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sociais da diferença
Falar sobre os marcadores sociais da diferença num seminário que se propõe a pensar a
educação como abolição após os 130 anos da Lei Áurea nos obriga a pensarmos que diferenças hoje
marcamos socialmente para darmos conta de tornar inteligível a estrutura social, política e
econômica que este país produziu em sua história. Estrutura essa que se erigiu a partir exatamente
da produção de diferenças e desigualdades que, em larga medida, persistiram ao longo de nossa
história desde o nosso período colonial até hoje.
De fins do século XIX até meados do século XX a produção de intelectuais que construíram
um pensamento social brasileiro se debruçou sobre o trabalho de elaborar interpretações que
dessem conta de explicar a formação do Brasil e resultassem em modelos interpretativos da nação.
Não por coincidência. Desde a independência do país, passando pela abolição do trabalho escravo e
instauração de um regime republicano no século XIX, a ex-colônia precisou se pensar como Estado-
nação independente e viável. E precisou pensar a possibilidade de construir uma unidade nacional a
partir de um contingente populacional diversificado e desigual que deveria idealmente se
amalgamar e formar uma identidade homogênea. Um universo social diverso e desigual desde o
início da colonização e que assim permaneceu em função do processo colonial que engendrou
estruturas sociais que não foram plenamente desmontadas após a independência e a república.
Não devemos nos esquecer que a independência do país foi realizada pelas elites coloniais, o
mesmo ocorrendo com a república. A independência não aboliu o trabalho escravo, espinha dorsal
do sistema colonial, que persistiu até as vésperas da instauração da república, promovida pela
mesma elite branca de origem europeia, que continuou a se reproduzir no poder desde então. Fato
é que nunca desenvolvemos um sério e efetivo processo de descolonização no Brasil e nosso
contexto pós-independência pouco se caracteriza como de fato pós-colonial. Assistimos muito mais
uma persistência tardia das estruturas formadas nos primeiros séculos de nossa história. Construir,
nesses termos, uma nação e um Estado-nação moderno, fundado nas premissas do Estado de
Direito, foi e continua a ser uma difícil tarefa que todas as ex-colônias tiveram de enfrentar e ainda
enfrentam no mundo contemporâneo. Esses dilemas e contradições se expressam no pensamento
social produzido por intelectuais que se deram ao trabalho de pensar a nação nesses contextos e
isso não foi diferente no Brasil. Portanto, olhar para essa produção nos permite mapear e
compreender como foi se elaborando na história maneiras de se pensar e se legitimar a construção
da nação, seus termos e seus conflitos que produziram os diversos segmentos sociais no contexto
nacional brasileiro.
A partir das três últimas décadas do século XX assistimos na produção intelectual brasileira a
um movimento de abandono das grandes explicações que procuravam elaborar modelos gerais que
respondessem que país é este – uma exceção notável foi o empenho de Roberto Da Matta em
continuar se debruçando sobre essa questão. Esse refluxo do pensamento social brasileiro
aparentemente foi resultado dos problemas gerados pelos grandes modelos explicativos da nação,
dentre eles os usos ideológicos que se fez do chamado “mito das três raças” como fundamento de
uma brasilidade que deu margem a elaborações que sustentavam a existência de uma cordialidade
atávica e de uma democracia racial ontológica como traços que tornariam nossa nação única e
distinguível entre as demais. Opunha-se a essa perspectiva de cunho mais culturalista um
pensamento crítico que começou a tomar corpo na segunda metade do século XX e que procurou
pensar a sociedade brasileira a partir das divisões de classe, o que permitiu as primeiras
elaborações teórico-metodológicas que perceberam a íntima associação entre classe e raça no
contexto brasileiro. Foram nessa direção autores como Florestan Fernandes e outros vinculados à
chamada escola sociológica paulista.
É neste novo cenário que o debate em torno dos marcadores sociais da diferença se tornou
um dos pilares da nova política da diferença. Raça/cor, etnia, gênero, sexualidade e classe passaram
a ser categorias analíticas utilizadas para se compreender como as diferenças são dinamicamente
produzidas pela constante articulação e intersecção desses marcadores nos processos pragmáticos
que engendram socialidades em contextos plurais e complexos, tanto no Brasil quanto em outros
contextos nacionais. Essa abordagem construcionista e pós-estruturalista tem permitido superar
um dos principais problemas presentes nas perspectivas teórico-metodológicas que a antecederam,
qual seja, a noção de diferença como alteridade essencial e irredutível. Ao meu ver, é justamente a
crítica ao essencialismo que se constitui a principal contribuição dessa perspectiva ao debate
contemporâneo e à compreensão da diferença como resultante de processos históricos específicos
desenvolvidos em contextos particulares.
Por outro lado, temos que reconhecer que o racismo, o sexismo, a homofobia, o
etnocentrismo, o classismo e outros sistemas de classificação, dominação e produção de
desigualdades, que desde o início de nossa história estiveram presentes nas relações e instituições
que nos fundaram como país, fundam e atravessam nosso senso comum e nossas estruturas de
poder, incluindo o Estado, expressando-se de formas diversas, mas produzindo efeitos
semelhantes. Preconceitos e discriminações de diversas ordens produziram historicamente
violência, exclusão e apartação social de categorias marcadas pela diferença e pela desigualdade,
tornando-se estruturais e se reproduzindo socialmente. A persistência dessas desigualdades
históricas e a rotinização das experiências que elas replicam têm um importante efeito, que é o de
naturalização dessas diferenças e desigualdades. Por isso nem sempre percebemos quando e de
que maneira somos racistas, sexistas, etc.
Avtar Brah1 aponta que as diferenças se constituem como processos de diferenciação que
são contextuais, produzindo diferenças que se realizam como experiência, como relação social,
como subjetividade e como identidade. Ou seja, as diferenças não são dados essenciais de sujeitos
e coletividades, mas são experimentadas por eles como reais nos contextos em que são formuladas
e fazem sentido, produzindo os sujeitos, suas consciências de si e de mundo e suas maneiras de
atuarem nele. É assim que nos reconhecemos através das categorias que nos classificam,
reconhecemos os outros através das categorias que os instituem para mim e para si, agimos e nos
relacionamos através delas e as perpetuamos como realidade vivida individual e coletivamente
num dado contexto. Num contexto estruturado a partir de diferenças que se traduzem como
desigualdades, nos relacionamos com elas através dessa chave, perpetuando as desigualdades e os
tratos em relação a elas, produzindo e reproduzindo os sujeitos inscritos nas relações estruturadas
de dominação, discriminação, exclusão e violência. Tudo isso sem que necessariamente tenhamos
uma perspectiva crítica que problematize e desnaturalize essa estrutura, seus processos de
diferenciação e suas desigualdades.
1BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 329-376, jan./jun.
2006.
universidades públicas que atuam em favor do reconhecimento e valorização das diferenças,
produzindo mecanismos de acesso e permanência de segmentos historicamente excluídos dos
espaços universitários. Essas políticas transformaram gradualmente os espaços das universidades,
abrindo possibilidades para uma inusitada diversificação do corpo discente e docente que
impactaram e continuam a impactar os processos de ensino, pesquisa e extensão. Falo isso como
alguém que pôde assistir esse processo de transformação desde quando fui aluno de graduação
numa universidade estadual paulista na década de 1980, depois pós-graduando nas décadas de
1990 e 2000 na mesma universidade e atualmente docente numa universidade federal. Aqueles
que antes eram os objetos do saber produzido em universidades de viés elitista hoje são os sujeitos
desse saber num contexto em lenta, porém franca transformação.
Esse processo impôs a nós, que estamos inseridos nas universidades, desafios e tensões que
são novidades e que ainda estão demandando transformações que garantam a manutenção e
expansão dessas mudanças. Se hoje as universidades estão sendo pautadas pela diversificação –
que espero seja um processo sem volta, mesmo em tempos de retrocessos e ameaças às conquistas
históricas – torna-se necessária e premente a reflexão e ação para a compreensão e efetiva
inclusão das diferenças para superação das desigualdades. Tal inclusão só se dará se
descolonizarmos nossas escolas, nossas universidades e os corpos, saberes e sujeitos que nelas são
produzidos e reproduzidos. É assim que entendo ser possível pensarmos a educação como abolição,
que é a proposta do presente seminário. Temos, portanto, um importante momento para
escrevermos uma nova história em nosso país que aponte para a formação de uma sociedade mais
justa.
Tudo isso nos leva de volta ao ponto inicial da discussão aqui desenvolvida. Todas essas
formas de produzir, categorizar, marcar e combinar diferenças são resultantes dos processos
históricos que formaram nosso país, sua diversidade interna e suas desigualdades estruturais. É a
história da construção da nação e do Estado-nação, com suas raízes coloniais e persistência de uma
estrutura que nunca foi efetivamente desconstruída, mas sim habilmente reposta por nossas elites
na forma de um reiterado colonialismo interno, que sedimentou diferenças e desigualdades,
produzindo segmentos sociais marcados por elas. Reverter esse processo histórico para que
possamos inaugurar uma nova matriz de relações fundada no respeito à diferença e aos direitos
humanos depende de enfrentamentos articulados entre a sociedade civil organizada e o Estado,
instaurando políticas públicas que permitam essa transformação. A nós, no contexto de uma
universidade pública, cabe assumir o compromisso de uma transformação que pode e deve ocorrer
nos espaços que ocupamos através de políticas articuladas que promovam a inclusão, a equidade e
a descolonização que nossa primeira abolição falhou enormemente em promover.