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Alabastro: ISSN 2318-3179

São Paulo, ano 8, v. 1, n. 12, 2019


CONSELHO EDITORIAL
Aldo Fornazieri (FESPSP)
Ana Cristina Passarella Brêtas (UNIFESP)
Carlos Alberto Furtado de Melo (INSPER)
Clarice Cohn (UFSCar)
Cláudio Gonçalves Couto (FGV)
Eliana Asche Cintra Ferreira (FESPSP)
Flávio Rocha de Oliveira (UNIFESP)
Flávio Wolf de Aguiar (USP)
Ivan Russeff (FESPSP)
Marcia Regina Tosta Dias (UNIFESP)
Miguel Wady Chaia (PUC-SP)
Roseli Aparecida Martins Coelho (FESPSP)
Rosemary Segurado (FESPSP/PUC-SP)
Vera Lucia Michalany Chaia (PUC-SP)
Wagner Tadeu Iglecias (USP)

NESTA EDIÇÃO

EDITORES
Ederson Duda da Silva Graduado em Sociologia e Política, FESPSP
Wagner Tadeu de Oliveira Jr. Graduando em Sociologia e Política, FESPSP

EDITORES-ASSISTENTES
Fábio Ap. Jesus Formado em Sociologia e Política, FESPSP
Leonardo Gomes Ribeiro Graduando em Sociologia e Política, FESPSP
Mariana Mello Graduanda em Sociologia e Política, FESPSP

COMISSÃO EDITORIAL
Carla Diéguez Doutora em Ciências Sociais, UNICAMP; Coordenadora do curso Sociologia e Política, FESPSP
Fernanda Lima Graduada em Sociologia e Política, FESPSP

DIAGRAMAÇÃO
Wagner Tadeu de Oliveria Jr. Graduando em Sociologia e Política, FESPSP

A Alabastro: revista eletrônica dos discentes da Escola de Sociologia e Política da FESPSP (Fundação
Escola de Sociologia e Política de São Paulo) tem por escopo a publicação científica de artigos acadêmicos.
Os artigos são de responsabilidade dos respectivos autores, não refletindo necessariamente a opinião da
Comissão Editorial acerca do conteúdo dos mesmos.

Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Attribution 3.0 .
ISSN 2318-3179
São Paulo, ano 7, v. 1, n. 12, 2019

Sumário
Nota do Editor
Wagner Tadeu de Oliveira Júnior 4

Entrevista
Casal Clastres, com Renato Sztutman 6
Gustavo Ruiz da Silva

Artigos
Fora do “Cis”tema: Os caminhos da transição de gênero de homens trans 16
Sabrina Silva Jacintho

Sequelas do cárcere: discursos e trajetórias além das grades 32


Luan Piani

Identidade latino-americana e brasileira: semelhanças e diferenças 49


Danilo Espindola Catalano

A construção da subordinação feminina e seu impacto na exploração do


tráfico de mulheres 62
Juliana Gomes da Silva

A fábrica disciplinadora de comportamentos: um diálogo entre Michel


Foucault e Frederick W. Taylor 75
Marcelo Limão Gonçalves
Nota do Editor

Caras leitoras e caros leitores,


Temos a satisfação de trazer-lhes a 12ª edição da Alabastro, a revista eletrônica dos discentes
da Escola de Sociologia e Política da FESPSP.
O material que compõe a revista foi reunido ao longo do ano, revisado e finalmente editado
por nosso corpo editoral, apresentando trabalhos muito bem elaborados, condizentes e pertinentes
com nossa realidade, a partir de novos perspectivas acadêmicas. E além disso, agradecemos a todas
e todos que nos enviaram os seus trabalhos e escritos.
Abrimos esta edição com uma entrevista feita com Renato Sztutman, discutindo
essencialmente Pierre e Hélène Clastres, no qual, a pesquisa elaborada pelo casal é revisada a partir
de outros autores de grande influência.
Em nossa seção destinada a artigos, temos reflexões das diversas áreas das ciências sociais, nas
quais, a relação indivíduo e sociedade é atualizada pra questões diversas, questionando identidade e
comportamentos pelas mais variadas perspectivas.
Começamos com o artigo “Fora do “Cis”tema: Os caminhos da transição de gênero de
homens trans”, trazendo uma rica pesquisa acerca de uma questão: O que a transição nos diz sobre
nossa sociedade e sua relação com esses indivíduos?
Logo em seguida, “Sequelas do cárcere: discursos e trajetórias além das grades” reflete a
realidade dos egressos do sistema prisional, e mostra o seu ponto de vista a partir das exclusão
social em torno da vida após a prisão.
Já o artigo “Identidade latino-americana e brasileira: semelhanças e diferenças” perpassa
pela questão identitária por um outro ângulo, a transculturalização. Utilizando meios midiáticos
para dar significados a algumas identidades latino-americanas. Sendo seguido por “A construção da
subordinação feminina e seu impacto na exploração do tráfico de mulheres”, argumenta sobre as
diversas mazelas que as mulheres ainda estão submetidas, dentre elas, o nefasto tráfico de mulheres.
Para finalizar, veremos sobre sociologia do trabalho, em “A fábrica disciplinadora de
comportamentos: um diálogo entre Michel Foucault e Frederick W. Taylor”.

Desejamos uma boa leitura.

O editor
Entrevista

Casal Clastres, com Renato Sztutman


por Gustavo Ruiz da Silva
Graduando em Ciências Sociais pela PUC-SP
(gustavo.ruizdasilva@sciencespo.fr)

Resumo: Esta entrevista feita com Renato Sztutman, professor-doutor do Departamento de


Antropologia Social da Universidade de São Paulo, circunda essencialmente a reflexão de Pierre Clastres,
etnólogo francês que desenvolveu pesquisas acerca do pensamento político dos povos ameríndios da América
do Sul. Passar-se-á por outros autores a isto relacionados, como a esposa, também antropóloga, do escritor
supracitado e filósofos europeus que ajudaram a edificar a análise das sociedades contra-o-Estado.

Palavras-chave: Renato Sztutman; Pierre Clastres; Antropologia Política.

Abstract: This interview made with Renato Sztutman, PhD. of the Department of Social Anthropology
of the University of São Paulo, essentially goes around the thinking of Pierre Clastres, French ethnologist that
developed research about the political thought of the South American’s Amerindian peoples. Other authors related
to this will be used, like the wife, also anthropologist, of the above-mentioned writer and European philosophers
that helped to construct the analysis of the Against-the-State societies.

Key-words: Renato Sztutman; Pierre Clastres; Political Anthropology

Alabastro: revista eletrônica dos discentes da Escola de Sociologia e Política da FESPSP, São Paulo. Ano 8, v. 1, n. 12, 2019, p. 6-15

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Entrevista
Casal Clastres, com Renato Sztutman
Gustavo Ruiz da Silva

Gustavo Ruiz: Qual importância você acha que Pierre Clastres tem na etnologia?1

Renato Sztutman: Acho que o Clastres é um autor muito importante pensando em quando ele escreveu. Do
ponto de vista das sociedades sul-americanas, eu acho que ele abre uma frente de pesquisa, de Antropologia Política, com
os índios sul-americanos que até então tinha sido pouco desenvolvida, o que não quer dizer que pouco tenha se falado
sobre isso. A gente sabe que o primeiro texto dele, “Troca e Poder”2, em que ele coloca a questão da Sociedade-contra-o-
Estado, ele está dialogando com o Lowie (Robert Lowie), que já nos anos 40 falava de um chefe sem poder, e o próprio
Lévi-Strauss, que embora não tenha sido esse o tema dele, no estudo sobre os nambiquara tem uma parte importante
sobre a questão da chefia e tal. Mas eu acho que ele organiza esse material etnográfico e faz uma proposta interessante
sobre as sociedades Contra o Estado, e não Sem Estado, que até então, e essa é a crítica que ele vai fazer, e essa é a
contribuição dele pra antropologia: ele vai mostrar que mesmo os autores funcionalistas, funcional-estruturalistas, enfim,
os autores que escrevem depois da primeira metade do século XX, ainda tem um ranço evolucionista, digamos assim,
que é o de imaginar que sociedades que não tem o poder centralizado exatamente estão numa espécie de ausência: um
pensar essas sociedades na ausência, sem Estado, sem História, uma série de “sens”. E ele vai colocar a necessidade de
pensar o Contra, quer dizer, não é que eles não têm porque alguma coisa aconteceu, e em decorrência disto eles não
puderam ter esse tipo de organização, eles escolheram, eles criaram mecanismos de recusa e de repudio à centralização de
um Poder ou a formação de um Poder coercitivo separado. Então, eu acho que essa é a grande contribuição para mostrar
que quando os antropólogos falavam de Política eles acabavam caindo numa armadilha evolucionista de pensar que
existem sociedades Sem Estado, colocando-os como uma ausência em relação a outras sociedades ditas mais complexas.
Assim, eu acho que ele faz uma Revolução, como ele diz mesmo, uma Revolução Copernicana na Antropologia. E
o que eu acho muito interessante no Pierre Clastres é que ele vai propor uma aproximação da Antropologia com a
Filosofia. Quando você diz uma Sociedade-sem-Estado, sem Poder, sem História, o que esses conceitos tão querendo
dizer? Sociedade, História, Poder, Sem e Com? Então, essa necessidade de voltar a questões filosóficas que colocam em
questão o Poder, e é a partir daí que ele vai organizar os estudos dele, que são estudos parte organizados em etnografias,
parte que vai se desenvolver na Filosofia Política. Acho que nesse sentido ele tem esse lugar interessante na história da
Antropologia. Também ele vai escrever em um momento – ele começa a escrever nos anos 60, que é o momento da
descolonização das colônias europeias na África – onde ele é um dos primeiros, porque só depois vai vir a Onda Pós-
moderna, nos anos 80, de colocar esse problema da antropologia como um instrumento da colonização. É preciso
fazer uma reforma nas formas mesmas de pensar: e começa mesmo pensando que a gente descreveu como seria o
Político nessas outras sociedades, e em muitas vezes a gente descreve o Político nas outras sociedades tendo em vista o
nosso modelo de Política. Você tem o colonialismo ao mesmo tempo histórico (que a antropologia nasce no momento
histórico de colonização), ou seja, eles vão estudar nas colônias, mas também, ele está propondo que não basta só falar,
fazer denúncia dessa história, mas é preciso fazer uma descolonização nos próprios conceitos, no próprio pensamento.
Então, ele vai colocar isso no cerne do projeto dele, é claro que Lévi-Strauss já vai começar a fazer isso, e não é por
menos que ele estudou com o próprio Lévi-Strauss.

1 Durante a transcrição desta entrevista algumas marcas de oralização foram mantidas, contudo, a fim de tornar a leitura mais fluida,
algumas alterações também foram feitas na esfera da sintaxe.
2 Ver: CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac&Naify, 2003 [1974].
Alabastro: revista eletrônica dos discentes da Escola de Sociologia e Política da FESPSP, São Paulo. Ano 8, v. 1, n. 12, 2019, p. 6-15

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Entrevista
Casal Clastres, com Renato Sztutman
Gustavo Ruiz da Silva

G.R.: Você mesmo falou que ele se aproxima muito da filosofia e ele também tem alguns debates com
La Boétie, sem contar que ele acaba passando por um processo de analisar muita documentação. Você acha que
pode ser uma crítica ele passar mais tempo olhando documentos e pensando coisas filosóficas do que fazendo um
material etnográfico? Talvez um possível baixo excesso de material etnográfico e empírico teria contribuído para
uma crítica a ele?

R. S.: Duas coisas: ele tem campo. O Clastres tem um campo muito intenso com os Guayakis, que ele fez
um livro mais livre, “As Crônicas dos Índios Guayakis”3, só que ao mesmo tempo ele está interessado num processo
mais comparativo, mais filosófico. Então, eu acho que a gente tem na obra dele, do Clastres, uma tentativa de
conciliar essas duas pontes, e claro, o trabalho antropológico não é só a pesquisa de campo: quando você escreve
uma etnografia sobre um povo, a gente sabe que um bom trabalho é aquele que consegue comparar isso com
outras coisas, outras situações etnográficas e conceitos sociológicos ou filosóficos, então ele está tentando conciliar
essas coisas, não acho que seja uma fraqueza. O que eu acho que a gente pode pensar é que nos anos 60-70
justamente o campo de estudos dele, as chamadas Terras-baixas da Amazônia, tinha muita pouca coisa produzida.
Bem diferente de hoje em dia, só que essa etnologia floresceu e explodiu só nos anos 80; hoje tem muito material.
Então, quando a gente vai ler Clastres em algumas vezes parece até uma coisa meio ingênua, porque não tinham
tantas pesquisas etnográficas para comparar. Deste modo, hoje você tem um controle muito maior, uma grande
quantidade e de muita qualidade de material etnográfico para isso sobre a américa do sul, e isso ele não tinha.
De fato, ele teve que arriscar muito. Nesse momento, em Papua-Nova Guiné, ou na África, você tinha muito
mais estudos do que na Amazônia, então ele teve que arriscar! Mas o fato de trabalhar com documentos não é
um problema em si, porque revelam muito sobre as sociedades indígenas do passado e ele trabalhou com muitas
crônicas dos povos tupis etc. Por isso, acho que o trabalho dele é um projeto de ligação entre essas duas pontes:
da mesma maneira que ele estava querendo conciliar o material documental, bibliográfico, filosófico e pesquisa
de campo, ele também o tentava fazer entre a filosofia e a antropologia, e talvez no momento da antropologia
em que uma das coisas importantes era separar essas áreas, o que de uma certa maneira o tornou mais marginal.
Nos anos 60-70 você tinha a tentativa de tornar a antropologia uma ciência empírica; exemplo o Radcliffe-Brown,
ou o próprio Lévi-Strauss, não é mesmo?! Que ao mesmo tempo que é um autor que trabalha com grandes
comparações e generalizações, ele também está propondo o afastamento metodológico em relação a filosofia, e o
Clastres vem num momento falar “não, eu quero juntar a filosofia e a etnologia”, e eu acho que hoje o Clastres se
tornou muito mais legível para a gente que talvez estejamos no movimento inverso.

G.R.: Essa é uma pergunta: o contexto de 68, no qual o Clastres está inserido. Uma das coisas que vi foi
a ação política dele. Nesse momento histórico, como isso foi importante para ele e como esse ativismo de uma
extrema esquerda acabou influenciando no seu trabalho? Isso de algum modo o acabou marginalizando ou tendo
algum impacto?

3 Ver: CLASTRES, P. Crônicas dos índios Guayaki. São Paulo: Editora 34, 1995 [1972].
Alabastro: revista eletrônica dos discentes da Escola de Sociologia e Política da FESPSP, São Paulo. Ano 8, v. 1, n. 12, 2019, p. 6-15

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Entrevista
Casal Clastres, com Renato Sztutman
Gustavo Ruiz da Silva

R. S.: Em 68 ele participou ativamente nos movimentos de barricada, ele até foi por um tempo ligado
ao partido comunista, mas tenho certeza de como foi a ligação dele com isso tudo. Na realidade, ele estava ali
nas discussões, mesmo que o pensamento dele não esteja refletindo diretamente a ação política dele aqui na
nossa sociedade, ele estava pensando a partir dos índios. A pergunta dele era mais como pensar um outro tipo de
sociedade, uma sociedade Contra o Estado e o grande exercício intelectual era esse, salvo algumas pequenas partes
do texto dele que ele vai colocar questões da nossa política. Onde ele mais fala disso é numa entrevista que ele fez
com estudantes de filosofia, uma revista chamada O Anti-Mitos (L’Anti-Mythes)4 em que ele fala um pouco sobre
isso.

G.R.: Eu li essa revista [risos], que ele até fala da União Soviética e daqueles antropólogos marxistas.

R. S.: [risos] Sim. Ele acabou ficando muito ligado ao grupo do Lefort (Claude Lefort), que é um filósofo
que tinha toda uma crítica ao totalitarismo soviético, e que também se colocava na esquerda, mas fazia uma crítica
do Contra o Estado, a mesma que ele faz ao Estado Capitalista, ele faz ao Estado Comunista também. Então, nos
anos 60, eles vão criar juntos uma revista. O Lefort já fazia parte de um outro grupo chamado “Socialismo ou
Barbárie” (Socialisme ou barbarie); depois ele, o Clastres, Castoriadis (Cornelius Castoriadis), entre outros como o
Miguel Abensour, eles criam a revista “Livre” (Libre) onde eles vão reunir pensadores, artigos e ensaios meio que
colocando em questão essas políticas autoritárias. Dessa forma, ele é, antes de tudo, um anti-totalitário e um crítico
ao Estado, portanto, ele se aproxima de uma certa maneira à um pensamento anarquista. Mas que eu me lembre,
na obra dele, em nenhum momento ele faz esse movimento direto, entre o pensamento anarquista e a Sociedade-
contra-o-Estado. Tanto, porque, ele aposta numa chefia, mesmo que sem o Poder de mando e sem algo que organiza.
Então, ele nunca fez essa ponte direta; mesmo que muitos outros autores depois a tenham feito. O pensamento
anarquista se apropria do Clastres colocando Sociedade-contra-o-Estado como algo anarquista; eu diria que ele tem
uma aproximação, mas não tão direta, talvez muito mais como uma crítica ao Estado como aquele que suprime
diferença, seja ele Capitalista ou Comunista. Contudo, quando perguntaram a ele o que fazer em nossa sociedade,
ele recuou, dizendo que só precisamos pensar num mundo em que esse Estado não seja necessário, porque ele não
é uma figura da necessidade, mas sim uma figura do Ocidente e o problema, voltando ao La Boétie, é que talvez, e
esse é um tema que aparece ao longo, tenhamos dificuldade de pensar a nossa sociedade. Uma vez que você aceita
o Estado é muito difícil você conseguir suprimi-lo, é como se você deixasse brotar uma coisa, um mal-encontro,
no termo do La Boétie, ainda em que em um momento, não lembro muito bem qual, ou em um ensaio dele, que
ele fala: “não, o importante é a gente se colocar o problema da Origem do Estado, porque pensar sobre a origem do Estado nos dá
mecanismos para também pensar maneiras de suprimi-lo um dia”5. Então, quem sabe isso não está fechado, não é como
se ele dissesse: “estamos fadados a viver sob os grilhões do Estado”, mas essa parte toda ele não desenvolveu, porque ele
morreu muito jovem, não é?! O importante é a gente ler a obra do Clastres como uma obra inacabada, ela tem
várias pontas soltas que nunca foram fechadas.

4 Disponível em: http://archivesautonomies.org/IMG/pdf/gauchecommuniste/gauchescommunistes-ap1952/antimythes/lantimy-


thes-n09.pdf.
5 Deixo aqui um questionamento não feito nem a Clastres, nem a Sztutman, estaríamos falando de uma Origem no sentido tradicional
do termo (Ursprung), ou aquilo que veio a ser retomado por Nietzsche (Entstehung)?
Alabastro: revista eletrônica dos discentes da Escola de Sociologia e Política da FESPSP, São Paulo. Ano 8, v. 1, n. 12, 2019, p. 6-15

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Entrevista
Casal Clastres, com Renato Sztutman
Gustavo Ruiz da Silva

G.R.: Você acha que o Pierre Clastres, por ter se formado em filosofia, como muitos outros autores,
inclusive o Lévi-Strauss que se aproxima muito do Kant, acaba se acercando de uma filosofia mais “contemporânea”,
talvez Nietzsche e o pensar no “porvir”?

R. S.: Bem, eu não sou nenhum conhecedor do Nietzsche, mas tem um texto muito bonito do Miguel
Abensour que ele fala disso, Clastres e Nietzsche, que ele explicita essa possibilidade, mas eu acho que sim...
Deleuze e Guattari, que eram pessoalmente muito próximos a ele; o Deleuze acho que foi professor, então você
vê que há uma troca ali, inclusive vão fazer uma homenagem no Mil-Platôs6 ao Clastres. Então, sim: há muitos
ecos de uma Filosofia Contemporânea, mas também pré-moderna. Ele vai recuperar o La Boétie, dialogando nas
entrelinhas com a tradição da Filosofia Política, como Hobbes e Rousseau, e ele fala não. Quando ele volta ao La
Boétie, é um movimento estratégico: voltar à história da filosofia pré-Hobbes, pré-contrato, pré-Maquiavel, onde
não há uma ideia de política como há hoje...

G.R.: Uma Política organizada por uma estrutura?

R. S.: Sim. E que é o La Boétie colocando essa questão: “Será que o Poder é necessário?”, porque grande
parte das filosofias políticas não colocam muito essa questão: “Não, você precisa”, como o próprio Hobbes, a
Revolução do Hobbes é dizer que o Estado de Sociedade é onde você tem um poder descentralizado, senão você
tem um Estado de Natureza. Já em Rousseau, isso é um pouco diferente, mas ainda tem a figura do Contrato. Mas
sobretudo, ele vai se forcar na guerra, ele inverte totalmente o sentido da lógica de Hobbes, dizendo: “os índios
não só acreditam que a guerra é o Estado de Natureza, mas para eles é isso que funda a Sociedade-contra-o-Estado”,
Isso que é maravilhoso, dando um looping na Filosofia Política indo lá para o La Boétie, onde vai se perguntar “mas
será que é possível imaginar uma sociedade onde não tenha subordinação?” [Sztutman aqui gesticulava muito com as mãos,
indicando sua exaltação]. Então, ele vai refletir que a subordinação foi uma escolha dos homens, ela não é inata,
não é necessária. E o texto do Clastres sobre La Boétie é lindo, ele vai dizer que o que fez o La Boétie pensar sobre
isso foi o contato que ele teve com a literatura produzida sobre a América, porque os cronistas estavam todos
estupefatos com a falta de chefes, reis, leis etc. E o Montaigne, que era muito próximo ao La Boétie, escreve sobre
os canibais, que é um tratado sobre essa perplexidade diante do novo mundo. Por isso, esse pessoal no século XVI
se deixa mover por esse espanto com o Novo Mundo, o século XVII já começa a pensar em como se organizar,
acabar com a Guerra Civil, e Hobbes vai fazer esse paralelo entre Guerra Civil na Europa e a guerra daqui, dos
índios. O grande problema é como acabar com isso, como acabar com o Estado de Guerra para construir a
Sociedade, para construir o Poder e para construir a ideia de Soberania e, a partir daí, a Filosofia Política vai em
frente, até chegar no século XIX, que vai colocar o Estado como o máximo do desenvolvimento humano, como
Hegel ou Kant. Isso vai desembocar nas teorias evolucionistas da antropologia.

G.R.: Então você acha que retornar ao “pré-político” do La Boétie em 68 e repensar a sociedade, repensar
as estruturas, já que “as estruturas não descem às ruas”, talvez tenha sido a estratégia dele para fazer uma crítica ao
Estado? Talvez o método que ele usou para embasar 68?

6 Ver: DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mille plateaux. Les Éditions de Minuit, Paris, 1980.
Alabastro: revista eletrônica dos discentes da Escola de Sociologia e Política da FESPSP, São Paulo. Ano 8, v. 1, n. 12, 2019, p. 6-15

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Entrevista
Casal Clastres, com Renato Sztutman
Gustavo Ruiz da Silva

R. S.: Claro, a leitura “laboétiana” nesse texto que escreveu aparece, e não é por menos. O que está
acontecendo ali em 68? É uma perplexidade em relação aos autoritarismos e todas essas coisas, uma pergunta
sobre o Poder. O próprio Lefort vai fazer uma crítica interna ao marxismo, se afastando, mas também vendo o
que o marxismo produziu: autoritarismo. E eles se voltam ao La Boétie para perguntar: “De que adianta a igualdade
se se mantém uma estrutura de Poder?”. É aí que Clastres radicaliza e diz que não é a Desigualdade Econômica que gera
o Poder Político, mas sim o Poder Político que gera a desigualdade econômica, invertendo essa causalidade, que é
muito importante num momento que está sendo reivindicada a ideia de liberdade e subjetividade. Portanto, essa
nova leitura do La Boétie aparece como central.

G.R.: Falando em nova leitura, qual a de Viveiros de Castro acerca de Pierre Clastres? Você poderia
comentar a aproximação deles?

R. S.: Bem, o Eduardo tem um posfácio lindo para a Arqueologia da Violência7... Mas o engraçado é que
o Eduardo mais jovem é muito mais leitor da Hélène8 do que de Pierre Clastres, e o Eduardo mais recente o
retoma mais. E eu acho que é uma leitura muito sagaz que ele faz, ele é um teórico da Guerra Ameríndia, e uma
das maiores contribuições dos Clastres para a antropologia e para a etnologia indígena é especificamente sobre a
guerra; seus últimos escritos, já que logo depois ele morre. Ele refuta Hobbes e Lévi-Strauss para ver a positividade
da guerra como uma forma de pulverização, e o Eduardo é uma obra fundada nesse lugar fundante da guerra.
O interessante é que o argumento do Pierre Clastres é que a guerra é um elemento de recusa da unificação,
mas pro Eduardo é muito mais a relação com o inimigo, quer dizer, o inimigo constitui a minha subjetividade.
Mais recentemente ele junta esse argumento da Economia Simbólica da Predação, como ele chama [Renato aqui
estalavas os dedos como um gesto de rememoração], à ideia de que o Eu é produzido numa relação canibal com
o Outro, a ideia de um Cogito Canibal, mostrando que essas coisas já estão diretamente relacionadas: a recusa da
unificação em uma relação molecular, e a recusa de um sujeito soberano em um nível micro. Essas duas faces do
Contra-Estado, onde a guerra ocupa um papel central na recusa do Poder e da Pessoa centralizada, desenvolvendo
a ideia de que o perspectivismo é uma cosmologia Contra-o-Estado, não sendo só uma cosmologia da instabilidade
de posições Humanos-Não Humanos, mas também uma cosmologia pautada na recusa ontológica da unificação,
tanto do socio quanto do self. O Eduardo, assim, vai levar o Clastres – porque de certa maneira já estava lá – a
buscar uma discussão metafisica, tornando o Contra o Estado um problema metafisico, não só sociológico: uma
Sociedade Contra o Estado, mas também uma Filosofia Contra-o-Ser.

G.R.: Você disse que o Eduardo jovem costumava pensar muito mais com a Hélène do que com o
próprio Pierre...

R. S.: Sim, porque ele tem um texto sobre o livro “A Terra Sem Mal, o Profetismo Tupi-guarani”9 nos seus
estudos sobre os Arawetés10.

7 Ver: CLASTRES, P. Arqueologia da violência. São Paulo: Cosac Naify, 2004.


8 Hélène Clastres, também antropóloga e etnóloga americanista, a saber, viúva de Pierre Clastres.
9 Ver: CLASTRES, H. La terre sans mal: le prophétisme tupi-guarani. Paris: Éditions du Seuil, 1975. 
10 Ver: VIVEIROS DE CASTRO, E. Araweté, os deuses canibais. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1986.
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Entrevista
Casal Clastres, com Renato Sztutman
Gustavo Ruiz da Silva

G.R.: Com todas aquelas relações centrípetas e centrífugas. Mas eu devo perguntar: você acha que tem
uma baixa aceitação ou usabilidade dos textos da Hélène no meio antropológico?

R. S.: A Hélène? Então... muito interessante. Ela tem duas coisas: uma, que ela se retirou um pouco
da cena e parou um pouco de escrever; deixou de o fazer com tanta frequência, o que é um problema, porque a
gente sofre, sobretudo nas ciências sociais, com uma máquina de esquecimento: a gente abandona tudo que não
é absolutamente novo e atual e que dialogue com os autores da moda. Ela sofreu um pouco com essa defasagem
e o livro dela, que eu acho uma obra prima (já que ela e o Clastres tem muitas coisas em comum, mesmo que não
dê parar falar que eles fazem uma ligação direta, assim). Ela escreveu um ensaio, não também um texto, mas um
ensaio em que ela faz uma coisa muito arriscada que é pegar os tupis lá de trás e os guarani daqui, dos anos 60, e
criar uma continuidade, uma continuidade filosófica, que é a ideia do profetismo, uma religião e um movimento.
Ela vai fazer um ensaio belíssimo sobre essa ideia, que a antropologia rechaçou por um certo momento, talvez
por não ser tão bem fundamentado etnograficamente, já que ela fez um ensaio livre, mas que tem muita força. O
Eduardo quando vai escrever sobre os Arawetés faz uma coisa parecida, que é os comparar com os Tupinambás
lá de trás, só que ele faz uma etnografia muito mais densa. Ele vai dialogar com a Hélène para fazer um modelo
comparativo Araweté-Tupinambá-Guarani, e ele faz o que é a grande obra Tupi, uma obra prima. E ele é um dos
poucos autores da década de 80 que deu os devidos créditos ao pensamento dela. Depois, ela não foi mais escrita.
Mas outro fazer muito forte é a tradição dos estudos guaranis que criticava, tanto a Hélène quanto o Pierre por
terem teses muito filosóficas. A exemplo da própria ideia de Terra-Sem-Mal, que é uma coisa que ela desenvolve
sobre as grandes migrações para a costa baseadas em motivações religiosas, a busca dessa terra sem mal, mostrando
que essa busca não é simplesmente uma migração, mas um fundamento de pensar. Por isso, muitos autores vão
criticá-la para dizer que não, seja por expansionismo ou variações ecológicas: uma base muito mais científica e
materialista, que vai criticar o trabalho dos Clastres.

G.R.: Por ser muito “afilosofado”...

R. S.: Por ser muito “afilosofado” [risos]. Então, tem uma certa antropologia nos anos 80 que, de novo,
vem dizer: “vamos separar as coisas”. Assim, ela acaba sendo muito mal interpretada, por ser uma leitura muito
literal da “Terra Sem Mal”, onde os índios são todos místicos e não tem problemas ecológicos, e não é isso que ela
está dizendo. Tiveram muito mal-entendidos com a Hélène e o Pierre Clastres, que é um pouco sobre o que eu
escrevi assim, alguns anos atrás.

G.R.: Agora sobre você e seu trabalho: conte-me mais sobre o evento que você fez em 2009 no SESC.
Qual foi sua experiência com isso? Aproveite também e comente sobre a revista de 2011, que só continha textos
sobre os Clastres e sua importância atualmente, porque talvez não estejamos passando pela melhor conjuntura
política possível...

R. S.: São muitas coisas. Em 2009 foi um convite do professor Sérgio Cardoso, que tem um doutorado
na filosofia sobre o Pierre...

Alabastro: revista eletrônica dos discentes da Escola de Sociologia e Política da FESPSP, São Paulo. Ano 8, v. 1, n. 12, 2019, p. 6-15

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Entrevista
Casal Clastres, com Renato Sztutman
Gustavo Ruiz da Silva

G.R.: Sim, orientado pela professora Marilena Chauí...

R. S.: E é muito interessante isso, porque o Clastres acabou tendo muito mais entrada entre os filósofos
do que entre os antropólogos, inclusive na USP de uma certa maneira. Porque o pessoal da filosofia reconhece
uma certa mudança de paradigma, uma coisa nova aí de pensar o político, quando você conversa com qualquer
professor ele vai dizer isso. Então, o Sérgio Cardoso convidou eu e a professora Beatriz Perrone-Moises para
estarmos com ele e foi muito bom. Aconteceu ao mesmo tempo no Brasil e na França; lá organizado pelo Miguel
Abansour, também filósofo e muito amigo do próprio Clastres, participaram juntos da Revista Livre e tudo. Eu achei
engraçado que nós fomos à França e a maioria das pessoas que falavam eram filósofos, e não antropólogos. Acho
que lá eles são mais avessos aos Clastres que no Brasil, aqui ainda temos o Marcio Goldman e a Tânia Stolze Lima,
que possuem textos lindos sobre os Clastres e foi um momento de grande ebulição, foi esse seminário que deu
origem à revista que a gente fez. Demorou um pouco para sair, mas a gente queria algo diferente, porque o que
saiu na França eram textos sobre os Clastres, análises de textos deles, e aqui nós queríamos mais pensar com os
Clastres, que é uma coisa legal também. Mas qual era a outra coisa que você havia perguntado? [risos]

G.R.: Qual a importância de pensar com eles hoje em dia... [risos]

R. S.: Ah sim! Eu acho fundamental a gente pensar o que a gente tira dos textos dos Clastres para pensar
hoje. A gente não pode mais ver a política molar, a macropolítica como a única que existe.

G.R.: Molar no sentido deleuziano da palavra?

R. S.: Sim... [risos] Deleuzianos, guattarianos ou foucautianos de macropolítica, porque o Clastres estava
escrevendo ao mesmo tempo que o Foucault.

G.R.: Eles até chegaram a se encontrar no Brasil, não é?

R. S.: Pois é... O Foucault tem um texto, que ele falou na Bahia, em que ele cita o Clastres, e essa é a ideia: pensar a
política para além das grandes estruturas, e aí se tem o Guattari com as relações de subjetividade e o Foucault com a capilaridade
e as formas de resistência. Teve todo um movimento de 68 buscando novas formas de pensar política e, portanto, pensar
novas formas de resistência. Então, isso é fundamental: não achar que o Estado é a única solução, ainda que isso não signifique
necessariamente negar o Estado, mas o que quero dizer: como pensar algo que esteja para além e a gente possa criar formas de
resistir, isso é uma lição básica. A segunda é pensar que os índios têm sua própria política, a vida política deles não está reduzida
a sua interação com as nossas formas de política, com o Estado, as organizações ou as ONGs. Eles tem outras formas de se
relacionarem entre si e com o Estado, e essa é a maior lição do Clastres, para a filosofia e para as práticas políticas deles. Mesmo
tendo que achar, que em algum determinado momento da antropologia brasileira, fazer antropologia política era fazer a relação
dos índios com o Estado, o que é fundamental pensar, mas não é só isso. Tem outras coisas, inclusive pensar como vão se
relacionar com o Estado e negar determinadas formas de unificação. Então há essa dupla potência no pensamento do Pierre
Clastres hoje, e indo além, pensando com e não só sobre, conseguindo entender como os índios estão vivendo hoje a despeito
de nós, o único destino deles não é compor com o Estado, há outros caminhos de viver, existir e de se organizar.

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Entrevista
Casal Clastres, com Renato Sztutman
Gustavo Ruiz da Silva

G.R.: Bem, talvez uma pergunta mais à parte, voltando um pouco: você disse que há um
afastamento da Hélène por parte dos antropólogos, você acha que isso pode acontecer por ela ser mulher?
Talvez dentro de todo esse pensamento ela fique meio à margem por conta de uma questão de gênero?

R. S.: Ah, eu diria que não. Mas naquela época eu diria que sim, é sim... A própria academia francesa sim,
os ingleses menos. Nos anos 60-70 sim. Morreu recentemente a primeira mulher a ocupar uma cadeira no Collège
de France, isso só nos anos 80...

G.R.: Vinte anos depois do Foucault ter lecionado lá e escrito a História da Sexualidade. [risos]

R. S.: [risos]. Acho que sim, não é? Acho que na Inglaterra ou EUA esse problema foi resolvido antes,
mas eu acho que historicamente a gente pode dizer que sim. Talvez, não sei, mas acho que sim... não que explique
tudo, mas sim em parte. Ela não se preocupou muito também, o Clastres fez uma tese bombástica que foi a
Sociedade Contra o Estado, mas a Hélène está pensando em uma coisa mais sutil. Mas se a gente for pensar em
termos de antropologia, isso não é menor também, porque aquilo foi uma filosofia tupi, profética, que ela não
generaliza para todos, ela só quer entender o que é o profetismo tupi. Eu acho poderosíssimo, de muita potência,
talvez até mais ganancioso que o Clastres, que quer pensar grande e tudo o mais.

G.R.: Coisas que me ocorreram agora: você acha que o Casal Clastres tenha sido um acontecimento no
sentido foucaultiano?

R. S.: Acho que sim, porque eles ficaram meio inclassificáveis, são filósofos, ou são antropólogos, né?!
Ficam nesse limbo, talvez hoje consigamos lidar com isso muito melhor, ainda que as disciplinas, essas sim no
sentido foucaultianos, acabem disciplinando até demais. Então tem essa coisa, antropólogos que estão filosofando
demais, ou filósofos que abstraem de menos... São máquinas de acusação. Um ensaio como um trabalho menor,
uma tradição de ensaios que vai ser suprimida por uma tradição sociológica de rigor, mas enfim, acho que hoje o
Clastres está bem, está bombando, [risos], mesmo que no fim continue marginal.

G.R.: Talvez numa contra-política e num contra-poder ele esteja fazendo sucesso. [risos]

R. S.: Acho que sim. Não sei se super bem lido, porque esses autores têm particularidades, e acho difícil
ler o Clastres como um autor de teoria, sem base etnográfica, você sai perdendo. Muita gente lê o Clastres como
uma grande ideia descolada do solo, da realidade em que foi produzida, porque ele produziu isso a partir das
questões indígenas, então, a gente tem que ver. E isso é o legal da antropologia, grandes ideias, mas que estão
sempre ligadas ao solo, que quando a gente perde podem acabar não dizendo nada. As ideias têm sempre solo.

G.R.: Uma última pergunta: sobre a sua disciplina de o que, quatro anos atrás?

R. S.: Fazem 3 anos já, isso.

G.R.: Sobre Pierre Clastres, não é? Porque você não a dá mais?

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Entrevista
Casal Clastres, com Renato Sztutman
Gustavo Ruiz da Silva

R. S.: Porque eu fui viajar e ela foi descredenciada [risos]. Mas ano passado eu dei um curso sobre um
problema, mas que acabei usando muito do Pierre Clastres, porque assim, pelo menos eu, não gosto de dar sempre
o mesmo curso. Ano passado eu dei uma variação do Clastres, que foi Linguagem e Poder, com um material sul-
americano. E como eu havia perdido a outra disciplina, eu dei com outro nome, mas que não deixava de ser sobre
o Clastres. Mas eu conheci o Clastres no curso de Antropologia IV, que na época era um curso só de etnografia
indígena, e a professora o começou com aquele texto sobre o etnocídio, que é maravilhoso, falando que todo
Estado é etnocida, e você fica “uau, é verdade” [risos]. Foi a primeira vez que eu li e fiquei super-apaixonado, e
continuei a ler. Mas eu sempre brinco assim, que a gente não pode impor a leitura do Clastres, se não seria um
instrumento do Estado e talvez ele não gostasse, talvez quando ele ficar muito obrigatório e muito mainstream
talvez ele perca força, então... [risos]

G.R.: Mas está bom, acho que é isso. Obrigado pela entrevista.

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ARTIGOS

Fora do “Cis”tema: Os caminhos da


transição de gênero de homens trans
Sabrina Silva Jacintho
Graduada em Sociologia e Política pela FESPSP
(sabrinah.silva.92@gmail.com)

Resumo
O presente artigo apresenta os resultados finais do meu projeto de iniciação científica sobre
transição de gênero de homens trans residentes na cidade de São Paulo. Ao longo da pesquisa,
cinco homens trans de diferentes classes sociais foram entrevistados, sendo quatro brancos e
um negro, todos jovens (menos de 30 anos). As entrevistas realizadas foram semiestruturadas,
conduzidas através da metodologia de história de vida. Também participei como pesquisadora,
de um debate sobre transmasculinidades da semana de visibilidade trans (última semana de
janeiro de 2018). O debate foi organizado e conduzido por um homem trans, em parceria com
um coletivo feminista, contando com cinco participantes homens trans. Este debate foi gravado
e parcialmente transcrito por mim, sendo um de meus objetos de análise. A técnica de análise de
conteúdo foi utilizada tanto no tratamento das entrevistas como no debate acima mencionado.
A pergunta que orientou a pesquisa é: O que a transição nos diz sobre nossa sociedade e sua
relação com esses indivíduos?

Palavras-chave
Transmasculinidades, Patologização, Passabilidade, Transição de gênero, Homens trans.

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1 Introdução pelo médico que fez meu parto. Dessa forma, assim
que me entendi nesse lugar, fui atrás da transição pelo
O tema desta pesquisa, como ocorre via de SUS no Ambulatório de Saúde Integral para Travestis
regra, não é fruto de uma escolha aleatória. Em 2014, e Transexuais, localizado no Centro de Referência e
eu saia de uma jornada de sucessivas internações Treinamento DST/AIDS, na cidade de São Paulo.
psiquiátricas sem respostas para a origem do meu Consegui o laudo psiquiátrico e psicológico em
sofrimento. Foi dentro da clínica em que fui internada três meses, em seis meses comecei a tomar testosterona
que conheci uma mulher trans que iria me sugerir pelo SUS. Fui homem trans por dois anos. Me envolvi
uma resposta para minha dor, e eu me agarrei a essa na militância e conheci muitas pessoas trans. Trabalhei
resposta como a única explicação possível, a única como assessor de comunicação no Instituto Brasileiro
saída. Na época eu me reconhecia como lésbica, de Transmasculinidades (IBRAT) por mais de um ano.
porém com o término de um namoro de mais de Ajudei a organizar o Primeiro Encontro Nacional de
dois anos e em meio às internações psiquiátricas, Homens Trans (ENAHT), realizado em fevereiro
acabei perdendo contato com outras lésbicas. Meus de 2015 na USP. Por dois anos eu fiz parte de uma
estudos na faculdade que cursava na época foram comunidade que me acolheu como nunca nenhuma
interrompidos e me afastei de boa parte de meus outra havia feito. Fui alguém para pessoas que eram
amigos. Sentia-me perdida, não sabia mais quem eu importantes para mim. Sentia que, de alguma forma,
era além dos diagnósticos psiquiátricos que tinha eu estava sendo ouvida. A cada entrevista que dava
recebido ali dentro. Eu não me encaixava, nunca havia e por meio da participação ativa junto à militância
me encaixado. Quando descobri que talvez minha trans, uma autoestima antes inexistente começava a
mente não estivesse “errada”, e que talvez o que se formar e a se consolidar. Estava feliz pensando que
estivesse “errado” fosse meu corpo, foi um imenso a pessoa problemática, tantas vezes internada estava
alívio. Pode parecer irônico, mas uma “mente errada” morrendo, ou que talvez nunca tivesse existido. Era
gera culpa, gera expectativa por parte da sociedade reconfortante saber que eu não era aquela pessoa.
de que eu poderia melhorar se me esforçasse. Falar
que meu corpo estava “errado”, era colocar a culpa na Apesar de desde crianças minha trajetória
biologia, em Deus, em qualquer coisa menos em mim. ter sido atravessada por questões relacionadas a
uma sexualidade e uma expressão de gênero em
Foi a partir desse momento, então, que passei discordância com o que era esperado de mim, eu
a me ver como “um homem preso num corpo de nunca antes havia significado estas questões pela
mulher”. Explicava tudo, absolutamente tudo. A chave da transexualidade. Nunca tinha pensado
natureza havia cometido um erro, não eu. Não era na possibilidade de poder ser homem e nem que
mais culpa minha eu ser masculina, gostar de coisas isso poderia ser uma resposta plausível para meu
“de menino”, mesmo ser lésbica, meu desencaixe desencaixe social. Com a transição, aos poucos, fui
não era minha culpa. A natureza havia cometido incorporando muitos dos discursos que circulam
um erro, eu era masculina porque eu deveria ser
masculina, eu era um menino lido de forma errada

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entre as pessoas trans. Comecei a usar binder1, a acompanhamento psicológico no Hospital das
aplicar rigorosamente testosterona e comecei a achar Clínicas: Henrique, 18 anos, e Mathis, 19, o primeiro
que talvez fosse legal ter uma barba. Apesar da minha se identifica como homem trans heterossexual e o
relação com minha imagem corporal nunca ter sido segundo se identifica como não binário (demiboy) e
boa, agora eu poderia manifestá-la ou enfatizá-la gay, ambos brancos, pertencentes à classe alta.
como um sentimento legítimo.
Também entrei em contato com um antigo
Hoje não me vejo mais como homem trans, conhecido de militância, André, que concordou em
apesar de carregar ainda muito daqueles dois anos. ser entrevistado. André, 25 anos, se identifica como
Esta pesquisa é sobre transição de homens trans e homem trans, afirma que não faz sentido se definir
parte do olhar de uma pessoa que fez parte dessa quanto à sexualidade, (não chega a explicar o porquê,
comunidade, transicionou e, em algum momento, só afirma que se sente mais atraído pela feminilidade,
decidiu interromper essa transição. Ao longo dos mas que não se limita a ela). Ele se identifica como
últimos meses voltei minha atenção para esse tema que branco e pertence à classe média.
me desperta tanta paixão, reencontrei antigos colegas de
As duas primeiras entrevistas que realizei
militância e fiz novos contatos nesse meio. Entrevistei
foi com Henrique e pouco depois, com André. Meu
cinco homens trans residentes na cidade de São Paulo,
terceiro entrevistado foi Mathis e, enquanto começava
também participei como ouvinte de um debate sobre
a transcrever sua entrevista, fiquei sabendo por meio do
transmasculinidades na Semana de Visibilidade Trans
Facebook de uma roda de conversa que iria acontecer na
e tive oportunidade de gravar e transcrever parte desse
semana de visibilidade trans, no fim de janeiro de 2018.
debate. A pergunta que orientou minha pesquisa foi:
A roda de conversa aconteceu no dia 24 de janeiro de
o que a transição nos diz sobre nossa sociedade e sua
2018, em São Paulo, no Coletivo Feminista Sexualidade
relação com estes indivíduos?
e Saúde e tinha como nome “Transmasculinidades:
organizando os problemas para encontrar esperanças
2 Os caminhos da pesquisa e alívios”. Acreditando que poderia ser uma boa
oportunidade para conseguir novos entrevistados,
A pesquisa teve como objeto homens trans e/
compareci a esse debate e cheguei a gravar parte dele.
ou pessoas trans masculinas, em transição, residentes na
Cinco homens trans participaram desse evento, sendo
cidade de São Paulo. Devido à dificuldade de acesso ou
um deles o organizador junto ao Coletivo Feminista
inexistência de locais destinados exclusivamente a essa
Sexualidade e Saúde. Peguei o contato do organizador
população, optei pela amostragem por conveniência.
e de mais um homem trans, meus dois últimos
Através de um colega de faculdade que frequentava
entrevistados: João e Lucas. João, o organizador, tem
o AMTIGOS (Ambulatório Transdisciplinar do
28 anos, é branco, se identifica como homem trans
Hospital das Clínicas de São Paulo), consegui o
heterossexual e pertence à classe média alta. Lucas
contato de dois entrevistados que estavam fazendo
tem 21 anos, é negro, se identifica como homem trans
1 Colete ou faixa confeccionada para comprimir os seios com o heterossexual e pertence à classe média baixa.
objetivo de disfarçá-los.

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As entrevistas foram realizadas Concepções rígidas de gênero, opressões sofridas


individualmente em um local combinado entre e internalizadas; e Passabilidade econstrução da
entrevistado e entrevistadora. As perguntas foram identidade de homem. Dessa forma, realizei a análise
abertas e o roteiro foi semiestruturado, dando maior de conteúdo e desenvolvi o presente artigo.
flexibilidade para a entrevista. O objetivo geral foi
entender o que o processo de transição de gênero 3 Transição de gênero de homens trans e/ou
nos diz sobre nossa sociedade e sua relação com esses pessoas transmasculinas
indivíduos. O objetivo específico foi compreender,
por meio da análise do discurso, as questões que Segundo Souza e Braz (2016), a categoria
atualmente movimentam os homens trans em direção homem trans vem sendo utilizada pelo movimento
à transição de gênero. social brasileiro para nomear esses sujeitos políticos.
No Primeiro Encontro Nacional de Homens Trans,
Depois de transcrever as entrevistas e realizado em fevereiro de 2015 na USP (e promovido
comentá-las, comecei a pensar possíveis categorias de pelo Instituto Brasileiro de Transmasculinidades –
análise e caminhos para se desenvolver a análise de IBRAT), decidiu-se pela manutenção desse termo, na
conteúdo. A princípio pensei em nove categorias, que tentativa de condensar essas experiências, ainda que,
a medida que comecei a sistematizar os dados colhidos na prática, se reconhece que o termo não dê conta da
foram modificadas, descartadas ou condensadas. pluralidade das expressões transmasculinas.
Essas primeiras categorias foram: processos
transexualizadores; deslocamentos da identidade e Utilizo a expressão “homens trans”, inspirada
reescrita da própria história; construção da identidade em Guilherme Almeida (2012), como categoria
homem; passabilidade; patologização (reprodução e analítica na tentativa de condensar a transexperiência
resistências); pressões para se aproximar de um ideal masculina. O termo “transexperiência” masculina
de homem trans; misoginia sofrida/internalizada e foi utilizado pela pesquisadora Simone Ávila (2014),
concepções rígidas de gênero; lesbofobia/transfobia inspirada no conceito de “experiência transexual”,
sofrida e internalizada; e relação com família/ presente em muitos estudos publicados no Brasil
amigos/ companheiras. Iniciei, então, a separação sobre o tema, com uma perspectiva diferente da
dos trechos das entrevistas de acordo com cada psiquiatria. A autora se baseia ainda, entre outros
categoria de análise. Enquanto fazia a sistematização autores, na compreensão de Joan Scott de experiência.
dos dados, comecei a perceber possíveis caminhos Segundo Scott (2001 apud Ávila, 2014), não são os
para estruturar meu artigo final. Notei que algumas indivíduos que possuem determinada experiência, mas
categorias estavam entrelaçadas de modo que não sim são constituídos por meio da experiência. Ou seja,
saberia dizer se determinado trecho pertencia a uma ou a produção do sujeito se dá por meio do discurso, a
a outra, chegando à conclusão que pertencia a ambas. experiência se apresenta como uma maneira de narrar
As categorias, portanto, se tornaram três, nomeadas o ocorrido através de significados estabelecidos,
da seguinte forma: Processos transexualizadores, porém sem que os mesmos se encontrem engessados
reproduções e resistências à lógica da patologização; ou fixos.

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Ávila aponta que não há um modelo universal 3.1 Processos transexualizadores, reproduções e
de transmasculinidades, as mesmas se encontram em resistências à lógica da patologização
constante produção. Mesmo as transmasculinidades
Durante a pesquisa notei que não podemos
estando incluídas em práticas de dominação, sendo
falar em um único processo transexualizador, já que
alguns homens trans mais próximos da masculinidade
o mesmo pode ser feito seguindo diversos caminhos,
hegemônica e outros mais marginalizados, todos
tanto de maneira oficial pelo SUS e/ou com médicos
tencionam, ao produzir uma masculinidade sem
particulares ou, ainda, de maneira não-oficial, seja
pênis, as fronteiras de gênero e desestabilizam a
comprando receitas falsificadas ou hormônios no
masculinidade hegemônica.
mercado paralelo. Em São Paulo, via SUS, o Processo
Segundo Ávila (2014), às mudanças Transexualizador pode ser realizado pelo AMTIGOS-
corporais trazidas pela testosterona são vistas HC e pelo Ambulatório de Saúde Integral para
como a materialização da identidade de gênero, Travestis e Transexuais, localizado no CRT-SP. A UBS
como expressão da sua masculinidade. A autora da Santa Cecíliatambém começou o atendimento às
afirma, ainda, que o desejo das mudanças corporais pessoas trans. De acordo com um informante homem
pelos homens trans não se centra na demanda pela trans, o atendimento realizado na UBS em São Paulo
neofaloplastia (construção cirúrgica de um pênis), têm um caráter de atendimento de “redução de danos”.
mas sim pela mamoplastia masculinizadora e pela De acordo com o mesmo, é comum que muitos
utilização de testosterona, o que pode indicar uma homens trans cheguem à UBS já tomando hormônios
preocupação com o que é socialmente visível. Para comprados no mercado paralelo e lá estes homens
Ávila é possível afirmar que o olhar público, de certa trans conseguem atendimento com endocrinologistas,
forma, guia a transição. A transição, tanto como uma psicólogos e psiquiatras do processo transexualizador
adequação quanto como um movimento de ruptura mesmo não possuindo laudo médico, algo que não
com as normas de gênero, é vista pelos próprios seria possível no CRT-SP ou no AMTIGOS-HC.
transexuais, de acordo com Vieira (2015), como uma
Dois dos meus entrevistados fazem algum
passagem de um lugar de inexistência para um lugar
acompanhamento relacionado a transição nessa
de humanidade.
UBS. Lucas é atendido por uma psicóloga e por uma
O “lugar de humanidade” anunciado por endocrinologista, também faz os exames por lá e
Vieira me parece um paradoxo, só alcançado através André realiza só os exames rotineiros afim de verificar
do reconhecimento pelo outro, reconhecimento este o andamento de sua hormonização. André não
só possível através da submissão a um diagnóstico, acredita na necessidade de um laudo para fazer sua
que por sua vez, parece ser justamente o que retira transição e compra receitas de testosterona falsificadas
esse lugar de humanidade desses sujeitos, dizendo e com essas receitas compra a testosterona legalmente
implícita ou explicitamente que os mesmos devem ser na farmácia. Lucas não informou se possui laudo,
corrigidos e normalizados. consegue a receita com a endocrinologista da UBS,
de uma testosterona mais em conta que a Nebido,

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testosterona fornecida pelo SUS, que atualmente, desenvolvimento embrionário do sexo, serviria para
segundo o entrevistado, encontra-se em falta. assegurar as diferenças entre os sexos. Diferença
essa indispensável para o desenvolvimento da
O AMTIGOS, atualmente, só atende crianças
heterossexualidade. Raymond encara a teoria de
e adolescentes. Henrique e Mathis começaram o
Money como essencialista ao afirmar que existiria
atendimento nesse ambulatório com 17 anos, hoje
relação entre hormônios pré-natais na formação de
têm 18 e 19 anos, respectivamente e continuam
uma identidade de gênero. Para Bento, por outro lado,
sendo atendidos lá. O atendimento é dividido em
a afirmação, de que o gênero e a identidade sexual
etapas. A primeira é a triagem, que consiste em
poderiam ser modificáveis até os 18 meses de idade,
uma entrevista presencial com o Doutor Alexandre
era revolucionária.
Saadeh, coordenador do AMTIGOS, acompanhado
de diversos estagiários. Essa tese seria utilizada no tratamento de
crianças intersexuais. Para Preciado (2002 apud
As perguntas giram em torno da intimidade
BENTO, 2006) a construção de um canal vaginal em
e relação com o próprio corpo (“você se masturba?
crianças intersexuais se relacionava com a prescrição
Você usa alguma coisa durante o sexo?”) e da infância
de uma prática sexual, da vagina como orifício
(perguntam para a mãe sobre o processo de gestação e
destinado a receber um pênis. Portanto, segundo a tese
se ela notou algo anormal durante a infância). A forma
de Money, se a criança intersexual fosse criada como
como a transexualidade é tratada no Hospital das Clínicas
menina, ela seria menina e, dessa forma, precisaria de
me remonta a história do surgimento da transexualidade,
um canal vaginal para receber um pênis. Evidenciando
marcada fortemente pela ideia de patologia e tentativa de
a importância do entendimento da heterossexualidade
se delimitar o “transexual verdadeiro”.
e do dimorfismo sexual como prática normal dos
O “transexual verdadeiro”, tanto na medicina corpos. Apesar das teses de Money se referirem a
quanto na psicologia, seria o único que poderia ter bebês intersexuais, como apontou Bento, elas foram
acesso à transição, entendida como social, hormonal de grande importância para Harry Benjamin discorrer
e cirúrgica, de modo que uma levava a outra sobre a transexualidade.
necessariamente, como etapas para a construção de
Portanto, a transexualidade, na visão médica,
um homem ou mulher “normal”. Janice Raymond
só faria sentido se tivesse como objetivo alinhar sexo,
(1994) aponta para o trabalho de John Money,
gênero e sexualidade, ou seja, criar corpos e identidades
professor de psicopediatria do Hospital Universitário
coerentes, um homem com pênis, masculino e
Johns Hopkins, que em 1955 foi influente na teoria
heterossexual e uma mulher com vagina, feminina e
sobre fatores relacionados com hormônios pré-
igualmente heterossexual. De acordo com o sociólogo
natais em fetos, construindo a hipótese da existência
espanhol Coll-Planas (2010), o discurso de fundo da
de um período crítico e bem cedo na vida onde
psiquiatria em relação à transexualidade contribuiu para
uma identidade de gênero não específica começaria
apresentar as diferenças e desigualdades entre homens
a ser formada. Para Money, o social, a ideia do
e mulheres como elementos fixos e imodificáveis,
desenvolvimento psicossexual como continuação do

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enraizados em causas puramente biológicas. Segundo porém trata-se, na realidade, de uma tensão existente
Butler (2006 apud COLL-PLANAS 2010), o discurso com o politicamente correto, que os impede de
médico sobre a transexualidade, também, de certa falar que a transexualidade é uma doença mental.
forma, poderia ser uma maneira de encobrir o Muitos profissionais de saúde afirmam que não estão
diagnóstico de homossexualismo, por meio da qual a impondo critérios em relação à transição de gênero,
homossexualidade continuaria a ser patologizada. mas apenas acompanhando esses pacientes em suas
decisões, porém tal afirmativa não leva em conta a
Atualmente o discurso da psiquiatria e da
relação extremamente desigual entre profissional de
medicina sobre a transexualidade, segundo Coll-
saúde e paciente. Não se considera que a subjetividade
Planas,
do profissional de saúde pode, por exemplo, distorcer
...considera que o desejo do paciente de a realidade do paciente (Coll-Planas, 2011).
pertencer a outro gênero é imodificável,
tão imodificável que nenhuma terapia seria No que diz respeito à relação entre profissionais
capaz de mudar a forma como o sujeito se de saúde e pacientes, Rodrigo Borba (2016), estudou
enxerga e de modo que a única solução para
acabar com o sofrimento seria a modificação como as pessoas trans que ingressam no processo
corporal. Não se questiona porque se vive transexualizador do SUS aprendem o que é ser uma
com essa inconformidade, não se aborda
pessoa transexual nos moldes do processo. Segundo
o custo que implica, a toda a população,
encarnar determinado gênero, nem a o autor, se por um lado a pergunta que orienta o
violência que isso gera ou o sofrimento que profissional de saúde no processo transexualizador é
se produz nas pessoas que não podem ser
classificadas segundo essa estrutura binária “como posso ter certeza que esse paciente é um/a
(COLL-PLANAS, 2011, tradução livre p. xx). transexual e não está dizendo o que acha que quero
ouvir para obter tratamento?”, por outro lado, a
Ainda de acordo com Coll-Planas (2011), se
pergunta que orienta as pessoas trans é “como posso
considerarmos que o sofrimento das pessoas trans
convencer esse médico de que sou um/a transexual
não é inerente a sua condição e sim fruto da rejeição e
para ter direito a cirurgia?” (NEWMAN , 2000 apud
preconceito social, então podemos enxergar o processo
BORBA, 2016)
da transexualização como uma individualização e
psicologização de um fenômeno que é social. Se Nessa dinâmica, então, tanto profissionais de
pensarmos, ainda, que a rejeição e preconceito social saúde quanto pessoas trans, assim como as diretrizes
são o que motiva as pessoas trans a adequarem seus que regem o processo transexualizador do SUS,
corpos, então podemos supor que em uma sociedade retroalimentam estereótipos e verdades engessadas
menos preconceituosa e mais aberta a respeitar as sobre o gênero (BORBA, 2016). No que pude
diferentes expressões e identidades de gênero, talvez observar ao longo da minha pesquisa, me parece que
não houvesse necessidade de se modificar/corrigir o as pessoas trans aprendem o que é ser uma “pessoa
corpo desses indivíduos. transexual ideal”, ou seja, um “transexual verdadeiro”,
não só através do contato com profissionais e pessoas
Para muitos médicos e psicólogos a
trans dentro do processo transexualizador do SUS,
transexualidade se encontra “desmedicalizada”,

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com o objetivo de conquistar a transição naquele essa pessoa que eu sou hoje graças a tudo
isso, então eu não gosto de fazer essa leitura
espaço, mas também fora desse processo se aprende
negativa em torno do meu corpo, sabe? E é
e se reproduz ideias que se aproximam da noção um dos motivos pelos quais, na verdade é
de “transexual verdadeiro”, e, ao mesmo tempo, o motivo pelo qual eu não uso binder, me
recuso a usar binder porque eu acho que sou
se produz resistências a essa lógica através de um um homem trans e sou um homem trans de
discurso que encara a patologização de maneira crítica seio e de vagina cara, lidem com isso, como
e a rejeita. Podemos observar essa resistência no as pessoas vão lidar com isso não é problema
meu, o problema é não projetarem uma coisa
discurso de João. negativa pro meu corpo né.”

João apresenta um discurso bastante Apesar da transição no SUS ser regida por
crítico a patologização, diferentemente dos outros diretrizes patologizantes, na entrevista de Henrique
homens trans entrevistados. Curiosamente, João é apareceu um movimento por parte dos próprios
o único entrevistado que possuía recursos próprios profissionais de saúde de indicarem para seus pacientes
e condições financeiras para realizar a transição o consultório particular para ali sim receitarem
totalmente no particular. Nas clínicas e consultórios testosterona sem a necessidade de se respeitar esse
particulares não existe a obrigação de se seguir as tempo mínimo de dois anos para a hormonização.
diretrizes patologizantes estipuladas pelo Processo Henrique optou por fazer a hormonização no
Transexualizador do SUS, inclusive no que diz particular, contornando as diretrizes rígidas do
respeito à necessidade de laudo ou de tempo prévio processo transexualizador do SUS, porém o mesmo
de no mínimo dois anos de terapia antes de se iniciar acredita que a postura do Hospital das Clínicas em
a hormonização. Portanto, ele não está sujeito às relação à transexualidade é importante para que as
diretrizes patologizantes que atingem os homens pessoas trans possam ter respaldo científico para dizer
trans que realizam a transição via SUS e, talvez, por que “nasceram assim”.
isso, apresenta um discurso mais crítico e autônomo,
Por trás dessa fala de Henrique está a ideia de
como podemos ver no trecho abaixo:
que o que garante o acesso a transição é a patologização
“[...] eu tenho muito problema com os (respaldo científico para dizer que nasci assim me dá
meninos usarem o nosso seio, usarem os seios a liberdade de poder transicionar). Trata-se de um
como intrusos, eu acho muito equivocado
esse termo, eu acho ele perverso. Ele produz dilema apresentado por Butler (2009) no Prólogo
coisas no nosso corpo que não são legais e eu do livro El género desordenado: críticas en torno
detesto esse termo e fico muito preocupado
a la patologización de la transexualidade. Segundo
com a forma com que isso vai ser usado.
Apesar de eu gostar muito do João Nery acho a autora, o diagnóstico da transexualidade busca
que ele faz uma leitura muito equivocada sustentar as normas vigentes de gênero, patologizando
sobre “monstruação” por exemplo2. Acho
que são termos muito pesados e o que eu e buscando adequar tudo aquilo que foge à norma
entendo do meu corpo hoje é que eu só sou heterossexual. Contraditoriamente é justamente esse
2 João Nery em seu livro Viagem Solitária chama a menstruação
diagnóstico que contribui para uma maior autonomia
de “monstruação”, também é ele que criou o termo “intrusos” desses sujeitos que desejam a transição. Para ela, a saída
para se referir aos seios.

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desse impasse, entre acesso às modificações corporais hormonal durante a gestação e da formação das
e a necessidade de se despatologizar a transexualidade, glândulas produtoras de hormônio durante o
seria utilizar o diagnóstico de maneira estratégica, crescimento. A partir de então a transexualidade passa
unicamente para se atingir o objetivo desejado e com a ser vista como uma enfermidade física, tornando-
consciência de que o mesmo não expressa (ou não se, portanto, moralmente neutra (GONZÁLEZ-
deveria expressar) uma realidade. POLLEDO, 2011).

A ideia de que o diagnóstico da transexualidade O falso-dilema, portanto, de que a


é o que dá direito ao acesso ao tratamento, só faz patologização seria necessária para garantir o acesso
sentido se entendermos saúde unicamente como ao tratamento, esconde uma questão anterior a esta. A
ausência de doença. Porém a Organização Mundial visão médica da transexualidade como uma patologia,
de Saúde (OMS) define saúde, não só como ausência muito mais física do que psicológica, é o que a torna
de doenças e enfermidades, mas como “um estado de moralmente aceitável. A sociedade só aceita que
completo bem-estar físico, mental e social”. O SUS, no indivíduos troquem de sexo porque se entende que,
Brasil, também tem uma definição ampliada de saúde, primeiro, esses indivíduos são doentes e, portanto,
relacionando-a com a qualidade de vida da população. não têm “culpa” por nascerem assim, e, segundo,
O dilema, então, de que o diagnóstico seria necessário porque essa troca não é simplesmente uma troca, mas
para que essas pessoas tenham o direito e acesso às uma correção de um erro da natureza. Nesse sentido,
modificações corporais ou qualquer tratamento, é na portanto, antes da patologização ser necessária para
realidade um falso-dilema. garantir o tratamento, ela é necessária para tornar
a ideia de que indivíduos possam trocar de sexo
Para González-Polledo (2011), se a
aceitável.
transexualidade é considerada uma doença, então
ela só pode ser uma doença biológica, localizada no Entender a transexualidade como uma doença
corpo, já que o tratamento indica a correção desse implica em uma desresponsabilização e infantilização
corpo. Contraditoriamente a transexualidade se do sujeito quanto ao que acontece com ele. O
encontra nos manuais de doenças mentais e, se é uma diagnóstico, para além do estigma, afirma que esses
doença psiquiátrica, dificilmente o tratamento deveria sujeitos são incapazes de dar respostas particulares,
indicar modificação corporal. próprias e íntimas ao que lhes faz sofrer (BALDIZ,
2010). Julga a transexualidade como algo que se
Segundo a mesma autora, foi especialmente a
manifesta de maneira homogênea e que só existe um
partir dos anos 70, e talvez devido ao redescobrimento
único caminho terapêutico a ser seguido. Mathis, por
do caso John/Joan, mal diagnóstico por John Money,
exemplo, não se entende como homem, mas como
psiquiatras e sexólogos afiliados à universidade
demiboy, uma identidade que foge ao binarismo
de Hawaii criaram uma visão sociobiológica da
homem-mulher. No trecho abaixo ele ilustra como
transexualidade, baseada na crença de que o sexo e
a patologização da transexualidade impede que ele
o gênero estão determinados por certas estruturas
dê respostas particulares ao seu sofrimento e siga
biológicas, especialmente aos níveis de exposição

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a transição da maneira como ache melhor. Quando possível fazer isso? Ai fiquei, caralho, acho
questionado sobre qual testosterona ele pensa em que é isso!”

usar, o mesmo afirma: Henrique também conta que sofria bullying


na escola porque não era “feminina o suficiente” e
“Deixo isso para o médico... Eu queria ir
devagarzinho, porque eu tenho muito medo tinha medo de levar isso para a mãe e a mãe culpá-lo
da mudança ser muito radical... antes eu por não conseguir se adequar aos padrões de gênero.
estava até pesquisando um pouco... mas não
Ele também revela que tentava aprender a ser mais
adianta muito porque no fim das contas vai
ser o que meu médico achar melhor”. feminina observando a mãe e a irmã, o que nos mostra
a feminilidade como um comportamento apreendido
3.2 Concepções rígidas de gênero, opressões
(MEAD, 1999).
sofridas e internalizadas
André também conta situações em que sofreu
Entendendo que o sofrimento das pessoas
discriminação em função da sua não adequação em
trans não é inerente a sua condição, e sim fruto de
relação ao gênero. No ambiente escolar ele conta que
rejeição e preconceitos sociais (COLL-PLANAS,
foi proibido de se relacionar uma colega da mesma
2011), é possível identificar em diversos trechos das
idade que ele, mas que a mesma escola foi conivente
entrevistas preconceitos sofridos, e muitas vezes,
com o relacionamento dessa aluna menor de idade
internalizados pelos entrevistados, como misoginia,
com um professor. Também no ambiente escolar
lesbofobia e transfobia. Atrelado a isto, também
uma professora o expôs para a turma perguntando
podemos identificar concepções rígidas de papéis de
para ele porque ele queria ser homem (se referindo
gênero presentes em nossa sociedade.
à forma como ele se vestia), André afirma que na
Henrique, em sua entrevista, afirma que época não estava tentando ser homem, estava apenas
“achou que era lésbica”, e que contou para a sendo quem ele era e acrescenta que essa exposição o
namorada da época que se sentia homem quando marcou fundo, como podemos ver no trecho abaixo:
ficava com ela, o que poderia indicar uma reprodução
“[...]foi dentro da escola que eu vivi uma das
de um pensamento lesbofóbico e heteronormativo violências mais doidas também... a professora
recorrente em nossa sociedade, de que o homem é o de geografia, ela virou assim, falou meu nome,
“por que que você gosta de ser homem?”, e
único capaz de desejo, sendo a mulher o objeto desse eu fiquei... Mas eu não sou homem, né? Eu
desejo. A namorada, então, o pôs em contato com um sou quem eu sou. Louca, louca... tipo me
homem trans, e a partir desse contato ele se entendeu expondo assim. Escrota, escrota, escrota. E
isso me marcou muito sabe, marcou fundo.”
como tal:
As situações narradas por André podem ser
“Comecei a namorar uma menina, e eu achei entendidas como situações de lesbofobia. Lésbica, no
que era lésbica. Eu cheguei um dia para ela
e falei, nossa, quando eu fico com você eu imaginário social, é uma mulher que quer ser homem,
me sinto um homem. Aí ela me colocou para já que o homem é o único capaz, legitimamente, de se
falar com um amigo dela que era homem
sentir atraído por uma mulher, o que fica claro com a
trans. Eu comecei a conversar e fiquei, tipo,
nossa, isso existe? Isso acontece? Dá pra... É

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exposição da professora perguntando para ele porque social e econômica. O peso dessas violências e as
ele “queria ser homem”. marcas emocionais deixadas por elas não podem
ser compreendidos sem antes entendermos sua
Mathis, mesmo nunca tendo se identificado
especificidade enquanto homem trans, negro e pobre.
como lésbica, também teve sua experiência de
desconformidade com o gênero associada à identidade Lucas afirma, ainda, que como a mãe o
lésbica. Ele conta que quando se assumiu trans para proibia de usar roupas masculinas, ele acreditava que
o pai, o mesmo pensou que ele estava se assumindo só poderia ser feliz nascendo de novo, só que com
lésbica, “você está se envolvendo com essas coisas outro corpo que não o dele. É interessante que esse
de lésbica...”. Mathis afirma que chegou a pensar por “nascer de novo” não parece só guardar o desejo por
um tempo se ele não era “só uma menina que não nascer em um corpo masculino, mas também o desejo
se conformava com as normas de gênero”, porém por estar em um outro corpo que em sua totalidade
o mesmo achou que por gostar de meninos não não seja marcado pela intersecção entre a violência
poderia ser isso. O que revela uma visão lesbofóbica de gênero, o racismo e a exclusão social e econômica.
e heteronormativa de que uma menina masculina só O mesmo idealiza e entende a transição como um
pode ser lésbica, já que, sendo masculina, não atrairia novo nascimento e, simultaneamente, apresenta
o interesse masculino sobre si. um pensamento que vai contra a ansiedade pelas
modificações corporais prevista na descrição médica a
Na entrevista de Lucas podemos notar como
respeito da transexualidade, como podemos observar
o lugar em que ele foi colocado enquanto menina
no trecho abaixo:
era violento e sufocante. Lucas conta que sofreu
abusos sexuais por anos durante boa parte da infância “Uma coisa que eu sempre digo para
e que, com 12 anos, não aguentava mais, foi então as pessoas trans é terem paciência, o
resultado vai vim cedo ou mais tarde…
que começou a namorar um garoto de 18 anos, que, tipo assim, calma, imagina que antes de
segundo ele, o protegia de olhares e abusos de outros você começar a hormonoterapia, você é
um feto, depois que você tomar a primeira
homens. Quando ele quebrou o silêncio em relação
dose de T (testosterona) você é um recém-
aos anos de abuso, primeiro com o namorado e nascido, depois que você tiver um ano de
depois com a mãe, ele começou a ir em uma psicóloga hormonoterapia você é uma criança… É o
que eu fiz comigo, a minha primeira... antes
que falou que a culpa dos abusos tinha sido dele pois de eu tomar T, eu imaginava que eu era um
aconteceram mais de uma vez. feto, depois que eu tomei a primeira dose a
eu imaginei que era um neném, uma criança
É importante notar que as vivências de Lucas que tinha acabado de nascer, uma criança
nasce sem barba, sem cabelo as vezes, nasce
são marcadas fortemente pela situação de extrema sem pelos, no corpo todo, então tipo, eu
desigualdade social em que ele se encontra e pelo imaginei que eu tinha acabado de nascer,
racismo. Lucas nasceu e vive até hoje em uma das quando começou a nascer o primeiro
pelinho, na minha barba, eu imaginei que
maiores favelas de São Paulo, o mesmo narra inúmeras tipo, eu tava na puberdade masculina.”
situações de violência de gênero que se interligam
com o racismo e com sua situação de vulnerabilidade

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João conta sobre embates que travava com a concepção de gênero bastante rígida, reflexo de uma
mãe desde criança porque a mãe queria que ele vestisse sociedade sexista, misógina e lesbofóbica. Aqui, para
roupas mais femininas ao menos na hora de tirar João e boa parte da sociedade, ser mulher é ser objeto
foto e ele se negava. Conta que passou a usar roupas de assédio, é ser aquela sobre a qual recai a atração
masculinas com 10 anos de idade e que desde cedo masculina:
ouvia as pessoas dizendo coisas como “essa menina
“Em dado momento eu entendi a diferença
vai ser sapatão”. Ele conta que se alegrava em vestir do que era ser mulher e do que era ser
roupas masculinas e ser confundido com menino lésbica, eu acho que eu nunca fui lido como
durante a infância e adolescência, possivelmente uma mulher, nunca fui, eu nunca estive nesse
lugar, de ser assediado na rua como uma
porque quando confundido com menino ele podia ser mulher, de ser chamado de gostosa, ou de ter
quem ele era sem sanções, ao contrário de quando era atração masculina sob meu corpo.”
lido como uma menina em desconformidade com o 3.3 Passabilidade e construção da identidade de
gênero. João demonstra ter internalizado a lesbofobia homem
que sofreu ao longo da vida em diversos trechos da
entrevista, como podemos ver abaixo: A passabilidade é um termo comumente
usado pelas pessoas trans para se referir a capacidade
“Eu me entendia num lugar de erro assim,
sabe? De entender que eu tava fazendo uma
de se “passar” por cis, ou seja, no caso, um homem
coisa muito equivocada, que aquilo não podia trans ser lido socialmente como homem cis significa
ser público... E aí eu não consegui ficar com a que ele tem passabilidade. A passabilidade aparece nas
menina naquele momento porque eu entendia
como uma coisa muito errada, não só pela entrevistas como sinônimo de alívio social, segurança e
minha família, eu mesmo me achava errado, respeito, e se relacionacom a construção da identidade
me colocava nesse lugar, então a menina até
de homem desses indivíduos.
se aproximou, tentou e não rolou.

Eu não me relacionava com mulheres, eu não Na entrevista de Henrique, vemos que a


me relacionava nem com mulheres nem com passabilidade aparece como sinônimo de alívio
homens e sempre foi muito, muito, muito
e segurança, resultante de uma aceitação social.
violento essa coisa de ter que esconder quem
eu era, então... de ter que falar mal de sapatão, A sociedade o aceita somente quando o lê como
ai que nojo, sapatão e tal, e sempre ter que homem cis, consequentemente, estando no lugar de
ficar me escondendo, apesar de me apaixonar
por todas as amigas e sempre ter que ficar homem cis ele deixa de sofrer as violências as quais
escondendo isso de todos, de tudo e de todos ele está exposto quando é lido como mulher em
né, então acho que também foi uma coisa que
desconformidade com o gênero, como podemos ver
me fodeu muito a vida na real.”
no trecho abaixo:
João afirma que antes de se assumir homem
trans, se assumiu lésbica e que em um dado momento “Eu não vejo as pessoas me olhando, tipo, o
que é isso? Já sabem que eu sou um cara, ficam
passou a entender que o lugar de lésbica era um lugar tipo... esse cara é meio estranho, mas... É esse
diferente do lugar de mulher. Entendendo lésbica cara, nossa, sei lá, parece viado, coisa assim...
Mas tipo, beleza, é melhor, bem melhor... Eu
como uma espécie de “não-mulher”, o que revela uma
tenho medo das pessoas tipo descobrirem

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que eu sou trans, assim, na rua. Se a gente tá poucas pessoas que eu conhecia, partilhavam
num rolê, no meio da rua, eu não vou falar, isso comigo e me respeitavam, dentro da
prazer eu sou o _____, eu sou trans. Sabe? É faculdade e na minha cabeça assim, porque o
aquela coisa, não to me escondendo, só to me mundo... eu saia na rua isso não existia, não
preservando.” existia... Era raro alguém me ler como um
garoto.”
Henrique revela, também, um conflito interno
na construção de sua identidade enquanto homem, Para Mathis, que se identifica como não
quando perguntado sobre sonhos e projetos futuros binário e gay, a questão da passabilidade também
ele afirma que apesar de não se ver como uma pessoa aparece como um desejo a ser alcançado, porém, para
muito tradicional, todos os seus sonhos reproduzem ele, o se tornar mais passável funcionará como uma
ideias tradicionais, o que pode estar refletindo um “carta branca” para que ele possa usar mais roupas
desejo internalizado de normalização: femininas sem que as pessoas o leiam como mulher
e sim como gay, que é como ele se identifica. Ou
“Eu sempre tendi a me ver como uma pessoa seja, Mathis rejeita a ambiguidade de ser lido como
não tradicional. Ao mesmo tempo eu me vejo
num casamento, com uma família, com filho,
uma mulher masculina, mas deseja ocupar o lugar de
cachorro, gato... Eu acho muito engraçado ambiguidade de um homem feminino.
porque eu não me considero uma pessoa
monogâmica, mas ao mesmo tempo eu quero No debate Transmasculinidades, o qual
um casamento. Eu não sei como isso vai
participei em janeiro desse ano, um dos homens
acontecer, se isso vai acontecer, mas eu me
vejo levando uma vida normal.” trans ali presente levanta a questão da passabilidade,
novamente, como sinônimo de aceitação, respeito, e
André, em um trecho de sua entrevista,
como condição para não ser excluído. Salienta que,
revela um ponto interessante. Segundo ele, o início
mesmo com passabilidade, quando as pessoas ficam
da transição é marcado por um desencaixe e a
sabendo que ele é trans, o tratamento muda e ele volta
passabilidade é o que faz com que a pessoa trans
a se sentir como abjeto:
se encaixe. O encaixe aqui, não é resultado de uma
sociedade que mudou a forma como vê pessoas trans e “[...]meu, não existe um jeito certo de ser
pessoas fora do padrão de gênero de modo geral, esse trans, agora a questão da passabilidade, ela
ajuda na hora de você conseguir um trabalho,
encaixe aparece como resultado de um movimento em
você entrar na universidade, de você ser aceito,
direção a uma “cisgenerificação”, termo utilizado por de você não ser excluído, não ser o patinho
André, ou seja, você se encaixa quando a sociedade feio, eu digo da sociedade cisnormativa que,
enfim... parece que a partir do momento que
deixa de te ler como trans, identidade marcada pela as pessoas sabem que você é trans elas meio
abjeção, e passa a te ler como pessoa “normal”, ou que te tratam de um jeito diferente.
seja, como pessoa cis:
Atrelado a essa ideia, esse mesmo homem
“O uso da testosterona faz a gente se trans, expressa que mesmo com passabilidade e
encaixar. E... a dificuldade que eu encontrava com os documentos retificados, “parece que sempre
antes de entrar nessa esteira de cisgenerificar
sobra alguma coisa” e que isso o incomoda porque
muito a minha vida... Era de viver uma coisa
muito solitária.Transgeneridade se resumia a ele não quer que as pessoas saibam que ele é trans.

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Para esse homem trans, me parece que a transição ele é trans”. Paralelamente e contraditoriamente a
não significa só um “tornar-se homem”, sendo essa essa ideia, em outros trechos Lucas menciona que
identidade de homem algo que fuja a masculinidade na realidade o que acontece é uma mudança de lugar
hegemônica, para ele, o tornar-se homem guarda um social, ou seja, se antes ele era visto como uma mulher
desejo de se tornar um tipo específico de homem, negra masculinizada e sofria preconceito, exclusão e
que é o homem cis, o homem “normal”. Trata-se de objetificação por sua condição, agora o mesmo passa
um desejo inalcançável de normalização de um corpo a ocupar o lugar social de um homem negro e toda a
que é abjeto. A passabilidade, aqui, aparece como um violência racista que isso implica.
apagamento de sua condição enquanto homem trans.
Para João, a passabilidade que ele vai conquistar
Indo contra esse desejo de normalização, com a retirada dos seios marca uma despedida de seu
outro homem trans desse mesmo debate, rebate essa antigo eu e um nascimento de seu novo eu, o que
ideia positivando o que o outro vê como algo negativo revela uma aproximação com ideias essencialistas
por revelar sua condição enquanto trans. Para ele, a e da patologização (cirurgia idealizada como um
cicatriz deixada pela mamoplastia masculinizadora é novo nascimento). Ao mesmo tempo, a cirurgia e o
positiva exatamente por não esconder o passado dele aumento da passabilidade aparecem para ele não só
enquanto mulher. A passabilidade para ele, não abarca como aumento da segurança, da aceitação social e do
um apagamento de sua condição enquanto trans. Para respeito, mas também como uma oportunidade de se
ele, é importante que as pessoas vejam e saibam que repensar que tipo de homem ele está se tornando e
ele é homem trans exatamente para que o pensamento que tipo de transmasculinidades serão construídas a
da sociedade em relação a essa questão mude: partir de então. Para João, a testosterona não trouxe
só um aumento da passabilidade, mas também um
...eu to com uma cicatriz daqui até aqui, mas
cara adorei o resultado e como que também
espaço de tranquilidade, antes inexistente, onde ele
vai ser uma história de empoderamento sabe, consegue pensar e problematizar a masculinidade que
de toda a nossa causa, de tudo o que a gente está construindo.
tá fazendo aqui, de trabalhar pra que isso seja
visto, para que um dia, sei lá, pode não ser
nossos filhos, nossos netos, sei lá, pra que 4 Considerações finais
um dia as pessoas deixem de ser ah, olha lá
o cara trans, pra ser simplesmente um cara,
você entendeu? Porque é isso que a gente tá Vimos ao longo desse artigo que não podemos
querendo trazer. falar em um único processo transexualizador, mas em
Lucas, o único entrevistado negro, menciona processos transexualizadores, uma vez que é possível
em um trecho de sua entrevista que a passabilidade realizar a transição através de diferentes caminhos.
aparece como uma “diminuição da soma de Além disso, os processos transexualizadores são
opressões”. Ele afirma que antes sofria por ser negro vivenciados e significados de maneiras distintas
e por ser lésbica e que agora sofre só por ser negro, pelos entrevistados. A pluralidade de formas de se
pois, segundo ele, as pessoas acham legal ele ser vivenciar e se entender a transição de gênero por
trans, “acham que oh... o mundo vai mudar porque parte dos homens trans é reflexo da articulação de

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marcadores sociais da diferença como raça/cor, que entender a transexualidade como doença implica
classe, gênero e sexualidade. em desresponsabilização e infantilização desses
sujeitos e os impedem de dar respostas particulares ao
Conseguimos notar essa articulação de
seu sofrimento.
marcadores sociais da diferença na forma como, por
exemplo, a realidade de João, de ser mais velho que os Entendemos que o sofrimento das pessoas
demais entrevistados, independente financeiramente trans não é inerente a sua condição, mas fruto
e de conseguir bancar sua transição totalmente no de preconceito e rejeição social, que marcam,
sistema de saúde particular, possibilita que o mesmo de maneiras distintas e em diálogo com as
construa uma noção sobre si e sobre sua condição especificidades e lugar social ocupado por cada
enquanto transexual de maneira mais crítica e mais entrevistado, as trajetórias desses indivíduos desde
afastada das noções patologizantes. Notamos também a infância. Observamos, também, que alguns
essa articulação quando percebemos que a questão entrevistados reproduzem ideias rígidas de gênero,
do racismo e da exclusão social e econômica além de refletindo uma sociedade sexista e misógina.
marcarem fortemente a trajetória de Lucas, influem na
A passabilidade é significada e entendida
forma como mesmo vivencia e significa sua transição
de diferentes formas pelos entrevistados. Aparece
e sua condição enquanto homem trans.
nas falas de Henrique como uma espécie de alívio,
Observamos também ao longo do artigo através do aumento da segurança e do respeito e
que apesar do processo transexualizador do SUS ser aceitação por parte da sociedade. A passabilidade
teoricamente orientado por uma série de diretrizes tira os homens trans de um lugar de abjeção social
patologizantes, tal fato nem sempre condiz com a antes vivenciado quando eram entendidos como
realidade uma vez que existem diferentes estratégias meninas em desconformidade com o gênero, como
utilizadas tanto pelas pessoas trans, quanto por anunciado por André e Henrique. Ela possibilita que
profissionais de saúde, para contorná-las. eles se “encaixem” e pode aparecer como um desejo
de normalização e correção, porém também existe
Notamos que os homens trans entrevistados
resistências a essa lógica, através de um movimento
fazem um movimento de reescrita da própria história
de tornar visível sua condição enquanto homem trans,
ao se assumirem trans, estando eles dentro do processo
bem como através de um movimento de se repensar
transexualizador do SUS ou não. Paralelamente a isto,
e problematizar que tipo de homem estes indivíduos
observamos movimentos de reprodução e resistências
estão se tornando e que tipo de masculinidade se
à lógica da patologização de suas identidades.
constrói a partir desse lugar, como pudemos observar
Existe uma noção de que postura patologizante
do Debate analisado e nas falas de João.
do AMTIGOS em relação à transexualidade é
importante para garantir o direito à transição, porém
isso não condiz com a realidade quando o SUS tem
uma definição ampliada de saúde, para além da noção
de saúde como ausência de doenças. Vimos, também,

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ARTIGOS

Sequelas do cárcere:
discursos e trajetórias além das grades
Luan Piani
Pós-graduado em Sociopsicologia pela FESPSP
(contato@luanpiani.com )

Resumo
O presente artigo tem por objetivo levantar reflexões acerca da trajetória e construção da
subjetividade de quatro egressos do sistema penitenciário de São Paulo por meio de discursos
e problematizações teóricas. Para essa pesquisa foi adotada uma metodologia qualitativa, tendo
como proposta dar voz a esses indivíduos por meio de entrevistas semi-estruturadas. Assuntos
recorrentes como trabalho, família, religião, estigma e sociedade foram notáveis em suas
narrativas. Frente a isso, a pesquisa tem por proposta problematizar e dialogar com a fala dos
egressos, no intuito de nos expor a importância de refletirmos suas condições como indivíduos
inseridos numa sociedade que muitas vezes os torna invisíveis.

Palavras-chave
Egressos do sistema penal; Prisão; Pós-prisão.

Abstract
The purpose of this article is to reflect on the trajectory and construction of the subjectivity
of four graduates of the prison system of São Paulo through theoretical discourses and pro-
blematizations. For this research a qualitative methodology was adopted, with the purpose of
giving voice to these individuals through semi-structured interviews. Recurrent subjects such as
work, family, religion, stigma and society were notable in their narratives. In the face of this, the
research proposes to problematize and dialogue with the discourse of the graduates, in order to
expose us the importance of reflecting their conditions as individuals inserted in a society that
often makes them invisible.

Keywords
Graduates of the penal system; Prison; Post-prison.

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“...A Justiça Criminal é implacável. mas em toda uma sociedade que não soube ratificar
Tiram sua liberdade, família e moral. maneiras de abordar esse sujeito (LAUERMANN,
Mesmo longe do sistema carcerário, GUAZINA, 2013).
te chamarão para sempre de ex presidiário...”
A sociedade pode classificar um ex-presidiário
O homem na estrada - Racionais MC’s
como um marginal desviante (outsider) mas antes
Introdução de pensarmos como tal sistema de rotulação foi se
Historicamente, as prisões têm por constituindo, devemos também avaliar a sociedade
papel reprimir e punir aqueles que infringem as que, por diversas formas, estigmatiza o ex-detento,
normais sociais. Durante a história a respeito do sendo essa a “sociedade para a qual o sujeito retornará
aprisionamento, sempre existiu um esforço para marcado por uma vivência que lhe imprimiu certo
conter a tendência do homem ao crime pela utilização modo de lidar com a vida cotidiana” (LAUERMANN,
de técnicas intimidativas, como o suplício do corpo e GUAZINA, 2013, p.178).
a execução (FOUCAULT, 2014). O presente artigo traz como problemática
Ao longo dos séculos a prática do suplício foi a dificuldade de ser um egresso do sistema penal e
trocada por aquilo que se pode entender como a pena suas dificuldades para reinserção na sociedade, sendo
que existe hoje, com propósitos mais corretivos que assim a pesquisa permeará sobre a trajetória de vida
punitivos, intervindo sobre o corpo humano por meio de quatro egressos do sistema penal paulistano,
de uma castração, treinando, tornando obediente, considerando-os não como um grupo jurídico,
submisso, dócil e útil (FOUCAULT, 2014). mais sim social, como indivíduos possuidores de
trajetórias de vida marcadas pela passagem na prisão,
Quando uma regra é imposta dentro de uma
a qual conseguiram reconstruir suas identidades na
sociedade, o indivíduo que venha a infringi-la pode ser
sociedade mesmo carregando consigo um rótulo de
visto como alguém desigual, de quem não se espera
ex-presidiário (MADEIRA, 2012).
uma vida de acordo com as regras estipuladas por
um grupo social. Esse indivíduo passa a ser encarado Segundo Ligia Madeira (2012), apesar da
como um “marginal desviante”, alguém que está do imensa quantidade universal de estudos relacionado
lado de fora, para além das margens de determinada ao tema prisão e encarceramento, existem poucos
fronteira ou limite social (BECKER, 2008). estudos que propõem realizar uma análise sobre a
trajetória de vida pós-prisional, tendo em vista o
Com isso, a prisão se tornou peça essencial no
processo de ressocialização e reintegração social dos
conjunto das punições a esses desviantes, marcando
egressos do sistema penal.
assim um momento importante para a justiça penal:
seu acesso à “humanidade”. A forma como foi Muitos são os desafios que um egresso encontra
constituído esse conjunto de sistema durante os anos, em seu retorno a sociedade, sendo assim, essa pesquisa
e como ele desenvolveu diversas linguagens subjetivas, busca contribuir com a investigação dessa problemática,
nos aponta conflitos não só no sujeito encarcerado, analisando suas trajetórias e seus processos de
reintegração social, interpretando os pontos de vistas

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desses indivíduos considerados “marginais” por um assim, as perguntas se basearam em suas experiências pós-
passado já quitado com a justiça, permitindo aos leitores prisional, trabalho formal e a importância da religião e família
enxergarem essa grande massa de seres invisíveis à em suas reintegrações sociais.
sociedade sob a ótica dos próprios egressos.
Fez-se o uso de um aplicativo digital para envio de
Discurso além das grades mensagens instantâneas, concebendo aos entrevistados
A presente pesquisa teve por objetivo trabalhar uma flexibilidade no tempo das respostas de acordo suas
abordagem qualitativa, aprofundando na compreensão dos disponibilidades. As respostas foram enviadas por meio
fenômenos apresentado segundo a perspectiva dos próprios de gravação de áudio, arquivadas e transcritas para análise
sujeitos, tendo por preocupação todas as significações das com o consentimento dos convidados.
ações que envolvem as relações humanas que não se podem
Todos os nomes dos entrevistados aqui
quantificar (MINAYO, 1994).
apresentados são pseudônimos, por ética às suas
Conforme Elaine Guerra (2014), o objetivo do estudo integridades, além disso algumas informações que
qualitativo é envolver valores humanos que geram a partir de tornassem passíveis de identificação foram excluídas.
experiência e sentimentos, criando relações em ambientes As entrevistas foram concedidas no mês de setembro
versáteis onde particularidades culturais, econômicas, sociais
de 2018 em dias e turnos alternados de acordo a
e históricas não estão suscetíveis a controles quantificados,
disponibilidade dos convidados.
pois o homem é contrário aos objetos, o que reforça uma
metodologia que considere essas afirmações. Os entrevistados tinham entre 25 e 40 anos de
idade, sendo três negros e um branco, todos encontram-
Quatro egressos do sistema penitenciário residentes
se morando com suas famílias na cidade de São Paulo.
na cidade de São Paulo foram selecionados para esta pesquisa.
A maioria foi preso uma vez e apenas um deles não tem
Com eles, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com
um emprego formal, o restante todos atuam com carteira
perguntas abrangentes sobre a problemática, no intuito de
assinada.
deixar os entrevistados mais a vontade e livres para expor suas
experiências abertamente. Abaixo está um quadro com informações
características dos entrevistados com seus respectivos
As entrevistas semi-estruturadas propõe perguntas
nomes fictícios.
formuladas, porém isso não limita uma abordagem mais livre
sobre a problemática proposta (MINAYO, 1994). Sendo QUADRO - Dados relevantes sobre os entrevistados

Entrevistados Idade Cor Familia Profissão Tempo Nº de vezes


total de preso
reclusão

Marcelo 40 anos Negro Esposa Gestor 10 anos 4


ambiental
Rafael 25 anos Branco Esposa e Pedreiro 3 meses 1
filha
Ricardo 32 anos Negro Pais e Ajudante geral 4 anos 1
irmãos
Samuel 35 anos Negro Esposa e Mecânico 3 anos 1
filha industrial

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Registrado todos os áudios dos entrevistados, foi visando a promoção da dignidade da pessoa humana e a
realizada uma transcrição para análise mais profunda integração social dos cidadãos.
sobre as narrativas, a qual após diversas leituras foram
Por essa lei discernimos que os egressos
organizados eixos similares dos quatro entrevistados do sistema penal são indivíduos que necessitam de
categorizando para um melhor aprofundamento da uma obtenção de trabalho como garantia para sua
análise. Entre as categorias percorre temas como, sobrevivência pós-prisão e a partir disso se reintegrar
trabalho formal, religião, família, estigma e sociedade, socialmente (CABRAL, SILVA, 2010).
porém esses temas não serão subdivididos, pois eles
O governo fala que dá todo apoio mas a
se articulam o tempo todo.
gente não vê na prática, isso só está no papel,
Marcelo tem 40 anos, foi um dos sobreviventes na ideologia. Eu falo por mim por que sou
egresso e conheço vários outros que não tem
do massacre na Casa de Detenção de São Paulo,
essa oportunidade não, e ela é precisa, por que
passou por mais de 25 penitenciárias de São Paulo e se não tiver ele não vai ressocializar. Ele vai
atualmente é gestor ambiental, casado, e tem como fazer o que se está sendo excluído? A partir
do momento que ele está sendo excluído ele
projeto social lecionar aulas de boxe para crianças de vai meter o pé na porta pois é o que sobrou.
baixa renda na cidade de São Paulo. Ele nos revela (Marcelo)
alguns desafios na vida de um egresso:
As experiências vivenciadas pelos
Eu acho que a sociedade tem que ser menos detentos durante o encarceramento, acabam não
preconceituosa por que a pessoa quando
chega na porta de uma empresa para procurar proporcionando nenhum tipo de apoio, utilidade ou
emprego e ela tiver alguma coisa na ficha, ela integração fora do espaço prisional. Com isso, temos
automaticamente não é aceita, e para essas um sério agravante nas taxas de reincidência no Brasil,
pessoas sobram poucas opções, a opção que
lhe resta é retornar ao crime. (Marcelo) onde segundo dados do IPEA (2015) cerca de 70%
da população carcerária após libertação retornou ao
mundo do crime.
Notamos na fala de Marcelo que quando um egresso
não tem uma oportunidade de emprego após sua libertação, Muito dos fatores para esse alto índice
o mesmo encontra-se sem capacitação e estrutura para de reincidência está vinculado as experiências e
continuar longe do universo criminal. José Pastore nos diz especialização ao mundo do crime dentro da própria
que “não podemos generalizar dizendo que o desemprego prisão, o que lhes proporciona uma probabilidade
é a principal causa do crime; nota-se que, quando um preso maior de voltar atuar na esfera criminal.
é libertado e se vê sem apoio material, o desemprego é um
sério agravante” (PASTORE, 2011, p.33). Conforme Maria Lucia Karam (1995, p.37)
“o sistema penal faz destes poucos selecionados
O apoio material muitas vezes negado pela
pessoas mais descapacitadas ao convívio social e,
sociedade é o mesmo privado pelo Estado que tem
consequentemente, mais aptas a cometer novos crimes
por comprometimento segundo a Lei n. 9.867, de
e agressões à sociedade” (apud MADEIRA, 2012, p.29)
10 de novembro de 1999, que é prevê a instituição
de cooperativas sociais para inserir as pessoas em
desvantagem no mercado econômico através do trabalho,

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As políticas públicas são uma das soluções marca que ele carrega do seu passado pode facilmente
importante para esse aporte material e social ao desviar atenção dos atributos que eles possuem hoje.
egresso, ela se torna um conjunto de medidas e
De modo geral, ao sentirem o preconceito
ações sociais programadas pelo Estado no objetivo
que existe na sociedade, devido seus passados, os
de melhorar e integrar diversas classes sociais e
mesmos não se sentem confortáveis em relatarem
econômicas, principalmente de classes excluídas em
a verdade a qualquer pessoa, muitos por medo de
suas variadas dimensões territoriais, sociais e culturais
retaliações e sempre com questionamentos sobre
(VILLALOBOS, 2000 apud, MADEIRA, 2012). Os
“exibi-los ou ocultá-los?”, “mentir ou não mentir?”.
programas sociais são em sua maioria um favorável
Segundo Goffman (1988, p.52) “ao invés de encarar
facilitador para a redução das desigualdades sociais,
o preconceito contra si mesmo, ele deve considerar a
e não apenas para a diminuição da reincidência, mas
sua aceitação involuntária pelos indivíduos que têm
para uma reintegração social legítima.
preconceitos contra o tipo de pessoa que ele pode
Samuel, atualmente com 35 anos, ficou recluso revelar ser.
por 3 anos no sistema penal paulistano, teve em sua
ficha passagens por 7 penitenciárias ao longo dos Dos 35 funcionários, só três pessoas sabem, e
essas foram pessoas que viram meu dia a dia,
anos, hoje ele é casado, tem uma filha e trabalha como viram meu pensamento, conhecem meu jeito
mecânico industrial em uma empresa na zona norte de ser, conhecem a minha ideologia, então,
na verdade, quando eles souberam da minha
de São Paulo. Em sua narrativa ele nos aponta que
situação de ex-detento eles se espantaram:
recuperar um lugar no mundo do trabalho lícito é “não, mentira!”. Mas depois se alegraram em
uma tarefa árdua para um ex-detento: saber do ser humano que eu consegui me
transformar em relação a esse sofrimento
Eu entrei na empresa com muito medo de que eu passei. (Samuel)
preconceito, tanto que entrei lá e fiquei 11
meses, pedi pra sair pra entrar em outra na Em seu primeiro trabalho pós-prisão, Samuel
qual eu estou hoje há 4 anos. Quem sabia da acabou não relatando para ninguém sobre sua
minha trajetória de vida era só a pessoa que
me colocou lá dentro. (Samuel) trajetória, exceto à pessoa que o ajudou a colocá-lo lá
dentro. Em sua passagem pela segunda empresa (na
Em sua fala, Samuel revela como o medo e
qual ele está hoje), se sentiu à vontade em compartilhar
o estigma são algo rotineiro na vida de um egresso,
seu passado com três amigos de confiança, sendo bem
quando este consegue uma oportunidade de emprego.
aceito por eles, que presenciaram sua mudança.
Esse medo está vinculado a sua passagem
Samuel em sua narrativa nos leva ao conceito
pela prisão, o que estabeleceu em sua identidade uma
de subjetividade devido ao seu ganho de humanidade
marca de ex-presidiário que o acompanhará para toda
e transformação pós período encarcerado. Sobre
a vida (MADEIRA, 2012). Erving Goffman (1988)
subjetividade nos apoiamos naquilo que cada um pensa,
afirma que a própria sociedade cria mecanismos de
reflete, sente, e age com o mundo. As particularidades
categorizar os indivíduos, pois os mesmo poderiam ter
de cada sujeito trará sentido aos seus processos de
um fácil aceitamento em outros grupos, porém uma
sociabilidade ao decorrer de suas trajetórias, podendo

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ser interrompida e reconstruídas criando novas A vida pós cárcere traz muitas sequelas sociais e
subjetividades ao longo do tempo (COMISSÃO, DE psicológicas ao egresso, pois ao retornar ao convívio social,
FORMAÇÃO TEÓRICA E. PRÁTICA, 2013). esses indivíduos enfrentam uma “infinidade de dificuldades
e misto de sentimentos como angústias e anseios, além
Segundo Baratta (1999), durante o período de queixas, dúvidas e demandas; e tendo ainda como um
de prizionização o detento sofre uma “desculturação, entrave a falta de referências para enfrentar todas estas
responsável pela sua desadaptação às condições de situações” (LOPES, 2013, p.65)
vida em liberdade, pela absorção de uma subcultura
Além da probabilidade de o interno se
carcerária (apud MADEIRA, 2012, p.42). Ao dar
tornar mais violento a partir da sua experiência no
acesso ao sistema prisional, uma subjetividade se
complexo carcerário, ele vivencia opressões morais
rompe e outra se cria, abrindo assim uma nova
após a sua libertação, o egresso sofre dificuldades em
subjetividade em seu ser, caracterizado pela submissão
desempenhar novos papéis sociais. Muitas vezes, há
(FOCAULT, 2014). E após o cumprimento da pena,
o afastamento dos amigos, dos familiares e da vida
toda essa subjetividade está impregnada em seu corpo
laboral, pois poucas são as pessoas que confiam
e na sua morla estigmatizadora.
nos indivíduos que se submeteram às experiências
Com o relato de Samuel de transformação carcerárias (BITENCOURT, 1993).
conseguimos nos apoiar que a transformação de um Sentimentos como os de insegurança, medo
sujeito após um processo de fragmentação de sua e submissão são revivenciados; a sociedade torna a
identidade pode estar relacionado a sua trajetória excluir aquele que já fora excluído, e diante isso se
de vida em seu cotidiano, muito vinculado a sua instaura seus medos particulares, já que o indivíduo
maneira de ser, observar e responder de acordo suas não se percebe mais como parte de um grupo social
experiências criada ao longo de sua história. (LEONESY, 2006).
Pois conforme Bourdieu (2005), a trajetória Já Ricardo com 32 anos, ficou preso durante
demonstra uma série de posições sucessivamente 4 anos no sistema penitenciário de São Paulo, hoje
ocupadas por uma mesmo agente num espaço social, trabalha registrado como ajudante geral, solteiro e
“sem que tenhamos previamente construído os realizado com seu momento profissional e pessoal.
estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou Em seu relato ele conta um pouco sobre a falta de
e, logo, o conjunto das relações que uniram o agente confiança que a sociedade tem com um egresso.
considerado” (apud MADEIRA, 2012, p.36). Quando você sai da prisão é muito difícil as
coisas, por que são poucas as pessoas que
Me mudei para essa empresa e continuei na vida confiam em você, são poucas as portas que se
com medo, com muito medo, pensamentos, abrem para você, ou seja, a tendência de você
medo de preconceito, medo do amanhã. Eu voltar para o crime é bem mais fácil do que você
mesmo quando entrei nas empresas não me arrumar um emprego, por que é muito difícil
pediram antecedentes criminais, mas meu medo você reconquistar tudo de novo, entendeu?
era esse: “poxa se eles pedirem antecedentes Ainda mais tendo passagem. (Ricardo)
criminais, e aí, o que vai acontecer?” Nossa
eram muitos e muitos medos, muitos monstros
criados por mim. (Samuel)

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Superar a desconfiança social é um desafio muitos, o seu início ao universo criminal é fruto de um
marcante na vida de um egresso pois o maior e pior abandono e frustração ao ideal de trabalho, muito em
obstáculo de quem passou pelo cárcere está no prol da simbolização de uma vida de consumo mais
preconceito e nas dúvidas que o indivíduo gera para bem sucedida. Após a liberdade, o ideal de trabalho
aqueles que estão ao seu derredor . Por ter um passado volta a tona, pois para reconquistarem suas dignidades
reconhecido por erros dentro das normas da sociedade, perante a sociedade, o fator trabalho se torna peça
e não pelos seus adjetivos e potencialidade, o egresso chave. Segundo Antunes (2006, p. 175) citado por
do sistema penal se torna excluído (LOPES, 2013). Madeira (2012, p.239) “uma vida cheia de sentido fora
do trabalho supõe uma vida dotada de sentido dentro
Por exclusão definimos um indivíduo que teve
do trabalho”.
sua cidadania negada, atribuída as condições inferiores
de sujeito. “O excluído é posto numa categoria de A gente tem que pensar o seguinte, se
‘não integrante’ de ‘não fazendo parte’ da sociedade, a gente está com mais de 13 milhões de
desempregados, pais de família, quem vai
enfatizando o estigma e discriminação para com este querer empregar um ex-presidiário? A não
sujeito banido socialmente. (LOPES, 2013, p.75). ser o crime organizado, por que para eles essa
mão de obra é o que eles querem. (Marcelo)
No começo, quando eu sai, até então eu fiquei
meio perdido, eu não sabia no que ia trabalhar, Toda estratégia para diminuir a reincidência
eu não tinha uma profissão definida, até pela inserção no mercado de trabalho tem muita
mesmo porque eu tinha acabado de sair, eu
importância, pois o trabalho tornou-se um dos
tinha que me adaptar novamente à sociedade.
Então difícil é, mas nada é impossível. Eu já fatores preponderantes na reconstrução da dignidade
trabalhei com pintura, com jardinagem, então e reingresso na sociedade. (PASTORE, 2011).
essas coisas assim eu já sabia.... (Ricardo)
Um tema importante levantado por Marcelo em
Quando um egresso tem em sua trajetória
sua narrativa é sobre o problema atual do desemprego
experiência com alguma profissão, isso vem a
no país, calculado em 12,7% (IBGE, 2019) em média
contribuir com futuras oportunidades que não sejam
no período de abril de 2019, o que faz com que muitos
no trabalho formal, muitos deles acabam conseguindo
egressos que não tiveram oportunidades no mercado
algum trabalho como autônomo para se sobreviver.
de trabalho sejam aliciados pelas vantajosas propostas
Por mais que o trabalho possa a ser informal, ele do crime organizado.
é fundamental na reintegração do sujeito, pois ele supre
Outro fator importante a ser levantado a cerca
suas necessidades sociais como moradia, alimentação,
da inserção dos egressos no mercado de trabalho está
vestuário, locomoção. Acaba de certa maneira elevando
a autoestima do indivíduo, sendo um amplo incentivador vinculado a pouca escolaridade e a rara qualificação
a inclusão dentro das redes sociais que ele estiver. profissional, que é comum a essa classe. (LOPES,
(LOPES, 2013). 2013). Muitos egressos sequer completaram o ensino
médio, conforme dados do INFOPEN (2016, p.33)
Curiosamente, os egressos possuem uma 51% da massa carcerária no Brasil não completou o
trajetória de vida muito atrelada ao trabalho, pois para ensino fundamental, 17, 75% ainda não acessou o

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ensino médio, tendo concluído, no máximo, o ensino é o acolhimento e bom relacionamento com seus
fundamental, e apenas 9% da população prisional familiares (apud MADEIRA, 2012).
brasileira concluiu o ensino médio.
Para Bourdieu (1999, p.67-68), conforme
Esses são números que entravam citado por Madeira (2012, p.237) “o capital social não
completamente a inserção dessa classe no mercado de é uma dado natural, mas sim, produto de um trabalho
trabalho com carteira assinada, e como citou Marcelo, de instauração e de manutenção do que é necessário
essa classe se torna uma presa intrigante ao crime para produzir e reproduzir relações duráveis e úteis,
organizado que cada vez mais busca suas expansões aptas a proporcionar lucros materiais e simbólicos.
territoriais (BIONDI, 2010).
Assim como aconteceu com Rafael, a esposa
Para Rafael de 25 anos, que atualmente de Samuel foi fundamental e peça chave em sua
trabalha como pedreiro e teve uma passagem de três reabilitação. Ela não desistiu dele e esteve presente em
meses no Centro de Detenção Provisória (CDP) de todas as visitas, acreditando que ele sairia de lá apto a
São Paulo, nos relata a importância que a família teve se reintegrar ao convívio social.
em sua vida.
Um dia ela foi me visitar e eu tinha feito
O que mais me ajudou nessa minha uma besteira, uma das piores besteiras da
recuperação foi minha família, a peça chave minha vida, que foi entrar para o Primeiro
disso tudo foi a minha esposa, logo em Comando da Capital, e ela ia me visitar no
seguida ela engravidou e veio minha filha e intuito de que um dia eu pudesse voltar
hoje eu sou o homem mais feliz do mundo para sociedade, voltaria para os braços dela,
pelo fato de eu ter caído na real e visto que as que quando eu voltasse pra rua, eu voltasse
coisas que eu fazia não eram boas para mim com a cabeça fundamentada, do jeito que
e nem para as pessoas que estavam a minha hoje eu me encontro. Não tenho dúvidas
que o pensamento dela era esse, aí fiquei
volta. (Rafael)
com vergonha de falar para ela, fiquei com
A influência de sua esposa e a vinda de receio de falar para ela que eu entrei para a
‘caminhada’ - essa é a linguagem do crime.
uma herdeira ao mundo, foram alguns dos fatores Então eu estava meio assim de falar para ela,
marcantes que o fizeram repensar atos que faziam mal mas o inevitável aconteceu, muitas pessoas
iam me requisitar, me chamar no meio da
não só a ele, mas às pessoas que o amavam, inclusive
visita, “oh, irmão, resolve essa situação” e ela
o amadurecimento que o nascimento de sua filha lhe falou “poxa, você está muito requisitado” e ai
trouxe e que lhe fez se questionar sobre qual futuro eu tive que falar para ela. Foi quando eu falei
para ela todo o acontecido, que eu entrei para
ele gostaria que ela tivesse ao seu lado. caminhada, assim e assim. Eu lembro como
se fosse hoje, ela olhou para mim, chorou,
Pierre Bourdieu (1999) define o capital chorou bastante obviamente, e falou “o que
social como um meio de pertencimento a redes de você está fazendo da sua vida? e tal”, aí no
relações sociais, se representando como um grande final da visita eu falei para ela, “poxa, mas fica
à vontade se você quiser ir, eu não vejo muita
conjunto de riquezas em função desse pertencimento perspectiva para mim”. Ela olhou dentro
desse intercambio de relações. Entendemos que um dos meus olhos e falou bem assim: “eu não
vou desistir de você, eu te amo! Estou com
dos valores do capital social na vida de um egresso você e você há de voltar para a sociedade”.

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Sabe, aquilo me deu um choque de ânimo e Eu acredito que família é a coisa mais
depois outros acontecidos e diversos apoios importante que a gente tem nessa vida. Sem
dela, diversos apoios de amigos, familiares a família a gente não é nada. Até mesmo com
e isso me fez pensar de forma diferente, os meus erros e com as coisas que eu fiz e
então se a família tem um peso? Nossa, por ter passado lá dentro, as únicas pessoas
indiscutivelmente tem um enorme peso, o que não me abandonaram foram meu pai
fator amigos e família é preponderante na e minha mãe. Até hoje eu agradeço a Deus
mudança, ressocialização e reeducação de um por eles nunca terem me abandonado. Então,
criminoso. (Samuel) assim, enquanto eu tive lá dentro meu pai
foi me visitar. Meu pai que ia me visitar, por
Samuel em sua narrativa conta como após que minha mãe não tinha condições de ir,
alguns acontecimentos delicados, a insistência e por que cara, imagina para uma mãe ir visitar
seu filho que está preso, chegar lá e além
crença em sua reabilitação foram fundamentais para do constrangimento de abrir as pernas para
que ele voltasse à sociedade transformado, e como seguir as normas da casa, que é a revista, se
deparar com seu filho naquela situação que
sua esposa teve papel crucial em sua transformação,
é o inferno, sair e se despedir e voltar sem
mesmo após ele ter desistido de si mesmo. Além disso, seu filho. Não é que ela não gostava de mim,
vemos em sua narrativa como o apoio de amigos não me amava, pelo contrário, se ela entrasse
lá e me visse naquela situação quem ia ficar
também foi determinante para sua reabilitação e mal seria ela, então lógico que eu entendi
reingresso na sociedade. essa situação, eu mesmo quis poupar ela
dessa situação. Quando eu sai da prisão, para
Essa relação positiva entre família e amigos conquistar minha família foi fácil, por que já
influencia na quantidade e qualidade de suas redes de cara eles me deram oportunidade, então eu
tenho muito a agradecer a eles. Minha família
de relações, aumentando assim seu volume de capital me acolheu e foi a única que foi me visitar, foi
social que pode influenciar no acréscimo do volume a única que me ajudou. Agora referente aos
amigos um ou outro que me ajudou, que me
de diferentes formas de capitais a quem o indivíduo mandou uma carta de incentivo e de ideias
está ligado, seja econômico, cultural ou simbólico positivas. Então assim cara, a família da gente
(BONAMINO, 2010). é muito importante, família em primeiro
lugar. (Ricardo)
Coleman (1988) define “o capital social pela
Para Ricardo, o carinho de seus pais e
sua função, considerando-o como uma variedade de
familiares foram essenciais para sua reabilitação,
diferentes entidades que compartilham aspectos das
principalmente após sua liberdade. Ele destaca que
estruturas sociais que facilitam certas ações dos atores
em primeiro lugar vem a família com o qual todo esse
(pessoas ou grupos)” (apud BONAMINO, 2010,
apoio foi fundamental para que ele tivesse paciência e
p.490). O capital social não é um atributo pessoal
estrutura para lidar com as adversidades após prisão.
do indivíduo, pois ele se insere em um contexto de
Em sua narrativa podemos notar a sensibilidade que
estrutura social, característico das relações em redes
ele teve em entender o estado emocional de sua mãe,
entre as pessoas por meio de trocas que visam facilitar
além de todo sofrimento que era passar pelo ‘inferno’
ações do indivíduo ou grupos.
do cárcere, como ele mesmo disse. Ele se utilizou da
empatia e compaixão para respeitar o lado emocional
e de saúde da sua mãe.

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Luan Piani

Eu já vi cara ter visita e depois a pessoa não olhar para as pessoas e falar “poxa, eu sou um
visitar mais, entrar em depressão, parar de ser humano”, ou seja, você tem que provar
comer, começar a ficar louco, falar nada com que está reabilitado, e foi o que aconteceu.
nada, e depois morrer. Eu vi, ninguém me Essas pessoas tiveram preconceito, mas eu
contou, entendeu? Eu vi pessoas no dia de com o tempo fui provando e mostrei que
visita, eu junto com a minha família e ele com não era daquela forma que eles pensavam.
a família dele, e no decorrer do tempo a família Até hoje eu escondo minha identidade de
dele, não sei por qual motivo, parar de visitá-lo. ex-detento, até hoje tenho vergonha disso, eu
A mulher dele parou de visitar ele, acho que falo do meu passado só para as pessoas mais
terminou o relacionamento, não sei, e durante próximas. (Samuel)
esse tempo que ela parou de ir aconteceram
algumas coisas. Ele entrou para a igreja, mas Mesmo com o apoio familiar, um egresso
mesmo assim veio a entrar em óbito. Então sempre conviverá com o preconceito de pessoas
assim, a família tem muita importância nessa
fase que as pessoas se encontram, a família é próximas, sejam amigos ou parentes. Como Samuel
muito importante. (Ricardo) cita, é difícil discordar deles, o único caminho a se
seguir é provar com o tempo o resultado da mudança
A ausência da família resulta numa exclusão
em sua vida.
imperceptível que gera atributos negativos ao
detento, classificando numa categoria estigmatizante, Os indivíduos possuidores de um estigma
conforme Xiberras (1996, p.19) “existem, assim, particular acabam obtendo algumas experiências de
formas de exclusão visíveis e outras apenas aprendizagem a sua condição, sofrendo mudanças em
perceptíveis porque não excluem nem materialmente , sua concepção do eu, se incluindo em uma condição
nem simbolicamente: os excluídos estão simplesmente de normais, construindo assim uma carreira moral.
ausentes ou invisíveis’ (apud MADEIRA, 2012, p.44). Conforme Goffman (1988, p.41) “uma das fases
desse processo de socialização é aquela na qual a
Essa exclusão quando reconhecida pelo
pessoa estigmatizada aprende e incorpora o ponto de
indivíduo impacta diretamente em sua identidade,
vista dos normais, adquirindo, portanto, as crenças da
onde ele tem por meio afastar-se dos demais ao seu
sociedade mais ampla em relação a identidade”.
redor de tal modo que ele mesmo concorde em ser
uma pessoa desacreditada em relação ao seu mundo Eu acredito que fora a família, religião é algo
social não recepctivo (GOFFMAN, 1988). que todo mundo precisa, todo mundo um dia
foi por algum motivo em sua vida buscar a
Deus. Existe aquele ditado, quando você não
procura Deus por amor, você procura pela
Eu sofri preconceitos sim, da parte de dor. (Ricardo)
pessoas que me conheciam, principalmente
as pessoas da parte da minha esposa. Eles O cárcere, por suas características reclusivas,
me olhavam com um olhar diferente, me pode ser considerado como um ambiente de
olhavam como vamos dizer... assim, com um
arrependimento e conversão. Conforme pontua Ligia
olhar de “esse é o pior dos seres humanos”
e eu sofri muito com isso. Então eu tive que Madeira (2012, p. 235), “paradoxalmente, é interessante
provar, e também não tiro a razão deles...é notar também que, se em vários momentos a prisão é
difícil tirar a razão da pessoa, quando ela olha
a televisão e só vê crime, gente matando, equiparada ao inferno, é através dela e da religião, via
gente assaltando e matando, é difícil você

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conversão, que se chega ao paraíso”. Tal visão tornou- Na fala de Ricardo, a vivência num lugar onde
se relevante entre os entrevistados nessa pesquisa nada lhe supre e o sofrimento impera, faz o indivíduo
conforme a narrativa de Ricardo. crer que a sua fé em um ser superior venha amenizar
todo o sofrimento que estão acostumados a enfrentar
As pessoas têm uma propensão maior em
no interior do cárcere.
procurar Deus quando sentem a necessidade de
aliviar sua dor. A vida dentro do cárcere para alguns é Não adianta eu querer me vitimizar, me
sustentada pela sua fé, pois isso os fazem se sentirem passando por vítima da sociedade. Entrei
sim, por diversos fatores. Não alguns, mas
resistentes em suportar suas angústias. todos fundamentados em cima de ilusões.
Saí dessa vida graças a Deus, com as muitas
A religião é muito importante por que Deus ajudas... ajudas familiares, ajudas espirituais
realmente existe. Se tem alguém para você e isso - o fator religião, me ajudou muito.
se apegar lá dentro é Deus. Então tem os Digo nem o fator religião, mas o fator fé.
momentos de você ler a palavra, tem os cultos Eu sou um cara que não tem uma religião,
lá dentro, então você vai e participa e Deus te creio no evangelho, creio em Jesus Cristo,
ouve, por que ali é um lugar de sofrimento, em Deus, porém ressalvo algumas coisas,
então você não está totalmente abandonado. pensamentos. Então hoje eu não tenho isso
Se você crê e busca Deus, parece que ele de que a religião certa é essa ou a errada é
desce para a terra e te dá um alívio necessário, aquela lá. Eu vejo que Deus opera da forma
te dá uma paz necessária lá dentro, por que que ele quer, que ele bem entende, no coração
não é fácil, cara. Então sem Deus a gente não daquele que consegue enxergar. Então
é nada, o cara que tem Deus pelo menos lá isso foi fundamental sim, na minha volta à
dentro ele tem tudo. (Ricardo) sociedade, na minha reeducação, me ajudou
muito. (Samuel)
Existe um papel inclusivo das religiões que
é a de aproximação com a realidade social, pois A vida do crime, para Samuel, é ilusória e só
acabam dando explicações aos atos humanos através existe um caminho, o da morte. A religião para ele teve
do sobrenatural, extraindo uma responsabilização das um papel fundamental nessa conversão do inferno
práticas criminais. Em contrapartida ao distanciamento (crime) para um possível paraíso (ressocialização).
da sociedade perante os encarcerados, existe um Por mais que ele não seguisse uma religião específica,
movimento que vem em sentido oposto que tem sua fé lhe deu forças para superar todos os tipos de
sido dos grupos religiosos, vistos como um campo pensamentos negativos, dentro e fora da prisão - uma
fértil a suas missões de conversões e evangelização. força maior que o carregou em dias de angustia.
(QUIROGA, 2005). O ser humano recluso possui em si muitas
Conforme estudo, Quiroga (2015, p.16) esperanças e desejos de se obter a liberdade, pois há
sempre uma nova possibilidade de um novo recomeço com
nos mostra que existe uma aceitação por parte das
dignidade, e nisso existe um amplo trabalho na área religiosa
instituições “o que se observa é uma certa aprovação
através de agentes religiosos (NASCIMENTO, 2005).
à presença dos agentes, por suas contribuições no
apoio social aos presos e pela colaboração no próprio Quais as consequências da vida do crime? É
processo de disciplinarização, uma vez que “preso sempre bom você estar lembrando, sempre
tocando no assunto, que se eu contar um
convertido é preso mais calmo”. pouco mesmo da minha história, da minha

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trajetória eu cheguei um dia e pedi para Deus sujeitos ficaram inseridos por um determinado período,
tirar a minha alma e me levar dessa vida, que onde se deu parte do seu processo de subjetivação.
era muita humilhação, muita humilhação
mesmo. (Samuel) Como a maioria dos países latino-americanos,
A falta de fé pode trazer consequências o Brasil acaba assistindo estagnado a uma crise crônica
lastimáveis àqueles que sofrem preconceito pelo em seu atual sistema carcerário, principalmente nos
seu passado, a humilhação faz com que a pessoa últimos anos, em que os indicadores disponíveis
que não tenha fé em algo maior sinta-se fragilizada apontam um agravamento de problemas já muito
espiritualmente, a ponto de para ela não fazer mais antigos, como o encarceramento em massa, a escalada
sentido estar nesse mundo. de violência entre os internos, as práticas de abusos,
maus tratos e torturas sobre eles, a inexistência de
Samuel em sua narrativa cita o termo
garantias mínimas aos condenados e o desrespeito aos
“humilhação” afim de exemplificar um pouco de sua
princípios dos Direitos Humanos (ROLIM, 2003).
trajetória, muitas das posturas da sociedade para um
indivíduo com estigma é de tratá-los como se não fosse Segundo dados de junho de 2016 do
humanos, com base nisso sucede-se diversos tipo de Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
discriminações, além disso são construídos teorias (INFOPEN), a população carcerária masculina no
estigmatizando inconscientemente para explicar sua Brasil gira em torno de 726.712 presos. Desse total,
inferioridade com termos específicos como bandido, cerca de 40% são presos provisórios, que não possuem
vagabundo e ex-detento (GOFFMAN, 1988). condenação judicial, sendo mais da metade dessa
população formada por jovens de 18 a 29 anos, de
Tendo em vista isso, o indivíduo que está
classes menos favorecidas, com 64% de negros. Com
sendo estigmatizado pode se sentir inseguro em
isso conseguimos afirmar que a população carcerária
relação de como as pessoas o identificarão e como
brasileira tem classe e cor.
os receberão, causando humilhação e frustação como
citado por Samuel. De acordo com a mesma pesquisa, 89% da
população prisional está em unidades superlotadas:
78% dos estabelecimentos penais têm mais presos que
o número de vagas. Entre os anos de 2000 a 2016 houve
Sistema prisional brasileiro: alguns dados um aumento de 157% na taxa de aprisionamento no
país, em 2000 existiam 137 pessoas presas para cada
Desenvolver um trabalho tendo por foco sujeitos grupo de 100 mil habitantes, em junho de 2016, eram
que, em algum momento de suas vidas, foram encarcerados,
352,6 pessoas presas para cada 100 mil habitantes
passa, portanto, pela compreensão de alguns fatos e dados
conforme dados do INFOPEN (2016).
sobre o universo institucional prisional. Dito de outro
modo, compreender os discursos dos egressos do sistema O estado de São Paulo se mostra um “case”
prisional sobre a sua condição requer um entendimento bastante apropriado a indagações quanto à dinâmica da
sobre a instituição prisão, pois foram nela que esses expansão carcerária, suas causas, seu funcionamento,
seus efeitos. Em 1986, a população carcerária paulista

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era de 24.091 presos e a taxa de encarceramento era de superior à capacidade de acomodação. Direitos básicos
85,1/100 habitantes; em 1996, a população carcerária relacionados à dignidade humana, como a possibilidade
saltava para 66.278 e a taxa de encarceramento, para de higiene, são frontalmente desrespeitados, havendo
194,5/100 mil habitantes (SALLA, 2007). Segundo carência até mesmo de sabonetes, escovas e pastas de
o INFOPEN, em junho de 2016, São Paulo já dente, o que acaba contribuindo para a disseminação
contabilizava uma população de 240.061 presos e uma de diversas doenças (BIONDI, 2010).
taxa de encarceramento de 536,5/100 mil habitantes2.
Dessa forma conseguimos definir que a
Em relação ao número de instituições penais, em 1983
vivência nos presídios traz consequências irreparáveis
o sistema penitenciário paulista dispunha de apenas
na vida do indivíduo, o que acaba não somente se
quatorze unidades; em 1994, já eram 43, e, em maio de
limitando à vida existente no interior da prisão,
2019 contabilizava um total de 173 unidades prisionais,
mas também após a sua libertação. O recluso sofre
sendo 154 unidades masculinas, segundo levantamento
dificuldades em se adaptar à nova realidade, isso em
da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) do
virtude da incorporação da cultura prisional em sua
Estado de São Paulo.
identidade, que muito se diversifica da sociedade
Trata-se com efeito, do maior sistema liberta; a maior das consequências disso é o alto
penitenciário do Brasil e um dos maiores do mundo. índice de reincidência criminal no país. Segundo
O estado de São Paulo, portanto, concentra cerca de dados realizado pela IPEA (2015) cerca de 70% da
33,1% dos presos de todo o país e apresenta uma taxa população carcerária após libertação retornou ao
de encarceramento aproximadamente 60% maior mundo do crime.
que a nacional. Se fosse um país, São Paulo estaria
Ter uma adaptação ao cárcere, significa o
entre os dez que mais enclausuram no mundo, em
mesmo que obter qualificações e atitudes do criminoso
população absoluta e índice carcerário. Exclua-se a
habitual, pois na prisão o detento mais desenvolverá
Rússia (terceiro país que mais encarcera) e a população
uma habilidade criminosa do que a suavizará.
prisional paulista é maior que a de qualquer outro país
europeu. Em termos relativos, São Paulo apresenta
uma taxa de encarceramento três vezes superior à Reflexões finais
do Reino Unido e da Espanha, e quase cinco vezes
superior à taxa da França segundo dados da ICPS
Conforme analisado nas declarações dos
(2018) (GODOI, 2017).
egressos do sistema penal aqui entrevistados, podemos
O funcionamento do sistema carcerário não discernir que muito além da privação de liberdade, a
fornece recursos adequados aos internos, pensando- punição do cárcere acabou violentando o indivíduo
se em sua ressocialização. Muito ouvimos a respeito de diversas maneiras mesmo após a sua liberdade.
das alimentações precárias, alto comércio de drogas
Após esse processo de prisionização
que ronda os presídios de maneira natural. Assim
e desculturação dentro do cárcere, é imensa a
como celas são superlotadas, o número de reclusos é
probabilidade do indivíduo se tornar mais fragmentado

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por meio de várias identidades, que em sua maioria dos reclusos mesmo após a sua libertação, abrindo um
são contraditórias em relação a sua subjetividade. Essa diálogo sobre a trajetória de um egresso que acaba
fragmentação de identidade está vinculada às diversas tornando-se invisível aos olhos da sociedade, que por
formas de relações culturais a que o ser humano é muitas vezes vira as costas para aqueles que perderam
submetido no ambiente que o rodeia (HALL, 2006). sua identidade por um sistema prisional falho em sua
Além disso, por meio dos discursos estrutura.
apresentados, foi possível refletirmos como a sociedade Embora os egressos entrevistados permaneçam
tem recebido e acolhido esse indivíduo, nos levando a como sujeitos estigmatizados vivendo na precariedade
questionar sobre o estigma que eles carregam em suas social, após o acolhimento e o retorno ao mundo
trajetórias, além das próprias dificuldades vivenciadas externo, os mesmos voltaram a ter esperança e
fora e dentro do universo prisional. oportunidades, diminuindo seus rótulos negativos de
Em todas as trajetórias de vida apresentadas, ex-presidiários.
notamos dificuldades de inserção no mercado Por fim, a proposta dessa pesquisa foi
de trabalho formal, tendo em vista a falta de problematizar e dialogar com a trajetória de vida dos
oportunidade para egressos, medo de preconceitos, egressos do sistema penal por meio de seus discursos,
falta de confiança e o alto índice de desemprego no apresentando a importância em refletirmos suas
país, porém ao mesmo tempo em que existiam certos condições como indivíduos inseridos numa sociedade
estigmas sofridos pelos entrevistados, os mesmos que muitas vezes os torna invisíveis.
encontraram amparo em seus laços familiares, os quais Que esta pesquisa venha contribuir e servir
foram fundamentais em suas reintegrações sociais. de instrumento para novas pesquisas relacionadas à
Suas narrativas nos levam a ponderar que temática do sistema prisional brasileiro.
muito mais que importantes ações nas áreas das
políticas públicas e oportunidade de trabalho formal,
o amparo e o acolhimento das pessoas em suas redes
de contato são fundamentais para que os egressos
tenham uma vida longe do universo criminal.
Porém essas são narrativas raras, já que
o histórico de muitos egressos é de desestrutura
familiar, baixa escolaridade e condições econômicas
precárias, o que vem a contribuir facilmente com o
envolvimento criminal, causado, muitas vezes, pela
falta de oportunidades e a sedução de uma vida com
fácil acesso a bens de consumo.
Este trabalho teve como principal objetivo
analisar as consequências do sistema prisional na vida

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redefinição. Cadernos Adenauer, 2000, n1, p.49-71.
XIBERRAS, Martine. As teorias da exclusão: para
uma compreensão do imaginário do desvio. Lisboa:
Instituto Piaget, 1996.

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ARTIGOS

Identidade latino-americana e brasileira:


semelhanças e diferenças
Danilo Espindola Catalano
Graduado em Sociologia e Política pela FESPSP
(danilocatalano95@gmail.com )

Resumo
A partir da tentativa de definição do termo identidade, utilizando-se de uma biografia mínima
para poder explicar concisamente todas as características necessárias para a concretizar a sua
forma que se relacione a sociedade brasileira e latino-americana, para que a partir desta, possa
ser realizada a principal intenção deste trabalho, mostrar, por meio destas características e por
meio de produções culturais, apropriando-se de exemplos de séries de televisão, para um melhor
entendimento da relação dos autores utilizados, apresentar em quais medidas as identidades
brasileira e latino-americana, podem ser semelhantes e se há algum ponto em que elas possam se
tornar uma só, mesmo que não esteja necessariamente presente de forma óbvia.

Palavras-chave
Identidade; América Latina; Brasil; Cultura; Transculturação;

Abstract
From the attempt to define the term identity, using a minimal biography to be able to explain
concisely all the characteristics necessary to achieveit’s form that relates to Brazilian and Latin
American society, so that from this, can be the main intention of this work is to show, through
these characteristics and through cultural productions, appropriating examples of television
series, to better understand the relationship of the authors used, to present in which measures
the Brazilian and Latin-American, may be similar and if there is any point at which they can
become one, even if it is not necessarily present in an obvious way.

Keywords
Identity; LatinAmerica; Brazil; Culture; Transculturation;

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Artigos
Identidade latino-americana e brasileira: semelhanças e diferenças
Danilo Espindola Catalano

1.Introdução Tendo em mente este tipo de reflexão iniciada no


parágrafo anterior, serão buscados ao longo deste
artigo, autores que possam mostrar como este
Este artigo tem a intenção de por meio da
trabalho pensa a identidade, para depois, adentrarmos
definição do conceito de identidade, tentar classificá-
nas suas características tanto para o povo brasileiro
lo e direcioná-lo ao contexto latino-americano,
como para o latino-americano, buscando sempre em
caracterizando está a luz da cultura, que alguns
questão do brasileiro, apresentar o que melhor lhe
autores da bibliografia selecionada possam chegar
caracteriza e dos outros países da América Latina, o
a apresentar, para poder identificar e explicar a sua
que seria mais apresentável e característico de todos
forma, fazendo o mesmo com a brasileira e por
os países que o compõem.
isso marcando uma relação de aproximação ou de
diferenciação, para que se possa entender e perceber Desta forma, apresentando as principais
em que ponto essas se assemelham ou não, por mais semelhanças e diferenças, poderemos entender
que estejam no mesmo território, com a mesma língua minimamente em quais momentos ou características,
ou até mesmo com a mesma religião; apresentando as será possível a inclusão do Brasil ao termo da América
principais características das identidades. Latina, pois muitas das literaturas o separam, por
motivos distintos, que não serão tão bem mostrados
Há alguns argumentos, que tentam justificar
neste artigo, por ele ter seu foco na identidade.
a falta de integração do brasileiro com o resto dá
América Latina, como se estes obstáculos, fossem 2.Identidade
os principais pontos para a não relação devida destas
duas sociedades. Estas são, a diferença da língua, que
Antes de pensarmos as identidades como
Darcy Ribeiro (2010), justifica de modo a dizer que
características que estão nos indivíduos, devemos
a União Ibérica e a grande relação histórica entre
pensar que está forma de pensar nunca foi igual,
os colonizadores da América Latina, os espanhóis e
anteriormente a modernidade, como nos explica Stuart
portugueses, acabam com esta ideia. Outra delas é a
Hall, foi sempre pensada uma algo uno aos sujeitos
falta de violência, que apresenta Leopoldo Zea, sobre
como uma forma unificada, que vendo um sujeito já
a relação da história da independência do Brasil e dos
se saberia a identidade de todos os outros, mas hoje,
outros países, que segundo ele tornaria o Brasil, um
está ideia começará a se fragmentar começando a
país pacífico e diferente de toda a região, o que mais
pensar cada indivíduo separadamente, sendo está
uma vez, não pode ser apresentado como justificativa,
ideia vinda dos novos pensamentos caracterizados
pois muitos intelectuais brasileiros, atuais ou não,
pela modernidade, que não mais, (mas usando como
conseguem mostrar a violência com a qual se dá a
base), pensa os indivíduos como seres dentro de uma
história do Brasil deixa claro, que diferentemente dos
sociedade que os comanda, mas sim com eles sendo
outros países ela está implícita e não explicita.
parte constituinte dela, que sem eles ela não existiria.

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A assim chamada “crise da identidade” é vista Seu aporte para este trabalho se mostra muito
como parte de um processo mais amplo de
importante, por apresentar a identidade como uma
mudança, que está deslocando as estruturas e
processos centrais das sociedades modernas busca incessante, um objetivo de vida que sempre
e abalando os quadros de referência que estará sendo procurado e buscado pelos indivíduos
davam aos indivíduos uma ancoragem estável
no mundo social (HALL, 2011, p.7). sejam eles quais forem, pois, a ideia dela é uma forma
provisória que existe dependente dos momentos e é
Quando pensamos em identidade sempre
este caráter que a torna sempre em movimento, por
vamos diretamente ao fator concreto, isto é, a pensar
isso ela não seria concreta, mas maleável.
que alguém se identifica com um lugar por ter nascido
ali ou por ter família neste lugar, mas isto não é Pelo fato de a identidade ter esse caráter
necessariamente importante, para que possamos ver de estar sempre em movimento, sempre estar se
que um determinado indivíduo se identifique com modificando, ela é fundamentalmente social, por ser
algo, pois ele não só se identifica nacionalmente, um dos motivos para se estabelecer as relações sociais,
como é a forma que se transfere diretamente essa pois é desta forma que os indivíduos conseguem se
ideia concreta apresentada, ele pode se identificar, identificar em um determinado grupo com pessoas
como apresenta o autor Zygmunt Bauman (2011) de que se identificam da mesma forma, desta maneira
maneira a ser algo não visto concretamente, como ser mostrando o lado da identidade como uma definição
homossexual, parte de algum grupo ou até mesmo para a vida em sociedade, ela está nos indivíduos para
sendo parte de algo que um indivíduo acabou de defini-los, para que eles possam responder a pergunta
aprender e viu que pode ser que ele seja desta forma, que coloca Antonio da Costa Ciampa (1989), “quem
é dizer, ele apresenta a ideia de identidade, como parte sou eu?1”, para mostrar que a identificação dos
de “comunidades”, mas não de qualquer comunidade, indivíduos pode chegar a resolver está questão para
mas das “comunidades de ideias”, mostrando que a psicologia social, pois no momento em que o
os indivíduos não se identificam apenas por coisas indivíduo descobre e consegue resolver a está questão,
concretas, mas também, por ideias, por coisas não será o momento que ele vai poder dizer quem ele é e
palpáveis e por isso, segundo ele, ela não seria “dura se apresentar a sociedade desta forma.
como uma rocha”, mas sim liquida , para mostrar
Um exemplo interessante desta ideia que
que ela pode estar em constante mudança, pois os
venho apresentar, é a do enredo de uma série
indivíduos sempre estão em processo continuou
canadense de ficção cientifica do canal SYFY,
de mudança, a cada momento ele se identifica com
conhecida pelo nome de “DarkMatter”, na qual os
alguma coisa.
personagens principais acordam depois de um tempo
A questão da identidade só surge com a em uma câmara criogênica, ficando pôr um tempo
exposição a “comunidades” da segunda “congelados”,(sendo este um procedimento de
categoria – e apenas porque existe mais
de uma ideia para evocar e manter unida a
1 CIAMPA, da Costa, Antonio, Identidade. IN: ─ LANE, Silvia
“comunidade de indivíduos por ideias” a que
T. M. org., CODO, Wanderley org., Psicologia social o homem
se é exposto em nosso mundo de diversidades em desenvolvimento, ─ 8ª edição ─ São Paulo: Editora Brasil-
e policultural (BAUMAN, 2005, p.17). iense, 1989, p.58.

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dormir e estar congelado para não envelhecer); todos monarca, mas o quatro (mesma pessoa), se identifica
acordam deste procedimento, mas não sabem o que como o quarto a ter acordado após o momento que
está acontecendo, pois, suas memórias do passado esqueceram suas memórias.
foram todas apagadas, por isso eles não sabem o que
Outro momento que se pode comentar é o
são e nem nada de suas vidas.
das pessoas que já não conseguem saber quem são
Após um tempo, eles começam a ter uma os personagens da série, não os vendo como os
identidade, mas uma que todos aqueles que os personagens com os nomes de número, mas como
conheciam antes de seus esquecimentos sabem, o que os anteriores, chegando até a chama-los por estes
acaba se concretizando em um fato interessantíssimo, nomes anteriores ou comentando que já não são
que todos não sabem mais quem são os principais, mais os mesmos, isto, porque, como nos apresenta
que não vem mais neles o que eram, isto porque, Ciampa, eles estariam se deparando com um dos
o que eles eram antes de acordar era uma pessoa, fatores importantes para a identidade, que são as
depois de despertar, se tornaram uma outra pessoa relações sociais, um indivíduo se percebe e consegue
totalmente diferente. Um exemplo interessante é o do se reconhecer como tal, dependendo de fenômenos
personagem, que é identificado anteriormente pelo sociais , suas relações estabelecidas o moldam como é,
nome de quatro (eles se deram os nomes por ordem por isso no caso da série, eles não são mais reconhecidos
de que acordaram da câmara criogênica), quando por aqueles que os conheciam anteriormente, pois
coloca de volta as suas lembranças e memorias, (de eles já não tem a mesma identidade e por isso se
antes de ter entrado na câmara), em seu cérebro de sentem perdidos quando falam seus nomes anteriores,
forma futurista, por um computador, voltando a se por não os reconhecerem ou quando comentam de
identificar como, Ryo Tetsuda, um monarca de um acontecimentos passados que eles não lembram,
planeta que estão anos em guerra contra outro planeta. por estes não fazerem mais parte da vida e das suas
identificações dos personagens.
Utilizando-se deste exemplo, podemos usar
e explicar de uma melhor maneira as explicações de Um ponto interessante dos personagens desta
Ciampa sobre a identidade, sendo aquilo que define os série, é a sua rejeição às vidas passadas e sua intenção
indivíduos como tal, mas isto a cada momento, como ferrenha de tentar se redimir por ações que eles não
podemos ver na série, quando os principais acordam, mais aceitam, sendo até repudiadas. Mas mesmo
não conseguem se identificar, sua primeira ação foi assim, estes se usufruem de seu antigo trabalho como
colocar um nome em cada um, um nome simbólico, contrabandistas e assassinos, para acabar de dentro
pois é a ordem em que acordaram e por conseguinte com as grandes corporações que mandam não só no
o primeiro motivo que os identifica com este nome, mundo, mas na galáxia.
isto é, eles mudaram de identificação, antes tinham
O pai se identifica (e é identificado) como
uma anterior que se identificava com outro nome e tal por se encontrar na situação equivalente
se relacionava de outra maneira, pois sua relação com de outros pais (afinal, ele também é filho
o nome era outra, como Ryo Tetsuda, que nasceu um de um pai). Se ele é pai e a mesmice de si
está assegurada, sua identidade de pai está

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construída permanentemente; de fato, ele se Para explicarmos melhor as relações sociais


‘tornou” pai e assim permanecerá enquanto
de forma interna e externa dos indivíduos, podemos
reconhecer e for reconhecida essa identidade,
ou seja, enquanto ela estiver sendo re-posta utilizar dois autores, Norbert Elias em relação a
cotidianamente (CIAMPA, 1989, p.67). “fofoca” e a característica da representação do “eu”
Com este caráter da identidade que se dá apresentada por Erving Goffman (2005), começando
baseando-se perante as relações sociais, podemos fazer pela ideia de inseridos, que se dá por meio da “fofoca”,
uma relação direta entre a questão de elas não serem sendo ela depreciativa, se daria em consequência as
concretas, mas fluidas que se modificam facilmente e pessoas que não estão inseridas no meio, os chamados
a de que elas são fenômenos sociais, que dependem “outsiders”, receberiam estas definições por estar fora
exclusivamente de relações sociais, para que um do grupo, por não se apresentarem desta forma, a
indivíduo possa se identificar e se moldar, sendo assim medida que ele vai convivendo com este grupo, ele
explicado o motivo de a identidade ser algo fluido, que vai entendendo e se moldando aos costumes e formas
pode se modificar a todo momento, como o exemplo, de viver deles, chegando, dependendo do tempo
de Norbert Elias (2000), comentando sobre a vida de de convivência, a se tornar parte dele, deixando
Mozart, mostrando nela que ele teve que mudar o seu de receber a “fofoca” depreciativa e começando a
estilo de ser, devido a sua mudança de cidade, para fazer parte integrante dela, as vezes até passando a
poder se sentir estabelecido ; neste sentido que está o participar, fazendo-a com outros indivíduos que
caráter da identidade que se modifica, no fato de ela estejam a margem da sociedade, isto é, se sentindo
depender das relações individuais e que no exemplo parte deste grupo ou de uma certa forma utilizando-
da vida de Mozart, fica claro este fator, por ele ter nos do conceito de campo3 de Pierre Bourdieu, estaria
que ter feito até uma mudança em sua vida para se fazendo parte e tendo uma posição nas relações sociais
estabelecer nas novas relações sociais da cidade que deste, que seria o grupo, mas que contém suas formas
começará a viver2. especificas de organização, cultura e costumes , estes
que quando o indivíduo antes de estar inserido não faz
Devido a estes exemplos apresentados, se parte dele, mas quando se insere, acaba se identificando
vê necessária, para o entendimento do que seria a da mesma forma que este grupo. “A fofoca, em outras
identidade, separar o “Eu” de suas relações sociais, palavras, não é um fenômeno independente. O que é digno
para depois juntá-los e ver de que forma ocorrem as dele depende das normas e crenças coletivas e das relações
identificações dos seres por meio de suas relações comunitárias” (ELIAS, [2000], p.93).
com o outro, por isso propomos alguns autores, que
Para começar a discussão pensada por
explanam sobre as relações sociais e sobe o “Eu” no
Goffman, devemos pensar que os indivíduos criam
decorrer do trabalho.

3 BOURDIEU, Pierre, A produção da crença contribuição para


uma economia dos bens simbólicos. Disponível em < https://
pt.scribd.com/doc/70619043/BOURDIEU-Pierre-Modos-
2 ELIAS, Norbert, A revolta de Mozart: de Salzburgo a Viena. de-Dominacao-O-Costureiro-e-sua-Grife-a-contribuicao-para-
IN: Mozart, sociologia de um gênio, Rio de Janeiro: Jorge Zahar uma-teoria-da-magia-A-Producao-da-Crenca>, acessado em 18
Ed., 1995. de novembro de 2017.

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representações dependendo do espaço e das diferentes da identidade pessoal de cada indivíduo, é a forma
relações sociais nas quais ele se insere durante a vida, pela qual ele se relaciona com outros e como ele vai se
estas, caso ele não crie, podem ser pensadas por definir, explicando aqui o fato dela ser “concreta ou
outros, como “cínico” ou até mesmo como uma liquida”, como nos diria Bauman.
pessoa sincera, que não cria mascaras para poder
Com este caráter apresentado pelos autores
conviver com outros, mas isto acaba sendo prejudicial
da identidade, podemos agregar a ideia de mudanças
a ele, que não criou uma máscara para se relacionar,
corriqueiras, apresentada por Stuart Hall, relacionando
pois, pode ser que ele não seja aceito por isso, mas isto
ainda mais as questões e apresentando uma relação
ocorre por falta de interesse do indivíduo, que não
cultural as identidades dos indivíduos, dizendo que há
finge ser o que não é, ele só não está interessado em
uma relação nesses dois contextos, pois ela modifica
se relacionar com este público, mas caso o indivíduo
e eles modificam em consequência dela diretamente,
tenha o interesse de se colocar em um grupo, ele
sendo como uma mudança através da estrutura, sendo
cria o que ele chama de “representação”, estas são
assim, pode acrescentar ainda mais o caráter multiverso
conscientes ou inconscientes e se realizam diante de
da identidade, que está sempre em movimento (como
uma atividade dita “fechada”, que são todos os atos
apresentaram os outros autores), dependendo das
que ele vai empregar para esta sua representação , para
relações nas quais o indivíduo está estabelecido e caso
que ele possa ser aceito neste campo e possa conviver
este tenha uma identidade que pareça única pela vida
com as pessoas que nele vivem.
toda, poder-se-ia dizer que ela se parece ser assim, por
Venho usando o termo “representação” para ter tido características parecidas, dizendo que a vida do
me referir a toda atividade de um indivíduo que sujeito, teria sido sempre pelos mesmos meios sociais,
se passa num período caracterizado por sua
presença contínua diante de um grupo particular pois a identificação coerente seria uma “fantasia”,
de observadores e que tem sobre estes alguma por ela ter a relação direta com as multiplicidades
influência (GOFFMAN, 2005, p.29). culturais, suas mudanças culturais, sempre deveria
A partir destes conceitos apresentados, haver mudanças por mais que temporárias.
podemos entender de uma forma sociológica esta
Perante estas relações sociais apresentadas,
característica de mudança da identidade, que nunca
observamos que a identidade tem um caráter
esta estática, mas sempre em movimento, devido as
relacional entre o interior e o exterior, relacionando as
relações sociais, que empregam no indivíduo todos os
relações sociais com o pessoal , sendo ela que torna e
atos comentados, por isso eles tem esta forma, para que
mostra a posição de cada indivíduo dentro do exterior
ele possa pensar individualmente e também, para que
(sociedade, por assim dizer), com seu papel dentro
possa se encaixar em alguma estrutura estabelecida,
dela, para que possa se identificar e mostrar quem ele
seja dentro de uma sociedade estruturada, por assim
é, dizer como se apresentar, sendo desta forma que ele
dizer em algum “campo”, (termo usado e definido por
se moldaria pessoalmente, para poder mostrar quem
Bourdieu), que nela opere ou como no caso da vida
seria o seu verdadeiro “eu”, que não é concreto, mas
de Mozart, uma mudança na sociedade em que ele
sim relacionado aos seus meios de relacionamento, é
vive; estes fatores são fundamentais para a mudança

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dizer, como ele definirá o seu eu não é algo concreto, apenas deixe ali nas redes sociais, este é outro meio
que será único e se tornará ele que é sempre igual e para as relações sociais apresentadas nesta definição,
não importa em que relação está inserido, não, isto a apenas outro lugar em que o indivíduo se molda
é muito mais complexo, este “eu”, está sempre em para poder ser aceito nas diferentes comunidades nas
movimento e procurando se moldar aos diferentes quais ele quer entrar por ter gostos em comum com as
meios e culturas da sociedade, para poder, não só ser pessoas que ali estão; assim, a internet, por conter este
aceito, mas poder ter relações sociais nos diferentes caráter, é um outro lugar que nos dias de hoje, está na
momentos da vida em grupo. vida dos indivíduos e permeia de forma direta na sua
identidade como pessoa, seja de forma a ter relações
Não podemos esquecer que com os termos
nela ou de ser algo que ele desejasse ser e a vida em
de Bauman, “modernidade liquida” ou por assim
grupo pessoal o impedisse, ela dá a oportunidade para
dizer a “pós-modernidade”, a tecnologia é um
que estas identidades sejam muito mais maleáveis até
ponto importante para se pensar na forma maleável
mesmo com os perfis falsos, que podem ser um meio
da identidade, pois ela dá mais liberdade para que
para eles serem aquilo que não querem que as pessoas
os indivíduos possam ser algo que não são no
com as quais já está estabelecida as relações possam
mundo real, dentro da internet, criando os famosos
vê-las e tenha a liberdade de ser outra pessoa, quando
“avatares”, que são uma ideia do que a pessoa pensa
esteja neste perfil.
que é, a forma que ela se identifica e quer que os
outros a identifiquem, não sendo ela realmente como Em se tratando da definição do “eu”,
é pessoalmente no que chamaríamos aqui de “mundo começasse com a confiança da existência, que são
real”, no encontro cara a cara. O que facilita muito é passadas desde as primeiras vivencias da criança,
a questão das fotos publicadas, publicamos aquilo que sendo desta forma e com as relações com aqueles
queremos que os outros vejam de nós, se algo não que cuidam dela, que começam a ser diferenciados os
nos agrada, ninguém que nos conhece apenas pela pontos do “eu” com o “mim”, como podemos ver
internet irá ver, nós criamos um filtro em uma nova com o exemplo da série (apresentado anteriormente),
relação social, que facilita muito mais que esses filtros que as novas experiências começam a definir um
sejam impostos, criando uma forma perfeita do que novo “eu”, que se relacionam com novos seres e por
seria a pessoa com relações sociais nas redes sociais isso eles se tornam outras pessoas, pois como nos
que muitas vezes não se iguala ao que ela é realmente diz Anthony Giddens (2002), é com a confiança e a
no “mundo real”, o que teria feito em consequência, criatividade, que se figura a criação do “eu” e do “não-
mudar as formar de “relações sociais”, pois a internet eu”, por isso, que eles começam a se definir, por haver
as tornou muito mais fluidas do que eram antigamente. novas criações e a confiança naqueles que o rodeiam
em sua realidade, que é a rotina que impõe e os meios
Por mais que seja um meio muito mais fácil de
nos quais eles vivem e como em se tratando da série,
relacionar, que contém um filtro muito bem protegido
os personagens todos estão criando um novo “eu”,
para que a pessoa possa ser o que quiser, cria um
estes se tornam o que o meio os fazem ser, por isso
outro “eu”, que possa ser um “eu” utópico, que ela
todos começam a ter uma boa relação, que muitas

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vezes se difere muito da anterior, pois suas vidas identifica independente da forma na qual o é, por isso,
passadas, não foram entre eles, mas de outra forma está definição de gênero é muito mais que objeto, mas
e em outros lugares, assim como mostra algumas é também uma forma psicológica criada pelo “eu”.
memorias escondidas durante as temporadas; o que
Assim independente das relações sociais
está relacionado com a ideia de a existência ser um
é como podemos definir o “eu”, como a maneira
modo de estar no mundo, dependendo apenas da
introjetada de cada indivíduo de relacionar-se com
realidade, como observado e da sua vida cotidiana,
aqueles que o cuidavam quando criança ou pelo meio
exatamente por isso, ocorre o enredo apresentado da
no qual ele se estabelece, que o define como tal, é a
vida dos personagens da série.
interdependência entre o que o indivíduo cria como
A auto-identidade, em outras palavras, não seu e suas relações estabelecidas em sua realidade de
é algo simplesmente apresentado, como vida, que o definem, assim como perceptível na série,
resultado das continuidades do sistema
de ação do indivíduo, mas algo que deve com a qual agora eles são todos “bonzinhos”, porque
ser criado e sustentado continuamente é assim que as suas relações estão sendo mantidas,
nas atividades reflexivas do indivíduo
questão totalmente inversa de antes de terem acordado,
(GIDDENS, 2002, p.54).
na qual suas relações não os definiam assim, mas como
Em uma caracterização do “eu”, há a caçadores de recompensas e assassinos a sangue frio.
necessidade da existência da auto-identidade, que
é uma forma constante de uma reflexão própria Como veremos no último capítulo, creio
que é o momento de conhecermos que toda
do indivíduo; trazendo também a uma maneira de identidade é uma construção simbólica (a
característica da identidade, como uma concepção meu ver necessário), o que elimina portanto
do tempo e espaço, sendo isso e mais a forma do as dúvidas sobre a veracidade ou a falsidade
do que é produzido. Dito de outra forma,
indivíduo, a forma da auto-identidade. A identidade não existe uma identidade autêntica, mas
em si, para Giddens, depende não apenas desta uma pluralidade de identidades, construídas
por diferentes grupos sociais em diferentes
relação com os outros, ou das relações sociais, mas
momentos históricos (ORTIZ, 1986, p.8).
também da capacidade de se manter uma narrativa
particular, o que constata a forma na qual discutimos Relacionando a identidade à cultura, podemos
até agora da identidade, como uma relação constante perceber que as representações simbólicas, seriam
entre as relações sociais do indivíduo e nas formas uma das principais formas de identificá-la, por ser
particulares que ele mesmo caracteriza neste meio, de alguma forma, a maneira com a qual ela pode
mas estas criadas individualmente. ser identificada, como uma expressão advinda das
relações sociais estabelecidas em uma sociedade, por
A relação com o corpo é muito importante isso as transformações dela ultrapassam a história
para a definição do ”eu”, não só por ser uma forma e sobre tudo as relações com as culturas, pela sua
biológica, dependendo do gênero com o qual o definição de transculturação, que é a grosso modo, as
indivíduo se identifica isto que não tem muito a ver apropriações e “misturas” de diferentes culturas em
com o biológico, mas com a forma com a qual ele se uma, como elas se transformam constantemente.

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Portando, podemos concluir que a identidade identidade da região, apresentando os pontos, que eles
é algo que permeia as relações sociais e o pessoal julgam ser mais visíveis de forma generalizada por
de cada indivíduo, sua definição do “eu”, são todos os países hispano-americanos e o brasileiro;
interdependentes, não podem ser moldados sem estes será desta forma, mas separando o povo brasileiro,
dois fatores, por isso ela não é concreta, ou por assim que será feita a análise no decorrer deste capítulo, sem
dizer, por isso ela é liquida, quase impossível de se pensar em nações, mas sim em seu conjunto, como
denominar certamente qual a identidade especifica de América Latina.
algum indivíduo, por ser algo que se define nele, mas
Por ejemplo, aquellas [políticas] destinadas
que depende do meio em que ele está, relacionando-a a ‘mejorar la raza’ mediante la inmigración
tudo que há em uma sociedade, podendo ser a europea, los avances sobre territorios
mudança da cultura ou até mesmo da ordem dela, em indígenas que hasta entonces habían
permanecido bajo una relativa autonomía,
relação a modernidade e a pós-modernidade, todas los consiguientes procesos de imposición de
estas mudanças do todo da sociedade, são questões e un arbitrario cultural ‘nacional’ tendiente a la
homogeneización de la población, la difusión
fatores, que interferem na identificação pessoal de cada
de un modelo de educación científica
indivíduo, por isso não é concreto, além de depender (MORENO, 2007, p.162).
disso, depende de onde ele está, mas também, caberá
Como é, por exemplo, neste caso da política
a ele estas mudanças, observando e vendo como se
de branqueamento da população, sendo uma forma de
relacionar e é este o caráter pessoal que sem a relação
deixar de lado o que se julgaria “inferior”, podemos
com meio no qual este está inserido, não seria possível
apresentar a mudança de que no Brasil seria mais
a identificação pessoal do “eu”, que se modifica
aparente, não que não haja, mas são mais aparentes
dependendo do momento do “campo” no qual eles se
os negros e no resto da América Latina os indígenas,
inserem ou em suas mudanças de sociedade, depende
seriam assim, subjugadas por terem sido exploradas e
do meio em que estão interagindo.
escravizadas pelos brancos ou por assim dizer, pelos
3. Identidade latino-americana e brasileira, europeus colonizadores. Está é uma característica que
suas semelhanças e diferenças vemos presente no povo brasileiro e em grande medida
na maioria dos países que compõem a América Latina.

Inicialmente, devemos pensar em uma ideia Seria dizer, que os povos escravizados e
de identidade latino-americana, pois, por conta de subjugados, estão em diferença, sendo em uma grande
a identidade ter uma definição maleável, que se maioria dos países hispano-americanos, os indígenas e
modifica a todo momento e que se vê como uma no Brasil, principalmente o negro, mesmo que alguns
característica de cada Estado-nação de forma distinta indígenas tenham sido escravizados, a principal mão de
para cada um em especifico, tornando extremamente obra brasileira, era a negra, com a diferença da Colômbia,
complicado relacionar estas ao Brasil, por isso, como que tinha em Cartagena das Índias, o principal fluxo
fazem autores como Octavio Ianni (1987) e Héctor negreiro da história da América do Sul. Não exclui o fato
Moreno (2007), que fazem uma caracterização de uma

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Identidade latino-americana e brasileira: semelhanças e diferenças
Danilo Espindola Catalano

de que os povos excluídos e pouco valorizados são por Pelo ponto apresentado, desta criação com base
toda a América Latina, o negro e o indígena. de criações já existentes, apropriadas e transformadas
para o uso do povo latino-americanos, Richard Morse
A partir da definição do conceito de
(2011), apresenta a ideia do “ajiaco”, que é uma sopa
identidade, podemos seguir, tentando apresentar
cubana, com muitos ingredientes que acabam se
algumas diferenças e semelhanças nas identidades
misturando e não se percebendo um sabor especifico;
latino-americana e brasileira, começando por defini-
ele usa Leopoldo Zea como base para criar este
las por meio dos dois principais autores usados neste
conceito ou exemplo, dizendo que a cultura, as criações
trabalho: Leopoldo Zea e Renato Ortiz (1986).
culturais e intelectuais, seriam um grande “ajiaco”, pois
Para podermos falar de algumas características ela não tem uma forma definida ou por assim dizer
importantes observadas em grande parte dos países um “sabor” especifico e está sempre em mudança em
que compõem a América Latina, será necessário movimento sem se saber bem o que ela é.
apresentar o filosofo mexicano, Leopoldo Zea, que
Seriam esses os pontos principais para a
caracteriza a identidade latino-americana como uma
criação da identidade latino-americana, também como
criação feita pelo que já existe, pois ele apresenta
uma forma de esquecer o passado, deixando de lado
tal definição a luz da relação com os intelectuais do
ele, para poder sempre pensar no presente e o futuro,
continente, estes que muitas vezes, tem seus conceitos
como um forma que os líderes nacionais da época das
criados em relação e com base em temas europeus,
diferentes independências teriam criado para dizer
como por exemplo, os intelectuais brasileiros
que estariam de olho em um futuro, que para Zea
apresentados por Jessé de Souza, no livro “A tolice
e Morse, ainda está por chegar, deixando de lado, a
da inteligência brasileira”, que apresenta várias
partir deles, os criollos4 o passado de uma nação ou
observações e interpretações sobre o Brasil, sua
melhor de um território, que brutalmente tratou os
cultura e povo, com visões estrangeiras, apropriadas
pré-colombianos.
por eles; é neste ponto que Zea tenta se explicar,
sobre as criações intelectuais latino-americanos, por Um ponto importante, que Leopoldo Zea
não ter havido na América Latina o mesmo que acaba investigando em uma de suas obras, é o fato de
houve, por exemplo, na Europa, com o Renascimento que as nações recentemente criadas e independentes
e o Iluminismo, como “revoluções intelectuais”, que da América Latina, (incluindo neste caso o Brasil),
mudaram a forma de se ver o mundo, estas que no começou com um governo totalmente positivista,
caso os latino-americanos apenas se apropriaram. sendo a ideologia mais comum entre as políticas
nacionais, por conta de sua fácil utilização e de uma
O ajiaco nunca fica pronto, muda forma que era nascente sociologicamente, permeando
constantemente com a adição de novos os ideais oligárquicos de uma pequena elite dominante,
ingredientes, não tem um núcleo de sabor e
substância, e varia seu gosto e consistência
conforme é colhido na superfície ou no 4 Pessoa que tem pais vindos da Europa, mas nasceu em ter-
ritório americano; termo usado para diferenciar os “puros” eu-
fundo da panela (MORSE, 2011, p.91). ropeus dos “impuros”.

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que se inseria no poder, “excluindo” o resto da dando uma ilusão de práticas culturais nacionais com
população que em sua grande maioria eram escravos. a intenção de “eliminar” ou transparecer, que elas
nunca existiram.
A identidade brasileira nasce devido a
diferentes símbolos, pois como diz Renato Ortiz Podemos perceber algumas semelhanças
(1986), “a identidade é uma comunidade de expressões ao apresentar os pontos principais das identidades
simbólicas”, que se relacionam para formar e latino-americanas e brasileiras, como o sentido de
caracterizar uma determinada sociedade; a brasileira esquecer o passado e criar uma nova nação, que não
se criou com a relação de muitos intelectuais e do tenha a ver com o que aconteceu, seja a escravidão (no
mito das três raças, como forma da criação nacional, caso do Brasil, que tenta eliminar, dizendo que não há
um mito que une os brancos, negros e indígenas violência no país e portando não há racismo), junto
em um só, mas que na verdade, seria para esconder com a de que não houve uma dominação por parte
o negro e o indígena da criação de uma identidade dos criollos aos indígenas da América, a diferença está
brasileira, pois acaba se prevalecendo o branco, apenas em que um esconde sua relação de violência
tornando todas aquelas simbologias multiculturais para com o negro e o outro com o pré-colombiano,
do Brasil em questão nacional e não como diferentes mas isso não exclui que os dois fizeram o mesmo a
expressões culturais. Este era defendido por muitos uma etnia diferente.
intelectuais, como analisa até mesmo Jessé de Souza
Por mais que haja uma diferença de que as
em uma entrevista ao Centro de Estudos Estratégicos
produções intelectuais brasileiras tenham sido ponto
da Fiocruz5, mas ele diz mais como um sentido de
importante para a criação da nação por uma pequena
criar uma farsa a população, questão que pode ser,
parte da população, não se pode negar que o caráter
pelo sentido de que a elite intelectual tentou justificar
de criações destas a partir de algum ponto europeu
muita coisa que a elite brasileira fazia, mas mesmo
não tenha sido fundamental para elas, como o dos
assim, não se pode tentar desqualificar toda produção
latino-americanos, pois a maioria estudou fora do país
cientifica que tenta entender o Brasil, mas tentar
e teve influencias de vários pensamentos europeus,
entende-la pelas sua intenção, para poder perceber o
assim como os dos outros países da América Latina,
seu motivo e como ela foi criada.
por mais que estes tenham tido universidades muito
As intenções com as quais os conceitos para antes do que o Brasil.
entender a identidade nacional brasileira ou por
assim de se entender o Brasil, são aproximadas entre
a definição de Renato Ortiz e Jessé de Souza, como
criações intelectuais para uma minoria, que podemos
dizer, para uma elite, que acaba deixando de lado
as outras culturas, como se elas fossem suas, assim

5 http://cee.fiocruz.br/?q=jesse-de-souza-identidade-do-
brasileiro-e-fruto-de-tres-mentiras-contadas-pela-elite.

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4.Considerações finais se de autores que puderam mostrar um pouco estes


pontos, necessários para explanar sobre neste artigo.

Por mais que a definição de identidade seja Assim, podemos concluir, as considerações
“maleável” e não tendo uma forma única para explica- apresentadas, para mostrar que há diferenças entre
la de forma que possamos dizer que seja de uma forma as duas identidades apresentadas, mas que suas
ou de outra, o presente artigo, mostra está de uma semelhanças, mostram uma aproximação entre elas,
forma a poder explicar as suas semelhanças e diferenças devido a suas características, que marcam uma possível
a partir de algumas características encontradas, sem mescla entre estas, podendo minimamente incluir ou
pensar em suas transformações históricas, pois pelo menos, poder fazer do Brasil, mais uma nação
desta forma, tornar-se-ia impossível apresentar as que está implicitamente na definição de América
suas diferenças e semelhanças relacionadas entre a Latina, que muitos autores, acabaram separando, mas
sociedade brasileira e a latino-americana. que em grande medida, não comporia esta categoria,
mas sim as de hispano-américa e luso-américa, por
Os autores estrangeiros apresentados e as isso, se torna importante tal demonstração, apesar de
características da identidade latino-americana, que haver diferenças, pois qualquer país que esteja incluso
possam parecer que são de apenas um único lugar a definição, terá semelhanças e diferenças, mas que
especificam do continente, foram minuciosamente mesmo assim, possa minimamente, fazer parte.
escolhidos de forma não a apresentar somente os
Estados-nação, mas por serem, estes exemplos, os
que mais pudessem abranger de forma coerente
características que se possam perceber não somente
em um país; é dizer, não foram características
apresentadas ao léu, mas que possam ser vistas na

maioria das nações latino-americanas.

A ideia de América Latina, aqui, foi buscada


como uma definição própria para poder marcar tais
apresentações, pois devido às diferentes nações que
a compõe seria improvável defini-la como única,
questão, que é buscada por vários autores através
principalmente do século XX, estes que tentamos
suprir minimamente para o presente artigo.

Pudemos de alguma forma, minimamente,


apresentar algumas semelhanças e diferenças entre as
identidades brasileira e latino-americana, utilizando-

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ARTIGOS

A construção da subordinação
feminina e seu impacto na
exploração do tráfico de mulheres
Juliana Gomes da Silva
Graduada em Direito pela Mackenzie
(julianagommes1@gmail.com )

Resumo
O objetivo do presente artigo é uma reflexão sobre o fenômeno tráfico de mulheres e sua
relação com a construção social de gênero, que desencadeia na submissão da mulher. Articulam-
se no corpo deste estudo os desdobramentos sociais que levam as mulheres a figurarem como
principais vítimas na exploração do tráfico. Este crime constitui uma das principais consequências
de violações de direitos humanos, e tem suas origens enraizadas na desigualdade social-
econômica, e também na ausência de possibilidades para realização de sonhos pessoais. Para a
presente investigação, adota-se o método qualitativo de análise documental de fontes primárias,
que consistem em artigos do Código Penal brasileiro. Como fontes secundárias foi utilizada a
doutrina sociológica, por meio de livros e teses de doutorado, bem como artigos publicados.
A pesquisa está organizada em três partes, que estão interconectadas, proporcionando um
entendimento amplo da matéria.

Palavras-chave
Tráfico de mulheres; Gênero; Submissão; Desigualdade.

Abstract
This article’s objective is a reflection on the women’s trafficking phenomenon and its
relationship with the social construction of gender, which triggers in women’s submission. It
articulates in the body of this study the social unfolding that lead women to be the main victims
in the exploitation of trafficking. This crime is one of the main consequences of violations of
human rights, and its origins are rooted in social-economic inequality, and also in the absence
of possibilities for personal dreams. For the present investigation, the qualitative method of
documentary analysis of primary sources, which consist of articles of the Brazilian Penal
Code, is adopted. As secondary sources the sociological doctrine was used, through books and
doctoral theses, as well as published articles. The research is organized in three parts, which are
interconnected, providing a broad understanding of the matter.

Keywords
WomenTraffic; Genre; Submission; Inequality.

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Artigos
A construção da subordinação feminina e seu impacto na exploração do tráfico de mulheres
Juliana Gomes da Silva

INTRODUÇÃO 2000, entrou em vigor internacional em 2003 e foi


ratificado pelo Brasil em 2004.
Esse artigo pretende analisar a construção da
subordinação feminina e seu impacto na exploração Tal instrumento contém uma gama
do tráfico de mulheres a partir de uma perspectiva de diferenças em comparação a instrumentos
da estruturação do gênero e da objetificação do formulados anteriormente, principalmente no que
corpo da mulher. diz respeito ao conceito de tráfico de pessoas,
traçando, também, diretrizes importantes sobre a
Nos últimos anos, a discussão a respeito
questão do consentimento da vítima.
do tráfico de mulheres vem ocupando um
crescente espaço no debate público, nas agendas Existe uma posição que considera a descaracterização
governamentais e na sociedade civil organizada, do crime de tráfico para fins de exploração sexual,
principalmente dentro do movimento feminista. na hipótese em que a vítima consente em ir para o
exterior, nos casos em que ela sabe que irá trabalhar
O tráfico internacional de pessoas não é um como prostituta. A posição dominante, por sua vez, tem
fenômeno novo e também não se pode dizer que seja sido pela irrelevância do consentimento, eis que, na
consequência direta da globalização. Em resumo, se maioria das vezes, esse consentimento é viciado pelas
trata de uma atividade criminosa desde sua origem, falsas promessas de emprego e qualidade de vida, e
cujos primeiros sinais remontam na Antiguidade, pela pouca percepção da traficada de sua situação de

com povos gregos e romanos que traficavam seres vítima A problemática do tráfico de mulheres possui

humanos para fins de obtenção de prisioneiros de raízes bem profundas. Apresenta-se como um crime
guerra (ARY apud GIRODANI, 1984, p. 186). invisível, de difícil detecção.
Posteriormente, o fenômeno foi marcado pelo Nesta pesquisa, o foco será na reflexão
surgimento do Tráfico negreiro, que é caracterizado sobre o gênero como um dos pilares que sustentam
como base do capitalismo mercantil (VALENTIM, o mercado do tráfico. Será feita uma análise da
1991, p.293), o que, mais à frente, evoluiu para o construção social do gênero e sua implicação no
denominado Tráfico de Escravas Brancas. papel da mulher. Por meio disso, demonstra-se
Assim, é importante mencionar que o debate e que a objetificação do corpo da mulher e a sua
a repressão a este crime têm-se realizado no processo subordinação perante o sexo masculino decorrem
de implementação do mais atual instrumento em função de uma imposição social construída e
legal internacional relativo ao tráfico de pessoas, o que varia de cultura para cultura.
Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas O trabalho se divide em três partes. No
contra o Crime Organizado Transnacional relativo primeiro momento, analisa-se o termo gênero
à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de buscando demonstrar a sua construção social, que
Pessoas, em especial mulheres e crianças, conhecido muda dependendo da sociedade analisada. Em
como Protocolo de Palermo que, formulado em seguida, será abordada a subordinação da mulher
em decorrência da desigualdade de gênero. Por

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A construção da subordinação feminina e seu impacto na exploração do tráfico de mulheres
Juliana Gomes da Silva

último, será feita uma relação entre a construção da de “mulher” que a sociedade a obriga. A fêmea
subordinação do corpo feminino e seu impacto no nasce e, assim, em sua concepção são constituídas
mercado do tráfico de mulheres. e impostas pela sociedade obrigações e deveres a
serem seguidos pela mesma como uma forma de
1.1 Gênero: uma construção social
estruturação da humanidade.
O termo gênero foi construído ao longo
A construção do ideal social de “mulher”
do tempo, sendo elaborado e reformulado em
é imposta à fêmea desde a sua infância, fase
momentos específicos da história das teorias sociais
em que já sofre com repressões e mutilações de
sobre a “diferença sexual”, tendo sido inovador em
suas vontades genuínas. Na juventude, a fêmea
diversos aspectos. (PISCITELLI, 2009, p. 123).
é limitada a passividade, ao ato da espera de seu
O conceito de gênero foi introduzido destino fatal: o macho. A mulher cresce, portanto,
por Robert Stoller no Congresso Psicanalítico convencida da superioridade viril. O homem, por
Internacional em Estocolmo, em 1963, quando tratou sua vez, também “espera” por ela, mas será apenas
do modelo da identidade de gênero (HARAWAY,2004, um elemento de sua vida que não resume seu
p. 22). Em seu estudo, Robert Stoller entendeu que os destino (BEAUVOIR, 1967, p. 66).
indivíduos, ao nascer, são definidos como meninas
O casamento para a fêmea aparece como
ou meninos a partir de suas características biológicas,
um ideal social para sua “emancipação” no mundo.
especificamente pelas genitais.
Assim aduz Beauvoir:
Ocorre que a maneira de se comportar como
O casamento não é apenas uma carreira
homem ou mulher não provem da diferenciação honrosa e menos cansativa do que muitas
dessas características, mas sim de imposições outras: só ele permite à mulher atingir a
sua dignidade social integral e realizar-se
e ou aprendizados culturais, que podem mudar
sexualmente como amante e mãe. É sob
conforme o lugar, a classe social e o momento esse aspecto que os que a cercam encaram
histórico (PISCITELLI, 2009, p. 124). Na era atual seu futuro e que ela própria o encara
(BEAUVOIR, 1967, p. 67).
ser mulher tem um sentido diferente do que tinha
no século XIX, época que a educação das mulheres O termo “mulher” passou a ser utilizado como
se restringia às atividades que fossem úteis no a denotação de uma identidade comum, tornando-
ambiente doméstico, desprovidas, portanto, de valor se uma palavra com um animus problemático,
no mercado de trabalho. equiparando-se a um ponto de contestação,
uma causa de ansiedade. Assim, se alguém “é”
Neste aspecto, Simone de Beauvoir, afirma
mulher, certamente este alguém não é “só” mulher
que “Ninguém nasce mulher, tonar-se mulher”
(BUTLER, 2003, p. 20), o que significa que o
(BEAUVOIR, 1967, p. 9), O que a seguinte passagem
gênero muitas vezes não se constituiu da maneira
traduz é a ideia de que não existe um destino, uma
coerente com cada sociedade. Ao contrário disso,
premeditação para que a fêmea assuma o papel
segue, muitas das vezes, imposições culturais,

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raciais, étnicas, classistas, que não demonstram O Relatório de Desigualdade Global de


conformidade com a identidade que de fato as Gênero de 20172, publicado pelo Fórum Econômico
mulheres possuem em sua essência. Mundial, no subíndice “Empoderamento Político”,
foi constatado que o Brasil caiu da 86ª posição
Necessário ressaltar que existe uma divisão
para 110ª em relação ao relatório do ano anterior,
introduzida entre sexo e gênero. Se o gênero é
de forma que dos 513 deputados federais, apenas
resultado de significados culturais assumidos pelo
51 são mulheres. No Senado, elas representam 13
corpo sexuado, não se pode afirmar, portanto, que
das 81 cadeiras, o que evidencia o ritmo lento do
ele seja fruto de um sexo desta ou daquela maneira.
progresso econômico, político, social rumo a uma
Assim, a diferenciação entre sexo e gênero sugere
sociedade igualitária para os gêneros.
uma descontinuidade radical entre corpos sexuados
e gêneros construídos em formatos sociais e culturais Essas noções e diferenciações entre os
(BUTLER, 2003, p. 24). gêneros masculino e feminino construídas ao longo
do tempo apresentam algumas teorias acerca de
A desigualdade entre os sexos implica em
sua estruturação. A teoria social, objeto de estudo
diferenciações culturais e sociais entre homens
do presente trabalho, fundamenta-se no conceito de
e mulheres, culminando em um uma distinção
que a diferença entre os gêneros supracitados é o
desigual entre os gêneros. Entre as décadas
norteador universal de diferenciação e classificação.
de 1920 e 1930, por exemplo, as leis eram
De acordo com essa teoria, em todos os grupos,
amplamente diferentes para homens e mulheres,
as diferenças entre o que é tido como feminino e
época em que só os homens podiam votar, ter
masculino norteiam as personalidades e as tarefas
acesso à educação e possuir bens.
consideradas apropriadas para homens e mulheres.
Atualmente, ainda que as mulheres (PISCITELLI, 2009, p. 127)
venham atingindo certa independência em
Com base nessa teoria, foram formuladas
comparação ao século passado, a desigualdade
ideias que demonstram a flexibilidade e variação
ainda é evidente no que concerne principalmente
cultural da distinção do que é tido como masculino e
à sua inserção no mercado de trabalho e na
feminino, provando que a divisão de tarefas imposta
política, de forma que, no Brasil, atualmente,
por cada sociedade não são absolutas. Como exemplo,
ainda conta com menos de 10% de mulheres
tem-se a sociedade indígena em que a atividade de
tanto no legislativo, quanto no executivo1.
tear é vista ora como feminina ora como masculina.
Não há nada naturalmente feminino ou masculino
(PISCITELLI, 2009, p. 127).

1 Agência Brasil. Brasil ocupa 115º lugar em ranking de mulheres 2 Relatório de Desigualdade Global de Gênero de 2017.Dis-
na política. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/ ponível em: <http://cite.gov.pt/pt/destaques/complementos-
politica/noticia/2017-03/brasil-ocupa-115o-lugar-em-ranking- Destqs2/WEF_GGGR_2017.pdf> Acesso em: 12 de março de
de-mulheres-na-politica> Acesso em: 12 de março de 2019. 2019.

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Também neste sentido, a autora Margaret como consequências aspectos drásticos muito além
Mead realizou uma pesquisa entre os povos que daqueles relativos à sua autoimagem, levando a sua
ocupavam a Nova Guiné, fazendo uma comparação subordinação em relação ao homem e favorecendo,
entre os papeis sociais de homens e mulheres. Relatou portanto, a expansão da dominação masculina.
em sua obra que as atividades desempenhadas
1.2 A histórica desigualdade de gênero: a
por homens e mulheres no provo Tchambuli eram
subordinação feminina
consideradas atípicas e fora do comum sob a ótica
da cultura ocidental. Neste povoado, os homens são Simone de Beauvoir considerava certos
ligados à arte em nível maior do que as mulheres. aspectos como sendo os principais para a construção
Cada homem é um artista, praticando a dança, a da dominação masculina sobre a mulher, sendo estes
costura em tecido, a pintura, flauta, dentre outros, impedimentos concretos para que esta alcançasse
apresentando uma personalidade mais emocional sua autonomia como: a educação, que preparava as
e afetiva, ao mesmo tempo em que as mulheres, meninas para agradar os homens para o casamento
por outro lado, praticavam a arte com muito menos e a maternidade; o caráter opressivo do matrimônio
frequência, limitadas a pinturas de algumas cestas e para as mulheres; a falta de liberdade no que concerne
fazendo parte de alguns grupos de dança, possuindo à maternidade, na medida em que não existiam
uma personalidade dirigente, dominadora e métodos anticoncepcionais que permitissem a
impessoal (MEAD, 1973, p. 273-277). escolha de ser mãe ou não; a existência de uma
maior liberdade sexual para o homem e a falta de
Como afirmado anteriormente, as pesquisas
trabalhos e profissões dignas e bem remuneradas
se contrapõem ao que é construído culturalmente
que permitissem a sua independência financeira
na sociedade ocidental, na medida em que a
(PISCITELLI apud BEAUVOIR, 2009, p. 131).
sociedade americana pressupõe que as mulheres
são naturalmente mais dóceis, sensíveis e fracas Nasce a partir dessa perspectiva o termo
em comparação aos homens. Este estudo de “patriarcado”, sendo este caracterizado por um
Mead foi revolucionário ao demonstrar que essas sistema social em que a diferença sexual serve
considerações não são fixas, mas sim construídas como base para a opressão e domínio do homem
desde que uma criança é concebida. sobre a mulher. Em resumo, o poder patriarcal
é caracterizado pelo controle do homem sobre o
Tem-se que é comumente visto na sociedade
corpo da mulher, para fins reprodutivos e sexuais
as posições do homem e da mulher. Enquanto que
(PISCITELLI, 2009, p. 132).
por um lado o homem representa hoje o positivo
e o neutro, isto é, o masculino e o ser humano, a A dominação de gênero decorre, muitas
mulher, de modo contrário, representa o negativo vezes, de elementos incorporados ainda que de
(BEAVOUIR, 1967, p. 167). forma inconsciente, que acabam por ressaltar a
“superioridade” masculina. Ou seja, a sociedade
Essa construção social da imagem da
desenvolve apego a certos modos de pensamento de
mulher como representante do polo negativo tem

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A construção da subordinação feminina e seu impacto na exploração do tráfico de mulheres
Juliana Gomes da Silva

natureza masculina e desigual, sendo eles próprios Assim, a definição social dos órgãos
produtos da dominação, imediatamente revestidos sexuais é muito mais do que um simples registro de
de certa significação social, como, por exemplo, o propriedades naturais do homem ou da mulher, sendo
pensamento primário da movimentação para o alto, um produto de uma construção efetuada acerca de
sendo associado ao masculino, como a ereção ou a certas diferenças, ou do obscurecimento de certas
posição sexual superior no ato sexual relacionados semelhanças, como, por exemplo, a representação da
ao homem (BOURDIEU, 1998, p. 16). vagina como um falo invertido (BOURDIEU, 1998,
p. 23). O princípio masculino acaba sendo tomado
Pierre Bourdieu afirma, também, que a força
como medida de todas as coisas, enquanto que a
particular masculina sobre a mulher é originária
representação feminina é resumida à submissão e à
de uma ideia de natureza biológica, que é, por sua
imagem da vagina como órgão “vazio”, órgão este
vez, ela própria uma construção social naturalizada
que é socialmente constituído como objeto sagrado
(BOURDIEU, 1998, p. 32). O autor sustenta que
e submetido a regras estritas de acesso.
a biologia e corpo seriam os espaços em que as
desigualdades entre os sexos, no caso na ideia de A ideia da vagina como um tabu resulta na
dominação masculina, seriam naturalizadas. idealização de tal órgão como fetiche, sendo tratada
como um segredo, segredo este que o comércio do
Nesta tese também se relaciona o
sexo passou a se apropriar para garantia do lucro
“falocentrismo”, sendo este a construção cultural da
(BOURDIEU, 1998, p. 26). Assim, nas palavras de
ereção masculina como dominante biologicamente
Pierre Bourdieu:
e socialmente; é uma vocação viril; o orgulho fálico
concedido a todos os homens por herdar seu órgão Ao fazer intervir o dinheiro, certo erotismo
genital, sendo este a representatividade da sua força masculino associa a busca do gozo ao
exercício brutal do poder sobre os corpos
brutal em dominância da fêmea, que, por outro lado, reduzidos ao estado de objetos e ao sacrilégio
representa o negativo em razão da ideia previamente que consiste em transgredir a lei segundo
a qual o corpo (como o sangue) não pode
estabelecida em relação ao homem.
ser senão doado, em um ato de oferta
inteiramente gratuito, que supõe a suspensão
Compreende-se que o falo, relacionado
da violência. (BOURDIEU, 1998, p. 26).
diretamente ao patriarcado, concentra todas as
fantasias coletivas de potência fecundante, de
maneira que a honra e a virilidade máscula são O corpo da mulher é uma construção reiterada
positivadas através de certas atitudes – defloração de discursos e práticas faladas e perpetuadas ao
da noiva, progenitura masculina abundante, longo do tempo, contribuindo para a sua submissão.
dominação do relacionamento etc. – que são Neste aspecto, é necessário fazer uma breve menção
esperadas de “um homem que seja realmente um dos discursos filosóficos, religiosos e médicos
homem” (BOURDIEU, 1998, p. 20). que influenciaram diretamente a construção da
subordinação feminina.

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A construção da subordinação feminina e seu impacto na exploração do tráfico de mulheres
Juliana Gomes da Silva

Hipócrates incorporou o discurso “a feminina à criação da figura de Eva, sinônimo de


semente macha é mais forte que a semente fêmea”, pecado e vista como objeto de tentação de Adão.
afirmando em sua obra que o “produto” nascerá (ARISTOTELES, 1957, p. 42).
sempre da semente mais forte, e que naturalmente
Os estudos médicos do século XVII, por sua
“a semente macha é mais forte do que a semente
vez, reafirmavam as teorias filosóficas e religiosas
fêmea” (JOAQUIM, 1997, p.81).
sobre a inferioridade feminina. Galeno, médico da
O pensamento de Hipócrates funde-se em época, explicava que os órgãos genitais femininos
uma visão da mulher vista como matriz, como um eram considerados o inverso do masculino por uma
campo semeado por outro, de modo que o homem ausência de calor, o que fez com que permanecessem
representa a semente, o produtor, e a mulher no interior do corpo da mulher. (COLLING, 2015).
representa a reprodutora. Isso é explicado por sua
No século XVIII esse estudo médico logo
crença em ressaltar que se a mulher tem relação com
foi ratificado pelo discurso psiquiátrico, que passou
o homem, a saúde dela, então, será melhor, “menos
a tratar as mulheres como um ser doentio e histérico,
boa se não tiver” (JOAQUIM, 1997, p.81).
surgindo a chamada “histerização” do corpo da
Aristóteles, por sua vez, considerava que mulher, marcado pela imagem da “mulher nervosa”.
“o primeiro desvio é o nascimento de uma fêmea”. Segundo Michel Foucault:
Acreditava que, de uma maneira geral, as fêmeas
tríplice processo pelo qual o corpo da mulher
eram inferiores fisicamente em comparação aos foi analisado – qualificado e desqualificado
homens, valendo-se, assim, do tamanho do cérebro – como corpo integralmente saturado
como parâmetro para caracterizar a mulher como um de sexualidade; pelo qual, este corpo foi
integrado, sob o efeito de uma patologia que
ser inferior intelectualmente e demonstrar a maior lhe seria intrínseca, ao campo das práticas
inteligência dos homens. Nas palavras do filósofo: médicas; pelo qual, enfim, foi posto em
comunicação orgânica com o corpo social
Entre os animais, é o homem que tem o (cuja fecundidade regulada deve assegurar),
cérebro maior, proporcionalmente ao seu com o espaço familiar (do qual deve ser
tamanho, e, nos homens, os machos têm o elemento substancial e funcional) e com a
cérebro mais volumoso que as fêmeas. (...) vida das crianças (que produz e deve garantir,
São os machos que têm o maior número de através de uma responsabilidade biológico-
suturas na cabeça, e o homem tem mais do moral que dura todo o período da educação):
que a mulher, sempre pela mesma razão, para a Mãe, com sua imagem em negativo que é
que esta zona respire facilmente, sobretudo a ‘mulher nervosa’, constitui a forma mais
o cérebro, que é maior. (ARISTOTELES, visível desta histerização. (FOUCAULT,
1957, p.41). 1979, p.98)

Com relação ao discurso religioso, na Conclui-se que a construção do gênero


Idade Média, o sistema de pensamento aristotélico feminino e a objetificação do corpo da mulher se
foi incorporado pela religião cristã e difundido pautaram historicamente em um conjunto de estudos
em compasso entre o encontro do discurso e teorias dos campos social, político, religioso,
filosófico e religioso, relacionando a dignidade médico, psiquiátrico, dentre outros, tendo sido,

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A construção da subordinação feminina e seu impacto na exploração do tráfico de mulheres
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inclusive, o pensamento norteador dos traficantes O tráfico internacional de mulheres, que


de mulheres, o que se verá a seguir. A força da tem como um dos principais objetivos a exploração
desconstrução dessa imagem, portanto, deve ir além sexual, é relacionado diretamente com a indústria
meramente do campo social. da pornografia, do erotismo, que mercantilizam
o corpo feminino com as propagandas, com a
1.3 O corpo da mulher como principal fonte de
erotização, corroborando o ideal de dominação do
lucro para o tráfico internacional de pessoas
sexo masculino descrito anteriormente.
É possível observar que as representações
Porém, o erotismo não é a única causa para
sexuais entre os dois sexos não são, de maneira
a exploração da mulher, havendo inúmeros motivos
alguma, simétricas. O corpo é representado como
que levam à sua exploração como principal fonte
um objeto passivo, por meio do qual são impostos
de lucro para o tráfico internacional de mulheres.
significados e obrigações derivados da cultura e do
O abuso dos indivíduos como força de trabalho,
meio social, ou, pelas palavras de Judith Butler «o
somado à condição de inferioridade da mulher,
instrumento pelo qual uma vontade de apropriação
resulta em altos índices de desemprego feminino,
ou interpretação determina o significado cultural
induzindo as mulheres às profissões não formais
por si mesma.” (BUTLER, 2003, p. 27).
e subalternas, como a prostituição. (GOLDMAN,
Portanto, o corpo é em si mesmo o resultado 2011, p. 248).
de uma construção de diversos fatores, assim como
Emma Goldman cita Reginald Wright
a pirâmide que determina o domínio dos sujeitos em
Kauffman como primeiro autor a tratar do mal
razão da construção do gênero (BUTLER, 2003, p.
social em sua obra The House of Bondage (A Casa
27). Se por outro lado, a atitude esperada do gênero
da Servidão). Nas palavras da autora:
masculino é a dominação do gênero feminino, em
âmbito psicológico, social, e, principalmente, sexual, Reginald Wright Kauffman, cujo trabalho The
para uma mulher o que se espera é a sua aderência, House o fBondage (A Casa da Servidão) é a
primeira tentativa séria de tratar do mal social –
passividade, o ato de consentir, de ficar por baixo no e não de uma perspectiva sentimental filistina.
ato sexual, de ser dominada em todos os aspectos. Um jornalista com ampla experiência, o senhor
Kauffman prova que nosso sistema industrial
Toda essa materialização das atitudes sexuais não oferece para a maioria das mulheres
qualquer alternativa a não ser a prostituição.
entre os gêneros contribui para a proliferação do As mulheres retratadas em The House of
comércio sexual das mulheres, que têm o seu próprio Bondage pertencem à classe trabalhadora. Se
corpo exposto como mercadoria, estampados em um o autor tivesse retratado a vida de mulheres
em outras esferas, ele teria encontrado o
cardápio, materializados para o varejo, prontos para mesmo tipo de situação. Em nenhum lugar a
serem escolhidos pelo homem que possui o poder mulher é tratada de acordo com o mérito de
seu trabalho, mas apenas como sexo. Portanto,
de levar consigo o objeto que deseja sexualmente. é quase inevitável que ela deva pagar por
seu direito a existir, a manter uma posição
seja onde for, com favores sexuais. Assim, é
apenas uma questão de grau se ela vende a si

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A construção da subordinação feminina e seu impacto na exploração do tráfico de mulheres
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mesma a apenas um homem, dentro ou fora o ilícito começa com o aliciamento e termina com
do matrimônio, ou a vários homens. Quer os
a pessoa que explora a vítima, utilizando-se de
nossos reformadores o admitam ou não, a
inferioridade econômica e social da mulher é práticas para mantê-la em escravidão:
a responsável pela prostituição (GOLDMAN,
2011, p. 248-249). O tráfico internacional não se refere apenas
e tão-somente ao cruzamento das fronteiras
Este cenário explicitado por Goldman entre países. Parte substancial do tráfico
é incentivado e marcado, ainda, pelo processo global reside em mover uma pessoa de
uma região para outra, dentro dos limites
de globalização da sociedade atual. Neste de um único país, observando- se que o
contexto, as mulheres inseridas neste sistema de consentimento da vítima em seguir viagem
desenvolvimento econômico levam consigo o peso não exclui a culpabilidade do traficante ou do
explorador, nem limita o direito que ela tem à
da busca de soluções para superar as consequências proteção oficial (JESUS, 2003, p.7).
das reformas, tornando-se uma captura fácil
Essa escravidão, ainda que a maioria seja
dos aliciadores do tráfico, que as iludem com
ligada ao comércio sexual (prostituição, turismo
promessas de trabalhos dignos e de remuneração
sexual, pornografia e tráfico para fins sexuais), pode
compensatória. (SOUSA, 2012, p.1).
ser direcionada a diversos setores, como o trabalho
Por outro lado, também, é necessário forçado e escravo nos setores agrícolas, pecuários,
ressaltar a responsabilidade das politicas públicas nos serviços domésticos, casamento forçado
que contribuem para o empobrecimento das camadas dentre outros; para a extração de órgãos e para
média e baixa da sociedade, levando à venda dos filhos adoção, que são definidas como forma moderna de
pertencentes às famílias em situação de dificuldade escravidão, sendo uma afronta grave aos direitos
econômica, principalmente meninas, destinadas ao humanos, interferindo diretamente na dignidade
mercado da prostituição. (SOUSA, 2012, p.2). humana. (LEAL, LEAL, 2005, p. 1). 

Este fenômeno, no entanto, não é novo. As principais vítimas de tráfico no Brasil e


Pode-se afirmar que o tráfico teve sua origem na no mundo são mulheres, sendo estas destinadas para
escravidão, sobretudo na escravidão branca do fins de exploração sexual. De acordo com o
século XIX para o XX, em que mulheres europeias Relatório da Organização Internacional do Trabalho
eram conduzidas para consumidores não ocidentais (OIT)3  de 2005, 43% das pessoas traficadas no
do universo não desenvolvido, caracterizando uma mundo são  destinadas ao comércio do sexo, 32%
rota inversa da que ocorre atualmente, de forma são vítimas de exploração econômica e 25 % são
que as circunstancias continuam em sua essência encaminhadas para outros tipos de exploração. 
a mesma, mulheres ingênuas que são aliciadas por
traficantes para migrar a uma vida indigna e sofrida,
inexistindo a opção de fuga. (SOUSA, 2012, p.2).
3 Relatório Global do Seguimento da Declaração da OIT sobre
O tráfico pode envolver um indivíduo ou um Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho. Disponível em:
<https://reporterbrasil.org.br/documentos/relatorio_glob-
grupo de indivíduos. Segundo Damásio de Jesus, al2005.pdf> Acesso em: 23 de abril de 2019.

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A construção da subordinação feminina e seu impacto na exploração do tráfico de mulheres
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Neste ponto, o relatório supracitado ainda da prostituição voluntária. Isso implica em outros
aponta um dado relevante: 56% das vítimas de pontos polêmicos como a expressão da autonomia
exploração econômica são mulheres e meninas, e com da vontade e da liberdade profissional da mulher,
relação à exploração sexual 98% são, igualmente, envolvendo também as discussões existentes
mulheres e crianças.   O tráfico internacional de entre visões abolicionistas e as emancipatórias da
pessoas, na era pós-moderna é conhecido como prostituição (MOURA, 2009, P. 2021). 
a forma modernizada de escravidão, refletindo
Além disso, no atual cenário social, é
com uma nova “roupagem” o fenômeno que se
concedida pouca consideração à palavra de
originou na escravidão branca do século XIX. A
quem é enquadrado como vítima, principalmente
era da globalização recriou formas tradicionais de
quando estas são prostitutas. Embora o Protocolo
exploração, o trabalho forçado, trabalho escravo, o
de Palermo, principal instrumento internacional
tráfico de seres humanos para fins sexuais, guerras,
que combate o tráfico de pessoas, afirme que o
fome, desalento, abandono e falta de perspectiva
consentimento é irrelevante  em alguns casos para
(LEAL, LEAL, 2005, p. 2). 
a configuração do tráfico, pouco respeito é dado à
O tráfico de humanos vai além do aspecto autonomia e à palavra da mulher (SCHILLING,
criminal legal. Configura-se como um fenômeno OLIVEIRA, 2014, p. 51). 
multidimensional, multifacetado e transnacional,
A formulação, harmonização e
que tem suas dimensões enraizadas com as relações
implementação de normas legais referentes ao
macrossociais e culturais. A primeira porque, como
tráfico de pessoas, têm lugar no cenário de conflitos
exposto acima, o mercado globalizado impacta
políticos, em que existem pontos de desencontros e
diretamente na expansão do crime organizado, e na
articulações entre as diferentes lógicas normativas
exploração sexual comercial, e a segunda porque
que funcionam de acordo com ações de diferentes
a cultura machista, patriarcal, insere mulheres,
grupos de interesse. Assim, de acordo com Piscitelli: 
adolescentes e crianças como vítimas de submissão
nas relações de dominação. Desencontros e convergências são
perceptíveis no entrecruzamento entre lógicas
Em razão da sua faceta multidimensional, o dos estados nacionais e outras que podem ser
tráfico de mulheres se tornou um crime o qual seu consideradas supranacionais e transnacionais.
E, muitas vezes, há desencontros entre
combate encontra diversos obstáculos. Primeiro essas lógicas e as que permeiam as ações
porque não há um consenso acerca da definição de pessoas consideradas em situação de
tráfico (PISCITELLI, 2008, p.34). 
de “tráfico”, e, consequentemente, pairava a
dúvida de  quais  práticas deveriam ser combatidas Outra dificuldade, também, diz respeito
(WIJERS, 2003, p. 79). Segundo, a questão do à representatividade das mulheres na formulação
consentimento da vítima frente ao aliciamento é de tratados e protocolos internacionais. Em
uma discussão polemizada dentro deste assunto   na tese, a representação dos direitos das mulheres
medida em que engloba o reconhecimento ou não para a formulação de políticas públicas faz-se

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necessária com a presença feminina, para que assim Conforme o relatório da OIT, estima-se que
sejam devidamente contempladas nas discussões. 12,3 milhões de pessoas exerçam trabalho forçado,
Tal presença é  imprescindível  para a extensão do e que deste número 2,45 milhões de pessoas
foco para as mulheres e para sua legitimidade como foram traficadas. No Brasil, este crime encontra-
sujeito político. Essa abertura para a representação se em uma crescente gradativa, de forma que o
do gênero feminino é praticamente obrigatória País atrai, predominantemente, mulheres afro-
quando  se busca promover a visibilidade política, descendentes entre 15 e 25 anos de idade, segundo
principalmente por meio de uma participação na a Pesquisa Nacional sobre Tráfico de Mulheres,
formulação das políticas públicas direcionadas ao Crianças e Adolescentes para fins de Exploração
enfrentamento do tráfico de mulheres.  Sexual Comercial no Brasil4 publicada em 2002. O
documento também atesta a existência de cerca de
Em linhas gerais, essa carência de
240 rotas de tráfico de pessoas no Brasil, envolvendo
representatividade acontece em decorrência de
um fluxo permanente de jovens mulheres e, em
problemas enraizados em prerrogativas sociais,
número menor, homens.
principalmente àquelas discussões relacionadas aos
problemas de gênero. Como explicitado, o homem e Apesar das mudanças trazidas por meio dos
a mulher são diferenciados por questões biológicas, instrumentos internacionais, como por exemplo,
caracterizando o gênero feminino como um conjunto o Protocolo de Palermo, um dos principais
de seres dotados de fragilidade e submissão, o que problemas permanece intacto desde o tráfico de
culmina em abusos físicos e psicológicos, além da escravas brancas até o tráfico atual: o problema da
falta de representação em áreas de poder. Por este discriminação de gênero. A partir desta ideia, fez-
motivo, o feminismo é inevitável para o início se notável que a construção de uma conduta social
da tomada de posição, através da qual os direitos para o gênero feminino e masculino é uma das bases
humanos e os valores femininos serão auferidos para o desaguamento do tráfico em mulheres. Isso
(STEANS, 1998). porque, ainda que o tráfico cerque outras vítimas e
possua outras formas de exploração, as principais
Conclusão
aliciadas ainda continuam sendo mulheres, meninas
O tráfico de seres humanos, especificamente e para fins de exploração sexual.
de mulheres, é um crime contra a dignidade
humana em expansão em diversas partes do mundo, Apesar da modificação e evolução dos
inclusive no Brasil. É um fenômeno complexo, tratados e convenções, que ao longo do tempo
de múltiplas facetas, o que acarreta na dificuldade foram  se  adaptando às  realidades histórica, social
em se identificar suas ações, na medida em que se e cultural das vítimas, o problema da desigualdade
relaciona com a migração, propostas de casamento,
trabalho, mercado do sexo, estudo e com as situações 4 Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes
para Fins de Exploração Sexual comercial no Brasil (Pestraf).
de desaparecimento. Todos esses aspectos facilitam Disponível em: <http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafi-
a invisibilidade do crime. co-de-pessoas/publicacoes/anexos-pesquisas/2003pestraf.pdf>
Acesso em: 23 de abril de 2019.

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A construção da subordinação feminina e seu impacto na exploração do tráfico de mulheres
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de gênero não foi superado. Este aspecto está


enraizado na cultura global e mostra-se como um
obstáculo que está presente desde o aliciamento
dos traficantes até a formulação dos tratados, visto
que ainda são muitos os países que pendem de
representantes mulheres em posições de poder.

Além disso,  a moralidade materializada na


prostituição ainda é um preconceito ante o qual os
Estados se calam. A ligação entre prostituição
e tráfico de mulheres que  a  maioria  ainda
defende impacta diretamente no tratamento do caso
e na implementação de leis e políticas públicas
para o combate ao tráfico,  à  medida em que o
preconceito dificulta a  concretização  de medidas
protetivas e programas para a sociabilização
das vítimas. Isso denota, também, a questão da
discriminação de gênero, já que a prostituição, por
sua vez, é relacionada à mulher.

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A construção da subordinação feminina e seu impacto na exploração do tráfico de mulheres
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ARTIGOS

A fábrica disciplinadora de
comportamentos: um diálogo entre
Michel Foucault e Frederick W. Taylor
Marcelo Limão Gonçalves
Graduado em Sociologia e Política pela FESPSP
(mlimao@uol.com.br )

Resumo
O presente artigo estabelece relações entre o nascimento da “sociedade disciplinar”, no século
XVIII, e a origem da “administração científica”, no final do século XIX, a partir da leitura,
interpretação e revisão crítica das obras “Vigiar e punir”, de Michel Foucault e “Princípios
de administração científica”, de Frederick W. Taylor. A hipótese confirmada demonstra que
os resultados obtidos pela implementação das tecnologias disciplinares formaram as bases
para a concepção e ampla introdução dos métodos tayloristas nos processos produtivos. O
adestramento dos trabalhadores, visando sua correção e transformação, está no cerne de um
processo mais abrangente: modificar os comportamentos dos indivíduos, tornando seus corpos
úteis economicamente e, ao mesmo tempo, dóceis no campo político.

Palavras-chave
Trabalho; Taylorismo; Sociedade disciplinar; Panoptismo.

Abstract
This article establishes relations between the birth of the “disciplinary society”, in the eighteenth
century, and the origin of “scientific administration” in the late nineteenth century, based on the
reading, interpretation and critical revision of the works “Discipline and Punish”, by Michel
Foucault, and “Principles of Scientific Management”, by Frederick W. Taylor. The confirmed
hypothesis demonstrates that the results obtained by the implementation of the disciplinary
technologies formed the basis for the conception and wide introduction of the taylorism
methods in the productive processes. The training of workers, with a view to their correction
and transformation, is at the heart of a broader process: to change the behavior of individuals,
making their bodies economically useful and, at the same time, docile in the political field.

Keywords
Work; Taylorism; Disciplinary society; Panoptism.

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Artigos
A fábrica disciplinadora de comportamentos: um diálogo entre Michel Foucault e Frederick W. Taylor
Marcelo Limão Gonçalves

Introdução O ponto de partida é a obra “Vigiar e punir”


O presente artigo explora as relações entre o do filósofo francês Michel Foucault, que apresenta as
surgimento da chamada “sociedade disciplinar”, no fábricas como “instituições disciplinares” e permite
século XVIII, e o modelo de “gerência científica” do destacar suas “tecnologias disciplinares”, utilizadas para
trabalho, concebido nas décadas finais do século XIX obter controle e sujeição dos indivíduos, tornando-os
e início do XX. “úteis e dóceis”; instaurando um poder que extrai a
máxima utilidade desses corpos ao menor custo.
A hipótese da pesquisa estabelece que as
formulações propostas por Taylor só tiveram êxito em Em seguida a pesquisa identificou como
razão de uma “sociedade disciplinar” – descrita por a dinâmica das “tecnologias disciplinares” foi
Foucault – já encontrar-se consolidada. Assim, algumas cooptada e aplicada nas fábricas tayloristas, por
perguntas aparecem: o que caracteriza uma sociedade meio da interpretação da obra original “Princípios
como sendo disciplinar? que fatores históricos de administração científica”, publicada por Taylor
estruturantes estão presentes neste surgimento? quais em 1911, e cotejada pela obra “Trabalho e capital
relações podem ser estabelecidas entre os “dispositivos monopolista”, de Harry Braverman, que oferece
disciplinares” e a “gerência científica”? críticas contundentes ao modelo, sobretudo pelos
efeitos negativos resultantes da aplicação da “gerência
O artigo apresenta, como objetivo geral, científica” na organização e execução do trabalho.
uma revisão crítica de duas obras a fim de apontar
as transformações ocorridas na organização do Ao final uma proposta de continuidade na
trabalho, e que decorrem de alterações mais amplas pesquisa é sugerida, a partir da investigação das
do modo de produção e acumulação capitalista. Mais permanências e rupturas do taylorismo na organização
especificamente a pesquisa correlacionará o modelo do trabalho nos dias de hoje.
de fábrica descrito por Foucault, com seus dispositivos 1. O nascimento da “sociedade disciplinar”
disciplinares, e o modelo de administração científica
Esta seção pretende recuperar e destacar o que
elaborado por Taylor.
Foucault tinha como principal problema de pesquisa na
A literatura aponta o papel central do trabalho obra “Vigiar e punir”; questionava ele: como, em um
na vida e na subjetividade dos indivíduos. “Sabemos espaço de tempo tão pequeno, cerca de três décadas –
que é a partir do trabalho, em sua realização cotidiana, na passagem do século XVIII para o XIX – passamos
que o ser social se distingue de todas as formas pré- de uma sociedade tradicional ao punir os crimes, para
humanas” (ANTUNES, 2004, p. 7). Portanto estudar outra, denominada “sociedade disciplinar”?
como se realiza o trabalho e por quais razões o fazemos
Na primeira parte do livro, intitulado
da maneira como fazemos torna-se fundamental,
“suplício”, o autor inicia o capítulo “o corpo dos
sobretudo pelos desdobramentos do trabalho nas
condenados” descrevendo em minúcias a aplicação
demais esferas social, cultural, política e econômica.
de um suplício como pena para o crime cometido por
um condenado. A ação incluía ferimentos com tenazes

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de aço quente atravessando partes de seu corpo, até ou reparação. Com efeito, apresenta-se não mais um
o ponto final, o esquartejamento, auxiliado por 4 espetáculo da punição, mas sim um dispositivo que
cavalos, cada um atado a um membro. A pena, aplicada extrai dela sua maior eficácia, alcançando a máxima
na França em 2 de março de 1757, é contraposta com economia na ação de punir. Os termos “eficácia” e
o regulamento de uma casa de detenção, três décadas “economia” ganham destaque.
mais tarde (na mesma França), em que os condenados
O problema de pesquisa para Foucault é o de
são confinados e suas atividades são estritamente
compreender por que, num intervalo tão pequeno
determinadas e controladas. No regulamento, cada
em termos de tempo histórico, entre vinte e trinta
artigo expressa um detalhamento do tempo e do local
anos, ocorreu esta passagem na Europa ocidental.
onde as atividades deveriam ocorrer. De um lado o
Interessava-lhe demonstrar a ação punitiva como um
suplício punindo o crime a partir do sofrimento do
fenômeno social, ou seja, a relação entre um novo tipo
corpo e, de outro, a punição a partir do confinamento
de poder, o poder disciplinar, que controla, vigia e
e estrito controle das atividades do condenado.
pune os corpos, e os desdobramentos para as relações
Foucault ressalta que, em menos de meio século,
sociais, culturais, políticas e econômicas.
operou-se uma modificação importante:
O castigo deixa de acometer o corpo do
o desaparecimento dos suplícios (...) em
algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo condenado para atuar em sua alma. “À expiação que
supliciado, esquartejado, amputado, marcado tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que
simbolicamente no rosto ou no ombro,
atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a
exposto vivo ou morto, dado como espetáculo.
Desapareceu o corpo como alvo principal da vontade, as disposições” (FOUCAULT, 2008, p. 18).
repressão penal (FOUCAULT, 2008, p. 12).
Observa-se a partir daí uma mudança no
Não se trata de um fenômeno que muda de
regime de punição, que fere e incapacita o criminoso,
uma hora para outra, mas sim um período de transição
para outro que preserva seu corpo intacto, mas atua
em que o suplício e o confinamento convivem, porém
em sua subjetividade, com restrições e impedimentos.
com a diminuição do primeiro e a ampliação do
Não é somente punir, mas que essa punição obtenha
segundo. Nas práticas punitivas ocorre a supressão
a cura e cause um efeito positivo de prevenir futuros
do espetáculo público e a anulação da dor causada no
erros. Cabe
corpo do condenado. O processo penal e a punição
tornam-se mais velados, menos expostos. mostrar que as medidas punitivas não são
simplesmente mecanismos “negativos” que
Mas o suplício e o confinamento do permitem reprimir, impedir, excluir, suprimir;
mas que elas estão ligadas a toda uma série
condenado não seriam práticas igualmente aplicadas de efeitos positivos e úteis que elas têm por
sobre o corpo? encargo sustentar (Foucault, 2008, pp. 24-25,
negritos nossos).
Para atingir os objetivos da punição passa-
se do suplício que provoca um sofrimento do corpo
para a segregação deste, visando sua transformação

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O ponto fundamental é o tratamento no indivíduo um comportamento desejado. O duplo


da punição não mais como algo negativo, que efeito é o de “aumentar a utilidade econômica e
simplesmente segrega, que exclui da sociedade os diminuir os inconvenientes, os perigos políticos;
indivíduos transgressores. Ao contrário, positiva- aumentar a força econômica e diminuir a força
se a ação punitiva com a expectativa de correção política” (MACHADO, 2017, p. 20).
do indivíduo perante a sociedade, e daí decorre
Foucault chama esse tipo específico de poder
toda uma série de tecnologias disciplinares de
de “disciplina” ou “poder disciplinar”. Não se pode
docilização dos corpos, de adestramento, de sujeição
localizá-lo em uma instituição, ou materializá-lo em
e transformação dos indivíduos.
um aparelho, pois as disciplinas operam para além
Há uma razão histórica muito clara para explicar de quaisquer fronteiras físicas, objetivas, como será
a mudança. Trata-se da estreita relação entre “regimes observado adiante.
punitivos” e “sistemas produtivos”. Foucault recupera
Este poder disciplinar, que visa atuar no corpo,
os autores Rusche e Kirchheimer para apontar tais
está ligado, portanto, à sua utilização como mão-de-
relações, ocorridas em 4 grandes movimentos:
obra útil (economicamente) e dócil (politicamente)
numa economia servil, os mecanismos no sistema industrial de produção. Portanto o
punitivos teriam como papel trazer mão- nascimento da “sociedade disciplinar” é resultado de
de-obra suplementar – e constituir uma
escravidão “civil” ao lado da que é fornecida uma importante transformação histórica, qual seja,
pelas guerras ou pelo comércio; com o a extensão progressiva dos dispositivos disciplinares
feudalismo, e numa época em que a moeda
ocorrida durante os séculos XVII e XVIII, em que
e a produção estão pouco desenvolvidas,
assistiríamos a um brusco crescimento técnicas disciplinares deixam de ser aplicadas em locais
dos castigos corporais – sendo o corpo específicos para se multiplicar por todo o corpo social.
na maior parte dos casos o único bem
acessível; a casa de correção – o Hospital Não surpreende a ampla aplicação das disciplinas nas
Geral, o Spinhuis ou Rasphuis – o trabalho fábricas e oficinas no decorrer do século XIX, período
obrigatório, a manufatura penal apareceriam de ascensão do capitalismo monopolista industrial,
com o desenvolvimento da economia de
comércio. Mas como o sistema industrial bem como sua transformação e intensificação após a
exigia um mercado de mão-de-obra livre, a segunda metade do século XX.
parte do trabalho obrigatório diminuiria no
século XIX nos mecanismos de punição, e Mas em quais bases o poder disciplinar está
seria substituída por uma detenção com fim
corretivo (Foucault, 2008, p. 25). edificado? Quais são seus elementos constituintes?
Na seção seguinte encontram-se as respostas.
Como resultado desta “tecnologia política
do corpo” obtém-se indivíduos úteis, dóceis,
economicamente produtivos e moralmente
obedientes. Roberto Machado, na introdução de
“Microfísica do poder”, destaca o aspecto positivo
de um dispositivo de poder disciplinar que produz

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2. As disciplinas: docilização e utilização bastando submeter-se a um processo de adestramento


dos corpos que corrigiria sua postura, seus movimentos, que
Durante a antiguidade clássica houve uma indicaria como e onde cada parte de seu corpo se
descoberta do corpo como objeto e alvo do poder. deslocaria. Um soldado passa a ser algo que se fabrica.
Havia toda uma atenção dedicada aos cuidados, Nesse processo de criação,
manipulação, treinamento enfim, procedimentos para
lentamente uma coação calculada percorre cada
multiplicar as forças dos corpos e torná-los hábeis. A parte do corpo, se assenhoreia dele. Dobra o
investigação com relação ao corpo tinha dois ramos: conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e
se prolonga, em silêncio, no automatismo dos
o “anátomo-metafísico”, que buscava compreender a hábitos; em resumo, “foi expulso o camponês”
anatomia e o funcionamento do corpo, e o “técnico- e lhe foi dada a “fisionomia de soldado”
político”, formado por um conjunto de normas e (FOUCAULT, 2008, p. 118).

regulamentos (militares, escolares) que procurava Uma profunda manipulação das condutas
melhorar o rendimento da utilização do corpo. De um passa a operar no corpo do recruta, fazendo com que
lado um corpo ao qual se compreende o funcionamento ele, de maneira automática e sem questionamentos,
e de outro um corpo que pode ser submetido e mantenha a cabeça ereta, o peito estufado, o passo
utilizado, ou seja, que desenvolve “docilidade”. “É firme e assim por diante.
dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser
Ao definir o que é “poder disciplinar”,
utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”
Foucault argumenta que se trata de um conjunto de
(FOUCAULT, 2008, p. 118).
métodos capaz de permitir um controle minucioso
Uma vez que o controle sobre o corpo sempre dos movimentos do corpo, sujeitando constantemente
existiu, quais seriam as mudanças ocorridas nos suas forças e impondo-lhe uma relação de “docilidade-
procedimentos para docilização, controle e utilização utilidade”. Neste ponto é possível começar a observar
dos corpos no século XVIII? A resposta está no as proximidades entre o “poder disciplinar” e a
conceito de “disciplina” e de “poder disciplinar”. “gerência científica”. O artigo demonstrará adiante
como Taylor alicerça seu método neste controle do
Para apresentar o poder disciplinar, Michel
tempo, dos espaços e dos movimentos.
Foucault mostra a transformação pela qual passou a
figura ideal de um soldado. Ainda no início do século Embora muitos desses processos já existissem
XVII a descrição desse soldado argumentava que se há muito tempo nas oficinas, nos exércitos, nas
tratava de um sujeito que poderia ser reconhecido de escolas, nos conventos, o que ocorre agora é que tais
longe, a partir dos sinais corporais. modelos de disciplina se tornaram “fórmulas gerais
de dominação”, expandindo-se para outras esferas
No transcorrer do século XVII para o XVIII
da existência humana.
houve uma mudança importante. Um soldado não
precisava mais ter características inatas. Qualquer
indivíduo poderia ser transformado em um soldado,

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Uma manobra arrojada, portanto; um duplo A solução para ampliar e intensificar o controle
movimento que dissocia o poder do corpo dos é a “cerca”, ou seja, o delineamento preciso do espaço
indivíduos: de um lado o corpo ganha “aptidão” em que um grupo de indivíduos estará reunido. Isso
ao mesmo tempo que diminui a potência política ajuda a apontar que se trata de “um local heterogêneo
resultante, ou seja, aumenta sua sujeição. “Se a a todos os outros e fechado em si mesmo”, com uma
exploração econômica separa a força e o produto finalidade e um propósito.
do trabalho, digamos que a coerção disciplinar
Nos colégios o modelo de convento é um
estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma
exemplo de como o funcionamento em regime de
aptidão aumentada e uma dominação acentuada”
internato mostrava-se mais eficiente; talvez o mais
(FOUCAULT, 2008, p. 119).
perfeito, argumentava-se. Também a necessidade de
A estrutura desta nova anatomia de poder foi fixar o exército ampliou a construção dos quartéis,
sendo imposta por exigências conjunturais, sendo objetivando controlar “essa massa vagabunda; impedir
encontrada desde muito cedo nos colégios, depois as pilhagens e as violências; acalmar os habitantes
nas escolas primárias, ganharam espaço nos hospitais que suportam mal as tropas de passagem; evitar os
e nos quartéis, atingiram as fábricas e oficinas, enfim, conflitos com as autoridades civis, fazer cessar a
foram aos poucos e de forma ininterrupta ganhando deserções; controlar as despesas” (FOUCAULT,
cada vez mais espaço, cobrindo todo o corpo social. 2008, p. 122).

O século XVII foi o período em que uma Começando pelas manufaturas, e depois
cultura do detalhe e da investigação das minúcias nas fábricas, a delimitação espacial também operava
ganha conteúdo, e colabora para a criação do homem de forma a permitir a melhor condição para que
moderno. É a partir do controle de cada detalhe, a atividade produtiva pudesse ocorrer. As fábricas
imposto pelas disciplinas, que se situa o nascimento começavam a assemelhar-se com conventos, quartéis
de uma nova sociedade, a “sociedade disciplinar”. ou fortalezas, algumas inclusive oferecendo para os
Seu funcionamento ocorre a partir da aplicação das trabalhadores aposentos e dormitórios. A fábrica
chamadas tecnologias disciplinares, as quais serão era uma cidade fechada, com um guardião que abria
apresentadas a seguir. e fechava sua porta na medida em que as forças
produtivas eram demandadas.

Além da ideia de cerca, clausura, insuficientes


2.1 Distribuição dos indivíduos no espaço
e por vezes dispensáveis para se manter controle
disciplinar, ocorre a localização dos indivíduos no
A primeira responsabilidade da disciplina é espaço, realizada de maneira mais detalhada e flexível,
determinar a distribuição e o posicionamento dos recorrendo-se ao princípio do “quadriculamento”,
indivíduos num determinado espaço disponível. Para determinando para cada indivíduo sua precisa e estrita
isso utiliza-se de diversas técnicas. localização.

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O espaço disciplinar tende a se dividir em todo e cada uma de suas parcelas, resulta em um poder
tantas parcelas quanto corpos ou elementos
que acompanhou o crescimento da grande indústria.
há a repartir. É preciso anular os efeitos das
repartições indecisas, o desaparecimento
descontrolado dos indivíduos, sua circulação O último aspecto tratado pelo autor quanto
difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; a distribuição dos corpos no espaço é que tais
tática de antideserção, de antivadiagem, de posições são intercambiáveis, em uma série de
antiaglomeração (FOUCAULT, 2008, p. 123).
posições que se sucedem e precedem outras das
O que de fato importa é obter controle sobre outras. Foucault usa a noção de fila, permitindo
as entradas e as saídas das pessoas, saber como e onde conhecer uma posição específica em relação aos
localizá-las, promover comunicações úteis, interromper demais elementos da série, bem como a distância
as outras, enfim, a estrita localização dos corpos entre eles. A determinação “de lugares individuais
permite vigiar seus comportamentos a cada instante, tornou possível o controle de cada um e o trabalho
punir os desvios. Foucault (2008, p. 123) argumenta: “A simultâneo de todos” (FOUCAULT, 2008, p. 126).
disciplina organiza um espaço analítico”.

Sendo o princípio da clausura e, dentro dele, 2.2 A precisão do tempo e o controle dos
o quadriculamento, insuficientes ainda para operar-se gestos
um poder disciplinar, outra regra da distribuição dos
corpos no espaço é o que Foucault chama de “regra
No exercício de qualquer atividade ocupa-se
das localizações funcionais”, e que
o tempo e realizam-se movimentos. As comunidades
vai pouco a pouco, nas instituições monásticas apresentaram, pioneiramente para outras
disciplinares, codificar um espaço que a instituições, as regras de funcionamento de uma
arquitetura deixava geralmente livre e pronto
atividade bem realizada: a ascese, as repetições, as
para vários usos. Lugares determinados se
definem para satisfazer não só a necessidade trocas, os ritmos de cada atividade, enfim, uma herança
de vigiar, de romper as comunicações antiga que desde muito cedo pôde ser observada nos
perigosas, mas também de criar um espaço
colégios, nos hospitais e nas oficinas, muitas vezes em
útil (FOUCAULT, 2008, p. 123).
construções anexas aos conventos. “Durante séculos,
No caso das fábricas esse processo de as ordens religiosas foram mestras de disciplina: eram
localização funcional ganha uma relação com as os especialistas do tempo, grandes técnicos do ritmo e
demandas inerentes ao processo produtivo. Devem das atividades regulares” (FOUCAULT, 2008, p. 128).
responder às necessidades da divisão do trabalho,
proporcionando uma distribuição que pode ser O autor relata que no século XVII havia nas
articulada e adaptada às suas diferentes etapas. Um manufaturas regulamentos que precisavam todas as
quadriculamento perfeitamente desenhado, e uma atividades, inclusive as que antecedem o início do
arquitetura que permita a um supervisor percorrer trabalho. O regulamento de uma fábrica dessa época
todo o espaço, conseguindo ao mesmo tempo vigiar o indica claramente cada atividade, numa sequência
rígida e precisa, tal como lavar as mãos ao chegar,

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depois oferecer o trabalho a Deus, em seguida fazer o Mas controlar o tempo quantitativo e
sinal da cruz e, só após, iniciar o trabalho. qualitativo não é suficiente. Para que os dispositivos
disciplinares exerçam ao máximo seu poder, é
O historiador Edward P. Thompson lembra
necessário decompor cada gesto, cada movimento
que a modernidade trouxe a possibilidade de medirmos
singular. Um gesto bem controlado utiliza menos
o tempo com maior precisão. Contávamos os dias e
tempo e oferece mais eficácia. Uma padronização
as noites, e contabilizávamos a passagem do tempo a
dos gestos e dos movimentos é estabelecida, sendo
partir da realização das tarefas. Era a medição do tempo
apontado por Foucault a partir da diferença entre os
natural, mediado pelos “processos familiares no ciclo
comandos no treinamento de tropas. No início do
do trabalho ou das tarefas domésticas” (THOMPSON,
século XVII controlava-se a marcha de uma tropa
1998, p. 269). O autor aponta que passamos a contar as
visando “acostumar os soldados a marchar por fila
horas transcorridas com a popularização dos relógios
ou em batalhão, a marchar na cadência do tambor.
em paróquias e igrejas a partir do século XIV. Em
E, para isso, começar com pé direito a fim de que
seguida, dentro das horas, os minutos (1658) e, no
toda a tropa esteja levantando o mesmo pé ao mesmo
interior desses, os segundos (1730).
tempo” (FOUCAULT, 2008, p. 128). Mais tarde, na
Pois bem, a partir da possibilidade de controlar metade do século XVIII, quatro tipo de passos:
o tempo com mais precisão as instituições disciplinares
O comprimento do pequeno passo será
puderam relacionar economicamente as atividades de um pé, o do passo comum, do passo
em termos de quanto de tempo se gasta para realizá- dobrado e do passo de estrada de dois pés,
medidos ao todo de um calcanhar ao outro;
las. Mais ainda, permitiu aumentar a produtividade
quanto à duração, a do pequeno passo e a do
do tempo ao controlar ininterruptamente, a partir de passo comum serão de um segundo, durante
supervisores e fiscais, os momentos desperdiçados o qual se farão dois passos dobrados; a
duração do passo de estrada será de um
com distrações, brincadeiras ou movimentos do pouco mais de um segundo. O passo
corpo que não estivessem estritamente ligados aos oblíquo será feito no mesmo espaço de um
necessários à realização da atividade. segundo; terá no máximo 18 polegadas de
um calcanhar ao outro... O passo comum
será executado mantendo-se a cabeça alta e
A medição precisa do tempo permitiu dois o corpo direito, conservando-se o equilíbrio
controles concomitantes, um quantitativo e outro sucessivamente sobre uma única perna, e
qualitativo (FOUCAULT, 2008): quantitativo na levando a outra à frente, a perna esticada,
a ponta do pé um pouco voltada para fora
medida em que se determina a quantidade de tempo e baixa para aflorar sem afetação o terreno
necessária para cada atividade, ou seja, o início e o sobre o qual se deve marchar e colocar o pé
na terra, de maneira que cada parte se apoie
término de cada atividade sequenciada; qualitativo pelo
ao mesmo tempo sem bater contra a terra
fato de se exercer uma pressão para que haja qualidade (FOUCAULT, 2008, p. 129).
no tempo empregado dentro de cada etapa da atividade,
Fica claro que entre essas duas prescrições há
constituindo “um tempo integralmente útil”.
a imposição de “um novo conjunto de obrigações, um
novo grau de precisão na decomposição dos gestos e

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dos movimentos, outra maneira de ajustar o corpo a a cada indivíduo, tarefas que são ao mesmo tempo
imperativos temporais” (FOUCAULT, 2008, p. 129). repetitivas, diferentes e sempre graduadas. Os exercícios
permitem aos educadores o acompanhamento da
Além de ensinar e impor gestos pré-definidos,
evolução, a constante classificação, a garantia do
o controle disciplinar da atividade inclui as posturas
aproveitamento integral do tempo, obtendo no
requeridas para uma execução de maneira rápida e
estágio final o máximo desempenho. O exercício
eficaz. Foucault apresenta a descrição de um método
“realiza, na forma da continuidade e da coerção, um
para obter boa caligrafia incluindo os cuidados com
crescimento, uma observação, uma qualificação”
o repousar do cotovelo, o posicionamento do tronco,
(FOUCAULT, 2008, pp. 136-137).
solto e um pouco voltado para o lado esquerdo, e
assim por diante, de forma a registrar uma disciplina A possibilidade de extrair o máximo de
sob a qual repousa “a base de um gesto eficiente”. cada corpo tem uma finalidade, que é a posterior
“composição das forças” individuais a serviço de
Em seguida o autor destaca a articulação
um organismo maior e integrador, resultado da soma
entre o corpo e o objeto manipulado, a partir da
organizada e qualificada de uma massa de indivíduos.
descrição de uma pequena manobra de um soldado
no manuseio de seu fuzil, da posição apoiada no Foucault cita Karl Marx para afirmar que se
chão até a arma repousar à sua frente, utilizando trata dos mesmos problemas impostos pela divisão
toda uma coordenação detalhada entre elementos acentuada do trabalho nos processos produtivos
do corpo (braço direito, ombro esquerdo etc.) e após a Revolução Industrial, cujo efeito produzido
elementos do objeto manuseado (cano, alça de mira de conjunto necessita superar a soma das forças
etc.). A partir a decomposição do gesto global em individuais. O autor indica o aparecimento de uma
duas séries paralelas, a dos elementos do corpo e do nova demanda:
objeto, revela-se uma “codificação instrumental do
Surge assim uma exigência nova a que a
corpo” (FOUCAULT, 2008, p. 130). disciplina tem que atender: construir uma
máquina cujo efeito será levado ao máximo
Aprendizado e treinamento são a base para pela articulação combinada das peças
aculturar os indivíduos às disciplinas, desde a infância. elementares de que ela se compõe. A disciplina
não é mais simplesmente uma arte de repartir
A fábrica de tapeçaria dos Gobelins criada em 1667
corpos, de extrair e acumular o tempo deles,
previa a organização de uma escola para oferecer mas de compor forças para obter um aparelho
formação profissional a sessenta crianças bolsistas. eficiente (FOUCAULT, 2008, p. 138).
Elas passariam por seis anos de aprendizagem, mais Nessa nova exigência o corpo de cada
quatro anos de serviço e após uma prova classificatória, indivíduo torna-se uma peça, o elemento de
“tinham direito de ‘erguer e manter loja’ em qualquer um conjunto mais complexo; independente de
cidade do reino” (FOUCAULT, 2008, p. 133). virtude física ou coragem, o que mais importa é o
posicionamento de cada um na cobertura do espaço,
Outro aspecto importante é a realização
a regularidade nos movimentos e o cumprimento das
exaustiva de exercícios, impondo-se a cada corpo,

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ordens para controle dos deslocamentos. “O homem A obtenção de um bom resultado nos processos
da tropa é antes de tudo um fragmento de espaço de aprendizado e treinamento necessita supervisão e
móvel, antes de ser uma coragem ou uma honra (...) controle que, por sua vez, demandam determinados
o corpo se constitui como peça de uma máquina recursos. O sucesso dos dispositivos disciplinares
multissegmetar” (FOUCAULT, 2008, pp. 138-139). repousa em três recursos, que de fato são “instrumentos
simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e
Além da cobertura do espaço a composição
sua combinação num procedimento que lhe é específico,
das forças elementares precisa combinar as diversas
o exame” (FOUCAULT, 2008, p. 143).
séries e sequências no tocante aos tempos de cada
ação, formando um “tempo composto”. Busca-se Neste período de transição hospitais, escolas,
uma sincronia entre o tempo de um indivíduo em oficinas e fábricas ganham os mesmos contornos
relação ao tempo dos outros, de tal sorte que se possa arquitetônicos. Com o objetivo de ser uma máquina
extrair a melhor resposta de cada um e combiná-las de adestramento eficaz, o próprio edifício deveria ser
para atingir o melhor resultado possível do grupo, um aparelho de vigiar os indivíduos, até mesmo nos
outra aproximação importante com o taylorismo. refeitórios, com seus inspetores posicionados em um
plano mais elevado, ou mesmo nas latrinas, com suas
“meias-portas” que permitiam visibilidade parcial da
2.3 Exame: procedimento para vigiar e cabeça e dos pés.
punir
Outro aspecto é que a tarefa de supervisão
Já no próprio título do capítulo II da também acompanha a divisão do trabalho; agora há
terceira parte do livro, “Os recursos para o bom mais etapas, mais segmentos e, por conseguinte, mais
adestramento”, Foucault de certa forma provoca o contramestres, prepostos, fiscais, enfim, o processo de
leitor no sentido de fazê-lo pensar sobre si mesmo vigilância ganha maior dimensão na medida em que o
não como ser humano, mas como um animal, que próprio processo produtivo se torna mais complexo.
pode submeter-se ao “adestramento”. Argumenta que
o poder disciplinar, para além de ser um poder que se Vigiar torna-se então uma função definida,
mas deve fazer parte integrante do processo
apropria, que retira, sua maior função é “adestrar” ou, de produção; deve duplicá-lo em todo o seu
parafraseando o jogo de palavras do autor, um poder comprimento. Um pessoal especializado
que primeiro adestra o corpo, para depois apropriar- torna-se indispensável, constantemente
presente, e distinto dos operários
se deste; retira-lhe o máximo de forças. (FOUCAULT, 2008, p. 146).

“Adestra” as multidões confusas, móveis, Instalado um amplo, contínuo e permanente


inúteis de corpos e forças para uma aparelho de vigilância os pequenos delitos são
multiplicidade de elementos individuais (...)
A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a revelados, e para cada menor transgressão é preciso
técnica específica de um poder que toma os estabelecer uma ação punitiva. Começa a operar na
indivíduos ao mesmo tempo como objetos
e como instrumentos de seu exercício
escola, na fábrica e no exército uma ação repressora
(FOUCAULT, 2008, p. 143). dos mínimos detalhes: seja em relação ao tempo de

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pequenos atrasos ou interrupções; seja na negligência mais ou a menos, os aparelhos disciplinares


hierarquizam, numa relação mútua, os
ou desatenção da própria atividade; seja na maneira
‘bons’ e os ‘maus’ indivíduos’. Através dessa
de ser, punindo grosseria ou desobediência; seja microeconomia de uma penalidade perpétua,
nos discursos insolentes, na tagarelice; seja postura opera-se uma diferenciação que não é a dos
atos, mas dos próprios indivíduos, de sua
incorreta do corpo, gestos não conformes, sua natureza, de suas virtualidades, de seu nível
limpeza e asseio; seja sobre sexualidade, impedindo ou valor (FOUCAULT, 2008, p. 151).
indecência. Em suma, vigiar e punir absolutamente
Como resultado surge a possibilidade de
tudo e não deixar escapar nem o mínimo detalhe.
hierarquizar os indivíduos, e o próprio sistema de
Outra função do castigo disciplinar é reduzir classificação opera como recompensa ou punição.
os desvios; uma ação corretiva, portanto. Copiadas O autor argumenta que um indivíduo das classes
das punições do modelo judiciário, tais como multas, nas escalas finais de classificação, ou seja, das piores
açoite, confinamentos, as punições disciplinares classes, poderia ascender à uma classe melhor caso se
dão maior ênfase às do tipo que proporcionam mostrasse digno, preparado e aperfeiçoado.
exercícios, aperfeiçoamento, repetições, buscando um
Um duplo efeito da penalidade
aprendizado intensificado; é mais a oportunidade de
hierarquizante: distribuir os indivíduos segundo
repetição, de melhoria, e menos uma vingança à regra
suas aptidões e comportamentos ao mesmo tempo
que fora ultrajada.
em que se exerce uma pressão constante sobre eles;
De modo que o efeito corretivo que dela o que se deseja é obrigar
se espera apenas de uma maneira acessória
passa pela expiação e pelo arrependimento; todos juntos ‘à subordinação, à docilidade,
é diretamente obtido pela mecânica de um à atenção nos estudos e nos exercícios,
castigo. Castigar é exercitar (FOUCAULT, e à exata prática dos deveres e de todas
2008, p. 150, negritos nossos). as partes da disciplina’ (...) A penalidade
perpétua que atravessa todos os pontos e
Não é apenas a punição; pode-se também controla todos os instantes das instituições
gratificar, premiar, valorizar as boas ações. A disciplinares compara, diferencia, hierarquiza,
homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela
penalidade disciplinar opera um duplo sistema de normaliza (FOUCAULT, 2008, pp. 152-153).
“gratificação-sanção”, com consequências qualitativas
O exame é o instrumento que combina a
e quantitativas. Qualitativas na medida em que avalia
hierarquia que controla (vigiar) com a sanção (punir)
os comportamentos e os desempenhos classificando-
que normaliza. O autor destaca que por meio da
os em valores opostos do bem e do mal. Quantitativas
visibilidade gerada pelo exame opera-se um poder
porque se pode traduzir em números uma contabilidade
para classificar, qualificar e aplicar sanções punitivas.
de quantos comportamentos positivos e quantos
negativos o indivíduo obteve ao final de cada dia. Em decorrência de seu poder o exame é
altamente ritualizado. O exame penetra e expõe o
E pelo jogo dessa quantificação, dessa
circulação dos adiantamentos e das dívidas, indivíduo. “A superposição as relações de poder e
graças ao cálculo permanente das notas a das de saber assume no exame todo o seu brilho

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(...) nessa técnica delicada estão comprometidos por oficiais, enfim, conhecer e obter por registro
todo um campo de saber, todo um tipo de poder” o valor de cada indivíduo vivo e obter um balanço
(FOUCAULT, 2008, p. 154). preciso dos desaparecidos e dos mortos.

O autor ressalta que o exame permite a inversão O mesmo procedimento era exigido nos
da visibilidade do exercício do poder. Tradicionalmente hospitais, com a necessidade de identificar quem
o poder era algo que podia ser visto, vivenciado pelas estava doente e quem estava simulando, acompanhar
imagens, pela sensação de presença física e, de alguma os quadros patológicos, saber se os tratamentos eram
forma, fragmentado, pois enquanto lançava sua força eficazes, evitar epidemias. O registro aparece também
sobre uns, outros ficavam esquecidos; visibilidade e nas escolas com a demanda de caracterizar a aptidão
poder andavam juntos. De maneira oposta, o poder de cada um, apontar seu nível e suas capacidades e
disciplinar se impõe tornando-se invisível, ao mesmo indicar quais são as possibilidades de utilização:
tempo em que obriga a visibilidade dos seus súditos.
A função do registro é fornecer indicações
de tempo e lugar, dos hábitos das crianças de
seu progresso na piedade, no catecismo, nas
letras de acordo com o tempo na Escola, seu
2.4 Exerce um poder, produz um saber espírito e critério que ele encontrará marcado
desde sua recepção (FOUCAULT, 2008, p.
Do exame resulta toda uma documentação 158).
escrita, um arquivo de todos os registros, com todos Em decorrência surgiu toda uma criação
os detalhes e pormenores a respeito de cada corpo, de códigos de individualidade disciplinar, um novo
a cada dia. Uma peça chave nas engrenagens dos padrão de registros que possibilitou transcrever
dispositivos disciplinares é o poder da escrita, da
os traços individuais estabelecidos pelo exame:
documentação, do registro. código físico da qualificação, código médico
dos sintomas, código escolar ou militar dos
Os procedimentos de exame são comportamentos e dos desempenhos. Esses
acompanhados imediatamente de um códigos eram ainda muito rudimentares, em sua
sistema de registro intenso e de acumulação forma qualitativa ou quantitativa, mas marcam
documentária (...) Em muitos pontos, o momento de uma primeira ‘formalização’
modela-se pelos métodos tradicionais do individual dentro das relações de poder
da documentação administrativa” (FOUCAULT, 2008, p. 158, negritos nossos).
(FOUCAULT, 2008, p. 157). Por fim Foucault destaca que as técnicas
documentárias “faz de cada indivíduo um ‘caso’”.
O autor destaca que a base é o modelo Como consequência o “caso” se torna, ao mesmo
burocrático administrativo, porém as disciplinas tempo, um objeto do conhecimento e uma sujeição ao
inovam e incorporam técnicas específicas. Uma poder. O “caso” populariza-se. Durante muito tempo
delas trata da questão da identificação, assimilação e as pessoas passaram despercebidas, sem ser alvo de
descrição, um problema para o exército que necessitava qualquer investimento em descrevê-las, avaliá-las
encontrar os desertores, evitar convocações repetidas, ou compará-las. Somente um indivíduo importante
verificar a veracidade de informações apresentadas

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tinha registros de sua existência, de seus atos; apenas 3. As tecnologias disciplinares na fábrica
pessoas poderosas tinham o privilégio de contar com taylorista
uma historiografia, uma crônica. Os procedimentos As seções anteriores serviram para apresentar
disciplinares invertem essa lógica, impondo cada vez a o conceito de “sociedade disciplinar” ou “disciplinas”,
busca da totalidade de registros, a descrição do maior bem como descrever a dinâmica de operação das
número de indivíduos possível. “tecnologias disciplinares”. Nesta seção os métodos e
Em síntese, é o exame que opera as grandes procedimentos adotados por Taylor serão apontados
funções disciplinares de vigiar e punir, e faz isso ao e, mais que isso, correlacionados às tecnologias
relacionar a “vigilância hierárquica” com a “sanção disciplinares. Com este exercício é possível revelar
normalizadora”. Ao combinar vigilância e punição o o quanto Taylor se aproximou das disciplinas de
exame reparte, classifica, extrai ao máximo as forças Foucault para lograr seu “Princípios de administração
dos corpos, controla o tempo e movimentos, compõe científica”, em 1911.
as aptidões. O exame fabrica uma individualidade. O contexto em que Taylor propôs suas
As tecnologias disciplinares estabelecidas a partir da mudanças é o mesmo contexto em que nasceu a
transição datada pelo autor, na passagem do século “sociedade disciplinar”: expansão do capitalismo e do
XVII para o XVIII, pontuaram o momento em que o monopólio industrial. Ao pensar que os economistas
eixo político volta-se para a individualização1. clássicos do século XVIII e início do XIX (Adam Smith,
Neste período, ao mesmo tempo em que Andrew Ure, Charles Babbage) foram os primeiros a
surgiu uma “ciência do homem” (FOUCAULT, tratar, de uma perspectiva científica, a organização do
2008), ou as chamadas ciências humanas, surgiram trabalho dentro das relações capitalistas de produção,
as novas tecnologias disciplinares; essas, por sua vez, Braverman destaca que pouco mais de meio século os
mudaram o eixo de poder com a possibilidade da separa de Taylor, personalidade que fundou as bases
individualização de todos, indiscriminadamente. da “gerência científica”, ensejadas por essas forças
(BRAVERMAN, 2015, p. 82). Na primeira seção fora
Mas como foi possível a Taylor, na passagem do apontado que este período de aproximadamente cinco
século XIX para o XX, implementar tais mecanismos décadas coincide com o nascimento da “sociedade
disciplinares nos ambientes fabris com tanto sucesso? disciplinar”.
De onde os industriais da época puderam extrair todos
seus efeitos? O conteúdo da próxima seção esclarece Nas palavras do autor, ”a gerência científica,
tais indagações. como é chamada, significa um empenho no sentido
de aplicar os métodos da ciência aos problemas
1 Ocorre a origem da “estatística” neste entretempo. A palavra complexos e crescentes do controle do trabalho
alemã statistik talvez seja a que melhor demonstre o significado
original, designando-a como “análise de dados sobre o Estado”, das empresas capitalistas em rápida expansão”
ou seja, os Estados-nação em formação, mais ou menos avan- (BRAVERMAN, 2015, p. 82).
çados nesse processo, necessitando coletar informações que
permitissem uma boa “gestão de população” – outro termo uti-
lizado por Foucault em seu texto “governamentalidade”, estabel-
eceram à própria estatística como ciência.

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Taylor assim sintetiza os princípios O sistema Taylor apresenta-se neste


contexto como uma estratégia adequada à
fundamentais da administração científica: dominação burguesa que visa constituir o
trabalhador dócil politicamente e rentável
1. substituição do critério individual do economicamente (RAGO e MOREIRA, 2003,
operário por uma ciência; 2. seleção e p. 25, negritos nossos).
aperfeiçoamento científico do trabalhador,
que é estudado, instruído, treinado e, pode- Braverman (2015) destaca que na literatura
se dizer, experimentado, em vez de escolher do management, basicamente livros de “Teoria geral
ele os processos e aperfeiçoar-se por acaso;
da administração” (TGA), é possível observar dois
3. cooperação íntima da administração com
os trabalhadores, de modo que façam juntos problemas típicos: o primeiro deriva das afirmações de
o trabalho, de acordo com leis científicas que o taylorismo é um modelo que fora ultrapassado
desenvolvidas, em lugar de deixar a solução
de cada problema, individualmente, a critério por seus sucessores, a exemplo da “Escola de
do operário (TAYLOR, 2012, p. 84). Relações Humanas” – ERH. O segundo refere-se
à ausência de uma crítica ao modelo em si, como
A crítica é justamente no emprego do termo
se o modelo taylorista tivesse sido um fenômeno
“científico”. Seria mesmo ciência?
benéfico para os trabalhadores e a sociedade em geral.
Faltam-lhe as características de uma verdadeira Nessa linha de raciocínio os autores pesquisados
ciência porque suas pressuposições refletem
nada mais que a perspectiva do capitalismo (CHIAVENATO, 2012; MAXIMIANO, 2010;
com respeito às condições da produção. Ela MOTTA e VASCONCELOS, 2006) corroboram as
parte, não obstante um ou outro protesto em
contrário, não do ponto de vista humano, mas críticas.
do ponto de vista do capitalista (...) Investiga
não o trabalho em geral, mas a adaptação do De fato não se pode traçar uma linha do
trabalho às necessidades do capital. Entra na
tempo linear em que o taylorismo fora superado pela
oficina não como representante da ciência, mas
como representante de uma caricatura de gerência ERH, justamente por tratar-se de campos científicos
nas armadilhas da ciência (BRAVERMAN, 2015,
distintos. O primeiro está contido no campo da
p. 82-83, negritos nossos).
engenharia, enquanto que o segundo, no campo da
Estabelecendo uma crítica semelhante,
psicologia e sociologia industrial. Não que sejam
RAGO e MOREIRA (2003) aproximam-se de
inconciliáveis; apenas são campos distintos. Não que
Foucault e sua definição de “sociedade disciplinar”,
um modelo tenha superado o outro; ambos seguiram
ao acrescentar que:
por todo o século XX determinando o modo de
o taylorismo, enquanto método de organização produção e, consequentemente, o cotidiano dos
“científica” da produção, mais do que uma trabalhadores.
técnica de produção é essencialmente uma
técnica social de dominação. Ao organizar
o processo de trabalho, dividir o trabalho de
Já a literatura das ciências sociais reforça
concepção e o de execução, estruturar as relações o sentido negativo do taylorismo, sobretudo pelos
de trabalho, distribuir individualizadamente a
força de trabalho no interior do espaço fabril, a
impactos na subjetividade e sociabilidade dos
classe dominante faz valer seu controle e poder trabalhadores. Os autores RAGO e MOREIRA (2003)
sobre os trabalhadores para sujeitá-los de maneira
mais eficaz e menos custosa à sua exploração
– mais especificamente no capítulo “Taylorismo e
econômica. resistência operária” – apontam que a implementação

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do modelo sempre esteve distante de uma realidade planejar o processo produtivo e criar as tarefas2, e
pacífica e harmoniosa. No capítulo citado eles trabalhadores para executá-las. Com isso muda o tipo
apresentam os caminhos trilhados pelo taylorismo e a intensidade de controle sobre o trabalho. Muda o
nos EUA, na França, na Itália, na Alemanha e na tipo de controle uma vez que antes de Taylor quem
extinta URSS, sempre acompanhado de muita controlava o trabalho eram os próprios trabalhadores,
resistência operária e sindical, com continuidades e definindo tarefas e quantidades produzidas. A partir
descontinuidades. da “gerência científica”, quem passou a controlar o
trabalho foi a administração, e o fez por meio das tarefas.
Harry Braverman revela a singularidade do
Muda a intensidade, pois cada trabalhador passa a ser
trabalho humano na sociedade industrial com as
avaliado individualmente pelo cumprimento (ou não)
seguintes palavras:
das metas de produtividade, ou seja, a quantidade de
O processo de trabalho tornou-se responsabilidade do tarefa realizada em um determinado espaço de tempo.
capitalista. Neste estabelecimento de relações
de produção antagônicas, o problema de obter Para obter maior produtividade e alcançar
a “plena utilidade” da força de trabalho que ele
comprou torna-se exacerbado pelos interesses melhores resultados, são os empregadores que
opostos daqueles para cujos propósitos o processo controlam o modo de produção, e não mais os
de trabalho é executado e daqueles que, por outro
lado, o executam (BRAVERMAN, 2015, p. 59). empregados. O autor destaca que a “gerência
científica” quebra a ideia por trás dos antigos segredos
O capitalista que compra matéria-prima,
das guildas de ofício. A partir dela
equipamentos, espaço físico, bem como mão-de-obra,
espera ter pleno retorno de seus investimentos. Ao não apenas o capital é propriedade do capitalista,
mas o próprio trabalho tornou-se parte do capital. Não
adquirir materiais e ferramentas, tem certeza de como
apenas os trabalhadores perdem controle sobre os
tais recursos serão alocados e contabilizados. instrumentos de produção como também devem
perder o controle até de seu trabalho e do modo
Mas quando ele compra tempo de trabalho, como o executa (BRAVERMAN, 2015, p.106).
o resultado está longe de ser tão certo e tão
determinado de modo que possa ser computado Mas como Taylor conseguiu convencer os
desse modo, com rigor e antecipação (...) Torna- operários a trabalharem mais depressa, do jeito
se, portanto, fundamental para o capitalista que o
controle sobre o processo de trabalho passe das planejado, sem fazer cera, e não como sempre fizeram?
mãos do trabalhador para as suas próprias (...) Essa é a segunda grande distinção entre Taylor e seus
para o capitalista, apresenta-se como o problema
de gerência (BRAVERMAN, 2015, p. 59). antecessores: o sistema de pagamento por peça
com remuneração variável. A partir da possibilidade
Neste ponto repousa a primeira grande
de planejar e individualizar tarefas específicas, para
distinção do método taylorista de seus antecessores:
trabalhadores específicos, o sistema de remuneração
a divisão entre administradores e operários;
variável premiava os trabalhadores que obtinham as
distinção entre trabalhadores responsáveis por
maiores quantidades produzidas (num mesmo espaço

2 Tarefa, para Taylor, é o trabalho que fora pré-planejado, pré-


estudado pela gerência científica, e que pode ser treinado, acom-
panhado, medido e mensurado.

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de tempo, ou menor). Eram oferecidos salários entre um engenheiro norte-americano contemporâneo seu,
30 e 100% maiores que as fábricas que operavam no que analisou sob a perspectiva da “gerência científica”
sistema tradicional. O acompanhamento das metas o trabalho de pedreiro.
pelos supervisores era constante, e contabilizada ao
O processo de distribuição dos corpos no
final de cada jornada. “Isto proporciona ao operário
espaço é a primeira das “tecnologias disciplinares”
uma medida precisa, pela qual pode, no curso do dia,
descritas por Foucault. A fábrica taylorista demanda
apreciar seu próprio progresso, e este conhecimento
pessoas especializadas no planejamento e no controle
traz-lhe grande satisfação” (TAYLOR, 2012, p.88).
do processo de trabalho, ou seja, no gerenciamento.
Mas como é possível esta transferência O trabalho deles é o de individualizar as massas e
de propriedade das técnicas e habilidades dos distribuir os corpos dos operários que, por sua vez,
trabalhadores, das suas mãos para as do capitalista? localizam-se em outro espaço.
Como controlar no detalhe os trabalhadores? As
Paralelamente à distribuição dos trabalhadores
“disciplinas” reveladas por Foucault formaram
no espaço, o taylorismo executa o estrito controle dos
as bases, e a “gerência científica”, por meio das
movimentos físicos e do tempo de cada execução.
tecnologias disciplinares, efetivou a obediência.
Os autores empregam o termo “treinado”,
3.1 Espaço, tempos e movimentos
mas no original de Taylor o termo empregado é
“adestrado”, configurando mais uma aproximação
Os tipos de organização do trabalho
com a terminologia empregada por Foucault. O
selecionados para estabelecer as correlações Foucault-
capítulo II de “Vigiar e punir” intitula-se: “Os recursos
Taylor foram o “assentamento de tijolos” e o trabalho
para o bom adestramento”. Um corpo adestrado é um
de “inspeção de esferas”, uma vez que permitem
corpo treinado, útil e dócil.
ilustrar claramente as quatro tecnologias disciplinares:
a distribuição e posicionamento dos indivíduos no Da mesma forma que Foucault descreveu o
espaço, o controle dos movimentos para utilização manuseio de um fuzil ou as posições dos membros
integral do tempo, vigilância ininterrupta e o registro do corpo em uma marcha de soldados (ordem unida),
documental de todas as informações. Taylor (2012) planifica cada detalhe do ofício de
pedreiro. O autor descreve que eram necessários 18
A respeito do assentamento de tijolos, Taylor
movimentos para a colocação de cada tijolo. Após
(2012) destaca que se trata de um dos ofícios mais
os minuciosos estudos e Gilbreth, em condições
antigos da humanidade e, portanto, poderia esperar-se
padronizadas de posicionamento, ferramentas e
“muito pouco ou nenhum progresso nas ferramentas e
materiais, os 18 movimentos foram reduzidos a 5, e
materiais usados, assim como no processo de assentar
em alguns casos a apenas 2 movimentos. Em suma,
tijolos. Apesar de milhões de homens terem exercido
utilizou-se de três recursos: primeiro eliminou os
esse ofício, não se revelou aperfeiçoamento no curso
movimentos que os estudos apontaram desnecessários
de muitas gerações” (TAYLOR, 2012, p.30). Ele
(apesar dos pedreiros acharem necessários), em
incorpora os estudos realizados por Frank B. Gilbreth,

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segundo lugar introduziu dispositivos simples a 3.2 Vigilância, punição e construção dos
exemplo do andaime móvel e do balde de argamassa saberes
e, em terceiro, treinou os pedreiros a realizarem À época da elaboração dos “Princípios de
movimentos simples, e com o uso simultâneo das administração científica”, o ciclismo estava em seu
duas mãos. apogeu, bem como as indústrias responsáveis por
produzir esferas de aço temperado para rolamentos
Esses três aperfeiçoamentos são
característicos de como, ao ser aplicado e mancais. Na maior fábrica de bicicletas do país o
o estudo científico dos movimentos, ou, processo tinha pouco mais de 20 operações, sendo
segundo Gilbreth, o estudo do tempo, nos
ofícios, os movimentos inúteis podem ser a inspeção final – separação das esferas perfeitas das
suprimidos e os movimentos mais lentos defeituosas, a mais importante. A inspeção é realizada
substituídos por outros mais rápidos posicionando-se uma fila de esferas no dorso da mão
(TAYLOR, 2012, p. 65).
esquerda, entre dois dedos, e contra uma luz intensa
Como resultado, a produtividade do procurar imperfeições de quatro tipos: amassaduras,
assentamento de tijolos aumentou sobremaneira. Em molezas, arranhões e rachaduras pelo fogo (TAYLOR,
um experimento realizado com pedreiros de uma 2012). Este trabalho era realizado por cerca de 120
região, Taylor afirma que a média de tijolos assentados moças, todas bem experientes na função, em uma
por homem/dia cresceu de 120 para 350. Após serem jornada de 10,5 horas.
treinados nos novos métodos, os pedreiros que não
obtinham o progresso desejado eram despedidos, Como aumentar a produtividade deste
e os que alcançavam o ritmo e velocidade almejada trabalho? Realizando a mesma quantidade de
ganhavam um aumento de salário significativo. inspeções, em menos tempo. Poucos meses mais
tarde “as horas de trabalho foram reduzidas,
Neste exemplo é possível observar a sucessivamente, para 10, 9,5, 9 e 8,5 horas
aplicação das tecnologias disciplinares foucaultianas: (conservando o mesmo pagamento por dia) e a cada
os princípios da clausura, do quadriculamento, das redução de horas de trabalho o rendimento crescia,
localizações funcionais e intercambiáveis. Com em vez de diminuir” (TAYLOR, 2012, p.68).
o planejamento das tarefas e o adestramento dos
pedreiros, padronizou-se tempos, movimentos Mas como não comprometer a qualidade
e ferramentas. Apesar de reconhecer também a com este aumento de produtividade? Uma primeira
vigilância ininterrupta a partir de contramestres que providência foi a seleção correta de pessoal, por meio
primeiro treinam e depois acompanham a execução de um estudo que buscou medir o “coeficiente pessoal”,
de cada etapa do processo produtivo, é o exemplo da ou seja, uma unidade que mede o tempo de reação de
“inspeção de esferas” que Taylor utiliza para ilustrar cada indivíduo para um determinado estímulo.
o poder da vigilância, do exame e do registro das
Isto se faz com a apresentação súbita do
informações coletadas. objeto, a letra A ou B, por exemplo, no
campo visual do examinado que, desde que
reconheça a letra, indica o fato de algum

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modo, como apertar certo botão elétrico. O em que era registrada a qualidade e as quantidades
tempo decorrido entre o momento em que a
diárias de cada moça,
letra é vista e o que o indivíduo aperta o botão
é cuidadosamente registrado por instrumento
a fim de se evitarem as prevenções pessoais
científico de precisão (TAYLOR, 2012, p.69).
por parte dos chefes e controlar-se a absoluta
As trabalhadoras que não tinham alto imparcialidade de cada inspetor. Em espaço
de tempo relativamente curto, esse registro
coeficiente pessoal foram desligadas e substituídas permitiu ao chefe incitar a ambição de todas
por outras de melhor coeficiente na função. as inspetoras, aumentando o ordenado
daquelas que realizavam grande quantidade
Contudo selecionar e treinar as melhores de trabalho de boa qualidade, enquanto, ao
mesmo tempo, abaixava o salário daquelas
trabalhadoras não era ainda suficiente para aumentar que trabalhavam sem interesse ou despedia
a produtividade sem comprometer a qualidade. Ao outras que se revelavam incorrigivelmente
mesmo tempo, um intenso sistema de inspeção3 foi lentas ou desleixadas (TAYLOR, 2012, p.71).
implantado e consistia no seguinte: Os registros permitiram estabelecer e
acompanhar metas individuais, não apenas do dia,
A cada uma das quatro moças das mais fiéis
foi dado, diariamente, um lote de esferas para mas também a produtividade, acompanhada pelos
inspecionar, o qual tinha sido anteriormente contramestres, a cada hora. Também permitia
examinado por uma das inspetoras regulares;
constante hierarquização. Como resultado a
o número que identificava o lote a ser
inspecionado era trocado pelo mestre para produtividade subiu sobremaneira:
que nenhuma das superinspetoras soubesse a
quem pertencia o trabalho que estava sendo O operário médio deve saber o que produziu
reexaminado. (TAYLOR, 2012, p. 70). e claramente o que ganhou no fim de cada
dia, caso desejemos que trabalhe bem. (...) o
Em intervalos a cada dois ou três dias, o resultado final de todas as mudanças foi que
próprio contramestre preparava cuidadosamente um 35 moças fizeram o trabalho anteriormente
realizado pelas 120. E a exatidão no serviço,
lote de esferas que apresentava itens defeituosos, e em velocidade maior, foi de mais de 2/3
submetia-o ao exame das moças, sem que as inspetoras superior à anterior (TAYLOR, 2012, p. 72).
e superinspetoras soubessem.
O exemplo da inspeção de esferas permite
A inspeção de esferas, além de se mostrar reconhecer o que Foucault destacou como “técnicas
útil para correlações com a “disciplina” do exame, documentárias”, ou seja, uma documentação que
também fornece possibilidade de aproximações com acompanhe cada indivíduo transformando-o em um
o “registro e documentação” das informações, outra “caso”. Em decorrência, e alinhado ao conceito de
tecnologia disciplinar hierarquizante. O método antigo “disciplina” em Foucault, cada trabalhador se torna
e desordenado deu lugar a um melhor planejamento um objeto de saber e uma sujeição ao poder.
do dia de trabalho, que incluía uma ficha de controle
Braverman (2015) destaca que o real interesse
de Taylor não era conceber novas tecnologias, mas
sim estabelecer um estrito e ininterrupto controle do
3 Foucault chamaria de “vigilância”, de “panoptismo”; Taylor
chamou de “superinspeção”.

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trabalho realizado por indivíduos, sobre qualquer tipo Aqui repousa uma oportunidade para
de tecnologia, independente de qual seja. continuidade da pesquisa, analisando os subsequentes
modelos fordista e toyotista, cotejando-os com as
novas “tecnologias disciplinares” disponíveis, tais
Considerações finais como os sistemas de monitoramento por câmeras de
circuito fechado de televisão (CFTV). Guy Standind,
Um processo de mudança histórico-social no livro “O precariado: a nova classe perigosa”
ocorre lentamente. Para observá-lo, os intervalos (2015), cita as ideias concebidas por Foucault na
precisam ser de décadas ou mesmo séculos, sem o qual década de 1970, em que as tecnologias disciplinares
se incorre prejuízos interpretativos. A pesquisa tem são um projeto para a produção de corpos dóceis e
no século XVIII a origem de mudanças importantes úteis. Assim adverte:
na questão de vigiar e punir, e os desdobramentos
Em todo o mundo, seu projeto tem
do aumento da produção capitalista resultante da sido adotado e tem sido estendido
revolução industrial. Abordou o século XIX como inadvertidamente, pelas cidades-empresa
do século XXI. O pior caso conhecido até
o período em que a importância de gerenciar os agora é o de Shenzhen, onde seis milhões de
trabalhadores neste modo de produção ganha relevo. trabalhadores são vigiados por câmeras de
Por fim iluminou o estabelecimento da “gerência circuito fechado de televisão (CFTV) onde
quer que estejam, e onde um banco de dados
científica” na passagem do século XIX para o XX. abrangente monitora seu comportamento
e seu caráter, inspirado na tecnologia
Pode-se afirmar que a hipótese levantada pela desenvolvida pelos militares dos Estados
pesquisa fora confirmada. De fato as proximidades e Unidos (STANDING, 2015, p. 202).
similaridades entre as “tecnologias disciplinares” e o Outros dispositivos também estão à disposição
“taylorismo” são tantas que dificilmente poder-se-ia do capital para o acompanhamento de desempenho
desconectá-las e explicitá-las de maneira independente. de trabalhadores. O site “IG/Brasil econômico”
Ao que a primeira se configurou, estabeleceu as bases destacou a tecnologia mais atual: a pulseira eletrônica
para a segunda obter sucesso. patenteada pela Amazon, que permite monitorar
com precisão a posição das mãos dos trabalhadores,
Outro resultado importante que a leitura desta
vibrando para orientá-los na direção certa, ou seja,
pesquisa proporcionou, é que seus dois conceitos
controlando todos os movimentos (incluindo os que
centrais, “sociedade disciplinar” e “taylorismo”, não
deveriam ter sido feitos, mas não foram). O governo
só tiveram o primeiro como ponto e partida para o
da Itália não autorizou a implantação das pulseiras nas
segundo, mas que ambos permaneceram apoiando-se
operações da Amazon em seu país.
mutuamente por todo o século XX, intensificando a
partir das quatro últimas décadas, trazendo grandes
desafios para o século XXI.

Alabastro: revista eletrônica dos discentes da Escola de Sociologia e Política da FESPSP, São Paulo. Ano 8, v. 1, n. 12, 2019, p. 75-94

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Artigos
A fábrica disciplinadora de comportamentos: um diálogo entre Michel Foucault e Frederick W. Taylor
Marcelo Limão Gonçalves

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