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24/08/2019 O dia em que Frantz Fanon encontrou um “marxista puro” – ensaio contra o teoricismo – Blog da Boitempo

O dia em que Frantz Fanon encontrou um


“marxista puro” – ensaio contra o teoricismo

A questão para o revolucionário é que o direcionamento


estratégico, revolucionário, antiburguês, não pode ser
uma afirmação bizantina de princípios, mas deve se
materializar numa dimensão prático-efetiva em cada
momento da luta revolucionária.

Publicado em 21/08/2019 // 6 comentários

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(h ps://boitempoeditorial.files.wordpress.com/2019/08/fanon_jones_boitempo.jpg)
Fran Fanon em Accra (Gana), em 1958 (Foto: African American Intellectual History Society).

Por Jones Manoel


(https://blogdaboitempo.com.br/category/colunas/jones-manoel/).

“A sua maneira de ‘fazer’ filosofia consiste em despender tesouros de inteligência e sutileza para nada mais que
ruminar na filosofia. Quanto a mim, trato a filosofia de outro modo, pratico-a, como queria Marx, de acordo
com o que ela é. É isto o que julgo ser ‘materialista dialético’.”
LÊNIN, CARTA A GORKI, 7 FEV. 1908

Eu já fui católico por cinco anos. Naquela época, tinha bastante costume de conversar com o padre da
minha igreja sobre teologia. Ele me explicava que existe o “Mundo de Deus” e o “Mundo dos
Homens”: no primeiro, a alma humana alcança sua plenitude e sua função de fruição eterna no
paraíso longe do pecado; no segundo, a alma humana se corrompe a partir das práticas do corpo –
sempre tendente ao pecado, à luxuria, à gula, à cobiça, à violência etc. A função do verdadeiro cristão
na Terra seria, portanto, se esforçar ao máximo para agir como se estivesse no “Mundo de Deus”,
negando na cotidianidade o “Mundo dos Homens” para, assim, conseguir de verdade entrar no reino
de Deus.

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Contudo, já com 18 anos debatendo com o meu amigo padre, logo percebi uma contradição lógica
(será ontológica?) na argumentação dele: se o “Mundo de Deus” é a negação por essência do “Mundo
dos Homens”, se é impossível para o homem, em vida, ser santo, já que o homem é constituído pelo
pecado, como é possível se comportar na terra como alguém que está no “Mundo de Deus”? Nesse
caso, em termos filosóficos, temos um “vir a ser” que nunca será; um “vir a ser” que não consegue ter
materialidade prática, gerando um dualismo estrutural eterno: a ideia e a prática nunca se encontram.

O meu simpático padre nunca conseguiu me explicar como resolver essa contradição. E eu deixei de
ser católico… O tempo passou e depois eu me tornei comunista. Desde que comecei a ter contato com
o marxismo, antes de entrar na universidade, tive a sorte de ser introduzido nessa tradição teórico-
política por revolucionários ligados à prática política: Rosa Luxemburgo, Trótski, Lênin, Florestan
Fernandes (o Florestan do pós-golpe de 1964), entre outros. Esse marxismo que aprendi estava
baseado na famosa “tese onze” de Karl Marx: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de
maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”.

O que esta frase significa em seu sentido pleno? Repare, nenhuma corrente teórica está situada em
um lugar não-político. Weberianismo, positivismo, estruturalismo, fenomenologia, pós-
estruturalismo e afins cumprem uma função na luta de classes. Como lembra o velho Lênin, uma das
formas da luta de classes é a luta teórica (cabe lembrar que Lênin diz isso no livro Que Fazer? onde
está a famosa frase “sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”; como se sabe, esse
livro é dedicado a pensar, fundamentalmente, a organização política…). Porém, essas e outras
correntes teóricas ocupam um lugar-político a posteriori, enquanto elemento global da produção de
conhecimento, cultura e teoria, como um fato dado.

Um weberiano, por exemplo, pode ser alguém compromissado na sua prática com a luta dos
trabalhadores. Um positivista pode ser alguém que dedica sua vida – e morre em nome disso – à luta
dos povos originários e indígenas. Ser estruturalista, weberiano, positivista e afins não significa, no
nível imediato, ser comprometido com tal ou qual classe social em conflito na sociedade burguesa –
ainda que uma análise histórico-universal das tendências de produção teórica coloque, corretamente,
essas correntes como formas de consciência burguesa.

Já um marxista é – ou deveria ser – alguém comprometido com a classe trabalhadora e todos os


oprimidos. Note, quando alguém se apresenta como marxista nós automaticamente imaginamos o
que? Que o sujeito é um socialista, comunista etc. Isso ocorre porque o marxismo tem um
compromisso de classe aberto, constitutivo, fundante. Esse compromisso fundante com os explorados
e oprimidos tem como um dos seus fundamentos a negação da separação entre teoria e prática – a
negação da ciência como uma contemplação apartada da prática social e política.

Ser marxista significa tomar a opção teórica e política de estar ao lado dos trabalhadores e
trabalhadoras e construir suas análises a partir do materialismo histórico-dialético e de toda tradição
marxista, sempre condicionando os temas de pesquisa e sua forma de exposição aos problemas reais
enfrentados pela classe explorada no seu processo de constituição como sujeito revolucionário.
Marxismo é teoria orientada pela prática política revolucionária e prática revolucionária orientada
pela teoria.

O materialismo dialético da filosofia marxista possui duas particularidades mais evidentes. A


primeira é o seu caráter de classe: ela afirma abertamente que o materialismo dialético serve ao
proletariado; a outra é o seu caráter prático: sublinha o fato de a teoria depender da prática, de a
teoria basear-se na prática e, por sua vez, servir à prática. A verdade de um conhecimento ou de uma
teoria é determinada não por uma apreciação subjetiva, mas sim pelos resultados da prática social
objetiva. O critério da verdade não pode ser outro senão a prática social (Mao Tse-Tung, Sobre a
contradição e sobre a prática, São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 15)

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Nesse sentido, o marxismo sem prática constitui uma contradição em termos. É um não marxismo; no
máximo, o uso de algumas categorias e conclusões do materialismo-histórico dentro de outra
abordagem teórica-filosófica. Note: aqui não há qualquer concepção redutora de prática. Atuar na
prática não significa, necessariamente, estar em um chão de fábrica, em uma ocupação urbana ou na
rua fazendo panfletagem e conversando com os trabalhadores ao final da sua jornada de trabalho –
embora eu recomende tudo isso para quem se considera marxista, especialmente os intelectuais de
origem pequeno-burguesa.

Prática significa uma atuação política que, a partir de diversos meios e da infinidade de
possibilidades existentes, contribua com as lutas, organização, resistência, dilemas e formação
teórico-cultural da classe trabalhadora. Significa, no caso do intelectual, uma produção voltada na
forma de exposição e no conteúdo para os interesses dos trabalhadores – interesse histórico-universal,
como classe revolucionária, e interesses imediatos, enquanto classe em si. Então, por exemplo, se sou
um intelectual marxista, e minha maior preocupação é publicar em revistas lidas apenas pelos meus
pares, livros visitados apenas pelos meus pares, debatendo as conclusões das minhas pesquisas
apenas com meus pares nos muros da universidade, fazendo do marxismo não uma arma política
potencial, mas uma teoria social como qualquer outra com categorias filomarxistas, eu estou
desligado da prática.

O mínimo que se espera de um intelectual marxista é ajudar a divulgar o marxismo no meio dos seus
pares (um marxismo que clame pela prática política) e que tenha a postura de intelectual público, que
busca romper com o isolamento social típico da universidade brasileira – um marxismo
popularizado. E repito: o mínimo. Todavia, que efeito prático se tem em debater um suposto
marxismo puro, não contaminado pela prática, não deformado por todos, inclusive Engels?

Veja, em 2013 conheci uma tendência muito estranha no marxismo brasileiro. Eles defendem que
todos os sindicatos, partidos, movimentos populares e afins seriam não-revolucionários, “praticistas”,
longe do verdadeiro marxismo. Todos esses movimentos e organizações seriam ainda “politicistas”.
Ou seja, não compreenderiam a ontonegatividade da politicidade e ignoram que a verdadeira prática
revolucionária não passaria pela política e pela disputa do Estado ou pela construção de um Estado
proletário, um poder popular, etc., mas sim pela destruição do capital. Passei a pesquisar mais um
pouco tentando responder à pergunta natural que então surge: afinal, onde esses “marxistas” atuam
construindo os verdadeiros sindicatos, partidos e movimentos populares?

A resposta é a seguinte: não existem. A negação não é seguida de uma afirmação. Não existem os
verdadeiros instrumentos de luta dos trabalhadores, não-contaminados pelas concepções
ontonegativas da politicidade ou da política. Bem mais do que debater a validade desse conceito,
chamo atenção para como ele é desprovido de qualquer materialidade prática: será que não tem
porque seus defensores ainda não construíram os instrumentos de emancipação baseados nele ou
porque efetivamente não pode ter?

Pesquisando um pouco mais, descobri que, para esses senhores – ou melhor, para alguns deles –
todas as experiências socialistas e de libertação nacional (inclusas as atuais, como Cuba), seus líderes,
partidos, teóricos e militantes teriam deformado o marxismo. Essa deformação do marxismo,
inclusive, teria começado com Engels, que seria positivista e nunca teria compreendido bem a
dialética de Marx. Aliás, para muitos desses senhores, nunca sequer existiram experiências socialistas.
Tudo não passou de capitalismo de Estado ou qualquer noção assemelhada – o porquê de milhões de
pessoas terem achado que estavam construindo o socialismo é, realmente, um mistério.

Como provam isso? Citando trechos de textos de Marx e fazendo uma comparação direta, não-
mediada, entre o escrito e uma certa apreensão do real. Então, por exemplo, Marx disse em tal ou
qual texto que o socialismo é os trabalhadores gerirem a produção sem Estado; se em alguma
experiência socialista existe um Estado para se defender de coisas mundanas, tipo a OTAN, isso não é
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socialismo. O significado em si e para si está no texto – o fato de, na época de Marx, não ter existido
nada parecido com a OTAN, armamento atômico ou uma potência imperialista com bases militares
espalhados em todo mundo é um mero detalhe; não é algo que faz repensar a teoria à luz do real…
(Ah, ainda faço notar como a apreensão do texto é estranha, já que Marx formulou claramente sobre a
necessidade da ditadura do proletariado durante a transição socialista).

É assim que os partidos não servem. Os movimentos populares não servem. Os sindicatos não
servem. A história do movimento comunista e seus líderes não serve. O melhor é fazer um “retorno a
Marx” buscando uma hermenêutica não contaminada pela… história. Uma espécie de Marx puro,
anterior ao leninismo, stalinismo, maoísmo, castrismo, gramscianismo, luxemburguismo, etc.

Esse tipo de visão do marxismo, no geral, permite três autores: Lukács, Chasin e Mészáros. Junte a
isso uma espécie de fixação em debates do que chamamos de marxologia: a melhor tradução de
Marx, o verdadeiro significado de alienação e estranhamento, o verdadeiro conceito de classe, o
verdadeiro conceito de capital, o verdadeiro conceito de trabalho, e assim segue. (Essa busca do
verdadeiro conceito dá-se sempre na obra de Marx, dando pouca importância ao real). Não que
precisão teórica e rigor conceitual não sejam importantes – eles são, e muito, especialmente em
tempos “pós-modernos”. Porém, vejamos : por qual motivo esse rigor é aplicado primordialmente
numa exegese obcecadamente pura da obra de Marx?

Agora podemos chegar no ponto interessante deste escrito: isso não é marxismo, isso é teoricismo. O
teoricismo é um desvio político e filosófico que compreende que a teoria é um fim em si mesmo e que
a qualidade ou pureza da produção teórica é um processo imanente, buscado na própria construção
teórica, fazendo da teoria algo que só a posteriori pode intervir na realidade. Como se, por exemplo, o
caráter revolucionário de uma teoria fosse um componente intrínseco e não o resultado fático de
encontro: “mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas”, diria Marx
(Crítica da filosofia do direito de Hegel (h ps://www.boitempoeditorial.com.br/produto/critica-da-
filosofia-do-direito-de-hegel-115), p. 12).

Isso significa que a teoria nunca será um algo em si. É puro desvio teórico achar que primeiro se
difunde uma concepção de mundo marxista precisa, pura, revolucionária e depois, só depois, uma
ação política coerente. E trata-se de um desvio teórico com consequências políticas graves. Por
exemplo, é inútil tentar debater com os adeptos dessa versão pura do marxismo os problemas de
organização, geração de finanças, agitação e propaganda, comunicação, segurança, trabalho de base e
afins. Pouco ou nada tem a dizer sobre isso. Aparentemente, uma compreensão correta, pura, do
marxismo irá resolver como em um passe de mágica todas essas questões.

Esse tipo de “marxismo” teoricista existe desde o começo do marxismo. Não é novidade. E enquanto
existirem camadas sociais pequeno-burguesas com espaços institucionais com uma dinâmica de
produção teórica insulada das demandas políticas em um clima sociopolítico mais ou menos
democrático-burguês , ele vai continuar existindo. Esse tipo de coisa produz, inclusive, algumas
contribuições utópicas ao marxismo. Alguns desses “marxistas” brasileiros eu leio – e de fato aprendo
bastante com eles. Mas não se trata de nada mais do que isso: contribuições tópicas. O marxismo na
mão desses senhores nunca será uma força material que encontra as massas.

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(h ps://boitempoeditorial.files.wordpress.com/2019/08/fanon_jones_boitempo_2.jpg)

Isso muito me lembra os debates que Fran Fanon teve em vida. Um livro em especial, o clássico Os
condenados da terra, é um exemplo de como um revolucionário marxista (sim, Fanon era marxista!)
enfrenta os adversários da práxis de cada época histórica. Acompanhe.

Fanon mostra como os intelectuais africanos, na onda dos processos de descolonização, buscaram
destruir a historiografia colonizante do imperialismo valorizando os modos de vida, cultura e
civilização pré-coloniais. Fanon descreve a importância desse momento da luta colonial: o combate
aos mitos do colonizador, a descoberta das tradições históricas do povo, a defesa da cultura nacional
e continental, a exaltação do negro, a construção de novas identidades nacionais etc. Fanon traça um
panorama de toda essa construção teórico-política, seus condicionantes e contradições para, mesmo
reconhecendo sua importância, colocar um questionamento fundamental:

“O homem da cultura colonizado não deve se preocupar em escolher o nível do seu combate, o setor
que decide travar o combate nacional. Combater pela cultura nacional, é primeiro combater pela
libertação da nação, matriz material a partir da qual a cultura se torna possível” (Fran Fanon, Os
condenados da terra, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015, p. 267 – grifos nossos).

Fanon, neste trecho, destaca que a produção de uma cultura africana não é um fim em si mesmo –
nenhuma construção teórica deve o ser –, mas está subordinada à tarefa primordial que é a libertação
nacional, o fundamento real, material, da cultura nacional. Em seguida, destaca que a cultura
nacional “em países subdesenvolvidos” deve se situar no próprio centro da “luta de libertação
nacional que esses países travam”; depois disso, passa a ironizar os “homens da cultura negro-
africana” que “multiplicam congressos” e que não percebem que sua atividade se “reduziu a
confrontar peças ou a comparar sarcófagos” (Os condenados da terra, p. 268).

Seria Fanon um anti-intelectualista? Não. Sua tarefa central é mostrar a todo momento que não existe
florescimento cultural – e acrescentamos: teórico – sem “contribuir concretamente [leia-se:
politicamente] para a existência dessa cultura, isto é, a para libertação do continente” (idem, p. 270).
O capítulo de Os condenados da terra dedicado à cultura nacional é um verdadeiro manifesto em
defesa da práxis: “pensamos que a luta organizada e consciente empreendida por um povo
colonizado para restabelecer a soberania da nação constitui a manifestação mais plenamente cultural
que exista” (p. 280).
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O que é essa libertação nacional para Fanon? Um processo objetivo de emancipação política,
econômica e cultural – mas cultural em um sentido preciso, não como retórica autocentrada. Não se
trata de construir uma “Argélia argelina”, negando, em abstrato, a “Argélia francesa” do colonizador:
a questão é entre Argélia independente ou Argélia colonial, “todo o resto é literatura [no sentido de
palavrório] ou tentativa de traição”. Na construção dessa emancipação, não interessa ao nosso
revolucionário um debate bizantino se a revolução na Argélia será socialista ou democrático-
burguesa, um debate em si descolado das tarefas concretas da luta de libertação nacional.

Fanon era socialista, dizia claramente que o socialismo “nos permitirá ir mais longe, mais
harmoniosamente” e que o capitalismo “enquanto modo de vida” não permite “realizar nossa tarefa
nacional e universal”, mas esses debates na sua forma escolástica podem perder de vista o
fundamento material da emancipação: o país subdesenvolvido no seu processo de libertação política,
precisará de “capitais, técnicos, engenheiros, mecânicos”, “modificar as condições de trabalho” (p.
120). Em suma, evitar que a vitória sobre o colonialismo se torne a entrada no neocolonialismo, que a
emancipação política se torne anexação econômica, mantendo a mesma divisão internacional do
trabalho de antes.

Um marxista “puro” poderia, neste momento, afirmar que Fanon não seria marxista, já que ele,
aparentemente, não coloca no centro de sua análise a contradição capital/trabalho e não está falando
de autogestão dos produtores associais e, muito menos, do fim da propriedade privada. Fanon, como
todo bom marxista, defendia uma política antiburguesa e que a Frente Nacional de Libertação
Nacional (FNL) não deixasse a direção do processo revolucionário cair nas mãos da burguesia:

“É por isso que precisamos saber que a unidade africana só pode fazer-se sob o impulso e sob a
direção dos povos, isto é, desprezando os interesses da burguesia […]. Nos países subdesenvolvidos,
a burguesia não deve encontrar condições para sua existência e para seu desenvolvimento. Em outras
palavras, o esforço conjugado das massas enquadradas num partido e dos intelectuais altamente
conscientes e armados de princípios revolucionários deve barrar o caminho para essa burguesia inútil
e nociva” (Os condenados da terra, p. 192 e p. 203).A questão para o revolucionário é que o
direcionamento estratégico, revolucionário, antiburguês, não pode ser uma afirmação bizantina de
princípios, mas deve se materializar numa dimensão prático-efetiva em cada momento da luta
revolucionária. É necessário vencer militarmente o colonizador, construir um Estado-nacional,
organizar as massas – especialmente os camponeses, a classe revolucionária por excelência, na visão
de Fanon –, construir uma infraestrutura nacional, desenvolver as forças produtivas, mudar a divisão
social e internacional do trabalho, garantir às massas uma real politização, conhecer e usar as
riquezas do país etc.

Fanon não está preocupado se construir um Estado nacional é uma contradição com certa visão da
teoria marxista que diz que os revolucionários são contra o Estado ou que o Estado é um ser
ontonegativo. Ele também não está preocupado se está sendo fiel ou não a Marx quando coloca a
tarefa de construir uma verdadeira economia nacional, rompendo com a estrutura de relações de
produção imposta pelo colonizador. Fanon é um marxista que, com o método de Marx, fazia análises
concretas de situações concretas, identificando em cada momento da luta qual a tarefa política que se
coloca, sem perder de vista a estratégia geral de construção do socialismo.

“Essa política é nacional, revolucionária, social. Essa nova realidade que o colonizado vai agora
conhecer só existe pela ação. É a luta que, ao fazer explodir a antiga realidade colonial, revela facetas
desconhecidas, faz surgirem significações novas e põe o dado nas contradições camufladas por essa
realidade. O povo que luta, o povo que, graças à luta, dispõe dessa nova realidade e a conhece, avança,
libertado do colonialismo, prevenindo antecipadamente contra todas as tentativas de mistificação,
contra todos os hinos à nação […] Sem essa luta, sem esse conhecimento na práxis, só há carnaval e
fanfarras” (Os condenados da terra, p. 171 – grifos nossos).

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Essa defesa enfática da práxis explica porque, em Os condenados da terra, Fanon fala tanto de
organização política, partidos, espontaneidade, líderes, formação, politização, diferenças de atuação
política no seio das mais diversas classes, e por aí vai. Não era o interesse do nosso revolucionário
apenas elaborar um tratado sobre o que é a colonização. E repare: não há problema em si em um
marxista realizar um estudo como esse. Contudo, como já disse, para um marxista, toda reflexão
teórica deve conter um clamor pela ação. É na ação que a teoria se faz práxis. É na ação que a teoria
pode encontrar as massas. É só no encontro das massas que a teoria com potencialidade
revolucionária se torna efetivamente revolucionária.

O marxismo puro, aquele que busca um desenvolvimento lógico-imanente das categorias, que faz
dos textos de Marx uma espécie de Bíblia sagrada portadora da verdade pronta do mundo, aquele
que em toda e qualquer conjuntura tenta se explicar a partir de um desenvolvimento categorial em
altíssimo nível de abstração – esse “marxismo puro” é o exato contrário de Fanon – e de Lênin, Mao,
Fidel, Che, Rosa, Gramsci, Mariátegui, Trótski, Stálin, Prestes, Ana Montenegro, Celia Sánchez, Vânia
Bambirra…

Há aqui uma escolha muito clara. O “marxismo” como uma seita intelectual, incapaz de uma práxis
revolucionante, mediada com as necessidades imediatas da classe trabalhadora, capaz apenas de
fraseologia contra o capital para os iniciados; ou o marxismo como um guia de ação para a
transformação da realidade, uma teoria que, apreendendo o estágio concreto da luta de classes, deve
se propagandear e, ao mesmo tempo, aprender com classe trabalhadora na sua luta pelo poder político
para iniciar a reorganização socialista da sociedade? Eu escolho a práxis, como Fanon o fazia.

Ou, como diria outro grande revolucionário africano, o saudoso Samora Machel:

“[…] Compreenderam que não é preciso ser doutor, que não é preciso ter grandes conhecimentos
teóricos. […] Compreenderam que o membro do Partido é o camponês, o carpinteiro, o mineiro, o
motorista, o datilógrafo, o funcionário, o professor, o estudante, o enfermeiro, o trabalhador que ama
e respeita a sua profissão, que se engaja na batalha da produção, que não explora nem participa do
processo de exploração, que reconhece que o homem é o agente transformador da natureza e da
sociedade. […] O sucesso da Campanha Nacional de Estruturação do Partido, a vitória alcançada pelo
nosso Povo neste processo materializaram-se em todos os pontos do nosso País. […] O nosso Partido
cresceu impetuosamente, criou condições para poder desempenhar mais completamente a sua função
de força dirigente do Estado e da Sociedade.”

***

Vale a pena conferir o vídeo especial de Jones Manoel na TV Boitempo, em que ele apresenta os
quatro vetores fundamentais da obra do filósofo marxista italiano Domenico Losurdo:

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Como e por que ler Domenico Losurdo? | Jones Manoel

***

Jones Manoel é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou sua
militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da Borborema, construindo um cursinho
popular, o Novo Caminho, junto com seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra,
foram os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma universidade pública). Depois
de dois anos com o cursinho popular, passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu
curso de história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a juventude do PCB).
Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no movimento sindical e na área da educação
popular. Mestre em serviço social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube
e participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Escreve para o Blog da Boitempo
mensalmente, às quartas.

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6 comentários em O dia em que Frantz Fanon encontrou um “marxista


puro” – ensaio contra o teoricismo

1. pablito corrientes // 21/08/2019 às 12:36 pm // Responder


Caio Prado Jr., em “A Revolução Brasileira”, escreveu:
“Trata-se de definir uma teoria revolucionária que seja expressão da conjuntura econômica, social
e política do momento, e em que se revelem as questões pendentes e as soluções possíveis para as
quais essas questões apontam. Ou antes, as alternativas dessas soluções, das quais se escolherão as
que signifiquem o impulsionamento e a aceleração do processo histórico, a marcha dele para
frente. A transformação em oposição à conservação do status quo. É de uma teoria dessas que
necessita a revolução brasileira, e não de especulações abstratas acerca da ‘natureza’ dessa

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revolução, do seu tipo e de sua correspondência com algum esquema ideal, proposto fora e acima
dos fatos concretos e dados imediatamente pela realidade econômica, social e política que o país
está efetivamente vivendo.”

2. Róbson Rocha // 21/08/2019 às 7:24 pm // Responder


Esperando a Boitempo lançar as obras de Fanon.

3. Fernando Sansão // 22/08/2019 às 3:12 am // Responder


Excelente e urgente texto. Imprescindível para a compreensão dos desafios que a luta de
libertação nacional, tão necessária ao Brasil do bolsonarismo protofascista e entreguista, nos
apresenta. Parabéns e obrigado, tovarisch Jones!

4. josefrade // 22/08/2019 às 6:25 am // Responder


Muito interessante.

5. Keila Karoline Souza Do Nascimento // 23/08/2019 às 11:54 am // Responder


Texto bastante necessário, que nos ajuda a pensar, compreender e construir a luta nos dias atuais.

6. Anderson Deo // 23/08/2019 às 12:39 pm // Responder


Em que pese a criatividade e o talento para escrita, entendo que o argumento central do autor
reproduz o mesmo problema que procura atacar, ou seja, o “meu marxismo é o verdadeiro”, o
“seu é o falso”. Quando é que esse debate – puramente teórico e direcionado a um punhado de
frequentadores de universidade (no qual me incluo) -, vai de fato superar a crítica das armas!?

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