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|e d llsP * fAPSSP
Neste final de século, quando as ins
tituições e o próprio mapa geopolítico
do mundo estão em xeque, procurando
uma forma de se enquadrar naquilo que
se pode chamar de “Nova Ordem” mun
dial, é um exercício salutar questionar-
se quanto ao pensamento político
contemporâneo e voltar os olhos para
aqueles pensadores clássicos que fize
ram da análise social sua pedra de
toque. Afinal, foram homens como
Tocqueville, Hume, Locke, Hobbes e
Maquiavel, por exemplo, que lançaram
os fundamentos daquilo que hoje pode
mos chamar de “Ciência Política”.
Dessa forma, é mais do que bem-
vinda uma publicação como esta, que
trata exatamente dos clássicos do pen
samento político. Não se trata de uma
CIDADE DE SÃO PAULO
antologia de textos escritos por aque
les pensadores que, desde o século Barros
Copyright © 1998 by Célia Galvào Quirino, Cláudio Vouga e Gildo Marçal Brandão
Clássicos do Pensamento Político/ organizadores Célia Galvào Quirino, Cláudio Vouga, Gildo
Vários autores.
ISBN 85-314-0482-7
98-4600 CDD-320.5
Direitos reservados à
A presen ta çã o
A L e it u r a d o s C l á s s ic o s
C láudio Vouga
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P o l it é ia e V ir t u d e :
As O r ig e n s d o P e n s a m e n t o R e p u b l ic a n o C l á s s ic o
Mário M iranda F ilho
23
A É t ic a F e r o z d e N ic o l a u M a q u ia v e l
Robert C hisholm
51
A I d e o l o g ia do L e v ia t à H o b b e s ia n o
J oão Paulo M onteiro
77
7
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
) L o c k e , L i b e r d a d e , I g u a l d a d e e P r o p r ie d a d e
\ Rolf K untz
91
I R e iv in d ic a r D ir e it o s S e g u n d o R o u s s e a u
M ilton M eira do Nascimento
121
H u m e e o D ir e it o N a t u r a l
C ícero A raújo
135
A P s ic o l o g ia d o A g e n t e E c o n ô m ic o
em D a v id H u m e e A d a m S m it h
E duardo G ianetti da F onseca
169
T h o m a s P a in e R e v is it a d o
M odesto F lorenzano
191
C o n j u n ç õ e s C r ít ic a s da D e m o c r a t iz a ç ã o :
as I m p l ic a ç õ e s da F il o s o f ia da H is t ó r ia d e H e g e l
pa ra u m a A n á l is e H is t ó r ic a C o m pa r a t iv a
K urt von M ettenheim
211
T o c q u e v il l e :
J a R e a l id a d e da D e m o c r a c ia e a L ib e r d a d e I d e a l
Célia Galeão Q uirino
^ 247
T e o r ia P o l ít ic a e I n s t it u c io n a l iz a ç ã o A c a d ê m ic a
G ildo M arçal B randão
271
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APRESENTAÇÃO
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C lássicos do P ensamento P olí ti co
10
A presentação
O S ORGANIZADORES
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— — ----------------------------------------------------------------------------------------------------------
__ — —
A LEITURA DOS CLÁ SSIC O S
C láudio Vouga*
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C lássicos do P ensamento P olí ti co
2. T. S. Eliot, “What is a Classic?” On Poetry and Poets, Lodon, Faber and Faber Ltd., 1956, p. 69.
3. ítalo Calvino, Por que Ler os Clássicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1993 (1991), p. 2.
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A L eitura dos C lássicos
4. Niccolò Machiavelli, Tulte le Opere, Florença, Sansoni Editore, 1992, pp. 1158-1160
5. Hobbes, Leviatã, cap. XIII.
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dalo à primeira leitura, então, se todos são lobos, o que somos nós?
Depois vamos dando razão ao poeta “o homem que nesta terra miserá
vel vive entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera”.
Esta urgência de perceber claramente o lugar (quem, quando, como, por
quê) de onde se está lendo é ressaltada por Ítalo Calvino “Para poder ler
os clássicos, temos de definir ‘de onde estão sendo lidos’, caso contrá
rio tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal”6.
No já citado ensaio, para responder à questão “o que é um clás
sico” Eliot relaciona a idéia de clássico à idéia de maturidade e diz:
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C lássicos do P ensamento P o lí ti co
8. F. von Hayek, “A Pretensão do Conhecimento”, Humanidades, vol. II, n. 5, p. 47, out./dez., 1983.
9. ítalo Calvino, op. cit., loc. cit.
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A L eitura dos C lássicos
a de manter a parte da cultura total da sociedade a que pertence essa classe (porque)
numa sociedade saudável, a conservação de um determinado nível de cultura benefi
cia não somente a classe a que pertence, mas ainda a sociedade como um todo. O
conhecimento desse fato impede-nos de supor que a cultura de uma classe “ superior”
seja algo de supérfluo para a sociedade como um todo, ou para a maioria, e de supor
que seja algo que deveria ser partilhado igualmente por todas as outras classes.
10. Henri Peyre, “Le classicisme”, Histoire des littératures, vol. II., Littératures occidentales,
Paris, Gallimard, 1956, Encyclopédie de la Pléiade.
11. John Adams, “On Natural Aristocracy”, The Portahle Conservative Reader, Russel Kirk
(ed.), Penguin Books, 1982.
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Deveria, também, recordar à classe “superior”, se é que existe uma classe superior, que
a sobrevivência da cultura na qual está particularmente interessada depende da sanida
de da cultura do povo12.
O tipo de teoria política que surgiu nos tempos modernos preocupa-se menos
com a natureza humana tendendo a tratá-la como algo que pode ser sempre adaptada
a qualquer forma política que seja considerada mais desejável. [...] Só se ocupando
da hum anidade em termos de multidões tende também a se separar da ética; ocupan
do-se apenas com o recente período da história durante o qual a humanidade pode ser
apresentada mais facilmente como tendo sido governada por forças impessoais, reduz
o estudo adequado da humanidade aos últimos duzentos ou trezentos anos da história
do hom em 14.
12. T. S. Eliot, “A Classe e a Elite”, Notas para a Definição de Cultura, Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1965 (1948) cap. 11, pp. 35-36.
13. T. S. Eliot, op. cit., p. 108.
14. T. S. Eliot, op. cit., p. 89.
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A L eitura dos C lássicos
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r
17. Jorge Luís Borges, El Libro de tos Seres Imaginários, Barcelona, Bruguera, 1981 (1978).
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h.
POLITÉIA E VIRTUDE: AS O R IG EN S DO
P E N SA M E N T O R E P U B L IC A N O C LÁ SSIC O
* Conferência proferida no 1EA/USP, no dia 24 de junho de 1996. Mário Miranda Filho é pro
fessor do Departamento de Filosofia da FFLCH/USP.
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Politéia e V i r t u de : A s O rigens do P ensamento R epubli cano C lássico
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r
C lássicos do P e n s a m e n t o P o l It i c o
até que surge uma controvérsia entre pai e filho. Este elogia a nova
poesia de Eurípides, destacando uma cena de incesto entre irmãos.
Mal o pai se recupera do choque e o filho se põe a surrá-lo. Pior,
demonstra, graças à retórica, que o que faz é justo. Temos então a
catástrofe: arrependido das lições que tomou e de suas nefastas conse-
qüências, o pai amaldiçoa-se, volta-se passionalmente contra Sócrates,
reconhece a existência de Zeus e dos outros deuses e deita fogo ao
Pensatório. Justifica sua ação como punição à impiedade do mestre.
Mas, é evidente que o real motivo de sua fúria não foram as lições de
Sócrates ou sua impiedade e sim o fato de que atribui a Sócrates a res
ponsabilidade do ensinamento que facultaria ao filho espancar a mãe.
Ele talvez pensasse com horror que o filho que bate na mãe bem pode
ría ter relações incestuosas com ela. Diante deste horror ele recua para
a dupla esfera da família e da religião. Vejamos mais de perto o senti
do deste recuo. A pólis, diz-nos Aristóteles, é logicamente primeira em
relação à família, pois é a finalidade desta. Mas a família é cronologi
camente primeira em relação à pólis: diz-nos a Ética a Nicômaco
(L.VII, 1162a) “A família é anterior à pólis e mais necessária do que
esta”. Entretanto, a família necessita da pólis para se desenvolver em
segurança e é a proibição do incesto que obriga a família a transbor
dar para a esfera mais ampla da pólis. Esta proibição é como que a
ponte natural entre ambas. Não admira pois a indignação de •
Estrepsíades diante da ameaça do incesto. A percepção de que o aban
dono da religião oficial - que lhe permite furtar-se aos credores - pode
entretanto acarretar concomitantemente a legitimação do incesto age
sobre ele como uma súbita iluminação. É só neste momento, quando
sente na carne as conseqüências de sua transgressão, que ele se dá
conta da relação sistemática em que se encontram as esferas da famí
lia, da cidade e da religião. O contato do obtuso Estrepsíades com a
filosofia não poderia ser mais frustrante: não apenas não o livrou dos
credores, como às suas penas acrescentou a subversão da vida familiar.
Inútil e perigosa, ela bem merece a seu ver o calor das chamas.
Aproximando os extremos, a soberba da razão do filósofo e a irracio
nalidade do simplório cidadão, Aristófanes nos faz rir. Mas basta lem
brarmos das mal-humoradas advertências de Meletos a Sócrates no
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u m a c o n s t it u i ç ã o c u ja f in a l id a d e é a m a io r lib e r d a d e h u m a n a f u n d a d a s o b r e le is e m q u e
id é ia n e c e s s á r ia q u e d e v e s e r v ir d e b a s e n ã o s o m e n te à s g r a n d e s lin h a s d e u m a c o n s t i
t u iç ã o c iv il, m a s a in d a a to d a s a s le is.
É esta idéia que Platão designa como politéia, termo grego que
dá nome à obra supra mencionada e que Cícero traduziu para o latim
res-publica. A politéia não se confunde com nenhum dos regimes reais,
em particular não se confunde com os dois regimes dominantes na
Grécia Clássica, a oligarquia e a democracia. Toda pólis é presidida por
leis e estas são a expressão do grupo hegemônico da cidade. Cada pólis
se caracteriza, portanto, pela qualidade de suas leis, ou seja, pelo seu
regime políticos este. pode ser o regime da maioria ou de alguns ape
nas, democracia ou oligarquia. O problema dos regimes concretos é
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C lássicos no P ensamento P o lí ti co
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nô-lo diz através de um jogo de palavras: Platão faz a lei, nomos, deri
var de noüs, inteligência (7í/.714a). Ora, há no mundo tantas espécies
de leis quanto de regimes dos quais elas dependem. Há basicamente
três regimes puros: a monarquia, a aristocracia e a democracia. Mas no
mundo histórico concreto elas se apresentam diversamente: assim a
Lacedemônia possui algo da tirania na instituição dos éforos, mas tam
bém de uma democracia pelo sorteio destes mesmos éforos. Mais, tem
algo de uma aristocracia, um Senado composto de anciãos e por fim,
de uma monarquia graças à sua dupla realeza. A Lacedemônia se des
taca, pois, como um modelo possível para a fundação de um novo
Estado graças justamente a este seu caráter compósito. A vantagem da
Lacedemônia emerge sobre o pano de fundo das deficiências dos regi
mes enumerados. É que, na realidade, estes regimes não são regimes
(politéia) no rigor do conceito, mas como lemos em Leis: “administra
ções urbanas, onde a cidade está sob o domínio de déspotas, uma parte
escravizada à outra, de modo que cada regime recebe o nome da auto
ridade que nela reina como déspota”. Platão repete aqui a análise, refe
rida acima à propósito da república e que tanto impressionara Kant.
Apenas a análise é agora mais detalhada e vai ao cerne do conceito de
politéia: “não são, afirmamos agora, politéias, nem leis corretas aque
las que não são feitas no interesse comum de toda a cidade. Os que se
beneficiam destas leis excludentes designamos como sectários, mas
não como cidadãos e a justiça que alegam possuir, vã pretensão. Ao
proclamarmos isto, nossa intenção é a seguinte: não deferir os cargos
em tua cidade nem à riqueza, nem a nenhum bem deste gênero, seja ele
a força física, o tamanho, ou o nascimento [...]” (Id. 715bc). Se diante
dos regimes facciosos, excludentes, a Lacedemônia se mostra superior,
tal superioridade se deve antes de mais nada não à pureza de seu regi
me, mas ao caráter compósito de suas instituições políticas. A verda
deira causa de seu elogio - sem prejuízo das necessidades retóricas do
diálogo - é negativa: não sendo nem isto nem aquilo ela tende a ser
mais inclusiva, menos excludente. O regime lacedemônio é, enfim,
digno de figurar como paradigma porque é um regime misto!
Certamente o texto que estamos analisando é um dos que deram nasci
mento à célebre Miragem Espartana (título do livro em que F. Ollier
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r -
E c la r o q u e to d a s a s c o n s titu iç õ e s q u e tê m e m v is ta o in te r e s s e c o m u m s ã o d e
f a to c o r r e ta s , s e g u n d o a j u s t i ç a a b s o lu ta ; a q u e la s q u e v is a m a p e n a s o in te r e s s e p r iv a
d o d o g o v e r n a n te s ã o d e f e i t u o s a s e s ã o d e s v io s d a s c o n s titu iç õ e s c o r r e ta s : e s ta s s ã o
c h a m a m o s r e a l e z a a s m o n a r q u ia s q u e v is a m o in te r e s s e g e r a l, a r is to c r a c ia o g o v e r n o d e
p o u c o s [...] s e ja p o r q u e o s m e lh o r e s d e tê m o p o d e r , s e ja p o r q u e s e u p o d e r v is a o m a io r
s e a e s te g o v e r n o o n o m e d e p o lité ia , n o m e q u e é c o m u m a to d a s a s c o n s titu iç õ e s .
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d a p e l a c l a s s e m é d ia e q u e a s c id a d e s c a p a z e s d e t e r u m a b o a c o n s titu iç ã o s ã o j u s t a m e n
t e a q u e la s o n d e e x is te u m a c l a s s e m é d ia n u m e r o s a e s e p o s s ív e l m a is f o r te d o q u e a s
o u tr a s d u a s [...] s e u p e s o fa z in c lin a r a b a la n ç a im p e d in d o q u e o s e x tr e m o s p r e v a le ç a m
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M u ito s i m a g in a r a m r e p ú b lic a s e p r i n c i p a d o s q u e j a m a i s f o r a m v is to s o u n e m
s e s a b e q u e e x is tir a m . H á u m a d i s t â n c ia t ã o g r a n d e e n tr e o m o d o c o m o a lg u é m v iv e e
c o m o d e v e v iv e r q u e a q u e le q u e r e j e i t a o q u e o p o v o f a z e m p r o l d o q u e d e v e fa z e r ,
tr a z - l h e a r u í n a m a is d o q u e a p r e s e r v a ç ã o [...].
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U m a c i ê n c i a a d e q u a d a d e v e t e r a n te s c o m o p r e o c u p a ç ã o a f o r m a ç ã o d a s p r e
f e r ê n c ia s . D e v e p r o c u r a r r e s p o n d e r a q u e s tã o d e c o m o p o d e m o s d e s e n v o lv e r , d e m o d o
d e m o c r á t i c o , u m a c o m p r e e n s ã o r a c io n a l d e n o s s o s p r o b le m a s [...]. E s ta s e r á u m a c i ê n
c i a p o lític a p r e o c u p a d a c o m a d e f i n i ç ã o e a im p le m e n ta ç ã o d o b e m - c o m u m ” . ( c f.
o f L ib e ra l D e m o cra cy , p p . 2 6 9 - 2 9 0 ) .
Referências Bibliográficas
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A ÉTIC A FERO Z DE NICO LAU M A Q UIA VEL 1
R o b e r t C h i s h o l m *
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C lássicos do P ensamento Po lí ti co
3. Para um comentário sobre os Discursos que argumenta que Maquiavel atinge, na verdade, o
máximo de seu maquiavelismo quando está sendo republicano, ver Mark Hulliung, Citizen
Machiavelli, Princeton NJ, Princeton Unive'rsity Press, 1983.
4. Ver Aristóteles, Política, V 10-11.
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A É ti ca F eroz oe N i c o l a u M aqu i a ve l
5. De tato, Hennan Colien, disse exatamente isso em Religion cj Reason ouI o f lhe Sources o f
Judaism, New York, Frederick Ungar Publishing Co., 1972, p. 160. Embora eu considere que
essa frase resume muito bem a minha interpretação da perspectiva normativa de Maquiavel,
devo ressaltar que Colien não a empregou no sentido em que a utilizo. Ele estava, na verda
de, argumentando a favor de leis morais universais como o fundamento de uma fé racional
na tradição kantiana. No entanto, desejo sequestrar a feliz frase de Cohen precisamente por
que ela expressa de forma tão sucinta a minha visão de Maquiavel.
6. De modo curioso, a visão de Maquiavel em O Príncipe é precursora da “ética de responsa
bilidade” de Weber. Onde Maquiavel acredita na lealdade a algo maior que os interesses pes
soais e os bons efeitos, Weber argumenta que o político que busca ser algo mais que um
demagogo ou um fanático deve ter fé em uma causa a que ele serve e um senso de sua res-
^ ponsabilidade “de responder pelos resultados previsíveis de suas ações”. Ver “Politics as a
> Vocation”, em H. H. Gerth & C. Wright Mills (eds.), From Max Weber: Essays in Sociology,
New York: Oxford University Press, 1958, pp. 117 e 120.
7. Ver Machiavelli, The Discourses, Leslie .1. Walker (trad.), New York, Penguin Classics (1970)
I 1983, I. 9, p. 132. Esse comentário ocorre na discussão de Maquiavel a respeito da necessi
dade de que fundadores ou reformadores de regimes possuam autoridade exclusiva para faze-
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rem o que considerarem adequado. A passagem diz: “É uma sólida máxima a que afirma que
. ações repreensíveis podem ser justificadas por seu efeito, e que quando o efeito é bom, como
era no caso de Rômulo, ele sempre justifica a ação. Pois censurável é o homem que usa de
violência para estragar as coisas, e não aquele que faz uso dela para consertá-las”.
8. Hulliung argumenta vigorosamente contra a consideração do problema das “mãos sujas” na
obra dc Maquiavel, mas o viés de seu argumento é que Maquiavel julga a violência, o logro,
a crueldade e a fraude como válidos em si mesmos. Ver Citizen Machiavelli, op. cit., caps. I,
2 e 7. Isso é ignorar tanto a insistência de Maquiavel no julgamento dos resultados das ações
quanto a sua distinção entre os efeitos da crueldade bem e mal-utilizada.
A É tica F eroz de N i colau M aqui avel
9. Ver Isaiah Berlin, “The Originality of Machiavelli”, Against lhe Ctirrent, New York, Penguin
Books, 1982, p. 58.
10. Sobre a inversão ou a perversão das virtudes clássicas e cristãs empreendida por Maquiavel,
ver ClitTord Orwin, “MachiavelIFs Unchristian Charity”, American Polilical Science Review
72 (1978), pp. 1217-1228. Ver também 1lulliung, Citizen Machiavelli, op. cit., pp. 189-218; e
Philip .1. Kain, “Niccolò Machiavelli - Adviser of Princes”, Canadian Journal o f Philosophy,
25, I, mar. 1995, pp. 33-55. Kain nota que a preocupação de Maquiavel com a eficácia polí
tica, para ser consistente, significa que “o príncipe não pode ser mais inflexivelmente compro
metido com a virlii do que com o próprio interesse e com a moralidade cristã”, e oferece a trai
ção de César Bórgia para com Ramiro de Orco como exemplo de uma ação, aprovada por
Maquiavel, que não honra nem a moralidade cristã nem a virtude pagã (Kain, p. 46).
11. Ver Leo Strauss, Thoughts on Machiavelli, Glencoe 111., The Free Press, 1958; Felix Gilbert,
“The Humanist Concept ofthe Prince and The Prince o f Machiavelli”, em History: Choice
and Commilmenl, Cambridge, Mass., Belknap Press, 1977, pp. 91-114; e Allan II. Gilbert,
Machiavelli s Prince and its Forerunners: The Prince as a Typical Book de Regimine
C lássicos do P ensamento P olí ti co
Principum, New York, Barnes and Noble, 1968, especialmente o capítulo final, “The
Originality of The Prince".
12. Strauss, Thoughts on Machiavelli, op. cit., p. 9. Devemos notar que Strauss não se satisfaz
com simplesmente chamar Maquiavel de um “preceptor do mal”, mesmo que se declare estar
de acordo com esse julgamento. Inúmeros críticos de Strauss parecem ter lido apenas a pri
meira página da “Introdução”, em vez de se darem ao trabalho de ler o livro todo, que pro
cura apreciar “o que é verdadeiramente admirável em Maquiavel” através da “elevação sen
sata acima da [opinião simples]” (Strauss, p. 13). Para uma crítica de Quentin Skinner como
um desses leitores, ver Nathan Tarcov, “Quentin Skinnerís Method and Machiavelli’s Prince",
Ethics, 92, jul. 1982, pp. 692-709.
13. Curiosamente, o conselho que Maquiavel dá ao príncipe pode ser considerado como uma
inversão deliberada do conselho dado ao príncipe cristão em Sobre a Realeza, de Aquino. Os
mesmos termos surgem no conselho de Maquiavel sobre se é melhor ser amado ou temido,
sobre os perigos que os grandes representam para o príncipe e assim por diante. Ficamos nos
perguntando até que ponto o irônico senso de humor de Maquiavel tinha São Tomás de
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A É ti ca F eroz de N i c o i . au M a q u i a v e l
■< vidade prática. Por ser uma religião preocupada com a salvação da
alma, o cristianismo é centrado no crente individual; no entanto, para
Maquiavel, a alma individual é irrelevante, sua visão está firmemente
dirigida para este mundo, não para o próximo. O melhor que se pode
esperar na ausência da salvação é a segurança e a prosperidade aqui, o
que exige ação política, não piedade individual. Dessa forma, a virtu
de encorajada pelo cristianismo pode ser boa na medida em que enco
raja um homem a ser bom em sua vida privada e a devotar-se a algo
que não seja seu lucro individual, mas essa é uma virtude privada e por
isso muito perigosa para a idéia da vida política, para não dizermos
desastrosa na medida em que interfere nas necessidades do governo.
Por isso, as virtudes cristãs são inteiramente inadequadas para qual
quer um que se devote à vida política, seja ele príncipe ou cidadão.
Esse aspecto do pensamento de Maquiavel levou muitos comen
tadores a enxergarem em sua obra uma moralidade pagã de virtude
cívica no lugar da moralidade cristã. Está claro que para Maquiavel os
atos imorais nos quais um príncipe deve se engajar para manter seu
Estado têm um propósito que vai muito além do simples interesse pes
soal ou auto-exaltação. Ao descrever a condição da Itália á mercê dos
“bárbaros”, Maquiavel ataca os fracassos, a estupidez e a brutalidade
dos nobres italianos, condenando-os peremptoriamente como uma
classe predatória que atacou seu próprio povo em vez de governar com
sabedoria. A indolência e a cupidez dos príncipes italianos apresentam
um forte contraste com o governante hábil, consciente dos usos e dos
limites do poder, que parece ser a esperança de Maquiavel. A lição
parece ser que limitar o abuso do povo é um passo necessário para
assegurar o sucesso do príncipe. Entretanto, o problema do argumento
Aquino como alvo específico ao discorrer sobre a conduta adequada de um príncipe nos
capítulos XV a XIX. Ver St. Thomas Aquinas, On Kingship: Leller Io lhe King ofCyprus,
Gerald B. Plielan (trad.), I. Th. Eschmatin (org.), Toronto, Pontificai Institute of Mediaeval
Studies, 1982, especialmente Bk I, caps. iii e x. Algumas vezes menciona-se essa obra como
De Regimine Principum, mas de acordo com a introdução de Thalmatin isso se deve a uma
antiga confusão entre o tratado escrito por São Tomás e uma obra maior que o incorporava.
57
C lássicos do P ensamento P olí ti co
14. Hulliung devota uma grande parte de seu argumento a esse ponto. Ver Citizen Machiavelli,
op. cit.. especialmente caps. I e 6.
15. Em um artigo perspicaz James Arieti notou a singularidade das escolhas que Maquiavel faz
de figuras históricas e míticas, assim como do modo como ele lida com elas, mas dá força
demasiada ao argumento de que O Príncipe deve ter uma intenção irônica porque príncipes
não precisam ser instruídos nas artes dos príncipes. Dadas as mordazes críticas á nobreza ita
liana de seu tempo e a quantidade de terríveis fracassos que Maquiavel aponta, fica claro que
simplesmente estar na posição de príncipe não garante a alguém os meios para se manter
nessa posição, da mesma forma que um político democrático, em virtude de ter sido eleito,
não pode dispensar o aconselhamento político para se manter no poder. Ver Arieti, “The 4
Machiavellian Chiron: Appearance and Reality in The Prince", Clio, vol. 24, n. 4 (1995):
381-397. Para outros que têm o mesmo argumento ver G. Mattingly, “Maquiavelli’s Prince:
Political Science and Political Satire”, em D. L Jensen (ed ), Machiavelli: Cvnic, Pátriol or
Political Scientist?, Boston, Heath, 1960; e Mary G. Dietz “Trapping the Prince: Machiavelli
and the Politics of Deception”, American Political Science Review, 80 ( 1986): 777-99. A tra-
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A É ti ca F eroz de N i c o l a u M aqu i a ve l
rada por causa da grande importância que ele atribui à virtude e do elo
entre o seu uso do termo e suas conotações pré-cristãs. No capítulo VI,
“Dos principados novos que se conquistam pelas próprias armas e vir
tude”, Maquiavel estabelece a qualidade da virtude como a marca do
príncipe notável A literatura sobre o uso que Maquiavel faz do termo
virtit é extensa e não será tratada aqui, a não ser para marcar que ela
parece unânime em considerar que o sentido atribuído por Maquiavel
à palavra virtude, seja ele o que for, não é aquilo que a maioria das pes
soas identificaria com boa conduta. A noção de Maquiavel estã muito
mais próxima do termo latino virtus ou “hombridade e excelência”, ou
à idéia grega de arete, que pode ser traduzida como “a excelência espe
cífica de uma coisa”16. Esse significado de virtude não oferece nenhu
ma limitação imediatamente óbvia à conduta do príncipe, a não ser
para insistir que ele se comporte de acordo com a excelência específi
ca do principado, o que encerra a questão sem resolvê-la. Entretanto,
mesmo aqui há um vestígio de alguma limitação baseada na reputação
a ser adquirida pelo príncipe, o que se encaixa bem com a idéia de que
Maquiavel busca um retorno à moralidade pagã. No entanto, os exem-
dição de se atribuir a O Príncipe o propósito de revelar os métodos dos tiranos existe pelo
menos desde Rousseau, que elogia Maquiavel como um grande amigo da república e sugere
muitos pontos de concordância nos escritos de ambos sobre política. Ver O Controlo Social,
11.3,11.7,111.6,111.9,111.10.
16. Ver Hulliung, Citizen Machiavelli, op. cit., pp. 5-6, que nota a importância da “glória, da
grandeza e do heroísmo” no conceito romano e a ligação com o grego. Hulliung também nota
a diferença entre os dois, o significado grego estando muito mais “orientado para os resulta
dos”, o que Maquiavel sistematicamente obscurece, pp. 202-203. Ver também Allan Bloom,
The Republic of Plato, New York, Basic Books, 1968, linha 335b e n. 27. Bloom enfatiza o
amplo sentido de excelência no termo grego. Para um exemplo óbvio do sentido amoral atri
buído por Maquiavel à virtude ver a referência à virtude do arco de um seteiro (“conoscen-
do fino a quanto va la virtu dei loro arco”) no capitulo VI.
Para estudos do uso feito por Maquiavel do termo vim) ver I. Hannaford, “Machiavellis
Concept of Virtit in The Prince and the Discourses Reconsidered”, Political Stuclies, 20, 1970,
pp. 185-189; Russel Price, “The Senses of Virtit in Machiavelli”, The European Stuclies Review,
3, 1973, pp. 315-345; Neal Wood, “Machiavelli’s Concept of Virtit Reconsidered”, Political
Stuclies, 15, 1967, pp. 159-172. Vale a pena notar que muitos tradutores de Maquiavel comen
tam sobre a tarefa de traduzir virtit. Musa, por exemplo, usa doze palavras inglesas diferentes
para traduzir virtit e fornece uma útil lista dos exemplos em sua tradução (embora em minha
conta a sua lista ignore quatro usos do termo), The Prince: A Bilingual Eciition, pp. xi-xv.
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C lássicos do P ensamento P olí ti co
17. Francesco Sforza, que é citado conio uni exemplo contemporâneo do príncipe que sobe por
meio de suas próprias virtudes, é relegado a uma menção passageira no capítulo errado.
18. A última frase do capítulo diz: “Assim o duque errou nessa escolha, o que foi a causa de sua
ruína definitiva”. Um outro trabalho recente argumenta de forma similar a respeito de
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A É ti ca F eroz de N i c o l a u M aqu i a ve l
Bórgia, embora nesse caso se diga que Maquiavel o culpou por ter “tido - porém desperdi
çado - uma oportunidade de livrar a Itália dos males que a acossavam matando o seu pai, o
Papa Alexandre, e eliminando o Colégio de Cardeais”. John T. Scott & Vickie Sullivan,
“Patricide and the Plot in The Prince: Cesare Bórgia and Machiavelli’s Italy”, American
PolilicalScience Review, vol. 88, n. 4, dez., 1994, p. 887.
19. Ver, por exemplo, J. G. A. Pocock, The Machiavellian lUomenl, Princeton, Princeton
University Press, 1975, p. 152; Quentin Skinner, The Foundations o f Modem Polilical
Thought: The Renaissance, Cambridgc, Cambridge University Press, 1978, p. 119, pp. 137-
138; Berlin, “The Originality of Machiavelli”, op. cit., p. 52; Victor Anthony Rudowski, The
Prince: A Historical Critique, New York, Twayne Publishers, 1992, p. 65.
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20. Ed Andrew argumenta de forma convincente que Maquiavel enxergava Fernando como “não
apenas um hipócrita embusteiro, mas também como uma fraude miserável e inglória”, por
que ele promoveu sua reputação principalmente através da traição de seus próprios súditos.
“The Foxy Prophet: Machiavelli versus Machiavelli on Ferdinand the Catholic”, History and
Political Thought, vol. XI, n. 3, autumn 1990, p. 417. Allan Gilbert também argumenta que
Maquiavel não julga Fernando favoravelmente: Fernando é “condenado por Maquiavel por
sua expulsão dos mouros”, o que “envolveu a ruína de cidadãos inofensivos”, Machiavelli's
Prince and its Forerunners, p. 134. (N.B.: Embora Gilbert use o termo “mouros”, Maquiavel
fala dos “marranos”, judeus convertidos ao catolicismo. A importância dessa distinção está
no cerne do argumento de Andrew.)
Sobre as circunstâncias da tomada do poder por Agátocles e o papel dos grupos políticos oli-
gárquicos ver H. J. W. Tillyrand, Agathocles, Cambridge, Cambridge University Press, 1908.
Esse parece ser o único estudo histórico ou biográfico sobre Agátocles em inglês no século
XX, embora haja um estudo sobre o propósito retórico do relato feito por Maquiavel da car
reira de Agátocles: Victoria Kahn. “ Vinü and the Example of Agathocles in MachiavelIFs
Prince”, em Albert Russell Ascoli & Victoria Kahn (eds.), Machiavelli and the Discourse o f
Literature, Ithaca, New York, Comell University Press, 1993.
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A É tica F eroz de N i c o l a u M aqu i a ve l
2 1. Embora eu queira enfatizar que a ética política de Maquiavel tem como um de seus compo
nentes a lealdade a alguma instituição que vai além da fortuna pessoal, isso deveria ser dis-
tinguido da interpretação “republicana”ou “civico-humanista” contemporânea de seu pensa
mento como uma tentativa de resgatar o ideal romano de cidadania. Realmente, Maquiavel
valoriza a lealdade do cidadão para com a sua cidade e a idéia de sacrifício para o bem da
pátria, mas a sua concepção de política abraça um conceito de virtude e uma ética que vão
numa direção radicalmente diferente da tradição republicana ou humanista da qual ele é
caracterizado como continuador e promotor. A fraqueza do Maquiavel caracterizado por
aqueles que gostariam de transformá-lo em um republicano bem-intencionado, embora tal
vez teimoso, é que eles precisam ignorar não apenas O Príncipe, mas grande parte dos
Discursos, nos quais Maquiavel defende, entre outras coisas, o extermínio da nobreza, a
manipulação do vulgo pela elite, o uso seletivo de terror para inspirar a lealdade a uma causa,
a completa destruição dos inimigos, o logro, a fraude, entre muitas outras recomendações
desse tipo. Ver, por exemplo, Hannah Arendt, Between Past and Fature, New York, Penguin
Books, 1968, pp. 136-139; Isaiah Berlin, “The Originality of Machiavelli”, Against the
Current, New York, Penguin Books, 1982, pp. 25-79; J. G. A. Pocock, The Machiavellian
Moment, op. cit., nota 1"; e Quentin Skinner, Machiavelli, New York: Hill and Wang, 1981,
e The Fotmdations of Modem Political Thought: The Renaissance, Cambridge, Cambridge
University Press, 1978.
Esses autores enfatizam o compromisso de Maquiavel com a “liberdade pública” e com a res
tauração de ideais clássicos de glória a fim de representá-lo como um republicano humanista
defendendo o serviço à pátria. No decorrer desse esforço eles negligenciam o caráter subver
sivo do conseqiiencialismo de Maquiavel e obscurecem aquilo que torna Maquiavel ao mesmo
tempo moderno e friamente distante de nosso humanismo liberal. Ver o primeiro e o último
capitulo de Citizen Machiavelli de Hulliung para uma detalhada crítica de Arendt, Berlin,
Pocock e Skinner como esforços para contextualizar ou domesticar Maquiavel de forma tão
completa que ele se torna ou trivial ou inócuo. Embora eu concorde com a crítica que Hulliung
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C lássicos do P ensamento P o lí ti co
faz a Arendt e aos outros, discordo dele quando argumenta que Maquiavel tem um espírito
pagão ao valorizar a busca da glória pessoal e coletiva, mesmo no caso de um fracasso glorio
so. Considero que apesar de Maquiavel admirar algumas qualidades exibidas por um fracas
sado como César Bórgia, ele é extremamente impiedoso em seu julgamento precisamente por
que Bórgia foi um fracasso desastroso que não deixou nada atrás de si. Pela mesma razão,
Maquiavel é propositalmente ambíguo em seu julgamento de Agátocles: ele pode ter sido
grande, mas seus feitos não sobreviveram a ele, tornando suas ações injustificadas.
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P o d e m -s e c h a m a r d e b e m - u tiliz a d a s a s c r u e ld a d e s fe ita s d e u m a só v e z , p e la
n e c e s s id a d e d e g a r a n tir a p r ó p ria s e g u ra n ç a e q u e d e p o is s ã o a b a n d o n a d a s , m a s q u e se
d a d e s q u e , e m b o r a p o u c a s n o p r in c íp io , c r e s c e m c o m o te m p o e m v e z d e s e e x tin g u ire m .
l 22. A expressão “economia da violência” vem de Sheldon Wolin. De acordo com Wolin, a ques
tão é a limitação da violência através de sua aplicação sensata em circunstâncias extraordi
nárias e não a sua total eliminação, embora ele pareça subestimar o uso salutar que
Maquiavel atribui ao recurso ocasional à violência em tempos normais. No entanto, a cons
ciência de Wolin de que Maquiavel não é moralmente obtuso é bem-vinda. Politics and
Vision, New York, Little, Brown & Co., 1960, pp. 220-224.
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23. Npte-se que Alexandre, o Grande, não é enumerado entre os “mais ilustres homens”. Seu
sucesso foi por demais efêmero para ter bons efeitos. Também vale notar que Francesco
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C lássicos do P ensamento Po lí ti co
Sforza, que é mencionado juntamente com César Bórgia no cap. VII, não é tratado com deta
lhe, embora seja um exemplo de príncipe que se ergueu pela virtude, talvez porque, apesar
de possuir virtude suficiente para conquistar o poder, a ele também faltasse a ambição que o
colocaria entre os grandes príncipes.
24. A análise seguinte de O Príncipe, cap. VI, deve muito a duas palestras sobre o assunto pro
feridas pelo professor Clifford Orwin, na Universidade de Toronto, em 1989.
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de Maquiavel não é só que um profeta deve estar armado para ser hon
rado, mas que o “mais ilustre” príncipe deve ser um fundador e um
profeta se quiser introduzir novos modos e ordens, que lhe garantirão
uma glória duradoura através de seu legado.
A centralidade dos efeitos políticos no pensamento de
Maquiavel levou muitos comentadores a argumentarem que ele sim
plesmente rejeita a moralidade ou, pelo menos, separa a política da
moralidade. É verdade que Maquiavel não está interessado nas tradi
ções da filosofia moral, mas ele não está cego para a distjncãQjaatre
bem e mal. Em vez disso, o esquema avaliativo de Maquiavel está fun
dado num bem que ele vê ç.omq fundamental: o estabelecimento da
ordem temporal27. Esse ponto está no cerne da inovação de Maquiavel
- na realidade, da sua modernidade - pois faz dele um conseqüencia-
lista do mais alto grau, de um modo que é completamente incompatí
vel com as virtudes clássica ou cristã. O propósito da ética de
Maquiavel não é a salvação da alma ou o aperfeiçoamento do caráter,
nem mesmo a glória em si, mas a criação de algo que possa ser julga
do bom por causa de suas conseqüências humanas. O conseqüencialis-
mo de Maquiavel privilegia a reordenação criativa das circunstâncias
como o ato humano por excelência. Os efeitos dos novos modos e
ordens criados justificam os atos necessários para o seu estabelecimen
to - até mesmo Agátocles encontrou “algum remédio para o [seu] esta
do junto a Deus e aos homens”, devido ao seu uso eficaz da crueldade
para estabelecer a ordem em Siracusa (capítulo VIII).
O efeito de se colocar o ato criativo no centro da política é a
ênfase na natureza completamente autofundadora da política.
Maquiavel rejeita as tradicionais reivindicações universais da filosofia
moral fundadas na revelação, na convenção ou na Lei Natural. A polí
tica está isolada da moralidade tradicional, mas isso não garante uma
27. Note-se mais uma vez a significativa omissão de Alexandre, o Grande. Ele não é dado como
exemplo em O Príncipe, nem é citado como um homem de virtude; na realidade, recebe ape
nas uma menção passageira, mesmo no capitulo IV, “Por que Razão o Reino de Dario, Ocu
pado por Alexandre, não se Rebelou contra os Sucessores de Alexandre depois de sua
Morte”. A natureza etêmera das realizações de Alexandre lhe nega um lugar entre “os mais
ilustres homens” porque suas ações não tiveram efeitos que pudessem ser considerados bons.
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C lássicos do P ensamento Po lí ti co
licença absoluta para o príncipe. Mais que isso, deve haver um padrão
de conduta baseado na única atividade que resulta no bem em seus pró
prios termos: a política, a criação da ordem dentro de um mundo de
contingência28. Os julgamentos sobre a ação política não podem ser
y, -> feitos com base em padrões normativos universais; eles podem funda
mentar-se apenas na esfera que cria as condições dentro das quais as
normas podem fazer sentido. Nà medida em que a moralidade tradicio
nal regula a conduta privada dos cidadãos, ela é útil e, portanto, boa;
na medida em que ela interfere na realização de bons efeitos, definidos
em termos políticos, ela é ruim. Maquiavel oferece uma alternativa
radical para a moralidade tradicional, mas que não é a imoralidade, é
uma ética política.
Essa ética é particularista e dura; a política não fornece a base
para uma moralidade universal, apenas normas para as relações entre
os cidadãos e entre governante e governado. Há obrigações do prínci
pe e do súdito um para com o outro, entretanto o que quer que seja que
o príncipe deva-fazer por seus súditos (e o capítulo XXI, “O que um
Príncipe Deve Fazer para Ser Estimado”, parece uma adaptação do
conselho que os tiranos recebem de Aristóteles e Xenofonte, para que
moderem seu comportamento agindo mais regiamente29) o que quer
que seja que os cidadãos devam fazer por seu Estado, eles não devem
obrigações aos que vêm de fora.
Maquiavel não foi simplesmente um técnico da política do poder
ou um imoralista. Mais que isso, foi um filósofo político que formulou
uma ética para o campo da política. Apenas quem é moralmente obtu-
28. Stephen Seeskin discute as dificuldades que surgiram na filosofia moral uma vez que reivindi
cações de autoridade passaram a ser consideradas como inválidas, o que levou a “soluções”
para o problema da filosofia moral semelhantes às oferecidas por G. E. Moore e H. A Prichard,
que em essência tomaram a forma do reconhecimento das preferências de uma pessoa como
intuitivamente morais. Seeskin, “Does Secular Moral Philosophy Rest on a Mistake?”, Jewish
Philosophv in a Secular Age, Albany University of New York Press, 1990. Maquiavel, que, pelo
que sei, nunca foi considerado um filósofo moral, pelo menos tem a virtude de tentar funda
mentar os julgamentos sobre o bem e o mal em uma esfera da ação humana.
29. Ver Aristóteles, The PoUtics, livro V, caps. 10 e I I; e Xenofonte, Hiero em Leo Strauss, On
Tiranny, New York, The Free Press, 1991, (ed. revisada e ampliada), Victor Gourevitch e
Michael S. Roth (eds.).
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A É ti ca F eroz de N i colau M aqui avel -
so pode deixar de perceber que Maquiavel sabia muito bem que estava
aconselhando a prática de atos imorais, não simplesmente a análise
desapaixonada do mundo; mas ele também estava buscando estabele
cer uma ética política auto-suficiente, que pode ser considerada uma
moralidade “efetiva”, tyo inflexível conseqüencialismo de sua tentati
va repousam tanto o seu frio distanciamento em relação à nossa virtu
de liberal contemporânea quanto uma modernidade fundamental que é
por demais venenosa para as concepções tradicionais de moralidade
(sejam cristãs ou pagãs) para permitir que ele seja representado como
um retorno à virtude do passado.
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A ID EO L O G IA DO LEVIATÃ H O B B E SIA N O
J oão P aulo M o n t e ir o *
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na” têm que ser escolhidos pelo conjunto dos cidadãos, e os laços de
sangue ou as linhagens nobiliárquias de nada valem: só o consentimen
to no momento do pacto (capítulo XVII) pode legitimar a aristocracia
de modelo hobbesiano, pelo menos no caso de um Estado constituído
por “instituição” ou contrato (capítulo XVIII). Certamente que em tal
teoria pouco ou nada poderia haver que fosse de molde a seduzir os
ideólogos da aristocracia realmente existente, aquela nobreza que efe
tivamente, no tempo de Hobbes, exercia uma dominação ou pelo
menos detinha uma enorme parcela do poder social e econômico em
todos os países da Europa seiscentista.
Mas poderia a teoria política hobbesiana servir melhor os inte
resses do homem burguês? Tal interpretação encontra dificuldades se,
em vez de nos concentrarmos, como Macpherson, na caracterização do
estado de natureza por Hobbes, em vez disso procurarmos investigar a
função possível do poder político proposto pelo filósofo, e qual a rela
ção entre esse poder político e os interesses da burguesia. E possível e
legítimo verificar a presença, no texto do Leviatã, de uma figura à qual
se pode chamar o “homem burguês”, cujas atitudes e valores mais típi
cos podem ser resumidos em termos de “individualismo possessivo”,
ou seja, como típico comportamento burguês, centrado na aquisição
individual da propriedade. Mas a figura que se deixa facilmente des
crever nesses termos é muito mais a do homem natural hobbesiano, em
estado de natureza (capítulo XIII), do que o cidadão do Estado tal
como é concebido por Hobbes.
Esse homem natural pode talvez ter sido concebido à imagem e
semelhança do homem civil real da época de Hobbes, que assim teria
sido mascaradamente projetado pelo autor numa pretensa natureza ori-
. ginária do homem - ou num comportamento humano típico, sempre
possível em qualquer futuro imaginário onde viesse a faltar o poder
comum, o poder pacificador e unificador do Estado. O primeiro a suge
rir essa espécie de ilegítima projeção hobbesiana foi Rousseau, mas hoje
podemos dizer em termos mais marxistas do que rousseauistas, que
Hobbes atribuiu ao homem do seu estado de natureza muitos dos atribu
tos essenciais que nos habituamos a considerar típicos do burguês: ten
dência para a competição, para a dominação, para a exploração; tendên
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C lássicos do P ensamento P o lí ti co
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C lássicos do P ensamento P o lí ti co
Creio que nos devemos limitar a dizer que a proposta de Hobbes corres
ponde a um modelo de Estado burocrático, que poderia ter sido possível
no seu tempo, numa caracterização provisória admissível a título de ele
mento de discussão do alcance político-ideológico do Leviatã.
Como caracterizar essa posição de Hobbes, para além de uma
simples e genérica anotação do seu cunho autoritário e estatista?
Talvez ela possa ser vista como uma ideologia protoburocrática, na
medida em que o interesse real mente servido pela proposta hobbesia-
na - a menos que nós próprios sejamos partidários do absolutismo de
Hobbes, como melhor solução para contemplar o interesse “de todos”
- só poderia ser o interesse de um grupo muito especial, a saber, o inte
resse da intelligentzia encarregada da gestão do Estado. Essa camada
de intelectuais de classe média seria certamente aquela de onde sairiam
os membros do todo-poderoso conselho do Estado hobbesiano (capí
tulo XXV), que aconselharia o soberano em todas as suas decisões
mais importantes. Ou seja, se há uma ideologia em Hobbes, é um dis
curso de defesa dos interesses de uma camada da sociedade que é pos
sível definir como protoburocrática, dada a sua potencial capacidade
de exercer as funções de gestão de um Estado burocrático.
Não foi por acaso que ninguém na classe burguesa contemporâ
nea de Hobbes, ou do período posterior, se reconheceu na sua teoria
política, ou pensou em usá-la como instrumento ideológico - não mais
do que na classe aristocrática. Deste ponto de vista, bem sabemos quem
no mesmo século foi o preferido das camadas burguesas, ou seja, dos
diversos grupos sociais que tinham o seu destino ligado à sorte do capi
talismo: John Locke e as suas teorias liberais da obra Dois Tratados
sobre o Governo. Mas nem por isso se justifica a crença generalizada
de que a teoria hobbesiana nunca foi aceite por ninguém, pelo menos no
século XVII e no seguinte —uma convicção criticada há alguns anos por
Quentin Skinner (ver ref. bibl.). Mostra este intérprete, para além de
qualquer dúvida razoável, o infundado dessa convicção, indicando
como, logo nos anos de publicação das primeiras obras políticas hobbe-
sianas, a partir de 1639, e no restante do mesmo século, existiu toda
uma corte de seguidores das suas doutrinas, corte de importância numé
rica e grau de coesão suficientes para ter recebido uma designação cole-
84
A I deologi a do L evi atã H o b b e s i a n o
tiva - os hobbists, aos quais talvez devamos chamar, mau grado o arre-
vezado da expressão na nossa língua, os “hobbistas”, para marcar com
este sufixo “partidário e sectário” a diferença com aqueles filósofos
políticos, ou aqueles intérpretes, que são apenas ... hobbesianos.
A existência desse amplo grupo dos hobbistas revela, pelo
menos, a realidade de um espaço social onde se tornava possível e
aceitável a defesa da ideologia estatista - e nem burguesa nem aristo
crática - que permeia a obra política de Hobbes. Quem eram os hob
bistas? Eram escritores políticos radicais, que provocaram na sua
época fortíssimas reações de repulsa, notadamente entre os que ten
diam para posições mais conformistas e conservadoras, como por
exemplo os moralistas cristãos. Segundo o conde de Clarendon, em
1676, as doutrinas dos hobbistas e do próprio Hobbes teriam como
objetivo “derrubar ou subverter todos aqueles princípios de governo
que têm preservado a paz deste reino através dos tempos”. As doutri
nas hobbessianas consideradas mais perigosas eram a sua fundamenta-
ção da obrigação política apenas no cálculo do interesse próprio, e a
tese segundo a qual essa obrigação só se mantém enquanto e na medi
da em que o cidadão é efetivamente protegido pelo soberano, cessan
do quando deixa de o ser.
No tempo do próprio Hobbes, portanto, ser um hobbista era de
algum modo ser um subversivo. E mesmo depois da sua morte, em
1683, a Universidade de Oxford, um dos principais bastiões da tradi
ção e do conservadorismo, inclui as suas obras na lista dos livros con
denados por heterodoxia, sendo ele explicitamente acusado de ter
• inventado a afirmação de que “a autopreservação é a lei fundamental
da natureza, situando-se acima da obrigação para com todos os
outros”. Ainda durante a vida de Hobbes, em 1669, um dos seus parti
dários, Daniel Scargil, repudiou publicamente, perante esse outro bas
tião conservador que era a Universidade de Cambridge, as suas convic-
l ções hobbistas, nomeadamente a tese segundo a qual “todo o direito de
domínio assenta unicamente no poder” e “toda a virtude moral assen
ta unicamente na lei positiva do magistrado civil”.
Esses dados históricos indicam que os hobbistas faziam parte da
oposição ao poder monárquico da época e eram perseguidos como
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Referências Bibliográficas
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LO CKE, LIBERDADE, IGUALDADE
E PROPRIEDA DE
R olf K untz *
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L ockf ., L i b e r d a d e , I g u a l d a d e e P ropri edade
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C lássicos do P ensamento Po lí ti co
a. não há por que supor uma hierarquia natural entre os homens, nem
pela paternidade, que só diferencia os indivíduos transitoriamente,
na relação familiar, nem por qualquer outro título;
b. não há por que afirmar um vínculo entre a propriedade e o direito de
governar. Entenda-se: trata-se aqui de negar um direito originário,
que pudesse diferenciar os homens, naturalmente, como pretenden
tes legítimos ou não ao poder político. Esta restrição nada tem que
ver com os diferentes direitos políticos de proprietários e não-pro-
prietários, tais como estabelecidos, por exemplo, nas Constituições
da Carolina ou na prática inglesa do século XVII. A crítica da teo
ria filmeriana cuida de fundamentos. Trata-se apenas de fixar a dis
tinção entre domínio privado e poder político, isto é, público. Como
proprietários, argumenta Locke no capítulo VII do Primeiro
Tratado, Abel e Caim não tinham por que interferir no patrimônio
do outro. Se esse direito existisse, um deles não teria de fato domí
nio privado. Em outras palavras, a condição de ambos, como deten
tores de direitos particulares, era de igualdade. Este ponto é de
extrema importância. Locke não está apenas afirmando, como
Aristóteles, a distinção radical entre dois tipos de associação, a
família e a pólis, mas insistindo num componente essencial da
modernidade: a separação entre os atributos e faculdades privados
e o poder típico do Estado. Vale a pena, desde logo, indicar algumas
implicações desse argumento. A separação tem conseqüências
importantes em dois sentidos. De um lado, estabelece um fosso
entre o domínio privado e a dominação política. Duas condições são
necessárias para a transposição desse fosso. A primeira é o surgi
mento de um tipo de associação diferente da rede de intercâmbios
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L o c k e , L i b e r d a d e , I gualdade e P ropri edade
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L o c k e , L i be r d a d e , I gualdade e P ropri edade
n a d a é m a is e v id e n te q u e c r ia tu r a s d a m e s m a e s p é c ie e d a m e s m a o r d e m , n a s c id a s p ro -
z a c p a r a o u s o d a s m e s m a s f a c u ld a d e s , d e v a m ta m b é m s e r ig u a is u m a s à s o u tr a s , s e m
s u b o r d in a ç ã o o u s u je iç ã o , a m e n o s q u e o s e n h o r d e to d a s e le v e u m a s o b r e o u tr a s , p o r
u m a d e c l a r a ç ã o m a n if e s ta d e s u a v o n ta d e , e lh e c o n f i r a , p o r in d ic a ç ã o e v id e n te e c la r a ,
u m in d u b itá v c l d i r e ito a o d o m ín io e à s o b e r a n ia .
* As citações do Segundo Tratado aparecem com as iniciais ST. Os Ensaios sobre a Lei de
Natureza são indicados pela sigla ELN. A edição dos Ensaios é aquela preparada por W. von
Leydcn, Oxford, Clarendon Press, 1954. Outros textos lockianos são citados da edição dos
T\m Treatises o f Government, preparada por Peter Laslett, e do volume de Political Writings
editado por David Wotton.
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C lássicos do P ensamento P o lí ti co
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L o c k e , L i be r d ade , I gualdade e P ropri edade
Í
que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve prejudicar a
outrem na sua vida, saúde, liberdade ou posses”. Os homens são cria
turas de Deus, a ele pertencem, nisso se igualam e devem durar segun
do o desejo do Criador e de ninguém mais. Os homens partilham de
uma “comunidade de natureza”, “não se podendo, portanto, supor
nenhuma subordinação entre nós, que possa autorizar-nos a destruir
um ao outro, como se fôssemos feitos para uso dos demais, como as
criaturas inferiores são leitas para o nosso”. Trata-se de uma identida
de da espécie e, portanto, a lei de natureza serve à preservação da
humanidade, não à mera defesa dos indivíduos. O criminoso se afasta
da condição humana e só por isso pode ser destruído sem violação da
lei natural. Por isso, o poder de fazer leis “com a pena de morte e, con-
seqüentemente, com todas as penalidades menores”, característico do
poder político, como está indicado no fim do capítulo I é derivado da
natureza, isto é, da(razãojcomum.
Mas, assim como o crime pode ser definido no quadro da vida
natural, e não só no mundo da norma positiva, a punição existe, em
sentido próprio, no estado de natureza. Segundo Locke, a razão apon
ta não só a lei, mas também os meios de fazê-la observar. Para a “pre
servação de toda a humanidade, a execução da lei de natureza é,
naquele estado, posto nas mãos de cada homem”. Assim, cada qual tem
o direito de punir o transgressor em grau suficiente para impedir a vio
lação. Aqui, a marca diferenciadora do pensamento lockiano: “Pois a
lei de natureza, como qualquer lei concernente ao homem neste
mundo, seria em vão, se ninguém, no estado de natureza, tivesse o
poder de executá-la e assim preservar o inocente e reprimir os ofenso-
res”. Locke não rejeita uma das condições hobbesianas: a lei deve estar
vinculada ao poder de punir. Mas diverge de Hobbes ao afirmar a exis
tência desse poder na condição natural. Rousseau, mais fiel a Hobbes
do que a Locke, repete, no entanto, a fórmula usada no Segundo
Tratado: “Portanto, para que o pacto social não seja um formulário
vão, ele encerra tacitamente o compromisso - o único que pode dar
força aos outros - segundo o qual quem quer que se recuse a obedecer
à vontade geral a isso será constrangido por todo o corpo”. Este com-
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C lássicos do P ensamento P olí ti co
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L o c k e , L i b e r d a d e , I gualdade e P ropriedade
O p r i m e i r o é [ o p o d e r d e ] f a z e r o q u e c o n s id e r e a d e q u a d o p a r a p r e s e r v a r - s e e
a o s o u tr o s , d e n tr o d o q u e p e r m i te a le i d e n atu reza, p e la q u a l, c o m u m a t o d o s , c a d a
u m e to d o o r e s to d a H u m a n id a d e s ã o um a c o m u n id a d e, f o r m a m u m a s o c i e d a d e d i s
tin ta d e to d a s a s o u t r a s c r ia tu r a s .
101
C lássicos no P ensamento Po lí ti co
102
L o c k e , L i be r d a d e , I gualdade e P ropriedade
... e s t a lei d e n a t u r e z a p o d e s e r d e s c r i t a c o m o u n r d e c r e t o d a v o n ta d e d iv in a , d i s c e r n í -
v e l p e l a lu z d a n a t u r e z a e in d ic a tiv a d o q u e é e d o q u e n ã o é c o n f o r m e à n a t u r e z a r a c i o
n a l e , p o r e s t a r a z ã o , m a n d a t ó r i a ( co m m a n d in g ) o u p r o ib itiv a . A m im p a r e c e m e n o s
c o r r e ta m e n te d e n o m i n a d a , p o r a lg u m a s p e s s o a s , d i t a m e d a r a z ã o , p o is a r a z ã o n ã o
ta n t o e s t a b e l e c e e p r o n u n c i a e s s a lei d e n a t u r e z a q u a n to a p r o c u r a e a d e s c o b r e c o m o
lei e s t a b e l e c i d a p o r u m p o d e r s u p e r io r e im p l a n t a d a e m n o s s o s c o r a ç õ e s
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C lássicos do P ensamento P olí ti co
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C lássicos do P ensamento P olí ti co
o q u a l s ã o c o n s t r u í d o s e d o q u a l, d e a lg u m a f o r m a , to d o s o s d e m a is e m e n o s e v i d e n
te s p r e c e i t o s d a q u e l a lei s ã o c o n s t r u í d o s e p o d e m s e r d e r iv a d o s , d e le a d q u ir in d o ,
a s s im , t o d a a s u a f o r ç a v in c u la n te , n a m e d id a e m q u e e s te ja m d e a c o r d o c o m a q u e la ,
p o r a s s im d iz e r , lei p r i m á r i a e f u n d a m e n ta l q u e é o p a d r ã o e a m e d i d a d e to d a s a s
o u t r a s d e l a d e p e n d e n te s .
S e r á v e r d a d e ir o q u e a q u ilo q u e c a d a in d iv íd u o , e m c a d a c ir c u n s t â n c i a , j u l g a
v a n ta jo s o p a r a si e p a r a s e u s n e g ó c io s c o n c o r d a c o m a lei n a tu r a l e , a s s im , é p a r a e le
n ã o a p e n a s le g a l, m a s ta m b é m in e v itá v e l, d e ta l m o d o q u e n a d a , n a n a tu r e z a , s e ja v i n
c u la n te , e x c e to s e tr o u x e r c o n s ig o a l g u m a v a n ta g e m p e s s o a l im e d ia ta ?
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07
C lássicos do P ensamento P olí ti co
entre a sua teoria social e a hobbesiana. Hobbes tem uma teoria políti
ca e uma concepção do indivíduo e de seu mecanismo psicológico. Para
Locke, ao contrário, a política é apenas uma das formas ou uma das
dimensões da vida coletiva. Entre os dois extremos, a sociedade políti
ca e a vida individual, é possível conceber e identificar formas diversa
mente complexas de associação. Mesmo a ordem política aparece des
crita como variável, historicamente, de acordo com a importância dos
problemas, segurança externa ou interna, por exemplo, e com a expe
riência acumulada. Ao insistir no conteúdo empírico da idéia de contra
to - transferência de poder pelo consentimento de homens livres -,
Locke explicita, com exemplos, a noção de estado de natureza.
A referência, no § 103, ao grupo que deixou Esparta com
Palanto, no séc. VIII a.C., e estabeleceu livremente um governo tem
sobretudo valor didático: deixa clara a distinção entre o político e o não
político e ressalta a imagem da independência entre indivíduos.
A lista contém exemplos mais informativos sobre as concepções
lockianas do estado de natureza e da vida coletiva. A citação do livro
de José Acosta, A História Natural e Moral das índias, de 1604, men
ciona índios vivendo em grupos, na Flórida, no Brasil e noutras partes
das Américas, sem rei certo, mas escolhendo seus “capitães” de acor
do com as condições da paz ou da guerra (ST, § 102). Vale a pena notar
que a noção de comunidade política, para Locke, não envolve necessa
riamente a idéia de Estado territorial, nos moldes europeus. Para ele, a
sociedade política se distingue de qualquer outra pela existência de um
juiz comum, isto é, de um poder superior capaz de estabelecer a justi
ça entre os interesses particulares (ST, § 87 entre outros). Mas isso não
quer dizer que o aparecimento das funções de governo esteja vincula
do sempre, e antes de mais nada, à necessidade de um juiz.
Historicamente, segundo Locke, a origem da função de chefia
está associada, com freqüência, à defesa contra o inimigo externo. Ele
recorre tanto a exemplos da história e da etnografia quanto ao relato
bíblico. Em Israel, está escrito no § 109, “a ocupação principal dos jui
zes e dos primeiros reis parece ter sido a de capitães na guerra e de
líderes de exércitos”. Embora trate do mesmo assunto, o § 108 contém,
no entanto, elementos adicionais de especial interesse:
tox
L o c k e , L i be r d a d e , I gualdade e P ropri edade
V e m o s , a s s im , q u e o s r e is d o s i n d io s n a A m é r ic a , a in d a u m p a d r ã o d a s p r i m e i
r a s e r a s n a Á s ia e n a E u r o p a , e n q u a n t o o s h a b i t a n t e s e r a m m u ito p o u c o s p a r a o p a ís e
a e s c a s s e z d e p e s s o a s e d e d in h e ir o n ã o d a v a a o s h o m e n s n e n h u m a t e n t a ç ã o d e a m p l i a r
s u a s p o s s e s d e t e r r a , o u d e e n v o lv e r - s e e m d i s p u t a p o r u m a e x t e n s ã o m a i o r d e s o lo , s ã o
p o u c o m a is q u e g e n e r a is d e s e u s e x é r c ito s . E , e m b o r a c o m a n d e m d e f o r m a a b s o l u ta
n a g u e r r a , e x e r c e m p o u c o d o m í n i o e m c a s a e e m t e m p o d e p a z e tê m u m a s o b e r a n i a
m u i t o lim ita d a , c a b e n d o a s r e s o lu ç õ e s d e p a z e d e g u e r r a , h a b i t u a l m e n t e , o u a o p o v o
o u a u m c o n s e lh o . A g u e r r a , n o e n ta n to , q u e n ã o a d m ite p l u r a l id a d e d e g o v e r n a n te s ,
n a t u r a l m e n t e d e v o lv e o c o m a n d o à a u to r id a d e ú n ic a d o re i.
109
C lássicos do P ensamento P olí ti co
u m , a i g u a ld a d e d e m o d o d e v id a s im p le s e p o b r e c a u s o u p o u c a s c o n tr o v é r s ia s e,
a s s im , n e n h u m a n e c e s s i d a d e d e m u ita s le is p a r a d e c id i- la s : n ã o s e c a r e c i a d e j u s t i ç a
o n d e h a v ia p o u c a s v io la ç õ e s e p o u c o s o f e n s o r e s . P o is s ó s e p o d e s u p o r q u e a q u e l e s q u e
(a c q u a in ta n c e ) e a m iz a d e e a l g u m a c o n f i a n ç a m ú tu a .
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C lássicos do P ensamento P olí ti co
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L o c k e , L i be r d a d e , I gualdade e P ropri edade
Q u e m q u e r q u e u s e a f o r ç a s e m d i r e i to , c o m o f a z q u e m a u s a , e m s o c i e d a d e ,
s e m a le i, s e p õ e e m e s t a d o d e g u e r r a c o m a q u e l e s c o n t r a o s q u a i s e le a u s a . N e s s e
e s t a d o , t o d o s o s v í n c u l o s a n t e r i o r e s s ã o c a n c e la d o s , to d o s o s o u t r o s d i r e i to s c e s s a m ,
e c a d a u m te m o d i r e i to d e d e f e n d e r - s e e d e r e s i s t ir a o a g r e s s o r .
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L o c k e , L i ber d a de, I cualdade e P ropri edade
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C lássicos do P e n s a m e n t o P o l It i c o
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■
REI VI NDI CAR DIREITOS
S E G U N D O ROUSSEAU
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R e i v i n d i c a r D i r e i t o s S e g u n d o R o us s e a u
m u d a r a n a t u r e z a d o h o m e m , t r a n s f o r m a r c a d a in d iv íd u o , q u e p o r si m e s m o ó u m to d o
p e r f e ito e s o l i t á r i o , e m p a r t e d e u m t o d o m a io r , d o q u a l d e c e r to m o d o e s s e in d iv íd u o
r e c e b e s u a v i d a e s e u s e r; a l t e r a r a c o n s t it u i ç ã o d o h o m e m p a r a f o r t i f i c á - l a , s u b s t i t u i r
a e x is tê n c ia f ís ic a e i n d e p e n d e n t e q u e to d o s n ó s r e c e b e m o s d a n a t u r e z a , p o r u m a e x i s
t ê n c ia p a r c ia l e m o r a l. E m u m a p a la v r a , é p r e c i s o q u e s e d e s t it u a o h o m e m d c s u a s p r ó
p r ia s f o r ç a s p a r a lh e d a r o u tr a s q u e lh e s e ja m e s tr a n h a s c d a s q u a i s n ã o p o s s a f a z e r u s o
s e m s o c o r r o a lh e io . N a m e d i d a e m q u e t a is f o r ç a s n a tu r a is e s tiv e r e m m o r ta s e a n i q u i
la d a s , a s a d q u i r i d a s s e r ã o g r a n d e s e d u r a d o u r a s , e m a is s ó lid a e p e r f e it a a in s titu iç ã o ,
d c m o d o q u e , s e c a d a c i d a d ã o n a d a fo r, n a d a p o d e r á s e n ã o g r a ç a s a to d o s o s o u t r o s , e
s e a f o r ç a a d q u i r i d a p e lo to d o f o r ig u a l o u s u p e r i o r à s o m a d a s f o r ç a s n a t u r a i s d e to d o s
o s i n d iv íd u o s , p o d e r e m o s e n tã o d i z e r q u e a le g is la ç ã o e s t á n o m a i s a lto g r a u d e p e r
f e iç ã o q u e p o s s a a t i n g i r ( R o u s s e a u , 1 9 7 3 , p . 6 3 ) .
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C lássicos do P ensamento Po lí ti co
I m e d ia ta m e n te , e s s e a to d e a s s o c ia ç ã o p r o d u z , e m lu g a r d a p e s s o a p a r t i c u l a r d e
c a d a c o n t r a ta n te , u m c o r p o m o r a l e c o le tiv o , c o m p o s to d e t a n to s m e m b r o s q u a n to s s ã o
o s v o to s d a a s s e m b lé ia , e q u e ; p o r e s s e m e s m o a to , g a n h a s u a u n id a d e , s e u e u c o m u m ,
s u a v id a e s u a v o n ta d e . E s s a p e s s o a p ú b lic a , q u e s e f o r m a , d e s s e m o d o , p e l a u n iã o d e
to d a s a s o u tr a s , to m a v a a n tig a m e n te o n o m e d e c i d a d e c , h o je , o d e r e p ú b lic a o u c o r p o
p o lític o , o q u a l é c h a m a d o p o r s e u s m e m b r o s d e E s ta d o q u a n d o p a s s iv o , s o b e r a n o q u a n
d o a tiv o , e p o t ê n c i a q u a n d o c o m p a r a d o a s e u s s e m e lh a n te s . Q u a n to a o s a s s o c ia d o s ,
r e c e b e m e le s , c o le tiv a m c n te , o n o m e d e p o v o e s e c h a m a m , e m p a r tic u la r , c id a d ã o s
e n q u a n t o p a r t í c i p e s d a a u to r id a d e s o b e r a n a , e s ú d ito s e n q u a n to s u b m e tid o s à s le is d o
E s ta d o . E s s e s te r m o s , n o e n ta n to , c o n f u n d e m - s e f r e q u e n te m e n te e s ã o u s a d o s in d is tin -
( R o u s s e a u , 1 9 7 3 , p p . 3 9 - 4 0 ).
124
R e i v i n d i c a r D i r e i t o s S e c u n d o R o us s e a u
V ê - s e , p o r e s s a f ó r m u l a , q u e o a to d e a s s o c i a ç ã o c o m p r e e n d e u m c o m p r o m is
s o r e c í p r o c o e n tr e o p ú b lic o e o s p a r t i c u l a r e s , e q u e c a d a in d iv íd u o , c o n t r a t a n d o , p o r
a s s im d iz e r , c o n s i g o m e s m o , s e c o m p r o m e te n u m a d u p la r e la ç ã o : c o m o m e m b r o d o
s o b e r a n o e m r e l a ç ã o a o s p a r t i c u l a r e s , e c o m o m e m b r o d o E s ta d o e m r e l a ç ã o a o s o b e
r a n o . N ã o s e p o d e , p o r é m , a p l i c a r a e s s a s itu a ç ã o a m á x im a d o D ir e ito C iv il q u e a f i r
m a n i n g u é m e s t a r o b r i g a d o a o s c o m p r o m is s o s to m a d o s c o n s i g o m e s m o , p o is e x is te
g r a n d e d i f e r e n ç a e n tr e o b r i g a r - s e c o n s i g o m e s m o , e e m r e la ç ã o a u m t o d o d o q u a l se
fa z p a rte (R o u s s e a u , 1 973, p. 4 0 ).
125
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
C a d a in d iv íd u o , c o m e f e ito , p o d e , c o m o h o m e m , t e r u m a v o n ta d e p a r tic u la r ,
c o n t r á r i a o u d iv e r s a d a v o n ta d e g e r a l q u e te m c o m o c id a d ã o . S e u i n t e r e s s e p a r t i c u l a r
p o d e s e r m u i t o d i f e r e n t e d o i n t e r e s s e c o m u m . S u a e x is tê n c ia , a b s o l u ta e n a tu r a lm e n te
in d e p e n d e n te , p o d e le v á - lo a c o n s i d e r a r o q u e d e v e à c a u s a c o m u m c o m o u m a c o n t r i
b u i ç ã o g r a t u i ta , c u j a p e r d a p r e j u d i c a r á m e n o s a o s o u tr o s , d o q u e o c u m p r i m e n to a si
p r ó p r io . C o n s i d e r a n d o a p e s s o a m o r a l q u e c o n s titu i o E s ta d o c o m o u m e n te d e r a z ã o ,
p o r q u a n t o n ã o é u m h o m e m , e le d e s f r u t a r á d o s d ir e ito s d o c id a d ã o s e m q u e r e r d e s e m
p e n h a r o s d e v e r e s d e s ú d ito - i n ju s tiç a c u jo p r o g r e s s o d e t e r m i n a r i a a r u ín a d o c o r p o
p o lític o ” (R o u s s e a u , 1 973, p p . 4 1 -4 2 ).
126
R e i vi nd i ca r D i re i t o s S egundo Rousseau
27
C lássicos do P ensamento Polí ti co
m ita d o a t u d o q u a n t o a v e n tu r a e p o d e e s p e ra r. O q u e c o m e le g a n h a é a lib e r d a d e c iv il
e a p r o p r ie d a d e d c tu d o o q u e p o s s u i. A f im d e n ã o f a z e r u m ju l g a m e n t o e r r a d o d e s s a s
g u i r a p o s s e , q u e n ã o é s e n ã o o e f e ito d a f o rç a o u o d ir e ito d o p r im e ir o o c u p a n te , d a
p r o p r ie d a d e , q u e s ó p o d e f u n d a r - s e n u m títu lo p o s itiv o ( R o u s s e a u , 1 9 7 3 , p . 4 2 ) .
128
R e i v i n d i c a r D i r e i t o s S e g u n d o R o us s e a u
a p assag em d o e s ta d o d e n a t u r e z a p a r a o e s ta d o c iv il d e t e r m i n a n o h o m e m um a
m u d a n ç a m u ito n o tá v e l, s u b s t i t u i n d o , n a s u a c o n d u ta , o in s tin to p e l a j u s t i ç a e d a n d o
à s s u a s a ç õ e s a m o r a l id a d e q u e a n te s lh e s f a lta v a . É s ó e n tã o q u e , to m a n d o a v o z d o
d e v e r o lu g a r d o im p u ls o f í s ic o , e o d i r e i to o l u g a r d o a p e t i t e , o h o m e m , a té a í le v a n
d o e m c o n s i d e r a ç ã o a p e n a s s u a p e s s o a , v ê - s e f o r ç a d o a a g ir b a s e a n d o - s e e m o u tr o s
p r i n c í p io s e a c o n s u l ta r s u a r a z ã o a n te s d e o u v i r s u a s in c lin a ç õ e s . E m b o r a n e s s e e s t a
d o s e p r iv e d e m u ita s v a n ta g e n s q u e f ru i n a n a tu r e z a , g a n h a o u tr a s d e ig u a l m o n ta : s u a s
f a c u ld a d e s se e x e r c e m e s e d e s e n v o lv e m , s u a s id é ia s s e a l a r g a m , s e u s s e n t im e n t o s se
e n o b r e c e m , t o d a s u a a lm a s e e le v a a ta l p o n to q u e , s e o s a b u s o s d e s s a n o v a c o n d i ç ã o
n ã o o d e g r a d a s s e m f r e q ü e n te m e n te a u m a c o n d i ç ã o in f e r io r à q u e l a d o n d e s a iu , d e v e
ria s e m c e s s a r b e n d i z e r o in s ta n te f e l i z q u e d e la o a r r a n c o u p a r a s e m p r e e f e z , d e u m
a n im a l e s t ú p id o e l i m ita d o , u m s e r i n te lig e n te e u m h o m e m ( R o u s s e a u , 1 9 7 3 , p . 4 2 ) .
129
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
p r o c u r a , c o m o s e p o d e r i a d i z e r e m t e r m o s k a n tia n o s , q u e c o n d i ç õ e s to r n a m in te lig í
v e is u m a s o c i e d a d e j u s t a . T u d o s e p a s s a r á c o m o s e o s h o m e n s tiv e s s e m c o n c l u í d o u m
ta l c o n tr a to . I s s o n ã o im p lic a , e m a b s o lu to , q u e a l g u m a v e z e le s e te n h a r e a liz a d o o u
q u e d e v a s e r e a liz a r . T u d o o q u e é p r e c i s o p e r c e b e r é q u e u m a s o c ie d a d e j u s t a n ã o é
p o s s ív e l, n ã o c c o n c e b ív e l s o b u m a o u tr a s u p o s iç ã o ( R o u s s e a u , 1 9 4 3 , p . 5 5 ).
130
R e i v i n d i c a r D i r e i t o s S e c u n d o R o us s e a u
lar for tomado como parte do todo. Neste caso, jamais poderiamos
imaginar que os direitos individuais pudessem ser inalienáveis. Por
princípio, numa sociedade justa, todos os direitos individuais são alie-
náveis, aliás, já foram alienados no momento da constituição do
Estado. Reivindicar direitos inalienáveis - se isso for entendido como
uma reivindicação de direitos naturais, dentro do Estado - está com
pletamente afastado dos princípios de Rousseau. Mas ele tomou o cui
dado para nos alertar que essa alienação dos direitos só tem sentido se
for feita à comunidade toda e não a um indivíduo ou a um grupo de
indivíduos. Ou seja, alienamos nossos direitos naturais não à vontade
de um outro, mas a nós mesmos como partes de um todo. Essa é a con
dição da liberdade, da autonomia.
É pelo processo da alienação, que representa a cláusula funda
mental do contrato social, que o homem passa do estado de natureza para
o estado civil. Podemos então pensar a vida do indivíduo particular antes
e depois da alienação. Antes, no estado de natureza, vivendo de maneira
independente, sem precisar da companhia dos demais homens. Depois,
no estado civil, vivendo necessariamente na dependência do outro.
Como essas duas situações são antagônicas e excludentes, não é difícil
concluir que as confusões freqüentes entre o público e o privado sejam
provenientes da não distinção dessas duas condições.
Uma outra oposição, que precisamos esclarecer um pouco mais,
diz respeito à vontade particular e à vontade geral. A primeira é a von
tade do homem no estado de natureza e a segunda, a vontade do corpo
moral e político que é o Estado. O mesmo podemos dizer do interesse
particular e do interesse geral. É esse o sentido da afirmação: “Cada
indivíduo, com efeito, pode, como homem, ter uma vontade particular,
contrária ou diversa da vontade geral que tem como cidadão. Seu inte
resse particular pode ser muito diferente do interesse comum” . Mas,
tanto o interesse particular quanto a vontade particular, tomados como
inclinações do homem natural, devem anular-se para que se realize a
justiça na cidade. Porém, como poderiamos definir a vontade do indi
víduo que aderiu ao pacto, ou seja, como imaginar a vontade “particu
lar” do cidadão, que deve ser muito diferente da sua vontade particu
lar de homem do estado de natureza? A vontade “particular” do cida-
31
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
E s c la r e ç a m o s s u a ra z ã o c o m n o v a s lu z e s , a q u e ç a m o s s e u c o r a ç ã o c o m n o v o s
c o m s e u s s e m e lh a n te s . S e o m e u z e lo n ã o m e c e g a n e s s a e m p r e s a , n ã o d u v id e m o s d e
q u e , c o m u m a a lm a f o rte e u m a r e ta ra z ã o , e s s e in im ig o d o g ê n e r o h u m a n o n ã o a b ju r e ,
c o m s e u s e r r o s , a o ó d io ; d e q u e a r a z ã o q u e o le v a v a p a r a o c a m in h o in c e r to , n ã o o fa ç a
v o lta r á h u m a n id a d e ; d e q u e n ã o a p r e n d a a p r e fe rir , a s e u in te r e s s e a p a r e n te , s e u in te r e s
s e b e m - c o m p r e e n d id o ; d e q u e n ã o se to r n e b o m , v ir tu o s o , s e n s ív e l e , p a r a tu d o a f in a l
d iz e r , d e u m b a n d id o f e r o z q u e d e s e ja v a se r, n ã o p a s s e a c o n s titu ir o m a is f i r m e a p o io
d e u m a s o c ie d a d e b e in - o r g a n iz a d a . ( R o u s s e a u , 19 6 2 , p . 1 76).
132
R e i vi n d i c a r D i re i t o s S ecu n d o Rousseau
C a s o a s o c i e d a d e g e r a l e x is tis s e f o r a d o s s i s te m a s d e f i lo s o f ia , r e p r e s e n t a r i a ,
c o m o j á a f i r m e i , u m s e r m o r a l p o s s u i d o r d e q u a lid a d e s p r ó p r ia s e d i s t i n t a s d a q u e l a s
d o s s e r e s p a r t i c u l a r e s q u e a s c o n s t it u e m , m a is o u m e n o s c o m o o s c o m p o s to s q u í m i
c o s , q u e p o s s u e m p r o p r i e d a d e s q u e n ã o to m a m d o s m is to s q u e o s c o m p õ e m . H a v e r ia
u m tip o d e s e n s ó r i o c o m u m q u e s e r v i r i a à c o r r e s p o n d ê n c i a d e to d a s a s p a r te s . O b e m
e o m a l p ú b lic o s n ã o s e r i a m , c o m o n u m s im p l e s a g r e g a d o , s o m e n te a s o m a d o s b e n s
o u d o s m a le s p a r t i c u l a r e s , m a s r e s i d i r í a m n a l ig a ç ã o q u e o s u n e ; s e r ia m m a i o r e s d o
q u e e s s a s o m a e , e m lu g a r d a f e li c i d a d e p ú b l i c a b a s e a r - s e n a f e li c i d a d e d o s p a r t i c u l a
r e s (e v iv e r à s s u a s e x p e n s a s ) , s e r ia a f o n te d e s ta ( R o u s s e a u , 1 9 6 2 , p. 1 7 3 ).
33
C lássicos do P ensamento P o lí ti co
E f a l s o q u e , n o e s ta d o d e in d e p e n d ê n c ia , a r a z ã o n o s le v e a c o n c o r r e r p a r a o
b e m - c o m u m v is a n d o a o n o s s o p r ó p r i o in te r e s s e . E m lu g a r d o i n t e r e s s e p a r t i c u l a r a lia r -
se ao bem g e r a l, n a o r d e m n a tu r a l d a s c o i s a s , a m b o s s e e x c lu e m m u tu a m e n te
( R o u s s e a u , 1 9 7 3 , p . 1 7 3 ).
Referências Bibliográficas
134
HUME E O DIREITO NATURAL
C I cf. r o A raújo *
135
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
II
136
H i imk e o D i re i to Natural
3. “Pois a Idéia de Propriedade, sendo um direilo a qualquer coisa...” (Locke, 1975, IV.3, xviii;
cf. Locke, 1970, 11.87 e 11.123). Barbeyrac, um dos grandes difusores de sua filosofia moral
e política no início do século XVIII (ver a nota de P. Leslett a Locke, 1970, p.288n), obser
va: “Mr. Locke entende pelo nome [propriedade] não apenas o direito de um indivíduo sobre
seus bens ou suas posses, mas ainda sobre suas ações, sobre sua Liberdade, sobre sua Vida,
sobre seu Corpo etc., em uma palavra, todo tipo de direito” (J. Barbeyrac, “Preface du
Traducteur” em De iure naturae et gentium, de S. Pufendorf, p.XX n.(b)).
4. Ver o capítulo V de minha tese de doutorado, já citada.
137
C lássicos no P ensamento Polí ti co
jurista concebe para ligar o direito natural ao direito criado por artifí
cio humano - a promessa. Ambos são fundamentais para esclarecer o
conceito de direito como um todo.
a. Segundo Grócio, direito é aquilo que pode ser feito sem causar injú
ria aos outros. Sendo excessivamente genérica, esta definição é
concretizada numa fórmula “subjetiva”: direito é uma faculdade ou
poder moral de demandar dos outros “o devido”, este último
expressando aquilo que o indivíduo pode reivindicar como próprio.
Este “próprio”, porém, tem um sentido inclusivo - quando a pessoa
pode reinvidicar a sua parte num estoque de coisas comuns -, ou
exclusivo. Neste segundo sentido, diz Grócio no Mare Liberam,
“próprio implica que uma coisa pertence a uma pessoa de tal modo
que não pode pertencer a qualquer outra” (Grócio, 1916, p. 24; cf.
Buckle, 1991, p. 169). O direito, por fim, pode ser redescrito em
termos de uma “permissão” (ou “liberdade”) da lei: no estado de
natureza, o direito é uma permissão da lei natural; no estado civil,
é uma permissão da lei civil.
5. “O Poder insinua mais diretamente a posse atual de uma qualidade em relação a Coisas ou a
Pessoas, e não designa senão obscuramente a maneira pela qual a adquirimos. Enquanto que
o Direito dá a entender própria e distintamente, que esta qualidade foi adquirida legitima
mente, e que atribuímo-la a nós ajusto título” (Pufendorf, 1.1. xx; grifos do autor).
138
H ume e o D i r e i t o Natural
ção de respeitá-lo. Há três coisas que por natureza se pode dizer que
pertencem exclusivamente a uma pessoa: vida, membros e liberdade
(ocasionalmente Grócio acrescenta a “reputação” ou “bom nome”). Ou
seja, o complexo corpo/intelecto e as ações da pessoa. Estes consti
tuem o que chamo de núcleo duro do suum. Ou, para ser mais preciso
ainda, e falando em termos teológicos: vida e membros constituem a
propriedade natural “imperfeita” da pessoa pois, embora tenha um
direito exclusivo sobre eles (nenhum outro ser humano pode reivindi
cá-los como ela pode), ela não tem o direito de aliená-los - vida e
membros pertencem propriamente a Deus, sobre os quais se tem ape
nas um direito de “locatário”; enquanto as ações constituem sua pro
priedade “plena ou inteira”, que por definição pode ser alienada. Mas
há outras coisas às quais originalmente só temos um direito inclusivo:
o direito aos meios de conservação da vida; intimamente colado a este,
porém mais específico, o direito às provisões da Terra (terra, água, ar,
vegetais, animais); e o direito de punição aos transgressores da lei
natural - ou seja, dos que cometem “injúria”. (Chamo a atenção do lei
tor para a distinção entre o direito exclusivo à vida, e o inclusivo à con
servação da vida, em vista do que vou discutir depois.)
Todos os direitos listados acima constituem o direito natural
em Grócio, e vão servir como um modelo para seus sucessores. Locke
os aceita in totumb. Mas, sendo um autor menos erudito, porém mais
sistemático, ele vai procurar adequá-los à estrutura geral de seu pen
samento filosófico, levando-o a apresentar um sofisticado argumento
para justificá-los. O núcleo dele é expresso pelo seguinte pensamen
to67: tudo que um ser inteligente é capaz de fazer ou fabricar por sua
própria conta e completo conhecimento é dele por direito natural, e
este direito é pleno e exclusivo. Como um ser inteligente perfeito,
Deus criou os homens segundo sua imagem (isto é, como ser inteli
gente e também capaz de fazer, fabricar, criar), e o mundo (cf. Locke,
39
C lássicos do P ensamento Polí ti co
140
H ume e o D i r e i t o Na t u r a l
141
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
tos8. Esta leitura não é bem exata no que diz respeito a Locke9, mas ela
o faria identificar, ainda mais do que estou sugerindo aqui, a teoria deste
último com a de Grócio. Do exposto acima, fica claro que, para explicar
o direito sobre bens (dominium), ambos os autores utilizam uma teoria
do direito natural cuja idéia central é a propriedade. Esta idéia, com sua
dupla acepção - propriedade exclusiva sobre a vida, membros e liberda
de, e propriedade inclusiva dos meios de preservação da vida - constitui
a base que vai justificar a idéia contígua de propriedade exclusiva sobre
bens. E mais importante de tudo: trata-se, desde sua origem, de uma
idéia moral, e não a representação de uma mera posse física. Quando
Grócio e Locke dizem que todos temos uma propriedade sobre a vida,
membros e liberdade, isto significa que temos um poder moral efetivo
de exigir dos outros o seu respeito. Este ponto é crucial, e joga luz sobre
duas passagens complementares do Tratado da Natureza Humana (T),
de Hume, que me interessam enormemente aqui:
t e r e x p l i c a d o a o r ig e m d a j u s t i ç a , o u m e s m o a o f a z e r u s o d a q u e l a p a la v r a n a q u e la
e x p lic a ç ã o , s ã o c u l p a d o s d e u m a v u l t o s a f a lá c ia e n ã o p o d e m j a m a i s r a c i o c i n a r
s o b r e u m f u n d a m e n to s ó lid o . A p r o p r i e d a d e d e u m h o m e m é a lg u m o b j e t o c o m e le
r e l a c io n a d o . E s ta r e la ç ã o n ã o é n a tu r a l, m a s m o r a l c f u n d a d a n a j u s t i ç a . (T , p . 4 9 1 ;
g rifo s d e H u m e )
2 . A J u s t i ç a é c o m u m e n t e d e f i n i d a c o m o u m a c o n sta n te e p e r p é tu a v o n ta d e d e d a r a
c a d a um o q u e lh e é d e v id o . N e s ta d e f i n i ç ã o s e s u p õ e q u e h á ta is c o is a s c o m o
d i r e i to e p r o p r ie d a d e , in d e p e n d e n t e m e n t e d a j u s t i ç a , e a n te c e d e n te s a e la ; e q u e
e la s te r ia m s u b s is tid o , m e s m o q u e o s h o m e n s j a m a i s tiv e s s e m s o n h a d o e m p r a t i
c a r ta l v ir tu d e . (T , p p . 5 2 6 - 5 2 7 ; g r if o d e H u m e )
8. É assim que Hume os interpreta no Enquiry upon the Principies of Morality (EPM); esta obra
está em Hume 1975, p. 197, n.l.
9. Digo isto porque Locke, seguindo os passos de Pufendorf, distingue os “entes morais” dos
“entes naturais”, por sua teoria dos modos mistos (ver 1975, ll.xxii). Portanto, não é exato
dizer que a moralidade depende da “natureza das coisas”, se se identifica estas últimas com
os entes naturais. Locke concordaria com Grócio, Clarke e Wollaston, de que as relações
morais podem scr rigorosamente demonstradas - e constituir um corpo de conhecimento
apodítico (como o é a matemática), e não provável (como o é a física) -, mas apenas porque
os entes morais são inteiramente diferentes dos entes naturais.
42
I I ume e o D i r e i t o N a t u r al
10. “Não há nada anterior [no texto do Tratado] a sugerir que ‘propriedade’ inclua ‘vida e
membros’. Parece que Hume simplesmente os ignorou, levado por uma preocupação domi
nante com o aspecto econômico da sociedade.” (D. Porbes, 1975, p. 86). “Vida e liberdade
não são bens próprios ao jogo econômico. As regras são necessárias para definir direitos de
propriedade; mas não há necessidade de escrever uma regra estabelecendo que é errado os
participantes se matarem uns aos outros. Que isto é errado está pressuposto. Similarmente,
não há necessidade de uma regra [estabelecendo] que eles não possam escravizar-se uns aos
outros.” (Stewart, 1992, p. 185).
143
C lássicos do P ensamento P olí ti co
C o m o n o s s o p r im e ir o e m a is n a tu r a l s e n s o d e m o r a lid a d e é f u n d a d o n a n a tu r e z a d e
n o s s a s p a ix õ e s , e d á p r e f e r ê n c ia a n ó s m e s m o s e n o s s o s a m ig o s , a c im a d e e s tr a n h o s ; é
im p o s s ív e l q u e p o s s a h a v e r n a tu r a lm e n te q u a lq u e r c o is a c o m o u m d ir e ito o u p r o p r i e d a
d e f ix a , e n q u a n t o a s p a ix õ e s o p o s ta s d o s h o m e n s o s im p e lire m p a r a d ir e ç õ e s c o n tr á r ia s ,
e n ã o f o r e m r e s tr in g id a s p o r a lg u m a c o r d o o u c o n v e n ç ã o . (T, p . 4 9 1 ; g r i f o m e u )
144
H ume e o D i rei t o Natural
E m to d o s is te m a d e m o r a lid a d e q u e e n c o n tr e i a té a g o r a , s e m p r e o b s e r v o q u e
o a u to r p r o c e d e p o r a lg u m t e m p o n o m o d o u s u a l d e r a c io c ín io , e e s t a b e l e c e o s e r d e
D e u s , o u f a z o b s e r v a ç õ e s a r e s p e ito d o s n e g ó c io s h u m a n o s ; q u a n d o r e p e n t i n a m e n t e
v e jo - m e s u r p r e s o p o r d e s c o b r i r q u e a o in v é s d a s c ó p u l a s u s u a is d e p r o p o s i ç õ e s , é , e
n ã o é, n ã o e n c o n t r o q u a l q u e r p r o p o s i ç ã o q u e n ã o s e ja c o n e c t a d a p o r u m d e v e s e r
[o u g h t], o u u m n ã o d e v e s e r [o u g h t n o t], E s ta m u d a n ç a é im p e r c e p t í v e l ; m a s é d a
m á x i m a i m p o r tâ n c ia . P o is c o m o e s t e d e v e s e r , o u n ã o d e v e s e r , e x p r e s s a u m a n o v a
r e l a ç ã o o u a f i r m a ç ã o , s e r ia n e c e s s á r io q u e e la f o s s e o b s e r v a d a e e x p l i c a d a ; e , a o
m e s m o t e m p o , u m a r a z ã o d e v e r ia s e r d a d a - o q u e p a r e c e to ta lm e n te i n c o n c e b ív e l -
d e c o m o e s ta n o v a r e la ç ã o p o d e s e r u m a d e d u ç ã o d e o u tr a s q u e s ã o i n te ir a m e n te d i f e
r e n te s d e s t a ( T, p . 4 6 9 ; g r if o s d e H u m e ) .
145
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
fixo, dos objetos que os outros possuem, se esta abstenção lhe fosse
prejudicial ou prejudicial àqueles que lhe são caros? Se ele não fosse
capaz de perceber que há uma vantagem ou utilidade em ver tais
objetos como uma propriedade dos outros - isto é, como uma posse
exclusiva, inviolável, fixa, deles -, a abstenção do que é alheio jamais
seria percebida como um comportamento moral. Não que a absten
ção não pudesse jamais ocorrer sem esta percepção; mas ela estaria
condicionada a circunstâncias e motivos e, portanto, não seria obser
vada inflexivelmente. Ora, observar inflexivelmente um comporta
mento de abstenção é, segundo Hume, a característica fundamental
da idéia de propriedade:
D e p o is q u e e s t a c o n v e n ç ã o , r e la tiv a à a b s te n ç ã o d a s p o s s e s a lh e ia s , é p o s ta e m
p r á t i c a , e c a d a u m a d q u ir e u m a e s ta b ilid a d e d e s u a s p o s s e s , i m e d ia ta m e n te s u r g e m a s
4 9 0 -4 9 1 ; g rifo s d e H u m e).
146
H ume e o D i r e i t o N a t u r al
e m b o r a is to [a n ã o s e p a r a ç ã o d a i d é i a d e “ p o d e r ” d a d e s e u “ e x e r c í c i o ” ] s e j a e s t r i t a
m e n t e v e r d a d e i r o n u m m o d o j u s t o e f i lo s ó f ic o d e p e n s a r , é c e r t o q u e e s t a n ã o é a
f ilo s o f ia d e n o s s a s p a i x õ e s ; m a s q u e m u i t a s c o i s a s o p e r a m s o b r e e l a s p o r m e i o d a
id c ia e s u p o s i ç ã o d e p o d e r , i n d e p e n d e n t e d e s e u r e a l e x e r c í c i o . (T , p p . 3 1 1 - 3 1 2 ; g r i -
fo s d c H u m e)
147
C lássicos do P ensamento P olí ti co
14 8
1
H u me e o D i r e i t o N a t u r al
149
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
150
H u me e o D i r e i t o Natural
11. Por também não percebê-la, Hobbes, mais consistentemente que outros teóricos do contrato,
vai afirmar que pactos extorquidos pela força são válidos (cf. De eive, 11.16; Leviathan, XIV,
p. 198). Curiosamente esta tese também é abraçada por Grócio (cf. 1925, II. 11 .vii.2).
152
H u me e o D i r e i t o N a t u r al
III
153
C lássicos do P ensamento P olí ti co
154
H ume e o D i r e i t o N a t u r al
12. Para uma brilhante análise dos “dying thoughts of a Nortli Briton”, ver Pocock, 1979.
13. Hume também funda os princípios da justiça na “expediência”, isto é, “paz e ordem”. Mas
“expediência” no texto citado acima se refere apenas àquilo que a ação do governante pode
trazer para a incrementação da riqueza e do poder do Estado.
155
C l á s s i c o s i>o P e n s a m e n t o P o l I t i c o
14. “Contudo, as fronteiras entre direitos perfeitos e imperfeitos não são sempre fáceis de ver.
Há uma espécie de escala ou ascensão gradual, através de vários e quase insensíveis passos,
das mais baixas e débeis demandas da humanidade àquelas de maior e mais sagrada obriga-
156
H u me e o D i re i to Natural
O h o m e m q u e m a l s e a b s té m d e v i o la r a p e s s o a , o p a t r i m ô n i o [e sta le ] o u a
F r e q ü e n te m e n tc , p o d e m o s p r e e n c h e r to d a s a s r e g r a s d a j u s t i ç a p e r m a n e c e n d o s e n ta d o s
IV
ção, até que chegamos a alguns direitos imperfeitos tão fortes que quase não podem se dis
tinguir dos perfeitos.” (A Short Introduction to Moral Philosophv, pp. 122-123; cit. por
Haakonssen, 1990, p. 82).
15. Que esta representação da justiça como uma “virtude negativa” está longe de traduzir um
consenso entre os literati do “Scottish Enlightenment”, mostra-o bem a seguinte observação
de Thomas Reid: “Como, numa família, a justiça requer que as crianças que sejam incapazes
de trabalhar, e aquelas que, por doença, estejam inabilitadas, devam ter suas necessidades
supridas pelo estoque comum, assim também, na grande família de Deus, da qual a humani
dade faz parte como crianças, a justiça, penso, assim como a caridade, exige, que as neces
sidades daqueles que, pela providência de Deus, estejam incapacitados de suprira si mesmos,
devam ser supridos daquilo que de outro modo poderia ser estocado para futuras necessida
des” (1969, p. 424). Reid está, nesta passagem, explicitamente criticando a teoria de Hume.
157
C lássicos do P ensamento Po l í ti co
16. O exemplo é extraído do livro de Thomasius, Fundamenta iuris naturae et gentium ex sensu
communi deducm Ipublicado em 11051, 111.1 .x la referência é de Barbeyracy
15»
H u me e o D i r e i t o Natural
17. Ver seu comentário ao adágio latino interarma silenl leges em Elements oj Law, 1.19.2, e De
eive, 11.18 (cf. Tuck, 1988, pp. 260-263). Ver também Leviathan , XXVltl, p. 356.
18. Em sua condenação ao suicídio, Grócio não deixa também de trabalhar com a idéia, embora
não explicite o termo. Ele diz que o direito à vida é um direito para “salvaguardar”, não para
destruir (1925, U.17.U.1). É preciso reparar, contudo, que o fato de um direito ser natural
(enquanto oposto a um “adventicio”) não implica que ele não possa ser alienado. Grócio (ao
contrário de Locke e Hutcheson) diz que o direito à liberdade é natural, mas ele pode ser alie
nado como um todo. Dai que admita a auto-escravização (Sobre a relação entre “direito ina
lienável” e a condenação da escravidão, ver Haakonssen, 1991, pp. 47-52).
\ 59
C lássicos do P ensamento P o lí ti co
vida e membros, estão em questão” (T, p. 540), mas ainda aqui Hume
cuidadosamente evita falar de um “direito” de preservação da vida.
Por trás desse cuidado está a intenção de tornar o mais coerente pos
sível a noção de que todo direito de um indivíduo tem por correlato
um dever dos outros de respeitá-lo. Precisamente por isto a justiça é
sempre vinculada no texto ao tripé “property, right and obligation”.
Não é que quando esta correlação deixa de existir a pessoa possa se
valer de um direito mais primitivo, em que as demandas conflitantes
de cada um teriam igual validade do ponto de vista jurídico. Quando
a correlação não é possível, o que ocorre é que o aparato jurídico,
constituído por “convenção”, simplesmente desaba, e a vida social
volta a ser regulada unicamente pela moralidade das virtudes naturais,
e não pela do direito. Os indivíduos não retornam, portanto, a uma
condição em que o único (e extremamente rarefeito) elemento moral
é o direito natural hobbesiano.
Mas em que situações, concretamente, o aparato jurídico defini
do pela teoria humeana pode ruir, com o conseqüente retorno à “gra
mática” das virtudes? A resposta é quase trivial: elas devem ser neces
sariamente análogas àquelas que, ao ver de Hume, tornam a justiça
“inútil”. Embora aquelas sejam situações imaginárias - pois, além de
possuírem aproximadamente a mesma capacidade física e mental, os
homens não estão em estado permanente de extrema escassez, ou de
excesso de bens; nem são ilimitadamente benevolentes ou egoístas -
Hume as compara a situações reais que sutilmente revelam seu ponto
de vista em relação às controvertidas questões jurídicas que mencionei
linhas acima. Ei-las:
60
H ume e o D i r e i t o Natural
Em face do que foi analisado até agora, fica evidente que o tipo
de “propriedade” a que Hume está se referindo, acima, não é outra
senão a propriedade exclusiva. Cabe, porém, explicar por que sua teo
ria não comporta a idéia da propriedade inclusiva de bens. Nós já
vimos que o filósofo não aceita descrever o instinto de preservação da
vida como um direito. Mas o que o leva a tomar esta posição não é ape
nas sua recusa da formulação hobbesiana de direito natural. Hume
também recusa formulá-lo como um direito natural inclusivo. Por quê?
Porque admiti-lo implicaria admitir a existência de um certo tipo de
justiça distributiva natural (isto é, não estabelecida convencionalmen
te), capaz de fornecer uma regra para o uso das provisões da terra.
Contudo, estas últimas, de acordo com a conjectura histórica de Hume,
não estão originalmente dispostas numa “comunidade” igualmente
acessível a todos. Só tem sentido falar em “comunidade” de bens para
descrever a situação do estoque que as pequenas sociedades familiares
dispunham nos tempos mais remotos da história humana. E esta não
tem nada a ver com a hipótese grociana de que cada ser humano pos
suía originalmente um direito igual, “comum” aos outros, de usar
todos os bens da terra. Nem se poderia dizer que os membros das
sociedades familiares possuíam um “direito” ao seu próprio estoque
comum, pois o uso dele era unicamente condicionado por “nossos pri
meiros e mais naturais sentimentos de moral”, isto é, pelo que chamo
aqui de gramática das virtudes.
Pode parecer contraditório afirmar que subjaz ao direito inclu
sivo “um certo tipo” de justiça distributiva, quando o fato de Grócio
ter pensado o direito perfeito (exclusivo e inclusivo) foi tradicional
mente interpretado como uma tentativa de expurgar da justiça “em
sentido próprio” um sentido distributivista. De fato, ao comparar o
direito perfeito com a chamada justiça “expletiva”, e o direito imper
feito com o que ele supunha ser a justiça “distributiva” em Aristóteles,
o próprio Grócio abriu campo para a leitura de que o direito perfeito
6
C lássicos do P ensamento P olí ti co
19. Na opinião de Pufendorf, Grócio equivoca-se ao identificar o direito imperfeito com o que
Aristóteles chama de justiça distributiva. Na verdade, o direito imperfeito correspondería ao
que o filósofo grego denomina “justiça universal” - que compreende o exercício do conjunto
das virtudes sociais e o direito perfeito à “justiça particular”, que compreende três tipos de
justiça, inclusive a distributiva (cf. Pufendorf, l.7.viii; ver Ética a Nicômaco, 1129a-1130a).
162
H u m e e o D i r e i t o N a t u r a l
20. Um terceiro caso pode ser subsumido à análise que segue: interações envolvendo laços muito
estreitos de amor e amizade (supostamente famílias). Isto significa que, em principio, estas
interações escapam à esfera jurídica, a não ser, é claro, naquilo que se puder por convenção atri
buir claramente propriedade a indivíduos: por exemplo, mesmo que numa família não possa
haver distinção de bens, poder-se-ia atribuir a cada um de seus membros propriedade à vida.
163
C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
Hume diz que a justiça fica suspensa “por um momento”. A razão que
o filósofo apresenta é que, neste caso, o condenado não pode mais rei
vindicar como “propriedade” sua vida ou sua liberdade. Mas haveria
um “dever” do criminoso de respeitar o “direito” do soberano de puni-
lo? Aparentemente não, mas Hume não se prende a este problema21.
Similarmente a situações de beligerância, Hume diz que a justiça
“silencia” quando há situações de extrema desigualdade entre as partes.
Autores de tratados jurídicos costumavam traduzir a igualdade natural
entre os homens em uma igualdade de direitos naturais. Esta tese era
defendida através de axiomas de natureza mais ou menos teológicas:
sendo os homens entes inteligentes e morais, aos quais Deus não teria
dado (a não ser por expressa revelação) qualquer privilégio, todos pos
suiríam “por nascimento” um igual direito à vida, à liberdade e aos
meios de sua conservação. Alguns, como Hutcheson, chegam mesmo a
postular que outras criaturas que não humanas, embora não inteligentes
e nem moralmente sensíveis, pelo simples fato de constituírem o siste
ma universal criado pelas mãos divinas, possuiríam certos “direitos”.
Em sua teoria, Hume postula que os homens são aproximadamente
iguais em capacidade física e mental. Mas esta igualdade não é idêntica
a uma igualdade de direitos naturais. Trata-se simplesmente de uma
igualdade aproximada de “força e astúcia”. Se houvesse, diz o autor,
situações de clara defasagem entre os homens, aqueles que se mostras
sem, na prática, superiores em força e astúcia, jamais restringiríam suas
ações por considerações de propriedade, seja aos bens, à pessoa ou à
liberdade. A justiça seria inútil para regular as relações entre eles (cf.
EPM, p. 190). As únicas restrições às suas ações seriam seus próprios
sentimentos de “humanidade”, “compaixão” e “nobreza”, insuficientes,
porém, para produzir um reconhecimento de direito/propriedade em
outros. Embora não fosse esta a condição original da humanidade, Hume
pensa que diferenças introduzidas historicamente causaram defasagens
2 1 . 0 que seria interessante, pois poderia nos fornecer subsídios para discutir se, subliminarmen
te, Hume não estaria aqui admitindo pelo menos um rudimento da noção hobbesiana de direi
to natural. Ou seja, ainda que não aceitando a caracterização hobbesiana do estado de natu
reza, estaria Hume admitindo, no caso da punição, uma contínua “liberdade” do indivíduo,
moralmente impecável, de usar de todos os meios para defender sua vida e membros?
164
H u m e e o D i r e i t o N a t u r a l
165
r C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
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A P SIC O L O G IA DO AGENTE E C O N Ô M IC O
EM DAVI D HUME E ADAM SMITH
169
'
C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
à n a tu r e z a d a a m b iç ã o e c o n ô m ic a e à s c a u s a s s u b ja c e n te s a o n o s s o d e s e jo d e b e n s e x te r
ta n to a lv o r o ç o n o m u n d o ? Q u a l é a f in a lid a d e d a a v a r e z a e d a a m b iç ã o , d a b u s c a d e r iq u e
z a , d o p o d e r e d a p r e e m in ê n c ia ? S e r á p a r a s u p r ir a s n e c e s s id a d e s d a n a tu r e z a ? M a s o s a lá
r io d o m a is h u m ild e tr a b a lh a d o r p o d e s u p ri-la s . V e m o s q u e e le p o d e lh e p r o p o r c io n a r
c o m id a e r o u p a s , o a c o n c h e g o d e u m a c a s a e d e u m a fa m ília . S e e x a m in á s s e m o s c o m
r ig o r a s u a e c o n o m ia , d e s c o b r ir ia m o s q u e e s s e tr a b a lh a d o r g a s ta u n ia g r a n d e p a r te d e s e u 1
1. A respeito da teoria de Smith sobre mudança econômica estrutural e suas visões sobre como
ela afeta as instituições econômicas e sociopolíticas ver: Skinner, “Historical Theory” e R. L.
Meek, “Smith, Turgot and the ‘Four Stages Theory” ’.
170
A P s i c o l o g i a d o A g e n t e E c o n ô m i c o e m D a v i d H u m e e A d a m S m i t h
s a lá rio c o m s e u c o n f o r to , c o m c o is a s q u e p o d e m s e r c o n s id e r a d a s s u p é r f lu a s , e q u e , e m
o c a s iõ e s e x tr a o r d in á r ia s , e le p o d e p e r m itir - s e g a s ta r a té m e s m o c o m a v a id a d e e a d is tin
ç ã o . Q u a l s e rá e n tã o a c a u s a d e n o s s a a v e rs ã o à s u a s itu a ç ã o , e p o r q u e d e v c r ia m a q u e le s
a v iv e r, m e s m o s e m tr a b a lh o , n a m e s m a c o n d iç ã o d o tr a b a lh a d o r m a is s im p le s , m o r a r s o b
g in a m q u e s e u e s tô m a g o ó m e lh o r, o u q u e d o r m e m m a is p r o fu n d a m e n te e m u m p a lá c io
d o q u e n u m a c a b a n a ? O c o n tr á r io fo i m u ita s v e z e s o b s e r v a d o e, d e f a to , é tã o ó b v io ,
m e s m o q u e n u n c a tiv e s s e s id o o b s e rv a d o , q u e n ã o h á n in g u é m q u e o ig n o re . D e o n d e ,
e n tã o , s u r g e e s s a e m u la ç ã o q u e p e r c o r r e to d a s a s d if e r e n te s c a m a d a s d a h u m a n id a d e , e
q u a is s ã o a s v a n ta g e n s q u e p r o p o m o s a tra v é s d e s s e g r a n d e p r o p ó s ito d a v id a h u m a n a q u e
o e s f o r ç o n a tu r a l d e c a d a in d iv íd u o p a r a m e l h o r a r a s u a c o n d i ç ã o , q u a n d o p o d e m a n i
f e s t a r - s e d e m o d o liv re e s e g u r o , é u m p r i n c í p io t ã o p o d e r o s o q u e p o r si m e s m o , e s e m
n e n h u m a u x ílio , n ã o s ó é c a p a z d e le v a r a s o c i e d a d e n a d i r e ç ã o d a r i q u e z a e d o p r o
g r e s s o , m a s ta m b é m d e t r a n s p o r u n ia c e n t e n a d e o b s t á c u l o s i m p e r ti n e n t e s , c o m o s
q u a is a to lic e d a s le is h u m a n a s c o m ta n t a f r e q u ê n c i a a t r a p a l h a s u a s o p e r a ç õ e s (W ealth
o f N a tio n s : WN, p . 5 4 0 ) .
171
■
C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
S e r m o s o b s e r v a d o s , r e s p e ita d o s , n o ta d o s c o m s im p a tia , c o m p l a c ê n c i a e a p r o v a
ç ã o , e is to d a s a s v a n ta g e n s q u e p o d e m o s n o s p r o p o r e x tr a ir d e s s a m e lh o r ia . É a v a id a
d e , n ã o a t r a n q ü i li d a d e e n e m o p r a z e r , o q u e n o s in te r e s s a . M a s a v a id a d e e s tá s e m
p r e f u n d a d a n a c r e n ç a d e q u e s o m o s o o b je to d e a te n ç ã o e d e a p r o v a ç ã o . O r ic o s e g l o
r i f i c a e m s u a r i q u e z a p o r q u e a c r e d ita q u e e la n a tu r a lm e n te a tr a i p a r a e le a a te n ç ã o d o
m u n d o , e q u e a h u m a n i d a d e e s tá d i s p o s ta a a c o m p a n h á - lo e m to d a s a q u e la s e m o ç õ e s
a g r a d á v e i s q u e a s v a n ta g e n s d e s u a s itu a ç ã o tã o p r o n ta m e n te lh e in s p ir a m . Q u a n d o e le
p e n s a n i s s o , s e u c o r a ç ã o p a r e c e c r e s c e r e d i la ta r - s e d e n tr o d e s e u c o r p o , e e le a p r e c ia
a s u a r iq u e z a m a is p o r e s s e m o tiv o d o q u e p o r to d a s a s o u tr a s v a n ta g e n s q u e e l a p o s
s ib ilita . O p o b r e , a o c o n tr á r io , te m v e r g o n h a d e s u a p o b r e z a . O u e le s e n te q u e a p o b r e
z a o c o l o c a f o r a d a a t e n ç ã o d a h u m a n id a d e o u q u e , s e e s ta lh e d á u m m ín im o d e a t e n
ç ã o , n ã o te m , e n tr e ta n to , q u a s e n e n h u m s e n tim e n to s o l id á r io p a r a c o m a m is é r ia e a
p r o v a ç ã o q u e e le p a d e c e ( TM S , p p . 5 0 ) 2.
2. Sobre o papel de motivos sub-racionais em Smith, ver: Winch, Adam Smith s Politics, esp. pp.
165-169: “Smith não faz uso do construto conhecido como ‘homem econômico’” (p. 167);
Coats, “Adam Smith’s Conception of Self-lnterest in Economic and Political Affairs”; Viner,
The Role o f Providence, pp. 77-85; Bonar, Philosophv and Political Economy, pp. 17 1- 175; e
Lovejoy, Re/lections on Human Nalitre, pp. 213-215 e pp. 258 e ss. Sobre as origens da psi
cologia econômica de Smith em Hume ver: Teichgraeber, Free Trade and Moral Philosophy,
172
A P s i c o l o g i a d o A g e n t e E c o n ô m i c o e m D a v i d H u m e e A d a m S m i t i i
T u d o q u e n o s d á u n ia c e r t a a s c e n s ã o s o b r e o s o u t r o s n o s to r n a n d o m a i s p e r f e ito s ,
ta l c o m o a c i ê n c i a e a v ir tu d e , o u e n tã o n o s c o n c e d e n d o u m a c e r t a a u t o r i d a d e s o b r e
e le s f a z e n d o - n o s m a i s p o d e r o s o s , t a is c o m o a s h o n r a s c a s r iq u e z a s , p a r e c e n o s t o r n a r
a t é c e r t o p o n to i n d e p e n d e n te s . T o d o s a q u e l e s a b a ix o d e n ó s n o s r e v e r e n c ia m e n o s
te m e m ; e s tã o se m p re p re p a ra d o s a fa z e r o q u e n o s a g ra d a p a ra n o s p re se rv a r, e n ão
o u s a m n o s f a z e r m a l o u r e s i s t ir a o s n o s s o s d e s e jo s [ ...] A r e p u t a ç ã o d e s e r r ic o , c u l t o e
v i r tu o s o p r o d u z n a i m a g in a ç ã o d a q u e le s a o n o s s o r e d o r, o u d a q u e l e s q u e n o s in te r e s -
esp. p. 85 c pp. 97 e ss.; Skinner, A System o f Social Science, pp. 14-15; a introdução de
Rotwein a Hnmess Writings on Economics, pp. xxxii-liii: “a paixão pelo ganho [...] está
essencialmente na natureza de uni desejo de acumular símbolos de esforço bem-sucedido”
(p.xiv); e Forbes, “Hume and the Scottish Enliglitenment”, esp. pp. 99-101.
173
C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
s e n d o p e r c e b i d o e a n g a r i a n d o s i m p a tia , a u m e n ta o p r a z e r d a q u e le q u e p o s s u i; e s e n d o
m a is u m a v e z r e f le tid o , t o r n a - s e u m n o v o f u n d a m e n to p a r a o p r a z e r e a e s t im a d o
o b s e r v a d o r ( Idein , p . 3 6 5 ).
178
A P s i c o l o g i a d o A g e n t e E c o n ô m i c o e m D a v i d H u m e e A d a m S m i t h
u m e s t r a n h o à n a tu r e z a h u m a n a q u e v i s s e a in d if e r e n ç a d o s h o m e n s c o m r e l a ç ã o à
m i s é r i a d e s e u s i n f e r io r e s , e o p e s a r e a i n d ig n a ç ã o q u e s e n te m p e l o s in f o r t ú n i o s e
s o f r i m e n t o s d o s q u e e s tã o a c i m a d e le s , t e n d e r i a a i m a g i n a r q u e o s o f r i m e n t o d e v e s e r
m a is a g o n iz a n te , e a s c o n v u ls õ e s d a m o r te m a is te r r í v e i s , p a r a a s p e s s o a s d a s c a s ta s
m a is a lta s d o q u e p a r a a q u e le s d e p o s iç ã o m a is h u m ild e (T M S, p. 5 2 ).
179
C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
s a m m a i s d i r e t a m e n t e , d i s p o s i ç õ e s q u e n o s tr a z e m m u ita s v a n ta g e n s . C o lo c a - o s p ro s
t r a d o s a o s n o s s o s p é s ; e x c ita - o s e m n o s s o f a v o r, in s p ir a n e le s to d o s o s im p u ls o s que
te n d e m à p r e s e r v a ç ã o d e n o s s a e x is tê n c ia e a o a u m e n to d e n o s s a g r a n d e z a . P o rta n to ,
o s h o m e n s p r e s e r v a m a s u a r e p u t a ç ã o c o m o u m b e m d e q u e n e c e s s ita m a f im d e v iv er
c o n f o r t a v e lm e n t e n o m u n d o 3.
* * -k
3. Malebranche, The Search qfter Truth, 1". edição, 1674, primeira tradução inglesa 1694, p.
290. Já cm sua obra Lectures on Rheloric, Smith observou: “Tal é o temperamento dos
homens, que estamos mais dispostos a rir dos infortúnios de nossos inferiores do a que nos
solidarizar com eles” (p. 124). Cf. Lucrécio, De reruni nalura, livro V 11.1114-6: “pois, para
a maioria deles, por mais fortes que sejam por natureza, por mais belos que sejam seus cor
pos, os homens seguem a liderança dos mais ricos”. Três cópias das obras de Lucrécio foram
encontradas na biblioteca de Adam Smith: ver .1. Bonar, A Catalogue ofthe Library ofAdam
Smith, e H. Mizuta, Adam Smith s Lihrarv.
174
A P s i c o l o g i a d o A g e n t e E c o n ô m i c o e m D a v i d H o m e e A d a m S m i t i i
D e s e ja m o s ta n to s e r re s p e itá v e is q u a n to s e r re s p e ita d o s . T e m e m o s ta n to s e r d e s p r e
z ív e is q u a n to s e r c o n d e n a d o s . M a s , c h e g a n d o a e s te m u n d o , lo g o d e s c o b r im o s q u e a
s a b e d o r ia c a v ir tu d e n ã o s ã o d e f o r m a a lg u m a o s ú n ic o s o b je to s d o r e s p e ito ; e n e m o
a te n ç õ e s d o m u n d o m a is d ir e ta m e n te v o lta d a s p a r a o s ric o s e o s g r a n d e s d o q u e p a r a o s
s á b io s e o s v ir tu o s o s . V e m o s f r e q u e n te m e n te o s v íc io s c a s to lic e s d o s p o d e r o s o s s e re m
c d e s f r u ta r o r e s p e ito e a a d m ir a ç ã o d a h u m a n id a d e s ã o o s g r a n d e s o b je to s d a a m b iç ã o c
d a e m u la ç ã o . D u a s v ia s d if e r e n te s se a p r e s e n ta m p a r a n ó s , a m b a s le v a n d o à c o n q u is ta
d e s s e o b je to tã o d e s e ja d o ; u m a , p e lo e s tu d o d a s a b e d o ria e p e la p r á tic a d a v ir tu d e ; o u tr a ,
p e la a q u is iç ã o d e riq u e z a e g r a n d e z a . D o is p e r s o n a g e n s d if e r e n te s s e a p r e s e n ta m à n o s s a
e m u la ç ã o ; o p r im e ir o te m u m a a m b iç ã o o r g u lh o s a e u m a a v id e z o s te n ta tó r ia ; o s e g u n d o
v ir tu o s o s , u m g r u p o s e le c io n a d o , e m b o r a p e q u e n o , e u r e c e io , o s v e r d a d e ir o s e c o n s ta n
te s a d m ir a d o r e s d a s a b e d o r ia e d a v irtu d e . A g r a n d e m a s s a d a h u m a n id a d e é f e ita d o s
a d m ir a d o r e s e a d o r a d o r e s d a riq u e z a c d a g r a n d e z a e , o q u e p o d e p a r e c e r m a is e x tr a o r d i
n á r io , c o m m u ita f re q ü ê n c ia , s ã o a d m ir a d o r e s e a d o r a d o r e s d e s in te r e s s a d o s . ( TM S , p. 6 2 ).
M a s a s s im q u e c h e g a a u m a c i d a d e m a io r , e le a f u n d a n a o b s c u r i d a d e e n a s
s o m b r a s . S u a c o n d u ta n ã o é o b s e r v a d a n e m n o ta d a p o r n in g u é m c, p o r t a n t o , é p r o v á
176
A P s i c o l o g i a d o A g e n t e E c o n ô m i c o e m D a v i d H u m e e A d a m S m i t h
v e l q u e c ie p r ó p r io a n e g l i g e n c i e , a b a n d o n a n d o - s e a to d a s o r t e d e d e v a s s id ã o e v íc io s .
N u n c a e le c o n s e g u e ta n to e m e r g i r d e s s a o b s c u r i d a d e , e n u n c a s u a c o n d u t a a tr a i ta n to
a a te n ç ã o d a s o c ie d a d e r e s p e itá v e l, c o m o q u a n d o s e t o r n a m e m b r o d e u m a p e q u e n a
s e i ta r e l i g io s a (W N , p . 7 9 5 ).
A N a tu r e z a , q u a n d o f o r m o u o h o m e m p a r a a s o c ie d a d e , d o to u - o d e u m d e s e jo
o r ig in a l d e a g r a d a r , e d e u m a n a tu r a l a v e r s ã o a o f e n d e r s e u s ir m ã o s . E n s in o u - lh e a s e n
t ir p r a z e r q u a n d o a c o n s id e r a ç ã o d e s te s é f a v o rá v e l e s o f r im e n to q u a n d o e la é d e s f a v o
rá v e l. T o r n o u a a p r o v a ç ã o d e s e u s e m e lh a n te , e m si m e s m a , a c o is a m a is a g r a d á v e l e
g r a t i f i c a n t e ; e a d e s a p r o v a ç ã o a c o is a m a is m o r ti f i c a n t e e o f e n s iv a ” (T M S , p. 1 16 ).
S e ja m q u a i s f o r e m a s p a i x õ e s q u e n o s m o v e m : o r g u lh o , a m b i ç ã o , a v a r e z a , c u r i o
s i d a d e , v i n g a n ç a o u c o b iç a , o p r i n c íp io a n i m a d o r o u a a lm a d e to d a s e l a s é a s im p a tia ;
n e m e s s a s p a ix õ e s te r ia m a l g u m a f o r ç a s e n o s a b s t r a í s s e m o s c o m p l e t a m e n t e d o s p e n
s a m e n t o s e s e n t im e n t o s d o s o u tr o s . S e to d a s a s f o r ç a s e e le m e n t o s d a n a t u r e z a c o n s p i
r a r e m p a r a s e r v i r e o b e d e c e r a u m ú n ic o h o m e m : S e o s o l n a s c e r e s e p u s e r a o s e u
c o m a n d o : S c o m a r e o s r io s f lu ír e m c o n f o r m e s u a v o n ta d e [ ...] E le a in d a s e s e n tir á
a r r a s a d o a té q u e te n h a p e lo m e n o s u m a p e s s o a c o m q u e m p o s s a p a r t i lh a r a s u a f e l i c i
d a d e , e d e c u ja e s t im a e a m iz a d e e le p o s s a u s u f r u ir. (777/V, p . 3 6 3 ) 4 *.
A s m e n t e s d o s h o m e n s s ã o e s p e l h o s u m a s p a r a a s o u t r a s , n ã o s ó p o r q u e r e f le te m
a s e m o ç õ e s u m a s d a s o u tr a s , m a s ta m b é m p o r q u e e s s e s r a io s d e p a i x ã o , s e n t im e n t o s e
o p i n i õ e s , p o d e m s e r m u ita s v e z e s r e v e r b e r a d o s e p o d e m p e r d e r - s e a o s p o u c o s d e m o d o
i m p e r c e p tív e l. A s s im , o p r a z e r q u e u m h o m e m r ic o d e r iv a d e s u a s p o s s e s , s e n d o l a n
ç a d o s o b r e o o b s e r v a d o r , c a u s a u m p r a z e r e u m a e s tim a ; p o r s u a v e z e s s e s e n tim e n to ,
4. Cf. Aristóteles, Ética a Nicômano, 1155a 4-8. “Pois ninguém escolhería viver sem amigos,
embora tivesse todos os outros bens: considera-se que até mesmo os ricos que estão no poder
e em posição de comando são os que mais precisam de amigos” (p. 192).
177
C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l I t i c o
E b o m q u e a n a tu r e z a s e n o s in ip o n lia d e s s a m a n e ir a . É e s s a ilu s ã o q u e le v a n ta e
m a n té m e m c o n t í n u o m o v im e n to a i n d ú s tr ia d a h u m a n id a d e . E is s o q u e e m p r im e ir o
lu g a r n o s f e z c u ltiv a r a te r r a , c o n s t r u i r c a s a s , f u n d a r c id a d e s e n a ç õ e s , e in v e n ta r e
m e l h o r a r to d a s a s c iê n c ia s e a r te s , q u e e n o b r e c e m e e m b e le z a m a v i d a h u m a n a , q u e
t r a n s f o r m a r a m in te ir a m e n te a f a c e d a te r r a , q u e tr a n s f o r m a r a m e m f é r te is p l a n í c i e s a s
r u d e s f lo r e s ta s d a n a tu r e z a c f iz e r a m d o in tr a n s itá v e l e e s té r il o c e a n o u m n o v o f u n d o
d e s u b s i s t ê n c ia e a g r a n d e v ia d e c o m u n i c a ç ã o c o m a s d i f e r e n te s n a ç õ e s d o m u n d o
(T M S , p . I 8 3 ) 7.
7. Sobre esse ponto importante ver: Bonar, Philosophv and Polilical Economy, p. 172: “Os
homens lutam pela riqueza em grande medida porque têm uma visão ilusória dos prazeres
que se podem obter através dela, e são, dessa forma, atraídos para um curso de ação de con
seqüências benéficas que não são devidas a nenhum desígnio humano”; e Winch, Adam
Smith s Polilies, p. 9 1: “O ceticismo de Smith em relação aos prazeres materiais é uma carac
terística importante dessa obra, (TMS), e de modo algum está ausente na Riqueza das Nações.
Além de certas ‘necessidades e conveniências do corpo’, Smith mantinha que a busca de
benefícios materiais é em grande escala ilusória para os indivíduos envolvidos [...] Mas ele
reconhecia que a ilusão, embora derivada de uma corrupção de nossos sentimentos morais,
era importante para a sociedade porque ‘estimula e mantém em contínuo movimento a indús
tria da humanidade”.
180
A P s i c o l o g i a d o A g e n t e E c o n ô m i c o e m D a v i d H u m e e A d a m S m i t h
kkk
8. Cf. “An Apologie of Raymond Sebond”: “Ah, os homens, tão miseráveis e perturbados, que
lutam para ser piores do que podem!” (Essays, p. 223).
9. Malthus, First Essay, pp. 228-229: “O primeiro objeto da mente é agir como o provedor das
necessidades do corpo”.
I8 1
C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
T u d o o q u e p o s s o d i z e r é q u e o s m e l h o r e s e m a i s s á b i o s d e to d a s a s é p o c a s c o n
c o r d a r a m e m d a r a s u a p r e f e r ê n c i a , c o m m u ita in t e n s i d a d e , a o s p r a z e r e s d o i n t e l e c
to : e q u e a m i n h a p r ó p r i a e x p e r i ê n c i a c o n f i r m o u i n t e i r a m e n t e o c a r á t e r v e r d a d e i r o
d e s u a s d e c i s õ e s ; q u e e u d e s c o b r i q u e o s p r a z e r e s s e n s u a i s s ã o v ã o s , t r a n s i t ó r io s e
c o n tin u a m e n te a c o m p a n h a d o s d e té d io e d e re p u ls a , a o p a s s o q u e o s p r a z e re s in te
l e c t u a i s s e m p r e m e p a r e c e r a m n o v o s e j o v i a i s , p r e e n c h e n d o s a t i s f a t o r i a m e n t e to d a s
a s m i n h a s h o r a s , d a n d o u m n o v o s a b o r à v id a , c d i f u n d in d o u m a s e r e n i d a d e d u r a d o u
r a e m m i n h a m e n te . S e e le a c r e d i t a e m m im s ó p o d e s e r p o r c a u s a d o r e s p e i t o e d a
v e n e r a ç ã o d c m i n h a a u t o r i d a d e ; é c r e d u l i d a d e , n ã o c o n v ic ç ã o . E u n ã o d i s s e n a d a , e
182
A P s i c o l o g i a d o A g e n t e E c o n ô m i c o e m D a v i d H u m e e A d a m S m i t i i
n a d a se p o d e d iz e r q u e p r o d u z a u m a c o n v ic ç ã o re a l. O c a s o n ã o é d e r a c io c ín io , m a s
d e e x p e r i ê n c i a 10*.
10. Malthus, First Essay, pp. 261-262. Cf. I’aly, Principies, p. 23: “a felicidade não consiste nos
prazeres dos sentidos”, ou seja, “a gratificação animal de comer, beber, e aquela pela qual a
espécie é continuada”. Ver também Epíteto, The Encheiridion, vol. 2, p. 535.
I I. A expressão “obscurantismo do prazer” é de R. Barthes, The Pleasure ofthe Text, p. 46: “Um
em cada dois franceses, ao que parece, não lê: metade da França é privada - se priva do pra
zer do texto [...] Seria melhor escrever a rude, estúpida e trágica história de todos os praze
res a que as sociedades fazem objeção ou renunciam: há um obscurantismo do prazer”. Cf.
Nietzsche, The Gay Science, § 328-329, pp. 258-260; e Russel, The Conquest oj Hcippiness,
p. 53: “Parece que os homens c as mulheres se tornaram incapazes de usufruir dos prazeres
mais intelectuais. Não é só o trabalho que é envenenado pela filosofia da competição; o lazer
é envenenado na mesma proporção”.
12. S. Freud, “Creative Writers and Day-Dreaming”, 1907, p. 145. Cf. sobre esse ponto:
Tucídides, o discurso funerário de “Péricles”: “não se sente tristeza diante da perda do que
nunca foi experimentado, mas diante da privação de alegrias que a longa experiência tornou
183
C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
familiares” (pp. 44-45); Sêneca, “Peace of Mind”: “...descobrireis que aqueles para os quais
a Fortuna nunca sorriu são mais felizes do que aqueles que ela abandonou” (Minor
Dialogues, p. 267) e Spinoza, Elhics, p. 134: “não depende do poder livre da mente lembrar
ou esquecer algo conforme sua vontade”. Sobre a assim chamada “descoberta do inconscien
te” feita por Freud, ver I. Dilman, Freud and the Mind.
13. Ver a Meta/isica de Aristóteles, 982b. Hegel já simpatizara muito com essa visão e se referiu
a essa passagem de Aristóteles pelo menos três vezes: Philosophy o f Nalure, vol. I, p. 194;
Philosophy ofHistory, p. 80; e Hislorv o f Philosophy, p. 135. Ver também G. Duncan, Marx
and Mill, pp. 185-186; e Arendt, The Human Condition, pp. 132-135.
14. W. Godwin, Thoughls Occasioned by the Perusal of Dr. Parr's Spilal Sermon, p. 73.
— A P sicologia do Ag e n t e E c o n ô m i c o em D avi d H iimf. e A dam S mi t h
—
T o d a q u a lid a d e v a lio s a d a m e n te , s e ja d a im a g in a ç ã o , d o j u l g a m e n t o , d a m e m ó r ia
o u d a d is p o s iç ã o ; p e r s p ic á c ia , b o m s e n s o , e r u d iç ã o , c o r a g e m , j u s t i ç a , i n te g r id a d e ; to d a s
e s s a s q u a l i d a d e s s ã o c a u s a s d e o r g u lh o ; e s e u s o p o s to s s ã o c a u s a s d e h u m ilh a ç ã o . E s s a s
p a ix õ e s n ã o e s tã o c o n f i n a d a s à m e n te , m a s e s te n d e m s u a v is ã o ta m b é m p a r a o c o r p o .
U m h o m e m p o d e t e r o r g u lh o d e s u a b e le z a , f o r ç a , a g ilid a d e , b e la a p a r ê n c ia , e le g â n c ia
a o d a n ç a r , m o n ta r c lu ta r e s g r im a , c d e s u a d e s tr e z a c m q u a l q u e r tr a b a lh o m a n u a l. M a s
is s o n ã o é tu d o . A s p a ix õ e s , e s te n d e n d o p a r a m a is lo n g e s e u o lh a r , c o m p r e e n d e m q u a i s
q u e r o b je to s q u e e s te ja m m i n im a m e n te r e la c io n a d o s a n ó s . N o s s o p a ís , n o s s a f a m ília ,
n o s s o s f i lh o s , n o s s a s r e la ç õ e s , r iq u e z a s , c a s a s , j a r d i n s , c a v a lo s , c a c h o r r o s , r o u p a s ; q u a l
q u e r u m a d e s s a s c o is a s p o d e s e r u m a c a u s a d e o r g u lh o o u d e h u m i l h a ç ã o (T H N , p . 2 7 9 ).
F u n d a m o s a v a id a d e e m c a s a s , j a r d i n s , c a r r u a g e n s e o u t r o s o b j e t o s e x t e r n o s ,
a s s im c o m o n o m é r ito c n a s r e a liz a ç õ e s p e s s o a is ; e e m b o r a e s s a s v a n ta g e n s e x te r n a s
e s te ja m m u ito d i s t a n t e s d o q u e é o p e n s a m e n t o d e u m a p e s s o a , in f lu e n c ia m d e f o r m a
c o n s id e r á v e l a té m e s m o u m a p a ix ã o , q u e s e d ir ig e à q u ilo c o m o s e u p r in c ip a l o b je to
( THN, p . 3 0 3 ) .
185
C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
c o n o s c o , e s ã o a s s o c i a d o s o u l ig a d o s a n ó s . U m b e lo p e ix e n o o c e a n o , u m a n im a l
b e m p r o p o rc io n a d o n u m a f lo re s ta e , n a v e rd a d e , q u a lq u e r c o is a q u e n ã o n o s p e r te n
ç a e n e m e s t e j a r e l a c i o n a d a c o n o s c o n ã o te m c o m o i n f l u e n c i a r a n o s s a v a id a d e ,
f o r o g r a u d e s u r p r e s a e a d m i r a ç ã o q u e p o s s a n a t u r a l m e n t e o c a s i o n a r . E la d e v e d e
a l g u m a f o r m a e s t a r a s s o c i a d a c o n o s c o p a r a t o c a r o n o s s o o r g u lh o . S u a id é ia d e v e
p o d e s e r f á c il e n a t u r a l 15.
15. Hume, “A Disserlation on the Passions”, pp. 188-189. Essa passagem, e na verdade a
“Dissertação” como um todo é, em sua maior parte, uma cópia idêntica de partes do livro II
do THN: na citação feita aqui, por exemplo, fora mudanças de pontuação, ele substituiu “um
animal bem proporcionado numa floresta” por um “animal num deserto”. Cf. THN, pp. 303-
304. Mas na “Dissertação”, publicada pela primeira vez, em 1757, como uma das Four
Dissertations que complementavam os dois Enquiries, Hume acrescentou uma nota impor
tante, p. 486, sobre a relação de propriedade como “a relação que tem a maior influência
sobre essas paixões [ou seja, o orgulho e a vaidade]”, e que não aparece no THN.
16. Hume, “A Dissertation on the Passions”, p. 486.
86
A P s i c o l o g i a d o A c e n t e E c o n ô m i c o e m D a v i d H u m e e A d a m S m i t i i
h á m u i t o p o u c a s p e s s o a s s a tis f e ita s c o m s u a p r ó p r i a p e r s o n a l i d a d e , o u g ê n i o , o u f o r
tu n a , q u e n ã o tê m o d e s e jo d e s e m o s t r a r p a r a o m u n d o e d e g r a n j e a r o a m o r e a a p r o
v a ç ã o d a h u m a n id a d e . É e v id e n te q u e a s m e s m a s q u a l i d a d e s e c i r c u n s t â n c i a s q u e s ã o
c a u s a s d c o r g u lh o e a u t o - e s t i m a s ã o , ta m b é m , c a u s a s d e v a id a d e o u d o d e s e j o d e r e p u
t a ç ã o ; e q u e s e m p r e e x ib im o s a q u e la s p a r t i c u l a r i d a d e s c o m a s q u a is e m n ó s m e s m o s
e s ta m o s m a is s a t is f e i to s ” ( THN, p p . 3 3 1 - 3 3 2 ) .
187
C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
17. Marx, Grundisse , p. 173: “Quanto menos tempo a sociedade exigir para a produção de trigo,
gado etc., mais tempo ela ganha para outras produções, materiais ou mentais. Exatamente
como no caso de um indivíduo, a multiplicidade de seu desenvolvimento, a sua fruição e a
sua atividade dependem da economia de tempo. Economia de tempo, a isso se reduz toda
economia no final das contas”.
18. Keynes, Collecteil Writings, vol. 9, p. 327.
19. Ver Marshall, M emoriais, p. 339.
188
A P s i c o l o g i a d o A g e n t e E c o n ô m i c o e m D a v i d H u m e e A d a m S m i t i i
189
C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
M odesto F lorenzano*
O clássico não necessariamente nos ensina algo que nào sabíamos; às vezes
descobrimos nele algo que sempre soubêramos (ou acreditávamos saber) mas
desconhecíamos que ele o dissera primeiro ( ou que de algum modo se liga a ele de
MANEIRA PARTICULAR). É MESMO ESTA É UMA SURPRESA QUE DÁ MUITA SATISFAÇÃO, COMO
SEMPRE DÁ A DESCOBERTA DE UMA ORIGEM, DE UMA RELAÇÃO, DE UMA PERTINÊNCIA.
I talo Calvin o
191
C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
2. E.P. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, São Paulo, Paz e Terra, 1987, vol.
I, p. 98; e na p. 102, o mesmo autor, afirma: “O que Paine deu ao povo inglês foi uma nova
retórica de igualitarismo radical, que afetou as reações mais profundas do ‘inglês livre de
nascimento’ e penetrou nas atitudes subpolíticas do operariado urbano”.
3. Segundo, respectivamente, B. Vincent, Thomas Paine o Revolucionário da Liberdade, São
Paulo, Paz e Terra, 1989; Eric Foner, autor da introdução de Rights o f Man, Penguin, 1984
e Philip Foner, o editor moderno das obras completas de Paine, The Complete Writings of
Thomas Paine, 2 vol., 1945.
4. The World ofthe French Revolution, New York, Harper, 1971, p. 200.
5. M. Foot & I. Kramnick, op. cit. “...sua morte não foi virtualmente noticiada na imprensa
Americana”, afirma E. Foner, op. cit.
192
T h o m a s P a i n e R e v i s i t a d o
6. Eric Foner, op. cit. Quando Paine voltou aos Estados Unidos, em 1802, a imprensa federa-
lista chamou-o de “réptil asqueroso”, de “besta semi-humana”, entre outras coisas, segun
do M. Foot e I. Kramnick.
7. Bruno Bongiovanni & Luciano Guerci. (orgs.). Torino, Einaudi, 1989. Mas também os
dicionários publicados na França, por ocasião do bicentenário, e aqui traduzidos, como o
dos liberais, ou seriam conservadores? F. Furet & M. Ozouf, Dicionário Critico da
Revolução Francesa, Rio de Janeiro, Nova Franteira, 1989, e o do marxista M. Vovelle,
França Revolucionária 1790-1799, São Paulo, Brasiliense, 1989, praticamente, nada tra
zem sobre o nome e os escritos de Paine; e o mesmo ocorre com outro dicionário, aqui não
traduzido, dos historiadores conservadores J. Tulard, J. P. Fayard & A. Fierro, Histoire et
Dictionnaire de Ia Révolution Française, Paris, Robert LatTont, 1987. Todos estes dicioná
rios (o italiano e os três franceses), simplesmente ignoram que Os Direitos do Homem de
Thomas Paine contém uma das primeiras interpretações, sobre as causas e os inicios, da
Revolução Francesa!
193
C l á s s i c o s n o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
8. Prova eloquente de como é generalizada, atualmente, até mesmo entre os estudiosos, a omis
são sobre a interpretação de Paine da Revolução Francesa, pode ser encontrada tanto na bio
grafia, já citada, de B. Vincent sobre Tom Paine, quanto na longa introdução de Claude
Mouchard à cuidadosa edição de Les Droits de L Homme, Paris, Belin, 1987, pois, ambos,
silenciam, completamente sobre isso. Dir-se-ia que até mesmo o importante papel desempe
nhado por Paine na Revolução Francesa, como a Proclamação da República, o julgamento
de Luis XVI e a Declaração dos Direitos de 1793, que foi bem notado pela antiga historio
grafia, como por exemplo, Michelet e Jaurès, têm sido, injustamente, esquecidos, pela his
toriografia do sécido XX. E, no entanto, como bem observou o historiador Elie Halévy, em
seu conhecido The Crowlh oJ Philosophic Radicalism, 1928, “que outro historiador mais
qualificado do que Thomas Paine para contar a Revolução dos Direitos do Homem? Ele que
tinha testemunhado a queda da Bastilha, e tinha sido comissionado para conduzir para
Washington as chaves da prisão demolida, que estava vivendo em Paris no tempo da fuga
para Varennes, e que foi talvez o primeiro a propor que a república devia ser estabelecida,
que subseqüentemente tornou-se um membro da Convenção, e esboçou, em colaboração
com Condorcet, uma nova Declaração de Direitos. O livro de Paine inclui, além do mais,
uma tradução da Declaração, seguida de observações críticas; em muitos aspectos a primei
ra parte do seu livro pode ser vista como uma edição inglesa da Declaração dos Direitos do
Homem, acompanhada por um comentário filosófico e histórico”(pp. 186-187). De minha
parte, procurei explorar a interpretação de Paine sobre a Revolução Francesa, sobre seu cará
ter pioneiro e original, em minha tese de doutoramento As Reflexões sobre a Revolução em
França de Ednnmd Burke: Uma Revisão Hisloriográ/ica, 1994, mimeo
9. Cito o primeiro livro de Sartori, na versão francesa, da Armand Colin, Paris e o segundo na
edição original, norte-americana, em dois volumes, da Chatham Hause, New Jersey; este
último está agora também disponível em edição brasileira da Ática, São Paulo. Apesar de
Bobbio citar mais de uma vez, em vários de seus trabalhos, a frase de abertura de O Senso
Comum, e de conceder em seu livro A Era dos Direitos, Editora Campus, 1992, um bom
194
T i i o ma s Pa i n e R e v i s i t a d o
espaço ao nome de Paine, (ver pp. 87-89), isso é insuficiente para dar ao pensamento de
Paine seu devido lugar.
10. Veja-se, como exemplo, sua Fenomenologia de! Potere: Marx, Engels e Ia Tradizione Libe-
rale, Rivista di Filosofia, n. 3, dezembro, 1995.
11. Cito da edição mexicana Historia de Ia Filosofia Política, Fondo de Cultura, 1993; tradu
ção da 3. ed. inglesa de 1987 (1“ edição de 1963).
19 5
C lássicos do P ensamento P o lí ti co
12. O livro de Macpherson foi publicado pela Editora Zahar, 1978; a edição original é de 1977
e tein o título The Life and Times o f Liberal Democracy. Em seu Liberalismo Viejo y nnevo,
México, Fondo de Cultura Economica, 1993, p. 70, José Guilherme Merquior, embora tam
bém não se detenha na figura de Paine citando-o uma única vez, o faz acertadamente afir
mando que Paine é uma das três fontes da democracia representativa.
13. Paine teria dito a um amigo que seu Os Direitos do Homem “poderia tomar o lugar de todos
os livros do mundo” e que “se estivesse em seu poder demolir todas as bibliotecas existen
tes ele o faria, para destruir todos os erros de que eram depositárias e com Os Direitos do
Homem começar uma nova cadeia de idéias e princípios”. Por outro lado, aos olhos dos que
ocupavam o alto da sociedade, Paine chocava pela insolência, como o demonstram estes
dois depoimentos sobre ele, o do norte-americano Gouverneur Morris (“aventureiro inglês,
sem fortuna, sem família ou relações, ignorante até da gramática”) e o de um aristocrata
francês (“ele é grosseiro e inculto em suas maneiras, repugnante em sua aparência, e um
egoísta desprezível que se regozija sobretudo falando dele mesmo e lendo as efusões de sua
própria mente”); todas as citações são de M. Foot & I. Kramnick, op. cit. Não se deve, con
tudo, levar muito longe a vaidade, presunção e insolência de Thomas Paine, pois, seu cará
ter íntegro passou por todas as provas e, a sensibilidade de seu espírito, a abertura de seu
pensamento, se revelam nessa belíssima passagem de sua The Age o f Reason: “Sempre
defendí vigorosamente o direito de todo homem à sua própria opinião, por mais diferente
que ela possa ser da minha. Quem recusa esse direito à outrem torna-se escravo de sua pró
pria opinião, já que se recusa o direito de mudá-la”.
196
T h o m a s P a i ne R e v i s i t a d o
A s o c i e d a d e é p r o d u z i d a p e la s n o s s a s n e c e s s id a d e s , e o g o v e r n o p o r n o s s a
m a ld a d e ; a p r i m e ir a p r o m o v e n o s s a f e lic id a d e d e m a n e i r a p o s itiv a , u n in d o n o s s a s a f e i
ç õ e s , e a s e g u n d a d e m a n e ir a n e g a tiv a , c e r c e a n d o n o s s o s v íc io s . A p r i m e ir a é p a t r o c i
n a d o r a , a s e g u n d a p u n itiv a .
Q u a s e tu d o o q u e s e r e l a c i o n a c o m u m a n a ç ã o fo i a b s o r v i d o e c o n f u n d i d o s o b
a p a l a v r a g e r a l e m i s t e r i o s a d e g o v e r n o . E m b o r a e le e v ite r e c o n h e c e r o s e r r o s q u e
c o m e t e e o s m a le s q u e o c a s i o n a , n ã o d e ix a d e a t r i b u ir a si tu d o o q u e te m a s p e c to d e
p r o s p e r id a d e . E le d e s p o ja a in d ú s tr ia d e s u a s h o n r a s , p e d a n t e s c a m c n t c s e f a z e n d o a
c a u s a d e s e u s e f e ito s ; r o u b a d o h o m e m o s m é r i to s q u e lh e p e r t e n c e m c o m o s e r
s o c ia l[ ...] E m r e s u m o , a s o c i e d a d e r e a liz a p o r si m e s m a q u a s e tu d o o q u e é a t r i b u íd o
a o g o v ern o .
197
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
14. Thompson, op. cit., p. 104 e M. Foot & I. Kramnick, op. cit., p. 24. Mas, como se verá a
seguir, na medida em que Paine é absolutamente categórico em atribuir aos governos - aos
maus governos monárquicos hereditários da Europa e do mundo - a culpa pela pobreza exis
tente, há um abismo entre o seu liberalismo e o liberalismo dos que, como Burke,
Tocqueville e H. Arendt, para citar três nomes famosos, consideram que o governo não só
nada pode fazer para eliminar a pobreza existente como quando tenta fazê-lo acaba por agra
vá-la. Senão vejamos. Para Burke, “De todas as coisas, uma intervenção indiscreta no
comércio de alimentos é muito perigosa, e pior na época em que os homens estão dispostos
a isto, ou seja, em uma época de escassez [...] Opino contra uma extralimitação de qualquer
tipo de governo, e em especial contra a mais importante de todas as intrusões da autoridade:
a intervenção para a manutenção das pessoas”. Tocqueville, declara-se “profundamente con
vencido de que qualquer sistema administrativo permanente, regular, cuja meta seja satisfa
zer as necessidades dos pobres, criará mais miséria da que remedia, depravará a população
à qual deseja ajudar e atender, com o tempo fará que apenas os ricos sejam os arrendatários
dos pobres, esgotará a fonte de suas poupanças, deterá a acumulação de capitais, retardará o
desenvolvimento do comércio, entorpecerá o trabalho e as atividades humanas, e terminara
produzindo uma revolução violenta neste Estado, quando o número dos que recebem a cari
dade chegar a ser maior dos que a dão, e aos indigentes - que já não poderão receber ajuda
dos ricos empobrecidos para satisfazer suas necessidades - lhes parecerá mais fácil despo
já-los de todas suas propriedades de uma boa vez e não pedir-lhes ajuda”. H. Arendt, por sua
vez, está convencida de que “toda tentativa de resolver a questão social por meios políticos
leva ao terror [...] Nada [...] pode ser mais antiquado do que a tentativa de libertar o gênero
humano da pobreza com meios políticos; nada pode ser mais inútil e mais perigoso”. Todas
as três citações foram retiradas de Florenzano, op. cit., pp. 153 e 369.
15. Em sua monumental Historia dei Pensamiento Socialista, México, Fondo de Cultura
Econômica, 1957, vol. I, pp. 39-40, o historiador G. D. H. Cole afirma, referindo-se ao
198
T h o m a s P a i ne R e v i s i t a do
A n a t u r e z a e o c a r á t e r d a a r i s t o c r a c i a r e v e la - s e n a le i d a p r im o g e n it u r a : é u m a
le i c o n t r a to d a s a s le is n a tu r a is e a p r ó p r i a n a t u r e z a é q u e m e x ig e s u a d e s t r u i ç ã o [ ...] A té
a q u i v im o s a a r i s t o c r a c i a d e u m p o n t o d e v is ta . T e m o s a g o r a q u e c o n s i d e r á - l a d e o u tr o .
M a s , q u e r a o l h e m o s d e f r e n te o u d e tr á s , d e la d o o u d e q u a l q u e r o u t r o p o n t o d e v is ta ,
s e j a p ú b lic o , s e ja p r iv a d o , e l a c o n t i n u a s e n d o u m m o n s tr o [ ...] a id é ia d e l e g is la d o r e s
h e r e d i t á r i o s é t ã o iló g ic a c o m o a d e j u i z e s h e r e d itá r io s ; t ã o a b s u r d a c o m o u m m a t e m á
tic o h e r e d i t á r i o , o u u m s á b io h e r e d i t á r i o e tã o r i d íc u la c o m o u m p o e ta la u r e a d o h e r e
d i t á r io [...] E s te é o c a r á t e r g e r a l d a a r i s to c r a c ia , o u a q u ilo q u e s e c h a m a d e n o b r e s o u
n o b r e z a ( o u n o b ility o u m e lh o r : n o -a b ility ) e m to d o s o s p a ís e s .
livro de Paine: “O programa que expôs pode, com razão, ser considerado como o precur
sor de todos os programas posteriores para utilizar os impostos como instrumento para a
redistribuição de renda em beneficio da justiça social”. E um pouco mais adiante acrescen
ta: “Até o ponto em que o socialismo pode ser identificado com a instituição do ‘Estado
benfeitor’ ou de serviço social, baseado nas contribuições redistributivas como instrumen
to de democracia, Paine pode, sem dúvida, ser considerado como o primeiro que teve idéias
práticas sobre este tipo de legislação”.
16. “Tendo procurado, nas partes anteriores deste livro, estabelecer um sistema de princípios
como base sobre a qual deveria ser constituído o governo, nesta passarei aos meios e modos
de transformá-los em prática”, afirma Paine no último capítulo, da segunda parte, de Os
Direitos do Homem. Para Paine, um governo baseado nesse “sistema de princípios”, só
poderia ser republicano, pois, só a república poderia ser compatível com a democracia, a
igualdade entre os homens, e com o poder representativo. Daí a razão de lembrar no livro
que “A independência da América considerada apenas como uma separação da Inglaterra,
teria sido uma questão de importância menor se não tivesse sido acompanhada de uma
revolução nos princípios e nas práticas do poder”.
199
C lássicos do P ensamento P olí ti co
E a realeza:
A s u c e s s ã o h e r e d i t á r i a é u m a p a r ó d ia d a m o n a r q u ia . C o l o c a - a n o r id íc u lo m a is
e v i d e n te , a p r e s e n ta n d o - a c o m o u m o f í c i o q u e u m a c r i a n ç a o u u m id io ta p o d e e x e rc e r.
R e q u e r e m - s e a l g u n s ta le n to s p a r a s e r u m o p e r á r io c o m u m . P a r a s e r r e i, p o r é m , é p r e
c i s o a p e n a s t e r a f i g u r a a n im a l d e h o m e m - u m a e s p é c ie d e a u tô m a to q u e r e s p i r a 17.
17. Vejam-se também essas passagens: “Como é, então, que classes inteiras da humanidade são
chamadas de multidão vulgar ou ignorante e são tão numerosas em todos os países antigos?
Ao mesmo tempo em que nos fazemos esta pergunta, a reflexão percebe uma resposta. Elas
surgem como conseqüência inevitável da má constituição de todos os antigos governos na
Europa, inclusive da Inglaterra. É devido ao engrandecimento distorcido de alguns homens
que outros são distorcidos e aviltados, até que o conjunto esteja desnaturado. Imensa massa
humana é vilmente jogada para o fundo do quadro humano para ressaltar, com mais brilho,
o espetáculo de fantoches do Estado e da Aristocracia”. “Por que então o Sr. Burke fala da
Câmara dos Lordes como o pilar dos interesses fundiários? Se este pilar afundasse no chão,
a mesma propriedade rural continuaria, o mesmo arar, semear e colher continuariam. A
aristocracia não são os lavradores que amainam a terra e a fazem produzir, mas são apenas
consumidores de renda. Quando comparados com o mundo ativo, eles são os zangões, um
serralho de machos, que nem colhem o mel nem fazem a colméia, mas existem apenas para
empregos indolentes.” “Para a paz, a civilização e o comércio universais se tornarem a feliz
sorte da humanidade não há outro meio de o conseguir senão por uma revolução no siste
ma de governo. Todos os governos monárquicos são militares. A guerra é seu comércio,
saque e receita seu objetivo. Enquanto durarem tais governos, a paz não terá a segurança
sequer um dia. O que é a história de todos os governos monárquicos senão um quadro
repugnante da miséria humana com intervalos acidentais de repouso de alguns anos?” Ora,
como verdadeiro ilustrado da segunda metade do século XVIII, Paine estava convencido
que “a idade da razão” estava se tornando, no mundo, uma realidade irresistível: “O que
vemos agora no mundo, porém, a partir das revoluções da América e da França, é uma reno
vação da ordem natural das coisas, um sistema de princípios tão universal como a verdade
e a existência do homem, combinando moral com felicidade política e prosperidade nacio-
200
T h o m a s P a i ne R e v i s i t a d o
P e r g u n to - m e p o r q u e o S e n h o r a in d a n ã o m a n d o u e n f o r c a r e s s e c a f a je s te d e
P a in e d e v id o a s e u ig n ó b il lib e lo c o n t r a o R e i, o s L o r d e s e o s C o m u n s . I m a g in o q u e a
e x tr e m a b a ix e z a d e s s e p a n f le to , o u a p e r f íd ia d o s q u e d e s e ja m d if u n d i- l o e n tr e a s p e s
s o a s c o m u n s , lh e v a le u n u m e r o s a s e d iç õ e s [...] e le p o d e c a u s a r m a le f íc io s n o s lu g a r e s
o n d e a c e r v e j a é v e n d id a n a I n g la te r r a e a in d a n o s lo c a is d e v e n d a d e u ís q u e d a I rla n d a .
Q u e e u s a ib a é d e lo n g e o liv ro m a is t r a iç o e ir o q u e j a m a i s f ic o u im p u n e ; s e n d o a s s im
d ê - m e o p r a z e r d e e n f o r c a r e s s e in d iv íd u o , s e o s e n h o r c o n s e g u ir a g a r r á - lo .
nal”. Dai porque, sentenciava, como se fosse a coisa mais natural do mundo, no prefácio à
segunda parte de seu livro: “Não creio que a monarquia e a aristocracia continuem por mais
sete anos em qualquer país esclarecido da Europa”. Por ai se vê que o que disse um ameri
cano comum, em carta de agradecimento a Tom Paine, sobre o efeito que a leitura de O
Senso Comum lhe havia causado: “O Senhor exprimiu os sentimentos de milhões de
homens. O seu livro pode, com toda justiça, ser comparado a um dilúvio que carrega tudo
à sua frente. Nós éramos cegos mas, ao ler suas palavras esclarecedoras, caiu-nos a venda
dos olhos”; citado por B. Vincent, op. cit., vale também, e mais ainda, para o impacto cau
sado pela leitura de Os Direitos do Homem nos homens comuns do Reino Unido, em par
ticular, e do mundo em geral. Tem toda razão, pois, o historiador A. J. P. Taylor, quando con
sidera Os Direitos do Homem “A melhor declaração de fé democrática jamais escrita em
qualquer língua”, cit. por Foot & Kramnick, op. cit.
18. Todas as citações do parágrafo foram retiradas de Florenzano, op. cit.
201
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
Q u a n d o a lg u é m p o d e d i z e r e m q u a l q u e r p a ís d o m u n d o , m e u s p o b r e s s ã o f e li
z e s , n e m i g n o r â n c i a n e m m is é r ia s e e n c o n tr a m e n tr e e le s ; m in h a s c a d e ia s e s tã o v a z ia s
d e p r i s i o n e i r o s , m in h a s r u a s d e m e n d ig o s : o s id o s o s n ã o p a s s a m n e c e s s i d a d e s , o s
p a ís o r g u lh a r - s e d e s u a c o n s t it u i ç ã o e d e s e u g o v e r n o .
O p r e s e n te e s t a d o d a c iv iliz a ç ã o é tã o o d i o s o q u a n to in ju s to . É a b s o lu ta m e n te
o o p o s t o d o q u e d e v e r ia s e r, e é n e c e s s á r io q u e u m a r e v o lu ç ã o n e le s e ja f e ita . O c o n
t r a s t e e n tr e r iq u e z a e m is é r ia , c o n t i n u a m e n t e e n c o n tr a n d o e o f e n d e n d o a v is ta , é o
m e s m o d e v e r c o r p o s v iv o s e m o r to s e n c a d e a d o s j u n to s .
202
T h o m a s Pa i ne R e v i s i t a d o
V is to p o r q u a lq u e r â n g u lo é p e r ig o s o e p o u c o p o lític o , a s v e z e s r id íc u lo , e s e m p r e
to d o s o s m e io s p e lo s q u a is a p r o p r ie d a d e p o d e s e r a d q u ir id a s e m m é r ito , e p e r d id a s e m
is to n e n h u m a p a r te d a c o m u n id a d e te m o d ir e ito d e se p r o n u n c ia r a r e s p e ito d a o u tr a
p a r te . N e n h u m a c ir c u n s tâ n c ia e x te r n a p o d e j u s t i f i c a r isto : a r iq u e z a n ã o é p r o v a d e c a r á
r e d u z ir u m h o m e m à e s c ra v id ã o , p o is a e s c ra v id ã o c o n s is te e m f i c a r s u b m e tid o à v o n ta
tã o c r im in o s o q u a n to a p r o p o s ta d e s u p r im ir a p r o p r ic d a d e [ ...] É p o s s ív e l e x c lu ir o s
f e ito )...] T u d o o q u e s e r e q u e r c o m r e la ç ã o à p r o p r ie d a d e é q u e e la s e ja a d q u ir id a h o n e s
ta m e n te , e q u e n ã o s e ja u tiliz a d a c r im in o s a m e n te ; m a s é s e m p r e u s a d a c r im in o s a m e n te
é a p e n a s u m d e le s e n ã o o m a is e s s e n c ia l. A p r o te ç ã o d a p e s s o a h u m a n a é m a is s a g r a d a
d o q u e a p r o te ç ã o d a p r o p r ie d a d e ] ...] S e s e f a z d a p r o p r ie d a d e o c r ité r io , p r o d u z - s e u m
to ta l a f a s ta m e n to d e to d o p r in c íp io m o r a l d e lib e r d a d e , u m a v e z q u e s e e s tá lig a n d o d ir e i
to s à m e r a m a té r ia , e to r n a n d o o h o m e m o a g e n te d a q u e la m a té r ia 20.
20. Excertos por mim selecionados e traduzidos. O ensaio de Paine é curto, na edição, integral,
da Penguin, The Thomas Paine Reader, ocupa as páginas 452-470.
203
C i. á s s i c o s do P ensamento Po lí ti co
B u r k e v a i o m a is lo n g e p o s s ív e l n o s e n tid o c o n s e r v a d o r , c o n tin u a n d o a s e r u m
in te r n o à á r e a lib e ra l e , m a is p r e c is a m e n te , c o n tr ib u i p a r a d e f i n i r ta l á r e a a la r g a n d o - a 21.
21. “II Liberalismo Francese e Inglese”, VEredità delta Rivoluzione Frcmcese, F. Furet (org.),
Roma, Laterza, 1989.
204
T h o m a s P a i ne R e v i s i t a d o
S e m p r e a c r e d ite i q u e a m e l h o r s e g u r a n ç a p a r a a p r o p r i e d a d e , s e j a e la g r a n d e
o u p e q u e n a , c o n s i s t e c m r e m o v e r d e to d a s a s p a r te s d a c o m u n i d a d e , ta n to q u a n t o is to
s e ja p o s s ív e l to d a c a u s a d e r e c la m a ç ã o , e to d o m o tiv o p a r a v io l ê n c i a ; e is to s ó p o d e
s e r a lc a n ç a d o c o m a ig u a ld a d e d e d ir e ito s . Q u a n d o o s d i r e i to s e s tã o s e g u r o s , a p r o p r i e
d a d e , c o n s e q ü e n t e m e n t e ta m b é m e s tá s e g u ra . M a s q u a n d o a p r o p r i e d a d e é t r a n s f o r m a
d a n a p r e t e n s ã o p a r a a d e s i g u a l d a d e o u e x c lu s iv id a d e d e d ir e ito s , e n f r a q u e c e - s e o
d i r e i to q u e s u s te n ta a p r o p r ie d a d e , e p r o v o c a - s e in d ig n a ç ã o e t u m u lto ; p o i s , n ã o é n a t u
ra l a c r e d i t a r q u e a p r o p r ie d a d e p o d e e s ta r s e g u r a s o b a g a r a n tia d e u m a s o c i e d a d e
in j u s t a c m s e u s d ir e ito s p e la in f lu ê n c ia d a q u e la p r o p r ie d a d e .
205
C l á s s i c o s i>o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
N ã o h á u m ú n ic o a r t i g o n a C o n s titu iç ã o q u e g a r a n ta a lib e r d a d e d o in d iv íd u o ,
s e m o q u e n ã o h á n a d a q u e s e p a r e ç a à lib e r d a d e p ú b lic a , p o is a l i b e r d a d e p ú b l i c a n ã o
é s e n ã o a r e u n i ã o d a s l i b e r d a d e s in d iv id u a is . N a d a h á p a r a im p e d ir o f u tu r o g o v e r n o
d e d e t e r e e n c a r c e r a r a s p e s s o a s à d i s c r i ç ã o e d e m a n tê - la s n a p r is ã o s e m g a r a n tia s [ ...]
A o e l a b o r a r c o n s t it u i ç õ e s é n e c e s s á r io n o q u e ta n g e a tu d o o q u e in te r e s s a à s e g u r a n
ç a d o in d ivíd u o , p e n s a r m o s c o m o u m in d ivíd u o s o b r e o q u a l o p o d e r c u ja c r i a ç ã o p r o
p o m o s d e v e s e r e x e r c id o . A o c o n tr á r io , a q u e le s q u e f iz e r a m a a tu a l C o n s t i t u iç ã o (a
M o n t a n h a ) p e n s a r a m c o m o s e s e m p r e d e v e s s e m t e r n a s m ã o s o e x e r c íc io d e s s e p o d e r.
E s q u e c e r a m q u e , e n q u a n t o i n d iv íd u o s , p o d e r ia c h e g a r o d ia e m q u e s e r i a e x e r c id o
s o b r e e l e s 22.
22. Citado por Li. Vincent, op. cil., p. 257. Como bem lembrou o historiador Thompson “Paine
e seus seguidores ingleses não pregavam o extermínio de seus oponentes, mas sim, prega
vam contra Tyburn e o código penal sanguinário. Os jacobinos ingleses defendiam o inter-
nacionalismo, a arbitragem em lugar da guerra, a tolerância aos dissidentes, católicos e
livre-pensadores, o reconhecimento das virtudes humanas em ‘pagãos, turcos ou judeus’.
Pretenderam transformar, pela educação e pela agitação, a ‘turba’ (nas palavras de Paine)
de ‘adeptos de lutas campais’ em adeptos do ‘estandarte da liberdade’. Mas a reação na
nossa época contra as interpretações marxistas ou liberais da história tem sido tão intensa
que alguns acadêmicos propagaram uma inversão ridícula dos pápeis históricos: os perse
guidos são vistos como os precursores da opressão, e os opressores como vitimas de per
seguição. É por isso que fomos obrigados a passar por essas verdades elementares”; Op.
cil.. pp. 108-109.
23. Le Passéd'une Ulusion. Essai sur í ’ídée Commimiste au XXSiècle, Paris, R. Laffont & C.
Lévy, 1995, pp.26.
206
T h o m a s P a i ne R e v i s i t a d o
o segundo explica a sua tese, nem o primeiro pode, et pour cause, usar
o nome de Paine! Sartori, por sua vez, ao tratar, na sua teoria da demo
cracia, da relação entre liberalismo e democracia, chama a atenção
para os “encavalamentos”, os “mal-entendidos”, entre os dois concei
tos e, para defender, sem, contudo, convencer o liberalismo das críti
cas, lembra que esta é “uma palavra infeliz”, mas que “não se deve
jamais esquecer que o que a democracia acrescenta ao liberalismo é ao
mesmo tempo uma conseqüência do liberalismo[...] A democracia é o
complemento, não o substitutivo do liberalismo”24.
Seja como for, a verdade é que Paine tornou-se um autor desin
teressante, para não dizer incômodo, tanto para a esquerda (que depois
de 1830 se confunde com os socialistas em geral) quanto para a direi
ta (para os liberais, para não falar dos conservadores). Para os socialis
tas, e de todas as cores, porque Paine, apesar de todo o seu radicalismo
político, nunca se colocou contra o mercado e a propriedade privada
dos meios de produção. Assim, para o marxista E.J. Hobsbawm, “as
verdadeiras propostas políticas deste homem profunda e instintivamen-
te revolucionário foram ridiculamente moderadas”25. Para os liberais,
porque, como bem percebeu a historiadora G. Himmelfarb,
A r e v o lu ç ã o p o l í t i c a q u e s e p e d ia e m O s D ir e ito s d o H om em e r a u m a r e v o l u
ç ã o g e n u í n a q u e r e q u e r ia a a b o l i ç ã o d e t o d a a h e r a n ç a d o p a s s a d o , in c l u s i v e d a
m o n a r q u i a e d a a r i s t o c r a c i a , e in a u g u r a v a u m a e s p é c i e d e “ r e v o l u ç ã o p e r m a n e n t e ”
o n d e c a d a g e r a ç ã o c r i a r i a s u a s p r ó p r i a s le is c i n s t i t u i ç õ e s 26.
207
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
c l a s s e d e h o m e n s , o u u m a g e r a ç ã o d e h o m e n s , e m q u a l q u e r p a ís , c o m a p o s s e d o d i r e i
t o o u o p o d e r d e o b r i g a r e c o n t r o l a r a p o s te r id a d e a té ‘o f i m d o s t e m p o s ’ o u d e i m p o r
p a r a s e m p r e c o m o o m u n d o s e r á g o v e r n a d o , o u q u e m o g o v e r n a r á [ ...] A v a id a d e e a
p r e s u n ç ã o d e g o v e r n a r a lé m s e p u ltu r a é a m a is r i d íc u la e in s o le n te d e to d a s a s tir a n ia s .
O h o m e m n ã o te m n e n h u m a p r o p r i e d a d e s o b r e o h o m e m [ ...] E s to u l u ta n d o p e lo d ir e i
t o d o s v iv o s e c o n t r a o f a to d e s e r e m a lie n a d o s , c o n t r o l a d o s e c o n s t r a n g i d o s p e l a p r e
te n s a a u t o r i d a d e d o s m o r to s q u e f i c o u p o r e s c r ito . O S r. B u r k e d e f e n d e a a u to r id a d e
d o s m o r to s s o b r e o s d i r e i to s e a lib e r d a d e d o s v iv o s [ ...] B a s ta u m m ín im o d e p e r s p i c á
v i g o r n a s g e r a ç õ e s s e g u in te s , e la s c o n tin u a m a t i r a r s u a f o r ç a d o c o n s e n t i m e n to d o s
v iv o s . U m a lei n ã o r e v o g a d a c o n t i n u a e m v i g o r n ã o p o r q u e e la n ã o p o s s a s e r r e v o g a
d a , m a s p o r q u e e la n ã o fo i r e v o g a d a ; e a n ã o r e v o g a ç ã o p a s s a p e lo c o n s e n tim e n to [ ...]
C o m o o g o v e r n o é p a r a o s v iv o s , c n ã o p a r a o s m o r to s , a p e n a s o s v iv o s tê m a lg u m
d i r e i to s o b r e e le . O q u e p o d e s e r p e n s a d o c e r t o e a c h a d o c o n v e n ie n te n u m a é p o c a p o d e
s e r p e n s a d o e r r a d o e a c h a d o in c o n v e n ie n te e m o u tr a . E m ta is c a s o s , q u e m d e c id e : o s
v iv o s o u o s m o r to s ?
208
T i i o ma s P a i ne R ev i s i t a i j o
209
.
C O N JU N Ç Õ ES C R ÍT IC A S DA
D EM O CRA TIZAÇ ÃO : AS IM PL IC A Ç Õ E S DA
F IL O SO F IA DA H ISTÓ R IA DE H EG EL PARA
UM A AN Á LISE H IST Ó R IC A COMPARATIVA*
Introdução
* Este texto se apóia em pesquisas realizadas na Alemanha, com auxilio do German Marshall
Fund ofthe United States.
** Conferência proferida no lEA/USP em 11 de novembro de 1994. Kurt von Mettenheim é
professor adjunto de Administraçnao de Empresas de São Paulo-FGV.
N. da T.: A expressão criticaijunctures, definida no texto, foi traduzida como conjunções crí
ticas. A expressãopath dependence, igualmente definida, foi conservada em inglês.
21 I
C lássicos do P ensamento P o lí ti co
1. Sobre a necessidade de teoria clássica em estudos comparativos, ver: Atui Kohli, Peter Evans,
Peter J. Katzenstein, Adam Przeworski, Suzan Hoeber Rudolf, James Scott & Theda Skocpol,
“The Role ofTheory in Contparative Politics: a Symposium”, World Politics, vol. 48, n. I,
out. 1995, pp. 1-49.
2. Uma revisão recente dessas perspectivas encontra-se em: Paul Pierson, “Path Dependence
and the Study of Politics”, American Political Science Association Annual Meeting, San
Francisco, 1996; e lan Lustick, “History, Historiography, and Political Science: Multiple
Historical Records and the Problem ofSelection Bias”, American Political Science Review,
vol. 90, set., 1996.
3. Ver: Theda Skocpol, Protecting Soldiers and Mothers: The Political Origins o f Social
Origins o f Social Policv in the United States, Cambridge, Belknap Press Harvard, 1992.
212
C o nj unçõ es C ríticas da D emocratização
4. Nolar que a Filosofia da História de Hegei começa por uma revisão das civilizações orien
tais e das origens da Grécia no império persa. Ver: George Pericles, Barbarian Asia and the
Greek Experience: From the Archaic Period Io the Age o f Xenophon, Baltimore, Johns
Hopkins University Press, 1994.
5. Sobre path dependence, ver: Paul Pierson, "Path Dependence and the Study of Politics”;
Douglas C. North, Institutions. Institutional Change, and Economic Performance, Cambridge,
Cambridge University Press, 1990; Sven Steinmo, Kathleen Thelen & Praitk Longstreth
(eds.), Stnicturing Politics: HistóricaI Institntionalism in Comparative Analvsis, Cambridge,
Cambridge University Press, 1992. Sobre momentos cruciais, ver: Ruth B. Collier & David
Collier, Shaping the Political Arena: Criticai Junctures, the Labor Movement, and Regime
Dynamics in Latin America, Princeton, Princeton University Press, 1991.
213
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
6. Embora as perspectivas históricas sobre a democracia tendam a enfatizar as ondas que rede
finiram seu conteúdo, por pesquisar insuficientemente a história, elas deixam de desvendar
a origem e a evolução do princípio democrático. Ver: Samuel Huntington, The Third Wave:
Democratization in lhe Late Twentielh Cenlury, Norman, University of Oklahoma Press,
1991, e John Markoff, Waves o f Democracv: Social Movements anil Poliücal Change,
Thousand Oaks, Pine Forge Press, 1996.
7. Vera introdução a: Max Weber, The Sociology o f Religion, Boston, Beacon Press, 1993.
8. Barrington Moore, Social Origins o f Dictactorship and Democracv, Boston, Beacon Press,
1966. Para uma interpretação mais estruturalista, reagindo ao argumento de Moore, ver:
Gregory Lucbbert, Liheralism, Fascism, or Social Democracy, New York, Oxford, 1991,
pp. 306-315.
214
C o nj unçõ es C ríticas ba D emocratização
Conjunções Críticas
e Democracia como Princípio
215
C lássicos do P ensamento Po l í ti c o
12. David Collier & Steven Levitsky, “Democracy witli Adjectives: Conceptual lnnovation in
Comparative Research”, World Polilics, vol. 49(3), april, 1997, pp. 430-451; e Guillermo
0 ’Donnell, “lllusions of Consolidation”, Journal o) Democracy, vol. 7, n. 2' april, 1996, pp.
34-51.
13. Notar a diferença, no trabalho recente de Parsons sobre Weber, quanto à interpretação de um
percurso através das noções de autoridade tradicional, carismática e legal-racional. Ver: Max
Weber, The Theory o/ Economic and Social Organization, New York, Free Press, 1947 (intro
dução porTalcott Parsons, pp. 56-86).
216
C o nj unçõ es C rí ti cas da D emocratização
14. Os editores das obras completas de Weber demonstraram que ele enfatizou um quarto prin
cípio adicional de dominação legítima. A significação desse quarto tipo para o assunto pre
sente é claramente sugerida por seu título: “O principio democrático da legitimação”.
Embora central na palestra feita por Weber, em 1917 (em outubro, enquanto se desenrolavam
os dramáticos acontecimentos da Revolução Russa), esse quarto tipo jamais se tornou um
capítulo independente ou uma subseção, nos manuscritos de Weber que foram publicados. Ao
contrário, os parágrafos originais da palestra de 1917 que discutem a força legitiniadora do
princípio democrático foram simplesmente inseridos no capítulo sobre o carisma, para a ver
são final de Economia e Sociedade. Faz-se necessária uma análise mais minuciosa desses
procedimentos editoriais. Contudo, descrever o princípio democrático como um subconjun
to de problemas vinculados ao carisma, evidentemente constitui uma falha por não se fazer
justiça a uma série de problemas cruciais da teoria e da análise da democracia.
217
'
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
Conjunção Crítica 1
A Organização da Democracia na Grécia Antiga
218
C o nj unçõ es C rí ti cas da Democratização
15. Josiah Ober tem sido o principal arauto da ligação entre o estudo da Grécia antiga e as preo
cupações contemporâneas na ciência e teoria políticas. Ver: Josiah Ober, The Alhenian
Revolution, Princeton, Princeton University Press, 1996; e Josiah Ober & Charles Hendrick
(eds.), Demokratia: A Conversalion on Democraeies Ancient and Modem, Princeton,
Princeton University Press, 1996.
16. François de Polignac, Cults, Terrílory, and lhe Origins o f lhe Greek City-State, Chicago,
University of Chicago Press, 1995.
17. James 0 ’Neil, The Origins and Development o f Ancient Greek Democracy, Lanhani,
Rowman & Littlefield, 1995.
18 Christian Meier, The Greek Discovery o f Polilics, Cambridge, Cambridge University Press,
1991; e Alan L. Boegehold & Adele C. Scafuro (eds.), Athenian Identity and Civic Ideology,
Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1994.
219
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
Conjunção Crítica 2
A Emergência do Cristianismo em Roma
19. A Filosofia da História de Hegel revê o mito e a literatura secundária sobre os fundamentos
de Roma, apoiando-se então em Tito Lívio e Niebuhr para descrever a organização de seis
220
C onj unçõ es C ríticas da Democratização
221
C lássicos do P ensamento P olí ti co
Conjunção Crítica 3
A Arte de Governar de Carlos Magno. As Reformas
Religiosas do Papa Gregário VII e a Ordem Medieval
25. J. 13. Campbell, The Emperor and lhe Roman Armv, Oxford, Oxford University Press, 1984.
26. J. Liebeschuetz, Conlintiily and Change in Roman Religion, Oxford, Oxford Univesity Press,
1979, p. 187.
27. Wayne Meeks, The First Urban Christians: The Social World ofApostle Paul, New York, Yale
University Press, 1983.
28. Timothy D. Barnes, Athanasius and Constantine: Theotogy and Polilics in lhe Conslanlinian
Empire, Cambridge, Harvard Univesity Press, 1993.
222
C o nj unçõ es C ríticas ba Democratização
29. Sobre as mudanças organizacionais da Igreja durante Gregòrio VII, ver: Colin Morris, The
Papa! Monarchy, Oxford, Oxford University Press, 1989.
223
C lássicos do P ensamento P olí ti co
30. Embora seja considerado como uni texto pioneiro entre historiadores contemporâneos, a tese
de Pirenne é claramente articulada com a Filosofia da História. Henri Pirenne, Mohammed
and Charlemagne. London, Allen & Unwin, 1939; e Hodges, Richard & David Whitehouse,
Mohammed. Charlemagne & the Origins o f Europe, Archaeology and the Pirenne Thesis,
lthaca, Cornell University Press, 1983. Ver também: Joseph R. Strayer, Medieval Statecraft
and llie Perspectives o f Historv, Princelon, Princeton University Press, 1971.
31. Fernand Braudel, The Mediterranean and the Mediterranean World in the Age ofPhillip II.
London, 1972/3, 2 vols.; e Judith Herrin, The Formation o f Christendom, Princeton:
Princeton University Press, 1987.
32. Perry Anderson, Passages from Antiquity to Feudalism, London, NLB, 1974; e C. Wickham,
“The OtherTransition: From the Ancient World to Feudalism”, Past and Present. 103, 1984,
224
C onj unções C ríticas da D emocratização
u m a e x p a n s ã o d a c o n s c i e n t i z a ç ã o e d a s f a c u l d a d e s d e p e r c e p ç ã o d o e s t r a t o a té e n tã o
s i l e n c io s o d a m a s s a d e la b o ra to res, o s d e s p r iv ile g ia d o s , p e r te n c ia m a o s d e s e n v o l v i
m e n t o s r e v o lu c io n á r io s d e s p e r t a d o s p e l a p r o f u n d i d a d e e a m p l i t u d e d o g r a n d e c o n f lito
n o R eich 34.
pp. 3-36. Para uma perspectiva diferente, ver: Dietrich Gerhard, Old Europe: A Study o f
Continuity 1000-1ROO, New York, Academic Press, 1981.
33. “The wars Henry IV, atter his return from Canossa, waged against his enemies in Germany
bore a revolutionary character on both sides”. Karl Leyser, “The Gregorian Revolution and
Beyond”, Communications aiul Power, London, Hambledon Press, 1982, p. 14.
34. Idem, tbidem, p. 15.
35. Karl Leyser, “Medieval Germany and its Neighbors", op. cit., p. 94.
36. Leyser, “Ottonian Government”, op. cit., p. 150.
225
C lássicos do P ensamento P o lí ti co
37. Leyser sustenta que seria errado considerar a origem e o desenvolvimento do reinado itine
rante como “arcaico, primitivo e atrasado”, ou como antecipando o excepcionalistno germâ
nico. “Medieval Germany and its Neighbors, 900-1250”, op. cit., p. 70.
38. Leyser, tdem, p. 94.
39. Karl Leyser assinala: “A velha escola supunha, com algumas exceções, o Estado e um
aumento de atribuições administrativas do governo, sem colocar questões muito precisas
sobre seu funcionamento, no dia-a-dia. Nessa sua abstração, era uma sombra da história das
instituições que realmente não existiam” in “Medieval Germany and its Neighbors, 900-
1250”, op. cit., p. 80. Por velha escola, Leyser entende: C. C. Bailey, The Formation ofthe
German College o f Electors in the Micl-Thirteenth Century, Toronto, 1949; e Heinrich
Mittels, The State in the Middie Ages: A Comparative Constitutionai Historv o f Feudal
Europe, Amsterdam, North-Holland, 1975.
226
C o nj unções C ríticas da D emocratização
40. Leyser, “Medieval Germany and its Neighbors, 900-1250”, op. cit., p. 179.
41. Perry Anderson, Passages from Antiquity to Feudalism, London, Verso, 1974; Herald
Berman, Law and Revolution, Cambridge, tlarvard University Press, 1983; Marc Bloch,
Feudal Society I: The Growth ofTies o f Dependence, London, Routledge, 1965; e Colin
Morris, The Papal Monarchy: The Western Church. 105(1-1250, Oxford, Oxford University
Press, 1989.
42. Suzan Reynolds, Fiejs and Passais: The Medieval Evidence Reinterpreted, Oxford, Oxford
University Press, 1994.
43. Berman, op. cit., p. 36.
44. Reynolds, op. cit., p. 482.
227
C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
E n tr e a q u e d a d o I m p é r io R o m a n o e o d e s e n v o lv im e n to d a q u ilo q u e e r a c o n
s i d e r a d o c o m o g o v e r n o m o d e r n o c iv iliz a d o , a E u r o p a e s te v e m e r g u lh a d a , a s s im se
r a c io n a l f o r a m m a n tid a s v iv a s a p e n a s p e la I g r e ja 46.
228
I
C o n j u n ç õ e s C r í t i c a s i»a D e m o c r a t i z a ç ã o
Conjunção Crítica 4
A Reforma Protestante e os Primórdios
do Sistema Estatal Moderno
47. Deter Blickle, The Revolution o f 1525: The German Peasanls Warfrom a New Perspective,
Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1981.
48. Paula S. Fichter, Protestcmtism and Primogeniture in Early Modem Germany, New Haven,
Yale University Press, 1989.
49. I leinz Schilling cunha o conceito de confessionalização para descrever as relações comuns
entre Igreja e Estado, que se desenvolveram na Europa ocidental, entre 1550 e 1650. Ver:
Heinz Schilling, Religion. Polilical Culliire, and lhe Emergence o f Early Modem Society:
Essays in German and Dutch History, New York, E. J. Brill, 1992.
229
C lássicos do P ensamento P o lí ti co
230
C o nj unçõ es C rí ti cas da D emocratização
231
C lássicos do P ensamento P olí ti co
58. Sobre a França, ver: Frederick J. Baumgartner, France in lhe Sixleenth Century, New York,
St. Martins Press, 1995; e Janine Garrison, A Hislory oj Sixleenth Century France. 14X3-
I5VX: Renaissance. Rejormalion and Rebelion, New York, St. Martins Press, 1995.
59. Alistair Duke, Rejormalion and Revolt in lhe Low Counlries, London, Ronceverte, 1990.
60. Sobre as estratégias políticas católicas em geral, ver: Robert Bireley, The Counter-
Re/órmalion Prince: Anli-Machiavellianism or Calholic Statecraji in Eariy Modem Europe,
Chapei Hill, University of North Carolina Press, 1990. Sobre a Espanha, ver: Marcei
Bataillon, Erasme et 1’Espagne, Genève, Droz, 1991; e Anne J. Cruz & Mary Elizabeth Perry
(eds.), Cullure and Conlrol in Counter Rejormalion Spain, Minneapolis, University of
Minnesota Press, 1992.
61. Sobre o rei. Parlamento e Reforma na Inglaterra, ver: Eamon DutTy, The Slripping oj lhe
Alters: Traditional Religion in England: 1400-15X0, New Haven CT, Yale University Press,
1992; Christopher Haigh, English Reformations: Religion. Politics, and Society under lhe
Tulors, New York, Oxford University Press, 1993; Donna B. Hamilton & Richard Strier
(eds.), Religion. Literatiire and Politics in Posl-Re/ormation England. I54U-I6XX, New York,
Cambridge University Press, 1966; e D. G. Newcombe, Henry VIII and lhe English
Rejormalion, New York, Routledge, 1995.
62. Quanto à Reforma na Escandinávia, ver: Birget Sawyer & Peter Sawyer, Medieval
Scandinavia: From Conversion to Rejormalion circa X00-I500, Minneapolis, University of
Minnesota Press, 1993.
63. Sobre a Reforma na Alemanha, ver: James D. Tracy (ed ), Lulher and lhe Modem State in
Germanv, Kirksville, Sixteenth Century Journal Publishers, 1986; e Heinrich Lutz,
Rejormalion and Gegenrejórmation, Munich, Oldenbourg, 1995.
232
C onj unçõ es C rí ti cas da Democratização
Conjunção Crítica 5
A Revolução Francesa e a Necessidade
de um Governo Representativo Popular
64. De acordo com Schilling, as confissões mais significativas foram: para o luteranismo, a
Confissão de Augsburg ( 1530), as Confissões Ilelvéticas ( 1536, 1566), o Consensos de Ziirich
( 1549); para o anglicanismo. o Comtnon Book of Prayers ( 1549) e os Trinta-e-Nove Artigos
(1563); para o catolicismo, os cânones doutrinários do Concilio de Trento, especialmente a
“Profissão de Fé Tridentina” ( 1564) c certas bulas papais. Schilling, Religion, Politics, and the
Emergence ofEarly Modem Sociely, Leidern, New York, E. J. Brill, 1992, p. 205.
65. Schilling, op. cil., p. 23.
66. O conceito de religio vinculum socielas, na lei alemã do século XVII, aponta para a impor
tância das igrejas na consolidação das relações entre Estado e sociedade, após a Reforma
protestante. Schilling argumenta que as identidades religiosas forneciam um equivalente fun
cional do nacionalismo que solidificava Estados durante os séculos XIX e XX. Schilling, op.
cit„ p. 234.
233
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
234
C o nj unçõ es C rí ti cas da D emocratização
69. Notar a comparação com a Áustria, Hegel, “Die Verfassung Deutschlands”, op. cit., p. 571.
70. Friedrich I propôs a eleição de representantes para uma única Câmara, por períodos de três
anos. Os limites ao voto seriam fixados em 200 Guildens e 25 anos de idade, enquanto que
o financiamento da administração estatal seria centralizado sob o controle dessa câmara de
representantes.
235
C lássicos do P ensamento P o lí ti co
7 1. Sobre a gradual redefinição de direitos que ocorreu durante três séculos na Inglaterra, ver: T.
H. Marshall, Cilizenship and Social Class, Cambridge, Cambridge University Press, 1950.
72. A primeira referência comparativa é saída da teoria política clássica. Hegel descreve as pro
postas de Reforma de Friedrich I como um chamado das elites agrárias germânicas ao
Principado, nos termos da imagem clássica de Maquiavel. Para Hegel, O Príncipe, de
Maquiavel, apelava às elites italianas para remover as forças estrangeiras da Espanha e
França. Infelizmente, os príncipes alemães pareciam não ter essa vocação. Em vez disso,
emergiu uma aliança conservadora contra as iniciativas reais de democratização.
C o nj unçõ es C rí ti cas da Democratização
73. Richard Hofstadter, The Itlen ofa Party System: The Rise ofLegitimate Opposition, Berkeley,
University of Califórnia Press, 1969.
2 37
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
238
C o nj unções C rí ti cas da D emocratização
239
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
Conclusão
75. Como trabalhos recentes de revisão, ver: Lewis Gwynne, The French Revoltilion: Rethinking
lhe Debate, New York, Routledge, 1993; Frank A. Kaíker & James M. Laux (eds.), The
French Revolution: Con/licling Inlerpretations, Malabar, Fia: R. E. Krieger, 1989; e Colin
Lucas (ed.), Rewriting lhe French Revolution, New York, Oxford University Press, 1991.
76. Talvez o mais influente estudo comparativo da Revolução Francesa seja: Tlieda Skocpol,
States and Social Revolutions, Cantbridge, Cambridge University Press, 1979.
240
C o nj unções C rí ti cas da D emocratização
77. Para lima revisão da teoria democrática nesta linha, ver: Giovanni, Sartori, Democratic
Theory Revisiled, Cliatham, Chathatn House, 1987.
241
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
78. Peter Bachrach, The Theory of Democratic Elitism, Boston, Little Brown, 1967; Carole
Pateman, Participation aiul Democratic Theory, Cambridge, Cambvidge Umvevsity Pvess,
1970.
242
C o nj unções C ríticas da D emocratização
79. Quanto ao problema do viés de seleção no uso da historiografia pelos cientistas políticos,
ver. lan Lustick, “History, Historiography, and Political Science: Multiple Historical Records
and the Problem of Selection Bias”, American Political Science Review, vol. 90, n. 3, sept.
1996, pp. 605-618; e David Collier, “Translating Quantitative Methods for Qualitative
Researchers: The Case of Selection Bias” , American Political Science Review, vol. 89, n. 2,
june 1995, pp. 461-465.
243
C lássicos do P ensamento P o lí ti co
244
C o nj unçõ es C ríticas da Democratização
245
TO C Q U EV ILLE: A REA LID ADE DA
DEM O CRA CIA E A LIBERDADE I DEAL
247
C lássicos do P ensamento P olí ti co
248
T o c q u e v i l l e : A R ealidade da D emocraci a e a L i b e r d a d e I de a l
249
C lássicos do P ensamento P olí ti co
250
T o c q u e v i l l e : A R ealidade da D emocracia e a L i b e r d a d e I deal
251
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
252
T o c q u e v i l l e : A R ealidade ba D e m o c r a c i a f, a L i berdade I deal
253
C lássicos do P ensamento P o lí ti co
254
T ocqueville: A R ealidade da D emocracia e a L i b e r d a d e I deal
2. R. B. Nye & J. E. Morpurgo, História dos Estados Unidos, Ulisseia, Lisboa, 1955, vol. li,
p. 52.
255
C lássicos do P ensamento P olí ti co
a s m a s s a s d e n ã o p r o p r ie tá r io s h a v ia m c o m e ç a d o , n o in íc io s ile n c io s a m e n te e q u a s e s e m
d id o s e i n c o r p o r a r à U n iã o c o m a c o n d iç ã o d e q u e s e e s ta b e le c e s s e o s u f r á g io u n iv e rs a l
p a r a o h o m e m b r a n c o . E n tr e 1 8 1 0 e 1 8 2 1 , q u a tr o d o s e s ta d o s c o n s id e r a v e lm e n te m a is
a n tig o s , d e ix a r a m c a ir a c o n d iç ã o d e p r o p r ie tá r io s p a r a s e re m e le ito r e s 4 .
3. Richard, Hofstadter. The American Polilical Tradilion, New York, Vintage Books, 1948, p. 55.
4. Idem, p .50.
256
T o c q u e v i l l e : A R ealidade da Democracia e a L i berdade I deal
O f lo r e s c im e n to d a m a n u f a tu r a n o le s te , o r á p id o p o v o a m e n to d o o e s te p r e e n
c h e r a m la r g a m e n te o e s p ír ito d e e m p r e s a . O a m e r i c a n o tí p i c o e r a u m p r o m is s o r c a p i
ta l i s t a , u m d u r o tr a b a lh a d o r , u m a p e s s o a a m b i c i o s a p a r a q u e m a e m p r e s a e r a u m a
e s p é c i e d e r e lig iã o e p o r t o d a p a r t e e le e n c o n tr a v a e s t ím u l o s p a r a a m p l i a r o s e u n e g ó
c io . S e a lg u m ó d i o d e c la s s e e x is tia e r a v o lta d o c o n t r a o s b a n c o s e o s b a n q u e i r o s q u e
d if ic u lta v a m o s e m p r é s t i m o s e to r n a v a m a v id a m a is d if íc il c c a r a 5.
O m o v im e n to j a c k s o n i a n o e o “ N e w D e a l” f o r a m a m b o s lu ta s d e a m p l o s s e t o
r e s d a c o m u n i d a d e c o n tr a u m a e lite e m p r e s a r i a l e s e u s a l ia d o s [...] M a s , o s d o i s m o v i
m e n to s s e d if e r e n c ia v a m n u m a s p e c to m u ito im p o r ta n te : O N e w D e a l fo i in te n c io n a l-
m e n te b a s e a d o n a p r e m i s s a d e q u e a e x p a n s ã o e c o n ô m i c a tin h a c h e g a d o a u m f i m e a s
o p o r t u n id a d e s e c o n ô m i c a s e s ta v a m d e s a p a r e c e n d o . E s s a p o lític a f o i i m p le m e n ta d a
n u m a t e n ta tiv a d e e s t a b e l e c e r u m a a s c e n d ê n c i a d o g o v e r n o s o b r e o s n e g ó c io s p a r t i c u
la r e s . O m o v im e n to j a c k s o n i a n o a u m e n t o u a s o p o r t u n id a d e s q u e j á s e e x p a n d ia m e
v e io a o 'e n c o n t r o d o d e s e jo c o m u m d e a l a r g á - la s a in d a m a is , r e m o v e n d o a s r e s t r i ç õ e s
e o s p r iv ilé g io s q u e tiv e r a m s u a s o r i g e n s e m a to s d e g o v e r n o s a n te r io r e s . C o m a l g u
m a s q u a l i f ic a ç õ e s c r a e s s e n c i a l m e n t e u m m o v im e n to d e laissez-faire , u m a t e n ta tiv a d e
d i v o r c i a r o g o v e r n o d o s n e g ó c io s . A e r a j a c k s o n i a n a é c o m u m e n t e r e c o n h e c i d a n o f o l
c l o r e h is tó r ic o a m e r ic a n o c o m o u m a f a s e d e e x p a n s ã o d a d e m o c r a c i a , m a s é m u ito
p o u c o le m b r a d o q u e fo i ta m b é m u m a f a s e n a e x p a n s ã o d o c a p i t a l i s m o l ib e r a d o 6.
5. Idem, p. 57.
6. Idem, p. 56.
257
C lássicos do P ensamento P olí ti co
c o m a p o s s e d e A n d r e w J a c k s o n , a s f o r ç a s d o ig u a lita r is m o a s s u m ir a m o p o d e r n o
g o v e r n o f e d e r a l [...] N o d ia d a p o s s e , J a c k s o n a b r iu a C a s a B r a n c a a u m a m u ltid ã o tu r
b u le n ta d e b e m - n a s c id o s e h u m ild e s c h o c a n d o a s o c ie d a d e o f ic ia l m a is a n tig a , m a s
a n u n c ia n d o in c o n f u n d iv e lm e n te a c o n v ic ç ã o d o n o v o r e g im e d e q u e o h o m e m c o m u m
e r a tã o b o m c o m o o a r is to c r a ta 7.
a c i d a d e d e W a s h in g to n tiv e s s e s id o in u n d a d a p o r g e n te s d a s te r r a s d o in te r io r , r u d e s ,
tu r b u le n ta s , v e s tid a s d e p a n o g r o s s e ir o , q u e p e r c o r r ia m a s r u a s e m b r ia g a d a s n o m e io d e
g r a n d e a la r id o f ...] J a c k s o n fo i a p é e d e c a b e ç a d e s c o b e r ta a tr a v é s d a s r u a s e n la m e a d a s
p e r c e b ia m v a g a m e n te q u e a c o n c e n t r a ç ã o d e p o d e r e m W a s h in g to n p o d e r ia t r a z e r c o n
s i g o a c e n t r a l i z a ç ã o , a e s t r a t i f i c a ç ã o e , p o s s iv e lm e n te p r iv ilé g io s e s p e c ia is e u m a h ie -
7. May Sellers & Macmillen, Uma Reavaliação da História dos Estados Unidos, Rio de
Janeiro, Zahar (ed.), 1985, p. 138.
8. R. B. Nye & J. E. Mopurgo, J.E., op. cit., p. 52.
258
T o c q u e v i l l e : A R ealidade da D emocraci a e a L i b e r d a d e I deal
r a r q u ia ; p o r o u t r o , c o n c o r d a v a m c o n i a im p o r t â n c ia q u e d e v e r ia t e r o g o v e r n o f e d e r a l
e n q u a n t o s a lv a g u a r d a d a n a ç ã o . A s s im , m a n tin h a m ta n to u m a l ig a ç ã o p r o f u n d a c o m o
g o v e r n o n a c io n a l, q u a n to u m a e n o r m e s u s p e ita e m r e la ç ã o a o E s ta d o c e n t r a l i z a d o o u
b u r o c r á tic o . N ã o q u e o s j a c k s o n i a n o s t e m e s s e m , r e a lm e n te , o E s ta d o ; t e m ia m , e m v e z
d i s s o , q u e o c o n t r o l e d e s s e E s ta d o p u d e s s e u m d ia f i c a r n a p o s s e d e u m g r u p o m i n o
r itá r io c o m in te r e s s e s e s p e c i a i s 9 .
A r e la ç ã o e n tr e a s d if e r e n t e s p o s iç õ e s n a A m e r ic a é b a s ta n te d if íc il d c c o m
p r e e n d e r e o s e s t r a n g e i r o s n o r m a l m e n te s ã o c a p a z e s d e c o m e t e r d o is g r a n d e s e r r o s : o u
e le s p e n s a m q u e n o s E s ta d o s U n id o s n ã o e x is te d i s tin ç ã o e n tr e p e s s o a s , c o m e x c e ç ã o
d a q u e l a s c o m m é r ito s p r ó p r i o s o u , c h o c a d o s c o m a im p o r t â n c ia q u e a q u i s e d á à r i q u e
z a , a c r e d ita m q u e e m m u ita s m o n a r q u ia s e u r o p é i a s , n a F r a n ç a p o r e x e m p lo , u s u f r u i- s e
d e u m a i g u a ld a d e m a is r e a l c m a is c o m p l e t a d o q u e n a s r e p ú b lic a s a m e r ic a n a s .
A c r e d ito q u e h á u m e x a g e r o n a s d u a s m a n e ir a s d c s e e n x e r g a r o p r o b l e m a 10.
9. Idem, p. 57.
10. Alexis de Tocqueville, Voyciges en Sicile et aux Etats Unis, Paris, Gallimard, 1957, pp.
278-280.
259
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
como iguais não apenas perante a lei, mas também ao exercerem qual
quer atividade social.
q u e s e e s tá r e f e r i n d o , e s t a é c o m p l e t a n a A m é r ic a ; e la n ã o é a p e n a s u m d ir e ito , m a s é
t a m b é m u m f a to . P o d e - s e m e s m o a f i r m a r q u e , s e a d e s ig u a ld a d e e x is te e m q u a l q u e r
lu g a r n o s E s ta d o s U n id o s , h á n a e s f e r a p o lític a u m a a m p l a c o m p e n s a ç ã o e m f a v o r d a s
c l a s s e s m é d ia s e in f e r io r e s q u e , j u n t a m e n t e c o m o s n o m e s t r a d ic io n a is , p r e e n c h e m
q u a s e to d o s o s p o s to s e le tiv o s . F a lo d a ig u a ld a d e n a s r e la ç õ e s s o c ia is . E s ta ig u a ld a d e
q u e f a z c o m q u e c e r t o s in d iv íd u o s s e r e u n a m n o s m e s m o s lu g a r e s , c o m p a r tilh e m s u a s
id é ia s e s e u p r a z e r e s , u n a m s u a s f a m ília s . É n e s te a s p e c to q u e é p r e c i s o d i s t i n g u i r e n tr e
a F r a n ç a c a A m é r ic a . A s d if e r e n ç a s s e to r n a m e s s e n c i a i s 1 *.
a d i f e r e n ç a é q u e n e n h u m a r e g r a a r b i t r á r i a e in f le x ív e l p r e s i d e e s s e a r r a n jo [...] A s s im ,
n a A m é r ic a , o b s e r v a - s e m e n o s q u e e m q u a l q u e r o u tr a p a r te e s s e d e s e jo a r d e n te d e u m a
c l a s s e p a r t i lh a r n ã o a p e n a s o s d i r e i to s p o lític o s m a s ta m b é m o s p r a z e r e s d a s o u tr a s .
E s ta é a b o a d i s t i n ç ã o d a s o c ie d a d e a m e r i c a n a d a n o s s a 11213.
260
T o c q u e v i l l e : A R ealidade da D e m o c r a c i a f. a L i b e r d a d e I deal
E m r e s u m o , o s h o m e n s , n a A m é r ic a , c o m o e n tr e n ó s [ n a F r a n ç a ] , e s tã o o r g a
n iz a d o s d e a c o r d o c o m d e t e r m i n a d a s c a t e g o r ia s n o t r a n s c u r s o d a v id a s o c ia l. O s h á b i
to s c o m u n s , a e d u c a ç ã o e s o b r e tu d o a r i q u e z a e s ta b e le c e m e s s a s c l a s s i f i c a ç õ e s . M a s ,
e s s a s r e g r a s n ã o s ã o n e m a b s o lu ta s , n e m in f le x ív e is , n e m p e r m a n e n t e s . E la s e s t a b e l e
c e m d i s t i n ç õ e s p a s s a g e i r a s e n ã o f o r m a m c l a s s e s p r o p r i a m e n t e d ita s . E la s n ã o c o n c e
d e m q u a l q u e r s u p e r io r id a d e , m e s m o d e o p i n i ã o , d e u m h o m e m s o b r e o u tr o , d e tal
m o d o q u e , m e s m o s e d o is in d iv íd u o s n ã o s e v e ja m j a m a i s n o s m e s m o s s a lõ e s , s e e le s
s e e n c o n tr a r e m e m u m a p r a ç a p ú b lic a , u m o l h a r á o o u tr o s e m o r g u lh o e o o u tr o s e m
in v e ja . N o f u n d o e le s s e s e n te m ig u a is e o s ã o 14.
261
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
como algo que pode ser adquirido e, nesse momento pelo menos, não é
a única forma de se obter poder. O exemplo do presidente do país, como
um autêntico self-made man e de seus partidários é para ser observado e
seguido. Tudo parece ser possível a qualquer um e a todos.
E evidente que nada disso é válido para os escravos. Embora a
escravidão ainda não tivesse aparecido como o grande problema que
iria dividir a nação, Tocqueville já a aponta como a grande responsável
pela futura e imensa tragédia americana. Esse tema é longamente
desenvolvido por Tocqueville pois, afinal, a escravidão existia também
em colônias francesas. Suas manifestações antiescravistas mostram a
preocupação em apontar, na questão das diferenças, como os escravos
negros continuariam a ser discriminados, mesmo numa sociedade
democrática, após a libertação.
Em segundo lugar, essa igualdade de condições e o desenvolvi
mento do processo igualitário, pontos centrais para se compreender o
que é a democracia para Tocqueville, podem também ser responsáveis,
pelo aparecimento de uma sociedade, por excelência, massificante e
aborrecida, sem criatividade, sem pensadores, sem artistas. Era dessa
forma que os europeus se referiam aos americanos e ao que ocorria nos
Estados Unidos. É bastante difundida a maneira pela qual Stendhal se
refere, pela fala de seu personagem Lucien Leuwen sobre a América
como “um país aborrecido”, povoada por “ homens justos, razoáveis,
porém, grosseiros e incapazes de produzir idéias finas” 15. Entretanto, a
construção dessa desagradável democracia, como geradora de uma
sociedade massificante, produtora de uma população sem outro inte
resse que o de acumular fortuna, indiferente às coisas públicas, pode
ría ser evitada e seus males já existentes corrigidos, pela própria ação
dos homens na defesa da liberdade.
Sem dúvida, ao passar da análise da realidade para uma propos
ta de ação como solução para os males que a sociedade democrática
possa apresentar, Tocqueville procura discutir como e por que os
homens seriam capazes de agir para modificar sua própria realidade.
15. Stendhal, Lucien Leuwen, Paris, Gallimard, 1973, vol.l, p. 138, coll. Folio.
262
T o c q u e v i l l e : A R e a l i d a d e d a D e m o c r a c i a e a L i b e r d a d e I d e a l
263
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
17. Françoise Mélonio, Tocqueville et les Français, Paris, Aubier, 1993, p. 32.
18. Sobre essa discussão ver Célia Galvào Quirino, Liberdade e Igualdade no Pensamento
Político de Alexis de Tocqueville, tese apresentada ao Departamento de Ciência Politica,
USP, 1982, mimeo. p. 193.
264
■
T o c q u e v ille , e m 1 8 3 5 , e s ta v a o b c e c a d o p o r R o u s s e a u . A s s u s ta d o c o m a o n i p o t ê n c i a
d a s o b e r a n i a p o p u la r , to d o s e u e s f o r ç o s e r á r e a l i z a d o n o s e n t id o d e a p r e s e n ta r u m a
c o n c e p ç ã o a n ti - r o u s s e a u n i a n a , m o s t r a n d o c o m o e s s a s o b e r a n i a é c o m p a t í v e l c o m a
l i b e r d a d e 19.
265
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
E s ta s v a s ta s c o n s tr u ç õ e s im p e d e m o a r e a lu z d e p e n e tr a r e m n a s h a b ita ç õ e s
h u m a n a s q u e d o m in a m ; e la s a s e n v o lv e m e m u m a p e r p é tu a n e b lin a ; a q u i o e s c ra v o , lá o
s e n h o r; lá a s r iq u e z a s d e a lg u n s p o u c o s ; a q u i, a m is é r ia d o m a io r n ú m e r o ; lá, a s fo rç a s
266
T o c q u e v i l l e : A R ealidade da D emocracia e a L i b e r d a d e I deal
o r g a n iz a d a s d e u m a m u ltid ã o p r o d u z e m p a r a o lu c ro d e u m s ó , isto q u e a s o c ie d a d e n ã o
h a v ia a in d a s a b id o o f e re c e r; a q u i, a f ra q u e z a in d iv id u a l s e m o s tr a m a is d é b il e m a is d e s
U m a e s p e s s a e n e g r a n u v e m c o b r e a c id a d e . O s o l a p a r e c e a tr a v é s d a f u m a ç a
c o m o u m d is c o s e m ra io s . É n o m e io d e s te d ia in c o m p le to q u e s e m o v e m s e m c e s s a r
3 0 0 m il c r ia tu r a s h u m a n a s .[...]
É n o m e io d e s ta c l o a c a in f e c ta q u e o m a io r rio d a in d ú s tr ia h u m a n a vai a l i m e n
t a r e f e c u n d a r o u n iv e r s o . D e s te e s g o to im u n d o j o r r a o o u r o p u r o . É a li q u e o e s p ír ito
h u m a n o s e a p e r f e iç o a e s e e m b r u te c e ; q u e a c iv iliz a ç ã o p r o d u z s u a s m a r a v ilh a s e q u e o
h o m e m c iv iliz a d o s e to r n a q u a s e s e lv a g e m .
20. Alexis de Tocqueville, Voyage en Angleterre. Irlande, Suisse et Algérie, Paris, Gallimard,
1958, pp. 78, 81,82.
267
C lássicos do P ensamento P olí ti co
Conclusão
268
T o c q u e v i l l e : A R ealidade da D emocraci a e a L i b e r d a d e I de a l
269
,
TEO R IA PO L ÍT IC A
E IN ST IT U C IO N A L IZ A Ç Ã O AC A D ÊM IC A
* Esse texto foi originalmente publicado com o titulo “A Teoria Política é Possivel?” na
Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 36, São Paulo, Anpocs, fevereiro de 1998, que
reproduziu a discussão realizada na mesa redonda “Por que rir da Filosofia Política?”, com
posta com Renato Lessa (coordenador), Renato Janine Ribeiro e Luiz Eduardo Soares, no
XX Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, MG, 24 de outubro de 1997.
Gildo Marçal Brandão é professor de Ciência Politica do Departamento de Ciência Política,
FFLCH/USP.
271
C lássicos do P ensamento Po lí ti co
272
T e o r i a P o l í t i c a e I n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o A c a d ê m i c a
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C lássicos do P ensamento P o lí ti co
4* 4* 4*
274
T eoria Po lí ti ca e I n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o Ac a dê mi c a
275
C l á s s i c o s d o P e n s a m e n t o P o l í t i c o
276
T eoria Po lí ti ca e I nsti tu ci on ali za çã o Acadêmi ca
UNESP • irf
FRANCA - Bi3 I OTECA
P r 9 £»s e a
Açiiislçlo
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Pt*e«<(é«ifrte.
rm msmmm
.iSoci
João Paulo Monteiro, tendo esses tex^
tos clássicos como inspiração.
Os organizadores deste volume,
gestado nas salas de estudo e discus-*
são do Instituto de Estudos Avançadosi
o IEA, acharam por bem omitir trabalhos
de autores contemporâneos e observar
com maior atenção o retrovisor da Histó-j
ria para melhor deslindar o caminho que
está à frente. A ética maquiavélica, a
ideologia de O L e via tã de Thomas
Hobbes, a liberdade e igualdade na obra
de Locke e a atualidade da leitura dos
clássicos do pensamento político, por
exemplo, são textos que remontam a um!
momento sociopolítico em que o gene
da compreensão do Homem como ser
social e atuante em seu meio estava se
fortalecendo e proliferando.
Os ensinamentos contidos neste vo-'
lume certamente colaborarão para se
compreender melhor os caminhos traça
dos pelos ideólogos que ajudaram a cri
ar o chamado pensamento político mo
derno e, principalmente, mapear a rota
que tanto seus seguidores como alguns
políticos profissionais estão desbravando.
Marcello R ollemberg ;
A R IQ U EZA DOS C LÁ S S IC O S EM SUAS MÚLTIPLAS
DA M A N E IR A C O M O SO FR EM O S, C O M O V EM O S EM CADA
PER ÍO D O DE N O SSAS VIDAS O PRAZER, A DOR, - ••
C O N S E N S O E CO ER Ç ÃO , DE Q UE A O R G A N IZA Ç Ã O
SO C IA L E PO LÍTIC A DIZEM RESPEITO A NÓS,
C láudio V ouga
ISBN 85-314-0482-7