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Reflexões sobre o ensino de português para

falantes de outras línguas

Beatriz Daruj Gil


Rosane de Sá Amado
(Orgs.)

São Paulo
2012
Copyright © 2012 by autores

Editora responsável
Adélia Maria Mariano da S. Ferreira

Projeto gráfico e produção


William de Paula Amado

Revisão
Equipe de publicação do I EEPFOL

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP


G463 Gil, Beatriz Daruj, Org.; Amado, Rosane de Sá, Org.
Reflexões sobre o ensino de português para falantes de outras línguas. /
Organização de Beatriz Daruj Gil e Rosane de Sá Amado. – São Paulo:
Paulistana, 2012.
124 p.

I Encontro de Estudos de Português para Falantes de Outras Línguas


(EEPFOL), São Paulo, FFLCH-USP, 18 e 19 de novembro de 2010.

ISBN 978-85-99829-64-6

1. Língua Portuguesa. 2. Língua Estrangeira. 3. Aquisição do Português


como L2. 4. Ensino da Língua Portuguesa. 5. Aprendizagem da Língua
Portuguesa. 6. Formação do Professor-Pesquisador-Aprendiz. 7. Avaliação
de Aprendizagem. 8. Lexicografia. 9. Português Instrumental. 10. Linguagem
Lúdico-Teatral no Ensino de Língua Portuguesa. 11. Leitura em Língua
Portuguesa. 12. Literatura em Língua Portuguesa. I. Título. II. Gil, Beatriz
Daruj, Organizadora. III. Amado, Rosane de Sá, Organizadora. IV. EEPFOL.

CDU 811.134.3
CDD 469
Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino
SUMÁRIO

Apresentação ................................................................................................................................................................... 5

Vocabulário e ensino: uma análise léxico-semântica da canção


Batelaje, de Edvaldo Santana
Beatriz Daruj Gil ................................................................................................................................................................ 7

O gênero carta de pedido de conselhos nos lds de pfol


Luhema Santos Ueti ..........................................................................................................................................................13

O emprego de textos literários no ensino de


português para estrangeiros
Neide Tomiko Takahashi .................................................................................................................................................. 21

Língua e cultura no ensino-aprendizagem do português


brasileiro: visitas guiadas
Aparecida Regina Borges Sellan ........................................................................................................................................ 27

Valores culturais brasileiros no discurso publicitário:


a representação da família no texto multimodal
Maria do Carmo Branco Ribeiro .................................................................................................................................... 33

Enfoque interculturalista e textos multimodais na construção


de sentidos em histórias em quadrinhos nacionais
Maria José Nélo ................................................................................................................................................................. 39

Ensino de português l2 e produção de material didático-pedagógico:


formação continuada de professores xavante
Lucimar Luisa Ferreira ..................................................................................................................................................... 49

A produção textual em livros didácticos de português


língua estrangeira/português língua segunda
Madalena Teixeira ............................................................................................................................................................. 55

Aquisição do português como l2 por falantes de


espanhol e o modelo de ontogenia
Flávia Isabel da Silva Guimarães .................................................................................................................................... 62

Processos de ressilabação do português por aprendizes japoneses


Gustavo Massami Nomura .............................................................................................................................................. 68

Aspectos segmentais da pronúncia do português


por falantes nativos de inglês
Miley Antonia Almeida Guimarães ................................................................................................................................ 74

Aquisição dos tempos verbais do português no ensino de ple


Juliana Chaves Souza ....................................................................................................................................................... 80
Ensino e aprendizagem de morfologia verbal para estrangeiros
Maria Elizabeth Leuba Salum ................................................................................................................................... 87

Aulas de língua portuguesa para guarani/kaiowá:


desafios e possibilidades de ensino
Águeda Aparecida da Cruz Borges .................................................................................................................................. 96

Presença da história do Brasil nas aulas de português para estrangeiros:


uma experiência em sala de aula
Patrícia Regina Cavaleiro Pereira ................................................................................................................................... 103

Universidade, negócios, prazer: múltiplos territórios do ensino de PLE


Érica Lima ........................................................................................................................................................................ 106

A designação do nome «português» no espaço de enunciação argentino


Gabriel Leopoldino dos Santos ...................................................................................................................................... 113

A formação continuada de professores de ple no exterior


Patrícia Trindade Nakagome ........................................................................................................................................ 118
Apresentação

Os estudos de português para falantes de outras línguas têm se tornado cada


vez mais frequentes nas universidades brasileiras, de modo que publicações nessa área
servirão para registrar essas pesquisas, assim como incentivar o ingresso de jovens
pesquisadores na área.
A obra que aqui se apresenta, intitulada Reflexões sobre o ensino de português
para falantes de outras línguas, reúne em seus artigos um conjunto de reflexões sobre
o ensino de português segunda língua/língua estrangeira apresentadas, por meio de
comunicações orais, no I Encontro de Estudos de Português para Falantes de Outras
Línguas (EEPFOL), ocorrido em 2010, na Universidade de São Paulo.
Tratam esses artigos de temas diversos, a saber: ensino de português para ín-
dios; relações entre língua, cultura e ensino; aspectos da prosódia, da fonética e da
morfossintaxe; livro didático; formação de professores e produção de material didáti-
co.
Esperamos que esta publicação contribua para que práticas docentes e pesqui-
sas na área de português para falantes de outras línguas possam ser compartilhadas
entre professores, alunos e pesquisadores da área.

As organizadoras

5
VOCABULÁRIO E ENSINO: UMA ANÁLISE
LÉXICO-SEMÂNTICA DA CANÇÃO BATELAJE,
DE EDVALDO SANTANA
Beatriz Daruj Gil1

Resumo: Neste trabalho será apresentada uma análise léxico-semântica da canção Batelaje,
de Edvaldo Santana (2004), por meio de uma metodologia de análise semântica semasiológica,
em que as escolhas lexicais serão sistematizadas em campos semânticos com vistas a revelar
o tema do discurso. Pretende-se mostrar como essa análise pode integrar uma prática de
ensino de português para estrangeiros com ênfase no ensino do vocabulário.

Abstract: In this work it will be presented a lexicon-semantical analysis of the song Batelaje, by
Edvaldo Santana (2004), using a methodology of semasiologic semantical analysis in which the
lexical choices will be systematized in semantic fields aiming to reveal the subject of the song.
It intends to show how this type of analysis may be integrated in the teaching of Portuguese
Language for foreigners by emphasizing the importance of the learning vocabulary.

Os usos vocabulares resultam de escolhas realizadas no léxico, sistema linguístico que


reúne a experiência acumulada de uma sociedade, assim como suas práticas culturais.
São os enunciadores, por meio dessas escolhas, que, ao vivenciarem as permanentes
mudanças culturais e sociais, atuam no processo de reelaboração do léxico, levando
unidades lexicais ao desuso, à marginalização, ao desaparecimento e, principalmente,
a novas significações contextuais, caso em que agem sobre a área de significação das
palavras, criando a semântica da língua. (BIDERMAN, 2001)
Em seus usos lexicais, os enunciadores revelam que percebem, concebem e
interpretam a realidade de acordo com modelos taxionômicos da comunidade
linguística e cultural a que pertencem. Entretanto, como esses mesmos usos são
permanentemente renovados e contribuem para novas conotações de significados,
novas categorizações lexicais surgem, reajustando o sistema léxico da língua.
Para apreender o léxico de uma língua, será necessário observá-lo em sua atualização
discursiva, fase em que suas alterações categoriais são reveladas, tornando transparentes
os movimentos de evolução e transformação da cultura e da sociedade.
É também no discurso que se organizam as redes de significados lexicais ou
campos semânticos, seções do vocabulário que reúnem determinada experiência e
que são os principais responsáveis por definir os temas do discurso.

1 Docente do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo.

Beatriz Daruj Gil (p. 7-12) 7


Para Van Dijk (2001), os temas são significados globais estabelecidos pelos
interlocutores na produção e compreensão discursiva. Não estão explícitos, mas são
inferidos por meio de elementos textuais como títulos ou conclusões, por exemplo.
Submetidos ao controle dos temas, estão o que o autor chama de significados locais
que são resultado das escolhas lexicais realizadas em função da visão de mundo dos
enunciadores e ao mesmo tempo influentes nas opiniões e atitudes dos interlocutores.
Neste trabalho, trataremos do tema e da escolha lexical, por meio da análise
léxico-semântica de uma canção que pode integrar uma prática de ensino do léxico
de português para falantes de outras línguas, que seja orientada pelos usos discursivos
do léxico e que se organize em torno de um tema que servirá de elemento gerador e
organizador da aula.
A análise de um determinado tema e do léxico a ele subordinado pode ser feita
por meio da organização de campos semânticos que resultarão em uma visão mais
ordenada dos recortes culturais da língua-alvo.

Os campos semânticos
Por meio do estabelecimento de campos semânticos, pode-se verificar a inserção
do vocabulário da língua em uma estrutura, o que faz com que os campos sejam funda-
mentais para um estudo sistemático do vocabulário.
O campo lexical (que corresponde a campo semântico) é um paradigma formado
por lexemas que dividem uma zona de significação comum e se apresentam em oposição
uns com os outros (COSERIU, 1997). Pode também ser definido como paradigma formado
por um contínuo de conteúdo lexical, repartido em lexemas que se opõem entre si
pelos semas (VILELA, 1994).
A análise semântica de um conjunto lexical, realizada por meio do estabeleci-
mento dos campos semânticos, identifica o significado do léxico do corpus, eliminando
possíveis outros significados para iguais significantes, definindo assim a posição que
ocupam esses signos no sistema.
Quando a análise semântica feita por meio dos campos desloca-se do nível
do sistema para o do discurso, pode-se observar como o léxico organiza uma face da
experiência humana em uma determinada situação de enunciação, dando forma ao
pensamento humano, à cultura e à ideologia.

Lazer e trabalho da população de baixa renda:


tema e vocabulário na canção Batelaje
Para exemplificar a análise de um tema por meio dos campos semânticos,
escolhemos a canção intitulada Batelaje, de Edvaldo Santana, com o objetivo de verificar
como o vocabulário constrói na canção o tema Lazer e trabalho da população de baixa

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 8


renda. Para a delimitação das lexias (unidades do léxico atualizadas em discurso), foram
consideradas as lexias discursivas.
Dentre os tipos de lexias definidas por Pottier (1973), simples, composta, complexa
e textual, a lexia textual, considerada a que “chega a ser um enunciado ou um texto”
(POTTIER, 1978, p. 270) é a que mais se aproxima do que aqui se chamará de lexia
discursiva, um enunciado lexicalizado que compõe seu sentido em uma atualização
discursiva única.

Batelaje
Edvaldo Santana

Vou bater laje, chegado, no feriado


Vou bater laje, chegado, no feriado
Se você quiser chegar, é bem chegado
Se você quiser chegar, é bem chegado
No segundo andar vou morar, juntar os trapos
No segundo andar vou morar, juntar os trapos
Prometi pro meu amor aumentar o barraco
Prometi pro meu amor aumentar o barraco
Cerveja, carne de gato, farofa, areia no prato
Cimento, um balde de pinga, vamos tirar um retrato
Cerveja, carne de gato, farofa, areia no prato
Cimento, um balde de pinga, vamos tirar um retrato
Alho e limão para o santo tirar quebranto
Alho e limão para o santo tirar quebranto
Eu vou morar lá no alto, perto do santo
Eu vou morar lá no alto, perto do santo
(SANTANA, 2004)

O enunciador constrói o tema do lazer e trabalho da população de baixa renda,


por meio de três subtemas: construção de moradia, construção e alimentação e
sincretismo religioso, que consistem nos arquilexemas de três campos semânticos em
torno dos quais está organizado o vocabulário da canção e que podem ser visualizados
no quadro abaixo:

Beatriz Daruj Gil (p. 7-12) 9


Construção da Construção e
Sincretismo religioso
moradia alimentação
Batelaje Cerveja Alho e limão para o santo
Bater laje, chegado, no feriado Carne de gato tirar o quebranto
Chegar Farofa Vou morar lá no alto,
Bem chegado Areia no prato perto do santo
Segundo andar Cimento
Juntar os trapos Balde de pinga
Prometi pro meu amor
aumentar o barraco

No primeiro campo, Construção de moradia, com a lexia bater laje, o enun-


ciador faz um convite para que seu interlocutor participe da construção da moradia,
convidando-a a bater laje (construir coletivamente o segundo piso da casa) no feriado,
como se vê em vou bater laje, chegado, no feriado/ se você quiser chegar, é bem chegado.

O título da canção, formado pelo segmento verbal bate de bate(r) ( o r de bater


é extraído) e seu complemento laje, compõe um substantivo que nomeia o evento, o
Batelaje, visto no discurso como um processo que envolve construção, música, alimen-
tação, aliando lazer e trabalho. Os vizinhos se reúnem para construir o segundo piso
da casa em um evento onde há comida, bebida e música e que envolve a comunidade
local.
Ressaltam-se as escolhas derivadas de chegar, como chegado e bem chegado,
que, com diferentes formas gramaticais, constroem noções culturais significativas:
chegado, particípio substantivado, associa-se a outras variantes do português do Brasil
como meu chapa, mano, meu irmão, formas de chamamento encontradas com maior
frequência no discurso masculino e utilizadas, na maioria dos contextos, como forma
de aproximação entre as pessoas.
Essas formas léxico-gramaticais que constroem dados da cultura brasileira têm seu
sentido ampliado com a indicação, por exemplo, do valor afetivo que possui o verbo
chegar no português do Brasil, quando utilizado como sinônimo de vir em contextos
informais, como ocorre no discurso da canção em Se você quiser chegar, é bem chegado.
As lexias segundo andar, juntar os trapos e aumentar o barraco fazem-nos saber
que o aumento da moradia está associado ao aumento da família, já que o enunciador
pretende juntar os trapos e ir morar no segundo andar da casa que será construído no
Batelaje. Em famílias de baixa renda da periferia que vivem em casas construídas em
terrenos pequenos, é comum que, com o casamento, os jovens construam mais um
andar onde irão morar com o cônjuge
O segundo campo, Construção e Alimentação, reúne lexemas da construção
e da alimentação que se atualizam de forma misturada: a cerveja, a carne de gato e a

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 10


farofa são alimentos, mas o que está no prato é a areia da construção; o cimento e o
balde são usados para bater laje, construir, mas o que está no balde é a pinga. A mistura
da bebida e da comida do festejo com o material de construção reforça a relação entre
o lazer (o almoço e a bebericagem) e o trabalho ( a construção do segundo andar da
casa).
O campo do Sincretismo religioso também marca as escolhas discursivas da
canção. Em alho e limão para o santo tirar o quebranto, há referência às religiões de
origem africana e, em lá no alto, perto do santo, outra referência ao Deus cristão que
está no céu, expondo a mistura comum na prática cultural religiosa do povo brasileiro,
além das duas já mencionadas: a mistura do lazer com o trabalho na construção de
parte da casa que ocorre no feriado e a mistura mais simbólica entre a comida e o material
de construção.
O tema exemplificado com a canção revela uma das formas de habitar do povo
brasileiro, além de expor formas de lazer e dados da religiosidade de uma parcela da
população. Explora também o sincretismo no cotidiano do trabalho, no lazer e na
prática religiosa.

Considerações finais
Domínio da língua voltado à experiência, o léxico organiza e categoriza a realidade,
além de divulgar, em sua permanente reelaboração, todos os processos de transformação
social e cultural. As escolhas lexicais, depreendidas do acervo lexical da língua, revelam
visões de mundo de um enunciador e recortes de uma cultura.
Na prática de ensino do léxico do português, as unidades lexicais, apresentadas
em seu uso discursivo e no campo semântico, colaboram com a reflexão sobre o tema
a que está submetido o conjunto de lexias estudadas, levando o aluno a conhecer ou
reconhecer dada experiência cultural construída linguisticamente.

Referências
BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Fundamentos da Lexicologia. In:______. Teoria
Lingüística. Teoria lexical e computacional. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
COSERIU, Eugenio. Princípios de semântica estructural. Madrid: Editorial Gredos,
1977.
POTTIER, Bernard; AUDUBERT, Albert; PAIS, Cidmar Teodoro. Estruturas linguísti-
cas do português. 2. Ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973.
POTTIER, Bernard. Lingüística geral: teoria e descrição. Rio de Janeiro: Editora Presen-
ça/Universidade Santa Úrsula, 1978.
SANTANA, Edvaldo. Batelaje. In: Amor de Periferia (CD). São Paulo: Produção inde-
pendente, 2004.

Beatriz Daruj Gil (p. 7-12) 11


VAN DIJK, Teun Adrianus. La multidisciplinariedad del análisis crítico del discurso:
un alegato a favor de la diversidad. In: WODAK, Ruth y MEYER, Michael. Métodos de
análisis crítico del discurso. Barcelona: Gedisa, 2001.
VILELA, Mário. Estudos de Lexicologia do Português. Coimbra: Almedina, 1994.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 12


O GÊNERO CARTA DE PEDIDO DE
CONSELHOS NOS LDS DE PFOL
Luhema Santos Ueti1

Resumo: Com o desenvolvimento do Ensino de Português para Falantes de Outras Línguas


as publicações de livros didáticos (LDs) aumentaram, pois com eles, o “mesmo conteúdo”
pode ser ensinado a muitas pessoas. Pressupondo que a língua é aprendida por meio de
textos – objetos de estudo e pensamento (BAKHTIN, 2000), este trabalho analisa o gênero
carta de pedido de conselho em dois LDs de PFOL. Pretende-se observar a apresentação do
gênero, suas diferentes abordagens e como/se elas preparam continuamente os alunos para
o exame de proficiência Celpe-Bras.

Abstract: With the teaching of Portuguese to Speaker of Other Languages (PSOL) development,
the didactic book publications (DBs) had increased, therefore with them, the “same subject”
can be taught to many people. Estimating that the language is learned by means of texts -
objects of study and thought (BAKHTIN, 2000), this work analyzes the genre letter asking
an advice in two DBs of PSOL. There is an intention to observe the presentation of the genre,
its different boardings and how/if they continuously prepare the pupils for the examination
proficiency of Celpe-Bras.

Introdução
O ensino de português para falantes de outras línguas (PFOL) é uma área ainda
nova, no Brasil, no âmbito de pesquisas e projetos, mas seu surgimento se deu com a
colonização do país e com a catequização dos índios (ALMEIDA FILHO, 1992). Porém,
a partir da década de 1960 o ensino de PFOL tornou-se necessário para a expansão da
cultura brasileira e também para a inserção dos imigrantes no convívio social. Com a
crescente demanda desse ensino, houve um desenvolvimento, tanto na área de pesquisas
quanto nos suportes: foram criados livros e materiais didáticos
E é incontestável a utilização de livros didáticos (LDs) nas aulas de PFOL, e a
utilização deve-se a variados fatores que podem ser: flexibilidade dos LDs com relação
às diferentes características dos alunos; boa apresentação dos conteúdos programáticos;
o LD pode ser um facilitador para o trabalho do professor, entre outros.
Além da grande importância dos LDs nas aulas, acredita-se que seja de igual
ou maior importância o uso/ensino dos gêneros discursivos nas aulas, uma vez que,
segundo Bakhtin (2000), os gêneros devem ser o objeto de estudo de uma língua.
Acredita-se também que, para ter um ensino total de uma língua, é necessário
o ensino dos gêneros do discurso e das questões relativas ao enunciado e as diferentes
esferas da atividade humana, justificando assim, a relevância deste trabalho, pois será
1 Mestranda na área de filologia e língua portuguesa FFLCH/USP.

Luhema Santos Ueti (p. 13-20) 13


possível a identificação de como se dá o ensino dos gêneros no ensino de PFOL nos
LDs. Além disso, poderá ser observado nos LDs se o ensino parte da perspectiva
bakhtiniana ou se o texto é utilizado como objeto de ensino de gramática.
Com isso, o objetivo deste trabalho é analisar textos, do mesmo gênero discur-
sivo, porém pertencentes a dois diferentes livros didáticos de PFOL para que se con-
siga observar e descobrir como estão sendo ensinados os gêneros discursivos. Serão
analisados a seguir textos dos livros: Aprendendo português do Brasil: um curso para
estrangeiros de Larosa, Bara e Pereira (1993) e Falar... Ler... Escrever... português: um
curso para estrangeiros de Lima e Iunes (1999).

Um pouco sobre a história do PFOL no Brasil


Como já falado, o ensino de PFOL é uma área ainda muito nova, no Brasil,
começando com os jesuítas catequizando os índios e em uma data mais próxima,
após a assinatura da Leia Áurea e o fim da escravidão, muitos indivíduos de países em
crise, imigraram para o Brasil a fim de ter melhores oportunidades de trabalho e de
vida. Mas só em meados da década de 1960 que os estudos de ensino/aprendizagem
de PFOL começaram, contudo são nas décadas de 1980 e 1990, que tiveram o seu
desenvolvimento, com publicações de livros didáticos e as primeiras pesquisas em universi-
dades, como na Unicamp, com o primeiro livro com artigos, em 1989, e com as primeiras
dissertações em universidades: na PUC/SP (1985) e na UFPE (1986) (FURTOSO, 2001,
p.21). Foi também nessa década que muitas multinacionais se fixaram no Brasil, trazendo
consigo uma grande leva de estrangeiros.
E pode-se perceber que, no final da década de 1990, ocorreu um processo gradativo,
no qual foram criados livros e séries de materiais didáticos brasileiros, além da imple-
mentação de cursos em escolas de idiomas e centros de línguas de universidades e da
criação de um Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros – o
Celpe-Bras.
Mesmo com esse progresso do ensino de PFOL, ainda não há uma diretriz
curricular para essa disciplina, nem ao menos um documento que indique uma teoria,
como existe para o Ensino Fundamental (1998) e para o Ensino Médio (2006). E ainda
há muito que se estudar e pesquisar sobre o ensino de PFOL, principalmente nas questões
relacionadas aos livros didáticos de PFOL, pois há poucas publicações, muitas das
quais foram publicadas na década de 1990 e que não se modificaram ou atualizaram
seus conteúdos e metodologias.

Pressupostos Teóricos
Com base no corpus a ser analisado, a teoria que mais se adéqua a ele é a teoria
bakhtiniana dos gêneros do discurso, uma vez que o texto deve ser o objeto de estudo
de uma língua, acredita-se que o texto deve ser estudado e aprendido pelos alunos de

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 14


línguas, no caso, alunos de português como língua estrangeira ou segunda língua.
Seguindo este raciocínio, a teoria do russo Mikhail Bakhtin, é muito importante
e serve como base para este trabalho. Primeiramente, nos atemos a definição de gênero,
que não é somente tipos de textos ou classificações, mas sim, são formas de dialogar
entre a linguagem e a sociedade (BAKHTIN, 2000, p. 261):

Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem.


Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão
multiformes quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não contradiz
a unidade nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma de
enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes
desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as
condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu
conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos
lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua
construção composicional.

Sendo assim, os gêneros do discurso são tidos como “tipos relativamente estáveis
de enunciados que se elaboram dentro de determinada esfera da atividade humana”
(BAKHTIN, 2000, p.279) e todos os campos da atividade humana estão ligados ao uso da
linguagem pelos gêneros.
E, ainda seguindo a teoria bakhtiniana, temos a ideia do texto como objeto de
estudo e pensamento, (BAKHTIN, 2000, p.330)

O texto (oral ou escrito) como dado primário de todas essas disciplinas, e,


de um modo mais geral, de qualquer pensamento filosófico-humanista (que
inclui o pensamento religioso e filosófico em suas origens), o texto representa
uma realidade imediata (do pensamento e da emoção), a única capaz de gerar
essas disciplinas e esse pensamento. Onde não há texto, também não há objeto
de estudo e de pensamento.

Uma vez que, sem o texto não há objeto de estudo e pensamento, volta-se ao
fato de que, o objeto de estudo de um livro didático deve ser o texto, mas não como
pretexto para ensinar qualquer aspecto da língua, e sim como esse texto está inserido na
esfera da atividade humana e como ele faz a ligação entre essas esferas e a linguagem.
Além de ser a realidade imediata a qual o aprendiz necessita conhecer para entender
não só a língua de determinado país, ou nação como é através do texto, que o aprendiz
poderá conceber o seu conhecimento cultural de determinada sociedade.
Com isso, tem se alguns questionamentos: os textos, nos LDs de PFOL, e as
atividades a eles relacionadas podem levar o aluno a aprender os gêneros como forma
de interação entre sociedade e linguagem ou são utilizados como exemplificadores de
questões gramaticais? Partiremos para a análise dos textos, para entendermos como

Luhema Santos Ueti (p. 13-20) 15


é feito o estudo dos gêneros dentro dos livros didáticos de português para falantes de
outras línguas.

Análise de dados
O gênero a ser analisado nos LDs de PFOL será o a “carta de pedido de conselhos”,
nome proposto por Cristóvão et al. (2006) e que está inserido no cotidiano do brasi-
leiro: em revistas, emails, jornais, entre outros suportes.
O primeiro livro analisado é: Aprendendo português do Brasil: um curso para
estrangeiros no qual foi encontrado apenas um texto do gênero já citado, na unidade 12,
que enfoca o ensino da gramática com o uso do subjuntivo e do futuro do pretérito.
Além da carta de pedido de conselho, encontra-se na mesma página outro gênero –
envelope – os dois lados de um envelope com o endereçamento e o remetente. Além
dos gêneros citados, encontram-se mais duas atividades, uma de compreensão de texto e
a outra é uma proposta para a elaboração de uma resposta a carta de pedido de conselhos.
Pode-se notar que há as referências relativas ao emissor e o receptor do texto (leitora da
Revista Cláudia e à Revista Cláudia, respectivamente), mas não há nenhuma referência
ao gênero estudado, nem tampouco ao gênero envelope. Observa-se então que, o texto
é usado como pretexto para o ensino de gramática e a prática de estruturas ligadas à
gramática da unidade vigente, uma vez que não há nenhuma referência sobre a escrita
de uma carta de pedido de conselhos, suas características ou tampouco a esfera de sua
circulação.
Seguindo com as análises, o outro livro utilizado na pesquisa é: Falar... Ler...
Escrever... português: um curso para estrangeiros, e nesse livro foi encontrado, também,
apenas um texto do gênero requerido, mas como uma carta-resposta de pedido de
conselho, que está na unidade 18 a qual também enfatiza a gramática com os conteúdos
de tempos verbais: subjuntivo e futuro do pretérito. Na mesma página, encontramos
outro texto, que seria a carta-resposta à resposta do pedido de conselho recebida. Há
referência sobre os emissores das cartas e os receptores (ambos: Susana e Laura). Pode-
-se observar também que não há atividades referentes a esses textos, nem referência
ao gênero dos textos. Há outro texto que tem ligação com os dois textos já citados,
pois trata-se de uma carta ao marido, referente aos conselhos recebidos, nesta carta, o
aluno deve completar com os verbos nos tempos verbais aprendidos nesta unidade do
livro. Mais uma vez, o texto serve de pretexto para o ensino de gramática, mesmo que não
seja utilizando exemplos nas explicações e o gênero de nenhuma forma é apresentado
ao aluno.

Considerações finais
De acordo com as análises feitas, pode-se notar que o texto é utilizado como
pretexto para o ensino de gramática, e podem ser encontradas algumas referências

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 16


implícitas como o emissor e o receptor do texto, além da utilização de atividades
somente de compreensão do texto.
Outra questão a ser pensada é o aparecimento desse gênero somente em livros
da década de 1990, levando supor que, possivelmente, os LDs atuais possam apresentar
os textos e os diversos gêneros de uma forma diferenciada.
Portanto, cabe ao professor que utiliza esses materiais, apresentar as características
dos gêneros vistos nos LDs, como também o possível trabalho com textos autênticos,
que possam suprir a carência do aprendizado dos gêneros discursivos e suas esferas,
para quem sabe, obter-se um ensino/aprendizado contínuo e preparatório para o exame
Celpe-Bras.
Fica o anseio de novas pesquisas relacionadas a teoria dos gêneros discursivos e
os LDs de PFOL, uma vez que esse trabalho é apenas um começo de uma longa pesquisa.

Referências
ALMEIDA FILHO, J.C.P. ; LOMBELLO, L.C. (Org.). Identidade e caminhos no ensino
de português para estrangeiros. Campinas: Pontes, 2005.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal.
São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 261-333.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações Curri-
culares para o Ensino Médio. Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. V.1. Brasília:
MEC, 2006.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
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CRISTÓVÃO, J. et al. Cartas de pedido de conselho: da descrição de uma prática de
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LAROCA, M.N.C; BARA, N.; PEREIRA, S.M.C. Aprendendo português do Brasil: um
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FURTOSO, V. A. B. Português para falantes de outras línguas: aspectos para a forma-
ção do professor. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Estadual de
Londrina, Londrina, 2001.

Luhema Santos Ueti (p. 13-20) 17


Anexo A – Texto do livro: Aprendendo português do Brasil:
um curso para estrangeiros (1993)

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 18


Anexo B – Textos do livro: Falar... Ler... Escrever... português:
um curso para estrangeiros (1999).

Luhema Santos Ueti (p. 13-20) 19


Anexo C- Texto do livro: Falar... Ler... Escrever... português:
um curso para estrangeiros (1999).

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 20


O EMPREGO DE TEXTOS LITERÁRIOS NO ENSINO
DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS
Neide Tomiko Takahashi1

Resumo: Um dos impasses para o aproveitamento de textos literários no ensino de português


como língua estrangeira (PLE) está na dicotomia língua/ literatura. Com isso, seu percurso
didático revela-se oscilante, ora valorizando a compreensão escrita, ora servindo como pretexto
para exercícios. O propósito deste artigo é mostrar um breve histórico do emprego desses
textos no interior das principais abordagens de ensino de línguas estrangeiras. A finalidade é
investigar como eles têm sido utilizados e que formas de conhecimento podem propiciar na
aquisição do português do Brasil.

Abstract: One of the dilemmas to make use of literary texts when teaching Portuguese as a
Foreign Language (PLE) is the dichotomy language/ literature. As a result, its didactic path
proves to be variable, sometimes enhancing the reading comprehension, sometimes serving
as a pretext to practice exercises. The purpose of this article is to present a brief account
concerning the use of these texts within the main approaches of foreign languages teaching.
The objective is to explore how they have been used and what kind of knowledge they can
provide along with the acquisition of Brazilian Portuguese.

Descrever o papel dos textos literários no processo de ensino-aprendizagem do


português para estrangeiros não é tarefa simples. Usualmente, nota-se uma bipartição
língua/ literatura que parece ser o centro das dificuldades em seu emprego no ensino
de línguas.
Quanto à constituição literária, apesar de a palavra “literatura” trazer uma gama
de significações, suas perspectivas históricas propiciam duas referências de base. Uma
etimológica, de origem latina (HOUAISS; VILLAR, 2009), que significa escritura (a
arte de escrever) e outra mais abrangente que se valorizou a partir da segunda metade
do século XX, quando o termo “literário” passou a ser reconhecido em todo e qualquer
uso estético da linguagem (NATUREL, 1995), incluindo seu valor sociocultural.
Muito mais do que uma dicotomia, esse duplo aspecto é o que proporciona uma
condição de ensino com textos literários, pois permite ao aprendiz de língua estrangeira
o contato com estruturas simples ou complexas da língua ao mesmo tempo em que
valoriza a percepção dos diversos contextos que formam a presença do homem com
sua realidade: aprender uma língua é apreender o uso de seu sistema bem como seus
modos de comunicação e expressão, dentro dessa coexistência de funções interativas.

1 Doutoranda em Filologia e Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo. Bolsista Capes.

Neide Tomiko Takahashi (p. 21-26) 21


Acrescente-se a isso o caráter autêntico dos textos literários por tratar-se de
um documento que foi publicado sem fins didáticos (CUQ, 2003, p. 29).
Tal autenticidade ocupa um lugar privilegiado há tempos. A literatura sempre
foi parte integrante no ensino de uma língua estrangeira, ora como componente cultural,
ora pela intenção em assimilar conhecimento por meio de obras de outras civilizações.
Devemos considerar ainda que a leitura de textos literários é, para o aprendiz, marcada por
elementos reconhecíveis, uma vez que os padrões de composição, com seus enunciados e
construções já apreendidos na língua materna, permitem identificá-los como uma
convenção coletiva.
Quanto à questão de linha metodológica, a utilização de textos junto ao ensino de
línguas sempre esteve imbricada às abordagens. Termo amplificado para os pressu-
postos teóricos de aprendizagem que incluem os métodos2, as abordagens atualmente
são compreendidas em seu conjunto de normas para elaboração de um curso ou material
didático, apresentação e organização de aspectos da língua.
Com a finalidade de ilustrar o aproveitamento dos textos literários no interior das
abordagens, o quadro a seguir foi organizado com base nas descrições das sete principais
metodologias (Natural; Gramática-Tradução; Leitura-Tradução; Direta; Áudio-oral; Audio-
visual e Comunicativa), bem como na condensação de informações enfatizadas por Besse
(1985) e também citadas pelos outros autores de referência – Puren (1993), Leffa (1988),
Germain (1983) e Rivers (1975) – por serem considerados os mais representativos ao
longo da história. Esse traçado é necessário para entendermos o percurso das várias fases
por que passou o texto literário.3

2 De fato, abordagem ou método por vezes são utilizados como sinônimos, porém Almeida Filho (1993)
e Leffa (1988) fazem uma distinção especial: a abordagem confere um sentido mais “abrangente e englo-
ba os pressupostos teóricos acerca da língua e da aprendizagem” (LEFFA, 1988, p. 212).
3 Observe-se que o estudo atento do termo genérico “textos”, apesar de parecer amplo, revelou-nos que
o texto literário está inserido em cada um de seus domínios.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 22


A Abordagem utiliza para o ensino
livros e textos de leitura escolhidos pelos alunos,
Natural da compreensão escrita
concebidos como elementos extralinguísticos
exercícios de tradução e versão de textos literários, da cultura e da língua. O
Gramática-
com estudos da gramática, da história literária, texto literário é considerado
Tradução
estilística, história política, entre outros superior à língua oral
trechos escolhidos e textos autênticos, sob forma
da habilidade em leitura na
Leitura-Tradução original ou adaptada, questionários baseados em
língua estrangeira
textos3
do sentido de frases e textos;
a compreensão global; textos (autênticos) parciais
da literatura, como uma forma
ou obras completas dos grandes escritores de valor
Direta cultural entre outras, e da
literário, humano ou social, representativos da vida
prática linguística e para o
e pensamento do povo estrangeiro
enriquecimento interior
da compreensão escrita, não
Áudio-oral compreensão e expressão oral de textos como um elemento cultural,
mas uma sequência didática
documentos autênticos variados, incluindo
Audiovisual cultural
poemas e trechos de obras literárias
das habilidades comunicativas,
e estimula a abordagem com documentos
Comunicativa no sentido de interacionais e
autênticos variados, incluindo os textos literários
interculturais

A maneira como cada abordagem teórica foi organizada, à primeira vista delimitada
de forma clara, não pode ser aferida como uma estrutura linear rígida. É preciso notar
que não há uma fronteira marcada entre o início de uma abordagem e o fim de outra,
mas um conjunto de técnicas e procedimentos específicos em oposição de uns para
outros que, ao longo do tempo, foram adotados isoladamente ou em conjunto. Nesse
sentido, o que realmente prevalece é a ênfase dada à abordagem de cada período e não
a abordagem de uma metodologia singular. Mesmo Besse (1985) trata de esclarecer
tal ponto, afirmando a constituição eclética de cada método em uma combinação de
atitudes, saberes e procedimentos.
Puren (1993) trabalha com a ideia de cruzamento de linhas metodológicas em
um determinado ponto, a “encruzilhada de métodos” e, nessa perspectiva, a ideia da
ênfase também se mantém. Assim, o texto literário nunca desapareceu de circulação,
ele sempre esteve presente nos chamados estudos de tradução, leitura, civilização, cultura
ou de textos; o que se alterava era o tratamento (enfoque) dado nas aulas e materiais
de língua estrangeira.
Ao integrar o uso de textos literários no ensino de PLE, torna-se necessário
delinearmos ainda um panorama histórico dessa área para elucidar as abordagens no
cenário brasileiro.
Quanto à tradição do ensino de línguas estrangeiras, ela remonta ao século
XVI e ocorria nos colégios jesuítas e seminários onde se ensinavam o Latim e o Grego
para poucos (ALMEIDA FILHO; LOMBELLO, 1992). Um marco importante para o
ensino menos elitista foi a criação do Ministério da Educação na década de 1930. Nessa

Neide Tomiko Takahashi (p. 21-26) 23


época, surgem as primeiras universidades modernas4 brasileiras, onde há uma valori-
zação das línguas estrangeiras junto às preocupações iniciais referentes ao ensino de
português para estrangeiros. A aprendizagem de línguas era restrita à abordagem da
Gramática-Tradução.
Antes da década de 1950, mesmo em português como língua materna, nem a gramática
da fala brasileira fazia parte da maioria das escolas nem a literatura nacional era amplamente
estudada nas faculdades brasileiras.
Se fizermos uma síntese das informações de Almeida Filho (1992, 1993) sobre
as abordagens do ensino de línguas no Brasil, encontraremos estes dados:
• décadas de 1960 e 70 – busca pelos melhores métodos e recursos para se ensinar
uma língua. Predomínio do behaviorismo.
• década de 1980 – a importância do aprendiz em contraposição ao professor e seus
métodos. A abordagem comunicativa absorve o cognitivismo e o humanismo.
• década de 1990 – interesse por descrição e interpretação do que se ensina e
aprende em sala de aula. Interação no ensinar e aprender, desenvolvendo a
consciência da linguagem.
Vale lembrar que, no âmbito do PLE, tanto a abordagem de ensino quanto a
preocupação em relação aos materiais inscrevem-se no Brasil a partir de 1960. E, nessa
década, o ensino de português para estrangeiros funcionava precariamente, havia o
predomínio do Áudio-oral (Audiolingual) e os materiais didáticos eram criados no
exterior, especialmente nos Estados Unidos.
Entre os anos de 1970 e 1980, a forma estrutural e os padrões behavioristas ainda
mantinham seus conceitos e práticas. Somente na década de 1980 é que as noções de
competência comunicativa foram inicialmente abordadas de forma representativa e os
primeiros manuais didáticos legitimamente brasileiros foram produzidos (ALMEIDA
FILHO; LOMBELLO, 1992, p. 12-13), abrindo novos rumos e possibilidades no processo
de ensino-aprendizagem de línguas, inclusive com o reforço dos materiais autênticos.
Embora o texto literário possa ser considerado um documento autêntico, é
necessário lembrar que atualmente ele é um dentre os vários suportes pedagógicos
existentes. Na França, por exemplo, outras formas de contato direto com a língua,
além da literatura, já eram uma preocupação desde os anos de 1920 em reação aos
textos fabricados (associados à Abordagem Direta). Essa busca por materiais autênticos
ressurgiria na década de 1970, inicialmente como auxiliar efetivo da Abordagem Audiovisual
– que demonstrou sua fragilidade sem a exploração de materiais complementares – e depois,
como fator de revalorização do elemento cultural no ensino de línguas (PUREN, 1988).
Tal fator logo ressoou no Brasil na década de 1980, em meio à entrada da Abordagem
Comunicativa, ainda com certa desorientação inicial no trabalho para o desenvolvimento
das habilidades linguísticas, especialmente para as propostas relacionadas à compreensão
4 Luiz Antônio Cunha (2000) especifica tal surgimento em 500 anos de educação no Brasil.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 24


da escrita literária, uma vez que o enfoque oscilava entre a competência oral e o ensino
da gramática “situacional”.
A utilização do componente literário estava então, de certa forma, desprestigiada
à época da inserção desses outros documentos (textos jornalísticos, publicitários, institu-
cionais, entre outros) na sala de aula, pois a literatura ainda era associada à prática da
abordagem da Gramática-Tradução, cujas bases, por sua vez, remontavam à metodologia
de ensino de línguas antigas (latim e grego) e eram calcadas nos trabalhos de tradução
e versão, com explicações sistemáticas de gramática e da biografia dos autores.
Nesse aspecto, é preciso alinhar ainda outra vertente cronológica: até meados
do século passado, o autor era a figura central e centralizadora no que dizia respeito ao
texto literário, deixando para o leitor a tarefa de descobrir o sentido exato para aquilo
que escreveu.
Até a década de 1980, tal texto era considerado a finalidade na aprendizagem
de uma língua, ou seja, ao final do curso e somente nos estágios mais avançados, os
alunos seriam capazes de ler os grandes autores, observando-se os seguintes itens: nos
anos de 1960, o enfoque era ainda centrado no autor e, nos de 1970, sob influência do
estruturalismo, era ancorado no documento escrito.
Foi preciso esperar até o período de 1990 para a renovação do emprego de tais
textos no ensino de línguas sob um novo olhar. Esse renascimento ocorreu gradati-
vamente a partir dos trabalhos de Jauss (1978) na chamada “Estética da recepção”5,
valorizando o reconhecimento do papel ativo do leitor capaz de construir sentidos.
Tendo em mente que essa tendência comunicativa de ensino coincidiu com as
teorias da leitura e com o novo perfil do leitor, reafirmou-se também por aqui a premissa
de que o aprendiz-leitor não é mais considerado um elemento passivo que recebe estímulos
externos; mas um ser criador e ativo que utiliza os conhecimentos de sua experiência pessoal,
de sua visão de mundo para participar da construção de saberes.
Atualmente, com base em informações de Puren (1988), Besse (1985), Germain
(1983) e Rivers (1975), podemos reafirmar que não houve um descaso total pela leitura
de textos literários, mas uma grande ênfase nas investigações de novas abordagens para a
comunicação que pudessem suprir as lacunas deixadas pela Gramática-Tradução. Lacunas
que dizem respeito especialmente a aspectos da habilidade oral.
No contexto brasileiro do ensino de PLE, não podemos igualmente falar de forma
categórica em abandono do texto literário, pois além de as metodologias não possuírem
uma linha rígida de uma época a outra, os primeiros materiais didáticos de grande consumo
foram produzidos no período em que a abordagem comunicativa entrava com força no
país, já direcionando os principais livros que atualmente ainda estão em circulação.

5 A estética da recepção surgiu em 1967, com a publicação da aula inaugural de Hans Robert Jauss, na
Universität Konstanz: A história da literatura como provocação à ciência da literatura. (JAUSS et al., 1979).

Neide Tomiko Takahashi (p. 21-26) 25


A categoria de documento autêntico de valor sócio-histórico faz que a adoção do
texto literário marque presença, ainda que mínima ou dispersa, nesses materiais didáticos
e muitas vezes determina seu emprego nos programas de cursos de PLE.
Sobre isso, vale lembrar que uma das questões ainda raramente estudadas por
pesquisadores de PLE refere-se ao papel do texto literário em seu processo de ensino-
-aprendizagem. Ao final, é comum encontrarmos referências que façam menção genérica ao
emprego de textos na construção de sentidos e experiências compartilhadas, mas verifica-se
a necessidade de novos rumos e pesquisas acerca do assunto dentro de uma perspectiva
interacional.

Referências
ALMEIDA FILHO, J. C. P. Dimensões comunicativas no ensino de línguas. Campinas:
Pontes, 1993.
ALMEIDA FILHO, J. C. P.; LOMBELLO, L. C. (Org.). Identidade e caminhos no ensino de
português para estrangeiros. Campinas: Pontes, 1992.
BESSE, H. Méthodes et pratiques de manuels de langues. Didier/Crédif, 1985.
CUQ, J.-P. (sous la direction). Dictionnaire de didactique du français. Asdifle:Clé
International, 2003.
GERMAIN, C. Évolution de l’Enseignement des langues: 5.000 ans d’histoire. Clé
International, 1983.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. (Org). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa 3.0. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2009. 1 CD-ROM.
JAUSS, H. R. Pour une esthétique de la récèption. Paris: Gallimard, 1978.
JAUSS, H. R. et al.; A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Coord. e trad.
Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
LEFFA, V. J. Metodologia do ensino de línguas. In: BOHN, H. I.; VANDRESSEN, P.
Tópicos de linguística aplicada: O ensino de línguas estrangeiras. Florianópolis: UFSC,
1988. p. 211-32.
NATUREL, Mireille. Pour la littérature. De l’extrait à l’oeuvre. Paris: CLE International,
coll. Didactique de langues étrangères, 1995.
PUREN, C. Histoire des méthodologies de l’ enseignement des langues. Paris: Nathan-Clé
International, Coll. DEL, 1988.
______. La didactique des langues étrangères à la croisée des méthodes. Essai sur
l’ecletisme. Saint-Cloud : Crédif/Didier, 1993.
RIVERS, W. M. A metodologia do ensino de línguas estrangeiras. Trad. Hermínia S.
Marchi. São Paulo: Pioneira, 1975.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 26


LÍNGUA E CULTURA NO ENSINO-APRENDIZAGEM DO
PORTUGUÊS BRASILEIRO: VISITAS GUIADAS
Aparecida Regina Borges Sellan1

Resumo: O trabalho situa-se na área de língua, cultura e sociedade. Trata de visitas guiadas
como extensão da sala de aula no ensino de PLE em contextos sócio-interacionais. Justifica-se
devido a experiências com estrangeiros, nível intermediário, na aprendizagem do português
brasileiro. As dificuldades apresentadas são culturais no uso de expressões lingüísticas. O
sucesso da atividade refere-se à adequação do uso lexical e gramatical em contextos sócio-
-interacionais; explicitação de implícitos em expressões lingüísticas e experiências pessoais
com dados culturais importantes para o aluno.

Abstract: The work insert in language, culture and society. These guided tours as an extension
of the classroom teaching of PLE in socio-interactional. Justified the experiences with foreigners
intermediate level, learning Brazilian Portuguese. The difficulties presented are cultural in
the use of linguistic expressions. The success of the activity relates to the suitability of using
lexical and grammatical socio-interactional, explanation of implicit linguistic expressions
and personal experiences with cultural data important to the student.

Introdução
Em razão da grande demanda, nos últimos anos, para o ensino-aprendizagem
de português no Brasil, tem ocorrido também uma grande necessidade de pensar
estratégias adequadas para atender às necessidades de alunos estrangeiros que, por razões
diversas – ou de trabalho ou de estudos- têm buscado aprender a língua e a cultura
brasileiras. Por essa razão, muitas pesquisas vêm sendo realizadas com preocupações
não apenas voltadas para aspectos teóricos, mas, também, metodológicos.
Por se tratar de uma atividade ainda incipiente, observamos indefinições a respeito
de quais caminhos devemos adotar para tornar sua prática realmente efetiva, no sentido de
propiciar ao aprendiz estrangeiro sucesso no novo aprendizado e ao professor certeza
da tarefa bem realizada. Tais indefinições podem ser constadas em relação à pedagogia
adotada, à teoria subjacente, aos temas abordados, ao material didático preparado,
entre os quais a seleção do livro didático e à proposição de atividades extra-sala de
aula que complementem conteúdos e oportunizem ao aluno experienciar o que lhe
é apresentado nas aulas. Assim, este trabalho tem por objetivo apresentar resultados
obtidos com a realização de atividades propostas a alunos estrangeiros, em nível inter-
mediário, denominadas por mim de visitas guiadas.

1 Mestre e doutora em Língua Portuguesa pela PUC-SP. Docente do Departamento de Português, da PUC-SP.
Vice-coordenadora do NUPPLE — Núcleo de Pesquisa Português Língua Estrangeira do IP-PUC-SP.

Aparecida Regina Borges Sellan (p. 27-32) 27


Algumas premissas teóricas
Partimos do princípio que o ensino-aprendizagem de uma nova língua não
deve estar circunscrito apenas ao desenvolvimento de conhecimentos sobre o sistema
da língua alvo, mas deve focalizar outros conhecimentos relacionados também à
aquisição da oralidade e escrita, aos atos de fala, às condições de produção discursiva,
à organização textual, aos usos de argumentos, à seleção e emprego lexicais e às visões
sócio-histórico-culturais. É nesse sentido que esta proposta considera o conhecimento
e preparo do aluno, seu interesse e objetivo para aprender a nova língua, pois nossa
experiência tem demonstrado que quanto maior o grau de interesse, de disposição
e necessidade de permanência no país e de, por meio do uso da língua portuguesa,
realizar negócios ou progredir nos estudos e nas relações que estabelece, maior é a
facilidade de o aluno aceitar desafios e resolvê-los com adequação. Percebemos que
os problemas relacionados ao linguístico são, de certa forma, solucionados, pois os
conhecimentos que possui sobre o sistema lingüístico de sua língua materna são aliados
para o novo aprendizado. No entanto, as questões que extrapolam esses aspectos,
aqueles que resvalam na identidade e no cultual são o maior entrave.
Por essa razão, a proposta de atividades como as visitas guiadas tem se mostrado
muito adequada e motivadora tanto para o aluno quanto para o professor. Por visitas
guiadas devemos compreender aulas que acontecem fora do ambiente escolar e com
preparação e orientação do professor. Assim, são sugeridos passeios a locais estratégicos
e representativos ou da história ou da cultura brasileiras, tais como museus, igrejas,
monumentos históricos, parques, restaurantes com comidas típicas, espaços com shows
de dança e músicas característicos, feiras livres e mercados. Para tanto, o professor
deve se colocar não na condição de guia turístico que deve mostrar o que é tido como
monumentos da história e da beleza do país, mas, com uma orientação pedagógica,
deve apresentar tais monumentos como representações identitárias de um povo e, de
algum modo, levar o aluno-aprendiz a estabelecer relações do novo com o velho, isto
com seus conhecimentos sobre seu mundo, de forma a se reconhecer no que o outro -o
novo- tem de igual ou de diferente do seu universo, sem que haja, nesse procedimento,
a intenção de aculturação.
Nossa atividade está pautada especificamente em duas abordagens: a intercul-
turalista e a comunicativa.
A abordagem Interculturalista, primeiramente proposta por proposta por Silveira
(1988, p. 18), considera que ensinar/aprender outra língua não é sobrepor a cultura da
língua alvo à cultura de origem do aluno; pelo contrário, na medida em que ele é levado
a assimilar a cultura da nova língua, enriquece-se, pois é, ao mesmo tempo, levado a
tomar consciência de suas próprias identidades. Assim, alargamos esses conceitos ao
considerar que nas interações interpessoais e interculturais é possível verem-se revelados
aspectos da cultura de um individuo ou grupo de indivíduos – sua história, suas crenças,
costumes idéias, valores.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 28


Visto que há uma enorme diversidade de culturas, conseqüentemente, os alunos
perceberão as expressões de um povo através de diversos sistemas, pois todos possuem
emoções, desejos, idéias, valores; a forma de expressá-los, no entanto, não é a mesma.
Essas diferenças são identificadas nas representações edificadas e colocadas em forma
de aula pelas visitas guiadas.
Na abordagem interculturalista, é também importante pensar o conceito de
cultura. Bennett (1998) estabelece uma distinção entre dois tipos de cultura: a objetiva
e a subjetiva. A objetiva está relacionada aos sistemas social, econômico, político e
linguístico, presentes na arte, na literatura, na música, entre outros, cujos conheci-
mentos fazem parte da cultura geral de cada um. O autor esclarece que entender a cultura
objetiva, ainda que crie conhecimento, não é suficiente para gerar competência. A
cultura subjetiva está relacionada a características psicológicas de um grupo social,
isto é, está relacionada a seu modo de pensar e agir, como “os modelos de crenças,
comportamentos e valores apreendidos e compartilhados por grupos de pessoas que
interagem entre si.” (BENNETT, 1998, p.3)
Acreditamos que as visitas guiadas, focalizadas pela cultura subjetiva, preparadas
pelo professor com fins pedagógicos, pode demonstrar aos alunos estrangeiros como as
representações pelos monumentos materiais e imateriais podem explicitar a maneira
que os indivíduos do grupo social da nova língua pensam, fazem julgamentos, expressam
suas crenças, retratam sua história, uma vez que a diversidade na cultura subjetiva está
arrolada a vários aspectos, entre os quais, o regional, o social, o socioeconômico, o
religioso, o referente ao gênero etc.
Quanto à abordagem comunicativa, consideramos com Hymes (1979, apud
MOROSOV; MARTINEZ, 2008, p. 42) a junção de quatro outras competências realizáveis
simultaneamente pelos falantes; são elas: discursiva, gramatical, estratégica, sociolin-
guística. Nesse sentido, para afirmarmos que alguém tem competência comunicativa,
este deve saber quando falar, quando não falar, com quem falar, onde falar, de que
maneira falar e, a partir do que conhece, sobre o que falar (daí a importância do
conhecimento sobre as coisas relativas à nova língua).
Nessa mesma linha, Morosov e Martinez (2008, p. 19) remetem-se a Winddowson
(1991) ao afirmar que, quando aprendemos uma língua, não aprendemos somente
a compor e a compreender sentenças corretas como unidades linguisticas isoladas,
aprendemos também a usar sentenças de maneira apropriada para nosso propósito
comunicativo.
É nesse sentido que a abordagem comunicativa integra a estratégia proposta para
a atividade das visitas guiadas, pois, como esta abordagem está voltada para a comunicação,
exige do professor um planejamento de situações de comunicação real, dentro e fora da
“sala” de aula, fazendo com que o material didático se integre na categoria do autêntico, a
fim de viabilizar a expressão do aluno mais próxima do real e do natural possível.

Aparecida Regina Borges Sellan (p. 27-32) 29


À guisa de exemplificação
A atividade com visitas guiadas, realizadas com alunos de procedências diversas,
vem sendo realizada pelo NUPPLE – Núcleo de Pesquisa Português Língua Estrangeira
– do IP-PUCSP. Para sua realização, os alunos, do nível intermediário, são preparados
a partir da apresentação de textos, imagens, músicas, relatos sobre o local a ser visitado,
a fim de fazê-lo antever a visita. Este primeiro passo permite que o aluno crie uma
expectativa sobre a experiência, antecipe curiosidades, formule hipóteses, e até pesquise
com o objetivo de adquirir condições de melhor explorar e interagir no passeio.
O segundo passo diz respeito à preparação do professor que deverá planejar o
que e como explorar a atividade. Assim, é extremamente importante que ele conheça o
espaço, sua história, características, seu estilo; em síntese, tudo que for relevante sobre
o ambiente visitado para “fazer o outro saber” a fim de torná-lo – o aluno- capaz de
interagir e integrar-se plenamente na atividade.
Para este trabalho, selecionamos, de acordo com o espaço permitido, como
exemplo e em forma de síntese, uma situação: uma visita ao Centro Velho de São Paulo,
com ênfase no Pátio do Colégio.

Pátio do Colégio

Todo o percurso foi realizado segundo orientação do professor, desde a saída


de frente à Igreja da PUC, passando pelo transporte coletivo – metrô e ônibus – até a
chegada ao ponto marcado e, depois, o retorno ao local de partida.
Durante o trajeto, o professor procurou explicar o modo como o brasileiro –
de modo geral, uma vez que em São Paulo encontram-se pessoas de todas as regiões
do Brasil – se comporta ao se locomover de um lado para o outro, utilizando-se dos
transportes público.
Ainda durante o trajeto, criou condições para responder às indagações dos alunos
sobre os fatos que lhes chamaram atenção, por exemplo, o comércio informal, os pregadores
religiosos que tomam os logradouros, as apresentações dos artistas populares que cantam,

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 30


dançam, fazem malabarismos etc., os modos de vestir, os diferentes falares que ouvem;
em fim, os alunos foram orientados a observar, registrar, formular perguntas, e, até,
buscar saber dos transeuntes informações.
Chegando ao Pátio do Colégio, o professor estimulou os alunos a observar o
entorno a fim de que eles registrassem suas percepções, antes que ele – o professor –
começasse a sua aula.
Assim, foi possível resgatar para eles questões históricas e culturais que envolvem a
fundação da cidade de São Paulo. Em se tratando de ser o marco inicial da cidade, fez-
-se necessário esclarecer o porquê da escolha incidir sobre o ponto alto de uma colina
e a presença de dois importantes rios – Tamanduateí e Anhangabaú – não só para a
época da fundação da cidade, mas ainda nos nossos dias; a escolha do local para iniciar
a catequização dos indígenas, constituindo-se, desde então, como discurso fundador
eclesiástico que marca fortemente a identidade cultural dos brasileiros; as mudanças
sofridas ao longo dos séculos, como o fato de ter sido sede do governo paulista entre
os anos de 1765 e 1908 – como Palácio dos Governadores; e o fato de o antigo casarão
colonial ter sido completamente descaracterizado por reformas no século XIX e, depois,
em 1954, quando foi derrubado e reconstruído no formato atual. Ao lado das infor-
mações históricas, também foram destacados os valores arquitetônicos e culturais do
Pátio do Colégio.
Devemos enfatizar que as reações dos alunos foram as mais diversas, pois ao se
apresentar o Pátio do Colégio como uma representação histórica do “antigo”, de algo
construído no ano de 1554, esse fato causou muita estranheza, pois ao compararem
com os marcos de fundação de seus países de origem, aqueles são, por vezes, milenares,
como a Itália e a Dinamarca. Assim, o que para nós é considerado “velho”, “antigo”, para
eles nem tanto, uma vez nosso país, com quinhentos anos, é muito jovem, na avaliação
deles. Outro fator que causou estranheza diz respeito à imposição religiosa católica e
o fato de saber como se deu a catequização dos índios, mesmo para o aluno italiano,
cuja visão religiosa católica é mais marcada.
É interessante ainda mencionar que, à princípio, parece-lhes que seria apenas
uma visita a pontos turísticos, com valores que meramente revelariam o poderio das
classes mais abastadas. No entanto, qual não foi a nossa surpresa ao verificar as expectativas
trazidas por eles, ou seja, eles esperavam ver, na Catedral da Sé e no Largo e na Igreja de
São Bento, a mesma representação das igrejas européias. Isto porque, conforme sabemos,
a maioria das igrejas da Europa, por exemplo, da Itália, da França, entre outras, constitui-
-se numa representação semelhante à dos museus, nos quais é possível admirar as
obras mais valiosas como representação do poder, do domínio e da ideologia das épocas
de suas criações e que se perpetuam ao longo dos tempos. Esta constatação foi um
grande diferencial que resultou na compreensão, para eles, da importância histórica e
ideológica do espaço por eles visitado. De certa forma, possibilitou-lhes refletir sobre
a forma de representar também seus marcos históricos e suas culturas.

Aparecida Regina Borges Sellan (p. 27-32) 31


Conforme já dissemos, tratar de interculturalidade não significa aculturação do
outro, mas dar a ele oportunidade de refletir sobre sua própria cultura. As discussões,
as reflexões, as comparações resultantes deste passeio permitiram aos alunos repensar
suas histórias, rever as ideologias subjacentes aos discursos fundadores que guiaram
e continuam guiando seus procedimentos, dando-lhes identidade com suas origens.
De modo geral, a visita guiada é uma atividade muito bem aceita pelos alunos.
Durante todo o percurso, a interação e a comunicação são motivadas de modo espontâneo,
entre os próprios alunos e entre os alunos e o professor. A atividade que dá sequência à
visita tem por objetivo recuperar, pelo relato oral e escrito, as impressões individuais, as
quais são posteriormente colocadas para o grupo, a fim de criar estratégias de comparação,
descrição e argumentação sobre os pontos de vista surgidos com as exposições. Assim,
torna-se possível tratar do léxico, da gramática, do texto, do discurso, dos atos de fala.

Referências
BENNETT. M. J. Intercultural communication: acurrent perspective. In: ______. Basic
Concepts of intercultural communication: selected readings. Yarmouth, Intercultural
Press, 1998.
MOROSOV, I. e MARTINEZ, J. Z. A didática do ensino e a avaliação da aprendizagem
em língua estrangeira. Curitiba. IBPEX, 2008.
SILVEIRA, R. C. P. (Org.) Português Língua Estrangeira: Perspectivas. São Paulo: Cortez,
1998.
WINDDOWSON, H. D. O ensino de língua para comunicação. Trad. José Carlos Paes
de Almeida Filho. Campinas: Pontes, 1991.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 32


VALORES CULTURAIS BRASILEIROS NO DISCURSO
PUBLICITÁRIO: A REPRESENTAÇÃO DA FAMÍLIA NO
TEXTO MULTIMODAL
Maria do Carmo Branco Ribeiro1

Resumo: Anúncios publicitários podem ser usados como material autêntico em ensino de PLE
com enfoque interculturalista, na medida em que partem das cognições sociais, construídas a
partir de valores culturais e ideológicos. Um estudo da construção multimodal – enunciado
lingüístico e texto imagético – propicia ao professor de PLE reflexões sobre valores implícitos
culturais brasileiros, tais como a composição da família e o papel que nela ocupa a mulher.

Abstract: Commercials can be used as authentic material for teaching PLE focusing
interculturalist, in that depart from social cognitions, constructed from cultural and
ideological values. A study of multimodal construction - linguistic utterance text and imagery
- provides to the PLE teacher reflections on implicit Brazilian cultural values, such as family
composition and the role that it occupies the woman.

Este artigo está situado na Análise Crítica do Discurso com vertente sócio-
-cognitiva (van DIJK, 2004) e semiótica social (KRESS; van LEEWEN, 1996) e tem por
tema os implícitos culturais presentes em anúncios publicitários, em interface com
textos multimodais. Os anúncios publicitários podem ser considerados pelos professores
de Português como Língua Estrangeira um dos materiais autênticos para o ensino da
língua alvo, pois sua construção é guiada por valores culturais que participam das
cognições sociais do auditório selecionado pela empresa que vende o seu produto.
A composição multimodal apresenta a combinação do texto linguístico interagindo
com a imagem e, nesse sentido, a leitura do primeiro necessariamente deve levar em
consideração a do outro.
O discurso publicitário é definido por seus participantes, funções e ações, de
forma a transformar o seu auditório em consumidor do produto anunciado. Para tanto,
segundo Sant’Anna (1999) o anunciador do produto precisa ter em mente que: 1. o
auditório tem uma necessidade que precisa ser satisfeita ou o anunciador cria para o
auditório uma necessidade de consumo; 2. que o produto consumido trará plena satisfação
em pouco tempo e com pouco custo. Nesse sentido, o anunciador dá adesão às cognições
sociais do seu auditório e estas são crenças, pois são construídas como formas avaliativas
do que existe no mundo. Assim sendo, para se criar uma necessidade a ser satisfeita,
essas crenças são retomadas, estabelecendo com o produto uma zona de similitude
como formas de representação do novo. Logo, o produto apresentado para consumo
1 Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Português Língua Estrangeira da PUC-SP e doutoranda em
Língua Portuguesa pela Pontif ícia Universidade Católica de São Paulo

Maria do Carmo Branco Ribeiro (p. 33-38) 33


tanto é definido enquanto classe do objeto e individualizado enquanto o único capaz
de satisfazer a necessidade do auditório, por traços culturais que se mantêm implícitos
no texto verbal construído. Segundo Silveira (2006) no discurso publicitário há interação
entre o produto com o marco das cognições sociais dos grupos que o anunciador
publicitário seleciona para consumi-lo. Interação que é realizada com traços culturais
e ideológicos dos grupos sociais.
O objetivo geral deste texto é examinar os recursos utilizados na construção
significativa de anúncios publicitários. São objetivos específicos: descrever a organização
do texto multimodal materializado no anúncio publicitário; levantar valores culturais
e ideológicos relativos à instituição família em anúncios publicitários.
Para tanto, selecionaram-se anúncios publicados em revistas de circulação nacional,
dirigidas tanto a auditório universal quanto a particulares. Justifica-se a pesquisa, pois
o discurso publicitário é definido como uma prática social cujos participantes objetivam
transformar seus interlocutores em consumidores. Para tanto, segundo Silveira (2006)
, o anunciador seleciona o seu auditório conforme o grupo social capaz de ser o futuro
consumidor do produto anunciado. Nesse sentido, considera a opinião pública e esta
é a expressão de valores culturais. Temos por hipótese que o anúncio publicitário é
um texto multimodal construído como um lugar de sedução de seu auditório. Essa
sedução está presente no uso retórico de argumentos de forma a explicitar adjetivos
explicativos para a classe do objeto em sua definição e adjetivos restritivos para tornar
o objeto único em relação aos demais da mesma espécie. Entendemos por adjetivo
toda expressão verbal utilizada para a caracterização do produto a ser consumido
De acordo com Silveira (1998), a questão do interculturalismo é um dos aspectos
que devem direcionar o ensino de Português como Língua Estrangeira. Segundo esta
visão, “ensinar/aprender outra língua não é aculturar o aluno, na medida em que ele é
levado a assimilar a cultura da língua-alvo, mas sim enriquecê-lo, pois ele é, ao mesmo
tempo, levado a tomar consciência de sua própria cultura”.

O discurso segundo a ACD


Segundo a ACD, os discursos são analisados a partir de contribuições trans-
disciplinares, onde, à teoria lingüística se acrescentam as da sociologia, etnologia e
principalmente das ciências da cognição. Neste sentido, o texto é o produto verbal de
uma prática discursiva onde, de forma bastante complexa, os fatores sociais interagem
com os individuais para a sua produção. A ACD é composta de diferentes vertentes,
entre elas a da semiótica social e a sócio-cognitiva.

O texto multimodal – a vertente semiótica social


Por se estar analisando textos multimodais, compostos conjuntamente de imagens/
cores e enunciados linguísticos, levamos em consideração alguns fundamentos da

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 34


vertente semiótica social da ACD. Esta vertente tem por tarefa encontrar as estratégias
de compreensão de textos multimodais. Segundo Vieira (2007) “o sentido interpretativo
da imagem é modificado cada vez que há uma mensagem verbal agregada ao contexto
imagético, sem atribuir, contudo, maior importância à linguagem verbal do que à visual”.
Assim, escolha e localização de imagens obedecem a uma gramática orientada pelas
práticas discursivas onde são produzidos os textos, gerando metáforas visuais. Segundo
a autora, tem-se que a informação é passível de ser analisada por categorias que podem
ser assim sumarizadas: dado em contraposição ao novo, em seguida, ideal e real
Finalmente, ao centro, a saliência, ou seja, os elementos que congregam a ancoragem
de todo o texto. Entendemos, também, que a metonímia seja uma categoria de leitura
de anúncios publicitários multimodais escritos e que é necessário considerar, a partir
de uma saliência, a sua irradiação na construção de perspectivas.
As análises realizadas por nós tiveram como resultados que a metáfora sempre
está interseccionada com valores culturais sendo, portanto, o dado; o novo é construído
metonimicamente de forma a apresentar um realce para o produto anunciado no lugar
retórico da sedução sendo, construído também com valores culturais, a fim de que a
necessidade criada seja satisfeita.

As formas de representação mentais e verbais – vertente sócio cognitiva


Segundo a vertente sócio-cognitiva da ACD todas as formas de conhecimento
são representações mentais e têm natureza memorial. A memória de curto prazo dá
entrada pelos sentidos do material observado. A memória de longo prazo armazena
todas as formas de conhecimento sociais e individuais a partir do vivido e experienciado
em sociedade. Os discursos institucionais são públicos e têm acesso a auditórios
extragrupais. Os conhecimentos sociais guiam a construção de conhecimentos indi-
viduais, resultantes de experiências pessoais com o mundo. Porém há uma dialética,
pois os sociais guiam os individuais, mas estes, progressivamente, modificam os sociais.
A memória de trabalho processa informação, armazenando-a na memória de médio
prazo e vai reformulando a informação recebida a partir da entrada do novo. As
representações em língua constroem a materialidade do texto verbal e elas decorrem
dos conhecimentos do sistema de língua armazenado na memória de longo prazo social
das pessoas. Dessa forma, cada palavra do texto, principalmente as lexicais, contém
significados linguísticos que, quando institucionalizados, compõem as definições contidas
nas designações vocabulares dos dicionários.
Todavia, há outras formas de conhecimento que são relativas a um sistema enci-
clopédico e compreendem os conhecimentos de mundo. Sendo assim, ao se atualizar
uma palavra no texto produto, ela trará representados os significados de língua e os
significados culturais, além dos ideológicos. É interessante observar que a sociedade
é definida por um conjunto de grupos sociais, cada qual em constante conflito com os
demais. Um grupo social compreende uma reunião de pessoas com um mesmo ponto

Maria do Carmo Branco Ribeiro (p. 33-38) 35


de vista e, consequentemente, as suas formas de representação enquanto conhecimento
são diferentes. Em síntese, cada grupo social tem um marco de cognições sociais que
o identifica e este é construído no e pelo discurso, através de textos. Dessa forma, cada
designação expressa em um texto verbal contém significados linguísticos, expressão
verbal de significados culturais. Assim, desde que se entenda que o uso da língua é
guiado pela cultura e pela ideologia, cada palavra do texto contém esses traços implícitos.
Embora cada grupo social tenha o seu próprio marco de cognição os discursos
institucionais que têm acesso ao público geral constroem traços culturais extragrupais.
Ensinar uma língua é ensinar os traços culturais que estão implícitos nas designações
linguísticas e estes são tanto sociais quanto cognitivos.

Implícitos culturais
A cultura é um conjunto de valores resultantes de interesses objetivos e propósitos,
que constroem as crenças culturais enquanto normas comportamentais e tradições
repetidas de geração por geração.
Ideologia, também, é um conjunto de valores sociais e que podem ser tanto
grupais quanto extra grupais. A ideologia, porém, diferencia-se da cultura na medida
em que esta faz parte do dia a dia das pessoas e é construída pelas pessoas, enquanto
aquela é construída pela classe de poder, a fim de discriminar coisas do mundo e pessoas
para que o poder se sustente durante as reações populares. Esta comunicação está
delimitada ao levantamento de traços culturais.
O material analisado é composto por anúncios publicitários escritos publicados
em revistas brasileiras dos últimos dois anos. As análises foram realizadas a partir das
seguintes categorias: dado/novo, metáfora/metonímia, realce/fundo e verbal/não verbal.
Para as categorias indicadas foram agrupados os valores culturais que estavam implícitos
no texto multimodal. Esses valores estão delimitados aos processos de adjetivação.

Análise do material e discussão dos resultados


Foram selecionados anúncios publicados em revistas dirigidas a público universal
e particular. Dentre aquelas destinadas a esta categoria de público, estão as revistas
femininas (Claudia, Marie Claire), as especializadas em automóveis (Quatro Rodas)
e em assuntos rurais (globo Rural). A seleção teve como tema a família, representada
tanto por meio de imagens quanto por enunciados verbais.
De acordo com os resultados das análises, observou-se que a família pode ser
representada sob diferentes configurações:
Composta por pai, mãe, dois filhos, no máximo, sendo em geral uma menina e
um menino: o pai é o protetor e/ou o provedor financeiro e está frequentemente perto
do filho homem, nunca da menina.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 36


Composta por mãe e filhos, ou uniparental.
Em ambos os casos, a mãe é aquela que “cuida” da família: garante saúde, a boa
alimentação e a higiene. No caso da família uniparental, a mãe também acumula a função
de provedora do lar. A representação lexical está materializada nos enunciados: “a
família mudou, a mudança”.
Definida por laços de afetividade, e não de consangüinidade. Neste caso, a família
é composta por amigos, vizinhos, colegas de trabalho.

Considerações finais
A esta etapa do trabalho, os objetivos são revistos, e conclui-se que:
1. Os valores culturais e ideológicos orientam a construção dos anúncios publicitários
publicados nas revistas.
2. Os valores identificados são diversificados: correspondem à visão da família
enquanto instituição econômica e garantia de sobrevivência material e emocional
de seus membros.
3. O conceito de família enquanto instituição perdura no que se refere aos valores
acima apontados. A materialização deste conceito é observada de forma variada:
a. Por meio da apresentação de família composta em sua conformação tradicional:
o pai é o provedor, a mãe cuida da organização doméstica e da educação
dos filhos (geralmente dois);
b. Por meio da representação de famílias uniparentais, em que a mãe assume
o papel tradicionalmente masculino, no que se refere ao provimento das
necessidades financeiras. Neste caso, é evidenciada a mudança pela qual
passa a sociedade brasileira;
c. Por meio da alusão a relações e a outros grupos sociais que suprem as neces-
sidades emocionais dos indivíduos, tradicionalmente a cargo das ligações
por laços de parentesco.
Nota-se, portanto, alterações na composição do grupo familiar brasileiro e na
distribuição de papéis entre seus membros. Se, de um lado, verificam-se representações
em que os valores tradicionais ainda estão em vigor, por outro lado, estes valores são
atualizados não só por meio de relações sociais conservadoras, mas também de novas
estruturas sociais, como nas famílias uniparentais. Observa-se, também, como um
grande implícito que norteia tais representações, o conceito do moderno, do novo.
Nesse sentido pode-se dizer que seja este um dos traços fundamentais que subjaz à
cultura brasileira.
Em síntese, como se pode observar, os anúncios publicitários vão buscar nos
Marcos de Cognições Sociais elementos para a sua elaboração. Nesse sentido, são adequados

Maria do Carmo Branco Ribeiro (p. 33-38) 37


como material autêntico para o ensino de Português para falantes de Outras Línguas,
com enfoque interculturalista.

Referências
DIJK, T. A. van. Cognição, discurso e interação. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2004.
KRESS, G.; LEEUWEN, T. van. Reading Images. Routledge, London: 1996.
SANT’ANNA, A. Propaganda – teoria – técnica – prática. 7. ed. São Paulo: Pioneira,
1999.
SILVEIRA, R. C. P. Aspectos socioculturais implícitos em representações linguísticas
de “novo – velho” e “moderno – antigo”, em anúncios publicitários. In: SANTOS, J. B.
e FERNANDES, C. A. (Org.) Análise do Discurso: objetos literários e midiáticos. São
Paulo: Trilhas Urbanas. 2006.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 38


ENFOQUE INTERCULTURALISTA E TEXTOS
MULTIMODAIS NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS
EM HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NACIONAIS
Maria José Nélo1

Resumo: A produção de material para o ensino do português variante brasileira, para falantes
de outras línguas, ainda, é insipiente, além disso, as dificuldades dos alunos perpassam o
conhecimento linguístico. Os alunos têm dificuldades de fazer inferências de leituras em
textos multimodais, e de compreender implícitos culturais que propiciam criar a partir do
texto novos sentidos.

Abstract: The production of materials for teaching Portuguese Brazilian variant to other
languages speakers, is still insipient, besides the students difficulties pass over the linguistic
knowledge. Students have difficulties in making inferences from readings in multimodal
texts, and understand cultural implicits which propitiate to create, from the text, new meanings.

Introdução
Ao considerar o ensino de português brasileiro para falantes de outras línguas,
apresentam-se algumas situações possíveis de orientar a produção textual e tratar de
dificuldades de leitura em textos multimodais de histórias em quadrinhos (HQs). De
modo geral, os alunos estrangeiros apresentam dificuldades de construir sentido para
as figuras, cores e expressões linguísticas. Para este trabalho, selecionou-se uma HQ,
produção nacional, de Maurício de Souza. Intencionalmente, destacou-se um texto
que focalizava as relações de amizade, visando sensibilizar e propiciar a interação dos
alunos.

Alguns apontamentos teóricos


A leitura de textos, quer linguísticos quer multimodais, envolve desde
conhecimentos ligados à língua, à história, aos fatos do mundo até conhecimentos que
favoreçam a explicitação de implícitos culturais, desse modo, trata-se de um exercício
que ultrapassa os limites do linguístico. Esse procedimento pode ser verificado nas
Histórias em Quadrinhos (HQs), em que texto, cor e imagem compõem uma única
história. Embora, tanto no ensino de língua materna quanto no ensino de língua
estrangeira, a leitura privilegie o linguístico, deve-se considerar que, em um texto
compostos por diferentes modos semióticos forma-se um conjunto está integrado, de
modo a produzir sentidos na inter-relação com os diferentes signos. Por conseguinte,
1 Mestre e doutora pelo Programa de Língua Portuguesa da Pontif ícia Universidade Católica de São
Paulo – PUC/SP, professora adjunta na Universidade Estadual do Maranhão – UEMA/MA.

Maria José Nélo (p. 34-48) 39


nas atividades de aula, se privilegia uma das modalidades, isto é, os signos imagéticos
quase não são abordados. Às vezes esses signos ou não são tratados ou tão somente
identificam os personagens e seus fazeres na história, relacionando-os ao linguístico.
Torna-se, assim, necessário abordar no ensino de texto as intersecções do linguístico
com imagens, cores e a disposição desses elementos no texto, pois as modalidades
existentes na HQs são constituintes de implicaturas que contêm implícitos culturais,
e estas implicaturas devem ser explicitadas para um aluno-aprendiz de outra língua.
As HQs são construídas por formas, traços e cores que simulam o ambiente
natural e, dessa forma, no processo de leitura é preciso recuperar os sentidos que pre-
tendem traduzir, o que exige do leitor conhecimentos e experiências gerais de mundo,
em especial, da cultura e da história modalizadas em narrativas para leitores nativos,
enquanto o aluno-aprendiz precisa obter tais informações.
Os desconhecimentos das situações representadas nas HQs é uma das causas
da dificuldade dos alunos em construírem sentidos, principalmente, pela ausência de
contexto histórico-cultural acerca da língua alvo. Logo, ao tratar dos implícitos culturais,
sugere-se ativar conhecimentos multi, inter e transdisciplinar sobre as representações
construídas, intencionalmente, pelo autor da HQs, pois, à medida que o aprendiz recebe
informações, constrói contextos cognitivos, de modo a somar conhecimentos linguísticas,
sócio-culturais, sócio-interacionais, imagéticos no texto multimodal.
O texto multimodal, na vertente semiótica social, para Vieira (2007, p. 9), apresenta
uma visão multissemiótica, na medida em que...

Examina as práticas de linguagem que, por sua natureza social, espelham as


mudanças da escrita, tornando-as instância mais adequada para estudar tanto as
ordens do discurso, em especial o texto, que se apresenta na pós-modernidade
como multissemiótico ou multimodal, quanto os novos gêneros textuais que
ora surgem.

Segundo a autora, no passado, os textos eram considerados orais e/ou escritos


como verbais. A partir da pós-modernidade, os textos são construídos com aparato
tecnológico que requer cores variadas e sofisticados recursos visuais. Tal aparato tecnológico
é mais utilizado do que uma composição de frases e de períodos, para a construção
de novos sentidos exigidos pelos textos contemporâneos, de forma a transformar a
imagem como a forma de comunicação mais eloquente da pós-modernidade. Assim,
não se pode interpretar os textos com atenção voltada apenas para o verbal, pois, para
ser lido, um texto deve ser combinado a vários modos semióticos que coexistem com
o verbal.
Vieira, ao retomar outros estudiosos da vertente semiótica social, propõe que:

Uma vez que a Análise do Discurso se concentra no texto linguisticamente


realizado, o enfoque multimodal visa a transpor esse nível de análise e pretende

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 40


compreender os diferentes modos de representação que entram no texto com
a mesma precisão com que se faz a análise do texto linguístico. (2007, p. 10)

Essa vertente se ocupa de como explorar métodos de análises aplicáveis às imagens


visuais (desde as fotografias de imprensa e as imagens de televisão até arte renascentista),
assim como a relação existente entre a linguagem e as imagens (cf. KRESS; van LEEUWEN,
1990). Esses dois últimos autores investigam o valor das categorias da linguística sistêmica
para análises das imagens visuais e tratam de determinar como as categorias dado X
novo realizam-se mediante estrutura composicional das figuras.
Assim, o conhecimento não é uma simples descrição ou uma cópia do estado
de coisas. Ao contrário, o conhecimento é sempre produzido através da interação e da
comunicação, e sua expressão está sempre ligada aos interesses humanos implicados
nesse conhecimento.
Há, também, de considerar que Moscovici (2007) apresenta a teoria das repre-
sentações sociais como parte de suas investigações em psicologia social. Para o autor,
a teoria das representações trata do papel e da influência da comunicação no processo
da representação social, além de buscar a maneira como as representações se tornam
senso comum. Segundo ele, as representações sustentadas pelas influências sociais da
comunicação constituem a realidade de nossas vidas cotidianas e servem como principal
meio para estabelecer as associações com as quais as pessoas são ligadas umas às outras,
para tanto, o conhecimento pode ser representado por varias modalidades.
Com essas concepções Silveira (2009) considera que

[...] ensinar/aprender outra língua não é sobrepor a cultura da língua alvo à


sua cultura de origem; pelo contrário, o aluno é levado a assimilar a cultura
da nova língua, enriquece-se, pois, ao mesmo tempo, toma consciência de sua
própria identidade.

A cultura é dinâmica e modifica-se em cada contemporaneidade, pois há problemas


novos a serem resolvidos, e os valores culturais têm uma dinâmica resultante de novas
necessidades a serem supridas; dessa forma, recorre-se ao saber velho para resolver o novo.

Imagens: uma forma de acesso à leitura


Privilegiar a leitura de diferentes códigos indica associar outros saberes que não
se reduzem à importância do linguístico em relação às outras modalidades. É preciso
auxiliar o aluno-aprendiz a interagir e construir outras leituras, tendo em vista que
a língua não é mero instrumento a ser “dominado” pelo aluno, mas que compartilha
informações do contexto histórico-cultural brasileiro. O aluno poderá acionar conexões
com outros conhecimentos ativados por um texto multifacetado, podendo retomar a
história, a pintura, as cores entre outros saberes entrelaçados ao linguístico.

Maria José Nélo (p. 34-48) 41


As imagens não podem ser consideradas ilustrações das HQs, mas constituintes
de significações, cuja função é produzir outros conhecimentos que possibilitem o
leitor-aprendiz ativarem outros significados além do linguístico, pois isolado perde-se
o diferencial da composição multimodal do texto.
Desse modo, o texto multimodal propicia leituras, aparentemente, lineares ao
representar em formas significantes e significativas para os alunos atribuições de sentidos,
que partem, obviamente, de seus conhecimentos prévios. No entanto, é preciso explicitar
as implicaturas atribuídas nas imagens que tecem conexões com a história representada.
As imagens, cores e textos das HQs estão ancorados no visual e os efeitos de sentidos
são constituídos e construídos por estratégias da enunciação, considerando-se as
articulações das estratégias usadas no texto para a produção de sentidos.

Particularidades do texto multimodal


A reunião de diferentes semióticas em um texto multimodal constitui uma
unidade de significação, ao considerar que diferentes modos conjugam a função de
produzir sentido para o leitor. Cada modalidade propicia outras informações e lei-
turas, assim acontecem na interatividade aluno/texto linguístico. Para tanto, faz-se
necessário agrupar saberes sobre as imagens, cores de outros códigos de outras áreas
do conhecimento da linguagem que complementam as representações em língua,
constituindo-se, assim, um enlace visual, verbal e multimodal.
Tal junção nas HQs não privilegia o público infantil apenas, pois alcança público
diverso e tem um caráter de entretenimento. Assim sendo, são várias as funções que as
HQs assumem mais que descrever e narrar, simbolizam, normatizam e pontuam, nas
personagens, aspectos culturais comuns do cotidiano dos brasileiros. Esses aspectos
revelam características de como o brasileiro se relaciona, se representa e é representado.
Porém, as HQs, quando usadas em aulas, são identificadas, por exemplo, como material
autêntico na prática de ensino-aprendizagem de outra língua.
A função descritiva situa cores, formas e personagens nas cenas do cotidiano
cultural e histórico do brasileiro. No que se refere ao conhecimento histórico nacional
brasileiro, o uso de cores se dá, sobretudo, na simbologia da bandeira, que traz a repre-
sentação astrológica e celestial do dia de sua criação, da floresta e da riqueza mineral.
A partir das cores usadas nas HQs, os alunos-aprendizes associaram a intensa claridade
de um país tropical.
Além disso, a narrativa, nas HQs, é representada no percurso do crescimento
das personagens e na maneira como acontece os relacionamentos e atitudes dessas.
As funções simbólicas e persuasivas, contidas na encenação da história, resultam na
construção da narrativa como redução da história para o leitor. Assim, a título de
exemplificação, apresentamos uma análise de uma HQ, aplicada em aula de PLE, com
alunos dinamarqueses e italianos. O texto utilizado foi “Cascão & Cebolinha em Amizade”
– História a seguir:

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 42


Maria José Nélo (p. 34-48) 43
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 44
Maria José Nélo (p. 34-48) 45
Atividade e resultados obtidos
Pretendeu-se que os alunos fossem capazes de, pela leitura, identificar a superes-
trutura de história; identificar e relacionar a simbologia das cores e o que elas trazem
como implícitos culturais próprios do brasileiro e, a partir das expressões linguísticas,
cores e imagens, atribuir novas significações à história.
Para tanto, tratamos da identificação dos personagens a partir de seus nomes:
Cascão e Cebolinha. Os alunos foram levados a relacionar as imagens com os nomes das
personagens. A princípio, houve certa dificuldade de eles identificarem os estereótipos
das personagens, pois os alunos associavam os personagens apenas à miscigenação do
povo brasileiro, e não a comportamentos que geram apelidos e relações de diferentes
fases dos personagens e suas atitudes desde crianças. Cascão com suas marcas de sujeiras e
os emaranhas do cabelo por falta de serem penteados; Cebolinha com apenas alguns fios de
cabelos que imitam a folhagem da planta da cebolinha, usada em tempero culinário, saladas.
Em seguida, tratamos da relação das cores da HQs as quais ilustram o cenário
onde se desenrola a história. As cores deveriam ser nomeadas e, como muitas cores,
no Brasil, são nomeadas por associações com outros elementos, os alunos apresentaram
muita dificuldades, por exemplo, verde musgo, verde florestal, verde capim, verde limão;
da mesma forma com o amarelo (ouro, pardo, laranja, claro, caju, canário) e o vermelho
(caju, pitanga, melancia), cujas nuances podem receber nomes adjetivais que marcam
desde as gradações das cores a associam com plantas, frutas e até a fauna brasileira.
Para tanto, as cores têm uma simbologia com nossos recursos naturais, as quais tiveram
de ser explicitadas e relacionadas com nossos símbolos, fatos históricos e culturais,
por exemplo, o amarelo com o nosso ouro, o verde com nossas matas, o azul com o
celestial das nuvens e os mares, o branco com a paz.
Ao apresentar essas informações sobre as cores comuns na memória social do
brasileiro, solicitou-se aos alunos que associassem símbolos, armas, formas e cores
na cultura e história de cada um deles. A maioria deles mencionou que a proposta era
instigante e que iam refletir sobre suas realidades. Relataram que até aquele momento
não tinham relacionado essas informações sobre seus países nem pensado dessa forma.
Depois de estudarmos os elementos co-textuais, tratamos dos diferentes momentos
das personagens e das representações linguísticas e multimodais, tendo em vista que
ambos se complementam na história, bem como os usos dos tempos verbais: passado,
presente e futuro (sublinhados) apenas no texto linguístico, a seguir, segmentado da
história. Os alunos destacaram as expressões linguísticas que, subjetivamente, não faziam
sentido para eles e, à medida que essas expressões eram explicitadas, os alunos citavam
outras expressões ouvidas com significação semelhante.
Quanto aos tempos verbais, os enunciados permitiram tratar do presente enquanto
acontecimento pontual, como em “estão, mora, apareçam”, e como acontecimento
frequentativo, como em “é, sabem, compartilham, explica”; do passado, tempo comentado
“eram”; do futuro, projeção possível em “serão”. Foi possível observar que o tempo verbal

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 46


mais utilizado é o presente, de forma a situar a construção da amizade pelo aspectual do
verbo que sempre está indicando o presente como foco de onde se observa o contínuo
da amizade entre os amigos. Ou seja, a amizade construída entre amigos desde
pequenininhos é para sempre.
Já algumas expressões linguísticas precisaram ser explicitadas, por exemplo,
“dão força”, que indica mais que ajuda e auxílio, pois sugere mais comprometimento de
presença e confiança; “abrir mão”, indica ceder em favor do outro, algo possível apenas
entre amigos de verdade; “de vez em quando”, com ideia de menor frequência, entre
outros sentidos que foram continuamente explicados e esclarecidos aos alunos.
Quanto ao referente amizade, transcreveu-se os enunciados dos quadrinhos
da HQs, sublinhando os verbos, e destacando em itálico as expressões linguísticas
identificadas pelos alunos:

Primeira página:
- Desde que eram pequenininhos! Amigos sabem quando serão amigos!
Pois compartilham momentos... ... Dão força!
Estão sempre lado a lado!
Nas conquistas... ... Nas derrotas!
Nas horas boas... ... E nas dif íceis!

Segunda página:
Amizade nem sempre é pensar do mesmo jeito! Mas abrir mão... De vez em
quando!
Amizade é como ter um irmão... ... Que não mora na mesma casa!
É compartilhar segredos... ...E emoções!
É compreensão.... ...É diversão!
É contar com alguém... ... Sempre que precisar!
É ter algo em comum! E não ter nada em comum!
É não ter nada em comum mesmo! É saber que se tem em comum do que
se imagina!

Terceira página:
É sentir saudade! É querer dar um tempo!
É querer dar preferência! É bater um ciuminho!
Amizade que é amizade nunca acaba!
Mesmo que a gente cresça! E apareçam outras pessoas no nosso caminho!

Maria José Nélo (p. 34-48) 47


Porque amizade não se explica!
Ela simplesmente existe!
A amizade tornou-se tema de discussões e de comparações entre os alunos,
na tentativa de explicar e relacionar suas experiências e vivências em seus países de
origem e no Brasil. O sentimento de amizade entre Cascão e Cebolinha que, mesmo
com suas diferenças, é uma constante, em diferentes momentos de suas vidas, levou
os alunos a considerarem seus relacionamentos e suas experiências. Para eles existe
algo além da amizade no Brasil, pois o clima, o colorido e o modo de interagir do povo
brasileiro induzem certo aconchego. Isto também foi associado ao modo cortês, hos-
pitaleiro e receptivo dos brasileiros em relação aos estrangeiros.
A discussão a respeito desta HQ propiciou, também, que se recuperassem,
com os alunos, os processos históricos da formação do Brasil e, consequentemente,
do brasileiro, pela integração dos diferentes povos que convivem em harmonia em no
nosso país.
Nesse sentido, é necessário considerar que as HQs contribuem para o enfoque
intercultural e devem ser selecionadas segundo interesses e faixa etária dos alunos,
visto que há implícito e simbolizações tanto no linguístico quanto nos traços, cores,
formas imagéticas que precisam ser explicitadas no percurso da leitura e produção de
sentidos de um texto, além de implícitos culturais em uma única história.

Referências
KRESS, G.; Van LEEUWEN, T. Reading images. Geelomg: Vic. Deakin University
Press, 1990.
MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Tradução
de Pedrinho A. Guareschi, 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
SILVEIRA, R.C.P. Um novo olhar para as narrativas de humor: os sentidos no cotidiano
e na cultura. In: PIRES, L. C.; BEZERRA, A. P.; CARDOSO, D. P. (Org.) O texto em
perspectiva. Aracaju, SE: Ed. UFS, 2009.
VIEIRA. J. A. et al. Novas perspectivas para o texto: uma visão multissemiótica. In:
VIEIRA, J. A. et al (Org.). Reflexões sobre a língua portuguesa: uma abordagem multimodal.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 48


ENSINO DE PORTUGUÊS L2 E PRODUÇÃO DE
MATERIAL DIDÁTICO-PEDAGÓGICO: FORMAÇÃO
CONTINUADA DE PROFESSORES XAVANTE
Lucimar Luisa Ferreira1

Resumo: Neste trabalho apresentamos uma experiência de organização de material didático-


-pedagógico nas aulas de Português L2, realizada com professores Xavante da Terra Indígena
Pimentel Barbosa - MT, em oficinas de formação continuada. A nossa proposta teve como
objetivo principal ensinar Português L2 através de atividades práticas e significativas para a
comunidade Xavante. No relato da experiência, apresentamos o contexto do trabalho, a
sequência didática das atividades e as reflexões sobre a importância das narrativas tradicionais
para o povo Xavante.

Abstract: This paper presents our experience organizing teaching materials for Portuguese as
a Second Language classes taught by Xavante teachers of the Pimentel Barbosa Indigenous
Lands in Mato Grosso state, Brazil in continuing education workshops. Our proposal was to
teach Portuguese as a Second Language through practical activities that are meaningful to the
Xavante community. In our account of the experience, we contextualize our work, presenting
how the teaching activities were organized as well as reflections on the importance of traditional
narratives for the Xavante people.

Introdução
O contato oficial do povo Xavante (Terra Indígena Pimentel Barbosa) já passa
de seis décadas e a educação escolar tem sido desenvolvida em quase todo esse período.
Sendo assim, é inegável que muitos hábitos e costumes tenham sido modificados,
elementos introduzidos, incorporados e (re)significados pela cultura material e imaterial
do povo, mas mesmo assim a luta pela manutenção daquilo que é próprio e essencial
permanece. O contexto linguístico do povo é bilíngue e as escolas têm como objetivo
fazer uma educação também bilíngue. A política é manter a língua materna, sem
desconsiderar a importância da Língua Portuguesa.
A escola indígena específica, diferenciada e bilíngue é uma garantia da Constituição
Federal de 1988, que precisa ser pensada e construída pelos próprios povos indígenas.
Nesse sentido, o povo Xavante da Terra Indígena Pimentel Barbosa, mesmo com todo
o processo de transformação ocorrido com o contato, busca a construção de uma escola
que garanta a valorização da cultura e dos saberes tradicionais. Sendo assim, o esperado
é que os diferentes aspectos culturais, em especial as narrativas xavante, sejam tratados
na escola desde as séries iniciais.

1 Professora de Língua Portuguesa, com experiência em Educação Escolar Indígena. Doutoranda do


Curso de Linguística da UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas - SP.

Lucimar Luisa Ferreira (p. 49-54) 49


A comunidade entende que a escola tem um papel fundamental no futuro físico e
cultural do povo e por isso a valoriza, mas, ao mesmo tempo, espera que essa instituição
promova a construção e a reelaboração de saberes ancestrais do povo no seu fazer
pedagógico. Nesse caso, o registro escrito das narrativas Xavante de forma bilíngue é
fundamentalmente importante.
Assim, a nossa proposta foi registrar por escrito de forma bilíngue as narrativas
Xavante contadas por anciãos da comunidade, refletindo sobre diferentes aspectos do
funcionamento, uso e ensino de Português L2 nas escolas indígenas da Terra Indígena
Pimentel Barbosa. Com esse intuito, adotamos uma metodologia de trabalho com
atividades variadas, considerando a criatividade e os conhecimentos tradicionais dos
cursistas/professores.
A construção da escola específica Xavante e a produção de material didático-
-pedagógico nas aulas de Português L2
Os Xavante da Terra Indígena Pimentel Barbosa, preocupados com a perda
do conhecimento tradicional e as dificuldades de passar tais conhecimentos às novas
gerações também de maneira tradicional, percebe que se faz necessário construir, na
própria comunidade, uma escola que venha contemplar os seus anseios.
Nesse processo de busca de equilíbrio entre o que é próprio da cultura e o
que vem de fora, a educação escolar no contexto do povo Xavante da Terra Indígena
Pimentel Barbosa sempre foi uma das preocupações da comunidade. E, nessa direção,
a comunidade conta com as políticas públicas, ONGs e os projetos que a ajudem nesse
processo de construção da escola Xavante voltada para o fortalecimento físico e cultural do
povo. Sem desconsiderar as questões de infra-estrutura, uma das maiores preocupações
da comunidade é construir uma escola que proporcione um diálogo entre o que é específico
da cultura Xavante e o que vem de fora. Para isso é necessário a produção de material
didático-pedagógico específico que contempla os conhecimentos da cultura Xavante,
para o ensino nas escolas das aldeias.
Sendo assim, a produção de materiais que registram e organizam de forma
escrita e bilíngue o saber dos anciãos é fundamentalmente necessária para a garantia
da construção de uma escola Xavante que atenda os anseios da comunidade. Nesse
sentido, o nosso trabalho de organização do livro “Narrativas Xavante” escritos pelos
professores cumpre a função de apoiar o povo nesta construção da educação escolar
especifica Xavante.
Nas escolas da Terra Indígena Pimentel Barbosa, os professores, concomitantemente
ao seu processo de formação no Haiyô2, recebem capacitação promovida pala Secretaria
de Educação de Canarana – MT, em parceria com a FUNAI e um Projeto de pesquisa
financiado pela FAPEMAT3. A capacitação dos professores tem sido feita por meio de

2 Haiyô é um Curso de Magistério (formação de professores indígenas) executado pela SEDUC – Secretaria
Estadual de Educação e Cultura do Estado de Mato Grosso.
3 Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 50


oficinas pedagógicas que abordam diferentes questões, sendo a produção de material
didático uma delas. A nossa experiência de produção do livro de narrativas, que se
destina ao uso dos professores indígenas nas escolas Xavante desta região, aconteceu
nessas oficinas.
Na execução dessas oficinas pedagógicas, várias áreas do conhecimento são
abordadas de forma interdisciplinar (Ciências Sociais, Ciências da Natureza, Etnomatemática
e Língua Portuguesa), proporcionando a produção de materiais específicos Xavante e
uma reflexão dos professores sobre a relação entre teoria e prática.
O ensino de Português L2 na comunidade indígena Xavante se constitui em
uma necessidade dos professores, que aprendem e ensinam Português em suas escolas.
Nesse processo, os Xavante querem saber a Língua Portuguesa para se relacionar
com diferentes instância da sociedade e, nessa perspectiva, eles precisam saber usar
o Português oral e escrito no seu funcionamento social. Eles necessitam compreender
como funciona a infinidade de gêneros textuais utilizados nas diferentes atividades e
esferas sociais, valorizando o que é próprio da sua cultura. Nessa situação particular, as
aulas de Português L2 para professores Xavantes precisam levar em considerações vários
aspectos relacionados às particularidades culturais e de política linguística do povo.
Sendo assim, o trabalho de Português L2 desenvolvido no contexto da organização
do livro “Narrativas Xavante”, parte do pressuposto de uma aprendizagem de português a
partir do contexto cultural Xavante. Nessa perspectiva, a concepção de língua a partir
da qual desenvolvemos o nosso trabalho é a que considera o funcionamento linguístico
inserido no contexto social. Essa concepção está ancorada nas teorias de gêneros do
discurso bakhtiniano: Bakhtin (2003), Brait e Rojo (2005), Schneuwly e Dolz (2004),
Rojo (2000), em alguns fundamentos da linguística textual: Fávero e Koch (2000),
Travaglia (2002), Marcuschi (2001), Antunes (2007; 2009) e em pressupostos das teorias
da enunciação e do discurso: Guimarães (2002; 2011), Pêcheux (1995), Orlandi (1996;
2001), Serrani (2005; 2010), Bolognini; Pfeiffer; Lagazzi (2009). O fundamental foi
pensar a língua em suas dimensões de estrutura e funcionamento nas condições de
produção específicas das oficinas realizadas na Terra Indígena Pimentel Barbosa.

A organização do livro “Narrativas Xavante”


O livro “Narrativas Xavante” foi organizado a partir do material produzido nas
oficinas de formação continuada, realizada com professores Xavante da Terra Indígena
Pimentel Barbosa4. A produção do livro faz parte de uma das metas das oficinas, que
era proporcionar capacitação aos professores Xavante, aliando teoria e prática. O livro
foi o resultado da proposta de ensinar Português L2, a partir de uma abordagem da
língua em funcionamento social. Os assuntos foram escolhidos em função das várias

4 As oficinas realizadas foram proposta e executadas pela Secretaria de Educação e Cultura de Canarana
– MT em parceria com a FUNAI – Polos de Canarana e Água Boa - MT.

Lucimar Luisa Ferreira (p. 49-54) 51


atividades propostas, tendo em vista a necessidade de material em Língua Portuguesa
para o trabalho nas escolas das aldeias.
Na oficina de elaboração do livro “Narrativas Xavante” o objetivo principal foi
registrar e sistematizar por escrito de forma bilíngue as histórias Xavante narradas
pelos contadores de histórias da comunidade, em situação parecida ao que acontece no
cotidiano da aldeia. Na comunidade, os anciãos têm a função de repassar conhecimentos
e contar as histórias. Partindo disso, na nossa experiência, o primeiro trabalho dos
professores foi ouvir e registrar as narrativas.
Depois de uma discussão em sala, os professores foram divididos em grupos
para fazer as gravações, transcrições e elaborações dos textos em Xavante e em Português.
Os grupos, após escolherem as histórias tradicionais que deveriam ser trabalhadas, fizeram
contato com os velhos e marcaram as entrevistas. As entrevistas foram feitas no terreiro das
casas dos próprios anciãos. Cada grupo entrevistou um velho que contou uma história
para os professores, os quais transcreveram e elaboraram os textos escritos em Xavante
e em Português. Durante a elaboração escrita dos textos, vários aspectos linguísticos
foram estudados, garantindo a aprendizagem de vários conteúdos de forma significativa.
Os grupos ilustraram as histórias e para fechar o trabalho, fizeram uma socialização
da produção final e uma avaliação coletiva do registro das histórias. Nessa avaliação,
um ponto positivo levantado pelo grupo foi o fato dos professores trabalharem a partir
das histórias contadas pelos próprios velhos que tradicionalmente são contadores de
história na comunidade.
Depois do material produzido, a etapa seguinte foi a preparação final dos livros: a
digitação dos textos e digitalização das ilustrações. Os textos em Xavante foram corrigidos
e revisados por um grupo de professores que possuem domínio da Língua Xavante escrita.
A ortografia da Língua Xavante utilizada foi a que o grupo Xavante dessa região usa.

Considerações Finais
Com base na participação dos professores no trabalho desenvolvido, acreditamos
que o ensino de Português L2 a partir do registro de narrativas tradicionais foi além do
proposto para as aulas de língua, pois tratou de questões de cultura, arte, cidadania,
direitos, política linguística e movimentos indígenas. Além disso, o curso pode ter
contribuído para o desenvolvimento da autoconfiança dos professores na produção de
seus textos, potencializando a autoria em Português L2.
Entendemos, com essa experiência, que a produção de material didático-pedagógico
é um trabalho complexo que demanda ações de várias instâncias, mas que é possível de ser
realizada com apoio dos órgãos competentes. Dentro desse processo, podemos dizer que
a participação ativa de todos os seguimentos da comunidade, em especial os professores,
é de suma importância, pois serão eles os responsáveis pelo processo educacional das
escolas nas comunidades e, consequentemente, pelo uso desse material nas escolas.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 52


Um aspecto que ainda é importante ressaltar é que no ensino de Língua Portuguesa
L2, além do conteúdo linguístico (uso de textos), devemos considerar o desenvolvimento
de outras habilidades e valorizar o conhecimento dos cursistas. Nas oficinas, o papel
dos professores foi o de mediadores e colaboradores na produção de um saber coletivo.
Os cursistas/professores foram os atores do processo.
Assim, podemos afirmar que o ensino de Português L2 em uma comunidade
indígena precisa ser pensado considerando, além das questões linguísticas, os diversos
fatores de ordem social, cultural e política que fazem parte da educação escolar indígena.

Referências
ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras
no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. (Estratégia de Ensino, 5).
______. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial,
2009.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal.
Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 261-306.
BOLOGNINI, Carmen Z.; PFEIFFER, Claudia; LAGAZZI, Suzy. (Org.). Discurso e ensino:
práticas de linguagem na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2009. (Série
Discurso e Ensino)
BRAIT, Beth; ROJO, Roxane. Gêneros: artimanhas do texto e do discurso. São Paulo:
Escolas Associadas, 2005.
FÁVERO, Leonor Lopes; KOCH, Ingedore G. Villaça. Linguística textual: introdução.
5 ed. São Paulo: Cortez, 2000. (Série Gramática - Português na pesquisa e no ensino;
9).
GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do Acontecimento: um estudo enunciativo da
designação. Campinas, SP: Pontes, 2002.
______. Análise de texto: procedimentos, análises, ensino. Campina, SP: Editora RG,
2011.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 2. ed.
São Paulo: Cortez, 2001.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução
de Eni P. Orlandi et al. 2. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995.
ORLANDI, Eni. Discurso e leitura. 3. ed. Campinas, SP: Cortez, 1996.
________. Discurso e Texto: formação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes,
2001.
ROJO, Roxane (Org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCN’s.
São Paulo: Mercado de Letras, 2000. (As faces da linguística aplicada)

Lucimar Luisa Ferreira (p. 49-54) 53


SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim et al. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução
e organização de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. São Paulo: Mercado de Letras,
2004. (As faces da linguística aplicada).
SERRANI, Silvana. Discurso e cultura na aula de língua. Campinas, SP: Pontes, 2005.
­­________. (Org.) Letramento, Discurso e Trabalho Docente. São Paulo: Horizonte,
2010.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de
gramática no 1º e 2º Graus. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2002.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 54


A produção textual em livros didácticos de Português
Língua Estrangeira/ Português Língua Segunda
Madalena Teixeira 1

Resumo:A realidade escolar portuguesa tem vindo a alterar-se progressivamente com a entrada
de alunos estrangeiros nas escolas portuguesas – 120 nacionalidades, sendo 36 730 alunos
do 1º Ciclo (DGIDC, 2005). E os resultados obtidos, pelos alunos, num estudo levado a cabo
pela DGIDC (2008), mostram que as maiores dificuldades radicam ao nível da produção de
texto. Ora, num ambiente onde impera a diversidade cultural, afigura-se essencial analisar
em que medida os manuais de PLE/PL2 contribuem para ultrapassar esta lacuna.

Abstract: Portuguese Scholar reality is changing with the progressive new income of foreign
students in Portuguese schools - 120 different nationalities, belonging 36 730 students to primary
school (DGIDC, 2005). Moreover, results obtained by students, in a DGIDC research (2008),
show that their biggest difficulties are focused in writing text. In an environment where
cultural diversity is increasing, it is essential to analyze the contributions of scholar books
of Portuguese as a foreign language and of portuguese as a second language in order to get
over this situation.

Introdução
Cientes das necessidades curriculares, linguísticas e de integração de alunos,
estrangeiros, em escolas portuguesas, consideramos que o manual escolar é um suporte
fundamental, na medida em que contribui para não só para a aquisição de conhecimentos,
métodos e hábitos de trabalho e estudo, mas também para a formação do indivíduo
no que respeita à construção de um conhecimento baseado na preservação de valores
morais e cívicos, sem descriminação étnica, religiosa e social, como é referido na circular
nº 7/2000 do DEB.
Assim, julgamos essencial que os manuais escolares de português língua
estrangeira/português língua segunda – PLE/PL2 - sejam alvo de avaliação, de modo
a potenciarem o desenvolvimento de competências de oralidade, de leitura, de escrita
e de conhecimento explícito da língua, promovendo a articulação e integração desses
mesmos alunos nos curricula nacionais.
A par deste contexto, e tendo em conta que

Os resultados nacionais indicam que é nos parâmetros C – coerência e pertinência


da informação, D – estrutura e coesão do texto produzido e G – utilização

1 Doutora em Linguística, no ramo de Linguística Aplicada pela Universidade de Lisboa - Portugal.


Professora Adjunta, lecionando Linguística e Didática do Português no Instituto Politécnico de
Santarém.

Madalena Teixeira (p. 55-61) 55


adequada da pontuação que se registam as mais baixas percentagens de respostas
[…] (Relatório Nacional, 2005, p. 29)

cremos que o ensino da escrita é merecedor de um destaque particular.


Pelos motivos expostos, são objectivos deste estudo averiguar se os manuais
de PLE/PL2, para uma faixa etária que se situa entre os seis e os nove anos, estão em
conformidade com os descritores de desempenho do Nível A1 constantes no Q.E.C.R.
e se potenciam a “desejada” articulação com o Currículo Nacional, no que refere à
promoção do desenvolvimento de competências de escrita.

Do manual escolar e do Quadro Europeu Comum de Referência


para as Línguas (Q.E.C.R.) ao Novo Programa de Português
para o Ensino Básico
No que refere aos manuais escolares, consideramos ser fundamental a existência de
critérios orientadores2 da elaboração de manuais escolares, que se rejam por princípios
não só científicos e pedagógicos, mas também, linguístico, concetual, de articulação e
conformidade com os curricula, de adequação ao desenvolvimento de competências
– gerais, específicas e facilitadoras de uma integração na vida activa de um qualquer
cidadão -, informando adequadamente e de modo percetível à faixa etária a que se
destina, primando pela coerência, seja escrita, seja em imagens, destacando sempre
valores que se revelam a partir da não discriminação de etnias, culturas, religiões e
sexo e da ausência de propagandas ideológicas, religiosas e políticas.
Quanto ao Q.E.C.R. e com a finalidade de clarificar o desenvolvimento da
competência comunicativa, o “documento” apresenta descritores de desempenho que
pretendem contribuir para caracterizar os diferentes níveis de proficiência – do nível
A1 ao nível C2.
Com efeito, se tivermos em atenção, no Nível A1, (desenvolvido com base em
Breakthrough/Proficiência Formulaica – WILKINS, 1972) (Introductory/Proficiência
Introdutória - Trim)3, Aspectos qualitativos do uso da linguagem, verificamos no item
dedicado à coerência que o falante pertencente a este Nível “É capaz de ligar palavras
ou grupos de palavras com conectores lineares muito simples como ‘e’ ou ‘então’.” (p. 58),
no item relativo à produção escrita geral observa-se que o sujeito “É capaz de escrever
expressões e frases simples.” (p. 96), “É capaz de escrever expressões e frases simples
acerca de si próprio e de pessoas imaginárias – onde vivem e o que fazem.” (p. 97),
na interacção escrita geral , o aprendente dever ser “capaz de pedir ou transmitir, por
escrito, informações pessoais pormenorizadas”, na correspondência já “É capaz de escrever
um postal simples e pequeno.” (p.124), em notas, mensagens e formulários, “É capaz
de escrever números e datas, nome, nacionalidade, morada, idade, data de nascimento

2 Cf. Diário da República, 2ª série, nº 249 - 27 de Dezembro de 2007.


3 Cf. Conselho da Europa. (2001).

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 56


ou de chegada ao país, etc., como nas fichas de registo dos hotéis.” (p.124) e no item
processar um texto, pretende-se aferir se que o indivíduo “É capaz de copiar palavras
isoladas e pequenos textos impressos normalmente.” (p.140). Ou seja, espera-se que os
aprendentes usem conectores, ainda que simples, escrevam postais, embora simples e
pequenos, e copiem textos.
Relativamente ao Programa (TEIXEIRA et al, 2009, p.16), observamos que a
escrita é entendida como

o resultado, dotado de significado e conforme à gramática da língua, de um


processo de fixação linguística que convoca o conhecimento do sistema de
representação gráfica adoptado, bem como processos cognitivos e translinguísticos
complexos [...].

Assim, um aluno ao concluir o 1º Ciclo de Ensino Básico, deve ser capaz de:

“Recorrer a técnicas para registar, organizar e transmitir a informação; utilizar


processos de planificação, textualização e revisão, utilizando instrumentos de
apoio, nomeadamente ferramentas informáticas; escrever, em termos pessoais
e criativos, diferentes tipos de texto, como forma de usufruir do prazer da escrita;
produzir textos de diferentes tipos em português padrão, com tema de abertura
e fecho, tendo em conta a organização em parágrafos e as regras de ortografia
e pontuação.”(TEIXEIRA et al, 2009, p. 26).

Deste modo, e parafraseando o Novo Programa de Português (TEIXEIRA et al,


2009) o ponto fulcral da aprendizagem da escrita articula-se, não só com a aprendizagem
da leitura e com as suas (in)correspondências entre o som e o grafema, mas também
com a compreensão de distintas funções da escrita, às quais somos tentados a acrescentar,
e do mundo.

O manual em análise
Com o intuito de atingir os objetivos propostos no início deste trabalho, optou-se
por analisar um manual escolar de PLE/PL2, para falantes alfabetizados numa faixa
etária que se situa entre os 6 e os 9 anos de idade, no que concerne à promoção do
desenvolvimento de competências de escrita. Esta análise teve por base os critérios de
avaliação de manuais utilizados pela Comissão de Nacional de Avaliação e os descritores
de desempenho preconizados pelo Q.E.C.R.
O manual em estudo foi selecionado de acordo com o critério do mais comer-
cializado no país, durante o ano de 2009, sendo designado como Manual A.
Após análise efectuada ao Manual verificam-se, entre outros, dois aspectos
muito importantes:

Madalena Teixeira (p. 55-61) 57


a) a não conformidade com os descritores constantes no Quadro Europeu Comum de
Referência para as Línguas – Q.E.C.R. – para o nível A1, uma vez que o manual não
apresenta registos onde se promovam as seguintes competências: 1) competência
comunicativa - i) âmbito linguístico geral (“Tem um leque muito elementar de
expressões simples sobre pormenores pessoais e necessidades de uma natureza
concreta”. Q.E.C.R., 2000, p. 158); ii) domínio do vocabulário (não há descritor
disponível no Q.E.C.R., mas considera-se manifestamente insuficiente a promoção de
desenvolvimento do capital lexical, neste manual. Não se verificam actividades que
se prendam com momentos de elaboração de listas de palavras, de famílias de palavras,
de mapas semânticos, de áreas vocabulares, entre outras possíveis); iii) Correcção
gramatical (“Mostra apenas um controlo limitado de algumas estruturas e formas
gramaticais simples, que pertencem a um repertório memorizado.” p.163); iv) domínio
ortográfico (“É capaz de copiar palavras e pequenas expressões que lhe são familiares,
p. ex.: sinais simples ou instruções, nomes de objectos do dia-a-dia, nomes de lojas
e expressões utilizadas regularmente. É capaz de soletrar a sua morada, nacionalidade
e outras informações pessoais deste género.” p.168); 2) competência sociolinguística
(“É capaz de estabelecer contactos sociais básicos, utilizando as fórmulas de delicadeza
do quotidiano mais simples: saudações, despedidas, apresentações, dizer por favor,
obrigado(a), desculpe(a), etc.” p.173); 3) competência pragmática – i) fluência na
oralidade (“É capaz de produzir enunciados muito curtos, isolados e geralmente
esteriotipados, fazendo muitas pausas para procurar expressões, articular palavras
que lhe são menos familiares e para remediar problemas de comunicação.” p.183).
A “tomada de palavra”, o “desenvolvimento temático” e a “coerência e a coesão” são itens
para os quais não há descritores disponíveis, mas que se torna claro, pelas observações
indicadas anteriormente, que o manual não potencia o desenvolvimento dos mesmos;

b) outro aspecto reporta ao facto de este manual estar «…destinado a crianças do


ensino básico entre (6-9 anos).» e não se verificar articulação com o curriculum
definido para os 4 primeiros anos de escolaridade, no que refere ao desenvolvimento
da competência escrita, nem das restantes 4 competências constantes nos Programas
de Português para o Ensino Básico – compreensão oral, expressão oral, leitura,
escrita e conhecimento explícito da língua – e das competências específicas indicadas
no Currículo Nacional do Ensino Básico – modo oral, modo escrito, conhecimento
explícito da língua.
Como exemplo de algumas das situações indicadas anteriormente, destacamos as
pp.82 e 83 onde se pode observar a história «Grandes nomes portugueses», “contada”
através de banda desenhada, em que é feita referência ao «... Infante Dom Henrique…»,
ao «…rei Dom Manuel…», a Camões, a dois cantores e a dois jogadores de futebol.
Considera-se que se o texto tem como título “Grandes nomes portugueses”, não deveria
mudar o enfoque para a aprendizagem de profissões, ainda que estas sejam coincidentes
com nomes conhecidos, como é o caso de um dos cantores e dos dois jogadores de futebol.
Além disso, as profissões de fotógrafa, de pintor e de professor parecem ter “sido atiradas

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 58


para o texto”, uma vez que surgem “desgarradas” do restante texto, registando-se uma
coesão e coerência textuais com pontos de fragilidade - vejam-se as vinhetas 7 e 8.
Salienta-se ainda que a placa que Salpicos traz ao pescoço regista um erro ortográfico,
que apesar de “Manuel” alertar para a sua correcção, a imagem permanece igual; o
leitor fica exposto ao erro, sem que a imagem apresente a correcção necessária. Igualmente,
não se entende a razão de “Infante” estar escrito com maiúscula e “rei” com minúscula,
uma vez que infante, assim como “rei”, não são nomes próprios.

Madalena Teixeira (p. 55-61) 59


Na mesma página, a designação da profissão fadista, embora esteja correcta,
deveria ser feita com reservas, ou então fazer-se acompanhar de uma clarificação,
explicitando que “fadista” é o nome que se dá a uma cantora de fado. Caso contrário, e
uma vez que Rui Veloso é cantor de música ligeira, os alunos poderão ser levados a pensar
que esta última profissão se pode designar como “ligeirista”, o que não é correcto. Cantora é
que é. Fadista é alguém que canta um determinado tipo de música. Sublinha-se também
o facto de se referir Rui Veloso, dizendo que é famoso, mas não é dito qual é a profissão.
Ele também é cantor; portanto, esta ocorrência pode potenciar duas situações de imprecisão.
A profissão de fotógrafa não é ilustrada claramente por nenhuma imagem, uma vez
que a câmara fotográfica que Isabel tem ao pescoço, nesta história, é um “acessório”
que a acompanha em todas as outras imagens do Manual.
Também nesta página, a própria expressão escrita tem de ser revista, indicando
o texto constante falta de coesão e de coerência textual.

Considerações finais
Pela dimensão deste estudo, adianta-se, desde já, que não há a intenção de
generalizar este resultado a demais manuais de PLE/PL2. Há, isso sim, a pretensão de
promover um momento de reflexão sobre um conjunto de factores que condicionam
o ensino e a aprendizagem do português.
De sublinhar, ainda, que, sendo a aprendizagem da escrita um processo tão
complexo e necessário, deve registar-se articulação entre os textos reguladores da
prática pedagógica de alunos de PLE/PL2, ou seja, entre os manuais e o curricula.
Note-se que os alunos são avaliados, sobretudo, através da escrita e veja-se que os
resultados esperados, no desenvolvimento desta competência, no final do 1º Ciclo, em
muito pouco combinam com o Manual A. Neste ponto não se pode deixar de referir,
também, que se observa um distanciamento entre o Q.E.C.R. e os curricula, no que
concerne à produção textual.
Igualmente importante, é a formação contínua de professores. Um manual escolar,
claro está, não “serve” todos os alunos de uma mesma turma, ou de turmas distintas,
pois todos têm dificuldades e necessidades diferentes. E neste ponto, o professor tem
um papel fundamental e decisivo, uma vez que pode alterar e/ou adaptar atividades
de acordo com a especificidade necessária. Um manual não substituiu o professor, por
um lado, e o docente continuará a utilizar o manual, por outro.
Finalmente, e apesar de o manual evidenciar recorrentemente aspetos que se
prendem com a cultura portuguesa, considera-se fundamental a apresentação de o
espaço da lusofonia, sem que este se circunscreva unicamente a Portugal.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 60


Referências
CONSELHO DA EUROPA. Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas
– Aprendizagem, ensino e avaliação. Tradução de Maria Joana Rosário e Nuno Soares.
Porto: Edições Asa, 2001. (Col. Perspectivas actuais/educação)
DIRECÇÃO GERAL de Inovação e de Desenvolvimento Curricular. Provas de Aferição
do Ensino Básico 4º, 6º e 9º anos – 2004: Língua Portuguesa Matemática: Relatório
Nacional. Lisboa: Ministério da Educação – DGIDC, 2005.
DIRECÇÃO GERAL de Inovação e Desenvolvimento Curricular. Documento Orientador.
Lisboa: Ministério da Educação, 2008. Disponível em: <http://www.dgidc.min-edu.pt>.
Acesso em: 10 jun. 2010.
TEIXEIRA, M. Leitura, Escrita e Gramática à Luz dos Normativos Legais. In: MARÇALO,
M. J. et al (Org.) Estudos de Língua Portuguesas - Ultrapassar fronteiras, Juntar Culturas.
Évora: Universidade de Évora, 2009. p. 95-116.

Madalena Teixeira (p. 55-61) 61


AQUISIÇÃO DO PORTUGUÊS COMO L2
POR FALANTES DE ESPANHOL E
O MODELO DE ONTOGENIA
Flávia Isabel da Silva Guimarães1

Resumo: neste artigo apresentamos o projeto que visa verificar como se dá o processo de
aquisição do português como segunda língua (L2), especificamente no nível fonético-fonológico.
Como base teórica, tem-se utilizado o modelo estabelecido por Major (1987) denominado
modelo de ontogenia, que descreve o processo de aquisição de L2 no nível fonético-fonológico
dividindo-o em duas fases: interferência e desenvolvimento.

Abstract: this article we present the project to verify how the acquisition of Portuguese as a
second language (L2), specifically in the phonological-phonetic level. As a theoretical basis,
we have used the model established by Major (1987) called ontogeny model, which describes
the process of acquisition of L2 in the phonetic-phonological dividing it into two phases:
development and interference.

Introdução
Nos últimos anos a área de português para estrangeiros tem crescido gradativa-
mente. Há pessoas de diversas nacionalidades passando por um processo de aprendizagem
em imersão em nosso país ou estudando a língua em seus próprios países, destacando-se
os europeus, orientais e hispano-americanos. Deste modo tem-se, além de um novo
mercado de trabalho, um novo objeto de pesquisa.
Contudo, por se tratar de uma área relativamente nova, pode-se dizer que há
poucos trabalhos voltados à aquisição do português como língua estrangeira (LE) ou
como segunda língua (L2). Por conta disso, é preciso recorrer a modelos aplicados em
estudos de aquisição de outras línguas como LE ou L2.
Nesse trabalho, será apresentado o Modelo de Ontogenia (The Ontogeny Model)
proposto por Major (1987), que será aplicado na análise do processo de aquisição do
português por falantes de espanhol no nível fonético-fonológico.

O modelo de Ontogenia
O objetivo de Major (1987) é estabelecer um modelo para a aquisição fonológica
da L2 que ofereça uma visão integral acerca do caminho que o aprendiz da L2
percorrerá, observando as possibilidades de erro em determinados estágios. Trata-se de

1Mestre em Filologia e Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo e Professora da Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 62


um modelo embasado na relação entre os processos de interferência e desenvolvimento
A interferência refere-se à fase em que o aprendiz transfere para a segunda língua
(L2) estruturas de sua língua materna. A fase de desenvolvimento inicia-se quando o
processo de transferência passa a decrescer e encerra-se quando o aprendiz chega à
perfeição do som adquirido.
A hipótese estabelecida é de que nos primeiros estágios do processo de aqui-
sição fonológica a interferência da língua materna (LM) seja predominante e passe e
decrescer gradualmente ao longo do processo. Desse modo, no início do processo de
aquisição o aprendiz encontra-se no pico de um processo de interferência que passa a
decrescer até chegar a zero, como podemos observar no gráfico abaixo:

Major (1987, p.103)

Simultaneamente ao processo de interferência o aprendiz passa pelo processo de


desenvolvimento, que ao contrário da interferência, parte do zero e aumenta gradativamente
durante o processo de aquisição, alcançando um pico de frequência de onde então
passará a decrescer:

Major (1987, p.103)

Esse decréscimo representa a fase final do processo de desenvolvimento e do


processo de aquisição. Quando falante já está chegando ao fim do processo de aquisição
o processo desenvolvimento passa a diminuir, pois as estruturas da L2 já estão sendo
assimiladas pelo aprendiz.
Observa-se, também, que o modelo de ontogenia traz fundamentos da Análise
Contrastiva (LADO, 1957) embora o autor não faça referência a essa teoria. A Análise
Contrastiva (AC) consiste em verificar quais são as semelhanças e diferenças estruturais

Flávia Isabel da Silva Guimarães (p. 62-67) 63


entre L2 e LM e, deste modo, analisar quais são as estruturas que causam dificuldades
e tentar justificar isso através do processo de transferência.
Assim como a AC, o modelo de ontogenia considera que o aprendiz de L2 terá
como ponto de partida sua LM e, por conta disso, a LM irá interferir no processo de
aquisição. Por outro lado, o modelo traz a relevante hipótese de que a aquisição de L2
é composta por dois processos que ocorrem simultaneamente.

Adaptado de Major (1987, p.103)

O momento em que as duas linhas se cruzam pode ser considerado não só o


pico do processo de desenvolvimento, mas também o pico do processo de aquisição.
Após esse pico, a tendência é que os processos passem.
Talvez, considerar que dois processos ocorram ao mesmo tempo, e que, além
disso, estejam diretamente relacionados, possa ser um grande passo na tentativa de
compreender a complexidade do processo de aquisição de L2.

Desenvolvimento da criança versus desenvolvimento do adulto


Segundo o modelo, não há diferenças fundamentais entre o processo de aquisição
fonológica da criança e do adulto; a maior diferença estaria no ponto de partida. No caso dos
adultos o ponto de partida é a LM, já no caso das crianças o ponto de partida é seu sistema
nativo de pré-linguagem. A aquisição na criança e no adulto é similar porque ambos se
aproximam progressivamente da língua alvo partindo de um ponto inicial composto por
segmentos que já tenham adquirido, no caso do aprendiz adulto, ou de seu sistema inato, no
caso das crianças. Como exemplo, tem-se a comparação entre a aquisição do segmento
[Q] por uma criança nativa da língua inglesa e um falante de espanhol. Segundo Major,
tanto a criança aprendiz do inglês como L1, quanto o falante de espanhol, aprendiz de inglês
como L2 passarão pelo mesmo processo de desenvolvimento: [a] > [a]^ > [Q]& > [Q].

Fatores extralinguísticos
Outra característica importante do modelo de ontogenia é a articulação de dados
linguísticos e extralinguísticos. Embora o modelo de ontogenia tenha como base dados
intralinguísticos, considera que fatores extralinguísticos também possam interferir no

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 64


processo de aquisição. Dentre os dados considerados encontram-se: estilo (situações
de fala) e similaridade fonológica (línguas próximas).

Testando o modelo
O modelo de ontogenia está sendo aplicado na analise de dados coletos a partir
de entrevistas e experimentos realizados com estudantes de pós-graduação da Uni-
versidade de São Paulo. Pretende-se verificar, através de um estudo qualitativo, a
pertinência do modelo através da análise do processo de aquisição do português por
falantes de espanhol.

Aquisição das nasais do português por falantes


de espanhol e os processos de alofonia
Um dos aspectos abordados na pesquisa é a aquisição das vogais nasais do português.
Observa-se que a língua espanhola não possui em seu sistema fonológico as vogais nasais,
contudo, há ocorrência dessas vogais como alofones.
Considera-se que a língua espanhola possui cinco vogais nasais alofones do espanhol:
[i )] , [e) ] , [a) ] , [o) ], [u)]. Esses alofones ocorrem quando a vogal está entre duas nasais ou
em início de palavra e seguida de consonante nasal: mano [ma)no]; nino [ni)no]; anterior
[a)nterior], segundo Quilis (2000).
Por outro lado, Martins (2000) ressalta que não se trata do mesmo processo que
ocorre no português, porque as vogais não são tão nasalizadas, ou seja, pode-se dizer
que menos ar é expelido pela via nasal, em comparação ao que ocorre na produção das
vogais nasais do português. Por isso, o autor as denomina como oronasales, que pode ser
traduzida como orais-nasais. As orais-nasais do espanhol são alofones das vogais orais,
portanto, não apresentam valor distintivo. Como diz Akerberg (1998), são condicionadas
pelo ambiente e por isso o falante não tem consciência de sua existência.
Seria relevante considerar as características acústicas das vogais apontadas por
Medeiros:

Por ação de um articulador do trato oral, ou seja, pelo abaixamento do véu palatino,
cria-se um acoplamento de tubos de ressonância, cujo som da fala chega aos nossos
ouvidos como som vocálico nasal. Esta qualidade de som nasal ou nasalizado, ou seja,
a qualidade da nasalidade,é o resultado da passagem de ar pela cavidade nasal. No
caso das vogais nasais, o que ocorre é que parte do ar passa pela cavidade oral e parte
pela cavidade nasal, daí o acoplamento de tubos. (2007 , p.35)

Segundo Quilis (2000), as diferenças entre vogais orais e nasais reside nas
seguintes características:

a) orais: o véu palatino está aderido à parede faríngea, o fonador sai pela boca

Flávia Isabel da Silva Guimarães (p. 62-67) 65


b) nasais: o véu palatino não está aderido à parede faríngea, o ar sai simultaneamente
pela boca e pela cavidade nasal. (2000, p. 3).

Como vimos, em ambos os casos, há a passagem de ar pela cavidade nasal. É


possível que diferença entre as nasais do português e do espanhol esteja no abaixamento
do véu palatino. Portanto, faz-se necessário realizar uma analise acústica da realização
das nasais ou orais-nasais do espanhol para que seja possível verificar o que ocorre
com o véu palatino.
É fundamental para o resultado de nossa pesquisa que se considere o processo
de alofonia do espanhol e que se já possível descrever as diferença entre as nasais do
português e as orais-nasais do espanhol, pois somente a partir dessas definições será
possível distinguir a fase de interferência da fase desenvolvimento.

Considerações finais
Normalmente, se recorre à AC quando há o interesse em analisar a relevância da L1
no processo de aquisição da L2. Contudo, a AC concentra-se apenas na interferência
da L1 do aprendiz, enquanto o modelo de ontogenia dá um passo a frente e considera,
também, fatores extralingüísticos. Trata-se de um modelo específico para a aquisição
de fonologia que, segundo Major (1987), apresenta características peculiares como o
fato de que a transferência positiva é automática e, podemos acrescentar, inconsciente.
Outro fator positivo em relação ao modelo de ontogenia é considerar que os
processos ocorram simultaneamente. Em geral, os estudos concentram-se em verificar
cada processo da aquisição separadamente, já o modelo de ontogenia trabalha com dois
grandes processos – interferência e desenvolvimento - que estão diretamente relacionados.
Espera-se, então, que analise do processo de aquisição das vogais nasais possa
corroborar a eficácia do modelo de Major (1987). Além disso, pretende-se chegar à
definição das diferenças entre as vogais nasais do português e do espanhol, considerando
os processos de alofonia que podem interferir na aquisição do português como L2.

Referências
AKERBERG, M. As vogais nasais em português – um problema de percepção.
CONGRESSO INTERNACIONAL DO ENSINO DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA
ESTRANGEIRA, 5, 1998, Cidade do México. Anais... Cidade do México: UNAM,
1998. p. 169-84.
LADO, R. Linguistics across cultures. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1957.
MAJOR, R. C. A model for interlanguage phonology. In: IOUP, G.; WEINENBERG, S.H.
(Org.) Interlanguage phonology: the acquisition of a second sound system. Cambridge:
Newbury House Publishers, 1987. p. 101-24.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 66


MEDEIROS, B. R. Vogais nasais do português brasileiro: Reflexões preliminares de
uma revisita. Revista Letras, Curitiba, n. 72, p. 165-188, mai/ago. 2007.
MARTINS, M. D. Síntesis de fonética y fonologia del español para estudiantes brasileños.
São Paulo: UNIBERO/CenaUn, 2000.
QUILIS, A. Principios de fonologia y fonética españolas. Madrid: Arco Libros, 2000.

Flávia Isabel da Silva Guimarães (p. 62-67) 67


PROCESSOS DE RESSILABAÇÃO DO PORTUGUÊS
POR APRENDIZES JAPONESES
Gustavo Massami Nomura1

Resumo: Este artigo busca verificar como os falantes japoneses produzem sílabas do português
que não existem em sua língua materna, em especial, o caso dos encontros consonantais e
consoantes em posição final da sílaba. A análise é feita a partir das hipóteses de transferência
linguística, reativação da aquisição de L1 e preferência universal pela estrutura CV. Espera-se,
assim, que este artigo ajude os professores de língua portuguesa para japoneses a compreenderem
melhor alguns processos linguísticos importantes para a pronúncia adequada do aprendiz.

Abstract: This article attempts to verify how the Japanese speakers produce syllables in Portuguese
that do not exist in their native language, in particular the case of consonant clusters and
consonants in syllable final position. The analysis is based on the hypothesis of language
transfer, reactivation of L1 acquisition and universal preference for CV structure. It is expected
therefore that this article helps teachers of Portuguese for Japanese speakers to better understand
some important linguistic process for the proper pronunciation of the learner.

Um brasileiro diante da palavra sérvia mržnja certamente teria dificuldade em saber


como pronunciá-la, principalmente por sua constituição silábica inexistente na língua
portuguesa. Normalmente, o falante recorre a algumas estratégias para adaptá-la a estruturas
mais familiares. Partindo da mesma ideia, pretende-se observar quais as estratégias que
um falante japonês utiliza para conseguir pronunciar palavras em português com estruturas
silábicas inexistentes em sua língua materna.
A língua japonesa é formada basicamente por sílabas simples – aquelas constituídas
apenas por uma vogal – e abertas – as compostas terminadas por vogal. São encontradas
majoritariamente as sílabas constituídas por vogal (V) e consoante-vogal (CV):
• ie [i.e] (V.V)
• uta [u.ta] (V.CV)
• keshigomu [ke.Si.go.mU] (CV.CV.CV.CV)

Como destacado por Ohata (2004), não há em japonês palavras terminadas em


consoante ou com cluster inicial (CCV) e final (VCC).
A estrutura CVC só acontece com consoantes geminadas, como em [jok.ka].
Podem ocupar a posição final da sílaba, as consoantes [k, p, t], apenas nos contextos de
duplicação consonantal: [kap.pa] e [mot.to].

1 Mestrando em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 68


Na língua portuguesa, por outro lado, ocorrem encontros consonantais entre
duas consoantes diferentes, como no ataque silábico complexo (CCV), que em nenhuma
hipótese poderia ser realizado na língua japonesa:
• cru [kRu] (CVC)
• drible [dRi.blI] (CVC.CVC)

Além disso, é possível no português a ocorrência de sílabas terminadas por


consoante (VC ou CVC), o que também não ocorre no japonês:
• flertar [fler.tar] (CCVC.CVC)
• faísca [fa.is.k] (CV.VC.CV)

Tarone (1987), num estudo com falantes estrangeiros aprendendo inglês – no


caso, falantes nativos de cantonês, coreano e português –, levanta três possibilidades
para a estrutura silábica da interlíngua: transferência linguística, reativação da aquisição
de L1 e preferência universal por CV.
De acordo com a primeira hipótese, o aprendiz simplesmente usa a estrutura
silábica da L1 em sua tentativa de se comunicar adequadamente na língua-alvo. Ou
seja, se a L1 contém apenas sílabas VC, é previsto que o aprendiz transforme as sílabas
da língua-alvo em VC. No caso do japonês, todas as sílabas se tornariam V ou CV.
Na segunda hipótese, o aprendiz de L2 tende a fazer o que o falante de L1 faz com
a estrutura silábica durante a aquisição. Sílabas mais dif íceis seriam simplificadas pelo
aprendiz de L2 da mesma forma que é feito pelo falante de L1. Na aquisição da língua
materna das crianças brasileiras, observam-se dois processos para evitar a produção
de sílabas complexas. De acordo com dados de Ferrante et al (2009), até os seis anos de
idade, o processo majoritário é a redução de encontro consonantal: uma sílaba como
[bra] em “Brasil” é pronunciada como [ba], ou seja, a sílaba CVC passa a ser CV. Apenas
na faixa etária de sete anos, o processo de epêntese torna-se mais utilizado que o de
redução do encontro consonantal. Na palavra placa, por exemplo, a criança pode pronunciar
como [pa.la.ka], onde a sílaba CCV é separada em duas CV.
Oller (1974) acredita que os aprendizes de L2 não reativam processos de aquisição
de L1, mas sugere que os processos são diferentes. Na aquisição de L1, é mais característico
que os aprendizes com menos de 36 meses tendem a simplificar reduzindo ou apagando
sons difíceis como blue sendo pronunciado como [bue]. No entanto, na aquisição de L2, os
aprendizes usam outras estratégias: epêntese ao invés de redução de encontro consonantal
(tree > taree); epêntese ao invés de apagamento da consoante final (big > bigu); e, apenas
raramente, apagamento da consoante final.
A terceira hipótese de preferência universal por sílabas abertas (CV) é levantada
pelo fato de sílabas abertas existirem em todas as línguas. No processo de aprendizagem
de outra língua, há a tendência de quebrar sílabas dif íceis em sílabas CV. No caso dos
falantes de japonês, cuja estrutura silábica é basicamente CV, é possível prever que
eles utilizarão CV para falar português. Assim, é dif ícil saber se a causa é transferência

Gustavo Massami Nomura (p. 68-73) 69


linguística ou preferência universal. Essa hipótese pode ser derrubada pela pesquisa
de Sato (1987), onde foi verificado se há preferência por sílabas abertas na interlíngua
mesmo quando a língua materna prefere sílabas fechadas em sua estrutura silábica.
Para isso, a autora pesquisou duas crianças vietnamitas em processo de aquisição de
inglês. Sua pesquisa mostra resultados contrários à hipótese de preferência universal,
pois os falantes preferiram produzir sílabas fechadas naturais à fonologia de sua L1.
Considerando então que os aprendizes japoneses buscarão manter a estrutura
CV, há as seguintes possibilidades de realização das sílabas da língua portuguesa: a
redução de encontro consonantal nas sílabas CCV, o apagamento da consoante final
nas CVC ou a epêntese em ambos os casos.
Antes de ver os dados da pesquisa, é importante observar os casos de empréstimos
de palavras estrangeiras na língua japonesa. A palavra portuguesa ‘carta’ foi introduzida
com o sentido de ‘carta de baralho’, sendo pronunciada /ka.ru.ta/. Observa-se que a
sílaba inicial CVC /kar/ foi dividida em duas sílabas CV /ka.ru/ por meio da epêntese da
vogal /u/. O mesmo processo de epêntese acontece com outras palavras como ‘frasco’
que passou a /fu.ra.su.ko/, onde a sílaba CCVC foi separada em três sílabas CV,
assim como ocorre em ‘cruz’ /ku.ru.su/. Entretanto, há casos como ‘vidro’ que se
tornou /bi.do.ro/. Observa-se que a vogal epentética escolhida foi /o/ e não /u/ como
nos casos anteriores. Isso acontece porque /du/ em japonês é pronunciado [dzu].
Dessa forma, o falante opta por manter o som [d] utilizando outra vogal posterior. Assim
como pode acontecer com /tu/ passando a /to/ para que não se pronuncie [tsu].
Para esta pesquisa, foram gravados individualmente três informantes japoneses:
dois homens e uma mulher com idades entre 30 e 50 anos. Os três eram estudantes de
português há cerca de seis meses e estavam há menos de um ano no Brasil no momento da
gravação. Foi solicitado que lessem um texto com 195 palavras (cerca de 1.008 caracteres),
onde observam-se 102 segmentos passíveis de ressilabação.
Além disso, foi pedido que lessem uma lista com 28 palavras que apresentavam
sílabas CCV e CVC: advogado, aposta, argumento, atleta, blefe, clave, colheres, crianças,
crostas, estes, flerte, frete, glacê, grama, menestréis, mulher, pacto, perspicaz, placar,
pneu, ritmo, sacola, solstício, transtorno, trazer, três, trouxe, vertente.
Esse método foi utilizado porque algumas estruturas poderiam ser evitadas
pelos falantes numa conversa espontânea. Propositalmente, foram escolhidas palavras
pouco usuais e provavelmente desconhecidas dos alunos, para que o conhecimento da
pronúncia correta da palavra por simples memorização não influenciasse a pesquisa.
A leitura da lista de palavras apresentou um número maior de erros do que a
leitura do texto, tendo esta sido feita de modo claramente mais cuidadoso pelos três
informantes. Além disso, os tempos de gravação foram de 4’50’’, 6’02” e 6’45’’. A diferença
de quase 2 minutos entre o primeiro e o último é relevante, pois no caso do tempo maior,
a leitura foi feita de modo mais atento e, consequentemente, foram encontrados menos
erros. Para este artigo, foram utilizados os dados do sujeito que fez a leitura mais rápida.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 70


Na leitura do trecho, dos 102 segmentos passíveis de ressilabação e, consequen-
temente, sujeitos a erros por parte de um falante japonês, foram encontrados apenas
12 erros:
1. ‘as’ > /a.su/
2. ‘Luís’ > /lu.i.su/
3. ‘meses’ > /me.se.su/

Apesar desses erros, o /s/ em posição de coda silábica foi produzido corretamente
na palavra ‘histórias’, sem que se trocasse por /hi.su.to.rja.su/. Também estava
correto nas palavras ‘país’ e ‘estudantes’.
4. ‘olhar’ > /o.a.Ru/
5. ‘perspicaz’ > /pe.rus.pi.kas/
6. ‘ilustrar’ > /i.lus.tra.Ru/
7. ‘escolar’ > /es.ko.la.ru/
8. ‘ser’ > /se.ru/
9. ‘posteriormente’ > /pos.te.rjo.ru.men.ti/
10. ‘autor’ > /aw.to.Ru/

Apesar dos erros acima, o /r/ em posição de coda silábica foi produzido corretamente
em outros casos, como ‘despertar’, ‘prazer’ e ‘escritor’.
11. ‘adquiriu’ > /a.do.ki.rju/
12. ‘criará’ > /ku.ri.a.ra/

Em todos os casos foi realizado o processo de epêntese da vogal [u], com ex-
ceção do erro (11), no qual ocorreu a epêntese da vogal [o]. Como já apontado, em
japonês, não existe o som [du].
Na leitura da lista, foram encontrados os seguintes erros:
1. ‘advogado’ > /a.du.vo.ga.du/
2. ‘atleta’ > /a.tu.RE.ta/
3. ‘blefe’ > /bu.RE.fi/
4. ‘clave’ > /ku.ra.vi/
5. ‘crianças’ > /ku.Ri.an.sas/
6. ‘crostas’ > /ku.Ros.tas/
7. ‘flerte’ > /fu.RER.ti/
8. ‘frete’ > /fu.RE.ti/
9. ‘glacê’ > /gu.Ra.ce/
10. ‘menestréis’ > /me.nes.tRis/
11. ‘pacto’ > /pa.ku.to/
12. ‘pneu’ > /pu.new/
13. ‘ritmo’ > /hi.to.mo/
14. ‘solstício’ > /so.rus.ti.sju/
15. ‘transtorno’ > /tu.rans.toR.no/

Gustavo Massami Nomura (p. 68-73) 71


16. ‘trazer’ > /tu.Ra.zer/
17. ‘vertente’ > /ve.Ru.ten.ti/

O erro número 10 foi o único encontrado de apagamento. A palavra ‘menestréis’,


cuja divisão silábica é CV.CVC.CCVGC passou a CV.CVC.CCVC. No entanto, pode
ser considerado erro de leitura, pois a língua japonesa permite a produção de glides.
Entre os erros apontados acima, pelo menos quatro deles (23%) não podem
ser atribuídos à transferência linguística, pois os sons [tu] e [du] não fazem parte do
sistema fonológico da língua japonesa e, mesmo assim, optou-se pela epêntese do /u/
em /aduvogadu/, /atuREta/, /tuRanstoRno/ e /tuRazer/. Podemos contrapor
esse resultado ao que aconteceu com ‘ritmo’ que passou a /hitomo/ com a epêntese
da vogal /o/.
A estratégia de ressilabação usada majoritariamente foi a epêntese, tanto nas
sílabas CVC quanto nas CCV o que está de acordo com os resultados obtidos por Oller
e difere da hipótese de reativação da aquisição de L1.
Um estudo com falantes de língua japonesa, como já dito, não é o ideal para
lidar com a hipótese de preferência universal pela estrutura CV. Entretanto, a escolha
da vogal epentética seguiu os princípios da fonologia da língua japonesa, o que reforça
que houve transferência linguística entre a língua materna e a língua alvo. De acordo
com os dados, não houve, no entanto, simplesmente uma transferência apenas entre
sons existentes na língua materna. Vimos casos que não podem ser explicados por
pura transferência linguística, como no caso de [a.tlE.t] sendo realizado como
[a.tu.re.t], sendo que /tu/ não faz parte do sistema fonológico do japonês.
Apesar de o falante errar na produção de alguns segmentos, pôde produzi-los
corretamente em outros contextos, o que mostra que parte desses erros não são sistemáticos,
podendo caracterizar-se como deslizes.
Observou-se, portanto, que os erros cometidos pelo falante japonês podem
ser entendidos a partir de sua língua materna. Sendo assim, um professor que tenha
conhecimento disso pode trabalhar melhor essa dificuldade. No entanto, uma simples
previsão feita por meio de uma análise contrastiva entre as duas línguas também não
consegue explicar todos os desvios cometidos.

Referências
FERRANTE, C. et al. Análise dos processos fonológicos em crianças com desenvolvimento
fonológico normal. Rev. soc. bras. fonoaudiol., São Paulo,  v. 14,  n. 1,2009.Disponível em:
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REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 72


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Gustavo Massami Nomura (p. 68-73) 73


ASPECTOS SEGMENTAIS DA PRONÚNCIA
DO PORTUGUÊS POR FALANTES
NATIVOS DE INGLÊS
Miley Antonia Almeida Guimarães1

Resumo: Este artigo trata de alguns fenômenos fonético-fonológicos recorrentes na produção


oral em português por falantes nativos de inglês, a saber: 1. produção de [l] e [m] em posição
final de sílaba, 2. ausência de nasalização das vogais, 3. substituição do tepe [] pela retroflexa
[] e 4. pronúncia ortográfica. O corpus foi composto por dados de entrevistas concedidas
por cinco aprendizes: três americanos, um inglês e um irlandês. Aspectos segmentais de sua
pronúncia foram contrastados com a variedade do português da cidade de São Paulo.

Abstract: This article deals with certain recurrent phonetic and phonological phenomena
in the speech of native English learners of Portuguese, as follows: 1. production of [l] and
[m] in syllable-final position, 2. absence of vowel nasalization; 3. substitution of the flap []
for the retroflex [] and 4. spelling pronunciation. The corpus was compiled using data from
interviews with five learners: three Americans, one English and one Irish. Segmental aspects
of their pronunciation were contrasted with the city of São Paulo’s variety of Portuguese.

Introdução
O Brasil ocupa atualmente uma posição político-econômica privilegiada no
cenário internacional, o que tem atraído um número crescente de estrangeiros para
as empresas e universidades brasileiras. O maior interesse pelo país tem resultado no
aumento da procura pelo ensino do português por falantes de outras línguas (PFOL) e,
consequentemente, impulsionado o desenvolvimento de pesquisas na área. Verifica-se,
no entanto, que ainda são escassos os estudos que tratam da aquisição de determinados
aspectos do PFOL, como a aquisição de aspectos fonético-fonológicos.
Neste artigo, pretende-se descrever e analisar os seguintes dados segmentais
encontrados de forma recorrente na produção oral de aprendizes de PFOL que têm o inglês
como língua nativa: 1. produção de [l] e [m] em posição final de sílaba, 2. ausência de
nasalização das vogais, 3. substituição do tepe [] pela retroflexa [] e 4. pronúncia
ortográfica.
Para a análise dos fenômenos fonético-fonológicos acima listados, fez-se uso do
modelo de Análise de Erros (CORDER, 1967; 1981) e, no que concerne especificamente
à aquisição do português brasileiro por falantes nativos de inglês, considerou-se o trabalho
de Azevedo (1981).

1 Mestre em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 74


O modelo de Análise de Erros se sobressai à Análise Contrastiva (LADO, 1957)
ao acrescentar outras explicações para a origem dos desvios do aprendiz, além da
transferência da primeira língua (L1) para a língua-alvo. Por meio da análise de erros
a posteriori, e não como predição, a AE procura abarcar outras origens para os erros,
além de validar a hipótese da transferência. Nessa abordagem, os erros se subdividem
em sistemáticos, provenientes de conhecimento ausente ou limitado das características
da segunda língua (L2), e não sistemáticos, causados por deslizes, lapsos ou desatenção
do falante. De acordo com o modelo, os erros sistemáticos são os tipos de erros que
devem ser analisados, uma vez que são tidos como fonte principal de informação sobre
o estágio de desenvolvimento em que se encontra o aprendiz (CORDER, 1981, p. 35).
Por ter caráter flexível no que concernem as motivações que levam o aprendiz a
cometer determinado tipo de erro, a AE ainda é frequentemente adotada nas pesquisas
atuais.
O presente artigo estrutura-se pelas seguintes partes: esta introdução, metodologia,
subdividida em “informantes” e “procedimentos”, análise dos dados, na qual se tem a
descrição e análise dos desvios segmentais mais frequentes na produção oral dos informantes
e, finalmente, considerações finais.

Metodologia

Informantes
O critério para a escolha dos informantes foi o de serem falantes nativos de
inglês que tivessem iniciado a aprendizagem de português em idade adulta. Apesar
de as nacionalidades serem diferentes, americana, inglesa e irlandesa, levantou-se a
hipótese de que houvesse padrões em comum na realização de processos fonético-
-fonológicos entre os diferentes informantes, o que se constatou posteriormente.
Na Tabela 1, seguem-se informações sobre cada um dos participantes.

Tempo Outras
Informante Origem Profissão Sexo Idade Escolaridade
no Brasil línguas
cursando
1 EUA estudante F 23 1 mês -
superior
cursando
2 EUA estudante M 23 1 mês espanhol
superior
cursando
3 EUA estudante M 20 1 mês2 -
superior
diretor italiano
4 Inglaterra M 40 superior 20 meses
financeiro espanhol
5 Irlanda professor M 27 superior 06 meses alemão

Tabela 1 – Informações sobre os informantes2

2 É a sua quinta viagem ao Brasil, sendo que as vezes anteriores foram em período de férias (1-2 meses).

Miley Antonia Almeida Guimarães (p. 74-79) 75


Os três informantes americanos vieram ao Brasil para um curso intensivo de
português para estrangeiros oferecido pelo Centro de Línguas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (CL-FFLCH-USP). Já estudavam
português nos Estados Unidos há um ano antes de ingressarem no programa de férias
do CL.
Os informantes inglês e irlandês vieram ao Brasil a trabalho, o primeiro, como
diretor financeiro de uma multinacional inglesa e o segundo, como professor de inglês.
Não tinham conhecimento prévio do idioma, iniciando as aulas de português assim
que chegaram ao país.

Procedimentos
A coleta de dados se deu através de entrevistas, em sala de aula, com cada um dos
informantes. Perguntou-se a eles o que faziam em seu país de origem, em suas horas
vagas, e sobre as impressões que tinham a respeito do Brasil e da língua portuguesa.
As entrevistas foram gravadas em áudio e tiveram em média seis minutos de
duração. Os dados de fala foram contrastados com o português da cidade de São Paulo,
variedade escolhida como padrão por ser o local de imersão dos informantes. Em seguida,
amostras de palavras com desvios segmentais foram extraídas do corpus e foneticamente
transcritas por meio do International Phonetic Alphabet (IPA).

ANÁLISE DOS DADOS

Produção de [l] e [m] em posição final de sílaba


O fonema /l/ não tem valor consonantal em final de sílaba, sendo produzido
como [w] na maioria dos dialetos brasileiros (SILVA, 2002). Os informantes 1, 3 e 4
geralmente produziram a contraparte velarizada da lateral [] em posição final de sílaba,
p. ex., metal [me’ta], igualzinho [i.gwa’zi.] e geral [ge’a], tal como a lateral é pro-
nunciada nesse contexto em inglês (LADEFOGED, 2001).
Nesse caso, a articulação distinta do padrão pode não ser prejudicial à inteligibilidade
do aprendiz, já que se constitui em uma variação relativamente familiar ao ouvinte
brasileiro. É possível, no entanto, que haja ruído na comunicação quando [] é realizado
em posição de fronteira de palavras antecedendo palavra iniciada por vogal.
Em português, /m/ também não tem valor consonantal em final de sílaba, apenas
nasaliza a vogal que o antecede e, dependendo do contexto de produção, faz surgir um
ditongo: exemplo [e’zej.pl], bom [bõw], também [tm’bej]. Os informantes 1, 2 e 5
produziram /m/ sistematicamente em posição final de palavra, formando, por vezes,
uma juntura entre fronteiras, por ex., com ele [ko’me.le] e com um [ko’mum]. O desvio
nesse contexto pode causar falha na comunicação, uma vez que a inserção da consoante
nasal em com ele e com um pode criar mais de uma possibilidade de significação para
as realizações: como ele e comum (ou como um).

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 76


Por serem /l/ e /m/ produzidos em inglês em posição de final de sílaba, tem-se,
portanto, um processo de transferência da L1 para a língua-alvo.

Ausência de nasalização das vogais


Em português, as vogais tornam-se foneticamente nasalizadas quando adjacentes
a uma consoante nasal na mesma sílaba, p. ex., campo [‘kã.p]. De acordo com Azevedo
(1981, p. 71), a nasalização também ocorre em inglês, devendo assim ser transferida ao
português sem dificuldades. No entanto, notaram-se na fala dos informantes 1, 2, 3 e
4 algumas realizações sem a nasalização da vogal, p. ex., estudante [estu’dan.t], canto
[‘kan.to], tentando [ten’tan.d] e finanças [fi.’nan.ss]. Tais realizações podem trazer
sotaque à fala do aprendiz, mas não afetam a sua inteligibilidade, visto que as vogais
nesse contexto não se constituem como fonemas nasais.
Ressalta-se que não houve a produção dos ditongos [ej] e [õw] por nenhum dos
informantes (fenômeno característico da variedade escolhida como padrão). Dessa forma,
então, também e com foram produzidos, respectivamente, como [e’taw], [tm’bem] e
[kom], e não [e’tw], [tm’bej] e [kõw]. Ao contrário da produção de /m/ em posição
de fronteira de palavras, a ausência do ditongo não acarreta em ruído na comunica-
ção.
Por outro lado, a ausência de nasalização pode prejudicar a inteligibilidade do
falante caso leve o ouvinte à não distinção entre pares mínimos, p. ex., mão [mw] / mau
[maw], são [sw] / sal [saw], em uma rara situação em que o contexto extralinguístico
não favoreceria a resolução da ambiguidade.

Substituição do tepe [] pela retroflexa []


Os informantes americanos frequentemente alternaram entre o uso do tepe []
e da retroflexa [], p. ex., português [po.tu’es] / portuguesa [po.tu’e.s], aprender
[a.pen’de] / marcante [ma’kan.te]. Sabe-se que o falante de inglês usará a retroflexa
como uma primeira aproximação do tepe (AZEVEDO, 1981, p. 58), o que denota clara
interferência da L1 dos aprendizes. Embora o tepe ocorra em posição intervocálica em
algumas variedades do inglês americano, como em waiter e writer, percebe-se que este
som não é transferido facilmente ao português (AZEVEDO, 1981, p. 79), talvez por
não corresponder graficamente à letra r.
Apesar de a retroflexa ser carregada por um traço de sotaque, dificilmente causa
problemas à inteligibilidade do falante, já que é uma representação do r presente no
repertório fonético dos ouvintes brasileiros (‘r’ caipira).

Pronúncia ortográfica
A pronúncia ortográfica ocorre quando o aprendiz opta pela pronúncia em sua
L1 quando a palavra é graficamente semelhante à língua-alvo. Esse desvio foi bastante
recorrente na fala dos informantes 1, 3 e 5, p. ex., música [‘mju.zi.ka], internacionais

Miley Antonia Almeida Guimarães (p. 74-79) 77


[in.te.na.jo’najs] e exemplo [eg’zem.pl], em inglês, respectivamente, [‘mjuzk],
[ntənæənəl] e [g’zmpəl].
Caso a substituição seja por fonemas inexistentes em português, somada à falta
de familiaridade do ouvinte com o inglês ou com o sotaque do aprendiz anglófono,
haverá dificuldade de compreensão da fala do aprendiz.

Considerações Finais
Buscou-se neste breve estudo descrever e explicar quatro fenômenos recorrentes
na fala de aprendizes de português falantes nativos de inglês.
Dentre os fenômenos listados, acredita-se que a falta de nasalização das vogais
que constituem fonemas nasais, a produção de [l] e [m] em posição final de palavra
e a pronúncia ortográfica sejam desvios que não apenas marquem sotaque, mas que
também afetem a inteligibilidade do falante, uma vez que resultam em substituição de
fonemas. Seria necessário, no entanto, um teste de percepção com falantes nativos do
português para que se corroborasse essa hipótese.
O processo que constitui a aquisição de PFOL revela-se como um campo fértil
para pesquisas. Futuros estudos que incorporem uma maior quantidade de dados e
que adicionem à entrevista espontânea, dados de fala controlados, de modo a excluir a
tendência do informante em evitar segmentos de dif ícil produção, poderiam fornecer
resultados mais definitivos sobre quais são os fenômenos mais relevantes na pronúncia
do português de aprendizes anglófonos e quais os processos que devem ser enfatizados
no ensino, com vistas à promoção da inteligibilidade do falante.
Vale lembrar que a importância da descrição e análise da produção oral dos
aprendizes de PFOL está, especialmente, no fornecimento de dados para o tratamento de
desvios, fomentando-se assim o ensino e favorecendo o aumento das possibilidades de
comunicação entre falantes nativos e não-nativos de português, uma vez que a barreira
da pronúncia se faça amenizada.

Referências

AZEVEDO, M. A. Contrastive Phonology of Portuguese and English. Georgetown,


USA: Georgetown University Press, 1981.

CORDER, S. The Significance of Learners Errors. IRAL, v. 5, n. 4, 1967.

______. Error Analysis and Interlanguage. Oxford: Oxford University Press, 1981.

LADEFOGED, P. Vowels and Consonants: An introduction to the sounds of languages.


Oxford: Blackwell Publishers, 2001.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 78


LADO, R. Linguistics across cultures. Ann Arbor: University of Michigan, 1957.

SILVA, T. Fonética e fonologia do português brasileiro: roteiro de estudos e guia de exercícios.


São Paulo: Editora Contexto, 2002.

Miley Antonia Almeida Guimarães (p. 74-79) 79


AQUISIÇÃO DOS TEMPOS VERBAIS
DO PORTUGUÊS NO ENSINO DE PLE
Juliana Chaves Souza 1

Resumo: Este trabalho busca discutir as dificuldades na aquisição dos tempos verbais do
português como língua estrangeira por estudantes matriculados no curso de Português para
estrangeiros do Centro de Línguas da FFLCH-USP. O corpus deste trabalho baseia-se em
redações elaboradas no respectivo curso, nas quais foi possível detectar dificuldades em relação
ao uso dos tempos verbais na produção escrita do português. Assim, será possível detectar
elementos dificultadores na aprendizagem/aquisição das flexões verbais do Português como
língua estrangeira.

Abstract: This article discusses the difficulties in the acquisition of verb tenses of Portuguese as
a foreign language by students enrolled in the Portuguese course for foreigners at Centro de
Línguas in FFLCH-USP. The corpus of this work is based on essays produced in this course, in
which it was possible to detect difficulties in the use of tenses in the written form of Portuguese.
Thus, it can be possible to detect dificult elements in the learning / acquisition of verbal
inflections of Portuguese as a foreign language.

A Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São


Paulo dispõe de diversos cursos voltados à cultura e à extensão universitária. Dispõe
ainda, como um órgão interdepartamental objetivando o estudo e o ensino de línguas, de
um Centro de Línguas voltado ao apoio à formação acadêmica da comunidade universitária.
A proposta pedagógica do referido centro tem se ampliado e se diversificado cada vez
mais, pois além de cursos instrumentais, direcionados para a leitura e interpretação
de textos acadêmicos em diversas línguas estrangeiras; este oferece também cursos de
preparatórios para exames internacionais de língua inglesa, além de cursos de Português
como língua estrangeira (PLE) e redação acadêmica em Português.
A procura dos cursos de português como língua estrangeira pela comunidade
USP aumentou significativamente ao longo dos anos, conseqüência da ampliação do
contingente de alunos estrangeiros que escolhem o Brasil como um país propício ao
intercâmbio, bem como as universidades públicas brasileiras como referência no ensino
e na pesquisa universitária. Tais cursos possuem uma carga horária de sessenta horas
semestrais, divididas em duas horas por semana e atendem a estudantes, funcionários
e professores advindos da comunidade USP.
O objetivo dos cursos de PLE é possibilitar a produção de textos orais e escritos
voltados para atividades realizadas no âmbito acadêmico; desta forma o aluno contribui

1 Mestre em Filologia e Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP.
Atuou como professora de português para estrangeiros junto ao Centro de Línguas da FFLCH - USP.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 80


significativamente para o desenvolvimento do programa de estudos, além do professor
possuir autonomia para a escolha de livros e materiais adequados possibilitando ainda, a
criação de seu próprio material didático. O conteúdo a ser trabalhado ao longo de cada
semestre abrange aspectos lingüísticos como a fonética, a ortografia e a morfossintaxe
do português falado no Brasil; além de aspectos da cultura brasileira. Estes últimos
apontam para seleção de professores, não somente com bom domínio gramatical, mas
também com conhecimentos sobre a diversidade cultural e linguística brasileira.
Durante os quatro semestres de ministramento em que pude investigar e lecionar
português junto ao Centro de Línguas da FFLCH-USP, diversos conteúdos foram
trabalhados, estes auxiliados por diferentes materiais que possibilitaram aos alunos o
contato com textos autênticos, filmes, músicas e a exploração de lugares interessantes
como museus e teatros. Deste modo, os alunos puderam depreender, através de recursos
que os interessavam, aspectos gramaticais da língua portuguesa.
Embora tenha sido notável o aprendizado de aspectos linguísticos importantes
para cada turma dividida em níveis, a saber: básica, intermediária e avançada; o que
me despertou a atenção como linguista e professora, foi o interesse dos alunos acerca do
aprendizado de aspectos morfológicos, mais especificadamente, dos tempos verbais do
Português. Cabe acrescentar, neste ponto, que as turmas possuíam alunos de diferentes
nacionalidades, tanto da América latina quanto de países europeus (França, Holanda,
etc), africanos (Tunísia) e asiáticos (China, paises árabes).
Segundo minha observação durante as aulas ministradas, para alguns estudantes
o aprendizado pleno de uma segunda língua se manifesta quando os alunos possuem
a capacidade de conjugação de verbos em diferentes tempos e modalidades. Ainda,
como exemplo, alguns afirmavam que apenas quando soubessem conjugar devidamente
os verbos no modo subjuntivo, é que estariam aptos a fazerem exames de proficiência
em língua portuguesa ou ao pleno desenvolvimento da comunicação oral.
O interesse mostrado pelos alunos sobre a aquisição dos tempos verbais me
proporcionou um olhar investigativo para como se manifesta tal aprendizado, desta
maneira, através de redações produzidas por eles ao longo do curso, foi possível detectar
alguns desvios do português padrão relacionados à flexão verbal portuguesa e conse-
quentemente, a criação de algumas hipóteses sobre os elementos que podem dificultar
este aprendizado. Como embasamento teórico, tomarei como base o modelo de Análise
de Erros (AE) proposto por Corder (1967). Segundo este autor o estudo sistemático
dos erros cometidos pelos aprendizes de uma segunda língua durante o processo de
aquisição pode revelar as áreas de dificuldades dos aprendizes, bem como contribuir
para o entendimento de estratégias realizadas durante o processo de ensino. Vejamos
alguns dos principais desvios encontrados:

Juliana Chaves Souza (p. 80-86) 81


a) Uso do infinitivo como presente do indicativo:
(1) ‘eu morar sete meses aqui na São Paulo’
(2) ‘eu não falar muito português agora’
(3) ‘eu estudar na usp e morar perto da USP’
(4) ‘Brasil é um novo país que eu não conhecer’

b) Troca entre as desinências número-pessoais do pretérito.

(5) ‘a minha chegada no Brasil eu teve muito medo’


(6) ‘Quando eu estudava na França eu desenvolveu um grande amor para sul
americano’
(7) ‘O primeiro dia no Brasil fiz muito frio’
(8) ‘Eu e Renan foi para o Rio para visitar pai dele’

c) Uso do pretérito perfeito no lugar do imperfeito:

(9) ‘Cheguei no Brasil quando a chuva chegou também! Foi muito dif ícil para
mim porque na França foi verão’
(10) ‘depois de duas semanas achei um apto que esteve mais dif ícil do que eu ex-
pectei’
(11) ‘já fui no Brasil o verão passado, no estado da Bahia durante dois meses. Aí,
teve sol, praias e pessoas muito simpáticas’

d) Uso do futuro no modo subjuntivo:

(12) ‘Agora não posso escrever mais mas espero que aproveitarei’
(13) ‘Eu espero que eu vou para falar muito bem a língua’
(14) ‘espero que eu vou gostar esse semestre’
(15) ‘Espero que as aulas de português vão ajudar-me’

e) Transferência de verbos de outras línguas para o português:

(16) ‘quando eu arrive (no apto.) eu encontro a dona de casa (empregada)’


(17) ‘Quando lleguo no Brasil depois Argentina’
(18) ‘Espero tener uma morada rapidamente’
(19) ‘Eu, Elisa e meu cachorro conocemos o Glanni’

Nos exemplos sobre o uso dos verbos no infinitivo como presente do indicativo
percebemos que o infinitivo é a forma menos marcada do Português, além disto, esta
é a forma lexicalizada do verbo, pois é aquela encontrada no dicionário. Vejamos a
definição de Camara Jr. (2009) sobre este tempo:

O infinitivo é a forma mais indefinida do verbo. A tal ponto, que costuma ser
citado como o nome do verbo, a forma que de maneira mais ampla e mais vaga

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 82


resume a sua significação, sem implicações das noções gramaticais de tempo,
aspecto ou modo. (2009, p.103)

De acordo com o observado durante as aulas de PLE, é comum, principalmente


nos primeiros estágios o uso do infinitivo no lugar do presente do indicativo, tanto na
modalidade escrita quanto oral, fato que mostra que os alunos ainda não dominam as
flexões verbais portuguesas. Assim, eles recorreram a formas não marcadas dos verbos
que não possuem implicações das desinências modo-temporais e número-pessoais do
português.
Ainda, segundo Camara Jr. (2009) outro elemento dificultador para a aquisição
dos tempos verbais do português é a própria estrutura da flexão portuguesa, que para
muitos aprendizes não é tão fácil de ser compreendida. Camara Jr. (2009) propõe uma
Regra de Análise Estrutural que pode ser representada conforme abaixo:
T (R + VT) + SF (DMT + DNP), donde:
T = tema; R = radical; VT = vogal temática; SF = sufixos flexionais;
DMT = desinência modo-temporal; DNP = desinência número-pessoal.

Em “colocávamos”, por exemplo, podemos visualizar todas as partes que compõem


a estrutura verbal: Tema {coloc-(raiz) + -a- (VT)} + Sufixo flexional {-va- (DMT) + -mos
(DNP)}. Segundo o linguista, a complexidade para a interpretação do morfema flexional,
propriamente verbal, em português, decorre, em primeiro lugar, da cumulação, que
nele se faz, das noções de tempo e modo, além da noção suplementar de aspecto que
às vezes se inclui naquela primeira.
Para melhor visualização, compararemos a estrutura de um verbo em inglês:
I eat Eu como
He/ She/It eats Ele/Ela come
We eat Nós comemos
They eat Eles comem

Percebemos que neste verbo, como a maioria dos verbos em língua inglesa, a
estrutura tende a ter menos flexões que o Português, pois não há muitas modificações nas
formas verbais, principalmente naquelas ditas regulares. Em contrapartida, o verbo
em Português, assim como os das línguas flexionais, possui a noção de tempo e pessoa
implícita na conjugação verbal, e tal cumulação destas noções pode não ser tão clara
para os aprendizes de Português como L2/LE.
Na análise das trocas entre as desinências número-pessoais do pretérito percebemos
que nos exemplos são destacados alguns verbos como fazer e ter. De acordo com Amado
e Rodrigues (2010) os aprendizes de L2 terão problemas na percepção e produção oral
das alternâncias vocálicas do Português.

Podemos encontrar dificuldades de percepção dos sons do Português, princi-


palmente os vocálicos, por falantes não-nativos e a consequente transferência

Juliana Chaves Souza (p. 80-86) 83


de sons de sua L1, ou uma tentativa de aproximação desses sons, além de uma
possível transferência desses fatos orais para a escrita desses aprendentes.
(AMADO; RODRIGUES, 2010, p.15)

Ainda, conforme descrito por Camara Jr. (2009) na língua portuguesa há as


alomorfias referentes aos radicais de verbos tanto do padrão geral quanto dos padrões
especiais, tais alomorfias se dão na mudança de consoantes ou na alternância vocálica
envolvendo as vogais médio-baixas, médio-altas e altas.
As questões de ensino/aprendizagem relacionadas à diferenciação do pretérito
perfeito e imperfeito puderam ser observadas durante o ensino de PLE, pois, frequen-
temente, os alunos tinham dúvidas na hora da aplicação de uma ou outra forma verbal.
Estas incertezas puderam ser bem mais compreendidas quando os alunos entenderam que
o que está em evidência, no que tange aos tempos verbais referidos, é uma diferenciação
aspectual. De acordo com Camara Jr (2009) o pretérito apresenta duas divisões, o primeiro
é anterior ao outro chamado como pretérito-mais-que-perfeito e que também possui
um rendimento mínimo na língua oral, empregando em seu lugar o pretérito perfeito ou
uma locução de particípio com o verbo auxiliar ter (ex: tinha cantado em substituição a
cantara); o segundo, em relação ao momento da enunciação, também pode ser dividido
e formar, juntamente com a noção de aspecto, o pretérito imperfeito, que assinala um
processo inconcluso, ou o perfeito, que é indiferente a essa distinção.
Em relação aos desvios relacionados ao modo subjuntivo, este expressa incerteza,
possibilidade ou dúvida, em adição, os tempos deste modo verbal não apresentam uma
noção tão definida como no modo indicativo. Ainda, há uma correlação significativa
do tempo do subjuntivo nas orações subordinadas com o verbo da oração principal.
Desta maneira, há formas verbais específicas e distintas na manifestação deste modo,
as quais são dependentes de uma palavra que o domina como o advérbio talvez, entre
outros. Nos falantes nativos da língua portuguesa também notamos, frequentemente, o
uso do futuro do presente do indicativo no modo subjuntivo, fato que deixa em evidencia a
complexidade de aquisição desse modo verbal, geralmente menos usado que o indicativo.
Durante as aulas de PLE a proposta mais significativa no que tange ao uso correto dos
verbos no modo subjuntivo, foi o trabalho com textos autênticos nos quais, os alunos
puderam se atentar nas representações de tais formas e flexões verbais e, consequen-
temente, depreender seu uso para as suas necessidades linguísticas individuais.
A transferência de verbos de outras línguas para a língua em aprendizado,
também foi um recurso bastante utilizado pelos aprendizes em questão. De acordo com
pesquisadores de L2 a aquisição dá-se através do conhecimento da L1 e de estratégias
de resolução de problemas, deste modo, os alunos tendem a transpor palavras e até
estruturas de L1 no aprendizado de L2. Segundo a Análise de Erros (AE) as causas dos
erros cometidos pelos alunos podem se basear na interferência de estruturas linguísticas
de L1 no aprendizado de L2, deste modo pode ser comum a utilização de estratégias

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 84


advindas de sua língua materna ou até mesmo de outras línguas aprendidas anterior-
mente e que também podem se manifestar durante o processo de aquisição.
Contudo, ainda é vasto o campo de pesquisas necessárias para o pleno aprendizado
de uma língua estrangeira, o que se procurou mostrar neste artigo é um pouco do que os
professores podem encontrar e classificar como “erros” em relação à aquisição verbal
nas aulas de PLE. Entretanto é tarefa do professor tentar compreender o porquê das
manifestações de tais desvios.
Por fim, foi significativamente notável durante as aulas ministradas, que ensinar
uma L2/ LE não é o mesmo que ensinar uma língua materna, pois o professor tente a lidar
com universos culturais e linguísticos já sistematizados pelos aprendizes, e necessita, a
partir dos valores trazidos pelos alunos, encontrar a melhor forma de ensinar a língua alvo.

Considerações finais
Neste trabalho foi possível discutir sobre as dificuldades de aquisição dos tempos
verbais do Português na produção escrita de alunos participantes do curso de PLE.
Nos textos produzidos, foram detectados desvios de norma do Português formal
como: o uso do infinitivo como presente do indicativo, a troca entre as desinências
modo-temporais do pretérito, o uso do futuro no modo subjuntivo, a troca entre as
desinências número-pessoais do pretérito e a transferência de estruturas de outras
línguas para o Português.
A partir desses desvios foi possível estabelecer algumas hipóteses sobre os elementos
dificultadores na aquisição verbal baseando-se na própria estrutura da língua portuguesa
conforme estabelecido por Camara Jr. (2009) em contraste com outras línguas como
o Inglês.
Desta forma, vimos que os estudantes recorrem a diferentes estruturas na tentativa
de adquirir a língua alvo como à formas não marcadas do infinitivo; ainda, os alunos
apresentaram dificuldades na percepção das alternâncias vocálicas do Português, na
diferenciação aspectual do pretérito perfeito e imperfeito e na compreensão das noções
de incertezas e probabilidades expressas pelo modo subjuntivo.
Assim, através da discussão proposta e do compartilhamento de experiências
adquiridas ao longo das aulas de PLE, este artigo tende a contribuir para a discussão
acerca dos aspectos linguísticos da aquisição do Português L2/LE.

Referências
AMADO, R. S.; RODRIGUES, R. A flexão do verbo no português. In: LIMA-HERNANDES,
M. C.; CHULATA, K. A. (Orgs.). Língua Portuguesa em foco:ensino-aprendizagem,
pesquisa e tradução. Lecce, Itália: Pensa Multimedia, 2010. p. 45-71.

Juliana Chaves Souza (p. 80-86) 85


CAMARA Jr., J. M. Estrutura da língua portuguesa. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
CORDER, S.P. The significance of learner’s erros. International Review of Applied Linguistics,
v. 5, p.161-9,1967.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 86


ENSINO E APRENDIZAGEM DE MORFOLOGIA
VERBAL PARA ESTRANGEIROS
Maria Elizabeth Leuba Salum1

Resumo: Neste artigo, propõe-se forma didática de apresentação da morfologia de alguns


verbos ditos irregulares nos tempos do subjuntivo, de acordo com as observações feitas por
Joaquim Mattoso Camara Jr. em seus estudos sobre o tema.

Abstract: This article discusses the use of a didactic way to introduce the morphology of
several known irregular verbs in the subjunctive tense according to the observations made
by Joaquim Mattoso Camara Jr. in his studies about this subject.

Introdução
Este artigo destina-se a professores de PLE (português como língua estrangeira)
e tem como objetivo facilitar a aquisição/ aprendizagem dos tempos simples do subjuntivo
de um grupo de verbos com suposta irregularidade de radical, reunidos por Camara Jr.
(1972, 1970), que chama atenção para o fato de que:

[...] A enumeração desses verbos [ditos “irregulares”] em “ordem alfabética”


(isto é, por um critério ordenador externo e superficial) deve ceder lugar a
novo tratamento descritivo. Ainda aqui é preciso fugir da memorização pura e
simples, que é o mais inconveniente meio de aprender. Na realidade, o estudante
com ela só aprende afinal, porque consegue entrever um pouco, embora
intuitivamente, as relações e coincidências que a enumeração alfabética
convencional está encobrindo. (Camara Jr., 1970, p.101)

Quatro décadas depois, ainda é isso que se vê na maioria das gramáticas de


português para brasileiros e estrangeiros, mesmo naquelas que trazem nas referências
bibliográficas pelo menos uma das obras do linguista. De sete gramáticas voltadas para
estrangeiros analisadas por Salum (2007), apenas uma, de caráter confessamente didático,
libertou esses verbos da velha lista alfabética (HUTCHINSON, A.; LLOYD, J., 2002).2

1 Doutora em Filologia e Língua Portuguesa (FFLCH-USP), é professora da área de português do Centro


de Línguas (FFLCH-USP).
2 Para os interessados em consultar o tratamento específico do tema em cada uma delas, consultar
Salum (2007), em que se estudou o tratamento da morfologia verbal em duas gramáticas voltadas para
brasileiros e em sete gramáticas voltadas para estrangeiros, publicadas em língua estrangeira (alemão,
espanhol, francês, inglês e italiano) e em português.

Maria Elizabeth Leuba Salum (p. 87-95) 87


Nem mesmo as excelentes gramáticas de Cunha e Cintra (2001) e Bechara
(1999), que são de consulta obrigatória para professores de português, suprem uma
lacuna importante apontada por Camara Jr. (1972, p. 114):

Este artigo, que visa a uma reformulação do conceito de irregularidade verbal e da


maneira de descrevê-la na gramática portuguesa, é em princípio de lingüística
teórica e não de lingüística aplicada. Apenas procura lançar naquela os funda-
mentos em que esta deve assentar.
Ao professor de língua portuguesa é que cabe a manipulação didática da nossa
exposição, inclusive a organização de exercícios práticos, baseados nas oposições
e correlações formais que aqui se apresentam.

A manipulação didática que se fará aqui não inclui exercícios práticos até porque,
nas décadas de 1960 e 1970, quando as obras do linguista foram publicadas, a exercitação
de conceitos gramaticais era de natureza estruturalista. No entanto, o professor poderá
criar em sala de aula atividades que respeitam os preceitos das modernas abordagens
para o ensino de português como língua estrangeira.
Neste artigo, o objetivo é propor uma forma didática de apresentação desse
grupo de verbos para que o professor possa reproduzi-la em suas aulas, à medida que for
sistematizando a morfologia dos tempos do subjuntivo. Fique claro que essa sistematização
deve “fugir da memorização” e contribuir para que o aluno perceba mais rapidamente
“as relações e coincidências” entre os verbos desse grupo.

Fundamentação teórica
Camara Jr. (1972) descreve a estrutura do verbo em português por meio de uma
fórmula matemática [t (r + vt) + sf (smt + snp)], em que t é o tema (composto de
radical e vogal temática) e sf é o sufixo flexional (composto de sufixo modo-temporal
e sufixo número-pessoal). Essa fórmula pode ser aplicada a todas as formas dos verbos
regulares das três conjugações verbais, que para o autor fazem parte do “padrão geral”.
Assim, pode ser também aplicada às formas dos três tempos simples do subjuntivo:
presente (SbPr), pretérito imperfeito (SbPt) e futuro (SbFt), conforme se vê no Quadro 13.

3 (a) Ilustram-se apenas as formas verbais em uso no Brasil, ou seja, 1ª e 3ª pessoas do singular, e 1ª e
3ª pessoas do plural. Ainda que, em algumas regiões do país, se use o sujeito pronominal de 2ª pessoa
do singular (p.ex., tu vai), costuma-se conjugar o verbo na 3ª pessoa. (b) Ø representa o apagamento
da vogal.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 88


Quadro 1 - Estrutura das formas verbais do subjuntivo de comprar, vender e dividir

t sf
snp
r vt smt
1ª e 3ª p. sing. 1ª p. pl 3ª p. pl
SbPr
compr (a) e
vend (e) a Ø mos m
divid (i) a
SbPt
compr a sse
vend e sse Ø mos m
divid i sse
SbFt
compr a r
vend e r
Ø mos em
divid i r

A mesma fórmula aplica-se também a todas as formas dos verbos ditos irregulares,
com a diferença de que esses verbos têm dois radicais especiais: um para o SbPr, cuja
forma primitiva é a 1ª pessoa do singular do presente do indicativo, e outro para o SbPt
e SbFt, cuja forma é a 3ª pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo, conforme
se vê no Quadro 2.4
Quadro 2 - Estrutura do imperfeito e futuro do subjuntivo de caber

forma tema sf
radical
primitiva vt smt 1ª e 3ª p. sing. 1ª p. pl 3ª p. pl
especial
SbPr
caibo caib (e) a Ø mos m
SbPt
couberam coub (e) ss Ø mos m
SbFt
couberam coub (e) r Ø mos em

Comparando-se a estrutura do verbo dito irregular caber (Quadro 2) com a do


verbo regular vender (Quadro 1), constata-se que o smt e o snp são exatamente os
mesmos. No SbPr, a única alteração está no radical especial (caib-) em relação ao do
infinitivo (cab-). O SbPt e SbFt compartilham um mesmo radical especial (coub-), mas
têm também uma vt própria (palatal semiaberta), por oposição à do infinitivo (palatal
semifechada)5.

4 Embora todas as formas do pretérito perfeito do indicativo tenham o mesmo radical (coube, coube,
coubemos, couberam), couberam é a única que têm a vt semiaberta, como ocorre em suas formas
derivadas (coubesse, etc; couber, etc).
5 A classificação dos fonemas usada neste artigo foi tomada à Cunha e Cintra (2001).

Maria Elizabeth Leuba Salum (p. 87-95) 89


Com base nisso, Camara Jr. (1972), insere esses verbos em “padrões especiais”,
que apresentam uma regularidade interna, por oposição ao “padrão geral”, em que estão
inseridos os ditos verbos regulares.

Materiais e métodos
Constitui o corpus deste trabalho um total de 27 verbos, recolhidos nas listas de
verbos irregulares ou anômalos de Cunha e Cintra (2001) e Bechara (1999), e listado em
apêndice no final deste artigo. Foram desconsiderados os poucos verbos com alternância
vocálica de terceira conjugação listados por Bechara (1999) e os verbos em -ear, que
para Camara Jr. (1972, 1970) fazem parte do “padrão geral”6.
A partir dos dois padrões especiais definidos por Camara Jr. (1972, 1970), dividiram-
-se os verbos entre: os que têm radical especial para o presente do subjuntivo (SbPr) e
os que têm radical especial para o imperfeito e futuro do subjuntivo (SbPt-Ft).
Em seguida, os verbos de cada um dos padrões foram reclassificados em subpadrões
especiais para o SbPr e subpadrões especiais para o SbPt e SbFt, de forma semelhante à
classificação feita por Salum (2007) a partir da descrição fonológica feita pelo linguista.

Resultados
Os 26 verbos com radical especial para o SbPr foram agrupados em seis subpadrões
especiais de acordo com as semelhanças fonéticas encontradas no radical do referido
tempo verbal. Os dois verbos (ir e rir) que não apresentaram nenhum traço comum
aos outros foram classificados como “fora de subpadrão”, conforme se vê no Quadro 37.
Quadro 3 - Subpadrões especiais para o presente do subjuntivo
subpadrão infinitivo forma primitiva formas derivadas
medir meço meça
pedir peço peça
SbPr 1 poder posso possa
fazer faço faça
ouvir ouço ouça
ver vejo veja
ser sou seja
SbPr 2
estar estou esteja
haver hei haja

6 A alternância vocálica nas três conjugações tem sido tratada ora como regular, ora como irregular e
merece estudo específico, como observa Salum (2007).
7 (a) Nas formas derivadas, consta apenas a 1ª p. sing. (b) Em alguns verbos (ser, estar, haver, saber e
querer), as formas primitivas (sou, estou, hei, sei e quero) fogem à regularidade interna dos respectivos
subpadrões e podem, por isso, ser consideradas efetivamente irregulares.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 90


dizer digo diga
SbPr 3 trazer trago traga
perder perca perca
ter tenho tenha
vir venho venha
SbPr 4
pôr ponho ponha
valer valho valha
caber caibo caiba
saber sei saiba
SbPr 5
cair caio caia
sair saio saia
crer creio creia
ler leio leia
SbPr 6
querer quero queira
requerer requeiro requeira
ir vou vá
SbPr 7
rir rio ria

Os quinze verbos com radical especial para SbPt e SbFt foram agrupados em seis
subpadrões especiais de acordo com as semelhanças fonéticas encontradas no radical
do referido tempo verbal. Os cinco verbos que não apresentaram semelhança com os
outros foram classificados como “fora de subpadrão”, conforme se vê no Quadro 4.
Quadro 4 - Subpadrões especiais para o imperfeito e futuro do subjuntivo

tipos infinitivo forma primitiva formas derivadas


caber couberam coubesse couber
saber souberam soubesse souber
SbPt-Ft 1
haver houveram houvesse houver
trazer trouxeram trouxesse trouxer
poder puderam pudesse puder
SbPt-Ft 2
pôr puseram pusesse puser
querer quiseram quisesse quiser
SbPt-Ft 3 fazer fizeram fizesse fizer
dizer disseram dissesse disser
estar estiveram estivesse estiver
SbPt-Ft 4
ter tiveram tivesse tiver
dar deram desse der
ver viram visse vir
fora de
vir vieram viesse vier
subpadrão
ir foram fosse for
ser foram fosse for

Maria Elizabeth Leuba Salum (p. 87-95) 91


Discussão
Constatou-se que quinze verbos têm subpadrões especiais para o SbPr e para
SbPt-Ft (caber, dizer, estar, fazer, haver, ir, poder, pôr, querer, saber, ser, ter, trazer,
ver e vir). Do total de 27, onze têm subpadrão especial apenas para o SbPr (cair, crer,
ler, medir, pedir, perder, requerer, rir, sair, valer e ver) e um (dar) apenas para o SbPt
e SbFt.

Subpadrões especiais para o presente do subjuntivo


Nos subpadrões especiais para o SbPr, predominaram segmentos consonantais,
cuja presença se deu ora por substituição da consoante do radical do infinitivo, ora por
introdução de consoante em radical que não apresentava consoante. Assim:

• no subpadrão SbPr 1, a consoante fricativa linguodental surda (meça, peça, faça, ouça
e possa) substituiu a consoante do radical do infinitivo dos cinco verbos (medir, pedir,
fazer, ouvir e poder)8;
• no subpadrão SbPr 2, a consoante fricativa palatal sonora (veja, seja, esteja e haja) foi
introduzida no radical do infinitivo de três verbos (ver, ser, estar) e substituiu a consoante
do radical do infinitivo em um verbo (haver)9;
• no subpadrão SbPr 3, as consoantes oclusivas velares, sonora (diga e traga) e surda
(perca), substituíram a consoante do radical do infinitivo dos três verbos (dizer, trazer
e perder), e
• no subpadrão SbPr 4, as consoantes palatais sonoras oclusiva nasal (tenha, venha e
ponha) foram introduzidas no radical do infinitivo de três verbos (ter, vir e pôr) e a
consoante palatal sonora constritiva oral (valha) substituiu a consoante do radical do
infinitivo de um verbo (valer).

Em oito verbos (caber, cair, sair e saber, de um lado, e ler, crer, querer e requerer,
de outro), houve ditongação da vogal do radical do infinitivo, para ai (caiba, caia, saia e
saiba), no subpadrão SbPr 5, e para ei (leia, creia, queira e requeira), no subpadrão SbPr 6.
Nos dois verbos fora de subpadrão (ir e vir), houve recuperação do radical dos
verbos latinos em ir (vou/vá) e rir (rio/ria).

Subpadrões especiais para o imperfeito e futuro do subjuntivo


Além da já mencionada semiabertura da vt, nos subpadrões especiais para o
SbPt-Ft, predominaram segmentos vocálicos, cuja presença se deu ora por substituição
da vogal do radical do infinitivo, ora por manutenção da vogal do radical do infinitivo.
Esses processos foram eventualmente acompanhados de introdução de consoante em
radical que não apresentava consoante ou substituição da consoante do radical por
outra consoante. Assim:

8 Note-se também a alternância vocálica em três desses verbos (medir/meça, pedir/peça, poder/posso).
9 Note-se também a redução da vogal aberta para a semifechada em um desses verbos (estar/esteja).

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 92


• no subpadrão SbPt-Ft 1, a vogal velar semifechada (coubesse/couber, soubesse/souber,
houvesse/houver e trouxesse/trouxer) substituiu a vogal do radical do infinitivo nos
quatro verbos (caber, saber, haver e trazer)10;
• no subpadrão SbPt-Ft 2, a vogal velar fechada (pudesse/puder e pusesse/puser)
substituiu a vogal do radical do infinitivo dos dois verbos (poder e pôr);11.
• no subpadrão SbPt-Ft 3, acompanhada de consoante fricativa linguodental, a vogal
palatal fechada substituiu a vogal do radical do infinitivo de dois verbos (quisesse/
quiser e fizesse/fizer) e foi mantida no radical do infinitivo de um verbo (dissesse/
disser)12, e
• no subpadrão SbPt-Ft 4, acompanhada de consoante fricativa labiodental, a vogal
palatal fechada substituiu a vogal do radical do infinitivo dos dois verbos (estivesse/
estiver, tivesse/tiver).

Em dois verbos fora de subpadrão (dar e ver), há um traço característico dos


outros verbos com padrão especial para o SbPt e SbFt: a semiabertura da vt (desse/der
e viesse/vier).

Conclusão
Quando se compara a exposição didática feita nos resultados deste estudo com
a exposição dos verbos feita nas gramáticas, não é dif ícil entender o apelo de Camara
Jr. (1972, 1970) para que os professores repensem o modo de ensinar o sistema verbal.
A organização em listas alfabéticas faz parecer que todas as formas verbais fogem
ao padrão geral. Note-se que, no conjunto de verbos ditos irregulares vistos neste artigo,
boa parte foge ao padrão geral apenas no subpadrão para o SbPr.
Ainda que conjuguem apenas o presente do indicativo e o presente do subjuntivo
do verbo ouvir, Cunha e Cintra (2001) e Bechara (1999) não fazem nenhuma observação
de que ouve, ouvimos e ouvem seguem o padrão geral dos verbos da terceira conjugação.
Quando ouvir é inserido no subpadrão especial, contudo, identificam-se imedia-
tamente as formas que se afastam do padrão geral e, mais do que isso, percebe-se
imediatamente que a alteração consonantal sofrida pela forma primitiva e suas derivadas
ocorre igualmente em medir, pedir, poder e fazer.
A insistência de Camara Jr. (1972) no fato de que sua exposição é de linguística
teórica, e não aplicada, não pode ser esquecida. Não cabe ao professor expor em sala
de aula a estrutura do verbo e os tipos de alteração dos subpadrões para o SbPr e

10 Note-se também a substituição por consoante fricativa linguodental sonora em um verbo (trazer/
trouxesse/trouxer).
11 Note-se também a introdução de consoante fricativa linguodental sonora no radical de um verbo
(pôr/pusesse/puser).
12 Note-se a substituição da consoante fricativa linguodental sonora do radical do infinitivo pela surda
no radical de apenas um dos três verbos (dizer/dissesse/disser).

Maria Elizabeth Leuba Salum (p. 87-95) 93


para o SbPt e SbFt. Seu papel é organizar o conteúdo para que os alunos consigam ver
objetivamente (e não “entrever intuitivamente”) “as coincidências que a enumeração
alfabética convencional está encobrindo”.
Se nos resultados deste trabalho se apresentaram, em conjunto, todos os subpadrões
encontrados, na sala de aula deve-se fazer isso separadamente, ou seja, deve-se sistematizar
os verbos do padrão especial para o presente do subjuntivo isoladamente do padrão especial
para o imperfeito e futuro do subjuntivo. Além disso, é conveniente sistematizar os
subgrupos em aulas diferentes e criar atividades para pôr as formas verbais em uso
gradativamente.
Uma atividade possível com os verbos dos subpadrões para o presente é a
formulação de pedidos ou desejos (Espero que você traga seus amigos) e, para o imperfeito
e o futuro, é a formulação de hipóteses (Se eu trouxer, eles vão gostar).
É preciso lembrar que é na classe, junto com o professor, que os alunos devem fixar
as formas verbais, pois a memorização promovida pelos antigos exercícios estruturais
é passageira e reforça a crença dos alunos estrangeiros de que os verbos em português
são muito dif íceis.

Referências
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:
Lucerna, 1999.
CAMARA JR., J. M. Dispersos de J. Mattoso Câmara Jr. Rio de Janeiro: FGV, 1972.
______. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1970.
CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. 2. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
HUTCHINSON, A.; LLOYD, J. Portuguese. An Essential Grammar. London/ New
York: Routledge, 2002.
SALUM, M. E. L. Morfologia do português em obras de referência. 2007. Tese (Dou-
torado em Filologia e Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas , Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. Disponível em: <http://www.
sibi.usp.br>. Acesso em: 04 fev. 2011.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 94


Apêndice

Verbos com radical especial para o SbPr e/ou para SbPt-Ft


1. caber
2. cair
3. crer
4. dar
5. dizer
6. estar
7. fazer
8. haver
9. ir
10. ler
11. medir
12. ouvir
13. pedir
14. perder
15. poder
16. pôr
17. querer
18. requerer
19. rir
20. saber
21. sair
22. ser
23. ter
24. trazer
25. valer
26. ver
27. vir

Maria Elizabeth Leuba Salum (p. 87-95) 95


AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA
GUARANI/KAIOWÁ: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES DE ENSINO
Águeda Aparecida da Cruz Borges1

Resumo: Trago uma experiência realizada no Curso Normal Nível Médio de Formação de
Professores Guarani/Kaiowá – PROJETO “ÁRA VERÁ”, Dourados-MS, 3ª Turma, julho de
2009, na qual abordo a Língua Portuguesa (2ª Língua no contexto trabalhado) apontando
para as relações que ela estabelece com o sujeito, a história, a ideologia, a política, o mundo.
O Curso foi distribuído em seis etapas e selecionei diversos tipos de texto que circulam e
regulamentam a vida numa sociedade de escrita; lembrando que o público atendido não vive
somente nas aldeias, está na cidade, em relação com o mundo, com o Outro. No caso dos
Guarani/Kaiowá, grande parte bilíngues, levei em conta o pertencimento a sociedades que
se estão (re)construindo no conflito, na tensão do inevitável contato.

Abstract: Bring an experiment conducted in the Normal Course Intermediate Level Teachers
Training Guarani/Kaiowá - “ÁRA VERÁ” PROJECT, Dourados-MS, 3rd Class, July 2009, in
which I approach the Portuguese Language (2nd language in the context worked) pointing to
the relationships it establishes with the subject, history, ideology, politics, the world. The course
was distributed in six steps and selected various types of texts that circulate and regulate life
in a society of writing, remembering that the community attended not only live in villages.
In the case of the Guarani/Kaiowá, most bilingual, I considered the membership in society
that are (re)building in conflict, in tension from the inevitable contact.

[...] e ele sente o mesmo prazer da descoberta


que os grandes pesquisadores sentem, é o
instante da iluminação, da embriaguez, do
orgasmo da descoberta que o possui...
(Carlos Alfredo Argüello)

No trabalho com Educação Escolar Indígena não-índios precisam deixar-se


afetar pelo modo de ser índio. A atitude de abrir-se ao jeito de ser do Outro possibilita
a cooperação no tempo-espaço onde a educação escolar se faz.
Apresento o efeito de sentido de uma história povoada pelo contato com povos
indígenas diversos, desde 1982. O encontro vem se constituindo de várias maneiras: no
convívio amigo, na pesquisa, nas relações de ensino aprendizagem em via de mão dupla,
pois tanto aprendo quanto, ao me inscrever como professora de Língua Portuguesa
(LP2), tento ensinar.
Escolhi, dentre os trabalhos realizados com alguns povos, uma experiência
com Ensino de LP2 para Guarani/Kaiowá de Dourados, Mato Grosso do Sul.

1 Professora de Linguística do Curso de Letras do campus universitário do Araguaia/UFMT; Doutoranda


do programa DINTER-UNICAMP/UNEMAT/CAPES/FAPEMAT

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 96


No processo formal de escolarização indígena, objeto de preocupação tanto das
comunidades e organizações indígenas quanto do Ministério da Educação e Secretarias
de Estado e Municipais, o desafio, hoje, por parte de índios/não-índios, é investir na
“descolonização da escola indígena” (ORLANDI, 1999), superar os modelos de escola
que foram/são transportados para as aldeias, ou seja, é trabalhar pela construção de
uma escola indígena, na especificidade de cada povo, de cada comunidade, fazendo
sair do papel as propostas da chamada educação diferenciada.
Algumas áreas do conhecimento podem contribuir para isso, de modo especial:
a Pedagogia e a Linguística, no entanto para que isso ocorra carece de um deslocamento,
ideia que eu partilho com a profª. Judite Albuquerque2.
A Pedagogia, que tem abdicado do caráter de ciência da educação para se reduzir
a um discurso afirmativo, sagrado, definido, normativo, necessitaria assumir mudanças
profundas no seu enfoque e, abrir mão do que já está previsto, alicerçado pelos poderes
e saberes que determinam como é/deve ser a educação escolar. Para realizar a escola
diferenciada, carece abrir-se ao atual. Lembrar que o índio não está somente nas aldeias,
mas na cidade, em relação com o mundo, com o Outro, com sociedades que têm suas formas
próprias de organização. Eles pertencem a sociedades que se estão (re)construindo no
conflito, na tensão do inevitável contato, há mais de cinco séculos.
Em relação à Linguística, é preciso deslocar-se da prática meramente formal,
ao tratar o ensino do Português como segunda língua (LP2) ou, mesmo, quando se
toma as línguas indígenas como parâmetro para o ensino de LP2, para um ensino que
produza efeitos de sentido, numa perspectiva discursiva que se situa no funcionamento
da linguagem nas diversas práticas tanto dentro quanto fora da escola, e é isso que,
tentei fazer quando atuei no Projeto Ára Verá, com os Guarani/Kaiwoá.
O Curso Normal em Nível Médio de Formação de Professores Guarani/Kaiowá
– PROJETO “ÁRA VERÁ” trata-se de uma antiga reivindicação do Movimento dos
Professores Guarani/Kaiowá cujo objetivo geral é formar professores indígenas Guarani/
Kaiowá em nível médio, com habilitação para a educação nas comunidades indígenas,
educação nas séries iniciais do ensino fundamental e educação infantil. Foi autorizado
a funcionar pela Deliberação/CEE/MS n.º 6284 de 20 de julho de 2001.
Pela proposta pedagógica do Projeto, os componentes curriculares do curso não
apresentam diferenças explícitas em sua nomenclatura (“Ciências Sociais”; “Fundamentos
da Educação”; “Línguas e Linguística”; “Matemática”; “Ciências Naturais”; “Metodologia
de Ensino” e “Estágio Supervisionado”), a não ser a introdução de um componente
chamado “Cultura Guarani/Kaiowá” (que inclui Linguagens Corporal e Artística). A
“diferença” do Projeto Ára Verá, que caracteriza a sua especificidade, está na escolha dos
materiais, na abordagem metodológica, na avaliação e, na relação com as condições de
produção em que se encontra o povo Gauarani/Kaiowá.

2 Texto referente ao Painel 3, p.109, apresentado no Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação-


-Formação de Professores-Educação Escolar Indígena. Vol. 04. Brasília, 2002.

Águeda Aparecida da Cruz Borges (p. 96-102) 97


A situação de fronteira não significa apenas pela sua relação espacial, como o lugar
que marca o limite entre territórios. A vida da fronteira, o habitar a fronteira significa,
muito mais, porque ela já se define em si mesma como um espaço de contato, um espaço em
que se tocam culturas, etnias, línguas, nações e como tal é considerada no desenvolvimento
do Projeto.
As condições de produção linguística da/na fronteira marcam fortemente a vida
desse povo. A pressão a que a língua Guarani está exposta diante do Português, língua
da sociedade dominante e majoritária, se apresenta no modo de viver dos Guarani/
Kaiowá, principalmente dos que vivem na aldeia, que foi “engolida” pela cidade de
Dourados-MS, assim a nossa atenção precisou ser redobrada, de modo a alcançar a
demanda pela LP2.
Para Albuquerque (2002, p.5), é preciso “estudar o passado para entender o presente,
para dar densidade ao hoje, para poder se situar no tempo-espaço em movimento”.
Até mesmo o nome do Projeto traduz inconscientemente este princípio: “Ára Verá”
quer dizer “tempo-espaço iluminado”. A presença de caciques/“rezadores” Guarani e
Kaiowá, como “mestres tradicionais”, inicialmente não foi muito bem entendida pelos
cursistas, porém, no decorrer do Curso, passou a ser um dos pontos-chave para que
os alunos percebessem a importância de conhecer e “reaprender” sua própria cultura
e história e um incentivo para pesquisar junto aos mais velhos de suas comunidades.
“A experiência de estar podendo escrever a história de si mesmos através da voz do
seu povo, no caso, principalmente, dos mais velhos que se tornaram ‘bibliotecas vivas’,
acervos raros para aprender a cultura, a história tradicional.”(ALBUQUERQUE, 2002).
Pode-se perceber a importância que tiveram os caciques/ “rezadores” neste
processo, através das palavras de um jovem professor, que reivindicava, na avaliação
final, maior participação daqueles em todos os momentos do curso: “Aprendi a valorizar
os caciques e as pessoas mais idosas, elas tem muito a nos ensinar”.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 98


Caciques que “rezam” a cada início e fechamento do dia (Acervo próprio-2009).

Ainda é preciso lembrar que a discussão da função social da escola, do significado


das experiências escolares, principalmente no tocante ao trabalho com a Língua por
meio da produção de texto e leitura, foi e continua sendo um dos assuntos mais polêmicos
entre educadores e estudiosos, e tem que ser levado em conta no trabalho com povos
indígenas.
Considerando o exposto e o desejo de contribuir para a compreensão dessa
atividade fundamental: “TRABALHAR LP COM ÍNDIOS”, faço valer, essas reflexões,
a minha prática e os estudos que desenvolvo, pois é necessário re-significar o espaço
de contato e compreensão do ensino de LP2 para as necessidades dos povos indígenas
na atualidade.
Diante disso, suponho que, cada vez mais, o domínio da leitura é necessário para
se exercer a cidadania, e que se é na Produção da Escrita e Leitura que as relações sociais
se consolidam, os povos de tradição oral em contato com a sociedade contemporânea
precisam ter acesso à leitura e escrita e aos meios e modos de circulação.
Pensando na perspectiva apresentada, passo à apresentação da proposta de trabalho
com os Guarani e Kaiowá. No geral o objetivo foi trabalhar língua, linguagens, leitura,
escrita e gênero, apontando para as relações que se estabelecem entre esses com o sujeito,
a história, a ideologia, a política, o mundo.
Em específico propus alguns objetivos, que seguem:
• Identificar questões referentes ao processo de leitura e escrita do grupo de profes-
sores/alunos do Projeto;

• Compreender e refletir sobre o modo como as questões relacionadas à língua não


estão desvinculadas das práticas sociais;

Águeda Aparecida da Cruz Borges (p. 96-102) 99


• Discutir sobre a importância de se reconhecer, numa sociedade de escrita, os vários
tipos de texto que circulam e regulamentam a vida;

• Perceber as contribuições dos estudos realizados tanto para a pesquisa quanto para
o ensino da língua Portuguesa como segunda língua.

No sentido de atingir os objetivos propostos dividi o Curso em 5 partes, como segue:

1- Apresentação da proposta de trabalho


• Explicitação do conceito de língua (estrutura e funcionamento). Elaboração de um
ACRÓSTICO com os nomes dos participantes, mostrando o tipo de texto, a cons-
trução. Aproveitamos para discutir sobre processos de nomeação em sociedades
diferentes,

• Esquematização dos Aparelhos Ideológicos de Estado, enfocando o Aparelho Jurídico


como Regulador, textos que se caracterizam como documentos (Certidão de
Nascimento, Matrícula escolar, Regimentos, Estatutos e outros), que organizam a
sociedade fazendo um paralelo com sociedades de tradição oral.

• Discussões relacionadas a essa questão: A identidade Indígena X a Identidade Civil.

• Explanação geral sobre as diversas relações que se estabelecem entre as várias


manifestações de linguagem e os diferentes sujeitos. (escrita, oral, gestual, teatral,
pictórica, cinematográfica.

• Propusemos a elaboração de um Diário (A cada dia, cada participante teve um tempo


para recuperar as atividades realizadas e relatá-las em um caderno.

• Dedicamos um espaço para a língua Guarani na produção de textos. Refletimos,


por exemplo, sobre o que a língua Guarani oferece para os diversos gêneros.

2- Leitura do livro FLICS do Ziraldo (fiz uma adaptação em powerpoint),


• O texto serviu de suporte para a discussão sobre o discurso da inclusão/ex-
clusão, diferença/diversidade.
• Após as apresentações de diversos livros, propusemos a produção de um
livro coletivo. Os textos foram histórias do povo Guarani.

3- Filme: “Escritores da liberdade”


• Após a discussão do filme propusemos uma “Gincana Show Relâmpago”, cada gru-
po preparou um número relacionado com as temáticas estudadas (música, teatro,
história, poesia, pintura, jornal).

4- Níveis de análise linguística) 1-fonético; 2-morfológico; 3-sintático;


4-semântico (exposição com exemplos).
• Reflexões que surgiram na preparatória: o uso do artigo, transposto para o
Guarani – (peteĩ mitã, concordância (a mapa, a braço).

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 100


• Propusemos atividades envolvendo cada um dos
• Além da questão estrutural refletimos sobre a questão ideológica na propaganda.
• Os participantes foram orientados para a elaboração de uma propaganda.

5- Disponibilizamos jornais para que juntos identificássemos a variedade de


textos que constitui um jornal. No primeiro momento leram livremente.
• Selecionamos algumas notícias, principalmente sobre questões sociais: ter-
ra, ambiente, educação..., cada grupo trabalhou com um texto (leu, identifi-
cou palavras desconhecidas, discutiu a notícia). Acompanhei cada grupo e
fizemos um jornal falado, de modo que cada grupo apresentou a sua notícia
trabalhada.
• Reflexões que surgiram: o que tem de material escrito nas aldeias? cartazes e
embalagem de produtos. Mural – Lembramos das Contas de energia elétri-
ca. Extrato de banco.
É importante registrar que cada tipo de texto trabalhado provocou a discussão
sobre a diversidade de textos que circula em nossa sociedade e os seus efeitos.
No decorrer do curso, os participantes foram motivados a pensar em propostas
para transposição em sala de aula com os seus alunos.
No fechamento do Curso fizemos o lançamento dos livros com as histórias do
povo Guarani/Kaiowá. Os diários e demais trabalhos foram também expostos.

Algumas considerações
Considerando que o compromisso como educadora é oportunizar aos alunos
uma experiência em que a leitura e a escrita sejam processo de inscrição social, isso eu
tentei fazer o tempo todo.
Para que essa visão se fizesse com os professores Guarani/Kaiowá, a pesquisa
foi concebida no sentido de alargar horizontes e cobrir aspectos nunca sonhados (não
permitidos) por eles. Assumimos, no Curso, a pesquisa como produção de sentidos,
propiciando a investigação como atividade prazerosa e emancipadora.
A cada parte do curso refletimos sobre a importância da pesquisa para o exercício
da cidadania. Sempre, com o cuidado de não atribuir valores aos comportamentos
discutidos para se evitar maniqueísmos simplistas.
Também, gostaria de dizer que ao promover uma discussão quanto as diferenças
de modos de vida não objetivei mudar o comportamento dos Guarani/Kaiowá, pois se
eles devem ou não utilizar o nosso conhecimento, a nossa língua, se vão desenvolver
uma pragmática de contato ou vão manter a pragmática indígena para reafirmar sua

Águeda Aparecida da Cruz Borges (p. 96-102) 101


identidade étnica, são questões que não me compete decidir. Não cabe ao educador
ditar comportamentos discursivos ou quaisquer outros.
Penso que o nosso papel é não sonegar informações sobre as diferenças, cultural-
mente determinadas, de modo que todos, índios e não-índios, possam tomar decisões
quando interagem uns com os outros.
É preciso sempre estarmos atentos e refletirmos se em nossa prática contribuímos
para que os sentidos circulem ou reforçamos o apagamento dos possíveis sentidos e
assim do sujeito.
Essa experiência me deixou a certeza de que não se pode propor um sistema
pedagógico pronto e acabado, mas contribuir para que cada escola indígena consiga
construir os seus próprios sistemas autônomos, e que esses sejam integrados e reconhecidos
no sistema nacional.

Referências
ALBUQUERQUE, J. G. O sentido da diferença na Pedagogia Indígena: oportunidades
amplas, tensões, formas limitadas de operar com a diferença. Campinas: UNICAMP,
2002. (texto apresentado no13º COLE)
ORLANDI, E. Reflexões sobre escrita, educação indígena e sociedade. Escritos – Escritas,
Escritura, Cidade, Labeurb (Laboratório de Estudos Urbanos), Unicamp, v. I, n. 5,
1999.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 102


PRESENÇA DA HISTÓRIA DO BRASIL NAS AULAS
DE PORTUGUÊS PARA ESTRANGEIROS: UMA
EXPERIÊNCIA EM SALA DE AULA
Patrícia Regina Cavaleiro Pereira1

Resumo: com esta comunicação, pretendo compartilhar minha experiência com a apresentação
de passagens da história do Brasil nas aulas de português oferecidas a pessoas de outros
países. Serão colocados em evidência alguns dos períodos históricos de maior interesse, as
diferentes possibilidades de abordagem dos temas e as estratégias didáticas adotadas para o
desenvolvimento de habilidades linguísticas (compreensão e produção escrita/oral) aliadas
ao assunto em questão.

Abstract: with this communication, I want to share my experience with the presentation of
passages Brazil’s history in Portuguese classes offered to people of other countries. Will be
highlighted some of the most interesting historical periods, different ways of approaching the
topics and showing strategies adopted for the development of language skills (comprehension
and production written/oral) combined with the subject.

Português, história e muito mais


A experiência que tenho tido com aulas de português para estrangeiros foi o
estímulo fundamental para a apresentação deste trabalho. Durante pouco mais de quatro
anos, como monitora do Centro de Línguas da FFLCH/USP, tive a oportunidade de
ministrar aulas a grupos de alunos de diferentes nacionalidades e níveis de conhecimento
linguístico da língua portuguesa. Embora não faça pesquisa na área de ensino-apren-
dizagem de idiomas, tenho grande apreço pelas aulas ministradas para os estrangeiros,
principalmente em função da diversidade de temas que nelas podem ser abordados.
Dentro do leque de assuntos que mais me agradam e despertam interesse dos
estudantes, encontram-se passagens da história do Brasil, que além de servirem como
fonte para o entendimento das condições econômicas, políticas e sociais do país, também
favorecem o surgimento de outras proposições, já que a partir das aulas sobre história
brasileira temas correlacionados, como os ligados à cultura (comportamento, folclore
etc) e às artes (plástica, musical, literária), por exemplo, também podem surgir como
subtemas a serem desenvolvidos na sequência do curso.
É relevante levar em conta, a partir da abordagem sugerida, os diferentes níveis de
conhecimento linguístico dos alunos e, em função disso, oferecer material compatível
ao grau de dificuldade apresentado por eles, o que permitirá uma melhor compreensão
oral/escrita.

1 Mestranda da área de Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (FFLCH/USP).

Patrícia Regina Cavaleiro Pereira (p. 103-106) 103


Pontos abordados
Como proposta inicial, poderia ser estabelecida uma divisão de temas que seguisse
uma ordem cronológica, partindo do século XVI e chegando aos dias atuais. É possível
começar pela apresentação de um painel da história econômica/social brasileira, colocando
em evidência alguns dos principais ciclos da nossa economia (açúcar, ouro, café e borracha),
para, posteriormente, de acordo com o grau de interesse e envolvimento do grupo,
propor um aprofundamento dos assuntos levantados.
Desde os primórdios da história do nosso país até, principalmente, a primeira
metade do século XX, o Brasil é local escolhido por muitos estrangeiros que contribuíram
significativamente para a construção da sociedade brasileira. Além de marcado pela
chegada dos portugueses e pelas invasões francesa e holandesa2,2 o país também contou
com a presença de estrangeiros que se tornaram ilustres, como Hans Staden e Giuseppe
Garibaldi.
No século XX, depois do recente advento da república, em 1889, seria interessante
ressaltar a efervescência cultural dos anos 20, apresentando a Semana de Arte Moderna.
Também é importante fazer referência ao governo de Getúlio Vargas e, em especial,
aos anos de ditadura militar e ao período de transição para o governo democrático
(REZENDE, 2001). Como proposta de atividade extraclasse, caso o assunto interesse
aos alunos, o Memorial da Resistência/Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Museu
de Arte Contemporânea e o Museu de Arte Moderna – todos na cidade de São Paulo
– são três interessantes opções.
Ainda no século XX, com o intenso processo de imigração (alemães e poloneses,
no sul do país; japoneses e italianos, em São Paulo), abre-se caminho para mais uma
possibilidade de abordagem: a história de alguns dos bairros da cidade de São Paulo,
como Bom Retiro, Liberdade, Bixiga (BRUNO, 1981). Uma possível atividade externa
também seria a visitação a um espaço cultural, no caso, o Memorial do Imigrante,
localizado no bairro paulistano da Mooca.
Quanto à formação da sociedade brasileira, depois de ressaltada a maciça presença
de índios, nativos, e de negros, trazidos da África como escravos, vale a pena abordar
uma das mais importantes contribuições dos dois povos, o léxico, que se encontra por
toda parte do país, dando nomes, no caso do tupi, especialmente a lugares (ruas, cidades
e bairros), como Avanhandava, Itu, Itaquera (TIBIRIÇÁ, 2009).
Os contributos culturais herdados dos povos indígenas e dos provenientes da
África também merecem ser trazidos para as aulas. Observações a respeito da escravidão
e da presença da cultura negra na sociedade brasileira, manifestada, em especial, por
práticas como a capoeira, o candomblé e o particular sincretismo religioso brasileiro
(CARMO, 2006), assim como a música e a culinária dos povos africanos (DORIA, 2009),

2 As invasões francesas ocorreram a partir do século XVI; as holandesas, no nordeste brasileiro


(especialmente em Pernambuco), deram-se no século XVII.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 104


são essenciais para um razoável entendimento sobre a formação da cultura brasileira;
o que, aliás, favorecerá a desconstrução de possíveis estereótipos.
Sugere-se visitar o Museu da Língua Portuguesa e o Museu AfroBrasil, ambos
situados na cidade de São Paulo, para uma melhor abordagem dos temas indicados.

Estratégias adotadas
As quatro competências/habilidades linguísticas também devem ser desenvolvidas a
partir das aulas sobre história do Brasil. A seguir, estão algumas das sugestões para um
melhor aproveitamento dos temas propostos.
A compreensão escrita pode ser abordada com propostas de pesquisa, por meio
da leitura de textos sobre os temas; a compreensão oral seria aprimorada através da
exibição de filmes relacionados ao assunto enfocado3; a produção escrita provém das
3

propostas de redação sobre uma das passagens da história do Brasil, de maior interesse
individual; a produção oral pode ser estimulada através da discussão dos assuntos em sala
de aula e da apresentação de seminários individuais, quando são feitos comentários
críticos sobre a história do Brasil e a respeito da história do país de cada um dos estudantes.
Uma das estratégias para a introdução dos pontos sobre história do Brasil é o
aproveitamento de datas históricas, como 21/04, 13/05, 09/07, 07/09, 15/114, e a utilização,
4

inicialmente, de textos extraídos de livros didáticos, adotados no ensino regular brasileiro,


cuja linguagem mais simplificada pode servir como atrativo, despertando o interesse
dos alunos, o que, posteriormente, favorecerá uma abordagem mais aprofundada do
assunto, quando leituras mais densas poderão ser introduzidas.
A maior riqueza das aulas sobre história do Brasil e temas correlatos pode ser
vista por meio da troca de informações entre professor e aluno, e entre as reflexões que
surgem dentro do próprio grupo de estudantes.

Revisitando a biblioteca
Um dos momentos mais prazerosos do curso de português para estrangeiros é o
da preparação das aulas, que exige do professor uma revisão de seus conhecimentos sobre
os temas que serão propostos, além de um alargamento de seus horizontes quanto à
história e cultura do Brasil.
Para uma satisfatória fundamentação das aulas, sugerem-se algumas leituras
que podem ser feitas pelos professores antes de darem início às aulas. O título Brasil:
uma história (2010), de Eduardo Bueno, e os volumes da coleção de história dos bairros

3 Alguns títulos são: Guerra de Canudos (1997), Caramuru – A Invenção do Brasil (2001), Raízes do
Brasil (2004), O ano em que meus pais saíram de férias (2006).
4 Referência às datas: Tiradentes (21/04), Abolição da Escravatura (13/05), Revolução Constitucionalista
Paulista de 1932 (09/07), Independência do Brasil (07/09) e Proclamação da República Brasileira (15/11).

Patrícia Regina Cavaleiro Pereira (p. 103-106) 105


paulistanos – como os assinados por Hilário Dertônio (O bairro do Bom Retiro, 1971) e
Nadia Marzola (Bela vista, bairro, 1979) – são boas pedidas para o começo das atividades.
Sobre música brasileira e sua história, ressaltam-se os livros Almanaque do
choro: a história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir (2003), Música Clássica
Brasileira (2002), Música Popular Brasileira Hoje (2002) e Historia Social da Música
Popular Brasileira (1998), respectivamente, de André Diniz, Vasco Mariz, Arthur
Nestrovski e José Ramos Tinhorão.
E, evidentemente, não devem ficar de fora dessa lista os clássicos de Gilberto
Freyre (Casa-Grande & Senzala, 1933), Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil,
1936) e Darcy Ribeiro (O Povo Brasileiro, 1995).

Referências
BRUNO, E. S. Memórias da cidade de São Paulo. São Paulo: Secretaria Municipal da
Cultura, 1981.
CARMO, J. C. O que é candomblé? 2. Ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.
DORIA, C. A. A Formação da Culinária Brasileira. São Paulo: Publifolha, 2009.
FAUSTO, B. História Concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, 2006.
REZENDE, M. J. A Ditadura Militar no Brasil (1964/1984): repressão e pretensão de
legitimidade. Londrina: Editora Eduel, 2001.
STADEN, H. Duas viagens ao Brasil. São Paulo: Edusp, 1974.
TIBIRIÇÁ, L. C. Dicionário de Topônimos Brasileiros de Origem Tupi. 3. ed. São Paulo:
Editora Traço, 2009.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 106


UNIVERSIDADE, NEGÓCIOS, PRAZER:
MÚLTIPLOS TERRITÓRIOS DO ENSINO DE PLE
Érica Lima1

Resumo: Com o objetivo de contribuir para a reflexão e ação de professores de Português


como Língua Estrangeira (PLE), este trabalho compara três cursos avançados em que a autora
lecionou em 2009 nos Estados Unidos. Serão abordados os pontos em comum, como o
desenvolvimento da competência comunicativa e a necessidade do estudo gramatical atrelado
ao uso da língua no contexto da cultura, e também os pontos de divergência, como a escolha
de material didático e metodologia.

Abstract: This essay aims at contributing to the reflections and work of teachers of Portuguese
as a Foreign Language (PFL), by comparing three PFL advanced courses the author taught in
the United States in 2009. The author will discuss aspects common to all three of them, such
as development of communicative competence and the need to study grammar vis-à-vis the
use of language in cultural contexts, as well as diverging aspects, such as the choice of teaching
materials and methodology.

Ensinar Português como Língua Estrangeira (PLE) no Brasil é bastante diferente


de ensinar no exterior, não só pelas várias oportunidades de imersão na língua, mas
também por tudo o que essa imersão possibilita, a começar pelo contato direto com
a cultura e o modus vivendi brasileiro. Quando se ensina uma língua no país onde ela
não é falada, percebe-se ainda mais a “estrangeiridade” da língua. Não é por acaso que a
outra língua recebe a denominação de “estrangeira”. Como algo que não pertence a
um lugar, o estrangeiro é o estranho, do latim extraneus, aquilo que não me é familiar.
Também provém do grego xenos, palavra usada tanto para estrangeiro como para hóspede.
Como diz Jacques Derrida, estrangeiro é “alguém que não fala como os outros, alguém
que fala uma língua excêntrica” (DERRIDA, 1997, p.13).
Desde o mito de Babel, a língua tem desempenhado uma função primordial no
estabelecimento da identidade e determinação da alteridade, e cabe ao professor olhar
a “sua” língua portuguesa com os olhos do estrangeiro, para que possa reconhecer e
trabalhar as peculiaridades dessa língua, criando o maior número possível de oportu-
nidades de uso em situações reais de comunicação. Assim, o professor deve ter como
meta o desenvolvimento da competência comunicativa (CC), para que o aluno esteja
apto a interagir na língua que não é a sua. Almeida Filho define CC como

um conhecimento abstrato subjacente e a habilidade de uso não só de regras


gramaticais (explícitas ou implícitas) como também de regras contextuais ou

1 Doutora em Teoria da Literatura pela UNESP de São José do Rio Preto e professora do Centro de
Linguagem e Comunicação na PUC de Campinas.

Érica Lima (p. 107-112) 107


pragmáticas (explícitas ou implícitas) na criação de discurso apropriado, coeso
e coerente. (ALMEIDA FILHO, 1989, p.56)

Para que possa ajudar o aluno a desenvolver a CC em outra língua, respeitando,


além das regras gramaticais, as demais convenções socioculturais do povo dessa outra
língua, o professor precisa reconhecer seu papel e refletir sobre sua prática, atitudes
que o levarão a ser capaz de escolher e desenvolver materiais apropriados para sua
aula, bem como a usar metodologias e estratégias que possibilitem o desenvolvimento
da CC. Ainda de acordo com Almeida Filho,

Ensinar uma língua, principalmente uma nova, tem se tornado uma tarefa de
ensinar menos língua e de vivenciar mais a própria língua-alvo para abrir
possibilidades de aquisição da CC com tudo o que ela implica: estratégias de
aquisição, estratégias de sobrevivência na interlíngua emergente, capacidade de
jogar com as palavras e sentidos permitidos pelo novo sistema e nova cultura,
possibilidades estéticas de busca de sentidos especiais na nova língua, capacidade
de compreender e armar textos e discurso e desenvolver, se necessário ainda,
uma consciência metalinguística e metacomunicativa da competência capital.
(ALMEIDA FILHO, 2010, p. 12)

Nessa concepção de ensino, o papel do professor é o de facilitador, de incentivador


da aprendizagem, de pesquisador e planejador de um curso que valorize as experiências,
percepções, ideias e habilidades dos alunos e que seja capaz não só de direcionar o curso,
mas principalmente de criar um ambiente propício para a aprendizagem, envolvendo os
alunos no processo. Com base nesses pressupostos, trataremos aqui de alguns aspectos
observados durante a docência em três cursos avançados de PLE, a saber: Georgetown
University (GU), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Arlington Adult
Education Program (AEP), correspondendo, respectivamente, a universidade, negócios
e prazer, que nos remetem ao título deste artigo. A docência ocorreu de 2005 a 2009,
na região metropolitana de Washington, D.C., porém optamos por enfocar apenas
alguns aspectos observados nas turmas de 2009.
O curso da GU era destinado a graduandos e pós-graduandos, o que fazia com
que a faixa etária fosse bastante ampla, de 22 a 40 anos. Havia vários falantes de outras
línguas além do inglês, inclusive falantes de herança de espanhol. Por estarem em uma
das universidades mais bem conceituadas do país, esperavam e cobravam um curso
de alto nível de exigência. Eram alunos extremamente participativos e questionadores,
como também ocorria com a turma do AEP. Diferentemente da GU, o curso do AEP não
tinha créditos, portanto não tinha avaliação formal nem obrigatoriedade de presença.
No entanto, isso não impedia o envolvimento e participação dos alunos, muito pelo
contrário. A faixa etária era um pouco mais alta, de 30 a 60 anos, como também ocorria
no BID. Contudo havia poucos alunos falantes de outras línguas, ao passo que no BID
todos falavam espanhol. As três turmas eram pequenas, com cerca de dez alunos na

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 108


GU e no AEP e cinco alunos no BID. O curso da GU era semestral, com três horas
semanais de aulas; já no BID e no AEP, o curso era dividido em três módulos anuais, com
respectivamente três e duas horas semanais de aulas. Por serem cursos avançados, os
objetivos eram de alguma forma convergentes, logicamente com algumas especificidades
inerentes a cada curso.
Como pontos em comum, podemos citar o domínio de estruturas gramaticais
mais complexas, a capacidade de interagir oralmente em diversas situações comunicativas
e o enfoque na produção de texto escrito. Em relação a questões gramaticais, várias
semelhanças podiam ser notadas entre as dificuldades nesse nível de língua. Ainda era
preciso trabalhar com preposições, infinitivo pessoal, colocação pronominal, subjuntivo,
regência nominal e verbal. Para trabalhar tais conteúdos, procurava-se partir de textos ou
músicas para, em seguida, aplicar o conteúdo a frases relacionadas à realidade dos alunos.
A divergência maior diz respeito ao gênero textual trabalhado em cada curso.
Vários alunos da GU almejavam estudar no Brasil por ao menos um semestre; portanto
esperava-se que fossem capazes de redigir, em norma culta, textos predominantemente
argumentativos. Já no BID, esperava-se que os alunos (no caso funcionários), fossem
capazes de redigir desde e-mails até projetos e relatórios sobre investimentos no Brasil,
nas mais diversas áreas. O único curso sem preocupação explícita e direta com produção
de texto era o AEP, o que acabava por abrir as opções de atividades, indo de textos
argumentativos a poesias, de autobiografias a narrações, etc.
As três coordenações esperavam, e muitas vezes deixavam isso claro, que fossem
usadas várias técnicas e uma diversa gama de materiais, os quais sempre foram trabalhados
de acordo com as concepções teóricas e o conhecimento linguístico da professora. Assim,
o fato de ter formação em linguística, com conhecimentos de fonética, fonologia e
sociolinguística, acabava invariavelmente determinando o andamento das aulas. Além
disso, centralizar no aluno o processo de ensino e aprendizagem implica uma consciência
de que o material pedagógico deve ser criado especialmente para aquele grupo de
alunos e trabalhado de forma bastante flexível, definindo e adaptando o conteúdo aos
seus objetivos e necessidades.

Alguns exemplos de atividades desenvolvidas:


o mesmo ponto de partida, diferentes trajetórias
Uma das experiências positivas foi o uso de filmes brasileiros na sala de aula,
que proporcionou o desenvolvimento de vários temas, abrangendo desde referências
culturais até questões de oralidade. Em um semestre ou módulo, eram vistos de três
a quatro filmes, seguidos de discussão e produção de texto. No caso da GU, os filmes
eram disponibilizados em blackboard2 no início do semestre e os alunos podiam assistir
2 Usado no Brasil especialmente em cursos de Educação a Distância, o blackboard é uma espécie
de intranet da universidade, com acesso apenas aos alunos matriculados na disciplina. É possível
disponibilizar textos, vídeos, música, exercícios, sites, etc. É um instrumento de apoio online
extremamente útil e fácil de usar.

Érica Lima (p. 107-112) 109


a cada filme antes da aula marcada para discussão. Cabia à professora levar para a aula
o roteiro de discussão e uma pequena crítica do filme, geralmente retirada de jornais ou
revistas de grande circulação no Brasil. Após a discussão, os alunos escolhiam um dos
temas para a produção de texto. Essa redação era corrigida de acordo com critérios pré-
-definidos e deveria ser reescrita após a correção.3
No caso do AEP, eram usadas duas aulas por filme, sendo uma para exibição e
outra para debate, já que os alunos não tinham tempo fora do horário de aula. Não havia
obrigatoriedade de escrita, mas geralmente os alunos traziam textos ou informações adicionais
conseguidas na internet. Nos dois cursos, trabalhava-se o léxico do filme e algumas estruturas
gramaticais, além de regionalismos e sotaques. Os filmes eram escolhidos de acordo com
o interesse dos alunos, obedecendo à política das instituições de evitar conteúdo sexual
explícito.4 No BID, como no AEP, os alunos não dispunham de tempo para assistir aos
filmes e o período da aula era imprescindível para correção de textos e desenvolvimento
de conteúdo gramatical. Optava-se, então, por vídeos curtos, telejornais, entrevistas ou
documentários. Além de propiciarem momentos de descontração e participação oral, os
vídeos também eram úteis para trabalhar o conteúdo gramatical e o léxico, muitas vezes
comparando o uso de uma expressão ou vocábulo com o inglês ou espanhol. Nos três cursos,
o enfoque cultural era bastante importante, tanto devido à necessidade profissional ou
acadêmica, como pelo interesse em interagir com brasileiros.

A importância da comunicação extraclasse: o e-mail


A comunicação por e-mail mostrou-se decisiva para o bom andamento dos
cursos, já que possibilitava a solicitação de leituras, exercícios, troca de informações
rápidas ou urgentes (uma palestra, convites de última hora para um show ou filme brasileiro,
etc.). A troca de e-mails foi extremamente positiva por proporcionar a escrita de um
português mais informal, o levantamento de questões ou sugestões não dadas em aula
(por timidez ou outro motivo) e uma forma de interação diferente entre os alunos e
entre alunos e professora.
No caso da GU, o e-mail era útil também para solução de dúvidas durante a
produção de textos, recebimento e devolução de correção de trabalhos (com recurso de
controle de alterações) e justificativa de ausências. Para os alunos do BID, o e-mail servia
especialmente para cobrir o conteúdo e dúvidas de aulas perdidas devido a viagens
de trabalho, bem como para a correção praticamente imediata de e-mails urgentes
enviados ao Brasil. Finalmente, no caso do AEP, o uso do e-mail era primordial para
manter a língua presente no dia a dia, pois havia apenas um encontro semanal de duas

3 Adotava-se uma tabela com siglas para correção gramatical (por exemplo: VE – verbo errado, TV –
tempo verbal) e outra tabela com a pontuação referente a critérios como coesão, coerência, adequação
de vocabulário, nível de formalidade do texto, etc.
4 No ano de 2009 foram usados: O Auto da Compadecida, Quanto vale ou é por quilo, Orfeu Negro (de
1959) e Tropa de Elite. Algumas sugestões de como trabalhar com cinema na sala de aula podem ser
encontradas em Wasserman (2009).

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 110


horas. Uma vez que a comunicação era constante e essencialmente em português,
as eventuais incorreções gramaticais ocorridas na troca de e-mails acabavam sendo
ponto de partida para discussão na aula seguinte. Várias vezes recorria-se também à
aplicação de exercícios encontrados na internet ou em livros didáticos para fixação da
aprendizagem.5

À guisa de conclusão
A ausência de imersão na língua acaba sendo um dos pontos negativos de ensinar
PLE no exterior, apesar de atualmente o acesso ao português ser muito mais fácil,
principalmente pela internet e também por alguns canais televisivos já disponíveis nos
Estados Unidos. Um aspecto positivo é o fato de grande parte dos alunos terem contato
com mais de uma língua além do inglês (geralmente o espanhol ou o francês), o que
acaba por auxiliar na aquisição do português, pois amplia a possibilidade de comparações.
Como afirma Derrida (2001), há uma multiplicidade de línguas “contaminadas” entre
si, a identidade de cada elemento da língua ou mesmo de cada língua depende de sua
diferença em relação aos outros elementos da língua ou às outras línguas. Há um
entrelaçamento e encadeamento de rastros de uma língua na outra, de uma cultura na
outra. As diferentes nacionalidades também auxiliam no tratamento da diversidade
cultural: há não só um entendimento da cultura do outro como também uma cons-
cientização de que as diferenças devem ser respeitadas e acolhidas. De modo geral,
podiam-se notar dois tipos de interesse por parte dos alunos: ao lado de uma visão
pragmática da língua como instrumento de comunicação imediata, prática, havia a
preocupação com o aspecto normativo da língua6 e, embora o conhecimento de português
não fosse homogêneo, o fato de considerarmos os aspectos lexicais, gramaticais, culturais
e de oralidade como complementares e indissociáveis do contexto de uso da língua
acabava por vir ao encontro das necessidades dos alunos. Como consequência, esses
alunos permaneciam no curso, havendo baixíssima desistência. Mesmo no AEP, um
curso pago, sem créditos e sem programa pré-estabelecido, os alunos continuavam se
matriculando e acabavam por criar vínculos de amizade que ultrapassavam as paredes
da sala de aula.7 Acreditamos também que o fato de os alunos saberem exatamente o
que esperar de cada módulo e terem voz na “construção” do curso foram alguns dos
motivos do sucesso. O levantamento dos interesses e das dúvidas na primeira aula e a
avaliação do curso e da professora nas aulas finais também foram instrumentos impor-
tantes para o bom andamento e eventuais reformulações e melhorias adotadas nos cursos
seguintes. E, por mais clichê que possa parecer, a dinâmica dos cursos e o envolvimento
dos alunos deu à professora condições de fazer de cada curso um curso único e de cada
aula uma oportunidade de aquisição de pelo menos um novo conhecimento.
5 Foram usados, por exemplo, “Falar… Ler… Escrever… Português” (LIMA; IUNES 2003) e “Ponto de
Encontro” (KLOBUCKA, 2007).
6 A este respeito, ver “Advanced Portuguese: como e o quê ensinar em cursos avançados de PLE no
mundo da internet?” (LIMA, 2011).
7 Vários alunos começaram a estudar português em 2005 e continuaram juntos até 2010.

Érica Lima (p. 107-112) 111


Referências
ALMEIDA FILHO, J. C. Introdução. Dimensionar a cultura nos processos de adquirir
e ensinar línguas. In: SANTOS, P.; ALVAREZ, M.L.O. (Org.). Língua e Cultura no
Contexto de Português Língua Estrangeira. Campinas: Pontes Editores, 2010. p. 11-15.
______. O conceito de nível limiar no planejamento da experiência de aprender línguas.
In: ALMEIDA FILHO, J.C; LOMBELLO, L. (Org.). O Ensino de Português para Estrangeiros.
Campinas:Pontes, 1989. p. 55-89.
DERRIDA, Jacques. O monolinguismo do outro. Ou a prótese de origem. Tradução de
Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2001. 112 p.
______. De l’hospitalité. Anne Dufourmantelle invite Jacques Derrida à repondre. Paris:
Calmann Lévy, 1997.
KLOBUCKA, A. et al. Ponto de Encontro: Portuguese as a World Language. New Jersey:
Prentice Hall, 2007. 648 p.
LIMA, É. Advanced Portuguese: como e o quê ensinar em cursos avançados de PLE
no mundo da internet? Estudos Linguísticos. São Paulo. v. 40, n. 2, p. 650-660, 2011.
Disponível em: <http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/>. Acesso em 14 dez. 2011.
LIMA, E. E.; IUNES, S.A. Falar… Ler… Escrever… Português. Um Curso para Estrangeiros.
2. ed. São Paulo: E.P.U., 2003. 304 p.
WASSERMAN, B. Cinema for Portuguese Conversation. 2. ed. Newburyport:Focus
Publishing; R. Pullins Co., 2009. 248 p.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 112


A DESIGNAÇÃO DO NOME “PORTUGUÊS”
NO ESPAÇO DE ENUNCIAÇÃO ARGENTINO
Gabriel Leopoldino dos Santos1

Resumo: Discutimos sobre a designação do nome “português” no espaço de enunciação


argentino. O material de análise é composto por entrevistas feitas a alunos e professores do
Professorado em Português da Universidad Nacional de Entre Ríos, na Argentina. A partir da
Semântica Histórica da Enunciação, são feitos recortes em que podemos observar analiticamente
o modo como o nome “português” é significado nesse espaço, numa relação litigiosa com a
designação de nomes de outras línguas presentes aí, como, por exemplo, as designações de
“inglês”, “francês” e “italiano”.

Abstract: We discuss about the designation of the name “Portuguese” in the Argentinean
enunciation space. Our analysis material consists of interviews with students and teachers
from the Profesorado en Portugués of the National University of Entre Ríos, Argentina. From the
perspective of the Historical Semantics of the Enunciation, we have selected some fragments
from the corpus in which we can observe analytically how the name “Portuguese” is signified
in this space, in a litigious relationship with the designation of names of other languages
present there.

Introdução2
Objetivamos estudar a designação do nome “português” no espaço de enunciação
argentino. A partir desse objetivo, formulamos nossa questão da seguinte maneira:
como o português é significado (designado) no espaço de enunciação argentino? Por
meio dessa questão principal, deparamo-nos, ainda, com outras questões que passam
a integrar nosso programa de pesquisa, como, por exemplo: como funciona o espaço
de enunciação argentino/latino-americano? De que modo as línguas e seus falantes
são distribuídos nesse espaço pelo político?
O texto que apresentamos é uma reflexão abreviada que procura apresentar
respostas possíveis a essas questões. Vale ressaltar, ainda, que tomaremos metonimicamente
o espaço de enunciação argentino para falar do funcionamento da política de línguas
na América Latina.

1 Mestrando em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Estagiário docente no


Centro de Estudos de Línguas da Unicamp na área de Português para Estrangeiros.
2 Este texto é parte integrante de nossa pesquisa de mestrado intitulada “O tratamento enunciativo da
metáfora no estudo da designação do nome português na América Latina: um trabalho com política de
línguas”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Gabriel Leopoldino dos Santos (p. 113-117) 113


Sobre as condições históricas de produção de nossa reflexão
Diante da estrutura globalizada de nossas sociedades capitalistas, cada vez
mais vemos aparecer no cenário mundial acordos político-econômicos entre Estados
Nacionais, que procuram fortalecer suas produções em nível regional e estreitar seus
laços comerciais, políticos e culturais, fazendo frente, sobretudo, às hegemonias políticas
e econômicas que submetem a maioria dos Estados aos seus modelos neoliberais e
neocolonialistas. O MERCOSUL é um exemplo dessa tentativa de integrar as sociedades
e os mercados sul-americanos, historicamente explorados pelas metrópoles europeias
e norte-americanas.
Embora o objetivo desses acordos seja o de integrar seus países-membros,
percebemos que tal integração se faz a partir de uma concepção de Estado sustentado por
um memorável capitalista neoliberal, que concebe seu funcionamento como homogêneo,
universal, igual para todos os cidadãos e plenamente democrático. No entanto, não se
leva em consideração nesse modelo de integração que cada Estado-Nação é diverso no
seu funcionamento e que a divisão e a exclusão são constitutivas de seu real.
Quando decidimos estudar os sentidos do nome “português” na Argentina,
buscávamos compreender, pela análise da materialidade da língua, como o espaço de
enunciação latino-americano se encontra estruturado. Isto é, que línguas estão autorizadas
a significar o real e quais não estão, como os falantes dessas línguas excluídas de seu
direito de simbolizar o real são afetados por essa divisão e como eles afirmam seu per-
tencimento. Para isso, tínhamos de selecionar um material que não fosse um produto
direto das políticas linguísticas dos Estados, pois, imbuídas nesse imaginário de Nação
una e homogênea, igual para todos, elas, em geral, significam as línguas como “trans-
nacionais”, “internacionais”, “com prestígio social”, etc. Quando olhamos, no entanto,
para a política das línguas e seu modo histórico e político de relacionamento entre si,
vemos que não há uma relação simétrica entre uma língua e outra, a despeito de todo
o investimento feito pelos Estados ao legislarem sobre elas. Por exemplo, no espaço de
enunciação argentino, não é a mesma coisa ser falante de português e ser falante de
inglês ou de francês, ou mesmo de espanhol, embora alguns manuais didáticos de PLE3
apresentem o português como uma “língua internacional”. Há um modo específico de
significação do português, bem como do falante dessa língua, que o distingue, o diferencia,
o distancia dos falantes de outras línguas. Dialogando com Guimarães (2002, p. 16),
as línguas se distribuem desigualmente no espaço de enunciação, e essa distribuição
desigual é histórica e mostra como o político, enquanto “divisão normativa e desigual
do real”, atua incessantemente nas relações de sociabilidade entre os falantes.

3 Consideramos que os manuais didáticos para ensino de línguas são partes integrantes do que Auroux
(2009) denomina de instrumento linguístico, pois eles recortam determinados memoráveis das Políticas
Linguísticas dos Estados para falar sobre e ensinar a língua. Desse modo, são produções simbólicas que
trabalham com um imaginário de língua que muitas vezes difere do real das línguas em relações.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 114


Como o que nos interessa é a política de línguas e não a política linguística,
conforme distinção feita por Orlandi (2007)4, nosso material de análise não consiste em
documentos de leis ou decretos sobre a língua portuguesa na Argentina, mas sim num
conjunto de entrevistas feitas a alunos e professores do curso superior de Professorado em
Português da Universidade Nacional de Entre Ríos, na Argentina. Assim, compreen-
deremos a significação do nome “português” tomando aquilo que não é da ordem do
necessariamente consciente, mas que é histórico, político e ideológico e que aparece
na enunciação dos sujeitos-entrevistados a despeito de sua vontade.

Sobre a designação de nomes e sobre o espaço de enunciação


Os conceitos de designação e espaço de enunciação provêm das reflexões em
semântica feitas pelo linguista Eduardo Guimarães, principalmente em seu livro Semântica
do acontecimento: um estudo enunciativo da designação (GUIMARÃES, 2002). Segundo
o que nos ensina nessa obra, “o processo enunciativo da designação significa, então,
na medida em que se dá como um confronto de lugares enunciativos pela própria
temporalidade do acontecimento”. Acrescenta, ainda, que “este confronto recorta e
assim constitui um campo de ‘objetos’. Se se mudam os lugares enunciativos em confronto
recorta-se um outro memorável, um outro campo de ‘objetos’ relativos a um dizer”
(GUIMARÃES, 2002, p. 40).
Desse modo, falar em designação é falar de sentido, não de um sentido único e/ou
referencial, mas de sentidos sempre divididos pelas múltiplas determinações (históricas,
políticas, psíquicas, sociais) que os constituem e constituem os sujeitos falantes. A
designação nos permite olhar para os lugares enunciativos a partir dos quais um nome
- em nosso caso o nome “português” - é significado. Não há uma significação unívoca,
já que ela vai se constituindo no processo simbólico da língua.
Os espaços de enunciação “são espaços de funcionamento de línguas, que se dividem,
redividem, se misturam, desfazem, transformam por uma disputa incessante”. Isso
quer dizer que “são espaços ‘habitados’ por falantes, ou seja, por sujeitos divididos por
seus direitos ao dizer e aos modos de dizer. São espaços constituídos pela equivocidade
própria do acontecimento” (GUIMARÃES, 2002, p. 18). Com esse conceito, pensamos
os espaços simbólicos em que as línguas funcionam. Não são espaços tomados no sentido
físico ou geográfico puramente. Ao contrário, são espaços de funcionamento do simbólico
e do político, que dividem desigualmente as línguas e seus falantes.
Vejamos analiticamente como todas essas questões levantadas até agora aparecem
nos recortes que selecionamos de nosso corpus de pesquisa.

4 Segundo a autora, a política linguística pode ser compreendida, entre outras coisas, como sendo da ordem
do “planejamento linguístico, de organizar-se a relação entre línguas, em função da escrita, de práticas
escolares, do uso em situações planificadas” (ORLANDI, 2007, p. 7). Já a política de línguas trata das “formas
sociais sendo significadas por e para sujeitos históricos e simbólicos, em suas formas de existência, de
experiência, no espaço político de seus [das línguas] sentidos”. (ORLANDI, op. cit., p. 8)

Gabriel Leopoldino dos Santos (p. 113-117) 115


Análises
(Recorte 1)

E: Qual é a sua opinião sobre a implementação do português nas escolas?


MN: Bom, eu não tenho muita expectativa porque nós somos conscientes de que, embora
se fale que o português, como língua estrangeira, tem que ser ensinado obrigatoriamente
nas escolas, nós sabemos que estudamos para o dia de amanhã nos formar e não conseguir
trabalho, porque muitos dos nossos colegas, que já são professores, não têm trabalho... e
temos que pensar em alguma alternativa, e não porque não existam escolas para dar
a língua; têm muitas escolas que se reusam (recusam) a ensinar o português. Então,
acho que o que está escrito em teoria se fala é bem diferente do que acontece na realidade,
porque têm muitos professores que não podem trabalhar de professores, têm que trabalhar
de outras coisas porque não há trabalho...

No recorte acima, temos uma cena enunciativa configurada por dois Locutores
interpelados por dois lugares sociais distintos: L1 fala como locutor-entrevistador e L2
como locutor-entrevistado/falante e estudante de PLE na Argentina. Ao dizer sobre uma
questão de política linguística - a implementação do português como oferta obrigatória
nas escolas secundárias na Argentina - a enunciação de L2 atualiza um memorável de
língua portuguesa que é o de “língua sem possibilidades de trabalho”. Nesse sentido,
o Locutor, a partir de um lugar de dizer individual (enunciador individual), sustenta,
pela sua enunciação, a falta de possibilidade de trabalho com o português nas escolas, ao
mesmo tempo em que questiona o lugar de dizer universal do Estado, que apresenta o
ensino de português nas escolas como obrigatório e como possibilidade de trabalho,
tendo em vista a integração latino-americana proposta pelo MERCOSUL. O português
é, nesse acontecimento enunciativo, significado como uma língua de “não-trabalho”.
Vejamos como essa língua de “não-trabalho” aparece na análise da orientação
argumentativa do recorte em questão. Consideremos os enunciados: “(E1) embora que o
português, como língua estrangeira, tem que ser ensinado obrigatoriamente nas escolas,
(E2) nós sabemos que estudamos para o dia de amanhã nos formar e não conseguir
trabalho”. Sabemos, a partir de Guimarães (1987), que os enunciados de tipo “embora
x, y” funcionam da seguinte maneira: L à E1: embora x (A -- ) r), E2: y (A -- ) ~r) --) ~r.
E1, nesse sentido, apresenta um argumento que orienta para a conclusão de que o português
pode ser uma língua de trabalho/prestígio em virtude de seu ensino, pois será oferecido
obrigatoriamente nas escolas, enquanto que E2 apresenta um argumento que desloca
o argumento apresentado por E1, pois orienta para “o português não será uma língua
de trabalho/prestígio”. Poderíamos dizer que E1 é a perspectiva enunciativa da política
linguística do Estado e E2 é a perspectiva enunciativa da política de línguas do real
contraditório do espaço de enunciação argentino. Assim, o Locutor se identifica com
E2. Vejamos no recorte seguinte o que serve de argumento para sustentar esse lugar de
dizer assumido pelo Locutor.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 116


(recorte 2)

E: Por que algumas escolas se recusam a ensinar o português?

MN: Eu não sei. Penso eu que a gen... nós, aqui em nossa cidade, se ensina nas
escolas inglês e francês ou italiano. Então, acho que, se introduzir o português
como língua, o francês ou o italiano vão ficar fora... então, têm muitos outros
docentes que vão ficar fora sem trabalho ou vão ter que se formar porque eles
ficar sem poder se inserir no mercado laboral. Então, eu acho que também é
por isso.

No segundo recorte, vemos que “português como língua de não-trabalho” significa


desse modo na relação com “inglês, francês ou italiano como língua de trabalho”. Podemos
pensar em um E3 que coloca em cena o litígio entre as línguas presentes nesse espaço
de enunciação. Esse enunciador sustenta o dizer: “se introduzir o português como
língua, o francês ou o italiano vão ficar de fora”. Dessa forma, o português não tem espaço
na escola, pois o espaço escolar já está significado, “preenchido de sentidos” pelo
funcionamento do inglês ou do francês ou do italiano.
Além disso, podemos pensar num quarto enunciador que aparece no equívoco
constitutivo da língua. E4 sustenta o dizer de que o português nem sequer goza dos
privilégios de ser uma língua; não lhe está autorizado esse lugar. Vemos isso em: “se
introduzir o português como língua, o francês ou o italiano vão ficar de fora”. Com isso,
o “português” é uma “não-língua” na relação com o “inglês”, o “francês” e o “italiano”,
que são “línguas”.
Pelas análises, vemos que o nome “português” está determinado, de um lado,
por “língua de não-trabalho” e, de outro, por “não-língua”, numa relação de antonímia
com a designação de outros nomes de línguas, como a de “inglês”, a de “francês” e a de
“italiano”, que estão, por sua vez, numa relação de sinonímia e significam a partir do
memorável de “língua de trabalho” e, consequentemente, de “língua”. Considerando o que
analisamos acima, podemos dizer que a designação do nome português está constituída
nesse espaço de enunciação, entre outras possibilidades de significação, pelo domínio
semântico de determinação5 (cf. GUIMARÃES, 2007) abaixo:

língua de
┤ português  língua portuguesa ├ não-língua
não-trabalho

língua de ┤ inglês  francês  italiano língua



trabalho

5 Num DSD), ┤ significa “determina”. O traço (-) significa que ali há uma relação de antonímia.

Gabriel Leopoldino dos Santos (p. 113-117) 117


Conclusão
Diante do que analisamos, a designação de “português” se dá numa relação
conflituosa com a designação de outras línguas, como a de “inglês”, a de “francês” e a
de “italiano”. O político está presente nessa divisão do real na medida em que o divide
desigualmente, dizendo que língua(s) pode(m) gozar desse estatuto de “língua” e
qual(is) outra(s) não pode(m). É importante observar que a política de línguas significa
contraditoriamente com relação ao imaginário de língua que sustenta a política linguística
do Estado, pois, mesmo sendo obrigatório o oferecimento de português nas escolas,
ele - assim como seus falantes - não goza de um lugar autorizado a funcionar sequer
como língua.

Referências

AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. 2. ed. Campinas, SP: Editora


da Unicamp, 2009.

GUIMARÃES, E. Domínio Semântico de Determinação. In: GUIMARÃES, E.;


MOLLICA, M. C. (Org.). A palavra: forma e sentido. Campinas, SP: Pontes, RG
editores, 2007.

______. Semântica do Acontecimento. Campinas, SP: Pontes, 2002.

______. Texto e argumentação: um estudo de conjunções do português. Campinas,


SP: Pontes, 1987.

ORLANDI, E. (Org.). Política linguística no Brasil. Campinas, SP: Pontes, 2007.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 118


A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES
DE PLE NO EXTERIOR
Patrícia Trindade Nakagome11

Resumo: Os professores de PLE no exterior comumente vivenciam duas dificuldades centrais à


sua atuação profissional: distanciamento da cultura brasileira e falta de formação específica.
Esses dois aspectos constituíram o eixo do curso de formação continuada desenvolvido na
Nicarágua. Neste trabalho, realizo uma discussão sobre essa experiência, apresentando os
principais desafios encontrados e os resultados obtidos com o curso de capacitação docente.

Abstract: Teachers of Portuguese as Foreign Language who live abroad have to face two
main difficulties related to their professional performance: distance of Brazilian culture and
lack of specific formation. These two points constituted the focus of the continuing education
course developed in Nicaragua. In this work, this experience will be discussed and the main
challenges and results obtained will be presented.

Introdução
Neste trabalho, discuto o processo de formação continuada desenvolvido com
professores de PLE no Centro Cultural Brasil-Nicarágua durante dezoito meses, período
em que trabalhei como leitora na instituição.
O programa de Leitorado, embora já exista há mais de dez anos por meio de
uma parceria entre a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível
Superior) e o MRE (Ministério de Relações Exteriores), ainda não é muito conhecido,
mesmo entre os profissionais que se dedicam à área de PLE.
Cabe, assim, destacar, em linhas gerais, que o leitor é o profissional responsável
por divulgar a cultura brasileira e ensinar a língua portuguesa no exterior. As especifi-
cidades de cada posto de trabalho são apresentadas no edital de seleção. No meu caso,
estava indicado que o selecionado para a vaga da Nicarágua deveria ministrar aulas de
cultura brasileira e capacitar os alunos para a produção de projetos voltados ao PEC-
-PG2.2Havia, ao fim e sua descrição, um complemento: “Deverá, ademais, coordenar as
atividades do Centro de Estudos Brasileiros.” Quando aceitei o trabalho, não imaginava
que essa única linha seria responsável por grandes alegrias, mas também por muita
dor de cabeça.
Aulas em diversas modalidades não se mostravam como uma dificuldade, ainda
que elas sempre sejam um desafio. Por outro lado, já de início, a coordenação de pessoas

1 Doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP


2 O Programa de Estudante-Convênio de Pós-Graduação visa a conceder bolsas de mestrado e doutorado
no Brasil a estudantes de países em desenvolvimento.

Patrícia Trindade Nakagome (p. 118-124) 119


amedrontava pelo ineditismo. Felizmente, tive a possibilidade de encontrar um in-
terlocutor bastante interessado e prestativo, o diretor do Centro Cultural, com quem
discutia as dificuldades rotineiras à luz de nossas experiências profissionais e leituras
especializadas.
O balanço final revela que alguns erros cometidos já estavam previstos em textos
de Educação e Linguística Aplicada. Mas o fato é que a rotina exigia respostas imediatas,
nem sempre passadas conscientemente pelo crivo da teoria. Apenas com o atual
distanciamento, pude entender a experiência vivenciada. É o resultado desse período
de reflexão que será apresentado neste trabalho.

Características do corpo docente


Longe de querer apontar diferenças individuais dos professores, indico apenas
alguns traços que evidenciam a dificuldade de delimitar um grupo docente: 1) quanto
à formação, dos nove professores, apenas dois tinham formação em Letras, dois
tinham mestrado em outras áreas (Ciências Sociais e Psicologia) e outros três não
possuíam ensino superior; 2) quanto à nacionalidade, cinco eram brasileiros, mas
mesmo esses tinham pouco contato com o país de origem; 3) quanto ao uso da língua,
dois comunicavam-se em português em suas casas, e apenas um professor tinha um
filho que falava o idioma; 4) quanto ao contrato de trabalho, dois professores traba-
lhavam somente aos sábados (dia de maior demanda), dois estavam contratados em
período parcial (sábados e noites da semana) e cinco deles se dedicavam integral-
mente ao CCBN, possuindo carga horária que lhes permitia dar aulas e participar do
curso de formação.
Limito-me, por ora, a discutir aspectos que interferem diretamente na atuação
docente, seja em termos de formação ou de contato com a língua e a cultura do Brasil.
Outros aspectos importantes, como por exemplo, religião e gênero, que influenciam a
atuação docente, mas estão mais ligados à individualidade de cada professor, não serão
contemplados neste artigo.
Assim, os traços gerais apontados, longe de revelarem a complexidade do gru-
po, são indicativos de algumas dificuldades logo identificadas: contato superficial com
a cultura brasileira, o que, muitas vezes, implicava em uma reprodução de estereótipos
em sala de aula; parco uso da língua portuguesa, especialmente na modalidade escrita,
o que dificultava a capacitação dos alunos para a redação de textos acadêmicos; por
fim, uma compreensão limitada de língua, comumente identificada à gramática nor-
mativa, o que restringia as práticas em sala de aula e colocava barreiras à aplicação de
novas diretrizes metodológicas.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 120


Por uma formação docente efetivamente continuada
Há algumas iniciativas do MRE que visam à consolidação de um programa de
formação dos professores de português no exterior. O PROFIC (Programa de Formação
Intensiva e Continuada) é um curso cujo grande mérito certamente é o de trazer as
mais atuais discussões do ensino de PLE para profissionais que, como já apontado,
estão muitas vezes apenas imersos na rotina do trabalho, sem oportunidade de ques-
tionar métodos, materiais didáticos etc. No entanto, é importante salientar o elevado
custo do Programa como um dos principais fatores limitantes a ações como essa. No
caso dos Centros Culturais da América Central, por exemplo, a efetivação do PROFICII
exigiu o deslocamento de professores do Haiti, República Dominicana, Panamá e México
à Nicarágua, país em que ocorreria o treinamento.
Além desses aspectos financeiros, sobre os quais não tenho condições de me
aprofundar, chamo a atenção para outro ponto: o fato de o PROFIC ser, como indica sua
própria sigla do programa, um programa intensivo e continuado. É possível entender a
intenção que motiva esses dois termos, já que, por um lado, ele é intensivo por ser um
curso integral ministrado durante uma semana e, por outro, pretende-se continuado
por visar a uma maior periodicidade nesses cursos e um prolongamento do trabalho após
o término dos encontros presenciais. Embora haja esforços para que essa continuidade
seja efetivada, o ritmo de trabalho de todos os envolvidos nem sempre permite que a
boa intenção se concretize.
O PROFIC tem o mérito de apresentar importantes conceitos e ideias aos
professores, que, por meio de uma linguagem mais técnica, passam a discutir problemas e
dúvidas semelhantes. No entanto, o curso, após sua conclusão, não consegue estender
seu efeito para uma formação contínua dos profissionais.
Há alguns fatores que explicam a dificuldade para que o programa tenha continui-
dade sem a presença de uma orientação formal: o contrato de trabalho de muitos professores
prevê o pagamento apenas pelas horas de aula, não havendo tempo dedicado à formação.
Se não há tempo específico, por exemplo, para o planejamento das aulas e correções,
como esperar que os professores estejam em contato com seus pares (parceiros no
processo de formação)? E assim, na impossibilidade de trocar informações com outros
docentes, eles individualmente referendam uma prática bastante marcada por anos
de trabalho e pela eventual experiência que tenham tido como alunos de idiomas. Soma-se
a isso o fato, já destacado, de que muitas vezes o professor não se reconhece como
um profissional. Nesses casos, as aulas são encaradas como uma mera fonte de renda
secundária que demanda pouco comprometimento e dedicação.
Diante disso, faz-se fundamental a presença de um interlocutor no processo
formativo. Ele representa a importância de constantemente se preparar para as aulas,
além de que, em termos práticos, sua participação exige que os professores disponibilizem
seu tempo para as atividades necessárias. Isso corrobora a análise de Almeida Filho,

Patrícia Trindade Nakagome (p. 118-124) 121


o qual indica que a desejada formação de professores nem sempre é perpassada pelo
“elemento auto”, presente nos ideais de automonitoração e a autorreflexão:

A questão do eu ou do auto neste caso se torna difícil de equacionar por necessitar


sempre no mínimo de um alter-ego com quem dialogar e buscar o esclarecimento.
Na verdade, temos nos deparado na prática da formação de professores com a
limitação teórica de que a auto-formação raramente se concretiza carecendo
sempre da participação de um outro. (ALMEIDA FILHO, 1997, p. 34)

A autoformação, parece-me, ser um estágio em que a autonomia já foi atingida


efetivamente, o que demanda algumas etapas anteriores. Antes de tudo, a presença de
alguém que atue como orientador do processo formativo, com participação constante
no grupo de professores. E o trabalho nessa orientação é muitas vezes braçal, pois
complexas questões dos professores não são discutidas com profundidade em apenas
uma semana. A formação continuada vem, assim, complementar as lacunas deixadas
pelos cursos intensivos: ela possibilita o diálogo sobre os muitos desdobramentos surgidos
após o contato com novos conceitos e metodologias.
Apenas no contato diário com os professores é possível reconhecer os fatores
que inviabilizam a aplicação prática de um pressuposto metodológico, ainda que ele
já tenha sido anteriormente discutido e, inclusive, aceito pelo grupo sem restrições. É
também complexa a tarefa de unir a nova teoria aprendida à prática docente instaurada.
Demanda grande esforço (e tempo), tanto da equipe de coordenação quanto dos professores,
buscar um ponto de equilíbrio entre os modelos linear e pragmático33de aplicação do
conhecimento:

A reconceitualização da relação entre pesquisa e prática é, nesse contexto,


decisiva em Educação. É necessário ir além do modelo linear, sem ignorar o
conhecimento científico. Talvez seja necessário compreender que tipos de conhe-
cimento o professor deve adquirir e como os modelos teóricos são, de fato,
aplicados nas salas de aula (NUNES, 2008, p. 101)

Uma conciliação entre teoria e prática no trabalho de formação de professores


está diretamente relacionada à compreensão dessa profissão. Todos no grupo de
formação (inclusive o coordenador) são professores, com suas experiências e neces-
sidade de aprendizado. Por um lado, o responsável pelo curso não pode abrir mão de
sua autoridade, compreendida aqui como a necessidade de não fugir à sua respon-
sabilidade (ARENDT, 2000). Por outro, o fato de trabalhar entre pares, exige que ele
discuta as concepções de ensino e as propostas de todos. A formação continuada deve
ser pautada pela busca real da plena autonomia dos sujeitos, que diante de quaisquer

3 Nunes (2008) faz uma síntese dos dois métodos, indicando que o modelo linear estaria mais relacionado
a uma posição passiva do professor, que aceitaria soluções da comunidade científica, enquanto o modelo
pragmático consideraria o conhecimento como produto da prática, independente das pesquisas.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 122


questões, poderão encontrar, no interior do próprio grupo de trabalho, a interlocução
necessária para seu aperfeiçoamento.
No caso do trabalho docente, a autoformação deve ser um processo realizado
entre os pares. Assim, consideramos que uma formação individual mais sólida só
ocorrerá quando as dificuldades de cada um forem discutidas entre todos, que poderão
analisar como as características pessoais podem ser trabalhadas em favor de uma diretriz
comum à instituição. É necessário que esse processo de mudança e aprendizado ocorra
diante de todos, pois um professor nunca está isolado, mesmo quando fechado em sua
sala. O trabalho do professor não se limita apenas ao período em que ele ministra um
curso para um determinado grupo. Afinal, alguns meses depois, o grupo de alunos
sempre passa à sala de outro professor.

À guisa de (in)conclusão
Há alguns pontos que parecem conclusivos, ainda que especulativos: a formação
de professores de PLE, pelas características diferenciadas acima expressas, exige um
trabalho de maior continuidade. Sugiro, portanto, que se fortaleça o papel pedagógico do
leitor nos Centros Culturais, pois ele poderia ser responsável por um programa de
formação efetivamente continuado, que não seria tão dispendioso ao orçamento do
governo.
Ainda que o papel de formador não caiba ao leitor, o fundamental é que sejam
abertas possibilidades para que os professores ganhem autonomia, podendo discutir
suas dúvidas entre si (ou pesquisando individualmente) e defendendo a posição do
grupo em relação a eventuais mudanças institucionais. O processo de formação efetivo
nunca está concluído, mas é sempre modificado: se no início, é necessário o que chamamos
de “esforço braçal”, em que cada tarefa, atividade e plano de aula devem ser discutidos
com os professores, chega-se, depois, efetivamente a um momento de autoformação,
no qual a interferência externa passa a ser dispensável. Não cessa o diálogo, mas ele
pode ocorrer primordialmente entre os membros do grupo de professores.
Retomo o tom pessoal do início deste texto, apenas para afirmar que ainda
acompanho muitas discussões dos professores da Nicarágua, apesar de já estar afas-
tada do país há alguns meses. Não gosto de algumas decisões, confesso. Mas admiro
o processo instaurado de debate. Gosto de perceber que a autonomia revelada nas
decisões é indicativa de que o processo formativo está ocorrendo. Ação inconclusa e
continuada.

Referências
ALMEIDA FILHO, J.C.P. Tendências na formação continuada do professor de língua
estrangeira. Apliemge - Ensino e Pesquisa, Belo Horizonte, n. 1, p. 29-41, 1997.
ARENDT, H. Entre passado e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000. 348 p.

Patrícia Trindade Nakagome (p. 118-124) 123


NUNES, D. R. P. Teoria, pesquisa e prática em Educação: a formação do professor-
-pesquisador. Educação e pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 1, p. 98-107, jan/abr 2008.

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO... 124

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