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DOI: 10.1590/1413-81232018243.

34492016 1041

A trajetória das políticas de saúde mental e de álcool

TEMAS LIVRES FREE THEMES


e outras drogas no século XX

The trajectory of mental health policies and alcohol


and other drugs in the twentieth century

Annabelle de Fátima Modesto Vargas 1


Mauro Macedo Campos 1

Abstract The scope of this article is to analyze Resumo Este artigo tem por objetivo analisar
the temporal evolution of the rules that comprise a evolução temporal das regras que compõem o
the legal framework of public policies on mental arcabouço legal das políticas públicas de saúde
health and on alcohol and other drugs between mental e de álcool e outras drogas entre os anos de
the years 1900 to 2000. The study seeks to analyze 1900 até 2000. O estudo busca analisar a trajetó-
the trajectory of the rules to make it possible to ria das regras, de modo que se possa compreender
understand a little more about the context and the um pouco mais sobre o contexto e a forma no qual
way in which the issues related to these two themes as questões relacionadas a estes dois temas foram
were addressed prior to the Psychiatric Reform in tratados, até a Reforma Psiquiátrica no Brasil, em
Brazil, in 2001. For this purpose, documentary 2001. Para isso realizou-se uma pesquisa docu-
and bibliographical research was conducted, with mental e bibliográfica, com o intuito de avançar
the intention of enhancing the understanding of no entendimento destas duas políticas sobre um
these two policies from a more normative angle. In ângulo mais normativo. Em um emaranhado de
the skein of legislation, 33 norms were cataloged legislações, foram catalogadas 33 normas que,
which, after analysis, reveal the process of con- após análise, demonstram o processo de constru-
struction of the public policies related to the use of ção das políticas públicas relacionadas ao uso de
alcohol and other drugs, changing the repressive álcool e outras drogas, alterando a lógica repressi-
logic of justice and the “pathologization” of drug va da justiça e da patologização do uso de drogas e
use and enabling the transition of the discussion possibilitando a transição da discussão do terreno
from the field of security to that of public health, da segurança para o da saúde pública, mais espe-
more specifically of mental health. cificamente de saúde mental.
Key words Alcohol, Drugs, Mental health, Public Palavras-chave Álcool, Drogas, Saúde mental,
policy Políticas públicas
1
Laboratório de Gestão e
Políticas Públicas, Centro
de Ciências do Homem,
Universidade Estadual do
Norte Fluminense Darcy
Ribeiro. Av. Alberto Lamego
2000, Horto. 28013-600
Campos dos Goytacazes
RJ Brasil.
annamodesto@hotmail.com
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Vargas AFM, Campos MM

Introdução ções pertinentes à discussão da temática do álcool


e outras drogas, entre 1900 e 2000. Esse recorte
Este artigo é parte dos resultados de uma pesqui- temporal leva em conta a promulgação da Lei
sa de doutoramento. Tem por objetivo analisar a 10.216, de 2001, considerada a “Lei da Reforma
evolução temporal referente ao arcabouço legal Psiquiátrica”3. Sobre este formato da pesquisa,
sobre as políticas públicas de saúde mental e de autores como Sá-Silva et al.4 argumentam que a
álcool e outras drogas entre os anos de 1900 até análise documental pode gerar uma riqueza de in-
2000. A trajetória dessas regras, sobre tais políti- formações, possibilitando a apreensão de objetos
cas, não está claramente descrita e contextualizada cujo entendimento necessita da contextualização
pela literatura, a partir deste ângulo normativo. sociocultural e histórica. Minayo5 problematiza
Taniele Rui1 aponta a existência de lacunas na ainda, que a metodologia das pesquisas sociais é
literatura e expõe caminhos a serem percorridos sempre polêmica, tendo questões não resolvidas,
por novas pesquisas relacionadas a esta temática. com debate permanente e não conclusivo.
Como aponta a autora, alguns acontecimentos Foram então levantadas a partir de consultas
“são transformações recentes que denotam como ao portal eletrônico do Planalto – armazena-
o consumo de drogas se tornou uma “questão de das em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao
saúde pública” e, na prática, de ‘saúde mental’”1. – leis, decretos e políticas publicadas no Diário
Busca-se aqui, compreender como se construí- Oficial da União. A pesquisa foi realizada utili-
ram as legislações que regulam políticas públicas zando separadamente os descritores: “droga”,
de saúde mental, tendo como foco o uso de álcool “mental”, “mentais” e “manicômio”; para que
e outras drogas e considerando o processo que fosse possível realizar a busca pelas legislações
culminou na Reforma Psiquiátrica (RP). pertinentes. A procura se deu pelos termos exatos
Após diversas experiências como o Movimen- e não semelhantes, como possível pelo portal, e
to da Luta Antimanicomial, é promulgada, em de modo separado. Isso porque, quando efetuado
2001, a Lei 10.216 que redireciona o modelo de o rastreamento de forma conjunta com os descri-
atenção em saúde mental no Brasil. Um dos seus tores “droga” “mental”, o resultado da busca foi
propósitos é substituir progressivamente as inter- de que não havia documentos dentro dos crité-
nações em Hospitais Psiquiátricos por um cuida- rios selecionados.
do no território, através dos Centros de Atenção Inicialmente se propunha a busca apenas
Psicossocial (CAPS). Em meio a esse complexo pelos termos “droga” e “mental”. No entanto, a
processo, surge uma modalidade específica de partir do embasamento teórico, foi percebido
CAPS, os CAPS ad, destinados a cuidar de pessoas que algumas legislações pertinentes à temática
que fazem uso de álcool e outras drogas2. não apareciam no resultado das buscas. Assim,
Este artigo parte do entendimento da com- foram inseridos os novos descritores, “mentais”
plexidade envolvida nesse processo. Como e de e “manicômio”, entendendo que no período cor-
que maneira, pelo marco normativo, os usuários respondente ao recorte da pesquisa, tais termos
de álcool e outras drogas passam a ser atendidos eram utilizados com maior frequência.
pelos CAPS, mais especificamente, pelos CAPS Como resultado destas novas buscas, temos:
ad? Mas, não se trata, no entanto, de um percurso 1) com o descritor “droga”, 113 documentos,
meramente normativo. Ao contrário. É por meio sendo 25 selecionados para a pesquisa; 2) com
do entendimento de uma “trajetória normativa” o descritor “mental” foram encontrados 37 do-
da política que se pretende identificar argumen- cumentos, sendo 5 utilizados; 3) com o descritor
tos que nos ajudem a entender as tais “lacunas”. “manicômio”, 9 foram encontrados, sendo utili-
Para tanto, pretende-se analisar esse percurso até zados 2; e 4) com o termo “mentais”, 28 foram
o ano 2000, visto que em 2001 ocorre a III Confe- encontrados, sendo apenas 1 utilizado.
rência Nacional de Saúde Mental e a partir daí o A seleção das normas se deu em função de sua
Ministério da Saúde passa a prevenir, tratar e re- significância para a pesquisa, uma vez que muitas
abilitar usuários de álcool e outras drogas, como legislações que apareciam nesses resultados não ti-
estabelecido na Conferência2. nham vinculação direta com a temática proposta.
A exemplo dessa exclusão temos a Lei 7.713/1988,
que altera a legislação do Imposto de Renda, em-
Método bora apareça no resultado das buscas, não fornece
elementos para o objetivo da pesquisa.
Foi realizada uma pesquisa documental, quali- O quadro apresentado com as regras selecio-
tativa, que buscou catalogar e analisar as legisla- nadas não tem como proposta o esgotamento
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legal no que tange a questão de saúde mental e vo das políticas de álcool e drogas no Brasil. São
álcool e outras drogas, no período analisado mas apresentadas 33 legislações, que não necessaria-
sim, pretende apontar a relevância para a com- mente são discutidas de forma cronológica, no
preensão do processo de construção das políti- Quadro 1. O artigo se preocupa, então, em cons-
cas de saúde mental, a partir do estudo trajetória truir a trajetória global das regras, analisando-as
normativa. Os autores também se preocuparam a a partir da literatura, não imperiosamente apre-
recorrer à literatura e outros documentos, como sentando-as uma a uma.
cartilhas do Ministério da Saúde6,7 para verificar A partir do Quadro 1 pode-se tecer algumas
possíveis ausências, cuja temática fosse abordada. considerações. Das 33 legislações analisadas no
período, tem-se que 69,7% (23 legislações) re-
ferem-se às políticas de álcool e outras drogas.
Teoria, resultados e discussões Chama atenção o fato de que a maior parte des-
sas regras (oito no total, 24,3%) foram consuma-
Se o uso de álcool e outras drogas têm sido obser- das no período pós-redemocratização, a partir de
vado hoje como questão de saúde pública, mais 1986. Nos dois períodos de política mais austera,
especificamente, de saúde mental1, o cenário das no Estado Novo (1937 – 1945) e no Regime Mili-
regras, assim como a literatura especializada8,9 tar (1964 – 1985), ambos foram responsáveis pela
demonstram que houve momentos em que a edição de seis legislações (18,2%). No tocante às
questão foi tratada de modo meramente jurídi- regras sobre saúde mental, 24,2% trataram ex-
co/policial. Neste caminho, a Secretaria Nacional clusivamente deste tema (oito legislações), sendo
de Políticas sobre Drogas (SENAD), do Ministé- que a maior parte destas regras, quatro no total
rio da Justiça, elabora um documento, fruto de (50%), foram editadas na década de 1920. Das
uma “importante parceria estratégica”7 com a outras quatro duas foram no governo Vargas –
Universidade de São Paulo (USP), em 2010. Esta uma dessas no Estado Novo –, uma outra na ex-
parceria se deu através das Faculdades de Me- periência democrática de 1946 e a última já na
dicina e Direito e resultou no projeto chamado redemocratização, em 1989. Apenas duas legisla-
“Integração de competências no desempenho da ções abordam as duas temáticas, álcool e outras
atividade judiciária com usuários e dependentes drogas e saúde mental. E as duas foram editadas
de drogas”. Foi dividido em módulos: 1) A cul- em 1921.
tura jurídica sobre drogas; 2) Direitos Humanos; Ao aderir à Convenção de Haia, o Brasil for-
3) Drogas; 4) Tratamento do uso prejudicial de mula os decretos nº 4.294 em 1921 e nº 15.683
drogas; 5) Prevenção do uso de drogas e redução de 1922. Além do decreto nº 14.969, de 1921, que
de danos; e 6) Justiça restaurativa e as boas prá- cria o “sanatório para toxicômanos”11. Tais regras
ticas nos juizados especiais criminais e varas da confirmavam as propostas estabelecidas em Haia,
infância. De acordo com este documento, a Lei onde foi definido o primeiro tratado internacio-
n° 11.343/2006 trouxe mudanças no que tange ao nal que propunha controle na venda de morfina,
porte de drogas para consumo pessoal. ópio, cocaína e heroína. Seguindo a tendência da
O texto aponta os efeitos e aspectos desta lei Convenção, os citados decretos, definiram pena
de 2006, no qual ressalta que o Brasil, concatena- de prisão aos que vendessem ópio e seus deriva-
do à tendência mundial, afastou o sistema car- dos, além de punir com internação compulsória
cerário para dependentes e usuários de drogas, a embriaguez que causasse atos nocivos a outrem,
designando-lhes os sistemas de saúde e de assis- si próprio ou à ordem pública8.
tência social. Nessa mesma linha, autores como No mesmo ano, em 1921, através do decreto
Rodrigues et al.10 discutem que a Lei 11.343/2006 nº 14.831, ocorreu a criação do primeiro mani-
não prevê a legalização do uso de drogas, mas es- cômio judiciário do Brasil e América Latina, cha-
tabelece que o seu porte para consumo próprio mado Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro.
perde a característica de “crime”. Embora o usu- Segundo Santos e Faria12, esta modalidade de
ário já não possa mais ser considerado “crimino- manicômio, surge ancorada em saberes que per-
so”, outras sansões, que vão desde a aplicação de meiam o crime e a loucura, tendo como abran-
advertências verbais, à prestação de serviços pú- gência uma discussão teórica que embasava a
blicos, continuam existindo. relação entre as escolas jurídicas e a psiquiatria.
Essa contextualização é importante para a Tempos depois, em 1986, o manicômio passou a
compreensão da análise apresentada a seguir, que ser chamado “Hospital de Custódia e Tratamen-
engloba as legislações anteriores ao período do to Psiquiátrico Heitor Carrilho” e ficou conheci-
ano 2000 e demonstram o desenrolar normati- do por ter sido cenário do filme Meu nome não
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Quadro 1. Trajetória das legislações em saúde mental, álcool e outras drogas no Brasil de 1900 a 2000.
Álcool e Saúde
Ano Legislação Síntese do Conteúdo
Outras Drogas Mental
1903 Lei n. 1.132 Reorganiza a assistência a alienados - X

1914 Decreto n. Aprova as medidas tendentes a impedir o abuso crescente do ópio, da X -


2.861 morfina e seus derivados, bem como da cocaína, constantes das resoluções
aprovadas pela Conferência Internacional de Ópio, de 1911 em Haya.
1921 Decreto n. Estabelece penalidades para os contraventores na venda de cocaína, ópio, X X
4.294 morfina e seus derivados; cria um estabelecimento especial para internação
dos intoxicados pelo álcool ou substâncias venenosas; estabelece as formas de
processo e julgamento e manda abrir os créditos necessários.
1921 Decreto n. Aprova o regulamento para a entrada no país das substâncias tóxicas, X X
14.969 penalidades impostas aos contraventores e sanatório para toxicômanos.
1921 Decreto n. Aprova o Regulamento do Manicômio Judiciário. - X
14.831
1923 Decreto n. Considera de utilidade pública a Liga Brasileira de Higiene Mental, com sede - X
4.778 nesta Capital
1927 Decreto n. Reorganiza a Assistência a Psicopatas no Distrito Federal. - X
5.148-a
1932 Decreto n. Define a fiscalização do emprego e do comércio das substâncias tóxicas X -
20.930 entorpecentes, regula a sua entrada no país de acordo com a solicitação do
Comitê Central Permanente do Ópio da Liga das Nações, e estabelece penas.
1934 Decreto n. Dispõe sobre a profilaxia mental, a assistência e proteção a pessoa e aos bens - X
24.559 dos psicopatas, a fiscalização dos serviços psiquiátricos
1936 Decreto n. Cria a Comissão Permanente de Fiscalização de Entorpecentes. X -
780
1938 Decreto n. Modifica o art.2º do decreto n. 780, de 28 de abril de 1936, que criou a X -
2.953 Comissão Permanente de Fiscalização de Entorpecentes.
1938 Decreto- Aprova a Lei de Fiscalização de Entorpecentes. X -
Lei n. 891
1940 Decreto- Promulga o Código Penal. X -
Lei n. 2.848
1941 Decreto- Lei das contravenções penais. X -
Lei n. 3.688
1941 Decreto- Dispõe sobre fiscalização de entorpecentes. X -
Lei n. 3.114
1941 Decreto-lei Cria, no Serviço Nacional de Doenças Mentais do Departamento Nacional de - X
n. 3.497 Saúde do Ministério da Educação e Saúde, o Hospital de Neuro-Psiquiatria
Infantil
1942 Decreto- Fixa normas gerais para o cultivo de plantas entorpecentes e para a extração, X -
Lei n. 4.720 transformação e purificação dos seus princípios ativo-terapêuticos.
1946 Decreto-lei Autoriza o Ministério da Educação e Saúde a celebrar acordos, visando a - X
n. 8.550 intensificação da assistência psiquiátrica
1964 Lei n. 4.483 Reorganiza o Departamento Federal de Segurança Pública X -
1967 Decreto- Dispõe sobre as substâncias capazes de determinar dependência física ou X -
Lei n. 159 psíquica.
1968 Decreto- Dá nova redação ao artigo n. 281 do Código Penal. X -
Lei n. 385
1971 Lei n. 5.726 Dispõe sobre medidas preventivas e repressivas ao tráfico e uso de substâncias X -
entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica.

1976 Lei n. 6.368 Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso X -
indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física
ou psíquica.
1980 Decreto n. Institui o Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização e Repressão de X -
85.110 Entorpecentes.
continua
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Quadro 1. Trajetória das legislações em saúde mental, álcool e outras drogas no Brasil de 1900 a 2000.
Álcool e Saúde
Ano Legislação Síntese do Conteúdo
Outras Drogas Mental
1986 Lei n. 7.560 Cria o Fundo de Prevenção, Recuperação e de Combate às Drogas de Abuso, X -
dispõe sobre os bens apreendidos e adquiridos com produtos de tráfico ilícito
de drogas ou atividades correlatas.
1989 Projeto de Dispõe sobre a extinção progressiva dos manicômios. - X
lei n. 3.657
1990 Lei n. 8.072 Dispõe sobre os crimes hediondos X -
1993 Lei n. 8.764 Cria a Secretaria Nacional de Entorpecentes e altera a redação dos art. 2 e 5 X -
da Lei n. 7.560/1986.
1995 Lei n. 9.099 Dispõe sobre os juizados especiais cíveis e criminais. X -
1996 Lei n. 9.294 Dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, X -
bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas
1998 Decreto n. Dispõe sobre o Sistema Nacional Antidrogas. X -
2632
1998 Portaria n. Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a X -
344 controle especial. (ANVISA).
1999 Lei n. 9.804 Altera a redação do art. 34 da Lei n. 6.368 1976, que dispõe sobre medidas X -
de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias
entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica.
Fonte: Elaborado pelos autores a partir das legislações.

é Johnny, de 2008, mostrando que dependentes e a heroína. Assim, o uso de drogas aparece clas-
químicos masculinos ficavam abrigados no hos- sificado como “toxicomania”, doença de notifi-
pital. cação compulsória, não podendo ser tratada em
Como forma de se esquivar, como discuti- domicílio. A internação em manicômios diante
do por Reis13, de uma suposta degradação física desses casos e mesmo nos de intoxicação por be-
e mental da população, é criada em 1923 a Liga bidas alcoólicas era entendida como obrigatória
Brasileira de Higiene Mental, que para Amaran- quando estabelecida pelo juiz, ou facultativa15.
te14 significa a cristalização de um movimento Interessante notar como a questão do uso de
com características eugênicas que tinha propos- drogas aparece, já nesse momento, como uma
tas que cerceavam a liberdade e cidadania13. Já questão de saúde, ou, mais precisamente, de do-
no ano de 1927, através do decreto nº 5.148-A, ença. Silva16 faz uma investigação histórica do
a assim denominada “assistência a psicopatas” é uso de droga enquanto objeto de intervenção da
reorganizada e estabelece que, “(...) a pessoa que, Psiquiatria e da Justiça, partindo do século XX
em consequência de doença mental, congênita até os dias atuais. A autora reflete sobre a arti-
ou adquirida, atentar contra a própria vida ou culação e cooperação entre as duas instituições,
a de outrem, perturbar a ordem ou ofender a encontrando convergências e divergências dos
moral publica, será recolhida a estabelecimento processos de medicalização e criminalização do
apropriado para tratamento”. uso da droga, enfocando a organização atual da
Esses estabelecimentos apropriados seriam os problemática.
manicômios judiciários anteriormente criados, A discussão que se apresenta já nos indica
ficando disposto neste último decreto que seria caminhos a serem seguidos no que tange à pato-
proibido manter os “psicopatas em cadeias públi- logização do uso de drogas e no sentido das nor-
cas ou entre criminosos. mativas que foram surgindo ao longo do tempo.
A partir de 1936 percebe-se um aumento na Vê-se que as questões jurídicas e de medicina
preocupação com a questão do uso de substân- acabam por manter uma relação dialética, em-
cias entorpecentes, sendo criada uma Comissão bora aparentemente polêmicas. Como analisado
Permanente de Fiscalização. Em 1938 publicou- por Castel17, essas instituições socialmente reco-
se o decreto-lei n° 891, que condenava o uso do nhecidas, a justiça e a medicina, se apropriam de
ópio e da cocaína, incluindo também a maconha determinado objeto – o uso de drogas – através
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de um poder legitimado e exercem seus domí- lícitas e ilícitas. O século XX, segundo Carneiro20,
nios, direcionando a temática para uma questão ficou marcado pelo que foi considerado “guerra
de Estado e que exige intervenções normativas. às drogas”, não apenas em função das normativas
Vargas18 indica a polissemia do termo “dro- da ONU, mas também face aos interesses polí-
gas”, que mantém fronteiras imprecisas com ticos e econômicos dos Estados Unidos. Com a
outras categorias como “alimentos”, “venenos” e expansão da indústria farmacêutica e das normas
“remédios”. Segundo o autor, essa questão não internacionais, as drogas foram classificadas em
está vinculada a uma simples experiência de uso lícitas e ilícitas, categorizando o que passou a
enquanto tal, mas ao processo ativo de apropria- ser considerado medicamento, alimento e con-
ção dessa experiência enquanto fenômeno digno dimento. Vargas18 expõe que alguns alimentos
de intervenção médica e jurídica indistintamen- como chá, café, açúcar e chocolate foram, entre
te, o que torna a criminalização e medicalização os séculos XVII e XVIII, rechaçados pela igreja
as principais vias de criação do evento da droga católica por sua função estimulante, ou aceitos
nas sociedades modernas. apenas para consumo por alguns níveis sociais.
Segundo Machado e Miranda8, as inter- Isso, segundo Silva e Delduque21, chama a aten-
venções iniciais do governo brasileiro se deram ção para o fato de que a criminalização das dro-
através da criação de um aparato jurídico-insti- gas é um processo social recente.
tucional, no início do século XX, destinado a ga- Silva16 argumenta que ao final dos anos de
rantir o controle do comércio e do uso de drogas, 1930 havia um panorama caracterizado pelo tom
preservando a segurança e saúde pública no país. alarmante e epidêmico em relação à construção
Os autores afirmam que nessa época, o consumo do discurso sobre a temática da droga no âmbi-
de drogas era ainda incipiente, não constituindo to médico e jurídico. A retenção dos toxicôma-
uma ameaça à saúde. No entanto, o uso de bebi- nos era amparada tanto pela justiça, legalmente,
das alcoólicas era constante, mas não era motivo quanto cientificamente, pela psiquiatria, defen-
de preocupação, uma vez que seu consumo era dendo seu discurso terapêutico. O toxicômano,
tolerado pela sociedade e também pelo governo. era visto como ameaça, sendo incapaz de viver
Nesse período surgiram, como apontado por de acordo com os preceitos de civilidade, repre-
Musumeci19, sociedades privadas como a Liga sentando um risco para si e para o seu entorno.
Antialcoólica de São Paulo, Liga Brasileira de Hi- Em 1938 é criada a Comissão Nacional de
giene Mental, Liga Paulista de Profilaxia Moral Fiscalização de Entorpecentes (CONFEN), vin-
e Sanitária e União Brasileira Pró-Temperança, culada ao Ministério da Saúde. O decreto nº 891
que tinham por objetivo promover assistência de 1938, resultante da Convenção de Genebra de
aos alcoolistas e dependentes químicos. Essas 1936, determina pena de prisão para o caso de
instituições eram marcadas por princípios higie- consumo de drogas e apresenta o rol de substân-
nistas e moralistas. A questão legal referente às cias assim consideradas, estabelecendo um con-
drogas permanecia frágil e sem uma organização junto de infrações penais, dentre elas a internação
que pudesse ser considerada objetiva até o início e interdição civil dos considerados toxicômanos.
do século XX8,11. No ano de 1940, através do decreto-lei nº
Em 1932 é instituído o decreto nº 20.930, que 2.848 é instituído o Código Penal, que regula-
integrou a Consolidação das Leis Penais, fixando menta a pena de reclusão e multa a quem “im-
pena de reclusão e multa para ações de comércio portar ou exportar, vender ou expor à venda,
e indução ao uso, além de pena de prisão para fornecer, ainda que a título gratuito, transportar,
posse ilícita de drogas sem receita médica ou su- trazer consigo, ter em depósito, guardar, minis-
perando as quantidades terapêuticas indicadas11. trar ou, de qualquer maneira, entregar a consu-
Já nesse período o poder médico legitima a posse mo substância entorpecente, sem autorização ou
de algumas drogas, conferindo a elas um estatu- em desacordo com determinação legal”. Posterior
to de “licitudes” e “ilicitudes”. Assim, ter posse à instituição do Código Penal de 1940, alguns
da droga com uma receita médica legitima seu mecanismos legais vinculados à temática foram
uso, que passa a ser visto como controlado. Indo editados, como o decreto-lei nº 3.114 de 1941,
além, as quantidades também são controladas e que criou uma Comissão Nacional de Fiscali-
quando estão fora de uma dosagem considerada zação de entorpecentes e o decreto-lei nº 4.720
“terapêutica” pelos profissionais de saúde, já há de 1942, que fixava as normas para o cultivo de
um indicativo para punições. plantas entorpecentes e para a extração, trans-
Necessário então construir melhor essa ideia formação e purificação de seus princípios ativos
em relação à categorização de certas drogas em terapêuticos11.
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Uma postura proibicionista, para Garcia et com a emergência dos EUA enquanto potência.
al.22 e Wandekoken e Dalbello-Araújo9, é apre- Nos anos de 1961, 1971 e 1988, como já dito,
sentada pelo Código Penal de 1940, sendo que aconteceram as Convenções-Irmãs, que repre-
muitas das normas expressas pelo documento sentaram fortemente a ideia da “guerra às dro-
figuram aspectos inerentes à gestão do Presidente gas” influenciando diversos países, dentre eles o
Getúlio Vargas (1930-1945). Dessa forma, para Brasil9. Na esteira deste processo, a Lei nº 4.483
os autores, a criminalização ficava evidente, in- de 1964 reorganiza o Departamento Federal de
dependentemente da quantia da droga e da dife- Segurança Pública, criando um Serviço de Re-
renciação entre uso próprio ou tráfico. pressão a Tóxicos e Entorpecentes. Interessante
De maneira diversa, Silva16, argumenta que notar, como aponta Carvalho26, que há uma tran-
as décadas de 1940 e 1950, são vistas, no âmbito sição da política criminal uma vez que o termo
da política criminal, como um momento libera- “fiscalização” é substituído por “repressão”, indi-
lizante. O fato de o Código Penal de 1940 crimi- cando uma alteração de um modelo sanitário de
nalizar o ato de portar o entorpecente acarretava política sobre drogas para um modelo bélico, o
uma ambiguidade por não esclarecer se o caráter que demonstra uma nova ideologia em termos
criminalizante incluía o “trazer consigo”, para uso da segurança nacional.
próprio ou apenas para a comercialização. Para Lima11 destaca também que através do Decre-
Batista23, o que pode ser compreendido é que há to-Lei nº 159 de 1967, o Brasil passa a assemelhar
uma propensão para a descriminalização, já que as substâncias que pudessem ocasionar depen-
a questão da droga era principalmente tratada de dência física ou psíquica, como alucinógenos
modo médico, vigorando até a década de 1960 e anfetaminas, às drogas com finalidade penal,
um “modelo sanitário” de intervenção. devendo o Serviço Nacional de Saúde (SNFMF)
Lima11 ressalta que nesse período, anterior relacionar tais substâncias. Nos anos de 1968 e
à década de 1960, os toxicômanos deveriam ser 1969 acontecem também modificações consi-
tratados como “doentes” e não como “delinquen- deráveis no que tange a posse para consumo ou
tes” e, por isso, seriam, compulsoriamente, inter- venda.
nados em estabelecimentos hospitalares. Nessa Através dessa alteração o usuário torna-se
época, de acordo com Silva16, a droga ainda não sujeito a uma punição, uma vez que o consumo
era vista como um “problema”, já que sua impor- passa a ser entendido como algo que mantém
tância político-econômica era pequena, ficando vivo o tráfico. Mais adiante, em 1971 com a Lei nº
seu uso restrito a alguns grupos, não atingindo a 5.726, novas medidas repressivas e, na concepção
população de forma geral. da época, preventivas são estabelecidas, passan-
Já no final da década de 1950 e a partir de do traficante e usuário a ter a mesma tipificação
1960 essa perspectiva começa a mudar mundial- penal e igual tratamento. Essa Lei estabeleceu a
mente. Em 1957 é criada, como medida de re- maior pena a usuários já vista na legislação bra-
pressão, a primeira Delegacia de Polícia especia- sileira: prisão de 1 a 6 anos e multa, atingindo
lizada em tóxicos no Brasil, mais especificamente indistintamente traficante e comprador11. Silva16
em São Paulo11. No entanto, o consumo de droga explica que a situação brasileira na época contra-
tornou-se mais popular a partir da década de dizia a tendência internacional do período: se no
1960, estando muito associado aos movimentos mundo operava, segundo Del Olmo27 o “discurso
da contracultura16. médico-sanitário-jurídico”, o que se via por aqui
A ideia do proibicionismo e da “guerra às era um aparente retrocesso no caminho da des-
drogas” tem sua origem atribuída aos Estados criminalização e priorização do tratamento mé-
Unidos, através das políticas adotadas a partir dico16.
dos anos de 1960 e 1970. Acontece nesse perío- Machado e Miranda8 discutem que a medici-
do o aumento da demanda por maconha, haxi- na influenciou fortemente a legislação brasileira
xe e cocaína, impulsionando a composição dos a partir da década de 1970 legitimando, através
cartéis de produção na Colômbia, Bolívia e Peru, do discurso tecnocientífico, o controle do uso de
dando início ao que se considera o ciclo contem- drogas. Sendo o usuário visto como criminoso
porâneo da história da droga24. Rodrigues25 re- e/ou doente, foi proposto para o seu tratamento
força que a transição da esfera individual a um os hospitais psiquiátricos, a princípio e, segui-
problema de Estado no que tange à questão das damente, centros especializados de tratamen-
drogas é resultado de um conjunto de fatores so- to, filantrópicos ou públicos. Ainda segundo os
ciais, políticos, econômicos, morais e religiosos autores, esses locais tinham a missão de “salvar,
que surgem a partir da influência internacional recuperar, tratar e punir”, o que denota uma im-
1048
Vargas AFM, Campos MM

pressão ainda constatada nos dias de hoje, evi- cientes psiquiátricos. Os autores apontam que no
denciando as diversas motivações que perpassam período de seis anos, que vão de 1987 até 1993,
as práticas de saúde na área. diversas articulações foram realizadas e em 1993
O ano de 1976 constitui um marco pela inter- o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial
venção da ONU na procura pela instauração de foi consolidado. É neste cenário que se é apresen-
medidas de controle do tráfico e uso de substân- tado, em setembro de 1989, o Projeto de Lei nº
cias psicotrópicas em todo o mundo, o que, para 3.657, de autoria do deputado federal Paulo Del-
Lima11, ocasionou um aumento da preocupação gado, que propunha a extinção progressiva dos
pelos operadores do direito no Brasil. Foi então manicômios. Tal Projeto de Lei ficou por 12 anos
promulgada a Lei nº 6.368, que segundo Macha- em tramitação, sofrendo diversas alterações, até
do e Miranda8 corroborou para a abordagem da por fim ser aprovada, em abril de 2001 a Lei nº
dependência e uso de drogas na esfera médico 10.21629. Importante demarcar que a proposição
-psiquiátrica. de análise neste artigo vai apenas até o ano 2000,
Cláudia Silva16 explica que uma modificação sendo que a Lei n° 10.216 de 2001, que regula-
importante no campo da Psiquiatria também mente a Reforma Psiquiátrica no Brasil é apon-
ocorreu na década de 1970: a elaboração da ter- tada por ser resultante de um processo iniciado
ceira edição do Manual Diagnóstico e Estatís- em 1989. De outro lado, através do decreto nº
tico de Transtornos Mentais (DSM), discutido 85.110 de 1980, é instituído o Sistema Nacional
ao longo da década de 1970, mas publicado em de Prevenção, Fiscalização e Repressão de Entor-
1980. Este manual é um documento que marca pecentes. Assim, foi definido como órgão central
uma mudança nos sentidos da Psiquiatria mun- do Sistema Nacional o Conselho Federal de En-
dial e no tocante à questão das drogas um ele- torpecentes (COFEN).
mento importante precisa ser considerado: seu Segundo Machado e Miranda8 o COFEN so-
uso deixa de estar presente entre o conjunto de bressaiu-se como órgão normativo dos variados
transtornos de personalidade e aparece com a temas e das ações governamentais programáticas
denominação “transtorno de uso de substân- dedicadas ao controle das drogas. Era formado
cia”16. Isso significa que há uma modificação por diversos ministérios, como o da Justiça, da
quando comparado às duas edições anteriores. Saúde, da Educação e Cultura, da Previdência e
O transtorno de uso de substâncias, conforme o Assistência Social, da Fazenda e das Relações Ex-
manual, torna-se independente dos transtornos teriores. Inicialmente somente as questões relati-
de personalidade e há o incremento de uma nova vas às drogas ilícitas eram abordadas. Mas ainda
categoria, “abuso”, passando-se a considerar pa- na década de 1980 passou a englobar também
tológicas medidas cada vez menores de consumo. discussões relacionadas às drogas lícitas8.
Tudo isso possibilitou que um número maior de Ao longo da década de 1990, já no governo de
indivíduos, fossem inseridos nessa categoria, ha- Fernando Henrique Cardoso, o Sistema Nacional
vendo o que a autora denomina “afrouxamento” de Prevenção, Fiscalização e Repressão de En-
dos critérios diagnósticos, permitindo um signi- torpecentes é substituído pelo Sistema Nacional
ficativo aumento da atuação da Psiquiatria sobre Antidrogas (SISNAD) e pela Secretaria Nacional
a questão das drogas. Antidrogas (SENAD). A SENAD era um órgão
Na década de 1980 importantes aconteci- ligado ao então Gabinete Militar da Presidência
mentos ocorreram tanto no sentido da atuação da República e sua elaboração demonstrou uma
em saúde mental, quanto na elaboração de po- estratégia política do Estado brasileiro em trans-
líticas voltadas para a questão do álcool e outras parecer à comunidade internacional iniciativas
drogas. Um desses acontecimentos é a ampliação que corroboravam com a ideia de que o combate
do Movimento da Luta Antimanicomial. Lü- às drogas era uma prioridade do governo. Além
chmann e Rodrigues28 discutem que as primeiras disso, tal secretaria era responsável pela coorde-
manifestações no setor de saúde surgem em 1976 nação e articulação da Política Nacional Antidro-
com a constituição do Centro Brasileiro de Estu- gas (PNAD), de 200222.
dos de Saúde (CEBES), no contexto de abertura O COFEN foi extinto em 1998 e substituído
do regime militar, sendo um espaço de discussão pelo Conselho Nacional Antidrogas (CONAD).
e possibilitando a produção crítica na área. É nes- O SISNAD norteia-se pelo princípio da respon-
se espaço que surge o Movimento dos Trabalha- sabilização compartilhada pelo Estado e a So-
dores em Saúde Mental, denunciando o sistema ciedade, entendendo que governo, cidadãos e a
nacional de assistência psiquiátrica, indicando iniciativa privada precisam cooperar mutuamen-
fraudes, torturas e tratamento desumano aos pa- te. Um dos objetivos apresentados pelo sistema
1049

Ciência & Saúde Coletiva, 24(3):1041-1050, 2019


é a criação de uma Política Nacional Antidrogas, ganizam frente a duas lógicas: a da repressão e
com ideais alinhados ao proibicionismo. Inte- proibição, à contenda da segurança pública e o da
ressante notar que o foco mantido pelo governo redução e danos e cuidado no território, a partir
FHC alinhava-se a uma perspectiva “antidroga”, da saúde mental. Na prática parece ainda não ter
o que mantém o foco na ideia de combatê-la22. acontecido uma completa fusão entre os dois ti-
Neste período há um aperfeiçoamento das es- pos de políticas públicas nos termos da temática
tratégias elaboradas para combater o uso da dro- do uso de drogas até o final dos anos 2000.
ga16. Tanto que, através da Lei nº 7.560 de 1986 Importante salientar a forte influência da Psi-
foi criado o Fundo de Prevenção, Recuperação quiatria na sustentação das ideias repressivas da
e de Combate às Drogas de Abuso (FUNCAB), justiça e da patologização do uso de drogas, pos-
com a finalidade de financiar as medidas sugeri- sibilitando a transição da discussão do terreno da
das no período, sendo as ações sanitárias voltadas segurança para o da saúde pública. A elaboração
primordialmente para os sujeitos considerados de novos critérios diagnósticos proporcionou
dependentes, reforçando os estereótipos de cri- um aumento no número de casos passíveis de in-
minoso e doente, além de serem vinculadas ao tervenção, conferindo o estatuto médico ao que
Ministério da Justiça e não à área da saúde. No antes era tratado de modo policial. Tais pistas
âmbito internacional, em 1998, a ONU convoca encontradas pelo sobrevôo às normas ao longo
uma Assembleia Geral com a finalidade de deba- deste último século, nos permite analisar como
ter uma política mundial sobre drogas e estabe- as políticas desenvolvidas no século XXI seguem
lece como objetivo a ser atingido até 2008: “Um esses caminhos históricos, que se iniciaram nos
mundo livre de drogas: nós podemos fazê-lo”9. primeiros anos do século XX. E, o que se buscou
Pode-se perceber, por fim, que durante o neste artigo, com o delineamento e construção da
século XX a discussão sobre o uso de álcool e trajetória das normas, foi exatamente demons-
drogas esteve fortemente atrelada às práticas trar como essa transformação vem ocorrendo e
psiquiátricas e ao estatuto da “doença mental” como ela se desenha na construção das políticas
seja como condicionante ou como resultante do de saúde que são implantadas no século XXI.
uso de substâncias psicoativas. As terminologias
utilizadas – toxicômanos, dependente de drogas,
usuário de drogas – denotam uma trajetória que
se conforma à evolução das políticas voltadas
para esse campo.

Considerações finais

O debate aqui proposto buscou investigar, me-


diante as pistas deixadas por Rui1, a trajetória
das legislações direcionadas à questão do uso de
álcool e outras drogas no Brasil, desembocan- Colaboradores
do no entendimento de que a partir dos anos
2000 ocorre uma transição no sentido de pen- AFM Vargas participou da concepção, redação,
sar a questão pelo viés da “saúde pública”, mais análise e interpretação dos dados. MM Campos
especificamente da “saúde mental”. Nota-se que participou da análise e interpretação dos dados
as discussões no ambiente científico atual se or- e redação final.
1050
Vargas AFM, Campos MM

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Prof 2013; 33(3):580-595. Versão final apresentada em 12/05/2017

CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons
https://www.interface.org.br
eISSN 1807-5762

Espaço aberto
A educação permanente em redução de danos:
experiência do Curso de Atenção Psicossocial em
Álcool e outras Drogas

Permanent education on harm reduction: the experience of Psychosocial


Care Course in Alcohol and other Drugs (abstract: p. 12)
La educación permanente en reducción de daños: experiencia del Curso de
Atención Psicosocial para el Alcohol y otras Drogas (resumen: p. 12)

Cássia Beatriz Batista(a) (a, c, d)


Departamento de Psicologia,
Universidade Federal de São João
<cassiabeatrizb@ufsj.edu.br> del-Rei (UFSJ). Praça Dom Helvécio,
74, DPSIC, Dom Bosco. São João del-
Maria Paula Naves Vasconcelos(b) Rei, MG, Brasil. 36301-160.
(b)
Pós-graduanda do Programa de Pós-
<mpnavesv@gmail.com> Graduação em Psicologia (Mestrado),
UFSJ. São João del-Rei, MG, Brasil.
Marcelo Dalla Vecchia(c)
<mdvecchia@ufsj.edu.br>

Isabela Saraiva de Queiroz(d)


<isabelasq@ufsj.edu.br>

Relata-se a experiência do Curso de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas, ofertado pelo
Centro Regional de Referência para Formação em Políticas sobre Drogas da Universidade Federal de
São João del-Rei (CRR/UFSJ), com relação aos desafios para formação em Redução de Danos (RD).
Foram constituídos grupos com 16 alunos em média, entre profissionais e lideranças comunitárias
de 18 municípios da microrregião administrativa de São João del-Rei, MG. Com base nos registros de
diários de campo e relatórios do curso, foram elaboradas três unidades de sentido relacionadas ao
processo educativo sobre RD: (a) estranhamentos em torno da RD; (b) problematizações, resistências
e apropriações da RD; e (c) impactos da RD nas práticas dos cursistas. Observou-se que o Curso
favoreceu um primeiro passo para mudança e sensibilização com relação à RD, desafio fundamental
para a reforma nas políticas de drogas.

Palavras-chave: Educação permanente em saúde. Redução de danos. Formação profissional.


Drogadição. Políticas de drogas.

Batista CB, Vasconcelos MPN, Dalla Vecchia M, Queiroz IS. A educação permanente em redução de danos:
experiência do Curso de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas. Interface (Botucatu). 2019; 23: e180071
https://doi.org/10.1590/Interface.180071 1/12
A educação permanente em redução de danos: ... Batista CB et al.

Introdução
A atual Política sobre Drogas1 brasileira concebe o uso de álcool e outras drogas
como questão de saúde pública, propõe a Redução de Danos (RD) como estratégia,
e sugere a desconstrução da imagem de todo usuário de drogas como doente. Porém,
há dificuldades na implantação de uma política norteada pelos direitos humanos e que
enfatize a integralidade do sujeito, já que também se identificam abordagens repressivas
e criminalizadoras sob o pretexto de práticas de cuidado. As ações de internação
compulsória, por exemplo, são justificadas pela incapacidade de o indivíduo gerir seu
próprio uso e elaborar outras possíveis formas de relação com as drogas2.
A perspectiva da atenção psicossocial caminha em direção contrária, ao se
apresentar como modo de atuação que prioriza: o direito de escolha e de acesso
às políticas públicas de forma integral, o protagonismo e a liberdade dos sujeitos,
sobretudo em relação ao seu corpo e à sua saúde. Assim, é preciso reconhecer a
existência de diferentes sujeitos, motivações, drogas e formas de usá-las, exigindo
diferentes modos de abordar as especificidades individuais e contextuais3.
O paradigma da RD, preconizado pela Política do Ministério da Saúde para a
Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas (PAIUAD)1, é central para o
trabalho dentro da perspectiva de atenção psicossocial. Busca-se elaborar estratégias
para a corresponsabilização dos usuários de drogas no tratamento mediante construção
conjunta. Neste paradigma, a abstinência pode vir a ser uma das finalidades possíveis
na relação com as drogas, priorizando-se, no entanto, o aumento no grau de autonomia
e liberdade dos sujeitos, com respeito aos direitos humanos4.
É preciso salientar que a imensa maioria das pessoas não faz uso problemático
de álcool e outras drogas, mas, nem por isso, devem ser negligenciadas nas ações de
prevenção de riscos, danos e vulnerabilidades. O direito de acesso a essas oportunidades
de prevenção requer, portanto, a adoção de princípios ético-políticos da RD, como:
tolerância, pragmatismo e respeito à diversidade5.
Parte-se da constituição de redes de apoio e proteção ao usuário, com foco
na garantia de direitos e na singularização das intervenções, de acordo com cada
experiência e contexto de vida6,7. A viabilização de ações de RD, assim, exige ações
intersetoriais entre os setores: da saúde, da educação, da assistência social, do lazer, dos
esportes, da segurança pública etc., numa tentativa de superação de práticas pautadas
na “guerra às drogas” e na lógica da abstinência.
Assim, maiores esforços em nível macropolítico mostram-se necessários para
que políticas de prevenção e cuidado atentas aos direitos humanos dos usuários de
drogas se efetivem, já que discursos com base no paradigma proibicionista e na ideia
de “guerra às drogas” ainda prevalecem8. Cabe ressaltar que tal discurso não é restrito
aos profissionais atuantes nas ações de prevenção e cuidado, visto que a própria
legislação brasileira apresenta-se ambígua, e a construção histórica acerca da temática
no país calca-se em políticas antidrogas, coexistindo dois modelos orientadores da
política brasileira sobre drogas: a estratégia de RD, conforme descrita na PAIUAD1,
e os modelos que preconizam a abstinência, a exemplo da Portaria n. 131/2012, que
trata da inclusão das Comunidades Terapêuticas na Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS)9. Não obstante, as mudanças anunciadas pela atual Coordenação de Saúde
Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, em dezembro de 2017, por
exemplo, aumentaram as tensões no campo, ao proporem o aumento dos recursos para

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A educação permanente em redução de danos: ... Batista CB et al.

o financiamento das comunidades terapêuticas e a manutenção de leitos psiquiátricos,


anteriormente em desativação no processo de desinstitucionalização, para o
acolhimento de crises agudas.
Neste contexto, para o alcance da atenção integral, a atuação dos profissionais no
campo de álcool e outras drogas precisa ser revista, de modo que sejam ampliadas
suas práticas para além do conhecimento das drogas e seus efeitos, e de formas de
prevenção pautadas por programas de resistência que adotam slogans do tipo “diga
não às drogas”. Trabalhadores dos diversos setores que lidam diariamente com pessoas
com problemas relacionados ao uso de drogas sentem-se despreparados para acolher as
necessidades dos usuários, sem, muitas vezes, contarem sequer com a oportunidade de
localizar a essência desse despreparo10,11. Temas como as redes de atenção em saúde, a
reforma psiquiátrica e a RD são relevantes no contexto da reforma nas políticas sobre
drogas a fim de ressaltar o papel ativo do sujeito em seu meio, e demandam a gestão de
um cuidado que transcende a lógica mais restrita de queixa-conduta12.
Na direção de enfrentar tais questões, relacionadas com o processo de formação,
o Centro Regional de Referência para Formação em Políticas sobre Drogas da
Universidade Federal de São João Del Rei (CRR/UFSJ), com recursos obtidos por
meio de proposta contemplada no âmbito do Edital de Chamamento Público nº
08/2014-SENAD/MJ, desenvolveu o Curso de Atenção Psicossocial em Álcool e
outras Drogas. Partiu-se dos princípios da Educação Permanente em Saúde (EPS)
como proposta para a transformação das práticas por meio da problematização dos
modos de cuidado vigentes, neste caso, relacionados à atenção aos usuários de drogas.
Ressalta-se, nesta proposta, a dimensão processual e contínua da aprendizagem e a
noção de transitoriedade dos conhecimentos e das relações de trabalho13.
Tomando a EPS como estratégia e perspectiva pedagógica, o Curso oferecido
adotou metodologias ativas de ensino e aprendizagem14. A partir de oficinas nas quais
os participantes, por meio de atividades que traziam situações-problema, faziam a
exposição de vivências do cotidiano, foram viabilizadas trocas de experiências entre
os pares15. Mitre et al.16, a este respeito, destacam que “diante do problema, ele [o
discente] se detém, examina, reflete, relaciona à sua história e passa a ressignificar suas
descobertas” (p. 2136).
Vasconcelos, Batista, Silva, Dalla Vecchia & Lopes17, ao analisarem as concepções
dos cursistas sobre o cuidado aos usuários de drogas no âmbito do Curso de Atenção
Psicossocial em Álcool e outras Drogas, notaram que ideias catastróficas, morais
e estigmatizantes a respeito dos usuários eram vigentes no início das atividades
de formação. No decorrer do curso se expressou a compreensão da existência de
singularidades na relação com as drogas, bem como o desafio do trabalho em rede e do
apoio familiar e comunitário. Destacou-se que a educação libertadora, pela dialética
ação-reflexão-ação, permitiu o compartilhamento e a construção coletiva de saberes,
reafirmando a pertinência da adoção de métodos ativos na formação para a atuação no
campo de álcool e outras drogas já ressaltada por Lima Junior et al.18.
O presente relato de experiência salienta o processo ensino-aprendizagem envolvido
na apresentação e debate da proposta de RD com base na problematização da atuação
cotidiana dos cursistas, cuja discussão desencadeou desconfortos, receios e quebra de
tabus.

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A educação permanente em redução de danos: ... Batista CB et al.

Método
O Curso de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas, oferecido pelo CRR-
UFSJ, teve como objetivo promover uma oportunidade de qualificação voltada para:
lideranças comunitárias, monitores de comunidades terapêuticas e trabalhadores das
políticas públicas de quaisquer setores, desde que atuassem com ações de prevenção ao
uso prejudicial ou de cuidado a pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool
e outras drogas. O conteúdo e a proposta foram articulados juntamente do Conselho
Municipal de Políticas sobre Drogas de São João del Rei – MG. Foi organizado em
quatro módulos, com atividades presenciais e à distância, tendo duração de setembro
de 2015 a julho de 2016.
No Módulo I, intitulado “O que são drogas?”, foram levantadas as concepções
iniciais dos cursistas sobre drogas, apresentando-se também os tipos de drogas,
seus usos e epidemiologia. No Módulo II, “Políticas e programas no território”,
debateram-se as orientações e ações da política e dos programas nacionais, por meio
da sistematização e análise das redes constituídas nos municípios de origem dos
cursistas, seus desafios e potencialidades. No Módulo III, “Formas de abordagem e
intervenções”, discutiram-se fundamentos e princípios que embasam as estratégias
de prevenção e tratamento no campo de álcool e outras drogas, compartilhando-se
estratégias de atuação com base na apresentação de situações-problema. Finalmente,
no Módulo IV, “Redução de danos”, foram discutidas e compartilhadas ações de
prevenção de riscos, danos e vulnerabilidades e de promoção da saúde, com base na
discussão e análise de práticas bem-sucedidas de RD.
Nos encontros, realizados quinzenalmente, adotou-se a metodologia ativa de
ensino-aprendizagem, a partir das Oficinas em Dinâmica de Grupo15. Cada grupo de
formação tinha, em média, dezesseis cursistas, provenientes de dezoito municípios
da microrregião de São João del Rei, MG, sendo mediado por dois professores e
um monitor. Os grupos foram compostos majoritariamente por mulheres (84%).
Os cursistas atuavam como: psicólogos (20%), profissionais de enfermagem (17%),
assistentes sociais (11%) e outros (22%), provenientes do setor da saúde (31%) e
assistência social (26%), e, predominantemente, de municípios da região (60%).
As duas primeiras autoras deste artigo atuaram na coordenação de duas turmas do
Curso, desenvolvendo registros, em diário de campo (DC), de suas observações no
decorrer das atividades do grupo de formação. Os participantes foram informados que
haveria registro de falas e acontecimentos em DC, consentindo com este processo e
não apresentando objeções à sua realização. Além dos DC, os relatórios parciais e final,
fornecidos pelo coordenador geral do CRR/UFSJ, terceiro autor deste artigo, também
foram acessados para esta análise. Com os dados pré-selecionados, realizou-se um
recorte com foco no processo de ensino-aprendizagem sobre a RD.
O sigilo na identificação de indivíduos, municípios e estabelecimentos foi
assegurado aqui por meio da adoção de nomes fictícios e termos genéricos, como
a tipologia geral do serviço e “comunidade terapêutica”. A análise temática de
conteúdo19,20 propiciou a elaboração de três unidades de sentido que sintetizam a
análise realizada do processo educativo referente à RD, organizadas em três tópicos:
(a) estranhamentos em torno da proposta de RD; (b) problematizações, resistências e
apropriações da RD; e (c) impactos da proposta de RD nas práticas dos cursistas.

Interface (Botucatu) https://doi.org/10.1590/Interface.180071 4/12


A educação permanente em redução de danos: ... Batista CB et al.

Resultados e discussão

Estranhamentos em torno da proposta de redução de danos


No início de uma das primeiras técnicas de grupo realizadas no Módulo I do
Curso, foram entregues tarjetas para que os cursistas escrevessem em poucas palavras
o que pensavam ao ouvirem a palavra “droga”. Esta atividade permitiu identificar
coletivamente que as concepções acerca do fenômeno do uso de drogas, em sua
maioria, embasavam-se no paradigma proibicionista e na ideia de combate e erradicação
das substâncias psicoativas. Assim, desde o início, pode-se observar a explicitação, pelos
cursistas, de uma concepção moral e religiosa, calcada no senso comum, da droga como
“fonte do mal”.
Nos encontros dos grupos de formação, tendo por base a discussão da bibliografia
selecionada, foi possível discutir diferentes modos de relação com as substâncias
psicoativas, por diferentes sociedades e em momentos históricos distintos21. Nos
recorrentes debates sobre os usos de drogas na contemporaneidade, discutiu-se sobre:
o café, o açúcar, o álcool, os opiáceos e os psicofármacos. Problematizar a nocividade
supostamente inerente às substâncias psicoativas, ampliar o conhecimento acerca
do leque de produtos existentes e reconhecê-los no cotidiano, e daí passar a uma
compreensão acerca dos sujeitos que as usam e em quais contextos sociais e momentos
da vida o fazem, foi um processo importante para assimilar a proposta de RD. Mesmo
assim, os fundamentos da RD foram recebidos, inicialmente, de forma reativa, numa
mistura de espanto e incômodo:

“Pra entender isso é difícil. Pode fumar maconha? Pode beber? Nossa senhora!
Quando a família leva pra internação é pra parar de usar. Como falar pra família
que a gente vai avaliar se ele pode beber uma cerveja no final de semana, pode
fumar maconha?” (DC – Fala de trabalhadora de CAPS)

No decorrer das atividades, os cursistas começaram a relatar e elaborar outras


concepções sobre esta abordagem aos usuários de álcool e outras drogas, com alguma
abertura para uma compreensão mais ampliada de seus princípios, mesmo que com
alguns equívocos acerca dos princípios da RD: “Daniela tentou explicar como entende
o conceito, dizendo que seria usar um pouco da droga, ir diminuindo o uso aos poucos,
e que tal processo é diferente entre dependentes e usuários” (DC – Trabalhadora de
CRAS).
Desconhecimentos e estranhamentos quanto aos pressupostos da RD foram
identificados em outros estudos sobre o tema. Gonçalves22 constatou a existência de
um perfil muito diversificado entre os trabalhadores do Programa Saúde da Família
(PSF) quanto ao preparo para lidar com a questão das drogas, sendo identificadas
dificuldades: objetivas, como acesso à informação e comunicação entre pares, e
subjetivas, como preconceitos, valores, medo e outros afetos. Também Queiroz23,
em pesquisa realizada com membros de equipes do PSF, observou que os mesmos
orientam suas opiniões e atitudes em relação ao uso de drogas preferencialmente do
ponto de vista dos modelos moral e de doença, configurando limitações à aceitação e à
adoção de estratégias de RD.

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A educação permanente em redução de danos: ... Batista CB et al.

Problematizações, resistências e apropriações da redução de danos


A partir dos encontros do grupo de formação, dos casos relatados pelos
participantes, das experiências estudadas coletivamente por meio da bibliografia de
referência, e da apresentação de vídeos e leituras que apontavam dados sobre outras
formas de tratamento, observou-se um paulatino reconhecimento das potencialidades
da proposta de RD para as ações de prevenção e cuidado.
A questão da liberdade e da autonomia e as especificidades contextuais de cada
indivíduo começaram a ser consideradas24. Veio à tona, então, a necessidade de não se
homogeneizarem as formas de compreender e tratar o uso de drogas, identificando-se
as formas pelas quais cada estratégia de cuidado aborda a relação do indivíduo com elas,
e da possibilidade de outras modalidades de tratamento: “Pessoas têm possibilidades
e visões de vida que diferem umas das outras. A gente tem que fazer o exercício de
entender posturas e modos de vida que não são os nossos” (DC – Fala de trabalhador
da área de segurança pública).
Alguns termos começaram a ser trazidos para a discussão a partir dos debates
sobre RD: a “dependência química”, a dependência como “doença”, a “recaída”. A
compreensão sobre sujeito histórico, concreto e contraditório toma as discussões
dos grupos, possibilitando reflexões sobre o uso de drogas e sobre as condições
concretas para a mudança no padrão de uso. Os participantes expressaram terem sido
mobilizados de formas distintas ao reconhecerem a singularidade de atuação requerida
em face das vulnerabilidades individual, social e programática25: “continuando a falar
sobre o embate de concepções provocado pelo curso, disse: ‘antes minha barriga tava
gelando, queria ir embora pra casa, achando que aqui não era meu lugar’” (DC –
Trabalhador de CT).

“Quando a gente começa a entender e ver que tem outros caminhos a gente
passa a aceitar outras possibilidades. No começo eu não acreditava. Agora eu e
outra profissional que também faz o curso começamos a mudar a maneira de
trabalhar. Me falta ir ao CAPS conhecer o lugar, me apresentar e informar sobre
os encaminhamentos que vou fazer.” (DC – Fala de trabalhadora de CT)

No entanto, mesmo com o reconhecimento de que há aspectos singulares e


contextuais que condicionam as múltiplas formas de uso de drogas, ainda é possível
perceber uma posição titubeante, ambivalente, apresentada pelos participantes do
curso com relação à RD. Nesse sentido, cabe ressaltar que há um processo amplo, que
envolve um conjunto de mediações socioculturais (educação familiar, concepções
religiosas, lógica punitivista, mídia, influência dos pares etc.), que constitui um senso
comum em torno das drogas, seus usos e usuários.
Em uma primeira análise, parecia haver, entre os participantes, certa dificuldade
em definir de que realmente se tratava a RD. Foi necessário enfatizar que esta não
exclui, eventualmente, estratégias que têm como horizonte a abstinência, e que a RD
não é sinônimo de redução da quantidade da droga usada, englobando outros fatores:
“Dinalva descreveu seu incômodo com relação à lógica da redução de danos: “se for
pra falar ‘pode fumar aí uma maconha’, eu, Dinalva não posso falar. O curso abriu um
pouco – um pouco! – minha mente” (DC - Trabalhadora da Prefeitura Municipal de
São João del Rei).

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A educação permanente em redução de danos: ... Batista CB et al.

Sobre a possibilidade de existência de padrões de uso de drogas não danosos,


como indicam Nery Filho et al.26, “é verdade que a intoxicação aguda por uma droga
pode levar à morte, mas é necessário ter sempre em mente que a decisão do consumo
pertence aos humanos, e não aos produtos” (p. 137). Entre os cursistas, porém, a
concepção de que há um mal imanente às substâncias psicoativas permaneceu presente,
como visto no relato acima.

Impactos da proposta de redução de danos nas práticas dos cursistas


A discussão sobre o uso de drogas na vida cotidiana (como mencionado
anteriormente acerca do café, açúcar, psicofármacos etc.) foi recorrente. Os cursistas
trouxeram muitos exemplos, especialmente pessoais e familiares. Os modos de uso de
drogas foram sendo relatados e analisados e, assim, foram desenvolvidas, pelos próprios
participantes, formas de RD, como: tomar menos café no trabalho ou fumar apenas
quando chegar em casa.
Como parte deste processo, os cursistas descreveram tentativas de mudar a forma
como tratavam a questão das drogas, relatando escutar mais seus interlocutores, em
lugar de prescrever o que deveriam fazer: “[...] meu Deus do céu, eu preciso de redução
de danos no meu trabalho. Já sentei e me questionei o porquê de eu tomar tanto café.
Quando eu ocupo o tempo nem lembro” (DC – Trabalhadora da Prefeitura Municipal
de São João del Rei).
Falas como essas possibilitaram constatar a efetividade das metodologias ativas e
da Oficina em Dinâmica de Grupo no processo de ensino-aprendizagem, ao conjugar
uma proposta simultaneamente pedagógica – transmissão e discussão de conteúdos
– e clínica – elaboração sobre os afetos mobilizados por meio do trabalho com o
conteúdo15.
Contudo, apesar deste processo de sensibilização dos cursistas, os serviços e
as equipes, nas suas atividades cotidianas, tendem a não compartilhar a mesma
perspectiva, gerando impasses e dificuldades na efetivação de mudanças27. Assim, a
perspectiva da abstinência e a internação como única forma de tratamento foram
também tema de debate, tendo sido sinalizado o reforço da mídia nessa direção e,
consequentemente, dos familiares dos usuários e da própria rede, que ainda oferece
e realiza encaminhamentos prioritariamente para comunidades terapêuticas: “Foi
um desafio com relação à redução de danos. Como implantar isso no município? Em
cidade pequena a gente lida com outro pensamento” (DC – Fala de trabalhadora da
ESF).
Diante da disputa de concepções encontrada nos serviços, alguns relataram ter
recorrido a saídas criativas para buscarem viabilizar práticas mais condizentes com a
perspectiva da RD. Foram realizados esforços no sentido de legitimar o CAPSad como
polo de articulação da atenção psicossocial estratégica no território, experimentando-se
outras formas de tratamento para além da internação. Ainda assim, o reconhecimento
e legitimação da RAPS como lugar para o cuidado de pessoas com problemas
decorrentes do uso de álcool e outras drogas não é realidade na maioria dos municípios:
“Ariane citou um caso recente em que sugeriu o tratamento no CAPSad antes da
pessoa optar pela internação, e a família ficou revoltada” (DC – Trabalhadora de CT).

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A educação permanente em redução de danos: ... Batista CB et al.

Ao longo do curso, os participantes deram sinais de terem desenvolvido uma visão


mais ampla da RD como lógica e prática. Ênfase foi dada à participação do sujeito
em seu processo de cuidado de forma não impositiva por parte dos profissionais
envolvidos27. Além da não imposição de princípios e visões de mundo, ressaltou-se
que os profissionais devem favorecer que os sujeitos reflitam sobre as escolhas feitas,
reconhecendo suas consequências, de modo a fazê-las de forma mais autônoma e com
menos danos5.
Vários aspectos foram discutidos, culminando na problematização da ideia da droga
como responsável isolada pelos prejuízos pessoais, profissionais e sociais, direcionando
o debate para uma análise mais complexa das relações entre sujeito, cultura e uso de
substâncias psicoativas24. Paulatinamente, as discussões foram abordando as relações
sociais, afetivas e culturais nas quais o uso de drogas se insere: tipos de ocupação cujos
trabalhadores frequentemente recorrem ao uso de estimulantes (como vigilantes
noturnos e motoristas de caminhão), e contextos familiares e sociais que podem
consistir em fatores de risco para o uso de drogas por serem espaços de reprodução da
violência e de violação de direitos.
A noção de “intervalo”28, abordada em uma aula de abertura de módulo, foi
resgatada em várias oportunidades, expressando a apropriação de seu significado pelos
cursistas: “Estou propondo o aumento dos intervalos, antes era só internação. Antes eu
já não achava que internação era pra todo mundo, eu mesma não daria conta. Mas eu
não conhecia outro jeito” (DC – Fala de trabalhadora de CRAS).
O processo de apropriação da proposta envolveu identificar as concepções e
resistências em jogo e se lançar ao novo, criando e revendo o já estabelecido. Neste
sentido, foram percebidas mudanças de concepções expressas em algumas falas no
decorrer dos últimos encontros do grupo de formação: “Eu comprei a ideia, não sei se
vou dar conta de tudo isso, mas vou tentar” (DC – Fala de trabalhadora de CRAS).

“Daniela falou sobre sua experiência no Congresso (refere-se ao V Congresso


Internacional sobre Drogas “Drogas e Direitos Humanos”), dizendo que
sentiu-se “dentro de um liquidificador”, muito mexida com tudo o que ouviu, se
dando conta de que muitas práticas se dão de forma errada. A partir disso, disse
ter encontrado um lugar para suas perturbações, que são todas referentes aos
direitos humanos.” (DC - Trabalhadora de CRAS)

Observa-se, a partir das falas, que a proposta de RD vai sendo incorporada pelos
cursistas como práticas de mudança na atuação. A formação possibilitou que os
cursistas, “partindo da ponderação de que o consumo de drogas é impossível de ser
eliminado por completo e que os usuários de drogas têm direitos sobre seu próprio
corpo”29 (p. 903), incorporassem ações voltadas para a redução dos problemas que
podem surgir em decorrência do consumo, procedimento análogo ao adotado em
relação a outros problemas de saúde pública, como as doenças crônico-degenerativas6.

Considerações finais
O processo de mudança em relação à compreensão e implantação da proposta
de RD, aspecto central para a reforma das políticas de drogas contemporâneas,

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A educação permanente em redução de danos: ... Batista CB et al.

demanda tempo e investimentos de várias ordens, como: o acesso do usuário à rede


de serviços, a formação dos trabalhadores, o apoio de uma mídia comprometida com
a transformação social e a mudança cultural da população brasileira. Mais que isso,
requer o questionamento das visões reducionistas, individualistas e moralistas sobre o
tema.
No caso dos participantes dos grupos analisados no presente artigo, constata-se que
o acesso dos mesmos ao curso oferecido pelo CRR/UFSJ favoreceu um primeiro passo
para a mudança, produzindo uma sensibilização com relação à RD. Compreende-se
a dificuldade para a implantação em larga escala da RD nos contextos de prevenção
e cuidado, como ocorre com toda mudança cultural. No entanto, a abertura para
discussões sobre mudanças possíveis dentro dos serviços se apresenta como um avanço,
comparando-se com outros momentos históricos em que a vigência das políticas
antidrogas era praticamente monolítica.
Apesar da não familiaridade com o conceito de RD, constatou-se que alguns
profissionais já lançam mão de estratégias com base nesta proposta, ainda que não as
nomeiem desta forma. Pode-se observar, assim, que, no cotidiano de trabalho desses
profissionais, coexistem orientações tradicionais, fundamentadas pelos modelos moral
e da doença, e de orientações próprias do modelo de RD, caracterizando um mosaico
de concepções, valores e práticas, nem sempre coerentes entre si.
Espaços de formação e de reflexão para os profissionais que atuam nos diversos
setores envolvidos com a temática do uso de drogas não têm se configurado como
prioridade ou prática comum de EPS. Como salientado por Cordeiro et al.29, “os raros
espaços existentes reproduzem o paradigma biomédico, pautado em metodologias que
não estimulam a crítica e tampouco a criatividade”29 (p. 904). Os profissionais, assim,
na maior parte do tempo, não encontram espaços favoráveis à reflexão, que poderiam
ajudá-los a se desvencilharem das amarras ideológicas engendradas em seus processos de
trabalho e formação. Urge ampliar e institucionalizar tais espaços e oportunidades.

Contribuições dos autores


Todos os autores participaram ativamente de todas as etapas da elaboração do manuscrito.

Agradecimentos
À Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), que financiou a execução do
Curso de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas.

Direitos autorais
Este artigo está licenciado sob a Licença Internacional Creative Commons 4.0, tipo BY
(https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR).
CC BY

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A educação permanente em redução de danos: ... Batista CB et al.

Report about the Psychosocial Care Course on Alcohol and Other Drugs, offered by Centro
Regional de Referência para Formação em Políticas sobre Drogas, Universidade Federal de São João
Del Rei (CRR/UFSJ), oriented towards to Harm Reduction (HR) training. Groups of around
sixteen students were gathered, encompassing professionals and community leaders from 18 cities
within the region of São João del Rei, MG, Brazil. Through field notes and management reports the
study elaborated three units of meaning related to the educational process of HR: (a) estrangements
regarding the HR proposal; (b) problematizations, resistances and appropriations of HR; and (c)
impacts of the HR proposal on students’ practices. The involvement in the Course promoted a first
step towards change and produced awareness of HR, a major challenge on drug policy reform.
Keywords: Permanent health education. Harm Reduction. Professional education. Drug addiction.
Drug policy.

Se relata la experiencia del Curso de Atención Psicosocial para Alcohol y otras Drogas, ofrecido
para el Centro Regional de Referencia para Formación en Políticas sobre Drogas de la Universidad
Federal de São João Del Rei (CRR/UFSJ), en relación a los desafíos para formación en reducción
de Daños (RD). Se constituyeron grupos con un promedio de 16 alumnos, entre profesionales y
liderazgos comunitarios de 18 municipios de la micro-región administrativa de São João del Rei,
Estado de Minas Gerais. Con base en los registros de diarios de campo e informes del curso, se
elaboraron tres unidades de sentido relacionadas con el proceso educativo sobre RD: (a) extrañezas
sobre la RD; (b) problemáticas, resistencias y apropiaciones de RD; e (c) impactos de la RD en
las prácticas de los participantes. Se observó que el Curso favoreció un primer paso para cambio y
sensibilización con relación a la RD, desafío fundamental para la reforma en las políticas de drogas.
Palabras clave: Educación permanente en salud. Reducción de daños. Formación profesional.
Adicción a drogas. Políticas de drogas.

Submetido em 05/02/18.
Aprovado em 07/08/2018.

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DOI: 10.1590/1413-812320182310.12572018 3233

No meio do caminho tinha um CAPSAD: centralidade e lógica

ARTIGO ARTICLE
assistencial da rede de atenção aos usuários de drogas

There was a CAPSad in the middle of the road:


care logic and centrality of the care network for drug users

Pedro Henrique Antunes da Costa 1


Telmo Mota Ronzani 1
Fernando Antonio Basile Colugnati 1

Abstract By applying Social Network Analysis Resumo O presente estudo objetiva avaliar,
(ARS), this study seeks to evaluate the role of the através da Análise de Redes Sociais (ARS), o pa-
Center for Psychosocial Care - Alcohol and Oth- pel do Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e
er Drugs (CAPSad) in the care network for drug outras Drogas (CAPSad) sobre a rede de atenção
users. It involves an exploratory, cross-sectional aos usuários de drogas. Trata-se de uma pesqui-
and quantitative approach of the Juiz de Fora city sa exploratória, de corte transversal e abordagem
network in the state of Minas Gerais. One hun- quantitativa na rede de Juiz de Fora, Minas Ge-
dred and eighty-seven care services were iden- rais. Nela, foram identificados 187 serviços assis-
tified in the city. The data gathering was made tenciais no município. A coleta de dados foi feita
from a questionnaire with professionals of these a partir de questionário com profissionais destes
instruments. The analysis took the cohesion and dispositivos. A análise levou em consideração mé-
centrality metrics of the ARS into account as well tricas de coesão e centralidade da ARS, bem como
as the creation of network sociograms. One cen- a confecção de sociogramas da rede. Constatou-se
trality of the network was found in the CAPSad, uma centralidade da rede no CAPSad, em confor-
in accordance with the policies and the care model midade com as políticas e o modelo assistencial
advocated in the area, referred to here as “CAP- preconizado na área, nomeada de “CAPSoliza-
Solization,” The centralization in this instrument, ção”. A centralização neste dispositivo, ainda em
still in insufficient number and with structural número insuficiente e com problemas estruturais
and workflow dynamics problems, leads to low re- e na dinâmica de trabalho, influi para um baixo
silience power of the network indicating the need poder de resiliência da rede e indica a necessidade
for care logic modifications, still based on special- de modificação da lógica assistencial, ainda pau-
ized and emergency care, to the detriment of terri- tada pelo cuidado especializado, de urgência, em
torial/community and ongoing prospects. detrimento de perspectivas territorializadas/co-
Key words Public health care, Substance-related munitárias e contínuas.
1
Programa de Pós- disorders, Mental health, Substance abuse treat- Palavras-chave Atenção à saúde, Transtornos re-
Graduação em Psicologia, ment centers, Public policies lacionados ao uso de substâncias, Saúde mental,
Universidade Federal de Juiz Centros de tratamento de abuso de substâncias,
de Fora. R. José Lourenço
Kelmer s/n Campus Políticas públicas
Universitário, São Pedro.
36036-330 Juiz de Fora
MG Brasil.
phantunes.costa@gmail.com
3234
Costa PHA et al.

Introdução portaria que institui a Rede de Atenção Psicos-


social (RAPS)4. A RAPS visa articular e ampliar
Atualmente, no Brasil, a assistência pública aos os dispositivos assistenciais do SUS para pessoas
usuários de drogas é estruturada através da rede com transtornos mentais e/ou usuários de dro-
de atenção. Essa rede se constitui a partir de ar- gas4. São instituídos sete níveis de atenção, con-
ranjos de governança, pressupondo tentativas de formados pelos seguintes serviços: Unidades de
organização integrada de setores, serviços e pro- Atenção Primária à Saúde (UAPS), equipes da
fissionais para a oferta de um cuidado contínuo e Estratégia de Saúde da Família (ESF), Núcleos de
de acordo com as necessidades da população, em Apoio à Saúde da Família (NASF), Consultórios
detrimento de iniciativas isoladas e/ou sistemas na Rua (CRs), Centros de Convivência (CCs),
fragmentados1,2. leitos em Hospitais Gerais, Residências Terapêu-
Cabe ressaltar que este cenário atual é fruto ticas (RTs), dentre outros4.
de um processo histórico, que conformou uma Um dos níveis da RAPS é a Atenção Psicosso-
série de avanços e conquistas no âmbito das po- cial Especializada, constituída pelos CAPS. Arti-
líticas públicas e sociais, perpassando a saúde culados com outros pontos de atenção da rede, os
mental brasileira. Tal percurso tem seu momento CAPS são responsáveis por atender pessoas com
de propulsão com a Reforma Psiquiátrica (RP), transtornos mentais e/ou com necessidades devi-
os Movimentos Sanitários e da Luta Antimanico- do ao uso de drogas, de maneira territorializada,
mial nas décadas de 1970 e 1980, num conjunto por meio do Projeto Terapêutico Singular (PTS).
de lutas e mobilizações sociais que culminaram São divididos em três tipos (I, II e III), de acordo
em conquistas políticas, como a constituição com o tamanho do município e região de abran-
do Sistema Único de Saúde (SUS). Acentua-se gência, estrutura e horário de funcionamento. Os
a partir da implementação do SUS um processo CAPS III funcionam vinte e quatro horas todos
gradual de modificações na atenção às pessoas os dias, possuindo também leitos de acolhimen-
com transtornos mentais e usuários de drogas, to. Além disso, os CAPS podem ser voltados espe-
visando uma reforma estrutural da concepção e cificamente para crianças e adolescentes (CAPSi)
modelo assistencial em saúde mental, com o iní- ou usuários de drogas (CAPSad).
cio do fechamento dos hospitais psiquiátricos e a Dessa forma, os CAPS adquirem papel fun-
conformação de uma rede substitutiva, composta damental na RAPS. Além de serem os principais
por serviços pautados nos direitos humanos e em dispositivos assistenciais especializados sobre a
direção à comunidade3. temática, também atuam como responsáveis pela
Nesse contexto de desinstitucionalização, sua articulação e fluxo de usuários, juntamente
surgem no Brasil na década de 1980 dispositivos com a Atenção Básica (AB), e pelo suporte te-
como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) órico-prático aos outros serviços, por meio do
e o Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS), sen- apoio matricial4. Especificamente na assistência
do os principais dispositivos substitutivos ao aos usuários de drogas, os CAPSad que adquirem
hospital psiquiátrico na oferta de uma atenção esse papel de gerenciador da rede, para além de
territorializada e contextualizada, por meio de apenas um serviço assistencial, sendo responsá-
propostas abertas. Partem do pressuposto de que veis pelo fluxo assistencial, através da referên-
a própria liberdade é terapêutica, devendo ser cia, contrarreferência e cuidado compartilhado,
abordada como um dos elementos basilares da assim como pelo matriciamento dos serviços
assistência3. Ao longo dos anos 1990 e início dos não especializados, como as UAPS e equipes da
anos 2000, estes serviços passam por uma série ESF1,2,4.
de modificações e ampliações, com o estabeleci- Contudo, devido à própria complexidade da
mento dos tipos e modalidades de CAPS – como temática do uso de drogas, enquanto problema
o CAPS Álcool e outras Drogas (CAPSad) –, seu multifatorial e com uma série de determinantes
funcionamento e as normas necessárias para ca- sociais, entende-se que somente o setor saúde
dastramento, obtendo também uma linha de fi- não é capaz de abranger essa amplitude. Os dis-
nanciamento específica do Ministério da Saúde positivos do Sistema Único de Assistência Social
(MS)3. (SUAS), como os Centros de Referência da Assis-
No processo de aprofundamento da RP bra- tência Social (CRAS), Centros de Referência Es-
sileira e consequente expansão dos serviços e pecializados da Assistência Social (CREAS), Cen-
rede substitutivos ao hospital psiquiátrico e sua tros de Referência Especializados para População
lógica asilar/hospitalocêntrica, é sancionada a em Situação de Rua (CentroPOP) e serviços de
Lei 10.216, em 2001, e, em 2011, promulga-se a acolhimento institucional (SAI) possuem grande
3235

Ciência & Saúde Coletiva, 23(10):3233-3245, 2018


importância na abordagem à temática, devendo dagem quantitativa, com a coleta de dados feita
ser incorporados à rede de atenção aos usuá- de maio de 2014 a fevereiro de 2015 na rede do
rios de drogas5,6. Ademais, segundo as políticas município de Juiz de Fora. A cidade situa-se na
na área1,2, não se deve desconsiderar os recursos região da Zona da Mata e Vertentes mineira. A po-
comunitários, como os grupos de ajuda mútua pulação estimada é de 555.284 habitantes, numa
(GAMs) e entidades socioassistenciais que atuam extensão territorial de 1.436 km2, com densidade
na assistência a usuários de drogas. demográfica de 359,59 hab./km2. Seu Índice de
Dessa forma, pesquisas sobre o papel do Desenvolvimento Humano (IDH) é de 0,7789.
CAPSad na rede de atenção ampliada e interse- Seguindo as orientações das políticas da
torial aos usuários de drogas fazem-se necessá- área1,2,4, os serviços assistenciais abarcados pelo
rias. Revisões da literatura demonstram um cres- presente estudo poderiam ser governamentais
cimento na produção científica sobre os CAPS, ou não governamentais, com modalidades de
mas com os estudos focando a avaliação de suas tratamento diversificadas e constituintes dos se-
estruturas, propostas de atenção e resultados da guintes âmbitos: (a) SUS, através da RAPS; (b)
assistência7,8. Contudo, Costa et al.6 apontam a SUAS, organizando as ações da assistência e pro-
necessidade de se refletir sobre as funções dos teção social; e (c) iniciativas oriundas da própria
CAPSad na rede, assim como suas práticas, vi- comunidade sobre a temática, chamadas de re-
sando maior contextualização das ações. Com as cursos comunitários (GAMs, entidades socioa-
recentes mudanças nas políticas e a complexida- ssistenciais etc.), como forma complementar de
de da temática das drogas, é necessário compre- ampliação e aprofundamento do escopo de cui-
ender o CAPSad enquanto um elemento da rede, dado, sem desconsiderar a responsabilidade e a
sendo conformado por ela, atrelado ao entendi- centralidade do Estado e os dispositivos públicos
mento do seu papel nessa conjuntura. Qual a po- na oferta assistencial.
sição do CAPSad na rede de atenção aos usuários
de drogas? De que forma estabelece vínculos com Procedimentos
outros serviços para o cuidado compartilhado?
Buscando responder a essas perguntas, o pre- A utilização da ARS como ferramenta de aná-
sente estudo objetiva avaliar, através da Análise lise ocorreu devido à possibilidade de identifica-
de Redes Sociais (ARS), o papel do CAPSad na ção e mensuração das relações entre o CAPSad
rede de atenção aos usuários de drogas. Dessa e os demais dispositivos da rede de atenção, de
forma, é possível municiar alguns questiona- modo a entender a posição e o papel desempe-
mentos colocados teórica ou hipoteticamente na nhado por este serviço na rede. De acordo com
literatura, por meio de dados empíricos concer- Gomide e Grossetti10, a ARS caracteriza-se en-
nentes à realidade, compreendendo limitações e quanto uma ferramenta que possibilita “identifi-
potencialidades oriundas das políticas na área e car os tipos de relações existentes entre os atores,
perpassando o CAPSad, o CAPS, a RAPS e sua medindo de forma sistemática o comportamento
relação intra e intersetorial. Adicionalmente, relacional desses atores”. Assim, a ARS adquire
almeja-se aprofundar as reflexões sobre redes um caráter inovador nas ciências sociais e da saú-
como arranjos de governança nas políticas pú- de, ao focar nas relações entre nós (que podem
blicas sobre drogas, a partir de uma perspectiva ser pessoas, serviços etc.) de uma rede ou sistema,
abrangente, enfocando as dinâmicas de interação seja ela real ou virtual, facilitando a visualização
entre serviços, de modo a repercutir nas próprias de assimetrias, ambivalências e contradições,
políticas e práticas. bem como a compreensão do papel das partes
que compõem essa conjuntura e como essas rela-
ções influenciam a própria estrutura da rede10-12.
Método A abordagem escolhida para a ARS foi a so-
ciocêntrica, visando englobar todos os nós/servi-
Aspectos gerais ços que faziam parte da rede e suas ligações (la-
ços) uns com os outros13. Para isso, a estratégia de
O presente estudo é um recorte de uma pes- coleta dos dados para a ARS foi delineada a partir
quisa guarda-chuva sobre a rede de atenção aos de um survey por saturação (saturation survey),
usuários de drogas, na qual será focalizado o pa- método comumente utilizado para redes socio-
pel do CAPSad na articulação desta rede e suas cêntricas14. A rede foi mapeada por completo,
relações com outros dispositivos. Trata-se de uma com a amostragem do tipo censo, considerando
pesquisa exploratória, de corte transversal e abor- as seguintes etapas: (a) levantamento preliminar
3236
Costa PHA et al.

da rede através de ferramentas, documentos da ting16. Após o preenchimento dos questionários,


gestão municipal e bases de dados ministeriais os dados foram exportados, em forma de ma-
públicas; (b) contato com secretarias gestoras trizes de adjacência, do repositório no Formhub
municipais e entidades de participação social para o software R, de onde foram extraídas todas
sobre a temática; e (c) método de bola de neve as métricas da ARS. Posteriormente, foram ge-
(snowball)15 com profissionais da rede. rados sociogramas das redes a partir do pacote
A partir desse processo, foram identificados IGraph17, com os nós tendo os seus tamanhos
187 serviços assistenciais, que compunham a ajustados de acordo com suas Centralidades de
rede de atenção aos usuários de drogas no mu- Grau (CG). Logo, quanto maior o número de
nicípio, com os participantes da pesquisa sendo ligações feitas por um dispositivo, maior ele se
profissionais destes dispositivos e fornecendo os encontra nos sociogramas.
dados relacionais de suas respectivas instituições. A análise das relações dessa rede compreende
Para a escolha destes participantes, entrou-se em a identificação das unidades mais conectadas, as
contato com os serviços e seus coordenadores/ centrais e as intermediárias, a formação de sub-
gestores, perguntando sobre os profissionais com grupos e as interconexões entre as unidades. As
maior conhecimento sobre a instituição e sua re- métricas fornecidas pela ARS procuram quanti-
lação com a rede. Aqueles indicados foram con- ficar estas características, sendo as utilizadas des-
vidados a participar do estudo. critas abaixo:
Os dados foram coletados através de questio- •  Métricas de Centralidade: 1) Centralidade
nários aplicados por pesquisadores treinados. Os de Grau (CG), que é a soma de todas as ligações
questionários foram construídos na plataforma feitas por um determinado ator, indicando níveis
Formhub (https://formhub.org/), que é um servi- de atividade ou popularidade; 2) Centralidade de
ço da internet gratuito para a construção e gestão Intermediação (CI), a medição do quanto um nó
de surveys online e bancos de dados. As entrevis- pode controlar/mediar o fluxo de informações,
tas foram feitas com o auxílio de tablets, com as dada sua posição na rede; e 3) Centralidade de
respostas assinaladas nesses dispositivos móveis. Proximidade (CP), que mede quão próximo um
Visando a adequação dos instrumentos, conte- nó está em relação aos outros, sendo uma medida
údo, linguagem e a própria forma de aplicação, de alcance da informação a um nó específico.
foram realizados 15 pré-testes. •  Métricas de Coesão: 1) Grau, indicando a
média e mediana da somatória de relações dos
Instrumento serviços; 2) Densidade, que é a proporção entre o
número de vínculos observado e o total possível
Para o presente estudo, o foco será nos re- na rede; 3) Distância média, a medida do número
sultados provenientes do Questionário de Rela- médio de laços que separam dois nós; 4) Cliques,
cionamentos (QR), voltado para a análise de pa- o número de agrupamentos entre três ou mais
drões, estruturas e a tipologia das interações esta- nós conectados, que formam subgrupos dentro
belecidas entre o CAPSad e os elementos da rede. da rede; e 5) Transitividade: a probabilidade de
Nele, os participantes responderam à seguinte que um ator se conecte a atores adjacentes, devi-
pergunta: No último ano, com quais dispositivos do às conexões já existentes.
(listados no menu) o seu serviço teve algum tipo de Posteriormente, de modo a aprofundar a
relação/atividade em conjunto referente à atenção compreensão sobre o papel do CAPSad, ele foi
aos usuários de drogas? Todas as relações foram retirado da rede, com recálculo das métricas de
do tipo unidirecional, isto é, o serviço A poderia coesão da rede e de centralidade dos serviços,
ter relação com o B, mas isso não significa que para que fosse possível realizar uma comparação
B tenha automaticamente relação com A. Como posterior dessas mesmas métricas com e sem o
suporte para as respostas do QR, foi confecciona- CAPSad. Por fim, a partir dos resultados encon-
do e entregue para cada respondente um menu trados, foi realizada uma análise comparativa en-
com os serviços mapeados da rede, para que pu- tre o modelo de organização da rede de atenção
dessem consultar durante a aplicação dos ques- aos usuários de drogas apregoado pelas políticas
tionários, minimizando esquecimentos. da área e o encontrado no município.

Análise dos dados Aspectos éticos

A análise dos dados foi realizada com o au- O presente estudo foi aprovado pelo Comitê
xílio do software R Project for statistical compu- de Ética da Universidade Federal de Juiz de Fora,
3237

Ciência & Saúde Coletiva, 23(10):3233-3245, 2018


com os participantes assinando o Termo de Con- da no município. A única ressalva com relação à
sentimento Livre e Esclarecido. Figura 2 é que ela representa uma rede de saúde
mental geral, havendo a necessidade de substituir
o CAPS pelo CAPSad como elemento central na
Resultados rede de atenção aos usuários de drogas.
Essa centralização no CAPSad fica mais evi-
De acordo com a Tabela 1, o CAPSad é o dispo- dente quando ele é retirado da rede e, a partir dis-
sitivo da rede com as maiores métricas de cen- so, novas métricas de coesão são extraídas e ana-
tralidade (CG, CI, CP). Tal cenário também é lisadas. A Tabela 2 apresenta esses dados da rede
ilustrado na Figura 1, que demonstra os dispo- geral com e sem o CAPSad. Com a retirada deste
sitivos (nós) e suas inter-relações. Nesse sentido, dispositivo, constatou-se uma diminuição de
observa-se uma centralização da rede no CAP- 211 laços, o que corresponde a uma redução de
Sad, tomado como dispositivo regulador do fluxo 13,3% das relações estabelecidas pela rede. Ade-
assistencial ao usuário de drogas e do processo de mais, houve um decréscimo nos valores de todas
trabalho. as métricas, com exceção da distância média, o
Quando apresentados ao modelo pressupos- que era esperado, afinal as maiores distâncias
to pelas políticas na área, conforme ilustrado na indicam que sem o CAPSad, a trajetória na rede
Figura 2, comparando-o, inclusive com o socio- tende a ser maior e, portanto, mais demorada.
grama (Figura 1) e as métricas de centralidade Tais dados indicam uma rede com alta de-
da ARS (Tabela 1), observa-se uma similaridade pendência desse serviço e, consequentemente,
com a estruturação da rede de atenção encontra- uma rede com baixa capacidade de resiliência,

Tabela 1. Métricas de Centralidade dos dispositivos da rede de acordo com suas tipologias.
Métricas de Centralidade
Grau Intermediação Proximidade
Serviços N (CG) (CI) (CP)
Entrada Saída Geral
M M
M M M
CAPSad 1 106 105 211 1 0,003968
HPS 1 70 89 159 0,412853 0,003774
Ambulatório em saúde mental 1 38 64 102 0,220140 0,003175
SAMU 1 39 20 59 0,032856 0,002849
CREAS 3 21,7 35,7 57,4 0,031724 0,002854
Hospital Geral com leitos em álcool e outras 1 27 18 45 0,107471 0,002976
drogas
CentroPOP 1 26 16 42 0,019838 0,002717
Ambulatório sobre tabagismo 1 14 27 41 0,014446 0,002618
CAPS gerais 3 24,7 15,3 40 0,024841 0,002677
CRAS 9 19,1 18,1 37,2 0,029329 0,0027
Hospital Psiquiátrico 1 14 21 35 0,031737 0,002653
Serviços de Acolhimento Institucional 3 14 17,7 31,7 0,022821 0,002552
Consultórios na Rua 2 7,5 23,5 31 0,017176 0,002677
CAPSi 1 21 9 30 0,004311 0,002653
Entidades Socioassistenciais 11 8,4 12,4 20,8 0,018275 0,002478
Ambulatório em álcool e outras drogas 1 9 9 18 0,020618 0,002532
Centro de Convivência 1 14 2 16 0,031189 0,0025
Clínicas e Comunidades Terapêuticas 19 5,8 8,6 14,6 0,013326 0,002357
UAPS Urbanas 48 6,7 5 11,7 0,005326 0,002477
Residências Terapêuticas 12 3,8 5,1 8,9 0,000536 0,002324
Grupos de Ajuda Mútua 46 4 3,3 7,3 0,006577 0,002121
UAPS Rurais 19 4,1 1,7 5,8 0,000123 0,002411
Hospital Judiciário 1 0 0 0 0 0,002288
Fonte: Dos Autores.
3238
Costa PHA et al.

Figura 1. Sociograma da rede de atenção.

Fonte: Dos Autores.

pois, com a retirada do seu principal dispositi- cluída – dada a sua já baixa densidade –, assim
vo, cujas métricas de centralidade são as mais como suas métricas de coesão são diminuídas.
elevadas e dissonantes, uma parcela significativa Ademais, os outros dispositivos especializados
das relações estabelecidas na rede também é ex- (principalmente os ambulatórios) e os de urgên-
3239

Ciência & Saúde Coletiva, 23(10):3233-3245, 2018


generalistas e de base comunitária/territorial. Tal
constatação pode ser mais bem visualizada na
Figura 3, que representa o sociograma da rede
sem o CAPSad. Nela, é possível observar o maior
tamanho destes dispositivos especializados e/ou
de urgência/emergência, devido às suas maiores
métricas de centralidade.

Discussão

Antes de adentrar na discussão sobre os modelos


assistenciais, cabe ressaltar a relevância histórica
dos CAPS nas políticas e redes de saúde mental,
atenção psicossocial e aos usuários de drogas. A
relevância e a centralidade desse dispositivo na
rede verificada pelo presente estudo é fomentada
desde os primórdios da RP brasileira e perpassa
os demais contextos e localidades do país. Uma
Figura 2. Rede de Atenção à Saúde Mental. centralidade que vai sendo reforçada no decor-
rer dos anos 1990 e início dos anos 2000, com
Fonte: TCU (2012), adaptado de Ministério da Saúde (2004). o aprofundamento da Reforma e do processo de
expansão dos serviços substitutivos, culminan-
do com a promulgação da RAPS em 20114. O
próprio crescimento na produção científica so-
bre os CAPS apontado por revisões da literatura
Tabela 2. Métricas de coesão da rede com e sem nacional, bem como seus resultados no processo
oCAPSad.
de cuidado7,8, também demonstram o protago-
Com o CAPSad nismo deste dispositivo nas políticas e redes da
Número de Nós 187 saúde mental e aos usuários de álcool e de outras
Número de Laços 1580 drogas no Brasil.
Grau – Média 16,9 Tal centralização será chamada aqui de “CAP-
Grau – Mediana 10,5 Solização” da rede ou rede “CAPSolizada”, fazen-
Densidade 4,54% do alusão à ideia do CAPSad como um sol, com
Distância Média 2,53 outros dispositivos orbitando em torno dele, isto
Nº de Cliques 11 é, se relacionando por meio dele. Salienta-se que
Transitividade 0,251 Amarante18 já havia anteriormente utilizado o
Sem o CAPSad termo “Capsização” para se referir à centralidade
Número de Nós 186 do CAPS na política de saúde mental, alertando
Número de Laços 1369 sobre o caráter contraditório desta centralização
Grau – Média 14,72 frente à própria ideia de uma rede substitutiva e
Grau – Mediana 7 comunitária.
Densidade 3,98% Então, deve-se compreender que os postu-
Distância Média 2,75 lados a seguir não se tratam de críticas vazias e
Nº de Cliques 10 tentativas de deslegitimação a esse dispositivo,
Transitividade 0,245 bem como os modelos de organização da rede
Fonte: Dos Autores. propostos pelas políticas, muito menos de con-
siderá-los descolados de seus contextos, como se
fossem também imunes ao processo histórico de
consolidação de práticas na área. Inclusive, o tí-
cia/emergência (HPS e SAMU) com os maiores tulo do artigo, não se trata de uma tentativa de
valores médios das métricas de centralidade, in- descaracterização do serviço, mas possui cará-
dicam uma tendência de centralização e depen- ter meramente ilustrativo do quanto a lógica de
dência da rede nas instituições referentes a estes “CAPSolização” (por isso o CAPS no meio do ca-
níveis de atenção, em detrimento de dispositivos minho; no centro do fluxo), encontra-se presente
3240
Costa PHA et al.

Figura 3. Sociograma da rede sem o CAPSad.

Fonte: Dos Autores.

tanto na rede real/concreta, do cotidiano, quanto Levando em consideração essas ponderações,


na ideal, aquela propagada pelas políticas. Pre- os achados aqui discutidos correspondem ao lo-
tende-se, assim, somente elucidar algumas refle- cal estudado, mas com algumas generalizações
xões a partir da dialética ideal-real, circunscrita permitidas – guardadas as devidas proporções –
no jogo das políticas e práticas da área, ancoran- ao contexto nacional, sobretudo, a partir do diá-
do-se em dados da realidade concreta, ao invés logo estabelecido com as políticas e os resultados
de considera-las como instâncias fragmentadas e de avaliações e pesquisas na área. Por exemplo,
dicotômicas. quando comparadas a estruturação da rede de
3241

Ciência & Saúde Coletiva, 23(10):3233-3245, 2018


atenção do município e o modelo definido pe- ções que se demanda dele, faz com que avaliemos
las políticas (Figura 2), constata-se uma seme- criticamente este parâmetro de cobertura do MS
lhança entre ambos, ao menos no que se refere à e sua adequabilidade, em especial, para abarcar as
“CAPSolização” da rede, fazendo com que alguns especificidades geográficas e carências regionais/
pontos sejam problematizados. O primeiro, é que locais22. Como exemplo, encontra-se o estudo so-
esse cenário chamado de “CAPSolização” é recor- bre a variabilidade de cobertura dos CAPS no Rio
rente na literatura da área6-8,19,20, o que demonstra Grande do Sul (o terceiro estado com maior índi-
o seu caráter nacional, como um caminho desen- ce de cobertura do país), mas que constatou sete
volvido pelas políticas na saúde mental e álcool e regiões com cobertura insuficiente/inadequada,
outras drogas, não sendo apenas restrito ao mu- representando 49% da população do estado22.
nicípio estudado, possibilitando, assim, reflexões Ademais, questiona-se a utilização indiferencia-
mais amplas. da deste parâmetro para saúde mental em geral e
Em segundo lugar, constata-se ainda uma in- álcool e outras drogas, desconsiderando as espe-
suficiência na quantidade destes dispositivos no cificidades e necessidades de cada temática e área.
país, mesmo com a expansão observada nos últi- Tais questionamentos tornam-se ainda mais
mos anos. Segundo a Sala de Gestão Estratégia do intricados quando comparados os números de
MS (SAGE)21, existem 406 CAPSad em funciona- CAPSad, seus níveis de cobertura no país e os
mento no Brasil, com grande concentração nas investimentos públicos que lhes são dispendidos
regiões Sul e Sudeste e sendo apenas 90 do tipo com os de outras instituições não governamen-
III (com funcionamento 24h, todos os dias). Na tais, como as CTs, por exemplo23-25. Dessa forma,
própria rede estudada há somente um CAPSad observa-se um cenário contraditório, onde ape-
do tipo III, com abrangência que, inclusive, vai sar de mencionado como o principal dispositi-
além do próprio município, abarcando cidades vo da rede de atenção aos usuários de drogas, e
vizinhas da macrorregião de saúde. Sendo assim, ocupando, de fato, uma posição central na rede,
no contexto estudado, surgem as seguintes in- o CAPSad é, ao mesmo tempo, tomado de forma
dagações: Será que um dispositivo apenas seria marginal pelo Estado brasileiro, com repasse de
capaz de prestar assistência aos casos existentes, verbas aquém das condições necessárias de fun-
bem como organizar o fluxo de cuidado da rede e cionamento e cumprimento de suas atribuições.
gerência da clínica, ainda mais quando se consi- Aliam-se a esse cenário de insuficiências, os
dera uma rede com essa extensão de dispositivos? entraves na dinâmica de trabalho destes servi-
Será esse número suficiente no município para ços, que, apesar de não serem alvos do presen-
realizar o apoio matricial ou cuidado compar- te estudo, influenciam diretamente no processo
tilhado com todas as 67 UAPS, por exemplo? E organizativo dos CAPSad, sendo constantemente
com os outros dispositivos e níveis de atenção? retratados na literatura da área, como: carências
Ao se tratar de um panorama nacional, e não na formação profissional, atrelada ao modelo
uma exclusividade local, tais questionamentos biomédico e visões moralizantes, estigmatizan-
podem ser ampliados, guardadas as particulari- tes e naturalizantes26-28; sobrecarga de trabalho
dades dos contextos. aliada à escassez de recursos e estrutura defici-
Observa-se, portanto, um dispositivo sobre- tária27,29-31, dentre outros. Ademais, são inseridas
carregado, ao menos em termos das demandas nesse contexto as deficiências referentes a outros
de relações com os outros dispositivos da rede, dispositivos, níveis de atenção e setores5,6,19,29, o
apontando, num primeiro momento para a ne- que complexifica ainda mais a organização da
cessidade implantação de mais CAPSad no mu- rede de atenção através dessa lógica “CAPSoliza-
nicípio. Se utilizarmos o parâmetro de cobertura da” e denota a importância de uma maior hori-
em saúde mental estabelecido pelo MS, que con- zontalidade, o que não nega a necessidade uma
sidera adequada a existência de um CAPS para hierarquização e institucionalização de fluxos de
cada 100 mil habitantes, a cobertura dos CAPS cuidado, vide a própria configuração dos níveis
em Juiz de Fora seria de 0,95, é avaliada como de atenção.
muito boa (índices acima de 0,70). Para fins Os outros obstáculos dizem respeito à pró-
comparativos, tomando como base os dados da pria centralidade do CAPSad e aos contratem-
SAGE21 referente aos números de CAPS no país, pos provenientes, fazendo com que os seguintes
em Minas Gerais o indicador médio também é questionamentos também se tornem pertinentes:
de 0,95 e, no Brasil, 0,86, sendo que em 2002 era A centralidade nesse dispositivo não contradiz o
de 0,21. Entretanto, a própria centralidade do próprio conceito de rede de atenção, assim como
CAPSad na rede, associada ao número de rela- a lógica de cuidado comunitário e territorializa-
3242
Costa PHA et al.

do oriundos da RP? Não estaríamos, portanto, xos assistenciais, por meio de linhas-guia de cui-
reforçando um modelo contraditório ao postu- dado, perpassado por uma hierarquização não
lado pela RP, onde no lugar do hospital psiqui- tão rígida entre os dispositivos e níveis de aten-
átrico são inseridos outros dispositivos, mesmo ção e com foco na AB, visando reverter ou, pelo
que mais humanos, como os CAPS e CAPSad? menos, minimizar essa centralização no CAPSad,
Enfim, aponta-se a necessidade de se repensar a nos demais serviços especializados e/ou nos de
lógica que direciona o papel e a função destes dis- urgência/emergência. Portanto, é necessária uma
positivos na rede e a própria organização destes maior consideração da AB na gerência da clínica
arranjos organizativos. Afinal, como foi possível e ordenação dos fluxos assistenciais. Entretanto,
observar, os dispositivos com maiores métricas não pretendemos uma mera responsabilização
de centralidade depois do CAPSad foram servi- deste nível de atenção e seus respectivos dispo-
ços também especializados e de urgência/emer- sitivos, já sobrecarregados, sem as necessárias
gência, sendo que com a retirada do CAPSad nas modificações: maior dispêndio orçamentário,
análises, estes mesmos dispositivos passaram a ampliações estruturais, melhores condições de
“ocupar” sua posição em termos de centralidade trabalho etc.6,33.
na rede. Enfatizar a institucionalização de fluxos e
Entende-se que a RP e suas conquistas his- linhas-guia não significa desconsiderar as singu-
tóricas compreendem não apenas uma troca do laridades de cada caso, abarcadas por meio dos
hospital psiquiátrico por outros serviços, como PTS, mas somente que elas devem ser pensadas
os CAPS e as demais estratégias substitutivas e em conjunto com o que se tem de estabelecido,
extra-hospitalares. Vasconcelos32, por exemplo, isto é, as possibilidades e caminhos pré-definidos
destaca que essa centralidade na implantação dos na rede. Sem isso, corre-se o risco de uma centra-
CAPS, fez com que outros dispositivos e pontos lidade e demanda cada vez maior nos já sobre-
da rede, como os leitos em hospitais gerais, fos- carregados serviços especializados34,35, acarretan-
sem desconsiderados ou não tivessem o dispên- do em uma cronificação do usuário na rede36,37,
dio devido de atenção e fomento de acordo com assim como imobilismos por parte dos profis-
suas relevâncias: “[...] na expectativa de chegar sionais29, reforçados por problemas estruturais
imediatamente ao nosso objetivo estratégico, e esforços contínuos de “invenções de roda” de-
ou seja, no CAPS III, reduzimos, congelamos ou mandados por cada novo caso que lhes é apre-
deixamos sucatear nossa retaguarda de leitos de sentado. Os próprios fluxos, além de não serem
atenção integral”. Por mais que a mera substitui- tomados de forma engessada, como receituários
ção destes serviços já configurasse um considerá- ou panaceias, devem ser formulados a partir das
vel avanço, a RP pressupôs uma mudança radi- realidades locais. Através dessas estratégias, até
cal e ruptura na forma como se concebe a saúde mesmo a elaboração de novas saídas e possibi-
mental e o uso de drogas, bem como os modelos lidades que fujam do instituído fica facilitada, a
assistenciais e as instituições que as abordam e, partir do momento em que já se tem um conjun-
consequentemente, em como as pessoas e seus to de caminhos e fluxos formalizados.
contextos de vida deveriam ser compreendidos e De modo geral, o que se observou no estudo
tratados. foi que, apesar da retirada do CAPSad da rede
Por mais que o decreto da RAPS coloque que resultar numa perda de cerca de 13% das rela-
a ordenação do cuidado estará sob a responsabi- ções estabelecidas, assim como na redução nos
lidade dos CAPSs ou da AB, as políticas de saúde valores das métricas de coesão, essa diminuição
mental do MS1,3 vão nessa direção de centrali- não ocasionou uma desarticulação da rede, o
dade organizativa da rede e de gestão da clínica que poderia ser visto com um aumento signifi-
nos CAPS e CAPSad. Dessa forma, o cenário en- cativo nos números de cliques. Entretanto, isso
contrado no município mostra uma replicação pode ser explicado pelas densidades observadas
de orientações provenientes de cima para baixo, nas redes, que encontram-se entre 3-5%. Por
ou seja, do MS. Assim, trata-se de um problema, mais que se tenha uma centralidade no CAPSad,
cuja origem consta desde a sua formulação, de- a “baixa densidade” dessa rede faz com que o ce-
monstrando que uma série de possíveis entraves nário não seja demasiadamente modificado. Ou
que permeiam o cotidiano das ações advém dos seja, a retirada do CAPSad da rede não resulta
próprios instrumentos norteadores, como, nesse em sua dissipação, pelo fato dela já se apresentar
caso, das políticas em si. incipientemente articulada. Cabe ressaltar que
Além disso, tal panorama reforça a necessida- utiliza-se “baixa densidade” mais na falta de uma
de da configuração e institucionalização de flu- outra adjetivação, devido à insuficiência de pa-
3243

Ciência & Saúde Coletiva, 23(10):3233-3245, 2018


râmetros que estipulem o que é uma rede com em si, mas na racionalidade que ainda persiste na
baixa, média e alta densidade, bem como estu- área de centralização das propostas assistenciais
dos avaliativos prévios que possibilitem compa- em dispositivos especializados, aliada às insufici-
ração. Além disso, devido à heterogeneidade da ências na formulação e implantação das políticas,
rede, alguns serviços possuem particularidades mesmo num cenário de inúmeros avanços prove-
que dificultam uma valoração dessa densidade, nientes da RP brasileira.
ao impactarem nas relações que estabelecem (ou Agregando todo o montante de dados, jun-
deixam de estabelecer). Isso pode ser visto, por tamente com as reflexões e discussões suscitadas,
exemplo, com os GAMs que, devido às suas fi- aponta-se para a necessidade dos estudos futuros
losofias, constituem cliques praticamente só com analisarem e compreenderem o CAPSad, bem
outros GAMs (Figura 3). Portanto, a não dissipa- como outros dispositivos, não só através de seus
ção da rede não significa uma refutação da tese componentes estruturais, seus processos e dinâ-
de “CAPSolização”, apenas que, em grande parte, micas de trabalho e resultados, mas como eles são
temos um conjunto de serviços que não se en- influenciados pela estruturação da rede e os rela-
contram articulados, fazendo com que pensemos cionamentos estabelecidos com outros serviços.
se temos uma rede ou um emaranhado. Como Isso significa localizá-lo enquanto parte dessa
consequência óbvia, aponta-se para a necessida- rede, sendo constituído por ela e a conforman-
de de uma maior integração entre os dispositivos, do, de modo a entender também qual é o papel
por meio da conformação de fluxos de cuidado. desempenhado por ele nesse panorama. Acredi-
Com relação às limitações da pesquisa, são ta-se que, assim, seja possível abarcá-lo da for-
destacadas: possíveis desconsiderações de ser- ma contextualizada que pressupõem as políticas
viços, especialmente os não governamentais, e e o aparato normativo-legal da área, bem como
presumíveis vieses de resposta dos participantes. a própria história, para que, consequentemente,
Não obstante, existe uma insuficiência de parâ- sejam visualizados e apontados direcionamentos
metros nacionais acerca das necessidades e da em vistas à sua potencialização, como importan-
cobertura assistencial referente às pessoas com te estratégia na área e materialização de uma série
problemas relacionados ao uso de drogas, que de avanços.
dificultam o aprofundamento de algumas refle-
xões sinalizadas no presente trabalho. As especi-
ficidades socioculturais do contexto brasileiro e
o próprio modelo assistencial na área de saúde
mental e álcool e outras drogas aqui construído
e implementado, por mais que influenciado por
outros contextos, também obstaculizam e, em al-
guns casos, até mesmo impossibilitam a realiza-
ção de comparações com outros países.

Considerações finais

O presente estudo constatou uma centralidade


da rede de atenção aos usuários de drogas no Colaboradores
CAPSad, em conformidade com as políticas e o
modelo assistencial preconizado. A centralização PHA Costa, TM Ronzani e FAB Colugnati parti-
neste dispositivo, ainda em número insuficiente ciparam de todas as etapas de construção e con-
e perpassado por uma série de problemas es- dução da pesquisa e escrita do artigo.
truturais e na dinâmica de trabalho, além de in-
fluir para um baixo poder de resiliência da rede,
também indica a necessidade de modificação da
lógica assistencial na área, ainda pautada pelo Agradecimentos
cuidado especializado e/ou pontual, de urgência/
emergência, em detrimento de perspectivas terri- À Amata Medeiros, Bárbara Loures, Juliana Sal-
torializadas/comunitárias por meio de um cuida- gado, Mayara Custódio, Taynara Formagini e
do contínuo. Dessa forma, o problema não reside Wanderson Duarte pela parceria na condução da
no CAPSad, muito menos na proposta de rede pesquisa.
3244
Costa PHA et al.

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Artigo apresentado em 21/12/2017


Aprovado em 06/03/2018
Versão final apresentada em 16/05/2018

CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons
ARTIGO ORIGINAL ABCS
ABCS HEALTH SCIENCES
Arquivos Brasileiros de Ciências da Saúde

Percepções e práticas de agentes comunitários


de saúde na atenção a usuários de drogas
Perceptions and practices of community health workers in the care of drug users
Karen Batista1, Bernardino Geraldo Alves Souto1
1
Programa de Pós-graduação em Gestão da Clínica, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – São Carlos (SP), Brasil.

DOI: http://dx.doi.org/10.7322/abcshs.v42i3.1072

RESUMO ABSTRACT
Introdução: No âmbito das políticas públicas vigentes no Brasil Introduction: In the context of public policies aimed at health care
sobre atenção à saúde de pessoas que usam álcool e outras for people who use alcohol and illicit drugs in Brazil, the community
drogas, os agentes comunitários de saúde (ACS) da Estratégia health agents of the Family Health Strategy are very important for
de Saúde da Família (ESF) são profissionais de significativa the active fetch and care of these people. However, they have
importância para a busca ativa e para o cuidado dessas difficulties to perform these actions, probably due to insufficient
pessoas. No entanto, eles têm muita dificuldade em realizar technical qualification as to appropriate approach of drug users.
tais ações, provavelmente devido à insuficiente qualificação Objective: To describe the perceptions and expectations of a
técnica que recebem sobre abordagem adequada de usuários group of community health agents about drug users, on which
de drogas. Objetivo: Descrever as percepções e as expectativas they base their care practices. Methods: Clinical-qualitative
de um grupo de ACS sobre usuários de álcool e outras drogas research approved by the Research with Human Subjects Ethics
(UAOD), sobre as quais fundamentam suas respectivas práticas Committee, which interviewed ten community health agents
de cuidado. Métodos: Pesquisa clínico-qualitativa, aprovada experienced the care of drug users. The interviews were treated
por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, que by ideographic strategy and nomothetically organized by theme,
entrevistou dez ACS experientes em cuidar de usuários de later on being analyzed under the referential of extended clinics.
drogas. As entrevistas foram tratadas por estratégia ideográfica Results: Community health agents want to take proper care of
e organizadas nomoteticamente por conteúdos temáticos, os illicit drug users, but they do not know how to do it, probably
quais foram analisados sob os referenciais da clínica ampliada. because they still have lay beliefs about these people and do
Resultados: Os ACS querem cuidar adequadamente dos UAOD, not receive enough technical training. Conclusion: These agents
mas não sabem como fazê-lo porque ainda convivem com noções perceive their need to better qualify and wish to improve so they
leigas sobre essas pessoas e não recebem formação técnica can take care of alcohol and other drugs’ users. Therefore, in
suficiente. Conclusão: Esses ACS percebem a necessidade de order for public policies aimed at the care of drug users to be
se qualificarem e desejam essa qualificação para cuidar melhor effective, it is indispensable to apply permanent education
de pessoas que usam álcool e drogas ilícitas. Portanto, para strategies capable of transforming the practices and perceptions
que as políticas públicas destinadas ao cuidado de quem tem of these professionals.
problemas com o uso de drogas sejam eficazes, é indispensável
Keywords: community health workers; mental health; drug users;
a aplicação de estratégias de educação permanente capazes de
Family Health Strategy.
transformar as práticas e as percepções desses profissionais.

Palavras-chave: agentes comunitários de saúde; saúde mental;


usuários de drogas; Estratégia Saúde da Família.

Recebido em: 30/10/2016


Revisado em: 23/07/2017
Aprovado em: 01/08/2017

Autor para correspondência: Karen Batista – Departamento de Medicina, Programa de Pós-graduação em Gestão da Clínica, Universidade Federal
de São Carlos – Rodovia Washington Luís, km 235, s/n – Jardim Guanabara – CEP: 13565-905 – São Carlos (SP) – E-mail: karenbatista85@gmail.com
Conflito de interesses: nada a declarar.

ABCS Health Sci. 2017; 42(3):129-136 129


Visão de agentes de saúde sobre usuários de drogas

INTRODUÇÃO São Carlos (UFSCar) por meio de seu envio online à Plataforma


A política do Ministério da Saúde para atenção integral à saúde de Brasil; a realização do trabalho foi aprovada pelo Parecer nº
pessoas que usam drogas considera que o cuidado a tais sujeitos deve 1.237.682, emitido em 21 de setembro de 2015. A partir daí, e
objetivar a reinserção social da pessoa e a redução de danos. Para isso, com a autorização da gestão local do Sistema Único de Saúde
precisa acontecer no espaço de uma rede de serviços de saúde mental (SUS), desenvolveu-se um estudo clínico-qualitativo12 por meio
de base territorial e comunitária, integrada, articulada e resolutiva1,2. do qual entrevistaram-se, numa primeira etapa, 43 ACSs, em
Por outro lado, diretrizes internacionais preconizam que a 9 unidades de saúde da família (USFs) de um município do inte-
atenção básica represente o eixo organizador da Rede de Atenção rior do estado de São Paulo. Esses ACSs foram os que concorda-
Psicossocial, garantindo cuidados primários em saúde mental e ram em participar como sujeitos da pesquisa por meio da assina-
apoio comunitário3. tura de respectivo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Nesse sentido, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) torna-se (TCLE), conforme determina a Resolução nº 466/12 do Conselho
um recurso importante para a política do Ministério da Saúde des- Nacional de Saúde13.
tinada ao cuidado de usuários de álcool e outras drogas (UAOD). Inicialmente, foi criado um indicador especificamente para
O motivo é que essa estratégia se organiza sobre base territorial e co- medir o grau de experiência (E) de cada ACS com o cuidado de
munitária e é capaz de atender às citadas diretrizes internacionais3. UAOD, o qual teve a seguinte conotação matemática: E=TE×NU
No entanto, a literatura tem mostrado que, apesar de a ESF ser (em que E=experiência no trabalho com UAOD; TE=dias acu-
um modelo interessante ao cuidado de UAOD, os profissionais que mulados de experiência nesse tipo de atividade; e NU=número
nela atuam têm dificuldades em relação ao trabalho com essas pes- de UAOD que o ACS já acompanhou ao longo de sua experiência
soas. Essas dificuldades, por sua vez, determinam obstáculos ao al- profissional, incluindo os que acompanha atualmente).
cance dos objetivos de reinserção social e de redução de danos, uma Na Etapa 1, foram levantados 2 tipos de dados sobre os 43 parti-
vez que limitam as práticas de cuidado a encaminhamentos e acon- cipantes: aqueles que foram necessários para o cálculo do grau de
selhamentos superficiais derivados de: despreparo teórico e técnico experiência de cada ACS e dados sociodemográficos destinados à
das equipes; percepções estigmatizantes sobre usuários de álcool ou descrição amostral do conjunto dos participantes.
drogas ilícitas, com consequente tendência criminalizatória, segre- A finalidade do indicador do grau de experiência (E) de cada
gatória e repressiva; desconhecimento das políticas públicas; e da ACS foi ordenar esses sujeitos para serem entrevistados na segun-
ideia de institucionalização, de medicalização e de exclusão social da etapa, em uma sequência decrescente: a primeira entrevista foi
dos sujeitos como estratégias de abordagem4-10. feita com o ACS que obteve o maior valor para o indicador de
Entre os profissionais da ESF com dificuldades em relação ao experiência; a segunda com o que obteve o segundo maior valor;
cuidado de UAOD é possível destacar o agente comunitário de e assim sucessivamente. A intenção foi garantir a participação dos
saúde (ACS). Esse destaque justifica-se por ser este um profissio- mais experientes no caso de não ser possível ou não ser necessário
nal promotor da aculturação da equipe à comunidade e o articula- entrevistar todos, acreditando-se que, quanto mais experiente fos-
dor da integração entre ambas, e por ser quem busca ativamente as se o ACS, melhor seria o material produzido pela entrevista para
demandas locais por cuidado individual e coletivo. Como mem- os objetivos da pesquisa.
bro mais distal do sistema de saúde que entra em contato íntimo e Na Etapa 2, os ACSs foram entrevistados um a um, em ordem
direto com as pessoas na comunidade, o ACS é fundamental para decrescente a partir do que obteve o maior grau de experiência (E)
o alcance dos objetivos da ESF4,11. até a saturação dos achados, o que aconteceu na décima entrevis-
No entanto, a experiência mostra que são insuficientes as opor- ta. Portanto, a amostragem sobre a qual se produziram os resulta-
tunidades de qualificação técnica oferecidas a ACSs para o con- dos deste estudo foi por conglomerado institucional, fechada pelo
junto de ações pelas quais são responsáveis. critério da saturação e composta de dez entrevistados.
Nesse espaço, ainda que a literatura já comente sobre as dificul- Nessa segunda etapa, realizou-se entrevista individual semies-
dades de equipes de saúde da família em lidar com UOAD, pouco truturada com o objetivo de levantar dados subjetivos sobre as
se ouviu até hoje, com olhar científico, o que os ACSs têm a dizer práticas de cuidado e as percepções dos ACSs relacionadas ao uso
sobre tais dificuldades. Portanto, para ajudar a entender o proble- e aos UAOD. Essas entrevistas foram gravadas em meio magnéti-
ma exposto, desenvolveu-se o presente estudo com o objetivo de co e posteriormente transcritas para análise, a qual foi feita sobre
descrever e discutir as percepções, as práticas e as expectativas de blocos de conteúdos temáticos organizados por estratégia subse-
um grupo de ACSs sobre usuários de drogas e sobre o respectivo quentemente ideográfica e nomotética14.
processo de cuidado. Em termos práticos, o material subjetivo das entrevistas foi
submetido a repetidas leituras flutuantes destinadas à apreen-
são e identificação, por parte dos pesquisadores, dos temas de
MÉTODOS interesse da pesquisa que foram abordados pelos entrevista-
O presente artigo faz parte de uma pesquisa que foi submeti- dos. Identificados esses temas, os mesmos foram categorizados
da ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de segundo as ideias comuns que os caracterizavam como uma

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Batista K, Souto BGA

unidade temática (movimento ideográfico de identificação das RESULTADOS E DISCUSSÃO


ideias postas pelos entrevistados e de organização dessas ideias Aceitaram participar da pesquisa 43 ACSs, mediante TCLE.
em categorias). Entretanto, no décimo entrevistado mais experiente em cuidar de
O passo seguinte foi o de localizar nas falas individuais os tre- UAODs houve saturação dos achados, dispensando-se a necessi-
chos que diziam respeito às categorias temáticas identificadas na dade de se entrevistarem os demais 33 voluntários.
fase ideográfica e organizá-los em conjuntos, de acordo com cada Um aspecto que chamou a atenção foi o fato de haver, entre os
uma dessas categorias (movimento nomotético), criando-se um entrevistados, alguns que tinham participado do curso “Caminhos
corpo de achados14. do cuidado: formação em saúde mental (crack, álcool e outras dro-
Os conjuntos, assim produzidos e organizados, tiveram cada gas)”, oferecido pelo Ministério da Saúde com a intenção de quali-
fala analisada individualmente à luz do referencial da integralida- ficar ACSs para a assistência a pessoas que necessitam de atenção
de do cuidado e da clínica ampliada e compartilhada15,16. Somadas devido ao fato de usarem álcool ou outras drogas. Essa ocorrência
dentro do conjunto (dentro da categoria temática), a contribuição foi aleatória; portanto, não intencional no processo de amostra-
de cada entrevistado sobre o respectivo tema específico oportu- gem, mas mera coincidência desproposital. Não obstante, tal fato
nizou uma compreensão particular ampliada de cada fenômeno oportunizou ampliar a compreensão dos achados ao se conside-
analisado segundo diferentes olhares pessoais dentro da mesma rar esse aspecto específico na análise dos dados conforme se verá
categoria, em cada categoria estudada. adiante, ao longo da discussão.
Quanto aos referenciais da integralidade do cuidado e da clíni- O Quadro 1 discrimina as variáveis sociodemográficas e o indi-
ca ampliada e compartilhada sobre os quais se basearam as inter- cador de experiência dos dez ACSs que responderam à entrevista
pretações das falas dos sujeitos, os mesmos partem do princípio subjetiva semiestruturada durante a segunda etapa do estudo.
de que cada pessoa é um todo integrado ao seu meio social e eco- Quanto às categorias temáticas identificadas, observou-se que
lógico de modo a reconhecer os sentimentos, as percepções, as os ACSs trataram dos seguintes assuntos ao longo das entrevistas:
reações, as atitudes, os sinais e os sintomas dos indivíduos como acolhimento, modelo assistencial biomédico, limitação da auto-
contextualizados em suas dimensões sociais e clínicas, e em seus nomia profissional, influência cultural leiga sobre o cuidado, pos-
projetos existenciais15,16. sibilidades oferecidas pela reflexão crítica, estigma relacionado ao
Em síntese, trata-se de um estudo qualitativo que utilizou o uso de drogas e política pública frente ao conflito entre a ciência
método clínico da escuta para a realização de entrevistas semies- e a cultura. Os achados respectivos a cada uma dessas categorias
truturadas com dez ACSs amostrados por conglomerado institu- expõem-se a seguir.
cional fechado por saturação. Esses ACSs foram pré-selecionados
entre os mais experientes em cuidar de pessoas que usam álcool Acolhimento
e outras drogas dentro do universo amostral disponível e respon- A princípio, observou-se tentativa dos ACSs em acolher
deram sobre suas práticas e percepções a respeito dessas pessoas e o UAOD:
do cuidado que prestam às mesmas.
As entrevistas foram analisadas segundo o conteúdo temático [...] eu acho que orientar [...] mostrar que você se importa com
identificado e organizado por meio de uma construção ideográfi- ele. Não só por conta daquele problema da droga mas assim, de
ca e nomotética, à luz dos referenciais da integralidade do cuidado um modo geral. [...] como que ele tá, se ele tá estudando, se ele
e da clínica ampliada e compartilhada12,15,16. tá trabalhando, como é que tão as coisas em casa, né (ACS 4).

Quadro 1: Indicador de experiência, dados sociodemográficos e participação no curso Caminhos do Cuidado dos 10 Agentes Comunitários
de Saúde que responderam à entrevista qualitativa semiestruturada
Valor obtido no indicador Idade em Morador da Frequentou o curso
ACS Escolaridade
de experiência (E) anos comunidade “Caminhos do cuidado”*
1 289.200 53 Ensino médio completo Não Sim
2 255.500 31 Ensino médio completo Não Não
3 109.500 32 Ensino superior completo Não Não
4 32.120 53 Ensino superior incompleto Não Sim
5 26.565 58 Ensino superior completo Não Sim
6 22.500 42 Ensino superior incompleto Sim Não
7 16.425 35 Ensino superior incompleto Sim Sim
8 9.700 33 Ensino médio completo Não Sim
9 3.880 25 Ensino médio completo Sim Sim
10 960 44 Ensino médio completo Não Sim
ACS: agente comunitário de saúde; *curso de capacitação de agentes comunitários de saúde em atenção a usuários de álcool e outras drogas na atenção básica
editado pelo Ministério da Saúde no ano de 2013 e realizado no município de Rio Claro em 2015.

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Visão de agentes de saúde sobre usuários de drogas

O acolhimento é um modo de cuidar em saúde que implica em semelhantes para pessoas com problemas diferentes, denúncias
compreender a pessoa em suas demandas físicas, sociais e psíqui- de agressões e de maus tratos e o uso de estratégias segregatórias
cas, de modo que suas necessidades possam ser reconhecidas e e punitivas21,22.
trabalhadas de maneira articulada e integral17.
Para isso propõe-se, entre outras práticas, ações transdiscipli- Limitação da autonomia profissional
nares caracterizadas pela horizontalização das relações entre os Se um ACS desenvolver uma percepção de que é fundamental
provedores do cuidado e a pessoa com necessidades de atenção, a institucionalização do UAOD, poderá se sentir tecnicamente li-
as quais podem ter o ACS como esse provedor16,18. mitado para contribuir para o cuidado demandado e, com isso,
ter obnubilada a noção da abordagem integral em que seu apoio
Modelo assistencial biomédico é fundamental:
No processo em que se propõe ofertar um cuidado inte-
gral, incluiu-se a abordagem médica biológica, entendendo-se [...] não tem como você falar muita coisa [...] a gente tenta
que o uso de álcool e outras drogas está associado também a orientar a pessoa a vim aqui. Mas uma prática de saúde que a
problemas orgânicos: gente não pode entrar na questão social (ACS 3).

[...] vamos tentar ver se ele consegue vim no médico, pro mé- No espaço em que surge essa percepção de limitação técnica
dico pedir uns exames nele, porque faz muuuuito tempo que que compromete a integralidade do cuidado, observou-se uma
ele não vem no médico, a gente não sabe como ele tá (ACS 6). tendência dos ACSs de encaminharem o usuário de drogas para
tratamento; porém, sob o entendimento de que a pessoa não de-
No entanto, a expectativa de intervenção médico-biológica sejava o cuidado oferecido, fundamentado na percepção de que
no processo de cuidado de uma pessoa que usa álcool e outras há desinteresse da própria pessoa em relação ao projeto terapêu-
drogas, a exemplo do exposto pelo entrevistado acima, pode ser tico proposto:
consequência de uma percepção de que tal uso representa uma
doença crônica adquirida19. Nesse caso, álcool e outras drogas [...] aí a gente tentou encaminhar ele para alguns... encaminhou
podem ser metaforizados como os agentes etiológicos e seu ele pro CAPS, a mãe também, [...] mas assim ele aparentemente
usuário como o hospedeiro definitivo desse agente que não pode ele não quer sair dessa vida pelo jeito [...] (ACS 6).
ser eliminado do organismo. Uma vez percebido como proble-
ma de ordem biopatológica, pode ser que a condição de UAOD A gente tem que tomar o máximo de cuidado né. Tem pessoas
seja vista como algo que demanda uma intervenção diagnóstica que elas não querem ser ajudadas (ACS 3).
e uma prescrição médica.
Nesse sentido, a premissa de que, obrigatoriamente, tem que Nesse caso, parece que a compreensão do ACS foi de que a
haver um diagnóstico e um tratamento para tudo o que é per- pessoa que usa álcool e outras drogas resiste ao projeto terapêu-
cebido como desvio funcional tende a fazer com que o cuidado tico sugerido.
seja visto como essencialmente dependente do médico ou de
tecnologias duras20: Influência cultural leiga sobre o cuidado
Também se observaram práticas de cuidado de orientação leiga
Eu acho que o governo deveria dar mais clínicas, ter uma clíni- e paternalista, possivelmente fundamentadas num sentimento de
ca específica para drogados, sem limite [...] (ACS 5). compaixão do ACS pelo UAOD, capaz de resultar numa caridade
de base religiosa:
[...] no pior o que eu imagino no paciente preso ou morto.
Dependendo do grau da droga, dependendo do uso que ele faz, Oriento a buscar tratamento, eu oriento a ir pra uma igreja, eu
ou também ele pode ser internado numa clínica e se recupe- dou suporte e encaminhamento pra vários seguimentos pra que
rar(ACS 1). ele melhore (ACS 5).

Nesse caso, a institucionalização do UAOD, seja no sistema [...] eu acho que em qualquer situação você tem que ter pa-
prisional ou em regime de internação hospitalar, também é vista ciência, amor né. Deus sobre todas as coisas e ir com calma
como uma estratégia intersetorial contra o uso de álcool e outras [...] (ACS 4).
drogas. Entretanto, em inspeções realizadas em instituições de in-
ternação de usuários de drogas, observaram-se dificuldades como A percepção da caridade com apelo religioso como recur-
superlotação, insuficiência de recursos humanos, precariedade so assistencial, quando descontextualizado dos aspectos cien-
das condições físicas, ausência de projeto terapêutico singular, tíficos demandados pela condição de saúde da pessoa assistida,
elevado número de pessoas aguardando exames, intervenções pode concorrer com a necessidade de provisão de um cuidado

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Batista K, Souto BGA

tecnicamente adequado e até mesmo desviar a assistência pres- ah qual que é o problema?” Eu sinceramente não tenho nada
tada da que é indicada pelas políticas públicas e pela evidência contra a pessoa que usa a maconha (ACS 10).
científica19. Não é raro, ainda, que esse apelo derive da percepção
de exaustão da possibilidade terapêutica: No âmbito dessa tolerância pode surgir um desejo de concilia-
ção com o UAOD no sentido de aceitá-lo desde que o mesmo não
[...] ele chegou no fundo do poço e ele pediu mesmo para Deus faça uso nocivo da droga:
[...] Aí Deus na hora que deu o sinal para ele [...] ele conseguiu
mudar (ACS 6). [...] Bom, seria bom se as pessoas não usassem droga mas como
hoje isso não é possível, tentar ficar mais junto da pessoa, con-
No caso de o cuidado subordinar-se inteiramente à religio- versar, pra eles num vê a gente como inimigo. [...] A gente tem
sidade, isso poderá ser tanto causa como consequência de uma preconceito, às vezes tem até medo né, sair à noite por causa
subtração na autonomia da pessoa com necessidades de saúde, dessas pessoas. Mas é bom que unificasse tudo [...] (ACS 10).
sustentada em modelos doutrinários da moral que defendem o
controle sobre o sujeito como estratégia para a sua reabilitação. Contudo, houve quem fosse ainda mais tolerante e propusesse
Nesse caso, o que se entende por reabilitação também está subor- uma abordagem solidária e menos condicional, fundamentada
dinado ao olhar de quem impõe o controle. numa reflexão crítica social:
O ajuizamento moral sobre o uso e o UAOD apareceu na fala
de um ACS no contexto da sua dificuldade em admitir a possi- [...] Todo mundo tem na família ou conhecido que usa.
bilidade de a pessoa sob seus cuidados ser usuária, como se essa Então vamo tentar ajudar. Mas vamo ser amigo, vamo ser nor-
revelação representasse algo devastador: mal, sei lá. Não deixar a pessoa se sentir excluída (ACS 10).

[...] Aí comecei a conversar com ele e chegou na parte: Ninguém é normal, assim, basta um entender o outro [...] você
- Usa drogas? É, e a gente já vai no “Não” [...] Nunca imaginei é aceito se você é normal, se você faz umas coisas meio fora do
que ele fosse usar... Aí eu (perguntei): padrão você não é normal não (ACS 10).
- O senhor usa? Não... eu vou ser sincero pra você, não pode
mentir, não pode seu João, fala a verdade! O estigma relacionado ao uso de drogas
- Não, eu uso, eu fumo maconha [...] (ACS 6). Porém, o que predominou foi a percepção de que, invariavel-
mente, há algo degenerado e ameaçador no UAOD. E quando não
Devastador porque viola a expectativa estereotípica que se tem é assim, foge ao conceito estabelecido ao ponto de surpreender e
sobre uma pessoa que usa droga: soar ilógico, inacreditável e fora dos padrões. A maior parte dos
entrevistados deixou transparecer uma percepção de que, se a
- Mas o senhor fuma mais alguma...? pessoa usa droga, necessariamente tem algo de ruim a oferecer no
- Não, só a maconha mesmo. contexto de suas relações e, portanto, representa uma condição
Mas é uma pessoa de boa, de bem com a vida assim sabe, não que não deveria existir. Se ela não tem isso de ruim é porque, na
é uma coisa que eu acho que ele é assim, viciado mesmo, sabe, verdade, não é o estereótipo de usuária de droga que está no ima-
e ele é uma pessoa bem bacana, assim, ele cata reciclagem as- ginário coletivo. Ou seja, há um preconceito depreciativo, talvez
sim na rua, eu nunca ouvi falar que ele maltratou ninguém, é estigmatizante, em relação a quem usa droga, mesmo por parte de
uma pessoa educada, sabe? Ah mas foi muito engraçado esse ACSs cuja primeira função é acolher essa pessoa, demonstrando
dia assim sabe... (risos). [...] Assim nenhuma complicação para uma dificuldade desse profissional em compreender que o uso de
família, não tá destruindo a família, tá tudo mundo assim, sabe, droga pode fazer parte da constituição existencial do indivíduo
tudo tranquilo [...] (ACS 6). sem que isso implique em problemas23:

Possibilidades oferecidas pela reflexão crítica Preconceito a gente tem [...]. No fundo, no fundo, todo mundo
Não obstante, essa experiência de contato com UAOD, sem que tem preconceito [...] (ACS 10).
isso repercuta negativamente no ambiente ou no comportamen-
to ético-social sob responsabilidade do usuário, pode facilitar ao [...] ela não é vista como uma pessoa, um ser, ela é vista como
ACS uma reflexão produtiva em favor de uma melhor compreen- uma coisa que dá trabalho, uma sem sentido. Ela é uma pes-
são e tolerância em relação a esse usuário: soa que dificilmente alguém dá a mão. Todo mundo fala, todo
mundo evita, porque o preconceito existe contra a droga, con-
[...] eu fui conversar com ele sobre ele usar droga tal [...] Ele fa- tra qualquer outro tipo de dependência. Existe preconceito, e a
lou: “eu não prejudico ninguém, eu trabalho, eu tenho meu pessoa sofre muito e a família, os amigos, todas as pessoas que
emprego, eu cuido da minha filhinha, pago minhas contas, cercam ela vão sofrer junto (ACS 5).

ABCS Health Sci. 2017; 42(3):129-136 133


Visão de agentes de saúde sobre usuários de drogas

E aí o estigma aparece claramente na fala a seguir: você fica lembrando, mas nossa, mas eu aprendi que é assim,
assim, assim. Então eu procuro respirar e procuro colocar em
Ah um receio né. Cria um receio, uma barreira. Não vou ex- prática aquilo que a gente aprendeu (ACS 4).
plicar assim um nome pra isso [...] Até onde né, a pessoa que
tá usando a droga já tá num certo grau de uso, ela pode me Essa questão da formação profissional de ACSs apresentou-se
atingir? Com o contato mais direto (ACS 3). como importante possibilidade para a aplicação das políticas pú-
blicas sobre cuidados de pessoas que usam álcool e drogas ilícitas.
Nesse caso, surge o óbvio efeito do estigma que, segundo Como dito, há um conflito entre a influência da cultura de fun-
Goffman23, desqualifica o estigmatizado: damentação leiga e a ciência na percepção de ACSs sobre essas
pessoas e o fenômeno que as envolve. Esse conflito prejudica a
[...] eles sentem vergonha. Eu acho que eles sentem vergonha. integralidade do cuidado por dificultar a participação qualificada
É o meu ponto de vista [...] Da própria fraqueza deles. De algum dos ACSs na assistência. Entretanto, a formação técnica mostra-se
ponto que eles não conseguem trabalhar (ACS 1). potencialmente capaz de influenciar a atuação dos mesmos em
favor do que se pretende em termos de atenção aos UAOD:
Ainda segundo as ideias de Goffman23, sendo o estigma uma
marca que se impinge a uma pessoa com o fim de identificá-la Mas eu acho que a gente pode contribuir bastante pra que tenha
com o indesejável, essa marca interfere, pois, na relação de quem um bom desfecho né. Aquela parte que a gente estudou sobre
a percebe com aquele que se tornou maculado no sentido de des- redução de danos, eu acho que se a gente conseguir reduzir um
pertar um desejo pela segregação do estigmatizado. Esse fenôme- pouquinho que seja [...] eu faço a minha parte [...] (ACS 4).
no, na percepção de um ACS, pode resultar numa ação excluden-
te do UAOD, capaz de obstruir o acesso dessa pessoa a cuidados Interessante foi que os ACSs se mostraram sensíveis a esse
adequados de saúde24. progresso:
Nesse ambiente de significados, pode tornar-se patente, na vi-
são de ACSs, a associação entre uso de álcool e outras drogas a Eu acho que a gente tinha que ir buscar mais, mas a gente tem
um fenômeno que é degenerado a partir de sua própria natureza: que ser preparado pra lidar com isso também [...] (ACS 2).

[...] Eu acho que assim, é bem [...] uma fraqueza de espírito. Percebe-se que os próprios ACSs refletiram criticamente sobre
Mas eu acho que é a emoção, um distúrbio emocional da pessoa sua potência profissional e sobre a necessidade de qualificarem a
[...] (ACS 7). atenção que oferecem aos UAOD. No entanto, para que tal qualifi-
cação ocorra, é fundamental que esses profissionais sejam forma-
Porque as pessoas hoje não, não têm [...] aquela família uni- dos para isso e que recebam apoio para desenvolver as respectivas
da, que dá mais estrutura, mais base sabe pra um futuro me- ações de saúde no território.
lhor (ACS 5) A literatura, as políticas públicas e as diretrizes internacionais
reconhecem que a ESF é uma ferramenta essencial para a provi-
Não sei...tem tanta gente boa que usa...gente mal você vai falar são do cuidado qualificado aos UAOD, que tem como objetivo a
que é, que é a situação dela. Mas e o cara legal, o cara que estu- reinserção social do sujeito e a redução de danos. Dentro dessa
da, o cara que faz faculdade...sei lá. Por que que usa droga? [...] estratégia, destacou-se o papel dos ACSs.
(ACS 10). Nesse foco, respeitadas as limitações inerentes à metodologia
utilizada neste estudo e o universo investigado, estabelecidas pela
A política pública frente ao subjetividade dos achados, pela característica específica dos su-
conflito entre a ciência e a cultura jeitos e pela organização do ambiente assistencial em que traba-
Por outro lado, os ACSs demonstraram vivenciar um conflito lham, observou-se que os ACSs têm tendência acolhedora sobre
entre suas percepções culturais relacionadas aos UAOD e o dis- os UAOD na tentativa de ofertarem uma atenção ampliada e in-
curso científico ou as políticas públicas a que tiveram acesso. tegral. Contudo, essa tentativa mostrou-se prejudicada pela falta
Nesse sentido, destacou-se o curso “Caminhos do cuidado”, de oportunidade de qualificação técnica; pela influência de per-
ofertado nacionalmente pelo Ministério da Saúde para a qualifica- cepções de ordem sociocultural estigmatizantes sobre os UAOD;
ção de profissionais da atenção básica sobre cuidados de UAOD17: e por um sentimento de baixa autoeficácia profissional, o qual
sustenta uma crença equivocada de que os modelos assistenciais
[...] você tem que parar e pensar naquilo que você aprendeu hospitalares, médico-centrados ou restritivos da autonomia dos
porque pra gente, por mais que você conviva, você nunca teve sujeitos são mais eficazes.
uma...eu pelo menos nunca tive uma orientação que nem agora Esse conjunto de obstrutores, aliado a uma falta de adequada
a gente teve no Caminhos, né... Caminhos do Cuidado, então estrutura de suporte assistencial secundário e terciário, dificulta a

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aplicação correta das políticas públicas vigentes para o cuidado de condições de refletir sobre as políticas de saúde mental, bem
UAOD por parte das equipes de saúde da família, dando a impres- como problematizar e construir modelos de atenção à saúde
são de uma ineficiência sistêmica das próprias políticas públicas. numa perspectiva ampliada e emancipatória sobre os usuários
Não obstante, os ACSs compreendem suas limitações técnicas de drogas.
e identificam a importância de qualificação para o cuidado de Em síntese, os ACSs demonstraram interesse por cuidar de
UAOD, entendendo que é possível prover uma atenção melhor UAOD, mas não sabem como fazê-lo adequadamente. Essa condi-
do que aquela que é ofertada. Apontaram, inclusive, que muitas ção os deixa numa situação de insegurança pessoal e profissional
de suas ações leigas destinadas ao cuidado de UAOD, as quais frente a esses sujeitos e às suas próprias limitações, o que leva ao
resultam numa abordagem pouco qualificada e ineficiente em desperdício da potencialidade que têm.
relação ao objetivo das políticas públicas, derivam da tentativa Portanto, sugere-se incluir entre as políticas públicas a aplica-
de cuidarem mesmo na falta de recursos pessoais e profissionais ção de estratégias pedagógicas de qualidade e intensidade sufi-
para isso. Entretanto, como dito, mostraram-se interessados em cientes para tornar o ACS um profissional capaz de exercer uma
fazer melhor e, portanto, reivindicam oportunidade de conquis- clínica ampliada e compartilhada no âmbito da ESF, bem como a
ta desses recursos. produção de novos estudos sobre o tema por meio de estratégias
É fundamental garantir espaços regulares de educação perma- metodológicas que permitam avaliar a influência dos treinamen-
nente para que os ACSs e demais profissionais da ESF tenham tos nas percepções e nas práticas do ACS.

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© 2017 Batista & Souto. Publicação licenciada para ABCS Health Sciences
Este é um artigo de acesso aberto distribuído nos termos de licença Creative Commons.

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9 //
DOI: http://dx.doi.org/10.18569/tempus.v11i3.1982

Redução de Danos na Atenção Psicossocial: concepções e


vivências de profissionais em um CAPS ad

Harm Reduction in Psychosocial Care: conceptions and


professional experiences in a CAPS ad

Reducción de daños en atención psicosocial: conceptos y


experiencias profesionales en un CAPS ad
Ana Carolina da Costa Araújo1
Ronaldo Rodrigues Pires2

RESUMO: O presente estudo tem por objetivo compreender a percepção de profissionais de um


Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPS ad) acerca da estratégia de Redução
de Danos, bem como identificar os principais desafios para a efetivação dessa política no âmbito da
Atenção Psicossocial. Caracterizou-se como uma pesquisa de abordagem qualitativa, onde foram
entrevistados treze profissionais e as falas destes foram analisadas a partir do referencial da Análise
de Conteúdo. De maneira geral, a Redução de Danos é percebida como uma estratégia ainda recente,
com o papel de ampliar as possibilidades no tratamento do usuário de substâncias psicoativas,
tornando-o mais autônomo e participativo em seu processo de cuidado, garantindo maior adesão ao
tratamento e maior humanização no cuidado. Percebe-se, também, alguns desafios com relação à
concretização da Redução de Danos, como o conhecimento insuficiente por parte dos profissionais,
familiares e dos próprios usuários acerca da política sobre drogas. No entanto, embora ainda não se
sintam capacitados para promover esse cuidado diferenciado, os profissionais têm buscado, junto
ao usuário, diferentes possibilidades de práticas que se orientam sob este paradigma.
Palavras-chave: Redução de danos, Abuso de drogas, Saúde mental.

ABSTRACT: The aim of this study is to understand the perception of professionals of a Center for
Psychosocial Care Alcohol and Other Drugs (CAPS ad) about the harm reduction strategy, furthermore
to identify the main challenges for the effectiveness of this policy in the scope of Psychosocial
care. It was characterized as a qualitative approach research, where thirteen professionals were
interviewed and their speeches were analyzed from a Content Analysis framework. In general,
Harm Reduction is seen as a recent strategy, with the role of expanding possibilities in the treatment
of users of psychoactive substances, making them more autonomous and cooperative in their care
process, ensuring greater adherence to treatment and greater humanization in care. There are also
some challenges related to the achievement of Harm Reduction, such as insufficient knowledge
about the policy by professionals, family members, and users themselves. However, whilst they do

1 Psicóloga – Especialista em Gestão em Saúde pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Egressa da Residência
em Saúde Mental Coletiva pela RIS-ESP/CE. Psicóloga da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Centro
de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD). Quixeramobim, Ceará, Brasil. E-mail: cbjr.carol@hotmail.com
2 Psicólogo, Mestre em Psicologia, Professor substituto do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual do
Ceará, Egresso da Tutoria de Núcleo (Psicologia) da Residência Integrada em Saúde – RIS da Escola de Saúde Pública
do Ceará – ESP-CE, Fortaleza, Ceará, Brasil. Doutorando do programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da
Universidade Estadual do Ceará - UECE. E-mail: ronrodpires@bol.com.br

ISSN 1982-8829 Tempus, actas de saúde colet, Brasília, 11(3), 9-21, mar, 2018
10 //
not feel able to promote this differentiated care, professionals have sought, along with the user,
several possibilities of practices that are guided by this paradigm.
Keywords: Harm reduction, Drug abuse, Mental health.

RESUMEN: Este estudio tiene como objetivo comprender la percepción de los profesionales
en un Centro de Atención Psicosocial de alcohol y otras drogas (CAPS ad) sobre la estrategia
en reducción de daños e identificar los principales desafíos para la eficacia de esta política en la
Atención Psicosocial. Se caracteriza por ser una investigación cualitativa donde trece profesionales
fueron entrevistados y sus declaraciones analizadas a partir de la referencia del análisis de
contenido. En general, la reducción de daños es percibida como una nueva estrategia, que tiene
el papel de ampliar las posibilidades en el tratamiento de los usuarios de sustancias psicoactivas,
convirtiéndolo en un ser autónomo y participativo en su proceso de cuidado, garantizando una
mayor adhesión al tratamiento y humanización del cuidado. También se pudo observar algunos
retos en cuanto a la aplicación de la reducción de daños, tales como el conocimiento insuficiente
de los profesionales, miembros de la familia y los usuarios acerca de las políticas de lucha contras
las drogas. Sin embargo, aunque todavía no se sienten capaces de promover este cuidado especial,
los profesionales han buscado, junto al usuario, distintas posibilidades de prácticas que se orientan
bajo este paradigma.
Palabras clave: Reducción de daños, Abuso de drogas, Salud mental.

1 INTRODUÇÃO

No âmbito da atenção aos usuários de álcool e outras drogas, a Redução de Danos (RD) se
constitui como uma política de saúde pública que tem como objetivo minimizar as consequências
negativas do consumo, garantindo a liberdade de escolha do sujeito e seu papel de protagonista
do cuidado 1,2. Na realidade da Atenção Psicossocial, foi inserida como uma diretriz que se coloca
como alternativa às estratégias de cuidado baseadas exclusivamente na lógica da abstinência.
Tendo em vista a diversidade de relações que os sujeitos estabelecem com as drogas, a RD aponta
para a necessidade da ampliação das ofertas em saúde para esta população3.

No Brasil, as primeiras ações de Redução de Danos ocorreram no município de Santos, em


1989, em um momento de significativo avanço municipal no que dizia respeito à implementação
de ações para usuários de drogas no Sistema Único de Saúde (SUS). Em um contexto marcado pela
repressão ao uso de drogas, o secretário municipal de saúde, David Capistrano, e o coordenador
do programa de DST/AIDS, Fábio Mesquita, sofreram uma ação judicial por serem acusados de
incentivo ao uso de drogas2,3,4. Essa ação judicial pôs em evidência a contradição da coexistência
de políticas autoritárias e a busca de implantar alternativas de cunho mais progressista. Esta
contradição permanece até hoje no contexto dos serviços de saúde destinados ao cuidado aos
usuários de substâncias psicoativas3.

Na atualidade, a atenção à saúde dos usuários de substâncias psicoativas é norteada pelo


decreto n.° 11.343, de 2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
(SISNAD), e pela Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral aos usuários de álcool e
outras drogas, que dispõem sobre medidas para prevenção, atenção e reinserção social de usuários

ISSN 1982-8829 Tempus, actas de saúde colet, Brasília, 11(3), 9-21, mar, 2018
11 //
de álcool e outras drogas5,6,7 . Desse modo, percebe-se que, mesmo com as resistências históricas, a
RD está presente nestes diferentes marcos normativos das políticas públicas brasileiras.

A Redução de Danos é apontada por vários estudos como um princípio crucial para
a efetivação dos direitos dos usuários de drogas, tendo em vista que ela permite que um novo
olhar seja lançado sobre esse sujeito, mostrando-se como uma oferta concreta de acolhimento e
cuidado que rompe com a marginalização desses usuários4,8,9,10. No entanto, essa política ainda
enfrenta diversos obstáculos na sua efetivação, como dificuldades de financiamento das ações,
descontinuidade dos projetos, além de insuficiência de estruturas para sua realização3, 11.

Além disso, observa-se que existem concepções diversas acerca dos objetivos e da aplicação
das estratégias de Redução de Danos. Em estudo realizado sobre as concepções presentes na
literatura acerca da RD10, constatou-se que existe uma visão heterogênea acerca desse conceito,
sendo ele aplicado e representado de diferentes formas e recortes. Nesse estudo, Santos, Soares e
Campos10 apontam que a RD pode ser abordada a partir de diferentes concepções sobre o objeto e
o sujeito destas ações, de modo a afirmar que existem “várias RDs”.

A percepção destas contradições e destes problemas no campo de prática dos serviços tem
servido para mobilizar questões sobre esta situação. O interesse por esta temática surgiu a partir
da experiência vivida da primeira autora como psicóloga residente da Ênfase em Saúde Mental
Coletiva do Programa de Residências Integradas em Saúde – RIS. Através das ações, dos diálogos
e das vivências com os profissionais do Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas
(CAPS ad) onde atuou, foi possível perceber que a temática da Redução de Danos ainda aparecia
de forma tímida nesse espaço, além de parecer haver certa resistência a sua efetivação.

As perguntas que geraram a construção dessa pesquisa foram: Como os profissionais do


CAPS ad percebem a política de Redução de Danos? Qual a concepção que estes têm acerca desta
e como traduzem essas concepções para suas práticas cotidianas? A relevância desta interrogação
consistiu em possibilitar a reflexão acerca das barreiras existentes com relação a essa política,
trazendo à tona as potencialidades suscitadas no cotidiano dos serviços e o fomento de novas
formas de atuar no contexto do cuidado aos usuários de álcool e outras drogas.

Assim, o presente estudo teve o objetivo de compreender a percepção dos profissionais


de um CAPS ad acerca da estratégia de Redução de Danos. Buscou-se, também, descrever as
principais ações de Redução de Danos desenvolvidas nesse serviço e identificar os desafios para a
efetivação dessa política no âmbito da Atenção Psicossocial.

2 MÉTODOS

A presente pesquisa caracteriza-se como um estudo do tipo descritivo, de abordagem

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qualitativa, pois está interessada em produzir informações sobre a natureza de um fenômeno, a partir
dos sujeitos e seus relatos12. Foi realizada em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras
Drogas (CAPS ad), o qual se constitui como um serviço especializado responsável pela atenção
psicossocial aos usuários de substâncias psicoativas. O CAPS ad do município de Iguatu no interior
do Ceará em que foi realizada a pesquisa foi fundado em 2003, e funciona das 7h às 17h. Acolhe
diariamente usuários que o procuram buscando oferecer um cuidado multiprofissional, através de
atendimentos individuais, grupais, oficinas terapêuticas, visitas domiciliares e articulação com os
demais serviços que compõem a rede do município. O CAPS ad, em questão, também possuía,
na época da pesquisa, profissionais oriundos de um programa de residência multiprofissional em
Saúde Mental Coletiva e profissionais da residência médica em Psiquiatria.

A coleta de dados se deu no período de novembro de 2014 a março de 2015. A amostra se


deu por conveniência, tendo participado do estudo treze profissionais, de um total de dezessete.
Foram convidados todos os integrantes das equipes, incluindo residentes e profissionais do serviço
tanto de nível médio como de nível superior. Aqueles que não se sentiram à vontade para participar
ou não possuíam tempo suficiente para responder as perguntas foram excluídos.

O instrumento utilizado para produzir as informações foi a entrevista em profundidade. As


entrevistas pretenderam ampliar e aprofundar a comunicação entre o pesquisador e os participantes
através de um roteiro semiestruturado. O roteiro de entrevista compunha-se de sete perguntas
abertas, tendo sido arquitetado com base em três unidades: 1) Perfil dos profissionais entrevistados,
buscando informações como idade, sexo, categoria profissional, tempo de formação e de atuação
em serviços de saúde mental; 2) Concepção do profissional acerca da Redução de Danos, Atividades
e ações que classifica como Redução de Danos; e 3) Dificuldades, limitações e resultados/aspectos
positivos observados e identificados pelos profissionais no que concerne à estratégia de Redução
de Danos.

Os dados coletados através das entrevistas foram transcritos na íntegra e analisados a partir
do referencial da Análise de Conteúdo13. As principais categorias de análise foram: concepção de
RD, dificuldades enfrentadas para concretização da RD, ações e metodologias de RD dentro da
prática no CAPS ad, e benefícios proporcionados pela adoção da estratégia.

Foram analisados trechos de depoimentos dos profissionais que participaram do estudo,


os quais foram numerados de I a XIII, com a pretensão de manter a identificação dos sujeitos em
sigilo. Para a escrita deste artigo, selecionamos apenas alguns dos relatos que consideramos mais
ilustrativos.

O estudo foi submetido no Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Saúde Pública


do Ceará, sendo aprovado com o parecer de número CAAE: 946.346. Foi utilizado o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido, através do qual os profissionais entrevistados foram informados

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sobre os objetivos da pesquisa e manifestaram seu consentimento em participar.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Entre os sujeitos entrevistados, predominaram profissionais do sexo feminino, com faixa


etária média de 32 anos, sendo a idade mínima de 24 e a idade máxima de 51 anos. O tempo de
trabalho no CAPS AD variou de um mês a onze anos, ou seja, alguns profissionais estavam no
serviço desde a sua fundação. Outros eram oriundos do programa de residência multiprofissional
com ênfase em Saúde Mental Coletiva. No que concerne às categorias profissionais dos entrevistados
contamos com: terapeuta ocupacional, recepcionista, profissional de educação física, assistente
social, enfermeiro, médico psiquiatra, psicopedagoga, psicólogo, técnico de enfermagem e artesão.

3.1 CONCEPÇÕES SOBRE A REDUÇÃO DE DANOS

Logo após a apresentação ao entrevistado e a identificação de suas informações pessoais,


abordamos sua percepção sobre a política de Redução de Danos. Com relação ao conhecimento
destes profissionais acerca da RD e das concepções que os mesmos possuem, foi possível perceber
que a grande maioria conhece a Redução de Danos, embora existam diferentes olhares acerca
da temática. Isso indicou certa familiaridade com o tema e mostrou não ser algo ignorado pelos
profissionais.

3.1.1 Redução de Danos como uma ética do cuidado

A partir de algumas narrativas foi possível perceber que, para um grupo dos entrevistados do
serviço, havia uma aproximação das concepções sobre a RD como uma ética do cuidado, tal como
aponta Petuco11. Esta compreensão orientaria a clínica junto às pessoas que fazem uso de drogas, a
partir do ponto de vista da necessidade de ampliarem-se os lugares onde se efetiva o cuidado. Tal
pressuposto implica também numa modificação da relação que se estabelece entre quem cuida e
quem é cuidado, de modo a produzir uma horizontalidade e respeito ao protagonismo do sujeito.

A Redução de Danos, pra mim, é assim, quando o paciente faz um uso abusivo, e ele não
quer parar, mas quer diminuir, então a gente vai trabalhando essa diminuição com ele,
com foco também na questão das atividades esportivas, atividades de lazer, a questão
também da alimentação, que influencia muito, até pra melhorar a condição de saúde
dele. Então eu fui entendendo que na redução ele pode ir fazendo uso, mas com outras
ocupações, outras atividades. Se ele não quer parar, então foi uma escolha dele, e a gente
tem que respeitar (Entrevistado VIII).

Nesta perspectiva, os discursos salientaram o respeito ao usuário e a não imposição da


abstinência como pressupostos da RD na produção do cuidado dispensado, mesmo ele fazendo uso
de determinada substância psicoativa.

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Eu definiria como uma forma de tratamento para aquelas pessoas que não querem
deixar de ser usuárias, e que de alguma forma elas têm direito à saúde. Então, a gente
trabalharia com Redução de Danos (Entrevistado IX).
Então, eu acho que a Redução de Danos está presente o tempo todo, porque eu estou
sempre fazendo um esforço para que os usuários atendidos aqui sejam respeitados,
independente das suas escolhas em relação ao uso de drogas. Acho que a Redução
de Danos está presente também na minha prática por eu não ter somente o ideal da
abstinência, por reconhecer muitas vezes que as pessoas vão continuar usando algumas
substâncias (Entrevistado VI).

Os discursos destes entrevistados trazem a percepção de que a droga não é o agente


determinante para a construção do cuidado, de forma que consideram as evidências de que
a relação do usuário com a substância nem sempre se dá necessariamente em uma relação de
dependência1,14. Ao invés disso, são pensadas variadas possibilidades de relação do sujeito com as
drogas o que ampliam os objetivos de suas práticas. Assim, destacou-se que embora a RD esteja
atrelada atualmente ao universo das drogas, ela é uma forma de agir e de cuidar presente nas
relações humanas.

A Redução de Danos, na verdade, ela faz parte da nossa vida. A gente que não percebe
muito. Por exemplo, no trânsito a gente diz assim, se beber não dirija, já é para reduzir
um dano que pode ser causado, um acidente, uma morte iminente. Eu acho que a gente
vive na sociedade em meio à Redução de Danos e não tem essa consciência ainda
(Entrevistado VII).

Como podemos ver no relato do entrevistado, o significado da Redução de Danos é muito


simples e não requer conhecimentos de ordem científica ou médica, como também aponta Pat
O’Hare15. No entanto, compreendendo que historicamente esta política tem enfrentado resistências,
é possível pensar que esta oposição a ela possa derivar da condição estigmatizada dos usuários
de drogas, bastante presente em nossa cultura. Um dos indicadores desta condição é justamente
a presença do desejo de distanciamento social encontrado inclusive na relação entre usuários e
profissionais de saúde16 que produzem barreiras na relação de cuidado.

3.1.2 Redução de danos como um modo de tratar a dependência de drogas

Em outros trechos analisados também foram encontrados alguns relatos que destacaram a
RD como um modo de minimizar a relação de dependência existente entre o sujeito e a substância,
no sentido de diminuir os riscos e agravos que o uso de drogas pode trazer para esse indivíduo.

Redução de Danos é uma maneira que se encontrou para diminuir os danos que a droga
faz no organismo do paciente, quando ele não tem a capacidade ou a vontade de deixar,
ele é orientado a, pelo menos, diminuir o uso abusivo, e com isso vai melhorar a saúde
dele (Entrevistado XI).
Pelo pouco que eu entendo, a pessoa fica no tratamento e fica usando quando sente a
necessidade dele. O objetivo é ver se, no que vai reduzindo, a pessoa vai indo, vai indo, e
fica em apenas uma coisa só. Ou no tratamento, ou no vício (Entrevistado XII).

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A Redução de Danos é a “clínica do possível”, é o que dá para fazer, tendo em vista que
em alguns casos não é possível a abstinência, não é possível parar completamente o uso
de alguma substância. É tentar de alguma forma diminuir o prejuízo que ele vai causar,
tendo em vista que algumas pessoas não conseguem parar o uso da substância. Então, é
tentar fazer com que a substância seja menos nociva pra ela (Entrevistado III).

A preocupação com a substância e os prejuízos possíveis foi mais destacada entre estes
entrevistados. Como afirma Moraes17, a abordagem da Redução de Danos muitas vezes é colocada
como uma possibilidade pelos profissionais, embora, por vezes, parece ficar subentendido que a
meta ideal para o tratamento é a abstinência. No entanto, é importante esclarecer que a RD não
se opõe à abstinência como possibilidade, tendo em vista que muitas vezes a supressão do uso de
drogas pode ser a melhor forma de reduzir os danos para algumas pessoas.

Cabe ressaltar, no entanto, que buscar a abstinência é uma conclusão que deve ser tirada pelo
próprio usuário, e não uma expectativa ou exigência de seu projeto terapêutico17. Nesse sentido,
há sempre um risco de simplificação da proposta que precisa estar sempre sob a necessidade de
reflexão. É preciso destacar também que o fato do usuário não deixar de consumir drogas não deve
significar uma desresponsabilização nem do serviço, nem do usuário, como aponta Quinderé e
Jorge18, e, por isso, os entrevistados parecem supor a necessidade de apostar em algo que produza
o vínculo para a produção do cuidado.

Percebe-se então que, mesmo em um serviço onde se afirma a RD como um princípio


norteador para a atenção aos usuários, as diferentes concepções nem sempre se mostram de maneira
homogênea. Permanecem, ao nosso ver, alguns resquícios da lógica proibicionista que polariza a
cura e o cuidado dos usuários atrelando esta à abstinência.

3.2 AÇÕES DE REDUÇÃO DE DANOS: A TRANSPOSIÇÃO DOS PRINCÍPIOS PARA AS
PRÁTICAS

Com relação à forma como os profissionais operacionalizam a Redução de Danos nas


atividades que desenvolvem, foram citadas as mais diversas ações realizadas no serviço, desde
grupos de caminhada como atividade física, orientação e atendimento familiar, atividades artesanais
e outras realizadas fora do serviço, como o matriciamento em saúde mental. Estes acreditam que
todas as suas práticas são orientadas por este princípio.

Além de proporcionar um momento de lazer, um momento que eles possam ter assim um
conhecimento do seu próprio corpo, do que é bom para eles, eu acredito que o grupo de
caminhada já seja uma estratégia de reduzir os danos, porque se você se conhece, você
conhece seu corpo, você sabe quais são suas limitações ou não (Entrevistado VII).
Orientação familiar, alguma orientação que a gente pode dar no serviço que não se
resuma somente ao uso de álcool e outras drogas. Mas acredito que o esclarecimento é
uma forma de reduzir danos, o compartilhamento com os usuários é uma forma de reduzir
danos, garantir direitos. Eu acho que essa também é uma forma de Redução de Danos

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(Entrevistado IV).

Os entrevistados entendem que a RD é uma lógica transversal que deve conduzir as


suas atividades junto à população. Isso colabora a existência de uma tentativa de manter uma
coerência entre os pressupostos da RD como uma ética, expandindo essas ações para atividades que
necessariamente não possuam como objetivo central a proposição de abstinência ou a manutenção
deste estado pelo usuário.

Assim, pode-se perceber um esforço de tornar a RD como uma prática de “ampliação da


vida” , incluindo atividades fora do serviço e que interfiram no cotidiano das pessoas, como o grupo
2

de caminhada. Ressalta-se que boa parte destas atividades externas era realizada por profissionais
residentes que tinham agendas que proporcionavam maior flexibilidade para esse deslocamento no
território.

É preciso sublinhar que, segundo os entrevistados, este panorama de inserção dos princípios
da RD vem ocorrendo progressivamente, mas convive também com dificuldades. A ideia de
“ocupar a mente”, presente em uma das falas, parece sugerir que a prática oferecida leve o usuário
a suprimir seu desejo e não permite compreender que é justamente o desejo que faz com o uso de
drogas ocorra na vida das pessoas18.

Enquanto eles ocupam a mente com o artesanato, eles já estão saindo, ali já tem uma
conversa, eles estão desenhando, pintando. e então, seja qual for a atividade, usa a
Redução de Danos (Entrevistado XIII).

Dessa maneira, observa-se que o conceito de RD corre o risco também de ser utilizado
como uma figura retórica para abarcar práticas que nem sempre condizem com seus princípios.
A persistência deste modo de pensar a clínica com usuários de álcool e outras drogas se deve
também pela insuficiência de ações de educação permanente que têm sido comuns nos serviços
de saúde mental. Estratégias como a supervisão clínico-institucional e as rodas de equipe têm sido
negligenciadas ou até mesmo desconsideradas como instrumentos fundamentais para a produção
do cuidado nos serviços de saúde.

Segundo relatos dos entrevistados, em anos anteriores, o usuário que chegasse ao serviço sob
efeito do uso de qualquer substância era suspenso e só poderia voltar a frequentar o CAPS se viesse
acompanhado pela família. Percebe-se com isso que, quando não existe clareza e reflexão sobre
os princípios norteadores da atenção psicossocial aos usuários de drogas, a abstinência comparece
como uma norma de acesso ao serviço que reproduz incongruências com princípios fundamentais
como a universalidade do acesso14.

Essas situações passaram a ser objeto de discussão com os espaços reflexivos produzidos
pelas residências, como as rodas de discussão, e os estudos de caso, e, por isso, proporcionaram o

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aperfeiçoamento do serviço, demonstrando que o trabalho na atenção psicossocial deve ter espaços
garantidos que proporcionem uma reflexividade sobre este fazer, reformulando estas regras
institucionais que não favoreciam o vínculo e o cuidado com as pessoas.

Além das questões suscitadas dentro do próprio serviço, observa-se outra aplicação prática
para a RD que foi apresentada no matriciamento em saúde mental. Os profissionais relatam que
a Redução de Danos é utilizada através da orientação e do contato com as famílias em visitas
domiciliares e atividades realizadas na Atenção Básica.

Então, da mesma forma que a gente vai abordando aqui nos grupos, a gente já vai levando
alguma coisa do que a gente pode abordar na visita, no matriciamento, para a gente tentar
ver o que podemos abordar com aquele usuário, e o que pode ser melhor na questão da
saúde física, saúde psíquica, e na questão social também. Então a gente já tem entrado
nessa questão de, se o paciente não quer parar, então vamos ver o que a gente pode fazer,
junto com ele e com a família, pra melhorar a qualidade de vida dele, mesmo ele estando
em uso (Entrevistado VIII).

Há a presença, na fala dos entrevistados, de um desejo em buscar organizar o cuidado em


rede a partir destes pressupostos, favorecendo com que os profissionais dos diferentes serviços
possam também superar os modos pré-concebidos e estigmatizantes de tratar os usuários nos
serviços. Entende-se, com isso, como aponta Fortesky e Farias3, que a RD precisa ser efetivada no
território para construir redes de suporte social que ofereçam apoio aos usuários e seus familiares.

3.2.1 Dificuldades encontradas na operacionalização da RD

Embora a Redução de Danos seja uma estratégia que está nas ações do CAPS AD, ainda
existem muitas barreiras para que essa política se concretize nesse serviço, tendo em vista que é um
processo novo e que exige sensibilização e abertura dos profissionais.

Uma das principais dificuldades citadas pelos sujeitos foi a questão da família, que muitas
vezes apresenta resistência com relação às propostas baseadas na RD. Tal resistência é originada,
segundo os entrevistados, pelo desconhecimento, visto que, no senso comum, o tratamento da
dependência química ainda tem como objetivo, para a maioria das pessoas, à abstinência total do
uso. Dessa forma, os profissionais relatam que tem sido difícil para os familiares entenderem a RD
como estratégia de tratamento.

A família, geralmente, o que ela quer, o que ela deseja do seu familiar é que ele cesse o
uso por completo. Ela não compreende que, muitas vezes, o usuário não consegue e, às
vezes, a gente também não consegue estar convencendo, estar discutindo com a família,
a questão da redução do uso. Na maioria das vezes o que a família quer é abstinência
(Entrevistado IV).
Como ela não conhece a política de Redução de Danos, elas pensam que o paciente vem
pra aqui, principalmente os que fazem uso de álcool, e querem que eles parem de beber
de uma vez. Eles não sabem o que pode causar uma abstinência mais séria. Eles não

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compreendem o processo. Tem deles que nem aceitam, como já teve familiar que chegou
aqui dizendo ‘ah, quero conversar com o doutor, porque ele mandou meu marido tomar
um copo de vinho por dia. Como ele quer que ele pare de beber, bebendo vinho todo
dia?’(Entrevistado IX).

Como afirmam Mielkeet al19, a família tem sido uma aliada na reabilitação psicossocial
do usuário no âmbito da saúde mental, necessitando receber o suporte adequado para superar
os diversos desafios no cuidado à dependência de drogas, devendo encontrar junto aos serviços
substitutivos em saúde mental o acolhimento de suas necessidades e apoio. É preciso considerar,
no entanto, que o stress e o desgaste vivido pelo familiar não pode deixar de ser compreendidos
nesta demanda por internação e abstinência, tendo em vista que os serviços de saúde, diante da
precarização, não têm oferecido um suporte adequado às necessidades da população.

Outra dificuldade citada foi o pouco conhecimento e a falta de formações para os


profissionais no que diz respeito à RD. Um agravante desta situaçãopode ser consequência da
formação acadêmica que, na maioria das vezes, não prioriza a questão do cuidado à saúde de
pessoas que fazem uso de drogas. Dos treze profissionais entrevistados, somente um teve contato
com a RD durante sua formação acadêmica, enquanto para a maioria esse tema nem ao menos foi
citado durante a graduação.

Na minha formação eu não vi estratégia de Redução de Danos. Eu vim aprender com a


prática mesmo. É até algo bem recente que eu comecei a estudar, pesquisar mesmo, pra
gente poder colocar em prática (Entrevistado I)
Não aprendi nada de Redução de Danos na academia, nem na faculdade de medicina, nem
na residência de psiquiatria. Aprendi tudo por fora, aprendi enquanto usuário, enquanto
redutor de danos, e foi assim que comecei a aprender ainda na minha época de faculdade
(Entrevistado VI).

Para alguns, a residência multiprofissional proporcionou a oportunidade de contextualizar


uma discussão mais crítica com relação às políticas sobre drogas, mostrando-se um importante
instrumento de educação permanente.

Eu nem tinha conhecimento do que era a Redução de Danos. Eu só vim ter um pouco de
conhecimento a respeito com a residência em saúde mental, mas na minha formação eu
não tinha ouvido falar na estratégia de Redução de Danos (Entrevistado IV).

Por último, foi citada como dificuldade a questão do preconceito e do estigma que têm
envolvido a proposta da Redução de Danos desde suas primeiras manifestações no Brasil1,2. Os
profissionais relatam que escutam comentários da RD como apologia ou indução ao uso de drogas.

A Redução de Danos tem muito preconceito em cima dela, tem muita gente que tem tabu,
que acha que não, que eu como profissional não posso trabalhar isso porque vou estar
induzindo o paciente a usar e não é isso. A gente não induz o paciente a usar, a gente
estimula o paciente a diminuir a quantidade abusiva daquele uso. Se ele for fazer o uso,
fazê-lo de uma forma mais segura (Entrevistado I)
As pessoas ainda não entendem que a Redução de Danos não é apologia ao uso de

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drogas. Eu acredito que, às vezes, as pessoas pensam: “ficam deixando o paciente fumar
no serviço?” Ou então... “ele bebeu e aceitar o paciente?” Então, eu acho que tem esse
preconceito por parte de nós profissionais mesmo (Entrevistado VII).

O relato de alguns sujeitos também permite entrever um constrangimento por parte de
profissionais que não acreditam na proposta. Percebe-se assim que mesmo passados vários anos das
primeiras experiências, e de estarem expressas nas diversas políticas sobre a questão das drogas,
permanecem empecilhos históricos que tentam deslegitimar a RD como uma alternativa viável.

3.2.2 Potencialidades trazidas pela Redução de Danos

Embora possa ser visto que existem muitas dificuldades na adoção dessas estratégias
no âmbito do CAPS AD, também são abordadas pelos profissionais algumas potencialidades
alcançadas pela, ainda, tímida inserção da abordagem de Redução de Danos no serviço. Um destes
foi a abertura do serviço aos usuários, mesmo nos casos onde não conseguem interromper o uso da
substância.

Um paciente que está fazendo o uso de determinada substância, ele não tem vergonha de
chegar ao CAPS. Algumas vezes acontece dele chegar alcoolizado. Ele sabe que aqui ele
vai receber uma orientação, será acolhido. Nesse caso, ele não se sentiria bem em chegar
aqui estando em uso de substância, que é quando mais precisa de acompanhamento
(Entrevistado II).

Eu acho que o CAPS tem que ter essa visão de que “eu vou lhe receber do jeito que você
estiver, eu vou lhe receber, o importante é você estar aqui para tentar se cuidar”. Se você
pregar somente a abstinência, no dia que o cara tiver feito o uso de alguma substância
e chegar lá, eu não vou conseguir receber da mesma forma, receber bem .Aí eu vou
atrapalhar muito aquela pessoa (Entrevistado III).

Dessa forma, a Redução de Danos contribuiu também para a humanização do serviço, no


sentido de aceitar o usuário em seu momento de maior vulnerabilidade. Os relatos apontam para
uma atitude de fazer com que o usuário se sinta mais acolhido e aceito, possibilitando um melhor
processo de vinculação entre usuários e o serviço.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De maneira geral, os profissionais entrevistados percebem a RD como uma estratégia


ainda recente, com o papel de ampliar as possibilidades no tratamento do usuário de substâncias
psicoativas, tornando-o mais autônomo e participativo em seu processo de cuidado. A RD é
percebida ainda como estratégia de garantia dos direitos de pessoas que usam drogas, independente
de quererem ou não interromper o uso.

Embora algumas percepções ainda se mostrem vinculadas à diminuição dos riscos referentes
à dependência e como um meio para alcançar a abstinência, pode-se ver que há uma consideração

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sobre as questões psicossociais que envolvem o contexto onde o sujeito está inserido e o respeito
à sua autonomia. Percebe-se que a transposição da política de RD para as práticas no cotidiano
acontece de maneira gradual e não está isenta de contradições e conflitos na sua efetivação.

No que tange aos principais desafios enfrentados para a concretização da Política de Redução
de Danos no serviço, foram citados o conhecimento insuficiente por parte dos profissionais,
familiares e dos próprios usuários acerca dessa temática, além da resistência das pessoas envolvidas
no tratamento e do próprio estigma que essa estratégia sofre no contexto da saúde mental e da
sociedade de forma geral.

Identifica-se a necessidade de incluir a abordagem da RD na formação dos profissionais de


saúde, tendo em vista que essa é uma estratégia que pode ser utilizada nos mais diversos espaços
do cuidado em saúde, para além da atenção psicossocial. Viu-se também que os programas de
residência, enquanto estratégias de educação permanente, têm impacto não só para os residentes
como para os serviços que os acolhem, produzindo transformações positivas nos cenários de prática
e reflexões necessárias para o cotidiano. Os processos de educação permanente são imprescindíveis
à oferta de um cuidado de qualidade para esse público.

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Artigo apresentado em 25/01/2017


Artigo aprovado em 15/01/2018
Artigo publicado no sistema em 16/04/2018

ISSN 1982-8829 Tempus, actas de saúde colet, Brasília, 11(3), 9-21, mar, 2018
Scafuto JCB et al.

ARTIGO ORIGINAL

Formação e educação permanente em saúde mental na


perspectiva da desinstitucionalização (2003-2015)

Training and permanent education in mental health under


deinstitutionalization’s perspective (2003-2015)

June Corrêa Borges Scafuto1


Benedetto Saraceno2 RESUMO
Pedro Gabriel Godinho Delgado3 O texto apresenta uma discussão e problematização acerca do espaço
ocupado pelas ações de formação no campo das políticas públicas em
saúde, bem como sobre as iniciativas tradicionalmente desenvolvidas,
com destaque para o campo da saúde mental. Apresenta uma revisão
das iniciativas desenvolvidas pela Coordenação de Saúde Mental, Álcool
e outras Drogas do Ministério da Saúde entre os anos de 2003 e 2015,
1
Núcleo de Saúde Mental Álcool e Outras a partir dos Relatórios de Gestão publicados pela Coordenação e do
Drogas. Fundação Oswaldo Cruz. Gerência
Regional de Brasília/DF. Brasil informativo periódico Saúde Mental em Dados. Os documentos apontam
2
Universidade de Genebra, Universidade que as iniciativas implementadas procuraram difundir os princípios do
Nova de Lisboa, Presidente e Coordenador novo modelo de atenção em saúde mental, respondendo a um cenário
Científico da Plataforma Global de Saúde de expansão de novos serviços e incorporação de novos profissionais
Mental na rede de saúde. Ao longo do tempo houve o aperfeiçoamento
3
Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de algumas das ações e a incorporação de outras, buscando superar
de Saúde Mental (NUPPSAM). Instituto de
Psiquiatria da Universidade Federal do Rio desafios recorrentes sobre a participação de gestores na construção
de Janeiro/RJ. Brasil de políticas locais de formação para a saúde mental e de estratégias
baseadas no saber que se produz nos espaços de trabalho, que envolvam
os profissionais da Rede de Atenção Psicossocial e centradas em práticas
Dados para correspondência: transformadoras do cuidado cotidiano. A desinstitucionalização foi
June Corrêa Borges Scafuto tomada como a categoria analítica chave para a análise das ações de
Avenida L3 Norte – Campus Universitário educação continuada em saúde mental no SUS.
“Darcy”Ribeiro” – Gleba A / SC 04
CEP: 70.904-130
Brasília/DF Palavras-Chave: saúde mental, atenção psicossocial, educação
june.scafuto@fiocruz.br permanente.

Trabalho realizado com base em


dissertação de mestrado: Percursos
Formativos na Rede de Atenção
Psicossocial: contribuições da educação
permanente para o campo da saúde
mental. 2017: Faculdade de Ciências
Médicas, Universidade Nova de Lisboa.

350 Com. Ciências Saúde. 2017; 28(3/4):350-358


Formação e educação permanente em saúde mental na perspectiva da desinstitucionalização (2003-2015)

ABSTRACT
The paper presents a discussion about the space occupied by training
initiatives on the health’s public policies sector, as well as initiatives
traditionally developed, especially in the mental health field. It presents
a review of the initiatives developed by the Mental Health Alcohol and
other Drugs Sector of the Ministry of Health, between the years 2003
and 2015, based on the Management Reports released by that Sector
and the journal “Saúde Mental em Dados”. The documents indicate
that the implemented actions sought to propagate the principles of the
new model on mental health care, answering to a scenario of expansion
of new services and incorporation of new professionals in the health
care workforce. Over time, some of the initiatives were improved and
others were incorporated, seeking to overcome recurring challenges
regarding the participation of public managers in the elaboration of
local policies for training in mental health and strategies based on the
knowledge generated on workspaces that involve the Psychosocial Care
Network professionals and focus on practices that can transform daily
care. Deinstitutionalition was taken as the key concept to analyse the
initiatives of mental health education in SUS (Brazilian Unified Health
System).

Key words: mental health, psychosocial care, permanent education

O tema da formação e qualificação dos trabalhadores e de outras áreas da saúde, ocorrida durante o
há muito acompanha o desenvolvimento dos período de ditadura militar, voltadas ao modelo
processos de cuidado na saúde. Os saberes biomédico e indiferentes às necessidades de saúde
incorporados pelos trabalhadores e o modo como da população5.
representam o processo saúde e doença são pontos
críticos do sistema público de saúde brasileiro1. O modelo pedagógico hegemônico de
A formação dos trabalhadores, porém, é uma das ensino é centrado em conteúdos, organizado
áreas menos problematizadas na formulação de de maneira compartimentada e isolada,
políticas para a saúde2. As discussões sobre esse fragmentando os indivíduos em especialidades
tema acontecem desde a concepção de um Sistema da clínica, dissociando conhecimentos das
Único de Saúde (SUS), e a sua implementação não áreas básicas e conhecimentos da área clínica,
foi necessariamente acompanhada da qualificação centrando as oportunidades de aprendizagem
dos profissionais para atuarem no caminho dos da clínica no hospital universitário, adotando
princípios do modelo de saúde vigente. sistemas de avaliação cognitiva por acumulação
de informação técnico-científica padronizada,
Ao contrário do que se espera, as tradicionais incentivando a precoce especialização,
ações de formação praticadas nos últimos anos perpetuando modelos tradicionais de prática
têm induzido a especialização do cuidado e em saúde. Na abordagem clássica da formação
produzido uma tensão na construção do modelo em saúde, o ensino é tecnicista e preocupado
de saúde atual, tornando evidentes as diferenças com a sofisticação dos procedimentos e do
entre o que pensam os usuários, os trabalhadores conhecimento dos equipamentos auxiliares do
e gestores da saúde3,4. O país ainda vive a herança diagnóstico, tratamento e cuidado, planejado
da proliferação das escolas privadas de medicina segundo o referencial técnico-científico

Com. Ciências Saúde. 2017; 28(3/4):350-358 351


Scafuto JCB et al.

acumulado pelos docentes em suas respectivas No campo da saúde mental, as formações


áreas de especialidade ou dedicação profissional2 tradicionais por vezes realizam abordagem rasas
(p.1402). sobre aspectos desafiadores da clínica no cotidiano
dos serviços, sobre a Reforma Psiquiátrica
Este modelo, contudo, não é adequado às brasileira (RPb) e sobre as práticas inovadoras no
complexas construções no âmbito da saúde. Ao campo da Atenção Psicossocial (AP), entendida,
considerarmos a diversidade cultural e extensão aqui, como modelo de cuidado em liberdade, de
territorial do Brasil, a presença de saberes trabalho territorial, de produção de autonomia,
tradicionais em determinadas localidades, ou garantia e exercício de direitos. Segundo Assis et
mesmo o processo saúde-doença e as lógicas de al.12, a RPb e a PNSM apresentam desafios que
cuidado distintas do modelo científico vigente, vão além da prática clínica, demandando dos
amplia-se a percepção da complexidade das trabalhadores, da gestão e das famílias, recursos
situações concretas onde atuam os profissionais internos para a compreensão do sofrimento das
da saúde6. pessoas inseridas em um contexto sociocultural,
além da capacidade de transformação das
Diversas iniciativas e investimentos foram instituições para que as práticas ali exercidas
propostos pelo Ministério da Saúde (MS) sejam pautadas pela promoção e garantia de
com o intuito de suprir a lacuna de formação direitos.
nas graduações do campo da saúde, como
os Mestrados Profissionais, o programa de Com a projeção que o tema da saúde mental
Capacitação e Formação em Saúde da Família, adquiriu no País, nos últimos anos, já é possível
o de Desenvolvimento Gerencial de Unidades encontrar profissionais formados numa perspectiva
Básicas de Saúde, o de Interiorização do de atenção comunitária. Boa parte dos trabalhadores
Trabalho em Saúde e o de Incentivo às Mudanças dos serviços, porém, ainda teve a formação
Curriculares nos Cursos de Graduação em marcada pela prática em instituições asilares. Há,
Medicina.7,8. ainda, aqueles que não conheceram os Hospitais
Psiquiátricos (HP), tampouco vivenciaram a
Assim como para o campo da saúde em militância antimanicomial13. Ademais, boa parte das
geral, na saúde mental os processos de formações ainda é distante das reais necessidades
formação de profissionais da Rede de Atenção dos usuários14 e os profissionais muitas vezes
Psicossocial (RAPS) também são permeados iniciam sua prática nas unidades de saúde sem
por desafios, acentuados pelo recente processo saber o que é a clínica da AP.
de redirecionamento desta política, sob a
perspectiva da desinstitucionalização e da Com a consolidação de um modelo de cuidado
atenção psicossocial. territorial e de base comunitária, exige-se cada vez
mais da formação dos trabalhadores.
Um dos principais desafios da Política Nacional
de Saúde Mental (PNSM) brasileira é a formação A diversidade de experiências profissionais
de profissionais adequada ao trabalho intersetorial que se colocam para o campo, aliada a forma‑
e interdisciplinar, e que seja capaz de produzir a ções que trazem uma perspectiva curricular
superação do paradigma da tutela e romper com distante da prática profissional estabelecida pelas
as barreiras do estigma e preconceito9. diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental,
coloca um grande desafio para as propostas de
Segundo Delgado10, de 2001 a 2010 foram formação e educação permanente, desenvolvidas
incorporados cerca de trinta mil novos para qualificar esses profissionais13 (p.29).
profissionais aos sistemas municipais de saúde
mental. São, em geral, jovens recém-formados, No âmbito da saúde mental, diversas normativas
que provavelmente tiveram formação acadêmica ratificam o papel do SUS na formação de
tradicional norteada pelo modelo hegemônico, seus profissionais e indicam a necessidade de
com foco na atuação individual11. É certo que investimentos neste campo. A partir de um
devem ser asseguradas estratégias de supervisão e levantamento da legislação vigente, podemos citar,
educação permanente a esses novos profissionais, como elenco de normas e diretrizes constitutivas
bem como para os que já estão inseridos na da estratégia de formação continuada em saúde
RAPS10. mental no SUS:

352 Com. Ciências Saúde. 2017; 28(3/4):350-358


Formação e educação permanente em saúde mental na perspectiva da desinstitucionalização (2003-2015)

• Portaria nº 1.174/2005: cria o Programa de informações relativas às ações e estratégias


Qualificação dos Centros de Atenção Psicossocial de formação realizadas no âmbito da Política
– CAPS, incluindo ações diversificadas, como Nacional de Saúde Mental e registradas nas
a supervisão clínico-institucional, ações de edições da publicação “Saúde Mental em Dados”
atenção domiciliar e em espaços comunitários, (SMD) e dos Relatórios de Gestão da CGMAD,
ações de acompanhamento integrado com a entre os anos de 2003 e 2015. Não há pretensão
rede de atenção básica, projetos de estágio e de de apresentar um compilado numérico do que
treinamento em serviço, ações de integração foi realizado pela PNSM e sim um resgate das
com familiares e comunidade, além do estratégias implementadas até aquele momento.
desenvolvimento de pesquisas. As informações serão aqui apresentadas de
maneira a contemplar períodos da Política e não
• Portaria nº 3.088/2011: estabelece como uma explanação ano a ano.
diretriz da RAPS a promoção de estratégias
de educação permanente dedicada aos seus Entre 2003 e 2006, as ações de formação em saúde
trabalhadores e como um de seus objetivos, mental centraram-se em cursos para as equipes
a promoção de mecanismos de formação da atenção básica, Residências Multiprofissionais
profissional para esta área de atuação. em Saúde Mental, cursos de Especialização e
Residências Multiprofissionais em Saúde da
• A Convenção dos Direitos da Pessoa com Família, além de cursos de capacitação em saúde
Deficiência (CDPD): determina a promoção da mental16,17,18. Neste período existiam mais de 50
capacitação dos profissionais e equipes sobre instituições de ensino com cursos de especialização
os direitos reconhecidos pela Convenção. e atualização para trabalhadores da atenção básica
Estabelece, ainda, a necessária promoção de e dos CAPS que beneficiaram profissionais de 15
programas de formação sobre sensibilização estados do País16.Das instituições existentes, 16
a respeito das pessoas com deficiência e seus eram Polos de Educação Permanente organizados
direitos e determina que sejam realizadas de acordo com o previsto na Política Nacional de
atividades de formação, de modo a conscientizar Educação Permanente para a Saúde (PNEPS).
os profissionais de saúde acerca dos direitos
humanos, da dignidade, autonomia e das Foi publicada neste período a Portaria GM
necessidades das pessoas com deficiência. 1.174/2005, que criou um mecanismo de
financiamento e estímulo à supervisão clínico-
• A IV Conferência Nacional de Saúde Mental institucional dos Centros de Atenção Psicossocial
– Intersetorial, realizada em 2010: abordou o (CAPS), beneficiando, inicialmente, 84 serviços.
tema da formação e deliberou sobre a promoção Começa-se a gestar, a partir daí, um projeto de
de estratégias de Educação Permanente nas “Escola de Supervisores”, que foi implementado
três esferas de gestão. nos anos seguintes, como veremos adiante16,19.

Na busca pela superação dos desafios relacionados Os relatórios de gestão da CGMAD do período
ao campo e para cumprir o papel delegado ao 2003-2006, bem como os SMD do mesmo período,
SUS de formação dos seus quadros profissionais, já indicavam que os programas de formação
foi instituído, em 2002, o Programa Permanente neste campo são escassos e que a formação de
de Formação em Saúde Mental do Ministério da psiquiatras aptos e vocacionados a trabalhar na
Saúde, que desenvolveu diversas iniciativas com rede pública de saúde mental ainda é insuficiente.
apoio da Coordenação Geral de Saúde Mental, Os documentos apontaram como prioridade
Álcool e Outras Drogas CGMAD e orientação geral para os anos seguintes o fortalecimento de uma
da Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação política efetiva, regular e sustentável de educação
em Saúde (SGTES), por meio da parceria com permanente para a saúde mental, que envolvesse
instituições universitárias15. Este Programa tem todos os profissionais da rede de atenção e que se
como proposta o incentivo, apoio e financiamento propusessem centradas no trabalho em ato e em
de ações e núcleos de formação no campo da saúde práticas transformadoras do cuidado cotidiano16.
mental para a rede pública de saúde, por meio da
formalização de convênios junto a instituições Entre 2007 e 2010 houve um crescimento
formadoras, municípios e estados16. expressivo de serviços de saúde mental “que não
foi acompanhada por uma oferta e capacitação
Far-se-á aqui uma breve consolidação das compatível de profissionais para o trabalho

Com. Ciências Saúde. 2017; 28(3/4):350-358 353


Scafuto JCB et al.

em saúde pública, gerando uma carência de discussões relativas à Escola de Supervisores


profissionais em saúde mental”20 (p.14). Nesse Clínico-Institucionais. As Escolas tinham o
período foram implementados novos programas objetivo de promover o debate e a avaliação
de Residência Multiprofissional em Saúde Mental contínua da estratégia de supervisão clínico-
– especialmente após a regulamentação das institucional, para potencializar a atuação dos
residências Multiprofissionais pelo Ministério da supervisores já atuantes e promover a formação
Educação, por meio da Portaria Interministerial de um quadro de supervisores. Em 2010 foram
nº 45/2007- e Residências Médicas em Psiquiatria, financiados 15 projetos de Escolas de Supervisores
com destaque para o programa da cidade de Sobral, pelo Ministério da Saúde20,25.
no Ceará, naquele momento mantido diretamente
pela rede comunitária de Saúde Mental local20,21,22. O Programa de Educação Pelo Trabalho –
(PET Saúde) foi mais uma das estratégias
Seguiu-se também o financiamento de convênios implementadas. Entre as ações realizadas no
junto a universidades públicas ou gestões estaduais/ âmbito da Política Nacional de Saúde Mental,
municipais para realização de formações pontuais essa estratégia foi a primeira a atingir, a partir de
ou cursos de especialização em saúde mental23. 2009, os cursos de graduação, e representou a
Além disso, a proposta de supervisão clínico- desejada aproximação com a Política de Educação
institucional, antes direcionada apenas aos CAPS, Permanente. O PET Saúde propõe a integração
foi ampliada para os outros serviços que compõem entre Universidade e serviços públicos, como
as redes de cuidado às pessoas com sofrimento espaço de formação dos estudantes de graduação
mental ou com necessidades decorrentes do uso na área da saúde20,26,27. Em 2010 foram
de psicoativos, além de contemplar municípios em desenvolvidos 80 projetos específicos na área de
processo de desinstitucionalização de pacientes saúde mental.
moradores de Hospitais Psiquiátricos20,24.
O Relatório de Gestão 2011-2015 indicou como
Nesse período identificou-se como desafio a desafios do período questões já apontadas em
necessidade de integração de um Programa de relatórios anteriores, como a necessidade da
Educação Permanente orientado pelos princípios participação dos gestores municipais na construção
da Reforma Psiquiátrica, no âmbito da Política de uma política local de Educação Permanente
Nacional de Educação Permanente para a Saúde para a saúde mental e o alinhamento das ações
(PNEPS) 20,24. desenvolvidas pela Política Nacional de Educação
Permanente às necessidades de formação na
Em 2008, o Ministério da Saúde criou a Rede perspectiva da Reforma Psiquiátrica. O referido
da Universidade Aberta do Sistema Único de documento trouxe também a necessidade da
Saúde (UnaSUS), que ofereceu diversos cursos adequação das formações acadêmicas ainda
de especialização pela modalidade de Educação distantes da prática profissional e de se considerar
à Distância ou semipresencial, contemplando o a diversidade de experiências existentes para
tema da saúde mental20. Em 2009, a CGMAD teve a elaboração de propostas de formação. Outro
a oportunidade de participar da elaboração de apontamento refere-se ao desafio da formação
uma política de formação de médicos especialistas de profissionais em larga escala, considerando as
em áreas prioritárias ao SUS, o PRORESIDÊNCIA, dimensões continentais do País19.
em que os Programas de Residência em Psiquiatria
foram estabelecidos como prioridade20,24. No referido período, houve continuidade às
ações já implementadas em anos anteriores, como
Ainda naquele ano foram criadas as Escolas de as residências em saúde mental e psiquiatria,
Redutores de Danos do SUS (ERD), visando à especializações, Escolas de Redutores de Danos
qualificação da atuação dos profissionais dos e escolas de supervisores, supervisão clínico-
serviços, por meio de capacitações teórico- institucional, PET Saúde, entre outros27,28,29.
práticas. As ERD tinham como público alvo a
população usuária de substâncias psicoativas Destaca-se que nesse período o País sofreu uma
e ofertavam ações de promoção, prevenção e onda conservadora (que ainda permanece) em
cuidados primários numa proposta de superação relação às pessoas que fazem uso de psicoativos,
da abstinência como abordagem única20,25. especialmente o crack. O crescimento da
percepção do uso de crack, notadamente por
É também neste período que são retomadas as parte da população pobre e marginalizada30 , gerou

354 Com. Ciências Saúde. 2017; 28(3/4):350-358


Formação e educação permanente em saúde mental na perspectiva da desinstitucionalização (2003-2015)

uma comoção social em torno do tema do uso de cerca de 1.600 profissionais; 82 oficinas
de drogas ilícitas e demandou do poder público de integração do processo de trabalho em 82
respostas integradas dos Ministério da Justiça, municípios, contemplando cerca de 4.500
Saúde e Desenvolvimento Social. No campo da pessoas entre usuários, familiares, trabalhadores e
saúde as respostas reverberaram tanto na oferta de gestores de diferentes serviços; o desenvolvimento
serviços, quanto na qualificação dos profissionais e implementação de 96 planos de educação
para atendimento a esse público, além de aquecer permanente e a execução de um componente
o debate sobre o cuidado em liberdade, respeito de engrenagens da Educação Permanente em 92
aos direitos e da redução de danos como ética do municípios12,19.
cuidado.
O Projeto de Percursos Formativos é uma
Como resposta para a demanda sobre formação recente iniciativa para a qualificação da atuação
dos profissionais, além das ações já mencionadas, dos trabalhadores da RAPS, que propõe o
foram desenvolvidas novas estratégias, como o fortalecimento das práticas do cuidado na
Curso de Tópicos Especiais em Policiamento perspectiva da Atenção Psicossocial; e o encontro
e Ações Comunitárias, em parceria com a com outras realidades, com outros profissionais e
Secretaria Nacional de Segurança Pública do com os usuários dos serviços como possibilidade
Ministério da Justiça19. O curso foi direcionado de transformação, uma vez que “(...) é no cotidiano
à polícia comunitária, como proposta de dos serviços de saúde que o conhecimento deve
sensibilização dos agentes de segurança pública ganhar materialidade como uma ação de produção
quanto às possibilidades de cuidado para essa de vida”14 (p.34).
população.
O Projeto foi implementado de maneira a priorizar
Foi realizado também o curso “Caminhos do a aprendizagem colaborativa e significativa,
Cuidado”, por iniciativa da Secretaria de Gestão buscando produzir sentido para o trabalho
do Trabalho e Educação em Saúde (SGTES), cotidiano nos serviços de saúde mental e propôs
em parceria com a CGMAD, Fundação Oswaldo que as transformações das práticas profissionais
Cruz e Grupo Hospitalar Conceição. Este curso fossem baseadas na reflexão crítica sobre as
ofereceu uma formação aos agentes comunitários práticas reais13,31
de saúde, auxiliares e técnicos de enfermagem da
equipe de Saúde da Família, tendo como ênfase (…) a mobilização de recursos emocionais
as necessidades de saúde decorrentes do uso na aprendizagem em prática de trabalho,
substâncias psicoativas, visando a qualificação do aliada às reflexões coletivas em grupo, permite
atendimento aos usuários dos serviços. O curso foi nascer uma disposição à mudança. Isto é, neste
elaborado de maneira que viabilizasse o trabalho projeto significa aprender sobre a história da
conjunto entre profissionais da atenção primária e Reforma Psiquiátrica dentro de um contexto
da saúde mental, e considerou as especificidades de práticas inclusivas, associadas à perspectiva
locorregionais para as atividades propostas. de direitos e conquistas da cidadania. Este
Ao final de 2015 havia 237.175 profissionais formato de aprendizagem é fundamental para
formados19,29. a elaboração de novas estratégias de atuação,
uma vez que funciona como disparador de
No ano de 2014, uma estratégia inovadora questionamentos e aglutinador de propostas e
de educação permanente foi desenvolvida e soluções que são dinâmicas e contingentes, de
implementada pela CGMAD, e foi chamada acordo com o movimento das redes13 (p.31-
de Projeto de Percursos Formativos na Rede 32).
de Atenção Psicossocial. Essa estratégia visou
fortalecer a prática de cuidado em saúde mental, A implementação desse projeto vem responder
apostando no encontro entre profissionais e a apontamentos já realizados nos primeiros
usuários como possibilidade de disseminação, relatórios de gestão, que sinalizavam a necessidade
transformação e invenção de novas práticas, na de propostas que contemplassem o envolvimento
perspectiva da RPb13. dos profissionais da Rede de Atenção Psicossocial
e que se propusessem centrados no trabalho em
Considerando todo o escopo do PPF, em suas ato e em práticas transformadoras do cuidado
quatro etapas, o Projeto previu a realização de cotidiano16.
intercâmbios entre experiências com participação

Com. Ciências Saúde. 2017; 28(3/4):350-358 355


Scafuto JCB et al.

CONSIDERAÇÕES mações na formação e no desenvolvimento


dos profissionais da área. Isso significa que
Uma renovação das práticas requer a superação só conseguiremos mudar realmente a forma
de concepções biomédicas tradicionais e de cuidar, tratar e acompanhar a saúde dos
reducionistas - que por vezes relegam a clínica a brasileiros se conseguirmos mudar também
uma dimensão individual - de maneira a nortear os modos de ensinar e aprender35 (p.6).
as ações em saúde em direções congruentes com
o ideário do SUS. No âmbito da Política Nacional de Saúde Mental,
as ações inicialmente implementadas procuraram
A experiência no processo de trabalho e a prática difundir os princípios do novo modelo de atenção
militante são pontos de partida para a construção às pessoas com sofrimento ou transtorno metal
de uma prática que busque a superação do senso e pessoas com necessidades decorrentes do uso
comum. Contudo, a formação no campo da saúde de drogas, procurando responder a um cenário
mental deveria ser, desde a graduação, constituída de criação de novos serviços e incorporação de
de reflexão mais ampla sobre a complexidade da novos profissionais ao mercado de trabalho.
existência humana, exercitando a compreensão Várias dessas iniciativas foram reproduzidas ao
de questões postas pela luta cotidiana e seus longo dos anos, passando por constate processo
movimentos32,33. de aperfeiçoamento.

A problematização sobre a formação dos Importante destacar, por sua especificidade e


trabalhadores da saúde mental e sobre estratégias originalidade, o Projeto Percursos Formativos,
de educação permanente é imperativa, uma que propôs o fortalecimento das práticas do
vez que a formação desses profissionais tem cuidado na perspectiva da Atenção Psicossocial;
acontecido na própria experiência, no encontro e o encontro com outras realidades, com outros
com outros profissionais, com os usuários e com profissionais e com os usuários dos serviços como
a gestão. Por isso é importante que se desenvolva possibilidade de transformação.
meios de compartilhar experiências visando o
aprimoramento da prática e evitando, assim seu Ao cunhar a oportunidade para reflexões sobre
engessamento34. os paradigmas em saúde mental e construções
que superem o paradigma asilar13, o caráter
(...) as concepções contemporâneas na área coletivo do trabalho na perspectiva da Atenção
da Educação e da Educação em Saúde defendem Psicossocial viabiliza o compartilhamento de
mudanças das chamadas ações educacionais, reflexões e permite a renovação da prática – e
rompendo a lógica do ‘primeiro se aprende, pela prática34. Neste sentido, estratégias baseadas
depois se aplica’ em favor de uma concepção de no saber que se produz no “chão de fábrica”,
permanente reflexão-ação-reflexão14 (p.34). como o Percursos Formativos, podem facilitar
e transformar o trabalho dos profissionais,
As estratégias de educação em serviços que têm neutralizando os efeitos da fragmentação e das
como base o encontro com o usuário devem tornar- especialidades, contribuindo com a qualificação
se estratégicas na promoção de transformações do e potencialização das ações da rede assistencial
trabalho como lugar de atuação crítica e reflexiva14. e para que a transformação das práticas e do
modo fazer o cuidado nos serviços se traduza
Para que novas mudanças ocorram, é positivamente na vida dos usuários34.
preciso haver também profundas transfor‑

356 Com. Ciências Saúde. 2017; 28(3/4):350-358


Formação e educação permanente em saúde mental na perspectiva da desinstitucionalização (2003-2015)

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ISSN 2526-8910
Cad. Bras. Ter. Ocup., São Carlos, v. 25, n. 2, p. 341-349, 2017
http://dx.doi.org/10.4322/0104-4931.ctoAO0803

Artigo Original
Percepção de profissionais da área de saúde mental
sobre o acolhimento ao usuário de substância
psicoativa em CAPSad1
Daiane Bernardoni Sallesa, Meire Luci da Silvab
a
Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, São Paulo, SP, Brasil.
b
Departamento de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Universidade Estadual Paulista – UNESP, Marília, SP, Brasil.

Resumo: Introdução: A adesão ao tratamento da dependência química ainda consiste em um grande desafio não só
aos usuários, mas também aos profissionais da saúde. Atualmente, as políticas públicas apontam, como ferramenta
auxiliar, o desenvolvimento de um modelo de tratamento humanizado, que preconiza a prática do acolhimento.
Objetivo: Investigar a percepção dos profissionais de saúde mental sobre o acolhimento oferecido ao usuário de
álcool e outras drogas em Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras drogas (CAPSad).
Método: Trata-se de um estudo do tipo exploratório descritivo e qualitativo, realizado em CAPSad do interior
paulista. Participaram do estudo, seis profissionais. Para coleta de dados, foi utilizado questionário semiestruturado
com 27 perguntas de autopreenchimento, sendo 15 perguntas fechadas, analisadas através de estatística descritiva,
e 12 abertas, analisadas pelo método de análise de conteúdo. Resultados: Participaram do estudo, seis profissionais
com tempo médio de atuação de 14,3 anos e, destes, nenhum possui capacitação em relação à prática do acolhimento.
Neste estudo, cinco responderam realizar acolhimento com presença de familiar, quatro sem a presença de familiar e
um prefere deixar a critério do usuário (o mesmo participante poderia assinalar mais de uma resposta). Os resultados
demonstram ambiguidade da concepção de acolhimento, já que todos relataram que acolher restringe a recepção do
usuário, a escuta qualificada, a orientação e a realização de encaminhamentos necessários. Conclusão: Evidenciou-se
necessidade de criação de espaços formais para troca de saberes, discussão e encaminhamentos dos casos, bem
como necessidade de incentivo à capacitação profissional, promovendo a identidade do acolhimento no serviço e
favorecendo a adesão do usuário ao tratamento.
Palavras-chave: Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias, Acolhimento, Serviços de Saúde Mental.

Mental health professional perception of the embracement towards


psychoactive substance user in CAPSad

Abstract: Introduction: Adherence to chemical dependency treatment is still a great challenge for both, users and
health care professionals. Currently, public healthcare policy is a tool to assist in the development of a humanized care
model, which advocates for the practice of user inclusion. Objective: Investigate the perception of professionals who
work in the mental health field, to understand the inclusion offered to users of psychoactive substances in Psychosocial
Care Centers for alcohol and drug users (CAPSad). Method: A descriptive and exploratory study conducted at the
CAPSad in São Paulo. Active professionals in the mental health field working at the CAPSad participated in the
present study. For data collection a semi-structured questionnaire was used with 27 self-report questions, 15 closed
questions, analyzed through statistics and 12 open questions, with speech analysis. Results: The questionnaires of
six professionals with a mean of 14.3 years working at the CAPSad, revealed that they had no prior training about
inclusion. Five participants responded that they carried out inclusion in the presence of the family, four responded

Autor para correspondência: Meire Luci da Silva, Departamento de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Universidade Estadual Paulista,
Av. Hygino Muzzi Filho, 737, Mirante, CEP 17525-000, Marília, SP, Brasil, e-mail: meire@marilia.unesp.br
Recebido em Mar. 7, 2016; 1a Revisão em Maio 11, 2016; 2a Revisão em Jun. 20, 2016; Aceito em Jul. 7, 2016.
342 Percepção de profissionais da área de saúde mental sobre o acolhimento ao usuário de substância psicoativa em CAPSad

without the presence of family and just one responded according to user choice (each participant could choose more
than one option). The results show ambiguity regarding the concept of user inclusion, as all reported that inclusion
hampers user reception, qualified listening, guidance and making necessary referrals. Conclusion: The need to
create formal spaces for knowledge exchange, case discussion, and encourage professional training, promoting the
identity of the service and improving user adherence to treatment was highlighted.
Keywords: Substance-Related Disorders, User Inclusion, Mental Health Service.

1 Introdução os usuários de álcool e outras drogas recebam


atenção e acolhimento; iv) oferecer condições
Atualmente, a dependência química e o uso para o repouso e a desintoxicação ambulatorial de
abusivo de substâncias psicoativas constituem-se usuários que necessitem de tais cuidados; v) oferecer
como importante problema de saúde pública, cuidados aos familiares dos usuários dos serviços;
justiça e social. vi) promover, mediante diversas ações (que envolvam
Para a Organização Mundial de Saúde trabalho, cultura, lazer, esclarecimento e educação
da população), a reinserção social dos usuários,
(ORGANIZAÇÃO..., 2008), a dependência
utilizando para tanto recursos intersetoriais, ou
química é um conjunto de fenômenos fisiológicos,
seja, de setores, como educação, esporte, cultura
comportamentais e cognitivos que pode se desenvolver
e lazer, montando estratégias conjuntas para o
depois de repetido uso de substâncias psicoativas.
enfrentamento dos problemas; vii) trabalhar, junto
Recentes pesquisas de Carvalho  et  al. (2011) e
a usuários e familiares, os fatores de proteção para
Silva, Guimarães e Salles (2014) mostram que os
o uso e a dependência de substâncias psicoativas,
principais motivos que levam ao uso da substância
buscando, ao mesmo tempo, minimizar a influência
psicoativa são: prazer, ansiedade, inserção social,
dos fatores de risco para tal consumo; viii) trabalhar
tensão e evitação do desprazer da sintomatologia
a diminuição do estigma e do preconceito relativos ao
pela abstinência.
uso de substâncias psicoativas, mediante atividades
Com a Reforma Psiquiátrica, a Lei nº 10.216 de de cunho preventivo/educativo.
6 de abril de 2001 (BRASIL, 2001) garantiu aos O Ministério da Saúde propõe a humanização
usuários de serviços de saúde mental, incluindo como eixo norteador dos atendimentos através do
os que sofrem por transtornos decorrentes do programa Humaniza SUS e, nesta perspectiva, o
consumo de álcool e outras drogas, a universalidade acolhimento passa a ser ponto importante e central das
de acesso e o direito à assistência, bem como à sua discussões para o desenvolvimento do atendimento
integralidade, valorizando a descentralização do humanizado. Carvalho et al. (2008) discorrem que
modelo de atendimento. Esta lei determina que os acolhimento significa a humanização do atendimento,
serviços se pautem pelo convívio social dos usuários, envolvendo os processos de trabalho, os quais
atentando-se às desigualdades existentes, cabendo, agregam a relação entre trabalhadores e serviços de
a estes serviços, atender às necessidades de cada saúde com seus usuários. O acolhimento possibilita
população. e favorece o acesso dos usuários, assegurando-lhes
Segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2003), a escuta de suas necessidades de saúde, de forma
em sua política para a atenção integral aos usuários qualificada, permitindo à equipe a possibilidade da
de álcool e outras drogas, a assistência a estes usuários corresponsabilização do usuário em seu tratamento.
deve englobar os três níveis de atenção, tendo como Essa forma de atendimento propicia uma nova
prioridade o atendimento extra-hospitalar; neste “porta de entrada”, que deve acolher o usuário com
caso, nos Centro de Atenção Psicossocial para Álcool qualidade, oferecendo e solucionando as demandas
e Drogas (CAPSad). Ainda, para o Ministério da inerentes a cada setor, e encaminhando para outros
Saúde, são objetivos de um CAPSad: i) oferecer serviços, quando necessário, garantindo assim o
atendimento à população, respeitando uma área fluxo da rede de atendimento ao usuário.
de abrangência definida, oferecendo atividades Segundo Miller e Rollnick (2001), os usuários de
terapêuticas e preventivas à comunidade, buscando substâncias psicoativas são marcados por sentimentos
prestar atendimento diário aos usuários dos serviços, ambivalentes ao buscar ajuda; assim, eles tornam-se
dentro da lógica de redução de danos; ii) gerenciar mais sensíveis à forma como são acolhidos no
os casos, oferecendo cuidados personalizados; serviço. A partir deste pressuposto, acredita-se que
iii) oferecer atendimento nas modalidades intensiva, a compreensão do profissional atuante na área de
semi-intensiva e não intensiva, garantindo que saúde mental sobre o entendimento do acolhimento

Cad. Bras. Ter. Ocup., São Carlos, v. 25, n. 2, p. 341-349, 2017


Salles, D. B.; Silva, M. L. 343

ao usuário de álcool e outras drogas pode contribuir O ingresso neste serviço acontece por meio de
para a organização do serviço, o fortalecimento da rede demanda espontânea ou por encaminhamento via
de atenção a este usuário e também para a educação Unidades Básicas de Saúde, Unidades de Saúde da
permanente destes profissionais, propiciando, assim, Família ou hospitais, podendo ainda o encaminhamento
cuidados específicos e individuais ao usuário, e ser por ordem judicial.
promovendo o aumento de sua vinculação e adesão A pesquisa foi aceita pelo Comitê de Ética em
ao serviço e ao tratamento. Pesquisa da Faculdade Medicina de Marília, sob
Como forma de possibilitar a identificação das protocolo 916.902. Os participantes receberam todas
necessidades de formação e desenvolvimento de as informações e orientações sobre sua participação
profissionais em saúde, e de fortificar estratégias na pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento
de qualificação em atenção e gestão em saúde, foi Livre e Esclarecido
criada pelo Ministério da Saúde a Política Nacional Para a coleta de dados, foi elaborado e aplicado pela
de Educação Permanente em Saúde (EPS), a partir equipe de pesquisa um questionário com 27 questões
da Portaria nº 198, de fevereiro de 2004 (BRASIL, de autopreenchimento, sendo 15 perguntas fechadas
2004). Assim, como citam Carotta, Kawamura e e 12 perguntas abertas, permitindo ao profissional
Salazar (2009), discussões à base de acolhimento e especificar sua percepção sobre acolhimento ao
humanização tornam-se parte integrante da gestão usuário do serviço de álcool e drogas. O conteúdo
em saúde, como meta prioritária do Sistema Único das questões era referente à escolha do profissional
de Saúde (SUS). em relação à área de serviço, ao entendimento sobre
acolhimento, às possibilidades de discussões do
O objetivo do estudo foi investigar, a partir
tema e à autoavaliação sobre sua atuação e realidade
da percepção dos profissionais de saúde mental, profissional.
o entendimento sobre o acolhimento oferecido ao
O instrumento foi respondido de forma
usuário de álcool e outras substâncias psicoativas
individual, conforme orientação do pesquisador.
em CAPSad.
As  informações sobre o projeto foram dadas de
maneira a não influenciar o participante em suas
2 Método respostas. A coleta de dados foi realizada entre os
períodos de dezembro de 2014 e janeiro de 2015.
Trata-se de um estudo do tipo exploratório
Os resultados das perguntas fechadas foram
descritivo e qualitativo, realizado em um CAPSad
analisados por meio de estatística simples descritiva,
de uma cidade do interior paulista. Segundo para melhor exposição dos dados. A análise dos
informações do Ministério da Saúde do ano de 2012 resultados das perguntas abertas foi realizada conforme
(BRASIL, 2012), existiam 69 CAPSad no Estado proposta de Bardin (1977), por meio da análise de
de São Paulo, porém Silva  et  al. (2015) referem conteúdo temático. Os temas foram selecionados
que, em 2015, ano no qual esta pesquisa também pela pesquisadora para melhor exposição dos dados,
foi desenvolvida, existiam somente 65 CAPSad em conforme o objetivo proposto pela pesquisa.
funcionamento em todo o Estado. E ainda, segundo
essas autoras, a composição quantitativa da equipe
técnica dos CAPSad do Estado de São Paulo variou
3 Resultados
quantitativamente, sendo a composição da menor Atualmente, trabalham no CAPSad pesquisado,
equipe técnica de cinco profissionais e da maior, nove profissionais da área de saúde, dentre eles:
com 23 profissionais. três médicos psiquiatras, uma assistente social, um
Ressalta-se que o serviço estudado é referência psicólogo, dois enfermeiros e dois auxiliares de
e único no tratamento da dependência química na enfermagem, sendo que, destes, seis profissionais
região, e está vinculado a uma faculdade de medicina; aceitaram participar da pesquisa. Os que aceitaram
não obstante, é composto por uma equipe técnica foram: um médico, um psicólogo, uma assistente social,
mínima. Participaram da pesquisa, seis profissionais uma enfermeira e dois auxiliares de enfermagem.
que realizam acolhimento na Unidade, dentre eles: A média de idade dos participantes foi de 45,8 anos
um psicólogo, dois auxiliares de enfermagem, uma com desvio padrão de ± 7 anos, com tempo de
enfermeira, uma assistente social e um médico. formados de 18,3 ± 8,5 anos, sendo 50% (3) do
Dentre os critérios de exclusão, destacam-se a não gênero feminino e 50% (3) do gênero masculino.
realização de acolhimento ou a não aceitação de Os participantes pesquisados apresentaram tempo
participar do estudo. de atuação com média de 14,3 ± 6,7 anos. Ao serem

Cad. Bras. Ter. Ocup., São Carlos, v. 25, n. 2, p. 341-349, 2017


344 Percepção de profissionais da área de saúde mental sobre o acolhimento ao usuário de substância psicoativa em CAPSad

questionados sobre o trabalho com dependência participantes, 67% (4) disseram também realizar
química ter sido sua área de escolha profissional, 33% grupos de acolhimento. Em outro item, em relação
(2) tiveram resposta afirmativa e 67% (4) referiram a ter companhia ou não durante o acolhimento,
não ter sido sua primeira escolha. Em relação ao 83% (5) realizam com a presença de familiar, 67%
primeiro contato com usuário que abusa de substâncias (4)   sem a presença de familiar e 17% (1) refere
psicoativas, 50% (3) relataram ter sido no ambiente deixar a critério do usuário.
familiar, enquanto 33% (2) responderam ter tido o Os profissionais responderam que não estabelecem
primeiro contato no ambiente profissional e 17% um número de acolhimentos a cada usuário, sendo
(1) com amigos. Quanto à realização de especializações
este número flexível quanto às suas necessidades.
na área de saúde mental, 50% (3)  responderam
afirmativamente, sendo referidos: um aprimoramento, Depende da necessidade de cada pessoa (P3).
duas especializações e um mestrado. Este fato não
ocorreu em relação às capacitações, em que somente Quando questionados sobre a via de atendimento
dois profissionais (33%) relataram ter algum tipo de dos acolhimentos realizados, 100% (6) responderam
capacitação na área, sendo um deles também com ser via demanda espontânea e 17% (1) disseram
especialização. Dentre as capacitações específicas realizar acolhimento via agendamento prévio.
sobre o tema acolhimento, 100% (6) disseram nunca No quesito “sistematização do acolhimento”, apenas
terem realizado. 17% (1) relataram usar algum tipo de protocolo para
Com relação à fonte de recurso para o financiamento realização deste, sendo tal documento elaborado por
das especializações e capacitações, 50% (2) referiram outros colegas do serviço e que engloba aspectos
ter realizado com recurso próprio, 25% (1) com como tipo de substância consumida, período de
recurso institucional e 50% (2) gratuito. É importante abstinência, tratamentos anteriores, entre outros.
ressaltar que, neste item, foram citadas capacitações Em relação às discussões em equipe acerca do
realizadas à distância. Dos quatro profissionais acolhimento realizado, 83% (5) responderam que
que possuem algum tipo de especialização ou sempre fazem discussões e 17% (1) responderam
capacitação, 50% (2) deles responderam ter realizado que nem sempre a discussão é realizada. Quanto
tal aprimoramento após o ingresso no serviço e 50% aos profissionais com os quais discutem, 100%
(2) referiram ter realizado em ambos os momentos, (6)  relataram fazer a discussão com equipe
antes e após o ingresso ao serviço. multidisciplinar, podendo, em alguns casos, ser
Dentre os participantes, 33% (2) são técnicos exclusivamente com a equipe médica.
de referência de 25 usuários cada, 17% (1) de Os assuntos abordados nas discussões sobre
15 usuários, sendo tais profissionais com formação o acolhimento, segundo os participantes, são,
de nível superior; os demais 50% (3) não são técnicos principalmente, referentes à coleta de dados realizada
de referência de nenhum usuário.
durante o acolhimento, a fim de possibilitar o
Já em relação à temática “entendimento sobre encaminhamento e/ou modalidade de tratamento
acolhimento”, todos os participantes relataram que oferecido ao usuário, conforme evidenciado em:
entendem por acolher, receber o usuário no serviço,
ouvir suas demandas de forma qualificada, orientar Motivação, tempo de abstinência, coleta de
e fazer os encaminhamentos necessários, como dados, proposta terapêutica e/ou conduta (P4).
destacado pela fala: Já quando questionados se existem períodos
Acolher é ter uma escuta qualificada para as e/ou reuniões formais para as discussões dos
queixas do indivíduo, identificar as necessidades acolhimentos, 83% (5) responderam negativamente
com o usuário e dar uma resposta às queixas e e 17% (1)  afirmativamente, sendo referenciada a
necessidades, envolvendo-o na elaboração do reunião de equipe semanal como o momento para
cuidado (P1). tais discussões.
Referiram, ainda, o acolhimento como sendo Na temática referente à “função do acolhimento
o início do acompanhamento deste paciente no ao usuário”, todos os participantes evidenciaram o
tratamento, o que fica bem evidenciado nesta fala: acolhimento como forma de orientação quanto ao
tratamento. Dentre estes, apenas 33% (2) correlacionaram
Acolhimento é o início do acompanhamento o acolhimento como uma forma de estimular a
(P6). adesão ao tratamento, sendo o início do vínculo
Quanto ao tipo de acolhimento realizado, serviço/usuário, explicitado em:
100% (6) dos participantes relataram que fazem o Ouvir o usuário, orientar sobre o tratamento,
acolhimento individual ao usuário e, dentre estes estimular a adesão (P2).

Cad. Bras. Ter. Ocup., São Carlos, v. 25, n. 2, p. 341-349, 2017


Salles, D. B.; Silva, M. L. 345

Acolher o indivíduo, ter escuta ampliada sobre psicoativa mostrar-se cada vez mais rotineiro e
suas dificuldades, fazer vinculo e oferecer frequente. Quando questionados sobre o primeiro
proposta terapêutica (P4). contato com usuários que abusam de substâncias
psicoativas, parte dos participantes respondeu que
Na categoria relacionada à realização de possíveis o primeiro contato se deu no ambiente familiar; já
alterações em seu acolhimento, 67% (4) responderam Lopes et al. (2009) apontam que o primeiro contato,
que sim, podendo tal disposição ser evidenciada quando pesquisados alunos de enfermagem, se deu no
pela fala: ambiente profissional, o que pode estar relacionado
Sempre é possível melhorar (P5). com o pouco entendimento, quanto ao abuso de
substâncias na sociedade em geral, sobre o assunto.
A última temática selecionada diz respeito
As especializações e capacitações são formas
ao “entendimento sobre acolhimento ideal”, em
de aproximar o profissional de novas técnicas e
cuja análise das respostas, todos os participantes
conhecimentos acerca de sua prática profissional,
apontaram para a preocupação de um atendimento
o que facilita, proporciona suporte e dá maior
ágil e instantâneo no momento da procura, prezando
autonomia no momento de lidar com situações até
a escuta qualificada, a realização de orientações
então desconhecidas. Para Silva et al. (2007), os cursos
necessárias e os possíveis encaminhamentos.
e capacitações podem ocorrer de forma desarticulada
Destacaram também a necessidade de uma rede de com as reais necessidades do trabalhador e do usuário
suporte bem estruturada, explicitada em: do serviço, sendo importante o desenvolvimento de
O acolhimento ideal deveria ter equipe abordagens que contemplem o contexto institucional,
multiprofissional designada para receber, auxiliando na promoção da articulação de diálogos
ouvir as pessoas que buscam o serviço, ter mais e do estabelecimento de relações entre os atores do
profissionais na equipe, ter um trabalho de tratamento (profissionais/usuários).
acolhida não só com a visão de inserção no Nesta pesquisa, metade dos participantes tem
tratamento, mas também em orientação (P3).
alguma especialização, cursos exclusivos para
Se houvesse rede de suporte estruturada nas profissionais de nível superior na ou da área de
políticas de saúde (P4). dependência química específica ou de saúde mental.
O tempo é curto em função da demanda,
Tal fato contribui de forma favorável para o melhor
condições físicas do ambiente... bem como planejamento do serviço, já que, dos profissionais
realiza-lo em equipe (P6). de ensino superior participantes, apenas um relatou
não ter qualquer especialização.
No quesito “capacitações”, alguns responderam
4 Discussão ter realizado alguma, sendo que um deles também
realizou especialização; referiram, ainda, que o
Os resultados apontaram que a escolha em financiamento para a realização destas foi a partir
trabalhar com saúde mental, muitas vezes, está de recursos próprios. Um fator que pode também
associada à oferta de emprego e não necessariamente colaborar para a dificuldade na realização das
como a primeira escolha do trabalhador. Este fato capacitações e especializações pode estar relacionado
pode resultar em serviços compostos por um quadro à falta de incentivo por parte da própria instituição,
de profissionais que, muitas vezes, não se identifica que, muitas vezes, não permite o afastamento para
com o ambiente, com o tipo de serviço prestado e realização de cursos, questão esta também apontada
também com o usuário atendido. Neste estudo, por Vargas e Duarte (2001).
os participantes relataram que trabalhar com Quanto à necessidade de capacitações e especializações
dependência química não foi uma escolha pessoal de profissionais da saúde mental, estas sempre estiveram
e profissional, o que é corroborado por Tavares contempladas e reafirmadas nos documentos do
(2006), em pesquisa realizada com profissionais em Ministério da Saúde, englobando novas técnicas e
serviços especializados em saúde mental, em que a formação desses profissionais, a fim de lidar com o
oferta de emprego nem sempre permite a escolha novo paradigma de saúde, como cita Silva, Oliveira e
pela área desejada. Postigo (2014). Além da necessidade já citada, Gallassi
Sabe-se que o consumo de substâncias tem e Santos (2013) trazem as dificuldades encontradas
se intensificado e agravado a cada ano, de forma quando abordado o assunto da dependência química,
concomitante ao aumento de produção e desenvolvimento reiterando as capacitações muito espaçadas e muitas
de novas substâncias (UNITED..., 2013), sendo vezes distantes da necessidade do profissional, uma
possível o contato com um usuário de substância formação acadêmica com carga horária escassa sobre

Cad. Bras. Ter. Ocup., São Carlos, v. 25, n. 2, p. 341-349, 2017


346 Percepção de profissionais da área de saúde mental sobre o acolhimento ao usuário de substância psicoativa em CAPSad

o assunto e a questão ainda muita arraigada de um necessidades do usuário, a partir da elaboração de um


conceito moral, de forma histórica. projeto terapêutico ou de possíveis encaminhamentos,
Mângia et al. (2006) discorrem que a referência podendo, em alguns momentos, o acolhimento se
técnica promove um processo de trabalho em assemelhar à triagem propriamente dita, como também
que um profissional é designado para assumir de observado por Andrade, Sousa e Quinderé (2013).
forma diferenciada as negociações com o usuário Acredita-se que essa indiferenciação, presente
sobre necessidades em seu tratamento. O técnico em alguns momentos, entre acolhimento e triagem
de referência, na maioria das vezes, é o profissional deva ser motivo de atenção por parte da equipe,
com maior vínculo com o usuário, o que possibilita considerando que este paciente possa estar em um
a divisão de tarefas entre os profissionais da equipe. momento de pré-contemplação ou contemplação
Neste estudo, os profissionais referem ser técnicos para o tratamento, para o qual sua motivação pode
de referência, sendo, um deles, o médico designado se apresentar flutuante. O acolhimento também
para o caso. Neste sentido, há uma preocupação foi considerado de grande valia para a efetivação
com o vínculo profissional/usuário que pode não da vinculação do usuário/serviço e de adesão deste
ser o mais próximo, já que nem toda a equipe está ao tratamento.
disponível para esta tarefa, além de poder gerar
Quanto aos tipos de acolhimentos realizados,
uma sobrecarga para os que executam esta função.
há consonância com as diretrizes do SUS quanto
Segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2006), o à função do acolhimento, porém o discurso do
acolhimento, muito além de seu significado semântico, acolhimento em grupo, também presente, difere
é uma forma de operar os processos de trabalho em do proposto. Segundo Azambuja  et  al. (2007),
saúde, a fim de proporcionar atendimento a todos o acolhimento em grupo dever funcionar como
aqueles que buscam o serviço, de forma qualificada. um grupo de sala de espera, em que os usuários
O acolhimento é, então, a porta de entrada do podem compartilhar formas de pensar em saúde,
serviço e sua qualificação pode estar diretamente não excluindo o atendimento de forma individual.
ligada à adesão do usuário ao tratamento, já que
influencia no fluxo de usuários que permanecerão Sabe-se que a dependência química afeta diretamente
por vontade própria naquele serviço, favorecendo o contexto familiar. Assim, é de extrema importância
o protagonismo em seu tratamento. a participação da família durante todo o processo
do tratamento. A participação da família, quando
Para Oliveira et al. (2011), o acolhimento tem no papel de apoiadora do tratamento, durante o
como função a escuta qualificada às demandas
acolhimento, pode gerar maior confiança no paciente
de todo usuário que chega a qualquer serviço de
durante a exposição de seus problemas e contribuir para
saúde, sendo esperado que o profissional apresente
melhor contextualização da situação. Seadi e Oliveira
resolutividade frente às queixas do usuário, porém
(2009), em pesquisa realizada, encontraram maior
demonstre a necessidade da corresponsabilização
adesão do paciente ao tratamento quando familiares
deste em seu tratamento, levando em consideração
também participam ou colaboram diretamente neste
todo seu contexto sócio-histórico e familiar. Segundo
processo, corroborando com o encontrado nesta
Andrade, Sousa e Quinderé (2013), o acolhimento
pesquisa, quando permitem a presença do familiar
deve ser livre de julgamentos, respeitando as
no acolhimento. Sendo o acolhimento uma forma
necessidades, os desejos e as diferenças do usuário, o
de escuta qualificada, que deve atender a todo
que é apontado também por Alves e Oliveira (2010),
usuário que chega ao serviço, definir um número
que definem a escuta qualificada como o ouvir o
usuário sem julgamentos, quanto ao conteúdo ou de acolhimentos por usuário vai na contramão do
mesmo ao nexo neste momento, mas o simples proposto de individualizar o tratamento. Neste estudo,
compartilhamento da situação de sofrimento, que os participantes demonstraram bom entendimento
o motiva para a busca de tratamento em um serviço quanto à necessidade de acolher a demanda trazida
de saúde. É necessário estar atento ao que o usuário por cada indivíduo.
traz, como sua história, muito antes de estruturar Em se tratando da motivação flutuante do usuário
alguma possível intervenção. de substâncias psicoativas quanto ao desejo de
Os resultados apontaram para a sensibilidade tratamento, acolhê-lo de forma imediata à procura do
dos profissionais pesquisados sobre o acolhimento serviço possibilita uma melhor adesão ao tratamento
e a importância deste, como o momento crucial na (CASTRO; PASSOS, 2005), corroborando com o
formação de vínculo usuário/serviço. Em contrapartida, encontrado nesta pesquisa.
apresentaram uma enorme preocupação em coletar Adotar um protocolo para acolhimento pode ser
dados e oferecer rapidamente uma resposta frente às uma maneira de simplificar a escuta e de aproximação

Cad. Bras. Ter. Ocup., São Carlos, v. 25, n. 2, p. 341-349, 2017


Salles, D. B.; Silva, M. L. 347

a uma triagem. Tal fato pode estar ligado, muitas de melhores condições físicas. O número reduzido
vezes, à falta de disponibilidade de profissionais de funcionários e a inadequação do ambiente foram
suficientes para um acolhimento adequado, o que é itens destacados por Oliveira et al. (2010), que referem
corroborado por Oliveira et al. (2010), que discutem que a vulnerabilidade destes itens fragiliza a proposta
o reduzido número de profissionais especializados de repensar os processos de trabalho, lidando com a
ou os recursos insuficientes para manter uma equipe frustração do profissional em atuar entre a expectativa
multidisciplinar disponível apenas para a função e a realidade de seu trabalho, limitando inclusive o
de acolher. tempo disponível para cada função.
Vargas e Duarte (2001) salientam a importância da
troca de informações entre os próprios profissionais 5 Conclusão
do serviço como uma fonte de conhecimentos, já
que as especializações e capacitações são pouco O estudo permitiu evidenciar a percepção dos
difundidas nestes ambientes. As discussões, quando profissionais de saúde mental acerca do acolhimento
não realizadas em espaços formais, como encontrado ao usuário de substâncias psicoativas em um CAPSad.
nesta pesquisa, não favorecem o fortalecimento das
trocas de conhecimento e experiências da equipe, Através do questionário utilizado, foi possível
já que só alguns profissionais fazem parte deste identificar uma preocupação em fornecer um
momento. Se esse modo disperso é agregado à falta acolhimento a todo usuário que busca o serviço,
de capacitação específica sobre acolhimento, pode porém também apontou a dificuldade em manter as
acarretar uma dificuldade em criar vínculo com este diretrizes do SUS, o que pode ser percebido como
usuário, que terá que adaptar-se às formas individuais resultante do baixo número de capacitações realizadas
de cada profissional de lidar com o acolhimento, e do pouco incentivo para tais. Ficou evidente que
descaracterizando uma identidade do serviço. a concepção de acolhimento ainda está vinculada
Em relação aos assuntos abordados nas discussões à necessidade de coleta de dados.
sobre o acolhimento, ressalta-se a coleta de dados Uma forma de lidar com o número restrito de
realizada durante o acolhimento como forma auxiliar capacitações seria a implantação de espaços formais
‒ e até principal ‒ do encaminhamento do usuário de discussão em equipe, favorecendo a troca de
para modalidade de tratamento oferecido. Deve-se saberes e a facilitação da criação de identidade ao
tomar cuidado para não confundir acolhimento acolhimento do serviço, além da implementação
com a simples coleta de dados, deixando de lado a de educação permanente aos profissionais atuantes.
singularidade de cada indivíduo. Para Rêgo (2009), o A sobrecarga, muitas vezes acarretada pelo exíguo
acolhimento deve fornecer um diagnóstico situacional quadro de funcionários, é tema a ser discutido em
de cada usuário, para, em seguida, ser elaborado o toda a rede de serviços de saúde, que hoje, em sua
plano terapêutico. Talvez, neste primeiro momento,
maioria, funciona com o quadro mínimo exigido.
seja difícil traçar a modalidade de tratamento na
Dessa forma, desempenhar todas as funções de forma
qual o indivíduo se encaixe, restando pouco espaço
qualificada pode trazer enorme sobrecarga e estresse
para a singularidade e o contexto trazido por cada
ao profissional, que, além de ter de lidar com suas
usuário que procure o serviço.
próprias frustrações, deve estar sempre disponível
O acolhimento é então um grande aliado à adesão ao sofrimento do usuário, já que um acolhimento
ao tratamento, conforme referido por Andrade, insatisfatório poderá dificultar a adesão do usuário
Sousa e Quinderé (2013), Solla (2005) e Schmidt e ao tratamento.
Figueiredo (2009). Com o número de participantes
relatando o acolhimento como forma de adesão, Mediante os itens destacados e supra discutidos,
demonstra-se uma fragilidade no entendimento deve-se tomar cuidado para que os serviços
da função do acolhimento, segundo as diretrizes substitutivos não reproduzam a forma de cuidar
do SUS, ficando evidenciada a orientação como dos modelos asilares. Para isso, o investimento em
principal função do acolhimento para os participantes. conhecimento e subsídios para o profissional é de
extrema importância.
Evidenciou-se também a crítica por parte dos
participantes quanto a possíveis melhoras no Repensar na forma de estruturação do serviço
acolhimento realizado. Quando questionados sobre e contemplar espaços de troca e capacitação é
o “acolhimento ideal”, os participantes citaram proporcionar um atendimento de qualidade ao
a necessidade de uma equipe multidisciplinar usuário e também proporcionar a manutenção do
específica para o acolhimento, favorecendo a escuta bem-estar profissional, a fim de que este profissional
no momento em que o usuário busca o serviço, além adquira autonomia e manejo para lidar com as

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348 Percepção de profissionais da área de saúde mental sobre o acolhimento ao usuário de substância psicoativa em CAPSad

situações vivenciadas no cotidiano do tratamento BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde Mental em Dados -
da dependência química. 10. Brasília, 2012. Informativo eletrônico de dados so-
bre a Política Nacional de Saúde Mental, ano VII, n. 10.
Espera-se, com este estudo, contribuir para
uma reorganização dos processos de trabalho, CAROTTA, F.; KAWAMURA, D.; SALAZAR, J. Edu-
fomentando espaços de troca de saberes, fortalecendo cação Permanente em Saúde: uma estratégia de gestão
o acolhimento como forma de atendimento pautado para pensar, refletir e construir práticas educativas e pro-
na escuta qualificada, priorizando a singularidade cessos de trabalhos. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18,
p. 48-51, 2009. Suplemento 1.
de cada indivíduo, sem conceitos pré-estabelecidos,
e favorecendo, assim, maior adesão do usuário ao CARVALHO, C. A. P. et al. Acolhimento aos usuários:
tratamento e, consequentemente, menor evasão uma revisão sistemática do atendimento no Sistema Úni-
do mesmo. co de Saúde. Arquivos de Ciências da Saúde, São José do
Rio Preto, v. 15, n. 2, p. 93-95, 2008.
Novas pesquisas podem contribuir para maiores
reflexões acerca do olhar do profissional desta área, CARVALHO, R. M. C.  et  al. Causas de recaída e de
permitindo cada vez mais discussões que contribuam busca por tratamento referidas por dependentes quími-
para a qualificação e o fortalecimento da rede de cos em uma unidade de reabilitação. Columbia Médica,
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Contribuição dos Autores


Daiane Bernardoni Salles e Meire Luci da Silva participaram integral e igualmente de todas as etapas de
elaboração e redação do artigo. Todos os autores aprovaram a versão final do texto.

Notas
Este trabalho é um recorte de uma pesquisa temática e foi parte integrante do Trabalho de Conclusão de Curso do
1

Programa Multiprofissional em Saúde Mental da Faculdade de Medicina de Marília – FAMEMA, Marília, SP, Brasil.
2015.

Cad. Bras. Ter. Ocup., São Carlos, v. 25, n. 2, p. 341-349, 2017


DOI: 10.1590/1413-81232017225.32772016 1455

Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas:

ARTIGO ARTICLE
análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016

Tensions between approach paradigms in public policies on drugs:


an analysis of Brazilian legislation in 2000-2016

Mirna Barros Teixeira 1


Marise de Leão Ramôa 2
Elyne Engstrom 1
José Mendes Ribeiro 1

Abstract Brazilian public policy on drugs has Resumo Tensões em diferentes campos perpas-
been permeated by two diametrically opposing sam a formulação de políticas públicas sobre dro-
approaches: one focusing on prohibition and the gas. Na Justiça/Segurança pública, controvérsias
other on non- prohibition. Similarly, there have entre os paradigmas do proibicionismo e antiproi-
been two opposing approaches to mental health- bicionismo; no campo da Saúde/Assistência so-
care, one centered on hospitalization and the other cial, os paradigmas asilar e psicossocial norteiam,
psychosocial care and development. In the context de forma divergente, práticas em saúde mental/
of these different paradigms, this article presents álcool e outras drogas. O objetivo do artigo é ana-
an analysis of twenty-two documents sourced by lisar, à luz destes paradigmas, modelos que in-
the legislative rules over the last sixteen years. Af- fluenciaram as Políticas Públicas sobre Drogas no
ter the year 2000, a renewed focus by healthcare Executivo Federal brasileiro. Trata-se de pesquisa
community on drugs was noticeable as was the documental, cuja fonte são normativos publicados
immersion of a harm reducing approach. Follow- entre 2000-2016 e categorias analíticas: os mo-
ing international trends, although there are still delos hegemônicos, as influências na organização
considerable divergencies between (a) psychoso- dos serviços e a intersetorialidade. Foram anali-
cial care and(b) residential care in the therapeutic sados 22 documentos. Concluiu-se que, na saúde,
communities there seems to be an alignment to a abordagem às drogas apresentou incremento e
anti- prohibition approaches. relevância a partir dos anos 2000, a redução de
Key words Harm reduction, Public policies, Al- danos emergiu como estratégia norteadora do
cohol and other drugs, Inter-sector cooperation cuidado, um paradigma ético, clínico e político,
and coordination transversal no diálogo com os campos. Identifi-
cou-se protagonismo promissor de outros setores,
alinhados às novas tendências internacionais e ao
antiproibicionismo, mas persistem divergências
1
Escola Nacional de quanto ao modelo de atenção psicossocial e inter-
Saúde Pública, Fiocruz. R. nação em comunidades terapêuticas.
Leopoldo Bulhões 1480,
Manguinhos. 21041-210 Palavras-chave Redução de danos, Políticas pú-
Rio de Janeiro RJ Brasil. blicas, Álcool e outras drogas, Intersetorialidade
mirna@ensp.fiocruz.br
2
Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio, Fiocruz.
Rio de Janeiro RJ Brasil.
1456
Teixeira MB et al.

Introdução ver o sujeito do processo do adoecimento com


seus determinantes econômicos, sociais e políti-
O uso prejudicial de drogas (UPD) é problema cos. O cuidado se dá na perspectiva de Redes de
de saúde pública multifatorial envolvendo as di- Atenção territorializadas, sendo a integralidade
mensões biológicas, psíquicas, sociais, culturais, considerada tanto em relação ao ambiente, quan-
constituindo-se como um desafio para a imple- to ao ato terapêutico com o indivíduo, no qual
mentação de políticas integradas e abrangentes. seus efeitos não visam à supressão sintomática e
De magnitude mundial expressiva, estima-se que a necessária abstinência e sim à redução de riscos
246 milhões de pessoas no mundo usem subs- e danos. Esse modelo de cuidado centra-se no re-
tâncias psicoativas (SPA), o que corresponde à speito às diferenças, à defesa da vida e ao direito
prevalência global de 5,2% em 20131. No âmbito à liberdade e à dignidade da pessoa, cujo objetivo
da formulação de políticas públicas sobre drogas é inclusão e reinserção social, e a toxicomania ou
existem tensões em diversos setores. No setor da a dependência de drogas é vista como resultante
justiça e da segurança pública dois paradigmas, do encontro de uma pessoa com uma droga em
o do proibicionismo e o do antiproibicionismo, um dado momento sociocultural, numa tríade
se encontram em disputa. Já no campo da saúde indivíduo-droga-contexto5. Seus princípios são a
e assistência social, os paradigmas asilar, psicos- desinstitucionalização; a liberdade; a autonomia
social e de Redução de danos (RD) sustentam as e a cidadania, tendo a interdisciplinaridade e a
práticas em saúde mental/álcool e outras drogas2. intersetorialidade como práticas da clínica am-
O proibicionismo ou “Guerra às Drogas” tem pliada6.
como objetivo maior o combate ao tráfico e a Tais referências norteiam disputas nos cam-
criminalização de usuários e traficantes, visando pos da saúde, assistência social, segurança e justi-
um mundo livre de drogas. Está associado ao dis- ça e podem ser refletidas em três modelos/abor-
curso antidrogas, fruto de vários tratados inter- dagens aos usuários de drogas segundo Marlatt7:
nacionais cujo compromisso era a prevenção do 1. No modelo moral/criminal o uso de algu-
consumo e a repressão da produção e da oferta. mas drogas é definido como ilícito é e por isso
Já o “antiproibicionismo” tem como debate prin- passível de punição. Remete a políticas proibi-
cipal a descriminalização e a legalização das dro- cionistas e redução da oferta, na ideia moral do
gas; compreende que o uso de drogas não deve prazer associado ao pecado e o indivíduo não
ser considerado crime e às pessoas que fazem uso sendo capaz de discernir o certo do errado, po-
prejudicial de SPA deve ser ofertado tratamento dendo ser submetido a medidas de suspensão
e cuidado e não reclusão em ambiente prisional3. de direitos individuais. Faz-se aqui a associação
No setor saúde, a característica básica da entre Justiça e Saúde, por meio de práticas como
abordagem “asilar” é a ênfase no caráter orgâni- a Justiça Terapêutica e internações compulsórias
co, com a aposta central nos medicamentos como determinadas por juízes, mas que estão previstas
ferramenta para a cura. O indivíduo ocupa um em Lei da Saúde, como na lei 10.2168, que sofreu
lugar passivo em seu tratamento, sendo consi- inúmeras modificações desde o projeto de Lei nº
derado doente, justificando, com isso, seu isola- 3657-B, da Câmara dos Deputados, de 1989 . Para
mento do meio familiar e social mais amplo. A tal modelo a única meta é a abstinência total.
instituição típica desse paradigma é o hospital 2. O modelo de doença7 vê a dependência de
psiquiátrico que possui somente a internação drogas como uma doença biológica que merece
como modelo. tratamento e reabilitação. O foco está no in-
No modelo “psicossocial”, o desenvolvimento divíduo e remete a uma abordagem de redução
das práticas é decorrente de movimentos sociais da demanda; seus dispositivos incluiriam as ex-
e de diversos campos teóricos. As considerações periências de Alcoólicos Anônimos, Narcóticos
desse modelo, num primeiro momento, sobre a Anônimos e Modelo Minnesotta. Tais aborda-
psicose, em particular, e sobre outras formas de gens não se preocupam com um mundo livre de
sofrimento, como as associadas ao uso prejudicial drogas, pois partem do princípio de que apenas
de drogas, são marcadas por considerações que alguns indivíduos desenvolvem a dependência.
vão além da noção de doença. Por isso, os recur- Porém, pode-se incorrer no risco de associação
sos usados na atenção também precisam ir além ao modelo moral, quando se relaciona ao sujeito
dos medicamentos. Parte-se da contextualização da doença a ideia de incapacidade da razão em
de um dado fenômeno, com base na fenomeno- detrimento do prazer. A única meta aceitável a
logia de Husserl, citado por Basaglia4, quando se partir de tal concepção é a abstinência total, in-
propõe colocar a doença entre parênteses para clusive como condição para o tratamento, pois
1457

Ciência & Saúde Coletiva, 22(5):1455-1466, 2017


o indivíduo precisa aceitar que tem uma doença as abordagens que permearam o desenvolvimen-
incurável, progressiva e fatal e por isso não pode to das Políticas Públicas sobre Drogas no Brasil
estar em contato com a substância à qual seria no âmbito do poder Executivo Federal no século
alérgico9. XXI.
3. O modelo da RD é entendido como uma
estratégia norteadora do cuidado, um paradig-
ma ético, clínico e político10,11. Segundo Marlatt7, Metodologia
a RD parte de pressupostos filosóficos do Prag-
matismo e dos Direitos Humanos; rompe com a Trata-se de pesquisa documental que teve como
ideia de uso abusivo de drogas, afirma que o mes- fonte de dados, as políticas, os decretos e as de-
mo pode ou não ser prejudicial. Torna-se uma es- mais normativas publicados entre 2000-2016. A
tratégia também para pessoas que não desejam escolha deste período justificou-se por estar este
ou não conseguem diminuir/cessar o uso de dro- século marcado pelo destaque dado à temática
gas, bem como para os demais usuários com difi- das drogas em diversos setores governamentais e
culdade para acessar serviços de saúde ou aderir da sociedade, com mudanças na configuração de
ao cuidado integral à saúde. Tem como princípio políticas e atores públicos envolvidos com o acir-
o respeito à autonomia dos sujeitos na perspecti- ramento de conflitos entre os mesmos e por haver
va de um cuidado ampliado de saúde que se con- uma vasta publicação nacional a ser explorada. A
trapõe às práticas de recolhimento dos usuários pesquisa documental permite acrescentar a dimen-
em abrigos ou para a internação compulsória. são de tempo à compreensão do social relacionada
Marlatt7 aponta a RD como uma alternativa da às fases do ciclo das políticas neste período13. Dessa
saúde pública aos modelos moral/criminal e de forma, procurou-se conhecer, caracterizar, anali-
doença, que se sustentam em princípios e pres- sar e elaborar sínteses sobre documentos escritos
supostos diferenciados da RD. e publicados pelas diversas instâncias do Execu-
Os primeiro e o segundo modelos têm sin- tivo Federal, relativos às políticas direcionadas às
tonia com o paradigma proibicionista enquanto drogas no Brasil. Realizou-se buscas eletrônicas
o terceiro tem a ver com o paradigma antiproi- do tema para identificar normativas de interesse
bicionista. Percebe-se certa aproximação entre os utilizando as bases “SAUDE LEGIS e SENAD”14,
modelos de políticas públicas apresentados por com seleção do material por pares, pelos autores.
Marlatt7 e os paradigmas asilar e psicossocial, A sistematização dos documentos foi organi-
que foram problematizados por autores do cam- zada considerando o ano de publicação (tempo-
po da Reforma Psiquiátrica e que podem manter ralidade), os setores governamentais protagonis-
as políticas públicas sustentadas em uma lógica tas envolvidos (atores) e sua relação com a temá-
que aprisiona, reprime e isola o sujeito que faz tica da droga. Foram excluídos os documentos não
uso de drogas a um modelo pautado na ideia de normatizados em portarias ou leis/decretos. Como
exclusão como forma de tratamento e de suposto categoria analítica foi realizada a identificação da
cuidado e um outro modelo que se sustenta na tipologia dos modelos segundo Marlatt7 e suas
relação entre as drogas e os contextos e promove respectivas influências na organização dos ser-
rompimento com estigmas, que é o modelo da viços de saúde (Quadro 1). Analisou-se ainda, a
RD e psicossocial. perspectiva da intersetorialidade, categoria rele-
As políticas públicas têm se mostrado pouco vante se considerado à complexidade da aborda-
integradas e com barreiras de acesso, acentuando gem ao UPD, a compreensão ampliada de saúde
as inequidades para as pessoas que fazem UPD e de seus determinantes, dilemas que necessitam
e que se encontram em extrema vulnerabilidade abordagens sistêmicas e integradas entre os seto-
social. A ampliação e a reorientação de políticas res. Analisou-se nos normativos a dimensão da
públicas que priorizem acesso e tratamento no intersetorialidade classificadas em três tipos: ine-
âmbito de uma rede de cuidado humanizada e xistente; incipiente e robusta (Quadro 2).
intersetorial, com práticas orientadas por valores
e princípios de participação, de intersetorialidade
e de equidade, fundamentos do Sistema de Saúde Resultados
Brasileiro (SUS) e do movimento internacional
da promoção da saúde (PS)12 mostram-se prom- Do total de 22 documentos identificados acerca
issoras e vêm conquistando espaços no campo do tema, foram selecionados 18 para a presente
das drogas no Brasil. O objetivo do artigo é anal- análise que atenderam aos critérios de elegibilida-
isar à luz dos paradigmas existentes os modelos e de. Embora com os normativos distribuídos ao
1458
Teixeira MB et al.

Quadro 1. Sistematização dos normativos acessados sobre drogas na legislação brasileira no período de 2000 a 2016.
Relação com temática das drogas
Normativos Ano e Setor Modelos*
e a organização dos serviços
Lei 10.216 de 06 de abril 2001. Ministério da Marco da Reforma Psiquiátrica; novo modelo de atenção em (3)
de 2001 Saúde saúde mental; desospitalização, serviços de base territorial,
portas abertas, sem exclusão do convívio com a sociedade.
Define três tipos de internação psiquiátrica: voluntária,
solicitada pelo paciente e involuntária.
Resolução da Diretoria 2001. Ministério da Regulamento Técnico sobre o funcionamento dos serviços (2)
Colegiada (RDC) 101 Saúde. Anvisa de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso
de 30 de maio de 2001 ou abuso de substâncias psicoativas (SPA), segundo modelo
(revogada pela RDC 29 psicossocial, também conhecidos como Comunidades
de 2011) Terapêuticas (CT).
Decreto Presidencial 2002. Presidência Institui a Política Nacional Antidrogas (PNAD). Apresenta o (1)
nº 4.345 de da República. prefixo anti drogas, que denota uma posição proibicionista
26 de agosto de 2002. Secretaria Nacional visando uma sociedade livre do uso de drogas ilícitas e do uso
Antidrogas indevido de drogas lícitas embora já aponte para programas de
(SENAD) redução de demanda e danos considerando os determinantes
sociais de saúde.
Portaria nº 2197 de 14 2004. Ministério da Estabelece que o Programa de Atenção Integral a Usuários de (3)
de outubro de 2004. Saúde Álcool e outras Drogas (AD). Considera as determinações do
documento “A Política do Ministério da Saúde para a Atenção
Integral a Usuários de ÁD” de 2003 do MS. Adota a Redução
de Danos (RD) como estratégia de intervenção prioritária.
É contrária a internação de usuários AD em hospitais
psiquiátricos normatizando as internações hospitalares de
curta permanência; propõe integração entre os serviços e níveis
de atenção à saúde.
Resolução nº3/GSIPR/ 2005. Conselho Institui a Política Nacional Sobre Drogas substituindo o prefixo (3)
CH/CONAD de 27 de Nacional “anti” para “sobre” drogas, refletindo nova compreensão
outubro de 2005. Antidrogas técnica-política para o problema em uma sociedade protegida
(CONAD) do uso de drogas ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas.
Portaria nº 1.028, de 1 2005. Ministério da Regulamenta ações que visam à RD decorrentes do uso de (3)
de julho de 2005. Saúde produtos, substâncias ou drogas que causem dependência
definindo as ações de RD com disponibilização de insumos
para prevenção de HIV e hepatites.
Lei de Drogas 11.343 de 2006. Presidência Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (1)
23 de agosto de 2006. da República. Casa (Sisnad). Prescreve medidas para prevenção do uso indevido,
Civil atenção e reinserção social de usuários e dependentes de
drogas e as redes de serviços. Estabelece normas para repressão
à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define
crimes, distingue usuário de traficante e suas respectivas penas,
porém mantém a criminalização e a penalização por uso de
drogas.
Decreto nº 6.117, de 22 2007. Presidência Institui a Política Nacional sobre o Álcool com medidas para (3)
de maio de 2007. da República redução do seu uso indevido e sua associação com a violência e
criminalidade. Propõe a ampliação e fortalecimento das redes
locais de atenção integral na lógica de território e de RD.
Portaria nº 1.190 de 04 2009. Ministério da Institui o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao (3)
de junho de 2009. Saúde. Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas (PEAD).
Normatiza os Consultórios de Rua (CR) como uma das
estratégias do plano na área de saúde mental, visa diversificar
as ações orientadas para a prevenção, promoção e tratamento
por meio de respostas intersetoriais efetivas.
continua

longo do período estudado, houve um incremen- vernamentais envolvidos foram o Ministério da


to a partir de 2009 (Quadro 1). Os setores go- Saúde (MS), Presidência da República, Gabinete
1459

Ciência & Saúde Coletiva, 22(5):1455-1466, 2017


Quadro 1. continuação
Relação com temática das drogas
Normativos Ano e Setor Modelos*
e a organização dos serviços
Lei nº 12.101, de 27 de 2009. Presidência Dispõe sobre a certificação das entidades beneficentes de (2)
novembro de 2009. da República, Casa assistência social, regula isenção de contribuições para a
Civil seguridade social às pessoas jurídicas de direito privado, sem
fins lucrativos e inclui as CT em tal categoria.
Decreto nº 7.179 de 20 2010. Presidência Institui o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e (2 e 3)
de maio de 2010 da República, Casa outras Drogas (PIEC) e cria o seu Comitê Gestor. Esse Plano
Civil deu origem ao Programa “Crack é Possível Vencer” em 2011
apresentando três eixos de atuação: Prevenção, Cuidado
e Autoridade com a finalidade de promover a prevenção,
o tratamento e a reinserção social de usuários; além do
enfrentamento do tráfico de crack e outras drogas ilícitas. Visa
integrar as ações de saúde e reinserção social de usuários AD
com as ações do Sistema Único de Assistência Social (SUAS),
além da ampliação dos dispositivos da rede de atenção.
RDC 29 de 30 de junho 2011. Ministério da Estabelece requisitos de segurança sanitária para o (2)
de 2011. Saúde. Anvisa funcionamento de instituições que prestem serviços de
atenção a pessoas com transtornos decorrentes de SPA em
regime de residência. Revoga a RDC de 2001 e apresenta
atividades supostamente desenvolvidas nas CT sem nomeá-
las como tal. Não há o rigor anterior da RDC 101 quanto aos
critérios de elegibilidade do residente e mantém o critério de
permanência voluntária. Não define número máximo de leitos
(que era de 30 na RDC 101) e o responsável não tem mais
que ser necessariamente da área de saúde, mas apenas de nível
superior.
Portaria nº 2.488 de 21 2011. Ministério da Aprova a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). Revê (3)
de outubro de 2011 Saúde. a organização da Atenção Básica e seus atributos essenciais e
derivados. Incorpora a RD na Atenção Básica e cria as equipes
de Consultório na Rua (eCnaR).
Portaria nº 3088 de 23 2011. Ministério da Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com (3)
de dezembro de 2011. Saúde. sofrimento ou transtorno mental e com necessidades
decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas (RAPS)
para ampliação do acesso à atenção psicossocial aos pontos
de atenção da rede e incluindo às urgências. Institui as CT, as
eCnaR e Centro de Atenção Psicossocial para AD (CAPS AD)
como seus dispositivos.
Portaria nº 131 de 26 de 2012. Ministério da Institui incentivo financeiro de custeio para apoio aos Serviços (2 e 3)
janeiro de 2012. Saúde. de Atenção em Regime Residencial, incluídas as CT no âmbito
da RAPS. Define 30 leitos como número máximo por serviço
(que já constava na RDC 101). Para recebimento do incentivo
os serviços deverão integrar Região de Saúde que conte com
componentes da RAPS. Apresenta normas mais rígidas de
credenciamento para os serviços residenciais.
Portaria nº 10, de 28 de 2014. Ministério da Acrescenta modelo de relatório de fiscalização das CT. Define (2)
fevereiro de 2014. Justiça. SENAD. CT como entidade que presta serviços de acolhimento de
pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou
dependência de SPA. Explicita que há um número de vagas
contratadas pela SENAD, órgão fiscalizador das CT utilizando
parâmetros da RDC 29/2011. Define como direito do acolhido
a Laborterapia que emprega o trabalho como forma de
recuperação. Propõe modelo de acolhimento em que não há
privação de liberdade.
continua

da Segurança Institucional (Secretaria Nacional bre Drogas - CONAD e Casa Civil); Ministério
sobre Drogas - SENAD; Conselho Nacional so- da Justiça (SENAD). A maioria dos documentos
1460
Teixeira MB et al.

Quadro 1. continuação
Relação com temática das drogas
Normativos Ano e Setor Modelos*
e a organização dos serviços
Resolução nº 01 de 19 2015. Presidência Regulamenta, no âmbito do Sisnad, as entidades caracterizadas (2)
de agosto de 2015. da República. como CT, sem prejuízo da RDC nº 29. Afirma que as CT não
CONAD. são estabelecimentos de saúde, mas de interesse e apoio das
políticas públicas de cuidados, atenção, tratamento, proteção,
promoção e reinserção social. Estabelece o acolhimento
por até 12 meses o que se diferencia de uma abordagem
psicossocial com vistas a desinstitucionalização. O programa
de acolhimento ainda permite incluir a realização de
desenvolvimento da espiritualidade como parte do método de
recuperação.
Portaria 834 de 26 de 2016. Ministério da Redefine os procedimentos relativos à certificação das (2)
abril de 2016. Saúde entidades beneficentes de assistência social na área de saúde
(CEBAS) e considera entidade beneficente de assistência
social na área de saúde aquela que atue diretamente na
atenção à saúde. A CT definida como entidade de saúde
poderá receber o CEBAS, porém não há definição de critérios
quanto ao que se caracteriza “entidade de saúde”. Informa
ainda excepcionalmente, para receber a CEBAS as CT que
comprovem a aplicação de apenas 20% de sua receita bruta em
ações de gratuidade.
*Legenda: Modelos de abordagem aos usuários de drogas: 1) Moral/criminal/proibicionismo; 2) Doença/asilar; 3) Redução de danos e/ou
modelo de atenção psicossocial/antiproibicionista.

(n = 10) foi publicada pela Saúde, 07 pela Presi- à atenção psicossocial ao evitar a internação de
dência da República e 01 pela Justiça. usuários de álcool e outras drogas em hospitais
Sobre a tipologia dos modelos/abordagens, psiquiátricos e reconhecer o UPD como grave
houve uma predominância do modelo da RD e/ problema de saúde pública, apresentando a RD
ou modelo de atenção psicossocial/antiproibicio- como estratégia de intervenção prioritária, mo-
nista, com 08 documentos; seguido do modelo de delo que se fortaleceu de forma crescente nos
doença/asilar com 06 documentos. Identificou-se anos seguintes. Em 2005, as ações de RD foram
apenas 02 documentos no modelo moral/crimi- regulamentadas pela Portaria nº 1.028/MS10,
nal/proibicionista (nos anos 2002 e 2006) e 02 apostando num modelo direcionando à oferta
normativos compostos por mais de um tipo de de cuidados que minimizassem as consequências
modelo, nesses casos expondo ainda mais uma adversas do UPD para o indivíduo e a sociedade;
disputa de modelos. reduzindo riscos associados sem, necessariamen-
Com destaque no início da série temporal es- te, intervir na oferta ou no consumo de drogas.
tudada, a Lei 102168, de 2001, foi um marco da De forma convergente à tendência observa-
Reforma Psiquiátrica, por legislar sobre o novo da na Saúde, neste mesmo período outros seto-
modelo de atenção em saúde mental (psicosso- res experimentaram mudanças na abordagem às
cial), com serviços de base territorial de portas drogas rumo ao antiproibicionismo, expressas
abertas em substituição aos manicômios psiqui- no realinhamento do título de políticas e seto-
átricos. Essa lei, embora não abordasse especifi- res governamentais afins: de Política Nacional
camente a temática das drogas, definiu 3 tipos Antidrogas (2002) para a Política Nacional sobre
de internações: 1) voluntária, solicitada pelo Drogas (2005)15; de Secretaria Nacional Antidro-
paciente; 2) involuntária, pedida por terceiro; e gas (SENAD) e da Política Nacional Antidrogas
a 3) compulsória, “aquela determinada pela Jus- (PNAD), com a expressão anti alterada para so-
tiça”. Somente em 2003, o tema das drogas, seu bre drogas, expressam a construção de uma nova
uso prejudicial, entrou na agenda da saúde de identidade na abordagem ao tema, movimento
forma mais efetiva, com a publicação da “Políti- consolidado com o Conselho Nacional de Polí-
ca para atenção integral aos usuários de álcool e ticas sobre Drogas (CONAD). Um primeiro re-
outras drogas/MS”. Esta foi normatizada no ano sultado desta mudança pode ser observado em
seguinte (Portaria nº 2.197)11, em convergência 2006, com a Lei 11.34316, que extinguiu a pena
1461

Ciência & Saúde Coletiva, 22(5):1455-1466, 2017


Quadro 2. Análise da dimensão da Intersetorialidade.
Intersetorialidade
Não explicitada Os documentos não abordam a intersetorialidade, cada setor é visto individualmente sem
ou não apontar a integração com os demais setores.
existente: 03 Documentos: RCD 101 de 2001; Resolução nº 01/2015 CONAD; Portaria nº 834 de 2016.
Incipiente: Os normativos apresentam uma articulação entre saúde, assistência social e direitos
humanos, porém ainda pouco integrada com os demais setores ou abordam a
intersetorialidade de forma implícita.
09 Documentos: Lei 10216/2001; Decreto nº 4345/2002; Portaria nº 2197/2004; Portaria nº
1028/2005; Lei 12101/2009; RDC 29/2011; Portaria nº 2488/2011; Portaria nº 3088/2011;
Portaria nº 131/2012,
Robusta: Os documentos apresentam a intersetorialidade como um “modus operandis” tendo a
articulação entre os diversos setores como elemento norteador da política/normativa.
06 Documentos: Resolução nº3/GSIPR/CH/Conad/2005; Lei de Drogas n º11.343/2006;
Decreto nº 6117/2007; Portaria nº 1190/2009; Decreto nº 7179/2010; Portaria nº10/2014.

de prisão no caso de posse de substâncias ilícitas no de Orientações Técnicas do SUAS20 no campo


para uso próprio, mantendo, porém, a proibição AD, no qual reconheceu a multicausalidade do
do uso com sanções distinguindo o usuário do consumo de drogas, as sérias consequências nas
traficante e deu ênfase as ações de prevenção, vidas das pessoas e suas famílias, as vulnerabili-
tratamento e reinserção social. No entanto, essa dades associadas ao uso de crack e a necessidade
lei deixou como lacuna a não discriminação de de integração territorializada em Redes (Saúde e
parâmetros precisos de diferenciação, como en- Assistência Social).
tre usuário e traficante, abrindo brechas para in- De forma paradoxal ao fortalecimento do
terpretações quanto ao tipo de usuário, o que na modelo da RD e da atenção psicossocial, eviden-
prática aumentou o encarceramento por porte de ciando controversas e disputas, no final da déca-
drogas3. da 2000, observou-se normativas que reforçam o
A Política Nacional sobre o Álcool17, embora modelo centrado na doença, especialmente por
focalizada, apresentou uma formulação inovado- meio das Comunidades Terapêuticas (CT). Em
ra por contemplar a integralidade de ações para a 2009, a Lei nº 12.10121 certificou as entidades be-
redução dos danos sociais, à saúde e à vida, asso- neficentes de assistência social, incluindo as CT.
ciados ao consumo desta substância, bem como Em 2011, a Anvisa apresentou a Resolução da Di-
as situações de violência e criminalidade ligadas retoria Colegiada - RDC 2922 que definiu os requi-
ao uso prejudicial do álcool, em uma abordagem sitos de segurança sanitária para o funcionamento
intersetorial. Ampliando o escopo da atenção à de instituições que prestem serviços de atenção a
saúde às pessoas com UPD, em 2010 o MS re- pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso
conheceu a lacuna assistencial e lançou o Plano ou dependência de SPA em regime de residência,
Emergencial de Ampliação do Acesso ao Trata- mas não as denomina de CT. Ainda em 2011, o
mento e Prevenção em Álcool e outras Drogas MS instituiu a Rede de Atenção Psicossocial para
no SUS-PEAD18, em perspectiva intersetorial em pessoas com sofrimento, transtorno mental e
seus distintos eixos de intervenção. necessidades associadas ao uso de crack, álcool e
Na ampliação do modelo da RD na atenção outras drogas – RAPS (Portaria 3.088)23 e incluiu
à saúde, há que se ressaltar sua incorporação à as CT como um dos dispositivos dessa rede. Em
Política Nacional de Atenção Básica19 (revista em 2012, o próprio MS instituiu esforço para regula-
2011), ao recomendar tal estratégia nos cuidados mentar as CT nos moldes das Unidades de Aco-
primários e instituir uma nova modalidade de lhimento, lançando a Portaria 13124 que definiu
equipe de saúde da família, os Consultórios na critérios para credenciamento das CT no âmbito
Rua, para o cuidado à população em situação de da RAPS. Um deles foi o respeito à orientação
rua e usuários de drogas. Como capilaridade deste religiosa do residente. Em 2013, a Nota Técnica/
modelo em outros setores, em 2016, o Ministério MS25 trouxe esclarecimentos sobre a RDC 29 e a
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome sua aplicabilidade nas CT, apresentando-as como
em colaboração do MJ/SENAD lançou o Cader- instituições não governamentais, da sociedade
1462
Teixeira MB et al.

civil, para lacunas assistenciais do SUS. Nessa competências e habilidades para trabalhar com
tensão política, as CT passaram a ser financiadas novos saberes e práticas, em uma leitura trans-
pela SENAD, por meio do Ministério da Justiça, versal sobre os problemas fundantes de uma po-
em 201426. Em 2015, a Resolução nº 1/2015 do lítica12. Segundo Buss e Carvalho30, a intersetoria-
CONAD27 regulamentou, no âmbito do Sisnad, as lidade não pode se restringir às intencionalidades
entidades que realizavam o acolhimento de pes- retóricas nem em frágeis acordos, devendo estar
soas, em caráter voluntário, com problemas asso- sistematizada em “programas concretos dirigidos
ciados ao UPD, aí, sim, caracterizadas como CT. a populações concretas (...) submetidas a proce-
Estas não seriam estabelecimentos de saúde, mas dimentos de avaliação que permitam dimensio-
entidades de interesse e apoio das políticas públi- nar seus impactos sobre a saúde e a qualidade de
cas de cuidados, atenção, tratamento, proteção, vida”.
promoção e reinserção social, sendo, desta forma, Cabe destacar que, em 2002, a Política Nacio-
vinculadas ao MJ e fiscalizadas pela SENAD. No nal Antidrogas31 apresentou, embora insipiente,
entanto, em 2016, contrariando tal vinculação, a uma perspectiva ampliada entre saúde e assis-
responsabilidade sobre as CT retornam à Saúde, tência social. Em 2005, com o realinhamento da
com procedimentos do MS normatizando a cer- política, a integração setorial se torna mais ro-
tificação das entidades beneficentes de assistência busta. Com a Política Nacional sobre o Álcool17,
social na área de saúde – CEBAS (Portaria 834)28. em 2007, a intersetorialidade e a integralidade de
Essa definiu que as instituições reconhecidas na ações têm maior visibilidade e em 2011, o Pro-
legislação, como serviços de atenção em regime grama “Crack é possível vencer” fez uma indução
residencial e transitório (incluídas as CT) pres- à intersetorialidade ao propor o trabalho integra-
tadoras de serviços ao SUS, poderiam ser certifi- do por meio de Comitês intersetoriais.
cadas, desde que qualificadas como entidades de
saúde e com prestação de serviços comprovada
por declaração do gestor do SUS. Contudo, es- Discussão
tabeleceu-se dualidade acerca do financiamento
às CT, possível tanto pela SENAD/Justiça como A formulação de políticas públicas relaciona-
pelo MS. das à temática das drogas no período estudado
Em relação às políticas específicas acerca no Brasil não identificou uma tendência linear
do crack, estas foram mais evidentes a partir de progressista rumo ao modelo da RD/psicosso-
2010, coincidindo com a profusão na mídia sobre cial, embora tenha predominado nas normativas.
a suposta epidemia do crack. Na perspectiva de Há alternância na ênfase da segurança pública e
intervenções integradas entre setores, foi lançado justiça, que reafirmam o paradigma da “guerra
em 2010, o Plano Integrado de Enfrentamento ao às drogas” e na abordagem as drogas como pro-
Crack e outras Drogas29 que deu origem ao “Pro- blema de saúde publica32. No entanto, em todos
grama Crack é Possível Vencer” em 2011, este com esses setores o modelo de RD vem ganhando
investimento financeiro substancial e com ações protagonismo principalmente, a partir de 2005,
que envolveram diretamente as políticas de saúde, com realinhamento da Política Nacional sobre
assistência social e segurança pública e educação, Drogas33.
trazendo como diretriz, a integração das ações O uso de práticas de RD como estratégia
dos eixos cuidado, autoridade e educação. importante para a saúde e o modelo de atenção
A perspectiva intersetorial dos documentos psicossocial, de forma diferenciada ao modelo
foi melhor explorada no presente estudo com as de doença, tem beneficiado pessoas que usam
tipologias sistematizadas no Quadro 2. Eviden- drogas, suas famílias e a comunidade por serem
ciou-se que a maioria dos documentos abordou a intervenções que se baseiam num forte compro-
intersetorialidade de forma ainda incipiente (08); misso com a saúde pública e os direitos huma-
06 de forma robusta e apenas 03 inexistente, já nos34, cujo foco principal de suas ações é a oferta
sendo, portanto, uma dimensão relevante de aná- de cuidado integral reduzindo prejuízos agrega-
lise de políticas públicas. dos em função do uso de drogas e prevenindo
Esta categoria é relevante não apenas pela aqueles ainda não instalados, sem necessaria-
possibilidade de ampliar as alianças intersetoriais mente interferir no uso das drogas. A RD torna-
no desenvolvimento de projetos, mas também se, assim, uma estratégia norteadora do cuidado,
em compreender as competências necessárias um paradigma ético, clínico e político mostran-
para implementar as ações, lidar com disputas do-se mais resolutiva para os usuários de crack
políticas e pessoais por espaços de poder, novas e outras drogas. Esta terapêutica é considerada
1463

Ciência & Saúde Coletiva, 22(5):1455-1466, 2017


de “baixa exigência” por não exigir a abstinência as ações de especialistas governamentais, de ins-
como um requisito obrigatório. Ela não é negada, tituições de ensino e pesquisa e de grupos de de-
apenas não entra como a única alternativa de tra- fesa de setores sociais vulneráveis, como na for-
tamento para uso prejudicial de drogas9. ma de coalizões de defesa. Além disso, em con-
Tensões evidenciadas na presente análise têm traposição, grupos de veto desempenham papel
como foco o modelo de doença abordado pelas importante para os desfechos e as trajetórias das
CT para dependentes de drogas. Esse modelo políticas. Estudos de caráter multidisciplinar têm
tenta romper com a concepção de falha de caráter sido utilizados para investigar mecanismos pelos
atribuída até então aos dependentes de álcool, a quais informações são transmitidas a governos e
partir da concepção de doença, pois na sociedade que afetam seus processos decisórios40 e as polí-
do século XVIII comportamentos classificados ticas orientadas a drogas são bastante sensíveis a
como vício eram considerados sinais de fraque- fluxos de informação por especialistas e grupos
za e de falha moral9. O Relatório da 4ª Inspeção de interesses neste formato.
Nacional de Direitos Humanos do Conselho Fed- Em instituições governamentais onde setores
eral de Psicologia (CFP)35 apresentou posiciona- políticos e especialistas compartilham as arenas
mento contrário às práticas implementadas por decisórias com lideranças e grupos de interesses
estas entidades diante da identificação de várias ativos, Kingdom41 identifica fluxos decisórios em
violações de direitos humanos35. A partir dos que atuam agentes empreendedores, os quais pe-
documentos da “Saúde Mental em Dados 12” do rante determinadas janelas de oportunidades e
MS36 e do Censo de Comunidades terapêuticas37 condições favoráveis de opinião pública podem
observou-se que os dispositivos de base comu- estabelecer uma articulação conjuntural virtuosa
nitária como os Centros de Atenção Psicossocial capaz de produzir a inovação e a mudança polí-
para AD (CAPS-AD) tiveram menor investimen- tica. Estudo recente promoveu uma importante
to do que as CT. Em 2011 existiam 277 CAPS-AD atualização destas tradições teóricas para o caso
em comparação a 1179 CT. brasileiro em termos de conceitos e métodos42 e
No campo jurídico, mesmo a partir da lei que podem orientar uma vigorosa agenda de pes-
11.34316 que supostamente fez distinção entre quisas sobre políticas de drogas no Brasil.
usuários de drogas e traficantes, não há descrim- Em termos conjunturais, alguns eventos no
inalização, nem despenalização de qualquer dro- plano jurídico podem afetar a trajetória da po-
ga; porte para uso continua sendo crime, porém lítica aqui analisada. Atualmente, se encontra no
não prevê mais a pena de privação de liberdade Supremo Tribunal Federal o debate da descrimi-
(prisão), mas sim o cumprimento de penas alter- nalização das drogas, com o Recurso Extraordi-
nativas: advertência sobre os efeitos das drogas; nário nº 635659/2015 que ainda não foi aprova-
prestação de serviços à comunidade; medida ed- do em agosto de 2016. No entanto, encontra-se
ucativa de comparecimento à programa ou curso em cheque a Política do Ministério da Saúde para
educativo38. Apesar dessa Lei, houve um aumen- atenção integral aos usuários de álcool e outras
to da taxa de encarceramento do País por porte drogas, norteada pela RD, devido as mudan-
de drogas. Dados do InfoPen (2013) informam ças dos dirigentes dos Ministérios da Justiça, da
574.027 pessoas presas, sendo 146.276 devido ao Saúde e do Desenvolvimento Social. Há sinais de
tráfico de entorpecentes referente ao Art. 33 da uma perspectiva conservadora na área de políti-
Lei nº 11.34316 com crescimento de aproximada- cas de drogas, a partir de 2016, retomando o pa-
mente 317,9%, passando de 74 para 300,96%39. radigma da guerra às drogas centrado na repres-
Neste artigo discutimos o processo normati- são da oferta e com uma política de cuidado e
vo das políticas sobre drogas no Brasil no âmbi- tratamento às pessoas com UPD baseado no mo-
to do SUS. O caráter incremental da política na delo de doença presente nas CT, em detrimento
direção da atenção psicossocial de base comuni- ao modelo psicossocial da RAPS43. Cabe lembrar
tária, proteção dos direitos individuais dos usuá- que o Estado brasileiro é laico e democrático e,
rios e abordagem multidisciplinar e intersetorial por isso, não deverá, a pretexto de tratamento,
é bem destacado. Não foi aqui realizada a análise impor crença religiosa a nenhum de seus cida-
do processo decisório e sim o delineamento das dãos. Compete ao Estado respeitar e promover a
tendências em curso no debate e o conflito de cidadania dos usuários, recusando todas as pro-
ideias. postas que violem seus direitos, como a interna-
Entretanto, cabe ressaltar que diversas tra- ção compulsória e a restrição da liberdade como
dições teóricas orientam a análise de processos método de tratamento. As CT, apesar de fazerem
decisórios em políticas públicas. São relevantes parte da RAPS não compartilham dos mesmos
1464
Teixeira MB et al.

critérios éticos e técnicos, pois não trabalham tório das drogas sugerindo um reconhecimento
com a noção de território, com o conceito de saú- em nível global das falhas da abordagem crimi-
de ampliada, nem com critérios de acolhimento nalizatória e reforçando uma vertente política em
pautados na lógica da RD. direção a uma guinada histórica de paradigma44.
Esta abertura tem ocorrido em vários países com
penas mais brandas aos usuários de drogas vi-
Considerações finais sando economia de custos44. A descriminalização
tem consonância com o modelo de atenção psi-
O Relatório global sobre Descriminalização de cossocial porque auxilia o encaminhamento dos
Drogas44, de 2016, aponta os danos provocados usuários de drogas para tratamento, diminuindo
pela criminalização: aumento da população pri- muito a sua estigmatização e os protege do im-
sional, aumento de doenças infectocontagiosas pacto devastador da condenação criminal.
e contribuição para o aumento do número de Conclui-se que as políticas sobre drogas não
mortes relacionadas às drogas que, em 2013, deveriam ter como foco somente o seu uso ou na
chegou perto de 200 mil no mundo. Devido a es- tentativa de eliminar a sua produção como dire-
ses danos, o paradigma do proibicionismo tem ciona a política proibicionista, mas sim, em in-
sido bem debatido em nível global. A RD, como vestir na educação com informação nítida sobre
medida de saúde pública tem sido considerada seus efeitos para que os sujeitos possam usar dro-
como a abordagem mais adequada ao problema gas sem causar maiores danos à sua vida, e para
das drogas com respeito aos direitos humanos. aqueles que fazem uso prejudicial, seja garantido
Nos últimos 15 anos, uma nova onda de países acesso ao cuidado no modelo da atenção psicos-
rumou em direção ao modelo descrimininaliza- social, a partir da premissa da RD.

Colaboradores

MB Teixeira, E Engstrom e ML Ramôa participa-


ram da elaboração de todas as etapas do artigo e
da redação final e JM Ribeiro participou da con-
cepção e redação final.
1465

Ciência & Saúde Coletiva, 22(5):1455-1466, 2017


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http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/03/2a_ Aprovado em 12/09/2016
Edixo_relatorio_inspecao_VERSxO_FINAL.pdf Versão final apresentada em 01/12/2016
Artigo Original

O cuidado ao usuário de crack: estratégias


e práticas de trabalho no território
Caring for crack users: strategies and work practices in the territory
Revista Gaúcha Cuidado al usuario de crack: estrategias y prácticas de trabajo en el territorio
de Enfermagem

Aline Basso da Silvaa


Leandro Barbosa Pinhoa
Agnes Olschowskya
Débora Schlotefeldt Siniaka
Cristiane Kenes Nunesa

RESUMO
Como citar este artigo:
Silva AB, Pinho LB, Olschowsky A, Siniak
Objetivo: Conhecer estratégias de cuidado ao usuário de crack no território a partir da realidade de um Centro de Atenção Psicossocial
DS, Nunes CK. O cuidado ao usuário para álcool e outras drogas (CAPS AD).
de crack: estratégias e práticas de Método: Estudo qualitativo e descritivo. Os dados foram coletados por meio de entrevista, realizada com oito profissionais de um
trabalho no território. Rev Gaúcha Enferm. CAPS AD da região metropolitana de Porto Alegre, entre os meses de fevereiro e março de 2013. Para análise dos dados utilizou-se a
2016;37(esp):e68447. doi: http://dx.doi. análise temática.
org/10.1590/1983-1447.2016.esp.68447. Resultados: Foram apontadas, a partir dos dados analisados, estratégias de cuidado no território como: as equipes itinerantes, as
visitas domiciliares, a clínica ampliada e a importância do território de trabalho ser o mesmo da residência do profissional.
doi: http://dx.doi.org/10.1590/1983- Conclusão: O cuidado no território mostra-se como uma inovação para o campo da Saúde Mental, visto que permite uma atenção
1447.2016.esp.68447 em saúde voltada para o contexto social, cultural e histórico dos usuários.
Palavras-chave: Saúde mental. Reforma dos serviços de saúde. Enfermagem. Políticas públicas. Usuários de drogas.
ABSTRACT
Objective: To know the care strategies for crack users in Brazil from the perspective of the Centre of Psychosocial Care for Alcohol and
Other Drugs (CAPS AD).
Method: This is a qualitative descriptive study. Data were collected by means of interviews conducted with eight professionals of a
CAPS AD in the metropolitan region of Porto Alegre, between February and March 2013. Data were subjected to thematic analysis.
Results: The analysed data revealed the use of care strategies, such as itinerant teams, home visits, and the extended clinic, and that
the work territory should essentially be the home of the professional.
Conclusion: Care in the territory is considered an innovation in the field of mental healthcare because it enables care that focuses on
social, cultural, and historical context of users.
Keywords: Mental health. Healthcare reform. Nursing. Public policies. Drug users.
RESUMEN
Objetivo: Conocer las estrategias de atención al usuario grieta en el territorio de la realidad de un centro de atención psicosocial
contra el alcohol y otras drogas (CAPS AD).
Método: Se trata de un estudio cualitativo y descriptivo. Los datos fueron obtenidos con entrevistas a ocho profesionales de un CAPS
AD de la región metropolitana de Porto Alegre, entre los meses de febrero y marzo de 2013. Para el análisis de los datos se utilizó el
análisis temático.
Resultados: Sugieren las siguientes estrategias de atención: equipos itinerantes, visitas domiciliarias, la clínica ampliada y la impor-
tancia del territorio de trabajo ser el mismo que el de la residencia del profesional.
a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Conclusión: El cuidado en el territorio se presenta como una innovación en el campo de la Salud Mental, ya que permite una atención
Escola de Enfermagem. Programa de Pós-Graduação em a la salud centrada en el contexto social y cultural de los usuarios.
Enfermagem. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Palabras clave: Salud mental. Reforma de la atención en salud. Enfermería. Políticas públicas. Consumidores de drogas.

Versão on-line Português/Inglês: www.scielo.br/rgenf Rev Gaúcha Enferm. 2016;37(esp):e68447 1


www.seer.ufrgs.br/revistagauchadeenfermagem
Silva AB, Pinho LB, Olschowsky A, Siniak DS, Nunes CK

INTRODUÇÃO mental; além dessas, as demais redes comunitárias, de tra-


balho, apoio e vizinhança. Apontado como um elemento
O uso abusivo de drogas, principalmente as substân- estratégico no novo cenário da saúde mental, visto que
cias ilícitas, destacando-se o crack, vem sendo foco de possibilita a inclusão e o resgate da cidadania das pessoas
grande preocupação mundial e constitui atualmente um com sofrimento psíquico também compreende um con-
grave problema de saúde pública(1-2). A dependência quí- junto de forças sociais, com possibilidade de acionamento
mica pode gerar alguns prejuízos para a saúde física, men- ou reformulação(6). Portanto, entende-se que é em meio a
tal e implicações na vida familiar e social(3). essa nova configuração que os serviços de saúde mental
A despeito da complexidade e da magnitude do con- devem atuar e pautar suas ações aos usuários de drogas.
sumo abusivo de substâncias psicoativas, a atenção à saú- Dentro dessa premissa, destaca-se a importância dos
de de usuários e de suas famílias ainda se defronta com Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como serviços es-
significativas lacunas assistenciais. A formulação de políti- tratégicos do processo de reforma. Cabe a eles estabelecer
cas públicas, que historicamente enfatizaram as ações de as pontes necessárias entre o serviço e o território, compre-
repressão da oferta e da demanda e o modelo voltado so- endendo os problemas sociais e, articulado a outros servi-
mente à doença, demonstraram a necessidade de discus- ços e pessoas, intervir sobre as necessidades de saúde delas.
são nas políticas públicas de saúde(4). O CAPS deve, de acordo com os preceitos reformistas, apro-
Essas Políticas públicas precisam ser embasadas nos ximar-se do território como sendo palco dos movimentos
pressupostos da reforma psiquiátrica, em que a atenção da vida. Alguns estudos(7-8) procuram demonstrar a impor-
aos usuários de crack e outras drogas não pode ser so- tância dessa relação, mas também apontam que o próprio
mente hospitalocêntrica, pensando serviços de saúde com CAPS, quando tem dificuldades de transitar pelo território,
base territorial. Tais serviços oferecem uma forma inovado- corre o risco de ficar encapsulado(9), desarticulado da rede.
ra de cuidado, em que a reabilitação social e o cuidado no Pensamos o trabalho no território, incorporando o ter-
âmbito do território estão dentre os eixos que norteiam ritório enquanto um local rico de histórias de vida e exis-
as práticas dos profissionais da atenção psicossocial, que tências pode trazer muitos benefícios para a relação profis-
transcendam aspectos meramente biológicos e buscam ir sional e usuário, buscando a autonomia do usuário em seu
ao encontro também dos contextos de vida das pessoas. processo de cuidado e percepção da droga para além da
Esse território de que falamos não é apenas físico, um doença, como também, em sua complexidade a partir do
mapeamento do espaço para oferta de ações dos serviços contexto de vida dos sujeitos.
de saúde. Trata-se de um conceito mais amplo, um territó- Com base no exposto, a questão que embasa esta pro-
rio-rede, uma teia complexa formada por relações sociais posta de pesquisa é: Quais são as estratégias de cuidado
e de poder. Um território que também é Político, social e ao usuário de crack que o CAPS realiza para/no território?
cultural, o lugar onde as pessoas constroem suas histórias E, como objetivo do estudo, conhecer as estratégias de cui-
de vida. Assim, esse espaço é formador de diversas redes dado ao usuário de crack no território, a partir da realidade
descontínuas, com superposição de vários territórios e ter- de um Centro de Atenção Psicossocial para álcool e outras
ritorialidades que se complementam ou se contradizem(5). drogas (CAPS AD).
Na prática, esses territórios são as redes formadas pelas
relações da população com os serviços de saúde, com seus MÉTODO
contextos de vida, com seus locais de vivência, de uso de
drogas, de relações sociais, que são móveis, autônomos e Trata-se de um estudo qualitativo e descritivo prove-
se transformam a partir dessas interpelações. niente de um recorte da dissertação “O cuidado ao usuário
Diante disso, reflete-se que é a partir do território que de crack: análise da concepção de território de trabalhado-
se dão as primeiras respostas à demanda dos problemas res de um CAPS AD”(10).
relacionados à saúde mental. Considerado não apenas um O campo de estudo foi o CAPS AD de uma cidade da
lugar para práticas de saúde, mas onde se encontram to- região metropolitana de Porto Alegre/RS, um serviço que
dos os recursos, a base do trabalho, o local de residência, atende em média 200 usuários, trabalhando na perspecti-
espaço de trocas materiais e subjetivas, sobre as quais ele va de porta aberta, em que todos os usuários e familiares
influi, é onde as relações são estabelecidas. são acolhidos e orientados pelas premissas da Reforma Psi-
Em adição a todos os aspectos já apresentados, pode- quiátrica e da Política Nacional de Saúde Mental. Os partici-
-se ainda identificá-lo por um emaranhado de várias re- pantes da pesquisa foram oito profissionais, os critérios de
des, como a rede de serviços de saúde e a rede de saúde inclusão para participar do estudo foram: trabalhar há pelo

2 Rev Gaúcha Enferm. 2016;37(esp):e68447


O cuidado ao usuário de crack: estratégias e práticas de trabalho no território

menos seis meses no CAPS AD, e como critério de exclusão Foram respeitadas as questões éticas da Resolução
estar de licença médica e/ou desfrutando de férias. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde(12) que trata do
Desta forma, a equipe participante foi composta por Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para manter
dois psicólogos, um médico psiquiatra, um terapeuta ocu- o anonimato, os integrantes da equipe foram identificados
pacional, um oficineiro, um enfermeiro, um técnico de en- com a inicial “E”, seguido da ordem em que apareceram na
fermagem e um auxiliar administrativo. Um profissional foi entrevista. Exemplo: E6, E3.
excluído por estar em licença-saúde e outro por gozar suas
férias no período da coleta de dados. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A coleta de dados ocorreu por meio de uma entrevis-
ta aberta com a seguinte pergunta norteadora: “Fale-me o A categoria “Estratégias de cuidado no território”, em
que você entende por território no cuidado ao usuário de que quatro profissionais, dentre os oito, trazem reflexões
crack”. As entrevistas tiveram duração de 20 a 30 minutos. práticas para abordagem do conceito de território, para
O período de coleta de dados foi entre os meses de feve- além do físico, como também que compreenda os modos
reiro a março de 2013. de vida da população.
A análise dos dados ocorreu por meio da Análise de Estratégias de cuidado no território - reflexões práti-
conteúdo, modalidade temática que consiste em desco- cas para abordagem do conceito de território que compreen-
brir os núcleos de sentido que compõem uma comunica- da os modos de vida da população.
ção, cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa O cuidado no território propõe uma nova maneira de
para o objeto analítico a ser estudado(11). Possui três fases, fazer clínica, diferente da clínica tradicional (baseada no
que são: a pré-análise, a exploração do material e o trata- controle e na tutela). Essa nova clínica considera o usuário
mento dos dados empíricos. como ator ativo no processo do cuidado, incorporando sua
Na primeira fase, iniciou-se a constituição do corpus, a experiência de vida e seu local de moradia na constituição
partir da transcrição das informações obtidas das entre- de novas ações de saúde mental. Observam-se algumas
vistas. Nela foi realizada uma leitura flutuante do material considerações da Equipe de Saúde Mental sobre o tema:
identificando aspectos que respondessem os objetivos
da pesquisa. Então, a ideia de formar uma equipe itinerante é pen-
A segunda fase é a exploração do material, que consiste sando nisso, que é esses usuários que não vêm ao CAPS,
na operação de codificação, a partir daquilo que se con- que não têm o CAPS como parte, às vezes tem [...] Enfim,
sidera como sendo a “criação de núcleos para a compre- já vieram aqui uma vez e não voltaram mais, não acredi-
ensão do texto”. Assim, desenvolveram-se as “unidades de tam que o CAPS possa ser um serviço que ajude, que não
informação”, que indicavam informações e ideias específi- tem uma organização subjetiva pro CAPS ser um território
cas em cada entrevista. Foi criado um quadro teórico com ocupado, e por aí que a gente vem pensando: não, mas
as “unidades de informação” que, agrupadas, formaram temos que ir ao encontro a essas pessoas, a gente tem que
“unidades de significado”, as quais geraram, por fim, duas ir pra rua... E daí, tá, pensamos mais estruturalmente e no-
categorias de análise. meamos assim, tentamos nomear de Equipe Itinerante, e
A terceira e última fase consistiu no tratamento dos re- o plano é que diariamente a gente tenha uma equipe, que
sultados obtidos e interpretação, na qual os resultados bru- não é a equipe toda do CAPS, porque a gente precisa ter
tos foram analisados e debatidos à luz da literatura da área. pessoas aqui dentro também, mas uma parte da equipe
Neste artigo, serão discutidos aspectos da segunda cate- que vá fazer essa inserção no território e aí o território pode
goria de análise que engloba as estratégias de cuidado ao ser a casa, pode ser a rua, pode ser o sujeito singularmente,
usuário de crack no território, a partir da realidade de um pode ser um grupo, pode ser uma zona vulnerável [...] (E7).
Centro de Atenção Psicossocial para álcool e outras drogas.
O projeto foi submetido à avaliação pelo Comitê de Temos muitos vetores de fuga no território geográfico, de
Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande ir atrás dos usuários, fazendo uma VD. Na medida em que
do Sul (UFRGS), recebendo parecer favorável à execução temos uma família dentro de uma casa de um bairro, isso
(protocolo 20157/2011). Foi também, por solicitação do modifica alguma coisa nessas relações com o usuário,
CEP/UFRGS, avaliado pelo CONEP/MS, recebendo parecer com o território [...] (E1).
favorável à sua execução (parecer 337/2012), enquanto um
subprojeto da pesquisa “Avaliação qualitativa da rede de Os profissionais do CAPS AD apontaram duas estraté-
serviços em saúde mental para usuários de crack”. gias de cuidado que reforçam o espaço social como lócus

Rev Gaúcha Enferm. 2016;37(esp):e68447 3


Silva AB, Pinho LB, Olschowsky A, Siniak DS, Nunes CK

de atuação do serviço. Um dos profissionais propõe a É importante destacar que a visita domiciliar se tra-
criação de equipes itinerantes como possibilidade para ta de uma atividade pontual no processo de trabalho: o
o cuidado no território. Essa estratégia é adequada para profissional vai até a casa do usuário e retorna ao serviço
usuários que não reconhecem no CAPS um dispositivo de de saúde, conhecendo o ambiente familiar daquele dele,
cuidado, que possuam vínculos frágeis com o serviço e te- mas inserindo-se pouco naquele contexto. Já a construção
nham dificuldades de acessá-lo. O profissional ressaltou a de equipes itinerantes propõe uma mudança de modelo
importância da equipe, estar onde as pessoas estão, na rua, de cuidado: o profissional tem no território um espaço de
na cidade, na casa, propondo novos projetos de vida para atuação, provocando encontros entre usuários e trabalha-
a população e inserindo os profissionais nessa realidade. dores por meio da inserção do profissional no ambiente de
O termo “itinerância” é a utilização de tecnologias de vida do usuário.
cuidado que objetivam o deslocamento do profissional Assim, a itinerância demonstrou que a ocupação do
até o território dos usuários. A itinerância busca maior co- território dos sujeitos pelo profissional é uma estratégia
bertura de ações de cuidado ao alcançar grupos popula- potente na atenção ao usuário de crack. Isso porque há
cionais com maior dificuldade de acesso e de criação de um deslocamento do olhar do trabalhador para o con-
vínculo, como moradores de rua, indígenas, nômades e texto da população. A estratégia de cuidado no territó-
usuários de droga, que não se adaptam ao modelo tradi- rio exposta pelo E7 corrobora esse tipo de processo de
cional de tratamento dos serviços(13). trabalho, que não se vincula ao contexto interno do ser-
A equipe itinerante não deixa de ser um movimen- viço de saúde, mas aos espaços sociais da comunidade
to político que age em contato com os elementos do – o bairro, a cidade, o território –, incorporando-os como
território, afetando-o de algum modo e sendo afetado locais de cuidado.
por ele. A construção da itinerância pode ocorrer por Os profissionais do CAPS AD apontaram mudanças
meio de três elementos: o movimento de encontro com importantes e necessárias em seu processo de trabalho,
o usuário no território, os movimentos ocasionados pelo reconhecendo uma clínica ainda voltada para o interior
processo de acompanhamento do trabalhador com o do serviço, com ações pontuais para a saída no território,
usuário (construindo seu pertencimento no território) e, como as visitas domiciliares. No entanto, essas ações ain-
por fim, a invenção de novos caminhos no pensamento da não abrangem a complexidade do território de vida da
e no real social(13). população, bem como, esses espaços de uso de drogas
Segundo o depoimento de E7, o CAPS é um serviço e existências que remontam a relação do usuário com a
interno, devendo possuir uma equipe que trabalhe “den- droga, com suas redes sociais e com desejo de cuidado.
tro” de seu espaço. No entanto, a construção de equipes A pesquisa apontou a necessidade de transformações nas
itinerantes traria a possibilidade de inserção do profissional práticas de saúde mental, que devem incluir esse território
no território do usuário, conhecendo seu cotidiano, o que de vida e existência como local de cuidado.
ensejaria novas alternativas de cuidado e permitiria aces- Pensando o território como local de cuidado, espaço
sibilidade a usuários que não enxergam o CAPS como um potente para a prática em atenção psicossocial, são trazi-
local de cuidado. das as seguintes colocações:
Em contrapartida, E1 abordou a realização de visitas do-
miciliares como uma estratégia importante de inserção no [...] falando um pouco na dependência química, em
território. Ele relatou que o fato de o serviço estar em um usuário de crack, a gente não pode deixar de pensar em
espaço, em um bairro, em uma cidade, e de haver famílias projetos de vida, potência de vida de estar explorando es-
e populações envolvidas, já aponta a necessidade de criar sas questões no território daquele sujeito. E acho que, no
relações entre equipe e território, sendo a visita domiciliar serviço de saúde, a gente, aqui no CAPS AD, a gente tem
uma estratégia de cuidado. a preocupação de ver aquele individuo além da doença.
A visita domiciliar é um potente instrumento de cui- Se pensando a nível de usuário de crack no território, a
dado no território, pois é por ela que o profissional pode gente tem que pensar na família daquele sujeito, nos ami-
se inserir no contexto familiar e prestar assistência a todos gos daquele sujeito, no que aquela pessoa faz durante o
os envolvidos, não considerando somente os problemas dia, faz durante a noite, o que ela faz além do trabalho,
do usuário, mas também os fatores sociais, se constituin- o que ela faz além do CAPS [...] E acho que, quanto mais
do, também, como um momento no qual se estabelece possibilidades de oferta tiver nesse território, melhor para
vínculo por meio do acolhimento e da escuta qualificada, aquele sujeito estar investindo em outras possibilidades de
movimentando as relações(14). vida, além daquele uso de substância química (E2).

4 Rev Gaúcha Enferm. 2016;37(esp):e68447


O cuidado ao usuário de crack: estratégias e práticas de trabalho no território

O trabalhador se coloca preocupado com a construção Estes territórios na saúde englobam características fí-
de uma clínica do sujeito, que pense para além da doença sicas de uma dada área e também as marcas produzidas
e crie projetos de vida a partir do contato com a realidade pelo homem, suas relações sociais, a forma como se orga-
dos usuários de crack, da relação com sua família, de seu nizam e transitam por esse território. Há uma inseparabili-
cotidiano, de seus afetos e desafetos. A fala exprime a ne- dade estrutural, funcional e processual entre a sociedade e
cessidade dos profissionais descobrirem sobre o sujeito, seu o espaço geográfico. É um território usado, pois é um re-
território e suas relações, visto que isso permite a constru- corte ou fração do espaço qualificado pelo sujeito, espaço
ção de um cuidado potente e criativo. Investir nas possibili- vivido pelo homem(17).
dades de cuidado no território é investir na vida e construir Outro depoimento abordou estratégias de cuidado no
uma nova relação do usuário com a substância química. território, trazendo-o para além de um espaço de cuidado,
Pensando o cuidado no território na saúde mental, mas também como local de residência do profissional:
percebe-se uma nova forma de organizar os processos de
trabalho e produzir ações de cuidado. Busca-se o trabalho [...] têm várias formas de ver o território, o meu território
em equipe interdisciplinar a partir das necessidades indi- com os usuários não só a serviço que eu trabalho, é tam-
viduais dos usuários, abarcando suas diversas dimensões: bém o local que eu resido. O que acho importante é, não
biológica, cultural, existencial, socioeconômica, política acontece em todos os serviços de saúde, mas que eu acho
e religiosa. Tendo o usuário como norte, seu território e a que seria importante, seria relevante, tu morar no territó-
complexidade de formar projetos terapêuticos que reco- rio que tu trabalha, daí tu tem uma percepção maior [...]
nheçam a amplitude de questões que envolvem o sujeito, Eu acho assim: no momento que tu reside no local do tra-
a equipe precisa trabalhar em conjunto, rompendo a frag- balho, eu acho que tu tem uma visão maior do território
mentação de saberes e hierarquização de relações(15). [...] Pra mim se torna mais fácil tendo o cotidiano dentro
A Clínica Ampliada e Compartilhada refere-se à amplia- do trabalho e ele se torna uma extensão do serviço. Um
ção do cuidado em saúde para o todo, valorizando o ser exemplo que eu tenho disso é que vários usuários moram
humano integralmente, com respeito a sua individualida- no lugar onde eu moro, eu venho de ônibus com ele, eu
de. A compreensão da clínica ampliada vai além do cui- cumprimento eles, eles vem aqui, eu também cumprimen-
dado guiado por técnicas e protocolos, esta assume um to, então tem essa coisa que é uma continuidade do meu
cuidado compartilhado e interdisciplinar. Além disso, as território de trabalho, ao mesmo tempo a minha residên-
práticas de saúde desenvolvidas neste contexto tornam o cia, e isso cria um elo bem interessante, bem legal, tanto
ambiente permeado de criatividade, cuidado singular, es- do tratamento do usuário, ou ter pertencimento do terri-
cuta e compartilhamento de conhecimento(16). tório meu com o dele do meu [...] (E6).
Consequentemente, o cuidado no território está as-
sociado às formas de fazer clínica, sendo necessário um O participante do estudo destacou a importância de o
deslocamento de modelo de cuidado que incorpore uma profissional residir no mesmo território do usuário, o que
clínica do sujeito no contexto dos serviços substitutivos. possibilita que o trabalhador compreenda melhor o con-
Com a formação e reformulação da clínica, temos a texto em que o usuário está inserido, facilitando o trabalho
construção de projetos de vida que enxerguem o sujeito e no território. Essa ideia é utilizada na atenção básica do SUS,
seu espaço social em sua totalidade, trazendo a utilização em que, nas Estratégias de Saúde da Família, o profissional
de crack como parte da existência do indivíduo, e não como Agente Comunitário deve residir no mesmo local de traba-
foco de atendimento. A possibilidade de nova relação do lho, aumentando o vínculo com os usuários e facilitando as
usuário com a substância pode ser possível com a criação ações de promoção de saúde para o território.
de novos espaços de cuidado no território, bem como com Pensando o cuidado no território como uma teia com-
a percepção das reais necessidades do sujeito, trabalhando plexa, formada por diversos serviços, profissionais, usuários
a qualidade de vida e o usuário para além do crack. e dispositivos de cuidado, considera-se que o profissional
Trabalhar com o sujeito envolto em seus processos so- não precisa necessariamente ter residência no território do
ciais e não somente com a dependência química é pensar usuário, desde que “ocupe o” na construção de propostas
estratégias de cuidado no território, a mudança seria incluir de cuidado, de modo que haja uma maior articulação em
suas vivências, suas histórias de vida, suas relações sociais e rede e de diferentes territórios.
seus contextos como norteadores deste cuidado, criando Nesse contexto, a atenção básica pode ser uma impor-
espaços de abertura da rede para a comunidade, territórios tante aliada no cuidado ao usuário de crack, uma vez que,
vivos, territórios usados. está inserida no território e compreende o modo de vida

Rev Gaúcha Enferm. 2016;37(esp):e68447 5


Silva AB, Pinho LB, Olschowsky A, Siniak DS, Nunes CK

dessas pessoas, o que propicia a atuar mais efetivamente atenção em saúde voltada para o contexto social, cultural e
sobre as necessidades de saúde que elas apresentam(18). histórico dos usuários. Desta forma, é possível a reinserção
O cuidado em saúde mental tem como característica social e a busca de novos olhares para o tratamento que
inerente do seu processo o desenvolvimento de práticas não se limitam a estratégias dentro dos serviços.
singulares, baseadas na construção do vínculo com a fa- As equipes itinerantes fazem com que o cuidado vá até
mília, usuário e sua comunidade, criando estratégias no o lugar onde as pessoas estão, conhecendo os espaços co-
território(19). A atenção básica, por ser um serviço junto ao munitários, a verdadeira realidade do usuário de crack, e
território, pode estar mais próximo de estratégias que re- possibilitando uma atenção em saúde que contemple os
conheçam os modos de vida das pessoas e os incluam em desejos, as vivências e os espaços sociais em que os usuá-
seus projetos terapêuticos de cuidado. rios habitam. Essa estratégia é imprescindível para usuários
Compreende-se, então, que o fato de os profissionais que não reconhecem no CAPS um dispositivo de cuidado,
do CAPS residirem no mesmo território do usuário pode que possuem vínculos frágeis com o serviço e têm dificul-
reforçar a ideia de que o CAPS é o “centro” da rede de saú- dades de acessá-lo.
de mental, única referência para o cuidado. No entanto, o As formas de “fazer clínica” podem criar uma nova re-
CAPS deve ser um serviço voltado para o território, buscan- lação do indivíduo com a droga. Uma clínica que visualiza
do a comunicação com outros dispositivos(20). o sujeito e sua existência em seu espaço social tira o foco
Na prática, o desafio continua sendo a composição de somente da utilização da droga, buscando resgatar suas
uma rede móvel, flexível e resolutiva, que facilite o trânsi- histórias de vida. Assim, pela percepção das reais necessi-
to do usuário e acolha suas diferentes demandas. No âm- dades do usuário, pelo interesse em conhecê-lo e contex-
bito da gestão, buscam-se alternativas frente à demanda tualizar a utilização da droga, percebe-se uma clínica am-
de linhas de cuidado e sistemas de referência e contrar- pliada do sujeito que pode criar possibilidades para novos
referência para consolidação do desafio da construção de espaços de cuidado que reconheçam o território.
redes. Identificam-se, no momento, muito mais serviços Foi apontado como estratégia de cuidado no território,
isolados, fechados em suas rotinas, do que redes articula- o fato de o território de residência do profissional do CAPS
das para atender a demanda do usuário. Para a composi- AD ser o mesmo do território do usuário. Assim, torna-se
ção de uma rede móvel, flexível e resolutiva, é necessária importante problematizar que essa ideia é trazida na aten-
a comunicação e a busca por uma boa articulação entre ção básica, em que os agentes comunitários devem residir
dispositivos da rede(15,20). no mesmo local de moradia da população para que estrei-
Assim, o cuidado no território precisa reconhecer a mul- tem seus vínculos e ampliem seu ponto de vista acerca da-
tiplicidade de suas dimensões, incorporando estratégias, quele contexto social. O território, na perspectiva de uma
tanto no campo macropolítico como na micropolítica do teia complexa de relações, que se articula, complementan-
serviço. É necessária a construção de redes de cuidado dis- do-se e contradizendo-se, demonstra a necessidade de o
postas no território, que ampliem relações entre os traba- CAPS se comunicar com outros dispositivos da rede, como
lhadores e usuários, melhorando o acesso e a comunicação a atenção básica. Portanto, essa estratégia de cuidado no
do serviço com a realidade. Os profissionais, usuários e fami- território pode fortalecer a ideia de o CAPS AD ser o “centro”
liares são atores deste processo de construção do cuidado da rede e, muitas vezes, a única referência para o cuidado
no território, e o desafio é a consolidação de uma clínica do em saúde mental.
sujeito, que não se apoie somente na doença e na depen- Os achados também demonstraram que a visita domi-
dência química para elaboração de planos de cuidado. ciliar é um potente instrumento de cuidado no território,
Precisamos de estratégias que incorporem o espaço so- constatou-se que, por meio dela, é possível conhecer o
cial como local de saber e de prática, que mudem os para- ambiente familiar e o contexto social na qual o usuário e
digmas do cuidado, pois só assim será possível consolidar seus familiares estão inseridos, e prestar assim a assistên-
a proposta da Reforma no que se refere à cidadania, à re- cia a todos os envolvidos. Contudo, essas ações podem ser
abilitação social, ao acolhimento e à inclusão dos usuários pontuais, ressaltando que a proposta de equipes itineran-
em seu espaço de vida. tes, oferece um modelo de cuidado que amplia o espaço
de atuação, para além do ambiente de moradia do usuário,
CONSIDERAÇÕES FINAIS mas ocupando o seu território vivido.
Refletimos que no momento em que o território é in-
Cuidar no território mostrou-se como uma inovação corporado enquanto um espaço de cuidado pode levar a
para o campo da Saúde Mental, visto que, permite uma transformações nas práticas de saúde mental, isso quan-

6 Rev Gaúcha Enferm. 2016;37(esp):e68447


O cuidado ao usuário de crack: estratégias e práticas de trabalho no território

do o observamos para além de um espaço físico, mas que 7. Pinho LB, Hernandez AMB, Kantorski LP. Serviços substitutivos de saúde men-
compõem as culturas, as histórias, os afetos, um local so- tal e inclusão no território: contribuições e potencialidades. Cienc Cuid Saude.
cial o qual permite a construção de novos olhares sobre 2010;9(1):28-35.
a saúde e o uso de drogas. Assim, o foco é o sujeito e sua 8. Santos MRP, Nunes MO. Território e saúde mental: um estudo sobre a experiência
relação com a droga e sociedade e não somente a depen- de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial, Salvador, Bahia, Brasil. Inter-
face - Comunic Saude Educ. 2011;15(38):715-26.
dência física e química que geram uma “doença”. Essas
9. Leão A, Barros S. Território e serviço comunitário de saúde mental: as concepções
transformações práticas incluem construção de equipes
presentes nos discursos dos atores do processo da reforma psiquiátrica brasileira.
nos territórios, articulações em redes de diferentes dispo- Saúde Soc. 2012;21(3):572-86.
sitivos e modos diferentes de fazer clínica nos serviços: a 10. Silva AB. O cuidado ao usuário de crack: análise da concepção de território de
clínica dos sujeitos. trabalhadores de um CAPS AD [dissertação]. Porto Alegre (RS): Escola de Enfer-
Importa destacar como limitação desse estudo, a re- magem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2014.
alização desta pesquisa a partir de um serviço de saúde 11. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. 12ª ed. São Paulo: Hucitec; 2013.
mental, o CAPS AD, assim os resultados não podem ser 12. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de
generalizáveis para outros serviços. Sugere-se que novos 12 de dezembro de 2012. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas
estudos nesta perspectiva sejam desenvolvidos, buscan- envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União [da] República Federativa do
do novas pesquisas e práticas que contemplem a percep- Brasil. 2013 jun 13;150(112 Seção 1):59-62.
ção dos usuários sobre o cuidado no território, suas com- 13. Lemke RA, Silva RAN. Um estudo sobre a itinerância como estratégia de cuidado
no contexto das políticas públicas de saúde no Brasil. Physis. 2011;(3):979-
preensões sobre o tema, experiências e expectativas de
1004.
um tratamento que possibilite outros espaços além dos
14. Antunes B, Coimbra VCC, Souza SA, Argiles CTL, Santos EO, Nadal MC. Visita
serviços de saúde. domiciliar no cuidado a usuários em um centro de atenção psicossocial: relato
de experiência. Ciênc Cuid Saúde. 2012 jul/set;11(3):600-4.
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droga tão poderosa. Rev Saúde Desenvolvim. 2014;6(3):167-84. 16. Sousa YG, Medeiros SM, Enders BC, Chaves AEP, Araújo MS. Multidisciplinary
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4. Alves VS. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: mento a usuários de drogas na perspectiva dos profissionais da estratégia saúde
discursos políticos, saberes e práticas. Cad Saúde Pública. 2009;25(11):2309-19 da família. Texto Contexto Enferm. 2013 jul/set;22(3):654-61.
5. Souza ML. O território: sobre espaço e poder: autonomia e desenvolvimento. In: 19. Andrade AB, Bosi MLM. Qualidade do cuidado em dois centros de atenção
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dado en salud mental. Aquichan. 2015;15(4):529-40. abr;1(1):1-10.

Autor correspondente: Recebido: 30.09.2016


Aline Basso da Silva Aprovado: 01.02.2017
E-mail: alinee_basso@hotmail.com.br

Rev Gaúcha Enferm. 2016;37(esp):e68447 7


Comunidades terapêuticas

BOLONHEIS-RAMOS, Renata Cristina


Marques; BOARINI, Maria Lucia.
Comunidades terapêuticas: “novas”
perspectivas e propostas higienistas.
História, Ciências, Saúde – Manguinhos,
Rio de Janeiro, v.22, n.4, out.-dez. 2015,
p.1231-1248.

Comunidades Resumo

terapêuticas: “novas” Problemas decorrentes do uso/


abuso de álcool e outras drogas
perspectivas e propostas agravam-se continuamente. Existem,
atualmente, medidas polêmicas que
higienistas visam a soluções imediatas, como o
financiamento público das comunidades
terapêuticas. Analisam-se, aqui,

Therapeutic communities: possíveis aproximações do legado


higienista do início do século XX em

“new” outlooks and public questões que envolvem o uso/abuso de


substâncias psicoativas com as propostas

health proposals de intervenção das comunidades


terapêuticas atuais. Realizou-se pesquisa
com fontes primárias, inspirada na
vertente do materialismo histórico.
Entende-se que os problemas decorrentes
do uso/abuso de drogas continuam
deixando o ônus maior aos usuários, às
pessoas ao redor e à saúde pública.
Palavras-chave: comunidades
terapêuticas; políticas públicas; usuários
de drogas; alcoólicos; higiene mental.

Abstract
Problems related to alcohol and other
substance abuse are on a steady rise. Certain
controversial measures currently aim at
Renata Cristina Marques Bolonheis-Ramos immediate solutions, such as the public
Psicóloga, Prefeitura Municipal de Maringá, Paraná. funding of therapeutic communities. The
renatabolonheis@hotmail.com article draws comparisons between the
legacy of early twentieth-century public
health practices in psychoactive substance
Maria Lucia Boarini abuse and current proposals for intervention
Professora, Programa de Pós-graduação em through therapeutic communities. The
Psicologia/Universidade Estadual de Maringá. study researched primary sources from
UEM the perspective of historical materialism.
Avenida Colombo, 5790
87302-220 – Maringá – PR – Brasil Historically produced by society as a whole,
problems stemming from substance abuse
mlboarini@uol.com.br
continue to place the greatest burden on
users, the people around them, and public
health.
Keywords: therapeutic communities; public
policy; drug users; alcoholics; mental health.
Recebido para publicação em agosto de 2013.
Aprovado para publicação em abril de 2014.

http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702015000400005

v.22, n.4, out.-dez. 2015, p.1231-1248 1231


Renata Cristina Marques Bolonheis-Ramos, Maria Lucia Boarini

Os tortuosos e centenários caminhos do mercado da “alegria”


Observamos que nos últimos anos o uso/abuso das drogas lícitas e ilícitas tem sido tema
recorrente nas discussões que envolvem saúde, educação, assistência social, segurança
pública, justiça, entre outras áreas. Certamente, a questão vem-se constituindo ao longo de
décadas uma importante problemática e preocupação de diversos setores não só no Brasil,
mas em diversos países do mundo. O Relatório Mundial sobre Drogas (UNODC, 2012)
informa que aproximadamente 27 milhões de pessoas apresentam problemas decorrentes
do consumo de drogas ilícitas em todo o mundo, resultando em cerca de 200 mil mortes a
cada ano. E, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde, 2,5 milhões de pessoas
morrem por ano em consequência do abuso do álcool (WHO, 2012).
Diante do clamor da sociedade e da mobilização de alguns segmentos em busca de soluções
para o problema, verificamos que a questão acaba sendo muitas vezes tratada, especialmente
pela mídia, de forma superficial, com viés moralista e preconceituoso, e, mais ainda, como se
fosse um fenômeno da atualidade. Com isso, segundo Gomes e Capponi (2012), inviabiliza-
se o debate democrático e se desvincula o problema de seu contexto e desenvolvimento
sócio-histórico.
Exemplo de que a preocupação com o uso/abuso de substâncias psicoativas não é
exclusividade dos dias atuais é a mobilização dos higienistas junto à Liga Brasileira de Higiene
Mental (LBHM) no início do século XX. Essa entidade era composta por profissionais de
diversas áreas, especialmente da psiquiatria, e muitos foram os seus investimentos e campanhas
à causa do combate ao alcoolismo, que afligia a sociedade brasileira naquele período.
Influenciado por acontecimentos de abrangência mundial, como a Primeira Guerra
Mundial e a crise econômica de 1929, o Brasil no início do século XX experimentava
importantes mudanças sociais e econômicas, entre elas a transição do trabalho escravo para
o trabalho livre, a mudança da sociedade rural agrária para a urbano-industrial e o processo
imigratório, que culminou em aumento progressivo dos centros urbanos, resultando em sérios
problemas sociais e sanitários (Basbaum, 1997). Nesse contexto, o alcoolismo passou a ser
visto como um importante problema de saúde, social e econômico. Diante dessa demanda, as
propostas e intervenções dos higienistas possibilitaram, em grande parte, importantes avanços
em termos de sanitarismo e saúde, ainda que entender a historicidade dessas questões não
fosse o forte desse grupo (Moura, Boarini, 2012).
Lembramos que, além do álcool, o consumo de outras drogas, como o ópio, a cocaína e a
morfina, bem como suas consequências, também era abordado pelos higienistas (Bittencourt,
1935; Lopes, 1934). Mas isso não parecia ser preocupação contundente naquela época, visto
que o consumo dessas substâncias, que normalmente se dava em meio à população mais
abastada economicamente, era bem menor se comparado ao álcool e, até o início do século
XX, algumas dessas drogas, como a cocaína e a heroína, não eram consideradas ilícitas e os
seus fins terapêuticos eram divulgados abertamente nos meios de comunicação (ARU, 2001).
Dentre as atividades da LBHM, destacamos as campanhas antialcoólicas, por meio das quais
profissionais divulgavam seus estudos junto à imprensa, realizavam conferências e palestras
nas escolas, faculdades, indústrias, igrejas e outros ambientes públicos, com o objetivo de
educar a população sobre os males provocados pelo álcool, formas de prevenção e tratamento

1232 História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro


Comunidades terapêuticas

dos dependentes. A LBHM também discutia medidas de regulamentação e proibição da


fabricação, comercialização e consumo dessa substância, propondo, por exemplo, o aumento
dos impostos sobre o álcool e a proibição da sua venda aos domingos e feriados (Cunha,
1934; Kehl, 1931; Lopes, 1930a).
Assim, o histórico, a abrangência e a complexidade das questões que envolvem o uso de
substâncias psicoativas, como podemos em parte observar pelo trabalho desenvolvido pelos
higienistas no início do século XX, indicam-nos que precisamos avançar nas discussões e no
enfrentamento dessa situação. Como defendido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP,
2011b, p.12), “a urgência do tema não pode prescindir da amplitude de nossas discussões”.
Isso porque se por um lado temos as consequências desse consumo atropelando o cotidiano
de todos, por outro verificamos a mobilização descompassada de governos e diversas áreas
da sociedade civil em torno da questão, conforme discutem Pitta (2011) e Andrade (2011).
As iniciativas dos governos, ao lançar planos, decretos, portarias relativas à política de
álcool e outras drogas, constituem passos importantes no enfrentamento desse problema.
No entanto, segundo Andrade (2011), essas políticas vêm sendo instituídas num contexto
de pânico social relacionado ao uso do crack. A falta de diálogo que ainda se observa entre
instâncias federais, estaduais e municipais, nos âmbitos da saúde, segurança pública, assistência
social, tem gerado ações caóticas, que têm como alguns dos principais propósitos, segundo
Maierovitch (14 jan. 2012), a limpeza do território e a dispersão dos “indesejados” para a
periferia. Como Delgado (2011) nos alerta, apesar da gravidade da situação, não podemos usar
o terror e o pânico gerados pela questão das drogas para legitimar a internação prolongada,
própria da ultrapassada cultura manicomial.
De qualquer forma, se a sociedade não dispõe de forma eficaz de serviços de atenção
psicossocial distribuídos nos territórios, se essa rede ainda é insuficiente para a demanda
levantada pelas consequências do uso/abuso das drogas lícitas e ilícitas, a internação e o
isolamento acabam encontrando aceitação social (Delgado, 2011), junto com as instituições
que os promovem, como as comunidades terapêuticas (CTs), que nos últimos anos passaram
a receber financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e a fazer parte da rede de atenção
em saúde mental (Brasil, 23 dez. 2011).
O apoio e o financiamento a essas instituições têm alimentado várias polêmicas e discussões
por parte de entidades e categorias interessadas no assunto, das quais participam profissio-
nais, estudiosos e autoridades, principalmente das áreas da saúde, justiça e assistência social.
Tais discussões levantam a questão de que, em algumas situações, as medidas que vêm sendo
tomadas em torno dos usuários de drogas constituem ações de caráter higienista (Maierovitch,
14 jan. 2012; Sadi, Nublat, 11 dez. 2011), reforçando o quão atual é a relação desse ideário
com a questão das drogas.
Diante do exposto, o objetivo do presente estudo é analisar possíveis aproximações do
legado higienista em relação às questões que envolvem o uso/abuso de substâncias psicoativas,
com as propostas de intervenção das CTs atuais. Obviamente, a análise de fenômenos referentes
a períodos históricos distintos deve ser feita com muita cautela, visto que ideias e fatos de uma
época passada não podem ser mecanicamente transpostos para a atualidade e interpretados
exclusivamente sob as lentes do contexto atual (Gephe, 2013).

v.22, n.4, out.-dez. 2015, p.1231-1248 1233


Renata Cristina Marques Bolonheis-Ramos, Maria Lucia Boarini

Assim, é importante ressaltar que a relação que estabelecemos entre as CTs atuais e as
instituições do início do século XX estão circunscritas a algumas de suas características e
fundamentos de seu modelo de atenção. Até porque não encontramos o termo comunidade
terapêutica nos documentos elaborados naquele período e, como sugere De Leon (2003),
essa expressão parece ter sido popularizada somente a partir da década de 1960, nos EUA.
De qualquer forma, partimos do pressuposto de que essa relação existe. Como já defendido
por Queiroz (2001), uma leitura atenta das propostas de tratamento moral e das colônias
agrícolas (século XIX e início do século XX), e das CTs e fazendas de recuperação atuais, pos-
sibilita a observação das semelhanças entre seus fundamentos, ideologias e visões de mundo.
Igualmente, consideramos que a recuperação da história enquanto cenário de construção
do conhecimento é um dos compromissos da pesquisa e, nestes termos, nos possibilita observar
e discutir possíveis avanços, limitações e repetições sobre a forma como o Estado e a sociedade
contemporânea têm enfrentado o problema das drogas, que se agrava continuamente e
traz a urgência de repensarmos esse fenômeno e as possíveis e necessárias estratégias de
enfrentamento. Isso não significa apontar soluções imediatas para um problema que há
décadas vem se configurando; tampouco meramente criticar as propostas existentes, mas
aprender com os seus impasses e limites, já evidenciados pela história.
Para atender ao objetivo proposto, realizamos uma pesquisa bibliográfica e documental
com materiais que abordam a questão do álcool e de outras drogas, desde o início do século
XX até as discussões atuais, com enfoque nas CTs.
Na investigação das propostas dos higienistas, trabalhamos com fontes primárias da
primeira metade do século XX, principalmente os Arquivos Brasileiros de Higiene Mental (de
1925 a 1947) – periódico publicado pela Liga Brasileira de Higiene Mental.
Para fundamentar a discussão sobre a questão das drogas na atualidade, levantamos alguns
documentos oficiais relativos às políticas públicas sobre álcool e outras drogas, além de obras
de autores contemporâneos que pesquisam no campo da saúde mental, como Amarante
(1994, 1995), Bezerra Júnior (2007), Delgado (2011), Pitta (2011) e outros. Para abordar o
tema das CTs, trabalhamos principalmente com De Leon (2003), que é considerado um dos
principais autores nesse assunto.
Destacamos ainda que as leituras e análises que realizamos para o desenvolvimento desse
estudo foram inspiradas na vertente do materialismo histórico. Assim, pretendemos esboçar
em nossa discussão o entendimento do uso/abuso de substâncias psicoativas como um
fenômeno datado historicamente e construído socialmente.

A conversão institucionalizada
Antes de analisar o legado higienista nas questões que envolvem o uso de drogas e as
propostas das CTs, entendemos ser necessário pontuar algumas características gerais dessas
instituições, bem como algumas críticas a esse modelo por parte de autores contemporâneos.
Na sequência, apresentaremos as discussões atuais em torno do seu financiamento pelo SUS.
Segundo De Leon (2003), a ideia de comunidade terapêutica é verificada ao longo da
história sob diferentes formatos. Em sua forma contemporânea, podemos dizer que surgiram
duas grandes variantes dessas instituições: uma no campo da psiquiatria social, que consiste

1234 História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro


Comunidades terapêuticas

em unidades destinadas ao tratamento psicológico e guarda de pacientes psiquiátricos, dentro


ou fora de ambientes hospitalares; e outra que são os programas de tratamento residencial
para dependentes de álcool e outras drogas. São estes programas que constituem objeto do
presente estudo.
Para o autor citado, a metodologia básica das CTs tem forte influência do modelo originá-
rio do grupo de Oxford, uma organização religiosa sediada em Nova York, fundada na década
de 1920. Entre os ideais e práticas defendidos por esse grupo estavam a ética no trabalho, o
cuidado mútuo, valores como honestidade e altruísmo, o reconhecimento dos defeitos de
caráter e a reparação dos danos causados.
Na década de 1940, essa modalidade de intervenção se desenvolveu consideravelmente
na Grã-Bretanha, inicialmente destinada ao tratamento de transtornos psiquiátricos, sendo
posteriormente adaptada ao tratamento para usuários de drogas. Em 1953, essa proposta foi
reconhecida quando o psiquiatra do exército inglês Maxwell Jones desenvolveu um modelo
de internação para tratamento de soldados que estiveram na Segunda Guerra Mundial e que
apresentavam traumas diversos (Raupp, Milnitisky-Sapiro, 2008).
Durante os anos de 1950, as CTs tiveram repercussão como alternativa ao tratamento
psiquiátrico manicomial, especialmente nos EUA. Por volta da década de 1960, surgiram as
primeiras comunidades dedicadas exclusivamente ao tratamento da dependência de álcool e
outras drogas, que tinham influência não só do grupo de Oxford, mas também dos princípios
preconizados pelos Alcoólicos Anônimos, originado em 1935 (De Leon, 2003; Obid, 2007).1
De Leon (2003) discute ainda que os primeiros responsáveis pelo tratamento em CTs eram
os dependentes químicos e alcoólicos em recuperação, mas em seu formato mais recente
essas instituições passaram a sofrer influência das áreas da educação, medicina, psiquiatria,
direito, religião e ciências sociais. Apesar essas mudanças não terem modificado os princípios
essenciais da abordagem das CTs, elas possibilitaram que a mesma deixasse de ser considerada
uma abordagem de autoajuda esotérica e alternativa, para então ser entendida como uma
“modalidade de atenção humana inserida na corrente principal” (p.27).
Com a multiplicação de iniciativas desse tipo na América do Norte, a experiência foi
exportada para alguns países da Europa e, posteriormente, para a América Latina, Ásia e África.
No Brasil, segundo Alves (2009), as CTs, em sua maioria instituições não governamentais,
iniciaram na década de 1970 e tiveram maior expansão na década de 1990. Para Costa (2009),
tais entidades foram implantadas antes da efetivação das políticas públicas sobre álcool e
outras drogas no país, ocupando a lacuna deixada pelos serviços públicos.
No que se refere aos princípios que embasam o atendimento proposto pelas CTs, verifica-se
em Raupp, Fefferman e Morais (2011) que o modelo moral é predominante no atendimento
disponível na maioria delas. Como destacado por Araújo (15 ago. 2003, s.p.), “a forma
assumida por uma comunidade terapêutica reflete a filosofia subjacente da organização que
a fundou”, podendo ser marcadas por princípios religiosos, técnicas de autoajuda, terapia
comportamental, abordagens psicanalíticas, entre outras. Mas, “independente da linha
adotada e do nível de especialização do atendimento, grande maioria delas tem por objetivo
a abstinência completa de qualquer tipo de substância” (Araújo, 15 ago. 2003, s.p.).
Pozas (1998) e De Leon (2003) reconhecem as influências genéticas, fisiológicas e químicas
que predispõem o indivíduo à dependência, mas entendem que a pessoa é considerada

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Renata Cristina Marques Bolonheis-Ramos, Maria Lucia Boarini

primordialmente responsável pelo seu transtorno e recuperação. Também se entende que,


embora as pessoas se distingam em termos demográficos, sociais e psicológicos, a maioria das
que estão em CTs partilha determinadas características, ainda que situacionais, como: deficit
de percepção e julgamento, dificuldade de tomar decisões e de resolver problemas, bem como
falta de capacidades educacionais, de aprendizagem, vocacionais, sociais e interpessoais. Assim,
as diferenças individuais que se observam podem modificar planos específicos de tratamento,
mas não alteram a meta de mudar a pessoa por inteiro.
Sabino e Cazenave (2005, p.172) entendem que as CTs têm como objetivo possibilitar
aos pacientes “amadurecimento pessoal” e reinserção social, permeados por valores como
“espiritualidade, responsabilidade, honestidade, solidariedade”. Por outro lado, consideram
que a metodologia de tratamento, que em geral é a internação em isolamento por alguns
meses, requer mais estudos para se verificar se a readaptação social tende a suscitar recaídas
nos dependentes.
Como defende De Leon (2003), para as CTs é fundamental separar o dependente de seu
ambiente físico, social e psicológico, uma vez que este normalmente está associado à perda
de controle e a um estilo de vida disfuncional. Assim, essa separação possibilita aos usuários
estar longe das drogas, cuja facilidade de acesso constitui uma das principais razões para
a desistência do tratamento, e permite que eles se vinculem gradativamente à CT e à sua
filosofia de vida.
No estudo de Goffman (2008) sobre “instituições totais”, verifica-se que a vinculação e
o enquadramento aos pressupostos de uma instituição fechada levam o indivíduo a uma
“mortificação do eu”, à perda de sua identidade e a intenso sofrimento. Valderrutén (2008)
discute o fato de que, semelhantes ao papel dos asilos como destino para leprosos e loucos de
séculos anteriores, as CTs atuais, com suas práticas psicoterapêuticas e discursos moralizantes,
constituem uma das formas contemporâneas de exclusão, para onde devem ir os seres
humanos considerados “interditados”.
Em pesquisa realizada por Oliveira (2009), verificou-se que, apesar das CTs serem as
opções de tratamento mais conhecidas pelos usuários de drogas em situação de rua, aqueles
que haviam passado por esse tipo de intervenção alegavam que o haviam abandonado em
função da rigidez das normas dessas instituições, da rotina “enfadonha” de orações ao longo
do dia, além da dificuldade de adaptação e permanência, já que a abstinência nem sempre é
possível e desejada por todos os usuários.
Quanto à organização do tempo de tratamento observado nas CTs, apesar de algumas
variações existentes, verificamos que em geral o processo é dividido em estágios, como triagem,
desintoxicação, incorporação dos princípios e reinserção social. Trabalha-se normalmente
com nove a 12 meses de internação. De Leon (2003) reconhece, porém, que a maioria dos
residentes internados acaba saindo nos noventa dias de admissão, o que inviabiliza sua
preparação efetiva para a vida na sociedade e, desse modo, o processo de mudança esperado.
Para Birman e Costa (1994), as CTs, juntamente com os movimentos da psicoterapia
institucional e psiquiatria comunitária, que se desenrolaram principalmente na década
de 1960, tiveram início dentro do processo de crítica à estrutura asilar de tratamento dos
transtornos mentais. Mas apesar de se diferenciar em alguns pontos, as modalidades de atenção

1236 História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro


Comunidades terapêuticas

que surgiram como contraponto ao modelo asilar contemplam em si a mesma ideia: de que
promover a saúde mental consiste num processo de adaptação social.
Amarante (1995) complementa tal ideia, defendendo que, apesar de as CTs representarem
uma proposta diferente dos manicômios, tais instituições não deram conta de resolver a
questão da exclusão, e consequentemente do tratamento dos internos, uma vez que se criam
condições ideais dentro da instituição que não se sustentam quando o egresso se depara com
o mundo real.
Em um breve percurso pelos documentos oficiais que abordam as políticas públicas sobre
álcool e outras drogas no Brasil, observamos que as CTs até 2010 estavam ligadas somente
ao Sistema Único de Assistência Social,2 não fazendo parte da cobertura do SUS. Entretanto,
tendo em vista o avanço do problema das drogas no país – especialmente do crack –, a rede
de atenção psicossocial incompleta e as pressões da sociedade em geral clamando por uma
solução, o Ministério da Saúde estipulou o apoio financeiro com recursos do SUS às CTs
(Brasil, set. 2010).
Em 30 de junho de 2011, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária aprovou a resolução
da Diretoria Colegiada n.29 (Brasil, 30 jun. 2011), que substituiu a resolução n.101 (Brasil,
30 maio 2001), propondo modificações para que essa norma se adequasse à realidade das CTs
e possibilitando, nesse sentido, a entrada dessas entidades no SUS. Em dezembro de 2011, as
CTs foram oficialmente incluídas na rede de atenção psicossocial, através da portaria n.3.088
(Brasil, 23 dez. 2011).
Ainda no final de 2011, o governo federal lançou um plano com o slogan “Crack, é possível
vencer”, concentrando as ações em três eixos: cuidado, autoridade e prevenção (Brasil, 2012).
Com isso, as CTs podem elaborar projetos para receber verbas federais, desde que atendam
a alguns critérios, como a presença de um responsável técnico de nível superior legalmente
habilitado, a permanência voluntária do interno na instituição, o respeito à sua crença
religiosa, ideologia, orientação sexual (Brasil, 2014).
Sabemos que a inclusão das CTs no SUS e outras medidas atuais relativas ao tratamento
dos usuários de drogas têm levantado críticas e debates por parte de profissionais de saúde,
conselhos de categorias profissionais e outras entidades interessadas.
O Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Psiquiatria, por exemplo,
contestaram as propostas de financiamento das CTs com recursos públicos, os quais deixam
de ser investidos na ampliação da rede pública de saúde. Tais entidades destacaram também
que muitas CTs substituem o tratamento médico por um programa terapêutico cuja eficácia
não é comprovada cientificamente (Brasil, 2011).
O Conselho Federal de Psicologia (2011a) também se manifestou contra o financiamento
das CTs pelo SUS, alegando que o cuidado dos usuários de drogas deve ser feito em liberdade,
em uma rede diversificada e territorializada de serviços, que poderia contar com as equipes
de saúde mental na atenção básica, com os centros de atenção psicossocial, unidades de
acolhimento, consultórios de rua, leitos em hospitais gerais para os quadros de intoxicação
e/ou abstinência grave e outros. Esses serviços, estando dentro dos pressupostos da reforma
psiquiátrica, buscam preservar e resgatar os laços e o apoio sociofamiliar, diferente do que
se observa nas CTs.

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Renata Cristina Marques Bolonheis-Ramos, Maria Lucia Boarini

Segundo o psiquiatra Marcelo Kimati Dias (Drogas..., 24 jul. 2011), com o financiamento
dos leitos nas CTs não se fortalece a rede de atenção psicossocial, mas se cria uma rede paralela,
não complementar. Nesse sentido, seria precipitado trazer tais entidades para a rede pública de
saúde com o argumento de que os serviços atuais não estão dando certo, uma vez que, apesar
de existirem há algum tempo, as próprias comunidades não deram provas de sua eficácia.
O mesmo argumenta que o incentivo às CTs com recursos públicos constitui um retrocesso
com consequências muito sérias, uma vez que sinaliza a ideia de que deve existir um local
específico para atender aos usuários de drogas, isolados de sua comunidade, o que contribui
ainda mais para sua estigmatização. Além disso, os serviços que se pautam unicamente na
abstinência acabam tendo uma adesão baixa por parte dos usuários.
Acrescentamos que a última Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 2010,
teve como um dos motes principais a garantia de que o cuidado dos usuários de álcool e
outras drogas ocorra em rede diversificada de ações e serviços de base comunitária e territorial,
defendendo-se então o não credenciamento pelo SUS de serviços especializados em alcoolismo
e drogadição que impliquem internação de longa permanência (Brasil, 2010).
Como sugerem alguns autores, como Bezerra Júnior (2007), Daúd Júnior (2011) e Luzio
(2011), apesar de a rede de atenção comunitária ter sido ampliada no Brasil nos últimos anos,
os dispositivos existentes ainda estão longe de dar conta de toda a demanda de atendimento
aos usuários de álcool e outras drogas. Sendo assim, abre-se um espaço para a entrada de
outros serviços no sistema público de saúde, como as CTs, que, segundo Pitta (2011), têm a
oferecer apenas o enclausuramento do problema.

Discussões que atravessam décadas


Buscamos, nesse momento, abordar as concepções dos higienistas sobre questões que
envolvem o uso/abuso de substâncias psicoativas, analisando o legado desse ideário em relação
aos princípios das CTs e às discussões atuais acerca do álcool e de outras drogas.
Em linhas gerais, observamos que o uso/abuso do álcool ou de outras substâncias
psicoativas, para os higienistas, estava relacionado a algum tipo de desvio, desajustamento,
conflito ou inutilidade por parte do dependente (Lima, 1944). Para Carlos Augusto Lopes
(1944, p.105-106), no alcoolismo “esquece-se facilmente de tudo, a inteligência torna-se
embotada, o raciocínio preguiçoso. A noção do cumprimento do dever, respeito à família,
responsabilidade e honra desaparecem ... Torna-se ele, então, peso morto para a sociedade,
inútil e nocivo à pátria”.
Aos dependentes de cocaína e ópio também era atribuído um determinado perfil
psicológico, que em geral traziam a pecha de “espíritos débeis”, desequilibrados psiquicamente,
portadores de taras degenerativas ou “loucos morais”, como destacou Cunha Lopes (1925,
p.122-123). Diante desse quadro, Carlos Penafiel, médico psiquiatra e membro da Comissão
de Legislação Social da Câmara dos Deputados (1923, citado por Ernani Lopes, 1925), defendia
que uma medida importante seria retirar os filhos de pais notoriamente ébrios e entregar as
crianças para famílias honestas, sóbrias e trabalhadoras.
Verificamos, assim, que a imagem pejorativa e disfuncional dos usuários de drogas
parece não ter sofrido alterações ao longo da história. De Leon (2003), por exemplo, aponta

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Comunidades terapêuticas

o perfil clínico típico das pessoas que utilizam drogas e frequentam as CTs, identificando
nesses usuários disfunções sociais e interpessoais, problemas no âmbito educacional, na sua
capacidade de percepção e julgamento.
Outro ponto que também não é exclusividade das discussões atuais é a associação entre o
uso de substâncias psicoativas e a criminalidade. Segundo Juliano Moreira (1925), a internação
de um dependente de drogas no manicômio, o mais cedo possível, era fundamental para
prevenir os crimes que ele pudesse vir a causar. Em 1931, Moraes Mello publicou alguns
estudos que indicavam o álcool como principal fator das causas da criminalidade e que a
violência aumentava consideravelmente nos dias de folga, quando o consumo do álcool era
maior (Tavares, 1931).
Assim, no entendimento de grande parte dos higienistas, os problemas que envolviam a
vida dos dependentes de álcool e outras drogas decorriam do seu vício. Da mesma forma, como
discute Silveira (Nassif, 17 jan. 2012), a vulnerabilidade social em que vivem os usuários de
crack e outras drogas na atualidade normalmente é vista como consequência desse consumo;
enquanto que, por uma perspectiva sócio-histórica, esse consumo deveria ser entendido como
sintoma dos problemas sociais.
Essa falta de estrutura social, na lógica da exclusão, acaba por legitimar a internação
prolongada dos usuários de drogas em hospitais psiquiátricos e CTs, internação essa que, em
meio ao pânico gerado pelas questões atuais do crack e outras drogas, encontra fácil aceitação
social (Andrade, 2011; Delgado, 2011; Pitta, 2011). No início do século XX não era muito
diferente. As dificuldades sociais em que vivia a população também ajudavam a justificar a
internação prolongada dos pacientes psiquiátricos, com a diferença de que naquele período
a história ainda deixava dúvidas sobre a eficácia do isolamento dessas pessoas.
Nesse sentido, para Gustavo de Rezende (1934), a alta dos pacientes internados em
manicômios deveria ser muito bem ponderada, já que o meio familiar ao qual voltariam os
egressos muitas vezes não lhes forneceria condições adequadas para a manutenção do seu
tratamento. Na lei antialcoólica proposta pela LBHM em 1931, consta como prioridade,
dentro dos serviços assistenciais, a criação de reformatórios para alcoolistas e toxicômanos
e o amparo das famílias dessas pessoas no meio social (LBHM, 1931). Para Cunha Lopes
(1925), a internação dos dependentes, além de necessária, deveria ser obrigatória para evitar
que esses indivíduos cometessem crimes ou que se perdessem moralmente por completo.
E, dependendo do seu estado mental, a sociedade deveria recorrer até à interdição ampla ou
limitada dessas pessoas.
Vale acrescentar que, para os higienistas, as medidas de controle do avanço do alcoolismo
e o tratamento dos dependentes deveriam partir tanto das entidades públicas como da
iniciativa privada. Leitão da Cunha (1934), como exemplo, afirmou a importância de se incen-
tivarem iniciativas particulares na organização do combate ao alcoolismo. Assim, como
defendido por Delgado, Macedo, Cordeiro e Rodrigues (Brasil, 2004), a prática de se retirar
do Estado a responsabilidade pela atenção e tratamento dos usuários de drogas, como tem
ocorrido com o incentivo às CTs atuais pelo setor público, tem raízes históricas e estruturais.
De qualquer forma, mesmo sem dados concretos que atestassem a efetividade da interna-
ção prolongada, essa era uma forma conveniente de se realizar a higiene social, como exem-
plificamos pelos seguintes dizeres de Penafiel (1923, citado por Ernani Lopes, 1925, p.148):

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Renata Cristina Marques Bolonheis-Ramos, Maria Lucia Boarini

É exato que o resultado obtido por estes asilos, tanto na Suíça como na América do
Norte, não tem sido grande coisa, pois vale mais ou menos pelo seguinte: doentes
curados, um terço; saídas com risco de recaídas, um terço; doentes que saem incuráveis,
outro terço. Em todo caso trata-se de um bom paliativo, a que no interesse coletivo e
dos próprios doentes a sociedade precisa recorrer.

E como lembrado por Silva Filho (2007), essa necessidade urgente e absoluta de internação
da pessoa com transtorno mental, visando a sua própria segurança, de seus familiares e da
sociedade como um todo, era ainda mais urgente para aqueles pertencentes às classes mais
pobres da população.
Acompanhando a defesa da internação e do isolamento, como medidas principais
preconizadas por grande parte dos higienistas para tratamento dos dependentes de álcool e
outras drogas, tínhamos o proibicionismo como perspectiva predominante em relação ao uso
de substâncias psicoativas. Muckermann (1929) defendia que uma das formas para combater
os danos do alcoolismo seria a proibição do uso do álcool no período de desenvolvimento
do homem até o fim da sua maturidade. Henrique Roxo (1925) e Carlos Werneck (1929)
demonstraram a sua convicção em relação à necessidade de se instituir a lei seca no Brasil,
apesar de reconhecerem que essa opinião não era unânime na sociedade brasileira e em
diversos países do mundo, nem mesmo entre a classe médica.
Outro ponto que buscamos destacar, semelhante às CTs atuais, é o trabalho como
terapêutica utilizada nos asilos e colônias do início do século XX. A LBHM defendia, em
1934, que uma de suas aspirações era a criação de casas de trabalho para “doentes mentais”
convalescentes, como já existiam na Itália. Ferrer (citado por Lopes, 1933, p.322), abordando a
questão da “laborterapia”, discutia inclusive a importância de se instituir nos manicômios
a possibilidade de os internos subirem na hierarquia do trabalho que desempenhavam,
iniciando com atividades mecânicas mais simples e passando progressivamente a outras
mais complexas. Esse mesmo autor falava também sobre a necessidade de o enfermeiro
viver junto dos internos, dentro dos próprios estabelecimentos, “para melhor observação
do asilado, em todos os momentos da vida manicomial” (p.322).
Juliano Moreira (1929, p.62), por sua vez, defendia a construção de reformatórios para
alcoolistas, nos quais o trabalho manual, especialmente aquele voltado para as atividades
agrícolas, seria empregado como principal terapêutica.

O sanatório especial deve ser construído de modo a ser um verdadeiro reformatório,


com instalações próprias a manter os internados em atividade laboriosa, tendente a
distraí-los o mais possível de suas tendências a se intoxicarem. Oficinas várias para os
que tiverem maior aptidão para trabalhos manuais ou para os que para isto tiverem
predileção. Essas oficinas serão a um tempo um centro de orientação profissional e uma
verdadeira escola de aptidão a tal ofício. Como, porém, estamos em um país agrícola,
maior deve ser a parte colonial do estabelecimento.

A valorização do trabalho como terapêutica obviamente não era uma proposta


descontextualizada, mas incorporada à ideologia do nascente capitalismo brasileiro. Como
discutido por Heitor Resende (2007, p.48), a capacidade para o trabalho, naquela sociedade,
era um dos marcos para se estabelecerem os limites do normal e do anormal, dos cidadãos e

1240 História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro


Comunidades terapêuticas

“pré-cidadãos”. Portanto, a prática psiquiátrica teria que se empenhar para devolver ao meio
social indivíduos tratados e aptos para o trabalho.
Por outro lado, já no início do século XX também havia aqueles que questionavam o valor
terapêutico do trabalho para os “alienados”.3 Del Greco (citado por Lopes, 1932) levantou
algumas objeções nesse sentido, apontando que o trabalho na maioria dos asilos era mecânico,
coercitivo e sem relação com as disposições psicológicas dos internos. Segundo esse autor,
para obter resultados favoráveis, seria necessário proporcionar aos “doentes” ocupações de
caráter coletivo e em harmonia com algumas das tendências neles predominantes.
Do mesmo modo, encontramos na atualidade críticas ao trabalho empregado aos residentes
nas CTs, uma vez que esse recurso muitas vezes não é utilizado com fins terapêuticos, mas como
forma de manter o funcionamento da própria instituição, como verificado pelo Conselho
Federal de Psicologia (2011b).
No início do século XX, como alternativa para melhorar a sua situação financeira, alguns
hospitais-colônias adotavam o método de trabalho para os internos, com o objetivo de
arrecadar verbas para o custeio das despesas da instituição. Apesar de ser usado o argumento
de que não se tratava de um trabalho forçado, mas uma ocupação suave e benéfica para a
saúde, os internos reclamavam da exploração que sofriam ao trabalhar sem remuneração
direta (Caldas, 1935).
Segundo Resende (2007, p.51), outra contradição observada na adoção do trabalho, que
em geral era agrícola, dentro das colônias, estava no fato de que “a nova e dinâmica lavoura
cafeeira exportadora paulista pedia braços, é certo, mas é duvidoso que o hospício pudesse
lhe fornecer o material humano eficiente e disciplinado de que necessitava”. Isso sem falar na
crescente industrialização e urbanização pelas quais passava o país, que tornavam a reeducação
para o trabalho rural um anacronismo.
Ademais, observamos que não é só pelo emprego do trabalho nas instituições de tratamento
dos dependentes que as propostas dos higienistas se aproximam das intervenções realizadas
nas CTs atuais. Flávio de Souza (1943, p.84) apresentou como seriam as casas de saúde para
recuperação dos dependentes do álcool, abordando os tratamentos psiquiátrico, psicológico
e moral pelos quais deveria passar o paciente durante a internação:

Aí ele será submetido à cura de abstinência, fará tratamento para as perturbações


orgânicas nele encontradas e se sujeitará ao tratamento moral, feito não somente pelo
médico especializado, mas também pelo pessoal do próprio estabelecimento, onde, além
da abstinência completa, ele terá adequada psicoterapia, leituras especiais, contendo
histórias, monografias e publicações a respeito dos desperdícios que o álcool é capaz
de produzir.

Oswaldo de Camargo (1944, p.96) também apresentou um modelo de hospital-colônia já


em funcionamento nos EUA em 1944, o qual poderia servir de exemplo para o Brasil.

Nesses estabelecimentos é feito acurado estudo da personalidade de cada paciente, e


o tratamento compreende, sobretudo, o seguinte: fisioterapia, psicoterapia, terapêutica
ocupacional pelo trabalho, reeducação, recreação, terapêutica pelo reflexo condicionador
... localização desta (instituição) em zona rural, detenção legal por um período
indeterminado, essencial para o sucesso do tratamento.

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Renata Cristina Marques Bolonheis-Ramos, Maria Lucia Boarini

Cumpre apontar que não encontramos relatos que mencionem o trabalho sistemático
com a religião, característico de grande parte das CTs brasileiras, no tratamento dispensado
aos internos dos hospitais-colônias do início do século XX.
Mas apesar das diferenças entre as instituições do passado e as atuais, e com o devido
cuidado que devemos ter ao analisar fenômenos distantes no tempo, foi possível observar
por meio desta pesquisa vários pontos defendidos pelos higienistas no início do século XX
que convergem para as propostas das CTs. Pontos esses pautados fundamentalmente no
isolamento, na internação prolongada e no proibicionismo em relação ao uso de álcool e
outras drogas.
Apesar disso, assim como em qualquer momento histórico, outras propostas e necessidades
ajudaram a compor a história e, nesse caso, os rumos da assistência aos usuários de drogas.
Alguns estudiosos do início do século XX, que também faziam parte da LBHM, apresentavam
críticas ao modelo manicomial, como exemplificado por Ernani Lopes (1930b), ao discutir
como o tratamento dispensado aos alcoolistas internados nos hospícios não trazia resultados,
e por Mirandolino Caldas (1935, p.95), que fez o seguinte questionamento: “De que vale
toda a liberdade de ambulatória de que desfrutam dentro das Colônias, se o ambiente dessas
Colônias é artificial e não satisfaz as exigências da vida normal do homem!?” Esse mesmo
autor argumentava ainda que apenas um pequeno número de “doentes mentais” e alcoolistas
oferecia perigo à coletividade e, portanto, a maioria deles poderia ser tratada preservando-se
o seu vínculo familiar e social.
Podemos dizer que esses pensadores apontavam, então, para outra forma de atender as
pessoas com transtornos mentais e usuários de substâncias psicoativas. Atenção essa que se
aproximava de uma assistência intersetorial e buscava a convivência social e familiar dos
egressos do manicômio. Caldas (1935) apresentou, aliás, modelos de assistência aos “alienados”
propostos em outros países, como o modelo de sociedade cooperativa do médico argentino
Vidal Abal, que contribuiria para desonerar o governo dos altos custos que tinha para manter
os hospitais psiquiátricos.
Desse modo, apesar do saber médico predominante no ideário higienista, grande parte
dos profissionais que compunham a LBHM entendia o alcoolismo não exclusivamente
como uma doença médica, mas, sobretudo, como um problema social (LBHM, 1930). E,
assim, parte dos higienistas já defendia um tratamento às pessoas com transtornos mentais
e dependentes de álcool e outras drogas diferente daquilo que o modelo manicomial tinha a
oferecer, seja por vislumbrar, de fato, condições mais humanas nessa atenção, seja por entender
que o tratamento ambulatorial poderia ser menos custoso que a internação prolongada nos
hospícios.
Também não podemos deixar de mencionar que essa nova concepção sobre as práticas
psiquiátricas foi ganhando corpo com o desenvolvimento da psicofarmacologia, especialmente
a partir de meados da década de 1950, quando os distúrbios mentais puderam ser mais
facilmente controlados (Silva Filho, 2007).
Enfim, resgatar o conhecimento produzido por esse grupo de pensadores do início do
século XX nos ajuda a compreender um pouco mais da história da atenção aos usuários de
drogas e da própria reforma psiquiátrica no Brasil, que, segundo Amarante (1994), tem em suas

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Comunidades terapêuticas

bases o conjunto de medidas proposto pelos psiquiatras no início do século XX, começando
pela implantação do modelo de colônias na assistência às pessoas com transtornos mentais.

Considerações finais
Encaminhando para as considerações finais desse estudo, sem contudo pretendermos
esgotar essa discussão, lembramos primeiramente que, apesar de os cenários do início do
século XX e o atual serem diferentes em certo ponto, foi possível estabelecer paralelos entre as
propostas de atenção aos usuários de substâncias psicoativas de ambos os períodos. Propostas
essas que, em geral, fazem parte de um modelo pautado no isolamento e em ações de caráter
proibicionista.
Em contraposição a essa perspectiva, observamos que nos últimos anos a redução de danos
tem conquistado espaço na política sobre drogas.4 No entanto, a perspectiva proibicionista
ainda se faz presente, associada a propostas, leis e normativas recentes, que veiculam os
interesses de uma vertente moralista bem atuante junto ao poder público.
Observamos também que, no âmbito geral, o usuário de drogas, principalmente as ilícitas,
continua associado a algo pejorativo, que deve ser escondido, isolado, sob o pretexto de
se fazer “tratamento”, como verificamos nos pressupostos defendidos por boa parte dos
higienistas. Como apontado por Costa-Rosa (2012, p.75), “ao mesmo tempo em que a loucura
vai assumindo fisionomias mais familiares que não justificam seu isolamento social, eis que
surgem prontos para a clausura manicomial os novos protagonistas”.
E as práticas utilizadas nos dispositivos que atualmente são chamados para resolver o
problema – como as CTs – remetem-nos aos encaminhamentos adotados nos antigos asilos,
colônias e reformatórios do início do século XX. Instituições essas, como verificamos em
nosso estudo, que foram questionadas por integrantes do próprio movimento higienista, e
cuja eficácia, historicamente, não apresenta registros de resultados positivos.
E a própria história nos indica ainda que os modelos e práticas de saúde que preconizam
a segregação e internação prolongada, compulsória em muitos casos, de usuários de drogas e
de outros indesejados parecem ter destino certo. Usando as palavras de Lima Barreto (1961,
p.179), “os loucos são de proveniências as mais diversas; originam-se, em geral, das camadas
mais pobres da nossa gente pobre. São pobres imigrantes italianos, portugueses, espanhóis e
outros mais exóticos, são negros roceiros”.
Desse modo, se a clientela principal dos hospícios do início do século XX era formada por
miseráveis, marginais, desempregados, imigrantes desocupados, índios, negros, “degenerados”,
toda sorte de pessoas que poderiam ameaçar a ordem pública (Amarante, 1994; Resende,
2007), o alvo principal das medidas atuais de internação compulsória continua sendo a
“escória” da sociedade, os desocupados da atualidade, em geral pessoas menos favorecidas
social e economicamente, em um claro processo de limpeza das ruas, como apontado por
Maierovitch (14 jan. 2012).
Ainda que o movimento pela reforma psiquiátrica tenha ganhado repercussão e, em tese,
sejam esses os princípios que devem embasar o atendimento aos usuários de álcool e outras
drogas, os hospitais psiquiátricos e demais instituições de internação prolongada continuam
sendo admitidos dentro das políticas públicas de saúde mental e apoiados pela sociedade.

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Renata Cristina Marques Bolonheis-Ramos, Maria Lucia Boarini

Como discutido por Zenoni (2000), antes de existir para tratar o sujeito, a instituição de
internamento serve a uma necessidade social, de assisti-lo e colocá-lo a distância.
Aliado ao aumento do uso/abuso de álcool e outras drogas, segundo Alves (2009, p.2316),
“a explicação para este esforço de conciliação entre racionalidades divergentes no que se refere
ao conteúdo e à organização das práticas de saúde pode ser remetida ao conflito de interesses
entre representantes dos diferentes modelos assistenciais no país”.
Pontuamos ainda que o financiamento público das CTs, em detrimento do fortalecimento
da rede pública de atenção aos usuários de álcool e outras drogas, soma-se a um conjunto de
forças por parte de alguns setores que tentam enfraquecer o SUS (Borges et al., 2012), que é
uma importante conquista social, mas que não se coaduna ao modelo de sociedade vigente,
a qual privilegia as ações da iniciativa privada. Com menos investimento de recursos em
dispositivos públicos, aumentam-se as dificuldades para o seu pleno funcionamento e, com
isso, incrementam-se as justificativas para a terceirização e privatização de outros serviços
dessa natureza.
Por fim, queremos destacar que diferentes forças, interesses e necessidades, de cunho
social, político e econômico, vêm tecendo a complexa história da saúde pública brasileira e
da atenção aos usuários de drogas. Sabemos que os problemas decorrentes do uso/abuso de
substâncias psicoativas, seja no Brasil ou em qualquer parte do mundo, não se restringem
à esfera da segurança pública, da educação ou da saúde, que historicamente, em nosso
entendimento, tem arcado com a maior parte dessa conta. As questões de cunho político-
econômico também devem perpassar as discussões e as propostas de enfrentamento dessa
problemática, questões essas que têm constituído importantes entraves às ações que priorizam
a saúde e o desenvolvimento da autonomia dos usuários.
Assim, seja no apogeu do movimento higienista no Brasil ou na atualidade, interesses de
alguns setores continuam atuando na manutenção de práticas que promovem a internação
e o isolamento dos usuários de álcool e outras drogas, como a história vem nos mostrando
por meio dos asilos, manicômios, hospitais-colônias, comunidades terapêuticas.

NOTAS
1
Esses e outros princípios estão explicitados nas cartilhas “Doze passos”, “Doze tradições” e “Doze
conceitos”, demonstradas pela Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil, disponibilizadas
em http://www.alcoolicosanonimos.org.br.
2
A Norma Operacional Básica orienta sobre as ações da rede socioassistencial de proteção básica e especial,
na qual se enquadram os serviços voltados para os usuários de substâncias psicoativas (Brasil, 2005).
3
Entendemos que os “alienados” eram as pessoas com transtornos mentais, dependentes de substâncias
psicoativas e outros que poderiam perturbar a ordem social e que faziam parte da clientela dos asilos,
manicômios e demais instituições de internamento no início do século XX (Amarante, 1994).
4
A redução de danos passou a ser considerada no Brasil, fundamentalmente a partir da década de 1990,
uma importante estratégia de ação junto às políticas públicas de atenção aos usuários de álcool e outras
drogas. Por essa perspectiva, as intervenções propostas têm como objetivo minimizar os danos à saúde, os
prejuízos sociais e econômicos vinculados ao consumo de drogas, sem com isso proibi-lo, partindo-se do
pressuposto de que o consumo de drogas faz parte da história da humanidade e que a ideia de uma sociedade
completamente livre de drogas é utopia (Brasil, jan. 2011).

1244 História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro


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Doi: 10.4025/psicolestud.v20i1.24697

CONSULTÓRIO NA RUA:

ATENÇÃO A PESSOAS EM USO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS

Helizett Santos de Lima1


Prefeitura Municipal de Goiânia, Goiânia-Go, Brasil
Eliane Maria Fleury Seidl
Universidade de Brasília, Brasília-DF, Brasil

RESUMO. O estudo objetivou investigar os modos de atuação e as características do trabalho de


intervenção com adultos jovens em situação de rua e usuários de substâncias psicoativas, segundo
percepções de profissionais do Consultório na Rua (CR) do município de Goiânia (GO) e de pesso as
atendidas pelo mesmo. Os participantes foram nove profissionais de diferentes categorias com idades
entre 24 e 64 anos e quatro usuários beneficiários do CR com idades entre 23 e 37 anos. A metodologia
foi qualitativa com aplicação de roteiros semiestruturados de entrevista e realização de análise de
conteúdo. Os resultados, a partir dos relatos dos profissionais, configuraram eixos temáticos, tais como:
atuação profissional no CR; aspectos facilitadores e dificultadores e apoio necessário para o trabalh o.
Para os usuários, os eixos foram: primeiro contato com a equipe; atuação dos profissionais do CR e o
mais interessante nesse trabalho. Observou-se consonância entre as percepções e predomínio de
aspectos positivos nos relatos dos profissionais e dos usu ários acerca da atuação do CR, caracterizada
por acolhimento, escuta e vínculo. Quanto às dificuldades, foram citados: preconceito e falta de
aceitação do usuário pela sociedade civil; atuação agressiva da Polícia Militar e da Guarda Municipal e
falta de insumos para o trabalho. O estudo indicou que os modos de atuação do CR vão ao encontro
daqueles preconizados nas políticas públicas de álcool e outras drogas do país, pautados no respeito
aos direitos humanos, ampliação do acesso a ações e serviços e reduç ão de danos à saúde da
população usuária em situação de rua.
Palavras-chave: profissionais da saúde; prevenção do abuso de drogas; sem teto.

STREET OUTREACH OFFICE:


ATTENTION TO PEOPLE ON PSYCHOACTIVE DRUG/SUBSTANCE
ABSTRACT. The present study aimed at investigating professional practices and characteristics of intervention
with young adults living in the streets who make use of psychoactive substances (PAS), according to perceptions
of Street Outreach Office (SOO) professionals in the city of Goiânia and of people served by the SOO. Participants
were nine different categories of professionals, aged between 24 and 64 years old, four PAS users aged between
23 and 37 years old, alcohol and crack users. The methodology was of qualitative type with semi-structured
interviews and used content analysis. The results based on reports from professionals configured the following
theme axes: professional work at the SOO; facilitating aspects; difficulties; support needed for the work. The
users’ themes were: first contact with the team, the work of the SOO professionals, the most interesting thing
about this work. There was consistency between the perceptions and positive aspects in the reports from
professionals and PAS users about the work of the SOO, characterized by listening, reception and bond. The
difficulties cited were: prejudice and lack of acceptance from civil society towards users; aggressive actions by the
Military Police and the Municipal Guard; and lack of provisions for the work. The study indicated that the governing
principles of the actions of the SOO are in accordance with those recommended by the public policy in the area of
alcohol and other drugs in Brazil, based on respect for human rights, expansion of access to actions and services,
and harm reduction to the users’ health.
Keywords: Health professionals; drug abuse prevention; homeless.

1 E-mail: helizettlima@gmail.com

Psicologia em Estudo, Maringá, v. 20, n. 1 p. 57-69, jan./mar. 2015


58 Lima & Seidl

CONSULTORIO EN LA CALLE:
ATENCIÓN A LAS PERSONAS EN EL USO DE SUSTANCIAS PSICOACTIVAS

RESUMEN. El estudio tuvo el objetico de investigar los modos de actuación y las características del trabajo de
intervención con adultos jóvenes habitantes de la calle y usuarios de sustancias psicoactivas, según percepciones de
profesionales del Consultorio en la Calle (CC) del municipio de Goiânia (GO) y de personas atendidas por el CC. Los
participantes fueron nueve profesionales de diferentes categorías con edades entre 24 y 64 años, y cuatro usuarios
beneficiarios de CC con edades entre 23 y 37 años. Fue utilizada la metodología cualitativa con aplicación de guiones
semiestructurados de entrevista y la realización de análisis de contenido. Los resultados, a partir de los relatos de los
profesionales, se configuraron en ejes temáticos, tales como: actuación profesional en el CC; aspectos facilitadores y
dificultadores; apoyo necesario para el trabajo. Para los usuarios, los ejes fueron: primer contacto con el equipo;
actuación de los profesionales del CC; lo más interesante en ese trabajo. Se observó una coherencia entre las
percepciones y el predominio de aspectos positivos en los relatos de los profesionales y de los usuarios, respecto a la
actuación del CC, caracterizada como acogida, escucha y vínculo. En cuanto a las dificultades, fueron citados: prejuicio
y falta de aceptación del usuario por la sociedad civil; acciones agresivas de la Policía Militar y Guardia Municipal; y la
falta de insumos para el trabajo. El estudio indicó que los modos de actuación del CC cumplen aquellos preconizados en
las políticas públicas de alcohol y otras drogas de Brasil, basados en el respeto a los derechos humanos, ampliación del
acceso a acciones y servicios y la reducción de daños a la salud de esta población usuaria.
Palabras-clave: Profesionales de la salud; prevención en el abuso de drogas; sin vivienda.

O consumo de substâncias psicoativas (SPA) é uma prática do ser humano desde os primórdios
da humanidade, e a decisão acerca do tipo de droga a ser consumida está baseada em suas
necessidades e motivações subjetivas e sociais. Por isso, é importante compreender como o indivíduo
– enquanto pessoa com direitos, desejos e interesses – percebe e interpreta a sua experiência com
drogas, a importância e a necessidade desse uso (Nery Filho, 2010; Simões, 2008). É imprescindível
que o olhar para esse indivíduo seja livre de preconceitos, voltado para formas de abordagens novas e
abrangentes, respeitando os diferentes modos de consumo, as razões para o uso, as crenças sobre
álcool e outras drogas e os estilos de vida (MacRae & Martins, 2010). Por isso, as estratégias e ações
nessa área devem ser realizadas por equipe multiprofissional, privilegiando a integração dos vários
saberes e áreas de atuação, como saúde, educação, lazer, cultura, justiça e assistência social, e
respeitando as especificidades locais.
Com o agravamento do desemprego, da pobreza e de situações de risco social, observa-se o
crescimento quantitativo da população em situação de rua, em especial nos meios urbanos. Na rua, os
indivíduos procuram se fixar predominantemente em áreas centrais das cidades, onde há o
predomínio do comércio e de serviços em geral, além de maior fluxo de pessoas, tornando possível a
obtenção de alimentos e de recursos financeiros; no período noturno, esses lugares podem se
transformar em abrigos (Andrade, 2010). Existem várias terminologias para designar esse grupo
social, e o termo população em situação de rua é o mais utilizado na atualidade, pois busca garantir a
complexidade e a diversidade do espaço da rua, além do caráter muitas vezes transitório desse modo
de vida (Santana, 2010).
No contexto da rua há uma cultura específica que é desconhecida para a maioria da sociedade, e
muitas vezes vista de forma pejorativa e preconceituosa. Cada segmento do espaço urbano é uma
cultura, como tantas outras, com seus valores, especificidades e complexidades. A partir dessa
realidade, é importante ressaltar a necessidade de que os órgãos públicos, bem como os
profissionais, propiciem atenção e cuidado, além de um olhar singular e respeitoso para essa
população (Santana, 2010). Conhecer a situação do consumo e/ou do uso abusivo de SPA, buscando
contribuições das ciências sociais, humanas e da saúde, pode favorecer mudanças positivas nesse
cenário. É preciso considerar a complexidade desse fenômeno e a diversidade dos aspectos relativos
à vida de pessoas usuárias para que se possa oferecer uma abordagem integral e humanizada,
baseada no conhecimento científico, mas calcada na realidade dos sujeitos (Brasil, 2009).
Desta forma, a abordagem voltada ao uso e abuso de SPA e população em situação de rua deve
ser baseada na construção, implantação e implementação de políticas públicas, programas e

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estratégias de intervenção intersetoriais que priorizem a promoção da saúde e a prevenção de


agravos (Chaibub, 2009). A política do Ministério da Saúde (MS) para Atenção Integral a Usuários de
Álcool e Outras Drogas tem respaldo na lei 10.216/01 da Política Nacional de Saúde Mental e na
Portaria Ministerial GM 336/02, que regulamenta os centros de atenção psicossocial (CAPS), inclusive
aqueles específicos para atendimento a usuários de álcool e outras drogas. Esta política se destaca
por identificar o uso abusivo de álcool e outras drogas como problema de saúde pública e estabelecer
a redução de danos (RD) como prioridade para a atuação na área (Brasil, 2011; Duarte, 2010).
O plano emergencial de ampliação do acesso ao tratamento e prevenção em álcool e outras
drogas (PEAD) no SUS tem como objetivo a expansão de estratégias de tratamento e prevenção ao
consumo de álcool e outras drogas, mediante o desenvolvimento de ações intersetoriais, ou seja,
ações conjuntas de vários setores, nas esferas governamentais e não governamentais. Esse plano foi
estabelecido como prioridade para os cem maiores municípios brasileiros, abrangendo todas as
capitais do país. Visa à ampliação do acesso, prevenção de agravos, promoção da saúde e redução
de danos relacionados ao consumo de substâncias psicoativas, bem como o resgate dos direitos
humanos e da cidadania da população usuária (Brasil, 2011; Duarte 2010).
Nessa perspectiva, foram implementados os consultórios na rua (CR), dispositivos de atendimento
que integram o PEAD e adotam os princípios do sistema único de saúde (SUS): universalidade,
integralidade da atenção, equidade e interdisciplinaridade. Norteiam suas ações o respeito ao modus
vivendi da população assistida, a promoção de direitos humanos, inclusão e reinserção social,
enfrentamento do preconceito e resgate da cidadania. As dificuldades do acesso a serviços de saúde
pela população que vive na rua e usa álcool e outras drogas viabilizaram a criação dos CRs com
equipe que vai ao encontro dessa população. Assim, o

baixo índice da procura e de acesso aos serviços da rede pública, principalmente pela população
usuária de álcool e outras drogas em situação de extrema vulnerabilidade e riscos, justifica a
implementação de intervenções biopsicossociais mais efetivas e integradas in loco (Brasil, 2010, p.
8).

Os CRs dispõem de uma equipe volante, multiprofissional, que se desloca em um veículo tipo
Kombi, com identificação/logotipo, abastecidos com insumos para tratamento de situações clínicas
comuns (como material para curativos e medicamentos) e de prevenção, como preservativos, cartilhas
e folders informativos (Brasil, 2010; Oliveira, 2009). Esta nova estratégia de atendimento traz inúmeros
desafios, como a busca do contato com o usuário in loco, na rua, bem como a identificação das
necessidades e demandas da clientela a partir de escuta da mesma. Seus principais objetivos são:
minimizar a vulnerabilidade social, o sofrimento físico e mental, reduzir os riscos e danos à saúde,
desenvolver ações de promoção da saúde e cuidados básicos no “espaço da rua” e garantir o resgate
da cidadania e o respeito a esta população (Brasil, 2011; Oliveira, 2009; Valério & Menezes, 2010). A
política de redução de danos norteia as ações do CR e visa minimizar os riscos e danos à saúde
relacionados ao uso de SPA, sem exigir abstinência, bem como oferecer atenção integral ao usuário
de álcool e outras drogas, com prioridade para a formação de vínculo, escuta, respeito à liberdade de
escolha e aos direitos humanos (Oliveira, 2009).
Atualmente, no Brasil, existem 127 equipes de consultório na rua, distribuídas segundo dados do
cadastro nacional de estabelecimentos de saúde (CNES) do Ministério da Saúde (Brasil, 2015). O CR
do município de Goiânia, instituído pela Secretaria Municipal de Saúde, segue o que é preconizado
pelo MS; funciona desde final de 2010, mas foi inaugurado oficialmente em abril de 2011, e tem tido
reconhecimento pelas instituições parceiras em nível municipal. Os dispositivos do consultório de rua
tiveram uma mudança em sua nomenclatura, passando a ser denominados consultório na rua a partir
da junção dos programas consultório de rua (equipe itinerante com foco na saúde mental) e do
Programa Estratégia de Saúde da Família Sem Domicílio (ESF com equipes específicas para atenção
integral à saúde da população em situação de rua), mas manteve o objetivo de equipe itinerante para
atenção integral à saúde dessa clientela (Brasil, 2012). Assim, no presente estudo, foi mantida a
denominação consultório na rua, adotada no município de Goiânia.

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Considerando o caráter recente e inovador dessa iniciativa no âmbito das políticas de atenção a
usuários de álcool e outras drogas, a presente pesquisa teve por objetivo investigar os modos de
atuação e as características do trabalho de intervenção com adultos jovens em situação de rua e
usuários de substâncias psicoativas, segundo percepções de profissionais do consultório na rua do
município de Goiânia e de pessoas usuárias atendidas pelo CR.

MÉTODO

Trata-se de estudo descritivo de cunho exploratório com metodologia qualitativa.

Participantes

Foram entrevistados nove profissionais, sendo três do sexo masculino e seis do feminino. A média
de idade foi igual a 39 anos, variando de 24 a 64 anos; quanto à escolaridade, três possuíam nível
médio completo e seis tinham nível superior, sendo que três deles cursaram uma especialização lato
sensu. O tempo de atuação no CR variou de um ano e seis meses a um ano e dez meses. No que
tange à experiência profissional anterior ao trabalho no CR, os participantes tiveram inserções
diversas tais como: atuação em saúde mental, na assistência social com população em situação de
rua, bem como em redução de danos.
Com relação aos usuários, participaram duas pessoas do sexo masculino e duas do sexo
feminino. A idade variou de 23 a 37 anos; três usuários viviam em união consensual com
companheiros que também estavam em situação de rua e um era solteiro. Todos referiram ter ensino
fundamental incompleto. Quanto à substância de uso, referiram o crack e o álcool, sendo que uma
delas também era tabagista. Duas usuárias tinham filhos e uma delas estava grávida do quarto filho.
Optou-se por nomear os participantes com nomes de personalidades brasileiras ligadas a
movimentos separatistas e à abolição. Assim, os nove profissionais receberam os nomes de Ana,
Anita, Bárbara, Bento, Quitéria, Joana, Francisco, Garibaldi e Luisa. Os quatro usuários entrevistados
foram nomeados Dandara, Cruz e Souza, Palmares e Veridiana.

Instrumentos

Foram utilizados roteiros de entrevistas individuais semiestruturados. O roteiro para profissionais


abarcou temas tais como: a atuação profissional no CR; aspectos facilitadores do trabalho;
dificuldades do trabalho e apoio necessário para o trabalho. Nas entrevistas com os usuários os
seguintes temas foram abordados: o primeiro contato com a equipe; a atuação dos profissionais do
CR; o mais interessante nesse trabalho e o atendimento recebido no CR. As questões da entrevista,
além de orientarem a identificação de eixos temáticos, também foram norteadoras do processo de
análise dos dados. Dados sociodemográficos foram obtidos mediante aplicação de questionários
específicos.

Procedimentos de coleta de dados

O presente estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências


da Saúde da Universidade de Brasília (protocolo 169/11).
Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas
com os profissionais foram realizadas no CAPS ad i Girassol e tiveram duração média de 40 min.
Quanto ao tempo das entrevistas realizadas com os usuários, a duração foi, em média, de 20 min e
ocorreram na rua. Todas as entrevistas foram gravadas com o consentimento dos participantes.

Análise de dados

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As entrevistas foram transcritas na íntegra e os procedimentos de análise de conteúdo (Bardin,


2009) foram utilizados. Primeiramente, foi feita a leitura flutuante dos relatos transcritos. Em um
segundo momento, procedeu-se a uma leitura mais detalhada, conforme os eixos temáticos norteados
pelo roteiro da entrevista. Os relatos foram analisados e categorizados pelas duas pesquisadoras, de
modo independente. Em seguida, as pesquisadoras levaram em conta a concordância de suas
análises no que tange à identificação, nomeação e frequência das categorias. Trechos de relatos dos
participantes foram selecionados para exemplificar as categorias identificadas.

Resultados

Entrevistas com profissionais do CR

Quatro eixos temáticos e suas respectivas categorias são apresentados e ilustrados com trechos
de relatos dos participantes.

Atuação profissional no CR

Esse eixo retrata a caracterização da atuação no CR, independente da formação profissional, bem
como a prática em equipe interdisciplinar. Foram identificadas seis categorias. Na primeira categoria –
atuação focada nas demandas dos usuários – foram evidenciados relatos de três participantes, que
valorizaram a importância das ações do CR serem voltadas para as solicitações e necessidades dos
usuários, exemplificada pelo relato de Bárbara: “na rua a minha intervenção não é a minha demanda,
é a demanda de quem me procura, do usuário. E dependendo da demanda, do que ele me solicita, é a
forma como eu vou tentar atendê-lo”.
Quanto à categoria atuação em equipe, houve relatos de quatro participantes que ressaltaram a
importância do trabalho em equipe interdisciplinar, com a integração dos diferentes saberes e
especificidades dos profissionais, valorizando o trabalho in loco com a presença de dois ou três
profissionais, o que pode facilitar as ações e a tomada de decisões, além de priorizar o cuidado e a
atenção dos membros da equipe entre si, o que está presente no relato de Ana:

... conto comigo, meus colegas ... se eu tiver atendendo a família é só a família, eu fico atenta para
aquela situação. Mesmo que eu esteja com alguém, tem um colega que está sempre atento, porque
pode acontecer muita coisa na rua. Fico muito feliz de ter colegas me dando apoio, para que eu
possa me dedicar, como se eu tivesse dentro de uma sala, ouvindo uma pessoa. E eu sei que eu
estou sendo cuidada, que não vai acontecer nada.

A categoria atuação para ampliar o conhecimento sobre DST e drogas teve a contribuição do
relato de Garibaldi, ao ressaltar a importância da abordagem desses temas sem preconceitos, na
perspectiva da redução de danos, com uso de linguagem acessível, a partir das diretrizes da PNRD:

Dependendo dos insumos que tiver, vai ser a porta de entrada, um dos insumos é o material gráfico,
com informações sobre DST e uso de drogas, e um dos insumos principais é o preservativo. Como
a principal droga que a gente trabalha nesse momento é o crack, tem que ter uma conversa sobre o
fato da pessoa ter o cachimbo, se é com quem ela compartilha..., se na hora que está todo mundo
doido, sob algum tipo de efeito, e que a conversa vai pra questão sexual, se eles se lembram do
preservativo.

Relatos de dois participantes contribuíram na categoria atuação sem consultório, ao descreverem


o desafio em se fazer atendimentos e procedimentos de saúde na rua, com as inúmeras situações e
acontecimentos do cotidiano das pessoas em situação de rua, exemplificada no trecho da fala de
Bento:

... experiência desafiadora, é o consultório sem consultório. É estar naquilo que a pessoa considera
como sua casa, sem parede, sem teto, o carro passando, a polícia te ameaçando, o traficante

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passando e vendendo drogas, as pessoas olhando, te condenando, muitas vezes porque você está
atendendo um mendigo na porta da loja.

A categoria atuação com coração/afeto emergiu nos discursos de Joana e Quitéria, que
valorizaram a atuação profissional no cotidiano do CR pautada nas emoções:

Atuo com o coração, e o profissional, na hora necessária coloco em prática, vou pelo momento,
porque são pessoas muito sensíveis, que percebem você enquanto ser humano. Na semana
passada, por exemplo, eu não estava bem, eles perceberam e me acolheram, então foi o contrário
(Joana).

A categoria atuação com usuários em grupo foi exemplificada pelo relato de Luisa, que descreveu
seu trabalho no coletivo, com as intervenções da área de artes (música) voltadas para o
relacionamento interpessoal e para a vivência em grupo:

Atuo no coletivo, toco com todos, percebo como está a relação interpessoal entre eles ... alguns tem
um pouco mais de dificuldade em aceitar o jeito que o outro toca e critica, então faço as
intervenções: 'você percebe como estão as suas relações? ' Porque a gente vê como eles atuam em
um minigrupo, é a forma como eles atuam no dia a dia.

Aspectos facilitadores do trabalho

Nesse eixo temático buscou-se investigar as facilidades do trabalho, na ótica dos participantes. A
maioria dos entrevistados relatou que existem mais dificuldades do que facilidades, mas identificaram
aspectos que facilitam esse trabalho, os quais foram definidos em seis categorias. A primeira
categoria – perfil/sensibilidade do profissional para o trabalho – teve relatos de seis participantes, que
destacaram a importância do perfil para atuação nessa modalidade de dispositivo, bem como a
sensibilidade e disponibilidade interna dos profissionais para enfrentarem desafios cotidianos,
exemplificada por trecho da fala de Bárbara: “... quem trabalha na rua tem uma sensibilidade maior,
então um profissional é sensível ao outro, à dor do outro, é um profissional flexível, geralmente quem
trabalha na rua tem que ter bastante humanidade...".
Quanto ao trabalho em equipe, essa categoria teve a contribuição de quatro entrevistados, com
narrativas sobre a importância do trabalho interdisciplinar, onde os saberes e especificidades de cada
profissão se completam e os profissionais trabalham com a visão do ser humano de forma integral:

A principal facilidade pra mim é a equipe, uma equipe fora de série, diversas profissões, no sentido
de formação, estão representadas aqui. Têm médicos, enfermeiros, atores, assistente social, então
nós temos uma equipe bem plural no sentido de formação e de visão do outro, é muito
complementar. É uma equipe que funciona, porque apesar das suas particularidades e
individualidades é uma equipe que se complementa, é bastante motivada, interessada, disponível,
acessível (Bento).

A categoria atuação da equipe com base nos direitos humanos emergiu no relato de Bárbara, ao
ressaltar a importância do trabalho do CR voltado para a garantia dos direitos humanos dos usuários
de SPA em situação de rua: “Enquanto facilidade eu acredito que devemos defender os direitos
humanos, portanto, os profissionais que lidam com esse público, em todo o momento, têm que se
lembrar de que eles têm esses direitos e que precisam ser efetivados.”
A construção de vínculo/confiança com os usuários teve ocorrência nos relatos de três
participantes, quando destacaram a importância e necessidade do vínculo e confiança dos usuários
com a equipe para facilitar a aproximação e produção de cuidados para essa clientela, exemplificada
na fala de Francisco:

... com todo afeto que a equipe tem acaba atingindo essas pessoas no ponto mais frágil dela, isso
faz com que ela desperte para a construção do vínculo, da confiança .... É um desafio, mas a gente
tem as principais armas, que é o afeto, a escuta, o cuidado.

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Quanto à categoria redução de riscos e danos à saúde, evidenciou-se o relato de Garibaldi, que
valorizou como aspecto facilitador as ações que podem contribuir para a reinserção familiar e social
(trabalho, escola), mediante a retirada da pessoa da rua e, ainda, a redução do consumo de SPA:
“porque as facilidades e as recompensas que a gente tem é a retirada dessa pessoa da rua, a
diminuição do consumo de droga, a reinserção familiar, a reinserção no possível mercado de trabalho,
a reinserção na escola”.
Com relação à categoria não tem facilidades, o relato de Quitéria foi ilustrativo, ao afirmar que
enfrenta muitas dificuldades e desafios no trabalho do CR e, portanto, não percebia nenhuma
facilidade: “Olha eu não sei quais são as principais facilidades não, eu nem sei se tem alguma
facilidade, eu acho que é muito difícil”.

Aspectos dificultadores do trabalho

Esse eixo buscou analisar as dificuldades do trabalho, segundo os participantes, o que culminou
em seis categorias. A primeira delas – sofrimento pela falta de respeito aos direitos humanos dos
usuários – teve relatos de três profissionais que reportaram seu sofrimento cotidiano diante de
situações vivenciadas pelos usuários, em que os direitos humanos são desrespeitados, merecendo
destaque o relato de Bárbara:

As dificuldades aparecem quando a gente vê que os direitos não são respeitados ... um direito do
ser humano, que existe uma constituição que assegura isso através do artigo 227, ... quando a
gente vê que isso não é respeitado, por quem deveria de fato efetivar esses direitos, isso gera um
sofrimento em cada um de nós, principalmente em mim.

Quanto à categoria esforço e luta da equipe para suprir necessidades dos usuários, observou-se a
fala de Luisa: “Tudo é com muita luta, muita garra, muita briga, eu acho que tem muito a questão da
gratificação pra gente”.
A atuação agressiva da Polícia Militar e da Guarda Municipal foi a categoria que obteve maior
frequência de menções, com seis relatos, que fizeram referência a ações violentas de membros
dessas instituições da segurança pública: “a maior dificuldade que encontro é a atuação dos policiais
e da guarda municipal, pois todos os dias quando chegamos na rua tem reclamações de moradores
que foram agredidos ... é uma agressão contínua” (Joana).
Com relação à categoria dificuldade de atendimento dos usuários nas unidades de saúde,
observou-se a contribuição de quatro participantes, quando descreveram as dificuldades para
atendimento da população atendida pelo CR em serviços de saúde. Dentre as situações relatadas,
merece destaque a questão das normas estabelecidas para atendimento, bem como a falta de
flexibilidade diante de situações peculiares, mencionadas por Francisco:

Quanto a dificuldades, eu acho que é da própria cultura da rua, da sociedade, o próprio serviço, o
SUS, a forma como ele funciona na prática. As unidades de saúde que não estão prontas para
receber o morador que está na rua, não tem endereço, não tem documento, não tem sequer a
higiene básica pra chegar na unidade de saúde, com a sua assepsia.... E ele não é bem recebido,
porque acaba sendo um ente desagregador da norma, ele acaba sendo visivelmente o desviante da
situação, e incomoda a todos.

Na categoria preconceito e falta de aceitação do usuário pela sociedade civil, os relatos de dois
participantes se destacaram, ressaltando a questão do preconceito pela sociedade em relação a
pessoas que fazem uso de SPA e que estão em situação de rua, como descrito na fala de Bento:

A principal dificuldade que a gente observa é justamente essa disposição dos outros em mudar a
concepção ... no sentido de quebrar um pouco esse preconceito, seja em relação à pessoa
moradora de rua, ou a pessoa usuária de drogas, que muitas vezes são as mesmas pessoas.
Quebrar essa barreira de compreensão, a pessoa deve ver além daquela situação, ver que tem uma
pessoa. Mas isso não depende da gente (da equipe do CR).

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Na categoria falta de insumos e materiais para atuação da equipe, que apareceu na fala de Anita,
houve menção à ausência do kit de redução de danos e do uniforme para a equipe, o que acarreta
transtornos no cotidiano do trabalho e na realização de ações pelos profissionais do CR.

O kit de redução de danos foi pedido em fevereiro, março, antes de inaugurar oficialmente o CR. E
também o uniforme para a equipe, até hoje não tem, agora a gente resolveu fazer por conta própria,
falta a questão de recursos menores. Tem outros recursos maiores que é o pagamento dos
profissionais, gasolina, motorista, mas os menores que também teriam de estar disponíveis, pela
burocracia da própria Secretaria, a gente não tem.

Apoio necessário para o trabalho

Os profissionais relataram o apoio necessário para realização do trabalho, bem como de suas
atividades cotidianas. Foram encontradas quatro categorias. Nesse eixo temático, as falas fizeram
críticas a precariedades de determinados apoios. Com relação ao apoio das entidades/instituições
parceiras, foram identificados cinco relatos, nos quais os participantes assinalaram a importância do
apoio das parcerias para o desenvolvimento das ações e encaminhamentos diários da população
atendida, tal como verbalizado por Joana:

a gente precisa estender as parcerias, eu percebo que o Consultório, a equipe está lutando muito,
mas essa rede como um todo, inclusive a Secretaria Municipal de Saúde, não investe tanto como
deveria ..., então a Secretaria, o Ministério e o Estado, a população precisam ver isso, e a gente
precisa gritar e mostrar o que está acontecendo, mas precisa de parcerias, e que se estendam
essas parcerias. É preciso ir além.

Quanto ao apoio da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia, essa categoria consolidou-se com
relatos de quatro participantes ao ressaltarem que, para a realização de ações e estratégias do CR, é
imprescindível o apoio da Secretaria Municipal em todos os âmbitos, níveis e serviços do SUS no
município. Dentre as falas, há destaque para a de Anita:

Há que se pensar em haver maior agilidade nesses processos de aquisição de insumos, que o CR
precisa de água, o kit de redução de danos, uniformes, um apoio seria da própria Secretaria para
agilizar esses processos burocráticos, porque a equipe fica vulnerável em situações que a gente
precisava de mais rapidez, o que pode atrapalhar o nosso trabalho.

A categoria apoio da sociedade apareceu no relato de Quitéria, que ressaltou a importância desse
apoio para a atuação do CR: “nós temos muitas necessidades para funcionar bem, como apoio da
sociedade de uma forma geral, respeitar esse trabalho, essas pessoas que estão em situação de rua,
do apoio da polícia, da guarda municipal, da Secretaria de Assistência Social”.
Quanto ao apoio para melhores condições de trabalho, essa categoria incluiu o relato de Quitéria,
ao referir a importância da melhoria das condições de trabalho para o CR:

O CR sem o carro, e sem material para fazer curativo, não funciona. Então esse é um apoio que a
gente precisa, que tem mais ou menos o apoio de rede, porque como a gente atua na questão da
lógica do SUS, em relação à saúde, então nós precisamos da rede inteira.

Entrevistas com usuários atendidos pelo CR

Cinco eixos temáticos e suas categorias são apresentados, exemplificados com trechos de relatos
dos participantes.

O primeiro contato com a equipe

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Esse eixo temático buscou verificar, a partir da percepção dos usuários, como foi o primeiro
contato com a equipe do CR. Foram identificadas quatro categorias. Na primeira delas, demanda por
cuidados de saúde, a fala de Dandara foi ilustrativa ao destacar a sua necessidade de atenção
específica:

Na época nós duas estávamos grávidas, eu estava no começo de gestação, de três meses, não
queria fazer pré-natal, mas eu vi que eram coisas que poderiam fazer bem pra mim e até pra minha
criança, na situação em que eu me encontrava, pra mim foi ótimo.

Na categoria por causa da apresentação e das informações sobre o CR, dois relatos se
destacaram, tal como exemplificado na fala de Dandara: “Ah, quando começou, eles chegaram e
conversaram com a gente; chegou a mim e perguntaram e explicaram (sobre o CR)”.
Com relação a pensaram que era a polícia disfarçada, essa categoria foi observada na fala de
Veridiana, que relatou seu receio, bem como de outros usuários, acerca da possibilidade dos
profissionais do CR serem policiais disfarçados:

A gente pensa que é polícia disfarçada, mas chegaram fazendo amizade com a gente, conversando
um tempão, que não é aquilo que a gente estava pensando, que eles eram pessoas de bem, ai
foram acalmando nossos corações; depois nossos corações começou a abrir, a gente começou a
conversar com eles, achei muito bom.

Quanto à categoria usuário não quis, não aceitou, o relato de Palmares é ilustrativo ao falar sobre
a sua impaciência no dia da abordagem e que não aceitou o primeiro contato: “esse contato foi, só
que eu estava impaciente e não quis”.

A atuação dos profissionais do CR

Esse eixo buscou analisar a atuação dos profissionais do CR, segundo a percepção dos usuários,
o que culminou em quatro categorias. A primeira – CR atua em horários e dias definidos – apareceu
na fala de Dandara, destacando que o CR atua em horários e dias previamente estabelecidos: “são
horários certos, dias definidos, e o atendimento é bom, são pessoas boas”.
Na categoria melhora a vida e reduz riscos e danos à saúde, a fala de um participante mostrou as
características do trabalho do CR voltado para as mudanças de comportamento que influenciam na
melhoria de vida, bem como as ações de RD: “Foi muito bom, está ajudando a gente a sair dessa vida.
Graças a Deus estou conseguindo, porque eu era usuário de crack, estou mais quieto por causa do
Consultório de Rua” (Cruz e Souza).
Quanto à categoria CR oferece carinho e cuidado, três entrevistados mencionaram a presença de
carinho e atenção da equipe do CR para com eles, de acordo com o relato de Cruz e Souza: “porque é
igual uma mãe pra gente, e para as coisas da gente tem uma atenção muito carinhosa com todos nós
que mora na rua”.
Com relação à equipe do CR conversa com os usuários, essa categoria emergiu no relato de
Veridiana, ao falar do diálogo e da comunicação entre a equipe e os usuários de SPA em situação de
rua: “a gente começou a conversar com eles, achei muito bom. São umas conversas assim que a
gente vê, que não são aquelas pessoas que vão fazer mal pra gente, só querem o bem da gente”.

O mais interessante nesse trabalho

Nesse eixo temático procurou-se investigar o que era mais interessante no trabalho do CR, na
ótica dos usuários, o que resultou em três categorias. A categoria preocupação e dedicação da equipe
com os usuários emergiram nas falas de três usuários, ao descreverem o trabalho do CR voltado para
a dedicação, carinho e preocupação com eles: “assim, eu acho a dedicação que eles tem pela gente,
e a preocupação, pois eles preocupam muito com a gente” (Veridiana).
A perseverança do CR emergiu no relato de Dandara, que ressaltou a importância da
perseverança e do envolvimento dos profissionais do CR para o sucesso do trabalho cotidiano:

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a perseverança quando eles veem que a pessoa quer esforçar ... eles veem que a pessoa quer
ajuda, porque a pessoa tem estilo diferente, uma às vezes é ignorante, ... mas quando eles veem
que a pessoa aceita de bom coração, eles continuam, eles são perseverantes.

A categoria encaminhamentos e resolução das demandas dos usuários surgiram no relato de


Dandara, ao falar da importância da equipe viabilizar os encaminhamentos necessários e buscar a
resolução das demandas: “É dando bom dia normal, vamos resolver o que tem que resolver, marcar,
quando não está em relação a marcar, conversas, assim, vendo a situação da pessoa”.

Atendimentos recebidos com apoio do CR

Esse eixo temático buscou identificar quais foram os atendimentos recebidos no CR, em outras
unidades ou instituições da rede de atenção, culminando em quatro categorias. A categoria
atendimento com dentista apareceu na fala dos entrevistados, que valorizaram a importância desse
tipo de atendimento e do trabalho diferenciado do dentista, como descreveu Palmares:

O dentista, ali é maravilhoso, não precisa nem de aplicar anestesia para arrancar dente ..., que em
vez de você chorar, você faz é rir, ele brinca com a gente, ai vai tratando ... nos tocamos, nós
pulamos amarelinha lá no Novo Mundo, tirou foto lá pulando amarelinha. Ele é sangue bom, ali vou
falar a verdade, é filho de Deus também.

A categoria atendimento na Maternidade Nascer Cidadão foi evidenciada nas falas de Dandara e
Veridiana, ao descreverem as ações da equipe em suas necessidades relativas à gestação:

Passei mal quando eu perdi o neném, na época quase morro, se não fosse por eles, e a doutora
mesmo falou, mais dois dias que eu tivesse ficado na rua, eu tinha morrido. Que deu hemorragia
duas vezes, da 1ª vez eles me levaram, porque eu tinha perdido neném, fizeram a curetagem, já
estava com hemorragia, ai voltei, até a D. (profissional do CR) foi mais eu, que enquanto fiquei
internada ela não saiu de dentro do hospital (Veridiana).

A categoria atendimento na Casa da Acolhida apareceu na fala de Cruz e Souza, ao mencionar


esse atendimento e a importância da intervenção da equipe do CR para que conseguisse a vaga:
“arrumou a Casa da Acolhida, até hoje agradeço muito, e peço a Deus por eles. Me ajudou depois que
apanhei da polícia, eles me acolheu, e eu tenho um carinho muito grande por eles”.
Com relação ao atendimento no mutirão da SEMAS, houve um relato de Veridiana, que descreveu
os procedimentos e orientações recebidos durante esse mutirão, feito especificamente para a
população em situação de rua:

Nesse mutirão, eu fiz uns exames, falei com a doutora, que eu estou com altos problemas, só
conversei com a Q. (profissional do CR) sobre os meus problemas e ai ela sumiu. E o que eu fiz no
mutirão umas papeladas, que não é a A. aqui do Consultório de Rua, é a A. (funcionária) da
SEMAS, pegou meus papel, diz ela que entregou não sei pra quem, do Consultório de Rua.

Apreciação sobre os atendimentos recebidos

Esse eixo buscou analisar como foram os atendimentos recebidos na percepção dos usuários,
bem como o que gostaram e não gostaram, o que resultou em duas categorias: gostou do
atendimento e às vezes a equipe demora a vir. Na categoria gostou do atendimento, houve relato dos
quatro participantes, com destaque para as falas de Palmares e Cruz e Souza, respectivamente:
“gostei de tudo, é maravilhoso" e “todas eu gostei”.
A categoria às vezes a equipe demora a vir apareceu no relato de Veridiana, ao reclamar da
demora da equipe para visitá-la:

às vezes eles esquece de vim ver nós, e ai eu fico com raiva, somem, parece que esquece da
gente, parece que tem gente mais importante pra lá, pro outro lado. Assim como eles mesmo

Psicologia em Estudo, Maringá, v. 20, n. 1 p. 57-69, jan./mar. 2015


Consultório na rua 67

explica, às vezes nós tá aqui, tem gente passando mal, com mais problemas, mais graves, ai a
gente até releva, mas passar aqui, dá um oi pelo menos, está bom.

Discussão

A partir dos aspectos presentes nos relatos dos dois segmentos participantes do estudo, pode-
se identificar a consonância entre as percepções relacionadas às ações desenvolvidas pelo CR no
que se refere à construção de vínculo, ao processo de escuta e acolhimento e à atenção à saúde dos
usuários na perspectiva da redução de danos. Essa congruência entre os relatos dos profissionais e
dos usuários em aspectos que caracterizam a atuação do CR demonstra sintonia entre o que é
realizado pela equipe e o que é recebido pelas pessoas atendidas nesse dispositivo do SUS,
expressão da equidade das ações e da prioridade aos direitos humanos, aspectos preconizados nas
políticas públicas direcionadas à essa população (Brasil, 2010).
A composição das categorias, a partir da análise dos relatos, permite concluir que o trabalho
do CR no município estudado está em consonância com os princípios do SUS, em especial a
universalidade, a equidade e a atenção integral ao usuário de SPA. A proposta de atender in loco,
indo ao encontro das pessoas em seu espaço na rua, representa a concretização do princípio da
universalidade. É importante ressaltar que muitas unidades de saúde do SUS costumam infringir o
direito ao acesso universal para populações estigmatizadas, em função de barreiras diversas, em
especial as de cunho burocrático – como a exigência de documentos pessoais para o atendimento –,
além do preconceito em relação a pessoas usuárias de substâncias psicoativas em situação de rua.
Essas barreiras também foram observadas por Souza, Pereira e Gontijo (2014), em estudo realizado
com a equipe de um CR na região metropolitana de Recife. Outra dificuldade citada por esses autores,
também observada no presente estudo na ótica dos profissionais, foi a falta de insumos e materiais
para atuação da equipe, aspecto que amplia os desafios enfrentados no território e pode prejudicar a
qualidade da atenção disponibilizada.
A categoria atuação focada nas demandas dos usuários exemplifica diretrizes do CR com foco em
RD como formação de vínculo, atenção integral ao usuário de SPA e respeito aos direitos humanos.
Assim, as ações do CR eram voltadas para as necessidades da população atendida, a partir de escuta
qualificada e da valorização do sujeito. Em consonância, os usuários respaldaram a percepção dos
profissionais acerca de sua própria atuação ao relatarem fatos e vivências que compuseram
categorias como encaminhamentos e resolução das demandas, preocupação e dedicação da equipe
com os usuários e o eixo temático atendimentos recebidos com apoio do CR. Pesquisas sobre práticas
de saúde em consultórios de rua, realizadas nos municípios de Olinda, Recife e Maceió, encontraram
resultados semelhantes no que tange à construção de vínculo, escuta e integralidade da atenção,
aspectos tidos como essenciais no trabalho das equipes dos CR com base em redução de danos
(Jorge & Conradi-Webster, 2012: Silva, Frazão, & Linhares, 2014).
Outro aspecto indispensável – condição sine qua non
uma equipe multidisciplinar. Categorias expressaram essa dimensão quando abordaram as facilidades
oriundas do trabalho em equipe e a atuação em equipe no eixo temático atuação profissional do CR,
reforçando a relevância da articulação e do apoio entre os profissionais, de modo a propiciar
segurança e confiança para a realização do trabalho na rua, minimizando os desafios dessa prática. O
perfil dos profissionais que compunham a equipe do CR merece destaque, pois estes possuíam
experiência anterior na área de saúde mental, com população em situação de rua e/ou em redução de
danos, facilitando a atuação da equipe de Goiânia, aspecto não observado no estudo conduzido por
Jorge e Conradi-Webster (2012) junto à equipe do CR de Maceió.
Alguns desafios e dificuldades relevantes ficaram evidenciados no trabalho da equipe, dentre eles
a própria novidade do dispositivo de atenção, tanto para os profissionais quanto para os usuários, bem
como para a sociedade em geral. Para os profissionais, é o atendimento em espaço aberto, em
serviço móvel, sem agenda, muitas vezes sem privacidade e equipamentos: é o consultório sem
consultório. Portanto, essa nova forma de atendimento se constitui em desafio diário para a atuação
profissional.

Psicologia em Estudo, Maringá, v. 20, n. 1 p. 57-69, jan./mar. 2015


68 Lima & Seidl

Dentre os desafios que indicam a fragilidade na articulação intersetorial está a violência de setores
que deveriam ser parceiros, como os da área de segurança pública, aspecto evidenciado em falas de
profissionais e de usuários. O fortalecimento da rede intersetorial para favorecer uma mudança
cultural que reduza preconceitos e permita a atuação efetiva de um serviço como o CR – além da
articulação cotidiana e contínua com outros setores públicos como assistência social, educação e
segurança pública –, são estratégias fundamentais para a minimização das barreiras referidas,
aspecto também evidenciado por Jorge e Conradi-Webster (2012). Ademais, há necessidade de
melhor articulação intrassetorial, pois dificuldades de acesso a unidades de saúde do SUS municipal
também foram referidas pelos dois segmentos de participantes.
Pode-se afirmar que os objetivos da pesquisa foram alcançados, mas é importante considerar que
ocorreram limitações que apontam para a relevância de estudos futuros. Pesquisas com número maior
de profissionais e usuários, com processo de seleção de participantes que permita alguma
aleatoriedade, pode ser interessante para minimizar efeitos de desejabilidade social, ou seja, quando
o entrevistado verbaliza e responde com base na perspectiva do pesquisador. Estudos
observacionais, com estratégias como a observação participante, podem aportar dados valiosos em
investigações sobre modos de atuação de dispositivos inovadores como o CR. Quanto às entrevistas
realizadas com os usuários, destacam-se como limitações: número reduzido de participantes, estes
terem sidos indicados pela equipe, os quatro usuários aceitaram o atendimento do CR, mantinham
adesão e vínculo com a equipe. Esses aspectos podem ter influenciado a avaliação muito positiva da
atuação do CR no presente estudo.

Considerações Finais

Os resultados do estudo vão ao encontro de constatações importantes, dentre elas: a legislação e


as políticas públicas no Brasil nessa área parecem consolidadas e voltadas para a prioridade da
atenção integral e humanizada a usuários de SPA; existem serviços como os CR que atuam de
acordo com os princípios da PNRD e da Política Nacional de Saúde Mental; o trabalho é realizado em
equipe multidisciplinar e há prioridade para o vínculo da equipe com a clientela atendida. Alguns
marcos importantes do CR emergiram no relato dos profissionais e foram reafirmados nas falas dos
usuários, como a questão do afeto e do vínculo, o que pode garantir a adesão, bem como a aceitação
e a continuidade dos atendimentos pelo CR. É importante ressaltar que a reinserção social, bem como
a reabilitação desses usuários, são processos de construção permanentes, centrados em princípios
norteadores como atenção integral, ações intra e intersetoriais, atendimento multiprofissional, ética e
respeito aos direitos humanos.
Pesquisas realizadas em outros Estados como Pernambuco e Alagoas retrataram resultados
semelhantes aos do presente estudo, dentre eles o trabalho do CR estar em consonância com o que
preconiza o MS e a RD, preconceito com a população atendida, dificuldades na articulação
intersetorial e no atendimento em unidades de saúde do SUS. Diante desse cenário, é imprescindível
que essas pesquisas possam ser norteadoras para mudanças nas políticas públicas atuais, bem como
contribuir para a transformação e melhoria nos serviços de saúde, prioritariamente em dispositivos
como os CR.

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& A. L. R. Valério (Eds.), Módulo para capacitação dos

Helizett Santos de Lima: mestre em psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Processos de Desenvolvimento
Humano e Saúde da Universidade de Brasília; servidora efetiva da Prefeitura Municipal de Goiânia, Brasil.

Eliane Maria Fleury Seidl: doutora em psicologia; docente do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília em
nível de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) no Programa de Pós-graduação em Processos de
Desenvolvimento Humano e Saúde; bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.

Psicologia em Estudo, Maringá, v. 20, n. 1 p. 57-69, jan./mar. 2015


ISSN 0104-4931
Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 145-152, 2014
http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.039

Desenvolvendo e articulando a rede intersetorial

Experiência
Relato de
para cuidado integral de usuários de drogas
em contextos de vulnerabilidade
Maria de Nazareth Rodrigues Malcher de Oliveira Silvaa, Vagner dos Santosa,b,c,
Josenaide Engracia dos Santosa,d, Flávia Mazitelli de Oliveiraa,
Douglas José Nogueirae, Andrea Donatti Gallassia
a
Curso de Terapia Ocupacional, Faculdade Ceilândia – FCE, Universidade de Brasília – UnB, Ceilândia, DF, Brasil
b
Programa Dynamics of Health and Welfare, École des Hautes Études en Sciences Sociales, França
c
Linköping University, Suécia
d
Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília – UnB, Brasília, DF, Brasil
e
Curso de Enfermagem, Universidade Federal de Goiás – UFG, Goiânia, GO, Brasil

Resumo: Este manuscrito apresenta um relato de experiência com algumas atividades do Centro de Referência
sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da Universidade de Brasília – Faculdade Ceilândia (CRR/FCE/UnB)
implementadas e desenvolvidas durante o ano de 2013. Este relato permite a reflexão sobre o processo de construção
de parcerias baseadas na rede social e na noção de território para cuidado daqueles com problemas relacionados
ao uso de drogas e as vulnerabilidades associadas. Esta experiência segue o atual marco da prática e da política
nacional (p. ex., lei 10.216/2001), nas quais se estabelecem as mudanças no modelo de cuidado integral de pessoas
com transtornos mentais, inclusive aquelas em sofrimento pelo uso de álcool e outras drogas. Inicialmente, a equipe
do CRR/FCE/UnB mapeou a rede social local (instituições públicas de diferentes setores) de quatro municípios,
sendo uma delas no Distrito Federal (Brazlândia) e três no estado de Goiás (Valparaíso, Luziânia e Águas Lindas).
Após o mapeamento, a equipe do CRR buscou articular e estabelecer uma agenda de discussão sobre os problemas
relacionados ao uso de álcool e outras drogas e suas vulnerabilidades associadas entre as diferentes instituições, setores
e profissionais (p. ex., enfermeiros, médicos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, policiais). Essa estratégia
possibilitou a capacitação de diversos atores para o desenvolvimento e qualificação da sua rede intersetorial que,
consequentemente, qualifica as ações de cuidado integral, conforme recomendado por inúmeras políticas nacionais.
Palavras-chave: Saúde Mental, Drogas, Vulnerabilidade Social.

Developing and articulating intersectorial networks for integral care of drug


users in vulnerable contexts

Abstract: This manuscript presents an experience report with some activities that the Reference Center on Drugs and
Associated Vulnerabilities - CRR, ‘Faculdade Ceilândia’/University of Brasilia - UNB implemented and developed
in 2013. This account allows us to reflect on the process of building partnerships based on social networks and the
notion of territory for people with problems related to drugs and their associated vulnerability. The experience follows
the current national framework, in which the social network has become a central paradigm of public practices
and policies (e.g. Law 10.216/2001). These changes occur in the model of care for people with mental disorders,
including the integral health policy for users and dependents of alcohol and other drugs. The CRR team mapped
local social networks, i.e. several public institutions in different sectors, in four municipalities: one in the Federal
District (Brazlândia) and three in the state of Goiás (Valparaiso, Luziânia, Águas Lindas). After the mapping, the CRR

Autor para correspondência: Nazareth Malcher, Faculdade de Ceilândia, Universidade de Brasília, Centro Metropolitano, Conjunto A, Lote 01,
CEP 72220-900, Ceilândia, DF, Brasil, e-mail: malchersilva@unb.br
Recebido em 30/8/2013; Revisão em 20/2/2014; Aceito em 4/5/2014.
146 Desenvolvendo e articulando a rede intersetorial para cuidado integral de usuários ...

team sought to articulate and establish an agenda to discuss alcohol and drug use and its associated vulnerabilities
among these different institutions, sectors and professionals, e.g. nurses, physicians, occupational therapists, social
workers, and police officers. This strategy enabled several actors to develop and qualify their local intersectorial
network, which consequently qualifies the integral care actions, as recommended by several national policies.
Keywords: Mental Health, Drugs, Social Vulnerability.

1  Introdução substitutivos aos hospitais psiquiátricos, de base


territorial, comunitária e de abordagem psicossocial,
A palavra rede deriva do latim rete, que significa que estimulem as redes sociais, justificando a
entrelaçamento de fios, cordas, cordéis, arames, importância do cuidado pela clínica da rede, tendo
com aberturas regulares, fixadas por malhas e nós, a comunidade como protagonista desse processo.
formando uma espécie de tecido aberto; conjunto A partir dessa proposta, se amplia a atenção às
de estabelecimentos, agências ou mesmo indivíduos, pessoas com problemas relacionados ao abuso de
que se destina a prestar determinado tipo de serviço, álcool e outras drogas nas políticas de saúde mental
entre outras aplicações do termo (FERREIRA, 1999). no Brasil, que seguem com a instituição do Plano
Esse conceito de rede é utilizado por um Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas,
vasto campo, que vai da gestão governamental à em 2010, ampliado em 2011 pelo programa Crack, É
informática, à administração de empresas, à sociologia Possível Vencer, influenciado pela visibilidade que o
e ao campo da psicologia social. tema crack assumiu no país (BRASIL, 2010, 2012b).
O termo rede tem sido expressivamente utilizado Além disso, ainda em 2011 instituiu-se a Rede de
na atualidade, não somente nas políticas públicas de Atenção Psicossocial (RAPS), implantada como
saúde e assistência mas também pelos movimentos uma das quatro redes prioritárias de investimento e
sociais e organizações não governamentais (ONG), ampliação do setor saúde que reforçam a realização
entre outros, tornando-se um dos paradigmas do do cuidado a partir do paradigma da rede social, por
cuidado em saúde que norteiam o pensamento meio da expansão dos serviços de atenção à saúde
contemporâneo. mental, álcool e outras drogas de base territorial,
reforçando o espaço comunitário, a integração e
A lei n. 10.216/2001 (BRASIL, 2004) normatizou
a articulação dos diferentes dispositivos de saúde
a atenção à pessoa com transtorno mental, que deve
ser tratada em liberdade, com seus direitos humanos (BRASIL, 2011).
preservados e tendo garantias do melhor cuidado. Com a expansão da rede de cuidados em saúde
A lei deixa clara a necessidade de se utilizarem mental, álcool e outras drogas a partir da implantação
recursos sociais oferecidos pela comunidade como da RAPS e a ampliação das ações de prevenção e
constituintes do processo de cuidado, ressaltando capacitação sobre álcool e outras drogas pelo programa
que, independente da modalidade de tratamento, Crack, É Possível Vencer, são criados em parceria com
ele deve ser realizado com humanidade e respeito no instituições de ensino superior públicas os Centros
interesse exclusivo de beneficiar a saúde da pessoa Regionais de Referência (CRR), que têm por objetivo
e sua reinserção social na família, no trabalho e na desenvolver ações de capacitação e articulação dos
comunidade. Nesse sentido, a Política de Saúde diferentes setores que atuam na abordagem dos
Mental buscou ampliar a compreensão do problema usuários de álcool e outras drogas, numa perspectiva
para além do sintoma, considerando o contexto e intersetorial de educação permanente sobre prevenção,
suas relações como partes determinantes tanto dos tratamento e redução de danos para os profissisonais
processos de adoecimento quanto de reabilitação. que compõem a rede integral de cuidados. Essa rede
A partir dessa perspectiva, que contextualiza é formada pelos serviços de saúde, de assistência
e particulariza as diferentes manifestações do social, segurança pública, Ministério Público, Poder
sofrimento mental, foi lançada em 2004 a Política Judiciário, e instituições que atendem adolescentes
de Saúde para a Atenção Integral a Usuários de em cumprimento de medidas socioeducativas.
Álcool e outras Drogas (BRASIL, 2004), delineada A combinação de estratégias de educação
com foco específico no cuidado das pessoas com permanente, numa perspectiva intersetorial e
problemas relacionados ao abuso de álcool e outras reforçando o protagonimo comunitário a partir da
drogas. Da mesma forma como expresso na Política parceria entre universidade e território, possibilita
de Saúde Mental, esta política também destaca o o fortalecimento e o aprimoramento do cuidado,
estímulo ao cuidado baseado na interação do sujeito que será realizado por equipes mais capacitadas
com o ambiente, por meio da criação de serviços e estimuladas a desenvolver ações em parceria,

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Silva, M. N. R. M. O. et al. 147

considerando os problemas relacionados ao abuso de de um agir pessoal em consonância com o


drogas de forma contextual, integrada e multifatorial, profissional, pelo protagonismo coletivo de
reforçando a necessidade de atuar em rede. mudanças relacionadas ao abuso de drogas e às
O incentivo à construção da rede social como vulnerabilidades, para demandas de bem-estar
modelo para a abordagem no campo da saúde mental e saúde (MALCHER, 2010).
favorece o encontro dessa com a inclusão social, o Dessa forma, a complexidade que permeia o abuso
que poderá ser aliado no cuidado da complexidade de drogas deve ser contextualizada a partir das reais
referente ao abuso de drogas. necessidades do território, deixando o indivíduo
de ser solitário para ser sujeito social, com inserção
2  A rede social e o território cultural, participante de uma sociedade, de suas
redes sociais e de seu cotidiano (VIEIRA FILHO;
A comunidade é um espaço que, de certa forma, NÓBREGA, 2004).
traz influências positivas para a rotina dos serviços Nesse sentido, a promoção cotidiana de relações
e para o cuidado, sendo um lugar confortável e intersetoriais consolida uma rede de serviços e de
aconchegante, onde todos se reconhecem entre cuidados sobre um determinado território por meio
si (BAUMAN, 2003).Viver em comunidade é da conciliação de aspectos comuns, o levantamento
estar disposto a vivenciar a identificação com o das especificidades locais e a possibilidade de buscar
território, criar subjetividade coletiva, sentir-se soluções coletivas sobre a complexidade das questões
seguro e mostrar-se de forma solidária na relação sobre drogas e outras vulnerabilidades.
com os atores da rede social.
Na condição de abuso de drogas, o sujeito
As redes sociais podem ser consideradas espaços vivencia a fragilidade, a ruptura de laços sociais
em que as pessoas contam com suporte e apoio e, consequentemente, o isolamento social e o
emocional, compartilham problemas e tentam distanciamento de sua rede intersetorial.
encontrar soluções, como um sistema de apoio, um
Por outro lado, a complexidade das questões
sistema de modos e elos ou um conjunto de relações
relacionadas ao uso de drogas de um território,
sociais entre pessoas (MÂNGIA; MURAMOTO,
quando esse possui redes intersetoriais bem
2007).
articuladas pelas ações de contratualidades, trocas
A rede social pode ser dividida de duas formas, e suporte, estabelece um espaço físico com demandas
como rede primária constituída pela família, de proteção que auxiliarão os sujeitos em situação
parentes, amigos, vizinhos e colegas e como uma de vulnerabilidade, proporcionando um território
rede secundária, constituída por instituições de com menos fatores de riscos. Porém, por outro
assistência, saúde, educação e comunitários. A rede lado, podem gerar processos mais negativos, que
primária é a estruturação que o indivíduo desenvolve vulnerabilizam e podem levar à institucionalização
no seu campo relacional; os tipos de relação, níveis e ao abandono. Sobre essas configurações mutáveis
de proximidade e apoio nas questões do cotidiano. e contingentes devem interferir os serviços de saúde
A rede secundária é em si a rede de serviços que o mental (MÂNGIA; MURAMOTO, 2007, p. 57).
indivíduo utiliza e que possibilita intervenções de
cuidado em saúde (SLUZKI, 1997).
Nesse sentido, a rede pode atuar no território
3  O abuso de drogas e as
de duas formas: vulnerabilidades associadas
• Com uma atitude técnica, embasada pelos
O abuso de drogas no mundo é um fenômeno de
diversos setores, como ações da comunidade,
interação multifatorial, baseado na exposição repetida,
organizações não governamentais e setores por fatores biológicos e ambientais, necessitando
públicos, normatizados pelas políticas de saúde, uma abordagem compreensiva com diversidade
segurança e assistência social; de intervenções farmacológicas e psicossociais, de
• Como um agir conceitual do momento social, acordo com as diferentes formas de manifestação do
questionador do socialmente instituído, problema (UNITED...; WORLD..., 2008).
por meio da necessidade, além das ações O abuso de drogas, portanto, mostra-se como um
delineadas pelos programas específicos, processo complexo, baseado no padrão de consumo,
indo ao encontro para uma busca coletiva no contexto do indivíduo e no ambiente. Dessa
na mediação dos problemas do território. forma, para se promover estratégias de cuidado e
Ou seja, compreendendo uma necessidade prevenção deve-se considerar, além do problema

Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 145-152, 2014
148 Desenvolvendo e articulando a rede intersetorial para cuidado integral de usuários ...

sobre o consumo em si e suas consequências, como de segurança pública e diminuição de atividades


os aspectos clínicos e sociais ou o tráfico de drogas, comunitárias. Nessa situação, a comunidade sente-se
a complexidade de acordo com cada ciclo de vida, os enfraquecida e incapaz de protagonizar ações para
quais apresentam diferentes necessidades e demandas, enfrentar as demandas de saúde, uma vez que os
o que, consequentemente, requer uma diversidade na atores estão inseguros e com dificuldades de promover
oferta de abordagens terapêuticas (BRASIL, 2012a). mudanças, sendo o medo um dos fatores responsáveis
Sabe-se que apesar da variedade de tipos de drogas pelo processo de desempoderamento.
e suas ações específicas no organismo – sendo o Portanto, as estratégias de enfrentamento não
crack um dos atuais motivadores do alerta sobre podem ter como foco o consumo de drogas em si, mas
as condições de tratamento na rede de atenção no os processos de vulnerabilidade relacionados, tanto
Brasil –, o abuso de álcool e outras drogas promove no que se refere à diminuição dos fatores de risco
um processo de desorganização do indivíduo, de quanto no fortalecimento dos fatores de proteção.
sua rede significativa e do território, para além do
aspecto meramente fisiológico. Esse processo pode 4  A vivência na construção da
ser compreendido a partir dos fatores de risco e
proteção. São considerados fatores de proteção rede intersetorial no território
aqueles que promovem uma demanda de saúde com questões de drogas e
e bem-estar, enquanto os fatores de risco são os
aspectos que promovem estímulos para demandas
vulnerabilidades associadas
de doença e de consumo de drogas. Esses fatores são por meio das ações do CRR/
diversos, subjetivos e singulares de cada indivíduo FCE/UnB
e território, de acordo com os domínios individual,
comunitário e familiar. A partir do edital de chamamento público para
A partir da preponderância dos fatores de risco, a criação dos Centros Regionais de Referência para
o sujeito, a rede e o território são afetados pelos Formação Permanente da Rede Integral – CRR, no
problemas relacionados ao abuso de drogas e, âmbito das universidades públicas, lançado em 2012
consequentemente, por processos de vulnerabilidade. pelo Ministério da Justiça, por meio da Secretaria
Processos de vulnerabilidade são condições Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD/MJ),
específicas, em seus diversos aspectos, e é difícil a Universidade de Brasília – Faculdade Ceilândia
manejá-las de forma estratégica. Nesse sentido, (CRR/FCE/UnB) compôs o terceiro CRR do Distrito
a condição de vulnerabilidade está relacionada à Federal e o segundo da UnB, com estratégias e
situação das pessoas e famílias no que se refere à objetivos instituídos pela política de enfrentamento
sua inserção e estabilidade no mercado de trabalho, ao crack e outras drogas.
à debilidade de suas relações sociais e ao grau de A especificidade do CRR/FCE/UnB está
regularidade e qualidade de acesso aos serviços relacionada ao território escolhido para a formação
públicos ou outras formas de proteção social dos profissionais e à metodologia utilizada: foram
(BRASIL, 2012a). selecionados municípios da Rede Integrada de
Nas questões relacionadas ao abuso de drogas, Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno
a vulnerabilidade impacta os indivíduos, a rede (RIDE/DF) e adotado o uso de atividades práticas
significativa e o território em si; a cada um, esse abuso in loco como potencializadoras do aprendizado
promove vulnerabilidades diversas e singulares nos teórico dado em sala de aula.
campos biológico, psicológico e social, manifestadas Segundo a Superintendência do Desenvolvimento
como sintomas clínicos, processos patológicos, do Centro Oeste (SUDECO), a RIDE-DF foi
comorbidades, problemas comportamentais, déficits regulamentada pelo decreto n. 7.469 (4/5/2011)
pessoais e relacionais, rupturas e perdas familiares, (2013) para integração e articulação das Regiões
problemas legais, dificuldades financeiras, perda de Administrativas do Distrito Federal com os estados
emprego, comportamentos sexuais de risco, situações de Goiás, Minas Gerais, em diferentes áreas. Essa
de violência, descompromissos com o cotidiano de rede integrada abrange uma região de 55.434,99
atividades e perda de referencial social de moradia, km2, sendo sua população de aproximadamente 3,7
entre outros. milhões de habitantes. Essa área apresenta um grande
No território, as vulnerabilidades relacionadas fluxo migratório – DF para GO e vice-versa – com
ao abuso de drogas são o tráfico e a violência a ele situações de altíssima vulnerabilidade relacionadas
associada, vínculos enfraquecidos com as autoridades ao uso de crack, álcool e outras drogas e à violência.

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Silva, M. N. R. M. O. et al. 149

Dos municípios que compõem a RIDE-DF, entanto é visível a necessidade do desenvolvimento de


foram selecionados Luziânia, Valparaíso e Águas estratégias especificas para esse grupo populacional, de
Lindas, pertencentes ao estado de Goiás. Além modo a contribuir para minimizar as iniquidades na
desses, foi selecionada a Região Administrativa região, em busca de uma comunidade mais saudável.
de Brazlândia, a mais distante do Distrito Federal A atuação do CRR/FCE/UnB nessas localidades
e que está localizada próxima aos municípios da possibilitou a construção de parcerias entre elas e a
RIDE-DF. Esses locais apresentam características Universidade de Brasília como espaço formador e
em comum, como acentuada desigualdade social em incentivador da clínica da rede, permitindo minimizar
relação ao centro de Brasília (chamado Plano Piloto), as restrições impostas pelas fronteiras administrativas
exposição a diferentes situações de vulnerabilidade, ao processo de capacitação dos profissionais, e
além da distância geográficas do centro, e que,
promovendo a diminuição das desigualdades e a troca
consequentemente, necessitam de ações de políticas
de experiências sobre ações para o enfrentamento
públicas em diferentes campos.
dos problemas relacionados ao abuso de drogas.
Com relação às características gerais e à
A equipe que compõe o CRR/FCE/UnB é
problemática das localidades, no que se refere à
bastante diversificada, com discentes e docentes
questão do abuso de drogas, é importante descrever
da própria UnB e de outras instituições de ensino,
os seguintes aspectos:
técnicos administrativos e colaboradores externos. Os
• São regiões distantes dos centros de decisão docentes da UnB atuam no CRR como profissionais
política. Dessa forma, a população não conta de referência dos territórios designados, objetivando
efetivamente com todos os serviços públicos e, mapear o panorama de atuação das instituições
na sua maioria, recorrem a outras localidades. A governamentais e não governamentais envolvidas na
RIDE-DF está localizada a, aproximadamente, atenção aos usuários de drogas, divulgar o trabalho
200 km de distância da capital Goiânia e a 50 desenvolvido e mediar às necessidades específicas
km do centro de Brasília; de cada território.
• As cidades são atravessadas por importantes vias Inicialmente, cada docente de referência do
locais e nacionais de escoamento econômico; território, juntamente com os discentes, realizaram
• A população dessas localidades varia de 54 a 210 uma séria de visitas nas localidades selecionadas,
mil habitantes, sendo Luziânia a mais populosa participando de reuniões nos serviços governamentais
e a de maior desenvolvimento econômico, e não governamentais para divulgar os cursos
considerada a quinta maior cidade do estado desenvolvidos pelo CRR e levantar as demandas
de Goiás; sobre o tema no território; foram realizados contatos
com os gestores, o que garantiu a presença dos
• Todas as cidades apresentam índice de profissionais nos cursos desenvolvidos. Posteriormente
desenvolvimento econômico significativo foram realizadas algumas vivências no território,
através de atividades diversas, com importante com parcerias intersetoriais para possibilitar,
volume agrícola, atividade comercial e portuária progressivamente, constituir-se e fortalecer-se a rede
(porto seco), estimulando uma densidade social para enfrentamento das questões relacionadas
industrial nas proximidades; ao abuso de drogas.
• No que se refere à violência, trata-se de uma Com o objetivo de garantir o envolvimento e o
região de situação preocupante, sendo Luziânia comprometimento dos gestores locais e profissionais
considerada a cidade mais violenta do estado da rede integral com a participação nos cursos,
de Goiás, seguida de Valparaíso e, em quarto foram realizados em cada município dois encontros
lugar, por Águas Lindas (BRASIL, 2011). prévios ao Seminário de Abertura do CRR/FCE/
Nesse contexto de baixa resposta às diferentes UnB e dois encontros prévios a cada um dos cursos
demandas da população, o alto índice de violência (num total de seis) para apresentar a proposta de
e a distorção no desenvolvimento econômico geram capacitação e firmar o compromisso de permissão
problemas comuns às grandes cidades, como abuso para os trabalhadores participarem das atividades.
de drogas e outras vulnerabilidades sociais como O projeto foi muito bem recebido, tanto
desemprego, baixa renda e falta de acesso a serviços pelos gestores quanto pelos trabalhadores, que se
de saúde. mostraram entusiasmados com a possibilidade de
O processo de migração interna ainda é pouco receber capacitação gratuita e oferecida pela UnB,
explorado, assim como suas consequências, no universidade de referência local.

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150 Desenvolvendo e articulando a rede intersetorial para cuidado integral de usuários ...

Os municípios apresentaram os serviços promover um protagonismo coletivo em busca do


governamentais de saúde, assistência social, de bem-estar comum.
segurança pública e Ministério Público, e os não Ao término de aproximadamente três meses, cada
governamentais, como associações de bairro, docente responsável por seu território apresentou um
comunidades terapêuticas, igrejas, entre outros. mapeamento sobre os aspectos gerais da localidade,
Porém, na sua maioria, os profissionais não os serviços governamentais e não governamentais
conheciam ou não buscavam auxílio dos serviços presentes e as demandas específicas de cada região
intersetoriais, desenvolvendo ações isoladas no em relação ao abuso de drogas e às vulnerabilidades
cuidado com os usuários de drogas. Observou-se uma associadas, bem como sobre o processo de formação
desmotivação quanto às estratégias para abordagem que iria ser realizado pelo CRR.
dessa problemática, com intervenções pontuais e
Nesse sentido os resultados e encaminhamentos
rotina de encaminhamentos desarticulados, sendo
relevantes, foram:
desconhecida a possibilidade de construir espaços
de matriciamento em saúde mental, álcool e outras • O CRR/FCE/UnB seria denominado de Centro
drogas em parceria com o serviço especializado, de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades
como os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Associadas, compreendendo o fenômeno do
Das quatro localidades selecionadas, apenas uma abuso de drogas como algo transversal a outras
apresentava uma prática significativa à clínica da situações, como violência e desigualdades;
rede, com parcerias intersetoriais e rotina de reuniões • A necessidade de se desenvolver um processo
mensais entre a rede de serviços e a comunidade. de formação baseado nas especificidades de
Nessas reuniões, eram debatidas demandas diversas cada região e, dessa forma, os cursos foram
sobre a região e deliberada ações compartilhadas desenvolvidos presencialmente na FCE/
entre todos. UnB (aulas teóricas), como também in loco
A partir de frequentes demandas relacionadas ao (matriciamento), em cada um dos territórios;
abuso de drogas nessa região foi criado um comitê de • Nos encontros in loco, estimular a rede
enfrentamento sobre o tema para discutir e buscar intersetorial do território para promoção de
estratégias de forma coletiva. Nessa estrutura, um espaço de parceria entre os serviços da
integrantes da rede social dessa localidade haviam mesma região, além da realização de supervisão
desenvolvido diversas ações, como: estimular
clínica dos casos apresentados pelas equipes;
atendimento compartilhado entre as instituições;
atividades de prevenção, como concursos nas escolas • A importância de fortalecer o território, seus
sobre drogas, abertura de espaços de esporte nas atores e ações, por meio da ampliação do
instituições de defensoria pública; pesquisa nas conhecimento técnico de seus profissionais e da
escolas sobre uso de drogas e problemas relacionados; parceria entre comunidade e serviços de saúde,
fórum sobre drogas, justiça e redes sociais; palestra social e de segurança pública, promovendo uma
sobre temas relevantes à rede; mapeamento das cultura voltada para ações pela rede social.
instituições e ações de atendimento clínico. Mais
recentemente, o comitê estava em tentativas de 5  Reflexões sobre a rede
parceria com o CAPS mais próximo e organizando
estratégias políticas para abertura de um CAPS na intersetorial e o suporte
própria região. territorial
À medida que os cursos do CRR foram
ocorrendo, os profissionais de referência do território A rede no território deve ser um cotidiano
desenvolveram vínculo com os atores da rede e relacionado primeiramente a um agir (mudança
os sensibilizaram para o cuidado com os sujeitos coletiva da realidade) e depois com uma postura
em abuso de drogas, relacionando esse cuidado técnica (efetivação das políticas públicas). Para
a uma complexidade de outros fatores para além isso, deve-se promover um ambiente que favoreça
do uso em si. Assim, os atores deveriam levantar aspectos como o habitat, o espaço de todos os atores
suas reais necessidades, sua rede significativa de como cuidadores da rede no território, a troca de
serviço e comunitária, além de desenvolverem experiências e valores, e um cotidiano social que
parcerias de cuidado e ações em saúde. Dessa forma, favoreça os fatores de proteção acima dos fatores
o enfrentamento do abuso de drogas não seria apenas de risco (SARACENO, 2001).
para as pessoas em abuso, mas também considerando Desse modo, a rede influencia o território quando
a demanda de saúde da comunidade de forma a se os atores fazem pactuações de serviços, cuidados e

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Silva, M. N. R. M. O. et al. 151

ações e, nesse sentido, os territórios e os sujeitos em Consideramos que essas estratégias de associar
situações de abuso de drogas ou expostos a outras os cursos com a utilização de profissionais da
vulnerabilidades tornam-se passíveis de uma ação universidade e daqueles disponíveis na própria rede
coletiva, com protagonismos de acordo com as reais local, bem como que o mapeamento e a vinculação dos
necessidades locais e que ao longo do tempo podem recursos comunitários da região foram facilitadores e
promover uma comunidade mais saudável e com potencializaram a articulação das ações nesses locais,
menores índices de iniquidades. possibilitando e qualificando o trabalho intersetorial
A rede deve oferecer um ambiente no território em rede, conforme preconizado pelas mais diversas
para a prática de um cotidiano ocupacional como políticas nacionais e internacionais sobre o tema.
projeto de existência social, ou seja, o território deve Nesse processo de trabalho próximo das demandas
ser promotor de ações diárias, nas quais se possibilite locais foi possível reconhecer dificuldades e agir de
forma rápida em parceria com a comunidade.
uma comunidade “ocupada”, viva e com bem-estar.
Não se trata apenas da ocupação como norma moral, Essa metodologia traduz um dos poucos momentos
mas como envolvimento social de encontro, troca, de encontro dos vários atores sociais em uma interação
de atividades lúdicas, de esporte, de trabalho e de natural, significativa e específica pelo ideal que
aprendizagem de habilidades. mobilizou os grupos – o enfrentamento do abuso
de drogas e suas vulnerabilidades. Essa mobilização
O abuso de drogas resulta em uma ruptura nos
social promoveu o encontro de usuários, familiares,
processos dos indivíduos com suas redes sociais,
comunidade, técnicos de saúde e de outros setores
territórios e outros atores. Nesse sentido, deve-se
pensar no cuidado a ser desenvolvido baseado na ao redor de um ideal comum. Com isso, considerar
minimização dos fatores de riscos da comunidade o movimento social como um “grande encontro
para possibilitar com que os atores se disponham peripatético” (LANCETTI, 2006) deveria ser o
a desenvolver estratégias de enfrentamento e principal objetivo dos CRR de todo o Brasil.
empoderamento e, dessa forma, superem o processo
de vulnerabilidade. Agradecimentos
O desenvolvimento das ações pelo CRR/FCE/ Os autores agradecem o Ministério da Justiça/
UnB criou uma ambientação não apenas de formação Secretaria Nacional de Políticas sobre drogas pelo
de conteúdo mas de correlação com as demandas dos apoio financeiro para implementação do CRR-UNB/
atores e com os processos contextuais do território.
FCE.
Estimulou-se uma cultura baseada no pensamento
coletivo de ação para a prevenção, intervenção e
enfrentamento da complexidade que o tema drogas Referências
impõe. O pensamento coletivo de dividir, criar BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no
parcerias e pactuar ações está lentamente sendo mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
construído. Dessa forma, o foco não é na remissão BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva.
do uso de drogas, mas no empoderamento dos atores Secretaria de Atenção à Saúde. Legislação em saúde
em uma clínica de rede, baseado em pressupostos e mental: 1990-2004. 5. ed. Brasília, 2004. Disponível
recursos presentes no próprio território. em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
legislacao_saude_mental_1990_2004_5ed.pdf>. Acesso
em: 15 jul. 2013.
6  Considerações finais BR ASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome. Decreto nº 7.179, de 20 de maio
O CRR/FCE/UnB desenvolveu em paralelo à de 2010. Institui o Plano Integrado de Enfrentamento
formação permanente em serviço uma vinculação com ao Crack e outras Drogas, cria o seu Comitê Gestor,
o território, possibilitando ações que estimulassem e dá outras providências. Diário Oficial da República
seus atores a um cuidado em rede. Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 21
maio 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
Como resposta a essa formação, a rede intersetorial ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7179.htm>.
compartilha ações de cuidado e passa a desenvolver Acesso em: 10 ago. 2013.
um cotidiano de serviços de rede no território, com BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de
parcerias e pactuações de ações que promovem uma dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial
cultura social de cuidado em rede. para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras
Com um território fortalecido, o cuidado em si e
drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial
o enfrentamento dos desafios do cotidiano serão no da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 30 dez. 2011.
sentido de recuperar uma vida ativa pelo movimento Disponível em: <http://www.brasilsus.com.br/legislacoes/
dos direitos próprios e de seu grupo. gm/111276-3088.html>. Acesso em: 10 fev. 2013.

Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 145-152, 2014
152 Desenvolvendo e articulando a rede intersetorial para cuidado integral de usuários ...

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Contribuição dos Autores


Todos os autores foram responsáveis pela concepção e elaboração do manuscrito, revisão e redação final
do texto.

Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 145-152, 2014
ISSN 0104-4931
Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 153-159, 2014
http://dx.doi.org/10.4322/cto.2014.040

A supervisão como processo educativo: Construindo

Experiência
Relato de
o paradigma de redução de danos emancipatória
com uma equipe de CAPS-AD
Luciana Cordeiro, Aline Godoy, Cassia Baldini Soares

Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo – USP,
São Paulo, SP, Brasil

Resumo: Introdução: O consumo contemporâneo de drogas ocupa lugar de destaque nas políticas públicas e na
mídia. Diferentes formas de enfrentar a problemática vêm se apresentando, sendo uma delas a Redução de Danos
Emancipatória, um movimento social antiproibicionista baseado no desenvolvimento de crítica sobre a realidade a
fim de transformá-la. Objetivo: Discutir processo de supervisão em um Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e
outras Drogas, CAPS-AD de uma cidade do estado de São Paulo com a finalidade de transformar as práticas da equipe
de saúde, refletindo sobre o processo de produção em saúde e os processos de trabalho. Método: Compreendeu-se
a supervisão como processo educativo emancipatório, utilizando-se o referencial teórico da Saúde Coletiva. Seis
encontros foram realizados com a equipe do serviço. Resultados: A supervisão configurou-se como processo educativo
crítico, visando à emancipação dos usuários e trabalhadores do serviço. Discussão: O processo de supervisão
pautado no referencial crítico possibilitou o desenvolvimento de práticas da equipe de saúde fundamentadas na
Redução de Danos Emancipatória.
Palavras-chave: Educação em Saúde, Saúde Pública, Saúde Mental, Redução do Dano, Transtornos Relacionados
ao Uso de Substâncias.

Supervision as an educative process: Building Emancipatory Harm Reduction


paradigm with a mental health team

Abstract: Introduction: The contemporary drug consumption has been highlighted in the public policies and
by the media. Different forms of coping with this issue are being constructed. Emancipatory Harm Reduction, an
antiprohibitionist social movement based on the development of critical conscience about the reality in order to
transform it, is one of them. Objective: To discuss the supervision process of a public community mental health
institution focused on treatment of problematic consumption of drugs in a municipality of the state of San Paulo,
aiming to transform the mental health team practices, reflecting about the health production process and their work
process. Method: A Collective Health theoretical framework was used to base the supervision in an emancipatory
educative process. The process occurred in six meetings with the health care team. Results: The supervision was
configured as a critical educative process, and its objective was the emancipation of the institution’s workers and
users. Discussion: The supervision process based on critical theoretical framework enhanced the development of
the mental health team practices, based on Emancipatory Harm Reduction.
Keywords: Health Education, Public Health, Mental Health, Harm Reduction, Substance-related Disorders.

Autor para correspondência: Cassia Baldini Soares, Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva, Universidade de São Paulo, Av. Dr.
Enéas de Carvalho Aguiar, 419, Sala 233, 2o. andar, Cerqueira Cesar CEP 05403-000, São Paulo, SP, Brasil, e-mail: cassiaso@usp.br
Recebido em 03/09/2013; Revisão em 21/02/2014; Aceito em 04/05/2014
154 A supervisão como processo educativo: Construindo o paradigma de redução de danos emancipatória ...

1  Introdução de RD passaram a permear as políticas públicas e


as produções acadêmicas. A moderna saúde pública
Marcado por fortes contradições, o consumo começou a debater o consumo de drogas pelo
contemporâneo de drogas vem ocupando lugar ângulo do risco, conceito que leva em consideração a
de destaque nas políticas públicas e na mídia. Por instalação e evolução de uma doença, a partir de um
um lado, constata-se na mídia propagandas que desequilíbrio na relação ambiente-hospedeiro-agente,
incentivam o consumo de álcool (VENDRAME; gerando intervenções sobre os fatores de risco que a
PINSKY, 2010) e de medicamentos, com maior epidemiologia relaciona com o problema (SOARES,
expressividade a partir da década de 1990 (BUCHER, 2007). A Saúde Coletiva critica essa vertente, por
1992). Por outro lado, anuncia-se o combate a desagregar em fatores os determinantes sociais
uma “epidemia do crack”, alarmando famílias, do processo saúde-doença, que são constitutivos
cobrando o poder público e desestabilizando as das bases estruturais da sociedade, de forma que
poucas instituições de saúde que lidam de maneira o contexto social é tomado apenas na condição
responsável com o problema. de pano de fundo do problema (SOARES, 2007).
Nappo (2012), ao discutir a suposta “epidemia Os conceitos de RD como movimento social
do crack”, denuncia a ausência de fundamentos nas amplo, de reação à guerra às drogas e de droga como
publicações alarmantes da mídia e nas produções mercadoria, fundamentam as práticas de atenção
acadêmicas, que não apresentam dados científicos a consumidores de drogas no referencial da Saúde
confiáveis para sustentar o alarde. A autora explica que Coletiva (SOARES, 2007). O objeto das práticas
não há evidência científica que sustente a ocorrência é o processo de produção, comércio e consumo das
de uma epidemia relacionada ao consumo de crack. drogas e o sujeito, as classes sociais, constitui coletivo
heterogêneo, submetido a condições desiguais de
Nappo (2012) atenta ainda para os riscos desse reprodução social (SANTOS; SOARES; CAMPOS,
alarmismo: problemas de ordem social e econômica 2007).
dos grupos consumidores de crack, que pertencem
a frações da classe trabalhadora “sobrantes” e O referencial da Saúde Coletiva oferece bases para
marginalizadas, podem ser atribuídos exclusivamente que se constituam no processo de produção em saúde
práticas emancipatórias de RD (SOARES, 2007).
à substância; aumento da exposição e preconceito em
Práticas emancipatórias de RD são as que articulam
relação aos consumidores de crack; possibilidade de
os problemas apresentados pelo consumo prejudicial
gerar ações equivocadas para as quais se aplicariam os
de drogas com a totalidade social. São práticas
recursos disponíveis. O fato é que é possível observar
solidárias e humanizadas que aproximam os sujeitos
a concretização dessa previsão, por exemplo, nas
do processo de crítica à realidade. Nesse arcabouço,
ações policiais de janeiro de 2012 e janeiro de 2013,
a educação constitui processo de fundamental
no bairro da Luz, em São Paulo, SP, em que muitos
importância para que se compreendam as bases das
recursos foram investidos em ações pontuais, que
desigualdades sociais e da produção de ações políticas
provocaram reação da mídia, da sociedade civil e
direcionadas à transformação de condições mais
dos movimentos sociais (BONIS, 2012)
globais (SANTOS; SOARES; CAMPOS, 2007).
Na política do Ministério da Saúde para atenção
Tal concepção tem sido denominada redução
a usuários de drogas, o estado assumiu seu histórico
de danos emancipatória (RDE) e assume que as
atraso em relação ao cuidado dos consumidores de
pessoas, usuárias ou não de drogas, fazem parte
drogas (BRASIL, 2004). A atenção do poder público de grupos sociais, com diferentes possibilidades
brasileiro voltou-se para o consumo de drogas como de reprodução social, submetidas que estão ao
problema de saúde apenas a partir da década de sistema de exploração capitalista. Nesse sistema, as
1980, em resposta ao alto índice de transmissão drogas fazem parte do conjunto de mercadorias e
do HIV entre consumidores de drogas injetáveis, o consumo de drogas se apresenta como resultante
conforme analisam Coelho et al. (2012), a partir das contradições sociais, atendendo a necessidades
de diversas fontes. Nesse momento, princípios da de alteração da psicoatividade, de acordo com os
Redução de Danos (RD) foram acessados para valores predominantes na contemporaneidade. Reitera
embasar intervenções que tomavam como objeto as ainda a saúde como direito social e busca desenvolver
doenças transmissíveis e como sujeitos os usuários práticas sociais e de saúde para além do controle das
de drogas das populações marginalizadas e excluídas drogas ilícitas e da criminalização dos usuários, ou
(SANTOS; SOARES; CAMPOS, 2007). seja, práticas que incidam sobre os determinantes
A partir da preocupação do estado com a do consumo de drogas. Ademais, a RDE busca
transmissão do HIV, diversos conceitos e práticas denunciar as desigualdades de reprodução social

Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 153-159, 2014
Cordeiro, L.; Godoy, A.; Soares, C. B. 155

entre as diferentes classes e promover a compreensão necessidades de saúde apresentadas pela população
das raízes dos problemas associados ao consumo (TRAPÉ; SOARES; DALMASO, 2011). Nesse
prejudicial de drogas (SOARES, 2007). sentido, a finalidade da supervisão é superar as
A fim de operacionalizar a RDE, devem ser questões colocadas pela dimensão técnica do
incorporadas as necessidades dos sujeitos a partir trabalho sem negá-la, estabelecendo discussão
de seu cotidiano, sendo essencial compor projetos de caráter político-técnico (SAVIANI, 2003), de
específicos e utilizar instrumentos apropriados a forma que se domine o processo de trabalho em
realidades específicas, já que discursos descolados da seus elementos (objeto, instrumentos, finalidade
realidade produzem o afastamento dos sujeitos. Além e produto), propiciando o desenvolvimento de
disso, os projetos devem contar com a participação responsabilidades de caráter social e político e a
dos sujeitos, com a finalidade de defender seus capacidade de contestar a realidade (FREIRE, 2000).
direitos e convicções, enfrentando questões como a O processo educativo, nessa perspectiva, parte da
criminalização das drogas, as desigualdades sociais, a realidade a ser transformada, constituída histórica e
política e o papel das instituições sociais (SOARES; culturalmente, de forma que essa seja problematizada.
JACOBI, 2000). Cabe ao supervisor mediar a relação dialógica
Tomando como objeto deste estudo as práticas estabelecida, isto é, uma relação em que todos os
desenvolvidas em Centro de Atenção Psicossocial envolvidos (supervisor e supervisionados) são sujeitos
para Álcool e Drogas II (CAPS-AD) de uma cidade do processo e em que há mútuo aprendizado. Por
do estado de São Paulo, a partir da experiência de ter uma síntese diferente daquela proveniente dos
um processo de supervisão, objetiva-se discutir a conhecimentos dos supervisionados, também cabe
supervisão como processo educativo emancipatório, ao supervisor instrumentalizar a problematização
com a finalidade de transformar as práticas da equipe em função das necessidades levantadas, para a
de saúde, refletindo sobre o processo de produção compreensão das práticas sociais vigentes. A partir
em saúde e seu processo de trabalho. da mediação, espera-se que uma nova compreensão
da realidade seja elaborada e expressa, isto é, que
2  Procedimentos novas práticas sejam desenvolvidas (SAVIANI, 2003).
teórico-metodológicos Coerentemente com o marco teórico adotado,
notadamente de natureza crítica, buscou-se conhecer
Em uma cidade do interior de São Paulo de a realidade do serviço e do território em questão,
aproximadamente 80 mil habitantes, um CAPS-AD bem como o processo de trabalho e a prática
foi inaugurado, tendo como equipe técnica dois dos profissionais embasadas em conhecimento
psicólogas, um terapeuta ocupacional, um assistente técnico-científico sobre o fenômeno das drogas e
social/gerente, uma enfermeira, três auxiliares de também em experiências profissionais prévias. Os
enfermagem (que também desenvolviam funções profissionais elencaram as dificuldades encontradas
administrativas), além de dois oficineiros (contratados no trabalho, que diziam respeito ao processo de
para um ano de trabalho)1. Os profissionais técnicos trabalho fragmentado, à compreensão do processo
eram concursados e não tinham experiência ou saúde-doença pautado na multifatorialidade, ao
formação sobre a problemática de álcool e outras conhecimento técnico limitado acerca do fenômeno
drogas, com exceção da gerente, que havia trabalhado das drogas e das políticas públicas voltadas a
em uma comunidade terapêutica e que desenvolvia consumidores de drogas e aos recursos humanos e
ações utilizando-se dos 12 passos2 (alcoólicos materiais disponíveis na unidade, que se mostravam
anônimos e narcóticos anônimos). insuficientes. Tal reconhecimento permitiu que
Após oito meses da inauguração, a prefeitura da fossem realizadas discussões a partir das experiências
cidade providenciou uma supervisão por meio de vivenciadas na unidade e de casos clínicos, de leitura
contrato de seis meses, a fim de auxiliar a equipe em de textos e sugestão de filmes.
suas dificuldades técnicas. Os encontros ocorreram
na própria unidade, com todos os profissionais 3  O processo da supervisão
presentes em horário de serviço, uma vez por mês,
totalizando seis encontros. O processo da supervisão baseou-se no referencial
Por supervisão entende-se um processo educativo teórico crítico da Saúde Coletiva, que compreende
que tem como objetivo integrar as atividades o processo saúde-doença como determinado
parcelares e refletir sobre o processo de trabalho, socialmente, isto é, tem relação direta com as
a fim de avaliar se o trabalho está respondendo às formas de trabalhar e de viver (LAURELL, 1982).

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156 A supervisão como processo educativo: Construindo o paradigma de redução de danos emancipatória ...

O referencial crítico aponta que a partir da respostas de saúde e de sujeitos não certificados pela
modernidade e com o advento da formação social formação acadêmica (STOTZ; ARAUJO, 2004).
predominantemente capitalista, as drogas passaram Consequentemente, a prática em saúde integrada a
a fazer parte do conjunto de mercadorias que outros setores também fica limitada. Dessa forma,
respondem às necessidades de acumulação do compreendendo os problemas de saúde de forma
capital (SOARES, 2007). As drogas, portanto, mais ampla, a partir dos contextos de vida e da
estão inseridas de forma organizada no sistema de escassez de recursos, há de se reconhecer os próprios
produção, distribuição e consumo da economia de limites e validar, ao mesmo tempo, o saber do outro
mercado, representando a maior economia mundial, (STOTZ; ARAUJO, 2004).
considerado o conjunto de drogas lícitas e ilícitas. Nesse sentido, estimulou-se durante o processo
Em relação apenas às drogas ilícitas, Arbex Junior de supervisão o estabelecimento de comunicação e
(2012) afirma que são movimentados de 350 a fortalecimento da rede social e de saúde, uma vez que
500 milhões de dólares ao ano, sendo que diariamente essa prática não existia e os serviços funcionavam de
narcodólares são lavados em bancos e instituições forma não integrada. Uma ação proposta pela equipe
internacionais. Narcoprodutores e os narcotraficantes foi o planejamento de um evento a fim de apresentar
estão inseridos no mercado de trabalho, ainda que se o CAPS-AD e o paradigma da RD aos demais
esse se constitua paralelamente ao mercado oficial e equipamentos da saúde e assistência, planejando-se
ainda que tal inserção se deva em grande parte à falta que o esclarecimento sobre o serviço seria o primeiro
de opção concreta de emprego no mercado formal. passo para a aproximação e o estabelecimento do
Soares (2007) afirma que na base do consumo funcionamento em rede.
prejudicial de drogas estão sérias dificuldades de A compreensão do objeto de trabalho pela
perspectivar o futuro, insegurança em relação aos equipe demandou discutir o paradigma que embasa
mecanismos de proteção social e necessidades de as práticas que desenvolvem. Como já relatado
obtenção de prazer imediato, condições características por Campos e Soares (2003) em análise sobre a
da vida em sociedade, atualmente. compreensão do processo de trabalho de equipes de
Diz-se, dessa forma, que as necessidades de diferentes serviços de saúde mental, inicialmente a
saúde, que são necessidades sociais, extrapolam equipe demonstrou ter pouco acúmulo de discussão
as possibilidades e atribuições funcionalistas do sobre o trabalho, de forma que a finalidade do
campo da saúde (CAMPOS; MISHIMA, 2005) de trabalho do CAPS-AD estava obscurecida.
forma que promover saúde depende de transformar Propunha-se nesse contexto, como finalidade para
as práticas em saúde, articulando-as às de diversos o trabalho, que os consumidores alcançassem a
setores, como trabalho, educação, saneamento abstinência de drogas, por vezes acompanhada
básico e preservação ambiental, estando esses setores de desejos de boa convivência com sua família e,
submetidos à política econômica (STOTZ; ARAUJO, ainda, que os usuários se engajassem em alguma
2004). ocupação. Tais finalidades propostas encontravam
A experiência de supervisão fez reconhecer que o obstáculos na realidade, que eram explicados pelas
processo de trabalho nos CAPS-AD de fato exige dos dificuldades de mudança de comportamentos dos
trabalhadores que se comuniquem com outros setores: usuários de drogas.
seja pelos princípios da Reabilitação Psicossocial3 Entre as culpabilizações dos usuários e as da
(diretriz que está na base da formulação dos serviços própria equipe, pelo não êxito em atingir tais
CAPS), seja pelas necessidades demandadas pelas finalidades, a equipe mostrou-se motivada a
pessoas atendidas: alimentação, abrigo, vestimenta, desenvolver práticas fundamentadas na RD, sendo
documentação, retomada de estudos, entre tantas que para isso foram discutidos a política de atenção
outras. Essas práticas, entretanto, limitam-se aos a usuários de drogas do Ministério da Saúde5, textos
encaminhamentos entre serviços, sendo as iniciativas sobre a história da RD bem como a operacionalização
de elaboração conjunta de ações entre setores, difíceis desse paradigma no cotidiano da unidade.
e fragmentadas4 (COELHO, 2012). Outra estratégia utilizada a fim de desenvolver
Stotz e Araujo (2004) discute a necessidade de novas práticas na unidade foi a discussão de casos
construir uma nova cultura para o setor saúde. atendidos pela equipe. Tal como a complexidade
Atualmente, a legitimidade das práticas em saúde do fenômeno do consumo de drogas, os usuários
baseia-se no saber técnico inquestionável por sua do CAPS-AD também apresentam diversas
natureza científica. Uma suposta completude desse necessidades de saúde que exigem uma resposta
saber gera autoritarismo e centralização das práticas complexa. Observa-se atualmente, “[...] o aumento
em saúde, limitando a elaboração criativa de outras das necessidades, carências e demandas sociais e

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Cordeiro, L.; Godoy, A.; Soares, C. B. 157

processos de precarização na prestação de serviços 4  Discussão


estatais [...]” (BEZERRA, 2011, p. 243). Como
resposta a essa realidade, os serviços têm assumido Os profissionais de saúde recebem formação
caráter emergencial, direcionado aos que não têm pautada no paradigma dominante da moderna saúde
poder de compra, dada sua reprodução social pública, que compreende o processo saúde-doença
(BEZERRA, 2011). a partir de fatores fragmentados, capazes de isolar o
Os profissionais da unidade sentiram necessidade sujeito de sua condição social, e que produz práticas
de discutir casos de difícil encaminhamento. condizentes com o status quo (SOARES, 2007). No
caso específico do consumo de drogas, a formação
Independentemente da especificidade do caso,
recebida se mostra insuficiente ou inadequada para
questões sociais como não ter onde morar, ter
lidar com tamanha complexidade (COELHO, 2012),
família pouco disposta a lidar com o consumidor de
haja visto que o contato com o tema na graduação,
drogas, ter dificuldade em empregar-se no mercado
na área da saúde em geral acontece através das
de trabalho formal, que garante os direitos enquanto
disciplinas de psiquiatria e/ou farmacologia, isto é,
cidadão, não ter o reconhecimento das outras pessoas, estudam-se apenas alguns recortes do fenômeno, os
não ter acesso a lazer, uma vez que o estado não se de natureza biomédica (SOARES, 2007).
faz presente no território onde vivem, entre outras,
Esse contexto se agrava na medida em que não
permearam as discussões.
há espaços de discussão acerca das necessidades de
Percebeu-se que, por mais que ações técnicas de saúde dos grupos sociais e do processo de produção
enfrentamento ao consumo problemático de drogas em saúde – seja na formação, seja no processo de
fossem desenvolvidas, a equipe de saúde não tinha trabalho –, acarretando práticas simplistas no campo
instrumentos para lidar com as questões sociais que de atenção a consumidores de drogas, que pouco
se apresentavam. Ademais, a fragmentação existente contribuem para a saúde das pessoas atendidas e que
no processo de trabalho, que culmina na perda da não se direcionam a compreender os determinantes
noção de conjunto do processo pelo trabalhador, sociais do processo saúde-doença ou a confrontá-los
minava o envolvimento afetivo e intelectual dos (COELHO, 2012).
trabalhadores com o seu fazer. A manutenção das práticas pautadas na moderna
Nesses casos mais difíceis, a compreensão saúde pública, que responsabiliza o sujeito por sua
do processo saúde-doença como socialmente saúde e por seu adoecimento, visando tratar os
determinado, do paradigma da redução de problemas de saúde já instalados, não dão conta
danos emancipatória e da intersetorialidade, a das necessidades de saúde demandadas pelos grupos
partir da constituição de rede social e de saúde, sociais (SOARES; SALUM, 1999). No que tange ao
foi essencial para nortear as práticas do serviço. consumo prejudicial de drogas, essa lógica se aproxima
Além disso, contribuíram para que os profissionais do paradigma de guerra às drogas, que propõe a
desculpabilizassem os usuários do serviço pelo mudança de comportamento dos consumidores de
“fracasso” do tratamento e também para que drogas sem alterar as condições que estão na sua
se sentissem menos frustrados com o trabalho raiz. Esse paradigma encontra na droga um inimigo
a ser combatido de forma policialesca, negando
desenvolvido, que apresentava resultados pouco
a historicidade e a cultura do uso de drogas que
animadores.
acompanha a humanidade (CARNEIRO, 2002).
A compreensão de que a mudança de
A produção em saúde pautada nessa perspectiva
comportamento não depende da força de vontade
produz frustrações tanto para o usuário do serviço,
individual e de que a insistência nesse objetivo que se sente fracassado e incapaz, quanto para o
traria apenas mais frustrações para os usuários de profissional, que sofre processo de desgaste pelo
drogas e para os profissionais trouxe a reflexão sobre trabalho, devido a poucos resultados efetivos.
a necessidade de os profissionais adotarem, para Ribeiro, Pires e Blank (2004) apontam que os
além da dimensão biológica e psicológica, práticas trabalhadores que encontram dificuldades no trabalho
de caráter político, discutindo os determinantes do acabam sentindo-se inseguros, desconfiados de sua
processo saúde-doença e as diferentes realidades das capacidade e amedrontados. Ainda, nos dias de
classes sociais. Além disso, ficou claro que formas de hoje há prevalência de mal-estares difusos entre os
enfrentamento das desigualdades também deveriam trabalhadores, tais como fadigas, dores de cabeça
ser discutidas com os usuários do serviço, a fim de que e nas costas, dificuldades para dormir, além de
pudessem contestar a realidade e se instrumentalizar obesidade e sintomas subjetivos, que não costumam
para transformá-la. ser associados às atividades laborais (COSTA;

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158 A supervisão como processo educativo: Construindo o paradigma de redução de danos emancipatória ...

TAMBELLINI, 2009; ABRAMIDES; CABRAL, educativo de supervisão, à falta de espaços de


2003; LACAZ, 2000). discussão instituídos no cotidiano da unidade,
Esses sintomas difusos têm raízes nas formas de o que traz obstáculos concretos à análise dos
trabalhar, na fragmentação do processo de trabalho. profissionais sobre os processos de trabalho de que
Conforme analisam Trapé, Soares e Dalmaso (2011), participam, além da mudança de governo ao longo
apoiadas em Marx, assim como nos demais campos, do processo, que instaurou relação hierárquica sem
os processos de produção em saúde comportam possibilidade de contestação e exigiu dos profissionais
distintos processos de trabalho e estão submetidos o desenvolvimento de prática baseada nos cânones
à divisão do trabalho, que separa o trabalhador do da guerra às drogas, causando retrocesso no processo
produto de seu trabalho. Como consequência, tem-se de construção de práticas emancipatórias da equipe
a perda de controle sobre o processo de trabalho, da unidade.
isto é, a compreensão do conjunto do processo No entanto, levando em consideração o aumento
de trabalho – objeto, instrumentos, finalidade, das demandas sociais postas aos trabalhadores
produto – fica prejudicada. devido à precária presença do estado nos territórios,
O papel da supervisão, então, é o de estimular o que exige dos profissionais novas competências
os profissionais à condição de sujeitos do processo e habilidades (BEZERRA, 2011), a supervisão
de trabalho do qual participam a partir da reflexão possibilitou a ampliação dos conhecimentos técnicos
sobre os elementos desse processo, para apropriar-se e políticos da equipe sobre o fenômeno do consumo
culturalmente de seu produto. No caso do processo de drogas. A equipe passou a adotar a perspectiva de
aqui investigado, o produto do processo de trabalho que o setor saúde deve integrar a rede intersetorial de
se configura como a satisfação das necessidades de recursos e serviços como mais um passo no sentido
de dar conta da complexidade de intervir em saúde
saúde dos usuários do serviço, por isso trata-se do
nessa área. Além disso, a equipe de saúde passou
desenvolvimento de práticas coletivas de âmbito
a discutir o processo de trabalho de que participa,
político, para além do cuidado individual.
em especial o objeto de trabalho, minimizando
Superando a matriz clínico-biológica hegemônica, a fragmentação decorrente da divisão técnica do
apreendida na formação em saúde, a redução de danos trabalho.
emancipatória consubstancializa a historicidade,
A supervisão configurou-se como processo
a reprodução social, a classe e a individualidade
educativo crítico, visando à emancipação dos usuários
do sujeito, apresentando-se, dessa forma, como
do serviço, a partir do desenvolvimento de práticas
movimento político para fundamentar as práticas
da equipe de saúde fundamentadas na redução de
desenvolvidas pelos profissionais do CAPS-AD.
danos emancipatória.
5  Considerações finais Referências
O esforço da supervisão descrita concentrou-se ABRAMIDES, M. B.; CABRAL, M. S. R. Regime de
na finalidade de apoiar os profissionais de saúde no acumulação flexível e saúde do trabalhador. São Paulo em
domínio dos elementos do processo de trabalho, a Perspectiva, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 3-10, 2003.
fim de que o objeto das práticas no serviço fosse ARBEX JUNIOR, J. Economia do mercado das drogas.
revisto. O processo também teve como finalidade In: SEMINÁRIO A CRACOLÂNDIA MUITO ALÉM
DO CRACK, 2012, São Paulo. São Paulo: FSP-USP, 2012.
apresentar a redução de danos emancipatória e
BEZERR A, W. C. O Estado brasileiro e o ataque
discutir o significado de sua adoção para nortear
neoliberal: algumas reflexões para a terapia ocupacional.
as práticas. No sentido de compreender como Cadernos de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 19, n. 2,
o processo de produção de práticas em saúde é p. 239-248, 2011.
reproduzido socialmente, foi também discutida a BONIS, G. Ação da polícia parte de visão higienista.
dimensão política. Carta Capital, São Paulo, 2012. Disponível em: <http://
Apesar de o processo ter como horizonte www.cartacapital.com.br/sociedade/acao-da-policia-
a desmistificação tanto da droga, adotando a parte-de-visao-higienista>. Acesso em: 24 agosto 2013.
compreensão da droga como mercadoria, como BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à
Saúde. Coordenação Nacional de DST e AIDS. A política
da determinação social do processo saúde-doença,
do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de
dificuldades foram encontradas no desenvolvimento álcool e outras drogas. Brasília, 2004.
de práticas que tivessem a redução de danos BUCHER, R. Drogas e drogadição no Brasil. Porto Alegre:
emancipatória como fundamento. Artes Médicas, 1992.
As dificuldades encontradas podem ser atribuídas CAMPOS, C. M. S.; MISHIMA, S. M. Necessidades
à quantidade insuficiente de tempo para o processo de saúde pela voz da sociedade civil e do Estado.

Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 153-159, 2014
Cordeiro, L.; Godoy, A.; Soares, C. B. 159

Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, instrumental para análise do trabalho no Programa de
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CAMPOS, C. M. S.; SOARES, C. B. A produção de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 438-46, 2004.
serviço de saúde mental: a concepção dos trabalhadores. SANTOS, V. C.; SOARES, C. B.; CAMPOS, C. M.
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NAPPO, S. Epidemia! Existe para o crack? In: SIMPÓSIO VENDR A ME, A.; PINSK Y, I. Ineficácia da
CRACK, 2., 2012, São Paulo. São Paulo: UNIFESP; autorregulamentação das propagandas de bebidas
CEBRID, 2012. alcoólicas: uma revisão sistemática da literatura
RIBEIRO, E. M.; PIRES, D.; BLANK, V. L. G. A internacional. Revista Brasileira de Psiquiatria, Rio de
teorização sobre processo de trabalho em saúde como Janeiro, v. 33, n. 2, p. 2011-2017, 2010.

Contruibuição dos Autores


Luciana Cordeiro: Concepção do texto, redação e revisão. Aline Godoy e Cassia Baldini Soares: Redação
e revisão do texto.

Notas
1
Agradecemos a equipe que participou da supervisão e concordou com a publicação da experiência.
2
Os 12 passos são uma metodologia voltada a dependentes químicos que se autodenominam “irmandade de homens e
mulheres que compartilham suas experiências, forças e esperanças, a fim de resolver seu problema comum e ajudar outros
a se recuperarem do alcoolismo. O único requisito para se tornar membro é o desejo de parar de beber” (http://www.
alcoolicosanonimos.org.br).
3
Reabilitação Psicossocial – Uma noção de Reabilitação que tem como sentido a construção dos direitos substanciais:
afetivos, relacionais, materiais, habitacionais, produtivos e culturais dos sujeitos (SARACENO, 1999).
4
Embora não seja nosso intuito focar no debate sobre a privatização dos setores saúde e assistência social, é relevante
mencionar que ela interfere diretamente no processo da intersetorialidade, a qual, orientada pela lógica empresarial, limita
os processos de trabalho ao cumprimento de metas, competitividade, e limita também a solidariedade e o compartilhamento
de informações e conhecimentos.
5
O Brasil conta com duas políticas públicas voltadas a usuários de drogas, quais sejam: a política do Ministério da Saúde,
pautada no paradigma da redução de danos, e a política da Secretaria Nacional sobre Drogas (SENAD), do Ministério
da Justiça, notadamente pautada nos cânones da guerra às drogas (COELHO, 2012; COELHO et al., 2012).

Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v. 22, n. Suplemento Especial, p. 153-159, 2014
DOI: 10.1590/1413-81232014192.00382013 569

TEMAS LIVRES FREE THEMES


A comunidade terapêutica para recuperação da dependência
do álcool e outras drogas no Brasil: mão ou contramão
da reforma psiquiátrica?

The therapeutic community for recuperation from addiction


to alcohol and other drugs in Brasil: in line with
or running counter to psychiatric reform?

Pablo Andrés Kurlander Perrone 1

Abstract In the second half of the last century a Resumo Na segunda metade do século passado
revolutionary movement began in the world men- iniciava-se um movimento revolucionário no
tal health scenario, namely Psychiatric Reform. cenário mundial da saúde mental: a Reforma Psi-
At the same juncture, the concept was also put quiátrica. No mesmo momento nascia a proposta
forward for Therapeutic Communities, which das Comunidades Terapêuticas, que mais tarde se
would later become the tried and tested model for tornaria um modelo consagrado de atendimento
treatment of addiction to alcohol and other drugs. para a dependência do álcool e outras drogas. Por
However, due to the alarming increase of this prob- outro lado, com o alarmante crescimento deste
lem in Brazil, as well as the absence of public problema no Brasil, assim como pela ausência de
policies to address the problem, there was an in- políticas públicas que dessem conta do problema,
discriminate proliferation of chemical dependency houve uma indiscriminada proliferação de locais
internment locations that, despite calling them- de internação para dependentes químicos que,
selves Therapeutic Communities, in no way re- mesmo se autodenominando como Comunidades
sembled the initial model proposed. These places Terapêuticas, em nada se assemelham ao modelo
featured inhuman and iatrogenic practices, very inicial proposto. Estes locais apresentam práticas
similar to those criticized by the Psychiatric Re- desumanas e iatrogênicas, muito semelhantes às
form movement, which consequently discredited criticadas pelo movimento da Reforma Psiquiá-
the Therapeutic Community model. This article trica, o que tem provocado o descrédito para com
seeks to demonstrate, through bibliographic re- o modelo das Comunidades Terapêuticas. Este
search, how the conceptual and methodological artigo tem como objetivo demonstrar, através de
bases of Psychiatric Reform closely resemble the pesquisa bibliográfica, como as bases conceituais
Therapeutic Communities movement, having e metodológicas da Reforma Psiquiátrica se asse-
appeared at the same time and for the same rea- melham profundamente as do movimento das
son, and how the lack of control and regulation of Comunidades Terapêuticas, tendo surgido na
chemical dependency internment locations in mesma época e pelo mesmo motivo, e como a falta
Brazil has contributed to the current disrepute of de regulamentação dos locais de internação para
1
Faculdade de Medicina de this model. dependentes químicos no Brasil tem contribuído
Botucatu, UNESP. R. Bento Key words Therapeutic Community, addiction com o atual descrédito deste modelo.
Lopes s/n, Distrito de
to alcohol and other drugs, Psychiatric Reform Palavras-chave Comunidade terapêutica, De-
Rubião Jr. 18.618-970
Botucatu SP Brasil. pendência do álcool e outras drogas, Reforma psi-
pablok@novajornada.org.br quiátrica

26 pablo.pmd 569 23/2/2014, 20:34


570
Kurlander PA

Introdução tir da década de 60, no trabalho de recuperação


de dependentes do álcool e outras drogas, tendo-
Desde o próprio nascimento da psiquiatria, esta se tornado atualmente uma das modalidades mais
tem tentado se reformar constante e incansavel- procuradas, tanto no Brasil como em muitas par-
mente, como afirmam Tenório1 e Sampaio et al.2, tes do mundo, em detrimento dos antes tradicio-
talvez por compreender as suas limitações e con- nais tratamentos de base medicamentosa hospi-
tradições desde o seu momento primigênio. talar, como afirmam De Leon10 e Fracasso11.
Teriam sido os próprios reformadores da Isto se deve também ao fato de que o alcoo-
Revolução Francesa que teriam delegado a Pinel lismo e, principalmente, a dependência de dro-
a tarefa de “humanizar e dar um sentido tera- gas, mesmo havendo registro do consumo de
pêutico aos hospitais gerais, onde os loucos en- ambas desde a antiguidade10-12, são doenças emer-
contravam-se recolhidos juntos com outros genciais da atualidade, pelo que as CT têm proli-
marginalizados da sociedade”1. ferado de forma abundante e desregulada no
Teria sido a meados do século XX, após a 2ª Brasil, nos últimos 20 anos.
Guerra Mundial, como afirmam Amarante3 e Por este motivo, a proposta das CT no Brasil
Jorge4, que Maxwell Jones5 inicia o movimento foi discutida pelo Ministério da Saúde13 em sua
definitivo de reforma da psiquiatria mundial, “Política para a atenção integral a usuários de
desenvolvendo o modelo de Comunidade Tera- álcool e outras drogas”, e regulamentada pela
pêutica (CT) psiquiátrica. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvi-
Maxwell Jones5 visava uma maior interação sa)14, em sua RDC 101/2001, dando forma e con-
do paciente no seu próprio processo, fazendo-se teúdo oficial a um movimento de repercussão
este assim partícipe das suas pequenas conquis- mundial que oferecia um modelo diferenciado
tas cotidianas. Ele afirma que “de maneira recí- de tratamento.
proca, a total dependência e passividade [...] pre- Contudo, o movimento das CT no Brasil tem
cisa ser mudada a fim de permitir-lhe uma parti- sofrido severas críticas ao longo da última déca-
cipação mais ativa em sua própria cura e na dos da, assim como muitas denúncias e rigorosas fis-
outros”. calizações, como a realizada em 2011 pelo Con-
Juntamente com Jones, muito relevante foi a selho Federal de Psicologia (CFP)15, que se depa-
antipsiquiatria de Franco Basaglia, movimento rou com inúmeras e imperdoáveis práticas de-
que denunciava os valores tradicionais da psi- sumanas e iatrogênicas, que em muito se asse-
quiatria, que tratava o louco como um ser alie- melhavam às práticas dos primeiros Hospitais
nado, à parte da sociedade, afirmando que “a Psiquiátricos, combatidos pelo movimento pri-
psiquiatria sempre colocou o homem entre pa- mitivo da Reforma Psiquiátrica, assim como pelo
rênteses e se preocupou com a doença”2. Movimento de Luta Antimanicomial no Brasil.
Na década de ’80 chegaria ao Brasil este mo- Por estes motivos, o presente artigo busca
vimento, como afirmam Tenório1, Lüchmann e analisar, de acordo com a história e as bases epis-
Rodrigues6 e Pitta7, sob a égide de “luta antima- temológicas da Reforma Psiquiátrica e do surgi-
nicomial”, que teria como foco principal a reto- mento das CT, assim como a sua articulação e
mada da cidadania do doente mental, como for- funcionamento na atualidade, se, de fato, o tra-
ma de melhorar o seu grau de autonomia, e com balho das CT no Brasil se orienta em prol da
este a sua qualidade de vida. Reforma Psiquiátrica e do Movimento de Luta
Até o momento, a clínica era o principal dis- Antimanicomial, ou se, pelo contrário, pode ser
positivo construído socialmente para se relacio- considerada uma forma de regressão aos padrões
nar com a loucura, como afirmam Tenório1, Mari8 primitivos de tratamento das doenças mentais.
e Costa et al.9, e a luta antimanicomial representa-
ria justamente a superação deste paradigma.
Por outro lado, existiam os antecedentes de Metodologia
Jones e Basaglia, acima descritos, com as pro-
postas de Psiquiatria Comunitária e o movimen- Foi realizada, com a finalidade de embasar teori-
to das CT Psiquiátricas, que visavam abordar o camente o debate proposto, uma revisão biblio-
tema da doença mental desde uma perspectiva gráfica em livros especializados, artigos científi-
humanizada e, certamente, não predominante- cos nacionais e internacionais pesquisados em
mente clínica. bases de dados (SciELO, Lilacs, Portal Capes),
Este movimento das CT Psiquiátricas, origi- documentos oficiais e sites institucionais, sem um
nal de Maxwell Jones, teria se desdobrado, a par- recorte temporal específico.

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As bases conceituais e metodológicas siste em trabalhar para eliminar a realidade e a
da reforma psiquiátrica no Brasil cultura institucional [...] e suas consequências:
violência, miséria, isolamento, falta de dignida-
Segundo Tenório1 “o movimento que denomi- de, injustiça e ampliação da enfermidade institu-
namos reforma psiquiátrica brasileira data de pou- cional, seja dos pacientes, seja dos que cuidam
co mais de vinte anos e tem como marca distintiva deles”.
e fundamental o reclame da cidadania do louco”. Cabe lembrar, como consta nas políticas pú-
No Brasil, este movimento de quebra de pa- blicas13-19, que em ambos os casos não se des-
radigmas fundamentais da psiquiatria deu à luz consideram absolutamente os atendimentos com
o Movimento de Luta Antimanicomial, como internação, desde que sejam de curta duração (até
afirmam Lüchmann e Rodrigues6, criado a par- 90 dias), e sempre com o intuito final da alta,
tir do II Congresso Nacional do Movimento dos com o subsequente acompanhamento posterior.
Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), ocor- Esta crítica leva, em primeiro lugar, à supera-
rido em Bauru, SP, em 1987, onde foi redigido o ção do paradigma da clínica, como nomeia Tenó-
Manifesto de Bauru, que seria considerado o seu rio1, o que representa uma forma embrionária
documento de fundação. de independência do modelo médico, segundo o
As bases deste movimento são claras e conci- qual se trata a doença, e não o doente.
sas, porém muito complexas em sua prática, prin- Esta nova percepção levaria a uma notória
cipalmente face à hegemonia dos modelos hos- “ampliação do conceito de saúde, incluindo em
pitalocêntricos tradicionais incrustados na cul- seus determinantes as condições gerais de vida”17,
tura e no imaginário popular. “Não se trata de incluindo assim a melhora da qualidade de vida
aperfeiçoar as estruturas tradicionais [...], mas como um dos principais objetivos a serem atin-
de inventar novos dispositivos e novas tecnolo- gidos através dos dispositivos terapêuticos utili-
gias de cuidado”1. zados, e não mais somente a retirada ou a dimi-
Para Lobosque6 “o Movimento de Luta Anti- nuição dos sintomas mais evidentes.
manicomial é um movimento social, plural, in- Outra modificação substancial no conceito
dependente, autônomo que deve manter parce- de saúde mental seria o novo modelo psicossocial
rias com outros movimentos sociais [...] para de atendimento, citado por Costa-Rosa et al.17,
que a sociedade se aproprie desta luta”. segundo o qual “o engajamento subjetivo e soci-
Segundo Vecchia e Martins16 os conceitos ocultural são indissociáveis da definição de saú-
basais deste movimento implicam “a defesa tan- de mental”. Este modelo psicossocial seria o con-
to da desospitalização da população cronificada, traponto do já ultrapassado modelo asilar, e sig-
mantida em longa permanência, quanto um pro- nificaria uma superação do modo de relação su-
cesso de desinstitucionalização”, o que confirma jeito-objeto característico do modelo médico.
as ideias de Lüchmann e Rodrigues6, conforme A horizontalização das relações interprofissio-
os quais “a ruptura com o modelo manicomial nais, assim como as intrainstitucionais, incluin-
significa [...] muito mais do que o fim do hospi- do as paciente-equipe de saúde, seria uma das
tal psiquiátrico, pois toma como ponto de parti- premissas básicas deste novo modelo, segundo
da [...] a crítica profunda aos olhares e concep- Costa-Rosa et al.17, e que suporia uma forma de
ções deste fenômeno”. controle social compartido, através do qual o pa-
Desospitalização seria, basicamente, o atendi- ciente e os familiares teriam prerrogativas seme-
mento ao doente fora do ambiente hospitalar. lhantes e equivalentes às da equipe de saúde para
Segundo Costa-Rosa et al.17, é muito importan- poder gerir cada fase do tratamento.
te, neste caso, “a substituição do modelo hospi- O que está em jogo, portanto, é a reapropria-
talocêntrico por uma rede de serviços diversifica- ção do sujeito; do sentido e da motivação humana;
da e qualificada [...] através de programas públi- reapropriação da capacidade de forjar sua própria
cos de lares e pensões protegidas”. identidade, capacidade esta historicamente ampu-
A ideia de redes vai além de uma dimensão tada pelos processos de manipulação e controle dos
estratégica, caracterizada, entre outros, pela capa- aparatos de gestão dos sistemas complexos6.
cidade de articulação, organização e mobilização, Desta forma, estes autores focam a atenção
na medida em que comporta, de forma nuclear, na reapropriação da identidade como mecanis-
uma noção de solidariedade pautada no comparti- mo altamente benéfico na relação de saúde que
lhamento de princípios e valores6. se propõe estabelecer neste novo modelo de aten-
Já a Desinstitucionalização é um conceito mais ção. O doente mental não somente teria sua saú-
abrangente, que segundo Saraceno et al.18 “con- de física restaurada ou melhorada, mas poderia

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ter acesso a práticas que o levassem de volta a si ção constante, cada um com seu núcleo específico
mesmo, de encontro com a sua história, com a de ação, mas apoiando-se mutuamente, alimen-
sua singularidade. tando-se enquanto rede – que cria acessos varia-
Assim surge o conceito de singularização no dos, acolhe, encaminha, previne, trata, reconstrói
atendimento ao doente mental, que seria, segundo existências, cria efetivas alternativas de combate13.
Tenório1, uma forma de tratá-lo de acordo com as Como se confirma através destes conceitos, a
suas características e necessidades pessoais, fugin- Reforma Psiquiátrica e o Movimento de Luta
do da lógica asilar capitalista de massificação. Antimanicomial são movimentos que visam
Para ser almejada e alcançada, a singulariza- muito mais do que apenas a desaparição dos
ção dependerá de que a forma das relações sociais e manicômios. Eles buscam, acima de tudo, a qua-
humanas na instituição parta da horizontaliza- lidade de vida do doente mental, a atenção inte-
ção como meta e, em alguma medida, seja vivida gral, a humanização do atendimento, através de
como exercício17. um novo olhar que se faz cada vez mais urgente
Considerando todo o apresentado até o mo- numa sociedade que pretenda dizer-se justa e
mento, fica evidente que o novo modelo propos- democrática.
to visa como finalidade última a ressocialização,
ou seja, o retorno do doente mental à sociedade e A comunidade terapêutica para
à família, de acordo com as reais possibilidades recuperação da dependência do álcool
de cada caso, e para isto busca desenvolver diver- e de outras drogas: modelo e método
sos dispositivos que se adaptem a cada necessida-
de, como o CAPS, residências terapêuticas, hos- Quem teve a oportunidade de aproximar-se de
pitais-dia, NASF, consultórios de rua e outros dis- uma CT, tem a sensação de haver participado de
positivos que podem ser adaptados com a finali- ‘algo diferente’. Quem teve, além disso, a oportuni-
dade de garantir a integralidade do atendimento dade de conviver durante algum tempo numa CT
ao doente mental desospitalizado1,2,7-9,16,17,19. terá uma lembrança que o acompanhará pelo res-
A necessidade do retorno à sociedade, como tante dos seus dias12.
prática despatologizante, se torna um dos estan- Como foi visto acima, as CT existem há mais
dartes do Movimento de Luta Antimanicomial de 60 anos, tendo-se consagrado nas duas últi-
no Brasil, assim como da Reforma Psiquiátrica mas décadas como um dos modelos mais pro-
no mundo. Para isto é imprescindível garantir curados para a recuperação da dependência do
ao indivíduo o cuidado nesta tarefa de readapta- álcool e outras drogas, tanto no Brasil como em
ção social, e por este motivo o cuidado, em saúde muitas partes do mundo, por oferecerem uma
mental, amplia-se no sentido de ser também uma inovadora forma de tratar o problema, tão im-
sustentação cotidiana da lida diária do paciente, placável e urgente, independentemente da cultu-
inclusive em suas relações sociais1. ra e do nível de desenvolvimento das populações
Desta forma, segundo Vecchia e Martins16: o atingidas.
trabalho de desconstrução do manicômio e da cul- Neste momento serão apresentadas apenas
tura manicomial envolve políticas sociais de con- as bases metodológicas e conceituais deste mo-
junto, implicando o reconhecimento da necessida- delo, comparando-as com as recém-explicadas,
de de: moradias substitutivas e assistidas para ex- referentes à Reforma Psiquiátrica e ao Movimento
internos psiquiátricos; espaços de trabalho prote- de Luta Antimanicomial, deixando as críticas ao
gido (mas não ‘tutelado’); inserção em atividades respeito da aplicação das mesmas no Brasil para
culturais e de lazer etc... outro tópico adiante.
Outra característica indiscutível do modelo Segundo consta na RDC nº 10114 (atual RDC
de atenção proposto pelo Movimento de Luta nº 29, de 30/06/1120) da Agência Nacional de Vi-
Antimanicomial é a maciça participação dos fa- gilância Sanitária (Anvisa) as CT: “são serviços
miliares dos usuários, tanto na discussão políti- urbanos ou rurais, de atenção a pessoas com
ca das diretrizes e normativas vigentes, quanto transtornos decorrentes do uso ou abuso de subs-
no cotidiano do atendimento, como agentes de tâncias psicoativas (SPA), em regime de residên-
saúde do mais alto escalão, tendo participado do cia ou outros vínculos de um ou dois turnos, se-
movimento desde o seu nascimento, como afir- gundo modelo psicossocial. São unidades que têm
mam diversos autores1,7-9,16,17. por função a oferta de um ambiente protegido,
Nunca é demais, portanto, insistir que é a rede técnica e eticamente orientado, que forneça su-
– de profissionais, de familiares, de organizações porte e tratamento aos usuários abusivos e/ou
governamentais e não governamentais em intera- dependentes de substâncias psicoativas, durante

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período estabelecido de acordo com programa mento no modelo psicossocial, considerando sem-
terapêutico adaptado às necessidades de cada caso. pre as relações interpessoais como o principal
É um lugar cujo principal instrumento terapêu- agente de modificações de comportamento, como
tico é a convivência entre os pares. Oferece uma afirma De Leon10.
rede de ajuda no processo de recuperação das Maxwell Jones5 afirma que quaisquer habili-
pessoas, resgatando a cidadania, buscando en- dades, tanto dos terapeutas quanto da institui-
contrar novas possibilidades de reabilitação físi- ção como um todo, seriam ineficazes se o clima
ca e psicológica, e de reinserção social”. social da CT como unidade estiver em contradi-
O modelo básico de CT é o residencial, como ção com as mesmas.
afirmam NIDA21, De Leon10 e Goti12. Existem tam- Por este motivo, Emilio Rodrigué25 afirma
bém CT que trabalham no regime ambulatorial que:
(hospital-dia), outras em regime de internação Sabe-se que uma CT é, para usar um quase
de curta duração, e outras de longa duração. neologismo antiantiterapêutica. Ou seja, solucio-
De Leon6 cita que a permanência tradicional na determinados agentes antiterapêuticos, patóge-
na CT era de 12 a 18 meses, fato que tem se mo- nos, tais como a privação sensorial e social, pró-
dificado na atualidade, sendo que para as CT prios das instituições totais em geral, e do asilo
filiadas na Federação Brasileira de Comunida- clássico em particular. [...] Para diminuir a priva-
des Terapêuticas (FEBRACT)22 a permanência ção emocional e social a CT deve proporcionar uma
padrão varia entre 6 e 9 meses. série de papeis sociais.
De acordo com vários autores10,11,21,23,24, um Para Maria Elena Goti12 a CT é:
dos critérios mais determinantes do trabalho da uma instituição onde tem lugar um processo
CT atual é o público atendido, sendo o foco o de crescimento pessoal acompanhado de um pro-
atendimento exclusivo de dependentes do álcool cesso de aprendizagem social. Isto implica que não
e de outras drogas. é um lugar onde alguém se ‘cura’, mas onde muda,
Em relação ao sexo da população atendida, cresce e amadurece, e onde aprende a ser um mem-
as CT podem ser masculinas, femininas ou mis- bro útil e produtivo para a sociedade.
tas, prevalecendo, no Brasil, as CT masculinas, Um dos principais avanços das CT contem-
como pode se perceber pela amostra referente às porâneas, para De Leon10, é “a passagem [...] de
CT filiadas na FEBRACT22 assim como pelo Re- uma comunidade alternativa para dependentes
latório do CFP15. O critério de idade também é químicos excluídos que presumivelmente não ti-
muito variável, mas o padrão no Brasil é entre 18 nham condições de viver em sociedade a uma
e 65 anos, havendo algumas CT que admitem instituição de serviços de atenção [...] que prepa-
menores de idade, e outras que aceitam idosos ra os indivíduos para a reintegração à sociedade
para o tratamento. mais ampla”.
Já em relação à quantidade de residentes aten- Ele ainda afirma que “é ao se esforçar para
didos numa CT, esta é muito variável. Segundo satisfazer as expectativas de participação da co-
dados do NIDA21 um programa típico de CT munidade que os residentes perseguem suas me-
abrigaria entre 40 e 80 pessoas. tas individuais de socialização e crescimento psi-
Para Maxwell Jones5 a ideia primeva da CT cológico”. Desta forma, o dependente que conse-
seria o ambiente democrático, de mobilidade so- gue socializar-se dentro da CT teria desenvolvi-
cial, no qual todos os membros possam fazer-se do recursos internos suficientes como para dar
responsáveis pelo grupo e pela instituição, inde- conta de uma posterior socialização, no suposto
pendentemente das suas características pessoais. “mundo real”.
Desta forma nas CT democráticas a autorida- Não é raro, por este motivo, que algumas CT
de seria uma prerrogativa do grupo como um todo, desenvolvam atividades em conjunto com a co-
e não de um ou alguns membros do mesmo. Isto munidade local, atividades estas que, muito além
implica uma grande complexidade do espectro so- de serem apenas simples ocupações, se tornam
cial da CT, normalmente muito difícil de adminis- dispositivos capazes de fazer com que o paciente
trar e regular. Como mostra De Leon10, para todos se sinta pertencente também ao mundo do lado
os efeitos, existe uma autoridade máxima de refe- de fora da CT, estruturando assim a rede de aju-
rência dentro do ambiente da CT, sem que por isso da citada acima pela Anvisa.
desapareça o ambiente democrático de relações Para Badaracco26 a recuperação verdadeira
horizontais e de controle social compartido. passa, inevitavelmente, pela aceitação da realida-
Como mostra a regulamentação da Anvi- de, com uma consequente adaptação à sociedade,
sa14,20, as CT baseiam seus programas de trata- com seus papéis estabelecidos. Araújo27 também

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considera que a verdadeira ressocialização passa b) a permanência na CT deve ser voluntária e


pela incorporação de princípios comportamen- decidida após o candidato ser informado sobre
tais e sociais, tais como o entendimento do papel a orientação e as normas em vigor;
social, assim como por uma integração social c) deve ser assegurado um ambiente livre de
pautada pela cooperação e comprometimento. drogas, sexo e violência.
Por adaptação não se deve entender condici- Em relação ao acompanhamento familiar, é
onamento nem abdicação da individualidade, bastante comum que “a família apresente uma
mas sim capacidade de pertencer funcionalmen- certa resistência, quando solicitada a participar,
te a um grupo com regras e limites específicos, ou então aceite o tratamento apenas por causa
algo que exige um grau mínimo de capacidade de do adicto, do doente, como se ela não precisasse
autocontrole e habilidades sociais básicas. refletir sobre a qualidade da relação familiar”30.
Como os dependentes apresentam, geralmen- Por este motivo a abordagem da CT deve
te, baixos índices de habilidades sociais, dentre prever a orientação familiar, ou o atendimento
elas o autocontrole, o que dificulta muito o seu psicoterápico propriamente dito, para os casos
desenvolvimento familiar, laboral e social, como mais resistentes. Em muitas ocasiões, quando a
afirmam Aliane et al.28, desenvolver estas habili- CT não possui este serviço, as famílias são enca-
dades deve fazer parte do processo de recupera- minhadas para Grupos de Apoio para familiares
ção, a fim de garantir o sucesso de uma posterior de dependentes do álcool e outras drogas, como
ressocialização. o Nar-Anon, Al-Anon ou o Amor Exigente.
Para o NIDA21 a recuperação envolve “re-ha- Desta forma percebe-se que a modalidade de
bilitação”, o que seria restabelecer o funciona- tratamento da CT abrange um espectro de tota-
mento das habilidades e valores saudáveis, as- lidade, no qual são contemplados os fenômenos
sim como resgatar a saúde física e emocional. individuais e sociais, físicos e psicológicos, carac-
Em outras palavras, retomar um estilo de vida terizando uma das bases da atenção integral, pro-
saudável, habilitar novamente aquilo que tinha posta também pelo modelo da Reforma Psiquiá-
sido desabilitado por causa da doença. trica e do Movimento de Luta Antimanicomial
Por outro lado, quando se fala da recupera- no Brasil.
ção da dependência do álcool e outras drogas A seguir serão comparados ambos os mode-
não tem como se deixar de pensar na díade do- los, com a finalidade de evidenciar as semelhan-
ença-pessoa, já que, como afirma De Leon10: “não ças existentes, pelo menos no que diz respeito
é a droga, mas a pessoa inteira, o problema a ser aos seus fundamentos teóricos e metodológicos.
tratado”. E a pessoa inteira sugere, inevitavelmen-
te, todo o universo psicológico e emocional do Aproximações e distanciamentos entre os
dependente. modelos descritos (Reforma Psiquiátrica –
Assim, desde a perspectiva da CT de De Movimento de Luta Antimanicomial –
Leon10, o que deve ser tratado é a pessoa como Comunidade Terapêutica)
ser social e psicológico, ou seja, deve ser tratado o
modo como o dependente se comporta, pensa, A seguir serão apresentados os Quadros 1 e 2:
sente, administra suas emoções e frustrações, suas um com as semelhanças entre os modelos acima
culpas e tristezas, a sua comunicação com o descritos, e outro com as diferenças entre os mes-
mundo externo e o interno. mos. Ao longo do texto anterior podem-se en-
De certa forma, como afirmam Sabino e Caze- contrar – grifados em itálico, para uma melhor
nave29, o dependente é alguém que se encontra visualização – os próximos “conceitos básicos”.
diante de uma realidade objetiva e/ou subjetiva Como pode ser visto nestes dois quadros
insuportável, e que não conseguindo suportar, comparativos, as aproximações entre as bases me-
modificar ou se esquivar desta realidade, lhe resta todológicas e conceituais da Reforma Psiquiátri-
modificar a percepção que tem da mesma, o que ca e o Movimento de Luta Antimanicomial, com
acontece pelo uso do álcool e outras drogas. os das CT, são muito maiores do que as suas
Quanto à orientação ética das CT, a institui- diferenças.
ção regulamentadora brasileira nestas questões De acordo com os conceitos apresentados
é, mais uma vez, a FEBRACT23, que constituiu anteriormente, podem ser enumeradas, seguin-
em 1995 o primeiro Código de Ética para as CT, do estes quadros, onze semelhanças e apenas
cujos Princípios Fundamentais são: duas divergências, sendo que estas últimas não
a) o trabalho nas CT deve ser baseado no seriam absolutas, já que tanto o conceito de De-
respeito à dignidade da pessoa humana; sospitalização quanto o de Tratamentos de curta

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Quadro 1. Semelhanças metodológicas e conceituais entre o modelo da Reforma Psiquiátrica e o
Movimento de Luta Antimanicomial com o das Comunidades Terapêuticas.
Conceitos Reforma Psiquiátrica e Comunidade
básicos Movimento de Luta Terapêutica
Antimanicomial

Rede de serviços CAPS, residências terapêuticas, Atividades extramuros com foco na


hospital-dia, NASF, consultórios de ressocialização, grupos de apoio, hospital-dia
rua, etc. (modelo ambulatorial).

Desinstitucionalização Eliminar as consequências da vida Postura anti-antiterapêutica25. Solucionar


institucional, como: violência, agentes antiterapêuticos, patógenos, tais como
miséria, isolamento, falta de a privação sensorial e social, próprios das
dignidade, injustiça e ampliação da instituições totais em geral, e do asilo clássico
enfermidade institucional14. em particular.

Superação do “Tratar o doente, e não a doença”1, “Não é a droga, mas a pessoa inteira, o
paradigma da num ambiente social, e não apenas problema a ser tratado”10. O ambiente de
clínica no consultório. tratamento é a CT, um ambiente social.

Ampliação do Melhora nas condições gerais de A recuperação envolve “re-habilitação”, o que


conceito de saúde/ vida, não somente na remoção dos seria restabelecer o funcionamento das
Melhora na sintomas17. habilidades e valores saudáveis, assim como
qualidade de vida resgatar a saúde física e emocional. Em outras
palavras, retomar um estilo de vida saudável21.

Modelo psicossocial Os engajamentos subjetivo e Considerar as relações interpessoais como o


sociocultural são indissociáveis da principal agente de modificações de
definição de saúde mental17. comportamento no dependente10.

Horizontalização Mudança nas relações paciente- A ideia primeva da CT seria o ambiente


das relações paciente e paciente-equipe de democrático, de mobilidade social, no qual a
saúde, com maior participação de autoridade seria uma prerrogativa do grupo
todas as partes. como um todo, e não de um ou alguns
membros do mesmo5.

Controle social O paciente e os familiares teriam Todos os membros podem fazer-se


compartido prerrogativas semelhantes e responsáveis pelo grupo e pela instituição,
equivalentes às da equipe de saúde independentemente das suas características
para poder gerir cada fase do pessoais5.
tratamento.

continua

duração existem nas bases conceituais das CT, A contramão do movimento


embora isto ainda não tenha sido convertido, de
fato, em metodologia aplicada. Atualmente, segundo consta no site da FE-
A questão agora seria: por que o trabalho BRACT22, existem no Brasil 132 CT filiadas à
das CT é considerado tão geralmente como ab- mesma, e sabe-se que a quantidade de CT não
solutamente contraditório ao movimento da filiadas excede, e muito, este número. Um exem-
Reforma Psiquiátrica e ao Movimento de Luta plo disto é a pesquisa realizada por Laura Paes
Antimanicomial, se de acordo com os dados ob- Machado31, segundo a qual somente no Estado
tidos as suas bases conceituais e metodológicas da Bahia teriam sido registradas 80 CT atuantes,
são tão semelhantes? enquanto que no registro da FEBRACT22 cons-
A próxima seção dará conta de responder esta tam apenas três.
pergunta. Segundo divulgado pelo SENAD32,33, existiriam
entre 2500 a 3000 CT no Brasil, que atenderiam
aproximadamente 60.000 dependentes químicos

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Quadro 1. continuação
Conceitos Reforma Psiquiátrica e Comunidade
básicos Movimento de Luta Terapêutica
Antimanicomial

Reapropriação da O que está em jogo é a O que deve ser tratado é a pessoa como ser
identidade reapropriação do sujeito; do sentido social e psicológico, ou seja, deve ser tratado o
e da motivação humana; modo como o dependente se comporta,
reapropriação da capacidade de pensa, sente, administra suas emoções e
forjar sua própria identidade6. frustrações, suas culpas e tristezas, a sua
comunicação com o mundo externo e o
interno10.

Singularização Tratar o doente mental de acordo “É ao se esforçar para satisfazer as expectativas


com as suas características e de participação da comunidade que os
necessidades pessoais, fugindo da residentes perseguem suas metas individuais
lógica asilar capitalista de de socialização e crescimento psicológico”10.
massificação1.

Ressocialização Retorno do doente mental à Um dos principais avanços das CT


sociedade e à família, de acordo contemporâneas, para De Leon10, é “a
com as reais possibilidades de cada passagem [...] de uma comunidade alternativa
caso, buscando desenvolver diversos para dependentes químicos excluídos que
dispositivos externos que se presumivelmente não tinham condições de
adaptem a cada necessidade. viver em sociedade a uma instituição de
serviços de atenção [...] que prepara os
indivíduos para a reintegração à sociedade
mais ampla”.

Participação dos Participação ativa na fundação do Participação fundamental da família no


familiares movimento, assim como na gestão tratamento e na gestão do mesmo através de
das políticas públicas. acompanhamento individual ou de
participação em diversos Grupos de Apoio.

Quadro 2. Diferenças metodológicas e conceituais entre o modelo da Reforma Psiquiátrica e o Movimento


de Luta Antimanicomial com o das Comunidades Terapêuticas.
Conceitos Reforma Psiquiátrica e Comunidade
básicos Movimento de Luta Terapêutica
Antimanicomial

Desospitalização Atendimento ao doente fora do Regime residencial, embora existam modelos


ambiente hospitalar, através dos de CT ambulatorial.
dispositivos da rede de serviços.

Tratamentos de Nos casos de internação, tempo Tratamentos a partir de 6 meses de duração,


curta duração máximo de 90 dias. embora existam projetos de diminuição do
tempo mínimo de tratamento.

anualmente. Segundo a mesma pesquisa, mais de mica Aplicada (IPEA), mais de 80% dos trata-
55% das ONG que oferecem tratamento para a mentos no Brasil são realizados dentro de CT.
dependência do álcool e outras drogas no Brasil Isto se configura um problema, já que gran-
seriam CT, embora Hartmann32 afirme que, se- de parte destas CT não consta nos registros de
gundo pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) nenhuma instituição regulamentadora, poden-
juntamente com o Instituto de Pesquisa Econô- do ser esta tanto a própria FEBRACT, os respec-

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tivos Conselhos Municipais Antidrogas (CO- a) o cuidado com o bem estar físico e psíqui-
MAD), de Saúde (CMS), de Assistência Social co da pessoa, proporcionando um ambiente li-
(CMAS), dos Direitos da Criança e do Adoles- vre de SPA e violência;
cente (CMDCA), a Agência Nacional de Vigilân- b) a observância do direito à cidadania do
cia Sanitária (Anvisa), ou qualquer outro órgão residente;
competente. c) alimentação nutritiva, cuidados de higiene
Este mesmo problema foi constatado pelo e alojamento adequados;
Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos d) a proibição de castigos físicos, psíquicos
Humanos15, referente aos locais de internação ou morais;
para usuários de drogas, elaborado pelo Conse- e) a manutenção de tratamento de saúde do
lho Federal de Psicologia, realizado em 24 Esta- residente.
dos mais o DF, num total de 68 instituições, nas Como se pode conferir através destes dados,
quais foi encontrada uma infinidade de irregula- é evidente que grande parte das supostas CT em
ridades e abusos, como, por exemplo: funcionamento no Brasil não atendem os requi-
a) agressões físicas e morais; sitos mínimos de funcionamento, e é por este
b) constrangimento aos familiares nas visitas; motivo que não devem ser denominadas sob o
c) utilização de contenção química contra a nome de CT. Como foi visto nas seções anterio-
vontade do indivíduo, sem o consentimento da res, o histórico e a essência do trabalho numa
família, e sem a presença de profissionais res- legítima CT divergem diametralmente daquilo
ponsáveis; que foi encontrado pelo CFP no levantamento
d) cárcere privado; citado, motivo pelo qual fica evidente que estas
e) desrespeito à orientação sexual; inconsistências não são produto das bases con-
f) imposição de credo religioso; ceituais e metodológicas do movimento das CT,
g) negligência de cuidados com a saúde; mas sim de uma prática indiscriminada e irres-
h) condições indignas de alimentação, habi- ponsável daqueles que dirigem estes locais.
tação e saneamento básico. Cabe ressaltar, finalmente, que das 68 insti-
Muitos outros exemplos poderiam ser cita- tuições investigadas pelo CFP, apenas quatro fa-
dos para ilustrar o grau de desrespeito para com zem parte da relação das CT filiadas fornecida
o ser humano que demonstram muitas destas pela FEBRACT, o que evidencia, mais uma vez, a
instituições, que erroneamente se autodenomi- necessidade de regulamentação e fiscalização que
nam CT, mas com certeza estes já retratam uma esta abordagem de trabalho exige, a fim de que
realidade alarmante, muitas vezes desconhecida seja realizado com seriedade e eficácia.
para aqueles que procuram pela primeira vez um
serviço desta espécie.
Além de transgredir os princípios básicos dos Conclusões
Direitos Humanos, também transgridem a re-
gulamentação oficial do Estado, que na Lei nº A trajetória da Reforma Psiquiátrica e do Movi-
10.216, de 6 de Abril de 200113,19, dispõe sobre a mento de Luta Antimanicomial no Brasil marca
proteção e os direitos das pessoas portadoras de o início de um profundo processo de mudança
transtornos mentais, direcionando o modelo de no que diz respeito ao atendimento em Saúde
assistência em saúde mental. Mental, visando tratamentos mais humanizados,
No Artigo 2º, inciso II, define-se que o indiví- que considerem a individualidade e a cidadania
duo em tratamento deve ser tratado com huma- do portador de transtornos mentais de qualquer
nidade e respeito, no interesse exclusivo de bene- espécie.
ficiar sua saúde, visando alcançar sua recupera- Neste intuito muitos hospitais psiquiátricos
ção pela inserção na família, no trabalho e na foram fechados e, concomitantemente, foram
comunidade. abertas inúmeras vagas para atendimento nos
No inciso III do mesmo Artigo, a lei garante setores da atenção primária, buscando modelos
que o indivíduo em tratamento deve ser protegi- alternativos de atendimento, preferentemente
do contra qualquer forma de abuso e exploração. fora de o ambiente hospitalar, altamente iatro-
Na regulamentação da Anvisa20, no Artigo gênico na maior parte dos casos.
20, consta que durante a permanência no trata- Assim, foram criadas estratégias como os
mento a instituição deve garantir: CAPS, NASF, residências terapêuticas, hospitais-

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dia, consultórios de rua e outros dispositivos que Por outro lado também se percebeu que uma
garantam a integralidade do atendimento, sem o grande maioria destas supostas CT não recebe
ônus da hospitalização. nenhuma forma de fiscalização, não se encontran-
Por outro lado, o problema da dependência do cadastrada em nenhum serviço de referência
do álcool e outras drogas tem se alastrado de que regulamente sua prática, o que facilita ainda
forma alarmante nas últimas décadas, o que tem mais a proliferação e a prática indiscriminada.
provocado, em função da ausência de políticas Mas isto não significa, de forma alguma, que
públicas, a proliferação de uma série de locais de o conceito de CT se posiciona contra as bases do
internação para este público, dentre estes as de- movimento reformista da saúde mental, já que,
nominadas CT. como foi demonstrado, as suas bases conceituais
Embora em sua origem histórica, conceitual e metodológicas em muito se aproximam.
e metodológica, o movimento das CT tenha O que sim fica evidente é a necessidade de
muitas mais semelhanças do que diferenças com uma sistemática de fiscalização e regulamenta-
o proposto pela Reforma Psiquiátrica e o Movi- ção das CT, a fim de que somente permaneçam
mento de Luta Antimanicomial, na prática, pelo em atividade aquelas que, de fato, sigam o mo-
menos no Brasil, a realidade é diferente, como delo proposto originalmente, nascido no mes-
confirmado por diversas investigações realiza- mo berço da Reforma Psiquiátrica.
das na atualidade. Desta forma, as CT poderão sim fazer parte
De fato, uma boa parte das CT no Brasil pos- das estratégias de atenção integral aos dependen-
sui práticas tão desumanas e iatrogênicas quan- tes do álcool e outras drogas, consolidando-se
to às das antigas instituições asilares manicomi- como um excelente instrumento nos casos em
ais, sem garantir minimamente a preservação dos que outras alternativas se mostrem ineficazes.
direitos humanos mais básicos.

Colaboradores

NR Costa, SV Siqueira, D Uhr, PF Silva e AA


Molinaro participaram igualmente de todas as
etapas da elaboração do artigo.

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Ciência & Saúde Coletiva, 19(2):569-580, 2014


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Artigo apresentado em 23/01/2013


Aprovado em 03/03/2013
Versão final apresentada em 16/03/2013

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Investigación original / Original research

Metodologia de implementação de práticas


preventivas ao uso de drogas na atenção
primária latino-americana
Pedro Henrique Antunes da Costa,1 Daniela Cristina Belchior Mota,1
Erica Cruvinel,1 Fernando Santana de Paiva1 e Telmo Mota Ronzani 1

Como citar Costa PHA, Mota DCB, Cruvinel E, Paiva FS, Ronzani TM. Metodologia de implementação de prá-
ticas preventivas ao uso de drogas na atenção primária latino-americana. Rev Panam Salud Publica.
2013;33(5):325–31.

resumo Objetivo.  Desenvolver uma metodologia para implementação de práticas de prevenção ao


uso de álcool e outras drogas no âmbito da atenção primária à saúde (APS) que contribua com
o debate sobre ações e políticas nos países latino-americanos.
Métodos.  Trata-se de uma pesquisa-intervenção realizada em um município brasileiro
de pequeno/médio porte. O processo foi avaliado através da observação participante,
visando adequação às necessidades locais e ressaltando pontos de facilitação e dificuldade na
implantação.
Resultados.  Foi desenvolvido um modelo com seis etapas: contato inicial e planejamento,
diagnóstico e mapeamento, sensibilização, capacitação, acompanhamento e devolutiva.
Foram percebidos os seguintes pontos de dificuldade: insuficiência de recursos (humanos,
financeiros, infraestrutura), falta de integralidade e intersetorialidade da rede assistencial,
falta de participação dos médicos, formação calcada no saber médico, participação insuficiente
da gestão de saúde, falta de mobilização e participação da sociedade civil, ausência de
momentos onde a população fosse convidada a participar do planejamento e execução das
políticas públicas. Pontos fortes foram: participação dos agentes comunitários e enfermeiros na
aplicação, organização e planejamento das práticas, além da realização de práticas educacionais
e preventivas nas escolas e comunidades pelas equipes de saúde. Isso indica que é possível
implementar iniciativas de triagem, intervenção breve e encaminhamento para tratar (SBIRT)
no contexto da APS latino-americana.
Conclusões.  A metodologia desenvolvida neste estudo pode ser útil para países latino-
americanos desde que sejam consideradas as necessidades locais. Entretanto, os resultados
serão observados apenas a médio e longo prazo, sem mudanças instantâneas.

Palavras-chave Atenção primária à saúde; pesquisa participativa baseada na comunidade; detecção


do abuso de substâncias; América Latina.

Em todo o mundo, o uso de álcool e de Americana da Saúde (OPAS), em torno operam na prevenção das doenças e na
outras drogas contribui para configurar de 4,5 milhões de homens e 1,2 milhão promoção da saúde (2). Contudo, as ex-
um novo perfil no quadro dos problemas de mulheres na América Latina e Caribe, periências preventivas ao uso de álcool
de saúde. Segundo a Organização Pan- em algum momento de suas vidas, so- e outras drogas ainda são limitadas,
1 Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), De-
freram transtornos causados pelo uso de apesar da importância de tais ações para
partamento de Psicologia, Centro de Referên- drogas (1). De acordo com a literatura, mudar os indicadores de saúde geral da
cia em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em os mecanismos mais efetivos na redu- população.
Álcool e Drogas (CREPEIA), Juiz de Fora (MG),
Brasil. Correspondência: Telmo Mota Ronzani, ção da vulnerabilidade da população a Nessa perspectiva, diversos autores
tm.ronzani@gmail.com essas novas epidemias são aqueles que (3–5) apontam o enfoque denominado

Rev Panam Salud Publica 33(5), 2013 325


Investigación original Costa et al. • Metodologia de prevenção ao uso de drogas

SBIRT — Screening, Brief Intervention, and educação permanente, problematizando município brasileiro de pequeno/médio
Referral to Treatment (Triagem, Interven- as demandas sociais emergentes e consi- porte de março a dezembro de 2010. O
ção Breve e Encaminhamento para Tra- derando as condições socioeconômicas e município possui 177 estabelecimentos
tar) — como uma importante ferramenta estruturais dos profissionais e usuários cadastrados no Sistema Único de Saúde
para a implementação e a organização dos serviços de saúde (11, 12). (SUS), sendo 147 da iniciativa privada e
de atividades preventivas ao uso de Nesse sentido, ressalta-se que os avan- 30 de responsabilidade do poder público
álcool e outras drogas, principalmente ços científicos repercutem nas pessoas municipal (18). O município conta com
nos serviços de atenção primária à saúde não exclusivamente pela atuação dos 21 equipes de ESF na zona urbana e um
(APS). Esse nível de atenção se configura profissionais de saúde, mas também Núcleo de Apoio à Saúde da Família
como uma das principais estratégias de pelo impacto positivo que têm nos co- (NASF) que atua em conjunto com os
organização dos sistemas de saúde, prin- nhecimentos, valores e comportamentos profissionais da ESF no matriciamento
cipalmente na América Latina (6). É, das comunidades e sistemas sociais (13, e organização do fluxo de pacientes. A
portanto, uma instância essencial para a 14). Para uma implementação efetiva média de profissionais por equipe de
aplicação das práticas de prevenção ao das estratégias de prevenção, torna-se ESF é de 9,73, sendo 76,5% da popula-
uso de álcool e outras drogas. No Brasil, imprescindível a adoção de uma lógica ção coberta pela ESF (19). Todas essas
a APS é organizada através da Estratégia de interação entre o sistema de saúde e a equipes de ESF, além do NASF, foram
Saúde da Família (ESF), cujos principais sociedade, a partir da compreensão das abrangidas pelo estudo.
atributos são: caráter substitutivo em reais demandas e necessidades sociais. Quanto à rede de atenção aos usuários
relação à rede de atenção básica tradicio- Para tanto, as ações no campo da de álcool e outras drogas, o município
nal, atuação territorializada, desenvolvi- saúde devem ser compartilhadas com dispõe de um Centro de Atenção Psicos-
mento de atividades com foco na família outros setores estratégicos, assim como social para Álcool e Drogas (CAPSad).
e comunidade, busca da integração com devem garantir a participação efetiva Entre os grupos de autoajuda, eram
instituições e organizações sociais e ser dos diferentes grupos sociais na iden- cadastrados na Secretaria Nacional de
um espaço de construção de cidadania tificação, formulação e implementação Políticas sobre Drogas (SENAD) quatro
(7). Apesar disso, são escassos os estudos das ações, ou seja, devolvendo o poder grupos de Alcoólicos Anônimos (AA)
sobre a eficácia das práticas de preven- de decisão de sua saúde à própria co- e dois grupos de Narcóticos Anônimos
ção ao uso de álcool e outras drogas na munidade (13, 15, 16). A participação (NA) (20). Na rede particular foram
APS, com identificação de elementos que comunitária pode constituir eixos para encontradas uma clínica de repouso e
promovam resultados positivos na pre- a promoção de saúde e a prevenção do duas comunidades terapêuticas. Além
venção e redução do consumo de acordo uso de álcool e outras drogas, pois as disso, existia no município o Conselho
com cada realidade (4). características ecológicas, culturais e so- Municipal de Políticas para Álcool e
Um dos componentes da SBIRT é a cioeconômicas da comunidade na qual Drogas, que, no entanto, encontrava-se
aplicação de instrumentos de triagem, se pretende intervir passam a ser melhor desativado.
como o teste para detecção de envol- visualizadas, configurando formas mais No município, assim como no restante
vimento com álcool, tabaco e outras efetivas para que tais estratégias de pre- do país, há uma sistematização do acesso
substâncias (Alcohol, Smoking and Sub­ venção atinjam a população (16, 17). aos serviços de álcool e outras drogas,
stance Involvement Screening Test, ASSIST), Cabe destacar ainda que, de modo ge- com um protocolo de acolhimento, ava-
desenvolvido em 2002 pela Organização ral, muitos projetos e ações são implanta- liação, referência e contra-referência dos
Mundial da Saúde (OMS) para iden- dos sem que se avalie sua efetividade ou pacientes que procuram os serviços de
tificar o padrão de uso e auxiliar o que se determinem fatores que possam atenção primária à saúde. Todo paciente,
profissional de saúde a definir a estra- facilitar ou dificultar sua implantação. Os para entrar na rede assistencial de saúde
tégia de intervenção mais adequada (8). aspectos científicos, tecnológicos e meto- mental do município, deve ser avaliado
Após a aplicação do instrumento de dológicos imbricam-se com aspectos éti- inicialmente pelas equipes de ESF, ex-
triagem, realiza-se a intervenção breve, cos e culturais de maneira indissolúvel, ceto pacientes atendidos pelo serviço de
uma abordagem de educação em saúde devendo ser considerados, desde o início, urgências psiquiátricas.
relacionada à prevenção primária ou de maneira integral no ciclo completo da
secundária para usuários de álcool e implementação das estratégias de preven- Participantes
outras drogas, com foco na mudança ção ao uso de álcool e outras drogas (13).
de comportamento do paciente. Essa Dessa forma, o objetivo do presente Participaram do projeto três gestores
intervenção breve pode ser realizada artigo é desenvolver uma metodologia do sistema municipal de saúde, com base
por profissionais de diferentes forma- para implementação de práticas de pre- na importância dos seus cargos para a or-
ções (9). Contudo, no Brasil e em outros venção ao uso de álcool e outras drogas ganização e a implementação do projeto
países latino-americanos, grande parte na APS. Para isso, foram determinados (amostra intencional), e os profissionais
dos profissionais sente-se despreparada fatores que pudessem facilitar ou di- das equipes de ESF e NASF que acei-
para lidar com a prevenção e a promoção ficultar sua implantação, promovendo taram participar de todas as etapas do
de saúde, devido, entre outros fatores, à aproximação com a realidade local. projeto (amostra de conveniência). Além
sua formação centrada na resolutividade disso, foi enfatizada a participação de
da “doença” (5, 10). No que se refere à MATERIAIS E MÉTODOS multiplicadores, que eram profissionais
formação profissional, é importante o in- da própria rede e atores comunitários
vestimento na contínua formação desses Esta pesquisa-intervenção de natu- com uma inserção e/ou algum tipo de
atores sociais, a partir dos princípios da reza qualitativa foi conduzida em um liderança/engajamento nas comunida-

326 Rev Panam Salud Publica 33(5), 2013


Costa et al. • Metodologia de prevenção ao uso de drogas Investigación original

des, para auxiliar na execução do projeto foram coletados documentos sobre APS ção permanente, com objetivos práticos
junto às equipes e população. e ESF do município, com participação e voltados para o processo de aprendiza-
em reuniões da gestão de saúde com gem dinâmico e vivenciado no dia-a-dia
Avaliação do trabalho os gerentes de equipe de Saúde da Fa- dos serviços.
mília e visitas às equipes de saúde e às A quinta etapa do projeto foi o acom-
O processo foi avaliado visando a comunidades. panhamento do processo de implemen-
adequação às necessidades locais e exa- Foram mapeados e analisados: os indi- tação das práticas de prevenção ao uso
minando os fatores que pudessem faci- cadores sociais e de saúde do município de álcool e outras drogas, promovendo
litar ou dificultar a sua implantação em (dados epidemiológicos e de vulnerabi- uma articulação entre APS e comuni-
outros municípios e/ou países latino- lidade social), o cotidiano dos serviços dade local e mediando os interesses dos
americanos. A partir do exposto, e de de saúde (estrutura e dinâmica de fun- atores envolvidos em relação às ações so-
acordo com os achados na literatura, a cionamento), a percepção e as demandas bre álcool e outras drogas. Para isso, du-
metodologia de implementação de prá- populacionais em relação ao serviço de rante 4 meses foram realizadas, simulta-
ticas preventivas foi avaliada através da saúde, a percepção dos profissionais em neamente: visitas quinzenais às equipes
observação participante. Os dados cole- relação à população, os serviços e ações da ESF, entrega de materiais didáticos
tados foram registrados em diários de existentes para prevenção e tratamento e educativos aos profissionais de saúde
campo, gerando, posteriormente, relató- do uso de álcool e outras drogas e o nível e reuniões semanais com os gestores da
rios sistemáticos (21). Além disso, reu- de engajamento e participação da socie- APS, com dois retornos parciais.
niões semanais de planejamento foram dade civil no planejamento e implan- Através dos contatos com a gestão da
efetuadas, sendo a avaliação do trabalho tação de políticas públicas. Tais dados APS, disponibilizou-se uma assessoria
realizada continuamente. foram analisados concomitantemente ao para a definição de uma agenda de ações
processo de coleta. Eles serviram como sobre álcool e outras drogas, articulando
RESULTADOS parâmetro para o contínuo desenvolvi- os principais atores sociais no âmbito
mento dos trabalhos. local.
Os resultados são apresentados em Ainda nesta etapa, posteriormente à Nas visitas às equipes de ESF, foi rea-
duas categorias: 1) metodologia de im- realização do mapeamento, foram iden- lizado o acompanhamento da aplicação
plementação das práticas preventivas ao tificados os multiplicadores. Além disso, das técnicas de prevenção pelos profis-
uso de álcool e outras drogas e 2) pontos foram promovidas parcerias com diver- sionais de saúde e uma discussão poste-
de dificuldade e pontos de facilitação sos setores identificados dentro da rede rior dos casos encontrados, promovendo
observados no desenvolvimento dessa de apoio aos usuários. uma educação continuada dos conteú-
metodologia. A terceira etapa do projeto consistiu dos abordados na etapa de capacitação.
num trabalho de sensibilização dos vá- Ofereceu-se suporte para o desenvol-
Metodologia de implementação de rios atores sociais envolvidos na temá- vimento das estratégias de prevenção.
práticas preventivas ao uso de álcool tica de álcool e outras drogas (gestores, Também foram propostas estratégias
e outras drogas profissionais da rede assistencial, líderes voltadas para fatores organizacionais e
comunitários, etc.). Foi organizado um processos de trabalho que poderiam im-
A metodologia de implementação evento com duração de 1 dia que contou pactar favoravelmente a realização das
foi desenvolvida a partir de seis eta- com participação desses atores, onde os práticas de prevenção entre as equipes
pas, sendo elas: contato inicial e pla- pesquisadores do grupo e os gestores de profissionais de saúde.
nejamento, diagnóstico e mapeamento, locais proferiram palestras sobre a im- Os dois retornos parciais consistiram
sensibilização, capacitação, acompanha- portância da prevenção ao uso de álcool em apresentações dos principais resul-
mento e devolutiva. e outras drogas. tados referentes ao processo de imple-
Na fase de contato inicial, a posição de Contudo, o trabalho de sensibilização mentação do projeto para a discussão
colaboração entre todos os participantes foi contínuo, com o objetivo, ao longo do coletiva dos fatores que facilitaram e/
foi corroborada, de modo que as ações tempo, de modificar crenças e atitudes ou dificultaram a implementação da
propostas foram de responsabilidade moralizantes sobre o uso de álcool e proposta no município. O público alvo
mútua e realizadas em parceria. Tal pac- outras drogas. Portanto, preconizou-se a foi de profissionais da ESF, da rede de
tuação ocorreu entre os meses de março disseminação e a troca de informações ao álcool e outras drogas, coordenação da
e abril. Envolveu a elaboração, pelos longo do projeto, remetendo, mais uma APS e saúde mental. Essas apresentações
pesquisadores e gestores de saúde, das vez, à importância dos multiplicadores tiveram o objetivo de planejar as próxi-
estratégias de implementação do projeto, como ferramenta de alcance a uma maior mas etapas do projeto, consolidando a
respeitando as características locais. parcela da população. sua implementação e o fortalecimento de
Na etapa de diagnóstico, iniciou-se Na quarta etapa, os profissionais da parcerias locais estabelecidas.
um trabalho de inserção e familiarização ESF passaram por uma capacitação que Os materiais didáticos e educativos
ao campo e coleta de informações acerca incluiu noções teóricas sobre substâncias foram disponibilizados para os profis-
das características locais. Tal processo psicoativas (farmacologia, epidemiolo- sionais e usuários da ESF e continham
teve duração de 2 meses e compreendeu gia do uso, efeitos agudos e crônicos) dados sobre epidemiologia do uso de
a coleta de dados em sites do governo, e atividades práticas da SBIRT, como álcool e outras drogas e a realização da
Ministério da Saúde e Secretaria Nacio- a aplicação do instrumento de triagem triagem e IB. O intuito dessa estratégia
nal de Políticas sobre Drogas do Minis- (ASSIST) e a técnica de IB. A capacitação era de continuar com o processo de dis-
tério da Justiça (Senad/MJ). Também ocorreu dentro da perspectiva da educa- seminação de informação e sensibiliza-

Rev Panam Salud Publica 33(5), 2013 327


Investigación original Costa et al. • Metodologia de prevenção ao uso de drogas

ção e, também, servir como material de Ademais, na etapa de diagnóstico, suporte da gestão municipal para a abor-
apoio para os profissionais na realização foram observados outros pontos de di- dagem das questões ligadas ao tema.
das práticas dadas na capacitação. ficuldade, entre eles: insuficiência de re- Foram também relatados problemas no
A sexta etapa foi executada a partir cursos na ESF, visão da população como encaminhamento de pacientes — com
de um relatório final e de um último mera receptora de políticas públicas, sobrecarga para o CAPSad, que não con-
retorno. A finalidade foi sistematizar o baixo número de contingente profissio- seguia suprir a demanda de tratamento
projeto como um todo, apontando os nal nas equipes de saúde, infraestrutura do município, e (mais uma vez) a falta
pontos de dificuldade e facilitação à im- inadequada dos postos de saúde e au- de intersetorialidade, com os setores
plementação das ações de prevenção ao sência de mobilização e participação da atuando, em sua maior parte, de forma
uso de álcool e outras drogas. Ainda fo- população no planejamento e realização isolada, sem articulação.
ram delineados os pontos que poderiam de ações. Por fim, na etapa devolutiva, observa-
auxiliar no planejamento e continuidade Na etapa de sensibilização, a partici- ram-se, como pontos facilitadores, a pos-
das ações realizadas. No retorno final, pação da gestão de saúde e de outros tura receptiva da gestão em relação aos
foi arquitetada uma reunião com pro- setores ocorreu em momentos pontuais, resultados apresentados pelo projeto. Na
fissionais da ESF, da rede de álcool e como palestras e reuniões gerais com reunião final, houve participação ativa
outras drogas, coordenação da APS e os profissionais de saúde e população. dos agentes comunitários de saúde e dos
saúde mental e demais interessados. O O grupo enfrentou dificuldades na mu- enfermeiros na discussão dos pontos de
relatório final foi entregue à gestão e dis- dança de crenças, atitudes e compor- facilitação e dificuldade observados a
ponibilizado aos profissionais e demais tamentos dos profissionais, que eram partir de cada etapa de implementação
interessados. muitas vezes pautados por preconceitos da metodologia. Ademais, uma profis-
e estigmas sobre os usuários de álcool e sional da ESF que teve atuação desta-
Pontos de facilitação e dificuldade outras drogas. cada foi selecionada para supervisionar
observados no desenvolvimento da Na etapa de capacitação, 120 profissio- a execução do projeto e para apoiar a
metodologia nais da ESF foram capacitados para defi- implantação e a continuidade do modelo
nir e implementar as ações de prevenção de prevenção proposto. A nomeação
A seguir serão apresentados os pontos ao uso de álcool e outras drogas. Foi no- dessa profissional foi pactuada com a
de facilitação e dificuldade observados tável a participação maciça de agentes co- gestão de APS.
no desenvolvimento da metodologia, le- munitários de saúde, com 76 capacitados,
vando em consideração cada etapa de e a participação escassa dos médicos, DISCUSSÃO
implementação. com somente 2 capacitados. Observou-
Em relação ao contato inicial e o plane- se, nas propostas de ações formuladas Ao se pensar numa metodologia de
jamento, estes foram facilitados por uma pelos profissionais da ESF, o foco na de- pesquisa-intervenção, algumas caracte-
postura receptiva da gestão de saúde do pendência, demonstrando uma formação rísticas inerentes às realidades e ne-
município. Essa postura possibilitou a ainda calcada no saber médico, curativo, cessidades locais, além da própria me-
realização de um trabalho conjunto de que não priorizava a prevenção. todologia de trabalho e do papel do
planejamento e operacionalização das Ainda quanto ao processo de acompa- pesquisador, devem ser analisadas, para
ações preventivas a serem realizadas nhamento das equipes de ESF, foi desta- que não haja simplesmente uma trans-
pelos profissionais de saúde. cada a participação de agentes comuni- posição de modelos fora do contexto.
Na segunda etapa, de diagnóstico e tários de saúde na aplicação das práticas Mesmo que exista um planejamento ini-
mapeamento, constatou-se a existência preventivas, e dos enfermeiros na orga- cial à entrada no campo, esse planeja-
de outros projetos sobre álcool e outras nização da SBIRT. Foi percebida também mento deve ser maleável e modificável
drogas — por exemplo, um grupo de uma ausência dos médicos nesta etapa. a partir do mapeamento de demandas
trabalho composto por gestores de di- Os pontos facilitadores observados fo- e dificuldades dos serviços e da popu-
versos setores e um fórum intersetorial ram a realização da SBIRT pelos profis- lação, da definição das problemáticas a
permanente de saúde mental. Nesses sionais da ESF, aplicando o ASSIST e rea- serem consideradas e da possibilidade
projetos, as práticas realizadas no mu- lizando a intervenção breve; e as práticas de resolução ou enfrentamento dessas
nicípio eram apresentadas e discutidas educacionais e preventivas realizadas problemáticas. Todo esse processo deve
entre usuários e profissionais da rede em escolas por algumas equipes de ESF, ser calcado na participação conjunta, re-
em encontros quinzenais. Foram reali- como cursos, palestras, feiras e exposi- lações dialógicas estabelecidas entre pro-
zadas parceiras com esses projetos pre- ções. Essas práticas ocorreram a partir fissionais e comunidade, possibilitando
existentes, o que contribuiu não apenas da aproximação das equipes de ESF com a construção de novos saberes (22, 23).
para aprofundar o conhecimento acerca escolas de suas áreas de abrangência e de Com relação à APS no Brasil e em
das características da rede local, mas acordo com as necessidades e realidades grande parte da América Latina e Ca-
também para dar início ao processo locais. Ademais, algumas equipes pla- ribe, a literatura demonstra que, apesar
de sensibilização. Contudo, a despeito nejaram e implementaram grupos nas de profissionais e gestores atribuírem
dessas tentativas, foram observadas di- comunidades para discussão de diversos grande importância às ações de preven-
ficuldades de articulação da rede, com aspectos sobre o uso de álcool e outras ção e promoção de saúde, essas ainda
as noções de trabalho intersetorial ba- drogas, como as consequências do uso e ocorrem de forma paralela. O discurso
seadas apenas na junção de diferentes da prevenção, entre outros. preventivo, embora amplamente discu-
setores para a realização de ações com Contudo, os profissionais envolvidos tido na teoria, raramente é colocado em
caráter pontual. relataram ainda haver receio e falta de prática nos serviços de saúde (10). No

328 Rev Panam Salud Publica 33(5), 2013


Costa et al. • Metodologia de prevenção ao uso de drogas Investigación original

Brasil, a população ainda procura as adveio de um maior aprofundamento e a aplicação do ASSIST e a realização da
equipes de ESF com demandas majori- conscientização de alguns profissionais IB em pessoas mais próximas, a fim de
tariamente de cunho curativo e remedia- sobre o conceito de saúde e suas práti- uma maior ambientação do profissional
tivo — por exemplo, consultas médicas cas, mostrando também como é possível às práticas.
e odontológicas, requisição de medica- realizar ações coletivas, mesmo em si­ Também se mostra importante para
mentos e realização de curativos e vaci- tuações que não sejam as ideais. manutenção das práticas preventivas a
nas. A lógica que orienta o trabalho dos Destaca-se para isso a necessidade de realização de um planejamento das equi-
profissionais tende a ser o da legitimação parcerias com atores/entidades locais, pes de saúde para a implementação da
de tais demandas sociais (20, 24). Cabe nas quais esses atores assumam a respon- SBIRT em seus serviços, abordando a
salientar que isso é fruto de um processo sabilidade de aumentar a capilaridade da maneira como serão realizadas, estabe-
sócio-histórico com várias formulações e divulgação da prevenção ao uso de álcool lecendo metas e funções de cada profis-
reformulações. Nesse processo, é recente e outras drogas e de oferecer suporte à sional e pontuando possíveis entraves e
a introdução dos conceitos de prevenção implementação das práticas de acordo pontos facilitadores a serem enfrentados
e promoção de saúde, tanto para a po- com as potencialidades e peculiaridades de acordo suas realidades (12).
pulação quanto para os profissionais, em de cada localidade, promovendo o en- Sobre o papel da gestão, percebe-se na
comparação aos pressupostos da lógica gajamento da comunidade. A posição de literatura uma dificuldade dos gestores
biomédica (20). destaque exercida pelos profissionais da em ponderar adequadamente a impor-
Aliados a isso estão os problemas ESF perante a comunidade — principal- tância de ações preventivas ao uso de ál-
referentes à formação dos profissionais mente os enfermeiros e os ACS — confere cool e outras drogas (27). No município,
de saúde e suas práticas. O modelo de a esses profissionais um papel de elo observou-se a gestão de saúde receptiva
APS exige uma mudança estrutural em entre o serviço e a população, sendo que, à realização dessas práticas preventivas
ambas, que deve começar nos centros além disso, participam de forma ativa dentro da rotina dos serviços de saúde.
formadores. Contudo, ainda percebem- do contexto das equipes. Ao se objetivar Entretanto, não foi possível perceber um
se os profissionais de nível superior a continuidade das ações propostas na engajamento com as práticas propostas,
com sua formação e atuação voltadas rotina de trabalho, é preciso considerar como se o projeto não estivesse sob a
para os processos de adoecimento (10). a comunidade como o componente prin- responsabilidade do município também,
Ademais, a APS aparece como um meio cipal, com os profissionais gerenciando e numa perspectiva articuladora da atua­
importante de inserção no mercado de organizando as ações em suas respectivas ção dos profissionais de saúde. Isso se
trabalho, especialmente para aqueles em equipes e áreas de abrangência (16). torna um fator que dificulta a incor-
início de carreira, estando a permanên- Entretanto, deve-se aproximar a equipe poração e manutenção das práticas na
cia desses, muitas vezes, condicionada e a rede assistencial para um trabalho in- rotina assistencial do sistema de saúde
pela falta de outras oportunidades de terdisciplinar/intersetorial. Sabe-se que a local (27).
trabalho (24). questão do uso de álcool e outras drogas Os processos de construção das po-
No caso dos agentes comunitários remete a diversas causas e dimensões, líticas públicas de saúde do município
de saúde (ACS), muitos não tiveram não sendo resolvida apenas pelo esforço foram observados como sendo, em sua
passagem alguma pela área da saúde setorial isolado da saúde. Articulações maioria, de cima pra baixo, onde pro-
anteriormente, adquirindo na prática o intersetoriais e a atuação multiprofis- fissionais e população são vistos como
seu real aprendizado, acarretando uma sional são imprescindíveis para incidir agentes passivos, não sendo convidados
reprodução de modelos de pensamento sobre os determinantes sociais do pro- para o processo de construção dessas
e ação hegemônicos. Portanto, o tra- cesso de uso de álcool e outras drogas e políticas. Isso nos remete à proposta da
balho de prevenção ao uso de álcool promover a saúde (26). participação comunitária num contexto
e outras drogas não pode mostrar-se Com relação às práticas de SBIRT, latino-americano que, segundo Briceño-
desconexo dessas análises conjunturais, estas devem acompanhar a rotina de Leon (28), trata-se de uma maneira de
com o objetivo de uma maior conscien- trabalho dos profissionais, ainda que em fortalecer a democracia. A sociedade
tização da população, de profissionais e momentos de maior sobrecarga de tra- civil há de assumir os seus deveres e im-
de gestores (24). balho tais práticas sejam realizadas com plicações na construção do setor saúde,
Outros fatores também são inerentes à menor frequência. Daí a importância do mas também não se pode acusá-la so-
APS no contexto latino-americano, como planejamento e do estabelecimento de mente por uma ausência de participação
a insuficiência de recursos (humanos, fi- metas concretas na APS. Essas ações, quando o Estado não se movimenta para
nanceiros, infraestrutura) e a falta de in- aliadas a maior e melhor investimento, criar um espaço de debate, convidando
tegralidade e intersetorialidade da rede melhorias das condições de trabalho, a sociedade a participar como agente fo-
assistencial (6, 25). Tais problemas foram suporte às equipes de saúde, são condi- mentador de reflexões e mudanças (28).
observados no município estudado, ge- ções para a sustentação e melhoria dos
rando grande demanda de atendimento, serviços ofertados. Conclusões
limitando e, em alguns casos, impossi- Pelo fato de serem práticas relativa-
bilitando as ações de prevenção. Entre- mente novas e que requerem mudança Algumas limitações foram percebidas
tanto, algumas ações pensadas e concre- de paradigmas, grande parte dos profis- durante o projeto, relacionadas, princi-
tizadas pelas equipes de saúde, além da sionais de saúde tem receio de abordá- palmente, às concepções da população
aplicação das práticas de SBIRT, indicam las dentro de suas comunidades (12). e profissionais sobre o uso de álcool e
tentativas mais amplas de se pensar na Frente a isso, é necessária uma postura outras drogas e às questões referentes
temática de álcool e outras drogas. Isso compreensiva, sugerindo soluções como à estruturação e dinâmica de funciona-

Rev Panam Salud Publica 33(5), 2013 329


Investigación original Costa et al. • Metodologia de prevenção ao uso de drogas

mento da rede de APS. Apesar disso, ações precisam ser planejadas para mé- torizar a realização do estudo; aos acadê-
considera-se o método apresentado e dio e longo prazo e não podem ser rea- micos de Psicologia da Universidade Fe-
avaliado no presente artigo como um lizadas para obter resultados imediatos, deral de Juiz de Fora, que participaram
modelo útil para ser adotado, com suas apesar da demanda da gestão, profissio- do trabalho de campo e coleta dos da-
devidas adaptações aos países latino- nais e população por respostas instan- dos; à Fundação de Amparo à Pesquisa
americanos. Ademais, demonstra que, tâneas. Por isso, a importância de pes- do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG)
apesar do incentivo cada vez mais fre- quisas-intervenções que levem em conta pelo financiamento do estudo através do
quente dos programas de capacitação, metodologias de implementação amplia- Edital 09/2010, “Extensão em Interface
estes de tornam limitados para a mu- das, participativas, levadas a cabo em com a Pesquisa 2010”; e ao Conselho
dança de fato de práticas se não esti- rede e contextualizadas, com destaque Nacional de Desenvolvimento Científico
verem articulados com uma ação mais para desafios e possibilidades de disse- e Tecnológico (CNPq) pela bolsa de pro-
ampliada e constante. minação nos países latino-americanos. dutividade em pesquisa.
É preciso progredir nas ações de pre-
venção ao uso de álcool e outras drogas Agradecimentos. À Secretaria de Conflito de interesses. Nada decla-
na América Latina como um todo. Tais Saúde do Município participante por au- rado pelos autores.

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330 Rev Panam Salud Publica 33(5), 2013


Costa et al. • Metodologia de prevenção ao uso de drogas
 Investigación original

abstract Objective.  To develop a methodology to implement practices of prevention against


the use of alcohol and other drugs in the context of primary health care (PHC) that
will contribute to the debate about policies and actions in Latin American countries.
A methodology to implement Methods.  This intervention research project was carried out in a small/medium-
preventive actions against sized Brazilian city. The development process was assessed through participant
harmful drug use in the observation with the aim of adapting the methodology to local needs and identifying
existing weaknesses and strengths with impact on implementation.
context of primary health Results.  A model was developed with six stages: initial contact and planning,
care in Latin America diagnosis and mapping, sensitization, training, follow-up, and communication
of results to participants. The following weaknesses were identified: limitation
of resources (human, financial, infrastructural), limitations in the coverage and
comprehensiveness of the assistance network, poor participation from physicians,
training based on medicalized care, insufficient participation of health care
management, insufficient involvement and participation of civil society, and few
opportunities for participation of the population in the planning and execution of
public policies. Strengths included the participation of community health agents and
nurses in applying, organizing, and planning initiatives, in addition to the organization
of educative and preventive actions in schools and communities by health care teams,
suggesting that it is possible to implement screening, brief intervention, and referral
to treatment (SBIRT) initiatives in the context of PHC in Latin America.
Conclusions.  The methodology developed in this study can be useful for Latin
American countries if local needs are taken into consideration. It should be noted,
however, that results will only be observed in the mid- to long term, rather than
strictly in the short term.

Key words Primary health care; community-based participatory research; substance abuse
detection; Latin America.

Rev Panam Salud Publica 33(5), 2013 331


“Um estudo de caso da implementação de um centro de atenção
psicossocial em álcool e drogas (CAPS-AD), no Rio de Janeiro, 2009-
2010”

por

Lucília de Almeida Elias

Tese apresentada com vistas à obtenção do título de Doutor em Ciências


na área de Saúde Pública.

Orientador: Prof. Dr. Francisco Inácio Pinkusfeld Monteiro Bastos

Rio de Janeiro, maio de 2011.


Esta tese, intitulada

“Um estudo de caso da implementação de um centro de atenção


psicossocial em álcool e drogas (CAPS-AD), no Rio de Janeiro, 2009-
2010”

apresentada por

Lucília de Almeida Elias

foi avaliada pela Banca Examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof.ª Dr.ª Vera Malaguti de Souza Weglinski Batista


Prof. Dr. Fernando Salgueiro Passos Telles
Prof.ª Dr.ª Elvira Maria Godinho de Seixas Maciel
Prof. Dr. Fernando Salgueiro Passos Telles
Prof. Dr. Francisco Inácio Pinkusfeld Monteiro Bastos – Orientador

Tese defendida e aprovada em 02 de maio de 2011.


Catalogação na fonte
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica
Biblioteca de Saúde Pública

Z95 Elias, Lucília de Almeida


Um estudo de caso da implementação de um Centro de Atenção
Psicossocial em álcool e drogas (CAPS-ad), no Rio de Janeiro, 2009-
2010. / Lucília de Almeida Elias. -- 2011.
116 f.

Orientador: Bastos, Francisco Inácio


Tese (Doutorado) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca,
Rio de Janeiro, 2011.

1. Drogas Ilícitas. 2. Transtornos Relacionados ao Uso de Álcool. 3.


Serviços de Saúde. 4. Política de Saúde. 5. Redução do Dano. 6.
Saúde Mental. 7. Saúde Pública. I. Título.

CDD – 22.ed. – 362.29098153


Sumário

Resumo....................................................................2

Abstract...................................................................3

Introdução...............................................................5

Justificativa............................................................11

Objetivos................................................................12

Estrutura da Tese .................................................13

Método...................................................................14

Capítulo I – Saúde pública, redução de danos e a


prevenção das infecções de transmissão sexual e
sanguínea: revisão dos principais conceitos e sua
implementação no Brasil......................................23

Capítulo II – Um estudo qualitativo sobre o


cuidado público às pessoas que usam álcool e
drogas de modo prejudicial ou dependente na
cidade do Rio de Janeiro, 2009-2010...................56

Capítulo III – O ponto de vista de familiares de


pessoas que usam álcool e drogas de modo
prejudicial ou dependente atendidas em um
serviço público no Rio de Janeiro, 2009-2010....90

Conclusões...........................................................113

1
Resumo

A questão que orientou a pesquisa que compõe esta


tese foi a identificação e o estudo de fatores
intervenientes na qualidade das ações de cuidado
prestadas por um Centro de Atenção Psicossocial em
álcool e drogas (CAPS-ad), na cidade do Rio de
Janeiro. O estudo da experiência de implementação
de um CAPS-ad visou destacar, nesta experiência, os
itens pertinentes à qualidade das ações mencionadas.
A qualidade do cuidado foi investigada na interface
das diretrizes técnicas e políticas propostas para sua
realização e o cotidiano deste tipo de serviço, tal
como experimentado por profissionais e usuários do
mesmo. Os achados da pesquisa confirmam o que
está sistematizado pela literatura nacional e
internacional a respeito de ações públicas visando à
redução de danos à saúde individual e coletiva,
destinadas às pessoas que usam álcool e drogas de
maneira prejudicial ou dependente. Tais ações são
mais efetivas quando integradas a outras medidas de
saúde pública, guiadas por princípios comuns.
Iniciativas de redução de danos afinadas com
princípios de saúde pública não se prendem a
modelos, nem se esgotam em cuidados de saúde
propriamente ditos. Abrangem diversas modalidades
de ações práticas, com base em políticas públicas,
devem estar em sintonia com a comunidade desde
seu planejamento e devem ser executadas em
parceria com esta.

2
Palavras-chave: Uso de drogas; Serviços de saúde;
Política de drogas; Redução de danos; Atenção
psicossocial.

Abstract

The research question discussed in this dissertation


was the identification and analysis of factors
putatively fostering the provision of comprehensive
care by a Psychosocial Center for People who
Misuse Drugs and Alcohol (known by its Portuguese
acronym CAPS-ad), located in Rio de Janeiro. The
case study describes the experience of
implementation of a CAPS-ad, highlighting the
items pertinent to the proposed model of
comprehensive care and its translation into practice.
The nature and quality of care were assessed in the
context of technical guidelines and policies guiding
its full implementation and its dialogue with the
service’s daily operations, as perceived by health
professionals who work in this facility, as well as its
clientele (patients and their families).

The findings of the study document the adoption


(not exempt of difficulties or obstacles) of policies
and actions issued at the national level and
documented in the international literature. Such
policies aim to reduce drug-related harms
experienced by individual and communities, and
explicitly target people who use alcohol and drugs in
a harmful way and/or are alcohol and/or drug-
dependent, as well as their families and peers. Such
initiatives have been found to be effective when
integrated to other public health measures, guided by
common principles and aims. Such initiatives do not
limit themselves to the context of health provision

3
nor remain in the realm of abstract models. They
rather comprise concerted practical actions, in
harmony with renewed public policies and the
concrete needs of people who misuse drugs and
alcohol, their families and peers, as well as their
communities at large.

Key Words: Drug use; Health services; Drug policy;


Harm Reduction; Psychosocial care.

4
Introdução

A infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana


─ VIH ou HIV e a síndrome clínica correspondente,
da imunodeficiência adquirida, HIV/AIDS, nos anos
’80, abalou de forma inesperada e contundente a
lógica preventiva (ancorada na noção de risco
tecnicamente controlável) no âmbito das doenças
transmissíveis, que até então, pareciam estar sob
controle nos países desenvolvidos (desafios
similares vinham sendo encarados na área da
oncologia, com o fracasso da iniciativa
multimilionária da administração Nixon no sentido
de curar de forma definitiva esta doença, ainda na
década de 1970)¹.

Ficou evidente a incapacidade dos sistemas de


vigilância epidemiológica no sentido da detecção
precoce da infecção pelo HIV e contenção de sua
disseminação - mesmo nos países ditos
desenvolvidos - nesses anos iniciais da epidemia ² , ³ .
Era um momento em que estas pareciam ‘coisas do
passado’ para muitos historiadores e formuladores
de políticas públicas com atuação nos países
mencionados, formadores de opinião e eixo que
norteia a pesquisa científica no mundo (ainda que
continuassem a grassar longe dos seus olhos).

4
Poucos anos antes, McNeil havia atribuído às
doenças infecciosas um valor singular na dinâmica
do processo civilizatório: elas seriam um dos
principais parâmetros da história humana, e ao
mesmo tempo um de seus limites. O autor afirmou, à

5
época, que a prontidão necessária às ações de saúde
pública é pouco freqüente, e a continuidade dos
êxitos obtidos com sua implantação é dificilmente
mantida 5 .

Além do retorno das doenças transmissíveis à


condição de prioridade mundial em termos de saúde
nos anos ‘90, o que se revela então é a
vulnerabilidade crescente de populações urbanas 3,
especialmente nos países em desenvolvimento,
agravada por condições sócio-econômicas adversas
em que vivem determinados estratos sociais.

Farmer6 aborda o papel patogênico das


desigualdades sociais na emergência e re-
emergência de doenças infecciosas, tanto na sua
distribuição quanto no curso de seu desenvolvimento
junto às populações afetadas. O próprio êxito das
pesquisas biomédicas assim o comprova, pois a
descoberta de cura e tratamento para estas doenças
não tem conseguido erradicá-las e, em determinadas
circunstâncias, nem ao menos controlá-las de forma
efetiva 7, como no caso da tuberculose 8 .

Questões do campo dos direitos humanos agregam-


se às considerações de saúde pública, pois
segmentos desprovidos de recursos sociais integram
cadeias de transmissão mais propícias à
disseminação de vírus (e demais micro-organismos):

O HIV, como qualquer outro agente infeccioso, não tem


qualquer opção preferencial por pobres, assim como jamais
teve qualquer simpatia por gays ou hemofílicos. O vírus,
simplesmente, e num sentido metafórico, se beneficia das
linhas de fragilidade das redes sociais onde é introduzido.

6
9 p 87
FI Bastos

Em 2003, tendo aparentemente chegado ao fim a


pandemia da Síndrome Respiratória Aguda Severa
(Severe Acute Respiratory Sndrome / SARS) - não
têm sido registrados novos casos desde então - e
início dos surtos recorrentes de gripe aviária, foi
criada na Europa uma agência pública visando à
prevenção e controle de doenças transmissíveis
(European Centre for Disease Prevention and
Control / ECDC). Em operação desde 2005, o
ECDC constatou ‘notável resiliência’ de
determinadas doenças às ações de saúde pública.
Tuberculose, infecção pelo HIV/AIDS e doenças
sexualmente transmissíveis são algumas das doenças
cuja distribuição incide de forma desigual em sub-
populações de todos os países europeus 10.

Tais sub-populações caracterizam-se por baixo


status sócio-econômico, pouca escolaridade, perfil
ocupacional pertencente às ocupações de menor
status e pior remuneradas, e imigração recente. Do
ponto de vista da saúde pública, devem ter
prioridade na formulação e implementação de
intervenções, de acordo com o ECDC, não só pela
carga desproporcional de doenças que incide sobre
elas, mas também pelo maior potencial de
disseminação destas, entre si e na população como
um todo.

As ações inerentes ao campo da saúde pública


devem conduzir ao aprimoramento de modelos de
representação da realidade, visando intervenções
tanto mais efetivas quanto mais adequadas e
apropriadas a cada população e contexto. A

7
complexidade e gravidade dos problemas
contemporâneos demandam respostas oportunas, se
possível em tempo real, de modo a reduzir os danos
à saúde e sociais relacionados com determinadas
práticas. A redução de danos é definida como
conjunto estratégico de medidas de saúde pública,
para reduzir ou minimizar os efeitos adversos do uso
prejudicial de álcool e outras drogas 11.

Mais do que as medidas em si, no entanto, a lógica


da redução de danos é um marco conceitual, de
auxílio inestimável na escolha de modos mais
apropriados de intervenção face às circunstâncias
concretas em que se dá o consumo de substâncias
12 11
psicoativas . É esta lógica ampliada que
norteou a investigação dos serviços de assistência
pública aos consumidores de álcool e drogas que
compõe a presente dissertação de doutorado.

Definição do problema

O uso prejudicial ou dependente de álcool e drogas


exerce forte impacto sobre a saúde individual e
coletiva, campo circunscrito pela saúde pública,
ainda que não restrito a esta. Pessoas que usam tais
substâncias desta maneira apresentam
proporcionalmente mais problemas de saúde do que
a população em geral (tais como tuberculose e
depressão, infecção e transmissão por via sexual e
sanguínea de bactérias e dos vírus da Aids e das
hepatites B e C, entre outros) 9 .

Aos custos diretamente relacionados com agravos e


doenças agregam-se custos sociais com as
conseqüências do uso mencionado: perda de

8
produtividade e diminuição da renda familiar, maior
envolvimento em acidentes de trabalho e de trânsito
e em situações de violência e corrupção, para citar
alguns 13 .

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que


o impacto do consumo de bebidas alcoólicas sobre a
saúde seja dez vezes maior do que o do conjunto de
drogas ilícitas (o uso prejudicial ou dependente de
álcool tem sido associado a mais de 60 tipos de
agravos) 14 .

Resultados de pesquisa de âmbito nacional


evidenciam que a prevalência do consumo de álcool
pela população urbana brasileira é o dobro (18%) do
consumo de drogas ilícitas (9%), principalmente
maconha e cocaína aspirada, sendo o uso de drogas
injetáveis pouco freqüente. Dos 17,9% dos
entrevistados de uma amostra representativa da
população urbana brasileira, que consumiram
bebidas alcoólicas regularmente em algum período
de suas vidas, 60% relatam ter pensado em
interromper este consumo, mas só 2,2%
efetivamente o fizeram 15.

Os resultados mencionados sugerem a insuficiência


de intervenções – em nível primário, secundário ou
terciário – direcionadas seletivamente a segmentos
específicos de maior vulnerabilidade social, como os
usuários de drogas injetáveis. Ações de cuidado
apropriadas a determinados segmentos sociais não
são necessariamente adequadas à população em
geral, cabendo investigar formatos institucionais
condizentes com a prestação de serviços a estes
segmentos vulneráveis, assim como à população

9
geral. O desejável é que tais intervenções ampliem o
foco para a população geral, mas que também se
dirijam a populações específicas, particularmente
vulneráveis 16 .

A inter-relação de problemas associados ao uso


prejudicial ou dependente das substâncias em pauta,
sejam lícitas ou ilícitas, requer o envolvimento de
setores que não estejam diretamente vinculados à
prevenção e tratamento deste tipo de uso, aos
cuidados gerais com a saúde e ao cumprimento da
lei. O intercâmbio e a transferência de
conhecimentos nesta área deve abranger princípios
de promoção social, militância e organização
comunitária 17 .

Ações visando à redução de danos à saúde


individual e coletiva devem evitar decisões ‘de cima
para baixo’ e perspectivas estranhas à comunidade;
contar com a participação de seus membros em
todas as etapas dos programas, desde o
planejamento; formular, implantar e implementar
intervenções teoricamente consistentes, bem
dimensionadas e inseridas na cultura e tradições
locais; e levar em conta a importância dos recursos,
das mudanças estruturais e do protagonismo local na
continuidade dos programas ou na manutenção de
seus efeitos. Cabe ressaltar que mesmo iniciativas
bem planejadas, intensivas e que contam com apoio
local, enfrentam dificuldades adicionais em
ambientes em que o consumo de álcool foi
‘naturalizado’, estando plenamente integrado às
17, 18
atividades regulares da vida social .

10
Justificativa

A oferta mundial de serviços de tratamento para


pessoas que usam álcool e drogas de modo
prejudicial ou dependente varia bastante em função
dos sistemas de saúde e das políticas públicas de
cada país (ou região). Podem ser ‘estruturados’
(prescritivos, com tratamento medicamentoso e
psicossocial sob abordagens diversas) ou ‘abertos’
(informativos e educativos). Dada a magnitude dos
problemas em pauta, é desejável que estes serviços
abranjam o maior número possível de pessoas a um
custo mínimo, e que possam acompanhá-las de
modo efetivo por períodos razoáveis de tempo.

No Brasil tais serviços expressam uma reordenação


mais ampla da saúde pública como um todo e da
saúde mental, ambas na década de ’80, com a
implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e da
Atenção Psicossocial. A rede de serviços
comunitários destinados às pessoas com transtornos
mentais severos e persistentes foi ampliada em 2003,
pela inserção de serviços específicos de atenção ao
uso prejudicial e dependente de álcool e drogas, os
Centros de Atenção Psicossocial em álcool e drogas
19, 20
(CAPS-ad) .

Diretrizes teóricas de programas públicos (ainda que


resultem de processos participativos e decisões
pactuadas) são colocadas à prova nas práticas dos
serviços, numa dinâmica de reajuste constante entre
as primeiras e as últimas, que pode (e deve) resultar
no aprimoramento de ambas.

11
Estudos e pesquisas avaliativas da Atenção
Psicossocial demonstram a insuficiência de critérios
recomendados ou usados na avaliação de serviços de
saúde em geral, quando se pensa em transpô-los (na
construção de indicadores) para a Atenção
21, 22
Psicossocial em álcool e drogas . Esta
dissertação de doutorado visa contribuir para uma
reflexão teórica a respeito de modos possíveis de
avaliá-la, através do estudo da experiência de
implementação de um Centro de Atenção
Psicossocial em álcool e drogas (CAPS-ad) no Rio
de Janeiro.

Objetivos

A presente tese de doutorado teve como objetivo


geral :

• descrever e analisar formas (mais) adequadas


de avaliação da qualidade de ações públicas
de cuidado, destinadas às pessoas que usam
álcool e drogas de modo prejudicial, por
meio de uma investigação qualitativa da
experiência de implementação de um Centro
de Atenção Psicossocial em álcool e drogas
(CAPS-ad) na cidade do Rio de Janeiro;

e como objetivos específicos:

• analisar as concepções teóricas que norteiam


o funcionamento e o desenho operacional de
um CAPS-ad;

12
• identificar os atores sociais e os principais
êxitos e obstáculos à implementação das
ações de cuidado deste serviço;
• identificar os itens pertinentes à qualidade
destas ações, na interface das diretrizes
técnicas e políticas propostas e sua realização
cotidiana, tal como experimentada por
aqueles que trabalham no serviço
mencionado e os usuários deste.

Estrutura da Tese

O primeiro capítulo desta tese aborda o contexto


histórico e marco conceitual da implantação dos
programas de redução de danos no campo da saúde
pública, com ênfase nos programas brasileiros. A
revisão teve como objetivo principal investigar a
pertinência atual de tais programas no enfrentamento
das infecções de transmissão sexual e sanguínea, em
especial a AIDS e a hepatite C. Este texto foi aceito
para publicação na revista Ciência & Saúde Coletiva
da Associação Brasileira de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva, estando disponível sob formato
digital em www.cienciaesaudecoletiva.com.br.

O segundo capítulo, igualmente redigido sob a


forma de artigo, se refere ao contexto político e
social do país quando foram implantados os serviços
públicos de atenção às pessoas que usam álcool e
drogas de modo prejudicial ou dependente. O artigo
pretende contribuir para uma reflexão sobre a
qualidade destes serviços, à luz do referencial em
saúde pública que os rege. Algumas noções teóricas

13
e diretrizes técnicas subjacentes ao modelo de
atenção psicossocial são apresentadas neste capítulo.
A identificação de fatores intervenientes na
qualidade das ações de saúde prestadas por um
Centro de Atenção Psicossocial em álcool e drogas
(CAPS-ad) na cidade do Rio de Janeiro, tal como
experimentada por alguns de seus profissionais, foi
considerada em sua elaboração. Este texto foi
submetido à avaliação na revista Interface:
Comunicação, Saúde, Educação.

O terceiro capítulo, igualmente formatado sob a


forma de artigo (não submetido por ora), diz respeito
ao ponto de vista de familiares de pessoas atendidas
em um Centro de Atenção Psicossocial em álcool e
drogas (CAPS-ad) no Rio de Janeiro sobre a
qualidade destas ações de cuidado. São abordados
alguns aspectos teóricos subjacentes a tais ações, e
delineados conceitos pertinentes à terapia familiar e
à psicanálise referentes à relação entre pessoas que
abusam de álcool e drogas e seus familiares.

O Professor Doutor Francisco Inácio Bastos orientou


todas as etapas de produção destes manuscritos
/artigos redigidos por mim, sendo co-autor dos
artigos mencionados, e fez a revisão final dos textos.

Método

4.1 Caracterização da pesquisa

A pesquisa que compõe esta tese se caracteriza


como um estudo de caso. A investigação de estudo
de caso lida com ‘uma situação tecnicamente única,

14
... baseia-se em várias fontes de evidências, e
...beneficia-se do desenvolvimento prévio de
proposições teóricas para conduzir a coleta e a
análise de dados’ 23 p 33.

Seu objetivo foi identificar alguns fatores


intervenientes no grau de implementação das ações
de cuidado prestadas pelo referido serviço. O que se
buscou foi detectar intervenções facilitadoras ou
impeditivas das melhores práticas possíveis na
obtenção dos resultados pretendidos, à luz das
diretrizes técnicas e políticas propostas para sua
implementação.

A concepção de avaliação aceita nesta pesquisa


24,25,26
valoriza demandas, preocupações e questões
dos diversos atores sociais aos quais ela diz respeito.
Desejou-se estimular sua participação, respeitando
sua dignidade, integridade e privacidade.

4.2 Natureza dos dados coletados

Dados foram coletados a partir de fontes primárias


(dados coletados pela primeira vez, enquanto etapa
indispensável da presente pesquisa) e fontes
secundárias (dados disponíveis em documentos
relativos à atenção às demandas dos usuários e seus
familiares atendidos no serviço em pauta, ao
planejamento e execução de medidas relativas ao
acolhimento e busca de adesão, objetivos do
processo terapêutico, métodos específicos
empregados, recursos requeridos ao longo do
processo de implementação do serviço, percepção da
necessidade de mudanças e flexibilização de
determinados procedimentos, entre outros).

15
4.3 Técnicas de coleta de dados

4.3.1 Análise de documentos: com o consentimento


da direção do serviço e dos profissionais que
compõem a equipe de trabalho, foram analisados
registros das reuniões de equipe, de reuniões com
profissionais de outros órgãos aos quais o serviço
está vinculado, e de outros documentos
administrativos referentes à história do serviço.

4.3.2 Entrevistas semi-estruturadas foram realizadas


com atores locais previamente definidos, guiadas por
27
um roteiro , com duração aproximada de quarenta
minutos cada uma. Os critérios de escolha dos
entrevistados dizem respeito à sua participação no
processo de implementação do serviço, bem como à
gestão atual do mesmo. As entrevistas foram semi-
estruturadas de modo a permitir maior fluidez na
coleta de dados e flexibilidade na exploração de
hipóteses.

As entrevistas foram feitas em hora, dia e lugar mais


convenientes para o(a) entrevistado(a), e conduzidas
em local privado, sob sigilo, após leitura e assinatura
de termo de consentimento informado, sem a
presença de terceiros. Foram todas gravadas em
aparelho digital, com o consentimento do(a)
entrevistado(a), sendo posteriormente transferidas
para o computador e transcritas integralmente.

Um diário de campo, baseado nas observações do(a)


entrevistado(a), foi confeccionado em paralelo às
entrevistas, informando dia, hora, local e contexto de
cada entrevista. As entrevistas foram codificadas
por tópicos e palavras-chave.

16
Para cada entrevista, uma folha de rosto foi
confeccionada, contendo informações sócio-
demográficas e anotações pertinentes. Cada folha de
rosto incluiu um campo para registro do código de
identificação do participante e espaço para
comentários. As folhas de rosto foram incluídas na
transcrição e a cópia em papel anexada à folha física
da entrevista.

O computador utilizado na pesquisa foi protegido


por senha, restringindo o acesso aos dados
qualitativos, de modo a preservar o sigilo e a
confidencialidade devidos. Todas as cópias físicas
das entrevistas transcritas serão mantidas em
arquivos trancados, guardadas pelo período mínimo
de cinco anos, conforme a legislação brasileira em
vigor. Os fragmentos de entrevistas que compuseram
a presente dissertação foram citados de maneira a
preservar a identidade dos entrevistados.

4.3.3 Observação participante: foram realizadas


observações das rotinas do serviço, descritas no
diário de campo, contendo dia, hora e contexto de
cada uma delas, e demais anotações pertinentes.

4.3.4 Grupos focais: foram realizados grupos com


profissionais do serviço, enfocando temas
pertinentes às ações de cuidado providas pelo
mesmo; grupos com familiares dos usuários do
serviço, com o consentimento destes, e grupos com
os próprios usuários.

O emprego de cada uma das técnicas de coleta de


dados supramencionadas se realizou somente depois
da assinatura de um termo de consentimento livre e

17
esclarecido, por cada participante das coletas
descritas.

4.4 Técnicas de análise de dados

A análise dos dados seguiu o método de Análise de


28
Conteúdo , segundo as etapas de pré-análise,
descrição analítica e interpretação inferencial
propostas por Triviños 29, empregadas por Studart 30.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em


Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz, sob o
número CAAE: 0042.0.031.000-10.

18
Referências bibliográficas

1Informações detalhadas em
http://dtp.nci.nih.gov/timeline/noflash/milestones/M
4_Nixon.htm).

2 Ayres JRCM. Sobre o risco – para compreender a


epidemiologia. São Paulo: Hucitec; 2002.

3 Sabroza PC, Towes DW. Doenças emergentes,


sistemas locais e globalização. Cad Saúde Pública
2001; 17(4-5):5.

4 McNeill WH. Plagues and Peoples. Garden City:


Anchor Press/Doubleday; 1976.

5 ________ Disease in history. Soc Sci Med


1978;12(2B):79-84.

6 Farmer P. Social inequalities and emerging


infectious diseases. Emerg Infect Dis 1996; 2:259-
69.

7 Cohen JM, Wilson ML, Aiello AE. Analysis of


social epidemiology research on infectious diseases:
historical patterns and future opportunities. J
Epidemiol Community Health 2007; 61(12):1021-7.

8 Lönroth K, Raviglione M. Global epidemiology


of tuberculosis: prospects for control. Semin Respir
Crit Care Med 2008; 29(5): 481-91.

9 Bastos FI. AIDS na Terceira Década. Rio de


Janeiro: Ed. Fiocruz; 2006.

19
10 Semenza JC, Giesecke J. Intervening to reduce
inequalities in infections in Europe. Am J Public
Health 2008; 98(5):787-92.

11 Decreto n° 6177. Aprova a Política Nacional


sobre o Álcool, dispõe sobre as medidas para
redução do uso indevido de álcool e sua associação
com a violência e criminalidade, e dá outras
providências. Diário Oficial da União 2007; 23 mai.

12 Open Society Institute. International Harm


Reduction Development Program. New York: Open
Society Institute; 2008.

13 World Health Organization (WHO). Management


of substance abuse, facts and figures. Disponível em
http://www.who.int/substance_abuse/facts/en/.
Acesso em 22 mar 2011.

14 World Health Assembly (WHA) 58.26. World


Health Assembly Resolution 2005. Disponível em
http://www.forut.no/world-health-assembly-set-to-
discuss-alcohol.452470-79090.html. Acesso em 21
mar 2011.

15 Bastos FI, Bertoni N, Hacker MA, Grupo de


Estudos em População, Sexualidade e AIDS.
Consumo de álcool e drogas: principais achados de
pesquisa de âmbito nacional, Brasil 2005. Rev Saúde
Pública 2008; 42(1 Suppl):109-17.

16 Bastos FI, Cunha C, Bertoni N, Grupo de Estudos


em População, Sexualidade e AIDS. Uso de
substâncias psicoativas e métodos contraceptivos

20
pela população urbana brasileira, 2005. Rev Saúde
Pública 2008; 42(1 Suppl ):118-26.

17 Giesbrecht N, Haydon E. Community-based


interventions and alcohol, tobacco and other drugs:
foci, outcomes and implications. Drug Alcohol Rev
2006; 25(6):633-46.

18 Giesbrecht N. Alcohol, tobacco and local control:


a comparison of several community-based
prevention trials. Nord Stud Alcohol Drugs 2003;
20(English suppl.):3-4.

19 Portaria n.° 2.197. Redefine e amplia a atenção


integral para usuários de álcool e outras drogas, no
âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, e dá
outras providências. Diário Oficial da União 2004;
14 out.

20 Brasil. Saúde Mental no SUS: os Centros de


Atenção Psicossocial. Ministério da Saúde.
Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de
Ações Programáticas Estratégicas. Brasília; 2004.

21 Onocko-Campos RT, Furtado JP. Entre a saúde


coletiva e a saúde mental: um instrumento
metodológico para avaliação da rede de Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de
Saúde. Cad Saúde Pública 2006; 22(5):1053-1062.

22 Schmidt MB. Avaliação da Qualidade de


Serviços de Saúde Mental – um estudo de caso do
CAPS Profeta Gentileza [Tese de doutorado]. Rio de
Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade
Estadual do Rio de Janeiro; 2007.

21
23 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e
métodos. D Grassi (trad). Porto Alegre: Bookman;
2005.

24 Hartz ZMA, Silva LMV, organizadores.


Avaliação em saúde. Salvador: EDUFBA; Rio de
Janeiro: Fiocruz; 2008.

25 Guba EG, Lincoln YS. Fourth generation


evaluation. San Francisco: Sage Publications; 1989.

26 ______ Effective evaluation. San Francisco:


Jossey-Bass Publishers; 1981.

27 Miranda, Figueiredo, Ferrer, Onocko-Campos.


Grupos focais e grupos focais narrativos. In:
Campos RO et al. organizadores. Pesquisa
avaliativa em saúde mental. São Paulo: Hucitec;
2008.

28 Bardin L. Análise de conteúdo. Reto LA (trad).


Lisboa: Edições 70; 1995.

29 Triviños ANS. Introdução à pesquisa em


ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação.
São Paulo: Atlas; 1987.

30 Studart Pereira VF. Um estudo da experiência de


implementação do Programa de Redução de Danos
ao Uso de Drogas do Distrito Federal [Dissertação
de mestrado]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de
Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2007.

22
Capítulo I - Saúde pública, redução de danos e a
prevenção das infecções de transmissão sexual e
sanguínea: revisão dos principais conceitos e sua
implementação no Brasil

Introdução

A Redução de Danos (RD) é definida como conjunto


estratégico de medidas de saúde pública destinadas a
minimizar as conseqüências adversas do uso
prejudicial de álcool e drogas1. Estas medidas se
traduzem em alternativas de uso que envolvam
menores riscos e danos para os consumidores de tais
substâncias e para a coletividade. Riscos são chances
probabilísticas de suscetibilidade a agravos e
doenças, em função da exposição de indivíduos a
agentes agressores (ou protetores) 2. A formalização
do conceito de risco foi central ao processo de
elaboração teórica da epidemiologia moderna, que
teve lugar em 1946-65, seguindo-se a um período de
ampliação das concepções de saúde pública e
práticas sanitárias 2 .

A proposta de eliminar riscos constitui uma meta


consoante com a noção anterior, desde que tal
proposta seja factível (e, em determinadas
circunstâncias, desejável), impossibilidade evidente
em relação a determinados comportamentos, ao
menos em alguns contextos e momentos históricos3.
É possível que alguém que venha fazendo uso
problemático de álcool ou drogas possa se manter
inteiramente abstinente (a depender do psiquismo do
indivíduo e das circunstâncias em que o mesmo está

23
inserido). Na esfera da população e da comunidade,
entretanto, tal meta enquanto meta coletiva não é
factível (e não necessariamente desejável, para
alguns segmentos sociais), e tem resultado antes na
imposição de leis draconianas, que violam os
direitos humanos, sem contribuir de fato para a
redução dos danos e riscos em pauta.

Os usuários de drogas ilícitas constituem um


segmento posto à parte dos direitos de cidadania
conquistados pela sociedade. A violação destes
direitos acontece em vários países e se dá em níveis
diversos: tais violações impossibilitam a inserção e a
permanência na cadeia produtiva daqueles que
procedem ao registro, obrigatório por lei, para
tratamento nos serviços públicos de saúde (por
4
exemplo, na Rússia) ; precipita o rompimento de
seus vínculos sociais, e familiares, uma vez que
indivíduos são humilhados publicamente (por
exemplo, na China) 5, e presos de modo arbitrário,
sofrendo tortura e maus tratos (como relatado no
Camboja e Paquistão) 5.

Assassinatos de jovens pobres e negros nas favelas


brasileiras são quase sempre veiculados pela mídia
em associação direta ou indireta com o consumo ou
o tráfico de drogas. É como se o desrespeito aos
direitos humanos mais fundamentais fosse
socialmente justificado quando se trata destas
pessoas. O secretário de segurança do Rio de
Janeiro, entrevistado em horário nobre (Jornal
Nacional, 23 de março de 2009), responsabilizou os
usuários de drogas pela violência deflagrada por
incursões policiais nas favelas da cidade, “porque a

24
disputa por pontos de venda é por dinheiro, e se
ninguém comprasse, não haveria o que disputar”.

Ainda que, inegavelmente, demanda e oferta


tendam a se equilibrar segundo os cânones da teoria
econômica neoclássica, tal formulação nada
acrescenta à compreensão e enfrentamento dos
determinantes estruturais da violência. A
conseqüência de tais ações, pautadas por uma
“política criminal com derramamento de sangue” 6,
soma-se aos outros danos à saúde individual e
coletiva causados pelo uso prejudicial de drogas,
dificultando (ou mesmo inviabilizando) a adoção de
medidas de saúde pública visando a reduzi-los 7.

O governo brasileiro, em sintonia com os


movimentos sociais, tem envidado esforços para se
contrapor à violação dos direitos dos usuários de
drogas, através de mudanças na legislação e ações de
conscientização. Desde os anos ‘90 o Brasil apóia,
do ponto de vista da sua legislação e formulação de
políticas públicas, o movimento de redução de danos
(RD) e preconiza a diversidade de abordagens nas
intervenções de cuidado. No país há acesso universal
à medicação requerida por pessoas infectadas pelo
HIV (algumas delas afetadas pela síndrome clínica
ou AIDS), independentemente de fazerem uso ou
não de substâncias psicoativas ilícitas
(correspondendo hoje à cerca de 60% dos usuários
de drogas vivendo com o HIV em todo o mundo os
que estão em tratamento com medicamentos anti-
retrovirais) 8.

Há importantes mudanças em curso na política de


drogas em outros países da América do Sul (como

25
Argentina, Bolívia, Equador e Uruguai) 5, principal
região produtora de coca e cocaína no mundo,
especialmente na região Andina. Espera-se que tais
iniciativas (em curso) redundem em políticas
públicas menos centralizadoras e autoritárias nesta
região, e contribuam para promover uma reforma
substancial nas suas políticas de drogas9. A
estratégia de RD necessita de suporte político e
legislativo para funcionar adequadamente10, o que
compreende intervenções fundamentais, básicas, de
captação para os serviços de saúde de um
contingente de usuários habitualmente ‘‘invisíveis”
para os mesmos. Recente artigo de Bastos e
colaboradores afirma que

…políticas consistentes em saúde pública devem,


necessariamente, ser complementadas por uma reforma
fundamental das políticas de drogas e a implementação de
políticas públicas num sentido mais amplo, com o propósito de
minimizar as conseqüências adversas da discriminação e
criminalização 9 p.105.

Método

O artigo procede a uma revisão bibliográfica da


literatura internacional referente a programas e
pesquisas em redução de danos na interface com a
saúde pública, publicados no período 1998-2009,
além de artigos clássicos indispensáveis à
compreensão histórica ou conceitual do tema.

Foram consultadas diferentes bases bibliográficas e


de informações correlatas (como citações e fatores
de impacto) como: Medline, Science Direct, Scopus

26
e Web of Science, utilizando-se como descritores:
redução de danos (harm reduction), saúde pública
(public health), abuso de drogas (substance abuse) e
Brasil. Além disso, foram utilizadas as bibliotecas
pessoais dos autores, essenciais na busca de
referências não indexadas nas bases supra-citadas.

A ampla maioria das referências sobre o tema, sobre


as quais há inúmeras revisões, aborda a questão sob
a óptica exclusiva da Redução de Danos em si, com
escassa inter-relação com a temática mais ampla da
saúde pública. Nosso propósito foi, no entanto,
distinto. Ainda que reconhecendo que um campo
que lida com uma população estigmatizada e
criminalizada, com ações que têm lugar em um
contexto pouco simpático, quando não francamente
hostil, há uma inevitável tendência de que as
publicações se voltem para dentro do próprio campo,
nossa opção foi privilegiar o diálogo mais amplo
com a saúde pública. Nesse sentido, em lugar das
habituais tensões e conflitos que inegavelmente
persistem, o artigo aposta na interação produtiva e
mutuamente fecunda entre Redução de Danos e
saúde pública lato sensu.

Histórico

O conceito de RD tem origem no Reino Unido, em


1926, com as recomendações de uma comissão
interministerial presidida pelo Secretário da Saúde e
presidente do Royal College of Physicians, Sir
Humphrey Rolleston ─ o Relatório Rolleston11. O
direito à prescrição regular de opiáceos (produtos

27
derivados do ópio, matéria prima da heroína e
substâncias correlatas, então em voga no Reino
Unido) para usuários destas drogas, sob
determinadas condições, foi estabelecido como
prática médica legítima a partir deste Relatório. Esta
prescrição incluía o manejo da síndrome de
abstinência e casos em que a interrupção do uso da
droga não pudesse se dar de modo seguro para o
usuário ou impossibilitasse o curso normal e
produtivo de sua vida12.

Tais recomendações nortearam a política britânica


de ‘‘prescrição e proibição’’ de drogas,
particularmente a heroína, nos 40 anos seguintes:
prescrição médica nas condições mencionadas,
proibição – com conseqüências legais – do uso
recreativo e do tráfico de drogas.

Nos anos ´60 esta prática de prescrever drogas sob


orientação médica ficou restrita a médicos
licenciados pelo Home Office britânico, medida
justificada pelo aumento do consumo de drogas
verificado à época, apesar das substâncias em pauta
serem basicamente os derivados da cannabis (como
a maconha e o haxixe), as anfetaminas e o LSD
(ácido lisérgico), mais do que propriamente a
heroína (ou outras drogas opiáceas).

Desde a década de ’70, a ênfase tem sido dada a


tratamentos de substituição (da heroína por outras
substâncias, ministradas por via oral e com efeito
psicoativo desprezível), com a prescrição de
metadona (ou, menos comumente, da
buprenorfina)13.

28
Atualmente, a prescrição de heroína para pessoas
que usam esta substância vem sendo objeto de
acalorados debates, e se restringe a um pequeno
grupo de experiências piloto, na Inglaterra e em
outros países europeus, como Dinamarca, Suécia e
Suíça14.

Ações em RD: os exemplos dos programas de


troca de seringas e das terapias de substituição

O objetivo principal dos programas de metadona é a


estabilização da vida do paciente e redução de riscos
e danos – uma vez que a evolução para a abstinência
se dá numa minoria dos casos. Estudo recente15 com
profissionais de saúde e usuários destes programas
no estado de Illinois, EUA, mostrou uma
discrepância de expectativas em relação a estes.
Enquanto os profissionais consideravam o
tratamento um paliativo, descrevendo suas metas de
longo prazo (como a abstinência) como irrealistas,
os usuários não excluíam a meta de abstinência,
preferindo abordagens que não visassem apenas às
conseqüências do uso de drogas, mas também à
natureza da relação (problemática) estabelecida por
eles com estas.

Resultados de outro estudo, realizado com usuários


de drogas injetáveis em Kingston e Toronto, no
Canadá16, indicam que o risco de infecção pelo HIV
pode ser reduzido, por meio da participação dos
usuários em programas de manutenção com
metadona que não tenham a abstinência como pré-

29
requisito para ingresso e permanência da sua
clientela.

Pessoas que usam álcool e drogas de modo


prejudicial necessitam de maiores e mais intensos
cuidados de saúde do que a população como um
todo. Isto porque apresentam, freqüentemente, co-
morbidades clínicas e psiquiátricas, tais como
tuberculose, doenças sexualmente transmissíveis,
doenças crônicas em geral e depressão17. No caso de
drogas injetáveis, os riscos imediatos para a saúde se
referem à infecção pelo vírus da AIDS (HIV) e
outros vírus de transmissão sexual e sanguínea,
especialmente as hepatites virais, além de fungos e
bactérias 3.

Com exceção da África subsaariana, quase 1/3 dos


novos casos de pessoas infectadas pelo HIV em todo
o mundo estão associados ao uso compartilhado de
equipamento de injeção contaminado. Pessoas que
usam drogas injetáveis são proporcionalmente o
principal contingente afetado por esta epidemia em
países da Europa oriental, da Ásia central e sudeste e
do cone sul da América Latina5.

Pesquisas visando avaliar e mensurar o impacto dos


Programas de Redução de Danos (PRD) na
incidência de infecção pelo HIV e HCV (vírus da
hepatite C) têm sido realizadas em diferentes países,
como num estudo de coorte de usuários de drogas
injetáveis participantes de tais programas em
Amsterdã, Holanda18. Os resultados sugerem que a
efetividade dos PRD depende da adequada
integração de diferentes medidas, sendo
insuficientes a provisão de metadona ou a troca de

30
seringas usadas (e potencialmente contaminadas) por
seringas estéreis, quando feitas de modo
independente uma da outra.

Os autores deste estudo concluem que programas


integrados são fundamentais para que as medidas
acima referidas sejam efetivas, sendo desejável
ainda a oferta concomitante de cuidados clínicos,
sociais e de aconselhamento. PRD são oferecidos
pelo Serviço de Saúde de Amsterdã desde 1982,
beneficiando cerca de 2700 dos estimados 3500-
4000 usuários holandeses que fazem uso de drogas
ditas pesadas (como a heroína e a cocaína)18.

Outras experiências bem sucedidas de integração de


serviços, no âmbito da prevenção e assistência, têm
beneficiado usuários de drogas injetáveis vivendo
com hepatite C19,20,21. A hepatite C é uma epidemia
global, com prevalência estimada em 3% da
população mundial, ou seja, cerca de 170 milhões de
pessoas10 , 22
. Estima-se que usuários de drogas
injetáveis constituam cerca de 40% da população
carcerária de alguns países e a falta de acesso ao
equipamento estéril de injeção, entre outros fatores,
transforma os presídios em verdadeiras
“incubadoras” desta infecção/agravo23, o que se
soma a outras afecções, como a tuberculose24, e às
más condições de vida em geral.

Pessoas que utilizam drogas injetáveis constituem o


principal segmento infectado pelo vírus da hepatite
C em quase todo o mundo25, cujo enfrentamento,
quando existe, tem-se concentrado nas propostas de
RD. Mesmo os países que têm políticas
estabelecidas quanto à hepatite C, enfrentam maiores

31
dificuldades no controle desta infecção do que no
controle da infecção pelo HIV, gerando
questionamentos a respeito da efetividade da RD
neste caso 26,27.

Os determinantes de ambas as epidemias incluem a


prevalência viral, a infectividade dos vírus e a
freqüência de comportamentos que favoreçam sua
transmissão. A transmissão sexual do HCV é rara, e
não é epidemiologicamente relevante, ao contrário
da transmissão do HIV. Mas comportamentos de
risco que oportunizam o contato sanguíneo entre
usuários de drogas injetáveis, aliados à maior
infectividade do HCV, além de sua maior
prevalência, explicam algumas das diferenças de
efetividade dos PRD com relação a estes dois
vírus28. Epidemias com prevalências muito elevadas
anteriores à implementação das medidas de saúde
pública são mais difíceis de controlar, em virtude
das elevadíssimas taxas de infecção, ou, na
expressão de Crofts e colaboradores, devido “à força
dos números” (título do seu artigo clássico sobre o
tema), e da maior infectividade do vírus da hepatite
C (HCV) frente ao da AIDS (HIV)29.

O controle da epidemia de hepatite C requer maiores


esforços para reduzir sua incidência do que os
despendidos no controle da AIDS, sobretudo na
redução do compartilhamento de equipamento de
injeção. É necessário apoio continuado aos PRD
existentes, a implantação da troca de seringas em
presídios e pesquisas que contribuam para orientar
iniciativas visando à prevenção e mudança de modos

32
de administração de drogas por via injetável para
outras vias28.

A investigação de estratégias visando prevenir a


transição para a via injetável por parte de usuários de
drogas que ainda não a utilizam é importante, entre
outros fatores, porque a infecção pelo vírus da
hepatite C ocorre muito precocemente em pessoas
que usam drogas por esta via29,30. Existem formas de
prevenção combinando redes de apoio e atenção
psicossocial, aconselhamento e a mobilização de
pares mais experientes, para que enfatizem aos
usuários iniciantes a necessidade de evitar práticas
que envolvam maiores danos e riscos30.

Práticas sexuais menos seguras estão freqüentemente


associadas ao abuso de substâncias, agregando-se
aos riscos de infecção mencionados3. Grande
número de parceiros sexuais, sexo desprotegido e
sexo em troca de drogas ou de dinheiro para adquiri-
las constituem comportamentos evidenciados em
pesquisa com usuárias de crack residentes no estado
de São Paulo, Brasil31. O perfil sócio-econômico de
usuários de crack brasileiros32 é semelhante ao dos
usuários de cocaína injetável: ambos pertencem às
camadas mais pobres da população e tendem a trocar
sexo por drogas, o que ajudaria a explicar taxas mais
elevadas de diferentes infecções entre pessoas que
usam crack, em comparação com usuários de
cocaína inalada e, especialmente, comparadas às
taxas observadas na população geral33.

Relações sexuais desprotegidas e em troca de


drogas, relatadas por adolescentes do sexo feminino
em estudo realizado em Porto Alegre, sul do Brasil,

33
mostraram estreita associação com a infecção pelo
HIV34. De forma similar, estudo desenvolvido junto
a usuárias de drogas afro-americanas residentes no
Brooklyn, Nova York35, indica que várias infecções
sexualmente transmissíveis - dentre as quais a
infecção pelo HIV - se mostram endêmicas (alguns
diriam que hiper-endêmicas) entre estas mulheres.
Os resultados sugerem, de acordo com estes
pesquisadores, a existência de nichos (“core
networks”) micro-sociais de incidência elevada de
tais infecções, além dos já conhecidos
conglomerados geográficos, onde tais infecções
apresentam elevada prevalência de fundo
(background prevalence)36.

Cabe lembrar que os riscos associados ao


comportamento sexual de pessoas que usam álcool e
drogas não se restringem àquelas que o fazem de
modo prejudicial ou abusivo. O conceito de
“modulação do comportamento” foi empregado em
análise recente37 do comportamento sexual e o uso
de substâncias psicoativas (lícitas ou ilícitas) por
parte da população urbana brasileira. Estudou-se a
relação entre os padrões de utilização de
preservativos e outros métodos contraceptivos, e o
consumo de álcool e drogas. Os resultados desta
análise, realizada com amostra representativa da
população urbana brasileira, indicam um “possível
efeito modulador das substâncias psicoativas sobre
as práticas sexuais de uma faixa expressiva da
população geral’’ 37 p. 122 .

34
Programas de Troca de Seringas (PST): breve
histórico

Deve-se ao Relatório Rolleston a inserção no campo


da saúde pública do enfrentamento dos problemas
associados ao uso prejudicial de drogas e o endosso
à prescrição de drogas ilícitas sob supervisão
médica. Não obstante, as primeiras ações de RD na
acepção moderna do termo, já no contexto da
emergência de diferentes doenças infecciosas, foram
implementadas inicialmente pelos próprios
consumidores.

A iniciativa de trocar seringas usadas, e


potencialmente contaminadas, por seringas
novas/estéreis, partiu de associações de usuários
holandeses (Junkiebonden), no enfrentamento de
epidemias concomitantes de hepatite B e C nesta
população, em Amsterdã, em 19843. Registra-se
iniciativa similar, em 1982-84, em Edimburgo,
Escócia, por ocasião de uma epidemia de infecção
pelo HIV e hepatites B e C38, sem que se dispusesse
ainda de um programa estruturado de RD. A
distribuição de seringas estéreis foi viabilizada por
uma parceria entre pessoas que utilizavam drogas e
proprietários e empregados de uma farmácia local.

Ações pioneiras de RD foram implementadas em


diversos contextos por organizações formais e
informais de pessoas que utilizavam drogas
injetáveis, a partir do reconhecimento do risco
potencial de infecção pelo HIV neste contingente da
população. O exame de documentos das décadas de
‘70 e ’80, além de entrevistas realizadas com estas
pessoas em algumas cidades da Europa e Austrália,

35
documentam sua influência decisiva nas primeiras
intervenções de saúde implantadas com base na
RD39.

Tais intervenções ganharam força no enfrentamento


da epidemia nos anos ’80, com a disponibilização da
testagem anti-HIV a partir de 1985, o que aumentou
a visibilidade da epidemia. Programas oficiais de
prevenção especificamente dirigidos a usuários de
drogas foram formulados e efetivamente
implantados em países da Europa, na Austrália e nos
Estados Unidos40.

O primeiro projeto abrangente contemporâneo em


RD, associado ao uso prejudicial de drogas, foi
implementado oficialmente na região de Mersey
(cuja maior cidade é Liverpool), no início da
epidemia de AIDS no Reino Unido, em 1986-741.

O risco de infecção pelo HIV secundário ao uso


compartilhado do equipamento usado na injeção de
drogas concentrou as ações de RD no fornecimento
de equipamento estéril, na prescrição substitutiva de
metadona e na busca ativa de pessoas a serem
cuidadas nas suas próprias comunidades (outreach
work).

Em Mersey havia uma hierarquia de objetivos a


serem cumpridos, claros e simples, que foram em
boa medida alcançados. Estes objetivos poderiam ser
listados nessa ordem: redução do compartilhamento
de material usado na injeção de drogas, da
freqüência de injeções, do uso de drogas nas ruas, do
uso de drogas em geral, e, se possível, o aumento do
número e proporção de pessoas abstinentes.

36
No final dos anos ´80, metade da população-alvo
havia sido contactada e Liverpool e arredores
concentravam um terço das prescrições de metadona
de todo o país. O programa contribuiu decisivamente
para prevenir a nascente epidemia de AIDS entre
usuários de drogas injetáveis na região41.

O que aconteceu em Mersey expressa o vínculo


estrito entre RD e o trabalho de saúde pública,
definido como ‘‘esforço organizado da comunidade,
por intermédio do governo ou de instituições, para
promover, proteger e recuperar a saúde de pessoas e
da população, por meio de ações individuais e
42
coletivas’’ . Uma série de idéias, estruturadas em
torno da proposição de um novo modelo de saúde
pública, estavam sendo desenvolvidas por ocupantes
de cargos estratégicos em Mersey, por ocasião das
intervenções supra-mencionadas43. O movimento,
intitulado nova saúde pública, advogava a
necessidade de promover um equilíbrio entre ações
individuais e ação coletiva, de modo a facilitar
mudanças ambientais e sociais que se refletissem em
melhorias no cuidado da saúde. A nova saúde
publica e a RD foram movimentos sociais paralelos,
coincidentes histórica e conceitualmente44.

Intervenções práticas de maior êxito na prevenção e


controle da epidemia de AIDS entre usuários de
drogas injetáveis se pautam por princípios
fundamentais de saúde pública. A obtenção de
resultados concretos, requerida pela urgência e
complexidade dos problemas contemporâneos,
tornou urgente a formulação de respostas oportunas,
sempre que possível com defasagem mínima de

37
tempo, de modo a reduzir os danos à saúde
individual e coletiva associados a determinadas
práticas.

Iniciativas de RD afinadas com princípios de saúde


pública não se prendem a modelos, nem se esgotam
em cuidados de saúde propriamente ditos. São
extensivas a diversos tipos de ações práticas, com
base em políticas públicas, e devem estar em
sintonia com a comunidade desde seu planejamento,
e ser executadas em parceria com esta.

Alguns exemplos destas iniciativas são: facilitação


do acesso legal a equipamento estéril de injeção,
busca ativa de pessoas que usam álcool e drogas de
forma prejudicial, recepção e acolhimento destas em
serviços de saúde adequados às suas necessidades,
trabalho com usuários destas substâncias, com seus
pares e parceiros sexuais, intervenção em grupos, e
articulação de redes de apoio social a estas
pessoas44.

Perspectivas Contemporâneas em RD

As iniciativas em RD se expandiram nos últimos


vinte anos, trilhando rumos diversos nos países onde
foram inicialmente implementadas, e se espalharam
para outras partes do mundo. Em 2006 havia mais de
65 países com algum tipo de programa de
distribuição de seringas, e 58 países com alguma
forma de tratamento substitutivo ao uso prejudicial
de drogas (a prescrição de metadona quadruplicou a
partir de meados dos anos ‘90)40. Os PRD têm apoio
governamental em muitos países europeus, na
Austrália e, recentemente, na Indonésia, Malásia,

38
Tailândia e China. Já há PRD na Europa Oriental e
Central, Ásia e América Latina, impulsionados em
parte pela militância e trabalho coletivo, construído
e organizado em rede40.

A RD obteve apoio das Nações Unidas em vários


níveis e por meio de suas diferentes agências:
UNAIDS (The Joint United Nations Programme on
HIV/AIDS), UNICEF (The United Nations
Children´s Fund), UNODC (United Nations Office
on Drugs and Crime) e Organização Mundial de
Saúde (OMS).

Os PRD no Brasil

A associação entre o uso de drogas injetáveis e


infecção pelo HIV foi relatada em 114 países, dos
134 que documentaram esta infecção em 199945. Em
2001, casos de AIDS entre usuários de drogas
injetáveis na América Latina correspondiam a 34,3%
do total de casos registrados no Cone Sul
(Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai); 20,2% no
Brasil; 2,8% no Caribe Latino (Cuba, Haiti, Porto
Rico e República Dominicana); 0,9% na América
Central (Belize, Costa Rica, El Salvador, Guatemala,
Honduras, Nicarágua e Panamá); 0,6% no México e
0,2% na região dos Andes (Bolívia, Colômbia,
Equador, Peru e Venezuela)46.

Estudo multicêntrico em 13 cidades da América


Latina, apoiado pela OMS47, em 1989-90, contribuiu
para implantar métodos renovados de pesquisa na
região, subsidiar políticas públicas e estabelecer

39
redes internacionais de cooperação. O debate
público, nacional e internacional, acerca de medidas
(de saúde pública) visando conter a disseminação do
HIV conferiu nova dimensão à questão das drogas
injetáveis48.

Um dos primeiros estudos epidemiológicos sobre a


transmissão do HIV entre pessoas que utilizam
drogas injetáveis na América Latina foi realizado em
1991, em Santos, São Paulo, como parte do estudo
supra-mencionado49. Santos era à ocasião a cidade
brasileira com a maior taxa de incidência de
infecção por HIV do país, e nesta cidade a proporção
de usuários de drogas injetáveis entre os casos de
AIDS era de 52%. Ou seja, os usuários de drogas
injetáveis em atividade ─ estimados, à época, em
menos de 1% da população total – correspondiam a
mais da metade dos casos de AIDS registrados
naquela cidade. O estudo fez com que fosse
recomendada, aos serviços de saúde pública, atenção
específica a estas pessoas, dada sua importância na
disseminação da epidemia local.

Teve lugar justamente em Santos a primeira


tentativa de implantar um Programa de Troca de
Seringas (PTS) no Brasil, em 1989. A proposta de
trocar seringas usadas por novas (estéreis) foi,
entretanto, interpretada como ‘‘estímulo ao consumo
9 p104
de drogas’’ , tendo sido embargada
judicialmente pelo Ministério Público do Estado de
São Paulo, que entrou com uma ação civil e criminal
contra os organizadores do programa e o governo da
cidade.

40
Apenas em 1995 foi de fato implantado o primeiro
PTS no Brasil, em Salvador, Bahia. O programa foi
possível graças à parceria entre o Centro de Estudos
e Tratamento em Atenção ao Uso de Drogas (Cetad),
a Escola de Medicina e a Universidade Federal da
Bahia, apoiados pelos governos estadual e
municipal50. Este programa foi pioneiro na América
do Sul, onde atualmente, além do Brasil, apenas a
Argentina apóia oficialmente tais programas.

A América do Sul é uma região de desigualdades


pronunciadas entre as classes sociais, com
populações vulneráveis a diferentes agravos e
doenças51. A análise de dados coletados ao longo de
dez anos (1995-2004) na cidade de Porto Alegre, sul
do Brasil, evidenciou que usuários de drogas
injetáveis, homens que têm sexo com homens, e
usuários de crack são mais vulneráveis à infecção
pelo HIV do que o restante da população. Pobreza,
baixa escolaridade, e o uso compartilhado de drogas
injetáveis se mostraram fatores de risco centrais para
infecção pelo HIV naquela cidade, com o recente
acréscimo dos riscos adicionais associados ao uso de
crack fumado33.

Atualmente a taxa de infecção pelo HIV na


população brasileira é de 0,6%, com relativa
concentração, a partir dos anos ’90, em sub-
populações particularmente vulneráveis, tais como
homens que fazem sexo com outros homens que são
usuários de drogas injetáveis, mulheres que usam
drogas injetáveis e usuários de drogas injetáveis em
situação de extrema pobreza52.

41
A epidemia de AIDS no Brasil é um compósito de
diversas sub-epidemias regionais. O país tem
dimensões continentais, e apresenta diferenças
regionais importantes em seu desenvolvimento
sócio-econômico e composição demográfica, entre
outros aspectos53. Desde o início da epidemia, nos
anos ‘80, tem havido variações de incidência e
prevalência das epidemias regionais e locais, nas
diferentes regiões geográficas e sub-populações do
país.

A infecção pelo HIV entre pessoas que usam drogas


injetáveis seguiu inicialmente a rota principal do
tráfico de cocaína, da fronteira oeste para os portos
principais do sudeste54,55. Foi nesta região – sudeste
industrializado, principalmente no estado de São
Paulo e, mais recentemente, em cidades ao longo da
região costeira deste estado até o sul do Brasil – que
usuários de drogas injetáveis desempenharam um
papel central na disseminação da epidemia56. Cabe
lembrar que estas pessoas pertencem, em geral, às
classes sociais mais pobres e menos escolarizadas da
população, mas estão concentradas nas regiões mais
afluentes do pais57,58.

No final dos anos ’90 a proporção de usuários de


drogas injetáveis entre as pessoas infectadas pelo
HIV na costa sul do Brasil aumentou de forma
expressiva, assim como o tráfico e o consumo de
cocaína na região, correspondendo a cerca de 50%
do total de casos registrados em algumas cidades
costeiras do estado de Santa Catarina e Rio Grande
do Sul58.

42
Estes achados, segundo análise recente59, podem
contribuir para explicar a disseminação rápida e
continua da epidemia entre mulheres (muitas delas
parceiras sexuais de pessoas que usam drogas
injetáveis) e da transmissão vertical (da mãe para o
bebê) nesta região, bem como o declínio menos
expressivo das mortes relacionadas à infecção pelo
HIV, em relação a outras regiões do país, em função
do contexto de pobreza e discriminação em que
estão inseridos os usuários de drogas injetáveis e
suas redes sociais, mesmo num país que conta com
acesso universal à terapia anti-retroviral.

Assim, no enfrentamento da ‘‘sinergia’’ constituída


pelo tráfico e consumo de cocaína e expansão da
epidemia de AIDS na população de usuários de
drogas, ‘‘desde meados dos anos ’90 o Brasil incluiu
a estratégia de redução de danos em sua agenda de
saúde pública’’ 53 p. 635.

Dados disponíveis em novembro de 2006 60 estimam


em torno de 150 o número de programas de troca de
seringas em funcionamento no Brasil em diferentes
regiões, estados e municípios. Estes programas
foram implantados por universidades, instituições
governamentais como secretarias de saúde, e
organizações não governamentais. O apoio ao
movimento de RD tem crescido no país, apesar de
restrições ao financiamento dos programas, falta de
experiência gerencial em muitos deles e um processo
acidentado de descentralização de ações e recursos61.
É preciso que tais programas sejam monitorados e
avaliados regularmente, que bancos de dados
regionais e locais sejam implantados e

43
permanentemente atualizados e revisados, e que se
estabeleçam incentivos e sanções reforçando a
responsabilização por estas iniciativas50.

Estudo recente62 mapeou e descreveu 11 programas


de RD da região metropolitana de Porto Alegre, sul
do Brasil, no período 2004-2006, comparando os
dados encontrados com mapeamento datado de
2003, na mesma região. Ambos os estudos indicam
características comuns aos programas, que
dificultam as ações de cuidado prestadas por estes.
Destacam-se a precariedade do vínculo profissional
das equipes de trabalho, a prestação voluntária de
serviços como base de apoio a muitas das ações
mencionadas, e a influência das mudanças de gestão
─ municipal e estadual ─ sobre os recursos humanos
e financeiros dos programas enquanto fatores que
afetam a continuidade e a efetividade dos mesmos.

Considerações finais

As iniciativas de ordem prática, implementadas na


interseção dos campos definidos pela saúde pública
e RD, ultrapassam fronteiras teóricas em busca de
condições mais propícias à vida: ‘a vida, por trás das
quantidades, o grande desafio da epidemiologia
‘normal’ de nossos dias’ 63 p 134.

A plena integração das ações de RD às iniciativas de


saúde pública ainda está, em grande medida, por se
fazer, e, quando existe, como nos recém-abertos
CAPS-ad (Centros de Atenção Psicossocial a
Usuários de Álcool e Drogas), ainda está por ser

44
devidamente avaliada. Não resta dúvida, entretanto,
que as ações de redução de danos devem ser
plenamente integradas às ações latu senso em saúde
pública, deixando para trás uma crônica vitoriosa,
mas amarga, de conflitos e confrontos, em prol do
diálogo e do crescimento mútuos, sempre em
respeito aos direitos humanos e em favor da
população de usuários de drogas, seus familiares e
próximos.

45
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63 Ayres JCMR. Epidemiologia e emancipação. S.


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55
Capítulo II - Um estudo qualitativo sobre o
cuidado público às pessoas que usam álcool e
drogas de modo prejudicial ou dependente na
cidade do Rio de Janeiro 2009-2010

Introdução

Ao longo do tempo, o valor simbólico atribuído ao


uso de álcool e drogas tem sido expresso por padrões
distintos, nos diferentes contextos culturais e
momentos históricos que os determinam, como vem
sendo estudado pela história, sociologia e
antropologia. A relação problemática estabelecida
por pessoas e grupos com tais substâncias ─ o uso
prejudicial ou dependente destas ─ concerne
também ao campo da saúde pública, a partir de
evidências científicas quanto à associação entre este
consumo abusivo e riscos e danos individuais e
coletivos.

Comparadas com a população como um todo,


pessoas que abusam de álcool e diversas drogas
ilícitas apresentam, com maior freqüência, agravos e
doenças, como tuberculose, doenças crônicas em
geral, depressão, acidentes de tráfico e episódios de
violência 1 .

Usuários de drogas injetáveis têm como risco


indireto a infecção pelo vírus da AIDS (HIV), e
outros vírus de transmissão sexual e sanguínea
(especialmente as hepatites virais), além de fungos e
bactérias transmissíveis pelo sangue. Acrescenta-se,
ainda, a associação freqüente do abuso de diversas

56
substâncias psicoativas (especialmente estimulantes,
como cocaína, crack e metanfetamina) com práticas
sexuais menos seguras, como parcerias sexuais
concorrentes com relações desprotegidas e sexo em
2
troca de drogas, bens ou dinheiro .

Doze por cento da população urbana mundial


apresenta transtornos de saúde associados ao álcool
e drogas, mas apenas um quinto dos dependentes de
drogas teve acesso a tratamento em 2008. Segundo o
diretor executivo do Escritório das Nações Unidas
sobre Drogas e Crime (Unodc, em inglês):

“[...] as forças do mercado moldaram as dimensões


assimétricas da economia da droga: os maiores consumidores
(os países ricos) impuseram aos países pobres [...] os maiores
danos” 3 .

Documento conjunto deste Escritório e da


Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que o
investimento em serviços especializados no cuidado
às pessoas que fazem uso problemático de álcool e
drogas determinaria uma economia sete vezes maior
frente ao atual modelo, que privilegia a repressão à
oferta em detrimento da redução da demanda (o
valor relativo à perda de recursos humanos é
evidentemente inestimável) 1 .

Os serviços públicos de saúde mental

No Brasil, as ações públicas de saúde destinadas às


pessoas que usam álcool e drogas de modo
prejudicial ou dependente estão inseridas, desde
2003, em um modelo mais amplo de cuidados em

57
saúde mental, cujas bases técnicas e políticas devem
ser analisadas sob uma perspectiva histórica.

A proposta de atenção psicossocial tem princípios


comuns com o Sanitarismo e a Reforma Psiquiátrica.
A Reforma foi um movimento de crítica e mudança
do sistema público brasileiro de saúde mental, com
ênfase inicial na “humanização” de asilos e
hospitais, nos anos ’70. Questionava-se a assistência
psiquiátrica tradicional em vigor no contexto
brasileiro, estratégia esta (com parcos resultados
terapêuticos) percebida como similar, sob certos
aspectos, à política centralizadora e autoritária
vigente no país.

O objetivo inicial da Reforma foi reinserir no


convívio comunitário pessoas até então excluídas do
mesmo por problemas psíquicos graves. Buscava-se
uma contraposição à experiência relatada por
internos em “instituições totais” (como manicômios
e prisões), vivenciada como empobrecimento
psíquico, a partir do (ou agravada pelo) rompimento
4
de laços familiares e sociais .

O movimento em favor dos direitos de pacientes


psiquiátricos (pessoas com transtornos mentais
graves, de longa evolução) encontra expressão no
Brasil através do Movimento dos Trabalhadores em
Saúde Mental (MTSM) constituído em ’78, do qual
participavam egressos de hospitais psiquiátricos e
seus familiares, além de diferentes categorias
profissionais com atuação na área.

O contexto internacional era o de denúncias dos


manicômios, cujas normas de funcionamento e

58
métodos clínicos alijavam as pessoas internadas
nessas instituições (e seus familiares) das decisões
quanto ao seu próprio tratamento, violando
5 , 6
princípios básicos de cidadania . O panorama
nacional era de mobilização em prol da saúde
coletiva, advogando mudanças nos modelos de
gestão e atenção à saúde pública, eqüidade na oferta
de serviços e o protagonismo de trabalhadores e
usuários destes na gestão e produção de tecnologias
de cuidados 7 .

Na década de ’80 tiveram lugar as primeiras


propostas e experiências de reorientação do modelo
“hospitalocêntrico” de assistência às pessoas que
apresentam os transtornos mencionados. Em ’87, foi
implantado (na cidade de São Paulo) o primeiro
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do Brasil,
marco inicial da substituição do modelo tradicional
por uma rede pública de cuidados de base
comunitária.

Em ’88, a mobilização em prol da saúde coletiva


mencionada culmina na sistematização de um novo
marco legal (em nível constitucional e
infraconstitucional), articulando as ações públicas de
saúde das três esferas de governo (federal, estadual e
municipal) em um Sistema Único de Saúde (SUS).
A legislação e normatização referentes ao SUS
prevêem uma descentralização paulatina de tais
ações e seu controle social através de Conselhos
Comunitários de Saúde.

Em ’89, dois fatos mobilizam a opinião pública


quanto à Reforma: a intervenção governamental (no
município de Santos) em um hospital psiquiátrico e

59
a apresentação ao Congresso Nacional do Projeto de
Lei “Paulo Delgado”, propondo a regulamentação
dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a
extinção progressiva dos manicômios.

Neste período foram implantados Núcleos de


Atenção Psicossocial (NAPS), funcionando 24 h por
dia, em São Paulo. Trabalhadores em saúde mental e
egressos de hospitais psiquiátricos e seus familiares
começam a se organizar em associações e
cooperativas de trabalho, na construção coletiva de
mecanismos de apoio à desinstitucionalização (i.e. a
reabilitação clínica e reinserção social de pacientes
psiquiátricos).

Nos anos ’90 (sob inspiração da Declaração de


Caracas1) são pactuadas na II Conferência Nacional
em Saúde Mental as diretrizes que nortearão as
primeiras normas federais regulamentando a
implantação dos serviços de atenção diária (CAPS,
NAPS e hospitais-dia) e de fiscalização e
classificação dos hospitais psiquiátricos 7 .

Alguns estados aprovam no período leis referentes


aos novos serviços, mas a rede substitutiva não
dispunha ainda de uma linha específica de
financiamento do Ministério da Saúde (MS),
portanto sua expansão ficou aquém do necessário.
Em 2001, transcorridos 12 anos, a Lei Federal 10216
completa a normatização referida, sinalizando para a
substituição progressiva dos manicômios por uma
rede de serviços de base comunitária, ainda que sem
definir claramente os mecanismos para viabilizá-la 7.

1
Documento da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) a respeito das mudanças na atenção à
saúde mental nas Américas, adotado pela OMS.

60
As recomendações da III Conferência Nacional em
Saúde Mental (convocada logo após a promulgação
da Lei) também apontam na direção de uma política
pública afinada com os princípios, diretrizes e
estratégias da Reforma Psiquiátrica. Os CAPS se
consolidam como dispositivos estratégicos na
implementação de um novo modelo de atenção em
saúde mental, advoga-se a elaboração de uma
política pública de saúde para usuários de álcool e
drogas inserida neste modelo, e reafirma-se a
importância do controle social como garantia de
permanência e avanço das mudanças dai
decorrentes.

Entre 2001 e 2005, o MS institui formas específicas


de financiamento para os serviços substitutivos aos
hospitais psiquiátricos e novos mecanismos de
fiscalização, gestão e redução programada de leitos
nestas instituições de internação. Assim, no contexto
de implementação de uma rede de atenção diária às
pessoas portadoras de transtornos mentais graves e
persistentes, foi sendo traçada a política pública
atual para a atenção integral a usuários de álcool e
drogas.

Este estudo teve o objetivo de identificar elementos


relevantes para uma avaliação da qualidade das
ações públicas de cuidado pautadas por estas
políticas, destinadas às pessoas que usam álcool e
drogas de modo prejudicial ou dependente.

Diretrizes teóricas de programas públicos (ainda que


resultem de processos participativos e decisões
pactuadas) são postas à prova na vivência cotidiana
dos serviços, numa dinâmica de redefinição

61
permanente entre as primeiras e as últimas, que pode
(e deve) resultar no aprimoramento de ambas.

Pretendeu-se identificar formas (mais) adequadas de


avaliação do cuidado referido, que no Brasil cabe
aos serviços CAPS-ad ─ Centros de Atenção
Psicossocial em álcool e drogas. No presente artigo
aborda-se o ponto de vista de alguns profissionais do
CAPS-ad Centra-Rio, na identificação e reflexão
crítica acerca de fatores intervenientes na qualidade
das ações consideradas.

A Atenção Psicossocial

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são

serviços de saúde municipais, abertos, comunitários, de


atendimento diário às pessoas com transtornos mentais severos
e persistentes, realizando acompanhamento clínico e reinserção
social destas pessoas através do acesso ao trabalho, lazer,
exercício de direitos civis e fortalecimento de laços familiares e
7 p 25
comunitários .

No contexto de uma nova estrutura de financiamento


do MS, o número de CAPS passou de 424 (em 2002)
para 1541 (em 2010), ampliando a cobertura do
serviço (para uma meta acordada de 1 CAPS/100
mil habitantes). O orçamento federal para a saúde
mental aumentou em 75,2% o valor destinado ao
tratamento comunitário no período 2002-2009 8 p 13.

Com a Reforma Psiquiátrica, o SUS mais que dobrou o


investimento em saúde mental, mas ainda não é o suficiente.
[...] a demanda de saúde mental afeta pelo menos 25% da
população geral, em algum momento da vida, e 12% ao longo
9 p 18
de um ano .

62
Os serviços do tipo CAPS subdividem-se em cinco
modalidades (CAPS I, II, III, CAPSI e CAPS-ad),
não apenas quanto ao porte, capacidade de
atendimento, perfil populacional do município em
que estão localizados, mas também quanto ao tipo de
cuidado oferecido. Cada gestor deve definir junto à
comunidade o serviço adequado às demandas locais
7
.

Os CAPS I servem aos municípios entre 20 e 50 mil


habitantes (correspondendo a 19% dos municípios e
17% da população do país), funcionam nos cinco
dias úteis, têm uma equipe mínima de 9 profissionais
(de nível médio e superior) e capacidade de
acompanhamento mensal de 240 pessoas. Sua
clientela inclui pessoas que fazem uso prejudicial de
álcool e drogas, além daquelas com transtornos
mentais graves e persistentes.

Os CAPS II servem aos municípios de população


superior a 50 mil habitantes (correspondendo a 10%
dos municípios e 65% da população), funcionam nos
cinco dias úteis, contam com uma equipe mínima de
12 profissionais (de nível médio e superior) e
capacidade para acompanhar mensalmente até 360
pessoas com transtornos mentais graves e
persistentes.

Os CAPS III servem aos municípios com mais de


200 mil habitantes (0,63% dos municípios, mas
concentrando 29% da população), funcionam 24h
por dia, todos os dias da semana, inclusive feriados.
Podem fazer acolhimento noturno se necessário
(tendo até 5 leitos para internações breves, por um
período máximo de 7 dias) e capacidade de

63
acompanhamento mensal de até 450 pessoas com
transtornos mentais graves e persistentes. São
serviços de maior complexidade, com equipe
mínima de 16 profissionais (de nível médio e
superior), além de equipe noturna e de final de
semana.

Os CAPSI são especializados no acompanhamento


de crianças e adolescentes (que apresentem os
transtornos mentais referidos) e os CAPS-ad no
acompanhamento de pessoas que fazem uso
prejudicial ou dependente de álcool e drogas. Ambos
servem aos municípios com mais de 200 mil
habitantes (ou que são rota do tráfico, fronteiriças a
outros países ou cujo perfil epidemiológico
justifique sua implantação). Os CAPSI têm
capacidade para acompanhar mensalmente até 180
crianças e adolescentes, os CAPS-ad até 240
pessoas; sua equipe mínima é, respectivamente, de
11 e 13 profissionais (de nível médio e superior) e os
dois serviços funcionam durante os cinco dias úteis.

Nestes Centros devem ser propostos projetos


terapêuticos individualizados, planejados por equipe
multidisciplinar com cada usuário. Nos CAPS-ad
são atendidos os casos mais graves e complexos
identificados na comunidade ─ pessoas com padrão
de dependência de substâncias psicoativas ou
comprometimento social e familiar importante. Os
atendimentos podem ser individuais ou em grupo,
abrangendo medicação, psicoterapia, oficinas de
terapia ocupacional e visitas domiciliares. Para um
cuidado mais intensivo (situações de crise ou
medidas de desintoxicação que não requeiram

64
hospitalização) os CAPS-ad contam com 2-3 leitos
de repouso.

A Atenção Psicossocial em álcool e drogas

A complexidade do consumo abusivo de álcool e


drogas (pelos múltiplos fatores envolvidos na
determinação do seu uso e da eventual dependência)
pode ter contribuído para que a saúde pública no
Brasil demorasse tanto para responder de modo
efetivo e democrático a esta importante questão. O
abuso de substâncias tem sido comparado a uma
doença crônica (no prognóstico de sua evolução),
quanto à recorrência ou remissão dos sintomas. De
acordo com documento da OMS /UNODC supra-
mencionado:

Nothing less must be provided for the treatment of drug


dependence than a qualified, systematic, science-based
approach such as that developed to treat other chronic diseases
considered untreatable some decades ago. […] diseases now
preventable or treatable thanks to good practice, clinical
interventions and rigorous therapeutic strategies and
1 p2
cumulative scientific research .

A inclusão de serviços de tratamento para pessoas


que abusam de álcool e drogas em programas de
prevenção à infecção pelo vírus da AIDS foi
recomendada pela OMS, por contribuírem para a
redução do uso e da freqüência de injeção de drogas,
assim como dos comportamentos de risco associados
a estes usos. Mas a escassa integração dos serviços
(entre si e com a rede de cuidados gerais de saúde)
dificulta sua utilização por pessoas relutantes em

65
buscar tratamento, por temor à criminalização de seu
comportamento, não conseguirem ou não desejarem
abster-se destas substâncias, não se sentirem
doentes, não acreditarem na efetividade do
tratamento ou não terem acesso aos mesmos (em
função do custo, distância ou impedimentos de outra
ordem) 10 .

Há evidências de que pessoas vivendo com


HIV/AIDS que abusam de drogas recebem cuidados
inadequados aos agravos que apresentam (pelo
estigma e discriminação de que são alvo, além das
razões acima apresentadas), apesar de necessitarem
mais destes cuidados do que a população como um
10
todo . Como mencionado por Malta: “usuários de
drogas tendem a buscar testagem e posterior
acompanhamento para a infecção pelo HIV
tardiamente, o que pode prejudicar a eficácia de um
tratamento gratuito e muito eficiente” 11 .

Uma questão de saúde pública

A ênfase (exagerada e exclusiva) em certos fatores


envolvidos no consumo abusivo de substâncias
psicoativas gera (ou endossa) abordagens de cunho
moralista e repressivo, ineficazes no tratamento ou
prevenção deste. No vácuo gerado pela ausência, por
longos anos, de uma política de saúde pública
específica voltada para esta questão, os poucos
serviços do cuidado referido do país estão
basicamente vinculados a instituições religiosas ou
filantrópicas, à exceção de alguns programas de

66
tratamento (ambulatorial e hospitalar) vinculados a
universidades públicas.

A criminalização do consumo de drogas ampliou a


percepção da opinião pública quanto à
periculosidade social deste consumo, reforçando no
cuidado aos usuários destas substâncias o uso de
práticas proscritas pela saúde pública em geral e pela
saúde mental – como a adoção de posturas
repressivas por parte dos profissionais de saúde.

Até 2003 não havia no país uma política pública de


saúde, de alcance nacional, com diretrizes claras
para o enfrentamento do problema do uso prejudicial
ou dependente de álcool e drogas. A opção feita (a
partir de recomendações da III Conferência Nacional
de Saúde Mental) foi por uma abordagem que
privilegiasse o sujeito usuário de álcool e drogas. A
construção desta política pública específica visa
reduzir os riscos e danos de saúde e sociais inerentes
12 , 13
a este tipo de uso .

A redução de danos (RD) é definida como conjunto


estratégico de medidas de saúde pública objetivando
reduzir ou minimizar os efeitos adversos do uso
14
prejudicial de álcool e outras drogas . Mais do
que as medidas em si, no entanto, a lógica da
redução de danos constitui um marco conceitual de
auxílio inestimável na escolha de modos mais
apropriados de intervenção, face às circunstâncias
concretas em que se dá o consumo de substâncias
15 p 57
psicoativas .

A RD obteve reconhecimento oficial como


estratégia de saúde pública a partir da epidemia

67
mundial de HIV/AIDS nos anos ’80, mas já havia
sido empregada com sucesso por usuários
holandeses de drogas injetáveis na contenção de
surtos de infecções transmissíveis pelo sangue
(através do uso compartilhado de equipamentos de
injeção) e por relações sexuais 2 . Esta estratégia era
apoiada pelo Brasil desde os anos ’90, quando foi
lançado o Programa Nacional de Atenção
Comunitária Integrada aos Usuários de Álcool e
outras Drogas em 2003.

No documento mencionado, o Ministério da Saúde


(MS) lamenta sua omissão no estabelecimento de
uma política específica para esta questão e
reconhece que o consumo prejudicial e dependente
de álcool e drogas constitui uma importante questão
de saúde pública. Afirma ainda que este cuidado
deve estar inserido no domínio da atenção pública
em saúde mental, sendo doravante regido por seus
princípios.

Assim, a atenção psicossocial em álcool e drogas se


define, em 2003, na interseção de dois campos do
saber: a saúde pública e a saúde mental,
aproximados pelo marco conceitual da redução de
danos 13 .

O campo da saúde pública é constituído por diversos


saberes e práticas multidisciplinares, visa à obtenção
de resultados práticos, e busca fundamentação
16
científica e legitimação social . Ações de saúde
pública devem ser intersetoriais, integradas,
contextualizadas, ter base em evidências, motivar a
comunidade desde a sua elaboração; devem ter,

68
ainda, metas claras e mensuráveis, de modo que
possam ser monitoradas e avaliadas 17 .

As ações de saúde voltadas para pessoas que usam


álcool e drogas de modo prejudicial encontraram na
sua inserção com a rede psicossocial em formação as
diretrizes para uma atenção “diversificada,
complexa, com abordagens diversas e na perspectiva
da integração social do usuário, como nas outras
áreas de saúde mental” 7 p 41 .

Este tipo de cuidado foi efetivamente integrado à


atenção pública de base comunitária com a
implantação dos CAPS-ad e de mecanismos para
articulá-los à atenção primária (cuidados básicos de
saúde) e à rede de hospitais gerais (em situações de
urgência e emergência).

A prática efetiva da intersetorialidade como forma


de consolidação e avanço da Reforma Psiquiátrica
no Brasil foi o destaque da IV Conferência Nacional
em Saúde Mental - Intersetorial, em 2010, em
Brasília. O cuidado de pessoas que apresentam
transtornos mentais severos e persistentes em
situação de crise, sem privá-las de direitos básicos
de cidadania – como o convívio social – depende
desta articulação entre os setores envolvidos,
especialmente no que se refere ao atendimento a
usuários de álcool e drogas.

Principais conceitos

“A extraordinária riqueza de saberes [...] e de


linguagem” da Reforma Psiquiátrica superou
fronteiras geográficas e epistemológicas. As

69
experiências iniciais de desinstitucionalização
ampliaram e remodelaram o campo médico-
psiquiátrico onde se inscreviam os fenômenos da
loucura 18 p 14
.

O modelo de atenção psicossocial de base


comunitária visa à construção de redes territoriais de
assistência, ordenadas em torno de serviços
substitutivos (ao hospital psiquiátrico). Os primeiros
CAPS não tinham a pretensão de cobertura universal
nem base territorial definida – atendiam à assim
denominada “demanda espontânea”.

No decorrer do processo, a noção de


“responsabilidade sobre o território” (da Psiquiatria
democrática italiana) se tornou um dos pilares da
Atenção Psicossocial. Nesta concepção, as noções
de rede e território agregam aspectos políticos,
sociais e afetivos, à dimensão geográfica
propriamente dita:

As redes são sociais, culturais, simbólicas, mercantis, raciais,


espaciais, temporais; são também projeções da subjetividade.
São, talvez, algo objetivável em uma nova démarche clínica,
que tome o território como uma singularidade 19 p 119
.

Os CAPS têm função de assistência, articulação e


ordenação da rede de saúde do território em que se
encontram. São “dispositivos estratégicos” da
Atenção Psicossocial, considerados uma maneira de
exercer o cuidado, mais do que um local de
tratamento 20 .

O desafio do MS é ampliar o acesso ao tratamento eficaz e de


qualidade. [...] ampliamos o número de pontos de tratamento
na rede pública, e adotamos a lógica da redução de danos como

70
princípio norteador no entendimento da questão do consumo de
21 p 43
álcool e outras drogas .

A implantação de serviços facilita o acesso ao


tratamento, mas não garante sua eficácia e qualidade
(especialmente para um grupo de pessoas que
necessita de maiores e mais intensos cuidados de
saúde do que a população como um todo, por conta
do consumo referido).

Critérios de Avaliação da Atenção Psicossocial


em álcool e drogas

O modelo biopsicossocial de atenção às pessoas que


usam álcool e drogas de modo prejudicial ou
dependente envolve ações de saúde realizadas de
forma intersetorial e multidisciplinar. Isto se traduz
numa articulação das políticas públicas com as
demandas reais da população e do planejamento e
implantação de serviços de tratamento com o
1
monitoramento e avaliação destes .

No Brasil o eixo técnico e político que norteia tais


ações preconiza que estas estejam centradas no
sujeito que faz uso de drogas e álcool, sejam regidas
por uma lógica clínica ampliada (multiprofissional e
intersetorial) e visem à redução de danos à saúde
individual e coletiva associados a determinados
padrões de uso 13 .

Avaliações científicas do custo/benefício de serviços


comunitários de saúde pública visando à redução de
danos associados ao consumo prejudicial de drogas
requerem períodos razoáveis de tempo e recursos

71
substanciais. O ideal seria alocar de antemão
recursos para o monitoramento e avaliação, quando
da implantação destes serviços (exigência básica de
diversas agências financiadoras). Seu valor imediato
mais evidente reside na captação de um conjunto de
pessoas até então excluídas, oferecendo-lhes
alternativas de prevenção que são custo-efetivas em
relação ao tratamento dos infectados pelo HIV e
outras afecções, além do que poupam em sofrimento
22 , 23 , 24
e vidas humanas .

Avaliação do National Institute on Drug Abuse


(NIDA), EUA, mostrou que usuários de drogas
podem se engajar em processos educacionais
relevantes, aconselhamento, teste e referência para
tratamento da infecção pelo HIV, em suas
comunidades. Mostrou também que esta
participação social se faz acompanhar por mudanças
de comportamento relevantes, na prevenção do
HIV/AIDS 25 , 26 .

No contexto em que foi instituída a Atenção


Psicossocial em álcool e drogas como política de
Estado, sua formulação recebeu forte influência da
abordagem pragmática da redução de danos,
expressa nas ações preventivas e terapêuticas
recomendadas pelo então PN-DST/AIDS (Programa
de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS do
MS), hoje departamento do MS que incorporou a
questão das hepatites virais.

A técnica expressa pelas ações programáticas de


cuidado aos que vivem com HIV/AIDS no Brasil
veio a reboque dos fundamentos éticos que
nortearam estes cuidados, principalmente no início

72
da epidemia, quando pouco se sabia sobre ela. Tais
ações foram instituídas, primordialmente, enquanto
direito à cidadania e acesso universal à assistência.
O respeito às vivências diversas da sexualidade e ao
uso de drogas constituem princípios éticos
explicitados no Programa mencionado, embasando
27
suas ações programáticas .

O direito ao uso de drogas, e o direito ao tratamento


dos agravos associados a este uso, quando
prejudicial, são questões pertinentes ao debate que
envolve o consumo de drogas. Noções importantes
no contexto político em que a Atenção Psicossocial
se firmou (como autonomia e cidadania, entre
outras) são comuns à clínica “ampliada” (por
aspectos sociais, políticos e afetivos da situação de
vida de usuários) que rege estes serviços. Mas são
insuficientes quando se trata de buscar critérios para
elaborar formas de avaliação de sua qualidade.

Estudos e pesquisas avaliativas da Atenção


Psicossocial demonstram a insuficiência de critérios
utilizados na avaliação de serviços de saúde em
geral, quando se pensa em transpô-los (na
construção de indicadores) para a Atenção
28 , 29
Psicossocial em álcool e drogas .

A política brasileira de Estado que situou o uso


prejudicial ou dependente de álcool e drogas na
perspectiva da saúde pública (numa interface com a
saúde mental, via redução de danos) se concretiza
nos Centros de Atenção Psicossocial em álcool e
drogas (CAPS-ad). Tais serviços, considerados
dispositivos estratégicos na implantação de um novo

73
modo de operar o cuidado, requerem a investigação
de formas (mais) adequadas de avaliação.

Método

Campo de pesquisa

A qualidade do cuidado foi investigada na interface


das diretrizes técnicas e políticas propostas para sua
realização e o cotidiano de um serviço, tal como
experimentado por usuários e profissionais
diretamente envolvidos no cuidado em questão. O
campo de pesquisa foi o CAPS-ad Centra-Rio,
vinculado à Secretaria de Saúde e Defesa Civil
(Sesdec) do Estado do Rio de Janeiro, embora a
maioria dos serviços do tipo CAPS seja municipal.

Em 1998, foi criado o Centro Estadual de


Tratamento e Recuperação de Adictos (Centra-Rio),
no âmbito da Secretaria de Saúde do Estado do Rio,
sem consulta nem participação dos profissionais e
usuários do ambulatório de psiquiatria, que
funcionava como um Posto de Atendimento Médico
(PAM) no local (Botafogo, zona sul da cidade).

O novo serviço de assistência especializada, no


formato de hospital-dia, foi pensado como espaço
para a desintoxicação (de alcoolistas e usuários de
drogas) e atendimento ambulatorial em saúde
mental. O modelo de assistência adotado tinha por
30
base o método Minnesota , tendo como meta a
abstinência das substâncias mencionadas.

74
Em 2000, a nova direção do Centra-Rio deu maior
autonomia à equipe de trabalho, incentivou o estudo
e pesquisa, e implantou ações de RD na instituição,
ainda que de forma descontínua (preservando, ao
longo do tempo, apenas as oficinas de
aconselhamento e a distribuição de preservativos,
fora do contexto mais amplo em que estavam
inseridas) 31 .

Em 2006 teve início o processo de mudanças


estruturais no Centra-Rio, de modo a adequá-lo ao
funcionamento de um CAPS-ad. Novamente não
houve, a princípio, consulta ou participação dos
profissionais e usuários:

É o que a gestão queria ─ que a gente fosse CAPS ─ e a gente


ia ter que se adequar, quem não quisesse.... pt saudações. [...]
não passava nem pelo fato de ser bom, ser melhor, ser pior... a
gente tinha que se transformar num CAPS e tinha que se
adequar a isso.

O Centra-Rio existe há 11 anos, virou CAPS por questões


políticas.

O credenciamento como CAPS-ad foi em fevereiro


de 2007, quando também mudou a direção da
unidade. O novo diretor havia trabalhado por cinco
anos no primeiro CAPS-ad do Rio de Janeiro, “Raul
Seixas”. Sob sua direção, passa a haver maior
discussão teórica e iniciativas práticas (como
assembléia regular de usuários do serviço), no
sentido da adequação mencionada.

No CAPS-ad Centra-Rio houve 10172 atendimentos


em 2010 (1463 na recepção diária aos novos
usuários do serviço, 8880 aos cadastrados), num

75
total de 1267 pessoas em acompanhamento (912
homens e 355 mulheres). Destes, 26% relataram
usar álcool e 26% múltiplas drogas; 16% cocaína,
11% crack, 8% crack e cocaína, 5% maconha e 8%
outras drogas (não especificadas). Os atendimentos
(individuais e grupais) cumpriram planos
terapêuticos específicos. Os usuários receberam
ajuda-alimentação, além de medicação e orientação
relacionada a benefícios sociais.

População de estudo

Em 2010 a equipe do CAPS-ad Centra-Rio contava


com 41 profissionais, 19 atuando na assistência
(psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras, médicos
clínicos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros) e 12
na gestão/operação da unidade (servidores técnico-
administrativos, nutricionista, farmacêutica, técnica
de laboratório), além de 1 ouvidora vinculada ao
MS.

O vínculo empregatício desses profissionais é


variável. Há funcionários estatutários, profissionais
contratados (através de cooperativas ou sob o regime
da CLT) e profissionais que prestaram exames
admissionais do governo do estado do Rio, com
contratos temporários.

Dos 19 profissionais da assistência, 11 participaram


deste estudo. Todos atuam em equipes de recepção
aos novos usuários e no acompanhamento da
clientela cadastrada (9 trabalham no atendimento
individual e 2 em grupo). São profissionais de nível
superior ─ em psicologia (7), psiquiatria (1),

76
medicina clínica (1), acupuntura (1) e terapia
ocupacional (1).

A média de idade das 7 mulheres entrevistadas era


de 26,9 anos (25-41 anos). O tempo de serviço na
instituição, à época do estudo, variava entre 9 meses
a oito anos e dez meses. A média de idade dos 4
homens entrevistados era de 33,7 anos (25-43 anos).
O tempo de serviço na instituição, à época do
estudo, variava entre um mês e cinco anos e meio.

Caracterização do estudo

Este é um estudo de caso, ou seja, lida com

uma situação tecnicamente única, [...] baseia-se em várias


fontes de evidências, e [...] beneficia-se do desenvolvimento
prévio de proposições teóricas para conduzir a coleta e a
32 p 33
análise de dados” .

Objetivou-se identificar fatores intervenientes no


grau de implementação das ações de cuidado
prestadas pelo CAPS-ad Centra-Rio e intervenções
facilitadoras ou impeditivas das melhores práticas
possíveis na obtenção dos resultados pretendidos, à
luz das diretrizes técnicas e políticas formuladas.

A avaliação proposta valorizou as demandas,


preocupações e questões dos diversos atores sociais
envolvidos 33 , 34 , 35
.

Coleta de dados

Foram realizados dois grupos focais com nove


profissionais do serviço e duas entrevistas em
profundidade com profissionais da direção técnica,
com duração aproximada de quarenta minutos, em

77
local previamente definido, baseados em um roteiro
adaptado 36 .

As entrevistas foram semi-estruturadas, visando à


flexibilidade na coleta de dados e na exploração de
hipóteses. O conteúdo abordado foi o cuidado
cotidiano aos usuários do CAPS-ad Centra-Rio e
formas de avaliação desse tipo de Atenção
Psicossocial.

O primeiro contato com a direção da unidade foi em


novembro de 2009, e a participação na reunião
semanal de equipe durou de março a agosto de 2010.
As observações participantes foram descritas em
diário de campo, contendo dia, hora e contexto de
cada uma delas, e demais anotações pertinentes.

Os participantes do estudo assinaram um termo de


consentimento livre e esclarecido, antes dos grupos
focais e entrevistas. Nenhuma informação pessoal ou
passível de identificá-los foi mantida nas
transcrições. Sua participação foi voluntária, sem
qualquer incentivo financeiro.

Análise dos dados

A análise seguiu o método de Análise de Conteúdo


37
, com etapas de pré-análise, descrição analítica e
38
interpretação inferencial , apoiada pela técnica de
39
escuta psicanalítica .

78
Resultados

Os fragmentos de fala citados referem-se a aspectos


considerados relevantes pelos participantes do
estudo. Sua escolha ─ e a forma de citá-los ─
buscou preservar o ponto de vista e o estilo de cada
entrevistado.

Ao abordar seu trabalho, os profissionais


interrogaram a constituição deste tipo de serviço no
contexto da Atenção Psicossocial:

A saúde pública não vai ter como responder a essa demanda


fragmentada. A saúde mental e a saúde pública (D).

Acho perigoso [...] importar todos os pressupostos teórico-


clínicos do CAPS (E).

Todos podem e devem organizar o seu fluxo álcool e drogas,


não é apenas um CAPS que pode fazer isso (G).

Fazer parcerias, com a clientela que a gente atende, é muito


difícil (A). [...]

um CAPS-ad contribui para que a parceria seja segregada,


restringe muito as possibilidades clínicas [...] por ter se
especializado assim, se introduziu um tema (H).

[...] ainda mais que a nossa clientela é muito apegada ao tema


... não é um tema qualquer prá eles (C).

Sou um drogado é um tema prá gente tirar da vida deles (F).

[...] trabalhar outras questões da vida do sujeito, e aquilo vai se


encaixando de uma forma diferente ... não sei se faz sentido o
CAPS-ad, você reforça uma identidade... prá depois querer
dissociar? (I).

79
Especificidades da Atenção Psicossocial em álcool e
drogas foram apontadas pelos participantes,
questionando a territorialização de atendimentos
sigilosos, envolvendo situações de risco, e horários
de funcionamento restritivos ao acesso; ressaltou-se
que a reinserção social é complementar, e não
substitutiva do trabalho clínico, e que a precariedade
dos vínculos trabalhistas é ainda mais grave no
cuidado em pauta.

Os aspectos considerados pertinentes à avaliação


deste serviço, sugeridos pelos profissionais
participantes do estudo foram: pronto atendimento,
resolutividade, particularização (em detrimento de
programas prontos), serviços abertos, com ‘‘acesso
amplo, geral e irrestrito’’, a relação do usuário com
o serviço, o ambiente, ‘‘o quanto de integralidade o
serviço oferta, a recepção funcionar como um
dispositivo clínico, a clínica sem ideal de cura, a
integração da equipe’’, a intersetorialidade do
serviço.

Houve um acirrado debate quanto à oportunidade e


propriedade da avaliação da atenção psicossocial
(geral e em álcool e drogas), corroborando a
adequação da técnica utilizada:

[...] a fala que é trabalhada nos grupos focais não é meramente


descritiva ou expositiva; ela é uma ‘fala em debate’, pois todos
os pontos de vista expressos devem ser discutidos pelos
40 p 164
participantes .

Alguns fragmentos do debate:

Tem uma resistência da equipe a ser avaliada (A).

80
Nossa clientela é assim: tem tudo prá melhorar, prá dar certo, e
o cara some e não aparece nunca mais. E aí, foi o serviço que
foi ruim? (J).

[...] tem uma responsabilidade sim, no processo (K).

Colocar tudo num balaio de gato é muito delicado, [...] o


tratamento se dá de várias formas (B).

A gente avalia a partir de um certo paradigma teórico-clínico,


pessoal e relativo. [...] o que tá lá na frente é uma profunda
objetivação da nossa experiência, com conseqüências
retroativas prá o trabalho [...] (H).

‘Se escutar’ deveria entrar na avaliação, [...] fazer isso que a


gente fez (K).

Discussão

Inúmeras barreiras se interpõem entre as pessoas que


usam álcool e drogas – de modo recreativo,
prejudicial ou dependente – e os serviços de saúde,
dificultando o acesso e permanência nos mesmos. A
criminalização do consumo, com efeitos sobre
comportamentos individuais e coletivos, talvez
constitua o impedimento mais óbvio, mas
certamente não o único 41 , 42 , 43
.

Seja qual for o nível administrativo ou dimensão


teórica das ações de cuidado propostas ou previstas
pela assistência pública, elas só se realizam de modo
efetivo ao incluir ─ e manter ─ em seus serviços as
pessoas que necessitam destes. Quanto mais
acolhedores e desburocratizados, maior a chance de
serem acessados, principalmente por aqueles cuja
admissão pública de um comportamento privado (o

81
uso de drogas ilícitas), ao mesmo tempo em que os
qualifica para esta assistência, caracteriza-os como
infratores.

A qualidade de ações de saúde se define, entre


outros fatores, pela integralidade de seu exercício,
além da garantia básica de acesso universal a estas.
O exercício integral do cuidado em saúde abrange a
organização dos processos de trabalho, a articulação
dos agentes do cuidado entre si (intra-equipe e
interdisciplinar) e a invenção e uso de novas
tecnologias geradas no cotidiano dos serviços, com a
integração de saberes e conhecimento prático 27 .

Dificuldades no exercício da intersetorialidade,


relatadas pelos participantes do estudo (e as
tentativas de driblá-las “caso a caso” nas reuniões de
equipe) sugerem a necessidade de redes de atenção à
saúde que integrem melhor os serviços, mas a
integração efetiva depende de fatores que
ultrapassam o âmbito da Atenção Psicossocial em
álcool e drogas.

Faz-se necessária uma integração das ações (com


estudos de caso semanais, registrados em um mesmo
sistema de informação) e que a atenção seja
singularizada, no manejo individualizado dos casos
clínicos (case management). Enfatiza-se a
necessidade de ações integradas de cuidado, através
de manejo interdisciplinar e multiprofissional,
flexíveis o suficiente para que se adaptem às
necessidades dos usuários dos serviços, num
44 ,
eventual cuidado clínico dispensado caso a caso
45 , 46
.

82
Os achados também evidenciam dificuldades
referentes ao manejo clínico (que podem estar
associadas com a própria constituição de serviços
específicos para estas pessoas). Outra questão foi a
precariedade dos vínculos trabalhistas, dificultando
o estabelecimento da confiança entre profissionais e
usuários do serviço – fundamento do trabalho
terapêutico cujo rompimento brusco pode trazer
conseqüências clínicas importantes.

A tendência à repetição, característica do psiquismo


humano, é reforçada pela dependência de álcool e
drogas. Monotonia no agir, agir em detrimento do
falar e fidelidade ao objeto são aspectos desta
dependência que configuram um quadro de pobreza
subjetiva (ou de novas subjetividades, que não
estamos sendo capazes de perceber como tais). De
todo modo, um novo saber sobre novos sintomas só
se constitui na medida em que consiga se distinguir
do senso comum que tantas vezes predomina neste
tipo de cuidado.

83
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Disponível em
http://www.unodc.org/documents/drug-
treatment/UNODC-WHO-Principles-of-Drug-
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21 mar 2011.

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3 Unodc. Relatório Mundial sobre Drogas 2010.


Disponível em http://www.unodc.org/unodc/en/data-
and-analysis/WDR-2010.html. Acesso em 24 mar
2011.

4 Goffman E. Estigma. Rio: Zahar; 1975.

5 Basaglia F et al. Los crímenes de la paz. México:


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6 Laing RD, Cooper DG. Razón y violência.


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7 Brasil. Reforma Psiquiátrica e política de Saúde


Mental no Brasil. MS. DAPE. Coordenação Geral de
Saúde Mental. Brasília; 2005.

8 Radis. Comunicação em saúde. N.o 97 – set 2010.


Disponível em www.ensp.fiocruz.br/radis. Acesso
em 21 jan 2011.

9 Delgado PG. Entrevista. Radis. Comunicação em


saúde. N.o 97 – set 2010. Disponível em
www.ensp.fiocruz.br/radis. Acesso em mar 2011.

84
10 World Health Organization (WHO). Dependent
People Living with HIV/Aids 2001. Disponivel em
http://www.who.int/substance_abuse/publications/ba
sic_principles_drug_hiv.pdf Acesso em 21 mar
2011.

11 Informe Ensp : Projeto avalia o impacto da


terapia antirretroviral em pacientes com HIV/AIDS.
Disponível em
www.ensp.fiocruz.br/informe/materia. Acesso em
20 mar 2011.

12 Brasil. O uso de substâncias psicoativas no


Brasil: epidemiologia, legislação, políticas públicas
e fatores culturais. Brasília: Secretaria Nacional de
Políticas sobre Drogas. 2008. (A rede de atenção a
usuários de álcool e outras drogas na saúde pública
do Brasil, v.1).

13 Brasil . A Política do Ministério da Saúde para


atenção integral a usuários de álcool e outras drogas.
Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST
e AIDS. Brasília: MS; 2003.

14 Decreto n 6117 de 22 de maio de 2007. Dispõe


sobre as medidas para redução do uso indevido de
álcool e sua associação com a violência e a
criminalidade. D.O. da União 23/05/2007.

15 Open Society Institute. At what cost? HIV and


Human Rights Consequences of the global ‘war on
drugs’. New York: Open Society Institute; 2009.

16 Birman J. A Physis da saúde coletiva. Rev Saúde


Coletiva 2005; 15(S0):11-16.

85
17 Semenza JC, Giesecke J. Intervening to reduce
inequalities in infections in Europe. Am J Public
Health 2008; 98(5):787-92.

18 Pitta A. Prefácio. Libertando Identidades – da


reabilitação psicossocial à cidadania possível. B
Saraceno, Instituto Franco Basaglia. Rio: Te Corá
1999.

19 Atendimento psicossocial na metrópole: algumas


questões iniciais. In: Práticas ampliadas em saúde
mental: desafios e construções do cotidiano. Cad
IPUB n.14, Rio de Janeiro: IPUB, UFRJ; 1999.

20 Brasil. Saúde Mental no SUS: os Centros de


Atenção Psicossocial. MS. Secretaria de Atenção à
Saúde. DAPE. Brasília; 2004.

21 Delgado PG e Cordeiro F. Brasil. O uso de


substâncias psicoativas no Brasil: epidemiologia,
legislação, políticas públicas e fatores culturais.
Brasília: Secretaria Nacional de Políticas sobre
Drogas. 2008. (A rede de atenção a usuários de
álcool e outras drogas na saúde pública do Brasil,
v.1).

22 Vickerman P et al. The cost-effectiveness of


expanding harm reduction activities for injecting
drug users in Odessa, Ukraine. Sex Transm Dis
2006 Oct;33(10 Suppl):S89-102.

23 Kumaranayake et al. The cost-effectiveness of


HIV preventive measures among injecting drug
users in Svetlogorsk, Belarus. Addiction 2004
Dec;99(12):1565-76.

86
24 Lurie P, Drucker E. An opportunity lost: HIV
infections associated with lack of a national needle-
exchange programme in the USA. Lancet 1997 Mar
1;349(9052):604-8.

25 Giesbrecht N, Haydon E. Community-based


interventions and alcohol, tobacco and other drugs:
foci, outcomes and implications. Drug Alcohol Rev
2006;25(6):633-46.

26 Giesbrecht N. Alcohol, tobacco and local control:


a comparison of several community-based
prevention trials. Nord Stud Alcohol Drugs
2003;20(English suppl.):3-4 ).

27 Nemes, Castanheira, Melchior et al. Avaliação da


qualidade da assistência no programa de AIDS:
questões para a investigação em serviços de saúde
no Brasil. Cad Saúde Publica 2004; 20( 2):5310-21.

28 Schmidt MB. Avaliação da Qualidade de


Serviços de Saúde Mental – um estudo de caso do
CAPS Profeta Gentileza [ Tese de Doutorado]. Rio
de Janeiro: Instituto de Medicina Social,
Universidade Estadual do Rio de Janeiro; 2007.

29 Onocko-Campos RT & Furtado JP. Entre a


saúde coletiva e a saúde mental: um instrumento
metodológico para avaliação da rede de CAPS do
SUS. Cad Saude Publica 2006; 22(5):1053-1062.

30 Minnesota model disponível em:


http://www.hazelden.org/web/public/minnesotamod
el.page, acesso em 24 mar 2011.

87
31 Dias RM. Do asilo ao CAPSad: lutas na saúde,
biopoder e redução de danos [Dissertação de
mestrado]. Rio de Janeiro: Departamento de
Psicologia, Universidade Federal Fluminense; 2008.

32 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e


métodos. D Grassi (trad). Porto Alegre: Bookman.
2005.

33 Hartz ZMA, Silva LMV organizadores.


Avaliação em saúde. Dos modelos teóricos à Prática
na Avaliação de Programas e Sistemas de Saúde.
Salvador: EDUFBA; Rio de Janeiro: Fiocruz. 2008.

34 Guba EG, Lincoln YS. Fourth generation


evaluation San Francisco: Sage Publications; 1989.

35 ______ . Effective evaluation San Francisco:


Jossey-Bass Publishers; 1981.

36 Miranda, Figueiredo, Ferrer, Onocko-Campos.


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Campos RO et al. (org). Pesquisa avaliativa em
saúde mental. São Paulo: Hucitec ; 2008.

37 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições


70; 1995.

38 Triviños ANS. Introdução à pesquisa em


ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação.
São Paulo: Atlas; 1987.

39 Laplanche J e Pontalis JB. Vocabulário da


psicanálise. Lisboa: Moraes Ed; 1970.

40 Neto OC, Moreira MR e Sucena LFM. Grupos


focais e pesquisa social qualitativa: o debate

88
orientado como técnica de investigação. In: Ser
Social (9) – julho a dezembro de 2001. Programa de
Pós-graduação em Política Social do Departamento
de Serviço Social da UNB. Brasília: UNB; 2001.

41 Bastos FI et al. The children of Mama Coca:


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South America. Int J Drug Policy 2007;18(2):99-
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42 Malaguti V. Difíceis ganhos fáceis – drogas e


juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
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43 Batista N. Política criminal com derramamento


de sangue. Discursos Sediciosos 1998; 3(5-6):77-
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44 Malta M et al. Adherence to antiretroviral


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de Janeiro, Brazil. Cad Saúde Publica 2005;
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45 Malta M et al. Case management of human


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Dis 2003; 37(Supl 3):386-91.

46 Bastos FI et al. Treatment for HIV/AIDS in


Brazil: strengths, challenges, and opportunities for
operations research. Aidscience 2001; 1(15):1-17.

89
Capítulo III - o ponto de vista de familiares de
pessoas que usam álcool e drogas de modo
prejudicial ou dependente, atendidas em um
serviço público no Rio de Janeiro, 2009-2010

Introdução

No Brasil, a assistência às pessoas que usam álcool e


drogas de modo prejudicial ou dependente tem sido
majoritariamente exercida por entidades religiosas e
filantrópicas ─ em relação às quais as iniciativas de
capacitação e avaliação são extremamente recentes e
1
ainda assistemáticas ─, além de serviços de
natureza privada não filantrópica e alguns serviços
públicos vinculados a universidades.

No contexto nacional de implementação da Atenção


Psicossocial – rede pública de atenção diária aos
portadores de transtornos mentais graves e
persistentes – foi sendo traçada a política atual de
atenção integral a pessoas que têm uma relação
problemática com substâncias psicoativas. Em 2003,
os Centros de Atenção Psicossocial em álcool e
drogas (CAPS-ad) foram inseridos nesta rede de
cuidados comunitários em saúde mental, sendo
desde então regidos por diretrizes técnicas e políticas
pautadas no âmbito da Saúde Pública 2 .

Diretrizes públicas de cuidado, neste âmbito, visam


à obtenção de resultados práticos (premidas pela
urgência e gravidade dos problemas que se
apresentam) e têm por base princípios que os
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) devem

90
adotar em seu modo de funcionamento. Os CAPS-ad
são considerados dispositivos estratégicos na
prestação de ações de saúde destinadas às pessoas
que usam as substâncias referidas de um modo
prejudicial ou dependente, bem como aos seus
familiares 3 .

O Sistema Único de Saúde (SUS) tem como


princípios básicos o acesso universal e gratuito às
ações e serviços de saúde; a integralidade das ações
(de promoção, prevenção e tratamento de saúde
voltadas para a comunidade no seu conjunto, além
de cada um dos indivíduos); a equidade na oferta de
serviços (o reconhecimento da igualdade entre as
pessoas respeitando diferenças em suas
necessidades); a descentralização político-
administrativa; e o controle social das ações
mencionadas (através dos Conselhos Municipais,
Estaduais e Nacional de Saúde, com representação
de usuários dos serviços, trabalhadores,
organizações não governamentais e instituições de
ensino 4 .

Solidariedade e inclusão social foram os traços


marcantes das primeiras experiências dos serviços
públicos de atenção psicossocial, caracterizadas
principalmente por “sua absoluta indissociabilidade
5 p 8
com a clínica”, nas palavras de Pitta . Tais
serviços foram implantados nos anos ’80 em
substituição à assistência em saúde mental que
predominava ─ hospitalocêntrica e basicamente
privada (exceção feita a antigos manicômios
públicos, localizados nas cidades de maior porte ou
próximas a elas, como em Franco da Rocha,

91
município localizado na região metropolitana de São
Paulo), com parcos resultados terapêuticos, e
semelhante, na sua filosofia e modus operandi, à
ditadura vigente no país naquele período.

Houve, à época, certa resistência dos familiares à


reorientação (conhecida posteriormente como
Reforma Psiquiátrica) que visava substituir a
assistência nos moldes tradicionais por uma rede de
serviços públicos e comunitários, sob o novo marco
legal (Lei Federal 10216) e diretrizes a ela
associadas. Ainda que advogassem melhorias nas
instituições psiquiátricas, a expectativa das
dificuldades envolvidas no retorno ao convívio
social de pessoas há muito excluídas do mesmo (o
que incluía os encargos financeiros decorrentes desta
desinstitucionalização) pode ter contribuído para
fomentar essa resistência.

Mas nos anos ’90, ‘as experiências de usuários e


seus familiares passam a potencializar o processo da
6 p 37
Reforma Psiquiátrica’ . O protagonismo dos
familiares, associados na discussão das experiências
em curso, na crítica aos novos dispositivos clínicos e
no debate político, se expressou formalmente em sua
participação na II Conferência Nacional de Saúde
Mental (em 1992), junto aos trabalhadores e outros
usuários destes serviços.

Na III Conferência Nacional de Saúde Mental, em


2001, foi aprovada a proposta de que o cuidado
público de pessoas que usam álcool e drogas de
modo prejudicial ou dependente fosse implantado
através de uma rede de dispositivos comunitários
integrados e articulados à rede assistencial em saúde

92
mental, regidos pelos princípios da Reforma
Psiquiátrica 7 .

Entre 2001 e 2005, o MS instituiu formas específicas


de financiamento para os serviços substitutivos aos
hospitais psiquiátricos e novos mecanismos de
fiscalização, gestão e redução programada de leitos
nestas instituições de internação, tais como o
Programa Nacional de Avaliação do Sistema
Hospitalar / Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), o
Programa Anual de Reestruturação da Assistência
Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH) e o Programa
“De Volta para Casa”. A estes mecanismos de
apoio à desinstitucionalização, agregam-se
(integrando-se à rede em saúde mental) Serviços
Residenciais Terapêuticos, Centros de Convivência,
Ambulatórios de Saúde Mental e Hospitais Gerais 6 .

Existem atualmente associações de familiares


usuários dos serviços de atenção em saúde mental
em quase todos os estados do país. Para que seja
efetivo, o controle social das ações de saúde (um dos
princípios do SUS) depende da participação das
pessoas envolvidas nas mesmas em todos os níveis
de sua gestão. Esta participação não pode se
restringir às instâncias formais:

É no cotidiano dos serviços da rede de atenção à saúde


mental, e na militância, nos movimentos sociais, na luta por
uma sociedade sem manicômios, [...] que usuários e familiares
vêm conseguindo garantir seus direitos, apoiar-se mutuamente
e provocar mudanças nas políticas públicas e na cultura de
exclusão do louco da sociedade 6 p 38
(grifo nosso).

O objetivo deste artigo é identificar o ponto de vista


de familiares de pessoas que têm uma relação

93
problemática (prejudicial ou dependente) com álcool
e drogas, que utilizam serviços públicos voltados
para esta questão, sobre a qualidade dos mesmos.

Políticas Públicas e Família

De forma esquemática, pode-se reduzir a duas as


visões a respeito do foco privilegiado de diversas
políticas públicas recentes sobre a família. Uma
visão destaca negativamente o incremento das
políticas focalizadas e a menor presença do Estado
na provisão da proteção social, enquanto outra
questiona a relação entre o Estado e a família, em
função do controle que aquele possa vir a exercer
8
sobre esta .

Os aspectos referentes às políticas públicas,


envolvidos na complexa relação público-privada,
devem ser analisados sob a óptica mais ampla em
que se insere determinado programa ou política
específica. A atenção psicossocial em álcool e
drogas se definiu na interseção de dois campos do
saber: a saúde pública e a saúde mental,
aproximados pelo marco conceitual da redução de
danos (RD).

O eixo técnico e político que norteia estas ações de


saúde e sociais preconiza que estejam centradas no
sujeito que faz uso de álcool e drogas, sejam regidas
por uma lógica clínica ampliada (multiprofissional e
inter-setorial) e visem à redução de danos à saúde
individual e coletiva associados a determinados
padrões de uso 2 .

94
A redução de danos é o conjunto estratégico de
medidas de saúde pública objetivando reduzir ou
minimizar os efeitos adversos do uso prejudicial de
9
álcool e outras drogas . Mais do que as medidas
em si, no entanto, a lógica da redução de danos
constitui um marco conceitual de auxílio
inestimável na escolha de modos mais apropriados
de intervenção, face às circunstâncias concretas em
10 p
que se dá o consumo de substâncias psicoativas
57
.

Referencial teórico

Os fenômenos clínicos associados ao uso de


substâncias psicoativas permitem múltiplos
enfoques, em níveis distintos de complexidade,
numa série de registros teóricos em que podem ser
inscritos. No cenário contemporâneo ‘‘[...] não
existem disciplinas dominantes. A cartografia
teórica do universo das drogas foi subvertida’’ pela
inclusão das ciências humanas no campo antes
restrito à farmacologia e à psiquiatria 11 p 219 .

O peso atribuído à família na determinação ou


facilitação de fenômenos que afetam a saúde mental
dos seus membros tem sido abordado por diferentes
teorias psicológicas. A sistematização conceitual
acerca das relações entre a dinâmica familiar e o
adoecimento de membros da família, bem como os
processos envolvidos em seu restabelecimento,
pertencem à abordagem conhecida como terapia
familiar.

95
Seu início remonta aos anos ’50, com observações
de Jay Haley, psiquiatra norte-americano, quanto à
piora de doentes esquizofrênicos ao serem visitados
por determinados familiares (nas instituições em que
se encontravam internados) ou no retorno a suas
casas.

Haley fazia parte de um grupo de pesquisa sobre


“paradoxos na comunicação”, liderado por Gregory
Bateson, antropólogo inglês naturalizado norte-
americano, cujo trabalho resultou em diversas
contribuições importantes à biologia evolutiva,
antropologia e psicologia. Uma das mais conhecidas
é a teoria do duplo vínculo, a respeito das
conseqüências que podem advir da cisão entre
comunicação e afeto (observada na investigação das
relações entre esquizofrenia e comunicação) 12 .

Pesquisas com o objetivo de elucidar padrões de


comunicação familiar ganharam força nos anos ’60,
agregando noções e conceitos de diversos campos do
saber. Bateson propôs que a comunicação entre
famílias poderia ser melhor entendida utilizando-se
noções da cibernética (cunhada pelo matemático
norte-americano Norbert Wiener ao estudar formas
de comunicação e controle relativos às máquinas e
organismos); a idéia de princípios aplicáveis aos
sistemas em geral deve-se ao biólogo Von
Bertalanffy, e a concepção da comunicação como
uma questão matemática tem origem na teoria da
12
informação de Shannon .

Resultados das pesquisas mencionadas levaram, na


década seguinte, à identificação de circuitos causais
na comunicação e comportamento de membros do

96
mesmo grupamento familiar, sendo o
comportamento daquele identificado como paciente
apenas parte do padrão (familiar) geral recorrente.
Uma das implicações desta inferência teórica foi

[...] a descoberta que a enfermidade mental não era individual,


nem doença no sentido médico, nem sequer desordem, mas um
conjunto de manifestações ordenadas que tinham sentido nas
13 p 220
famílias em que ocorriam .

Nos grupos terapêuticos com familiares visa-se à


reconstrução de narrativas que fujam aos padrões
referidos, viabilizando novas formas de
comunicação e, portanto, de inter-relação e
comportamento.

O paradigma sistêmico-cibernético, derivado da


cibernética de segunda ordem (ou construtivismo,
formulado nos anos ‘80) foi a referência utilizada
por Schenker no estudo das relações entre
drogadicção e família.

Este paradigma “enfatiza a importância fundamental


do contexto na formação da doença ou da saúde
14 p 40
mental’’ , mas ressalta a possibilidade de
mudanças espontâneas na dinâmica familiar em
função de situações imprevistas. Nesta perspectiva,
o sistema familiar aberto não é mais percebido como
restrito à obtenção, a qualquer custo, do equilíbrio
homeostático que visa restaurar, quando seu modo
habitual de funcionamento é abalado.

Schenker destaca a importância da educação para


valores nos programas de prevenção e tratamento do
uso indevido ou abusivo de drogas e ratifica a
importância da família:

97
[...] quando a drogadicção ocorre, a família precisa ser
engajada na prevenção e no tratamento, uma vez que esse
sintoma que ‘aparece’ em um de seus membros denuncia
14 p 149
problemas no sistema familiar .

Uma pesquisa-ação realizada por Sudbrack ─ que


também percebe “a drogadicção não como doença,
15 p 92
mas como sintoma” - descreve o valor
conferido à instituição familiar por adolescentes de
baixa renda moradores do Distrito Federal. Ela
identifica no contexto familiar destes adolescentes,
correlacionando-os, tanto fatores de risco quanto de
proteção à dependência de drogas e à
marginalização. A “família contexto de risco”
envolve os seguintes aspectos:

violência doméstica, padrões rígidos de disciplina e falta de


negociação com os adolescentes, alcoolismo do pai,
desconhecimento sobre a adolescência, ausência do lar pela
jornada de trabalho, falta de monitoramento-controle, falta de
consciência sobre a importância da escolarização e pressão
15 p 97
pelo trabalho infantil .

Os aspectos que compõem a “família contexto de


proteção” são:

rede afetiva primária e espaço privilegiado de proteção e


influência educativa, capacidade afetiva de acolhida por parte
da mãe apesar das carências, disponibilidade para aprender a
melhor lidar com os filhos, motivação para reuniões e grupos
de auto-ajuda, uma cultura de solidariedade e ajuda recíproca
na vizinhança / comunidade, sensibilidade às dificuldades
enfrentadas pelos filhos e expectativa de ascensão social
15 p 97
depositada nos filhos .

Foi no contexto mais amplo do processo civilizatório


que Freud abordou o uso intensivo de drogas,
afirmando que o psiquismo humano obedece (de

98
modo inconsciente) a uma lógica peculiar, ao
mesmo tempo refratária e submissa às injunções que
lhe são impostas pela Cultura 16 .

Birman (ao pensar esse contexto mais amplo na


atualidade) afirma que, ao legitimar o evitamento de
todo e qualquer tipo e limiar de dor, a medicina e a
indústria de drogas contribuíram para o incremento
notável de seu consumo e das toxicomanias.
Afirma, ainda, que na relação de ambigüidade
estabelecida pelo mundo ocidental com as drogas,
criou-se um abismo onde as toxicomanias puderam
se inscrever, na medida em que as drogas foram
esvaziadas de seu valor de uso e de troca ao serem
transplantadas do campo simbólico em que
surgiram, deixando aquele que as utiliza à mercê da
pobreza de seu próprio imaginário.

Sendo produzidas pela medicina clínica, pela psiquiatria e pelo


narcotráfico, as toxicomanias são os contrapontos das
depressões e da síndrome do pânico, no sentido de que é pelo
consumo massivo de drogas que o sujeito tenta regular os seus
humores e os efeitos maiores do mal-estar da atualidade. O
sujeito busca, pela magia das drogas, se inscrever na sociedade
do espetáculo e seus imperativos éticos 11 p 249 .

A possibilidade de escolha (inconsciente) de um


objeto de satisfação tóxico, danoso, não é novidade.
Desde 1905, observações de Freud sobre a
sexualidade infantil (confirmadas mais tarde por
achados clínicos), levaram-no a concluir que não há
objetos “naturalmente” adequados à satisfação
humana (diferente do que ocorre com outros
animais) 17 .

99
Ações de cuidado, segundo a psicanálise, devem
visar à implicação do sujeito naquilo que lhe
acontece, levando-o a responsabilizar-se por seus
atos. Isto requer intervenções clínicas que não se
restrinjam ao diagnóstico psicopatológico, ainda que
elaborado com seriedade e competência.

É preciso suportar que o usuário percorra o caminho


que leva à interrogação óbvia, até então evitada (ou
encoberta por saberes pré-fabricados): por que bebo
ou me drogo desse jeito? Não encontrando respostas
prontas há a chance de endereçá-las a alguém
capacitado a engajar-se, com ele, no processo de
buscá-las.

O cuidado clínico em questão deve servir para fazer


com que o usuário questione o valor que atribui à
substância (i.e. o lugar que ela ocupa no modo
singular de satisfação psíquica que consegue obter).

Ao pensar na ênfase psicanalítica quanto ao lugar


que a substância ocupa na vida de cada sujeito, cabe
pensar igualmente no lugar que lhes parece
destinado a ocupar na vida de algumas famílias. A
questão não se resume no fato da expectativa
familiar ser ‘boa’ (o filho tão inteligente quanto o
pai) ou ‘ruim’ (o filho do alcoolista ‘predisposto’ à
dependência).

Seres humanos têm lugares reservados que devem


ocupar, nos primórdios de sua constituição psíquica
– este é o modo de inclusão na sociedade e Cultura
que os precede. À medida que se desenvolvem física
e mentalmente é salutar que se tornem capazes e
livres para fazer suas próprias escolhas (liberdade

100
relativa, exemplificada por Lacan pela opção entre
‘a bolsa ou a vida’ imposta pelo ladrão à sua vítima,
situação em que ao se escolher a bolsa pode-se
perder a vida).

Mas ocupar no núcleo familiar uma posição


inadequada pelo fato de usar álcool e drogas (ainda
que de modo prejudicial ou dependente) é uma
situação que coloca todos os que dela participam
num impasse propício à eclosão (ou incremento) de
distúrbios mentais (como nos exemplos de um
marido e pai desvalorizado pela esposa diante dos
filhos por “ser compulsivo, fraco’’, ou de uma
criança encarregada de ‘‘vigiar’’ a mãe para que não
beba).

Método

O serviço foi investigado na interface das diretrizes


técnicas e políticas propostas para sua realização e
seu cotidiano, tal como experimentado por
familiares de pessoas que usam álcool e drogas de
modo prejudicial ou dependente.

Campo de Pesquisa

O campo de pesquisa foi o CAPS-ad Centra-Rio,


vinculado à Secretaria de Saúde e Defesa Civil
(Sesdec) do Estado do Rio de Janeiro, embora a
maioria dos serviços do tipo CAPS seja municipal.

No CAPS-ad Centra-Rio houve 10172 atendimentos


em 2010 (1463 na recepção diária aos novos
usuários do serviço, 8880 aos cadastrados), num

101
total de 1267 pessoas em acompanhamento (912
homens e 355 mulheres).

Em 2010 a equipe do CAPS-ad Centra-Rio contava


com 41 profissionais, 19 atuando na assistência
(psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras, médicos
clínicos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros) e 12
na gestão/operação da unidade (servidores técnico-
administrativos, nutricionista, farmacêutica, técnica
de laboratório), além de 1 ouvidora vinculada ao
Ministério da Saúde (MS).

População de Estudo

Familiares de pessoas que usam álcool e drogas de


modo prejudicial ou dependente, que participam
regularmente (uma vez por semana) dos
atendimentos em grupo ofertados pela instituição em
pauta. Havia, à época do estudo, dois grupos
semanais, um no horário da manhã e outro à tarde,
ambos em dias úteis da semana; um grupo era
coordenado por uma psicóloga e uma assistente
social, e o segundo grupo, por uma médica clínica e
um psicólogo.

Dez pessoas participaram deste estudo (1 homem e 9


mulheres). A média do período de tempo em que
vinham sendo atendidos na instituição foi de 2 anos
e 1 mês (4 meses–6 anos). Os familiares eram
esposa (1), mães (3 de filhas e 4 de filhos) e pai (1
filho). Uma das mulheres do grupo não quis
especificar o seu vínculo familiar com o paciente
que estaria ou esteve em acompanhamento, nem o
tempo de atendimento na instituição. A média de
idade dos usuários de álcool e drogas cujos

102
familiares participaram do grupo foi de 26,6 anos,
com ampla variação (17–60 anos). O uso em questão
se referia a bebidas alcoólicas (3), substâncias
psicoativas não especificadas (3), cocaína aspirada
(2) e maconha (1). Nenhum dos usuários estava
sendo atendido na instituição em pauta atualmente,
salvo a mais jovem, há oito meses, e o mais velho,
irregularmente.

Caracterização do Estudo

Este é um estudo de caso, ou seja, lida com

uma situação tecnicamente única, [...] baseia-se em várias


fontes de evidências, e [...] beneficia-se do desenvolvimento
prévio de proposições teóricas para conduzir a coleta e a
análise de dados” 18 p 33
.

Coleta de dados

Em julho de 2010 foram realizadas duas rodadas de


grupos focais, cada um deles com dez familiares de
pessoas que usam álcool e drogas de modo
prejudicial ou dependente. Os grupos tiveram
duração aproximada de quarenta minutos, em local
previamente definido, e foi utilizado um roteiro
como norteador das discussões 19 .

As questões que nortearam a primeira rodada foram


as seguintes: se eu perguntasse quem são vocês,
como se apresentariam? ; há quanto tempo seu
parente tem problemas com álcool ou drogas? ; ele
(ela) está em tratamento no CAPS-ad? ; para quê
serve um CAPS-ad, do quê se tratam lá?; o que é
bom e o que é ruim prá vocês no CAPS-ad? A

103
segunda rodada teve como única questão : como
deve ser o funcionamento ideal de um serviço
público especializado nesse tipo de atendimento ?

Os participantes do estudo assinaram um termo de


consentimento livre e esclarecido, antes da
realização dos grupos focais. Nenhuma informação
pessoal ou passível de identificá-los foi mantida nas
gravações e transcrições previamente consentidas
pelos participantes. Sua participação foi voluntária,
sem qualquer incentivo financeiro.

Análise dos dados

A análise seguiu o método de análise de conteúdo 20,


com etapas de pré-análise, descrição analítica e
21
interpretação inferencial , apoiada na técnica de
escuta psicanalítica 22.

Resultados

Dois pontos foram ressaltados, de modo unânime,


pelos participantes do estudo. Primeiro: o modo
como foram recebidos nas primeiras vezes em que
buscaram o CAPS-ad foi determinante para que
retornassem:

J: eles são muito atenciosos, porque eu cheguei aqui muito


depois do horário, eu senti que eles não têm horário;

F : [...] cheguei de manhã às cinco e meia, peguei uma


informação com o guarda, na recepção, à tarde a recepcionista
arrumou uma psicóloga que já tava saindo, ficou lá uma hora
conversando comigo, eu fiquei até envergonhada, tava muito
desesperada, pedi desculpa, ela disse com o maior prazer, elas
são muito atenciosas.

104
Segundo: sua permanência nesta unidade de saúde
parece tão fundamentada no vínculo estabelecido
com pessoas que relatam problemas semelhantes
(outros ‘‘familiares’’, como se apresentam), quanto
na relação terapêutica propriamente dita com os
profissionais que ali trabalham. Alguns relatam já
terem satisfeito sua demanda inicial, mas se sentirem
vinculados ao serviço:

B: há pessoas que já foram beneficiadas com esse serviço,


agora eu estou aqui não porque eu preciso, mas porque eu sinto
que estando aqui eu posso ajudar alguém;

G: [... ] não quero ter alta porque aqui foi tudo prá mim, meu
porto seguro.

Foi surpreendente verificar que todos os


participantes freqüentavam regularmente o CAPS-
ad, a despeito da ausência das pessoas mais
necessitadas (em tese) de atendimento. Os dados
sugerem uma modulação na atitude inicial dos
familiares em relação aos novos serviços
(substitutivos ao hospital psiquiátrico).

Exemplifico com um episódio que me pareceu


significativo, ainda que meio embaraçoso: no dia em
que me apresentei ao grupo, antes da primeira
rodada, uma senhora falou que não queria participar,
porque ‘‘em época de eleição o governo sempre faz
pesquisa, e nada muda’’. Quando especifiquei que o
estudo era parte dos requisitos do doutorado e era
sobre os CAPS-ad, ela disse que “gostava do Centra-
Rio, mas não dos CAPS”. Imediatamente, os dois
profissionais que coordenam o grupo afirmaram que
ali também era um CAPS, para espanto dela e de
outros presentes.

105
Os dados sugerem uma apropriação, por parte destes
familiares, de noções pertinentes aos serviços em
pauta, como o valor da ‘‘funcionalidade’’ enquanto
critério de uso prejudicial ou dependente de álcool
ou drogas (a menção ao estudo ou trabalho regular e
capacidade de estabelecer relações interpessoais foi
feita por alguns). O respeito ao livre arbítrio (e ao
disposto pela Lei Federal 10216 aprovada em 2001)
quanto à possibilidade de internação em hospital
psiquiátrico também parece ter sido assimilado pela
maioria.

Todos, à exceção de uma pessoa, relataram ter


percebido (sem que consigam explicar) ‘‘a mágica’’
(sic) que os manteve em atendimento, provocando
mudanças de comportamento que se refletiram
positivamente nos que ‘‘[...] precisam muito desse
lugar, mas acham que são adultos e têm o controle’’
(sic).

Discussão

Despendeu-se algum tempo com questões cujas


respostas poderiam ter sido obtidas de modo mais
simples e direto (como idade, tempo de utilização do
serviço, etc.), apesar das perguntas iniciais terem
servido para ‘‘quebrar o gelo’’ e estimular a
interação e o debate.

Os grupos focais foram realizados nos dias e


horários habituais do atendimento aos familiares, por
sugestão destes e dos coordenadores dos grupos. A
principal vantagem foi aumentar a possibilidade de

106
comparecimento das pessoas (algumas mencionaram
a dificuldade de deslocamento em dias úteis nestes
horários). Os integrantes do grupo prontamente se
dispuseram a falar, mas seus relatos privilegiaram
histórias pessoais em detrimento das considerações
sobre o serviço (talvez pelo modo habitual em que se
portam em atendimentos desta natureza).

O vínculo estabelecido entre familiares usuários do


serviço e profissionais parece bastante sólido. A
qualidade deste vínculo merece ser considerada a
cada vez que se pensar em modificações vindas ‘‘de
cima para baixo’’ em serviços destinados a pessoas
com alto grau de sofrimento psíquico e problemas
sociais relevantes. Portanto, antes de alterar o modus
operandi dos serviços deve-se verificar a sintonia
das medidas propostas com as demandas expressas
pela sua clientela.

Uma das dificuldades do trabalho clínico destinado a


pessoas que têm uma relação problemática com o
álcool ou drogas é que o pedido de atendimento
geralmente se dá através de um intermediário
(geralmente um familiar), o que aumenta em muito a
carga dramática da demanda. À semelhança de
crianças e psicóticos, estas pessoas são trazidas por
um outro, cuja exaustão, cólera ou descrença quanto
à obtenção de ‘‘resultados’’, embora compreensível,
não convém minimizar.

Este tipo de trabalho também é marcado por uma


urgência que dificulta o manejo clínico, pois
freqüentemente envolve situações-limite - como
episódios recorrentes de overdose (ou super-
dosagem) ou dívidas com o tráfico, demandando

107
intervenções para preservar a vida do usuário de
drogas ou de terceiros. Os relatos dos participantes
do estudo ratificam essas observações, mas sugerem
que tais dificuldades podem ser amenizadas por
serviços amigáveis e receptivos.

O acolhimento de possíveis usuários do serviço


sempre envolve um cálculo clínico: receptividade
nos primeiros contatos, normalmente estabelecidos
com os profissionais responsáveis pela segurança e
secretaria; presteza na informação sem intimidar,
exercer mestria ou tutelar os que buscam o serviço;
aproveitamento do espaço físico da unidade de saúde
(como a sala de espera, onde são verbalizadas as
expectativas quanto ao tratamento, junto às
frustrações por tentativas de adaptação a programas
‘‘terapêuticos’’ pré-fabricados). O cálculo clínico
diz respeito ao processo (lento e difícil) de
estabelecer vínculos de confiança com os que
procuram a instituição, para que seja possível algum
trabalho terapêutico.

Considerações Finais

Os impasses encontrados no trabalho clínico


inquietam, frustram e instigam os que procuram
exercê-lo. Paciência e resistência à frustração são
fundamentais ao exercício da clínica com pessoas
que usam álcool e drogas de modo prejudicial ou
dependente, seja qual for a referência teórica
utilizada. Impasses convidam à invenção em lugar
da rotina, resistem à aplicação mecânica de uma

108
técnica colocada à prova em cada atendimento, na
escuta um a um, caso a caso.

109
Referências bibliográficas

1 Fé na Prevenção: Prevenção do uso de drogas em


instituições religiosas e movimentos afins. Brasília:
Senad pp. 264.

2 Brasil. A Política do Ministério da Saúde para


atenção integral a usuários de álcool e outras drogas.
Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST
e AIDS. Brasília: MS; 2003.

3 _____. Saúde Mental no SUS: os Centros de


Atenção Psicossocial. MS. Secretaria de Atenção à
Saúde. DAPE. Brasília; 2004.

4 ______. Sistema Único de Saúde. Lei 8080/90 e


Lei 8142/90. 1990.

5 Pitta A. Prefácio. Libertando Identidades – da


reabilitação psicossocial à cidadania possível. B
Saraceno, Instituto Franco Basaglia. Rio: Te Corá;
1999.

6 Brasil. Reforma Psiquiátrica e política de Saúde


Mental no Brasil. MS. DAPE. Coordenação Geral de
Saúde Mental. Brasília. 2005.

7 _____. Sistema Único de Saúde. Relatório Final


da III Conferência Nacional de Saúde Mental, 11 a
15 de dezembro de 2001. Brasília: Conselho
Nacional de Saúde. Ministério da Saúde; 2002.

8 Vaitsman J. Prefácio. Família Contemporânea e


Saúde. Significados, práticas e políticas públicas.
Leny Trad organizadora. Rio de Janeiro: Fiocruz;
2010.

110
9 Brasil. Decreto n 6117 de 22 de maio de 2007.
Dispõe sobre as medidas para redução do uso
indevido de álcool e sua associação com a violência
e a criminalidade. Diário Oficial da União 23 de
maio de 2007.

10 Open Society Institute. At what cost? HIV and


Human Rights Consequences of the global ‘war on
drugs’. New York: Open Society Institute; 2009.

11 Birman J. Mal-estar na atualidade – a psicanálise


e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira; 2005.

12 Bateson G. Steps to an Ecology of Mind:


Collected Essays in Anthropology, Psychiatry,
Evolution, and Epistemology. Chicago: University
of Chicago Press; 2003.

13 Cruz HM. A Terapia Familiar: A Segunda Visão.


In: Drogas: uma visão contemporânea. Inem CL,
Acselrad G organizadoras. Rio de Janeiro: Imago;
1993.

14. Schenker M. Valores Familiares e Uso Abusivo


de Drogas. Rio de Janeiro: Fiocruz ; 2008.

15. Sudbrack MF. Construindo redes sociais.


Metodologia de prevenção à drogadição e à
marginalização de adolescentes de baixa renda.
Disponível em
http://www.infocien.org/Interface/Colets/v01n02a06
.pdf. Acesso em 04 mar 2011.

111
16. Freud S. Obras Completas. El Malestar em la
Cultura (1930 [1929]). Buenos Aires: Amorrortu ;
1985.

17. Obras Completas. Tres ensayos de teoria sexual


(1905). Buenos Aires: Amorrortu ; 1985.

18. Yin RK. Estudo de caso: planejamento e


métodos. D Grassi (trad). Porto Alegre: Bookman ;
2005.

19. Miranda, Figueiredo, Ferrer, Onocko-Campos.


Grupos focais e grupos focais narrativos. In:
Campos RO et al. organizadores. Pesquisa
avaliativa em saúde mental. São Paulo: Hucitec ;
2008.

20. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa:


Edições 70; 1995.

21. Triviños ANS. Introdução à pesquisa em


ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação.
São Paulo: Atlas; 1987.

22. Laplanche e Pontalis. Vocabulário da


psicanálise. Santos: Martins Fontes; 1970.

112
Conclusões

Não há modelos prontos sustentando as experiências


do país em busca de um novo modo, menos
excludente, de lidar com os fenômenos da loucura e
da drogadicção. A complexidade social do processo
que fomentou estas experiências agregou saberes
diversos, na confluência dos quais foram forjadas as
diretrizes técnicas e políticas atuais da atenção
psicossocial.

Foi na interseção dos campos da saúde pública com


a saúde mental, propiciada pelo marco conceitual
trazido pela Redução de Danos, que se constituiu a
Atenção Psicossocial em álcool e drogas. Os Centros
de Atenção Psicossocial em álcool e drogas (CAPS-
ad) são a expressão privilegiada desta reordenação
das ações públicas de cuidado às pessoas que usam
tais substâncias de modo prejudicial ou dependente.

Os achados da pesquisa que compôs esta tese, ao


mesmo tempo que ratificam as diretrizes
mencionadas, sugerem a necessidade de
aprofundamento dos fundamentos clínicos que
possam consolidar o referido processo. A
multiplicidade de fatores determinantes das
modalidades de uso e padrões de consumo de
substâncias psicoativas, além da relevância devida às
questões sociais envolvendo a clientela atendida nos
CAPS-ad, pode toldar a importância da dimensão
clínica deste tipo de atenção.

As iniciativas práticas em defesa da vida que


caracterizam o campo da saúde pública têm
contribuído para alargar fronteiras teóricas. Mas

113
cabe resgatar as experiências pioneiras,
caracterizadas no Brasil por um elo então
indissociável entre a clínica, a ação política e a
participação da sociedade civil (inclusive dos
próprios pacientes e seus familiares). É desta
perspectiva que a investigação de formas (mais)
adequadas de avaliação da atenção psicossocial em
álcool e drogas deve ser analisada e prosseguir.

114
Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v. 21, n. 3, p. 247-254, set./dez. 2010.

Práticas Assistenciais no Centro de Atenção Psicos-


social de Álcool, Tabaco, e outras Drogas*

Care Practices in a Psychosocial Care Center for


Alcohol, Tobacco and Other Drugs

Elda de Oliveira1, Márcia Aparecida Ferreira de Oliveira2, Heloísa


Garcia Claro3, Heloisa Barboza Paglione4

OLIVEIRA, E.; OLIVEIRA, M. A. F; CLARO, H. G.; PAGLIONE, H. B. Práticas Assistenciais


no Centro de Atenção Psicossocial de Álcool, Tabaco, e outras Drogas. Rev. Ter. Ocup. Univ. São
Paulo, v. 21, n. 3, p. 247-254, set./dez. 2010.

RESUMO: Objetivos: identificar e analisar as representações que os profissionais de um centro de


atenção psicossocial álcool e outras drogas constroem acerca das práticas assistenciais desenvolvidas
na instituição. Métodos: foram entrevistados nove profissionais de um centro de referência para
álcool, tabaco e outras drogas, da cidade de São Paulo. Os dados foram submetidos à análise de
conteúdo, tendo como suporte o referencial teórico-metodológico a representação social. Resulta-
dos: valendo-se dos temas emergentes foi elaborada a representação central da pesquisa: práticas
assistenciais aos usuários com transtornos decorrentes de uso prejudicial e ou dependência de
álcool e outras drogas. Conclusão: os profissionais do centro de atenção psicossocial para álcool e
outras drogas dispõem de procedimentos para o cuidado com o usuário de álcool e outras drogas,
que variam de acordo com o nível de atenção e necessidades elaborados por meio de projetos te-
rapêuticos. Assim, a assistência deve ser planejada pela equipe interdisciplinar, considerando que
o uso prejudicial do álcool e outras drogas decorrem de fatores multifacetados, os quais devem
orientar e fazer parte destes projetos.

DESCRITORES: Serviços de saúde; Políticas públicas. Assistência integral à saúde; Serviços de


saúde mental/utilização.

* Este estudo é resultado da dissertação de mestrado intitulada “O desafio de assistir pacientes com transtornos decorrentes de uso prejudicial
e ou dependência de álcool e outras drogas” (Oliveira, 2005).
1.
Enfermeira, Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da USP. Membro do Grupo de Estudos
em Álcool e outras Drogas da Escola de Enfermagem da USP email: eoliv_br@hotmail.com
2.
Enfermeira, Livre Docente do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da USP, líder do
Grupo de Estudos em Álcool e outras Drogas da Escola de Enfermagem da USP email: marciaap@usp.br
3.
Enfermeira, Mestre e Doutoranda em Ciências pelo Programa de Pós Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da USP,
membro do Grupo de Estudos em Álcool e outras Drogas da Escola de Enfermagem da USP heloisa.claro@usp.br
4.
Estudante de graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da USP. Membro do Grupo de Estudos em Álcool e outras Drogas
da Escola de Enfermagem da USP email: heloisa.paglione@usp.br
Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 - 05403-000 - São Paulo – SP

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INTRODUÇÃO identificar e analisar as representações que os profissionais

A
de um centro de atenção psicossocial álcool e outras drogas
s transformações dos modelos assistenciais constroem acerca das práticas assistenciais desenvolvidas
que vêm sendo produzidas desde o final da na instituição.
década de 1970, em relação à assistência
aos portadores de transtornos mentais, atingiram seu ápice PERCURSO METODOLÓGICO
em 1980, com a Reforma Psiquiátrica brasileira. Este
movimento inspirou-se na reforma psiquiátrica italiana, Este estudo é de abordagem qualitativa entendida
de negação dos manicômios, e, por meio da Lei nº 180 de como uma tentativa de obter profunda compreensão das
1978, partiu para investimentos em ações de reinserção concepções e definições de uma determinada situação,
social (REPPUBLICA ITALIANA, 1978), tal como as pessoas nos apresentam, e possibilita uma
Na década de 1980, foi criado o Sistema Único de aproximação do universo de significações, motivos,
Saúde (SUS), que tem como finalidade garantir a promoção aspirações, atitudes e crenças dos profissionais aqui
e qualidade de vida para toda população, no intuito de estudados. Essa abordagem parte do pressuposto de que
assegurar acesso a todos a uma assistência universalista, o mundo está permeado de significados e símbolos e que
integral e eqüitativa. No campo da saúde mental, essa a intersubjetividade é um ponto de partida para captar
finalidade foi alcançada somente em 2001, pela aprovação reflexivamente os significados sociais (MINAYO, 1998).
da Lei 10.216/2001. Esta lei redireciona o modelo A coleta de dados foi realizada em um Centro de
assistencial, criando um conjunto de medidas e fundamentos Atenção Psicossocial aos usuários de álcool, tabaco e outras
para sua efetivação e, estabelece que os tratamentos devam drogas – CAPS adII, localizado em São Paulo, em região
ser realizados em serviços comunitários, como estrutura de alto consumo de crack. A instituição oferece assistência
intermediária entre a internação e a vida comunitária nas modalidades intensiva, semi intensiva e não intensiva,
(BRASIL, 2007). Neste mesmo ano, o seminário realizado de acordo com o o projeto terapêutico singular1 elaborado
em Brasília sobre o Atendimento aos Usuários de Álcool e para cada usuário.
Outras Drogas enfocava a discussão sobre a organização da Participaram do estudo nove sujeitos, todos
rede em saúde mental, visando ao aprimoramento constante profissionais de nível superior, que prestam assistência
da assistência, no âmbito do SUS (BRASIL, 2007). direta aos usuários no centro de atenção psicossocial para
Como conseqüência do Seminário e da III Conferência álcool e outras drogas – CAPS ad II. Os dados foram obtidos
Nacional de Saúde Mental, o Ministério da Saúde, em por meio de entrevistas semi-estruturadas, de acordo com
2002, institui, no âmbito do SUS, o Programa Nacional formulário e termo de consentimento livre e esclarecido
de Atenção Comunitária Integrada a Usuários de Álcool e aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem
Outras Drogas, por meio da Portaria GM/MS nº 816, de 30 da Universidade de São Paulo, parecer nº422/2004/CEP-
de abril de 2002 (BRASIL, 2004). EEUSP.
Assim, a Política do Ministério da Saúde para a Os dados foram submetidos à análise de conteúdo,
atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas propõe tendo como suporte o referencial teórico-metodológico
que os novos equipamentos de saúde considerem o caráter a representação social. Por meio da leitura repetida das
multifatorial do consumo de drogas, realizando diálogos entrevistas procuramos depreender os temas; os valores,
com os serviços culturais, sociais e outras instituições de crenças e concepções dos sujeitos; identificações das
saúde, estruturando uma rede de assistência na atenção argumentações presentes no discurso e reconhecimento
comunitária com ênfase na reabilitação e reinserção social da emergência das categorias empíricas (MINAYO,
(BRASIL, 2007). Nesse contexto, os Centros de Atenção 1998). Considerando os temas emergentes foi elaborada a
Psicossocial de Álcool e Outras Drogas – CAPS adII - são representação central da pesquisa, como categoria empírica
considerados equipamentos estratégicos para essas novas denominada: práticas assistenciais aos usuários com
práticas de saúde. transtornos decorrentes de uso prejudicial e ou dependência
Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi de álcool e outras drogas. As categorias empíricas são

1. Projeto Terapêutico Singular entendido, neste estudo, como uma construção coletiva centrado nas reais necessidades, desejos e poten-
cialidades dos sujeitos e na co-responsabilização entre usuários, técnicos e outros atores envolvidos (MARQUES; MÂNGIA, 2009).

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responsáveis por captar os significados e contradições no “Procuramos no acolhimento estar um de cada área.”
aspecto empírico da realidade a ser pesquisada (MINAYO, (D6.9)
1998).
As falas apreendidas das entrevistas, que estão “A primeira vez que ele vai ser acolhido, tem uma equipe
citadas ao longo deste estudo, estão codificadas a partir do para o acolhimento.” (D7.21)
número atribuído pelos pesquisadores ao sujeito e o número Apesar de reconhecerem a importância do
do trecho de seu discurso que foi apreendido, exemplo: D2.3 acolhimento e da equipe multidisciplinar para realizá-lo, os
– Discurso do sujeito 2, 3º trecho do discurso apreendido. profissionais reconhecem que este deve ser realizado durante
todo o período de funcionamento do serviço, informação que
RESULTADOS E DISCUSSÃO pode ser comprovada por meio da literatura, uma vez que o
usuário comumente apresenta ambivalência com relação ao
Práticas assistenciais aos usuários com transtornos tratamento e ao uso de álcool e outras drogas. Se o usuário
decorrentes de uso prejudicial e ou dependência de álcool não é acolhido no momento em que vê o tratamento como
e outras drogas uma possibilidade, é provável que não retorne ao serviço
posteriormente (CASTRO; PASSOS, 2005).
As práticas assistenciais são definidas por meio da Na sequência:
identificação das necessidades dos usuários e implementação
de ações e intervenções por parte dos profissionais do serviço. “A equipe do acolhimento está disponível durante
No CAPS ad II, estas práticas sofrem grandes influências das muito pouco tempo.” (D9.37)
atitudes e participação/integração da equipe como um todo
no projeto terapêutico dos usuários, e devem ultrapassar a “Aqui você tem um sistema, às vezes é ruim por que
rigidez dos papéis, manter a continuidade terapêutica, utilizar você não consegue acolher na hora.” (D2.17)
todas as medidas disponíveis, registrando os dados essenciais Esta dificuldade para realizar o acolhimento durante
sobre as atividades exercidas e possibilitar, também, novas todo o período de funcionamento do serviço e com uma
práticas derivadas das demandas dos indivíduos assistidos. equipe multidisciplinar, pode ser justificada à medida que os
Esse modelo assistencial busca o rompimento do modelo serviços contam com um número reduzido de profissionais
clínico, centrando-se na individualização do sujeito e no seu especializados na área, ou recursos insuficientes para a
modo de viver (SARACENO, 1997). Podemos observar no manutenção de uma equipe exclusiva para exercer esta
discurso dos profissionais abaixo: função.
“Não atendemos o paciente cada um na sua formação, Depois de realizado o acolhimento do usuário, os
mas a gente discute o paciente como um todo. A gente faz profissionais relatam que é realizada uma entrevista com o
um trabalho multidisciplinar... Estamos caminhando para objetivo de coletar a história pregressa e do uso de drogas
uma transdisciplinaridade.”(D1.1) de cada indivíduo. Como podemos verificar abaixo:
Essa assistência requer uma reflexão sobre a forma “Fazemos a entrevista, onde você coleta dados da família,
de organização dos serviços, saberes e práticas de saúde infância, adolescência, uso que faz de drogas, se tem
a fim de transformar sua relação com aqueles que se internação”. (D2.37)
propõem a atender. Os principais atores para essas mudanças
são os técnicos de saúde. Podemos articular este saber “Procura estar avaliando a situação completa.”
evidenciado no discurso do profissional (de que a assistência (D3.15)
deve perpassar todas as especialidades) com a literatura O plano terapêutico é realizado após a entrevista
científica, que aponta a necessidade de uma flexibilização inicial em conjunto com o usuário; um profissional é indicado
dos papéis, respeitando-se a formação profissional de cada como referência, realizando possíveis intervenções no plano
um e a dinâmica do atendimento no serviço aberto, sendo
terapêutico. Essa forma de atendimento fortalece a formação
necessária uma mobilização de competências e saberes
de vínculos, tratando-se de uma ação transformadora da
que devem se unir frente à demanda de cada indivíduo
prática em saúde (BERTONCELLO; FRANCO, 2001),
(SARACENO, 2001).
Percebemos, também, que os profissionais têm porém, a forma de indicação de um profissional de referência
buscado modelos diferentes dos tradicionais para receber nem sempre é o melhor caminho, este deve acontecer com
os usuários os quais são recebidos por um grupo de base na vinculação inicial do usuário e um profissional.
acolhimento, como percebemos a seguir: A seguir:

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“Depois do acolhimento, se faz o plano terapêutico. O do usuário, por trabalhar questões como a ambivalência, por
plano terapêutico é realizado pela equipe.” (D1.32) fornecerem um ambiente onde o usuário sinta-se seguro
A equipe do serviço tem como objetivo trabalhar para falar sobre os seus sentimentos, de forma acolhedora
em um contexto de intersetorialidade no fortalecimento da e empática. É necessário, portanto, avaliar o estágio
rede de atenção integral à saúde, contando, também, com a motivacional do usuário e trabalhar com os recursos acima
participação familiar e da comunidade, porém, esta prática mencionados (PILLON; LUIS, 2004, CASTRO; PASSOS,
não é muito frequente, conforme relatado nos discursos 2005).
abaixo: “Nos grupos terapêuticos de primeira fase o paciente...
Está iniciando; para o trabalho motivacional, grupo
“(Incluir a família no tratamento) É um trabalho que está
de segunda fase que aí você vai trabalhar mesmo as
engatinhando”. (D1.7)
necessidades intrínsecas dos pacientes que são as
ansiedades os medos as angustias.” (D1.24)
“Com a família, nós estamos começando; é uma coisa que
está andando” (D9.4)
“Grupo terapêutico: os que chamam de primeira fase é
O projeto institucional do CAPS adII, neste estudo, quando ele (o paciente) está iniciando o tratamento, e
visa o resgate à cidadania e autonomia dos usuários. Neste o de segunda fase quando ele já está em abstinência.“
sentido, profissionais utilizam de consultas individuais, (D2.19)
grupos, oficinas e educação da população. Existem, também, alguns grupos mais específicos,
No início do tratamento, os usuários são atendidos que foram desenvolvidos para atender demandas de
por diversos profissionais individualmente, sendo obrigatória características especiais, como o grupo terapêutico para
uma consulta com o médico clínico. atendimento exclusivo de mulheres. Este grupo tem como
“Você tem consultas, Consultas com psiquiatra, de objetivo proporcionar um espaço em que as participantes
enfermagem, clínica, consulta com a assistente social.” sintam-se mais confortáveis para falar de questões femininas
(D1.23) específicas.
“Tem o grupo de mulheres, com atividades voltadas pra
“Nós fazemos o possível para que eles façam a consulta
elas, para se sentirem mais confortáveis” (D9.22)
de enfermagem, mas não são todos.” (D9.27)
Nenhum profissional citou grupos de família, o
“Eles participam de consultas com a enfermagem, também que nos chamou atenção, uma vez que a participação do
com o psicólogo.”(D9.21) familiar e sua contribuição para o tratamento são essenciais
“É importante participar de todas (as na assistência ao usuário de álcool e outras drogas. Não
consultas), não só a do clínico.” (D9.23) podemos esquecer, porém, que o serviço atende diversos
A terapia de grupo é uma estratégia muito utilizada usuários em situação de rua, que teoricamente não possuem
neste serviço. Os grupos podem ser abertos (os usuários respaldo familiar (COLVERO et al., 2004).
podem participar a qualquer momento) ou fechados (um As oficinas terapêuticas são estratégias utilizadas
grupo de usuários é formado, e somente estes usuários pelos profissionais para a reabilitação dos usuários,
frequentam o grupo até mudarem de nível assistencial, ou entendidas como atividades grupais para a socialização,
até que o grupo atinja alguns objetivos). expressão e inserção social dos usuários que dela participam.
Podemos verificar a importância das oficinas nos discursos
“Tem atividades grupais que têm desde grupo operativo, abaixo:
o grupo de motivação, o grupo terapêutico propriamente
dito... A gente tem grupos abertos e fechados.” (D4.9) “Tem as oficinas que são as atividades grupais com
atividades dirigidas; que são terapêuticos pela convivência
Os grupos motivacionais são classificados em com o técnico que sabe do projeto terapêutico do paciente,
primeira e segunda fase. Os de primeira fase são os grupos que está interagindo.” (D4.13)
que trabalham com a motivação do usuário e a sua evolução
nos estágios motivacionais. Nos grupos de segunda fase, são “Temos os oficineiros.” (D2.10)
trabalhadas estratégias de manutenção e necessidades mais
específicas de cada usuário, para que este permaneça em “Oficinas são vários tipos; tem trabalhos manuais; agora
tratamento. Intervenções motivacionais são descritas pela está tendo uma de xadrez realizada por um médico. A
literatura como importantes para o processo de reabilitação oficina tem um objetivo terapêutico bem definido; tem

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oficina de capoeira, música.” (D2.25) clínico atual, necessitam de acompanhamento diário. O


atendimento semi-intensivo, por sua vez, é destinado aos
Nas oficinas, os profissionais propõem o
usuários que necessitam de acompanhamento freqüente,
desenvolvimento de atividades que permitem a descoberta
fixado em seu projeto terapêutico, mas não precisam estar
de possibilidades, antes inertes, incentivando práticas
diariamente no serviço e o tratamento não intensivo trata-se
expressivas e buscando o desenvolvimento da subjetividade,
do atendimento que, em função do quadro clínico, pode ter
conforme podemos observar na fala a seguir:
uma freqüência ainda menor (BRASIL, 2002).
“As oficinas terapêuticas são espaços nos quais a gente faz De acordo com os profissionais, o nível de assistência
teatro e na discussão do teatro, na construção das falas, ocorre:
eles vão se percebendo e vão se descobrindo. A gente
estabelece algumas peças, que essas peças são escritas “O paciente ele pode ficar em Três Momentos: Momento
por eles mesmos dentro das suas histórias de vida e das do Intensivo – aonde o paciente vem todos os dias;
suas dificuldades e facilidades.” (D1.9) Momento Semi–intensivo – aonde ele vem dentro de uma
programação já previamente estabelecida por uma equipe
Esses espaços, como as oficinas, estimulam a que o atende... É o tratamento Ambulatorial – aonde seu
participação do usuário, a expressão da criatividade, retorno é mais espaçoso... vem a cada quinze dias, um dia
produtividade e potencialidades, desenvolvendo sua pra consulta, outro dia pra grupo terapêutico”. (D1.7)
auto-estima e autoconfiança, e também a integração no
grupo. Nas oficinas há lugar para diversos saberes, tendo “A parte assistencial tem várias frentes, então, tem a
os profissionais de Saúde Mental a responsabilidade de parte do CAPS que é aquela questão do Intensivo, Semi-
oferecer instrumentos e ações assistenciais visando à intensivo, Não intensivo”. (D4.1)
reabilitação e ressocialização. Durante o atendimento ao usuário no serviço, podem
O serviço precisa estabelecer um projeto de ampliação ocorrer momentos de recaída e consequente intoxicação.
de suas parcerias com outras secretarias e equipamentos. Um Independente do nível de atenção no qual estava o usuário
exemplo de parceria que poderia aumentar as possibilidades antes desta recaída, se constatado intoxicação, ele passa pelo
das oficinas e dos materiais produzidos pelos usuários seria, tratamento de desintoxicação, e após este procedimento, o
por exemplo, com a Secretaria da Cultura, uma vez que usuário passa a fazer parte do nível intensivo. Os usuários
grande parte das oficinas estimula e promove a arte. Cabe são atendidos nos leitos de observação recebendo cuidados
ressaltar que a arte, há muito, se vincula à saúde mental médicos e de enfermagem. Como podemos observar a
como coadjuvante ao tratamento. Por meio de ações como seguir:
estas, seria possível a ampliação dos espaços por onde
circulam os usuários e os técnicos de saúde, favorecendo “Se ele está muito intoxicado vai para a desintoxicação, ai
ele vem todos os dias... Esse Intensivo é uma coisa dele vir
a inclusão, enriquecendo a assistência e expandindo o diariamente, aí então, ele passa pelo médico que está de
horizonte destes indivíduos (COQUEIRO et al., 2010). plantão, tanto clínico como psiquiatra, é dada medicação
Há também a necessidade da aproximação de pra ele. A enfermagem acompanha tudo”. (D2.30)
outras políticas sociais, com o objetivo de trabalhar com o
indivíduo em todos os fatores que envolvem a assistência “Dentro do intensivo, a gente tem a observação que é
em saúde e o uso de álcool e drogas. Devem ser trabalhadas, apenas uma parte do programa intensivo”. (D4.6)
portanto, estratégias de atenção as dimensões social, Notamos, também, que nem todos os profissionais
econômica, política, cultural, ética, psicológica, laboral, concordam com a permanência dos usuários nos leitos
biológica e ambiental. de observação, como podemos verificar no depoimento
Em relação ao tratamento, o projeto institucional abaixo:
deste CAPS adII segue o preconizado pelo Ministério
da Saúde focando o nível de assistência em três níveis: “Os leitos de observação, eu acho inútil porque não têm
equipamento básico de vida ou morte”. (D5.11)
intensivo; semi - intensivo e não intensivo.
O Ministério da Saúde, por meio da Portaria GM/ Caso o usuário possua sintomas da síndrome de
MS nº 336, de 19 de fevereiro de 2002, afirma que os abstinência, e seja avaliado pelos profissionais que ele
dependentes de álcool e outras drogas podem receber precisa de assistência hospitalar, este é encaminhado a um
atendimento em regime de tratamento intensivo, semi- hospital geral.
intensivo e não intensivo. O atendimento intensivo é Os CAPSs ad II deveriam ser capazes de atender a
destinado aos usuários que, em função de seu quadro maior parte da demanda dos usuários, evitando que estes

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procurem hospitais ou outros serviços que não apresentam sem beber, sem usar droga, é que a gente vai pensar em
as diretrizes da atual política de saúde brasileira. Quando alta”. (D8.10)
da necessidade de internação hospitalar, os CAPSs devem Ao rever o projeto terapêutico singular, alguns
acionar um hospital geral de referência, sobertudo, os princípios devem ser considerados, tais como: manter
serviços hospitalares de referência para álcool e outras a continuidade do propósito inicial do projeto; ouvir as
drogas. Este é um dos pontos importantes ao se trabalhar queixas dos usuários; acompanhar seu progresso; e procurar
com o conceito de rede assistencial, em que os diferentes trabalhar suas necessidades externas (trabalhar o contexto,
níveis de atenção devem ser considerados para que o usuário no qual usuário faz parte) (GRIFFITH et al., 1999).
desfrute da integralidade assistencial que prevê o SUS A assistência deve apresentar um continuum,
(DEL-BEN, 1999). eliminando possíveis barreiras para a manutenção e procura
Podemos verificar, nos discursos dos profissionais, dos usuários pelo tratamento. As práticas assistenciais
que esta transferência do usuário para o hospital é de difícil prestadas nos serviços de atenção ao usuário de álcool
acesso: e outras drogas devem ser determinadas pela equipe
multiprofissional, porém, com a participação ativa do
“Às vezes, eles precisam ir da observação pro
usuário, para que ele sinta-se acolhido e para que as suas
hospital e o CAPS não tem transporte, nem o
necessidades sejam centrais no planejamento e evolução do
hospital.” (D7.12)
projeto terapêutico singular (RIBEIRO, 2004; MARTINS
Na sequência, os sujeitos nos apontam que alguns et al., 2010).
usuários que se encontram nos leitos de observação
devido à intoxicação podem ser liberados para participar CONCLUSÕES
de outras atividades. O usuário pode permanecer no leito
até que cessem os sintomas mais importantes, e quando os Na instituição pesquisa, foi possível observar que
profissionais avaliam que este está mais estável, ele pode as práticas assistenciais dos profissionais são cercadas
freqüentar oficinas, grupos, entre outros, como observamos de estratégias com o objetivo de acolher, planejar e
a seguir: realizar intervenções terapêuticas com os usuários. Destas
estratégias, destacam-se, sobretudo as oficinas e grupos
“Isso não quer dizer que ele vai ficar lá a semana
terapêuticos multiprofissionais.
toda. Ele pode ficar no primeiro dia. Amanhã,
Os profissionais verbalizam que o acolhimento ao
ele pode ficar bem, ele passa, faz o processo da
usuário é extremamente importante, o que condiz com as
desintoxicação, vai para as atividades. Sempre
afirmações encontradas na literatura especializada. Porém,
quando ele chega”. (D7.24)
estes sujeitos reconhecem que existem diversos fatores que
O usuário que se encontra no atendimento intensivo dificultam que o acolhimento ocorra da maneira necessária
é avaliado constantemente, e quando a equipe reconhece a para atender as demandas dos usuários.
evolução do indivíduo, pode propor o encaminhamento deste Este estudo permitiu, ainda, visualizar a importância
ao atendimento semi intensivo. Esta avaliação é de grande do projeto terapêutico singular, uma vez que, nos discursos,
importância para a execução do projeto terapêutico singular fica claro que a assistência deve ser planejada pela
de cada usuário, porém, parece não ser tão fácil, uma vez equipe interdisciplinar, e deve variar de acordo com as
que podemos identificar, no discurso dos profissionais certa necessidades/demandas de cada um, resultando num plano
dificuldade para estabelecer qual será a nova frequência e de tratamento aos usuários que possam considerar os níveis
outros critérios para encaixá-lo: diferenciados de atenção estabelecido nas instituições de
“No intensivo, a pessoa vai melhorando aos poucos... cuidado ao usuário de álcool e outras drogas.
Ela... tem um período que a situação dela está muito aguda É importante destacar, também, a necessidade de
e ela está precisando continência médica e de enfermagem uma rede mais articulada para o cuidado destes usuários,
mais... À medida que ela vai melhorando, vai espaçando uma vez que os profissionais verbalizam que, muitas vezes, o
as atividades dela”. (D3.8) usuário precisa de cuidado em hospital geral e este processo
é dificultado pela falta de acesso, pois faltam alguns recursos
“Não intensivo que são mais consultas ambulatoriais, ou
essenciais para uma articulação efetiva entre os serviços,
grupais que faz parte do quadro do projeto terapêutico
do paciente”. (D4.8) como um sistema de referência e contra-referência, ou seja,
esta articulação da rede de atenção integral aos usuários de
“No não intensivo, depois de um ano que o paciente está álcool e outras drogas,tem que ser estabelecida com a rede

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de cuidados em saúde mental, devendo ainda ser implicada população.


a rede de cuidados em DST/AIDS. E, finalmente que o uso de droga não deve ser
Na implementação da rede de atenção integral à saúde considerado um problema ou uma patologia em si mesma,
dos usários de álcool e outras drogas não devemos considerar mas o sintoma, a consequência de uma problemática
somente o âmbito sanitário e sim, a intersetorialidade, uma subjacente que conduz a ele; afirmamos, aqui, a importância
vez que as necessidades dos indivíduos são diversos e o uso de não patologizar o usuário de drogas, de qualquer
destas substâncias é um fenômeno multifacetado. faixa etária, sobretudo, a criança e o adolescente; que os
Assim, a universalidade de acesso, a integralidade fatores que determinam o uso de drogas são múltiplos, de
e o direito à assistência devem ser asseguradas a esses determinação multifatorial e, eminentemente psicossocial
usuários, por meio de redes assistenciais descentralizadas, e que as estratégias de cuidados estejam pautadas na lógica
mais atentas às desigualdades existentes, ajustando de forma de redução de danos, sendo que os serviços tolerem a
equânime e democrática as suas ações às necessidades da coexistência de tratamento e uso.

OLIVEIRA, E.; OLIVEIRA, M. A. F; CLARO, H. G.; PAGLIONE, H. B. Care Practices in a


Psychosocial Care Center for Alcohol, Tobacco and Other Drugs. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo,
v. 21, n. 3, p. 247-254, set./dez. 2010.

ABSTRACT: Objectives: To identify and analyze the representations the professionals from a
psychosocial care center for alcohol and other drugs construct about care practices developed at the
institution. Methods: We interviewed nine professionals from a referral center for alcohol, tobacco
and other drugs, at the city of Sao Paulo. Data were subjected to content analysis, supported by the
theoretical and methodological social representation. Results: by analysing the emerging themes
it were elaborated the central representation of the research: practical assistance to users with
disorders caused by harmful use and alcohol and other drugs dependence. Conclusion: professionals
in psychosocial care center for alcohol and other drugs have procedures for caring for the user of
alcohol and other drugs, which vary with the level of attention and needs of each, and those are
developed through therapeutic projects. Thus, care should be planned by an interdisciplinary team,
considering that the harmful use of alcohol and other drugs are the result of multifaceted factors,
which should guide and be part of these projects.

KEY WORDS: Health services; Public policies; Comprehensive health care; Mental health
services/utilization.

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