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DIÁLOGO INTER RELIGIOSO:

SOBRE A OBRA DO PE. DUPUIS


DOCUMENTOS:

1 - Panorâmica das Abordagens Cristãs sobre as Religiões


(a propósito de um livro - I)

2 - Para uma Teologia Cristã do Pluralismo Religioso


(a propósito de um livro - II)

1 - PANORÂMICA DAS ABORDAGENS CRISTÂS SOBRE AS


RELIGIÕES
A PROPÓSITO DE UM LIVRO (I)1[1]2 - Faustino Teixeira, UFJF

O teólogo belga Jacques Dupuis, nascido em 1923, é certamente hoje um dos


maiores especialistas na temática da teologia cristã das religiões. Por mais de 25 anos
lecionou teologia sistemática na Índia e desde 1984 atua como professor junto à Faculdade
de Teologia da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. O livro “Para uma teologia
cristã do pluralismo religioso”, publicado originalmente em inglês (1997), acaba de ser
traduzido para o italiano e constitui uma referência essencial para qualquer estudo sério e
aprofundado sobre o tema.

Já na introdução o autor define seu propósito com o livro. Trata-se de um estudo


amplo e compreensivo, no sentido de delinear um percurso “para uma teologia cristã do
pluralismo religioso”. Uma iniciativa do gênero justifica-se plenamente nestes últimos anos
marcados por tantas e significativas mudanças que incidiram também sobre o campo
teológico. Dupuis sinaliza a pertinência de uma “apresentação orgânica do estado atual da
reflexão teológica sobre as principais questões hoje levantadas no contexto do pluralismo
religioso”. Sua intenção é fornecer “uma introdução a uma teologia das religiões que seja
ao mesmo tempo histórica e sintética, genética e atualizada”3[2]. Dupuis sublinha que uma

1[1] Os dois artigos que visam apresentar o livro de Jacques Dupuis fazem parte do projeto
de pós-doutorado por mim realizado em Roma a partir de outubro de 1997, que teve o
financiamento da CAPES.

2
3[2] J. DUPUIS. Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso. Brescia,
Queriniana, 1997, p. 6.
nova introdução geral à teologia das religiões justifica-se em razão dos mais recentes
progressos da discussão teológica. Urge elaborar uma introdução ao tema que seja
simultaneamente “mais generosa na sua avaliação das outras tradições e melhor equipada
para o diálogo com os seus membros”4[3].

Ao explicar os termos que compõem o título da obra, Dupuis sublinha, em primeiro


lugar, que se trata de uma reflexão teológica e não de uma ciência humana da religião ou
das religiões. A hermenêutica da religião ou das religiões que acompanha a reflexão
teológica é desenvolvida à luz da Palavra de Deus e com o auxílio da experiência de fé, ou
seja, todo o processo reflexivo acontece no âmbito de uma perspectiva de fé5[4].

Em segundo lugar, o autor esclarece que sua proposta é de uma teologia cristã das
religiões e não uma “teologia mundial”, como a defendida por W.Cantwell Smith 6[5]. Para
Dupuis, toda teologia é “confessional”, ou seja, implica uma adesão de fé. Diversas adesões
de fé não podem convergir numa “teologia mundial” mas numa diversidade de teologias.
Ao lado de uma teologia cristã das religiões há, assim, um legítimo lugar para outras
teologias confessionais. O fato de ser “confessional”, não implica necessariamente uma
restrição de horizontes. O autor indica que uma teologia cristã das religiões não pode ser
provincial ou ensimesmada, mas deve almejar um horizonte autenticamente universal, ou
seja, adotar uma “perspectiva global que abrace na sua visão a integralidade da experiência
religiosa da humanidade”7[6].

Trata-se, em terceiro lugar, de uma teologia do pluralismo religioso. A intenção de


Dupuis é avançar para além da perspectiva tradicional que restringia seu campo de ação à
questão da “salvação” dos membros das outras tradições religiosas ou do papel destas
tradições na salvação de seus membros. A questão por ele levantada é mais profunda, ou
seja, a de buscar o significado do pluralismo religioso no âmbito do desígnio de Deus para
a humanidade. Nesta nova perspectiva, o pluralismo religioso não se reduz a um fato da
história, uma questão de facto, mas ganha uma específica razão de ser no projeto de Deus
para a humanidade. Trata-se de um pluralismo de princípio, um pluralismo de iure (de
direito). Neste sentido abre-se uma nova perspectiva de convergência das várias tradições
religiosas e, no respeito de suas diferenças, seu mútuo enriquecimento e fecundação
recíproca8[7].

4[3] Ibidem, p. 9.

5[4] Ibidem, p. 11.

6[5] Cf. W. CANTWELL SMITH. Towards a World Theology: Faith and the
Comparative History of Religion. Westminster, Philadelphia, 1981.

7[6] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 13

8[7] Ibidem, p. 19-20. Em linha de sintonia com a reflexão de Dupuis sobre o pluralismo
“de direito” podemos mencionar os seguintes trabalhos: Claude GEFFRÉ. La singularité du
christianisme à l’âge du pluralisme religieux. In: J.DORÉ & C.THEOBALD (Ed.) Penser
la foi. Paris, CERF, 1993, p. 351-369; Id. La place des religions dans le plan du salut.
O autor não pretende com sua obra esgotar o campo de reflexão teológica sobre o
tema. Já no título da obra a perspectiva de humildade delineia-se com precisão: Para uma
teologia cristã do pluralismo religioso. Na tradução italiana, a expressão “verso” indica
com mais precisão o sentido visado: “em direção de”. Dupuis sublinha que sua obra não
pretende dar respostas definitivas a todas as interrogações levantadas, muitas das quais são
novas. Seu propósito é ordenar as questões à luz das discussões e progressos recentes,
indicando caminhos de sua resolução em conformidade com a profissão de fé cristã.9[8]

O procedimento metodológico adotado pelo autor em sua obra é o que conjuga o


método dedutivo com o indutivo, de forma a assegurar o encontro indispensável entre o
dado de fé e a realidade vivida do pluralismo religioso. Para Dupuis, a teologia das
religiões não constitui simplesmente um novo argumento ou tema para a reflexão teológica,
mas sim “um novo modo de fazer teologia num contexto inter-religioso: um novo método
para fazer teologia numa situação de pluralismo religioso” 10[9]. A práxis do diálogo inter-
religioso é o seu ponto de arranque, a partir da qual se busca uma interpretação cristã da
realidade religiosa plural circunstante. Trata-se de uma teologia hermenêutica inter-
religiosa que suscita um alargamento de horizonte para o discurso teológico, de forma a
poder “descobrir em profundidade as dimensões cósmicas do mistério de Deus, de Jesus
Cristo e do Espírito Santo”11[10].

O livro se subdivide em duas partes, uma histórica ou positiva e a outra sintética e


temática. A inclusão de uma parte mais histórica é justificada pelo autor em razão da
importância de trazer à baila a memória cristã sobre o tema através dos séculos e,
sobretudo, destacar as profundas mudanças ocorridas na avaliação realizada pela tradição
cristã sobre as outras tradições religiosas. O autor busca fornecer na primeira parte do livro
uma compreensão em perspectiva histórica das distintas posições e percepções assumidas
ao longo dos séculos pela tradição da igreja católica. Esta primeira parte compõe-se de
sete capítulos. Dada a complexidade do tema e a extensão do livro (583 páginas), nossa
apreciação será desenvolvida em dois artigos distintos. Neste primeiro momento nos
restringiremos a apresentar a primeira parte do livro, deixando a reflexão sobre a segunda
parte para um artigo subsequente.

No primeiro capítulo o autor desenvolve a questão das religiões das nações na


Bíblia. Neste capítulo, Dupuis preocupa-se sobretudo em mostrar a complexidade dos
dados bíblicos sobre as religiões dos gentios e a necessidade de um manejo mais cauteloso
dos mesmos.12[11] Não se pode inflacionar simplesmente os reais dados negativos como se

Spiritus ( 138): 78-97, 1955; Edward SCHILLEBEECKX. Umanità la storia di Dio.


Brescia, Queriniana, 1992.

9[8] Ibidem, p. 20

10[9] Ibidem, p. 30

11[10] Ibidem, p. 30

12[11] Ibidem, p. 46
os mesmos fossem os únicos existentes. Dupuis adverte que a Bíblia não estava diretamente
interessada nas questões que a moderna teologia das religiões busca responder no contexto
do pluralismo religioso. A intenção precisa do autor neste capítulo é ressaltar os elementos
escriturísticos positivos capazes de fornecer o adequado fundamento para uma melhor
avaliação teológica das outras tradições religiosas do mundo. Mesmo admitindo a presença
de ambiguidades nos livros sagrados, Dupuis sublinha que “não faltam, porém, traços de
uma abordagem mais positiva sobre as religiões, particularmente na fé manifestada pela
Bíblia no envolvimento universal de Deus num diálogo de salvação com a
humanidade”13[12].

Passando em revista os dados do Antigo Testamento, Dupuis ressalta que já antes


da aliança de Deus com Abraão e Moisés a Bíblia nos fala de uma aliança cósmica de Deus
com a humanidade. O ciclo de Abraão só é mencionado a partir do capítulo 12 do livro do
Gênese, sendo precedido pelos ciclos de Adão (Gen1-5) e Noé (Gen 6-9). Esta aliança
cósmica é já uma aliança sobrenatural. Encontramos referências significativas na Bíblia a
respeito de pessoas que mesmo fora da economia do povo eleito de Deus responderam de
forma positiva à revelação divina. Estas pessoas, por J.Daniélou denominadas “santos
pagãos do Antigo Testamento”14[13], são apresentadas como modelos de fé. Entre os
primeiros santos das nações aparecem Abel, Enoch e Noé. Outros santos das naçoes
aparecem na Bíblia como modelos de justiça e piedade: Jó, Melquisedec, Lot e a rainha de
Sabá.

Uma dificuldade particular aparece quando se aborda a questão do monoteísmo do


Antigo Testamento. Para Dupuis, a fé monoteísta ganhará contornos bem definidos
sobretudo após a experiência do exílio. É a partir de então que teremos condenações mais
explícitas ao culto divino das nações. Mesmo assim, sublinha o autor, nem todos os
habitantes das nações são enquadrados como idólatras. Alguns souberam reconhecer o Deus
vivente mediante a aliança cósmica, como é o caso de Ciro, descrito em Isaías 44 como
pastor e ungido. Pode-se também mencionar o episódio da conversão da cidade pagã Ninive
no livro de Jonas 3. Faz parte da identidade de Israel a consciência de sua eleição e sua
vocação universalista.15[14] Segundo Dupuis seria equivocado reduzir o sentido da eleição
de Israel a um particularismo estreito. A consciência da eleição não constitui um isolamento
com respeito às nações mas uma abertura a todas elas16[15]. O universalismo constitui uma
“dimensão integral” de todo o Antigo Testamento, não em oposição à eleição, mas a ela
complementar.17[16]

13[12] Ibidem, p. 47

14[13] Cf. J.DANIÉLOU. I santi pagani dell’Antico Testamento. 2 ed. Brescia,


Queriniana, 1988.

15[14] J. DUPUIS. Verso una teologia…, p. 58-59.

16[15] Dupuis faz menção aos “salmos do Reino” (47, 93, 97-99) e ao livro da consolação
no Dêutero-Isaías (Is 42,10-12) para explicitar esta vocação universal de Israel. Todos os
povos são convocados a reconhecer o Deus de Israel.
Em singular reflexão, o autor desvela a presença de uma economia universal já
presente no Antigo Testamento mediante a Palavra, a Sabedoria e o Espírito, os três
atributos dinâmicos de Deus. Esta tríade revela, segundo Dupuis, as relações de Deus com a
humanidade no processo da história da salvação, que encontrará na Palavra-Sabedoria feito
carne e na efusão do Espírito sua plena realização.18[17]

No Novo Testamento encontramos igualmente traços precisos de uma perspectiva


de abertura às nações, a começar pela atitude vital de Jesus com respeito aos “estrangeiros”
e “pagãos”. Em diversas ocasiões os evangelhos sinóticos atestam a admiração e respeito de
Jesus para com a fé dos que não pertencem ao povo eleito. Para Jesus, o ingresso dos
“outros” no Reino não é um evento meramente escatológico, mas que procede antes de tudo
na história, como sinalizado na parábola do banquete (Lc 14,15-24 e Mt 22,1-14). 19[18]
Com Jesus verificamos que de fato a fé salvífica opera dinamicamente entre os “pagãos” e
“estrangeiros”.

A propósito dos dados que indicam o posicionamento da igreja apostólica com


respeito às nações, há que sublinhar que os mesmos são complexos e ambivalentes.
Encontramos uma perspectiva mais pessimista na carta de Paulo aos Romanos. Para
Dupuis, mesmo neste caso é importante ressaltar que “não se trata de uma declaração de
princípio, de uma negação absoluta de todo valor presente nas outras tradições
religiosas”20[19]. De fato, Paulo quer ressaltar nesta carta a posição privilegiada dos
cristãos, pelo fato de terem encontrado Jesus Cristo e nele adquirirem um novo sentido para
a vida. No discurso de Paulo aos atenienses, descrito em At 17, a perspectiva é de maior
abertura, inaugurando uma perspectiva missionária fundada numa abordagem mais positiva
com respeito à religiosidade dos gregos. Paulo é capaz de reconhecer a presença e
vizinhança de Deus junto aos povos (At 17,27) e no caso particular uma genuína “procura
de Deus” na tradição grega.21[20] De acordo com Dupuis, uma visão ainda mais ampla
pode ser encontrada no Evangelho de João, sobretudo no seu Prólogo. O evangelista

17[16] O autor faz aqui referência ao livro de L.LEGRAND. Il dio che viene. Roma,
Borla, 1989. Para Legrand não se pode reduzir o pensamento do Antigo Testamento a uma
perspectiva de “particularismo” . O sentido de eleição não indica, segundo o autor, uma
restrição da ação de Deus ao povo de Israel, mas constitui para Israel uma exigência de
visão universal do desígnio de Deus. Em semelhante direção cf. também: J.I.GONZÁLEZ
FAUS. Religiones de la tierra y universalidad de Cristo. Del dialogo a la diapraxis. In:
X.ALEGRE et alii. Universalidad de Cristo. Universalidad del pobre. Santander, Sal
Terrae, 1995, p. 126-127; A. TORRES QUEIRUGA. Un Dios para hoy. Santander, Sal
Terrae, 1997, p. 22; E.SCHILLEBEECKX. Religione e violenza. Concilium (4): 231,
1997.

18[17] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 61-66.

19[18] Ibidem, p. 67.

20[19] Ibidem, p. 71.

21[20] Ibidem, p. 71-72.


sublinha no Prólogo que toda a história da salvação, já a partir da criação, é realizada por
Deus através do Logos. Ou seja, antes mesmo da Encarnação do Verbo (ponte culminante
da auto-revelação de Deus) o Logos já se fazia presente como fonte de vida (Jo 1,4),
manifestando, assim, a presença viva de um Deus que abraça toda a história humana. Como
destaca Dupuis, esta perspectiva joanina articula-se com a economia da Palavra de Deus e
da Sabedoria divina no Antigo Testamento e sua visão teológica (teologia do Logos-
Sabedoria) “fornece a mais ampla perspectiva neotestamentária sobre o universal
envolvimento de Deus na história da humanidade”22[21]

No segundo capítulo do livro o autor desenvolve o tema do Cristo cósmico nos


primeiros padres. Neste capítulo, Dupuis pretende mostrar como na tradição mais antiga da
igreja já existe uma consciência da presença universal e ativa de Deus através de seu Verbo.
A mesma prudência sugerida pelo autor ao tratar os dados escriturísticos sobre o tema é
novamente acionada para a abordagem dos primeiros padres. Não seria conveniente
simplesmente transpor os dados significativos num contexto para outro diferente. Dupuis
explica que foram muito diversificadas as opiniões dos primeiros padres sobre o tema,
envolvendo tanto uma perspectiva de abertura para a cultura das “nações” como
posicionamentos de condenação absoluta.

Os primeiros padres foram unânimes em condenar o politeísmo e a idolatria. Esta


enfática oposição não esgota, segundo Dupuis, o quadro da situação. Na tradição mais
antiga encontramos igualmente testemunhos de uma “notável abertura a outros aspectos da
cultura e da religião circunstante” 23[22]. O autor sublinha em particular a teologia do Logos
presente em alguns dos primeiros padres, sobretudo Justino, Irineu e Clemente de
Alexandria.

Dentre os apologistas gregos Justino24[23] foi o primeiro a destacar que a


manifestação de Deus mediante o seu Verbo não se limitou à economia cristã. Antes mesmo
da encarnação, as sementes do Verbo irradiavam junto a judeus e gregos. Todos os que
vivem “segundo o Verbo” merecem segundo Justino o nome de cristãos, ainda que seja
parcial ou obscuro o acesso à manifestação completa do Logos, facultada pelo seu processo
de encarnação. Justino reconhece, assim, várias formas de participação no Logos.

Irineu25[24] é outro padre da igreja que reconhece a universal função reveladora do


Logos desde o início da humanidade. Para Irineu todas as teofanias do Antigo Testamento
são Logo-fanias. O Logos de Deus se faz presente em suas quatro alianças com a
humanidade: a aliança com Adão, Noé, Moisés e Cristo. Em cada uma delas o Logos é uma

22[21] Ibidem, p. 74.

23[22] Ibidem, p. 78

24[23] Cf. GIUSTINO. Apologie. A cura di Giuseppe Girgenti. Milano, Rusconi Libri,
1995.

25[24] Cf. IRENEU. Contro le eresie e gli altri scritti. A cura di E.Bellini. Milano, Jaca
Book, 1979.
presença ativa. Nas três primeiras alianças o Logos de Deus prepara sua vinda futura na
carne, quando então ele ganha o significado de “sacramento do encontro com Deus”. Irineu
abre desta forma um grande espaço para o aprofundamento de um teologia da revelação do
Cristo cósmico, que será retomada na moderna reflexão da teologia das religiões.

A teologia do Logos ganha novos contornos em Clemente de Alexandria26[25],


que à diferença de Justino e Irineu, distingue dois planos diferentes quanto ao
conhecimento de Deus. Por um lado, um conhecimento elementar de Deus mediante o uso
da razão (conhecimento natural). Por outro, uma ação pessoal do Logos que nos introduz
nos segredos de Deus. Clemente reconhece na filosofia uma função propedêutica para o
acesso à verdade cristã. Sua função é transitória, ou seja, preparar as pessoas, mediante
demonstração racional, para a vinda de Cristo. Seu papel é comparado ao de uma lâmpada,
que perde sua razão de ser no momento em que o sol aparece. Para Clemente, entretanto, os
verdadeiros guias na orientação para Cristo não são os filósofos gregos, mas os antigos
filósofos, dentre os quais destaca os brâmanes e os seguidores de Buda. Para Dupuis, isto
significa afirmar “juntamente com a presença de uma verdade cristã parcial nas tradições
budista e hindu, um significado positivo de tais tradições na história da salvação.” 27[26] O
significado de filosofia para Clemente, como ressalta Dupuis, com base nas reflexões de M.
Fédou28[27], não se limita às doutrinas elaboradas por diferentes escolas de pensamento,
mas inclui em seu significado “elementos religiosos”29[28].

Ao tratar hermenêuticamente da antiga teologia do Logos, Dupuis levanta uma


importante questão: o evento histórico de Jesus Cristo exaure o valor da Sabedoria grega
como “educadora” para o Evangelho ? Com base em interpretação de Clemente de
Alexandria, o autor sublinha que tanto a filosofia grega como outros tipos análogos de
sabedoria não perdem o seu lugar na economia da salvação nem mesmo após a vinda
histórica do Senhor, já que a “promulgação do Evangelho” só ocorre de fato quando as
singulares pessoas são diretamente interpeladas pela mensagem cristã30[29]. Seguindo uma

26[25] Cf. CLEMENTE ALESSANDRINO. Il Protrettico. A cura di Matteo Galloni.


Roma, Borla, 1991; Id. Stromati. Note di vera filosofia. A cura di G.Pini. Milano, Paoline,
1985.

27[26] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 95.

28[27] Cf. M.FÉDOU. Les Pères de l’Église face aux religions de leur temps. In:
PONTIFICIUM Consilium Pro Dialogo Inter Religiones. Bulletin (80): 173-185, 1992

29[28] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 99.

30[29] Ibidem, p. 102-103. Por ocasião de um seminário interdisciplinar organizado pela


Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional (Seção San Luigi), Dupuis aborda a
mesma questão. Ele lança a questão de como devemos entender a “promulgação do
Evangelho”. Será que na Índia, com sua população de 950 milhões de pessoas, o Evangelho
já foi promulgado ? Quais os critérios que definem uma tal afirmação ? Com base em
Rahner, Dupuis destaca que “fino a quando nella coscienza di ogni persona individuale non
si sia fatto sentire esistenzialmente l’obbligo di diventare cristiano, fino quel punto non si
perspectiva de grande abertura, Dupuis contesta a tese de autores que defendem uma
diferença qualitativa entre a justificação pré-cristã e a graça cristã. Para Dupuis, a graça,
enquanto auto-manifestação de Deus e dom de si, não pode acontecer desprovida em certos
casos da presença imanente do Espírito. Ela é sempre graça trinitária. 31[30] Para Dupuis, a
distinção entre o regime da graça pré-cristão com respeito ao cristão não pode se justificar
com base numa distinção entre graça e graça cristã.

No terceiro capítulo, o autor estuda a origem histórica do axioma “Fora da Igreja


não há salvação”, que por séculos constituiu símbolo da posição negativa da Igreja a
respeito da possibilidade de salvação para os membros das outras tradições religiosas. Nos
primeiros padres da Igreja, antes de Agostinho, este axioma era aplicado particularmente
aos heréticos e cismáticos, ou seja, a pessoas que corriam o risco de separar-se da igreja ou
que dela já se haviam afastado. O axioma passou a ser atribuído aos hebreus e pagãos
quando o cristianismo torna-se religião oficial do império romano. Sobretudo a partir de
Agostinho (354-430) é que passa a vigorar uma interpretação mais exclusivista do
tradicional adágio, em correspondência com sua perspectiva teológica que restringia
significativamente a dinâmica da vontade salvífica universal de Deus. 32[31] Um de seus
discípulos, Fulgêncio de Ruspe (468-533), evidenciará de forma rígida a aplicação do
axioma aos pagãos e hebreus, e sua tese será acolhida nove séculos depois pelo Concílio de
Florença (1442). Para Dupuis, constitui um fato significativo, este Concílio ter enunciado a
doutrina tradicional em sua formulação mais rígida33[32].

Na busca de uma hermenêutica do axioma, Dupuis levanta a questão sobre a


relevância da doutrina e a sua atual pertinência. O autor lembra que em 1949 o magistério
tomou firme posição contra uma interpretação rígida do axioma, por ocasião da condenação
do padre jesuíta Leonard Feeney34[33], que exigia como condição para a salvação a

può dire che il Vangelo sia stato promulgato per tale persona.” Como bem sinaliza Dupuis,
não se pode fazer teologia pensando exclusivamente nos dois bilhões de cristãos, mas ela
deve ser realizada tendo em vista os quase seis bilhões de pessoas existentes hoje no
mundo. Cf. J.DUPUIS. In: PONTIFICIA Facoltà Teologica dell’Italia Meridionale -
Sezione san Luigi. Universalità del cristianesimo; in dialogo con Jacques Dupuis. A cura
de M. Farrugia. Milano, San Paolo, 1996, p. 315 (Dibattito).

31[30] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 105-106.

32[31] Ibidem, p. 124. Para uma reflexão mais ampla sobre o histórico do axioma cf.
F.A.SULLIVAN. Salvation outside the Church ? Tracing the History of the Catholic
Response. New York/Mahwah, Paulist Press, 1992 e G. CANNOBIO. Chiesa perché;
Salvezza dell’umanità e mediazione ecclesiale. Cinisello Balsamo, San Paolo, 1994.

33[32] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 130.

34[33] Cf. Lettera del Sant’Uffizio al arcivescovo di Boston (8 agosto 1949). In:
DENZINGER, H. Enchiridion symbolorum, definitionum et declarationum de rebus fidei
et morum. Ed. Bilingue a cura di P.Hünermann. Bologna, Edizioni Dehoniane, 1995.
Comentando a excomunhão de Feeney, Congar assinala: “Curiosa posição de um homem
pertença à Igreja. Segundo Dupuis o axioma deve ser hoje interpretado à luz das
orientações do Concílio Vaticano II, em particular da LG 14, quando fala da Igreja como
“necessária à salvação”, ou em outros passos, da igreja como “instrumento geral de
salvação” (UR 3) e “instrumento da redenção de todos” (LG 9). A questão que permanece
ainda aberta, lembra Dupuis, refere-se ao modo como deve ser teologicamente interpretada
a universal “necessidade” da igreja na ordem da salvação com respeito à “única mediação”
atribuída pelo Novo Testamento a Jesus Cristo35[34].

No mesmo período histórico de vigência deste axioma como doutrina oficial da


igreja encontraremos, entretanto, posicionamentos mais positivos para com as religiões,
defendidos por Pedro Abelardo, Francisco de Assis, Raimundo Lúlio e Nicolau de Cusa.
Este último autor, escreve um significativo livro (De pace fidei - 1454), 12 anos após o
Concílio de Florença e logo depois da queda de Constantinopla, propondo uma
convergência universal das religiões.36[35] Apesar de questionar sua posição teológica,
Dupuis ressalta que o livro escrito por Cusano teve o mérito de pela primeira vez afrontar o
tema das religiões não cristãs de forma positiva, rompendo já na ocasião com a “teologia da
realização” (ou do acabamento) que será defendida no século XX por Daniélou e De
Lubac.37[36]

No quarto capítulo, Dupuis propõe trabalhar os argumentos que a tradição


teológica posterior à descoberta do novo mundo (1492) desenvolveu a propósito dos
substitutivos do evangelho finalizados a explicar a possibilidade de uma “fé implícita”.
Para o autor, a descoberta do novo mundo criou condições de possibilidade para uma
reflexão qualitativamente distinta a respeito do tema da salvação dos membros das outras
tradições religiosas. A partir de então não seria mais possível sustentar de forma
incondicional que a fé em Jesus Cristo e a pertença a igreja constituissem requisitos
absolutos para a salvação. Papel destacado nesta reflexão coube aos teólogos dominicanos
da Universidade de Salamanca e aos professores jesuítas do Colégio Romano. O teólogo
dominicano, D.Soto, em texto de 1549, contesta a tese tradicional da infidelidade culpável
dos habitantes do novo mundo antes da chegada dos missionários e retoma a tese da fé

que vem excluído da Igreja por ter afirmado que aqueles que a ela não pertencem
explicitamente estão condenados”: Y.CONGAR. Santa Chiesa; saggi ecclesiologici.
Brescia, Morcelliana, 1964, p. 394.

35[34] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 137-138. O tema será desenvolvido mais
pormenorizadamente pelo autor na segunda parte do livro, como veremos.

36[35] Para uma abordagem pertinente sobre este autor cf. P.GAIA. L’ecumenismo
religioso di Nicolò Cusano nel “De Pace Fidei”. In: R.PENNA (a cura di). Vangelo,
religioni e cultura. Torino, San Paolo, 1993, p. 233-261.

37[36] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 146.


implícita, desenvolvida por Tomás de Aquino38[37], mediante a qual Deus forneceria aos
mesmos a luz necessária para a presença da salvação em Jesus Cristo.

O teólogo jesuíta J. de Lugo avança ainda mais a perspectiva ao defender a tese para
a época “revolucionária” da fé implícita mesmo para aqueles que, tendo consciência de
Cristo, não comungavam da fé ortodoxa. Para este teólogo, não apenas os pagãos, mas
igualmente os heréticos, hebreus e muçulmanos poderiam aceder à salvação mediante a fé
sincera em Deus.39[38] Segundo Dupuis, com de Lugo a teoria da fé implícita ganha sua
forma mais compreensiva.

A tese da fé implícita teve sua primeira recepção no magistério da igreja por ocasião
do Concílio de Trento (1547), mediante a afirmação da possibilidade da justificação através
do “batismo de desejo”. Em seguida, com as condenações de Baio e Jansênio , o magistério
confirmava a possibilidade da graça mesmo para aqueles que estavam fora da igreja.
Posteriormente, com Pio IX, abre-se a possibilidade de salvação para aqueles que por
“ignorância invencível” encontram-se fora da igreja ( alocução Singulari quadam - 1854 e
carta encíclica Quanto conficiamur moerore - 1863 ). Conforme salienta Dupuis, “esta
admissão atenua consideravelmente a dureza da doutrina expressa no Concílio de
Florença”, para o qual não há possibilidade de salvação para aqueles que se encontram fora
da igreja40[39]. No mesmo pontificado de Pio IX encontraremos, entretanto, outros
posicionamentos mais rígidos, em contraste com a abertura possibilitada pelos documentos
mencionados, é o caso de algumas proposições sobre o indiferentismo religioso condenadas
no Sillabo de 1864, mas que segundo Dupuis devem ser interpretados à luz dos documentos
mais abertos que o precederam.

Com Pio XII, na carta encíclica Mystici corporis (1943), procede-se uma
identificação da igreja católica romana com o corpo místico de Cristo. Conforme esta
encíclica os que não participam da igreja católica carecem dos dons celestes que somente
ali podem partilhar, entretanto, em razão de um desejo inconsciente, estão ordenados à

38[37] Como faz lembrar Dupuis, Tomás de Aquino jamais se destacou da perspectiva que
defendia a fé explícita para a salvação. Sua tese sobre a “fé implícita” era válida para
aqueles que viveram antes da “promulgação do Evangelho”. A partir do acontecimento
desta promulgação a fé explícita passa a ser uma necessidade para a salvação. Tomás de
Aquino partilhava, porém, a visão tradicional para a qual a mensagem do Evangelho teria
penetrado em todas as nações da época. Cf. Dupuis. Verso una teologia…, p. 154-155.

39[38] Comentando o caráter “revolucionário” de de Lugo F.A. Sullivan destaca a coragem


deste teólogo católico, professor em Roma, que após as restritas formulações do Concílio
de Florença e de toda a tradição medieval, ousa indicar a possibilidade de salvação para
hebreus, muçulmanos e heréticos, quando animados por uma sincera fé em Deus. Suas
reflexões, como lembra Sullivan, contrariavam a tradição teológica precedente e até mesmo
o ensinamento dos concílios e papas medievais. F.A. SULLIVAN. Salvation outside the
Church ? Tracing the History of the Catholic Response. New York/Mahwah, Paulist Press,
1992. Cit. In J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 161.

40[39] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 166.


mesma. Este desejo, como o lembra Dupuis, estaria presumivelmente implícito na vontade
sincera de cumprir a vontade de Deus.41[40] O tema da salvação mediante o desejo
implícito ou voto reaparece na carta do Santo Ofício ao arcebispo de Boston onde se
condena a posição de L.Feeney (1949). Neste documento fica explícito que a pertença real
à igreja não constitui condição indispensável para se obter a salvação, que pode ocorrer
mediante um desejo implícito de adesão à mesma, subjacente na boa disposição do sujeito
em fazer a vontade de Deus. Nesta carta se evidencia que “a necessidade de pertença à
igreja para a salvação é uma necessidade ‘de meio’ e não somente de ‘preceito’”42[41]

Durante um longo período a reflexão da igreja concentrou-se em torno do tema da


possibilidade da “salvação para os infiéis”. Gradualmente, porém, novos horizontes foram
sendo desvendados. Isto ocorreu de forma significativa no período que antecedeu ao
Vaticano II (1962-1965), prolongando-se no pós-Concílio. O momento histórico favorecia
um novo posicionamento, com a ampliação do conhecimento dos teólogos sobre as
religiões e, particularmente, a nova interação entre os cristãos e os membros das outras
tradições religiosas. No capítulo quinto de sua obra, Jacques Dupuis se propõe examinar
em linhas gerais as opiniões dos autores que sintetizam a problemática ativa na reflexão
teológica sobre as religiões naquele período. De forma geral, o debate sobre o tema
deslocou-se de uma perspectiva primariamente eclesiocêntrica para outra cristocêntrica. A
atenção dos teólogos concentrava-se agora sobre o lugar ocupado pelas religiões no
mistério da salvação em Jesus Cristo.

Duas perspectivas teológicas são apontadas pelo autor para traduzir as principais
posições teológicas no debate sobre este argumento. De acordo com a primeira posição,
definida por Dupuis como “teoria da realização”, as diversas religiões da humanidade
representam a aspiração inata no homem à união com o divino, aspiração humana e
universal que encontra sua resposta (seu complemento) em Jesus Cristo e no cristianismo,
única religião sobrenatural. Para os autores situados nesta primeira perspectiva, as outras
religiões não exercem nenhum papel no mistério da salvação, sendo definidas como
“religiões naturais”. Entre os teólogos alinhados nesta primeira posição estão J.Daniélou,
H.De Lubac e H.Urs von Balthasar. A segunda posição foi designada por Dupuis como
“teoria da presença de Cristo nas religiões”. De acordo com esta teoria, as diversas
tradições religiosas da humanidade são portadoras de valores soteriológicos positivos para
os seus membros, pois nelas e através delas manifesta-se a presença operativa de Jesus
Cristo e de seu mistério salvífico. Esta segunda posição não introduz uma duplicidade no
mistério salvífico, que permanece único. O que ela sublinha é a participação das várias
tradições religiosas no desígnio salvífico de Deus, representando, cada qual a seu modo,
uma ordenação ou mediação.43[42] Todas as religiões, na medida em que nelas vem

41[40] Ibidem, p. 170. Segundo Dupuis, o Vaticano II, de forma diversa da Mystici
Corporis, afirmará que os cristãos não católicos encontram-se ‘unidos’ (coniuncti) à igreja
por múltiplas razões (LG 15) e reservará a aplicação do termo “ordenamento” (ordinantur)
especifica e exclusivamente aos membros das outras religiões (LG 16). Cf. J.DUPUIS.
Op.cit., p. 170.

42[41] Ibidem, p. 170.


reconhecida uma mediação existencial do mistério da salvação, podem ser pertinentemente
definidas como sobrenaturais.

O primeiro expoente ocidental da “teoria da realização” foi J.Daniélou, que dos


anos 40 a 60 escreveu diversos trabalhos sobre o argumento. Assim como os demais autores
da primeira posição, Daniélou mantém de forma nítida a dialética natural-sobrenatural. Sua
proposta vai no sentido de uma teologia da história como gradual manifestação de Deus à
humanidade. Tudo o que precede à manifestação pessoal de Deus na história é identificado
pelo autor como “pré-história” da salvação. As religiões do mundo (religiões cósmicas),
com exceção das três religiões monoteístas, não passam de elaborações humanas de uma
consciência de Deus, pertencendo assim à ordem natural. Em si mesmas são destituídas de
poder salvífico e, no melhor dos casos, representam unicamente aspirações da pessoa
humana em direção ao Ser Absoluto. A diferença essencial que separa estas “religiões
naturais” do cristianismo é Jesus Cristo, doador de salvação. Enquanto as religiões
testemunham o movimento do humano em direção a Deus, o cristianismo constitui o
movimento de Deus em direção ao humano e só ele é capaz de fornecer a resposta às
aspirações de todo o universo.

Reflexão semelhante é realizada por Henri de Lubac, para o qual só o cristianismo


constitui uma religião sobrenatural. As outras religiões não estão destituídas de verdade e
bondade. Em todo ser humano está impressa uma imagem de Deus, entendida como uma
“chamada secreta para o Objeto da revelação, plena e sobrenatural, trazida por Jesus
Cristo.”44[43] Assim como o sobrenatural não substitui a natureza, mas a informa e
transforma, assim também o cristianismo é convocado a transformar o esforço religioso da
humanidade; isto comporta dois aspectos complementares: de purificação e combate de
seus desvios bem como de assunção, assimilação e transfiguração de seus valores
positivos.45[44] Reconhecer tais valores não significa para De Lubac atribuir um valor
salvífico às outras religiões pois isto equivaleria para ele a introduzir vias paralelas de
salvação, criando uma situação de “concorrência” com o cristianismo e sombreando sua
unicidade. Segundo De Lubac só pode haver um desígnio ordenado de Deus, sendo o
cristianismo seu único pólo.46[45] É sob a forma de resposta divina à aspiração de
transcendência presente no humano que o mistério de Cristo alcança, segundo o autor, os
membros das outras tradições religiosas.

43[42] Ibidem, p. 176.

44[43] De LUBAC. Paradosso e mistero della Chiesa. Milano, Jaca Book, 1997, p. 163.

45[44] Ibidem, p. 165. No cristianismo vem, assim, coroado o esforço religioso da


humanidade.

46[45] Esta compreensão de um único eixo ou pólo, identificado com o cristianismo,


segundo o qual a humanidade deve ser conduzida à salvação definitiva, vem atribuída por
De Lubac a Teilhard de Chardin. Cf. Paradosso e mistero…, p. 176-177. Dupuis,
contrapondo-se a De Lubac, indica que para Teilhard de Chardin este pólo não pode ser
identificado com a igreja, mas com Jesus Cristo. Cf. Verso una teologia…, p. 185.
Outro autor que reflete, segundo Dupuis, a perspectiva da primeira posição é Hans
Urs von Balthasar. Em diversos trabalhos von Balthasar reflete sobre a relação do
cristianismo com as demais religiões do mundo e em particular com as religiões orientais.
Seu objetivo é sempre sublinhar o caráter absoluto do cristianismo com respeito às outras
tradições religiosas. Para este autor, as religiões universais não possuem o mesmo valor. As
religiões de revelação (judaísmo, cristianismo e islamismo) presentes no hemisfério
ocidental distinguem-se nitidamente das demais variantes religiosas do mundo oriental.
Para von Balthasar, o homem religioso no Ocidente encontrou uma revelação que vem de
Deus e que entrou na história, enquanto no Oriente o movimento segue o sentido inverso,
do homem religioso para o Absoluto-Divino. 47[46] Nos dois casos há um fundamento
comum na busca da auto-transcendência e libertação, mas a diferença reaparece no
caminho perseguido para conseguir tal meta. A crítica de von Balthasar refere-se sobretudo
à pretensão presente nas religiões orientais de conduzir a auto-libertação mediante o esforço
humano. Para o autor, esta auto-transcendência “só pode ser recebida como dom gratuito de
um Deus de amor que se comunica pessoalmente com os seres humanos.”48[47] Dentre as
religiões de revelação somente o cristianismo permanece, segundo von Balthasar, como
religião universal destinada a todos. Como indica este autor, “a pretensão de universalidade
enraiza-se na figura, única e sem analogia na história universal, de Jesus Cristo, que cumpre
todas as pretensões das religiões orientais, do judaísmo e do islamismo, no nomento em que
eleva por si mesmo a pretensão de autoridade divina e de comunicação de vida.” 49[48] Para
este autor, o cristianismo assume e leva à sua realização (acabamento) todos os elementos
positivos presentes nas demais tradições religiosas.

Dentre os autores que se inserem na segunda perspectiva, por Dupuis denominada


“teoria da presença de Cristo nas religiões”, Karl Rahner constitui o seu principal
representante. Sua reflexão revela a consistente diferença existente entre as duas posições
sublinhadas. Com base em sua antropologia teológica, Rahner sustenta que o ser humano é
um “evento da absoluta auto-comunicação de Deus”, estando concreta e ativamente
ordenado à realização da auto-transcendência em Deus. Esta oferta da auto-comunicação de
Deus é por Rahner entendida como sendo um “existencial sobrenatural” que diz respeito a
todos os seres humanos. Trata-se de uma estrutura fundamental, presente como oferta
gratuita no mais íntimo da subjetividade humana, que impulsiona toda a dinâmica de sua
atividade intencional. Para Rahner, a graça não significa uma realidade extrínseca ao
sujeito, mas seu constitutivo mais íntimo, ainda que de ordem sobrenatural. Trata-se de uma
oferta à liberdade e não uma inevitabilidade criatural. Como este autor sublinha, ela pode
ser pensada “sem dano para a sua sobrenaturalidade e gratuidade, como um existencial

47[46] H.U. Von BALTHASAR. Incontrare Cristo. Casale Monferrato, Piemme, 1992, p.
54.

48[47] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 189.

49[48] H.U.Von BALTHASAR. Incontrare Cristo. Op.cit., p. 69. Para von Balthasar,
Jesus Cristo constitui o “mistério do total dom de si do Deus de amor à humanidade no seu
Filho feito homem, no qual ele chama mediante uma ‘maravilhosa permuta’ todos os seres
humanos a uma comunhão pessoal com ele, assim como um ‘Eu’ e um ‘Tu’.” : J.DUPUIS.
Verso una teologia…, p. 189.
permanente do homem, da humanidade e de sua história dado sempre e em todo o lugar,
como possibilidade permanentemente dada de uma relação salvífica da liberdade para com
Deus.”50[49]

Partindo desta compreensão da graça como “existencial permanente”, Rahner indica


que as diversas religiões não apresentam somente elementos de uma natural crença em
Deus, como os autores da posição anterior sublinharam extensivamente, mas trazem
consigo “substanciais traços sobrenaturais da graça doada por Deus ao homem em Jesus
Cristo.”51[50] A livre aceitação desta oferta da auto-comunicação de Deus, mediante a fé,
esperança e caridade, ainda que realizada fora de uma explícita tematização cristã, sob o
ponto de vista social e de sua consciência objetiva, já indica a presença implícita do
cristianismo que pulsa no âmbito mais profundo da subjetividade tocada pela graça. 52[51]
Os membros das outras religiões, mediante a prática sincera de suas próprias tradições,
partilham de um “cristianismo anônimo” e alcançam a salvação cristã através de suas
próprias tradições.53[52] A abertura da reflexão de Rahner sobre o tema não significa uma
equiparação das outras religiões com o cristianismo. No seu livro “Curso fundamental
sobre a fé” ele estabelece uma distinção entre um cristianismo anônimo e o cristianismo
pleno. Mesmo reconhecendo no primeiro a permanência ativa da mediação do mistério
salvífico, Rahner sublinha que no segundo ocorre uma diversa modalidade de mediação do
mistério de Jesus Cristo.54[53] Assim como Jesus Cristo, à luz da interpretação reflexa da
história da salvação e da revelação, aparece como “a mais sublime, absoluta e irrevogável
autocomunicação de Deus ao homem”, sob esta mesma luz o cristianismo e a igreja
emergem como a garantia da memória desta “concretude da história da salvação como
mediação e concretude de minha relação sobrenatural transcendental para com Deus.” 55[54]

50[49] K.RAHNER. Significato salvifico delle religioni non cristiane. In: Dio e
rivelazione. Roma, Paoline, 1981, p. 428 (Nuovi Saggi VII).

51[50] K.RAHNER. Cristianesimo e religioni non cristiane. In: Saggi di antropologia


soprannaturali. Roma, Paoline, 1965, p. 545.

52[51] K.RAHNER. Osservazioni sul problema del “cristianesimo anonimo”. In: Nuovi
Saggi V. Roma, Paoline, 1975, p. 681

53[52] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 194.

54[53] Como bem sublinhado por Dupuis, o cristianismo anônimo e o explícito


“comportam (…) regimes diferentes de salvação e modalidades distintas de mediação do
mistério de Jesus Cristo”, mas o mistério da salvação permanece único, manifestando-se
ativamente através de diferentes mediações. Cf. J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 195.
A posição de Rahner expressa no “Curso fundamental da fé” cancela possíveis
ambiguidades atribuídas à sua reflexão sobre o cristianismo anônimo e confirma que a
diferença entre o cristianismo anônimo e explícito não se reduz exclusivamente a uma
questão de consciência reflexa.

55[54] K.RAHNER. Corso fondamentale sulla fede. Roma, Paoline, 1978, p. 577, 579,
438 e 444.
Neste sentido, o cristianismo anônimo permanece, segundo Rahner, como realidade
fragmentária e incompleta, mas animado por um dinamismo que o impulsiona a aderir ao
cristianismo explícito.

Diversas objeções foram feitas à teoria do cristianismo anônimo de Rahner.


Algumas com respeito à terminologia adotada56[55]; outras mais substantivas, como as
críticas tecidas por de Lubac57[56] e V. Boublik58[57], para os quais a tese de Rahner não
explicitaria a real novidade do cristianismo e sua peculiaridade de único caminho de
salvação. Para estes autores, a novidade introduzida pelo cristianismo explícito não poderia
ser reduzida a uma questão de consciência. Igualmente incisiva foi a crítica feita por von
Balthasar contra a cristologia presente em sua concepção de cristianismo anônimo. Este
autor assinala que a tese de Rahner acaba por desvalorizar a teologia da cruz. Numa
perspectiva por Balthasar definida como evolucionista, Cristo aparece como “a evolução
tornada consciente.” A encarnação, antes de ser compreendida em função da redenção, é
percebida como meta do mundo. Ao tratar esta questão, J.Dupuis sublinha que em realidade
o que está em jogo é uma profunda divergência entre estes autores com respeito à relação
entre natural e sobrenatural. Segundo von Balthasar, a tese de Rahner minaria a gratuidade
e novidade do evento Jesus Cristo, uma vez que em sua perspectiva a humanidade já estaria
intimamente orientada para ele. Para Rahner, ao contrário, a ausência de uma tal orientação
impediria qualquer reconhecimento ou compreensão deste evento.59[58]

J.Dupuis situa ainda nesta segunda perspectiva outros teólogos como Raimundo
Panikkar, Hans Küng e Gustave Thills. Com respeito a Panikkar, particularmente o seu
primeiro livro, intitulado “O Cristo desconhecido do iInduísmo” (1964) reflete de forma
bem clara a “teoria da presença de Cristo nas religiões”. Posteriormente sua posição, como
salienta Dupuis, sofreu modificações significativas, suscitando algumas dificuldades, em
particular a questão do lugar ocupado por Jesus na história da fé cristã. Para Dupuis, a
distinção problemática feita por Panikkar entre o Mistério (enquanto conteúdo da fé) e o
“mito Jesus” (enquanto objeto de crença), ou seja o Cristo da fé e o Jesus da história,
dificulta sua compatibilidade com a profissão de fé cristã na pessoa de Jesus de Nazaré. 60
[59]

56[55] É o caso das críticas tecidas por H.Küng. Cf. J.DUPUIS. Verso una teologia…, p.
196.

57[56] H.DE LUBAC. Paradosso e mistero della chiesa, p. 179. Este autor reconhece a
existência de cristãos anônimos nos diversos âmbitos existenciais, mas considera
equivocado o conceito “cristianismo anônimo” . Para de Lubac, não se pode desconhecer a
“novidade ‘desconcertante’ da contribuição cristã” e da grande mudança provocada pelo
evangelho. A revelação de Jesus Cristo, como sublinha de Lubac, não constitui uma mera
retomada de algo já existente desde sempre, assim como a tarefa da pregação evangélica
não se reduz a passar o cristianismo implícito, imutável em si mesmo, ao estado explícito.
Cf. Ibidem, p. 179 e 181.

58[57] V.BOUBLIK. Teologia delle religioni. Roma, Studium, 1973, p. 254-281.

59[58] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 199.


O interesse de Hans Küng a propósito da teologia das religiões desperta no mesmo
ano da publicação do clássico livro de Panikkar (1964) 61[60], e a perspectiva assumida pelo
autor vai na linha da reflexão de Rahner e Schlette. Este autor trabalha com a distinção
entre “via extraordinária de salvação” (igreja) e “vias ordinárias de salvação” (outras
tradições religiosas). As religiões, ainda que consideradas “caminhos de salvação”,
assumem em sua reflexão uma “validade relativa”, diante da superioridade do cristianismo.
No seu clássico livro “Ser cristão” (1974), esta autor reconhece a presença de elementos de
verdade divina nas religiões, embora sua avaliação geral sobre as religiões permaneça
negativa.

É em torno da singularidade da pessoa de Jesus Cristo que H.Küng busca


estabelecer a especificidade e originalidade do cristianismo. Mas a forma como este autor
estabelece a “diversidade de Jesus” permanece, segundo Dupuis, incompleta e
inconcludente. Centrando-se numa cristologia “funcional”, fundada no programa ou projeto
de Jesus, Küng não evidencia a identidade pessoal de Jesus Cristo como Filho de Deus
(cristologia ontológica). Para Dupuis, “somente a identidade pessoal de Jesus Cristo como
Filho unigênito de Deus pode estabelecer de modo decisivo tal diversidade” e, desta forma,
garantir o seu caráter normativo face aos outros fundadores religiosos, bem como sua
necessária mediação como “constitutiva” da salvação para todos os homens. 62[61] Em seus
trabalhos mais recentes, H.Küng avança sua proposta no sentido de uma “teologia
ecumênica das religiões” na qual, sem renunciar ao testemunho da verdade, abre-se ao
desafio do diálogo inter-religioso. Para tanto, estabelece uma “criteriologia inter-religiosa”
que possa valer para todas as religiões.63[62]

Gustave Thils é outro teólogo a reconhecer um lugar positivo para as várias


tradições religiosas no mistério da salvação. Em livro publicado em 1966 64[63] este autor
reconhece a existência de uma “revelação universal” de Deus para a humanidade. Em sua
reflexão, as religiões possuem uma “certa eficácia salvífica”, já que inseridas no desígnio
salvífico universal de Deus. A salvação não é algo que acontece apesar das tradições
religiosas, mas sua realização se dá no interior e por meio destas mesmas tradições. Isto não

60[59] Ibidem, p. 204.

61[60] Esta posição reflete-se em comunicação por ele apresentada num congresso
realizado na Índia em 1964 sobre o tema da Revelação e as religiões não cristãs.

62[61] J.DUPUIS. Gesù Cristo incontro alle religioni. 2 ed. Assisi, Cittadella, 1991, p.
272-273. Esta talvez tenha sido a razão pela qual Dupuis neste livro tenha situado H.Küng
não na corrente inclusivista, como em seu último livro, mas no teocentrismo de cristologia
normativa. Ver p. 274.

63[62] Para uma visão geral sobre sua “criteriologia inter-religiosa” cf. H.KÜNG. Teologia
in cammino. Milano, Mondadori, 1987; Id. Projeto de ética mundial. São Paulo,
Paulinas, 1992 (publicado originalmente em 1990).

64[63] G.THILS. Religioni e cristianesimo. Assisi, Cittadella, 1967 (original francês,


1966).
significa para o autor atribuir a todas as religiões um valor equivalente. O cristianismo
permanece como o caminho “extraordinário” e “plenário” de salvação, mas entre ele e as
demais religiões, em vista do desígnio de Deus para a humanidade, existe uma “unidade
orgânica”. No âmbito mais amplo da ordem da salvação, as outras religiões apresentam um
“valor de sinal”, não da mesma ordem do cristianismo, mas como um “esboço” daquilo que
o cristianismo oferece enquanto animado pela plenitude dos meios de salvação.

No capítulo sexto de seu livro, Dupuis desenvolve o tema do Vaticano II e o


magistério pós-conciliar em torno das religiões. Já no início do capítulo, este autor sublinha
que em razão da índole pastoral e não doutrinal do Concílio, não houve um posicionamento
mais decisivo deste evento em favor de uma ou outra das posições teológicas que
dominavam o cenário teológico por ocasião do Vaticano II. Além disso, como se sabe, em
razão da diversidade teológica presente entre os padres conciliares, houve por parte do
Concílio uma intenção de sempre trabalhar tendo em vista o consenso da mais ampla
maioria de seus membros.65[64]

O Vaticano II foi o primeiro concílio a tratar o tema das religiões de modo positivo e
aberto. Situando o Vaticano II no contexto da história conciliar da igreja, verificamos a
grande novidade que representou o evento no campo da relação da igreja com as outras
religiões. Dupuis assinala que quase nunca ao longo dos séculos os documentos da igreja,
sejam conciliares ou não, haviam emitido parecer a propósito, com exceção da declaração
radicalmente negativa tomada no Concílio de Florença (1442), quando se assumiu a tese
polêmica de Fulgêncio de Ruspe sobre a condenação dos heréticos e pagãos.66[65]

A intenção de Dupuis neste capítulo consiste em responder a uma série de


interrogações que acompanham a discussão teológica sobre o evento conciliar no que diz
respeito ao tema da relação da igreja com as outras tradições religiosas: até onde vai o
reconhecimento conciliar sobre o valor positivo destas diversas tradições religiosas ? Qual
o seu significado no desígnio salvífico de Deus ? Como se deu no Concílio a compreensão
da interação do cristianismo com as outras religiões ? A reflexão de Dupuis não se restringe
ao Concílio, mas examina igualmente a reflexão do magistério da igreja pós-conciliar, no
sentido de verificar em que medida significou uma acolhida ou não das intuições do
Vaticano II sobre o tema.

Em que medida o Concílio Vaticano II pode ser compreendido como um “divisor


de águas” ? Com esta interrogação J.Dupuis inicia sua reflexão sobre o ensinamento do
Concílio sobre as religiões não-cristãs. Para este autor, duas questões estão em jogo: a
questão da salvação individual dos que pertencem às outras tradições religiosas e o
significado alcançado por tais tradições no desígnio de Deus. Com repeito à primeira
questão, o Concílio dá um passo adiante, e com uma “segurança sem precedentes”, vai

65[64] Isto não significa, segundo Dupuis, que o pensamento conciliar estivesse privado de
qualquer relevância doutrinal, mas foi sobre uma base doutrinal que o mesmo articulou sua
perspectiva de abertura pastoral e sua disponibilidade de atenção para os valores positivos
das outras religiões. Cf. J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 216.

66[65] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 214.


além dos acanhados posicionamentos que se limitavam a falar em “possibilidade” de
salvação para os não-cristãos.67[66] A segunda questão mereceu um maior destaque na
reflexão de Dupuis, em razão de sua importância e complexidade. Como destaca Dupuis, o
Concílio reconheceu os valores positivos presentes nas tradições religiosas, como se pode
perceber nos textos da Lumen gentium ( LG 16-17), Ad gentes (AG 3,9,11) e Nostra aetate
(NA 2). Neste último documento, os valores autênticos das diversas tradições religiosas são
reconhecidos com um vigor mais destacado. Fala-se explicitamente em “modos de agir e de
viver (…) preceitos e (…) doutrinas que (…) não raramente refletem um raio daquela
Verdade que ilumina todos os homens.”68[67]

O traço distintivo da reflexão de J.Dupuis acerca da doutrina do Vaticano II sobre as


outras religiões consiste na superação de interpretações tanto maximalistas como
reducionistas que em geral marcaram a abordagem do tema. Sua proposta vai no sentido de
uma “avaliação crítica equilibrada”.69[68] Se, por um lado, é verdade que grande parte da
terminologia adotada pelo Concílio sobre o tema sintoniza-se com a “teoria da realização”;
por outro, encontramos outras singulares passagens que indicam uma perspectiva diversa,
como é o caso da AG 9, onde se fala dos “elementos de verdade e graça” presentes nas
tradições religiosas.70[69] O exato significado das intenções do Concílio sobre o tema fica
ainda, segundo Dupuis, em suspenso, dado o caráter sobretudo descritivo de sua doutrina a
propósito. A positividade do juízo emitido não apaga a impressão de uma certa
imprecisão.71[70] O Concílio revela um grande otimismo ao tratar a questão do “mistério
individual da salvação”, mas evita explicitamente reconhecer a questão das religiões como
caminhos legítimos de salvação, deixando, assim, o campo aberto para o trabalho
teológico.72[71] A provável razão que justifica os limites e silêncios da teologia conciliar
sobre este tema é atribuída por Dupuis à sua “perspectiva eclesiocêntrica”.73[72]

67[66] Ibidem, p. 217. Para a consulta aos documentos do Vaticano II cf. ENCHIRIDION
VATICANUM. Documenti ufficiali del Concilio Vaticano II (1962-1965). Bologna, EDB,
1996.

68[67] In: Ibidem, p. 221.

69[68] Ibidem, p. 226s.

70[69] Nesse número em particular revela-se a clara influência de K. Rahner.

71[70] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 221.

72[71] Ibidem, p. 227.

73[72] Ibidem, p. 228. Na opinião de Dupuis, a abordagem do Vaticano II sobre o tema


desenvolveu-se sob parâmetros bem definidos. A igreja estava disposta a “promover a
estima recíproca e a colaboração, mas dentro de limites impostos por sua identidade e
concepção da própria missão.” Alguns pressupostos eram dados como “irrenunciáveis” ,
entre os quais a unicidade de Jesus e o papel insubstituível da igreja, enquanto sacramento
universal de salvação. Cf. Verso una teologia…, p. 241.
Ao desenvolver o tema da relação entre o cristianismo e as outras religiões no
pontificado de Paulo VI, Dupuis expressa um juízo bem crítico. Este autor reconhece que a
encíclica Ecclesiam suam (1964) marcou a “emergência do diálogo no programa de
renovação da igreja proposto pelo Vaticano II”.74[73] O diálogo com as religiões, situado
pela encíclica, como um dos quatro níveis do diálogo da igreja com o mundo, é reforçado
sobretudo em razão da importância da promoção e defesa de ideais comuns. Há um
reconhecimento dos “valores espirituais e morais” nas diversas tradições religiosas, mas
face ao risco do “indiferentismo”, Paulo VI confirma a inequivocável exclusividade do
cristianismo como única religião verdadeira, revelada de forma “infalível, perfeita e
definitiva”.75[74]

Por ocasião da publicação da exortação apostólica Evangelii nuntiandi (1975),


Paulo VI retoma a questão da relação entre cristianismo e as outras religiões. Este
documento significou a proposta de retomada da argumentação desenvolvida no Sínodo dos
bispos sobre a evangelização no mundo contemporâneo (1974), que chegou a avançar
propostas arrojadas e positivas sobre o tema. Na avaliação de Dupuis, a forma como a
questão retornou no documento de Paulo VI não correspondeu às opiniões expressas no
Sínodo, traduzindo, antes, um panorama claramente negativo.76[75] A Evangelii nuntiandi
retoma com muita clareza a perspectiva da “teoria da realização”, relacionada à linha de
Daniélou, definindo as religiões não cristãs como “expressões religiosas naturais”, em
contraposição ao cristianismo (“a religião de Jesus”), considerado a única forma religiosa
que de fato instaura “uma relação autêntica e viva com Deus”. 77[76] A forma como este
documento conduziu a discussão sobre o tema, levou a perder de vista, como sublinha
Dupuis, “os elementos mais clarividentes” presentes no Concílio Vaticano II. E acrescenta:
“O ‘papa do diálogo’, não diz nada, na Evangelii nuntiandi, sobre o tema do diálogo inter-
religioso.”78[77]

Uma mudança qualitativa na reflexão sobre o tema em questão acontecerá por


ocasião do pontificado de João Paulo II. Para Dupuis, o principal contributo apresentando
neste período refere-se à ênfase na “presença operativa do Espírito Santo na vida religiosa
dos não cristãos e em suas tradições religiosas”.79[78] Desde sua primeira encíclica, a

74[73] Ibidem, p. 229

75[74] PAULO VI. Os caminhos da Igreja no mundo moderno - Carta Encíclica


Ecclesiam Suam. 5 ed. Petrópolis, Vozes, 1967, n. 111 (Documentos Pontifícios, 147).

76[75] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 231.

77[76] PAULO VI. A evangelização no mundo contemporâneo. 4 ed. Petrópolis, Vozes,


1979, n.53 (Documentos Pontifícios, 188).

78[77] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 232.

79[78] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 233. João Paulo II desenvolve, assim, o tema
da economia universal do Espírito Santo, já presente e afirmado com crescente evidência
nos documentos do Vaticano II.
Redemptor hominis (1979), João Paulo II trata este argumento, destacando em particular a
presença do Espírito Santo na oração autêntica, nas iniciativas de diálogo profundo, na
riqueza de sabedoria e nos valores e virtudes que animam as diversas tradições religiosas. A
presença ativa de João Paulo II na rica experiência da Jornada de Oração pela Paz em Assis
(1986), que uniu participantes de várias tradições religiosas, reforçou nele a idéia de que
para além das diferenças e divisões existentes, vigora a presença de um “mistério de
unidade” que une todos os povos.80[79]

O tema da presença e atividade universal do Espírito é retomado por João Paulo II


na sua carta encíclica Redemptoris missio (1990). A encíclica reconhece a presença e
atuação do Espírito para além do âmbito individual, envolvendo assim as diversas tradições
religiosas.81[80] A presença universal do Espírito não pode ser ofuscada por limites de
tempo ou espaço. É o Espírito que “sopra onde quer (Jo 3,8) e “enche o universo”(Sb 1,7)
que nos convoca a “estender o olhar” para melhor percebermos a presença de sua ação em
todo o tempo e lugar.82[81]

A questão é saber, indaga Dupuis, em que medida este reconhecimento da presença


ativa do Espírito de Deus também nas outras tradições religiosas “influencie positivamente
a abordagem da encíclica sobre o significado e o valor salvífico” destas mesmas tradições. 83
[82] Com respeito a tal questão a encíclica ressalta dois elementos: a possibilidade de
salvação em Cristo para os não cristãos em virtude de uma graça “dotada de misteriosa
relação com a igreja”84[83] e a possibilidade de “mediações participadas de diverso tipo e
ordem” na única e universal mediação presente em Jesus Cristo. Ou seja, a encíclica não vê
outra possibilidade de comunhão com Deus fora de Cristo e da ação do Espírito.85[84]

A posição de João Paulo II sobre o tema analisado, confirmada por pronunciamentos


mais recentes como a carta apostólica Tertio millennio adveniente (1994), abre alguns
horizontes novos, sem romper, entretanto, com a concepção pré-conciliar da “teoria da
realização”. Analisando trecho da carta apostólica mencionada (n.6), Dupuis sublinha a
carência de espaço “para o reconhecimento, no interior das outras tradições religiosas, de
uma primeira iniciativa divina, ainda que incompleta, voltada para os seres humanos, bem

80[79] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 235.

81[80] JOÃO PAULO II. Sobre a validade permanente do mandado missionário.


Petrópolis, Vozes, 1991, n. 28 (Carta Encíclica Redemptoris Missio - Documentos
Pontifícios, 239).

82[81] Ibidem, n. 29

83[82] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 237.

84[83] JOÃO PAULO II. Sobre a validade…, n. 10.

85[84] Ibidem, n. 5.
como a atribuição de um papel positivo para tais tradições no mistério da salvação de seus
membros.”86[85]

Dentre os documentos recentes do magistério central da igreja, um único documento


consegue assumir uma perspectiva mais arrojada sobre o tema. Trata-se do documento
publicado conjuntamente pelo Pontifício Conselho Para o Diálogo Inter-Religioso e pela
Congregação para a Evangelização dos Povos, intitulado “Diálogo e Anúncio” (1991).87
[86] J.Dupuis acompanhou de perto o seu processo redacional, em razão de na ocasião ser
consultor do primeiro Dicastério. Em sua opinião, é o primeiro documento que “permite
afirmar prudentemente que a graça de Deus e a salvação de Deus em Jesus Cristo alcançam
os não cristãos no interior e por intermédio da ‘prática’ de suas tradições religiosas.”88[87]

No sétimo capítulo do livro, e último de sua primeira parte, o autor apresenta um


panorama do atual debate sobre a teologia das religiões. Constitui sua proposta “identificar
os principais paradigmas predominantes na tentativa de construir uma teologia das religiões
e do pluralismo religioso”, e determinar o seu “princípio de inteligibilidade”. 89[88]
Precisando o sentido das terminologias adotadas no capítulo, Dupuis estabelece uma
distinção entre paradigma e modelo. Em contraponto com o termo modelo, que apresenta
um caráter mais descritivo, o termo paradigma implica uma “chave de interpretação
complexiva da realidade”. Os modelos não se excluem mutuamente, já que não pretendem

86[85] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 238.

87[86] PONTIFÍCIO Conselho para o Diálogo Inter-religioso. Diálogo e anúncio.


Petrópolis, Vozes, 1991 (Documentos Pontifícios, 242).

88[87] Ibidem, p. 240. No número 29 do documento “Diálogo e Anúncio” se afirma a


possibilidade de salvação para aqueles que mesmo no desconhecimento de Jesus Cristo são
inseridos no mistério de salvação em razão da ação invisível do Espírito de Cristo. E isto
ocorre não apesar ou fora de suas tradições religiosas, mas mediante a “prática daquilo que
é bom nas suas próprias tradições religiosas, e seguindo os ditames da sua consciência.” O
número em questão foi, segundo Dupuis, objeto de longa discussão no plenário do
Conselho para o Diálogo Inter-religioso, e o seu resultado final sofreu emendas a seu
parecer desnescessárias. No primeiro esboço do documento não aparecia a expressão
“daquilo que é bom”, sugerida para evitar a impressão de que todos os elementos presentes
nas demais tradições fossem bons e capazes de conduzir à salvação. Cf. FARRUGIA, M.
Universalità del cristianesimo; in dialogo con Jacques Dupuis. Milano, San Paolo, 1996,
p. 313 (dibattito). Não se fazia igualmente menção aos “ditames da consciência”. Esta é a
razão pela qual Dupuis sublinha ser esta passagem ainda “prudente” e “tímida” no que
tange ao “reconhecimento por parte da autoridade da igreja, de uma ‘mediação participada’
das tradições religiosas na salvação de seus membros.” Cf. J.DUPUIS. Verso una
teologia…, p. 238. Este autor trabalha de forma mais sistemática a gênese do documento
“Diálogo e Anúncio” no livro editado por W.R. BURROWS. Redemption and Dialogue.
New York, Orbis Books, 1993, p. 119-158.

89[88] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 242.


definir distintivamente uma realidade. Isto já não ocorre com o paradigma, que exclui
possibilidades de combinação.90[89]

Na tentativa de compreender as opinões teológicas correntes, Dupuis adotou em


1989, ano da publicação da edição francesa de seu livro sobre Jesus Cristo ao encontro das
religiões, a classificação estabelecida por J.P.Schineller 91[90], que distribuía as opiniões
teológicas em quatro grandes categorias: 1. Universo eclesiocêntrico, cristologia exclusiva;
2. Universo cristocêntrico, cristologia inclusiva; 3. Universo teocêntrico, cristologia
normativa; 4. Universo teocentrico, cristologia não normativa.

Ao retrabalhar a questão na presente obra, Dupuis ressalta que esta classificação,


ainda que mantendo sua validade, revela-se incompleta. Assevera ser correto o acento dado
sobre a dúplice mudança de paradigma: do eclesiocentrismo para o cristocentrismo e deste
para o teocentrismo. Duas principais dificuldades são, porém, apontadas por Dupuis na
classificação em tela. Em primeiro lugar, a ausência de referência à distinção existente no
interior da própria cristologia inclusiva, ou seja, às opiniões diferentes que separam os
teólogos da “teoria da realização” com respeito àqueles da “teoria da presença de Cristo
nas religiões”. Em segundo lugar, ao fato de Schneller situar num mesmo paradigma
teocêntrico opiniões teológicas tão contrastantes e de consequências substantivas. Não é
pequena a diferença que separa uma cristologia “normativa” de outra “não normativa”. 92
[91]

No âmbito da atual discussão sobre o tema, muitos autores preferem trabalhar com
uma subdivisão tripartida. Fala-se em eclesiocentrismo, cristocentrismo e teocentrismo, ou
de modo equivalente, exclusivismo, inclusivismo e teocentrismo. O andamento da reflexão
suscitou posteriormente a emergência de novas categorias ou modelos para dar conta do
significado e valor das várias tradições religiosas.

Com a primeira mudança de paradigma, do eclesiocentrismo ao cristocentrismo, se


estabeleceu com clareza uma distinção entre o papel de Jesus e o da igreja na ordem da
salvação. Evidenciou-se o lugar de Jesus como único mediador entre Deus e os seres
humanos e o caráter “derivado” da mediação da igreja, que não pode jamais situar-se no
mesmo plano do exercido por Jesus Cristo. Esta mudança de paradigma não significou,

90[89] Ibidem, p. 242-243. O autor busca ainda clarificar melhor a terminologia adotada
no debate para estabelecer a distinção entre Jesus Cristo e outras “figuras salvíficas”.
Dupuis sublinha a possibilidade de interpretações diversas sobre os termos: singularidade e
unicidade; normatividade e universalidade; centralidade e definitividade. Tais termos,
sublinha, não são necessariamente restritivos, como certas análises dão a entender, mas
podem facultar uma interpretação que ultrapassa uma perspectiva reducionista ou
intransigente. Cf. J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 243-244.

91[90] J.P.SCHINELLER. Christ and Church. A Spectrum of Views. Theological Studies


(37): 545-566, 1976. Cf. tb. J.DUPUIS. Gesù Cristo incontro alle religioni. 2 ed. Assisi,
Cittadella, 1991, p. 139ss.

92[91] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 245-246.


porém, a extinção do primeiro paradigma, ainda vigente em ambientes evangélicos e
mesmo em autores católicos.

A segunda alteração de paradigma, do cristocentrismo ao teocentrismo, significou


uma substantiva mudança de perspectiva. Nesta nova reflexào teológica coloca-se em
questão o cristocentrismo tradicional, já que no teocentrismo Deus e não Jesus Cristo,
torna-se o centro do desígnio salvífico da humanidade. Dentre os autores que se situam
neste último paradigma, Dupuis sublinha o lugar de J.Hick, enquanto defensor de uma
posição bem representativa da interpretação mais arrojada do pluralismo teológico. A
“revolução copernicana” da cristologia defendida por Hick constitui uma proposta de
superação das reflexões sobre o tema desenvolvidas no âmbito de um cristocentrismo
inclusivo e aberto. De acordo com Dupuis, sua reflexão abriu campo para uma “verdadeira
escola de pensamento”.93[92] Nesta segunda mudança de paradigma a questão cristológica
encontra-se no centro do debate da teologia das religiões. É em função de uma revisão ou
reinterpretação da cristologia no contexto do pluralismo religioso que os teólogos
proponentes de um teocentrismo traçam sua proposta de mudança de paradígma. 94[93]

A proposta cristológica de J.Hick vem recebendo ultimamente uma série de críticas


por parte de autores recentes, que afirmam ser a mesma insustentável. Alguns teólogos
contestam o paradígma teocêntrico como sendo “ingenuamente relativista e historicamente
idealista”95[94]. Outros contestam as bases de sua interpretação bíblica. Outros ainda,
sustentam o caráter “auto-contraditório” do modelo proposto, que definindo-se como
“pluralista” acaba postulando “homogeneidade de meios e uniformidade de fins nas várias
tradições religiosas”.96[95]

Jaques Dupuis destaca em particular a posição de G.D’Costa97[96], que considera o


modelo inclusivista o único capaz de conjugar equilibradamente os dois axiomas
fundamentais da fé cristã: a universalidade da vontade salvífica de Deus e a necessidade da
mediação de Jesus Cristo. Segundo G.D’Costa, o “aparente liberalismo” da posição
teocêntrica significa em verdade uma “posição rígida e auto-contraditória”, e impõe na
reflexão um modelo de divindade afeito exclusivamente ao Deus das religiões
monoteístas.98[97]

93[92] Ibidem, p. 253.

94[93] Ibidem, p. 255.

95[94] Cf. J.J.LIPNER. Does Copernicus Help ? In: R.W. ROUSSEAU (ed). Inter-
religious Dialogue: Facing the New Frontier. Scranton, Ridge Row Press, 1981, p. 154-
174. Cit. in: J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 257-8.

96[95] Cf. S.M.HEIM. Salvations. Truth and Difference in Religion. New York, Orbis
Books, 1995. Cit. in: J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 258.

97[96] Cf. G.D’COSTA. Theology of Religious Pluralism: The challeng of Other


Religious. Oxford, Basil Blackwell, 1986.
Todo o movimentado debate em torno da teologia das religiões nos últimos anos
revelou a emergência de “novos modelos para avaliar a verdade das diversas religiões.”
Nestes modelos a problemática cristológica, que antes era central, sofre um deslocamento. 99
[98] Readaptando a sua proposta anterior, J.Hick, provocado pelas objeçoes feitas à sua
concepção de divindade100[99], propõe o modelo da “centralidade do real”. Todas as
religiões estariam, nesta perspectiva, orientadas, ainda que de formas diferentes, ao que
visualizam como sendo a realidade central ou o Absoluto Divino, mas nenhuma delas
gozaria de um privilégio superior ou de uma especial revelação divina. Conforme o novo
modelo, Hick atribui também a Deus a noção de “mito”, antes adotada em sua referência à
cristologia. Ao aplicar a noção de mito a Deus, J.Hick des-centra o modelo teocêntrico e,
como sublinha Dupuis, abre o caminho para um novo modelo, da “centralidade do real”. 101
[100]

Outro teólogo, identificado com a corrente pluralista, reage às objeções feitas contra
o paradigma teocêntrico de forma mais prática e concreta. Trata-se do teólogo católico Paul
Knitter. Este autor propõe como modelo o “Reinocentrismo” ou “Soteriocentrismo”. As
religiões, como sublinha Knitter, partilham uma comum proposta de salvação e libertação,
condividindo uma mesma potencialidade salvífica para os seus membros. O autor propõe
como critério para avaliação das religiões sua efetiva contribuição ao processo de
libertação das pessoas. Todas em igual sentido são convocadas a contribuírem para o
crescimento do Reino.102[101] A preocupação em conjugar cada vez mais a práxis de
libertação com o diálogo inter-religioso será tema recorrente nos últimos trabalhos do autor.

O modelo proposto por Knitter destaca a perspectiva escatológica, em substituição


ao tradicional cristocentrismo. O novo referencial para a teologia das religiões passa a ser
agora o Reino de Deus, antecipado na prática histórica e destinado a seu pleno
aperfeiçoamento no tempo escatológico. Como destaca Dupuis, este modelo tem como
mérito reconhecer como membros do Reino de Deus os seguidores das outras tradições
religiosas. Admite, porém, que este modelo reino-cêntrico, se quer manter-se fiel à fé cristã
tradicional “não representa e não pode representar uma mudança de paradígma com
respeito ao modelo cristológico. Afirmar o contrário significaria esquecer que o Reino de
Deus fez sua irrupção na história em Jesus Cristo e no evento-Cristo; que é mediante a ação
do Cristo ressuscitado que os membros das várias tradições religiosas tomam parte no

98[97] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 258.

99[98] Ibidem, p. 247.

100[99] Uma concepção de divindade que, segundo as principais objeções, estaria mais
afim com as religiões monoteístas e distanciada das tradições místicas do oriente.

101[100] Cf. J. HICK. An Interpretation of Religion. Human Responses to the


Transcendent. New Haven - London, Yale University Press, 1989. Para uma síntese da
exposição deste autor cf. J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 260.

102[101] Ibidem, p. 261. Em nota de pé de página, Dupuis elenca uma série de artigos de
P.KNITTER onde esta posição vem delineada. Ibidem, p. 261 n. 42.
Reino historicamente presente; e, enfim, que o Reino escatológico ao qual são convocados
conjuntamente todos os membros das várias tradições religiosas é aquele Reino que o
Senhor Jesus Cristo confiará ao Pai no fim (cfr. 1 Cor 15,28),”103[102]

Como proposta de superação do cristocentrismo emergem ainda outros modelos


recentes, como é o caso do logocentrismo e pneumatocentrismo. Trata-se de modelos que
buscam acentuar, por um lado, a presença ativa e universal do Verbo de Deus na história e,
por outro, da ação do Espírito de Deus.104[103] A limitação que acompanha tais modelos,
segundo salienta Dupuis, está em condicionar sua afirmação à ruptura com o
cristocentrismo. Para Dupuis, tanto o logocentrismo como o pneumatocentrismo não podem
se firmar numa perspectiva de oposição ou superação do cristocentrismo,

Com respeito ao logocentrismo, Dupuis lembra que não se pode conceber uma
presença universal do Logos destacada do Verbo-encarnado. Mesmo reconhecendo a
realidade de uma presença universal do Logos, mesmo antes de sua encarnação em Jesus,
há que destacar, lembra Dupuis, que tal presença e ação antecipadas do Logos “não
impedem todavia ao Novo Testamento ver no Verbo-encarnado, do qual também se fala no
Prólogo do Evangelho de João (1,14), o Salvador universal da humanidade.”105[104]

A mesma advertência vale para o modelo que propõe o pneumatocentrismo. Dupuis


considera mais que legítimo reconhecer que “o Espírito Santo seja sempre e por toda a
parte o ponto de inserção de Deus cada vez que que ele se revela e se comunica com as
pessoas.”106[105] A universalidade de sua ação na história manifesta-se antes e depois do
evento histórico de Jesus Cristo. Mas, conforme lembra Dupuis, é a própria fé cristã que
nos lembra “que a ação do Espírito e aquela de Jesus Cristo, ainda que distintas, são todavia
complementares e inseparáveis.”107[106] Não há como interpretar, conclui este autor, o
pneumatocentrismo e o cristocentrismo como sendo distintas economias de salvação.

Ao final do capítulo, Dupuis menciona a crítica tecida por teólogos, sobretudo


asiáticos, às categorias empregadas no atual debate sobre a teologia das religiões, ainda
muito devedoras ao pensamento ocidental. Segundo tais teólogos, as categorias ocidentais
acentuam em particular as contraposições e oposições (aut-aut), ao contrário da perspectiva
oriental que privilegia a convergência e unidade (et-et). O teólogo A.Pieris questiona as
categorias tradicionais usualmente adotadas no debate atual (exclusivismo-inclusivismo-
pluralismo) e propõe um novo paradigma “que reconheça o ‘magistério” dos pobres’ e

103[102] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 262.

104[103] Ibidem, p. 262.

105[104] Ibidem, p. 263.

106[105] Ibidem, p. 265.

107[106] Ibidem, p. 265.


ensine uma teologia da libertação, situada na comunidade humana de base, que afirme
Jesus como ‘pacto de defesa (de Deus) com os oprimidos”.108[107]

Os limites das categorias atualmente em uso no atual debate sobre a teologia das
religiões foi sublinhado na 13a Reunião Anual da Associação dos Teólogos da Índia (1989).
Na rica declaração publicada ao final do Encontro 109[108], afirma-se que as categorias
adotadas não tomam em séria consideração o fato do pluralismo religioso e restringem-se
ao tom acadêmico e especulativo. A pista aberta pelos teólogos indianos aponta para outra
direção, onde privilegia-se o encontro e o diálogo vivo com as diversas tradições religiosas.
Não se coloca em momento algum dúvidas sobre o valor salvífico universal de Jesus
Cristo, que permanece sendo “constitutivamente o caminho para o Pai”. Isto, porém, não os
impede compreender e aceitar o valor da “maravilhosa veriedade religiosa” que os circunda
e a sua valência soteriológica.110[109]

Esta nova proposta vinda dos teólogos orientais recebeu acolhida positiva entre
muitos dos autores que no Ocidente desenvolvem tal reflexão e Dupuis cita dentre estes
autores M.Barnes e J.A. Di Noia. Os dois teólogos manifestam sua insatisfação diante da
esquematização tripartida. O primeiro propõe uma ‘teologia do diálogo” e não “para o
diálogo”, em que se respeite a identidade religiosa singular. O segundo indica a necessidade
de uma maior atenção à “conversação inter-religiosa” e propõe uma teologia não para o
diálogo mas em diálogo. Para Di Noia, as diferenças religiosas não podem ser apagadas na
reflexão teológica, mas sua relevância resguardada. O teólogo deve honestamente
reconhecer a legitimidade de comunidades religiosas diferentes proporem metas diferentes
para a vida humana.111[110]

Na opinião de Dupuis, mesmo reconhecendo a diversidade de opiniões presentes no


atual debate da teologia das religiões, vai surgindo um “certo consenso” sobre a
necessidade de se evitar tanto o absolutismo como o relativismo. Para Dupuis, “a
pluralidade deve ser tomada a sério e positivamente acolhida não somente como um fato,
mas em linha de princípio”. E esta pluralidade “tem um lugar no desígnio de Deus para a
salvação da humanidade.” Não há incompatibilidade entre a adesão singular da fé e a
abertura para a experiência de fé dos outros. Não é contrapondo-se com as outras
identidades que fica garantido o crescimento da afirmação de uma identidade particular.
Com tais reflexões Dupuis avança a proposta de trabalho, a ser desenvolvida na segunda
parte do livro, ou seja, um novo modelo para a reflexão teológica cristã de abordagem sobre

108[107] A. PIERIS. An Asian Paradigm: Interreligious Dialogue and the Theology of


Religions. The Month (26): 130, 1993. Cit. In J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 267-
268.

109[108] Trata-se da Declaração: “Para uma teologia cristã indiana do pluralismo


religioso.” Cit. In J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 268-269.

110[109] Ibidem, p. 269. Em sintonia com esta Declaração, Dupuis menciona ainda a
Consulta Ecumênica de Baar (Suiça ) em 1990. (p. 269).

111[110] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 270-271.


as religiões: “Uma teologia das religiões deve ser, em última análise, uma teologia do
pluralismo religioso.”112[111]

112[111] J.DUPUIS. Verso una teologia…, p. 271.


2 - PARA UMA TEOLOGIA CRISTÃ DO
PLURALISMO RELIGIOSO - A PROPÓSITO DE
UM LIVRO
Faustino Teixeira - UFJF

O tema da teologia das religiões vem ganhando a cada dia uma importância mais
decisiva no cenário da reflexão teológica contemporânea. São inúmeros os livros e
artigos que sob as mais diversas perspectivas buscam situar a questão no contexto atual
do pluralismo religioso. O tema é extremamente complexo e sua abordagem exige um
cuidadoso tratamento, de forma a evitar tanto o risco da absolutização de uma
perspectiva determinada como o risco contrário de sua relativização. O teólogo belga
Jacques Dupuis, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, lançou-se
em arrojado empreendimento destinado a responder de forma história e temática a
desafiante questão de uma “teologia cristã do pluralismo religioso”. Esse é o título de
sua obra recentemente traduzida para o italiano. Estamos diante de um trabalho de
grande fôlego, que busca num primeiro momento situar o estudioso ou leitor no grande
leito histórico-teológico onde o tema se gestou e se desenvolveu, para então, num
segundo momento, apontar novos e corajosos horizontes para sua atualizada
abordagem. Como interpretar a experiência existencial dos “outros” à luz da fé cristã e
do mistério de Jesus Cristo ? Como justificar teologicamente a legitimidade do
pluralismo religioso, não apenas como um fato conjuntural, mas como uma realidade
de princípio ? Estas são questões essenciais que Dupuis busca responder ao longo das
583 páginas de seu livro.

Em trabalho anterior apresentamos a primeira parte de seu livro,


que busca justamente situar historicamente o tema e favorecer a
compreensão das várias e diversas posições assumidas no debate
sobre a teologia das religiões. Ao final da primeira parte, Dupuis
lança sua proposta de uma reflexão cristã mais séria sobre o
pluralismo religioso, entendido agora como uma realidade de
direito. Para Dupuis, a pluralidade das religiões não constitui um
desvio para o caminho da unidade presente na proposta de Deus
para a humanidade, mas tem um lugar definido neste mesmo
desígnio de Deus. A teologia das religiões ganha, assim, uma nova
densidade como teologia do pluralismo religioso.

Jacques Dupuis entende sua proposta de uma teologia cristã do


pluralismo religioso, a ser desenvolvida na segunda parte do livro,
como um caminho de superação dos paradigmas inclusivista e
pluralista, que até o presente momento delimitaram a discussão
sobre o tema. A porta de entrada encontrada pelo autor para a
elaboração de um novo modelo integral foi a cristologia trinitária,
que significa de fato a superação de uma perspectiva cristocêntrica
restritiva sem cair num pluralismo relativista. Para Dupuis, uma
falsa dicotomia determinou a recíproca contraditoriedade entre os
paradigmas inclusivista e pluralista. “Modelos que em si mesmos
deveriam ser vistos como reciprocamente complementares foram de
fato transformados em paradigmas entre si contraditórios.” O novo
modelo teológico permite a interação da fé cristã com outras
perspectivas de fé, resguardando a singularidade de cada adesão
particular. A afirmação da identidade cristã não tensiona com o
legítimo reconhecimento da identidade professada pelas outras
comunidades de fé.

A abertura das relações de Deus com a humanidade não se restringe


em razão da adoção de uma perspectiva cristocêntrica. A restrição
só acontece quando se trabalha o “cristocentrismo” em tom menor,
deslocado de sua perspectiva trinitária. É o que ocorre quando não
se desenvolve adequadamente a relação de Jesus com Deus (sua
relação recíproca de proximidade e distância) e a tensão construtiva
entre a centralidade do evento histórico Jesus Cristo e a ação
universal do Espírito de Deus. Não se pode desconhecer, lembra
Dupuis, a função insubstituível do evento-Cristo no desígnio de Deus
para a humanidade, mas tal evento “não pode ser tomado
isoladamente, mas sempre considerado no contexto das múltiplas
modalidades da auto-revelação e da auto-manifestação divina
através do Verbo e do Espírito.” A legitimidade de “percursos
convergentes” e direcionados para a única meta do mistério
absoluto da divindade encontra sua razão de ser na “expansividade
da vida interna de Deus que transborda da própria divindade.”

A singularidade da reflexão de Dupuis está em conjugar sua


abertura para o pluralismo religioso com um cristocentrismo aberto.
O caminho proposto pelo paradigma pluralista mostra-se
insuficiente: “Um só Deus - Percursos convergentes”. Trata-se de um
“pluralismo sem ordem ou unidade”. Igualmente limitado apresenta-
se o paradigma cristocêntrico tradicional: “Um só Deus - Um só
Cristo”. Este caminho não está livre de um “exclusivismo
monolítico”. A proposta de Dupuis indica um novo modelo: “Um só
Deus - Um só Cristo - Percursos convergentes”. Neste modelo
garante-se o caráter fundante do evento Cristo e a gratuidade da
disposição salvífica de Deus. Estamos diante de uma economia da
salvação que abrange perspectivas distintas, mas que está
organicamente estruturada. Mediante tal economia, “os diversos
percursos tendem a convergir uns para com os outros no absoluto
Mistério divino que constitui o fim último de todos.”

O primeiro capítulo da segunda parte do livro de Dupuis tem como


propósito demonstrar como as várias tradições religiosas da
humanidade constituem distintas manifestações de Deus na história,
embora harmonizadas com o seu desígnio de unidade para a
humanidade. Para este autor, uma correta visão cristã da história da
salvação favorece necessariamente uma avaliação positiva das
outras tradições religiosas, que passam a ganhar “um papel
permanente e um significado específico no mistério global das
relações divino-humanas.”

A “cristologia trinitária”, e o seu destaque dado à presença e


atividade universaldo “Verbo de Deus” e do “Espírito de Deus”,
serve de chave hermenêutica para Dupuis desocultar o significado
das várias alianças estabelecidas por Deus com a humanidade e que
se encontram entrelaçadas e ordenadas segundo um plano divino.

Uma reflexão teológica pertinente sobre a história da salvação não


mais permite considerar como ponto inicial da história da salvação a
vocação de Abraão, isto equivaleria a reduzir sua verdadeira
extensão. Numa reflexão que prolonga a pista aberta por Karl
Rahner e outros, Dupuis sublinha a coincidência da história da
salvação com a história do mundo. A história da salvação não
significa uma história paralela à história da humanidade, mas esta
mesma história humana lida à luz da fé. Os óculos da fé facultam
perceber nesta história “um ‘diálogo de salvação’ assumido por Deus
com a humanidade desde a criação e prolongado nos séculos até a
realização final do Reino.”

Esta nova perspectiva rompe com qualquer possibilidade de


entender as “religiões cósmicas” como sendo “pré-história da
salvação”, ou “religiões naturais”, já que pressupõe a presença da
auto-revelação de Deus desde o início. A história humana é uma
história que acontece sob a permanente acolhida de Deus e de sua
vontade salvífica universal. Conforme a reflexão aberta por Rahner,
a história universal da salvação (por ele identificada como
transcendental) assume uma feição concreta não apenas na história
das pessoas, mas igualmente nas religiões históricas da
humanidade. As religiões, enquanto mediações históricas da
experiência transcendental de Deus podem, segundo Dupuis,
“provocar” positivamente a salvação, ou seja, comunicar a dinâmica
do Deus salvífico. Elas “podem, portanto, ser consideradas como
queridas por Deus enquanto concretizam a oferta divina de graça
universalmente presente e operante na história.”

A reflexão de Rahner torna-se um pouco mais problemática ao


estabelecer uma distinção entre história da salvação
“transcendental’ e história especial da salvação, com a qual a
história da salvação ganha sua interpretação reflexa. Dupuis partilha
com Rahner a convicção de que a história especial da salvação
encontra sua clara realização nas tradições hebraica e cristã, mas
avança a reflexão ao considerar que esta história especial da
salvação não se reduz a tais tradições. Outras tradições são
igualmente portadoras de “palavras proféticas que interpretam os
acontecimentos históricos como interventos divinos na história dos
povos.” Para Dupuis, seria hoje problemático estabelecer uma tão
clara demarcação entre uma história geral e outra especial da
salvação. Tal demarcação poderia servir de base para afirmações
que indicam o caráter “obsoleto” ou mesmo “ilegítimo” das outras
tradições religiosas com o advento da história especial da salvação
e, em particular, com o evento-Cristo.

Em coerência com sua proposta de trabalho, Dupuis indica o caráter


trinitário e crístico da história da salvação. O acentro trinitário do
cristocentrismo proposto por Dupuis constitui a garantia contra
qualquer cristomonismo. Como assinala este autor, “a centralidade
do evento-Cristo não obscura, mas pressupõe, chama e evidencia a
universalidade da presença ativa do ‘Verbo de Deus’ e do ‘Espírito
de Deus’ na história da salvação e, especificamente, nas tradições
religiosas da humanidade.” A ação universal e antecipadora do
Logos e do Espírito na história extra-bíblica da salvação insere-se na
única economia da salvação cujo evento histórico pontual é Jesus
Cristo. Este evento favorece a percepção de Deus como “Deus-dos-
povos-em-forma-plenamente-humana”.

Como indica a tradição cristã, ao longo da história da salvação Deus


estabeleceu alianças com a humanidade. Mediante uma iniciativa
gratuita, Deus inaugura uma profunda relação de amizade com os
seres humanos. Santo Irineu distingue quatro alianças: uma por
meio de Adão, uma por meio de Noé, e as outras duas por meio de
Moisés e Cristo. Em todas estas quatro alianças o Logos permanece
ativo. De modo particular, a aliança com Noé ganha um particular
significado na reflexão sobre a teologia das tradições religiosas
extra-bíblicas, ou seja, das tradições anteriores ou posteriores ao
evento Cristo. Também estes povos são envolvidos numa relação de
aliança com Deus. Constituem, portanto, “povos da aliança,
merecendo o título de ‘povos de Deus’.”

Em cada uma das alianças estabelecidas por Deus com a


humanidade pulsa o “ritmo trinitário”. O Deus trino constitui, como
lembra Rahner, o fundamento originário da história da salvação.
Toda auto-comunicação de Deus é trinitária, comportando
necessariamente a presença ativa de Deus, de seu Verbo e de seu
Espírito. Quando se fala, pois, de presença da graça fora da
economia cristã, antes ou depois do evento Cristo, trata-se sempre
da graça do Deus-Trindade. Os “traços” da Trindade estão
igualmente presentes na aliança com Noé, o que implica sua
manifestação nas tradições religiosas extra-bíblicas. Todos os seres
humanos, complementa Dupuis, enquanto envolvidos na dinâmica de
comunicação amorosa de Deus, encontram-se intimamente
vinculados “no ritmo trinitário da auto-comunicação de Deus.”

No contexto do atual diálogo hebraico-cristão a questão do número


das alianças é retomada. Em singular discurso proferido em 1980 na
Alemanha, João Paulo II afirma que a antiga aliança não foi “jamais
revogada”, rompendo assim com um repertório tradicional cristão
que com frequência afirmava o caráter obsoleto desta primeira
aliança depois da instituição da nova aliança com o evento Cristo. O
teólogo Norbert Lohfink mostrou em importante reflexão exegética
como para Paulo Israel continuava a ser o povo de Deus. Quando
fala de “antiga aliança”, como na segunda carta aos Coríntios (2 Cor
3,14), não se trata de uma aliança abolida, mas “desvelada pela
nova”. Neste sentido, Lohfink prefere falar numa única aliança e um
dúplice caminho de salvação. Uma única aliança, já que não existe
mais que um desígnio de Deus para a humanidade, e dois caminhos
para hebreus e cristãos.
A proposta de Lohfink restringia-se às relações entre hebreus e
cristãos. Com o propósito de alargar a questão, G.D’Costa adota uma
outra terminologia: “uma única aliança normativa, no interior da
qual existem muitas outras alianças legítimas.” Este autor fala em
“única aliança normativa”, mas deixa em aberto outras alianças
distintas e complementares. A insistência de D’Costa em manter a
presença de outras alianças (e não de uma única aliança) justifica-
se, segundo Dupuis, em função da necessidade de manter a
plausibilidade de outros caminhos e evitar o risco de sua absorção
num único caminho considerado normativo. A tese de D’Costa
mantém viva a idéia de “muitas alianças possíveis no interior de uma
única história da revelação que alcança em Cristo sua realização
normativa mas prolética.”

Na opinião de Dupuis, independentemente da adoção de uma ou


outra das formulações indicadas, o importante é evitar tanto o
extremo da “teoria da realização”, que desconsidera o “caráter não
revogável” da aliança com Israel, como a impressão oposta de uma
dualidade de caminhos paralelos de salvação, que minaria a unidade
do desígnio divino para a humanidade. Sob o prisma cristão, uma
“posição intermédia”, como indica Dupuis, vai na seguinte direção:
“uma só aliança e duas vias interconexas no interior de um único e
orgânico desígnio de salvação.” Com Jesus Cristo este único
desígnio salvífico alcança sua realização escatológica. Mas este
evento-Cristo “não existe sem Israel ou dele fazendo abstração.”
Não é correto afirmar que um “novo” povo de Deus vem substituir
um outro povo, a partir de então considerado “antigo”, mas o que
ocorre é “uma expansão até os confins do mundo do único povo de
Deus, cuja eleição de Israel e a aliança com Moisés foram e
permanecem ‘a raiz e a fonte, o fundamento e a promessa.’”

As novas reflexões associadas ao diálogo entre cristãos e hebreus


constituem, para Dupuis, “catalizadores para uma reorientação da
relação entre o cristianismo e as outras religiões.” Assim como se
pode falar de uma aliança “jamais revogada” com respeito à “antiga
aliança” com Israel, é igualmente pertinente falar do “valor
permanente da aliança cósmica”. Assim como o povo hebreu da
história de Israel tem um lugar garantido na ordem da salvação, já
que portador de uma palavra profética, de forma análoga as outras
tradições religiosas, envolvidas no mistério de uma aliança cósmica
(simbolizada na tradição cristã pela aliança com Noé), conservam
igualmente “um valor permanente.”

O tema específico da revelação de Deus diante do desafio das outras


religiões será desenvolvido por Jacques Dupuis no segundo capítulo,
intitulado: Palavra de Deus, única e universal. A carta aos hebreus
serve de ponto de arranque para a sua reflexão, particularmente o
trecho em que o autor da carta indica que Deus já nos tempos
antigos havia pronunciado uma palavra à humanidade (Hb 1,1-2).
Dupuis sublinha a analogia deste texto com o Prólogo do Evangelho
de João, que reconhece no Verbo (palavra de Deus em ação) a “luz
verdadeira que ilumina todo homem” (Jo 1,9). A sintonia entre os
dois textos faculta sua aplicação para além da intenção do autor da
carta aos Hebreus, e encoraja Dupuis a lançar sua proposta de uma
compreensão mais ampla da revelação divina, que transborda a
história bíblica para se estender no horizonte mais amplo da história
da salvação.

A superação da dicotomia presente na teologia tradicional entre


história da salvação e história da humanidade levou a uma
compreensão mais unitária da mesma, facultando uma perspectiva
que envolve na história da salvação a totalidade da história. Esta
nova reflexão, como indica Dupuis, abre caminho para a
universalidade da revelação. A revelação e a salvação constituem
“dimensões inseparáveis da auto-comunicação divina”.

Nos últimos decênios houve uma significativa evolução no campo da


teologia cristã da revelação, corroborada também pelo impulso
proporcionado pelo Vaticano II. A novidade consiste em acentuar a
revelação como “evento e auto-manifestação divina”, superando-se
assim a antiga compreensão que limitava o seu alcance ao enfatizar
o traço doutrinal ou de “comunicação de verdades”. Karl Rahner foi
um dos teólogos que acentuou com vigor esta idéia de revelação
como dimensão de “auto-comunicação de Deus na graça
divinizante”. O evento da revelação já acontece mediante a presença
desta graça iluminante antes mesmo da “aceitação de uma
específica mensagem divinamente revelada”. Neste sentido, não
somente o cristianismo testemunha a auto-revelação de Deus, mas
também, em graus diversos, isto ocorre com as outras tradições
religiosas.

Para Dupuis, a reflexão de Rahner sobre a oferta da auto-


comunicação de Deus como “existencial sobrenatural” constitui um
rico recurso para legitimar teologicamente a universalidade da
revelação divina na história humana e, de modo particular, favorecer
o reconhecimento de “elementos de verdade” - hauridos na
revelação divina -, nas diversas tradições religiosas do mundo.

A experiência viva do divino não constitui apanágio das tradições


hebraica e cristã. A perspectiva de uma economia da revelação
presente na “aliança cósmica” desvela a realidade de uma autêntica
experiência religiosa em muitos daqueles que participam de outras
tradições. A oração autêntica constitui sempre um sinal da iniciativa,
ainda que misteriosa e oculta, feita por Deus de avizinhar-se
pessoalmente aos seres humanos, comunicando-se aos mesmos e por
eles sendo acolhido na fé. A experiência religiosa vivida pelos outros
permanece, porém, sempre além da possibilidade de sua expressão
numa linguagem particular. A real experiência religiosa permanece
velada. Para acessar tal experiência e nela descobrir os elementos
de verdade e graça, “somos obrigados a avançar para além dos
conceitos que a enunciam.” Mesmo que mediante conceitos ainda
limitados, somos sempre provocados a colher o significado mais
profundo presente na experiência religiosa do outro.

Conforme a tese defendida por Dupuis, “onde quer que se dê uma


genuína experiência religiosa é seguramente o Deus revelado em
Jesus Cristo que entra de maneira escondida e misteriosa na vida
dos homens e mulheres.” E este Deus que se revela é o Deus uno e
trino. Este autor sublinha com insistência a estrutura trinitária da
auto-revelação de Deus. O Deus que falou e fala na história humana,
sempre o faz mediante o seu Verbo, no seu Espírito.

Quando se confirma o valor de revelação divina à auto-manifestação


de Deus na história das nações, novas e instigantes questões são
suscitadas, entre as quais o valor de mediação das escrituras não
bíblicas na atividade exercida pelo Espirito na vida religiosa de
outros fiéis; o valor de “palavra de Deus” destas mesmas escrituras;
o verdadeiro significado da “plenitude” da revelação divina presente
em Jesus Cristo etc. Dupuis reconhece o valor de revelação divina
presente na auto-manifestação de Deus ao longo da história, embora
pontue que esta revelação encontra-se “ordenada à revelação
hebraica e cristã.” Este autor faz recurso à noção de “revelação
progressiva e diferenciada”, bem como ao “conceito analógico de
inspiração escritural” para responder as interrogações acima
delineadas.

Em coerência com sua reflexão teológica, Dupuis discorda da


opinião daqueles que visualizam nos livros sagrados das outras
religiões unicamente um “discurso humano” sobre Deus. Para este
autor, a experiência religiosa que anima os sábios e “profetas” das
nações vem animada pela dinâmica do Espírito e sua experiência de
Deus “é uma experiência no Espírito de Deus.” De forma
semelhante, as sagradas escrituras das nações são igualmente
portadoras de palavras de Deus aos seres humanos, mediante a ação
misteriosa do Espírito. Trata-se de palavras “destinadas pela
providência divina a conduzir outros seres humanos à experiência
do mesmo Espírito.” Estas palavras, destaca Dupuis, não
representam “a palavra decisiva de Deus à humanidade”, mas
podem ser entendidas em sentido real como “inspiradas por Deus”,
desde que “não se dê uma interpretação muito rigorosa do conceito
e que se leve suficientemente em conta o influxo cósmico do Espírito
Santo.”

Retomando a reflexão feita em seu livro anterior sobre Cristo ao


encontro das religiões, J.Dupuis desenvolve a outra interrogação
presente no debate atual da teologia das religiões, ou seja, o tema
da plenitude da revelação em Jesus Cristo. Para Dupuis, com base na
distinção feita pela Dei Verbum 4, a plenitude da revelação não está
dada na palavra escrita do Novo Testamento, o que ali ocorre é seu
testemunho e interpretação oficial. Esta plenitude só é desvelada em
seu sentido profundo na “totalidade do evento mesmo de Jesus
Cristo”. Com este evento “Deus pronunciou ao mundo a sua palavra
definitiva.”

Jesus Cristo é, portanto, a plenitude da revelação, mas esta


plenitude é qualitativa e não quantitativa. Em Jesus a revelação
divina alcança a sua plenitude qualitativa, e nenhuma outra
revelação do mistério de Deus pode a ela se igualar em
profundidade. Esta revelação “Não é, contudo, absoluta. Ela
permanece relativa. A consciência humana de Jesus, mesmo sendo
aquela do Filho, é todavia uma consciência humana e, pois, limitada.
(…) Nenhuma consciência humana, nem mesmo a consciência
humana do Filho de Deus, pode exaurir o mistério divino.”

A plenitude qualitativa (de intensidade) da revelação em Jesus Cristo


não significa, como lembra Dupuis, que após a realização deste
evento histórico, Deus deixe de continuar se revelando por meio dos
sábios e profetas das outras tradições religiosas, como no caso do
profeta Maomé. A história continua a ser palco da auto-revelação de
Deus. Daí se afirmar que a plenitude é não quantitativa. Mas
“nenhuma revelação pode, todavia, superar ou se igualar, antes ou
depois de Jesus, àquela realizada no Filho divino encarnado.”

Dupuis abre espaço em sua reflexão para uma compreensão da


revelação como evento progressivo e diferenciado. Mesmo
reconhecendo como chave da identidade cristã o caráter único do
evento Jesus Cristo e a singularidade da comunidade eclesial no
recolhimento oficial deste mesmo evento, permanece aceso o
“espaço para uma teologia aberta da revelação e das sagradas
escrituras.” Uma teologia que deverá reconhecer que mesmo
havendo Deus “pronunciado sua palavra decisiva em Jesus Cristo e
além de haver falado por intermédio dos profetas do Antigo
Testamento, pronunciou palavras iniciais aos seres humanos por
meio dos profetas das nações, palavras das quais se pode encontrar
traços nas sagradas escrituras das tradições religiosas do mundo. A
palavra decisiva não exclui as outras palavras mas, ao contrário, as
pressupõe.”

O conceito de uma revelação diferenciada não quebra a unidade da


história da salvação e da revelação, que permanece uma só. O que
pode ser destacado são suas diferentes fases: cósmica, israelita e
cristã. Em cada uma destas fases, se manifesta a ação universal do
Espírito. Dupuis acrescenta ainda que, entre a revelação bíblica e
extra-bíblica existe uma verdadeira complementaridade, e isto sem
prejuízo para o caráter decisivo do evento-Cristo.
Complementaridade que se aplica igualmente aos livros sagrados
destas tradições. Este autor chega inclusive a afirmar que as
escrituras não bíblicas podem “conter aspectos do mistério divino
que a Bíblia, incluindo o Novo Testamento, não acentua com a
mesma evidência.” E acrescenta que a palavra de Deus contida nas
outras tradições religiosas apresenta um “valor de palavra de Deus”
não somente para as tradições em questão, mas igualmente para os
cristãos. Esta convergência abre, certamente, novos espaços para a
experiência de comunhão. “Por mais que isto possa parecer
paradoxal, um contato prolongado com as escrituras não bíblicas
pode ajudar os cristãos - desde que praticado no âmbito da sua fé - a
descobrir mais profundamente aspectos do mistério divino que
estes contemplam desvelados em Jesus Cristo.”

Depois de desenvolver o tema da revelação, Dupuis busca enfrentar


no terceiro capítulo a questão do mistério absoluto de Deus,
enquanto horizonte transcendental da experiência religiosa humana
que ocorre nas diversas tradições religiosas. Em que medida o Deus
das outras religiões pode ser identificado com o Deus dos cristãos ?
Esta interrogação vem desde o passado acompanhando os cristãos e
ganha hoje um significado singular no debate sobre o pluralismo
religioso. Busca-se com freqüencia destacar os traços de
continuidade da identidade divina entre as religiões monoteístas ou
proféticas e, com respeito às religiões orientais, a possível relação
entre sua visão de “Realidade Absoluta” e o Deus das religiões
monoteístas.

No capítulo anterior, Dupuis havia sublinhado que “onde quer que se


dê uma genuína experiência religiosa é seguramente o Deus
revelado em Jesus Cristo que entra de maneira escondida e
misteriosa na vida dos homens e mulheres.” Na linha desta posição,
declaradamente cristã, Dupuis pontuava sua tese sobre a estrutura
trinitária da revelação. Em que medida a “Realidade Última”,
acenada em particular pelas realidades místicas do Oriente, pode
ser interpretada em termos de um teísmo trinitário cristão ? Em
caso positivo, não se estaria absolutizando como chave
hermenêutica um referencial particular, aplicável a todas as
experiências religiosas ? Estas são questões importantes que entram
em pauta no terceiro capítulo. Mas já de partida Dupuis faz a
ressalva de que sob o ponto de vista cristão não há outra
possibilidade de abordar o tema senão mediante a doutrina da
Trindade.

Na primeira parte do capítulo, Dupuis busca apresentar o caminho


adotado pela posição cristã no tratamento do tema da “Realidade
Última”, enriquecendo a reflexão com as recentes aquisições
trazidas pelo debate sobre a teologia do pluralismo religioso. Na
segunda parte, com base num caso específico de diálogo entre a
mística hindu e a experiência cristã, este autor lança a interrogação
a propósito da continuidade ou convergência entre a “Realidade
Última” das religiões místicas e o Deus Trindade do monoteísmo
cristão.

Numa tentativa de responder adequadamente aos novos desafios da


conjuntura religiosa contemporânea, os teólogos pluralistas
afirmaram um conceito de Deus substancialmente indeterminado, de
forma a favorecer o envolvimento das diversas tradições religiosas.
Em tal concepção, o mistério divino assumira o lugar de ponto
convergente de diversas e legítimas manifestações religiosas
históricas. Um dos grandes expoentes da teologia pluralista, o
teólogo J.Hick, aperfeiçoa sua reflexão de forma a melhor
corresponder à compreensão da realidade “religiosa” presente nas
tradições teístas e não teístas. Este teólogo adota a “centralidade do
real” como novo modelo para sua reflexão pluralista. Segundo sua
nova compreensão, “a realidade central”, para a qual todas as
tradições religiosas estariam orientadas, não se enquadra nas
tradicionais categorias “pessoal” e “impessoal”.

Com base em concepção epistemológica kantiana, J.Hick estabelece


uma distinção entre o “Real em si”, inacessível aos seres humanos, e
o “Real” manifesto, que é experimentado como fenômeno nas
diferentes comunidades humanas. Às diversas tradições religiosas
corresponderiam, assim, diferentes respostas ao Real. O “real em si”
não se enquadra, como indica J.Hick, em nenhuma das categorias
teístas presentes nas tradições hebraico, cristã, muçulmana ou
hindu; nem mesmo em qualquer outra manifestação impessoal. Ele
está “para além” de qualquer de suas manifestações na consciência
humana. Neste sentido, “as ‘afirmações primárias’ das diversas
tradições religiosas (…) refletem experiências que constituem modos
diferentes pelos quais a Realidade Última atuou sobre a vida
humana.”
Jacques Dupuis manifesta neste capítulo o seu “desacordo” com a
hipótese defendida por J.Hick. Em seu parecer, não se pode reduzir
as várias formas de crença pessoal em Deus a mera manifestações
de um “Real em si”, totalmente inacessível. Afirma, distintamente,
que “do ponto de vista da fé cristã, torna-se necessário sustentar
não somente que a ‘Realidade Última’, diversamente manifestada à
humanidade, é um Deus pessoal; mas que igualmente o Deus
trinitário cristão representa a Realidade última an sich ( em si).”
Este Deus pessoal e inter-pessoal, não é um Deus solidão, mas um
Deus de total comunhão entre os “três que são Um-só-sem-um-
segundo (ekam advitiyam): Pai/Mãe - Filho/Verbo/Sabedoria -
Espírito/Amor (saccidananda).”

As tradições religiosas não conseguem, porém, apreender ou


oferecer adequadamente uma representação positiva do Ser íntimo
de Deus. O místério intrínseco de Deus está para além das nossas
possibilidades cognitivas. Isto vale igualmente para o cristianismo. A
tradição cristã, como indica Dupuis, sempre esteve consciente dos
limites de sua representação positiva do mistério de Deus, que
permanece velado para os humanos “mesmo depois de sua auto-
revelação em Jesus Cristo.” Mesmo o mistério da Trindade, assim
como revelado por Jesus Cristo, “corresponde objetivamente, ainda
que de maneira imperfeita e somente analógica, à realidade do
Absoluto.”

Uma vez destacado o caráter trinitário da “Realidade Última”,


Dupuis procura em seguida mostrar como as três tradições
monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo) partilham do
mesmo e único Deus, não obstante a diversidade de sua apreensão
em suas experiências particulares. “Todas as três tradições afirmam
de forma inequivocável possuir suas raízes no Deus de Abraão.
Condividem, assim, o mesmo Deus. Isto não significa, porém, que as
três religiões monoteístas tenham de Deus um mesmo conceito.”
Não é a nível da doutrina que se pode perceber uma real
convergência entre estas três religiões, mas a nível da experiência
mística. Uma análoga e permanente busca de união com o mesmo
Deus é nitidamente visível tanto na tradição da cabala, como
igualmente na tradição mística cristã e no sufismo.

Para destacar a familiaridade da experiência de Deus nas três


tradições monoteístas, Dupuis retoma sua chave hermenêutica com
base na doutrina da Trindade. Para este autor, o mistério da
Trindade revelado em Jesus Cristo encontra já suas “principais
categorias” no Primeiro Testamento. Com respeito ao Islam, destaca
que os 99 nomes atribuídos a Deus no Corão podem concentrar-se
em três eixos: Deus Criador e Soberano; Deus gracioso e indulgente
e Deus intimamente presente. Uma transposição de tais eixos para a
doutrina trinitária cristã favorece perceber sua correspondência
com a atividade da criação (Pai), da salvação (Filho) e da inabitação
(Espírito).

A mesma chave hermenêutica serve de base para Dupuis interpretar


outras experiências religiosas, como é o caso das tradições místicas
orientais. Tentativas semelhantes foram realizadas por outros
autores importantes como R.Panikkar, J.A.Bracken e B. Griffiiths,
que igualmente encontraram na doutrina trinitária uma base segura
para o diálogo com outras tradições religiosas, ou mesmo um
“fundamento último da pluralidade das tradições religiosas do
mundo”. Dupuis considera “legítimo encontrar nas tradições
místicas do Oriente aproximações e prefigurações do mistério
Último do Ser assim como vem revelado e manifestado de forma
decisiva, embora ainda incompleta, em Jesus Cristo.”

A reflexão teológica de Jacques Dupuis foi profundamente marcada


por sua experiência na Índia, onde viveu 36 anos. É natural,
portanto, que tome particularmente o hinduísmo como interlocutor
para o diálogo com o cristianismo. Para exemplicar a relação entre a
mística hindu e o mistério cristão, Dupuis desenvolve uma
interpretação da figura história de Jesus que permite sua conexão
com a experiência do advaita (Não dualidade) elaborada pelos
teólogos do Vedanta.

Sem desconsiderar a complexidade que envolve uma reflexão sobre


a originalidade da auto-consciência de Jesus, Dupuis encontra no
traço de sua filiação divina um elemento fundamental de
aproximação ao tema. A consciência filial de Jesus pressupõe uma
dialética de distinção e unidade entre Iahweh-Pai e Jesus-Filho. O
traço da distinção já foi desenvolvido anteriormente. Com respeito à
unidade, vale destacar que é esta “que confere à consciência
religiosa de Jesus o seu caráter específico: Jesus que se refere ao Pai
com uma familiaridade nunca antes concebida ou atestada. (…) Tal
unidade implica uma imanência recíproca (Jo 10,38; 14,11; 17,21),
um mútuo conhecimento (10,15), um amor partilhado (5,20; 15,10),
uma ação comum - aquilo que Jesus faz é o Pai que nele o faz
(5,17).” Esta união de Jesus com o Pai encontra o seu fundamento
último para além da condição humana.

A experiência do advaita na mística hindu, por sua vez, constitui


uma verdadeira experiência kenótica, de radical esvaziamento do
sujeito humano e seu potenciamento para perceber a transparência
do Absoluto transcendente (e inexprimível) no mundo dos
fenômenos. Esta experiência constitui a convergência final de um
longo itinerário do eu profundo, e sua assunção “no conhecimento
que o Absoluto tem de si mesmo.” A experiência que Jesus faz de
unidade com o Pai (Jo,10,30) constitui, como indica Dupuis, o
“coroamento e realização” desta experiência do advaita.

A fé cristã no mistério da Trindade encontra sua razão de ser na


experiência relacional de Jesus com o Pai, uma experiência humana
de unidade-na-distinção. Dupuis acredita ser possível, mediante uma
análise mais aprofundada dos atributos divinos, relacionar a
doutrina trinitária cristã com o conceito de Deus vigente na mística
advaita hindu. Na tradição teológica do Vedanta, a expressão
saccidananda, que expressa a natureza íntima do Absoluto
(Brahman), implica a conjunção de três termos específicos: ser (sat),
consciência (cit) e felicidade absoluta (ananda). Na tradição cristã
encontramos a adoção das “mesmas perfeições transcendentais da
Divindade para expressar o mistério das três pessoas da Trindade:
Pai, Filho, Espírito.” Entre as grandes intuições teológicas de
Agostinho, depois retomada por Tomás de Aquino, está a
compreensão da “analogia psicológica” da Trindade, que relaciona
os membros da Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo com a tríade:
Ser, Consciência e Amor. Para Dupuis, “a tradição clássica hindu
fornece provavelmente, com a doutrina do saccidananda, o conceito
de Deus mais próximo à Trindade cristã dos já oferecidos pela
história das religiões.”

A adoção de uma “cristologia trinitária” permite reconhecer na


experiência mística advaíta hindu a presença ativa e operante do
Deus uno e trino da revelação cristã. Dupuis avança ainda mais ao
reconhecer que o contato dos cristãos com esta mística favorece
aos mesmos uma purificação e aprofundamento de sua fé no
mistério divino. A contribuição fundamental da mística hindu ao
cristianismo estaria, segundo Dupuis, na afirmação singular da
Alteridade de Deus. A compreensão de Deus como Totalmente Outro
constitui para os cristãos um desafio permanente de superação de
simplificações antropomórficas que empobrecem a própria
compreensão da fé.

O capítulo quarto é dedicado à reflexão cristológica, questão que


ganhou importância significativa no atual debate em torno da
teologia das religiões. Quais as razões teológicas que justificam
manter no atual contexto de pluralismo religioso a convicção sobre a
unicidade e universalidade de Jesus Cristo ? Em que medida a atual
perspectiva cristocêntrica não estaria dificultando o diálogo com as
outras tradições religiosas ? Os teólogos que defendem o paradigma
“teocêntrico” lançam novas interrogações neste campo e propõem o
redimensionamento da pessoa de Jesus Cristo. As considerações
propostas pelos pluralistas envolvem, segundo Dupuis, três âmbitos
específicos. A nível filosófico, vem sugerida uma concepção mais
dinâmica de verdade. Acentua-se, em particular, a relatividade da
consciência humana face ao Mistério Divino; a nível de exegese
bíblica, pontua-se uma atenção mais destacada ao método histórico-
crítico; a nível teológico, salienta-se a particularidade histórica do
evento Jesus e a impossibilidade de qualquer pretensão de
considerá-lo como decisivo e universal.

Diversamente dos teólogos “teocêntricos”, Dupuis acredita ser


plausível sustentar uma equilibrada reflexão sobre a unicidade e
universalidade de Jesus Cristo mesmo no atual contexto de
pluralismo religioso. Tal reflexão não constitui um impedimento ao
diálogo, mas pode conjugar-se legitimamente com uma “teologia
‘aberta’ das religiões e do pluralismo religioso”, desde que realizada
no horizonte de uma cristologia trinitária. Semelhante reflexão
“torna possível afirmar uma pluralidade de ‘caminhos’ ou
‘percursos’ para a libertação/salvação humana, em conformidade
com o desígnio de Deus para a humanidade em Jesus Cristo; além
disso, abre igualmente caminho para o reconhecimento de outras
‘figuras salvíficas’ na história humana.”

Em linha de sintonia com sua proposta de uma cristologia trinitária


e aberta, Dupuis evita falar em caráter absoluto seja com referência
a Jesus Cristo, seja com referência a igreja. Como justifica este
autor, a dimensão absoluta só pode ser aplicada pertinentemente a
Deus, enquanto Realidade Última ou Ser Infinito. Nenhuma
realidade finita pode advogar para si tal atribuição, nem mesmo
sequer a existência humana do Filho-de-Deus-feito-homem. “O fato
de ser Jesus Cristo o Salvador ‘universal’ não implica sua condição
de ‘Salvador Absoluto’ - condição que se reserva somente a Deus.”

A forma como se apresenta a atual reflexão teológica sobre a


unicidade e universalidade de Jesus Cristo não está isenta de
ambigüidades. De um lado, encontramos posições que reforçam
unilateralmente sua dimensão absoluta (exclusivismo estreito); de
outro, posições que relativizam seu horizonte (pluralismo em tom
maior). De forma eqüidistante, Dupuis prefere sinalizar a unicidade
e universalidade de Jesus Cristo como dimensões singulares e
intimamente relacionadas.; não são “nem ‘absolutas’ nem ‘relativas’,
mas ‘constitutivas’, na medida em que Jesus Cristo possui um
significado salvífico para a inteira humanidade.”

As objeções feitas contra a unicidade constitutiva de Jesus Cristo,


tecidas em particular pelos teólogos J.Hick, P.F.Knitter e outros,
carecem para Dupuis de plausibilidade teológica cristã. Uma
adequada reflexão cristológica deve ser, por um lado, consciente da
provisoriedade que anima o conhecimento humano de Deus,
inclusive dos limites implicados na própria consciencia humana do
Filho de Deus, mas isto não significa privar de validade o processo
(filosófico e teológico) que move o aprimoramento do conhecimento
humano sobre Deus, ou a legitimidade de perceber em Jesus Cristo
um “canal privilegiado” de revelação do mistério divino aos
humanos.

A afirmação cristã de Jesus Cristo como “canal privilegiado” de


revelação não pode, porém, conduzir a uma perspectiva de
fechamento com respeito às outras tradições religiosas. Ao
contrário, é esta própria fé que convoca a decisão de abertura para
o mundo plural. É verdade que toda adesão de fé, ainda que
diversificadamente, carrega consigo uma convicção de unicidade e
universalidade. É esta convicção que fornece a base essencial de sua
própria identidade, e nenhum verdadeiro fiel se dispõe a ela
renunciar. As três religiões monoteístas têm sua “base de fé
absoluta”, mas igualmente as religiões místicas do Oriente, tidas
como mais inclusivas, partilham de uma sólida base de fé. O
cristianismo, em particular, afirma como inegociável a compreensão
de Jesus Cristo como “Filho unigênito de Deus”, caminho universal
de salvação. Como “defender” teologicamente este fundamento face
às outras pretensões de universalidade ? Esta é uma complexa
questão colocada para a teologia do pluralismo religioso e que
Dupuis busca responder com sua hermenêutica cristológica.

Dupuis indica a necessidade de uma “nova hermenêutica” do Novo


Testamento no atual contexto do pluralismo religioso. Uma tal
hermenêutica pressupõe considerar a “práxis do diálogo inter-
religioso” como “ato” primeiro da reflexão teológica, que recebe sua
luz e direção da revelação cristã. A experiência vital do encontro de
duas perspectivas de fé levará, com efeito, a um processo de
“reiterpretação” de certezas antes estabelecidas e cristalizadas. A
palavra de Deus permanece em todo o processo do “círculo
hermenêutico” como “norma normans”, mas na nova dinâmica
acionada pela teologia indutiva das religiões esta palavra passa a ser
vista “como uma realidade dinâmica, que exige ser interpretada no
contexto específico do encontro entre as experiências de fé.”

Uma nova hermenêutica cristológica trabalha a mensagem revelada


não como uma “verdade monolítica”. Isto vale para a compreensão
da unicidade “constitutiva” de Jesus Cristo, que permanece como
legítima afirmação de fé, mas que exige um tratamento teológico
mais apurado. Sua compreensão “não mais será absolutizada, sob o
fundamento unilateral de alguns textos isolados: At 4,12; 1 Tm 2,5;
Jo 14,6. A palavra de Deus será vista como um todo complexo, com
as tensões implícitas em elementos de verdade aparentemente
contraditórios mas todavia complementares.” A perspectiva
trinitária da cristologia acentuará igualmente a presença universal
do Verbo e do Espírito, antes mesmo da encarnação de Jesus Cristo.
O “ato” primeiro do encontro entre experiências distintas de fé
“ajudará os cristãos a descobrirem novas dimensões no testemunho
deixado por Deus nas outras comunidades de fé.”

A unicidade e universalidade de Jesus Cristo apresentam um caráter


necessariamente dialogal. A abertura é um dos traços
característicos da identidade de Jesus. A relação do cristianismo
com as outras religiões deve ser caracterizada por uma atitude de
abertura e justamente porque o Deus de Jesus constitui um “símbolo
de abertura”. Deus se manifesta em Jesus Cristo como o “Deus-dos-
homens-de-um-modo-plenamente-humano”. No intuito de esclarecer
o caráter relacional da unicidade e universalidade de Jesus, Dupuis
busca, como primeiro passo, destacar a continuidade e
descontinuidade entre Jesus e o Cristo. Para Dupuis, há entre os dois
uma “continuidade de identidade pessoal” e uma “descontinuidade
de condição humana”. Os teólogos pluralistas, ao insistirem sobre a
descontinuidade real acabam por descuidar da continuidade
essencial.

Um segundo passo consiste em mostrar a presença de uma


coincidência em Jesus Cristo da dialética particular e universal. Para
Dupuis a universalidade de Jesus Cristo não pode ser afirmada
colocando em segundo plano a particularidade de Jesus de Nazaré.
“Um Cristo universal separado do Jesus particular deixaria de ser o
Cristo da revelação cristã.” Isto traz consequências particularmente
significativas para uma perspectiva aberta na reflexão sobre a
teologia das religiões. Segundo Dupuis, “a particularidade histórica
de Jesus confere inevitáveis limitações ao evento-Cristo.” E justifica:
“Assim como a consciência humana de Jesus, enquanto Filho, não
podia, por sua natureza, exaurir o mistério divino, e por isto deixou
incompleta a revelação de Deus; de maneira análoga o evento-Cristo
não exaure - nem o poderia - a potência salvífica de Deus. Este
permanece para além do homem Jesus, enquanto fonte última tanto
da revelação como da salvação.”

A singularidade do evento-Cristo está em sua condição de


“sacramento universal da vontade salvífica de Deus”. Mas tal evento
não constitui a única expressão possível desta mesma vontade de
Deus. “A potência salvífica de Deus não está exclusivamente ligada
ao sinal universal que este projetou para a sua ação salvífica.”
Segundo a perspectiva de uma cristologia trinitária, a ação salvífica
de Deus permanece ativa, antes e depois da encarnação do Logos
(Lógos énsarkos), mediante a presença do Logos não encarnado
(Lógos ásarkos) e da presença universal do Espírito. O mistério da
encarnação permanece como único em sua singularidade, mas não
encerra a história da revelação de Deus. Outras “figuras salvíficas”,
como indica Dupuis, “podem ser ‘iluminadas’ pelo Verbo e
‘inspiradas’ pelo Espírito, tornando-se indicadores de salvação para
os seus seguidores, conforme o desígnio amplo de Deus para a
humanidade.”

Para importantes teólogos contemporâneos, como J.Dupuis,


C.Duquoc, C.Geffré e E.Schillebeeckx, o dado da particularidade do
evento Jesus Cristo constitui garantia essencial para uma
compreensão mais aberta da teologia das religiões. Com base nas
reflexões de Duquoc, o teólogo Schillebeeckx mostrou com clareza
que a revelação de Deus na humanidade de Jesus não significa uma
absolutização por parte de Deus de uma particularidade histórica
(Jesus de Nazaré), mas é a própria revelação de Deus em Jesus a nos
indicar que “nenhuma singularidade histórica pode considerar-se
absoluta e, por isso, por causa da relatividade presente em Jesus,
toda criatura humana pode encontrar a Deus também fora de Jesus,
a saber, em nossa história concreta e nas diversas religiões que nela
surgiram.” Dupuis, por sua vez, acredita que a consciência da
particularidade do evento Jesus Cristo abre espaço de legitimidade
para “diversos ‘percursos’ de salvação”, o que não significa propor
uma economia de salvação distinta ou paralela, já que esta
permanece uma só, e o evento Cristo o seu ponto culminante.

A fé cristã interpreta a experiência da encarnação como a “entrada


pessoal do Filho de Deus na história da humanidade e do mundo. O
Verbo de Deus feito homem é verdadeiramente e autenticamente um
ser humano.” Em Jesus Cristo o Deus invisível ganha um
“desvelamento”. Manifesta-se agora aos humanos “de-maneira-
plenamente-humana”. Mas esta revelação histórico-salvífica de Deus
em Jesus mantém aberta a história da revelação de Deus. Para
Dupuis, este “único ‘rosto humano’ de Deus” pode ser situado em
relação a outras figuras salvíficas, que se encontram também
animadas pela presença de Deus e de sua graça salvífica. Dupuis
destaca, como exemplo concreto, o “surpreendente paralelismo” que
aproxima o conceito cristão de encarnação e o conceito de avatar do
tradicional teísmo hindu.

Ao final do capítulo, Dupuis sublinha que os traços da unicidade e


universalidade constitutivas de Jesus Cristo representam um
patrimônio essencial da fé cristã, sem os quais ela não se pode
manter. Mas na linha da hermenêutica trinitária a unicidade e
universalidade ganham uma importante dimensão relacional com
respeito às outras tradições religiosas, rompendo com um
“isolamento” exclusivista e inserindo-se positivamente no horizonte
mais amplo e positivo do desígnio salvífico universal de Deus.

A reflexão desenvolvida por Jacques Dupuis sobre a unicidade de


Jesus Cristo destacou como um de seus traços importantes o caráter
relacional. O significado universal do evento-Cristo vem, assim,
situado no horizonte mais amplo do desígnio salvífico de Deus para a
humanidade. O objetivo do capítulo quinto é justamente aprofundar
os desdobramentos implicados na compreensão relacional da
unicidade de Jesus Cristo, ou seja, a “relação recíproca que existe
entre o ‘caminho’ que é Jesus Cristo e os vários ‘caminhos’ de
salvação que as tradições religiosas propoem a seus membros.”

A expressão “caminhos de salvação”, que dá título ao capítulo, não


indica um simples “anseio” ou busca de Deus, presente como apelo
universal entre os seres humanos. Isto significaria manter-se nos
limites da “teoria da realização”. Mas em primeiro lugar, como
indica Dupuis, a busca por Deus realizada de encontro com os seres
humanos, à sua “graciosa iniciativa” de oferecimento universal de
participação na vida divina. É Deus quem predispõe os “caminhos de
salvação”, não os seres humanos. A questão é saber qual a relação
vigente entre o “unico caminho” e os “diversos percursos” no
desígnio salvífico mais amplo de Deus para a humanidade. Ou em
outros termos, se a salvação acontece apesar das tradições
religiosas, ou por meio de tais tradições.

Com respeito ao tema dos “caminhos de salvação”, o paradigma


pluralista havia defendido a tese de que as várias tradições
religiosas constituem “caminhos diferentes” direcionados a uma
mesma meta, identificada com Deus. Com o intuito de ampliar a
reflexão pluralista, J.Hikc, em seus escritos posteriores, identifica
esta meta com o “Real”, de forma a poder englobar também as
religiões não teístas. No mesmo campo da reflexão pluralista, esta
tese de J.Hick foi contestada e identificada com um inclusivismo
camuflado. Em obra publicada em 1995, S.M.Heim defende um
“pluralismo de orientações”, contestando, assim, a tese pluralista
tradicional de uma única meta para as várias religiões. Este autor
assinala que “um pluralismo autêntico deve, ao contrário,
reconhecer abertamente a real pluralidade de fins religiosos que
caracteriza as várias tradições.” A pluralidade de metas religiosas
constitui, em seu parecer, condição essencial para o reconhecimento
positivo do papel exercido pelas outras tradições religiosas no
desígnio de Deus para a humanidade.
Segundo Dupuis, a tese que defende “fins religiosos diferentes” para
a humanidade é problemática em vários sentidos. Em primeiro lugar,
coloca em questão a vontade salvífica universal de Deus. Na ótica
cristã, “a salvação revelada por Deus em Jesus Cristo constitui (…) o
destino universal escolhido por Deus para os seres humanos, em
qualquer que seja a situação em que se encontrem ou tradição
religiosa que pertençam.” Em segundo lugar, relativiza a “unidade
do gênero humano”, que tem em Deus sua origem e destino. Em
terceiro lugar, “a igual dignidade de todos os seres humanos diante
de Deus”. No parecer de Dupuis, ao introduzir esta tese uma
distinção entre fins últimos diferentes por Deus atribuída aos seres
humanos, conforme o credo particular de cada um, corre o risco “de
promover involuntariamente a discriminação ou um dissimulado
exclusivismo.” Para este autor, não podem haver metas
diversificadas para o ser humano. Segundo a visão cristã, todos os
seres humanos tendem para a comunhão com o Deus uno e trino, o
que não invalida a legitimidade dos “diversos percursos religiosos”
mediante os quais os sujeitos religiosos respondem à proposta
salvífica de Deus.

A proposta que indica “vários caminhos para uma meta comum”,


muito utilizada no contexto do neo-hinduísmo, ganha maior
plausibilidade na atual reflexão da teologia cristã do pluralismo
religioso. A grande dificuldade presente tanto na reflexão teológica
como magisterial está em reconhecer a plausibilidade das diversas
religiões como “caminhos de salvação”. Mesmo um teólogo de ponta
como Karl Rahner não conseguiu avançar para além de um
reconhecimento legítimo mas provisório destas mesmas religiões. A
nível do magistério da igreja, o documento pós-conciliar que mais se
aproximou de uma perspectiva inovadora foi o já mencionado
documento Diálogo e Anúncio (1991). Em importante documento
sobre o diálogo inter-religioso, a Comissão para o diálogo e
ecumenismo da Conferência dos bispos católicos da Índia já havia,
anteriormente, demonstrado uma grande e singular abertura. Nas
Diretrizes para o diálogo inter-religioso, publicado por esta
Comissão em 1989 lê-se: “A pluralidade das religiões é uma
consequência da riqueza da mesma criação e da graça multiforme
de Deus.”

É interessante verificar que os documentos que mais avançam na


reflexão são aqueles sustentados por uma experiência existencial de
base dialogal mais significativa. Isto corrobora a tese de Dupuis
sobre a importância da práxis do diálogo como ponto de partida
essencial do novo método de fazer teologia no contexto do
pluralismo religioso. Esta é a razão que explica a distinção entre a
convicção manifestada nos documentos dos bispos asiáticos sobre o
tema e a indecisão e “aparente relutância” verificada em textos
teológicos mais distanciados de uma interação vital com outras
experiências religiosas. Para Dupuis, é este “distanciamento” que
explica certas afirmações presentes no recente documento da
Comissão Teológica Internacional que trata a relação do
cristianismo com as outras religiões.

Uma vez sublinhado o horizonte comum que abraça os “percursos de


salvação”, Dupuis busca esclarecer em que sentido se pode afirmar
e atribuir a presença de um valor salvífico nos outros “caminhos” e
nas “figuras salvíficas” apresentadas como relevantes nas outras
tradições religiosas. Para Dupuis, “a ação salvífica de Deus, que
opera sempre no âmbito de um desígnio unitário, é única e ao
mesmo tempo diversificada. Ela não prescinde jamais do evento-
Cristo, onde encontra sua máxima densidade histórica.” Ganha,
porém, uma singular amplitude para além deste evento, mediante a
ação do Verbo de Deus e da obra do Espírito.

Entre as dimensões assumidas pela mediação da graça salvífica


universal de Deus, Dupuis sublinha a presença inclusiva do mistério
de Jesus Cristo, a potência universal do Logos e a ação ilimitada do
Espírito. Trata-se de três dimensões diferentes, mas que devem
estar intimamente articuladas e integradas.

Com respeito à presença inclusiva do mistério de Jesus Cristo,


Dupuis ressalta que a dificuldade maior está em como explicar o
modo como a ação salvífica de Deus em Jesus Cristo atua sobre os
membros das outras tradições religiosas. Como entender as outras
religiões como “mediações de salvação” sem destacar sua “função”
salvífica do evento de Jesus Cristo ? Em linha de superação de uma
“teoria da realização”, Dupuis indica como ponto de partida a
impossibilidade de uma cisão entre a vida religiosa singular de uma
pessoa e a comunidade de fé onde sua experiência religiosa se dá.
Os indivíduos que professam uma religiosidade não constituem
mônadas separadas, mas são antes membros de uma determinada
comunidade religiosa dotada de tradições particulares. “Se muitos
membros das outras tradições religiosas partilham de uma autêntica
experiência de Deus, a conclusão inevitável é que estas tradições
contenham, nas suas instituições e práticas sociais, traços do
encontro dos seres humanos com a graça, ‘componentes que se
devem a um influxo sobrenatural da graça’”. Nesse sentido, a
salvação diz respeito não apenas aos indivíduos religiosos
singulares, mas envolve igualmente as religiões particulares.

Para Dupuis, toda experiência autêntica de Deus revela “um


encontro de Deus em Jesus Cristo com o ser humano.” É Deus
mesmo que se faz presente na prática de suas próprias tradições
religiosas: “A sua prática religiosa é, com efeito, a realidade que dá
expressão à sua experiência de Deus e do mistério de Cristo.” Nesse
sentido é pertinente falar da tradição religiosa dos outros como
“caminho” e “meio de salvação”. Isto não entra em rota de tensão
com a compreensão particular do cristianismo. Segundo Dupuis, no
cristianismo “a presença pessoal de Deus aos seres humanos em
Cristo alcança a sua mais alta e completa visibilidade sacramental.”

Com respeito à potência universal do Logos, Dupuis retoma a


referência ao Prólogo de João para mostrar a dinâmica da ação
universal do Logos, que não se exaure no evento-Cristo mas
manifesta sua operatividade em toda a história humana. Os
elementos de “verdade e graça” (AG 9) presentes nas tradições
religiosas da humanidade constituem expressões desse Logos. Esta
ação universal não rompe com a unidade do desígnio divino para a
salvação da humanidade, que encontra no evento-Cristo “o ponto
culminante do processo de auto-comunicação divina.”

A ação ilimitada do Espírito constitui, enfim, a terceira dimensão da


mediação da graça salvífica de Deus. Dupuis sublinha como no atual
pontificado de João Paulo II esta dimensão tem sido muito
enfatizada. Junto ao reconhecimento da presença do Espírito entre
as pessoas, acrescenta-se sua atuação permanente também nas
culturas e religiões.

Com base na “criteriologia inter-religiosa” proposta por Hans Küng


em suas obras mais recentes, Dupuis busca encontrar uma pista
para o discernimento dos valores salvíficos das outras tradições
religiosas. Um critério cristão seguro vem encontrado na “prática do
amor”. O exercício concreto do amor constitui o melhor parâmetro
para reconhecer em que medida uma dada pessoa escutou de fato a
palavra de Deus e a aceitou no coração. Mas para se constituir em
agápe salvífica o amor ao próximo deve satisfazer algumas
condições. Dupuis indica particularmente duas: que seja
desinteressado (incondicionado) e universal. Em que medida as
escrituras sagradas das outras tradições fornecem incentivos reais à
prática do amor ao próximo, de forma a ser reconhecida como
salvífica sob o prisma cristão ? Para Dupuis, o preceito do amor ao
próximo encontra-se presente tanto nas escrituras hebraicas como
no Corão e, de forma ainda mais definida, nas tradições asiáticas. A
experiência agápica entre os participantes destas tradições
religiosas manifesta o sinal da presença operante do mistério da
salvação em seu meio.
De “diversos modos” (Hb 1,1) Deus se revelou e continua a se
revelar na história. Isto ocorre também por meio das diversas
tradições religiosas da humanidade. Todas estas tradições
participam da “história da salvação, que é una e multiforme. Todas
elas apresentam elementos de revelação e momentos de graça
divina”, que não se encontram encerrados em si mesmos, mas que
“antecipam, na providência de Deus, a revelação mais plena e o dom
decisivo deste mesmo Deus em Jesus Cristo.”

Entre as várias tradições religiosas, incluindo aí o cristianismo,


existem valores de uma “complementaridade recíproca”, o que não
significa conceder o mesmo significado salvífico a todas as
manifestações do Verbo ou do Espírito na história. Isto já ficou
esclarecido anteriormente. A consciência de uma tal
complementaridade a nível dos valores salvíficos permite concluir a
existência de uma “convergência entre as tradições religiosas e o
mistério de Jesus Cristo, enquanto percursos - ainda que desiguais -
mediante os quais Deus buscou e continua a buscar os seres
humanos na história, no seu Verbo e no seu Espírito.” Em Jesus
Cristo o processo salvífico universal revela uma fisionomia concreta,
mas este mesmo processo ganha “realizações particulares” também
nas outras tradições religiosas. Em Jesus Cristo, o desígnio salvífico
de Deus para a humanidade ganha sua densidade culminante, mas
não no sentido de representar a única manifestação do Verbo ou a
completa e exaustiva revelação de Deus.

A eclesiologia ganha um referencial explícito no sexto capítulo da


segunda parte do livro de Jacques Dupuis, intitulado O Reino de
Deus, as religiões e a igreja. No início do capítulo, este autor levanta
um elenco de expressões teológicas tradicionais, utilizadas na
reflexão eclesiológica, que se revelam problemáticas no horizonte de
uma teologica cristã do pluralismo religioso. Um exemplo concreto
encontramos na expressão “não-cristãos”, que em geral define os
“outros” negativamente, subtraindo-lhes de sua identidade singular.
A expressão “povo de Deus” é vista como igualmente problemática,
já que instaura uma ruptura na aliança feita por Deus com o seu
povo, revelando-se particularmente danosa no diálogo entre cristãos
e hebreus. Observação análoga pode ser feita com respeito à
distinção traçada entre o “Antigo e Novo Testamento”. Mesmo a
consagrada expressão “Reino de Deus” levanta questões no contexto
do diálogo inter-religioso, caso se restrinja à esperança de Israel ou
venha identificada com o cristianismo e a igreja.

Não há possibilidade de afirmação de uma teologia aberta das


religiões quando se restringe o horizonte do Reino de Deus aos
limites da igreja católica romana. O acento dado pela teologia mais
recente à dimensão escatológica do Reino de Deus, arrefeceu a
tendência até então em curso de identificá-lo com a igreja e abriu o
campo para a compreensão mais ampla de sua universalidade. Para
Dupuis, a ênfase do Reino como realidade escatológica, não foi
assumida em profundidade na constituição dogmática Lumen
Gentium, do Vaticano II, que manteve ainda viva a identificação
entre Reino de Deus e a igreja, seja em sua presença histórica como
em sua realização escatológica.

A tendência de identificação do Reino com a Igreja, seja na história


como na escatologia, não se apagou no pós-Concílio, e reaparece de
forma explícita tanto num documento publicado pela Comissão
Teológica Internacional em 1985 sobre temas escolhidos de
eclesiologia, como no recente Catecismo da igreja católica. A nível
magisterial, o tema só receberá um novo tramento por ocasião da
encíclica Redemptoris missio de João Paulo II (1990), que
desenvolve o tema da validade permanente do mandato missionário.
Esta encíclica reconhece que “a realidade incipiente do Reino se
pode encontrar também fora dos confins da Igreja, em toda a
humanidade na medida em que ela viva os ‘valores evangélicos’ e se
abra à ação do Espírito que sopra onde quer.” Dupuis sublinha esta
novidade aportada pela encíclica, e em particular o explícito
reconhecimento da universalidade do Reino de Deus, que se extende
para além da igreja, a todo o gênero humano. Trata-se do “primeiro
documento do magistério romano a distinguir claramente a igreja e
o Reino de Deus, ainda que os mantendo unidos.”

Esta abertura da encíclica com respeito à ação universal do Espírito,


feita com a devida “cautela” e “não sem reservas”, vinha já
acontecendo no “magistério periférico” da igreja. Em documento da
Federação das Conferências dos Bispos Asiáticos (FABC), produzido
em novembro de 1985 na Tailândia, já se falava explicitamente da
ação do Reino por meio do Espírito, que atua onde quer que Deus
seja acolhido, os valores evangélicos vividos e o ser humano
respeitado. Este documento sublinha que o Reino “é muito mais
amplo que os confins da Igreja. Esta realidade já presente encontra-
se orientada para a manifestação final e a plena perfeição do
Senhorio de Deus.”

Dupuis faz também referência a um documento mais recente da


Congregação para a evangelização da mesma FABC (1991),
versando sobre a questão da evangelização na Ásia. O tema da
universalidade do Reino de Deus ganha um horizonte ainda mais
alargado. A perspectiva “reinocêntrica” vem acentuada como
fundamental para uma teologia da missão, o que não significa
colocar em risco o cristocentrismo da fé cristã. O documento reitera
que o “’reinocentrismo’ necessita do cristocentrismo, e vice
versa.”

Constitui hoje um dado incontestado da reflexão exegética a


afirmação da centralidade do Reino na vida, no pensamento, na
pregação e missão de Jesus. O Reino de Deus constitui a atmosfera
essencial que envolve toda a trajetória histórica de Jesus. O
Evangelho atesta igualmente “que para o mesmo Jesus, o Reino por
ele anunciado e já presente devia desenvolver-se até a sua
plenitude.” A questão que se coloca para uma reflexão eclesiológica
é em que medida se pode afirmar uma referência explícita de Jesus
sobre a igreja, ou de outra forma, em que medida associou sua
pregação sobre o Reino com o advento da igreja. Como lembra
Dupuis, as referências de Jesus sobre a igreja são sempre indiretas.
Não se pode, com rigor, afirmar que “Jesus identificasse o Reino com
o ‘movimento’ que estava criando e que depois se tornaria a igreja.”
Dupuis salienta como o envio missionário, descrito em Mt 10,5-7,
evidencia a centralidade do Reino como objeto da pregação dos
discípulos. Igualmente a “boa nova” a ser difundida pela igreja após
a ressurreição (Mc 16,15) “é a mesma proclamada por Jesus durante
a sua vida terrena: a vinda do Reino (Mc 1,15).” A missão dos doze,
portanto, não dificulta mas reforça a tese de que a igreja está
destinada a anunciar o Reino de Deus e não a si mesma.

O dado da universalidade do Reino de Deus leva a teologia das


religiões a reconhecer na prática sincera da religiosidade, onde quer
que esta ocorra, uma resposta à chamada de Deus. Os cristãos e os
“outros” partilham, assim, do mesmo mistério de salvação em Jesus
Cristo, ainda que por caminhos diferentes. Neste sentido, é legítimo
afirmar que os participantes de outras tradições religiosas são
efetivamente “membros ativos do Reino”, com presença singular na
sua edificação. Esta participação se estende também às suas
tradições religiosas que, de forma misteriosa, contribuem para a
afirmação do Reino entre os seus seguidores e na história humana.

Dupuis ressalta que esta nova perspectiva traz importantes


consequências para o diálogo inter-religioso, enquanto experiência
de profunda comunhão espiritual: “Este diálogo acontece entre
pessoas que já estão ligadas umas às outras no Reino de Deus
inaugurado na história em Jesus Cristo. Não obstante a diversidade
de suas pertenças religiosas, tais pessoas já partilham de uma
comunhão mútua na realidade do mistério da salvação, ainda que
entre elas permaneça uma distinção a nível ‘sacramental’, ou seja,
de ordem da mediação do mistério. A comunhão na realidade é,
todavia, mais fundamental e de maior significado que as diferenças a
nível de sinal.”
A reflexão sobre a universalidade do Reino de Deus, de sua presença
operante entre os membros de outras tradições religiosas e nestas
mesmas tradições, levanta uma importante questão de ordem
eclesiológica: Como situar o lugar da igreja no plano da salvação em
Jesus Cristo ? Ou em outros termos: Como explicar a necessidade
universal da igreja na ordem da salvação ? Dupuis desenvolve
cuidadosamente este tema na última parte do capítulo e traz uma
importante contribuição para o seu esclarecimento. De antemão,
chama a atenção para duas posições extremas, que devem ser
evitadas. A primeira consiste em situar a necessidade e
universalidade da igreja no mesmo plano que a de Jesus Cristo. Isto
equivaleria a um retrocesso eclesiocêntrico. A segunda consiste em
minimizar a necessidade e universalidade da igreja.

Não se pode negar que a igreja exerce uma mediação salvífica,


sobretudo mediante o anúncio da palavra e a economia sacramental.
Mas como lembra Dupuis, estes fatores “não atingem - por definição
- os membros das outras tradições religiosas que recebem a
salvação de Jesus Cristo.” Em que medida pode-se, então, falar da
igreja como mediação da graça para aqueles que dela não
participam ? Para defender esta condição advoga-se o seu papel de
intercessora para a salvação de todos, em particular na celebração
eucarística. Na posição defendida por Dupuis, uma mediação
universal na ordem da salvação só pode ser atribuída a Jesus Cristo,
já que é “sua humanidade ressuscitada o canal obrigatório e a causa
instrumental da graça para todas as pessoas.” Com respeito à igreja,
a mediação por ela exercida é “derivada”, não implicando, portanto,
uma “mediação universal a título de causalidade eficiente.” É
legítimo falar em “necessidade da igreja”, mas esta deve ser
compreendida nos “termos de sua função de sinal sacramental da
presença da graça de Deus entre as pessoas.”

Em importante artigo, publicado na enciclopédia teológica


Sacramentum Mundi, Karl Rahner utilizou a teoria sacramental para
explicar a relação entre a igreja no mundo e o Reino de Deus. Para
Rahner, este Reino, que não pode ser identificado com nenhuma
objetividade histórica, se verifica “onde quer que se atue na graça a
obediência para com Deus, enquanto aceitação da auto-participação
de Deus.” A Igreja vem definida como o “sacramento histórico-
salvífico do reino de Deus.”

A perspectiva reinocêntrico-cristocêntrica proposta por Dupuis,


constitui um desdobramento da reflexão de Rahner sobre o tema e
sua aplicação ao diálogo inter-religioso. Para Dupuis, a noção de
igreja como “sacramento do Reino” favorece uma nova luz para a
compreensão de sua missão na história. Sua função não é a de ser
“mediadora universal”, que só pode ser aplicada a Jesus Cristo, mas
de portadora da gramática do Reino, mediante seu testemunho,
serviço e anúncio. Isto implica um “des-centramento” de si mesma e
um re-centramento em Jesus Cristo e no Reino de Deus.

A compreensão da igreja como “sacramento universal do Reino de


Deus” na história deixa claro que não pode haver um monopólio do
Reino e que também os participantes de outras religiões, mediante a
prática sincera de suas tradições, contribuem para a edificação do
Reino. Trata-se de uma mediação distinta da exercida pela igreja,
mas “não menos real”.

Ao final do capítulo, Dupuis trata a questão eclesiológica em sua


relação com o Reino e a escatologia. Depois de apontar diferentes
posições sobre o tema, acentua que a reflexão teológica que
trabalha com a idéia da “função sacramental da igreja” revela-se
melhor instrumentada para mostrar “como os membros de outras
tradições religiosas, que fizeram parte do Reino de Deus na história
mesmo não sendo membros da igreja, podem participar, no final dos
tempos, da plenitude do Reino, sem que sejam obrigatoriamente
ligados a uma ‘igreja escatológica’ na fase final.” O Reino de Deus,
portanto, transborda os limites da igreja e constitui seu horizonte
escatológico derradeiro. Daí se poder falar, com Teilhard de
Chardin, da plenitude dos tempos como uma “cristificação
universal” e concluir com Dupuis que “a realidade escatológica é a
plenitude do Reino de Deus.”

No sétimo capítulo e último da segunda parte do livro, Dupuis


desenvolve o tema do diálogo inter-religioso. Partindo de
considerações sobre o lugar a ele reservado na missão
evangelizadora da Igreja, este autor busca refletir sobre a relação
que pode ser estabelecida entre o diálogo e o anúncio no contexto
de uma visão mais ampla da evangelização. Em seguida, destaca o
processo de recíproco enriquecimento que este diálogo propicia aos
cristãos e aos membros das outras tradições religiosas. Neste último
capítulo, Dupuis deixa evidenciado que uma teologia cristã do
diálogo inter-religioso deverá adotar “uma perspectiva
preferencialmente ‘reinocêntrica’”.

Desde seus trabalhos anteriores, Dupuis tem sempre insistido em


situar o diálogo inter-religioso não como um simples “meio para a
proclamação do evangelho”, mas “uma forma plenamente legítima
de evangelização”. Ou ainda mais precisamente, como “parte
integrante” ou “dimensão constitutiva” da evangelização. Este autor
manifestou-se sempre crítico com respeito ao uso restritivo atribuido
ao conceito de evangelização nos documentos do magistério da
igreja. Este termo vem quase sempre identificado com o anúncio do
evangelho, excluindo, assim, outras dimensões fundamentais de seu
significado, como o diálogo inter-religioso e a promoção da justiça. A
virada decisiva, no sentido de uma maior abertura, ocorrerá nos
anos 80 e 90, quando se evidenciará o sentido do diálogo como
“elemento integrante da evangelização” da igreja.

O documento Diálogo e Anúncio (1991), ao falar sobre o diálogo,


sublinhou a necessidade de uma distinção de níveis. O diálogo pode
ser compreendido como uma “comunicação recíproca” (a nível
puramente humano), como uma “atitude de respeito e amizade” (“o
espírito do diálogo”) e como o “conjunto das relações inter-
religiosas, positivas e construtivas, com pessoas e comunidades de
outros credos para um conhecimento mútuo e um recíproco
enriquecimento” (diálogo como expressão da missão). É importante
ressaltar que segundo o documento Diálogo e Anúncio, o “espírito
do diálogo” deve estar presente em toda a dinâmica evangelizadora
da igreja e, de forma muito particular, no anúncio do evangelho. As
diversas modalidades do anúncio, deverão se realizar animadas por
este espírito e sem perder jamais sua dimensão de inculturação.

Uma teologia cristã do diálogo inter-religioso pressupõe uma


compreensão mais ampla da missão evangelizadora da igreja. Em
documento publicado em 1984 pelo Secretariado para os não
cristãos, a missão evangelizadora da igreja é apresentada “como
uma realidade unitária mas complexa e articulada”, cujos elementos
principais são: “presença e testemunho vivo da vida cristã”; “o
empenho concreto para o serviço aos homens e toda a atividade de
promoção social e de luta contra a pobreza”; “a vida litúrgica, a
oração e a contemplação”; “o diálogo no qual os cristãos encontram
os membros de outras tradições religiosas para caminhar em
comum”; e finalmente o “anúncio e a catequese.” Como sublinha
Dupuis, a proclamação de Jesus Cristo aparece como ponto
culminante e não inicial da missão evangelizadora da igreja.
Seguindo o princípio presente no documento, Dupuis redistribui
alguns dos elementos deslocados e chega à seguinte ordem:
“presença, serviço, diálogo, anúncio e sacramentalização.”

Segundo Dupuis, o documento Diálogo e Anúncio, dentre o


documentos até então produzidos pelo magistério da igreja, é o que
fornece a melhor fundamentação teológica para o diálogo inter-
religioso. Em confronto com a Redemptoris missio, revela-se mais
aberto, assumindo mais decisivamente uma perspectiva
cristocêntrica e reinocêntrica. A encíclica, ao contrário, traduz uma
perspectiva ainda eclesiocêntrica.
Dupuis reconhece em sua reflexão que entre o diálogo e anúncio
haverá sempre uma “certa tensão”, que pode ser expressa entre “o
ainda-não da igreja, que, junto com os ‘outros’ peregrina na história
em direção à plenitude do Reino, e o ‘já’ da igreja que constitui no
tempo e no mundo o sacramento do Reino.” Para este autor, a
Comissão Teológica Consultiva da FABC traduziu de forma muito
feliz esta dialética em suas teses sobre o diálogo inter-religioso. De
acordo com este documento, a ação da igreja se realiza num “campo
de forças” controlado por dois pólos da atividade divina: anúncio e
diálogo. “O anúncio constitui a afirmação e o testemunho da ação de
Deus em si mesma. O diálogo é a abertura e a atenção dadas ao
mistério da ação de Deus nos outros crentes. Trata-se de uma tal
perspectiva de fé que não podemos falar de uma deslocando-a da
outra.” Constitui, assim, um equívoco excluir seja o diálogo, seja o
anúncio da missão evangelizadora da igreja.

O documento Diálogo e Anúncio destacou quatro formas de diálogo


inter-religioso: o diálogo de vida, o diálogo das obras, o diálogo dos
intercâmbios teológicos e o diálogo da experiência religiosa. A
segunda forma de diálogo, o diálogo das obras, implica uma
colaboração inter-religiosa em favor de um comum empenho em
favor da justiça e dos projetos de libertação. Dupuis sublinha uma
tendência hoje em curso na teologia das religiões de articulação do
diálogo entre as religiões e a práxis de libertação. No contexto da
teologia asiática A.Pieris foi um dos teólogos a sinalizar de forma
substantiva a importância da conjugação da práxis libertadora com a
práxis do diálogo inter-religioso. Em âmbito europeu pode-se
destacar o trabalho realizado por Hans Küng em favor de uma
“teologia ecumênica para a paz”, ou seja, de um ecumenismo de
responsabilidade, voltado para a necessidade de um exercício entre
as religiões de “pró-existência construtiva e em cooperação
promotora da paz.” Em linha de continuidade com o seu modelo
“soteriocêntrico” deve-se ainda mencionar o último trabalho do
teólogo Paul Knitter, intitulado Uma terra, muitas religiões, onde
advoga um diálogo de responsabilidade global entre as várias
tradições religiosas em favor de um “bem-estar-eco-humano”.

Na parte final do último capítulo, Dupuis sintetiza sua teologia do


diálogo. Uma questão inicial serve de provocação para a reflexão:
Como conjugar a exigência fundamental de abertura ao outro
presente no diálogo com a singularidade da identidade religiosa ? A
resposta a tal interrogativo pressupõe, segundo o autor, uma
reflexão mais pormenorizada sobre os desafios do díalogo, ou
segundo a terminologia do documento Diálogo e Anúncio, as
disposições para o diálogo. O diálogo exige em primeiro lugar uma
“adesão” identitária, ou seja, uma convicão religiosa. Como assinala
Dupuis, “a honestidade e a sinceridade do diálogo exigem
especificamente que os vários interlocutores o empreendam e nele
se empenhem com a integralidade da própria fé.”

A fidelidade ao engajamento de fé é condição indispensável para um


diálogo verdadeiro. Não há que colocar a fé em suspenso para
melhor encontrar o outro. Como lembra S.H.Nasr, estudioso do Islã,
“pode-se admitir que é bom ter abertas as janelas da mente, sempre
e quando esta também tiver paredes.” Assim como os cristãos não
devem no diálogo camuflar ou desrespeitar a sua própria convicção
de fé, o mesmo respeito deve alimentar sua postura a propósito de
seus parceiros no diálogo. Devem, portanto, “reconhecer em seus
interlocutores (,,,) o direito e o dever inalienável de empenhar-se no
diálogo conservando suas pessoais convicções - bem como as
pretensões de universalidade que podem acompanhar sua fé.”

O diálogo exige, em segundo lugar, uma atitude de “abertura à


verdade”. Esta disposição de abertura é igualmente fundamental, já
que previne os parceiros do diálogo contra o risco da absolutização
do que é relativo. Este é um risco real que acompanha toda fé e
convicção religiosa. Segundo Dupuis, determinada forma de se
interpretar no cristianismo a idéia de “plenitude” da revelação em
Jesus Cristo pode significar um fechamento a tal disposição de
abertura. Daí ter evidenciado em sua reflexão anterior que esta
“plenitude” não é quantitativa, mas qualitativa. Ou seja, “tal
plenitude não exaure - nem o poderia - o mistério de Deus; nem
mesmo nega a verdade da revelação divina presente nas figuras
proféticas de outras tradições religiosas.”

Esta fundamental disposição de abertura ao outro, de esforço de


“empatia” e “compreensão” de seu mistério profundo, foi por
R.Panikkar identificada como diálogo “intra-religioso”. Trata-se de
uma condição essencial do autêntico diálogo inter-religioso. Que a
experiência real de travessia na alteridade seja fundamental para o
diálogo, é um dado indiscutível. A questão colocada por Dupuis
refere-se à viabilidade ou não de uma real “condivisão de
experiências de fé diferentes”. Apesar das dificuldades que tal
questão apresenta, sobretudo em razão da “indivisibilidade” que
acompanha um empenho religioso, Dupuis não exclui esta
possibilidade, tendo em vista as experiências reais que ocorrem
neste campo. O tema requer um “discernimento” particular, dada a
sua complexidade. O que se pode afirmar, indica Dupuis, é a
existência real de “elementos de outras experiências de fé que se
encontram em harmonia com a fé cristã e que podem nela ser
combinadas e integradas. Tais elementos servirão para enriquecê-la,
caso seja verdade - como afirmamos - que as outras experiências de
fé contenham verdade e revelação divina.” O certo é que, porém,
não pode haver diálogo sem este “esforço positivo de entrar, o
quanto possível, na experiência religiosa e na visão global do outro.”

Todo diálogo verdadeiro traz consigo “ricas recompensas”. Como


sublinha o documento Diálogo e Anúncio, ele não enfraquece a
identidade da fé, mas a torna “mais profunda”, possibilitando sua
abertura para novas e inéditas dimensões. Como o principal agente
do diálogo inter-religioso é o Espírito Santo, sua ação se faz sentir
também em profundidade nos “outros” interlocutores que podem,
assim, participar de sua Verdade. Os cristãos saem enriquecidos
desta experiência de comunhão dialogal. Mediante tal experiência
poderão não só “descobrir em maior profundidade certos aspectos”
ou “certas dimensões do mistério divino”, apresentados de forma
imprecisa pela tradição cristã, como igualmente sair enriquecidos e
purificados na sua fé.

Há que sublinhar ainda que o diálogo não pode ser concebido em


perspectiva meramente instrumental, ou seja, como um
“instrumento para um fim ulterior”. Ele “já possui seu próprio
valor”. Não pode, por exemplo, ser concebido em função de uma
“conversão” à religião particular do interlocutor. O diálogo implica,
na verdade, que os interlocutores em questão sejam mutuamente
provocados, enriquecidos, transformados, sem que necessariamente
mudem de religião. O diálogo tende em realidade para uma
experiência de abertura à verdade que nos ultrapassa a todos. Se há
uma tendência que o anima é a de visar “uma mais profunda
conversão de cada um a Deus. O mesmo Deus que fala no coração
de ambos interlocutores.”

Na conclusão do livro, Jacques Dupuis faz uma síntese de alguns


“princípios de fundo” e “chaves interpretativas” que guiaram sua
proposta de uma teologia cristã do pluralismo religioso. Em primeiro
lugar, a preocupação em destacar a complexidade que envolve uma
teologia cristã das religiões, onde a dialética de reciprocidade dos
diversos modelos e as limitações neles implicadas, problematizam
uma tendência vigente de interpretar tais modelos como paradígmas
necessariamente antagônicos. Em segundo lugar, a proposta
realizada de encontrar no modelo integral de uma cristologia
trinitária e do Espírito, o caminho adequado para uma teologica
cristã do pluralismo religioso. Em terceiro lugar, o reforço da
perspectiva “reinocêntrica” como superação de um estreito
eclesiocentrismo no tratamento da questão inter-religiosa.

O trabalho realizado por Jacques Dupuis serviu para esclarecer três


questões fundamentais que aparecem no debate atual sobre a
teologia das religiões e o diálogo inter-religioso. O tratamento da
questão do pluralismo religioso ganha em sua reflexão um lugar de
destaque. Este pluralismo vem acolhido como um fator positivo.
Ganha a nível teológico uma plausibilidade “de direito”, deixando de
ser visto como um dado conjuntural passageiro ou uma ameaça.
Trata-se de um fenômeno rico e fecundo, que haure sua razão de ser
no próprio desígnio de Deus, favorecendo ainda a transparência de
toda a “riqueza multiforme” de seu mistério. Como sublinha Dupuis,
o “princípio da pluralidade” ganha o seu “fundamento primário na
imensa riqueza e variedade das auto-manifestações de Deus à
humanidade.”

A questão da unicidade de Jesus é igualmente situada em


perspectiva de abertura. Sem romper com a tese da unicidade e
universalidade “constitutivas” de Jesus Cristo, Dupuis propõe um
tratamento singular ao tema. A unicidade ganha uma interpretação
não absoluta, com o destaque dado à sua dimensão relacional. O
evento Jesus Cristo é percebido como simultaneamente “particular
no tempo e universal no significado; e, enquanto tal, ‘singularmente
único’, mas também em relação com todas as outras manifestações
divinas à humanidade realizadas na única história da salvação.” As
outras tradições religiosas, com seus sábios e profetas, são
portadoras de “verdade e graça”; estes traços nelas presentes não
podem ser reduzidos a “germes” inacabados e superados na
revelação cristã, mas constituem “benefícios acrescentados e
autônomos”.

Enfim, Dupuis sublinha a questão da convergência histórica e


escatológica entre as diversas tradições religiosas do mundo. A
experiência de complementaridade recíproca e o encontro inter-
religioso contribuem também para o crescimento do Reino de Deus
na história. Este diálogo permanece, porém, sempre orientando para
a plenitude escatológica que se dará no final dos tempos, quando
então haverá uma “recapitulação” em Cristo das diversas tradições
de fé. Esta “recapitulação” escatológica, de que fala Efésios 1,10,
“respeitará e salvaguardará o caráter irredutível impresso em cada
tradição pela auto-manifestação de Deus por meio de seu Verbo e de
seu Espírito.” Esta riqueza plural não constitui apenas um fenômeno
histórico mas prolonga-se igualmente no seu horizonte escatológico.
Na pista de reflexão aberta por Teilhard de Chardin, Dupuis conclui
que no horizonte derradeiro da história haverá uma “maravilhosa
convergência” de todas as tradições religiosas no Reino de Deus e
no “Cristo Universal”.

Depois de toda esta longa trajetória destinada a apresentar este


importante livro de Jacques Dupuis, salta aos olhos a honestidade do
autor, a riqueza dos resultados alcançados, a extensão da pesquisa
realizada e a profundidade de suas intuições. A densidade da
reflexão contida neste trabalho não diminui a pertinência de suas
implicações teológico-pastorais, mas fornece a base essencial seja
para os teólogos como para todos aqueles que nesta virada de
milênio queiram de fato dizer uma palavra que possa tocar a
sensibilidade de seus contemporâneos. Nesta obra se percebe a
profunda articulação entre o equilíbrio do exercício reflexivo - a
preocupação de fidelidade teologal - , com a coragem de avançar
para além dos tímidos caminhos de um eclesiocentrismo estreito e
infrutífero. Trata-se de um trabalho de impacto que permanecerá
por muitos anos como referência fundamental na discussão sobre a
teologia das religiões e o diálogo inter-religioso e que certamente
exercerá substancial influência no projeto de inculturação eclesial.

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