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Melb Nas Wy geologia e uma geografia exaustivas do cinema, mas apenas conduzir o leitor a uma sucessao de sondagens, exploragoes, sobrevoos feitos por ocasiao dos fi mes propostos a reflexao cotidiana do critico, Do monte de papéis rabiscados diariamente, muitos s6 servem para fazer fogo; outros, que tinham em seu tempo um pequeno valor no que se refere ao estado do cinema contemporaneo, hoje nao teriam mais que um valor de interesse retrospec- tivo, Eles foram eliminados, pois, se a historia da critica jé nao é grande coisa, a de um critico particular nao interessa a ninguém, sequer a ele proprio, a ndo ser como exercicio de humildade, Restavam artigos ou estudos necessariamente datados pe~ las referéncias dos filmes que serviram de pretexto a eles, mas que nos pareceram, ‘com razo ou sem ela, conservar, apesar da distancia no tempo, um valor intriseco. Naturalmente, jamais hesitamos em corrigi-los, quer na forma, quer no fundo, sem- . Aconteceu também de fundirmos varios artigos que pre que isso nos pareceu tit tratavam do mesmo tema a partir de filmes ginas ou parigrafos que poderiam se repetir dentro da coletanea; mas na maioria iferentes, ou, ao contrario, cortar pa- das vezes as correges sio minimas e se limitam a atenuar as pontas da atualidade que chamariam a atengao do leitor sem proveito para a economia intelectual do ar- tigo. Pareceu-nos, entretanto, quando nao necessério, a0 menos inevitavel, respeitar esta iltima. Na medida ~ por mais modesta que ela seja - em que um artigo critico procede de um determinado movimento do pensamento, que tem seu impulso, sua dimensio e seu ritmo, ele se aparenta também com a criacio literéria, e no pode- riamos, sem dissociar o conteiido e a forma, colocé-lo em outro molde. Pelo menos achamos que o balango da operacio seria deficitario para o leitor ¢ preferimos dei- xar subsistirlacunas em relacao ao plano ideal da coletinea a tapar os buracos com uma critica digamos... conjuntiva, A mesma preocupacao nos levou, em vez. de introduzir& forga nossas reflexes atuais nos artigos, a inseri-las em notas de rodapé. Contudo e apesar de uma escolha que esperamos nao ser excessivamente indulgente, era inevitavel que o texto nem sempre fosse independente da data ircunstanciais fossem inseparveis de re- de sua concepgao ou que elementos flexdes mais intemporais. Em suma, e apesar das corre¢des a que foram sub- metidos, achamos certo sempre indicar a referéncia original dos artigos que forneceram a substancia das paginas que virio a seguir. A.B, 1958 26 Ontologia da imagem fotografica Uma psicanilise das artes plisticas poderia considerar a prética do embalsa- mamento como um fato fundamental de sua génese.' Na origem da pintura e da escultura, descobriria 0 “complexo” da mimia. A religido egipcia, toda ela orientada contra a morte, condicionava a sobrevivéncia & perenidade material do corpo. Com isso, satisfazia uma necessidade fundamental da psicologia hu- mana: a defesa contra o tempo. A morte nao é sendo a vitéria do tempo. Fixar artificialmente as aparéncias carnais do ser é salva-lo da correnteza da duragio: aprumé-lo para a vida, Era natural que tais aparéncias fossem salvas na propria materialidade do corpo, em suas carnes ¢ ossos. A primeira estitua egipcia éa mimia de um homem curtido e petrificado em natrao, Mas as pirdmides e 0 labirinto de corredores nao constituiam garantia suficiente contra uma even- tual violagao do sepulcro; fazia-se necessario tomar outras precaugdes contra © acaso, multiplicar as medidas de protecio. Por isso, perto do sarcéfago, junto com 0 trigo destinado a alimentagao do morto, eram colocadas estatuetas de terracota, espécies de muimias de reposigao capazes de substituir 0 corpo caso 1 Estudo retomado a partir de Les Problémes d la peintur Gaston Diehl (org.). Paris: Confluences, 1945, Texto tradurido por Hugo Mader para acoletinea A experiéncia do cinema, organizada por Ismail Xavier (Rio de Janeiro: Graal/ Embrafilme, 1983); revsto pelo tradutor para esta edi. 27 este fosse destruido. Assim se revela, a partir de suas origens religiosas, a fun- ao primordial da estaturia: salvar o ser pela aparéncia. E certamente se pode tomar por outro aspecto do mesmo projeto, considerado em sua modalidade ativa, o urso de argila crivado de flechas da caverna pré-historica, substituto midgico, identificado a fera viva, como um voto ao éxito da cacada, £ ponto pacifico que a evolugao paralela da arte e da civilizacao destituiu as artes plisticas de suas fungdes magicas (Luis xrv nio se faz, embalsamar: con- tenta-se com seu retrato, pintado por Lebrun). Mas esta evolugio, tudo o que logrou foi sublimar, pela via de um pensamento légico, a necessidade incoercivel de exorcizar 0 tempo. Nao se acredita mais na identidade ontol6gica de modelo e retrato, porém se admite que este nos ajuda a recordar aquele e, portanto, a salva- -lo de uma segunda morte espi al. A fabricago da imagem chegou mesmo a se libertar de qualquer utilitarismo antropocéntrico, O que conta nao é mais a sobrevivéncia do homem e sim, em escala mais ampla, a criagéo de um universo ideal a imagem do real, dotado de destino temporal auténomo, “Que coisa va, a pintura’, se sob a nossa admiragao absurda nao se manisfestar a necessidade primitiva de vencer o tempo pela perenidade da forma! Se a histéria das artes plisticas nao é somente a de sua estética, mas antes a de sua psicologia, ento ela €essencialmente a histéria da semelhanga, ou, se se quer, do realismo. A fotografia e 0 cinema, situados nessas perspectivas sociolgicas, explicariam tranquilamente a grande crise espiritual e técnica da pintura moderna, que se origina em meados do século passado. Em seu artigo de Verve, André Malraux escrevia que “o cinema nao ¢ sendo a instancia mais evoluida do realismo plistico, que principiou com o Renasci- mento ¢ alcangou sua expressdo limite na pintura barroca’ E verdade que a pintura universal alcancara diferentes tipos de equilibrio entre o simbolismo ¢ o realismo das formas, mas no século xv o pintor oci- dental comecou a renunciar a primeira e nica preocupagao de exprimir a realidade espiritual por meios auténomos para combinar sua expresso com a imitacao mais ou menos integral do mundo exterior. O acontecimento deci- 28 sivo foi sem diivida a invengao do primeiro sistema cientifico e, de certo modo, j& mecAnico: a perspectiva (a camara escura de Da Vinci prefigurava a de Niépce). Ela permitia ao artista dar a ilusio de um espaco de trés dimensoes onde 0s objetos podiam se situar como na nossa percepeao direta. Desde entio, a pintura viu-se esquartejada entre duas aspiragées: uma pro- priamente estética - a expressio das realidades espirituais, em que 0 modelo se acha transcendido pelo simbolismo das formas -, ¢ outra, esta no mais que um desejo puramente psicolégico de substituir 0 mundo exterior pelo seu du- plo, Essa necessidade de ilusdo, que aumentava rapidamente por sua satisfacio mesma, devorou pouco a pouco as artes plisticas. Porém, tendo a perspectiva resolvido 0 problema das formas, mas nao 0 do movimento, era natural que 0 realismo se prolongasse por uma busca da expresso dramética no instante, espécie de quarta dimensio psiquica capaz de sugerir a vida na imobilidade torturada da arte barroca* E claro que os grandes artistas sempre lograram a sintese dessas duas ten- déncias: hierarquizaram-nas, dominando a realidade e absorvendo-a na arte. Acontece, porém, que nos achamos em face de dois fendmenos essencialmente diferentes, os quais uma critica objetiva precisa saber dissociar a fim de com- preender a evolugio pictorica. A partir do século xv1, a necessidade de ilusio nao cessou de atuar internamente sobre a pintura. Necessidade de natureza mental, em si mesma nao estética, cuja origem s6 se poderia buscar na men- talidade magica, mas necessidade eficaz, cuja atragio abalou profundamente 0 equilibrio das artes plisticas. ‘A polémica quanto ao realismo na arte provém desse mal-entendido, dessa confusio entre o estético e o psicolégico, entre o verdadeiro realismo, que im- plica exprimir a significado a um s6 tempo concreta e essencial do mundo, € 0 pseudorrealismo do trompe loeil (ou do trompe lesprit), que se contenta 2 Seria interessante, desse ponto de vista, acompanhar nos jornaisiustrados de 1890 a 1910 4 concorréneia entre a reportage fotogrifica, ainda em seus primérdios, ¢ 0 desenho. Este lilkimo atendia sobretudo & necessidade barroca do dramético (of Le Petit Journal Ilusté). (0 sentido do documento fotografico 86 se impds aos poucos. Constata-se, de resto, além de certa saturagao, um retorno ao desenho dramitico do tipo “Radar” ‘Ontologia da imagem fotogratica 29 com a ilusdo das formas. Eis por que a arte medieval, por exemplo, parece nao sofrer tal conflito: violentamente realista ¢ altamente espiritual ao mesmo tempo, ela ignorava esse drama que as possibilidades técnicas vieram revelar. ‘A perspectiva foi o pecado original da pintura ocidental Nigpce e Lumiere foram os seus redentores. A fotografia, ao elevar ao auge © barroco, liberou as artes plisticas de sua obsessio pela semelhanga. Pois a Pintura se esforcava, no fundo, em vao, por nos iludir, ¢ essa ilusio bastava 4 arte, enquanto a fotografia e o cinema sio descobertas que satisfazem defini- tivamente, por sua propria esséncia, a obsessao de realismo. Por mais habil que fosse o pintor, sua obra era sempre hipotecada por uma inevitivel subje- tividade, Diante da imagem uma davida persistia, dada a presenga do homem. Assim, o fendmeno essencial na passagem da pintura barroca a fotografia nao reside no mero aperfeicoamento material (a fotografia ainda continuaria por muito tempo inferior pintura na imitagao das cores), mas num fato psicolé- gico: a satisfacao completa do nosso afi de iluséo por uma reprodugéo meci- nica da qual 0 homem se achava excluido. A solucio nao estava no resultado, mas na génese.* Eis por que o conflito entre estilo e semelhanca vem a ser um fenémeno relativamente moderno, cujos tragos quase nao so encontraveis antes da in- vengio da placa sensivel. Bem se vé que a objetividade de Chardin nada tem aver com aquela do fotdgrafo. E no século x1x que se inicia para valer a crise 3. Talvez a critica comunista, em particular, devesse, antes de dar tanta importincia a0 ex pressionismo realista em pintura, parar de falar desta como se teria podido fazé-lo no sé- na. Importa muito pouco, talvez, que a Russia sovie- tica produza mé pintura se ela jé produz bom cinema: Bisenstein é seu Tintoretto. Importa, ‘sso sim, Aragon querer nos convencer a tomé-lo por um Repin, 4 Seria 0 easo, porém, de estudar a psicologia dos generos plisticos menores, como a mode- lagem de mascaras mortudrias, que também apresentam certo automatismo na eproducio, Nesse sentido, poder-se-ia considerar a fotografia como uma modelagem, um registro por meio da luz das impressoes deixadas pelo objeto, 30 do realismo, da qual Picasso é hoje o mito, abalando tanto as condigdes de existéncia formal das artes plasticas quanto os seus fundamentos sociolégicos. Liberado do complexo de semelhanga, o pintor moderno o relega a massa,* que entéo passa a identificé-Lo, por um lado, com a fotografia, e, por outro, com aquela pintura que a ela se aplica. A originalidade da fotografia em relagao & pintura reside, pois, na sua objeti- vidade essencial. Tanto é que 0 conjunto de lentes que constitui o olho foto- grafico em substituigao ao olho humano denomina-se precisamente “objetiva’ Pela primeira vez, entre 0 objeto inicial e sua representagao nada se interpde, a no ser outro objeto, Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma automaticamente, sem a intervengao criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo. A personalidade do fotégrafo nao entra em jogo senio pela escolha, pela orientagao, pela pedagogia do fendmeno; por mais visivel que seja na obra acabada, jé nao figura nela como a do pintor. Todas as artes se fundam sobre a presenca do homem; unicamente na fotografia que fruimos de sua auséncia. Ela age sobre nds como um fendmeno “natural’ como uma flor ou um cristal de neve cuja beleza é inseparavel de sua origem vegetal ou telitrica. 5 Mas seri mesmo “a massa” que se acha na origem do divércio entre o estilo ea semelhanga que efetivamente constatamos hoje em dia? Nao seria antes o advento do “espirito bur: gues" que nasceu com a industria e que servin justamente de elemento de reale, por constrast, para os artistas do século 21%, espirito que se poderia definir pela redugao da arte a categorias psicologicas? Por sina, a fotografia nao foi historicamente a sucessora direta do realismo bar- 10co, € Malraux observa, muito a propésito, que a principio ela no tinha outra preocupacio que nio a de imitar a arte’ copianclo ingenvamente o estilo pietérico. Niépee e a maioria dos Pioneiros da fotografia buscavam, aids, copiar por esse meio as gravuras. Sonhavam prodzir ‘obras de arte sem serem artistas, por decalcomania, Projeto tipico e essencialmente burgués, mas que confirma nossa tese,elevando-a, por assim dizer, a0 quadrado. Era natural que a ‘obra de arte fosse a principio modelo mais digno de imitagao para o fotdgrafo, pois aos seus ‘olhos ela, que ja imitava a natureza, ainda a “melhorava’ Foi preciso algum tempo para que, tornando-se le proprio artista, compreendesse que nao podia imitar sendo a natureza Ontologia da imagem fotografica 31 Essa génese automitica subverteu radicalmente a psicologia da imagem. A objetividade da fotografia Ihe confere um poder de credibilidade ausente em qualquer obra pictérica. Sejam quais forem as objecdes de nosso espi- rito critico, somos obrigados a crer na existéncia do objeto representado, li- teralmente re-presentado, quer dizer, tornado presente no tempo e no espaco. A fotografia se beneficia de uma transferéncia de realidade da coisa para sua reproducio.* O desenho, o mais fiel, pode nos fornecer mais indicios acerca do modelo; mas jamais ele possuiré, a despeito do nosso espirito critico, 0 po- der irracional da fotografia, que nos arrebata a credulidade. Por isso mesmo, a pintura jé nao passa de uma técnica inferior da seme- Ihanga, um sucedaneo dos procedimentos de reprodugio. $6 a objetiva nos dé, do objeto, uma imagem capaz de “desrecalcar”, no fundo do nosso incons- ciente, a necessidade de substituir o objeto por algo mais do que um decalque aproximado: o prdprio objeto, porém liberado das contingéncias temporais, A imagem pode ser nebulosa, descolorida, sem valor documental, mas ela provém por sua génese da ontologia do modelo; ela é 0 modelo. Daio fascinio das fotografias de dlbuns. Essas sombras cinzentas ou sépias, fantasmagéricas, quase ilegiveis, ja deixaram de ser tradicionais retratos de familia para se tor- narem inquietante presenca de vidas paralisadas em suas duracdes, ibertas de seus destinos, nao pelo sortilégio da arte, mas em virtude de uma mecénica impassivel; pois a fotografia nao cria, como a arte, eternidade, ela embalsama © tempo, simplesmente o subtrai a sua propria corrupgio. Nessa perspectiva, 0 cinema vem a ser a consecucao no tempo da objeti- vidade fotogréfica. O filme nao se contenta mais em conservar para nds 0 objeto lacrado no instante, como no ambar o corpo intacto dos insetos de uma era extinta ~ ele livra a arte barroca de sua catalepsia convulsiva. Pela 6 Seria preciso introduzir aqui uma psicologia da reliquia e do suvenir, que se beneficiam igualmente de uma transferéncia de realidade proveniente do complexo da mimia, Assina- lemos apenas que o Santo Sudério de Turim realiza a sintese entre reliquia e fotografia, 32 primeira vez, a imagem das coisas é também a de sua duragao, qual uma mu- mia da mutagdo. ‘As categorias’ da semelhanga que distinguem a imagem fotografica deter- minam, pois, também sua estética em relacdo a pintura. As virtualidades esté- as da fotografia residem na revelagao do real. O reflexo na calgada molhada, 0 gesto de uma crianga, independia de mim distingui-los no tecido do mundo exterior; somente a impassibilidade da objetiva, despojando 0 objeto de ha- bitos e preconceitos, de toda a ganga espiritual com que minha percepgio 0 revestia, poderia torné-lo virgem a minha atencao e, afinal, ao meu amor, Na fotografia, imagem natural de um mundo que nao sabemos ou nao podemos ver, a natureza, enfim, faz mais do que imitar a arte; ela imita 0 artista. E pode até mesmo superé-lo em criatividade. O universo estético do pintor éheterogéneo ao universo que o cerca. A moldura encerra um microcosmo essencial e substancialmente diverso. A existéncia do objeto fotografado par- ticipa, pelo contrario, da existéncia do modelo como uma impressio digital. Com isso, ela se acrescenta realmente a criago natural, em vez de substitui-la por outra, Foi o que o surrealismo vislumbrou, ao recorrer a gelatina da placa sensi- vel para engendrar sua teratologia plastica. £ que, para o surrealismo, 0 efeito estético é insepardvel da impress4o mecinica da imagem sobre 0 nosso espi- rito, A distingéo légica entre o imaginério e o real tende a ser abolida. Toda imagem deve ser sentida como objeto e todo objeto, como imagem. A foto- grafia representava, pois, uma técnica privilegiada para a criagao surrealista, jd que ela materializa uma imagem que participa da natureza: uma alucinagao verdadeira. A utilizagdo do trompe lveil e a precisio meticulosa dos detalhes na pintura surrealista sio a contraprova disso. A fotografia vem a ser, pois, o acontecimento mais importante da historia das artes plisticas. Ao mesmo tempo sua libertacdo e manifestacio plena, a 7 Emprego o termo “categoria” na acepcio que Ihe dé Henri Gouhier em seu livro sobre 0 tea- ‘ro, quando distingue as categorias dramticas das estéticas, Assim como a tensio dramitica nao implica nenhuma qualidade artistica, a perfeicio da imitagio nao se identifica com a beleza; constitui somente uma matéria-prima sobre a qual o fato artistico vem se inscrever, Ontologia da imagem fotografica 3 fotografia permitiu a pintura ocidental desembaracar-se definitivamente da obsessio realista e reencontrar sua autonomia estética. O “realismo” impres- sionista, sob seus Alibis cientificos, é 0 oposto do trompe loeil. A cor, alids, 86 péde devorar a forma porque esta nao mais possuia importancia imitativa. E quando, com Cézanne, a forma se reapoderar da tela, j4 nao ser, em todo caso, segundo a geometria ilusionista da perspectiva. A imagem mecanica, ao opor a pintura uma concorréncia que atingia, mais que a semelhanga bar- roca, a identidade do modelo, por sua vez obrigou-a a se converter em seu proprio objeto. Nada mais vao, doravante, que a condenacao pascaliana, uma ver. que a fotografia nos permite, por um lado, admirar em sua reprodugao o original que 0s nossos olhos nao teriam sabido amar, e na pintura um puro objeto cuja referéncia & natureza jé no € mais a sua razdo de ser. Por outro lado, o cinema é uma linguagem. 34 O mito do cinema total Paradoxalmente; a impressao que se tem a leitura do admirdvel livro de Georges Sadoul sobre as origens do cinema’, apesar do ponto de vista mar- xista do autor, é de uma inversao das relagdes entre a evolugéo econémica e técnica e a imaginagio dos pesquisadores. Parece que tudo se passa como se devéssemos inverter a causalidade histérica que vai da infraestrutura econd- mica 4s superestruturas ideol6gicas e considerar as descobertas técnicas fun- damentais como acidentes providenciais e favoraveis, porém essencialmente secundarios, em relagao a ideia preliminar dos inventores. O cinema é um. fenémeno idealista. A ideia que os homens fizeram dele ja estava armada em. seu cérebro, como no céu platonico, e 0 que impressiona, acima de tudo, é tenaz da matéria a ideia, mais do que as sugestées da técnica a resisténci imaginagao do pesquisador. Allds, o cinema nao deve quase nada ao espirito cientifico. Seus pais nao séo de modo algum eruditos (com excegio de Marey, mas ¢ significativo que este 86 se interessasse pela anélise do movimento e nao pelo processo inverso, que permitia recompé-lo). O proprio Edison nao passa de um bricoleur genial, um 1 Texto publicado originalmente em Critique, n. 6, nov. 1946, pp. 552-57. 2 invention du cinéma (1832-1857), v. 1 Paris: Denodl, 1946. 35 monstro do concurso Lépine. Niépce, Muybridge, Leroy, Joly, Demenj, o pré- prio Louis Lumiére so monomaniacos, desvairados, bricoleurs ou, no melhor dos casos, industriais engenhosos. Quanto ao maravilhoso, sublime E. Reynaud, quem nao vé que seus desenhos animados sao 0 resultado de uma persegui¢ao obstinada de uma ideia fixa? Explicariamos bem mal a descoberta do cinema Partindo das descobertas técnicas que o permitiram. Ao contririo, uma realiza- 0 aproximativa e complicada da ideia precede quase sempre a descoberta in- dustrial, nica que pode tornar visvel sua aplicagio pritica, Assim, se hoje nos Parece evidente que o cinema, em sua forma mais elementar, precisava utilizar um suporte transparente, flexivel e resistente, e uma emulsio sensivel seca, ca- paz de fixar uma imagem instantanea (todo o resto sendo apenas uma questo de ajustes mecanicos bem menos complicados que um reldgio do século xvin), ercebemos que todas as etapas decisivas da invengao do cinema foram trans- Postas antes de essas condigdes serem preenchidas. Muybridge, gracas a dis- pendiosa fantasia de um amador de cavalos, consegue realizar, em 1877 1880, ‘um imenso complexo que Ihe permitira fazer, com imagens de um cavalo ga- lopando, a primeira série cinematografica. Ora, para obter esse resultado, ele precisou se contentar com 0 colédio timido sobre placa de vidro (ou seja, com apenas uma das trés condigdes essenciais: instantaneidade, emulsao seca ¢ su- Porte flexivel). Depois da descoberta, em 1880, da gelatina-brometo de prata, ‘mas antes do aparecimento no comércio das primeiras fitas de celuloide, Marey constréi com seu fuzil fotogréfico uma verdadeira cimera para placas de vidro. Enfim, mesmo depois do surgimento comercial do filme em celuloide, o pré- prio Lumiére tentaré primeiro usar filme de papel. Es6 consideramos aqui a forma definitiva e completa do cinema fotogratico, A sintese de movimentos elementares cientificamente estudada pela primeira vez por Plateau nao precisava esperar pelo desenvolvimento industrial e eco- ndmico do século x1x. Como Sadoul acertadamente observa, nada se opunha, desde a Antiguidade, & realizagao do fenacistiscépio ou do zootrépio. E verdade ue, aqui, os trabalhos de um auténtico erudito, Plateau, esto na origem das vi- ras invengdes mecanicas que permitiram o uso popular de sua descoberta. Mas Se, para 0 cinema fotogréfico, temos motivos para ficar admirados com 0 fato de a descoberta preceder de algum modo as condicdes técnicas indispensiveis 36 para sua realizagao, seria preciso explicar aqui, em contrapartida, como, com todas as condigdes ja reunidas havia muito tempo (a persisténcia retiniana era um fenémeno conhecido de longa data), a invengao tenha levado tanto tempo para surgir, Convém notar que, sem qualquer relagao cientificamente necessé- ria, os trabalhos de Plateau so quase contemporaneos aos de Nicéphore Niépee, como sea atengio dos pesquisadores tivesse esperado, durante séculos, para se interessar pela sintese do movimento que a quimica ~ independentemente da tica ~ se interessasse, por seu lado, pela fixagdo automédtica da imagem.’ En- fatizo que tal coincidéncia histrica nao parece poder, de modo algum, ser ex- plicada pela evolugdo cientfica econémica ou industrial. O cinema fotogrético poderia perfeitamente ter se intrometido, por volta de 1890, num fenacistoscé- pio imaginado desde o século xvi. O atraso na invengio deste é tio perturbador quanto a existéncia dos precursores daquele. Mas, se examinarmos minuciosamente seus trabalhos e 0 sentido de sua pesquisa, tal como transparece nos prdprios aparelhos e, de modo mais indis- € comentarios que os acompanham, constatamos que es- cutivel, nos esc ses precursores eram antes de tudo profetas. Queimando etapas,sendo que a primeira delas jé Ihes era materialmente intransponivel, a maioria deles vai visar diretamente ao mais alto, Sua imaginagao identifica a ideia cinemato- gréfica com uma representacao total e integral da realidade; ela tem em vista, de saida, a restituigio de uma ilusdo perfeita do mundo exterior, com 0 som, acoreorelevo. 3 Os afrescos ou 0s baixos-relevos egipcios revelam mais uma vontade de andlise do mo: vimento do que de sua sintese. Quanto aos autématos do século xvut eles estdo para 0 cinema como a pintura para a fotografia, Seja Ia como for, e mesmo se os autdmatos pre- figuram, desde Descartes e Pascal, as maquinas do século x1x, nao é diferente da maneira como os trompe Ioel pictoricos atestam um gosto exacerbado pela semelhanga. A técnica do trompe loci, entretanto, nio fez avangar a dtica ea quimica fotogréfica: ela se limitava, se ouso dizer, a imiti-las por antecipagao. ‘Além disso, como a palavra indica, a estética do trompe foeit no século xvint reside mais na ilusio do que no realism, isto é, mais na mentira do que na verdade. Uma estétua pintada sobre uma parede deve parecer estar assentada sobre uma base no espago. De certo modo, foi a isso também que o cinema principiante visou, mas essa fungao de embuste logo cede lugar a um realismo ontogenético (ef. “Ontologia da imagem fotogrifica’, supra, pp. 27-34) mito do cinema total 37 Quanto a este tiltimo, um historiador do cinema, P. Potoniée, pode inclu- jive sustentar que nao foi a descoberta da fotografia e sim a da estereoscopia (introduzida no comér- cio pouco antes das primeiras experiéncias da fotografia animada, em 1851) que abriu os olhos dos pesquisadores. Percebendo os personagens iméveis no espago, 08 fotdgrafos se deram conta de que lhes faltava movimento para sera imagem da vida e a c6pia fiel da natureza. De qualquer forma, qualquer inventor procura unir 0 som eo relevo & anima- ao da imagem. Seja Edison, cujo cinetoscdpio individual devia ser acoplado a um fondgrafo com caixas actisticas, ou Demeny e seus retratos falantes, ou até mesmo Nadar que, pouco tempo antes de realizar a primeira reportagem fotografica sobre Chevreul, escreveu: “Meu sonho é ver a fotografia registrar atitudes e mudangas de fisionomia de um orador & medida que o fondgrafo registra suas palavras” (Fevereiro de 1887). A cor ainda nao é evocada porque as primeiras experiéncias de tricromia serdo mais tardias. Mas E. Reynaud j4 pintava suas figurinhas havia muito tempo e os primeiros filmes de Mé s sao coloridos 4 mao. Sao muitos os textos, mais ou menos delirantes; em que 0s inventores evocam nada menos do que esse cinema integral que da a com- pleta ilusdo da vida e do qual ainda hoje estamos longe; conhecemos o trecho de A Eva futura [LEve future], no qual Villiers de l'Isle-Adam, dois anos antes de Edison comegar suas primeiras pesquisas sobre a fotografia animada, Ihe atribui esta fantdstica realizagao: [...] avisio, care transparente milagrosamente fotocromada, dangava, em trajes de lantejoulas, uma espécie de danga mexicana popular. Os movimentos mostra- ‘yam-se com o prdprio matiz da vida, gracas ao procedimento de fotografia su- cessiva que pode captar dez minutos dos movimentos sobre lentes microscépicas, refletidos em seguida por um potente lampascépio... Subitamente uma voz ho- _mogénea e como que compassada, uma vor tola e dara se fez ouvir, A dancarina cantou o alza e o olé de seu fandango. 38 O mito diretor da invengao do cinema 6, portanto, a realizagao daquele que domina confusamente todas as técnicas de reprodugao mecanica da realidade que apareceram no século x1x, da fotografia ao fonégrafo. E 0 mito do rea- lismo integral, de uma recriagdo do mundo a sua imagem, uma imagem sobre ‘a qual nao pesaria a hipoteca da liberdade de interpretagao do artista, nem a irreversibilidade do tempo. Se em sua origem o cinema nao teve todos os atri- butos do cinema total de amanha, foi, portanto, a contragosto e, unicamente, porque suas fadas madrinhas eram tecnicamente impotentes para doti-lo de tais atributos, embora fosse o que desejassem. Se as origens de uma arte deixam transparecer algo de sua esséncia, ¢ va- lido considerar os cinemas mudo e falado como as etapas de um desenvol- vimento técnico que realiza pouco a pouco 0 mito original dos pesquisado- res. Compreende-se, nessa perspectiva, que seja absurdo considerar o cinema mudo como uma espécie de perfeigao primitiva, da qual o realismo do som e da cor se afastaria cada vez mais. A primazia da imagem é histérica ¢ tecnica- mente acidental, o saudosismo de alguns pelo mutismo da tela nao remonta © bastante & infincia da sétima arte; os verdadeiros primitivos do cinema, aqueles que s6 existiram na imaginagao de algumas dezenas de homens do século x1x, pensam na imitagao integral da natureza. Logo, todos os aperfei- ‘goamentos acrescentados pelo cinema s6 podem, paradoxalmente, aproxima- -lo de suas origens. O cinema ainda nao foi inventado! Seria, portanto, uma inversao, ao menos do ponto de vista psicol6gico, da ordem concreta da causalidade, situar as descobertas cientificas ou as técnicas, industriais, que irio tomar um lugar tao grande no desenvolvimento do ci- nema, no principio de sua invengdo. Os que menos confiaram no futuro do cinema como arte e mesmo como indiistria foram, precisamente, os dois in- dustriais, Edison e Lumiere, Edison contentou-se com seu cinetoscépio indi- vidual e, se Lumiere recusou judiciosamente a Méliés a venda de sua patente, foi porque provavelmente pensava ter mais lucro se ele mesmo a explorasse, mas na verdade como um brinquedo, do qual mais dia menos dia 0 publico se cansaria. Quanto aos verdadeiros eruditos, como Marey, sé serviram ao cinema incidentalmente, pois tinham outro objetivo preciso, que, quando atingido, os deixou satisfeitos. Os fandticos, os maniacos, os pioneiros desin- ‘O mito do.cinema total 39) teressados, capazes, como Bernard Palissy, de queimar seus méveis para obter alguns segundos de imagens vacilantes, nao sio nem industriais nem eruditos, mas possuidos por sua prépria imaginacao, Se o cinema nasceu, isso se deve & convergencia da obsessio deles; isto é, de um mito: 0 do cinema total, Assim ficam explicados tanto 0 atraso de Plateau em aplicar o principio ético da persisténcia retiniana quanto o constante progresso da sintese do movimento sobre o estado das técnicas fotogréficas. O fato é que ambos estavam domina- dos pela imaginagao do século. E claro que encontrariamos outros exemplos, na historia das técnicas e das invengoes, da convergéncia das pesquisas, mas preciso distinguir aquelas que resultam precisamente da evolucao cientifica € das necessidades industriais (ou militares) daquelas que, obviamente, as precedem. Desse modo, 0 velho mito de Icaro precisou esperar 0 motor de explosao para descer do céu platdnico. Ele existia, porém, na alma de cada homem desde que ele contemplou o passaro. De certo modo, pode-se dizer ‘© mesmo do mito do cinema, mas seus avatares até 0 século x1x tém ape- nas uma longinqua relagéo com aquele do qual hoje em dia participamos, e que foi o promotor do aparecimento das artes mecainicas, caracteristicas do mundo contemporaneo. 40 Sobre Why We Fight Hist6ria, documentos e atualidades ‘A guerra e seu apocalipse de acontecimentos desmedidos estiveram na ori- gem de uma revalorizagio decisiva do documentario de reportagem E que, durante a guerra, os fatos ganham uma dimensio e gravidade excepcionais. Eles constituem uma encenago colossal perto da qual a de Antony and Cleo- patra [Ant6nio ¢ Cleépatra, de J. Stuart Blackton ¢ Charles Kent, 1908] ou a de Intolerdncia [Intolerance: Love's Struggle Throughout the Ages, de D. W. Griffith, 1916] aparecem como cendrio para turné interiorana. Mas essa é uma encenagao real e s6 serve uma tinica vez. O drama também tem uma interpre- tagao “de verdade’, pois os figurantes aceitaram morrer ao entrar no campo (de batalha) da camera, como 0 escravo gladiador na pista do coliseu. Gracas a0 cinema, 0 mundo realiza uma astuciosa economia no orcamento de suas guerra, jd que estas tém duas finalidades: a historia e o cinema, como esses produtores pouco conscienciosos que filmam um segundo filme nos cenérios dispendiosos demais do primeiro. No caso, 0 mundo tem razio. A guerra, com seus amontoados de cadaveres, suas imensas destruigées, suas inumerd- 1 Texto publicado originalmente em Esprit, ano 14, jun. 1946, pp. 1022-26. 4.

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