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O sentimento que o homem tem por seus pares, após sua morte, é observado nos rituais
fúnebres, no luto, na despedida derradeira, naquele último momento frente a um ente estimado,
assim como no cultivo de sua memória, integridade, imagem e história. Esse valor de respeito,
que transcende a história da pessoa enquanto ser vivo, conserva uma valoração com sua morte.
E estes valores estão aquém do cadáver, considerando a comiseração daqueles que ficam em
vida. Assim, impôs o legislador um dever de resguardar o morto, ou, em outras palavras,
criminalizar as condutas contrárias à preservação do de cujos e do sentimento daqueles que lhe
foram próximos.
Neste âmbito em que se encontram, o sentimento religioso e o respeito aos mortos, tem-
se que são valores ético-sociais que se assemelham2 que, com maestria, Heleno Fragoso
encontra seus antecedentes históricos. O jurista retrata que a intima ligação da religião com o
Estado, desde povos antigos, apontando como exemplo a Republica de Roma, em que o culto
religioso era função do Estado; outra ilustração compilada retrata o iluminismo e a Revolução
Francesa, proclamando liberdade aos cultos e incriminando a perturbação ou ofensa os objetos e
ministros do culto; demonstra o jurista o interesse do governante para o qual “as ofensas à
religião e ao objeto do culto eram crimes contra o Estado3”. Merece ser observado:
Assim, o Título V do Código Penal traz em seu conteúdo os crimes contra o sentimento
religioso e contra o respeito aos mortos. Neste último, o Código Penal brasileiro traz em seu
artigo 212 a seguinte redação: “vilipendiar cadáver ou suas cinzas”, e comina pena de detenção
de um a três anos, além de multa. A proteção deste bem jurídico era desconhecida das
ordenações do Reino e o Código Criminal de 1830, que não disciplinaram o crime de vilipêndio
ao cadáver, sendo que a criminalização das condutas de destruir, subtrair ou ocultar cadáver
somente veio a ocorrer com o surgimento do Código Penal de 1940.
Neste contexto, o vilipendio poderá ocorrer somente após o óbito, ainda que este seja
relacionado com uma conduta antecedente do mesmo agente (por exemplo, homicídio); ou
tenha sobrevindo naturalmente a causa da morte; ou, ainda, provocada por um terceiro. O que
importa é a ação que ocorre após a morte, isto, pois, o vilipendio é fruto de uma ação nova e de
independente motivação do agente (animus) frente aquele que já não tem mais vida. Por isso,
em casos como o homicídio, se após a morte da vítima houver um ato de ultraje contra o
cadáver, haverá crime de vilipêndio, não se tratando somente o ante factum como crime punível.
Merece ser evidenciada uma confusão corriqueira em nossos tribunais com o crime de
destruir cadáver, previsto no artigo 211, o qual tem previsão mais ofensiva por prever reclusão,
enquanto o vilipêndio prevê a detenção. Por este a ideia motriz não é ultrajar, mas normalmente
por fim a evidencias, evitar qualquer elo que possa comunicar o agente com o crime cometido,
tanto assim que se encontra no mesmo artigo que trata dos crimes de ocultação e subtração de
cadáver.
De volta ao vilipêndio. Nestes crimes o sujeito ativo poderá ser qualquer pessoa, não
requerendo nenhuma condição particular, tratando-se de crime comum. Assim, inclusive os
parentes do morto, o ministro religioso e o coveiro9 poderão ser sujeitos ativos deste crime. No
entanto, maior debate existe sobre o sujeito passivo, pois o entendimento de alguns autores é
que seria a coletividade10. Advogamos em conjunto a tese de que o sujeito passivo deste crime
“deve estar intimamente vinculado ao bem jurídico tutelado”, sendo assim, só podem ser os
parentes e amigos, pois nenhuma coletividade, “por mais harmônica, integrada e coesa que seja,
sentirá mais a perda de um de seus membros que os próprios familiares, não sendo, portanto,
justo nem sensato que aquela e não estes sejam sujeito passivo do crime." 11 Porém, merece
ressalva a contextualização de Hungria, para o qual:
Importa, por último, destacar duas observações compiladas por Prado 26. A primeira
referente ao princípio da consumação, quando não há crime de violação de sepultura quando o
dolo (intuito) é de ultrajar o cadáver, sendo aquela ação necessária para alcançar este fim
último. E a segunda observação é a possibilidade de concurso formal, quando as palavras
vilipendiosas possuem conteúdo calunioso contra o morto (art. 212 combinado com art. 138,
§2º, ambos do C.P.). A ação penal é pública incondicionada. Sendo crime de médio potencial
ofensivo, compatível com a suspensão condicional do processo (Lei 9.099/1998, art. 89).
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. v. 3. São Paulo:
Saraiva, 2012. 5 v.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. São Paulo: Bushatsky,
1978.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. v.3. Rio de Janeiro: Impetus, 2012. 4
v.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal: arts. 197 a 249, v. 8. Rio de Janeiro:
Forense, 1981.
MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado: parte especial. v. 2. Rio de Janeiro: Forense;
São Paulo: Método, 2012. 3 v.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial, art. 121 a 234-B do CP.
v. 2. São Paulo: Atlas, 2012. 3 v.
PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal: jurisprudência; conexões lógicas com
vários ramos do direito. 8ª ed. rev. São Paulo: Editora Revista Tribunais,2013.
1
Sócio da Frederico Cattani Advocacia * Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS (Porto Alegre - RS) *
Especialista em Direito Empresarial pela FSG (Caxias do Sul - RS) * Coordenador de curso de Pós-
Graduação em Direito no Centro Universitário Estácio da Bahia * Professor de Pós-Graduação da
Universidade Salvador (UNIFACS) * Orientador e Professor de Direito Empresarial e Processo Penal do
Centro Universitário Estácio da Bahia * Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal -
IBRASPP.
2
FRAGOSO, 1978. p. 275.
3
FRAGOSO, 1978. p. 276.
4
FRAGOSO, 1978. p. 284.
5
BITENCOURT, 2012, p. 470.
6
FRAGOSO, 1978. P. 284.
7
HUNGRIA, 1981, p. 74.
8
PRADO, 2013, p. 672.
9
PRADO, 2013, p. 672.
10
Neste sentido Mirabete “Sujeito passivo da infração é a coletividade destituída de personalidade
jurídica e formada pelas pessoas da família do falecido” (2012, p. 383), assim como Masson: “o sujeito
passivo principal e imediato é a coletividade (crime vago), pois a moralidade média reclama o respeito
aos mortos.” (2012, p. 795).
11
BITENCOURT, 2012, p. 471.
12
HUNGRIA, 1981, p. 75.
13
Para o conceito de cadáver a doutrina tem entendido como o corpo “que ainda conserva a aparência
humana, e não os restos em completa decomposição.” (MIRABETE, 2012, p. 381).
14
“São os resíduos da cremação ou combustão (autorizadas, casuais ou criminosas) a que foi ele
submetido, ou mesmo frutos do decurso do tempo.” (MASSON, 2012, p. 794).
15
MIRABETE, 2012, p. 383.
16
BITENCOURT, 2012, p. 471.
17
FRAGOSO, 1978. P. 289.
18
HUNGRIA, 1981, p. 74.
19
BITENCOURT, 2012, p. 471
20
BITENCOURT, 2012, p. 471.
21
GRECO, 2012, p. 450.
22
HUNGRIA, 1981, p. 75.
23
FRAGOSO, 1978. P. 290.
24
BITENCOURT, 2012, p. 472.
25
GRECO, 2012, p. 450.
26
PRADO, 2013, p. 672/673.