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Belém
2018
FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA
Belém
2018
FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________
Profª. Drª. Maria Betânia Barbosa Albuquerque (Orientadora)
Universidade do Estado do Pará – UEPA
______________________________________________________
Prof. Dr. João Colares da Mota Neto (Examinador Interno)
Universidade do Estado do Pará – UEPA
______________________________________________________
Profª. Drª. Taissa Tavernard de Luca (Examinadora Externa)
Universidade do Estado do Pará – UEPA
______________________________________________________
Profª. Drª. Marilu Marcia Campelo (Examinadora Externa)
Universidade Federal do Pará – UFPA
Esse é um prato, uma iguaria, daquelas que traduzem várias memórias, que
reúnem a família e os amigos. Na verdade, um banquete completo, daqueles, onde
o gosto retrata muitos ingredientes, lembra uma obra de arte, devido à sutileza de
seu colorido e as experiências compartilhadas, levando-me a sensações diversas,
como: a de saciedade, satisfação, paixão. Enfim, lembra sonhos e alegrias de
muitas vidas, memórias reconstruídas e compartilhadas. Esse é o retrato, a
simbologia desse trabalho, do qual partilho nesse momento. Assim, portanto, a
muitos preciso agradecer.
Primeiramente, a (os) Deus (es), pela vida e pela gana para lutar por meus
quereres. Obrigada!
À minha família, pelo amor, incentivo e preocupação constantes. Amo a todos
incondicionalmente!
Ao meu companheiro, pelo amor, dedicação, e pela tranquilidade que me
transmitiu nos momentos mais estressantes na realização dessa pesquisa.
A minha orientadora Prof.ª. Dr.ª. Maria Betânia B. Albuquerque, intelectual de
primeira grandeza, pelo cuidado e atenção com que me acompanhou durante este
período.
As historiadoras Andrea Pastana, Elane Gomes, Alessandra Mafra e Marly
Carvalho, amigas, companheiras de vida, da história. Serei eternamente grata pela
parceria e fraternidade demonstradas em nossa trajetória de luta e de muito carinho.
Obrigada por cada encontro gastronômico e pela participação encorajadora nesse e
em tantos outros projetos. Honrada pelas “provocações” e sugestões, que foram tão
úteis para o enriquecimento deste estudo.
A Amiga Wilcilene Sabrina, por me guiar nos encantos e recantos do
candomblé. Obrigada por me apresentar esse mundo de beleza e encanto e pela
sempre saborosa contribuição gastronômica.
Aos amigos Renata Costa, Ataíde Junior, Ana Célia Morais e Marcio Barradas
pelo interesse, disponibilidade e entusiasmo demonstrados desde o exame de
seleção para o mestrado.
Aos professores, Dr.ª Marilu Márcia Campelo e Dr. João Colares, por suas
contribuições pertinentes e por toda a paciência, empenho e sentido prático com que
conduziram suas observações, durante a qualificação.
À querida professora, Dr.ª Taissa Tavernard, por ter acompanhado o
desenvolvimento deste trabalho, mesmo quando ele era apenas um esboço de
projeto. Agradeço também pelas recomendações valiosas e generosas à minha
dissertação, durante a qualificação.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação, em específico à Linha de
Saberes Culturais e Educação na Amazônia, agradeço todas as professoras e
professores e membros da secretaria, pois foram fundamentais para o elaborar
desta dissertação.
Aos parceiros do Grupo de pesquisa GHEDA pela oportunidade de
aprendizado e troca de experiências.
Aos meus amigos e colegas do RIO12, como carinhosamente denominamos
a 12ª turma do PPGED/UEPA, pelos momentos de debates, lutas partilhadas,
choros e consolos. Jamais teria conseguido sem esses ribeirinhos. Em todos os
piores e melhores momentos nós zelamos uns pelos outros, buscamos força e
aprendizado com nas dores e batalhas diárias. Vencemos, graças à nossa
pluralidade e ao desejo de fazer do mestrado um lugar de aprendizado, de leveza e,
sobretudo, de poesia. Obrigada pelo alimento da alma!
Aos amigos que sempre tiveram para mim palavras de incentivo e
compreensão. Indicando-me, não somente bibliografia, mas também me levando
aos terreiros/roças do seu bairro, da sua rua, ajudando, dessa forma, na
aproximação com estes. Por aceitarem minhas ausências e minhas constantes
fugas da realidade palpável, quando não mais conseguia falar sobre outra coisa,
senão, sobre essa pesquisa. Vocês foram adoráveis!
Por fim, o meu respeito a todas as comunidades afrorreligiosas do município
de Belém e da região metropolitana, em específico a roça Jeje Savalú Xwe Ace Kpo
Sohun, especialmente, a Mãe Jokolosy e aos outros narradores – que gentilmente
compartilharam suas memórias e histórias de vida. Os meus sinceros
agradecimentos por terem dividido comigo tantas histórias, segredos e sorrisos
perante o ofício de cozinheiras(os) educadoras(es) da comida sagrada.
Axé!
Dize-me o que comes e te direi quem és.
The present study starts from the following problematic: how in the daily practices of
the "comida de santo" (saint‟s food) of a Jeje Savalú yard (terreiro) are developed
educational processes of construction and mediation of cultural knowledge? It aims
to analyze the educational practices developed in the daily life of the kitchen of santo
in a yard of the candomblé Jeje Savalú, centering, mainly, on the commensality, the
ritualistic of the saint‟s food, in the educative action and in the knowledge that
circulates there. As specific objectives, it is proposed to map the food knowledge in a
Jeje Savalú yard in Pará; to investigate how the symbolism of the kitchen of santo
and its paraphernalia emphasize the memory of the Jeje candomblé and show a
chronology of the symbolic; as well as to analyze how these knowledges circulating
the food of santo reveal the legacy of sacred cooking as learning of a cosmology of
the sacred. It is characterized, methodologically, as a field research of the
ethnographic type, based on the presuppositions of oral history. The locus of the
research is a Jeje Savalú candomblé yard, denominated Xwe Ace Kpo Sohun, in
Belém (PA). It uses as methodological procedures for the production of data:
bibliographic resarch; participant observation; semi-direct interviews with permanent
and sporadic members of the yard kitchen; audio-visual records with spiritual entities
incorporated in the followers and conversations with practitioners and visitors of the
yard. Theoretically, the research was inspired by the works of Montanari (2013);
Flandrin and Montanari (1998); Geertz (1989, 1997, 2001); Hampaté Bâ (2003);
Brandão (2002); Santos (2000; 2010); Pesez (1998); Ingold (2008), among others.
The analytical categories education as culture and food as culture; knowledge of the
experience and knowledge of everyday life; memory, identity, and material culture
have been pervaded and aligned in the light of the history of food and of a broader
perception of education, which rests on candomblearian culture and is beyond the
scientific and scholasticist perspective. The educational process investigated
revolves around the responsible and prominent figure of the yard, the priestess
Jokolosy, who has the highest hierarchical rank of the house (casa). As Gàniyakú,
the lady of the long skirt, she guides all posts of lower hierarchy and has the status of
educator and bearer of memory and greater experience with the numerous
knowledge that circulates in the yard, including those who are associated with the
Jeje Savalú culture, to the culinary and ritualistic knowledge, seen here as the
contents to be taught in the yard.
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................ 11
1.1 A PERSPECTIVA TEÓRICA DE ANÁLISE ..................................................... 16
1.2 CAMINHOS METODOLÓGICOS .................................................................... 32
1.3 O LÓCUS DA PESQUISA .............................................................................. 38
2 ALIMENTAÇÃO E O CANDOMBLÉ: HISTÓRIA E MEMÓRIA ..................... 44
2.1 ALIMENTAÇÃO E HISTÓRIA ......................................................................... 44
2.2 O LUGAR DA ALIMENTAÇÃO NO CANDOMBLÉ ......................................... 48
2.3 O CANDOMBLÉ JEJE SAVALÚ: UM BREVE HISTÓRICO ............................ 57
2.4 CAMINHOS E DESENCONTROS NA TRAJETÓRIA DOS JEJE NO PARÁ .. 65
2.5 A ROÇA XWE ACE KPO SOHUN E O CANDOMBLÉ JEJE SAVALÚ ........... 66
2.6 A COMIDA DE SANTO REINVENTADA ........................................................ 75
3 COZINHA DO AXÉ: UM DIÁLOGO ENTRE OS SABERES TRADICIONAIS E
A MODERNIDADE ......................................................................................... 82
3.1 LUGAR DO SIMBÓLICO E DA MEMÓRIA ..................................................... 83
3.2 A COSMOLOGIA DO SAGRADO EM UMA COZINHA JEJE SAVALÚ .......... 93
3.3 COZINHA DE SANTO: UM ESPAÇO DE APRENDIZADO .......................... 100
3.4 “VODUNS TAMBÉM COMEM": COMIDA VOTIVA E OS TABUS
ALIMENTARES ............................................................................................. 112
4 AS HERDEIRAS DA COZINHA SAGRADA ................................................ 119
4.1 MULHERES E HOMENS QUE ALIMENTAM ............................................... 122
4.2 CULINÁRIA SAGRADA: TEMPO DE APRENDIZAGEM .............................. 126
4.3 O APRENDIZADO DAS SENHORAS DA COZINHA .................................... 142
5 CONSIDERAÇÕES SOBRE ESSAS E OUTRAS COMERAGENS ............. 144
REFERÊNCIAS ............................................................................................ 149
APÊNDICE ................................................................................................... 157
ANEXOS ....................................................................................................... 161
Figura 1 – Mesa com comidas para o Tassen (Bori)
1 INTRODUÇÃO
Este estudo volta-se para análise dos processos educativos e dos saberes
existentes nas práticas religiosas cotidianas da cozinha de santo em uma casa de
Candomblé na Amazônia.
O despertar para essa temática recua a um tempo bem anterior ao próprio
processo de formação acadêmica, um tempo em que eu nem ao menos possuía
noção de que um dia enveredaria para os caminhos da história e da educação.
Nascida em uma família numerosa, composta por várias quituteiras, descobri
um dos mais caros prazeres: o gosto pela arte de combinar temperos, cheiros, cores
e sabores, a arte da culinária.
Minha avó Laura, cozinheira de mão cheia – como se diz quando alguém
domina essa arte –, fazia os mais variados quitutes, que, geralmente, eram
saboreados em refeições compostas por um grande número de indivíduos, dentre
familiares, vizinhos e agregados. Seu maior dote estava no fazer dos pratos típicos
da região norte, que sempre conquistavam o maior número de apreciadores de sua
culinária.
Aqueles nunca eram momentos apenas de necessidade biológica ou
alimentar. Em vez disso, eram o ápice do encontro de muitos testemunhos do
cotidiano de uma família de classe média, que incluíam revelações, desculpas,
declarações, risos, trocas, sentimentos, entre outras experiências que, de tão
corriqueiras, nem pareciam ter importância.
Uma memória muito presente sobre essas reuniões gustativas é aquela
referente ao preparo dos alimentos. Ficávamos reunidas na cozinha, logo após a
retirada do café, quando costumavam minha avó, tias, primas mais velhas e até
alguns dos pequenos iniciar os trabalhos para o preparo do almoço. Era uma
verdadeira festa, com corpos harmonicamente sincronizados, executando, cada um,
sua função, em uma espécie de coreografia de ingredientes, alguidares, peneiras e
pilões. Começava, assim, minha inquietude com toda aquela engrenagem familiar,
que, em torno da mesa, resultava em um momento de partilha e sociabilidade.
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da culinária indígena, europeia e africana, entre outros saberes que muito nos
revelam a respeito das práticas culturais daquele período.
Uma percepção que compreende a assimilação dos saberes do cotidiano,
como fruto de uma história da cultura alimentar da Amazônia.
Assim sendo, a pesquisa de Abbate fornece elementos para outros trabalhos
na área da educação, pois permite fazer uma aproximação com a história social e
cultural dos elementos que compunham a diversidade cultural da sociedade
amazônica colonial. Sua pesquisa alerta para o protagonismo indígena, mais
precisamente, da mulher indígena, em relação à proeminência de alimentos dessa
cultura na dieta alimentar da região e da presença de hábitos alimentares indígenas
compartilhados, o que leva o autor a indicá-las como grandes educadoras e
responsáveis pela transmissão da cultura alimentar na Amazônia.
Tais posições auxiliaram-me a enxergar mais livremente os sujeitos, no caso,
as senhoras da cozinha de santo, como agentes mediadores dos saberes a que me
propus investigar na alimentação ritual em uma roça candomblecista.
Fora do campo da educação, a pesquisa de Macêdo (2009) analisa o
processo de abastecimento da cidade de Belém, em pleno século XIX. Ao investigar
as relações desse abastecimento com os interiores da província, com outros países
e ainda com outras províncias do Império, ressalta os produtos mais comercializados
e consumidos na cidade durante a ascensão da economia da borracha, geradora de
transformações urbanas e demográficas.
Em sua dissertação Daquilo que se come: uma história do abastecimento e
da alimentação em Belém (1850-1900), Macêdo (2009) realiza uma história dos
hábitos e práticas alimentares da sociedade belenense da segunda metade do
século XIX. Dessa forma, ajudou-me a estreitar relações com a história da
alimentação e suas ramificações, a história do gosto, a história da mesa e a história
material que a compõe.
Macêdo (2016) defende a tese de que a cozinha paraense de fins do século
XIX e meados do século XX é mestiça, resultando de inúmeras trocas alimentares.
Ao contrário da ideia corrente, na qual a comida paraense é concebida como
regional, o estudo propõe que a mesma é originária de hábitos alimentares mestiços,
fruto de trocas alimentares, de temperos e de preparos entre a culinária indígena,
europeia e africana, resultando em uma cultura hibrida, um fio condutor para
entender as relações de mestiçagem existente no interior da cozinha de santo.
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Assim, destaca o quanto a alimentação traz, em suas práticas, muito do grupo que a
reproduz cotidianamente.
Ao refletir sobre a comensalidade, entendida com prática caracterizada pela
partilha de alimentos, Montanari afirma que, “assim como a língua falada, o sistema
alimentar contém e transporta a cultura de quem a pratica, é depositário das
tradições e da identidade de um grupo” (2013, p. 183). A comida, portanto, torna-se
um importante veículo de “auto representação e de troca cultural”, presumivelmente,
mais agregador do que o próprio o idioma: afinal, comer a comida de outros, lembra
o autor, é relativamente mais fácil do que decodificar seu idioma.
Na esfera do cotidiano, segundo Montanari (2013), essas duas noções, auto
representação e troca cultural, são quase sempre assimiladas de forma antagônica:
a troca cultural aparece como uma barreira à salvaguarda das identidades. Contudo,
o autor chama atenção para o fato que não é correto presumir a autopreservação,
ou identidade cultural, como uma entidade metafísica, ainda que o seu lugar na
história tradicional seja para perpetuar a ideia de produção de “raízes”.
Inspiração para esta e outras pesquisas, a obra História da alimentação, de
Flandrin e Montanari (1998), posiciona a alimentação como um intrigante ingrediente
da cultura, que vem se tornando parte presente em vários trabalhos. Ao traçar um
paralelo entre a trajetória da história do homem e dos seus hábitos alimentares, os
historiadores italianos provocam outras tantas analogias do tema da alimentação
com diversas áreas, como, por exemplo, as relações entre alimentação e educação,
em particular a alimentação nos terreiros de Candomblé.
Segundo Raul Lody (1977), ao serem trazidas ao Brasil, de forma
compulsória, após uma perigosa e exaustiva travessia pelas águas do Atlântico,
nações da África trouxeram consigo um modo de vida bem diferente do existente na
colônia portuguesa, incluindo hábitos alimentares, de diversas áreas da terra mãe,
tais como os aspectos peculiares de regiões da costa do Benim .
Região africana de um relevo de formação rochosa, o Benim era recortado
por muitas montanhas, possuía economia agrária dependente de uma base de
subsistência, onde os gêneros agrícolas refletiam a tradição alimentar de maior
consumo entre os habitantes desse território. Não por acaso, os grãos continuam,
ainda hoje, como base primordial dos alimentos processados nas religiões de matriz
afro-brasileira, exemplo, da nação Jeje Savalú, ora estudada.
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Corroborando com a ideia de que a comida possui muitos signos, Raul Lody,
convida a observar que boa parte das receitas do candomblé são elaboradas a partir
de grãos, como milho. Os grãos acompanham variados pratos e demarcam
acontecimentos de grande significação para as comunidades afrorreligiosas. A trilha
deixada por esses gêneros alimentares funciona como pista que revela a influência
ancestral africana:
1
Termo dado no candomblé Savalú à pessoa mais experiente nos rituais vodun, aquela
que transmite os ensinamentos da religião, da ética e da tradição para os filhos do
terreiro, a senhora da saia longa.
30
2
Para entender o processo de relacionalidade analisado a partir de um terreiro de
candomblé, ver Sousa Junior (2009).
33
Assim, é possível aferir que boa parte dos ensinamentos afro religiosos são
mediados através dos mitos e cânticos oralizados e entoados, respectivamente.
Igualmente importante é o fato de que inúmeros desses mitos, no candomblé Jeje
Savalú, estão relacionados ao cardápio dos Voduns, e, por isso, têm dupla
finalidade: a de transmitir os ensinamentos dos ancestrais e a de fornecer pistas em
relação à alimentação dos deuses insaciáveis.
Faz parte da proposta deste estudo familiarizar o leitor com a rotina dos
processos educativos ocorridos em uma cozinha de santo e, consequentemente,
aproximá-lo dos saberes que circulam no ambiente, através dos registros das
experiências vividas e pelas narrativas das memorias de vida e narrativas míticas, no
epicentro e no entorno da cozinha de candomblé, para que, assim, seja possível
entender as formas pelas quais os saberes se dispõem e são transmitidos. Para
tanto, aliamos o método etnográfico aos pressupostos da história oral.
Trata-se de poder visualizar e acompanhar a rotina que se estabelece no
cotidiano da casa a que pertence essa cozinha. Pois tal rotina é uma parte
importante de toda a engrenagem movente das tarefas do terreiro. Segundo Lozano
(1996, p. 16), o uso esse método, portanto, torna a pesquisa:
Outra estratégia usada foi pedir para que me ensinassem alguns de seus
afazeres. Dessa forma, pude ajudar em algumas das tarefas e, assim, obtive a
confiança de muitos. No entanto, só pude auxiliá-los nas tarefas que não possuíam
sentido sagrado.
Aos poucos, fui obtendo a simpatia do grupo, às vezes, compartilhando
algumas tarefas; em outras, simplesmente, em proveitosas conversas informais, em
almoços, lanches ou durante uma carona, ou nos intervalos entre suas obrigações.
Certa vez, tive a oportunidade de ir ao supermercado com as senhoras
responsáveis pela feitura da comida de santo, juntamente com a Mãe Jokolosy, que
sempre fazia questão de escolher o material a ser usado no cardápio da festa e,
assim, orientar as demais para que, no futuro, elas pudessem desempenhar tais
tarefas sem o seu auxilio. Pude observá-la explicando a importância da escolha de
cada ingrediente usado no preparo dos pratos. No mesmo dia testemunhei a
sacerdotisa explicando algumas noções sobre os saberes às filhas de santo.
Explicou que comidas rituais
natural, por conta de não pertencer a religião, de modo que alguns membros me
recebiam com certa desconfiança.
Assim, visando me inserir o mais possível no ambiente pesquisado, passei a
acompanhar os sujeitos da casa em alguns de seus projetos políticos e sociais,
como as passeatas pela Associação Afrorreligiosa e Cultural Funderê Oyá Jokolosy
(Arfuojy), festas em outros terreiros, e no lançamento do livro O candomblé Jeje
Savalú na Amazônia: história, cosmovisão e ecologia, desdobramento da
dissertação de mestrado do pesquisador Manoel Roberto Ferreira Chagas, na
associação Arfuojy, dentre outras tarefas mais corriqueiras, mas, que contribuiram
para tornar menos profundo o abismo entre pesquisadora e objeto.
Mesmo considerando a urgência em coletar evidências do cotidiano, não vi
problemas em passar algumas horas de convívio sem a pretensão de registros de
campo e, assim, dedicar-me ao estreitamento de laços ou, pura e simplesmente, à
ambientação aos ritos.
Também havia a consciência de que, apesar de todas as hipóteses prévias, e
mesmo adotando um planejamento prévio, poderia ser surpreendida por situações
fora de meus aportes teóricos e metodológicos, de maneira que se tornou
necessário criar possibilidades, soluções para sanar tais percalços. Afinal, adotar um
plano rígido teria o efeito de inviabilizar a pesquisa. Corroborando com essa ideia,
Malinowski (1984, p. 22) afirma que:
percebido como inerte, vazio de sua substancia; possui uma lógica própria que
difere da dos documentos históricos (ARON, 1974, p. 161).
Aron (1974, p. 161) defende que a alimentação é
objeto que deve ser abordado sob uma nova ótica, se é verdade, que
nos foi entregue fisicamente em seu próprio enunciado, que não nos
promete senão o que nos dá, que o saber que aprendemos dele
envolve, numa síntese única, sua evidência e suas sombras.
Thaís Fonseca (2003) explica que o movimento inaugurado pela Escola dos
Annales forneceu respaldo a muitas áreas, como a história da alimentação, e surtiu
significante influência sobre a trajetória de outros campos do conhecimento, como
exemplo da educação, que, a partir dos pressupostos da nova história cultural,
passa a delinear um olhar mais abrangente sobre os processos educativos.
Os hábitos alimentares constituem um desses lugares, onde a cultura se
apresenta e é transmitida pelo ato da educação. Apresentam um conjunto de
situações, que, mesmo de forma ressignificada em relação à feitura e uso de
ingredientes, evidencia permanências de valores culturais, transportando as
pessoas, por vezes, a um tempo e lugar bem anteriores à realidade em que vivem.
A partir do olhar sobre a história da alimentação, é possível investigar práticas
educativas no seio de uma cozinha de terreiro, indagar que saberes foram
transmitidos no consolidar desses hábitos alimentares, desde a partida coercitiva
dos Jejes Savalú da África para suprir às demandas da escravidão no Brasil, até sua
inserção nos terreiros afrorreligiosos.
Em busca de pistas que comprovem a primazia das comidas votivas como
base fundamental nos terreiros afro-brasileiros, Norton Corrêa (2005) trilha uma
história da alimentação, na perspectiva antropológica. Segue pela culinária ritual do
batuque, percorrendo uma trilha de migalhas que levam até o alimento sagrado
como demarcador de territórios regionais, sociais, identitários, inscritos em contextos
sociais diversos. Em suas conclusões, o autor afirma que a
Roberto DaMatta em um estudo que resultou em seu livro O que faz o brasil,
Brasil?, a pretexto de elucidar as diferenças e as nuances que a cultura alimentar
brasileira alcança, observa que
A ordem na qual as folhas foram servidas também segue um ritual, que vai
dos mais antigos no santo (maior tempo de iniciação no candomblé), passando
55
pelos mais novos (iniciados recentes), até os visitantes. Ritual muito parecido como
o de Obaluaiê, descrito abaixo:
A palavra Jeje, segundo Prandi (1996a), vem do yorubá "jeje", que significa
estrangeiro, forasteiro. Portanto, não se trata da existência de uma nação Jeje no
continente africano, não em termos políticos, pelo menos. Pela terminação nação
Jeje, pode-se considerar o candomblé formado pelos povos fons vindo da região de
Dahomé e pelos povos mahins. Jeje era o nome dado de forma pejorativa pelos
3
Sobre o fenômeno do transe, ver a revisão crítica de BASTIDE, (1959, 181-207) e
RIBEIRO, (2014, 29-60)
4
Sobre a iniciação nos grupos de candomblé existe uma farta literatura etnográfica. Ver
especialmente [NINA RODRIGUES, (1935, 75-85) : QUERINO, (1955, 63-71) ;
CARNEIRO, (1948, 73-9), BASTIDE, (1945, 50-62) VERGER, (1987, 71-95).
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yorubás às pessoas que habitavam o leste e o sul da África ocidental, como era o
caso, respectivamente, dos mahins, tribo do lado leste, e Saluvás ou Savalus,
habitantes da porção sul, os quais, na maioria das vezes, possuíam interesses
adversos aos dos povos de idioma Yorubá.
Também é importante a definição territorial originária de tais ritos. Nesse
sentido, considerei o uso das expressões “Costa da Mina” e “Golfo do Benim” como
sinônimos. No entanto, tal escolha não foi fortuita. Pierre Verger chamava de Costa
da Mina a parte do golfo do Benim situada entre o rio Volta e Cotonu, e recorria aos
termos Golfo ou Baía do Benim quando tratava daquela parte da costa que incluía a
região a leste até o rio Lagos (VERGER, 1987, p. 37). De acordo com Costa,
5
Etnolinguista, Doutora em Línguas Africanas.
61
A nação jeje, como já foi dito antes, veio de uma região da África que engloba
a “área dos gbe-falantes” ao exemplo do Togo, Gana, Benim e regiões vizinhas,
equivalente ao contingente de escravos trazidos para o Brasil. Foi entre as etnias
denominadas fon, éwé, mina, fanti e ashanti, habitantes desta região, que surgiu o
termo “vodum”, usado na identificação das forças invisíveis (PARÉS, 2007, p. 34-
37). Parés afirma que
A formação do Candomblé na Bahia teve como pilar central a nação jeje. Esta
afirmação do antropólogo Luís Nicolau Parés (2007) emprega o teor argumentativo
da literatura sobre a origem das religiões de matriz afro no Brasil, sua relação com o
tráfico de escravos para a Bahia de Todos os Santos, sobre as disputas
internacionais pelos domínios desta atividade econômica, e ainda pauta as relações
internas de povos africanos com comerciantes europeus durante tal processo.
Na obra de Parés, é possível notar a presença maciça de jejes na formação
ritual e linguística do Candomblé na Bahia, até a metade do século XIX,
principalmente, nas fontes documentais produzidas em casos onde há possíveis
policiais e membros da elite política envolvidos com rituais de Candomblé desta
época. Com as proibições, principalmente, após a postura n.º 59, de 27 de fevereiro
de 1857, onde ficavam proibidos os batuques, as danças e as reuniões de escravos,
em qualquer lugar e hora, sob pena de oito dias de prisão. Para Parés, ainda é
possível ver na documentação policial a frequência das práticas afro-religiosas.
(PARÉS, 2007, p.37)
64
6
Em alusão à categoria de análise de Sidney Shaloub, em seu trabalho Classes
perigosas (Revista Trabalhadores, n. 6, p. 5-22, 1990).
65
paraense. Anaiza Vergulino Silva, em sua busca pela ascendência das religiões de
matriz afro no Pará, trouxe informações concisas através de uma busca documental
sobre duas genealogias, uma que liga o nigeriano Manuel Teu Santo a Benedito
Saraiva, vulgo Pai Bené, e a outra que estabelece ligação entre a africana
Massinokô-Alapong e Pai Bassu, Orlando Machado da Silva (SILVA, 2003).
Na análise de Campelo e Luca (2007), todos os terreiros pareciam filiais
desorientadas dos terreiros maranhenses, não tendo seu próprio legado em relação
à genealogia africana. Seus integrantes sempre remetiam sua tradição a fundadores
africanos, situados no estado do Maranhão ou da Bahia. Segundo as autoras,
Dizer: “sou feito por maranhense” era pleitear para si, a legitimidade
dada pelo critério antiguidade. Diziam-se tradicionais por estarem
ligados aos “fundadores”, que eram os migrantes do estado vizinho,
mas as respostas se calavam na medida em que aprofundávamos
nossos questionamentos acerca da origem mais específica dessas
pessoas. Era então impossível cruzar as fronteiras de forma mais
precisa e definir modelos esquemáticos do tipo matriz-filial
(CAMPELO; LUCA, 2007, p. 6).
Não diferente, a formação da roça Xwe Ace Kpo Sohun também segue uma
das trajetórias apontadas por Campelo, como aquela que presume o trânsito dos
sacerdotes por outras matrizes, ou até por outras nações.
Hunsijé continua sua explicação, relatando que Abomei era uma região que
ficava no oeste, enquanto Axantis era a tribo do norte. Todas essas tribos eram de
povos Jeje.
Quando lhe perguntei como havia obtido todas essas informações a respeito
da origem dos jejes, ele respondeu-me que uma das obrigações de um sacerdote é
estudar e ampliar seus conhecimentos sobre a cultura de seus ancestrais.
68
Muitas das informações sobre a trajetória do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun
chegaram em forma de relatos feitos pela sacerdotisa Jokolosy e por outros
membros da casa, como o Kpédjígàn Hunsijé; para eles a origem da casa se
confunde com a própria história de vida da Gàniyakú.
Mãe Jokolosy conta que somente há pouco mais de dois anos o terreiro Xwe
Ace Kpo Sohun passou a se chamar dessa forma. Antes se chamava “Funderê Oya
Jokolosy”. A troca ocorreu na época da sua obrigação de vinte e um anos no
candomblé Jeje Savalú, quando, por uma revelação, o nome lhe foi dado.
Oriunda de duas famílias bem antigas de Soure, A sacerdotisa Jokolosy, foi
criada em trânsito pelas religiões da família materna (pena e maracá) e paterna
(católica). Logo cedo, aos sete anos, apresentou problemas de saúde, sendo levada
a muitos médicos, que não conseguiam tratar a enfermidade. Foi levada, por sua
mãe, para tratar-se espiritualmente e foi destinada aos cuidados, primeiramente, de
Pai Luizinho e, em seguida, de mãe Pazica, onde foi iniciada em uma casa de pena
7
e maracá .
Costa (2013), detalha a formação religiosa da sacerdotisa e líder da
comunidade Xwe Ace Kpo Sohun. Diz que, na mesma época, Mãe Jokolosy
começou a receber alguns guias, como Caboclo Juruá e Caboclo Tapinaré, e que,
aos nove anos de idade, já em Belém, foi iniciada na umbanda branca. A autora
acrescenta que
7
Pena e maracá ou pajelança, caracteriza-se na crença dos “encantados”, que “baixam”
durante os rituais “incorporando” no pajé (curador), que é a figura central das sessões.
Sobre o conceito e outros aspectos da nação Pena e Maracá, ver Quintas (2007)
69
Visitar outros terreiros, além do Xwe Ace Kpo Sohun, tornou possível
entender a diversidade existente no interior do candomblé.
8
Babalorixá do Instituto Cultural Nagô Afro-Brasileiro (ICNAB) – Terreiro de Mina Nagô,
Belém/PA.
73
9
A ideia central do Fórum foi estabelecer o diálogo entre a legislação da implantação do
sistema de segurança alimentar e nutricional no país e a harmonização desta com o
Decreto nº 6.040 de 07 de Fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.
74
seus credos é importante para consolidar a identidade que esses sujeitos possuem
com sua religião e respaldar uma comunidade que precisa muito assegurar seu
direito ao credo escolhido, além de permitir que sua militância tenha fundamento na
ancestralidade africana.
Ao ouvir Mãe Jokolosy e o jovem Kpédjígàn Hunsijé descrevendo
minunciosamente que os pratos preparados para uma obrigação hoje em dia são
feitos como eram no tempo da escravidão, ou antes na África, é possível ver que a
para a família de santo do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun a alimentação é forma
também de educar para a preservação da memória dos seus antepassados. Pois,
sendo o candomblé uma religião de resistência cultural, a comida, tem o papel de
agente mediador de valores e saberes, imprescindível, para a circulação de
conhecimento e elo de aprendizagem constante.
81
A comunidade do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun se identifica como uma casa
de preservação da cultura e costumes tradicionais do Candomblé Jeje Savalú como
uma estratégia de sobrevivência e legitimação dos atos desses sujeitos perante
outras comunidades e em relação à sociedade brasileira, como um todo.
As cozinhas Xwe Ace Kpo Sohun – tanto da sede na rua Conselheiro Furtado,
quanto na ilha de Outeiro (futura sede) – não diferem das cozinhas de terreiros
visitados, ou mesmo de outras cozinhas brasileiras. Como de costume, elas
possuem mobiliários onde são guardados os utensílios, tais como mesas, cadeiras,
onde parte das tarefas e das refeições são feitas.
Também comportam fogões, geladeiras, panelas, louças, eletrodomésticos,
enfim, tudo o que é necessário para desenvolver os trabalhos culinários cotidianos
83
de uma casa comum. E não poderiam ser diferentes, afinal, as cozinhas, nos dois
locais, alimentam não somente à comunidade de santo, mas também figuram como
parte dos cômodos das famílias que moram nos dois endereços. Por isso, como em
qualquer casa, tais cozinhas carregam em si também o potencial objetivo de serem
práticas e funcionais.
No entanto, ao olhar a cozinha da comunidade Xwe Ace Kpo Sohun com mais
atenção, é possível notar que, por detrás de toda essa aparente funcionalidade,
existe uma quantidade significativa de objetos que parecem não pertencer às
cozinhas de nosso tempo. Sui generis, esses artefatos, como o alguidar, a moringa,
o pilão, potes e panelas de barro, tábuas de lavar, chaleiras, entre outros itens, não
só parecem de outro espaço e tempo, tanto pela rusticidade de seu material como
por conta de sua pouca praticidade, de acordo com o que hoje se imagina em
termos de funcionalidade.
Tais objetos parecem diferir ou contradizer com o sistema e modo de vida
capitalista, onde tudo tem urgência, dado o valor antiquado e não produtivo para os
padrões da cozinha planejada e funcional do nosso tempo – ou, melhor dizendo, da
lógica de temporalidade nos moldes do grande capital.
Esses objetos, contudo, não são de todo desconhecidos, pois é possível
encontrá-los em cozinhas do tempo presente, como artigos de decoração, ou
mesmo em cozinhas de famílias onde o uso da tecnologia é restrito em função do
seu alto custo monetário. Uma lição que se deve aprender da relação comida e
religião afro é que existe uma lógica, certo sistema, não ditados por valores como
lucro, espécie, competitividade ou algo do gênero. Mas, por que tais objetos
recebem lugar de destaque nas comunidades afrorreligiosas? Que valor simbólico
está agregado a tais objetos?
Uma vez que a comida tem papel especial na religiosidade afrorreligiosa, isso
significa que ela não pode ser servida em qualquer recipiente. Se a comida é
preparada de acordo com a qualidade de cada divindade, os objetos onde esta vai
ser servida também devem possuir características que se assemelham aos preceitos
que caracterizam os deuses a que servirão.
84
A forma como os alimentos são servidos no terreiro Xwe Ace Kpo Sohun
segue, no geral, o sistema descrito por Raul Lody (2004). O sistema simbólico
empreende a linha de pensamento que atrela a disposição dos utensílios às
propriedades de cada vodun do candomblé jeje savalú. Portanto, tais quais os
ingredientes, folhas e temperos da cozinha sagrada, os utensílios, similarmente,
estão predispostos a receber uma rotulação em um binômio sistematizado em dois
lados opostos e harmônicos, uma dicotômia, que os divide em divindades quentes x
divindades frias. As louças e outros utensílios, são assim distribuídas de acordo com
a simbologia binomial do quente/frio.
São entidades quentes os voduns Onitá, Abesàn, Sogbô, Gú, Heviossô,
Sakpatá e Elegbá. Geralmente, simbolizam fogo e terra, dinâmicos (pelejadores) e
temperamentais, até voláteis, como a maioria dos elementos quando convergidos à
alta temperatura. Fazem parte do clã de voduns frios as divindades Lissá, Aziri
Tobossi, Tòkpádù, representantes simbólicos da água e do ar. Possuem
temperamento mais ameno do que os voduns quentes, e regularmente são
entidades que, em muitos aspectos, simbolizam a origem da vida.
Os objetos feitos de cerâmica e de vidro são mais adequados para servir os
voduns frios, já os quentes em vasilhas de barros. Mas, às vezes, o uso dos
utensílios também está ligado ao gosto de algumas divindades. Por vezes, verifiquei
que algumas divindades femininas também exigiam que seus pratos fossem arriados
em peças de cristal. Outras gostavam que incluíssem adornos brilhantes e até
tecidos às vasilhas, convertendo as louças em verdadeiras obras de artes.
Isso remete ao pensamento de que as propriedades das vasilhas da cozinha
sagrada não só refletem as características primordiais dos deuses aos quais elas
servem, como também representam aspectos de sua personalidade, como: orgulho,
vaidade, paixão e até ostentação. Dessa forma, acredito que cada móvel, utensilio,
ferramenta, ingrediente, encontrados na cozinha sagrada podem falar muito sobre a
própria organização dos hábitos cotidianos de seus praticantes e dizem também
88
sobre seus próprios ícones. São, portanto, objetos pedagógicos, posto que
comunicam algo.
Sem ignorar que nem todos os elementos formadores dessa cozinha
simbolizam algo do sagrado, ainda assim é preciso entender que até as ausências e
excessos cometidos na cozinha de santo ou cozinha do axé podem informar sobre a
cultura em torno deles, seus saberes, os sujeitos envolvidos, suas experiências
cognitivas e subjetividades.
Encontrar tais objetos tão bem cuidados e em grande número suscitou-me
curiosidade. Então, resolvi fazer um pequeno inventário da posição em que estava a
cozinha e seus objetos em relação à própria casa. Uma breve descrição exploratória
que possibilite vislumbrar a divisão dos cômodos pertencentes às casas, assim
como os imóveis que abrigam o terreiro Xwe Ace Kpo Sohun, especificamente, os
cômodos ligados à cozinha sagrada:
Figura 9 – Fachada da Associação e Templo Religioso (atual Xwe Ace Kpo Sohun)
10
Cômodo onde os iniciados passam seus períodos iniciáticos em reclusão.
90
11
até o inicio dos rituais. Boa parte dos rituais internos ocorrem em frente ao Peji ,
quase sempre, sem a abertura ao público.
Os outros cômodos, como o banheiro, próximo à cozinha, na parte interna e
os quartos, não fazem parte da área de circulação do candomblé, pois são
considerados como os espaços privados da casa.
11
Também conhecido por quarto de santo, espaço sagrado e de culto onde ficam resguardados os
assentamentos dos Orixás dos filhos e filhas do terreiro.
91
O fluxo de pessoas nas duas cozinhas é bem maior do que costuma ser nas
cozinhas de uma família biológica e até mesmo de outros terreiros visitados. Mesmo
havendo três senhoras responsáveis pela confecção dos alimentos, a Sedugán, a
Donugán e a Dugán, outras pessoas sempre estão lá de prontidão nas tarefas
complementares, como na compra dos alimentos, na limpeza, lavagem da louça e
na limpeza dos animais que serão imolados e, por vezes, na ausência de alguma
delas, na função de cozer os alimentos.
Outras pessoas estão na cozinha, porque ali também é lugar de conversas,
de trocas de segredos, de risos, reuniões, momentos de descontração, lazer. É
também lugar de cantar, espaço de aprender e ensinar sobre os santos (Voduns),
sobre o certo e o errado e sobre a condição do homem e de suas relações em
sociedade. Trata-se, portanto, de um espaço pedagógico.
Também é um lugar onde se aprende sobre a origem dos símbolos cultuados.
Assim, enquanto a Donugán me contava sobre como era problemático o serviço
culinário dedicado a Nanã, testemunhei um relato do mito de origem ligado à
divindade anciã. Fiquei impressionada com a riqueza de detalhes e tantos
92
pormenores que chamaram minha atenção, pois percebi que uma cosmologia do
sagrado se desenhava ali, naquele momento.
Desse modo, dando alusão às memórias e palavras da cozinheira do terreiro
Xwe Ace Kpo Sohun, ela relatou que
12
Eleguá no candomblé significa “o imprescindível mensageiro de Olodumaré”, o mesmo
que Olorum, o deus supremo dos yorubás, e Yemanjá, a mãe do mundo e dos deuses
yorubás.
13
Na mitologia iorubaense, no candomblé, Olofim é o Ser Supremo da religião; criador do
tempo e do Universo.
94
15
Segundo o povo de axé as narrativas míticas são conhecidas como itan.
98
Em entrevista com filhos de santo do terreiro pude colher alguns relatos sobre
a cosmologia subjacente aos hábitos culinários jejes savalú. De posse destes,
selecionei alguns entendimentos sobre a relação entre os saberes que transitam a
cozinha do Axé e o aprendizado alicerçado na cosmologia do sagrado.
Além da relação analógica entre a substância de que são feitos os utensílios
da cozinha e as particularidades sagradas dos santos, há cosmologia em todos os
âmbitos da cozinha sagrada, na receita, no preparo, na escolha dos ingredientes, na
forma da exposição dos pratos e até na fisionomia do comer. Aprender sobre tais
cosmologias faz parte da educação do terreiro, e, por conseguinte, ensinar pela
comida e por meio dos objetos.
É hábito entre os savaluanos do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun, terem suas
próprias louças, geralmente segundo os predicados de seus voduns protetores. No
caso dos iniciados, as louças são de cerâmica ou esmaltadas para evitar o
desperdício em material descartável, o que indica a introdução gradativa de uma
consciência ecológica atrelada aos preceitos sagrados.
Cada cardápio da comunidade savaluana é produzido envolto em um clima de
cooperação, respeito, sacrifício, adoração e profundo reconhecimento dos costumes
afro-brasileiros. A estética e a apresentação dos pratos são também um dos
99
aspectos mais visíveis dessa cosmologia. Emite não somente a ideia de respeito às
propriedades mágicas, mas, sobretudo, do lugar que cada um ocupa nessa
estrutura. A comida, o cheiro, o ambiente onde se come, o gosto e, inclusive o servir,
estão ligados à hierarquia dessa engrenagem religiosa.
Ensina sobre o uso correto dos ingredientes, sobre como é crucial observar e
pouco falar para servir seus deuses, e, sobretudo, instrui a respeito da simbologia e
dos dogmas existentes em uma cozinha sagrada. Enfim, ensinamentos e regras que
estão intimamente ligados à comida de santo e que compõem o candomblé.
Se a alimentação votiva é importante elo agregador dos hábitos e costumes
da população afrorreligiosa, o candomblé permite a contínua renovação desses
hábitos alimentares. Portanto, a mesa possui dupla valorização, pois além de abrigar
a função de aparato para a alimentação, também serve de inúmeras outras
maneiras numa roça de candomblé.
Em muitas de minhas visitas a terreiros de candomblé, pude observar a mesa
em várias de suas outras dimensões, como: espaço de aconselhamento, local onde
muitos “Pejis” (altares) são erguidos, também ao servir de recurso para o
planejamento dos eventos e reuniões, e de suporte para o preparo dos ingredientes
e alimentos. Conforme os depoimentos da sacerdotisa, grandes banquetes são
degustados, resultando no estreitamento das relações sociais e no reforçamento da
coletividade.
Entretanto, como espaço ritualístico de partilha alimentar, a mesa não
configura, exatamente, um aspecto da cultura africana. Grande parte dos hábitos
alimentares das variadas etnias africanas, anteriores à diáspora, eram cultivados ao
longo de uma tradição de comer sentados ao chão. Tal costume de uso da mesa,
portanto, vem exprimir muito mais uma lógica da antiga tradição europeia, do que
africana. Portanto, sentar à mesa em uma roça de candomblé jeje savalú representa
uma de tantas ressignificações vivenciadas em uma cozinha de santo.
A respeito do binômio tradicionalidade /modernidade, bastante discutido na
atualidade, aqui, especificamente, pelas comunidades afrorreligiosas, que
pretendem a partir de um sentimento saudosista e de retorno aos hábitos
alimentares da ancestralidade africana, rememorar tradições culinárias, pretéritas,
que lhe outorgam uma identidade coletiva com a diáspora africana, reafirmada
através da memória gustativa. Tal apelo ao retorno a uma tradição idealizada
encontra refúgio explicativo na obra A Invenção das Tradições, organizada por E.
Hobsbawm e E. Ranger, onde por significado de
quando algo cai e quebra, temos que ter cuidado, pode ser “quizila”.
Então é sempre bom ter a mão um “quebra quizila”, podendo nesse
caso usar sal grosso, mas se tiver suspeita de traquinagem, de
divindade criança, então é melhor o mel e aguardente pra acalmar.
Pegar e jogar fora sem usar o “quebra quizila” pode trazer má sorte e
até doenças, não se brinca com essas coisas. Tem gente que fica
anos e anos com quizila e não sabe porque (entrevista de Mãe
pequena, 2017).
de cor significa dizer que o aprendiz leva com seriedade, amor e respeito a vocação
religiosa.
Outra peculiaridade do processo educativo desenvolvido na cozinha de santo
são os segredos, algo que chama atenção, pois permeia boa parte das relações
existentes nesse espaço.
O segredo, de certa forma, é uma moeda de troca, uma forma de barganha,
ou, como diria Michel Foucault (1979), uma forma micro de exercer o poder. O
aprendizado na cozinha está longe de ser democrático. Pelo contrário, atinge-se a
experiência e maturação, o reconhecimento junto à roça à medida que se detém,
paulatinamente, a revelação de alguns segredos. E, se a revelação de segredos
significa a conquista de um lugar proeminente junto à comunidade, não o obter ou
não o merecer significa, na mesma proporção, o esquecimento e vergonha, por não
estar apto à vontade de seu vodun. O segredo, nesse caso, pode ser a resposta de
uma simples receita, ou uma filosofia de vida, algo vivenciado há muito tempo,
tornado uma tradição, um ensinamento, uma condição para exercer profundamente
o sacerdócio. Ao refletir sobre o segredo, a sacerdotisa e matriarca do terreiro,
testemunha que:
a gente não pode ir falando sobre tudo, a gente não pode passar
tudo, por exemplo, os pesquisadores eles nos ajudam, eu já falei isso
lá na UEPA, na verdade eles nos ajudam, os pesquisadores. Tem
mãe e pai que não gostam dos pesquisadores, eu já sou diferente,
107
eu gosto. Porque vocês sabem muito bem que quando eles [os
pesquisadores] iam para África [Diáspora], até pra fazer o
reconhecimento né, ouviam um falar uma coisa, outro falar outra
[diversidade de idiomas] e não entendiam nada [risos] e muitas
coisas ficaram preservadas, porque você sabe, antigamente os
sacerdotes não gostavam de caderno, hoje a gente dá caderno aqui
pra eles. Hoje algumas pessoas dos voduns são abertos pra falar,
tem permissão pra falar até de frente [incorporados] com os
pesquisadores (Entrevista de Mãe Jokolosy, 5 mar. 2017).
16
Ebós são as oferendas no candomblé, que visam corrigir várias deficiências na vida de
um ser humano, como: saúde, amor, prosperidade, trabalho profissional, equilíbrio,
harmonia familiar, entre outras.
110
Tabus alimentares
repletos de significados, que vão além da dimensão material. Por isso, a escolha dos
ingredientes e a montagem dos pratos não devem ser menosprezadas. A escolha de
um ingrediente estragado pode inutilizar todo o prato, inutilizando também o
propósito da oferenda, ou da comemoração.
O estado de quem prepara os pratos também deve ser cuidadosamente
levado em questão. Um corte, as regras menstruais, um período de lua e até
algumas circunstâncias do momento podem servir de alerta para o impedimento da
cozinheira ou do imolador.
Em uma conversa informal e espontânea a Sedugàn relatou um acontecido
que demonstra muito bem esses preceitos e tabus em relação a arte de cozinhar
para os santos:
faz com que uma certa comida não dê certo, como por exemplo: em
cozinha onde se tem gente de Xangô o milho de pipoca queima
antes de estourar. Pela cozinha, entram as pessoas de maior
prestígio na Religião e é nela própria que, em certas ocasiões, muito
antes mesmo de se chegar no peji do Orixá, que este é consultado a
fim de se saber se a comida foi bem preparada ou não (SOUZA
JUNIOR, 2016, online, acesso em 11 ago).
17
A utilização do termo “imolação” dá-se pela escolha da própria comunidade Xwé Ace Kpo
Sohun, que explica a preferência pelo termo em vez da expressão “sacrifício”, por seu teor
pejorativo no imaginário popular.
120
19
Tasén é o ritual que cultua a cabeça; o mesmo que borí para os nagôs. Provavelmente o
mais importante ritual, pois ele principia todas as etapas que antecedem à iniciação. É
através do jogo de Búzios que o Babalorixá recebe as instruções para realizar este ato
ritualístico, o Tasén, que possibilitará não só a mudança da sorte como também a
manutenção da mesma, para que não se a perca.
123
Tal narrativa não se restringe a uma lição de cunho moral, mas, sobretudo,
refere-se à proximidade entre a intuição natural e o merecimento de dons, à valentia
e o aprimoramento do senso de justiça. Lições de vida e experiências que são
contadas, geralmente, à mesa, no momento das refeições, ou durante a feitura das
mesmas.
É também função dos homens do terreiro a escolha e compra dos animais
que serão imolados, assim como é do Kpédjígàn a função de auxiliar o Sénmátó
Amànón (responsável pela colheita das folhas). É ele e a Gàniyakú Jokolosy que
sempre aparecem nos comandos das tarefas, mesmo naqueles mais simples, desde
a escolha do material a ser utilizado para o banquete ofertado, até a montagem dos
pratos, uma especialidade do Kpédjígàn Hunsijé.
Quando entrevistadas, as senhoras da cozinha fizeram várias vezes
referências aos cargos do kpèdjígàn e do Sénmàtó da Xuè. Dizem que sem o
conhecimento deles elas não podem concluir com competência suas próprias
tarefas, mesmo se tratando de conhecimentos específicos, mas que no entanto
estão interligados.
A dunúgàn dizia, enquanto lavava a folha da mamona, que considera seu
cargo muito importante, pois sem ele os voduns não seriam alimentados. Entretanto,
sem o conhecimento dos gostos e do cardápio, tarefa do kpèdjígàn, ou do dom de
reconhecer a erva ou folhagem respectiva para cada prato e para cada rito, ela
126
poderia estragar os pratos destinados aos voduns, por simplesmente não haverem
seguido os preceitos de forma adequada. Este é o caso da mamona, folha de
importante simbologia entre os jejes, e que, segundo a senhora da cozinha, significa
ao mesmo tempo a vida e a morte, ou seja, o equilíbrio.
A função de Sénmàtó é, justamente, ensinar para dunúgàn a forma correta de
conduzir o uso das folhagens, como neste caso. O especialista indica “aninhar” a
comida sempre do lado oposto da palma da folha, pois se procedido de forma
contrária, a obrigação poderia gerar grande descontentamento ao deus a que o
alimento foi ofertado.
Todos esses conhecimentos revelados tanto pelo Sénmàtó, quanto pela
dunúgàn, alimentam cotidianamente atos educativos, que aprendidos pelos filhos e
filhas de santo, numa roça jeje savalú, fazem da culinária sagrada um lugar de
conhecimento onde circulam saberes diversos, relativos à simbologia, à tradição, ao
sagrado e à experiência, ou seja, saberes mediados pelo fazer – aprender e pela
atenção, possibilitando homens e mulheres vivenciarem memorável tempo de
aprendizagem.
Para os filhos de santo do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun, o primeiro passo para
conhecer a mística do processo iniciático é conhecer as propriedades da sua
entidade protetora para, assim, satisfazê-la e ganhar sua proteção. Em relato a um
iniciado sobre uma receita de sua divindade protetora, o pegìgán Hunsijé demonstra
o quanto é poderoso esse elo entre a comida e o sagrado.
Sendo assim, os filhos de santo devotam horas do seus dias para cuidar de
suas oferendas cotidianas, corriqueiras, afim de apreender como agradar , por meio,
dos alimentos ofertados, seus voduns.
O tempo dedicado aos saberes praticados em uma cozinha de santo exige
não somente a compreensão de tempo cronológico, como também apelar para a
análise de outras categorias de temporalidade que suportem o complexo fenômeno
decorrente dessas práticas.
A variação de tempo no candomblé é muito complexa. Quando se fala de
idade de cabeça, via de regra, compreende-se o tempo de iniciação. Mãe Jokolosy,
no entanto, diz que segundo seus mentores divinos,
processo conta com a presença dos filhos de santo e de pessoas externas se o ritual
em questão for um trabalho ou festejo.
No início da tarde, geralmente, depois do almoço o sangue dos animais
(Ohun) é ofertado aos deuses, assim como os órgãos vitais são oferecidos às
divindades. A carne do animal é devidamente preparada, cozida e oferecida a toda a
comunidade. A pele dos bichos de quatro pés é utilizada na confecção dos
atabaques. A matriarca explica que o sangue vermelho está relacionado diretamente
às coisas quentes e ao movimento do fogo.
O sangue tem um papel importante na cozinha votiva do candomblé. Sua
presença tem simbologia primordial nos rituais das oferendas destinadas aos
Voduns.
Quadro 5 – Sangue dos Três Reinos
SANGUE SANGUE
SANGUE VERMELHO
BRANCO PRETO
Sêmen, saliva,
REINO Corrimento menstrual,
hálito, secreções, Cinzas de animais
ANIMAL sangue humano ou animal
plasma (de caracol)
Azeite de dendê, pó A seiva, o sumo, o
REINO O sumo escuro de
vermelho de urucum, mel álcool e as bebidas
VEGETAL certos vegetais
(sangue das flores) brancas
REINO Sais, giz, prata e Carvão, ferro e
Cobre e bronze
MINERAL chumbo outros
Fonte: Chagas (2014, p. 82).
O mesmo ocorre quando o vodum exige por meio dos búzios um “narruno” –
uma obrigação, que, de acordo com o Tasén, pode variar de santo para santo. A
máxima “gosto não se discute” é um pressuposto de grande relevância na comida
votiva, e suscita não só o paladar como também os preceitos respeitados em cada
um dos rituais e que podem variar também de roça para roça.
Segundo me disse um vodunsi (filho de santo) em transe, virado em uma
entidade “erê” no momento em que ocorria um “narruno”:
Cabe lembrar que boa parte dos conhecimentos descritos na cozinha, pelos
filhos de Mãe Jokolosy, não vieram de teorias científicas ou dos conteúdos
desenvolvidos em espaços escolares, ou centros universitários, apesar de que a
matriarca exige de seus filhos mais jovens que continuem seus estudos para que
assim tenham mais oportunidades na vida.
Para a sacerdotisa, esses conhecimentos expressam toda a grandeza dos
saberes culturais afro religiosos, saberes populares, oriundos de uma forma mais
ampla de educação, e que ela descreve abaixo, comparando ao trabalho do
pedagogo,
20
Professor de Antropologia Social da Universidade de Aberdeen Tim Ingold discute a
cultura em relação à aprendizagem e é uma referência importante na Antropologia
internacional. Ingold acentua a importância do desenvolvimento de habilidade na vida
social, inclusive no aprendizado da antropologia.
134
O relato de Mãe Jokolosy aponta para dois sentidos. O primeiro que, apesar
do acanhamento, ela possui consciência de seu papel de educadora e orgulha-se de
estar prestando um serviço em prol da tradição cultural do candomblé Savalúano.
Outra percepção é de que tal papel depende de uma visão mais abrangente de
educação, que considere o processo educativo como uma prática cultural, não
estática e como uma ponte onde aquele que educa não deixa de exercer o papel
também de educando.
Em sua obra “Da transmissão de representações à educação da atenção”,
Ingold (2010) levanta uma questão que norteia toda essa análise: “como cada
geração contribui para o conhecimento da seguinte?” O antropólogo nega a visão
reducionista de alguns estudiosos de que o ato de educar seja meramente de
transmissão. Seu respaldo teórico se assenta, sobretudo, na prática da atenção,
onde o ato de educar se processa pela experiência cotidiana, pela observação e
pela apropriação dos valores culturais, de geração a geração.
Na perspectiva da educação por transmissão, a cultura, ou melhor dizendo,
seus significados, seriam repassados, mas não habilitariam as futuras gerações a
seus usos. Seriam bens herdados sem o benefício das naturais contribuições
emergidas no contexto particular de cada geração. Na ausência da “educação da
atenção” o que se aprenderia seriam conhecimentos abstratos e não teriam uma
praticidade real em suas vidas (INGOLD, 2010, p. 139).
A reticência de alguns pesquisadores em relação a uma abordagem mais
ampla de educação existe em razão de um preconceito enraizado em séculos de
135
escravas, pois o processamento das comidas para a senzala era um dos raros
momentos de descontração do grupo.
A apropriação dos pratos africanos pelos integrantes do terreiro Xwe Ace Kpo
Sohun demonstra que por meio destes conhecimentos culinários a casa de Mãe
Jokolosy mantém vestígios dos modos de alimentação africanos Jejes e
reconfigurações desta matriz.
Não é de hoje que a alimentação vem sendo usada pelos herdeiros afro
religiosos. Ainda no período colonial e mesmo durante o império essa estratégia
vinha sendo usada, pois segundo Kpédjígàn Hunsijé comida e música aparecem
lado a lado das estratégias políticas para a promoção da convivência pacífica dos
grupos étnicos obrigados a coexistir pacificamente no período da escravidão
africana. O Kpésjigàn relata que no período colonial:
escolar. Não que esta seja antagônica aos saberes cotidianos, mas é diferenciada
na formalidade a que se propõe (BRANDÃO, 1993). Logo no primeiro capítulo desse
livro intitulado Educação? Educações: aprender com o índio, Brandão nos transporta
para o espaço da educação indígena, através de uma carta resposta dos índios
norte-americanos, que recusaram um convite dos governantes do estado de Virgínia
e Maryland para que enviassem jovens de sua tribo para estudar fora com os
colonizadores. Aqui o trecho da carta:
travada, segundo ela é preciso está conectado com o pensamento da vitória a que
se quer obter , por isso durante a ingestão da comida, deve-se mentalizar os
objetivos à conquistar, para que os Voduns estejam mais garridos no proposito a ser
alcançado. O alimento segundo relata a matriarca do terreiro,
Mãe pequena conta que a primeira lição que um iniciado aprende é a prezar a
humildade e respeitar os mais velhos e a forma que isso lhe é ensinado vem por
meio da comida. Trancado em um quarto, o iniciado não pode fazer nada sozinho,
tem que ser limpo, ter os cabelos raspados, não pode comer sozinho e nem mesmo
escolher seus horários de alimentação. Tudo isso para que ele aprenda que
ninguém é autossuficiente e que até o mais insignificante ser é necessário para sua
sobrevivência.
O iniciado, quando alimentado por um dos irmãos de santos, passa a
condição de seu filho e renasce para uma outra vida Seus primeiros fundamentos
nascem de um simples ato biológico o ato de comer, mas ganha proporções
gigantescas quando verificadas a partir dos significados dessas simples ações.
Nem sempre os educandos savaluanos são conscientes do processo
educativo a que são submetidos, mas mesmo sem a consciência do objetivo a que
se propõe o aprendizado ocorre. A proximidade com o cotidiano da cozinha da casa
Xwe Ace Kpo Sohun não só confirma que a culinária votiva está sortida de saberes,
como é possível visualizar um complexo e peculiar processo educacional, emergido
nas relações norteadas durante a feitura desses alimentos.
A necessidade de manter a tradição não é um capricho. Na verdade, ao optar
pela forma tradicional dos alimentos Mãe Jokolosy aproxima sua comunidade ao
máximo de sua história. Entender de onde vem seus credos é importante para
consolidar a identidade que esses sujeitos possuem com sua religião. E comer como
140
Sua expressão foi um misto de curiosidade e receio pelo que as senhoras pudessem
ter dito. Nesse momento compreendi que nem tudo poderia ser dito a mim.
Esta situação proporciona o entendimento que o aprendizado das iniciadas na
comida de santo é constante e respeita regras de hierarquia e convívio social, pois
quando sozinha com as outras ajudantes, a dunúgàn parecia ser a autoridade da
culinária do terreiro, ou seja, era ela que fazia o papel de educadora naquele
momento. No entanto, assim que o Kpédjígàn ou a mãe Jokolosy entravam na
cozinha, ela imediatamente retornava à condição de educanda, a espera de mais um
ensinamento.
Assim, instruídas a partir de uma educação na tradição alimentar
afrorreligiosa, que contempla a cultura candomblecista e suas práticas sociais, as
senhoras da cozinha, aprendiam e ensinavam conhecimentos através da comida,
que iam ao encontro de suas origens ancestrais, do amor e devoção aos seus
deuses e, sobretudo, em direção a preservação do candomblé. Brandão (2002)
aponta para uma pedagogia do sagado, responsável pela sobrevivência e
preservação de padrões culturais e identitários, transmitidos de geração a geração,
permeada de valores morais, normas, comportamentos, crenças e linguagem
própria.
Essa pedagogia do cotidiano difere da pedagogia moderna escolacentrista,
pautada na monocultura do saber, enaltecendo a visão científica do processo
educacional, e que não alcança a diversidade de saberes existentes no mundo. É o
caso daqueles aprendidos no cotidiano, como a educação que permeia os hábitos
alimentares afrorreligiosos.
O processo educativo pela educação da atenção, tem a função de habilitar as
futuras gerações para à perpetuação de seus hábitos. Tal aprendizagem,
fundamenta-se também na filosofia de vida e nos saberes tradicionais de
comunidades locais, configura-se em forma de reação a processos expropriatórios e
da destruição de suas crenças e modo de vida. Pressupõe o rompimento com a
monocultura que engessa o saber e o aprisiona em uma caixinha.
144
REFERÊNCIAS
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das Áfricas, 2003.
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música sacra afro-brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Ao Livro Técnico, 2009.
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Letras, 2001.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 28. ed. São Paulo: Brasiliense,
1993. (Coleção Primeiros Passos).
GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
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anthropocentric approach. New York: Springer, 2008.
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LUCA, Taissa Tavernard de. Devaneios da memória: a história dos cultos afro-
brasileiros em Belém do Pará na versão do povo-de-santo. 1999. Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em História) - Universidade Federal do Pará,
Belém, 1999.
MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Daquilo que se come: uma história
do abastecimento e da alimentação em Belém (1850-1900). 2009. Dissertação
(Mestrado em História Social da Amazônia) - Universidade Federal do Pará, Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social
da Amazônia, Belém, 2009. Disponível em:
http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/4581. Acesso em: 11 ago. 2017.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
SANTOS, Daniela Cordovil Corrêa dos. Religiões de matriz africana no Pará: entre a
política e o ritual. PARALELLUS, Recife, v. 3, n. 5, p. 59-73, jan./jun. 2012.
SILVA JR, Carlos da. Ardras, minas e jejes, ou escravos de “primeira reputação”:
políticas africanas, tráfico negreiro e identidade étnica na Bahia do século XVIII.
Almanack, n.12, p.6-33, 2016. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/alm/n12/2236-4633-alm-12-00006.pdf. Acesso em: 11 ago.
2017.
SOUSA JÚNIOR, Vilson Caetano de. O banquete sagrado: notas sobre os 'de
comer' em terreiro de candomblé. Salvador: Atalho, 2009.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1992.
VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antônio da Silva; BARROS, José Flávio Pessoa de.
156
Identificação
Idade:
Sexo:
Cargo na religião:
Roteiro
1) Para você, o que é o Candomblé Jeje?
2) Você sabe a origem de sua religião?
3) Para você, o que são os Orixás, Voduns, Caboclos?
4) Qual o papel da alimentação para o candomblé?
5) Conte como foi sua trajetória na religião.
6) Que importância ocupa a religião no seu cotidiano?
7) Na cozinha ou no terreiro quais são suas tarefas/obrigações? Você gosta de
desenvolvê-las? Por quê?
8) Existe hierarquia no candomblé? Qual a hierarquia que você ocupa na cozinha
de santo?
9) O que é a comida do axé para você?
10) O que são os preceitos e tabus na culinária candomblecista?
11) Como foi sua iniciação? O que foi preciso para você iniciar? Como foi o
processo?
12) Você optou por cozinhar? O que lhe levou a isso?
13) Você aprendeu a cozinhar no terreiro? O que aprendeu? O que não aprendeu?
Como aprendeu?
14) Quando está cozinhando, como descreveria o que vive e sente?
15) Quais os saberes que a comida te proporcionou? O que mudou?
16) Para você, o que é educação? Acha que existe educação ou formas de
ensinamentos na comida sagrada?
Sim ( ) Não ( ) Se sim, como ocorre? Se não, por quê?
17) O que você já aprendeu na cozinha de santo (rituais, crenças, práticas,
mitologias, orações, danças, doutrinas)? Como aprendeu? Essas aprendizagens
lhe foram importantes no seu dia-a-dia?
18) A comida possui simbologia? Quais?
160
ANEXO A – GLOSSÁRIO
A
Agέ (Agué): vodun das plantas, folhas e da caça.
àgbò: carneiro
ako/henu: família, linhagem familiar, clã.
amà: folha, planta.
àtín: árvore
àtinmévodun: vodun que vive na árvore.
àtínsá: árvore onde está o vodun.
Avimaje: vodun da família de Sakpata.
àyǐ: terra
Àyǐzàn: vodun da memória ancestral (jeje-mahi). Senhora dos mercados; esteira da
terra.
Azaká: vodun originário de Savalu. Caçador.
Azànsú/Azònsú: um dos nomes de Sakpatá; homem da esteira/homem doente.
Azawani: vodun da família de Sakpatá.
Azli (Aziri): vodun das águas, representada como uma serpente.
B
Bafono Deká: vodun representado por uma cobra com cabeça de crocodilo.
Bakonò: sacerdote de Fá, o mesmo que babalawô para os nagôs.
Bakuxé (lê-se bakurrê): prato de barro.
Bosalabe: vodun feminino da família de Dan, Irma de Bosuko.
Bosuko: vodun da família de Dan.
D
Dagbosi aó: pedido de bênção do iniciado cujo vodun pertence à família de Hevioso,
para um sacerdote de outra família.
dahún: conjunto de três tambores.
Derrirró (grafa-se ɖɛxixò): ato de rezar.
Dan: serpente mitológica
dàn: serpente, cobra
Danbadahwedó/Dambala: grande serpente (vodun).
162
E
ekidi: acaçá vermelho.
Eku: a Morte (divindade).
Etemi: alguém com mais tempo de “santo”. O mesmo que egbomi para os nagôs.
Ewá: vodun feminino das famílias de Dan e Sakpatá.
F
Fá/Gbadú: divindade da advinhação.
Fáká: cabaça para consultar Fá.
G
Găyăkú: um título sacerdotal do jeje-mahi.
gannyikpén (gaimpê): Ogã auxiliar do kpénjígan
gankutó: ogã responsável pelo rito aos ancestrais e por Ayizan.
gantó: ogã que toca o instrumento gan.
Gbadé: vodun da família de Hevioso.
gbé (bê): voz, fala, linguagem, língua.
gbέ (bé): vida.
Gŭ: vodun dos metais e da guerra.
H
Henugán: chefe de uma família.
hùn: o mesmo que vodun
hún: ato de o vodun dançar; “tomar hún”.
hŭn: tambor.
hùndoté: o mesmo que abiasé para os nagôs.
Hùngán: sacerdote ou sacerdotisa de vodun, espécie de “avô ou avó de santo”
Hùngbónò/Hùngbónà: sacerdote ou sacerdotisa do vodun (“pai ou mãe de muitos
voduns”)
Hùnsó: cargo que designa a mãe pequena.
163
J
Jĭ-vodun: vodun do céu.
Jwá: rito semelhante ao bori dos nagôs.
L
Legbá: divindade análoga ao orixá Exú dos yorubás.
Lisá: divindade co-responsável pela criação.
Lŏko: “Chlorophora Excelsa”. Esta árvore é frequentemente utilizado como um apoio
para os voduns. Vodun Loko – divindade que habita dentro da árvore, senhor da
memória ancestral.
M
M jitɔ: sacerdote ou sacerdotisa cujo vodun pertence à família de Dan.
N
Nănà Búlúkú: divindade originária de Dassa-Zume.
nă/naé/năjinò/nò: mãe.
O
osó: cavalo.
Ògŭ/Ògŭn: vodun dos metais e da guerra (Gŭ).
Olisá/Olisasá: vodun Lisá (jeje-mahi)
P
Parará/Kpadadá/Pararaligbú: vodun Sakpatá feminino.
S
Sakpatá: divindade da varíola e da terra. Rege todas as enfermidades de pele.
Sògbó: Grande Raio – vodun da família do raio.
164
T
ta: cabeça
tasén: cultuar a cabeça; o mesmo que borí para os nagôs.
tògbósì: Esposa (ou mulher) da água em grande quantidade (Azli Tògbósì).
Divindades infantis da realeza do Dahomey.
To-vodun: vodun que protege aldeias.
Tò-vodun: vodun aquático.
tɔ-vodun: vodun patriarca.
V
Vodúnsén: cultuar o vodun.
Vodúnxwé/kwé: casa onde se cultua o vodun.
Vodúnsì: pessoa consagrada ao vodun.
W
we: você.