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2019
0. Apresentação
A expansão espacial de um império não ocorre sem esforço. Se, por um lado, a
expansão espacial de um império, que alcança terra longínquas, exprime riqueza, poder
e força, por outro, só o pode representar pelo desgaste que isto representa a um grupo,
ou, ainda, a um povo. A expansão portuguesa, por exemplo, que estabeleceu o império
colonial e mercantil da Coroa portuguesa, está, nas artes, sempre representada em
referência a textos clássicos que exprimem poder, força e grandeza.
A articulação de instrumentos, atividades, conhecimento, mercadoria e pessoas
para a geração, durável e estável, de valor e de riqueza será matéria do presente
trabalho. Isto e o papel-lugar das representações gráficas e objetos artísticos nesta
articulação. Buscar-se-á relacionar as empresas militares medievais às empresas que
têm a gravura como um de seus elementos e às empresas contemporâneas, capitalistas,
e modernas, outrora burguesas.
Não que se pretenda realizar uma teoria do valor ou algo parecido, mas estritamente
buscar notas subsidiárias para a elaboração de uma teoria da geração de valor e da
manutenção da riqueza. Isto buscando, através do signo da linguagem e de dinâmicas
socioculturais, colocar lado a lado, a fins de comparação crítica, fenômenos simultâneos
e complementares que, apesar de sua não óbvia relação.
Se, por um lado, o aparente distanciamento entre universo do comércio da arte e os
demais ramos da atividade comercial ocorre pela especificidade de sua mercadoria, por
outro lado insere-se no macrocosmo da atividade comercial. O trabalho que se pretende
cá fazer é a elaboração de, como já dito, notas subsidiárias para uma teoria da geração
e manutenção de valor e de riqueza de modo a vincular os fenômenos do poder político,
do poder comercial e da arte, sem, no entanto, desconsiderar suas particularidades e
seus traços distintivos.
O filósofo espanhol Ortega y Gasset observa que “no sabemos lo que nos pasa y esto
es precisamente lo que nos passa: na saber lo que nos passa”. A compreensão de
fenômenos que se estendem no tempo e no espaço passa a ser uma tarefa árdua e difícil
frente às tentações a conclusões fáceis e imediatas do conhecer de narrações e das
pistas que as estórias da história sugerem em suas buscas particulares pela construção
de linhas narrativas que ora cortam e carregam o sentido do tempo, ora constituem os
seus interiores sem poder-se extrair da narração qualquer sentido que transcenda o
tempo.
Assim, o que se busca não é uma estrutura comum aos universos permeados, mas
relações, e, tendo em mente a observação de Ortega y Gasset, de que modo os traços
de interseccionais entre eles (os universos do poder, da mercatura e da arte) podem nos
servir de subsídio para uma compreensão ampliada da experiência humana.
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A. Meillet. Como as Palavras Mudam de Sentido.
Fica claro, então, que não é apenas semântica a diferença que constitui a
heterogeneidade que coloca a língua constantemente em crise, mas a própria
pluralidade fonética contribui para as dinâmicas transformacionais da língua. E, se por
um lado, os grupos sociais ao formarem-se e aglutinarem-se, valem-se dos trejeitos
linguísticos para manterem-se coesos, sua existência interna, como grupos
relativamente fechados é fundamental para a vitalidade da língua, na medida em que,
colocando-a em constante transformação pela interação dos grupos particulares entre
si, e dos grupos particulares com a ideia de uma língua única, atualiza-a e faz da língua
única em seu constante presente inédito.
Afirma Robert Klein em seu ensaio A Teoria da Expressão Figurada nos Tratados
Italianos sobre as Imprese, 1555-1612, publicado no livro A Forma e o Inteligível, editado
pela edusp em 1998, que não havia em francês uma palavra equivalente à italiana
imprese, “empresa”. A palavra franacesa para designar tal espécie de artifício expressivo
que mescla texto e imagem, sem no entanto constituir relação ilustrativa, é divise.
No dicionário etimológico da língua portuguesa de Antônio Geraldo da Cunha
encontramos para “dividir”, raíz etimológica da palavra “divisa”, o verbete “partir ou
distinguir”, e remete à palavra latina divisus, “partilha, divisão, repartição”, tal como
“separado, dividido”. Por “empresa”, temos “empreendimento, sociedade, firma”, e
remete às palavras latinas que significam “desejar, suplicar, invocar” e carregar, apertar,
pressionar, atacar. No mesmo ensaio já mencionado, Klein busca no Dialogo
dell’imprese militari et amorose de Giovio a moda das imprese havia sido introduzida na
Itália pelos homens de guerra, que cravavam em suas armas uma marca que distinguia
um grupo de soldados de outros.
Da correspondência entre o fenômeno das imprese e das divise, na Itália e na França,
respectivamente, extraímos um campo semântico composto por dois gêneros de
palavras: aquelas que distinguem, que repartem e criam um em oposição a outros e
aquelas que são algo pela projeção da vontade, a canalização das ações de um grupo
pelo sentido de uma vontade comum. Num e noutro grupo, encontramos um traço
comum, que é uma identidade, seja daquilo que é marcado pelo sinal distintivo, seja
aquilo que é movido por um mesmo sentido de vontade.
Esta identidade marcada pela distinção, seja simbólica, seja volitiva, é consagrada
por seu caráter a um só passo obscuro e revelador, de modo a restringir o grupo que
reconhece a estória à que se remete a obra, status adquirido pela impresa no século
XVII, tendo-se tornado, a impresa conceptista, “uma obra cujo principal mérito consistia
na riqueza das significações e das alusões que seria possível esconder ou descobrir em
sua estrutura complexa”. Isto depois de Andrea Chiocco defini-la como “um instrumento
de nosso intelecto, composto de figuras e de palavras que representam
metaforicamente o conceito interior do acadêmico” (Discorso delle Imprese, Verona,
1601 – apud. R. Klein). Faremos carregar de todo este complexo de significações que
compõem a história das palavras impresa e divise para tentar esboçar o constructo ao
qual, cá, nos pretendemos.
2
B. Latour, Jamais Fomos Modernos.
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F. K. Comparato. Aspectos jurídicos da Macroempresa.
direito privado que tem por atribuição o regramento das atividades humanas
organizadas que têm por fim a geração de lucro aos particulares, sejam eles coletivos ou
individuais, que fazem do comércio um ofício.
Tal como as empresas militares medievais, as macroempresas contemporâneas
dotam-se de símbolos que as identificam ao intelecto, e que permitem as pessoas em
lugares, tempos e situações diversas reconhecerem um mesmo, um isto, um id. Um
mesmo que se refere a um grupo empresarial (lato sensu) constituído por acordo de
vontades. Esse acordo social constitutivo da qualidade de grupo dessa forma específica
de sociedade empresarial é fundado no affectio societatis, fundamento jurídico que
referencia a congregação de vontades que é usada tanto para a constituição quanto
para a dissolução desses grupos econômicos – as Sociedades, tal como reguladas pelo
direito societário.
O nome jurídico a esse símbolo que referencia uma identidade de grupo é marca,
que representa simbolicamente um grupo. Se o processo ligado à conquista militar que
leva uma empresa militar a carregar sua identidade nas armaduras e armamentos é o
de estabelecer o domínio sobre um território e sobre os grupo sociais que nele vivem
estabelecer um império, análogo é o processo ligado às macroempresas a conquistarem
mercados em territórios ao longo do globo terrestre.
Um dos princípios que orientam a proteção das patentes, por exemplo, que
encerram as garantias jurídicas da comercialização de inventos tecnológicos por grupos
sociais (“sociais”, aqui, refere-se às sociedades econômicas, as reguladas pelo direito
societário, e que é o gênero que, na maior parte das vezes, da realidade jurídica às
chamadas macroempresas, ou empresas transnacionais), é o da terriotorialidade. Assim,
quando inscreve-se uma patente em um sistema de registros de patentes, deve-se ter
em conta a abrangência territorial à qual o sistema no qual a patente foi registrada tem.
É claro que têm naturezas diversas, as dinâmicas e a lógica específicas das empresas
militares medievais e as macroempresas modernas e contemporâneas, mas tal
similitude, a vinculação histórica dos fenômenos das empresas militares medievais com
os fenômenos das Companhias de comércio da ascensão dos impérios comerciais
modernos, e a vinculação destas com as macroempresas modernas permitem-nos tanto
vislumbrar a história da palavra empresa no tempo e no espaço, quanto conceber o
complexo que é aquilo abarcado pelo macroconceitos Sociedade ou Humanidade, que
buscam dar nome a um grande conjunto de seres vivos, que, apesar das diferenças,
sugere-se, guardam essência ou natureza comuns.
A marca estética à que se pode referir a impresa, seja ela composta por imagem e
texto ou, em sua versão primitiva, apenas por imagem, é signo finito que, tal como os
mitos, necessitam de sua constante transformação para fazerem-se perenes no tempo4.
A vinculação de uma história a um signo estabiliza um estado de coisas produzido por
um processo histórico que o estabelece. O embate entre grupos sócio-empresariais
medievais (militares) e a vitória de um por outro leva ao domínio deste sobre aquele, e
a simultânea, nesta relação de domínio justo pela guerra, consagração da impresa como
sinalizadora desta relação de dominância produzida pelo embate marcial.
A reprodução de representações de empresas (a figura estética) tem, portanto, a
função de estabelecer e informar, primordialmente, qual é o hegemon, isto é o grupo
social organizador dominante, do território no qual circula. A marca, então, assume um
tom de celebração da confusão à qual os homens de guerra submetem-se em conflitos
belicosos e dos caminhos que os levou ao triunfo. A representação artística da merca
empresarial medieval assume, assim, uma função articuladora e estabilizadora de
valores por meio da afirmação simbólica de um império. É uma maneira de reiterar um
estado de dominância, reiterando, pela circulação de imprese, a vitória em combate.
A história da palavra empresa, que se enlaça com a das palavras divisa e
companhia, como vimos, aponta, assim para uma articulação dos fenômenos do poder
político, econômico, técnico e artístico, e o seu aprofundamento deverá ser de grande
valia para a compreensão de processos históricos de grande importância para a
raciocinar-se o mundo contemporâneo e os rumos que vem tomando e poderá tomar.
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W. Jaeger. Paideia.
autorreflexão, uma autoconsciência, tal como a representação das moedas que cá
circulavam, e das modas, dos costumes, da fauna e da flora que havia nas terras
brasileiras.
É análogo ao processo de geração e manutenção de valor e riqueza através da
articulação pelo intelecto de ações coordenadas segundo uma comunidade – um
mesmo impulso volitivo infinito marcado pela representação simbólica distintiva finita
– de interesses, uma vez comungados os sentidos das vontades pactuadas na
constituição de um grupo unitário.
Este projeto ideal permeia e impulsiona a produção de cultura brasileira pelos
artistas franceses que vêm ao Brasil na, posteriormente construída como, Missão
Artística Francesa – construção ideológica a qual confirma o sentido constitutivo de uma
identidade de grupo trabalhada pela informação artística do vivido nas terras sob o
império das atividades empresariais (em seu sentido amplo e complexo acima
elaborado) portuguesas.