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A situação de Portugal
Como resultado direto da derrota de Alcácer Quibir, em 1578, e da morte do jovem rei D. Sebas‑
tião, Portugal perde a independência em 1580. É o rei Filipe II de Espanha, senhor do mais
poderoso império da época, que une as duas coroas e passa a governar o nosso país. O regime
de monarquia dual conferia a Portugal alguma autonomia. Contudo, política e militarmente, a
D. João IV, Museu
dos Coches (fotografia
administração espanhola revelou‑se ruinosa, e Inglaterra, França e Holanda conquistaram ter‑
de José Pessoa). ritórios portugueses no Oriente, no Brasil e em África. Com estes perdeu‑se igualmente o
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Ciência e pensamento
PARA SABER MAIS
O século xvii consolidou novos métodos científicos e aprofundou as descobertas e os estudos
iniciados no Renascimento. A expansão do conhecimento foi de tal forma significativa que se A morte no século xvii
fala de uma revolução científica. A presença permanente
No âmbito das ciências da Terra e do Universo, Galileu e Kepler continuam as investigações da morte no pensamento
desenvolvidas por Copérnico e Bruno e propõem teorias sobre a organização do Universo e o e na arte barroca reflete a
realidade da época.
movimento dos planetas. Em Inglaterra, Newton elabora a teoria da gravidade. Registam‑se A escassa produção
também avanços técnicos e científicos na medicina. de alimentos e as más
A abertura do pensamento, que se autonomiza da teologia e da doutrina cristã, apesar da colheitas conduziram
à fome e a devastadoras
reação da Contra‑Reforma católica, encoraja, sobretudo nos países protestantes, o desenvolvi‑ epidemias. Juntamente
mento da filosofia, principalmente na área da epistemologia, em que Francis Bacon, Descartes, com a fome e a peste,
Locke e Leibniz nos deixam obras fundamentais. a guerra surge como
o terceiro elemento desta
Como consequência das tensões sociais e políticas e dos conflitos internacionais, a produção tríade funesta que coloca
intelectual no âmbito da ciência política alcança uma maturidade assinalável. São desta época o homem do período
os escritos de Hobbes, Locke e Grotius sobre a governação das nações e as relações entre os barroco numa situação
Estados. de excecional crise.
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A poesia maneirista
A transição entre a arte do Renascimento e o Barroco não se processou de forma súbita.
O Maneirismo foi a tendência artística intermédia na passagem do primeiro paradigma estético
para o segundo. É muito difícil traçar cronologicamente uma linha divisória, clara e rigorosa,
entre estes três estilos artísticos que se sucedem: Renascimento, Maneirismo e Barroco.
Quanto aos temas tratados, aos motivos usados e ao estilo característico, encontra‑
mos aspetos de continuidade entre os três, mas também aspetos de rutura.
Falando de Maneirismo, o termo começou por se aplicar à pintura e referia‑se à arte
que era feita à maneira de alguns pintores renascentistas, como Miguel Ângelo ou
Rafael. Trata‑se de uma arte fantasista, que não procura representar de forma absolu‑
tamente fiel o mundo «como ele é». Altera‑lhe as formas e as proporções naturais,
desdenha a beleza regular, ignora as regras da perspetiva linear e acentua o contraste
de cores e formas, por vezes de forma agressiva. O gosto pelo grotesco, pelo mons‑
truoso e pela deformação da natureza é característico deste estilo.
El Greco, Oração no horto. A arte maneirista destrói deliberadamente a ideia de harmonia, serenidade e equilíbrio que
tinha primado no Renascimento. Os historiadores de arte atribuem o aparecimento do Manei‑
rismo à falência das ideias humanistas e à decadência do otimismo e da confiança que anima‑
vam o homem da Renascença.
A Igreja cristã dividiu‑se com o surgimento das correntes protestantes; a noção de centralidade
de Deus na existência humana sofreu um abalo; as certezas sobre a Natureza e o cosmos foram
questionadas. A crise religiosa, existencial e civilizacional conduziu a uma inquietação, a um
desânimo e a uma frustração que em parte explicam o aparecimento da arte maneirista, que
é ensombrada pelo desalento e pela melancolia.
Algumas das principais características da poesia maneirista ressurgem na poesia bar‑
roca. Quanto à temática, a lírica maneirista apresenta um prolongamento de alguns
temas e motivos renascentistas e antecipa os temas do Barroco. O desconcerto do
mundo, a complexidade e a falta de sentido para a vida ou o desengano são algumas
dessas ideias. Paralelamente, como o Maneirismo é a arte que se enquadra no início
da Contra‑Reforma, a religião assume um lugar de destaque.
O estilo desta poesia prima pelo jogo de ideias e de palavras, que se afigura muitas
vezes forçado e artificial. Impera o gosto pelas antíteses, pelos oximoros e pelas metá‑
foras, que têm um carácter abstrato e racional, ou seja, ilustram e exploram ideias. No
Barroco são mais sensoriais. Na sintaxe, cultiva‑se a construção da frase complexa, por
vezes labiríntica. Trata‑se, pois, de um estilo algo artificial, elaborado e pleno de pre‑
ciosismos.
Entre os poetas que apresentam um estilo maneirista nas suas produções contam‑se
Rodrigues Lobo, D. Francisco de Portugal, Fernão Álvares do Oriente, Baltasar Estaço.
Caravaggio, Crucificação Se alguns destes autores vêm a adotar o estilo e a temática barrocos, certo é também
de São Pedro. que alguns maneiristas, como Pêro de Andrade Caminha e Luís de Camões, eram homens
saídos do Renascimento.
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Prosa historiográfica
No campo da historiografia, assiste‑se ao desenvolvimento do projeto alcobacense da
Monarquia lusitana. A obra foi iniciada por Frei Bernardo de Brito (1568‑1617), que pro‑
duziu as duas primeiras partes (1597 e 1609). O autor inicia a História de Portugal no
tempo bíblico do Dilúvio, chegando até à época do conde D. Henrique. O carácter
fantasioso de algumas passagens, as citações de fontes falsas, forjadas para conferir
verosimilhança ao texto, e o recurso a lendas e tradições fazem desta obra uma cró‑
nica sem grande rigor historiográfico.
Frei António Brandão (1584‑1637) foi o redator da terceira e quarta partes (1632), cor‑
respondentes ao período entre a época do conde D. Henrique e o reinado de
D. Afonso III. Ao contrário do seu antecessor, Frei António Brandão empreendeu uma
rigorosa investigação, com pesquisa e crítica de documentos, sendo a sua contribui‑
ção caracterizada por uma probidade científica, valorizada pelos historiógrafos sete‑
centistas e românticos. Os continuadores da obra, Frei Francisco Brandão (1601‑1680),
Frei Rafael de Jesus (1614?‑1693) e Frei Manuel dos Santos (1672‑1740), apesar de não
incorrerem em erros tão extremos como os de Frei Bernardo de Brito, não seguiram
as pisadas de rigor e cientificidade de Frei António Brandão.
Outros autores produziram textos de teor historiográfico. Um deles foi D. Francisco
Manuel de Melo, que, também neste campo, deixou um legado considerável. Historia
Página de rosto da
de los movimientos y separación de Cataluña (1645) prima pelo rigor da informação veiculada,
Monarquia lusitana.
sendo considerada uma obra clássica na historiografia castelhana da época. As Epanáforas
(1660) relatam diversos episódios da História de Portugal. Dignas de registo são também as
biografias de D. João IV, Tácito português, e do duque de Bragança, Teodósio II, ambas publi‑
cadas só no século xx, em 1940 e 1944, respetivamente. É de notar que, nos seus textos histo‑
riográficos, o autor faz acompanhar os factos de comentários moralizantes.
Há outros historiadores a referir. Frei Luís de Sousa (c. 1556‑1632) escreveu Vida de frei Bartolomeu
dos Mártires (1619), uma biografia do arcebispo de Braga das mais interessantes do século xvii,
Anais de D. João III, e História da fundação do Mosteiro de S. Domingos (1623).
Jacinto Freire de Andrade (1597‑1657) foi autor da obra de estilo marcadamente barroco, em
tom patriótico e edificante, Vida de D. João de Castro (1651), em que sobressai a faceta militar do
biografado. D. Fernando Xavier de Meneses (1614‑1699), segundo conde da Ericeira, escreveu
História de Tânger (1732) e Vida e ações d’El Rei D. João I (1677). D. Luís Xavier de Meneses (1632‑
‑1690), terceiro conde da Ericeira, redigiu uma longa História de Portugal Restaurado (1679‑98),
uma fonte em que é relatado o período da Restauração.
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Os sermões
BIOGRAFIA
As peças de oratória sacra, isto é, os sermões, são os textos em que Vieira exibiu, de forma mais
Padre António Vieira completa, o brilhantismo do seu estilo. Neles, temos apenas as palavras escritas que terá usado
(1608-1697) na sua pregação e não a sua voz nem o seu desempenho teatral como orador. Sabemos que
António Vieira nasceu estes textos dos sermões, que ele editou e fez publicar nos últimos dezoito anos da sua vida,
em Lisboa. Com 6 anos foram reconstituídos a partir das suas notas e da sua memória.
partiu com os seus pais
para o Brasil. Em 1623, Neles, o padre António Vieira tratou não apenas assuntos doutrinários e religiosos, mas também
ingressou na Companhia temas políticos e cívicos. Os tópicos centrais da sua obra sermonística contemplaram a moral
de Jesus e iniciou e os costumes (por exemplo, no Sermão do bom ladrão), a legitimação de D. João IV como rei
o noviciado. Em 1635
de Portugal e a fundamentação do seu papel profético no mundo (por exemplo, no Sermão
foi ordenado padre
e iniciou a carreira dos bons anos e no Sermão de Santo António, ambos de 1642) e a luta contra a escravatura dos
de pregador. Em 1641, índios (por exemplo, no Sermão de Santo António aos peixes).
Vieira viajou até Portugal
na comitiva oficial A arte de pregar de António Vieira
que vinha mostrar A retórica é a disciplina que ensina um orador a elaborar um discurso, a veicular a sua mensa‑
a fidelidade do Brasil
gem e a persuadir os seus ouvintes. Enquanto texto argumentativo, um sermão, mesmo reli‑
à Coroa portuguesa.
Em Lisboa, pregou com gioso, funciona segundo os princípios da retórica. Através de argumentos bem preparados, o
sucesso em diversas pregador que o pronuncia procura persuadir (convencer) os seus ouvintes de que uma ideia é
igrejas. Cativou a amizade válida. Para que o seu discurso seja eficaz, o orador deve revelar agudeza, a capacidade de
de D. João IV, que fez
jogar habilmente com ideias e com palavras, e propriedade argumentativa. A teatralização do
dele seu conselheiro
e o enviou em missões discurso, quando ele está a ser proferido, é uma componente fundamental da pregação.
diplomáticas a Paris, No Sermão da Sexagésima, Vieira condena um tipo específico de pregadores do seu tempo.
Haia e Amesterdão.
A prática destes oradores assentava, por um lado, na construção de um discurso rebuscado e
Voltou ao Brasil em 1653,
integrando missões obscuro, tipicamente cultista, com jogos intrincados de palavras e, por outro, na excessiva
de evangelização dos teatralidade com que pronunciavam o seu texto. No Sermão da Sexagésima, Vieira apresenta
Índios, mas regressou, uma súmula da sua teoria sobre a arte de pregar.
pouco depois, a Portugal
para conseguir do rei Comecemos por recordar que um sermão, à semelhança de outro texto argumentativo, se
a libertação dos estrutura em partes bem definidas e apresenta características próprias. Assim, parte de um
indígenas brasileiros conceito predicável, constituído por um passo do Evangelho que serve de mote e condensa
da escravatura que os
colonos lhes impunham.
o assunto. Segue‑se o exórdio, ou introdução, em que o pregador expõe as ideias centrais que
Com a morte de defende. Na argumentação, ou desenvolvimento, que compreende a exposição e a confirma‑
D. João IV, em 1656, ção, as ideias são apresentadas e desenvolvidas, através de argumentos, confirmados com
o jesuíta perdeu a exemplos. O sermão encerra com uma peroração, ou conclusão, na qual é feita uma síntese,
proteção de que gozava
e caiu nas mãos da
retirando‑se um ensinamento sobre todo o assunto. Este ensinamento devia ser posto em
Inquisição. Um longo prática por quem ouvia o sermão.
processo inquisitorial No Sermão da Sexagésima, Vieira define o que são para ele as cinco qualidades («circunstâncias»)
levou‑o à prisão e limitou
a sua intervenção pública.
de um pregador: «a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz». A pessoa refere‑se ao carácter
Em 1681 regressa ético do pregador e à sua conduta moral. O estilo deve ser «muito distinto e muito claro» e
definitivamente nunca recorrer a uma linguagem obscura e de difícil compreensão. O pregador deve versar
ao Brasil, à Baía. apenas uma matéria, um assunto central, e deve desenvolvê‑la com propriedade. A ciência
Faleceu com 89 anos.
prende‑se com a capacidade de criar argumentos e de desenvolver o raciocínio e a voz com
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TEXTO CRÍTICO 1
dade a um texto que a iluminasse. Para este pendor «teorético» não se trata, portanto, de deduzir provas de
princípios gerais, mas de realizar uma construção maravilhosa do sentido dos acontecimentos, ajustando‑os
à palavra da Verdade que é a Bíblia.
Já dissemos que, para Vieira, o mundo e a história estão dados no simultaneísmo da profecia. E, nesse
10 caso, o que verdadeiramente interessa é a aplicação ao acontecimento que surge, da luz permanentemente
dinâmica dos oráculos divinos. A dedução de causa para efeito e de princípios para consequência, essa é
que seria tarda e vagarosa. Pelo contrário, esta sala de espelhos do tempo e do espaço, que é a Bíblia, ime‑
diatamente responde, em múltiplos reflexos, à proposta de quem nela entrar. Assim se realizará, na oratória,
o que, já vimos antes, se dava na História do Futuro: «uma perpétua novidade sem nenhuma coisa de novo».
15 E fica o sermão, muitas vezes transformado numa multiplicidade de reflexos e de ecos, em diferentes
espaços e idades, o que oferece flagrantes analogias, agora em ponto grande, com o que se dava nas alu‑
sões e perífrases do estilo, em ponto pequeno. O que faz a subtileza do estilo seiscentista é, quase sempre,
a perífrase ou rodeio, a alusão àquilo que se não formula claramente. Donde se vê que a alusão é muito
própria da «forma aberta», e permite tocar, ao longe e ao perto, em muitas sugestões. Aí estão os planos em
20 profundidade e os espaços arbitrários da pintura barroca.
Ora bem. Vieira, que não é cultista no estilo, é‑o, em ponto grande, na conceção do discurso. Por outras
palavras: o conceptismo é um cultismo desenvolvido. O que é para o estilo uma alusão rápida a um objeto
distante é, no sermão de Vieira, um parágrafo inteiro, alusivo à realidade que vai tratando. E com tanta natu‑
ralidade realiza esse confronto de tempos e acontecimentos que nem sequer se dá ao trabalho de suavizar
25 as transições. É um reflexo que ao longe brilha, e que nos introduz na profundeza dos tempos, sem mais
explicações, porque a semelhança alusiva, por si mesma, estabelece a ligação: «Pelejaram os pastores de
Abraão com os de Lot…»; «Lá viu S. João no seu Apocalipse…»; «Depois da morte de el‑rei Saul…».
E aí temos como a oratória vieirense gira, naturalmente, sobre a alegoria e o «exemplo», que são a visão
do mundo em dois planos: «Não sei que possa haver mais claro espelho do nosso caso…»; e como a sua
30 estética se pode definir como «estética do espelho»: a realidade humana, vista na imagem da Bíblia, que é
«o espelho das profecias», em exemplos quase sempre extraídos dos Livros Sagrados. E por esse lado,
enquanto aplicação à vida de um paradigma divino, a alegoria está tão longe de ser fautora de irrealidade,
como já se tem dito, quanto é o caminho mais comum de Vieira entrar na vida, por alusão, ironia e perífrase.
Todo o «Sermão da Confissão dos Ministros» (sermão do terceiro Domingo da Quaresma, pregado na capela
35 real), o «de Santo António aos Peixes», os vários «de Pretendentes», e quantos outros, atingem a bem acesa
refrega da vida real, precisamente através da alegoria. Esta combina‑se muito facilmente com a ironia, que
consiste em significar o contrário do que as palavras significam na sua materialidade. Servem‑lhe, pois,
muito bem os dois planos da linguagem para os mais acerados a certeiros golpes. E temos, assim, uma
espécie de paralelismo, mas de linhas em sentido contrário. Os exemplos são infinitos. Só um por mais
40 breve:
A aranha, diz Salomão, não tem pés, e sustentando‑se sobre as mãos, mora nos palácios dos reis. Bom
fora que moraram nos palácios dos reis e tiveram neles grande lugar os que só têm mãos. Mas a aranha não
tem pés, e tem pequena cabeça, e sabe muito bem o seu conto. Sobe‑se, mão ante mão, a um canto dessas
abóbadas doiradas, e a primeira coisa que faz é desentranhar‑se toda em finezas. Com estes fios tão finos,
45 que ao princípio mal se divisam, lança suas linhas, arma seus teares, e toda a fábrica se vem a rematar em
uma rede para pescar e comer. Tais são (diz o rei que mais soube) as aranhas de palácio.
Poderá dizer‑se que esta alegoria, que é também finíssima ironia, distrai da vida o orador? E quantas e
quantas passagens como esta se encontram na sua pena combativa!
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admira pois que os mais íntimos conhecedores da sua obra sejam os seus biógrafos: André de Barros, João
Lúcio de Azevedo, António Sérgio, Hernâni Cidade, José van den Besselaar, ou o próprio João Mendes,
5 apesar do seu temperamento tendencialmente crítico e ensaístico. Só Raymond Cantel e António José
Saraiva parecem ter fugido um pouco a esse tropismo biográfico. O primeiro, porém, tendo começado por
estudar o estilo de Vieira, logo passou do estilo para um outro aspeto dos mais ligados à vida de Vieira: o
profético. O segundo fixou‑se e investigou a fundo e desassombradamente dois passos ou temas fulcrais
dessa biografia (a questão indígena e a judaica) e pretendeu compreender a bizarra lógica do discurso
10 vieiriano, em O Discurso Engenhoso. A o longo do presente trabalho, tentarei aproximar estes dois esforços
de A . J. Saraiva por pensar que na génese da identidade discursiva de Vieira se encontra uma espécie de
compulsão biográfica, e que o efeito literário e barroco de tal discurso corresponde a um processo de subli‑
mação verbal e simbólica dessa disposição primacial. A oratória sagrada, enquanto formação e género
discursivo, para mais hegemónico na época, possibilitou e fomentou essa sublimação, ao gerar o que foi a
15 «vocação enunciativa» de Vieira.
A verdade é que a referência literária ao autor padre António Vieira arrasta imediatamente para a
memória, senão para a imaginação, a evocação da sua personalidade e do seu destino particular, aberto à
especulação e à significação. Dificultoso se torna falar da obra sem que a vida do homem se venha interpor;
mas não a vida de um homem «sem qualidades», antes já a de uma identidade e a de um tipo heroico: o do
20 pregador. Não se pode explicar o biografismo apenas por os sermões serem obras de circunstância: ações
verbais aplicadas à ocasião ou tempo (kairos), fundadas e atuando sobre um tema do calendário litúrgico,
da festa do dia ou da vida política, social, institucional e religiosa num determinado momento. Neles se
envolvia a pessoa que verbalmente atuava sobre ou a partir dessas circunstâncias: o pregador Vieira. Deste
modo, alguns dos traços próprios da oratória sacra como formação discursiva foram eles mesmos determi‑
25 nantes na compulsão biográfica. Todavia, outro fator concorre. Vieira ia construindo ou perseguindo a sua
própria identidade e a imagem dela através dos discursos que fazia; por sua vez, esses discursos, dada a sua
natureza, animavam‑no nessa busca. A energia vital tinha assim uma proveniência dupla e em interação:
existencial e textual. Nas orações colocava o autor os sinais ou avisos de um sentido para a sua existência, ou
seja, de um destino; mas tal destino vinha já alicerçado nos próprios meios discursivos. Procuraremos com‑
30 preender melhor este fenómeno, integrando‑o numa constelação cultural, mental e existencial específica
da época, e que o jesuíta pode contribuir para melhor definir. A estampa de uma pessoa e de uma vontade
de ser fica gravada na sua obra escrita, fecundando‑a literariamente; por sua vez, a sua obra, oral e escrita,
trabalha no sentido de esculpir uma imagem. Desenha‑se um círculo que julgo compreender, sem que,
contudo, o possa vir a explicar.
35 Tal equação não resulta de uma ideia ou tese caprichosa; é com naturalidade que a relação biografia‑
‑discurso se evidencia, e daí eu supô‑la interveniente na dimensão estética e literária alcançada pela obra
do pregador. Todo o trabalho aqui empreendido se esforçará por verificar isso mesmo. Simultaneamente,
mostrará o teor dessa dimensão literária, ou seja, tentará adjetivá‑la com atributos colocados sob a desig‑
nação genérica de barrocos.
40 Assim se podem considerar certos fenómenos capitais nas obras de Vieira, assentes mais na atividade
enunciativa do que neste ou naquele conteúdo; assentes sobretudo na enérgica e produtiva interação vida‑
‑verbo. Entre outros, o autorretrato por mediação textual, a teatralização e ficcionalização de um locutor
heroico e ideal, a assimilação empenhada das palavras às coisas (ou seja, às situações pragmáticas, ao con‑
texto real da enunciação), o vedetismo da ação ilocutória e dos desempenhos oratórios, o trabalho exercido
45 sobre um certo imaginário primordial e sobre um opulento acervo de paradigmas linguísticos e textuais.
terminologia do crítico Leo Spitzer, largando propositadamente a adjetivação, no meu entender contro‑
versa, de «interno» e de «espiritual» com que Spitzer quis precisar a sua intuição teórica.
marGarida vieira mendes, A oratória barroca de Vieira, Lisboa, Editorial Caminho, 1989.
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• N
os países do Sul da Europa, o século XVII foi uma época de grande religiosi-
dade, marcada pelo espírito da Contrarreforma. O Catolicismo desencadeou
uma defesa dos seus princípios e da sua doutrina (especialmente contra as
correntes do Protestantismo cristão, que o questionavam) e recorreu a várias
estratégias e meios para os difundir. Numa época em que poucos liam, os ser-
mões foram um poderoso veículo de propagação da mensagem cristã e dos
valores do Catolicismo.
• M
uitos sermões de Vieira, como o Sermão de Santo António, de 1654, abordam
assuntos sociais e políticos associados a questões religiosas, como a doutrina
cristã, a salvação e o pecado. Os temas sociais e políticos vão da injustiça e dos
valores humanos até ao estado do Reino.
• Neste sermão de Vieira, os assuntos religiosos e sociopolíticos articulam-se
para tratar os comportamentos condenáveis que tanto dano causam na comu-
nidade, mas também para apontar exemplos que contribuiriam para fazer um
mundo melhor e para os crentes alcançarem a salvação.
• A
mentalidade barroca caracterizava-se por uma profunda religiosidade, por
uma forte ideia de pecado e por um grande receio da morte. As artes visuais e
literárias estavam imbuídas do espírito da ostentação e do excesso. Na literatura
(p oesia, oratória, etc.), essa ostentação exibia-se através da forte carga retórica
da linguagem e do virtuosismo com que o autor cultivava a arte de falar em
público (cf. páginas 20-26 do manual).
OS OBJETIVOS DA ELOQUÊNCIA
24
• O
pregador tinha de ser visto pela comunidade como um
exemplo de vivência cristã e de cumprimento das regras
religiosas. O seu carácter ético e a sua conduta moral deviam
ser uma referência para o rebanho.
• N
o Sermão de Santo António, Vieira tira partido da figura
ímpar que foi Santo António de Lisboa (ou de Pádua). O seu
trabalho pastoral serve de inspiração para Vieira, não só pelo
sucesso que teve na sua pregação e na sua atividade de mis-
sionação mas também nas adversidades e nas dificuldades
que sentiu.
• A
ntónio Vieira sente dificuldades análogas no seu trabalho de
pastor no Brasil — num jogo de palavras, encontra mesmo
uma semelhança das situações ligada à identidade dos
nomes. Como Santo António em Arímino, o jesuíta também
não consegue fazer passar a mensagem cristã e humanista
aos colonos do Maranhão, que escravizam e maltratam os Giuseppe Arcimboldo, O almirante (século XVI).
Índios.
• A
inda que a conduta e o exemplo de Vieira sejam irrepreensíveis, a sua «pes-
soa» e a sua palavra não dão fruto entre os colonos, e o seu trabalho persuasivo
não obtém os resultados que ele espera. O jesuíta não falha pelo exemplo nem
pelas palavras; quem falha é o seu rebanho por insensibilidade, interesse pró-
prio e afastamento da doutrina cristã.
• A
ssim, três dias após ter pregado o célebre sermão, Vieira embarca para Lisboa
para tentar resolver política e diplomaticamente o que não conseguira resolver
pela via religiosa e moral.
• A
um terceiro nível, o exemplo vem também de Cristo e das Escrituras — tanto
do Velho como do Novo Testamento. Recorre-se aos ensinamentos e aos epi-
sódios da vida de Jesus para apontar modelos de comportamento aos ouvin-
tes, mas também para dar força e autoridade aos seus argumentos.
• N
o Sermão de Santo António [1654], o Padre António Vieira recorre à alegoria,
um recurso expressivo em que um conjunto de imagens concretas (termos,
ações, personagens) serve ao autor para transmitir uma realidade abstrata.
Neste caso, o pregador visa criticar os seus ouvintes, que são comparados aos
habitantes da cidade de Arímino, em Itália. Com efeito, tal como o povo desta
localidade se insurgiu contra Santo António, por este denunciar os seus peca-
dos nas suas pregações, também o Padre António Vieira é hostilizado pelos
habitantes do Maranhão — não só por criticar os seus defeitos, mas também
por defender a libertação dos Índios da escravatura.
• A
ssim, Vieira, no dia de Santo António, ao invés de pregar sobre ele, propõe-se
a pregar como ele: já que o santo, perante a revolta dos seus interlocutores,
decidiu ir pregar aos peixes — o que deu origem a um dos seus milagres, na
medida em que estes vieram ouvi-lo —, também Vieira irá simular que dirige o
seu sermão aos peixes. Através desta alegoria, irá representar metaforicamente
os pecados do seu auditório, criticando-o ferozmente. Com efeito, até nos
momentos em que tece louvores aos peixes denuncia os pecados dos homens.
25
• A
o propor-se a pregar como Santo António, o Padre António Vieira coloca-se,
engenhosamente, em paralelo com o santo (de notar que, inclusivamente, a
coincidência de nomes é muitas vezes utilizada para causar este efeito de
sobreposição, de tal forma que o pregador, embora esteja a falar de Santo Antó-
nio, parece estar implicitamente a falar de si próprio). Deste modo se acentua o
facto de que o único objetivo do Padre António Vieira é, à semelhança do que
sucedia com Santo António, libertar os seus ouvintes do pecado e reconduzi-
-los ao caminho da salvação. Assim, é sublinhada a virtude de Vieira, bem
como a dimensão injusta da hostilidade demonstrada pelos habitantes do Mara-
nhão em relação a este pregador.
o Sermão de Santo António de 1654, Vieira denuncia comportamentos con-
• N
denáveis e pouco cristãos dos colonos do Maranhão. Mas as críticas servem
para todos os homens. Dirigem-se acusações aos arrogantes, aos oportunistas,
aos ambiciosos e aos traidores.
as Vieira aponta também a conduta virtuosa que um bom cristão deve
• M
seguir. Salientam-se entre essas virtudes a crença em Deus, a persistência na
fé e o respeito pelas regras do Cristianismo.
• A crítica social é representada através da alegoria, porque os peixes, as naus
e outros elementos que surgem neste Sermão vão aludir metaforicamente aos
pecados mas também às virtudes dos homens (cf. «Visão global do Sermão
e estrutura argumentativa», páginas 28-29 deste livro).
26
27
ESTRUTURA ESTRUTURA
INTERNA EXTERNA
SÍNTESE DOS CONTEÚDOS
Exórdio
• Apresentação do conceito predicável: «Vos estis sal terrae»
(primeira parte (citação bíblica que serve de ponto de partida para o Sermão).
de um discurso
Capítulo I • Explicação do título do Sermão: no dia de Santo António, em vez
retórico, na qual
de pregar sobre o santo, pregará como ele — isto é, perante a recusa
se apresenta
do auditório em ouvi-lo, pregará aos peixes (alegoria utilizada para
a matéria
criticar ferozmente os habitantes do Maranhão).
a desenvolver)
(continua)
28
(continuação)
ESTRUTURA ESTRUTURA
INTERNA EXTERNA
SÍNTESE DOS CONTEÚDOS
29
Objetivos da obra
Página de rosto da edição
de 1516 do Cancioneiro Geral. Como é afirmado no prólogo, a finalidade principal desta compilação é reunir em volume
a poesia dispersa da época, de forma a não se perder no tempo. Segundo Garcia
de Resende, os feitos e as façanhas dos Portugueses caíam no esquecimento. O autor
referia-se aos recentes descobrimentos marítimos, aos reinados ilustres dos monarcas
portugueses, aos atos de bravura militar e a outros momentos grandes do passado
e do presente, que ainda não estavam devidamente expressos em texto poético.
No prólogo é afirmado ainda que o Cancioneiro, ao divulgar a poesia, recorria às funções
que esta podia ter: exaltar a doutrina cristã, promover o entretenimento e o convívio
na corte e dar voz à crítica de costumes.
Os poemas documentam várias facetas da vida palaciana. O acervo poético reunido nesta
obra tinha ainda o propósito de constituir um estímulo que encorajasse novos autores
a escrever. De forma subtil, Garcia de Resende sugere que os poetas nacionais deviam
avançar para a redação de um poema grandioso que celebrasse os altos feitos dos
Portugueses, isto é, uma epopeia. Apesar disto, as composições históricas e épicas
do Cancioneiro são escassas.
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Os temas
Tal como acontece com a lírica trovadoresca, os poemas do Cancioneiro Geral versam,
sobretudo, duas linhas temáticas que dominam a obra: o amor e os assuntos de carácter
satírico e burlesco. Ainda assim, outros tópicos marcam presença no volume.
O amor revela-se como o tema mais fecundo da poesia do Cancioneiro e é cantado nas
suas várias facetas. Na lírica amorosa voltamos a encontrar o queixume que decorre do
sentimento não correspondido e a desorientação causada pela paixão ou pela partida da
amada. No entanto, também se alude aos prazeres e às alegrias dos afetos. O galanteio
encontra nesta poesia o veículo ideal, mas, frequentemente, o sentimento amoroso
formulado revela ser convencional, pouco genuíno e pautado pelo exagero. O discurso
engenhoso, fortemente retórico, denuncia a artificialidade do amor confessado, que pode
glosar aspetos tão diferentes como a carnalidade do desejo ou a admiração espiritual.
Os poemas satíricos conferem graciosidade e humor à coletânea de Resende.
A vida da corte e as suas figuras são o alvo principal da crítica mordaz. Troça-se do
comportamento de alguns cortesãos, do seu vestuário, dos defeitos físicos, da ignorância, Página do Cancioneiro Geral.
da poesia que outros escrevem e dos caprichos das mulheres. Em termos concretos,
são objeto de sarcasmo tanto as ceroulas de D. Manuel de Noronha ou as barbas de
D. Rodrigo como a hipocrisia dos clérigos e a avareza dos judeus. Os mecanismos que
desencadeiam o cómico percorrem as várias escalas do decoro, chegando a recorrer-se
à brejeirice, e fundam-se, por vezes, em situações encenadas.
Se a sátira poderá corrigir os costumes, a poesia didática e moralizante oferece ao
leitor/ouvinte conselhos e ensinamentos práticos para o seu quotidiano. Nestes poemas,
de cariz edificante, divaga-se frequentemente sobre a dissolução dos costumes, a vida
estéril e a maledicência da corte. Não é estranho, pois, encontrarmos ensinamentos
práticos, como em «Ouve, vê e cala», de D. João Manuel, que dá conselhos «para
quem quiser viver em paz»; ou indicações sobre como evitar a podridão moral da vida
da corte: a solução, segundo João Roiz de Castel-Branco, é ir viver para a província.
O ambiente de corte e de criação coletiva não terá
propiciado uma abundante produção de poesia religiosa.
De facto, o número de composições desta temática presente
no Cancioneiro revela-se pouco expressivo. Ainda assim,
destacam-se as peças líricas de Diogo Brandão e de Luís
Anriques dedicadas à Virgem.
Os poetas do Cancioneiro, na maioria pertencentes
à nobreza, não passam ao lado dos factos históricos da sua
época e dos feitos realizados por Portugueses. Assim, estão
presentes no volume poemas de assunto histórico e épico,
que glosam as ambições expansionistas e militares do monarca
e dos nobres. Luís Anriques celebra a conquista de Azamor
e Diogo Brandão, as descobertas marítimas. Outros
acontecimentos da época, menos grandiosos, ficaram
registados em verso, como as festas nupciais do infante
D. Afonso em 1490, o desfecho fatídico da Batalha de
Alfarrobeira e a morte de D. Inês de Castro, esta em trovas
da autoria de Garcia de Resende. Batalha. Miniatura conservada na Biblioteca Nacional
de França, Paris.
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Géneros e formas
Abandonada que estava a cantiga paralelística, opta-se, na segunda metade do século XV,
por novos géneros e formas poéticas. Entre as composições menos extensas,
distinguem-se os poemas com mote dos sem mote. O mote era um breve conjunto
de versos que encerrava a ideia a desenvolver pelos poetas nas estrofes seguintes,
designadas por glosas ou voltas.
Com mote, temos o vilancete e a cantiga, que diferem na sua estrutura. O vilancete
é constituído por um mote de dois ou três versos e por uma ou mais glosas de sete versos,
cujo último verso repete, com ou sem variantes, o último verso do mote. A cantiga é
constituída por um mote mais extenso, de quatro ou cinco versos, e por apenas uma
glosa de oito a dez versos, cujo último verso repete, também, com ou sem variantes,
o último verso do mote.
Sem mote, temos a esparsa e a trova. Ambas se distinguem pela estrutura. A esparsa
é constituída por uma única estrofe, designada por copla, de oito a dezasseis versos,
e a trova é mais livre, podendo ser desenvolvida em várias estrofes, também chamadas
coplas.
Encontramos poemas narrativos, mais longos, nos quais são relatados acontecimentos em
verso, como «Fingimento de amores», de Diogo Brandão, em que o poeta visita em sonho
o Inferno. Ensaiam-se tentativas de escrever textos épicos sobre feitos nacionais. Novidade
é a presença de composições em verso que consistem em esboços de tipo dramático,
para representações teatrais. Tais são os casos dos divertidíssimos «Lamentação
do clérigo», em que um religioso chora uma pipa de vinho que se partiu, e «As trovas
a uma mula», ambos de Anrique da Mota. Outras composições dialogadas, em que dois
ou mais poetas argumentam e debatem um tema, à semelhança da tenção da lírica
trovadoresca, como o poema «O cuidar e o suspirar», afiguram-se igualmente como
esboços de textos dramáticos.
Em termos de metro, a medida mais recorrente é a redondilha maior, verso de sete
sílabas métricas, embora a redondilha menor, verso de cinco sílabas métricas, tenha
alguma expressão. São estas as formas métricas que melhor se coadunam com a arte
do vilancete, da cantiga, da esparsa e da trova. Às redondilhas maior e menor dá-se
o nome de medida velha; a medida nova, a que corresponde o decassílabo, surgirá
no Renascimento, por influência da literatura italiana. Estão ainda presentes no Cancioneiro
poemas com outras formas métricas.
O estilo
O estilo da poesia do Cancioneiro revela um grau de elaboração superior à simplicidade
das cantigas de amigo e mesmo ao discurso complexo das cantigas de amor. O poeta
procura agora ostentar o seu virtuosismo no uso da linguagem. Num discurso fortemente
retórico, procura exibir o engenho e a argúcia do raciocínio. A brevidade do vilancete,
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Influências
Numa época em que o intercâmbio cultural foi relançado, a principal influência na poesia
do Cancioneiro Geral vem da literatura castelhana. Garcia de Resende inspirou-se no
Cancionero general de Hernando del Castillo, editado em 1511, como modelo para a
coletânea portuguesa. Outro livro que lhe serviu de referência foi o Cancionero de Baena,
organizado entre 1426 e 1430. A matriz poética castelhana manifestou-se ainda na escolha
de formas métricas e na presença de vários poemas em castelhano.
Nas peças da coletânea de Garcia de Resende encontramos composições com alusões
à obra de Petrarca e de Dante, ainda que a influência da poesia e da cultura italianas só
mais tarde se faça sentir mais fortemente em Portugal. Ao primeiro, dever-se-ão a
conceção espiritual de amor e a idealização da mulher, na sua beleza e na sua dimensão
moral, ideias que surgem em poemas do conde de Vimioso. Ao segundo, a noção
do amor após a morte, nas trovas de Garcia de Resende à morte de Inês de Castro,
e as descrições do inferno em «Fingimento de amores», de Diogo Brandão.
A cultura clássica revela-se já antes do Renascimento numa fonte de motivos e ideias Cancionero general
literárias, com alusões às mitologias grega e latina, como, a título de exemplo, as de Hernando del Castillo
(Biblioteca Nacional de Espanha).
referências a Cupido, Prosérpina e Plutão no referido poema de Diogo Brandão, e em
poemas com excertos das Heróides, de Ovídio, traduzidos do latim por João Luís de
Lucena e João Roiz Sá.
LEITURA
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Sá de Miranda
(1487-1558)
Francisco de Sá de Miranda nasce em Coimbra, onde terá feito os seus primeiros estudos.
Por volta de 1505 frequenta a Universidade, em Lisboa, vindo a obter uma graduação em
Leis. É na capital que marca presença na vida da corte, onde dá a conhecer os seus
poemas e granjeia o reconhecimento e a amizade de nobres, poetas, como Bernardim
Ribeiro e António Ferreira, e do próprio rei D. Manuel I. Alguns dos seus poemas fazem
parte do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.
Em 1521 empreende uma viagem a Itália, que dura cinco anos. Lê a poesia de Dante
e Petrarca, conhece mais de perto alguns poetas italianos, como Sannazzaro e Bembo,
e contacta com as ideias filosóficas do Humanismo. Na viagem de regresso a Portugal,
permanece algum tempo em Espanha, onde terá travado conhecimento com os poetas
Garcilaso de la Vega e Boscán, que então procuravam aculturar as ideias literárias
renascentistas à poesia espanhola. A partir de 1526, já em Portugal, será Sá de Miranda
que divulgará no meio literário nacional os conceitos e formas da literatura italiana.
A sua ação sente-se mais fortemente na difusão dos temas clássicos recuperados pelo
Humanismo. Por estes motivos, atribui-se a Sá de Miranda um papel decisivo na
introdução do Renascimento em Portugal.
Durante algum tempo ainda reside em Lisboa e frequenta o paço. No entanto, cansado
Sá de Miranda. da dissolução dos costumes e da frivolidade da vida da corte, retira-se para terras de Entre
Douro e Minho, onde se casará, em 1530, e viverá o resto dos seus dias. Fixa residência
em Duas Igrejas e, mais tarde, em Quinta da Tapada. Cultivando a terra e a poesia, aí terá
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Bernardim Ribeiro
(1482?-1552?)
Pouco se conhece com rigor sobre a vida de Bernardim Ribeiro, já que são escassos os
seus dados biográficos. Durante muito tempo, circularam hipóteses fantasistas, entretanto
dadas como falsas. Do que se sabe, Bernardim terá nascido na vila alentejana do Torrão
e frequentado a Universidade, em Lisboa, provavelmente entre 1507 e 1511. Conviveu
literariamente na corte e os seus poemas foram recolhidos no Cancioneiro Geral de Garcia
de Resende. Travou amizade com poetas da sua geração, como Sá de Miranda e António
Ferreira. Tem-se especulado sobre a eventual ida de Bernardim Ribeiro a Itália, aquando
da viagem de Sá de Miranda, na companhia deste, mas tal não está comprovado. Bernardim Ribeiro.
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António Ferreira
(1528-1569)
Outro vulto maior da literatura e do pensamento renascentistas em Portugal foi António
Ferreira. Nasceu em Lisboa, mas foi em Coimbra que fez os seus estudos, frequentando
a Universidade e licenciando-se em Direito Canónico. Chega a exercer, temporariamente,
as funções de lente na Universidade. Na cidade do Mondego, onde se discutem as ideias
humanistas e lecionam intelectuais como André de Resende, André Gouveia e George
Buchanan, Ferreira contacta com as ideias do movimento renascentista, que marcarão
a sua obra literária, o seu pensamento e o seu modo de estar no mundo.
Ainda estudante na Universidade, começa a escrever. Terá, então, composto e levado
à cena a sua obra maior, a tragédia Castro. Aliás, a maior parte da sua obra, lírica
e dramática, foi produzida neste período, em Coimbra. Após os seus estudos superiores,
segue a carreira jurídica e, em 1567, assume em Lisboa o cargo de desembargador
da Casa do Cível, que desempenha até ao ano da sua morte. Faleceu em 1569, vítima
da grande peste.
O seu filho reúne os seus poemas e a tragédia Castro, publicando-os, postumamente
(1598), num volume intitulado Poemas Lusitanos. Considera-se que, pelas condições
excecionais dos seus estudos, efetuados quando a influência do Humanismo estava
no seu auge em Portugal, António Ferreira teve a mais completa educação humanística
dos poetas portugueses quinhentistas.
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SABIA QUE…
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O amor
A poesia amorosa de Camões é atravessada por uma tensão entre dois polos, dois tipos
de sentimento contraditórios. Essa tensão tem como forças opostas uma profunda
ansiedade e uma angústia por não conseguir conciliar essa oposição. As duas
conceções de amor que se digladiam podem ser identificadas como o amor espiritual
e o amor sensual.
Quando este sentimento é tratado na lírica camoniana, testemunhamos a pulsão
e o anseio por uma forma espiritualizada de amor, que é caracterizada como mais pura
e mais elevada («Este amor que vos tenho, limpo e puro»). Ora, este amor espiritual é
concebido com base na conceção de Petrarca, que cantava a sua afeição deslumbrada
por uma mulher idealizada, Laura. Dante antecipou esta conceção petrarquista de amor
na figura de Beatriz.
Este amor idealizado é, na sua teoria, influenciado pela ideia platónica de que o verdadeiro
amor, perfeito e ideal, só pode ser alcançado numa realidade superior, seja o mundo
inteligível de Platão, seja o Céu cristão — Laura já tinha morrido quando Petrarca
a cantou. Trata-se, pois, de um amor concebido em termos abstratos e sobre o qual
se escreve de forma teórica, racionalizando o sentimento («Transforma-se o amador na
cousa amada»). Cultivar este amor, que vive da contemplação do ser amado, de conceitos
e de ideias, permite ao poeta aperfeiçoar-se como ser humano e elevar-se espiritual
e moralmente.
Apesar de se tratar de um amor espiritual e intelectualizado, tal não significa que
a mulher não está presente nestes poemas. Como ser idealizado, angelical, de contornos
divinos, ela é uma figura incorpórea e nunca é descrita em traços bem definidos: dela
temos apenas algumas impressões. Representa um ideal físico, moral e intelectual.
Sabemos que tem os cabelos louros, a tez branca, que a sua pose é serena e a sua alegria
grave. É, de facto, uma mulher que está ausente e que o poeta não alcança.
Em tensão com este amor espiritual surge o amor sensual, marcado pelo desejo e pelo
prazer. Nos poemas de Camões, materializa-se a celebração do corpo da mulher, no ato
de sedução e em outras situações marcadas pela mundanidade. Este tipo de amor entra
em choque com o elevado sentimento (o «alto amor»). Tal facto desencadeia no eu
poético um sentimento de culpa e um conflito interior porque, embora aspire fortemente
ao amor espiritual, não consegue desapegar-se deste amor sensual, pautado pelo desejo.
Renunciar-lhe parece-lhe humanamente impossível e o sujeito poético acaba por exprimir
ansiedade e frustração.
Luís de Camões.
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O desconcerto do mundo
A temática do desconcerto do mundo engloba todo o tipo de questões e está
relacionada com a desordem das coisas, o desajuste que reina na Terra. É um problema
de tal forma profundo que assume a forma do motivo medieval do «mundo às avessas».
O antagonismo entre o ideal e a prática pertence ao domínio social, religioso e político,
mas é igualmente vivido pelo poeta.
Como se manifesta o tema na lírica de Camões? A poesia camoniana denuncia o desajuste
que existe entre os princípios e os valores (cristãos, éticos, políticos, etc.) e a prática,
a realidade quotidiana. A ordem dos valores encontra-se invertida. Como se lê na esparsa
«Ao desconcerto do mundo», a atribuição de recompensas e castigos na sociedade está
invertida: premeiam-se os maus e não se recompensam os bons. Claro está que esta
desordem se aplica também ao amor, que, sendo o mais elevado dos sentimentos,
se revela irrealizável.
A angústia e a ansiedade do poeta não se devem somente ao facto de este constatar
que o desconcerto existe no mundo que o rodeia, mas também, e sobretudo, ao facto
de sentir que a sua vida sofre estruturalmente com este desajuste. A desordem
é vivida interiormente: o amor é irrealizável, a sua vida revela-se tumultuosa e difícil,
a desorientação (moral, religiosa, etc.) é grande. Temas como o tempo, que traz agruras,
e a mudança, que se opera sempre para pior, marcam presença nesta poesia.
Literatura e Arte
Camões
José Leitão de Barros realizou, em 1946,
o filme Camões. Trata-se de uma longa-metragem
a preto-e-branco que passa para o grande ecrã
a vida do poeta. A biografia de Camões apresentada
segue as teses de José Maria Rodrigues e de Afonso
Lopes Vieira, que aceitam como verdade algumas
ideias ainda não comprovadas: por exemplo,
segundo o filme, Camões teria sido degredado
para a Índia porque ambicionava o amor da Infanta
D. Maria, filha de D. Manuel.
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 233
234 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana
A mulher petrarquista
Petrarca é determinante na construção de uma ideia de descrição de beleza feminina que
vai influenciar toda a literatura europeia. O ideal de beleza definido pelo poeta, que originou
a expressão «mulher petrarquista», corresponde a uma figura de tez clara, com as faces
rosadas e o cabelo claro. Os lábios destacavam-se pelo tom rosa, deixando entrever os
dentes brancos. A figura da mulher petrarquista representava também um ideal moral
e intelectual feminino.
Plauto.
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textOS CRÍTICOS 4
Como tem sido demonstrado por diversos críticos — e nomearemos António Sérgio, Hernâni Cidade, João
Mendes, Maria Helena Ribeiro da Cunha, Pina Martins, Eduardo Lourenço —, na lírica camoniana manifesta-se
inquestionavelmente uma conceção neoplatónica do mundo, do homem e, em particular, do amor.
Todavia, parece ser igualmente inquestionável que na lírica de Camões se exprime, por vezes, explicitamente,
outras vezes de modo velado, alusivo ou implícito, uma mundividência e uma conceção do amor não só refra-
tárias, mas contrapostas, àquela conceção neoplatónica. Este dissídio dramático da lírica camoniana, embora já
analisado com muita agudeza por José Régio, António José Saraiva e João Mendes, necessita de ser reexaminado,
segundo pensamos, à luz do exposto nos parágrafos anteriores e em correlação com outros parâmetros doutri-
nais a que posteriormente faremos referência. Quase invariavelmente, tem-se explicado tal dissídio pelo conflito
entre uma teoria, aprendida nos livros, talvez bebida na escola, captada na atmosfera cultural da época — o
neoplatonismo —, e a «verdade» irreprimível e espontaneamente nascida dos factos, das vivências e dos eventos
da vida pessoal e quotidiana (falta saber se as «puras verdades já por mim passadas» não dependerão, ao menos
em parte, de um determinado modelo ou código literário…), quando não apenas imposta pelo temperamento
«impetuosamente sensual» do Poeta. Quer dizer, no fundo contrapõe-se um modelo antropológico e cosmoló-
gico, filosoficamente elaborado, literariamente replasmado e culturalmente adquirido, à irrupção de uma biogra-
fia mais conjeturada do que conhecida, atribuindo-se em geral a esta, pelo menos a nível de pressuposto, o
mosaico condão de fazer brotar a linfa poética da secura da teoria (o fascínio renovado, mesmo quando reprimido
pelo verniz formalista, da «verdade» biografista…). Ora, em nosso entender, o estudo daquele dissídio não deve
ser orientado no sentido de contrapor uma teoria a uma biografia e a um temperamento, mas sim no sentido de
analisar, na linguagem lírica de Camões e no heterocosmo construído com essa linguagem, a ocorrência confli-
tuante de duas conceções, de duas doutrinas antagónicas do amor, uma das quais não tem que ser reduzida
— ou exaltada… — a manifestação biografista e temperamental, já que ambas devem estar ligadas placentaria-
mente com a biografia do Poeta — nenhuma biografia é apenas urdida por eventos regidos ou condicionados
por sentimentos ou emoções… — e estão decerto fundamentadas em teorias, filosofemas, intuições e reflexões,
ou seja, em modelos culturais historicamente produzidos e difundidos.
Abundam na obra lírica de Camões as caracterizações ou qualificações disfóricas do amor1. Frequentemente
referido como fictio personae, ao Amor são atribuídos caracteres e predicados conflituantes e inconciliáveis com
as doutrinas neoplatónicas: «Minino que d’olhos é privado» (p.121); «o Frecheiro cego» (p. 123); «Amor fero, cruel»
(p. 129); «Moço cego e cego Moço» (pp. 141, 164, 206, 359); «em Amor não há senão enganos» (p. 146); «o cego
Amor e Amor cego» (pp. 161 e 205); «manhoso» (p. 164); «o vingativo Amor» (pp. 207, 266); «o Amor enganoso e
o enganoso Amor» (pp. 216, 330); «um Minino sem olhos» (p. 224); «o fero Amor» (p. 267); «o cego Minino» (p. 280);
«tirânico Amor» (p. 328); «o falso Amor» (p. 331), etc.
Este Amor cego — e «cego», na lírica de Camões, é um conotador extremamente disfórico — aparece
obsidiantemente associado à Fortuna, ao Fado, ao Destino — obscura entidade mítica que o Poeta caracteriza
invariavelmente em termos negativos e hostis («Fortuna dura»; «Fortuna cruel»; «Fortuna inquieta e mal olhada»;
«soberba Fortuna»; soberba, inexorável e importuna»; «Fortuna flutuosa»; «Fortuna injusta»; «O Fado sempre fero»;
«os fementidos Fados»; «tristes e maus fados»; «o Destino nunca manso»; «o inexorável e contrário»; «Destino,
surdo a lágrimas e a rogo», etc.) —, sendo também relacionado com outras forças ambíguas, maléficas e destrui-
doras («o Tempo errado», «a Morte cega», «o Caso duvidoso»).
Assim, em vez de ser representado neoplatonicamente como um princípio de harmonia e de jubilosa
fecundação universal, como um agente de ascensão cognitiva e espiritual e de redenção metafísica do homem,
o amor é muitas vezes sentido e concebido por Camões como uma monstruosa entidade geradora de descon-
certos e desastres cósmicos, míticos e históricos, de insânias, crimes e agonias individuais:
(1) As citações da lírica camoniana no artigo do Professor Vítor Manuel de Aguiar e Silva reportam-se à edição de Rimas organizada pelo Prof. Costa Pimpão
e publicada em Coimbra, pela Atlântida Editora, em 1973. (Informação fornecida pelo autor em nota de rodapé, p. 171.)
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4
Não é Amor amor, se não vier
com doudices, desonras, dissensões,
pazes, guerras, prazer e desprazer,
Luís de Camões, Rimas
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4
iniciativa interpretativa. A educação literária pode contribuir, em termos cognitivos, para contrariar a aceitação
passiva do existente pelos adolescentes: «enquanto modifica a gramática da nossa visão das coisas, a experiência
literária liberta-nos das categorias conceptuais cristalizadas e indiscutidas e convida-nos a imaginar novas relações
Voz
Julgo necessário reavivar a voz quer do autor quer do leitor. Evidentemente que isto não implica a demissão
do professor. Creio no entanto que a tarefa do professor será a de promover o encontro entre Camões lírico e os
seus potenciais leitores, estimulando a experiência individual de leitura e criando meios de a alargar e aprofundar.
Eco
O eco, enquanto reação ou juízo do leitor em aprendizagem, deve ser estimulado. Para o ato de leitura,
e particularmente da leitura poética, importa invocar a experiência pessoal do leitor. Se o conhecimento prévio
é uma das variáveis mais influentes na compreensão de textos informativos o seu poder é maior se envolve
experiências afetivas e emocionais como as relacionadas com a leitura poética.
Silêncio
Ao responsabilizar o aluno pelo poema a estudar, o professor deverá conceder-lhe espaço mental, tempo
e silêncio para que possa, individualmente, refletir sobre a sua leitura. Benton reafirma a importância do silêncio
na aula de poesia: «Os poemas, claro, precisam de leituras em voz alta, de performance e de celebração, mas
também precisam de leituras silenciosas, de reflexão e de serem lidos com os olhos assim como com os ouvidos.
Com a moderna pressão para o trabalho em grupo, para o “falar para aprender” há um perigo de negligenciarmos
uma atividade de aprendizagem igualmente crucial, “silêncio para pensar”».3
Tempo
A questão do tempo foi já várias vezes abordada. No entanto, volto a insistir no facto de a aprendizagem
da literatura ser diferente de outras experiências de aprendizagem, porque se fundamenta num processo estético.
Daí que, no sentido de impedir que este processo se encare de forma redutora, seja também preciso tempo,
para pensar, para inferir, para reler, para trocar impressões com o colega, para solicitar informação ao professor,
para sentir de novo a sonoridade do poema, para informalmente rabiscar alguns juízos ou alguma possibilidade
interpretativa.
Cristina Serôdio, «Práticas de tratamento escolar de Camões lírico» in Ensino da Literatura: Reflexões e Propostas a Contracorrente,
Lisboa, Edições Cosmos, 1999 (com adaptações).
(1) Guido Armellini, Come e perché insegnare letteratura.Strategie e tattiche per la scuola secundaria, Bologna, Zanichelli, 1987, p. 65.
(2) R obert E. Probst, Response and Analysis: Teaching Literature in Junior and Senior High School, Portsmouth, NH: Boynton/Cook Heinemann, 1988, p. 222.
(3) Michael Benton, Secondary worlds, literature teaching and the visual arts, Buckingham, Philadelphia, Open University Press, 1992, p. 92.
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BIOGRAFIA
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ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 263
TEXTOS CRÍTICOS 5
O último símbolo do poema é a Ilha dos Amores e quanto de significativo aí passa e é dito.
Veremos adiante o que neste mito interessa, do ponto de vista do seu conteúdo lírico. Criou-o Camões sob
a sugestão de qualquer realidade histórico-geográfica e, por exemplo, a ilha de Bombaim, segundo o crê o pro-
fessor Cunha Gonçalves?
É possível, e também se pode admitir que com tal sugestão tenha convergido a leitura da Odisseia, onde,
na Ilha de Ogígia — a ilha namorada, a que se refere Camões — Calipso reteve o herói entre delícias. Também o
saudoso Prof. David Lopes aponta como parecidos com o episódio camoniano um que encontrou nos Argonau-
tas, de Apolónio Ródio, além do já citado Orlando Furioso, de Ariosto; mas, sobretudo, com mais notável seme-
lhança, certo conto oriental que resume.
Já vimos noutro capítulo que o próprio Poeta atribui a tal criação significado alegórico — a representação
pelos «deleites da ilha», das «honras que a vida fazem sublimada» (IX, 89).
A esta alegoria ajunta ele um símbolo cheio de significado.
Depois de Tétis profetizar, no banquete em que se reuniam ninfas e nautas, as futuras façanhas dos Portu-
gueses no Ultramar, diz a deusa ao Gama:
— «Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema, de cos olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Sigue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu cos mais.»
Assi lhe diz e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.
(X, 76)
O «monte espesso», «difícil, duro a humano trato», em meio de tanta voluptuosidade esparsa na ilha edénica,
é bem a representação poética do esforço pelo saber que do seu cume vai ser descerrado. Tétis, anunciando as
façanhas dos heróis da Índia, mostrara aos nautas o esforço expansionista dos conquistadores; patenteia-lhes
agora o que a inteligência capaz de esforço «árduo, difícil e duro» está apta a abarcar.
O coroamento mais lógico de um poema que celebra um grandioso facto histórico de aproximação entre
o Oriente e o Ocidente, seria o descerramento do planeta inteiro, completado pela visão que o contemplasse no
sistema planetário de que, no conceito do tempo, era o centro. Assim, tudo na ilha se resumia para fazer dela o
símbolo de todas as compensações que os descobrimentos traziam ao Homem: satisfação de apetites dos sen-
tidos; o espetáculo do esforço e das conquistas da vontade, na expansão do poder e da cultura, no domínio pleno
do planeta. E como ultrapassa esse domínio, no mesmo impulso e sentido, o anseio das curiosidades intelectuais,
mostra-lhes a ninfa a máquina do Universo, para que se abarcasse pela inteligência o que se não pudesse sub-
meter pela vontade.
Hernâni Cidade, Luís de Camões — o Épico,
Lisboa, Editorial Presença, 1995
(com adaptações).
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 285
A resposta dada por Hélder Macedo, no seu, já anteriormente referido, Camões e a Viagem Iniciática, vai
nesse sentido. Tendo, como o Gama e os Portugueses do passado, sentido o impulso para a viagem, para a
aventura da viagem/poema, escreve a sua epopeia e o seu canto em viagem que, sendo de iniciação, exige
ultrapassar, como o Gama, toda uma série de oponentes, todos os obstáculos — «erros», «má fortuna», «amor
ardente» — de que falara em canto lírico: — obstáculos que lhe advêm da falta de apoio à artes e às letras no
nosso país e das agruras que lhe foram impostas por Marte e Neptuno, pela miséria em «hospícios alheios degra-
dado», pelos desencantos que sempre lhe sucederam às esperanças e, a doer-lhe ainda mais, pela incompreen-
são e perseguição que lhe foram movidas justamente por aqueles que andava celebrando — referência aos
«trabalhos nunca usados» que «lhe inventaram» (VII, 78 e ss.), entre os quais a prisão, o «injusto mando» executado
sobre «aquele cuja lira sonora será mais afamada que ditosa.» (X, 128).
Para levar ao fim a sua viagem e ultrapassar tais obstáculos, necessária lhe foi a ajuda das Tágides, ninfas do
rio pátrio, das Musas e, principalmente, do «honesto estudo» e do «engenho» que, aliados à «longa experiência»
o nobilitaram, o fizeram passar de «humilde, baxo e rudo», simples cantor e divulgador dos «pátrios feitos», «em
versos divulgados numerosos», a «herói esclarecido» de que se fala, em profecia épica, no Canto X, 128, colocando-
-o como objeto de canto e celebração, a par de outros grandes heróis conquistadores; e dando-lhe o direito de
ser conselheiro «avalizado» do rei, autopropondo-se celebrar em «nunca ouvido canto» outras proezas heroicas
a que convida o rei.
É assim, pelo canto, pela poesia que Camões se liberta de tantas «prisões baixas», no sentido próprio de
prisões sofridas, de encantamentos e de desencantamentos amorosos, os Adamastores ou cabos das Tormentas
da sua vida. Ele é, assim, o único que contém em si, como já vimos mais acima, a «virtude» tal como a concebia,
de aliar as armas à pena, e a teoria, «honesto estudo», à «longa experiência» e ao «engenho». Nenhum dos outros
heróis por si celebrados conseguirá tão redentora aliança (repare-se que serão poucos os heróis de quem Camões
não refere algum «senão», desde o «pecado» de Afonso Henriques ao mandar prender sua mãe, ao «pecado» de
Afonso IV ao mandar matar Inês, ao «baxo amor» de D. Fernando, à insensibilidade de Afonso de Albuquerque e
à rudeza intelectual do próprio Gama (ver estrofe 96 do C. V).
No fim de qualquer viagem de iniciação, recorda Hélder Macedo, compete ao herói regressar e oferecer o
seu saber (porque de viagem iniciática em busca do saber se tratou) à comunidade. Ora, n’Os Lusíadas, o único
a fazê-lo é Camões, com o seu poema e nas palavras que dirige ao rei e aos contemporâneos, — e não o Gama,
que apenas traz ao rei «o prémio e a glória» pelos quais os mandara ao Oriente (X, 144). [Não sem trazer, diga-se
de passagem e em abono da verdade, como os seus companheiros, o seu prémio imaginário: «a companhia
desejada das Ninfas que hão de ter eternamente» (X, 143), prémio de ter amado bem e garantia, como desejava
Vénus, de que haveria no Oceano futuro «uma progénie forte e bela» que redimira a Humanidade do merecido
castigo que Cupido aprontava «contra o mundo revelde» que ama «mal» (IX, 25-29)].
Amélia Pinto Pais, História da Literatura em Portugal — Uma Perspetiva Didática, volume I: «Época Medieval e Época Clássica»,
Porto, Areal Editores, 2004 (com adaptações).
286 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 10.o ano • Material fotocopiável • © Santillana
3 TEXTOS CRÍTICOS
Amor de perdição e Viagens na minha terra
ernesTo GuerrA dA cAl, «A prosa portuguesa antes de Eça de Queiroz. Herculano, Garrett, Camilo e Castilho»,
Língua e estilo de Eça de Queiroz, Coimbra, Almedina, 1981, pp. 57-59.
230 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana
esTHer de leMos, introdução a Amor de perdição. 7.ª edição, Lisboa, Ulisseia, 1997, pp. 52-55.
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 231
Poesia
Nas suas primeiras composições poéticas, Lírica de João Mínimo (1819) e o poema
Retrato de Vénus (1821), Garrett é ainda um árcade. Só com o exílio, em Inglaterra,
contacta com a literatura romântica e, no prefácio do poema Camões (1825),
proclama a sua independência face à poética neoclássica: «A índole deste
poema é absolutamente nova; e assim não tive exemplar a que me arrimasse,
nem norte que seguisse». São afirmações excessivas, pois, na realidade, a versifi-
cação e a própria linguagem revelam, ainda, a persistência da marca neoclássica.
A temática é, no entanto, inspirada no romantismo europeu: Camões, o génio
incompreendido, na sua busca do ideal, experimenta o destino adverso e a soli-
dão no meio da indiferença dos seus contemporâneos. É uma obra sem paralelo
no panorama literário nacional daquele tempo, assim como outro poema, de
ambiente medieval, editado no mesmo ano, D. Branca, em que se narra uma
história de amor entre uma infanta portuguesa e um rei mouro. Manifesta-se
pela primeira vez neste texto, através do aproveitamento do maravilhoso tirado
Almeida Garrett. das fábulas e das crenças populares, um profundo interesse do autor pela literatura popular.
Este interesse levará, mais tarde, à compilação dos três volumes do Romanceiro (1851).
Numa carta endereçada a Duarte Lessa, que serve de prefácio a um breve poema,
BIOGRAFIA
«Adozinda» (1828), reelaboração do romance tradicional «Silvaninha», Garrett lembra
como foi justamente o contacto com a literatura romântica que lhe despertou o gosto
Almeida Garrett
(1799-1854)
pela poesia popular experimentado na infância: «Tinha um prazer extremo de ouvir
João Baptista da Silva Leitão de
uma criada nossa […] recitar-nos meio cantadas, meio rezadas, estas xácaras e roman-
Almeida Garrett nasceu no Porto, ces populares de maravilhas e encantamentos, de lindas princesas e esforçados cava-
em 1799. Estudante de Direito leiros. Veio outra idade, outros pensamentos, ocupações […] tudo isto passou […].
na Universidade de Coimbra, alcança Lendo depois os poemas de Walter Scott […], as baladas alemãs de Burguer, as ingle-
notoriedade pública pela ousadia
com que defende as ideias liberais.
sas de Burns, comecei a pensar que aquelas rudes e antiquíssimas rapsódias nossas
Em 1823, perante o golpe de Estado continham um fundo de excelente e lindíssima poesia nacional e que deviam ser
que abolira a Constituição, exila-se aproveitadas».
em Inglaterra e, depois, em França.
Três anos mais tarde volta a Portugal,
Em 1853, Garrett publica Folhas caídas, livro que escandaliza a alta sociedade lisboeta,
mas, em 1828, quando D. Miguel sobe porque os leitores relacionaram os poemas de amor apaixonado com a ligação amo-
ao trono, emigra de novo, para rosa entre o autor e a viscondessa da Luz. A linguagem de tom coloquial e a simplici-
ingressar no exército liberal que dade de expressão, por vezes de sabor popular, fazem dessa obra lírica a mais signifi-
desembarca no Mindelo, em 1832.
Após a derrota dos miguelistas,
cativa e conseguida do primeiro Romantismo.
desempenha funções diplomáticas
e é nomeado inspetor-geral dos Prosa
Teatros. Com o advento do Cabralismo
é afastado da política, à qual volta, Garrett começou a escrever o romance histórico O arco de Sant’Ana durante o cerco
mais tarde, no período da do Porto, em 1832, mas a primeira parte só foi publicada em 1845, seguindo-se, seis
Regeneração: nomeado visconde anos mais tarde, a edição da segunda. A ação desenrola-se no século xiv: o Porto está
e par do Reino, é-lhe confiado o cargo
de ministro dos Negócios Estrangeiros.
sob o domínio despótico e licencioso de um bispo. Vasco, um jovem cavaleiro, chefia
Morre, com 55 anos, em 1854. o motim que põe cobro aos abusos do tirano, descobrindo ser ele o seu pai. No final,
180 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana
A morte de Camões
A figura do poeta genial, perseguido pelos
contemporâneos que o não compreendem
e condenado a uma vida de solidão
e desterro, faz parte da galeria dos heróis
românticos. A vida de Camões, que encarna
este trágico destino, deu origem a poemas,
dramas, romances e obras plásticas.
Eis como Garrett retrata os últimos instantes
da sua vida:
«Fecha languidamente os olhos tristes.
Ansiado o nobre conde se aproxima
Do leito… Ai! Tarde vens, auxílio do homem.
Os olhos turvos para o céu levanta;
E já no arranco extremo: — “Pátria, ao menos
Juntos morremos…” e expirou coa pátria.»
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 181
O romance histórico
No princípio do século xix a prosa não gozava, em Portugal, do prestígio dado à poesia
ou ao teatro e continuava a ser cultivada nos moldes estilísticos e temáticos do Neo-
classicismo ou até do Barroco.
O contraste com outras literaturas, como a inglesa ou a francesa, era grande, pois nelas
assistira-se, no século anterior, a um notável florescimento da prosa, acompanhado
por uma extensa experimentação formal, o que levou à criação de subgéneros, como
o romance epistolar, filosófico, gótico, o novel, etc. Estas experiências, que desenvol-
veram várias técnicas de representação, preparam a plena consagração da narrativa no
século xix.
Em Portugal nada disso acontecera e, no começo do Romantismo, os escritores tive-
ram de criar ex novo uma linguagem adequada à escrita romanesca. Foi Alexandre
Herculano quem deu os primeiros e decisivos passos, ao publicar no jornal O panorama,
no fim da década de 1830, algumas ficções, sucessivamente recolhidas no volume
Lendas e narrativas (1851), que marcam o verdadeiro início da narrativa moderna.
Na senda das obras do escocês Walter Scott e do francês Victor Hugo, Herculano
Alexandre Herculano escreve romances, Eurico, o presbítero (1844), O monge de Cister (1848), que fixam o
(pormenor de um modelo da ficção histórica. Este passa a ser seguido por outros autores: Rebelo da Silva, Oliveira
painel de Columbano Marreca, Andrade Corvo e Coelho Lousada. Nestes textos faz-se uma reconstituição cuidadosa,
Bordalo Pinheiro na dir-se-ia mesmo arqueológica, do passado, com base numa segura erudição, que visa instruir
Sala dos Passos Perdidos
e educar o leitor.
na Assembleia da
República). Concebe-se o romance histórico como uma nova épica que deve guardar e transmitir os valo-
res que presidiram à fundação da nação. Um tom melodramático e até folhetinesco, também
usado pelo próprio Herculano, e o excesso de descritivismo acabaram por ditar o esqueci-
mento em que caiu depressa a maior parte dessa produção literária.
O romance da atualidade
PARA SABER MAIS
Na década de 1840, aparecem os primeiros romances de atualidade. Mendes Leal, mais
O folhetim conhecido como dramaturgo, publica Estátua de Nabuco (1846); António Lopes de
Com esta palavra indica-se uma Mendonça, que foi igualmente notável crítico, as Memórias de um doido (1849);
secção na imprensa periódica e D. João de Azevedo, O céptico (1849).
do século xix, geralmente no rodapé
da primeira página, dedicada É na obra de Júlio Dinis (1838-1871), Uma família inglesa (1868), A morgadinha dos cana-
à crónica ou à publicação viais (1868), que encontramos, no entanto, a melhor realização do romance da actuali-
de romances. Dado o género dade, apesar da visão elementar e harmoniosa da realidade que exprimem. A cuida-
de histórias publicadas, que, por
dosa construção dos enredos, a hábil descrição de paisagens e ambientes domésticos,
um lado, procuravam ir ao encontro
do gosto mais fácil do público e, a criação de personagens credíveis, do meio mercantil da cidade do Porto ou da bur-
por outro, viviam de mirabolantes guesia rural, e um estilo simples e sóbrio permitiram-lhe alcançar um êxito imediato
golpes de teatro e de suspense, que perdura no tempo.
para cativar o leitor, o termo acabou
por ganhar um valor depreciativo.
182 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana
A mulher-anjo
A mulher-anjo é a figura feminina dominante na ficção romântica. Eis como Júlio Dinis descreve
a protagonista do seu romance A morgadinha dos canaviais.
«Era uma mulher muito nova ainda. Uma graciosa figura de mulher, suave, elegante, distinta; um desses
tipos que insensivelmente desenha uma mão de artista, quando movida ao grado da livre fantasia;
a cor, essa cor inimitável, onde nunca dominam as rosas, mas que não é bem o desmaiado das pálidas,
encarnação surpreendente, a que ainda não ouvi dar o nome apropriado. Os cabelos em fartas tranças,
em ondas naturais, não de todo pretos, porém, mais distintos ainda dos louros; a estatura esbelta,
sem ser alta; o corpo flexível, sem ser lânguido, um vulto de fada, enfim, com a majestade a graça
que deviam ter estas criações da poesia popular, se fosse certo tomarem forma de virgens, para matar
de amores.
Não se concebe atenção tão distraída, que esta mulher não fixasse; olhos, que se não voltassem
para segui-la, depois de a ver passar; coração, que se não perturbasse na sua presença.
Trajava um singelo vestido de xadrez branco e preto, adornado no colo e punhos apenas por
colarinhos lisos. Descaía-lhe natural e elegantemente dos ombros
um xaile de casimira escura, sem lhe ocultar as belezas da airosa
conformação; o chapéu de palha, de largas abas, cobrindo-lhe
a cabeça, espelhava pelo rosto as meias-tintas, tão favoráveis
às belezas delicadas.»
Entre as raras representações da mulher que fogem a este padrão,
destaca-se a protagonista de um conto de Álvaro de Carvalhal.
«Vinte e três anos! Eram os anos de Florentina. O poema cifra-se
nisso. Robustecida, vigorosa e cheia de si largava, ouso assegurá-lo.
largava velas pandas ao desejo pelas auríferas e perfumadas
ondas de mundanismo. […] Florentina não era dessas donzelinhas
de baladas e dos romances, etéreas e impalpáveis, que se
alimentam com uma lágrima, que se confortam com um suspiro,
e que pouco mais duram do que essa lágrima ou esse suspiro.
Protuberantes seios, docemente arredondados; largas espáduas;
dilatados quadris; confluía nela, enfim, todo o luxo dos frutificantes
dons que fazia respeitada a virgem lacedemónia.»
O conto
No âmbito da narrativa breve, sobressai ao lado do conto rural, cultivado por Rodrigo Paganino
(1835-1863) nos Contos do tio Joaquim (1861), o conto fantástico. Este, numa primeira fase, apre-
senta-se como simples reelaboração de matéria folclórica, segundo o exemplo dado por Ale-
xandre Herculano na lenda «A Dama Pé de Cabra». Posteriormente, sob a influência das obras
do alemão Hoffmann e do norte-americano Edgar Allan Poe, tem como seus melhores intér-
pretes os autores seguintes: Álvaro do Carvalhal (Contos, 1868), Teófilo Braga (Contos
fantásticos, 1865) e Gomes Leal. Na obra do primeiro, manifesta-se o lado mais obscuro e
inquietante do ser humano através de uma linguagem singular repassada de ironia.
BIOGRAFIA
Alexandre Herculano
(1810-1877)
Poeta, romancista e historiador, nasceu em Lisboa em 1810. As suas ideias liberais tornam-no suspeito
ao regime miguelista, e, em 1831, emigra para Inglaterra. Em 1833, desembarca no Mindelo com as tropas
de D. Pedro e após o triunfo dos liberais regressa a Lisboa, onde dirige o jornal O panorama.
Em 1839 é nomeado bibliotecário-mor da Biblioteca da Ajuda, cargo que desempenha durante vinte anos,
dedicando-se à investigação da qual resultam os volumes da História de Portugal e a coleção
de documentos Portugaliae monumenta historica. Em 1859 muda-se para uma quinta em Vale de Lobos,
onde passa os últimos anos apartado da vida social e política.
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 183
A obra
Camilo é o primeiro profissional das letras em Portugal. Durante 45 anos viveu dos direitos de
autor cedidos às editoras e da colaboração em jornais e revistas. Escreveu inúmeros artigos,
folhetins, novelas, poemas, peças teatrais, e também livros de erudição histórica, de memórias,
etc. A sua extraordinária versatilidade e riqueza de vocabulário permitiam-lhe, em qualquer
altura, abordar os assuntos mais variados e ficcionar o que quer que fosse, como ele próprio
orgulhosamente afirmou: «Eu posso escrever romances jesuítas, romances franciscanos,
romances carmelitas, romances jansenistas, romances despóticos, monárquico-representativos,
cabralistas e até romances generadores: o que eu quiser e para onde me der a veneta.»
A necessidade de honrar compromissos editoriais, a redação muitas vezes apressada e tam-
bém o público ao qual se destinavam as suas novelas, composto maioritariamente por mulheres
pertencentes à burguesia, explicam a desigualdade qualitativa das suas obras.
Na abundante produção novelesca, apresenta, porém, uma galeria de personagens bastante
limitada, constituída, quase invariavelmente, pelo morgado, pelo barão, pelo padre, pelo
«brasileiro», ou seja, o comerciante que fez fortuna no Brasil e regressou rico à sua terra, e por
algumas figuras populares. O autor privilegia como espaço cénico a província nortenha do
princípio do século xix.
Podem ser identificados alguns subgéneros na sua obra: o folhetim (Anátema, de 1850,
e Mistérios de Lisboa, de 1854), em que se sucedem os lances teatrais, melodramáticos, embora
não falte o distanciamento irónico e até a paródia; a novela histórica (O senhor dos paços de
Ninães, O santo da montanha, 1866); a novela de costumes; e, finalmente, a novela sentimental
e a novela humorística, em que o autor alcançou os resultados mais significativos da sua arte
narrativa.
BIOGRAFIA
184 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana
A novela humorística
Enquanto na novela sentimental triunfa o idealismo, na novela humorística domina uma visão
materialista da vida, que vê nas ações humanas o reflexo dos apetites mais vulgares e do
desejo desmedido de supremacia social. O romantismo e o sentimentalismo dão lugar ao
sarcasmo, à sátira e à ironia que moldam algumas das mais brilhantes e memoráveis páginas
camilianas.
Em A queda de um anjo, de 1866, acompanhamos a transformação radical do protagonista,
Calisto Elói, morgado da Agra de Freimas, homem conservador e paladino dos valores tradi-
cionais, que, depois de ter sido eleito deputado, é totalmente conquistado pela vida moderna
de Lisboa. No desfecho, o protagonista, que descobrira o amor nos braços de Ifigénia, parte
para uma viagem no estrangeiro da qual regressa definitivamente convertido ao progresso das
capitais europeias e desgostoso com o atraso do País.
Língua e estilo
Não sendo propriamente um inovador, como fora antes Garrett e seria depois Eça de Queirós,
Camilo ocupa um lugar proeminente na história da prosa portuguesa pelo seu estilo incon-
fundível, que permanecerá como modelo ou referência para muitos prosadores posteriores.
No rico léxico camiliano — o autor privilegia o termo exato mais do que a adjetivação — Cartaz do filme
encontram lugar, ao lado de latinismos e arcaísmos, os termos populares e regionais. Na sintaxe Amor de perdição,
destacam-se os períodos complexos, herança da prosa do século xvii, que contrastam com a de Manoel de Oliveira
vivacidade e a naturalidade do diálogo. (Cinemateca Portuguesa).
LITERATURA E ARTE
Amor de perdição
A primeira adaptação cinematográfica de Amor de perdição data de 1921 e foi realizada por
Georges Pallu. Seguiu-se, em 1943, a de António Lopes Ribeiro; em 1979, Manoel de Oliveira, numa
experiência de «adaptação total», realizou um filme de 4 horas e 20 minutos, que marca a consagração
internacional do autor português. Recentemente surgiu uma nova versão assinada por
Mário Barroso (2008). A própria vida de Camilo já foi alvo de ficção. Na série «A Ferreirinha», escrita
por Francisco Moita Flores e emitida pela RTP em 2004, as personagens de Camilo e Ana Plácido
constituem um dos eixos da história.
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 185
AMOR DE PERDIÇÃO,
de CAMILO CASTELO BRANCO
SUGESTÃO BIOGRÁFICA (SIMÃO E NARRADOR)
• A
novela Amor de Perdição foi publicada em 1862, época em que o seu autor se
encontrava preso na Cadeia da Relação do Porto, por ter raptado Ana Plácido
e ter cometido adultério com ela.
• C
amilo Castelo Branco tem plena consciência do choque que estes aconteci-
mentos provocaram na sociedade da época. É por este motivo que, na introdu-
ção da obra, o narrador (que, em Amor de Perdição, se identifica como o autor)
alude à documentação consultada no cartório das cadeias da Relação do Porto,
da qual constava um assento referente a Simão Botelho, que, tendo sido encar-
cerado no mesmo local, também por um amor considerado transgressivo, aca-
bará por ser degredado para a Índia com apenas 18 anos. O facto de o prota-
gonista — que, na conclusão, é identificado como tio do autor da obra — ter
um percurso biográfico com pontos de contacto com o de Camilo Castelo
Branco virá conferir um maior dramatismo aos eventos narrados — o que con-
tribuirá, de forma decisiva, para o enorme interesse dos leitores oitocentistas
por esta obra.
• N
o entanto, além de jogar com esta coincidência a nível biográfico, o autor
procurará, acima de tudo, evidenciar a injustiça subjacente à história trágica
de Simão e de Teresa. É por esta razão que o narrador assume, desde o início,
uma posição subjetiva em relação às personagens e aos eventos narrados,
sublinhando o carácter heroico dos protagonistas, que, em nome do amor,
ousam enfrentar os preconceitos absurdos das respetivas famílias, bem como
a repressão que lhes é imposta por uma sociedade em que não há lugar para a
vivência dos sentimentos sublimes, mas apenas para a mediocridade, o mate-
rialismo e a hipocrisia. Como é evidente, desta forma, Camilo procura justificar
a sua própria transgressão das normas da sociedade, mostrando que, na rea-
lidade, se tratava de uma revolta legítima contra um meio em que a liberdade
e a felicidade dos indivíduos eram sufocadas por convenções mesquinhas.
• C
omo se pode verificar através do esquema, a ação da narrativa centra-se no
triângulo amoroso constituído por Simão, Teresa e Mariana.
u3p21h2
41
• S
imão Botelho era filho do juiz Domingos Botelho e de D. Rita Preciosa.
O magistrado era, no entanto, odiado por Tadeu de Albuquerque, pai de Teresa,
na medida em que, num litígio, não tomara uma decisão favorável àquela per-
sonagem. O azedume entre as famílias adensou-se pelo facto de o protagonista,
num episódio em que espancou vários criados que se encontravam junto a uma
fonte, ter ferido também criados de Tadeu de Albuquerque.
• A
ntes de se apaixonar por Teresa, Simão destaca-se pelo seu comportamento
violento e arruaceiro. No entanto, o amor tem nele um efeito redentor: abandona
a vida boémia e passa a concentrar-se exclusivamente nos estudos, com o obje-
tivo de garantir uma carreira futura e o sustento da família com que sonhava.
• C
ontudo, o ódio entre as famílias não permite que os jovens fiquem juntos:
Tadeu de Albuquerque quer impor a sua filha o casamento com o seu primo
Baltasar Coutinho. No entanto, Teresa é, tal como Simão, profundamente cora-
josa e obstinada. Assim, apesar de ser uma filha afetuosa, enfrenta abertamente
o pai, recusando-se terminantemente a casar com um homem que não ama.
Como represália, Tadeu de Albuquerque decide enclausurá-la num convento.
• Q
uando se desloca para Viseu, de modo a estar mais próximo de Teresa, o pro-
tagonista instala-se em casa de João da Cruz, um ferrador a quem o seu pai
salvara de uma sentença de morte. Esta figura do povo, de traços marcadamente
realistas (inclusivamente pelo registo popular das suas falas), funcionará como
uma figura protetora para Simão, contrastando, pela sua dimensão pragmática,
com o idealismo do herói. Com efeito, não só hospeda e aconselha Simão, como
lhe salva a vida aquando da emboscada que é preparada por Baltasar Coutinho.
• Q
uanto a Mariana, filha de João da Cruz, a jovem revela traços característicos
da mulher-anjo do Romantismo. Com efeito, entrega-se totalmente à sua paixão
por Simão sem esperar nada em troca. O seu amor por Simão leva-a a cuidar
dele com desvelo maternal, chegando a entregar-lhe, sem que ele o saiba, as
suas economias. O seu espírito de sacrifício é tão grande que acede a garantir
a comunicação entre o seu amado e Teresa. Depois de Simão ser preso,
Mariana chega ao extremo de abandonar o pai, por quem nutria grande afeto,
para cuidar dele. No fim, abraça-se ao cadáver do seu amado e morre com ele.
• A
pesar de Teresa também ter características da mulher-anjo — pela sua
pureza, fragilidade e pela sua capacidade ilimitada de sofrer em nome do
amor —, contrasta com Mariana, na medida em que o afastamento de Simão
que lhe é imposto a converte progressiva-
mente numa figura ideal, cuja vida se pauta
cada vez mais por uma resistência pas-
siva ao pai e ao primo. Em contrapartida,
Mariana é uma figura bem real, que tem
um papel ativo na vida de Simão. Assim,
ao aperceber-se de que ela o ama, o prota-
gonista mostra uma intensa perturbação,
por não lhe ser possível corresponder a um
sentimento vivido de forma tão nobre.
• A
lém disso, as qualidades de Mariana são
também evidenciadas pelo seu pai, que
sente um enorme orgulho pela sensatez,
coragem e determinação da filha — garan-
tindo a Simão que, caso casasse com ela
(o que se lhe afigura impossível, em virtude
P. Fedotov, A proposta de casamento do major (1848). das diferenças sociais), seria muito feliz.
42
afeto entre João da Cruz e Mariana contrasta com a relação que tanto Teresa
• O
como Simão mantêm com os seus pais.
o primeiro caso, embora Tadeu de Albuquerque ame a filha (o que é percetível
• N
pelo desgosto que evidencia no momento em que a espera à porta do convento
de Viseu para a acompanhar até ao convento de Monchique, no Porto), sobrepõe
o seu ódio mesquinho e a obsoleta noção de honra à sua felicidade. Quanto a
Teresa, o afeto que nutre pelo pai leva-a a ser uma filha dócil em tudo aquilo que
é possível — à exceção das imposições relativas ao casamento, na medida em
que o amor por Simão é tão grande que se mostra disposta a abdicar de tudo
— inclusivamente da própria vida — em seu nome. Com efeito, acabará por
morrer no convento, no momento em que assiste à partida de Simão para o exílio.
• A
relação de Simão com os pais nunca é pacífica. Domingos Botelho recusa-se
mesmo a interceder por ele aquando da sua prisão e condenação à forca. Ape-
nas o faz por imposição de um dos seus parentes. D. Rita Preciosa pede-lhe,
em vão, clemência. No entanto, o narrador acrescenta que o faz não tanto por
amor ao filho, mas sobretudo para contrariar o marido. Posteriormente, muito
embora manifeste preocupação em relação a Simão, é incapaz de providenciar
o seu sustento, que é garantido por Mariana. À exceção do afeto que nutre pela
irmã mais nova, Rita, Simão parece estar assim muito isolado no contexto fami-
liar. Não é, pois, surpreendente que o amor por Teresa se converta na questão
mais importante da sua vida. Com efeito, também o protagonista, após três anos
de uma luta inglória em nome do amor, acabará por morrer, na sequência da
notícia da morte da sua amada.
O AMOR-PAIXÃO
• A
apologia da liberdade individual feita pelo Romantismo, associada à valoriza-
ção do amor — visto como um dos sentimentos mais importantes (senão o mais
importante) na vida do Homem — leva o amor-paixão a ser um dos temas
centrais das obras deste movimento.
• É
efetivamente isto o que sucede em Amor de perdição: como foi referido ante-
riormente, o narrador assume uma posição subjetiva — salientando o carácter
absurdo do ódio entre as duas famílias, bem como a injustiça que está subja-
cente às tentativas, por parte de Tadeu de Albuquerque, de impor à sua filha
um casamento com um homem que ela não amava, e que a condenaria a ser
infeliz para todo o sempre. Em contrapartida, é louvado o carácter heroico de
Teresa e de Simão, que, tendo consciência da dimensão sublime da sua pai-
xão, estão dispostos a abdicar da liberdade e, posteriormente, até da própria
vida, em seu nome. A morte não os intimida, dado que ambos encaram o amor
como um sentimento ideal, que, caso não possa ser vivido na Terra, será con-
cretizado no Céu. Com efeito, ambos estão seguros do carácter eterno da sua
paixão, que não se coaduna com a mesquinhez de uma sociedade movida por
valores meramente terrenos.
• O
amor-paixão é também vivido por Mariana, na medida em que, como foi
anteriormente referido, apesar de ter consciência de que o seu sentimento não
é correspondido, acabará por dedicar toda a sua vida a Simão. Contudo,
ao contrário dos protagonistas, esta personagem, pelo seu carácter prático, ao
invés de projetar na eternidade a esperança de ser amada por Simão, tem espe-
rança de ser correspondida ao acompanhá-lo no exílio. O pragmatismo não
torna, no entanto, o seu amor inferior ao de Teresa: sabe que a sua vida não faz
sentido sem o amado e diz friamente que, caso este morra, se suicidará — o
que efetivamente acaba por suceder.
43
• A
s narrativas e os dramas escritos durante o Romantismo criam a figura
do herói romântico. Em traços gerais, podemos defini-lo como uma persona-
gem que acredita em valores elevados e «humanos» e se move por ideais
grandes e, regra geral, inalcançáveis: o amor, a justiça, a liberdade, a constru-
ção de um mundo melhor, etc. A grandeza do herói romântico decorre também
do facto de entrar em conflito com a sociedade, numa luta desigual, por recusar
as regras e convenções que esta impõe. A rebeldia termina geralmente em
desgraça ou frustração profunda (por exemplo, Carlos de Viagens na minha
terra, de Garrett).
• S
imão Botelho encarna a figura do herói romântico. O protagonista de Amor
de perdição dedica a vida a um amor idealizado e sem limites, por ele enfrenta
a autoridade dos pais e as regras sociais e, por não ser possível realizá-lo, acaba
por morrer. Mas a elevação de carácter da personagem reside também noutros
nobres sentimentos e atitudes que o animam: a coragem que revela nos seus
atos, a determinação, o seu conceito de honra, o respeito pelos que não são da
sua condição social (como Mariana ou João da Cruz). Por exemplo, é sem hesi-
tação que se entrega à justiça depois de matar Baltasar ou que, no cárcere,
recusa ser tratado com privilégios.
or outro lado, o herói romântico é uma personagem de grande vitalidade,
• P
força e complexidade interior. Traça um grande plano para a sua vida e dedica
a existência ao cumprimento desse objetivo. Simão Botelho move-se pelo ideal
do Amor (do seu amor por Teresa) e sacrifica toda a vida a esse ideal. A sua
complexidade decorre das contradições e dos conflitos interiores.
• O
herói romântico é também uma personagem que se define pelo seu isola-
mento existencial: individualista e egocêntrico, Simão distingue-se e demarca-
-se das demais personagens e existe num mundo que é só seu e diferente do
dos outros homens.
utro traço de Simão que faz dele um herói romântico é a oposição que se
• O
estabelece entre ele e a sociedade, oposição que evolui para um conflito.
A personagem opõe-se com todas as suas forças às convenções, regras e
ideias- feitas da sociedade, mas acaba por sucumbir nesse ato rebelde e
heroico. Simão contesta desde cedo as práticas sociais e os valores hipócritas
e vazios que a comunidade defende: um falso conceito de honra, a falta de
integridade e de carácter, a falência dos valores humanos e cristãos e dos sen-
timentos e laços de família. Meneses e Albuquerques cultivam ódios entre si, os
privilegiados sentem-se superiores aos desfavorecidos e o verdadeiro Amor não
encontra espaço para existir nesta sociedade.
• S
e o Amor é o tema central de Amor de perdição — e se concretiza na forma
de ideal do amor ou de amor contrariado —, outros temas e questões sociais
ganham especial relevância na novela, como a noção de honra, as falsas virtu-
des ou a condição da mulher no início do século XIX.
a verdade, Amor de perdição assume-se como uma crónica da vida em socie-
• N
dade e dos costumes desta época de mudança social e política na transição do
Antigo Regime (Absolutismo) para a Época Moderna do Liberalismo.
44
1. O narrador
• O
narrador é uma entidade que existe no universo da história e que relata
a ação. Contudo, em casos como o de Amor de perdição, podemos associar o
narrador à figura do autor, que assume ser o sobrinho de Simão Botelho na
frase final da novela: «A última pessoa falecida, há vinte e seis anos, foi Manuel
Botelho, pai do autor deste livro.»
• O narrador de Amor de perdição é não participante; ainda assim, não relata a
história de forma imparcial e neutra. Na verdade, a narração é acompanhada
por juízos emitidos sobre as personagens e sobre a sociedade. O narrador
apresenta a sua opinião, tira conclusões sobre episódios da intriga e desenvolve
reflexões e críticas sobre comportamentos sociais. Não raro estas intervenções
assumem a forma de julgamentos morais.
• E
m vários momentos, este narrador dirige-se diretamente a um narratário, que
ele designa por «a leitora» ou «o leitor». Desta forma cúmplice, envolve os leito-
res na avaliação do mundo e das personagens da intriga e veicula as ideias
centrais da obra.
2. Os diálogos
linguagem de Amor de perdição é dominada por um nível de língua corrente,
• A
mas outros níveis de língua intervêm, consoante o enunciador que produz o
discurso. Se o narrador se pode exprimir num nível mais literário e culto, as
personagens recorrem a uma linguagem familiar ou até regional e popular
( lembremo-nos de João da Cruz).
• C
onsequentemente, a par de um léxico corrente encontramos palavras de um
nível culto mas também vocábulos populares e regionais.
45
46
146 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana
A origem de «romântico»
No século xvii, surgiu a palavra inglesa «romantic». Esta está ligada ao francês «roman», que designava
as obras medievais de aventuras, os romances, nas novas línguas europeias. O termo inglês estava,
pois, associado à ideia destas aventuras de cavaleiros medievais e começou a ser utilizado sempre
que se evocava essa atmosfera. Como, no século xix, se manifestava o apreço por tais ambientes, o
termo «romantic» generalizou-se por toda a Europa e deu origem, em português, ao adjetivo
«romântico».
Caspar David Friedrich,
O caçador no bosque.
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 147
Características gerais
A estética do Romantismo, segundo a qual o autor deve obedecer unicamente à
sua inspiração, teve consequências relevantes na prática do género dramático. Os
dramaturgos românticos, ao contrário dos autores neoclássicos, não respeitam a lei
das três unidades, julgando artificiais e forçadas a unidade de tempo e a unidade
de espaço que limitavam o enredo a um único dia e a um só cenário.
Estes autores rejeitam igualmente a separação rígida entre o cómico e o trágico
porque a obra de arte deve ser um espelho da natureza humana. Por este motivo,
como no homem há alternância de sentimentos contrários, nada devia impedir
que na mesma peça coexistissem o choro e o riso, o sublime e o grotesco.
O gosto ultrarromântico pelos sentimentos exacerbados, as paixões violentas e a
declamação empolada marcam, na sua quase totalidade, a produção dramatúrgica
portuguesa no período que vai de 1838, data da estreia pública do Auto de Gil
Vicente de Almeida Garrett, até ao fim da década de 1860. Numa primeira fase, os
Almeida Garrett autores privilegiam o drama histórico, que se baseia num assunto da história nacional; poste-
(pormenor de um riormente, o drama de atualidade.
painel de Columbano
Bordalo Pinheiro na Os enredos são sempre muito complicados e cheios de situações melodramáticas. As perso-
Sala dos Passos Perdidos, nagens dividem-se em demoníacas ou angélicas e agem sob o impulso indomável do ódio e
na Assembleia da da vingança ou do amor. Muitas vezes, pende sobre elas um destino inelutável, uma fatalidade
República). que as arrasta para um desfecho trágico.
Os lugares cénicos, que adquirem uma enorme importância na economia do espectáculo tea-
tral, têm a função de criar um clima propício para a representação de cenas patéticas ou terrí-
ficas. No caso do drama histórico, ambientado de preferência na Idade Média, os espaços onde
se desenrola a ação costumam ser as salas de armas dos castelos, as prisões subterrâneas, as
celas de conventos, as florestas lúgubres, ou seja, os lugares característicos da literatura gótica.
148 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana
LEITURA
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 149
TEXTO CRÍTICO 2
(1) Cf. António José Saraiva (1972b, II: 37 e ss.). Veja-se ainda Ofélia P. Monteiro (1987: 2). Também R. A. Lawton (1966: 226 e ss.) aborda
a conflituosidade interior das figuras de D. Madalena e de Telmo Pais, resultante da oposição passado/presente.
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 171
2
Para João Mendes, na sua preenchida vida pública, Garrett viveu um inquestionável drama da fideli-
dade, entre um homem social, de aparências e máscaras, e um homem sensível, íntimo e real. Ora, esse
conflito de fidelidade é, de algum modo, projetado nas dramáticas figuras de D. Madalena e de Telmo Pais,
Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett
tendo sido esta última interpretada pelo dramaturgo na primeira representação, como já se disse. Ainda
nesta visão psicocrítica, a saída para o conflito e divisão interior de Garrett residia no sacrifício de Manuel
de Sousa Coutinho: «A solução da renúncia. Manuel de Sousa é o Garrett ideal, como ele desejaria ter sido
e nunca foi, por falta de coragem» (MendeS, 1982: 46). Nesta figura oposta à dispersão do Carlos passional
e infiel, Garrett despe a máscara social e encontra-se consigo próprio, embora de um modo «transfigurado
e ideal», interpretação partilhada por João Mendes (ibidem: 58), quando sustenta que Frei Luís de Sousa é
«a obra de acerto de Garrett com ele próprio».
Apelando para uma leitura histórico-psicológica, Manuel de Sousa simbolizaria a reabilitação de
Almeida Garrett perante a sua filha Maria Adelaide e perante a sociedade. Num percurso de natureza dialé-
tica, Manuel de Sousa simbolizaria o Garrett romântico (tese), enquanto o Carlos das Viagens na minha terra
configuraria o homem devorado pelo amor-paixão (antítese), encontrando-se a síntese n’As Folhas Caídas,
entre Manuel de Sousa e Carlos (Garcia, 1967: 4). Mais do que alegoria política da história (cf. lawton, 1966:
290), o incêndio da casa e o permanente estado febril de Maria de Noronha remetem para a bivalência da
imagem arquetípica do fogo: ora significando a autoexpiação de Manuel de Sousa e confissão de Almeida
Garrett; ora a purificação do sangue, manifestada na febre da jovem Maria, fruto do pecado de uma relação
extraconjugal (Garcia, 1967: 7). O incêndio depurador da paixão prepararia, deste modo, o desfecho religioso
do drama.
Leitura mítico-cultural:
o Sebastianismo e o destino português
Por fim, voltemos ao tempo recriado pela intriga da peça e à sua especular relação com a época da
escrita. É muito significativa a associação do significado central do desastre da batalha fatídica no Norte de
África (4 de agosto de 1578) e da génese do Sebastianismo com o presente da escrita da peça, como adver-
tem vários críticos2. De facto, a interpretação de Frei Luís de Sousa não pode esquecer a atuante presença do
Sebastianismo e o que este mito do Desejado significava na conceção ontológico-cultural de Portugal
como nação. Para Garrett, desencantado com o rumo da nação, umbilicalmente ligado a um passado qui-
nhentista, e vivendo à sombra de uma pesada memória, o Portugal de Oitocentos só teria futuro libertando-
-se dessa persistente, infrutífera e mortal nostalgia passadista. Para compreendermos melhor esta aborda-
gem interpretativa, detenhamo-nos brevemente em três ideias interligadas na interpretação negativa do
Sebastianismo: a conceção garrettiana do tempo como devir; a relevância e significados do Sebastianismo
na obra garrettiana; a peça como encenação da tragédia coletiva de um povo.
As ideias que seguidamente apresentamos ganham outro significado se relacionadas com o primeiro
pensamento enunciado: a conceção garrettiana do tempo como devir, «que necessariamente flui, mudando
os seres e as coisas», como observa Ofélia P. Monteiro (1996: 217). Com efeito, as crenças sebastianistas eram
sinónimo de passadismo, de estéril paragem do tempo. Ao contrário, o movimento da História tem um
sentido projetivo, é um devir que se não compadece com nostálgicos regressos ao passado. Regressar ao
passado é sinónimo de morte do presente e de sério comprometimento do futuro. Como vemos, o imobi-
lismo ou passadismo sebastianista constitui uma filosofia da história profundamente oposta ao modo como
o escritor concebe o tempo de um modo tão manifestamente dinâmico, sentimento expresso em várias
obras.
Recordemos, por exemplo, o Capítulo II de Viagens na minha terra, em que o narrador-viajante expõe
a sua filosofia interpretativa do progresso ou da «marcha da civilização», através dos princípios do espiri-
tualismo/materialismo3. O sentido da história é sempre com os olhos no futuro, exorcizando as «fantasma-
gorias» do passado. Saudade, «gosto amargo de infelizes», só do futuro, pois a do passado consome e mata.
Outra exemplar afirmação do tempo como devir é o elogio garrettiano do seu grande amigo e correligio-
nário Mouzinho da Silveira. Incompreendido e até perseguido, a ação governativa deste político reformista
dos tempos revolucionários «pensava o futuro», significando assim um verdadeiro ponto de viragem onde
(2) Como é lembrado, entre outros, por R. A. Lawton (1966: 301), «Frei Luís de Sousa est coloré tout entier par les conséquences désastreuses
de la bataille d'Alcácer-Quibir, et du sébastianisme qui y prend naissance».
(3) Entre outros pensamentos, o narrador declara, judicioso: «Mas, como na história do malicioso Cervantes, estes dois princípios tão avessos,
tão desencontrados, andam contudo juntos sempre, ora um mais atrás, ora outro mais adiante, empecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se
poucas, mas progredindo sempre. / E aqui está o que é possível ao progresso humano. / E eis aqui a crónica do passado, a história do
presente, o programa do futuro.»
172 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana
2
«acaba o velho Portugal e de onde começa o novo». Ao fazer o balanço de tão profundas transformações
operadas pelo labor legislativo deste político, o escritor sustenta que se o presente é complexo e o futuro
desconhecido, qualquer nostalgia do passado se afigura «impossível» e condenável. Numa palavra, o esforço
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 173
2
«Olha: (designando o de el-rei D. Sebastião) aquele do meio, bem o sabes se o conhecerei; é o do meu
querido e amado rei D. Sebastião. Que majestade! que testa aquela tão austera, mesmo dum rei moço
e sincero ainda, leal, verdadeiro, que tomou a sério o cargo de reinar, e jurou que há de engrandecer e
Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett
cobrir de glória o seu reino! Ele ali está… E pensar que havia de morrer às mãos de mouros, no meio de
um deserto, que numa hora se havia de apagar toda a ousadia refletida que está naqueles olhos rasga-
dos, no apertar daquela boca!… Não pode ser, não pode ser. Deus não podia consentir em tal.»7 (II, 1).
A segunda ideia enunciada diz respeito ao natural conhecimento da literatura sebástica por parte de
Almeida Garrett, com destaque para As profecias do Bandarra (1845). Reatualizando comicamente o Sebas-
tianismo, o dramaturgo concebe-o nesta peça, à luz da tradição sebástica, como o mito imperial que deu
corpo à nostalgia de uma idade de ouro8. Esta pequena peça cómica inspira-se nas Trovas atribuídas ao
sapateiro de Trancoso, texto que conheceu várias edições, nomeadamente uma em Londres, no ano de
1815. O tratamento cómico do mito não elide a tragédia de um povo que inventou «quimeras para se con-
solar na desgraça», acreditando no regresso do «santo rei» num «dia de névoa muito cerrada…», como se
afirma em Frei Luís de Sousa. Com a perda do jovem monarca, Portugal afunda-se numa época de inércia
e de brumas, à espera de um refundador e heroico rei-salvador, sobretudo em momentos de profunda crise
política9.
Por conseguinte, nesta abordagem crítica, mais do que meras personagens de um drama familiar,
na peça de Garrett temos seres simbólicos, representativos do destino coletivo português, num dado
momento da sua história. Neste contexto, uma derradeira leitura situa-se a nível mitológico, recuperando
o significado dos temas da Saudade e do Sebastianismo para uma nova e renovadora interpretação de Frei
Luís de Sousa. Em certo sentido, trata-se de uma leitura que parte do enfoque político-sociológico de
T. Braga, ultrapassando as suas naturais limitações, através da projeção numa dimensão ideológica e mítico-
-cultural. Numa interpretação coletiva e trágica, D. Sebastião foi, de facto, a anunciada «maravilha fatal da
nossa idade» (Camões) e dos tempos futuros.
Para o historiador-ensaísta Oliveira Martins, tal como para Garrett, o Sebastianismo constituía o mito
da nossa decadência, leitura que marcou a receção do mito sebástico na modernidade: «O Sebastianismo
era pois uma explosão simples de desesperança, uma manifestação do génio natural íntimo da raça, e uma
abdicação da história. Portugal renegava, por um mito, a realidade; morria para a história, desfeito em sonho;
envolvia-se, para entrar no sepulcro, na mortalha de uma esperança messiânica.»10 O Sebastianismo era o
mito da nossa fraqueza e compensação, o mito da nossa fuga da realidade. Depois da eufórica embriaguez
quinhentista, fomo-nos atolando numa disfórica decadência e hoje somos ninguém. Tomando a forma de
religião da nossa identidade coletiva, o Sebastianismo não foi mais do que uma «forma epigonal do nosso
patriotismo».
Esta tese de Oliveira Martins, cujo dramático pessimismo é partilhado no essencial pela sua geração, foi
modernamente sintetizada por A. Machado Pires (1982: 14): «O Sebastianismo é um mito, um refúgio para a
realidade dos acontecimentos, uma afirmação de esperança nacionalista ligada à tradição; fora a revolução
liberal, que, rompendo a tradição, desferira um golpe mortal no Sebastianismo.» O Sebastianismo foi a nossa
forma de afirmação de fé patriótica em épocas de profunda crise política, como a da perda da independên-
cia. Idêntica interpretação volta a ser exposta pelo historiador oitocentista no Portugal contemporâneo:
(7) Ora, destacam alguns intérpretes garrettianos, esta descrição ecfrástica (representação verbal de uma representação pictórica), que nos
é feita do retrato de D. Sebastião pela boca da empolgada Maria de Noronha, constituiria um exemplo da profunda impressão que um retrato
histórico do infeliz monarca causara em Almeida Garrett. Sobre o admirado retrato de D. Sebastião, leia-se a interessante nota autoral de Garrett.
Já o minucioso biógrafo F. Gomes amorim (1881, I: 556) anotara a importância deste retrato na própria génese de Frei Luís de Sousa: «Talvez
que revolvendo já na mente os primeiros lineamentos da mais perfeita de todas as suas obras teatrais, ia muitas vezes em Angra contemplar
um retrato de D. Sebastião, que estava no palácio do governo, antigo colégio de jesuítas. Esse retrato passava por ser o mais autêntico,
e é tradição que fora para ali mandado pelo próprio retratado. Tão gravado o trouxe Garrett na memória, que por ele fez depois a descrição
que pôs na boca da filha de Manuel de Sousa Coutinho.» Na mesma linha, observou Teófilo Braga: «Na sua passagem como soldado
da expedição liberal na ilha Terceira, teve ocasião de ver o retrato autêntico do rei D. Sebastião no Colégio dos Jesuítas de Angra, ao qual fora
oferecido, e essa impressão deu-lhe a ressurreição de uma época.» (cf. BraGa, s.d.: xx; e Garrett, 1963, ii: 1072).
(8) A propósito desta singular reinterpretação do mito, veja-se o estudo de Helena Barbas (1994: 137-197), intitulado «Mito Imperial e Sebastianismo
em As Profecias do Bandarra, de Almeida Garrett».
(9) Na visão interpretativa de Oliveira Martins no Portugal Contemporâneo, a tomada do poder por D. Miguel foi vista como uma espécie de regresso
do mítico D. Sebastião. Curiosamente, também n'A cidade e as serras, Eça de Queirós descreverá o regresso de D. Miguel a Portugal como a
aparição do São Miguel e Messias, que, segundo a perspetiva do avô de Jacinto, salva a Nação da Carta Constitucional e do Liberalismo,
restaurando o governo absolutista. De facto, com a morte de D. João VI, em 1826, coloca-se o problema da sucessão. D. Pedro está no Brasil
como imperador, desde 1822. Exilado em Viena desde a «Abrilada» (1824), D. Miguel decide regressar e tomar o poder. Quando entra em Lisboa
em 22 de fevereiro de 1828, é recebido em apoteose, como nos descreve o historiador oitocentista. Visto como o «salvador na hora própria»,
D. Miguel é a encarnação do Sebastianismo, do Messias salvador. Este D. Miguel era o rei salvador, o chefe predestinado da contrarrevolução e,
na interpretação de Oliveira Martins, a personificação do Encoberto, que vinha «esmagar o dragão revolucionário» e libertar Portugal dos
«malhados» do Liberalismo, apostado em defender o Trono e o Altar (cf. Pires, 1982: 94-96).
(10) História de Portugal, 15.ª ed., Lisboa, Guimarães Ed., 1968, p. 374.
174 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana
2
«Frei Luís de Sousa é a tragédia portuguesa sebastianista. O fatalismo e a candura, a energia e a gravi-
dade, a tristeza e a submissão do génio nacional estão ali. Não é clássico nem romântico: é trágico […].
Num momento único de intuição genial, Garrett viu por dentro o homem e sentiu o palpitar das
(11) Cf. Portugal Contemporâneo, ii, 10.ª ed., Lisboa, Guimarães Ed., 1996, p. 115.
(12) Cf. Gomes amorim (1884, III: 532-533).
(13) Como demonstra Vasco Graça Moura (1999: 56), Garrett coloca uma genial coloquialidade ao serviço da intriga de profundo desenvolvimento
trágico, com uma leitura subentendida, mas inegável — o sonho de grandeza conduziu Portugal ao pesadelo da desgraça nacional, a um certo
sentimento de falência e de finis patriae, nomeadamente quando perspetiva pessoanamente o destino de Portugal, «este lúgubre país que
já não é nada nem ninguém, nem tem sabido sê-lo, da dominação filipina aos sobressaltos e sucessivos afundamentos do Constitucionalismo».
(14) No contexto desta interpretação crítica, recomendam-se vivamente duas leituras literárias, que têm de comum o sugestivo retrato do Portugal
defunto, depois da tragédia de Alcácer-Quibir. Primeiro, um interessantíssimo capítulo de Oliveira Martins, no seu dramático Camões.
Os Lusíadas e a Renascença em Portugal (4.ª ed., Lisboa, Guimarães Editora, 1986 [1.ª ed., 1872], pp. 90-96). As terríveis calamidades que assolavam
Lisboa e o território nacional eram vistas como um castigo da decadência do Império e um negro presságio das tentativas de D. Sebastião
para reconquistar o Norte de África, como uma espécie de guerra santa expiatória. [Veja-se, por exemplo, uma crónica desta época, como
o Memorial de Pero Roiz Soares, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1953 (leitura e revisão de M. Lopes de Almeida), pp. 90-91 et passim:
repetidas descrições e referências a misteriosos acontecimentos ou sinais da Natureza (tremores de terra, fogos, cometas, sinais do céu, etc.),
ocorridos antes da jornada do Norte de África, são interpretados como presságios de futuros castigos que se avizinhavam para Portugal.]
Por isso, a Lisboa que Camões encontrou no regresso à pátria é, na visão de Natália Correia, uma cidade decadente e noturna, uma necrópole
empestada pelos cadáveres. Os Lusíadas apresentam-se, anterianamente, como um epitáfio da decadência do império português. A segunda
leitura recomendada seria o 18.º quadro da peça de Natália Correia, Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente (Lisboa, O Jornal, 1991, pp. 225-232),
inspirada na vida e obra de Luís de Camões. Esta obra teatral termina justamente com o retrato de um país órfão, já doente de Sebastianismo,
uma Nação de luto com uma tripla morte: primeiro, morre (ou desaparece) o jovem monarca D. Sebastião e a maior parte da nobreza que
o acompanhou na funesta jornada de África; depois, morre Camões, pobre e incompreendido, velho e já doente, julgando-se mesmo
corresponsável da tragédia coletiva, por ter incitado o sugestionável rei com o seu canto épico; por fim, morre Portugal, que perde a sua
independência em favor da coroa de Castela.
(15) Por sinal, num curioso diálogo intertextual, uma personagem feminina do romance de Vasco Graça Moura A Morte de Ninguém (Lisboa,
Quetzal, 1998, p. 130) tem a tentação de ridicularizar o aspeto trágico e melodramático da morte anunciada, a pretexto da similitude com
a reconstituição de um enredo de tipo policial que andava a fazer para um estudo sobre a guerra colonial portuguesa: «O tempo dos Manuéis
de Sousa Coutinho passou há muito. O das romagens à Terra Santa, também. Já tem barbas brancas e veneráveis como as do próprio Romeiro.
E chega de Alcáceres-Quibir como pano de fundo!» A somar a este comentado paralelo, deve acrescentar-se o simbolismo das coincidências
onomásticas, já que nesta narrativa híbrida, misto de escrita diarística e troca epistolográfica, não faltam um Manuel conturbado e uma
Madalena infiel.
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 175
2
Contudo, continua a afirmar-se como admirável tragédia inconsciente de um destino coletivo. Neste âmbito,
o sentido das personagens e da fábula trágica reside na sua inegável carga simbólico-ideológica. O drama
de Garrett fala de Portugal, num momento em que ele se interroga pela boca de Garrett. É um país que vive
Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett
(16) De facto, é significativo que algumas das obras de ficção que pensam Portugal, sobretudo a partir da literatura romântica, tenham como
imagem simbólica central a metáfora da casa, como manifesta alegoria da casa portuguesa ou Nação — desde Frei Luís de Sousa, passando pela
obra de Eça de Queirós (Os Maias ou A Ilustre Casa de Ramires), até à literatura contemporânea, com A Casa Grande de Romarigães, de Aquilino
Ribeiro, A Torre de Barbela, de Ruben A., ou A Quinta das Virtudes, de Mário Cláudio, entre outras obras. A este propósito, revelam-se muito
sugestivos os ensaios coligidos no recente volume organizado por Jorge Fernandes da Silveira, Escrever a Casa Portuguesa (Ed. da Universidade
Federal de Minas Gerais, 1999).
176 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana
30
1. D. Madalena
• D. Madalena vive numa grande instabilidade emocional: o terror que lhe provoca
a possibilidade de regresso de D. João nunca a deixa desfrutar da felicidade de
viver ao lado do homem que ama. Os seus receios são alimentados pelas contí-
nuas alusões de Telmo à iminente vinda daquele que considerava como o verda-
deiro amo. A tensão nervosa em que vive mergulhada é também aumentada pelo
pecado que lhe pesa na consciência: o facto de se ter apaixonado por D. Manuel
de Sousa Coutinho enquanto ainda era casada com D. João. Muito embora se
tenha mantido fiel ao seu marido, considera que o facto de amar secretamente
D. Manuel era já uma traição. O sofrimento é ainda intensificado pelo profundo
amor que sente pela filha, na medida em que tem consciência de que o regresso
de D. João — ou a simples noção da sua existência — a poderiam matar.
31
• A sua crença no oculto leva-a a entrever
presságios de desgraça em vários aconte-
cimentos aparentemente fortuitos.
• Apesar de parecer psicologicamente mais
frágil do que D. Manuel, curiosamente,
é ela quem, no fim, se mostrará mais re-
voltada por ser forçada a separar-se do
marido e a ingressar no convento.
• Ao contrário de D. Manuel, mantém até
ao último momento a esperança de evitar
o desenlace trágico.
3. Maria
• Maria é uma menina muito inteligente e precoce para a sua idade.
• Tendo sido criada por Telmo, tem-lhe um amor profundo, partilhando da sua
crença no regresso de D. Sebastião.
• Maria acredita ter a capacidade de desvendar o oculto, traço que, supostamente,
é agudizado pelo aumento da sensibilidade que o facto de estar tuberculosa lhe
proporciona. A sua intuição apurada leva-a a compreender que há algo que toda
a família lhe quer ocultar, no intuito de a proteger.
• A coragem que demonstra quando incita o pai a queimar o palácio manifesta-se
também no fim, quando enfrenta as convenções sociais e as próprias conven-
ções religiosas, afirmando que nada justifica a destruição de uma família.
• Apesar da sua força interior, a sua fragilidade física não lhe permite sobreviver
ao desgosto de descobrir que é filha ilegítima, acabando por morrer de vergonha.
32
4. Telmo
• O escudeiro destaca-se, numa fase inicial, pela sua severidade, que o leva a
criticar D. Madalena por se ter casado segunda vez sem estar certa da morte
do primeiro marido e mesmo a sugerir que, em consequência disto, Maria
poderia não ser uma filha legítima.
• No entanto, a inflexibilidade que revela (e que se manifesta, por exemplo, no
facto de nunca mentir) virá a ser quebrada aquando da chegada do Romeiro.
Confrontado com a necessidade de salvar Maria, apercebe-se de que já a
amava mais do que ao primeiro amo. Assim, dispõe-se, pela primeira vez na
vida, a mentir, em nome dos afetos. É interessante verificar que, desta forma,
se humaniza, aproximando-se de D. Madalena, a quem tanto criticara anterior-
mente, na medida em que se apercebe de que o amor por vezes se sobrepõe
aos princípios morais.
5. Frei Jorge
• Tal como o irmão, Frei Jorge caracteriza-se pela sensatez, procurando sempre
auxiliar a família.
• A personagem tem um papel determinante na resolução do conflito entre
D. Manuel e os governadores ao serviço de Castela.
• No Ato Terceiro, quando D. Manuel se verga ao peso da desgraça, é Frei Jorge
quem toma todas as providências para que o irmão e D. Madalena ingressem
no convento — procurando, simultaneamente, amparar a família e funcionar
como intermediário entre as personagens.
• Apesar de se comover com o sofrimento a que assiste, Frei Jorge mostra-se
inflexível na obediência aos seus princípios, recusando qualquer solução que
passasse pela mentira, mesmo que esta lhe permitisse impedir a catástrofe.
Com efeito, considera que a entrada na vida religiosa proporcionará a D. Manuel
e a D. Madalena o consolo e a redenção de que necessitavam.
6. D. João de Portugal
• Este fidalgo, apesar de ser considerado pelas outras personagens como uma
figura digna de temor pela dignidade e rigidez na fidelidade aos seus princípios,
acaba por revelar-se muito humano. Confrontado com o facto de que
D. Madalena tinha feito todos os esforços para o procurar e de que ela tinha
uma filha, mostra-se disposto a anular a sua própria existência para salvar toda
a família da catástrofe.
O ESPAÇO E O TEMPO
1. O espaço
• odemos distinguir dois tipos de espaço num texto dramático: o espaço
P
cénico, formado pelo palco e pelo cenário, e o espaço representado, o lugar
a que o espaço cénico pretende aludir («faz de conta» que estamos num
palácio, no campo, etc.). A informação sobre o espaço é dada ao leitor atra-
vés das didascálias, sobretudo as que se encontram em início de ato, mas
também através das falas das personagens.
33
34
2. O tempo
• A peça inicia-se com a apresentação dos antecedentes da ação, que abarcam
um longo período temporal. Há referências à Batalha de Alcácer- Quibir, que
tivera lugar vinte e um anos antes, e a momentos ainda anteriores. Depois da
batalha, e durante sete anos, D. Madalena promoveu buscas para saber se
D. João ainda está vivo. No fim deste período, e como a procura se revelou
infrutífera, acabou por casar-se com D. Manuel.
• Em contrapartida, a ação da peça desenrola-se num breve período de tempo,
sensivelmente uma semana. O segundo ato decorre no dia do aniversário
da Batalha de Alcácer-Quibir. Tendo em conta que esta batalha teve lugar no
dia 4 de agosto de 1578, e que D. Madalena afirmara que já haviam passado
vinte e um anos desde a batalha, é possível localizar a ação deste ato no dia
4 de agosto de 1599. Uma vez que estes acontecimentos se desenrolam oito
dias depois dos do primeiro ato, podemos concluir que o primeiro ato decorre
no dia 28 de julho de 1599. Quanto ao terceiro ato, passa-se durante a noite
do dia 4 de agosto.
• Constatamos que há uma progressiva concentração temporal: da evocação dos
episódios de um longo período de vinte e um anos (Ato Primeiro), passamos a
acontecimentos que se desenrolam em dois dias, separados entre si no período
de uma semana. Nos Atos Segundo e Terceiro, a velocidade dos acontecimen-
tos precipita-se: tudo sucede no dia do aniversário da Batalha de Alcácer-
- Quibir, prolongando-se depois pela noite e pela madrugada, que anuncia já o
dia seguinte.
• Este afunilamento progressivo do tempo contribui para intensificar a tensão
dramática, na medida em que todos os acontecimentos se sucedem de forma
cada vez mais rápida, até ao desenlace trágico.
A DIMENSÃO TRÁGICA
• No que diz respeito à intriga trágica, é interessante verificar que há uma con-
centração de personagens, de espaço e de tempo, como vimos, de modo que
nada seja supérfluo e que tudo contribua para a intensificação da tensão dra-
mática.
• De notar que, de acordo com os factos históricos, D. Madalena tivera três filhos
do primeiro casamento, que são aqui eliminados, para que a aniquilação de
Maria represente, de facto, o extermínio completo da família.
• Da mesma forma, todo o desenrolar da ação converge para o desenlace trá-
gico. Mesmo o momento em que D. Manuel parece revoltar-se contra o destino,
incendiando o seu palácio, acaba por servir a fatalidade que se abate sobre as
personagens, na medida em que as obriga a família a mudar-se para o palácio
de D. João, local aonde este regressará.
35
• Hybris — consiste num desafio feito • A hybris é perpetrada tanto por D. Madalena como por
pelas personagens à ordem instituída D. Manuel de Sousa Coutinho. Com efeito, no primeiro caso,
(leis humanas ou divinas). o desafio consistiu no facto de a personagem se ter apaixonado
por D. Manuel de Sousa Coutinho quando ainda era casada com
D. João de Portugal. Além disso, ambas as personagens põem
em causa a ordem instituída ao casarem sem terem provas
irrefutáveis da morte de D. João de Portugal.
• Clímax — momento culminante • O clímax ocorre na cena final do Ato Segundo, pois é neste
da ação. momento que a tensão dramática atinge o seu auge: D. João de
Portugal dá a conhecer de forma inequívoca a sua identidade,
demonstrando, ao mesmo tempo, de forma paradoxal, que
o esquecimento a que foi votado anulou a sua existência.
• Ágon — conflito vivido pelas • As atitudes de D. Madalena ao longo da intriga são um reflexo
personagens; pode designar do conflito interior que a atormenta: desde o primeiro momento
o conflito com outras personagens que mostra sentir-se grata por viver com o homem que ama,
ou o conflito interior. tendo, no entanto, consciência de que a sua felicidade é frágil,
dado que a construiu com base na suposição da morte
do marido.
• Por seu lado, também Telmo é vítima de um conflito interior:
depois de ter passado vinte e um anos a desejar o regresso
do antigo amo, apercebe-se de que, na verdade, o seu amor por
Maria acabou por superar o que nutria por D. João de Portugal,
mostrando-se disposto a abdicar dos seus princípios éticos para
a salvar.
(continua)
36
(continuação)
• Catarse — efeito purificador que • O terror e a piedade desencadeados nos espectadores são
a tragédia deve ter nos espectadores: adensados pelo facto de a catástrofe se abater sobre uma família
ao desencadear o terror e a piedade, (na qual se inclui Telmo) que se ama profundamente e de todas
permitir-lhes-ia purificarem as suas as personagens serem profundamente retas e dignas.
emoções.
1. Estrutura
1.1 Estrutura externa
• estrutura externa de uma obra diz respeito à organização «visível» do texto
A
literário (e traduz-se na forma como essa organização se apresenta grafica-
mente). Frei Luís de Sousa é uma obra dramática, ou seja, um texto preparado
para a representação teatral.
• C
omo a esmagadora maioria das obras do modo dramático, a peça de Garrett
é composta por um texto principal, que consiste nas falas das personagens, e
por um texto secundário, que é constituído pelas didascálias, ou seja, pelas
indicações cénicas sobre a ornamentação do palco, os adereços, a luz, a movi-
mentação e os gestos das personagens, etc.
• Enquanto drama romântico, Frei Luís de Sousa é um texto em prosa estruturado
em três atos: a mudança de atos corresponde à mudança do local da ação.
(Note-se que as tragédias clássicas eram compostas em verso e dividiam-se,
por regra, em cinco atos.) Por sua vez, cada ato organiza-se em várias cenas,
que terminam com a entrada ou saída de personagens do palco.
37
2. Linguagem e estilo
• o contrário da tragédia clássica, por regra escrita em verso, Frei Luís de Sousa
A
foi composto em prosa. Desta forma, os diálogos ganham um sabor de colo-
quialidade e fluidez que dificilmente teriam com o verso.
• Por outro lado, seguindo as regras da tragédia clássica, a linguagem das perso-
nagens centrais adequa-se ao estatuto social da nobreza: assim domina o nível
de linguagem elevado e, frequentemente, encontramos um léxico rico e até
erudito («ignomínia», «opróbrio», «pejo», etc.).
• As falas das personagens de Frei Luís de Sousa são marcadas por uma grande
emotividade, fruto do seu estado de espírito quando confrontadas com os
acontecimentos intensos ou com os seus receios. No texto abundam marcas
linguísticas que traduzem os sentimentos das personagens: as interjeições
(e as locuções interjetivas), as frases exclamativas e os atos ilocutórios expres-
sivos. Os melhores exemplos estão nas falas de D. Madalena e revelam a
influência dos melodramas românticos com uma linguagem demasiado retórica
e emotiva.
• Associados aos sentimentos e ao estado de espírito das personagens estão as
frases suspensas (ou seja, interrompidas), que pontuam as falas de diferentes
personagens, exprimem as suas inquietações, perplexidades e hesitações. Por
vezes, deixam no ar alguns subentendidos cujo significado é partilhado pelas
personagens (ver o diálogo da Cena II do Ato Primeiro). Telmo e D. Madalena
deixam por terminar as frases por não quererem mencionar o que receiam
(o regresso de D. João, a desonra ou a doença de Maria) ou por hesitarem em
verbalizar certos factos (a possibilidade de D. João não ter morrido).
38
39
40
A Questão Coimbrã
Ao relembrar os tempos da vida de estudante, Eça de Queirós escreve: «Coimbra vivia então
numa grande atividade, ou antes, num grande tumulto mental. Pelos caminhos de ferro,
que tinham aberto a Península, rompiam, cada dia, descendo de França e da Alemanha,
torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses huma-
nitários.»
O encontro com o pensamento de Hegel, Michelet, Taine, Darwin, Renan e com a poesia de
Hugo e Heine deu os primeiros frutos em dois volumes de versos, Odes modernas (1865),
de Antero de Quental, e Visão dos tempos e tempestades sonoras (1864) de Teófilo Braga, que
Pinheiro Chagas, jovem crítico emergente no meio cultural lisboeta, criticou de forma áspera
e sarcástica em artigos de jornais.
Em outubro de 1865, António Feliciano de Castilho, que se tornara o mentor dos poetas da
segunda geração romântica, na Carta ao editor António Maria Pereira, que serve de prefácio
ao Poema da mocidade, de autoria de Pinheiro Chagas, indigita o jovem crítico e poeta para
o cargo de professor da cadeira de Literatura Moderna, no Curso Superior de Letras, e,
numa breve passagem, alude com ironia às criações literárias dos dois jovens estudantes
de Coimbra: «Braga e Quental, de quem pelas alturas em que voam, confesso, humilde e
envergonhado, que muito pouco enxergo, nem atino para onde vão, nem avento o que será
deles afinal.»
A resposta de Antero de Quental foi imediata. No mês seguinte sai à luz o panfleto Bom senso
e bom gosto, que advoga a liberdade absoluta do escritor e propugna uma renovação das
letras nacionais: «O que se ataca na escola de Coimbra […] não é uma opinião literária menos
provada, uma conceção poética mais atrevida, um estilo ou uma ideia. Isso é o pretexto ape-
nas. Mas a guerra faz-se à independência irreverente de escritores, que entendem fazer por si
o seu caminho, sem pedirem licença aos mestres, mas consultando só o seu trabalho e a sua
consciência.»
Pouco depois, é Teófilo Braga que, em Teocracias literárias, desfere um virulento ataque a Cas-
tilho, afirmando que o seu prestígio assenta em razões alheias ao valor literário: «Digamos a
verdade toda. O sr. Castilho deve a sua celebridade à infelicidade de ser cego. O que se espera
de um cego? Apenas habilidade. É uma celebridade triste porque tem origem na compaixão,
e a compaixão fatiga-se […] a reputação do sr. Castilho acaba com a sua vida; é a luz que se
apaga consigo; nenhum dos seus livros vão à posteridade.»
Nos meses seguintes sucedem-se numerosos panfletos, que tomam ora o partido de Castilho,
ora o dos estudantes de Coimbra, alimentando uma polémica que ficou conhecida com o
nome de «Questão Coimbrã». Embora não se tratasse de uma polémica especificamente lite-
rária, dado que o que estava em causa era o papel do escritor na sociedade e a sua indepen-
dência e não conceções estéticas ou poéticas divergentes, marca um momento de rutura nas
letras portuguesas, anunciando o início de uma nova fase que adquire a sua plena fisionomia
na década de 70.
234 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana
As Conferências do Casino
PARA SABER MAIS
Em 1871, o «Cenáculo» que se reunia em Lisboa à volta de Antero de Quental, e de que faziam
parte Eça de Queirós, Jaime Batalha Reis, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, Guilherme de As Conferências
Azevedo, entre outros, organiza uma série de palestras públicas, as Conferências do Casino do Casino
Lisbonense, que se anunciam com um ambicioso programa de reforma cultural e social: Das dez conferências
projetadas, apenas
«Não pode viver e desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações intelectuais do cinco foram proferidas.
seu tempo: o que todos os dias a Humanidade vai trabalhando deve também ser assunto das Apresenta-se a lista total.
nossas constantes meditações. 1.ª Conferência:
Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este movimento O espírito das conferências,
de Antero de Quental
do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos; (22 de maio de 1871)
ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de 2.ª Conferência:
que vive a humanidade civilizada; procurar adquirir consciência de factos que nos rodeiam na Causas da decadência
Europa; agitar na opinião pública as grandes questões da filosofia e da ciência moderna.» dos povos peninsulares,
de Antero de Quental
Realizaram-se só cinco das conferências programadas. A primeira e a segunda foram da autoria (27 de maio de 1871)
de Antero. Esta última versava sobre as Causas da decadência dos povos peninsulares, identificadas 3.ª Conferência:
no movimento da Contra-Reforma, na centralização política operada pela monarquia e no sis- A literatura portuguesa,
tema económico originado pelos Descobrimentos. Na quarta, A literatura nova, Eça de Queirós, de Augusto Soromenho
inspirando-se no pensamento de Proudhon e na estética de Taine, critica a literatura cultivada (6 de junho de 1871)
em Portugal e defende a função moralizadora e reformista da arte, dando como exemplos a 4.ª Conferência:
A literatura nova, ou como
seguir o romance de Flaubert, Madame Bovary, e os quadros realistas de Courbet. mais tarde foi designada,
A quinta conferência, proferida por Adolfo Coelho, sugere a criação de um ensino científico, que O Realismo como nova
deve ter por base uma clara e nítida separação entre o Estado e a Igreja, enquanto a sexta, de expressão de arte, de Eça
de Queirós (12 de junho
Salomão Saragga, deveria debruçar-se sobre os historiadores críticos de Jesus, mas, pouco antes de 1871)
da sua realização, o Governo interveio proibindo as preleções «em que se expõem e procuram 5.ª Conferência:
sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições políticas do Estado». O ensino, de Adolfo
Coelho (19 de junho
de 1871)
LEITURA 6.ª Conferência:
Os historiadores críticos
de Jesus, de Salomão
Portaria de encerramento das conferências Saragga
Em 26 de junho de 1871, o Governo decreta o encerramento das conferências que decorriam numa sala 7.ª Conferência:
do Casino Lisbonense, através da seguinte portaria. O socialismo, de
«Tendo chegado ao conhecimento de S. M. El-Rei, por informação do governador civil de Lisboa e publicações Batalha Reis
de jornais, que no Casino Lisbonense, no Largo da Abegoria, desta capital, se celebram reuniões públicas, 8.ª Conferência:
com a denominação de “conferências”, nas quais se tem feito uma série de prelecções, em que se expõem A república, de Antero
e procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições políticas do Estado; de Quental
e sendo certo que tais factos, além de constituírem um abuso de direito de reunião, ofendem clara
e diretamente as leis do Reino e o código fundamental da monarquia, que os poderes públicos têm a seu cargo 9.ª Conferência:
manter e fazer respeitar: determina o mesmo augusto senhor, conformando-se com o parecer do conselheiro A instrução primária,
procurador-geral da Coroa e Fazenda, que o governador civil de Lisboa não consinta as referidas reuniões e de Adolfo Coelho
conferências, tanto no local em que têm sido celebradas até agora, como em qualquer outro escolhido pelos 10.ª Conferência:
preletores, e que para este fim faça intimar esta resolução às pessoas que pretendem celebrar as aludidas Dedução positiva da ideia
reuniões e aos donos das casas para onde essas reuniões forem convocadas sob pena de se proceder contra os democrática, de Augusto
transgressores em conformidade das leis.» Fuschini
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 235
TEXTOS CRÍTICOS 4
Ramalhete (subentendamos o grupo: Antero, Resende, Ramalho, Eça, Oliveira Martins, etc.).
Ora, para Eça a classe dirigente é tudo numa nação. A burguesia lisboeta e os representantes dessa
burguesia na política, na literatura e nos salões são a única forma com que há a contar. «Um país, no fundo»,
escreve Eça, «é sempre uma coisa muito pequena. Compõe-se de um grupo de homens de letras, homens
10 de Estado, homens de negócio, e homens de clube, que vivem de frequentar o centro da capital. O resto é
paisagem, que mais se distingue da configuração, das vilas ou dos vales. É a gente sonolenta da província,
que apenas se diferencia das pequenas vielas sujas e tortuosas onde vegeta; são os homens do campo, que
mal se destacam das terras trigueiras que semeiam e regam.»1 O resto, pelo menos, é a grande massa da
população que Eça não conheceu e à qual a sua educação, na Coimbra onde se formam os doutores, não
15 ensinou a dar o valor exato.
E desta atitude vêm as conclusões pessimistas que Ega ou Eça inferem do seu diagnóstico da crise
portuguesa. Conhecendo apenas a burguesia dirigente com todos os defeitos que lhe aponta, isolada do
conjunto de que faz parte, esses defeitos avultavam gigantescos e irremediáveis. De defeitos de uma classe,
transformam-se em defeitos nacionais. Ega diz: «Esta raça, depois de cinquenta anos de constitucionalismo,
20 criada por esses saguões da Baixa, educada na piolhice dos liceus, roída de sífilis, apodrecida no bolor das
secretarias, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdeu o músculo como perdera o carácter
e era a mais fraca, a mais covarde raça da Europa»2 — como se todos os habitantes de Portugal residissem
nos saguões da Baixa, ou frequentassem os liceus, ou fossem oficiais de secretaria, ou divagassem no Pas-
seio Público. Há aqui uma falha de visão evidente. Essa falha explica que Eça tivesse dado importância
25 imerecida a falsos problemas ou a supostos defeitos nacionais, ou a pormenores pouco importantes, esque-
cendo por outro lado problemas e males reais. Assim o pseudoproblema da retórica constitucional — o que
ele mais frequentemente põe a propósito do caso português. A falta de senso das proporções de Eça vai,
neste aspeto, até ao ponto de ver num conselheiro que discursa num teatro «a alma sentimental dum povo
exibindo-se num palco, ao mesmo tempo nua e de casaca»3. Outro pseudoproblema é o francesismo, que
30 a partir de certa altura persegue Eça — quando o francesismo nada tem que ver com as condições especiais
da coletividade portuguesa, é apenas um aspeto particular do cosmopolitismo que certas condições técnicas
impõem progressivamente a todos os países. Não há aí um problema especificamente nacional — nem
mesmo um problema: é apenas uma lei. E em compensação problemas reais são apenas mencionados de
passagem; nem sequer referidos, por vezes: o papel da finança na política constitucional (mencionado por
35 Ega); o baixo nível económico e cultural da grande massa da população portuguesa; os efeitos da livre
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 255
A conferência do Sr. Eça de Queiroz foi feita debaixo do ponto de vista de que, tendo a arte uma
influência poderosa sobre os costumes e sobre a moral, devia contribuir o mais possível para realizar a jus-
tiça, única base que devem ter as relações sociais. E nem pode deixar de ser assim, porque as evoluções
históricas compreendem e abrangem em si todas as manifestações do espírito humano. Produzem uma
5 filosofia, uma política, hão de necessariamente produzir uma literatura, uma arte, porque elas são o espelho
fiel onde se vem refletir em toda a sua verdade o espírito e a consciência de uma época qualquer. A ação
individual tem uma parte importante na formação de uma grande obra, mas o meio físico e social deixaram
nela o seu cunho profundo e indelével.
É por isso que eu não creio que tenha havido homem nenhum, por mais génio que tenha tido, que
10 excedesse a sua época, o seu tempo; que os precedesse. Jesus mesmo não fez mais do que obedecer à
do seu século que Rafael. Nos quadros deste grande mestre, na arquitetura deste tempo, é que se encontra
o verdadeiro génio da Renascença.
Uma questão não obstante tem agitado a crítica e é a seguinte: haverá progresso na nossa maneira de
compreender hoje a arte? Eu respondo: há diferença e nada mais. É uma verdade, que não encontramos
20 hoje um artista capaz de pintar o Juízo final, mas não é porque o espírito dos artistas seja menos elevado,
é porque compreendem o ideal de outra maneira, obedecem a outras influências e a outros agentes. Cour-
bet, a mais poderosa organização artística deste século, e uma das maiores que tem tido a humanidade,
não é superior a Miguel Ângelo, Rafael, Leonardo da Vinci: é diferente.
A arte grega não tem podido ser imitada até hoje e não o será nunca. Em tempo nenhum se poderá
25 alcançar aquela simplicidade maravilhosa, que faz a sua glória, aquela harmonia perfeita entre a forma e a
ideia, segundo a expressão de Hegel. Certamente que não, porque não vivemos num tempo em que as
relações sociais sejam simples como no tempo de Péricles. O nosso ideal vive de elementos mais complexos,
infinitamente mais complexos mesmo. O artista toma da sociedade em que vive tudo o que ela encerra e é
com esses elementos que ele forma o seu ideal. Em todos os tempos tem acontecido isto, e é daí que provêm
30 as diferenças que se notam, que não constituem de maneira alguma a superioridade de uma arte sobre outra.
A arte só decai quando falseia o princípio a que ela tende, isto é, realizar as ideias na sua beleza, como
a filosofia as realiza na sua verdade, e a consciência na sua justiça. […]
Foi por isso que o Sr. Eça de Queiroz entendeu muito bem: que a arte (e nela compreendo a literatura,
35 isto é, drama, romance, poesia) deve ter uma aliança íntima com a filosofia e com os juízos da consciência,
o que forma uma tríplice sanção às ideias que as tornará verdadeiramente legítimas e justas. É uma base
duradoura e estável, sobre a qual a arte se desenvolverá livremente, quando todos os espíritos que voltarem
a sua atividade para estas coisas, se compenetrarem bem deste princípio, que dá à arte uma missão elevada
e nobre, missão que fará no futuro a sua glória, e que será um padrão imorredoiro do espírito do nosso
40 tempo, espírito de justiça, de verdade e de direito.
Desta maneira toda científica de compreender a arte — há nos nossos tempos, hoje, algum exemplo,
alguma manifestação? Diz o Sr. Eça de Queirós que é o realismo. Penso também assim.
Procurar na sociedade, nas suas lutas, nos seus sofrimentos, nos seus trabalhos, na sua vida íntima, a
matéria da arte. Estudar os caracteres à luz da psicologia, observar os costumes no que eles têm de mais
45 exato, de mais real, e desta maneira aprendermos a conhecermo-nos melhor a nós mesmos, e incitarmo-
-nos ao aperfeiçoamento; em uma palavra, o ideal como fim e não como meio.
É este o realismo como o compreende o Sr. Eça de Queirós, como eu o aceito, e comigo todo os que
têm em vista a realização da justiça na sociedade, que toma então o nome grande e quase santo de direito.
Vê-se por isto que influência [a arte pode ter] nos costumes, que ação salutar e moralizadora a arte
realista, ou a arte crítica, pode exercer. A consciência encontrará ali exemplos a seguir e a imitar, e outros a
condenar e a evitar com cautela.
[Assinado Alberto de Queiroz, Revolução de Setembro, 13 de junho de 1871.]
Eça dE quEiroz, Literatura e Arte. Uma antologia, edição de Beatriz Berrini, Lisboa, Relógio d’Água, 2000, pp. 22-24.
256 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana
• O
s principais temas d’Os Maias associam-se à ideologia e às preocupações
nucleares do Realismo e do Naturalismo, que são as principais referências artís-
ticas do romance.
a) O
amor é um dos temas centrais d’Os Maias. Trata-se da força motriz que
desencadeia e faz avançar a intriga principal — a relação sentimental entre
Carlos e Maria Eduarda —, mas também do ingrediente que precipita as
personagens para um desfecho desditoso, infeliz: o fim de um amor verda-
deiro e de um projeto de vida a dois, mas também a morte de Afonso.
A ligação amorosa entre as duas personagens centrais termina quando se
descobre que são irmão e irmã e, portanto, que vivem em situação de
incesto (outro tema da obra), ainda que involuntário e inconsciente. Carlos
sobrevive, profundamente desiludido, à frustração sentimental. De alguma
maneira, a possibilidade de realização pessoal no amor e de uma existência
feliz naufraga com a separação dos dois irmãos.
b) T
ema profundamente realista, o adultério assume, assim, uma expressivi-
dade considerável neste romance. A infidelidade amorosa está presente em
linhas narrativas secundárias do romance, condicionando a vida de certas
personagens. N’Os Maias estuda-se literariamente este fenómeno social,
revelando como ele se associa à futilidade e à esterilidade do modo de vida
e da mentalidade das classes burguesa e aristocrática bem como à educa-
ção que os seus membros receberam.
Em primeiro lugar, é o amor o responsável pelos sobressaltos da vida de
Pedro da Maia: a saída, em rutura, do lar paterno, a paixão inflamada por
Maria Monforte e o seu suicídio. Aqui emerge outro tópico relevante da nar-
rativa: o adultério, que é praticado por figuras femininas como a condessa
de Gouvarinho, Raquel Cohen e, como vimos, Maria Monforte.
c) A educação é outro tema da obra. Desde logo porque condiciona o trajeto de
vida de várias personagens do romance, como Carlos, Pedro da Maia e Euse-
biozinho, mas também, pela análise que o processo narrativo se encarrega de
fazer, Maria Monforte e Dâmaso, entre outras. Ao longo da narrativa, equa-
ciona-se o problema de apurar qual o melhor modelo a seguir para educar um
jovem português do século XIX. (A educação era um tópico de reflexão dos
pensadores da Geração de 70, que acreditavam que ela podia ser a pedra
filosofal que resgataria o povo português do seu atraso e da sua decadência.)
Dois modelos de educação são colocados em confronto: o modelo tradicio-
nal português, orientado pelos valores da fé católica, baseado no estudo
teórico e livresco e na aprendizagem do latim; e o modelo britânico, apolo-
gista do exercício físico, do contacto com a natureza, de uma formação
moral sólida e humanista e do estudo das línguas vivas.
O modelo de educação português produz indivíduos de carácter fraco, de
condição débil e sem uma orientação prática para a vida; exemplos disso
são Pedro da Maia e Eusebiozinho. Carlos é educado segundo o modelo
britânico mas falha na vida, ainda que não por causa deste tipo de educa-
ção: são as circunstâncias da sua existência e os condicionalismos do
Portugal em que vive que o tornarão um «vencido da vida». (Desta forma,
o diletantismo — de Carlos, de Ega e da classe dirigente — acaba por
constituir outra questão relevante da obra.)
47
d) D
o que foi dito se depreende que a decadência é outro tema d’Os Maias
(para alguns estudiosos da obra, o tema é a própria ideia de Portugal no
contexto do século XIX). Isto porque o romance procede a uma análise dos
aspetos e das causas da decadência nacional.
A análise social empreendida identifica o problema em vários domínios da
sociedade, como a degradação dos costumes e da moral (por exemplo, a
falta de carácter dos portugueses), a incompetência e a indiferença da
classe dirigente (com políticos como Gouvarinho, banqueiros como Cohen),
a falta de civismo da sociedade burguesa (recorde-se o episódio das corridas
de cavalos), o provincianismo, a futilidade, a falta de cultura (lembre-se o
Sarau no Teatro da Trindade), etc.
A decadência é política, social, económica, cultural e moral. E as personagens
do romance traduzem a descrença numa regeneração da pátria e das menta-
lidades, facto que é ilustrado na conversa galhofeira do jantar no Hotel Central.
e) O
utro tema d’Os Maias, que se associa ao da decadência, é a família, tópico
que será analisado na secção «O título e o subtítulo» desta sistematização.
Leia-se esta mesma secção para compreender de que forma o próprio
Romantismo, enquanto mentalidade dominante, é tematizado nesta obra
(cf. também Reis, 2000: 40-42).
f) P
or outro lado, a própria literatura e as ideias artísticas realistas/naturalistas
(mas também as românticas) constituem questões temáticas que são abor-
dadas por personagens do romance e problematizadas por Eça de Queirós
na composição d’Os Maias, pela forma como mostra a falência do Roman-
tismo (sobretudo na personagem de Alencar) ou como questiona a ideologia
do Naturalismo (demonstrando que a hereditariedade e a educação não são
fatores que garantam a realização pessoal, o carácter forte e a prosperidade
de um indivíduo).
• P
odemos incluir neste elenco outros temas (ou subtemas) da obra, que ocupa-
rão uma posição secundária ou subordinada em relação aos temas principais:
o progresso, o jornalismo, o donjuanismo ou o tédio.
• A
ação d’Os Maias decorre, em grande parte, em vários lugares de Lisboa e dos
seus arredores, como em Sintra; no entanto, na infância e na juventude
de Carlos da Maia, o leitor vai encontrar a personagem e o seu avô na quinta de
família de Santa Olávia e em Coimbra.
sses lugares, que constituem o espaço físico do enredo do romance, são olha-
• E
dos de outra forma quando criam ambientes povoados com personagens
da narrativa — várias delas personagens-tipo — e proporcionam momentos de
caracterização de grupos sociais, de figuras individuais e, sobretudo, de crítica
de costumes. A estes cenários que convidam à análise de comportamentos
e de personagens dá-se o nome de espaço social.
• L
isboa é o grande palco onde se desenrola o enredo d’Os Maias porque é na
capital portuguesa que se movimenta a sociedade nacional, que é estudada e
criticada no romance. É nos episódios que têm lugar em vários espaços lisboe-
tas e dos arredores da cidade que assistimos ao vícios e à decadência da socie-
dade burguesa da segunda metade do século XIX. Subtilmente, estabelecem-se
contrastes entre Lisboa e outras capitais europeias — sobretudo Paris e Londres
— para melhor dar a conhecer os vícios cívicos e civilizacionais do nosso país.
48
49
1. O jardim do Ramalhete
• Antes de Afonso e Carlos decidirem habitar o Ramalhete, este espaço «possuía
apenas, ao fundo de um terraço de tijolo, um pobre quintal inculto, abando-
nado às ervas bravas, com um cipreste, um cedro, uma cascatazinha seca, um
tanque entulhado, e uma estátua de mármore ([…] Vénus Citereia) enegre-
cendo a um canto na lenta humidade das ramagens silvestres.» (Capítulo I).
• Depois de avô e neto se terem instalado neste espaço, o jardim é descrito da
seguinte forma: «tinha o ar simpático, com os seus girassóis perfilados ao pé
dos degraus do terraço, o cipreste e o cedro envelhecendo juntos como amigos
tristes e a Vénus Citereia parecendo agora, no seu tom claro de estátua de par-
que, ter chegado de Versalhes, do fundo do grande século… e desde que a
água abundava, a cascatazinha era deliciosa, dentro do nicho de conchas, com
os seus pedregulhos arranjados em despenhadeiro bucólico, melancolizando
aquele fundo de quintal soalheiro com um pranto de náiade doméstica esfiado
gota a gota na bacia de mármore.» (Capítulo I).
• F
inalmente, quando Ega e Carlos visitam o Ramalhete, dez anos depois, depa-
ram com este cenário: «Em baixo o jardim, bem areado, limpo e frio na sua
nudez de inverno, tinha a melancolia de um retiro esquecido, que já ninguém
ama: uma ferrugem verde, de humidade, cobria os grossos membros da Vénus
Citereia; o cipreste e o cedro envelheciam juntos, como dois amigos num ermo;
e mais lento corria o prantozinho da cascata, esfiado saudosamente gota a gota,
na bacia de mármore.» (Capítulo XVIII).
• D
ado que Maria Monforte surge aos olhos de Pedro como uma deusa, é possí-
vel associá-la à estátua de Vénus Citereia na sua primeira fase. É como se a
presença desta figura feminina fosse sugerida obscuramente no quintal do
Ramalhete, simbolizando a possibilidade de uma nova tragédia.
• C
om a vinda de Afonso e de Carlos para Lisboa, a estátua renova-se, passando a
simbolizar uma nova deusa que surge em Lisboa: Maria Eduarda. De notar, no
entanto, que, apesar da nota de alegria proporcionada pela referência ao renasci-
mento da estátua e à «cascatazinha deliciosa», a verdade é que o ambiente de
melancolia se mantém parcialmente, sendo sugerido pela comparação do cipreste
e do cedro a dois «amigos tristes» e pela alusão ao «pranto de náiade doméstica».
É possível, pois, considerar que se aponta desta forma para a presença de um
destino funesto, cuja ameaça, mesmo em momentos felizes, parece estar latente.
50
• Q
uando pratica o incesto, Carlos começa a sentir alterações na forma
como via o corpo de Maria Eduarda: fora aquele corpo dela, adorado
sempre como um mármore ideal, que de repente lhe aparecera, como
era na realidade, forte de mais, musculoso, de grossos membros de
amazona bárbara, com todas as suas belezas copiosas do animal de
prazer.» (Capítulo XVII). Esta imagem pode ser associada à que a
estátua tem no momento em que Carlos regressa ao casarão após o
seu abandono: «uma ferrugem verde, de humidade, cobria os grossos
membros da Vénus Citereia» (Capítulo XVIII).
3. A Toca
• O
nome «Toca» aponta para um espaço de proteção, imune às perturbações do
exterior. O próprio Carlos sugere que se lhe ponha «Uma divisa de bicho egoísta
na sua felicidade e no seu buraco: Não me mexam!» (Capítulo XIII). Com efeito,
os elementos perturbadores da relação (o artigo difamatório da Corneta do Diabo
e o encontro de Guimarães com Maria Eduarda e subsequentes revelações) pro-
vêm de Lisboa ou decorrem após Maria Eduarda regressar à Rua de S. Francisco.
No entanto, podemos ainda considerar que esta designação pode referir-se sim-
bolicamente uma relação de carácter animalesco, porque incestuosa.
• O
facto de Carlos introduzir «a chave devagar e com inútil cautela na fechadura
daquela morada», o que «foi […] um prazer» (Capítulo XIII), pode ser entendido
como um símbolo da relação sexual entre os dois amantes.
• Q
uanto ao quarto de Maria Eduarda, está carregado de símbolos que se assu-
mem como presságios do desfecho trágico desta relação amorosa. Em primeiro
lugar, temos a referência ao facto de a alcova se assemelhar ao «interior de um
tabernáculo profanado, convertido em retiro lascivo de serralho» (Capítulo XIII).
51
Tal como este lugar sagrado, também a relação de Carlos e de Maria Eduarda
acabará por perder a sua dimensão sublime e converter-se, após a descoberta
do seu grau de parentesco, numa ligação meramente sensual. O carácter ilícito
deste amor (não pela sua dimensão adúltera, mas pelo facto de os amantes
serem irmãos) é sugerido pela referência aos «amores de Marte e de Vénus»
(Capítulo XIII), bem como a Lucrécia Bórgia — figura histórica conhecida pela
luxúria e pelas relações incestuosas. A alusão a Romeu funciona também como
um indício de uma relação amorosa que culminará de forma trágica. Final-
mente, também a referência a S. João Batista aponta para a denúncia de uma
relação considerada, na época, incestuosa (dado que Herodes casara com a sua
cunhada — grau de parentesco equivalente, nesta fase, ao de irmã — e deseja
a enteada, Salomé). Os indícios de catástrofe são também reiterados pelo olhar
agoirento de uma coruja embalsamada. Finalmente, a insistência nas cores
amarela e dourada pode ser entendida como uma referência à vitalidade e ao
carácter ardente do seu amor, mas também à perversão que marca esta relação
amorosa, dado que a cor amarela pode também ter esta conotação negativa.
• N
a Toca, é posto em destaque um armário «“divino” do Craft, obra de talha do
tempo da Liga Hanseática, luxuoso e sombrio» e que «tinha uma majestade
arquitetural: na base quatro guerreiros, armados como Marte, flanqueavam as
portas, mostrando cada um em baixo-relevo o assalto de uma cidade ou as
tendas de um acampamento; a peça superior era guardada aos quatro cantos
pelos quatro evangelistas, João, Marcos, Lucas e Mateus, imagens rígidas,
envolvidas nessas roupagens violentas que um vento de profecia parece agitar:
depois, na cornija, erguia-se um troféu agrícola com molhos de espigas, foices,
cachos de uvas e rabiças de arados; e, à sombra destas coisas de labor e far-
tura, dois faunos, recostados em simetria, indiferentes aos heróis e aos santos,
tocavam, num desafio bucólico, a frauta de quatro tubos.» (Capítulo XIII).
É possível considerar os dois faunos como Carlos e Maria Eduarda, na medida
em que os amantes, tal como as figuras míticas, se entregam exclusivamente à
sensualidade, indiferentes a valores fundamentais representados pelas restan-
tes figuras: o heroísmo, a religião e o trabalho.
• De notar que no epílogo, quando Carlos regressa ao Ramalhete, verifica que
houvera «um desastre na cornija, nos dois faunos que entre troféus agrícolas
tocavam ao desafio. Um partira o seu pé de cabra, outro perdera a sua frauta
bucólica…» (Capítulo XVIII).
• Finalmente, destaca-se ainda, como «génio tutelar» (Capítulo XIII) da Toca,
«um ídolo japonês de bronze, um deus bestial, nu, pelado, obeso, de papeira,
faceto e banhado de riso, com o ventre ovante, distendido na indigestão de todo
um universo — e as duas perninhas bambas, moles e flácidas como peles mor-
tas de um feto.» (Capítulo XIII). Esta figura de contornos grotescos pode ser
considerada como um símbolo da dimensão monstruosa do próprio incesto que
será cometido naquele local.
52
João Christino, Lisboa, Avenida da Liberdade (litografia publicada na Mala da Europa, n.o 488, 1905).
• E
ça de Queirós revela-se exímio a compor descrições, tanto de espaços sociais
urbanos como de cenários campestres. No romance Os Maias, o narrador des-
creve a realidade social do seu tempo em vários lugares de Lisboa e arredores:
a casa dos Gouvarinho, o Hotel Central, o teatro da Trindade, o hipódromo, etc.
Por outro lado, demora-se também na caracterização de ambientes naturais,
como Sintra ou a Quinta de Santa Olávia.
53
• A
s descrições de lugares, personagens e comportamentos concretizam-se
em anotações que resultam sobretudo de observações do narrador. Tal significa
que o registo descritivo assenta em perceções visuais desses elementos;
ou seja, nesta obra de ficção, simula-se que o narrador caracteriza os espaços
e as figuras que, pretensamente, estaria a observar.
• E
ncontramos um exemplo de descrição pautada pela perceção visual no
seguinte passo do sarau da Trindade: «De ambos os lados se cerravam filas de
cabeças, embebidas, enlevadas, atulhando os bancos de palhinha até junto ao
tablado, onde dominavam os chapéus de senhoras picados por manchas claras
de plumas ou flores.»
• E
sta caracterização dos espaços, em que domina a técnica da verosimilhança,
procura representar os lugares «como eles são». Ela serve os princípios artísti-
cos e os objetivos do Realismo, pois, ao representar o mundo social, analisa-o
também socialmente.
utra técnica descritiva importante usada por Eça é a técnica impressionista.
• O
Como sucede na pintura do Impressionismo, neste tipo de descrição de lugares,
figuras e elementos dá-se maior relevo à luz e às manchas de cor de um
conjunto (uma paisagem, um pôr do Sol) do que à forma exata ou aos contor-
nos desses elementos. Veja-se como a cor e os reflexos de luz sobressaem
na representação da multidão e de outros elementos no episódio das corridas
de cavalos.
• H
á, no entanto, momentos d’Os Maias em que as descrições se destacam por
referências ou sugestões a sensações olfativas, auditivas e táteis. As sensa-
ções olfativas estão frequentemente associadas a cenários naturais e decorrem
das fragrâncias exaladas pela vegetação: «as chaminés […] ornavam-se de
braçadas de flores, como um altar doméstico; era ainda aí, nesse aroma e nessa
frescura, que ele gozava melhor o seu cachimbo» (Capítulo I).
• R
elativamente a perceções sensoriais auditivas e táteis, também elas podem
ser sugeridas na caracterização de cenários campestres, como os de Sintra
(Capítulo VII). Encontramos exemplos de tais caracterizações quando Carlos e
Cruges estão a chegar a Sintra: «envolvia-os pouco a pouco a lenta e embala-
dora sussurração das ramagens e o difuso e vago murmúrio das águas corren-
tes» (auditivo); e «o ar subtil e aveludado» (tátil). Desta forma se dá conta de
como o cenário envolvia plenamente e fascinava as duas personagens.
• E
m algumas descrições irrompe a sinestesia, ou seja, expressões em que se
cruzam ou se fundem diferentes perceções sensoriais: «transparentes novos
dum escarlate estridente» (visual e sonoro); «luz macia» (visual e tátil).
54
Ega/Raquel Cohen
paixão da vida de Ega acaba por ser o romance adúltero com Raquel Cohen,
• A
mulher do banqueiro Cohen.
• O
carácter ilícito desta relação, bem como o facto de os amantes se encontra-
rem na Vila Balzac, espaço cuja decoração — em tons de vermelho e tendo
como ponto fulcral o leito — é propícia à sensualidade, mostra que, tal como
sucedera com Pedro e Maria Monforte, também a paixão entre Ega e Raquel
Cohen é influenciada pelos ideais do amor romântico.
• E
sta relação termina no momento em que Cohen, descobrindo o adultério,
expulsa Ega. No entanto, este episódio — que poderia ter contornos trágicos
— acaba por ser investido de um tom grotesco, uma vez que, porque tudo
sucedeu num baile de máscaras, Cohen se encontrava vestido de beduíno e
Ega, de Mefistófeles. Além disso, Raquel é espancada pelo marido, mas acaba
por se reconciliar com ele.
• D
este modo, o único elemento sublime que acaba por restar desta relação
amorosa são as recordações de Ega, que este evoca junto de Carlos e Craft,
mas cujo dramatismo é, mais uma vez, diluído pelo facto de aquele se encon-
trar profundamente ébrio.
Carlos/Maria Eduarda
• A
pós uma relação fugaz com a condessa de Gouvarinho — que nutre por ele
uma intensa paixão não correspondida —, Carlos acaba por encontrar o grande
amor da sua vida em Maria Eduarda.
• T
odas as relações anteriormente referidas (Pedro/Maria Monforte, Ega/Raquel
Cohen e Carlos/condessa de Gouvarinho) contribuem para exaltar o carácter
sublime desta última relação amorosa.
• Com efeito, no amor de Carlos e de Maria Eduarda, não temos uma relação
marcada pela manipulação (como sucedera com Pedro e Maria Monforte) nem
pela superficialidade (como acontecia nos casos de Ega e Raquel Cohen e de
Carlos e da condessa de Gouvarinho). A paixão entre os protagonistas decorre
de uma sintonia de personalidades — já que ambos são inteligentes, cultos e
requintados — que os eleva acima da sociedade mesquinha em que vivem e
lhes permite superarem todas as contrariedades — até que um destino impie-
doso se abate definitivamente sobre eles.
55
• N
ão deixa de ser curioso o facto de Carlos, aquando da descoberta do seu grau
de parentesco com Maria Eduarda, considerar que tanto ele como a sua amada
eram seres profundamente racionais que conseguiriam facilmente sufocar os
seus sentimentos agora que sabiam ser irmãos. O desdém que mostra pela
mentalidade romântica rapidamente se desfaz no momento em que se revela
incapaz de contar a verdade a Maria Eduarda, acabando por ceder à tentação
e cometendo incesto voluntariamente.
• Assim, podemos verificar que também a relação amorosa entre Carlos e Maria
Eduarda é influenciada pelos ideais do amor romântico — de forma mais dra-
mática no momento do incesto, mas também pelo facto de ambos enfrentarem
as convenções sociais e decidirem ficar juntos (num primeiro momento, numa
suposta relação de adultério, num segundo momento, numa relação de aman-
tes, que se torna mais controversa pelo passado de Maria Eduarda).
• D
e facto, esta realidade é magistralmente sintetizada na fala de Ega, aquando
da sua última visita ao Ramalhete: «Que temos nós sido desde o colégio, desde
o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na
vida pelo sentimento e não pela razão…» (Capítulo XVIII).
2. A intriga trágica
• N
a Poética, Aristóteles afirma que as personagens da tragédia deveriam ter uma
condição elevada.
isto, de facto, o que sucede n’Os Maias: Afonso da Maia, Carlos da Maia e
• É
Maria Eduarda são personagens de condição superior não apenas pelo seu
estatuto de fidalgos, mas também (e sobretudo) pela nobreza do seu carácter.
Ainda que nenhuma destas figuras seja perfeita, a verdade é que todas têm
traços heroicos.
Afonso da Maia
• A
pesar de ter alguns traços de diletantismo (que o levarão a esquecer facil-
mente a dura luta travada pelos seus companheiros liberais em Portugal
enquanto vivia uma vida luxuosa em Inglaterra e a limitar-se a aconselhar Carlos
e os amigos a fazerem algo para mudar Portugal, ao invés de agir), Afonso da
Maia é uma personagem admirável.
• C
om efeito, apesar de os princípios morais o terem levado a desaprovar o casa-
mento de Pedro, quando este regressa, humilhado, após a partida de Maria
Monforte, o seu amor paternal leva-o a reconciliar-se com o filho e a apoiá-lo,
ao invés de o recriminar.
56
• A
lém disso, a sua enorme força interior é demonstrada pela capacidade de
sobreviver à morte do filho e de se dedicar com entusiasmo à educação do neto.
• F
inalmente, é uma personagem profundamente digna, que não se deixa sedu-
zir pelo luxo que Carlos tanto aprecia, vivendo de forma simples e austera.
À virtude da sobriedade acresce o facto de ser inteligente, culto e caridoso —
tanto com as pessoas, como com os animais.
Carlos da Maia
• A
pesar do carácter diletante, que prejudica os seus estudos universitários e,
após o regresso a Lisboa, o impede de concretizar os seus projetos no campo
da Medicina, Carlos é também uma personagem na qual ressaltam caracterís-
ticas positivas.
• C
om efeito, ao longo da intriga, destaca-se pela sua inteligência, cultura e sen-
tido de humor, assumindo uma atitude crítica e irónica em relação à sociedade
portuguesa.
Maria Eduarda
• A
pesar de as circunstâncias da vida a terem forçado a viver com Mac Gren
sem se casar e, posteriormente, a tornar-se amante de Castro Gomes, Maria
Eduarda nunca perde a sua dignidade.
• À
semelhança de Carlos e de Afonso da Maia, é inteligente e culta. Além disso,
herda de Afonso da Maia a capacidade de se compadecer dos mais fracos.
57
• E
ssa crónica de costumes que anima Os Maias decorre sobretudo em vários
lugares de Lisboa e dos seus arredores. Assim, a multiplicidade de espaços
físicos lisboetas — como o Hotel Central, o hipódromo, o teatro da Trindade
— constrói uma série de palcos onde podemos analisar os comportamentos de
grupos e figuras típicas da sociedade burguesa oitocentista: espaço social.
• Por seu lado, a organização temporal da narrativa é também complexa neste
romance. A narrativa inicia-se em 1875, quando Carlos da Maia se prepara
para vir viver para Lisboa; mas logo assistimos a uma retrospetiva (analepse)
que leva o leitor a conhecer a vida do avô e do pai do protagonista. Por outro
lado, o romance encerra com um epílogo que tem lugar dez anos após o desfe-
cho da intriga principal.
2. O título e o subtítulo
• O
título do romance, Os Maias, é uma referência direta à família fidalga, oriunda
do Norte do País, que ocupa uma posição central na narrativa. De facto, se
Carlos da Maia é a personagem nuclear da ação principal, a vida do seu pai e
do seu avô assumem relevância no romance. Aliás, o enredo d’Os Maias
remonta a algumas décadas anteriores ao nascimento do protagonista. A perti-
nência do título manifesta-se também no facto de os acontecimentos da intriga
principal, a relação incestuosa de Carlos e Maria Eduarda, serem uma conse-
quência dos infortúnios e dos desencontros dos membros da família Maia.
esse sentido, a obra enquadra-se na classificação de «romance de família»,
• N
porque faz desfilar nos dois capítulos iniciais, de forma resumida, a vida de
quatro gerações de Maias, representando os diferentes períodos do século XIX
português. Numa fugaz presença na narrativa, Caetano da Maia, adepto do
Absolutismo, manterá uma relação tensa (por questões ideológicas) com o seu
filho, Afonso, que defende as ideias do Liberalismo. Já Pedro da Maia, filho de
Afonso, representa a segunda geração liberal e a mentalidade romântica.
Por fim, Carlos da Maia aparece como um contemporâneo da Regeneração
(1851-1906).
• A
ssim, através das personagens desta família, equacionam-se questões da
época: a decadência, o progresso material, o rotativismo político, etc. Assim, até
certo ponto, a família Maia representa metonimicamente Portugal e a decadên-
cia da nação ao longo do século XIX.
• S
e o título aponta para a história de uma família, o subtítulo — Episódios da
vida romântica — abre o leque de possibilidades da narrativa para a tornar um
estudo da sociedade portuguesa (sobretudo) da segunda metade do século XIX.
Nessa medida, este subtítulo aponta para a crónica de costumes, que atravessa
o romance e se desenvolve a par da intriga principal. Nesse estudo da socie-
dade portuguesa analisam-se os comportamentos, os hábitos, as práticas de
um povo, a fim de denunciar e criticar os seus vícios, incongruências e falhas.
ma finalidade maior d’Os Maias, enquanto estudo social, é tentar compreen-
• U
der as «causas da decadência» do povo português no século XIX. Aliás, Eça de
Queirós planeara escrever um conjunto de doze novelas de cariz realista/natu-
ralista, que receberia o título de Cenas da vida portuguesa ou Crónicas da vida
sentimental, mas o projeto não foi concluído. Esta obra multifacetada comporia
um painel de retratos do Portugal de então e versaria temas como o alcoolismo,
o adultério, o jogo, o sacerdócio, etc.
58
59
• O
Portugal de Carlos é romântico porque herdou as ideias, os valores e as cren-
ças da segunda geração liberal e romântica e neles se fossilizou. Tipicamente
romântica é também a mentalidade pautada pelo tédio, pela ociosidade e pelo
diletantismo, que minam a existência das personagens desta obra.
• D
ecorrente desta ideia está a segunda explicação para a mentalidade romântica
do fim de século. A sociedade romântica é a sociedade liberal, dominada pela
burguesia e pelos seus valores: materialismo, mercantilismo, elitismo, (pseudo-)
requinte, o luxo, a monarquia. São estes valores decadentes, liberais, burgueses
— românticos! — que ainda conduzem a sociedade portuguesa e o grupo diri-
gente, condenando o País ao atraso e à pobreza (material e de espírito).
3. Linguagem e estilo
m termos de registos de linguagem, a prosa de Eça de Queirós revela-se
• E
admiravelmente versátil e maleável. Por um lado, no melhor registo literário e
elevado, atinge rasgos de grande beleza com a construção frásica elegante e
cuidada, as imagens plásticas sugestivas e o léxico erudito. Por outro lado,
sobretudo na reprodução das falas das personagens, recorre-se aos registos
familiar e corrente e, ocasionalmente, ao calão para reproduzir com naturali-
dade e humor os tiques de linguagem oral do português do fim de século.
• A
inda no que diz respeito à «reprodução do discurso no discurso», o discurso
direto dos diálogos e o discurso indireto livre (técnica em que a voz de uma
personagem e do narrador se sobrepõem) revelam-se estratégias ao gosto da
literatura realista na medida em que se colocam as personagens em interação,
de forma a exporem-se através do que dizem e a denunciarem o seu carácter,
incongruências e vícios, num processo de caracterização indireta em que a
personagem mostra o que é pelo que afirma e pela forma como afirma: Dâmaso
é boçal; Cohen, inculto; Ega, pedante; Palma «Cavalão», hipócrita, etc.
or outro lado, os recursos expressivos conferem originalidade e riqueza à
• P
prosa queirosiana. A ironia é um recurso expressivo cultivado por Eça, tanto
porque serve a crítica social como porque se trata de uma figura de estilo que
confere leveza, encanto e humor à narrativa. Este recurso expressivo revela-se
adequado para denunciar as contradições, as incongruências e as falhas das
personagens e dos comportamentos sociais.
• A
hipálage é outro recurso expressivo que se associa à prosa romanesca
de Eça, tendo em conta a elegância e a expressividade com que o romancista
a usou. A hipálage, recorde-se, consiste em associar uma palavra (normal-
mente um epíteto) não ao termo a que estaria naturalmente ligado mas a um
vocábulo vizinho: «Ega espalhava também pelo quarto um olhar pensativo» (era
Ega quem estava pensativo, não o seu olhar).
• A
comparação e a metáfora são recursos expressivos de capital importância
na caracterização de certas personagens e da vida lisboeta. Em tom irónico ou
trocista, na boca de algumas personagens a comparação e a metáfora são
formas de caracterização insultuosa: por exemplo, «a besta do Cohen».
Facilmente a ironia se associa à metáfora na caracterização de alguém, neste
caso, o conde de Gouvarinho, acerca de quem Ega diz: «— Tem todas as con-
dições para ser ministro: tem voz sonora, leu Maurício Block, está encalacrado,
e é um asno!…».
60
• N
outros casos, a comparação, a metáfora e as imagens tomam parte nas des-
crições artísticas de paisagens: «Iam ambos caminhando por uma das alame-
das laterais, verde e fresca, de uma paz religiosa, como um claustro feito de
folhagem.» Ou então, traduzem, de forma admirável, os estados de alma
humana, como no caso da metáfora: «os bigodes esvoaçando ao vendaval das
paixões». Para caracterizar o vazio existencial de Pedro da Maia, diz-se que,
para ele, «dias [são] taciturnos, longos como desertos».
• N
o seu período de maturidade literária, Eça de Queirós trabalhou o adjetivo
e o advérbio de forma artística e disciplinada, de modo a obter uma expressivi-
dade admirável. O adjetivo pode ser usado, em Eça, de forma surpreendente,
associando-se a elementos a que não se ligava semanticamente: «sorriso mole»,
«chiar lento das rodas». Nesses casos, projeta na frase a subjetividade e o juízo
do enunciador (narrador ou personagem). Os casos de adjetivação dupla
revestem-se de particular significado, sobretudo quando os adjetivos contrastam
entre si, associando o concreto e o abstrato, o físico e o psicológico, etc.: «maciço
e silencioso palácio», «uns sons de piano, dolente e vago». Alguns dos exem-
plos revelam que o adjetivo pode estar ao serviço da crítica.
• I gual função pode ser desempenhada pelo advérbio, sobretudo quando tem
uma presença inesperada e surpreendente na frase: «remexia desoladamente
o seu café». Aí o advérbio corresponde, como o adjetivo, a um comentário ou a
uma constatação do enunciador; noutras situações, desencadeia um efeito
humorístico. Significativos são os casos em que o advérbio contrasta com o
significado do verbo, como em «Dâmaso sorria também lividamente».
• O
verbo é outra classe de palavras trabalhada criativamente, produzindo em
vários passos combinações sugestivas e plenas de significado: «mordia um sor-
riso», «vamo-nos gouvarinhar», «Ega trovejou», etc. Por outro lado, tanto o pre-
térito imperfeito do indicativo, que alude a ações repetidas, como o gerúndio
conferem dinamismo às descrições. As formas verbais do imperfeito e gerúndio
funcionam também normalmente como modos de dar conta do valor aspetual
habitual ou durativo da ação: «o tédio lento ia pesando outra vez.»
• A inda no domínio do vocabulário, o texto d’Os Maias surge polvilhado de
estrangeirismos, que são criteriosamente usados. Assim, tanto o «anglicismo»
( vocábulo de origem inglesa) como o «galicismo» ou «francesismo» traduzem
frequentemente a pretensão das personagens em exibir um requinte, uma
modernidade e um cosmopolitismo, que, contudo, acabam por ser artificiais.
Vemos aqui o jogo das aparências em que a sociedade burguesa tanto se com-
praz. Por exemplo, no episódio das corridas de cavalos, o vocabulário deste
espetáculo tão pouco nacional é requisitado à língua inglesa: «jockey», «sports-
man», «handicap» ou «dead-beat». Não raro, o estrangeirismo é usado de
forma irónica, como o famoso «chique», de Dâmaso, que denuncia a sua sub-
missão pacóvia ao francesismo, o qual também marca presença no romance
para aludir a questões de moda e sociedade.
• P
or último, o diminutivo pode assumir vários significados: se em alguns casos
se trata de uma expressão de afeto («Carlinhos», «o latinzinho»), mais interes-
sante é a sua utilização irónica para depreciar ou ridicularizar alguém: «Dama-
sozinho, flor, fique avisado de que, de ora em diante, cada vez que me suceder
uma coisa desagradável, venho aqui e parto-lhe uma costela […].» O diminutivo
encarrega-se de participar na atitude trocista do narrador e de algumas perso-
nagens na crítica de comportamentos e de costumes.
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TEXTO CRÍTICO 6
ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 315
CÂNTICOS DO REALISMO.
O LIVRO DE CESÁRIO VERDE
• A
cidade surge como um espaço que se opõe ao campo. O espaço urbano é visto
como opressivo e destrutivo (por exemplo, nos poemas «Num bairro moderno» e «O
sentimento dum ocidental»), tanto para o sujeito poético como para os populares que
para aí se deslocam em busca de melhores condições de vida, na sequência do
enorme êxodo rural que ocorreu nesta época. Em contrapartida, o campo é perspeti-
vado como um local de liberdade — sendo que o espaço rural não é idealizado, mas
descrito de forma realista e concreta.
• M
esmo nos poemas que se concentram no espaço citadino, são feitas referências
frequentes ao campo — como que a lembrar que a vocação do ser humano se orienta
para uma vida harmoniosa e natural, que só no campo se encontra, e que a vida na
cidade o desumaniza. Deste modo, no espaço urbano há sempre um desejo de eva-
são para o campo.
• A
oposição cidade/campo alarga-se também ao campo amoroso: enquanto
a cidade está associada à ausência, impossibilidade ou perversão do amor, o campo
representa a possibilidade de vivência plena dos afetos.
• A
s próprias figuras femininas da obra de Cesário se associam a esta dicotomia: o eu
poético sente-se atraído por dois tipos opostos de mulher — a mulher fatal e a mulher
frágil e inocente. No primeiro caso, temos figuras femininas que se enquadram perfei-
tamente no espaço citadino (e que surgem, por exemplo, no poema «O sentimento
dum ocidental»). Pertencem a um estrato social superior ao do sujeito poético e osten-
tam riqueza e elegância. O desejo que estas mulheres suscitam no sujeito poético é
investido de ambiguidade, na medida em que a sua altivez, ao mesmo tempo que o
seduz, provoca nele um sentimento de revolta. No segundo caso, temos personagens
simples, inocentes, frágeis e desamparadas, que, pelas suas características, não se
enquadram no espaço urbano, visto como um local de corrupção (cf., por exemplo, o
poema «A débil»). Assim, ao contrário da mulher fatal, a vulnerabilidade desta figura
feminina desperta no eu o instinto de proteção, o desejo de se redimir das suas faltas
e de levar com ela uma existência honesta e tranquila.
65
• N
o que diz respeito aos tipos sociais representados na obra de Cesário, temos
claramente um sentimento de empatia do sujeito poético em relação aos ele-
mentos das classes mais baixas (cf., por exemplo, os poemas «O sentimento
dum ocidental», «Num bairro moderno» e «Cristalizações»). Com efeito, é feita
uma crítica às condições degradantes em que os elementos do povo viviam: as
varinas de «O sentimento dum ocidental» «apinham-se num bairro aonde miam
gatas / E o peixe podre gera os focos de infeção» (vv. 43-44) —, bem como à
exploração a que estavam sujeitos — os calceteiros são descritos, em «Cristali-
zações», como «bestas […] curvadas» que têm uma «vida […] custosa»
(vv. 61-62); quanto à vendedeira de «Num bairro moderno», é humilhada por
um criado que lhe «[a]tira um cobre ignóbil, oxidado» (v. 29) e se recusa a
pagar-lhe mais pela mercadoria.
• O
poema «Cristalizações» parece, num primeiro momento, contrariar este
sentimento de compaixão em relação aos elementos mais vulneráveis da socie-
dade. De facto, o eu mostra-se pontualmente satisfeito com a cidade mercantil
— isto é, com uma sociedade que se centra apenas no progresso a nível econó-
mico, ignorando as necessidades das classes mais desfavorecidas: «E engelhem
muito embora, os fracos, os tolhidos, / Eu tudo encontro alegremente exato»
(vv. 46-47). Contudo, esta perspetiva é posteriormente contrariada pela contem-
plação mais demorada dos calceteiros e pela reflexão sobre a dureza que marca
o seu percurso existencial. Assim, o sujeito poético acaba por mostrar a sua
admiração por estes trabalhadores: «Que vida tão custosa! Que diabo!» (v. 62).
• A
injustiça social denunciada na poesia de Cesário torna-se mais gritante pelo
contraste que nela se estabelece entre o labor permanente dos elementos do
povo, que é visto como a força ativa da sociedade, e o ócio que caracteriza as
classes dominantes. Com efeito, no poema «Num bairro moderno», a azáfama
da vendedeira e dos trabalhadores da cidade contrasta com a «vida fácil»
(v. 12) dos habitantes deste luxuoso espaço, que às dez da manhã ainda esta-
vam a começar a despertar. Também em «O sentimento dum ocidental» este
contraste é visível: a descrição dos trabalhadores que regressam a casa ao fim
da tarde e dos que se encontram ainda no local de trabalho torna mais gritante
a inatividade das classes dominantes, que jantam nos «hotéis da moda» (v. 28)
ou se entregam ao consumismo nas «casas de confeções e modas» (v. 107).
• C
esário Verde representa nos seus versos a cidade (e o campo) através do
registo de perceções sensoriais: embora predominem as referências visuais,
o eu lírico caracteriza também o espaço urbano pelas constatações que lhe
chegam através do ouvido, do olfato e do tato (cf. «O sentimento dum ocidental»
e «Num bairro moderno», nas páginas 278-283 do manual). Em várias situa-
ções essas sensações cruzam-se em sinestesias.
• A
caracterização da cidade é feita enquanto o eu lírico caminha pelas ruas,
anotando em movimento o que vê, ouve, cheira e sente. O facto de deambular,
de se deslocar no espaço, permite-lhe uma perceção dinâmica e um conheci-
mento mais completo da realidade urbana, na medida em que passa por vários
lugares e encontra diferentes personagens (cf. «A representação da cidade e os
tipos sociais», nas páginas 65-66 deste livro).
66
• N
a poesia de Cesário, há um sujeito poético que se encontra em permanente
deambulação e cujo olhar, à semelhança de uma câmara de filmar, vai cap-
tando imagens, como instantâneos cuja rápida sucessão é por vezes sugerida
através do recurso ao assíndeto (recurso expressivo que consiste na omissão da
conjunção coordenativa entre os constituintes, que se separam apenas por vír-
gulas). Assim, a visão desempenha um papel fundamental nestes poemas.
O próprio sujeito poético tem consciência deste facto, afirmando, no poema
«Nós»: «Pinto quadros por letras, por sinais.»
67
• N
o entanto, o sujeito poético não se limita a descrever objetivamente a realidade
que observa nas suas deambulações. A «luneta de uma lente só» («O senti-
mento dum ocidental», v. 85) pode ser entendida como uma metáfora de um
olhar criador, que tem o poder de transfigurar tudo o que o rodeia. É nesta
sequência que assistimos, por exemplo, ao aparecimento de um corpo formado
pelas frutas e pelos legumes da vendedeira no poema «Num bairro moderno»
— através do qual o sujeito poético como que reverte a humilhação a que esta
figura feminina é sujeita pelo criado, na medida em que substitui, por momen-
tos, todo o espaço citadino — bem como a exploração do campo que ele repre-
senta — por uma imagem associada à vitalidade do espaço rural. A realidade é
também transfigurada, no poema «Cristalizações», no momento em que o eu
configura as camisas dos calceteiros como uma bandeira, que se institui como
um símbolo de todo o sofrimento inerente à sua vida, funcionando, portanto,
como uma forma de denúncia das injustiças sociais. Finalmente, é possível
também considerar o momento de transfiguração das lojas que o sujeito poético
observa em «O sentimento dum ocidental» como um passo que tem subjacente
uma intenção crítica, dado que a sua configuração como uma imensa catedral
com diversas capelas pode ser interpretada como uma condenação da elevação
do consumismo à condição de algo sagrado.
• O
poema «O sentimento dum ocidental» foi publicado em 1880 no número
especial do periódico Jornal de Viagens, que nessa edição pretendia comemorar
o terceiro centenário do falecimento do autor d’Os Lusíadas. (Já aqui se vislum-
bra alguma ligação entre a composição de Cesário e a epopeia camoniana.)
• « O sentimento dum ocidental» é um poema longo que se centra na experiência
de vida na Lisboa da segunda metade do século XIX, como cidade ocidental
moderna, bem como nos sentimentos de melancolia, desânimo e até desespero
que tal vivência desencadeia.
• Quanto à estrutura externa, o poema encontra-se organizado em quatro partes,
cada qual com onze quadras, formadas por um decassílabo e três alexandrinos.
Na edição de O livro de Cesário Verde, as quatro partes receberam os títulos:
«Ave-Marias» (seis da tarde), «Noite fechada», «Ao gás» e «Horas mortas».
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1. Estrutura
esário Verde investe grande cuidado na busca da perfeição formal dos seus
• C
poemas. Essa é uma das razões que levaram alguns estudiosos a aproximar
a poesia deste autor da dos poetas do Parnasianismo (ver glossário).
• E
m termos de estrutura estrófica, Cesário recorre frequentemente à quadra,
sejam os poemas longos («O sentimento de um ocidental», «Nós») ou curtos
(«Sardenta»). Mas o poeta revela também o seu gosto pela quintilha (estrofe de
cinco versos), com que compõe «Cristalizações» ou «Num bairro moderno».
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2. Linguagem e estilo
• C
esário Verde inovou a literatura portuguesa, em fins do século XIX, ao trazer para
o domínio da poesia uma nova linguagem, menos retórica e menos elevada. Esta
coaduna-se com o tratamento original e novo de temas antigos (campo, mulher)
e modernos (cidade) e com o tipo de arte que o autor cultivava.
ma estranheza imediata que um leitor do século XIX teria sentido ao entrar na
• U
poesia de Cesário Verde emergiria do discurso pouco ornamentado e pouco
rebuscado que contrastava com a retórica pesada e sentimental de alguma
lírica romântica. Ao representar a realidade moderna da segunda metade de
Oitocentos, Cesário socorre-se de vocábulos e expressões da vivência citadina,
sobretudo a que se associa ao povo. E a poesia começa a ser frequentada por
termos que até então não tinham aí entrada, como «via-férrea», «varinas»,
«infeção», «esguedelhada», «macadamizada », etc.
• A lírica de Cesário Verde aproxima-se da prosa não apenas pelo seu tom
coloquial e antideclamatório mas também, e como vimos, pelo uso do verso
longo — como o decassílabo e o alexandrino e do encavalgamento.
• A
inda assim, a poesia de Cesário não é despida de recursos expressivos.
O poeta cultiva a comparação e a metáfora, em muitos casos, de forma a pro-
por semelhanças entre aspetos da cidade (e os seus habitantes) e outros ele-
mentos que dão sentido ou criticam: «Semelham-se a gaiolas, com viveiros /
As edificações», «Como morcegos […] Saltam de viga em viga os mestres car-
pinteiros», «Que grande cobra, a lúbrica pessoa», «E tem marés, de fel».
• A
lgumas metáforas têm uma natureza fortemente visual ou pictórica, decor-
rente do carácter descritivo desta poesia e de ela ter pontos de contacto com
a pintura; muitas destas ocorrências são mesmo imagens: «homens de carga»,
«Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero».
• T
ambém o recurso à enumeração se associa ao carácter descritivo de alguns
poemas de Cesário Verde («O sentimento dum ocidental», «Num bairro
moderno»). Nestas composições, o poeta elenca elementos do real, em muitos
casos de forma justaposta, para depois os analisar ou criticar: « Cercam-me as
lojas […] Com santos e fiéis, andores, ramos, velas.» As enumerações contribuem
para criar o efeito de que o eu poético procura representar a totalidade do real.
• J á a sinestesia (o cruzamento de perceções sensoriais de tipos diferentes)
resulta do processo de captação de sensações para a caracterização da vivência
de um lugar: «brancuras quentes», «luz macia» (visão e tato). Desta forma se
dá conta do modo complexo como alguém experiencia, por exemplo, a cidade
ou a relação com uma mulher.
70
• N
ão sendo um recurso muito comum, a hipérbole surge para representar de
forma expressiva e gritante alguns aspetos da cidade: «De prédios sepulcrais,
com dimensões de montes, / A Dor humana busca os amplos horizontes».
• É
de forma surpreendente e original que Cesário utiliza os adjetivos, sobretudo
quando surgem antes de nomes ou quando ocorrem em pares ou em grupos
de três: «E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, / Amareladamente,
os cães parecem lobos» («O sentimento dum ocidental»). A sucessão de quatro
adjetivos assume uma forte expressividade e representa uma tentativa de definir
com rigor o elemento que caracterizam. Como antecedem o nome, adquirem
um significado que vai para além do seu sentido literal.
• O
advérbio é também muito usado de forma surpreendente e, por isso, muito
expressiva: «Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes / E os ângulos agudos».
Nos versos «E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, / Amareladamente,
os cães parecem lobos», o advérbio traduz engenhosamente a condição faminta
e enferma destes animais que erram pela cidade.
• É
de forma muito criteriosa que Cesário seleciona os adjetivos e os advérbios
que utiliza. A subjetividade no uso destas classes de palavras representa, em
vários momentos, uma técnica da pintura impressionista aplicada à literatura.
Com o advérbio «amareladamente», a cor ganha importância e, como numa
tela impressionista, o elemento é retratado tal como o observador o perceciona
e nas condições (de visibilidade, do clima) que o rodeiam. Vejamos outros
exemplos do uso da técnica impressionista: «Mas, todo púrpuro a sair da renda /
[…] O ramalhete rubro de papoulas» («De tarde»), e «Mas, depois duns dias
de aguaceiros, / Vibra uma imensa claridade crua.» («Cristalizações»).
aproximação entre a poesia e a pintura afirma-se também pelo facto de
• A
Cesário explorar uma linguagem plástica, com um forte apelo visual, e cultivar
o recurso expressivo da imagem com um acentuado valor simbólico:
« C ercam-me as lojas, tépidas. Eu penso / Ver círios laterais, ver filas de
capelas.» («O sentimento dum ocidental») Ao observar uma realidade (a rua
iluminada pelas lojas), a imaginação leva-o a conceber uma outra cena (as
capelas, lado a lado, iluminadas): é claro que esta justaposição de elementos
convida a uma relação crítica entre ambos.
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