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o amor a solidão
André Comte-Sponville

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, ~Í1trevistas com
PATRICIC VIGHETIl

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i
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]UDITH BROUSTE
CHARLES ]ULIET

Tradução
EDUARDO BRANDÀO

. .". '.'

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.Martins Fontes
I· SõoPaulo 2001
..
Índice

Està obrd loi ptúJ/lcad4orlglllllllrllfllúm franels com o 1(lulo


L'AMOUR U. SOU7VDE por Aibln Michel, Paris.
cÕpyriglrt C WOIU'Albin Mic/ltl, 2000.
Copyriglrt C 2001, UvrtUla Mar/1M Fontes Edilora Lsda.,
540 Paulo, para a plYStflle ediç40.

l' edlçio
JIUIhbtk 2001

Traduçio
EDUARDO BRANDÃO' Preâmbulo........................................................... 7
itmdo crillca
SlpodraRegiflOtk Souza Dooutro lado do desespero :........... 11
'/_ Ballsta dos Santos
ProcIuçio crifica Entrevista com Patrick Vigbetti .
Geroido !tlves
~oCOIitOl
i
Studio J Desenvolvimtfllo Editoria/ Violência e doçura: ·..................................... 57
.Entrevista com juditb Brouste ..

o esforço de viver............................................... 109


Doodoo~deC~
.(a-ra BrIIIIIeIrado
•••1'uIiIIaIcIo (CIP)
u.ro. SP, BiwiBj
Entrevista com Charlesjuliet
Comte-Spoovi11e. ~. 1952-

~
. O aiDor • soIidIo / ADdrE Com.e-Sponville
Vipui. Judidl B_.
; _istas com
OlarIa Ju1iet ; u*t1lÇlo Edu.ardo
Apresentação dos co-autores 133'
Brmdao. - SIo Paulo': ManIns Fonrea. 2001. - (Mesmo que o céu
nIo exiJla)

, 1'111110 oripW: L'amour Ia IOlitude .


• ISBN 85-336-1439-X -'

! I. Am« 2. Ellqevillu 3. FilosOfia 4. Solidlo I. VigbeUi.Patricl:.


n.B_,·Judilh. m. JulleI, OlarIa. IV.TItulo. V.Série,
01-2551 COD.080
fadkeI pai-a cadIoto IIIteoaitlco:
I.J!oIl~v.i-.:CoJe.dDW08O
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e-mail: info@~f!S!ontes;pom.br http://www.mtirtin.ifnntes.coin.br "
L

Preâmbulo

.Este livro foi publicado pela primeira vez em 1992,


pela editora Paroles d'Aube, que acabara de ser criada
e que só viveria alguns anos. Tornara-se impossível en-
contrá-lo. É o que justifica esta nova edição, revista e .
I

aumentada. Ela' permanece fiel à antiga edição, mas a


completa ou esclarece, em certo número de pontos, e
constitui a edição definitiva.
. , O volume se inseria, em seu primeiro editor, numa
coleção inteiramente consagrada a entrevistas: um es-
critor - quase sempre um poeta - respondia às pergun-
tas de alguns de seus leitores ou amigos. Por que aceí-
tei participar dessa aventura? Primeiro por simpatia
pelos que tinham se lançado nela e que me pediam para
acompanhá-los. Depois porque gosto de entrevistas,
desse jogo ao. mesmo tempo imprevisível e estimulante
de perguntas e respostas. Enfim porque era uma opor-
tunidade de escrever de outro modo e para outro pú-
blico. A idéia era fazer um livro que já não fosse exa-
tamente um livro de filosofia, mas antesolivro de um
filósofo, sobre o que a filosofia e a vida lhe haviam ensí-
, "
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7
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! : ~ o":
.,

Do outro lado do desespero •

Entrevista com Patrick Vighetti


"

André Comte-Sponoille, façamos tábua rasa de tudo,


e comecemos por definir: o que é a filosofia? O que é
umfilósofo? Que papel ele deve representar na Cidade
de hoje? i

Aí está um início' bem filosófico! No fundo, será que


filosofar não seria, antes de mais nada, isso mesmo: fa-
zer tábua rasa (nada prova que seja possível): pelo me-
nos tentar se livrar de tudo 9 Que nos atravanca, dos
costúmes, das idéias feitas, etc., em outras palavrgs,
pensar renovadamen(e? Sim, talvez a filosofia seja antes
demais nada esse movimento de interrogação radical,
como que.um começo da razão, ou um recomeço; tal-
vez a filosofia seja o pensamento novo, Q.j2ensametlto
livre, o pensamento libertado e libertador ... Costuma-se
dizer, citando Hegel, que a coruja de Minerva alça vôo
no crepúsculo, e não está errado. Mas ela alça vôo; e
" cada vez é como que uma manhã do espírito. "Paroles
d'aube'", como você diz ... Eu retomaria de muito bom

."o nome da editora significa palavras de alvorada. (N. do T.)


",
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. ,

11
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o AMOR A SOLIDÃO •. DO OUTRO LADO DO DESESPERO

grado a expressão: a filosofia é a alvorada semJ2r~ reco- Costuma-se dizer, em tom de censura, que' há·tari..;;-'"'
meçada do ensamento que não pára de se alçar-=--bri- tas filosofias quantos são os filósofos, o que é apenas
lho pálido da razão! - do fundo de nossos crepúsculos. um pouquinho· exagerado. É bem possível que haja
Aliás, eu poderia perfeitamente observar que a per- também, e pelas mesmas razões, mais ou menos tantãs
gunta "O que é a filosofia?" já é filosófica, assim como a filosofias da matemática quantos são os matemáticos
pergunta "Deve-se filosofar?", o que faz que, como ou, melhor dizendo, quantos são os matemáticos que
dizia Aristóteles (está vendo que nunca se faz comple- refletem sobre o que fazem., A filosofia é ao mesmo
tamente tábua rasa, ou que outros já fizeram antes de t~mpo o pensamento mais livre (não é prisioneira de 1).~-
nós), não há como escapar da filosofia - ou, diria eu, ~m saper) e, por -isso mesmo, mais singular, O fato
só escapamos dela renunciando a pensar. Quem não de haver tantas filosofias quantos filósofos é mais ou
quer fazer filosofia, quando' procura entender por que menos verdadeiro, portanto (só mais ou menos, por-
se recusa a fazê-Ia, já está fazendo ... Não é, de modo que às vezes os filósofos concordam: há escolas, mestres
nenhum, que se trate de filosofar apenas sobre a filo- e discípulos; doutrinas com as quaís este ou aquele
sofia. A pergunta "O que é a filosofia?" é filosófica, mas
poderá seídentífícarj.mas, mesmo que fosse totalmen-
a pergunta "O que é a matemática?" também é. Quando
te, seria um equívoco' culpar a filosofia por isso. O fato.
um matemático se pergunta o que faz, sobre que tipo
de os filósofos não concordarem uns com os óutros,
de objeto trabalha, a que verdade tem acesso, etc., por
longe de ser um motivo para não filosofar, um moti-
é
mais matemático que seja, está formulando uma ques-
vo, e bem forte, para cada um filosofar. Qualquer um
tão que vai além da matemática: estâ fazendo filoso-
fia! Prova 'disso é que, sobre essa questão, ou sobre a pode fazer matemática em seu lugar (já que, por hi-
pótese, encontrará, se encontrar, o mesmo resultado a
resposta que convém dar a ela, nem todos os mate- ..
máticos concordarão: competência à parte, eles con- que vocêpoderia chegar), e é por isso que" salvo por
cordarão quanto à validade desta ou daquela demons- gosto particular ou pela necessidade de ganhar a vida, •
tração, mas não quanto à natureza 'do que fazem. Uns você não tem nenhuma razão para fazer matemática.
serão íntuícíonístas, outros formalistas, alguns se iden- Não há ofício tolo, mas ninguém tem de exercer todos
tificarão corri Platão, outros com Leibniz ou com Kant. .. eles. Desse ponto de vista, a matemática é um ofício:
Em suma, apesar de fazerem, por hipótese, a mesmís- podemos deixar a outros a tarefa de exercê-lo, A filo- e
.,.
sima matemática, não terão - ou não terão necessaria- sofia não. Ou então, se a filosofia também é um ofícío,
mente - a mesma filosofia da matemática: fazem a que tem seus profissionais (os que a ensinam, os que
mesma coisa, mas não têm a mesma concepção dessa 'publicam livros ...), elaé antes de mâis nada uma di_o
"coisa"! mensão constitutiva da existência humana. Você não
., \

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o AMOR A SOLIDÃO \ DO ourao LADO DO DESESPERO

é obrigado,ainda·bem, adarcursos ou escrever li~ros "i~·'·.i "prática discursiua, que tem a vida por objeto, a razão
de filosofia. Mas ninguém pode filosofar em seu lugar: por meio ea felicidade por fim. Parece-me que ela vale
o que .eu poderiaencontrar.e ainda que tal resultado .: ..' para toda Filosofia digna desse nome' - mas quanto a
me satisfizesse totalmente, ou o que Kant ou Hegel pu- essa dignidade, justamente, nem todos os filósofos con-
deram encontrar, por maior que seja a geníalídade deles, cordam ...
nada prova que valha para você! t0rtanto você tem de. Posso acrescentar uma palavra? Como falo da feli-
pôr pessoalmente mãos à obra, e é isso que se chama cidade, conclui-se daí um tanto apressadamente que
filosofar... . i aí estaria, pªra '.mim, o mais importante da filosofia.
Tomemos por- exemplo sua pergunta: "O que é a Nada disso. É possível ser feliz sem filosofar, sem dú-
filosofia?" Por ser uma questão. filosófica, pode ter vá- vida, e, com toda certeza, é possível filosofar sem ser
rias respostas diferentes e, no limite, tantas respostas feliz! A felicidade é o fim, não o caminho. E principal-
diferentes quantas filosofias diferentes existem ...: Não· mente: a felicidade não é a norma. Se uma idéia faz
digo isso para me esquivar, para evitar responder, mas você feliz, o que isso prova? É o que acontece tam-
ao contrário para anunciar que a resposta -que vou lhe bém, pelo menos por ,iert,o tempo, coma maioria das
dar só empenha a mim e que outros filósofosrespon- nossas ilusões ... A felicidade não é a norma: a norma
deriam diferentemente. Eu dízía.âsvezesos
• ;
filósofos
l' < ~:' cb mósotla .como 'de 'tódo ensamehto' , ode ser
concordam ... Pois bem.sobre: essa questão, ·eume sinto ~:ão.~ porque uma idéia me faz feliz que
bem próximo do quediziaEÉiairg, ·há uns vinte etrês . devo' pensá-Ia; 'se assim fosse, a filosofia não passaria
séculos: "A filosofia é uma ;atividade que, ~pordiscur2.9s .fie .uma variante sofisticada do método Coué*. Se te-
e raciocínios. nos proporciona'umavida feliz." Gosto .nho de pensar numa idéia, ainda que ela me mate de
~ de que a filosofÜl seja .Uma ativldadeCe não um tristeza; é unicamente porque ela me pareceverdadei-
~ema de sab~' que e1ase faÇa~por diSêlirsos ~o- ra! Sempre digo que, se um filósofo tem escolha entre
cínios (e não por visões ou s/ogans), enftm que ela ten- ~ma verdade e uma felicidade, o que pode acontecer,
clã à felicidade ... Digo: 'que ela -tenda. Porque~ quanto a . ele só é filósofo se escolhe a verdade. Renunciar à ver-
nos proporciqnãra felicidade; parece-me q~e não so- dade, ou à busca da verdade, seria renunciar à razão e,
mos mais capazes, nós,modemos, da bela confiança dos
com isso, à filosofia. A norma, 'aqui, prevalece sobre o
antigos ... Para meu uso pessoal, e sempre pensando
fim, e deve p!eyalecer: à verdade, para o filósofo, prima
em' Epicuro, forjei a: defíãíçãoseguínte, que lhe propo- .
nho como resposta (masé minha resposta: nada prova
que ela lhe satisfaça) à .sua pergunta:' a filosofia é, uma • Método de auto-sugestão. (N., do T.)
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15
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o AMOR A SOLIDÃO , DO OUTRO LADO DO DESESPERO

, sobre a felicidade. Mais vale uma verdadeira tristeza do também canta. Na sabedoria, esse~ dois amores fazem
que uma falsa alegria. . . um só, um amor feliz, um amor verdadeiro. ---
Por que então não definir a filosofia como busca da
verdade? Primeiro porque essa busca não é, evidente-
mente, específica da filosofia: também se busca a ver- E o filósofo?
dade na história, na física, no jornalismo ou no tribunal ...
Também porque, supondo-se dada a verdade (e, está É alguém que pratica a filosofia, em outras palavras,
claro, ela só é dada parcial e aproximadamente), resta
que se vale da sua razão para refletir sobre a vida, para
saber o que fazer dela: toda a filosofia se joga aí. A ver-
se libertar das suas ilusões (já que a verdade é a nor-
dade é a norma, mas trata-se afinal de viver e, se pos-
I ma) e, se puder, para ser feliz! Você vai me dizer que,
sível, de viver feliz, ou não muito infeliz. A filosofia não
. nesse sentido, todo o mundo é um pouco filósofo ... Por
escapa 'do princípio de prazer; mas o prazer não prova
nada, ou só prova a si mesmo. Daí essa tensão sempre, que não? Às vezes utilizo esta definição ainda mais sim-
que me parece característica da filosofia, entre o dese- i' ples: filosofar é pensar sua vidà e viver seu pensamen-
jo e a razão ou, para dízê-lo de outro modo, entre o ..!2.: Ninguém nunca consegue isso totalmente (ningué~
fírn (a felicidade) e a norma (a verdade). Que as duas é completamente filósofo), mas ninguém também seria
podem se encontrar, é o que ensina a velha palavra sa- totalmente capaz dese dispensar de fazê-Ia. No fundo,
bedoria. O que é a sabedoria, senão uma verdade feliz? os chamados grandes filósofos não são pessoas que
E não verdadeira porque feliz (nesse caso não haveria praticariam •não sei que atividade inaudita 'de que os
verdade nenhuma: bastaria a ilusão), mas, ao contrário, outros seriam incapazes; §ão os. que fizeram melhQ.r
feliiporque verdadeíraEstamos longe disso: a maio- ue os os o ue todos fizeram e devem fazer. Se
ria das' verdades nos' são indiferentes ou nos fazem você refleti sobre o sentido da vida, sobre a felicidade,
.. mal. É por isso -que vemos que MO somos sábios. Mas, ~sobte a mo e, sobre o.amor, sobre a justiça, se vocêse
sea fílosofia é amor sabedoria, como' a etímología
ã.
perguntar se é livre ou determinado, se existe um Deus,
anuncia (é 'verdade que-uma etimologia não prova se podemos ter certeza do que sabemos, etc., você está
nada), é qué ela é amor, ao mesmo tempo, à felicidade fazendo filosofia, tanto quanto (o que não quer dizer
e à verdade; e que tenta, na medida do possível, con- tão bem quanto') Aristóteles, Kant ou Simone Weil. É
ciliá-Ias, que digo, fundir uma na outra ... Você conhe- . um chavão opor, em classe, a filosofia opinião, e eu
ã

cea canção.. "j'ai deuxamours •..". É o que a filosofia fiz isso anos a fio. Depois me dei conta de que havia um
pouco de má-fé. nisso: a filosofia, certamente, é uma
. • Tenho dois amores. (N. do T.) opinião mais trabalhada, mais rigorosa, mais razoável
,\
'." . ~" ...

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o AMOR A SOLIDÃO \ - • DO oumo LADO DO DESESPERO

- mas nem por isso deixa de ser uma opiniâo:No-fun;'; ~r;,."- pouco mais ou um pouco menos, bem ou mal, o lugar
-

do, é o que aprendi com Montaigne, e com isso ele me -do filósofo é, exatamente, o de qualquer um. É onde se
..:: .....

libertou (só o ljJle-artal'Õe5 -de todos os dogmatísmos. juntam o universal e a solidão. .-


"A filó:S~fi~izia ele, "não passa de uma poesia so-
futICada: e isso não era injurioso nem para-os poeta;,
nem para os filósofos. Eu diria também: a filosofia não Como se passa dessa "opinião sofisticada ". que se-
passa de uma opinião sofisticada, mas no sentido não ria a filosofia, à "simplicidade da sabedoria "?
pejorativo da sofisticação, no sentido em que é sofis-
ticado, dizem-nos os dicionários, -o que-é "requintado, Se eu soubesse, faria tempo que teria parado de
complexo, evoluído". Mais vale uni aparelho de som filosofar: a sabedoria me- bastaria! Mas, justamente, o
sofisticado do que um vulgartoca-díscos, mais vale-uma que acredito ter compreendido é que não se trata de um
filosofia do que uma opinião vulgarl O caso é que; no saber; -a sabedoria, tanto quanto a podemos alcançar,
fim das contas, temos a 'simplicidade da música ou da resulta de um trabalho (um pouco no sentido em que
vida - a simplicidade da sabedoria. Você deve conhecer Freud fala do .trabalho .do luto), o qual inclui, por certo, .
esse tipo de gente que prefere seu aparelho de som à um esforço de pensamento mas não poderia se redu-
_música ... Também conheço alguns que preferem a'fílo- zíraele: A vida não é uma idéia. Eu diria mais: todas
sofia à vida, o que me parece um contra-senso da mes- - ;as idéias. qncerto sentido, nos separam da vida. Por-
-ma ordem. A técnica mais sofisticada só tem sentido a .tanto a fllosofía só pode levar à sabedoria se tender
serviço de outra coisa, por exemplo, a serviço da -músi- perpetuamente à sua própria abolição: o caminho é de
ca. Do mesmo modo, a filosofia só tem sentido a ser- pensamentos.rmas aonde ele levá não há mais cami-
viço da vida: trata-se de viver melhonde uma vida ao nho. Não há mais pensamento? Em todo caso, não há
mesmo tempo mais lúcida, mais livre, mais feliz ... Pensar mais pensamento teórico: o real basta, a vida basta, e
melhor, para viver melhor. É o que Epicuro chamava éo que chamo de silêncio. Quando Françoise Dolto
filosofar para valer, em outras palavras, para sua sal- escreve que "toda teoria é sintoma.", sem dúvida não
vação, comq dizia Spinoza, e é essa a única filosofia que está totalmente equivocada. A sabedoria seria, ao con- "
presta. Ninguém filosofa para passar o tempo, nem para trário, a saúde da alma, como dizia Epicuro, e é disso
brincar corri os conceitos: fIlosofa-se pari salvar ~ 'que nenhuma teoria poderia fazer as vezes. Sem sin-
- ~
e a alma.-.....- - ------- --.'-- '.
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tomas, você talvez diga, não há sintomatologia, logo não
Quanto ao lugar do fílósofo na Cidade, já disse o, há medicina ... Tomemos nota. Mas a medicina não é a
bastante: se qualquer um pode e deve ser filósofo, um saúde. A medicina é complexa, sofisticada, árdua ... O
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o AMOR A SOUDÀO ~ DO OUTRO LADO DO DESESPERO

. que' há 'demais simples; o que há de mais fácil que a par?' Nem todos os problemas são suscetíveis de uma
saúde? solução simples. Mas é preciso não se deixar enganar
Dirão que a saúde é primeira, o que a sabedoria não por essa complexidade especulativa. Nas ciências, a
poderia ser. A sabedoria, sem dúvida. Mas a vida, sim, .~ tecnicidade na maioria das vezes é indispensável: por
para todo ser vivo. Ora, a sabedoria outra coisa não é ser necessária ao trabalho da prova. Mas e na filosofia?
que essa simplicidade de viver. Se é preciso filosofar, Na medida em que esta não é uma ciência, nem pode
. é para redescobrír - clarum per obscurtuss - essa sim- ser, nela a tecnicidade não poderia valer como prova,
plicidade. Trata-se, dizia 'eu, de nos livrar de tudo o que. nem a sofisticação constituir sempre um progresso. Os
nos atravanca e que não pára de nos separar do real e sistemas se somam aos sistemas, eis tudo, o que só Jaz
da vida; É para isso que serve a filosofia, da qual,' no uma complexidade a mais ... Kant é um filósofo genial,
fim, 'também temos de· nos livrar ... A doutrina
, .'
uma ê
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um dos mais técnicos e mais rigorosos que há. Mas, se
balsa, dizia Buda. uma vez atravessado o rio, para que. seu rigor fosse verdadeiramente demonstrativo, todos
Ievar.abalsa nas costas? Deixe-a na margem, onde po- nós seríarnoskantíanos, o que não é o caso. Spinoza
derá ser útil à outros; você já não pretisa dela ... Aí está! é igualmente rigoroso, .igualmente técnico, igualmente
O sábio é aquele que já não precisa filosofar: seus . genial; no entanto, suá filosofia se opõe em tudo à de
livros, se escreveu algum; o que é raro, são como bal- Kant... Assim, temos de escolher (o que dá razão a Mon-
sas abandoríadas.na rnargem.. .. ' taigne), e o rigor não basta para tal. Ou antes, não se
É o que não aceita muita gente que passa a vida trata de uma escolha propriamente, mas de uma espé-
ajeitando suabalsínha, na esperança de melhorá-Ia, e cie de reconhecimento (mais que de conhecimento)
muitas vezesconsegue melhorá-Ia mesmo. Mas para . que mais constatamos do que decidimos: lendo Kant,
•quê, senão atravessam O rio ou se - uma vez o rio su- lendo Spinoza, reconhecemos mais ou menos neles o
postamente.àtravessado - transportam a vida toda esse mundo ou o pensamento que ~habitamos, que cremos
fardo nas costas? Quantos morreram esgotados sob o verdadeiros, ou mais verdadeiros do que outros, sem
peso de séusistema? Mais vale a leveza da vida: a le- nunca poder demonstrá-lo inteiramente ... Éaí que o
veza da sab~doria! ..' .'.. .' . rigor alcança seus limites. que são do homem.
; ----
Vejo à minha, volta filósofos que se comprazem em De minha parte" sem renunciar totalmente à tecní-
tornar cada vez mais complexo seu pensamento, ten- cidade ou à complexidade, ainda menos ao rigor, eu
dendo assímparaumasofístícação cada vez 'maior. Per- .Ó:
tenderia antes ao contrário: busco idéias simples, cada
cebo a riqueza de ,tal proceder e, às vezes, sua neces- vez mais simples, tão simples que, no fim das contas,
sidade. Vez por outra, submeto-me a ele: como esca- não teriam mais nem sequer a necessidade de serem
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o AMOR A SOLIDÃO , DO OUTRO LADO DO DESESP~RO

enunciadas. Claro, isso nunca é totalmente possível: o nada a compreender, e é por isso que nenhuma teoria '.
pensamento tem suas dificuldades e suas exigências, poderia substituir o olhar, a simplicidade do olhar.
que são estritas. Mas o pensamento não passa de um Você conhece a bela fórmula de Angelus Silesíus,
meio, e o próprio complexo que ele desvela não pode- esse 'místico alemão (que também era médico ...) do
ria porém mascarar a simplicidade do que está em jogo século :XVU:
nele. O quê? O real. Todo organismo vivo, por exem-
plo, é de uma riqueza inesgotável, de uma complexi- A rosa não tem porquê, florescepor florescer,
. I

dade infinita - mas nem por isso a vida deixa de ser Consigo não se preocupa, .uista ela não quer ser.
simples. Há algo mais complicado do que uma árvore,
quando tentamos compreender seu funcionamento É sem dúvida muito complicada uma rosa. Mas co~
interno? E o que há de mais simples, quando a obser- mo é simples, porém! A botânica é "uma ciência com-
vamos? plexa, como todas as ciências, e essa complexidade
também tc:!n:sua riqueza. Mas, enfim, a rosa está aí:
seria uma pena se a botânica nos impedisse de vê-Ia e
Mas a visão é.uma função muito complexa ... } amá-Ia ta] como ela é - simplesmente.

flaro! Mas a complexidade da função ~o u


<iasimplicidade do ato. Há coisa mais complexa do que Assim, o real séria simples, ou pelo menos o sábio
um olho? Há coisa mais sim· les do que enxergar? ISSo deteria reter apenas a simplicidade dele, deixando de
é a própria vida: a complexidade a serviço a sunpli- lado a diversidade do fenômeno? Mas por que perder
cidade: É também uma lição para o filósofo.'. essa riqueza fenomenal, e em beneficio de que virtude
Quando se trata de compreender Ou explicar, não da simplicidade?
podemos evitar a complexidade. Mas a compreensão .'
não é tudo, nem a finalidade última. Pode ser que não O simples, rio sentido em que o tomo,não é o con-
haja nada a fompreender, no fundo, salvo isto mesmo: trário do diverso! A diversidade dos fenômenos, a ri-
que não pá nada a compreender! "A solução do enigma queza do real, a infinita variedade dos detalhes, toda
é que não há enigma", dizia Wittgenstein. Pode-se ex- essa exuberância do mundo sensível (isto é, do .mun-
plicar a.ãrvorepor suascausas.ipor sua estrutura, pe- dol), é claro que não se trata de nos privarmos delas.
105 mecanismos que. ela aciona, pelas trocas que faz Você nunca vai ver duas rosas idênticas, duas pétalas
com seu meio, ete. Mas compreendê-Ia, não: não há idênticas. Mas esse mundo infinitamente rico e varia-
.\
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22 23
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o AMOR A SOLIDÃO DO oumo LADO DO DESESPERO

do nem por isso deixa de ser simples: não há nada a es- teza - e que chatice! ~ seria a fílosofíalPor' que só amar
conder nem a mostrar, ou antes, não há outra coisa a nas flores .as flores que ainda não existem? Por que
mostrar salvo ele mesmo, nenhuma outra coisa a dizer ' procurar nelas o que elas nãosão (ahlessas metáforas
salvo ele mesmo, e isso faz um grande silêncio que é dos poetas! que tagarelice insípida, quase sernprel), por
o mundo, e a simplicidade do mundo. O real é o que que sempre compará-Ias com outra, coisa? Por que que-
é, simplesmente, sem nenhuma lacuna (Spinoza: "Por rer encerrar (tagarelice dos fílósofosf) o real, a riqueza'
realidade e por perfeição, entendo a mesma coisa"), do real em nossas pobres abstrações? "O objeto", "o
sem nenhum problema, sem nenhum mistério ... Gosto sujeito", você diz - conversa! Não há "objeto", não 'há
muito da fórmula de Woody Allen: "A resposta é sim, "sujeito" ,não há "cor"", "perfume", não há nem rnes- '
mas qual pode ser a pergunta?" Não há pergunta, e é mo "rosa"! Tudo isso não passa .de palavras, nossas
por isso que a resposta é sim: é o próprio mundo. Os , pobres palavras, modestas ou grandiosas. Sei perfeita-
mistérios estão em nós, em nós os problemas e as per- mente' que não podemos prescindir delas, mas o real
guntas. O mundo é simples porque é a única resposta não tem O qúe fazer com elas'. Nominalismo radical: a
às perguntas que ele não se faz: simples como a rosa abstração s6 existe nae pela linguagem. É por isso' que
ou o silêncio. o real é simples, de urna simplicidade que não é, a de
uma idéia (uma idéia simples é uma idéia fácil de com-
Mas numa-rosa, o botânico percebe todas as flores preender, o 'que o real nunca é), mas a dê uma singu-
novas que ele poderá extrair por engenbarta genética; laridade rtua (a idiotice em Clêment Rosset, o aconte-
o poeta D'Annunzio encontra nela a
revelação de uma
;-,.
cimento em Maréel Conchere da identidade consigo.
chama: É quando tentamos reduzir, essa riqueza e essa singu-
"Elas ardem. Até parece que têm em
sua I laridade do diverso a nossos conceitos' que tudo, de
corola um caruão fato, se torna complicado: porque o real excede, em to-
aceso. Elas ardem de verdade':' da pàrte d pouco dele 'que· podemos pensar! 'Mais uma
e o filósofo verá nela o objeto, o outro do sujeito, a di- razão para não nos contentarmos com pensar e para
versidade qUf faz face à sua unidadede sujeito: o que é, ' aprender a ver; isto é, a se entregar, silenciosamente, à
a cor? o perfume? determinismo ou ltberdade de cres- inesgotável simplicidade do devir, '
cer?etc.

Se fosse verdade ese'só houvesse isso, que tristeza , .


'seria a botânica! Quetristeza seria a poesia! Que tris-
, \
1 \,

24 • 25
•.
-'
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o AMOR A SOLIDÃO ~ DO otrrno LADO DO DESESPERO
.-
o que uma rosa simplesmente olhada pode me tra- '. __ o ":medopor rnuíto tempo, por suas conotações derna-
zer, então? ..__ ._" siado religiosas ou "rrústicas",justamente. Mas, a partir
do dia em que li Krishnamurti, eu me acostumei com
Nada, tudo: ela mesma. Não lhe basta? ela. Como dizer de outro modo a presença muda de .
tudo? Enfim, a plenitude, que é o desaparecimento da
falta. Que mais desejar, quando tudo está presente?
Você evoca essa "aceitação do real" em Uma edu- Sim, foi isso que vivi, às vezes, e a cujo respeito,
cação filosófica, relatando sua experiência de certos de fato, podia ser legítimo evocar os místicos. O caso
momentos "místicos" portadores de uma "simplicidade é que, sem pretender ser um, dou importância ao tes-
maravilhosa e plena ", e vividos na abolição do tempo temuriho deles. Hâ algo de essencial que se diz aí, so-
e do discurso ... bre o homem esobre o mundo. Sobre Deus? Depende
dos' místicos, e eu tenho uma queda pelos menos reli-
Eu disse "rrústicos"?Em se tratando de mim, isso me giosos deles. De resto, quando Deus mesmo parou de
surpreende. Creio ter falado, ao contrário, no que me diz faltar, ainda se podei. falar de religião? Se eu me inte-
e
respeito, de momentos de simplicidade e de paz, o ressei tanto pelas .místicasorientais, especialmente bu-
que não é exatamente a mesma coisa... Nesses domí- 5-,~,"~~·".distas; é que encontrávanelas. essa espiritualidade pu-
nios, nunca fui além do que cada um viveu ou pode ;!~"'f~'\>Y;;""· ramente ímanente (sem outro mundo, sem esperança

viver. É verdade porém (e é o que pode ter justificado nem fé) cujo caminho Spinoza, à sua maneira, que é
a palavra) que nesses momentos, de resto raríssimos, conceitual, jã me havia Indicado. O livro V da Ética diz
aconteceu-me encontrar - mas sem êxtases nem visões coisas decisivas sobre esse ponto, que nossos univer-
'- algo do que os místicos descrevem. O quê? O silên- ;,:-·:r..l:'~';'$itários, na maioria das vezes, se apressam aesquecer ...
cio, a plenitude, a eternidade ... A abolição do tempo, :"s'i" ..' As poucas experiências que você evoca, mesmo sim-

como você diz, 'mas no tempo mesmo, na verdade do ples 'e corriqueiras como eram, me ajudaram a levar
tempo: o sempre-presente do real, o sempre-presente. Spinoza a sério, até nessas últimas e incômodas pro-
do verdadeiro, e a interseção deles, que é o mundo, e posições da Ética. "Sentimos eexperimenfamos que
o presente bo mundo. Depois, efetivamente, a aboli- somos eternos ..." Digamos que de fato me ·aconteceu
ção do discurso, do pensamento, do "mental": éo que, experimentá-to um pouco.· Mas que eternidade? Não,
chamo de silêncio,queé-eomo que um vazio interior,se '. claro, a deoutravida ou de outro mundo. A eterni-

você quiser, mas ao lado do qual nossos discursos é eade é agora: não é um futuro que nos é prometicÍi
que soam vazios. Essa palavra - silêncio -: me meteu o presente mesmo é que nos' é oferecido. Poderia citar
. 1\

26 27
..
o AMOR A SOLIDÃO DO OUTRO LADO DO DESESPijRO

de novo Wittgenstein: "Se se entender por eternidade, '..:.' .... '::"no'instante, já que a vida é duração. Bergson, aqui, disse
não uma duração temporal infinita, mas a aternporali- . o essencial, e sem dúvida é impossível, quando vive-
dade, então vive eternamente quem vive no presente." ..+,,,:~,:::rmos,não ser nem um pouco bergsoniano, O todo que
Ora, como se viveria de outro modo, ou emoutro lu- nos é dado dura, e nós com ele, e nós dentro dele:
gar? A eternidade é o lugar .de todos nós, e o único, Mas não é o instante que devemos colher, mas o eterno pre-
nossos discursos nos separam dela, bem corno nossos sente do que dura e passa. É onde os místicos, poetas
desejos, bem como nossas esperariças ... No fi.I!ldo, só 'e filósofos se encontram. "Carpe diem", dizia Horácio,
I

~stam~ separados da eternidade por nós mesmcs. mas esse.dia colhido, ou recolhido, se for vivido de ver-
Daí essa simplicidade, quando o ego se dissolve: não há dade, é a própria eternidade. No fundo é o que Christian
mais que tudo, e pouco importa então o nome ("Deus", . Bobin chama de oitavo dia da semana, que não é um
"Natureza", "Ser"...) que alguns quererãolhe dar. Quan- dia a mais, claro, mas a eternidade de cada um. Aqui,
do não há mais que tudo, para que as palavras, jâque,. agora: a fugidia e perene eternidade dodevir! Sabe-
o tudo não tem nome? O espírito do Tao sopra aqui, e doria do idstante? Se você quiser, mas desse instante
essa grande loucura do Oriente me importa mais do o,'eterno que é a duração. Carpe aeternitatem ...
que nossas pequenas sabedorias ... O silêncio e a. eter- . Quanto à solidão, é evidentemente o quinhão de
nidade andam juntos: .nadaa dizer, nada a explicar, já '.'todos nós: o sábio só está mais próximo da dele por-
que tudo está presente. '. que está mais próximo da verdade. Mas a solidão não
,'.:'
:: é o isolamento: alguns a vivem como ermitões, claro,
. " ,"' ~'
numa gruta ou num deserto, mas outros num mostei-
Sabedoria do instante? Sabedoria do solitário? .• . ~;< ro e outros ainda - os mais numerosos .;...na família
:-,~~x.~, ,

,
'..;;", ....ou 'na multidão ... Ser isolado é não ter contatos, rela-
Uma e outra, e nenhuma das duas. Sabedoria do ~:>ções, amigos, amores -o que, evidentemente, é uma
presente; sem dúvida, e admito que todo presente se- . desgraça. Ser/ só é ser si mesmo, sem recurso, e é a.
ja instantâneo. Mas, enfim, riós duramos, de instante em verdade da existência humana. Como poderíamos ser
instante, e é isso que significa existir.' "O duro desejo de. ! .• outro? Como alguém poderia nos descarregar desse
durar", dizia ~Éluard: poucas frases traduzem tão bem, peso de ser si mesmo? "O homem nasce só, vive só,
parece-me, o verdadeiro gosto pela vida ... Não se tra- morre só", dizia Buda. Isso não quer dizer que a gente
ta de viver, como o -animal segundo Níetzsche.iamar-. " nasce, vive e morre no isolamento! O nascimento, por
rado na "estaca do presente". Nem de se embrutecer no' [..~:<.
definição, supõe uma relação com o outro: a socie~de
no fu tu re dos punks ou dos idiotas. Não se pode viver .•<> está se~pre presente, a intersubjetividade está sempre
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29
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o AMOR A SOLIDÃO , ~" DO OUTRO LADO DO DESESPERO
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presente-enãovãonos deixar. "Mas o que isso altera sempre; não que toda solidão seja amante, longe dis-
na solidão? Do mesmo modo, nos Pensamentos, quan- so, mas p~xque todo amor é solitário. Ninguém pode
do Pascalescreve "Morreremos sós", isso não quer amar em nosso lugar, nem em nós, nem como nós.'
dizer que morreremos isolados.' No século XVII, isso Esse deserto, em torno de si ou do objeto amado, é o
quase nuncaacontecia; no cômodo em que alguém próprio amor.
morria, havia em geral certo número de pessoas: a fa-
mília, o padre, amigos... Mas mania-se só, como" se
morre só "hoje em dia, porque ninguém pode morrer Solidão do sábio, solidão do amor ... Em seus livros,
em nosso lugar. É por isso também que vivemos sós: você também evoca a solidão do pensamento (a propó- •
porque ninguém pode fazê-lo em nosso .lugar. O íso- sito da "filosofia. na primeira pessoa "), a solidão da
lamento, numa vida humana, é a exceção. Asolidão é moral, a solidão da arte ... Não há lugar para uma di- .
~Ningy.~pode viver-em nosso .lugar, .néffi mensão social nisso tudo?
morrer em n ar, nem sofrer ou amar em nosso
lugar. o que chamo de solidão: nada mais é que outro Claro "que há! Sabedoria, pensamento, moral, amor ... "
~ . tudo isso só existe numa sociedade. Não há sabedoria
nome para o esforço de existir. Ninguém virá carregar
seufardo, ninguém; ·Se às vezes podemos" nos "ajudar no estado natural, não há pensarneruo no estado na-
mutuamente (e é claro que podemos!),· isso supõe o tural, não há moral, não há amor, não há arte no esta-
esforço solitário de cada. um e 'não-poderia -: salvo ilu- " do natural! Logo tudo é social, e daí tudo é político,
sões - substituí-lo, Assim, a solidão não é a rejeição do como dizíamos em 1968. Tínhamos razão: era verdade,
outro,' ao contrário: aceitar o outro é aceítâ-lo como continua sendo. Tudo é social, mas a sociedade não é
outro (e não como um apêndice, um instrumento ou tudo. Todos sabem que a sociedade não é o contrário
um objeto de si!),e é nisso que 6 amor, em sua.verda- da solidão," nem a solidão o contrário da sociedade.
de, é solidão. Rilke encontrou as palavras necessárias Quase sempre estamos ao mesmo tempo sós e juntos.
para dizer esse amor de que necessitamos, e -deque so- Vejam nossas cidades, nossos conjuntos habitacionais,
mos tão raraptente capazes: "Duas .solídões que se pro- nossos loteamentos ... A sociedade moderna reúne os
tegem, quese completam, que se limitam e que se in- homens mais do que qualquer outra o fez, ou pelo
clinam uma diante da outra ..." Essa beleza soaverda- menos ela os aproxima, os agrupa, mas a solidão fica
deira. O" amor não é o~coritráriodasQljdãQ' é "3.solidão " ainda mais flagrante com isso: a gente se sente muito
compartilhada, habitada, iluminada e, às v;Zes,en- mais só no. anonimato das grandescidades do que na
sombrecída=- pela solidão do outro. O amor é solidão, pracinhado seu vilarejo ... Pessoalmente, gosto disso;
, ·i "V "

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....•.•...
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o AtViOR A SOLIDÃO , .. DO OUTRO LADO DO DESESPERO

a-solídão me angustia menos do que a estreiteza e, se e dos santos: solidão de Jean Moulin, solidão do abade
gosto do campo, desconfio dos vilarejos. Mais solidão. Pierre. ,,' Isso também se aplíca à arte ou à filosofia.
também é mais liberdade, possibilidades, imprevisto: .. Montaigne é evidentemente um solitário. O que não o
Numa grande cidade, ninguém conhece você, e isso diz impediu de assumir suas responsabilidades sociais (foi
a verdade da sociedade e do mundo: a indiferença, a prefeito de Bordeaux) e de saber desfrutar, melhor do
justaposição dos egoísmos, o acaso dos encontros, o que ninguém, os encantos e os prazeres da convivên-
milagre, às vezes, dos amores ... Mas não é o amor que cia. Quantos fogem da solidão, ao contrário, e são in-
faz funcionar as sociedades: é o dinheíro, claro, o in- :-1;' capazes de um verdadeiro encontro? Quem não saqe
teresse, as relações de força e de poder, o egoísmo, o viver consigo, como saberia viver com outrem? Quem
narcisismo ... É essa a verdade da vida social. É o gran- não sabe morar com sua própria solidão, como sabe-
de animal de PIarão, dirigido pelo Leutatã de Hobbes: ria atravessar a dos outros?
o medo a serviço do interesse, a força a serviço dos Narciso tem horror da solidão, e isso é fácil de
egoísmos! Assim e, e seria inútil chocar-se com isso. compreender:' a solidão o deixa face a face com o seu
'Seria até desonesto: dessa sociedade, nós também nada, em que ele se afoga. O· sábio, ao co~ío, fe~
aproveitamos. Quantos egoísmos bem ajustados foram desse nada seu reino,ónde ele se perde lva: nào
necessários para eu receber meu salário, todos os me- j \,.' áego, não há egoísmo! O que resta? Q mundo, Ó a~
ses, e poder gastá-lo tranqüilamente! O ajuste dos egoís-
mos; tudo está àí: é o grande feito da política. Não ve-
nhamos com conversas fiadas. Se as pessoas trabalham,
-
llido. Quanto ãilos;'1'ãZeíiídS o que podemos, entre es-
ses dois extremos: mais ou menos narcisistas, mais ou
menos sábios, conforme os momentos e as circuns-
se pagam impostos, se respeitam mais ou menos a lei, . tâncias da vida. Mas todos sabem muitb bem para que
é por egoísmo, sempre, e sem dúvida unicamente por lado nos empurra a sociedade, principalmente hoje em
egoísmo, na maioria das vezes. O egoísmo e a sociali- dia (não é por acaso que a chamamos de sociedade de
dade andam juntos: é Narciso no Clube Méditerranée. consurnol), e a que nos chama a solidão ...
Inversamente, toda coragem verdadeira, todo amor ver-
dadeiro, mesmo sea serviço da sociedade, supõe essa Solidão verdadeira, ilusão da vida social. Ou ain-
. relação lúcida consigo, que é o contrário do narcisis- da: valores indiuiduais, convenções comuns No en-
mo (o qual-não é uma relação consigo, mas com sua tanto, que lugar você concede ao valor: o respeito a
imagem, pela mediação-do olhar do outro) e que cha - . outrem, que me parece escapar dessa radical distin-
mo de solidão ... O egoísmo e a socialidade andam jun- ção, já que ela empenha tanto o indivíduo - a necessi- •
tos; juntas, a solidão e a generosidade. Solidão dos heróis dade de um reconhecimento social - como o cidadão
,
.\'

32 33
..
o AMOR A SOLIDÃO \ .. DO OUTRO LADO DO DESESPERO

- a garantia social (pelo menos na democracia) da sua menta? Isso não impede de se amar, nem de estar jun-
liberdade? Em outras palavras, não sou livre somente tos, mas dissuade de sonhar um amor que poria fim
se respeitar a liberdade de outrem? (por que milagre?) à separação ou à solidão. É preciso
ser dois para se amar, pelo menos dois, e o amor não
Somos livres alguma vez? Deixo de lado a liberda- seria capaz ·de abolir essa pluralidade que ele supõe.
de política, decisiva é claro, que a democracia permite Isso vale em todos os domínios da existência. A solidão
mais ou menos. Mas há espíritos Iívres nos regimes e a socialidade não são dois mundos diferentes mas
i • ,

totalitários; e espíritos submissos ou alienados nas de- duas relações diferentes com o mundo, ambas neces-
mocracias... Isso quer dizer que a liberdade interior ~árias, aliás, e constituindo juntas esses sujeitos que
nunca é recebida, pura.esimplesmente, da sociedade. somos, ou que acreditamos ser. A solidão, mais uma
Tampouco é inata, nem total. O livre-arbítrio sempre vez, não está à margem da sociedade mas nela. Nem
me pareceu uma ficção impensável: uma vontade in- por isso é menos solidão: toda vida é social,' mas não
determinada, que poderia querer qualquer coisa, não são as sociedades que vivem ... Quanto à idéia de que
seria mais uma vontade, ou não quereria nada! No má- só sou livre se respeitava liberdade alheia, ela me pa-
ximo, podemos nos libertar um pouco das determina- rece um chavão que éorresponde tanto ao que cada
ções, ou de algumas delas, que pesam sobre nós ... Tra- um desejaria, que desconfio um pouco dele. Se devemos
balho infinito: seria preciso libertar-sede si, o que não -ª
respeitar liberdade dos outros, não é para sermos li-
é possível... vres, mas para que eles o sejam, ou possam sê-lo.
Quanto ao respeito a outrem, claro que se trata
ê

de um valor social, como todos os valores. Mas ele só


é aplicado ou vivido - como todos os valores! - pelos Mas seu caráter de reciprocidade faz do respeito
indivíduos. Não vejo nisso nada que faça dele um valor ao outro um valor que cria oindioiduo. eu só sou dian-
diferente dos outros ... Não se confunda sobre o que te do olhar do outro, que também vejo como sujeito ...
I
entendo por solidão: a relação com outrem faz eviden-
temente pafe dela, todos os amantes sabem disso, e Não, já que o indivíduo existe mesmo se eu não o
cada um de nós. O que você vive com seu melhor respeito! O corpo basta: um indivíduo é, antes de mais
amigo, você vive sozinho: ele vive outra coisa. ,E dois nada, aquilo que vive, que sofre, que vai morrer ... Os
orgasmos, mesmo se simultâneos, nem por isso deixam' bebês assassinados nos campos de concentração na-
de ser dois .. Como viver o que o outro viveu? Como zistas não eram indivíduos? O respeito s6 é dado em.
sentir o que ele sente, experimentar o que ele experi- acréscimo, como .0 amor, como a felicidade. Mas exis-
,\

34 35
a. .,
o AMOR A SOLIDÃO ,
• . DO otrrno LADO DO DESESPERO

te antes este corpo vivo e mortal: o respeito lhe é de- que é-humano não ênatural-Ou-maís exatamente,' ê

vido, ele não o cria. preciso distihguir a humanidade biológica (a filiação se-
gundo a carne: a natureza do homem) da humanidade
histórica (a filiação segundo o espírito: a cultura). A'pri-
Um homem não passa de um corpo?

meira, que a hereditariedade transmite, basta para me
dar direitos; mas somen~e a segunda, que a educação .
Em todo caso, é antes de mais nada um corpo! Ma- transmite, me dá deveres - a começar pelo de respei-
terialismo estrito, aqui, e de salvaguarda. O que é um . .tar a primeira! Ou, mais exatamente ainda, é somente
homem? Um animal que pensa? que fala? que ri? Nada O-.do.ponto-.devista da segunda que a factualídadeda pri- $

disso tudo, porque nesse caso os débeis mentais pro- meira (a pertínêncía biológica à espécie) se torná fonte
fundos não seriam homens e nós não teríamos para de direito. A humanidade é ao mesmo tempo um fato
com eles nenhum dever específico: poderíamos nos li- biológico e um fato cultural: essa encruzilhada, entre na-
vrar deles, ou colocá-Ios em jardins zoológicos ... Contra tureza e culrura.'é o próprio homem. O que é primeiro?
esse horror, a espécie impõe sua lei, que é de fíliação: A natureza, evidentemente. Mas só a cultura impõe
homem, porque filho de homem! Isso não basta, é claro, respeítá-la.. .;
para ter os deveres de Um homem (SÓ existe moral
pela cultura: só existe moral para o espírito), mas sim
para ter seus direitos. Muito se falou, nos anos 60, de o filósofo, o militante, o cidadão, deve participar
que não havia natureza humana. Se fosse tão simples da vida política apenas paraoer triunfar seus próprios
assim, por que se incomodar tanto, hoje, com as ma- valores? As reflexõese debates, sobre a bioética, por
nipulações genéticas? Na verdade, lodos sabem muito exemplo, não ilustrariàm a necessidade de um pensa-
bem que existe uma natureza do homem, e que essa mento social, como a realidade de uma vida - de uma
natureza é seu corpo: a natureza em mim é tudo o
que recebi '(e tudo o que posso transmitir) por heredi-
tariedade; ora, sabe-se cada vez mais a que ponto ela
.
sobrevivência - da sociedade?

Os valores nunca triunfam: o combate está sem-


.

é considerâvel.; Admito porém que isso não constitui, pre por recomeçar ... Quanto aos debates .sobre a bioé-
propriamente falando, uma natureza humana: não que tíca, eles decorrem principalmente da necessidade de
não haja nada de natural-nohomem, mas porque essa legislar, e dos embaraços bem compreensíveis do legís-
natureza faz de nós apenas uma espécie particular de v lador. Trata-se de problemas novos'díãcets.cuias im-
animais. O que é natural nq homem não é humano; o plicações são consideráveis. Quem negaria que é neces-
. \

,y
....

36 37 Ót.
~
o AMOR A SOUDÃO ••. DO oumo IADO DO DESESPERO

sário díscuti-los? Se é isso que você chama de "pensa- _. -:r: -craciassó escapam dopopulismo por esse esforço em
mento social", não vou contestar sua existência - tanto !7~~,. . cada um de pensar. A democracia está pois a cargo dos
mais que participo muito desse gênero de debates! Mas, "",i"!,r··'~'ddadãos.Vamos ao extremo do paradoxo: o povo
como nunca se viu uma sociedade pensar (só os indi- . (como soberano) é confiado a todos nós (como cida-
víduos é que pensam), não é a palavra que eu utilizarei: dãos), o povo só existe sob a salvaguarda dos indiví-
prefiro falar de democracia. Que ela hão exista sem de- '.duos! Se o abandonamos a ele mesmo, não é mais um
bates, é uma evidência. Mas de que adiantariam os · povo: é uma turba, uma massa, 'uma multidão, de qae
debates sem. a reflexão' dos cidadãos? Irei mais longe: podemos esperaro pior. O povo, por exemplo, criou
se houvesse um "pensamento social", como vocêdiz, ·tribunais, parlamentos.vescrutíníos.; A turba só sabe
a sociologia ou as pesquisas de opinião poderiam fa- linchar e .ãclamatPortanto é perpetuamente necessá-
zer as vezes. de democracia. Mas, nesse caso, seria o . :.:,' rio defender o povo (e defender os indivíduos) contra
fim da república: só haveria a ditadura do grande an~- '., a turba= especialmente, hoje; contra essaturba midiâ-
mal, como diz Platão, em outras palavras, da multidão, ·tica chamadaopinião pública: É o grande animal es-
do simples somatório dos egoísmos individuais ou cor- carrapachado na frente da televisão, sempre pronto. a
porativos ... A república é outra coisa: não se trata 'de adi- ,":;'.;/ dar razão aos demagogos QU aos populistas ... Há coisa
cionar opiniões, mas de forjar uma vontade! ··'''~}:\r~ais.tola do-que .espantos de íboperO sufrágio uni-
:\.yersaI ébem diferente: .Não um espetáculo, mas um
r'··ai~. Não u111público, mas cidadãos. Portantoé preci-
A vontade ... do povo? ."i ..... ,·,s:ofazer política, só dá para fazê-Ia em muitos: ínfor-
é

;,:~~,,,'.mar-se, reflétir,.discutir,organizar-se, agir. Não haverá


Sim. Em certo sentido, isso não passa de uma abstra- ::~~~;\',liberdade .de outro modo, hão haverá justiça de outro
ção, já que, mais uma vez, só os indivíduos é que po- , ":'!;':,':'. modo. É esse o. sentido mais elevado da democracia,
dem querer o que quer que seja. Mas a democracia, e a que, parece-me, 'a idéia de república exprime, Como
pelo sufrágio universal, realiza essa abstração. Rousseau você vê, a solidão não é uma torre de marfim ...
é insuperáyelaqui. .o povo só é ~vo na medida ep
que é soberano: ele se dá seu ser irmando sua von-
tade. Fõra diss6,''nãoTíá mais que a multidão,. e nada Perda de fé, renúncia ao idealcomunista: deses-
~é ~nos democrátíce-do que uma multidão. O gran- . perança, você diz. .Mas essa busca da sabedoria e, so-
de animal prefere os demagogos; é por isso que os bretudo, da Verdade, com V maiúsculo, não será mais
cidadãos devem resistir ao grande animal. As demo- um ideal, o "Deus"que faltaria ao materialista?
\
"
38 39 '

,,'
..
o AMOR A SOLIDÃO , •• DO OUTRO LADO DO DESESPERO

Você é que põe essa rnaíúscula.mão eu! Nuncapo-: ,', 'zes, é inevMvel que nunca sejamos." Não quero me
nho, aliás, em nenhuma palavra, salvo quando o uso: .demorar nesse ponto: já consagrei a ele tantas pági-
assim impõe absolutamente, como em "Deus", justa~"< nas ... Vou dizer simplesmente o seguinte: não temos
mente, ou em "Estado"... ' felicidade, ao contrário, a não ser nesses momentos
Mas, primeiro, uma observação sobre o desespero. - .,de graça em que não esperamos nada, não temos feli-
De fato, aconteceu o que você evoca: a perda da cidade, a não ser à proporção do desespero que somos
fé religiosa, o fracasso 'patente da utopia comunista e capazes de suportar! Sim: porque a felicidade conti-
das nossas tentativas para renová-Ia de dentro ... Mas nua sendo nosso fim, é claro, e isso quer dizer tam-
isso é a minha história: muitos viveram outra coisa, per- bém que só a alcançaremos se renunciarmos a ela. Eu
correram outros 'caminhos, tiveram de enfrentàr, por , dizia isso desde o começo, quero dizer desde a intro-
conseguinte, outras decepções., O importante é não • dução do Tratado do desespero e da beatitude: a sal-
se mentir sobre, a vida, não desprezar suas lições. Ora, -vação será inesperada ou não será. Porque a vida é
há lição mais clara que esta: a de que toda esperançâ decepcionante, sempre, e porque só se pode escapar
nunca se realiza? Muitas vezes por não ser satisfeita, e da decepção libertandü:se da esperança. Porque nossos
todos conhecem o sabor disso, que é de frustração. Mas sonhos nos separam lia felicidade no próprio movi-
também acontece, e não é a coisa . mais.- fácil de se .viver mento que a persegue. Porque nossos desejos não têm
'. .:.'. " .." .,
que uma esperança não se realiza por ter sido saiisfei- .condição de ser satisfeitos, ou não têm condição, quan-
ta, e temos então de constatar que sua satisfação não - do o são, de nos satisfazer. Porque somente um Deus
consegue nos dar a felicidade que dela esperávamos ... ._ poderia- nos salvar, de fato, e porque não há Deus, e
Bernard Shaw, acho, é que dizia que há duascatástro- .não há salvação. Porque morremos. Porque sofremos.
fes na existência: a.primeira, quando nossos desejos não' Porque 'tetnosmedo por n~ssos filhos. Porque não
são satisfeitos; a segunda; quando são: .. Oscilamos, de 'sabemos amar semtrerrier ... E a grande lição de Buda:
ordinário, entre as duas, e é isso que 'se chama espe- toda vida é dor, e dela só podemos nos liberi:ar, como
rança. "Como eu seria feliz se ..." E ora o se não se rea- ele também ensina, se primeiro renunciarmos a no~-
liza, e nos sentimos infelizes, ora se realiza, e nem por sas esperanças.
isso somos felizes. Daí a grande fórmula de Woody
Allen: "Como eu seria feliz se fosse feliz!" Portanto ele
nunca o ~' nem pode ser, já que está' sempre esperan- No entanto ~cê fala de um "gaio desespero"...
do ser ... E a vida de nós-todos. "Assim, nós nunca vive-
mos", dizia Pascal, "nós esperamos viver ...;' E acrescen- Claro, jâ que toda tristeza é decepção! É também a
tava: "De modo que, dispondo-nos sempre a se; feli- lição de Buda, bem' como de. Epicuro, bem como de
,\'

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o AMOR 'A SOU DÃO \ DO OUTRO LADO DO DESESPERO

Spínoza, bem-como,de todos os sábios, e é uma lição te: só existem sábios, e todos eles são diferentes, e ne- •
de alegria. Deixemos de lado tudo O' que os separa, que nhum deles, é claro, crê na-sabedoria ...
é considerável e vão. Deixemos de lado, inclúsíve, to- Voltando pois à sua pergunta, a sabedoria não é
/ dos eles. E vamos ao essencial. É o seguinte: a espe- uma nova religião, ou só a alcançamos se deixamos
rança da felicidade nos separa desta ("como eu seria de acreditar nela! "
feliz se ...") e nos condena à decepção, ao amargor, ao
ressentimento, .no que concerneao passado, bem como
à angústia, no que conceme ao futuro. Inversamente, E a verdade?
quem renunciasse porcompleto.aser.felíz por isso mes-
mo o seria; e só ele sem dúvida. o que mais é a sabe- Aí é diferente. Não se trata de acreditar: trata-se de
doria? O que mais é a santidade? O desespero e a bea- conhecer, Ouse há crença, como mostra Hume, é num
titude andam juntos, ou antes, esta está no extremo sentido bem diferente. Não é, uma crença religiosa, já
daquele: trata-se de passar para o outro lado do deses- que a verdade não comanda, não julga, pois ela nada
pero, o que supõe, primeiro, aceitar enfrentá-Io, habí- promete, 'nada anuncia, pois ela é ,sem amor e sem
tâ-lo, perder-se nele... , perdão - pois a verdade não é -Deus! Pascal, como
Então, você dirá: '''é um novo ideal, uma nova es- tantas vezes, percebeu' formidavelmente o essencial:
perança ..." Sim, sem dúvida, e, enquanto não é mais que "A verdade sem a caridade não é Deus", dizia ele. A
isso, ainda é um sonho que nos separa da vida verda- questão é, portanto, saber se a verdade e a caridade an-
deira. Portantoé preciso renunciar também à sabedoria. dam juntas, como a religião ensina; em outras pala-
Faz muitos anos, quando' eu "ainda tinha 'pretensões vras, se a verdade nos 'ama, ou se devemos arriá-Ia
literárias, lembro-me de ter escrito uma novela curtís- sem correspondêncía, com um amor gratuito, com um
sima, a mais curta que já escrevi; e que acho ter sido amor desinteressado, com um puro, com um puríssimo
também a última. Ela cabia numa frase e.devía cha- e solitário amor: se devemos amá-Ia em pura perda e
mar-se O sábio. Ei-la: "Bem no fim da sua.vida..o sábio desesperadamente!
compreendeu que a sabedoria també~ não tinha im- " Quanto a renunciar à verdade mesma, quem qui-
portância.'~ Ainda era literatura. Que a sabedoria não , ser que tente. De minha parte, nunca consegui! En-
tem importância, a maioria dos sábíos compreende bem contrei verdades' demais; várias delas desagradáveis,
antes disso, e só são-sãbíos.sob essa condição. Â sabe- , que me era impossível rejeitar ou até, como diz Des-
doria não passa de um sonhode filósofo, doqual a filo- cartes,. revocar em dúvida ... Sei que essa impossibili-
sofia também deve nos libertar. A sabedoria não exis- dade, a rigor, não prova nada, e que os céticos têm
. , \".
'

42 43

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o AMOR A SOLIDÃO \ .. DO OUTRO LADO DO DESESPERO

razão nesse ponto. Sim: Montaigne e Hume, pelo me- Verdade com V 'maiúsculo, como você diria), mas ne-
nos sobre o estatuto da filosofia, vêem mais claro que nhum físico duvida de que ela seja mais verdadeira que
Spinoza. O more geometrico não passa de um engodo. a de Newton ou, a fortiori, de Ptolomeu ...
A filosofia não é uma ciência, nem pode ser. E, como Aliás, cometo um erro ao só dar exemplos cientí-
a proposição "as ciências são verdadeiras" ou "deter- ficos. A verdade está em toda parte, tanto nas experiên-
minada ciência é verdadeira" não é uma proposição cias mais banais COmo nas mais trágicas. Tomemos,
científica (são evidentemente proposições filosóficas, por exemplo, o luto. Quem perdeu um ser querido não
pelo menos na medida em que um filósofo as assume), pode duvidar nem de que esse ser tenha vivido, nem
não há verdade científica: só há conhecimentos cientí- de que tenha morrido ... O que pode a sofística contra
ficos, sempre relativos, sempre aproximados, sempre o caixão de uma criança?
provisórios, sempre de algum modo duvidosos ou sujei-
tos a caução ... Sim. Mas, enfim, também constato que
o pensamento só é possível com a exigência de verda- E o que pode a filosofia?
de, e que, ainda que essa mesma verdade nunca seja
dada absolutamente, o que concedo de bom grado, tam- é
Submeter-se à verdade, o que o contrário da 50-
fística! Isso não altera em nada a morte, claro, não al-
bém não podemos (sem cair na sofística) dispensá-Ia
tera em nada o horror. Mas a vidacóntinua, e a verdade;
nem fazer como se ela não existisse.: Entre as duas
a filosofia também continua, portanto ... Ora, ela acaba
proposições seguintes: "A Terra gira ,em torno do Sol"
alterarido alguma coisa ,em nós e, no fundo, isso coin-
e "o Sol gira em torrio da Terra", como duvidar que uma
cide com o que Preud chamava de trabalho do luto:
seja mais verdadeira que a outra? Muitas vezes se evoca trata-se, pura e simplesmente, de aceitar a verdade. É ,
a relatividade de Einsreín para dar a entender que toda também o princípio do tratamento analítico, sua única
verdade é relativa, no sentido em que a relatividade se regra ("a verdade, e ainda a verdade", dizia Freud), seu
oporia à objetividade. É um evidente contra-senso: a . único fundamento. Mais uma citação de Preud, se você "
teoria de Elnsteín não é mais relativa, nesse sentido, quiser, que data de 1937: "A situação psicanalítica se
mas sim mfis absoluta que a de Newton! Ela é, com, funda no amor à verdade, isto é, nojreconhecímento
isso, absolutamente verdadeira? Claro que não. Não é dela, o que deve excluir toda ilusão e todo engano."
a verdade: é um conhecimento. Mas, se os conhecimen- Pois bem, digamos que a filosofia (se bem que de outro
tos não comportassem-nenhuma parcela de verdade, ponto de vista e com outras armas) prende-se à mesma
já não seriam conhecimentos, seriam simples capri- exigência, assim como todo pensamento digno desse
chos do espírito. A física relativista não é a verdade (a nome.
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Dito isso, O horror continua sendo o horror, e a fi- apenas nos países subdesenvolvidos, a felicidade "não
losofia não está aí pará escamoteá-lo ... A esse horror está verdadeiramente na ordem do dia. .. Seique a sorte
somos mais sensíveis ou menos, e também o encon- não basta à felicidade: a felicidade nunca é dada já pron-
tramos mais duramente ou menoS... Quanto mais o ta. Mas nenhuma felicidade é possível sem a sorte, e
tempo passa, mais eu sou sensível à parcela de acaso até, parece-me, sem Uma sorte considerável... Convém;
em toda vida, ao que os antigos chamavam de destino, portanto," ter a felicidade modesta e a infelicidade se-
que outra coisa não é senão o conjunto de tudo o que .rena: nem uma nem outra são merecidas.
I

acontece, qüe sem dúvida não era inevitável antes (não


estava "escrito"), mas que o é, evidentemente, quando
acontece ... Estar com um filho doente ou não, ser mais A propósito dessa sabedoria do desespero, você evoca
feliz ou menos no amor ou nos negócios, mais dotado Epicuro, os estóicos e Spinoza, mas-também o budismo
ou menos para a vida, mais sábio ou menos, mais lou- primitivo, b Ch 'an, o Samkhya ...
,
co ou menos, ver-se mais confrontado ou menos à mor-
te, mais cedo ou menos, mais cruelmente ou menos, o desespero não tem fronteiras, e a sabedoria não
ter mais capacidades ou menos, uma profissão mais pertence a' ninguém./Trata-semuito menos de ecletís-
interessante ou menos, mais difícil ou menos, mais ex- mo do que de experiência .humana, mais profunda e
tenuante ou menos, ter ou não determinada deficiência mais importante do que a incomunícabilidade dos sis-
ou determinada doença, ter ou não ter, inclusive, o temas ou as divergências das escolas. Aliás, desde que
que comer, com o que se proteger do frio ou do medo ... meus primeiros livros foram publicados, vários leito-
Quem decide sobre isso? Quem escolhe como será? Há res me apontaram este _,?uaquele texto que eu Ignora-
o que depende de nós e o que não depende, diziam va, em que as mesmas idéias, ou idéias vizinhas, já se
os estóicos, e tinham toda razão. Mas o que" depende encontravam ... Isso sempre me alegra. Não é' a origina-
de nós (a vontade; o pensamento ...) depende de mil lidade que busco: uma idéia que ninguém nunca teria
fatores que não dependem. Quem se escolhe? E de- tido tem uma boa probabilidade de ser uma tolice! De
pois o destino é o mais forte, porque o horror é o mais resto, de bom grado eu diria do desespero o que Camus
forte. O que pode a sabedoria para uma criança que so- dizia do absurdo. é menos um conceito do que uma
fre ou para uma mãe que vê seu filho morrer? O que "sensíbílídade esparsa no século", e em todos os séculos.
pode a sabedoria paratodosos que não são sábios," que Será a mesma? Não "exatamente.
. O mundo e a. vida só
nunca o serão? E contra a miséria? Contra a guerra? con- parecem absurdos porque não correspondern às nos-
tra a opressão? Para bilhões de pessoas na terra, e não sas esperanças. Para quem já hão espera, o absurdo de-
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saparece: SÓ resta o real, a absoluta e simples positíví- "Iívre." Pensei reconhecer uma fórmula de um filósofo
dade do real. O caso é que essa sensibilidade do deses- .cínico da Antiguidade, Demonax, no qual se encon-
pero nós a encontramos esparsa, de fato, através dos tra, de fato,' uma idéia bem próxima ("Só é livre quem
séculos e dos milênios, através dos 'continentes e das não tem nada a esperar nem a temer"). Mas não: trata-
civilizações. Eu estava terminando o segundo volume se, informa-me o jornalista, de uma frase de um escri-
do meu tratado, há alguns anos, quando dei com esta tor do século XX, Nikos Kazantzakis, de cujos Zorba,
frase do Samkbya-Sutra, que Mircea Eliade citava: "SÓ o grego eb Cristo recrucificado eu tanto gostara na
é feliz quem perdeu toda esperança; porque a espe- . minha adolescência ... De Demonax a Kazantzakis, é a
rança é a maior tortura que há, e o desespero, a maior -mesma língua, o grego, e quase a mesma idéia, o. que
beatitude." E eu estava terminando um livro que se cha- chamo de desespero. Esse encontro através de tantos
mava Tratado do desespero e da beatitude ... séculos me alegra e me esclarece.
Eu poderia multiplicar os exemplos e as citações. Depois, faz dois ou três dias,ll,m amigo, ou me-
\Faz alguns meses, num .jornal, eu. percorria um artigo lhor, um leitor que se tornou meuamigo (acontece'),
sobre Moravia, que acabava de morrer, acho, no qual o me manda a cópia de urna entrevista de Merab Mamar-
jornalista reproduzia os termos de uma entrevista que dachvili, filósofo georgiano falecido. em Moscou em
datava de uns anos atrás, a propósíto de um romance 1990. Inútil dizer que.nunca tinha lido nada desse se-
em que Moràvia abordava o tema do suicídio. Recortei nhor, de quem aliás, até muito recentemente, nada es-
o artigo. Eis o que Moravia dizia: "Pensei muito no sui- tava traduzido. Mas, nessaentrevista, depois de evocar
cídio entre 1975 e 1980. Mas acabei acreditando que "o silêncio e a solidão" (está vendo: não sou o úní-
não se deve morrer de desespero. Ao contrário. Deve-se Vco!),.Mamardachvili falado desespero: Perguntam-lhe
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-:
viver dele. Como um .estôíco. Ou mesmo como. um se o futuro não o ínquietà. Ele responde: "Não, não te-
cristão ... Deve-se viver a qualquer preço. E se alimen- nho medo. Ao contrário, até me alegro ... Filósofo por
tar de desespero, em vez de querer sempre dele mor- temperamento e não por profissão, a vida inteira vivi
rer." A mim o suicídio nunca tentou, e por acaso ain- sem esperança. Se ultrapassamos o ponto-limite do de-
da hoje nunca li nenhum livro de Moravía. Mas releio sespero, abre-se entãodiante de nós uma planície se-
com freqüência essas poucas frases: elas me ajudam a rena, eu diria até alegre; Ficamos com um humor uni-
viver ... forme e podemos ser felizes ...." Essas frases me como-
Outra vez foi um jornalista, ao vivb na rádio, .que me vem. É o contrário do futuro radioso, das utopias, das
citou a seguinte frase, 'perguntand~-me 'se eu conhe- religiões, de todas as esperanças que-nutrem as guer-
cia seu autor: "Não espero nada,
.
não temo nada; ,
sou ras e os fanatismos ... Esse desconhecido é como um ir-
, \'

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mão para mim. "Não há esperança sem temor, nem te- . _~'manifesta a mesma ambigüidade, a mesma hesitação,
mor sem esperança", dizia Spinoza. Eu diria também: ._~. que. é a da vida, a mesma tensão, o mesmo caminho:
não há serenidade sem desespero, nem verdadeiro de- ."r"- que a alegria s6 é possíveldo outro lado do sofrimen-
sespero sem uma parcela de serenidade. to, como a felicidade só o é, parece-me, do outro lado
da desilusão. Não. nos .pouparemos o luto; não nos
pouparemos o desespero.
Esse desespero que você evoca, esse desespero sereno,
não é muito mais uma inesperança? Aliás, você utili-
za essa palavra, pelo menos uma-vez, antes de renun- No entantodiz-se que a esperança faz viver ...
ciar a ela ...
Sim, e não é de todo errado! Quero dizer que muita
É uma pergunta que me fizeram muitas' vezes. A pa- gente só consegue suportar. suas decepções sucessi-
vas se cada vez se consolar com novas esperanças ... A
lavra desespero, em francês, veicula tamanha carga de
vida continuá assim, de esperanças em decepções, de
tristeza ... Mas o caso é que a palavta inesperança não
decepções em esperanças ... Não condeno essas pes-
se impôs, e tenho horror aos neologismos. Sobretudo,
soas: cada um se viracomo pode. Mas, se a esperança

falar de inesperança seria dar a entender que podemos
faz viver, na verdade faz viver mal: de tanto esperar vi-
nos instalar de saída nesse estado sereno, que pode- ver, não se vive nunca, ou então só se vive essa alter-
mos nos poupar a decepção, a desilusão, o sofrimen- nância de esperanças' e decepçôes, na qual o medo
to ... E não acredito nem um pouco nisso. A esperança .(já que não há esperança sem temor) não cessa de
é sempre primeira; portanto é preciso perdê-Ia (éo "
nos afligir ... Melhor seria sair desse ciclo, e no fundo é
que indica a palavra desespero), e é sempre doloroso. o que chamo de sabedoria ou desespero. Na verdade,
O desespero é um trabalho, como o luto em Freud, e não é a esperança que faz viver, é o 'tlesejo, de que a
no fundo é o mesmo. Que todo o mundo prefira a pa- esperança é apenas uma das formas, e não a única nem
lavra inesperança, eu entendo; seria tão melhor 'se pu- a principal!
déssemos prescindir do trabalho, do sofrimento! da desi-
lusão! A inesperança seria como urna sabedoria já pron-
ta: seria um luto sem trabalho. Mas isso não é possível, Quais são as outras?
e é outro luto afazer.:-:--É por isso que mantive a pala-
vra desespero. Pelo menos ela indica a dificuldade do Primeiro, o desejo físico, por exemplo sexual, o que
caminho ... Aliás, observo que a palavra luto, em Freud, poderíamos chamar de apetite, ou apetência: que, ao

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contrário do que se costumaacredítar, é menos uma fal- '" ramos inteiramente? Como amar, por exemplo, os filhos
ta do que uma pura potência de existir (como diz Spi- , que ainda não temos? Seria amar nossas esperanças, e
noza) ou de gozar. Que ela possa ser acompanhada' nesse caso amaríamos apenas a nós mesmos ... Aliás,
da esperança, é evidente, mas não é uma fatalidade. haverá todo UII). trabalho a fazer para passar desse amor
O corpo nos ensina, mais propriamente, o que, há de narcisista pelos filhos sonhados ao amor, muito mais
'desesperado, e muitas vezes de alegremente desespe- rico e difícil, pelos filhos reais ... Trabalho de luto? Sem
rado, no desejo. A ereção não é uma esperança! E co- dúvida, mas é também o trabalho do amor, ou o pró-
mer com apetite não é a mesma coisa do que esperar prio amor como trabalho. Há desespero em todo amor,
comer! ' -- -- --- e tanto mais quanto menos ilusões temos. "Devemos
E depois há o amor e a vontade. " ", amar as pessoas tais como elas são", costuma-se dizer.
A diferença entre a vontade e. a esperança é que 'i Claro, mas não temos escolha! Devemos amá-Ias tais
só esperamos o que não está em' nosso poder, ao pasSp .',; como das sã.0 ou não as amar, amá-Ias tais como elas
que só podemos querer no campo de uma ação íme- "~ são ou amar apenas nossos próprios sonhos, amá-Ias
diatamente possível. Para falar como os estóicos: só tais como elas são ou/esperá-Ias outras e sempre recri-
esperamos o que não depende de nós; só queremos o miná-Ias por nos décepcíonarern ... A esperança e o
que depende. Tente esperar-andar ... Isso 'nunca fez rancor andam juntos,' juntos o amor e a misericórdia.
ninguém se mexer! Aliás, quem esperaria andar, fora Isso aponta o caminho. Não se trata, de maneira
o paralítico? inguém espera aquilo. de, que se sabe :f nenhuma, ao contrário do que alguns acreditaram en-
~z mUlto sobre aespe . ça.~' ;~ , terider, de renunciar ao desejo. Se o desejo é a própria
im"potencla da alma, dizia Spinoza, e Ja era esse o cemy -;:.: essência do homem, como dizia Spinoza e como acre-
-;0 estQicismo, seu cerne sempre V1võ. "Quando você ' dito que seja, de que modo poderíamos renunciar a
desaprender de esperar", dizia rriãts-On menos Sêneca, ele e por que deveríamos? Parar de desejar seria parar
"eu o ensinarei a querer ..." Na verdade as duas coisas u de viver! Não se trata de suprimir o desejo, mas antes de
andam juntas: esperamos-tanto mais quanto menos so- transformá-Ia, de convertê-Ia, de liberar o melhor pos-
mos capa~es de ação, e tanto menos quanto mais sa,- sível sua potência: desejar um pouco menos o que falta,
bemos agir. um pouco mais o que. é; desejar um pouco menos o
No que conceme ao amor, a diferença é outra. Só se -,: que não, depende de nós, um pouco mais o que de-
espera o irreal ou-a-de.sconhecido; s6 se ama o real, ei pende ... Em suma, trata-se de esperar um pouco menos
com a condição de conhecê-lo ao menos em parte. Co-' e de querer um pouco mais (para tudo o que depende
mo poderíamos amar o que não existe ou o que igno- de nós), de esperar um pouco menos e de amar um
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u.,!d.I~y~poucómais{paratudo o que não depende) ... É o cami- sóficosl), por nossas esperanças, por nossos sonhos,
nhoda sabedoria, e é uma sabedoria da ação, e' é uma por nossas frustrações, por nossas angústias, por nos-
~~.,."",.", sas decepções ... É o que seria preciso atravessar, ultra-
sabedoria do amor. Trata-se de aprendera se despren-
der ou, como dizia Spinoza, de se tornar "menos de- passar, dissipar. A sabedoria não é outra vida, que se-
pendente" da esperança e do temor ... Claro, nunca o ria preciso alcançar: é a própria vida, a vida simples e
conseguimos inteiramente, e é por isso que ninguém difícil, a vida trágica e doce, eterna e fugidia ... Já esta-
mos nela: só resta vivê-Ia.
é sábio por inteiro. Mas a sabedoria já está no cami-
nho que leva a ela. Trata-se de viver, numa palavra, em
vez deesperar viver ...
Isso nos traz de volta a nosso começo. O que é fi-
losofar? É aprender a viver e, se possível, antes que seja
tarde demais! ~as estou me exprimindo mal. É sem-
pretarde demais, em certo sentido, o poeta tem razão,
e no entanto nunca é nem cedo demais nem tarde de- i

mais, como dizia Epicuro: a vida não pára de se ensi-


nar a si mesma, de se inventar a si mesma, até .o fim,
u
e, a filosofia é apenas uma das formas, no homem, desse
aprendizado ou dessa invenção. r'ortanto é a vida que
vale. A filosofia só tem importância na medida em que
se põe a serviço dela: é a vida pensada em ação e em
verdade.

E a sabedoriar

É a vida vi~ida,aq~i e agora, em ação ~ em verda-


de! Em outras palavras, é nossa vida real, tal como ela
é: a verdadeira vida, avidaverdadeira ... Mas dela esta-
mos separados quase sempre, por nossos discursos'
sobre ela (e principalmente por nossos discursos filo-
,\
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