Artigo publicado no Jornal O ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL, “Opinião”, p.
4, quinta feira, 19 de maio de 2005.
LEI ÁUREA: SIGNO DE UMA REVOLUÇÃO SOCIAL
Maria do Carmo Brazil*
Passado quase vinte anos do primeiro centenário da Lei Áurea, cumpre-nos
refletir sobre seu significado, como evento e como processo, à luz do senso histórico de Florestan Fernandes, Jacob Gorender, Alfredo Bosi, Mario Maestri e outros estudiosos que também se debruçaram sobre o tema ao longo desses anos. Num artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 13 de maio de 1988, o já falecido sociólogo Florestan Fernandes recordou que por ocasião da promulgação da Lei muitos negros contestatórios, ao som de ruidosos tambores e atabaques, saíram de seus refúgios para compartilhar de festas populares promovidas nos campos e cidades por moradores pobres, trabalhadores, pequenos proprietários e pela imensa massa de brancos, alijada do mercado de trabalho, por conta dos efeitos diretos ou indiretos da escravidão. Para desapontamento de muitos militantes do movimento negro, que no presente tomam a Abolição como “negócio de brancos”, Florestan fez uma avaliação surpreendente: “Os negros das senzalas, das casas grandes, e dos sobrados celebravam festivamente a emancipação legal. Era a nossa Bastilha que ruía e o povo celebrava o que aparentava ser a derrocada do “antigo regime”. A supressão do escravismo e o advento do trabalho livre, configurado numa verdadeira revolução no modo de produção, na reordenação da sociedade civil e na cristalização da consciência social burguesa convenceram, Florestan e outros estudiosos de que a Abolição marcou historicamente “a eclosão da única revolução social” que se realizou no Brasil. Acontecimento de indubitável significado do passado nacional, o 13 de maio, data da promulgação da Lei, tem se refluído para as sombras do silêncio, infelizmente pelas mãos do movimento negro brasileiro que, ao nosso ver, além de sua reconhecida luta contra o preconceito e a discriminação, precisa mais do que nunca lançar esforços no sentido celebrar a data com discussões profícuas sobre seu significado histórico, contrariando assim as interpretações e discursos apologéticos sobre a questão. Salientamos que, como evento, a data da promulgação tem importância institucional e legal. Interessava aos dirigentes políticos do Império firmar o discurso da concessão, ou melhor, construir a idéia de que a Princesa Isabel teria “concedida” a liberdade aos cativos apesar do risco que isso representava ao trono dos Bragança. Mas o ato legal, enquanto fruto de um processo histórico, fincava raízes mais profundas no passado. Sabemos que o Brasil constituiu-se como nação independente mantendo a escravidão às custas da aliança estratégica entre as oligarquias mais antigas do nordeste açucareiro, os oligarcas do café do vale do Paraíba, as firmas exportadoras, os traficantes negreiros e parlamentares escravocratas. Os anos que se seguiram desde as pressões contra o tráfico, firmadas no acordo entre Brasil e Inglaterra em 1826 e na Lei Regencial de 7 de novembro de 1831, foram anos do denso fluxo africanos para o interior de engenhos e fazendas brasileiras. Assim, nos vinte e cinco anos que se sucederam até a promulgação da Lei de Extinção do Tráfico, em 1850, o Brasil foi palco do tráfico intenso, onde cerca de 700 mil homens foram arrancados da África ao arrepio dos tratados proibitivos e sob a égide imperial e seus acólitos. A extinção total do escravismo só viria ser decretada em 1888 quando ficou redefinida a questão fundiária à luz da Lei de Terras de 1850 e quando se efetuou, de forma vigorosa, a imigração do trabalhador europeu. Isso se explica porque a expansão do capital industrial acentuou as contradições que já ocorriam, internamente, no sistema escravista. As inovações técnicas, ao penetrarem na estrutura econômica, traçaram um novo perfil social do Brasil, alterando o sistema de produção nas áreas cafeeiras e impondo a necessidade do trabalho livre. Com o desenvolvimento da indústria, do comércio e dos serviços, ocorreu um acentuado crescimento urbano, onde passaram a atuar grupos sociais descomprometidos com a ordem escravista e, portanto, mais acessíveis às idéias abolicionistas. A lógica e o objetivo político dos setores conservadores eram atenuar a luta de classe e desmobilizar o movimento abolicionista. E não foi diferente em relação à Lei Áurea que foi conquistada graças às lutas sociais incessantes contra o cativeiro. A crescente incidência de quilombos, fugas e revoltas servis expressavam o crescimento do protesto negro. Desenhava-se assim o cenário em que as pressões externas contra o tráfico, a organização abolicionista e o acirramento da luta servil forçaram o Império a lançar mão da prática política de concessões, ou seja, do mecanismo de ceder alguma coisa para preservar por mais tempo o fundamental - a escravidão. Nesse sentido, as leis e medidas imperiais não podem ser vistas como simples planos de liquidação da escravidão. Mas sim como estratégias de concessões visando atenuar às pressões externas e internas e, ao mesmo tempo, manter a escravidão até seu último fôlego. Entretanto, a Lei Áurea representou a vitória contra essas estratégias e, acima de tudo, a conquista dos negros pela condição de homens livres. A alegria manifestada pelas comunidades negras, naquele longínquo 13 de maio de 1888, carregava intuitivamente a certeza de que a Libertação tratava-se de uma conquista histórica sem precedentes, e de que era preciso primeiro vencer a escravidão para depois lutar pelas prerrogativas de homens livres. Fruto de anos de reflexões, o livro A Escravidão Reabilitada do historiador Jacob Gorender, publicado em 1990, traz um precioso capítulo intitulado “A Revolução Abolicionista, onde afirma enfaticamente que revolução abolicionista foi a revolução burguesa no Brasil, não cabendo mais projetá-la para o futuro. Nele o autor esclarece que a idéia da Abolição como revolução já havia sido defendida por Sergio Buarque de Holanda, desde 1969, sobretudo, em Raízes do Brasil e por Florestan Fernandes, desde a década de 60, principalmente, na obra Integração do negro na sociedade de classes. Para Alfredo Bosi, que em 1992 publicou Dialética da Colonização, o 13 de maio denota um processo com dois tipos de exílios para o negro: num ele é expulso de “um Brasil moderno, cosmético, europeizado”. Noutro, esse homem é condenado aos “porões do capitalismo nacional, sórdido, brutesco”. Bosi refere-se aos limites da Abolição, no dia seguinte à Lei Áurea, a tudo aquilo restou ao liberto áureo, como a sua condição de agregado, relegado ao subproletariado que cresceu assustadoramente à sombra dos operários de origem européia, enfim, e sua transformação em trabalhador de atividades de subsistência. Mas, conforme salienta o historiador gaúcho Mário Maestri, em seu artigo sobre o 13 de maio, publicado em 9 de maio de 2005 - Diário La Insígnia/Jornal Independente Ibero Americano - os limites históricos da Abolição não devem minimizar a importância da conquista dos direitos políticos e civis por setecentos mil escravos e “ventre-livres”. É preciso entender que com a Lei Áurea o Brasil superava a distinção entre trabalhadores livres e escravizados e que a data marcava o inicio da história da classe operária brasileira como a compreendemos hoje. Além disso, a Abolição destruiu o sistema de produção colonial que, por mais de três séculos, perdurou e dirigiu a sociedade brasileira. Era também o começo do processo de conquista hegemônica de uma classe comprometida com as novas imposições do capitalismo, em que, segundo Gorender, apenas em meados do século XX, "... a supremacia, no seio da classe dominante, passou da burguesia agro-mercantil para a burguesia industrial". Negar esta realidade é assumir uma postura simplista e, acima de tudo, a-histórica em relação ao significado do 13 de maio de 1888. A Lei Áurea foi, portanto, fruto da luta dos escravos conjugada à ação abolicionista, os quais não deram trégua à reação conservadora dos fazendeiros que continuavam arraigados à propriedade servil, mesmo frente ao contexto de transformação capitalista. Alienado ou não, imperfeito ou não, por 100 anos, o povo negro não se cansava de relembrar, a seu modo, o dia em que se tornara livre, pressentindo o significado histórico da Lei da Abolição. Na década de 1980, a partir da constatação do alto índice de preconceito contra os negros e da sua pobreza nos dias atuais, as significativas correntes do movimento negro disseminaram a ideologia de repúdio à Abolição, com o objetivo básico de mostrá-la como engodo e a Princesa Isabel como sua manipuladora. Como crítica ao mito da emancipação do povo negro em 1888 e da ação da Regente Imperial, o movimento negro passou a execrar o 13 de maio e a celebrar o 20 de novembro como dia nacional da consciência negra no Brasil. No dia 20 de novembro de 1695, Zumbi, o líder quilombola sucumbia com Palmares, o mais resistente reduto de resistência não só de negros e mulatos, mas também de índios e brancos pobres, sendo aniquilado por Domingos Jorge Velho por ordem do governo. É claro que a imagem de Isabel reflete a imagem do trono dos Bragança, família imperial que manteve a escravidão até seu último suspiro. Mas isso não autoriza os adeptos da anti-Abolição, a reinventar tradições, sob pena de responder pelo desvanecimento da memória histórica do povo negro, e pela subestimação do importante papel desempenhado pelos afro-descendentes na história social do trabalho brasileiro. Consoante com as reflexões de Maestri, não há sentido em preceder Palmares à Abolição: "Por mais heróica que tenha sido, a epopéia palmarina jamais propôs, e historicamente não poderia ter proposto, a destruição da instituição servil como um todo. Palmares resistiu por quase um século, determinou a história do Brasil, mas foi derrotado”. Ainda que tardia a revolução abolicionista triunfou a resistência escravista. Mas esta extemporaneidade não invalidou ou tornou menos importantes as conquistas sociais de ontem, parciais e contraditórias. Isso se explica porque o processo histórico não é apenas a visão do hoje. Ele envolve o conjunto de acontecimentos buscando uma lógica através do tempo. Nesse sentido, as conquistas tanto podem promover avanços substanciais no presente, como podem, igualmente, dar lugar a recuos históricos, que ensejam, conseqüentemente, o obscurecimento da compreensão do presente e do passado.
* Maria do Carmo Brazil, é professora Titular em História do Brasil da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul. É responsável pelas disciplinas História do Brasil, Cultura Brasileira e História da África. É autora, entre outros, de Fronteira Negra- Dominação, violência e resistência escrava em Mato Grosso 1718-1888. Passo Fundo: Editora da UPF, 2002. E-mail: mcbrazil@ceud.ufms.br
ALENCASTRO, Luiz Felipe. O Trato Dos Viventes: Formação Do Brasil No Atlântico Sul (Séculos XVI e XVII) - São Paulo: Companhia Das Letras, 2000 (Fichamento de Leitura) .