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O DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL E O REINO DA DINAMARCA:

HAMLET, CODIFICAÇÃO E O FANTASMA PATERNO1

Nessa apresentação dirigida ao grupo de estudos Prismas do Direito Civil


Constitucional, será analisado o texto de lavra nosso coordenador Ricardo
Aronne constante do Capítulo VIII do livro Razão & Caos no Discurso Jurídico
e outros ensaios de Direito Civil-Constitucional cujo título consta acima.

No primeiro momento, furtei-me à apresentação por timidez e pelo grande


compromisso que é apresentar uma análise de texto com a presença do
próprio autor. No entanto, em face dos vários anos participando do grupo e
até em retribuição por constar da dedicatória do próprio livro, utilizando-me
de expressão do próprio texto, também eu tive que sair da minha zona de
conforto para apresentar o tema. O que o faço somente com a intenção de
trazer um novo olhar, jamais de superar o que se pode apreender do próprio
conteúdo do texto.

O tema do capítulo envolve Shakespeare, na tragédia do Príncipe da


Dinamarca a quem a vida ensinou que o amor gera morte e traz
questionamentos sobre a condição humana com suas mazelas e
inquietações, relacionando-o com o Projeto de Lei que veio a formar o
Código Civil brasileiro de 2002.

Com um título inusitado, uma co-relação interessante entre direito e literatura


e lições que merecem atenção e reflexão, também esse capítulo precisa ser
lido e relido, com especial atenção às notas de rodapé, para que se absorva
todo o conteúdo crítico e os importantes alertas que dele emanam.

Para iniciar, reporto-me ao Solilóquio de Hamlet (tradução de Millôr


Fernandes), eis que acredito ser o “medo da morte” o que acometeu aos
juristas elaboradores do novo (velho) Código Civil de 2002, ou, numa
expressão que muito me agradou no texto, tomada de Tepedino, revelho
Código Civil:

Ser ou não ser — eis a questão.


Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias —
E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;
Só isso. E com o sono — dizem — extinguir
Dores do coração e as mil mazelas naturais
A que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente desejável. Morrer — dormir —
1
ARONNE, Ricardo. Razão & Caos no Discurso Jurídico e outros ensaios de Direito
Civil-Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. Pág. 146/176.

1
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os sonhos que hão de vir no sono da morte
Quando tivermos escapado ao tumulto vital
Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.
Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo,
A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei,
A prepotência do mando, e o achincalhe
Que o mérito paciente recebe dos inúteis,
Podendo, ele próprio, encontrar seu repouso
Com um simples punhal? Quem agüentaria fardos,
Gemendo e suando numa vida servil,
Senão porque o terror de alguma coisa após a morte

O país não descoberto, de cujos confins
Jamais voltou nenhum viajante — nos confunde a
vontade,
Nos faz preferir e suportar os males que já temos,
A fugirmos para outros que desconhecemos?
E assim a reflexão faz todos nós covardes.
E assim o matiz natural da decisão
Se transforma no doentio pálido do pensamento.
E empreitadas de vigor e coragem,
Refletidas demais, saem de seu caminho,
Perdem o nome de ação.

Poder-se-ia pensar que a iniciativa de formulação de uma nova codificação


civil seria uma “empreitada de vigor e coragem” pelos objetivos ambiciosos
de atualizar a legislação privada para a realidade atual, mas o que se viu no
Projeto de Lei nº 118, que originou o Código Civil de 2002 foi uma
“empreitada de vigor e coragem” que saiu do seu caminho.

EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DO NOVO CC

A Exposição de Motivos de Miguel Reale, dirigida ao Ministro da Justiça, na


parte que trata do Direito das Coisas, discorre sobre a necessidade de
inclusão no regramento civil da função social da propriedade2, fazendo
também referência à proteção ao meio ambiente3 e ao princípio da

2
A atualização do Direito das Coisas não é assunto opcional, em termos de mera perfectibilidade
teórica, mas sim imperativo de ordem social e econômica, que decorre do novo conceito constitucional
de propriedade e da função que a esta se atribui na sociedade hodierna.
3
b) O reconhecimento do direito de propriedade, que deve ser exercido em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de tal modo que sejam preservados, de conformidade com o
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais e o equilíbrio ecológico, bem como
evitada a poluição do ar e das águas.

2
solidariedade4.

O que parecia ser um sopro de lucidez e contemporaneidade se esvaiu tal


qual o fantasma do Rei Hamlet no momento em que o galo cantou, nos
parágrafos seguintes do seu texto:

m) A igual exigência de certeza jurídica obedece a


disposição segundo a qual o penhor de veículos se
constitui mediante instrumento público ou particular,
também inscrito no Registro de Títulos e Documentos,
com a devida anotação no certificado de propriedade.

No texto, o fantasma aparece como sopro do passado no presente e, tal


comparativo é bastante pertinente e muito bem evidenciado na exposição de
motivos do então Ministro da Justiça Armando Falcão, baseada na de Miguel
Reale e dirigida ao Congresso.

O fantasma do passado claramente assombrou o presente nos fundamentos


adotados para defender a necessidade de reforma do código:

e) Preservar, sempre que possível, a redação da


atual Lei Civil, por se não justificar a mudança de seu
texto, a não ser como decorrência de alterações de
fundo, ou em virtude das variações semânticas
ocorridas no decorrer de mais de meio século de
vigência.
f) Atualizar, todavia, o Código vigente, não só para
superar os pressupostos individualistas que
condicionaram a sua elaboração5, mas também
para dotá-lo de institutos novos, reclamados pela
sociedade atual, nos domínios das atividades
empresárias e nos demais setores da vida privada.
h) Dispensar igual atenção aos estudos e críticas que
tais proposições suscitaram, a fim de ter-se um
quadro, o mais completo possível6, das idéias
dominantes no País, sobre o assunto.
i) Não dar guarida no Código senão aos institutos e
soluções normativas já dotados de certa
sedimentação e estabilidade, deixando para a
legislação aditiva a disciplina de questões ainda
4
Por essa razão, o Anteprojeto, tanto sob o ponto de vista técnico, quanto pelo conteúdo de seus
preceitos, inspira-se na compreensão solidária dos valores individuais e coletivos, que, longe de se
conflitarem, devem se completar e se dinamizar reciprocamente, correspondendo, assim, ao
desenvolvimento da sociedade brasileira, bem como às exigências da Ciência Jurídica
contemporânea.
5
Superaram??? Onde?
6
Novamente ressurge a falácia da completude do sistema jurídico.

3
objeto de fortes dúvidas e contrastes, em virtude de
mutações sociais em curso, ou na dependência de
mais claras colocações doutrinárias, ou ainda quando
fossem previsíveis alterações sucessivas para
adaptações da lei à experiência social e econômica.
m) Acolher os modelos jurídicos validamente
elaborados pela jurisprudência construtiva de nossos
tribunais, mas fixar normas para superar certas
situações conflitivas, que de longa data
comprometem a unidade e a coerência7 de nossa
vida jurídica.

A completude, unidade e coerência do sistema jurídico são o que defende


Bobbio na Teoria do Ordenamento Jurídico (sucessor da dogmática jurídica
de Max Weber8 e do positivismo de Hans Kelsen9). Assim, são identificados
os “fantasmas” do novo (velho) Código Civil de 2002.

A falsa premissa de ser possível a unicidade, a completude e a não-


contradição no sistema jurídico positivo é presente na exposição de motivos
e consta do texto legal permeado de conceitos sem dar abertura aos
princípios10.

O Direito Privado continua na zona de conforto, permanece com os mesmos


simulacros11, atrelado a conceitos absolutos e verdades inafastáveis,
artificialismos que não podem mais ser utilizados no mundo atual, porque
nada mais trazem do que a falsa segurança com o afastamento do acaso.

A recodificação demonstrou a tentativa desesperada de “frear” a pós


7
Outra falácia.
8
De ordem jurídica com neutralidade axiológica, isenta de contradições, apartada dos acontecimentos
sociais com teor prescritivo (dever-ser).
9
Redução do direito às normas jurídicas impositivas, organizadas em um sistema de normas válidas
hierarquicamente organizadas até se chegar à norma que fundamenta todo o sistema (Grundnorm).
10
PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e Sistema Jurídico. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1999. Pág. 57: “As categorias aristotélicas de causa material e causa final – mesmo exorcizada sua
matriz metafísica – jamais seduziram esse modelo de intelectualismo treinado na arte insípida de
substituir a realidade por conceitos abstratos.”
11
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio D’Água, 1991. Pág. 14: “A
passagem dos signos que dissimulam alguma coisa aos signos que dissimulam que não há nada,
marca a viragem decisiva. Os primeiros referem-se a uma teologia da verdade e do segredo (de que
faz ainda parte a ideologia). Os segundos inauguram a era dos simulacros e da simulação, onde já
não existe Deus para reconhecer os seus, onde já não existe Juízo Final para separar o falso do
verdadeiro, o real da sua ressurreição artificial, pois tudo já está antecipadamente morto e
ressuscitado. Quando o real já não é o que era, a nostalgia assume todo o seu sentido.
Sobrevalorização dos mitos de origem e dos signos de realidade. Sobrevalorização de verdade, de
objectividade e de autenticidade de segundo plano. Escalada do verdadeiro, do vivido, ressurreição do
figurativo onde o objecto e a substância desapareceram. Produção desenfreada de real e de
referencial, paralela e superior ao desenfreamento da produção material: assim surge a simulação na
fase que nos interessa — uma estratégia de real, de neo real e de hiper-real, que faz por todo o lado
uma estratégia de dissuasão.”

4
modernidade artificialmente revertendo-se a seta do tempo12, utilizando-se de
valores ultrapassados, revestidos de atualidade apenas pela data de
publicação legislativa.

No íntimo de cada um existe essa necessidade de certeza, necessidade de


segurança, medo da morte, isso é humano e justamente por isso nos é
palatável pensar de modo positivo na codificação, como se todo o necessário
ao Direito Civil estivesse unificado naquele diploma, de modo uniforme,
retilíneo, concreto.

É humano, mas não real. É mais uma das artimanhas psicológicas que nos
tranqüilizam, ao menos até o próximo golpe do acaso.

Ernest Becker no seu livro A negação da morte, quando fala em filistinismo,


trazendo Kierkegaard em comento, traça definição dessa natureza humana:
“A maioria dos homens calcula como viver em segurança dentro das
probabilidades de um determinado conjunto de regras sociais. O filisteu, o
indivíduo acomodado, confia em que, mantendo-se em nível baixo de
intensidade pessoal, pode evitar ser desequilibrado pela experiência. O
filistinismo funciona, como disse Kierkegaard, “tranqüilizando-se com o
trivial”. Sua análise foi escrita quase um século antes de Freud falar na
possibilidade de “neuroses sociais”, na “patologia de comunidades culturais
inteiras”.”13

O Código Civil de 2002 acalenta a natureza humana, demonstra claramente


o medo da morte no sentido de pretender regular o filisteu, o homem médio,
dando-lhe a certeza em todas as suas relações sociais.

Para o Código, somos todos homens médios. Toda a sociedade é planificada


em homens médios, com padrões de condutas certas e estabelecidas de
modo fixo retirando qualquer autonomia e espontaneidade.

Baudrillard em seu Simulacros e Simulações traduz bem a pretensão do


nosso novo Código: “... é o mesmo modelo de infalibilidade programática, de
segurança e de dissuasão máximas que rege hoje em dia a extensão social.
Também aqui mais nada será deixado ao acaso, de resto é isso a
socialização, que começou a séculos mas que entrou a partir de agora na
fase acelerada, dirigindo-se para um limite que se julgava explosivo (a
revolução), mas que para já se traduz num processo inverso, implosivo,
irreversível: dissuasão generalizada de todo o acaso, de todo o acidente, de
12
GLEISER, Ilan. Caos e Complexidade – A Evolução do Pensamento Econômico. Rio de Janeiro:
Capus, 2002. Pág. 57: “Na opinião de Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química e um dos fundadores
da Teoria da Complexidade, a visão de mundo descrita pelo determinismo newtoniano, onde a seta do
tempo poderia ser revertida, é muito idealizada, longe do mundo instável e evolutivo em que vivemos.”
13
BECKER, Ernest. A Negação da Morte – Uma abordagem psicológica sobre a finitude humana. 4ª
edição. Rio de Janeiro: Record, 2010. Pág. 109. Remetendo a Freud, Civilization and Its Discontents,
p. 81. [O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974.]

5
toda a transversalidade, de toda a finalidade, de toda a contradição, ruptura
ou complexidade numa sociedade irradiada pela norma, votada à
transparência sinalética dos mecanismos de informação.”14

Mas será mesmo que é possível prever em um único código todos os


padrões de conduta possíveis e dar-lhes a conseqüência jurídica adequada?
Se consegue evitar o acaso pela codificação? É possível frear o
comportamento social pela norma?

É certo que não.

A estrutura codificada apenas permite que alguns vivam segundo os seus


ditames e outros estejam à margem.

É o código dos que têm, onde os que não têm ficam à margem, sem
alteridade, sem proteção e sem a possibilidade de entrarem no sistema. É o
caso do Mestre Vitalino (Pág. 147/148), como o de tantos outros. Quem está
à margem é fantasma, mas que não assombra, que não é...

O próprio Príncipe Hamlet ficou à margem do sistema quando matou Polônio,


não lhe sendo impostas as conseqüências naturais de um assassinato por
ser o Príncipe da Dinamarca, ao invés da prisão, foi enviado à Inglaterra. No
entanto, mais ao molde de crime e castigo, no seu retorno à Dinamarca,
morreu pela espada envenenada do filho de quem assassinou.

Na perspectiva da racionalidade patrimonialista codificada, vale o ter, só é


quem tem, quem não tem, não é. No entanto, o código possui uma falsa
neutralidade, forjada na fixidez irreal e no fechamento conceitual das
relações jurídicas.

Poderíamos cobrar de Miguel Reale, um retorno fantasmagórico, para


explicar-nos onde ficou a solidariedade dentro do novo Código. Se a
solidariedade o motivou, porque não constou de seu conteúdo? Por que não
foram estabelecidos mecanismos de acesso ao Código aos que ficaram à
margem?

O texto segue com a questão da “verdade”. Efetivamente, a pretensão


codificada é pela eleição de verdades absolutas aplicáveis a todos os
homens.

Hamlet demonstra muito bem essa dualidade entre a realidade e a “imitação


de realidade” que se encontra no código, pois é uma peça que encena outra
peça baseada numa realidade ditada por um fantasma, disfarçada na arte da
encenação e com outros personagens.

14
Jean Baudrillard, ob. cit., Pág. 50.

6
No entanto, a verdade sempre esbarra na percepção humana e na
linguagem. O objeto da observação não é o objeto que apreendemos e
definimos como observado. Objeto e percepção se distanciam.

HANNAH ARENDT “No momento da ação, para nosso desconforto, revela-


se, primeiro, que o “absoluto”, aquilo que está “acima” dos sentidos - o
verdadeiro, o bom, o belo –, não é apreensível, porque ninguém sabe
concretamente o que ele é. Não há dúvida de que todo mundo tem dele uma
concepção, mas cada um o imagina concretamente como algo inteiramente
diferente. Na medida em que a ação depende da pluralidade dos homens, a
primeira catástrofe da filosofia ocidental, que em seus últimos pensadores
pretende, em última instância, assumir o controle da ação, é a exigência de
uma unidade que por princípio se revela como impossível, salvo sob a tirania.
Segundo, que para servir aos fins da ação qualquer coisa serve como
absoluto – a raça, por exemplo, ou a sociedade sem classes e assim por
diante. Tudo é igualmente conveniente, “qualquer coisa serve”. (...) Terceiro,
que, ao aplicar-se o absoluto – justiça, por exemplo, ou o “ideal” em geral
(como em Nietzsche) – a um fim, antes de mais nada se faz possíveis ações
injustas, bestiais, porque o “ideal”, a justiça mesma, já não existe como
padrão de medida, mas se converteu num fim realizável, produzível, no
mundo. Em outras palavras, a realização da filosofia abole a filosofia, a
realização do “absoluto” abole o absoluto do mundo. E, assim, finalmente, a
realização ostensiva do homem simplesmente abole os homens.”15

Hannah Arendt não concorda com Nietzsche que diz que o deserto está em
nós, o que demonstra no Epílogo do mesmo livro: “O moderno crescimento
da ausência-de-mundo, a destruição de tudo o que há entre nós, pode ser
também descrito como a expansão do deserto.” 16 Ela adverte que o
problema está em pensarmos que não conseguimos fazer do deserto um
lugar humano, em nos acostumarmos à vida no deserto, em nos adaptarmos
a ele.

Falar em conceitos para justificar segurança absoluta é irreal, não faz parte
do mundo pós moderno, não está adequado com a linguagem
contemporânea. É prender o direito e a vida em sociedade num “simulacro”,
onde ação e reação são previamente planejadas.

Se não forem consolidados os valores que informam o sistema jurídico de


modo a provocar uma ventilação, a rigidez consolidada acaba por tornar-se
obsoleta, inaplicável, deserticamente artificial, tornando os homens, meros
conceitos de homens.

A função social da propriedade constitucionalmente prevista17, na medida em


15
ARENDT, Hannah. A Promessa da Política. Rio de Janeiro: Difel, 2008. Pág. 43/44.
16
Arendt, ob. cit., Pág. 266.
17
“Art. 5º

7
que constou da exposição de motivos do novo Código, trouxe a expectativa
de que viesse a ter a adequada previsão no seu texto. No entanto, somente
se encontra adotado expressamente o princípio da boa-fé.

No Direito das Coisas codificado permanece positivada a idéia de


propriedade como relação entre sujeito e coisa, não havendo qualquer
regramento acerca da função social da propriedade como relacionamento
entre o proprietário e os demais sujeitos de direito, na tutela do ser em
detrimento do ter e não do ser em detrimento do ter.

No Direito Empresarial, quando se trata da liquidação das empresas, a


função social da empresa ficou acima do interesse econômico dos credores,
na medida em que o Juiz pode aceitar o plano de recuperação mesmo que
algum dos credores não aceite (a aceitação fique abaixo do quórum mínimo).

As alíquotas do IPTU de Porto Alegre, demonstram a observação à função


social da propriedade. Atualmente, as alíquotas aplicadas são as seguintes:
– imóveis residenciais: 0,85%
– imóveis não-residenciais: 1,10%
– terrenos: varia de 1,50% a 6,00%
– terrenos com projeto arquitetônico de imóvel residencial aprovado pela
PMPA: 0,95%
– terrenos com projeto arquitetônico de imóvel nãoresidencial aprovado
pela PMPA: 1,20%

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;


Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais
da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 1.o O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte
mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2.o A
propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 4.o É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano
diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado
ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial
urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública
de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em
parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados,
por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando- a para sua moradia ou de sua família,
adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel
rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da
dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a
partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo
critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento
racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III -
observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o
bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”

8
– imóveis utilizados na produção agrícola: 0,03%

Voltando a Hamlet, o fantasma paterno até chegou a assombrar a exposição


de motivos, mas passou longe de ser seriamente considerado, como na
tragédia shakespeariana, a ponto de ter guarida no texto legal.

Foi o medo da morte, foi o medo de ir além, o medo da incerteza que


manteve a codificação civil praticamente igual à anterior, igualmente
desconectada com a realidade pós moderna, negação absoluta do acaso, da
complexidade, do caos.

A negação da incerteza não traz a certeza, apenas acaba por aumentar a


angústia com a falsa aparência de segurança e racionalismo emanados do
código. “A incerteza é o habitat natural da vida humana – ainda que escapar
da incerteza seja o motor das atividades humanas.” BAUMAN 18

A busca incessante da verdade absoluta, como objetivo investigativo da


ciência, nos faz esquecer que é impossível conceituar todas as relações
humanas e todos os objetos de modo a fazer com que todos os sujeitos os
compreendam e apreendam da mesma forma. A percepção é individual, as
relações subjetivas são diferenciadas, não existe “homem médio” para
justificar a planificação de direitos e deveres universalmente aceitos e
aplicáveis. A linguagem não descreve exatamente o objeto observado.

Vejamos Hamlet que também estava em busca da verdade, em busca de


saber o que acontecera com o seu pai. O Príncipe diz que finge loucura. No
seu fingimento, traz atores para encenarem uma peça que, imita a realidade
(realidade?), apresentada a quem a viveu (viveu?).

Hamlet finge estar louco ou está realmente louco pelo desejo de vingança
que lhe foi apresentado pelo fantasma de seu pai? Onde está o real? O real
se confunde com o simulacro do real. É o hiper-real, pois a origem do que foi
encenado em Hamlet não se encontra na realidade, na medida em que
Hamlet não sabe qual é a realidade, ele encena o que imagina ter sido real, o
que o fantasma de seu pai lhe disse.

Mas e o fantasma é real? Se ninguém volta da morte, como escapou o Rei


Hamlet por duas vezes? Real ou hiper-real?

Hamlet, na sua peça, codificou (encenou) a sua realidade hiper-real,


prevendo, inclusive a conseqüência esperada, matar Cláudio, o novo Rei.
Também na peça o acaso tomou conta da conseqüência esperada.

O sistema jurídico precisa mais, o sistema jurídico precisa ser informado por
valores integradores, valores que proporcionem a sua abertura e
18
BAUMAN, Zygmunt. A Arte da Vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Pág. 31.

9
adaptabilidade para que possa alcançar uma realidade complexa, mutante e,
por vezes, entrópica, que importa em uma sincronicidade de eventos que se
interrelacionam.

Como sempre, em sua incessante lucidez, ao tecer comentários no Código


Civil Anotado, o Professor Aronne leciona: “Em tal medida, sabendo-se da
mobilidade e abertura do sistema jurídico, o direito das coisas deve ser
refletido, fundamentalmente, a partir dos valores constitucionais, cuja
codificação (como qualquer norma) deve realizar. Importa, assim,
principalmente nesta seara do direito patrimonial, ter sempre no horizonte a
principiologia conformadora do direito das coisas, pois ela deve trazer para
dentro do Código a opção constitucional de valores que o Direito deve
realizar e que, portanto, alimenta o conjunto de regras positivado
infraconstitucionalmente.
6. A racionalidade intersubjetiva, própria para compreender os dispositivos da
nova lei civil, deve ser buscada na Constituição Federal. Os princípios
positivados nesta senda de densificação axiological são vetores
fundamentais para interpretação do sistema, não só para resolução de
antinomias e colmatação de lacunas mas primordialmente para que se colha
o sentido normativa dos respectivos comandos, para que a orientação
teleological garanta unidade ao sistema. Não é na codificação que se
encontrará parâmetros de unidade no Direito Privado, visto que as mais
graves contradições possíveis no ordenamento decorrem de incoerência de
valores. Para que melhor se compreenda o alcance do exposto, no novo
Direito Civil, onde o ser prepondera sobre o ter, ganhando a pertença um
caráter instrumental, no retomar do homem social, o homem em seu sentido
antropomórfico, o centro protetivo do sistema, migrando a patrimonialidade
para a periferia.” 19

Ao largo da realidade, o Código traz modelos, como se através deles fosse


possível prever todo o conjunto de relações jurídicas, cerceando todo o
acaso, retirando o espaço das incertezas e das mutações geradas pelo
tempo. O código é hiper-real, retira a conexão da norma com a realidade e
isola o Direito Civil dos valores do sistema.

Trazendo Hamlet novamente à colação, a codificação fechada como foi


concebida pode ser traduzida na cena IV, quando o Príncipe se dirige à
Rainha Gertrudes20:

Olhos sem senso, sensações sem olhos,


Ouvidos sem as mãos e sem os olhos,
Olfato só, ou parte dos sentidos,
Doente de um sincero sofrimento,
19
ARONNE, Ricardo. Do Direito das Coisas. In PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coordenador). Código
Civil Anotado. Porto Alegre: Síntese, 2004. P. 775/776.
20
BLOOM, Harold. Hamlet Poema Ilimitado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. Págs. 64 e 248.

10
O novo código é assim, insensível à realidade axiológica constitucional.

A repersonalização do Direito Civil reside na necessidade de percepção do


Direito das Coisas de modo diferente da teoria clássica, na qual se via
unicamente o relacionamento entre a coisa e o seu proprietário de forma
absoluta, com oponibilidade erga omnes. Com a constitucionalização do
Direito Civil, a perspectiva do Direito das Coisas toma outro prisma, passa a
ser o regramento das relações entre o proprietário e os demais sujeitos na
sociedade.

Tanto a função social da propriedade, quanto a função social da posse, que


emanam da ordem constitucional surgem como limitadores do exercício do
direito de propriedade. Assim, o direito de propriedade deixa de ser absoluto.

No código é a racionalidade patrimonialista que impera, quando foram


incluídas pequenas nuances de limitação ao direito de propriedade, ela
assumiu caráter mais patrimonial do que propriamente de respeito aos
demais sujeitos. Ex.: Função social pelo pagamento do IPTU, possibilidade
de indenizar o proprietário do solo caso o valor da plantação o supere (pág.
162).

Segundo os valores constitucionais, o novo Direito das Coisas passa a


regular duas espécies de vínculo, além da posse, sendo de ordem real a
relações entre o proprietário e a coisa (domínio) e outra de ordem pessoal
que são as relações intersubjetivas entre proprietários e demais sujeitos21.

É de se ter em conta que a propriedade só corresponde ao domínio quando


se tratar de propriedade plena (direitos de usar, fruir e dispor). A propriedade,
por ser registral, instrumentaliza o domínio, são complementares, mas não
idênticos.

O texto finaliza com a análise de uma exposição de Luis Felipe Pondé


(http://www.cpflcultura.com.br/site/2009/08/13/integra-agenda-para-o-medo-
luiz-felipe-ponde/) a respeito da agenda do medo.

Essa hermenêutica do medo explica, em larga medida, a imobilidade do


Direito Civil e a resistência dos juristas a abrirem os olhos a esse novo
patamar de constitucionalização.

O medo da morte se relaciona com a perspectiva que aqui se desenvolve


com relação ao novo código civil na medida em que representa o medo da
ruptura com o passado, o medo de reconhecer o mundo jurídico sob um novo
patamar, de acordo com os valores constitucionais e permitindo o
21
ARONNE, Ricardo. Por uma nova hermenêutica dos direitos reais limitados. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001. Pág. 162.

11
reconhecimento pleno da solidariedade social e da dignidade da pessoa
humana (alteridade).

Pondé trata do medo ancestral, o medo da morte que acometeu os nossos


ancestrais e que marca a humanidade. Medo dos fracos frente a um mundo
hostil onde os animais são mais fortes e mais adaptados, onde o homem só
se diferia pela consciência.

Diz a exposição de Pondé: “O homem é um animal que tem mais consciência


do que devia (é o predador que carregamos dentro de nós mesmos), esse
instrumento da adaptabilidade (instrumento de sobrevivência), mas ao
mesmo tempo é o que corrói inconscientemente. Grande parte da nossa
experiência humana é negociar com formas de não ter consciência disso,
cultura dominada pela negação da morte, idéia de que vamos viver para
sempre e sermos cada vez mais felizes. O retorno do recalcado é mais grave
quanto maior a expectativa de sucesso. O ser humano tem que fugir de si
mesmo tal como o lobo uiva para a lua, mas o mundo lembra o tempo todo
que o esquema de fuga não vai dar certo.
Qual seria a consciência Possível para isso? A verdadeira condição do ser
humano é o de um náufrago (Ortega y Gasset) que só cresce e vira gente
num sentido mais profundo quando toma consciência que já perdeu,
enquanto você não tem essa consciência não está no mundo. O náufrago
não está morto, mas percebe que está jogado num mundo que não conhece,
que um desastre o jogou lá, não tem como sair disso, mas quanto mais tentar
negar que ele é fruto do naufrágio (Jaspers – Se começa a falar de cura
quando você percebe que a existência é o naufrágio, é profunda experiência
de gozo em estar vivo que vai sendo o tempo todo medido, erudido,
destruído, enfrentado por experiências de frustração [experiências do
mundo], que quanto mais se precisa fugir disso maior a experiência da
denegação disso. A cura começa quando a experiência do naufrágio se
instala).

Nós nunca vamos deixar de ter medo, o medo ancestral era de ser comido
por vários bichos, hoje em dia a gente passa a vida sem ter experiência de
ser cadeia alimentar (só depois que a gente morre22), que só acontece
raramente, mas o medo não é só medo de objeto, o medo é uma forma da
consciência (Becker), é forma de você ser consciente, forma de se relacionar
com o meio ambiente (só o louco não tem medo23) uma pessoa normal tem
medo.

22
Também essa característica do homem, de finitude e de irmos todos ao mesmo lugar, é retirada de
Hamlet: “Uma certa convocação de vermes políticos está ainda agora a atacá-lo. O verme é o único
imperador da dieta: cevamos todas as outras criaturas para que nos engordem, e cevamos a nós mesmos
para as larvas. O rei gordo e o mendigo esquelético não são mais que variedade de cardápio – dois
pratos para a mesma mesa. Esse é o fim.” (BLOOM, ob. cit., Pág. 68 e 260.) Aqui é presente a
percepção que no fim, todos os homens, ricos ou pobres, são iguais.
23
Aqui entra Ofélia, que, enlouquecida, não tem medo da morte e comete suicídio.

12
Mesmo em ambiente civilizado mas o caráter inexorável de aparecerem
coisas das quais a gente tem medo aparecem o tempo todo, o que temos
que aprender é a enfrentá-lo, a coragem vive ao lado do medo. O problema
não é ter medo, é ser capaz de continuar de pé, mesmo com medo. É ter
consciência que o universo não foi feito para ser um berço. O naufrágio é
contrário à mentira, que não é o que se inventa (acorda e diz hoje eu vou
mentir), é o que está embutido na sua experiência de sucesso adaptativo –
mentira caracteriológica sustenta sua vida e em algum momento fracaça e
vai se tendo brechas da consciência de fundo - animal acoado o tempo todo
- e é nesse jogo que a vida vai se desenvolvendo.

É por isso que admiramos os heróis porque no fundo queremos ser heróis.
Quando você sonha ser herói? Quando em cada minuto da existência se tem
a visão de que outro fracassaria e você não fracassou.

Por mais mentiroso que a gente seja, todo mundo sabe reconhecer alguém
que está tendo coragem. Mesmo que seja o pequeno heroísmo cotidiano, a
experiência fundamental do heroísmo não pede platéia, aquele que tem atos
heróicos para que as pessoas saibam, não é o herói é um narcisista (na
clínica Freudiana não é o que se apaixona por si mesmo e morre é quem tem
o ego fraco que depende do olhar do outro o tempo todo).

O medo é de não ser visto, reconhecido, olhado e amado o tempo todo.


Quanto mais se depende desse tipo de experiência, mais se está jogado na
desestrutura de uma experiência narcísica. O heroísmo pode aparecer na
capacidade de viver sem que alguém tenha que dizer “muito bem você
conseguiu” que se consiga passar do dia para o outro sem alguém ter que
dizer você fez a coisa certa, que você consiga saber que fez a coisa certa.

Outra coisa é conseguir sobreviver aos próprios afetos, uma coisa que
caracteriza a experiência humana é a desordem da alma, de afetos
desordenados, se a alma for muito ordenada é sinal que a pessoa não está
bem, um certo grau de desordem é necessário, mas não se sabe qual o grau
que faz bem...

Ser herói não é racional. O medo está dentro de cada um e ninguém foge de
dentro de si. Ninguém sabe o que é humanidade, nós conhecemos seres
humanos, conhecemos nossos vizinhos, mas não sabemos quem é a
humanidade. Racional do ponto de vista “entendendo a razão” – estrutura
mental que garante a sobrevivência, organiza a vida em comum, reduz a
margem de mau estar e amplia a de bem estar.”

Pondé tece comentários com a atitude de determinadas pessoas durante o


nazismo, que não eram objeto de perseguições e que colocavam suas
famílias em risco para esconderem os perseguidos, com altíssimo custo: “Às
vezes não se pode associar a coragem e o enfrentamento do medo a se dar

13
bem, ainda bem que alguns seres humanos conseguem ir além do medo,
mesmo diante de todas as razões para voltar atrás, conseguem enfrentar o
que a maioria não enfrentaria, mas paga-se um preço alto por isso.”

Aí está o verdadeiro heroísmo, o heroísmo não codificado, o que sai da


norma, o que não se vincula ao permitido, proibido e obrigatório, o que não
se dá pela obtenção de vantagem ou pelo medo da punição, se dá pelo fazer
o que é certo.

“Porque a gente sabe que a cada experiência a gente vai se perdendo e a


única saída é se perder de vez. A covardia não é um bom remédio para o
medo, porque as pessoas não gostam dos covardes, porque no fundo, todos
nós, somos covardes. Deus pode estar nos detalhes, às vezes no pequeno
detalhe é que se vê o todo.

O que caracteriza Eros é ao mesmo tempo ter a experiência avassaladora da


falta, do fracasso, da carência e do medo ao mesmo tempo em que
pressente a existência da plenitude e é justamente por estar tensionada entre
os dois extremos é que está o Eros, o ser humano é tensionado entre os
extremos. Vocação natural para buscar algo pleno, perfeito ou poderoso
(Deus para Platão).” Assim se encerra o vídeo de Pondé.

Aronne traz na página final do texto em análise: “O que distingue, pois, a


“Consciência” da “Codificação” são os fins. Uma visa à alteridade; a outra, à
paralisia. Na codificação, o medo é uma forma de consciência, fundadora de
uma segurança burguesa, encrispada por uma metafísica de subúrbio. E em
sua racionalidade, não sobra espaço para heróis. Ela nos dissolve na fuga da
realidade. Consegue ser um não espaço e um não tempo, sem qualquer
transcendência. Apenas abstraindo. Em busca do “Homem Médio” (em outros
termos, medíocre). A propriedade, a família e o contrato!! Quais!!???”

As relações humanas são muito mais amplas e complexas do que alcançou o


novo Código Civil, obviamente, a positivação de todas as relações seria
impossível, mas um sistema mais aberto e mais permeado de valores
constitucionais certamente oferece respostas mais adequadas às demandas
sociais.

“Voltemos à questão do campo político-social como reflexo de um real


contingente – a artificialidade das leis. Nossa intenção aqui foi tentar
aprofundar um pouco mais o cenário dessa contingência revelando o caráter
lúdico da ordem humana, na medida em que tanto na física como na política,
tem-se um sistema de variáveis que necessitam de uma que permaneça
constante. Na física mitiga-se o acaso pela via da experiência que se impõe
pela evidência da repetição controlada; na política, pela via de um jogo de
cincupiscências que mantenha o grupo humano sob controle, submetido,
pelo medo ou pelas vantagens, às regras artificiais. Em ambos os casos, o

14
homem insuficiente busca formas de organizar uma natureza inexistente.”24

A legislação nada mais é do que a invenção de um jogo25 e a submissão a


ele para permitir a vida em sociedade, mas se a sociedade deve se submeter
ao jogo é necessário que as suas regras sejam suficientes a regrar e
determinar padrões básicos de conduta, o que só se consegue com a
definição de valores para alimentarem e preencherem as lacunas, dando a
adequada resposta à realidade social.

Assim, nossa opção é de adaptação à aridez do deserto ou de trabalharmos


para a sua humanização o que eu creio ser o objetivo das nossas reuniões
do Prismas.

O Solilóquio Hamletiano quando retornou da Inglaterra, demonstra a nossa


condição humana, de seres conscientes e em permanente luta com nós
mesmos26:

Como as coisas se ligam contra mim


E incitam minha tímida vingança.
O que é um homem, se o seu grande bem
É dormir e comer? Um bruto, apenas.
Aquele que nos fez como descortino,
Com passado e futuro, certamente
Não nos dotou dessa razão divina
Para mofar sem uso. Seja, entanto,
Esquecimento ou escrúpulo covarde,
De pensar claramente no que ocorre –
Cérebro que possui somente um quarto
De consciência e três quartos de baixeza –
Eu nem sei por que vivo e apenas digo
Isso deve ser feito, pois não faltam
Razões, vontade e força, e os próprios meios
Para fazê-lo. Exemplos evidentes
Me exortam a lutar. Como essa armada
Tão vultuosa e tão cara, conduzida

24
PONDÉ, Luiz Felipe. O Homem Insuficiente: Comentários de Antropologia Pascaliana. São Paulo:
Edusp, 2001. Pág. 88.
25
O homem não pode estabelecer uma ordem suficiente porque ele mesmo não o é. Sendo ele a fonte
única das leis, sendo ele mesmo incapaz de ordem, somente a arbitrariedade pode operar: deve-se
“inventar” um jogo e submeter-se a ele. Sendo o homem um ser mergulhado em concumpiscência pura,
deverá ser uma instancia de primeira ordem (a concupiscência mais “pesada” por apresentar a
“gravidade” do corpo) a capacitada a impor alguma oprtanização – “inventar”o jogo: a força física que
submete os corpos pelo medo. O sistema que tem “legitimamente”o direito a essa força pouco importa,
contanto que funcione. Trata-se de um jogo, logo a legitimidade é puramente o fato de manter as
pessoas jogando dentro das regras, e como não há comunicação com a justiça ou a razão absolutas – a
não ser justiça e razões locais e definidas em termos artificiais - , uma vez tendo-se um parâmetro
invariável, ele deve ser mantido. (Pondé, ob. cit., pág 177)
26
BLOOM, ob. cit., Pág. 73 e 264/265.

15
Por um príncipe jovem e sensível,
Cuja paixão, numa ambição divina,
Faz muxoxo às possíveis conseqüências,
Expondo o que é mortal e duvidoso
A toda essa aventura, à morte, ao risco,
Por uma casca de ovo...Pois ser grande
Não e mover-se sem motivo sério,
Mas com grandeza se bater por nada,
Se a honra está em jogo. Como posso
Eu, que tenho o pai morto e a mãe infame –
Estímulos do espírito e do sangue –
Deixar tudo dormir, enquanto vejo,
Para vergonha minha, a sorte absurda
De vinte mil soldados, que por causa
De um sonho, ou de uma promessa de uma glória,
Vai para a tumba como para o leito,
Lutam por um pedaço de terreno
Onde não cabem todos os seus corpos,
Para a todos servir de sepultura?
Doravante, terei ódio sangrento,
Ou nada valerá meu pensamento.

Para finalizar, cito Bauman:

A universalidade da cidadania é a condição preliminar


de qualquer “política de reconhecimento”
significativa. E, acrescento, a universalidade da
humanidade é o horizonte pelo qual qualquer política
de reconhecimento precisa orientar-se para ser
significativa. A universalidade da humanidade não se
opõe ao pluralismo das formas de vida humana; mas
o teste de uma verdadeira humanidade universal é
sua capacidade de dar espaço ao pluralismo e
permitir que o pluralismo sirva à causa da
humanidade – que viabilize e encoraje “a discussão
contínua sobre as condições compartilhadas do bem”.
27

Nossas vidas, quer o saibamos ou não e quer o


saudemos ou lamentemos, são obras de arte. Para
viver como exige a arte da vida, devemos, tal como
qualquer outro tipo de artista, estabelecer desafios
que são (pelo menos no momento em que
estabelecidos) difíceis de confrontar diretamente;
devemos escolher alvos que estão (ao menos no
27
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. Pág. 126.

16
momento da escolha) muito além do nosso alcance, e
padrões de excelência que, de modo perturbador,
parecem permanecer teimosamente muito acima de
nossa capacidade (pelo menos a já atingida) de
harmonizar com o que quer que estejamos ou
possamos estar fazendo. Precisamos tentar o
impossível E, sem apoio de um prognóstico favorável
fidedigno (que dirá da certeza), só podemos esperar
que, com longo e penoso esforço, sejamos capazes de
algum dia alcançar esses padrões e atingir esses
alvos, e assim mostrar que estamos à altura do
desafio. 28

28
BAUMAN, Zygmunt. A Arte da Vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Pág. 31.

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