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Thomas Elsaesser
• alguns são autodidatas ou deixaram seus países a fim de ir para uma escola de
cinema ou de arte em Paris, Londres, Nova York, Chicago ou Los Angeles, antes de
voltarem para casa, o que os assemelha a uma geração europeia anterior: Volker
Schlöndorff, Johan van der Keuken, Theo Angelopoulos, que estudaram cinema
em Paris nos anos 1950.
• como resultado, eles frequentemente têm uma relação ambígua com sua cultura
cinematográfica nativa e a indústria de cinema nacional: tendem a ficar ressenti-
dos, isolados, permanecem não reconhecidos ou são acusados de fazer filmes para
os olhos do “outro” ocidental.
• finalmente, a atual geração dos diretores do cinema mundial usa o vídeo digital
tanto por opção quanto por necessidade, e seus filmes manifestam as especifici-
dades inerentes aos meios digitais, bem como tematizam os desafios do realismo
fotográfico.
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Hsiao-hsien. Do mesmo modo, críticas materialistas do realismo fotográfico
não mais aspiram ao distanciamento do realismo de Brecht, para contrapor o
“ilusionismo” e a “identificação”, nem emulam o realismo (agitprop) político
praticado no “terceiro cinema” dos anos 1970. Pelo contrário, quando as dife-
rentes mídias de construção das representações cinemáticas estão em evidên-
cia, por exemplo, por meio da apresentação das tecnologias de reprodução me-
cânica (aparelhos televisores, gravadores de vídeo, câmeras digitais, fotografias
etc), estas tendem a ser infundidas com fantasia e mágica, nutridas por histó-
rias de fantasma e aparições espectrais, ou então funcionam como evidência do
real, em vez de sua traição ou perda. A “coisa” impessoal ou o aparato tirando
minha foto, ou capturando um evento, de acordo com esse novo realismo, é
uma melhor garantia da minha existência do que o cara-a-cara não mediado,
que provavelmente gera algum mal-entendido. Outra característica perceptí-
vel é de narrativas que brincam com temporalidades indeterminadas ou não
lineares e privilegiam a memória em vez da cronologia. Invariavelmente, elas
tornam o sentido/percepção a principal questão; porém, não tanto como algo
enganoso, ilusório ou duvidoso (o velho paradigma pós-moderno), mas sim
para expor ou envolver o corpo como uma superfície perceptual total, amplian-
do a percepção além do registro visual, situando outros sentidos/percepções
– principalmente o tato e a audição – como no mínimo igualmente relevantes
para a experiência cinematográfica.
A VOLTA ONTOLÓGICA
Uma hipótese preliminar se impõe: tratar o realismo no cinema mundial, atual-
mente, também significaria se engajar com o que foi chamado de “volta ontoló-
gica”, o retorno do real, a presença e ação das “coisas”. Está em pauta uma nova
materialidade, uma nova inquietação e o respeito pela referência nos meios
visuais, após meio século de lamentações pela perda do real e reclamações so-
bre ou comemorações dos simulacros, das cópias sem originais, da midialidade
e da midiatização. Na conjunção temática do cinema mundial e do realismo,
consequentemente, eu proponho abordar filmes e cineastas que compartilham
da compreensão crescente – atualmente menos uma descoberta do que um
truísmo – que no cinema não podemos mais confiar nos nossos olhos, se é que
alguma vez pudemos. Isto significa que se falarmos de uma volta ontológica,
esta se referirá a uma ontologia pós-fotográfica. Independente de ser definido
como cinema independente, cinema de arte internacional, cinema novo nacio-
nal ou cinema autoral de festival, a meu ver, “cinema mundial” compartilha o
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refletem quaisquer realidades externas, inerentes ou “transcendentes”, mas
são contingentes de convenções, percepção humana, história e experiência so-
cial. No construtivismo, raça, gênero, classe, mas também identidade pessoal
e subjetividade, são construções (sociais), parecendo naturais e autoevidentes
para aqueles que aceitam suas fronteiras ou que se beneficiam das hierarquias
em que implicam, desta forma negligenciando o âmbito no qual estes são uma
invenção, um artefato ou o resultado de relações poderosas operando numa
cultura ou sociedade particular.
Por outro lado, uma versão particular deste ceticismo, também associado
com a Screen theory - que é uma combinação de semiótica, psicanálise e femi-
nismo – defendia, embora implicitamente, que o cinema era uma arte mimética,
cuja metáfora central não era ser uma janela para o mundo, típica do realismo
ontológico, mas o espelho, típico da epistemologia da falsa cognição. Deste
modo, o cinema, de maneiras diferentes, ainda seria visto de acordo com a di-
visão sujeito-objeto típica da visão de mundo cartesiana. Seja o cinema como
espelho ou cinema como janela, ambos herdam da projeção em perspectiva
renascentista a orientação vertical e frontal do campo visual humano, mas que
na representação pictórica é delimitada por um quadro, permitindo uma cer-
ta variedade de opções em relação ao lugar e à posição do espectador face a
face com a imagem pintada, fotográfica ou cinematográfica. Esta perspectiva
central monocular, quando presente no espaço cinematográfico, notadamente
confere ao espaço fora de quadro, e à sua dobra no espaço dentro de quadro,
um poder constitutivo especial, de sutura. O construtivismo cultural, por outro
lado, não subscrito a esta visão de sutura, tende mais na direção de uma crítica
das “representações” e trata filmes como “textos”, cujos significados podem ser
resistidos ou negociados por estratégias de leituras adequadas.
A volta ontológica, com a qual iniciei este ensaio – e que agora talvez
possa ser chamada de marco dois da ontologia, ou ontologia pós-epistemo-
lógica – sustenta que todos estes paradigmas estão em dúvida, e não apenas
aqueles baseados na psicanálise ou em seu arqui-inimigo, o cognitivismo. A
nova ontologia realista, por um lado, estaria em sintonia com a superação do
pós-modernismo, como já mencionado; mas, estaria também insatisfeita com
o construtivismo, do qual se apresentaria como uma crítica implícita ou um
afastamento explícito. Mais especificamente, em relação à janela e ao espelho
(as principais metáforas da teoria epistêmica do cinema), a ontologia pós-epis-
temológica, consequentemente, seria aquela que também quebra a divisão su-
jeito-objeto cartesiana, abandonando ou redefinindo noções de subjetividade,
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dimensão háptica, ao qual corresponde na filosofia e na neurociência evolucio-
nária à ideia da “mente personificada”. Por outro lado, o legado do construtivis-
mo foi, em primeiro lugar, o de abrir categorias intermediárias: dando-nos ter-
mos como “hibridismo”, “crioulização”, “entrelaçamento”. Porém, há também
a noção, já implícita no início do projeto construtivista de estudos culturais,
de colocar menos ênfase nos limites de determinações sociais ou posiciona-
mento dos sujeitos e, ao invés disso, concentrar nos espaços de apropriação
positiva, no “jogar” e especialmente na “performatividade”, um termo que teve
uma carreira das mais marcantes nas humanidades nas duas últimas décadas.
Em outras palavras, em vez de ver seres humanos como vítimas das restrições
impostas pelas identidades ou representações construídas, por que não os ver
como fatores empoderantes? Ou então, com maior ênfase: é possível estruturar
no construtivismo o que pode ser chamado de uma forma de “contratualismo”?
Ou seja, a noção que permite que alguém enfrente as construções sociais na
vida real e nas representações visuais, em cada caso, não são apenas estrutu-
ras ocultas do poder, mas também convenções negociadas de maneira aberta,
normalmente bem compreendidas, como os códigos de verissimilitude apli-
cáveis a gêneros individuais ou marcadores institucionais que nos dizem que
horizonte de expectativas presumir? Empoderamento, neste sentido, pode ser
o entendimento tácito ou explícito que um público não é mestre, nem ingênuo,
mas que espectadores são parceiros em convenções negociadas, que tornam o
campo social, ou na verdade o campo visual, uma arena onde contratos podem
ser firmados, onde há condições e condicionalidades, especificando quais são
as regras do jogo, ou indicando que uma renegociação das regras do jogo é
necessária.
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capacitação em algum outro registro. Refiro-me aqui a personagens que sofrem,
ou exibem determinadas “condições”, de esquizofrenia, amnésia, paralisia, que
são patologicamente violentas ou traumaticamente mudas, que são cegas, pos-
suem faculdades extrassensoriais ou se entregam a obsessões, cujo sentido do
paladar ou olfato é hiperdesenvolvido, que pensam que podem se tornar invi-
síveis ou podem viajar no tempo ou que estão se recuperando de uma doença
fatal ou não recuperadas de um trauma - filmes com Nove canções (2004) de
Michael Winterbottom, O homem-urso (2005) de Werner Herzog, O labirinto
do fauno (2006) de Guillermo Del Toro, Sem medo de viver (1993) de Peter Weir,
O piano (1993) de Jane Campion, Perfume: a história de um assassino (2006) de
Tom Tykwer, Mar adentro (2004) de Alejando Amenabar, O intruso (2004) de
Claire Denis, Terra (1996) de Julio Medem, Para minha irmã! (2001) de Cathe-
rine Breillat, Oldboy (2003) de Park Chan-wook, O romance de morvern callar
(2002) de Lynne Ramsay, 2046 – Os segredos do amor (2004) de Wong Kar-wai,
O escafandro e a eorboleta (2007) de Julian Schnabel.
O mundo, percebido através destas sensibilidades restritas e aumenta-
das, manifesta-se como tendo propriedades especiais. Relações de tamanho são
diferentes, distância e proximidade assumem características igualmente peri-
gosas, registros temporais não mais se alinham, coisas terríveis e miraculosas
podem acontecer. Repetições, retraçar etapas e restabelecimentos corporais
são o que garantem uma pequena quantidade de identidade ou um senso de
autopresença.
Terceiro – e provavelmente conectado ao segundo ponto – o novo rea-
lismo ou agitação ontológica favorece o que em outra ocasião chamei de pro-
tagonistas post-mortem: ou seja, protagonistas em que não está claro para
eles mesmos ou para o público se ainda estão vivos ou mortos, se eles habitam
completamente um outro domínio ou se voltaram dos mortos. Este grupo de
filmes inclui não apenas o cinema mundial de autores de festival ou indepen-
dentes, mas também pode ser encontrado entre as produções de Hollywood,
frequentemente por diretores estrangeiros trabalhando temporária ou perma-
nentemente por lá. Este inclui virtualmente toda a obra de M. Night Shyamalan
e Alejando Amenabar, filmes como O sexto sentido (1999) ou Os outros (2001),
os filmes de Christopher Nolan (Amnésia, 2000; Insônia, 2002; O grande truque,
2006), Donnie Darko (2001), de Richard Kelly, mas também, eu diria, O homem
sem passado (2002) de Aki Kaurismàki, Contra a parede (2004) de Fatih Akin,
entre muitos outros.
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alguém deduzir desta ação o estado correspondente da mente, com a tradução
do espectador de “evidência” em “crença” funcionando como um elo facilitador.
Porém, o realismo dos filmes ao qual estou me referindo é mais comparável
com o problema filosófico (Wittgensteiniano) acerca da incompreensão fun-
damental de outras mentes. “Evidência” seria então uma relação inferencial a
um sinal externo: indexical não como traço, mas como sintoma, na semântica
de uma linguagem acordada da “dor” (que está contorcendo o rosto de alguém).
Mas e se alguém com uma dor de cabeça não contorcer seu rosto e simples-
mente disser: “Não pude vir trabalhar porque estava com uma dor de cabeça
terrível? ”. Então temos que “confiar” no outro, mas com um pano de fundo de
“desconfiança”. Quando se trata de cinema, isto abre duas opções, relativas ao
que chamei “marco um da ontologia” e “marco dois da ontologia”. No marco
um da ontologia – junto das linhas filosóficas de “acreditar no mundo”3 de
Deleuze ou “confiar no mundo” de Stanley Cavell4 – o argumento que o cine-
ma é ontologicamente privilegiado derivaria da incompreensão ou inacessibi-
lidade de outras mentes, porque sempre o cinema é uma mente externalizada.
Este, portanto, pode nos dar confiança no mundo e nos liberar da ansiedade
do ceticismo, graças à presença do casualmente real através da indexalidade
fotográfica5 ou redefinindo o cinema como “mente e matéria”. 6 Meu próprio
argumento – marco dois da ontologia – seria que esta confiança deve ser uma
função do ceticismo, deve envolver um salto no abismo (precisamente uma
mudança tão ontológica como temos em Os outros, Donnie Darko, Caché). Este
cinema de realismo equivale a um passo no escuro (uma definição Pascaliana
de fé, se preferir), ou seria uma versão do famoso Dilema do Prisioneiro, onde
seu próprio autointeresse torna-se uma função da fé de outra pessoa em você.
De maneira suficientemente interessante, um dos inventores deste tipo
de teoria do jogo, o matemático John Nash, é o herói de um filme no estilo
daqueles sobre personagens com poderes perceptuais anormais feito para
Hollywood por estrangeiros: Uma mente brilhante de Ron Howard (2001). Neste
caso, é possível dizer que ele tem tanta fé em si próprio que precisou delegá-la
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O NOVO REALISMO E O ESPAÇO EM FRENTE: KIM KI-DUK
Para testar esta proposição, quero retornar às transformações de perspectiva
como forma simbólica e examinar, focando num cineasta e num filme espe-
cífico, o que isto significa para os tipos de espectatorialidades disponíveis no
cinema mundial contemporâneo. O primeiro ponto a observar é que a projeção
frontal e o quadro limitado certamente não desapareceram, mas - eu diria – es-
tes estão agora embutidos em outra forma simbólica, como um dos seus casos
especiais. Hesito em dar um nome definitivo a esta nova forma simbólica ou
mesmo em chamá-la de forma simbólica (porque esta funciona, no meu esque-
ma de coisas, como uma ontologia); em vez de opor esta à perspectiva como
tal chamando-a “planaridade” (como na pintura modernista) ou projeção mul-
tiperspectiva cubista (ou panóptica), a característica saliente da perspectiva a
qual ela se oporia seria a infinidade, de modo que a nova ontologia é caracteri-
zada pela “ubiquidade”, aqui definida como a presença sentida de espaço puro.
E na ubiquidade, como potencial onipresença, a perspectiva sobreviveu, mas
de maneiras paradoxais: por um lado, pode ser a marca da paranoia (por exem-
plo, nos filmes de Michael Haneke, onde enquadrar e re-enquadrar tornam-se
a maneira do diretor exercer controle total sobre suas personagens e sobre o
público); mas também pode emergir como elemento crucial na construção de
um novo tipo de espaço cinemático, no qual a encenação frontal parece atri-
buir um papel e funções diferentes ao espectador. Este último ponto pode ser
ilustrado com exemplos retirados de um filme de 2004 de Kim Ki-duk, chamado
Bin Jip, que significa “casas vazias”, porém mais conhecido no ocidente como 3
Iron, que é um modelo de um taco de golfe específico7.
Kim Ki-duk é um cineasta sul coreano, ao qual se aplicam a maioria das
características inicialmente descritas como típicas de um diretor de cinema
mundial. Ele é amplamente autodidata, foi para Paris por dois anos, chegou à
proeminência através de festivais, notavelmente Veneza e Berlim, e é extrema-
mente controverso em seu país nativo, onde é visto, de maneira confusa, como
muito violento, explorador e destrutivo, além de ser considerado muito ociden-
tal, artístico e esotérico. Fez 13 filmes em apenas dez anos, mas até mesmo o
“Papa” do cinema asiático, Tony Rayns, denunciou Kim Ki-duk como uma frau-
de com talento limitado, chamando seus admiradores europeus de “palhaços”,
8 RAYNS, Tony. “Sexual Terrorism: The Strange Case of Kim Ki-duk”. In: Film
Comment, Nova York, p. 50-51, nov. 2004.
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numa motocicleta planeja um truque para identificar lares e casas, tempora-
riamente vazias, não para roubá-las ou vandalizá-las, mas para viver a vida
dos ocupantes, lavar suas roupas, consertar seus aparelhos estragados e mo-
lhar suas plantas. Em uma das casas, ele é silenciosamente observado por uma
dona de casa violentada, com quem faz amizade. Ela eventualmente deixa seu
marido abusivo para se juntar ao rapaz em suas voltas estranhas e estranha-
mente silenciosas pelas casas-mentes. Eventualmente, os dois são pegos e o
jovem vai para a prisão, onde ele treina para se tornar invisível. Solto, visita
a casa da mulher e a assombra como um fantasma, sentido, embora não visto
pelo marido, porém totalmente presente para a mulher, primeiro no espelho,
então como sombra e nas costas do seu marido que de nada suspeita (Figura 1).
Figura 1 – O herói de Casa vazia, sentido, embora não visto pelo marido,
porém totalmente presente para a esposa.
9 RAYNS, Tony. “Sexual Terrorism: The Strange Case of Kim Ki-duk”. In: Film
Comment, Nova York, p. 50-51, nov. 2004.
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um papel complexo, na história e como emblemas. Narrativamente, porque a
mulher é também uma modelo, cuja foto posada eles encontram em uma das
casas, que pertence a um fotógrafo. Como emblemas, em função das capturas
instantâneas que o jovem faz de si mesmo, agindo como índice, prova de exis-
tência, menos fixando um espaço particular ou um momento particular, mas
servindo mais como uma máscara, um molde ou uma impressão, em vez de
uma representação. É como se ele entrasse na fotografia como uma segunda
pele, noção que se torna explícita quando ele mostra para a mulher, que aca-
bara de ter um encontro violento e angustiante com seu marido, uma muda de
roupa, na qual ela “entra”: ao mesmo tempo espaço e autoimagem, após a sua
anterior ter sido “despedaçada” ou destruída.
Uma pista para a significância ontológica deste gesto pode ser encontra-
da na maneira pela qual o jovem inicialmente verifica se as casas nas quais en-
tra estão desocupadas: ele cola um folheto de um restaurante de comida para
viagem na porta e, se este não é removido após 24 horas, abre a fechadura e
10 BAZIN, André. “Umberto D: A Great Work”. In: BAZIN, André. What is Cinema?.
Berkeley/Los Angeles/Londres: University of California Press, v. 2, p. 79-82.
11 BARTHES, Roland. Camera Lucida: Reflections on Photography. Nova York: Hill
and Wang, 1982.
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na cena da prisão, onde seu som está presente, mas sua imagem está ausente,
ou quando ele pratica no parque e um passante inadvertidamente se abaixa
para não ser atingido, mesmo não havendo bola. É como se as cenas fizessem
uma pergunta crucial sobre a relação do visível com o que está presente, pre-
cisamente a pergunta que a ubiquidade levanta: como posso me posicionar em
relação ao mundo em que o real se torna virtual e onde o virtual pode ter con-
sequências reais? Uma distribuição similar do visível e do sensível é encenada
pela esposa, quando ela sistematicamente se coloca na linha imaginária da
trajetória da bola de golfe amarrada, complementando mas também excedendo
a visão feminista mais óbvia proposta no filme ao literalmente se colocar entre
o marido e seu amante, unidos como são por sua obsessão pelo golfe (Figura 3).
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e plataformas de cinema, tela de vídeo, DVD, monitor ou dispositivo portátil
correspondem papéis diferentes: voyeur, testemunha, participante, jogador,
usuário, prossumidor; e diferentes pontos de vista: colocar alguém face a face
com uma imagem, ou “habitando-a”, instrumentalizando-a ou identificando-se
com ela. Neste contexto, a encenação frontal – o caso limite do cinema “clássi-
co” – agora reemerge como valor padrão, assim como foi no primeiro cinema.
O espaço em frente (primeira pessoa): seja como uma analogia de atirador em
primeira pessoa sentado na frente da tela de um computador, ou reinvestida
com potencial narrativo, como nos filmes de Michael Haneke, agora servirá
para nos lembrar do espaço cinematográfico “básico” referindo-se à frontalida-
de do primeiro cinema, como o cowboy de Edwin Porter atirando diretamente
no espectador em O grande roubo do trem (1903) ou o uso de D.W. Griffith da
encenação frontal em, por exemplo, O preço do trigo (1909).
Porém, o “novo espectador” que treina outra vez ou recalibra seus regis-
tros perceptuais não meramente reage à mudança tecnológica ou às escolhas
mais amplas de práticas de visionamento em oferta. Consequentemente, o con-
trato sendo encenado possui uma dimensão filosófica, cujo denominador co-
mum, tenho afirmado, é um conceito pós-epistemológico do realismo, aceitan-
do uma base sem base de representação, bem como uma ontologia, que emerge
das (novas) condições de visibilidade e presença que incluem invisibilidade e
presença virtual. Estas condições devem ser negociadas caso a caso, através de
confiança e crença, em vez de presumidas a partir de referência e verificação
ocular. Neste aspecto, o novo realismo ontológico herda o ceticismo da visão
epistemológica do cinema, mas sem se basear em alegações sobre a verdade
de sua “evidência visível”, ou no ceticismo em relação à sua crítica ideológica.
Este conceito do realismo cinematográfico responde à incompreensibilidade
de “outras mentes”, mas também “mostra algum respeito” por esta alteridade.
Isto é um desafio, mas também uma chance para uma nova maneira de “ser e
estar no mundo” – e, assim, uma descrição tão boa quanto qualquer outra de
algumas das expectativas, para além das estruturas normativas, que se podem
ligar à ideia do “cinema mundial” atualmente.
BAZIN, André. “Umberto D: A Great Work”. In: BAZIN, André. What is Cinema?.
Berkeley/Los Angeles/Londres: University of California Press, 1972. V. 2.
CAVELL, Stanley. The World Viewed: Reflections on the Ontology of Film. Cam-
bridge: Harvard University Press, 1979.
RAYNS, Tony. “Sexual Terrorism: The Strange Case of Kim Ki-duk”. In: Film
Comment, Nova York, p. 50-51, nov. 2004.
FILMES CITADOS
2046 – Os segredos do amor (2046, 2004, China, Wong Kar-wai)
58 REALISMO FANTASMAGÓRICO
Humberto D. (Umberto D., 1952, Itália, Vittorio De Sica)
O grande roubo do tem (The Great Train Robbery, 1903, Estados Unidos, Edwin
S. Porter)
O labirinto do Fauno (El Laberinto del Fauno, 2006, México, Guillermo del Toro)
Primavera, verão, outono, inverno... e primavera (Bom Yeoreum Gaeul Gyeoul Geu-
rigo Bom, 2003, Coréia do Sul, Kim Ki-duk)
Time - o amor contra a passagem do tempo (Shi gan, 2006, Coréia do Sul, Kim Ki-duk)
Uma mente brilhante (A Beautiful Mind, 2001, Estados Unidos, Ron Howard)
Vive l’amour (Ai qing wan sui, 1994, Taiwan, Tsai Ming-liang)