Mauro CAPPELLETTI. Problemas de reforma do processo civil nas
sociedades contemporâneas. Revista de Processo 65/127. ______. Una Carriera al servizio della giutizia. Exame di coscienza di un processualcomparatista. “In” Dimensione della giustizia nelle società contemporanee. Bologna: Il Mulino, 1994, p. 157.
1. Aspectos da crise da justiça: morosidade e duração insuportável
dos processos; insuficiência da atuação da oralidade processual; excesso de recursos e outros aspectos da inadequação da organização judiciária; deficiência da assistência judiciária. 2. Primeira fase dos estudos cappellettianos. Sistema da oralidade. Conexão com a busca da verdade real e com o sistema da livre convicção judicial motivada e superação do sistema das provas legais. Reducionismo a priori da probabilidade dos fatos (artificialmente transformada em verdades absolutas) e da exclusão de meios de prova, notadamente do testemunho de terceiros e das partes. Busca a posteriori pelo juiz segundo o método de Galileo do teste e renovação do teste. Ressalva que o sistema escrito visou proteger o litigante inocente do juiz arbitrário num processo destituído de garantias fundamentais. Interrogatório livre das partes passou a ser acolhido no direito comparado. 2.1 O processo civil é o espelho da cultura de sua época (Franz Klein). O sistema da prova legal foi o espelho de uma cultura escolástica e dogmatica. O sistema da valoração crítica do juiz (livre convencimento motivado) é o espelho de uma cultura concreta, indutiva, experimental, empírica (método de Galileo do trial and error). 2.2 Imediação do juiz com as testemunhas 2.3 Concentração dos atos processuais numa ou poucas audiências 2.3 Análise crítica da subsistência dessas ideias: hodiernamente, estudos antropológicos do processo civil demonstram a falência do sistema da oralidade, pois nenhum juiz, tampouco as partes, tem tempo para presidir longas audiências de instrução, tamanho é o volume de processos aguardando despacho no gabinete; ademais, o processo eletrônico está naturalmente destituindo a oralidade e os atos presenciais e ocupando um espaço virtual cada vez mais prevalecente nos sistemas de justiça; a sociedade está se virtualizando progressivamente. 3. Segunda fase dos estudos cappellettianos. Garantias constitucionais do processo. 3.1 Direito fundamental à imparcialidade do juiz. Garantia de independência da magistratura. Princípio dispositivo em sentido substancial ou próprio, onde cabe às partes as alegações dos fatos. Princípio inquisitório em sentido processual, onde cabe ao juiz ter iniciativas probatórias e a direção formal do processo, impondo prazos e sanções. 3.2 Direitos fundamentais das partes. Devido processo legal. Direito de ambas as partes serem ouvidas pelo juiz (audiatur et altera pars) e seus corolários. Direito de ser citado, de oferecer defesa num prazo razoável, de produzir prova de suas alegações e contraprova das alegações da parte adversa; de ter decisões fundamentadas e de recorrer das decisões do juiz, controlando o ofício jurisdicional; 3.3 Audiatur et altera pars? E se a parte não pode ser ouvida por razões econômicas, sociais, culturais? Das garantias formais para as garantias sociais do processo do nosso tempo, onde se clama por igualdade real, não meramente formal, tornando-se o processo do nosso tempo também uma arena de lutas por igualdade, como espelho da cultura vigente. Na teoria dos direitos humanos, os direitos sociais são direitos fundamentais de segunda geração. A efetividade dos direitos implica acesso à Justiça para todos, inclusive os mais fracos e vulneráveis. As garantias constitucionais do processo, enquanto direito fundamental de primeira geração, avança para as garantias sociais do processo, enquanto direito fundamental de segunda geração. A igualdade de acesso ao processo e no processo. 3.4 Análise crítica: ainda estamos em busca dessa igualdade de acesso à Justiça? Código de Defesa do Consumidor, Lei da Ação Civil Pública e o Processo Civil Coletivo, Defensoria Pública, assistência jurídica e judiciária gratuita, Juizados Especiais, varas e juízos especializados, ênfase aos meios alternativos de resolução dos conflitos (conciliação, mediação e arbitragem). São garantias sociais do processo conquistadas de 1950 em diante, com ênfase a partir da CF/88. Vejamos nais atentamente as conquistas da garantia de acesso à Justiça e o surgimento de novos problemas a serem enfrentados pelo sistema jurídico-processual no século XXI. 4. Terceira fase dos estudos cappellettianos. Movimento pelo Acesso à Justiça. Revolução copernicana. Dimensão social do processo. Visão tridimensional do direito. O direito passa a ser visto não somente do prisma (interno) das normas gerais e especiais, mas antes de tudo do prisma (externo) dos consumidores ou usuários da prestação do direito e dos serviços jurisdicionais. 4.1 Necessidade ou problema social 4.2 Resposta normativa às exigências sociais (institutos e procedimentos legais) 4.3 Eficácia social dessas respostas normativas (duração, custo e outros obstáculos econômicos [pobreza], sociais, culturais postos entre o cidadão e o processo civil) 4.4 Análise crítica das consequências do movimento pelo acesso à Justiça. Indubitavelmente, houve avanços nas respostas normativas às exigências sociais, num primento momento. No direito brasileiro, agora temos assistência judiciária gratuita (sempre ineficiente, a demandar a direção material do processo pelo juiz em prol dos hipossuficientes), juizados especiais, normas processuais coletivas, proteção normativa do consumidor, processo eletrônico, súmulas vinculantes, súmulas persuasivas, técnicas processuais de aceleração dos julgamentos (poderes do relator, tutela antecipada, julgamentos de recursos repetitivos, jurisprudência dominante e uniformização de jurisprudência; precedentes obrigatórios) e, assim, maior celeridade processual. Contudo, num segundo momento, surgiu naturalmente um novo problema, decorrente da sociedade de consumo, qual seja a massificação processual, lentificando novamente os processos de julgamento acelerado (serao justos esses julgamentos acelerados? Ou serao julgamentos açodados?). Em outros termos, temos julgamentos demorados e com significativa perda de de qualidade das decisões por conta do açodamento e sumariedade de muitas delas. Antes tínhamos significativo número de processos mas poucos juízes, o que tornava demorado um julgamento. Agora, embora tenhamos incrementado o número de juízes e modificado as técnicas processuais de aceleração dos julgamentos, houve aumento superlativo dos processos judicializados, de maneira que há perda de qualidade das decisões produzidas em massa e, ainda assim, entregues com duração ainda excessive. O problema da demora e do tempo do processo não se resolveu, apesar do movimento pelo acesso à Justiça, e em certa medida em razão desse mesmo acesso, agora sob nova roupagem, precisamente das demandas repetitivas e dos litigantes habituais, que terceirizam soluções de problemas privados à Justiça, servindo-se da demora da solução dos litígios como meio de alocação econômica de recursos, litígios nem sempre reais, ao contrrio, muita vez aparentes. 4.5 Em grande parte, o problema dos litigantes habituais do sistema: em primeiro lugar os entes públicos da administração pública direta (União, Estados, Municípios e Autarquias) e indireta (CEF, INSS e Banco do Brasil); em segundo lugar, os prestadores de serviços bancários e as concessionárias de serviços públicos, especialmente de telecomunicações, por completa omissão dos órgãos concedentes (poder público) e de fiscalização (Banco Central e Agências Reguladoras). 4.6 Por outro lado, o sistema judiciário ainda não incorporou adequadamente às suas práticas forenses todo o domínio das técnicas do processo coletivo. Trata-se de um processo civil complexo, com centenas ou milhares de partes substituídas, com interesse jurídico na causa coletiva, de elevado custo por conta da prova pericial por vezes exigida, assim como com complexas questões jurídicas a serem enfrentadas em cada decisão no curso do procedimento, a demandar análise de volumosos processos e centenas de documentos, cujo tempo não dispõe um juiz, envolto por centenas e milhares de outros processos e liminares diariamente requeridas pelo cidadão (moradia, despejo, posse, penhora online medicamentos, vagas em hospitais, vagas na escola, alimentos, pensão, benefício previdenciário, aposentadoria, auxílios, alvarás para levantamento de quantias em dinheiro ou para autorizar vendas de bens, guarda de incapazes, curatela de idosos e doentes, violência intrafamiliar, drogadição, internamento psiquiátrico, abrigamento de crianças, orfandade, abandono de incapazes e outras tantas mazelas da pobreza e miserabilidade). Cada um na fila de espera para ser ouvido pela Justiça, como se tudo fosse um problema judiciário. O Poder Judiciário passou a ser o gestor na sociedade de risco. Consequência: quase cem milhões de processos em andamento, num percentual de um processo para cada dois habitantes no Brasil. Acesso à Justiça carece revisitação científico-doutrinária, pois a resposta legislativa até agora dada não conseguiu atingir a eficácia social exigida. O excesso legislativo (overregulation) demanda maior responsabilidade (jurídica, civil e social) do juiz na interpretação do direito para fazer frente à estagnação de soluções normativas rígidas invariavelmente inefetivas diante da velocidade das transformações da sociedade, atualizando e flexibilizando o direito. 4.7 Falando de problemas de reforma, as propostas feitas por Mauro Cappelletti não continham nada de novo, muito pelo contrario. Todas tinham origem milenar (oralidade, juiz leigo, independência e imparcialidade do juiz, direito das partes serem ouvidas em juízo; procedimentos simplificados e rápidos). De novo, contudo, na oralidade, foi o escopo de tornar o processo civil acessível; nas garantias fundamentais do processo civil, a circunstância de passarem a ter previsão na Constituição e de terem uma dimensão social, exigidas constantemente pela sociedade (pela academia e pela imprensa livre); a semplificação da jurisdição e do devido processo legal implica menos formalidades (fim da era do sono dogmático), realismo na prestação jurisdicional, mediante o balanceamento dos múltiplos valores conflitantes e responsabilidade judicial, repudiando-se as cômodas soluções estabelecidas aprioristicamente na lei. Devemos, pois, refundar o que já existe e superar as dificuldades do tempo presente com um novo perfil do juiz, do advogado e do jurista do século XXI.