações no receptor do gene da
bertados na dependência da distensão gástrica são melanocortina 4 (MC4R) afectando cerca de 2-4%
responsáveis por tal regulação. A sensibilidade das crianças com obesidade extrema; e – a forma
aos sinais imediatos da CCK e do GLP-1 é modu- dependente de defeito do receptor da leptina. Como
lada pela leptina, pela insulina e pela grelina. nota importante, cabe salientar que o conhecimento
Quanto aos mecanisos endógenos da regu- destas situações associadas a defeitos de genes únicos
lação do peso cabe salientar as seguintes noções: (monogénicas), embora o raras, permitiram compreender
1) O controlo da ingestão alimentar (apetite e melhor a fisiopatologia das diversas formas de obesidade.
saciedade) verifica-se através dum mecanismo – As causas sindrómicas (~1%) caracterizadas
neuroendócrino de retorno com ponto de partida por alterações mendelianas, podem dividir-se em
no tecido adiposo e tracto gastrintestinal (hor- 3 grupos: autossómicas recessivas (síndromas de
monas) e dirigido ao SNC [núcleo arqueado Alstrom, Bardet Biedl, entre outras), autossómicas
(NA)]; 2) As hormonas gastrintestinais tais como a dominantes (das quais a síndroma de Prader Willi
colecistocinina (CCK), o péptido 1 semelhante ao é a mais comum), e as ligadas aos cromossomas
glucagom e o péptido PYY promovem saciedade, sexuais (X ou Y).
enquanto a grelina estimula o apetite; 3) O tecido – As causa poligénicas, as mais comuns (corres-
adiposo liberta leptina e adiponectina; 4) As hor- pondendo a ~95%). Têm na sua origem interacção
monas actuam ao nível do NA onde existem cen- gene-gene, ou gene-ambiente. É muito difícil iden-
tros receptores relacionados, quer com a estimu- tificar os genes de susceptibilidade, estando actual-
lação, quer com a inibição do apetite. mente identificados e implicados nestas interacções
Com a intervenção de neuropéptidos actuando mais de 450 genes ou regiões cromossómicas. Esta
como mediadores da grelina ao nível do NA, verifi- causa de obesidade é um grande motivo de pre-
cam-se os seguintes mecanismos: a grelina tem ocupação como problema real de saúde pública.
efeito positivo na área da estimulação do apetite do Para além dos genes ditos principais da obesi-
referido NA, enquanto o PYY e a leptina têm efeito dade humana existem muitos genes designados can-
negativo; a CCK e a leptina têm efeito positivo na didatos, isto é, cujas mutações estão associadas a risco
área de inibição do apetite do NA; isto é, a leptina aumentado de fenótipo de obesidade em situação de
actua, de modo diverso nas referidas 2 áreas do NA. ambiente propício. Como exemplo destes últimos,
De modo muito sucinto pode afirmar-se que os citam-se: – da adiponectina (APM1), sendo que os
defeitos genéticos relacionados com as hormonas, níveis de adiponectina plasmática estão inversa-
receptores e ou mediadores implicados neste com- mente correlacionados com o valor do IMC; – do
plexo sistema de regulação neuroendócrina podem receptor adrenérgico 3 (ADRB3), localizado no cro-
conduzir a alterações do apetite e a obesidade. mossoma 8p12-p11, expressando-se primariamente
CAPÍTULO 57 Obesidade 333

no tecido adiposo visceral; – da grelina (GHRL), lactentes alimentados com fórmulas lácteas relati-
sendo que os níveis circulantes de GHRL estão nega- vamente aos alimentados com leite materno.
tivamente correlacionados com o valor do IMC. É possível que a maior secreção de insulina
De referir que a leptina foi a primeira sub- esteja associada a um maior suprimento alimentar
stância, a que corresponde gene específico, reco- em aminoácidos de cadeia ramificada (leucina,
nhecida como um importante regulador do peso isoleucina e valina) que ocorre nos lactentes com
na espécie humana. uma maior ingestão proteica.
Também a acção anabolizante da insulina
Ambiente e factores biológicos poderá ser um factor condicionante do perfil de
Recorda-se a teoria do genótipo poupado (thrifty crescimento e de um maior risco de obesidade nos
genotype) (Capítulo 45) em que se propõe que a lactentes com níveis plasmáticos mais elevados de
genética mais favorável à sobrevivência num ambi- insulina, tendo em conta a sua acção promotora
ente energeticamente pobre e sem possibilidade de da diferenciação de pré-adipócitos em adipócitos.
armazenamento alimentar, pode ser mais tarde Actualmente coloca-se a questão do impacte
responsável por um ganho ponderal e uma acumu- do nível sócio-económico, da raça e do sexo na
lação de gordura corpora, quando “o organismo é predisposição para a ocorrência de obesidade.
confrontado” com um ambiente energeticamente Estudos populacionais revelam que um nível
rico e de “abastança”. Ou seja, admite-se que possa sócio-económico e cultural baixo, minorias raciais
estar na base da obesidade um fenómeno de inadap- e étnicas, e o sexo feminino apresentam maior
tação do organismo em indivíduos selectivamente risco de desenvolvimento de obesidade.
sobreviventes a situação anterior de “fome”(porque No que respeita ao papel da actividade física e
geneticamente poupam de energia). hábitos alimentares, estudos usando sensores de
Este evento fisiopatológico, por sua vez, consub- movimento revelam que crianças que gastam menos
stancia o conceito de programação/programming tempo em actividade física de intensidade modera-
(neste caso, metabólica) em que um estímulo (ou da a vigorosa têm maior risco de se tornarem obesas
situação de estresse) exercido durante um período na infância ou adolescência. A televisão e os jogos de
crítico do desenvolvimento precoce de certo orga- consola contribuiram para maior sedentarismo, para
nismo altera permanentemente a sua anatomofisio- além de induzirem o concomitante consumo de ali-
logia e o seu metabolismo, sendo as consequências mentos e favorecerem escolhas alimentares
observadas em fase mais tardia da vida. impróprias; regista-se uma correlação positiva entre
Assim, a alimentação neonatal e nos primeiros o número de horas em frente da televisão (por vezes
anos de vida parece desempenhar um papel ultrapassando 20 horas por semana) e o valor do
importante no risco de ocorrência de obesidade. A peso, especialmente em adolescentes.
duração do aleitamento materno e o teor de inges- A alteração dos hábitos alimentares na depen-
ta proteica são, entre outros, alguns dos factores dência da oferta publicitária conduz a uma inversão
apontados por alguns autores como, respectiva- da pirâmide alimentar, traduzindo-se numa eleva-
mente protegendo de, ou favorecendo obesidade. da ingesta de açúcar e gordura em alimentos com
Com efeito, lactentes alimentados com fórmu- elevada densidade nutricional. Omitir o pequeno-
las lácteas têm um suprimento energético e pro- almoço, ingerir grandes porções sobretudo ao jan-
teico superior ao registado em lactentes alimenta- tar, consumir regular e excessivamente bebidas
dos exclusivamente com leite materno. De igual doces e carbonatadas, pouco leite ou derivados,
modo os níveis circulantes de IGF-I são também poucos vegetais e frutos, bem como abuso de fast-
superiores nos alimentados com fórmulas lácteas, food, são algumas das modificações dos hábitos ali-
provavelmente na dependência da maior ingestão mentares registadas nas últimas décadas.
de proteínas. É possível que outros factores Admite-se que existam aparentemente períodos
biológicos fornecidos pelo leite tenham também de maior vulnerabilidade à influência do ambiente
um papel importante na produção de IGF-1. na expressão fenotípica de uma predisposição indi-
Verifica-se, por outro lado, que a relação insuli- vidual para a ocorrência de obesidade. Como foi
na/glicose é significativamente superior nos referido, o período pré-natal tem uma importância
334 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

moduladora precoce, não apenas do risco de ocor- provavelmente, uma situação de obesidade primária.
rência de obesidade, mas de patologia degenerati- No que respeita à anamnese haverá que inquirir
va e neoplásica do adulto. Ao longo do processo de sobre a história nutricional (tempo de aleitamento
crescimento regista-se uma correspondência relati- materno, idade de diversificação alimentar, quantifi-
vamente baixa entre a ocorrência de obesidade na cação da ingesta actual em termos energéticos totais e
infância precoce e a obesidade no adulto; por outro de distribuição dos diferentes grupos de nutrientes),
lado, adolescentes obesos apresentam elevado risco actividade física, índice de sedentarismo e existência
de se manterem adultos obesos. Relativamente à de indicadores sugestivos de síndroma de apneia
noção de “tendência de manutenção do problema” obstrutiva do sono tais como roncopatia, sonolência
(termos sinónimos; estabilidade ou “tracking”) diurna ou mau rendimento escolar, entre outros.
(neste caso da obesidade) em períodos ou idades O exame físico deverá incluir de uma forma
diferentes – designadamente, criança → adoles- geral, a observação do hábito externo no sentido
cente → adulto - cabe referir que o IMC é o indi- de detectar situações de suspeita de obesidade se-
cador de adiposidade com maior sensibilidade, cundária, tendo ainda em atenção a existência de
comparativamente às pregas cutâneas e à razão alterações cutâneas sugestivas de síndroma meta-
perímetro da cinta/ perímetro da anca. O ponto bólica (estrias, acantose), de alterações ortopédi-
mínimo atingido pelo IMC, por volta dos 6 anos de cas e do estádio pubertário.
idade, é denominado ressalto adipocitário. Em Finalmente, a avaliação do estado nutricional
regra, a idade em que se regista o ressalto adipoc- deverá incluir, para além da medição do peso e
itário (inicio da subida do IMC a partir do seu valor estatura, o cálculo do IMC, a medição do perímetro
mínimo) é preditiva do IMC do adulto, tendo da cinta da anca, cervical, e ainda, se possível, a com-
vários autores demonstrado que a sua precocidade posição corporal por impedância bioeléctrica (BIO).
constituirá um elevado risco de desenvolvimento Na impossibilidade da realização de impedância
de obesidade na adolescência e idade adulta. bioeléctrica, a utilização do valor da prega cutânea
Genericamente, poderá dizer-se que a capacidade tricipital associado ao do IMC aumenta a sensibi-
de previsão da obesidade do adulto com base na lidade da determinação da percentagem de massa
adiposidade na infância é apenas moderada. gorda; exige, no entanto, experiência do observador
Estudos recentes demonstraram que valores ele- e apresenta uma baixa reprodutibilidade.
vados de leptina e de adiponectina no sangue do O perímetro da cinta ou a relação perímetro da
cordão de RN de mães obesas ou com excesso de cinta/perímetro da anca têm uma forte correlação
peso poderão ter influência no peso na idade adulta. com a deposição intrabdominal de gordura e são
preditivos de risco cardiovascular e de compli-
Diagnóstico cações metabólicas como insulinorresistência, não
apenas no adulto mas também na criança e ado-
Para o diagnóstico é necessário, antes de mais, dis- lescente. Embora não existam muitos dados de
tinguir entre uma situação de obesidade primária ou referência que permitam a sua correcta interpre-
idiopática e as restantes e mais raras situações de tação em populações pediátricas, devem constar
obesidade secundária. Uma anamnese rigorosa da avaliação da criança e adolescente obeso.
inquirindo, designadamente, sobre antecedentes de Ainda, no que respeita à avaliação da gordura
obesidade familiar, o exame físico cuidado e exames corporal total, existem métodos mais específicos e
laboratoriais a ponderar em função das hipóteses for- confiáveis mas cujo custo, dificuldade de realiza-
muladas, orientarão para o diagnóstico (Quadro 1). ção na clínica diária (densitometria óssea de corpo
Na prática poderá dizer-se que uma criança ou inteiro; DXA, RMN) e elevada radiação envolvida
adolescente com uma estatura igual ou superior à (tomografia computadorizada) lhes retiram a jus-
média para o sexo e idade, com antecedentes famil- tificação para uso corrente, tornando-os indicados
iares de obesidade em um ou ambos os progenitores, apenas em casos de excepção.
com um desenvolvimento intelectual adequado e No que respeita aos exames laboratoriais, o perfil
com um exame físico sem particularidades sugesti- lipídico, as funções hepática, renal, tiroideia e adre-
vas de uma situação sindrómica apresentará, muito nal, bem como a glicémia e insulinémia em jejum
CAPÍTULO 57 Obesidade 335

devem constar de uma abordagem inicial. Os dosea- é responsável por mais de 1/5 de novos diagnósti-
mentos da glicose e insulina aos 30 minutos no perío- cos de diabetes em adolescentes. Embora não seja
do pós-prandial (ou em contexto de prova de tol- recomendado o rastreio universal, a Academia
erância oral à glicose) estão indicados em situações Americana de Pediatria e a Associação Americana
de obesidade grave, de suspeita de alterações do de Diabetes recomendam que todos os adolescentes
metabolismo da glicose (acantose) ou ainda em cri- com excesso de peso e que tenham, pelo menos, 2
anças/adolescentes com mais de 10 anos de idade. outros factores de risco, sejam avaliados aos 10
Tal facto prende-se com a não recomendação do uso anos, no início da puberdade e periodicamente cada
de fármacos antes desta idade, o que reduziria a 2 anos; entende-se por factores de risco haver
intervenção de tipo comportamental, independente- antecedentes de DM2 em pais ou avós, pertencer a
mente da existência ou não de comorbilidade. certos grupos rácicos/étnicos (afro-americano, his-
pânico, japonês) ou ainda apresentar sinais associa-
Comorbilidade dos a insulino-resistência tais como hipertensão,
dislipidemia, acantose nigricans* ou síndroma do
A obesidade é uma situação crónica, multissistémica, ovário policístico. A este propósito é importante
reconhecida como um grave problema médico e de referir que a obesidade é a causa mais comum de
saúde pública. O adipócito é uma célula metabolica- resistência à insulina em idade pediátrica.
mente activa; a acção dos seus produtos de síntese é Outra complicação frequentemente observada,
responsável por efeitos estruturais e funcionais já em idade pediátrica, é a doença cardíaca e a hi-
importantes dos quais ressaltam diversas patologias pertensão arterial. A obesidade produz uma série
em íntima dependência da obesidade. Tais patolo- de alterações estruturais cardíacas bem como alter-
gias tipificando o conceito de comorbilidade, são de ações hemodinâmicas; com efeito, é actualmente
cariz comportamental, metabólico (perfis glicémico e considerada a principal causa de hipertensão em
lipídico), cardiovascular, e respiratório (asma, SAOS). idade pediátrica, registando-se uma forte corre-
Estudos recentes nos EUA identificaram elevada lação positiva em crianças e adolescentes entre a
prevalência de deficiência em vitamina D em crian- pressão arterial sistólica e IMC, gordura sub-
ças obesas ou com excesso de peso. cutânea avaliada por pregas e relação cinta/anca.
Em idade pediátrica não é clara a associação Factores genéticos, metabólicos e hormonais
entre a magnitude do IMC e a comorbilidade tais como resistência à insulina, a elevação dos
observada. No entanto, vários estudos têm recen- níveis séricos de aldosterona, a sensibilidade ao sal
temente demonstrado um risco crescente de ocor- e alterações dos níveis de leptina poderão também
rência de patologia cardiovascular e de alterações estar relacionados com a hipertensão da obesidade.
do metabolismo da glicose se os valores de IMC Um perfil lipídico desfavorável, caracterizado
forem superiores ao percentil 85. por valores elevados de colesterol total, triglicéridos
Considerando as complicações associadas à e apolipoproteína B, e valores baixos de colesterol-
obesidade em idade pediátrica, a alterações psicos- HDL, é frequentemente observado, já em idade
sociais e comportamentais são provavelmente as pediátrica, na dependência da obesidade. Pelo que
mais precoces. Uma redução da auto-estima e uma foi referido, conclui-se que é frequente a ocorrência
crescente insatisfação com a imagem corporal de síndroma metabólica, sobretudo na adolescência,
levam frequentemente ao insucesso escolar, ao registando-se, por sua vez, uma associação entre
ostracismo e à depressão que, em casos extremos, marcadores cutâneos tais como e estrias a síndroma
são mesmo acompanhados de tentativa de suicídio. metabólica (dislipidémia e DM2).
Relativamente à patologia metabólica, cabe A síndroma metabólica integra um conjunto
salientar que na última década a diabetes mellitus de de situações (DM2, HTA, dislipidémia, outras
tipo 2 (DM2) em idade pediátrica (anteriormente alterações metabólicas) constituindo risco elevado
associada apenas ao adulto) tem registado, na de doença cardiovascular aterosclerótica na idade
Europa, América e Japão, um aumento da sua adulta. Tal tipo de problemas, atribuído ao ambi-
prevalência com uma trajectória paralela à do ente intra-uterino, relaciona-se com o conceito de
aumento da prevalência da obesidade. Actualmente programação a que atrás nos referimos.
336 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Não menos frequentes são: os problemas intervenção familiar são aqueles que evidenciam
ortopédicos (doença de Blount, necrose da cabeça maior sucesso a curto prazo, sendo a mudança de
do fémur, pé plano, espondiloslistese entre outros), atitude dos pais e famílias mantida a médio e longo
os problemas respiratórios (síndroma de apneia prazo o factor mais determinante do resultado (pro-
obstrutiva do sono, asma), a doença hepática não- gramas com estratégias diversas, de duração nunca
alcoólica (variando em termos de apresentação num inferior a 12 meses). Uma restrição calórica moder-
espectro que vai desde a esteatose hepática não pro- ada, baseada numa mudança de comportamento
gressiva e a esteato-hepatite com progressão para a familiar, não apresenta riscos e é geralmente eficaz.
fibrose e cirrose), a litíase vesicular, e as alterações Regimes altamente restritivos em calorias, incluin-
neurológicas (pseudo-tumor cerebral na dependên- do as dietas hiperproteica ou de muito baixo valor
cia de hipertensão intracraniana) entre outras. calórico conduzem a perdas ponderais mais acentu-
adas mas não devem ser efectuadas em ambulatório
Tratamento pois comportam riscos. Regimes desequilibrados
podem conduzir a situações deficitárias em vitami-
O único tratamento eficaz é, sem dúvida, a inter- nas e minerais, bem como a um compromisso do
venção preventiva; quanto mais precoce for esta, crescimento estatural e da maturação biológica.
maior a taxa de sucesso. Entretanto, pelas carac- No que respeita ao exercício físico, os seus
terísticas particulares inerentes ao processo de efeitos são mediados, pelo menos parcialmente,
crescimento, todas as estratégias deverão ser indi- pela redução nas reservas de gordura total e vis-
vidualizadas, obedecendo ao objectivo primordial ceral e pelo aumento da massa magra; este último
de restabelecer o equilíbrio entre a energia ingerida é responsável por um aumento do gasto energéti-
e a energia despendida. Um parâmetro confiável de co em repouso tendo em conta que a capacidade
seguimento das repercussões da intervenção é o individual de tolerância ao exercício diminui na
valor absoluto do IMC, ou mais sensível ainda, o proporção directa do aumento de IMC.
valor do z-score do IMC. A estabilização do peso em O tratamento farmacológico deverá ser enca-
crianças / adolescentes em crescimento é traduzida rado como um complemento da intervenção com-
por uma redução do valor absoluto do IMC e do portamental – dieta e exercício físico - em casos
valor do z-score do IMC. A redução destes valores seleccionados. São considerados 3 grandes grupos
deve ser fortemente encorajada, dado traduzir um de fármacos utilizados na terapêutica da obesi-
aumento estatural significativamente superior ao dade: os estimulantes do gasto energético, os
ponderal. Os objectivos a longo prazo do tratamen- inibidores do apetite e os que limitam a absorção e
to da obesidade pediátrica deverão incluir a / ou modulam a produção e /ou acção da insulina.
redução do z-score do IMC para um valor inferior a Do primeiro grupo, para além de um ensaio
2 e prevenir ou reverter a comorbilidade associada. recente com a associação de cafeína e efedrina
Como foi referido, as crianças e adolescentes efectuado num grupo de adolescentes, pode
obesos apresentam elevado risco de complicações dizer-se que de momento nenhum dos restantes
metabólicas, cardiovasculares e psicoafectivas. A fármacos (hormonas tiroideias, dinitrofenol, anfe-
questão que se coloca é: quando e quem tratar. taminas, fenfluramina, etc.) tem indicação ou
Estudos recentemente publicados mostram que aprovação para este uso, apresentando efeitos
existe um aumento exponencial do risco de ocor- colaterais que proscrevem a sua utilização.
rência de alterações do metabolismo da glicose, de Dos agentes inibidores do apetite, apenas a
hipertensão, de dislipidémia, se os valores de IMC sibutramina está aprovada para utilização em
forem superiores ao percentil 85. Assim, um acon- adolescentes obesos com mais de 16 anos. Vários
selhamento alimentar e de incremento da activi- estudos comprovam o seu efeito na redução pon-
dade física (diária e organizada) deverá ser pre- deral durante os primeiros 6 meses de terapêutica;
conizado e regularmente vigiado a partir do este efeito perde magnitude com a continuação do
momento em que de diagnostique uma situação de tratamento, não devendo a sua utilização continu-
excesso de peso (percentil de IMC 85 e <95). ada exceder 2 anos. A referida sibutramina é um
Os programas de redução de peso baseados na inibidor não selectivo da recaptação da serotoni-
CAPÍTULO 57 Obesidade 337

na, norepinefrina e da dopamina; por isso há que Clin Nutr 2000; 72:1032-1039
referir a ocorrência de efeitos colaterais (hiperten- Flodmark C-E, Lissau I, Moreno LA, Pietrobelli A, Widhalm K.
são, taquicardia, insónia, ansiedade, cefaleias, New insights into the field of children and adolescents`obe-
depressão) que obrigam à redução da dose e sity: the European perspective. Int J Obes 2004; 28: 1189-1196
mesmo à sua suspensão. Gaspar de Matos M e Equipa do projecto Aventura Social e
No grupo dos fármacos que limitam a Saúde. A Saúde dos adolescentes Portugueses (quatro anos
absorção de nutrientes, de referir o orlistat, único depois). Relatório Português do Estudo HBSC 2002 Lisboa:
aprovado pela FDA para utilização em adoles- FMH – Ed, 2003
centes com idade superior a 12 anos. Actuando Hatipoglu N, Mazicioglu MM, Kurtoglu S, Kendirci M. Neck
como inibidor da lipase pancreática, aumenta a circumference: na additional tool of screening overweight
perda fecal nomeadamente em triglicéridos; por and obesity in childhood. Eur J Pediatr 2010; 169:733-739
vezes é mal tolerado, e conduz à redução dos Lean M, Finer N. ABC of obesity. Part II – drugs. BMJ 2006, 333:
níveis de vitaminas A, D e E, mesmo em situações 794-797
de suplementação vitamínica. Lissau I, Overpeck MD, Ruan WJ, Due P, Holstein BE, Hediger
Finalmente, a metformina reduz o apetite e a ML. Body mass index and overweight in adolescents in 13
reserva adiposa do organismo resultando numa European countries, Israel and the United States. Arch
redução do peso corporal. É geralmente bem tole- Pediatr Adolesc Med 2004; 158: 27-33
rada, estando aprovada pela FDA para o tratamen- Mac Donald J, Goldman RE, O’Brien A, et al. Health informa-
to, não da obesidade ou da insulinorresistência, mas tion technology to guide pediatric obesity management.
da DM2. De referir que o seu uso regular conduz a Clinical Pediatrics 2011; 50: 543-549
situações deficitárias em vitaminas B1 e B6, devido a Miech RA, Kumanyika SK, Sttettler N, et al. Trends in the asso-
um aumento da respectiva excreção urinária. ciation of poverty with overweight among US adolescents,
Nas situações acompanhadas de HTA os fár- 1971-2004. JAMA 2006; 295: 2385-2393
macos de eleição são os IECA (Capítulos 46 e 162). Ogden CL, Flegal KM, Carrol MD, Johnson CL. Prevalence and
Por fim, uma referência a outra modalidade de trends in overweight among US children and adolescents,
tratamento – o cirúrgico em situações de falência 1999-2000. JAMA 2002; 288: 1728 -1732
da terapêutica comportamental e na situação de Perusse L, Rankinent T, Zuberi A, et al. The human obesity
obesidades mórbidas com complicações associa- gene map-the 2004 update. Obesity Res 2005, 13: 381-481
das. São escassos os estudos prospectivos sobre Rego C. Obesidade em Idade Pediátrica. Marcadores Clínicos e
este tópico salientando-se que a opção por tal Bioquímicos Associados a Comorbilidade. Tese de doutora-
modalidade deverá ser pontual e particularmente mento/Universidade do Porto. Porto:Abbott Laboratórios,
analisada. O balão intra-gástrico como atitude 2008
menos invasiva e reversível, ou a banda gástrica, Rego C, Guerra A, Silva D, Sinde S, Fontoura M, Aguiar A.
são duas opções a considerar. Prediction of final stature in obese children and adoles-
cents: a different growth pattern? Clin Nutr 2002; 21 (S1)
BIBLIOGRAFIA Rego C, Ganhão C, Sinde S, Silva D, Aguiar A, Guerra A.
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338 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Avaliação do estado nutricional

58 Para a avaliação do estado de nutrição, podem ser


utilizados critérios clínicos e laboratoriais:
• Inquérito nutricional – com o objectivo do
esclarecimento sobre os nutrientes supridos
SÍNDROMAS durante vários dias, permitindo calcular, com a
maior aproximação possível, na base do peso
DE MÁ – NUTRIÇÃO dos alimentos ingeridos, a percentagem do VCT
de proteínas, gorduras e hidratos de carbono.
ENERGÉTICO – PROTEICA • Antropometria – Os parâmetros que devem ser
determinados são: peso, altura, perímetro bra-
Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral quial e prega tricipital. Na prática, os índices
mais largamente utilizados para avaliar o grau
de má- nutrição são os de Waterlow e de Gomez,
respectivamente.
Importância do problema De acordo com Waterlow são considerados dois
índices:
As síndromas de má nutrição energético-proteica 1) peso para a altura (% do valor da mediana ou
constituem um problema de grande magnitude e im- do percentil 50 para a idade) exprimindo os valo-
pacte social, sobretudo nos países de fracos recursos e res percentuais abaixo de 90 um estado de má-
em desenvolvimento, sendo responsáveis, directa ou nutrição aguda, ou seja, compromisso mais signi-
indirectamente, por cerca de 50% dos óbitos de crian- ficativo do peso;
ças com menos de 5 anos. Nalgumas regiões do 2) altura para a idade (% do valor da mediana ou
globo, em relação com défice de condições de higiene, do percentil 50 para a idade) exprimindo os valo-
culturais e económicas, pode atingir cerca de 25-35% res percentuais abaixo de 95 um estado de má-
da população em idade pediátrica (dados de 2000). nutrição crónica, ou seja, compromisso mais signi-
Nos países industrializados podem surgir em ficativo da altura.
nichos de população desprotegida e marginalizada De acordo com Gomez, é considerada apenas a
como resultado de negligência, pobreza e ileteracia. relação:
Os factores relacionados com a doença crónica, 1) peso para a idade (% do valor da mediana ou
(doenças metabólicas, malformativas, respirató- do percentil 50 para a idade) exprimindo os valo-
rias, do foro digestivo, etc.) surgindo em todas as res percentuais abaixo de 75, quer má – nutrição
latitudes, independentemente do grau de desen- crónica, quer má – nutrição aguda, traduzindo
volvimento, tornam-se mais prevalentes nos paí- compromisso do peso e da altura (Quadro 1).
ses industrializados. Adoptando as três relações (de acordo com os
Situações mais raras de má – nutrição são a critérios referidos) é possível discriminar diversos
anorexia nervosa e a síndroma diencefálica as- graus de má-nutrição(Quadro 1).
sociada a tumor do hipotálamo. Tais avaliações devem ser seriadas valorizan-

QUADRO 1 – Graus de Má – Nutrição

Classificação de Waterlow Critério de Gomez


Grau Peso/Altura (% da mediana) Altura/Idade (% da mediana) Peso/Idade (% da mediana)
0 grau >90 >95 –
1º grau (ligeira) 81-90 90-95 75-85
2º grau (moderada) 70-80 85-89 64-74
3º grau (grave) <70 <85 <64
CAPÍTULO 58 Síndromas de má – nutrição energético – proteica 339

do um conjunto de determinações e não uma ape- de proteínas de elevado valor biológico, sem
nas isoladamente, sendo de referir que: nas situa- redução do valor calórico total).
ções agudas, para além do défice em nutrientes, Entre uma e outra situação existem vários
assumem relevância as alterações hidro-electrolíti- tipos intermédios, difíceis de caracterizar, que
cas; nas situações crónicas assumem relevância os alguns especialistas classificam de marasmo-kwa-
défices de mais que um nutriente. shiorkor.
• Composição corporal – A massa corporal inte-
gra 2 compartimentos: 1) massa gorda ou reser- Etiopatogénese
va de gordura; 2) massa magra que compreende
a água total, reserva de proteínas viscerais e Na sua origem podem ser invocados um conjunto
musculares, e de minerais. de factores com influência recíproca encerrando
As reservas de gordura subcutânea podem ser um ciclo vicioso.
avaliadas medindo a espessura das prega Em primeiro lugar a ignorância e a pobreza
cutâneas (tricipital, bicipital, subescapular e desempenham um papel decisivo; estão em
supra-ilíaca; a massa muscular esquelética é avali- causa os recursos precários em nutrientes e as
ada através da determinação da prega tricipital deficientes condições de higiene, de saneamento
em conjunto com o perímetro braquial. A medição básico e de evicção de insectos vectores. Como
da espessura da prega cutânea é difícil de deter- consequência, existe maior frequência e maior
minar em crianças pequenas. (ver anexo-Vol 3) gravidade de infecções e infestações parasitárias
• Exames laboratoriais – Os parâmetros a avaliar no grupo populacional em tais condições, contri-
são: albumina plasmática; excreção urinária de buindo para estabelecimento da má- nutrição, ou
creatinina proporcional à massa muscular, pré- para o seu agravamento. Por sua vez, a má-
albumina ligada à tiroxina, proteína ligada ao nutrição propicia o desenvolvimento de infec-
retinol, e concentração plasmática de determi- ções.
nadas vitaminas e de determinados minerais Os mecanismos determinantes dos quadros
(em circunstâncias especiais, conforme a paradigmáticos são, no entanto, diversos.
história clínica, constituem elementos adju- No caso do marasmo a situação mais típica é a
vantes para o diagnóstico). da criança que nos primeiros meses de vida é pre-
A imunodeficiência é comum nas situações de cocemente desmamada, continuando a alimen-
má-nutrição; as provas cutâneas relacionadas com tação com leite industrial (ou leite de vaca em
o estado de imunidade celular (provas cutâneas natureza na situações mais precárias), em quanti-
com antigénios como por exemplo a prova da dade insuficiente ou excessivamente diluído.
tuberculina) evidenciam anergia. Por vezes,nalgumas sociedades, este quadro
• Exames biofísicos – Em determinados centros de má- nutrição é já bem patente ao nascer tradu-
especializados é utilizada a densitometria para zindo má-nutrição fetal ou restrição do crescimen-
avaliação da massa gorda, e a bioimpedância to intra- uterino como resultado de condições nu-
para a avaliação da massa magra. tricionais deficientes da grávida.
No caso do kwashiorkor o perfil etiopatogéni-
Classificação co, na sua forma típica, é o seguinte: criança ali-
mentada ao peito para além dos 12 meses (em
A carência de suprimento calórico e proteico situações extremas a criança ainda está a ser ama-
engloba um largo espectro de situações clínicas mentada quando surge nova gravidez da mãe).
em cujos extremos se situam dois quadros clínicos Uma vez desmamada, o regime alimentar, como
bem definidos: o marasmo (com designações sinó- foi referido, tende a ser constituído por suprimen-
nimas de atrépsia ou inanição, resultante de ca- to elevado em hidratos de carbono, sobretudo de
rência calórica e de nutrientes global, com carên- farináceos (à base de milho, mandioca, etc.), tal
cia proteica proporcional), e o kwashiorkor (com como nos restantes membros da família.
designação sinónima de má-nutrição proteica, Assim, a criança recebe número suficiente da
correspondente às situações com carência apenas calorias diariamente, mas não de proteínas.
340 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Manifestações clínicas

• Marasmo – Sob o ponto de vista clínico, a cara-


cterística mais marcante diz respeito à deficiente
progressão ponderal, seguindo-se estabilização e
ulterior diminuição. O critério peso é, pois, funda-
mental para definir a situação em que a criança se
encontra, reportando-nos a uma tabela de percentis.
Na alínea antropometria referida atrás, foram
definidos os critérios de Waterlow e de Gomez;
nesta perspectiva, o Quadro 1 dá-nos uma ideia
integrada da classificação dos graus de má-
nutrição englobando os dois critérios.
Para além da perda de peso, observa-se di-
minuição do panículo adiposo subcutâneo (corres-
pondente à utilização das reservas energéticas,
fundamentais para a subsistência), o que pode ser
avaliado através da manobra do pregueamento da
pele entre dois dedos do observador.
Com efeito, a pele e os tecidos moles periféri-
FIG. 1
cos duma criança em situação de nutrição normal
evidenciam uma textura e elasticidade especiais Quadro clínico de marasmo (NIHDE).
chamada turgescência ou turgor. A perda do tur-
gor resultante da diminuição do panículo adiposo
origina o “sinal da prega”, mantida após se aliviar
o pregueamento. Este sinal também ocorre na
desidratação aguda, mantendo-se a prega neste
último caso por mais tempo.
Tratando-se duma situação crónica, o desapa-
recimento do panículo adiposo segue uma ordem
topográfica bem determinada: primeiramente
desaparece no abdómen, depois no tórax e
ombros, mais tarde braços, coxas e nádegas
(“nádegas em bolsa de tabaco”ou seja, exibindo
sulcos ou pregueamento transversal da pele da
nádegas e face interna das coxas) e, finalmente, na
face com desaparecimento do panículo adiposo da
bochecha ou “bola de Bichat” dando lugar à cha-
mada “fácies senil ou de Voltaire”, com rugas,
olhos vivos e abertos. O desaparecimento da “bola
de Bichat” é típico da má- nutrição do 3º grau
(Figuras 1 e 2).
A avaliação da altura oferece, em geral, menos
interesse que o peso; com efeito, a estabilização de
tal parâmetro somente se verifica em situações de
má-nutrição grave, sendo evidente sobretudo
após os 6 meses.
FIG. 2
A cor da pele é tipicamente acinzentada, pare-
cendo fria ao contacto. Tal aspecto resulta, em Quadro de marasmo: nádegas em “bolsa de tabaco”. (NIHDE)
CAPÍTULO 58 Síndromas de má – nutrição energético – proteica 341

parte, da anemia que frequentemente existe, e da sequência, de um elevado suprimento de nutri-


hipoperfusão tecidual. As mucosas nem sempre entes durante esse período.
estão pálidas. Os cabelos são finos e escassos, sem As consequências são diversas: atraso (por
brilho. Não existe edema. vezes regressão) do desenvolvimento psicomotor,
É muito frequente a observação de dermatites sensorial e comportamental; perímetro cefálico de
variadas e de intertrigo que poderão ser a conse- menores dimensões; desenvolvimento intelectual
quência de deficiência nos cuidados gerais prestados. inferior ao da população geral. O resultado final
O tono muscular pode estar alterado; na maior depende também do défice de estimulação destas
parte das vezes existe hipotonia a qual explica crianças as quais vivem em ambiente social e cul-
outro sinal característico: distensão abdominal que tural muito precário.
pode ser muito pronunciada estando em relação, Ao nível do aparelho digestivo há que salientar
quer com a hipotonia da musculatura da parede a diminuição da actividade da lactase. Estudos de
abdominal, quer com a hipotonia da musculatura biópsias jejunais demonstraram anomalias his-
lisa das ansas intestinais e o défice de potássio. Por tológicas consideradas de menor relevância (altura
vezes o abdómen pode estar deprimido. diminuída do epitélio e invasão da lamina própria
Os mecanismos de adaptação metabólica do por linfócitos e eosinófilos) e outras, funcionais,
organismo conduzem a hipotermia, bradicárdia, traduzidas sobretudo por diminuição da activi-
hipotensão arterial e hipoglicémia dade lactásica. Este último achado tem implicações
De referir igualmente a perturbação do psi- na prática clínica obrigando à utilização de produ-
quismo; embora estes doentes estejam despertos e tos isentos de lactose na recuperação nutricional.
interactivos com o ambiente que os rodeia quando • Kwashiorkor – Sendo o regime alimentar
estimulados, manifestam tristeza e apatia, com hipoproteico complementado por suprimento em
um choro monótono. hidratos de carbono, conduzindo a relativo cum-
Existe tendência para infecções as quais, por sua primento das necessidades energéticas totais, as
vez, se repercutem negativamente sobre a má- manifestações clínicas, pelo menos numa fase ini-
nutrição. Efectivamente, a infecção limita o apetite cial, poderão passar despercebidas.
produzindo frequentemente vómitos e diarreia o que O edema por hipoproteinémia(diminuição da
compromete a absorção de nutrientes; por outro pressão oncótica do plasma) que, entretanto, sur-
lado, o processo infeccioso produz hipercatabolismo. ge, constitui a característica predominante deste
A imunidade humoral está pouco compro- tipo de má- nutrição. O aspecto geral da criança é
metida (pode haver elevação das imunoglobuli- o de uma criança com edema generalizado,
nas séricas como resposta a infecções repetidas) sobressaindo as bochechas tumefactas pelo referi-
enquanto a imunidade timodependente está seria- do edema o qual se localiza também noutras áreas
mente afectada. ( pálpebras, membros superiores e inferiores).
Considerando os diversos tipos de infecções, O peso pode ser adequado para a idade ou até
cabe uma referência especial às infecções respi- superior ao valor médio, por motivo do edema .
ratórias (pneumonias) pela sua potencial gravi- Quanto ao psiquismo, as crianças revelam um
dade. Na sua forma de manifestação mais típica, aspecto deprimido e de tristeza.
trata-se de formas graves de pneumonia de locali- A musculatura participa no quadro clínico: a
zação paravertebral, favorecidas pelo decúbito hipotonia impede, muitas vezes, que a criança
prolongado em relação com a precariedade dos ande ou permaneça sentada.
cuidados; não existindo, em geral, febre nem Como resultado da consequente perturbação
tosse, são muitas vezes subdiagnosticadas. funcional do hepatócito surge degenerescência
A má- nutrição pode comprometer o desen- gorda, hepatomegália e, em situações mais graves,
volvimento do sistema nervoso central, o que tem cirrose hepática.
consequências a longo prazo. A este respeito é Tal como no marasmo, surge perturbação fun-
importante ter em conta que o cérebro é um órgão cional do enterócito com especial incidência no
com um crescimento muito rápido nos últimos jejuno, a qual conduz a diminuição das dissacari-
meses da vida intra-uterina necessitando, por con- dases e diarreia.
342 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Poderão surgir igualmente infecções e infes-


tações intestinais. A anorexia é habitual.
As alterações dermatológicas são muito típi-
cas, sendo frequentes áreas de hipopigmentação
alternando com áreas de hiperpigmentação (dis-
cromia) nem sempre revertidas com a intervenção
nutricional. Poderão evidenciar- se igualmente
queilite e estomatite.
Ao nível dos cabelos as alterações tróficas são
muito típicas e notórias na raça negra; a despig-
mentação produz uma cor avermelhada dos cabe-
los, aspecto que originou o nome de kwashiorkor
que significa, na linguagem duma tribo do Gana
“criança com cabelos vermelhos”.
Em certos casos, através do cabelo, pode reco-
nhecer- se o momento em que se iniciou o proces-
so de má- nutrição, pois a parte distal, mais anti-
ga, aparece com a cor normal enquanto a parte
proximal exibe a cor alterada; os cabelos aparecem
assim divididos em duas partes com cores diver-
sas, relativamente bem delimitadas que, quando
bem esticados aparentam “as cores duma ban-
deira”. Daí o nome de “sinal da bandeira”.
Para além das perturbações do psiquismo,
poderão ser notados tremores (cuja etiopatogenia
é incerta), anemia de causa multifactorial, e défice
FIG. 3
imunológico, com compromisso mais significativo da
imunidade celular e da relacionada com os linfócitos T. Criança com Kwashiorkor (NIHDE).
No que respeita à repercussão sobre o sistema
endócrino, de salientar a possibilidade de hipo- apontadas, poderá surgir diarreia. Na prática estão
função tiroideia e de défice dos níveis de somato- indicados produtos lácteos em que a lactose tenha
medina C sem alteração da hormona de cresci- sido substituída por glucose ou dextrina- maltose
mento (Figura 3). ,sendo de referir que o amido é bem tolerado.
O referido regime deve ser hipercalórico com
Tratamento um suprimento energético de cerca de 150
kcal/kg/dia e incluindo suplementos vitamínicos
• Marasmo – A intervenção terapêutica eficaz e de oligoelementos (nomeadamente cobre e
nas situações de marasmo, com resultados manti- zinco).Havendo sideropenia torna-se obrigatório
dos, não constitui tarefa fácil uma vez que a adicionar ferro ao regime (1-2 mg/kg/dia).
mesma tem a ver com a mudança das circunstân- • Kwashiorkor – O tratamento do kwashior-
cias predisponentes do meio em que a criança vive kor é essencialmente de ordem dietética: regime
e que ultrapassam a componente exclusivamente com elevado suprimento em proteínas de elevado
biomédica e nutricional. valor biológico, e normocalórico. Não obstante, há
Sob o ponto de vista de intervenção nutricional, o que contar com algumas dificuldades surgidas na
regime deve proporcionar proteínas de elevado valor fase de recuperação relacionadas com intolerância
biológico e em quantidade não inferior a 2 gra- ao leite, infestações intestinais, infecções recor-
mas/kg/dia, sendo as proteínas do leite de vaca ade- rentes, etc.. A anorexia obriga, por vezes, à neces-
quadas a este respeito; no entanto, tendo em conta a sidade de utilização de sonda gástrica.
possível intolerância à lactose pelas razões atrás Devem ser dados alimentos à base de hidro-
CAPÍTULO 59 Carências vitamínicas e minerais 343

59
lisados de proteínas do leite de vaca, glucose
como hidrato de carbono e ácidos gordos de ca-
deia média como lípidos.
Estão também indicados suplementos vita-
mínicos e ferro.
Actualmente advoga-se a utilização de agentes
antioxidantes. CARÊNCIAS VITAMÍNICAS
NB – Pela possibilidade da chamada síndroma
de realimentação (Capítulo 68) os incrementos E MINERAIS
devem ser lentos, designadamente nas formas
clínicas com peso para a altura < 70%. João M. Videira Amaral

Prognóstico

O prognóstico, quer do marasmo, quer do kwashi- 1. RAQUITISMO POR CARÊNCIA


orkor, é reservado tendo em conta, designadamente DE VITAMINA D
o risco de infecções conduzindo a elevada mortali-
dade (mais elevada nos casos de kwashiorkor) nos Definição e importância do problema
países do continente africano, mais pobre; no caso
do kwashiorkor há que salientar a elevada proba- As síndromas raquíticas (ou raquitismos em geral)
bilidade de desenvolvimento de cirrose hepática. são situações clínicas caracterizadas por falência
do ritmo normal de mineralização da matriz óssea
BIBLIOGRAFIA devida a inadequadas concentrações de iões cálcio
Baqui AH, Ahmed T. Diarrhoea and Malnutrition in Children. e de fosfato mono-hidrogeniónico nos líquidos do
BMJ 2006; 332: 378 organismo em crescimento, com consequente acu-
Berkley J, Mwangi I, Griffiths K, et al. Assessment of Severe mulação de osteóide não mineralizado. Portanto,
Malnutrition Among Hospitalized Children in Rural o cálcio e ou o fosfato podem estar deficitários nos
Kenya. JAMA 2005; 294: 591-597 raquitismos (Capítulos 163 e 344). O desequilíbrio
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon,2011 fosfo-cálcico tem repercussões multissistémicas:
Fuchs GJ. Antioxidants for Children with Kwashiorkor. BMJ sistema ósseo (de modo especial ao nível da zona
2005; 330: 1095-1096 metafisária de crescimento activo), muscular, pul-
Kalhan SC, Prentice AM, Yajnik CS (eds). Emerging societies- monar, etc..
coexistence of childhood malnutrition and obesity. Se tal perturbação surgir num organismo após
Basel:Karger / Nestlé Nutrition Institute, 2009 se completar o crescimento linear (idade adulta), a
Kliegman RM, Stanton BF, et al. Nelson Textbook of Pediatric. síndroma denominar-se-á osteomalácia (com sin-
Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011 tomatologia mais discreta).
Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger, 2008 A carência de vitamina D continua a ser a
Shelov SP, Hannemann RE, Cook DE et al. Caring your baby causa mais prevalente de raquitismo em todo o
and young child (birth to age 5). New York :Bantam mundo, mesmo nos países industrializados.
Books/American Academy of Pediatrics, 2005 (raquitismo carencial comum/RCC). Uma vez
van Goudoever H, Guandalini S, Kleinman RE (eds) . Early que a vitamina D pode ser obtida, quer de fontes
nutrition: early impact on short- and long-term health. exógenas nutricionais, quer através da síntese
Basel:Karger/Nestlé Nutrition Institute, 2011 cutânea por acção directa(sem interposição de
roupa ou vidraça) da luz solar através da radiação
ultravioleta B e A, conclui-se que a carência em
vitamina D na infância pode ser devida a combi-
nação de défice de suprimento e de insuficiente
síntese cutânea.De salientar o baixo teor em vita-
mina D no leite materno, implicando a necessi-
344 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

dade de os bebés amamentados receberem suple- crianças de pele negra. A carência de suprimento oral
mento de vitamina D ou, se possível, de exposição em vitamina D poderá decorrer de certas práticas de
solar (Capítulo 45). raiz cultural como dietas vegetarianas, ingestão de
leite de soja ou leite de “arroz”, por exemplo.
Etiopatogénese Se o ergocalciferol ou o colecalciferol forem
veiculados pelos alimentos, a sua absorção é rápi-
Embora a vitamina D (calciferol) activa se encon- da, verificando-se sobretudo ao nível do duode-
tre pouco difundida na natureza, os seus precur- no-jejuno e por via linfática. (Figura 1).
sores ou pró-vitaminas (esteróis) derivados do A seguir à conversão fotoquímica na pele ou à
colesterol, encontram-se largamente distribuídos, absorção intestinal, a vitamina D2 (ergocalciferol)
quer nas plantas, quer nos animais. ou a vitamina D3 (colecalciferol)são transportadas
A provitamina D das plantas (ergosterol) é sus- em direcção ao fígado com o auxílio duma globu-
ceptível de ser transformada em vitamina D2 ou lina alfa-2; no fígado sofrem uma 25-hidroxilação
ergocalciferol. ou transformação nos respectivos derivados 25-
A provitamina D animal (7-de-hidro-coles- hidroxilados por intermédio da 25-hidroxilase,
terol), produzida na mucosa intestinal, dirige-se, enzima do sistema microssómico (família das oxi-
depois, para a camada malpighiana da pele onde dases do citocrómio P450).
adquire actividade vitamínica (vitamina D3 ou A actividade da 25-hidroxilase específica é re-
colecalciferol) quando exposta aos raios ultravio- gulada por um mecanismo de retroacção repre-
letas (290-320 mm) – síntese cutânea. sentado pela taxa sérica dos compostos 25-hidro-
A fotossíntese epidérmica pode estar compro- xilados e do cálcio.
metida de vários modos: 1) inefectividade da acção Os compostos 25-hidroxilados (25-HC) ou 25
dos raios solares na época fria em que a criança usa (OH) circulam também ligados a uma globulina
mais roupa; 2) menor exposição solar face ao receio alfa-2, sendo a sua semivida de 19,6 dias (a semivida
com o cancro cutâneo; 3) pigmentação cutânea em do ergo ou cole-calciferol é apenas de 12 a 25 horas).

(Pró-Vitamina) Radiação U-V


Colesterol 7-De-hidrocolesterol Colecalciferol
Mucosa Pele
intestinal

Fígado

Calciferol

U-V 25-Hidroxilase

Ergosterol
(Pró-Vitamina)
Aumento do
transporte de cálcio
e fosfato (intestino)
1,25-di-HC 1-alfa-hidroxilase 25-HC
Mobilização do cálcio Rim
ósseo (cooperação da 24-25-di-HC
PTH) (biologicamente Unidades de Vitamina D:
Aumento da reabsorção inerte) – 1 mg = 40.000 U.I.
Metabólitos
tubular de fosfato, de – 1 U.I. = 0,025 gama polares
sódio e cálcio (Rim) _ 1 ug (mcg) = 40 UI = 2,5 nmol inactivos

FIG. 1
Metabolismo da vitamina D (Cerca de 80% da vitamina D no organismo deriva da exposição solar e 20% da alimentação).
CAPÍTULO 59 Carências vitamínicas e minerais 345

A acção dos compostos 25-hidroxilados [25-HC Demonstrou-se que existem hormonas regu-
ou 25-OH ou 25(OH)] consiste essencialmente no ladoras dos fosfatos – as fosfatoninas – de que a
transporte de cálcio ao nível do intestino, na mobi- principal é o chamado factor de crescimento 23 do
lização do cálcio ósseo e na reabsorção tubular fibroblasto (FGF23, produzido pelos osteócitos).
proximal de sódio e fosfato. Esta fosfatonina (que tem como órgão – alvo o
Ao nível do rim gera-se, depois, a forma meta- rim) diminui a reabsorção tubular de fosfato e a
bolicamente activa, o 1-25 hidroxicolecalciferol síntese de 1-25-HC ou 1,25 (OH)2, interferindo nos
(ou 1-25 hidroxi-ergocalciferol) (1-25-HC ou cal- co-transportadores de sódio-fosfato no rim. Em
citriol) a partir do 25-HC (ou calcidiol) que sofre situações de normalidade o FGF23 é degradado
nova hidroxilação em posição 1, com o concurso em compostos inactivos, não produzindo efeitos
duma enzima que faz parte dum sistema mitocon- adversos.Tal factor é produzido no esqueleto (par-
drial das células tubulares: a 1-alfa hidroxilase. ticularmente osteoblastos e osteócitos), o que tipi-
A actividade de 1-alfa hidroxilase é regulada, fica fisiologicamente o chamado eixo osso-rim,
quer pela carência do organismo em vitamina D, regulando a homeostase do fosfato.
quer pela taxa de cálcio circulante, directamente De salientar que todos os tecidos do organismo
ou por intermédio da paratormona e calcitonina; humano (incluindo claro, o tecido ósseo, alvo mais
depende, ainda, da fosforémia e do teor em fos- reconhecido desde há muito) contêm um receptor
fatos do tecido renal. para a vitamina D. Nesta perspectiva, diversos
Em caso de normocalcémia ou hipercalcémia, estudos sugerem efeitos da vitamina D nos sis-
poderá originar-se um composto hidroxilado em temas imune, cardiovascular e pâncreas endócrino,
24-25 que não tem qualquer função específica, tendo-se demonstrado papel de protecção contra o
pois tende a degradar-se. cancro, infecções, e doenças autoimunes como
A acção dos compostos di-hidroxilados (1-25 exclerose múltipla e diabetes mellitus tipo 1.
HC) traduz-se no transporte de cálcio e fósforo ao
nível do intestino (quantitativamente a sua acção Classificação dos raquitismos
quanto a este aspecto é cerca de 1 vez e meia supe-
rior aos compostos 25-HC) e na mobilização do Se nos reportarmos ao ciclo da vitamina D será rela-
cálcio ósseo (acção cerca de 100 vezes superior à tivamente fácil deduzir uma classificação etiopato-
dos 25 HC). Quanto à reabsorção tubular de sódio, génica das síndromas raquíticas. Assim, podemos
fosfato e cálcio, o seu efeito pode considerar-se, ao estabelecer dois grandes grupos: (Quadro 1).
contrário, mínimo em relação aos 25-HC. 1. Grupo calciopénico que decorre da interferên-
Quer a vitamina D3, quer os seus derivados 25- cia num ou vários «passos» do ciclo metabólico da
hidroxilados, são susceptíveis de se armazenarem vitamina D por parte de determinados factores ou
ou constituirem em depósitos ao nível dos tecidos circunstâncias, o que condicionará uma diminuição
adiposo e muscular. Existe, no entanto, uma dife- da concentração dos metabólitos (25-HC e 1-25HC);
rença de comportamento entre os dois: enquanto a o perfil bioquímico característico deste grupo é cons-
vitamina D3 é mais lipossolúvel e se concentra tituído pela deficiência em cálcio ou interrupção no
rapidamente no tecido adiposo e por muito tempo suprimento ou utilização da vitamina D.
- cerca de 80% do seu depósito inicial pode ser 2. Grupo fosfopénico devido a suprimento
encontrado ao cabo de 3 meses – os 25 HC são inadequado de fosfato na dieta ou a perda tubular
armazenados em menor quantidade pela sua renal excessiva. (Quadro 1).
menor lipossolubilidade, constituindo as formas
circulantes por excelência (Figura 1). A maioria das situações que integram o sub-
A vitamina D não actua directamente sobre as grupo A corresponde ao chamado raquitismo
células intestinais ou ósseas; com efeito os seus carencial comum, vitamino-sensível ou vitamino-
metabólitos hidroxilados induzem a síntese duma privo; como se referiu, é o que surge com maior fre-
proteína necessária ao transporte activo do cálcio (a quência, é evitável com profilaxia correcta e é
CaBP-Calcium-Binding-Protein) e à ligação a recep- curável com doses usuais de vitamina D.
tores. As situações que integram os subgrupos B, C e
346 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Classificação dos raquitismos As manifestações do RCC podem assim ser sis-
tematizadas, salientando-se que a deficiência de
1. Calciopénico vitamina D pode ser assintomática:
A – Deficiência primária de vitamina D
• Falta de exposição ao sol, pigmentação cutânea, a) Sinais clínicos ósseos
roupa, filtros solares, poluição atmosférica (RCC) Os sinais clínicos característicos, dependendo da
• Défice de suprimento alimentar de vitamina D (RCC) idade de apresentação, decorrem de alterações
• Défice de suprimento de cálcio (RCC) ósseas indolores, simétricas, localizando- se na
B – Deficiência secundária de vitamina D zona de crescimento activo com evolução (em
• Má absorção de vitamina D geral com início desde os primeiros meses, pro-
• Antiepilépticos, corticóides, colestiramina gredindo no primeiro ano de vida no sentido crâ-
• Deficiência de 25-hidroxilase nio-caudal): cranio-tabes (consistência mole do crâ-
• Síndroma nefrótica nio evidente sobretudo ao nível da região parieto-
• Dependência de vitamina D(tipos I e II) occipital, dando a sensação de palpação de bola de
2. Fosfopénico ping-pongue – após compressão, o osso volta à
C – Primário posição inicial), atraso de encerramento das sutu-
• Dominante ligado ao X ras cranianas cujos bordos são moles, deforma-
• Autossómico dominante ções diversas do crânio relacionadas com a dimi-
• Autossómico recessivo nuição de consistência da calote craniana sus-
• Recessivo ligado ao X ceptível de deformação postural, atraso da erup-
• Hipofosfatémia hereditária com hipercalciúria ção dentária, tumefacção esferóide ao nível das
D – Secundário articulações condrocostais por hipertrofia das res-
• Osteomalácia induzida por tumores ósseos (raros)
pectivas cartilagens (por acumulação de osteóide)
produtores de FGF23
cujo conjunto ao longo do tórax aparenta um rosá-
• Síndroma de McCune Albright
rio (é o chamado rosário costal); deformação do
• Nefrotoxicidade pela ifosfamida
tórax, em sino, com alargamento da base e evi-
• Hipofosfatasia
dência do chamado sulco de Harrison; alargamen-
• Acidose tubular renal
to das epífises dos ossos longos especialmente
• Défice de suprimento de fosfato na dieta
notória ao nível dos punhos (chamados “de bone-
• Raquitismo da prematuridade (doença metabólica
ca”) e regiões tíbio- társicas; deformações dos
óssea do pré-termo)
membros inferiores (tíbias em “parêntesis”, genu
• Inibidores da mineralização (alumínio, biofosfonatos,
varum, etc.); ao nível da coluna pode verificar-se
etc.)
cifose com formação de saliência lombar típica nas
formas exuberantes – saliência ou gibosidade do
D surgem com profilaxia correcta e não são raquis, donde o nome de raquitismo).
curáveis com doses terapêuticas usuais de vitami- De referir a relação que existe entre a velocida-
na D (a designação antiga classificados como vita- de de crescimento e o aparecimento do quadro clí-
minorresistentes). Os Capítulos 163 e 344 inte- nico; ou seja, a probabilidade de aparecimento do
gram noções sucintas sobre alguns raquitismos quadro clínico é tanto maior quanto maior a velo-
carenciais não comuns. Neste capítulo é dada cidade de crescimento (Figuras 2, 3 e 4). Nos lac-
ênfase ao raquitismo carencial comum (RCC). tentes poderão surgir sinais atípicos como cardio-
miopatia e, nos adolescentes, dores e fraqueza
Manifestações clínicas, radiológicas musculares.
e laboratoriais do RCC
b) Sinais clínicos músculo- ligamentosos
O RCC constitui o exemplo paradigmático de Salienta-se a hiperlaxidão dos ligamentos e a
carência extrema de vitamina D a qual se estabele- hipotonia muscular as quais condicionam o atraso
ce de modo progressivo antes de os sinais clínicos do desenvolvimento motor(início do sentar-se e
se tornarem evidentes. da marcha), designadamente.
CAPÍTULO 59 Carências vitamínicas e minerais 347

óssea com trabeculação nítida e aspecto de duplo


contorno, por vezes sinais de fracturas e de calos de
fracturas; espaço epífise- metáfise alargado poden-
do haver atraso de aparecimento dos núcleos de
osssificação; ao nível do tórax, em complemento
dos sinais clínicos já referidos, torna- se evidente o
alargamento das articulações condro- costais em
“raquete”; pode haver sinais de infecção paren-
quimatosa (pneumonia, bronquite) face à suscepti-
bilidade para as infecções, enquadrando a situação
classicamente conhecida por “pulmão raquítico”.
Os primeiros sinais aparecem em geral entre os
4 e 6 meses; no caso de não tratamento, a forma
FIG. 2 FIG. 3
exuberante é notória por volta do final do 1º ano de
Criança com raquitismo: Raquitismo: cifose dorso- vida e durante o 2º ano (Figuras 5 e 6).
deformação torácica (NIHDE). -lombar e deformação da
coluna com gibosidade. c) Sinais laboratoriais
(NIHDE)
Os valores séricos do cálcio, fósforo e fosfatase
alcalina podem variar em função da fisiopatologia,
já exposta: fase precoce com hipocalcémia e fósforo
normal; fase intermédia resultante da estimulação
da PTH, com normocalcémia e fósforo diminuído;
fase avançada com cálcio e fósforo baixos por insu-
ficiente mobilização a partir do osso. A fosfatase
alcalina está aumentada em todos os tipos de
raquitismo, e mais intensamente nas formas cal-

FIG. 4
Raquitismo: “Punho de boneca”/alargamento dos punhos
(NIHDE). FIG. 5 FIG. 6
Sinal radiológico de Sinal radiológico de
raquitismo: metáfise do rádio raquitismo: esboço de apareci-
e cúbito ao nível de punho, mento da linha de calcificação
c) Sinais radiológicos
alargamento em taça, de preparatória ao nível das
As lesões ósseas com tradução radiológica têm, contorno irregular. (NIHDE). metáfises alargadas (rádio e
sobretudo, uma localização metafisária: a metáfise cúbito) como resposta do
dos osssos longos está alargada, côncava, “em tratamento (maior densidade
taça”, com aspecto franjado e limite irregular; as óssea relativamente à figura
diáfises evidenciam diminuição da densidade 5). (NIHDE).
348 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ciopénicas. A PTH está sempre aumentada nas for- outras situações acompanhadas de alterações esqueléticas.
mas calciopénicas e muitas vezes normal nas for- O craniotabes não é patognomónico do raqui-
mas fosfopénicas. tismo, podendo surgir nalgumas displasias
Valorizando o produto cálcio x fósforo séricos ósseas.
em mg/dl para o diagnóstico, classicamente consid- As deformações do tórax poderão enquadrar-
era- se: 30 (raquitismo certo); 30-40 (raquitismo pos- se em situações acompanhadas de anomalias con-
sível); 40 (raquitismo impossível ou em via de cura). génitas.
Sendo possível o doseamento dos metabólitos O rosário costal pode surgir igualmente no
da vitamina D, considera-se que o valor do meta- escorbuto (défice de vitamina C), hoje pratica-
bólito mono – hidroxilado (25-HC) ou 25-hidroxi- mente uma raridade, sendo acompanhado
vitamina D <15 ng/mL corresponde a carência ou doutras carências; no entanto, nesta última situa-
deficiência de vitamina D. Valores entre 15-30 ção o rosário costal resulta de luxação condro-
ng/mL correspondem a insuficiência, e >30 costal e os sinais radiológicos esqueléticos são
ng/mL a suficiência (Capítulo 51). diferentes: é típica a hemorragia subperióstica, e
Relacionando os sinais clínicos com os labora- as alterações esqueléticas são acompanhadas de
toriais e radiológicos, chama- se a atenção para dor. Podem também surgir hematúria e hemorra-
uma forma clínica (fase precoce) de carência de gias petequiais.
vitamina D ocorrendo habitualmente no lactente, Uma história familiar de raquitismo poderá
sobretudo antes dos 6 meses com o seguinte sugerir forma hereditária, sendo o raquitismo
quadro: sintomas de hipocalcémia- cálcio ioniza- hipofosfatémico ligado ao X o mais frequente.
do inferior a 3-4 mg/dl ou total inferior a 7-7.5 Antecedentes familiares de consanguinidade
mg/dl (irritabilidade neuromuscular incluindo poderão apontar para raquitismo vitamina D
convulsões, tetania, espasmo carpo pedal, larin- dependente do tipo II, raro.
gospasmo) com ou sem evidência radiológica de
raquitismo. É a chamada “tetania” do lactente por Prevenção
carência de vitamina D, hoje rara no nosso país.
A hipocalcémia susceptível de originar tetania O RCC (deficiência de vitamina D) é susceptível
(não manifesta ou latente) pode ser identificada atra- de prevenção através da exposição directa à luz
vés da pesquisa dos clássicos sinais de Chvos- solar (fracção leve da radiação ultra- violeta B) ou
tek,Trousseau e de Erb. Esta situação é hoje rara.* da administração de vitamina D. De acordo com
Tratando-se duma síndroma com repercussão estudos realizados, considera-se eficaz a expo-
sistémica, nas formas de deficiência extrema, tam- sição directa diária (~30 minutos) da face e mem-
bém já raras, é habitual ser acompanhada de anemia, bros superiores nas latitudes da Europa do Sul.
habitualmente hipocrómica, traduzindo carência Sobre esta questão não consensual entre os
concomitante em ferro. No entanto, poderá igual- diversos organismos e peritos internacionais (com
mente surgir anemia megaloblástica por carência de recomendações que têm variado ao longo do
vitamina B12 ou ácido fólico e anemia pluricarencial. tempo em função de estudos científicos), e tendo
Uma forma clássica, hoje rara, é a anemia de em conta a diversidade do panorama da saúde,
Von-Jaksch-Luzet ou anemia pseudo leucémica cur- dos hábitos culturais e do ambiente em diversas
sando com hiperleucocitose e hepatosplenome- latitudes do globo, cabe referir determinadas
gália, relacionável com eritropoiese compensado- noções consideradas essenciais quanto à pre-
ra ectópica. venção da deficiência/carência em vitamina D
em lactentes, crianças e adolescentes considerados
Diagnóstico diferencial saudáveis.
Assim , como regras gerais pode estabelecer-
A anamnese é fundamental para a destrinça com se que:
• a grávida e a lactante (mulher que amamen-
* A hipocalcémia sintomática é mais frequente nas idades extremas (1ª
infância e adolescência), a que correspondem períodos de crescimento
ta) devem ingerir 1.000 UI de vitamina D
rápido. diariamente.
CAPÍTULO 59 Carências vitamínicas e minerais 349

• em lactentes alimentados com leite materno a hidroxilado (25-HC vit.D), quando exequível,
maioria dos casos de raquitismo carencial serve de orientação para avaliação do resultado
comum pode ser prevenida através da admi- terapêutico, salientando-se que o valor sérico de
nistração diária de 400 UI de vitamina D. 25-HC vit. D não deverá ultrapassar 100 ng/mL.
• os lactentes e crianças que não recebam teor Para além da avaliação clínica, o efeito da tera-
adequado de vitamina D através das fórmu- pêutica poderá também ser comprovado mais
las preparadas ou da dieta, e que não te- objectivamente com doseamentos séricos e
nham exposição à luz solar directa conside- urinários de cálcio, assim como da fosfatase alcali-
rada suficiente, também devem receber 400 na (cujos valores decrescem com a melhoria).
U de vitamina D diariamente. Como alternativa, poderá optar-se por outro
• embora não haja consenso no âmbito dos esquema de administração de vitamina D: 50.000
vários organismos internacionais, é recomen- UI semanais durante 8 semanas, ou uma simples
dada a dose de 400 a 1.000 U de vitamina D dose (anteriormente designada “choque vitamíni-
durante toda a vida, devendo entrar em consi- co”) de 150.000 a 600.000 UI em função da idade do
deração com o teor em vitamina D no leite e doente e do estado clínico.
no regime alimentar em geral e igualmente Se não ocorrer resposta ao tratamento a curto
com a exposição regular e directa ao sol. prazo, tratar-se-á provavelmente, não de um RCC,
mas de uma deficiência secundária de vitamina D
Notas importantes: ou de forma fosfopénica.
a – De acordo com diversos estudos, o suple- Recorda-se que em situações de carência de
mento de vitamina D entre 200 e 400 UI por dia, cálcio, a calcémia pode ser normal ou baixa e que
garante a manutenção do nível sérico de 25- a hipocalcémia sintomática é pouco comum.
hidroxi-vitamina D > 25 nmol/ L (10 ng/ml) com- Uma vez iniciado o tratamento com vitamina
patível com ausência de deficiência de vitamina D, está indicado o suplemento de cálcio-elemento
D. Idealmente o referido nível sérico deverá ser (30-75 mg/kg/dia).
igual ou superior a 30ng/ml. O regime alimentar deverá logicamente conter
b – Dum modo geral as fórmulas para lactentes cálcio e fósforo através da ingestão de leite e pro-
contêm cerca de 400 UI/Litro, sendo de salientar dutos lácteos
que a concentração da vitamina D no leite A correcção da hipocalcémia sintomática obri-
humano é muito mais baixa, embora mais ga a terapêutica de substituição emergente com
biodisponível (cerca de 25 UI /Litro) . gluconato de cálcio, a qual é abordada no Capí-
tulo 50.
Tratamento Em situações específicas e graves acompanhadas
de deformações esqueléticas sequelares, poderá
Na criança ou adolescente, para o tratamento do haver necessidade de intervenção ortopédica.
RCC (deficiência de vitamina D, pressupondo 25-
HC < 15 ng/mL) estão indicadas doses orais
diárias de 50-150 mcg (2000-10.000 UI) de vitamina 2. CARÊNCIA DE VITAMINA A
D3 ou de 0.5-2 mcg de 1,25- di-hidroxi-colecalcifer-
ol durante 8-12 semanas; com cerca de 2-4 semanas Importância do problema
de tratamento produz-se uma melhoria dos sinais
radiológicos traduzida pelo aparecimento da Faz-se uma breve referência a este estado carencial
chamada “linha de calcificação preparatória” ao (raro em crianças saudáveis com regime alimentar
nível das metáfises (Figura 6). equilibrado) mas com elevada prevalência nos
Uma vez verificada a resposta inicial, a dose países em desenvolvimento, sobretudo da África,
diária deve ser reduzida para [400 UI (até idade de constituindo um grave problema de saúde pública.
1 ano) ou 600UI (> 1 ano)] como esquema pro- Poderá surgir igualmente como resultado de
filáctico. síndromas de má- absorção e em situações com
O doseamento sérico do metabólito mono- deficiência de ingestão em lípidos.
350 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

60
As consequências de tal carência, que surgem
insidiosamente, verificam-se sobretudo ao nível
do sistema ocular: essencialmente, xerose da con-
juntiva e da córnea com ulterior opacificação
desta; dificuldade de adaptação à escuridão e
cegueira nocturna. A pele é seca e descamativa.
O tratamento consiste na administração diária REGIMES VEGETARIANOS
de doses entre 1500 e 3000 mcg de vitamina A por
via oral com vigilância da evolução clínica tentan- E ERROS ALIMENTARES
do evitar a toxicidade. Na xeroftalmia são uti-
lizadas doses maiores. Vários organismos interna- João M. Videira Amaral
cionais e várias equipas de profissionais de saúde
colaboram em campanhas nos países mais afecta-
dos .
Regimes vegetarianos
BIBLIOGRAFIA
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98:176-179 proibidos a carne e o peixe. No grupo tradicional está
incluído o subgrupo designado por “vegan” ou ve-
getariano puro que exclui qualquer produto de
CAPÍTULO 60 Regimes vegetarianos e erros alimentares 351

origem animal; os seus seguidores praticam determi- alimentação saudável em qualquer idade: alimen-
nada filosofia para além das práticas estritamente ali- tação suficiente, completa, harmónica e adequada.
mentares: não usam peles, lãs ou sedas nem comem Estes erros a evitar têm particular relevância
mel. No entanto, as mães vegan em geral, amamen- no primeiro ano de vida, período fundamental de
tam, estando descritos, casos de raquitismo e de ane- aprendizagem, quer de boas, quer de más práti-
mia megaloblástica nos respectivos lactentes. cas; são salientados os seguintes:
Os regimes vegetarianos atípicos (que admi- • Não atender a que o apetite da criança varia
tem determinadas “propriedades metafísicas” de de refeição para refeição. Para além do que
determinados produtos) incluem a chamada prá- foi referido a propósito da alimentação com
tica macrobiótica com diferentes tipos de regimes, leite materno, a criança não deverá ser força-
desde o uso exclusivo de cereais, até à permissão da a terminar o biberão
de alguns produtos animais. • A noite “é para dormir”; mas, se a criança
De acordo com as regras gerais atrás explana- acordar “com fome”, a mamada ou biberão
das, o regime vegetariano exclusivo não é adequa- não deverão ser recusados
do em idade pediátrica, tratando-se dum período • Dar leite de vaca em natureza antes do 1 ano
da vida caracterizado pelo crescimento e desen- de idade
volvimento. Por exemplo, no que se refere às pro- • Administrar sal ou açúcar antes do 1 ano
teínas de origem vegetal, as mesmas são de valor • Administrar mel
biológico inferior ao das proteínas animais pelo teor • Introduzir novos alimentos diversificados
mais baixo em um ou mais aminoácidos essenciais. com intervalo inferior a 1 semana entre cada
Na perspectiva do dever ético de humanização um
e de respeito pelas diferenças culturais dos povos, • Forçar a criança a terminar a sopa de legu-
o clínico e o profissional de saúde em geral, res- mes “de que não gosta” logo nos primeiros
ponsáveis pela vigilância de saúde da criança ou dias, sem tentar que se adapte
adolescente (tendo especial atenção aos sintomas • Administrar farinha de cereais e sopa de
e sinais de determinadas carências) deverão escla- legumes por biberão
recer os pais sobre eventuais riscos e esclarecer-se • Substituir a sobremesa de fruta por doces ou
sobre o tipo de regime, mais ou menos restritivo compotas
que os pais desejam para a criança. • Substituir uma refeição com alimentos inte-
Determinadas deficiências em nutrientes grando proteínas, por fruta
poderão ter de ser corrigidas fazendo misturas de • Continuar a dar alimentos em puré, muito
diferentes vegetais. A inclusão de leite e ovos desfeitos e não granulosos, para além dos 9
afigura-se fundamental para compensar eventuais meses
carências em proteínas, ferro, cálcio e vitamina B12. • Não verificar o suprimento em ferro nem
Poderá igualmente estar indicada a suplemen- providenciar a sua eventual suplementação
tação em ácido fólico. no regime alimentar da criança que duplicou
No âmbito dos problemas de ordem nutri- o peso de nascimento, data em que as reser-
cional que traduzem défice ou excesso de nutri- vas de ferro se esgotam
entes foram abordadas já as seguintes situações • Idem nos casos em que a criança tenha sido
clínicas: síndromas de má nutrição energético- submetida a regime eventualmente desequi-
proteica, raquitismo carencial comum por défice librado e essencialmente farináceo-lácteo
de vitamina D, e cálcio e fosfato, carência de vita- • ”Premiar” a criança com doces, chocolates
mina A e obesidade. A anemia por carência de ou guloseimas em geral, na hipótese de a
ferro (ferripriva) será abordada na parte XVIII. refeição ter sido cumprida
• Dar refrigerantes em vez de água quando a
Erros alimentares mais frequentes criança tem sede, ou à refeição
• Dar leite (ou produtos lácteos como iogurte,
Enunciam-se alguns erros a evitar, os quais tradu- queijo, etc.) em quantidades excessivas (mais
zem o não cumprimento de regras fundamentais da de 1 litro por dia) ou menos de 400 ml/dia
352 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

61
• Abusar de fritos
• Não dar fruta e produtos hortícolas ao
almoço e jantar.

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www.mypyramid.gov – (acesso em Abril 2012) – por defeito: anorexia nervosa restritiva, inicial-
mente por recusa alimentar (sitiofobia), e depois
por perda de apetite (anorexia);
– por excesso: hiperfagia paroxística, ou seja,
bulimia(ou hiperorexia ou poliorexia);
– hiperfagia regular e compulsão alimentar
conduzindo a excesso de suprimento energético e
a obesidade.

Qualitativas
– incidindo sobre a sede e a ingestão de bebidas
(potomania);
– incidindo sobre substâncias não nutritivas
(pica, geofagia, coprofagia dos deficientes profun-
dos);
– incidindo sobre substâncias tóxicas(alcoolis-
mo, toxicomania);
– incidindo sobre a escolha de alimentos (veg-
etarianismo).

A anorexia nervosa (NA) e a bulimia nervosa


(BN) são situações que bem tipificam as alterações
CAPÍTULO 61 Alterações do comportamento alimentar 353

do comportamento alimentar. Contudo, de acordo – medo de a pessoa ganhar peso ou de se tornar


com a sistematização anterior, verifica-se que obesa, mesmo tendo peso inferior ao ideal (pertur-
existe um espectro variado doutras manifestações bação na apreciação do peso e da forma corporal);
que, não preenchendo os critérios de NA e BN(ver de tal resulta perda progressiva e desejada de peso.
adiante), integram fundamentalmente duas cate- – apreciação distorcida do peso e da imagem
gorias: alterações não especificadas (EDNOS, sigla corporal;
da literatura em inglês eating disorder no otherwise – amenorreia em pessoas do sexo feminino
specified) e comportamento compulsivo/purgativo pós-menarca considerando-se, como condição, a
(ou BED, sigla de binge eating disorder). ausência de, pelo menos, três ciclos menstruais
consecutivos.
Etiopatogénese São considerados dois subtipos:
– restritivo (abstenção voluntária de alimentos
De acordo com especialistas em psicopatologia, a ou restrição do suprimento energético).
designação de anorexia não é correcta; na ver- – compulsivo/purgativo (ingestão excessiva de
dade, o processo mórbido diz respeito, sim, a luta alimentos seguida auto-administração de laxan-
contra a fome. No estado actual dos conheci- tes, diuréticos, enemas, ou de provocação de vó-
mentos admite-se a comparticipação associada de mitos).
factores socioculturais, familiares, psicológicos Estima-se, segundo dados da literatura cientí-
(por ex. défice de auto-estima, ansiedade, depres- fica, maior frequência do tipo restritivo e entre
são), genéticos, etc.. adolescentes,em especial com idades compreendi-
Alguns casos estão associados a situações de das entre 13 e 18 anos. Diversos estudos em po-
disfunção familiar e a certos estereótipos de ideal pulações com idade média de 15 anos, apontam
de beleza e feminilidade associados a corpo magro. para taxas (entre 0,1 e 4,1%) sendo que mais de
Estudos recentes apontam para a hipótese de 90% dos casos ocorrem no sexo feminino.
certos genes determinarem maior predisposição
quanto a comportamento. Manifestações clínicas e diagnóstico
Embora não tenham sido implicados genes diferencial
específicos, diversos estudos demonstraram
níveis hormonais alterados de leptina, assim como O início do quadro clínico da AN passa frequente-
de neuropéptidos, designadamente serotonina. mente despercebido em fase inicial. Existe, em
Anteriormente julgava-se que as alterações do geral, uma atitude psicológica estereotipada : não
comportamento alimentar ocorriam apenas em reconhecimento sistemático dos sintomas, interes-
famílias de robusto poder económico nas culturas se por questões relacionadas com alimentos e
ocidentais; no entanto, estudos recentes têm identifi- regimes alimentares, esconder alimentos em
cado incidência semelhante em populações de cul- diversos locais, dividir alimentos em pequenas
tura dita oriental e de fracos recursos económicos. porções, preparar alimentos para outras pessoas
Neste capítulo procede-se à descrição da sem os saborear, não ter refeições na presença
anorexia nervosa (AN) e da bulimia nervosa (BN). doutros, observar o que os outros comem, etc..
Existem sempre dificuldades relacionais impor-
tantes, relações sociais pobres e vida sexual nula.
1. ANOREXIA NERVOSA Podem associar-se outros elementos: tomas
excessivas de laxantes e vómito provocado (o sinal
Definição e aspectos epidemiológicos de Russel ou cicatriz no dorso da mão por intro-
dução frequente desta na boca indicia tal).
De acordo com os critérios da DSM-IV, a síndroma Outras manifestações incluem: irritabilidade,
anorexia nervosa(AN) é uma perturbação do com- hiperactividade, alterações do humor, intolerância
portamento alimentar caracterizada por: ao frio e acrocianose, diminuição da líbido, etc..
– recusa em manter o peso corporal ideal ou A recusa alimentar com as consequências ine-
acima do peso mínimo para a idade e estatura; rentes de emagrecimento, em determinado contexto
354 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

clínico, conduzem à necessidade de diagnóstico QUADRO 1 – Anorexia nervosa


diferencial com outras situações tais como: SIDA,
doença neoplásica, síndroma da artéria mesentérica Alterações da homeostase térmica
superior, síndroma depressiva, esquizofrenia, etc.. Hipotermia
Alterações cardiovasculares
Evolução, complicações e exames Hipotensão, bradicárdia, diminuição da tolerância ao
complementares esforço, edema periférico
Alterações do SNC
A duração da síndroma pode durar anos, sendo que Atrofia cerebral
a regressão espontânea não é habitual; conclui-se, Alterações renais
pois, que o prognóstico é reservado considerando o Insuficiência pré-renal
risco vital (ver adiante síndroma de realimentação). Alterações hematológicas
O regresso da menstruação é frequentemente Anemia
considerado como uma verdadeira melhoria, Alterações gastrintestinais
salientando-se que apenas um em cada três doentes Atraso do esvaziamento gástrico, dilatação gástrica,
se cura definitivamente com a inserção social. défice de lipase e lactase intestinais
As principais complicações da AN implicam a Alterações endócrinas
realização de determinados exames comple- Défice hormonal (hormona luteinizante, estrogénio,
mentares (para apreciar a repercussão biológica progesterona, estimulante folicular, tiroxina, tri-iodo-
do estado de desnutrição e eliminar eventual tironina, etc)
causa orgânica), a planear caso a caso (Quadro 1). Excesso hormonal (tri-iodo-tironina reversa, cortisol,
GH, etc.)
Diabetes insípida
Tratamento
Alterações metabólicas e hidroelectrolíticas
Hipoglicémia, hipercolesterolémia, aumento do teor de
As medidas gerais do tratamento da AN(actuação
enzimas hepáticas, desidratação, hipocaliémia, etc..
multidisciplinar com o apoio fundamental da
Síndroma de realimentação
equipa de pedopsiquiatria) devem implicar uma
Hipofosfatémia (sinal cardinal)-consultar texto
relação com a pessoa doente, humanizada, muito
personalizada e compreensiva, mas firme; os
objectivos fundamentais são a recuperação do Ao abordar a intervenção nutricional no con-
peso adequado e a educação para a saúde sobre texto de anorexia nervosa, cabe uma referência
nutrição com a colaboração da família como forma especial à chamada síndroma de realimentação,
de motivação para o tratamento, evicção das recaí- na base da qual estão desvios de fluidos e elec-
das e tratamento da comorbilidade. trólitos decorrentes da intervenção referida, e em
Para a prossecução destes objectivos são adop- situação de má-nutrição grave.
tadas resumidamente as seguintes estratégias: Tal síndroma pode ocorrer nos casos de peso
para a altura < 80%, de altura para a idade < 85%,
Intervenção nutricional e de perda maciça de peso em situações de obesi-
Os incrementos de peso para se atingir o peso ade- dade, marasmo ou kwashiorkor. O sinal cardinal é
quado devem processar-se lentamente por etapas, hipofosfatémia. Com efeito, durante a realimen-
tornando-se necessário o internamento no período tação o suprimento de glucose origina secreção de
inicial. insulina que estimula a síntese de glicogénio, gor-
Em regime de internamento são programados dura e proteínas. De tal resultam:
incrementos da ordem de 800-1200 gramas/sema- – a entrada de potássio, magnésio e fosfato nas
na e, ulteriormente, em regime ambulatório, entre células, com consequentes hipofosfatémia,
250-500 gramas/semana. Na fase inicial o supri- hipopotassémia e hipomagnesiémia;
mento energético acompanhado de suplementos – lesão celular secundária podendo originar
vitamínicos deve ser da ordem de 30-40 kcal/kg/dia, arritmia cardíaca, disfunção cardíaca;
progredindo até cerca de 70-100 kcal/kg/dia. – em formas graves, paragem cardio-respi-
CAPÍTULO 61 Alterações do comportamento alimentar 355

ratória relacionável com diminuição do cálcio e vómito, abuso de laxantes, diuréticos, enemas,
magnésio séricos. jejum ou exercício físico excessivo;
A excessiva administração de glucose pode – ocorrência de ingestão alimentar compulsi-
levar a excesso de produção de CO2 e a insufi- va e de comportamentos de compensação com a
ciência respiratória. frequência de, pelo menos, 2 vezes por semana e
A carência em tiamina, que é habitual na má- durante, pelo menos, 3 meses;
nutrição grave, pode originar quadro de ence- – preocupação excessiva com o peso e a ima-
falopatia (estado confusional, ataxia, hipotermia, gem corporal;
coma) se a administração de glucose for rápida. São considerados dois subtipos:
Para a prevenção da síndroma de realimen- – purgativo (vómitos ou abuso de laxantes,
tação, há que respeitar certas regras, destacando: diuréticos e enemas);
a) avaliação seriada do estado hidroelectrolítico; – não purgativo (jejum ou exercício físico exces-
b) administração de tiamina antes da realimen- sivo pressupondo a não utilização de vómitos, de
tação; c) suprimento energético inicial lento abuso de laxantes, diuréticos e ou de enemas).
(<>60-70% das necessidades calculadas), com
incrementos graduais durante 3 a 4 dias. Manifestações clínicas e diagnóstico
diferencial
Intervenção psicoterapêutica
Este tipo de intervenção abrange a chamada te- No que respeita ao estado nutricional, as manifes-
rapia cognitivo-comportamental (técnicas de alte- tações de BN não são tão exuberantes como na
ração de comportamentos inadequados,reedu- AN; com efeito, os doentes com BN têm em mais
cação alimentar, etc.), psicoterapia individual ou de 80% dos casos peso normal. Raramente existe
de grupo, e orientação e/ou terapia familiar. obesidade, salientando-se que os episódios bulími-
cos nos obesos são pouco frequentes.
Intervenção psicofarmacológica Como manifestações mais típicas citam-se:
Este tipo de intervenção não colhe o consenso de perturbações gastrintestinais, como vómitos,
todos os especialistas. Em situações seleccionadas dores abdominais associadas frequentemente a
(e apenas após a fase de recuperação do peso) gastrite e esofagite, alterações da motilidade
pode utilizar-se fármacos inibidores de recaptação esofágica e gástrica, dilatação gástrica aguda, sín-
selectiva da serotonina com efeito nas pertur- droma do cólon irritável, alterações dentárias
bações do humor e ansiedade. (erosão do esmalte pela acção do suco gástrico),
risco aumentado de pancreatite, etc..
O perfil comportamental típico da pessoa com
2. BULIMIA NERVOSA BN é: mulher extrovertida, com carácter histérico,
vida sexual activa e muitas vezes dependende de
Definição e aspectos epidemiológicos drogas e/ou álcool.
O diagnóstico diferencial da BN faz-se com a
De acordo com os critérios da DSM-IV, a bulimia NA de tipo compulsivo/purgativo, síndroma
nervosa (BN) é uma perturbação do comportamen- depressiva atípica e perturbações da personalidade.
to alimentar definida por episódios recorrentes de A propósito e como nota de síntese importa reter a
ingestão alimentar compulsiva caracterizados por: seguinte noção: certos bulímicos são antigos anorécticos
– ingestão de grande quantidade de alimentos e cerca de metade dos anorécticos são bulímicos.
num período curto de tempo (até 2 horas), supe-
rior ao que a maioria das pessoas consideradas Complicações
normais comeria;
– sensação de incapacidade para controlar a As principais complicações da BN, nem sempre
quantidade e qualidade dos alimentos; fáceis de distinguir das próprias manifestações,
– comportamento de compensação no sentido (implicando, por vezes, a realização de determina-
de prevenir o incremento de peso: indução de dos exames complementares para apreciar a reper-
356 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

cussão sobre o estado geral e eliminar eventual perturbações do humor e ansiedade, e de fárma-
causa orgânica), são sistematizadas no Quadro 2. cos antidepressivos tricíclicos.
A evolução das perturbações, bem como a
Tratamento e evolução resposta ao tratamento, são muito variáveis(desde
muito boas a muito más).
As medidas gerais do tratamento da BN, que pode
ser efectivado em regime ambulatório (actuação BIBLIOGRAFIA
multidisciplinar com o apoio fundamental da American Psychiatric Association. DSM-IV.(edição em por-
equipa de pedopsiquiatria), devem implicar uma tuguês). Lisboa: Climepsi Editores, 1996
relação personalizada médico-doente, humaniza- Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics.
da e compreensiva, mas firme; os objectivos fun- Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
damentais são a alteração do padrão alimentar Goldstein MA, Dechant J, Beresin EV. Eating disorders. Pediatr
compulsivo e manobras purgativas, promover a Rev 2011; 32: 508-521
educação para a saúde sobre nutrição com a cola- Kliegman RM, Stanton BF et al (eds). Nelson Textbook of
boração da família como forma de motivação para Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
o tratamento, corrigir ideias pré-concebidas e ati- Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger, 2008
tudes disfuncionais, prevenção das recaídas e tra- Lask B, Bryant-Waught R. Anorexia Nervosa and Related
tamento da comorbilidade. Eating Disorders. London: Psychology Press, 2000
Para a prossecução destes objectivos são adop- Quevauvilliers J, Perlemuter L. Dicionário Ilustrado de
tadas resumidamente as seguintes estratégias: Medicina(edição em português). Lisboa: Climepsi Editores,
2003
Intervenção nutricional Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph´s Pediatrics.
Este tipo de intervenção consiste fundamentalmente New York: McGraw-Hill Medical, 2011
na promoção de regime alimentar equilibrado e
saudável com vista à manutenção de peso adequado.

Intervenção psicoterapêutica
Este tipo de intervenção abrange a chamada tera-
pia cognitivo-comportamental (técnicas de altera-
ção de comportamentos inadequados, reeducação
alimentar reduzindo,designadamente os regimes
restritivos, automonitorização da ingestão alimen-
tar, pesagem regular etc.), psicoterapia individual
ou de grupo, orientação e terapia familiar.

Intervenção psicofarmacológica
Este tipo de intervenção pode englobar, nomeada-
mente, a utilização de fármacos inibidores de
recaptação selectiva da serotonina com efeito nas

QUADRO 2 – Complicações da bulimia nervosa

Alterações gastrintestinais
Dilatação e perfuração gástricas, hérnia do hiato esofági-
co,perfuração esofágica, pneumomediastino.
Alterações hidroelectrolíticas e metabólicas
Desidratação, hiponatrémia, hipoclorémia, hipomagne-
siémia,alcalose metabólica,etc..
PARTE XII
Imunoalergologia
358 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

62
exposição a antigénios ambientais ocorre por
inalação, ingestão, contacto cutâneo ou por via
parentérica.
Alergénios – São antigénios que causam aler-
gia. Muitos dos alergénios que reagem com IgE e
IgG são proteínas.
DOENÇAS ALÉGICAS NA Sensibilização – Este termo, com significado
diferente de alergia, traduz o aparecimento de
CRIANÇA – EPIDEMIOLOGIA anticorpos IgE específicos para determinado aler-
génio no soro; isto é, o indivíduo fica sensibiliza-
E PREVENÇÃO do ao referido antigénio, não significando que é
alérgico a este. Quando um indivíduo é clinica-
J. Rosado Pinto mente alérgico, os anticorpos IgE ligam-se a recp-
tores à superfície dos mastócitos de modo que a
exposição a alergénios leva a activação destes com
libertação de mediadores (histamina, prostaglan-
Importância do problema dinas, leucotrienos, etc.), e a sintomas (reacção
alérgica IgE mediada).
As doenças alérgicas correspondem a um tipo de Atopia – É uma tendência pessoal ou familiar
patologia que, pela sua frequência e importância, frequente na infância e na adolescência para se
estão na primeira linha no grupo etário pediátrico. ficar sensibilizado e produzir IgE em resposta a
Cerca de 35% da população europeia apresen- uma exposição a alergénios. Como consequência,
ta sintomas alérgicos e a tendência é para o seu nestes individuos podem desenvolver-se sin-
aumento, fruto do estilo de vida que caracteriza as tomas característicos de asma, rinoconjuntivite e
populações dos países industrializados. eczema. Os termos "atopia" e "atópico" devem ser
É importante referir o efeito das reacções alér- reservados para descrever uma predisposição
gicas no comportamento emocional e social dos genética (genes indutores) para sensibilização a
doentes e suas famílias. alergénios comuns durante uma exposição ambi-
ental sendo que, na maioria dos individuos, não se
Nomenclatura produz uma resposta prolongada mediada por
IgE.
Actualmente existe uma nomenclatura interna- Hipersensibilidade – Corresponde a um con-
cionalmente aceite e publicada pela European junto de sinais ou sintomas (reacções adversas)
Academy of Allergology and Clinical Immunology objectivamente reprodutíveis e desencadeados
recentemente actualizada pela World Allergy pela exposição a um estímulo definido tolerado
Organization que permite definir com rigor o sig- pelos indivíduos ditos normais ou saudáveis.
nificado dos termos e patologias mais frequente-
mente ligados à alergia. Discrimina-se seguida- De acordo com a classificação de Gell e Coombs são descritos os seguintes tipos
mente o significado de alguns termos relaciona- clássicos de hipersensibilidade: Tipo I (ou hipersensibilidade imediata): resul-
tante da produção de IgE contra um antigénio; estas imunoglobulinas fixam-
dos com esta problemática; algumas situações são se na membrana de mastócitos e de basófilos. A ulterior reacção antigénio-IgE
leva à desgranulação das referidas células com libertação de mediadores far-
definidas com mais pormenor noutros capítulos macologicamente muito activos. Constituem paradigmas deste mecanismo
desta Parte XII. patogénico a asma brônquica, a rinite alérgica e o eczema atópico; Tipo II(ou
hipersensibilidade citotóxica): resultante do facto de existir um antigénio
Alergia – É uma reacção de hipersensibilidade ini- estrutural que é “atacado”por um anticorpo específico;como consequência
verifica-se fagocitose das células ou a sua lise, em geral com a mediação do
ciada por mecanismos imunológicos a qual pode complemento; Tipo III (ou hipersensibilidade mediada por imunocomplexos)
ser mediada por anticorpos ou células, sendo na resultante da formação de grande quantidade de moléculas de antigénio-anti-
corpo as quais, não sendo adequadamente removidas pelos mecanismos habi-
grande maioria dos casos o anticorpo responsável tuais de fagocitose do SRE, precipitam em determinados órgãos como rins,
articulações, pele, originando respectivamente quadros clínicos diversos como
pela reacção alérgica pertencente ao isotipo IgE. glomerulonefrite, arterite e vasculite; Tipo IV (ou hipersensibilidade retarda-
Os indíviduos afectados podem ser referidos da): resultante da produção de linfocinas por linfócitos T sensibilizados em
relação a determinados antigénios. Constituem paradigmas deste tipo de
como sofrendo de uma alergia mediada por IgE. A resposta imune a reacção tuberculínica e o eczema de contacto alérgico.
CAPÍTULO 62 Doenças alérgicas na criança – Epidemiologia e prevenção 359

Hipersensibilidade não alérgica – É o termo Ao centrarmos a análise comparativa dos


preferido para descrever reacção adversa ou resultados globais nas mesmas regiões da popu-
hipersensibilidade na qual não é possível demon- lação inquirida que já teve pieira (sintomas -
strar a presença de mecanismos imunológicos. sibilância recorrente), asma (diagnóstico médico),
Asma (definição do Grupo GINA - Global rinite (sintomas) ou eczema (diagnóstico médi-
Initiative for Asthma) – É uma doença inflamatória co/sintomas) verificamos no grupo de 6-7 anos:
crónica das vias aéreas na qual intervêm muitas
células particularmente mastócitos, eosinófilos e 1995 2002 Valor-p
células T. Nos indivíduos susceptíveis esta infla- Pieira 28,2% 28,1% 0.936
mação provoca episódios recorrentes de pieira, Asma 11% 9,4% 0.008
dispneia, retracção torácica e tosse, os quais podem Rinite 23,8% 29,1% <0.001
ser parcial ou totalmente reversíveis, espontanea- Eczema 11,2% 14,1% <0.001
mente ou por tratamento. A asma alérgica é media-
da por mecanismos imunológicos, particularmente
IgE, ao contrário da asma não alérgica. Quando comparamos populações de 6-7 anos
Rinoconjuntivite – Situação em que há sin- inquiridas que tiveram pieira, asma, rinite ou
tomas de reacção de hipersensibilidade mediada eczema nos últimos 12 meses, foram obtidos os
imunologicamente com tradução clínica nas fos- seguintes resultados:
sas nasais e conjuntiva, na maioria das vezes me-
diada por IgE. 1995 2002 Valor-p
Pieira 12,9% 12,9% 0.983
A realidade nacional Rinite 19,9% 24% <0.001
Eczema 13,9% 15,6% 0.013
O estudo da prevalência das doenças alérgicas de
crianças em Portugal e no mundo está actualmente Em relação ao grupo de 13-14 anos foram obti-
bem caracterizado através do projecto ISAAC dos os seguintes resultados:
(International Study of Asthma and Allergies in
Childhood) que foi executado ao longo de 10 anos 1995 2002 Valor-p
envolvendo mais de um milhão de jovens em mais Pieira 18,2% 21,8% <0.001
de 60 países entre 1993 e 2003. Ele teve por objecti- Asma 11,8% 14,7% <0.001
vo desenvolver a investigação epidemiológica sobre Rinite 30,2% 37,1% <0.001
asma, rinite, conjuntivite e eczema atópico através Eczema 11,7% 12,7% <0.014
da padronização a nível de definições dos casos e da
metodologia utilizada com base em questionários, Na comparação das populações inquiridas de
podendo comparar diferentes países e centros de 13-14 anos que declararam ter tido pieira, asma,
cada país. Composto por 3 fases, foi concebido de rinite ou eczema nos últimos 12 meses, os resulta-
forma a poder comparar populações quanto à dos foram:
prevalência desta doença em todo o mundo. Um
dos objectivos mais importantes foi examinar as 1995 2002 Valor-p
tendências temporais de prevalência da asma, Pieira 9,2% 11,8% <0.001
rinoconjuntivite alérgica e eczema atópico ao longo Rinite 21,2% 26,5% <0.001
de 8 anos (centros que cumpriram as fases I e III). Eczema 7,6% 8,7% 0.002
Em Portugal o estudo envolveu na fase I (entre
1993/95) 5036 jovens de 6-7 anos provenientes de Da análise dos valores nacionais mais signi-
207 escolas, e em 11.427 jovens de 13-14 anos, oriun- ficativos sobre o estudo do inquérito ambiental e
dos de 84 escolas. Na fase III (2002) o grupo de 6-7 estilo de vida realizado em 2002 salientamos, com-
anos envolveu 9081 jovens tendo participado 408 parando os grupos de 6-7 e 13-14 anos (Quadro 1):
escolas. O grupo de 13-14 anos era oriundo das mes- A análise dos resultados obtidos revela um
mas regiões e envolveu 12.905 jovens de 142 escolas. aumento global da prevalência das doenças
360 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Projecto ISAAC (Portugal): Resultados do inquérito sobre ambiente e estilos de vida

6-7 anos 13-14 anos


a) Alimentação nos últimos 12 meses
carne: três ou mais vezes por semana 65,8% 49%
peixe: três ou mais vezes por semana 44,8% 39,3%
fruta: três ou mais vezes por semana 82,3% 66,5%
vegetais: três ou mais vezes por semana 52% 37,7%
cereais (incluindo pão): três ou mais vezes por semana 84,8% 71,0%
arroz: três ou mais vezes por semana 58,2% 48,1%
manteiga: três ou mais vezes por semana 55,2% 37,2%
leite: três ou mais vezes por semana 86,9% 75,1%
ovos: três ou mais vezes por semana 18,5% 17,9%
“fast-food”, hamburgers três ou mais vezes por semana 3,2% 8,5%
uma vez por semana 18,6% 40,5%
aleitamento materno 78,5%
b) Actividade física – 3 vezes por semana ou mais 9,3% 22,5%
c) Horas de televisão - 3 ou mais horas/dia 17,3% 31,3%
d) Antibióticos no primeiro ano de vida 54,9%
e) Nível de escolaridade da mãe da criança:
básico 27% 39%
secundário 34% 32%
universitário 19,3% 21,9%
f) Gato em casa no primeiro ano de vida 9,3%
Gato em casa nos últimos 12 meses 15% 25,2%
g) Cão em casa no primeiro ano de vida 22%
Cão em casa nos últimos 12 meses 29,6% 49,3%
h) Mãe fumadora no primeiro ano de vida 15,6%
Percentagem de não fumadores no agregado familiar 36,7% 34,3%

alérgicas do grupo 13-14 anos no país, o que se Prevenção


atribui provavelmente a uma mudança de
hábitos que leva muitos jovens a preferir cada O aumento de prevalência das doenças alérgicas e
vez mais uma actividade localizada dentro de o facto de se tratar de doenças de elevada morbi-
casa (computador e televisão) e a um aumento lidade, sobretudo na idade pediátrica, levou a
da utilização de comida rápida/hamburgers uma progressiva preocupação sócio-sanitária e
com consequente maior susceptibilidade para económica com este problema. A utilização de
as doenças alérgicas, respiratórias e de normas profilácticas genéricas, sobretudo na aler-
expressão cutânea. Ao contrário, no grupo dos gia respiratória, levou a que uma maior infor-
6-7 anos, o facto de não haver ao longo dos anos mação fosse difundida entre as populações, sobre-
um aumento da prevalência de asmáticos pode tudo no que se refere à exposição aos agentes em
atribuir-se a um melhor conhecimento, pelos meio habitacional.
familiares (responsáveis pelos inquéritos neste Como observámos anteriormente, a tendência
grupo etário) e pelos profissionais de saúde, em Portugal acompanhando os países industria-
acerca dos problemas relacionados com as lizados, para uma cada vez maior exposição
doenças alérgicas em geral, e do modo de fazer alergénica e desenvolvimento de uma sensibili-
a sua prevenção, particularmente nas crianças dade alérgica dentro de casa, é fruto de uma pro-
de risco. gressivo estado de vida sedentário da criança que
CAPÍTULO 62 Doenças alérgicas na criança – Epidemiologia e prevenção 361

cada vez mais utiliza o seu tempo livre em frente (ISAAC) Steering Committee, Worldwide variations in the
da televisão e do computador. Por outro lado, a prevalence of asthma symptoms. Eur Resp J. 1998; 12: 315-
cada vez mais precoce frequência de infantários 335
por crianças mais pequenas, localizados em Johansson SG, Brebeu T, Dahl R, et al. Revised nomenclature
habitações que não estão, na maioria das situ- for allergy for global use: Report of the Nomenclature
ações, devidamente preparadas para receber tan- Review Committee of the World Allergy Organization.
tas crianças, leva a preocupações acrescidas, JACI 2004; 113: 832-836
devendo incidir-se atenção especial sobre as Johansson SG, Hourihene J, Bousquet J, et al. A revised nomen-
condições em que se encontram as salas onde per- clature for allergy - An EAACI pontion statement from the
manecem aquelas. É, no entanto, no quarto de EAACI nomenclature task force. Allergy 2001; 56: 813-824
dormir onde o jovem passa cerca de um terço da Kulif M, Bergmann R, Klettke U, et al. Natural course of sensi-
sua vida (± 8 horas/dia), que devem centrar-se tization to food and inhalant allergene during the first 6
mais as nossas preocupações. years of life. J Allergy Clin Immunol 1999; 103: 173
Os 3 níveis de prevenção: primária – que pro- Lopes da Mata P. Prevenção e ambiente: o que resulta a vários
move a prevenção de atopia; secundária – que níveis, in A Criança Asmática no Mundo da Alergia.
promove a prevenção das sensibilizações já exis- Rosado Pinto J, Morais de Almeida M (eds). Lisboa:
tentes e que são consequência da aptidão genética Euromédice, 2003; 319-336
e da exposição a alergénios; e a terciária que não é Nunes C, Ladeira S, Rosado Pinto J. Definição epidemiológica
mais que a prevenção das consequências clínicas e classificação da asma na criança, in A Criança Asmática
motivadas pelas manifestações alérgicas, devem no Mundo da Alergia. Rosado Pinto J, Morais de Almeida
ser tratados em conjunto. De um modo geral as M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 35-55
medidas ambientais exequíveis nos referidos Rosado Pinto J (ed). ISAAC – 20 anos em Portugal. Acta
níveis de prevenção passam por uma boa identifi- Pediatr Port 2011; 42: S25 – S48
cação dos alergénios em causa.
A sensibilização na criança ocorre geralmente
nos primeiros meses e até aos 2 anos, através de
alergia alimentar sobretudo às proteínas do leite
de vaca e ovos; a sensibilização IgE específica para
os alergénios alimentares é detectável em cerca de
10% das crianças de 1 ano de idade. Os alergénios
inalantes aparecem geralmente a partir dos 3
anos, passando a sensibilização a ser particular-
mente evidente aos ácaros do pó da casa, animais
domésticos, pólens e fungos; com efeito a rinite e
a asma alérgica passam a ter uma expressão clíni-
ca muito mais significativa que as alergias de
expressão cutânea.

BIBLIOGRAFIA
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Nature immunol Rev 2004; 4: 978-988
European Allergy White Book. Bruxelas: UCB Institute of
Allergy, 1997
Costa Trindade J A Marcha Alérgica, in A Criança Asmática no
Mundo da Alergia. Rosado Pinto J, Morais de Almeida M
(eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 31-34
Global Initiative for Asthma. New York: National Institute of
Health, 2002
The International Study of Asthma and Allergies in Childhood
362 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

63
tomas e circunstâncias do seu aparecimento; a pre-
sença de factores desencadeantes, como esforço físi-
co, exposição a alergénios (pó, pólens, esporos de
fungos, pêlos de animais, látex, etc.) ou ingestão de
alimentos ou fármacos; a frequência, duração e
gravidade dos sintomas, incluindo recursos ao
ASPECTOS DO DIAGNÓSTICO serviço de urgência e internamentos; as terapêuticas
efectuadas, sua eficácia e eventuais reacções adver-
DA DOENÇA ALÉRGICA sas; a variabilidade circadiana e sazonal dos sin-
tomas; o impacte sobre o estilo de vida, incluindo
Ângela Gaspar tolerância ao exercício, períodos de interrupção do
sono, perturbação de afectos familiares e sociais, e
grau de absentismo escolar. Os antecedentes pes-
soais da criança, nomeadamente a coexistência de
Aspectos básicos de imunopatogénese outras doenças alérgicas e os antecedentes familiares
de alergia apoiam o diagnóstico de doença alérgica.
O papel fundamental do sistema imune é proteger Pela anamnese deverá também inquirir-se sobre o
o organismo (hospedeiro) contra patogénios contexto ambiental em que a criança se movimenta,
microbianos e, ao mesmo tempo, manter a particularmente em termos de exposição alergénica,
tolerância de antigénios (do próprio organismo e tabagismo passivo e exposição a outros poluentes
exógenos) considerados não agressivos ou em ambiente doméstico ou fora de casa.
“inofensivos”. A disfunção deste processo conduz A sensibilização precoce na criança, por via
a respostas imunes deficientes com consequente digestiva ou inalatória, desencadeia o início da
sensibilidade aumentada a infecções; por outro chamada marcha alérgica. Segundo este conceito
lado,a falência do mecanismo de tolerância resulta clássico, como foi referido antes, a expressão clíni-
em alergia ou autoimunidade. ca da atopia varia durante a vida, iniciando-se na
Ao nível celular as células dendríticas e os lin- primeira infância sob a forma de alergia alimentar
fócitos T desempenham papel crucial na home- e dermatite atópica, com evolução ulterior, variá-
ostase imune. A este respeito salienta-se a diferen- vel segundo a experiência de vários autores, para
ciação das células T nativas em três subtipos (Th alergia respiratória, rinite e asma.
ou T”helpers”): Th1, Th2 e Th17. Algumas particularidades clínicas das doenças
As células Th1, produzindo interferão gama, e tendo alérgicas mais prevalentes na criança serão em
papel importante de cooperação na produção de anti- seguida sucintamente referidas, como comple-
corpos IgG, são essenciais na defesa contra patogénios mento do que foi referido a propósito da “Nomen-
intracelulares (vírus e bactérias). As células Th2, pro- datura das doenças” (Capítulo 62).
duzindo IL-4 e IL-13, essenciais para a produção de IgE Asma: Asma é uma situação clínica caracteriza-
pelas células B, têm papel crucial na defesa contra da por episódios recorrentes de tosse, pieira e difi-
infecções parasitárias. culdade respiratória, parcial ou completamente
As recentemente descobertas células Th17, em reversíveis, espontaneamente ou após terapêutica
associação a IL-17, desempenham papel impor- com broncodilatador; queixas induzidas pelo exer-
tante na mobilização dos neutrófilos, sendo essen- cício físico e tosse crónica, podem ocorrer isolada-
ciais contra certos patogénios como fungos(espe- mente. Apoiam o diagnóstico, a periodicidade dos
cialmente Candida). sintomas, a sintomatologia nocturna, o agrava-
mento com esforço físico, ar frio e exposição a
Anamnese alergénios, a resposta favorável à terapêutica bron-
codilatadora, e a história familiar de asma parental
O diagnóstico da doença alérgica baseia-se essen- e pessoal de rinite e dermatite atópica.
cialmente na história clínica. A anamnese é funda- Rinite alérgica: os sintomas incluem rinorreia
mental e deve esclarecer: a idade de início dos sin- serosa, prurido nasal, espirros paroxísticos e obstrução
CAPÍTULO 63 Aspectos do diagnóstico da doença alérgica 363

nasal (como aspecto característico na ausência de proces- Dermatite atópica: é frequente verificar-se
sos infecciosos). A coexistência de sintomas oculares xerose cutânea e localização das lesões eritema-
alérgicos (prurido ocular, lacrimejo) apoia fortemente tosas/exsudativas/descamativas na face, flexuras
este diagnóstico. A variabilidade sazonal, bem como a e superfícies de extensão, por vezes com liquenifi-
relação com a exposição alergénica com agravamento no cação; podem também observar-se queratose
ambiente fora de casa é característica das polinoses. pilar, reforço das pregas palmares, queilite, der-
Dermatite atópica ou síndroma eczema/der- matose plantar e pitiríase alba.
matite atópica (SEDA): inflamação local da pele. Rinite alérgica: fácies característica da criança
Esta situação surge, habitualmente, após os 3 com obstrução nasal crónica, com respiração oral
meses de vida e caracteriza-se pelo prurido cutâ- com boca entreaberta, existência de prega atópica
neo intenso, que tipicamente se agrava após o nasal e olheiras; a observação das fossas nasais
banho, com a sudação e durante a noite, e pela permite-nos visualizar habitualmente, para além
distribuição e morfologia típica das lesões da rinorreia aquosa, hipertrofia e palidez da
cutâneas, com evolução crónico-recidivante. mucosa dos cornetos inferiores.
Como na asma, o eczema surgindo em indivíduos Conjuntivite alérgica: são aspectos característica a
atópicos chama-se eczema atópico. hiperémia e a quemose (edema) conjuntivais, secreção
Alergia alimentar: trata-se da associação entre a serosa e frequentemente edema palpebral, habitual-
ingestão alimentar e o aparecimento dos sintomas; a mente bilateral; a observação da conjuntiva tarsal pode
forma de manifestação clínica mais frequente é evidenciar a presença de papilas.
mucocutânea, com urticária e angioedema; no entan- Anafilaxia, urticária e angioedema: trata-se de
to, os sintomas podem variar desde síndroma de situações que têm como base comum um quadro
alergia oral a reacção anafiláctica grave. O número de fisiopatológico que resulta da activação dos mas-
alimentos implicados é habitualmente limitado, tócitos mediada por IgE, resultando na libertação
exceptuando situações em que ocorrem fenómenos de histamina, leucotrienos e outros mediadores
de reactividade cruzada. Existem classicamente três dos mastócitos. No caso especial da anafilaxia,
grandes síndromas de reactividade cruzada entre cabe referir que em tal fenómeno está envolvido
determinados alergénios inalados e alimentares, que um antigénio que determina a produção de anti-
é importante conhecer, pela potencial gravidade de corpos constituídos por IgE, que se fixam sobre a
algumas das reacções adversas alimentares: síndro- membrana celular dos mastócitos e dos basófilos, e
ma ácaros-mariscos, síndrome látex-frutos e síndro- aí permanecem. Quando o antigénio se liga ulte-
ma pólens-frutos. Nestas circunstâncias as reacções riormente a este anticorpo ocorre destruição da
tendem a não ser graves, sendo a alergia oral a forma célula com libertação de mediadores aí existentes.
típica de apresentação clínica (Capítulo 68). A urticária e o angioedema, abordados com mais
pormenor no capítulo 66, manifestam-se funda-
Exame físico mentalmente por sinais mucocutâneos; a anafila-
xia traduz-se por reacção sistémica aguda que
O carácter intermitente da doença alérgica, de um pode levar a colapso cardiovascular (taquicardia,
modo geral, determina que na maioria das situa- hipotensão, perda de consciência e choque).
ções o exame físico da criança seja normal. Alguns
sinais característicos que podem ser detectados ao Exames complementares
realizar o exame físico são em seguida descritos. de diagnóstico in vivo
Asma: durante uma exacerbação pode veri-
ficar-se taquipneia, utilização dos músculos Testes cutâneos
acessórios da respiração, hiperinsuflação torácica, Os testes cutâneos por picada ou “prick” cons-
prolongamento do tempo expiratório e sibilos na tituem o método diagnóstico de eleição no estudo da
auscultação pulmonar; situações mais graves sensibilização alergénica, inclusive em idade pe-
podem cursar com cianose, diminuição generali- diátrica, pela facilidade de execução, rapidez de
zada do murmúrio vesicular e alterações do esta- obtenção de resultados, segurança, baixo custo e ele-
do de consciência (Capítulo 62). vada sensibilidade. No entanto, contrastando com a
364 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

facilidade de execução, estes testes podem ser influ- evidência de sensibilização alergénica foi identifi-
enciados por diversos factores, pelo que é impre- cada em vários estudos prospectivos como factor
scindível que a sua interpretação seja efectuada por de risco de persistência da sintomatologia respi-
especialista e sejam realizados com uma metodolo- ratória, isto é, de asma activa em idade escolar, com
gia correcta, obedecendo a normas padronizadas. elevado valor preditivo positivo, com valor diag-
A utilização dos testes cutâneos por picada per- nóstico e prognóstico da asma na criança. Assim, o
mite a identificação, se existente, do alergénio sen- factor etário não deve ser um factor limitante para
sibilizante. A introdução do alergénio nas camadas a execução dos testes cutâneos na criança, devendo,
superficiais da pele leva ao aparecimento de uma pelo contrário, ser considerados como rotina na
reacção imediata, dependente da desgranulação investigação de atopia. Os testes cutâneos por pica-
dos mastócitos e envolvendo também factores neu- da negativos permitem excluir a presença de atopia
rogénicos, com libertação de histamina e outros e, deste modo, evitar a utilização de medidas de
mediadores originando uma resposta de pápula e evicção de alergénios não apropriadas.
eritema; esta resposta visível é máxima aos 15 min- Apesar de identificarem a sensibilização a
utos, regredindo habitualmente aos 30 minutos. determinado alergénio, os referidos testes cutâ-
Os testes cutâneos podem ser influenciados por neos não permitem avaliar a sua relevância clínica
uma série de variáveis, que podem determinar os se valorizados independentemente da história
resultados e condicionar a precisão dos mesmos, clínica. A presença de testes cutâneos positivos em
tais como: factores técnicos, factores biológicos e pacientes assintomáticos pode ser factor de risco
factores externos não alérgicos. Os factores técni- de início de sintomatologia alérgica, mas não iden-
cos estão relacionados com a preparação do tificam, por si só, doença. Ou seja, os conceitos de
alergénio (potência, qualidade, composição e esta- sensibilização alergénica ou atopia e doença alérgi-
bilidade) e com a metodologia do teste. Os factores ca são distintos e independentes. No entanto, na
externos não alérgicos incluem fármacos, como presença de clínica sugestiva, a relação entre os
anti-histamínicos, e condições patológicas inter- testes cutâneos por picada positivos e as provas de
correntes, como neoplasias, infecções, exacerbação provocação específicas é altamente significativa.
de eczema, que podem inibir a reactividade Na alergia alimentar os testes cutâneos devem
cutânea. Os factores biológicos incluem a idade do ser realizados com os alergénios alimentares identi-
indivíduo, o factor racial e a variação sazonal rela- ficados como suspeitos pela história clínica. Os
cionada com a exposição alergénica. alergénios alimentares mais frequentemente impli-
A selecção dos extractos alergénicos a utilizar cados também variam com a população estudada.
deve estar de acordo com a história clínica e a fre- Na nossa população, em idade pediátrica, o leite e
quência de sensibilizações alergénicas na popu- o ovo são os mais importantes, seguidos do peixe,
lação. Na nossa população os alergénios mais trigo e amendoim. Os referidos testes apresentam
importantes em crianças com sibilância recorrente um excelente valor preditivo negativo, mas baixo
são os ácaros do pó (Dermatophagoides pteronysinus valor preditivo positivo, pelo que, exceptuando os
e Dermatophagoides farinae), mesmo no grupo casos em que haja uma íntima associação entre a
etário abaixo dos 3 anos de idade. Outros aeroa- ingestão do alimento e o aparecimento das queixas
lergénios comuns poderão estar implicados, ou uma reacção anafiláctica grave, a positividade
nomeadamente pólens de gramíneas, parietária, dos mesmos apenas serve para seleccionar os ali-
outras herbáceas e árvores localmente relevantes, mentos com os quais deverão ser efectuadas provas
de animais, particularmente gato, cão, baratas, e de provocação. A utilização de testes cutâneos com
de fungos (Arpergillus, Cladosporium e Alternaria). o alimento na forma natural pode ser necessária
Podem ainda ser incluídos outros testes segun- nalgumas situações, particularmente na suspeita
do a localização geográfica ou em presença de de alergia a frutos frescos, legumes e mariscos,
dados particulares fornecidos pela história clínica. quando persistir a suspeita clínica, e o extracto
Habitualmente, através da utilização de um comercial não estiver disponível ou for negativo.
número limitado de aeroalergénios comuns é pos- Os testes cutâneos intradérmicos são mais
sível confirmar ou excluir a presença de atopia. A invasivos, e menos específicos; o risco de ocorrên-
CAPÍTULO 63 Aspectos do diagnóstico da doença alérgica 365

cia de reacções adversas graves em cerca de 2% para demonstrar a existência de hiperreactividade


dos casos, contraindica a sua utilização por rotina. brônquica, recorre-se a provas boncoconstritoras.
A sua utilização deve, pois, ser reservada a situa- A prova de esforço é particularmente importante,
ções para avaliação de alergia medicamentosa, pela sua fácil exequibilidade e por apresentar uma
como na suspeita de alergia à penicilina, e alergia elevada especificidade para o diagnóstico de
a veneno de himenópteros, nomeadamente abelha asma, nomeadamente na criança, permitindo, se
e vespa. Estes testes apresentam um elevado valor positiva, (ou seja quando ocorre uma redução do
preditivo negativo, ou seja quando negativos per- VEMS ≥ 10% após a realização do esforço normali-
mitem excluir a presença de sensibilidade IgE- zado) confirmar o diagnóstico.
mediada, na grande maioria dos doentes. A prova da metacolina apresenta uma baixa
Caso não seja possível a realização dos testes especificidade, sendo positiva em várias situações
cutâneos, esteja limitada a sua interpretação por que apresentam hiperreactividade brônquica tais
existência de dermografismo, de diminuição da como fibrose quística, bronquiectasias, insuficiência
reactividade cutânea, ou seja necessário o esclare- cardíaca e infecções víricas. Salienta-se, no entanto,
cimento de casos discordantes ou duvidosos, de- o seu elevado valor preditivo negativo. Esta prova
verá ser efectuada a determinação sérica de IgE considera-se positiva quando ocorre uma redução
específicas. No entanto, salienta-se, a menor sensi- do VEMS ≥20%. Outras provas de provocação
bilidade diagnóstica e o custo mais elevado dos avaliam a hiperreactividade brônquica a estímulos
testes in vitro (Quadro 1). como a água destilada, soluções hiperosmolares
como o manitol e hiperventilação de ar seco e frio.
Provas de provocação A prova de provocação brônquica com alergénio
1. Provas de provocação brônquica: no período não é habitualmente utilizada, excepto em estudos
intercrítico a avaliação respiratória da criança de investigação; só deve ser efectuada em circun-
asmática apresenta-se frequentemente dentro de stâncias especiais e sempre em ambiente hospitalar,
parâmetros de normalidade funcional e, muitas pois desencadeia uma resposta imunológica imedi-
vezes, para confirmar o diagnóstico de asma, há que ata e tardia, com riscos acrescidos.
se recorrer a provas de broncomotricidade as quais 2. Provas de provocação oral: são administradas
podem ser broncodilatadoras ou broncoconstritoras. por via oral doses crescentes do alergénio suspeito
A prova de broncodilatação é habitualmente com intervalos regulares, até ao aparecimento de
efectuada no decurso do estudo da função respi- reacção, ou até ser atingida uma dose cumulativa
ratória, por espirometria ou pletismografia corpo- correspondente à quantidade ingerida habitual-
ral. Nesta prova avalia-se o grau de reversibilidade, mente numa refeição, ou à dose terapêutica diária,
15 minutos após inalação de um β -agonista de curta
2 consoante se trate de prova de provocação alimen-
acção. Considera-se a prova positiva quando há um tar ou medicamentosa. Na criança habitualmente
aumento do VEMS (volume expiratório máximo no são realizadas segundo um protocolo aberto; no
primeiro segundo) de ≥ 12% ou ≥ 200ml em relação entanto, em determinadas situações, nomeada-
ao valor basal. A existência de uma prova positiva mente se as queixas referidas forem subjectivas,
permite efectuar o diagnóstico de asma. poderá justificar-se a utilização de protocolo com
Em indivíduos com sintomatologia atípica, ocultação. Estas provas são utilizadas para confir-
quando os parâmetros funcionais são normais, mação ou exclusão do diagnóstico de alergia ali-

QUADRO 1 – Testes cutâneos por picada e testes séricos de IgE específica: vantagens

Testes cutâneos (in vivo) Testes séricos de IgE específica (in vitro)
Económicos Independentes da interferência de fármacos que inibem a reactividade cutânea
Resultados imediatos Não influenciados por dermografismo ou doenças cutâneas
Valor educacional Totalmente seguros
Maior sensibilidade Maior especificidade Nota: Teste sinónimo de Prova
366 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

mentar e medicamentosa. Estes procedimentos só A concentração de IgE total, relacionada com a


devem ser realizados em ambiente hospitalar, idade, aumenta progressivamente até aos 5 anos,
geralmente em regime de hospital-de-dia, tendo mantém-se sem grandes alterações até aos 15 anos,
disponíveis os meios terapêuticos necessários para para estabilizar cerca dos 20 anos. É um teste de baixo
a eventualidade de reacção sistémica, com a super- custo e rápido. No entanto, o facto de uma
visão de especialistas experientes nesta área. determinação de IgE total evidenciar valores normais
Na abordagem da alergia alimentar em idade não significa que não haja aumento de alguma IgE
pediátrica, habitualmente transitória, as provas de específica nem que seja excluída doença alérgica.
provocação, para além da finalidade diagnóstica, Alguns estudos prospectivos têm documentado para
são imprescindíveis para determinar o momento este teste, um maior valor prognóstico do que
em que se obtém a tolerância ao alimento; neste diagnóstico, nomeadamente na criança asmática.
caso, a calendário das provas deve ser feito tendo Valores superiores à média +2 desvios-padrão
em conta o quadro clínico apresentado, o conhe- indiciam probalidade de 95% de atopia.
cimento existente sobre a história natural da sen- Para o doseamento de IgE total no sangue
sibilização ao alimento implicado, e a evolução utilizam-se métodos radio-imunológicos (PRIST e
dos níveis de IgE específica sérica. RAST) e imuno-enzimáticos (ELISA).
3. Provas de provocação por contacto: consistem Os níveis de IgE no cordão umbilical foram
na provocação por contacto com o alergénio sus- propostos e utilizados como factor preditivo da
peito. Salienta-se a prova de provocação com ocorrência de doença alérgica. Este entusiasmo
material contendo látex, habitualmente luva de inicial não foi, no entanto, apoiado por estudos
látex ou balão, que pode ser necessária em deter- mais recentes, revelando-se um método pouco
minadas situações em que haja suspeita de alergia sensível; por outro lado não permite também pre-
ao látex, nomeadamente quando se torna neces- ver o tipo de doença alérgica.
sário confirmar a existência de sintomas em doen-
tes sensibilizados ao mesmo. IgE específica
Outras provas de provocação específicas, De acordo com o que foi referido no capítulo 62 a
nomeadamente nasais e conjuntivais, podem ser propósito de “sensibilização”, o teste IgE específico,
efectuadas com o alergénio suspeito, mas habi- só por si, não pode ser usado para o diagnóstico de
tualmente a sua utilização é limitada a estudos de alergia mediada por IgE porque a verificação de IgE
investigação. específica sérica não significa que a criança seja ne-
cessariamente alérgica. A situação deve, pois, ser
Exames complementares interpretada em conjunção com a história clínica.
de diagnóstico in vitro A identificação do alergénio suspeito, para
além de poder ser efectuada pelos testes cutâneos,
IgE total pode também ser efectuada por métodos in vitro,
O doseamento da IgE total sérica é um teste de que permitem determinar as concentrações de IgE
baixas especificidade e sensibilidade no diagnósti- específica para um determinado alergénio. O
co da doença alérgica. Para a generalidade dos primeiro método desenvolvido para o doseamento
autores, e de acordo com estudos efectuados em de IgE específica foi o RAST (Radio Allergo Sorbent
pares de gémeos, a síntese de IgE total terá um Test®). Desde então, os métodos têm-se desenvolvi-
determinismo essencialmente genético; a síntese do progressivamente de modo a obter-se testes
de IgE específica será fundamentalmente influen- cada vez mais sensíveis e específicos. Actualmente,
ciada pela exposição ambiental. Apesar de intima- estão disponíveis dois métodos de determinação
mente relacionada com a doença alérgica, a deter- de IgE específica, igualmente eficazes: UniCAP® da
minação da IgE total sérica tem um interesse rela- Pharmacia Diagnostics (fase sólida) e Immulite“2000
tivo quando avaliada isoladamente, podendo da Diagnostic Products Corporation (alergénios líqui-
estar elevada por várias razões, nomeadamente dos). A calibração do método é muito importante e
nas parasitoses, na aspergilose pulmonar, na sín- deve ser uniforme, de modo a poder comparar-se
droma hiper-IgE e associada ao tabagismo. os resultados (Quadro 2).
CAPÍTULO 63 Aspectos do diagnóstico da doença alérgica 367

QUADRO 2 – Resultados quantitativos e qualitativos de IgE específica

Resultados quantitativos (kUA/l) Resultados semi-quantitativos (classes) Resultados qualitativos


< 0.35 0 Ausente ou indetectável
0.35 a 0.70 1 Baixo
0.71 a 3.50 2 Moderado
3.51 a 17.50 3 Alto
17.51 a 50.0 4 Muito alto
50.01 a 100.0 5 Muito alto
> 100 6 Muito alto

A IgE específica não é um bom método de ras- específica e no estudo da reactividade cruzada, neste
treio, sendo os respectivos custos muito elevados. caso com utilização de técnicas de inibição.
O doseamento de IgE específicas séricas deveria
estar reservado para uma avaliação mais diferenci- Painéis de alergénios múltiplos
ada, tendo em conta a história clínica e o resultado São testes de rastreio, constituidos por uma mistura
dos testes cutâneos. Esta determinação é extrema- de vários alergénios definida pelo fabricante.
mente importante em determinadas situações Existem painéis para os alergénios inaláveis,
(Quadro 3), nomeadamente: na monitorização de AlaTOP® e Phadiatop®, e inúmeros painéis para
imunoterapia específica; na alergia alimentar, para alergénios alimentares, dos quais os mais utilizados
controlo do correcto cumprimento da dieta e para na criança por possuirem leite e clara do ovo são o
avaliar o grau de tolerância, diminuindo o risco de Fx5® e o correspondente FP5® (Quadro 4). Tendo em
provas de provocação positivas; e na suspeita de conta os valores de sensibilidade, especificidade e
alergia a venenos de himenópteros e penicilina, valor preditivo negativo, consideramos estes testes
alergénios com risco acrescido na realização dos bons métodos de rastreio, podendo ser utilizados
testes cutâneos (intradérmicos). em consultas não especializadas. Os mesmos pro-
Os alergénios também se têm desenvolvido porcionam uma informação global, qualitativa, em
quer em variedade, quer em qualidade, de modo termos de resultado positivo/negativo.
a garantir a inexistência de perdas de constituintes
essenciais durante o processo de fabrico, sendo Marcadores de inflamação
um bom exemplo desta evolução os alergénios re- O estudo dos mediadores e da sua determinação
combinantes. como marcadores de inflamação constitui um dos
A pesquisa de IgE específica pelo método campos florescentes da investigação imunoaler-
Imunoblot permite saber qual ou quais são os epíto- gológica. A introdução de novas tecnologias permi-
pos contra os quais essas IgE são dirigidas. Habi- tiu o desenvolvimento de métodos para avaliação
tualmente mais usado em investigação, é importante da libertação de mediadores produzidos pelas célu-
na caracterização do perfil de sensibilização alergéni- las intervenientes na inflamação alérgica, incluin-
ca, com implicações na selecção da terapêutica do: ECP (proteína catiónica dos eosinófilos); trip-

QUADRO 3 – Testes séricos de IgE específica (in vitro)

Dermografismo ou doenças cutâneas, com limitação na interpretação dos testes cutâneos


Testes cutâneos duvidosos ou negativos com forte suspeita clínica
Alergénios com risco da realização de testes cutâneos (intradérmicos)
Avaliação de resultados da evicção alergénica / Controlo do grau de evicção do alergénio
Avaliação do grau de tolerância / Decisão de realização de provas de provocação
Monitorização da imunoterapia específica
368 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 4 – Painéis de alergénios múltiplos

Alergénios Inaláveis Alergénios Alimentares


AlaTOP® 1 ácaros, pólens de gramíneas, FP5® 1 leite, clara de ovo, bacalhau,
ervas e árvores, fungos, epitélios trigo, amendoim e soja
Phadiatop® 2 de gato, cão e cavalo Fx5® 2
1
Diagnostic Products Corporation; 2Pharmacia Diagnostics

tase; FAST (teste de activação de basófilos por cito- minar a gravidade actual da doença. A confirmação
metria de fluxo); CAST (teste celular de estimu- do diagnóstico pode ser feita pela existência de uma
lação antigénica); formas solúveis de moléculas de prova de broncodilatação positiva, variação diurna
adesão como ICAM-1 e VCAM-1; citocinas de per- do DEMI 20% ou uma prova de broncoconstrição
fil Th2 como IL-4 e IL-13. A sua utilização é habi- positiva; na criança, a prova de broncoconstrição
tualmente restrita a estudos de investigação, sendo com maior especificidade para o diagnóstico de
potenciais instrumentos para o diagnóstico, moni- asma é a prova de esforço.
torização e prognóstico das doenças alérgicas.
Pela sua importância em termos clínicos, salien- Rinite alérgica
ta-se a determinação da triptase sérica. A triptase A realização de exames complementares de dia-
tem valor diagnóstico de anafilaxia, pelo que o seu gnóstico é habitualmente limitada aos testes cutâ-
doseamento terá importância no serviço de urgên- neos, e se necessário, à pesquisa de IgE específica
cia, durante a reanimação ou mesmo no estudo de sérica; permitem confirmar o diagnóstico de rinite
casos fatais. A sua utilização poderá ainda ter inter- alérgica, atópica, identificando os alergénios impli-
esse na monitorização de provas de provocação. cados. Em situações mais complicadas, como critério
de exclusão, a avaliação poderá ser complementada
Exames complementares por endoscopia nasal, no diagnóstico diferencial das
em situações específicas causas de obstrução nasal fixa; e por estudo imagi-
ológico, nomeadamente tomografia computadoriza-
Asma da das fossas nasais e seios perinasais nas formas de
Os exames complementares de diagnóstico incluem rinossinusite de difícil tratamento médico.
a realização de testes cutâneos, para identificação
dos alergénios implicados, e provas funcionais res- Dermatite atópica
piratórias, para quantificar as repercussões fun- Os exames complementares de diagnóstico in-
cionais ao nível das vias aéreas. A espirometria, cluem a realização de testes cutâneos, e se neces-
incluindo a realizada em idade pré-escolar, avalia a sário doseamento de IgE específicas, nomea-
existência e grau de obstrução brônquica, bem damente para aeroalergénios, particularmente
como a sua reversibilidade após inalação de bron- ácaros do pó, e alergénios alimentares. Nalgumas
codilatador; deve ser o exame de primeira linha. A situações poderá associar-se a realização de provas
pletismografia corporal, mais independente da de sensibilidade epicutâneas (testes empregando
colaboração do doente, permite a determinação da adesivo ou patch). Nas formas mais graves de
resistência das vias aéreas e dos volumes pul- eczema, poderá ter interesse a pesquisa de IgE
monares, avaliando o grau de insuflação pulmonar. específicas para agentes infecciosos, bacterianos
O ideal na avaliação do doente asmático será a real- (Staphylococcus aureus) e fúngicos (Pityrosporum
ização regular destes exames. Caso não seja possív- ovale e Candida albicans). Nos casos em que a sus-
el, e apesar das limitações conhecidas, poderá efec- peita de alergia alimentar é pertinente, deve pro-
tuar-se a determinação seriada do débito máximo ceder-se a dietas de exclusão e a provas de provo-
instantâneo (DEMI) pela utilização do debitómetro cação oral para excluir ou confirmar o diagnóstico.
(Peak Flow Meter). O estudo funcional respiratório
permite confirmar o diagnóstico clínico, efectuar o Alergia alimentar
diagnóstico diferencial em casos de dúvida, e deter- A confirmação do diagnóstico clínico, empregan-
CAPÍTULO 64 Asma 369

64
do para além da realização dos testes cutâneos, e
se necessário pesquisa de IgE específica sérica, é
efectuada em regra por prova de provocação oral.

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370 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

A asma, doença multifactorial, depende da considerados. No entanto, a revisão de estudos


interacção entre factores genéticos e ambientais, prospectivos demonstra que os sintomas tendem a
iniciando-se as manifestações clínicas na idade persistir durante a vida, particularmente quando
pediátrica num número muito considerável de está subjacente uma inflamação alérgica das vias
indivíduos. O aumento recente na prevalência das aéreas, apesar de serem previsíveis períodos assin-
doenças alérgicas em geral, e particularmente da tomáticos de duração variável. Acresce que a mor-
asma brônquica na criança, não poderá ser talidade por esta doença, nas últimas duas décadas,
explicado apenas por factores genéticos; reforça-se não evidenciou qualquer declínio, atingindo partic-
assim o papel do ambiente, nas suas componentes ularmente adolescentes e adultos jovens.
do interior e do exterior dos edifícios (Figura 1). A existência de uma inflamação na criança
Por outro lado, diferentes prevalências em asmática desde a idade pré-escolar leva a ponderar
populações submetidas a condições ambientais a hipótese da existência de remodelação das vias
semelhantes, realçam a importância dos factores aéreas, transversal a todo o espectro de gravidade,
genéticos. constituindo argumentos a favor do desenvolvi-
mento de sequelas respiratórias e indicando a ter-
História natural e factores de risco apêutica anti-inflamatória precoce; efectivamente
tem sido demonstrado que, mesmo em lactentes
A história natural da asma em idade pediátrica é asmáticos não tratados, as funções respiratórias
também uma preocupação significativa, quer para a degradam-se, confirmando que a inflamação
família das crianças atingidas, quer para os próprios crónica é prejudicial ainda antes da idade escolar.
clínicos que as seguem: Passará a doença com a Admite-se hoje o papel da exposição a agentes
idade? Agravar-se-á? Melhorará? Qual será o efeito microbianos em fase precoce da vida, modificando
do tratamento? Poderão existir alterações irrever- o sistema imune e futuras respostas adaptativas
síveis da função respiratória em idades precoces? alterando os mecanismos de contra-regulação.
Estas questões frequentemente formuladas, Como condicionantes do aumento de
ficam habitualmente por responder, até porque prevalência da asma brônquica, particularmente
impera uma atitude demasiadamente negligente em idade pediátrica, estão actualmente bem docu-
da abordagem da doença asmática neste grupo mentados os efeitos de alguns alergénios, dos
etário, associando-a quase invariavelmente a um poluentes (ex.tabagismo) e das infecções, bem
bom prognóstico clínico; os aspectos funcionais, como dos factores genéticos, sociais e socioe-
incluindo a sua avaliação, não são habitualmente conómicos. Estudos recentes identificaram 10

AMBIENTE
AMBIENTE AMBIENTE
Transmissão Genética
AMBIENTE AMBIENTE

Asma Hiperreactividade IgE


IgE total
AMBIENTE brônquica brônquica específica AMBIENTE

AMBIENTE AMBIENTE AMBIENTE

FIG. 1
A transmissão genética da predisposição para asma, hiperreactividade brônquica e atopia ocorre de modo independente; chama-
-se a atenção para a influência ambiental marcada.
CAPÍTULO 64 Asma 371

genes associados a asma ou a fenótipo atópico opressão torácica ou cansaço que surgem durante e
(IL4, IL13, CD14, ADRB2, HLA-DRB1, HLA- principalmente após cessar o exercício; estes sin-
DQB1, TNF, FCERIB, IL4RA, ADAM33) tomas são de curta duração e acompanham-se de
Entre os factores de risco que têm sido identifi- hiperinsuflação e hipoxémia arterial. A broncocon-
cados para a expressão da doença asmática na cri- strição máxima ocorre geralmente 3 a 10 minutos
ança, alguns serão dificilmente susceptíveis de pre- após o esforço físico, sendo habitual uma recuper-
venção, nomeadamente os genéticos, contrastando ação espontânea num intervalo de 30 a 60 minutos.
com os ambientais, passíveis de intervenção A prevalência de AIE é variável, podendo ocorrer
(exposição alergénica, tabagismo e outros polu- nalgumas séries em cerca de 80% dos doentes
entes, regime alimentar), de cuja modulação podem asmáticos; mais prevalente em idade pediátrica, é fre-
ser esperados ganhos significativos, nomeadamente quentemente causa de queixas e de frustração pelas
em termos de gravidade. dificuldades na integração das actividades de grupo.
Estudos também recentes demonstraram asso- A gravidade da resposta broncoconstritora ao
ciação entre o suprimento mais elevado de vita- exercício depende de vários factores, tais como da
mina D durante a gravidez e diminuição do risco intensidade do exercício, das condições climáticas
de sibilância no respectivo descendente; e níveis e da reactividade basal das vias aéreas. A magni-
mais elevados do metabólito mono-hidroxilado tude da resposta dependerá do grau de controlo da
25-OH vitamina D no sangue do cordão associa- doença, do uso prévio de medicação anti-asmática
ram-se a menor risco de sililância na infância e do intervalo de tempo que decorreu desde um
(capítulos 51 e 59). episódio anterior de broncoconstrição induzida
A assistência a crianças com doença grave, par- pelo exercício, conceito conhecido como período
ticularmente se sujeitas a internamento, deverá ser refractário. Em cerca de 50% dos asmáticos a
cuidadosamente planeada. Actualmente no resposta broncoconstritora ao exercício é atenuada
Hospital de Dona Estefânia são internadas por se este for repetido dentro de 30 minutos. A gravi-
ano, apenas cerca de 10% daquelas que eram hos- dade da AIE pode também ser indirectamente
pitalizadas por asma há 15 anos, traduzindo a influenciada pela exposição a alguns factores, tais
existência de: 1. um protocolo amplamente divul- como alergénios, poluentes e infecções víricas.
gado para o tratamento das agudizações; 2. a refe- As actividades desportivas consideradas como
rência sistemática dos casos mais preocupantes mais asmogénicas englobam os desportos que exi-
para consulta especializada e, finalmente, 3. a insti- gem altos níveis de ventilação, como a corrida de
tuição de terapêutica anti-inflamatória, incluindo fundo, o ciclismo, o futebol, o basquetebol, o rague-
as medidas de controlo ambiental precocemente, bi, e modalidades praticadas em ambiente frio e
após avaliação clínica e formulação diagnóstica. seco como vários desportos de Inverno, particular-
mente o esqui, o hóquei e a patinagem no gelo.
Asma induzida pelo exercício Relativamente à patogénese, os mecanismos
pelos quais a AIE ocorre, continuam ainda por
A asma induzida pelo exercício (AIE) define-se esclarecer. Actualmente, a desidratação da
como o aumento transitório da resistência das vias mucosa brônquica, consequência da hiperventi-
aéreas resultante da broncoconstrição que ocorre lação que ocorre durante o exercício, constitui a
após esforço físico inerente a prática desportiva, explicação etiopatogénica mais aceite. O mecanis-
mas também facilmente desencadeável após situa- mo pelo qual esta perda de água pela mucosa de-
ções fisiológicas como rir. sencadeia a broncoconstrição, resulta provavel-
Os leucotrienos são potentes mediadores de bron- mente de uma conjugação de dois mecanismos
coconstrição libertados por várias células infla- anteriormente propostos como distintos: o estí-
matórias incluindo mastócitos e eosinófilos, tendo mulo térmico e o estímulo osmótico (Figura 2).
os seus níveis sido encontrados elevados após O objectivo primordial do tratamento é pre-
broncoconstrição induzida pelo exercício. venir, ou pelo menos atenuar, a resposta bronco-
Os sintomas de AIE, semelhantes aos de outras for- constritora ao exercício de modo que não consti-
mas da doença, podem incluir tosse, pieira, dispneia, tua restrição à escolha de uma actividade física ou
372 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

previsto; o segundo degrau corresponde à asma per-


Exercício físico sistente ligeira, em que existem sintomas diurnos
mais do que uma vez por semana, mas menos do
que uma vez por dia (ou sintomas nocturnos > 2
Hiperventilação vezes/mês), encontrando-se a função respiratória
igualmente com valores superiores a 80% do previs-
to; o terceiro degrau, ou asma persistente modera-
da, descreve-se quando os sintomas são diários,
Estímulo térmico Estímulo osmótico
afectando a actividade diária (ou sintomas noc-
turnos > 1 vez/semana), ou estando a função respi-
ratória entre 60 e 80% do valor teórico previsto; final-
Hiperémia / Edema Desgranulação Libertação de mente, no quarto degrau, asma persistente grave, os
de mastócitos neuropéptidos sintomas são contínuos e a actividade física muito
limitada (os sintomas nocturnos são também muito
frequentes), encontrando-se a função respiratória
com valores inferiores a 60% do previsto.
Libertação de mediadores É de referir que a existência de, pelo menos,
(histamina, prostaglandinas, leucotrienos)
um critério de gravidade (sintomas diurnos, noc-
turnos ou provas funcionais respiratórias) coloca
o doente nesse patamar de gravidade. No caso de
existirem crises graves, mesmo que pouco fre-
Broncoconstrição
quentes, deverá ser a criança classificada como
tendo asma persistente moderada.
Na classificação do III Consenso Pediátrico,
FIG. 2
quanto à morbilidade a longo prazo da asma
Mecanismos etiopatogénicos na AIE. infantil, considera-se: asma episódica infrequente
– episódios agudos menos do que 1 vez/mês, com
limitação ao nível de desempenho. Para tal, um mínimo de “pieira” após exercício prolongado,
importa, em primeiro lugar, conseguir o melhor sem sintomas interepisódios e com função respi-
controlo possível da asma. ratória normal entre eles; asma episódica fre-
Medidas não farmacológicas como mudar as quente – episódios agudos mais frequentes (mais
condições do ar inalado quando a actividade que 1 vez/mês e menos do que 1 vez/semana),
ocorre em espaços fechados, evitar fazer exercício com pieira após exercício moderado mas que pode
em ambientes frios e secos, limitar a exposição a ser prevenida por β2-agonistas (ver adiante) e com
poluentes, têm-se revelado benéficas. função respiratória normal (ou próximo do normal)
entre os episódios agudos; asma persistente –
Critérios de gravidade e classificação episódios agudos frequentes (> 1 vez/semana), re-
querendo entre eles a utilização de β2-agonistas
Na classificação da gravidade, são consideradas as mais do que 3 vezes/semana (devido a sintomas
propostas do Global Initiative for Asthma (GINA) e nocturnos ou opressão torácica matinal) e com
do III International Pediatric Consensus Statement pieira após exercício ligeiro; a função respiratória
on the Management of Childhood Asthma. está geralmente alterada, mesmo inter-crises.
Segundo o grupo GINA, a classificação de Quanto à classificação dos episódios agudos de
gravidade estende-se por “degraus” de 1 a 4: asma, considera-se: asma ligeira – tosse e pieira
primeiro degrau, ou asma intermitente, é o que cor- audível, mas sem diminuição da actividade física,
responde ao indivíduo que apresenta sintomas em sem aumento da frequência respiratória, sem
menos que uma ocasião por semana (ou sintomas cianose, permitindo pronunciar frases de relativa
nocturnos < 2 vezes/mês) e cuja função pulmonar extensão e não interferindo na actividade escolar;
apresenta valores superiores a 80% do valor teórico função respiratória acima de 75% do esperado;
CAPÍTULO 64 Asma 373

melhorando espontaneamente ou com doses habi- abaixamento do diafragma e de acentuação do


tuais de β 2-agonistas; asma moderada – eviden- retículo peribrônquico.
ciando o uso dos músculos acessórios, aumento da
frequência respiratória, restrição da marcha, e ape- Prevenção e tratamento
nas permitindo pronunciar 3 a 5 palavras seguidas;
interferindo na frequência escolar; necessitando de No âmbito da actuação preventiva e terapêutica,
maiores doses de β 2-agonistas e, com frequência, importa realçar pontos fundamentais a inquirir e
também de corticóides orais; asma grave – cianose valorizar na relação entre sintomas e diagnóstico,
manifesta, dificuldade respiratória marcada (por especialmente na criança em idade pré-escolar:
vezes já sem pieira audível) só permitindo pronun- 1. Episódios recorrentes de pieira?
ciar 1 a 3 palavras; incapacidade na marcha, com 2. Tosse irritativa nocturna?
resposta débil aos β2-agonistas; necessitando de 3. Tosse ou pieira após exercício?
monitorização das saturações em oxigénio, oxi- 4. Tosse, pieira, opressão torácica após exposi-
genoterapia, e de cuidados hospitalares; o episódio ção a aeroalergénios?
de gravidade extrema (doente não reactivo, confu- 5. Infecções das vias superiores “que descem
so, com FR e FC diminuídas, cianose acentuada, aos brônquios”?
movimentos tóraco-abdominais paradoxais, dia- 6. Resultado da resposta ao tratamento?
forese, ausência de sibilos, e ausência de pulso Em relação aos factores de exacerbação impor-
paradoxal por fadiga dos músculos respiratórios), ta abordá-los pela sua frequência: alergénios e
necessitando de cuidados intensivos, integra o con- infecções respiratórias víricas; exercício; alterações
ceito de asma emergente. climáticas; poluentes; alimentos, aditivos e fárma-
Nalguns centros determina-se a taxa (ou cos.
fracção) de NO expirado (FENO), marcador da Importa ainda salientar em relação ao início e
inflamação na asma, o que poderá contribuir não persistência de sintomas, que na maioria dos
só para o diagnóstico, mas igualmente como meio casos a sibilância recorrente nos primeiros anos de
de controlar a medicações instituídas. vida é transitória, com bom prognóstico; no entan-
A Figura 3 mostra uma radiografia do tórax to, a maioria dos casos de asma grave começa nos
(póstero-anterior) de uma criança de 8 anos com primeiros anos de vida.
uma crise de asma: sinais de hiperinsuflação pul- Para o controlo da maioria das situações clíni-
monar (enfisema), horizontalização das costelas, cas de asma, importa dominar aspectos relaciona-
dos com evicção alergénica e farmacoterapia,
englobados num programa educativo e de pro-
moção de saúde que será complexo e condiciona-
do à gravidade da doença.

1. Controlo ambiental – evicção alergénica


Se o controlo ambiental para alergénios do
exterior dos edifícios se revela muito difícil (ex.
pólens), já algumas medidas visando o interior da
residência podem revelar-se essenciais.
• Ácaros domésticos – A sensibilização rela-
ciona-se com os níveis e com a duração da expo-
sição. A redução da concentração de alergénios
influencia positivamente a evolução clínica.
– Medidas:
Métodos de barreira ou oclusivos – capas de
FIG. 3
colchão e das almofadas, idealmente aplicadas em
Padrão radiográfico do tórax (PA) de asma com enfisema colchões novos ou recentes (impede a coloniza-
(NIHDE). ção); existem capas permeáveis e impermeáveis
374 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ao ar e ao vapor de água; provavelmente constitui ca, incluindo agudizações. Muito difícil a erradi-
a medida isolada mais eficaz (essencial). cação, particularmente em ambientes urbanos.
Lavagem da roupa da cama, idealmente a mais de – Medidas:
55ºC; existem também capas para edredão, no Inspecção e identificação dos insectos, permitindo
caso de não ser possível a sua lavagem (essencial). prever locais principais de infestação.
Remover peluches da cama / lavagem regular Localização e erradicação de fontes de alimentos e
(semanal a mensal), a 60ºC, dos que permane- de água.
cerem (essencial). Insecticidas, permitindo reduzir a população de
Remover mobiliário acolchoado e alcatifas, parti- baratas (exterminação) embora se mantenham os
cularmente se antigas, preferindo pavimentos de alergénios.
madeira, sintéticos ou aplicação de alcatifas Limpeza da casa, não deixando restos de comida
laváveis. Evitar livros no quarto (desejável). acessíveis, aspiração profunda e lavagem após
Aspiração semanal com dispositivo apropriado aplicação das medidas anteriores. Há que ter
(aspirador com filtro de alta eficiência – high-effi- cuidado com as condutas de lixo.
ciency particulate air - HEPA). • Fungos – A contaminação é habitualmente
Limpar o pó com pano húmido (desejável). efectuada do exterior através das janelas (ex.
Redução da humidade relativa – desumidifi- Alternaria), embora alguns fungos possam ser pre-
cadores e aumento da ventilação (desejável). dominantemente encontrados dentro dos edifícios.
Acaricidas – pouco relevantes em locais muito – Medidas:
infestados, sendo considerado discutível o seu Remover ou lavar materiais contaminados –
interesse clínico. Indicados no pavimento se não tapetes, mobiliário, papel de parede. Aplicação de
for possível retirar alcatifas (desejável). fungicidas.
• Animais domésticos ou de companhia – A Prevenção da contaminação do exterior – fechar
exposição mantida associa-se a maior gravidade e, janelas; recurso a ar condicionado (caro).
a exposição aguda, relaciona-se com agudizações. Controle da humidade relativa através da utiliza-
– Medidas: ção de desumidificadores, aumento da ventilação
Não ter animais de companhia ou retirá-los da (atenção às cozinhas e salas de banho).
residência (eficácia comprovada); de referir que o Uso de filtros de alta eficiência – filtração do ar e
contacto também pode ocorrer noutras habitações aspiração (HEPA).
ou mesmo no ambiente escolar. O benefício pode Secar bem as roupas antes de serem guardadas.
não ser imediato (níveis de alergénio podem Evitar plantas nos quartos de dormir.
reduzir-se progressivamente até período de 6
meses), mas será tanto mais rápido se associado a 2. Tratamento farmacológico
outras medidas (aspiração). Nos casos clínicos de Nesta alínea procede-se à descrição dos principais
sensibilização ao gato, nenhuma outra medida, se fármacos utilizados no tratamento da asma e dos
o animal estiver presente, poderá influenciar si- diversos esquemas de tratamento de acordo com
gnificativamente a exposição alergénica. os quadros clínicos (como se combinam os fárma-
Se o animal permanecer: cos em função do contexto clínico e em situações
Lavagem do(s) animal(is), permitindo reduzir específicas).
transitoriamente (uma semana) os níveis de • Fármacos
alergénios. Filtragem do ar (filtros HEPA ou ioni- – β2 -agonistas:
zadores colocados no quarto de dormir). Os β2 – agonistas são os broncodilatadores mais
Aspiração regular (aspirador com filtro HEPA). potentes, actuando por estimulação dos recep-
Aplicação de capas no colchão e na almofada. tores β-adrenérgicos. O Quadro 1 descreve os
Remoção de reservatórios de alergénios (alcatifas, efeitos dos β2 -agonistas em diferentes órgãos e
carpetes, estofos). sistemas.
Limitar a circulação dos animais nos quartos de Na prática clínica são utilizados fundamental-
dormir; porta do quarto sempre fechada. mente dois tipos destes agonistas:
• Baratas – Factor de risco de gravidade clíni- 1) de curta acção, como o salbutamol (albuterol),
CAPÍTULO 64 Asma 375

QUADRO 1 – Efeitos principais dos β2-agonistas o tratamento de primeira linha nas crises de
em diferentes órgãos/sistemas asma/agudizações (Quadro 2)
2) de acção prolongada, como formoterol e o
Tecido Resposta salmeterol com efeito broncodilatador que dura
Vias aéreas Relaxamento músculo liso – broncodi- cerca de 12 horas, aprovados para crianças acima
latação dos 4-5 anos. O formoterol tem um ínicio de acção
Aumento dos movimentos ciliares mais rápido (1-3 minutos após inalação) do que o
Aumento da secreção de muco salmeterol (cerca de 10-20 minutos).
Inibição da desgranulação mastocitária Ao cabo de 30 minutos a sua acção é comparável
à do salbutamol ( de curta acção).
Coração Aumento da frequência cardíaca Estes fármacos não devem ser usados em
monoterapia; como regra, estão indicados em
Vasos Vasodilatação associações a corticóides quando a corticoterapia
Aumento da permeabilidade vascular inalada em dose equivalente a 800μg por dia de
dipropionato de beclometasona não é suficiente
Efeitos Gluconeogénese para reverter os sintomas.
metabólicos Hipocaliémia Em crianças com idade superior a 6 anos a
Aumento da produção de lactato dose recomendada de formoterol é 4,5μg e a de
salmeterol – 50μg (ver adiante)
procaterol, terbutalina, fenoterol, etc.. – Corticóides:
Têm um início de acção rápida, em poucos minu- Os corticóides, inalados ou sistémicos, são
tos, atingindo o máximo de actividade cerca de 60- complemento essencial para o controlo do proces-
90 minutos após administração por via inalatória. so inflamatório subjacente às agudizações. O
Os seus efeitos duram cerca de 4-6 horas, sendo o Quadro 3 discrimina os corticódes inalados mais
mais relevante o relaxamento do músculo liso; são empregues e respectivas doses.

QUADRO 2 – β2-agonistas

• Broncodilatadores mais potentes, de primeira escolha no serviço de urgência


• Via inalatória é a mais eficaz
• Início de acção quase imediato
• Efeitos secundários mínimos

Medicamento Dose Frequência Observações


Salbutamol 0,03ml/kg/dose (0,15 mg/kg) + SF 20/20 min
(sol. respiratória) (mínimo de 0,3 ml e máximo de 1 ml)
1 ml = 0,5 mg
0,3 mg/kg/hora, até 30mg/hora Nebulização contínua Monitorização dos efeitos
secundários
Salbutamol 50 µg/kg/dose (máx. 10 puffs = 1.000 µg) 20/20 min Limitação da dose pela
(+ câmara expansora) intervalo de 30 a 60 segundos monitorização dos efeitos
pMDI: 100 µg/puff entre cada puff secundários

Procaterol < 20 kg: 0,3 ml 2/2 horas


(sol. respiratória) > 20 kg: 0,5 ml
1 ml = 100 µg Na criança não existem estudos
Procaterol < 12 anos: 1 puffs 2/2 horas controlados dose/resposta
(+ câmara expansora) >12 anos: 2 puffs
Puff<>insuflação sob pressão ou pressurização; Câmara expansora(ver adiante)
pMDI = 10 µg/puffs
376 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Equivalência de doses de corticóides inalados em idade pediátrica

Fármaco Doses baixas Doses moderadas Doses elevadas


Beclometasona 100 – 400 µg 400 – 800 µg > 800 µg
Budesonido 100 – 200 µg 200 – 400 µg > 400 µg
Fluticasona 100 – 200 µg 200 – 500 µg > 500 µg

QUADRO 4 – Corticosteróides

• Anti-inflamatórios com papel reconhecido no controlo dos processos fisiopatológicos da asma (↓ morbilidade e mortalidade)
• Melhoria da resposta aos agonistas β2 (actuação a nível dos receptores)
• Via de administração sistémica
• Início de acção em 2 a 8 horas
• Efeitos secundários (raros durante cursos terapêuticos curtos até 3 dias)

Medicamento Dose Frequência Observações


Metilprednisolona 1 a 1,5 mg/kg/dose Até 4/4 horas Máximo 48 mg/dose EV ou oral
Prednisolona 2 a 2,5 mg/kg/dose Até 4/4 horas Máximo 60 mg/dose EV ou oral

No Quadro 4 são referidas as doses de metil- – Xantinas:


prednisolona e prednisolona por via sistémica As teofilinas (por ex. aminofilina) podem ser
(tratamento de curta duração). utilizadas no caso de broncospasmo grave não
– Anticolinérgicos: respondente à dose máxima de corticóide sistémi-
O brometo de ipratrópio, derivado sintético da co e de agonistas beta-2, registando-se efeitos se-
atropina, é o anticolinérgico actualmente mais cundários numa percentagem considerável de
empregue como broncodilatador. casos; daí a necessidade de monitorização por
Comparativamente ao salbutamol, o brometo ECG.
de ipratrópio tem um início de acção mais lento, Trata-se de fármacos rapidamente absorvidos
com efeito máximo cerca de 60 minutos após por via oral, rectal ou parentérica, atingindo níveis
inalação, durando a sua acção 4 a 8 horas. séricos máximos cerca de 2 horas após a adminis-
O Quadro 5 descreve a posologia (aerossol e tração.
nebulização). A dose recomendada para crianças com mais
Os anticolinérgicos têm a sua indicação em de 6 meses é 10 mg/kg/dia até dose máxima ini-
associação aos β2-agonistas nas agudizações mo- cial de 300 mg/dia; a dose pode ser aumentada de
deradas a graves, ou em alternativa aos últimos se 3-3 dias até 16 mg/kg/dia (600mg/dia).
existir intolerância a estes fármacos (ver adiante). A “janela” terapêutica é estreita (5-15μg/ml);

QUADRO 5 – Brometo de ipratrópio: posologia

Via Idade Frequência


Neonatal 1 mês – 2 anos > 2 – 12 anos > 12 – 18 anos (nº tomas/dia)
Aerossol até 120 microgramas 4-6
(pMDI: 20ug/puff)

Nebulização Igual a < 1 ano < 1 ano: 125µg < 5 anos: 250µg 500µg Dose/nebulização
(solução:250 ug/2mL) ≥ 1 ano: 250µg ≥ 5 anos: 500µg (pode ser repetida
entre cada 2/2 ou 6/6horas)
NB: Deve adicionar-se na mesma nebulização com salbutamol; não deve ser utilizado como terapia de 1ª linha isoladamente.
CAPÍTULO 64 Asma 377

obtém-se broncodilatação a partir de concentração B) – Actuação em regime ambulatório ou no


sérica de 5μg/ml. domicílio (controlo a longo prazo).
– Antagonistas dos receptores dos leucotrienos: ________________
Para além do seu efeito broncodilatador, aditi-
vo ao dos β-agonistas, estes fármacos têm ainda A) – Exacerbação (ou agudização) de asma
acção anti-inflamatória. Os Quadros 6, 7, e 8 esquematizam a actuação
Em Portugal estão comercializados: a) Monte- inicial perante, respectivamente, exacerbação
lucaste para crianças com idade superior a 2 anos ligeira a moderada, grave e emergente.
(4mg/dia entre 2 e 5 anos, e 5mg/dia para >5 Excluindo os casos que requerem terapia
anos) em dose unicas diária, oral; b) Zafirlucaste intensiva e reportando-nos apenas às formas de
para > 12 anos em 2 doses diárias de 20mg por via exacerbação moderada ou grave, os Quadros 9 e
oral. 10 sintetizam os passos seguintes, o que pres-
– Cromonas: supõe reavaliação clínica, verificação da saturação
A utilização de cromonas (por ex. cromoglica- em O2, e eventualmente outros exames, cerca de 1
to de sódio) por via inalatória na terapêutica da hora após a terapêutica descrita anteriormente.
asma tem sido baseada essencialmente no seu Mantendo-se os sintomas e sinais de exacer-
efeito (broncoprotector) por inibição da desgranu- bação moderada, seguir-se-á o protocolo que inte-
lação mastocitária. gra o Quadro 9.
Podem ser alternativa à corticoterapia nalguns Ao cabo de cerca de 1 - 3 horas (Quadros 9 e
casos de asma persistente ligeira. 10) e ponderando cada caso de modo individual-
É habitualmente administrada por pMDI em 2
inalações sucessivas (5 ug cada) 4 vezes/dia, cerca QUADRO 6 – Exacerbação de asma ligeira a
de 30 minutos antes do exercício físico ou da moderada
exposição ao alergénio.
Existe também na forma de pó seco. • Salbutamol nebulizado ou em pMDI até 3 doses na 1ª
– Omalizumab: hora
Nalguns centros, nos doentes com formas • Oxigenoterapia para manter saturação em O2 > 95%
ligeiras a moderadas, e idade superior a 12 anos, • Corticóide sistémico oral se tiver havido adminis-
começou a utilizar-se um anticorpo monocolonal tração recente de corticóide oral
que, ligando-se às IgE, previne a ligação destas
aos respectivos receptores, o que terá interesse nas
respostas alérgicas medidas por IgE (por ex. por QUADRO 7 – Exacerbação de asma grave
certos aeroalergénios) com fraca resposta aos cor-
ticóides orais ou inalados. • Salbutamol e brometo de ipratrópio nebulizados ou
– Sulfato de magnésio: em pMDI cada 20 minutos ou continuamente durante
Está indicado nos doentes submetidos a tera- a 1ª hora
pia intensiva, não respondentes, ao cabo de 1 • Oxigenoterapia para manter saturação em O2 > 95%
hora, às medidas instituídas para tentar reverter • Corticóide sistémico oral
exacerbação grave/emergente. São utilizados
bólus de 40 mg/kg via IV, em 20 minutos (até dose
máxima de 2 gramas). QUADRO 8 – Exacerbação emergente
• Esquemas de tratamento
Para melhor compreensão do enquadramento • Entubação traqueal e ventilação mecânica com FiO2 a
dos fármacos (associados a outros procedimentos) 100%
no tratamento da asma, são consideradas duas • Salbutamol e brometo de ipratrópio nebulizados
situações: • Corticóide sistémico por via IV
A) – Exacerbação (ou agudização) de asma • Eventuais terapêuticas adjuvantes
como situação urgente ou emergente recorrendo- • Internamento em UCI
se ao serviço de urgência hospitalar.
378 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 9 – Exacerbação moderada mantida ausência de dificuldade respiratória e bom estado


geral. Em tal caso o doente poderá ter alta para o
• Salbutamol e brometo de ipratrópio nebulizados ou domicílio continuando tratamento com salbuta-
em pMDI cada 60 minutos. mol nebulizado ou em pMDI e ciclo de corticóide
• Oxigenoterapia oral, sob vigilância médica, com reavaliação ulte-
• Corticóide sistémico por via oral rior mais pormenorizada dentro de 1-4 semanas.
• Continuação do tratamento durante 1 a 3 horas e even- II – Resposta incompleta, não resposta e ou
tual decisão de internamento caso não se verifique agravamento com hipercápnia, obnubilação ou
melhoria após 3-4 horas estado confusional, implicando internamento hos-
pitalar e eventual terapia em UCI, com execução
de medidas terapêuticas descritas nos Quadros 7,
QUADRO 10 – Exacerbação grave associada a 8 ou 10.
factores de risco(Quadro 11) e ausência de B) – Actuação em regime ambulatório ou no
resposta ao tratamento inicial domicílio (controlo a longo prazo).
A alta para o domicílio após agudização ou
• Salbutamol e brometo de ipratrópio nebulizado cada exacerbação é uma decisão que deverá ser anal-
60 minutos ou continuamente. isada caso a caso tendo em conta, designada-
• Oxigenoterapia mente, as características do quadro clínico
• Corticóide sistémico por via oral durante o internamento e a existência de eventu-
• Eventuais terapêuticas adjuvantes ais factores de risco. Uma das abordagens habitu-
• Continuação do tratamento durante 1 a 3 horas e even- ais de terapêutica preventiva inclui:
tual decisão de internamento caso não se verifique – salbutamol associado ao brometo de ipratró-
melhoria após 3-4 horas pio (em nebulização ou com câmara expansora/
pMDI) (Quadros 2 e 5) durante 5-7 dias, e + cor-
ticóide oral durante 3-5 dias (Quadro 4).
QUADRO 11 – Factores de risco/gravidade em – corticóides inalados (a longo prazo) a iniciar
contexto de episódio de asma antes da saída do hospital, ou a sua retoma no
caso de já constituir rotina no pré-internamento,
• Antecedentes de exacerbações graves e súbitas e de ponderando-se a correcção de dose (Quadro 3).
internamento em UCI com ventilação mecânica – omalizumab: sobre este anticorpo mono-
• Dois ou mais internamentos/ano, ou recurso ao SU, clonal anti-IgE foi feita referência na alínea sobre
ou internamento no mês anterior Fármacos.
• Consumo de >2 embalagens/mês de beta-2 agonistas NB. – Se, ao cabo de 3 meses, se obtiver con-
inalados trolo da situação, deverá proceder-se a redução
• Utilização, na data da exacerbação, de corticóides gradual das doses, tentando as doses mínimas efi-
sistémicos ou sua interrupção recente cazes. Relativamente às xantinas, cabe salientar
• Comorbilidade(por ex doença cardiovascular,DPOC, que a sua popularidade diminuiu (efeito bron-
etc) codilatador pouco efectivo e objectivo actual de se
• Doença psiquiátrica obter efeito anti-inflamatório).
• Estado de precariedade socioeconómica Em conclusão, na actuação preventiva da asma
• Residênia em meio urbano brônquica persistente, a longo prazo, quando não
• Toxicodependência se obtém o controlo com a monoterapia, no-
meadamente com o recurso a corticóides inalados,
é preferível usar a combinação de doses baixas de
izado tendo em conta a verificação, ou não, de fac- corticosteróide inalado e β2-agonistas de acção
tores de risco (Quadro 11), o clínico poderá prolongada do que usar doses elevadas de corti-
deparar essencialmente com três situações: costeróide inalado.
I – Boa resposta mantida (durante ~60 minu- É útil a combinação de antagonista dos leu-
tos) após o último tratamento, traduzindo-se por cotrienos e corticosteróide inalado com vista à
CAPÍTULO 64 Asma 379

redução da dose deste último, necessária para o respiração nasal, os volumes correntes pequenos,
controlo clínico da asma. as frequências respiratórias elevadas e a colabo-
Entre as combinações corticosteróide inalado e ração, por vezes deficiente, entre muitos outros
β2-agonista de acção prolongada versus antago- factores, limitam frequentemente o sucesso da te-
nista dos leucotrienos e corticosteróide inalado, a rapêutica inalatória.
primeira é mais eficaz e de menor custo. A combi- Durante uma agudização de sintomas, para
nação dos broncodilatadores mais efectivos com além da idade, pode também estar comprometida
os anti-inflamatórios de primeira escolha na maio- a utilização de inaladores que fazem depender a
ria dos asmáticos (corticóides inalados), resulta disponibilidade das partículas do débito inspi-
claramente numa formulação eficaz em todo o ratório.
espectro da asma persistente moderada a grave, e Assim, para rendibilizar a extrema rapidez de
ainda nas formas ligeiras, e ainda nas formas actuação e a eficácia desta via de administração,
ligeiras (Figura 4). particularmente durante a crise, é importante que
se respeitem algumas condicionantes rela-
3. Terapêutica inalatória (particularidades) cionadas, quer com a idade da criança, quer com
Constitui actualmente o pilar fundamental no os dispositivos disponíveis.
tratamento de várias doenças respiratórias, sendo – Idade da criança > nos primeiros dois anos
consensual a escolha da via inalatória como pre- de vida, a terapêutica broncodilatadora ou anti-
ferencial para administração de fármacos no trata- inflamatória indicada por via inalatória na
mento da asma. Comparada com a via sistémica, agudização, terá de ser efectuada através de
tem uma acção mais rápida, utilizando doses nebulizador (pneumático ou ultrassónico) ou
menores. Consegue-se efeitos terapêuticos muito com aerossol de dose calibrada (Pressurized
significativos com escassos efeitos secundários. Metered Dose Inhalers – pMDI) associado a
No entanto, em idade pediátrica o reduzido cali- câmara de expansão, sempre com o uso de más-
bre da via aérea, os fluxos inspiratórios baixos, a cara.
A partir do terceiro ano de vida, logo que a
Ligeira Moderada Grave
colaboração o permita, deverá a inalação ser efec-
Intermitente tuada com o uso de peça bucal, pois a inalação do
persistente persistente persistente
fármaco através das cavidades nasais, (ou apenas
o facto de haver respiração nasal com a utilização
β2 agonistas de curta acção SOS de máscara), pode reduzir a dose que chega ao
pulmão para menos de metade. Se fôr possível a
Corticóides inalados
colaboração com a peça bucal, há que preferir o
uso de câmaras de expansão (quer nos serviços,
quer a nível das urgências e enfermarias).
β2 agonistas de acção prolongada A partir dos 6 a 8 anos, por vezes antes, é já
possível a utilização dos inaladores de pó seco,
uni ou multidose (Dry Powder Inhaler – DPI),
Antileucotrienos / Cromonas / Teofilinas

Para melhor compreensão do texto são referidas as seguintes definições:


Aerossol – é um sistema de partículas sólidas ou líquidas que podem per-
FIG. 4 manecer dispersas num gás. Relativamente aos métodos de produção de
aerossóis fundamentalmente existem 4 tipos: os nebulizadores, os pMDI, os
Asma e controlo a longo prazo: enquadramento dos fármacos. pMDI+ câmaras expansoras e os DPI (ver adiante).
Os corticóides inalados são o grupo mais eficaz para o controlo Inalação – é o movimento de entrada do ar ambiente, através das vias respi-
ratórias para os pulmões durante a respiração.
da maioria das crianças asmáticas. Na asma moderada a grave a Nebulização – é um método de produção de aerossóis que permite transfor-
adição de outros grupos de fármacos permite o mar um medicamento líquido (solução ou suspensão) numa suspensão de
pequenas partículas líquidas no ar, permitindo que estas cheguem aos pul-
controlo clínico e funcional sem efeitos secundários significativos. mões. Câmara expansora – é um dispositivo que se associa aos inaladores
Os fármacos antileucotrienos podem ser uma alternativa em pressurizados de dose fixa (pressurized metered – dose inhaler pMDI), de
forma e volume variado, com válvulas unidireccionais, funcionando como
monoterapia na asma ligeira, tendo de ser associados a reservatório, de modo a permitir ultrapassar a necessidade técnica da coorde-
outros fármacos para o controlo da asma moderada e grave. nação mão-pulmão.
380 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

para o tratamento dos sintomas. No entanto, em ção de corticóides (fluticasona ou budesonido) os


crianças que estão familiarizadas com câmaras de únicos aparelhos a utilizar são os pneumáticos
expansão, pode manter-se esta técnica de admin- (suspensões). Este factor poderá ser muito impor-
istração durante toda a idade escolar, particular- tante no caso de se recomendar a compra de um
mente no domicílio. Nos serviços de urgência hos- aparelho gerador de aerossóis.
pitalares, com estas crianças deve efectuar-se tera- O tempo ideal para uma nebulização será de 8
pêutica com inaladores do tipo pMDI associados a a 10 minutos (factor que condiciona o volume a
câmaras de expansão. nebulizar, colocado no dispositivo; por isso não
– Tipos de dispositivos para aerossolização – podem existir “receitas” universais, por exemplo,
Como foi referido, os aerossóis utilizados na tera- do volume de soro fisiológico a adicionar). A fre-
pêutica da asma são produzidos por três tipos quência das nebulizações poderá ser de 20/20 ou
básicos de instrumentos de inalação, nomeada- de 30/30 minutos.
mente os nebulizadores, os pMDIs e os DPIs. A associação do inalador pressurizado com
Os nebulizadores são aparelhos geradores de uma câmara de expansão, constitui um meio de
aerossóis a partir de soluções ou suspensões aquo- eleição para a administração de terapêutica quer
sas. Difíceis de transportar, são muitas vezes úteis na crise, quer como terapêutica de controlo, em
quando os outros dispositivos são inapropriados, idade pré-escolar. Aumenta a deposição no pul-
podendo transformar em aerossol, virtualmente, mão, diminui a deposição na boca e vias aéreas
qualquer substância líquida. Podem ser alimenta- superiores à custa de uma maior deposição na
dos por ar comprimido, ou ultrassónicos; neles câmara, sendo uma alternativa portátil à utiliza-
deve considerar-se que a dose colocada no dispos- ção dos nebulizadores. A respiração pode ser feita
itivo, aparentemente elevada (carga do nebu- em volume corrente, durante cerca de 20 a 30
lizador) sofre perdas a vários níveis, nomeada- segundos, após cada pressurização (puff).
mente: a dose que permanece no nebulizador Nas crises e, em ambulatório, os DPIs são
(“volume morto”- geralmente cerca de 0.5 ml); habitualmente indicados nas crianças que já os
perdas através do terminal do tubo; impacte de utilizam quotidianamente (> 6 a 8 anos). Os mes-
partículas a nível interno; e as perdas durante a mos não devem ser utilizados nos serviços de
expiração. Nestes aparelhos a geração de partícu- saúde como dispositivos locais usados no trata-
las não depende dos fluxos inspiratórios. Para os mento de crise por levantarem também problemas
pMDI a energia é dada pelo próprio dispositivo, na reutilização (perigo de contaminação).
enquanto para os DPIs esta energia tem de ser A principal vantagem em relação aos pMDI
fornecida pelo doente através de um fluxo inspi- consiste no facto de não ser necessária a coorde-
ratório que retira o pó do dispositivo, tornando nação mão-pulmão, tornando a técnica mais fácil
problemática a sua utilização em episódios sin- (embora o uso de pMDI isolados nunca deva ser
tomáticos, mesmo em crianças que com eles é rea- recomendado em idade pediátrica; no futuro a
lizada a sua terapêutica de controlo. existência de dispositivos accionados pela
Na terapêutica da crise de asma nos serviços manobra inspiratória, do tipo autohaler, poderá
de urgência devem ser usados, sobretudo, os modificar esta conduta). Exigem uma inspiração
nebulizadores pneumáticos, mais baratos e per- forçada para uma boa deposição pulmonar, com
mitindo o uso de um adaptador bucal ou máscara. um fluxo inspiratório relativamente alto (débito
O nebulizador pneumático pode ser, ou não, reuti- inspiratório superior a 30L/min) o que não é pos-
lizado. Os dispositivos ultrassónicos podem pro- sível em crianças pequenas. São igualmente
duzir partículas menores, são silenciosos e actual- portáteis e discretos, não contendo propelentes
mente bastante portáteis, mas não trazem benefí- (contêm apenas lactose) e permitindo um melhor
cio clínico adicional; existe mesmo um risco acres- controlo da quantidade do medicamento gasto e
cido de infecções nosocomiais. do restante.
Para nebulização de broncodilatadores podem Os dispositivos multidose são os mais utiliza-
ser utilizados indistintamente aparelhos pneumá- dos por serem mais práticos. Menos usados, os
ticos ou ultrassónicos (soluções); para a nebuliza- sistemas unidose apresentam o medicamento em
CAPÍTULO 64 Asma 381

forma de pó, contido numa cápsula, que é per- 4. Actuação na AIE


furada ou partida antes da inalação. As principais Vários fármacos têm sido preconizados no con-
vantagens em relação aos sistemas multidose são trolo da AIE. Na maioria dos doentes com função
um melhor controlo da dose, a verificação de que respiratória basal normal a AIE pode ser preveni-
esta foi de facto retirada da cápsula, e a possibili- da pela administração prévia ao exercício de um
dade de repetir a inalação até desaparecimento agonista β2-adrenérgico por via inalatória, eficaz
total do pó. No entanto são menos práticos, e em reduzir a AIE em 90% dos doentes, podendo
preferidos por uma minoria de doentes. também ser usado como medicação em SOS para
A adesão à terapêutica é também um proble- tratar a broncoconstrição desencadeada pelo
ma central, sendo necessário proceder à correcta esforço. Esta abordagem exige uma atempada pre-
administração do fármaco prescrito. Esta tarefa é visão das horas de maior esforço, sabendo-se que
dificultada quando estamos perante crianças difí- em idade pediátrica o exercício constitui um acon-
ceis, que choram durante a administração da tera- tecimento imprevisível, pelo que se torna mais
pêutica. É fundamental que os profissionais de difícil de controlar a AIE na criança. Os broncodi-
saúde, os pais e as crianças compreendam a neces- latadores β2-adrenérgicos de acção prolongada
sidade de utilizarem o fármaco prescrito e que como o salmeterol e o formoterol têm, então, indi-
aceitem o uso do dispositivo seleccionado para o cação óbvia uma vez que exercem o seu efeito pro-
efeito. As acções de formação devem ser iniciadas tector de forma mais prolongada, até 8 a 12 horas;
nos profissionais, terminando na própria criança, constituem uma boa opção nas crianças em idade
sempre que o grupo etário o permita. escolar ou nos desportos de longa duração. A
Em ambulatório ou no serviço de urgência associação destes fármacos com corticosteróides
deverá ser efectuado o ensino da utilização dos inalados é obrigatória. A recente disponibilidade
diversos tipos de inaladores e reavaliada a técnica em Portugal de terapêuticas combinadas (fluti-
regularmente. casona com salmeterol e budesonido com for-
A escolha do método de inalação constitui uma moterol) veio simplificar a terapêutica permitindo
etapa fundamental do tratamento das doenças uma maior adesão.
respiratórias da criança; o ensino e avaliação da As cromonas por via inalatória como o cro-
adequação só são possíveis com a colaboração de moglicato de sódio são uma alternativa ao uso dos
técnicos treinados e experientes. broncodilatadores. Estes fármacos têm um início
rápido de acção, sendo eficazes na prevenção em
Em síntese, para o tratamento das crises de cerca de 50% dos doentes. O seu mecanismo de
asma no serviço de urgência é prática tradicional acção baseia-se na inibição da desgranulação dos
o recurso aos nebulizadores, de preferência mastócitos. São referidos como pontos positivos o
pneumáticos. O seu uso estendeu-se ao tratamen- não desenvolvimento de tolerância e a inexistên-
to domiciliário, inclusive comparticipado pelo cia de efeitos adversos; no entanto, o seu efeito
Serviço Nacional Saúde. Numerosos estudos têm protector não parece estender-se para além de 2 a
vindo a demonstrar que as combinações pMDI / 4 horas, sendo eficazes unicamente como trata-
câmara expansora são preferíveis, sendo mais efi- mento profiláctico.
cazes, mais portáteis e menos dispendiosos. Os antagonistas dos receptores dos leucotrienos
Deve ser incrementado o uso de câmara (ex. montelucaste) oferecem, para além da comodi-
expansora nos serviços de urgência, na maioria dade posológica, protecção efectiva de sintomas
das crianças com crise de asma, pelo menos como induzidos pelo exercício ao longo das 24 horas, não
opção aos nebulizadores. Nalguns lactentes e parecendo este efeito decair com a sua toma regular.
crianças em idade pré-escolar, a nebulização com De acordo com a literatura médica, é importante
máscara pode ser mais bem aceite, particular- referir a ocorrência de sintomas do foro psiquiátrico
mente em situações mais graves, em que criança em doentes medicados com montelucaste.
se encontra exausta, por vezes febril, não sendo de Dada a elevada incidência de AIE em atletas
esperar então grande colaboração com a técnica de competição, e consequente necessidade de uso
requerida para uma câmara expansora. de medicação anti-asmática, o Comité Olímpico
382 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Internacional (COI) aceita o uso de agonistas NEJM 2005; 352: 2163-5173


β2-adrenérgicos, de acção curta e prolongada, Struck RC, Bloomberg GR. Omalizumab for asthma. NEJM
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constam da lista de medicamentos proibidos pelo Statement on the Management of Childhood Asthma.
COI. No entanto, para que a medicação anti- Pediatr Pulmonol 1998; 25: 1-17
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obriga à comprovação com uma notificação escri- childhood:influence of outdoor air pollution. Curr Opin
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CAPÍTULO 65 Rinite alérgica 383

65
QUADRO 1 – Classificação da Rinite Alérgica

1. Intermitente
Sintomas < 4 dias por semana ou < 4 semanas
2. Persistente
Sintomas > 4 dias por semana e > 4 semanas
RINITE ALÉRGICA 3. Ligeira
Sono normal e:
Graça Pires – actividades diárias, desportivas e de tempos livres
normais
– actividadades laborais e escolares normais
– sem sintomas perturbadores
Definição e importância do problema 4. Moderada-grave
Uma ou mais situações:
A rinite alérgica é uma doença inflamatória cróni- – sono anormal
ca da mucosa nasal, resultante de uma reacção de – repercussão nas actividades diárias, desportivas e
hipersensibilidade imunologicamente mediada, tempos livres
em que se verifica rinorreia serosa, obstrução e – problemas na escola
prurido nasais, e crises esternutatórias; por vezes
é acompanhada de irritação conjuntival.
A prevalência da rinite alérgica tem vindo a Manifestações clínicas e diagnóstico
aumentar progressivamente nos últimos anos, a
par do aumento da prevalência das outras patolo- A história clínica é essencial para o diagnóstico
gias alérgicas. Estima-se que actualmente a rinite preciso de rinite alérgica e avaliação da sua gravi-
alérgica tenha uma prevalência global de 10 a 30% dade. Os sintomas incluem obstrução nasal, rinor-
na população europeia, iniciando-se frequente- reia, prurido nasal e crises esternutatórias, poden-
mente as queixas nas primeiras décadas de vida. do cada doente apresentar predomínio de um ou
A avaliação do estudo epidemiológico ISAAC mais sintomas. Podem surgir sintomas associados,
(International Study of Asthma and Allergies in nomeadamente roncopatia e/ou distúrbios do
Childhood) demonstrou que 24% das crianças com sono, cansaço e mau rendimento escolar, corri-
6-7 anos e 27% dos adolescentes (13/14 anos) refe- mento nasal posterior, tosse crónica e perda de
riam queixas compatíveis com o diagnóstico de olfacto. O perfil temporal, a relevância dos sin-
rinite alérgica nos últimos doze meses. Trata-se, tomas e a resposta à terapêutica deverão ser avalia-
no entanto, de uma doença frequentemente não dos. É também importante investigar eventuais
diagnosticada e não tratada, com importantes factores desencadeantes e avaliar o contexto ambi-
repercussões na qualidade de vida e no desem- ental da criança, incluindo exposição alergénica e
penho escolar. tabagismo passivo. A existência de outras manifes-
tações da doença alérgica, nomeadamente asma,
Classificação conjuntivite, eczema e antecedentes familiares de
alergia apoiam o diagnóstico de rinite alérgica.
A classificação da rinite mais aceite actualmente O exame objectivo pode auxiliar no diagnósti-
baseia-se nas características temporais da doença co de rinite alérgica. Pode observar-se fácies ca-
e nas repercussões na qualidade de vida do racterística, com obstrução nasal e respiração oral
doente. Assim, a rinite é classificada em intermi- com a boca entreaberta, existência de prega atópi-
tente ou persistente, quanto à duração da ca nasal e olheiras. Em situações de maior cronici-
doença; e em ligeira ou moderada a grave, quan- dade poderá mesmo haver anomalias do desen-
to à intensidade dos sintomas e repercussão volvimento facial com má oclusão dentária.
sobre a qualidade de vida e actividades diárias O diagnóstico diferencial faz-se com outros
(Quadro 1). tipos de rinite (não alérgica) provocados por irri-
384 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

tantes ou toxinas (não dependentes de IgE), natural de uma doença das vias aéreas, considera-
infecções víricas, rinite vasomotora e síndroma de da como uma unidade.
rinite não alérgica com eosinofilia (ver adiante). Outras doenças alérgicas estão frequentemente
A observação das fossas nasais com uma fonte presentes, devendo ser investigadas e tratadas,
de luz incidindo sobre o vestíbulo nasal permite nomeadamente conjuntivite alérgica e eczema.
observar rinorreia, habitualmente aquosa, hiper- A inflamação crónica subjacente à rinite alérgi-
trofia e palidez da mucosa dos cornetos inferiores ca estende-se à mucosa de revestimento dos seios
e desvios do septo nasal. perinasais predispondo à ocorrência de quadros
Os testes cutâneos por picada, úteis a partir de rinossinusite. O bloqueio funcional dos ostiae
dos primeiros anos de vida, são largamente uti- dos seios perinasais inicia as alterações fisiopa-
lizados para confirmar o diagnóstico de rinite tológicas que levam ao aparecimento de rinossi-
alérgica-IgE mediada, permitindo identificar os nusite. Alguns factores mecânicos podem também
alergénios implicados. Em caso de discordância contribuir para quadros prolongados ou recor-
entre a história clínica e os testes cutâneos, deverá rentes de rinossinusite, dos quais o mais fre-
efectuar-se doseamento de IgE específica. quente, na criança dos dois aos sete anos, é a
A radiografia dos seios perinasais não está hipertrofia das “vegetações” em associação com
indicada no diagnóstico de rinite alérgica. A radio- desvio do septo nasal e hipertrofia dos cornetos.
grafia do cavum, de perfil, é muito utilizada para Importa, no entanto, referir que a maioria dos
demonstrar a existência de hipertrofia das quadros agudos de rinossinusite na criança é cau-
adenóides. sada por infecções víricas, com possibilidade de
As adenóides, um factor mecânico que agrava sobreinfecção bacteriana.
a obstrução nasal provocada pela rinite alérgica,
também contribuem para o aparecimento de Tratamento
quadros prolongados ou recorrentes de rinossi-
nusite infecciosa. A tomografia axial computa- A rinite alérgica é uma doença que, quando não
dorizada (TAC) é um exame radiológico impor- tratada, pode provocar alterações do ritmo do
tante para avaliar complicações ou patologias sono, sonolência diurna e dificuldades de concen-
associadas, em determinados casos. tração e de aprendizagem, impondo várias
restrições nos aspectos físico, psíquico e social da
Doenças associadas vida dos doentes. O tratamento da rinite alérgica
permite um melhor controlo da asma brônquica e
A rinite alérgica ocorre muito frequentemente diminui a frequência de episódios de rinossinusite
associada à asma brônquica, embora a natureza e otite média.
desta ligação não esteja totalmente esclarecida. O primeiro passo no tratamento da rinite alér-
Discute-se actualmente as relações entre a patolo- gica consiste na evicção alergénica, devendo ser
gia alérgica das vias aéreas superiores e inferiores, recomendada desde os primeiros sintomas da
partilhando aspectos relacionados com a infla- doença. As medidas de evicção deverão incidir
mação numa mucosa respiratória contígua. A sobre os ácaros do pó, animais domésticos, baratas,
rinite foi já identificada como factor de risco de fungos e poluentes. É fundamental a evicção de
asma em adultos. tabagismo passivo, importante factor de risco do
Num estudo prospectivo nacional, com a duração aparecimento e gravidade da doença alérgica.
de oito anos, onde foram incluídas crianças com Habitualmente o controlo ambiental não é sufi-
hiperreactividade brônquica em idade pré-escolar, ciente e existe necessidade de instituir terapêutica
a rinite foi identificada como o principal factor de médica. O tipo de fármacos a utilizar depende da
risco independente para a persistência dos sin- gravidade da doença e também dos sintomas mais
tomas, mesmo nas crianças que não eram atópicas importantes em cada doente.
na data da inclusão. Existirá, então, uma forte Os anti-histamínicos são considerados, por
relação entre rinite e asma, ficando por esclarecer alguns autores, os fármacos de primeira linha no
se a asma corresponde a uma fase na progressão tratamento da rinite alérgica. Actuam como
CAPÍTULO 65 Rinite alérgica 385

antagonistas dos receptores H1 reduzindo o pruri- A imunoterapia específica no tratamento da


do nasal, os espirros e a rinorreia, sendo, no entan- rinite alérgica é eficaz quando aplicada a doentes
to, pouco eficazes na redução da obstrução nasal. seleccionados. Alguns autores sugerem que
Os anti-histamínicos de 1ª geração não devem ser poderá alterar o curso da doença alérgica pre-
utilizados pelos seus efeitos secundários, poden- venindo o aparecimento de asma em doentes com
do diminuir as capacidades intelectuais das cri- rinoconjuntivite alérgica. Deve ser sempre indica-
anças em idade escolar. Os anti-histamínicos de 2ª da e monitorizada por imunoalergologistas.
geração atravessam pouco a barreira hemato- De acordo com a actual classificação da rinite
encefálica pelo que são bem tolerados, provocan- alérgica, a abordagem terapêutica desta doença
do menos sonolência e efeitos acessórios. São baseia-se na sua periodicidade e gravidade.
habitualmente administrados por via oral, apenas Nas formas ligeiras de rinite intermitente pode
uma vez ao dia, aliviando os sintomas nasais, mas usar-se os anti-histamínicos orais ou nasais ou os
também oculares e cutâneos, caso existam outras descongestionantes nasais, estes últimos durante
doenças alérgicas. Os anti-histamínicos tópicos, um curto período de tempo. Nas formas modera-
aplicados no nariz e nos olhos, têm um rápido iní- das/graves usam-se os anti-histamínicos isolada-
cio de acção e são habitualmente bem tolerados. mente ou associados a corticosteróides nasais e,
Necessitam, no entanto, de ser aplicados duas eventualmente, um curto período de vasoconstri-
vezes ao dia para manter a eficácia. tores. Nas fases agudas pode ser necessário recor-
Os corticosteróides têm um papel central no rer a corticosteróides orais. O doente deverá ser
tratamento da rinite alérgica, actuando pelo seu reavaliado após 2 a 4 semanas e a terapêutica rea-
potente efeito anti-inflamatório. São usados geral- justada.
mente sob a forma tópica, mas nas situações Na rinite persistente existe habitualmente
graves podem ser usados por via sistémica, por inflamação permanente da mucosa, pelo que a te-
períodos de 3 a 5 dias. As formas depot de admi- rapêutica medicamentosa deverá ser mantida por
nistração sistémica não devem ser utilizadas. Os períodos prolongados. Nas formas ligeiras podem
corticosteróides tópicos reduzem a obstrução ser utilizados anti-histamínicos ou corticoste-
nasal, a rinorreia, os espirros e o prurido nasal, róides nasais. Uma possível abordagem é a uti-
sendo mais eficazes do que os anti-histamínicos lização de anti-histamínicos por um período de 2
no controle da obstrução nasal. As doses são va- a 4 semanas e, se não ocorrer melhoria, deverá
riáveis de acordo com a idade, a gravidade da proceder-se ao início de corticosteróides nasais.
patologia e o corticosteróide seleccionado. Com Nas formas moderadas/graves os corti-
uma posologia correcta são habitualmente fárma- costeróides nasais são a terapêutica de primeira
cos seguros, nomeadamente no que respeita ao linha. Quando necessário, deve efectuar-se tera-
crescimento da criança, mesmo em terapêuticas pêutica com corticosteróides orais ou desconges-
prolongadas. Um aspecto importante é o seu iní- tionantes por um curto período de tempo.
cio de acção lento, podendo recorrer-se aos Associam-se anti-histamínicos se estiverem pre-
descongestionantes nasais, nos primeiros dias de sentes prurido nasal, crises esternutatórias e rinor-
tratamento, para se obter um efeito mais rápido reia importantes. Os doentes devem ser reavalia-
sobre a obstrução nasal. dos regularmente, mantendo a mínima terapêuti-
As cromonas são seguras, mas apresentam ca necessária para controlar os sintomas.
menor eficácia que os anti-histamínicos e os corti-
costeróides nasais. Pela frequência de adminis- BIBLIOGRAFIA
tração diária (três a quatro vezes) colocam proble- Borish L. The role of leukotrienes in upper and lower airway
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alérgicas, nomeadamente respiratórias. No
âmbito das situações de alergia de expressão
cutânea, são descritas as entidades clínicas derma-
tite atópica, urticária e prurigo-estrófulo. Relati-
vamente à primeira, neste capítulo foca-se essen-
cialmente a fisiopatologia e o diagnóstico diferen-
cial, abordando-se os restantes aspectos na parte
referente à Dermatologia Pediátrica (Capítulo 95).
No que respeita à anafilaxia, que tem a mesma
base fisiopatológica que a urticária e angioedema,
recorda-se que foi abordada sucintamente no capí-
tulo 63, sendo dada ênfase ao respectivo trata-
mento neste capítulo 66.

1. Síndroma de eczema / dermatite


atópica

Definição e fisiopatologia
A dermatite atópica (DA) é uma doença infla-
matória crónica da pele, muito pruriginosa, que
CAPÍTULO 66 Alergia de expressão cutânea 387

com frequência ocorre em associação com proble- uma secura intensa, ou xerose, com descamação; na
mas respiratórios, para a patogenia dos quais con- fase crónica, para além do prurido associado a
tribuem mecanismos imunológicos de hipersensi- lesões em diferentes estádios, aparece outro tipo de
bilidade imediata e retardada; esta heterogeneidade lesões resultantes da inflamação persistente e do
de respostas tem levado à substituição do termo prurido, como as escoriações e a liquenificação. Os
dermatite atópica por um mais abrangente: síndro- diferentes tipos de lesões de eczema podem coexis-
ma eczema / dermatite atópica (SEDA), podendo tir nas distintas fases evolutivas.
ainda dividir-se em não alérgica e alérgica; esta últi- A evolução característica ocorre com ciclos de
ma, por sua vez, pode estar ou não associada à pre- exacerbação, por vezes associados a outras formas
sença de IgE específica (atópica ou não atópica). de doença alérgica (asma e/ou rinite alérgica que
Na SEDA existe uma resposta inflamatória, podem ocorrer em cerca de 50% destas crianças).
traduzida por um infiltrado linfo-histiocitário cir- A alteração da barreira cutânea por agentes quími-
cundando os vasos da derme superficial, mesmo cos como solventes, desinfectantes ou soluções
ao nível da pele sem lesões. alcalinas permitem a persistência de lesões e a
Na fase aguda o infiltrado linfocitário acentua-se penetração de macromoléculas.
e associa-se a fenómenos de espongiose ao nível da
epiderme, a qual, se muito intensa, condicionará a 2. Urticária e angioedema
ruptura das ligações entre queratinocitos com a con-
sequente formação de vesículas. Os linfócitos associ- Definição e fisiopatologia
ados aos processos crónicos de inflamação cutânea Urticária define-se como reacção cutânea carac-
são portadores de um antigénio à sua superfície terística constituída por pápulas fugazes (< 24
(antigénio do linfócito cutâneo), o qual, funcionando horas) edematosas, com um aspecto típico:
como receptor, se ligará ao contra receptor (E-selecti- redondas ou ovais, de dimensões variáveis, com
na) existente no endotélio vascular. superfície plana, da cor da pele ou rosa-pálido; o
Na fase crónica, ao nível da epiderme o infil- contorno é bem delimitado, por vezes com pro-
trado de células T e a espongiose são substituídos longamentos – os “pseudópodos” e, isoladas ou
por hiperplasia e hiperqueratose, com concomi- em grupos, tendem a confluir. Nas formas mais
tante aumento do número de células de exuberantes existe contorno policíclico em “mapa
Langherans com IgE à superfície. Também na geográfico”, eritematoso com centro pálido (em
derme o infiltrado linfocitário tem uma expressão anel) (Figuras 1 e 2). O prurido está presente, sendo
mais reduzida, relativamente aos macrófagos, raros a dor e desconforto. Resultam de fenómeno
mastócitos e eosinófilos. de alteração vascular com vasodilatação e aumen-
Para cada uma das fases descritas é possível to da permeabilidade de capilares e vénulas da
encontrar um padrão característico de citocinas derme superficial.
envolvidas, existindo uma mudança no perfil, ini- Por vezes os episódios de urticária repetem-se
cialmente do fenótipo Th2 (fase aguda), para o durante dias ou semanas; convencionou-se a clas-
fenótipo Th1 (fase crónica), justificando o mecani- sificação de “aguda” para os casos com recorrên-
smo retardado existente na maioria dos doentes cias < 6 semanas, e de “crónica” para aqueles
com DA. casos em que tal duração é superior.
Para além dos factores genéticos, das altera- A urticária é uma patologia comum, estiman-
ções constitucionais da pele e dos distúrbios do-se que possa afectar cerca de 15% da popu-
imunes, muitos factores exógenos, específicos e lação em qualquer idade.
inespecíficos, contribuem para a exacerbação da O angioedema (edema angioneurótico ou
doença. A tradução clínica é relativamente monó- edema de Quincke), correspondendo a um fenó-
tona, sendo o prurido o sintoma sem o qual não se meno (de aparecimento súbito) equivalente à
pode estabelecer o diagnóstico de eczema. urticária, e ocorrendo de modo circunscrito na
Na fase aguda estão presentes o eritema intenso hipoderme/tecido subcutâneo/submucoso, tem maior
e, por vezes, observam-se vesículas; na fase subse- duração (1-5 dias). A área afectada em geral é cir-
quente, ou subaguda, apresenta-se essencialmente cunscrita, está tumefacta, edematosa, mais pálida
388 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

é menor, o edema é mais exuberante e o infiltrado


celular inflamatório subcutâneo e ou submucoso é
escasso ou ausente.
Salienta-se que o angioedema muitas vezes
pode associar-se a episódios de urticária (sobretu-
do crónica) ou alternar com os mesmos.
Raramente (~10% dos casos) o angioedema ocorre
sem urticária.
As formas crónicas da síndroma urticária/
angioedema estão mais frequentemente associa-
das a patogénese por agentes físicos, reumática,
endócrina, neoplásica e idiopática.
Na origem da urticária e do angioedema situa-se
o mastócito, célula dérmica cujos grânulos contêm
substâncias vasoactivas (histamina, prostaglandi-
nas, bradicinina, calicreína, leucotrienos, factor acti-
vador das plaquetas), as quais, libertadas durante o
fenómeno reaccional, actuam sobre os vasos. A
bradicinina tem papel importante na fisiopatologia
do angioedema não associado a urticária.
Episódios repetidos de angioedema poderão
ocorrer (prevalência entre 1/10.000 a 1/ 50.000),
na ausência de urticária, relacionados com défice
hereditário (quantitativo ou qualitativo) do ini-
bidor da esterase de C1 (do sistema do comple-
mento) em relação com mutações no gene C1INH.
Trata-se de doença autossómica dominante em
que a deficiência do inibidor da esterase de C1
conduz à elevação de cininas, particularmente da
bradicinina, com consequente vasodilatação e
aumento da permeabilidade vascular.
Para além das formas hereditárias, estão
descritas formas adquiridas de défice de C1INH,
por ex. no contexto de doenças autoimunes ou
neoplásicas (linfomas B, tumores sólidos,etc.).
Como factores desencadeantes de angioedema
por défice de C1INH contam-se, entre outros, cer-
tos fármacos (IECA,anticonceptivos orais), trau-
FIG. 1 e 2
matismos, infecções
Urticária: Pápulas isoladas e confluentes. (NIHDE) O mecanismo mais frequente de desgranu-
lação mastocitária é imunoalérgico e resulta da
que eritematosa, é mais dolorosa do que pruriginosa acção de IgE em combinação com determinados
e produz desconforto. Os locais onde mais fre- alergénios (medicamentos, proteínas, vegetais e
quentemente surge são pálpebras, lábios, língua, animais, inaladas ou ingeridas). A associação a
mãos, pés e genitais. Menos frequentemente o entidades nosológicas diferenciadas reflecte a
tracto gastrintestinal pode ser atingido originando diversidade de mecanismos subjacentes ao pro-
náuseas, vómitos, diarreia e dores abdominais. blema clínico em epígrafe (Quadro 1).
Em comparação com a alteração vascular que A concentração de IgE no sangue circulante é
surge na urticária, no angioedema a vasodilatação baixa, mas a grande afinidade para a membrana dos
CAPÍTULO 66 Alergia de expressão cutânea 389

QUADRO 1 – Urticária / Angioedema sua grande maioria, de causa infecciosa vírica. É


Classificação etiopatogénica de referir que, com estes agentes, as lesões podem
persistir por mais de 24 horas; por vezes, acom-
Infecções panham-se de lesão residual, traduzindo a
Alimentos existência concomitante de um processo de vas-
Fármacos culite associada a imunocomplexos com antigé-
Agentes biológicos nios de origem vírica (ex. vírus de Epstein-Barr,
Defeitos genéticos (ex. angioedema hereditário) adenovírus, vírus influenzae, vírus sincicial respi-
Autoimune ratório, citomegalovírus, vírus herpes-varicela-
Vasculite urticariana e linfocitária com normalidade do -zoster, parvovírus, enterovírus, rotavírus).
complemento Também infecções bacterianas (estreptocóci-
cas) e parasitárias podem originar tais manifes-
Agentes físicos tações cutâneas.
Frio As infecções parasitárias poderão ser causa de
Pressão urticária em zonas endémicas, particularmente
Vibratória em crianças com eosinofilia e IgE elevada; a ocor-
Solar rência de urticária aguda e crónica foi relacionada
Aquagénica com infestações por Toxocara canis e Giardia lamblia.
Exercício Estes quadros, frequentes, não constituem fac-
tor preditivo de outra patologia imunoalérgica.
Associada a outras doenças
Reumáticas 2. Alimentos
Conectivopatias
Os sintomas podem surgir na sequência de con-
Neoplasias
tacto directo do alimento com a pele (alergénios
Tiroideia
lipofílicos); o leite, os peixes e os mariscos podem
Outras
conduzir a este quadro. A síndroma de alergia oral
é uma forma particular de urticária de contacto
Idiopática
provocada por alimentos; é caracterizada por
prurido e edema da mucosa oral, língua, lábios e
orofaringe. Surge principalmente nos doentes com
mastócitos e a estabilidade da sua persistência nesta alergia a pólens, após a ingestão de certos frutos
ligação explicam porque não são necessárias grandes ou vegetais, por um mecanismo de reactividade
concentrações de antigénio para se verificar o fenó- cruzada IgE mediada. Esta síndroma afecta pre-
meno de desgranulação e subsequente reacção. dominantemente adolescentes.
As lesões de urticária podem também surgir
Manifestações e formas clínicas. na sequência de ingestão de alimentos. O leite, o
Urticária aguda ovo, o peixe, o amendoim, a soja e o trigo são os
A urticária aguda na criança é habitualmente alimentos mais frequentemente em causa e o
autolimitada e benigna, com duração de apenas mecanismo implicado é mediado por IgE. Trata-
alguns dias. As formas agudas, particularmente -se, em regra, de quadros de fácil identificação,
nos primeiros anos de vida, são mais frequentes surgindo as lesões entre 30 a 60 minutos após a
do que as formas crónicas, sendo factores etio- ingestão do alimento; a evicção deverá levar à sua
lógicos mais comuns as infecções, a ingestão de resolução num período de 24 horas.
alimentos e a administração de medicamentos; de
referir que a etiologia é identificada ou suspeitada 3. Fármacos
em 40 a 90% dos casos. Qualquer fármaco pode desencadear um quadro de
urticária ou angioedema, embora os antibióticos
1. Infecções beta-lactâmicos e os anti-inflamatórios não esterói-
Os quadros de urticária aguda na criança são, na des tenham um papel primordial (estes últimos rara-
390 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

mente envolvidos nos grupos etários pediátricos). A exposição solar, a água, o exercício, a pressão e a
reacção surge habitualmente durante os primeiros vibração. Com raras excepções, as lesões de
dez dias da administração do medicamento. urticária e/ou angioedema desenvolvem-se nas
A enzima de conversão da angiotensina meta- áreas da pele expostas, poucos minutos após a
boliza a bradicinina. Daí que a administração de aplicação do estímulo físico, ainda que possam
fármacos IECA, elevando os níveis de bradicinina, ocorrer de forma generalizada a toda a área cor-
possa estar associada a angioedema (ver atrás). poral ou com manifestações sistémicas associadas;
As reacções adversas a fármacos, imunologica- verifica-se em regra remissão espontânea, em
mente mediadas, têm uma incidência baixa poucas horas, embora existam formas mais
(menos de 10%). Apesar disso, a incidência de duradouras. As formas retardadas (adquiridas ou
exantema após utilização de fármaco na criança, familiares) frequentemente constituem problemas
nomeadamente antibióticos, é uma situação de diagnóstico, uma vez que não existe uma
comum; contudo, nestes casos o antibiótico admi- associação causal imediata.
nistrado é muitas vezes incorrectamente responsa- As urticárias desencadeadas pelo calor, essen-
bilizado, visto que na maioria das situações os sin- cialmente a urticária colinérgica*, representam 2 a
tomas são causados pela infecção concomitante. 7% das urticárias físicas e, a urticária ao frio, 3 a 5%,
Se o fármaco for essencial à terapêutica do sendo esta a forma que mais frequentemente se
doente, o diagnóstico definitivo poderá exigir a encontra na prática clínica. As formas mais raras,
realização de um teste de provocação por espe- com uma incidência inferior a 1%, correspondem às
cialista experiente, em ambiente hospitalar e com urticárias de pressão, solar, vibratória e aquagénica.
disponibilidade de meios de reanimação. A Nota: A urticária acompanha-se em geral de alter-
indução de tolerância é reservada para os casos ação da reactividade cutânea-vascular frente a estí-
em que a administração do fármaco é impres- mulos traumáticos superficiais denominada dermo-
cindível e não existe alternativa (ex. penicilina). grafismo (ocorrendo em 2 a 5% da população geral).
Pesquisa-se executando um traço na superfície da
4. Agentes biológicos: veneno de himenópteros pele com estilete de ponta romba, resultando linha
(vespa e abelha) e outros insectos eritematosa persistindo cerca de 10-15 minutos.
A picada ou mordedura com inoculação de
vários agentes biológicos pode induzir uma Diagnóstico
reacção de urticária aguda que, embora na maio- Como foi referido antes, o diagnóstico de urticária
ria das vezes seja local, pode ser acompanhada de ou angioedema é clínico, baseando-se fundamental-
manifestações sistémicas (de urticária generaliza- mente nas características das lesões, evolução e na
da a anafilaxia) em cerca de 5% dos casos. observação; a realização de biópsias cutâneas está
reservada a algumas formas crónicas da doença.
Urticária crónica Nos casos de angioedema, suspeitando-se de défice
Por definição, a urticária crónica caracteriza-se de C1INH, pode proceder-se ao respectivo rastreio
pela ocorrência de lesões diárias ou quase diárias, através da determinação da fracção C4 do comple-
com ou sem angioedema acompanhante, durante mento, a qual está diminuída em todas as formas.
um período superior a 6 semanas. Na criança a Uma vez confirmado o diagnóstico de urticá-
urticária crónica ocorre raramente. ria ou angioedema, é fundamental uma correcta
Em 30-50% dos casos de urticária crónica caracterização das lesões quanto à localização e
demonstrou-se a presença de autoanticorpos distribuição, dimensões, frequência, intensidade e
estimulando mastócitos, o que sugere mecanismo factores condicionantes. Uma análise meticulosa
autoimune, para alguns casos considerados antes deverá avaliar não apenas as características das
relacionados com urticária crónica idiopática. lesões, mas também os antecedentes pessoais da
As urticárias físicas, subgrupo das urticárias
crónicas (10 a 20%), são desencadeadas em *A designação deriva do mecanismo patogénico provável de hipersen-
sibilidade à acetilcolina endógena produzida no organismo durante o
indivíduos susceptíveis pela exposição a alguns exercício físico, quer nas placas motoras dos músculos estriados, quer
estímulos ambientais como sejam o calor, o frio, a nas glãndulas sudoríparas écrinas.
CAPÍTULO 66 Alergia de expressão cutânea 391

criança, o seu ambiente doméstico e os hábitos, assegurar uma adequada hidratação cutânea, a
nomeadamente alimentares e medicamentosos. conduta terapêutica perante um quadro de
As formas agudas, mais frequentes na infân- urticária aguda passa, em primeiro lugar, pela
cia, são habitualmente autolimitadas, raramente eventual identificação e evicção do agente causal.
necessitando de uma avaliação diagnóstica apro- Os anti-histamínicos por via oral são os fár-
fundada e respondendo adequadamente à tera- macos de eleição no tratamento farmacológico
pêutica sintomática. desta situação (a via tópica está proscrita pelo
As formas crónicas, embora menos frequentes, risco de sensibilização fotoalérgica e efeitos extra-
exigem habitualmente, pelo carácter recorrente piramidais), estando vários anti-histamínicos
das lesões, uma investigação adicional (detecção disponíveis, desde a hidroxizina à cetirizina,
de sensibilização alergénica; patologia infecciosa e loratadina, mizolastina, fexofenadina ou ebastina,
autoimune ou neoplásica). Esta abordagem orien- aos mais recentes: levocetirizina e desloratadina.
tará também a escolha de um esquema farma- O tratamento deve durar, em média, 5 a 10
cológico mais adequado à etiologia da urticária ou dias; no plano terapêutico, a monoterapia com
angioedema em questão. anti-histamínicos constitui o esquema farmaco-
A análise dos dados colhidos na história clíni- lógico, particularmente nas formas agudas, em
ca orientarão a investigação diagnóstica ulterior função da gravidade e da resposta clínica. A
que se pretende esclarecedora mas, também, eco- associação de duas moléculas distintas representa
nomicamente viável. Assim, proceder-se-á a uma o escalão de actuação seguinte.
selecção criteriosa dos exames subsidiários mais Justifica-se a utilização de corticosteróide sistémi-
indicados a cada situação particular. co nos casos mais graves, com lesões exuberantes e
Exames para avaliação do estado geral da generalizadas, quando associados a angioedema ou
criança poderão ser úteis numa primeira abor- em reacções anafilácticas, (nestas últimas após o
dagem: hemograma, determinação de parâmetros tratamento inicial com adrenalina). Devem ser usa-
bioquímicos, determinação de imunoglobulinas dos ciclos muito curtos (3 a 5 dias) de prednisolona
séricas e fracções do complemento, proteína C ou equivalente na dose de 0,5 a 1mg/Kg/dia.
reactiva, velocidade de sedimentação, exame A evicção de alimentos ricos em histamina
parasitológico de fezes, etc.. (marisco, bacalhau, morango, cacau, tomate, enlata-
As síndromas de causa física são habi- dos, charcutaria, queijos fermentados, entre outros)
tualmente identificadas pela história clínica que também têm o seu papel durante a fase aguda; de
permite reconhecer o estímulo desencadeante. A realçar o papel modesto dos alimentos na etiopatogé-
realização de testes específicos conduzirá ao dia- nese da urticária na criança (aguda ou crónica) ao
gnóstico definitivo. contrário do que é geralmente assinalado.
O estudo alergológico, quando indicado, inicia- Nas urticárias crónicas estão indicados anti-
-se habitualmente pela realização de testes cutâ- histamínicos tipo bloqueantes H2 nos casos sem
neos de alergia por picada aos aeroalergénios e/ou resposta aos de tipo anti-H1 (por exemplo cimeti-
alergénios alimentares a que o doente está exposto dina). De referir efeito sinérgico pela associação
de acordo com metodologia padronizada. dos Anti-H1 + Anti-H2.
De salientar que a urticária crónica pode surgir
como primeira manifestação de uma doença b-Angioedema hereditário
sistémica (ex: lupus eritematoso sistémico, tiroidite Esta forma de angioedema não responde aos anti-his-
autoimmune, doença do soro); outros estudos tamínicos nem aos corticóides. Tratando-se da
imunológicos poderão então estar indicados como modalidade desencadeada pelos IECA, a medida
a pesquisa de anticorpos antinucleares, imuno- prioritária é a interrupção do respectivo fármaco,
complexos circulantes ou anticorpos antitiroideus. verificando-se melhoria em 48-72 horas. A verifi-
cação de edema laríngeo/da glote (ou crise
Tratamento abdominal grave) implica administração de
a-Urticária adrenalina, e entubação traqueal no caso de
Para além de cuidados gerais, incluindo os de ineficácia da adrenalina.
392 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Tratando-se de défice de inibidor da esterase patologia inflamatória cutânea, definida pela


de C1 (C1INH) está indicada idealmente a admin- existência de máculo-pápulas, do tamanho de
istração de concentrado de C1INH (ou plasma cabeça de alfinete com ou sem vesículas, erite-
fresco congelado na impossibilidade de utilizar o matosas e pruriginosas; é frequentemente observada
primeiro). na sequência de picada ou contacto cutâneo com
Tratando-se duma situação caracterizada por insectos. Sobre o papel da ingestão de certos
episódios repetidos de angioedema, fora da crise, alimentos não existe consenso. Os grupos etários
deverá actuar-se com medidas preventivas como pediátricos são os mais afectados. Os insectos mais
antifibrinolíticos (por ex.ácido aminocapróico e frequentemente incriminados na etiologia do
ácido transexâmico) e androgénios de baixa prurigo estrófulo, são os artrópodes, de que é
dosagem (por ex. danazol). exemplo o Culex pipiens (melga comum) que se
Como nota importante, há que referir que se encontra em todo o mundo à excepção da
trata de situações para tratamento em centros Antártida. É conhecido como o mosquito
especializados. doméstico, por muitas vezes se desenvolver em
pequenos reservatórios de água, perto ou dentro
c-Anafilaxia das casas. As suas larvas desenvolvem-se em águas
Tratando-se duma emergência médica, cons- estagnadas, com abundância de matéria orgânica.
tituem prioridades, para além da administração Esta patologia não constitui factor de risco de
imediata de adrenalina, a manutenção da via expressão de outras doenças alérgicas, exceptuan-
aérea e da circulação, salientando-se que pode do dermatite atópica.
haver associação a angioedema e obstrução brôn-
quica. A mortalidade atribuída à anafilaxia na Fisiopatologia
sequência de colapso cardiocirculatório deve-se A pápula associada à picada de insecto foi inicial-
fundamentalmente ao atraso na administração de mente encarada como uma reacção mastocitária
adrenalina, para além de 30 minutos após início cutânea ao componente mecânico dessa mesma
dos sintomas. picada, decorrente da inoculação de algumas pro-
As medidas de reanimação incluem oxigeno- teínas, nomeadamente enzimas (hialuronidase);
terapia, fármacos vasoactivos, broncodilatadores existem estudos que objectivam a presença de
inalados (como albuterol) e antagonistas de H1e depósitos de imunoglobulinas e factores de com-
H2. Os corticóides estão indicados como anti- plemento nos vasos da derme sugerindo hipersen-
inflamatórios nas 8-12 horas subsequentes às sibilidade do tipo III (e talvez do tipo I), que justi-
medidas descritas. ficaria a presença de lesões afastadas do local de
Os casos de anafilaxia em doentes tratados contacto dos artrópodes.
com antagonistas beta-adrenérgicos podem ser A intensidade da reacção e sua consequente
refractários à adrenalina. em tal contexto estão expressão clínica são influenciadas pela idade. As
indicados glucagom ou atropina (situações para picadas sucessivas induzem habitualmente um
tratamento em centros especializados). estádio de tolerância.
Após a alta o doente deve ser portador de
estojo/Kit com adrenalina para ser aplicada por Manifestações clínicas e diagnóstico
automedicação em casos de recorrência dos sin- Factores como a permanência prolongada no exte-
tomas segundo as instruções do médico-assistente rior dos edifícios (durante a prática desportiva,
(Capítulos 67 e 265). casual ou recreativa), o suor, os odores fortes, a
pele quente e o movimento, parecem aumentar a
3. Prurigo estrófulo susceptibilidade à picada.
A reacção clínica à picada pode incluir dois
Definição mecanismos: um imediato (minutos após) mais
A designação de prurigo é latina e dela deriva o frequentemente traduzido por quadro de eritema
termo prurido. e pápula, menos frequentemente por edema
O prurigo estrófulo ou urticária papular é uma extenso ou anafilaxia; e, um retardado (horas).
CAPÍTULO 66 Alergia de expressão cutânea 393

Este último tem tradução preferencial nas crianças Bogniewicz M. Chronic urticaria in children. Allergy Asthma
manifestando-se, por ordem decrescente de fre- Proc 2005; 26: 13-17
quência, por pápulas muito pruriginosas, vesícu- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
las, lesões pustulares e exantema semelhante ao Greaves MW, Kaplan AP (eds). Urticaria and angioedema.
eritema multiforme. New York: Marcel Rekker, 2004
O diagnóstico depende do reconhecimento das Guerra-Rodrigo F, Marques Gomes M, Mayer-da-Silva A,
lesões e, em alguns casos, da identificação do Filipe P I. Dermatologia. Lisboa: Fundação Calouste
agente causal (especialmente insectos). Não está Gulbenkian, 2010
habitualmente indicada a realização de exames Johansson SGO et al. A revised nomenclature for allergy. An
auxiliares de diagnóstico. EAACI position statment from the EAACI nomenclature
task force. Allergy 2001; 56:813-824
Prevenção e tratamento Kliegman RM, Stanton BF et (eds). Nelson Textbook of
As medidas de prevenção assentam no uso de Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
roupas que cubram áreas do corpo expostas e na Neto M, et al. Prurigo estrófulo e o risco do seu impacto.
utilização de repelentes de insecto aplicados na pele Cadernos de Imuno-Alergologia Pediátrica 2003;1/2:43-45
da criança, em pulseiras ou no próprio vestuário; Pereira C et al. Urticária na criança. In A Criança Asmática no
pode ser recomendado o uso de mosquiteiros e Mundo da Alergia. Rosado Pinto J, Morais de almeida M
insecticidas, e também a desinfestação do ambiente. (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 433-441
A terapêutica tópica, para além da aplicação de Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
emolientes, inclui a prescrição de corticóides que AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
têm um efeito anti-inflamatório; não deverão ser Medical , 2011
prescritos anti-histamínicos tópicos, que podem Santa Marta C, et al. Prurigo estrófulo. In A Criança Asmática
desencadear sintomas extrapiramidais ou der- no Mundo da Alergia. Rosado Pinto J, Morais de Almeida
matite de contacto fotoalérgica. Os anti-histamíni- M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 449-451
cos diminuem o eritema, o tamanho da pápula e, Santa Marta C. et al. Síndrome de eczema / dermatite atópica.
a intensidade do prurido; também exercem In Criança Asmática no Mundo da Alergia. Rosado Pinto J,
influência na menor expressão da reacção tardia, Morais de Almeida M (eds). Lisboa: Euromédice, 2003; 421-
pelo que devem ser utilizados como profilácticos 431
(anti-histamínicos não sedativos) durante perío- Simon D, Lang KK. Atopic dermatitis:from new pathogenic
dos prolongados (semanas a meses) nos casos de insights toward a barrier-restoring and anti-inflamatory
agudizações sucessivas. therapy. Curr Opin Pediatr 2011; 23: 647-652
Na fase aguda o intenso prurido pode tornar von Kobyletzki LB, Bornehag C-G, Hasselgren M, et al.
preferíveis os anti-histamínicos de primeira gera- Eczema in early childhood is srongly associated with the
ção, como a hidroxizina, pelo seu efeito sedativo development of asthma and rhinitis in a prospective cohort.
adicional. Os corticóides sistémicos podem ser con- BMC Dermatology 2012; 12:11. http://www.biomedcen-
siderados apenas quando são atingidas grandes tral.com/1471-5945/12/11
áreas corporais, se verifica a reactivação de zonas
anteriormente picadas, e nos casos raros de anafi-
laxia; nestas últimas situações o uso de adrenalina
coloca-se na primeira linha de actuação (ver atrás).

BIBLIOGRAFIA
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care for atopic dermatitis. J Am Acad Dermatol 2004; 50:
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1376-1379
Brown S, Reynolds NJ. Atopic and non atopic eczema. BMJ
2006; 332: 584-588
394 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

67
comitantes são outros dos factores de risco.
Em relação ao doente destacam-se a idade, a
condição de sexo feminino e a presença de atopia.
Na criança a alergia a fármacos parece ser
menos frequente e menos grave que nos adultos, o
que se pode dever à imaturidade do sistema imu-
ALERGIA MEDICAMENTOSA nitário. O terreno atópico aumenta, no entanto, o
risco de reacções alérgicas graves mediadas por
Paula Leiria Pinto IgE, sem aumento de probabilidade de se desen-
volver um mecanismo IgE em resposta a molécu-
las de baixo peso molecular.

Definição e importância do problema Manifestações clínicas

O termo “hipersensibilidade” destina-se a desi- As manifestações clínicas podem ser muito varia-
gnar todo o tipo de reacções a fármacos indepen- das assim como as formas de apresentação;
dentemente do mecanismo subjacente. Por outro envolvem um ou vários órgãos e sistemas. As
lado, recorda-se: “alergia” refere-se às situações manifestações cutâneas isoladas (toxidermias) são
que envolvem a activação do sistema imunológi- as mais frequentes. No entanto, quadros de anafi-
co, por mecanismo mediado ou não por IgE. laxia potencialmente fatais, assim como manifes-
As reacções de hipersensibilidade correspon- tações do tipo de doença do soro, reacções
dem aproximadamente a 15% das reacções adver- autoimunes induzidas pelo fármaco e febre isola-
sas a fármacos. Dificuldades relacionadas com o da fazem parte do espectro clínico.
diagnóstico e a deficiente notificação das reacções
a entidades responsáveis pela farmacovigilância Diagnóstico
não permitem ter informação rigorosa sobre a ver-
dadeira dimensão do problema. O diagnóstico deve ser suspeitado após o apareci-
Numa revisão de 17 estudos prospectivos reali- mento de um sinal ou sintoma não previsível,
zados em crianças) da autoria de Impicciatore veri- relacionado, no tempo, com a administração de
ficou-se que em 2,1% das crianças hospitalizadas o um fármaco. A relação de causalidade deve ser
diagnóstico principal foi reacções adversas a fár- investigada criteriosamente, existindo vários algo-
macos, sendo 39,3% graves com risco de vida. ritmos que poderão servir de orientação, como o
Neste estudo a incidência de reacções adversas foi de Jones. As questões requerendo resposta são:
9,5% nas crianças hospitalizadas, e 1,5% no ambu- – os sinais e os sintomas são compatíveis com
latório. Estes resultados mostram que as reacções uma reacção de hipersensibilidade a fármacos?
adversas a fármacos na criança constituem um – há uma relação temporal entre a adminis-
problema de saúde pública importante. tração do fármaco e o início da reacção?
– a classe e a estrutura química do medicamen-
Factores de risco to estão associadas a reacções imunológicas?
– o doente recebeu previamente o fármaco sus-
A imunogenicidade (ou capacidade de provocar peito, numa ou em várias ocasiões?
resposta imune) é um dos factores de risco mais – não há outra razão plausível para a reacção
importantes de desenvolvimento duma reacção de descrita ou observada?
hipersensibilidade a fármacos a qual está directa- – os resultados dos testes cutâneos e /ou labora-
mente relacionada com o peso molecular e as pro- toriais disponíveis são compatíveis com o
priedades químicas do respectivo fármaco. A uti- diagnóstico de reacção explicada por mecanis-
lização de doses elevadas, a via de administração mos imunológicos?
parentérica, a maior duração do tratamento, a Apesar do número limitado de testes objec-
exposição repetida ao fármaco e as doenças con- tivos in vivo e in vitro para confirmação do dia-
CAPÍTULO 67 Alergia medicamentosa 395

gnóstico, têm sido utilizados numerosos testes “in talar, consistindo na administração controlada de
vitro”, com fins de investigação. Salientam-se, doses progressivas de fármaco, com o intuito de
assim, os testes de libertação de mediadores (ex. confirmar ou excluir o diagnóstico e, em casos
triptase, metil-histamina urinária, histamina no particulares, para obtenção de alternativas tera-
plasma); testes de reactividade celular – dos lin- pêuticas consideradas necessárias.
fócitos (transformação linfocitária – TTL – ou pro-
dução de linfocinas), dos leucócitos (libertação de Tratamento
leucotrienos e marcadores de activação celular) e
ainda os testes de hemaglutinação ou hemólise na Quando há suspeita de alergia medicamentosa é
presença do fármaco e de soro do paciente. importante proceder à suspensão da adminis-
Apenas o último tem interesse clínico para a tração do fármaco em causa. Nas crianças com
avaliação das citopénias mediadas imunologica- medicações múltiplas devem ser interrompidas
mente. todas as dispensáveis e substituir as necessárias
Perante a suspeita de reacções mediadas por por fármacos sem reactividade cruzada.
IgE, pode proceder-se ao doseamento da IgE A confirmação do diagnóstico de hipersensi-
específica cujo resultado apresenta em geral bilidade implica a evicção do fármaco e dos que
menor sensibilidade quando comparado com o apresentam reactividade cruzada.
dos testes cutâneos intradérmicos; aliás os testes Raras são as situações em que há que prosseguir
estão disponíveis apenas para um número limita- a utilização do medicamento ao qual o paciente é
do de fármacos (ex. penicilina G e V, amoxicilina e alérgico, sob medicação. Nas reacções mais ligeiras
sulfonamidas). como os exantemas ligeiros, a utilização de anti-
Recentemente, os testes de estimulação por -histamínicos é em geral suficiente. Apresentações
antigénio específico dos basófilos e a utilização da mais graves ou agravamento clínico podem reque-
citometria de fluxo para detecção de marcadores rer corticoterapia para controlo, sendo a dose usual
de activação celular (ex: CD63) – Flow-CAST, de prednisolona de 2mg/Kg de peso (máximo de
assim como os TTL, simulando uma prova de 60mg/dose), uma a duas vezes por dia.
provocação in vitro, são métodos promissores no O tratamento da anafilaxia não difere do que é
diagnóstico da alergia medicamentosa. utilizado em situações com outras etiologias,
Em relação aos testes “in vivo”, os testes cutâ- sendo o fármaco de eleição a adrenalina (1/1000)
neos intradérmicos para detecção de IgE específi- por via intramuscular, na dose 0,01ml/Kg de peso
ca têm sido os únicos com valor preditivo elevado, (máximo de 0,5ml); pode repetir-se duas vezes em
sobretudo na avaliação da suspeita de alergia aos intervalos de 15 minutos, dependendo da evo-
antibióticos β-lactâmicos, relaxantes musculares e lução. Outras medidas de suporte poderão ser
anestésicos locais. A sua principal limitação necessárias (Capítulo 66).
prende-se com o facto de os determinantes anti-
génicos responsáveis pela alergia à maioria dos Indução de tolerância
fármacos serem desconhecidas; assim, aqueles
devem ser realizados por especialistas de imuno- Perante situações particulares de necessidade
alergologia e em meio hospitalar. imperiosa de utilizar um fármaco essencial num
Podem ainda utilizar-se testes epicutâneos – indivíduo com manifestações de hipersensibili-
patch tests, cujos resultados encontrados por vários dade, e em que alternativas não existem ou as
autores não têm sido superiores aos demonstra- mesmas conduzem a resultados pouco eficazes, é
dos pelos testes intradérmicos (leitura tardia), possível recorrer à indução de tolerância através
reservando-se a sua utilização para o estudo das da utilização de protocolos que envolvem a
reacções à aplicação tópica de fármacos e conser- administração de doses progressivas do medica-
vantes. mento. Na maioria das vezes este tipo de procedi-
Na maioria das situações o diagnóstico de uma mentos é feito em internamento hospitalar, numa
reacção de hipersensibilidade pressupõe a realiza- unidade de cuidados intensivos. Alguns dos pro-
ção de uma prova de provocação em meio hospi- tocolos usados podem ser encontrados na literatu-
396 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ra, nomeadamente para antibióticos β-lactâmicos, cas aos testes cutâneos são raras (<1%) embora
trimetoprim-sulfametoxazol, insulina, ácido ace- existam notificações de óbitos.
tilsalicílico, entre outros. A tolerância desaparece Em situações não mediadas por IgE os testes
após suspensão do fármaco. cutâneos não têm qualquer valor preditivo (ex:
febre medicamentosa, dermatite esfoliativa, doen-
Prevenção ça do soro, exantemas).
As determinações da IgE específica para
São de destacar algumas recomendações para a detecção de alergia à penicilina têm uma sensibili-
prevenção da alergia medicamentosa: dade muito baixa.
– prescrever apenas os fármacos essenciais; O diagnóstico de alergia à penicilina é excluído
– evitar fármacos com reacções prévias sus- através da realização de uma prova de provocação.
peitas, assim como aqueles com os quais se Ocasionalmente, indivíduos alérgicos à penicilina
verifique reactividade cruzada; necessitam de efectuar terapêuticas com a penicili-
– utilizar medicação preventiva antes e na (ex: endocardite por enterococos, neuro-sífilis)
durante a administração de fármaco; sendo necessário proceder à indução de tolerância.
– informar o paciente/família sobre a reacção
medicamentosa, procedendo ao registo mé- 2. Sulfonamidas
dico do incidente; A incidência de reacções ao sulfametoxazol-trime-
– reportar as reacções adversas graves ou ines- toprim (SMX-TMP) na população geral é cerca de
peradas, ao Infarmed, especialmente de fár- 3 a 5%, sendo de referir que em 1/10000 casos
macos recentes. podem ocorrer reacções de toxicidade idiossin-
crásica grave.
Situações particulares A patogénese é multifactorial. O aparecimento
de reacções mediadas por IgE são raras. Salienta-
São abordados seguidamente alguns dos aspectos se que os indivíduos infectados pelo Vírus da
mais importantes relativos aos principais grupos Imunodeficiência Humana (VIH) têm níveis celu-
de fármacos implicados nas reacções de hipersen- lares de glutatião-redutase diminuídos, o que con-
sibilidade em idade pediátrica, como antibióticos, tribui para aumentar a toxicidade e imunogenici-
anti-inflamatórios não esteróides (AINE) e vaci- dade dos metabolitos do SMX.
nas. Os antibióticos β-lactâmicos e as sulfonami- Os factores de risco parecem ser o grau de
das são os antimicrobianos que com maior fre- imunodeficiência (CD4+<200/mm3), duração e
quência originam reacções adversas. dose do tratamento, infecção vírica coexistente,
fenótipo acetilador lento, e atopia.
1. Antibióticos β-lactâmicos Os testes "in vitro" poderão vir a ser úteis
Em cerca de 7% das crianças expostas à penicilina como marcadores clínicos de hipersensibilidade
e outros antibióticos β-lactâmicos, refere-se o ao SMX (ex: haptenização do SMX).
aparecimento de exantema. No entanto, apenas 10 Devem realizar-se testes cutâneos com picada
a 20% dos indivíduos com “história de alergia” e intradérmicos com SMX-TMP para detecção das
são verdadeiramente alérgicos, o que significa que reacções mediadas por IgE embora o valor dos
na maioria dos casos as pessoas podem tolerar a mesmos não esteja confirmado.
exposição à penicilina sem que ocorram reacções Os protocolos de indução de tolerância são, em
adversas. geral, seguros e eficazes.
Perante uma história sugestiva de reacção alér-
gica aos β-lactâmicos devem realizar-se testes 3. Anti-inflamatórios não esteróides (AINEs)
cutâneos por picada e intradérmicos. A revisão das casuísticas mostra que os AINE’s
Estima-se que 7 a 20% dos indivíduos com sus- constituem a segunda causa de reacções adversas
peita de história de alergia à penicilina tenham a fármacos na idade pediátrica, sendo respon-
testes cutâneos positivos. O valor preditivo nega- sáveis por cerca de 10% destas.
tivo destes testes é excelente. As reacções sistémi- Estudos realizados em grupos seleccionados de
CAPÍTULO 67 Alergia medicamentosa 397

crianças asmáticas e/ou atópicas mostram um sinusopatia crónica), apenas se administrem estes
aumento da prevalência da hipersensibilidade em fármacos quando estritamente necessário e sob
função da idade. Uma revisão dos estudos sobre a vigilância clínica. Várias séries demonstram, no
asma induzida pelo ácido acetilsalicílico (AAS) e entanto, que não há risco de deterioração da asma
anti-inflamatórios não esteróides (AINEs) em em crianças submetidas terapêutica analgésica ou
crianças asmáticas revela uma prevalência de 5%, anti-inflamatória por curtos períodos.
valor superior ao obtido através da história clínica.
Considera-se hoje que a hipersensibilidade 4. Vacinas
provocada pelos AINEs se deve a alterações do Como a maioria das vacinas do Programa Nacio-
metabolismo do ácido araquidónico com inibição da nal de Vacinação (PNV) são administradas em
ciclo-oxigenase (COX) e consequente aumento da população pediátrica, as reacções alérgicas às vaci-
libertação de leucotrienos com marcada actividade nas são mais frequentes neste grupo etário. As
pró-inflamatória. Questiona-se a possibilidade de reacções sugestivas de alergia são muito raras mas
formação de IgE específicas nos quadros de “anafi- ocorrem, sobretudo, na sequência da vacina anti-
laxia” associados a determinado AINE específico. difteria, tétano e pertussis, sob a forma tríplice
Na suspeita de reacção a um AINE e ausência (DTP) e associação da vacina anti-sarampo, paro-
de contraindicação preconiza-se a realização de tidite e rubéola (VASPR). Os dois principais com-
prova de provocação para confirmação do diagnós- ponentes identificados na patogénese das reacções
tico. Podem efectuar-se provas de provocação oral alérgicas foram a gelatina e as proteínas do ovo.
(PPO) com AAS ou outro AINE e provas de provo- Algumas reacções imediatas que surgem rela-
cação por inalação brônquica (PPIB) ou nasal cionadas com a administração da VASPR e da
(PPN), com acetilsalicilato de lisina. Pelo risco que DTP são justificadas pela sensibilidade à gelatina.
comportam, deverão ser efectuadas em meio hos- Em relação às proteínas do ovo, o conteúdo é
pitalar, sob vigilância cardio-respiratória e com muito elevado em vacinas de crescimento em teci-
equipa de emergência disponível. Estão reservados do extraembriónico (febre amarela), é elevado em
a casos duvidosos em que é necessário confirmar o vacinas de crescimento em embrião (parotidite,
diagnóstico e investigar fármacos alternativos. raiva e influenza), e é baixo ou indetectável em
As PPO são o método mais utilizado. vacinas de crescimento em fibroblastos de
Na presença de hipersensibilidade a um AINE embrião de galinha (rubéola, sarampo).
é importante investigar um AINE alternativo, Foram descritas ainda algumas reacções raras
atendendo à possível reactividade clínica simul- relacionadas com antibióticos associados a vacinas
tânea a diferentes fármacos do mesmo grupo ou como estreptomicina e polimixina (poliomielite
de grupos diferentes. injectável inactivada), neomicina (poliomielite oral
É consensual o recurso a provas de provocação e injectável). Em muitas outras reacções imediatas
para avaliar a tolerância a um determinado AINE. não se conseguiu provar a etiologia alérgica.
Deve optar-se pelos fármacos de menor risco, ou As reacções de hipersensibilidade retardada
seja, utilizar AINEs inibidores fracos da COX1 (ex: podem ser causadas por timerosal (nos casos de
paracetamol) ou inibidores preferenciais da COX2 vacina de anti-DTP, hepatite B), formaldeído (nos
(ex: nimesulido). casos de vacina anti-hepatite B), hidróxido de
A interdição no mercado nacional do nimesuli- alumínio (nos casos de vacinas anti-DTP, hepatite B).
do em idade pediátrica levanta problemas na A incidência de reacções anafilácticas à vacina
selecção do AINE alternativo. anti-sarampo com risco de vida é menos de 71,6
A indução de tolerância deve ser considerada /1 000 000 doses de vacina. Na metodologia de
nos pacientes com artrite ou doença arterial trom- diagnóstico os testes cutâneos não têm indicação
boembólica recorrente, tratando-se de situações porque não são fidedignos. A determinação da IgE
excepcionais. específica para a gelatina é importante.
É recomendado que, a crianças com asma e Nos doentes alérgicos ao ovo deve adoptar-se
com factores de risco clínico de hipersensibilidade o seguinte procedimento:
aos AINEs (asma persistente grave ou rino- – Todas as vacinas devem ser administradas por
398 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

equipa capaz de tratar uma reacção de anafi- Demoly P, Bousquet J. Epidemiology of drug allergy. Curr
laxia associada à administração de vacina. Opinion Allergy Clin 2001; 1: 305-310
– A alergia ao ovo não é contraindicação para a Gruchalla RS, Pirmohamed M. Antibiotic allergy. NEJM 2006;
imunização VASPR (mesmo em doentes com 354: 601-608
anafilaxia induzida pelo ovo é preconizada Guerra-Rodrigo F, Marques Gomes M, Mayer-da-Silva A,
vacina sem realização prévia de testes cutâ- Filipe P I. Dermatologia. Lisboa: Fundação Calouste
neos). Gulbenkian, 2010
– As vacinas anti-sarampo ou VASPR estão Impicciatore P, Choonara I, Clarkson A, Pandolfini C, Bonati
contraindicadas em indivíduos com antece- M. Incidence of adverse drug reactions in paediatric/out-
dentes de reacção anafiláctica à vacina anti- patients: a systemic review and meta-analysis of
sarampo (Capítulo 274). prospectve studies. Br J Clin Pharmacol 2001; 52:77-83
Jenkins C, Costello J, Hodge L. Systematic review of preva-
As reacções anafilácticas são raras ao toxóide lence of aspirin induced asthma and its implications for
tetânico, ocorrendo uma em um milhão de admi- clinical practice. BMJ 2004; 328: 434
nistrações. Vários mecanismos imunológicos estão Nanazy JA, Simon RA. Sensitivity to nonsteroidal anti-inflam-
envolvidos: atory drugs. Ann Allergy Asthma Immunol 2002; 89: 542-
– Hipersensibilidade mediada por IgE (muito 550
rara). Pichler WJ, Tilch J. The lymphocyte transformation test in the
– Reacção de hipersensibilidade tipo III. Vários diagnosis of drug hypersensitivity. Allergy 2004; 59: 809-
estudos demonstram uma correlação entre o 820
nível de IgG contra o toxóide tetânico e o Pool V, Braun MM, Kelso, JM, Mootrey G, Chen RT, Yunginger
grau de reacção local. JW, Jacobson RM Gargiullo PM. The anti-gelatine IgE anti-
– Reacção de hipersensibilidade tipo IV por bodies in people with anaphylaxis after measles mumps
presença de timerosal ou hidróxido de rubella vaccine in the United States. Pediatrics 2002; 110:71
alumínio explicando algumas reacções locais Rottem M, Shoenfeld Y. Vaccination and allergy. Curr Opin
tardias. A história de reacção anterior ao Otolaryngol Head Neck Surg 2004; 12: 223-231
toxóide tetânico, hidróxido de alumínio e Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
timerosal constitui factor de risco. AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York : McGraw-Hill
Medical , 2011
Na metodologia de diagnóstico os testes cutâ- Sanz ML et al. Flow cytometric basophil activation test by
neos são discutíveis porque originam muitos detection of CD63 expression in patients with immediate-
resultados falsos positivos e negativos. Mesmo os type reactions to betalactam antibiotics. Clin Exp Allergy
doentes com antecedentes de anafilaxia raramente 2002; 32: 277-286
evidenciam testes positivos.
Nos casos com história anterior de reacção ao
toxóide tetânico deverá ser ponderado:
1 – Avaliar o título de IgG para verificar a
necessidade de reimunização;
2 – Usar outras formas de toxóide com diferen-
te conservante;
3 – Usar formas isoladas de toxóide tetânico e
não associações DTP e DT;
4 – Iniciar protocolo de dessensibilização sob
orientação do imunoalergologista.

BIBLIOGRAFIA
Businco B B, Paganelli R, Bruno G, Grossi O, Rienzo D, Businco
B. Allergy to tetanus toxoid vaccine. Allergy 2001; 56: 701-
702
CAPÍTULO 68 Alergia e intolerância alimentares 399

68
mediada pela produção de anticorpos IgE
(alergia a proteínas alimentares IgE media-
da); → ou ter subjacentes mecanismos com
envolvimento de outras células e mediadores
do sistema imunitário (alergia a proteínas ali-
mentares não-IgE mediada ou mista).
ALERGIA E INTOLERÂNCIA 2. Hipersensibilidade alimentar não alérgica/não
imune (mais prevalente e também referida
ALIMENTARES como intolerância alimentar) – inclui manifes-
tações clínicas associadas a qualquer constitu-
Sara Prates inte (não proteico) de um alimento ou a um
aditivo alimentar, resultantes de fenómenos não
imunológicos, tais como reacções metabólicas,
defeitos estruturais, reacções farmacológicas ou
Definição e importância do problema reacções idiossincrásicas.
Ou seja, “alergia” (a proteínas alimentares) faz
Ao longo dos últimos anos, coincidindo com o parte das reacções de hipersensibilidade (termo
aumento de prevalência das doenças alérgicas mais lato que alergia) em que se demonstra
(segundo alguns relacionável com mais baixas taxas mecanismo imunológico subjacente, salientando-
de incidência de infecções na primeira infância- se que há reacções de hipersensibilidade não
hipótese “higiénica”), as reacções adversas rela- imune (Quadro 1).
cionadas com a ingestão de alimentos têm vindo a
ser consideradas um importante problema de saúde Aspectos epidemiológicos
pública. Tais reacções podem ser denominadas
duma forma abrangente hipersensibilidade ali- A epidemiologia da alergia alimentar não é co-
mentar e divididas em duas categorias principais: nhecida de forma precisa, quer pela falta de estu-
1. Alergia a proteínas alimentares – compreende dos bem desenhados, quer pelos diferentes
qualquer resposta imunológica anormal critérios de diagnóstico e metodologias utilizados
secundária à ingestão: → mais frequentemente nos poucos disponíveis, dificultando comparação.

QUADRO 1 – Hipersensibilidade Alimentar

IMUNE-MEDIADA (LINFÓCITOS TH-2) NÃO-IMUNE MEDIADA


Alergia a proteínas alimentares Intolerância alimentar
Reacções imediatas Reacções retardadas Intolerância a ingredientes
(IgE mediadas) (não IgE mediadas ou mistas*) alimentares não proteicos
Má absorção de HC (ex: lactose,
→ Início 30-60’ após ingestão → Início horas ou dias após ingestão frutose, sorbitol, sacarose)
Formigueiro ou prurido oral, edema Dificuldade alimentar (lactente) Má absorção de gorduras
dos lábios,língua,faringe, palato fibrose quística) Vómitos, RGE, diarreia (ex: linfangiectasia intestinal, fibrose
(síndroma de alergia oral) persistente quística)
Vómitos, diarreia Rectorragias, enteropatia, enterocolite Doenças hereditárias do metabolismo
Urticária, angioedema; anafilaxia (diarreia com sangue,anemia, distensão (ex: intol.frutose)
(estridor, sibilância, hipotonia, abdominal)** Reacções alimentares idiossincrásicas
colapso cardiovascular e Esofagite eosinofílica, proctocolite, (ex:aminas vaso-activas, aditivos,
respiratório) preservativos alimentares)
* mediadas predominantemente por células
(linfócitos T, eosinófilos)
** geralmente por leite de vaca ou soja (Adaptado de B Koletzco, 2010)
Abreviaturas: RGE – refluxo gastresofágico; intol.: intolerância
400 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Em inquéritos realizados em amostras popula- proteico, podem repercutir-se na progressão pon-


cionais é habitualmente possível identificar uma deral. Por isso, torna-se importante o correcto e
frequência elevada de indivíduos convictos de que precoce diagnóstico a fim de prevenir carências
são “alérgicos” a algum tipo de alimento, mas em nutricionais e hipocrescimento.
menos de um terço destes casos tal se confirma A ampla diversidade de apresentações clínicas
quando se procede a avaliação diagnóstica correc- levanta várias dificuldades diagnósticas, especial-
ta. Estima-se, assim, que a prevalência de alergia mente quando estão em causa situações crónicas e
alimentar na população em geral seja 1% a 3%, e multifactoriais, como a asma brônquica e a der-
em populações da idade pediátrica, cerca de 8%. matite atópica, ou quando se confia excessiva-
Os alergénios alimentares mais importantes mente nos resultados dos meios auxiliares de
variam entre as diferentes populações em função diagnóstico in vitro e in vivo, eles próprios com
dos hábitos alimentares predominantes e do valor preditivo negativo e positivo variáveis.
grupo etário estudado. Assim, uma abordagem correcta deve basear-se
Na população pediátrica o leite (beta-lac- nos seguintes passos: a história clínica – que permi-
toglobulina)* e o ovo (ovomucina)* são os mais te identificar os alimentos responsáveis, com base
frequentes, seguidos do peixe. A partir da idade numa relação consistente entre a ingestão do alimen-
escolar começa a ganhar expressão outro tipo de to e o aparecimento dos sintomas; a execução de diá-
alimentos, como os crustáceos, o amendoim, fru- rios alimentares pode ser um auxiliar precioso nos
tos secos e frutos frescos. casos de sintomatologia crónica em que a relação
Salienta-se a alergia ao amendoim (ara C1)*, causal não é óbvia ou quando a informação forneci-
extrememente prevalente noutros países como EUA da não é rigorosa; e o exame objectivo poderá per-
e França, e que parece estar a ganhar expressão mitir a exclusão de outras causas das queixas.
entre nós. Este alimento é actualmente um proble-
ma grave nos países anglo-saxónicos pela gravi- Exames auxiliares de diagnóstico
dade, sendo responsável por elevado número de
casos fatais de anafilaxia alimentar. A elevada A sua escolha deve basear-se na apresentação
prevalência de alergia ao amendoim nestes países clínica e no respectivo quadro imunológico subja-
correlaciona-se com a introdução precoce deste ali- cente, IgE ou não IgE mediado. Se se suspeitar de
mento sob a forma de respectivos derivados, hábito um processo imunitário IgE mediado, a realização
até há pouco tempo praticamente inexistente em de testes cutâneos com picada e os doseamentos
Portugal, mas que parece estar a modificar-se. de IgE específica constituem importantes auxi-
liares, nomeadamente na selecção dos alimentos a
Manifestações clínicas incluir na programação de provas de provocação
alimentares (por ex. nos casos de suspeita de aler-
As manifestações clínicas de alergia alimentar gia às proteínas do leite de vaca-ver adiante).
podem ser muito variadas, evidenciando o en- Apresentam geralmente um excelente valor pre-
volvimento de múltiplos órgãos e sistemas, pre- ditivo negativo (superior a 95%), mas um baixo
dominando o compromisso mucocutâneo, gastrin- valor preditivo positivo (inferior a 50%);
testinal e respiratório. De facto, a alergia alimentar Provas de provocação oral – se a clínica apontar
pode ser a primeira fase da chamada “marcha alér- para um quadro sem mediação por anticorpos,
gica”, com ulterior sensibilização a outros reduz-se a utilização de exames auxiliares de diag-
alergénios, nomeadamente inalantes (Quadro 1). nóstico devendo o procedimento diagnóstico basear-
As alergias alimentares gastrintestinais mani- se essencialmente na resposta a dietas de evicção e na
festando-se por vómitos persistentes, diarreia ou realização de provas de provocação oral.
diminuição da ingestão/suprimento calórico ou Outros exames – finalmente, na avaliação da
patologia gastrintestinal as biópsias e os estudos
*A propósito destas proteínas, cabe referir que as mesmas podem rea- de permeabilidade intestinal podem estar indica-
gir quer com anticorpos IgE, quer com receptores de células T. Epítopos
conformacionais podem ser inactivados por aquecimento ou acidifi- dos; e os doseamentos de mediadores nas fezes
cação.Por ex. os doentes alérgicos ao ovo podem tolerar o ovo cozido. carecem ainda de validação.
CAPÍTULO 68 Alergia e intolerância alimentares 401

No entanto, mesmo conjugando dados clínicos lactose pode ser confirmado por regressão dos sin-
e os resultados dos exames auxiliares, não é pos- tomas com dieta sem lactose, pelo teste de
sível confirmar com segurança a hipótese de dia- hidrogénio expirado após ingestão de lactose ou,
gnóstico inicial em mais do que 30% a 40% dos em situações especiais, por biópsia.
casos, mantendo-se as provas de provocação como
gold standard na abordagem diagnóstica e na avali- Tratamento
ação evolutiva dos quadros de alergia alimentar.
Estas devem ser efectuadas em meio hospitalar, O tratamento da alergia alimentar assenta funda-
por clínicos experientes na sua realização, na inter- mentalmente na evicção dos alimentos identifica-
pretação dos sintomas eventualmente resultantes, dos e responsabilizados pelo quadro clínico detec-
e na abordagem terapêutica de emergência das tado. A terapêutica farmacológica não é habitual-
reacções potencialmente desencadeadas. mente utilizada, à excepção do tratamento de
emergência da reacção aguda.
Diagnóstico diferencial Relativamente às medidas de evicção alimen-
tar, há que salientar que na maioria dos casos
No âmbito do tópico deste capítulo e tipificando o fatais o alimento foi ingerido inadvertidamente
diagnóstico diferencial de situações cursando com pelo doente. Os pais da criança com alergia ali-
manifestações gastrintestinais, cabe uma referên- mentar devem ser alertados para este facto e ensi-
cia especial à intolerância à lactose e à alergia às nados a atitude preventiva, nomeadamente pela
proteínas do leite de vaca. leitura atenta dos rótulos e pelo cuidado na
A lactose é um dissacárido que é desdobrado manipulação dos alimentos, de forma a evitar a
em glucose e galactose por acção da lactase no contaminação inadvertida dos alimentos que o
intestino delgado(células da bordadura em esco- doente irá consumir.
va). A intolerância à lactose é mais frequentemente No que diz respeito ao tratamento de
resultante da deficiência secundária da lactase por emergência, há que salientar a necessidade de
lesão da mucosa intestinal (trata-se de formas em elaborar planos de actuação que devem incluir
geral transitórias, regredindo uma vez resolvida informação que permita ao doente e/ou aos pais
ou compensada a situação gastrintestinal de base identificar os sintomas de alarme e definir
(por ex. gastrenterite vírica, doença celíaca) critérios para utilização da terapêutica. Reacções
(Capítulos 105 e 108).Contudo, tal deficiência pode mais ligeiras poderão ser tratadas com anti-his-
ser congénita por mutações no gene LCT. tamínicos e corticóides sistémicos e, no caso de se
A não absorção da lactose resulta em fermen- tratar de um doente asmático, deve ser prevista a
tação da mesma com consequente flatulência, administração de broncodilatadores por via
diarreia, fezes ácidas e escoriação cutânea peri- inalatória. Caso se considere que se trata de um
anal. A microbiota intestinal poderá compensar doente de alto risco anafiláctico, deve ser prescrito
em grau variável a metabolização da lactose. estojo de emergência incluindo adrenalina; e as
A má absorção da lactose não deve ser con- pessoas que contactam mais de perto com a cri-
fundida clinicamente com alergia às proteínas do ança devem ser informadas e treinadas na sua uti-
leite de vaca. A restrição de lactose na dieta é lização. Após a terapêutica inicial da reacção, o
geralmente suficiente para controlar os sintomas doente deve ser observado em meio hospitalar
gastrintestinais (sabendo-se que produtos lácteos onde deverá permanecer em vigilância algumas
como queijo e iogurte têm menor teor em lactose). horas dado o risco de reacções bifásicas.
A alergia às proteínas do leite de vaca pode ser A história natural dos sintomas relacionados
IgE mediada e não IgE mediada. As proteínas com alergia alimentar é muito variável, tendendo
(antigénios) mais frequentemente implicadas são com frequência a sensibilidade a perder-se com o
a beta-lactoglobulina (major), a alfa-lactalbumina tempo. Consequentemente, a realização de provas
e a beta-caseína (para confirmação do diagnóstico, de provocação regulares constitui o seguimento
consultar capítulo 63 abordando exames comple- adequado destas formas clínicas. O cronograma
mentares in vitro). O diagnóstico de intolerância à das provas deve ser feito tendo em conta múlti-
402 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

plos factores, como a idade do doente, o tipo de QUADRO 2 – Alergia e intolerância


manifestações clínicas, o alergénio incriminado e a alimentares – Prevenção primária
evolução dos níveis de IgE específica sérica. Estes
procedimentos só devem ser realizados em Todas as crianças
ambiente hospitalar, geralmente em regime de • Gravidez sem restrições dietéticas (excepto amendoim);
hospital-de-dia, e com supervisão de especialistas • Aleitamento materno sem dieta restritiva da mãe;
com experiência nesta área. • Maternidade – fórmulas hipoalergénicas;
Como nota importante há a realçar que a nega- • Aleitamento materno exclusivo até 5/6 meses;
tivação dos testes cutâneos não constitui critério • Evicção de alimentos sólidos até aos 5/6 meses;
indispensável para a realização de provas de • Evicção de exposição tabágica, incluindo na gravidez.
provocação; a positividade pode persistir para Nas crianças de elevado risco atópico, também
além da tolerância, nalguns casos durante mais de • Aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses;
uma década. Do mesmo modo as IgE específicas • Regime materno de restrição durante o aleitamento
podem continuar detectáveis muito para além de (leite, ovo, peixe, frutos secos e amendoim) se der-
se alcançar a tolerância ao alimento. matite atópica,
• Suplementos ou fórmulas hipoalergénicas, preferen-
Prevenção cialmente com utilização das fórmulas extensamente
hidrolisadas;
Dado o elevado impacte desta patologia na quali- • Evicção de alimentos sólidos até aos 6 meses;
dade de vida do doente e da sua família e a ausên- • Ovo e peixe após os 12 meses,
cia, até à data, de medidas terapêuticas eficazes, a • Frutos secos, amendoim, frutos tropicais e mariscos
prevenção primária adquire nesta situação par- após os 36 meses.
ticular importância. As medidas de prevenção
têm, em regra, tido algum efeito, quando são (vol 67). Basel: Karger, 2011
incluídos lactentes de alto risco alérgico (ambos os Evans S, Tuthill D. Practical guide to dietary management of
progenitores alérgicos, ou um progenitor alérgico cow´s milk allergy. Paediatrics and Child Health 2013; 23:
e um irmão alérgico ou um alérgico e marcadores 367- 369
in vitro do lactente positivos). No Quadro 2 estão Fiocchi A, Martelli A, DeChiara A, et al. Primary dietary pre-
enumeradas as medidas preventivas mais consen- vention of food allergy. Ann Allergy Asthma Immunol
suais para a generalidade das crianças, e para as 2003; 91: 3-13
de elevado risco atópico em particular. Guerra A (ed). Alimentação e Nutrição nos Primeiros Anos de
A alergia alimentar tem implicações impor- Vida. Linda a Velha/Lisboa: Nestlé Nutrition Institute, 2008
tantes a vários níveis: saúde (riscos de reacções Hourihane J. Recent advances in peanut allergy. Curr Opin
graves, por vezes fatais, riscos de défices nutri- Allergy Clin Immunol 2002; 2: 227-231
cionais), sociais e psicológicos (necessidade de Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger, 2008
dietas especiais, de ingestões inadvertidas com Pumphrey RS. Lessons for management of anaphylaxis from a
possibilidade de efeito de alergénios ocultos, inte- study of fatal reactions. Clin Exp Allergy 2000; 30: 1144-1150
gração da criança no meio social) e económicos (o Sampson HA. Food Allergy. J Allergy Clin Immunol 2003; 111:
custo das dietas alternativas). Em suma, é impor- S540-547
tante conhecer as medidas que cada profissional Sampson HA. Update of food Allergy. J Allergy Clin Immun
de saúde deve recomendar para que se possa 2004; 113: 805-819
inverter a tendência actual na nossa sociedade. Sicherer SH. Diagnosis and management of chil dhood food
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CAPÍTULO 69 Imunodeficiências primárias 403

69
mação, alergia e malignidade.
A resposta imunológica divide-se, de forma
tradicional, em 3 níveis: barreiras anatómicas e
fisiológicas, imunidade inata e imunidade adapta-
tiva (ou adquirida). Na última década foram
conhecidos avanços significativos na compreensão
IMUNODEFICIÊNCIAS dos mecanismos moleculares usados pelo sistema
inato. Assim, a imunidade inata foi dissociada do
PRIMÁRIAS seu título de “imunidade não específica” para ser
encarada como parceira da imunidade adaptativa
Conceição Neves na proteção contra infeções. Para além disso, a
imunidade inata emergiu como reguladora crítica
da doença inflamatória e parece ter um papel
activo na patogénese de muitas doenças infeciosas
Definição e aspectos epidemiológicos e inflamatórias.
O sistema imune inato é constituído por células
As imunodeficiências primárias (IDP) englobam de origem hematopoiética (macrófagos, células
um grupo de doenças heterogéneas raras que dendríticas, Natural Killer), pela pele e células
afectam as diferentes componentes do sistema epiteliais que revestem os tractos gastrintestinal,
imune, do que resulta predisposição para infec- respiratório e genito-urinário, e ainda por um
ções recorrentes com agentes patogénicos pouco componente humoral (proteínas do complemento,
comuns, potencialmente letais. proteínas de ligação aos lipopolissacáridos (LPS) e
As imunodeficiências primárias (IDP) somente péptidos antimicrobianos). As proteínas do com-
foram identificadas após a introdução dos anti- plemento são uma classe importante de mediadores
bióticos, já que a mortalidade e morbilidade solúveis da resposta imune inata contribuindo para
devidas à infecção, mesmo em indivíduos promover a inflamação e a morte de micror-
considerados saudáveis, era muito elevada. ganismos extracelulares. Relativamente a outros
Existem actualmente mais de 180 doenças des- mediadores solúveis, os mais importantes são as
critas, na sua maioria associadas a defeito genético citocinas e as quimocinas, produzidas sobretudo
identificado e ocorrendo na idade pediátrica, com pelos macrófagos e células T.
a frequência estimada em 1/600. De acordo com O sistema imune adaptativo é filogenetica-
dados dos EUA (Immune Deficiency Foundation) mente mais tardio e aparece nos organismos su-
admite-se que existam cerca de 50.000 casos periores. Envolvendo processos altamente espe-
registados e a incidência seja ~1/10.000 nasci- cíficos de reconhecimento de substâncias estra-
mentos. nhas (antigénios), integra os linfócitos e seus
Nesta perspectiva, o diagnóstico e o trata- produtos, tais como os anticorpos.
mento precoces são fundamentais para evitar a Os anticorpos produzidos pelos linfócitos B
morte e as sequelas, e melhorar a qualidade de reconhecem antigénios extracelulares, enquanto os
vida dos doentes com tal patologia. linfócitos T reconhecem antigénios produzidos por
microrganismos intracelulares. Outra diferença
Fisiopatologia importante entre ambos, baseia-se no facto de os
linfócitos T reconhecerem apenas antigénios pro-
As alterações patológicas envolvem o ramo teicos enquanto os anticorpos são capazes de
hematopoiético e o não hematopoiético da defesa reconhecer diferentes tipos de moléculas incluindo
do hospedeiro. Tais alterações influenciam o proteínas, hidratos de carbono e lípidos.
sistema imune, quer quanto ao desenvolvimento e Em suma, considera-se que o sistema imune,
ou quer quanto à função. Daqui resulta um amplo por conveniência clínica e fisiopatológica, é cons-
espectro de sinais e sintomas relacionados com tituído por:
susceptibilidade às infeções, autoimunidade, infla- • Linfócitos B (imunidade humoral)
404 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

• Linfócitos T (imunidade celular) QUADRO 1 – Sinais de suspeita/alarme de IDP


• Sistema fagocitário (polimorfonucleares e
mononucleares) 1. Infeções persistentes ou de repetição
• Sistema do complemento (relacionado com a • ≥ 8 episódios de otite média aguda (OMA)/ano
opsonização)* • ≥ 2 episódios de sinusite/ano
• ≥ 2 episódios de pneumonia/ano
Esta sistematização permite adaptar uma • ≥ 2 episódios de infecções graves/ano
classificação mais ajustada à prática clínica, • ≥ 2 episódios de sépsis, meningite/ano
embora algumas doenças tenham défices de um ou • diarreia crónica e/ou má progressão ponderal
mais sistemas, particularmente défices humorais e • ≥ 2 meses de antibioticoterapia com fraca resposta
celulares combinados. • necessidade de antibioticoterapia endovenosa no
As diferenças clássicas entre imunidade inata e tratamento de infecções com fraca resposta
adaptativa são demasiado simplistas, pois a • ausência de seroconversão após infecção por certos
resposta adaptativa assenta em algumas funções agentes (especialmente vírus, como VEB)
desempenhadas pela imunidade inata. Por • crianças com bronquiectasias de causa desconhecida
exemplo, a capacidade bactericida dos neutrófilos
aumenta quando as bactérias são opsonizadas por 2. Infeção grave por agente microbiano comum
anticorpos. • ≥ 2 episódios de meningite, septicémia, celulite,
osteomielite, artrite, adenofleimão, abcesso
Manifestações clínicas • Pneumonia com abcesso ou pneumatocele, abcessos
viscerais, infecção cutânea profunda recorrente,
Existem determinados sintomas e sinais que doença invasiva por Salmonella, doença invasiva
podem conduzir o clínico a suspeitar de IDP. Trata- causada por Streptococcus pneumoniae ou Neisseria
se de sinais de alarme implicando investigação meningitidis após os dois anos de idade, infecção
disseminada por micobactérias (Mycobacterium
diagnóstica e esclarecimento etiopatogénico. O
tuberculosis e bovis, micobactérias atípicas)
Quadro 1, de utilidade para o clínico, sistematiza
• BCGite associada a compromisso de, pelo menos,
os critérios em que se baseiam as referidas sus-
dois territórios ganglionares
peitas.
• Infecção grave por vírus, nomeadamente por VEB
De acordo com estudos epidemiológicos re-
(meningite, doença linfoproliferativa, mononucleose
centes, foi salientado que os critérios mais fre-
infecciosa fulminante), enterovírus
quentemente associados a IDP, com implicações no
(meningoencefalite crónica, sépsis ou hepatite
raciocínio clínico, são: história familiar de IDP,
fulminante), parainfluenza 3 ou HSV-1
necessidade de antibioticoterapia IV e hipocres-
cimento/défice de progressão ponderal.
3. Infeção por agente microbiano incomum
ou com localização incomum
Classificação e formas clínicas das IDP • Infeção grave por fungos (Pneumocystis jiroveci,
Scedosporium sp., Criptosporidium sp., Candida sp.,
A International Union of Immunological Societies
Criptococcus neoformans, Histoplasma capsulatum)
(IUIS) actualizou recentemente a classificação
• Pneumonia por Salmonella, meningite por agentes
deste grupo de doenças, tendo em conta os novos habitualmente não invasivos
genes descobertos. Tal classificação tem como • Falências vacinais contra o Haemophilus influenza tipo
objectivo proporcionar uma linha condutora na B, Streptococcus pneumoniae e Neisseria meningitidis
abordagem diagnóstica. Qualquer classificação de serogrupo C.
doenças humanas é algo arbitrária e a das imuno-
deficiências primárias não é excepção. Algumas 4. Desregulação imune e alergia
• Fenómenos autoimunes exuberantes, especialmente
*Opsonização: revestimento do antigénio por algumas fracções do
complemento, anticorpos/imunoglobulinas, ou ambos, o que facilita a
em crianças ≤ 2 anos
fagocitose por células competentes, que apresentam receptores para (cont. página 405)
aqueles.
CAPÍTULO 69 Imunodeficiências primárias 405

QUADRO 1 – Sinais de suspeita/alarme de IDP O quadro designado por imunodeficiência


variável comum corresponde à situação mais
• Linfo-histiocitoses (incluindo síndroma frequentemente diagnosticada, englobando um
hemofagocítica e síndroma de activação macrofágica) grupo heterogéneo de doenças que têm de comum
• Fenómenos alérgicos exuberantes em crianças com hipogamaglobulinémia. Estes doentes têm uma
outras manifestações hematológicas ou resposta ineficaz a vacinas, e um risco aumentado
imunológicas. de desenvolvimento de doenças autoimunes e
tumorais (Genética: AD ou AR).
5. História familiar de imunodeficiência O défice selectivo de IgA pode ter a incidência
mais elevada, mas é muitas vezes assintomático e
6. Outros subdiagnosticado.Os doentes apresentam-se com
• Atraso na queda do cordão umbilical (> 4 semanas) infecções do aparelho respiratório e com envol-
sem causa conhecida) vimento gastrintestinal; verifica-se uma resposta
• Ausência de visualização do timo na radiografia do normal a vacinas (Genética:AR).
tórax (crianças com < 6 meses) A doença de Bruton ou agamaglobuliménia li-
• Síndromas que se acompanham habitualmente de gada ao X é causada por uma mutação ou
defeito imunitário (por exemplo, síndroma de ausência do gene tirosina-cinase de Bruton (BTK).
DiGeorge, síndroma de Kabuki, associação O desenvolvimento precoce das células B não é
CHARGE, ataxia-telangiectasia, displasias imuno- efectuado e as imunoglobulinas estão muito
ósseas) diminuídas ou ausentes.
• Monilíase bucal persistente, micose cutânea Deste grupo fazem parte ainda: hipogamaglo-
persistente bulinémia transitória da infância, deficiência de
IgM e deficiência de subclasses de IgG*

doenças poderão, assim, ser englobadas em mais 2. Imunodeficiências combinadas


do que um grupo. Nesta perspectiva foram consi- Geralmente estas doenças são mais graves que as
derados oito grupos de IDP: 1. Imunodeficiências provocadas por défice de imunidade humoral. Os
predominantemente de anticorpos; 2. Imuno- doentes afectados apresentam-se precocemente
deficiências combinadas; 3. Defeitos de fagocitose com restrição de crescimento e infecções dissemi-
e opsonização; 4. Defeitos do complemento; 5. nadas. Geralmente tais défices cursam com
Imunodeficiências bem definidas; 6. Defeitos na infecções víricas e fúngicas fatais.
imunidade inata; 7. Doenças de desregulação imune; A síndroma de DiGeorge, uma das entidades
8. Doenças auto-inflamatórias. mais reconhecidas neste grupo, resulta duma
Nesta alínea é dada ênfase às entidades de 1. a alteração da embriogénese de um grupo de células
4. sugerindo o leitor a consultar outros capítulos da crista neural cefálica levando a desenvolvimento
desta Parte XII (Imunoalergologia) e da Parte aberrante de diversos tecidos como o timo (ausente
XXIII (Reumatologia). ou hipoplásico), paratiróides e coração. Na maioria
dos casos verifica-se defeito de campo no
1. Imunodeficiências predominantemente cromossoma 22q11.2. A disfunção imune é variável,
de anticorpos desde grave a subtil. Inclui a síndroma velocar-
Afectam a diferenciação das células B e a pro- diofacial e a síndroma 22 CATCH (anomalias
dução de anticorpos. Correspondem a cerca de cardíacas (do arco aórtico e conotruncais), da fácies,
50% de todas as IDP. Na maioria dos casos os hipoplasia do timo, fenda palatina e hipocalcémia.
doentes manifestam-se após os 6 meses de idade A imunodeficiência grave combinada está
quando há uma diminuição da taxa dos anti- associada a profunda deficiência em número e ou
corpos maternos transmitidos por via transpla-
centar. Tipicamente desenvolvem-se infecções *A síndroma de hiper-IgM é classificada como afecção da imunidade
humoral. Contudo, a forma mais comum, ligada ao X, corresponde a
com bactérias capsuladas, das quais as mais imunodeficiência combinada (pela concomitância de défice funcional
frequentes são as infecções sinopulmonares. das células T).
406 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

da função das células T e B (e algumas vezes das O angioedema hereditário ocorre nos casos em
células natural killer). Caracteriza-se por infecções que se verifica défice de síntese do inibidor da
oportunistas graves, ou diarreia crónica e restrição esterase de C1 (C1INH) (Capítulo 66).
de crescimento. Cerca de metade dos casos O Quadro 2 relaciona as algumas manifesta-
corresponde à hereditariedade ligada ao X e os ções clínicas e respectiva patogénese com deter-
restantes herdados de modo autossómico recessivo. minados germes microbianos.
A síndroma de Wiskott-Aldrich é uma doença
recessiva ligada ao X; caracteriza-se por trombo- Diagnóstico
citopénia, plaquetas de volume diminuído, disfun-
ção plaquetar, eczema e susceptibilidade às infecções. Na sequência da verificação de suspeita após
As crianças apresentam-se na sua forma típica com anamnese e exame objectivo, há que proceder a
hemorragia prolongada no local de circuncisão, exames complementares prioritários ou de 1ª
diarreia sanguinolenta e equimoses generalizadas. linha, os quais podem ser realizados em consulta
Citam-se ainda: de pediatria geral, discriminando-se a seguir.
– síndroma de Omenn (variante da imunode-
ficiência grave combinada), com eritrodermia Hemograma
esfoliativa, hepatosplenomegália e linfade- Permite a avaliação das diferentes séries hematoló-
nopatia; – deficiências de adenosina deami- gicas separadamente, em valor absoluto e de acor-
nase e de purina nucleósido fosforilase; – do com a idade. Uma linfopénia pode orientar para
síndroma de Nezelof; – ataxia-telangiectasia; – o diagnóstico de um défice combinado, mas pode
trombocitopénia isolada ligada ao X;- candi- haver casos de SCID (severe combined immunodefi-
díase mucocutânea crónica; – doença linfo- ciency) associados a contagem normal de linfócitos,
proliferativa ligada ao X; como no caso de enxerto de células maternas ou em
– síndroma hiper-IgE (exantema ~dermatite caso de SCID com células B preservadas.
atópica, eosinofilia e abcessos com loca- Uma neutropenia pode, ela mesma, ser res-
lizações várias). ponsável pelo quadro clínico. A presença de ane-
mia ou trombocitopénia também orientam o dia-
3. Defeitos de fagocitose e opsonização gnóstico (por exemplo auto-imunidade em doen-
A forma mais comum é a doença granulomatosa ças como a síndroma linfoproliferativa autoimu-
crónica, afectando sobretudo o sexo masculino. O ne, ALPS, poliendocrinopatia e imunodeficiência
défice da fosfatase da nicotinamida-adenina- ligada ao X- IPEX, ou nos défices combinados).
dinucleótido nos fagócitos resulta numa elimi-
nação defeituosa dos patogénios extracelulares Imunoglobulinas
como bactérias e fungos. Os doentes são mais O doseamento das imunoglobulinas (IgG, IgA,
susceptíveis a infecções com organismos catalase- IgM e subclasses de IgG), apesar de raramente
positivos (estafilococos) que requerem actividade informativo abaixo dos 4 meses, após essa idade é
fagocítica eficaz para a sua eliminação.A causa de fundamental para o diagnóstico dos défices com-
morte mais frequente é a infecção por Aspergilus. binados ou humorais puros. A sua interpretação
deve ter ser sempre em conta a idade da criança.
4. Defeitos do complemento De referir que o doseamento de subclasses de IgG
Contribuem para 2% de todas as IDP.Os défices da e de IgA é sempre inútil e dispendioso para ava-
via clássica são os mais comuns e os doentes liação de doentes com menos de 24 meses.
apresentam-se com manifestações autoimunes
como as síndromas “lupus-like” ou semelhantes a Estudo serológico
lúpus. Os doentes com alterações da via alternativa O estudo serológico permite avaliar a produção de
têm habitualmente infecções por Neisseria. anticorpos específicos contra diferentes antigénios
Os doentes com défice de properdina estão vacinais, proteicos ou polissacarídicos. Os primei-
particularmente predispostos a infecções por N ros (anti-polio, difteria ou tétano) dependem de
meningitidis. uma interação entre células T e B, enquanto os
CAPÍTULO 69 Imunodeficiências primárias 407

QUADRO 2 – Manifestações clínicas de imunodeficiência e organismos causais

Anomalia Manifestação clínica Microrganismo


Células T Candidiase oral persistente Candida albicans
Diarreia crónica Pneumocystis jiroveci
Exantema Micobactérias atípicas
Pneumonia intersticial Citomegalovírus
Células B Otite média recorrente H. influenzae tipo b
Sépsis S. pneumoniae
Meningite Staphylococcus aureus
Artrite supurada Echovirus
Pneumonia
Sinusite
Fagócitos Abcessos em tecidos moles, na pele, Staphylococcus aureus
pulmão, maxilares Serratia marcescens
Úlceras bucais Klebsiella
Queda tardia do cordão umbilical Candida
Aspergilus
Complemento Otite média recorrente Staphylococcus aureus
Sépsis H. influenzae tipo b
Meningite S. pneumoniae
Artrite supurada Neisseria meningitidis
Pneumonia
Sinusite
Doenças autoimunes
Angioedema

segundos (anti-pneumococo da vacina polissa- exames mais sofisticados, tais como imunofenoti-
carídica) correspondem a uma resposta B isolada. pagem e estudo genético.
Salienta-se que estes últimos estão sempre defi- O Quadro 3 sintetiza, para além dos exames
citários nos primeiros dois anos de vida. complementares citadosz, outros que podem ser
Na prática, em condições de normalidade, considerados também de 1ª linha, eventualmente
verifica-se que a resposta a antigénio tetânico é a realizar em centro especializado.
mais robusta, e a resposta a antigénio pneumocó-
cico é mais fraca. Assim, a falência da resposta ao Actuação profiláctico-terapêutica
antigénio tetânico significa geralmente deficiência
de anticorpos grave, enquanto uma fraca resposta Discriminam-se, a seguir, de modo conciso aspec-
a antigénio pneumocócico poderá significar atraso tos da actuação prática (profiláctico-terapêutica)
de maturação imune, o que obrigará a ulterior pressupondo que as situações de IDP deverão ser
avaliação. seguidas num centro especializado.
As alo-hemaglutininas de grupo, sendo anti-
corpos contra polissacáridos naturais, não podem, Medidas gerais
por isso, ser avaliadas em crianças do grupo san- – Evitar transfusões com derivados do sangue
guíneo AB. [excepto se irradiados previamente ou negativos
Na maior parte dos casos os resultados dos para citomegalovírus (CMV)].
exames de primeira linha e a clínica permitirão – Evitar vacinas de vírus vivos, especialmente
seleccionar os casos mais complexos que obri- em doentes com deficiências de células T ou agama-
garão a ulterior observação em consulta de imu- globulinémia; igualmente nos conviventes.
nologia clínica onde será possível a realização de – Proceder a profilaxia de infecções por
408 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Diagnóstico laboratorial das IDP

Imunodeficiência Exames complementares básicos


Todos os tipos Hemograma completo. Exames imagiológicos
Estudo do sangue periférico. Exames microbiológicos
Défice de anticorpos Imunoglobulinas (doseamento)
Titulos de anticorpos pós imunização
Iso-hemaglutininas
Imunodeficiência celular Provas cutâneas de hipersensibilidade retardada
Radiografia do tórax. Contagem e função das células T e NK
Défice do complemento Complemento hemolítico total (CH50). Nível e função de inibidor da esterase de C1
Défice fagocitário Prova do nitro-azul de tetrazólio
Estudo da população CD11+/CD18+
Contagem e morfologia dos neutrófilos

Pneumocystis jiroveci (carinii) nos casos de deficiên- Terapêutica génica


cia de células T e de hiper-IgM ligada ao X. Esta terapêutica, embora não substitua a trans-
– Evitar o contacto com indivíduos com plantação de células estaminais hematopoiéticas, é
doença infecciosa. promissora, comportando, no entanto, o risco de
– Utilizar antibióticos profilácticos dado que, oncogenes. Os melhores resultados têm-se verifi-
mesmo com infecções consideradas benignas, po- cado em casos seleccionados de SCID e de doença
derá verificar-se disseminação rápida do quadro granulomatosa crónica.
infeccioso (ver alíneas seguintes).
Terapêutica antimicrobiana e imunoterapia
Imunoglobulina endovenosa ou subcutânea Em doentes com doença granulomatosa crónica o
Utilizada nos casos de agamaglobulinémia, uso de antimicrobianos profilácticos como trime-
agamaglobulinémia ligada ao X, défices de anti- toprim-sulfametoxazol reduz para metade a inci-
corpos, imunodeficiência variável comum, imu- dência de infecções. Nos défices do complemento
nodeficiência grave combinada e défices selecti- preconiza-se a vacinação anti H influenzae, S
vos de subclasses de IgG. Demonstrou-se que pneumoniae e N meningitidis, igualmente das pessoas
ambas as formas (IGIV ou IGSC) são eficazes e que contactam com o doente. Perante antecedentes
seguras. Como diferenças de ordem geral, há a de angioedema relacionável com défice do inibidor
salientar: IGSC- 0,1-0,2 g/kg,semanal, infusão em da esterase de C1, designadamente hereditário,
1 hora, efeitos adversos menores e níveis séricos entre outras medidas está indicada a profilaxia com
mais constantes de Ig; IGIV- 0,2-0,6 g/kg, de 3-3 infusão concentrado de C1-INH (ou, na sua falta, de
semanas, infusão em 3-4 horas, efeitos adversos plasma fresco congelado ou antifibrinolíticos) nos
mais significativos e níveis oscilantes de Ig. As casos submetidos a tratamento cirúrgico ou proce-
infusões não devem ser aplicadas em fase aguda dimentos estomatológicos (consultar Capítulo 66).
de infecção.
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Pouco tempo depois de descritos os primeiros
casos em 1981, e do primeiro caso pediátrico em
1982, foram identificados os agentes responsáveis
por esta entidade clínica: primeiramente o vírus da
imunodeficiência humana do tipo 1 (VIH1), hoje dis-
seminado em todas as regiões do Mundo; e, mais
tarde, o vírus da imunodeficiência humana tipo 2
(VIH2), mais comum em determinadas regiões da
África Ocidental, designadamente Guiné.
Os agentes microbianos em causa são retrovírus
humanos ARN que se integram no genoma das
células-alvo como um pró-vírus, sendo que o geno-
410 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ma vírico é copiado durante a replicação celular, entre 2005 e 2009 registou-se proporção por
persistindo na pessoa infectada toda a vida. 100.000 habitantes variando entre 2,5-2,7 e 22,5-
106,5; de salientar que as taxas mais elevadas
Aspectos epidemiológicos ocorreram ao sul do Tejo, Estremadura e regiões
da grande Lisboa e do grande Porto, estas últimas,
Apesar de demonstrada a presença do VIH em de maior densidade populacional
estado latente em várias células e fluidos corpo- Nos países industrializados mais de 90% das
rais, só o sangue, sémen, secreções cervicais uteri- crianças infectadas com menos de 13 anos adquiri-
nas e leite humano estão implicados na transmis- ram a infecção por via perinatal. As 10% restantes
são da infecção. São, pois, três as vias de trans- incluem crianças politransfundidas, sobretudo
missão do VIH: contacto sexual; via percutânea hemofílicas, com sangue, componentes do sangue
(agulhas e instrumentos cortantes) ou exposição ou concentrados de factores da coagulação conta-
das mucosas a sangue ou outros fluidos corporais minados. Poucos casos de infecção VIH resul-
com altos títulos de VIH; transmissão vertical taram de abuso sexual.
mãe-filho, durante a gravidez, na data do parto e Nesses países incluindo Portugal actualmente
pelo aleitamento materno. quase todas as novas infecções são adquiridas por
Devido a medidas de exclusão de dadores de transmissão vertical (cerca de 25-40% dos casos
sangue potencialmente infectados, tratamentos de ocorrem no decurso da gravidez e, entre 60-75% ,
inactivação vírica de concentrados de factores da durante o parto).
coagulação, e utilização desde há alguns anos de Nos adolescentes a transmissão do VIH é
factores da coagulação recombinantes, a trans- atribuída sobretudo a exposição sexual e/ou to-
fusão de sangue ou produtos derivados tornou-se xicodependência. No nosso país, segundo dados
uma via raríssima de transmissão VIH, pelo do Centro de Vigilância Epidemiológica de
menos nos países desenvolvidos. Doenças Transmissíveis (CVEDT), nos últimos
Na ausência de contacto sexual ou de exposição anos o número de casos de infecção neste grupo
parentérica ou mucosa a sangue ou fluidos corpo- etário, tem vindo a diminuir.
rais contendo sangue, muito raramente se tem Ao aleitamento materno também é atribuído
demonstrado a transmissão do VIH em contactos papel de transmissão(determinadas estatísticas
familiares ou na prestação de cuidados em institu- apontando taxas entre 8 e 30%), salientando-se
ições de saúde. Também nunca foi demonstrada a que os maiores índices se verificam durante a
transmissão do VIH em escolas ou creches. infecção aguda da mulher lactante, em relação
De acordo com dados da OMS, no final de 2009 directa com a duração da amamentação, e com a
havia em todo o mundo cerca de 2,5 milhões de evidência de patologia mamária acompanhada de
indivíduos com menos de 15 anos infectados com eliminação de sangue pelo mamilo (fissuras).
o VIH-1, com uma taxa de incidência anual de Antes do advento da profilaxia ou tratamento
cerca de 640 mil. Estima-se que nesse ano tenham com fármacos antirretrovíricos a taxa de transmis-
morrido mais de 500 mil crianças e jovens com tal são perinatal (vertical ou mãe-filho) do VIH-1 era
problema. estimada entre 13% e 39%. Com a generalização
Dados do Instituto Nacional de Estatística de das estratégias de profilaxia ao longo do tempo
Portugal desde 1983 indicam até Dezembro de têm-se verificado progressos assinaláveis, sobre-
2010 um total de 39.347 casos de infecção pelo tudo nos países mais desenvolvidos. Em Portugal
VIH; destes, 13.700 correspondem a SIDA(0,8% também se verificou esta tendência, assinalando-
em crianças e 17,5% em mulheres, 3/4 das quais se os seguintes dados quanto a taxas de transmis-
em idade reprodutiva). Na região de Lisboa em são perinatal: 25% (em 1994); 4,9% (em 2003); e
cerca de 1% as grávidas são seropositivas para o 1,8% (em 2010). [Dados do Grupo de Trabalho
VIH, situação comparável à de certas regiões de sobre Infecção VIH na Criança (GTVIHC) da SPP].
África ao sul do Saará. Relativamente à transmissãao vertical de VIH-2,
Considerando a totalidade de casos de segundo estatísticas do INSA, no período de 1999
infecção por VIH em todas as idades em Portugal, a 2005 foi de 1,5% (2/131 crianças).
CAPÍTULO 70 Síndroma de imunodeficiência adquirida 411

Em relação ao VIH2 a taxa de transmissão esti- incluem infecções oportunistas – em geral associ-
mava-se em menos de 5%. Com a utilização dos adas a valores muito baixos de CD4+ – (pneumonia
antirretrovíricos a taxa de transmissão perinatal por Pneumocystis jiroveci, esofagite por Candida,
diminuiu cerca de 3/4. infecção disseminada por Citomegalovírus, infecções
A determinante materna de maior risco de crónicas ou disseminadas por Herpes simplex ou
transmissão do VIH à criança é uma maior carga Varicela zoster, infecção por Mycobacterium tuberculo-
vírica (infecção recente). Outros factores associa- sis, Mycobacterium avium complex, enterites crónicas
dos com um risco aumentado de transmissão por Cryptosporidium ou Isospora), atraso acentuado
incluem: número baixo de linfócitos CD4+, do desenvolvimento (Wasting Syndrome), ence-
doença materna avançada, condições intraparto falopatia, e tumores malignos (raros na criança).
com aumento da exposição do feto ao sangue De acordo com critérios propostos pelos CDC e
materno, inflamação da membrana placentária, AAP para idades <13 anos, são consideradas quatro
parto prematuro, parto prolongado e rotura pro- formas clínicas agrupando um conjunto de deter-
longada de membranas. O aleitamento materno minados sinais, sintomas e de resultados de exam-
constitui também um risco adicional importante. es complementares, a saber:
É possível hoje, tendo em conta os factores de
risco mencionadas, diminuir a transmissão verti- Forma assintomática ou N
cal do VIH para menos de 2% com intervenções Nesta forma clínica verifica-se ausência de sin-
que incluem: utilização antenatal, perinatal e pós- tomatologia ou apenas um dos parâmetros da
natal de fármacos antirretrovíricos (zidovudina, forma clínica seguinte-A.
nevirapina, lamivudina); cesariana electiva para
evitar contacto com o canal de parto; evicção do Forma ligeira ou A
aleitamento materno, a ponderar em função de Esta forma caracteriza-se pela verificação de dois
contexto económico e social. ou mais dos parâmetros seguintes desde que não
se verifique qualquer dos que fazem parte das for-
Manifestações clínicas mas B ou C.
Os parâmetros que definem a forma A são:
A infecção pelo VIH na criança e no adolescente hepatomegália, esplenomegália, parotidite, linfa-
origina um largo espectro de manifestações clíni- denopatia (de dimensões superiores a 0,5 cm em
cas e uma evolução variada, representando a duas cadeias ganglionares diferentes).
SIDA o espectro clínico terminal mais grave. A
história natural da infecção pelo VIH caracteriza- Forma moderada ou B
se por um período assintomático (mais curto nas Esta forma integra os seguintes parâmetros: Hb<
crianças infectadas por via vertical), a que se 8g/dL, neutrófilos < 1.000/mm3, meningite bac-
segue uma fase de doença progressiva, embora teriana, sépsis ou pneumonia,candidíase oral
com velocidades de progressão diferentes de cri- durando > 2 meses, miocardiopatia,febre > 1 mês,
ança para criança e até na mesma criança, depen- varicela disseminada ou complicada, toxoplas-
dendo, entre outros factores, de características do mose no RN, nefropatia, nocardiose, pneumonia
vírus, carga vírica, grau de imunossupressão, da intersticial linfocitária-PIL ou LIP, herpes zoster
terapêutica prescrita e da adesão à mesma. com 2 episódios em mais de um dermátomo, > 2
A apresentação clínica varia com o grau de episódios anuais de estomatite pelo vírus Herpes
imunossupressão. Entre outros sinais e sintomas, simplex (HSV), pneumonite ou esofagite por HSV
crianças com imunodeficiência ligeira podem apre- no RN, hepatite, diarreia recorrente ou crónica,
sentar linfadenopatia, hepatomegália, esplenome- infecção por CMV no RN.
gália, parotidite; com imunodeficiência moderada
pode haver infecções bacterianas recorrentes, can- Forma grave ou C
didíase arrastada, diarreia crónica, pneumonia Para se incluir o caso nesta forma é condição
intersticial linfóide (LIP), trombocitopénia; manifes- necessária a verificação de qualquer dos parâme-
tações de imunodeficiência grave a muito grave tros a seguir mencionados, exceptuando a LIP:
412 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

infecções bacterianas graves e recorrentes, sistémi- O diagnóstico é sempre laboratorial (com


cas ou localizadas , confirmadas por exame cultur- excepção dos países mais pobres onde se aceita o
al com a frequência de, pelo menos, 2 episódios por diagnóstico de SIDA, com base na aplicação dos
ano; encefalopatia persistindo mais de 2 meses, critérios clínicos e epidemiológicos definidos pela
comprovada por exames imagiológicos-TAC,RMN; O.M.S), dispondo-se para tal de exames serológi-
linfoma; sarcoma de Kaposi; desnutrição grave cos e virológicos.
acompanhada de diarreia crónica, febre de duração O diagnóstico de infecção na criança menor de 18
superior a 30 dias;toxoplasmose cerebral iniciada meses pode fazer-se por cultura ou por PCR-DNA.
após o período neonatal, histoplasmose dissemina- A PCR-DNA, por necessitar de menor quantidade
da, estomatie/esofagite/ pneumonite por HSV em de sangue e pelo facto de os respectivos resultados
crianças de idade superior a 1 mês e de duração serem mais rápidos, deve ser o método escolhido.
superior a 1 mês; pneumonia por Pneumocystis; O diagnóstico provável de infecção pelo VIH
infecções disseminadas por micobactérias de diver- na criança é feito com um destes testes positivo.
sas espécies; infecções por CMV após o período Deve ser efectuada uma segunda colheita de ime-
neonatal; candidíase esofágica ou pulmonar; coc- diato. O diagnóstico definitivo é efectuado com
cidioidomicose disseminada; criptococose; diarreia dois resultados positivos.
crónica por criptosporidíase ou isosporíase. Nos filhos de mães seropositivas para o VIH, a
PCR-DNA ou o exame cultural, devem ser efectu-
Exames complementares ados às 48 horas, aos 14 dias, entre o 1º e o 2º mês
e entre o 4º e o 6º mês.
A suspeita de infecção é levantada pelo conhecimen- Se os resultados forem negativos, deve
to de dados epidemiológicos indicadores de expo- realizar-se estudo serológico VIH por ELISA / WB
sição provável ao vírus, ou pela existência de sin- de 3 em 3 meses e, depois, entre o 1 ano de idade
tomas sugestivos de infecção. A precocidade do diag- e os 18 meses.
nóstico possibilita a adopção de medidas de profilax- Para o diagnóstico de infecção na criança maior de
ia e terapêutica numa fase de relativo bom estado de 18 meses é suficiente o resultado de serologia posi-
imunidade e, deste modo, o prolongamento do tiva (ELISA / WB), podendo também utilizar-se
período assintomático e a consequente melhoria da os mesmos critérios aplicáveis à criança menor de
qualidade de vida da criança e da família. 18 meses.
Como se disse, a infecção pelo VIH na criança A PCR-RNA ou a determinação da “carga víri-
nos países desenvolvidos como em Portugal é ca” não são, por enquanto, consideradas técnicas
quase exclusivamente adquirida por via vertical. O recomendadas para o diagnóstico, embora po-
primeiro passo é, pois, a identificação da infecção na ssam ser utilizadas (técnica ultra-sensível com li-
mãe, pelo que se recomenda a realização de serolo- miar de detecção suficientemente baixo – 20 a 50
gia VIH em todas as grávidas, pelo menos no 1º e cópias).
3º trimestres (com consentimento informado). O diagnóstico de infecção pelo VIH pode ser excluí-
O conhecimento da infecção em tempo útil na do com elevada probabilidade se:
mãe permite à mulher infectada receber terapêu- 1) dois ou mais exames virológicos forem
tica antirretrovírica apropriada e profilaxia contra negativos, desde que efectuados com idade igual
infecções oportunistas, efectuar quimioprofilaxia ou superior a 1 mês, e um deles, obrigatoriamente,
com antirretrovíricos (zidovudina, nevirapina, com idade superior a 4 meses, em criança sem
lamivudina), programar cesariana electiva para evidência clínica de infecção; ou :
prevenção da transmissão à criança, e impedir o 2) dois ou mais resultados serológicos nega-
aleitamento materno; e, no RN, iniciar quimiopro- tivos para VIH, se a idade for superior a 6 meses,
filaxia (zidovudina, nevirapina, lamivudina), ini- com, pelo menos, um mês de intervalo, em criança
ciar profilaxia para o Pneumocystis jiroveci nas cri- sem evidência clínica de infecção.
anças expostas, e facilitar o diagnóstico precoce de A infecção pelo VIH pode ser definitivamente
infecção na criança para início de terapêutica excluída aos 18 meses se o resultado do estudo
antirretrovírica (ver adiante). serológico for negativo, na ausência de hipogama-
CAPÍTULO 70 Síndroma de imunodeficiência adquirida 413

globulinémia, em criança sem evidência clínica de doenças autoimiunes ou sífilis podem originar
infecção e com resultados de estudos virológicos resultados falsos positivos ou duvidosos.
negativos. 4. Actualmente utilizam-se testes rápidos
A contagem de linfócitos T CD4+ (CD4+) por necessitando de confirmação pela técnica Western
citometria de fluxo constitui uma técnica funda- Blot (WB):
mental para determinar o estádio evolutivo da
infecção na idade pediátrica, estabelecer a data de Tratamento
início da terapêutica antirretrovírica, e também a
profilaxia das infecções oportunistas. O tratamento da infecção pelo VIH na criança
Cabe referir, a propósito, que os valores de refer- tem-se tornado cada vez mais complexo e a pres-
ência na criança até aos seis anos de idade são mais crição de antirretrovíricos deverá ser dirigida por
elevados do que no adulto; por outro lado, é impor- um especialista com experiência nesta área em
tante salientar que poderá haver discordância entre centros especializados .
ausência ou presença de sintomatologia e ausência O controlo eficaz das necessidades de uma
ou presença de sinais de imunossupressão. criança infectada obriga necessariamente à disponi-
O Quadro 1 discrimina os valores de linfocitos bilidade de uma equipa multidisciplinar incluindo
T CD4+ em três grupos etários até aos 13 anos, em Médico de família, Pediatra, Infecciologista,
relação com o grau de compromisso imunológico. Enfermeiro, Imunologista, Virologista, Psicólogo,
Assistente Social, Farmacêutico e Dietista.
Notas importantes Torna-se igualmente necessário proceder à
1. A presença de IgA ou Ig anti-VIH na circulação monitorização regular da contagem de linfócitos
pode indicar infecção por VIH, dado que as referi- CD4+ e da carga vírica no pressuposto de se ter
das imunoglobulinas não atravessam a placenta. acesso ao perfil genotípico das resistências aos
Contudo, dado que as técnicas utilizadas para a antirretrovíricos.
respectiva determinação são pouco sensíveis e Há que ter em atenção as características espe-
pouco específicas, na prática não são utilizadas. ciais da infecção pelo VIH na criança: na grande
2. A demonstração de anticorpos IgG anti-VIH maioria das crianças adquire-se o vírus por trans-
para além dos 18 meses, confirmada por método missão perinatal; a transmissão ocorre na grande
ELISA e Western blot (WB), estabelece o diagnós- maioria dos casos em período próximo do parto
tico de infecção por VIH. ou mesmo durante o parto, o que possibilita a
3. Embora o aleitamento materno esteja con- terapêutica da infecção primária.
traindicado nos casos de mães com infecção por Uma vez que a infecção perinatal ocorre durante
VIH, mas admitindo por diversas circunstâncias a o desenvolvimento do sistema imunológico, as ma-
possibilidade amamentação inadvertida, designa- nifestações clínicas e os marcadores imunológicos e
damente por desconhecimento da mãe, deve pro- virológicos são diferentes dos do adulto.
ceder-se na criança ao estudo dos anticorpos e Há factores a considerar no planeamento de um
virológico nas primeiras 12 semanas após o térmi- regime antirretrovírico: disponibilidade; tolerância;
no da amamentação para avaliar sobre eventual eficácia; formulações; perfil de efeitos secundários
transmissão deste modo. Salienta-se que certas dos medicamentos, incluindo frequência de admin-

QUADRO 1 – Valor quantitativo de CD4+ (por mm3 e em % )

Quadro Imunológico < 1 ano 1-5 anos 6-12 anos


Normal > 1500 (>25%) > 1000 (> 25%) >500 (>25%)
Alteração moderada 750-1499 (15-25%) 500-999 (15-25%) 200-499 (15-25%)
Alteração grave <750 (<15%) <500 (<15%) <200 (<15%)

Adaptado de ER Stiehm e col, 2004


414 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

istração e seu impacte na escola, família e vida dos alguns exemplos com siglas universais tendo
social; interacção com outros medicamentos e ali- em conta o respectivo mecanismo de acção:
mentos; detecção do genótipo HLA-B*5701, desen- • Inibidores da Transcriptase Reversa
volvimento de resistência antirretrovírica e planea- Nucleósidos – ITRN – abacavir (ABC), didanosina
mento futuro dos subsequentes regimes. (ddI), lamivudina (3TC), → estavudina (d4T),
Antes de se iniciar a terapêutica é fundamentar tenofovir (TDF), zalcitabina (ddC), zidovudina
esclarecer e formar intensivamente a família, (ZDV, ou AZT).
treinando-a na administração dos medicamentos, • Inibidores da Transcriptase Reversa Não
explicando a importância da adesão e esclarecen- Nucleósidos – ITRNN’s ITRNN– delavirdina
do dúvidas. É necessário ainda o seguimento (DLV), efavirenz (EFV), nevirapina (NVP)
intensivo durante os meses iniciais da terapêutica • Inibidores da Protease – IP – lopinavir
e a verificação da tolerância. (LPV), ritonavir (r), fosamprenavir (FPV),
darunavir (DRV), atazanavir (ATV)
Início da terapêutica antirretrovírica (TAR) • Inibidores da Fusão – enfuvirtide (T-20)
De acordo com as normas do grupo de trabalho • Inibidores da Entrada – maraviroc (MVC)
(GTVIHC) da Sociedade de Infecciologia Pediá- • Inibidores da Integrase – raltegravir (RAL)
trica da SPP (anteriormente citado), deve iniciar- Actualmente o regime de 1ª linha preferido em
se terapêutica antirretrovírica (TAR) nas seguintes crianças sem terapêutica prévia e sem evidência
situações: de resistência aos antirretrovíricos engloba: 2
– Lactentes com o diagnóstico de infecção por ITRN + 1IP* (em crianças com < 3 anos prevendo
VIH(crianças com < 12 meses de idade) indepen- adesão irregular) ou 2ITRN + 1ITRNN.
dentemente da clínica, valores de CD4+ e carga As combinações preferidas de ITRN são:
vírica: ABC+3TC se HLA-B*5701(-); e ZDV+3TC se HLA-
– Crianças com clínica significativa (formas B B*5701(+).
ou C); Relativamente a IP prefere-se a combinação
– Crianças com idade de 1 ano ou >, assin- LPV/r para crianças pequenas; e outras combi-
tomáticas ou com sintomas ligeiros (que não se nações para crianças mais velhas: FPV/r, ou
enquadram, no entanto, na forma A) perante val- ATV/r , ou DRV/r.
ores de CD4+: Quanto a ITRNN os fármacos preferidos são:
• < 25% ou < 1000/mm3 entre 1 e 3 anos de NVP para crianças com < de 3 anos e EFV para
idade; crianças acima desta idade.
• < 20% ou < 500/mm3 entre 3 e 5 anos de A terapêutica pode ser alterada nos casos de
idade; toxicidade ou falência.
• < 350-450/mm3 acima dos 5 anos Em suma a prescrição dos antirretrovíricos
– Crianças com > 12 meses e carga vírica > deve ser cuidadosamente ponderada e individua-
100.000 cópias/mL. lizada tendo em conta todos os factores aponta-
dos, pois, para além das repercussões que possa
Os objectivos da TAR são reduzir a carga vírica vir a ter na sobrevivência e na qualidade de vida
para níveis indetectáveis e preservar ou normalizar a das crianças infectadas, tem custos muito eleva-
função imune impedindo a progressão da doença e ten- dos.
tando reverter eventual doença de órgão já estabeleci-
da.Ao falar em início do tratamento e tendo como base Prevenção
os conhecimentos actuais, salienta-se que a duração do
tratamento é para toda a vida. Para a prevenção da transmissão vertical da
infecção pelo VIH na criança é importante a ado-
Fármacos e esquemas terapêuticos
São vários os fármacos antirretrovíricos disponí- *Fala-se num IP, mas refere-se LPV/r o que fará supor 2IP.De facto,
considera-se 1IP pelo facto de o lopinavir (LPV) ser o fármaco activo;
veis (por vezes em associação) para tratamento da o rotinavir encontra-se em dose baixa actuando como potenciador,
criança e adolescente.Seguidamente são assinala- incrementando a acção do LPV.
CAPÍTULO 70 Síndroma de imunodeficiência adquirida 415

pção das seguintes medidas: rastreio da infecção por citomegalovírus, Herpes simplex 2, toxoplas-
na grávida; realização de cesariana electiva, sem- mose, hepatite B e C, tuberculose, sífilis, gonorreia
pre que possível; terapêutica antirretrovírica na e Chlamydia .
grávida e recém-nascido; e evicção do aleitamento A puérpera deve ser encaminhada para uma
materno. Consulta de Planeamento Familiar.
Em relação à terapêutica antirretrovírica na Para prevenção das infecções secundárias na
grávida e recém-nascido, o esquema utilizado criança com infecção pelo VIH devem ser instituí-
durante a gravidez deverá ser sempre discutido das medidas adequadas, as quais constituem um
com a mulher, colocando à sua disposição os pilar essencial no tratamento das mesmas. A profi-
conhecimentos actuais sobre os riscos e benefícios laxia das infecções secundárias deve ser efectuada pela
da administração dos vários antirretrovíricos. Há administração de vacinas, imunoglobulinas e antimi-
que ter em conta os cenários possíveis: crobiano:
• Mulher sem qualquer terapêutica antirretro- Vacinas – Aos filhos de mulheres seropositi-
vírica anterior e sem indicação para terapêu- vas, com infecção indeterminada ou infectadas,
tica: quimioprofilaxia com zidovudina devem ser administradas todas as vacinas inacti-
recomendada a partir das 14 – 34 semanas de vadas de acordo com o actual Programa Nacional
gravidez; considerar a utilização de outros de Vacinação.
antirretrovíricos. A vacina contra o sarampo, parotidite e rubéo-
• Mulher sem qualquer terapêutica antirretro- la (VASPR) deve ser dada a crianças assintomáti-
vírica anterior e com indicação para terapêu- cas ou ligeiramente sintomáticas, com contagem
tica: terapêutica semelhante à que é instituí- de linfócitos (+) CD4 ≥15% (contraindicada , no
da em mulher não grávida, mas sempre entanto, se houver sinais de imunossupressão
incluindo zidovudina; o seu início deve ser grave, declínio rápido do número ou percentagem
diferido até às 10 – 12 semanas de gravidez, de CD4+ e em crianças com a forma grave de
de acordo com a situação clínica e a opção da doença). Deve ser administrada, de preferência,
mulher. aos 12 meses ou até antes (entre os 6 e os 9 meses)
• Mulher sob terapêutica prévia com antir- se o risco de agravamento da doença e/ou o risco
retrovíricos: manutenção da terapêutica se de exposição ao sarampo for elevado.
esta estiver a ser eficaz; suspensão da tera- A vacina contra a varicela deve ser considera-
pêutica até às 10 – 12 semanas de gravidez da em crianças assintomáticas ou ligeiramente
por decisão da mulher; associar sempre sintomáticas com contagem de linfócitos CD4+ ≥
zidovudina se esta não fizer parte do esque- 25%.
ma terapêutico, após as 14 semanas. A vacina antigripe deve ser administrada no
• Mulher que se apresenta em trabalho de princípio do Outono às crianças com mais de 6
parto sem seguimento médico anterior: meses de idade e a todos os seus contactos, in-
zidovudina intra-parto e à criança . cluindo o(s) progenitor(es) seropositivo(s).
• Recém-nascido de mãe que não recebeu tera- Em relação à vacina antipneumocócica deve
pêutica: zidovudina durante 6 semanas efectuar-se um reforço com a vacina com polis-
iniciada até às 48h após o nascimento: sacáridos 23-valente, 3 a 5 anos depois.
(2mg/kg/dose de 6-6 horas). Pode consi- A vacinação com BCG não deverá ser adminis-
derar-se a associação com outros antirretro- trada às crianças infectadas (mesmo assintomáti-
víricos). cas), pelo que a vacinação dos filhos de mulheres
seropositivas deverá ser adiada até que a infecção
Outros esquemas incluem como antirretrovíri- pelo VIH seja excluída.
cos a nevirapina ou a associação zidovudina + Imunoglobulinas – A administração regular
lamivudina. (mensal) de imunoglobulina inespecífica intra-
A grávida infectada pelo VIH deve ser seguida venosa (IGIV na dose de 400 mg/kg cada 2 a 4
em Consulta de Alto Risco, sendo ainda semanas) está indicada em situações de hipoga-
necessário rastrear outras doenças transmissíveis, maglobulinémia (IgG < 250mg/dL), ausência de
416 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

resposta humoral a antigénios comuns (vacinas, among children and youth with perinatal human immun-
por exemplo), infecções bacterianas, graves e odeficiency vírus infection, 1990-2002. Pediatr Infect Dis
recorrentes, e crianças vivendo em área endémica 2006; 25: 628-633
de sarampo e sem resposta a 2 doses de vacina. Tal Eisenhut M. An update on HIV in children. Paediatrics and
administração de imunoglobulinas cuja duração Child Health 2013; 23:109-114
varia em função do contexto clínico, deve também Feigin R, Cherry J, Demmler G, Kaplan S. (eds) Textbook of
ser considerada em situações pós-exposição a Pediatric Infectious Diseases. Philadelphia: Saunders, 2004
hepatite B, tétano, varicela e sarampo. Grupo de Trabalho sobre Infecção VIH na Criança. Rocha G, et
Antimicrobianos – Para a prevenção da pneu- al. Sociedade de Infecciologia Pediátrica/SPP. Coimbra:
mocistose utiliza-se o trimetoprim-sulfametoxazol ASIC, 2011
(cotrimoxazol), a iniciar pelas 6 semanas de idade na Kliegman RM, BStanton BF, et al Nelson Textbook of
dose de sulfametoxazol de 40 mg/kg/dia , habi- Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
tualmente em dose única diária, trissemanalmente. Prendergast AJ. Complications of long-term antiretroviral ther-
Esta medicação é interrompida se a infecção for apy in HIV-infected children. Arch Dis Child 2013; 98: 245-
excluída (dois resultados de carga vírica na ausência 246
de sintomatologia e em crianças não amamentadas). Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA
Em adolescentes e em circunstâncias especiais (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
(serologia positiva para CMV e imunossupressão Medical, 2011
acentuada (CD4+ < 1%) utiliza-se ganciclovir em
dose semelhante à do adulto (900 mg/dia, per os).

Seguimento

Dados os problemas habitualmente associados a


crianças e famílias com tal patologia (dificuldade
de que se reveste o seguimento destas crianças – e
de suas mães – decorrentes da complexidade da
patologia, da necessidade de aplicação de esque-
mas terapêuticos rigorosos e de contextos econó-
micos e sociais habitualmente complicados), o
acompanhamento deve ficar a cargo de equipas
multidisciplinares experientes e proactivas, pos-
sível em consulta própria, de modo a propiciar
apoio eficaz, eficiente e efectivo. Chama-se, entre-
tanto, a atenção para a necessidade de promover
uma boa articulação com as equipas médicas e de
enfermagem no âmbito dos Cuidados de Saúde
Primários, igualmente implicadas nos cuidados a
prestar que deverão primar pela qualidade e em
espírito de humanização.

BIBLIOGRAFIA
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patients.Lancet 2006; 368: 2107-2109
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Bertooli J, HSU HW, Sukalac T, et al. Hospitalization trends
PARTE XIII
Oto-rino-laringologia
418 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

71
vírus sincicial respiratórioe VEB. As formas
bacterianas instalam-se sobre as víricas ou ocor-
rem primariamente, sendo habitualmente cau-
sadas por Streptococcus beta-hemolítico do grupo A,
Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae e
Moraxella catarrhalis.
FARINGITE De todas as bactérias a mais frequente é o
Streptococcus beta-hemolítico do grupo A pelo que
Carlos Ruah convém relembrar algumas noções básicas sobre
Streptococcus: 1) É uma bactéria gram positiva,
classificada em 18 grupos (de Lancefield) designa-
dos por uma letra maiúscula, consoante o compo-
Definições e importância do problema nente de hidrato de carbono antigénico da sua
parede celular; 2) Ainda são classificados conso-
Faringite é um termo geral usado para descrever a ante a capacidade de hemolisar eritrócitos de
inflamação ou infecção da faringe, incluindo o carneiro: o beta-hemolítico causa hemólise, o alfa-
anel de Waldeyer. Nas crianças o termo rinofarin- hemolítico causa hemólise parcial e o gama-hemo-
gite pode sobrepor-se a adenoidite. Em relação à lítico não causa hemólise; 3) A patogenicidade da
orofaringe, há autores que falam em faringo- bactéria é dada pela proteína M com 80 serotipos;
amigdalite em vez de faringite. Assim, suben- a mesma é responsável pela resistência bacteriana
tende-se que faringite é uma infecção da oro- à fagocitose; 4) A existência no hospedeiro, de
faringe com ou sem componente inflamatório das uma IgG anti-proteína M específica a um dos
amígdalas palatinas. Se este componente é pre- serotipos, confere imunidade contra esse estrepto-
dominante e domina o quadro clínico, fala-se em coco; 5) Produz cerca de 20 exotoxinas das quais 2
amigdalite. As faringites podem ser divididas em são importantes: a estreptolisina 0, antigénica, e a
agudas e crónicas estreptolisina S que não é antigénica; 6) Ainda
O estabelecimento da flora normal da faringe produz 3 endotoxinas eritrogénicas. 7) Não se iso-
inicia-se logo após o nascimento, sendo a mesma laram até hoje estreptococos resistentes à penicili-
colonizada por lactobacilos e estreptococos anae- na; no entanto já foram obtidos em laboratório,
róbios. Aos 6 meses de idade já se encontram acti- verificando-se que todos eles têm ausência de pro-
nomicetas, fusobactérias e bacteróides. As fuso- teína M (portanto, fagocitáveis).
bactérias atingem o auge com a dentição, e ao ano A faringite também pode ser provocada por
de idade, com uma relação da flora saprófita fungos, sobretudo Candida, em crianças submeti-
aeróbia e anaeróbia de 1/10. O Streptococcus do das a tratamento frequente com antibióticos ou
grupo A é um habitante normal da nasofaringe em imunocomprometidas.
15-20% das crianças. Colheitas feitas em crianças
assintomáticas demonstraram que, para além da Manifestações clínicas e diagnóstico diferencial
flora saprófita, podem existir Haemophilus influen- As infecções víricas produzem odinofagia com
zae, Streptococcus pneumoniae, Streptococcus beta- febrícula, sensação de secura, irritação faríngea
hemolítico do grupo A, Fusobacterium necrophorum, com pigarro que se pode estender à árvore
Arcanobacterium haemolyticum. Moraxella catarrhalis laringo-tráqueo-brônquica com tosse, inicial-
e Staphylococcus aureus. mente seca, e depois com expectoração. A faringe
apresenta-se ligeiramente vermelha: habitual-
1. Faringite aguda mente tais infecções não se acompanham de
adenopatias.
Etiopatogénese As infecções bacterianas produzem habitual-
As formas agudas ocorrem sobretudo na época mente dor mais intensa, febre alta, odinofagia
invernal e são frequentemente víricas, incluindo intensa, mal estar geral e, por vezes, dor abdomi-
adenovírus, rinovirus, influenza, parainfluenza nal. A faringe apresenta-se mais vermelha, por
CAPÍTULO 72 Amigdalite 419

72
vezes com exsudado que pode fluir da nasofa-
ringe; nestas situações as adenopatias cervicais
são frequentes. Frequentemente a sintomatologia
é sobreponível à das infecções víricas.
Na perspectiva do diagnóstico etiológico
através de exames complementares sugere-se a
consulta do capítulo 72. AMIGDALITE
Tratamento Carlos Ruah
As formas víricas tratam-se com repouso, hidra-
tação , analgésicos, antipiréticos e dieta adequada
à odinofagia.
As formas bacterianas obrigam a antibioti- Definição e classificação
coterapia com as seguintes opções: 1) amoxicilina
na dose de 50 mg/kg/dia dividida em 2-3 doses, Este termo refere-se vulgarmente à infecção das
durante 10 dias (eventualmente em dose única amígdalas palatinas, apesar de o mesmo processo
diária); ou 2) penicilina G benzatínica na dose de poder ocorrer nas amígdalas linguais e adenóides
50.000 unidades/kg via intramuscular (máxima (adenoidites) ou nos cordões linfóides da faringe.
dose: 1.200.000 U); em regra 600.000 U se a criança A amigdalite pode dividir-se em aguda, recidi-
tiver menos de 25 kg e 1.200.000 U se 25 kg ou vante e crónica.
mais; ou 3) como alternativa se houver alergia à
penicilina: cefalosporinas de primeira geração 1. Amigdalite aguda
como cefradina (50 mg/kg/dia em 3 tomas) ou
cefadroxil (30 mg/kg/dia em 2 tomas), durante Etiologia
10 dias, ou ainda, clindamicina(20 mg/kg/dia em A amigdalite é provocada pelos mesmos germes
3 tomas até máximo de 1,8 g/dia), também descritos na faringite aguda. A amigdalite, no
durante 10 dias. entanto, tem habitualmente uma etiologia vírica
No caso de alergia à penicilina ou cefalosporinas até aos 3 anos de idade e uma predominância bac-
devem utilizar-se macrólidos (por ex. eritromicina, teriana dos 5 aos 15 anos. O Streptococcus beta-
40-50 mg/kg/dia em 3 tomas e 10 dias ou clari- hemolítico do grupo A está presente em cerca de 5%
tromicina, 15 mg/kg/dia em 2 tomas e 10 dias, ou dos casos em crianças mais pequenas, verificando-
azitromicina, 12 mg/kg/dia em 1 toma durante 5 se as maiores incidências entre os 5-8 anos e entre
dias até máximo de 500 mg/dia). os 12-14 anos.
Sistematizando, as amigdalites agudas podem
2. Faringite crónica ser divididas duma forma empírica em:
1) Não específicas, que constituem a maioria
Enquanto a faringite aguda é mais frequente nas dos casos e são provocadas por bactérias e vírus
crianças, a crónica é rara devido à ausência de fac- comuns; e
tores de cronicidade mais frequentes no adoles- 2) Específicas as quais incluem essencialmente
cente e adulto, tais como, álcool, tabaco, e ronco- a angina de Vincent, a diftérica, do sarampo,
patia com consequente secura faríngea. escarlatina, difteria, herpética, herpangina e da
mononucleose (vírus de Epstein - Barr/VEB).
BIBLIOGRAFIA
(em conjunto com o capítulo 78). Manifestações clínicas
A maioria das amigdalites víricas origina sin-
tomas ligeiros de odinofagia e febrícula que desa-
parecem ao fim de uns dias. A favor duma etiolo-
gia vírica são a existência de rinofaringite associa-
da, de envolvimento da árvore laringo-tráqueo-
420 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

brônquica, de adenomegálias cervicais difusas e esbranquiçado. Podem ser causadas por bactérias
pouco exuberantes, de sinais gerais menos inten- ou vírus, sendo impossível distinguir a sua etiolo-
sos e de fórmula leucocitária normal ou eviden- gia, somente pelo aspecto das amígdalas (Figura 1).
ciando ligeira leucocitose com linfocitose. 2) Úlcero-necróticas em que a amígdala se apre-
Destas, salientam-se: senta com úlceras de fundo sujo e exsudado puru-
a) Herpangina (coxsackievirus A) em que lento. Se unilateral, há que admitir angina de
aparecem pequenas vesículas nos pilares amig- Vincent (associação fuso-espiralar). Se bilateral, há
dalinos e palato mole; rebentando, dão origem a que admitir mononucleose (vírus de Epstein-Barr)
ulcerações redondas de fundo cinzento. Acom- ou hemopatias como a agranulocitose e a leucemia.
panham-se de, intensa odinofagia, febre alta e não 3) Vesiculosas como acontece na herpangina.
de adenomegálias. 4) Pseudomembranosas, caracterizadas pelo
b) Mononucleose infecciosa (vírus de Epstein- aparecimento de pseudomembranas de fibrina
Barr); trata-se de uma doença sistémica que origi- sobre as amígdalas; podem ser causadas por
na amigdalite pseudomembranosa ou ulcero- agentes etiológicos bacterianos comuns e pelo
necrótica com grande astenia, febre alta, múltiplas vírus de Epstein-Barr (Figura 2).
adenopatias e hepatoesplenomegália. O leucogra-
ma mostra linfocitose, linfócitos atípicos e monoci- Diagnóstico
tose. O diagnóstico é confirmado por provas É realizado através da anamnese e observação do
serológicas, salientando-se: detecção qualitativa de doente. Os exames complementares servem para
anticorpos heterófilos (Paul Bunnell); detecção de o diagnóstico etiológico e incluem: a colheita de
anticorpos específicos VEB IgG-VCA e IgM-VCA exsudado faríngeo e amigdalino para exame cul-
(Viral Capsid Antigen) (Capítulo 298). tural, a fórmula leucocitária, as transaminases (na
Nas amigdalites bacterianas as adenopatias hipótese de mononucleose); e exames que per-
são mais confinadas às regiões jugulo-digástricas, mitem o diagnóstico rápido do Streptococcus beta
os sinais gerais mais exuberantes e a fórmula leu- hemolítico com a detecção do poliósido C da super-
cocitária apresenta leucocitose com neutrofilia. fície da bactéria (antigénio) (ver atrás capítulo 71).
Destas destacam-se: Uma vez que número significativo de bactérias
a) Angina de Vincent. Habitualmente unila- se localizada nas criptas amigdalinas, um exsuda-
teral, ocorre em crianças com má nutrição e má do com resultado negativo não exclui a presença
higiene oral, sendo causada por uma associação duma bactéria patogénica localizada na superfície
fuso-espiralar e anaérobia. da amígdala.
b) Escarlatina. Causada pelo Streptococcus beta-
hemolítico do grupo A, tem um início abrupto, com
febre alta, taquicárdia desproporcionada à febre,
vómitos e uma amigdalite eritematosa. A erupção
eritemato-papular aparece 24 horas depois nos
ombros e tórax e estende-se a todo o corpo acentuan-
do-se nas pregas de pele, poupando a planta dos pés,
a palma das mãos e face. Ao 6º dia a erupção melho-
ra e dá lugar a uma descamação cutânea que pode
durar até 6 semanas. O exantema relaciona-se com a
produção duma toxina eritrogénica cuja reacção à
injecção intradérmica diluída (teste de Dick) confir-
ma o diagnóstico (Capítulo 279).
FIG. 1 FIG. 2
A observação permite distinguir 4 tipos de
amigdalites: Amigdalite eritemato – Amigdalite pseudomembra-
1) Eritemato-pultáceas em que as amígdalas se pultácea (isolamento de nosa (mononucleose
Streptococcus A. (NIHDE) infecciosa). (NIHDE)
apresentam vermelhas com ou sem exsudado
CAPÍTULO 72 Amigdalite 421

A medição do título de anti-estreptolisinas O 4) Escarlatina.


(TASO) é útil apenas quando combinada com a Especificamente, no que respeita à amigdalite
colheita do exsudado faringo-amigdalino. Se o no contexto de escarlatina, aplicam-se os princí-
TASO está elevado e a colheita é positiva, está-se pios já enunciados a propósito da faringite aguda
na presença da doença. Se o TASO é normal e a bacteriana (Capítulo 278).
colheita é positiva pode tratar-se dum portador
são ou de status pós-infecção*. Complicações
Poderão surgir as seguintes complicações:
Tratamento 1) Celulite e abcesso periamigdalino: verifica-
1) Amigdalites víricas. São tratadas sintomatica- se na extensão progressiva da infecção da amí-
mente com análgésicos, antipiréticos e regime ali- gdala para os tecidos moles periamigdalinos
mentar adaptado à odinofagia. (celulite) a partir do polo superior da amígdala ou
2) Amigdalites bacterianas. A penicilina continua para o espaço periamigdalino com acumulação
a ser o tratamento de escolha uma vez que o localizada de pus (abcesso). Em ambos os casos o
Streptococcus beta-hemolítico do grupo A é sensível a tratamento deve ser parentérico, aplicando-se os
este antibiótico. Em regra usa-se a penicilina G princípios clássicos para o tratamento da celulite
benzatínica por via intramuscular em dose única da face. Estando em causa Haemophilus influenzae
(600.000 U se menos de 25kg, e 1.200.000 U se 25kg do tipo B, S. aureus ou S. pyogenes (grupo A), os
ou mais). Como alternativa podem utilizar-se for- antibióticos de escolha são a cefuroxima, ou a
mulações do mercado na proporção de 6/3/3, amoxicilina/clavulanato; como alternativa, cefa-
respectivamente para penicilina G benzatínica, losporina de terceira geração. No caso do abcesso
penicilina G procaínica e penicilina G aquosa. A está indicada a drenagem (ver Capítulos 279 e
falência do tratamento com a penicilina pode 281).
indicar a comparticipação duma bactéria produto- 2) Abcessos parafaríngeos e retrofaríngeos:
ra de beta-lactamase ou de flora mista predomi- ocorrem pela extensão da infecção através do
nantemente anaeróbia. Segundo a Academia músculo constritor superior da farínge. O trata-
Americana de ORL, o tratamento com um mento é semelhante ao anterior
antibiótico resistente à beta-lactamase é preferível 3) Adenite cervical supurada: consiste na per-
à penicilina. sistência dum gânglio cervical aumentado e
Dum modo geral poderão ser aplicados os abcedado, podendo ter como agentes etiológicos o
princípios de antibioticoterapia descritos a Staphylococcus aureus ou Streptococcus beta-hemolíti-
propósito da faringite bacteriana. De referir que o co. O tratamento consiste em antibioticoterapia
período de contagiosidade cessa após 24 horas do parentérica contra estes dois agentes e a drenagem
início do tratamento antimicrobiano. do abcesso se necessário. Tratando-se de S aureus:
3) Angina de Vincent. flucloxacilina; se Streptococcus: penicilina. Como
O tratamento consiste em lavar a boca com alternativas: cefalosporina de 1ª geração ou clin-
uma solução de água oxigenada e soro fisiológio damicina.
para além da administração de penicilina G e 4) Glomerulonefrite e febre reumática: podem
metronidazol; como alternativa poderão ser uti- ocorrer 1 a 3 semanas após a amigdalite por
lizados, amoxicilina / clavulanato, macrólido ou Streptococcus beta-hemolítico do grupo A (Capítulos
doxiciclina. 157 e 226).
5) Têm sido descritos casos duma doença neu-
ropsiquiátrica autoimune em crianças, após
Notas importantes: a) O valor do TASO não deve constituir, só por si, infecção por Streptococcus beta-hemolítico. A pato-
critério para tratamento antimicrobiano e não constitui rotina a sua deter-
minação; b) Os exames bacteriológicos ou detecção de antigénios apenas génese parece ser semelhante à da coreia de
estão indicados em situações em que: o exsudado possa levantar dúvidas Sydenham sendo aquela designada pela sigla
quanto à etiologia estreptocócica; haja antecedentes de amigdalites de
repetição, de febre reumática, glomérulo – nefrite aguda ou síndroma de PANDAS (Pediatric Autoimmune Neuro-
choque tóxico por Streptococcus; e eventualmente nos contactos em psychiatric Disorders Associated with Strepto-
função de contextos epidemiológicos específicos.
coccal Infections).
422 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

73
6) Síndroma de Lemierre: consiste na associa-
ção de amigdalite, tromboflebite da veia jugular
interna, múltiplos abcessos metastáticos sobretu-
do no pulmão, articulações e ossos, septicémia por
Fusobacterium necrophorum (gram-negativo, anae-
róbio, habitualmente saprófita da faringe). O
tratamento consiste no internamento e na admi- ADENOIDITE
nistração de antibiótico resistente às beta-lacta-
mases e metronidazol durante 6 semanas Carlos Ruah
7) Fascite necrosante: pode ocorrer em relação,
quer com Streptococcus beta hemolítico, quer com
Staphylococcus aureus, a partir duma amigdalite.
Definição e classificação
2. Amigdalite recidivante
Adenoidite é o processo inflamatório localizado
A definição de amigdalite recidivante varia com os nas vegetações adenóides; classicamente são con-
autores. Dum modo geral define-se com base na sideradas duas formas clínicas: adenoidite aguda
verificação de 3 episódios por ano em 3 anos con- e adenoidite crónica.
secutivos, 5 episódios por ano em 2 anos consecu-
tivos, ou mais de 6 episódios num ano. As causas 1. Adenoidite aguda
das recidivas incluem a modificação do equilíbrio
ecológico entre as bactérias saprófitas e as patogéni- O quadro clínico de adenoidite aguda é sobre-
cas, a fibrose progressiva da amígdala que dificulta ponível ao da rinofaringite. Ocorre predominante-
a penetração antibiótica, aparecimento de estirpes mente em crianças dos 6 meses aos 8 anos sendo
produtoras de beta-lactamases, o não cumprimento causada em 15 a 70% dos casos por vírus (rino-,
correcto da terapêutica, e a constante reinfecção por adeno-, mixo-, e enterovírus e, nas muito jovens,
indivíduos próximos que são portadores sãos. por vírus sincicial respiratório). Nas formas bacte-
O tratamento consiste na utilização de rianas, os agentes mais frequentes são
antibióticos que atinjam as estruturas mais pro- Haemophilus influenzae, Streptococcus pneumoniae,
fundas das amígdalas fibrosadas (clindamicina ou Streptococcus pyogenes, Staphylococcus aureus e
cefalosporinas), na detecção e tratamento dos por- Moraxella catarrhalis.
tadores sãos próximos do doente, na imuno- As manifestações clínicas compreendem febre
estimulação e na amigdalectomia. alta que, inicialmente, pode ser inexplicável até
aparecer uma rinorreia posterior branca a esver-
3. Amigdalite crónica deada, obstrução nasal por hipertrofia adenoideia
e rinorreia anterior. A infecção pode estender-se
Ocorre sobretudo em crianças mais velhas e adultos. ao ouvido médio (dando origem a otite média
Existe odinofagia, habitualmente sem febre, com ou aguda ou com derrame), à faringe e à árvore
sem rubor das amígdalas e pilares. As amígdalas são laringo-tráqueo-brônquica. O exame objectivo
habitualmente mais duras à palpação e a sua apenas detecta a presença da rinorreia anterior e
expressão liberta caseum amigdalino, uma mistura de posterior ou de otite, não sendo possível observar
alimentos retidos e pus, que dá mau hálito. a nasofaringe em crianças senão com a endos-
Habitualmente não existem adenopatias. As col- copia. A radiografia de perfil do cavum não pro-
heitas de exsudado amigdalino permitem habitual- porciona qualquer informação válida nestes casos.
mente o isolamento de flora mista aeróbia-anaeróbia. A antibioticoterapia de primeira escolha com-
O tratamento consiste na amigdalectomia. preende amoxicilina/clavulanato ou macrólido
azitromicina; como alternativa: cefalosporina de
BIBLIOGRAFIA 2ª geração. A duração da terapêutica antibiótica é
(Em conjunto com o capítulo 78). 10 dias (sendo de 5 dias para a azitromicina).
CAPÍTULO 74 Rino – Sinusite 423

74
O tratamento sintomático consiste na aspi-
ração de secreções, administração de analgésicos,
antipiréticos e anti-histaminicos se houver confir-
mação de que a criança tem antecedentes de
atopia.
A adenoidectomia é indicada nos casos recidi-
vantes, nos que se acompanham de grande RINO – SINUSITE
obstrução nasal, e nas formas complicadas: otite
aguda de repetição, otite média com derrame Vital Calado
persistente, ou associadas a complicações do trac-
to respiratório inferior.

2. Adenoidite crónica Definição e importância do problema

Ocorre em crianças sujeitas a um regime de vida Rinite (termo sinónimo de coriza) é definida como
que as expõe a agressões ambientais e infecciosas a inflamação aguda ou crónica das fossas nasais a
(creches, infantários, exposição frequente a qual origina como sinais predominantes rinorreia
lareiras, pais que fumam em casa), com antece- e obstrução nasal.
dentes de atopia, ou com hipertrofia adenoideia. A rino-sinusite é um processo de inflamação da mu-
Tais crianças têm uma rinorreia anterior e poste- cosa naso-sinusal. Pode ser classificada de acordo
rior persistente que vai da hidrorreia ao exsudado com a sua evolução temporal e a intensidade dos sin-
francamente purulento; são frequentes os episó- tomas, em aguda, subaguda, crónica ou recorrente.
dios febris e a roncopatia. A rino-sinusite aguda caracteriza-se por sinais
O tratamento consiste no afastamento dos fac- e sintomas de infecção aguda das vias respi-
tores agressivos, limpeza nasal com soro fisiológi- ratórias superiores, que duram mais do que 10
co ou “água do mar” tratada e antialérgicos se dias e menos do que três semanas. Na sinusite
indicado. A colheita do exsudado nasofaríngeo crónica os sintomas persistem por mais de três
evitando a contaminação cutânea à passagem do meses, enquanto na subaguda duram entre 3 se-
estilete é útil, demonstrando, muitas vezes, a pre- manas a três meses.
sença de mais de uma bactéria patogénica. A ade- É importante referir, a propósito, que o nariz e
noidectomia tem indicação na presença de com- os seios perinasais são revestidos por um epitélio
plicações nos órgãos vizinhos (otites, sinusites ciliado pseudo-estratificado. Tendo em conta que
persistentes ou laringo-tráqueo-bronquites), ou de existe uma identidade anatómica e funcional entre
obstrução nasal persistente (Capítulo 29). a mucosa nasal e a sinusal e que ambas estão em
continuidade, a inflamação sumultânea destas
BIBLIOGRAFIA mucosas é muito frequente, razão pela qual é
(Em conjunto com o capítulo 78). preferível a designação de rino-sinusite. Portanto,
relativamente ao termo sinusite há que ter pre-
sente este conceito.
Os agentes patogénicos infecciosos mais fre-
quentemente associados a rinite são os rinovírus.
Na sinusite predominam as bactérias.
Neste capítulo é abordada a sinusite de causa
infecciosa bacteriana.

Etiopatogénese

Na situação sinusite aguda, as principais bactérias


patogénicas que têm sido isoladas, quer por co-
424 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

lheita do meato médio, que por punção sinusal Também outras doenças sistémicas como a
são: S. pneumoniae, H. influenzae, Moraxella fibrose quística, a síndroma de cílio imóvel, a sín-
catarrhalis, S. aureus e Streptococcus pyogenes. droma de Down e os estados de imunodeficiência
Na sinusite crónica, predominam os Strepto- constituem importantes factores de risco. A rinite
coccus aneróbios, os Bacteróides sp e os Fusobacterium alérgica, a asma e a sinusite estão intimamente
sp. associadas. A poluição, o fumo passivo, a
A integridade da mucosa naso-sinusal, assim exposição a lareiras e a inalação de irritantes con-
como o bom funcionamento dos mecanismos de tribuem também para a eclosão ou manutenção da
transporte mucociliar, são essenciais para a sinusite.
manutenção de uma fisiologia normal. Todos os Como factores locais são de salientar os póli-
factores que alteram a composição da camada do pos nasais, os corpos estranhos, os desvios do
muco ou o funcionamento dos cílios favorecem a septo nasal, as anomalias anatómicas do meato
infecção. médio, os traumatismos, as infecções das amíg-
É importante também que a ventilação e a dalas e das adenóides.
drenagem dos seios sejam adequadas e que os Salienta-se que cerca de 14% das crianças com
orifícios de drenagem estejam funcionantes. sinusite crónica têm deficiência de IgA, de IgG ou
A unidade ostiomeatal constitui a zona chave subclasses, sindroma de cílio imóvel ou mucovis-
de toda a fisiologia dos seios: é o espaço para onde cidose. O refluxo gastresofágico está muitas vezes
drenam os seios frontais, os seios etmoidais ante- presente nas sinusites crónicas ou resistentes ao
riores e os maxilares. Corresponde a uma zona tratamento médico.
complexa e bastante estreita nas crianças, que
pode facilmente ser obstruída por edema infla- Manifestações clínicas e diagnóstico
matório da mucosa, secreções espessas, pólipos,
ou alterações anatómicas. A obstrução dos ostia Na sinusite aguda os sintomas são idênticos aos
produz dificuldades de ventilação e drenagem de uma infecção aguda por vírus das vias aéreas
dos seios, retenção de secreções e pressão negati- superiores: obstrução nasal, rinorreia anterior e
va intra-sinusal que facilita a aspiração de bac- posterior, febre, mal estar de expressão facial, e
térias patogénicas para dentro dos seios com con- tosse. Pode ser difícil o diagnóstico diferencial
sequente infecção. baseado na clínica, quer com a rinite por vírus,
A sinusite aguda é muitas vezes precedida de quer com a rinite alérgica. Se os sintomas forem
uma infecção por vírus, que prepara o terreno mais marcados do que um simples resfriado (febre
para a infecção bacteriana. Na sinusite crónica ou alta, edema peri-orbitário), durarem mais de 10
na recorrente predominam os factores gerais ou as dias ou se se agravarem alguns dias após o início,
anomalias locais. é provável que o diagnóstico seja de rino-sinusite
Os seios mais afectados são, por ordem decres- aguda bacteriana.
cente, os maxilares, os etmoidais e os esfenoidais. Na sinusite crónica existe obstrução nasal,
Os seios frontais só são afectados a partir dos 7 rinorreia purulenta anterior e posterior, tosse per-
anos. Muitas vezes há um processo de poli ou de sistente, mau hálito e dor faríngea. Muitas vezes
pansinusite. verifica-se otite sero-mucosa acompanhante. A
dor de expressão facial franca é rara na criança. Os
Factores de risco sintomas persistem por mais de 3 meses.

Os factores de risco de sinusite são semelhantes Exames complementares


aos factores de risco de otite. Deve referir-se que as
infecções por vírus das vias aéreas superiores, tais A rinoscopia anterior é dificil de realizar nas crianças,
como metapneumovírus, rinovírus, influenzae, dadas as reduzidas dimensões das fossas nasais e a
parainfluenzae, sincicial respiratório e adenovírus, resistência que oferece tal exame. Pode ser realizada
constituem importantes factores de risco, tanto de com um otoscópio e espéculo auricular: permite ver-
sinusite aguda como de crónica ou recorrente. ificar o estado da mucosa, a existência de secreções ,
CAPÍTULO 74 Rino – Sinusite 425

corpos estranhos, pólipos, a permeabilidade nasal e


alterações do septo e dos cornetos. A aplicação local
de um vasoconstritor facilita o exame.
Maior valor tem a endoscopia nasal com o
endoscópio de Hopkins ou fibroscópio que, feita
por especialista treinado, permite observar toda a
fossa nasal, o meato médio, determinar a origem
da rinorreia purulenta, colher secreções para
exame bacteriológico, tecidos ou células para exa-
me histológico, e verificar a importância do volu-
me das adenóides.
O estudo radiológico dos seios perinasais , nas
FIG. 2
posições de Waters, Hirtz e perfil deve ser valo-
rizado de acordo com o contexto clínico, dado que TAC dos seios perinasais, no plano coronal. Opacificação dos
existem muitos resultados falsos positivos. Podem seios revelando um extenso processo de polissinusite.
encontrar-se níveis hidro-aéreos ou opacificação
total dos seios. O edema da mucosa só tem si- Tratamento
gnificado se for superior a 4 mm. A radiografia do
cavum (Figura 1) é útil para o estudo das O tratamento médico tem por objectivo erradicar
adenóides e seio esfenoidal. a infecção, restabelecer a permeabilidade ostial e o
A tomografia computadorizada, sobretudo no mecanismo de transporte mucociliar, por forma a
plano coronal, é mais esclarecedora. Deve ser promover boa ventilação e drenagem dos seios.
reservada para o estudo das complicações das O tratamento com antibióticos é muitas vezes
sinusites, sinusites crónicas (Figura 2) , tumores e empírico. Deve ter em conta a prevalência bacte-
para ajuda ao planeamento operatório. A riana para a região e as resistências conhecidas.
ressonância magnética nuclear (RMN) tem inte- Devido ao uso e abuso da prescrição de antibióti-
resse no diagnóstico de certas sinusites fúngicas, cos, quer a resistência do pneumococo à penicili-
nas complicações orbitárias e endocranianas, e na na, quer a do Haemophilus (30%) e a da Moraxella
avaliação da extensão local dos tumores. (70%) aos beta-lactâmicos, têm vindo a aumentar de
forma continuada.
Na sinusite aguda os antibióticos de eleição
são: a amoxicilina/clavulanato utilizando a dose
máxima de amoxicilina e a formulação de 7: 1; ou
a cefuroxima. Como alternativas: azitromicina ou
claritromicina.
O tratamento deve ter a duração de cerca de
duas semanas; a azitromicina utiliza-se durante 5
dias. Não havendo melhoria clínica procede-se a
colheita de pus para exame bacteriológico com
TSA (teste de sensibilidade aos antibióticos), e a
eventual mudança de antibiótico até conheci-
mento do resultado daquele.
Nas complicações das sinusites, quer orbitá-
rias, quer intracranianas, devem usar-se antibióti-
cos de largo espectro, em doses elevadas e por via
endovenosa. A colheita do pus (no meato médio
FIG. 1
ou por punção sinusal) é fundamental na tentati-
Radiografia do cavum de perfil revelando sinais de va de isolamento da bactéria responsável e deter-
hipertrofia das adenóides. minação da sua sensibilidade aos antibióticos.
426 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Na sinusite crónica o tratamento é idêntico, 2013; 60:409-424


mas deve ser prescrito para um período mínimo Calado V, Monteiro L. Rinite alérgica e rino-sinusite na criança
de 4 semanas. Os antibióticos de eleição são a in Rosado Pinto J, Morais Almeida M. A Criança Asmática
amoxicilina/clavulanato ou a clindamicina; como no Mundo da Alergia. Lisboa: Euromédice, 2003
alternativa, a penicilina (para a posologia consul- Cronin MJ, Khan S, Saeed S. The role of antibiotics in the treat-
tar os capítulos anteriores). ment of acute rhinosinusitis in children: a systematic
Haverá igualmente que tratar eventuais aler- review. Arch Dis Child 2013; 98:299-303
gias, deficiências imunológicas, mucoviscidose e o Kliegman RM, Stanton BF et al. Nelson Textbook of Pediatrics.
refluxo gastresofágico. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
As lavagens nasais com soro e os corticoste- Piccirillo JF. Acute bacterial sinusitis. NEJM 2004, 351: 902-910
róides tópicos têm um papel importante no trata- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
mento da sinusite. Os antialérgicos só devem ser AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
usados se se demonstrar alergia. Medical, 2011
O tratamento cirúrgico deve ser encarado com Steele RW. Rhinosinusitis in children. Curr Allergy Asthma
grandes reservas. Está indicado nos casos graves, Rep 2006; 6: 508-512
nalgumas complicações ou em situações de falên-
cia de tratamento médico, em crianças com mais
de 12 anos. Consiste numa cirurgia endoscópica
ou, microscópica funcional. As lesões a excisar são
mínimas. O que importa é permeabilizar os orifí-
cios e drenar os seios. Outras indicações são a
imperfuração coanal, a polipose nasal ( mucovis-
cidose ) ou os mucocelos. A adenoidectomia pode
ser ponderada face ao contexto clínico.

Prognóstico

A maior parte das sinusites agudas cura com trata-


mento médico. No entanto, alguns casos, agudos
ou crónicos, podem originar complicações graves,
quer sejam locais (como o mucocelo, o mucopioce-
lo ou a osteomielite), orbitárias (como a celulite
periorbitária, a celulite orbitária, o abcesso
orbitário) e a tromboflebite do seio cavernoso; ou
endocranianas como a meningite, o abcesso
epidural, o empiema subdural e o abcesso cerebral.
Muitas destas situações devem ser tratadas em
meio hospitalar, com antibióticos adequados, por
via endovenosa e em altas doses, com vigilância
rigorosa e, eventualmente, com recurso à cirurgia.

Prevenção

Há que ter em atenção os factores de risco já referidos


e tratar correctamente as situações agudas ou recor-
rentes para evitar complicações ou a cronicidade.

BIBLIOGRAFIA
Brook I. Acute sinusitis in children. Pediatr Clin North Am
CAPÍTULO 75 Otite média aguda 427

75
com infecções víricas das vias respiratórias supe-
riores têm OMA.
Os vírus podem ser isolados em cerca de 20-30%
dos exsudados do ouvido médio, destacando-se
como de maior prevalência rinovírus, vírus sincicial
respiratório, influenzae e parainfluenzae, ade-
OTITE MÉDIA AGUDA novírus e coronavírus . A otite média aguda pre-
domina nos meses frios, quando as infecções por
Vital Calado vírus das vias aéreas superiores são mais frequentes.
A disfunção da trompa de Eustáquio desem-
penha um papel central na eclosão da otite.
Poderá resultar de uma agressão vírica que con-
Definição e importância do problema duz a obstrução da trompa por congestão da
mucosa ou por existirem factores anatómicos ou
A otite média aguda (OMA) pode ser definida fisiológicos desfavoráveis. Como consequência
como uma infecção aguda da mucosa do ouvido surge um défice de ventilação do ouvido médio.
médio (incluindo trompa de Eustáquio, cavidade A reabsorção do ar contido nesse espaço gera uma
do ouvido médio e mastóide), de instalação súbi- pressão negativa que contribui para a aspiração,
ta, acompanhando-se de sinais e sintomas tais através da trompa, dos germes patogénicos que
como otalgia e febre. colonizam o cavum faríngeo, com localização espe-
É uma doença com elevada prevalência em cial nas adenóides. O facto de a trompa de
idade pediátrica, sobretudo entre os 6 e os 11 Eustáquio nas crianças ser mais curta, mais hori-
meses de idade, decrescendo à medida que a zontal e flácida do que no adulto, favorece tam-
idade avança. Por volta dos três anos de idade bém o refluxo das secreções infectadas para o
cerca de 45% das crianças terão tido já 3 ou mais ouvido médio. Em certos casos a infecção pode
episódios de otite. fazer-se por via hematogénica ou através de per-
Fala-se em otite recorrente quando ocorrem furação do tímpano. Os vírus constituem um fac-
pelo menos 3 episódios de OMA em seis meses ou tor predisponente para a infecção bacteriana*.
4 ou mais num ano.
Trata-se da segunda doença infecciosa mais fre- Factores de risco
quente na criança e a principal causa de perda auditi-
va e de prescrição de antibióticos no nosso meio. Daí A idade constitui um factor de risco de OMA.
o enorme impacte social e económico que comporta. Quanto mais precoce for a otite maiores são as

Etiopatogénese *Classificação anátomo-clínica (Terminologia)


As várias modalidades de inflamação no ouvido externo, médio e
interno originaram uma grande variedade de termos. Com efeito, fre-
As principais bactérias causadoras de OMA, evi- quentemente assistimos à utilização de mais de uma terminologia para
denciadas por culturas obtidas por timpanocen- a mesma situação. Ou seja, adoptando diferentes critérios surgem
diversas terminologias.
tese, são o S. pneumoniae (35 a 50 %),que é o mais Critério anatómico: Otite: inflamação em qualquer território do ouvido;
prevalente em todas as idades, o H. Influenzae (20 Otite externa: inflamação no ouvido externo (problema dermatológi-
co); Otite média: inflamação no ouvido médio (problema respiratório);
a 30 %) e a Moraxella catarrhalis (10 a 20%). Outros Labirintite:inflamação no ouvido interno (problema otoneurológico).
agentes isolados incluem S. pyogenes, S. aureus, Critério patolológico: Otite média serosa: inflamação em que a caixa do
Mycoplasma pneumoniae e bactérias Gram-negativas tímpano contém líquido (derrame ou efusão) seroso de baixa tensão
superficial; Otite média mucóide ou “mucosa”: inflamação em que a
como E. coli, P. aeruginosa, e Klebsiella. No recém- caixa do tímpano contém líquido de viscosidade variável, por vezes
nascido têm sido isolados o S. aureus, o semelhante a cola; Otite média purulenta: inflamação em que a caixa
do tímpano contém líquido purulento. Nestes casos o tímpano pode
Streptococcus B e Enterobactérias Gram-negativas. estar fechado ou aberto (perfurado). NB- Por vezes o líquido [derrame
Em diversos estudos demonstrou-se que a ou efusão] é seromucóide (ou seromucoso)
Critério temporal: A otite média pode ser, quanto à duração do quadro
infecção por vírus facilita a colonização bacteriana clínico: aguda (< 3 semanas); subaguda (3 a 8 semans); crónica (> 8
da nasofaringe e que, entre 10 e 60% das crianças semanas).
428 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

possibilidades de recorrência. Um primeiro episó- A otoscopia é, pois, essencial. Deve ser feita
dio de otite antes dos seis meses constitui factor de com a criança confortavelmente sentada ao colo
mau prognóstico. da mãe, sobretudo se tiver menos de 3 anos, bem
Outros factores de risco incluem alergia, imobilizada e com otoscópio de luz de halogénio.
défices imunitários, fenda palatina, anomalias O canal externo deve ser limpo de detritos e de
crânio-faciais, factores genéticos e frequência de cerúmen. O espéculo deve ter um diâmetro apro-
infantários, sobretudo os superlotados com di- priado ao conduto e não deve ser introduzido pro-
mensões exíguas e funcionando em condições pre- fundamente para não lesar a fina pele do canal.
cárias de higiene. Também o fumo passivo, ambi- Sobre o critério 3 – podemos observar, de acordo
entes poluídos, a climatização artificial alterando com a evolução da doença, hiperémia difusa do
a temperatura e humidade dos espaços comuns, a tímpano e cabo do martelo (Figura 1), desapareci-
não alimentação com leite materno, o baixo nível mento do reflexo luminoso, hiperémia radiária,
socioeconómico e uso de chupeta parecem favore- edema e perda de caracteres, hiperémia e abaula-
cem a infecção. mento da membrana, traduzindo exsudado sob
pressão dentro da caixa, ou perfuração com saída
Manifestações clínicas de pus. A valorização dos dados otoscópicos é
difícil, sobretudo nos lactentes*. Outros exames
Os sintomas variam conforme a fase da doença e a complementares, habitualmente do domínio do
idade do doente. O sintoma mais específico da especialista de ORL, poderão ser utilizados: tim-
OMA é a otalgia. Em geral há otalgia moderada, panometria/timpanograma (exame seguro no
hipoacúsia e febre. Pode haver autofonia e diagnóstico de derrame na caixa do tímpano)
acufenos. Como a otite coincide muitas vezes com (Figura 2 evidenciando três dos padrões gráficos
infecções por vírus do tracto respiratório superior, mais representativos, entre outros), reflectometria
tal como foi referido antes, poderá haver obstrução acústica, otoscopia pneumática, etc..
nasal, rinorreia anterior e posterior, e tosse.
Nos lactentes predomina a febre, a irritabili-
dade e os sintomas gastrintestinais. A dor expres-
sa-se muitas vezes pelo choro ou pela recusa ali-
mentar. Por vezes a criança aparentando sofri-
mento ou mal estar ,adopta a posição de pescoço
em flexão lateral, com elevação do ombro homo-
lateral e palma da mão sobre o ouvido. Se a
doença progredir, há aumento da pressão do pus
no ouvido médio, o tímpano pode perfurar e ini-
ciar-se um período de otorreia. Com a saída do
pus a dor acalma e os sintomas gerais atenuam-se.
A cura ocorre naturalmente, ou pela acção
medicamentosa.

Diagnóstico
FIG. 1
O diagnóstico de OMA baseia-se fundamental- Otite média aguda. Fase de hiperémia (Otoscopia).
mente em três critérios:1- início abrupto de sinais
e sintomas de inflamação do ouvido médio; 2-
*Por razões históricas, justifica-se mencionar dois sinais utilizados em
presença de derrame/efusão no ouvido médio décadas passadas, os quais são falíveis: – sinal de Vachez ou dor desen-
demonstrada por qualquer dos seguintes sinais: cadeada por compressão do tragus; sinal de Savulesco ou dor desperta-
da por ligeira compressão da ponta da mastóide. NB → A hiperémia iso-
abaulamento, imobilidade ou hipomobilidade do lada do tímpano na criança com febre não constitui critério diagnóstico
tímpano, ou otorreia; 3- eritema/hiperémia do fidedigno de OMA; poderá, sim, ter origem num processo inflamatório
tímpano ou otalgia. com origem na pele que forra o canal auditivo externo.
CAPÍTULO 75 Otite média aguda 429

respeita à antibioticoterapia é aconselhável seguir


o esquema que a AAP sugere em função da idade
e do diagnóstico, de certeza ou duvidoso: a) < 6
meses: antibioticoterapia mesmo na eventuali-
dade de haver dúvidas quanto ao diagnóstico; b)
6-24 meses: antibióticoterapia a ponderar em
função do estado clínico ou decisão de antibiti-
coterapia se diagnóstico de certeza; c) antibioti-
coterapia em caso de diagnóstico de certeza, se
situação for considerada grave.
Considera-se situação não grave: temperatura
rectal < 39,5ºC nas 24 horas anteriores e otalgia
moderada. Pressupõe-se que, em caso de decisão
de não antibioticoterapia há condições de vigilân-
cia do estado clínico e possibilidade de ulterior
antibioticoterapia face à evolução deste.
FIG. 2 A escolha empírica do antibiótico deve ter em
Timpanograma [tipo A]: Traçado triangular “em bico”, conta a idade da criança, as resistências locais co-
normal; Timpanograma [tipo B]: Traçado com linha horizontal nhecidas, a existência de recorrências e eventuais
ligeiramente curva, “em cúpula baixa”, indicando alergias conhecidas aos fármacos*.
derrame/efusão; Timpanograma [tipo C]: Traçado triangular A amoxicilina (80-90 mg/kg/dia de 12-12h)
baixo "em bico", assimétrico, indicando pressão negativa no
continua a ser o antibiótico preferido no tratamen-
ouvido médio.
to do primeiro episódio de otite aguda ou na otite
ocasional. A duração da antibioticoterapia, motivo
A otoscopia pneumática com espéculo de de controvérsia, deve ser individualizada.
Siegle permite avaliar a mobilidade/distensibili- Habitualmente 7-10 dias são considerados correc-
dade da membrana do tímpano; menor distensi- tos e aconselháveis em crianças com < 2 anos,
bilidade ou mobilidade se o ouvido médio contiv- emboar a literatura refira estudos comprovando
er líquido. eficácia aplicando o esquema de 5 dias.
No RN é obrigatório proceder a exame micro- No caso das crianças que frequentam infantários,
biológico do exsudado do ouvido médio, muitas com otites recorrentes ou outros factores de risco si-
vezes hemoculturas e, eventualmente, punção gnificativos, é preferível usar logo de início a associ-
lombar para exame do LCR. Com efeito, nas cri- ação amoxicilina /ácido clavulânico, na relação pon-
anças com < de 3 meses, os respectivos agentes deral de 7/1 dada a existência, muito provável, de
causais muitas vezes são diferentes dos anterior- estirpes resistentes produtoras de beta- lactamases.
mente descritos. Em tais circunstãncias poderá Na prática utiliza-se a dose de amoxicilina de
estar indicado o internamento da criança. 80 mg/kg/dia na suspensão oral (400 mg de
amoxicilina/57 mg de ácido clavulânico em 5 ml).
Tratamento A reavaliação é feita às duas semanas e ao fim
de um mês.
Como primeira linha de actuação, há a referir o Outras alternativas terapêuticas em função de
analgésico (só paracetamol:15 mg/kg cada 6 horas; resultados de exames microbiológicos incluem a
ou, nas crianças com > de 6 meses, só ibuprofeno:
5 mg/kg cada 8 horas) e a necessidade de manter *Tendo em conta a incidência e a eliminação espontânea de diversos
a permeabilidade nasal (aspiração cuidadosa de agentes causais, assim como as diferentes morbilidade e taxa de compli-
cações possíveis, a antibioticoterapia , em princípio, deve ser dirigida
secreções e instilação de soro fisiológico). contra S pneumoniae. Para as estirpes de S pneumoniae sensíveis à peni-
Em cerca de 70 a 80% dos casos de otite média cilina, qualquer dos beta-lactâmicos por via oral pode ser eficaz. Para as
estirpes de sensibilidade intermédia, o beta-lactâmico oral para o qual a
aguda verifica-se a cura sem tratamento, ao fim de concentração inibitória mínima é sempre inferior ao pico de concen-
3 a 4 dias. Com base nesta evidência e no que tração sérica é a amoxicilina.
430 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

cefuroxima axetil (30-40mg/kg/dia em 2-3 tomas), gmoideu(seio lateral), a terceira porção do nervo
o cefaclor (30-50 mg/kg/dia em 2-3 tomas) e a cefix- facial no seu trajecto intrapetroso, e o labirinto
ima (8-12 mg/kg/dia em 1-2 tomas). posterior. Por outro lado, poderá verificar-se exte-
Nos casos de alergia à penicilina recorre-se aos riorização da infecção intra-óssea para o espaço
macrólidos (eritromicina 50 mg /kg/dia em 7-10 subcutâneo com consequente abcesso subcutâneo.
dias nas crianças com menos de 6 meses; azitro- Tais eventos patológicos poderão originar diver-
micina 10 mg /Kg/dia, dose diária durante 3 dias sos quadros clínicos: meningite, paralisia do nervo
nas crianças com mais de 6 meses). facial, abcesso,labirintite, etc..
A ceftriaxona tem sido recomendada ultima- Na era actual o prognóstico em geral é bom
mente por vários autores como tratamento das pressupondo diagnóstico e tratamento correctos e
otites resistentes ou recorrentes, na dose de 50-80 precoces.
mg/kg/dia, em injecção única intramuscular
diária durante 3 a 5 dias seguidos. A droga alcança Prevenção
altas concentrações no ouvido médio sendo,
assim, bastante eficaz. É importante reduzir ao mínimo os factores de
Em certas situações o tratamento médico é risco já referidos, assim como tratar e corrigir cor-
insuficiente e há que recorrer a tratamento cirúrgi- rectamente todas as situações agudas para se evi-
co. A paracentese do tímpano (miringotomia) com tar as recorrências e as complicações.
aspiração do exsudado do ouvido médio está indi- A prevenção prolongada (6 meses) com
cada nos casos de otalgia intensa com sinais muito antibióticos tem sido preconizada, sobretudo para
marcados de infecção, otites de repetição resis- a otite recorrente. Esta questão é polémica.
tentes à terapêutica médica, ou presença de com- As vacinas contra S. pneumoniae, têm-se revela-
plicações como a paralisia facial ou meningite. do úteis para prevenir as infecções provocadas
por essa bactéria contribuindo para diminuir a
Complicações e prognóstico prevalência atrás referida, embora de modo não
muito significativo (< 6-8%). De salientar que
Na infecção aguda do ouvido médio podem ocor- ainda não existem vacinas verdadeiramente efi-
rer complicações locais tendo em conta as relações cazes contra a maioria dos agentes patogénicos
anatómicas de vizinhança com estruturas deli- que causam OMA.
cadas, ou complicações gerais tal como em qual- Os tubos transtimpânicos (timpanostomia) e a
quer outra infecção. Embora estas últimas sejam adenoidectomia são recomendados para prevenir
hoje raras, poderão desenvolver-se designada- os casos graves de otites recorrentes.
mente em situações de imunodeficiência, ou de
agentes microbianos particularmente virulentos. BIBLIOGRAFIA
A complicação mais frequente é a perfuração (em conjunto com o capítulo 76).
timpânica persistente, com ou sem destruição de
parte da cadeia dos ossículos; a consequência será
surdez de tipo transmissão. Qualquer perfuração
que não respeite os limites da membrana do tím-
pano na porção mais alta – membrana de Shrapnell
– incorrerá no risco de epidermização invasiva do
ouvido médio a partir do canal auditivo externo, o
que comporta a probabilidade de ulterior processo
crónico e aparecimento de colesteatoma.
A mastoidite é hoje uma complicação rara. Con-
tudo cabe referir que a destruição dos tabiques
ósseos e a colecção de pus transformam o osso
numa cavidade cujas paredes estão em íntimo
contacto com a meninge, o seio cavernoso si-
CAPÍTULO 76 Otite sero-mucosa 431

76
cia para resolução espontânea, a mesma poderá
somente ter lugar 3-4 anos após início das mani-
festações tendo como critério o padrão tim-
panográfico avaliado de modo seriado(passando
de tipo B para tipo não B (Capítulo 75).
Admite-se que o facto de terem sido detec-
OTITE SERO-MUCOSA tadas bactérias intracelulares em 36% das biópsias
da mucosa do ouvido médio em doentes com
Vital Calado OSM poderá explicar a tendência para a cronici-
dade pela organização das bactérias em biofilmes
(ver Glossário geral).
O processo começa muitas vezes por uma otite
Definição e importância do problema média aguda com derrame purulento que provo-
ca alterações na mucosa do ouvido médio e da
A otite sero-mucosa (OSM) pode definir-se como trompa; o derrame ao ser esterilizado pela acção
uma inflamação subaguda ou crónica da mucosa dos antibióticos, não é eliminado ou reabsorvido*.
do ouvido médio, a tímpano fechado, que cursa Noutros casos a disfunção resulta de alterações
com derrame líquido, não purulento, de duração anatómicas ou funcionais. O mau funcionamento
superior a 8 semanas. Na actualidade é mais fre- tubário compromete a ventilação e a drenagem do
quentemente designada por otite média com der- ouvido médio, dando origem a uma pressão nega-
rame (OMD) ou efusão. tiva na caixa timpânica. Secreções infectadas exis-
O derrame pode ser seroso (fino, aquoso, tentes no cavum podem, assim, ser aspiradas para
dourado), mucoso/mucóide (espesso, viscoso, o ouvido médio e o processo reactivar-se.
tipo cola) ou sero-mucoso. Se crónico, pode conter A inflamação, a falta de arejamento, e a pressão
cristais de colesterina (capítulo 75). negativa do ouvido médio devida à reabsorção do
Trata-se de uma doença de elevada prevalên- ar, levam a alterações estruturais da mucosa
cia nas idade pediátrica. A incidência máxima traduzidas por um infiltrado celular composto
situa-se entre os 2 e 5 anos de idade. Em cerca de por macrófogos, fibroblastos e neutrófilos. Este
80% dos casos é bilateral. complexo processo gera a formação de uma gran-
de quantidade de glândulas produtoras de muco
Etiopatogénese que segregam constantemente para o interior do
ouvido médio. Com o tempo, por acção enzimáti-
A etiopatogénese é incerta. Ao agentes micro- ca, a membrana timpânica sofre um processo de
bianos implicados sobrepõem-se aos da OMA. No atrofia e de adelgaçamento. A mesma fica menos
entanto, é de salientar o isolamento de Helicobacter resistente às variações de pressão, pode deprimir-
pylori em cerca de 15% dos derrames e de se e, inclusivamente, colar-se ao fundo da caixa.
Alloiococcus otitidis em cerca de 48%, de acordo
com diversos estudos. Factores de risco
Reportando-nos ao que é referido sobre classi-
ficação e terminologia no capítulo 75, pode con- São considerados factores de risco de OSM os con-
cluir-se que existe estreita relação entre OMA e siderados para a OMA as infecções frequentes do
OSM no que respeita à história natural que, con- tracto respiratório superior, a alergia, o barotrauma-
tudo, tem pontos controversos. tismo, a disfunção da trompa de Eustáquio, a idade
Tendo em consideração determinados estudos do primeiro episódio de otite, a frequência de infan-
epidemiológicos, após um episódio de OMA trata- tários superlotados, o fumo passivo, os estados de
do com antibióticos ocorre OSM/OMD em 70% imunodeficiência e o baixo nível económico e social.
dos casos (40% após 1 mês, 20% após 2 meses e
10% após 3 meses). Por outro lado, diversas *Abstraindo a designação de OSM/OMD, de facto, o derrame neste con-
metanálises concluiram que, embora haja tendên- texto pode ser seroso, mucóide, seropurulento ou mucopurulento.
432 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

A OSM é frequente nas crianças com ade- O tímpano está geralmente deprimido, com o
noidites de repetição, rinossinusites e otites recor- cabo do martelo horizontal, aspecto opaco, róseo-
rentes. amarelado claro (Figura 1), e hiperémia difusa e
Também as anomalias crânio-faciais, a síndro- radiária. Nalguns casos pode observar-se níveis
ma de Down e a fenda palatina (completa ou sub- hidro-aéreos ou bolhas de ar no ouvido médio
mucosa) constituem importantes factores de risco. através da transparência do tímpano. Os sinais
Quase todas as crianças com fenda palatina têm são geralmente bilaterais.
OSM devido a disfunção da trompa de Eustáquio. O timpanograma é um exame essencial para con-
firmar a presença de líquido no ouvido médio. Na
Manifestações clínicas otite sero-mucosa arrastada o traçado é aplanado.
O audiograma revela sinais de surdez de
Ao contrário do que se passa com a otite média transmissão de grau variável, em média de 25 a 30
aguda, as crianças com OSM não apresentam sinais dB, mas a perda pode ser muito maior.
e sintomas de infecção aguda tais como otalgias A endoscopia nasal poderá evidenciar um
intensas, febre ou mal estar. desvio do septo nasal, edema alérgico dos cornetos,
Pode ser assintomática ou revelar-se por perda pus nos meatos médios ou hipertrofia das adenóides.
de audição, perturbações do equilíbrio, alterações
do comportamento, atraso no desenvolvimento da Tratamento
fala e da linguagem e maus resultados escolares.
Em certos casos não é possível identificar pela Têm sido tentadas várias modalidades de trata-
história clínica o momento do início da doença. A mento da OSM, em geral sem qualquer eficácia.
evolução pode ser tão insidiosa que os pais das Os casos agudos podem resolver-se pela acção de
crianças ficam surpreendidos quando é feito o dia- antibióticos, descongestionantes nasais ou anti-
gnóstico de OSM. Noutras situações há um episódio inflamatórios.
agudo ou recorrente, otite ou rinite, que desen- Nas situações crónicas o problema é mais com-
cadeia os sintomas. A criança começa a ficar desaten- plicado. De notar que cerca de 10% das otites agu-
ta, apresenta alterações de comportamento, sobretu- das tratadas com antibiótico apresentam ainda um
do irritabilidade, aumenta o volume do som da tele- derrame intratimpânico, passados 3 meses. É pre-
visão, e pede para repetirem as palavras. Se a situa- ciso, por isso, vigiar e saber esperar. É possível
ção se prolongar sem que seja identificada, poderão
surgir problemas de aprendizagem da fala e da lin-
guagem e perturbações do rendimento escolar.

Diagnóstico

É raro as crianças pequenas queixarem-se de per-


da da audição, pelo que o diagnóstico precoce está
muito relacionado com a atitude dos pais, dos
professores e do exame periódico feito pelo pe-
diatra ou médico de família. Se houver suspeitas
de perda da audição, perturbação do equilíbrio ou
otalgia recorrente, a criança deve ser avaliada por
um especialista de oto-rino-laringologia.
A otoscopia pode ser difícil de interpretar. Por
vezes, mesmo para um especialista bem treinado,
não é fácil a destrinça entre otite sero-mucosa
FIG. 1
crónica agudizada e OMA. A ausência de sinais e
sintomas de infecção aguda favorecem o diagnós- Otite seromucosa. Tímpano opaco, com uma coloração rósea-
tico de OSM. amarelada clara.
CAPÍTULO 76 Otite sero-mucosa 433

identificar uma bactéria patogénica (sobretudo H. eliminação dos factores de risco diagnosticados, o
influenzae ou Moraxella) em cerca de 30% dos der- correcto tratamento das infeccções das vias aéreas
rames. Poderá tentar-se tratamento com amoxicili- superiores e a otoscopia de controlo.
na / clavulânico. A tentação de prosseguir com
outros antibióticos com maior espectro de acção BIBLIOGRAFIA
deve ser desencorajada, por ser ineficaz. (referente aos Capítulos 75 e 76)
Os anti-inflamatórios, os mucolíticos e os corti- Alper CM, Bluestone CD,Casslbrant ML,Dohar JE (eds).
costeróides têm um efeito diminuto na evolução Advanced Therapy of Otitis Media. London: BC Decker
da OSM crónica. Os anti-histamínicos só devem Inc, 2004
ser usados quando existem sinais de alergia com- Baum ED. Tonsilectomy and adenoidectomy and myringoto-
provada. my with tube insertion. Pediatr Rev 2010; 31: 417-426
Se a situação não se resolver, o tratamento Brackmann DC, Shelton C, Arriaga (eds). Otologic Surgery.
recomendado consiste na aplicação de tubos de Philadelphia. Saunders, 2004
ventilação transtimpânica (timpanostomia) nos Bluestone CD, Klein JO (eds). Otitis Media in Infants and
casos em que o derrame tem duração superior a Children. Philadelphia: Saunders, 2001
3/4 meses, a perda de audição é superior a 25/30 Gould JM, Matz PS. Otitis media. Pediatr Rev 2010; 31:102-116
dB, ou existe já atrofia do tímpano, bolsas de Hall-Stoodley L, Hu FZ, Gieske A, et al. Direct detection of bac-
retracção ou ameaça de colesteatoma. terial biofilms on the middle – ear mucosa of children with
Os tubos têm a finalidade de promover a ven- chronic otitis media. JAMA 2006; 296: 202-211.
tilação e facilitar a drenagem do ouvido médio. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
São expulsos espontaneamente em geral ao cabo Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
de 6 meses a um ano. As crianças devem evitar a Saunders, 2011
entrada de água nos ouvidos durante o banho Lambert E, Roy S. Otitis media and ear tubes. Pediatr Clin
para se prevenir a infecção. Devem usar tampões North Am 2013; 60: 809 - 826
auriculares e bandas de protecção. O mergu- Lieberthal AS, Carroll AE, Chronmaitree T, et al. The diagnosis
lho(mar, piscinas) deve ser proibido. A adenoidec- and management of acute otitis media. Pediatrics 2013; 131:
tomia é feita muitas vezes no mesmo tempo ope- e964-e999
ratório que a aplicação dos tubos. McInerny T(ed). Tratado de Pediatria/American Academy of
Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010
Complicações e prognóstico Pichichero ME. Otitis media. Pediatr Clin North Am 2013; 60:
391-408
A otite sero-mucosa não tratada pode dar origem Spiro DM, Tay KY, Arnold DH, et al. Wait and see prescription
a complicações graves. A atrofia do tímpano e a for the treatment of acute otitis media. JAMA 2006; 296:
pressão negativa no ouvido médio geram os 1235-1241
mecanismos que conduzem à depressão timpâni- Robb PJ. Otitis media with effusion in children:current man-
ca, bolsas de retracção, erosão da cadeia ossicular, agement. Paediatrics and Child Health 2011; 22: 9-12
otite adesiva e colesteatoma. A audição pode ficar Ruah C, Ruah S. Otite Média. Lisboa:Lidel, 2010
gravemente comprometida. Por outro lado, a Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
membrana timpânica atrófica está em grave risco AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
de perfurar se surgir otite aguda. Medical , 2011
A aplicação dos tubos não resolve todos os Valtonen H, Tuomilehto H, Qvarnberg Y, et al. A 14-year
problemas. De facto, ulteriormente poderão surgir prospective follow-up study of children treated early in life
infecções e perfuração do tímpano. Certos doentes with tympanostomy tubes. Part 2: Hearing outcomes. Arch
terão que ser submetidos a mais do que uma tim- Otolaryngol Head Neck Surg 2005; 131: 299-303
panostomia.

Prevenção

A prevenção deve incidir sobre a atenuação ou


434 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

77
a ser transformada numa grande cavidade
abcedada, cerca de 2 semanas após OMA.
A dificuldade de drenagem do pus acumulado
pode levar à exteriorização da infecção pela área
cribiforme ou pela fissura timpanomastoideia,
com sinais inflamatórios cutâneos da região mas-
OTOMASTOIDITE AGUDA toideia, apagamento do sulco retroauricular e
empurramento para diante do pavilhão auricular,
Maria Caçador, Carlos Ruah tradução semiológica de otomastoidite aguda. Se
o processo se estender ao periósteo forma-se um
abcesso do subperiósteo e periostite.
Nas últimas duas décadas foram realizados
Definição vários estudos para identificação dos agentes
implicados nos casos de otomastoidite aguda. Ao
Otomastoidite aguda é definida como processo contrário do que se poderia esperar os resultados
inflamatório agudo da mastóide, num doente sem não foram sobreponíveis aos dos estudos dos
história de otite média crónica purulenta simples agentes implicados na OMA. Os microrganismos
ou colesteatomatosa. mais frequentemente isolados foram Streptococcus
pneumoniae, Streptococcus pyogenes, Staphylococcus
Aspectos epidemiológicos aureus e Staphylococcus aureus coagulase negativo.
Estes resultados têm implicações práticas
A referida situação é mais frequente em crianças com importantes: o antibiótico escolhido na terapêutica
idade inferior a 8 anos podendo, contudo, ocorrer em inicial da otomastoidite aguda, enquanto se aguar-
qualquer idade. Um terço dos doentes com o dia- da o resultado dos exames culturais, deverá ter
gnóstico de otomastoidite aguda apresenta história uma potente acção anti-estafilocócica, para além
prévia de otite média aguda (OMA) de repetição. de dever incluir no seu espectro terapêutico os
A incidência de otomastoidite aguda diminuiu agentes mais frequentemente implicados na OMA
com a introdução da antibioticoterapia na tera- (Haemophilus influenzae e M. catarrhalis).
pêutica da OMA (de uma incidência de 0,4% dos
episódios de OMA a desenvolverem otomastoidite Manifestações clínicas
na década de 60, para 0,004% na passada década
de 90). Nos últimos anos, contudo, tem-se verifica- O quadro clínico da otomastoidite aguda é carac-
do um aumento do número de internamentos por terizado por sintomas otológicos sugestivos de
otomastoidite aguda. A explicação para este facto OMA, seguidos pelo aparecimento de sinais infla-
parece ser, por um lado, o aumento de resistências matórios sobre a mastóide (dor, eritema e edema
aos antibióticos pelo abuso destes fármacos e, por retroauricular, apagamento do sulco retroauricu-
outro lado, a redução do número de miringoto- lar com deslocamento do pavilhão para a frente e
mias durante os episódios de OMA. para baixo, e abaulamento da parede póstero-
superior do canal auditivo externo). Os sinais
Etiopatogénese inflamatórios surgem habitualmente entre o 4º e o
10º dia após o início das queixas otológicas, po-
Todos os doentes com OMA apresentam infla- dendo esse período variar de 1 a 60 dias. A febre
mação da mucosa da mastóide, com ou sem der- faz geralmente parte do quadro clínico, apesar de
rame. Quando o processo inflamatório, a nível da a sua ausência não excluir o diagnóstico.
mastóide, ultrapassa o mucoperiósteo e envolve o Para a confirmação diagnóstica e detecção pre-
osso, verifica-se desmineralização e erosão dos coce de complicações intracranianas, a maioria
septos das células mastoideias, com a formação de dos autores defende a utilização, por norma, de
empiema intramastoideu. Esta fase é descrita tomografia computadorizada (TC) do ouvido e
como otomastoidite coalescente, com a mastóide crânio-encefálica. Para o diagnóstico radiológico
CAPÍTULO 77 Otomastoidite aguda 435

de mastoidite coalescente não basta a presença de QUADRO 1 – Complicações da otomastoidite


níveis hidro-aéreos ou espessamento da mucosa aguda
das células pneumatizadas da mastóide; é neces-
sária a demonstração de erosão dos septos ósseos Extracranianas – Propagação da infecção
das células mastoideias ou do cortéx mastoideu. • Região retroauricular (Abcesso retroauricular)
Dado que, na maioria dos casos, a realização • Região pré-auricular (Abcesso zigomático)
de TC em crianças exige sedação ou anestesia • Região inferior (pescoço) (Abcesso de Bezold)
geral, deve, sob a mesma anestesia, proceder-se à • Região retroauricular (Abcesso retroauricular)
colheita de material para estudo microbiológico. • Ouvido interno (Labirintite)
• Apex petroso (Síndroma de Gradenigo)*
Tratamento • Seio sigmoideu (Trombose do seio sigmoideu)
• Seio longitudinal (Hidrocefalia otítica)
É consensual, entre os diferentes autores, que o Intracranianas
tratamento dos casos de otomastoidite aguda não • Meningite
complicada, implica miringocentese, com ou sem • Abcesso subdural
colocação de tubo transtimpânico, associada a • Abcesso epidural
antibioticoterapia endovenosa, instituída precoce- • Abcesso cerebral
mente (amoxicilina + ácido clavulânico: (80 mg/ • Abcesso cerebeloso
* Tríade: OMA supurada, dor na órbita ipsilateral, paralisia do recto externo
kg/dia de amoxicilina) ou cefalosporina de 3ª
geração (cefotaxima – 50-100 mg/kg/dia; ou
ceftriaxona – 50-80 mg/kg/dia) em regime de Prognóstico
internamento. (ver capítulo 75)
Se não houver melhoria em 24 a 48 horas, ou se O prognóstico de otomastoidite aguda é habitual-
se suspeitar de complicação, deve instituir-se mente bom e tem melhorado graças a vários fac-
medidas cirúrgicas adequadas, e ser alterada a tores, nomeadamente, melhor compreensão da fi-
antibioticoterapia, segundo os resultados do siopatologia da doença, antibioticoterapia espe-
exame cultural. cífica, disponibilidade de exames complementares
A terapêutica deverá durar 3 semanas. de diagnóstico e possibilidade de intervenção cirúr-
gica atempada. No entanto, quando o diagnóstico
Complicações se acompanha de complicações intracranianas gra-
ves, pode ser reservado.
Embora a incidência de otomastoidite aguda
tenha diminuído significativamente com o apare- BIBLIOGRAFIA
cimento dos antibióticos, a prevalência de compli- Acuin J. Chronic suppurative otitis media. BMJ 2002; 325: 1159-1160
cações graves continua elevada. American Academy of Pediatrics. Subcommittee on manage-
As complicações desta situação clínica depen- ment of acute otitis media: diagnosis and management of
dem da zona para a qual o processo infeccioso se acute otitis media. Pediatrics 2004; 113: 1451-1465
estende; podem ser classificadas em extracrani- Bauchner H, Marchant CD, Bisbee A, et al. Effectiveness of cen-
anas e intracranianas. (Quadro 1) ters for disease control and prevention recommendations for
Consideram-se grupos de risco para o desen- outcomes of acute otitis media. Pediatrics 2006; 117: 1009-1017
volvimento de complicações os doentes com per- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
furação espontânea da membrana timpânica e Kliegman RM, Stanton BF et al (eds). Nelson Textbook of
otorreia no momento do diagnóstico, e aqueles em Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
que os agentes etiológicos são Streptococcus pyo- Neto A, Flores P, Ruah C, Sousa E, Pereira P, Noronha F,
genes ou Staphylococcus aureus. Palminha J, Penha R. Mastoidites agudas na criança. Acta
Os doentes em que foi realizada miringocen- Médica Portuguesa, 1998; 11: 643-647
tese antes do diagnóstico clínico de otomastoidite Ruah C, Ruah S. Otite Média. Lisboa:Lidel,2010
aguda parecem ter menor risco de desenvolvi- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA(eds).
mento de complicações graves. Rudolph_s Pediatrics. New York : McGraw-Hill Medical, 2011
436 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

78
de pediátrica podem classificar-se em infecciosas
(epiglotite, laringite espasmódica ou estridulosa,
laringite subglótica e laringo-tráqueo-bronquite
ou falso “croup”), químicas (refluxo gastresofági-
co, ingestão de caústico), traumáticas (entubação,
corpo estranho) e alérgicas.
PATOLOGIA INFLAMATÓRIA 5) Discute-se se a laringite, para além da etio-
logia infecciosa (vírica ou bacteriana) poderá
LARÍNGEA traduzir hiperreactividade da via aérea.
Neste capítulo são descritas três entidades
Carlos Ruah clínicas representativas da patologia inflamatória
da laringe, salientando-se que na literatura médi-
ca existe variabilidade na terminologia, desi-
gnadamente anglófona e francófona.
Importância do problema

Para compreender a importância de patologia in- 1. Epiglotite


flamatória da laringe há que salientar aspectos
particulares de anátomo-fisiologia e semiologia. Definição e importância do problema
1) A laringe da criança não é uma laringe do O termo de epiglotite (ou processo inflamatório
adulto mais pequena; tem características particu- da epiglote surgindo entre os 1 e 4 anos) tem sido
lares que são importantes: a região supraglótica é substituído por supraglotite por alguns autores. A
muito elástica e ampla; o espaço glótico é mais sua incidência era cerca de 3 a 9 casos por 10.000
arredondado do que o do adulto; o espaço sub- internamentos pediátricos antes do aparecimento
glótico é muito pouco distensível, o mais estreito da da vacina anti Haemophilus influenzae tipo b. Após a
laringe, sendo mesmo mais estreito que a traqueia vacinação a incidência diminuiu para cerca de 0,4
e medindo 4 milímetros de diâmetro no recém- a 0,6 casos 10.000 internamentos.
nascido (ao contrário do adulto em que a glote é o
espaço mais estreito da laringe). Assim, um edema Etiologia
subglótico, aumentando em 1 milímetro a espes- Haemophilus influenzae tipo b era, até existir vacina,
sura, reduz a via aérea em cerca de 50%. o agente mais frequentemente implicado em
2) A frequência respiratória no recém-nascido é (>90% dos casos).
cerca de 40 por minuto, na criança 30 por minuto Situação hoje mais rara, podem estar implicados
e no adulto 20. A dispneia laríngea é definida menos frequentemente outros germes: Streptoc-
como bradipneia inspiratória (o tempo inspira- cocus do grupo A, B, C, Staphylococcus aureus,
tório está prolongado) com sinais de tiragem ou Streptoccocus pneumoniae e, nos imunocompro-
retracção torácica (a inspiração torna-se um fenó- metidos, Herpes simplex, Pseudomonas e Candida.
meno activo com utilização dos músculos respi-
ratórios acessórios como os intercostais e os ester- Manifestações clínicas
no-cleido-mastoideus). Nos recém-nascidos a difi- O início é agudo com febre alta, odinofagia inten-
culdade respiratória de causa laríngea traduz-se sa e sialorreia (“baba-se”). A criança está pálida,
por taquipneia rapidamente ineficaz. com a boca aberta, ansiosa, irritável, dispneica
3) A dispneia laríngea pode acompanhar-se de com ou sem estridor (ruído inspiratório agudo por
estridor*. Sistematizando, pode afirmar-se que o obstrução da laringe supraglótica), prefere estar
estridor inspiratório corresponde a lesões
supraglóticas, ao passo que o inspiratório-expi-
*Estridulação: termo que significa ruído áspero, por vezes estridente e
ratório (bifásico) corresponde a lesões glóticas e agudo, que se produz na via aérea superior , em geral na inspiração; é um
subglóticas. sinal de estenose da laringe(por ex. devido a inflamação). Emprega-se, por
analogia, o termo “laringite estridulosa ou espasmódica”.(ver adiante).
4) As doenças inflamatórias da laringe em ida-
CAPÍTULO 78 Patologia inflamatória laríngea 437

sentada com hiperextensão do pescoço e incli- da febre não constitui critério para se manter a
nação do tronco para diante para melhorar a res- entubação. Assim, em regra procede-se extubação
piração, e tem uma voz “abafada” pelo edema ao fim de 48 horas do início da terapêutica.
supraglótico.

Tratamento 2. Laringite espasmódica


Havendo suspeita de epiglotite (emergência mé- ou estridulosa
dica), há que adoptar a seguinte conduta:
a) Medidas gerais Etiologia
1) Não tentar observar a faringe nem laringe Os agentes etiológicos mais frequentes da laringite
com espátula nem executar manobras invasivas espasmódica ou estridulosa são vírus: rhinovirus e
(tirar sangue por ex.) para não provocar choro e parainfluenza. No entanto, esta situação clínica pode
obstrução aguda respiratória. fazer parte doutras afecções como gripe, papeira,
2) Transportar a criança com a mãe ao serviço varicela, sarampo, ou tosse convulsa. Independen-
de imagiologa para proceder ao estudo de perfil temente do agente etiológico primário, poderá sur-
das partes moles cervicais, o qual evidenciará o gir sobreinfecção bacteriana por Streptococcus pneu-
aumento da epiglote. moniae ou Haemophilus influenzae.
3) Se se confirmar o diagnóstico, levar a criança
para o bloco operatório e induzir anestesia geral Manifestações clínicas
por máscara com criança sentada ao colo da mãe. Pode verificar-se inicialmente mal estar geral, tosse
4) Uma vez entubada e com a via aérea contro- iritativa, febrícula e pigarro, surgindo entre os 6 e
lada, pode observar-se então a laringe que de- 36 meses. O aparecimento de estridor agudo noc-
monstra a epiglote edemaciada muito vermelha e turno, rude, disfonia ou rouquidão e retracção torá-
exsudativa, quase “em carne viva”. cica supraesternal permitem o diagnóstico. Se ao
5) Proceder a hemocultura iniciando antibioti- fim de dias ocorrer febre alta e expectoração puru-
coterapia endovenosa no bloco antes da trans- lenta, há que suspeitar de infecção bacteriana. Em
ferência para a unidade de internamento. geral a situação é mais benigna e de menor duração
O diagnóstico etiológico é feito com base no do que a descrita a seguir, na alínea 3.. Os pródro-
resultado da hemocultura, e não por colheitas fa- mos pré-estridor são ligeiros ou inexistentes.
ríngeas ou laríngeas.
b) Terapêutica antimicrobiana Tratamento
Dada o aumento da resistência do Haemophilus É sintomático com aerossolterapia com soro fisiologi-
às penicilinas, utilizam-se hoje as cefalosporinas co, anti-inflamatórios e antipiréticos. Se se suspeitar
de 2ª ou 3ª geração como tratamento de primeira de infecção bacteriana, deve utilizar-se amoxicilina
linha durante 5 dias: com ácido clavulânico; como alternativa, cefalospori-
1) Cefuroxima: 75-100 mg/Kg/dia excepto se nas de primeira ou segunda geração, ou macrólidos.
se suspeitar de envolvimento meníngeo; ou
2) Cefotaxima: 75-180 mg /Kg/dia se houver sus-
peita de envolvimento do sistema nervoso central; ou 3. Laringite subglótica
3) Ceftriaxona: 100 mg/Kg/dia em dose única e laringo-tráqueo-bronquite
diária. (falso croup)
O tratamento pode ser continuado com amoxi-
cilina e ácido clavulânico oral. A corticoterapia e a Etiologia
epinefrina não são eficazes; a primeira pode pro- Trata-se duma situação de etiologia habitualmente
vocar complicações hemorrágicas gastrintestinais vírica; os vírus mais frequentes são os parainfluen-
nestes casos. za virus tipos I e II. No entanto, podem também
A data da extubação tem sido controversa estar implicados os vírus respiratório sincicial e
porque o estado da epiglote não tem relação direc- influenzae A e B. Ocorre sobretudo entre os 6 meses
ta com a dificuldade respiratória, e a persistência e os 3 anos, sendo raríssima antes dos 6 meses.
438 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Manifestações clínicas* de adrenalina racémica (1 ml de soluto a 1/1000),


As duas situações são descritas em conjunto pela quer através de nebulizador, quer através de ven-
semelhança do quadro clínico, considerando-se tilador de pressão positiva intermitente; o efeito
fases diferentes do mesmo processo inflamatório, pode verificar-se ao cabo de 20-30 minutos.
com tendência descendente. Os corticóides (hidrocortisona por via
A doença, frequente entre os 6 e 36 meses, ini- endovenosa: 100mg 6-6 h; ou prednisolona por via
cia-se com uma infecção do tracto respiratório oral: 1-2 mg/Kg/dia) durante cerca de 3 dias
superior durante 1 a 3 dias com febrícula, mal estão também indicados pela acção anti-infla-
estar geral e disfonia. A tosse aparece subita- matória, embora o seu efeito seja mais lento. Em
mente, conhecida como “tosse de cão” e a ocor- função do estado clínico poderá haver necessi-
rência do edema subglótico leva ao aparecimento dade de entubação traqueal.
da dispneia e do estridor bifásico rude (inspi-
ratório e expiratório, de tonalidade grave) (larin- BIBLIOGRAFIA
gite subglótica). Se a infecção atingir a árvore (referente aos Capítulos 71, 72 e 78)
brônquica verifica-se aumento de secreções, respi- Baum ED. Tonsilectomy and adenoidectomy and myringoto-
ração mais ruidosa e agravamento da obstrução my with tube insertion. Pediatr Rev 2010; 31: 417-426
respiratória (laringo-tráqueo-bronquite). Bjornson Cl, Klassen TP, Williamson J, et al. A randomized
Trial of a single dose of oral dexametasone for mild croup.
Diagnóstico NEJM 2004; 351: 1306-1313
É feito essencialmente pela clínica. A radiografia Cunill-De Sautu B, Gereige R. Throat infections. Pediatr Rev
ântero-posterior das partes moles cervicais mostra 2011; 32:459-469
o fim proximal da traqueia em “bico de lápis” Discolo C M, Darrow D H, Koltai PJ, Infectious indications for
devido ao edema subglótico. tonsillectomy. Pediatr Clin North Am 2003; 50: 445-458
A entidade designada por traqueíte bacteriana Fairbanks D N, Pocket Guide to Antimicrobial Therapy in
não se distingue da laringotraqueobronquite. Otolaryngology Head nad Neck Surgery. New York: The
Surgindo em crianças mais velhas (4-5 anos) rela- American Academy of Otolaryngology Head and Neck
tivamente às situações anteriormente descritas, o Surgery Foundation, 2003
estado geral é no entanto mais precário, apon- Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
tando para etiologia bacteriana. Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
No diagnóstico diferencial do estridor há que Saunders, 2011
atender à importância da anamnese, equacionan- Langlois DM, Andreae M. Group A streptococcal infections.
do as possíveis causas: infecciosa(abordada Pediatr Rev 2011; 32:423-429
antes), mecânica(aspiração de corpo estranho, Magalhães M. Laringites. In Ruah S, Ruah C, Manual de
laringomalácia, estenose congénita, compressão Otorrinolaringologia. Lisboa: edições Laboratórios Roche
extrínseca por angioedema ou outras causas), vol. V, 2001; 95-99
metabólica (laringospasmo por hipocalcémia), Melo-Cristino J, Serrano N, et al. Estudo Viriato: Actualização
neurológica (paralisia das cordas vocais) , etc.. dos dados de susceptibilidade aos antimicrobianos de bac-
térias responsáveis por infecções respiratórias adquiridas
Tratamento na comunidade em Portugal em 2001 e 2002. Rev Port
Para obter humidificação eficaz estão indicadas Pneumol 2003; (IX): 293-310
nebulizações com aparelhos ultrassónicos. Em Moreno S, Garcia Altozano J, Pinilla B, Lopez J C, et al.
regime hospitalar poderá proceder-se à inalação Lemierre’s disease: postanginal bacteriemia and pul-
monary involvement caused by Fusobacterium necropho-
rum. Rev Infect Dis 1989; 11: 319-324
*A designação “croup” deriva da língua inglesa(no tempo em que a situ-
ação era provocada na maioria das vezes pela difteria), significando no Reis LM, Rego C, Marinheiro JL. Classificação clínica das
sentido estrito “garrotilho”. Hoje em Portugal fala-se vulgarmente em amigdalites segundo a etiopatogenia. In Pathos
«falso croup» dado que em > 99% dos casos as crianças com tal sintoma-
tologia estão imunizadas contra a difteria. Na literatura inglesa manteve- Monografias de Patologia Geral Ano XI 1995; 11: 23-28
se a designação de croup significando laringotraqueobronquite de qual- Rimoin AW, Hoff NA, Walker CLF, et al. Treatment of strepto-
quer etiologia infecciosa glótica, supra ou subglótica e traqueal superior.
coccal pharyngitis with once-daily amoxicillin versus intra-
CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica 439

79
muscular benzathine penicillin G in low-resource settings:a
randomized controlled trial. Clinical Pediatrics(Phila) 2011;
50:535-542
Ruah S, Ruah C. O complexo faríngeo. In Ruah S, Ruah C,
Manual de Otorrinolaringologia vol. V Lisboa: edições
Laboratórios Roche, 2001
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AVALIAÇÃO AUDIOLÓGICA
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Medical, 2011 Luísa Monteiro
Scolnik D, Coates A, Stephens D et al. Controlled delivery of
high vs low humidity vs mist therapy for croup in emer-
gency departments. JAMA 2006; 1274-1280
Swedo S E, Leonard H L, Garvey M, Mittleman B, et al. Introdução
Pediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associat-
ed with streptococcal infections. Am J Psychiatry, 1998; 155: Função auditiva
264-271 A audição é uma função complexa que resulta da
integração central (e interpretação) dos sons pre-
viamente captados e processados pelo órgão peri-
férico, sendo o sinal transmitido pela via auditiva
ao córtex auditivo. Qualquer som será analisado
nas suas três principais dimensões: frequência,
amplitude e tempo. A via auditiva está completa-
mente desenvolvida na data do nascimento; no
entanto,sofre complexos fenómenos de ma-
turação. Com efeito, a plasticidade do sistema ner-
voso central permite que, por exposição ao som,
haja um desenvolvimento de conexões neuronais
a nível cortical até aos seis meses de idade. A via
auditiva sofre também maturação ao longo dos
primeiros anos de vida. Inicialmente os tempos de
condução nervosa estão diminuídos, atingindo os
valores dos adultos cerca dos dezoito meses de
idade.
O Quadro 1 refere os apectos mais significa-
tivos do desenvolvimento da via auditiva e o
Quadro 2 a relação entre audição e linguagem.

Surdez infantil
Considera-se surdez significativa a hipoacusia
permanente, superior a 40 decibeis (dB), nas fre-
quências conversacionais, no melhor ouvido.
Esta definição tem em conta que, a partir
destes valores, a hipoacusia tem repercussões ne-
gativas na aquisição de linguagem e no desen-
volvimento de competências comunicativas da
criança. Existem vários graus de hipoacusia:
ligeira, moderada, grave e profunda, correspon-
dendo a dificuldades crescentes de comunicação
audio-verbal.
440 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Desenvolvimento da Via Auditiva mente períodos mais ou menos longos (semanas,
meses ou anos) em que as crianças sofrem de
• Nos RN a via auditiva periférica está completamente hipoacusia de transmissão, bilateral ou unilateral,
desenvolvida. o que influencia o seu desenvolvimento. Estes
• O sistema auditivo é modelado durante o 1º ano de períodos correspondem a episódios de otite serosa
vida pela experiência auditiva, sobretudo pela (otite com efusão ou otite com derrame) os quais
exposição à fala. podem decorrer com hipoacusia de transmissão
• Embora as crianças só produzam palavras reco- de grau variável até 40dB, e que é reversível.
nhecíveis ao ano de idade, podem reconhecer nomes O Quadro 3 caracteriza os diferentes graus de
de objectos familiares, entoar a fala e exercer funções deficiência auditiva em relação a perda tonal mé-
auditivas muito sofisticadas muito antes de produzir a dia.
sua própria fala.
• Ao nascer,o sistema auditivo periférico possui as Importância do problema
capacidades semelhantes às do adulto, pronto a esta-
belecer as conexões neurais baseadas na experiência Estima-se que a incidência da hipoacusia infantil
auditiva.
significativa ocorra em 1-2/1000 recém-nascidos
• O tronco cerebral vai-se desenvolvendo ao longo dos
aparentemente saudáveis; trata-se da doença con-
dois primeiros anos.
génita mais frequente para a qual existe rastreio e
• A via auditiva periférica não possui plasticidade, mas
intervenção precoce. Reconhece-se a existência de
esta é mantida a nível do SNC.
factores de risco que podem aumentar a incidên-
cia de surdez.
QUADRO 2 – Audição e Linguagem Em determinadas situações de maior risco de
hipoacusia a incidência pode aumentar para
• A fala é emitida em diferentes contextos (de timbre, 1/100 recém-nascidos. Grande parte dos factores
velocidade de produção). de risco relaciona-se com ocorrências
• O ser humano pode caracterizar os sons em fonemas e desfavoráveis durante o período perinatal (muito
palavras com grande fidelidade e exactidão, começan- baixo peso, prematuridade, hipóxia perinatal,
do estas capacidades a desenvolver-se após o nasci- sépsis, ototoxicidade, hiperbilirrubinémia grave,
mento. etc.). Em idade escolar a hipoacusia significativa
• A aquisição de linguagem perceptiva precede a lin- pode ter uma prevalência de 8 por cada mil
guagem expressiva. Os bebés aprendem a organização crianças.
dos sons na sua língua nativa na 2ª metade do 1º ano As causas genéticas correspondem a cerca de 30
de vida. % dos casos de surdez congénita, relacionável na
• Pequenas alterações da audição podem alterar a maioria dos casos com transmissão autossómica
aquisição e a percepção de linguagem (sobretudo em
condições de ruído - escolas) . QUADRO 3 – Graus de Deficiência Auditiva

1. Deficiência Auditiva Ligeira


Etiologicamente, a hipoacusia pode ser classi- 2. Deficiência Auditiva Média
ficada em sensorioneural relacionada com patolo- 3. Deficiência Auditiva Grave
gia (endo ou retrocolear), de transmissão rela- 4. Deficiência Auditiva Pofunda
cionada com patologia (ouvido externo ou médio) 5. Deficiência Auditiva Total
e mista.
Na maior parte dos casos, a hipoacusia de 1. Perda tonal média: >20 e <40 dB
transmissão é adquirida, constituindo a otite sero- 2. Perda tonal média: >40 e <70 dB
mucosa a causa mais frequente (Capítulo 76). 3. Perda tonal média: >70 e <90 dB
No entanto, menor grau de hipoacusia pode 4. Perda tonal média: >90 e <120 dB
influenciar negativamente a integração social e 5. Perda tonal média: ≥120 dB
escolar da criança. Na infância ocorrem frequente- (dB = decibéis)
CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica 441

recessiva. Em geral, a surdez surge isolada, mas


poderá estar integrada em síndroma; há descritas
cerca de 400 síndromas que incluem défice auditivo.
(Figura 1)
Existem mais de 20 loci descritos para a surdez
isolada, mas um único locus – DFNB1 – é respon-
sável por uma elevada proporção dos casos: trata-
se do gene GJB2, que codifica a proteína conexina
26. Mutações neste gene são responsáveis por
aproximadamente 50% dos casos de surdez con-
génita isolada não infecciosa.
As causas infecciosas pré-natais (rubéola, sífi-
lis, toxoplasmose, citomegalovírus) são, feliz-
FIG. 1
mente, cada vez menos frequentes.
A hipoacusia pode classificar-se quanto à Exemplo de criança com hipoacusia de transmissão por
cronologia do seu aparecimento, em congénita ou anomalia congénita do ouvido externo e médio.
adquirida (período perinatal ou ao longo da vida).
Assim, a criança pode ser portadora de deficiência meses de idade. Esta lista de factores de risco foi
auditiva desde o período pré-lingual (congénita sendo progressivamente alargada ao longo dos
ou adquirida no período perinatal) ou adquirida anos.
no período de aquisição de linguagem (ex: menin- No entanto, uma vez que cerca de 50% das
gite bacteriana), pós-lingual (expresssão tardia de crianças surdas não possuem nenhum factor de
surdez congénita, meningite bacteriana, trauma- risco de surdez, houve necessidade de pôr em
tismo craniano, etc.). O prognóstico é diferente acção rastreios universais no recém-nascido.
conforme as competências linguísticas que já exis- Durante a década de noventa foram organizados
tiam quando surgiu a hipoacusia. rastreios universais dos recém-nascidos, mercê da
disponibilidade de técnicas de rastreio sensíveis,
Rastreio auditivo neonatal específicas, rápidas, de preço acessível e de apli-
cação fácil: os aparelhos de oto-emissões acústicas
Desde longa data tem havido tentativa de progra- (OEA) que surgiram nesta altura. Estes rastreios
mas de rastreio da deficiência auditiva, nomeada- foram divulgados a partir dos Estados Unidos,
mente no período neonatal, utilizando métodos sendo a sua aplicação facilitada pelo ulterior
baseados na pesquisa de reacções motoras dos aparecimento de aparelhos automáticos, quer de
recém-nascidos após apresentação de estímulos oto-emissões acústicas, quer de potenciais evoca-
auditivos de elevada intensidade. Estes testes dos auditivos. Estes aparelhos dão resposta do
baseavam-se na interpretação das reacções dos tipo “Apto”, “que passa” ou sem problema, e
recém-nascidos feita por observadores treinados, “Inapto” ou com problema a esclarecer. Não
consumindo, assim, muitos recursos humanos. necessitando de interpretação dos resultados por
Existia, no entanto, uma grande variabilidade de parte do técnico, podem ser utilizados por pessoal
resultados entre os vários observadores, e além da sem formação específica em audiologia (enfer-
fraca confiabilidade, os referidos testes apenas meiros, médicos, pediatras, voluntários), após um
detectavam graus de surdez grave e profunda; por determinado tempo de treino. Estes rastreios
isso, foram abandonados. devem ser coordenados por profissionais da área
Em 1972 o Joint Committee on Infant Hearing, da audiologia pediátrica e com o apoio de uma
grupo multidisciplinar, elaborou uma lista de cir- unidade de audiologia com recursos técnicos e
cunstâncias em que os recém-nascidos tinham humanos apropriados.
risco acrescido de ocorrência de surdez devendo, Actualmente os rastreios universais da audição
por isso, ser obrigatoriamente sujeitos a rastreio dos recém-nascidos são aplicados na maioria dos
que era habitualmente efectuado pelos nove países desenvolvidos, segundo critérios padroniza-
442 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

dos. Prevê-se que nos próximos anos surjam objectivo final que consiste em diagnosticar e
critérios normativos para as diferentes característi- habilitar/reabilitar precocemente, apoiando as
cas técnicas dos mesmos. A eclosão destes progra- famílias nas suas decisões e necessidades. Estas
mas, cujo objectivo é o diagnóstico de hipoacusia equipas deverão incluir pediatras, otorrinolarin-
significativa antes dos 3 meses de idade e o início gologistas, audiologistas, enfermeiros, terapeutas
da reabilitação até aos 6 meses, permite a muitos de fala, professores de surdos, psicólogos, assis-
recém-nascidos usufruirem dos benefícios da inter- tentes sociais e administradores hospitalares, entre
venção precoce que se traduzem em níveis de outros. É evidente que novos desafios se perfilam
aquisição de linguagem superiores aos que iriam aos profissionais envolvidos nesta área, pois, como
adquirir se o diagnóstico continuasse a ser tardio. foi dito, os grandes objectivos são a identificação, o
De salientar que estudos publicados pelo grupo do correcto diagnóstico e o início de intervenção cada
Colorado vieram demonstrar que a idade de inter- vez mais precocemente; daí a necessidade de
venção (abaixo dos seis meses de idade) constitui o meios técnicos sofisticados e de treino específico
factor que mais positivamente influencia a reabili- na área da audiologia pediátrica.
tação e aquisição de linguagem para qualquer grau O Quadro 4, adaptado do Joint Committee on
de surdez. Infant Hearing discrimina os critérios considerados
A maioria dos rastreios é organizada em 3 de alto risco que determinam o rastreio da
fases, com início ainda na maternidade, nas audição
primeiras horas de vida. São utilizadas técnicas De salientar, a propósito, a filosofia expressa
automáticas, potenciais evocados automáticos ou pelo European Consensus on Infant Screening em
oto-emissões acústicas automáticas. 1998: “.... embora os sistemas de saúde na Europa
De acordo com as recomendações do GRISI variem de país para país em termos de organiza-
(ver adiante), na instituição onde se procede ao ção e financiamento, deverão ser postos em mar-
rastreio considera-se equipamento indispensável: cha, sem atrasos, programas de rastreio de
dois aparelhos, de OEA (de diagnóstico ou audição neonatal. Assim, serão dadas aos novos
automático) e/ou de PEATC (de diagnóstico ou cidadãos da Europa mais oportunidades e melhor
automático). qualidade de vida no próximo milénio”.
Os bebés que não “passam” ou não são con-
siderados “aptos” na primeira fase (por exemplo QUADRO 4 – Critérios de alto risco para
por existência de exsudado no ouvido médio, rastreio auditivo (RN em UCIN)
colapso ou obstrução do canal auditivo externo),
serão sujeitos à segunda fase do rastreio, geral- • História familiar de surdez infantil de origem heredi-
mente uma ou duas semanas depois. Pode uti- tária.
lizar-se a mesma técnica que foi utilizada na • Infecções intrauterinas tais como por citomegalovírus,
primeira fase, verificando-se que na maioria dos rubéola, sifílis, herpes e toxoplasmose.
casos o resultado será normal. Caso contrário, a • Anomalias craniofaciais, incluindo anomalias do
criança será encaminhada para uma consulta de pavilhão auricular e canal auditivo externo.
otorrinolaringologia e sujeita a estudo através da • Peso de nascimento < 1,5 Kg.
técnica de potenciais evocados auditivos diagnós- • Hiperbilirrubinémia não conjugada atingindo níveis
ticos e impedancimetria. Esta terceira fase, dia- que necessitam de exsanguinotransfusão.
gnóstica, deverá ter lugar até aos quatro meses. • Medicações ototóxicas, incluindo, designadamente
Os programas de rastreio auditivo deverão ser aminoglicosídeos, usados em terapêuticas múltiplas
integrados, apoiados por programas de reabili- ou em combinação com diuréticos de ansa.
tação/habilitação e estimulação precoce apropria- • Meningite bacteriana.
dos que envolvem a adaptação protética, a estimu- • Índice de Apgar de 0 a 4 ao primeiro minuto ou de 0 a
lação auditiva e verbal e, por vezes, a aplicação de 6 aos 5 minutos.
implantes cocleares. Há, por isso, necessidade de • Ventilação assistida durante cinco ou mais dias.
formar equipas multiprofissionais dotadas de • Estigmas associados a síndroma conhecida por se
meios técnicos apropriados, motivadas para o associar a hipoacusia sensorial ou de condução.
CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica 443

No âmbito de uma política nacional de saúde


ORGANIZAÇÃO DO RASTREIO
para o diagnóstico precoce da surdez e inter- AUDITIVO NEONATAL UNIVERSAL
venção, constituiu-se o Grupo de Rastreio e
Intervenção da Surdez (GRISI). Este grupo de tra- Na Maternidade
balho, aberto e multidisciplinar, reúne profissio- OEA
nais com experiência nesta área. PEATC
O objectivo deste grupo coordenado pela auto-
ra é o desenvolvimento de um programa nacional “Passa”
“Não Passa”
de detecção e intervenção auditiva precoces, Informação
Problema
Família
padronizando técnicas e metodologias, através de Médico
a esclarecer
acções conjuntas entre os vários organismos ofici-
ais e associações profissionais.
O Quadro 5 define as condições consideradas 2.ª Fase
indispensáveis para garantia de rendibilidade e OEA/PEATC
2ª semana
de qualidade do rastreio considerado universal.
As Figuras 2 e 3 resumem os esquemas organi-
zativos respectivamente do Rastreio Auditivo Passa “Não Passa”
Neonatal Universal (RANU) – sem risco conheci- Informação Encaminhamento
do, e rastreio considerado de alto risco, em cri- Família para centro
anças internadas em UCIN (Quadro 4 já referido). Médico especializado
Estes esquemas são aplicados no Hospital
Dona Estefânia desde 2003. 3.ª Fase
ORL
Impedância
Rastreio auditivo pós-neonatal PEATC

Na hipótese de não se ter procedido ao rastreio


auditivo no período neonatal, há que atender aos Deficiência
Audição Normal
Auditiva
indicadores de risco de surdez em geral, os quais
constam do Quadro 6, de grande utilidade na
Intervenção em Centro
QUADRO 5 – Condições para rastreio universal especializado antes dos seis meses
(qualidade e rendibilidade)
(Adaptado de GRISI, 2007)

1. Um mínimo de 95% dos recém-nascidos deverá de ser


FIG. 2
sujeito a rastreio conclusivo (só poderão ser perdidos
para seguimento cerca de 5% ). Organização do rastreio auditivo neonatal universal.
2. Deverão ser utilizados métodos objectivos (potenciais
evocados auditivos ou oto-emissões acústicas) e tes- prática clínica, quer para pediatras quer para
tar-se os 2 ouvidos. médicos de família. O referido quadro chama
3. O rastreio deverá detectar todas as crianças com igualmente a atenção para as situações com neces-
hipoacusia significativa, isto é, com limiares superio- sidade de acompanhamento, e associadas ao
res a 35 dB no melhor ouvido. aparecimento tardio de perda auditiva.
4. A taxa de falsos positivos deve ser inferior a 3%
(normo-ouvintes evidenciando alterações no âmbito Provas diagnósticas
do rastreio).
5. A taxa de verdadeiros casos positivos deve situar-se Uma vez realizado o rastreio, cabe referir a abor-
entre 2-4/1000. dagem diagnóstica que pode ser realizada nos
6. É desejável taxa zero de falsos negativos. casos em que foi detectada alteração da função
auditiva através daquele.
444 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

RASTREIO DE CRIANÇAS EM UCIN QUADRO 6 – Indicadores de risco de surdez

Crianças até aos dois anos:


UCIN
– Preocupação/suspeita dos pais em relação ao desen-
volvimento da fala, linguagem ou audição.
– Meningite bacteriana e outras infecções associadas
PEATC e OEA
com perda auditiva neurossensorial.
(antes da alta)
– Traumatismo crânio-encefálico acompanhado de
perda de consciência ou fractura do crânio
“Passa” – Estigmas ou sinais de síndromas associadas a perdas
Informação “Não Passa” auditivas de condução e/ou neurossensoriais.
Família Médico
– Medicamentos ototóxicos (incluindo, mas não limita-
dos a, agentes quimioterápicos ou aminoglicosídeos,
associados ou não a diuréticos de ansa).
ORL e PEATC ORL e PEATC – Otite média de repetição/persistente, com efusão por
antes dos seis meses antes dos seis meses períodos de, pelo menos, 3 (três) meses.

Crianças que necessitam de acompanhamento até


ORL e PEATC aos 3 anos de idade:
Cada seis meses – Alguns RN podem “passar” no rastreio auditivo, mas
até 3 anos
necessitam de acompanhamento periódico pois têm
(Adaptado de GRISI, 2007)
risco aumentado de aparecimento tardio de perda
auditiva neurossensorial ou de condução.
FIG. 3 – Crianças com indicadores abaixo referidos, requerem
Rastreio de crianças em UCIN. avaliação a cada 6 (seis) meses.

A avaliação audiológica das crianças utiliza um Indicadores associados ao aparecimento tardio de


conjunto de provas cujos resultados devem ser perda neurossensorial:
cruzados e interpretados em conjunto. Cada prova – Antecedentes familiares de perda auditiva tardia na
infância.
tem um valor relativo e constitui uma “janela” que
– Infecções congénitas (rubéola, sífilis, herpes, cito-
avalia uma determinada área/função da via audi-
megalovírus, toxoplasmose).
tiva. De um modo geral as provas diagnósticas
– Neurofibromatose tipo II e doenças neurodegenerativas.
podem ser classificadas em comportamentais e
fisiológicas (também denominadas objectivas).
Indicadores associados ao aparecimento tardio de
perda de condução:
Provas comportamentais
– Otite média de repetição/recorrente ou persistente
As alterações do comportamento da criança após
com derrame.
exposição a um som teste são avaliadas por um
– Defeitos anatómicos e outras alterações que afectam a
audiologista. As condições do teste são contro-
função da trompa de Eustáquio.
ladas pelo técnico e os resultados deverão ser
– Doenças neurodegenerativas.
reprodutíveis (não deverão existir variações intra
e inter-teste). São, por isso, provas objectivas e
precisas. Trata-se de provas que exigem que a cri- Podem dividir-se em provas limiares, quando
ança tenha o desenvolvimento psicomotor neces- visam a detecção da menor intensidade sonora per-
sário e que a mesma coopere na execução do teste. ceptível para cada som teste (limiar para aquela fre-
O técnico deverá ter a capacidade para determinar quência), e supralimiares quando a intensidade do
que tipo de teste é o mais indicado para cada cri- som teste se situa acima do limiar de percepção.
ança, baseado no desenvolvimento psicomotor, e São abordadas as seguintes provas comporta-
não na idade cronológica. mentais:
CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica 445

sidade para que a criança vire o olhar na direcção


da fonte sonora. Após esta reacção da criança ao
som, é apresentado um reforço positivo ao seu
comportamento. O reforço comportamental
poderá ser uma luz que se acende, um brinquedo
eléctrico que se liga ou um boneco que se torna
visível. Cada vez que a criança “vira o olhar” em
resposta à apresentação do som-teste, recebe o
reforço positivo. Quando a criança se encontra
condicionada, isto é, quando consistentemente
vira a cabeça e procura o reforço após a apresen-
tação do som teste, pode ser feita uma determi-
FIG. 4
nação de limiares auditivos para cada frequência:
Exemplos de instrumentos que produzem sons, utilizados o estímulo vai diminuindo de intensidade até que
para testar os reflexos incondicionados. a criança não responde mais (limiar auditivo). O
processo de determinação de limiares vai-se
repetindo para as várias frequências. As crianças
que não permitam a colocação de auscultadores
terão de ser testadas em campo livre, sendo os
limiares obtidos respeitantes ao melhor ouvido.
A criança um pouco mais velha, ao permitir a
colocação de auscultadores e de vibrador ósseo,
poderá ser testada separadamente aos dois ouvi-
dos, por via aérea e por via óssea (Figura 6).
• Audiometria condicionada por jogos
FIG. 5
A criança mais velha, geralmente a partir dos
Reflexos Incondicionados – A criança vira a cabeça na dois anos e meio, poderá ser condicionada uti-
direcção da fonte sonora. lizando jogos: é-lhe explicado que, cada vez que
ouvir o som-teste, deverá colocar uma peça do
• Prova dos reflexos incondicionados jogo. O som teste poderá ser apresentado em
Assim chamada porque são desencadeadas campo livre, através de auscultadores ou de
reacções reflexas inatas dos recém-nascidos a sons vibrador. Inicia-se o exame pela apresentação de
de intensidade audível. É habitualmente utilizada um som com uma intensidade suficiente para que
até aos 6-7 meses de idade. Consiste na detecção de a criança oiça; e depois vai-se diminuindo a inten-
reflexos incondicionados (reacções de sobressalto, sidade e variando a frequência, de modo a obter
abertura dos olhos, pestanejo, suspensão de activi- os limiares para as frequências entre 250 a 4000 Hz
dades motoras tais como a sucção) a sons de inten- (Figura 7).
sidades supralimiares e de várias frequências. É As limitações das provas comportamentais
muito importante para complementar a infor- são: exigem condições técnicas adequadas a crian-
mação obtida através de provas fisiológicas, não ças (cabines insonorizadas de dimensões ade-
devendo ser utilizada isoladamente (Figuras 4 e 5). quadas, audiómetros adaptados a colunas cali-
• Prova dos reflexos de orientação condicio- bradas para campo livre, técnicos treinados em
nada audiometria infantil, sendo por vezes necessários
A partir do momento em que a criança se senta dois em simultâneo); a criança tem que cooperar,
e segura a cabeça (6-7 meses), é possível estudar o que nem sempre é possível, devido à sua idade
reacções de orientação do olhar para a fonte sono- ou a atraso do desenvolvimento psicomotor; a
ra no plano horizontal, sendo possível condicioná- resposta comportamental pode extinguir-se rapi-
la utilizando técnicas de condicionamento ope- damente, pelo que muitas vezes a prova terá que
rante. É apresentado um som de suficiente inten- ser interrompida, recomeçado de novo, quando a
446 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

FIG. 6
Reflexos de Orientação Condicionada – A criança é
condicionada a olhar para o brinquedo cada vez que ouve o
estímulo sonoro; recebendo um reforço positivo, o boneco
começa a mexer-se e a luz acende-se.

FIG. 7
criança volte a cooperar, por vezes no dia se-
guinte. Audiometria Lúdica (condicionada por jogos) – A criança
Pelas limitações descritas, quando as respostas coloca uma peça do jogo se, e quando, ouvir o som teste.
não são claras e consistentes, há necessidade de
complementar as provas comportamentais com Há três tipos principais de resultados obtidos
provas fisiológicas, sendo cruzados os resultados pelo timpanograma: tipo A, B e C. No tipo A, o
de ambas as provas. gráfico corresponde a um ouvido normal, com
uma mobilidade normal do sistema timpano-
Provas fisiológicas ossicular; o segundo (B) corresponde a um
No grupo das provas fisiológicas consideram-se aumento significativo da impedância do ouvido
as seguintes modalidades: provas de impedância médio, com imobilidade da cadeia tímpano-ossi-
(incluindo o timpanograma e a prova dos reflexos cular, na maior parte das vezes correspondendo à
acústicos); a prova dos potenciais evocados audi- presença de derrame dentro do ouvido médio; o
tivos (incluindo uma nova modalidade designada timpanograma do tipo C corresponde a situações
por “potenciais estáveis” – ASSR ou Auditory intermédias, com pressões negativas dentro do
Steady State Response), e a prova das oto-emissões ouvido médio, por funcionamento anómalo da
acústicas. trompa de Eustáquio (Capítulo 75).
• Timpanograma • Prova dos reflexos acústicos
Esta prova permite avaliar as condições físicas Esta prova que perdeu a importância diagnós-
do ouvido médio (mobilidade da cadeia tímpano- tica que teve no passado, com a utilização genera-
ossicular, pressão dentro do ouvido médio, meio lizada das oto-emissões acústicas e dos potenciais
de transmissão do som: gás ou exsudados). evocados auditivos a referir adiante, testa a inte-
Deverá utilizar-se uma sonda de frequência 226 gridade da via auditiva (arco reflexo da via audi-
Hz a partir dos 4 meses de idade, e de 1000 Hz em tiva-nervo facial). O princípio utilizado é o
bebés até esta idade. seguinte: apresentando um som-teste de intensi-
CAPÍTULO 79 Avaliação audiológica 447

dade superior ao limiar auditivo do ouvido (+ 60 cia de 11,3 por segundo). O estímulo auditivo
dB), desencadeia-se um reflexo que consiste na mais utilizado é um “click”, estímulo transitório
contracção dos músculos do ouvido médio, no com um espectro frequencial centrado entre 2 000
ouvido testado e no ouvido contralateral (reflexos e 4 000 Hz.
ipsi e contralaterais). Como principais limitações O computador analisa as ondas, extraindo a
citam-se: tempo exigido para o teste, durante o resposta eléctrica da via auditiva da actividade
qual a criança deverá estar imóvel; não poder ser eléctrica cerebral (EEG), sendo identificadas ondas
executada na presença de líquido no ouvido positivas (I, II, III, e complexo IV-V) que represen-
médio; e imobilidade da cadeia tímpano-ossicular. tam a activação de diversas zonas da via auditiva
A presença de reflexos normais significa normali- (Quadro 7) . A intensidade do estímulo vai depois
dade das duas vias testadas (aferente e eferente), sendo diminuída, em degraus de 10 dB, até que as
mas a sua ausência não permite a afirmação de ondas se vão extinguindo progressivamente.
hipoacusia. Quando a chamada onda V se extingue (geral-
• Potenciais evocados auditivos (PEA) mente a mais resiliente), verifica-se se o limiar
São provas que avaliam as variações dos auditivo se situa cerca desta intensidade. Este lim-
potenciais eléctricos entre vários pontos da super- iar corresponde ao limiar obtido por audiometria
fície da calote craniana em resposta a um estímu- comportamental entre os 2.000 e os 4.000 Hz. Com
lo auditivo aplicado a cada um dos ouvidos. esta prova não é possível a determinação de limi-
Podem designar-se, quanto à sua latência, em ares electrofisiológicos para as restantes frequên-
potenciais de curta, média e longa latência. Muitas cias. Além do limiar electrofisiológico, podem
vezes estes potenciais são denominados quanto à medir-se as latências das ondas e os intervalos
origem das ondas que examinam (ex: potenciais entre as ondas, o que permite um diagnóstico
evocados auditivos do tronco cerebral ou PEATC). topográfico das lesões da via auditiva, contribuin-
Tais provas exigem que o doente se encontre per- do para o esclarecimento etiológico da hipoacusia.
feitamente relaxado, preferencialmente adormeci- Esta prova tem elevadas especificidade e sensi-
do, havendo muitas vezes necessidade de recorrer bilidade, estando disponível na maioria das
à sedação ou anestesia. São de extrema utilidade, unidades de audiologia desde há décadas.
pois permitem confirmar os limiares auditivos Actualmente existem no mercado aparelhos
obtidos pelas provas comportamentais; em casos automáticos com algoritmos de decisão, em que o
de crianças muito jovens, não cooperantes ou com próprio aparelho procede à identificação das
deficiência, estas provas podem ser as únicas a ondas e à sua análise, dando resultados do tipo
fornecer dados acerca das capacidades auditivas. “Apto ou que passa”, ou “Inapto ou com proble-
As respostas obtidas deverão ser interpretadas ma” que exige esclarecimento, tal como foi
por um técnico treinado e relacionadas com a descrito a propósito dos rastreios.
clínica e com os resultados das restantes provas. • Otoemissões acústicas (OEA)
Os potencias evocados auditivos mais utiliza- Com esta prova são utilizados sons de fraca
dos na clínica audiológica pediátrica são os poten- intensidade com origem nas células ciliadas exter-
ciais evocados auditivos precoces, de curta latên- nas (cóclea) ocorrendo nos ouvidos normo-
cia ou do tronco cerebral (ERA, BERA, PEATC). A ouvintes, quer espontaneamente, quer em resposta
prova consiste no seguinte: são colocados eléctro- a estímulos auditivos. Podem classificar-se em OEA
dos na superfície da calote craniana sendo regista- espontâneas (sem utilização clínica), OEA evocadas
do o traçado electroencefalográfico (EEG) do (transitórias), e OEA de produtos de distorção.
doente, o que corresponde à actividade eléctrica Após a sua produção na cóclea estas ondas
de base. Registam-se as variações da actividade sonoras “caminham” por via retrógrada, fazendo
eléctrica recolhida pelos eléctrodos, após a apre- vibrar a cadeia tímpano-ossicular, transmitindo-se
sentação de um estímulo auditivo por meio de estas vibrações ao ar do canal auditivo externo
auscultadores a cada um dos ouvidos separada- onde serão detectadas por um microfone. Após
mente, sendo este som-teste repetido rapidamente processamento destas respostas obtêm-se valores
(por exemplo, repetido 2 000 vezes, a uma cadên- que serão representados graficamente e que
448 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 7 – Origem provável das ondas dos BIBLIOGRAFIA


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PARTE XIV
Pneumologia
450 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

80
cada lado da linha média da face anterior do
tórax, desde as costelas superiores às inferiores.
A correcção desta situação consiste no tratamento
do raquitismo com vitamina D e, eventualmente, su-
plemento de cálcio (ver Capítulo 51 Parte Nutrição).
No âmbito do raquitismo, cabe referir, a propósito:
ANOMALIAS DA PAREDE 1.1 - o chamado “pulmão raquítico”, quadro
clínico hoje praticamente inexistente, associado às
DO TÓRAX síndromas de raquitismo grave e às infecções respi-
ratórias de repetição/pneumonias no contexto de
João M. Videira Amaral tal afecção. A etipatogenia relaciona-se com as
alterações da dinâmica respiratória associadas,
quer às deformações do tórax, quer à hipotonia
muscular acompanhante; as costelas, com défice de
Neste capítulo é feita uma abordagem de conjun- calcificação, não resistem às tracções musculares e
to de determinadas anomalias de conformação do compressões deixando- se deformar (Figura 1).
tórax, quer congénitas, quer adquiridas, as quais 1.2 - a cinta raquítica ou sulco de Harrison
poderão estar ou não associadas a outras ano- A tracção exercida pelo diafragma pode ocasion-
malias congénitas, em muitos casos fazendo parte ar, na parte inferior do tórax, um pouco acima do
de diversas síndromas plurimalformativas. rebordo costal, um sulco ou depressão horizontal que
se acentua durante a inspiração. Como o raquitismo
Tórax assimétrico se acompanha de hipotonia muscular, o abdómen,
consideravelmente abaulado, impele para fora as
Alguns lactentes, em especial com antecedentes costelas situadas abaixo das inserções diafragmáti-
de prematuridade, exibem nos primeiros meses cas, assumindo, nos casos mais típicos, a forma de
de vida, tórax assimétrico, em geral associado a tórax em sino. (ver Capítulo 59 Parte Nutrição).
assimetria da cabeça.
Trata-se de crianças que permanecem durante 2. Escorbuto
muito tempo em decúbito, sempre na mesma No caso do escorbuto (situação que nos países
posição, mais inclinadas para um lado do que desenvolvidos hoje pertence à história) existe tam-
para outro. A cabeça e o tórax cedem no lado com- bém rosário costal, no entanto com etiopatogénese
primido, achatando- se e perdendo a simetria. diferente da do raquitismo.
Para corrigir tal situação bastará mudar de vez
em quando a posição da criança no berço ou virá-
la para o lado oposto durante algum tempo, para
prevenir ou corrigir a deformação.

Tórax com “rosário costal“

1. Raquitismo
O ponto de união costocondral palpa-se com faci-
lidade em muitos lactentes saudáveis nos primeiros
meses de vida; no entanto, não chega a ser visível.
No raquitismo encontra-se, por vezes já no
segundo trimestre, o chamado “rosário costal”,
designação clássica para traduzir a tumefacção
FIG. 1
esferóide “em conta de rosário” na junção osteo-
cartilaginosa das costelas; com efeito, à inspecção Padrão radiográfico de pneumonia no contexto de
notam-se nódulos arredondados dispostos de raquitismo grave (“Pulmão raquítico”) (NIHDE).
CAPÍTULO 80 Anomalias da parede do tórax 451

Com efeito, no escorbuto o esterno encontra-se


deprimido, sendo precisamente o deslocamento
do esterno para trás que origina subluxação das
condrocostais e, consequentemente, a sua “saliên-
cia” ou ”contas do rosário”. No entanto, as contas
deste “rosário“ são angulares, em “baioneta”, con-
trastando com as do raquitismo, largas e achatadas
ou esferóides. Recorde- se que não se observam as
deformações de tipo raquítico da cabeça e tórax.
A correcção deste defeito consiste, essencial-
mente, na administração de vitamina C. (ver
Capítulo 51 Parte Nutrição).

Tórax “em quilha ou de pombo”/


Pectus carinatum
FIG. 2
Uma das alterações mais comuns consiste no
achatamento ou depressão ântero-lateral com sa- Pectus excavatum no contexto de sindroma de Poland
liência do esterno. (Atrofia do grande peitoral). (NIHDE)
Tal deformação produz-se quando ao raqui-
tismo se associam infecções broncopulmonares re- reduz- se o diâmetro ântero- posterior do tórax ao
petidas a que atrás se fez alusão. nível do apêndice xifoideu.
Esta deformidade pode ser congénita, inde- A profundidade da depressão por vezes muito
pendente do raquitismo. É o que acontece , por acentuada, simétrica ou assimétrica, pode pro-
exemplo, numa das mucopolissacaridoses(doença gredir ou regredir com a idade.
de Mórquio) (Capítulo 372). O pectus excavatum pode estar associado a
Independentemente da correcção do possível diversas síndromas tais como síndroma de
défice de base na situações adquiridas, os quadros Marfan, de Pierre Robin, de Coffin Lowry, de
clínicos com deformação mais exuberante deverão Poland, etc.. (Figura 2).
ser avaliados pelo cirurgião pediátrico para even- Para avaliação do compromisso da função res-
tual correcção cirúrgica. piratória poderá estar indicada espirometria.
Tal deformidade deve ser avaliada pelo cirurgião
Tórax “em barril” ou enfisematoso pediátrico; se for decidida a correcção cirúrgica,
sendo isolada, ela é feita mais por razões cosméticas
Nas situações de enfisema pulmonar crónico as do que pela repercussão funcional respiratória.
costelas tornam-se horizontais e o tórax globoso,
arredondado; é o exagero da disposição normal da BIBLIOGRAFIA
primeira infância. Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics.
Este tipo de tórax encontra-se transitoriamente Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
na bronquiolite aguda e nas crises de asma. Com Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
carácter permanente é mais raro, associando-se na Gill D, O´Brien N. Paediatric Clinical Examination. Edinburgh:
maioria das vezes a fibrose quística ou asma grave. Churchill Livingstone, 2003
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Tórax “em funil” ou pectus excavatum Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
Esta deformidade, quase sempre congénita, carac- Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
teriza-se por depressão, arredondada ou angular, Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
restrita à parte inferior do esterno e às articulações AA(eds). Rudolph_s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
condrocostais, da 4ª costela à 9ª. Deste modo, Medical, 2011
452 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

81
Neste período formam-se os bronquíolos res-
piratórios, os ductos alveolares e os alvéolos a par-
tir dos bronquíolos terminais.
– Período sacular (26ª-36ª semana)
Os eventos importantes deste período são o
crescimento das unidades para as trocas gasosas e
ANOMALIAS CONGÉNITAS a produção de surfactante alveolar.
– Período alveolar (a partir da 36ª semana)
DO SISTEMA RESPIRATÓRIO Neste período completa- se a formação das estru-
turas envolvidas na função respiratória continuando
Julião Magalhães e João M. Videira Amaral o crescimento da superfície de trocas gasosas.

A perturbação deste processo em diversas


datas e por efeito de diversos factores dá origem a
Importância do problema diversas anomalias congénitas; neste capítulo é
feita menção especial a quatro situações deste foro,
As anomalias congénitas do sistema respiratório, de possível solução cirúrgica: enfisema lobar con-
implicando em geral resolução cirúrgica, são situ- génito, quisto broncogénico, malformação adeno-
ações raras de expressão clínica muito variável. matóide quística e sequestração broncopulmonar.
Com a evolução da tecnologia de imagem aplica-
da no período pré-natal é hoje possível o diagnós-
tico antecipado de muitas destas situações, o que 1. ENFISEMA LOBAR CONGÉNITO
contribui para a melhoria do prognóstico.
Definição e importância do problema
Etiopatogénese
O enfisema lobar congénito consiste na insuflação
A morfogénese das estruturas da árvore respiratória anormal de um pulmão anatomicamente normal
(tracto respiratório inferior) que derivam primor- resultando provavelmente de um defeito intrínseco
dialmente do intestino primitivo do embrião, é clas- da cartilagem bronquiolar favorecendo broncoma-
sicamente dividida em cinco períodos: estes são lácia. Poderá verificar-se compressão extrínseca por
contados a partir da separação do divertículo “em anomalias vasculares intratorácicas. Como conse-
dedo de luva”ou saccuilus pulmonalis que emerge da quência verifica- se colapso do brônquio afectado
face ventral do tubo digestivo primitivo pelos 24 durante a expiração levando a retenção progressi-
dias de gestação,bifurcando-se pelos 26-28 dias va de ar no pulmão por dificuldade de saída
(esboços dos brônquios principais): daquele. O lobo mais frequentemente afectado é o
– Período embrionário (4ª -7ª semana) superior esquerdo (LSE), seguindo-se em frequên-
Neste período inicia-se a separação do primórdio cia o lobo médio direito e o superior direito.
respiratório a partir da face ventral do intestino ante- Existem descritos casos raros de compromisso
rior como resultado da formação do septo tráqueo- multilobar. Em 50% dos casos não é possível iden-
esofágico; estão então constituídos dois “tubos” tificar a etiopatogénese. A prevalência do enfisema
independentes: o esófago e o tubo laringotraqueal. lobar congénito é ~1/20.000.
– Período pseudoglandular(7ª-16ª semana)
Neste período ocorrem determinados eventos Manifestações clínicas
em simultâneo: ramificação da árvore respiratória
até aos bronquíolos terminais, migração das estru- O enfisema lobar congénito pode ser assintomáti-
turas vasculares, e desenvolvimento da carti- co durante algum tempo (dias), sendo habitual um
lagem, glândulas mucosas e musculatura lisa nos quadro de dificuldade respiratória, de instalação
brônquios a partir do mesênquima. mais ou menos rápida, nos primeiros dias de vida;
– Período canalicular (16ª-26ª semana) é possível que o mesmo seja desencadeado pelo
CAPÍTULO 81 Anomalias congénitas do sistema respiratório 453

choro. Por vezes a instalação do quadro é aguda. cardíaca pela elevada probabilidade de associação
As manifestações poderão surgir mais tarde, a anomalia cardiovascular.
na idade pré-escolar. Podem ocorrer pneumonias
recorrentes. Tratamento
O quadro clínico é explicável pela compressão
exercida pelo lobo afectado sobre o pulmão normal. Uma vez comprovado o diagnóstico, o tratamento
é cirúrgico .
Exames complementares Se o quadro for de instalação aguda, pode ser
e diagnóstico diferencial necessária uma toracotomia de urgência.
Se se demonstrar que a causa da insuflação é
Esta situação pode ser diagnosticada por ecografia broncomalácia, procede- se a lobectomia. Se exis-
no período pré-natal. tir compressão extrínseca, a intervenção tem como
Através da radiografia do tórax realizada per- objectivo retirar a causa: com a remoção da causa
ante manifestações de dificuldade respiratória o lobo afectado retomará a sua função normal.
torna-se evidente o sinal de hipertransparência na Se no pré-operatório se tornar indispensável
área do lobo afectado(em geral LSE) com herni- apoio ventilatório, deve ser utilizada ventilação
ação e desvio do mediastino para o lado oposto ; oscilatória de alta frequência.
a hemicúpula diafragmática homolateral está
aplanada (Figura 1). 2. QUISTO BRONCOGÉNICO
O diagnóstico diferencial faz-se com pneu-
motórax e com anomalia adenomatóide quística Definição
na sua forma de apresentação de quisto gigante.
A tomografia axial computadorizada ajuda O quisto broncogénico gera-se a partir do
nesta destrinça, bem como esclarece a possível con- divertículo respiratório, em que um grupo de
fusão com compressão extrínseca do brônquio por células, que se desenvolve independentemente do
estruturas mediastínicas. Nestes casos a bronco- tracto respiratório, se separa deste.
scopia pré-operatória pode tornar-se indispensável. Pode ter várias localizações sendo a mais fre-
Poderá estar indicada a cintigrafia de per- quente no mediastino posterior ou médio, por de
fusão/ventilação nos casos de enfisema lobar que trás ou junto à árvore traqueo-brônquica “mãe”
se admite tenha sido adquirido após ventilação (carina, hilo pulmonar); está frequentemente liga-
com pressão positiva de longa duração. do a esta por um pedículo obliterado ou permeá-
Também está indicada a observação por car- vel. Em geral é central e único.
diologista pediátrico que procede a ecografia Pode, raramente, localizar-se no esófago, peri-
cárdio ou no próprio parênquima pulmonar, assu-
mindo nesta última localização a forma multilocular.
No que respeita a características morfológicas,
os quistos broncogénicos têm 2 a 10 cm de
diâmetro, parede bem individualizada e contêm
muco, pus ou sangue.

Manifestações clínicas

Mais frequentemente as manifestações têm início


na idade pré- escolar traduzindo- se por sinais de
broncospasmo, sinais de compressão, ou por
infecções respiratórias de repetição, nalguns casos
FIG. 1
relacionadas com infecção do próprio quisto quan-
Padrão radiográfico convencional do tórax (Enfisema lobar à do este comunica com a árvore tráqueo-brônquica.
esquerda). TAC torácica (imagem bolhosa). (NIHDE) Os quistos de localização intercarinal podem
454 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

manifestar-se muito mais precocemente, já no sordenado (histologia de tipo hamartoma ou dis-


recém- nascido, com insuficiência respiratória, o plasia) dos bronquíolos terminais impedindo
que implica correcção precoce; podem ser causa quase completamente o crescimento e desen-
de morte súbita. volvimento alveolar no lobo de um pulmão; como
Noutros casos são assintomáticos, sendo então consequência há formação de múltiplos quistos
identificados como achados no âmbito da realiza- desorganizados alternando com zonas de parên-
ção de exame radiográfico do tórax por motivos quima não afectado, sendo que os referidos quis-
diversos. tos não comunicam com a árvore tráqueo-brôn-
quica e podem comprimir as estruturas vizinhas.
Exames complementares Surge com uma frequência aproximada de 1-
4/100.000 nascimentos.

A radiografia do tórax poderá evidenciar massa São descritos 3 tipos: 1 ( 50%), macroquísti-
paratraqueal ou imagem esferóide com parede co, com um ou mais quistos de diâmetro superior

fina (semelhante a “balão” ou grande “bolha” cor- a 2 cm; 2 ( 40%), microquístico com histologia

respondente a área de distensão gasosa). semelhante à do tipo 1; 3 ( 10%) em que a lesão
A TAC e a RMN, com maior discriminação é sólida simile bronquíolos preenchidos por
imagiológica, possibilitarão a identificação de epitélio cubóide ciliado e não ciliado.
pequenos quistos intercarinais.
Manifestações clínicas e diagnóstico
Diagnóstico diferencial
As manifestações são precoces, no pós – parto
As manifestações clínicas e o padrão radiográfico traduzidas por síndroma de dificuldade respi-
do tórax convencional evidenciando imagem de ratória conduzindo a insuficiência respiratória; a
distensão gasosa ou “bolhosa” única poderão manifestação mais tardia inaugural pode ser
levar a admitir a presença doutra situação – o quis- infecção respiratória com recorrências.
to pulmonar – com patogénese semelhante ao A ecografia fetal permite o diagnóstico entre a
quisto broncogénico, mas derivando das células 12ª e a 14ª semana de vida intra-uterina; por vezes
do bronquíolo respiratório. O referido quisto pul- verifica-se inexplicavelmente a sua regressão
monar é, no entanto, periférico (e único) com um espontânea o que prova a complexidade de tal
padrão radiográfico que evidencia parede melhor anomalia congénita. Em certas formas surge
definida do que no caso do quisto broncogénico. hydrops fetalis.
Por sua vez, o quisto pulmonar pode confundir-se Após o nascimento a radiografia do tórax é
com pneumatocele o qual apresenta parede menos essencial para o diagnóstico definitivo, chaman-
espessa. O quisto pulmonar, quando infectado, do- se a atenção para o diagnóstico diferencial
pode confundir-se com abcesso pulmonar. com a hérnia diafragmática de Bochdaleck (esta
última abordada no capítulo 308).
Tratamento Em casos especiais pode proceder-se à tomo-
grafia axial computadorizada.
O tratamento, quer do quisto broncogénico, quer
do quisto pulmonar, é a excisão cirúrgica. Tratamento

O tratamento é a excisão cirúrgica – lobectomia –


mesmo no doente assintomático, de preferência
3. MALFORMAÇÃO ADENOMATÓIDE antes dos 12 meses de idade, face à possibilidade
QUÍSTICA de evolução sarcomatosa ou carcinomatosa.
Quando as lesões são de grandes dimensões
Definição e importância do problema pode verificar-se hipoplasia do pulmão e hiper-
tensão pulmonar implicando medidas de suporte
Esta anomalia é caracterizada por crescimento de- respiratório em unidade de cuidados intensivos.
CAPÍTULO 81 Anomalias congénitas do sistema respiratório 455

4. SEQUESTRAÇÃO PULMONAR A

Definição e etiopatogénese

Esta anomalia é caracterizada pela presença de


segmento de parênquima pulmonar não funcio-
nante, sem comunicação evidente com a árvore
tráqueo-brônquica; a sua vascularização é anó-
mala, recebendo a totalidade ou a maior parte da
sua irrigação arterial sanguínea por vasos oriun-
dos directamente da circulação sistémica.
São descritos dois tipos:
– intralobar em que o tecido sequestrado está
contido no lobo normal; B
– extralobar, ocorrendo quando a lesão está
separada do lobo pulmonar normal e também fora
da pleura visceral; este tipo está mais frequente-
mente associado a outras anomalias congénitas.

Manifestações clínicas e diagnóstico

O início das manifestações é muito variável, desde a


idade pediátrica à idade adulta. Em geral traduzem-
se, quer por sinais e sintomas de infecções respi-
ratórias, quer relacionáveis com shunt de alto débito
FIG. 2
em relação com os vasos anómalos.
A sintomatologia é predominantemente respi- Sequestração pulmonar: A – Radiografia do tórax convencional
ratória, mas a presença de shunts de alto débito, por evidenciando opacidade ovóide no terço inferior do hemitórax
si só, ou pelas malformações cardíacas congénitas esquerdo; B – TAC torácica evidenciando opacidades arredon-
dadas confluentes em “mapa geográfico”. (NIHDE)
associadas, pode produzir manifestações cardiocir-
culatórias. Com efeito, a infecção respiratória é
habitual neste tecido pulmonar não funcionante, Tratamento
pelo que as crianças com infecções respiratórias de
repetição de causa não evidente devem ser conside- O tratamento da sequestração pulmonar intralobar
radas suspeitas de serem portadoras deste tipo de é a lobectomia ou, caso possível, a segmentecto-
malformação e investigadas nesse sentido. mia, tendo sempre em atenção a necessidade de
A radiografia do tórax convencional, nos casos laquear o vaso anómalo face ao risco de hemorra-
de tipo intralobar, pode evidenciar sinais de gia e morte intra-operatória .
opacidade ou de lesão quística com nível líquido. Os casos de sequestração extralobar que, na sua
A ecografia doppler é o exame de eleição, mas maioria, são assintomáticos e descobertos por aci-
pode haver necessidade de se associar TAC com dente, poderão ser seguidos sem intervenção
reconstrução a 3 dimensões, ou ângio-ressonância. cirúrgica a qual só estará indicada se se verificar
(Figura 2) infecção ou sintomatologia cardiocirculatória.
Deve ser feito o estudo por ecografia e cinti-
grafia do fígado quando a lesão está localizada na BIBLIOGRAFIA
base direita, pois há casos de hérnia diafragmática Calvert JK, Boyd PA, Chamberlain PC, et al. Outcome of ante-
com fígado intratorácico que podem levar a erros natally suspected congenital cystic adenomatoid malfor-
de diagnóstico. mation of the lung: 10 years experience 1991-2001. Arch Dis
Child 2006; 91: F26-F28
456 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

82
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon, 2011
Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York : McGraw-Hill
Medical , 2011
Sauvat F, Michel JL, Benachi A, et al. Management of asympto- PNEUMONIA ADQUIRIDA
matic neonatal cystic adenomatoid malformations. J
Pediatr Surg 2003; 38: 548-552 NA COMUNIDADE
Schmittenbecher P. Congenital cystic adenomatoid malforma-
tion of the lung: Indications and timing of surgery. J Pediatr Laura Oliveira e Fátima Abreu
Surg 2005; 40: 891-892

Definição e importância do problema

Pneumonia é a inflamação dos alvéolos e das vias


aéreas terminais causada, regra geral, por um
agente invasor, vírus ou bactéria. Outras causas
não infecciosas podem também originar tal
processo inflamatório, como aspiração de
alimentos ou conteúdo gástrico, corpos estranhos,
hidrocarbonetos, substâncias lipóides, reacções de
hipersensibilidade, radiações, etc.. As causas de
infecção no RN e no doente imunocomprometido
são diferentes (ver adiante Glossário)..
Este processo traduz-se na maioria das vezes
por um quadro de febre e sintomas respiratórios
de início agudo, associados a infiltrados parenqui-
matosos (hipotransparência) pulmonares eviden-
ciados em radiografia do tórax. É o conceito de
pneumonia aguda. Assim, na perspectiva da
prática clínica surgem dois termos: 1) Pneumonia
no sentido genérico definida pela presença de
febre e/ou sintomas e sinais agudos de afecção da
via respiratória inferior, associados a sinais radio-
gráficos do tórax (infiltrados parenquimatosos)
traduzindo consolidação dos espaços alveolares;
2) Pneumonia adquirida na comunidade, definida
pelo quadro de infecção adquirida fora do
ambiente hospitalar no pressuposto de o doente
não ter estado internado nos 7 dias precedendo o
diagnóstico e de este último ser feito dentro de 48
horas após o internamento. Certos factores
aumentam o risco de aquisição desta patologia; as
crianças imunodeprimidas, com doenças neuro-
musculares, refluxo gastroesofágico, defeitos ana-
tómicos congénitos pulmonares (por exemplo se-
questro intrapulmonar, fístula tráqueo-esofágica)
CAPÍTULO 82 Pneumonia adquirida na comunidade 457

ou com anomalias do mecanismo de depuração pneumoniae e Chlamydia pneumoniae (patogénios


pulmonar (fibrose quística, disfunção ciliar) são atípicos/intracelulares) estejam frequentemente
particularmente susceptíveis. implicados.
A pneumonia de causa infecciosa é uma das Diversos estudos demonstraram que após se
situações graves mais comuns na infância, com uma ter iniciado a imunização universal com a vacina
incidência anual na Europa e América do Norte de antipneumocócica conjugada houve redução na
34 a 40 casos por 1000 crianças, sendo causa incidência de pneumonia pneumocócica da
frequente de morbilidade nas idades pediátricas nos ordem de 40-50% em crianças com menos de 2
países desenvolvidos. Em Portugal, no que respeita anos de idade.
à pneumonia adquirida na comunidade, estima-se Lactentes com menos de 20 semanas com tosse
uma incidência de 30/1000 internamentos. seca arrastada e conjuntivite podem ter infecções
por Chlamydia trachomatis. Lactentes não imu-
Etiologia nizados podem também ter pneumonia por
Haemophilus influenzae. A infecção por Staphylo-
Em idade pediátrica, de um modo geral não é coccus aureus pode resultar de infecções cutâneas e
possível determinar o agente microbiano causador ser adquirida por via hematogénica causando
da pneumonia. Tal requereria técnicas invasivas e pneumonias graves.
cruentas como a biópsia ou a aspiração pulmonares, O Quadro 1 sistematiza os germes microbianos
poucas vezes efectuadas. O diagnóstico etiológico mais frequentes como causa de pneumonia
de presunção baseia-se, pois, em inúmeros adquirida na comunidade em função da idade.
pressupostos, tais como: a clínica; a epidemiologia
local; aspectos radiológicos; variações sazonais e a Fisiopatologia
idade do doente. Exceptuando o período neonatal,
os vírus são responsáveis por cerca de 80 a 85% dos A pneumonia resulta da inflamação do tecido
casos de pneumonias. Destes os mais frequentes são pulmonar causada pela invasão de agentes pato-
os vírus respiratório sincicial (VRS), parainfluenza génicos como sejam vírus, bactérias, agentes
1,2,3 e influenza A e B. químicos ou outros. O agente causador de lesão
Os agentes microbianos mais frequentemente chega ao pulmão por inalação, por micro-
implicados no período neonatal incluem estrepto- aspiração ou por via hematogénica. Ao chegar ao
coco do grupo B (Streptococcus agalactiae) e bacilos alvéolo pulmonar o sistema imunológico actua
entéricos gram-negativos, particularmente através de dois mecanismos principais: meios de
Escherichia coli, adquiridos por transmissão defesa físicos (processo de depuração mucociliar e
vertical na altura do parto. Fora deste período, drenagem linfática), e mecanismos de destruição
Streptococcus pneumoniae, é o agente bacteriano de bactérias (opsonização, acção de imunoglo-
mais frequente, embora em crianças mais velhas bulinas G específicas, ingestão macrofágica ou
(sobretudo com > de 5 anos) e adolescentes M. destruição bacteriana mediada pelo comple-

QUADRO 1 – Germes microbianos mais frequentes como causa de pneumonia adquirida na comu-
nidade em relação com a idade

RN (<1 mês) 1 a 3 meses Mais de 3 meses a 5 anos Mais de 5 anos


Streptococcus grupo B Vírus sincicial respiratório Vírus sincicial respiratório Mycoplasma pneumoniae
E coli Vírus parainfluenza Vírus parainfluenza Streptococcus pneumoniae
S. pneumoniae Adenovírus Vírus influenza Chlamydophila pneumoniae
Haemophilus influenzae Streptococcus pneumoniae Adenovírus Streptococcus pyogenes
(tipo B) Staphylococcus aureus Streptococcus pneumoniae
Chamydophila trachomatis Mycoplasma pneumoniae
Haemophilus influenza tipo b Staphylococcus aureus
458 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

mento). Se estes mecanismos detiverem a As crianças mais velhas e adolescentes, para


infecção, são recrutados polimorfonucleados para além dos sintomas comuns às crianças pequenas,
o local, resultando daí uma resposta inflamatória. podem queixar-se de cefaleia, dor pleurítica ou
A perpetuação desta resposta conduz à dor abdominal vaga, vómitos, diarreia, odinofagia
pneumonia. e otalgia, sugerindo pneumonia provocada por
Classicamente foram descritos quatro entida- germes como Mycoplasma. A tosse acompanhada
des histológicas para a pneumonia por pneumo- de sibilância é também muito comum a este tipo
coco: ingurgitamento; hepatização vermelha; de infecção.
hepatização cinzenta e resolução. A primeira A existência de sinais de infecção pulmonar
destas fases está associada à presença de bactérias associada, por exemplo, a abcessos cutâneos ou
nos alvéolos e ao exsudado seroso associado que dos tecidos moles, pode sugerir como agentes
progride posteriormente para a hepatização etiológicos Staphylococcus aureus e Streptococcus do
vermelha por passagem dos eritrócitos para os grupo A; otite média aguda, sinusite ou meningite
alvéolos. A fase seguinte, hepatização cinzenta, podem ter como causa Streptococcus pneumoniae ou
resulta da migração dos leucócitos para a área Haemophilus influenza; este último também se pode
afectada com depósito de fibrina intravascular, associar a epiglotite e pericardite.
dificultando a perfusão na área afectada. Por fim, No exame físico deve atender-se primeira-
a fagocitose do micróbio e a eliminação da fibrina mente ao estado geral do doente, ao grau de
e detritos conduzem à resolução da pneumonia. hidratação, aos sinais de perfusão periférica e a
Quando as bactérias se estendem à cavidade sinais de dificuldade respiratória (taquipneia;
pleural, a supuração intrapleural pode produzir adejo nasal; retracção costal). A auscultação pul-
empiema. A resolução desta reacção pleural pode monar pode revelar fervores crepitantes, dimi-
ocorrer espontaneamente, mas habitualmente nuição do murmúrio vesicular na área pulmonar
leva a espessamento fibroso ou forma aderências. afectada ou, pelo contrário, pode não revelar qual-
quer alteração, sobretudo em lactentes pequenos.
Manifestações clínicas Nas crianças mais velhas ocorrem sinais
pulmonares na área afectada do pulmão com
O quadro clínico das pneumonias reveste-se de macicez à percussão, aumento das transmissões
contornos diferentes consoante a idade do doente, vocais e finos fervores crepitantes.
a gravidade da doença e o agente etiológico. Salienta-se, a propósito, que as manifestações
As manifestações clínicas são diversas e clínicas não são suficientemente específicas nem
muitas vezes inespecíficas ou subtis, sobretudo no sensíveis para estabelecer o diagnóstico etiológico
período neonatal em que pode haver apenas um de pneumonia.
quadro de irritabilidade, recusa alimentar, ta- O Quadro 2 sintetiza as principais caracterís-
quipneia e gemido. Nem sempre este quadro se ticas clínicas relacionadas com etiologia micro-
acompanha de febre, podendo, pelo contrário, biana mais provável.
associar-se a hipotermia. Condições especiais, tais como disfunções
Após o 1º mês de vida a tosse é o sintoma mais neuromusculares e perturbações da deglutição,
comum de apresentação da doença, em geral podem condicionar pneumonias de aspiração nas
acompanhada de febre. Os lactentes podem ter quais estão muitas vezes implicadas bactérias
história precedente de infecção das vias respiratórias anaeróbias.
superiores. Vómitos, particularmente após acesso de Distinguir na prática clínica uma pneumonia de
tosse, recusa alimentar e irritabilidade, são também causa vírica doutra de causa bacteriana nem sempre
sinais comuns de apresentação da doença. é possível, já que nem a gravidade da doença, nem
Em lactentes com menos de 20 semanas, as características da tosse ou os aspectos radioló-
sintomas como tosse seca, conjuntivite, taquipneia gicos permitem a destrinça com segurança. No
e fervores crepitantes detectados pela auscultação entanto, determinados achados tais como a presença
pulmonar devem levar a admitir a hipótese de de derrame pleural extenso, pneumatocele, abcesso,
pneumonia por Chlamydia. consolidações lobares e pneumonias com opaci-
CAPÍTULO 82 Pneumonia adquirida na comunidade 459

QUADRO 2 – Pneumonia: manifestações clínicas e germe microbiano

Pneumonia bacteriana Pneumonia por vírus,


M. pneumoniae, C. pneumoniae
Febre geralmente > 39° C geralmente < 39° C
Início abrupto gradual
Sintomas associados dor torácica; dor abdominal mialgias, faringite, conjuntivite,
diarreia, exantema
Auscultação pulmonar diminuição do murmúrio sibilos
vesicular

dades “redondas” são, em geral, indicadores de pequenas consolidações dispersas devido a


pneumonias bacterianas. Deve, porém, ter-se em atelectasias; por último descreve-se o padrão de
conta que cerca de 25 a 75% dos casos de pneumonia broncopneumonia, mais frequentemente associa-
bacteriana têm uma infecção vírica precedente ou da a Staphylococcus aureus e outras bactérias, que
concomitante, e que a infecção por mais que um se apresenta como um padrão bilateral difuso,
agente etiológico é frequente em doentes hospi- reforço peribrônquico e pequenos infitrados no-
talizados (10-40% dos casos). dulares que se estendem até à periferia. No caso
da pneumonia estafilocócica podem ainda existir
Exames complementares sinais de necrose parenquimatosa (abcessos,
pneumatoceles) e derrame pleural.
Sendo o diagnóstico de pneumonia essencialmente As pneumonias “bolhosas” (acompanhadas de
clínico, cabe salientar, no entanto, que: a radiografia pneumatoceles) podem igual relacionar-se com S
simples do tórax é o método mais útil para pyogenes (grupo A), S pneumoniae (raramente) e
confirmar a existência de tal patologia; e que a com Klebsiella pneumoniae (formas complicadas
realização da mesma em formas clínicas apa- especiais).
rentemente ligeiras não está indicada rotinei- Em circunstâncias especiais poderá utilizar-se
ramente, de acordo com as recomendações e a ecografia (por exemplo quando há suspeita de
consensos da Secção de Pneumologia da SPP (2007). derrame pleural), a tomografia axial computado-
Poderá não existir relação entre os aspectos rizada e/ou a ressonância magnética nuclear.
radiográficos e a clínica nos lactentes e crianças As Figuras 1 a 8 mostram diversos padrões
mais pequenas, sendo também possível encontrar- radiológicos torácicos de pneumonia, corres-
se sinais de pneumonia significativa na ausência pondentes a crianças assistidas no Hospital de
de sinais clínicos. Dum modo geral pode dizer-se
que a consolidação lobar se associa às infecções
por pneumococo e os infiltrados intersticiais às
infecções por vírus, embora estes diferentes pa-
drões possam surgir associados a qualquer
etiologia.
Classicamente estão descritos três padrões de
densidades pulmonares: o padrão alveolar (asso-
ciado mais frequentemente ao pneumococo e
outras bactérias), que se caracteriza por consoli-
dação lobar ou segmentar e broncograma aéreo; o
padrão de pneumonia intersticial (causada habi-
tualmente por vírus e Mycoplasma) que se apre-
FIG. 1
senta como um aumento reticulonodular e hi-
perinsuflaçao, com possível progressão para Pneumonia por Mycoplasma pneumoniae. (NIHDE)
460 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

FIG. 2
Padrão radiográfico de tipo intersticial acompanhado de enfisema
importante (por vírus sincicial respiratório)-PA e perfil. (NIHDE)

1
4

3
FIG. 5
Padrão radiográfico de pneumonia lobar (identificada
etiologia pneumocócica)- (PA e perfil). (NIHDE)
FIG. 3
Caso de pneumonia do lobo superior direito (1), visualizando-se
sinais de broncograma aéreo (2); concomitância de derrame
pleural direito-obliteração do seio costofrénico direito (3).
Relativamente ao derrame há a assinalar: linha da pleura visce-
ral (4); e linha de Damoiseau (5). (Cortesia do Dr. Mário Coelho)

FIG. 6
FIG. 4 Padrão radiográfico de pneumonia “redonda” (opacidades
Pneumonia estafilocócica. Imagens de pneumatoceles (PA e arredondadas observáveis em ambos os campos pulmonares).
perfil). (NIHDE) (NIHDE)
CAPÍTULO 82 Pneumonia adquirida na comunidade 461

dade de sedimentação são pouco específicos e de


escassa utilidade na orientação terapêutica do
doente; nos casos de pneumonia por pneumococo
há frequentemente leucocitose muito elevada com
predomínio de polimorfonucleares e na infecção a
Chlamyda trachomatis, eosinofilia.
Nos doentes sem critérios de gravidade e cuja
orientação pode ser feita em regime ambulatório
não se torna imprescindível realização dos mesmos.
Estão disponíveis a nível hospitalar testes para
pesquisa rápida de antigénios de genomas ou dos
FIG. 7 FIG. 8
próprios vírus (testes DNA, RNA, etc.) no
Pneumonia estafilocócica. Pneumonia estafilocócica. exsudado da nasofaringe para vírus respiratório
Sinais de derrame pleural à Radiografia do tórax (perfil); sincicial (VRS), parainfluenza, influenza A e B e
esquerda. (NIHDE) sinais de piopneumotórax. adenovírus, os quais têm utilidade no diagnóstico.
(NIHDE)
Os testes serológicos para determinação de
títulos de IgM e IgG para o Mycoplasma e
Dona Estefânia – Lisboa, quer em ambulatório, Chlamydia, são também úteis no estudo destas
quer em internamento. pneumonias, embora permitam apenas confirmar
A Figura 9 integra o esquema de projecção a etiologia a posteriori.
radiográfia do tórax que facilita a compreensão As hemoculturas (positivas em apenas 3 a 11%
das opacidades conforme a respectiva localização. dos doentes com pneumonia bacteriana), devem,
O hemograma, proteína C reactiva e a veloci- no entanto, ser obtidas em todos os doentes
internados com tal suspeita, e antes do início da
antibioticoterapia.
A prova de Mantoux (com tuberculina intra-
dérmica) deve ser ponderada em casos especiais
em função do contexto epidemiológico. (Capítulo
295 Parte Infecciologia)
Relativamente à identificação do agente etioló-
gico da pneumonia, os exames culturais do
aspirado pulmonar ou de biópsia pulmonar são o
método mais eficaz. Sendo métodos muito inva-
sivos, são reservados para situações muito graves
que não respondem à terapêutica instituída.
No caso de haver derrame pleural o exame
bacteriológico do líquido pleural colhido na ausência
de terapêutica prévia pode ser positivo em 65 a 80%
dos casos. Quando há necessidade de se efectuar
broncofibroscopia com lavado bronco-alveolar, na
idade pediátrica a identificação dos agentes
envolvidos pode variar entre 25 a 75% dos casos.
Deve proceder-se a esclarecimento etiológico
específico nos quadros graves se a evolução clínica
for atípica ou complicada, e se existir suspeita de
surto/epidemia.
FIG. 9
Notas importantes: A identificação de vírus
Esquema da projecção radiográfica do tórax (de frente e de (pesquisa de antigénios víricos no lavado
perfil). nasofaríngeo) deve ser feita em todas as crianças
462 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

internadas, com menos de 2 anos de idade. adolescentes podem ser utilizadas fluoroquinolonas.
Não deve ser realizado exame bacteriológico Nas formas graves de pneumonia presumivel-
das secreções respiratórias, já que o crescimento mente bacteriana exigindo internamento hos-
bacteriano apenas reflecte a flora da nasofarin- pitalar, a terapêutica empírica inclui cefuroxima
ge, não indicativo dos agentes infectantes das (150mg/kg/dia) ou cefotaxima ou ceftriaxona IV.
vias aéreas inferiores. Deve ser reservado para Se as manifestações clínicas entretanto sugeri-
situações específicas. A radiografia de tórax só rem etiologia estafilocócica (empiema, pneumato-
deve ser repetida se houver agravamento do celos, etc.), à terapêutica inicial deve acrescentar-se
quadro ou suspeita de complicações. Não há vancomicina ou clindamicina.
necessidade de ulterior estudo radiológico (ou Nos casos de pneumonia lobar sugerindo
laboratorial) perante boa evolução clínica. Nas etiologia por S. pneumoniae ou por S. pyogenes
pneumonias complicadas. deverá ser efectuada (grupo A) os antibióticos de primeira escolha são
radiografia de controlo 4 a 6 semanas após a a penicilina G 200.000-400.000 U/kg/dia ou
alta. amoxicilina po, ou ampicilina IV. Como alter-
nativas: ceftriaxoma ou cefotaxima (+ vanco-
Tratamento micina se suspeita de S. pneumoniae de resistência
elevada à penicilina; ou penicilina G +
A decisão terapêutica deve ser tomada tendo em clindamicina (se suspeita de S. pyogenes).
conta algoritmos diagnósticos que consideram a Nos casos de pneumonia “bolhosa” detectada
idade do doente, a clínica e factores epidemioló- de início, os antibióticos de escolha são flucloxa-
gicos. Para além da terapêutica de suporte com cilina + aminoglicosídeo.
fluidoterapia, deve administrar-se oxigénio se A duração do tratamento antimicrobiano é em
houver hipoxémia com o objectivo de obter geral 7-10 dias, salientando-se a duração entre 14
saturação em O2 ≥92%; na suspeita de pneumonia e 21 dias nas pneumonias bolhosas.
bacteriana a terapêutica antibiótica dita empírica O Quadro 3 especifica as doses de alguns
(antes do eventual isolamento do agente) deve ser antimicrobianos utilizados no tratamento das
prontamente instituída. pneumonias adquiridas na comunidade, não
Recém-nascidos e lactentes com menos de 3 referidas no texto. A via endovenosa, se estabe-
meses devem ser internados para terapêutica lecida de início, deverá manter-se por 24-48 horas
endovenosa com ampicilina + ceftriaxona, ou após desaparecimento da febre.
cefotaxima, ou gentamicina. No caso de suspeita Quando não se verificar resposta à terapêutica
de pneumonia por Chlamydia trachomatis ou antibiótica, a causa mais provável é vírica. Outros
pneumonia afebril do lactente deve ser usado um agentes bacterianos devem, no entanto, ser consi-
macrólido (eritromicina, azitromicina ou clari- derados (S. aureus; pneumococos multirresistentes,
tromicina). H. influenzae ampicilina – resistente e anaeróbios)
O antibiótico de eleição de uma pneumonia tendo em conta contextos clínicos especiais.
não complicada, entre os 3 meses e os 5 anos, é a O internamento deve considerar-se nas se-
amoxicilina, mesmo considerando que 15% a 40% guintes situações:
dos pneumococos são resistentes à penicilina; – Recém-nascidos;
trata-se, no entanto de uma resistência intermédia – Lactentes até aos 6 meses com febre;
(MIC 0.06-1.0mcg/ml), o que implica o uso de – Crianças de qualquer idade com: pneumonia
doses altas de amoxicilina (de 80mg/Kg/dia a multifocal; hipoxémia; sinais de dificuldade
90mg/Kg/dia). As alternativas são a cefuroxima – respiratória ou desidratação; impossibilidade de
acetil e a amoxicilina + ácido clavulânico. se proceder a terapêutica oral; doença crónica;
Quando a suspeita diagnóstica recai sobre ausência de resposta ao tratamento iniciado;
Mycoplasma e Chlamydia pneumoniae, sobretudo nas famílias incapazes de garantir o tratamento ou a
crianças em idade escolar e adolescentes, devem ser supervisão necessária da criança; imunodefi-
usados macrólidos (azitromicina ou claritromicina); ciência: complicações (derrame pleural, abcesso
como alternativa acima dos 8 anos: doxiciclina. Nos pulmonar, pneumatocele, etc.).
CAPÍTULO 82 Pneumonia adquirida na comunidade 463

QUADRO 3 – Posologia e via de administração de alguns antimicrobianos utilizados nos casos de


pneumonia

Antimicrobiano Via de administração Dose (mg/Kg/dia) Intervalo


Amoxicilina oral 80 - 100 8/8 horas
Ampicilina endovenosa 150 - 200 6/6 horas
Amoxicilina + ácido clavulânico oral 75 - 90 8/8 horas
Azitromicina oral 1ª toma de 10 mg, 24/24 horas
5 mg nos 4 dias seguintes
Cefotaxima endovenosa 200 8/8 horas
Ceftriaxona endovenosa 50 - 100 24/24 horas
Claritromicina oral ou endovenosa 15 12/12 horas
Eritromicina oral ou endovenosa 40 6/6 horas
Flucloxacilina oral 50 8//8 horas
endovenosa 100 - 200

A antibioticoterapia inicial deverá ser revista que o seu uso generalizado poderá diminuir a
se houver identificação do agente etiológico e do incidência de doença pneumocócica invasiva de
seu perfil de sensibilidade aos antimicrobianos. A forma significativa. A vacinação contra o vírus
identificação de Streptococcus peumoniae de resis- influenza poderá também prevenir uma das
tência intermédia à penicilina não justifica a complicações desta infecção, a pneumonia (Capítulo
mudança de antibiótico quando a opção inicial foi 278).
a ampicilina ou amoxicilina em dose adequada.
Salienta-se o número crescente de S. pneumoniae GLOSSÁRIO
resistentes à penicilina. Broncopneumonia > Inflamação pulmonar centrada nos bron-
quíolos com formação de exsudado mucopurulento obstru-
Prognóstico e seguimento indo algumas vias aéreas de menor calibre e originando
consolidação de vários lóbulos adjacentes com pequenos
De uma maneira geral o prognóstico é excelente focos.
com a recuperação sem complicações na maior Infecção das vias respiratórias inferiores > Termo que abrange
parte dos casos. A grande maioria das pneumonias bronquite, bronquiolite, pneumonia, broncopneumonia ou
por bactérias patogénicas comuns e por germes associação de qualquer combinação destas entidades.
atípicos responde à terapêutica antimicrobiana. Pneumonia > Inflamação/infecção do tracto respiratório inferi-
Cerca de 80% dos infiltrados regridem em 3 or envolvendo as vias aéreas e parênquima, com consoli-
semanas e os restantes em 3 meses. As complicações dação dos espaços alveolares.
mais frequentes das pneumonias bacterianas são os Pneumonia atípica > Pneumonia (em que se exclui a pneumonia
derrames pleurais incluindo empiemas. lobar).
Pneumonia lobar > Pneumonia localizada a um ou mais lobos
Prevenção pulmonares.
Pneumonite > Qualquer manifestação infecciosa/inflamatória
A imunização de rotina da criança tem tido um pulmonar, geralmente benigna, associada ou não a consoli-
papel preponderante na prevenção de pneumonia dação.
em idades pediátricas em geral; e, em especial, Pneumopatia > Qualquer afecção do pulmão.
reduzindo drasticamente a fequência de
pneumonias associadas à rubéola, tosse convulsa, e BIBLIOGRAFIA
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464 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

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CAPÍTULO 83 Derrame pleural 465

ca podendo, por isso, estar associados, por exem- das vibrações vocais e do murmúrio vesicular;
plo, a insuficiência cardíaca, síndroma nefrótica, raramente é detectado atrito pleural. Por vezes a
hipotiroidismo, ou obstrução do fluxo linfático. criança adopta uma atitude escoliótica côncava
Os exsudados resultam de compromisso para o lado do derrame.
inflamatório da pleura (pleurisia), com conse- O derrame pleural parapneumónico habitual-
quente aumento da permeabilidade capilar com mente surge como complicação de pneumonias
extravasão de proteínas para o espaço pleural. causadas por Streptococcus pneumoniae, Haemo-
Para a destrinça entre exsudado e transudado phylus influenzae, Staphyloccus aureus e Streptoco-
são utilizados determinados critérios (Quadro 1). ccus do grupo A. Identifica-se uma causa bacteriana
Na prática clínica são classicamente consi- em cerca de 75% dos casos, embora muitas vezes
derados os seguintes tipos de exsudados de causa não se consiga isolar o agente, ou por antibiotico-
infecciosa (Quadro 2) sobre os quais recai a abor- terapia prévia, ou nos casos de infecção por
dagem: Mycoplasma e vírus.
– Pleurisias purulentas ou empiemas (líquido O empiema corresponde a uma colecção de
pleural purulento e/ou com germe iden- pus. Distinguem-se três fases: exsudativa, que
tificado); corresponde a líquido livre, facilmente drenado;
– Derrames parapneumónicos não purulentos fibrinopurulenta, correspondendo à formação de
(geralmente serofibrinosos). septações e loculações, que pode ser díficil de
drenar; organizativa, em que só é possível o
Manifestações clínicas desbridamento cirúrgico.

A doença subjacente determina os sintomas e Exames complementares


sinais predominantes. Assim, a apresentação é a
de uma pneumonia, com tosse, febre alta, dificul- A base do diagnóstico desta situação assenta na
dade respiratória, cianose, prostração e anorexia. clínica, na imagiologia, na toracocentese e na
As crianças mais velhas podem queixar-se de dor análise do líquido pleural. (LP)
pleurítica em pontada, exacerbada com a inspira- Para a confirmação da existência de derrame
ção ou associada a tosse. pleural já suspeitado clinicamente, é necessária a
Verifica-se igualmente taquipneia e tosse seca realização de radiografia de tórax em projecção
desencadeada pelas mudanças de posição, póstero-anterior, perfil e decúbito lateral do lado
submacicez à percussão e diminuição ou abolição do derrame, podendo verificar-se: preenchimento

QUADRO 1 – Derrame pleural: transudado e exsudado

Características Transudado Exsudado


Aspecto límpido turvo/purulento
Densidade < 1.015 > 1.015
Células/ mmc < 1.000 [pred. linfócitos e monócitos] > 1.000 e, por vezes, incontáveis[pred. neutrófilos]
LDH(UI/L) < 200 > 250
LDH (LP/S) < 0,6 > 0,6[ou LDH(LP) > 2/3 LDH(S)]
Proteínas (g/dL) < 2,5 >3
Proteínas (LP/S) < 0,5 > 0,5
Glucose(mg/dL) > 40 < 40
pH 7,4-7,6(normal) < 7,2
Coloração pelo Gram negativa positiva (em < 1/3 dos casos)

Abreviaturas: LP- líquido pleural; S - sérico; pred. - predominantemente NB:


1)*Valores baixos de glucose ou pH são habitualmente verificados em situações neoplásicas,tuberculose,pancreatite e doenças autoimunes.
2) A concentração de triglicéridos no líquido pleural > 110 mg/dL corresponde a elevada probabilidade (~99%) de quilotórax; se for < 50 mg/dl a probabilidade
é baixa(<5%).
466 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Etiologia dos derrames de causa do tórax sendo de grande utilidade nos casos em
infecciosa que a radiografia identifica sinais de hemitórax
opaco. Pode detectar pequena quantidade de
Empiemas Derrames serofibrinosos líquido a envolver o pulmão e distinguir entre
• Staphylococcus aureus • Mycobacterium pulmão não arejado e líquido ou fibrina pleurais.
tuberculosis Pode ainda: detectar loculação, dando assim boas
• Haemophilus influenzae • Mycoplasma pneumoniae informações relativamente às fases evolutivas do
• Streptococcus pneumoniae • Outras bacterias empiema; e identificar o melhor local para se
• Vírus efectuar toracocentese. Deve, no entanto, ser feita
por técnicos experientes.
A tomografia axial computadorizada diferen-
do fundo de saco costo-diafragmático nos cia complicações pleurais de processos intrapa-
derrames mínimos; hipotransparência da parte renquimatosos.
inferior do pulmão, com apagamento da cúpula A toracocentese para exame do líquido pleural
diafragmática e do fundo de saco costo- é um método seguro e determina a causa do
diafragmático, sendo o limite superior desta derrame. Quando se detecta pus (empiema) é
hipotransparência oblíquo para cima e para fora requerida drenagem.
(curva de Damoiseau), quando o derrame é A avaliação citoquímica de LP não purulento
medianamente abundante; hipotransparência de também é importante assim como a respectiva
um hemitórax com desvio do mediastino para o coloração de Gram; deste modo é possível a
lado oposto e alargamento dos espaços identificação dos agentes patogénicos implicados
intercostais, no caso de derrame abundante. em cerca de 50% dos casos.
(Figura 1) Relativamente ao estudo das células, podem
É ainda possível observar pela radiografia ser obtidos os seguintes achados: predomínio de
sinais de um foco de pneumonia, por vezes neutrófilos aponta para derrames parapneumó-
mascarado pelo derrame, pneumatoceles, pneu- nicos; predomínio de linfócitos para a tuberculose,
mopatia intersticial e adenopatias. doença do tecido conjuntivo, ou infecções
A ecografia completa os dados da radiografia fúngicas; predomínio de eosinófilos é a favor de
infecções parasitárias; e número de células
>10.000 mmc sugere exsudado (Quadro 1).
A identificação de antigénios bacterianos no
sangue ou LP é um método que pode ajudar na
escolha do antibiótico, nomeadamente através da
análise da prova da reacção em cadeia da poli-
merase (PCR) ou da imunocromatografia.
A análise do LP permite ainda definir o estádio
evolutivo do derrame parapneumónico.
O metabolismo das bactérias e dos leucócitos
presentes no LP resultam numa baixa da glucose
e do pH. O nível de LDH aumenta em resultado
da destruição dos neutrófilos e outros fagócitos
presentes.
Considera-se que o derrame é complicado
quando: – através da imagem da radiografia
torácica a respectiva extensão ultrapassa hemi-
tórax; – o pH é inferior a 7,2, – a glucose inferior a
FIG. 1
40mg/dL e/ou a cultura é positiva.
Radiografia do tórax PA: sinais de derrame pleural esquerdo A hemocultura é positiva em cerca de 20% dos
(linha de Damoiseau). (NIHDE) casos de derrame parapneumónico se a colheita
CAPÍTULO 83 Derrame pleural 467

de sangue for realizada antes do início da anti- deve continuar-se os antibióticos por mais 5 a 7
bioticoterapia. dias. O tratamento deverá ser completado com
mais uma a duas semanas de antibióticos per os.
Tratamento Salienta-se que, de um modo geral, se aplicam
neste âmbito as noções decritas a propósito da
Medidas gerais pneumonia.
O tratamento dos derrames plurais inclui os se-
guintes opções para além das medidas gerais: Drenagem
antibióticos, toracocentese, aplicação de tubo de Em caso de febre que persista por 48 horas após o
drenagem pleural com ou sem agente fibrinolítico, início do curso de antibióticos, há indicação para
descorticação por cirugia toracoscópica video drenar o derrame pleural (toracocentese evacua-
assistida (VATS), ou por toracotomia aberta. dora).
As medidas gerais incluem suprimento ade- Igualmente a verificação de características de
quado de fluidos,electrólitos e energia. derrame purulento (especificadas no Quadro 1)
A oxigenoterapia depende da observação de estabelece a indicação de se proceder a
sinais de hipoxémia e de fadiga muscular. A toracostomia com tubo/cateter de drenagem
verificação de insuficiência respiratória indica pleural fechada; o cateter deverá ter o maior
transferência para UCI (unidade de cuidados diâmetro interno possível para drenar com maior
intensivos). facilidade áreas loculadas, sendo que poderá ser
necessário aplicar mais do que um tubo-cateter.
Antibioticoterapia As múltiplas toracocenteses evacuadores devem
A presença de derrame pleural parapneumónico ser evitadas.
não altera a escolha empírica da antibioticoterapia A resposta à drenagem deve ser monitorizada
dos doentes com pneumonia. A escolha inicial pela quantidade de LP que sai e pela temperatura
recai sobre antibióticos que cubram os agentes corporal. Se o débito do LP for inferior a 10- 15 ml
patogénicos mais prevalentes de acordo com a /dia e houver melhoria clínica, deve retirar-se o
idade da criança. cateter. A duração média da drenagem é 5 a 10
Ao se isolarem os agentes patogénicos pode dias.
estreitar-se o espectro baseando-nos no resultado Se, pelo contrário, se verificar manutenção do
da coloração pelo Gram, nas provas de detectação quadro febril e da dificuldade respiratória para
de antigénios ou nas culturas do LP. Por exemplo além de 72 horas após início de antibioticoterapia
um empiema por Streptococcus A pode ser tratado e toracostomia, está indicada a descorticação
com penicilina durante 10 dias. A pneumonia cirúrgica. Ressecam-se, deste modo, as aderências
causada por estirpes de resistência intermédia à pleurais, o que contribuirá para uma drenagem
penicilina (CIM= 0,1-1,0 mcg de penicilina/ml) efectiva do espaço plural, encurtando a
respondem normalmente a penicilina em altas permanência no hospital.
doses ou a uma cefalosporina, com espectro mais A descorticação por toracotomia aberta está
alargado. A pneumonia causada por estirpes indicada nos casos em que houve formação de
resistentes ( CIM >= 2,0 mcg de penicilina/ ml ) camada fibrosa que reduz a expansão pulmonar.
pode também responder à penicilina em altas Trata-se duma técnica cirúrgica para remoção do
doses ou a cefalosporinas. Pode ainda tentar-se a tecido fibrinoso nos casos de empiema organizado
clindamicina, a vancomicina ou cloranfenicol. ou fibrinopurulento que não respondem adequa-
O empiema por Staphyloccus aureus pode ser damente aos procedimentos anteriores descritos.
tratado com uma penicilina sintética resistente à
penicilinase ou com vancomicina, pelo menos Agentes trombolíticos
durante 21 dias. Se a etiologia do empiema for Ainda existem dados insuficientes para o seu uso
Haemophylus influenzae, deve usar-se uma cefalos- por rotina nos derrames pleurais parapneumó-
porina de terceira geração por via parentérica. nicos e nos empiemas na criança. Há referência a
Após a febre ter cedido ou a drenagem retirada resultados positivos com o uso de uroquinase e
468 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

estreptoquinase, evitando-se a necessidade de recente vacina 13-valente corresponda aos


descorticação em certos casos de empiema. serótipos associados a empiema o que teria
Quando existem múltiplos septos ou locas, a impacte positivo na respectiva incidência.
terapêutica fibrinolítica com estes agentes pode Por outro lado, a vacinação contra o vírus
ser necessária para aumentar a drenagem no caso influenzae permitiria evitar complicações da gripe
de empiema. Alguns autores recomendam o seu sob a forma de infecções bacterianas das vias
uso precoce (às 48 horas). Estes agentes poderão respiratórias inferiores.
originar hemorragias e fenómenos de anafilaxia. A prevenção das complicações do derrame
Estudos recentes em adultos apontam para a pleural começa pela sua detecção precoce deste, e
eficácia da combinação de desoxirribonuclease por medidas terapêuticas rápidas e adequadas,
com activador do plasminogénio tecidual quanto mais ou menos invasivas, de acordo com o que se
à melhoria da drenagem do líquido pleural e à referiu anteriormente.
redução da necessidade de cirurgia.
BIBLIOGRAFIA
Prognóstico Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
Flores JC, Moro MN, Bérron S, et al. Usefulness of
Os derrames pleurais parapneumónicos não pneumococcal antigen detection in pleural effusion. Eur J
complicados respondem à terapêutica conserva- Pediatr 2010; 169: S81-S84
dora com internamento hospitalar, em geral num Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
período não superior a uma semana. Quando é Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
necessário recorrer à drenagem, a duração média Saunders, 2011
do internamento sobe para duas semanas. Kurt BA, Winterhalter KM, Connors RH, et al. Therapy of
Desenvolve-se espessamento pleural residual em parapneumonic effusions in children: video-assisted
cerca de 60% dos casos. No caso do empiema thoracoscopic surgery versus convetional thoracostomy
somente se verifica regressão dos sinais radio- drainage. Pediatrics 2006; 118: e547-e553
lógicos ao fim de 3 meses. Há autores que referem Muzumdac H. Pleural effusion. Pediatr Rev 2012; 33: 44-46
que o prognóstico é influenciado pela suscep- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
tibilidade à penicilina das estirpes pneumo- AA(eds). Rudolph´s Pediatrics. New York : McGraw-Hill
cócicas. Medical, 2011
Os factores mais importantes do prognóstico Tam P-Y I. Approach to common bacterial infections:
favorável, são sem dúvida, a rápida detecção e community-acquired pneumonia. Pediatr Clin North Am
drenagem imediata dos derrames parapneumó- 2013; 60: 437-454
nicos complicados. Yao CT, Wu JM, Liu CC, et al. Treatment of complicated
parapneumonic pleural effusion with intra pleural
Prevenção streptokinase in children. Chest 2004; 125: 566-571

No que se refere à prevenção volta a referir-se o que


foi dito no capítulo das pneumonias. Efectivamente,
a imunização de rotina da criança permitiu tornar
rara a pneumonia por Haemophylus, assim como
as suas possíveis complicações.
A doença pneumocócica invasiva também
poderia ser muito reduzida com o uso mais
generalizado da vacina conjugada antipneumo-
cócica. Quanto a esta vacina (heptavalente), de
acordo com dados da literatura de 2011 verificou-
se associação a diminuição da incidência de
pneumonia e, curiosamente, a maior incidência de
empiema. Os investigadores esperam que a mais
CAPÍTULO 84 Pneumonia recorrente 469

84
As pneumonias recorrentes constituem um pro-
blema comum. A maioria das crianças tem 5-10
infecções respiratórias por ano, com uma fre-
quência maior depois dos 6 meses e predo-
minando no segundo ano de vida. Geralmente
estas infecções afectam o aparelho respiratório
PNEUMONIA RECORRENTE superior, e só em 10-30% dos casos é envolvido o
aparelho respiratório inferior.
José Guimarães
Factores de risco

Vários factores influenciam a eclosão de infecções


Definições e importância do problema respiratórias (Quadro 1).
A idade é um factor importante. É habitual a
No capítulo sobre pneumonia adquirida na diminuição progressiva da frequência das infecções
comunidade foi definido o conceito de pneumo- respiratórias com o incremento dos anos, re-
nia aguda: início agudo de sintomas (tosse, flectindo o desenvolvimento da imunidade. Por
taquipneia, dispneia) e sinais (diminuição do razões desconhecidas as infecções das vias
murmúrio, fervores, macicez, aumento das respiratórias inferiores são mais frequentes nos
vibrações vocais), acompanhados por hipotrans- rapazes. Os lactentes nascidos pré-termo, sobre-
parência na radiografia do tórax. tudo aqueles com doença pulmonar crónica, têm
Num primeiro episódio de pneumonia, se a maior número de internamentos por pneumonia e
criança evidenciar bom estado geral, por vezes mortalidade mais elevada que os nascidos de
não é feita radiografia do tórax. Contudo, se a termo. A exposição aos agentes infecciosos nas
situação não evoluir para a normalidade, ou se os creches e infantários, em amas com várias crianças
episódios se repetirem, a radiografia do tórax ou famílias numerosas, aumenta a frequência de
torna-se fundamental. infecções respiratórias. O tabagismo, sobretudo
Define-se pneumonia recorrente como 2 epi- materno, seja pré ou pós-natal, a exposição a
sódios de pneumonia em 1 ano ou 3 episódios em lareiras e a poluição em geral, aumentam o risco de
qualquer período de tempo. Neste caso há uma infecções respiratórias particularmente pneumo-
resolução clínica e radiológica entre os episódios nia. As condições de vida e outros factores
de infecção. socioeconómicos também influenciam a frequência
Geralmente os sintomas melhoram em alguns das infecções respiratórias.
dias, mas o tempo de resolução radiológica duma
pneumonia é muito variável. A pneumonia Avaliação clínica
pneumocócica não complicada pode curar em 4-8
semanas, enquanto uma pneumonia por A avaliação começa pela amamnese e exame
adenovírus pode levar 6 meses ou mais. Por outro objectivo. É importante inquirir sobre os seguintes
lado, com grande frequência desconhece-se a
etiologia, o que dificulta o problema. Na maior QUADRO 1 – Factores de risco de pneumonia
parte dos casos há desaparecimento dos sintomas recorrente
e melhoria ou cura das alterações radiológicas em
2-4 semanas. 1 – Idade
Fala-se de pneumonia persistente quando a 2 – Sexo masculino
clínica e radiologia persistem para além de 1 mês. 3 – Prematuridade
Muitas vezes não é possível distinguir claramente 4 – Exposição aos agentes infecciosos
entre recorrência e persistência por não se dispor 5 – Tabagismo / Poluição do ar ambiente
de radiografias comprovando a resolução dos 6 – Factores socioeconómicos
episódios.
470 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

tópicos: antecedentes familiares nomeadamente sopros cardíacos ou de fervores, e se são locali-


doenças graves, mortes infantis, alergias; se a zados ou não.
gravidez foi vigiada, se há toxicodependência ou
se a mãe teve múltiplos parceiros aumentando o Sistematização
risco de infecção por VIH e outras infecções
congénitas; se a criança nasceu pré-termo e como Geralmente a história clínica fornece elementos
nasceu, se teve necessidade de ventilação e suficientes para classificar o doente com pneumo-
oxigénio, se teve infecções nos primeiros tempos nias recorrentes numa de 4 categorias: crianças
de vida ou se tem anomalias congénitas; o provavelmente normais, crianças com alergia,
ambiente em que vive, particularmente se con- crianças com doença crónica não imunológica e
tacta com fumo de tabaco ou outros poluentes, se crianças com imunodeficiência (Quadro 2).
há animais domésticos, plantas ou aves; com Agrupar os doentes desta forma tem incon-
quantos irmãos convive, se está numa creche venientes na medida em que compartimenta
durante o dia ou se fica numa ama com outras doenças que frequentemente têm alguns aspectos
crianças. comuns. Por exemplo, a drepanocitose é uma
Relativamente às infecções respiratórias: valo- doença crónica e não uma imunodeficiência pri-
rizar cada episódio de infecção; quando ocorreu, mária; contudo, acompanha-se de alterações
qual a localização da pneumonia e sua duração, se importantes dos mecanismos de defesa que levam
foi grave exigindo internamento ou se teve a infecções respiratórias recorrentes. Contudo, tal
complicações; a frequência dos episódios e se os forma de agrupar estes doentes tem grandes
sintomas respiratórios persistem no intervalo vantagens não só por facilitar o estudo, mas
entre infecções; como foi diagnosticada a também para o tratamento e vigilância.
pneumonia, se houve isolamento do agente
etiológico; rever os exames radiológicos; que 1. Crianças provavelmente normais
tratamentos fez, qual a sua duração e que resposta As infecções respiratórias são muito frequentes
clínica obteve; valorizar a existência de outras nos primeiros anos de vida, particularmente até
infecções nomeadamente gastrintestinais, da pele aos 2 anos. Tal se deve à maturação gradual da
ou do aparelho respiratório superior (otite, imunidade. Até cerca dos 6 meses a criança está
sinusite). protegida por anticorpos maternos adquiridos por
No exame objectivo há que avaliar a re- via transplacentar, mas a partir dessa idade a
percussão das infecções na evolução ponderal: se protecção passiva começa a desaparecer. Se este
a criança tem aspecto doente ou se tem dismorfis- fenómeno coincidir com a fase em que a criança
mo; notar a presença de rinorreia serosa, prega entra para o infantário em Setembro, no início dos
nasal transversal ou “olheiras” indiciando atopia, meses frios do ano a possibilidade de ter infecções
ou se tem obstrução respiratória superior com recorrentes é grande. As crianças deste grupo
respiração ruidosa bucal; na boca verificar a pre- constituem cerca de 50% dos doentes com
sença de gengivite, ulcerações, perda de dentes ou pneumonias recorrentes. Apresentam algumas
doença periodontal que são próprias de imuno- características comuns: geralmente não têm
deficiência; se tem deformação torácica ou hipo- história familiar de imunodeficiência, o seu
cratismo digital sugerindo doença pulmonar cró- crescimento é normal, mantendo-se com bom
nica; valorizar alterações na pele: petéquias (sín-
droma de Wiskott-Aldrich), seborreia generaliza- QUADRO 2 – Contexto de pneumonias
da (histiocitose), erupção eczematiforme (S. recorrentes
Hiper-IgE, S. Wiskott-Aldrich), telangiectasias na
pele e conjuntivas (S. ataxia-telangiectasia). É • Crianças provavelmente normais (50%)
importante avaliar a presença de tecido linfóide • Crianças com doença alérgica (30%)
palpável, pois a sua ausência sugere deficiência de • Crianças com doença crónica não imunológica (10%)
linfócitos T; se há aumento do tamanho do fígado • Crianças com imunodeficiência (10%)
ou baço. Na auscultação: valorizar a presença de
CAPÍTULO 84 Pneumonia recorrente 471

estado geral entre os episódios infecciosos, sem agentes etiológicos. É frequente a repercussão no
alteração no exame objectivo. Além disso, não é peso e estatura e o exame pode evidenciar
habitual que tenham infecções graves noutros fervores, deformação torácica e hipocratismo. As
locais (infecções cutâneas, gastrintestinais ou infecções surgem de forma semelhante e, por
outras). Estas particularidades ajudam a separar vezes, com a mesma localização. Nestes casos são
este grupo dos restantes. geralmente causadas por obstrução brônquica
Nestes casos é importante esclarecer os pais (corpo estranho), por compressão extrínseca
reforçando-lhes a confiança e propondo uma geralmente de origem ganglionar (tuberculose ou
vigilância atenta da evolução. Por vezes são úteis outras infecções, tumores) ou por anomalias
alguns exames complementares simples como estruturais (estenose brônquica, bronquiectasias,
hemograma, proteína C reactiva (PCR), radio- quisto broncogénico, sequestro).
grafia do tórax e eventuais exames culturais. Em algumas doenças deste grupo (Quadro 3)
pode haver alteração dos mecanismos de defesa
2. Crianças com doença alérgica predispondo para a infecção como sucede em
Este grupo também apresenta algumas caracte- situações de má-nutrição ou na drepanocitose.
rísticas distintivas constituindo cerca de 30% dos A pneumonia (recorrente) é a infecção mais
casos de infecções respiratórias recorrentes. comum mas pode haver diarreia crónica, tosse
Frequentemente há história familiar de alergia e crónica, episódios repetidos de febre, entre outras.
pieira em cada episódio de infecção respiratória. Para esclarecimento etiológico, deve proceder-
Muitos episódios decorrem em apirexia respon- se nestes doentes a exames complementares como:
dendo mal aos antibióticos. A tosse é muito hemograma, PCR, ureia e glicémia, urina, teste do
frequente, por vezes nocturna ou surgindo com o suor, radiografia do tórax, imunoglobulinas e
riso ou o esforço. Por vezes há infecções das vias exames culturais. A broncofibroscopia e TAC torá-
respiratórias superiores que desencadeiam tosse cica são geralmente necessárias. Poderá haver
importante e grande produção de muco, podendo necessidade de outros testes diagnósticos mais
levar a atelectasias ou infiltrados, sobretudo no específicos para confirmação das hipóteses dia-
lobo médio. O crescimento é normal verificando- gnósticas colocadas.
se frequentemente obstrução nasal com rinorreia,
prega nasal transversal e eczema. QUADRO 3 – Doença crónica não imunológica
Nestes casos são úteis hemograma, PCR,
doseamento de imunoglobulinas, IgE, específicas, • Síndromas de inalação (corpo estranho, refluxo
radiografia do tórax e testes cutâneos. A espirometria gastresofágic)
deve obter-se quando possível, (ver Parte XII). • Bronquiectasias (fibrose quística, síndroma de cílios
Os lactentes com pieira e pneumonias recor- imóveis)
rentes colocam alguns problemas diagnósticos, • Anomalias congénitas do aparelho respiratório
sobretudo quando respondem mal aos broncodi- • Doenças pulmonares (displasia broncopulmonar,
latadores e anti-inflamatórios. Nestes casos será bronquiolite obliterante, hemossiderose pulmonar,
necessário excluir alguns diagnósticos, nomeada- pneumonias de hipersensibilidade)
mente fibrose quística, aspiração de corpo es- • Doenças neuromusculares
tranho, refluxo gastresofágico, bronquiolite oblite- • Doenças cardíacas congénitas
rante, anomalias congénitas do aparelho respira- • Doenças genéticas/ metabólicas (síndroma de Down,
tório ou imunodeficiência. Werdnig-Hoffmann)
• Doenças hematológicas (asplenia, hemoglobinopatias,
3. Crianças com doença crónica não imunológica imunossupressão)
Correspondem a cerca de 10% das crianças com • Doenças nutricionais (má-nutrição, enteropatias)
infecções respiratórias recorrentes. Ao contrário • Doenças renais (síndroma nefrótica, insuficiência renal)
dos anteriores, este grupo tem infecções que são • Diabetes mellitus
contínuas, por vezes graves, levando ao inter- • Doenças do colagénio vascular
namento, muitas vezes sem isolamento dos
472 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

4. Crianças com imunodeficiência QUADRO 4 – Imunodeficiências


Perante uma criança com pneumonias recorrentes
é muito frequente que se coloque a hipótese de Primárias
imunodeficiência. Contudo, as imunodeficiências Imunodeficiências humorais:
constituem apenas 10% das causas de infecções Agamaglobulinémia ligada ao X
respiratórias recorrentes. Imunodeficiência comum variável
Neste grupo as infecções frequentemente Défice de IgA
iniciam-se depois dos 6 meses de idade e são de Défice de subclasses de IgG
vários tipos (sépsis, meningites, osteomielites), Má resposta específica a polissacáridos
geralmente graves e predominando no aparelho Hipogamaglobulinémia transitória da infância
respiratório, com localização variada. Apesar de Imunodeficiências celulares:
ser comum a identificação do agente e a anti- Imunodeficiência combinada grave
bioticoterapia ser apropriada, a resposta ao Síndroma de DiGeorge
tratamento é lenta. Muitas vezes a infecção é Candidíase mucocutânea
controlada mas não erradicada, as complicações Síndroma de Wiskott- Aldrich
são frequentes e, no intervalo entre os episódios Ataxia telangiectasia
agudos, persistem sintomas crónicos. Habitual- Défices fagocitários e do complemento:
mente o crescimento é afectado, são comuns Doença granulomatosa crónica
alterações cutâneas como eczema, piodermite, Síndroma de Hiper IgE
telangiectasia. A crianças poderão não ter Défice de complemento: C3 ou C5
gânglios linfáticos palpáveis nem amígdalas,
ou, pelo contrário, ter linfadenopatia gene- Secundárias
ralizada, hepatoesplenomegália sugerindo in- Doença vírica (VIH, CMV, VEB)
fecção por VIH, doença hematológica ou dos Prematuridade
Má-nutrição
fagócitos.
Esplenectomia
As imunodeficiências primárias podem
Drepanocitose
envolver os linfócitos B (50-70%), os linfócitos T
Síndroma nefrótica
(20-30%), ambos linfócitos B e T (10-15%), as
Doenças hematológicas malignas e imunossupressão
células fagocíticas (15-20%) ou o complemento (2-
5%) (Quadro 4) (Capítulos 69 e 70).
A identificação dos microrganismos causado-
res das infecções pode sugerir algumas entidades completar o estudo com exames mais complexos,
específicas. As infecções recorrentes com micror- nomeadamente subclasses de IgG, doseamento de
ganismos extracelulares, capsulados ou infecções anticorpos contra antigénios vacinais (tétano,
crónicas sinopulmonares são comuns nos doentes difteria, rubéola), testes cutâneos de hipersensibi-
com asplenia ou défice de anticorpos. As infecções lidade retardada (Candida, toxóide tetânico),
por oportunistas víricos, protozoários, bactérias, populações linfocitárias, estudo da função fago-
micobactérias ou fungos sugerem défice das cítica, e testes para a função do complemento.
células T. Infecções fúngicas, abcessos hepáticos São muitas as doenças específicas neste grupo
ou osteomielite sugerem doença das células e a sua caracterização é variável. Algumas são
fagocíticas, enquanto as infecções recorrentes bem conhecidas e existem múltiplos doentes des-
acompanhadas de sintomas autoimunes ou infec- critos; outras estão incompletamente caracteriza-
ções recorrentes por N. meningitidis sugerem das ou são tão raras que ainda não estão bem
deficiência do complemento. compreendidas.
Numa fase inicial alguns exames complemen- Por isso, na suspeita de imunodeficiência de
tares são úteis: hemograma, PCR, imunoglobuli- difícil caracterização é prudente dirigir o doente
nas, culturas, VIH e exames radiológicos. Mesmo um centro com experiência, o mesmo sucedendo
que os resultados destes exames sejam normais, os nas doenças mais raras cujo seguimento deverá
doentes suspeitos de imunodeficiência deverão ser feito por especialistas. (ver parte XII).
CAPÍTULO 85 Bronquiolite aguda 473

85
BIBLIOGRAFIA
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Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon atingindo sobretudo crianças com menos de dois
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York : McGraw-Hill anos de idade (incidência máxima entre o primeiro
Medical , 2011 e o sexto meses de idade), quase sempre com
Wacogne I, Negrine RJS. Are follow-up chest x ray examina- carácter epidémico; traduz-se clinicamente por
tions helpful in the management of children recovering polipneia com retracção costal e à auscultação
from pneumonia? Arch Dis Child 2003; 88: 457-458 pulmonar, por sibilos ou fervores; esta situação é
Wardlaw T, Salama P, White Johansson E. Pneumonia: the precedida tipicamente por quadro inflamatório
leading killer of children. Lancet 2006; 368: 1048-1050. das vias respiratórias superiores constituído por
tosse seca, rinorreia e/ou febre.
Em geral reserva-se o diagnóstico de bronquio-
lite aguda para o primeiro episódio de sibilância
com as características referidas antes, devendo
evitar-se o termo de bronquiolite para situações de
sibilância repetida.
A maioria dos casos de sibilância (quadro
acompanhado de ruídos adventícios designados
por sibilos produzidos nos brônquios e bronquí-
olos na expiração, os quais traduzem estrei-
tamento das respectivas vias aéras) relaciona-se
com processo inflamatório; contudo, tais sinais
podem surgir em situação de broncospasmo e no
contexto doutras entidades a abordar adiante.
Sendo uma doença autolimitada, pode
habitualmente ser assistida em casa com medidas
simples; com efeito, só em cerca de 1 a 2% dos
casos se torna grave a justificar internamento
hospitalar. No entanto, a sua elevada incidência e
o maior risco inerente ao grupo etário em que
predomina, justificam o elevado número de inter-
namentos hospitalares a ela associados, nomea-
damente em unidades de cuidados intensivos
(UCI).
474 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

De acordo com estatísticas da União Europeia, contacto directo das mucosas com secreções ou
estima-se uma incidência de internamentos gotas aerossolizadas infectadas, variando o
hospitalares de cerca de 30/1000. É a primeira período de incubação entre 4 e 6 dias.
causa de hospitalização antes dos 6 meses. A infecção vírica atinge particularmente os
Surgindo habitualmente nos meses de Inverno bronquíolos de calibres entre os 300 até aos 75 µ. O
e início da Primavera (nos países de clima epitélio bronquiolar é colonizado pelo vírus que
temperado), e predominando nos centros urbanos, então se replica e desencadeia uma resposta infla-
é a doença infecciosa das vias aéreas inferiores matória, induzindo necrose epitelial à qual se
mais frequente nas crianças com menos de 12 segue a proliferação de células que são despro-
meses de idade. Cerca de 60 % das crianças vidas de cílios (perdendo-se importante mecanis-
atingidas são do sexo masculino. A bronquiolite é mo de defesa).
mais frequente em crianças que vivem em Cabe salientar aspectos da resposta imune
situações de baixo nível socioeconómico expostas desencadeada pelo VSR, com papel na inflamação
ao fumo do tabaco e não alimentadas com leite bronquiolar:
materno. Em cerca de 50% das crianças com a) desgranulação de eosinófilos com libertação
bronquiolite desenvolve-se sibilância subsequente. de proteínas catiónicas com efeito citotóxico sobre
A mortalidade atinge entre 0,5 – 1% dos o epitélio da via respiratória;
doentes internados, aumentando para 3-4% nos b) libertação de IgE com papel importante na
casos de doença cardiopulmonar subjacente. sibilância;
No que respeita a custos por internamento de c) outros mediadores com papel na patogénese
crianças com esta patologia com menos de 1 ano, da inflamação da via respiratória incluem a IL-8, a
determinados estudos na América do Norte proteína inflamatória dos macrófagos 1 alfa, etc.;
divulgaram valores da ordem de 700 milhões de d) níveis mais elevados de interferão-gama e
dólares dos USA/por ano. de leucotrienos na via aérea correlacionam-se com
o grau de sibilância.
Etiopatogénese Os tecidos peribronquiolares são invadidos
por linfócitos, plasmócitos e macrófagos, surge
É habitualmente (50-90% dos casos) causada pelo edema e congestão da submucosa e tecido adven-
vírus sincicial respiratório (VSR), mas outros vírus tício e, por vezes, alteração das fibras elásticas e
podem estar implicados como os parainfluenzae musculares (o que induz algum grau de espasmo
1,2 e 3, influenzae A e B, rinovirus e adenovírus a contribuir para a obstrução). O aumento da
(cujos serótipos 3, 7 e 21 causam doença mais grave produção de muco, juntamente com a descamação
capaz de conduzir a insuficiência respiratória epitelial e a fibrina formada, podem obstruir
aguda com necessidade de suporte ventilatório). O completamente o lume bronquiolar (na razão
metapneumovírus e bocavírus humano, são causa inversa das suas dimensões) induzindo, por um
primária de infecção respiratória vírica, podendo mecanismo valvular, a retenção do ar expiratório;
associar-se ao VSR (coinfecção), o que constitui tal origina áreas de hiperinsuflação pulmonar e
factor de agravamento. áreas de atelectasia irregularmente distribuídas
Mycoplasma pneumoniae e H. influenzae com maior ou menor repercussão na ventilação/
raramente estão implicados. Aos 2 anos de idade, perfusão. Como consequência poderá surgir
a maioria das crianças foi já infectada pelo VSR. insuficiência respiratória tipo I (hipoxémia) ou de
Até mesmo recém-nascidos e adultos podem ser tipo II (com hipercápnia).
infectados, embora sem o quadro clínico típico da Outros factores próprios do lactente pequeno
doença. predispõem para a gravidade deste processo,
O VSR é altamente contagioso, ficando activo nomeadamente, ventilação alveolar colateral defi-
cerca de 6 a 10 horas em gotículas de secreções, e ciente, caixa torácica pouco rígida, imaturidade
meia hora em roupa ou papel, persistindo no das células pulmonares e dos mecanismos de
exsudado nasal mesmo após melhoria clínica. expulsão de muco.
A transmissão da infecção dá-se através do A recuperação surge a partir da camada basal
CAPÍTULO 85 Bronquiolite aguda 475

do epitélio respiratório e inicia-se ao fim de 3-4 QUADRO 1 – Factores de risco de bronquiolite


dias, podendo a regeneração dos cílios demorar grave
ainda 15 dias ou mais.
Factores do hospedeiro
Manifestações clínicas • Pré-termo
• Idade inferior a 3 meses
O quadro clínico inicia-se por coriza, febre • Doença cardíaca congénita
moderada (inferior a 38ºC) e tosse irritativa (por • Doença respiratória crónica (DBP, FQ)
vezes com conjuntivite ou otite associadas); tais • Deficiência imunitária
sintomas evoluem para respiração ruidosa ou
expiração sibilante (pieira), polipneia, retracção Factores ambientais
costal com ou sem adejo nasal, hiperinsuflação • Pobreza
torácica (tórax em tonel) e dificuldade alimentar, • Sobrepopulação
por vezes com vómitos e desidratação. • Exposição pós-natal ao fumo de tabaco
Se alguns lactentes toleram bem a bron- • Desnutrição
quiolite, outros evoluem com prostração, recusa • Não aleitamento materno
alimentar, perturbação do sono, e mesmo,
gemido. A cianose, se presente, é sinal de
gravidade embora possa estar ausente em por adenovírus e rinovírus podem estar associa-
crianças gravemente doentes. Os movimentos das a casos esporádicos.
respiratórios são superficiais e na auscultação A radiografia do tórax, não sendo específica, é
pulmonar são audíveis: fervores finos no fim da sugestiva do diagnóstico ao revelar sinais de
inspiração (crepitantes) por abertura dos bron- hiperinsuflação pulmonar com horizontalização
quíolos parcialmente obstruídos, roncos e, por dos arcos costais e abaixamento do diafragma;
vezes, sibilos; o tempo expiratório é prolongado. áreas de espessamento peribrônquico e de
O fígado pode palpar-se aumentado por consolidação ou colapso alveolar (segmentar ou
empurramento pelo diafragma. mesmo lobar), a não confundir com pneumonia. É
A agitação, a prostração e o aumento da particularmente frequente a opacificação de um
frequência respiratória (FR) > 60/minuto poderão segmento ou de todo o lobo superior direito por
estar relacionados com hipoxémia. obstrução provocada por secreções. A radiografia
De salientar que a gravidade clínica deste do tórax deverá ser sempre solicitada no primeiro
quadro pode aumentar se: 1) a idade for < 12 episódio de bronquiolite visto ser auxiliar essencial
semanas; 2) existirem antecedentes de prema- no diagnóstico diferencial da síndroma de
turidade,cardiopatia, doença pulmonar crónica, dificuldade respiratória aguda na criança (Figura
síndroma de Down, doença neuromuscular ou 1). Nalguns centros existe experiência da utilização
imunodeficiência; 3) existir exposição ao fumo do da ecografia em situações de bronquiolite.
tabaco. O hemograma, não dá, em geral, contributo
O Quadro 1 sintetiza os factores de risco que importante.
poderão contribuir para a gravidade da bron- A gasometria capilar pode demonstrar a
quiolite. existência de pressão de O2 (PO2) diminuída e
PCO2 elevada, correlacionando-se melhor este
Diagnóstico parâmetro com a gravidade da doença. A
oximetria de pulso evidencia diminuição da
O diagnóstico de bronquiolite é essencialmente saturação em O2.
clínico, baseado na síndroma de dificuldade É possivel detectar por métodos rápidos de
respiratória, na idade da criança e na imunofluorescência ou ELISA os antigénios dos
epidemiologia. Os casos de infecção por VSR vírus respiratórios, os agentes etiológicos mais fre-
surgem em surtos epidémicos, tal como na gripe e quentes (VSR, influenzae, parainfluenzae e adeno-
infecções pelo vírus parainfluenzae; as infecções vírus) nas secreções brônquicas ou da nasofaringe.
476 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial


da bronquiolite aguda

Causas anatómicas
Anel vascular, quisto pulmonar, enfisema lobar
Pneumotórax, hidrotórax, quilotórax
Aspiração de corpo estranho

Insuficiência circulatória
Doença cardíaca congénita ou adquirida
Anemia

Infecções
Pneumonia por vírus, Chlamydia, Rickettsia,
Mycoplasma, bactérias, fungos
Parasitas

Irritantes
Inalação de substâncias tóxicas
Pneumonia de aspiração
Refluxo gastresofágico

Causas metabólicas
Intoxicações (ex: salicilatos)
Acidose

FIG. 1 Causas alérgicas


Aspecto radiográfico do tórax (póstero-anterior e perfil), na Asma
bronquiolite aguda: sinais de hiperinsuflação; setas indicando Pneumonias designadas de hipersensibilidade
áreas de espessamento peribrônquico e focos de atelectasia/
enfisema.
crianças com asma brônquica têm a sua primeira
A identificação pode fazer-se igualmente por crise antes dos 2 anos de idade sendo habitualmente
métodos de PCR (reacção em cadeia da desencadeada por infecção vírica.
polimerase). O diagnóstico serológico não está Os parâmetros que podem diferenciar esta
indicado pela demora (semanas) na serocon- afecção em relação à asma (que se pode acom-
vensão e pela escassa sensibilidade do método. panhar de inflamação dos bronquíolos), são essen-
O diagnóstico diferencial pode ser difícil, cialmente a idade da criança, o agente etiológico e
sobretudo nas formas clínicas menos típicas ou o carácter epidémico.
sem contexto epidemiológico (Quadro 2).
Salientam-se outras infecções respiratórias com Avaliação da gravidade
carácter obstrutivo (ex. laringotraqueíte), anomalias
congénitas do aparelho respiratório, doença O Quadro 3 sintetiza critérios de avaliação da
cardíaca congénita ou adquirida (ex. miocardite gravidade da doença, com particular implicação
vírica) e ainda outras situações associadas a na decisão de internamento hospitalar. A presença
dispneia expiratória na primeira infância como o de taquipneia com frequência respiratória (FR) >
refluxo gastresofágico, a fibrose quística, a fístula 60/m, saturação em O2 < 92% respirando ar/FiO2
tráqueo-esofágica, as anomalias dos grandes vasos a 21%, a presença de dificuldade alimentar grave
e, finalmente, a asma brônquica. Mais de 50% das e desidratação, de prostração e gemido, idade < 6
CAPÍTULO 85 Bronquiolite aguda 477

QUADRO 3 – Avaliação da gravidade e terapêutica na bronquiolite aguda

Ligeira Moderada Grave


Capacidade alimentar normal Dificuldade respiratória moderada com adejo Recusa alimentar
Dificuldade respiratória ligeira nasal e retracções costais (FR 50-70) Dificuldade respiratória grave / retracção costal
(FR <50) Hipoxémia ligeira corrigida com O2 acentuada, adejo nasal e gemido (FR > 70)
Sem necessidade de O2 Agravamento de dificuldade respiratória Hipoxémia não corrigida com O2
suplementar (Saturação em durante alimentação Episódios de apneia frequentes
O2>96%) Breves episódios de apneia Cansaço progressivo

Sem necessidade de exames Internamento Internamento


complementares O2 suplementar para obter Saturação de O2≥90% O2 suplementar para obter Sat O2≥90%
Tratamento no domicílio (pais Ponderar fluidoterapia endovenosa e Eventual necessidade de ventilação
esclarecidos) se idade > 3 meses alimentação por sonda gástrica mecânica/unidade de cuidados intensivos
Reavaliação pelo médico Monitorização Pausa alimentar / fluidoterapia endovenosa
assistente Telerradiografia do tórax Monitorização cardiorrespiratória e gasometria
Aspirado nasofaríngeo para diagnóstico Aspirado nasofaríngeo para diagnóstico
etiológico etiológico
Adrenalina em nebulização (ver texto) Ponderar broncodilatador (salbutamol inalado
ou adrenalina em nebulização)

Se melhorar Se melhorar
Reintroduzir alimentação Reintroduzir alimentação
Alta quando satO2 (com ar ambiente) for >90% Alta quando satO2 (com ar ambiente) for >90%
Reavaliação continuada pelo médico assistente Reavaliação continuada pelo médico assistente

semanas e ainda a presença de doença de base que deverá ser colocada em posição de tórax e cabeça
aumenta o risco de complicações da doença, são elevados a 30º, podendo ser necessária a entubação
factores decisivos para o internamento hospitalar nasogástrica para providenciar a alimentação.
da criança, ainda que apenas para vigilância de A maioria das situações evolui, assim, para a
parâmetros vitais e terapêutica de suporte. cura em 7 a 14 dias, sem complicações. Estas
A leitura da alínea sobre Tratamento ajudará a poderão surgir, sobretundo, nos casos compor-
compreender na íntegra o referido quadro. tando factores de risco de doença mais grave, tais
como antecedentes de prematuridade, patologia
Tratamento respiratória (como displasia broncopulmonar –
DBP), cardíaca, imunodeficiência ou imunossu-
Sendo a bronquiolite uma doença autolimitada, as pressão, etc. (Quadro 1).
formas ligeiras poderão requerer apenas as habituais A seguir são sistematizadas as principais
medidas de humidificação e aspiração cuidadosa medidas a aplicar com base em recomendações e
das secreções da via respiratória (que promovem a consensos recentes da Academia America de
sua drenagem e desobstrução por mecanismos Pediatria decorrentes de estudos cientifícos.
fisiológicos), dos cuidados alimentares, hidratação, (medicina baseada na evidência).
e do esclarecimento de quem presta os cuidados. Alguns procedimentos já foram descritos
A nebulização com soluto de NaCl hipertónico, a sucintamente a propósito dos critérios de gravi-
3% (não por rotina) poderá ser benéfica (ver dade (Quadro 3).
adiante).
Com o fim de diminuir o risco de aspiração de Oxigenoterapia
alimento para a via repiratória face à SDR, a criança Na bronquiolite moderada a grave, e sempre que a
478 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

saturação em O2 seja persistentemente <90% o Em circunstâncias a ponderar poderão ser


oxigénio humidificado é a medida terapêutica mais utilizados em concomitância os referidos dois
importante (usualmente por cânulas nasais a um broncodilatadores.
ritmo máximo de 2L/m ou por máscara facial a A adrenalina, (preferível ao salbutamol em
4L/m). Crianças com episódios de hipoxémia ambiente hospitalar) evidencia propriedades,
(saturação em O2 < 90%), episódios de apneia ou tanto alfa como beta adrenérgicas; o efeito alfa-
gasometria capilar com PO2 < 60 mmHg, PCO2 > 60 adrenérgico, através da vasocontrição dos vasos
mmHg ou pH < 7.25 poderão necessitar de pulmonares e da redução do edema, tem sido
internamento em unidade de cuidados intensivos e considerado útil no tratamento da bronquiolite.
eventual assistência respiratória com CPAP (pressão Nas formas moderadas (Quadro 3) está indi-
positiva contínua) ou ventilação convencional. cada a administração de duas doses de adrenalina
Estas formas moderadas/graves quase sempre através de nebulização com intrevalo de 30
têm indicação de hidratação por via endovenosa, minutos (3ml da solução a 1/1000) avaliando-se o
com necessidade de balanço de fluidos rigoroso resultado durante pelo menos 2 horas no serviço
e/ou alimentação por sonda nasogástrica. de urgência. Havendo melhoria, a situação poderá
ser tratada em regime ambulatório.
Antibioticoterapia
A utilização de antibióticos somente está indicada Corticosteróides
se se provar a coexistência de infecção bacteriana Os corticosteróides (inalados – budesonido,
a qual deverá ser tratada do mesmo modo, caso fluticasona, por ex; orais – prednisolona, beta-
tivesse surgido na ausência de bronquiolite. metasona, por ex.) têm sido utilizados no trata-
Dados sugestivos são febre persistente, mento agudo da bronquiolite numa tentativa de
leucocitose com neutrofilia, proteína C reactiva reduzir, tanto os sintomas agudos, como a pieira
elevada e agravamento do quadro clínico. pós-bronquiolite aguda. De acordo com diversos
estudos, com resultados variáveis, não se con-
Broncodilatadores seguiu demonstrar benefício dos corticosteróides
A resposta aos broncodilatadores alfa e beta- no tratamento da bronquiolite aguda. Os estudos
adrenérgicos sendo imprevisível, determina que os em que se observaram efeitos positivos incluiram
mesmos não sejam indicados como rotina na crianças com pieira recorrente (com hiperreacti-
bronquiolite. Podem, de facto originar melhoria vidade brônquica e muito provável asma) e que
clínica, nem sempre significativa; a resposta clínica possivelmente por este motivo, responderam aos
sugere, por outro lado, que no doente em que corticosteróides.
foram aplicados existe comportamento de Consequentemente, os corticosteróides não
hiperreactividade brônquica; ou seja, algumas das estão indicados como rotina nos casos de bron-
crianças com primeiro episódio de “pieira” po- quiolite aguda (ver capítulo 64).
derão ter asma. Assim, será lícito o seu emprego
por via inalatória como atitude inicial, procedendo Cinesiterapia respiratória
à sua interrupção no caso de não existir melhoria. No tratamento agudo da bronquiolote é impor-
No nosso meio os broncodilatores mais usados tante um manuseamento mínimo do doente; por
por via inalatória, nas formas graves e/ou que isso a utilização da cinesiterapia respiratória não
requerem internamento são a salbutamol e o deve fazer parte do tratamento de rotina; nomea-
brometo de ipratrópio, este último particularmente damente está contraindicado se existir pieira rela-
eficaz também como antitússico (ver capítulo 64). cionável com broncospasmo.
Se se verifica efeito após 1ª dose (brometo A cinesiterapia respiratória pode estar
ipratrópio: 125 μg) o fármaco pode ser continuado indicada apenas nas formas associadas a pertur-
até 4 a 8 vezes/dia. bação da ventilação pulmonar por atelectasia.
Quanto ao salbutamol: 75-150 μg/kg/dose
(0.015-0.03 ml/kg/dose), a repetir dentro dos Ribavirina
limites definidos [mínimo 0.25 ml, máximo: 1ml]. A ribavirina é um nucleósido análogo das purinas.
CAPÍTULO 85 Bronquiolite aguda 479

Pensa-se que este medicamento possa interferir Nos casos graves poderá estar indicada ven-
com o funcionamento normal do ácido nucleico tilação mecânica em UCI.
vírico. A ribavirina tem actividade contra o VSR,
vírus da gripe e da hepatite C. As revisões Outros tratamentos
sistemáticas não demontraram qualquer efeito com a Outros tratamentos incluindo o interferão, a vita-
utilização da ribavirina nas situações agudas, embora mina A e a desoxirribonuclease humana recom-
exista certo benefício (não significativo) nos binante 1 (rhDNase 1) foram experimentados mas
indivíduos com doença grave requerendo não revelaram benefício. Os produtos naturais
internamento numa unidade de cuidados inten- chineses, o surfactante, e o Heliox merecem pos-
sivos. sivelmente investigações adicionais. Com base nos
Embora as orientações iniciais surgerissem que dados actuais o surfactante o Heliox (70% de hélio
este medicamento fosse administrado sob a forma e 30% de oxigénio) e nebulização com NaCl a 3%
de aerossol durante 12-18 horas diariamente, ele devem ser reservados para os doentes internados
tem sido utilizado durante períodos mais curtos em unidades de cuidados intensivos pediátricos.
(duas horas três vezes por dia) na mesma dose de 6
g/dia. A ribavirina é administrada durante 3-5 dias. Profilaxia da infecção pelo VSR
Tratando-se duma droga potencialmente tóxica
e teratogénica para grávidas que com ela con- Não existe ainda uma vacina eficaz contra o VSR.
tactam, e igualmente dispendiosa e difícil de O anticorpo monoclonal humano recombinante
administrar, a sua utilização deve ser restringida (Palivizumab) pode reduzir a taxa de hospita-
apenas a doentes seleccionados, com risco de lização nos grupos de risco (como crianças com
infecção grave. antecedentes de prematuridade, doentes com
displasia broncopulmunar ou cardiopatia), não se
Imunoglobulina anti-VSR tendo provado redução de necessidade de venti-
A imunoglobulina anti-VSR, obtida de dadores lação mecânica. De salientar que existem normas
adultos com títulos elevados anti-VSR, comporta da Sociedade Portuguesa de Pediatria para a sua
risco baixo de transmissão vírica por via san- utilização preventiva nestes grupos de risco.
guínea devido ao processo de esterilização a que é Nas situações atrás referidas são recomendadas 5
submetida. doses mensais na chamada época fria, com ínicio
Actualmente, não é recomendada a utilização em Novembro (15mg/kg/dose) por via IM.
da imunoglobulina anti-VSR no tratamento da A grande viabilidade do vírus no meio
bronquiolite aguda. ambiente facilita a sua transmissão pelos que ro-
deiam a criança (pais e familiares, educadoras,
Palivizumab pessoal de saúde); são, assim, importantes me-
O palivizumab é um anticorpo monoclonal de didas simples mas eficazes como a correcta
origem humana produzido através de tecnologia lavagem das mãos, uso de bata, luva e máscara,
de ADN recombinante, com uma actividade seme- limitação dos contactos e quartos de isolamento
lhante contra ambas as estirpes (A e B) do VSR. Não para doentes nos quais foi isolado o VSR. Medidas
está provada eficácia no tratamento da bronquiolite ambientais como a evicção do fumo do tabaco são
aguda. Este medicamento é recomendado para pre- igualmente importantes.
venir a bronquiolite pelo VSR (ver adiante). A AAP chama atenção para a eficácia da
fricção das mãos com compressas embebidas em
Assistência respiratória álcool após lavagem convencional das mesmas.
A bronquiolite pelo VSR pode causar insuficiência As orientações dos Centers for Disease Control
respiratória grave, sendo, por vezes necessário o and Prevention sugerem que a lavagem frequente
suporte ventilatório. Muitas unidades têm facili- das mãos e a não partilha de objectos, tais como
dade em instituir aplicação de pressão positiva chávenas, copos e outros outros utensílios com as
contínua das vias aéreas (CPAP) como medida ini- pessoas com uma infecção pelo VSR podem reduzir
cial de assistência respiratória. o risco de disseminação. Admite-se que não é
480 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

necessário impedir as crianças com resfriados ou QUADRO 4 – Complicações de bronquiolite


outras doenças respiratórias (sem febre) e bom
estado geral, de frequentarem infantários ou escolas. • Atelectasia
Salienta-se mais uma vez o facto de o facto de • Hiperreactividade brônquica
o tabagismo passivo aumentar o risco de inter- • Bronquiolite obliterante
namento por bronquiolite. • Bronquiectasias
A AAP chama igualmente a atenção para o • Síndroma do pulmão hiperlucente
facto de, na criança alimentada com leite materno, • Pneumonia bacteriana
se verificar menor probalidade de infecções das • Estenose brônquica
vias respiratórias inferiores; trata-se, pois do papel • Granuloma endobrônquico
preventivo do leite materno, como recomendação
explícita.
sobretudo se houver história pessoal ou familiar
Complicações e prognóstico de atopia ou detecção de IgE específica para o VSR
nas secreções nasofaríngeas.
A bronquiolite é considerada uma doença de 2 – Outros estudos sugerem tratar-se de
baixa mortalidade (inferior a 0.01%) a qual está sequela a longo prazo da lesão bronquiolar
relacionada com patologia concomitante e pré- induzida pela infecção vírica ou relacionável com
existente que aumenta o risco de complicações. factores do hospedeiro como a presença de calibre
No entanto, a sua morbilidade é importante, mais reduzido das vias aéreas ou distensibilidade
sendo relativamente frequentes as complicações pulmonar perturbada; tal não implica, no entanto
na fase aguda, sobretudo as do foro respiratório que venha a desenvolver-se asma na idade escolar
como a atelectasia e a insuficiência respiratória em tais circunstâncias.
obrigando, por vezes, à necessidade de ventilação 3 – Com base noutros estudos demonstrou-se
mecânica. Também pode observar-se pneumo- que, se não existir história familiar de atopia, a
tórax, pneumomediastino e infecções bacterianas tendência para pieira pós-bronquiolítica regredirá
secundárias como pneumonia e otite. A deterio- por volta dos 10 anos de idade.
ração súbita com apneia é uma complicação, so- O Quadro 4 sintetiza as principais complicações.
bretudo no lactente pré-termo.
Há casos com evolução mais arrastada, man- BIBLIOGRAFIA
tendo tosse, sibilância e/ou dispneia expiratória Bertrand P, Aranibar H, Castro E, Sanchez I. Efficacy of nebu-
para além de duas semanas (por vezes meses) ou lized epinephrine versus salbutamol in hospitalized infants
evoluindo com crises de agravamento e intolerância with bronchiolitis. Pediatr Pulmonol 2001; 284-288
progressiva ao esforço. Trata-se dum quadro clínico Bilderling G, Bodart E. Bronchiolitis management by the
designado por bronquiolite obliterante, abordada no Belgian paediatrician: discrepancies between evidence
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Muitos autores têm demonstrado que nalgumas Bisgaard H. Randomized trial of montelukast in respiratory
crianças se mantém, após o primeiro episódio de sincytial virus postbronchiolitis. Am J Respir Crit Care Med
bronquiolite, alteração da função respiratória, ou 2003; 167: 379-383
hiperreactividade brônquica, que pode persistir Bisgaard H. Intermittent inhaled corticosteroids in infants with
desde meses até 8 a 10 anos (sobretudo após episodic wheezingh. N Engl J Med 2006; 354: 1998-2005
infecção pelo VSR); tal alteração muitas vezes Budhiraja S, Verma R, Shields M. The management of acute
traduz-se por episódios de sibilância recorrente, bronchiolitis in infants. Paediatrics and Child Health 2013;
levando ao diagnóstico de asma do lactente ou de 23: 296-300
pieira recorrente da infância. Não estão cabalmente Caiulo VA, Gargani L, Caiulo S, et al. Lung ultrasound in bron-
esclarecidos os factores que condicionam este chiolitis: comparison with chest X-ray. Eur J Pediatr 2011;
quadro sendo admitidas várias hipóteses: 170:1427-1433
1 – Estudos epidemiológicos sugerem que tais Destino L, Weisgerber MC, Soung P, et al. Validity of respirato-
crianças fazem parte da população asmática, ry scores in bronchiolitis. Hospital Pediatrics 2012; 2:202-209
CAPÍTULO 86 Bronquiolite obliterante 481

86
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Martinon-Torres F, Rodriguez-Nunez A, Martinon-Sanchez afecção é englobada, sob o ponto de vista nosoló-
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Medical , 2011 *As chamadas doenças pulmonares intersticiais da infância (segundo
Secção de Neonatologia da SPP. Prevenção da infecção por alguns autores anglófonos designadas síndromas ChILD) compreen-
dem um grupo heterogéneo de doenças pulmonares crónicas caracteri-
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que: - integra situações clínicas com manifestações semelhantes , mas
olitis: Significant Effect or Provocative Findings? Am J com etiopatogénese diversa; - e a patologia respectiva envolve sobretu-
Respir Crit Care Med 2003; 167: 290-291 do a via aérea, mais do que o interstício. Na sua base estão factores
genéticos , podendo associar-se a doenças sistémicas e processos infla-
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matórios ou fibróticos como resposta a diversos estímulos. São consi-
young wheezers? J Allergy Clin Immunol 2007; 119: 567-569 derados 3 grandes grupos de DPI ou ILD/interstitial lung disease: 1)
www.uptodate.com (acesso Outubro 2012) de etiologia conhecida[por ex. doenças genéticas(lisossómicas, do
metabolismo do surfactante,etc.), infecção crónica, DBP,etc.]; 2) de etio-
logia desconhecida[por ex. síndromas de hemorragia alveolar
difusa(incluindo a “histórica” hemossiderose pulmonar a abordar
adiante), certas formas de bronquiolite obliterante, doenças do colagé-
nio, proteinose alveolar,etc.]; 3) formas exclusivas da infância , sobre-
tudo em crianças com < 2 anos[ por ex. hiperplasia celular neuroendó-
crina, glicogenose intersticial pulmonar, anomalias do crescimento e
desenvolvimento pulmonares, defeitos genéticos do metabolismo do
surfactante a que foi feita alusão sob outro ponto de vista noutra alínea,
hemorragia pulmonar idiopática da infância, etc.] (ver Capítulo 89).
482 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

dos tipos 3, 7 e 21. Outras infecções têm sido asso- Ocasionalmente o processo obliterativo é pre-
ciadas ao aparecimento de BO, nomeadamente dominantemente unilateral traduzido radiologi-
por Legionella, Mycoplasma, B. pertussis, vírus camente por um quadro de pulmão hipertrans-
influenza e do sarampo. Também a aspiração de parente unilateral ou síndroma de Swyer-James.
material estranho, em particular conteúdo gástri- Neste caso, um exame torácico cuidadoso pode
co ácido em casos de refluxo gastresofágico, ou a evidenciar sinais localizados no pulmão afectado.
inalação de tóxicos (por ex. NO2, NH3), podem
levar ao aparecimento de BO. Alguns casos têm Diagnóstico
sido associados a artrite reumatóide, escleroder-
mia, lúpus eritematoso e síndroma de Stevens- O diagnóstico é sugerido pela clínica de tosse
Johnson. arrastada, pieira e dificuldade respiratória variá-
Nos últimos anos a BO tem sido descrita como vel, evoluindo: com períodos de melhoria segui-
uma complicação tardia major da transplantação dos de agravamento, mais frequentemente após
pulmonar. Além disso, têm sido identificadas infecção pulmonar moderada a grave por adeno-
lesões semelhantes (nos doentes transplantados vírus ou Mycoplasma; ou com obstrução respira-
com medula óssea) associadas a doença enxerto- tória persistente respondendo mal aos broncodila-
hospedeiro. Nalguns casos não é possível deter- tadores, após transplante de medula óssea. A
minar a etiologia. recuperação clínica em geral é incompleta e o
A BO inicia-se como uma pneumonia grave doente raramente fica assintomático.
necrosante com destruição do epitélio bronquio- A radiografia do tórax evidencia sinais de
lar. Quando ocorre a cicatrização, massas de teci- insuflação com hiperclaridade pulmonar periféri-
do de granulação obstruem o lume dos pequenos ca e zonas de opacidade do interstício, espessa-
brônquios e bronquíolos, tornando-se posterior- mentos peribrônquicos e áreas dispersas de bron-
mente fibróticas e causando obliteração parcial ou copneumonia, podendo haver colapso ou consoli-
total das vias aéreas. Nos casos mais graves há dação de segmentos ou lobos.
destruição do músculo e do tecido elástico com A broncoscopia não mostra obstrução das
fibrose da parede e áreas envolventes. Existem grandes vias aéreas, e a broncografia – na época
áreas heterogéneas de distensão e outras de atelec- em que era realizada – evidenciava aspecto carac-
tasia. O calibre do leito capilar pulmonar fica terístico em “árvore de inverno” sem contraste
diminuído. Devido à obstrução, a resistência aérea nos pequenos brônquios.
e o trabalho respiratório aumentam. A perfusão de Quer a cintigrafia, quer a angiografia digital,
áreas pulmonares mal ventiladas causa hipoxé- podem evidenciar diminuição da vasculatura pul-
mia, e a diminuição na ventilação eficaz causa monar periférica. Estes aspectos geralmente são
hipercapnia. A hipoxémia crónica, obstrução aérea difusos, dispersos e bilaterais, mas podem ser
e redução do calibre do leito vascular pulmonar, localizados a um pulmão ou lobo como na síndro-
levam a edema pulmonar, o que compromete adi- ma de Swyer-James. A confirmação diagnóstica
cionalmente as trocas gasosas. poderá obter-se com biópsia pulmonar que deverá
ser cirúrgica face à natureza dispersa das lesões.
Manifestações clínicas A tomografia computadorizada de alta defi-
nição (TCAD) melhorou muito a capacidade de
Na fase aguda a doença não se distingue da diagnóstico de lesões das pequenas vias aéreas.
bronquiolite aguda: tosse, febre, pieira e dificul- Na BO frequentemente existe um padrão em
dade respiratória. Contudo, a evidência de bronco- vidro despolido bilateral, com áreas de hiperden-
pneumonia e pneumonia intersticial é mais co- sidade alternando com outras de hipodensidade e
mum. Após um período breve de aparente me- rarefação da vascularização na periferia dos cam-
lhoria ou resolução, voltam a surgir sintomas de pos pulmonares. Presentemente a história clínica
doença obstrutiva pulmonar com dispneia, ta- associada a estes aspectos típicos na TCAD tor-
quipneia e tosse crónica. A auscultação pulmonar nam desnecessária a própria biópsia pulmonar em
revela fervores e sibilos geralmente dispersos. muitos casos.
CAPÍTULO 86 Bronquiolite obliterante 483

As provas de função respiratória são impor- Contudo, geralmente são usados, podendo haver
tantes não só no diagnóstico como no seguimento benefício clínico mesmo em doentes em que não
destes doentes. Geralmente evidenciam sinais de se verifica melhoria da função respiratória.
doença pulmonar obstrutiva irreversível. O fluxo É possível que os corticóides possam limitar a
expiratório forçado a meio da expiração (FEF 25- progressão da doença modificando a resposta
75) é um bom indicador de doença das pequenas fibroblástica na fase inicial. Usam-se por via oral,
vias aéreas. A sua descida marcada abaixo de 30% por vezes durante períodos prolongados de
do valor previsível é um indicador sensível de BO. meses. Alguns doentes beneficiam desta tera-
Em doentes submetidos a transplantes de pêutica melhorando a sua função pulmonar; con-
órgãos sólidos ou medula óssea, têm sido des- tudo, outros não. Admite-se que a resposta positi-
critos quadros clínicos com pneumonite intersti- va aos broncodilatadores possa indiciar utilidade
cial aguda não infecciosa e bronquiolite. Aparen- da corticoterapia prolongada.
temente tais quadros estão relacionados com Em centros especializados têm sido utilizados
doença enxerto-hospedeiro ou são devidos à qui- agentes imunomodulares (por ex. tacrolimus),
mioterapia, respondendo à terapêutica imunomo- ciclofosfamida em aerossol e macrólidos nos casos
duladora. de BO associada a transplantes pulmonares.
A BO pode ocorrer, tal como foi referido, como Também o infliximab (anticorpo monoclonal)
complicação tardia grave do transplante pul- que se liga ao TNF-alfa, tem sido empregue nos
monar. A patogénese é desconhecida, mas parece casos de doentes transplantados com medula
tratar-se de uma forma peculiar de rejeição de óssea.
órgão. Ocorre em quase 50% dos sobreviventes de
transplante pulmonar e não responde à terapêuti- Prognóstico
ca usual, podendo ser irreversível.
Nos últimos anos uma entidade patológica A evolução dos doentes com BO varia muito: desde
diferente chamada bronquiolite obliterante- alguns com sintomas ligeiros que melhoram
pneumonia organizativa (BOOP) tem sido gradualmente sobretudo depois dos 8-10 anos, até
descrita associada a várias doenças pulmonares outros que continuam a ter significativa doença
incluindo pneumonias infecciosas, inalação de respiratória com obstrução crónica, bronquiectasias
tóxicos e doenças do colagénio vascular. O aspec- e infecções recorrentes. Mais raramente podem ter
to anatomopatológico é semelhante à BO excepto evolução rapidamente progressiva para insufi-
no que respeita a uma característica: os septos ciência respiratória e morte pouco tempo depois do
alveolares estão espessados por um infiltrado início dos sintomas. Presentemente o prognóstico
celular inflamatório crónico e existe hiperplasia em geral é razoavelmente bom com uma morta-
das células tipo II. lidade baixa. Nalguns casos graves tem sido feito
transplante pulmonar.
Tratamento
BIBLIOGRAFIA
O tratamento é de suporte e inclui oxigénio para Champs NS, Lasmar LMLBF, Camargos PAM, et al.
manter saturação O2-Hb adequada prevenindo a Bronquiolite obliterante pós-infecciosa em crianças. J
hipertensão pulmonar e a insuficiência cardíaca. Pediatr /Rio J) 2011; http://dx. doi.org/10.223/JPED.2083
Por vezes os diuréticos são úteis no tratamento do Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
edema pulmonar. É importante evitar lesão Guimarães J. Pieira.In: Radiologia do Tórax em Pediatria.
pulmonar secundária, quer por infecção, quer por Amadora: Roche Farmacêutica Química, 1997; 64-76
aspiração nos casos em que há refluxo Kim CK, Kim SW, Kim JS, Koh YY, Cohen AH, Deterding RR,
gastresofágico. A fisioterapia respiratória e a White CW. Bronchiolitis obliterans in the 1990’s in Korea
manutenção de um bom estado nutricional são and the United States. Chest 2001; 120:1101-1106
também muito importantes. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
O papel dos broncodilatadores é controverso, Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
pois os doentes com BO têm obstrução fixa. Saunders, 2011
484 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

87
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case. Case Reports in Hematology2012; doi:10.1155/2012/
957612 Definição e importância do problema
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York : McGraw-Hill A bronquite aguda consiste num processo infla-
Medical , 2011 matório agudo da mucosa dos brônquios de iní-
Wohl MEB. Bronchiolitis. In: Chernick V and Boat T (eds). cio abrupto, geralmente de origem vírica, em que
Kendig’s Disorders of the Respiratory Tract in Children. a tosse é o sinal proeminente. De acordo com
Philadelphia: Saunders, 1998; 473-484 estatísticas dos Estados Unidos, estima-se que na
Zhang L, Irion K, Kozakewich H, Reid L, Camargo JJ, Porto idade pré-escolar ocorram cerca de 2 milhões de
NS, Silva FA. Clinical course of postinfectious bronchiolitis episódios de bronquite aguda. Dum modo geral
obliterans. Pediatr Pulmonol 2000; 29; 341-350 acompanha ou surge na sequência de rinofarin-
gite aguda ou de traqueíte aguda, fazendo parte
do quadro clínico acompanhante doutras doenças
infecciosas ou do foro respiratório com localização
diversa.
A bronquite crónica corresponde a uma situa-
ção caracterizada por produção excessiva de
muco e tosse, associada a febre em períodos não
inferiores a 3 meses. De facto, surgindo como
manifestação clínica ou epifenómeno de um con-
junto doutras entidades, em idade pediátrica o
termo “bronquite crónica“ não tem a relevância
que lhe é atribuída no adulto,acabando por
prevalecer a situação de base como entidade.

Etiologia

Os agentes infecciosos mais frequentemente asso-


ciados à bronquite aguda são:os adenovírus dos
tipos 1, 7 e 12, vírus influenza e para-influenza, o
vírus sincicial respiratório e os rinovírus.
Relativamente às bactérias estão mais fre-
quentemente implicadas Bordetella pertussis e para
pertussis, Haemophilus influenzae, Streptococcuus
pneumoniae e Streptococcus pyogenes.
Outros germes igualmente isolados são: o
Mycoplasma pneumoniae e a Chlamydia psittaci.
O factor ambiente através das poeiras, fumos e
CAPÍTULO 87 Bronquite 485

alergénios (estes últimos abordados noutro capí- com soro fisiológico e aspiração nasal cuidadosa,
tulo) tem igualmente papel importante. mas eficaz, das secreções; antipiréticos com
Está provada a associação entre fumo do taba- prudência (paracetamol) e suprimento abundante
co (activo ou passivo), poluição do ar e bronquite, de líquidos por via oral para promover a muco-
com ou sem sibilância. lise. Os antitússicos deverão ser utilizados com
No que respeita à bronquite crónica, em ter- prudência e apenas nas situações de tosse não pro-
mos de factores etiológicos, tem perfeito cabimen- dutiva. Em circunstâncias especiais e em crianças
to, o que foi referido a propósito das pneumonias maiores poderão ser utilizados anti-histamínicos
recorrentes. durante 3-4 dias, havendo congestão nasal impor-
tante.
Manifestações clínicas Nos casos de infecção bacteriana secundária
está indicada antibioticoterapia.
Os sinais e sintomas característicos são tosse e
febre associados a processo inflamatório das vias BIBLIOGRAFIA
respiratórias superiores, sendo notória a rinite Arnold JC, Singh KK, Spector SA, et al. Human bocavirus:
mucopurulenta com obstrução nasal. A tosse é Prevalence and clinical spectrum at a children´s hospital.
inicialmente seca , irritatativa, não produtiva, tor- CID 2006; 43: 283-288
nando-se produtiva nos dias seguintes. Nos Arroll B, Kenealy T. Antibiotics for acute bronchitis. BMJ 2001;
lactentes a tosse é emetizante conduzindo a ano- 322: 939-940
rexia e , por vezes, a desidratação. Chernick V, Boat TF. Kendig’s Disorders of the Respiratory
Nas crianças maiores poderá haver expecto- Tract in Children. Philadelphia: Saunders, 1998
ração e dor torácica. Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics.
A evolução tem, em geral, a duração de uma Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
semana, com uma fase de recuperação de 1-2 Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
semanas em que é típica a tosse persistente. Trata- Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
se em geral dum processo autolimitado e beni- Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
gno. Saunders, 2011
Poderá surgir infecção bacteriana secundária. Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph´s Pediatrics.
As situações crónicas de “bronquite” obrigam ao New York: Mac Graw Hill Medical, 2011
diagnóstico diferencial com displasia broncopulmonar, Taussig LM, Landau LE. Pediatric Respiratory Medicine. St
bronquectasias e fibrose quística. Louis:Mosby, 1999
Os dados auscultatórios do tórax revelam ron-
cos dispersos mais audíveis na metade superior
da caixa torácica.
A radiografia do tórax é em geral normal na
ausência de sobreinfecção bacteriana. Os exames
complementares têm valor limitado, sugerindo
em geral processo vírico. O hemograma poderá
revelar leucocitose ligeira e, em cerca de 1/3 dos
casos, mesmo nos processos compravadamente de
etiologia vírica, neutrofilia ligeira.

Tratamento e complicações

O tratamento mais eficaz é o tratamento preventi-


vo incluindo o cumprimento do programa de va-
cinas disponíveis.
Uma vez surgido o episódio, são adoptadas
apenas medidas paliativas: desobstrução nasal
486 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

88
QUADRO 1 – Factores etiológicos

Infecções
Vírus (adenovírus, sarampo, VIH, VSR), tuberculose,
tosse convulsa, Aspergillus, Pseudomonas, Mycoplasma.

BRONQUIECTASIAS Doenças congénitas


Deficiência da cartilagem (síndroma de Williams-
Ana Margarida Reis e José Cavaco Campbell), traqueobroncomegalia (síndroma de Mounier-
Kuhn), síndroma de Marfan, síndroma de Ehler-Danlos,
discinésia ciliar primária, síndroma de Kartagener, fibrose
quística, deficiência de alfa1-antitripsina.
Definição
Imunodeficiência
Esta entidade clínica, descrita pela primeira vez Primária (hipogamaglobulinémia), secundária (causada
por Laennec em 1819, define-se como uma dila- por neoplasia, quimioterapia ou imunossupressão).
tação anormal, permanente e irreversível do cali-
bre brônquico, provavelmente como resultado de Obstrução
diversos eventos patológicos. Aspiração de corpo estranho, tumor, estenose, com-
Na criança a incidência das bronquiectasias pressão por anomalia congénita, asma, síndroma do
diminuiu nos últimos anos em resultado do lobo médio.
desenvolvimento dos programas de vacinação, do
tratamento precoce e adequado das infecções Aspiração
respiratórias, e da melhoria do estado de nutrição. Refluxo gastresofágicoo, anomalias congénitas.

A incidência real desta doença é difícil de avaliar


Inalação de gases tóxicos
devido à baixa suspeita clínica que condiciona o
Heroína, amónia, dióxido sulfúrico.
subdiagnóstico; no entanto, pode considerar-se
que é relativamente rara nos países desenvolvidos.
Abreviaturas: VIH: vírus da imunodeficiência humana;
VSR: vírus sincicial respiratório.
Etiopatogénese

Nos países desenvolvidos a causa mais frequente posta por situs inversus, sinusite e bronquiecta-
de bronquiectasias é a fibrose quística, devido à sias. A discinésia ciliar primária é uma doença
obstrução brônquica e infecção crónica associada autossómica recessiva caracterizada por uma
a esta doença. No entanto, os factores etiológicos diminuição de função dos cílios brônquicos que
de bronquiectasias são múltiplos, como se pode contribui para a retenção das secreções e infecções
observar no Quadro 1. recorrentes.
Devido à melhoria dos cuidados de saúde O refluxo gastresofágico e as aspirações cróni-
algumas doenças como a tuberculose, sarampo e cas secundárias às dificuldades de deglutição
tosse convulsa, que eram as principais causas de podem complicar-se com lesões brônquicas.
bronquiectasias, diminuiram significativamente A presença prolongada de corpo estranho nas
em incidência; no entanto, a infecção pulmonar vias aéreas provoca obstrução crónica e inflamação,
ainda constitui o factor predisponente mais rele- factores importantes do desenvolvimento de
vante do desenvolvimento de bronquiectasias. O bronquiectasias.
adenovírus é particularmente agressivo para o A síndroma do lobo médio, que se caracteriza
pulmão. O vírus sincicial respiratório (VSR) pode por atelectasia persistente deste lobo, é uma causa
causar bronquiectasias se a infecção ocorrer em frequente de bronquiectasias localizadas, pela au-
crianças nascidas pré-termo. sência de ventilação colateral; com efeito o brôn-
A síndroma de Kartagener é uma tríade com- quio lobar médio é mais longo e de calibre mais
CAPÍTULO 88 Bronquiectasias 487

estreito, sendo a drenagem mais difícil. Uma das em cacho de uva. Este achado encontra-se nas
principais causas desta síndroma é a asma. formas graves de bronquiectasias.
De salientar que em muitos casos a etiologia
continua desconhecida. Manifestações clínicas
As bronquiectasias, primariamente uma doen-
ça dos brônquios e bronquíolos, envolvem um Nas crianças existe habitualmente tosse que pode
ciclo vicioso de obstrução, infecção e inflamação ser produtiva (as crianças deglutem as secreções);
transmural, com libertação de mediadores. Existe por vezes a expectoração é purulenta com cheiro
uma agressão inicial das vias aéreas que com- fétido. As hemoptises são mais raras do que nos
promete os mecanismos de defesa, causando adultos. A recidiva de pneumopatia no mesmo
colonização bacteriana da árvore brônquica. Na território ou infecções brônquicas de repetição,
tentativa de eliminar estes microrganismos surge devem fazer suspeitar de bronquiectasias.
uma reacção inflamatória que é ineficaz e, por este Existem outros sinais menos específicos como
motivo, se torna crónica. Esta reacção provoca atraso do desenvolvimento estaturo-ponderal ou
destruição da parede brônquica e consequente febre inexplicada. Na anamnese é importante
alteração e compromisso dos mecanismos de defe- salientar os antecedentes familiares de doença
sa com aumento da susceptibilidade à invasão respiratória, a consanguinidade assim como os
bacteriana. Neste processo parece estarem envol- antecedentes pessoais desde o período neonatal.
vidos neutrófilos e linfócitos-T, tendo sido encon- O exame objectivo permite evidenciar sinais de
tradas na expectoração concentrações aumentadas gravidade como a alteração do estado geral,
de elastase, interleucina-8 e factor de necrose atraso estaturo-ponderal, deformação torácica,
tumoral alfa (TNF-alfa). dispneia, cianose e hipocratismo digital. A
Microscopicamente o lume brônquico encon- auscultação permite detectar fervores nas áreas
tra-se obstruído por muco, há hipertrofia e afectadas, por vezes sibilos e roncos.
hiperplasia das células caliciformes e glândulas da As provas de função respiratória revelam
submucosa, com infiltração da mucosa e sinais de obstrução, podendo ocorrer também
submucosa por células inflamatórias; verifica-se defeito restritivo nos doentes em que existe des-
também hipervascularização brônquica e truição avançada do parênquima.
destruição do tecido elástico, tecido cartilagíneo e
músculo liso, que são substituídos por tecido Diagnóstico
fibroso.
A telerradiografia de tórax poderá não revelar
Classificação quaisquer sinais anómalos nos estádios mais
precoces. As bronquiectasias são identificadas
Macroscopicamente verifica-se que os brônquios como imagens de dilatação brônquica com
são irregulares e tortuosos, e os bronquíolos dis- espessamento da respectiva parede, hiperinsu-
tais estão obstruídos por secreções, transfor- flação compensatória, impactação mucóide e
mando-se progressivamente em cordões fibrosos. formação quística. Classicamente existem dois
De acordo com o aspecto macroscópico, as sinais característicos: sinal de “anel de sinete”
bronquiectasias podem dividir-se em: (corte de topo do brônquio que é espessado e
– Cilíndricas: nesta forma as vias aéreas dila- maior que o topo da artéria adjacente, o que não
tadas surgem, por vezes, como efeito resi- acontece em situações sem patologia em que a
dual de uma pneumonia; artéria e o brônquio têm tamanhos similares); e
– Varicosas: nesta forma existem áreas constriti- “sinal do carril” (linhas espessadas paralelas que
vas focais ao longo das vias aéreas dilatadas representam corte longitudinal do brônquio). Nos
que resultam de defeitos da parede brônquica; casos mais graves pode ocorrer a imagem de
– Quísticas ou saculares: caracterizadas por pulmão em favo de mel. No entanto, devem ter-se
dilatação progressiva das vias aéreas que ter- em atenção outros sinais como uma condensação
minam em formações quísticas ou aglomerados pulmonar que permanece após antibioticoterapia.
488 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

As exacerbações agudas são reconhecidas pelo


aumento da expectoração, que se torna mais
espessa e purulenta. A antibioticoterapia deve ser
dirigida empiricamente aos agentes mais frequen-
tes que são: Haemophilus influenza, Streptococcus
pneumoniae e Staphylococcus aureus. Pseudomonas
aeruginosa e Proteus vulgaris são menos frequentes.
No tratamento das agudizações moderadas
prefere-se a terapêutica oral com β-lactâmicos e
macrólidos. O antibiótico deve ser posteriormente
ajustado de acordo com o exame bacteriológico da
expectoração. A duração do tratamento é
geralmente 2 a 4 semanas. Para exacerbações mais
graves é, por vezes, necessário recorrer à tera-
pêutica endovenosa.
Nalguns centros procede-se à profilaxia
contínua com macrólidos ou outros antibióticos,
por via oral ou em nebulização.
FIG. 1
Existem outros medicamentos que podem ser
TAC Torácica: Sinais de bronquiectasias no contexto de utilizados, tais como os broncodilatadores inalados
hemossiderose pulmonar. (NIHDE) que diminuem a broncoconstrição, e os corticos-
teróides que reduzem a inflamação das vias aéreas.
A broncografia de anteriores décadas foi Outra vertente importante do tratamento é a
substituída pela TCAD (tomografia computadori- cinesiterapia respiratória que melhora a drenagem
zada de alta definição), que se tornou o método pulmonar.
“gold standard” para o diagnóstico de bronquiecta- As indicações para cirurgia são limitadas a
sias pela elevada sensibilidade e elevada especifici- doentes com: bronquiectasias localizadas, que
dade. sofrem exacerbações frequentes, com complicações
A TAC permite também avaliar as complica- graves como hemoptises maciças, ou processos
ções pulmonares associadas às bronquiectasias piogénicos como o abcesso pulmonar.
(como a bronquiolite obliterante), a extensão e
evolução das lesões, e orientar o tratamento Prognóstico
cirúrgico. (Figura 1)
Através da broncoscopia é possível verificar Apesar de dependente da precocidade do dia-
ou excluir a presença de corpo estranho, efectuar gnóstico e do tratamento, de factores predispo-
a biópsia e colheita de lavado brônquico para dia- nentes e das complicações, o prognóstico é geral-
gnóstico etiológico. mente favorável devido às terapêuticas disponí-
Outros exames complementares de diagnós- veis actualmente, como antibióticos de largo
tico devem ser orientados para as etiologias mais espectro mais eficazes, e à melhoria dos resultados
prováveis. É importante salientar a prova do suor, cirúrgicos.
a intradermorreação de Mantoux e o estudo da
imunidade e alergia. BIBLIOGRAFIA
Angrill J et al. Bronchiectasis. Curr Opin Infect Diseases 2001;
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Globalmente, a actuação tem como objectivos o 1393
tratamento da doença primária, a drenagem das Chernick V, Boat T (eds). Kendig’s Disorders of the Respiratory
secreções, o controlo das infecções agudas e a di- Tract in Children. Philadelphia: Saunders, 1998: 538-550
minuição da colonização bacteriana e da inflamação. Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
CAPÍTULO 89 Síndromas de aspiração 489

89
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Silverman E. et al. Current management of bronchiectasis: produtos, corpos estranhos ou até produtos bio-
review and 3 case studies. Heart Lung 2003; 32; 59-64 lógicos (como por exemplo, secreções naso-
faríngeas e conteúdo gástrico) que podem atingir
intempestivamente a via respiratória e originar
obstrução mecânica e sinais e sintomas que po-
dem culminar em asfixia e morte na ausência de
procedimentos emergentes ou urgentes. Cabe re-
ferir ainda a possível acção de determinados
produtos tóxicos aspirados ou inalados, tais como
petróleo, naftaleno, pó de talco, vapores de
mercúrio, pesticidas, produtos clorados, goma-
laca, berílio, etc., que poderão originar, para além
de obstrução mecânica, a formação de granuloma
e pneumonite intersticial por acção crónica irri-
tativa e agressiva sobre as estruturas canaliculares
da via respiratória.
O objectivo deste capítulo é abordar sucin-
tamente as situações relacionadas com a aspiração
acidental de objectos de pequenas dimensões na
perspectiva de chamada de atenção para a
necessidade de prevenção.

Etiopatogénese

Qualquer objecto de pequenas dimensões (peças


de jogos ou de brinquedos,botões, feijões ou grãos
de leguminosas secas, rebuçados,pequenas peças
acessórias do vestuário de metal ou plástico,etc.)
que ultrapasse a barreira laríngea pode ser aspira-
do para as vias respiratórias inferiores originando
obstrução de grau diverso. Se os objectos aspira-
dos forem constituídos por matéria orgânica, o
risco de vida imediato é menos significativo.No
caso de se tratar de objectos irritantes para a
490 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

mucosa brônquica, o edema da respectiva parede


contribui para agravar a diminuição do calibre da
via respiratória.

Manifestações clínicas

A noção precisa de aspiração de corpo estranho é


rara sobretudo em crianças pequenas com ausên-
cia de testemunhas. Esta circunstância implica,
por isso, elevado índice de suspeita.
Por outro lado, a história de início súbito de
tosse disfónica e dificuldade respiratória ( sibilân-
cia ou estridor, cianose e retracção torácica,
apneia, etc.) é muito típica e sugestiva.
Dum modo geral, os sinais e sintomas depen-
dem da localização do corpo estranho na via res-
piratória.
Localizando-se na traqueia com obstrução
FIG. 1
total, surgirão asfixia e retracções torácicas mar-
cadas . Se a obstrução for parcial e alta, como con- Padrão radiográfico de atelectasia pulmonar (segmento do
sequência surgirão estridor inspiratório e expi- lobo superior à direita) por aspiração de corpo estranho não
ratório assim como retracção costal superior ; se a radiopaco. (NIHDE)
obstrução for baixa e parcial, os sinais serão
sibilância e estridor inspiratório. do idealmente ser feito em inspiração e em expi-
Se a localização for o brônquio principal, os ração, contemplando igualmente as incidências
sinais mais típicos são a tosse , sibilância e, por em decúbito bilateral); poderá não revelar qual-
vezes, hemoptise. quer sinal anómalo ou, pelo contrário, sinais
Se o corpo estranho se alojar em brônquio directos e indirectos. De referir os seguintes sinais:
lobar ou segmentar serão notórios diminuição do enfisema notório na fase de expiração por acumu-
murmúrio vesicular, sibilos e roncos, com sibilân- lação progressiva de ar nos casos de obstrução
cia localizados ao lado afectado. Pela inspecção, parcial e mecanismo valvular; atelectasia; sinais
poderá notar-se diferença quanto ao grau de retracção com desvio do mediastino; (Figura 1)
expansão dos dois hemitóraxes. imagem do próprio corpo estranho caso seja ra-
No caso de haver atraso no diagnóstico, po- diopaco. Como complemento poderá haver neces-
derão surgir episódios recorrentes de sibilância sidade de recurso à vídeo-radioscopia.
diagnosticados como “asma, pneumonia ou bron- A broncoscopia constitui uma técnica obri-
quiectasias”, não sendo de excluir em tal circun- gatória, quer para a confirmação diagnóstica, quer
stância, pneumonia secundária. na perspectiva de intervenção terapêutica para a
Torna-se importante frisar que a possibilidade remoção do corpo estranho.
da presença de corpo estranho nas vias respi-
ratórias deve ser sempre admitida no diagnóstico Prevenção
diferencial de todo e qualquer tipo de problema
respiratório, designadamente na criança pequena, Este tipo de acidentes que surge com mais frequên-
valorizando sempre, claro está, a anammese. cia entre os 6 meses e os 3 anos, pode ser prevenido
através duma vigilância adequada por quem é
Exames complementares responsável pelos cuidados a prestar à criança, e da
escolha apropriada de brinquedos, alimentos ou
A suspeita de aspiração de corpo estranho impli- peças de vestuário para a mesma. Tratando-se de
ca proceder a exame radiográfico do tórax (deven- crianças mais velhas, a prevenção passa pelo pro-
CAPÍTULO 90 Hemossiderose pulmonar e síndromas de hemorragia alveola difusa 491

90
cesso educativo incidindo sobre as próprias (cuida-
do com os objectos dados às crianças pequenas para
brincar: objectos pequenos não!).
Esta acção educativa deve começar na escola
pré-primária.

Tratamento HEMOSSIDEROSE PULMONAR E


Na maior parte das vezes a aspiração de corpo SÍNDROMAS DE HEMORRAGIA
estranho não constitui uma situação de emergên-
cia com asfixia e risco de vida. O grau de urgên- ALVEOLAR DIFUSA
cia/emergência depende da localização do corpo
estranho e do grau de dificuldade respiratória. Mafalda Paiva e A. Bessa Almeida
No entanto, se a criança for admitida no
serviço de urgência em apneia e tiver idade supe-
rior a 1 ano, deverá proceder-se à manobra de
Heimlich de imediato; se tiver menos de 1 ano Definição
deverá proceder-se à manobra de percussão forte
do dorso (Capítulo 265). A designação clássica de hemossiderose pulmonar
No entanto, o procedimento de eleição em si- corresponde a uma forma de hemorragia alveolar
tuações de emergência /asfixia e história convin- crónica e difusa com acumulação de ferro nos
cente de aspiração é a broncoscopia com bron- macrófagos (na forma de hemossiderina), subse-
coscópio rígido para remoção do corpo estranho. quente fibrose pulmonar e anemia ferropénica.
Nos casos em que a história não é convincente A forma dita idiopática diz respeito às situações
poderá utilizar-se inicialmente o broncoscópio em que a avaliação etiológica exaustiva não é
flexível para confirmar o diagnóstico; em segunda conclusiva. Pode manifestar-se isolada, mas é mais
linha, uma vez confirmado o diagnóstico, pro- frequentemente associada a outra patologia.
cede-se a broncoscopia rígida para remoção do A maior parte dos casos de hemorragia al-
corpo estranho. veolar difusa (HAD) associa-se a doença reumato-
Em função do contexto clínico (sinais suges- lógica, imunológica ou vasculite crónica ou
tivos de sobreinfecção) poderá estar indicada a reecorrente. Actualmente considera-se a hemos-
antibioticoterapia. siderose como fazendo parte das síndromas
cursando com hemorragia alveolar difusa.
BIBLIOGRAFIA
Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics. Etiopatogénese e classificação
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at-risk population. J Parentr Enteral Nutr 2002; 26: S19-S25 siderose pulmonar: 1) primária englobando a forma
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). idiopática, ou não associada a doença subjacente, a
Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier forma associada à hipersensibilidade às proteínas do
Saunders, 2011 leite de vaca ou síndroma de Heiner, e a forma
McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of associada a glomerulonefrite progressiva ou sín-
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Marik PE. Aspiration pmeumonitis and aspiration pneumonia. membrana basal; 2) secundária englobando diversas
NEJM 2001; 344: 665-671 etiologias (que constam do referido Quadro 1).
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon Dada a variedade de afecções em que se
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York : McGraw-Hill verifica hemorragia alveolar difusa, é difícil
Medical , 2011 determinar as respectivas frequências, o que se
492 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Síndromas de hemorragia alveolar Manifestações clínicas


difusa
Em geral surgem antes dos 10 anos de idade,
Com capilarite pulmonar caracterizando-se por episódios recorrentes de
Capilarite pulmonar idiopática, granulomatose de tosse, dispneia, pieira e cianose, que duram entre
Wegener, lúpus eritematoso disseminado, síndroma de 2 a 4 dias. As crianças pequenas apresentam
Goodpasture, síndroma de anticorpos antifosfolípidos, vómitos com o sangue deglutido. No decurso da
púrpura de Schonlein-Henoch, nefropatia IgA, doença surgem anemia ferropénica moderada a
poliarterite nodosa, síndroma de Behçet, grave com palidez, taquicardia, prostração e
crioglobulinémia, capilarite induzida por fármacos, hemoptises. A figura 1 mostra sinais de hipo-
síndroma pulmonar renal idiopática. cratismo digital por insuficiência respiratória
crónica no contexto de hemossiderose pulmonar.
Sem capilarite pulmonar Deve valorizar-se a tríade clássica: anemia
• Causas não cardiovasculares: Hemossiderose ferropénica, hemoptises e infiltrados alveolares
pulmonar idiopática, síndroma de Heiner, detectados pela radiografia do tórax.
hemorragia pulmonar idiopática da infância,
transplantação da medula óssea, imunodeficiência, Exames complementares
coagulopatias, doença celíaca.
• Causas cardiovasculares: Estenose mitral, doença Uma vez que os macrófagos alveolares não
venoclusiva pulmonar, anomalias arteriovenosas, conseguem metabolizar o ferro da hemoglobina,
hipertensão pulmonar, insuficiência cardíaca crónica, este acumula-se no seu interior provocando anemia
trombose vascular com enfarte, etc.. ferropénica com níveis de ferro sérico e medular
muito baixos. Assim, esta patologia é caracterizada
pelo paradoxo de uma anemia ferropénica com
aplica à hemossiderose pulmonar idiopática. ferro depositado no tecido pulmonar, o que
Quanto às lesões, distinguem-se as chamadas condiciona fibrose. A anemia é tipicamente
formas difusas e as formas focais. Neste capítulo é microcítica e hipocrómica com reticulocitose.
dada ênfase a duas das formas de hemossiderose Os níveis de bilirrubina sérica estão aumentados
pulmonar primária atrás referidas: idiopática e bem como a excreção urinária de urobilinogénio.
síndroma de Heiner. Em geral, após um episódio agudo há
leucocitose com desvio à esquerda (neutrófilos

1. HEMOSSIDEROSE PULMONAR
IDIOPÁTICA

Anatomia Patológica

Macroscopicamente o pulmão tem peso elevado,


com áreas de consolidação vermelho-acastanha-
das. Histologicamente evidenciam-se sinais de
degenerescência intensa, divisão e hiperplasia das
células epiteliais alveolares (pneumócitos tipo II) e
dilatação capilar alveolar localizada intensa, sem
sinais de capilarite. Há vários graus de fibrose
intersticial pulmonar e hemorragia nos espaços
FIG. 1
alveolares com deposição de hemossiderina
dentro dos septos alveolares e nos macrófagos Sinais de hipocratismo digital no contexto de hemossiderose
intra-alveolares (Capítulo 86). pulmonar. (NIHDE)
CAPÍTULO 90 Hemossiderose pulmonar e síndromas de hemorragia alveola difusa 493

imaturos no sangue periférico). Em cerca de 15 a


20% dos casos verifica-se eosinofilia.
Pela deglutição de saliva com sangue, a
pesquisa de sangue nas fezes pode ser positiva.
Em cerca de 20% das crianças há hepatosple-
nomegália e linfadenopatia.
Na radiografia do tórax pode observar-se
infiltrado alveolar uni ou bilateral, migratório, e
que pode sofrer remissão completa após a fase
sintomática. (Figura 2)
A tomografia axial computadorizada do tórax
(TAC) revela opacidades alveolares difusas de
predomínio inferior na fase aguda. (Figura 3).
Durante a fase aguda a cintigrafia pode
demonstrar sinais de hemorragia. A capacidade
FIG. 3
de difusão do monóxido de carbono está aumen-
tada (uma vez que este se liga aos eritrócitos Hemossiderose pulmonar: TAC torácica evidenciando
presentes nos alvéolos). opacidades dispersas e sinais de bronquiectasias. (NIHDE)

A broncoscopia com lavado broncoalveolar


pode revelar a presença de macrófagos com
depósito abundante de hemossiderina (apenas se
a hemorragia tiver ocorrido há mais de 2 ou 3
dias); no entanto, este achado apenas comprova a
ocorrência de hemorragia pulmonar e não a
etiologia. O exame cultural é negativo.
A negatividade doutros exames específicos
como ANA, ANCA, factor reumatóide, anticorpo
antifosfolípidos e anticorpos antimembrana basal
do glomérulo exclui certas formas secundárias.
O aspirado gástrico também pode conter
macrófagos com hemossiderina.
Torna-se fundamental proceder a ECG e Eco-
CG para excluir causas cardíacas de HAD.
A biópsia pulmonar na forma idiopática é
característica e demonstra a ausência de deposi-
ção de imunoglobulinas ou complemento na
membrana basal alveolar. Este dado exclui
síndroma de Goodpasture.
A referida biópsia inicialmente deve ser feita por
fibroscopia (biópsia transbrônquica retirando-se
amostras de diferentes lobos e segmentos). Se não
for possível o diagnóstico por esta técnica, deverão
ser colhidas amostras maiores e a biópsia deverá ser
realizada por toracoscopia ou em “pulmão aberto”.
FIG. 2
O estudo da função pulmonar demonstra um
Hemossiderose pulmonar: radiografia do tórax (AP) padrão de insuficiência respiratória restritiva (pela
evidenciando opacidades dispersas em ambos os campos fibrose) e obstrutiva (por irritabilidade brônquica).
pulmonares. (NIHDE) A detecção de autoanticorpos deve ser negativa.
494 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Diagnóstico nasofaríngeo pode ser suficientemente obstrutiva


conduzindo a cor pulmonale secundário.
Não existe qualquer achado patognomónico desta Os estudos anátomo-patológicos demons-
entidade. Por isso, o diagnóstico baseia-se na traram depósitos alveolares de IgG, IgA e C3.
clínica, nas alterações radiológicas e na biópsia Algumas crianças têm títulos elevados de IgE, IgG
pulmonar após exclusão de outra causa de e IgA contra as proteínas do leite de vaca e
hemorragia alveolar difusa. melhoram após supressão do leite no regime
A tríade “achados radiológicos do tórax, alimentar. Verifica-se eosinofilia periférica.
hemoptises e anemia ferropénica” é sugestiva A corticoterapia é útil, principalmente durante
como hipótese inicial, como foi referido. os episódios agudos. Esta entidade tem melhor
prognóstico do que a anteriormente descrita.
Tratamento
BIBLIOGRAFIA
Durante a fase aguda está indicada a utilização de Bhatia S, Tullu MS, ValdeerwarP,et al. Idiopathic pulmonary
corticóides sistémicos (prednisona, 1mg/Kg/dia) hemosiderosis: alveoli are an answer to anemia. Clinico-
com repercussão na diminuição da morbilidade e da Pathological Forum 2011; 57:57-60
mortalidade. Quanto ao seu uso a longo prazo com Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
doses baixas, dada a baixa incidência desta patologia, Das S, Langston C, Fan LL. Interstitial lung disease in children.
não existem estudos controlados que comprovem a Curr Opin Pediatr 2011; 23:325-331
sua eficácia, mas admite-se que poderão evitar Godfrey S. Pulmonary hemorrhage/hemoptysis in children.
exacerbações e até prolongar a sobrevivência. Alguns Pediatr Pulmonol 2004; 37: 476-484
autores defendem, em doentes com capilarite, o uso Ioachimescu OC, Sieber S, Kotch A. Idiopathic pulmonary
de imunossupressores (por ex. ciclosfosfamida) hemosiderosis revisited. Eur Respir J 2004; 24: 162-170
associados à corticoterapia e IGIV. Os resultados, no Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
entanto, variam conforme as séries de doentes Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
analisados. Saunders, 2011
A anemia pode ser corrigida com ferro excepto Moissidi SI, Chaidaron D, Vichyanond P, Bahna SL. Milk
numa fase mais avançada de doença crónica em induced pulmonary disease infants (Heiner Syndrome).
que a síntese de hemoglobina está suprimida. Em Pediatr Allergy Immunol 2005; 16: 545-562
certos casos pode ser necessária a transfusão de Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
concentrado eritrocitário. AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York : McGraw-Hill
Medical , 2011
Prognóstico Yao TC, Hung IJ, Jaing TH, et al. Pitfalls in the diagnosis of
idiopathic pulmonary haemosiderosis. Arch Dis Child
Cerca de cinquenta por cento dos doentes morre 2002; 86: 436-438
dentro de 1 a 5 anos após o diagnóstico devido a
hemorragia pulmonar aguda ou insuficiência
respiratória progressiva.

2. SÍNDROMA DE HEINER

As crianças com a forma de hemorragia alveolar


difusa associada a hipersensibilidade às proteínas
do leite de vaca (síndroma de Heiner) (Capítulo 68)
têm um quadro clínico típico de hemossiderose pul-
monar idiopática associado a rinite crónica, otite
média recorrente, sintomas gastrintestinais e atraso
do crescimento. A hipertrofia do tecido linfóide
CAPÍTULO 91 Fibrose quística 495

Fisiopatologia

91 As mutações do gene determinam alterações na


função com ausência ou diminuição da produção da
CFTR; consequentemente há alteração do transporte
transmembranar de cloro, bem como diminuição da
FIBROSE QUÍSTICA actividade dos canais de sódio das células epiteliais
da via aérea, de que resulta diminuição da secreção
Ana Maia Pita e José Cavaco de cloro e aumento da reabsorção de sódio.
Ocorrem ainda alterações estruturais na membrana
celular, com repercussão em várias funções da
mesma (por exemplo o aumento do número de
Definição e importância do problema receptores para Pseudomonas nas células epiteliais
das vias aéreas é uma das alterações ultra-
A fibrose quística (FQ) é uma doença hereditária estruturais). Assim, o espectro de alterações
multissistémica que resulta de mutações no gene funcionais é vasto e complexo, estando a desvendar-
do CFTR (cystic fibrosis transmembrane conductance se progressivamente.
regulator), uma proteína transportadora que se Por outro lado, admite-se que as alterações fun-
localiza nas membranas apicais das células cionais dependam da mutação envolvida, e as
epiteliais de várias mucosas, nomeadamente da manifestações clínicas variem consoante estas
via aérea, da via biliar, intestino, ductos pan- alterações. Assim, diferentes mutações determi-
creáticos, glândulas sudoríparas, entre outras. O nam quadros clínicos particulares, com gravidade
defeito primário diz respeito a este transportador diferente. Por exemplo, a mutação ΔF508, está
de membrana relacionado com o transporte de habitualmente associada a manifestações clássicas,
iões; em caso de ausência ou défice funcional, incluindo doença respiratória crónica e insuficiên-
verifica-se aumento da viscosidade das secreções. cia pancreática, com consequente síndroma de má
Daqui resulta a disfunção multiorgânica, típica da absorção, e o genótipo ΔF508/R117H a um
FQ, com repercussão mais importante no pulmão fenótipo ligeiro. A síndroma de má absorção está
e pâncreas, caracterizando-se essencialmente por relacionada com o défice de secreção, quer enzi-
doença pulmonar crónica e insuficiência pan- mática, quer de bicarbonato. O défice de enzimas
creática. pancreáticas é agravado pela deficiente alcaliniza-
ção do conteúdo duodenal, com inactivação dessas
Aspectos epidemiológicos e genética mesmas enzimas.
O genótipo não parece ser determinante em
Trata-se da doença autossómica recessiva mais termos de prognóstico.
frequente na população caucasiana com uma
incidência estimada de 1/1.600 a 1/2.500 entre Manifestações clínicas
caucasianos (1/17.000 entre africanos e 1/90.000
entre asiáticos). Em Portugal uma pessoa em cerca No período neonatal pode manifestar-se como
de 30 é portadora de uma mutação. Uma em cada íleo meconial (15% dos doentes), peritonite me-
3600 crianças nasce com esta doença. conial, icterícia (com hiperbilirrubinémia directa
Estão descritas mais de 1.000 mutações do elevada) mais prolongada e importante do que o
gene da FQ no cromossoma 7, sendo no entanto, habitual, ou alcalose hipoclorémica (resultante de
a mutação ΔF508 a que determina a deleção da perda de sais). O referido quadro de oclusão
fenilalanina na posição 508, e a mais frequente intestinal neonatal é quase patognomónico da FQ;
(corresponde a cerca de 67% dos casos de FQ em por isso torna-se obrigatória a investigação de FQ
todo o mundo, variando de região para região, em tal circunstância (tripsina imunorreactiva,
com uma frequência entre 45 e 55% no sul da prova de suor logo que possível e/ou estudo
Europa). genético) – ver adiante.
496 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

As manifestações mais frequentes (51% dos brônquicas, agravamento da dificuldade respi-


casos nos EUA) da FQ são respiratórias, nomea- ratória, febre com perda de peso (superior a 5%),
damente sibilância recorrente e infecções respi- hemoptises, e/ou agravamento radiológico e das
ratórias de repetição, com colonização sucessiva- provas de função respiratória (diminuição do
mente por Staphylococcus aureus, Haemophilus volume expiratório máximo por segundo /VEMS
influenzae e Pseudomonas aeruginosa (colonização superior a 10% do valor basal e/ou da capacidade
crónica estabelecida com uma prevalência de vital forçada).
cerca de 80%, aos 18 anos). Outra complicação respiratória possível é o
A colonização por estes agentes pode classi- pneumotórax espontâneo (5 a 8% dos casos de
ficar-se em intermitente e crónica (se houver isola- FQ), que pode resultar de mecanismos valvulares
mento bacteriano em 6 meses consecutivos). A (obstrução de vias aéreas por secreções), com rup-
colonização por Pseudomonas aeruginosa começa tura de espaços aéreos periféricos para a pleura.
por ser intermitente e depois persistente, uma vez Trata-se de uma situação com mortalidade signi-
que a bactéria tem a capacidade de adquirir uma ficativa e alta taxa de recorrência.
alteração da expressão génica que permite a pro- Além das vias aéreas inferiores, também as
dução de um biofilme que dificulta a sua elimi- superiores são afectadas: sinusopatia e polipose
nação (forma mucóide). Após colonização defini- nasal, frequentes.
tiva verifica-se deterioração acelerada da função Em cerca de 2% dos doentes surge um quadro
pulmonar. A colonização por este último agente é clínico atípico, caracterizado apenas por doença
influenciada por vários factores, nomeadamente o sinopulmonar crónica, sem insuficiência pul-
genótipo, o sexo (as crianças do sexo feminino são monar e com prova de suor normal (cloro < 40
colonizadas mais precocemente), a presença de mEq/L) ou no valor limite (40 a 60 mEq/L),
insuficiência pancreática e a eficácia de isolamen- através de iontoforese com pilocarpina.
to dos doentes em cada centro. Verifica-se igualmente na infância má pro-
Outro agente que pode colonizar as vias aéreas gressão ponderal (cerca de 40% dos casos), rela-
dos doentes com FQ é a Burkholderia cepacea. A cionada com o maior consumo energético e com a
infecção por este agente multirresistente aos síndroma de má absorção resultante da insufi-
antibióticos associa-se a deterioração importante ciência pancreática (em cerca de 85 a 90% dos
da função pulmonar e a mau prognóstico, poden- casos). Esta última conduz a diarreia crónica por
do manifestar-se de três formas diferentes: colo- má absorção (dejecções volumosas, fétidas e gor-
nização crónica assintomática, deterioração pro- durosas), edema relacionado com a hipopro-
gressiva e evolução rápida fatal. teinémia, anemia, défice de vitaminas lipos-
Podem surgir infecções por outros agentes, solúveis, com aumento do tempo de protrombina
como Stenotrophomonas maltophilia, Achromobacter (por défice de vitamina K), neuropatia periférica,
xylosoxidans e Aspergillus fumigatus, muitas vezes encurtamento de semi-vida dos eritrócitos (por
assintomáticas; um dos quadros é a chamada as- défice de vitamina E), etc.. De referir que são tam-
pergilose broncopulmonar alérgica. bém característicos os episódios recorrentes de
A infecção recorrente e/ou persistente pelos pancreatite aguda.
germes microbianos referidos conduz a uma Mais rara e tardiamente poderá surgir diabetes
resposta inflamatória intensa, com hipertrofia e mellitus em relação com a lesão pancreática cróni-
hiperplasia das glândulas secretoras e lesão pro- ca (3% das crianças, 14% dos adultos).
gressiva das vias aéreas, com evolução para bron- Outras manifestações frequentes são o refluxo
quiectasias e outras alterações irreversíveis do gastresofágico, a síndroma de oclusão intestinal dis-
tecido pulmonar. tal (10% dos casos), o prolapso rectal (< 1% de
Surge, assim, uma doença pulmonar crónica pacientes), a litíase biliar (5%), a desidratação
obstrutiva, com insuficiência respiratória pro- hiponatrémica ou alcalose hipoclorémica, graves, o
gressiva; são habituais os períodos de exacer- atraso pubertário e a atrésia do canal deferente com
bação da sintomatologia, nomeadamente com infertilidade masculina (azoospermia em > 95% dos
tosse mais frequente, incremento de secreções casos). Nas adolescentes pode surgir amenorreia
CAPÍTULO 91 Fibrose quística 497

secundária, osteoporose (por défice de absorção de QUADRO 2 – Prova do suor em diversas


cálcio e vitamina D), e osteoartropatia. Raramente situações clínicas
surge cirrose biliar com hipertensão portal.
1. VALORES FALSOS POSITIVOS (> 60 mEq/L)
Diagnóstico Causas metabólicas
Fucosidose
O diagnóstico é efectuado no primeiro ano de vida Glicogenose tipo I
em 70% dos casos, e até aos 8 anos em 90%. Mucopolissacaridoses
Existem situações de diagnóstico tardio, associa- Defice da desidrogenase da glicose 6-fosfato
das a quadros clínicos menos exuberantes. Hipotiroidismo
É feito com base na clínica (uma ou mais carac- Diabetes insípida resistente à vasopressina
terísticas fenotípicas clássicas) e história familiar Insuficiência supra-renal
(consanguinidade, irmão ou primo em primeiro Colestase familiar
grau com FQ), e/ou resultado do rastreio neonatal Hipoparatiroidismo familiar
positivo e confirmado por duas provas do suor Anorexia nervosa
positivas (doseamento no suor de Cl > 60 mEq/L), Disfunção autonómica
e/ou detecção de duas mutações do gene da Doença celíaca
fibrose quística, e/ou evidência de anomalias ca- Hipogamaglobulinémia
racterísticas do transporte do ião cloro através do
epitélio nasal – por método biofísico. (Quadro 1). Doenças da pele e glândulas sudoríparas
De referir que as provas do suor podem Má-nutrição
apresentar resultados falsos positivos e falsos Displasia ectodérmica
negativos, tal como é sintetizado no Quadro 2. Dermite atópica
Alguns genótipos (3849+10KbC>T) estão
associados a valores normais de cloro no suor. Causas iatrogénicas
Em relação ao estudo genético por ADN Infusão de prostaglandinas E1
salienta-se que: habitualmente apenas são
estudadas as mutações mais frequentes, que 2. VALORES FALSOS NEGATIVOS (< 40 mEq/L)
correspondem a aproximadamente 90% das Erros metodológicos
existentes; em aproximadamente 1% dos casos de Amostra insuficiente
fibrose quística não são detectadas mutações; e em Evaporação parcial da amostra
cerca de 18%, apenas um dos genes mutantes é Erros de cálculo
identificado. Edema

QUADRO 1 – Diagnóstico de FQ Pode ainda existir mais do que uma mutação


em cada gene, com múltiplas combinações
possíveis, que contribuem inclusivamente para
Presença de sinais clínicos típicos modificar o fenótipo. Nalguns países, laboratórios
(respiratórios, gastrintestinais ou génito-urinários) ou comerciais testam hoje entre 30-80 das mutações
Familiar próximo com FQ ou de CFTR mais comuns. A metodologia utilizada
Rastreio neonatal positivo
poderá ser a sequenciação completa da zona
codificante dos 27 exões do gene CFTR com as
+ regiões intrónicas adjacentes.
O estudo da chamada diferença de potenciais
2 provas de cloro no suor > 60 mEq/L ou nasais, método biofísico mais preciso que a prova
Identificação de 2 mutações FQ ou de suor para detecção de alterações no fun-
Alteração da diferença dos potenciais nasais cionamento do CFTR, é muito complexo e moroso.
Outros exames complementares importantes
incluem os estudos da função pancreática,
498 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

nomeadamente através dos doseamentos de 5. sintomas respiratórios (tosse, expectoração,


gorduras fecais (72 horas), da quimiotripsina e da tolerância ao esforço)
elastase fecais, entre outros. 6. sintomas sugestivos de diabetes (poliúria,
O diagnóstico diferencial de insuficiência polidipsia, perda de peso súbita)
pancreática exócrina inclui situações raras, tais 7. oximetria para avaliação de saturação de
como as síndromas de Shwachman-Diamond, de O2-Hb por método transcutâneo (em todas
Johanson-Blizzard, de Pearson-Marrow, deficiên- as consultas)
cia de enterocinase, agenésia pancreática congé- 8. provas de função respiratória (periodicidade
nita, agenésia pancreática e cerebelosa, etc.. de 3 a 6 meses, após os 5 anos)
O doseamento da tripsina imunorreactiva sérica 9. análises de sangue: velocidade de sedimen-
(TIR) nos recém-nascidos (utilizando o cartão para a tação, hemograma, transaminases, fosfatase
prova de Guthrie no âmbito do diagnóstico precoce) e a alcalina, tempo de protrombina, amilase, gli-
detecção de azoospermia obstrutiva após a cémia em jejum, ureia, creatinina, ácido
puberdade (análise do esperma e ecografias, com úrico, ionograma sérico, cálcio, fósforo,
confirmação por biópsia testicular), também podem gasometria, electroferese das proteínas,
contribuir para o diagnóstico. Outro aspecto quase colesterol, triglicéridos, doseamento de vi-
patognomónico da fibrose quística é a pansinusite, taminas A, D/25(OH) vit D e E, ferro,
detectada por radiografia ou tomografia axial ferritina, transferrina, imunoglobulinas,
computadorizada dos seios perinasais. RAST para Aspergillus (anualmente)
Actualmente é já possível o diagnóstico pré- 10. exame cultural da expectoração (3/3 meses
natal, por pesquisa das mutações em células fetais e durante as exacerbações respiratórias)
obtidas por biópsia das vilosidades coriónicas, ou 11. radiografia de tórax póstero-anterior e de
amniocentese. perfil (de 2 em 2 ou 4 em 4 anos, em doentes
Nalguns países é efectuado o rastreio neonatal estáveis)
com base no doseamento de TIR. 12. TAC de alta definição de tórax (eventual-
mente de 5 em 5 anos)
Vigilância e tratamento 13. ecografia abdominal (anual)
14. vigilância de efeitos tóxicos da terapêutica
A FQ implica um acompanhamento regular da (audiograma, função renal)
criança e família, por uma equipa multidisci-
plinar, que inclui pediatra com experiência em FQ, Suprimento nutricional os cálculos são feitos na
médico de família enfermeira, dietista, fisiotera- base de 150% das necessidades calóricas de uma
peuta e psicóloga, entre outros. criança saudável da mesma idade e sexo) incluindo
Nesta perspectiva está indicada a vigilância suplementos vitamínicos, vitaminas liposolúveis A,
regular trimestral englobando: D, E e K, suplementos de enzimas pancreáticas – 500
a 2.000 unidades de lipase/kg/refeição) e inibidores
Avaliação seriada de determinados parâmetros da secreção ácida gástrica (inibidores da bomba de
1. altura (deve manter-se acima do percentil 5) protões e antagonistas H2). Pode eventualmente ser
2. peso (sinal de alarme: perda de peso em 2 necessário proceder a gastrostomia ou jejunostomia
meses consecutivos) para alimentação por débito contínuo durante a
3. índice nutricional (que se deve manter noite rendibilizando o suprimento nutricional.
>90%) de acordo com a fórmula
Peso actual (Kg) x 100 Prevenção de infecções respiratórias através de
Peso ideal para a altura vacinação anual contra o vírus influenza e contra
(Normal – 90 a 110%; baixo peso – 85 a 89%; má-nutrição pneumococo (vacina conjugada ou polissaca-
ligeira – 80 a 84%; má-nutrição moderada – 75 a 79%; má- rídea). Deve evitar-se infantário antes dos 12
nutrição grave – <75%) meses. Deve evitar-se o contacto entre doentes
4. sintomas gastrintestinais (náuseas, vómitos, com fibrose quística colonizados por agentes
saciedade precoce, dor abdominal) microbianos diferentes.
CAPÍTULO 91 Fibrose quística 499

Promoção do processo de depuração das vias antibioticoterapia com a terapêutica em ambulatório.


aéreas através de cinesiterapia respiratória, A antibioticoterapia por via IV poderá ser
broncodilatadores fluidificantes das secreções e efectuada no domicílio em situações de estabili-
mucolíticos (N-acetil cisteína, DNAse recombi- dade clínica, apoio de enfermagem de cuidados
nante). Nalguns centros tem sido aplicada a ina- continuados, vontade e esclarecimento dos
lação com soluto salino hipertónico (NaCl a 7%). pais/família no presuposto de que tal modalidade
de tratamento tem início no hospital. Nalguns
Diminuição da inflamação das vias aéreas com centros utiliza-se a antibioticoterapia no domicílio
anti-inflamatórios (maior benefício abaixo dos 15 por via inalatória (aerossóis) tendo validade as
anos de idade e em doentes colonizados por regras definidas para terapêutica IV. Existe mais
Pseudomonas aeruginosa), nomeadamente com: experiência com a tobramicina.
1 – prednisolona em dias alternados (reduz o A terapêutica antibiótica frequente implica a
declínio da função pulmonar, mas não possibilidade de aparecimento de estirpes resisten-
melhora o quadro clínico, nem diminui o tes e de toxicidade (renal, neurológica entre outras).
número de hospitalizações; por outro lado
aumenta a incidência de diabetes, de atraso Outras medidas
no crescimento e de cataratas). Não está
provada a eficácia de corticóides inalados. Ácido urso-desoxicólico
2 – ibuprofeno em altas doses (risco de hemor- Para retardar a progressão da lesão hepática, o
ragia digestiva e de nefrotoxicidade). Nal- ácido urso-desoxicólico tem utilidade em pacien-
guns centros o ibuprofeno administrado tes com elevação das transaminases ou sinais de
durante períodos longos (4 anos) acom- hipertensão portal.
panhado de doseamento sérico com nível 50-
100 µg/mL contribuiu para diminuir a Terapêutica da insuficiência respiratória com
gravidade da doença respiratória. oxigenoterapia, ventilação não invasiva e, em
3 – azitromicina (demonstrou-se, com efeito, a situações graves, transplante cardiopulmonar.
acção anti-inflamatória deste macrólido
acompanhando a acção de diminuição da Terapêutica da oclusão intestinal (íleo meconial
virulência da P. aeruginosa). ou síndroma de oclusão intestinal distal) com N-
acetilcisteína, clisteres hiperosmolares
Outros fármacos estão em investigação, (gastrografina) ou intervenção cirúrgica.
nomeadamente, inibidores da elastase ou outras
proteases (alfa 1-antitripsina, entre outros fár- Transplante hepático
macos). Poderá estar indicado o transplante hepático em
situações graves.
Tratamento das infecções respiratórias crónicas
com antibioticoterapia cíclica ou diária, para Prognóstico
supressão do crescimento bacteriano e das
exacerbações (Quadro 3): a antibioticoterapia deve O prognóstico embora muito melhor em relação a
ser dirigida sempre que é isolado um agente décadas anteriores graças a um diagnóstico mais
microbiano nas secreções respiratórias, mas pode precoce, a mais adequado suporte nutricional, e a
ser empírica (especialmente nos lactentes em que terapêutica antibiótica mais agressiva, é ainda
é difícil obter amostras adequadas). Muitas vezes reservado.
são isolados vários agentes, sendo necessária Trata-se de uma doença crónica com impor-
antibioticoterapia múltipla. tante morbilidade e mortalidade, que cursa com
Existem estudos que defendem a terapêutica vários episódios de agudização e múltiplos inter-
(incluindo terapêutica por via endovenosa) no dom- namentos, conferindo uma esperança de vida
icílio; e outros que referem uma menor eficácia, limitada à terceira década de vida. É de referir que
maior duração e menores intervalos entre ciclos de a sobrevida é inferior no sexo feminino, embora
500 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Antibioticoterapia na fibrose quística

Agente isolado Antibioticoterapia em Ambulatório Antibioticoterapia em Internamento

Haemophilus influenzae Amoxicilina: 50-100mg/kg/d, 8/8h, 2 a 3 Amoxicilina - ácido clavulânico: 150


semanas, PO mg/kg/de amoxicilina 8/8 h, 14 dias, ev
Se β-lactamase (+): ou
Cefuroxima-Axetil: 30-40mg/Kg/d, 12/12 h Cefuroxima: 100-150mg/Kg/d, 8/8 h, 14
2-3 semanas PO dias, ev
Staphylococcus aureus Flucloxacilina: 50-100 mg/kg/d, 6/6 ou Flucloxacilina: 100 mg/kg/d, 6/6 ou 8/8
8/8h, 2 a 3 semanas, PO h, 14 dias, ev
Se resistente:
Clindamicina: 20-30 mg/kg/d, 6/6 h, 2 Vancomicina: 40 mg/kg/d, 6/6 ou 8/8 h,
semanas , PO 14 dias, ev
Pseudomonas aeruginosa Colistina: 1 a 2 milhões U, 12/12 h, em Ceftazidima: 150-300 mg/kg/d, 8/8 h)
aerossol + Ciprofloxacina, 30 mg/kg/d, (máx 6 gr)+ Tobramicina: 10 mg/kg/d,
12/12 h, 3-4 semanas, PO 8/8 ou 12/12 h, 14 dias, ev

Infecção crónica Infecção crónica


Tobramicina: 300mg/kg, 12/12 h, em Ciclos de 4/4 meses
aerossol, ciclos de 28 dias “on–off” Ceftazidima: 150-200 mg/kg/d, 8/8 h +
Tobramicina: 10 mg/kg/d, 8/8 ou 12/12
Abreviaturas: PO: “per os”; ev: via endovenosa h, 14 dias, ev

existam estudos demonstrando que o género não Kaappler M, Griese M. Nutritional supplements in cystic fibro-
influencia a esperança de vida. sis. BMJ 2006; 332: 618-619
O agravamento das provas de função res- Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
piratória constitui o principal factor de mau Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
prognóstico, e a insuficiência respiratória a princi- Saunders, 2011
pal causa de morte. Konstan MW, Geller DE, Minic P, et al. Tobramycin inhalation
Como medidas em fase experimental, que são powder for P aeruginosa infection in cystic fibrosis. The
promissoras, citam-se a vacina anti-Pseudomonas EVOLVE Trial. Pediatr Pulmonol 2011; 46:230-238
aeruginosa, administração de antiprotease em O’Sullivan BP, Freedman SD. Cystic fibrosis.Lancet 2009;
aerossol, e a terapia génica, entre outras. 373:1891-1902
Rezaei N, Sabbaghian M, Liu Z,et al. Eponym. Johanson-
BIBLIOGRAFIA Blizzard syndrome.Eur J Pediatr 2011; 170:179-183
Brodlie D, Orchard WA, Reeks GA,et al. Vitamin D in children Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
with cystic fibrosis. Arch Dis Child 2012;97:982-984 AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011 Medical , 2011
Döring G, Conway SP, Heijerman HGM, Hodson ME, et al. Shepherd D, Belessis Y, Katz T, et al. Single high-dose oral vita-
Antibiotic therapy against Pseudomonas aeruginosa in cys- min D3(stoss) therapy- a solution to vitamin D deficiency in
tic fibrosis: a European consensus. Eur Respir J 2000; 16: children with cystic fibrosis ? Journal of Cystic Fibrosis
749-767 2013; 12: 177-182
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Grosse SD, Rosenfeld M, Devine OS, et al. Potential impact of Urquhart DS, Thia LP, Francis J, et al. Deaths in childhood from
newborn screening for cystic fibrosis on child survival: a cystic fibrosis: 10 year analysis from two London specialist
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CAPÍTULO 92 Reabilitação respiratória 501

92
os seus métodos estarem em grande parte condi-
cionados pela capacidade de colaboração da cri-
ança. Tal colaboração está intimamente ligada à
sua idade, e depende do entendimento que aque-
la tem do que se lhe pede e da sua capacidade de
repetir o gesto. Tal capacidade vai, em geral, mas
REABILITAÇÃO RESPIRATÓRIA não de modo uniforme, aumentando ao longo dos
anos. Crianças há colaborando precocemente no
António Teixeira que lhes é solicitado, e outras com perturbação do
desenvolvimento em que isso não é possível. Tal
facto exigirá uma grande perícia do técnico de
reabilitação com utilização de manobras em que o
Importância do problema carácter passivo e activo-assistido será predomi-
nante.
Na fisiopatologia respiratória da criança, para Para um funcionamento eficaz da função res-
além das doenças próprias do grupo etário, há piratória é necessário um conjunto de três
que considerar a sua exposição potencial a todos condições: vias aéreas permeáveis que permitam a
os agentes causadores de doença respiratória nos passagem do ar desde o exterior até aos pulmões;
adultos. Por outro lado, os mecanismos de respos- a integridade da caixa torácica associada à normal
ta broncopulmonar aos agentes agressores na acção muscular que lhe permita funcionar como
criança são diferentes, estando condicionados bomba inspiradora e expiradora do ar responden-
pelas imaturidades anatómica, funcional e do ao estímulo respiratório central com os seus
imunológica. Se doenças como a doença pul- mecanismos reguladores; uma correcta relação
monar obstrutiva crónica (DPOC) e doenças com ventilação/ perfusão o que implica um adequado
supuração são comparativamente mais raras na suprimento de sangue pela circulação pulmonar
criança, (excepto a fibrose quística e a doença de realizando-se as trocas gasosas através duma nor-
cílios imóveis) a maior susceptibilidade a algumas mal barreira alvéolo-capilar.
doenças víricas e bacterianas com grande resposta A Rrp actua principalmente na restauração da
secretora e inflamatória pode condicionar altera- primeira das condições acima enunciadas, menos
ções estruturais broncoalveolares numa fase na segunda e só indirectamente procura interferir
maturativa facilitando o aparecimento de seque- na terceira. Para conseguir tais objectivos a Rrp
las. Por outro lado, tal resposta inflamatória em utiliza as estratégias de limpeza das secreções das
vias aéreas de menor dimensão poderá explicar a vias aéreas, de treino dos tempos inspiratório,
frequência da sibilância já desde a primeira infân- expiratório e seu sincronismo, e de utilização de
cia, chegando alguns estudos a referir a sua ocor- O2 como terapêutica, promovendo a readaptação
rência em 40% do universo deste grupo etário. Daí ao esforço.
a importância da reabilitação respiratória
pediátrica (Rrp) definida como um conjunto de Actuação prática
acções duma equipa interdisciplinar dirigidas à
criança com doença respiratória com o objectivo Permeabilização das vias aéreas. É fundamental
de restaurar a anatomia e a função pulmonares, manter a permeabilidade das vias aéreas e, no que
diminuir a incapacidade, aumentar a independên- diz respeito à reabilitação das doenças broncopul-
cia individual e a integração social, e diminuir a monares, será quase invariavelmente, a primeira
frequência das exacerbações e dos internamentos acção a promover. Sem a manutenção duma via
hospitalares. aérea minimamente permeável será difícil avançar
Na Rrp aplicam-se uma série de técnicas como para outras técnicas. O aumento das secreções
a cinesiterapia respiratória, a inaloterapia, a brônquicas acontece frequentemente como resul-
readaptação ao esforço, a cinesiterapia vertebral, tado de múltiplas situações patológicas afectando
etc.. Como particularidade da Rrp está o facto de a árvore tráqueo-brônquica e o parênquima pul-
502 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

monar como laringotraqueobronquite, bronquio- deglutidas ou expelidas. Tal pode ser conseguido
lite, pneumonia, bronquiectasia e asma brônquica, com técnicas de estimulação da tosse eficaz, acel-
sobretudo na fase secretora. eração do fluxo expiratório, drenagem postural,
Na fibrose quística a presença de secreções drenagem autogénica, etc.. Estas técnicas devem
espessas e muitas vezes infectadas é uma cons- ser utilizadas na sua exigência, duração e frequên-
tante e um factor fisiopatológico fundamental na cia de acordo com a criança e a situação a tratar.
evolução da doença. Por outro lado, nas crianças com dificuldade res-
Situação particular é o caso das unidades de piratória ou com alterações gasométricas pre-
cuidados intensivos. Como se sabe, um dos efeitos sentes ou latentes, todas estas técnicas deverão ser
secundários da ventilação mecânica (iatrogénico) executadas com monitorização da saturação em
é o aumento da produção da muco e a sua acu- O2 que pode ser efectuada, de forma cómoda com
mulação por impedimento dos mecanismos fisio- pulsoxímetro, ponderando a necessidade do
lógicos de limpeza. Em qualquer situação em que ajuste ou introdução de suplemento de O2. Uma
for necessária a entubação endotraqueal e/ ou a respiração progressivamente menos rude a cami-
ventilação mecânica, mesmo sem doença bron- nho da normalidade, e mesmo uma subida dos
copulmonar de base, é fundamental promover valores da saturação em O2, podem ser sinais de
uma adequada cinesiterapia respiratória sendo cinesiterapia eficaz.
insuficiente a simples aspiração do tubo endo-
traqueal. Todas as situações que cursam com Melhoria da capacidade inspiratória. A inspi-
retenção e espessamento das secreções criam as ração é, em condições normais, a fase activa da res-
condições para o aparecimento de sobreinfecções piração com preponderância do papel do diafrag-
e o desenvolvimento de atelectasias com desequi- ma. Excluindo as doenças neuromusculares, são
líbrio da relação ventilação/ perfusão concorren- raras as situações em que há um verdadeiro défice
do para acentuar as alterações gasométricas que de força muscular dos músculos inspiratórios.
se somam às da doença base. Neste enquadra- Entre estas estão as das crianças sujeitas a longos
mento se percebe a importância desta etapa da períodos de ventilação mecânica em que poderá vir
Rrp. Situações há em que a limpeza eficaz e crite- a instalar-se um verdadeiro défice por desuso.
riosa das secreções brônquicas é o objectivo prin- Assim, para a melhoria da capacidade respiratória,
cipal, quase único da intervenção da Rrp. pode justificar-se a inclusão dum cuidadoso pro-
A maneira como a cinesiterapia respiratória grama de fortalecimento do diafragma e dos inter-
consegue restaurar a permeabilidade das vias costais externos através de manobras de facilitação
aéreas depende dum conjunto de técnicas e cargas externas manuais ou mecânicas. O que
próprias exigindo treino e arte na sua aplicação a acontece na esmagadora maioria das situações é
um grupo etário que vai desde o nascimento à uma incoordenada utilização destes músculos, tor-
adultícia e cuja descrição ultrapassa os objectivos nando-se fundamental um programa de correcção
deste livro. das assinergias ventilatórias. Nas doenças neuro-
O primeiro passo é promover uma adequada musculares da primeira infância em que haja
humidificação das secreções, sobretudo nas tendência a baixa CV (capacidade vital) pode insta-
situações em que estas se apresentam secas e ader- lar-se uma menor expansibilidade da parede torá-
entes. Pode ser conseguido tal desiderato na cri- cica por defeito com síndroma restritiva. Nesta
ança com uma abundante ingestão de líquidos, patologia os objectivos essenciais da ajuda venti-
fluidificantes ou através da humidificação do ar latória externa são manter a distensibilidade pul-
inalado. De seguida promove-se a libertação e monar e a mobilidade torácica.
mobilização de secreções podendo, para o efeito,
ser utilizadas técnicas vibratórias e de percussão Melhoria da função expiratória. A função dos
cujos efeitos acessórios devem ser rigorosamente músculos expiratórios (abdominais e intercostais
ponderados. Com as secreções soltas nas vias internos) é sobretudo importante no mecanismo
aéreas há que promover a sua deslocação da per- da tosse e no exercício físico. Para além do treino
iferia para a orofaringe a partir da qual podem ser em força (por meio do uso de objectos e apare-
CAPÍTULO 92 Reabilitação respiratória 503

lhos de treino de sopro) deve ser procurada a mente efectuados e aprendidos em repouso e, em
eficácia no treino da tosse produtiva. Em toda as fase posterior, são aplicados ao exercício e na reali-
patologia em que a acumulação de secreções seja zação das actividades de vida diária.
um problema, sobretudo quando a tosse é pouco
eficaz, será um dos treinos a realizar. Se na fase Oxigenoterapia. O oxigénio como meio tera-
expiratória se verificar um encerramento precoce pêutico é também utilizado em reabilitação tal
das vias aéreas (como no enfisema ou na fase de como por outras especialidades que tratam estes
crise da asma) será treinada a chamada expiração doentes. São diversas as patologias respiratórias
“filada” (com lábios semicerrados), lenta e suave, que cursam com hipoxémia (insuficiência respi-
para criar uma pressão expiratória positiva activa ratória) aguda ou crónica a que se pode associar
e assim facilitar o tempo expiratório combatendo ou não a hipercápnia (insuficiência ventilatória).
a hiperinsuflação. A baixa crónica de pressão arterial de oxigénio
(PaO2) na criança está habitualmente associada a
Correcção das assinergias ventilatórias. Em hipertensão pulmonar, a policitémia e a restrição
muitas das patologias respiratórias há pertur- de crescimento estaturo-ponderal. Interferindo no
bação da sinergia dos movimentos respiratórios. desenvolvimento das funções mentais superiores
Pode observar-se uma deficiente utilização do e na capacidade de esforço físico, limita o direito
diafragma, por vezes em situação funcional preju- fundamental da criança a brincar, criando inca-
dicada (em posição de distensão, como nos pacidade e desvantagem perante os seus pares. A
quadros de hiperinsuflação), esboçando um movi- correcção da hipoxémia na criança é, assim, uma
mento paradoxal de ascensão na fase inspiratória. necessidade ainda mais premente que no adulto.
Em situações de desadequada utilização dos mús- Deve procurar manter-se a PaO2 entre 65 e 90
culos inspiratóros acessórios, como é frequente mmHg e uma saturação em O2 ~92-93%. Especial
nas crises de dificuldade respiratória, há um inde- atenção deve ser prestada ao período nocturno e
vido desvio da predominância inspiratória para ao esforço físico. Durante a noite, por menor
os andares superiores do tórax, com horizontali- eficácia do centro respiratório e prejuízo funcional
zação dos arcos costais e anteversão dos ombros, do diafragma, para além do agravamento da
acrescentando-se mais um factor de desvantagem hipoxémia pode vir a associar-se a hipercápnia o
ventilatória a um quadro de dificuldade. A que coloca o problema na forma de administração
tendência do asmático em forçar a inspiração do O2. A causa para a dessaturação arterial
associada ao encurtamento e ineficácia da expi- durante o exercício pode ser múltipla e de difícil
ração tem como resultado a distensão pulmonar caracterização se não for procurada durante o
com crescente deficiência ventilatória. mesmo. Tal pode ser conseguido, nas crianças
A cinesiterapia utiliza técnicas de relaxamen- capazes de colaborar, através duma prova de
to, de posicionamento e de massagem para avaliação cárdio-respiratória, como adiante se
diminuir a tensão muscular, diminuindo o exces- desenvolve. O suplemento de O2 deverá ser
sivo gasto energético associado à incoordenada aumentado de forma a permitir uma maior tole-
utilização muscular; promove também a transfer- rância ao esforço. No dia a dia da criança a uti-
ência da parte mais importante da mecânica ven- lização de oxigénio em meios portáteis (garrafas
tilatória do andar torácico superior para o andar transportáveis) e disponibilizado através da via
abdómino-diafragmático; e utiliza o treino de nasal facilita a sua actividade e melhor integração
movimentos inspiratórios submáximos, nasais e entre os seus pares.
expiratórios suaves e prolongados com deslocação
do volume corrente para o volume de reserva O exercício físico. Como já foi referido, a activi-
expiratória. Em situações sequelares de doenças dade física, muitas vezes limitada na criança com
pleurais com retracção e assimetrias torácicas doença respiratória, é um dos factores mais
pode lançar-se mão de técnicas de correcção pos- importantes no desenvolvimento psicomotor. A
tural, cinesiterapia vertebral e tonificação mus- criança tem cansaço e dispneia e tem tendência
cular específicas. Todos estes treinos são inicial- para o sedentarismo quando não são os adultos a
504 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

limitar-lhe a actividade. Com efeito, um programa diminui a taxa de hospitalizações e, associada a


de exercício físico correctamente aplicado melho- outros programas terapêuticos, prolonga a sobre-
ra a capacidade de esforço, diminui o cansaço vida.
para o mesmo esforço, facilita a integração da cri-
ança no seu grupo, melhora a sua auto-estima BIBLIOGRAFIA
contribuindo para o seu desenvolvimento psico- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
motor. Delisa JA. Physical Medicine & Rehabilitation Principles and
O exercício físico usado desta forma terapêuti- Practice. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005
ca em crianças com patologia respiratória deve ser Dumas HM, Fragala-Pinkham MA, Rosen EL, et al.
prescrito como um “medicamento”. Pode ter con- Cardiorespiratory response during physical therapist inter-
tra-indicações, alguns riscos, devendo ser dosea- vention for infants and young children with chronic respi-
do individualmente e com precauções para cada ratory insufficiency. Pediatr Phys Ther 2013; 25: 178-185
criança no pressuposto de que muitas dos proble- Goldber B. Sports and Exercise for Children with Chronic
mas clínicos respiratórios podem ser acompa- Health Conditions. Champaign (USA): Human Kinetics,
nhados de doença cardiovascular primária ou 1995
secundária. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
Nas crianças com doença respiratória ou Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
cardíaca que apresentem dispneia ou incapaci- Saunders, 2011
dade de esforço, e a quem se queira indicar exer- Lissauer T, Clayden G. Illustrated Textbook of Paediatrics.
cício físico duma forma adaptada e mais segura, Edinburgh: Mosby Elsevier, 2007
aconselha-se a realização duma prova de esforço Palfrey JS, Sofis LA, Davidson EJ, et el. The pediatric alliance
em unidade de avaliação cárdio-respiratória com for coordinated care: evoluation of a medical home model.
equipamento apropriado de monitorização e pes- Pediatrics 2004; 113: 1507-1516
soal treinado. Ao longo da prova de esforço são Seddon PC, Khan Y. Respiratory problems in children with
registados e vigiados os sinais vitais pulso,pressão neurological impairment. Arch Dis Child 2003; 88: 75-78
arterial, respiração), ECG, consumo de O2, pro- Tzeng AC, Bach JR. Prevention of pulmonary morbidity for
dução de CO2, QR (quociente respiratório), equi- patients with neuromuscular disease. Chest 2000; 118: 1390-
valentes ventilatórios, ventilação/minuto e taxa 1396
metabólica. A evolução da prova e a interpretação
dos resultados permitem, na maior parte dos
casos, identificar se a causa da limitação ao exercí-
cio é pulmonar, cardíaca, por broncospasmo, etc..
Os parâmetros registados durante a prova
servirão de base para a prescrição do tipo de exer-
cício indicado caso a caso conforme a tolerância.
Esta prova pode servir igualmente para avaliar o
sucesso de algumas intervenções terapêuticas,
nomeadamente nos casos de transplante pulmo-
nar ou cardíaco.

Nota final

Não há estudos comparativos sobre a eficácia da


reabilitação respiratória nas crianças com doença
pulmonar, o que pode estar associado à dificul-
dade na individualização dos diversos compo-
nentes implicados na acção terapêutica. Está
provado, contudo, que a reabilitação melhora o
bem-estar das crianças com esta patologia,
PARTE XV
Dermatologia
506 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

93
considerados, dum modo geral, do respectivo foro
na ausência de complicações. Alguns dos proble-
mas dermatológicos são também abordados
noutras partes do livro, designadamente (Infec-
ciologia, Imunoalergologia, etc.).

INTRODUÇÃO À
DERMATOLOGIA PEDIÁTRICA
António Pinto Soares

A Dermatologia Pediátrica, com um grande incre-


mento nos últimos trinta anos, nalguns países
constitui uma subspecialidade em plena expan-
são.
Na realidade, as particularidades da pele num
período da vida caracterizado pelo crescimento e
desenvolvimento, a importância das manifes-
tações dermatológicas no reconhecimento da
maior parte de doenças genéticas complexas, bem
como todas as manifestações mais comuns neste
grupo etário, ou ainda a especificidade das sub-
tilezas clínicas, justificam o interesse e a sua indi-
vidualidade.
Salientando-se que a epiderme constitui a
camada mais importante da pele, a este propósito
cabe especificar algumas das referidas particulari-
edades: diminuição da espessura do extracto cór-
neo, um maior número de folículos vellus, menor
poder tampão e maior relação superfície/volume
corporal, tanto mais marcados quanto menor a
idade da criança. Tal implica maior susceptibi-
lidade a agentes externos, e maior perda de líqui-
dos transpidérmica.
Acresce ainda, o grande número de queixas na
área da Dermatologia, o impacte no desenvolvi-
mento e auto-estima das doenças cutâneas na cri-
ança e em particular na adolescência; e, por últi-
mo, a necessidade de um tratamento adequado às
características da pele no recém-nascido, na cri-
ança e no adolescente.
Nos capítulos seguintes, cuja bibliografia é
apresentada em conjunto no final da Parte XV, são
abordados os problemas dermatológicos com que
o médico de família e o pediatra mais frequente-
mente lidam, e cuja orientação e terapêutica são
CAPÍTULO 94 Dermatite seborreica 507

94
podendo reapareccer no adolescente. Iniciam-se,
habitualmente, com lesões descamativas do couro
cabeludo, a chamada crosta láctea (Figura 1) cons-
tituída por crostas amareladas, untuosas, mais ou
menos aderentes ao couro cabeludo que frequente-
mente atingem também a região retroauricular. A
DERMATITE SEBORREICA erupção pode afectar a face com lesões eritematosas
e descamativas localizadas predominantemente na
Teresa Fiadeiro fronte, supracílios e sulcos nasogenianos (Figura 2).
A região cervical, sobretudo nas pregas, é um
local também frequentemente atingido.
As lesões podem envolver outras áreas do
Definição

Define-se seborreia (etimologicamente, excesso de


sebo ou secreção sebácea) como aumento do teor
em lípidos na superfície cutânea; trata-se dum esta-
do fisiológico constitucional da pele (seborreica)
que fica lisa, brilhante, untuosa, com dilatação dos
poros foliculares, por vezes acompanhada de ligeiro
eritema difuso. Localiza-se nas regiões em que as
glândulas sebáceas são mais numerosas e desen-
volvidas – as regiões seborreicas: couro cabeludo,
fronte, pirâmide nasal, pregas axilares e inguinais.
A pele seborreica é com frequência sede de
diversas dermatoses que por ela estão condi-
cionadas ou que dela dependem, como sucede na
FIG. 1
dermatite seborreica, inflamação caracterizada por
lesões eritemato-descamativas, de escamas amare- Crosta láctea (dermite ou dermatite seborreica).
las e untuosas, cujos limites são mais ou menos
difusos ou, em regra, bem marcados, circulares ou
circinados, pouco ou não pruriginosas.

Etiopatogénese

A etiopatogénese relaciona-se com a acção das leve-


duras lipofílicas do género Malassezia, incluindo
espécies comensais da pele (por ex. M. furfur, M. glo-
bosa, M. restricta); algumas destas, actuando pelas
respectivas lipases sobre os lípidos do sebo,levam à
produção de ácidos gordos gerando processo infla-
matório. É possível que bactérias comensais actuem
do mesmo modo.

Manifestações clínicas

As lesões surgem, em geral, entre a segunda e a sexta


FIG. 2
semanas de vida e só excepcionalmente depois do
terceiro mês, prolongando-se até cerca dos 6 meses e Eritema e descamação amarelada da face (dermite seborreica).
508 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

em que a doença afecta essencialmente as pre-


gas, sobretudo as inguinais, poderá haver algu-
ma confusão diagnóstica; o aparecimento de
lesões papulares e purpúricas permitirá a dis-
tinção (ver Glossário geral).

Tratamento

Estão indicados produtos com acção emoliente,


tanto no banho diário, como em aplicação tópica
após este.
Para a remoção das crostas, para além dos agen-
tes emolientes de limpeza, podem utilizar-se óleos
FIG. 3 minerais; se forem mais aderentes podem usar-se
Lesões eritematosas das pregas de flexão (dermite seborreica). agentes com acção queratolítica, como por exemplo,
vaselina ou creme com ácido salicílico em baixas
corpo (Figura 3), particularmente zonas intertrigi- concentrações (2-3%) e por períodos curtos de con-
nosas e pregas de flexão, como o umbigo, axilas, tacto com a pele dado o risco de intoxicação (salici-
pregas inguinais e anogenitais. São geralmente lismo). Seguidamente a lavagem com champôs de
secas, mas podem ser exsudativas, sobretudo tratamento [por exemplo, com cetoconazol (com
quando atingem as pregas. acção sobre Malassezia) ou ácido salicílico]. O creme
As alterações descritas acentuam-se pela de ácido salicílico pode ser substituído por creme de
acção irritativa da urina e fezes, mantidas pelas piritiona-zinco a 0,5%, ou de ureia a 15-30%.
fraldas em contacto prolongado com a pele. O Se as lesões forem mais inflamatórias poderão
efeito oclusivo, por sua vez, origina aumento da usar-se corticóides tópicos de baixa potência
temperatura e maceração, o que intensifica o (hidrocortisona a 1%) em curtos períodos. No caso
processo inflamatório. Pode verificar-se infecção de sobreinfecção, nas áreas intertriginosas poderá
secundária (impetiginização). A chamada síndro- ser necessário o recurso a agentes antibacterianos
ma de Leiner corresponde à forma disseminada. ou a antifúngicos tópicos.
Na sua forma típica não são pruriginosas e não
perturbam a criança, a qual não evidencia qual- Prognóstico
quer alteração do estado geral.
No adolescente as lesões localizam-se no A dermatite seborreica é uma doença benigna e
couro cabeludo, sobrancelhas, pestanas e região autolimitada que, muitas vezes, cura espontanea-
do manúbrio esternal (tórax); é o aspecto de loca- mente em poucas semanas.
lização em V.
BIBLIOGRAFIA
Diagnóstico diferencial A bibliografia referente aos capítulos que integram a Parte XV
é descrita após o Capítulo 103.
O diagnóstico é clínico e a distinção deve fazer-se
com:
– dermatite atópica – por vezes a destrinça é
difícil; não há estigmas de atopia e a ausência
de prurido é característica importante. Mas,
ocasionalmente, a dermatite seborreica pode
progredir para dermatite atópica;
– psoríase – as lesões podem ser semelhantes e
será a evolução a ajudar na distinção;
– doença de Letterer-Siwe – raramente, na fase
CAPÍTULO 95 Dermatite atópica 509

95
nização constante por Staphylococcus aureus, o que
facilita a instalação de quadros de impétigo.
Esta colonização tem ainda um papel relevante
na manutenção de processos inflamatórios crónicos
através da estimulação directa de linfócitos T pelos
superantigénios que estas bactérias produzem.
DERMATITE ATÓPICA Algumas proteínas estafilocócicas podem interferir
com a síntese de IgE, IL-4 e IFN-gama e podem
Maria João Paiva Lopes induzir a libertação de histamina e de leucotrienos.
Recentemente tem sido dada ênfase ao papel
de péptidos antimicrobianos chamados catelicidi-
nas (LL-37) e beta-defensinas (HBD-2) que exis-
Definição e importância do problema tem na pele humana normal e cuja expressão está
aumentada em doenças inflamatórias como a
A dermatite atópica (DA) é uma doença infla- psoríase. A combinação de LL-37 e HBD-2 tem
matória crónica exsudativa e pruriginosa de efeito sinérgístico bactericida para S. aureus. Na
expressão cutânea muito frequente na infância. pele de doentes com DA demonstrou-se uma sig-
Pode ser provocada por agentes endógenos e nificativa depleção destes péptidos, quer em
exógenos (Capítulos 62 e 63). lesões agudas quer em lesões crónicas. Estes
A sua prevalência tem vindo a aumentar nos dados indicam uma possível explicação para a fre-
últimos anos, sobretudo nos países mais desen- quente colonização da pele por S. aureus na DA.
volvidos, (cerca de 10 – 15% em crianças com menos De referir ainda o papel do metabolismo do cálcio
de 5 anos). Alguns estudos do Norte da Europa ref- e da vitamina D na imunomodulação.
erem valores mais elevados, atingindo 20%. Comparando a pele de indivíduos saudáveis
Este aumento de prevalência tem sido atribuí- com a de indivíduos com lesões agudas e crónicas
do a vários factores, como a poluição, maior de DA, notam-se as seguintes diferenças:
exposição a ácaros, aditivos alimentares, dimi- 1) Nos casos não afectados e nas situações de
nuição da prevalência do aleitamento materno e DA aguda verifica-se aumento de células
maior acuidade diagnóstica. expressando IL-4 e IL-13;
Tal como foi referido no capítulo 66 admite-se 2) Na DA aguda não se verifica número signi-
hoje como mais correcta a designação de síndro- ficativo de células que expressam IFN-gama
ma eczema/dermatite atópica (sigla: SEDA); ou IL-12.
alguns autores consideram os termos dermatite De acordo com certos estudos que valorizam a
atópica e eczema atópico sinónimos. "hipótese higiénica", a exposição a endotoxinas
em fase precoce da vida pode proteger contra
Etiopatogénese eczema atópico nos primeiros seis meses de vida.
Histologicamente verifica-se espongiose linfo-
Existe uma associação entre a DA e outras citária.
doenças, como asma e rinite alérgica; os mecanis-
mos patogénicos envolvidos nestas patologias são Manifestações clínicas
em larga medida semelhantes, sendo frequente a
agregação familiar. A importância da genética na A DA inicia-se em cerca de 75% dos doentes nos
etiologia da DA está demonstrada em vários estu- primeiros 6 meses de vida e em cerca de 90% nos
dos; foram descritas alterações genéticas rele- primeiros cinco anos; é raro o início da doença
vantes nos cromossomas (3q21, 1q21, 17q25 e após a idade pediátrica. Pode haver remissão
20p), com efeitos na inflamação e imunidade espontânea em 60% dos casos com evolução recor-
cutâneas; vários aspectos permanecem, porém, rente nos restantes. Evolui com episódios de
obscuros e continuam ainda em investigação. agudização caracterizados por prurido intenso. As
Verifica-se na pele destes doentes uma colo- localizações características variam com a idade.
510 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

A DA caracteriza-se, nas fases de agudização, residuais), a queratose pilar (micropápulas folicu-


pelo aparecimento de pápulas ou placas eritema- lares nas superfícies de extensão proximais dos
to-descamativas, ásperas, muito pruriginosas, membros, ásperas), o dermografismo branco, a
por vezes com edema e exsudação. À medida queilite (cieiro), e a dermatose plantar juvenil.
que evoluem para a cronicidade, as placas tor- No chamado eczema numular existem placas
nam-se mais espessas e liquenificadas, com acen- circulares de diversas dimensões, pruriginosas e
tuação do reticulado normal da pele. Em todas as exsudativas, por vezes com crostas. O aspecto
fases o prurido é um sintoma constante e assume morfológico poderá suscitar o diagnóstico difer-
importância pela sua intensidade, levando a encial com toxidermias, dermatofitias e pitiríase
coceira incoercível e perturbações do sono e da rosada ou doença de Gibert (Capítulo 99).
qualidade de vida. Verifica-se maior susceptibilidade a irritantes,
Nas crianças até aos 2 anos de idade as lesões produtos de limpeza comuns, detergentes, quími-
localizam-se sobretudo na face, na região retroau- cos, e a alergénios de contacto. Tal resulta da defi-
ricular – onde podem produzir fissuração – e nas ciência da função barreira da pele, provavelmente
superfícies de extensão dos membros superiores relacionada com alterações na composição lipídica
e inferiores. Podem, porém, generalizar-se e atin- do cimento intercelular. Têm sido registadas defi-
gir grande parte da superfície corporal. ciências de alguns ácidos gordos essenciais e de
À medida que a criança cresce, as lesões pas- ceramidas cuja correcção induz melhoria clínica.
sam a estar localizadas sobretudo nas pregas de Este tipo de manifestações, semelhante às do adul-
flexão dos membros, continuando a ser comum o to, é notório no adolescente.
envolvimento facial, cervical e retroauricular Outro aspecto importante na prática clínica é a
(Figura 1), evidenciando carácter acentuadamente maior susceptibilidade dos doentes com DA às
exsudativo nas pálpebras, bochechas, preservan- infecções, traduzindo-se num maior risco de
do o maciço centrofacial. quadros infecciosos graves, por exemplo a dis-
De referir, por comparação, que nos adultos é seminação de infecção pelos vírus Herpes simplex
também este o padrão habitual, sendo frequente o do que resulta o chamado eczema herpeticum.
eczema palpebral, muitas vezes persistente e (Figuras 2 e 3).
criando dificuldades terapêuticas.
Há várias alterações cutâneas características Tratamento
da DA que podem ser observadas mesmo nos
períodos de remissão da doença, nomeadamente a Evicção de factores de exacerbação
xerose generalizada, a prega ou linha de Denni- O primeiro passo para uma terapêutica eficaz é a
Morgan (prega transversal nas pálpebras inferi- educação do doente e da família, esclarecendo o
ores), a pitiríase alba (manchas hipopigmentadas carácter crónico da doença e a necessidade de
manter cuidados de forma regular, como a evicção
de factores de agravamento, estresse, agentes irri-
tativos, químicos, plasticinas, agentes infecciosos,
alergénios. Neste contexto está indicada a utiliza-
ção de produtos de higiene não agressivos (óleos
dispersíveis, syndets*) e calçado arejado não oclu-
sivo. O algodão deverá ser obrigatoriamente
recomendado no vestuário, bem como a utilização
de roupas ligeiras, largas e leves.
Na maioria dos casos não está indicada qualquer

*Syndets: detergentes sintéticos ou “sabão sem sabão”, com pH


FIG. 1 neutro ou ligeiramente ácido, bom efeito detergente, fazendo pouca
espuma. Também chamados “Pains”, podem apresentar-se em for-
Eczema atópico grave afectando a face. mas sólidas ou líquidas.
CAPÍTULO 95 Dermatite atópica 511

ser utilizados, quer na prevenção, quer na manu-


tenção.
Em períodos de maior exacerbação pode
reforçar-se o efeito emoliente com banhos rápidos
de imersão, (10 minutos) a temperaturas tépidas,
seguidos da aplicação imediata de emolientes.
Nas áreas de xerose, (pele anormalmente seca) a
hidratação deverá ser efectuada ao longo do dia
de forma repetida (emulsão A/O).

Terapêutica farmacológica
Corticosteróides – Em formulações tópicas (prefe-
rencialmente cremes), constituem a terapêutica efec-
tiva de primeira linha. O tipo de fármaco varia con-
soante a apresentação clínica, a localização das lesões
e o período previsível de utilização, verificando-se
maior absorção em áreas de oclusão e nas pregas.
A corticoterapia tópica não deverá ser pres-
crita em períodos prolongados, não só pelo risco
de efeitos secundários, como também pela possi-
bilidade de sensibilização. Os cremes deverão
ser reservados para lesões agudas, e as pomadas
FIG. 2 e 3
para lesões de maior cronicidade. A hidrocorti-
Eczema herpeticum (NIHDE). sona a 1%, de menor potência, é o esteróide.
tópico de primeira escolha para a face. No
restrição alimentar. As excepções a esta regra (sin- restante tegumento deverão ser preferidos corti-
tomalogia desencadeada pela ingestão de alimen- costeróides de maior potência, com reduzidos
tos), devem ser analisadas pelo médico assistente. efeitos sistémicos (metil-prednisolona a 0.1%;
No lactente e na primeira infância os alimentos fluticasona a 0.05%). Estes fármacos deverão ser
podem estar implicados na exacerbação clínica aplicados idealmente após o banho à noite.
das lesões, (10 a 40% dos casos) consoante as po- A prescrição de corticóides sistémicos deverá
pulações, estando a frequência em Portugal no reservar-se a ciclos muito curtos para permitir a
limite inferior do intervalo referido. redução da intensidade das lesões e facilitar a
Os quadros de maior gravidade e extensão, instituição de formas terapêuticas menos agres-
bem como a má resposta à terapêutica implicam a sivas; a prednisolona (1mg/Kg/dia, em perío-
detecção de sensibilização alergénica, particular- dos geralmente inferiores a 1 semana) é de ele-
mente aos ácaros domésticos. vada eficácia, podendo proceder-se a uma dimi-
nuição progressiva da dose para obviar recor-
Hidratação cutânea rências.
Emolientes – Uma formulação emoliente adequa- Antibióticos – A antibioticoterapia é frequente-
da com efeito de poupança de esteróides deverá mente necessária na terapêutica da DA. Utiliza-se
conter ácidos gordos essenciais, óleos, substâncias habitualmente ácido fusídico tópico nas situações
calmantes, suavizantes e antipruriginosas com de impetiginização ligeira das lesões de eczema,
emulsão O/A (consultar Glossário geral) . Deve sendo de evitar a aplicação tópica de produtos
ser de fácil aplicação, com textura conveniente e contendo penicilina ou sulfamidas, devido ao risco
não ser excessivamente gorda para que não cons- de sensibilização. Nos quadros de impétigo mani-
titua um factor de rejeição a uma aplicação diária festo dever-se-á optar por antibiótico sistémico
por períodos prolongados, embora suficiente- cujo espectro inclua S. aureus. Com efeito, a
mente gorda para impedir a evaporação. Podem infecçção cutânea é comum, particularmente com
512 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

S. aureus. As combinações de corticóides e antimi- O pimecrolimus, na forma de creme a 1%, tem


crobianos para uso tópico devem ser reservadas às maior especificidade cutânea e melhor tolerância,
formas de DA infectada, circunscrita. A terapêutica havendo estudos que comprovam a sua segurança
anti-infecciosa sistémica é de extrema importância em bebés a partir dos 3 meses de idade. Tem uma
nas formas infectadas graves; a flucloxacilina, os afinidade para a calcineurina cerca de 3 vezes
macrólidos e as cefalosporinas são os antibióticos inferior à do tacrolimus.
sistémicos de eleição. Imunossupressores – A ciclosporina A é uma
Anti-histamínicos – Os anti-histamínicos boa alternativa que tem sido usada com sucesso.
sistémicos (hidroxizina, loratidina, cetirizina) são Com doses iguais ou inferiores a 5mg/kg/dia
úteis para reduzir o purido, considerando-se neste obtêm-se habitualmente remissões rápidas. As
contexto preferíveis as moléculas da 1ª geração, taxas de recorrência são altas (cerca de 75% às 6
com efeitos sedativos. Não devem ser utilizados semanas).
anti-histamínicos tópicos. Também o micofenolato de mofetil e a azatio-
Inibidores tópicos da calcineurina – Actual- prina são imunossupressores eficazes que podem
mente dispomos de uma excelente alternativa à ser úteis no controlo de situações refractárias,
corticoterapia tópica: os chamados imunomo- embora o seu uso seja limitado pela potencial toxi-
duladores tópicos – tacrolimus e pimecrolimus. cidade.
Trata-se de macrólidos imunossupressores que se Outros fármacos – Os inibidores dos leu-
ligam a um receptor intracelular (imunofilina) cotrienos foram tentados como terapêutica adju-
formando um complexo que inibe a calcineurina vante mas não revelaram grande eficácia.
e, em consequência, a transcrição nuclear de Os estudos com interferão gama e alfa tiveram
vários mediadores inflamatórios, tais como inter- resultados clínicos muito variáveis, globalmente
leucinas, TNF-alfa, IFN-gama, etc.. A sua activi- pouco animadores e com efeitos secundários
dade imunossupressora é complexa, sendo sistémicos importantes.
capazes nomeadamente de inibir a desgranulação Está descrita uma excelente resposta ao basili-
de mastócitos, diminuir a expressão de receptores ximab, um anticorpo monoclonal anti CD 25
para interleucinas (IL-8), e de diminuir a expres- (cadeia a do receptor da IL2) que tem sido usado
são de moléculas de adesão. em transplantes renais.
De acordo com os dados disponíveis a sua Fototerapia e vitamina D – A fototerapia com
aplicação tópica é bastante segura, sendo a radiação ultra-violeta B (UVB) e a fotoquimioter-
absorção sistémica reduzida. O efeito secundário apia com radiação ultra-violeta A, após fotossensi-
mais frequente é uma sensação transitória de bilização com psoralenos (PUVA), são também
ardor ou picada no local de aplicação, que não opções terapêuticas de segunda linha, muito úteis
impede habitualmente a continuação do trata- e eficazes em doentes com idade e capacidade
mento e que se desvanece à medida que este pros- para colaborar. Estudos recentes demonstraram
segue, acompanhando a melhoria cutânea. Ao que níveis mais elevados do metabólito 25(OH)
contrário dos corticosteróides tópicos, os imuno- vitamina D se correlacionam com melhoria clíni-
moduladores tópicos não provocam atrofia da ca, e níveis traduzindo deficiência do metabólito,
pele e não induzem taquifilaxia. com agravamento (Capítulos 51 e 59).
Estas novas terapêuticas têm sido muito úteis,
rapidamente alcançando o estatuto de fármacos de Em suma, todas as atitudes terapêuticas
primeira linha, quer como terapêutica de manuten- devem ser cuidadosamente avaliadas no sentido
ção, quer como alternativa aos corticosteróides nas de evitar os efeitos acessórios que a sua aplicação
crises de agudização, sobretudo em áreas de maior crónica ou prolongada pode acarretar.
susceptibilidade aos efeitos secundários destes. São referidas a seguir regras gerais impor-
O tacrolimus (ou FK506) é uma pomada co- tantes a seguir (e algumas a reiterar), nos cuida-
mercializada em duas concentrações: 0,03% e dos com a pele em idade pediátrica, e aplicáveis
0,1%. Está comprovada a sua eficácia e segurança em diversas situações anteriormente descritas.
em adultos e em crianças. 1 – A regra fundamental para um banho deve
CAPÍTULO 96 Acne 513

96
ser “água” qb. e pouco detergente”. Excluindo as
zonas que acumulam mais sujidade, como a zona
das fraldas, um banho diário não é indispensável.
No entanto, acentuar a interacção mãe-filho, o que
é muito mais importante do que uma real
necessidade do banho.
2 – Uma vez que a hiper-hidratação pode ACNE
aumentar a espessura da camada córnea pelo
edema celular que o excesso de água provoca, Ana Macedo Ferreira
pode haver uma diminuição da sua coesão com
consequentes menor resistência e alterações da
pele. Assim, no recém-nascido e crianças peque-
nas a duração do banho não deve exceder 10 mi- Definição e importância do problema
nutos.
3 – O produto ideal para o banho deverá Define-se a acne como inflamação dos folículos
respeitar o pH cutâneo, a camada lipídica superfi- pilosos e das glândulas sebáceas, com retenção de
cial e o ecossistema da pele. sebo, geneticamente determinada, evoluindo em
4 – Podem ser utilizados sabões supergordos ciclos, com acentuado relevo na juventude.
ou “syndets”. A chamada acne vulgar é, assim, uma doença
5 – Nos casos da pele dita normal não há inflamatória crónica multifactorial da unidade
necessidade de produtos especiais para o banho. pilo-sebácea caracterizada pela formação de pá-
Devem no entanto incorporar uma base suave, pulas eritematosas, pústulas, comedões e, menos
com adição de agentes humidificantes e comple- frequentemente nódulos e pseudo-quistos, poden-
xos gordos. Na face podem usar-se leites e loções do determinar a formação de cicatrizes. Tem o seu
de limpeza sem enxaguamento e “syndets”. No início em regra na adolescência, afectando em
corpo podem usar-se sabões neutros “syndets” ou grau variável 90% dos rapazes adolescentes e
geles de banho; é admissível o uso esporádico de menor percentagem de raparigas do mesmo
emolientes suaves (leites hidratantes). grupo etário. Em regra surge mais precocemente
6 – Os emolientes devem ser usados preferen- no sexo feminino. No que respeita à nomenclatu-
cialmente após o banho, com a pele ainda húmida. ra são consideradas duas situações: acne propria-
7 – Nos casos da pele seborreica podem ser mente dita (mais frequente e como tal mais impor-
usados produtos com zinco cuja função é diminuir tante na prática clínica) e erupções acneiformes
o excesso de produção de sebo. (em regra precipitadas por agentes externos nos
8 – Nos casos de pele seca com elasticidade quais se incluem os medicamentos).
diminuída, xerose e descamação, têm prioridade a
hidratação e lubrificação. Os sabões devem ser Etiopatogénese
supergordos ou “syndets” (sólidos ou líquidos);
podem ser também usados óleos de banho e ba- Os factores genéticos podem ter influência, tanto
nhos coloidais (que utilizam cereais que removem na gravidade como na persistência da doença.
por adsorsão os detritos lipo e hidrofílicos e dei- Não constituindo uma entidade, a acne antes
xam uma camada superficial protectora). É acon- engloba um conjunto de situações que se diferen-
selhável o uso de emolientes sob a forma de emul- ciam pelos aspectos clínicos e etiopatogénicos,
sões (consultar Glossário Geral). possuindo em comum a localização pilo-sebácea
dos processos iniciais da sua patogénese.
O mecanismo acneico decorre em dois tempos:
tem início na obstrução mecânica e não infla-
matória do folículo pilo-sebáceo – com a formação
do comedão; prossegue com a fase inflamatória
que inclui manifestações clínicas diversas – pápu-
514 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

las, pústulas e nódulos. A esta diversidade asso- designada por filme lipídico, é composta por mis-
ciam-se intensidade, evolução e prognóstico extre- tura de sebo, produto de secreção das glândulas
mamente variados. sebáceas, e de lípidos derivados da desintegração
Recorda-se, a propósito, a definição de come- das células epidérmicas durante o processo de que-
dão (designação popular: ponto negro) – pequena ratinização.
saliência esbranquiçada em cujo centro há um
ponto negro, formada por substâncias gordurosas Alteração de queratinização
acumuladas numa glândula sebácea. Localizam- Na acne regista-se alteração da queratinização
se preferencialmente no rosto. infundibular com tradução histológica (micro-
As fases do desenvolvimento da afecção são comedões) e clínica (comedões abertos e fecha-
seguidamente descritas. dos). Este fenómeno depende de: alterações quali-
tativas do sebo, factores hormonais, flora micro-
Hiperprodução sebácea biana, desregulação do fenómeno de renovação
A produção activa das glândulas sebáceas sob a do epitélio pilo-sebáceo e de citocinas.
influência androgénica é a condição sine qua non da
acne. Este fenómeno poderá ocorrer na presença de: Proliferação bacteriana e inflamação
níveis aumentados de secreção hormonal; ou níveis Se bem que a acne não seja definitivamente uma
normais de secreção mas grande biodisponibilidade doença infecciosa, é indiscutível o papel etiológico
de androgénios livres;ou níveis de secreção normais do Propionibacterium acnes que, para além de pro-
mas com aumento de resposta no órgão alvo (hiper- duzir lipases, regula a produção de ácidos gordos
actividade da 5-alfa-redutase ou aumento do número livres (comedogénicos e irritantes) através do seu
de receptores androgénicos). No sexo feminino uma equipamento enzimático. Assim, este microrga-
percentagem significativa de pacientes com acne tem nismo participa na reacção inflamatória acneica
alteração do balanço hormonal androgénico e, conse- com substâncias biologicamente activas (lipases,
quentemente, apresenta também outros sinais de fosfatases e hialuronidases) que contribuem para
hiperandrogenismo (hirsutirmo, alopécia andro- o aumento da permeabilidade do epitélio folicu-
genética ou alterações menstruais). lar, e com a produção de factores quimiotáxicos
A testosterona é o androgénio mais importante que atraem polimorfonucleares neutrófilos, com
na acne por actuar simultaneamente na proliferação consequente activação do complemento.
das glândulas sebáceas e na lipogénese. A maior
parte da testosterona plasmática (> 90%) encontra-se Mitos e verdades
ligada a globulinas, pelo que só uma pequena Outros factores podem ser considerados como
porção é biologicamente activa. A testosterona livre tendo influência no processo acneico; tais factores
(~3%) liga-se a receptores celulares antes de penetrar ocupam, no entanto, um campo minado de mitos e
na célula sebácea onde, por acção da 5-alfa-redutase “verdades” populares, por vezes muito distan-
tipo I, se transforma em di-hidrotestosterona (DHT). ciados da realidade científica. Dieta: a relação
Esta, por sua vez, liga-se a um receptor, e este com- causal de certos alimentos com o aparecimento de
plexo DHT-receptor actua no núcleo celular condi- lesões carece de relevância científica. Radiação
cionando aumento da produção sebácea. ultra-violeta: a convicção generalizada do efeito
O sebo é uma mistura complexa de glicéridos, benéfico da exposição solar na acne, também carece
ácidos gordos, escaleno, colesterol e seus ésteres, de aceitação científica. Efectivamente, verifica-se
excretados por mecanismos holócrinos de forma agravamento das lesões em 20% dos doentes no
contínua. Na acne a taxa de escaleno e ceras está período estival. Estresse: é um factor reconhecido
muito elevada, havendo uma marcada diminuição de agravamento das lesões com especial enfâse na
de linolatos. O défice de linolatos torna o epitélio acne escoriada dos adultos jovens e adolescentes.
folicular mais permeável aos ácidos gordos, o que
leva a exacerbação da hiperqueratose e aumento da Manifestações clínicas
proliferação bacteriana.
Recorda-se que a superfície cutânea lipídica, Nas fases iniciais predominam ou existem apenas
CAPÍTULO 96 Acne 515

lesões não-inflamatórias, os comedões abertos


(pontos negros) e fechados (pontos brancos)
(Figura 1). Estes últimos, de visualização mais
difícil, são cobertos por pele normal e possuem
maior tendência para evoluir para a inflamação.
As lesões inflamatórias da acne podem ser
superficiais ou profundas. As superficiais (pápu-
las e pústulas) são geralmente de diâmetro inferi-
or a 5mm, com duração variável. As profundas
são pápulas de maiores dimensões e nódulos,
levando com frequência à formação de cicatrizes.
A lesão predominante determina uma classifi-
cação para designar a acne (comedónica, pápulo-
FIG. 1
pustulosa, nodular); de referir que a doença acne-
ica é “dinâmica”, variando no tempo o tipo de Acne comedónica.
lesão preponderante. (Figuras 2, 3, 4). São des-
critas as seguintes variantes clínicas:
Acne neonatal (pustulose cefálica neonatal):
Ocorre em 20% dos recém nascidos saudáveis;
surge às 2 semanas e geralmente regride pelos 3
meses de idade. Caracteriza-se por pequenas
pápulas inflamatórias agrupadas no dorso do
nariz e região malar. A sua patogénese relaciona-
se com a colonização destes folículos por
Malassezia furfur, pelo que a classificação da acne
neonatal está actualmente a ser revista. Responde
ao tratamento tópico com cetoconazol creme;
trata-se de uma situação de carácter transitório.
Acne infantil: Esta designação diz respeito às
lesões de acne que surgem entre os 3 e os 6 meses
FIG. 2
de vida. Apresenta-se com múltiplos comedões
que, por vezes, podem induzir cicatrizes puncti- Acne pápulo-pustulosa moderada.
formes (Figura 5). A patogénese reflecte o balanço
hormonal intrínseco deste estádio de desenvolvi-
mento, desempenhando as hormonas maternas
um papel secundário. Tipicamente regride nos
primeiros anos de vida.
Outras variantes: Acne escoriada, acne iatro-
génica, acne cosmética, acne pomada, acne ocupa-
cional (por ex. dos violinistas), acne mecânica,
acne relacionada com alterações hormonais, etc..

Tratamento

Medidas gerais
Para que um tratamento da acne seja bem sucedi-
do, para além de uma escolha acertada dos agen-
FIG. 3
tes terapêuticos, é indispensável que o doente
e/ou sua família compreendam a sua patologia e Acne pápulo-pustulosa marcadamente inflamatória.
516 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

o método de tratamento deve ser seleccionado em


função de cada caso, e nunca padronizado. É
igualmente importante esclarecer o paciente sobre
um grande número de mitos/falsos conceitos,
explicar o carácter instável das lesões, chamar a
atenção para o agravamento temporário causado
por alguns tratamentos, assim como, elucidar e
compensar o desconforto secundário a algumas
medicações.
No atendimento do adolescente com acne vul-
gar, a postura do profissional de saúde deve ser de
compreensão, empatia e paciência.

Cuidados cosméticos
Deverá actuar-se com suavidade, remover o óleo,
respeitando o filme hidrolipídico. Para a limpeza
de pele utilizam-se sabões supergordos ou surgras
que deixam um fino filme lipídico na pele. Trata-
-se dos chamados sabões anti-seborreia.
FIG. 4
Nos cuidados complementares incluem-se
Acne nodular grave cremes hidratantes, bases, protectores solares,
todos eles devendo cumprir o requisito de serem
não comedogénicos.

Terapêutica tópica
Está indicada nas acnes ligeiras a moderadas e
igualmente acompanha a terapêutica sistémica
nas formas graves. Compreende essencialmente
queratolíticos e, por vezes, antibióticos associa-
dos. São utilizados preparados com retinóides
tópicos (adapaleno, isotretinoína, tretinoína),
antibióticos tópicos (eritomicina e clindamicina),
outros (ácido salicílico, peróxido de benzoílo em
gel ou creme a 5% ou 10%, ácido azelaico, óxido
de alumínio).

Terapêutica oral
Está indicada nas acnes moderadas a graves, nos
doentes com dismorfofobia e quando as cicatrizes
são um evento esperado. Inclui: os antibióticos
FIG. 5
que alteram a função enzimática dos microrganis-
Acne infantil (agravada após aplicação tópica de corticóide) mos patogénicos mais do que o seu número; e a
isotretinoína que, em 1992, veio revolucionar a
adiram ao esquema proposto. terapêutica da acne. A isotretinoína é a única tera-
A primeira consulta deverá incluir uma avalia- pêutica que actua simultaneamente em todos os
ção do impacte psicológico da doença, explicação factores etiopatogénicos da acne: reduz até 90% a
sobre a sua natureza, os objectivos dos medica- secreção sebácea, tem acção comedolítica, actuan-
mentos a utilizar, como os usar, bem como sobre a do na diferenciação das células foliculares,
duração provável do tratamento. De salientar que diminui a colonização do P. acnes e, finalmente,
CAPÍTULO 97 Dermatite das fraldas 517

97
tem propriedades anti-inflamatórias ao inibir a
quimiotaxia dos neutrófilos.
Notas importantes:
1) As formas graves de acne deverão ser en-
caminhadas para o dermatologista.
2) Os antibióticos por via oral classicamente
indicados são os macrólidos e as tetracicli- DERMATITE DAS FRALDAS
nas (estas últimas a partir da adolescência).
3) A isotretinoína é teratogénica, razão pela Teresa Fiadeiro
qual somente deverá ser prescrita excluindo
gravidez.
4) Os retinóides e o peróxido de benzoílo são
irritantes, o que implica aplicação gradual e Definição
controlada em quantidades reduzidas.
5) Estudos recentes chamam a atenção para a A dermatite das fraldas (ou eritema das fraldas) é
necessidade de manter nível glicémico nor- uma dermatose exclusivamente localizada (pelo
mal e para o benefício demonstrado dos menos, nas fases iniciais) à área que está coberta
suplementos com ácidos gordos essenciais pela fralda e que só ocorre nos períodos da vida
ómega-3. em que a mesma é utilizada.
No entanto, múltiplas dermatoses podem afectar a
região anogenital das crianças nesta fase da vida,
desde as que são causadas directamente pela
acção irritativa das fraldas (dermatite de contacto
irritativa primária), a doenças raras como a histio-
citose de células de Langerhans (doença de
Letterer-Siwe), sem qualquer relação com o uso
das mesmas. Assim, a dermatite das fraldas é um
termo lato que engloba várias patologias de etio-
logia multifactorial.
Destas é, sem dúvida, a dermatite irritativa
primária, a situação mais frequente e que, por
isso, será a abordada em pormenor.

Etiopatogénese

A dermatite das fraldas é considerada um pro-


tótipo da dermatose irritativa de contacto; esta
pode resultar de agressão inespecífica da pele por
contacto repetido com diversas substâncias irri-
tantes (dermatite irritativa, mais frequente na
idade pediátrica), ou de reacção alérgica por
mecanismo de hipersensibilidade retardada. A
dermatite irritativa de contacto considerada em
geral pode resultar do contacto prolongado ou
repetido com várias substâncias tais como saliva,
suor, sumo de citrinos, detergentes, sabões, medi-
camentos, etc..
Durante muito tempo admitiu-se que a amónia,
resultante da degradação da ureia urinária era o
518 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

factor causal primordial na génese dermatite das


raldas. Hoje sabe-se que o primeiro factor é a
perda da integridade da barreira cutânea. Crê-se
actualmente que esta perda de integridade se
deve ao aumento local da temperatura e humi-
dade resultantes da oclusão pela fralda, a que se
alia uma fricção e maceração contínua da mesma
pelo tecido da mesma.
Secundariamente, o contacto da pele com as
fezes, devido à acção de enzimas proteolíticas e
lipolíticas destas, determina um acréscimo de irri-
tação e agressão numa pele já alterada; agressão
essa, tanto mais acentuada quanto mais elevado
FIG. 1
for o pH local. Precisamente, quando a criança
ingere leite de vaca cujo pH é superior ao do leite Dermatite irritativa afectando superfícies convexas
materno, o pH local aumenta.
Quanto à influência de microrganismos, ape-
nas está demonstrado o papel da Candida albicans
que, muito frequentemente, sobreinfecta uma der-
matite irritativa primária, determinando a per-
sistência e agravamento da mesma.

Manifestações clínicas

A dermatite irritativa das fraldas caracteriza-se


por uma área de eritema brilhante, por vezes
semelhante a uma queimadura, que afecta princi-
palmente as superfícies convexas que estão em
contacto mais íntimo com a fralda – região glútea,
face interna das coxas, púbis, genitais e região
FIG. 2
abdominal inferior (aspecto em W); poupa, habi-
tualmente, o fundo das pregas (Figura 1). Dermatite irritativa com candidíase secundária
Ocasionalmente pode observar-se descamação
das áreas afectadas ou até lesões papulares, erosões
e pústulas, estas particularmente evidentes no caso
de sobreinfecção por Candida ou Staphylococcus
(Figura 2). Se as lesões se verificarem também nas
pregas e atingirem a região perianal em con-
tinuidade e sem intervalos de pele sã, também há
que admitir sobreinfecção por Candida.
Uma forma rara que corresponde a um quadro
grave de dermatite irritativa é a dermatite erosiva
ou doença de Sevestre-Jacquet evidenciando
lesões papulares com erosão, dando o aspecto de
cratera (Figura 3).

Diagnóstico
FIG. 3
O diagnóstico é geralmente feito com base na Dermatite erosiva de Sevestre-Jacquet
CAPÍTULO 98 Psoríase 519

98
anamnese e na observação clínica. É de extrema
importância o conhecimento das lesões primárias,
e a sua relação com as lesões que ocorrem secun-
dariamente; igualmente importante é conhecer a
distribuição das lesões iniciais, o que pode permi-
tir diferenciar as diversas entidades. Se a der-
matose evoluir sem diagnóstico e tratamento, PSORÍASE
torna-se difusa e de características inespecíficas.
Ana Fidalgo
Tratamento

São fundamentais medidas de ordem geral, obede-


cendo à regra: “pouca humidade e muito ar”. A Definição e importância do problema
mudança da fralda deve ser efectuada o maior
número de vezes possível de modo que o tempo A psoríase é uma doença cutânea autoimune infla-
de contacto da fralda suja com a pele seja mínimo. matória crónica, de predisposição genética, medi-
É aconselhável a exposição da zona afectada ao ar ada por linfócitos T, e caracterizada por lesões
havendo condições ambientais de temperatura. eritematosas bem delimitadas, com escama
Poderá utilizar-se o secador de cabelo na posição prateada. A morfologia, gravidade clínica e dura-
de frio. As modernas fraldas descartáveis, com ção da doença são muito variáveis.
materiais cada vez mais absorventes, nunca deve- Trata-se de um problema relativamente fre-
rão ser substituídas pelas antigas fraldas de algo- quente que afecta cerca de 2 % da população
dão; com efeito, é errada a ideia de menor agressão mundial, sendo mais prevalente na raça cau-
das antigas segundo a qual, sendo estas muito casiana. Existem dois “picos” de incidência: o
menos absorventes, iriam condicionar um agrava- primeiro entre os 20-30 anos, e o segundo entre os
mento da dermatose. 50-60 anos. A prevalência de psoríase na idade
A higiene local e o banho diário devem ser pediátrica é cerca de 0,5 a 1%.
efectuados só com água ou com produtos de acção
suave, de preferência, com efeito emoliente, e dis- Etiopatogénese
persíveis na água. Não são aconselháveis os toa-
lhetes de limpeza disponíveis no mercado. A etiopatogénese incompletamente compreendida
Em cada muda de fralda deverá ser aplicado relaciona-se com: acentuação da cinética prolifera-
em toda a área um creme de barreira contendo tiva epidérmica; auto-agressão imunitária contra
óxido de zinco que, para além da acção protecto- as células córneas; alteração de sistemas de media-
ra, exerce uma acção antisséptica e cicatrizante. ção e regulação celular – nucleótidos cíclicos
Não deve ser utilizado pó de talco. poliaminas e derivados do ácido araquidónico. Na
Se houver sinais de sobreinfecção por Candida prática são considerados:
albicans, deverão ser aplicados tópicos com acção • Factores genéticos A psoríase é determinada
anti-fúngica (por exemplo à base de nistatina ou geneticamente, de forma poligénica e multifactori-
de imidazol). al, sendo fortemente influenciada por factores
Se o processo inflamatório for muito intenso, ambientais. Em aproximadamente um terço dos
poderá recorrer-se ao uso de corticóides tópicos, doentes há antecedentes familiares da doença.
mas sempre de baixa potência (hidrocortisona a Existem diversas associações com alguns fenótipos
1%) e em períodos curtos. Efectivamente, havendo HLA (HLA-Cw6, HLA-A13 e 17 e HLA-B8) que
uma área significativa de pele lesada em relação à parecem determinar a data de início e a expressão
totalidade da superfície corporal da criança, a fenotípica da doença.
absorção transcutânea de qualquer tópico aí aplica- • Factores desencadeantes O início da pso-
do, aumenta muito, conduzindo facilmente a ocor- ríase pode estar relacionado com factores desen-
rência de efeitos sistémicos que podem ser fatais. cadeantes, e surgir em qualquer idade.
520 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

A acção de factores externos ou internos pode vas e mais pruriginosas. A face, o couro cabeludo
desencadear psoríase em indivíduos genetica- e as pregas são afectados com maior frequência
mente predispostos. comparativamente ao adulto.
• As infecções estreptocóccicas, em particular
faringites, constituindo factores desenca- As principais formas clínicas da psoríase (que
deantes ou agravantes. podem aparecer em sobreposição ou sequencial-
• O estresse psicológico pode precipitar ou mente no tempo) são as seguintes:
exacerbar a psoríase. • Psoríase guttata:
• Factores endócrinos e metabólicos: a gravi- É mais frequente em crianças e adultos jovens.
dez e a hipocalcémia podem induzir psoría- Surge de forma súbita, habitualmente 1-2 semanas
se pustulosa. após faringite estreptócoccica, sob a forma de pápu-
• Fenómeno isomorfo ou de Köbner: ocorre las, redondas ou ovais, com escama discreta ou
em 25% dos doentes; corresponde à indução ausente, dispersas de forma grosseiramente simétri-
de lesões psoriásicas em locais de trauma- ca pelo tegumento, mas com predomínio pelo tronco
tismo cutâneo. e extremidades proximais. Esta forma persiste 3 a 4
• Os fármacos : lítio, β-bloqueantes, interferão, meses e pode ter remissão espontânea e recorrências.
anti-inflamatórios não esteróides e IECA. • Psoríase em placas:
Nas crianças os fármacos mais frequente- Nesta variante existem placas eritematodesca-
mente implicados são os antimaláricos e os mativas características nas superfícies de extensão
corticóides. (joelhos e cotovelos) e/ou couro cabeludo e tron-
• Outros: o consumo elevado de álcool e taba- co. (Figuras 1 e 2)
co tem sido associado à psoríase. • Psoríase inversa:
Afecta predominante ou exclusivamente as
Na psoríase surge resposta imune efectora de áreas de atrito, em particular a área das fraldas e
perfil T helper 1. As lesões cutâneas resultam da acti- axilas (compromisso electivo das pregas). As lesões
vação local do sistema imune, e da acumulação mantêm o eritema vivo e bordo bem definido, mas
selectiva de linfócitos Th 1 (CD4+ e CD8+) que de- a escama é reduzida ou ausente. (Figura 3)
sencadeiam e mantêm a doença ao libertar citocinas • Psoríase pustulosa:
e/ou outras moléculas inflamatórias, induzindo a Variante rara na criança, quer na sua forma
hiperproliferação e diferenciação anormal de quera- generalizada, quer na forma localizada às palmas
tinócitos, de células endoteliais, fibroblastos, e mas- e plantas onde se observam pústulas.
tócitos. Sobressai igualmente inflitrado denso de • Psoríase eritrodérmica:
polimorfonucleres com característico epidermotro- É a forma rara, e habitualmente grave, com
pismo. A cronicidade resulta da estimulação linfoc- eritema e esfoliação de quase todo o tegumento.
itária persistente por antigénios de provável origem Pode ser congénita.
epidérmica ainda desconhecidos. • Psoríase artropática:
Surge artrite inflamatória seronegativa similar à
Manifestações clínicas artrite reumatóide em 5-30% dos doentes com
psoríase. O início pode ocorrer na puberdade,
O quadro clínico na criança é semelhante ao do sendo geralmente ulterior ao quadro cutâneo, na
adulto. A lesão característica é a placa eritemato- forma de artrite assimétrica mono ou oligoarticular.
descamativa, bem delimitada, com escama pratea- • Alterações ungueais:
da espessa. O eritema é vermelho vivo e a remo- A alteração mais frequente é o ponteado
ção sucessiva da escama origina pontos hemor- ungueal (40%); raramente surgem onicólise ou
rágicos (sinal de Auspitz). As placas localizam-se alterações da coloração.
predominantemente nas superfícies de extensão
das extremidades (cotovelos e joelhos), couro Diagnóstico
cabeludo e na região lombo-sagrada. Nas crianças
as lesões tendem a ser menos espessas, descamati- É essencialmente clínico, baseado no aspecto das
CAPÍTULO 98 Psoríase 521

lesões, distribuição e evolução. A história familiar


e as alterações ungueais apoiam o diagnóstico. O
diagnóstico diferencial na infância estabelece-se
essencialmente com a dermite da área das fraldas,
com o eczema numular, a pitiríase rosada e a
epidermofitia. Em situações especiais poderá
recorrer-se ao exame histopatológico.

Tratamento

Deve ser adaptado a cada caso individual, em função


FIG. 1
da idade do doente, localização e extensão da
Psoríase em placas doença, evolução e resposta a tratamentos anteriores.
As medidas gerais incluem banhos com óleos
essenciais, aplicação de emolientes, eventual-
mente com agentes queratolíticos. Na psoríase em
placas pode efectuar-se tratamento com cor-
ticóides de fraca a moderada potência e análogos
da vitamina D, isolados ou em combinação.
Para as lesões da face e pregas dispomos actual-
mente dos novos imunomoduladores tópicos
(tacrolimus e pimecrolimus) que são eficazes, bem
tolerados, e destituídos de efeitos acessórios
(atrofia e metabólicos).
A psoríase guttata aguda associada a infecção
estreptocóccica deve ser tratada com antibioti-
coterapia dirigida.
A fototerapia com ultravioletas B (UVB) pode
ser usada no tratamento da psoríase guttata e
psoríase em placas crónica extensa e/ou refractária.
A helioterapia é benéfica e aconselhada com
prudência. Os retinóides sistémicos, em particular
FIG. 2
a isotretinoína, são eficazes nas psoríases em pla-
Psoríase em placas no tronco. cas, guttata, eritodérmica e pustulosa (efeitos no
crescimento ósseo).
Para casos seleccionados citam-se os seguintes
fármacos, alguns ainda em investigação: ciclospo-
rina, metotrexato, infliximab, etanercept, inibi-
dores da IL-17 e de receptores de IL-17, anti-TNF ,
anti IL-12/23, agonistas dos receptores de adeno-
sina A3, etc..

Prognóstico

A psoríase é uma doença crónica com impacte


importante na qualidade de vida. Cursa com
períodos de remissão e exacerbação. O envolvi-
FIG. 3
mento articular na criança habitualmente é de
Psoríase inversa carácter não destrutivo e tem bom prognóstico.
522 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

99 Mancha mãe

PITIRÍASE ROSADA (Doença de Gibert)


Ana Fidalgo

Definição e importância do problema

A pitiríase rosada é uma dermatose eritemato-


descamativa aguda, relativamente frequente, que
afecta predominantemente adolescentes e adultos
jovens, com curso característico de evolução
espontânea para a cura em cerca de 4-6 semanas.
FIG. 1
Ocorre em indivíduos jovens saudáveis, entre
os 10 e 35 anos, com um “pico” de incidência na Pitiríase Rosada: distribuição das lesões na forma clássica ou
adolescência, sendo rara antes dos 2 anos e nos típica.
idosos. Não existe predilecção racial, verificando-
-se ligeiro predomínio no sexo feminino. Nos • Pitiríase rosada típica ou clássica
climas temperados, é mais comum na Primavera e Inicia-se por mancha ou placa eritematosa ou
Outono. cor de salmão, descamativa, ovalar, em regra loca-
lizada ao tronco e única (“mancha mãe”), de 2 a 5
Etiopatogénese cm de diâmetro, que aumenta progressivamente
(Fig. 1 e 2). A “mancha mãe” é identificável em
A etiologia vírica parece ser a mais provável. Dois cerca de 50 a 90 % dos casos; menos frequente-
vírus do grupo Herpes têm sido implicados: mente surge na face, região cervical ou extremi-
HHV-7, e menos frequentemente, HHV-6. A dades. Numa minoria dos doentes (5%) pode ocor-
evidência epidemiológica de mais casos familiares rer pródromo de mal-estar geral, anorexia, febre,
(agregação) e/ou contactos íntimos, de sintomas cefaleias e artralgias. Após 5 a 15 dias surge, com
prodrómicos em alguns doentes, o curso autolim- carácter súbito, erupção constituída por inúmeras
itado e a raridade de recorrências, sugere um lesões semelhantes, mas mais pequenas que a
processo de defesa imunológica contra um agente precedente, de dimensões variáveis (0,5-1,5 cm),
infeccioso. afectando tronco e extremidades proximais. As
Alguns fármacos podem causar erupções lesões são bem delimitadas, rosadas, ovalares, e o
cutâneas semelhantes à pitiríase rosada: captopril, seu maior eixo dispõe-se paralelamente à grelha
β-bloqueantes, isotretinoína, griseofulvina, entre costal (linhas de clivagem de Langer), numa dis-
outros. tribuição em “árvore de Natal”, que é mais evi-
dente no dorso. O centro das lesões adquire uma
Manifestações clínicas escama fina, enrugada, que progride excentrica-
mente, formando uma franja circular descamativa
Em cerca de 80% dos casos a doença segue um característica (em “collarete”) (Fig 3). A face, palmas
curso clínico característico (pitiríase rosada clássi- e plantas são habitualmente poupadas. O envolvi-
ca) e de fácil diagnóstico. Numa minoria, e sobre- mento das mucosas é raro. Na raça negra as lesões
tudo em crianças, pode assumir formas atípicas. podem apresentar um aspecto psoriasiforme.
CAPÍTULO 100 Pediculose 523

100
PEDICULOSE
Luísa Caldas Lopes
FIG. 2 FIG. 3
“Mancha mãe” (Pitiríase Erupção exantemática típica
rosada). (Pitiríase rosada). Definição e importância do problema

A erupção é assintomática, ou rara ligeira- Pediculose é a infestação cutânea causada por


mente pruriginosa. Não se acompanha de sin- piolhos, artrópodes hematófagos humanos per-
tomas sistémicos e evolui espontaneamente para a tencentes à família Pediculocidae, que compreende
cura, podendo deixar hipo ou hiperpigmentação. as espécies: – Pediculus humanus (corporis): do
Não recidiva. corpo ou roupa.
• Forma atípica – Pediculus humanus (capitis): do couro cabeludo.
As formas atípicas diferem pela distribuição – Phthirius pubis: afectando a região púbica, per-
ou aparência das lesões; a mais frequente é uma tence à família Pthiridae.
variante inversa que envolve predominantemente A pediculose do corpo e a pediculose púbica
axilas e região inguinal, eventualmente face e atingem preferencialmente adultos com vida
pescoço, sendo mais frequente em negros. Outras precária e sexual activa, pelo que não são abor-
variantes incluem as formas vesicular, papular, dadas (Quadro 1).
urticariforme, purpúrica e pustulosa.
Manifestações clínicas e diagnóstico
Diagnóstico
A pediculose da cabeça é uma infestação ubiqui-
O diagnóstico é essencialmente clínico, baseado tária, verificando-se maior incidência entre os 3 e
na distribuição, morfologia e evolução caracterís- os 11 anos de idade. É mais frequente no sexo
ticas da erupção cutânea na ausência de sintoma- feminino. O contacto interpessoal é a forma mais
tologia sistémica. frequente de transmissão, mas pode verificar-se a
A “mancha mãe” e/ou a erupção disseminada disseminação por fómites.
secundária podem assemelhar-se à tinha corporis, Os achados clínicos são limitados ao couro
ao eczema numular ou à psoríase guttata. cabeludo, mais frequentemente região occipital e
O diagnóstico diferencial estabelece-se es- retroauricular. O sintoma clássico é o prurido mar-
sencialmente com as toxidermias e as dermatofitias. cado, ainda que de intensidade variável.
Na primeira infestação o prurido pode demorar
Tratamento 2 a 6 semanas até se evidenciar; em infestações

A doença é autolimitada com remissão espontânea QUADRO 1 – Formas de Pediculose


em 6 a 12 semanas. O tratamento é sintomático
com emolientes e, se houver prurido, com anti-his- Parasita (piolho) Doença
tamínicos orais e corticoterapia tópica. Em formas Pediculus humanus var. capitis Pediculose da cabeça
clínicas extensas, muito pruriginosas e/ou persis- Pediculus humanus var. corporis Pediculose do corpo
tentes, poderá estar indicada corticoterapia tópica Phthirus pubis Pediculose púbica
ou sistémica de curta duração.
524 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

101
futuras desenvolve-se prontamente. Salienta-se,
assim, a possibilidade de ocorrência de surtos
epidémicos em creches e escolas. Poderão surgir
complicações (piodermites). Alguns indivíduos as-
sintomáticos podem ser considerados “portadores”.
O diagnóstico é feito pela identificação do para-
sita ou pelos ovos (lêndeas, em geral muito ESCABIOSE
numerosas) na haste do pêlo. Ocasionalmente pode
existir febre baixa, irritabilidade, linfadenopatia ou Luísa Caldas Lopes
infecção bacteriana secundária.

Tratamento
Definição e importância do problema
A escolha terapêutica é baseada na eficácia do fár-
maco, potencial de toxicidade e padrões de A escabiose (sinónimo: sarna) é uma doença cu-
resistência. Em todas as preparações tópicas, de tânea parasitária provocada por infestação pelo
preferência líquidas, devem ser realizadas 2 apli- ácaro Sarcoptes scabiei variante hominis, parasita
cações com 1 semana de intervalo, atendendo à exclusivamente humano, que não infesta animais
possibilidade de poder haver ainda eclosão larvar domésticos ou objectos inanimados.
que tenham eclodido dos ovos (lêndeas) depois Trata-se duma doença ubiquitária; todas as
do primeiro tratamento. É fundamental a remoção idades, raças e grupos sócio-económicos são sus-
mecânica da lêndeas. ceptíveis. No entanto, existem vários factores
É aconselhavel corte de cabelo (muito curto) que facilitam a sua disseminação: o atraso do
para facilitar, com pente de espaços apertados, a tratamento de casos primários, a falta de alerta
remoção das referidas lêndeas(Bug Buster Kit®). para a doença e as más condições socio-
A retirada das lêndeas das pestanas é difícil; económicas. A disseminação da infestação entre
por isso, é aconselhável aplicar pomada oftálmica membros da mesma família e contactos próxi-
com vaselina em dias consecutivos previamente. mos é frequente, e um dado que favorece o diag-
Na pediculose da cabeça são utilizados os nóstico.
seguintes fármacos em alternativa: A prevalência é maior em crianças, em adultos
– Piretrinas, das quais se isolou a permetrina com vida sexual activa e em idosos ou acamados.
(champô): aplicação durante 10 minutos, lavando
em seguida; pode repetir-se o procedimento no Etiopatogénese
dia seguinte; como precaução há que evitar con-
tacto com os olhos; ou O Sarcoptes scabiei var. hominis é um ácaro muito
– Permetrina a 1% associada a butóxido de pequeno, arredondado e translúcido, cuja fêmea
piperonilo a 2% (creme de lavagem): aplicação em mede cerca de 0.4 mm. Tem 4 pares de patas e
cabelo pouco húmido durante 10 minutos, segui- reproduz-se pela postura de ovos fecundados.
do de lavagem; pode repetir-se 1 semana depois; O ácaro fêmea penetra na epiderme onde escava
resistências frequentes. e avança lentamente originando a galeria, na
Notas importantes: qual põe os ovos e morre ao fim de 6 semanas.
1) O lindano(hexaclorociclo-hexano) actual- A duração do macho é bastante inferior. Cada
mente não é comercializado em Portugal. Muito ovo resulta numa larva de 3 pares de patas e que
eficaz, no entanto é neurotóxico; 2) Tem-se verifi- se vem transformar em ácaro adulto. Este ciclo
cado, por mutação genética de algumas estirpes dura cerca de 2 semanas. Na primeira infestação
de piolhos, resistências a pediculicidas; 3)A a sensibilização do sistema imunitário pode
pediculose do corpo obriga a desinfestação da demorar duas a seis semanas. As infestações
roupa pelo calor e a eventual aplicação tópica de subsequentes são reconhecidas em 24 a 48
permetrina. horas.
CAPÍTULO 101 Escabiose 525

Manifestções clínicas necessário, a confirmação faz-se pela demonstra-


ção em exame microscópio directo do ácaro em
A história epidemiológica, a distribuição das lesões hidróxido de potássio a 10%.
(pápulas, vesículas, nódulos e galerias) e o purido
formam a base para o diagnóstico clínico. Tratamento
O prurido intenso tem classicamente exacer-
bação nocturna ou é acentuado por banhos quentes. O doente e todos os familiares próximos devem
As lesões cutâneas têm distribuição característica e ser tratados simultaneamente, uma vez que é rela-
simétrica: os locais envolvidos incluem as pregas tivamente frequente a existência de portadores
interdigitais, punhos, axilas, regiões retroauricu- assintomáticos. É importante ainda recordar que
lares, região periumbilical, pés e regiões maleolares. na primeira infestação o prurido só surge 4 a 6
Nas crianças mais velhas e adolescentes as semanas após o contacto. Apesar de o ácaro atin-
lesões têm localização semelhante à dos adultos. gir preferencialmente zonas quentes e húmidas, o
No homem são frequentes lesões no pénis e escabicida deve ser aplicado em toda a superfície
escroto. Na mulher, os mamilos e a área genital são cutânea incluindo face e couro cabeludo, nas
frequentemente afectados. Particularmente nas cri- crianças com menos de cinco anos. Para reduzir o
anças, imunocomprometidos e idosos, todas as potencial de reinfestação, a roupa de uso pessoal,
superfícies cutâneas são susceptíveis, incluindo a roupa de cama e as toalhas devem ser lavadas no
couro cabeludo e face. início e no fim do tratamento.
O sinal patognomónico é a presença de galerias Após tratamento eficaz a maioria dos doentes
correspondendo ao trajecto do ácaro em forma de melhora do prurido em 3 dias; contudo, o prurido
linha quebrada, com poucos milímetros de compri- e as lesões podem persistir 2 a 4 semanas – é o
mento. A restantes lesões cutâneas são pápulas prurido pós-escabiótico. Esta reacção não implica
eritematosas, nódulos e lesões secundárias de falência terapêutica, mas sim uma reacção
coceira. As crianças têm tendência a ter maior imunológica a toxinas ou ácaros mortos. É ainda
número de lesões que o adulto. importante recordar que os escabicidas tópicos
No decurso da evolução de uma sarna não determinam sempre um certo grau de irritação
tratada podem surgir nódulos (escabióticos), cutânea, pelo que a sua aplicação excessiva agrava
resultantes da intensificação da reacção infla- a dermite que frequentemente coexiste com a
matória ao ácaro. Estes nódulos podem atingir escabiose.
mais de 1 cm de diâmetro, são particularmente O medicamento utilizado deve ser aplicado
frequentes em crianças e, quando considerados minuciosamente ao deitar.
isoladamente, podem originar problemas dia- Na idade pediátrica os fármacos utilizados
gnósticos. (ectoparasiticidas) são os seguintes:
A eczematização e a impetiginização são com- – Lindano (soluto a 1%), aplicação única à
plicações frequentes. noite; seguida de banho cerca de 8 horas
Crianças com atraso psicomotor grave ou inca- depois.
pazes de se coçar podem ser infestadas por mi- A neurotoxicidade deste produto limita a sua
lhares de ácaros, produzindo hiperqueratose utilização em crianças pequenas (< 2 anos), grávi-
difusa e liquenificação particularmente proemi- das e em formas clínicas em que existam muitas
nente nas mãos, pés e orgãos genitais. Esta forma abrasões na pele.
de escabiose é designada sarna norueguesa ou sarna – Benzoato de benzilo (soluto a 30%) com apli-
crostosa. cação em toda a pele excepto face e cabeça,
em 3 noites consecutivas, seguindo-se banho
Diagnóstico na manhã seguinte à terceira aplicação. Na
manhã do 4º dia a roupa em uso deve ser
O prurido com exacerbação nocturna, o quadro escaldada ou lavada em máquina a 90ºC.
clínico típico e a presença de familiares com doen- Nas crianças pequenas com infestação maciça
ça pruriginosa permitem o diagnóstico clínico. Se e dermatite acentuada deve evitar-se o benzoato
526 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

102
de benzilo, optando-se por suspensão de enxofre a
5% (creme ou pomada) diariamente durante 3 a 5
dias.
– Invermectina: é o única fármaco de admi-
nistração oral. Não se encontra disponível no
mercado, apesar de ter utilidade em diversas
doenças parasitárias humanas, das quais se MOLUSCO CONTAGIOSO
destacam as filaríases. O seu uso na sarna é
restrito às formas refractárias, sobretudo se Maria João Paiva Lopes
associadas a infecção por VIH em crianças
com idade superior a 5 anos.

Definição e importância do problema

A afecção designada classicamente por molluscum


contagiosum ou “molusco contagioso” é uma
doença benigna, autolimitada, causada pela
infecção de queratinocitos por um vírus DNA da
família Poxviridae – o vírus do molusco contagioso
– que tem especificidade para células humanas,
não sendo possível cultivá-lo em ovo ou culturas
de tecidos.
O contágio faz-se por contacto cutâneo próxi-
mo. Nos adultos frequentemente a transmissão
faz-se por via sexual. O período de incubação
varia de 2 semanas a 6 meses.
A incidência em Portugal é desconhecida,
sabendo-se que se trata de uma doença muito
comum na infância, a partir do 1º ano de vida. Há
surtos associados à frequência de piscinas, sendo
estas um local de contágio habitual. Algumas
séries apontam para prevalências da ordem dos
30% da população em geral, podendo ultrapassar
os 70% na população seropositiva para VIH (vírus
de imunodeficiência humana).

Manifestações clínicas e diagnóstico

Este tipo de infecção cutânea de causa vírica mani-


festa-se por pequenos módulos procidentes ou
pápulas na superfície cutânea, de cor rosada ou
branco-pérola, umbilicados e cheias de massa
gelatinosa e pegajosa – o corpo do molusco, habi-
tualmente com dimensões entre 1 e 5 mm.
Ocasionalmente podem observar-se lesões com
cerca de 5-10 mm.
Nas crianças as localizações mais frequentes
são as áreas de atrito do vestuário, como as
regiões cervical, axilar e tronco. A doença pode
CAPÍTULO 102 Molusco contagioso 527

também atingir a face, couro cabeludo e membros. bém ter-se em atenção a vigilância de novas lesões
O aparecimento eventual de lesões em localização e a sua rápida destruição, antes que estas se mul-
anogenital não implica transmissão sexual, tipliquem. A opção pela terapêutica no domicílio,
podendo corresponder a auto-inoculação. quando exequível, é a mais favorável, evitando-se
O diagnóstico clínico é, na maior parte dos assim “traumatizar” a criança.
casos, bastante simples. Nos doentes seropositivos
para o VIH é importante o diagnóstico diferen- BIBLIOGRAFIA GERAL
cial com criptococose que assume aspectos clíni- (Parte XV – Dermatologia)
cos muito semelhantes. Uma manobra útil no dia- Brown S, Reynolds NJ. Atopic and non-atopic eczema. BMJ
gnóstico diferencial consiste em espremer uma 2006; 332: 584-588
lesão, com pinça: se esta manobra produzir a Burns T, Brethnach S, Cox N (eds). Rook´s Textbook of
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advogam que não é imperativo tratar estas lesões, 25: 480 - 487
uma vez que elas são autolimitadas, ocorrendo Gehring U, Bolte G, Borte M, et al. Exposure to endotoxin
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produza sementeiras, levando ao desenvolvimen- Fundação Calouste Gulbenkian, 2010
to de mais lesões. Assim, parece preferível tentar a Hanifin et al. Guidelines of care for atopic dermatitis. J Am
terapêutica precoce, enquanto há um número Acad 2004; 50: 391-404
reduzido de lesões. O objectivo é destruir as mes- Mutgi K, Koo J. Update on the role of systemic vitamin D in
mas. As modalidades possíveis incluem espremer atopic dermatitis. Pediatric Dermatology 2013; 30: 303- 307
(com aplicação prévia de anestésico tópico) com Nguyen R, Su J, Treatment of acne vulgaris. Paediatrics and
pinça de bicos finos, curetagem, crioterapia ou Child Health 2011; 21:119-125
aplicação local de produtos como podofilotoxina, Robeva R, Assyov Y, Tomova A, et al. Acne vulgaris is associ-
cantaridina, verrucidas, tretinoína ou, mais recen- ated with intensive pubertal development and altitude of
temente, imiquimod. residence. Eur J Pediatr 2013; 172:465-471
Tratando-se de uma doença benigna e auto- Sawni A, Singh A. Complementary, holistic, and integrative
limitada, é de bom senso escolher uma terapêuti- medicine: acne. Pediatr Rev 2013; 34:91-92
ca que não seja mais agressiva ou traumatizante Sharma V, Orchard D. Paediatric psoriasis. Paediatrics and
para a criança do que a doença em si. A avaliação Child Health 2011; 21:126-131
das particularidades de cada caso (idade, localiza- Shekariah T, Kalavala M, Alfaham M. Atopic dermatitis: a
ção e número de lesões) deverá orientar a opção practical approach. Paediatrics and Child Health 2011;
terapêutica, a qual deve ser ponderada em con- 21:112-118
junto com a criança e os pais. De notar que é pos- Simon D, Lang KK. Atopic dermatitis: from new pathogenic
sível e benéfico ensinar os pais a tratar a criança insights toward a barrier-restoring and anti-inflammatory
em ambiente doméstico, seja pela aplicação de therapy. Curr Opin Pediatr 2011; 23: 647-652
tópicos, seja pela espressão com pinça com apli- Weston WL, Lane AT, Morelli JG. Color Textbook of Pediatric
cação prévia de anestésico tópico (pomada de Dermatology. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007
prilocaína cerca de 45 minutos antes). Deve tam-
PARTE XVI
Gastrenterologia e Hepatologia
530 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

103
esofágico inferior relaxa-se, alargando o orifício de
passagem. Concomitantemente as contracções
sincronizadas dos músculos da parede abdominal,
diafragma e intercostais aumentam a pressão
intrabdominal e intratorácica com consequente
expulsão do conteúdo gástrico contra a faringe e,
VÓMITOS depois, para o exterior, pela boca.

Mafalda Paiva e Filipa Santos Manifestações clínicas e diagnóstico

A avaliação de uma criança que tem vómitos


Definição (Quadro 1) deve iniciar-se com a elaboração da
anamenese, caracterizando os vómitos (alimentares,
Os vómitos, que consistem na expulsão súbita hemáticos, biliosos, com muco), a sua forma de
pela boca do conteúdo do estômago, com esforço, apresentação (agudos, crónicos ou cíclicos), e a
são um sintoma muito frequente em idade repercussão no estado geral (nutricional e na hidra-
pediátrica, com múltiplas etiologias. O vómito tação). É importante analisar a existência de outros
deve ser distinguido da regurgitação que consiste sinais e sintomas (febre, tosse, dor abdominal,
na expulsão, sem esforço, do conteúdo gástrico obstipação, diarreia) e a sua apresentação
pela boca; esta última situação é frequente nos cronológica, considerando sempre as patologias
lactentes até aos três meses, não tendo geralmente específicas de cada idade e a existência de contexto
repercussões importantes. epidemiológico. Na maioria das vezes estes dados
permitem o diagnóstico. Os exames complementares
Fisiopatologia são orientados de acordo com a suspeita clínica:
exames laboratoriais (hemocultura, urinocultura,
O vómito resulta da resposta a diversos estímulos, cultural do liquor) quando há suspeita de infecção;
coordenados pelo sistema nervoso central em sin- imagiológicos e/ou endoscópicos quando há
cronismo com os músculos abdominais e torácicos. suspeita de anomalia anatómica/gastrintestinal; e
Durante o vómito há três fases: a primeira define- doseamentos específicos quando a suspeita é de
se como náusea, consistindo na sensação de vó- doença metabólica ou endócrina.
mito iminente, em geral associada a outros sinais e Sendo o vómito um sintoma comum a muitas
sintomas, nomeadamente palidez, sudação, sialor- patologias, o diagnóstico diferencial varia com a
reia, taquicárdia e anorexia; a segunda consiste idade do doente (Quadro 2). As anomalias
num movimento espasmódico respiratório contra congénitas, as doenças genéticas e metabólicas são
a epiglote encerrada; e a terceira, (vómito propria- mais frequentes no período neonatal; as causas
mente dito) que consiste na expulsão retrógrada, pépticas, infecciosas e psicogénicas surgem com
súbita e com esforço, do conteúdo gástrico através maior frequência na criança mais velha.
da boca. A estenose hipertrófica do piloro surge em
Embora seja nítida a existência destas três fases, cerca de 1-3/1.000 nascimentos e resulta de uma
cada uma delas pode surgir independentemente hipertrofia muscular das fibras circulares do
das outras. Nem sempre a sensação de náusea piloro (oliva pilórica). É mais frequente no sexo
desencadeia o vómito; por outro lado a estimu- masculino e manifesta-se nas primeiras semanas
lação faríngea poderá desencadear o vómito sem de vida (Capítulo 316).
ser precedida de náusea. No caso de estenose hipertrófica do piloro os
Durante o vómito o fundo gástrico relaxa-se e vómitos surgem após um intervalo livre, em geral
recebe o conteúdo intestinal sob a forma de um 2 a 4 semanas sob a forma de vómitos não biliosos,
bolus após contracção do intestino delgado. A pós-prandiais, em jacto, sempre cada vez mais
contracção do piloro e do antro gástrico mantém frequentes e abundantes. A criança fica agitada
este conteúdo no interior do estômago e o esfíncter com fome, pode ter perda ponderal e ficar desi-
CAPÍTULO 103 Vómitos 531

QUADRO 1 – Abordagem do doente com vómitos

Doente desidratado ?
Sim Não

Reidratação:oral /ev Caracterizar os vómitos

Hemáticos Biliosos Não hemáticos/Não biliosos


RN ou lactente Criança/adolescente

Hemorragia Causa obstrutiva? Sépsis Letargia ou


digestiva alta? Meningite Alteração do estado
Infecção urinária de consciência
Não Sim Não Sim

Obstrução? Tratamento Diarreia? Causas:


(Rx, Ecografia) antibiótico Febre? neurológica
metabólica
Não Sim
endócrina

Causas: Não Sim


Cirurgia
endócrina?
metabólica? Doença péptica Causas
neurológica? Causas anatómicas infecciosas
Adaptado de CD Rudolph, 2011

dratada. O abdómen fica distendido após as acordo com diversos estudos epidemiológicos,
refeições podendo identificar-se pela inspecção do cerca de 50% dos doentes necessita de reidratação
abdómen ondas peristálticas gástricas da esquer- endovenosa. O diagnóstico diferencial deve fazer-
da para a direita. Se não existir distensão abdo- se com situações de obstrução intestinal
minal acentuada poderá palpar-se a oliva pilórica. intermitente (volvo, má-rotação) e com certas
O diagnóstico ecográfico permite a identificação doenças metabólicas como acidémias orgânicas,
do espessamento e alongamento do canal pilórico; galactosémia e alterações do ciclo da ureia.
outros exames complementares podem orientar
como a radiografia esofagogastroduodenal que Complicações
demonstra o estômago dilatado com atraso do es-
vaziamento, e o canal pilórico estreito. As complicações mais frequentes dos vómitos
Uma referência a um quadro clínico designado mantidos são a perda de electrólitos e fluidos
por síndroma dos vómitos cíclicos (Quadro 3). Os podendo levar a alcalose hipoclorémica, ruptura
vómitos surgem de forma recorrente por períodos da pequena curvatura da junção gastresofágica
variáveis podendo eventualmente conduzir a (ruptura de Mallory-Weiss), aspiração de con-
desidratação e alterações do equílibrio hidro- teúdo gástrico para a via respiratória com conse-
electrolítico e ácido-base. Podem ser acom- quentemente pneumonia, exposição da mucosa
panhados de dores abdominais e de febre. Em esofágica ao conteúdo ácido do estômago com
geral desaparecem ou atenuam-se após perío-do risco de esofagite, etc.. As principais complicações
de sono e repouso. Estão em geral associados a metabólicas são discriminadas no Quadro 3.
história familiar da enxaqueca. Mantendo-se a
situação até à 2ª infância, as crianças mais velhas Tratamento
conseguem descrever associação de cefaleias a
antecedentes de quadro recorrente de vómitos. De A manutenção do estado de hidratação é fun-
532 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial dos vómitos de acordo com a idade de apresentação

Causa Recém-nascido Lactente Criança maior Adolescente


Infecciosa Sépsis Gastrenterite Gastrenterite Gastrenterite
Meningite Meningite Otite média aguda Sinusite
Infecção urinária Otite média aguda Sinusite Infecção respiratória
Infecção respiratória
Anatómica Atrésias Estenose hipertrófica do piloro Invaginação intestinal Hérnia inguinal
Duplicações Hérnia inguinal Hérnia inguinal Bezoar
Má-rotação/Volvo Doença de Hirschsprung Bezoar Síndroma de artéria
Doença de Hirschsprung Invaginação intestinal mesentérica superior
Íleo meconial
Estenose pilórica (<Cl-; <K+)
Gastrintestinal Refluxo gastresofágico Refluxo gastresofágico Refluxo gastresofágico Refluxo gastresofágico
Erro alimentar Esofagite Gastrite Gastrite
Pseudobstrução intestinal Alergia às proteínas do leite Apendicite Apendicite
de vaca Pancreatite Pancreatite
Gastrite Hepatite Hepatite
Doença celíaca Discinésia biliar
Acalásia
Neurológica Hidrocefalia Hematoma subdural Enxaqueca Enxaqueca
Hematoma subdural Tumor Tumor
Síndroma de Reye
Metabólica ou Galactosémia Intolorância à frutose Diabetes mellitus Diabetes mellitus
endócrina Defeitos do ciclo da ureia Urémia Gravidez
Hipercalcémia Hiperplasia congénita da Porfiria intermitente
supra-renal (>K+)
Outras Medicamentos Síndroma de vómitos Psicogénicos
ciclícos Bulimia
Ingestão de tóxicos
Adaptado de Kliegman RM et al, 2011
Intoxicação alimentar

damental. Quando é identificada a etiologia dos maioria dos lactentes e crianças com vómitos
vómitos a terapêutica é específica. A utilização de secundários a gastrenterite aguda, anomalias
fármacos anti-eméticos está contra-indicada na estruturais do tracto gastrintestinal, emergências
cirúrgicas e lesões expansivas intracraninas.
QUADRO 3 – Síndroma de vómitos cíclicos:
critérios de diagnóstico* QUADRO 4 – Complicações metabólicas
dos vómitos
– Pelo menos, 5 episódios com qualquer intervalo de tempo
ou mínimo de 3 durante período de 6 meses; Perda de Na, K, e HCl pelos vómitos
– Episódios de náuseas e vómitos durante período entre 1 Hiponatrémia, hipopotassémia e alcalose hipoclorémica
hora e 10 dias, pelo menos com uma semana de intervalo;
– Vómitos 4 ou mais vezes/hora durante > 1 hora; Consequências da alcalose
– Período assintomático entre os episódios; [Na+] → entrada para as células
– Exclusão de causas específicas; [HCO3-] → perda pela urina(pH 7-8)
– Padrão estereotipado para cada caso; [K+ e Na+] → perda pela urina(hipercaliúria e hipernatriúria)
*Verificação de TODOS os critérios [Cl- urinário diminuído] <> conservação pelo rim
CAPÍTULO 104 Refluxo gastresofágico 533

104
Os anti-eméticos estão indicados em situações
seleccionadas: pós operatório, quimioterapia,
alguns casos de síndroma de vómitos cíclicos e
alterações da motilidade gastrintestinal, etc..
Os mais utilizados são: 1) a Metoclopramida
([Primperam®]) (antagonista de dopamina) → 0,1-
0,2 mg/kg iv ou PO (até 3 vezes/dia); 2) Domperi- REFLUXO GASTRESOFÁGICO
dona [Motilium®] → 0,2-0,6 mg/kg PO (até 3
vezes/dia); 3) Dimen-Hidrinato [Dramamina®] → Gonçalo Cordeiro Ferreira
1 mg/kg antes da viagem nos casos de vómitos
com movimento ou em casos de alteração
vestibular; 4) Eritromicina (procinétrico agonista
da motilina) → 2-4 mg/kg iv ou PO até 3 Definição e importância do problema
vezes/dia; 5) Propranolol (bloqueante beta-
adrenérgico → 0,5 mg - 2 mg/kg até 2-3 vezes/dia O refluxo gastresofágico (RGE) consiste na pas-
para os vómitos ácidos); 6) Cipro-heptadina sagem retrógrada do conteúdo gástrico para o
[Periactin®] → 0,25 - 0,5 mg/kg/dia (para os esófago sem náusea e sem esforço. Esse conteúdo
vómitos cíclicos), etc.; 7) Ondansetrona (em pode ser alimentar, ácido (ou bilioso quando se
situações especiais em maiores de 4 anos) PO → 4 acompanha de refluxo duodeno-gástrico)
mg12-12 h até 5 dias, após 1ª dose IV de 5mg/m2. O material refluído pode atingir a boca e ser
expelido (situação muito frequente no lactente
BIBLIOGRAFIA pequeno) originando episódios de regurgitação,
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). ou pode ser empurrado de novo para o estômago
Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier pelo peristaltismo do esófago (episódios de refluxo
Saunders, 2011 não regurgitante). Por vezes o conteúdo refluído
Kliegman RM, Greenbaum LA, Lye PS. Practical Strategies in pode ser aspirado para a via aérea (principalmente
Pediatric Diagnosis and Therapy. Philadelphia: Elsevier, nos recém-nascidos pré-termo, recém nascidos e
2004 lactentes pequenos ou crianças com lesões neu-
McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of rológicas) originando uma série de sintomas que
Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010 vão do laringospasmo à apneia, passando por
Parashette KR, Croffie J. Vomiting. Pediatr Rev 2013; 34: 307- recorrência de sibilância ou pneumonia de as-
319 piração.
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon Se o refluxo for ácido, a permanência desse
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York : McGraw-Hill conteúdo no lume esofágico pode levar a lesão da
Medical , 2011 mucosa (esofagite) ou, através de um mecanismo
Sturm JJ, Simon HK, Khan NS, et al. The use of ondansetron for reflexo (estimulação de receptores vagais), originar
nausea and vomiting after head injury and its effect on também fenómenos de broncospasmo. Se no
return rates from the pediatric ED. Am J Emerg Med 2013; lactente a quantidade de alimentos regurgitados
31:166-172 for muito considerável, poderá surgir insuficiente
Walker W A, Goulet O, Kleinman RE. Pediatric Gastro- ganho ponderal e desnutrição.
intestinal Disease. Pathophysiology, Diagnosis, and Mana-
gement. Ontario: BC Decker, 2004 ; 12: 203-209 Epidemiologia e história natural

O RGE é um fenómeno muito frequente no lacten-


te pequeno e a principal causa de envio, neste
grupo etário, a consultas de Gastrenterologia Pe-
diátrica.
Na idade pediátrica o RGE pode classificar-se
em primário ou secundário; o secundário é ori-
534 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ginado por obstáculo anatómico gástrico (este- abdominal irá também reflectir-se na pressão
nose hipertrófica do piloro) ou infragástrico basal do esfíncter e não causará refluxo. Poder-se-
(bridas, má-rotação), ou por uma alteração da ia, pois, concluir que dois factores, isoladamente
motilidade do tubo digestivo superior causada ou em conjunto, podem estar na base do RGE:
por fenómeno inflamatório crónico de origem hipotonia do EEI e má-posição esfincteriana
infecciosa ou imunológica, mais frequentemente (esfíncter intratorácico ou hérnia do hiato). Se é
relacionado com intolerância às proteínas do leite certo que estes factores se encontram frequen-
de vaca (IPLV). temente em crianças com RGE grave e problemas
O RGE primário divide-se em: RGE funcional neurológicos, a verdade é que na maioria das
ou não complicado, traduzido apenas por re- crianças com RGE nenhum deles apresenta
gurgitação; e RGE complicado, também chamado relevância. Num estudo que efectuámos em 78
doença do refluxo gastresofágico (DRGE) que se crianças com DRGE constatámos, ao analisar o
acompanha de lesão tecidual e sintomatologia EEI por manometria esofágica, que apenas 12%
variada do foro digestivo, respiratório ou neuro- dos doentes tinham uma incompetência esfincte-
comportamental. riana (tono inferior a 5 mmHg) e que só 18%
Cinquenta por cento dos lactentes saudáveis apresentavam um esfíncter totalmente intrato-
apresentam 2 ou mais episódios de regurgitação rácico, sendo as duas anomalias simultâneas em
por dia entre os 2-10 meses de idade, com um 6% das crianças.
máximo no grupo dos 4 meses. Por volta dos 8-9 O mecanismo que assume maior relevância na
meses, com a introdução progressiva da alimen- génese dos episódios de refluxo parece ser a
tação sólida e o adquirir da posição levantada, há relaxação transitória inapropriada (fora da
uma nítida diminuição dos sintomas com deglutição) de um EEI de tono normal. Esta
progressivo desaparecimento destes entre os 18 relaxação surge mediada por mecanismos reflexos
meses (60-80% dos casos) e os 2 anos (98% dos (vago-vagais) ligados à excessiva distensão do
casos). Cerca de 5-9% das crianças apresentam um fundo gástrico, principalmente por líquidos
RGE complicado(contra uma prevalência de (mecanismo protector), ou a atraso do esvazia-
DRGE de 4-30% na população adulta). Alguns mento gástrico para líquidos ou sólidos. Na
grupos de doentes apresentam uma incidência posição supina forma-se, mesmo no período pós
superior de DRGE que deve ser sistematicamente prandial de neutralização ácida, uma bolsa de
investigada: doentes neurológicos, nomeadamente ácido na porção gástrica da junção gastro-
com paralisia cerebral (70-80%), doentes operados esofágica, o que facilita a acidificação do esófago
a atrésia do esófago (30%) e doentes com fibrose durante os episódios de relaxação transitória do
quística (26%). esfíncter que ocorrem naquela posição.
A segunda linha de defesa do esófago quando
Fisiopatologia surge um episódio de refluxo é o desencadear de
uma onda peristáltica que empurra o conteúdo
O principal mecanismo anti-refluxo , na criança refluído de novo em direcção ao estômago. A
como no adulto, é o tono basal do esfíncter eso- neutralização ácida do esófago é completada pela
fágico inferior (EEI) que se quantifica entre 14-34 deglutição da saliva. A gravidade (na posição
mmHg, valor bem superior ao gradiente de erecta) actua também, facilitando a limpeza do
pressão abdominotorácica de cerca de 6 mmHg. esófago. Na posição supina (frequente no lactente)
Este tono vai sendo progressivamente adquirido perde-se a acção da gravidade e, quando do sono,
nos primeiros 3 meses de vida e essa hipotonia perde-se também a capacidade de deglutição da
“fisiológica” reveste-se de importância no RGE do saliva, pelo que o RGE surgido nessa ocasião pode
pré-termo mais imaturo. assumir maior gravidade. No entanto, a presença
Um outro factor importante para a prevenção de dismotilidade esofágica parece ser o factor
dos episódios de refluxo é a localização intra- decisivo para a manutenção do teor em conteúdo
abdominal do EEI em 2/3 do seu comprimento. ácido do esófago. Esta dismotilidade pode ser
Assim, um aumento brusco da pressão intra- primária (nomeadamente nas situações de paralisia
CAPÍTULO 104 Refluxo gastresofágico 535

cerebral ou atrésia do esófago), ou secundária à (ALTE); pseudo convulsões/hipotonia; sín-


existência de esofagite, criando um ciclo vicioso em droma de Sandifer (torcicolo secundário ao
que o refluxo causa esofagite e esta, através das refluxo).
alterações motoras que condiciona, facilita o
aparecimento de mais refluxo com agravamento do Diagnóstico
processo inflamatório. No estudo anteriormente
referido, 58% das crianças com esofagite apresenta- O diagnóstico do refluxo regurgitante é clínico.
vam critérios de dismotilidade grave contra 32% de Na presença de um lactente com regurgitação, em
doentes sem esofagite. primeiro lugar é necessário saber se o refluxo é
Finalmente, como terceira linha de defesa, en- primário ou secundário; e, neste último caso,
contra-se a capacidade de resistência ao ácido da excluir, nomeadamente, a estenose hipertrófica do
mucosa esofágica, o que depende de factores pré- piloro. Quando houver relação temporal entre os
-epiteliais, epiteliais e pós epiteliais, e que é va- sintomas e a introdução de uma fórmula adapta-
riável de indivíduo para indivíduo; tal explica da, há que admitir possível IPLV.
que, para o mesmo grau de exposição ácida, haja Na presença de um refluxo primário há que
diferente gravidade de lesão da mucosa. distinguir entre RGE não complicado e DRGE. Para
isso é fundamental proceder uma história clínica
Manifestações clínicas cuidadosa valorizando os seguintes parâmetros
para um diagnóstico afirmativo de RGE funcional
A constelação de sintomas e sinais do RGE é mui- (sem necessidade de exames complementares):
to variada e, nalguns casos, relacionada com a – Regurgitação mais evidente no período pós -
idade do doente. De uma forma geral podem prandial imediato, principalmente após
classificar-se em 3 tipos: manifestações digestivas; refeição abundante;
manifestações respiratórias; manifestações neuro- – Regurgitação ligada a um estado de agitação
comportamentais. do bébé , principalmente quando acordado;
1) Manifestações digestivas – Regurgitação mais importante com o leite
A) Lactentes: regurgitação simples, regurgi- que com sólidos;
tação com insuficiente ganho ponderal, – Bom ganho ponderal, apesar da regurgitação
sintomas /sinais de esofagite; irritabilidade – Ausência de sintomas ou sinais de esofagite,
geral ou durante a alimentação (habitual- nomeadamente irritabilidade, recusa alimen-
mente com perda de peso); hematemese ou tar ou anemia;
melena; sintomas relacionados com anemia – Ausência de sintomas ou sinais respiratórios
ferropénica; erosão dentária; disfagia. ou neurocomportamentais passíveis de
B) Crianças maiores: pirose; disfagia; dor epi- serem atribuídos ao refluxo.
gástrica ou retro-esternal; hematemese Quando se suspeita de RGE complicado será ne-
/melena ou anemia ferropénica. cessário recorrer a exames complementares para
2) Manifestações respiratórias (habitualmente avaliação de:
crónicas ou recorrentes) A) Consequências do RGE (nomeadamente
A) Via superior: otite média recorrente; esofagite e estenose péptica) sobretudo no
laringite recorrente/crónica; laringospasmo doente com sintomas digestivos:
com apneia (lactente pequeno); engasga- – A endoscopia digestiva alta com realização
mento (lactente pequeno). de biópsias é o melhor exame perante a sus-
B) Via inferior: sibilância recorrente (em crian- peita de esofagite. Estabelece o diagnóstico,
ças não atópicas); asma mal controlada quantifica a esofagite, identifica critérios
principalmente nocturna; pneumonia de histológicos implicando maior cuidado (esó-
aspiração. fago de Barrett) e evidencia a presença de
3) Sintomas neurocomportamentais (principal- estenose péptica.
mente no lactente): irritabilidade; perturbação – A ecografia só tem interesse para exclusão de
do sono; Apparent Life Threatening Events obstáculo pilórico.
536 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

– O trânsito esófago-gastro-duodenal permite C) Estudo pré-operatório


também demonstrar a estenose péptica e a Nos casos em que se torne necessário recorrer
hérnia hiatal sendo particularmente útil para ao tratamento cirúrgico do RGE, o estudo
excluir obstáculo infra pilórico. deve ser muito pormenorizado com exames
B) Relação de causalidade entre o refluxo e variados: trânsito esofágico, endoscopia diges-
sintomatologia extradigestiva: tiva alta, pH metria, manometria esofágica
– A ecografia com pesquisa de RGE pode cintigrafia para avaliação do esvaziamento
evidenciar a presença de refluxo associado a gástrico e impedância intraluminal.
patologia respiratória ou neurocomporta-
mental, sobretudo quando não há regurgi- Tratamento
tações visíveis. É barato e não invasivo , mas
a sua sensibilidade é variável (pode atingir O RGE não complicado não necessita de trata-
65%) dependendo da experiência do ecogra- mento médico. Os pais devem ser tranquilizados,
fista. No entanto, não quantifica o refluxo , informando-os de que se trata de uma situação de
não o relaciona directamente com os sinto- imaturidade fisiológica que irá melhorar ao longo
mas apresentados e limita-se a um curto do tempo. Podem ser tomadas algumas medidas
período pós-prandial em que muitas vezes o como o espessamento do leite que diminui a
RGE é não ácido e fisiológico. regurgitação por ser mais viscoso, e também por
– A pH metria de 24 horas é o exame de eleição aumentar a saciedade do lactente , ficando mais
para avaliar crianças com manifestações tranquilo após as refeições. A roupa não deve ser
extradigestivas e suspeita de RGE. Trata-se apertada. A posição em que o lactente deve ser
dum método estandardizado, quer quanto a colocado é controversa . Estudos provam que os
indicações, quer quanto a procedimentos, por lactentes têm um menor índice de refluxo em
recomendações da ESPGHAN e NASPGAN. decúbito ventral. No entanto, pela associação
Permite quantificar o refluxo ácido através do entre essa posição e a morte súbita do lactente, os
estabelecimento de um índice de refluxo riscos habitualmente ultrapassam os benefícios,
(tempo total de pH < 4) que é variável com a pelo que não deve ser rotineiramente recomen-
idade, sendo considerado patológico se for dada; pode utilizar-se em alternativa o decúbito
superior a 12% no 1º ano de vida, e a 6% a lateral esquerdo em colchão duro com elevação da
partir dessa idade. Permite ainda estabelecer cabeceira.
uma relação temporal entre o episódio de Se os sintomas persistirem, pode ser tentada
refluxo e o aparecimento dos sintomas uma modificação da fórmula para um hidro-
referidos (tosse, sibilância, apneia etc). Tem, lisado, para excluir IPLV. A criança deve ser vigi-
no entanto, limitações já que só avalia episódios ada e reavaliada se os sintomas persistirem para
de refluxo ácido, não detectando episódios de além dos 18-24 meses, ou se se agravarem.
refluxo alimentar (neutro) que podem estar O tratamento farmacológico deve estar reser-
relacionados com fenómenos de aspiração. vado para o RGE complicado. Neste caso, para
– O método de impedância esofágica intra- além das medidas gerais já descritas, e que na
luminal, empregando diversos sensores a criança maior ou adolescente incluem também a
diversos níveis, incluindo um para deter- restrição de produtos alimentares como o café, o
minação do pH distal, permite documentar o chocolate e as colas ou o tabaco, (pois todos bai-
refluxo ácido, o fracamente ácido e o fra- xam o tono do EEI), há dois grupos de fármacos
camente alcalino. Embora incómodo para o que podem ser usados: Os procinéticos e os
doente, constitui um instrumento importante, inibidores da secreção ácida gástrica.
sobretudo nos casos associados a sintoma- Sendo a DRGE uma anomalia primordial da
tologia respiratória para detecção de refluxo motilidade do andar superior do tubo digestivo, teria
não ácido. lógica usar principalmente os procinéticos no seu
– A cintigrafia esofágica tem interesse limitado tratamento. Dos vários utilizados (metoclopramida,
na avaliação de episódios aspirativos. domperidona, cisapride, eritromicina) só o cisapride
CAPÍTULO 104 Refluxo gastresofágico 537

QUADRO 1 – Inibidores da secreção ácida gitation milk products for infants and young children: a
gástrica commentary by the ESPGHAN Committee on Nutrition. J
Pediatr Gastroenterol Nutr 2002; 34: 496-98
Tipo Dose Tomas Colletti R, Di Lorenzo C. Overview of pediatric gastroeso-
Antagonistas H2 phageal reflux disease and proton pump inhibitor therapy. J
Ranitidina 2-4 mg/Kg/dia 2 x dia Pediatr Gastroenterol Nutr 2003 ; 37 (Sup 1): S7-11
PPI Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. BarcelonaErgon2011
Omeprazol 0,7-3,3 mg/Kg/dia 1 x dia Kliegman RM, Greenbaum LA, Lye PS (eds). Practical
Lansoprazol 0,5-3 mg/Kg/dia 1 x dia Strategies in Pediatric Diagnosis and Therapy. Philadelphia:
Esomeprazol 0,7-3,3 mg/Kg/dia 1 x dia Elsevier, 2004
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
demonstrou uma acção consistente de redução do Saunders, 2011
número e duração dos episódios de refluxo. Lightdale J, Gremse D, Section on Gastroenterology
No entanto, a associação (se bem que rara em Hepatology and Nutrition. Gastroesophageal reflux:
Pediatria) entre este medicamento e arritmia car- management guidance for the pediatrician. Pediatrics 2013;
díaca grave por prolongamento do intervalo QT, DOI: 10.1542/peds.2013-0421 (on line)
limitou o seu uso a casos muito restritos, sob um Omari T, Barnett C, Benninga M et al. Mechanisms of Gastro-
rigoroso protocolo de segurança, e apenas aplica- oesophageal reflux in preterm and term infants with reflux
do em unidades especializadas. disease. Gut 2002; 51: 475-479
Assim, o tratamento do RGE complicado Rosbe K, Kenna M, Auerbach A. Extraesophageal reflux in
repousa essencialmente nos inibidores da secre- pediatric patients with upper respiratory symptoms. Arch
ção ácida que são de dois tipos: antagonistas dos Otolaryngol Head Neck Surg 2003; 129: 1213-220
receptores H2 e inibidores da bomba de protões Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
(PPI). (Quadro 1) AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York : McGraw-Hill
Estes últimos, pela sua acção mais eficaz ao Medical , 2011
longo das 24 horas, são os preferidos, principal- Sherman P, Hassall E, Fagundes-Neto U, et al. Evidence-based
mente nos tratamentos a longo prazo. No consensus on the definition of gastroesophageal reflux disease
tratamento da esofagite ou das manifestações in the pediatric population. Am J Gastroenterol 2009; 104:
extradigestivas ligadas ao RGE , o seu uso deve 1278-1295
ser de 6-8 semanas. Muitas vezes, no entanto, o Vandenplas Y, Rudolph C, et al. Pediatric gastroesophageal reflux
reaparecimento dos sintomas leva à necessidade clinical practice guidelines: Joint recommendations of the
de terapêutica mais prolongada. NASPGHAN and the ESPGHAN. J Pediatr Gastroenterol
O tratamento cirúrgico deve estar reservado aos Nutr 2009; 49: 498-547
casos refractários à terapêutica médica bem con-
duzida, ou com complicações graves como estenose
péptica. Os doentes com patologia neurológica e
RGE têm frequentemente necessidade de terapêutica
cirúrgica. A técnica mais eficaz é a fundoplicatura de
Nissen, com ou sem piloroplastia associada, que
pode ser efectuada por cirurgia laparoscópica em
centros com experiência. Em adultos têm sido
realizados procedimentos por via endoscópica, como
a gastroplastia endoluminal; contudo, não há ainda
experiência suficiente em crianças para avaliar o
sucesso a médio prazo desta técnica.

BIBLIOGRAFIA
Aggett P, Agostoni C, Goulet O et al. Antireflux or antiregur-
538 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

105
de alarme relativamente a doença orgânica. Mesmo
com exame físico normal, estão indicados exames
complementares de diagnóstico se houver sinais su-
gestivos de doença orgânica (Quadro 1) apontando
determinados sinais, sintomas, e quadros clínicos e
laboratoriais indiciando probalidade de determinada
DOR ABDOMINAL patologia de base (Quadro 2). No entanto, não há
estudos que tenham avaliado o uso de exames labo-
RECORRENTE ratoriais de rastreio (Quadro 3) para o diagnóstico
diferencial entre dor abdominal orgânica e funcional.
José Cabral Estes exames complementares podem também ser
considerados como uma forma de acalmar os pais,
doente e médico quando o diagnóstico mais
provável é de dor funcional, ou ser necessários se a
Importância do problema dor continuar a afectar gravemente o dia a dia do
doente. Todavia, os referidos exames complemen-
Aple, definiu há mais de 40 anos a dor abdominal tares devem ser pedidos na expectativa de resultado
recorrente (DAR), como 3 ou mais episódios de negativo para que não se crie, no seio da família e da
dor abdominal, suficientemente fortes para criança, ansiedade pelo receio de doença grave.
interferirem com a actividade diária durante um
período não inferior a 3 meses consecutivos. Critérios para a definição
Actualmente e por pressões da sociedade, a de dor abdominal funcional
maioria dos clínicos considera, erradamente, um (critérios de Roma II)
período mais curto de 1 a 2 meses para a definição
da dor abdominal recorrente (ou crónica). Em 1999 um grupo internacional de gastrentero-
Tem sido descrita uma prevalência de DAR em logistas pediátricos ligados à Rome Foundation,
10-15% das crianças em idade escolar entre os 5 e chegou a um consenso para a criação de um sis-
os 14 anos, com uma maior prevalência no sexo tema de classificação das alterações gastrintes-
feminino. Note-se que o termo dor abdominal tinais funcionais ou seja de sintomas clínicos não
recorrente se refere a uma descrição sintomática e explicáveis por anomalia estrutural ou tecidual.
não a um diagnóstico.
Sem ter a possibilidade de recorrer a exames QUADRO 1 – Sinais de alarme:
endoscópicos e com limitações nos exames radio- causas orgânicas de DAR
lógicos, Apley encontrou uma etiologia orgânica
somente em 5% dos casos de DAR mas, Dor bem localizada, longe do umbigo
actualmente, nas Unidades de Gastrenterologia Dor acordando à noite
Pediátrica, em 33% dos doentes com dor Vómitos
abdominal recorrente é identificada uma causa Alteração dos hábitos intestinais
orgânica. Assim, na grande maioria dos casos de Diarreia crónica grave
DAR, os mesmos são classificados como corres- Atraso de crescimento
pondendo a dor abdominal funcional, devendo Perda de peso
para tal ser aplicados os chamados critérios Rectorragias, febre, artralgias, exantema
diagnósticos de Roma, adiante explanados. Fístula/fissura anal
Alterações menstruais
Diagnóstico diferencial Hemorragia oculta
Alterações laboratoriais (sangue ou urina)
As variáveis que apontam para um diagnóstico fun- História familiar de doença péptica / DII
cional são um exame físico normal (pode haver dor à Idade < 4 anos
palpação profunda abdominal) e a ausência de sinais DAR: Dor Abdominal Recorrente; DII: Doença Inflamatória Intestinal
CAPÍTULO 105 Dor abdominal recorrente 539

QUADRO 2 – Sinais de alarme e patologia de base provável

Sinais de Alarme Patologia de Base


• Dor: localizada, não periumbilical, com irradiação • Úlcera duodenal, coledocolitíase, pancreatite
para o dorso ou ombro
• Perda de peso, atraso de crescimento, atraso da puberdade • Doença celíaca, DII da puberdade
• Alteração dos hábitos intestinais, hemorragia digestiva, • DII, doença péptica, doença celíaca
sangue oculto nas fezes
• Sintomas extra-intestinais: febre, exantema, uveíte, artralgia, • DII, lúpus eritematoso disseminado
disúria, icterícia
• Viagem ao estrangeiro, exposição a água ou leite contaminados • Hepatite, giardíase, yersinose
• História familiar de DII, doença péptica • Úlcera péptica, DII
• Imunodeficiência – congénita, adquirida, pós-transplante • Infecção oportunista
• Ingestão medicamentosa – AINES • Gastrite
• Alterações laboratoriais – anemia, VS↑, parasitas nas fezes • DII, doença celíaca, parasitose
DII: Doença Inflamatória Intestinal; VS: Velocidade de Sedimentação; AINES: Anti-Inflamatórios Não-Esteróides

Estes critérios diagnósticos ficaram conhecidos que se garanta disponibilidade para reavaliação se
por critérios de Roma porque a reunião se realizou houver determinados sintomas.
nessa cidade. Nesta edição são sistematizados os Um estudo recente validou que 72% das
critérios da 2ª revisão dos mesmos (Roma II), crianças com DAR podiam ser classificadas num
salientando-se que em 2006, da revisão de "Roma dos subtipos dos critérios de Roma II para as
II" resultaram os critérios de Roma III, mais doenças gastrintestinais pediátricas. Segundo
detalhados, e considerando uma subdivisão estes critérios, a dor abdominal é integrada em 5
etária: (0-4 anos; >4-18 anos). subtipos: (1) dispepsia funcional (tipo úlcera, tipo
Utilizando estes critérios baseados em sintomas, dismotilidade, não específica), (2) síndroma do
os clínicos ficam capacitados para fazer o dia- intestino irritável, (3) dor abdominal funcional, (4)
gnóstico na maioria das crianças em idade escolar enxaqueca abdominal e (5) aerofagia.
com dores abdominais, simplesmente colhendo a
história clínica e fazendo o exame objectivo (que 1. Dispepsia funcional
não revela sinais de doença). Assim, sem utilizar
exames complementares, é possível tranquilizar os Chama-se dispepsia à dor ou desconforto localiza-
pais e família com um diagnóstico baseado na expli- dos ao epigastro. O desconforto caracteriza-se por
cação dos sintomas, com o estabelecimento de um enfartamento, saciedade precoce, flatulência,
prognóstico e com um plano de tratamento, desde eructações, náuseas ou vómitos.

QUADRO 3 – Rastreio nos casos de dor Critérios de diagnóstico


abdominal funcional História de, pelo menos, 12 semanas, não neces-
sariamente consecutivas, nos 12 meses preceden-
Hemograma completo e VS tes, de (1) dor ou desconforto persistente ou recor-
Enzimas hepato-biliares e pancreáticas rente no epigastro, (2) na ausência (após endos-
Exame sumário de urina copia alta) de doença orgânica que explique os
Urinocultura sintomas e (3) na ausência de alívio exclusivo da
Exame parasitológico de fezes dispepsia pela defecação ou da sua associação com
Pesquisa de sangue oculto nas fezes alterações do número e consistência das fezes.
Ultrassonografia abdominal (a ponderar) Na dispepsia tipo úlcera a dor epigástrica é o
Teste do hidrogénio expirado (a ponderar) sintoma predominante. Na dispepsia tipo dismo-
VS: Velocidade de Sedimentação tilidade o desconforto epigástrico é o sintoma predo-
minante. Na dispepsia não específica os sintomas
540 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

não preenchem nenhum dos 2 subtipos anteriores. fezes (duras ou moles/aquosas); (3) defecação
anormal (grande esforço, urgência, sensação de
Recomendações diagnósticas e clínicas evacuação incompleta); (4) passagem de muco; (5)
Na anamnese devem ser investigados factores sensação de distensão abdominal.
dietéticos, psicológicos e sociais (familiares com
doença péptica ou Helicobacter pylori). Devem os Recomendações clínicas e diagnósticas
sintomas ser caracterizados em função de pode- Avaliação nutricional, avaliação do regime
rem corresponder a lesões da mucosa (esofagite, alimentar (ingestão de fibras nos obstipados e
gastrite, úlcera duodenal), devendo estas hipóte- ingestão de açúcares como o sorbitol e a frutose
ses diagnósticas ser excluídas por endoscopia alta. naqueles com diarreia). Os sinais de alerta para a
Um episódio anterior de infecção vírica pode possibilidade de doença orgânica são: dor ou
sugerir a hipótese de gastroparésia (atraso do diarreia nocturna, perda de peso, rectorragias,
esvaziamento gástrico) pós infecção vírica. febre, artrite, atraso da puberdade e história
A suspeita de doença pancreática, hepática ou familiar de doença inflamatória intestinal. Em
biliar deve conduzir à realização de ecografia termos de exames complementares poderão ser
abdominal e doseamentos das enzimas hepatoce- realizados hemograma, velocidade de sedimen-
lulares e pancreáticas (ALT, AST, amilase e lipase). tação, coprocultura e exame parasitológico de fezes
(com pesquisa de antigénios para Giardia lamblia no
Tratamento caso de diarreia), teste do hidrogénio expirado, ou
Os medicamentos e alimentos que possam agravar prova terapêutica com dieta sem lactose (2
os sintomas devem ser interrompidos. Poderão ser semanas) na suspeita de intolerância à lactose. No
utilizados antagonistas dos H2, inibidores da bom- caso de suspeita de doença inflamatória intestinal
ba de protões (omeprazol ou lanzoprazol) ou está indicada a realização de colonoscopia com
sucralfato. Nos casos em que há enfartamento biópsias e/ou exames radiológicos (Capítulo 68).
podem ser utilizados procinéticos (domperidona
ou metoclopramida). Nalguns casos poderão ser Tratamento
utilizados antidepressivos tricíclicos em doses Os objectivos do tratamento são: tranquilizar os pais
baixas (consultar alínea seguinte: 2.). e o doente, e aliviar os sintomas. Nos doentes com
obstipação deve aumentar-se a dose de fibras na
2. Síndroma do intestino irritável dieta (dose recomendada de fibras diária = idade
em anos + 5 g), leite de magnésia ou parafinina.
Na síndroma do intestino irritável o desconforto Podem utilizar-se antidepressivos tricíclicos
abdominal ou a dor estão associados à defecação (imipramina ou amitriptilina) em doses baixas (0,2
ou a alterações dos hábitos intestinais. mg/kg ao deitar que podem ser aumentadas 0,2
mg/kg por semana até 1 mg/kg ou 50 mg/dia). A
Critérios de diagnóstico amitriptilina, pela forte acção anticolinérgica, é ideal
História precisa de dor, pelo menos durante 12 não só para reduzir a dor, mas também para
semanas, não necessariamente consecutivas, nos 12 melhorar o sono e a diarreia. Nos doentes com
meses precedentes, de (1) desconforto abdominal obstipação é preferível o uso da imipramina.
ou dor acompanhados de 2 de 3 características: (a)
alívio com a defecação, e/ou (b) início associado a 3. Dor abdominal funcional
alteração da frequência das dejecções e/ou (c)
início associado a alteração da consistência das É definida como dor abdominal persistente na
fezes; e (2) inexistência de anomalias estruturais ou ausência de doença e na qual não se reconhece
metabólicas que expliquem os sintomas. nenhum padrão de dor ou de sintomas acom-
Os sintomas seguintes fornecem suporte panhantes. A dor não se relaciona temporalmente
cumulativo ao diagnóstico: (1) frequência anormal com a ingestão de alimentos, defecação ou exer-
de dejecções (mais de 3 vezes por dia ou menos de cício. São frequentes alguns sintomas extra-
3 vezes por semana); (2) consistência anormal das abdominais como cefaleias, fadiga e dores no cor-
CAPÍTULO 105 Dor abdominal recorrente 541

po. Algumas destas crianças são perfeccionistas episódios paroxísticos de dor abdominal aguda,
enquanto outras têm dificuldades de apren- nos 12 meses precedentes, intensa, periumbilical
dizagem que os pais não reconhecem. durando de 2 horas a vários dias com intervalos
livres com a duração de semanas a meses, (2)
Critérios de diagnóstico ausência de doença bioquímica ou estrutural
Pelo menos 12 semanas de (1) dor abdominal metabólica, gastrintestinal ou do sistema nervoso
contínua ou quase contínua numa criança em central, e (3) 2 das seguintes características (a)
idade escolar ou adolescente; (2) sem nenhuma cefaleias durante os episódios, (b) fotofobia
ou quase nenhuma relação com acontecimentos durante os episódios, (c) história familiar de
fisiológicos (por exemplo: alimentação, período enxaqueca, (d) hemicrânia, (e) aura visual,
menstrual ou defecação); (3) com alguma sensorial ou motora.
interferência no dia a dia; (4) com a certeza de a
dor não ser fingida (não há simulação de doença); Recomendações clínicas e diagnósticas
e (5) não haver critérios suficientes para se colocar Quando o quadro de dor abdominal é acompa-
o diagnóstico de outra doença gastrintestinal nhado de história típica de enxaqueca, o diagnós-
funcional explicando os sintomas. tico é simples e imediato, sendo de presunção nos
outros casos. Todas as outras causas de dor
Recomendações clínicas e diagnósticas abdominal grave intermitente devem ser conside-
Devem ser investigados factores psicológicos que radas incluindo a uropatia obstrutiva, a obstrução
incluem ansiedade e/ou depressão na criança e intestinal intermitente, a pancreatite recorrente, a
família, somatização, fobia à escola, e ansiedade da doença hepatobiliar, lesão intracraniana ocupando
separação. O exame físico, o crescimento e os espaço, e doenças metabólicas. A doença péptica é
resultados dos exames complementares devem ser muitas vezes considerada no diagnóstico dife-
normais (hemograma, VS, exame sumário de urina, rencial porque uma das suas formas de apresen-
exame parasitológico e sangue oculto nas fezes, tação é o aparecimento de dor nocturna ou de
exames bioquímicos correntes, ecografia manhã cedo; diferencia-se da enxaqueca abdominal
abdominal, teste de hidrogénio expirado). Os porque nesta há períodos livres de dor entre os
exames devem ser realizados de modo criterioso episódios. O diagnóstico de enxaqueca abdominal
evitando que causem ansiedade na criança e família pode também ser sustentado pela resposta à
pelo receio de doença grave de difícil diagnóstico. medicação profiláctica para a enxaqueca.

Tratamento Tratamento
Há que tranquilizar e explicar como ocorrem os O pizotifen (antagonista dos receptores da
sintomas na ausência de alterações nos exames serotonina) tem sido utilizado como profiláctico.
complementares. Deve ser dado suporte psico-
lógico à criança e família. 5. Aerofagia

4. Enxaqueca abdominal Consiste na deglutição excessiva de ar conduzin-


do à distensão abdominal progressiva. O descon-
É uma doença paroxística afectando cerca de 2% forto abdominal daí resultante pode limitar a
das crianças e caracterizada por dor aguda, ingestão de alimentos.
incapacitante, não-cólica, localizando-se na região
periumbilical, que dura horas e é acompanhada Critérios de diagnóstico
de palidez e anorexia. Na sua manifestação ca- Constituem critérios a verificação de 2 ou mais dos
racterística há antecedentes pessoais e familiares seguintes sinais e sintomas: (1) deglutição de ar, (2)
de cefaleia típica de enxaqueca. distensão abdominal por ar intraluminal e (3)
eructações ou aumento da emissão de gases, pelo
Critérios de diagnóstico menos durante 12 semanas, não necessariamente
Consideram-se os seguintes critérios: (1) 3 ou mais consecutivas, nos 12 meses precedentes
542 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 4 – Critérios de referência intestinal, a intolerância aos hidratos de carbono,


ao Gastrenterologista a infecção parasitária e a gastrenteropatia alérgica;
em casos seleccionados poderá estar indicada a
Se não houver resposta à terapêutica inicial endoscopia alta ou baixa.
Segunda opinião O teste do hidrogénio expirado pode ser neces-
Avaliação de doenças menos frequentes sário para documentar a intolerância à lactose ou
Para realização de exames: distinguir a distensão abdominal da aerofagia que
Teste do hidrogénio expirado (intolerância à lactose) é provocada por contaminação bacteriana intes-
Endoscopia alta (dispepsia: úlcera péptica, gastrite por Hp) tinal (Quadro 4).
Colonoscopia (diarreia grave ou com sangue: DII)
DII: Doença Inflamatória Intestinal; Hp: Helicobacter pylori BIBLIOGRAFIA
Baber Kf, Anderson J, Puzanovova M, et al. Rome II versus
Rome III classification of functional gastrointestinal
disorders in pediatric chronic abdominal pain. JPGN 2008;
Recomendações clínicas e diagnósticas. 47: 299-302
Na sua forma característica a distensão abdominal Biggs AM, Aziz Q, Tomenson B, Creed F. Effect of childhood
na aerofagia agrava-se ao longo do dia e desa- adversity on health related quality of life in patients with
parece durante o sono com a emissão de gases. upper abdominal or chest pain. Gut 2004; 53: 180-186
Por vezes há história de consumo excessivo de Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
pastilhas elásticas e bebidas gaseificadas. É Faure C, Wieckowska A. Somatic referral of visceral sensations
importante averiguar a possibilidade de aconte- and rectal sensory treshold for pain in children with functional
cimentos na família que pudessem ter causado gastrointestinal disorders. J Pediatr 2007; 150: 66-71
ansiedade, pois esta é uma causa frequente de Helgeland H, Flagstad G, Grotta J, et al. Diagnosing pediatric
deglutição excessiva de ar. O crescimento é nor- functional abdominal pain in children(4-15 years old)
mal. A aerofagia pode ser confundida: com o according to the Rome III Criteria. JPGN 2009; 49:309-315
refluxo gastresofágico (pelos “barulhos” na Hyman PE, Danda CE. Understanding and treating childhood
garganta ouvidos pelos pais); com a pseudo- bellyaches. Pediatric Annals 2004, 33:97-104
obstrução intestinal crónica; e com a doença de Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Hirschsprung (pela distensão abdominal). Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
Kohli R, Li BUK. Differential diagnosis of recurrent abdominal
Tratamento pain: new considerations. Pediatric Annals 2004, 33:113-122
Há que tranquilizar, e explicar os sintomas, McFerron BA, Waseem S. Chronic recurrent abdominal pain.
podendo ser necessária psicoterapia. Pediatr Rev 2012; 33: 509-513
Rasquin-Weber A, Hyman PE, Cucchiara S, et al. Childhood
Apoio da gastrenterologia pediátrica functional gastrointestinal disorders. Gut 1999; 45 (Suppl
II): 60-68
O pediatra e o médico de família devem ser Saps M, Adams P, Bonilla S, et al. Abdominal pain and func-
capazes de diagnosticar e tratar a maioria das tional gastrointestinal disorders in children with celiac dis-
doenças gastrintestinais funcionais. Como muitos ease. J Pediatr 2013; 162: 505-509
destes problemas são habitualmente crónicos e por Walker LS, Lipani Ta, Greene JW, et al. Recurrent abdominal
vezes não respondem à terapêutica inicial, pode ser pain: symptoms subtypes based on the Rome II criteria for
necessário pedir uma segunda opinião e prosseguir pediatric functional gastrointestinal disorders. J Pediatr
a avaliação de doenças menos frequentes através Gastroenterol Nutr 2004; 38: 187-191
do envio da criança a centro especializado. No Wright NJ, Hammond PJ, Curry JI. Chronic abdominal pain in
doente com dispepsia, o diagnóstico de dispepsia children: help in spotting time organic diagnosis. Arch Dis
funcional só pode ser feito com certeza após a Child Educ Pract Ed 2013; 98:32-39
realização de endoscopia digestiva alta. Zeiter DK, Hyams JS. Recurrent abdominal pain in children.
No doente com síndroma do intestino irritável Pediatr Clin North Am. 2002; 49: 53-71
pode ser necessário excluir a doença inflamatória http://www.romecriteria.org (acesso em Julho de 2013)
CAPÍTULO 106 Doença péptica e Helicobacter pylori 543

106
por Hp. Nos países desenvolvidos a prevalência é
menor, variando entre 30 e 60%. De um modo geral,
a frequência da infecção é mais elevada nos grupos
económicos mais desfavorecidos. Em Portugal é
cerca de 70 a 90% nos adultos, e 50% nas crianças.
Os dados da literatura sugerem que a taxa de
DOENÇA PÉPTICA aquisição da infecção é muito baixa na idade adulta e
que a maioria das infecções é adquirida na infância
E HELICOBACTER PYLORI (geralmente abaixo dos 5 anos), podendo persistir
durante toda a vida se não for tratada. O maior factor
José Cabral de risco de aquisição da infecção na infância são as
más condições sócio-económicas. Outros indicadores
de pobreza e de precárias condições de higiene como
a partilha de camas e um grande número de irmãos
Definições e importância do problema constituem factores de risco adicionais.

O termo gastrite significa inflamação microscópica Etiopatogénese


da mucosa gástrica, não devendo ser utilizado
como um diagnóstico clínico, radiológico ou O estômago do homem e o de alguns primatas são
endoscópico. A úlcera péptica é o termo para desi- provavelmente os únicos reservatórios do Hp, não
gnar lesões profundas da mucosa que ultrapassam se conhecendo qualquer reservatório ambiental. A
a muscularis mucosa da parede gástrica ou duode- fragilidade do Hp em condições laboratoriais sugere
nal, enquanto as erosões pépticas não a ultrapas- que a viabilidade da bactéria fora do hospedeiro é
sam. Úlcera e erosões pépticas englobam a cha- limitada, embora haja evidência sugestiva de que o
mada doença péptica ulcerosa. microrganismo possa sobreviver no ambiente na sua
A gastrite e a doença péptica ulcerosa podem forma cocóide. As unhas com sujidade e a boca são
ser subdivididas em primárias e secundárias. A reservatórios importantes de Hp. A transmissão faz-se
maioria das gastrites primárias é provocada por essencialmente por três vias: fecal-oral, oral-oral, gastro-
Helicobacter pylori (Hp); neste capítulo faz-se oral. Como tal, a transmissão interfamiliar e institu-
referência apenas a estas. cional adquire um peso muito importante. De referir
Dois argumentos implicam Hp como causa de igualmente a transmissão através de doentes su-
gastrite crónica na criança: (1) o facto de todas as jeitos a ressuscitação boca-a-boca e de leite de cabra
crianças colonizadas por Hp terem gastrite não pasteurizado.
crónica; e (2) o achado de que a erradicação da A bactéria já foi detectada nas fezes de crianças
bactéria da mucosa gástrica conduz à cicatrização malnutridas com trânsito intestinal muito rápido
da gastrite, tanto na criança como no adulto. e já foi isolada a partir da placa dentária. A forma
Com efeito, Hp encontra-se na mucosa do gastro-oral parece ser uma via de transmissão
antro gástrico em quase 90% das crianças com frequente entre crianças, ocorrendo particular-
úlcera duodenal e a sua erradicação leva à mente em infantários e escolas, sobretudo através
cicatrização duradoira da doença ulcerosa duo- da emissão do conteúdo gástrico (vómito).
denal tanto na criança como no adulto. A transmissão por via endoscópica também foi
documentada quando não são cumpridas as regras
Apectos epidemiológicos de desinfecção e esterilização dos endoscópios. A
água não tratada e a mosca doméstica poderão ser
A infecção por Helicobacter pylori (Hp), bacilo Gram- veículos de transmissão. A taxa de reinfecção em
negativo em forma de S, produzindo urease, oxidase crianças tratadas, com idade superior a 5 anos, é
e catalase, é considerada, no Homem, a infecção cró- apenas 2%. Associados à infecção por Hp estão descritos
nica mais prevalente no mundo. Nos países em de- a gastrite, a úlcera duodenal, a úlcera gástrica, o
senvolvimento, 70 a 90% da população está infectada adenocarcinoma gástrico e o linfoma gástrico.* Alguns
*A propósito da doença péptica ulcerosa gástrica consultar Glossário
Geral- Síndroma de Zollinger – Ellison.
544 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

estudos sero-epidemiológicos têm sugerido um após os 5 anos de idade).


aumento de 2 a 6 vezes do risco de cancro gástrico A biópsia permite não só pôr em evidência as
em portadores de Hp. O risco de cancro gástrico é consequências da infecção por Hp (classificando a
mais elevado em doentes com gastrite pre-do- gastrite ao microscópio óptico), como também
minante no corpo gástrico, atrofia gástrica e me- visualizar a própria bactéria, cultivá-la (o que
taplasia intestinal. Nos doentes com úlcera parece ser fundamental, pois permite obter um
duodenal (que têm gastrite predominantemente no teste de sensibilidade aos antibióticos), e fazer o
antro) não se desenvolve cancro gástrico. O Hp tem teste rápido da urease.
sido implicado como factor etiológico do linfoma A detecção do Hp por técnicas de biologia
MALT. A erradicação do Hp conduz à resolução molecular, (das quais a mais divulgada é a reacção
completa de 75% dos linfomas MALT gástricos. de amplificação genética por método da PCR),
Múltiplos estudos fazem referência à eventual evidencia elevadas sensibilidade e especificidade,
acção dos mediadores inflamatórios circulantes con- permitindo a tipagem molecular de diferentes
sequentes à infecção por Hp com responsabilidade estirpes de Hp.
variável nas manifestações de algumas doenças ex- Estão disponíveis muitos testes para o sangue
tradigestivas (doença isquémica coronária, púrpura total e soro, mas a variabilidade de precisão entre os
de Schönlein Henoch, anemia ferropénica, etc.). kits faz com que a sua sensibilidade e especificidade
oscile, nos diversos estudos, entre os 60 e os 93%.
Manifestações clínicas da infecção Por outro lado, a serologia (IgG) não distingue entre
por Helicobacter pylori infecção actual e infecção prévia, uma vez que o título de
anticorpos desce lentamente após a cura. Portanto, a
A maioria das crianças infectadas é assintomática. serologia não é adequada para monitorizar a
Não existe nenhum quadro clínico específico que resposta ao tratamento.
indique a necessidade de rastreio do Hp. Actual- Os testes na saliva e urina ainda são menos
mente não está provada uma ligação entre gastrite sensíveis e não podem ser recomendados.
por Hp e dor abdominal na ausência de úlcera A pesquisa de antigénios nas fezes é um teste
péptica. Considerando que a dor abdominal muito promissor para estudos de investigação
recorrente ocorre em 15% das crianças em idade epidemiológica, diagnóstico e avaliação do
escolar, não devem estas crianças ser submetidas a sucesso do tratamento.
testes não invasivos ou endoscopia para detectar O teste respiratório, com elevadas sensibilidade
uma infecção por Hp. Não há qualquer ligação entre e especificidade (>95%), tanto em adultos como em
a dor abdominal recorrente e a infecção por Hp. crianças acima dos 5 anos, pode ser influenciado
De acordo com a literatura, estão descritos casos de infecção pelo uso de antibióticos e de agentes supressores da
por Hp associados a púrpura trombocitopénica imune, acidez. Os resultados em crianças com idades
especulando-se sobre o mecanismo de tal associação. inferiores a 5 anos podem ser influenciados, tanto
positiva como negativamente, pela presença de
Diagnóstico outros organismos produtores de urease na cavidade oral
ou por técnica incorrecta, mas a sua sensibilidade é
Para o diagnóstico podem ser utilizados testes superior a 90% no grupo dos 2-5 anos.
invasivos (que requerem endoscopia com biópsias) Nos doentes seguidos na Consulta de
e testes não invasivos. Gastrenterogia do Hospital Dona Estefânia tem
1) Testes invasivos: exame histológico, exame sido verificada uma taxa de resistências muito alta
cultural (antibiograma), teste rápido da urease e em relação à claritromicina (44,8%) e ao metro-
PCR (reacção em cadeia da polimerase); nidazol (19%) com 8,4% de resistências a estes 2
2) testes não invasivos: anticorpos no soro e antibióticos, o que torna o antibiograma funda-
sangue total, anticorpo na saliva, anticorpo na mental para a instituição da terapêutica.
urina, antigénio nas fezes, teste respiratório com Em resumo, o diagnóstico da infecção por Hp
ureia marcada com 13C (os quais evidenciam deve basear-se somente na endoscopia com biópsias
sensibilidade e especificidade de 95% somente preferencialmente com exame cultural e teste de
CAPÍTULO 106 Doença péptica e Helicobacter pylori 545

sensibilidade aos antibióticos, reservando-se o teste As opções de 2ª linha (tetraciclinas, quinolonas,


respiratório para a avaliação da eficácia terapêutica. bismuto coloidal) ficam reservadas para as
estirpes de Hp multirresistentes, em esquemas
Actuação prática triplos ou quádruplos com duração de 14 dias.
Recentemente, em adultos com estirpes
De acordo com os designados Consensos de multirresistentes, têm sido utilizados tratamentos
Maastricht/The European Helicobacter Study duplos com doses elevadas de amoxicilina (4x750
Group (EHSG), foram estabelecidas as recomen- mg) e omeprazol (4x40 mg), com taxas de erradi-
dações que se seguem. cação de 84%.
1. Somente se deve investigar infecção por Hp: Notas importantes:
quando os sintomas de dor abdominal e/ou vómitos 1 – Estão descritos casos de crianças com ane-
forem sugestivos de doença orgânica (úlcera pé- mia ferropénica refractária que responderam à
ptica/esofagite) e houver necessidade de endos- terapêutica marcial só após a erradicação do Hp.
copia; se numa endoscopia for observada uma lesão Nestas crianças, e se não houver queixas de dor ou
sugestiva de linfoma MALT e após o tratamento de dispepsia que justifiquem uma endoscopia,
infecção por Hp na doença péptica ulcerosa. poderá ser feito o teste respiratório para rastreio
2. Não está indicada a investigação de infecção da infecção por Hp. Igualmente se comprovou a
por Helicobacter pylori em situações de dor elevação do número de plaquetas nos casos de PTI
abdominal recorrente sem sintomas de dispepsia submetidos a tratamento para erradicação de Hp.
nas crianças assintomáticas, mesmo com história 2 – De acordo com os Consensos de Maastricht
familiar de cancro gástrico ou com úlcera péptica III, a erradicação de Hp não causa nem exacerba
recorrente familiar. doença do refluxo gastresofágico (Capítulo 104).
3. Somente se deve instituir terapêutica anti- 3 – Nos doentes com infecção por Hp, tratados,
infecciosa de erradicação do Hp quando existir a resposta à terapêutica deve ser avaliada com
úlcera duodenal ou úlcera gástrica (rara), história teste não invasivo de confiança. O teste respira-
anterior de úlcera péptica, anemia ferropénica tório da ureia marcada com 13C é de confiança nas
refractária e púrpura trombocitopénica idiopática. crianças acima dos 5 anos de idade.
4. Não há indicação para tratar uma infecção
por Helicobacter pylori nas crianças assin- BIBLIOGRAFIA
tomáticas, mesmo com antecedentes familiares de Cabrita J, Oleastro M, Matos M, et al. Features and trends in
úlcera péptica ou cancro gástrico, ou nos casos de Helicobacter pylori antibiotic resistance in Lisbon area,
dor abdominal recorrente não acompanhada de Portugal (1990-1999). Journal of Antimicrobial Chemothe-
queixas dispépticas, diarreia persistente ou rapy, 2000; 46: 1029-1031
dispepsia não ulcerosa. Franchini M, Veneri D. Helicobacter pylori - associated
5. Esquemas de tratamento da infecção por immune thrombocytopenia. Platelets 2006; 17: 712-717
Helicobacter pylori. Os esquemas de tratamento Gold BD, Colletti RB, Abbott M et al. Helicobacter pylori
englobam a associação de fármaco PPI(inibidor da infection in children: recommendations for diagnosis and
bomba de protões) com antimicrobianos. treatment. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2000; 31: 490-497
Opções de 1ª linha (tratamentos com duração de Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
7 dias com 3 medicamentos e de acordo com o Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
teste de sensibilidade aos antibióticos ou a Malfertheiner P, Megraud F, O´Morain C, et al/EHSG.Current
prevalência de resistência na região): concepts in the management of Helicobacter pylori
(1) OAC = Omeprazol (O) 1 mg/Kg/dia até 20 mg, infection:the Maastricht III Consensus Report. Gut 2007;
2x/dia + Amoxicilina (A) 50 mg/Kg/dia até 1 56:772-781
grama, 2x/dia + Claritromicina (C) 15 mg/Kg/dia Shah R. Dyspepsia and Helicobacter pylori. BMJ 2007; 334: 41-43
até 500 mg, 2x/dia; Sherman P, Czinn S, Drumm B, et al. Helicobacter pylori
(2) OAM=O+A+Metronidazol (M) 20 mg/Kg/dia infection in children and adolescents: working group report
até 500 mg, 2x/dia; of the first world congress of pediatric gastroenterology and
(3) OCM=O+C+M. nutrition. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2002; 35: S128-S133
546 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

107
sobre a necessidade do organismo em sal e água
(aldosterona, VIP, HAD, etc.).
Normalmente predomina o processo de absor-
ção; em situações de doença diarreica predomina
a secreção.
Neste processo o electrólito mais importante é
GASTRENTERITE AGUDA o sódio (Na+) o qual entra na célula intestinal a
partir do lume intestinal como resultado dum
Mafalda Paiva, Filipa Santos e João M. Videira Amaral gradiente condicionado, por sua vez, pela saída
de Na+ da célula para o meio interno (plasma),
processo comparticipado por uma bomba de
sódio (Na-K-ATP-ase) que se encontra na mem-
Definição e importância do problema brana baso-lateral.
A saída activa de Na+ condiciona a electrone-
A gastrenterite aguda (GEA) é um quadro clínico gatividade necessária para a entrada de Na+ a par-
resultante da inflamação aguda das mucosas do tir do lume intestinal. Acompanhando a entrada
estômago e do intestino, o qual se traduz por vómito de sódio, entram na célula a glucose, aminoácidos,
e diarreia. di e tripéptidos, vitaminas hidrossolúveis e sais
A diarreia é um aumento da excreção fecal de biliares utilizando, para tal, determinados trans-
água e electrólitos reflectindo, dum modo geral, portadores que existem na membrana das células
alteração do transporte hidro-elecrolítico no de “bordadura em escova”.
intestino delgado e cólon, de causa infecciosa O Cl- e o K+ também são transportados, entran-
(maioria das vezes), ou em relação com perturba- do para o interior da célula.
ções da motilidade intestinal, menos frequente- No processo de secreção tomam parte o
mente. Trata-se duma patologia muito frequente em hidrogénio, o bicarbonato e, também o cloro.
idade pediátrica, estimando-se que nos países Nos processos de transporte iónico (entrada na
industrializados ocorram em média 2 a 3 episódios célula) participam mediadores intracelulares de
por ano em cada criança com idade inferior a 5 anos. regulação: por ex. AMPc, cálcio, etc..
Nos países em vias de desenvolvimento a GEA Na prática, são descritos três grandes mecanis-
é responsável anualmente por cerca de 5 milhões de mos fisiopatológicos da doença diarreica: osmóti-
óbitos em crianças com menos de 5 anos. co, secretório, e alteração da motilidade intestinal,
podendo haver associações dos mesmos em
Fisiopatologia função do factor etiológico.
Na diarreia osmótica a lesão da mucosa
O transporte de água é um fenómeno passivo e intestinal provoca uma diminuição da capacidade
secundário a gradientes osmóticos através da digestiva de absorção, fazendo com que os
parede intestinal; os referidos gradientes osmóti- nutrientes não absorvidos no intestino delgado e
cos podem ser gerados pelo transporte activo de atingindo intactos o cólon, exerçam uma força
electrólitos, ou pela presença de solutos sem elec- osmótica induzindo a saída de água e,
trólitos, como açúcares e aminoácidos. consequentemente, a diarreia. Esta é tanto mais
Em circunstâncias de normalidade existe uma grave quanto maior a concentração destes solutos.
secreção activa que contribui para manter a flu- Como na maior parte dos casos o nutriente em
idez do conteúdo intestinal facilitando, desig- questão é um hidrato de carbono, este, ao atingir
nadamente, a eliminação de subtâncias potencial- o cólon, é digerido pela microbiota normal pro-
mente citotóxicas. duzindo partículas menores exercendo assim uma
Esta secreção ocorre simultaneamente com maior força osmótica, agravando a diarreia. A
uma absorção hidroelectrolítica sendo que o diarreia, em geral, não é abundante e melhora
balanço entre absorção e secreção depende de quando se suspende a ingestão do nutriente consi-
mecanismos hormonais “informando” o intestino derado agressor.
CAPÍTULO 107 Gastrenterite aguda 547

Exemplos clássicos de diarrreia osmótica são Os agentes bacterianos são menos frequentes
os resultantes de deficiência (congénita ou nos países industrializados. Campylobacter jejunii, a
adquirida) de dissacaridases (lactase e sucrase – causa mais frequente das infecções bacterianas nos
isomaltase), de má-absorção de glucose-galactose, países industrializados, está muitas vezes associado
da ingestão excessiva de líquidos carbonatados, e a dores abdominais e a fezes com sangue. Yersinia
de ingestão excessiva de solutos não absorvíveis origina quadro semelhante. Shigella e algumas
(sorbitol, lactulose, hidróxido de magnésio). espécies de Salmonella produzem síndroma de tipo
A diarreia secretória é, em geral, provocada disentérico caracterizada por diarreia profusa com
por bactéria que pode lesar a mucosa por diversas sangue, pus, dores abdominais e tenesmo. Pode
formas (adesão/invasão do epitélio, produção de igualmente existir febre alta e convulsões.
enterotoxinas, citocinas), causando um aumento Vibrião colérico e E. coli com produção de
da secreção das células intestinais (por activação enterotoxinas podem originar diarreia abundante
do AMP-C e GMP-C). e desidratação grave surgidas de modo agudo.
A diarreia também pode ser motivada por A giardíase provoca na sua forma caracte-
alterações da motilidade do tracto gastrintestinal rística diarreia intermitente e má absorção de
as quais conduzem secundariamente a alteração gorduras.
no transporte hidro-electrolítico no intestino
delgado e no cólon. Manifestações clínicas
Embora sejam descritos separadamente estes
diferentes mecanismos, na maioria dos casos eles A apresentação clínica da GEA depende de vários
coexistem; o rotavírus constitui, com efeito, um factores, nomeadamente a idade, o estado imuni-
bom exemplo pois provoca lesão da mucosa, com tário e nutricional do hospedeiro, assim como as
alteração da absorção e formação de diarreia características do agente infeccioso (Quadro 1).
osmótica; mas, simultaneamente determinada Devem ser quantificados os vómitos e a diarreia,
proteína que faz da composição do rotavírus, que assim como as características e duração dos
actua como enterotoxina, induz aumento de mesmos. No exame objectivo é necessário pes-
secreção das células intestinais. quisar sinais de desidratação: mucosas secas,
Nota: A diarreia por alteração da motilidade diminuição do turgor cutâneo (prega cutânea),
sem repercussão no transporte hidro-electrolítico depressão da fontanela anterior, olhos encovados,
enquadra-se, de facto, em situações agudas, mas ausência de lágrimas, letargia, taquicárdia, pulso
recorrrentes: frequentes entre os 6 meses e 3 anos, fraco e hipotensão (Capítulo 49).
cessando espontaneamente pelos 2-4 anos (episó- Se a criança apresentar avidez pela água
dios de diarrreia aguda com períodos de apesar de desidratação aparentemente ligeira, há
normalidade) integrando a entidade designada que considerar a hipótese de se tratar de
por “diarreia crónica não específica”, abordada no desidratação hipernatrémica. Esta ocorre quando
capítulo 111. a diarreia é profusa e a correcção tiver sido feita à
custa de soluções hipertónicas. Frequentemente
Factores etiológicos existe dor abdominal do tipo cólica. Quando as
fezes são ácidas, pela presença de hidratos de
Nos países industrializados a causa mais frequen- carbono, ou por dejecções muito frequentes, pode
te de GEA é a infecção por rotavírus explicando surgir eritema perianal. O estado nutricional
cerca de 50% dos casos em crianças com menos de deverá ser avaliado estando o respectivo compro-
2 anos, sobretudo no Inverno. Contudo, nos EUA, misso em relação com má absorção de proteínas,
com a introdução das vacinas anti-rotavírus, os gordura ou hidratos de carbono (Capítulo 58).
norovírus suplantaram os rotavírus como causa
de GEA (cerca de 1 milhão de casos/ano). Outros Diagnóstico diferencial
vírus como adenovírus, coronavírus, calicivírus e
astrovírus têm sido igualmente implicados, No que respeita à destrinça entre GEA de causa
embora menos frequentemente. vírica e de causa bacteriana apresentam-se as
QUADRO 1 – GEA: Germes microbianos e clínica
548

Germe Transmissão Incubação Duração Clínica Predisposição Época Idade Complicações


Rotavírus Fecal-oral 2-4d 3-8d Vómitos; febre baixa; Hospitalização Inverno <2A Desidratação; intolerância
Respiratória diarreia aquosa Infantário aos HC; excreção crónica
Adenovírus Fecal-oral 3-10d 5-12d Diarreia <4A Invaginação intestinal
Norwalk Água 1-2d 2d Vómitos
Crustáceos Diarreia
Astrovírus Fecal-oral 1-4d 5-6d Vómitos; febre Hospitalização Inverno <4A
Dor abdominal Infantário
Calicivírus Fecal-oral; água 12-72h 4-8d Vómitos; dor Infantário <4A
(E. coli) Respiratória possível Febre baixa
EHEC Carne mal cozida; 1-8d 3-6d Dor, febre (30%) SHU; colite hemorrágica;
(E. coli) água Diarreia sanguinolenta convulsões
ETEC Água 10h-6d 1-5d Vómitos; dor; febre Viagens
(E. coli) baixa; diarreia aquosa
EIEC Fecal-oral; água; 10h-6d Febre; diarreia com
(E. coli) alimentos leucócitos
EPEC Igual Igual Diarreia aquosa grave Países em <2A Desidratação
TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

(E. coli) desenvolvimento


EAEC (E. coli) Igual Igual >14d Idem
Salmonella Ovos, carne; 6-48h 2-7d Vómitos; febre; dor; Acloridria; má- <4A Bacteriémia; meningite;
lacticínios; água diarreia sanguinolenta nutrição; anemia de osteomielite
células falciformes
Shigella Fecal-oral; alimentos 1-7d 48-72h Dor; febre alta; diarreia Infantário; Verão <5A Bacteriémia; convulsão;
com muco e sangue viagens; piscinas Outono SHU; perfuração;
síndroma de Reiter
Yersinia Fecal-oral; carne porco; 4-6d 1-46d Vómitos, febre, dor; Inverno <1A Pseudo-apendicite;
água; leite diarreia com sangue, perfuração; invaginação;
muco e leucócitos exantema; bacteriémia
Campylobacter Aves; água; leite 1-7d 5-7d Febre; dor; diarreia com Infantário Verão Bacteriémia; meningite;
sangue; colecistite; pancreatite
Giardia lamblia Fecal-oral; água; 1-4sem >1sem Dor; flatulência Agamaglobuliné- Má absorção de gorduras;
alimentos mia; acloridria; diarreia crónica ou
piscinas; infan- intermitente
tário; pancreatite
Clostridium variável variável Diarreia com sangue e Hospitalização; Diarreia crónica; portador
dificille muco; febre (raro) antibioticoterapia; crónico
Criptosporidium Fecal-oral; piscinas; 2-14d 1-20d Vómitos; dor; diarreia Infantário; piscinas; Verão Diarreia crónica no
água aquosa imunossupressão Outono imunossuprimido
Vibrio cholerae Marisco; água 0-5d 5-7d Diarreia profusa Viagens Verão Desidratação rápida
S. aureus Alimentos 30m-8h 1-2d Vómitos, dor Desidratação
CAPÍTULO 107 Gastrenterite aguda 549

QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial entre aumentar-se para 15-30ml em cada 5-10 minutos.
diarreia osmótica e secretória Posteriormente, quando a criança se tornar mais
cooperante, deverá ingerir doses crescentes du-
Diarreia Diarreia rante cerca de 4 horas.
secretória osmótica 3º) Não interromper o aleitamento materno
Substâncias redutoras* (-) (+) oferecendo suplementos com soluto SRO enquanto
Na+ fecal >70 mEq/L <70 mEq/L existir diarreia. O uso de fórmulas especiais ou
pH fecal >6 <5 diluídas não se justifica
Volume fecal >200 ml/dia <200 ml/dia 4º) Retomar o regime alimentar habitual após as
Resposta ao jejum não melhoria melhoria 4 horas de reidratação.
Nas crianças com diarreia moderada a grave
* A sucrose não é agente redutor. Antes de realizar a pesquisa com o Clinitest® deve juntar-
se à amostra de fezes, 5 gotas de HCl 0,1n. deve reduzir-se ou eliminar-se a lactose da dieta
para minorar os efeitos da deficiência transitória
de dissacaridases por lesão das células intestinais,
seguintes características como orientação; 1) na o que por vezes ocorre durante 2 a 4 semanas após
GEA de causa vírica: vómitos mais frequentes; a diarreia.A intolerância à lactose pode ser confirmada
sangue, muco e leucócitos nas fezes ausentes; pela presença de substâncias redutoras nas fezes.
febre mais raramente; 2) na GEA de causa 5º) Prevenção de nova desidratação com
bacteriana: vómitos menos frequentes; sangue, suplementos de soluto enquanto existir diarreia
muco e leucócitos nas fezes; febre mais frequente. (oferecer 10ml/Kg por cada dejecção) e vómitos
Relativamente à destrinça entre diarreia secre- (2ml/Kg por episódio).
tória e diarreira osmótica, o Quadro 2 é eluci- 6º) Evitar medicação desnecessária. Os anti-
dativo. muscarínicos (ex: loperamida) alteram a motili-
dade intestinal, diminuindo a diarreia e a disten-
Tratamento são abdominal; no entanto, na infecção por bacté-
rias invasivas ou produtoras de citotoxinas é
A identificação do agente etiológico na maioria favorecido o contacto da bactéria com a mucosa
das vezes não é necessária porque a doença é intestinal com agravamento do quadro clínico.
autolimitada e o tratamento é idêntico indepen- Por consequência, não estão recomendados nas
dentemente da causa. criança.
As medidas de suporte consistem em: Os antibióticos devem ser usados em casos
1º) Usar soro de hidratação oral para compensar específicos para diminuir a duração da doença e a
a desidratação estimada (em 3 a 4 horas). excrecção do microrganismo, sendo necessária
2º) Usar solução hipo-osmolar (Na+ 60 mEq/L) uma coprocultura com antibiograma antes de
ou de osmolaridade reduzida (Na+ 75 mEq/L) com inciar a terapêutica.
glucose (20 a 30 g/L); a glucose promove a rea- Nas situações com isolamento de Salmonella a
bsorção de sódio e água no intestino delgado (Ca- antibioticoterapia pode prolongar o tempo de
pítulo 50). excreção fecal, gerar doença sistémica e ainda
Bebidas com excesso de hidratos de carbono induzir o aparecimento de estirpes resistentes.
(cuja concentração exceda a de sódio em 2/1) Está indicada apenas na febre tifóide ou na
agravam a diarreia pelo efeito osmótico que terão gastrenterite acompanhada de sinais de doença
no intestino. sistémica, ou no doente em risco (idade inferior a
O chá também não é ideal pois tem uma baixa três meses, situações com imunodeficiência,
concentração de sódio e potássio. doença crónica, hemoglobinopatia). Nestes casos
Sempre que possível tentar a hidratação oral estão indicados os seguintes antimicrobianos:
com um soluto de reidratação oral (SRO), mesmo ampicilina, amoxicilina, TMP-SMX (trimetoprim-
na criança que não aparente sinais de desidratação. sulfametoxazol), cefotaxima ou ceftriaxona.
Deve oferecer-se pequenas doses de soluto (5ml) Situações com desidratação correspondendo a
em cada 5 minutos; e se houver tolerância pode perda de peso superior a 5%, incapacidade para se
550 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

proceder a reidratação no domicílio, não tolerância Quanto a medidas gerais em relação à alimen-
a reidratação oral, e agravamento da situação tação: evicção de carne mal cozinhada, de leite
clínica (acentuação dos vómitos e da diarreia), têm não pasteurizado, de água não tratada; as pessoas
indicação para internamento hospitalar, em geral que manuseiam carne crua deverão lavar bem as
de curta duração na ausência de complicações. mãos antes de contactar com uma criança.
A reidratação e a manutenção da hidratação até Em relação à criança viajante para áreas
que haja resolução da diarreia, assim como o endémicas: beber água engarrafada, evitar gelo,
suprimento nutricional adequado, são as pedras saladas, alimentos mal cozinhados e fruta com
fundamentais do tratamento. casca. Os lactobacillus (probióticos) produzem
A reintrodução da alimentação deve fazer-se ácidos gordos de cadeia curta e diminuem o pH
atempada e imediatamente uma vez conseguida a intestinal, o que inibe o crescimento de bactérias
hidratação. Crianças alimentadas exclusivamente das espécies Shigella e Salmonella; por isso têm
com leite materno devem manter o aleitamento. As utilidade no tratamento e prevenção da doença
que já tenham iniciado alimentos sólidos devem manter intestinal (Capítulo 54).
o seu regime habitual. Deve começar-se com alimen-
tos de absorção rápida (arroz, trigo) e banana (su- BIBLIOGRAFIA
plemento de potássio). A reintrodução da alimen- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
tação deve ser fraccionada e em curtos intervalos Dinleyici EC, Dalgic N, Guven S, et al. The effect of a
para garantir melhor absorção. multispecies synbiotic mixture on the duration of diarrhea
Os alimentos com elevado teor de açúcar não and length of hospital stay in children with acute diarrhea
são aconselhados porque podem causar diarreia in Turkey Eur J Pediatr 2013; 172:459-464
osmótica. Freedman SB, Adler M, Seshadri R, Powell EC. Oral
Ondasetron for gastroenteritis in a pediatric emergency
Prevenção department. NEJM 2006; 354: 1698-1705
Certas medidas gerais são importantes na pre- Guarino a, et al / ESPGHAN / ESPID. Evidence based
venção da transmissão de infecções em guidelines for the management of acute gastroenteritis in
infantários, escolas ou hospitais, nomeadamente, Europe. J Pediatr 2008; 46: S81- S84
a avaliação periódica do estado de saúde e de Hoekstra J H. Oral rehydration solution containing a mixture
imunização das crianças e dos prestadores de of non-digestible carbohydrates in the treatment of acute
cuidados. São fundamentais os seguintes diarrhea: a multicenter randomized placebo controlled
procedimentos: regras de limpeza e desinfecção study on behalf of the ESPGHAN working group on
de instalações sanitárias, lavagem das mãos intestinal infections. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2001; 39:
frequentemente, regras de limpeza das cozinhas e 239-245
cuidados na confecção dos alimentos, formação Johnson JE, Sullivan PB. The management of acute diarrhoea.
em serviço e vigilância do desempenho dos Current Paediatr 2003; 13: 95-100
trabalhadores destes locais, lavagem e desinfecção Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
diárias de todos os brinquedos, e comunicação Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
dos surtos de infecção às autoridades de saúde. Saunders, 2011
A exclusão ou isolamento de crianças nestes Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger, 2008
locais, na maioria dos casos não é necessária uma O’Ryan M, Diaz J, Mamani N, et al. Impact of rotavirus
vez que a transmissão já ocorreu antes do início infections on outpatient clinic visits in Chile. Pediatr Infect
dos sintomas. Existem, no entanto, alguns casos Dis J 2007; 26: 41-45
em que o isolamento é necessário o que é Payne DC, Vinjé J, Szilagyi PG, et al. Norovirus and medically
determinado pela autoridade de saúde: diarreia attended gastroenteritis in US children. N Engl J Med
com muco ou sangue, infecção por Shigella, E. coli 2013;368:_1121-1130
produtora de toxina semelhante à Shigella
(incluindo o tipo O157:H7), enquanto não se
verificarem duas coproculturas negativas para
cada caso.
CAPÍTULO 108 Diarreia crónica 551

108
derada (< 10g por dia), excepto nas situações de
défice selectivo da absorção de gorduras, bem
como a creatorreia (1-2 g por dia), excepto quando
há um forte componente de enteropatia exsuda-
tiva.
Fermentação – Nestas situações predominam
DIARREIA CRÓNICA os sintomas de má absorção de açúcares, a qual
pode ser primária ou secundária (neste caso
Gonçalo Cordeiro Ferreira acompanhando as situações de redução das
vilosidades ou na síndroma pós-gastrenterite).
Habitualmente as fezes são ácidas (pH < 5) por
conterem ácidos voláteis e ácido láctico, podendo
Definição ser detectada a presença directa de açúcares fecais
pela pesquisa de substâncias redutoras (Clinitest®
Define-se como crónica toda situação de diarreia > 1%). Apenas a sacarose não origina directa-
com duração superior a 15 dias. As diarreias mente substâncias redutoras nas fezes, necessitan-
crónicas podem acompanhar-se, ou não, de sín- do de tratamento prévio destas por ácido
droma de má absorção. clorídrico (Capítulo 107).

Etiopatogénese Na diarreia crónica não acompanhada por má


absorção podem surgir dois tipos de diarreia:
O Quadro 1 resume as principais causas de Cólica – Caracterizada por fezes heterogéneas
diarreia crónica. com pequeno volume e frequência aumentada,
A diarreia crónica que se acompanha de fétidas, com muco, e ocasionalmente com sangue
síndroma de má absorção pode ser explicada e/ou pus. A esteatorreia está ausente bem como
habitualmente por três situações de base: os ácidos voláteis; mas nas situações de infla-
Má-digestão – Como resultado de insuficiên- mação importante da mucosa (doença inflama-
cia pancreática, ou incapacidade de formação de tória do intestino) há creatorreia importante por
micelas por défice quantitativo de sais biliares no exsudação de proteínas. Estas diarreias são tam-
intestino, ou qualitativo (desconjugação por bacté- bém ricas em sódio por diminuição da sua rea-
rias no intestino contaminado); nesta situação as bsorção cólica.
fezes são moles, abundantes, gordurosas e fétidas Não específica – Caracterizada por fezes de
caracterizadas por: esteatorreia intensa (20-30 g de volume e consistência muito variáveis, por vezes
gorduras fecais por dia), creatorreia (superior a 3g líquidas, por vezes pastosas, muito frequente-
de azoto por dia, correspondendo a 20-30 % das mente com lienteria (restos alimentares); habitual-
proteínas ingeridas) e presença de produtos de mente as primeiras dejecções do dia são de
fermentação de açúcares não absorvidos (cerca de características normais, piorando ao longo do dia;
30 mmol por dia de ácidos voláteis). não há defecação durante o sono.
Má-absorção – Nestes casos a componente da
digestão está preservada, mas há diminuição da Manifestações clínicas
capacidade de absorção de nutrientes por redução
da superfície de absorção (lesão da mucosa nas A diarreia crónica acompanhada de má absorção
enteropatias, ou redução da superfície total traduz-se por restrição do crescimento estaturo-
intestinal na síndroma do intestino curto). As ponderal e, ao contrário do adulto em que o
fezes são moles ou líquidas, raramente gordas, apetite está aumentado, na criança é acom-
por vezes ácidas (por grande aumento dos ácidos panhada de anorexia, o que agrava a negatividade
voláteis resultantes da fermentação, dos hidratos do balanço energético-proteico.
de carbono não absorvidos no delgado) e pela Há também sintomas e sinais relacionados com a
flora bacteriana do cólon. A esteatorreia é mo- má absorção de micronutrientes como o ferro (ane-
552 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Causas de diarreia crónica

Com má-absorção intestinal Sem má-absorção intestinal


Defeito da Digestão Colite
a) Insuficiência pancreática exócrina: a) Inflamatória
Fibrose quística Doença inflamatória do intestino
Síndroma de Schwachmann b) Infecciosa
b) Defeito da micelização dos sais biliares: Salmonella
Colestase Shigella
Pseudo-obstrução intestinal crónica ou ansa cega Yersinia
intestinal (por desconjugação dos sais biliares pelo Campylobacter
crescimento bacteriano intestinal) E. coli patogénicas
Defeito da Absorção Medicamentos / produtos dietéticos
a) Redução da superfície total de absorção: Abuso de laxantes
Síndroma do intestino curto Abuso de sorbitol (pastilhas,sumos de fruta)
b) Lesão da parede (enteropatia): Antibióticos
Doença celíaca Funcionais
Giardíase a) Diarreia crónica não específica
Intolerância às proteínas do leite de vaca b) Síndroma do cólon irritável (com predomínio de diarreia)
Atrofia microvilositária
Enteropatia autoimune
Enteropatia eosinofílica
c) Defeitos selectivos:
1)Absorção de açúcares
Primários:
Intolerância à lactose
Défice de sucrase isomaltase
Má-absorção de glucose-galactose
Secundários:
Intolerância à lactose (Síndroma pós gastrenterite)
2) Absorção de gorduras
Abetalipoproteinemia
Doença de Anderson
Enteropatia exsudativa
Linfangiectasia intestinal

mia ferropénica), o cálcio (raquitismo, hipocal- Diagnóstico


cémia), o ácido fólico (anemia macrocítica), as
vitaminas lipossolúveis A (baixa da visão nocturna, Perante um quadro de diarreia crónica há que
pele seca), D (raquitismo), E (diminuição dos avaliar o impacte sobre progressão ponderal e
reflexos osteotendinosos, oftalmoplegia,ataxia), K estatural(neste último caso a repercussão é mais
(alterações da coagulação), e ainda do zinco (alte- tardia). Se se verificar uma desaceleração ou
rações cutâneas periorificiais, alterações imuno- “queda” dos percentis de peso e estatura, há que
lógicas, perda da sensação gustativa). suspeitar de síndroma de má-absorção; e, para
A má absorção proteica pode levar a situações além dos exames destinados a estabelecer um
de hipoalbuminémia e edema, enquanto a má diagnóstico etiológico específico, importa ainda
absorção dos açúcares origina fermentação cólica estudar a repercussão funcional que um quadro
com distensão abdominal e eritema perianal de má absorção de macro e micronutrientes, pode
causado pelas fezes ácidas (Capítulo 51). causar. (Quadro 2) (Capítulo 68).
CAPÍTULO 108 Diarreia crónica 553

Tratamento litação nutricional através de técnicas de suporte


como alimentação parentérica exclusiva ou com
Está dependente do diagnóstico etiológico, alimentação entérica. As técnicas de suporte nutri-
podendo ser de evicção dietética (doença celíaca, cional usando a alimentação entérica (quer contí-
IPLV, intolerância aos açúcares) transitória ou nua quer nocturna, por bomba de infusão) são
permanente, ou farmacológica (giardíase, doença muito eficazes, permitindo incrementar a absor-
inflamatória do intestino) ou suplementação ção de nutrientes graças ao emprego de fórmulas
enzimática pancreática (fibrose quística). semi-elementares, ou mesmo fórmulas com
Nas situações em que a diarreia se acompanha dipéptidos ou aminoácidos livres.
de desnutrição acentuada há que, independente-
mente do tratamento etiológico, promover a reabi- São descritas nos capítulos seguintes, com
mais pormenor, três situações clínicas frequentes
QUADRO 2 – Exames complementares que cursam com diarreia crónica na criança: a
na diarreia crónica doença celíaca, a giardíase e a diarreia crónica
inespecífica
Fezes
• Grau de digestão BIBLIOGRAFIA
• Gorduras fecais (na suspeita de esteatorreia) (Em conjunto com o capítulo “Diarreia crónica não específica”).
• pH e substâncias redutoras (fezes frescas)
• Ionograma fecal (suspeita de diarreia secretória)
• Alfa 1 antitripsina fecal (enteropatia exsudativa)
• Quimiotripsina e elastase fecais (suspeita de
insuficiência pancreática)
• Calpoprotectna fecal (suspeita de DII)
• Coprocultura
• Pesquisa de quistos de Giardia lamblia ou de
antigénio de Giardia
Sangue
• Anticorpos “marcadores” de doença celíaca
• IgE específica para proteínas do leite de vaca
• Prova da d-xilose (avaliação indirecta da integridade
da mucosa)
• Hemoglobina, Ferritina
• Cálcio, Fósforo, Fosfatase Alcalina
• Tempo de Protrombina
• Colesterol, Triglicéridos
• Albumina
• Velocidade de sedimentação (doença inflamatória do
intestino)
• Doseamento de vitaminas A, E, D e Zinco (mais
raramente)
Outros
• Endoscopia alta com biópsia do intestino proximal
(enteropatias)
• Colonoscopia (doença inflamatória do intestino,
colite alérgica)
• Prova do suor (fibrose quística)
• Prova de hidrogénio expirado (intolerância primária
ou secundária aos açúcares)
554 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

109
DOENÇA CELÍACA
Gonçalo Cordeiro Ferreira

FIG. 1
Definição
Lactente com doença celíaca. Distensão abdominal rela-
A doença celíaca é hoje definida como uma cionável com meteorismo. (NIHDE)
doença autoimune desencadeada pela exposição
ao glúten (mais propriamente à sua fracção de doença celíaca demonstraram uma maior
gliadina) em indivíduos geneticamente susceptí- prevalência desta (1/140 a 1/300) em relação a
veis (possuidores de antigénios de histocompati- anteriores estudos, baseados unicamente em
bilidade –HLA- de classe II DQ2 e DQ8). formas sintomáticas (1/1000 a 1/2500).
O órgão alvo desta doença é o intestino De referir as chamadas formas de doença
proximal, constituindo-se uma lesão da respectiva celíaca silenciosa (sem sintomas, mas com
mucosa caracterizada por um infiltrado linfoplas- alteração da mucosa demonstradas por biópsia
mocitário na lâmina própria, infiltrado linfocitário intestinal) e doença celíaca latente em que não há
intra-epitelial, hiperplasia das criptas e atrofia das sintomas nem alterações da mucosa intestinal,
vilosidades. embora com desenvolvimento, ao longo do
Assim, a forma “clássica” de apresentação desta tempo, de achados histológicos característicos
doença traduz-se por uma síndroma de má- (como no caso de familiares de 1º grau de doentes
absorção alguns meses após a introdução do glúten celíacos ou em grupos de risco – Quadro 2).
no regime alimentar (presente nas farinhas de trigo,
centeio ou cevada), com diarreia crónica e/ou Diagnóstico
vómitos, inflexão nas curvas ponderais e estaturais
(primeiro naquelas, depois nestas), distensão O índice de suspeita relativamente a doença
abdominal, atrofia das massas musculares e tecido celíaca deve ser bastante apurado, principalmente
celular subcutâneo, anorexia e alteração do humor para as formas paucissintomáticas ou extra-
(irritabilidade, apatia). (Figura 1) intestinais , bem como para os grupos de risco.
No entanto, e sobretudo nas crianças mais O estudo inicial (rastreio) passa pela detecção
velhas, as manifestações podem ser mais atípicas dos marcadores serológicos de classe IgA (antiglia-
(paucissintomáticas) ou mesmo predominan- dina, antiendomísio e anti transglutaminase
temente extraintestinais (Quadro 1) tecidual). Pela suas mais elevadas especificidade e
Em 161 crianças com a doença e seguidas na sensibilidade as recomendações actuais preferem o
Unidade de Gastrenterologia do Hospital Dona uso dos marcadores anti transglutaminase tecidual
Estefânia, 3.7% apresentavam quadros clínicos (TGT) em detrimento dos antiendomísio (mais
predominantemente extraintestinais. caros e não quantificáveis) ou dos antigliadina
(AAG) (menos específicos). Em crianças com menos
Aspectos epidemiológicos de 2 anos a sensibilidade dos anticorpos TGT é
menor, pelo que alguns autores recomendam o uso
Rastreios sistemáticos em populações europeias simultâneo de uma segunda geração de AAG, os
avaliando a presença de marcadores serológicos anti-DGP (Deaminated Gliadin Peptide) caso de
CAPÍTULO 109 Doença celíaca 555

QUADRO 1 – Manifestações extraintestinais da QUADRO 2 – Grupos de risco de doença celíaca


doença celíaca (obrigando a rastreio serológico)

Dermatológicas Familiares de 1º grau Hemossiderose pulmonar


• Dermatite herpetiforme, alopécia, vitíligo Dermatite herpetiforme Síndroma de Down
Hematológicas Diabetes tipo I Nefropatia IgA
• Anemia isolada (ferropénica ou macrocítica por défice Tiroidite autoimune Artrite reumatóide
de ácido fólico) Síndroma de Sjögren
• Anemia hemolítica autoimune, trombocitopenia auto-
imune
• Trombocitose (hipoesplenismo) Pediatric Gastroenterology, Hepatology and
Endocrinológicas Nutrition, indicando que essas 2 biópsias
• Diabetes mellitus tipo I, tiroidite autoimune suplementares só estariam indicadas em crianças
• Atraso estatural isolado, atraso pubertário isolado com menos de 2 anos, em que a dieta foi iniciada
Neurológicas sem realização de biópsia, ou com achados da
• Epilepsia (com calcificações occipitais), ataxia biópsia não específicos, ou sem resposta clínica
Hepáticas conclusiva à exclusão do glúten.
• Hipertransaminasemia, hepatite autoimune Nos restantes, casos após a primeira biópsia, a
Orais monitorização (para além da clínica) deverá ser
• Aftas recorrentes feita com os marcadores serológicos (normaliza-
• Hipoplasia do esmalte dentário (dentes definitivos) ção com a dieta, reaparecimento com a sobre-
Osteo-articulares carga).
• Osteoporose, artralgia/artrite
Ginecológicas Tratamento
• Infertilidade, abortos de repetição
Psiquiátricas
O tratamento baseia-se na evicção completa do
• Ansiedade/depressão
glúten da dieta para toda a vida (consultar
Anexos-volume 3).
défice de IgA (que deve ser sistematicamente Os riscos de abandono da dieta, o que sucede
rastreado com determinação simultânea dos níveis muitas vezes na adolescência, prendem-se com a
séricos desta IG) podem ser analisados os anti-TTG possibilidade de aparecimento na idade adulta de
da classe IgG. No entanto, pela sua baixa especi- doenças neoplásicas (adenocarcinoma do delga-
ficidade é conveniente associar-se outros marca- do, linfoma não Hodgkin do tubo digestivo), ou
dores, sendo mais recomendados os anti-DGP da outras de grande morbilidade (osteoporose,
classe IgG. infertilidade ou abortos de repetição, doença
O diagnóstico definitivo deve ser feito pela neurológica ou psiquiátrica).
biópsia jejunal por endoscopia alta ou com Nas formas clássicas com desnutrição grave na
cápsula de Watson. data do diagnóstico é necessário recorrer a técnicas
As recomendações da ESPGAN de 1970 de suporte nutricional, (usando alimentação
previam a realização posterior de mais 2 entérica contínua, ou alimentação fraccionada)
biópsias até ao diagnóstico definitivo da empregando sempre fórmulas sem lactose ou semi-
doença: uma segunda biópsia alguns anos após elementares, para além do suprimento de minerais
a primeira, com um regime estrito de evicção (principalmente ferro) e de vitaminas.
de glúten e que deveria estar normal, e uma
terceira biópsia após período maior ou menor BIBLIOGRAFIA
de sobrecarga com glúten, devendo haver (Em conjunto com o capítulo “Diarreia crónica não específica”).
critérios de recaída histológica.
Estes critérios foram revistos em 2005 pela
ESPGHAN e pela North American Society for
556 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

110
de quistos ou antigénio (por ELISA) de Giardia, ou
do trofozoíto no aspirado duodenal, ou na própria
biópsia intestinal (coloração pelo método de
Giemsa).
A detecção de quistos nas fezes é muito difícil
pela excreção descontínua do parasita, pelo que se
GIARDÍASE torna necessário proceder a colheitas sucessivas
de amostras.
Gonçalo Cordeiro Ferreira
Tratamento

É apenas recomendado para as infestações


Aspectos epidemiológicos sintomáticas. Utiliza-se o metronidazol na dose de
15 mg/Kg/dia (dose máxima por toma 250 mg)
A infestação intestinal pelo protozoário Giardia em 2-3 tomas diárias durante 5 dias; o tinidazol
lamblia é a causa mais comum de diarreia de causa em dose única de 40 mg/kg(dose máxima 2 g); ou
parasitária nos países desenvolvidos. o nitazoxanide duas vezes por dia durante 3 dias
Pode aparecer em qualquer idade, mas é espe- (de 1-3 anos: 100 mg/dose; de 4-11 anos: 200
cialmente prevalente nas crianças mais pequenas, mg/dose; acima dos 11 anos: 500 mg/dose).
sobretudo quando frequentam creche ou jardim de Como alternativa pode usar-se o albendazol na
infância. Nas crianças mais velhas pode associar-se dose de 10-15 mg/kg/dia numa toma diária
a hipogamaglobulinémia, salientando-se o défice durante 5 dias (dose máxima diária:400 mg).
imunitário de IgA.
Após a ingestão da Giardia, 25-50 % das BIBLIOGRAFIA
crianças tornam-se sintomáticas, 5-15% tornam-se (Em conjunto com o capítulo “Diarreia crónica não específica”).
excretoras assintomáticas (por períodos superio-
res a 6 meses) e as restantes não evidenciam
qualquer alteração.

Manifestações clínicas

A Giardia lamblia causa uma inflamação focal da


mucosa do intestino delgado com atrofia parcial
das vilosidades. Estas alterações levam a uma
diarreia crónica persistente ou intermitente com
anorexia, distensão abdominal, ou dor abdominal
na criança mais velha; e, se o diagnóstico se
atrasar, perda de peso e anemia.
A diarreia pode ter algum teor de gordura, ser
fétida, mas não contém habitualmente sangue ou
muco.
A presença de intolerância secundária à lactose
(que pode persistir até algum tempo após a
erradicação da Giardia) origina fezes mais líquidas
e ácidas.

Diagnóstico

O diagnóstico faz-se pela demonstração nas fezes


CAPÍTULO 111 Diarreia crónica não específica 557

111
As causas deste quadro permanecem ainda
inexplicadas admitindo-se que possa haver uma
alteração da motilidade digestiva levando a uma
maior rapidez do trânsito intestinal com a
chegada ao cólon de uma maior quantidade de
líquidos e sais biliares, provocando uma diarreia
DIARREIA CRÓNICA secretória.
Esta resposta motora inapropriada pode ser
NÃO ESPECÍFICA desencadeada pela percepção de determinados
estímulos, quer a nível do sistema nervoso central,
Gonçalo Cordeiro Ferreira quer a nível periférico, mediados ou não por
fenómenos inflamatórios locais.
Os estímulos podem ser de origem luminal,
incluindo componentes exógenos da dieta (como
Aspectos epidemiológicos o excesso de frutose ou sorbitol em crianças com
consumo exagerado de sumos de fruta indus-
A diarreia crónica não específica é um quadro de triais), ou factores de tensão emocional relaciona-
causa não orgânica o qual se insere na patologia dos com o ambiente psicossocial.
funcional do tubo digestivo, integrando a alínea G
5 (diarreia funcional) dos chamados critérios de Diagnóstico
Roma III (alterações funcionais gastrintestinais em
idade pediátrica) (Capítulo 105). O diagnóstico é essencialmente clínico, devendo
É a causa mais frequente de diarreia crónica efectuar-se um mínimo de exames complementares,
na infância, tendo início entre os 6 meses e os 3 os quais podem incluir a avaliação do grau de
anos de idade, desaparecendo entre os 2 anos (nos digestão de fezes para excluir esteatorreia ou má
casos de começo mais precoce) e os 4 anos. absorção de açúcares, e pesquisa de quistos de
Giardia ou antigénio de Giardia lamblia nas fezes. Um
Manifestações clínicas teste de H2 expirado sob regime com lactose para
excluir intolerância a este dissacárido (ou uma
A diarreia crónica não específica revela-se muitas prova clínica de evicção da lactose na dieta) podem
vezes após um episódio de diarreia aguda ou de revestir-se de utilidade.
uma infecção respiratória medicada com anti-
bióticos; caracteriza-se por um quadro de diarreia Tratamento
com 5-6 dejecções líquidas ou pastosas, por vezes
com muco ou restos alimentares não digeridos Em primeiro lugar, deve-se tranquilizar os pais,
(lienteria). explicando-lhes que se trata de uma situação beni-
O tipo de dejecções varia ao longo do tempo, gna e limitada, a qual não afectará o crescimento
com períodos sem diarreia, ou até com obstipação. da criança.
Ao longo do dia, é habitual as primeiras dejecções Em segundo lugar, retornar a uma alimentação
serem mais formadas, seguindo-se fezes mais normal, sem recurso a dietas de exclusão (ditas
líquidas. Não há dejecções durante o sono. Não se adstringentes“anti-diarreicas” que só conduzem,
encontra eritema do períneo nem distensão pela monotonia, a anorexia). O suprimento de
abdominal. sumos de fruta deve ser limitado, devendo
A criança apresenta um bom estado geral, com aumentar-se a ingestão de gorduras (azeite) e de
humor e vitalidade conservados, sem perda de fibras solúveis pelo seu efeito de promoção da
peso (se bem que ao fim de algum tempo de uma diminuição da velocidade do trânsito no intestino
alimentação muito estrita e com uma dieta “anti delgado, com melhoria sintomática.
diarreica” comece a ter anorexia e a evidenciar Não está aconselhado o uso de produtos anti-
ligeira inflexão da curva ponderal). diarreicos.
558 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

112
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http://www.romecriteria.org (acesso em Julho de 2013) (por ex metilação do ADN) com impacte no de-
senvolvimento intestinal.
A inflamação crónica no intestino leva a várias
alterações fisiopatológicas que resultam essencial-
mente em diarreia, enteropatia exsudativa, he-
morragia, dor abdominal e estenoses. É im-
CAPÍTULO 112 Doença inflamatória do intestino 559

portante o papel das citocinas e dos eicosanóides ulcerosa localiza-se apenas na mucosa. Inicia-se
pró-inflamatórios os quais aumentam a permea- praticamente sempre no recto, em continuidade
bilidade vascular e originam vasodilatação, (isto é, sem zonas afectadas intercaladas com zonas
provocando secreção de electrólitos e aumento da não afectadas), atingindo extensões variáveis e
contractilidade do músculo liso. O epitélio infla- diminuindo de gravidade em direcção ao cego.
mado leva a perda de proteínas e outros nu- São frequentes os abcessos das criptas, as alte-
trientes, principalmente ferro e zinco. As citocinas rações da arquitectura e a depleção das células
promovem o recrutamento e a actividade de caliciais.
células formadoras de colagénio, levando à A incidência varia conforme as regiões do globo:
proliferação de tecido fibroso com consequente ~2/100.000 no Japão e ~15/100.000 nos EUA.
espessamento da parede e formação de estenoses.
Manifestações clínicas
1. Doença de Crohn As manifestações clínicas por ordem decrescente
de frequência são:
Classicamente, o íleo terminal é o segmento – Rectorragia
atingido com maior frequência (50%), embora – Diarreia – Artralgia / artrite
qualquer área do tracto gastrintestinal desde a – Dor abdominal – Febre
boca ao ânus [incluindo, claro está, o colon – Perda de peso – Restrição do
(~20%), o esófago, o estômago, e o duodeno] crescimento
possa estar envolvida. Pode ocorrer envolvimento Existem várias manifestações extraintestinais
isolado do cólon nalguns doentes. Os termos da DII que podem, quer preceder os sintomas
sinónimos são ileíte terminal ou regional, ileoco- gastrintestinais, quer coexistir ou aparecer meses
lite ou enterocolite granulomatosa. ou anos após o diagnóstico (Quadro 1).
O intestino apresenta-se espessado, nodular,
muitas vezes com franca ulceração. Os granulomas Diagnóstico
sem caseificação são muito característicos. Quando a
inflamação, que é transmural, se estende para além A DII deverá ser sempre admitida como hipótese de
da serosa, podem existir fístulas para estruturas adja- diagnóstico nas seguintes situações: dor abdominal
centes, como o intestino, bexiga, vagina ou períneo. crónica, hipocrescimento, diarreia crónica com ou
Esta doença tem características de desconti- sem sangue, rectorragias, história familiar de DII,
nuidade quanto às áreas afectadas, manifestando-se anemia inexplicada na criança maior e adoles-
pela alternância de zonas sãs com zonas afectadas. cente, e manifestações extraintestinais, mesmo
Calcula-se uma incidência anual de 6 casos por com manifestações gastrintestinais mínimas.
100.000 habitantes. O diagnóstico da DII é assim sugerido pela
combinação de manifestações clínicas, sendo
Manifestações clínicas necessária confirmação por exames laboratoriais,
Discriminam-se as manifestações clínicas mais imagiológicos, endoscópicos e histológicos.
típicas por ordem decrescente de frequência: Na fase inicial da DII é difícil a destrinça entre
– Dor abdominal – Restrição do colite ulcerosa e doença de Crohn, classificando-se
– Perda de peso crescimento tal situação como colite indeterminada.
– Diarreia – Úlceras orais Os exames laboratoriais habitualmente reque-
– Sangue nas fezes – Artralgia / artrite ridos para a avaliação global dos casos são essen-
– Lesões perianais – Lesões cutâneas cialmente: hemograma, plaquetas, velocidade de
– Febre sedimentação, doseamento de proteína C reactiva,
de orosomucóide, de ANCA e ASCA. Salienta-se a
2. Colite ulcerosa importância da avaliação nutricional e do dosea-
mento do zinco e ferro, em geral com valores
Ao contrário da doença de Crohn em que a inflama- diminuídos devido a perdas em fase precoce da
ção é transmural, o processo inflamatório na colite doença.
560 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Manifestações extraintestinais pode sugerir de imediato o diagnóstico pelas


da DII alterações visíveis, permitindo, por outro lado, fazer
biópsias para confirmação histológica. Mesmo em
Cutâneas zonas de aparência normal se deve proceder à
• Eritema nodoso biópsia pela possibilidade de inflamação micros-
• Piodermite gangrenosa cópica e granulomas, que são característicos da
• Doença perianal doença de Crohn.
Hepáticas A técnica utilizando a cápsula endoscópica,
• Colangite esclerosante embora ainda não muito utilizada em pediatria, é
• Hepatite crónica de grande utilidade por permitir avaliar zonas
• Litíase habitualmente não acessíveis à endoscopia.
• Cirrose De referir que diversos agentes infecciosos
Articulares podem provocar quadro clínico semelhante à DII
• Artralgia (por ex. Campylobacter, Yersinia, Clostridium difficile,
• Artrite E coli 0157:H7, BK, Entamoeba histolytica, CMV,
• Espondilite anquilosante Criptosporidium, etc.).
• Sacroileíte Igualmente estão descritas situações clínicas
Oftalmológicas simile DII (DII like, segundo os anglófonos) as-
• Uveíte sociadas a alterações vasculares isquémicas (LED,
• Episclerite PSH, SHU), a doenças inflamatórias de causa imune
• Cataratas (como doença de Behçet, gastrenterite eosinofílica,
Renais etc.), a abuso de laxantes e a linfoma intestinal.
• Litíase
• Hidronefrose Tratamento
• Fístula enterovesical
Hematológicas
Não existe terapêutica médica curativa para a
• Défice de ferro, folatos e vitamina B12
colite ulcerosa ou para a doença de Crohn. Os
• Anemia
esquemas terapêuticos destinam-se a combater a
• Trombocitose
inflamação, conseguindo um crescimento
• Neutropénia
adequado e mantendo boa qualidade de vida. A
Vasculares
adesão à terapêutica deve ser avaliada com
• Tromboflebite
frequência, uma vez que as interrupções da
• Vasculite
medicação são causa frequente de falência de
resultados, principalmente em adolescentes.
Actualmente em determinados centros especia- Salienta-se que a nutrição entérica exclusiva diur-
lizados está a utilizar-se (em casos seleccionados e na e nocturna (segundo diversas estratégias, no mí-
não como rotina) um marcador serológico (macro- nimo durante 4 semanas segundo a experiência de
CK ou macrocreatinaquinase de tipo 1/complexo diversos centros de gastrenterologia) é de primordial
CK-Ig) associado a doença crónica e a doença importância no tratamento da inflamação intestinal,
autoimune; valores elevados e persistentes veri- conduzindo à remissão em 50-60% dos casos, desi-
ficam-se na colite ulcerosa e não na doença de gnadamente na doença de Crohn. Por outro lado, a
Crohn. A macro-CK de tipo 2 (oligómero de CK) interrupção da referida nutrição entérica poderá levar
está associada a doença maligna. a recaídas. É recomendada dieta de tipo elementar
Os exames imagiológicos habitualmente reali- com baixo teor em gorduras, embora enriquecida
zados: (trânsito intestinal, ecografia abdominal, com n-3PUFA. A recuperação do peso e altura
TAC, etc.) permitem avaliar as situações com constituem bons marcadores do sucesso terapêutico.
fístulas, abcessos, estenoses, designadamente. Existem vários tipos de agentes terapêuticos:
A endoscopia (esófago-gastroduodenoscopia e – 5 ASA (ácido 5 – amino-salicílico)
colonoscopia) é particularmente importante, porque – Antimicrobianos (mais frequentemente me-
CAPÍTULO 113 Obstipação 561

113
tronidazol, ciprofloxacina)
– Corticóides
– Imunossupressores (azatioprina, metotrexato,
ciclosporina, etc.)
– Anticorpos anti-factor necrosante tumoral
(Anti – TNF-alfa) e monoclonais (infliximab).
Estes fármacos deverão ser utilizados de OBSTIPAÇÃO
acordo com as características da doença, gravida-
de e resposta terapêutica. Gonçalo Cordeiro Ferreira
À terapêutica médica deve sempre associar-se,
apoio psicológico e, quando indicada, terapêutica
cirúrgica (em cerca de 60% dos casos na doença de
Crohn e em 25 % - 40% dos casos de colite ulcerosa Definições e importância do problema
em situações complicadas).
A obstipação pode ser definida por dois critérios:
Prognóstico 1) diminuição da frequência da defecação
considerando-se anómalo o caso com menos
A DII é um processo inflamatório crónico que não de três dejecções por semana; ou
pode ser curado por terapêutica médica ou 2) defecação acompanhada de sintomas suge-
cirúrgica, mas pode ser controlado, permitindo rindo dor ou desconforto, geralmente asso-
que a criança tenha uma boa qualidade de vida. ciada à passagem de fezes duras, mesmo
para uma frequência superior à considerada
BIBLIOGRAFIA inicialmente.
Beattie RM, Croft NM, Fell JM, et al. Inflammatory bowel A encoprese define-se pela expulsão de fezes
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vitamins at diagnosis in pediatric-onset inflammatory b) Obstipação funcional: situação em lactentes
bowell disease. Clinical Pediatrics(Phila) 2011; 50:488-492 e pré- escolares apresentando fezes duras
562 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

(cíbalos) na maioria das vezes, ou fezes O recto funciona como um compartimento de


formadas duas ou menos vezes por semana. armazenamento de fezes. A sua distensão pelo
Em crianças e adolescentes bolo fecal ultrapassando certo limite leva a uma
c) Obstipação funcional:em crianças com, sensação de preenchimento e a vontade de
pelo menos, 4 anos semanas de evacuação defecar. Em simultâneo (se houver integridade da
de fezes de grande volume e diâmetro, com inervação intrínseca) dá-se o reflexo recto anal
frequência inferior a duas vezes por inibidor (RRAI) que leva ao relaxamento do
semana (podendo acompanhar-se no esfíncter anal interno. A evacuação pode ser
intervalo de períodos de soiling para impedida nessa ocasião pela contracção volun-
maiores de 4 anos), ou postura de retenção, tária de esfíncter externo.
evitando a defecação pela contracção do O aumento da pressão intrabdominal pela
pavimento pélvico e dos glúteos. execução da manobra de Valsalva, o relaxamento
d) Incontinência fecal não retencional: situação reflexo do esfíncter anal interno, e o relaxamento
em crianças maiores de 4 anos com história de, voluntário do esfíncter anal externo ao abolir a
pelo menos, 8 semanas de defecação em local zona de alta pressão (resistência) do canal anal,
não apropriado, sem sinais de retenção fecal. permitem a defecação. Este fenómeno é ainda
As causas orgânicas de obstipação em idade facilitado pelo simultâneo relaxamento voluntário
pediátrica resultam essencialmente de perturba- do músculo puborrectal e pela contracção do levator
ções da inervação intrínseca do músculo liso ani, que rectificam o ângulo recto anal, anulando
intestinal (de que se destaca a doença de Hirschs- essa resistência suplementar à passagem das fezes.
prung), de fenómenos inflamatórios ou alérgicos Na disquézia infantil o lactente não consegue
da mucosa (doença celíaca, intolerância ou alergia coordenar o aumento da pressão intrabdominal
às proteínas do leite de vaca), ou de alterações com a relaxação pélvica (daí o esforço e o choro
endocrinológicas (hipotiroidismo), ou electrolíti- utilizado como manobra de Valsalva incompleta
cas (hipercalcémia). para evacuar fezes moles). Trata-se de uma
questão simplesmente maturativa.
Etiopatogénese Os fenómenos de retenção fecal surgem por
exacerbação do processo fisiológico ligado aos
Na obstipação funcional do adulto são descritos mecanismos de aquisição da continência fecal que
dois mecanismos: atonia ou hipomotilidade cólica, se iniciam pelos 18 meses, estando habitualmente
e aumento da resistência anal à defecação. presentes pelos 28 meses.
Na criança está implicado na maioria dos casos Neste período é normal a criança começar a
este segundo mecanismo. reter fezes através da contracção voluntária do
Para perceber as alterações da dinâmica da esfíncter anal externo e músculos pélvicos.
defecação importa analisar como evolui este A presença de períodos de maior endureci-
processo (simultaneamente maturativo e compor- mento fecal (por vezes ligados a episódios de
tamental) na criança. modificação do regime alimentar ou a desi-
A presença de uma zona de alta pressão em dratação) pode levar à constituição de fissuras
repouso constituída pela contracção tónica do es- anais, causando dor à defecação e esforço de
fíncter anal interno impede a incontinência fecal. retenção para a evitar. Esta retenção leva a um
O esfíncter anal externo, constituído por músculo endurecimento ainda maior das fezes, consti-
estriado sob controlo voluntário, representa tuindo-se um ciclo vicioso agravado pela
apenas 10-15% dessa pressão em repouso; mas na acumulação fecal na ampola rectal. Tal circuns-
criança que adquire o controlo da defecação, a sua tância leva a uma menor sensibilidade à distensão
contracção voluntária quando aumenta a pressão rectal, decisiva para iniciar a vontade de defecar.
intrabdominal e o relaxamento reflexo do esfíncter No limite desta situação constituem-se fecalo-
anal interno, permite manter a continência e a mas na ampola rectal, grande distensão desta e
possibilidade de evacuação em local socialmente mesmo do cólon a montante (megarrecto e me-
adequado. gacólon funcionais).
CAPÍTULO 113 Obstipação 563

A tentativa do treino precoce da continência mas de dor à defecação, sangue envolvendo as


fecal pode ser o estímulo desencadeante do fezes ou sujando o papel higiénico, traduzindo a
processo de retenção exagerada, com recusa da presença de fissuras; é muito típica a aversão da
criança em defecar no bacio, criando-se uma criança ao sentar-se no bacio para defecar,
situação de conflito com pais e educadores. chorando ou gritando quando sente vontade,
O aparecimento de encoprese (“soiling”) surge tentando reter as fezes através de manobras
na sequência desta retenção prolongada das fezes variadas (contracção dos músculos das ancas e
na ampola rectal. Tal retenção causa uma irritação glúteos, extensão das pernas, apoio da região anal
da mucosa com secreção que vai erodindo o encostando-se às paredes).
fecaloma, havendo, para elevados volumes de Num grupo de crianças pequenas encontra-se
distensão, relaxamento reflexo de esfíncter anal uma associação entre a presença de obstipação
interno e insensibilidade da criança a pequenas crónica e intolerância ou alergia às proteínas do leite de
perdas fecais. vaca, o que leva à presença de inflamação rectal,
eritema perineal e fissuras anais com retenção
Aspectos epidemiológicos fecal secundária. A modificação do regime
alimentar com exclusão dos produtos lácteos leva
Até aos 4 anos a prevalência da obstipação é igual a uma resolução da obstipação neste grupo de
nos dois sexos mas, a partir da idade escolar, o doentes.
sexo masculino é mais afectado, nomeadamente Na criança em idade escolar predominam as
no que respeita a queixas de encoprese numa queixas de dor abdominal ou de encoprese.
razão que pode atingir 6/1. Muitas vezes os pais não se apercebem de que a
É frequente encontrar-se na família do doente criança encoprética é obstipada e atrasam a sua
outros casos de obstipação, nomeadamente nos vinda à consulta; por vezes, o motivo desta é a
pais e irmãos. No entanto, este facto pode dever- existência de uma falsa diarreia.
se, para além de características genéticas, a Um sinal de retenção fecal importante numa
aspectos ambientais partilhados como factores criança encoprética é a existência ocasional de
alimentares. Dentro destes destaca-se a impor- defecação muitíssimo volumosa.
tância da ingestão de fibra na dieta. Há estudos A anorexia acompanha frequentemente as
que demonstram um suprimento reduzido de crianças com obstipação prolongada, melhorando
fibra no regime alimentar de crianças obstipadas com a aquisição da regularidade da defecação.
em relação a controlos; em tais casos também os Também se verifica a coexistência de encoprese
respectivos pais, igualmente obstipados, tinham com incontinência urinária diurna, enurese noctur-
um suprimento médio em fibras inferior ao dos na, ou com infecção urinária recorrente principal-
pais de crianças não obstipadas. Há, pois, uma mente no sexo feminino.
ligação entre factores genéticos e dietéticos nestes
doentes. Diagnóstico

Manifestações clínicas Na recolha da história clínica deve ser averiguado


se houve atraso, superior a 24 horas, da eliminação
A apresentação clínica varia com a idade. O de mecónio. Este achado, bem como uma distensão
lactente amamentado pode evidenciar longos pe- abdominal significativa no lactente, episódios de
ríodos sem evacuar, melhorando com a diver- enterocolite ou atraso ponderal, devem alertar para
sificação alimentar. Nos primeiros meses de vida a presença de patologia orgânica, nomeadamente
predominam as manifestações ligadas à disquézia doença de Hirschsprung.
infantil: lactentes a fazerem um enorme esforço e Na observação das crianças com obstipação
chorando muitas vezes para defecar, acabando deve ser avaliada cuidadosamente a presença de
por evacuar fezes moles espontaneamente ou massa fecal abdominal, havendo uma boa relação
após estimulação. entre a extensão dessa massa e a intensidade sin-
Na idade pré-escolar evidenciam-se os sinto- tomática da obstipação.
564 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

A observação da região anal deve ser Esvaziamento intestinal


cuidadosa para detectar anomalias posicionais Esta fase do tratamento tem por finalidade
(ânus anterior que pode condicionar a obstipação evacuar os fecalomas de modo a permitir
pela maior angulação rectoanal) e a presença de recuperar a sensibilidade defecatória à distensão
fissuras. O toque rectal avalia a tonicidade do rectal e diminuir as perdas fecais involuntárias.
esfíncter anal e a presença de fecalomas na O uso de enemas de fosfato hipertónico na dose
ampola rectal. Uma ampola vazia, na ausência de de 30 ml/5 Kg de peso ou 135 ml acima dos 20 Kg,
emissão recente de fezes, é sugestiva de doença de uma vez por dia durante um ou dois dias,
Hirschsprung. complementado com o uso de enemas salinos (até ao
Na primeira observação, numa criança que já máximo de 500 ml), a que se pode associar 10-20 ml
foi submetida a muitos enemas ou supositórios de óleo mineral (parafina líquida), é habitualmente
para evacuar, nem sempre é fácil efectuar-se o suficiente para libertar um fecaloma rectal.
toque rectal em condições adequadas. No entanto, em casos de grande retenção
Nesta circunstância deve efectuar-se uma estercoral é necessário complementar o uso destes
radiografia simples do abdómen em decúbito dorsal enemas com o de soluções de limpeza intestinal (à
para avaliar a extensão do fecaloma, e de pé para base de polietileno glicol e electrólitos) adminis-
avaliar a existência de distensão das ansas ou tradas em meio hospitalar, oralmente ou por
níveis hidroaéreos, o que sugere causa orgânica. sonda nasogástrica.
A manometria anorrectal não tem interesse nas Considera-se limpo o intestino quando há
formas simples de obstipação que respondem ao saída pelo ânus de líquido claro, ficando a ampola
tratamento inicial; no entanto, nas formas resis- rectal vazia, e se verifica presença de ar na bacia
tentes, nomeadamente quando da suspeita de na radiografia simples do abdómen.
uma forma ultracurta da doença de Hirschsprung,
é um exame fundamental e de primeira linha. Medidas dietéticas
Os achados manométricos mais frequentes na A dieta deve ser menos rica em alimentos adstrin-
obstipação funcional são a presença de RRAI para gentes (arroz, massas, leguminosos secos) e o
volumes altos de distensão, diminuição da sensi- consumo de água aumentado, para evitar a dureza
bilidade à distensão rectal traduzindo a presença excessiva das fezes. O suprimento diário em fibras
de uma mega-ampola e, por vezes, contracção deve ser incrementado, visto as mesmas pro-
paradoxal do esfíncter anal externo durante a moverem a evacuação por um mecanismo duplo: as
tentativa de defecação. Por outro lado, os achados fibras não solúveis (celulose e hemicelulose, etc.),
manométricos nas formas com ou sem encoprese aceleram o trânsito cólico por um efeito mecânico e
são sobreponíveis. amolecem as fezes por fixarem água, enquanto as
fibras solúveis, mais fermentáveis como as pectinas,
Tratamento aumentam o bolo fecal por incrementarem a massa
bacteriana das fezes. O uso de produtos natural-
Na situação de encoprese com retenção fecal é mente ricos em fibras deve ser encorajado: (legumes
necessário um prévio esvaziamento da matéria verdes na sopa ou saladas, fruta com casca, pão ou
fecal acumulada no recto e cólon. cereais integrais). Somente na impossibilidade de a
Nos raros casos de “soiling” fecal não reten- criança os aceitar, deverão ser adicionados
cional não é necessário (ou até é contraprodu- preparados de fibra purificada (farelo, por exemplo)
cente) usar terapêutica laxante; por isso, a inter- aos alimentos (sopas, iogurtes).
venção deverá ser centrada na reeducação do Nos lactentes em que a obstipação pode ser
comportamento relacionado com os hábitos da considerada secundária a intolerância às
defecação. proteínas do leite de vaca, há que substituir esses
O tratamento da obstipação sem encoprese alimentos por fórmulas com hidrolisado extenso
assenta essencialmente em quatro vertentes: ou de soja, seguindo os procedimentos habituais
esvaziamento intestinal, medidas dietéticas, medi- de exclusão, provocação e reintrodução dos
das farmacológicas e educação. produtos lácteos.
CAPÍTULO 113 Obstipação 565

Medidas farmacológicas individualmente com aumento ou redução das


O uso de laxantes tem por finalidade amolecer as doses, mas sempre por um período inicial nunca
fezes e aumentar a motilidade intestinal. O uso de inferior a 3 meses. Posteriormente, deve ser feito o
laxantes osmóticos contribui para aumentar a desmame lento e progressivo do(s) laxante(s),
hidratação das fezes. Dividem-se em 2 grupos: sempre com o objectivo de obter defecações sem
hidratos de carbono não absorvíveis como a esforço e ausência de perdas fecais. (Quadros 1 e 2).
lactulose ou o lactitol, fermentáveis pelas bactérias
do cólon; ou moléculas inertes como o polietileno Educação
glicol com ou sem electrólitos. Após o estabelecimento de um diagnóstico de
O uso de óleo mineral (parafina líquida) tem obstipação funcional deve ser explicado aos pais e
uma acção emoliente sobre as fezes e pode induzir doentes de acordo com a idade, que a situação
secreção hidro-electrolítica no cólon ao ser clínica não é grave mas necessita de um
convertido pela flora bacteriana em ácidos gordos acompanhamento cuidadoso, com o cumprimento
hidroxilados. Não deve ser administrado em estrito de medidas dietéticas e terapêuticas para
crianças com distúrbios da deglutição para evitar promover a evacuação intestinal. Também deverá
fenómenos aspirativos; se se utilizar, deve ser ser explicado que a encoprese é consequência da
dado fora das refeições para obviar a possível má obstipação, que a criança não é propositadamente
absorção de vitaminas lipossolúveis. preguiçosa ou desmazelada, e que a melhoria da
Aos agentes osmóticos pode ser necessário situação de base levará ao desaparecimento da-
adicionar fármacos que promovam a motilidade quela. Por outro lado, deve ser reforçada junto dos
do cólon, principalmente nas situações em que pais a necessidade de não se estabelecer um treino
uma grande distensão leva à hipomotilidade coercivo nas crianças que até aos 3 anos se
cólica. O sene tem sido dos agentes mais usados recusam a evacuar no bacio; pelo contrário, dever-
em idade pediátrica com bons resultados, deven- se-á deixar manter as fraldas. O treino da
do ser evitado por períodos muito prolongados. defecação deve ser estimulado na criança mais
As fissuras anais devem ser tratadas com anti- velha, aconselhando-a a frequentar regularmente
inflamatórios e cicatrizantes tópicos. a casa de banho, nomeadamente após as refeições.
O tratamento da obstipação deve ser ajustado A posição ideal da defecação, sentada nos sanitários

QUADRO 1 – Fármacos usados na obstipação funcional

Lactulose
1-3 ml/Kg/dia 2 doses diárias Obstipação ligeira
Lactitol
1-3 ml/Kg/dia 1 - 2 doses diárias Obstipação ligeira ou moderada
Leite de magnésia
1-3 ml/Kg/dia 1 - 2 doses diárias Obstipação ligeira Idade > 6 meses
Parafina líquida
1-3 ml/Kg/dia 2 doses diárias Obstipação moderada Idade > 12 meses
Sene
1 - 5 anos: 5ml/dose Máximo: 2 doses diárias Obstipação moderada Evitar uso prolongado
5 - 10 anos: 10ml/dose
Solução de lavagem intestinal
14-40 ml/Kg/hora até saída Em meio hospitalar Esvaziamento em obstipação
de líquido pelo ânus (oral ou por sonda nasogástrica) grave com encoprese
PEG* com ou sem electrólitos
0,26 - 0,84g/kg/dia 1 dose/dia em 100 ml de água Obstipação moderada ou grave Idade > 2 anos
* Poli – Etileno – Glicol
566 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Esquema de tratamento da obstipação funcional

Obstipação ligeira
Medidas dietéticas Lactulose ou Lactitol
Obstipação moderada
Medidas dietéticas Lactitol + Parafina líquida+ Sene Evitar uso prolongado de Sene
Obstipação grave
Medidas dietéticas PEG + Parafina líquida + Sene Evitar uso prolongado de Sene
Obstipação + encoprese
Limpeza intestinal: (enemas de fosfato e salinos) PEG + Parafina líquida + Sene Evitar uso prolongado de Sene
e/ou solução de lavagem intestinal

com os pés bem apoiados para aumentar a pressão occult constipation in children with lower urinary tract
intrabdominal, deve ser explicada a crianças e pais. symptoms. J Urol 2013; 189: 1519-1523
A presença de frequentes recaídas nestas NASPGHAN. Clinical practice guideline. Evaluation and
situações deve também ser abordada, pelo que o treatment of constipation in infants and children. JPGN
cumprimento do plano deve ser rigoroso e 2006; 43: e1- e13
prolongado, sem abandonos causados pela Roma E, Adamidis D, Nikolara R, et al. Diet and chronic
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CAPÍTULO 114 Doença de Hirschsprung 567

114
de diferenciação celular após a migração completa
devido a alterações da matriz extracelular onde
neuroblastos se fixam e se diferenciam; e mecanis-
mo imunogénico mediado pelo “complexo major
de histocompatibilidade”, responsável por for-
mação de anticorpos antineuroblastos.
DOENÇA DE HIRSCHSPRUNG A migração e diferenciação das células da
crista neural é regulada por uma variedade de
Rui Alves factores neuropáticos segregados pelas células
mesenquimatosas. A expressão destas moléculas,
por sua vez, é regulada por vários genes ou vias
genéticas (por ex. gene RET e via do receptor da
Definição endotelina tipo B). O padrão de hereditariedade é
variável, relacionando-se com o comprimento do
A doença de Hirschsprung (DH) ou megacólon intesino envolvido.
aganglionar congénito é caracterizada pela ausên- Assim, os factores genéticos têm uma impor-
cia de células ganglionares na porção mais distal tância fulcral na patogénese da doença de
do cólon e recto, característica anatomopatológica Hirschsprung, nomeadamente após a identificação
que se pode estender proximalmente de modo da variação genética responsável pela supressão da
variável. Tal afecção é uma causa frequente de expressão celular das células pluripotenciais da
obstrução intestinal no recém-nascido (RN) e na crista neural. A doença de Hirschsprung é, pois,
primeira infância. englobada no grupo das neurocristopatias, estando
A doença de Hirschsprung é classificada como intimamente associada a outras doenças ou síndro-
clássica (envolvimento recto-sigmóide: 75% dos mas que partilham a mesma natureza genética
casos); longa (envolvimento até ao cólon trans- como a síndroma de Waardenburg, a síndroma de
verso: 17% dos casos), e extralonga (envolvimento Von Recklinghausen, a síndroma de Smith-Lemli-
até à válvula íleocecal com possível compromisso Opitz, etc.. Aproximadamente 8% a 16% dos casos
do íleo terminal: 8% dos casos). A aganglionose de DH têm concomitantemente síndroma de Down.
intestinal total, a forma mais grave de doença, é O aspecto fisiopatólogico básico desta doença
extremamente rara. é a ausência de coordenação celular da actividade
A DH surge com uma incidência de cerca de motora das fibras colinérgicas pré-ganglionares, e
1/5000 nascimentos, sendo mais frequente no do efeito inibitório das fibras adrenérgicas pós-
sexo masculino (4/1). Tem uma incidência ganglionares. Assim, desenvolve-se hiperplasia
familiar entre 4% e 7%. nervosa colinérgica com aumento de produção
não inibida de acetilcolina pelos neurónios
Etiopatogénese colinérgicos, e aumento de sensibilidade do mús-
culo liso a esta substância; tal se explica pela
As células ganglionares entéricas são originárias ausência de receptores alfa-2 da mediação nora-
da crista neural. Estas células estão presentes no drenérgica, o que impede a contractilidade do
intestino anterior à 4ª semana de gestação e segmento agangliónico.
iniciam a sua migração na direcção crânio-caudal O aspecto patológico macroscópico caracterís-
entre a 5ª e a 12ª semana. tico deste problema é a dilatação e hipertrofia do
Após a 12ª semana de gestação é iniciada a mi- cólon proximal, com abrupta ou gradual transição
gração transmural das células para se formarem (cone de transição), para a porção distal, de
os plexos mientéricos e os plexos submucosos, dimensão normal ou diminuída.
processo que termina cerca da 16ª semana.
A causa da ausência de células neurais na Anatomia patológica
parede intestinal deriva de vários factores, como:
interrupção da migração crânio-caudal; falência O aspecto histológico é caracterizado por uma
568 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ausência de células ganglionares nos plexos


mientérico e subcutâneo, e a presença de troncos
nervosos não mielinizados hipertrofiados no espaço
normalmente ocupado pelas células ganglionares.

Manifestações clínicas e diagnóstico

Em cerca de noventa por cento dos doentes com


doença de Hirschsprung o diagnóstico é feito
durante o período neonatal.
O atraso na emissão de mecónio é o sinal clínico
neonatal cardinal desta doença. Cerca de 90% dos
recém-nascidos (RN) com DH eliminam mecónio
após as 24 h de vida. Este sinal clínico é seguido
por obstipação, vómitos e distensão abdominal
nos primeiros dias de vida. O exame rectal
apresenta, classicamente, uma ampola rectal vazia
de fezes com uma posterior descarga de fezes
líquidas e semi-líquidas de cheiro fétido. A
estimulação rectal, o uso de clisteres de limpeza,
de laxantes e de emolientes pode fazer regredir o
quadro clínico temporariamente. Nesses casos a
FIG. 1
doença reveste-se de uma forma crónica com
períodos de agudização e, manifesta-se clinica- Sinais radiológicos de oclusão intestinal no RN no contexto de
mente como um quadro de obstipação crónica DH: distensão abdominal e níveis hidroaéreos. (NIHDE)
com ou sem distensão abdominal apreciável.
Em cerca de um terço destes doentes surge cia para o diagnóstico da doença é o clister opaco.
como episódio inaugural um quadro de diarreia Este exame permite identificar a zona de espasmo
aguda profusa. Este sinal clínico é indicativo da rectosigmóide ou cólico e também a zona de
possibilidade de desenvolvimento de enterocolite transição (cone de transição) existente entre a zona
grave que permanece como a principal causa de de espasmo e a zona de dilatação intestinal. A
morte do RN com DH. Nos casos mais graves é retenção de contraste endoluminal por mais de
caracterizada por distensão súbita, vómito bilioso, vinte e quatro horas é muito sugestiva desta
febre, sinais de desidratação grave, diarreia patologia, podendo tornar evidente uma zona de
sanguinolenta, sépsis e falência multiorgânica. transição não imediatamente identificável no
O diagnóstico da DH depende da conjugação início da realização do exame.
da clínica com o estudo imagiológico, o estudo A manometria ano-rectal (MAR), baseia-se no
manométrico e, por fim, o estudo histológico. princípio da ausência de relaxamento do esfíncter
Os sinais radiológicos característicos em interno após a estimulação por aumento de pressão
radiologia convencional são a presença de dis- endoluminal pelo balão da sonda. Este fenómeno é
tensão gasosa de ansas, níveis hidroaéreos e característico do segmento aganglionar e, por isso,
ausência de conteúdo gasoso na região pélvica pode servir como exame de rastreio da doença.
(cut-off sign) (Figura 1). Nos casos de enterocolite, O exame histológico permite o diagnóstico
a distensão gasosa de ansas é muito volumosa, definitivo. A biópsia pode ser realizada por meio
existindo edema da parede, modelagem e de acesso laparoscópico (“mapeamento” cólico)
irregularidade mucosa identificável. O ou, mais simplesmente, por meio de biópsia rectal.
pneumoperitoneu pode estar presente por necrose A biópsia rectal pode ser bem sucedida utilizando
transmural e perfuração da parede de ansa. uma pinça de sucção, ou por secção cirúrgica. O
O exame radiológico considerado de excelên- estudo histológico permite, por análise imuno-
CAPÍTULO 114 Doença de Hirschsprung 569

histoquímica, identificar a existência, a natureza e Todas as complicações decorrentes do quadro


maturidade das células ganglionares, assim como de retenção fecal, estase fecal, proliferação bacte-
a presença de hipertrofia dos troncos nervosos. riana e má-absorção, podem ser ultrapassadas com
a resolução cirúrgica da doença.
Indicação operatória
Prognóstico
A DH tem sempre indicação operatória. O princípio
geral da terapêutica cirúrgica da DH é a ressecção Na ausência de complicações mecânicas e fun-
segmentar do porção recto-sigmóide-cólica cionais, e de episódio ou episódios de entero-
aganglionar e o abaixamento do cólon normal colite pós-operatória, o prognóstico final da DH é
gangliónico até à margem do ânus. Até à realização bom, com resultados de cerca de 90% de cura.
da cirurgia definitiva o RN é mantido num programa
de descompressão cólica por meio de clisteres de BIBLIOGRAFIA
limpeza denominado classicamente “nursing”. Bazo M, Bailez M. Health-related quality of life in children and
adolescents undergoing surgery for Hirschsprung´s disease
Complicações pós-operatórias and anorectal malformations. Arch Argent Pediatr 2013;
111: 37-44
As complicações pós-operatórios na DH são Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
decorrentes de dois aspectos fundamentais: por De Lorijn F, Reitsma JB, Voskuijl WP, et al. Diagnosis of
um lado, complicações associadas ao abaixamento Hirschsprung’s Disease: A prospective comparative
cólico e da anastomose colo-rectal: infecção local, accuracy study of common tests. J Pediatr 2005; 146: 787-
deiscência e isquémia do segmento cólico mobi- 792
lizado e estenose da anastomose colo-rectal; por Fujimoto T, Puri P. Persistent enterocolitis following diversion
outro, pode surgir uma complicação funcional – as fecal stream in HD: a study in mucosal defense mecanisms.
células ganglionares embora presentes, têm uma Ped Surg Int 1998; 3: 141-114
disposição anómala e displástica condicionando Fujimoto T, Reen D, Puri P Immunohistochemical characte-
obstrução funcional cólica distal. risation of abnormal innervation of colon in HD. J Ped Surg
A complicação mais grave é a enterocolite pós- 1987; 22: 246-249
operatória. É caracterizada por distensão abdominal Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
extrema, hipertermia, diarreia paradoxal profusa e Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
hemática, e por síndroma séptica. Esta situação 2011
obriga a descompressão intestinal de urgência por Langer JC. Laparoscopic and transanal pull-through for
sonda de enteroclise e instituição de antibio- Hirschprung disease. Semin Pediatr Surg 2012; 21:283-290
ticoterapia de largo espectro e de pausa alimentar. A Langer JC. Hirschprung disease. Curr Opin Pediatr 2013; 25:
enterocolite pós-operatória, que pode ocorrer em 368-374
cerca de 20% dos casos, constitui a primeira causa de Maerzheuser S, Bassir C, Rothe K. Hirschsprung disease in the
morte pós-operatória nestes doentes. older child.Diagnostic strategies. Clin Pediatr 2012;51:
1087-1090
Seguimento Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
O seguimento dos doentes com DH deve ter em Medical , 2011
conta, não só a evolução pós-operatória, como Teitelbaum DH, Coran AG. Reoperative surgery for
também o status funcional intestinal e o desenvol- hirschsprung’s disease. Sem Pediatr Surg 2003; 12: 124-131
vimento geral da criança. Walker WA, Gouleto, Kleinman RE, et al (eds). Pediatric
Numa situação de boa evolução cirúrgica, com Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004
um bom funcionamento do segmento cólico
mobilizado é provável a ausência de obstipação
grave pós-operatória e boa evolução estaturo-
ponderal associada.
570 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

115
do que no adulto dada a potencialidade do cres-
cimento intestinal no primeiro caso.

Factores etiológicos

Na maioria dos doentes pediátricos com SIC, a


SÍNDROMA DO INTESTINO situação decorre de problemas que têm a sua
génese no período perinatal. As causas mais
CURTO comuns são: enterocolite necrosante (ECN), atrésia
jejunal ou ileal, gastrosquise, doença de Hirschs-
Sara Silva e Raul Silva prung total e anomalias vasculares congénitas. O
Quadro 1 resume as causas principais.
Numa das Unidades de Pediatria Médica do
Hospital de Dona Estefânia, entre 2000 e 2004, em
Definição e importância do problema 10 casos de SIC, 3 foram devidas a atrésia intes-
tinal, 3 a volvo do intestino médio, 2 a gastros-
A síndroma do intestino curto (SIC) é uma quise com atrésia intestinal, 1 a ECN e 1 devida a
situação clínica caracterizada pela perda superior isquémia mesentérica. Todos os casos foram
a 50% do comprimento do intestino delgado, com submetidos a nutrição parentérica total (NPT).
ou sem uma parcela do intestino grosso, do que
resultam aceleração do trânsito intestinal, má Fisiopatologia e manifestações
absorção de macro e de micronutrientes, vi- clínicas
taminas, minerais e, consequentemente, má nu-
trição. A perda de uma quantidade significativa de
Os cirurgiões geralmente consideram uma intestino dá origem a um conjunto de alterações
pequena ressecção se o comprimento do intestino fisiológicas, cujas manifestações clínicas, terapêu-
delgado residual (abaixo do ângulo de Treitz, até à tica e prognóstico dependem de vários factores:
válvula íleo-cecal) medir 100-150 cm, uma grande comprimento e segmento do intestino ressecado;
ressecção se medir entre 40-100 cm, e ressecção presença ou ausência de válvula íleocecal; capaci-
maciça (intestino ultracurto) se menos de 40 cm. dade funcional e adaptativa do intestino residual,
Até aos anos 70, a grande maioria dos recém- e estado funcional dos órgãos que participam no
nascidos com SIC não sobrevivia à perda de mais processo de digestão e absorção.
de 15% da área do intestino delgado. Tem-se O comprimento do intestino delgado no
assistido, no entanto, a uma melhoria significativa
do prognóstico desta situação que se deve es- QUADRO 1 – Causas de Síndroma do Intestino
sencialmente ao desenvolvimento das técnicas de Curto
nutrição parentérica, a melhores conhecimentos
sobre estratégias de suporte nutricional e fisiologia Enterocolite necrosante (ECN)
intestinal e, mais recentemente, à possibilidade de Atrésia intestinal
realização de transplantação intestinal. Gastrosquise
Efectivamente, hoje em dia existe possibili- Volvo do intestino delgado
dade de sobrevivência com 15 cm de intestino Pseudo-obstrução intestinal
delgado com válvula íleo-cecal, e com 20 cm sem Aganglionose intestinal total
a referida válvula havendo suporte nutricional Malformações vasculares congénitas
parentérico e normalidade do funcionamento do Doença inflamatória intestinal *
restante intestino. De referir igualmente que a Tumores*
ressecção intestinal em idade pediátrica Enterite da radiação*
(sobretudo nos casos de prematuridade e, dum *Causas raras

modo geral até ao 1 ano) tem melhor prognóstico


CAPÍTULO 115 Síndroma do intestino curto 571

recém-nascido (RN) é 217 ± 24 cm às 27-35


semanas de idade gestacional, 304 ± 44 cm após as
35 semanas. No RN de termo é 250 a 300 cm,
crescendo mais 2 a 3 metros até à idade adulta. O Factor Intrínseco
intestino grosso mede 40 a 60 cm no RN de termo, Estômago HCI
Pepsina
crescendo até 1.5 a 2 metros na idade adulta.
A perda de um segmento intestinal pode
limitar a digestão ao diminuir a exposição dos

Du
Ferro

ode
nutrientes às enzimas hidrolíticas da mucosa Cálcio

no
intestinal, assim como às secreções pancreáticas e Magnésio
Folato
biliares. Nutrientes (Glucose)
Cada segmento intestinal tem diferentes Vitaminas hidrossolúveis
(Tiamina, vitamina C)
funções de absorção:

Jejuno
Secretina
– Duodeno: glucose, ferro, folato, cálcio, Colecistocinina
magnésio e vitaminas hidrossolúveis. Nutrientes (Aminoácidos)
– Jejuno: lípidos e aminoácidos. Nutrientes (Gorduras)

– Íleo: ácidos biliares, sais biliares conjugados, Enteroglucagina


vitamina B12, factor intrínseco, vitaminas

Ileo
Zinco
lipossolúveis, zinco, fósforo. Fósforo
Ácidos Biliares
Deste modo, o quadro de má-absorção Sais biliares conjugados
dependerá do segmento intestinal ressecado e da Vitamina B12 – Factor Intrínseco
sua extensão. Será mais importante quando a Vitaminas A, D, E, K
Colesterol
ressecção envolver o jejuno, uma vez que no
direitn
Cólo

H2O
indivíduo saudável quase toda a digestão e HCO3-
absorção se completam nos primeiros 100 a 150
o

K+
Na+
cm de intestino.
esquern

Oxalato
O íleo, para além das suas funções de absorção
Cólo

únicas – vitamina B12 e sais biliares – tem outras Secreção/Excreção


do

Absorção
funções, nomeadamente secreção de substâncias
hormonais, e maior capacidade de adaptação
designadamente para substituir o jejuno nas suas
FIG. 1
funções essenciais.
A válvula íleo-cecal tem duas funções Locais de absorção e secreção/excreção no tracto
principais: regulação do trânsito intestinal e gastrintestinal (Adaptado de Hwang ST et al).
prevenção do refluxo bacteriano do cólon para o
intestino delgado. A sua ausência diminui o ácidos gordos de cadeia curta que são produzidos
tempo do trânsito intestinal (com exacerbação das pela fermentação dos hidratos de carbono
perdas de líquidos e nutrientes) e aumenta o risco dependente das bactérias no cólon. (Figura 1)
de crescimento bacteriano no intestino delgado. A Após ressecção intestinal extensa, o intestino
colonização bacteriana do intestino delgado pode restante tem a capacidade de se adaptar ana-
provocar desconjugação dos ácidos biliares tómica e funcionalmente, de modo a aumentar as
alterando a formação de micelas, o que poderá suas funções de digestão e absorção. Estas alte-
agravar a esteatorreia. rações iniciam-se nas primeiras 24 a 48 horas após
A presença do cólon é importante para a a ressecção e podem prolongar-se para além de
absorção dos ácidos gordos de cadeia curta, água um ano. Vários factores parecem mediar estes
e electrólitos. Este segmento intestinal tem a efeitos; o mais importante parece ser a presença de
capacidade de aumentar até 5 vezes a absorção de nutrição entérica que leva a um aumento de
água e electrólitos; por outro lado, pode fornecer nutrientes não digeridos a nível distal, provo-
energia suplementar através da absorção de cando um aumento na libertação de hormonas
572 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

intestinais (péptido YY, substância P, CCK, glucagon- fases de nutrição parentérica /entérica e intro-
like peptide 2). As alterações de adaptação tradu- dução de alimentos sólidos.
zem-se essencialmente em: aumento do diâmetro,
espessura e comprimento intestinais, aumento da Fase 1: Nutrição parentérica (NP)
altura das vilosidades, da profundidade das A nutrição parentérica é administrada por cateter
criptas, e mais intensa proliferação e migração venoso central e deve ser constituída por uma
celulares para a extremidade das vilosidades. mistura equilibrada de glúcidos, proteínas,
Esta resposta adaptativa, que é mais acentuada lípidos, electrólitos, vitaminas, minerais e oligoe-
nas crianças, verifica-se sobretudo no íleo em lementos de modo a promover o crescimento
relação ao jejuno. adequado. Calculadas as necessidades de fluidos
Nos doentes com SIC, a colestase e disfunção em função do peso e idade, as necessidades caló-
hepática são complicações frequentes que alteram ricas são aumentadas progressivamente, até se
a capacidade de absorção e utilização de nu- atingir 100 Kcal/Kg/dia.
trientes. A colestase nestas situações é geralmente A glicose deve ser iniciada ao ritmo de 5-7
multifactorial, sendo a sépsis, atrofia da mucosa e mg/Kg/min, com incrementos de 1-3 mg/Kg/min
o hipercrescimento bacteriano factores predis- até se atingir 12-14 mg/Kg/min, evitando hipergli-
ponentes importantes. cémia e glicosúria.
Os aminoácidos são iniciados na dose de 1
Tratamento g/Kg/dia, e aumentados até 3 mg/Kg/dia, em 2-
3 dias.
Actualmente, mais de 90% dos doentes com SIC Os lípidos iniciam-se na dose de 1 g/Kg/dia
sobrevivem, recorrendo à NPT. O tratamento é com incrementos de 1 g/Kg/dia até 3 g/Kg/dia,
complexo e requer uma abordagem multidisciplinar em crianças até ao 1 ano de idade, e até 2
em centro especializado. g/Kg/dia em crianças acima de 1 ano. Não devem
Diz respeito essencialmente ao suporte nu- exceder 30-40% do valor calórico total, de modo a
tricional, cujo objectivo é manter o crescimento da prevenir a hiperlipidémia.
criança dentro dos parâmetros normais, promover Os sais minerais e as vitaminas devem ser
a adaptação intestinal e evitar as complicações fornecidos de acordo com as necessidade diárias e
resultantes da ressecção intestinal e da referida grupo etário.
NPT (soluções preparadas pelo serviço far- Na fase inicial (primeiras 3 semanas) deve ter-se
macêutico em condições de assépsia em câmara em especial atenção os electrólitos, em particular o
de fluxo laminar). sódio, sendo por vezes necessário fornecer soluções
A primeira etapa inicia-se com a intervenção com sódio (80-100 mEq / litro da solução)
cirúrgica cujo objectivo é salvar a vida e preservar dependendo das perdas pelo estoma ou do grau de
a maior extensão possível de intestino viável. diarreia. Também nesta fase, por haver hiper-
Geralmente dura 1 a 3 semanas após ressecção gastrinémia, inicia-se terapêutica com ranitidina
cirúrgica, sendo caracterizada pelo início da NPT, (0.75-1.5 mg/Kg/dia, por via endovenosa de 6/6h
com especial atenção ao equilíbrio hidro-electro- ou 8/8h). Esta fase prolonga-se por cerca de 1 ano,
lítico e à hipergastrinémia. pelo que se deve manter a terapêutica. Pode
Na segunda fase procede-se ao início da também ser administrado o omeprazol.
nutrição entérica contínua, com redução progres- Durante a fase de nutrição parentérica, após
siva da NPT. estabilização clínica, é importante a vigilância
A terceira fase corresponde à adaptação à laboratorial (Quadro 2).
nutrição entérica e ao início da nutrição oral.
A transição de uma fase para outra é variável Fase 2: Nutrição entérica (NE)
de doente para doente, dependendo da evolução A segunda da fase caracteriza-se pelo início da
clínica e da eficiência e qualidade do crescimento. nutrição entérica, fundamental para estimular a
Pode durar meses ou anos. adaptação intestinal uma vez garantida a estabi-
Sintetizam-se, a seguir, os procedimentos nas lidade hidroelectrolítica. É fornecida por sonda
CAPÍTULO 115 Síndroma do intestino curto 573

QUADRO 2 – Esquema de monitorização deve ser regulada pelo número de dejecções/dia,


de doentes submetidos a NTP pelas perdas pelos estomas, pelo pH, identifi-
cação de substâncias redutoras fecais, pelo resí-
Parâmetros Diário Semanal* Periódico* duo gástrico e pelos sinais de desidratação
Peso x (Quadro 3).
Balanço hídrico x
Sinais vitais x Fase 3: Introdução de alimentos sólidos
Glicose/acetona urinários x Por volta dos 4-6 meses de idade, se o crescimento se
Cateter (local e função) x tiver processado com regularidade, podem ser
Exames laboratorais (sangue) introduzidos os alimentos sólidos. Começa-se com a
Sódio, potássio, cloro x carne, porque é bem tolerada; os alimentos ricos em
Bicarbonato x hidratos de carbono, como os cereais, vegetais e
Glicose x frutas devem ser evitados uma vez que causam
Ureia e creatinina x sobrecarga osmótica no intestino delgado, aumen-
Triglicéridos x tando as perdas, sobretudo nos doentes com ressec-
Cálcio, fósforo e mágnésio x
Proteínas totais x
QUADRO 3 – Esquema de progressão da
Albumina e pré-albumina x nutrição entérica
ALT x
Fosfatase alcalina x A. Dejecções
Bilirrubina (total e directa) x 1. Se < 10 g/Kg/dia ou < 10 dejecções/dia, aumentar
Selénio x ritmo 10-20 ml/Kg/d
Cobre x 2. Se 10-20 g/Kg/dia ou 10-12 dejecções/dia, não alterar
Zinco x 3. Se > 20 g/Kg/dia ou > 12 dejecções/dia, reduzir ou
Ferro x suspender alimentação*
* Eventualmente com maior frequência de acordo com a evolução

B. Perdas pelos estomas


nasogástrica em débito contínuo devendo ser 1. Se < 2 g/Kg/h, aumentar ritmo 10-20 ml/Kg/d
iniciada logo que ultrapassado o íleo pós- 2. Se 2-3 g/Kg/h, não alterar
operatório. Habitualmente são utilizadas fórmulas 3. Se >3 g/Kg/h, reduzir ou suspender NE*
semi-elementares ou elementares, com o volume
inicial de 10-20 ml/Kg/dia e concentração de 0.20 C. Substâncias redutoras nas fezes
Kcal/ml, que se aumenta (conforme a tolerância) 1. Se < 1%, aumentar ritmo de acordo com débito das
até 0.67 Kcal/ml, em crianças até um ano, e até 1 dejecções ou dos estomas
Kcal/ml acima dessa idade. Quando atingida essa 2. Se = 1%, não alterar
concentração, procede-se ao incremento do volume 3. Se > 1%, reduzir ou suspender NE*
(10-20 ml/Kg/dia, com intervalos de 1-3 dias) até
atingir 130-200 ml/Kg/dia com 100-140 D. Sinais de desidratação
Kcal/Kg/dia, com diminuição isocalórica simul- 1. Se ausentes, aumentar NE de acordo com débito das
tânea do suprimento através da NPT. Quando 20% dejecções ou estomas
do valor calórico for fornecido por via entérica, a 2. Se presentes, reduzir ou suspender NE*, e
providenciar reidratação
NP contínua pode passar a cíclica, sendo reduzida
progressivamente até 12 horas/dia.
E. Aspirado gástrico (2x/dia)
Cerca do 5º dia após o início da nutrição
1. Se < 4x o volume da perfusão/hora, aumentar NE
entérica contínua, devem ser fornecidos 3-4 bi-
2. Se > 4x o volume da perfusão/hora, reduzir ou
berões/dia, com volume correspondente ao supri-
suspender NE*
mento em 1 hora da nutrição entérica contínua, a
qual é suspensa nesses períodos. *suspender NE durante 8 horas e retomá-la com 3/4 do ritmo anterior
Adaptado de Walker WA, et al, 2004.
A progressão deste esquema de alimentação
574 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 4 – Monitorização laboratorial (vitaminas e oligoelementos) nos doentes com SIC, após
suspensão da NPT

Parâmetros Frequência
Vitamina B12 e folato 3/3 meses, nos primeros 6 meses; depois, de 6/6 meses
Zinco, crómio, cobre, magnésio, selénio, manganês 6/6 meses
Vitaminas A, E, D 3 meses após suspensão da NPT; depois de 6/6 meses

ção ileal. Geralmente, após 2 anos, fase em que os locação bacteriana. Define-se pela presença no
doentes já toleram fórmulas complexas, estes intestino delgado de bactérias do cólon em
alimentos podem ser fornecidos em maior número igual ou superior a 105/ml. Clinicamente
quantidade. Nos doentes sem íleo, mas com cólon manifesta-se por anorexia, vómitos, distensão
intacto, devem ser evitados alimentos ricos em abdominal, hematoquesia, dificuldade em tolerar
oxalatos, tais como chá, colas, chocolate, vegetais de a NE e perda de peso. Por vezes pode ocorrer um
folha verde, aipo, morangos, para prevenir o quadro neurológico caracterizado por alteração
aparecimento de cálculos renais de oxalato de cálcio. do estado de consciência (incluindo coma),
À medida que a NE vai substituindo a NP, hiperventilação, acidose metabólica com hiato
deve ter-se particular atenção aos défices de aniónico elevado, resultante da acumulação de
vitaminas lipossolúveis – A, D, E e K – for- ácido D-láctico, (substância não metabolizável na
necendo-as sob forma hidrossolúvel: ADEK® espécie humana), resultante da fermentação
1ml/dia dos 0-1 ano, 2ml/dia dos 1-3 anos, 3-4 bacteriana dos hidratos de carbono da alimen-
ml/dia após os 4 anos. Deve também proceder-se tação. O diagnóstico é sugerido pela determinação
aos doseamentos séricos dos oligoelementos e da sérica do D-lactato, e não do lactato total.
vitamina B12, tendo em atenção as manifestações Deve suspeitar-se de proliferação bacteriana no
clínicas dos respectivos défices para tratamento intestino delgado em doentes sem válvula íleocecal, e
correcto e atempado (Quadros 4 e 5). ou com dismotilidade, ou com segmentos intestinais
Tratamento das complicações mais comuns dilatados. O diagnóstico é difícil, podendo ser confir-
1. Proliferação bacteriana no intestino delgado mado por cultura de líquido duodenal, coprocultura
Trata-se duma complicação frequente que e pelo teste do hidrogénio expirado.
provoca lesão da mucosa, má-absorção e trans- Dos vários esquemas terapêuticos pode utilizar-

QUADRO 5 – Clínica e terapêutica das deficiências em micronutrientes

Nutriente Sinais/sintomas Doses


Vitamina B12 Astenia, anemia megaloblástica 0,3-2 mcg/dia
Zinco Alopécia, lesões eczematosas, 0.5-2mg/Kg/dia, oral (zinco – elemento)
diarreia, anorexia 300 mcg/Kg/dia, via endovenosa (ev) (zinco-elemento)
Ferro Anemia 1-2 mg/Kg/dia, oral (ferro – elemento)
Cálcio Depressão, espasmos musculares, Dose inicial: Gluconato de cálcio a 10% (9,4 mg de Ca
arritmia elemento/ml ou 102 mg de gluconato de Ca/ml):
200 mg/kg de gluconato (2 ml/kg) em 10 minutos via endovenosa
Dose de manutenção: 700-800 mg de gluconato de Ca/Kg/dia
Magnésio Letargia, tetania Dose inicial: MgSO4 a 50% (49,3 mg de Mg elemento/ml ou
500 mg de MgSO4/ml): 5-10 mg/Kg de Mg elemento ou 50-
100 mg/Kg de MgSO4 via intra-muscular ou endovenosa em
60 minutos
Dose de manutenção: 0,4-0,8 ml/Kg/dia (4 doses, via oral)
CAPÍTULO 115 Síndroma do intestino curto 575

se por via oral: metronidazol (15 mg/Kg/dia, até prova em contrário. Deve proceder-se a culturas
8/8h) isolado ou associado ao cotrimoxazol (40-50 de sangue colhido de dois locais simultaneamente
mg/Kg/dia, 12/12h); ou gentamicina (5 mg/Kg/ (cateter central e veia periférica) e iniciar
dia), durante 5 dias; deve, entretanto, reduzir-se a antibioticoterapia de largo espectro, mantendo-a até
NE e suspender-se os antiácidos. conhecimento do resultado das hemoculturas. Se a
Esta situação pode ser prevenida, nos doentes infecção for fúngica está indicada anfotericina B
de risco, administrando nos primeiros 5 dias de lipossómica, removendo-se o cateter. Nas infecções
cada mês um dos antibióticos acima referidos, bacterianas não há, em princípio, necessidade de
alternando-os para evitar resistências bacterianas. remover o cateter, a não ser em situações de
Em casos de dilatação intestinal acentuada pode recorrência de sépsis, choque séptico ou persistência
ser necessário proceder a intervenção cirúrgica – de hemocultura positiva.
ressecção, modelagem ou alongamento intestinal
– para resolução desta complicação. Perspectivas terapêuticas
Tem-se demonstrado que os probióticos têm
efeito na redução da necessidade de antibióticos e 1. Factores tróficos: o uso de factores tróficos,
no controlo de sintomas relacionados com a nomeadamente glutamina combinada com hor-
proliferação bacteriana intestinal. mona de crescimento, associados à NE, parece ter
2. Colestase relacionada com NPT efeitos positivos na adaptação intestinal. Em fase
É uma situação frequente nos doentes com SIC de investigação, a sua utilização é ainda contro-
e, juntamente com a sépsis, uma das principais versa, parecendo, no entanto, ser promissora
causas de morte. Admite-se que a causa é multi- quanto ao prognóstico da situação em análise.
factorial, sendo determinantes a ausência de NE, a 2. Transplantação intestinal: a transplantação
presença de endotoxinas bacterianas e a intestinal tornou-se uma opção terapêutica para os
hepatotoxicidade directa associada aos compo- doentes com insuficiência intestinal permanente em
nentes da NPT. Manifesta-se por icterícia e que o crescimento fica na dependência da NPT. A
hepatomegália, associadas a elevação das tran- decisão de indicar o transplante deve ser extre-
saminases, fosfatase alcalina e bilirrubina con- mamente bem ponderada, após esgotar todas as
jugada. A melhor actuação consiste na introdução opções terapêuticas, nomeadamente a NPT, o uso de
progressiva de NE, se possível; em geral a coles- factores tróficos, e as terapêuticas cirúrgicas alterna-
tase resolve-se com a suspensão da NPT. Deve tivas, devido aos riscos e à qualidade de vida
prevenir-se a proliferação bacteriana intestinal e a associada ao transplante intestinal. A Associação
sépsis, garantir uma mistura adequada de glicose, Americana de Transplantação considera como
proteínas, lípidos e oligoelementos na NPT e indicações para transplantação intestinal na criança:
realizar esta última de modo cíclico. Como doença hepática irreversível associada à NPT
terapêutica dirigida utiliza-se o ácido ursodesoxi- (hiperbilirrubinémia com bilirrubina conjugada
cólico (10-40 mg/Kg/dia, 12/12h, por via oral). superior a 3mg/dl persistindo para além de 3-4
3. Sépsis meses acompanhada de sinais de hipertensão portal
É uma complicação comum que põe em risco a tais como esplenomegália, trombocitopénia ou
vida dos doentes com SIC. São considerados factores circulação venosa superficial colateral marcada),
etiológicos importantes a contaminação externa dos sépsis recorrente e falta de acessos venosos centrais.
cateteres e a migração bacteriana intestinal. Os Na situação de doença hepática irreversível, poderá
agentes etiológicos são geralmente Staphylococcus estar indicada a transplantação hepática e intestinal
aureus e enterobactérias. Por vezes são isolados combinada.
fungos como Candida albicans, que devem ser sempre
considerados como hipótese etiológica em doentes Prognóstico
que terminaram recentemente antibioticoterapia.
Qualquer doente com SIC, com cateter central, em O prognóstico após ressecção intestinal depende
que se inicie febre, letargia ou outros sinais de da respectiva extensão, da função e capacidade
infecção, deve ser considerado como tendo sépsis, adaptativa do intestino residual, das complica-
576 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ções, nomeadamente da doença hepática associa- tinal failure. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2004; 38: 250-269
da a NPT, da proliferação bacteriana intestinal, e Hwang ST, Shulman RJ, Update on management and treat-
do número de episódios de sépsis. ment of short gut. Clin Perinatol 2002; 29: 181-194
Considera-se de bom prognóstico a situação Javid PJ, Sanchez SE, Horslen SP, et al. Intestinal lengthening
em que se verifica crescimento adequado, não and nutritional outcomes in children with short bowel syn-
dependente da NPT. Em geral, o melhor prognós- drome. Am J Surg 2013; 205: 576-580
tico verifica-se em casos de SIC com 40-80 cm de Kauffman SS, Atkinson JB, Bianchi A, et al. Indications for
intestino delgado residual e com válvula íleocecal pediatric intestinal transplantation: A position paper of the
intacta; nestes, a independência da NPT durante 1 American Society of Transplantation. Pediatr Transplant
ano é atingida em 80% dos casos; os doentes com 2001; 5: 80-87
menos de 40 cm de intestino residual e sem Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger, 2008
válvula íleo-cecal permanecem dependentes da Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
NPT para além dos 8 anos. No entanto, há casos AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw -Hill
descritos de SIC com menos de 15 cm de intestino Medical, 2011
residual que se tornaram independentes da NPT. Sanchez SE, Javid PJ, Healey PJ, et al. Ultrashort bowel syn-
O crescimento e o desenvolvimento dos doentes drome in children. JPGN 2013; 56: 36-39
com SIC são adequados na generalidade, embora na Sigalet DL. Short bowel syndrome in infants and children: An
sua grande maioria se verifique menor estatura overview. Semin Pediatr Surg 2001; 10: 49-55
comparativamente à população geral; verifica-se Vanderhoof JA, Young RJ. Enteral nutrition in short bowel syn-
ainda: maior número de dejecções diárias (com vál- drome, Semin Pediatr Surg 2001; 10: 65-71
vula íleo-cecal, cerca de 2 dejecções/dia; sem vávu- Vanderhoof JA, Young RJ, Thompson JS. New and emerging
la, 2-10 dejecções/dia). São comuns a dificuldade de therapies for short bowel syndrome in children. Paediatr
digestão e absorção de hidratos de carbono, bem Drugs 2003; 5: 525-531
como a intolerância ao leite e a alimentos condi- Walker WA, Goulet O, Kleinman RE, et al (eds). Pediatric
mentados. Existe risco aumentado de colelitíase, Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004
sobretudo nos casos submetidos a ressecção ileal
importante. A hiperoxalúria e os cálculos renais são
mais frequentes nos adultos.
Em suma, os importantes avanços conseguidos
com a terapêutica nutricional, a terapêutica médico-
cirúrgica e o transplante intestinal contribuiram
decisivamente para melhorar as perspectivas dos
doentes com síndroma do intestino curto.

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CAPÍTULO 116 Hepatite vírica 577

116
Os agentes víricos hepatotrópicos causadores
de hepatite aguda são os designados por vírus A
(VHA), B (VHB), C (VHC), D (VHD), E (VHE); de
referir que apenas os vírus B,C e D causam he-
patite crónica. (Quadro 1)
São também agentes de hepatite aguda, no
HEPATITE VÍRICA contexto de compromisso multiorgânico, os vírus
de Epstein-Barr, citomegalovírus, herpes simplex
Gonçalo Cordeiro Ferreira 1, adenovírus, enterovírus, arbovírus e paramy-
xovírus.

1. Hepatite A
Formas de apresentação
e agentes etiológicos Epidemiologia
São considerados 3 padrões epidemiológicos de
Na criança as hepatites víricas apresentam-se sob acordo com as condições socioeconómicas e sani-
duas formas: tárias de regiões e países:
Endemicidade elevada: países em desenvolvi-
Hepatites agudas em que, após o período de mento (Ásia, África, América do Sul e Central). A
maior ou menor grau de lesão hepática, há uma exposição ao VHA produz-se na infância, estando
recuperação funcional completa (excepto quando a população adulta imune. A infecção é, na maioria
evoluem para hepatite fulminante, situação que dos casos, assintomática e causada por contacto
acarreta uma alta morbilidade); interpessoal. Raramente surgem epidemias dado o
Hepatites crónicas a que corresponde processo elevado grau de protecção da população que
de inflamação hepática que persiste após a atinge 90% das crianças abaixo dos 5 anos em áreas
infecção inicial e se mantém por um período hiperendémicas, ou 90% aos 10 anos noutras;
superior a 6 meses. Endemicidade intermédia: observa-se nos países

QUADRO 1 – Vírus Hepatotrópicos: características

Nome Tipo Transmissão Período de incubação Imunização activa Imunização passiva


VHA RNA Fecal-oral, 28 dias Vacina Imunoglobulina
raramente (15-50 dias) “standard”
transfusional
VHB DNA Sexual, 40-160 dias Vacina Imunoglobulina
parentérica, específica
intrafamiliar,
vertical
VHC RNA Parentérica, 20-60 dias ––– –––
sexual,
(menos frequente)
vertical
VHD RNA Sexual , 40-160 dias Utilizada a vacina Imunoglobulina
parentérica da Hepatite B específica anti VHB
VHE RNA Fecal-oral 30-40 dias ––– –––
VHG RNA Vertical, Raramente doença ––– –––
parentérica hepática; muitas vezes
coinfecção
578 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

com melhoria das condições sanitárias nos últmos Ocasionalmente podem surgir formas colestá-
anos (Europa mediterrânica e de Leste). Nestes ticas em que predominam sintomas como acolia e
casos a exposição produz-se na adolescência ou prurido, ou hepatite de evolução a dois tempos
no adulto jovem, podendo surgir surtos em que, após melhoria clínica e laboratorial, surge
epidémicos relacionados com transmissão pessoal novamente agravamento, mas de menor duração.
ou águas contaminadas; 90 % dos adultos têm Cerca de 1 em cada mil casos de hepatite por
marcadores de seroconversão; VHA na criança pode evoluir para um quadro de
Endemicidade baixa: nos países muito desenvol- insuficiência hepatocelular aguda – hepatite
vidos (Europa Ocidental ou do Norte, Japão, fulminante – com alta mortalidade e necessidade
América do Norte) em que há uma baixa taxa de frequente de transplante hepático. São sinais
seroconversão mesmo nos adultos, havendo indicativos desta evolução a manutenção e
susceptibilidade a surtos epidémicos por águas ou agravamento dos sintomas gerais; e, no período
alimentos contaminados, ou por viagens a países ictérico, a intensificação da icterícia, o apareci-
menos desenvolvidos. mento de alterações comportamentais (irritabili-
Portugal passou, nas últimas décadas, de um dade, sonolência) sugestivas de encefalopatia, e
padrão de endemicidade alta para um de de alterações clínicas da coagulação (discrasia
endemicidade intermédia, e mesmo, nalguns hemorrágica).
grupos socioeconómicos (estudo em estudantes
com idade média de 20 anos), de endemicidade Diagnóstico
baixa (Quadro 2) O diagnóstico de toda e qualquer hepatite aguda
faz-se se se verificar elevação das enzimas de
Manifestações clínicas citólise hepática : ALT e AST. Os respectivos
Em crianças com idade inferior a 6 anos verifica-se valores são habitualmente 10 vezes superiores aos
cerca de 70% formas anictéricas (assintomáticas valores normais, mas podem ser 100 vezes
ou paucissintomáticas com clínica semelhante a superiores (geralmente entre a terceira e sexta
gastrenterite aguda). semana de doença), sem que haja alguma relação
Nos adolescentes e adultos em 70% dos casos com o prognóstico final. A sua normalização
surgem formas sintomáticas. Estas caracterizam- costuma indicar o final da doença (pela oitava
se por dois períodos: pré-ictérico com sintomas semana de doença); contudo a sua queda abrupta
gerais tais como mal-estar, fadiga, anorexia, na presença de icterícia agravada pode ser
náuseas e vómitos, o qual corresponde à maior sugestiva de evolução para hepatite fulminante.
excreção do vírus nas fezes e, por isso, à máxima A bilirrubina, usualmente a directa, (mas por
contagiosidade. Subsequentemente surge o vezes a directa e a indirecta) encontra-se modera-
período ictérico com colúria em apenas 5 % das damente aumentada na fase ictérica da doença bem
crianças e em 30% de adolescentes e adultos. Há, como as enzimas de colestase (gama - glutamil –
então, melhoria franca da sintomatologia geral e transpeptidase ou GGT e fosfatase alcalina); estas
redução da excreção fecal do vírus (1-2 semanas), últimas podem, no entanto, estar bastante elevadas
seguindo-se um período de convalescença com nas formas colestáticas da infecção.
melhoria da icterícia e diminuição das alterações A síntese proteica (albumina e factores da coa-
das enzimas hepáticas. gulação) não está geralmente afectada, podendo, no

QUADRO 2 – Taxa de IgG anti VHA na população portuguesa

Idade (anos) 1981 1992 1996


Lecour e colaboradores Marinho e colaboradores Lecour e colaboradores
1-4 23,9%
10-14 76,4% 29,7%
20-29 96,5% 35,3% 76,1%
CAPÍTULO 116 Hepatite vírica 579

entanto, haver um ligeiro aumento do tempo de 2. Hepatite B


protrombina. O metabolismo dos hidratos de car-
bono também não está alterado (normoglicémia). Epidemiologia
O diagnóstico etiológico faz-se pela demons- O VHB pertence à família dos Hepadnavirus (vírus
tração da presença de anticorpos anti VHA da com tropismo hepático). A infecção por este vírus tem
classe IgM. Estes surgem entre 25 a 30 dias após o enorme relevância a nível mundial, estimando-se que
contacto com o vírus e persistem durante cerca de existam 350 milhões de infectados em todo o mundo.
2 a 3 meses. Os anticorpos de classe IgG surgem Consideram-se três padrões epidemiológicos:
após 40 dias e persistem indefinidamente. – Áreas geográficas de alta endemicidade (pre-
valência de portadores do VHB superior a
Tratamento 8%) na China, Sudeste Asiático, África negra,
O tratamento é de suporte, incluindo hidratação e bacia do Amazonas e Alasca;
nutrição adequadas, nomeadamente com supri- – Áreas de endemicidade intermédia (2-7% de
mento de hidratos de carbono de absorção rápida portadores) na América do Sul, bacia do Medi-
(açúcares). Não há necessidade de repouso terrâneo, Europa de Leste e Próximo Oriente;
forçado ou de dietas restritivas. – Áreas de baixa endemicidade (prevalência de
portadores inferior a 2%) na Europa Ociden-
Prevenção tal, América do Norte e Austrália.
Para além do cumprimento estrito de medidas Globalmente Portugal é considerado um país
relacionadas com higiene individual e colectiva, e de endemicidade baixa, mas nos grandes centros
com saneamento ambiental, é realizada através de urbanos a prevalência corresponde a endemicida-
imunoterapia passiva e da vacina: de intermédia.
– Imunoterapia passiva: para contactos com A transmissão vírica na idade pediátrica pode
menos de 40 anos (a partir dessa idade já existem ser: perinatal(vertical através de mãe infectada);
em geral anticorpos) de preferência antes de 2 intrafamiliar (horizontal), a de maior significado
semanas após a exposição; administra-se imuno- no nosso país; ou na adolescência (parenteral
globulina “standard” (polivalente) por via intra- relacionada com a toxicodependência ou sexual).
muscular: 0,02 ml/Kg em dose única (máximo: 3 ml A infecção pode originar um quadro de
em lactentes e 5 ml em crianças maiores). hepatite aguda ou crónica (com alteração das
– Vacina: é produzida a partir de vírus provas hepáticas) ou de “portador assintomático”
inactivados sendo muito eficaz. Induz imunidade (sem alteração das provas hepáticas e com uma
prolongada e seroconversão rápida (94,6% após a actividade necroinflamatória hepática mínima).
1ª toma, 100% após a segunda que deve ser
administrada 6 meses depois da primeira). Em Manifestações clínicas
Portugal encontra-se comercializada a vacina Descrevem-se essencialmente duas formas clínicas:
Havrix®, estando a forma Havrix 720 (Junior) Hepatite aguda: o quadro clínico da hepatite B
indicada para menores de 15 anos de idade. aguda é semelhante ao da hepatite A sendo, no
A Organização Mundial da Saúde (OMS) entanto, mais frequente o aparecimento de sintomas
recomenda a vacinação em larga escala nas crianças extra-hepáticos: artralgias, renais (glomerulopatias),
que habitam países de endemicidade intermédia. A cutâneos (acrodermatite papular constituindo a
Associação Espanhola de Pediatria (AEP) síndroma de Gianotti-Crosti) ou síndroma tipo
recomenda a vacinação a todas as crianças de mais mononucleose. Por outro lado, o risco de evolução
de um ano que frequentem creches ou jardim- para hepatite fulminante é mais elevado (1%).
escolas. As recomendações devem incluir, na idade Hepatite crónica: é, na grande maioria dos
pediátrica, crianças que viajem para países de casos, clinicamente silenciosa, sendo revelada
elevada endemicidade ou portadoras de doença quando se realizam rastreios analíticos em crian-
hepática crónica ou de patologia hematológica que ças familiares de doentes ou de portadores do
necessitem de administração repetida de sangue ou VHB, institucionalizadas ou provenientes de
derivados (Capítulo 40 e Glossário geral). países endémicos.
580 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Diagnóstico sem replicação vírica a que corresponde a situação


Para o diagnóstico laboratorial da hepatite B de portador assintomático.
(Quadro 3) são utilizados os seguintes marca-
dores: História natural da infecção por VHB
Ag = (antigénio) A infecção por vírus da hepatite B (VHB) adquirida
Ac = (anticorpo) no período perinatal (transmissão vertical) evolui
Ag HBs: Marcador de infecção actual. para a cronicidade em mais de 90% das crianças. A
Ag HBe: Marcador de replicação vírica elevada infecção adquirida nos primeiros 5 anos de vida,
e de alta contagiosidade. habitualmente por transmissão intrafamiliar
Ac HBc: Marcador de infecção passada ou (horizontal), evolui para a cronicidade em 20-30%
actual (interesse em estudos epidemiológicos) dos casos. As crianças infectadas no período
Ac HBc de classe Ig M: Marcador de infecção perinatal apresentam um padrão de “tolerância
recente. imune” ao VHB, com replicação vírica activa,
Ac HBe: Marcador do fim da replicação vírica presença de Ag HBe, DNA VHB muito elevado no
activa. soro e transaminases normais. Ulteriormente
Ac HBs: Marcador da seroconversão natural muitas delas , tal como as que foram infectadas
ou de resposta vacinal. mais tardiamente, irão apresentar um padrão
DNA VHB: Marcador da replicação vírica e diferente com elevação das transaminases,
infecciosidade, podendo ser quantificada a presença de Ag HBe e DNA VHB, e manifestações
carga vírica. (Quadro 3) necroinflamatórias demonstradas na histologia
A hepatite aguda diagnostica-se por elevação hepática. Cerca de 80% destas crianças irão
das transaminases, associando-se à presença de apresentar seroconversão anti HBe perto da
Ag HBs e de Ac HBc de classe IgM. puberdade, com normalização das transaminases,
A hepatite crónica define-se pela presença de níveis indectetáveis de DNA VHB (excepto pela
Ag HBs por um período superior a 6 meses. Pode técnica de reacção em cadeia da polimerase ou
ser acompanhada de inflamação hepática traduzi- PCR) e ausência ou presença mínima de actividade
da por elevação das transaminases, habitualmente inflamatória demonstrada por histologia hepática.
no contexto de replicação vírica activa, ou pode A taxa de diminuição progressiva ou de depu-
cursar com transaminases normais, geralmente ração do Ag HBe é muito baixa nos primeiros 3

QUADRO 3 - Diagnóstico laboratorial do estádio da infecção pelo VHB

Transaminases Marcadores Replicação vírica Comentários


Hepatite aguda Elevadas AgHBs + Elevada
Ac HBc IgM +
Hepatite crónica Elevadas AgHBs + Elevada Na infecção perinatal os RN
“activa” AgHBe + têm transaminases normais
AcHBc IgM -
“Portador” crónico Normais AgHBs + Baixa
Ac HBe +
AcHBc IgM -
Seroconversão natural Normais AgHBs – Nula
AcHBc +
AcHBs +
Contacto antigo Normais AcHBc + Nula Útil em estudos epidemiológicos como
com o vírus Restantes negativos indicador de contacto com o VHB
Estado pós vacinal Ac HBs + Nula
Restantes negativos
CAPÍTULO 116 Hepatite vírica 581

anos de vida (2-10%), aumentando subse- bioquímica). Desta forma, obvia-se a progressão
quentemente (8-12% por ano). A taxa de depuração da lesão hepática para cirrose e risco de carcinoma
espontânea do VHB com seroconversão anti HBs é hepatocelular (CHC). No entanto, sabendo-se que,
muito baixa(6% num seguimento de 20 anos). mesmo na ausência de cirrose e de replicação víri-
Apesar da aparente benignidade da evolução ca activa, a infecção crónica pelo VHB pode a
da HB na criança, há casos descritos de cirrose longo prazo originar o CHC (provavelmente após
precoce com risco acrescido de carcinoma hepato a integração do genoma do vírus no DNA do
celular (10-40%) quer na idade pediátrica, quer no hepatócito), será necessário analisar a mais longo
adulto. Um subgrupo restrito de crianças evoluin- prazo os efeitos desta terapêutica limitada para
do com depuração do Ag HBe pode apresentar avaliar os seus reais benefícios.
reactivação ou manutenção das alterações hepá- Os fármacos mais utilizados nos últimos anos
ticas, comportando risco de evolução na idade no tratamento da HB crónica da criança são o
adulta para cirrose ou carcinoma hepatocelular. interferão alfa e a lamivudina. (Quadro 4).Ambos
A experiência portuguesa é semelhante à das têm autorização da FDA para a idade pediátrica.
séries europeias, predominando as formas Devem ser utilizados em doentes em fase de
adquiridas por via intrafamiliar. Num estudo imunoactivação (transaminases elevadas pelo menos
efectuado no Hospital Dona Estefânia compre- duas vezes, ADN VHB > 20.000 UI/mL ou 105)
endendo 187 crianças infectadas comprovou-se cópias/mL, habitualmente com Ag HBe positivo,
que em 42,7% dos casos a transmissão fôra mas ocasionalmente negativo com reactivação). O
horizontal, contra 6,4% de transmissão vertical. interferão está contraindicado nos casos de doença
O rastreio sistemático do Ag HBs nas grávidas, hepática avançada, de doença autoimune
administrando imunoglobulina e vacinando os seus concomitante ou de crianças transplantadas.
recém nascidos, e a introdução da vacinação contra Em fase experimental encontram-se estudos
VHB, (inicialmente nos pré-adolescentes e actual- combinando interferão com lamivudina, uso de
mente desde o nascimento), levaram a uma redução interferão peguilado (uma só injecção semanal) e
dos novos casos (redução de 80% dos casos até aos uso de outros análogos dos nucleótidos/nucleósidos
14 anos comunicados à Direcção Geral da Saúde – (adefovir, entecavir, tenofovir) O adefovir, aprovado
DGS entre 1995-1999). Assim, para além das crian- pela FDA para adolescentes com > 12 anos, tem sido
ças infectadas antes destas mudanças nas normas utilizado em casos de fracasso ou resistência ao tra-
de actuação, os novos casos recebidos nos centros tamento com lamivudina. O tenofovir e o entecavir,
pediátricos correspondem fundamentalmente a respectivamente licenciados para adolescentes com
crianças de famílias oriundas de zonas endémicas, idades > 12 e > 16 anos, parecem ser fármacos
nomeadamente das ex colónias africanas. seguros e eficazes sem o potencial indutor de
aparecimento de mutantes da lamivudina.
Tratamento Os resultados da terapêutica com interferão ou
O tratamento de um agente infeccioso deverá ter com lamivudina são semelhantes e apresentam a
como objectivo a sua eliminação do organismo.No curto prazo efeitos positivos em relação ao curso
entanto, a constatada impossibilidade de qualquer natural da doença, sendo necessários estudos de
pauta terapêutica utilizada levar consistentemente maior duração para comprovar esses benefícios a
à eliminação do VHB com seroconversão anti HBs longo prazo. Tal como noutras séries europeias, a
torna os objectivos terapêuticos mais limitados. casuística do Hospital Dona Estefânia mostra que,
O tratamento de crianças com HB crónica tem a longo prazo, a seroconversão AgHBs-AcHBs é
como finalidade a diminuição da actividade ne- semelhante nas crianças tratadas e não tratadas,
croinflamatória hepática através da eliminação da mas que, a curto prazo, há uma resposta virológica
replicação vírica traduzida pela eliminação do Ag mais precoce no grupo tratado.
HBe (com ou sem seroconversão anti e), e desapa- A lamivudina apresenta menos efeitos secun-
recimento dos níveis séricos detectáveis do DNA dários, menos custos e é de mais cómoda admi-
VHB (resposta virológica). Adicionalmente procu- nistração que o interferão; poder-se-á, por isso,
ra-se a normalização das transaminases (resposta considerar o tratamento de primeira escolha na
582 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 4 – Tratamento da HB

Fármaco Critérios terapêuticos Dose Duração


Interferão alfa AgHBe + 5-6 MU/m2 via subcutânea 6 meses
DNA VHB > 105/ml 3 x semana
Transaminases > 2x
Sem lesão hepática
descompensada
Lamivudina AgHBe + 3 mg/Kg/dia 1xdia per os 12 meses, podendo prolongar-se
(ou –) com replicação (máximo : 100 mg) para 18-24 meses se não houver
vírica (DNA VHB +) resposta
Transaminases > 2x Risco de indução de mutantes
Pode haver lesão hepática resistentes (YMDD)
descompensada

HB crónica na criança. No entanto, não se conhe- 3. Hepatite C


ce ainda bem o tempo necessário para manter o
tratamento com este fármaco, sabendo-se que a Epidemiologia
emergência cumulativa de mutantes YMDD ao A infecção por VHC atingindo mais de 170
longo do tempo limita necessariamente o uso de milhões de pessoas em todo o mundo é a causa
esquemas terapêuticos de longa duração. mais importante de hepatite vírica crónica nos
países desenvolvidos.
Prevenção A transmissão ocore fundamentalmente por
Para além das medidas gerais de prevenção via parentérica (hemoderivados contaminados até
referidas a propósito da hepatite A, há a referir que ao início dos anos 90, data a partir da qual passou
a profilaxia tem duas componentes fundamentais: a ser feito o rastreio serológico sistemático dos
– Imunoterapia passiva: a gamaglobulina espe- dadores e dos toxicodependentes). A via sexual é
cífica hiperimune (HBIG) utiliza-se nos RN também possível, mas com muito menor frequên-
filhos de mães portadoras do VHB (em simul- cia que a hepatite B.
tâneo com o início da vacina) nas primeiras 8- Na idade pediátrica o principal meio de
12 horas de vida, na dose de 0,5 ml*. transmissão é o materno-fetal (vertical) com um
Nos contactos acidentais com material poten- risco de transmissão que oscila entre 3-5%,
cialmente contaminado (agulhas com sangue) em atingindo 30% quando as mães estão infectadas
crianças não vacinadas, deve ser administrada na em simultâneo pelo VHC e pelo vírus de
dose de 0,06 ml/Kg (máximo 5 ml), seguindo-se imunodeficiência humana (a virémia do VHC é
esquema vacinal rápido (0-1-2-12 meses). muito intensa nestes casos).
– Imunoterapia activa: em Portugal já tem lugar Num estudo prospectivo que efectuámos no
a vacinação universal dos RN segundo o Hospital Fernando Fonseca e que compreendeu 43
esquema 0-1-6 meses. As crianças ainda não pares mãe-filho seguidos desde o nascimento até
abrangidas por este plano são vacinadas entre aos 18-24 meses verificou-se uma baixa taxa de
os 11-13 anos (PNV de 2012) (Capítulo 274). infecção (2,2%).
Em qualquer dos casos não são necessárias A excreção do vírus no leite materno não foi
doses de reforço para além das 3 doses da primo- demonstrada, pelo que o aleitamento por mães
vacinação (ver Glossário geral). VHC + (desde que VIH -) não está contrain-
dicado.
*Mesmo com adequada profilaxia, até cerca de 25% das crianças A estrutura genética do VHC não é uniforme,
nascidas de mães com carga vírica elevada (>109 cópias/mL) descrevendo-se 6 genótipos (1-6), sendo o genó-
podem infectar-se.
tipo 1 o mais frequente na Europa e EUA.
CAPÍTULO 116 Hepatite vírica 583

Manifestações clínicas e história natural tomada em crianças de idade superior a 3 anos


A infecção pelo VHC na idade pediátrica é com elevação continuada ou intermitente das
geralmente assintomática, havendo uma evolução transaminases.
para a cronicidade em 70-85% dos infectados. Os esquemas mais utilizados associam o
Os estudos em crianças com infecção vertical interferão alfa (na dose de 3-5 MU/m2, via
mostram ausência de sintomas ou sinais (como subcutânea, 3 vezes por semana) ou o Peg
icterícia ou hepatomegália), mas elevação de Interferão alfa 2b (na dose de 1 micrograma/Kg, 1
transaminases em 90% dos casos no 1º ano de vida vez por semana) em combinação com a ribavirina
(dos quais 30% com aumento até 5 vezes o oral na dose de 15 mg/Kg/dia.
normal); 23% dessas crianças infectadas eviden- O tratamento deverá ter uma duração de 48
ciaram sinais de cura aos 3 anos de vida evoluindo semanas para doentes com genótipo 1 e de 24
77% para a cronicidade. semanas para doentes com genótipos 2 e 3. De
Ao contrário da infecção no adulto, na criança referir que a resposta ao tratamento é mais fraca
não há associação habitual a outras doenças extra- nos doentes com genótipos 1a ou 1b relativamente
hepáticas autoimunes podendo, no entanto, em aos que têm genótipos 2 ou 3.
7% dos doentes haver associação com anticorpo A biópsia não é condição obrigatória para o
LKM-1. início da terapêutica. Para doentes com genótipos 2
e 3, que respondem bem ao esquema combinado, é
Diagnóstico claramente dispensável. Para os doentes do
O diagnóstico da infecção por VHC baseia-se na genótipo 1 poderá ser necessária para avaliação de
presença do Ac VHC, confirmada por técnicas de factores de prognóstico (sobretudo o grau de fibrose)
3ª geração (RIBA 3) e na demonstração da virémia que apontem para o interesse de iniciar tratamento,
(positividade para RNA-VHC por PCR). A virémia apesar de se esperar uma menor eficácia.
pode ser intermitente, pelo que uma determinação Novos fármacos estão em investigação, no-
negativa não exclui o diagnóstico. meadamente os inibidores da protease boceprevir
As alterações das transaminases ocorrem e telaprevir em associação ao peg interferão e
segundo 3 padrões: disfunção persistente (a mais ribavirina (terapêutica tripla) para o tratamento
frequente na data do diagnóstico); alteração flu- do genótipo 1.
tuante (alternando com períodos de normalida-
de); normalidade continuada (mesmo na presença Prevenção
de virémia). Reiterando as medidas preventivas atrás expla-
O diagnóstico de cronicidade baseia-se na nadas, no que respeita à profilaxia passiva, de
demonstração do RNA-VHC, pelo menos 3 anos referir que as imunoglobulinas “standard” não são
após o contacto conhecido (nomeadamente após o eficazes na prevenção da infecção
parto). Nestes casos há também presença do Ac Quanto à activa, pela variabilidade genómica do
VHC no soro, excepto nos imunodeficientes. vírus, não estão ainda disponíveis vacinas eficazes.
No doente com infecção crónica deve ser
avaliado o genótipo, o qual permite prever a 4. Hepatite D
resposta terapêutica.
Resulta dum vírus RNA incompleto que, para se
Tratamento manter infectante, necessita de uma cobertura
A infecção pelo VHC nas crianças tem um curso exterior, assegurada pelo Ag HBs. Como tal, a
habitualmente muito ligeiro ou moderado (75% dos infecção por este vírus só acontece no contexto de
casos com inflamação hepática leve e 22% moderada uma coinfecção com o VHB, ou de uma sobrein-
de acordo com dados da biópsia), apenas fecção de um doente com VHB, crónico.
apresentando cirrose 2% (ao contrário dos adultos Trata-se duma infecção rara na idade pediátri-
em que na segunda década da infecção há progres- ca. A sobreinfecção nos doentes com hepatite B
são para cirrose em percentagem dez vezes superior). crónica aumenta a gravidade desta. O tratamento
A decisão de iniciar terapêutica só deve ser e prevenção são os aplicáveis à hepatite B.
584 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

5. Hepatite E

Trata-se duma hepatite por vírus com uma


transmissão fecal-oral semelhante ao VHA, sendo
frequente a existência de surtos epidémicos em
países da América Central, Índia e África do
117
Norte; esta infecção é rara entre nós. HEPATITE AUTOIMUNE
Não apresenta evolução para a cronicidade,
sendo a incidência maior entre adolescentes e Inês Pó
adultos jovens. Na grávida, principalmente no
último trimestre, tem uma alta mortalidade (até
20%). Não há imunoglobulina específica ou
vacina disponíveis. Definição e importância do problema

6. Hepatite G A hepatite autoimune (HAI) é uma doença infla-


matória crónica grave do fígado, progressiva e
Este vírus pertence à família do VHC com um rara, poligénica multifactorial. A lesão hepática
mecanismo de transmissão fundamentalmente decorre de uma resposta autoimune a antigénios
parentérica; no entanto poderá haver transmissão teciduais próprios do hospedeiro (resposta imu-
vertical. É factor de coinfecção com outros vírus nológica contra os próprios antigénios, neste caso
hepatotrópicos, mas há dúvidas de que, isolada- hepáticos), em indivíduos com constituição gené-
mente, possa causar algum tipo de infecção hepá- tica predisponente. Trata-se de um processo de
tica relevante, aguda, fulminante ou crónica. desregulação imune de espectro variável atingin-
do apenas o fígado ou, concomitantemente,
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monotherapy in children with lamivudine-resistant chronic parênquima hepático, o epitélio dos ductos
hepatitis B. J Pediatr Gastroenterol Nutr 2012; 55: 648-651 biliares, ou ainda a vasculatura, isoladamente ou
Cordeiro-Ferreira G. Tratamento da hepatite B crónica em em sobreposição; assim, as manifestações clínicas
Pediatria. J Port Gastrenterol 2004; 11 82): S 48-51 dependem do padrão anatomopatológico que
Jhaveri R. Diagnosis and management of hepatitis C virus- prevalece.
infected children. Pediatr Infect Dis J 2011;30:983-985 A HAI acometendo preferencialmente o sexo
Jonas MM, Kelley DA, Miserski J, et al. Clinical trial of feminino, e rara antes dos 2 anos, evidencia índice
Lamivudine in children with chronic hepatitis B. NEJM máximo de incidência entre os 10 e 30 anos. Em
2002; 346: 1706-13 diversas séries publicadas, nas formas não
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson tratadas a morbilidade é marcada sobretudo pela
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011 cirrose e insuficiência hepáticas, rondando a
Marinho RT, Valente AR, Ramalho FJ, et al. The changing mortalidade pelos 50% aos 5 anos após o
epidemiological patterns of hepatitis A in Lisbon, Portugal. diagnóstico, e pelos 90% ao cabo de 10 anos.
Eur J Gastroenterol Hepatol 1997; 9: 795-797
Schiff ER. Prevention of mortality from hepatitis B and Etiopatogénese e classificação
hepatitis C. Lancet 2006; 368: 896-897
Wirth S, Gehring S, Lang T et al . Recombinant alfa- Interferon A predisposição genética é sugerida pelo aumento
plus ribavirin therapy in children and adolescents with da frequência dos haplótipos HLA B8/DR3, dos
chronic hepatitis C. Hepatology 2002; 36:1280-284 dos alótipos DR3 e DR4, e pela coexistência de
outras manifestações autoimunes.
CAPÍTULO 117 Hepatite autoimune 585

De acordo com o perfil de autoanticorpos são extra-hepático. No entanto, em todos os casos há


descritos dois tipos de HAI: sempre hepatomegália e transaminases (ALT e
– Tipo I (~2/3 dos casos), caracterizado pela AST) elevadas desde o início da doença.
positividade de anticorpos anti-nucleares A doença deve ser sempre admitida como
(ANA), anticorpos anti-músculo liso (SMA), hipótese em todos os doentes com sinais e
dirigidos contra os filamentos de actina (F- sintomas de doença hepática prolongada ou grave.
actina). Tais anticorpos anti-F-actina foram Para além da hepatite vírica , a HAI pode ter
detectados em doentes com doença celíaca manifestações semelhantes à hepatite induzida
prévia; por drogas e à doença de Wilson.
– Tipo II (~1/3 dos casos), caracterizado pela
positividade de anticorpos anti-microssoma Diagnóstico
do tipo 1 [do fígado-rim] (LKM-1) e/ou anti-
citosol do tipo 1 [do fígado]; os antigénios- O diagnóstico é geralmente feito pela exclusão
alvo dos autoanticorpos LKM são certas doutras causas de hepatite e sugerido pela pre-
enzimas hepáticas envolvidas na destoxifica- sença de hipergamaglobulinémia e auto-anticor-
ção de compostos endógenos e xenobióticos, pos circulantes.
designadamente a UGT. O padrão histológico é fundamental para con-
No mecanismo de lesão hepática, muito firmar o diagnóstico (infiltrado intenso de células
complexo, entre outras, participam as células T, mononucleares nos espaços porta). No entanto, o
NK, macrófagos, células B, e NKT. estado geral precário muitas vezes não permite a
realização da biópsia hepática.
Manifestações clínicas O diagnóstico pode inferir-se pela presença de
auto-anticorpos séricos e pela concomitância de
A doença pode manifestar-se de modo muito outras doenças autoimunes, quer no paciente,
diversificado, desde a detecção de hepatomegália quer em familiares,o que pode acontecer com
assintomática numa observação de rotina, ao uma frequência ~ 40%. A ausência de detecção dos
aparecimento de insuficiência hepática. auto-anticorpos, não deverá inicialmente excluir o
Como foi referido antes, em ambos os tipos de diagnóstico, pois os mesmos poderão surgir
HAI (I e II) a doença predomina no sexo feminino, somente com a evolução da doença.
sendo frequentes outras manifestações autoi- Os critérios de diagnóstico habitualmente
munes, tanto nos doentes como nos familiares. Na aceites são discriminados no Quadro 1.
HAI do tipo I, as doenças autoimunes mais Na avaliação destes doentes é importante: 1)
frequentes são a síndroma nefrótica, a colangite proceder a endoscopia digestiva alta para
esclerosante, a colite ulcerosa, a trombocitopénia detecção de sinais hipertensão portal; 2) avaliar a
autoimune, a anemia hemolítica autoimune, a função hepática com a determinação do tempo de
doença de celíaca, etc.. À HAI do tipo II, associam- protrombina e da albumina sérica.
se tiroidite, vitíligo, hipoparatiroidismo, doença
de Addison e diabetes insulinodependente. Tratamento
Em cerca de 50% dos casos o quadro surge
insidiosamente com cansaço progressivo e icterí- Se a HAI se manifestou desde o início por insu-
cia. Em menor percentagem as manifestações são ficiência hepática aguda/fulminante, o trata-
idênticas às da hepatite vírica aguda, por vezes mento indicado é o transplante hepático urgente.
com insuficiência hepática que pode ser fulminan- Nos outros casos a terapêutica indicada é a
te. Em 15% dos casos o diagnóstico é feito no imunossupressão. O tratamento deve ser iniciado
âmbito da avaliação duma esplenomegália, ou com prednisolona na dose de 2mg/kg/dia (dose
hepatomegália, ou de situações com função hepá- máxima de 60 mg), que se vai diminuindo
tica alterada. Numa minoria de casos a doença he- progressivamente se houver redução do valor das
pática não é muito relevante quando é feito o dia- transaminases. O objectivo é manter uma dose
gnóstico, predominando sinais de compromisso mínima, habitualmente 5 mg/dia, suficiente para
586 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Critérios para o diagnóstico de hepatite autoimune

Histologia Autoanticorpos séricos


Hepatite de interface (ou de actividade Autoanticorpos séricos anticorpos anti-nucleares (ANA),
necroinflamatória periportal com infiltração celular anticorpos anti-músculo liso (SMA), anticorpos anti-
ultrapassando o espaço porta) moderada a grave; Actina F, anticorpos anti-microssoma do tipo 1 [do
hepatite lobular ou necrose“bridging”* portal central sem fígado-rim] (LKM-1) e/ou anti-citosol do tipo 1 [do
lesões biliares ou granulomas bem definidos e sem fígado], com títulos > 1:80
alterações sugerindo outra etiologia Marcadores víricos
Bioquímica Serologia negativa para hepatite A,B,C
Alteração das transaminases, especialmente se a fosfatase Outros factores etiológicos
alcalina estiver pouco elevada. Alfa-1-antitripsina, Consumo de álcool <25g/dia
ferritina, cobre, cobre e ceruloplasmina séricos normais Ausência de uso recente de drogas hepatotóxicas
Imunoglobulinas séricas
*Bridging: processo de fibrose entre dois espaços porta
Globulinas séricas totais ou gamaglobulinas ou IgG (International Autoimmune Hepatitis Group Report:
Adaptado de Alvarez e colaboradores, 1999)
elevadas (por vezes IgG >16g/L)

manter as transaminases normais. Nas primeiras 8 Após suspensão da terapêutica há que manter
semanas de tratamento a avaliação das transami- uma vigilância rigorosa das transaminases pelo
nases deve ser semanal, fazendo-se os ajustes perigo de recidiva. Há autores que recomendam
necessários da dose de corticóide. O tratamento nas hepatites auto-imunes LKM positivas,
deve ser iniciado imediatamente, não se esperando manutenção da terapêutica durante toda a vida.
pelos 6 meses, critério habitual nas hepatites víricas. Está indicada transplantação hepática se surgir
Se não houver normalização das transaminases insuficiência hepática fulminante, complicações
ou se a evolução não permitir reduzir a dose de da cirrose hepática, falência da terapêutica mé-
corticóide, acrescenta-se azatioprina na dose de 0,5- dica, ou aparecimento de efeitos secundários
2mg/kg/dia. Começa-se com a dose mais baixa. intoleráveis da medicação.
Apesar de, na maior parte dos casos, as Estes doentes devem ser sempre seguidos em
transaminases começarem a baixar logo que se centros especializados.
inicia a terapêutica, a sua completa normalização
poderá surgir somente ao cabo de alguns meses. BIBLIOGRAFIA
As recidivas são frequentes obrigando a novos Clemente MG, Schwarz K. Hepatitis:general principles. Pediatr
acertos terapêuticos. Se não se conseguir remissão Rev 2011;32: 333-340
da doença, a cirrose é a evolução. A evolução para Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
cirrose depende também dos achados iniciais da Gracey M, Burke V (eds). Pediatric Gastroenterology and
biópsia: se na data do diagnóstico já forem evi- Hepatology. London: Blackwell, 1993
dentes os quadros morfológigicos de “bridging” e Kelly DA (ed). Diseases of the Liver and Biliary System in
da chamada “piecemeal necrosis”, é provável que, Children. Oxford: Blackwell Publishing 2004
apesar do tratamento, se verifique tal evolução. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
A eficácia da terapêutica é determinada pelo Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
valor das transaminases e gamaglobulinas, e não Krawitt EL. Autoimmune hepatitis. NEJM 2006; 354:54-66
pelo título dos auto-anticorpos. Oettinger R, Brunnberg A, Gerner P, et al. Clinical features and
Nos casos que não respondem a esta imu- biochemical data of Caucasian children at diagnosis of
nossupressão poderão ser tentadas outras drogas autoimmune hepatitis. J Autoimmun 2005; 24: 79-84
imunossupressoras (ciclosporina, tacrolimus). Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA(eds).
A maior parte dos autores recomenda actual- Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw -Hill Medical , 2011
mente que o tratamento se mantenha, pelo menos, Suchy FJ, Sokol RJ, Balistreri WF, (eds). Liver Diseases in
5 anos após a normalização das transaminases. Children. Philadelphia: Lippincott, Williams & Wilkins, 2001
CAPÍTULO 118 Colestase do recém-nascido e lactente 587

118
corresponde à etiologia mais frequente. Dum modo
geral podem estar em causa agentes exógenos e
condições patológicas congénitas específicas.

Manifestações clínicas

COLESTASE DO Apesar de serem inúmeras as causas de colestase,


a apresentação clínica é semelhante, reflectindo
RECÉM-NASCIDO E LACTENTE sempre a diminuição do fluxo biliar.
Os lactentes com colestase evidenciam icterícia
Inês Pó de intensidade variável, urina escura, fezes claras
e hepatomegália, associando-se em geral sinais de
disfunção de síntese e de necrose hepatocelular.
No exame objectivo alguns aspectos podem
Definição e importância do problema orientar para determinadas etiologias:
• Lactentes com restrição de crescimento intra-
A colestase do recém-nascido e lactente define-se uterino – síndroma de Alagille, doença
como a redução do fluxo biliar, com consequente metabólica, infecção intra-uterina;
acumulação de pigmentos biliares nos hepatócitos • Sinais dismórficos – síndroma de Alagille,
e canais biliares e aumento da concentração sérica cromossomopatias, síndroma de Zellweger;
dos produtos que são excretados em circunstâncias • Hipoglicémia – doença metabólica, hipopi-
normais pela bílis como bilirrubina, ácidos biliares, tuitarismo, insuficiência hepática;
colesterol, etc.; tal processo traduz-se essencial- • Sopro cardíaco ou manifestações neuroló-
mente por hiperbilirrubinémia conjugada desde o gicas – sindromas congénitas específicas.
período neonatal (primeiras 4 semanas de vida) e
prolongando-se nos primeiros meses de vida. Na Diagnóstico
prática são adoptados os seguintes critérios labora-
toriais no RN e lactente até aos 4 meses: bilirru- A avaliação do recém-nascido e lactente com
binémia conjugada > 20% da total, ou > 17 umol/L colestase deve ser feita de modo sistematizado. De
(1 mg/dL). tal metodologia vai depender, em grande parte, a
Como consequência da marcada redução de sua evolução, pelo que se aconselha o envio destas
ácidos biliares no lume intestinal verifica-se, entre crianças a centros especializados com experiência
outros efeitos, défice de absorção de gorduras(até neste tipo de patologia. É, de facto, imperativo
50% de ácidos gordos essenciais e de LCPUFA), reconhecer atempadamente situações com indicação
assim como de vitaminas lipossolúveis (A, D, E, de tratamento médico (galactosémia, tirosinémia,
K) e de outros micronutrientes como o zinco. Por sépsis) ou de tratamento cirúrgico que não poderão
outro lado, aumentam as necessidades energéticas ser diferidos sob pena de aparecimento compli-
na ordem de 120-150% do DRI, o que poderá cações e sequelas (por exemplo, atrésia das vias
obrigar a estratégias nutricionais específicas. biliares extra-hepáticas, que deverá ser operada até
A incidência deste problema é ~1/2.500 nado- às 6 semanas) pelo risco de cirrose hepática.
vivos. Em todo o recém-nascido com icterícia prolon-
gada (mais de 15 dias) sobretudo se não estiver a ser
Factores etiológicos e classificação alimentado ao peito, é fundamental excluir
colestase determinando o valor da bilirrubina total
O Quadro 1 sintetiza os principais factores etioló- e conjugada.
gicos implicados na colestase do recém-nascido e Durante a avaliação as fezes devem ser
lactente os quais permitem uma classificação, sendo examinadas diariamente durante pelo menos 10 dias,
de referir que , excluindo as estatísticas das UCIN, a dejecção a dejecção, para determinar se há acolia
atrésia das vias biliares extra-hepáticas (AVBHE) contínua ou intermitente. A persistência de acolia
588 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Colestase do recém-nascido e lactente: factores etiológicos e classificação

Hepatite neonatal Doenças metabólicas


Idiopática Deficiência de alfa 1 antitripsina
Infecções víricas Fibrose quística
Citomegalovírus Hemocromatose neonatal
Vírus herpes Endocrinopatias
Rubéola Hipopituitarismo (displasia septo-óptica)
Reovírus tipo 3 Hipotiroidismo
Adenovírus Alteração do metabolismo dos aminoácidos
Enterovírus Tirosinémia
Parvovírus B19 Hipermetioninémia
Vírus da hepatite B Alteração do metabolismo dos lípidos
VIH (vírus da imunodeficiência humana) Doença de Nieman-Pick
Infecções bacterianas e parasitárias Doença de Gaucher
Sépsis bacteriana e endotoxémia (infecção urinária,gastrenterite) Doença de Wolman
Listeriose Doença do armazenamento do colesterol
Sífilis Doenças do ciclo da ureia (deficiência de arginase)
Tuberculose Alterações do metablismo dos hidratos de carbono
Toxoplasmose Galactosémia
Malária Frutosémia
Obstrução das vias biliares Glicogenose do tipo IV
Colangiopatias Doenças mitocondriais (cadeia respiratória)
Atrésia das vias biliares Doenças dos peroxizomas
Quisto do colédoco Sindroma de Zellweger
Hipoplasia biliar não sindromática Doença de Refsum infantil
Síndroma de Alagille Outras enzimopatias
Colangite esclerosante neonatal Defeitos de síntese dos ácidos biliares
Perfuração espontânea da via biliar Tóxicos
Doença de Caroli Drogas
Fibrose hepática congénita Nutrição parentérica
Estenose da via biliar Alumínio
Outras Outras
Bílis espessa Choque/hipoperfusão
Colelitíase Histiocitose X
Tumores/massas (intrínsecas e extrínsecas) Lúpus eritematoso neonatal
Sindromas colestáticas Cromossomopatias
Colestase intra-hepática familiar progressiva causada por Trissomia 18,21 (síndroma de Down)
defeitos de transporte tipo 1 (doença de Byler), tipo 2 e tipo 3 Linfo-histiocitose eritrofagocítica
Colestase hereditária com linfedema (sindroma de Aagenaes) Doença venoclusiva
Colestase dos Índios Norte Americanos Síndroma de Donahue (leprechaunismo)
Sindroma de Nielsen ( Esquimós da Groenlândia) Eritroblastose fetal
Colestase recorrente benigna (defeito no mesmo gene da Défice congénito de glicosilação
colestase familiar progressiva do tipo 1)
Síndroma de Dubin-Johnson neonatal Adaptado de Suchy FJ,2001

Síndroma de Rotor

durante 10 dias ou mais sugere atrésia das vias biliares. O geralmente até aos 3 meses), boa vitalidade e fezes
perfil clínico da AVBHE é, em regra: RN de despigmentadas até à acolia, bem patente pelas 3
termo,de peso adequado à idade gestacional, com semanas de vida.
boa progressão ponderal nas 1ªs semanas (e A avaliação de parâmetros bioquímicos que
CAPÍTULO 118 Colestase do recém-nascido e lactente 589

fundamentam a colestase deve ser feita por defeitos anatómicos, como o quisto do colédoco. A
etapas. Numa primeira fase avalia-se a função inexistência de vesícula biliar pode sugerir atrésia
hepática (incluindo o estudo da coagulação), das vias biliares sendo de salientar que a
começando por se excluir as situações mais importância deste método depende muito da
frequentes. Numa segunda fase, há que proceder experiência do imagiologista.
ao diagnóstico etiológico, (Quadro 2), o que é A cintigrafia hepatobiliar com tecnécio marca-
facilitado pelo algoritmo apresentado. (Quadro 3). do por análogos do ácido iminodiacético pode dar
Não há nenhuma análise bioquímica que seja contributo para estabelecer a destrinça entre a
patognomónica. Durante muito tempo usou-se a atrésia das vias biliares e colestase não obstruti-
elevação da GGT para o diagnóstico diferencial de vas. Para aumentar a excreção biliar do isótopo e
atrésia das vias biliares/hepatite neonatal. A aumentar a sensibilidade do exame, procede-se a
grande variabilidade dos resultados tornou o seu administração prévia de fenobarbital na dose de 5
uso controverso. No entanto, se a GGT evidenciar mg/Kg/dia durante 5 dias.
valores normais e a fosfatase alcalina estiver A biópsia hepática é o exame mais importante
elevada, poderá tratar-se de colestase intracelular. na avaliação dum lactente com colestase. Nas
A ecografia é importante para o diagnóstico de crianças com menos de 6 semanas de vida os
achados histológicos característicos de atrésia das
QUADRO 2 – Fases do estudo da colestase vias biliares (proliferação ductular, alargamento
neonatal dos espaço porta com escasso infiltrado
inflamatório, fibrose portal, rolhões biliares e estase
1ª fase biliar) poderão ainda não estar presentes, sendo
História clínica então necessário repetir a biópsia hepática após
Exame objectivo algumas semanas. A biópsia pode também sugerir
Avaliação diária do aspecto macroscópico das fezes doenças metabólicas ou de depósito (tesauris-
(dejecção a dejecção) moses) como causa da colestase (Parte XXXII).
Sangue: hemograma, estudo da coagulação, bilirrubina Nos casos em que não é possível estabelecer o
total e directa, AST, ALT, GGT, Fosfatase alcalina; diagnóstico de certeza de atrésia das vias biliares,
LDH, amónia, glicemia, alfa-fetoproteína, deve ser feita uma laparatomia exploradora com
colesterol, triglicéridos, siderémia, ferritina, ácidos colangiografia intraoperatória. Este procedimento
biliares, fenótipo de alfa-1-antitripsina, serologia deverá ser feito por cirurgiões pediátricos com
TORCHES, vírus da hepatite B, hemoculturas experiência deste tipo de patologia. Recentemente
Urina: cultura, pesquisa de substâncias redutoras, tem-se usado a colangiorressonância que, apesar
succinil-acetona de necessitar de anestesia, é uma técnica menos
Imagem: ecografia, cintigrafia hepatobiliar, radiografia invasiva que a anterior.
do esqueleto
Histologia: biópsia hepática Tratamento
Outros: paracentese (se ascite)
LDH: Desidrogenase láctica)
TORCHES: Toxoplasmose e outros rubéola; citomegalovírus; herpes; Epstein-Barr; sífilis O tratamento das síndromas colestáticas do recém-
2ª fase nascido e lactente depende do diagnóstico e da
Sangue: proteinograma, cortisol, função tiroideia, data em que o mesmo é realizado.
aminoácidos, galactose-1-fosfato, Os doentes com atrésia das vias biliares extra-
uridiltransferase, cariótipo, serologia VIH, hepáticas devem ser operados até às 6 semanas
lactato, piruvato, estudos genéticos de vida. Depois dos 3 meses de idade há que pon-
Urina: aminoácidos, ácidos orgânicos derar a indicação operatória, pois estes doentes
Imagem: CPRE, colangiorressonância necessitarão de transplante hepático precoce
Outros: prova de suor, estudos enzimáticos nos (Consultar Anexos com algoritmo especificando:
leucócitos, fibroblastos (biópsia da pele), Icterícia após os 14 dias de vida).
fígado, músculo, medula óssea. Algumas doenças metabólicas também têm
indicação para transplante hepático (deficiência
590 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Algoritmo para o estudo da colestase neonatal

Icterícia neonatal

Hiperbilirrubinemia indirecta Hiperbilirrubinemia directa


Aleitamento materno
Hemólise
↑BT / ↑BD
Sépsis
Colestase Bilirrubina (+) urina
Hipotiroidismo
Acolia e colúria
Estenose hipertrófica do piloro
Anamnese
Exame físico
Vesícula biliar e via
Função hepática Ecografia
Insuficiência hepática biliar extra-hepática
BT/BD, AST, ALT, FA

GGT Patente Ausente

Gamagrafia hepática
Normal Elevada Colangiografia trans-hepática
Colangiorressonância

Biópsia
hepática
Patente Ausente
Ácidos biliares
séricos
Biópsia
hepática

Elevados Diminuídos
ou normais Hepatite AVBIH AVBEH
neonatal

Colestases Anomalia do metabolismo S. Alagille


genéticas dos ácidos biliares

ABREVIATURAS:
Não sindromática
AST – Aspartato amino transferase (transaminase glutâmico – oxalacética ou SGOT)
ALT – Alanina amino transferase (transaminase glutâmico – piróvica ou SGPT)
GGT – Gama glutamil transpeptidase
FA – Fosfatase alcalina
AVBIH – Atrésia das vias biliares intra-hepáticas
AVBEH – Atrésia das vias biliares extra-hepáticas
BT – Bilirrubina total
BD – Bilirrubina directa (conjugada)
S – Síndroma (Adaptado de Manzanares & Benitez, 2003)

de alfa-1-antitripsina, doença de Byler, tirosiné- colestases não obstrutivas, na dose de 10-40


mia), dependendo da evolução de cada caso. mg/kg/dia, além doutras medidas de suporte, tais
(capítulo 123) como nutrição entérica contínua (tendo em consi-
Os restantes doentes necessitam habitualmente deração o incremento em necessidades energéticas
de tratamento médico. Usa-se o ácido ursodesoxi- ~120-150% do DRI) e suplementação de vitaminas
cólico nos casos de obstrução incompleta e nas lipossolúveis nas situações de colestase crónica
CAPÍTULO 119 Doença de Wilson 591

119
(A:5.000-25.000 U/dia; D:800-5.000 U/dia, ou cal-
cidiol:3-5 mcg/kg/dia; E(D-alfa-tocoferol):25-200
UI/kg/dia; K:2,5 mg duas vezes/semana).

BIBLIOGRAFIA
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Palermo JJ, Joerger S, Turmelle Y, et al. Neonatal cholestasis: cobre no sistema nervoso central, fígado, rins,
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2012; 12:283-287 em 1 a 4 /100.000 indivíduos, com prevalência
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA(eds). mais elevada na Europa de Leste e Sul de Itália.
Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw -Hill Medical, 2011 Esta doença pode permanecer não diagnos-
Silva ES, Pó I, Gonçalves I. Colestase neonatal-protocolo de ticada até à vida adulta, embora as manifestações
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Suchy FJ, Sokol RJ, Balistreri WF (eds). Liver Diseases in
children. Philadelphia: Lippincott, Williams & Wilkins, 2001 Etiopatogénese
Suchy FJ. Neonatal cholestasis. Pediatr Rev 2004; 25:388-396
O gene da doença de Wilson (de que se
conhecem mais de 250 mutações) codifica uma
ATP-ase do tipo-P (ATP7B) que se expressa
principalmente (mas não exclusivamente) nos
hepatócitos e que se admite ter papel crucial na
excreção biliar do cobre e na incorporação deste
na ceruloplasmina.
As alterações do funcionamento dos órgãos
ocorrem por depósito anormal de cobre nos
lisossomas devido a excreção biliar inadequada.
Tal resulta de incorporação anormal do cobre em
proteínas hepáticas tais como a ceruloplasmina.
Na doença de Wilson a acumulação de cobre
ocorre primariamente no fígado, após a 1ª/2ª
década de vida. O cobre é libertado do fígado
quando a capacidade de acumulação é excedida,
sendo então depositado noutros tecidos.
A peroxidação lipídica das mitocôndrias como
resultado da sobrecarga em cobre conduz a
alterações funcionais de carácter tóxico, inibindo
diversos processos enzimáticos.
592 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

O gene anormal ligado à doença de Wilson hepática, manifestações neurológicas e anel de Kayser-
localiza-se no braço longo do cromossoma 13 Fleischer, o diagnóstico torna-se mais fácil.
(13q14.3). Contudo, tal raramente ocorre, pelo que se torna
necessário um elevado índice de suspeita decor-
Manifestações clínicas rente da anamnese e do exame objectivo.
A suspeita clínica implica o encaminhamento
As manifestações clínicas relacionam-se com o para centros especializados para a realização dum
depósito de cobre em órgãos específicos, mais conjunto de exames complementares tais como
frequentemente no fígado e no sistema nervoso hemograma, provas da função hepática, dosea-
central. A forma de apresentação é variável nas mentos séricos de acido úrico, fosfato, cobre,
crianças, sendo rara antes dos cinco anos. As ceruloplasmina, e doseamento do cobre em urina
manifestações hepáticas precedem habitualmente de 24 horas, e no tecido hepático (biópsia).
as manifestações neurológicas durante vários De acordo com o contexto clínico poderá ser
anos. necessário recorrer a exames de imagem (TAC e
A doença hepática manifesta-se habitualmente RMN crânio-encefálica e abdominal).
por icterícia recorrente, hepatite aguda auto- Os dados histológicos obtidos por biópsia
limitada, hepatite autoimune, falência hepática hepática são sobreponíveis aos encontrados na
aguda ou doença hepática crónica. hepatite crónica activa: degenerência gorda,
As lesões neurológicas manifestam-se por hepatócitos em “balão”, grânulos de glicogénio e
alterações do movimento (tremores, incoordena- células de Küpfer de maiores dimensões. A
ção motora, perda de controlo da motricidade microscopia electrónica permite identificar grandes
fina, coreia e coreoatetose) ou distonia rígida (ri- mitocôndrias. Na doença de Wilson o conteúdo do
gidez, alterações da marcha e compromisso pseu- cobre hepático excede 250 mcg/grama. Nas formas
dobulbar). heterozigóticas os valores são inferiores.
As alterações psiquiátricas manifestam-se A análise da mutação do gene ATP7B é
habitualmente por depressão, comportamentos particularmente útil quando as alterações clínicas
neuróticos, alterações da personalidade e, ocasio- e bioquímicas não são específicas.
nalmente, deterioração intelectual. (Quadro 1) O diagnóstico diferencial das alterações hepá-
ticas detectadas faz-se com a hepatite autoimune e
Diagnóstico outras formas de hepatite crónica e cirrose cripto-
génica.
O diagnóstico poderá ser difícil. O melhor rastreio As manifestações neurológicas podem simular
consiste em determinar o valor da ceruloplas- esclerose múltipla e diversas alterações psiquiá-
mina: na maioria dos casos de doença de Wilson tricas.
está diminuída. Numa fase precoce o cobre sérico
está elevado e a sua excreção urinária (normal- Tratamento
mente inferior a 40 mcg/dia) elevada (100-1000
mcg/dia). Agentes quelantes do cobre ou zinco podem
Se estiver presente a tríade clássica de doença prevenir o desenvolvimento das alterações hepá-

QUADRO 1 – Manifestações clínicas da doença de Wilson

Fígado Sistema nervoso central Oftalmológicas Outras


– Hepatite aguda – Neurológicas – Anel de Kayser-Fleischer na – Renais
– Hepatite crónica activa – Psiquiátricas córnea (obs. com lâmpada de – Esqueléticas
– Cirrose fenda) – Cardíacas
– Insuficiência hepática – Cataratas – Anemia hemolítica
fulminante – Litíase biliar
CAPÍTULO 120 Cirrose hepática 593

120
ticas, neurológicas e psiquiátricas em indivíduos
assintomáticos afectados, e reduzir as manifes-
tações em indivíduos sintomáticos.
A D-penicilamina (0,5-0,75 gramas/dia) é a
droga mais segura e eficaz (associada a suplemen-
to de vitamina B6 por se tratar do antimetabólito
desta vitamina). É tomada oralmente e geralmente CIRROSE HEPÁTICA
bem tolerada. Em doentes com hipersensibilidade
à penicilamina, a trientina (0,5-2 gramas/dia) Maria de Lurdes Torre
pode ser usada (di-hidrocloreto de trietileno
tetramida). Está também indicado o acetato de
zinco cujo efeito é bloquear a absorção intestinal
do cobre. De atender igualmente aos riscos Definição e importância do problema
decorrentes de alimentos cozinhados em material
de cobre e de água distribuída por canalização à A cirrose hepática, o estádio final de muitas doen-
base de cobre. ças hepáticas, é um processo de fibrose difusa em
Deverão ser evitados o chocolate, frutos secos, bandas ligando áreas centrais e portais, con-
mariscos e nozes pelo elevado teor em cobre. A duzindo à formação de nódulos parenquimatosos
transplantação hepática poderá estar indicada se com consequente distorção da arquitectura he-
ocorrer insuficiência hepática fulminante. pática, alteração das estruturas vasculares, desen-
volvimento de hipertensão portal e suas conse-
Prognóstico quências.

Sem terapêutica esta doença é fatal. No entanto, Etiopatogénese


com terapêutica médica adequada e o regime
alimentar com restrições de cobre (inferior a São várias as doenças hepáticas, discriminadas no
1mg/dia) durante toda a vida, a evolução pode Quadro 1, que podem progredir para cirrose.
ser favorável. A identificação da causa da lesão inicial
influencia a gravidade e a evolução da doença.
BIBLIOGRAFIA Quando é possível a sua remoção, o prognóstico é
Ala A, Walker AP, Ashkan K, et al. Wilson’s Disease. Lancet em geral favorável.
2007; 369: 397-408 A cirrose pode classificar-se em pós-hepatite
Altschuler S, Liacouras C (ed). Clinical Pediatric (na sequência de hepatite aguda e crónica), pós-
Gastroenterology London: Churchill Livingstone, 2003 necrótica (secundária a lesão tóxica), ou biliar
Fischer RT, Soltys KA, Squires RH Jr, et al. Prognostic scoring (secundária a obstrução biliar crónica).
indices in Wilson disease: a case series and cautionary tale. Pode também ser do tipo macronodular com
JPGN 2011; 52: 466-469 nódulos de tamanhos variáveis (até 5cm), separa-
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011 dos por largos septos, ou de tipo micronodular,
Kliegman RM, Stanton BF, et al. Nelson Textbook of Pediatrics. com nódulos de tamanho uniforme (<1 cm),
Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011 separados por septos finos. Pode haver formas
Teodoro T, Neutel D, Lobo P, et al. Recovery after copper- mistas (macro e micromodulares).
deficiency myeloneuropathy in Wilson´s disease. J Neurol O processo fibrótico progressivo conduz a
2013; doi 10.1007/s00415-013-6963-6 alteração do débito sanguíneo em geral, do que
Walker WA, Goulet O, Kleinman RE (eds). Pediatric resulta disfunção hepática e aumento da resistên-
Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004 cia intra-hépatica ao débito sanguíneo que provém
da veia porta. Em centros especializados de hepa-
tologia tem sido investigado o papel das lipopro-
teínas oxidadas de baixa densidade na patogénese
da esteato-hepatite não alcoólica, o que poderá
594 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Causas de cirrose hepática Os sinais físicos incluem eritema palmar e


plantar, aranhas vasculares, dedos em baqueta de
Doenças biliares tambor e dilatação das veias da parede abdominal.
Atrésia das vias biliares Por vezes o fígado é pequeno e não palpável.
Quisto do colédoco Noutros casos está aumentado, é duro e nodular à
Síndroma de Alagille, hipoplasia biliar palpação.
Colestase intra-hepática familiar
Colangite esclerosante Diagnóstico
Doenças hepáticas ou pós-necróticas
Hepatite neonatal A confirmação do diagnóstico depende da
Hepatite B interpretação da biópsia hepática, a qual confirma
Hepatite C o tipo e grau de actividade da cirrose e contribui
Hepatite D para o diagnóstico etiológico da mesma. Salienta-
Hepatite autoimune -se que existe fraca correlação entre a histologia e
Drogas e tóxicos o estado clínico.
Doenças metabólicas No entanto, as investigações laboratoriais e
Défice de Alfa-1 antitripsina imagiológicas (ecografia, TAC, RMN, PET, etc.)
Doença de Wilson devem ser efectuadas antes da biópsia hepática no
Hemocromatose intuito da avaliação global da função hepática e
Galactosémia, frutosémia, doenças de armazenamento do esclarecimento etiológico.
de glicogénio Nalguns casos de cirrose moderada ou grave,
Tirosinémia, doenças do ciclo de ureia os resultados da avaliação laboratorial são normais.
Doença de Gaucher, Niemann-Pick tipo C, síndroma de Em geral existe elevação moderada das
Zellweger aminotransferases e da gama-glutamil-transpepti-
Vascular
dase (GGT) com hipoalbuminémia. O tempo de
Trombose da veia porta, síndroma de Budd-Chiari
protrombina encontra-se elevado e não responde
Doença veno - oclusiva
à vitamina K. Em caso de hiperesplenismo existe
Doenças cardíacas
anemia, leucopénia e trombocitopénia.
A ecografia abdominal permite identificar a
implicar no futuro novas armas terapêuticas para a textura e a presença de nódulos hepáticos, a exis-
doença hepática crónica. tência ou não de esplenomegália, e o fluxo no
sistema porta. (Quadro 2)
Manifestações clínicas Na era da transplantação hepática, tentando
avaliar-se mais objectivamente a gravidade da
Na cirrose hepática compensada a criança pode doença hepática crónica, são usados determinados
encontrar-se assintomática, anictérica e evidenciar índices para pontuação de determinados critérios.
provas de função hepática normais Decalcado do adulto, para crianças com < 12 anos,
A primeira indicação de doença hepática pode o chamado índice PELD (Pediatric Endstage Liver
ser o achado acidental de uma hepato-esplenome- Disease) integra os seguintes parâmetros: albumina
gália ou esplenomegália isolada, ou apenas sérica, bilirrubina, INR, peso, estatura, género, e
alteração das transaminases ou da fosfatase idade.
alcalina. Em geral suspeita-se de doença hepática
crónica pelas manifestações clínicas das suas Complicações
complicações tais como ascite, hemorragia gas-
trintestinal ou encefalopatia hepática. As complicações de doença hepática crónica são
Mal-estar geral, anorexia, náuseas ou restrição devidas primariamente à deterioração da função
de crescimento são sintomas frequentes, mas hepática e da colestase.
inespecíficos. A icterícia pode estar presente ou As complicações mais frequentes são as
ausente. alterações progressivas da nutrição, designada-
CAPÍTULO 120 Cirrose hepática 595

QUADRO 2 – Exames complementares QUADRO 3 – Complicações de cirrose na idade


pediátrica
Investigação geral
Exames laboratoriais Má-nutrição e restrição de crescimento
Hemograma Desidrogenase láctica Hipertensão portal e hemorragia de varizes esofágicas
Bilirrubina total e conjugada Albumina Hiperesplenismo
Fosfase alcalina Tempo de protrombina Ascite
Gama-glutamiltranferase Colesterol total Encefalopatia
Aminotransferases Alfafetoproteína Coagulopatia
Outros exames Síndroma hepatopulmonar
Ecografia hepática Infecções bacterianas, peritonite bacteriana
Endoscopia digestiva alta Carcinoma hepatocelular
Biópsia hepática
Investigação etiológica específica
Exames laboratoriais e imagiológicos para as diferentes suficiência hepática num período de 10 a 15 anos.
causas (De acordo com as possíveis causas de cirrose Nos doentes com cirrose biliar o prognóstico é seme-
hepática – Quadro 1.) lhante, excepto nos casos cuja correcção cirúrgica
leva à regressão ou à estabilização da doença.
Quando surgem complicações como ascite,
mente deficiência em vitaminas lipossolúveis e hemorragia gastrintestinal e insuficiência renal, a
minerais, infecções refractárias ao tratamento, e as sobrevivência é muito curta.
manifestações de hipertensão portal. O carcinoma
hepatocelular pode complicar qualquer forma de BIBLIOGRAFIA
cirrose, em particular nos doentes com tirosinémia Balistreri WF. Pediatric Hepatology. A half century of progress.
do tipo 1 e hepatites B e C crónicas. (Quadro 3) Clin Liver Dis 2000;4: 191-210
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
Tratamento Diniz de Freitas (ed.) Doenças do Aparelho Digestivo. Lisboa:
AstraZeneca, 2002
O tratamento pretende evitar a progressão da Duarte MASM, Silva GAP. Esteatose hepática em crianças e
doença hepática e prevenir as suas complicações. adolescentes obesos. J Pediatr (Rio J) 2011;87(2)
É necessário avaliar o prognóstico de modo a http://dx.doi.org/10.1590/S0021-75572011000200011
programar uma terapêutica definitiva através da Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
transplantação hepática. Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
Actualmente não existe tratamento eficaz para a Nobili V, Svegliati-Baroni G, Alisi A, et al. A 360-degree
cirrose mas, quando existe patologia tratável (ex. overview of paediatric non-alcoholic fatty liver disease
doença de Wilson, galactosémia ) ou possibilidade (NAFLD): recent insights. J Hepatol 2013; 58:1218-1229
de ser controlada (fármacos, VHC, VHB), o curso da Ozkol M, Ersoy B, Kasirga E, et al. Metabolic predictors for
doença pode ser alterado com a remissão da fibrose. early identification of fatty liver using doppler and B-mode
O transplante hepático está indicado nos ultrasonography in overweight and obese adolescents. Eur
doentes com cirrose progressiva ou nas compli- J Pediatr 2010; 169: 1345-1352
cações não controláveis. Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA(eds).
Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw -Hill Medical , 2011
Prognóstico Walenberg SMA, Koek GH, Bieghs V, et al. Non-alcoholic
steatohepatitis:the role of oxidized low-density lipoproteins.
A transplantação hepática e a terapêutica específica J Hepatol 2013; 58: 801-810
para muitas das causas de doença hepática crónica Walker WA, Goulet O, Kleinman RE (eds). Pediatric
aumentaram a sobrevivência a longo prazo. Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004
A cirrose pós-necrótica tem uma evolução im- http://www.unos.org/resources/meldpeldcalculator.asp
previsível. Sem transplante, a morte ocorre por in- (acesso em Julho 2013)
596 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

121
QUADRO 1 – Causas de hipertensão portal

Pré-hepáticas
Trombose da veia porta
Trombose da veia esplénica

HIPERTENSÃO PORTAL Intra-hepáticas


Pré sinusoidal
Maria de Lurdes Torre Esquistossomíase
Fibrose hepática congénita
Neoplasias
Quistos hepáticos
Definição Sinusoidal
Cirrose/doença hepática crónica
É definida como a elevação persistente da pressão Pós sinusoidal
venosa portal > 10-12 mmHg (normal entre 5-10 Doença venoclusiva
mmHg). Efectivamente, as complicações de
hipertensão portal não ocorrem até que o gra- Pós-hepáticas
diente de pressão portal (gradiente entre a veia Trombose da veia hepática (síndroma de Budd-Chiari)
porta e a veia cava inferior) exceda os 12 mmHg. Insuficiência cardíaca direita
O aumento da resistência ao débito do sangue Pericardite constritiva
portal – a anomalia hemodinâmica primária –
origina esplenomegália e desenvolvimento de
vasos colaterais porta-sistémicos em vários locais Muitas das complicações podem ser expli-
(varizes no esófago distal, gástricas, ano-rectais, cadas pelo desenvolvimento de circulação colate-
umbilicais e da parede abdominal). ral relevante em áreas em que o epitélio da absor-
ção se junta ao epitélio estratificado (sobretudo
Etiopatogénese esófago e região ano-rectal).
Ao nível do estômago verifica-se ectasia
As causas de hipertensão portal podem ser vascular que origina o quadro designado por
classificadas de acordo com o nível em que ocorre gastropatia congestiva.
a obstrução ao fluxo sanguíneo em:
– Pré-hepáticas Manifestações clínicas
– Intra-hepáticas
– Pós hepáticas. (Quadro 1) Existem quatro manifestações clínicas principais:
A causa mais frequente de hipertensão portal – Hemorragia gastrintestinal
é a cirrose hepática. – Esplenomegália
A trombose da veia porta, a causa mais frequente – Ascite
de obstrução extra-hepática, pode ser secundária a – Encefalopatia porta-cava.
cateterismo da veia umbilical (30% dos casos), a A hemorragia gastrintestinal é a forma de
onfalite, a anomalias congénitas ou a sépsis. apresentação mais comum (50-90% dos casos). Na
A doença venoclusiva é relativamente rara e maioria dos episódios surge por ruptura de
ocorre após transplante medular ou em doentes varizes esofágicas, mas o sangramento pode ter
imunodeficientes. origem noutros locais do tubo digestivo; tal
A síndroma de Budd-Chiari (trombos desen- implica a necessidade emergente de identificar o
volvidos na veia hepática e na veia cava inferior) local de lesão. As hematemeses são abundantes ou
surge geralmente em adultos jovens. Está relacio- moderadas, surgindo geralmente após um
nada com síndromas mieloproliferativas ou episódio de dor abdominal associada a palidez
estados tromboembólicos. cutânea. As melenas surgem simultaneamente ou
CAPÍTULO 121 Hipertensão portal 597

depois. Por vezes constituem a manifestação QUADRO 2 – Diagnóstico de hipertensão


isolada da hemorragia intestinal. portal
A esplenomegália moderada é o sinal físico
mais frequente e a forma de apresentação em 25% Exame físico
dos casos. O baço tem consistência firme ou dura, Esplenomegália
dependendo da duração da hipertensão portal. O Vasos na parede abdominal proeminentes
hiperesplenismo está associado a anemia, trombo- Ascite
citopénia e ou leucopénia. Hemorróidas
A ascite esta associada à hipertensão de causa Sinais de doença hepática crónica
sinusoidal ou pós-sinusoidal. É rara na forma pré- Exames laboratoriais
sinusoidal. Hemograma
A encefalopatia porta-cava é dificilmente Bilirrubina total e fraccionada
diagnosticada na criança. Os sinais e sintomas são Fosfatase alcalina
mal definidos e incaracterísticos: perda de Gama-glutamiltranspeptidase
capacidades intelectuais; alterações de consciên- Aminotransferases
cia e sinais neuromusculares como ataxia e Desidrogenase láctica
tremor. Esta situação ocorre nos doentes com Albumina
doença hepática grave com derivações porta- Tempo de protombina
sistémicas. Ionograma sérico
Outra manifestação frequente é a vascu- Outros exames
larização abdominal proeminente devida ao Ecografia e eco doppler abdominal
desenvolvimento de colaterais; denomina-se Endoscopia gastrintestinal
“cabeça de medusa” quando estes vasos irradiam do Angiografia
umbigo.

Diagnóstico – Varizes com hemorragia


– Ascite
Frequentemente o diagnóstico é efectuado através – Encefalopatia
da anamnese e exame físico; podem, no entanto, – Esplenomegália
ser realizados vários exames complementares.
A ecografia abdominal permite confirmar e Tratamento
dimensionar a esplenomegália, a existência de
colaterais vasculares e o seu diâmetro. A actuação terapêutica na hipertensão portal,
A utilização de ecografia doppler dá informação sintetizada no Quadro 3, pode ser dividida em
quanto a velocidade e direcção do fluxo sanguíneo tratamento de emergência da hemorragia aguda
na veia porta, veias hepáticas e veia cava. com risco vital, e profilaxia dirigida à prevenção
A endoscopia digestiva é usada para detectar e de hemorragia inicial ou subsequente.
avaliar varizes gastro-esofágicas e ano-rectais. Nos casos de hemorragia aguda por ruptura de
A angio-ressonância tem sido utilizada como varizes está indicada a ressucitação com flui-
alternativa não invasiva à angiografia convencio- doterapia (inicialmente cristalóides IV seguindo-se
nal. A angiografia é importante antes da transfusão de concentrado eritrocitário). Igualmente:
realização da derivação cirúrgica porta-sistémica e correcção da coagulopatia com administração de
de transplante hepático. (Quadro 2) vitamina K, transfusão de concentrado de plaquetas,
plasma fresco congelado, ou terapêuticas associadas.
Complicações Ao doente deverá ser aplicada sonda nasogás-
trica para documentar eventual hemorragia gastrica.
As quatro complicações major podem considerar- Para reduzir o risco da hemorragia gástrica,
se simultaneamente as principais manifestações está indicada a administração de bloqueantes de
clínicas: receptores H2 por via IV (por ex. ranitidina).
598 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Tratamento da hipertensão portal

Complicação Tratamento
Hemorragia por varizes esofágicas Octreotido intravenoso. Tamponamento com balão para controlar
hemorragia activa. O propranolol pode ser útil na prevenção de
hemorragias recorrentes. Escleroterapia ou laqueação de varizes.

Ascite Restrição salina, espironolactona, furosemido, albumina, paracentese,


derivação porta-sistémica, transplantação hepática.

Encefalopatia hepática Restrição proteica, glucose endovenosa, neomicina, lactulose,


plasmaferese, transplantação hepática.

Hiperesplenismo Sem intervenção, embolização esplénica parcial, derivação porta-


sistémica, transplantação hepática.

Nos casos de hemorragia mantida está indi- Narayann-menon KV, Shah V, Kamath PS. The Budd Chiari
cada a administração de vasopressina ou de syndrome. NEJM 2004; 350: 578-584
análogos, com objectivo de aumentar o tono vas- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
cular esplâncnico e, consequentemente, o débito AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw -Hill
sanguíneo portal: bolus de 0,33U/Kg em 20 minu- Medical , 2011
tos, seguido por administração IV contínua Shneider BL, Abel B, Haber B, et al. Portal hypertension in
(0,2U/1,73m2/minuto). children and young adults with biliary atresia. JPGN 2012;
Com idêntica acção farmacológica pode 55:567-573
utilizar-se o octreotido (análogo da somatostatina) Shneider BL, Bosch J, de Franchis R, et al. Portal hypertension
IV na dose de 1-5 mcg/kg/hora. in children: Methodology of diagnosis and therapy.
Outra medida emergente é a aplicação do tubo Pediatr Transplant 2012; 16: 426-437
com balão para tamporamento (tubo de Walker WA, Goulet O, Kleinman RE (eds). Pediatric
Sengstaken-Blakemore). Gastrointestinal Disease. Hamilton, Ontario: Decker, 2004
Outras medidas são referidas no mesmo
quadro, salientando-se que este tipo de problema
deverá ser tratado num centro especializado.

BIBLIOGRAFIA
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children’s 15 year experience. J Am Coll Surg 2004; 199: 179-
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Kelly A (ed). Diseases of the Liver and Biliary System in
children. London: Blackwell Publishing, 2004
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
Saunders, 2011
CAPÍTULO 122 Insuficiência hepática aguda 599

122
QUADRO 1 – Causas de insuficiência hepática
aguda

Período neonatal
Infecciosa
Herpes vírus
INSUFICIÊNCIA HEPÁTICA Echovírus
Adenovírus
AGUDA Metabólica
Hemocromatose neonatal
Galactosémia
Maria de Lurdes Torre
Doenças mitocrondriais
Isquémia
Doença cardíaca congénita
Miocardite
Definição e importância do problema Asfixia grave

A insuficiência hepática aguda é definida como Período pós-neonatal


doença multissistémica com alteração grave da fun- Infecciosa
ção hepática, com ou sem encefalopatia, que ocorre Hepatites víricas
em associação a necrose hepatocelular num doente (A, B, D, E, B+D associadas); outros vírus
sem evidência de doença hepática crónica prévia. Fármacos
Pela definição mais comum utilizada em Paracetamol
medicina dos adultos considera-se fundamental Valproato
para a definição de insuficiência hepática aguda o Isoniazida
aparecimento precoce de encefalopatia (difícil de Tóxicos
detectar em crianças e lactentes); e coagulopatia Amanita phalloides
Metabólica
até 8 semanas após o início de doença hepática na
Doença de Wilson
ausência de patologia hepática anterior.
Autoimune
Trata-se duma situação rara em idade pediátrica
Hepatite
com uma mortalidade elevada (80% nos casos não
Isquémia
submetidos a transplantação hepática). A frequência Doença cardíaca congénita
varia com o grupo etário e a distribuição geográfica. Miocardite
Síndroma de Budd-Chiari
Etiopatogénese

O Quadro 1 discrimina as principais causas de A destruição maciça dos hepatócitos pode ser
insuficiência hepatica aguda. Salienta-se que as explicada, quer por efeito citotóxico directo, quer
hepatites por vírus C e E são causas raras de por resposta autoimune/hiperimune aos anti-
insuficiência hepática fulminante na maioria das génios víricos.
séries publicadas. No que respeita a outros vírus Outros factores associados à lesão do hepa-
incluem-se: VEB, herpes simples, adenovírus, tócito incluem: alteração do processo de regenera-
enterovírus, CMV, parvovírus B19, varicela-zoster. ção, hipoperfusão sanguínea do parênquima,
De referir ainda as formas ditas idiopáticas que endotoxémia, e depressão da função do SRE.
explicam cerca de 40-50% dos casos pediátricos. O mecanismo da encefalopatia pode rela-
O mecanismo que conduz à insuficiência cionar-se com a hiperamoniémia, incremento da
hepática fulminante não está completamente actividade dos receptores de GABA e incremento
esclarecido, desconhecendo-se designadamente a de nivéis circulantes de compostos endógenos
razão pela qual somente em cerca de 1-2 % de formados, semelhantes a benzodiazepinas; todos
doentes com hepatite vírica surge o referido quadro. estes produtos têm o seu processo de depuração
600 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

hepática comprometido, num círculo vicioso. Diagnóstico


Existem dois tipos de lesões básicas:
– Necrose hepática extensa com colapso da É baseado nos achados de coagulopatia e
arquitectura lobular. É mais frequente nos casos encefalopatia em associação a doença hepática de
provocados por vírus hepatotrópicos, intoxicação início recente (< 8 semanas).
por paracetamol e intoxicação por cogumelos. O Quadro 2 integra o conjunto de exames
– Degenerescência hepatocelular com estea- laboratoriais, imagiológicos e neurofisiológicos a
tose maciça. Indica infiltração gorda difusa com realizar em função dos antecedentes e da doença
necrose hepática pouco extensa. Está associada a actual. Essencialmente, as alterações laboratoriais
doenças metabólicas e a intoxicação por ácido incluem elevação da bilirrubina sérica, e do nível
acetil-salicílico e ácido valpróico. sérico das aminotransferases (> 3000 UI/L), este
Ahepatite fulminante conduz a uma falência mul- último diminuindo na fase em que a função hepá-
tiorgânica que afecta em particular o cérebro e o rim. tica se agrava. Existe ainda hipoalbuminémia,
O processo de lesão hepática depende de três hipoglicémia, prolongamento do tempo de
factores: protrombina e elevação da amoniémia.
– Susceptibilidade do hospedeiro (exemplo:
recém-nascido no qual se desenvolve hepatite Tratamento
fulminante pelo vírus da hepatite B);
– Natureza do agente agressor (exemplo: dose Não existe tratamento específico para a insuficiên-
de paracetamol);
– Capacidade de regeneração hepática depri- QUADRO 2 – Avaliação da insuficiência
mida a qual constitui um factor crucial para a hepática aguda
sobrevivência.
Investigação geral
Manifestações clínicas Exames Laboratoriais (sangue)
Hemograma
A apresentação clínica varia com a etiologia. Tempo de protrombina (TP) e INR*
É frequente um quadro de coagulopatia (he- Doseamento do Factor V
matomas fáceis, hemorragia abundante de feridas, Bilirrubina total e fraccionada
espistaxe), encefalopatia (alteração de persona- Aminotransferases
Fosfatase alcalina
lidade, comportamentos bizarros) e hipoglicémia.
Gama-glutamiltranspeptidase
Por definição a encefalopatia ocorre em 100%
Proteínas totais e albumina
dos doentes, (mas de detecção mais difícil em
Amónia
lactentes, como foi referido atrás). Glicose
A icterícia é comum, mas pode não estar pre- Ureia e creatinina
sente nos estádios iniciais. Ionograma
O agravamento da função renal com oligoa- Exames imagiólogicos
núria é outro achado frequente. Radiografia do tórax
O prolongamento súbito do tempo de Ecografia abdominal
protrombina > 15 segundos sugere falência Tomografia axial computadorizada
hepática. Ressonância magnética crânio-encefálica
Existem dois tipos de apresentação: Exame neurofisiológico
– Forma fulminante com evolução rápida para EEG
o coma. Investigação etiológica
– Forma de hepatite benigna com agravamen- Exames laboratoriais e imagiológicos para as diferentes
to súbito na segunda semana de doença, com causas
(Quadro 1)
aparecimento de febre, anorexia, vómitos, alte-
ração do sensório, hemorragias generalizadas e * Diagnóstico de coagulopatia; 1) na presença de encefalopatia hepática: INR > 1,5 e TP = ou > 15
segundos; 2) na ausência de encefalopatia hepática: INR > 2 e TP = ou > 20 segundos
deterioração da função hepática.
CAPÍTULO 123 Transplantação hepática 601

123
cia hepática excepto a transplantação hepática.
O tratamento com a aplicação de medidas gerais
tem por objectivo a prevenção e tratamento das
complicações enquanto o doente aguarda a recupe-
ração espontânea, ou um dador compatível para a
referida transplantação hepática. Estes doentes
devem ser internados em unidades de cuidados TRANSPLANTAÇÃO HEPÁTICA
intensivos e encaminhados precocemente para
centros especializados. Isabel Gonçalves

Prognóstico

O prognóstico em geral é grave se não for História e estado da arte


efectuada transplantação hepática. As crianças
com idade inferior a 10 anos têm pior prognóstico. A transplantação (ou transplante) é a intervenção
Os doentes com intoxicação por paracetamol pela qual se procede à transferência de um tecido
têm melhor recuperação do que aquela com ou de um órgão para outra parte do mesmo
outros fármacos hepatotóxicos (53% vs 12%). indivíduo (autotransplante), ou para um indivi-
A insuficiência hepática por hepatite A tem duo diferente (alotransplante).
uma sobrevivência de 68% enquanto nas outras A transplantação hepática (TH) mudou dra-
hepatites a sobrevivência é cerca de 20%. maticamente o prognóstico dos doentes com
Os indicadores de pior prognóstico são a hepatopatia crónica, de 100% de mortalidade para
encefalopatia grave, tempo de protrombina superior 90% de sobrevida. Foi tentada pela primeira vez
a 50 segundos e bilirrubinémia > 17,5 mg/dl. em 1963, em Denver, Boston e Paris, sem sucesso.
Na intoxicação por paracetamol são indica- Nessa altura a imunossupressão disponível
dores de má evolução o pH <7,3 e a creatinina incluía apenas azatioprina e soro anti-linfócito. De
superior a 3,4 mg/dl. 1967 a 1978 a sobrevida em adultos e crianças que
É importante a avaliação de factores de pro- tinham um dador anatomicamente compatível
gnóstico de modo a definir a data mais adequada não ultrapassava 40% e a transplantação era enca-
para a transplantação hepática. rada como terapia experimental.
Em 1978 R. Calne introduziu na prática da
BIBLIOGRAFIA transplantação a ciclosporina associada aos corti-
Cochran JB, Losek JD. Acute liver failure in children. Pediatric coides em altas doses e, na década seguinte, a
Emergency Care 2007; 23:129-135 sobrevida dos doentes atingiu 80%. Assim, o inter-
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011 esse pela TH ressurgiu simultaneamente em
Dhawan A, Cheeseman P, Mieli-vergan IG. Apppoaches to vários centros Europeus e dos EUA. Actualmente
acute liver failure, in children. Pediatr Transplant 2004; 8: é um procedimento terapêutico bem estandardi-
584-588 zado com critérios alargados a doentes com hepa-
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson topatia crónica ou aguda /fulminante e a muitos
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, tipos de tumores. Os critérios foram ao longo do
2011 tempo modificados para se adaptarem à escassez
Shawcross D, Jallan R. Dispelling Myths in the treatment of crescente de dadores e para garantir uma distri-
hepatic encaphalopathy. Lancet 2005; 265:431-433. buição de órgãos mais equitativa.
Squires RH, Dhawan A, Alonso E, et al. Intravenous N- As crianças só vieram a beneficiar deste proce-
acetylcysteine in pediatric patients with nonacetaminophen dimento na década de 90, quando tecnicamente
acute liver failure. Hepatology 2013; 57: 1542-1549 foi possível reduzir fígados de dadores adultos, de
Sundaram V, Shneider BL, Dhawan A, et al. KIng´s College modo a obter um enxerto de dimensões adaptá-
Hospital criteria for non-acetaminophen induced acute liver veis a crianças, mesmo para as que tinham peso
failure. J Pediatr 2013; 162:319-323 inferior a 10 Kg e que até aí eram praticamente
602 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

excluídas da transplantação. Este primeiro marco Fígado auxiliar e transplante


na história da transplantação pediátrica permitiu de células
reduzir a mortalidade em lista de espera de 60%
para menos de 20% na maioria dos centros de TH. Ambas são modalidades de transplante, exclusi-
Esta percentagem continuava, contudo a ser vas de Centros de Transplante Pediátrico de refe-
inaceitável e novas técnicas começaram a ser rência.
divulgadas como o Split Liver (bipartição do O TH com “fígado auxiliar”é tecnicamente
enxerto em dois fragmentos para utilização em mais complexo e aplicável a 2 tipos de situação:
dois recetores) e o uso de Dadores Vivos. 1 – Hepatites fulminantes, permitindo recupe-
Na última década o TH de crianças a partir de rar a catástrofe metabólica instalada na insuficiên-
dador vivo (DV) parental tornou-se a variante téc- cia hepática e substituir o fígado nativo até que
nica mais promissora, com maior sobrevida e haja recuperação total. A recuperação total foi
menor lesão do enxerto. Curiosamente, a incidên- demonstrada em pequenas séries, ocorrendo em
cia de rejeição celular aguda não diminuiu como 60 % dos doentes e permitindo em média, ao fim
seria de esperar, dada a maior proximidade imu- de um ano, abandonar a imunossupressão face à
nológica do dador e receptor. regeneração do fígado nativo. O enxerto sofre pro-
Um programa de DV envolve custos mais ele- cesso de atrofia e não necessita de ser removido. O
vados, risco de morte do dador (5 /10000), e mor- paciente, ainda que de forma diferida, recupera o
bilidade não desprezável (15 a 20%). estado clínico e imunológico de normalidade.
Inicialmente foi aceite pelas Comissões de 2 – Doenças metabólicas, em que o défice
Ética como um procedimento a efectuar apenas enzimático no fígado provoca lesões graves extra-
em crianças com doença crónica e relativamente hepáticas, mas não há lesão hepática progressiva.
electivas para permitir uma decisão do dador O fígado auxiliar substitui a enzima deficiente e
mais amadurecida, sem as pressões inerentes às permite reter o fígado nativo até surgir a cura pela
situações de morte iminente. Progressivamente foi terapia génica (por exemplo: síndroma de Crigler-
alargada a situações urgentes (hepatites fulmi- Najjar 1, acidémia propiónica, etc.).
nantes ou falência aguda em contexto de hepato- Nos últimos 20 anos a ausência de avanços na
patia crónica algo que ainda é alvo de polémica terapia génica tornou questionável o uso de fíga-
nalguns centros. Com efeito, o uso de dadores do auxiliar (porque tecnicamente mais complexo
vivos contraria um princípio ético básico em e menos acessível aos doentes em geral) e este
Medicina – primum num nocere, já que constitui procedimento tende a ser abandonado. Para pato-
uma mutilação induzida em pessoa saudável com logias com deficiências enzimáticas de expressão
risco de morte. Eticamente a transplantação com hepática maioritária, novas técnicas como o trans-
DV é aceitável se: plante de hepatócitos ou de células progenitoras
– O TH for a única opção terapêutica; hepáticas (ainda mais promissora mas em início
– A possibilidade de obter um dador cadáver de investigação) são actualmente mais defensá-
em tempo útil for baixa veis.
– O receptor tiver uma probabilidade elevada
de sobreviver ao TH, com qualidade de vida; Transplante de hepatócitos,
– O risco de morte para o dador for inferior a stem-cells e células progenitoras
1% e a morbilidade previsível inferior a 10%. hepáticas
Nenhum tipo de pressão deve ser exercida
sobre o potencial dador nos diálogos de decisão (o Estas alternativas ao transplante ortotópico clássi-
que na pratica é utópico). co, destinam-se essencialmente ao grupo de doen-
A lei previa inicialmente a doação entre indiví- ças metabólicas cujo defeito enzimático é predo-
duos com graus de parentesco até ao 3º grau , mas minantemente hepático não determinando cirrose
foi revista recentemente (Lei nº 22/2007 de 29 de avançada. Embora teoricamente possa ser usada
Junho.), permitindo a doação entre casais ou entre em todas as doenças hepáticas, na prática os
pessoas com laços de proximidade. doentes com cirrose e hipertensão portal estabele-
CAPÍTULO 123 Transplantação hepática 603

cida obterão apenas, com este procedimento uma transplantadas 155 crianças, a que correspondem
“ponte” para o transplante definitivo. 180 transplantes; estes incluem, desde 2001, 24
Até à data foram efectuados transplantes de casos com DV. A sobrevida global actual é de 84%,
hepatócitos num número reduzido de doentes com um seguimento em mediana de 10 anos. O
pediátricos com as seguintes patologias: doença de processo de transição para os adultos é efectuado
Crigler-Najjar, acidémias orgânicas e hepatites ful- entre os 17 e 18 anos, salientando-se que a maioria
minantes. Tecnicamente é um procedimento destes jovens tem uma boa qualidade de vida e
simples, seguro e pouco invasivo para o doente, já uma integração social plena.
que é apenas necessário inserir um cateter na veia
porta para injecção diária de uma suspensão de Indicações e contraindicações
hepatócitos (máximo 1x108 células / kg peso da
criança). Na prática a fundamentação é baseada na A atrésia das vias biliares extra-hepáticas
verificação de que em poucos dias os hepatócitos (AVBEH) constitui 40 – 50 % das indicações para
injectados no fígado receptor proliferam e são TH em idade pediátrica (80% se considerarmos a
capazes de substituir a função dos hepatócitos nati- faixa etária abaixo dos 2 anos). A falência hepática
vos. A médio-longo prazo esperava-se que as célu- aguda representa 10-15%, e o grupo das doenças
las injectadas se tornassem a população dominante, metabólicas, cerca de 20%. Os restantes 20%
assumindo as funções metabólicas deficitárias. englobam várias situações como colestases pro-
Tal como no transplante clássico, é necessário gressivas intra-hepáticas, tumores, hepatites víri-
usar imunossupressão em esquemas sobreponí- cas, hepatites autoimunes.
veis. De referir que a procura de fígados para As contraindicações absolutas têm vindo a
obter hepatócitos viáveis enferma dos problemas diminuir ao longo do tempo e actualmente dizem
da TH clássica, embora permita utilizar alguns respeito a: coexistência de sépsis e falência mul-
segmentos de parênquima que seriam eliminados tiorgânica nos casos de insuficiência hepática
por anomalias biliares ou vasculares. No trans- aguda ou crónica agudizada, disseminação
plante de hepatócitos o laboratório de células é metastática tumoral e lesão neurológica grave
uma estrutura fundamental e o maior investimen- associada. Os dados são ainda insuficientes para
to a ter em conta quando se opta por aceder a esta validar a indicação em doenças com envolvimen-
técnica em determinada instituição. Por este moti- to multissistémico como nas deleções de DNA
vo, raros centros na Europa a iniciaram, mantendo mitocondrial de expressão inicial hepática . Os
uma actividade clínica e de investigação nesta doentes com infecção pelo vírus VIH e as síndro-
área. Uma década passada sobre o uso deste pro- mas portopulmonares têm vindo a ser incluídos
cedimento em vários centros não permite manter com critérios restritos.
a euforia inicial já que vários mecanismos impe- No Quadro 1 estão representadas as principais
dem a fixação prolongada dos hepatócitos de indicações de TH em três centros europeus.
modo a libertar o doente totalmente da sua terapia
de base seja a fototerapia (C. Najjar 1) ou as dietas A avaliação pré-TH, peri
restritivas no caso de doenças metabólicas. e pós-operatória
Espera-se que as células progenitoras hepáticas
contornem este problema de manutenção e proli- A avaliação pré-TH pressupõe um diálogo dinâ-
feração de uma massa hepatocitária saudável e mico entre a instituição que referencia a criança e
permanente. o centro que procede à transplantação, tentando
prever em cada doente um ponto em que o risco
TH em Portugal na idade pediátrica do referido problema é inferior ao da espera em
lista. Constitui ainda uma oportunidade de
Em Portugal o TH pediátrico com DC foi iniciado revisão diagnóstica, identificação de possíveis
em 1994 em Coimbra pela equipa de Transplan- contraindicações , melhoria do estado nutricional
tação dos Hospitais da Universidade de Coimbra, e avaliação psicossocial da família. O estado nutri-
chefiada por A. Linhares Furtado. Até 2012 foram cional dos receptores condiciona grande parte da
604 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Indicações de TH em 3 centros europeus

Etiologia King´s College1 Saint-Luc2 H.P.C. – H.U.C.3


Doença Hepática Crónica 82% 91% 84%
Falência Hepática Aguda 15% 6% 16%
Tumores 3% 3% 3%
AVBEH 41% 66% 30%
Colestase intra-hepática 12% 11% 13%
Doença hepática metabólica 16% 9% 30%
Outros 13% 5% 8%
1
Londres; 2Bruxelas; 3Coimbra

morbilidade e mortalidade pós-TH , sendo funda- seguir) os principais problemas a destacar são a
mental a intervenção nesta área enquanto se incidência de tumores em particular os relaciona-
aguarda a cirurgia. dos com primoinfecção ou reactivação do vírus de
A cirurgia de transplantação é complexa, pro- Epstein-Barr (EBV). Este agente pode induzir,
longada (8-15 horas), inevitavelmente invasiva e sobretudo nas crianças com menos de 5 anos, a
seguida de várias complicações, com um padrão síndroma de proliferação desregulada de linfóci-
previsível no tempo. No entanto a maioria dos tos B, ou síndroma linfoproliferativa (acrónimo
Centros demonstra uma curva de aprendizagem PTLD). A incidência tem diminuído de 12 a 20 %
que reflecte sobretudo um menor tempo cirúrgico (máximo registado na década de 90) para 2 a 4%
e de isquémia do enxerto, a par da diminuição da graças ao uso de imunossupressão mais reduzida
necessidade de transfusão, factores que, em e a uma atitude de vigilância intensiva da carga
conjunto, permitem atingir 98 a 100% de sobrevi- vírica de EBV. A mortalidade é muito baixa quan-
da no primeiro ano pós transplante e uma quase do comparada com outros linfomas utilizando
ausência de PNF, acrónimo que significa ausência uma estratégia de abordagem baseada na sus-
primária de função de enxerto. pensão da imunossupressão (excepto corticóides)
uso de valgangiclovir por períodos prolongados e
Complicações protocolos modificados de quimioterapia.
Rejeição: A última década foi marcada por
As complicações precoces (até 3 meses) podem enormes avanços na área da imunossupressão. Na
subdividir-se em 2 períodos: A – fase de estadia em maioria dos centros os doentes pediátricos rece-
UCI, reflectindo o grau de função do enxerto, ava- bem imunossupressão dupla geralmente tacroli-
liada em termos de recuperação neurológica, mus (CNi, inibidor da calcineurina) e corticóide
valor de protrombinémia, alcalose ou acidose. ou anticorpos monoclonais (anti-receptor da IL2)
Podem ainda ocorrer insuficiência renal, hiper- e tacrolimus em dose diminuída, não usando cor-
tensão arterial grave, sépsis e falência multiórgão. ticóide. A evicção dos corticóides tem vantagens
B – fase pós-UCI, até 3 meses: 30% dos doentes são óbvias nos pacientes pediátricos mas os estudos
reoperados por: problemas vasculares (4 a 20%), mais recentes dividem-se quanto à possibilidade
biliares (15 a 30%), perfuração intestinal e perito- de terapias universais sem corticóide. Na verdade,
nite ou drenagem de coleções ou hematomas. As enxertos estáveis aos 5 anos , que passam a mono-
infecções com ponto de partida abdominal ou terapia com tacrolimus, podem agravar a fibrose
relacionadas com cateteres centrais são também nos 5 anos seguintes. Estudos multicêntricos alea-
muito frequentes (pelo menos um episódio em torizados são fundamentais para clarificar esta
60% dos doentes), apesar da profilaxia antibiótica questão, bem como para uma melhor racionaliza-
de largo espectro instituída na primeira semana. ção na prescrição dos novos imunossupressores
As complicações tardias (> 3meses): – Para disponíveis. A chamada e proclamada “imunossu-
além da rejeição e das hepatites auto /aloimunes pressão por medida” continua a ter protocolos
de novo (a que será feita referência especial a pouco baseados na evidência sobretudo pela falta
CAPÍTULO 123 Transplantação hepática 605

de marcadores biológicos e imunológicos que tra- tias e, simultaneamente, uma nova doença crónica
duzam, de forma mantida e confiável, o estado de com inúmeras complicações. Consegue-se, apesar
imunossupressão de cada paciente individual. de tudo, uma sobrevida de 90% a 95% no 1º ano
Apesar de persistirem algumas limitações na pós-cirurgia, estimando-se um acréscimo de mor-
compreensão e suporte teórico dos protocolos talidade/ano de 0,5 % nos anos subsequentes. O
actuais de imunossupressão assiste-se a uma objectivo primordial em termos de investigação é
redução da taxa de rejeição celular aguda nas pri- criar um imunossupressor que, actuando nas pri-
meiras 6 semanas ( de 50 para 30 % ), e a uma me- meiras horas ou dias pós-cirurgia permite uma
lhor abordagem da disfunção crónica de enxerto interacção “quimérica” vitalícia na relação enxer-
de causa desconhecida /imune. A taxa de rejeição to / receptor. Viver sem imunossupressão e me-
crônica mantém-se na taxa 3-5 %, mas a necessi- lhores marcadores desta relação imunológica
dade de retransplante precoce (< 6 meses) por parece ainda ser utópico quando relemos e reve-
rejeição crónica em doentes com boa adesão tera- mos tudo o que se publica nesta área. É aparente-
pêutica é substancialmente menor. mente um Futuro distante, mas a ciência sur-
Hepatites auto/aloimunes de novo: Em 4% dos preende-nos sempre.
doentes pode surgir no 2º ano pós TH uma dis- Do ponto de vista prático os grandes avanços e
função de enxerto , similar serológica e histologi- preocupações na área da transplantação já não são
camente à hepatite autoimune. Designa-se como técnicos, mas sim estabelecer modelos de inter-
autoimune de novo embora na verdade seja um venção que melhorem a qualidade de vida dos
processo aloimune. Pouco se sabe ainda da sua pequenos sobreviventes. Falamos de integração e
fisiopatologia, sendo o seu tratamento sobreponí- sucesso escolar, de métodos para facilitar a adesão
vel ao usado na hepatite autoimune (essencial- terapêutica (tão preocupante nos adolescentes), de
mente reforço da corticoterápia e reintrodução da fertilidade e de procriação. No fundo, a medicina
azatioprina ou de micofenolato de mofetil). de transplantação foi crescendo com os seus
pequenos doentes e atingiu a idade adulta. Mais
Seguimento uma vezes construir esta ponte é uma preocupa-
ção e um trabalho dos Pediatras. Sobreviver é uma
Em ambulatório as crianças são observadas sema- realidade crescente, mas é fundamental ajudar a
nalmente nos primeiros 3 meses. Progressiva- sobreviver (Viver) com qualidade e plena integra-
mente as consultas vão sendo alargadas, realizan- ção social e laboral. Parte deste trabalho é extra-
do-se em mediana, de 3 - 3 meses a partir do 1º hospitalar e vai exigir o apoio da comunidade
ano pós-cirurgia. Uma larga maioria (> 80%) tem onde o doente reside. Para tal há que ter tempo
uma vida activa e “quase normal” abstraindo que para formação e sensibilização desta segunda rede
se mantém a doença crónica, nomeadamente o de cuidados, tão essencial como a hospitalar.
“fantasma” da rejeição ou da disfunção crónica do
enxerto. As famílias têm muitas vezes muito
receio da integração escolar e social dos pequenos BIBLIOGRAFIA
transplantados. Tratando-se de crianças imunode- Anthony SJ, Pollock Barziv S, Ng VL. Quality of life after
primidas, salienta-se que as banais infecções da pediatric solid organ transplantation. Pediatr Clin North
comunidade, não se manifestam com incidência Am 2010; 57:559-574
mais elevada. Aujoulat I, Deccache A, Charles AS, Janssen M, Struyf C,
As vacinas de vírus vivo e vivo atenuado têm Pélicand J, Ciccarelli O, Dobbels F, Reding R. Non-adheren-
sido contraindicadas pós-transplante. Deve ser ce in adolescent transplant recipients: the role of uncertain-
feito um esforço de cumprir/antecipar o progra- ty in health care providers. Pediatr Transplant 2011; 15:148-
ma de vacinação no 1º ano de vida quando se 156
prevê que o transplante ocorra entre os 12 e 18 Broering DC, Kim JS, Mueller T, Fischer L, Ganschow R, Bicak
meses. T, Mueller L,Hillert C, Wilms C, Hinrichs B, Helmke K,
Em suma, o TH é uma terapia curativa para Pothmann W, Burdelski M, Rogiers X. One hundred thirty-
mais de 80 % das crianças com diversas hepatopa- two consecutive pediatric liver transplants without hospi-
606 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

124
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plantation in children less than 1 year of age. J Pediatr 1990; crónicas caracterizadas pela destruição do tecido
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tation 2003; 27:735-738. ciadas a mutações genéticas), e a pancreatite autoi-
Venick RS, Farmer DG, McDiarmid SV, Duffy JP, Gordon SA, mune (cursando com elevação de gamaglobulinas,
Yersiz H, Hong JC,Vargas JH, Ament ME, Busuttil RW. de IgG ou IgG4 e a presença de autoanticorpos).
Predictors of survival following liver transplantation in A chamada PA recorrente é observada em
infants: a single-center analysis of more than 200 cases. cerca de 10% das crianças após um primeiro
Transplantation 2010; 89: 600-615 episódio de PA sendo mais frequente em crianças
com alterações estruturais, ou associada a doença
CAPÍTULO 124 Pancreatite 607

sistémica (lúpus eritematoso, fibrose quística) ou QUADRO 1 – Causas de pancreatite aguda


ainda a pancreatite familiar hereditária. Estão des- na criança
critos casos idiopáticos.
Neste capítulo é abordada apenas a PA. Comuns
Alterações biliares
Etiopatogénese Doenças sistémicas(LES,SHU,Choque)
Medicamentos
Na pancreatite a “autodigestão” da glândula Traumatismos
pelas suas próprias enzimas é um dos mecanis- Idiopáticas
mos essenciais. Menos Comuns
Normalmente o pâncreas está protegido deste Infecção
fenómeno por: 1 - armazenamento das enzimas Doenças metabólicas
em grânulos de zimogénio; 2 - secreção da maior Doenças genéticas/hereditárias
parte das enzimas em forma de precursores que Raras
se activam exclusivamente a nível duodenal; 3 - Mecanismos autoimunes
co-secreção de inibidores das proteases. Defeitos congénitos biliopancreáticos
A ruptura de um destes mecanismos de
protecção (por prevalecer o efeito do ou dos in-
sultos desencadeantes com a cooperação do cálcio pancreatite é desconhecido e provavelmente
ionizado), leva a activação prematura das proteases multifactorial.
das células acinares do pâncreas, estando demons- O trauma é também uma causa comum de PA
trado experimentalmente que as enzimas activadas na criança. Na maioria dos casos trata-se de
provocam: destruição proteolítica do tecido situação acidental (por exemplo queda sobre o
pancreático, necrose dos vasos sanguíneos com guiador da bicicleta); no entanto, os casos des-
consequente hemorragia, necrose gorda pelas critos resultantes de maus tratos são cada vez
enzimas lipolíticas, e infiltração de células inflama- mais frequentes.
tórias e edema. As anomalias estruturais pancreaticobiliares cons-
Salienta-se que após actuação do factor desen- tituem um factor predisponente, aumentando o
cadeante há libertação de citocinas com conse- risco de PA. A mais frequente é o pâncreas divisum;
quente depleção de antioxidantes e ulterior porém, as anomalias dos ductos pancreático ou
activação de pró-enzimas. biliar comum como os quistos do colédoco, os
Estas alterações ocorrem de modo diverso, coledococeles e pâncreas divisum parcial, são
desde a doença ligeira (necrose gorda peripan- também responsáveis por um considerável
creática e edema intersticial) à doença grave número de casos. A litíase constitui igualmente
(necrose gorda peri e intrapancreática, necrose do importante factor etiológico desta doença.
parênquima e hemorragia) associada a choque e Os vírus são os agentes infecciosos que mais
falência multiorgânica. O envolvimento pan- fequentemente causam PA na idade pediátrica.
creático pode ainda ser localizado ou difuso, com Destes, os mais comuns são: os da parotidite,
consequentes alterações, quer da função exócrina, enterovírus, vírus de Epstein-Barr (VEB), da
quer da endócrina. hepatite A, citomegalovírus (CMV), da rubéola,
Ao contrário dos adultos em que 80% dos coxsackie, da varicela-zoster, do sarampo e
casos de PA estão associados ao alcoolismo e a influenza. Nos países do terceiro mundo e nas
doença do tracto biliar, na criança – a etiopatogé- regiões tropicais, a obstrução do canal de Wirsung
nese é variada (Quadro 1). pelo parasita Ascaris lumbricoides tem sido
Nas várias séries publicadas nos últimos anos, associada a casos de PA.
os casos de PA associada a doenças multissis- Uma grande diversidade de fármacos pode pro-
témicas graves têm aumentado. Destas, a síndroma vocar PA na criança, sendo os mais frequentemente
hemolítica urémica é a principal responsável (em implicados o valproato de sódio e os corticóides.
cerca de 35% dos casos), sendo que o mecanismo da A chamada pancreatite familiar inclui a forma
608 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

hereditária (anteriormente referida) e outras formas imagiológico, salientando-se que, entre estes três
de pancreatite que ocorrem em famílias com uma parâmetros, se exige pelo menos a positividade de
incidência de PA superior à da população em dois, incluindo sempre a amilase ou a lipase
geral. A forma hereditária relaciona-se com séricas (pelo menos 3 vezes o limite superior do
mutações do gene PRSS1 levando a auto-activação normal), constitui ainda o parâmetro biológico
da tripsina e outras enzimas nas células acinares. mais clássico. No entanto, em cerca de 10-15% dos
Nos últimos anos alguns factores genéticos tais casos, ambas as enzimas podem evidenciar
como mutações no gene do tripsinogénio catióni- inicialmente níveis normais coincidindo com
co (PRSS1), mutações do CFTR (cystic fibrosis sinais clínicos e radiológicos de PA. De referir que
transmembrane conductance regulator), e mutações valores mais elevados não estão relacionados com
no inibidor da tripsina pancreática (serine protease a etiologia, gravidade ou prognóstico da doença.
inhibitor, Kazal type 1- SPINK1) foram identifica- A amilasémia está elevada quando surgem os
dos como importantes na génese da pancreatite. primeiros sintomas e assim permanece na maioria
Apesar de a pancreatite idiopática ser ainda a dos casos durante 5 a 10 dias. Por sua vez, o
pancreatite mais frequente, à medida que, cada doseamento urinário da amilase está aumentado
vez mais, exames genéticos e do foro imunológico em todas as situações de hiperamilasémia, mas tal
estejam disponíveis, a percentagem de crianças aumento é mais tardio.
com pancreatite familiar ou associada a mutações Sendo a lipase quase exclusivamente sinteti-
genéticas e de causa autoimune irá seguramente zada pelo pâncreas, as respectivas sensibilidade e
aumentar. especificidade são superiores às da amilase. Está
aumentada no início da pancreatite e permanece
Manifestações clínicas elevada durante mais tempo (respectivamente 8-
14 dias versus 1-4 dias).
A dor abdominal é o sintoma mais frequente. Salienta-se, a propósito, que a amilasémia pode
Geralmente de início súbito, intensa e localizada estar aumentada, entre outras afecções, na
ao epigastro pode, contudo, ser gradual, constante parotidite, anorexia nervosa, bulimia, litíase biliar,
ou intermitente, difusa ou localizada noutros perfuração de úlcera péptica, e certas doenças
quadrantes. A irradiação típica para o dorso sistémicas (acidose metabólica, insuficiência renal,
referida nos adultos é observada em apenas 10% a queimadura, traumatismo craniano). Quanto à
30 % das crianças. Os sintomas acompanhantes lipasémia, o seu aumento pode verificar-se em
mais comuns são os vómitos, as náuseas e a situações como úlcera péptica, esofagite,
anorexia. As refeições são um factor agravante da isquémia/obstrução intestinal, colecistite aguda, etc.
dor e dos vómitos. Outras enzimas como a fosfolipase A2, a tri-
O achado mais frequente é a dor abdominal psina, a elastase, a proteína específica do pâncreas
aguda, especialmente na região epigástrica, por (PSP), e a proteína associada à pancreatite (PAP),
vezes irradiando para a região dorsolombar. O estão elevadas na PA, mas não têm superioridade
abdómen pode estar distendido, com diminuição diagnóstica em relação à amilase ou à lipase.
dos ruídos hidro-aéreos (quadro de íleo Observa-se frequentemente leucocitose, au-
paralítico). A criança assume muitas vezes uma mento das transaminases, hiperglicémia, hipocal-
posição anti-álgica, com flexão dos joelhos e das cémia, hiperbilirrubinémia, elevação da fosfatase
ancas. Febre baixa, taquicárdia, hipotensão e alcalina e da glutamil transpeptidase (GGT).
icterícia, podem estar presentes. Equimoses nos A IgG4, quando elevada, sugere mecanismo
flancos (sinal de Grey Turner) ou na região autoimune.
periumbilical (sinal de Cullen), são raramente A ecografia endocóspica e a tomografia com-
observadas nas pancreatites hemorrágicas graves. putadorizada (TAC) abdominais são os exames
mais usados para documentar a PA, determinar a
Diagnóstico gravidade e identificar complicações. Os achados
ecográficos mais frequentes são o aumento de
O diagnóstico de PA é clínico, laboratorial e volume do pâncreas e a diminuição da ecoge-
CAPÍTULO 124 Pancreatite 609

nicidade. A TAC é o exame radiológico de escolha Contudo, estudos recentes revelam que a nutrição
para avaliar a gravidade e detectar complicações entérica por sonda jejunal é bem tolerada. As
quando a doença se prolonga. De salientar que complicações implicam vigilância clínica rigorosa.
uma TAC com contraste realizada precocemente
no início da doença pode diminuir o fluxo san- Complicações e prognóstico
guíneo às áreas já isquémicas e, deste modo,
aumentar as regiões de necrose. Nos casos de PA não complicada verifica-se em
A colangiopancreatografia retrógrada endos- geral recuperação em 4-5 dias.
cópica (CPRE) ou a colangiopancreatografia por Durante a primeira semana as potenciais
ressonância magnética (MRCP) devem ser reali- complicações são em geral as sistémicas: hipergli-
zadas apenas nos casos de episódios recorrentes cémia, hipocalcémia, hiperlipidémia, hipercalié-
de pancreatite, na suspeita de defeito estrutural, mia, acidose metabólica e coagulação intravas-
de distorção ou ruptura ductal e, nalguns casos, cular disseminada.
de pancreatite litiásica. As complicações tardias ocorrem após a se-
Em 30% dos casos, a radiografia simples do gunda semana de doença e incluem os pseudo-
abdómen evidencia o clássico sinal da “ansa quistos e os abcessos. O risco de se desenvolver
sentinela”. quisto ou pseudoquisto é maior na PA causada
por traumatismo abdominal (39%) do que naque-
Tratamento las com outras causas (5%).
As manifestações clínicas dos pseudoquistos
O tratamento da PA, essencialmente de suporte, são dores abdominais com náuseas e vómitos e,
depende da gravidade da doença. mais raramente, icterícia. Uma massa epigástrica é
Os critérios de gravidade estabelecidos para os muitas vezes palpável. A ecografia permite o
adultos não são aplicáveis na idade pediátrica. diagnóstico.
Recentemente, o Midwest Multicenter Pancreatic A remissão espontânea dos pseudoquistos é
Study Group, baseado nos critérios de Ranson e frequente, mas estão descritas complicações:
Glasgow, propôs um índice de gravidade para a abcesso, hemorragia, fístulas e ruptura. A punção
criança atribuindo 1 ponto a cada um dos percutânea sob controle ecográfico pode permitir
seguintes parâmetros: idade (< 7 anos), peso (< 23 a evacuação definitiva do quisto; por vezes é
Kg), leucocitose (> 18.500/mmc), lactato-desi- necessário tratamento endoscópico ou cirúrgico.
drogenase (> 2.000 IU/L), sequestração de fluidos
durante 48 horas (> 75ml/Kg/48h), ureia elevada BIBLIOGRAFIA
durante 48 horas, PA associada a doença sistémica Benifla M,Weizman Z. Acute pancreatitis in childhood:
grave. analysis of literature data. J Clin Gastroenterol 2003; 37:
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grave com mortalidade de 1.4%. Com 2 a 4 pontos, Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
38.5% têm PA grave e mortalidade de 5.8%. Com 5 De Banto JR, Goday PS, Pedroso MRA, et al. Acute pancreatitis
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10%. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
As crianças com PA grave devem ser tratadas Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
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analgesia (meperidina 1 a 2 mg/Kg por via intra- children: spectrum of disease and predictors of severity. J
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Até há relativamente pouco tempo a nutrição nutrition for the treatment of pancreatitis using standard
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PARTE XVII
Oncologia
612 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Aspectos epidemiológicos

125 No mundo ocidental, de acordo com as estatísticas


existentes, uma em cada seiscentas crianças terá uma
neoplasia nos primeiros quinze anos de vida. A inci-
dência anual de novos casos é cerca de cento e
cinquenta por cada milhão de crianças com menos
INTRODUÇÃO À de quinze anos.
Em Portugal, onde, de acordo com o INE, há
ONCOLOGIA PEDIÁTRICA cerca de um milhão e seiscentas mil crianças e
jovens com idade inferior a quinze anos, estima-se
Mário Chagas que será de cerca de duzentos e quarenta o
número de novos casos por ano.
Nos Quadros 1 e 2 são discriminadas respecti-
vamente as neoplasias mais habituais na criança,
Importância do problema segundo os dados estatísticos do National Cancer
Institute (NCI) dos EUA, e do Serviço de Pediatria
A Oncologia Pediátrica constitui uma subespecia- do Instituto Português de Oncologia de Lisboa
lidade em constante mudança. Durante os últimos (2005-2007).
60 anos, doenças que eram incuráveis atingiram Em ambos se poderá verificar que as leucemias
probabilidades de cura por vezes superiores a 80%. agudas, principalmente linfoblásticas, e os tumores do
Outras, tratadas de início com graves mutilações sistema nervoso central (SNC), representam metade da
impostas por uma cirurgia heróica, são hoje curáveis totalidade dos casos. Os linfomas (doença de
sem alterações estéticas ou de função apreciáveis. Hodgkin e linfoma não Hodgkin) representam
Estes resultados ficaram a dever-se, não só aos pro- cerca de quinze por cento dos tumores. As
gressos no diagnóstico e tratamento, mas também à restantes neoplasias, designadas por «tumores
melhoria dos meios de suporte dos doentes. sólidos», constituem um leque vasto de tumores
Os protocolos cooperativos internacionais per- diferentes, destacando-se, por ordem decrescente
mitiram juntar experiências obtendo-se cada vez de frequência, neuroblastoma, sarcoma das partes
melhores resultados. moles, tumor de Wilms, e tumores ósseos. De
Recentemente, os conhecimentos adquiridos acordo com estatísticas internacionais os tumores
em ciências básicas como a Imunologia e a Genética,
vieram abrir novas perspectivas no campo do diag- QUADRO 1 – Tumores (T) mais frequentes na
nóstico e do tratamento, levando a supor que os criança (0 a 15 anos) segundo o
próximos anos sejam ainda de maior sucesso. NCI (National Cancer Institute)
Sendo a Oncologia Pediátrica uma subespe- dos Estados Unidos (%)
cialidade englobada na Pediatria, este capítulo
limitar-se-á a uma apresentação genérica de tópi-
cos que, pela sua importância, deverão ser do co-
nhecimento de todos os médicos. Numa primeira
parte os mesmos serão abordados dando especial
ênfase aos conceitos fundamentais sobre oncogé-
nese, semiologia, diagnóstico e tratamento; e,
numa segunda parte, aos grupos mais represen-
tativos da Oncologia Pediátrica: hemopatias
malignas (leucemias, linfomas) e tumores sólidos
(neuroblastoma e tumor de Wilms).
O retinoblastoma é abordado na parte refe-
rente à Oftalmologia, noutro volume do livro.
CAPÍTULO 125 Introdução à Oncologia Pediátrica 613

igual modo em todas as neoplasias. Registou-se


QUADRO 2 – Casuística do Serviço de Pediatria
do IPOFG (Instituto Português de
sobretudo nas leucemias, tumores do SNC,
Oncologia Francisco Gentil), osteossarcoma e hepatoblastoma que se terão tor-
Lisboa nado mais frequentes, enquanto parece ter havido
uma redução no número de novos casos de
doença de Hodgkin, e não ter havido variação si-
gnificativa noutras neoplasias.
Patologia 2005 2006 2007 TOTAL %
Para ilustrar a dificuldade que existe na inter-
pretação destes dados, refere-se um «surto
Leucemia Aguda 33 29 46 108 24,9
epidémico» de tumores do SNC, registado nos
T. SNC 23 24 24 71 16,3
EUA, no final da década de 70 e início da década
Linfoma 16 18 15 49 11,2
de 80. A este “pico” seguiu-se um decréscimo de
Neuroblastoma 9 12 12 33 7,5
S. Partes Moles 7 10 14 31 7,1
incidência nos anos seguintes, não se tendo nunca
T. Wilms 7 11 5 23 5,2
registado um aumento da mortalidade nesse
S. Ósseo 2 4 5 11 2,6
período. Este aparente surto foi explicado posteri-
Retinoblastoma 5 2 4 11 2,6
ormente pelo aparecimento nessa época de novas
T. Cel Germinativas 3 3 2 8 1,8
e mais sofisticadas técnicas de imagem, primeiro a
S. Ewing/PNET 3 3 1 7 1,7 tomografia axial computadorizada (TAC) e,
Hepatoblastoma 2 2 0 4 0,9 depois, a ressonância magnética nuclear (RMN),
Outros T. Malignos 11 11 4 26 5,9 que teriam permitido o diagnóstico mais precoce
Histiocitose 5 2 4 11 2,6 destes tumores.
Tumores Benignos 14 11 17 42 9,7 A frequência dos vários tumores nos diferentes
grupos etários é muito característica e serve para
TOTAL 140 142 153 435 100 orientação diagnóstica. O neuroblastoma, o tumor
T = Tumores; S = Sarcoma; Cel = Células; SNC = Sistema nervoso central de Wilms, a leucemia mieloblástica aguda, os
tumores do SNC e os tumores das partes moles,
principalmente o rabdomiossarcoma, são as neo-
sólidos representam menos 40% dos tumores da plasias predominantes. Por outro lado, a doença
criança; e neuroblastoma, rabdomiossarcoma, out- de Hodgkin, o osteossarcoma e o sarcoma de
ros sarcomas das partes moles e tumor de Wilms, Ewing, são mais frequentes na pré-adolescência e
representam mais de metade dos tumores sólidos. adolescência. Virá a propósito referir que se verifi-
Apesar de se tratar duma patologia relativa- ca uma continuidade (formas variáveis de tran-
mente pouco frequente, ela tem um peso grande sição) entre o sarcoma de Ewing (menos diferen-
na sociedade contemporânea, já que representa, a ciado) e os PNET (Peripheral Primitive Neuroecto-
partir do primeiro ano de vida, a segunda causa dermal Tumors). As leucemias linfoblásticas agudas
de morte, depois dos acidentes. têm, por seu lado, um “pico” de incidência entre
Uma questão que se coloca actualmente é os dois e os quatro anos de idade.
saber se a incidência das neoplasias na criança tem
vindo a aumentar ao longo dos anos, à seme- Seguimento e resultados globais
lhança do que sucede com as neoplasias do adul-
to. Torna-se difícil, pela variação normal do Actualmente a probabilidade de cura de uma
número de novos casos/ano, fazer afirmações criança com cancro é grande. Depende, como se
seguras. Os estudos estatísticos mais completos de verá nos capítulos seguintes, do tipo de tumor, seu
que dispomos, do NCI, comparando a incidência estádio evolutivo e tratamento efectuado.
de novos casos no quadriénio 1975-1979 com a do Uma interrogação frequente é saber o que
quadriénio 1995-1999, mostram um aumento de sucede às crianças consideradas curadas.
11,5% em vinte anos, ou seja, um aumento anual Dois estudos recentes, referentes ao seguimen-
ligeiramente inferior a 0,6%. to de 20.227 e 13.711 antigos doentes, tratados
Esta variação não se verificou, no entanto, de entre 1970 e 1986 num caso, e entre 1960 e 1989
614 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

126
noutro, são elucidativos. O primeiro estudo foi
feito nos EUA e o segundo nos países nórdicos.
Em ambos, as populações estudadas em que tinha
sido suspenso o tratamento havia pelo menos 5
anos, estavam sem doença. Curiosamente os
resultados são sobreponíveis nos dois grupos e
mostram que 10% destes ex-doentes virão a fale- TUMORES, AMBIENTE
cer nos anos seguintes, a maior parte por recidiva
tumoral (cerca de 67%), outros por segundas neo- E GENÉTICA
plasias (12%), outros por toxicidade do tratamen-
to (8%) e os restantes por causas diversas não rela- Mário Chagas
cionadas com a doença ou o tratamento. Nestes
estudos verificou-se que 90% dos antigos doentes
estão vivos, sem doença, e com padrões de vida
muito semelhantes a grupos testemunha. Influência do ambiente

BIBLIOGRAFIA GERAL da Parte XVII É consensual que os factores ambientais têm um


(Fim do Capítulo 134) papel preponderante na génese dos tumores do
adulto e do idoso. A importância das radiações
ionizantes, das substâncias químicas e das infec-
ções víricas na oncogénese é bem conhecida. São
numerosos os exemplos de exposições repetidas
ao longo de anos que acabam por originar a neo-
plasia. O tabaco é um paradigma dessa situação.
Na criança, é no primeiro ano de vida que a
incidência de neoplasias é maior, reduzindo-se
progressivamente nos anos seguintes, para voltar
a aumentar no início da adolescência. Assim
sendo, se os factores ambientais têm alguma
importância na génese dos tumores pediátricos,
deduz-se que eles terão que actuar muito precoce-
mente, por vezes ainda in utero ou até antes, a
nível das gónadas dos progenitores.
Sendo um tema ainda controverso, apresentam-
se seguidamente três exemplos que o ilustram.
O primeiro diz respeito a pais que desempe-
nharam profissões, antes ainda da concepção, em
que houve exposição a determinados metais ou
radiações, e em cujos filhos se tem descrito maior
de incidência de neoplasias.
O segundo exemplo é relativo a certas formas
de leucemia mieloblástica da criança, diagnosti-
cadas no primeiro ano de vida, as quais parecem
ser devidas a uma exposição in utero a determi-
nadas substâncias químicas do grupo dos
inibidores da topoisomerase II. Estas leucemias
caracterizam-se por rearranjos genéticos específi-
cos no clone leucémico envolvendo o gene MLL,
muitas vezes apenas detectado em genética
CAPÍTULO 126 Tumores, ambiente e Genética 615

molecular e não em genética convencional. Sucede ça, convém notar, contudo, que estes casos são
que estes mesmos rearranjos genéticos são excepcionais e que para a maioria dos tumores
descritos como característicos de neoplasias pediátricos a relação com supostos factores
secundárias da criança mais velha e do adulto, ambientais não se conseguiu ainda estabelecer.
que foram tratados alguns anos antes, para uma
primeira neoplasia, com citostáticos dos grupos Genética
das epipodofilotoxinas ou das antraciclinas. O que
há de comum entre as epipodofilotoxinas e as Na génese dos tumores intervêm fundamental-
antraciclinas é que são ambas inibidoras da topoi- mente três tipos de genes: 1) os genes supressores
somerase II. Ora, algumas substâncias químicas dos tumores; 2) os oncogenes, derivados dos
entram ainda que em pequenas doses na indústria proto-oncogenes, que promovem a transformação
alimentar, e alguns antibióticos de uso corrente, maligna de determinadas células; e 3) os genes
do grupo dos inibidores da topoisomerase II, que promovem a estabilidade e a reparação do
poderão fazer parte da dieta ou da prescrição ADN.
medicamentosa da grávida. Naturalmente que Os genes supressores dos tumores (designada-
nem todas as grávidas que se expõem a estas subs- mente GST, TSG ou PTEN) em situações de nor-
tâncias durante a gestação terão um filho com malidade controlam a proliferação celular e pro-
leucemia. Admite-se ter de haver uma predis- movem a apoptose (morte celular programada).
posição genética na mulher grávida que a tornará Se houver inactivação de ambos os alelos de um
particularmente sensível a estes fármacos. TSG por mutação ou deleção, surgirá proliferação
O terceiro exemplo diz respeito a substâncias celular descontrolada, contribuindo para a for-
químicas que, consumidas ou usadas durante a mação de tumores. A disfunção do gene PTEN
gravidez, são implicadas no aparecimento de neo- origina um conjunto de doenças com elevada vari-
plasias no filho, tais como a marijuana, o álcool, o abilidade de expressão clínica – nomeadamente
benzeno e os pesticidas. genética – e pleiotropismo (síndromas tumorais
À semelhança do adulto, também algumas PTEN com hamartoma ou PHTS). O protótipo das
infecções víricas estão na origem de certas formas PHTS é a síndroma de Cowden em que se verifica
de cancro na criança: são bem conhecidas as elevada susceptibilidade a cancro da tiróide,
relações entre a infecção pelo vírus da hepatite B e mama e endométrio. Os oncogenes normalmente
o carcinoma hepatocelular, pelo vírus do papilo- potenciam a proliferação celular, sendo que a
ma (HPV) e o cancro do colo do útero, e as mutação de um só alelo é suficiente para produzir
relações entre o vírus de Epstein Barr e o linfoma crescimento celular descontrolado. Por outro lado,
de Burkitt africano ou a doença de Hodgkin. os genes de reparação e estabilidade do ADN, se
Finalmente, a relação entre as radiações ioni- forem inactivados, permitirão que as células por-
zantes e as neoplasias é conhecida desde o final do tadoras de ADN alterado se transformem em célu-
século dezanove (Marie Curie terá falecido com las malignas e proliferem.
leucemia). Ficaram tristemente célebres as crian- Abordando aspectos básicos de genética asso-
ças que, após irradiação do crânio para tratamen- ciados à oncologia, terá interesse para o clínico
to de infestação por pedículos capitis, surgiram com conhecer o significado da sigla da língua inglesa –
tumores do SNC ou que, após irradiação dum MEN, muitas vezes citada na literatura: neoplasia
timo hiperplásico, surgiram com tumores deste endócrina múltipla. Tal conceito integra 3 dife-
órgão. rentes doenças: MEN tipo 1(MEN 1) causada por
Actualmente o oncologista moderno conhece mutação no gene supressor; e MEN 2A e MEN 2B,
bem o risco de incidência de tumores das partes causadas por mutações no proto-oncogene (desi-
moles, do osso, ou do SNC, em crianças previa- gnado RET). Como exemplo prático, e relativa-
mente irradiadas para tratamento de neoplasias mente ao feocromocitoma, a situação de MEN 2A
anteriores. comporta um risco deste tumor ~ 50%, e a de
Se os factores ambientais acima referidos são MEN 2B superior a 50%.
hoje associados à génese das neoplasias da crian- Há tumores de transmissão hereditária em que
616 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

é possível encontrar história familiar: é o caso do frequência na última década, em leucemias, linfo-
retinoblastoma e de certos adenocarcinomas da mas e tumores sólidos.
tiroideia de tipo medular em que, (40%, e 50 a 80% Com o novíssimo advento da genética molecu-
dos casos, respectivamente), há antecedentes de lar percebeu-se que estas alterações são respon-
igual doença num dos progenitores. sáveis por rearranjos do material genético, típicos
Há famílias em que a incidência de determi- de cada tumor, e com importância na oncogénese.
nadas neoplasias é muito superior à da população Os progressos obtidos nesta nova ciência torna-
em geral. Cita-se a síndroma de Li- Fraumeni em ram-se tão importantes que actualmente muitos
que a frequência de leucemia, de tumores das diagnósticos são feitos, não pelos métodos clássi-
partes moles, nomeadamente rabdomiossarcoma, cos da morfologia e imunocitoquímica, mas por
e de carcinoma da mama é em várias gerações da Genética.
mesma família muito superior à habitual. À medida que os conhecimentos em Genética
Há crianças com determinadas alterações vão progredindo, novas noções sobre oncogénese
genéticas em que há maior incidência de neo- vão surgindo, ultrapassando o âmbito deste capí-
plasias. É o que sucede na síndroma de Down em tulo.
que o risco de aparecimento de leucemia é vinte Justifica-se, no entanto, fazer referência à teo-
vezes superior ao das outras crianças. É também o ria de Greaves, pela visão global que lança sobre
caso da síndroma WAGR, síndroma caracterizada as eventuais causas de uma forma “nova” de
por aniridia e atraso do desenvolvimento intelec- leucemia aguda da criança, que poderá ser con-
tual, em que é muito grande a probabilidade de siderada como paradigma da oncogénese.
tumor do rim (tumor de Wilms). É ainda o que Nos países ocidentais regista-se um pico de
sucede nas síndromas de instabilidade cro- incidência de leucemia aguda linfoblástica na
mossómica como a síndroma de Bloom, a ataxia- criança entre os dois e os quatro anos de idade,
telangiectasia e a anemia de Fanconi, em que a não descrito noutras zonas do mundo. Trata-se de
ocorrência de linfomas é superior à da população uma leucemia particularmente quimiossensível e,
pediátrica em geral. portanto, de melhor prognóstico. Curiosamente,
Em todos os casos acima referidos há altera- esta forma particular de leucemia da criança,
ções genéticas que predispõem para o apareci- descrita pela primeira vez na Grã-Bretanha no
mento de neoplasias por mecanismos ainda mal final da década passada de 40, só foi encontrada
conhecidos. nos EUA na década de 60, primeiro nas crianças
Nas últimas décadas foram-se descrevendo de raça branca, e só depois nas crianças de raça
alterações genéticas nas células tumorais, não ve- negra, tendo atingido apenas nos anos 80 o Japão.
rificadas nas células normais. Algumas dessas A teoria de Greaves admite como possível uma
alterações são aleatórias, traduzindo apenas uma relação entre o aparecimento deste tipo novo de
grande instabilidade genética e, portanto, sem sig- leucemia e alterações registadas na vida das crian-
nificado particular. Outras são, no entanto, especí- ças destes países, a partir do final da segunda
ficas e têm hoje importância no diagnóstico, guerra mundial. Assim, o parto hospitalar em
prognóstico e compreensão da génese do tumor. condições de assepsia em substituição do parto no
A primeira alteração genética característica de domicílio, o curto período de aleitamento materno
uma neoplasia foi descrita na década de sessenta e sua substituição por leites dietéticos, a redução
do século passado. Trata-se de uma translocação das fratrias e a substituição precoce do ambiente
entre o cromossoma 9 e o cromossoma 22 no clone familiar pelo ambiente do infantário, condiciona-
celular da leucemia mielóide crónica. Este cro- riam uma anormal estimulação dum sistema imu-
mossoma recebeu o nome de Philadelphia em ho- nitário ainda imaturo que levaria à neoplasia.
menagem à cidade onde foi inicialmente descrito. Mais recentemente verificou-se que muitas
Muitas outras alterações cromossómicas estrutu- crianças com este tipo «novo» de leucemia apre-
rais (translocações, deleções) e quantitativas, ou sentam no seu clone leucémico uma translocação
seja com variação do número de cromossomas, se envolvendo os cromossomas 12 e 21, a t (12;21), o
foram descrevendo posteriormente, com maior que condiciona uma fusão dos genes TEL e AML1.
CAPÍTULO 127 Aspectos básicos do diagnóstico oncológico 617

127
Greaves demonstrou, através do exame do
sangue destas crianças armazenado nos cartões de
papel de filtro, (usados para o diagnóstico precoce
de certas doenças no período neonatal e que con-
têm sangue capilar), que esta t (12;21) era já detec-
tável à nascença, ou seja, 2 a 4 anos antes de as
mesmas adoecerem. Verificou-se posteriormente
que apenas cerca de 1% das crianças nas quais é ASPECTOS BÁSICOS DO
detectada esta translocação no período neonatal
adoecerá, de facto, com leucemia, admitindo-se, DIAGNÓSTICO ONCOLÓGICO
assim, ser necessário outro ou outros factores
(infecciosos, na teoria de Greaves) para continuar o Mário Chagas
processo de oncogénese.
A teoria multifactorial desenvolvida por este
autor para explicar a génese deste tipo de
leucemia já era aplicada a outras neoplasias como Manifestações clínicas
o retinoblastoma. Na verdade, segundo a teoria
de Knudson, são necessárias duas deleções suces- Os sinais e sintomas dos tumores da criança são
sivas no cromossoma 13 para que o retinoblas- em geral incaracterísticos, pelo que poderá haver
toma surja. Se ambas as mutações ocorrerem um período de latência relativamente longo entre
numa célula somática da retina, o tumor é o início das manifestações e o diagnóstico, que
esporádico, unilateral e mais tardio. Se a primeira pode ser de semanas ou, nalguns casos, de meses.
mutação se der na célula progenitora, e a segunda Uma das características da maioria dos
na célula somática da retina, o tumor é hered- tumores da criança é a de serem embrionários,
itário, muitas vezes bilateral, e surge muito preco- derivados da mesoderme ou da neuroectoderme
cemente nos primeiros meses de vida. sendo por isso, do ponto de vista histológico, sar-
Reportando-nos ao papel dos genes, (onco- comas. Por este facto, a sua localização raramente
genes e genes supressores) cabe referir que o HPV se verifica num órgão específico, ao contrário do
19 induz transformação maligna inactivando o que acontece com os tumores do adulto que são
gene supressor do tumor. predominantemente carcinomas de um determi-
O desenvolvimento do cancro pode ainda nado órgão. Há, naturalmente, excepções, como o
estar ligado ao imprinting do genoma que consiste retinoblastoma, quase sempre localizado no globo
na inactivação selectiva de um de dois alelos de ocular, ou o osteossarcoma que é o tumor ósseo
certo gene. mais frequente, ou ainda o tumor de Wilms, loca-
Verifica-se, assim, haver uma relação entre lizado habitualmente num rim. Mas o rabdomios-
Genética e ambiente, aspecto subjacente na onco- sarcoma e outros sarcomas das partes moles, o
génese da generalidade dos tumores pediátricos, sarcoma de Ewing/PNET, o neuroblastoma, os
desconhecendo-se, no entanto, muitos dos meca- teratomas e muitos outros tumores designados
nismos íntimos de tal relação. por “sólidos”, podem ter topografia diversa,
sendo a sua sintomatologia variável consoante a
sua localização.
Nestes tumores sólidos a primeira manifes-
tação resulta, em regra, de um efeito de massa que
o tumor exerce sobre as estruturas adjacentes:
assim, o crescimento do tumor provoca dor, quer
por compressão das raízes nervosas vizinhas,
quer por estiramento da cápsula do órgão que o
contém; pode induzir alterações neurológicas
focais, quer por lesão de raízes nervosas, quer por
618 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

compressão da medula espinal por crescimento Os tumores pélvicos manifestam-se, em regra,


intracanal através dos buracos de conjugação; por perturbação da micção e/ou defecação por
pode originar estase venosa por compressão vas- compressão directa da bexiga ou do recto, ou por
cular; pode induzir dificuldade respiratória por perturbação do funcionamento dos esfíncteres por
compressão das vias aéreas. Todos estes sinais e compressão de nervos. Outras vezes, são as
sintomas dependem, assim, da topografia do parestesias dos membros inferiores por com-
tumor e não do seu tipo. pressão radicular, as primeiras manifestações.
Se o tumor for intracraniano, crescendo numa Se o tumor se localizar no osso, uma dor persis-
caixa pouco distensível, manifesta-se inicialmente tente sem história de traumatismo, uma massa
por sinais de hipertensão intracraniana, de que as tumoral palpável, ou uma fractura patológica, são
cefaleias matinais persistentes ou que acordam a os sinais e sintomas habituais, quer nos tumores
criança de noite e que aliviam com o vómito são o primitivos como o osteossarcoma ou o sarcoma de
paradigma. Outras vezes, convulsões não febris e Ewing, quer nos metastáticos como o neuroblas-
sinais neurológicos focais que variam com a local- toma.
ização do tumor são as manifestações inaugurais. Nos restantes tumores (leucemias e linfomas) as
Qualquer destes sinais e sintomas deverá levar a manifestações mais comuns são o aumento das
um exame neurológico cuidadoso e urgente. dimensões dos gânglios linfáticos (adenome-
Os tumores torácicos originam, em regra, sin- gálias), do fígado (hepatomegália), do baço (esple-
tomas e sinais mais precocemente que os tumores nomegália), febre, diátese hemorrágica e dor
abdominais, devido à menor elasticidade da caixa óssea. O que se torna difícil é valorizar correcta-
torácica: dificuldade respiratória, (quer por com- mente estas manifestações. Na verdade, com
pressão das vias aéreas, quer por derrame pleural, excepção da diátese hemorrágica, que é menos
quer, ainda, por efeito mecânico sobre o diafra- habitual e mais preocupante devendo levar à rea-
gma), síndroma da veia cava superior por com- lização de exames complementares de diagnóstico
pressão venosa, síndroma de Claude Bernard urgentes, (começando por um hemograma), as
Horner (ptose palpebral, miose, endoftalmia), são outras são manifestações de patologia infecciosa
manifestações habituais nos tumores localizados vírica ou bacteriana de fácil resolução.
no mediastino. Se a localização do tumor for o Assim, adenomegálias (gânglios linfáticos com
mediastino posterior, as manifestações inaugurais diâmetro superior a 1 cm) na região cervical supe-
serão muito provavelmente neurológicas por com- rior ou submandibular são geralmente secundárias
pressão de raízes nervosas ou da espinal-medula, a focos infecciosos bacterianos regionais, tão fre-
podendo também haver, se o tumor atingir grandes quentes na criança, ou infecções víricas (Epstein
dimensões, outras manifestações acima referidas. Barr, citomegalovírus – CMV), ou outras, como a
Os tumores abdominais podem atingir grande toxoplasmose. Caracterizam-se por regredirem
volume antes de provocarem sintomas e a sua facilmente com antibioticoterapia ou espontanea-
primeira manifestação pode ser apenas distensão mente, podendo reaparecer perante novo foco
abdominal, ou massa que se palpa mas que é as- infeccioso. Será a sua persistência, ou um aumento
sintomática, como sucede com frequência no progressivo, apesar dos tratamentos habituais, que
tumor de Wilms, muitas vezes detectado pela mãe deverá evocar uma causa neoplásica (linfoma, rab-
ao dar banho ao filho, ou pelo médico em obser- domiossarcoma, carcinoma da nasofaringe, neu-
vação de rotina. Outras vezes, a distensão abdo- roblastoma), obrigando a um exame mais cuida-
minal é extrema e dolorosa, como acontece com o doso.
linfoma de Burkitt. Mais raramente são as mani- As adenomegálias cervicais inferiores, supra
festações a distância, devidas a focos metastáticos, claviculares ou axilares têm em regra, um signifi-
que levam a procurar o tumor primitivo, como cado mais ominoso, sendo mais frequentemente
sucede com frequência no neuroblastoma abdo- de origem neoplásica que infecciosa. São persis-
minal que se pode revelar, por exemplo, por me- tentes e têm consistência firme. Não têm sinais
tastização óssea causadora de dor, ou cutânea, inflamatórios, não são dolorosas, e podem fundir-
com o aparecimento de nódulos. se em conglomerados. Deverão evocar entre ou-
CAPÍTULO 127 Aspectos básicos do diagnóstico oncológico 619

tros, o diagnóstico de neuroblastoma num lactente car a possibilidade de timoma ou neuroblas-


ou numa criança muito jovem, de linfoma não toma.
Hodgkin numa criança em idade pré-escolar ou – Diarreia crónica pode ser a primeira mani-
escolar, ou de doença de Hodgkin em criança mais festação de neuroblastoma ou de histiocitose
velha. de células de Langerhans.
Por outro lado, as adenomegálias genera- – Diabetes insípida pode preceder o diagnósti-
lizadas com ou sem febre, acompanhadas ou não co de histiocitose de células de Langerhans
de hepatosplenomegália, deverão evocar o dia- ou de tumor do SNC.
gnóstico de infecção, muito provavelmente vírica – Diátese hemorrágica (equimoses/petéquias/
(Epstein Barr, CMV, etc.). Também aqui será a não /epistaxes/gengivorragias, etc.) podem tra-
confirmação do diagnóstico, a persistência das duzir patologia da medula óssea.
manifestações, e o eventual aparecimento de – Síndroma febril indeterminada e ou perda de
sinais e sintomas mais preocupantes, como diátese peso, poderão ser as únicas manifestações de
hemorrágica ou dor óssea, que levarão a admitir a uma neoplasia oculta durante muito tempo,
hipótese diagnóstica de leucemia/linfoma. impondo esclarecimento.
Há, contudo, alguns sinais/sintomas que são – Síndroma de lise tumoral abordada no
preocupantes ab initio, e devem orientar o médico Capítulo seguinte.
para um diagnóstico urgente. Enumeram-se os
principais (cuja identificação implica o encamin- Caracterização do estádio evolutivo
hamento atempado da criança para centro espe- (estadiamento)
cializado):
– O aparecimento de massa tumoral nas partes Colocada a hipótese diagnóstica de neoplasia,
moles do tronco ou membros, num lactente ou duas providências se tornam urgentes: confirmar
criança jovem, sem história de traumatismo, o diagnóstico e caracterizar o estádio evolutivo da
deve levar a admitir rabdomiossarcoma, sarco- doença, ou seja, determinar a grau de extensão da
ma de Ewing/PNET, ou neuroblastoma. mesma.
– A instalação de estrabismo fixo num lactente, Todas as crianças com cancro têm, à partida,
ou o achado de leucocória (opacificação uma probabilidade de cura a qual varia, natural-
esbranquiçada na pupila), também designa- mente, com o tipo de tumor e o respectivo estádio
da como “olho-de-gato”, obrigarão a uma evolutivo; tal probalidade é superior à da genera-
observação urgente por oftalmologista, com lidade dos adultos com cancro, já que os tumores
fundoscopia, de preferência sob anestesia, da criança são mais químio-sensíveis e rádio-sen-
com a forte suspeita de retinoblastoma. síveis que os do adulto.
– Convulsões não febris, cefaleias persistentes Actualmente a leucemia linfoblástica aguda, o
que acordam a criança de madrugada e que linfoma não Hodgkin, a doença de Hodgkin nos
aliviam com o vómito, sinais neurológicos estádios I, II, ou III A, o tumor de Wilms, o neu-
focais, são manifestações que sugerem forte- roblastoma nos estádios 1 e 2, o osteossarcoma ou
mente neoplasia do SNC, tornando funda- o retinoblastoma não metastizados, têm probabi-
mental uma observação cuidadosa por neu- lidades de cura superiores a 70%.
rologista. Outras neoplasias como a leucemia mieloblás-
– Manifestações de opsomioclonus (mioclo- tica aguda, neuroblastoma nos estádios 3 e 4,
nias associadas a movimentos erráticos dos osteossarcoma metastizado, têm probabilidades
globos oculares) devem evocar a possibili- de cura inferiores, por serem tumores menos
dade de neuroblastoma. químio-sensíveis, ou se apresentarem em estádios
– A instalação da síndroma de Claude Bernard mais avançados.
Horner (ptose palpebral, miose, endoftalmia) No entanto, para se atingir os bons resultados
poderá ser o primeiro sinal de um tumor cer- actuais é necessário diagnóstico e caracterização
vical ou do tórax superior. do estádio correctos que permitam optar pelo pro-
– O diagnóstico de miastenia gravis, deve evo- tocolo terapêutico mais adequado. Deste último
620 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

dependerá finalmente o sucesso do tratamento. Os dois mais comuns em Oncologia Pediátrica


Constituindo uma patologia pouco frequente e são glicoproteínas: a alfa-fetoproteína (AFP) e a beta-
curável na globalidade dos casos, é de boa prática gonadotrofina coriónica humana (b-HCG), salientan-
concentrar as crianças com cancro num número do-se no entanto que a elevação sérica dos mes-
reduzido de centros oncológicos, detentores dos mos poderá surgir em situações não neoplásicas
meios cada vez mais sofisticados de diagnóstico e (por ex a AFP em doença hepática aguda, atrésia
tratamento. Na verdade, o diagnóstico das neo- das vias biliares extra-hepáticas, hepatite, ataxia
plasias da criança tem sofrido nos últimos anos telangiectásia e tirosinémia). De referir igual-
uma grande evolução. Ao exame macroscópico, à mente que, ao contrário do que acontece no
microscopia óptica e à citoquímica tradicionais, âmbito da medicina de adultos, em que os mar-
juntaram-se os estudos de microscopia electróni- cadores podem ser utilizados como rastreio(desig-
ca, de imunologia, de genética convencional e, nadamente dos cancros colo-rectal e da mama),
mais recentemente, de genética molecular, hoje em clínica pediátrica a utilização dos marcadores
indispensáveis para estabelecer o diagnóstico e o tumorais deverá ser selectiva, estando em geral
prognóstico na generalidade dos tumores da reservada para determinadas síndromas genéticas
criança. Contudo, pela sua complexidade e custos que predispõem a cancro (por ex. síndroma de
não são exequíveis em centros sem diferenciação Beckwith-Wiedemann, comportando risco eleva-
oncológica. do de hepatoblastoma e de tumor de Wilms).
Por isso, actualmente no nosso País existem O ácido vanilmandélico e o ácido homovanílico,
apenas quatro centros oncológicos pediátricos, metabólitos da norepinefrina e dopamina, são
localizados dois no Porto, no Hospital de S. João e marcadores tumorais do neuroblastoma, o mais
Instituto Português de Oncologia de Francisco frequente tumor sólido extracraniano em idade
Gentil, um em Coimbra no Hospital Pediátrico, e pediátrica.
um em Lisboa no Instituto Português de Como marcadores citogenéticos de prognósti-
Oncologia de Francisco Gentil, onde se concen- co de neuroblastoma citam-se a amplificação do
tram para diagnóstico, tratamento e seguimento proto-oncogene MYCN (ou N-myc) e a identifi-
das cerca de 240 crianças que surgem todos os cação do gene supressor CHD5 relacionado com
anos com cancro. deleção 1p36.1.
Nestes centros a marcha diagnóstica inicia-se Os estudos de imagem a realizar para diagnós-
com a história clínica (anamnese pessoal e familiar tico e definição do estádio (discutidos com o ima-
e observação cuidadosa da criança). As hipóteses giologista: as radiografias convencionais, a eco-
diagnósticas são equacionadas de acordo com os grafia, o ecodoppler, a tomografia axial computa-
dados colhidos e com a idade da criança: alguns dorizada, a ressonância magnética, os estudos iso-
tumores são mais frequentes na criança muito tópicos com gálio, tálio, tecnécio, metaiodobenzil-
jovem, como o neuroblastoma e tumor de Wilms; guanidina, ou crómio, a tomografia com emissão
outros no adolescente, como a doença de Hodgkin, de positrões), têm as suas indicações precisas que
o osteossarcoma, ou o sarcoma de Ewing. devem ser conhecidas e aplicadas criteriosamente.
Os exames complementares são solicitados A colheita de material para diagnóstico é com-
com base nas hipóteses diagnósticas mais perti- binada com os especialistas que vão processar o
nentes, partindo sempre dos mais simples, para os material, o qual deverá ser conservado em meios
mais complicados, por exemplo do hemograma apropriados tendo em conta a realização de estu-
para o mielograma. dos subsequentes.
A este respeito cabe referir os chamados mar- Esta colheita pode ser feita por punção do
cadores tumorais, substâncias encontradas em tumor por agulha fina (citologia aspirativa) com
teores anormais em diversos fluidos orgânicos anestesia local, e realizada no próprio gabinete de
(sangue,urina, LCR, exsudados, transudados) ou consulta se o tumor tiver localização superficial. O
em tecidos, os quais podem contribuir para o número de células assim obtido é relativamente
diagnóstico, caracterização do estádio evolutivo e reduzido, mas os progressos operados ultima-
para a avaliação dos resultados do tratamento. mente quanto ao processamento e ao estudo do
CAPÍTULO 128 Aspectos básicos do tratamento oncológico 621

128
material permitem, muitas vezes, um diagnóstico
seguro. Nos tumores de localização profunda esta
punção terá que ser feita com controlo imagiológi-
co e o doente anestesiado.
Nalguns casos a colheita de líquido ascítico ou
pleural permite obter um número suficiente de
células neoplásicas para se fazer o diagnóstico,
como sucede frequentemente nos linfomas. ASPECTOS BÁSICOS
Outras vezes o material obtido é insuficiente e
torna-se necessário recorrer a biópsia. DO TRATAMENTO
Por qualquer destes meios, o material colhido
é estudado em microscopia óptica e caracterizado ONCOLÓGICO
por técnicas de imunofenotipagem, de genética e
biologia molecular e, por vezes, de microscopia Mário Chagas e Ana Teixeira
electrónica; desta forma é possível obter infor-
mações conducentes a um diagnóstico seguro e
identificar factores prognósticos que permitam
optar pela terapêutica mais adequada. Generalidades

As leucemias e linfomas não Hodgkin são trata-


dos geralmente apenas com quimioterapia.
Os tumores sólidos e a doença de Hodgkin
tratam-se, em regra, com quimioterapia numa fase
inicial e, posteriormente, com terapia local: cirur-
gia e/ou radioterapia. A quimioterapia inicial,
com o seu efeito sistémico, tem a dupla vantagem
de destruir precocemente focos de micrometás-
tases normalmente existentes, (reduzindo assim o
risco de recidiva) e de diminuir as dimensões do
tumor primitivo, permitindo uma remoção cirúr-
gica mais fácil e com menos sequelas. Da mesma
forma, a quimioterapia inicial permite que os cam-
pos a irradiar sejam menores, caso seja necessário
recorrer à radioterapia.
A cirurgia será realizada numa fase inicial ape-
nas: quando o tumor, pelas suas dimensões ou
localização, for facilmente extirpável; ou nas situa-
ções em que não haja necessidade de outras for-
mas de tratamento.
O tratamento de uma criança com doença
oncológica e o necessário apoio à sua família
devem envolver um enorme grupo de especialis-
tas, para além dos técnicos de saúde habituais.
Assim, assistentes sociais, educadores de infância,
professores, técnicos de animação, voluntários,
são hoje imprescindíveis, fazendo parte integrante
do grupo de técnicos existente nos centros
oncológicos.
Pela sua importância, apresentamos alguns
622 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

conceitos básicos de quimioterapia e radioterapia, ao contrário da vincristina, causa mielossu-


referindo os seus efeitos secundários mais fre- pressão.
quentes com os quais o médico oncologista e o
médico da criança têm frequentemente que lidar. 2. Antimetabólitos
(metotrexato, citosina-arabinosido, 6-mercaptopu-
Quimioterapia rina, 6-tioguanina)
São fármacos estruturalmente semelhantes a
A quimioterapia consiste na administração de fár- determinados compostos essenciais às células
macos citotóxicos que interferem no ciclo de vida tumorais e que competem com, ou inibem, esses
celular. Pode ser utilizada como única forma de mesmos compostos.
terapêutica de doenças neoplásicas ou em combi- 2.1. Metotrexato (MTX)
nação com radioterapia e/ou cirurgia. Em geral, É semelhante ao ácido fólico e inibe a di-hidro-
quanto maior for o índice mitótico das células folato redutase, a enzima responsável pela manu-
tumorais, maior é a sensibilidade e resposta à tenção de níveis adequados de tetra-hidrofolatos
quimioterapia, verificando-se o contrário nos intracelulares. A utilização de MTX causa uma
tumores que se apresentam com uma percenta- acumulação de folatos na sua forma oxidada inac-
gem significativa de células em fase G0, ou seja, tiva, conduzindo à morte celular. Após a adminis-
“inactivas”. tração de MTX em doses elevadas, os níveis séricos
Os fármacos utilizados em quimioterapia deste fármaco devem ser vigiados durante pelo
podem ser subdivididos em dois grandes grupos: menos 48 horas, sendo necessária a administração
1. fármacos que actuam em determinadas fases de ácido folínico de forma a permitir a sobrevivên-
específicas do ciclo celular (por exemplo, cia das células não tumorais. O MTX é hepatotóxi-
alcalóides da vinca, metotrexato, 6-mercap- co e, em altas doses, nefrotóxico. Em dose baixa
topurina, citosina arabinosido e etoposido) administra-se em regime ambulatório como parte
2. fármacos sem especificidade de fase (por integrante dos esquemas de manutenção.
exemplo, agentes alquilantes, 5-fluorouraci- 2.2. Citosina-arabinosido (Ara C)
lo e actinomicina). É semelhante à desoxicitidina e inibe a
É comum o protocolo de quimioterapia incluir polimerase do DNA, pelo que interfere com a
fármacos de diferentes grupos, de forma a poten- replicação e transcrição do DNA. Utiliza-se, tal
ciar os mecanismos de acção sobre as células como o MTX, em doses muito variáveis que nos
tumorais. Faz-se referência aos mais utilizados. protocolos mais intensivos podem chegar a vários
gramas por metro quadrado por dia, durante
1. Alcalóides da vinca alguns dias.
(vincristina, vimblastina, vindesina, vinorelbina) 2.3. 6-Mercaptopurina e 6-tioguanina
Os alcalóides da vinca são derivados da planta São compostos semelhantes aos nucleótidos
Vinca rosea e a sua acção citotóxica resulta da hipoxantina e guanina. Quando incorporados no
capacidade de se ligarem à tubulina. Esta proteína DNA provocam alterações na sua estrutura com-
é fundamental na formação do fuso mitótico, ao prometendo a transcrição. São administrados por
longo do qual os cromossomas migram durante a via oral, fazendo parte dos esquemas de
mitose. Os alcalóides da vinca interferem com a manutenção de quimioterapia.
função do fuso mitótico, impedindo a conclusão
da mitose. Os efeitos secundários mais comuns 3. Antibióticos
resultantes da sua administração são obstipação, (antraciclinas, bleomicina, actinomicina D)
podendo mesmo ocorrer situações de íleo paralíti- Estes fármacos têm uma origem bacteriana ou
co, e neurotoxicidade periférica (com perda dos fúngica e possuem uma actividade simultanea-
reflexos aquilianos e rotulianos, dificuldade na mente antimicrobiana e antitumoral.
marcha e “pé pendente”). Regra geral, estes 3.1. Antraciclinas
efeitos são reversíveis com a interrupção da tera- (daunorrubicina; doxorrubicina; epirrubicina;
pêutica. A vimblastina é menos neurotóxica mas, idarrubicina)
CAPÍTULO 128 Aspectos básicos do tratamento oncológico 623

A acção citotóxica destes fármacos resulta de 7. Outros


vários mecanismos, incluindo a inibição da activi- (Asparaginase, hidroxiureia, corticosteróides, anti
dade da topoisomerase II (e consequente inter- corpos monoclonais)
ferência na leitura do DNA) e a formação de radicais A asparaginase degrada a asparagina sérica
livres de oxigénio, capazes de causar lesão tecidual em ácido aspártico e amónia. Tem uma actividade
directa. São potencialmente cardiotóxicas, sobretudo antitumoral específica atendendo a que, ao con-
se utilizados em doses cumulativas superiores a 350- trário das células normais, os linfoblastos não pos-
400 mg/m2. Nos doentes submetidos a esquemas suem a capacidade de sintetizar asparagina, pelo
terapêuticos que incluam doses elevadas de antraci- que dependem do seu fornecimento exógeno. É
clinas deve realizar-se uma avaliação prévia da ainda hoje um dos citostáticos mais importantes
função cardíaca mantendo posteriormente um no tratamento das LLA. Os seus efeitos
esquema regular de vigilância com ecocardiograma. secundários mais frequentes são pancreatite
3.2. Bleomicina aguda, disfunção hepática, incluindo alterações
Consiste numa mistura de glicopéptidos de nos factores de coagulação, dislipidémia, hipoal-
origem fúngica capazes de degradar o DNA. Pode buminémia, e reacção de sensibilização.
causar toxicidade pulmonar. A hidroxiureia, substância análoga da ureia,
3.3. Actinomicina D impede a síntese do DNA por inibição do sistema
Interfere com a síntese de DNA e RNA por enzimático da redutase dos ribonucleótidos.
ruptura e distorção da dupla hélice de DNA. Tal Os corticoídes são frequentemente utilizados
como as antraciclinas, pode potenciar a toxicidade em neoplasias hematológicas, atendendo a meca-
das radiações ionizantes, pelo que estes fármacos nismos ainda não bem esclarecidos mas que pare-
não devem ser utilizados simultaneamente com a cem envolver a existência de receptores para estes
radioterapia. fármacos nas células tumorais. Os corticosteróides
são igualmente incluídos em diversos protocolos
4. Agentes alquilantes terapêuticos no alívio de determinados sintomas,
(ciclofosfamida, ifosfamida, clorambucil, melfalan, como quadros de hipertensão intracraniana e dores
busulfan) ósseas.
Formam ligações covalentes com as bases no Os anticorpos monoclonais e os inibidores da
DNA, pelo que alteram a sua integridade estru- tirosina-cinase estão a ser utilizados nalguns cen-
tural impedindo a transcrição. A ifosfamida e a tros (por ex. imatimib, rituximab, nilotinib, cetuxi-
ciclofosfamida são especialmente tóxicas a nível mab, etc.) constituindo exemplo de terapia mole-
renal e vesical, pelo que a sua administração deve cular dirigida, evidenciando ausência da toxici-
incluir vigilância da função renal, de hiper- dade nos tecidos normais.
hidratação e protecção da mucosa vesical.
Efeitos secundários da quimioterapia
5. Compostos de platina
(cisplatina, carboplatina) Os efeitos secundários da quimioterapia são em
Tal como os agentes alquilantes, alteram a geral proporcionais à intensidade do tratamento,
estrutura do DNA e inibem a sua síntese. Os ou seja, ao número de citostáticos usados, às doses
efeitos secundários mais frequentes são administradas e ao intervalo com que as faixas da
diminuição da taxa de filtração glomerular e sur- quimioterapia são prescritas. Tal significa que nos
dez, sobretudo com a utilização da cisplatina. protocolos mais intensivos e que tão bons resulta-
dos permitem obter actualmente, estes efeitos
6. Epipodofilotoxinas secundários acarretam uma morbilidade muito
[etoposido – (VP 16), teniposido – VM 26)] importante e, por vezes, até mortalidade.
Estes fármacos são derivados sintéticos da po- As náuseas e os vómitos constituem os efeitos
dofilotoxina, um composto da planta de mandrake. secundários mais frequentes, podendo ser de tal
São inibidores da topoisomerase II, interferindo forma intensos com certos citostáticos que o
com a transcrição do DNA. doente recusa a continuação do tratamento. Por
624 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

outro lado, podem conduzir a desequilíbrio hidro- das leucemias) ou ser consequência da quimiote-
electrolítico grave e a má-nutrição. rapia. A incidência de infecções aumenta de forma
Há, todavia, antieméticos muito potentes que inversamente proporcional ao número de neutró-
ultrapassam estas complicações com relativa facil- filos, considerando-se risco grave de infecção se se
idade. Preferencialmente, a terapêutica anti- verificar número absoluto de neutrófilos inferior a
emética deve ser instituída antecipadamente, 0,5 x 109/L. As infecções são a complicação mais
antes da quimioterapia, e não apenas após o início grave e a principal causa de morte durante a
dos sintomas. Os antieméticos mais utilizados em quimioterapia, exigindo um elevado nível de sus-
oncologia pediátrica são os antagonistas da sero- peição clínica, atendendo a que os sinais e sin-
tonina e a metoclopramida, podendo combinar-se tomas inflamatórios clássicos podem estar
com a dexametasona e uma benzodiazepina de ausentes em doentes neutropénicos. Sempre que o
forma a obter potenciação de efeitos. A duração da nível de neutropénia o justifique, estes doentes
terapêutica antiemética deve prolongar-se pelo devem ser isolados, evitando-se o contacto com
menos 24 horas após a administração de citostáti- fontes exógenas potencialmente infectantes.
cos muito emetizantes, como sejam a cisplatina, a Como foi já referido anteriormente, a integridade
ifosfamida e o melfalan. da mucosa digestiva deve ser preservada através
A mucosite, sobretudo a nível da orofaringe, de uma correcta higiene oral e peri-rectal; é igual-
esófago e mucosa intestinal, é um dos efeitos mente importante evitar a utilização de termóme-
secundários mais vulgarmente observados mani- tros por via rectal, assim como a administração de
festando-se por secura e palidez das mucosas, supositórios e enemas em doentes neutropénicos.
aparecimento de placas esbranquiçadas, ulcera- Nas crianças com cateteres venosos centrais os
ções, disfagia, dores abdominais, diarreia e proc- cuidados de assépsia devem ser rigorosos em
tite. Os fármacos mais frequentemente implicados todas as manipulações do cateter, aplicando-se o
são as antraciclinas, a citosina-arabinosido, a acti- mesmo princípio em todos os procedimentos que
nomicina D e o metotrexato em alta dose. Nos impliquem lesão da barreira cutânea, como
doentes pancitopénicos a lesão da mucosa do tubo punções venosas, lombares ou biópsias ósseas.
digestivo pode funcionar como “porta de entra- A imunossupressão a que estão sujeitas pela
da” para infecções oportunistas potencialmente quimioterapia, impede que estas crianças sejam
graves, sobretudo fúngicas e bacterianas (E. coli, imunizadas, particularmente com vacinas vivas; e,
Klebsiella e Pseudomonas). É importante que as se os seus irmãos tiverem que ser vacinados contra
crianças que recebem quimioterapia mantenham a poliomielite, deverão sê-lo usando uma estirpe
hábitos regulares de higiene oral, com utilização morta. Na verdade, a vacina viva permitindo a
de escovas suaves e dentífricos adequados. A tera- eliminação do vírus pelas fezes, pode ter conse-
pêutica com nistatina tópica é eficaz nas situações quências neurológicas graves no doente. Problema
de mucosite fúngica por Candida, podendo ser idêntico se põe com a vacina contra a varicela, já
necessária, em casos mais graves, a utilização de que as lesões exantemáticas que podem surgir na
antifúngicos sistémicos, antibióticos e antivíricos criança vacinada são contagiosas (Capítulo 274).
nas crianças neutropénicas febris. Quando as crianças frequentam escolas, (e
As queixas álgicas causadas pela mucosite não devem ser incentivadas a fazê-lo fora dos períodos
devem ser negligenciadas, uma vez que podem de neutropénia), os pais e médicos responsáveis
perturbar francamente o bem-estar da criança e o devem ser imediatamente avisados sobre o contac-
seu estado nutricional. Devem ser utilizados anal- to com crianças com varicela ou sarampo, doenças
gésicos de acordo com a gravidade da situação que podem ter um efeito devastador, a fim de
clínica que incluem, desde anestésicos tópicos, até serem tomadas medidas de suporte adequadas.
perfusões sistémicas de opiáceos; deve igual- Nas situações de trombocitopénia grave,
mente ser instituída uma dieta de consistência e sobretudo se o número de plaquetas for inferior a
conteúdo adequados. (ver adiante) 10-15 x 109/L, o risco de hemorragia gastrintesti-
A depressão medular pode resultar da pro- nal e do sistema nervoso central é elevado. Estas
gressão da doença oncológica em si (como no caso crianças devem evitar actividades físicas que pos-
CAPÍTULO 128 Aspectos básicos do tratamento oncológico 625

sam causar traumatismos, assim como fármacos incidência variando entre 3% a 22%, poderá surgir
que interfiram com o número e actividade das pla- insuficiência renal e morte.
quetas, como o ácido acetilsalicílico e o ibupro- As medidas profiláctico-terapêuticas incluem,
feno. Sempre que se julgue necessário, a tromboc- para além de elevado índice de suspeita)
itopénia deve ser corrigida através da transfusão hidratação, alcalinização da urina (pH entre 7 e
de concentrado plaquetário (geralmente, 1 7,5), alopurinol (ou, em alternativa, rasburicase).
Unidade / 10 kg de peso). A transfusão de pla-
quetas associa-se com frequência a reacções carac- Radioterapia
terizadas por febre e tremores, o que se obvia com
a irradiação sistemática do material transfundido A radioterapia consiste na administração de radia-
e com a utilização de terapêutica prévia com ções ionizantes com o objectivo de destruir as
hidrocortisona e clemastina. (ver Parte XVIII) células tumorais, por lesão directa a nível do
A anemia é um problema comum nas crianças DNA, e por acção indirecta através da ionização
com doença neoplásica sob tratamento. A decisão da água intracelular, o que causa a formação de
de transfundir (geralmente, 10 ml de concentrado radicais livres tóxicos.
eritrocitário / kg peso) deve ter em conta, não só Pode ser administrada: externamente (a forma
os critérios definidos por cada instituição, mas mais habitual) sendo o feixe de radiações emitido
também os sinais e sintomas que a criança apre- a uma determinada distância do doente; ou inter-
sente tais como, hemorragia activa, cansaço namente (braquiterapia), a partir de uma fonte de
extremo ou dispneia. Os mesmos cuidados de radiações colocada no tumor.
irradiação do produto a transfundir e de terapêu- Um terceiro tipo de técnica consiste na
tica prévia atrás indicados devem ser tomados. administração sistémica de um radioisótopo que é
A alopécia é um dos efeitos secundários da captado preferencialmente pelas células tumorais,
quimioterapia mais frequentemente observados como é exemplo a 131I-metaiodobenzilguanidina
(sobretudo com as antraciclinas, a actinomicina, o (MIBG terapêutica) em certos estádios de neuro-
etoposido e os agentes alquilantes). Habitual- blastoma.
mente, é reversível com o fim da terapêutica cito-
tóxica. Efeitos secundários da radioterapia
Tem sido descrito o aparecimento de tumores
secundários, principalmente após a administração As radiações ionizantes lesam todas as células,
de citostáticos alquilantes, epipodofilotoxinas e tumorais e não tumorais, dentro do território irra-
antraciclinas, diagnosticando-se alguns anos após diado. Os efeitos secundários dependem do tipo
a utilização destes fármacos. São habitualmente de radiação, da dose, da duração do tratamento,
leucemias mieloblásticas agudas ou linfomas não da região anatómica, do volume corporal exposto
Hodgkin, as primeiras por vezes precedidas por e da tolerância individual. A pele, o couro cabelu-
síndromas mielodisplásicas. O prognóstico é geral- do, a medula óssea e o tracto gastrintestinal são
mente muito reservado. especialmente sensíveis às radiações. No entanto,
A síndroma de lise tumoral (SLT) é uma os efeitos adversos tendem a desaparecer após o
emergência oncológica grave e potencialmente término da radioterapia, pela capacidade de reno-
fatal se não for tratada, resultante da destruição vação/cicatrização destes tecidos. Pelo contrário,
maciça de células malignas com elevado potencial órgãos com limitada replicação celular, como o
mitótico/proliferação rápida (por ex linfoma encéfalo, a medula espinal, o coração e os rins,
Burkitt e leucemia de células T) sendo classica- podem sofrer lesões que tendem a aparecer mais
mente associada à quimioterapia. Como resultado tardiamente e a ser irreversíveis. A idade da crian-
surgem hiperuricémia, hiperpotassémia podendo ça é igualmente um factor importante, já que
originar arritmia, hiperfosfatémia, hipocalcémia, quando um órgão é irradiado durante a sua fase
esta última podendo originar quadro de hiperx- de crescimento, as sequelas são mais graves. São
citabilidade/tetania. Poderá surgir hipercalcémia exemplos as assimetrias de crescimento dos ossos
por destruição óssea. Sendo descrita com uma irradiados antes do encerramento das cartilagens
626 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

de conjugação, ou a radioterapia do sistema ner- humanização de todos os profissionais da equipa


voso central antes de completado o processo de assistencial.
mielinização (cerca dos 3 anos de idade), podendo A dor nos doentes com cancro pode ser com-
provocar défice cognitivo e disfunção endócrina batida com fármacos opióides e não opióides de
central. acordo com protocolos que ultrapassam o âmbito
As complicações agudas mais frequentes, do capítulo. Entre os não opióides são utilizados o
dependendo da área irradiada, são: mal-estar paracetamol e AINE em geral.
geral; anorexia; náuseas e vómitos; disfagia; diar- Devem ser utilizados analgésicos de acordo
reia; cólicas abdominais; cistite; e alopécia. A irra- com a gravidade da situação clínica, que incluem
diação do sistema nervoso central pode causar desde anestésicos tópicos (com lidocaína, por
edema cerebral e uma síndroma de sonolência, exemplo) até perfusões sistémicas de opiáceos.
fadiga, meningismo e febre que pode ocorrer até 6 Torna-se com frequência necessário o uso de sulfa-
a 8 semanas depois do início daquela. to de morfina em perfusão contínua IV, começan-
A pele dos territórios irradiados torna-se espe- do por uma dose de 0,6 mg/kg/dia. Podem
cialmente sensível, exibindo lesões que podem ir administrar-se em SOS bolus de 10% da dose da
desde um vulgar eritema difuso a queimaduras morfina assim calculada nas horas seguintes, para
graves com descamação. Os doentes devem evitar obter uma analgesia adequada. O somatório dos
o uso de roupas apertadas e utilizar, com regular- bolus após 24 h é então adicionado à dose inicial
idade, cremes hidratantes, protectores solares e, nos dias seguintes. Também podem ser usados
eventualmente, anti-inflamatórios tópicos. A irra- adesivos de fentanil, de absorção transdérmica,
diação da medula óssea (como acontece na que têm uma duração de cerca de três dias, por
radioterapia da coluna vertebral) pode provocar exemplo em situações que obrigam a canalização
pancitopenia transitória. frequente de veias. Existem tabelas que permitem
A longo prazo, e como já referido anterior- converter as doses de morfina em fentanil. Deve
mente, a radioterapia pode provocar alterações no igualmente ser instituída uma dieta de consistên-
crescimento e maturação de tecidos e órgãos, e cia e conteúdo adequados.
induzir o aparecimento de segundas neoplasias. Noutro grupo etário e em contexto clínico
diverso, o capítulo sobre “Dor no RN” permite
Cuidados paliativos informação complementar (Parte XXXI).

Os cuidados paliativos a prestar aos doentes


oncológicos são uma componente obrigatória do
respectivo tratamento com o objectivo fundamen-
tal de aliviar a dor, mal-estar e sofrimento daque-
les, assim como da família e dos próprios presta-
dores dos cuidados (Capítulo 3).
Assim, assistentes sociais, psicólogos, edu-
cadores de infância, professores, técnicos de ani-
mação, voluntariado, são hoje imprescindíveis,
fazendo parte integrante do grupo de profissio-
nais existente nos centros oncológicos. É também
importante uma boa articulação entre a unidade
de Oncologia e outros Serviços de Saúde per-
mintindo o apoio local possível, o que contribui
para a racionalização dos meios.
No que respeita a medidas gerais de promoção
do máximo (possível) conforto, torna-se funda-
mental a presença dos pais (por vezes com limi-
tações havendo risco infeccioso) e a atitude de
CAPÍTULO 129 Leucemias 627

129
entre os 2 e os 4 anos, que corresponde a uma
forma particular de leucemia com características
fenotípicas (linhagem B, CALLA +) e de quimios-
sensibilidade particulares, que lhe conferem um
bom prognóstico. São menos frequentes antes ou
depois deste grupo etário: no adolescente a LLA
de linhagem T é mais habitual; pelo contrário, no
LEUCEMIAS lactente predomina a LLA de linhagem B, muito
indiferenciada e, em regra, de mau prognóstico.
Mário Chagas A LMA tem um pico de incidência ao longo dos
dois primeiros anos de vida, altura em que é quase
tão frequente como a LLA, tornando-se depois
menos frequente (15 a 25% das LA), só voltando a
Definição e aspectos aumentar de frequência na adolescência.
epidemiológicos
Etiopatogénese
As leucemias podem ser definidas como um
grupo de doenças malignas provocadas por ano- O capítulo 126, dedicado ao Ambiente e Genética
malias genéticas de células precursoras hemato- resume os conhecimentos actuais sobre a oncogé-
poiéticas, do que resulta proliferação clonal anár- nese em geral, referindo os aspectos particulares
quica, com diferenciação e maturação anormais de relacionados com as leucemias. Como foi aí referi-
células (clone leucémico). Poderá tratar-se de uma do, para a generalidade das neoplasias e também
célula precursora hematopoiética, quer da lin- para a generalidade das leucemias não há uma
hagem linfóide, T ou B (leucemia linfoblástica causa identificada. Em situações muito pontuais,
aguda, LLA T ou LLA B), quer da linhagem identificam-se certos agentes microbianos víricos,
mielóide (leucemia mieloblástica aguda, LMA). químicos, e radiações ionizantes, bem como
As células que constituem o clone leucémico alterações genéticas, que se encontrarão envolvi-
têm uma taxa aumentada de proliferação e uma dos na génese das leucemias.
taxa diminuída de apoptose espontânea, o que A proliferação incontrolada do clone leucé-
leva a disfunção e falência da medula óssea. mico num espaço fechado como é aquele em que
As leucemias agudas (LA) representam cerca está contida a medula óssea, a sua incapacidade
de um terço das neoplasias da criança. de diferenciação e maturação em células hemato-
Cerca de três quartos das leucemias das crianças são poiéticas normais, e a disseminação por via san-
linfoblásticas agudas, sendo as restantes mieloblásticas guínea com fixação noutros orgãos, traduzem-se
agudas. As leucemias mielóides crónicas são muito nas manifestações típicas das leucemias agudas
raras na criança. As leucemias linfocíticas crónicas descritas a seguir.
não se verificam.
A incidência anual de novos casos de leucemia Manifestações clínicas e exames
aguda nos países ocidentais é cerca de 40 por mi- de imagem nas LA
lhão de crianças com menos de quinze anos. No
nosso País estima-se que haverá cerca de 60 a 70 As manifestações clínicas das LA são fundamen-
casos novos por ano. Destes, aproximadamente 50 talmente:
serão leucemias linfoblásticas agudas. • Dor: tipicamente nos ossos longos ou na
O Quadro 2 do capítulo 125 mostra a casuísti- região lombar, corresponde à localização da
ca do Serviço de Pediatria do IPOFG de Lisboa re- medula óssea. A criança tem alguma dificuldade
ferente a 3 anos. em a localizar com precisão. Ela não está relacio-
A LLA tem um pico de incidência máximo nada com os movimentos e as articulações não
apresentam, em regra, sinais inflamatórios. Por
* M3, M4, M5 (ver explicação adiante) vezes é incapacitante e pode ser a única manifestação
628 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

durante algum tempo, levando ao diagnóstico dife- Numa radiografia do tórax pode encontrar-se uma
rencial com doenças reumáticas. massa mediastínica, o que é muito sugestivo de
• Diátese hemorrágica: é a tradução clínica da LLA de fenótipo T, mais habitual no adolescente
trombocitopénia; valores plaquetários inferiores a do sexo masculino; tal traduz infiltração do timo
10.000/mm3 são responsáveis por hemorragias ou dos gânglios linfáticos dos hilos pulmonares.
nas mucosas oral e/ou nasal (gengivorragia e/ou Nas LMA não é raro haver infiltração cutânea
epistaxe); valores entre 10.000 e 50.000/mm3, por inicial pelas células neoplásicas (leucemia cutis).
petéquias (pequenas hemorragias punctiformes Esta infiltração também se pode encontrar nas
de origem capilar), equimoses (hemorragias mul- LLA, mas em formas terminais.
tipetéquiais) e hematomas (hemorragias volumo- • Cloromas: são massas tumorais de tamanho
sas) intramusculares ou subcutâneos. variável que se encontram com relativa frequência
Por vezes outras causas se podem associar a nas LMA, principalmente de tipo M4 e M5(*).
este mecanismo de hemorragia, tornando a etiolo- Localizando-se preferencialmente na região perior-
gia da diátese mais complexa, como a falência he- bitária ou ao longo da coluna vertebral, podem
pática por infiltração leucémica, ou a libertação então originar manifestações neurológicas. Algu-
pelas células neoplásicas de proteínas com activi- mas vezes estes cloromas precedem o diagnóstico
dade anticoagulante, como sucede nalgumas for- de leucemia, tendo sido descritos em crianças, ainda
mas particulares de LMA, em especial a leucemia antes de haver envolvimento da medula óssea.
promielocítica (LMA M3).(*) Nestes casos o início Ainda nas LMA M4 ou M5(*) pode haver
da quimioterapia, com destruição maciça dos hiperplasia gengival por infiltração.
promieloblastos e libertação destas proteínas, pode • SNC: encontra-se igualmente atingido muitas
originar uma diátese hemorrágica devastadora. vezes no início da doença pela migração dos blas-
• Anemia: traduz uma progressiva diminuição tos que, por via sanguínea, se vão fixar preferen-
do número de glóbulos vermelhos e da hemoglo- cialmente na pia-máter. O número de células neo-
bina por falência de produção; manifesta-se por plásicas é, no entanto, insuficiente para originar
palidez da pele e mucosas, taquicardia, tonturas, sintomas na generalidade dos casos. É a chamada
etc.. De referir que os valores de hemoglobina en- doença subclínica do SNC. Mas se houver infil-
contrados são por vezes muito baixos (3 ou 4 g/dl) tração maciça, particularmente a partir dos plexos
mas relativamente bem tolerados, devido à lenta coroideus, especialmente ricos em vasos sanguí-
instalação da anemia. neos, podem surgir sinais de hipertensão intracra-
• Febre, em regra não muito elevada, está rela- niana, tais como cefaleias e vómitos, ou sinais neu-
cionada com os mecanismos fisiopatológicos da rológicos focais.
leucemia: libertação de pirogénios pelos blastos • Exames de imagem, como a ecografia ou a
ou pelos macrófagos e linfócitos que procuram tomografia axial computadorizada mostram igual-
controlar o clone leucémico. Desaparece com o iní- mente que outros órgãos como os rins ou os ovários
cio do tratamento. No entanto, pode ser conse- estão frequentemente infiltrados no início da doen-
quência de infecção, facilitada pela redução do ça, apresentando-se de dimensões aumentadas.
número de leucócitos normofuncionantes. Na No sexo masculino, embora raramente, pode
verdade, muitas crianças podem ter como uma detectar-se no início da doença aumento do volu-
das primeiras manifestações da doença, infecções me testicular que é indolor, sem sinais infla-
recorrentes ou de evolução arrastada, mais habi- matórios, sendo os testículos de consistência dura.
tualmente do foro ORL, que respondem mal à
antibioticoterapia. Diagnóstico das LLA
• Organomegália que traduz a infiltração de
vários órgãos pelos blastos circulantes: hepatome- O hemograma revela alterações sugestivas: ane-
gália, esplenomegália e adenomegálias (gânglios mia normocítica e normocrómica, quase sempre
linfáticos maiores que 1 cm) localizadas ou genera- trombocitopénia e leucopénia ou leucocitose. O
lizadas, e de dimensões variáveis, são encontradas exame do esfregaço do sangue periférico pode
com frequência no exame objectivo da criança. mostrar a existência de blastos circulantes. Por
CAPÍTULO 129 Leucemias 629

vezes não há alterações significativas no hemogra- va para obtenção de melhores resultados. Este acha-
ma. do é mais frequente em adolescentes do sexo mas-
O diagnóstico é feito a partir de colheita de culino com LLA de fenótipo T, ou em lactentes com
medula óssea, em geral numa crista ilíaca. As LLA hiperleucocitária de linhagem B muito indifer-
células assim obtidas são sujeitas a exame mor- enciada. O achado de um número de blastos inferior
fológico e citoquímico usando os corantes clássi- a cinco por campo tem actualmente um significado
cos, a tipagem imunológica através de painéis de não totalmente compreendido, dividindo-se os cen-
anticorpos monoclonais, a estudos de genética tros oncológicos sobre a necessidade de intensificar
convencional para determinação de alterações no ou não o tratamento.
número e estrutura dos cromossomas e, mais
modernamente, a estudos de genética molecular, Tratamento das LLA
mais sensíveis e específicos que os anteriores.
Assim, é possível diagnosticar uma leucemia se O tratamento das LLA é uma história de sucesso
o número de blastos na medula óssea for superior a que se foi construindo ao longo dos últimos
25% da celularidade total, e classificá-la recorrendo cinquenta anos. Actualmente é possível curar
aos estudos morfológicos e imunológicos, de acordo cerca de 75% a 85% das crianças com LLA.
com a linhagem afectada (linfoblástica, de linhagem Os protocolos de quimioterapia, com algumas
B ou T). As alterações genéticas encontradas, quer variações subtis, compreendem uma fase inicial
em cariótipo convencional, quer em genética mole- de indução e de remissão que dura cerca de um
cular, confirmam o diagnóstico, já que muitas são mês. No final a criança deve estar assintomática,
específicas de um tipo de leucemia e estabelecem com observação normal, sem alterações no sangue
também o prognóstico. Por exemplo, um clone periférico, e com percentagem de blastos inferior a
leucémico hiperdiplóide, em que o número de cro- 5% na medula óssea. Seguem-se uma fase de ter-
mossomas é superior a 50, é particularmente sen- apêutica da doença subclínica do SNC, uma fase
sível à quimioterapia com citostáticos do grupo dos de intensificação/consolidação, e um período
antimetabolitos, sendo de bom prognóstico. Por final de manutenção. Globalmente a terapêutica
outro lado, o achado da translocação (t) (9;22), o dura cerca de dois anos.
chamado cromossoma de Philadelphia, a que corres- Muito esquematicamente, a evolução da tera-
ponde a fusão molecular BCR-ABL, indica só por si, pêutica ao longo dos anos, até à obtenção dos
a necessidade de recorrer a transplantação de excelentes resultados actuais foi a seguinte:
medula óssea (TMO) uma vez obtida a remissão, já – no final de década de 40 do século passado
que os resultados obtidos com quimioterapia con- iniciaram-se as primeiras tentativas terapêuticas
vencional são maus. Da mesma forma a t (4;11) com com citostáticos em monoterapia, tendo o pedia-
alterações envolvendo o gene MLL, frequentemente tra Farber em Boston, obtido pela primeira vez
encontrada em lactentes com LLA, implica um uma remissão de curta duração usando um
prognóstico ominoso, que não parece sequer me- antimetabolito, a aminopterina;
lhorar com TMO. Ao invés, a t (12;21) envolvendo – na década de 50 foram induzidas associações
os genes TEL-AML1 parece conferir à LLA, pelo de fármacos: antimetabolitos, vincristina, pre-
menos com alguns protocolos de quimioterapia, um dnisolona e asparaginase; as remissões obtidas
prognóstico mais favorável. eram mais longas, mas a doença recidivava passa-
Diagnosticada a leucemia, torna-se imprescindível dos alguns meses, sendo metade das recidivas a
detectar a existência de blastos no SNC, um dos factores nível do SNC;
prognósticos mais importantes, o que se consegue – iniciou-se então na década de 60 a terapêuti-
por exame morfológico, citoquímico e, se necessário, ca da doença subclínica do SNC com radioterapia
imunológico, das células encontradas no liquor após crânio-encefálica e do neuro-eixo numa primeira
centrifugação. Em geral não há blastos detectáveis: é fase e, posteriormente, apenas craniana, associada
a chamada doença subclínica do SNC. Um número a quimioterapia intratecal, o que permitiu a
de blastos superior a cinco por campo implica pior redução do número de recidivas no SNC para
prognóstico e obriga a uma terapêutica mais intensi- cerca de 5%;
630 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

– na década de 70 utilizavam-se sistematica- da crista ilíaca. Ao contrário do que acontece com


mente esquemas terapêuticos com indução, tera- as LLA, convencionou-se ser necessário um
pêutica da doença subclínica do SNC e manu- número de blastos superior a 20% e não a 25%,
tenção. Surgiu a definição de grupos de risco, para a sua confirmação. O procedimento para a
percebendo-se que a doença não tinha sempre a caracterização dos blastos é semelhante em ambos
mesma gravidade; estes grupos baseavam-se prin- os tipos de LA: estudos morfológicos, imunocito-
cipalmente em critérios clínicos, como a idade e a químicos, de fenotipagem e genéticos. A classifi-
organomegália, e em critérios laboratoriais como cação das LMA é mais complexa que a das LLA, já
o número de leucócitos iniciais, e a classificação que mais linhagens celulares podem ser afectadas,
imunológica, ainda que rudimentar, dos blastos; sendo a classificação morfológica FAB (Franco-
– na década de 80 aperfeiçoaram-se os critérios Americana-Britânica) a mais usada internacional-
que definem estes grupos de risco, principalmente mente: M1 e M2 (mieloblástica), M3 (promielocíti-
com os progressos na classificação imunológica do ca), M4 (mielomonocítica), M5 (monocítica), M6
clone leucémico e, posteriormente, com o advento (eritroleucemia), M7 (megacariocítica) e M0
da biologia molecular; à definição destes grupos (indiferenciada). A designação M corresponde,
de risco, corresponde uma adaptação da intensi- pois, a tipos morfológicos.
dade da quimioterapia, de forma a obter os me- Embora os estudos de genética não tenham
lhores resultados com a menor toxicidade; na actualmente o impacte no diagnóstico e no
década de 90 ensaiaram-se métodos imunológicos prognóstico que têm nas LLA, algumas alterações
e genéticos para detecção da doença mínima resi- são já devidamente valorizadas: t(8;21), inv.16 e
dual em fases determinadas do tratamento, procu- t(15;17) implicam um prognóstico mais favorável,
rando determinar o seu significado prognóstico. e são específicas de certos tipos de LMA.
Assim, actualmente, após o diagnóstico é
imprescindível definir o grupo de risco do doente, Tratamento das LMA
o qual condicionará a escolha da terapêutica.
Em linhas gerais, consideram-se de alto risco os Ao contrário das LLA, com o tratamento das LMA
grupos etários inferior a 1 ano ou superior a 10 anos, não são obtidos tão bons resultados. Globalmente,
a LLA de linhagem T, a LLA de linhagem B com a probabilidade de cura ronda os 50%. Isto porque
mais de 50.000 glóbulos brancos/mm3, e a LLA os blastos se revelam pouco quimiossensíveis e o
com invasão do SNC. Os doentes destes grupos são aparecimento de resistências é frequente. O
sujeitos a quimioterapia mais intensiva que permite número de citostáticos realmente eficazes é
no final obter resultados sensivelmente idênticos pequeno, reduzindo-se aos grupos das antracicli-
aos do grupo de risco médio ou baixo. nas (doxorrubicina, daunoblastina, idarrubicina,
Consideram-se de muito alto risco, a LLA com mitoxantrona), epipodofilotoxinas (VP16, VM26),
t (9;22), a LLA que não está em remissão no final alguns antimetabolitos (Ara C) e amsacrina. A
da indução, e a LLA no lactente com t(4;11). Os terapêutica de manutenção, tão útil na generali-
dois primeiros são actualmente propostos para dade das LLA, não parece ter tanto interesse nesta
TMO, discutindo-se a melhor atitude terapêutica
para o terceiro. *A síndroma mielodisplásica(SMD) e a síndroma mieloproliferativa
(SMP) correspondem a um grupo heterogéneo de alterações
Consideram-se de risco baixo/médio os outros hematopoiéticas clonais explicando menos de 10% das doenças mali-
casos, ou seja, as LLA de linhagem B com menos gnas de origem mielóide. Na SMD, que representa um estado pré-
de 50.000 glóbulos brancos/mm3 no sangue peri- leucémico (no sentido de LMA em meses ou anos), verifica-se
hematopoiese ineficaz, maturação displásica dos progenitores
férico, em crianças com mais de um ano e menos mielóides da medula óssea, aumento da apoptose e hipercelularidade.
de dez, e sem invasão inicial do SNC*. Existe pancitopénia e predisposição para infecções relacionável com
neutropénia. A hipercelularidade e as anomalias cromossómicas como
deleção do cromossoma 5q, trissomia 8 ou monossomia 7 permitem a
Diagnóstico das LMA destrinça com anemia aplástica grave. Na SMP verifica-se abundante
proliferação e maior sobrevivência dos progenitores hematopoiéticos,
do que resulta elevado número de eritrócitos, leucócitos e plaquetas no
O diagnóstico das LMA é feito através da colheita sangue periférico. Neste âmbito, destacam-se as entidades trombo-
de medula óssea, em regra efectuada por punção citémia essencial e policitémia vera associadas a mutações genéticas.
CAPÍTULO 129 Leucemias 631

forma de leucemia, preferindo a maioria dos cen- co. Esta forma de LA é também um bom exemplo
tros proceder antes a quimioterapia intensiva que da importância que a monitorização genética tem
se prolonga por seis a oito meses, com associações no prognóstico dos doentes, já que a fusão PML-
de citostáticos, alguns em altas doses, originando RARA deverá deixar de ser detectada a partir de
longos períodos de aplasia medular. determinada fase do tratamento; a sua persistência,
Embora ainda em discussão, de acordo com a ou reaparecimento, prenuncia uma má evolução.
experiência dos maiores grupos cooperativos,
podem ser considerados actualmente três grupos
de risco: risco médio, que corresponderá aos tipos
M1 e M2 com corpos de Auer, e M4 com eosinófi-
los, em que a probabilidade de cura é vizinha dos
65%; risco alto, que corresponderá aos restantes
tipos FAB em que a probabilidade de cura não
ultrapassará os 30%, e em que se propõe TMO em
primeira remissão; risco muito alto, que corres-
ponde às LMA em que a contagem inicial de
leucócitos é superior a 100.000/mm3, de muito
mau prognóstico; nestas, as terapêuticas são
decepcionantes, mesmo com TMO.
Duas formas particulares de LMA são, contu-
do, excepção neste panorama pessimista.
A primeira diz respeito a crianças com síndro-
ma de Down que adoecem com LMA que é, em
regra, M7 (classificação FAB). Os megacarioblas-
tos destas crianças são particularmente sensíveis
ao Ara C por razões genéticas, tendo estes doentes
uma muito boa probabilidade de cura com
quimioterapia não muito intensiva.
A segunda diz respeito à LMA M3 (promie-
locítica) que apresenta quase sempre t(15;17), e a
que corresponde uma arranjo genético envolven-
do os genes PML e RARA. É hoje possível induzir,
no início do tratamento, a maturação dos
promieloblastos típicos desta forma de LMA, com
a administração de ácido transretinóico, o que
permite reduzir o risco de coagulopatia caracterís-
tico da fase inicial da terapêutica, já que a destrui-
ção dos blastos induzida pelos citostáticos liberta
grandes quantidades de proteínas anticoagu-
lantes. O uso de ácido transretinóico ao longo da
indução e, posteriormente, na manutenção, nesta
forma particular de LMA, adquiriu grande
importância permitindo uma probabilidade de
cura vizinha dos 75%.
A LMA M3 é, pois, um bom exemplo dos pro-
gressos registados no tratamento das neoplasias
com a utilização de fármacos que actuam, não por
destruição celular como é típico dos citostáticos,
mas por indução da maturação do clone neoplási-
632 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

130
dem, na classificação da Organização Mundial de
Saúde, uma das classificações antigas mais usa-
das, as categorias histológicas de linfoma de
Burkitt, Burkitt like e linfoma B de grandes células.
Aos linfomas T de células maduras, corres-
ponde a categoria histológica de linfoma anaplási-
LINFOMAS NÃO HODGKIN co de grandes células na mesma classificação.
Aos linfomas pré T ou pré B, a categoria de lin-
Mário Chagas foma linfoblástico.
Como sucede com outras neoplasias, são
descritas algumas situações predisponentes de lin-
fomas, em geral relacionadas com imunodeficiên-
Definição e aspectos epidemiológicos cia congénita ou adquirida. No entanto, para a
maioria dos casos diagnosticados, não se consegue
Os linfomas não Hodgkin são neoplasias de lin- encontrar uma causa, como sucede para a general-
fócitos maduros ou de células precursoras dos lin- idade das neoplasias da criança.
fócitos que, por mutação genética, perderam as
capacidades de maturação e de apoptose, ou seja, 1. LINFOMAS B: Linfoma de Burkitt,
de autodestruição. Ao contrário dos linfomas não Linfoma Burkitt like e linfoma B
Hodgkin do adulto, são de grande agressividade. de grandes células
Os linfomas não Hodgkin são muito menos
frequentes na criança do que no adulto, aumen- Definição
tando a incidência de forma progressiva, com a
idade. Podem encontrar-se, no entanto, em crian- O linfoma de Burkitt é, como se referiu uma neo-
ças muito jovens, por vezes lactentes. plasia de linfócitos B maduros que se apresenta
Depois das leucemias agudas e dos tumores do morfologicamente como um linfoma de pequenas
SNC, os linfomas (de Hodgkin e não Hodgkin) células redondas, não clivadas.
são as neoplasias mais frequentes, representando É muito provavelmente o tumor pediátrico
cerca de 15% da globalidade dos tumores da com multiplicação celular mais rápida e cresci-
criança. mento mais veloz.

Classificação Formas clínicas

A caracterização imunológica dos linfócitos A sua forma endémica foi a primeira a ser descrita,
patológicos veio originar uma classificação sim- na década de 50 do século passado na África equa-
ples dos linfomas não Hodgkin da criança, o que torial pelo cirurgião irlandês Burkitt, de quem
tem vindo a permitir abandonar progressiva- recebeu o nome. É o tumor mais frequente naque-
mente as inúmeras classificações clássicas, basea- la região de África; caracteriza-se pela localização
das na morfologia e nas características citoquími- preferencial no maxilar superior, podendo atingir igual-
cas, pouco claras e em regra sem grande relação mente o abdómen e o SNC. Mais tarde relacionou-se
com a clínica. este tumor com o vírus de Epstein-Barr, cujo geno-
De forma resumida, os linfomas não Hodgkin ma se encontra quase constantemente no núcleo
pediátricos classificam-se hoje de acordo com a do linfócito B neoplásico e, também, com a malá-
linhagem linfóide afectada em linfomas B de lin- ria, já que a área endémica desta doença é também
fócitos maduros, linfomas T igualmente de linfóc- a área endémica do linfoma de Burkitt. Admite-se
itos maduros, e linfomas pré T ou pré B que, como que a infecção pelo plasmódio facilite, pela
o nome indica, são linfomas de células precurso- imunossupressão que lhe é inerente, a proliferação
ras não maduras de linhagem T ou B. incontrolada dos linfócitos B infectados pelo vírus
Aos linfomas B de células maduras correspon- de Epstein-Barr, causando a doença.
CAPÍTULO 130 Linfomas não Hodgkin 633

Na União Europeia e nos EUA esta neoplasia é mutação. Os protocolos clássicos revelaram-se,
muito menos frequente, sendo a forma típica de assim, ineficazes e, excluindo as raras formas
apresentação clínica a de um tumor abdominal de tumorais localizadas que era possível ressecar, nos
crescimento muito rápido, localizado de início na restantes casos a única hipótese de cura era a rela-
fossa ilíaca direita e estendendo-se depois rapida- cionada com megaterapia seguida de transplante
mente a todo o abdómen, o qual se apresenta de medula ósea (TMO), o que só era viável se hou-
muito distendido e doloroso. À palpação encon- vesse um dador compatível. Actualmente, com os
tram-se várias formações tumorais de consistência modernos protocolos de quimioterapia intensiva, a
dura. A ecografia ou a TAC revelam várias massas probabilidade de cura é superior a 80%.
tumorais intrabdominais, por vezes infiltração É importante, para além do diagnóstico, ca-
nodular do fígado, baço, ou rins, e adenomegalias racterizar o estádio da doença, já que os protoco-
mesentéricas e retroperitoneais. Pode haver ascite los de quimioterapia actuais possuem vários
e derrame pleural. ramos de intensidade crescente. Os estádios inter-
Mais raramente a massa linfóide tumoral, que médios tratam-se durante cerca de 4 meses, e as
se localiza de início preferencialmente na região formas mais graves, em que há invasão da medu-
terminal do íleo, pode originar um íleos mecânico la óssea ou do SNC, durante cerca de 8 meses. Os
precocemente, que é então a manifestação clínica resultados finais acabam por ser semelhantes.
inaugural. Neste caso, é a cirurgia para resolução O linfoma B de grandes células e o linfoma
do íleos que permite o diagnóstico. Burkitt like são variantes histológicas na classifi-
Em estádios avançados o linfoma pode atingir cação da Organização Mundial de Saúde; mas são
o SNC, com massas tumorais que se localizam igualmente neoplasias de linfócitos B maduros.
principalmente no espaço epidural, e também na Surgem em crianças de grupo etário superior e
medula óssea (comportando-se então como LLA caracterizam-se pelo aparecimento, não de
de linfócitos B maduros). Menos frequentemente, grandes massas tumorais como no linfoma de
o linfoma de Burkitt pode surgir com outras loca- Burkitt, mas de gânglios linfáticos aumentados
lizações: mediastino, gânglios linfáticos cervicais, (adenomegálias) preferencialmente em territórios
anel de Waldeyer. periféricos, ou profundos (intrabdominais e/ou
torácicos). A localização mediastínica (Figura 1) é
Diagnóstico mais frequente na forma de linfoma B de grandes célu-
las do que no linfoma de Burkitt; neste último é tipica-
O diagnóstico é feito por estudos morfológicos, mente abdominal, como foi dito.
citoquímicos, imunológicos e genéticos. Os dois Embora haja diferenças morfológicas entre estes
primeiros revelam a existência de um tumor de linfomas B e o linfoma de Burkitt, o tratamento é
pequenas células redondas, não clivadas; os méto- semelhante e os resultados são igualmente bons.
dos imunológicos permitem a detecção de mar-
cadores de maturidade do linfócito B, e a genética 2. LINFOMAS PRÉ T e PRÉ B: Linfoma
revela as translocações típicas: t(8;14), t(2;8) e linfoblástico
t(8;22). O material para estes estudos pode obter-
se por citologia do tumor por agulha fina, ou por O linfoma pré T, constituído por linfoblastos pre-
estudo das células existentes em suspensão no cursores de linhagem T, é tipicamente supra
líquido ascítico ou no derrame pleural. diafragmático, atingindo o mediastino numa
grande percentagem de casos, e também os
Tratamento gânglios dos territórios cervicais, supra clavicu-
lares e axilares. Dor torácica, dispneia e disfagia
O tratamento do linfoma de Burkitt/LLA B cons- por compressão das vias aéreas ou do esófago,
titui um dos maiores sucessos da oncologia moder- edema e estase venosa do pescoço e parte superi-
na. O elevadíssimo número de células neoplásicas or do tórax por compressão da veia cava superior
em divisão acompanha-se de uma enorme capaci- – síndroma da veia cava – são as manifestações
dade de adquirir resistência à quimioterapia, por mais frequentes. (Figura 1)
634 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

tempo confundida com a doença de Hodgkin, cuja


destrinça se faz pelas características imunológicas
e genéticas da célula neoplásica.
Manifesta-se por adenomegálias nos ter-
ritórios periféricos ou toracoadominais sem, con-
tudo, haver formação de grandes massas
tumorais, ao contrário do que sucede com o linfo-
ma de Burkitt, ou o linfoma linfoblástico (o
primeiro no abdómen, o segundo no tórax). Pode
infiltrar certos órgãos como a pele, o pulmão ou o
osso, mas raramente atinge o SNC ou a medula
óssea. É, sobretudo, a evolução lenta com perío-
dos de regressão espontânea e a repercussão no
estado geral, com febre e emagrecimento, que
diferenciam este linfoma dos outros e o aproxi-
mam do linfoma de Hodgkin.
Não há unanimidade na terapêutica ideal,
sendo tratada por uns centros como uma leucemia
aguda, por outros como uma doença de Hodgkin.
FIG. 1
Mais recentemente têm sido referidos bons resul-
Linfoma B difuso de grandes células; radiografia do tórax: tados com quimioterapia semelhante à utilizada
adenomegalia mediastínica. para o linfoma de Burkitt.

Em estádios mais avançados pode haver


invasão do SNC ou da medula óssea. Esta última
põe problemas de diagnóstico diferencial entre
linfoma e leucemia. Por convenção será linfoma se o
número de linfoblastos na medula óssea for inferior a
25%.
O linfoma pré B, constituído por linfoblastos
precursores de linhagem B, atinge igualmente os
territórios linfáticos periféricos, ou profundos,
tóraco-abdominais, não havendo aqui, contudo,
volumosas massas tumorais, como sucede no lin-
foma de Burkitt. Pode igualmente em fases
avançadas atingir o SNC ou a medula óssea,
pondo iguais problemas de diagnóstico diferen-
cial com leucemia, utilizando-se o critério acima
referido para fazer a destrinça.
A distinção entre leucemia e linfoma acaba, na
prática, por ser pouco importante, já que o trata-
mento destes linfomas faz-se com protocolos de
quimioterapia semelhantes aos das leucemias,
com resultados sobreponíveis.

3. LINFOMA T: Linfoma anaplásico


de grandes células

Trata-se de uma entidade nova, durante muito


CAPÍTULO 131 Linfoma de Hodgkin 635

131
nomegálias podem confluir, formando conglome-
rados mais ou menos volumosos. As adeno-
megálias do mediastino são assintomáticas de iní-
cio, podendo ser um achado ocasional em radio-
grafia feita por intercorrência. Mais tarde os
gânglios comprimem as estruturas vizinhas,
LINFOMA DE HODGKIN podendo originar dispneia, disfagia e rouquidão
(Figura 1). A progressão da doença faz-se em regra
Mário Chagas por via linfática, atingindo sucessivamente os ter-
ritórios ganglionares vizinhos.
A presença de várias manifestações sistémicas
(temperatura superior a 38ºC durante pelo menos
Definição e aspectos epidemiológicos três dias, emagrecimento superior a 10% do peso
nos últimos seis meses, prurido e sudação noctur-
O linfoma de Hodgkin, com a designação antiga na), está associada a prognóstico mais reservado, o
de doença de Hodgkin, abandonada pela OMS, que obriga a terapêutica mais intensiva.
tem o nome do médico que primeiro o descreveu
no início do século XIX. Trata-se dum processo Diagnóstico
maligno do sistema linforreticular.
Constituindo cerca de 5% dos casos de cancro O diagnóstico é feito por biópsia de um gânglio
em idade pediátrica, surge nos países industriali- que revela as células de Reed-Sternberg e suas
zados com um primeiro pico de incidência por variantes, num fundo de células inflamatórias
volta dos vinte anos, e outro a partir dos cinquen- (linfócitos, plasmócitos, eosinófilos, histiócitos),
ta anos. É, portanto, muito menos frequente na com fibrose. As células de Reed-Sternberg, de
criança que no adulto. Na idade pediátrica surge origem desconhecida durante muito tempo,
principalmente na pré-adolescência ou adolescên- foram identificadas imunologicamente como célu-
cia, sendo raro antes dos 7 anos de idade ao con- las linfóides de linhagem B, englobando-se esta
trário dos outros linfomas. doença actualmente no grupo dos linfomas.
As relações entre esta doença e o vírus de As referidas células têm grande diâmetro (15-
Epstein Barr são conhecidas, já que o genoma do 45 µm) e são multinucleadas ou com núcleo multi-
vírus se encontra com grande frequência na célula
neoplásica.
O linfoma de Hodgkin é mais frequente em
crianças com imunodeficiência e tem sido descrito
o seu aparecimento em “epidemias” familiares,
porventura relacionadas com infecções víricas.

Manifestações clínicas

Clinicamente caracteriza-se por ter um início


insidioso, com aparecimento de adenomegálias
principalmente cervicais, supraclaviculares ou me-
diastínicas. Mais raramente a localização é infradi-
afragmática. Os gânglios são elásticos, não
dolorosos, sem sinais inflamatórios, de crescimento
FIG. 1
muito lento; por vezes apresentam regressão
espontânea durante algum tempo, no que o linfo- Linfoma de Hodgkin: opacidade esferóide “gigante” com
ma de Hodgkin se distingue da generalidade dos ponto de partida mediastínico ocupando o campo pulmonar
outros linfomas. Em fases mais avançadas as ade- direito (NIHDE).
636 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

lobulado. Curiosamente, no linfoma de Hodgkin, Tratamento


ao contrário de outras neoplasias, as células neo-
plásicas não são mais de 1% das células que se A terapêutica é programada de acordo com o está-
encontram nos gânglios atingidos, sendo as res- dio do doente e a existência ou não, de manifes-
tantes células inflamatórias, o que pode tornar difí- tações associadas a pior prognóstico. Em pediatria
cil o diagnóstico. usam-se esquemas combinados de quimioterapia
De acordo com as células predominantes no e radioterapia com excelentes resultados. Estes
gânglio e o grau de fibrose, classifica-se a doença de esquemas têm vindo a adaptar-se progressiva-
Hodgkin em: com predomínio linfocitário, com mente, de forma a reduzir a intensidade da
esclerose nodular, com celularidade mista e com quimioterapia e a dose e os campos da radiotera-
depleção linfocitária (classificação de Rye). A primeira pia, sem diminuir a probabilidade de cura. Hoje é
tem um excelente prognóstico surgindo, em geral possível curar doentes usando doses comple-
sob a forma localizada em adolescentes. A esclerose mentares de radioterapia que não ultrapassam os
nodular corresponde ao tipo histológico mais habit- 20 a 25 Gy, por oposição aos 35-40 Gy usados ante-
ual entre nós e nos países desenvolvidos. A celular- riormente. Igualmente os estádios menos avança-
idade mista surge em crianças mais jovens. A dos (I, II, III A) são sujeitos a quimioterapia menos
depleção linfocitária surge associada a formas gen- intensiva que os restantes estádios (III B e IV).
eralizadas da doença, de prognóstico pior. A probabilidade de cura é grande (80 a 90%),
Após o diagnóstico é indispensável a caracteri- mesmo para os estádios mais avançados, com as
zação do estádio evolutivo para programar a te- modalidades modernas de tratamento: duas a seis
rapêutica. Usa-se habitualmente a classificação de faixas de quimioterapia consoante a extensão da
Ann Arbor, com quatro estádios, consoante o doença, seguidas de radioterapia.
número e localização dos territórios ganglionares Os efeitos secundários da quimioterapia são os
afectados e a eventual infiltração de estruturas não habituais, sendo os mais temíveis as neoplasias
linfóides, como o pulmão, o fígado, ou a medula secundárias, principalmente leucemia aguda
óssea (estádio IV). Considerando os extremos mieloblástica e linfoma não Hodgkin.
desta classificação cabe referir: que o estádio I cor- A incidência comparativamente superior
responde a compromisso de um único gânglio ou destas neoplasias secundárias nos doentes com
um só órgão ou local extralinfático; e que o estádio linfoma de Hodgkin em relação a doentes com
IV corresponde à forma disseminada com vários outras neoplasias, parece ser devida em grande
órgãos ou tecidos extralinfáticos afectados, com ou parte à imunodeficiência celular que estes apre-
sem compromissos ganglionar; os estádios II e III sentam e que persiste, mesmo após a cura. A estes
correspondem ao compromisso ganglionar (2 ou efeitos somam-se os efeitos secundários da radio-
mais gânglios), e/ou extraganglionar, respectiva- terapia: atrofia das partes moles, perturbações do
mente dum lado ou dos dois lados do diafragma, crescimento ósseo, disfunção da tiroideia, tumores
o qual serve como referência topográfica. O está- secundários das partes moles, da mama, da
dio é determinado usando várias técnicas imagi- tiroideia, e ósseos. Isto significa que estes doentes
ológicas como a ecografia, a tomografia axial com- devem ser seguidos cuidadosamente durante
putadorizada ou a ressonância magnética e através muitos anos para diagnóstico atempado destas
de estudos isotópicos como as cintigrafias com complicações, que serão tanto mais de recear
gálio e tecnésio; e, mais recentemente, com a tomo- quanto maior for a esperança de vida do doente.
grafia com emissão de positrões. São técnicas com-
plementares, que adicionam à informação
anatómica outros dados sobre a actividade da
doença. Estas técnicas sofisticadas permitem iden-
tificação do estádio relativamente rigorosa, sem
necessidade de recurso a técnicas invasivas como a
linfangiografia ou a laparotomia exploradora que
pertencem ao passado. Nota: 1 unidade de radiação (1 GYY) = 100 rads
CAPÍTULO 132 Neuroblastoma 637

Manifestações clínicas

132 O espectro clínico é muito variável existindo


muitas interrogações pelo seu comportamento,
por vezes enigmático. Na verdade, alguns neuro-
blastomas metastisados e com repercussão grave
NEUROBLASTOMA sobre o estado geral do doente podem regredir
espontaneamente ou com quimioterapia de curta
Mário Chagas duração, enquanto neuroblastomas em estádios
mais localizados e sem aparente repercussão geral
podem progredir inexoravelmente, apesar dos
tratamentos efectuados (por exemplo regressão
Definição e aspectos epidemiológicos sem terapêutica, evolução para ganglioneuroma,
benigno, ou doença com metástases).
Trata-se duma neoplasia de origem embrionária O tumor primitivo localiza-se ao longo das
com ponto de partida nas células da crista neural estruturas nervosas simpáticas; mais frequente-
que formam a medula supra-renal e o sistema ner- mente no abdómen, na glândula supra-renal ou ao
voso simpático. Com uma prevalência de 1/7000 longo da goteira para vertebral; outras vezes no
nado-vivos, constitui o tumor sólido mais fre- tórax, no mediastino posterior; mais raramente na
quente no lactente, e o segundo na primeira déca- região cervical ou na pelve (Quadro 1).
da da vida, logo depois dos tumores do SNC. No abdómen o tumor pode atingir dimensões
Representa cerca de 10% dos tumores malignos da apreciáveis antes de originar sinais e sintomas: os
criança, registando-se em 1-2% dos casos antece- mais frequentes são a dor e a distensão abdominal
dentes familiares de neuroblastoma. que se manifestam numa criança em regra ema-
grecida e com aspecto de doença grave, já que
Etiopatogénese geralmente a doença se apresenta num estádio
avançado.
A etiologia do neuroblastoma é desconhecida. De No tórax as manifestações são respiratórias, cir-
referir a ocorrência de mutações no gene culatórias ou neurológicas (síndroma de Claude
PHOX2B (regulador do desenvolvimento neuro-
nal autonómico), em casos de neuroblastomas e QUADRO 1 – Clínica do Neuroblastoma
de associação deste tipo de tumores a situações
caracterizadas por alterações do desenvolvimen- Manifestações frequentes

to da crista neural (neurocristopatias) como neu- Dor óssea


rofibromatose do tipo 1, síndroma de hipoventi- Marcha claudicante
lação central e doença de Hirschprung, as quais Hepatomegália
poderão ser consideradas factores predispo- Massa abdominal (a partir da supra-renal)
nentes. Por outro lado, mutações genéticas no Palidez
cromossoma 6p22 estão associadas a risco au- Emagrecimento
mentado de neuroblastoma.
Reportando-nos à teoria de Knudson (Ca- Manifestações raras
pítulo 126), cabe referir que a maioria dos casos Nódulos cutâneos
familiares/hereditários se relaciona com muta- Proptose
ções no gene ALK. Equimoses periobitárias
A diversidade do comportamento evoluti-
Adenomegálias
vo do neuroblastoma (adiante salientada)
Paraplegia
poderá ser explicada pela expressão dos recep-
Síndromas paraneoplásicas (VIP, OMA,SEC) -
tores de neurotrofina, determinada genetica-
mente. consultar texto
638 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Bernard Horner, por exemplo), devido à com- são abdominal, desidratação, etc.. Está em geral
pressão das estruturas anatómicas pelo tumor. associada a ganglioneuroma ou ganglioneuroblas-
Nalguns casos, porém, poderá ser um achado oca- toma]; 2) OMA (opsomioclonus-mioclonus-ataxia) –
sional numa radiografia do tórax feita por uma associada a autoanticorpos antineuronais [abalos
intercorrência. mioclónicos erráticos, movimentos oculares
Na região cervical, uma massa tumoral asso- descontrolados e ”olhos e pés dançarinos”, por
ciada ou não a dor, é o sinal mais frequente. vezes, ataxia cerebelosa]; 3) SEC (secreção excessiva
Como resultado da localização na pelve de catecolaminas) [taquicárdia, HTA, palpitações,
surgem alterações do trânsito intestinal ou sudação profusa, crises de rubor, sintomatologia
queixas urinárias, resultantes da compressão do que é clássica no feocromocitoma. Enquanto a
recto ou da bexiga. patogénese da HTA no caso de neuroblastoma
Mas, independentemente das localizações tem forte componente de causa renovascular, no
anatómicas anteriormente referidas, tratando-se feocromocitoma é sobretudo comparticipada
de um tumor paravertebral, pode sempre mani- pelas catecolaminas em excesso].
festar-se inicialmente por sinais neurológicos de Um forma clínica designada especificamente
gravidade variável, quer por compressão das por estádio 4S (em crianças com < 1 ano de idade,
raízes nervosas, quer por invasão do canal medu- com tumor primário pequeno e metástases limi-
lar. Neste último caso o tratamento torna-se ver- tadas à pele, fígado ou medula óssea) está associ-
dadeiramente urgente a fim de evitar sequelas ada a prognóstico mais favorável.
neurológicas graves. Considerando a verificação de massa abdomi-
Para além destas manifestações relacionadas nal, sob o ponto de vista semiológico há a salien-
com o tumor primitivo, outras podem surgir tar que no caso de neuroblastoma a mesma classi-
resultantes da metastisação tumoral: dor óssea, camente se apresenta de consistência endurecida,
por invasão óssea; anemia e trombopénia por com superfície lisa, lobulada, fixa, ultrapassando a
invasão da medula óssea; nódulos cutâneos por linha média, ocupando a loca renal e deslocando o
invasão da pele; proptose e equimoses palpebrais rim para baixo e para fora. O diagnóstico diferen-
por infiltração da órbita; e, em fases muito cial pode fazer-se com o tumor de Wilms, salien-
avançadas da doença, pode assistir-se a metasti- tando-se que nesta última situação a massa não
sação pulmonar ou no SNC. ultrapassa a linha média, sendo em cerca de 5%
Uma forma peculiar de apresentação que dos casos bilateral (Capítulo 133).
merece referência é a síndroma de Pepper: surge O Quadro 1 resume as manifestações clínicas
no lactente e caracteriza-se por um tumor locali- mais frequentes e menos frequentes do neuroblas-
zado na supra-renal havendo, simultaneamente, toma. A Figura 1 montra um lactente com disten-
infiltração maciça do fígado. A hepatomegália são abdominal e hepatomegádia.
resultante é então a primeira manifestação da
doença, observando-se um lactente com estado
geral em regra bom, com abdómen volumoso em
que se palpa o fígado aumentado de volume.
Algumas vezes esta hepatomegalia é de tal forma
exuberante que se instala um quadro de dificul-
dade respiratória, e/ou edema do escroto e mem-
bros inferiores, e/ou vómitos frequentes e má-
nutrição, devidos à compressão exercida pelo fíga-
do aumentado sobre as estruturas vizinhas.
Em cerca de 1 a 3% dos doentes podem fazer
parte das manifestações clínicas 3 tipos de síndro-
FIG. 1
mas paraneoplásicas por: 1)VIP (Vasoactive intes-
tinal peptide) – por secreção tumoral de VIP [diar- Lactente com distensão abdominal por hepatomegália
reia secretória intratável, hipopotassémia,disten- relacionada com neuroblastoma (NIHDE).
CAPÍTULO 132 Neuroblastoma 639

Exames complementares
e diagnóstico diferencial

Dada a diversidade de manifestações clínicas do


neuroblastoma, tal situação poderá ser confundida
com outras neoplasias ou situações não neoplási-
cas. As dificuldades poderão ser maiores nos casos
de neuroblastomas que não produzem catecolami-
nas em excesso e em cerca de 1% dos casos em que
não é obvia a identificação de tumor primário.
As sídromas VIP podem ser confundidas com
doença inflamatória intestinal e os casos com
FIG. 2
manifestações de OMA poderão corresponder a
situação neurológica primária. Imagem opaca arredondada paravertebral torácica superior
As equimoses periorbitárias poderão levantar de neuroblastoma desviando o esófago visualizado com
a hipótese de maus tratos/abuso, pelo que a contraste. (NIHDE)
anamnese se torna fundamental. A verificação de
anemia, neutropénia, ou trombocitopénia pode
levar, em função do contexto clínico, ao diagnósti-
co diferencial, também, com leucemia.
O estudo imagiológico do doente por TAC ou
TAC com emissão de positrões (PET) e ou ressonân-
cia magnética nuclear (RMN) revela um tumor de
localização e dimensões variáveis, muitas vezes com
calcificações, as quais são sugestivas do diagnóstico.
As Figuras 2 e 3 exibem imagens de neuroblas-
toma de localização intratorácia.
Na Figura 2 (radiografia de tórax) em incidên-
cia póstero-anterior observa-se opacidade para
FIG. 3
vertebral de contorno arredondado ao nível de D1-
D4 desviando o esófago contrastado. Imagem de TAC torácica de perfil evidenciando tumor
A Figura 3 mostra imagem de neuroblastoma esférico pré-vertebral (neuroblastoma) ocupando
de localização pré-vertebral superior intratorácia praticamente o terço superior da cavidade torácica. (NIHDE)
(D2-D7) de contorno arredondado e grandes
dimensões (TAC de perfil). [Nota: valores de referência: VMA (urina):
O estudo isotópico com injecção de metaiodo- 83±26µg/kg/dia (ou 2-12µg/mg de creatinina);
benzilguanidina (MIBG), metabólito que é fixado HVA (urina): 3-16µg/mg de creatinina; catecola-
electivamente pelas células do neuroblastoma, minas totais (urina): 0,4-2µg/kg/dia]
permite determinar com precisão a localização do O mesmo se aplica à enolase sérica e LDH, mar-
tumor primitivo e suas metástases, tendo também cadores que, não sendo específicos, se encontram
importância no seguimento dos doentes. elevados nas formas mais avançadas da doença.
Tratando-se de um tumor produtor de cateco- O diagnóstico é confirmado por exame citológico
laminas (em 90% dos casos), estas podem ser ou histológico do tumor, obtidos por citologia por
doseadas na urina, encontrando-se em geral agulha fina ou por biópsia, colhendo-se igualmente
aumentadas no início da doença, normalizando material para estudos genéticos (para classificação
com o tratamento. Os ácidos vanilmandélico genómica). Actualmente utilizam-se marcadores
(VMA) e homovanílico (HVA) são assim impor- genéticos com valor prognóstico: deleção do cromos-
tantes, não só no diagnóstico, mas também no estu- soma 1, amplificação e mutações no cromossoma
do evolutivo. 6p22, e amplificação do gene N MYC, entre outros.
640 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Tratamento

O neuroblastoma é um tumor quimio e radiossen-


sível. O tratamento é programado de acordo com os
critérios que definem o prognóstico do doente no
início. Entre estes destacam-se a idade (inferior ou
133
superior a um ano), o estádio do tumor (localizado TUMOR DE WILMS
e ressecável, localizado e irressecável, disseminado),
os marcadores genéticos (N MYC, CHD5) e o tipo Mário Chagas
histológico (favorável, desfavorável).
Assim, alguns doentes serão apenas sujeitos a
cirurgia, outros serão submetidos a quimioterapia
e cirurgia, outros ainda após quimioterapia e Definição e aspectos epidemiológicos
cirurgia serão sujeitos a megaterapia com auto
transplantação com células estaminais, comple- O tumor de Wilms, também designado nefroblas-
mentada posteriormente com radioterapia sobre o toma, é o tumor renal e o tumor abdominal mali-
leito tumoral. gno mais frequente na criança, representando
Alguns protocolos prevêem ainda terapia cerca de 5% dos tumores pediátricos (Quadro 2 do
sobre a doença residual eventualmente persistente capítulo 125). É um tumor de origem embrionária,
após os tratamentos anteriormente referidos, a histologicamente formado por três elementos
qual se ensaia com o uso de anticorpos monoclo- (estroma, blastema e elementos epiteliais, em pro-
nais, ou com indutores da maturação do neuro- porções variáveis), e com um grau de maior ou
blasto (designadamente com isotretinoína ou menor malignidade. Pode ser detectado no RN.
ácido cis-retinóico), ou ainda com terapia com Os restantes tumores malignos do rim – sarco-
radioisótopos. ma de células claras, tumor rabdóide e carcinomas
– são muito raros em idade pediátrica.
Prognóstico Atinge o pico de incidência pelos dois a três
anos de idade, embora se possa encontrar em
A probabilidade de cura depende dos vários fac- qualquer outro grupo etário pediátrico.
tores prognósticos acima descritos, sendo muito
elevada nos estádios localizados sem marcadores Etiopatogénese
genéticos de mau prognóstico e, ao invés, reduzi-
da nos estádios avançados ou com marcadores Em cerca de 1-2% dos casos existem antece-
genéticos desfavoráveis, apesar das terapêuticas dentes familiares desta patologia (hereditarie-
intensivas a que estes últimos doentes são actual- dade autossómica dominante). Em cerca de
mente sujeitos. Como marcadores citogenéticos de 20% dos casos foram demonstradas mutações
prognóstico mais reservado de neuroblastoma no gene WT1 localizado em 11p 13. Outros
citam-se a amplificação do proto-oncogene N genes em 11p15,16q, e 1p têm também sido
MYC (ou N-myc) e a identificação do gene supres- envolvidos. Contudo, a predisposição genética
sor CHD5 relacionado com deleção 1p36.1. para tumor de Wilms é heterogénea. Uma
característica genética designada pela sigla
LOH (do inglês-loss of heterozygosity ou perda
de heterozigotia), se verificada ao nível dos
cromossomas 1p ou 16q está asociada a maior
risco de recaídas, agravando o prognóstico.
Cabe referir, a propósito, entre outras, 3
situações associadas a tumor de Wilms, por sua
vez acompanhadas de anomalias cromossómi-
cas e génicas que se relacionam com o mesmo
CAPÍTULO 133 Tumor de Wilms 641

tumor: 1) Síndroma de Beckwith – Wiedemann imagem são geralmente conclusivos, porque o


(macroglóssia, hemi-hipertrofia, onfalocele, vis- tumor de Wilms é em regra um tumor intra-renal
ceromegália) em que existe risco (de 3-5%) de (mais lateral), e o neuroblastoma abdominal tem
tumor de Wilms; uma das anomalias consiste como ponto de partida a supra-renal ou os
em deleção 11p 15.5 (locus WT2); 2) Síndroma gânglios simpáticos para vertebrais (mais central
de Denys – Drash (insuficiência renal precoce com tendência para expansão centrífuga) (Capí-
associada a esclerose mesangial, pseudo-her- tulo 132).
mafroditismo masculino) associada a mutações No tumor de Wilms os estudos de imagem
no gene WT1; 3) Síndroma WAGR (atraso men- mais informativos são a ecografia com ecodoppler
tal, aniridia, anomalias génito-urinárias) associ- e a tomografia axial computadorizada (TAC),
ada a deleção 11p 13 (loci WT1 w PAX6). abdominais, e a radiografia do tórax. A ecografia
confirma a existência de um tumor renal, informa
Manifestações clínicas sobre a sua estrutura sólida ou quística, detecta a
existência de adenomegálias regionais ou de
Muitas vezes o tumor é assintomático, sendo a metástases hepáticas, e verifica a permeabilidade
mãe ao cuidar do filho, ou o médico em exame dos grandes vasos determinando a eventual pre-
de rotina, que palpa o tumor localizado num sença de trombo na veia renal e na veia cava infe-
dos flancos, de consistência dura e de limites rior.
precisos. Com localização inicial lombar, A TAC com injecção de produto de contraste
desenvolve-se rapidamente no sentido póstero- confirma a existência do tumor e permite uma
anterior, simulando por vezes hepatomegália mais precisa definição da sua localização e dos
ou esplenomegália. Em cerca de 5% dos casos seus limites, bem como da capacidade funcional
desenvolve-se bilateralmente. O tumor, que está do rim atingido. Permite igualmente examinar o
contido pela cápsula do rim, é friável, pelo que rim oposto, excluindo a existência de tumor bi-
a palpação deve ser cuidadosa. lateral.
Outras vezes o tumor é sintomático sendo a A radiografia do tórax detecta a existência de
dor e a hematúria macroscópica as manifes- metástases nos pulmões que, com o fígado, cons-
tações mais frequentes. tituem os locais mais frequentes de metastisação.
A hipertensão arterial associa-se frequente- Alguns centros oncológicos privilegiam a TAC
mente ao tumor de Wilms pelas alterações vas- torácica em detrimento da radiografia conven-
culares renais por ele provocadas; contudo, cional para detecção de metastisação pulmonar, já
raramente é manifestação responsável pelo que o seu poder de resolução é maior, embora o
diagnóstico. O tumor de Wilms pode aparecer risco de falsos positivos seja significativo. (Figura
associado a alterações morfológicas como crip- 5 – Capítulo 8).
torquídia, hipospádia, aniridia ou hemi-
hipertrofia. Tratamento
Algumas crianças com síndromas raras têm
uma maior incidência de tumor de Wilms, pelo O tumor de Wilms é quimio e radiossensível. A te-
que devem ser vigiadas cuidadosa e longa- rapêutica é, como na generalidade dos tumores
mente. Encontram-se nesta situação as crianças sólidos, constituída por cirurgia, quimioterapia e
com síndromas WAGR, Beckwith-Wiedemann, radioterapia. Na maioria dos centros oncológicos
Denys-Drahs e Sotos. (ver Etiopatogénese) dos EUA a cirurgia é a primeira atitude terapêutica.
Na UE em geral, a cirurgia só é inicial em
Diagnóstico lactentes com menos de 6 meses em que a proba-
bilidade de se tratar de tumor renal benigno é
Perante uma criança com dois ou três anos de grande, ou quando por qualquer razão há dúvida
idade com um tumor abdominal, o diagnóstico sobre o diagnóstico. Se assim não for, a terapêutica
diferencial é feito, principalmente, entre tumor inicia-se com quimioterapia, sendo a cirurgia protelada
de Wilms e neuroblastoma. Os estudos de (quimioterapia neoadjuvante). Esta estratégia, entre
642 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

134
outras vantagens, permite reduzir o volume tumoral
tornando a cirurgia mais fácil.
A radioterapia é hoje reservada para os está-
dios mais avançados em que, após a cirurgia se
verificou tumor residual, ou em que houve rup-
tura da cápsula do rim, ou ainda para os tumores
cujo tipo histológico é desfavorável. Da mesma TUMORES DO SISTEMA
forma o grau de intensidade da quimioterapia
depende da histologia do tumor. NERVOSO CENTRAL
Prognóstico Mário Chagas e Duarte Salgado

A probabilidade de cura de uma criança com


tumor de Wilms é actualmente de 90%, sendo pre-
ocupação dos protocolos actuais de tratamento a Aspectos epidemiológicos
redução da toxicidade, sem prejudicar estes exce-
lentes resultados (ver alínea Etiopatogénese- Os tumores cerebrais primários no seu conjunto
critério genético LOH associado a prognóstico são a segunda neoplasia mais frequente em idade
mais reservado). pediátrica, logo a seguir às leucemias. A sua
incidência ronda 30 novos casos por 1 000 000 de
crianças com menos de 15 anos.
No seu todo, podemos encontrar neoplasias de
baixo grau de malignidade, e outras de uma
agressividade tal que se colocam entre as mais
malignas em oncologia.
Determinadas síndromas hereditárias, incluin-
do neurofibromatose (tipos 1 e 2), síndroma de Li-
Fraumeni, esclerose tuberosa, síndroma de Turcot
e síndroma de von Hippel-Lindau comportam
risco elevado de tumor do SNC.
O sistema nervoso central no referido período
apresenta particularidades entre as quais se destaca o
seu crescimento e maturação, decorrendo daqui uma
diferença fundamental entre as patologias e terapêu-
ticas nesta idade e na idade adulta. A radioterapia,
por exemplo, terapêutica habitual nos adultos, pode
não ter indicação formal nesta população, devido aos
efeitos secundários que determina a nível cognitivo.
A percepção de que os doentes terão por esta
razão prognóstico mais reservado deve ser com-
batida. Na verdade, se alguns tumores não são
actualmente curáveis, a maioria das crianças pode
ser curada ou viver com a situação compensada
com um mínimo de limitações.

Manifestações clínicas
e exames complementares

No âmbito da avaliação clínica a anamnese e o


CAPÍTULO 134 Tumores do sistema nervoso central 643

exame físico (incluindo exame neurológico com QUADRO 1 – Sinais de HIC


fundoscopia e estudo dos campos visuais) são
fundamentais (Capítulo 248). • Vómitos matinais
A ideia de que o sintoma mais frequente numa • Edema da papila
criança com tumor cerebral é a cefaleia está cor- • Cefaleias nocturnas /matinais
recta. No entanto, dada a frequência desta queixa • Estrabismo (paralisia do VI par)
na população em geral, torna-se muito importante • Nistagmo
reconhecer as suas características específicas que • Ataxia
são as da hipertensão intracraniana: cefaleias em
regra nocturnas ou matinais, por vezes associadas
a irritabilidade e prostração, melhorando ao longo dos casos, sinais de tumor localizado na fossa pos-
do dia e repetindo-se diariamente. Ao progredi- terior, condicionando hidrocefalia aguda.
rem, são quase sempre acompanhadas de vómitos Nos casos de tumores com elevada potenciali-
matinais, tipicamente pré-prandiais. É com este dade metastática como o meduloblastoma (ver
quadro que as crianças chegam ao médico, quase adiante), torna-se necessário proceder ao estudo
sempre com um período de sintomas inferior a imagiológico cranioencefálico e espinhal total.
seis semanas (Capítulo 185).
A identificação de sinais de localização do Diagnóstico diferencial
tumor, tais como hemiparésia ou afasia, não é
habitual nesta população, mas é importante saber O diagnóstico diferencial das situações compor-
que um dos tumores mais frequentes, o glioma da tando-se clinicamente como massas intracrani-
via óptica, manifesta-se somente por perda da anas inclui tumores benignos e malignos do
acuidade visual unilateral; infelizmente a idade SNC, malformações arteriovenosas, aneurisma,
não permite que a criança colabore no diagnósti- cisticercose, doenças granulomatosas (tubercu-
co, já que a maior incidência do referido tumor se lose, sarcoidose), hemorragia intracraniana,
verifca abaixo dos 3 anos. pseudotumor cerebri, e tumor metastático.
A crise epiléptica como forma de apresentação
clínica não é frequente. São geralmente crises par- Tipos histológicos e tratamento
ciais, por vezes com uma semiologia atípica como
sejam as crises uncinadas (sensação de cheiro Meduloblastoma
desagradável) dos tumores da face interna do lobo É o tumor mais frequente na criança, com locali-
temporal. zação na fossa posterior, no vermis do cerebelo. O
Os tumores do cerebelo estão associados a seu nome tem origem na célula pluripotencial, seu
ataxia e alteração na coordenação. ponto de partida. Histologicamente faz parte dos
O Quadro 1 resume os sinais típicos de tumores de células pequenas redondas e azuis,
hipertensão intracraniana (HIC). semelhando os tumores da família dos sarcomas
Perante a suspeita de lesão expansiva do SNC de Ewing/PNET extracranianos.
considera-se hoje a ressonância magnética cra- A abordagem terapêutica actual destes
nioencefálica o exame de imagem de eleição tumores, de elevada malignidade, passa por uma
(Capítulo 8). Em situação de emergência, pela remoção cirúrgica, a mais alargada possível,
maior facilidade de execução, a TAC cranioence- seguida de radioterapia sobre o leito tumoral e
fálica constitui uma alternativa. Nos casos de sus- todo o SNC (cérebro e medula espinal); e, final-
peita de HIC, qualquer destes exames de imagem mente, de quimioterapia. Com esta abordagem é
deverá preceder obrigatoriamente eventual possível uma sobrevivência aos cinco anos de
punção lombar (indicada para estudo do LCR no cerca de 65%.
âmbito da avaliação histológica/citocentrifu- As sequelas derivadas do tumor e da terapêuti-
gação, designadamente para detecção de doença ca não são, no entanto, negligenciáveis, destacando-
metastática). se a toxicidade cognitiva e endócrina, tanto mais
O exame de imagem revela, em mais de metade acentuada quanto mais novos forem os doentes.
644 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Astrocitoma pilocítico remoção total como principal factor prognóstico


Trata-se de um tumor com múltiplas localizações leva muitos neurocirurgiões a tentarem uma
no SNC. Se histologicamente é um tumor de baixo segunda abordagem cirúrgica quando a ressonân-
grau de malignidade, na clínica a sua malignidade cia magnética revela tumor residual depois de
advém do facto de se encontrar em certas localiza- uma primeira intervenção.
ções que o tornam irressecável.
As duas localizações mais frequentes ilustram Glioma maligno
este aspecto: se, por um lado, a localização cerebe- Este é, sem dúvida, o grupo de tumores com pior
losa permite uma remoção total sem sequelas prognóstico.
major e a cura, já a localização nas vias ópticas Com origem nas células da glia – astrócito e
torna impossível uma cirurgia eficaz sob pena de oligodendrócito – existem vários tipos histológi-
défices inaceitáveis. É, no entanto, de salientar que cos; trata-se de um grupo com clara tendência
nas melhores séries de doentes a sobrevivência para a indiferenciação pelo que, com a evolução
média aos cinco anos ultrapassa 70%. no tempo, todos atingem o tipo histológico mais
Nos últimos anos têm-se desenvolvido proto- maligno de glioblastoma multiforme. Na data do
colos de quimioterapia para estes tumores de cres- diagnóstico pode encontrar-se um astrocitoma,
cimento lento, com os quais se obtêm respostas um astrocitoma anaplásico, um glioblastoma mul-
em regra parciais, mas que permitem “ganhar tiforme, um oligodendroglioma, um oligoden-
tempo” até à introdução de terapêuticas mais defi- droglioma anaplásico, ou tumores mistos com ou
nitivas como a radioterapia, que tem toxicidade sem anaplasia, na grande maioria de localização
muito acentuada nesta população, quase sempre supratentorial.
com idade inferior a cinco anos. A abordagem terapêutica com remoção com-
Importa assinalar a associação muito frequente pleta, radioterapia focal e quimioterapia, resulta
deste tipo histológico, na localização das vias ópti- para os tumores mais anaplásicos em sobrevivên-
cas, com a neurofibromatose de tipo I. Nestas cir- cias de 1 a 3 anos. Existem dúvidas quanto à te-
cunstâncias, e ao contrário de outros doentes sem rapêutica dos tumores de menor grau de malig-
esta facomatose, admite-se iniciar o tratamento nidade; o risco de recidiva é grande dado que o
sem biópsia do tumor. carácter infiltrativo dificulta a remoção total.
Uma breve referência aos gliomas do tronco
Ependimoma cerebral de evolução rápida conduzindo a défices
Este tumor, cuja célula de base é a célula do reves- neurológicos graves evidentes já no momento do
timento do sistema ventricular, tem a sua localiza- diagnóstico. Trata-se, em regra, de glioblastomas
ção mais frequente na fossa posterior (IV ven- que, pela sua localização, não se biopsiam. Até ao
trículo). Por isso, confunde-se imagiologicamente momento, apesar das múltiplas terapêuticas
com o meduloblastoma. Existem diversos graus experimentais, não se conseguiu alterar um dos
de malignidade, sendo mais frequentes os prognósticos mais sombrios, em que a sobre-
tumores menos anaplásicos, o que não invalida o vivência é, em regra, inferior a um ano.
facto de poderem metastisar, sobretudo pelas vias
do líquor, tal como o meduloblastoma. Tumores de células germinativas
A abordagem terapêutica actual assenta, em Têm como base células da linhagem germinativa
primeiro lugar, numa tentativa de remoção total, que se podem encontrar no SNC em duas locali-
seguida de radioterapia sobre o leito tumoral, ou zações típicas: hipotálamo/quiasma óptico e glân-
sobre todo o SNC se houver disseminação le- dula pineal.
ptomeníngea. Dividem-se em dois grupos: germinomas
É difícil avaliar a sobrevivência média porque puros e tumores secretores – coriocarcinoma, car-
nas séries mais antigas a definição de remoção cinoma embrionário, tumor do saco endodérmico
total era complicada pela ausência de métodos de e teratoma. A designação "secretora" deve-se ao
imagem precisos, como é o caso da ressonância facto de estes tumores produzirem marcadores
magnética na actualidade. A importância duma (alfa-fetoproteína e beta HCG) que se encontram
CAPÍTULO 134 Tumores do sistema nervoso central 645

no soro e liquor e que permitem o diagnóstico sem for a disease of many faces. Paediatr Drugs 2004; 6: 107-122
necessidade de biópsia. O germinoma é menos Hallett A, Traunecker H. A review and update on neuroblas-
agressivo, curável, sendo também o mais fre- toma. Paediatrics and Child Health 2012; 22: 103-107
quente (2/3 dos casos). Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
A terapêutica convencional do germinoma é a Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
radioterapia do tumor e de todo o SNC, dada a 2011
facilidade de metastisação pelo liquor. Quanto aos Kowsky PL. Manual of Pediatric Hematology and Oncology.
tumores secretores tem-se tentado combinações Amsterdam: Academic Press, 2005
de quimioterapia seguida de radioterapia com Koh YW, Kang HJ, Park C, et al. Prognostic significance of the
resultados menos animadores. ratio of absolute neutrophil count to absolute lymphocyte
count in classic Hodgkin lymphoma. Am J Clin Pathol 2012;
Notas finais sobre o tratamento dos tumores 138:846-854
do SNC Lacerda AF, Chagas M, Neto A,Vieira E, Ribeiro MJ, Pereira F,
1) O tratamento deste tipo de patologia deve Ambrósio A, Sousinha M. Leucemia linfoblástica aguda na
ser individualizado em função da localiza- criança – experiência de 10 anos com o protocolo DFCI
ção,dimensões e sintomatologia associada. 81/01. Acta Med Port 1999;12: 287-292
2) Em muitos casos a administração de dexa- Morley-Jacob C, Gallop-Evans E. Un update on lymphoma in
metasona em doses elevadas constitui pro- children and young adults. Paediatrics and Child Health
cedimento a efectuar de imediato após 2012; 22: 92-97
confirmação diagnóstica com o objectivo de McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
redução do edema acompanhante do tumor. Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
3) No âmbito da terapêutica cirúrgica, o objec- Poplack DG, Pizzo PA (eds.) Principles and Pratice of Pediatric
tivo é proceder à excisão completa do tumor, Oncology. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins,
o mais radical possível. 2006.
4) A propósito da descrição dos tipos histoló- Pritchard - Jones K, Pritchard J. Success of clinical trials in
gicos e sua relação com a clínica foram da- childhood Wilms’ tumor around the world. Lancet 2004;
das anteriormente nesta alínea noções fun- 364: 1468-1470
damentais sobre o papel da quimioterapia e Ricafort R. Tumor markers in infancy and childhood.Pediatr
radioterapia. Rev 2011;32:306-308
Rodriguez-Galindo C, Friedrich P, Morrissey L, et al. Global
BIBLIOGRAFIA GERAL (Oncologia) challenges in pediatric oncology. Curr Opin Pediatr 2013;
Blumenthal GM, Dennis PA. PTEN hamartoma tumor syn- 25:3-15
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Friedman AD. Wilms tumor. Pediatr Rev 2013; 34; 320- 330
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O coordenador-editor (João M. Videira Amaral) é médico-pediatra e professor catedrático jubilado da
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Até Outubro de 2007 foi director da
Clínica Universitária de Pediatria no Hospital de Dona Estefânia, Lisboa e regente das disciplinas de
Pediatria e de Clínica Pediátrica da mesma Universidade. É autor ou co-autor de cerca de 260 artigos em
revistas científicas e em livros de texto, sobretudo na área da Pediatria Neonatal e da Educação Médica.
Foi Presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria (1989-92) e actualmente é Director da Acta
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