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eISSN 2177-4307
DOI: 10.5654/actageo2012.0613.0002 ACTA Geográfica, Boa Vista, v.6, n.13, set./dez. de 2012. pp.21-32
RESUMO
O artigo aborda a problemática urbana e a problemática regional como dimensões da política do espaço. O
argumento central é que, do ponto de vista da genealogia, tanto o planejamento urbano quanto o planejamento
regional podem ser interpretados como expressões da política do espaço. Nesse sentido, a maior parte dos
modelos de planejamento urbano e planejamento regional tiveram como estratégia a naturalização do espaço, o
que implicou tanto na desconsideração de sua historicidade, quanto no escamoteamento dos conflitos resultantes
de sua produção, o que obliterou a dimensão política do espaço nas práticas de planejamento.
Palavras-chave: política espacial; planejamento urbano; planejamento regional.
ABSTRACT
This paper investigates urban and regional dimensions as expressions of spatial politics, based on a genealogical
perspective. Most models of urban and regional planning adopt a space naturalization strategy, implicating a
disregard for its history as well as a gradual disappearance of conflicts resulting from its production. This
naturalization has obliterated the political dimension of space in planning practices.
Keywords: spatial politics; urban planning; regional planning.
RÉSUMÉ
Cet article analyse la question urbaine et la question régionale en tant que dimensions de l'espace politique.
L'argument central est que, en termes de généalogie, Tant la planification urbaine et la planification régionale
peuvent être interprétés comme des expressions de l'espace politique. En conséquence, la plupart des modèles de
planification urbaine et de planification régionale a été comme stratégie la naturalisation de l'espace, ce qui
signifiait tellement ne pas tenir compte de son histoire, comme le camouflage des conflits découlant de leur
production, qui effacé la dimension politique des pratiques de planification de l'espace.
Mots-clés: la politique spatiale ; la planification urbaine ; l'aménagement du territoire.
da localização do complexo fabril e da primeiro foi a dispersão territorial, uma vez que
disciplinarização da força de trabalho, deixa o sistema de produção exigiu o rompimento dos
escapar à análise a dimensão territorial do muros medievais, seja na busca de energia ou
nascente processo de urbanização. Ao contrário mesmo matéria-prima nas minas, o que resultou
de uma cidade isolada, aparece um sistema numa rede densa de relações sociais e técnicas2.
territorial de redes de cidades e circuitos de O segundo processo foi a materialização da
produção e consumo. Vejamos como desigualdade regional no espaço intraurbano e
Hobsbawm (1982, p.223) descreve a cidade sua maior característica a concentração
inglesa: populacional e seu efeito nefasto da falta de
moradia. Não é por acaso que os cortiços
A grande cidade – quer dizer, um tenham tanto destaque na análise de Mumford
povoamento de mais de 200 mil,
(1998). O terceiro processo foi o conjunto de
incluindo um punhado de cidades
metropolitanas de mais de meio milhão respostas (normas, leis, códigos etc.) para
– não era exatamente um centro
intervir no espaço urbano. De modo geral, esses
industrial (embora contasse com um
bom número de fábricas), mas mais três processos, associados às discussões políticas
precisamente um centro de comércio,
do século XIX, geraram respostas de intelectuais
transporte, administração e uma
multiplicidade de serviços que uma engajados, políticos liberais, aristocratas,
grande concentração de pessoas atraía.
industriais etc. Ebenezer Howard é responsável
por uma das mais ambiciosas propostas de 22
A opinião autoriza a imaginar Londres
construção de cidades do período, porque
ultrapassando as vertentes do Tâmisa e por isso
propôs uma solução, ao mesmo tempo,
articulada com um sistema de transporte
sistêmica e romântica, ilustrada na seguinte
(ferroviário, por exemplo) que envolvia a
passagem:
transformação da matéria prima (seda, carvão,
cobre etc.) e o deslocamento de mão-de-obra.
... nossos belos campos, com sua
Engels (1985) fornece, para além de uma
cobertura celestial, o ar que os ventila, o
sistemática descrição das condições da classe sol que os aquece, a chuva e orvalho que
os umedecem – a verdadeira encarnação
trabalhadora inglesa, uma compreensão sutil da
do amor divino pelo homem – é na
forma espacial desse sistema, citando a verdade uma Chave Mestra, porque é a
chave do portal através do qual, mesmo
ampliação de canais, estradas e vias férreas
que apenas entreaberto, parecerá
como condição fundamental para integração do derramar-se um feixe de luz sobre os
males da intemperança. (Howard, 2002,
sistema capitalista de produção, motivo pelo
p.107).
qual o autor não reduziu sua analise à capital
vitoriana1. O cerne da proposta de Howard,
Em síntese, essa cidade que floresce no materializada nos Três Imãs, centrava-se numa
século XIX é palco de três processos de especial espécie de associativismo liberal. Sua Cidade
interesse para a análise da política do espaço. O Jardim, construída no espaço de
tal forma que as estratégias espaciais, ideias quanto na esfera da intervenção, afinal
travestidas de técnica neutra, manifestaram-se produzir espaço é também produzir
no espaço por meio das intervenções. A crítica representações sobre esse espaço. Tal política
de Lefebvre (1969, 1990b, 2008), excluindo-se o espacial envolve, em primeiro lugar, uma
sabor filosófico, faz par com aquela encontrada superestrutura ideológica capaz de reconhecer
no livro de Jacobs (2000), uma espécie de os problemas e intervir no espaço, de modo que
manifesto da densidade contra os métodos de o conjunto da população urbana, por exemplo,
re-urbanização e requalificação urbanas. Onde o reconheça essa política como necessária, motivo
urbanismo enxergava fluxos, Jacobs (2000) pelo qual as políticas de re-qualificação,
enxergou pedestres, crianças, idosos. Enquanto descentralização, moradia, saneamento,
os interventores advogavam a política de configurarem na agenda de intervenção como
vigilância para conter a violência, o olhar questões que fogem ao escopo ideológico, com a
feminino creditou às relações comunitárias uma justificativa que tais problemas inscrevem-se no
possível solução para problemas pontuais de âmbito técnico. Vejamos, por exemplo, a Carta
segurança pública. É assim que Jacobs (2000) de Atenas. A perspectiva de que a arquitetura
propôs, na melhor tradição de W. Benjamin, a determina o destino dos homens, a crença no
densidade de vida, ao contrário da Cidade zoneamento, na distribuição das densidades, na
Jardim de Howard, mas, principalmente, da funcionalização da vida corresponde,
Ville Radiose de Le Corbusieur. Essa crítica ao pontualmente, não ao desejo de uma nova 24
urbanismo também encontra respaldo na pena cidade, mas ao modelo de uma sociedade
de Debord (1997). Para esse autor: funcionalista, dominada por especialistas, linha
que coaduna com sua contemporânea matriz
O urbanismo é a realização moderna da fordista. Como consta na Carta de Atenas:
tarefa permanente que salvaguarda o
poder de classe: a manutenção da
atomização de trabalhadores que as A arquitetura preside os destinos da
condições urbanas de produção tinham cidade. Ela ordena a estrutura da
perigosamente reunido. A luta sempre moradia, célula essencial do tecido
travada contra todos os aspectos dessa urbano, cuja salubridade, alegria,
possibilidade de encontro descobre no harmonia são subordinados às suas
urbanismo seu campo privilegiado. decisões. Ela reúne moradias em
(1997, p.113). unidades habitacionais cujo êxito
dependerá da justeza de seus cálculos.
(1993, p. 92).
A crítica ao urbanismo, ao contrário de ser
vista como uma critica à ausência de uma
Não é por acaso que Harvey (2002), em
política do espaço urbano, recoloca para o
Condição Pós-Moderna, destine atenção às
debate exatamente o contrário, ou seja, sua
representações sobre a cidade e ao fordismo,
estreita vinculação com a política do espaço. O
como substrato para a emergência da condição
fato é que existe uma luta pelo monopólio da
pós-moderna. Os conjuntos habitacionais, a
política do espaço que tanto ocorre na esfera das
exemplo de Pruit Igoe, pautaram-se na
Alegre) esteve entre 7.247.27 habitantes por intervenção no espaço urbano. No caso do
Km2 e, desconsiderando Manaus, 1.349.85 planejamento regional clássico, as políticas
habitantes por KM2 (Brasil, 2009). Quando de infraestrutura (estradas, programas de
consideramos espaços regionais mais estocagem, açúdagem, eletrificação rural
amplos, a exemplo do semiárido brasileiro etc.) e fomento ao deslocamento de
ou mesmo as Sub-Regiões Estagnadas de indústrias motrizes, como estratégias de
Renda Média da Política Nacional de descentralização, foram mais comuns.
Desenvolvimento Regional (Galvão & Atualmente, seguindo a lógica dos arranjos
Vasconcelos, 1999), observamos, produtivos e valorização da escala local, é
predominantemente, densidades comum encontrar nos documentos
demográficas abaixo de 28 hab./km2, em referencias à transferência de renda,
espaços regionais marcados, educação ambiental e valorização das
fundamentalmente, por municípios com culturas locais, a exemplo dos territórios da
grandes extensões (especialmente no cidadania.
Centro-Norte brasileiro) e polarizados por
médias cidades, como destacado pelo estudo Essas três questões influenciam a percepção
Regiões de Influência de Cidades (Brasil, da estrutura de ação do quadro dos atores
2007). sociais na conformação da política do espaço e
serviram (e ainda servem), de certo modo, para 29
2. A técnica do zoneamento, desde o final operar uma separação formal entre a política do
do século XIX, passando pela Carta de Atenas espaço urbano e a política do espaço regional. É
até os atuais planos diretores como se existisse, em uma mesma formação
“participativos”, que também trabalham social, a separação entre a problemática urbana,
com lógica da distribuição das densidades e de um lado, e a problemática regional, de outro
regulação do uso do solo urbano, é lado. O primeiro passo para fugir desse jogo de
freqüentemente utilizada nas políticas aparências é identificar, a partir da escala, a
urbanas. Já na escala regional, a natureza da ação dos atores, pois essas escalas
regionalização, especialmente como não são naturais, não existem a priori. Brandão
ferramenta, para lembrar Ribeiro (2004), é (2007) considera que determinados atores tem a
utilizada pelos atores hegemônicos para propriedade de manejar as escalas e alerta:
distribuir as ações regionais, cujo clássico
exemplo é a regionalização da SUDENE. Nenhum recorte espacial é natural,
como querem os conservadores. As
escalas são construções históricas,
3. Na história das intervenções urbanas, econômicas, culturais, políticas e sociais
e, desse modo, devem ser vistas na
tradicionalmente, as políticas de habitação,
formulação de políticas. É preciso
saneamento e mobilidade formaram, por repactuar relações, reconstruir espaços
públicos e canais institucionalizados de
assim dizer, o tripé das políticas de
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