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Revista de Filosofia

Universidade Federal do Rio Grande do Norte


Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Filosofia

ISSN 0104-8694

Natal, v.16, n. 26, jul./dez. 2009


Princípios – Revista de Filosofia ISSN 0104-8694
Editor responsável
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Princípios, UFRN, CCHLA


v.16, n. 26, jul./dez. 2009, Natal (RN)
EDUFRN – Editora da UFRN, 2009.
Revista semestral
1. Filosofia. – Periódicos
ISSN 0104-8694
RN/UF/BCZM CDU 1 (06)
Revista de Filosofia
v.16 n.26 jul./dez. 2009
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Filosofia

SUMÁRIO

ARTIGOS
Os paradoxos da identidade e seu papel como limitadores de uma teoria 5
funcional da linguagem
Araceli Velloso

A natureza como negação da imortalidade da alma no jovem Feuerbach 35


Eduardo Ferreira Chagas

Podem as serpentes conviver com as pombas? Uma reflexão filosófica 53


sobre a ética na política
Cinara Nahra

A não-aposta do ateu: Diderot e a aposta pascaliana 71


Paulo Jonas de Lima Piva

A presença da história no “primeiro” Sartre: Roquentin e a náusea frente 87


a ilusão da aventura heróica
Thana Mara de Souza

O fim da metafísica segundo Habermas: ponderações à luz do 107


pensamento heideggeriano
Caroline Vasconcelos Ribeiro

Formação da obra de arte. O formar como “fazer” que, enquanto faz, 135
inventa o “modo de fazê-lo”: uma perspectiva estética em Luigi Pareyson
Íris Fátima da Silva

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009


O experimentalismo contra os idealismos nos escritos intermediários de 149
Nietzsche
Jelson Roberto de Oliveira

A presença de Nietzsche na obra de Foucault: mais do que uma afinidade 167


filosófica
Luiz Celso Pinho

Natureza e liberdade: a questão ética a posição indeterminista de Karl 189


Popper
Paulo Eduardo de Oliveira

Esboços de categorias no direito privado kantiano 211


Fábio César Scherer

Por uma metafísica do sublime 229


Martha de Almeida

TRADUÇÃO
George Berkeley e a tradição platônica 257
Costica Bradatan
Tradução de Jaimir Conte

RESENHAS
Filosofias da matemática, de Jairo José da Silva 285
Marcos Silva

Alienações do mundo, de Rodrigo Alves Neto 299


Pedro Duarte de Andrade

Corpo, de Leandro Neves Cardim 307


Sandra S. F. Erickson

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009


Os paradoxos da identidade e seu papel como
limitadores de uma teoria funcional da linguagem

Araceli Velloso *

Resumo: O paradoxo da análise e a antinomia da relação de nomeação são dois argumentos


que servem para explicitar um aspecto paradoxal das interpretações filosóficas da identidade.
Meu objetivo nesse artigo será o de investigar esses paradoxos e seus papeis como limitadores
de uma teoria semântica. Usarei como guia dessa investigação a hipótese de que as
dificuldades nas quais todas as teorias semânticas investigadas incorrem não se devem a tese
da relação de nomeação, como diria Carnap, mas ao caráter composicional dessas teorias.
Essa investigação se dará em duas etapas. A primeira será uma investigação a cerca das
soluções que foram historicamente apresentadas para evitar esses paradoxos. Procuraremos
mostrar que cada uma dessas soluções envolve de alguma maneira o problema de lidar com
esse aspecto composicional. Em especial, daremos ênfase a uma tentativa fracassada de
solução defendida por Quine, Carnap e mesmo Wittgenstein e Russell, num certo período,
que ficou conhecida como a tese da extensionalidade. A segunda etapa consistirá em uma
avaliação crítica sobre em que medida a verdadeira causadora dos paradoxos não seria uma
preferência filosófica equivocada por uma abordagem composicional da linguagem.
Palavras-chave: Antinomia da relação de nomeação; Frege; Identidade; Paradoxo da análise;
Tese da extensionalidade

Abstract: The Paradox of Analysis and the Antinomy of the Name-Relation are two
arguments commonly used to clear up a paradoxical aspect of the interpretation of identity.
My aim in this paper is to investigate those paradoxes and their limiting role in the
constitution of a semantic theory. I will use as a guide line of this investigation the
hypothesis that the difficulties in which all the semantics theories investigated fall are due
not to the name-relation thesis, as Carnap will say, but to the compositional character of
those theories. The investigation will take place in two stages. The first one will be an
investigation on the historical solutions that were presented to avoid those paradoxes. I will
try to show that every one of those solutions involves somehow the problem of handling
compositionality. I will pay special attention to an unsuccessful attempt of solution known
as “The Thesis of Extensionality” defended by Quine, Carnap and even Wittgenstein and
Russell, for a while. The second stage will be a critical evaluation of the cause of the

*
Professora Adjunta do Departamento de Filosofia da UFG. E-mail: araceli@fchf.ufg.br.
Artigo recebido em 21.09.2009, aprovado em 30.12.2009.

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 05-34


6 Araceli Velloso

paradoxes. My thesis, as I said before, is that the real cause wasn’t the name relation thesis
but a philosophical preference for a compositional semantic approach.
Keywords: Antinomy of the name-relation, Frege, Identity, The paradox of analysis, Thesis of
extensionality

Introdução
Pretendemos investigar neste artigo uma classe de paradoxos que têm em
comum estarem todos conectados (de maneiras diversas) à noção de
“identidade”. São eles: o paradoxo da análise, a antinomia da relação de
nomeação e o paradoxo do mentiroso. Nossa investigação se dará em duas
etapas. A primeira envolverá uma avaliação das soluções que foram
historicamente apresentadas para evitar esses paradoxos. Esta investigação
mostrará que todas elas propõem, em algum ponto, uma nova maneira de
lidar com termos singulares. Em especial, daremos ênfase a uma tentativa
fracassada de solução que ficou conhecida como “a Tese da
Extensionalidade”, defendida por Quine, Carnap, e mesmo Wittgenstein e
Russell, num certo período. A segunda etapa consistirá em avaliar
criticamente até que ponto o uso da identidade em uma linguagem
formalizada reflete uma preferência filosófica por uma abordagem semântica
fundacionista e composicionalista.
As duas etapas acima se dividirão em cinco seções. Começaremos
com uma breve discussão sobre a noção de “identidade”, apresentando
rapidamente três diferentes interpretações dessa noção: a “versão
ontológica”, a versão terminológica e a distinção entre sentido e referência.
Na seção 2, apresentaremos a visão funcional da linguagem, que atribuímos
a Frege. Na seção 3, investigaremos o paradoxo da análise, discutindo,
predominantemente, as soluções daquele filósofo alemão. Apresentaremos,
na seção 4, a abordagem de Carnap com relação aos paradoxos e às soluções
por ele analisadas. Finalmente, na seção 5, detalharemos a relação entre a
tese da extensionalidade e o paradoxo do mentiroso. A título de conclusão,
abordaremos ao final do artigo as implicações filosóficas equivocadas por de
trás da inclusão da “identidade” em um determinado sistema formal com
características funcionais composicionais.

1 A identidade
A concepção mais intuitiva que temos da “identidade” é como uma relação
que um objeto só pode ter consigo mesmo e com nenhum outro, uma
Os paradoxos da identidade... 7

concepção que poderíamos caracterizar como sendo “fortemente


ontológica”. O argumento em favor dessa concepção seria, em linhas gerais,
como se segue. Começando com uma análise das sentenças de uma
linguagem, as sentenças de identidade seriam identificadas com aquelas que
contivessem o verbo “ser” ladeado por dois termos singulares. Dizemos
normalmente nesses casos que o verbo “ser” está sendo usado “no sentido de
identidade”. Prosseguindo com o argumento, como esse verbo se encontra
ladeado por dois termos singulares, e esses termos normalmente são
compreendidos como representantes de objetos no mundo, concluiremos
forçosamente que uma relação está sendo afirmada: a de alguma coisa que
seria idêntica a outra. Contudo, embora todas as (outras) relações envolvam
dois ou mais objetos, no caso da identidade, ao considerarmos os termos
singulares como representantes de objetos no mundo e aceitarmos que nossa
afirmação seja verdadeira, teremos apenas um único objeto e estaremos, em
última análise, dizendo desse objeto que ele é idêntico a si mesmo e não
poderia ser idêntico a mais nenhum outro. A essa primeira concepção mais
intuitiva da identidade chamaremos de “versão ontológica”, realçando o fato
de que nossa afirmação de identidade está sendo interpretada
ontologicamente. O local onde essa versão é apresentada de maneira mais
direta é o Tractatus de Wittgenstein (Wittgenstein, 1993, 5.5303).
Uma maneira bastante tradicional, e de caráter ainda ontológico, de
determinar quando se está falando do mesmo objeto é procurar estabelecer
se os dois candidatos a essa relação têm as mesmas propriedades. É bastante
conhecida a definição de identidade, normalmente atribuída a Leibniz,
segundo a qual “dois” objetos são idênticos se, e somente se, não há
nenhuma propriedade que um tenha e falte ao outro. A formulação dessa
tese, uma formulação que requer uma lógica de segunda ordem, consiste em
dizer que para toda propriedade P, a = b, se, e somente se, P(a) = P(b). O
princípio, frequentemente conhecido como “a lei de Leibniz”, é considerado
por muitos como a própria definição de identidade. 1 Do modo como a
enunciamos, ela tem a forma de uma equivalência lógica, que, na maioria
das vezes, é dividida em duas definições distintas, duas implicações lógicas.
A primeira reza que, se dois objetos são idênticos, então eles possuem as
mesmas propriedades; e a segunda, conversamente, que, se dois objetos

1
Por exemplo, (Frege, 1978, p.76, § 65)
8 Araceli Velloso

possuem as mesmas propriedades, então eles são idênticos. A primeira


implicação é também conhecida como “o princípio da indiscernibilidade dos
idênticos” e é um princípio lógico amplamente aceito, desde a Antiguidade.
A segunda, por sua vez, recebe um nome parecido com o da primeira, mas
que reflete a sua natureza de conversa: ela é chamada de “o princípio da
identidade dos indiscerníveis”. Enquanto a “ida” é aceita sem reservas, a
“volta” é aceita com restrições no mundo filosófico, pois envolve alguns
pressupostos extra-lógicos 2 .
Em contraposição às versões ontológicas da noção de “identidade”,
temos uma concepção alternativa, adotada por Frege no Begriffsschrift, que
poderia ser considerada uma versão terminológica, por seu caráter puramente
linguístico. Segundo essa versão alternativa, a relação de identidade não se
daria entre objetos, mas entre seus nomes. Assim, para explicar esse
comportamento anômalo dos nomes quando acompanhados da identidade,
Frege sustenta que eles estariam “por seus conteúdos” 3 em todos os
contextos, exceto nas sentenças de identidade. No último caso, eles estariam
representando a si próprios. Por tanto, caso quiséssemos afirmar a situação
de que os dois nomes estão pelo mesmo conteúdo, teríamos de afirmar um
juízo a respeito dessa identidade: o de que é o caso que a seja igual a b
(Frege 1971, §24). A essa segunda concepção demos o nome de “versão
terminológica”, por tratar a identidade como uma relação de fato, porém
não entre objetos no mundo, mas sim entre termos da linguagem.
Há ainda uma terceira concepção, a mais famosa de todas,
defendida por Frege no “Function and concept” e no “On sense and
reference” (Frege, 1977a, 29, 1977b, 57). Segundo essa terceira versão da
identidade, os termos envolvidos nessa “relação” designariam, de fato, duas
entidades semânticas. Essas entidades não pertenceriam, nem ao mundo,
nem a linguagem, elas seriam dois sentidos (ou “modos de apresentação”)
da mesma referência e habitariam um terceiro reino: um reino semântico.

2
Teríamos de aceitar, por exemplo, que se dois objetos têm as mesmas propriedades, então
eles são o mesmo em qualquer interpretação (ou modelo) da realidade (ou mesmo em
qualquer mundo possível).
3
Uma das questões centrais da nossa análise é a própria noção de “conteúdo” adotada por
Frege no Begriffsschrift, uma vez que, no decorrer da obra do autor, essa noção se duplica
passando a corresponder as noções de “sentido” e de “referência” (Bedeutung), como
discutiremos essa noção mais adiante.
Os paradoxos da identidade... 9

Em resumo, essa terceira concepção veria a identidade como uma relação


entre dois “modos de apresentação” diferentes da mesma referência.
Embora difiram quanto à natureza dos objetos envolvidos, em
todas as caracterizações apresentadas temos um elemento comum: a
afirmação feita por uma sentença de identidade é sempre uma afirmação
que, direta ou indiretamente, versa sobre objetos. Na seção seguinte
apresentaremos brevemente a visão que chamamos de “visão funcional”, ou
ainda de “visão composicional” da linguagem e que atribuímos a Frege,
juntamente com uma investigação sobre o papel desempenhado pelos
objetos nessa abordagem semântica.

2 A visão funcional (composicional) da linguagem e o papel dos objetos


Para Frege, assim como para muitos filósofos antes e depois dele, a intuição
mais clara que temos de como a linguagem funciona é a de que ela versa
sobre os objetos e afirma desses certas propriedades e relações. Dizemos, por
exemplo, que um objeto é vermelho ou oval, ou que ele é belo, ou ainda
que é do mesmo tamanho que outro. Frege, portanto, subscreve à tese
platônica, defendida no diálogo Sophista (Platão, 1952, [262-263]), de que
sempre se pode fazer duas perguntas a respeito de qualquer enunciado,
fundamentais para a compreensão do seu significado e de suas condições de
verdade: “Sobre o que estamos falando?” e “O que estamos afirmando
disso 4 ?”. As respostas de Frege a essas perguntas teriam, no caso das
sentenças singulares, os seguintes formatos, respectivamente: “Estamos
falando do objeto tal e tal.” e “Estamos afirmando desse objeto (ou objetos)
tal e tal propriedade (ou relação).”. De acordo com essa visão da linguagem,
portanto, os nomes e os seus respectivos objetos seriam os pontos de partida
para qualquer teoria da linguagem. Seriam eles também os responsáveis pelo
estabelecimento das condições de verdade das sentenças, pois os valores de
verdade das mesmas dependeriam sempre da pergunta: “Esse objeto tem
essa propriedade?”.
Considerando a posição fregiana madura, podemos observar que a
linguagem não se restringe ao nível dos objetos simples (aqueles que

4
Observemos que a ocorrência do pronome demonstrativo “disso” é anafórica e, portanto, só
podemos responder a segunda pergunta, se tivermos respondido de modo positivo a
primeira.
10 Araceli Velloso

normalmente consideramos como objetos). Segundo essa abordagem, os


termos gerais, ou expressões funcionais – os representantes linguísticos de
funções proposicionais – tomariam como argumentos os nomes de objetos e
dariam como resultado uma proposição. Para Frege, temos apenas duas
categorias excludentes de correlatos das expressões da linguagem: entidades
saturadas (objetos) e entidades insaturadas (funções). Sendo assim, as
proposições (ou “pensamentos”), devido a sua natureza saturada, teriam de
ser classificadas como nomes de objetos e, como se sabe, nomeariam um
dentre os dois valores de verdade. Na concepção fregiana madura, o
verdadeiro e o falso também seriam, portanto, dois objetos – o que o
filósofo chama de objetos lógicos. Ainda considerando essa posição tardia,
uma vez estabelecido o valor de verdade de uma proposição, poderíamos
então conjugá-la a outras que também fossem asserções, ou seja, também
tivessem seus valores de verdade determinados. Assim, poderíamos conjugar
duas proposições, obtendo assim uma terceira proposição que teria como
valor de verdade o resultado dessa operação. A todo esse processo podemos
chamar: a visão funcional (ou composicional) fregiana da linguagem (Porto
2005, 15).
A visão da linguagem que estamos chamando de “funcional” fica
bem mais clara nos escritos médios e finais de Frege. Em diferentes trechos
do seu artigo “Logic in Mathematic”, ele insiste na ideia de “blocos de
construção”, Bausteine, (Frege, 1979a, p. 211/225). A expressão em questão
visa ressaltar que a linguagem, uma estrutura hierárquica e indutiva por
excelência, seria constituída por elementos atômicos a partir dos quais os
elementos mais complexos seriam formados. Os elementos atômicos seriam
as partes sub-sentenciais, os nomes e predicados, e os elementos mais
complexos, as sentenças simples e as sentenças compostas por outras
sentenças – a parte sentencial (Porto, 2005, 16).
É bastante razoável imaginar que, numa estrutura assim montada,
precisaríamos de um inicio, uma base, sendo os candidatos tradicionais e,
com efeito, mais óbvios a constituírem essa base, os nomes de objetos,
Eigennamen. Argumentos das funções por excelência, os objetos nomeados
consistiriam, por conseguinte, no fundamento ou substrato da estrutura
ontológica por de trás da linguagem (considerada sintaticamente). Essa
estrutura, por sua vez, funcionaria como pano de fundo para a compreensão
da estrutura semântica da linguagem, paralela a sintática, bem como para o
Os paradoxos da identidade... 11

estabelecimento das condições de verdade das sentenças. Segundo o próprio


Frege, os objetos aos quais os nomes se refeririam seriam primitivos e
indefiníveis.

Ao admitirmos objetos, sem restrições, como argumentos e valores de funções,


surge a questão de o que é isso que chamamos de um objeto. Considero uma
definição adequada impossível, uma vez que temos algo por demais simples para
admitir análise lógica. É possível apenas indicar o que queremos dizer. Aqui só
posso dizer brevemente: Um objeto é qualquer coisa que não seja uma função, de
tal forma que uma expressão que o designe não contenha nenhum espaço vazio.
(Frege, 1977a, p. 32)

Essa indicação do que seriam os objetos é central à visão funcional


que vínhamos apresentando, pois decorre diretamente do estabelecimento
de uma distinção exaustiva entre função (necessariamente insaturada) e
argumento (necessariamente saturado). Portanto, para manter essa
distinção, não basta que tenhamos um domínio universal de objetos, mas
também é necessário que não confundamos funções e objetos. Por
conseguinte, se não preservarmos o caráter insaturado e essencialmente
predicativo das funções, perderíamos a possibilidade de estabelecer o que
são os objetos, visto que esses são definidos como aquilo que pode saturar
uma função. 5
Uma consequência da visão funcional que estamos tratando,
sobremodo relevante para a discussão sobre a noção de “identidade”, é que
ela faria o “conteúdo” 6 do todo depender do “conteúdo” das suas partes.
Assim, no caso das sentenças, os seus “conteúdos” dependeriam dos
“conteúdos” dos nomes e do “conteúdo” das funções. No entanto, ao

5
As duas entidades, por sua vez, objetos e funções, seriam resultantes de uma segmentação
do juízo em duas partes. Essa discussão, que aborda o que muitos chamam de “tese da
prioridade do juízo sobre suas partes”, pode ser sustentada em diversos trechos da obra de
Frege, mas principalmente na fase inicial. Ela é uma discussão importante para
compreender a visão que estamos chamando de funcional, mas não vamos nos estender
nela para não nos desviarmos no foco principal desse artigo, qual seja: uma discussão sobre
a noção de identidade e a tese da extensionalidade Cf. (Ruffino, 1991).
6
Uma das questões centrais a nossa análise é a própria noção de “conteúdo” adotada por
Frege, uma vez que essa sofre diversas modificações no decorrer da obra do autor. Como
discutiremos dessa noção mais adiante, preferimos agora tratá-la globalmente com a
expressão “conteúdo”, como o faz Frege no Begriffsschrift.
12 Araceli Velloso

tratarmos das sentenças de identidade no contexto de uma visão funcional


da linguagem é inevitável adotarmos, numa primeira tomada de posição, a
visão ontológica exposta no primeiro parágrafo desse artigo, por ser mais
simples e se encaixar melhor com o resto da teoria. Concluiríamos, pois,
que, se temos dois nomes para o mesmo objeto, como afirma uma sentença
de identidade, temos de poder substituir um pelo outro em qualquer
contexto mantendo o conteúdo constante, ou seja, continuarmos dizendo a
mesma coisa. Essa é a primeira versão de um princípio que chamaremos de
“princípio de substituição”.
Em resumo, uma interpretação ontológica das sentenças de
identidade conjugada a uma visão funcional da linguagem tem por
consequência o principio de substituição. Podemos afirmar, com efeito, que
a viabilização de uma visão funcional da linguagem depende centralmente
de critérios semânticos universais. Critérios que não tenham exceções.
Assim, os critérios determinadores dos conteúdos dos termos devem se
aplicar universalmente, pois somente assim poderemos compreender um
número infinito de sentenças a partir de um número finito de palavras,
famoso argumento de Frege em favor da sua visão funcional da linguagem
(Frege, 1979a, p.225). Podemos concluir, por conseguinte, que a identidade
desempenha um papel central ao conectar dois aspectos fundamentais da
concepção fregiana da linguagem – a distinção função e argumento e a visão
funcional (composicional) da linguagem.
A despeito das vantagens e desvantagens que as versões “ontológica”
e “terminológica” apresentam, tanto uma quanto outra acarretam sérias
dificuldades. Com efeito, a versão ontológica seria justamente uma dentre as
três premissas que levariam ao primeiro dos dois paradoxos que
pretendemos analisar na próxima seção, o paradoxo da análise, ou da
identidade. Nas seções 3.2 e 3.3, investigaremos as dificuldades da versão
terminológica, para em seguida discutir a solução intermediária adotada por
Frege em seu famoso artigo “Sobre o sentido e a referência”.

3 O paradoxo da análise ou da identidade


3.1 Apresentação da discussão
Não obstante o nome, “paradoxo da análise”, ou “paradoxo da identidade”
(Davidson, 1963, p. 311), esse problema apresenta-se na literatura muitas
vezes, não sob a forma de um paradoxo, mas, em realidade, sob a forma de
Os paradoxos da identidade... 13

um enigma. O caráter enigmático consistiria no fato de que toda sentença


verdadeira poderia ser reduzida por meio de substituições a uma verdade
lógica trivial e não informativa. Essas substituições, por sua vez, se
baseariam sempre em sentenças de identidade. Com efeito, esse era o modo
como Carnap encarava as formulações semelhantes desse enigma (Carnap,
1963, p. 911-912). Segundo o filósofo alemão em sua réplica as objeções de
Davidson (1963, p. 311-350), têm-se um paradoxo (ou antinomia) apenas
se, do procedimento de substituição em questão, se puder derivar uma
contradição, ou seja, caso, à mesma sentença, for necessário atribuir dois
valores de verdade diferentes.
Apesar das críticas de Carnap, é razoável imaginar que se possa falar
de um caráter paradoxal com relação a essa coleção de problemas que
circundam a identidade e que ficaram conhecidos por uma variedade de
homônimos: “paradoxo da análise”, “paradoxo da identidade” e “antinomia
da relação de nomeação”. Para tanto é necessário apenas que se faça uma
reconstrução que tenha como ponto de partida um conjunto de três
premissas. Uma vez que as premissas tenham sido estabelecidas, fica então
bastante trivial mostrar a impossibilidade de se aceitar todas elas como
verdadeiras ao mesmo tempo. Esse é o modo como Carnap (1956, p. 98),
Davidson (1963, p. 311) e, muito mais tarde, Richard L. Mendelsohn
(2005, p. 28-30) montam o paradoxo.
Consideremos, inicialmente, as seguintes três premissas:

(1) As sentenças a = a e a = b têm valores cognitivos


(erkenntniswert) diferentes (Frege, 1960b, p. 56);

(2) A identidade é uma relação entre objetos (e não entre nomes de


objetos), ou seja: a = b é sobre r(a) e r(b) 7 ;

(3) Se Pa é sobre r(a), então, se r(a) = r(b), Pa e P[Sa/b] têm o


mesmo valor cognitivo. (Mendelsohn, 2005, p. 29)

7
Vamos usar a seguinte simbologia: r(n) é a referência de n, Pn é uma sentença que contém
o termo singular n e P[Sn/m] é a sentença obtida ao se substituir uma ou mais ocorrências
de n em P por m.
14 Araceli Velloso

A premissa (1) seria uma espécie de truísmo epistemológico – o de


que as sentenças de identidades são normalmente informativas, ou seja: o de
que o que pretendemos, pelo menos na maioria das vezes, não é afirmar a
obviedade de ser um objeto idêntico a si mesmo. Com efeito, a primeira
premissa se compromete com uma posição filosófica ainda mais importante,
qual seja: a de que podemos ter identidades necessárias, porém com
conteúdo, como seria o caso das sentenças matemáticas de identidade. Em
todos esses casos, estar-se-ia pressupondo que os termos singulares que
ladeiam a identidade teriam valores cognitivos diferentes.
A premissa (2) interpreta a identidade como uma relação entre
objetos. Ela explicita por tanto a tese sobre a identidade que chamamos de
“versão ontológica”. A terceira premissa finalmente consiste no princípio de
substituição, que segundo Mendelsohn, teria sido adotado por Frege no
Begriffsschrift. No entanto, o princípio apresentado por Frege como “o
princípio de substituição” (sem usar esse nome, é claro) não faz menção a
noção de “valor cognitivo”, mas sim a outra noção que desempenha um
papel único nesse artigo da fase inicial da obra do filósofo: a noção de
“conteúdo conceitual”. Não obstante, como o argumento está sendo
montado de maneira independente do período histórico em questão,
acreditamos que o importante seja que a mesma noção apareça na primeira
e reapareça na terceira premissa. Assim, optamos por manter a expressão
mais neutra “valor cognitivo” em ambas as premissas. 8
As três premissas, consideradas conjuntamente, contribuem, cada
uma a sua maneira, para a visão que chamamos aqui de “visão funcional da
linguagem”. Não obstante, a sua conjunção não é inócua: ela leva a um
paradoxo, como veremos em seguida. Comecemos pela aceitação da
premissa (2). Nesse caso, estamos, de fato assumindo que a identidade seja
uma relação entre objetos, aquela que chamamos de “versão ontológica”.
Mas se, em decorrência de (2) e da aceitação de uma visão funcional da
linguagem, aceitarmos o princípio de substituição de Frege, (3), acabaremos
por obter o seguinte resultado: dizer a = b é o mesmo que dizer a = a, ou
seja, reduziremos todas as identidades a obviedades não informativas. Esse
resultado, entretanto, tornaria falsa a premissa (1). Assim, a conclusão que

8
O ponto crucial, a meu ver, é que o critério que viabiliza a distinção entre a = a e a = b,
descrito na primeira premissa, reapareça na terceira que contém o critério de substituição.
Os paradoxos da identidade... 15

somos inicialmente levados a aceitar é a de que, se conjugarmos (2) e (3) a


(1), obteremos um paradoxo. Vejamos em seguida como se chegaria a essa
conclusão contraditória através de um exemplo.
Exemplo do paradoxo para uma sentença de identidade:

a: Pelé  r(a) é a referência de a [por (2)];

b: Edson Arantes do Nascimento  r(b) é a referência de b


[Também por (2)];

E sabemos que a = b, ou seja, que S1: “Pelé é Edson Arantes do


Nascimento”;

Mas por (2) se a = b  r(a) = r(b);

Logo, por (3), podemos substituir (b/a) em S1 obtendo S1’: Pelé é


Pelé;
Mas, se a = b, porque r(a) = r(b), então S1 e S1’ dizem a mesma
coisa, ou seja, têm o mesmo valor cognitivo 9 (como afirma 3);
Conclusão: (1) teria de ser falsa;

Essa mesma dificuldade também poderia ser encontrada ao


fazermos substituições em sentenças que não sejam de “identidade”:

a: “Pelé”  r(a) é a referência de a;

c: “A pessoa que fez mil gols”  r(c) é a referência de c;

Sabemos que S2: “Pelé fez mil gols”;

Sabemos também que a = c, ou seja, que: “Pelé é a pessoa que fez


mil gols”;

9
A palavra usada por Frege em alemão é Erkennitswert.
16 Araceli Velloso

Logo, por (3), podemos substituir (a/c) em S2 e obter S2’: “A pessoa


que fez mil gols fez mil gols”;
Mas, se a = c, porque r(a) = r(c), então S2 e S2’ dizem a mesma
coisa, ou seja, têm o mesmo conteúdo informativo (ou valor cognitivo);
Conclusão: (1) teria de ser falsa;

Duas soluções seriam possíveis para o paradoxo da análise, da


maneira como ele foi apresentado aqui, ambas envolvendo a eliminação do
conflito entre a premissa (1) e as premissas (2) e (3): (I) abandonar a
premissa (2); ou (II) abandonar a premissa (3). Cada uma dessas soluções,
no entanto, envolve problemas. No caso de optarmos pela segunda solução
e abandonarmos a premissa (3), perderíamos o caráter funcional da parte
sub-sentencial da linguagem, i.e., a partir da denotação das partes, não
poderíamos estabelecer o valor de verdade do todo sentencial 10 .
Alternativamente, poderíamos abandonar a premissa (2), mas nesse caso
seríamos levados, como o foi Frege no Begriffsschrift (Mendelsohn 2005, p.
42), a aceitar que o tratamento dos nomes na linguagem formal em questão
fosse ambíguo. Com efeito, como veremos em seguida, por causa do
paradoxo da análise, Frege, no Begriffsschrift, recusa a premissa (2) e define a
identidade como uma relação entre nomes, ou seja, entre duas expressões da
linguagem 11 .

3.2 A posição de Frege no Begriffsschrift


No Begriffsschrift, Frege apresenta a condicionalidade e a negação como
operações que incidem sobre os conteúdos de juízos. Contudo, sua
abordagem da identidade é bastante diferente. Ele a chama de “identidade
de conteúdos”:

A identidade de conteúdos difere da condicionalidade e da negação pelo fato de


que ela se aplica aos nomes e não aos seus conteúdos. Enquanto em outros

10
Como veremos adiante, o princípio de substituição utilizado por Frege no Begriffsschrift é
por ele considerado, em realidade, um híbrido que vai ser decomposto em dois princípios
diferentes em “Sobre o sentido e a referência”.
11
Essa explicação de porque Frege teria optado por abandonar a premissa 2 para o caso da
relação de identidade fica clara mais tarde em “Sobre o sentido e a referência”, escrita pelo
próprio filósofo.
Os paradoxos da identidade... 17

contextos os sinais são meramente representativos de seus conteúdos, de tal modo


que qualquer combinação na qual eles participem expresse apenas uma relação
entre os seus respectivos conteúdos, eles subitamente ostentam-se a si próprios
quando combinados por meio do sinal de identidade de conteúdo; pois ele
expressa a circunstância de que dois nomes têm o mesmo conteúdo. Portanto a
introdução de um sinal para a identidade de conteúdo necessariamente produz
uma bifurcação no significado de todos os sinais: eles estão algumas vezes por seus
conteúdos e algumas vezes por eles próprios. (Frege, 1967, p. 20-21, §8)

Segundo essa definição, os nomes estariam por seus conteúdos em


quase todas as sentenças exceto nas de identidade, gerando, portanto, uma
ambiguidade originária em sua interpretação. As expressões linguísticas, que
normalmente estariam por seus “conteúdos” no artigo Begriffsschrift de
Frege, passariam a representar a si próprias quando entre elas fosse colocado
um símbolo de identidade. Inversamente, quando os nomes que ladeiam a
identidade reaparecessem em contextos sentenciais, não se esperaria que eles
estivessem representando a si mesmos, mas sim aos seus conteúdos. Assim, a
ambiguidade na interpretação dos nomes, apontada pelo próprio Frege em
seu texto, teria levado o filósofo alemão a introduzir outro princípio
garantindo que, ao substituirmos dois nomes que tenham o mesmo
conteúdo (Inhalt) em uma sentença qualquer, lográssemos manter o valor
de verdade do todo sentencial. Sem essa manobra técnica, Frege não teria
podido manter a sua concepção funcional da linguagem (Mendelsohn,
2005, 42). Com esse objetivo em mente, Frege escreve que, se
antepusermos à identidade um sinal para indicar a asserção de um juízo,
teremos a sua função modificada, passando os nomes em questão a
representarem os seus conteúdos.

 A  B significa que o símbolo A e o símbolo B têm o mesmo conteúdo conceitual,


de tal modo que A sempre pode ser substituído por B e vice-versa. (Frege, 1967, p.
20-21, §8)

Somente após afirmar o juízo de identidade poderíamos então fazer


a troca dos nomes, um pelo outro, em outras sentenças.
18 Araceli Velloso

3.3 A posição de Frege no “Sobre o sentido e a referência”


Apesar de recusar a premissa (2) no Begriffschrift, mais tarde, no artigo “On
sense and reference” Frege volta atrás em sua decisão 12 e opta, não pela
eliminação da premissa (2), mas pela modificação da (3). A solução
alternativa consiste em definir a identidade do modo como ficou mais
conhecido, ou seja, como uma relação entre “modos de apresentação”
diferentes do mesmo objeto, introduzindo assim um intermediário entre as
expressões e suas referências: o sentido. Como esclarece Frege em outra
obra, The basic laws of arithmetic:

O conteúdo eu chamo de “o conteúdo possível de um juízo”. Esse conteúdo se


divide para mim naquilo que eu chamo de “pensamento” e de “valor de verdade”.
Isso é uma consequência da distinção entre sentido e referência de um sinal.
(Frege, 1964, 6-7)

A alteração proposta por Frege envolve, como pudemos constatar


nesse trecho, a famosa duplicação da antiga noção de “conteúdo”, que é
substituída por duas novas noções: a de “sentido” e a de “referência”. Tal
duplicação, como era de se esperar, cria uma nova estrutura que segue em
paralelo a primeira. Na estrutura recém criada, a cada entidade sintática –
“sentenças”, “nomes” e “predicados” – corresponde uma entidade semântica
– “pensamentos”, “sentido do nome próprio” e “sentido da palavra
conceito” (Frege, 1979b, p. 96). Essas três últimas funcionariam como
intermediárias entre as três primeiras e os objetos aos quais elas se
refeririam 13 .
Com as duas estruturas podemos, de acordo com Frege, construir
dois princípios composicionais diferentes: o de que os sentidos das partes
determinam o sentido do todo – o pensamento expresso pela sentença – e o
de que a referência das partes determina o valor de verdade do todo – um

12
Não entraremos aqui em detalhes sobre as razões que levaram Frege a modificar sua
solução para o paradoxo da análise, uma vez que essa discussão seria um desvio no tema
central do artigo e será tema de outro artigo.
13
Carlo Penco, em seu artigo “Frege: Two Theses, Two Senses” discute uma aparente tensão
entre a tese fregiana de que haveria um isomorfismo entre a estrutura da linguagem e a do
pensamento e a tese, também fregiana, de que o mesmo pensamento poderia ser expresso
por mais de uma sentença diferente. Penco sugere uma reconstrução da noção de
“pensamento” que aparentemente resolveria essa tensão. (Penco 2003)
Os paradoxos da identidade... 19

dos dois objetos: o verdadeiro ou o falso. Deles se seguem os dois princípios


de substituição correspondentes.

Princípio (I): se a e b têm a mesma referência (Bedeutung), então Pa


e Pb têm o mesmo valor de verdade.

Princípio (II): se a e b têm o mesmo sentido (Sinn), então Pa e Pb


são nomes do mesmo pensamento, i.e., têm o mesmo valor
cognitivo (erkenntniswert).

Assim, caso substituamos dois termos com o mesmo sentido, um


pelo outro, numa sentença, não modificaremos o pensamento expresso por
ela. Alternativamente, se a substituição envolver dois termos com sentidos
diferentes e a mesma referência, obteremos outro pensamento, mas
manteremos o valor de verdade da sentença.
A formulação fregiana de dois princípios de substituição diferentes
sugere que o filósofo tenha finalmente optado por alterar o princípio (3) a
respeito da invariância do “conteúdo conceitual” (Begriffs inhalt) frente às
substituições, adotado no Begriffsschrift, considerando-o uma espécie de
híbrido, uma anomalia, enfim. A causa desse constrangimento seria o fato
de que as referências das partes estariam conectadas, erroneamente, ao
sentido do todo, ao invés de estarem ligadas ao valor de verdade do todo, o
que teria gerado o paradoxo.
A solução do paradoxo se dá da maneira seguinte. Com a
duplicação do princípio (3) em questão, podemos afirmar que a substituição
de um termo por outro que tenha a mesma referência (ou denotação)
preserva o valor de verdade, mas não o valor cognitivo. Para que o último
permanecesse o mesmo, teríamos de permutar mais do que termos co-
extensionais (termos com a mesma referência ou denotação), teríamos de
permutar termos co-intensionais (termos com o mesmo sentido ou valor
cognitivo). A divisão do principio de substituição de conteúdos apresentado
por Frege no parágrafo §8 do Begriffsschrift em dois princípios distintos,
contudo, dá margem a uma incomoda duplicidade de entidades, pois, para
cada expressão da linguagem, teríamos uma referência e, além da referência,
um sentido.
20 Araceli Velloso

A duplicação de entidades gerada pela introdução dos sentidos


proposta por Frege é, no entanto, muito criticada posteriormente por
Carnap e Quine. Ela será um dos pontos que, segundo Carnap, deveriam
ser evitados na solução dos paradoxos da identidade. Para o filósofo, a
origem comum de todas as dificuldades, como veremos em seguida, havia
sido colocar os objetos como origem necessária de todo o processo
semântico. Assim, no seu livro Meaning and Necessity (M&N) publicado
pela primeira vez em 1947, Carnap sugere que, ao invés de considerar os
sentidos como objetos, simplifiquemos nossa ontologia, mantendo um só
conteúdo para cada expressão linguística. Para viabilizar tal redução,
devemos atribuir a esse conteúdo único uma dupla possibilidade de
expressão: ora através de uma linguagem intensional (cujo principio de
substituição preserva o significado cognitivo), ora através de uma linguagem
extensional (cujo princípio de substituição preserva a referência de nomes,
predicados e frases, ou seja, o valor de verdade).

4 Carnap e a antinomia da relação de nomeação


4.1 A relação de nomeação e seus paradoxos
Em realidade, os paradoxos tratados por Carnap e por ele denominados
“antinomias da relação de nomeação” (Carnap, 1956, p. 96-98) diferem
daqueles que chamamos de “paradoxos da análise” na maneira como são
montados. Os paradoxos da análise dependem de uma série de três premissas
para que sejam considerados paradoxos legítimos. Já as antinomias da relação
de nomeação não precisam dessas premissas, pois o valor de verdade da
primeira sentença e o valor de verdade da sentença resultante do
procedimento de substituição já são contraditórios. Um dos nossos
objetivos nas seções subsequentes será o de investigar se esses dois grupos de
“paradoxos” semelhantes, porém não idênticos, são causados pelas mesmas
razões.
Para Carnap, há uma origem comum para todas as dificuldades e
ela remontaria a própria maneira como, desde Platão, se entende o
funcionamento da linguagem. A grande dificuldade que fora enfrentada
pela definição platônica de linguagem no diálogo Sofista (Platão, 1952,
[262-263]) era a de estabelecer o significado da mais simples das sentenças,
usando o significado de suas partes. O método utilizado para estabelecer o
significado das partes seria o da relação de nomeação, ou seja, compreender
Os paradoxos da identidade... 21

as partes como nomes de objetos de classes diferentes, sujeitos nomeando


indivíduos e predicados nomeando propriedades. Seria esse método de
compreender os significados das expressões através da sua relação de
nomeação com objetos e/ou propriedades, na opinião de Carnap, o
principal responsável pelo aparecimento das antinomias. Com efeito, o
filósofo alemão vai ainda mais longe. De acordo com a sua posição,
qualquer filósofo que adotasse os seguintes três princípios estaria se
comprometendo, mesmo que de modo implícito, com o esse método que
ele chama de “método da relação de nomeação”, e incorrendo, portanto, em
dificuldades afins (Carnap, 1956, 98).

24-1. O princípio da univocidade: toda expressão que for usada como um nome
(num certo contexto) é o nome de exatamente uma entidade; chamamos essa
entidade o nominatum da expressão;

24-2. O princípio de conteúdo (subject matter): uma sentença é sobre (lida com,
inclui no seu tema de discussão) os nominata dos nomes que ocorrem nela;

24-3. O princípio de inter-substitucionabilidade:


a. Se duas expressões nomeiam a mesma entidade, então uma sentença verdadeira
permanece verdadeira, se uma das duas expressões for substituída pela outra dentro
da sentença; […] as duas expressões são inter-substituíveis (em todo lugar);

b. Se uma sentença de identidade ‘….. = _ _ _’ (ou ‘….. é idêntico a _ _ _’ ou


‘….. é o mesmo que _ _ _’) é verdadeira, então as duas expressões que funcionam
como argumento ‘…..’ e ‘_ _ _’ são inter-substituíveis (em todo lugar); (Carnap,
1956, p. 98)

De acordo com os princípios listados, a relação de nomeação seria


uma relação entre uma expressão de uma linguagem e uma entidade, (ou
objeto) concreta ou abstrata, da qual essa expressão seria o nome. Nesses
casos, utilizaríamos algum tipo de nomenclatura que poderia ser, por
exemplo: x nomeia y, o nominatum de x é y, x denota y, ou ainda x designa y.
Quanto ao tipo das expressões que podem ser consideradas como nomes, há
alguma divergência entre os filósofos. Elas poderiam ser tanto termos como:
“Napoleão”, “Chicago”, “verde” (ou mesmo “verdidade”), “casa”, “sete”;
quanto, até mesmo, uma sentença declarativa.
A sugestão apresentada por Carnap no livro Meaning and Necessity
para tentar compreender e quiçá resolver as antinomias descritas consiste em
22 Araceli Velloso

considerá-las como resultado de se subscrever a tese de que os nomes estão


por objetos. Segundo Carnap, qualquer filósofo que aceite um dos dois
princípios (24-3a ou 24-3b) e disponha de termos singulares (nomes) em
sua linguagem (ou seja, use a relação de identidade) poderá reconstruir a
antinomia em seu sistema.

4.2 As diferentes versões da antinonima.


Frege, Russell, Quine e o próprio Carnap apresentam em suas obras
formulações alternativas bem semelhantes da mesma antinomia. Seguindo
Carnap, faremos em seguida uma apresentação sumária dessas formulações,
juntamente com uma breve investigação de cada uma delas, com vistas a
revisar o que entendemos por “antinomias da relação de nomeação”.
O primeiro exemplo, dado por Carnap, diz respeito à distinção
fregiana entre contextos nos quais uma sentença está sendo usada
referencialmente (denota um valor de verdade) e os casos excepcionais nos
quais ela é usada como nome de um pensamento.

(1) “As órbitas dos planetas são circulares” (F)


(2) “Copérnico afirma que as órbitas dos planetas são circulares” (v)

Nesse exemplo, embora a sentença “a órbita dos planetas é circular” seja


falsa e, portanto, para Frege, denote o objeto lógico “o falso”, e a sentença
“Copérnico afirma que a órbita dos planetas é circular” também tenha um
valor de verdade, não estaria correto afirmar que esse valor de verdade
dependa do valor de verdade das sentenças componentes. Poderia ser o caso
que tivéssemos substituído (1) em (2) por outra sentença qualquer, também
falsa, e acabássemos por alterar o valor de verdade de (2). Imaginemos que
tivéssemos trocado (1) por (3) “Rui Barbosa foi presidente do Brasil.”.
Nesse caso, (2) passaria a ser falsa, pois Copérnico nunca poderia ter feito
tal afirmação.
De acordo com o que Frege nos explica em seu artigo “On sense
and reference”, as sentenças (1) e (3) do nosso exemplo, quando usadas
como orações subordinadas em um período começado com outras sentenças
do tipo: “X crê que ...”, ou “X afirma que ...”, denotariam os seus
respectivos sentidos e não as suas referências (o falso). Para o filósofo, a
dificuldade surgiria sempre que as sentenças substituídas não estivessem
Os paradoxos da identidade... 23

desempenhando o papel de sentenças independentes, expressando um


pensamento independente, mas de parte da sentença principal do período,
ou seja, estivessem desempenhando um papel gramatical de nome próprio
de um pensamento (objeto direto, advérbio, adjetivo, etc).

Um pensamento também pode ser a referência [Bedeutung] de uma sentença


(discurso indireto, modo subjuntivo). Nesse caso, a sentença não expressa esse
pensamento, mas pode ser considerada como o seu nome próprio. (Frege, 1979c,
p.256)

No exemplo discutido por Carnap no Meaning and Necessity,


teríamos justamente o caso de uma oração subordinada que estaria no papel
de objeto direto da oração principal. A mesma coisa aconteceria com
períodos nos quais as orações principais expressassem crenças, desejos,
enfim, as chamadas atitudes proposicionais. Assim, na segunda parte do
“On sense and reference”, Frege faz uma análise detalhada desses casos,
procurando mostrar, em cada caso, como a falha do seu princípio de
substituição seria um sinal de que a sentença, ou expressão, em questão não
estaria desempenhando o papel de sentença. Segundo o filósofo, a frase em
questão simplesmente não estaria expressando um pensamento, mas sim
nomeando-o, devendo, portanto, ser substituída apenas por outra que possa
ser outro nome do mesmo pensamento.
Um exemplo de dificuldade bastante semelhante ao que acabamos
de apresentar é construído por Russell. Segundo Carnap, Russell foi um dos
primeiros a se dar conta dessas antinomias. (Russell, 1905, p.47) Sua versão
do paradoxo é montada da maneira seguinte. Consideremos a sentença:

(3) “George IV quer saber se Scott é o autor de Waverley”.

Se, com base na identidade verdadeira: “Scott é o autor de


Waverley”, fizermos a substituição como reza o princípio 24.3b apresentado
na seção anterior, obteremos:

(4) “George IV quer saber se Scott é Scott”.

Enquanto a sentença (3) é verdadeira, a sentença (4) tem de ser


falsa. Embora ambos os exemplos apresentados envolvam sentenças no
24 Araceli Velloso

discurso indireto, na versão de Russell a troca ocorre no lugar de um nome


que está dentro de uma sentença de identidade, diferentemente de Frege
que dá um exemplo de substituição de uma sentença inteira por outra. Na
versão de Quine, a seguir, veremos um caso em que a substituição ocorre no
lugar do sujeito de uma sentença do tipo predicativa. Assim, consideremos a
sentença:

“Giorgione era assim chamado por ser gordo”.

Se, com base na identidade verdadeira: “Giorgione é Barbarelli”,


fizermos novamente a substituição como reza o princípio 24.3b apresentado
na seção anterior, obteremos:

(6) “Barbarelli era assim chamado por ser gordo”.

Num outro exemplo de substituição em contextos modais, Quine


formula o problema usando sentenças que envolvam contextos modais ao
invés de crenças:

(7) “9 é necessariamente maior que 7”;

Se, com base na identidade verdadeira: “9 é o número de planetas”,


fizermos novamente a substituição permitida pelos princípios do método da
relação de nomeação, obteremos:

(8) “O número de planetas é necessariamente maior que 7”;

Mas (8) é claramente falsa, enquanto (7) é obviamente verdadeira.


Finalmente, Carnap apresenta a sua versão também para contextos modais.
Os exemplos de Carnap, contudo, diferem dos de Quine, pois são aplicados
aos predicados:

(9) “É necessário que a classe dos bípedes desemplumados seja uma


subclasse da classe dos bípedes”;
Os paradoxos da identidade... 25

(10) Mas, a sentença “a classe dos bípedes desemplumados é a


mesma que a classe dos homens” é verdadeira, porque os termos singulares
“a classe dos bípedes desemplumados” e “a classe dos homens” têm o
mesmo nominatum;

(11) Logo, “é necessário que a classe dos homens seja uma subclasse
da classe dos bípedes”;

(12) Porém, o fato de que os homens têm duas pernas é uma mera
contingência biológica;

(13) Portanto, a sentença “Não é necessário que a classe dos


homens seja uma subclasse da classe dos bípedes” é verdadeira e
contraditória com a sentença (11).

O que podemos observar em todos esses exemplos é a perda do


aspecto funcional da linguagem, ou seja, em algum ponto da hierarquia que
liga, no extremo inferior, nomes e os seus nominata, ao extremo superior, as
sentenças complexas com seus valores de verdade, nos perdemos em
consequências paradoxais.

4.3 As soluções para a antinomia


Várias soluções foram propostas para lidar com as antinomias. Gostaríamos
de sugerir uma classificação dessas soluções em dois grupos, seguindo a
classificação de Carnap no Meaning and Necessity. Os dois grupos
refletiriam, com efeito, duas abordagens filosóficas distintas ao problema
gerado pelas antinomias.
Assim, um primeiro grupo, composto por Frege e Church,
continua aceitando a relação de nomeação, tanto para termos singulares,
como para termos gerais. As soluções de ambos resumem-se a estabelecer
certas restrições aos princípios de substituição em questão, intentando
manter a intuição fundamental de que toda linguagem é fundamentalmente
sobre objetos. As restrições propostas consistem simplesmente em delimitar
certo grupo de exceções. Nesses casos, um princípio geral parece ser o de
que, em contextos “opacos” (não-extensionais), não poderíamos aplicar o
princípio de substituição para referência (ou extensão), mas apenas o
26 Araceli Velloso

princípio de substituição para sentido (ou intensão), como havia sugerido


Frege.
O segundo grupo seria composto por Quine e Russell. A solução
proposta por esses filósofos é mais ousada: eles sugerem que eliminemos os
termos singulares de nossa linguagem e os substituamos por descrições
definidas. Nesse caso, todo nome seria, efetivamente, uma descrição
definida disfarçada e o nosso discurso versaria, não sobre as referências – os
objetos –, mas sobre as propriedades. Diríamos que uma determinada
propriedade é instanciada por apenas um objeto, ou que não é instanciada
nunca. Essa solução, como se sabe, tem a vantagem de resolver a dificuldade
de lidar com os termos singulares ou nomes que não denotam, mas não
resolve a dificuldade, já vislumbrada por Quine em seus exemplos, da
nomeação em contextos modais 14 .
Como pudemos observar, Carnap não foi listado em nenhum dos
dois grupos. A sua ausência tem uma explicação simples: a solução deste
filósofo é uma mistura de aspectos fundamentais às duas soluções até agora
apresentadas. Para Carnap, o caminho correto com vistas a evitar as
antinomias bem como o dualismo ontológico gerado pela solução de Frege,
seria o de evitar, é claro, a visão denotativa (a tese da relação de nomeação),
mas manter a distinção entre intensão e extensão fregiana (Carnap, 1956, p.
118) e, é claro, os contextos modais. Assim, Carnap procura mostrar como
definir todos os conceitos semânticos sem fazer referência a objetos
extralinguísticos, mas preservando, ainda que de modo não metafísico, a
duplicidade, presente nas soluções de Frege e Church, entre a intensão e a
extensão de um termo. Com esse duplo objetivo em mente, o filósofo
oferece duas alternativas, bastante radicais, para resolver o problema das
antinomias: a tese da extensionalidade e o método da intensão-extensão.
Vejamos na seção seguinte em que consistiriam essas duas soluções.

5 A tese da extensionalidade e o paradoxo do mentiroso


Uma das soluções para os paradoxos da identidade é o “método da
extensionalização” (Quine, 1978, Carnap 1964). Esse método consistiria
em excluir, de uma linguagem formal qualquer, todos os contextos ditos

14
Nessa época, Quine simplesmente sugere que não usemos contextos modais e fiquemos
apenas com os contextos extensionais.
Os paradoxos da identidade... 27

“opacos” (ou não extensionais). Ao aplicar tal método, contudo, ficaríamos


reduzidos ao uso de linguagens puramente extensionais. Para cumprir tal
tarefa, não seria suficiente construir uma linguagem formal extensional (o
que de resto seria bem fácil), teríamos também de mostrar como uma
linguagem desse tipo serviria, tanto para a lógica, como para as ciências
empíricas. Esse segundo passo, porém, implicaria em uma grande
dificuldade: demonstrar a viabilidade da tese da extensionalidade.
A tese da extensionalidade, bastante discutida tanto por Carnap,
quanto por Quine, recebe duas definições iniciais, feitas por Carnap no
Logical Syntax of Language. A primeira é atribuída a Wittgenstein
(Wittgenstein, 1993, 5, 5.3, 5.5) e equivale ao que chamamos de “visão
funcional da linguagem”. Como havíamos discutido na segunda seção,
segundo essa visão, o valor de verdade do todo sentencial depende da
referência das partes, e o de uma sentença composta, do valor de verdade
das sentenças componentes.

Seguindo Wittgenstein, Russell adotou a mesma abordagem com respeito às


sentenças parciais e aos predicados; assim como eu também, embora de um ponto
de vista diferente. Ao fazer isso, no entanto, todos nós deixamos de levar em
consideração o fato de que há uma multiplicidade de linguagens possíveis.
Wittgenstein em especial fala repetidamente em “a” linguagem.

Como Carnap descreve no trecho anterior, uma dificuldade com


essa primeira definição é o seu compromisso com uma única linguagem que
seria a linguagem universal. Segundo o filósofo, devemos nos preocupar
também com o fato de que há uma diversidade de linguagens possíveis. Para
que a definição da tese da extensionalidade fique completa, devemos
especificar a relação dessa linguagem universal com qualquer outra
linguagem possível.

Por essas razões, formularemos a tese da extensionalidade de um nodo que seja ao


mesmo tempo mais completo e menos ambicioso, a saber: uma linguagem universal
da ciência pode ser extensional; ou, mais precisamente: para cada linguagem
intensional S1 dada, podemos construir uma linguagem extensional S2 para a qual
seja possível traduzir S1. (Carnap, 1964, 245)
28 Araceli Velloso

Posteriormente, no Meaning and Necessity, Carnap apresenta outra


definição dessa mesma tese que a correlaciona com o problema das
antinomias ou paradoxos.

Com o objetivo de eliminar as antinomias, excluindo todos os contextos não-


extensionais, seria necessário mostrar que, para os propósitos de qualquer campo
de investigação, lógico ou empírico, se poderia construir um sistema linguístico
extensional; em outras palavras, que para qualquer sistema não-extensional, existe
um sistema extensional para o qual o primeiro pode ser traduzido. Essa última
afirmação é conhecida como a tese da extensionalidade. (Carnap, 1956, 141) 15

Teríamos, segundo Carnap, de poder traduzir qualquer linguagem


intensional para uma mesma meta-linguagem extensional universal. Caso essa
tradução fosse possível, teríamos então resolvido, segundo Carnap, da
maneira mais radical, o problema das antinomias: teríamos simplesmente
abolido todos os contextos “intensionais”. Mas como não poderíamos apenas
eliminá-los, teríamos de poder dizer aquilo que dizíamos com eles de outra
maneira. Logo a tese da extensionalidade, uma tese que envolveria
diretamente um projeto de tradução entre linguagens.
Uma pergunta, no entanto, fica pairando no ar diante dessa
solução: se ela foi proposta por Carnap e Quine e ambos a achavam tão
atraente, porque então, no Meaning and Necessity, Carnap sugere o método
da intensão e extensão ao invés de tentar demonstrar a viabilidade da tese da
extensionalidade? Como pudemos observar pela convicção com que a
definição é dada no Logical Syntax of Language, nessa obra o filósofo ainda
estava convencido da possibilidade da tese da extensionalidade. O que teria
mudado desde então?
Uma das respostas que parece ficar nas entrelinhas, embora não seja em
nenhum momento admitida por Carnap, é a que se segue. As antinomias,
ou seja, os paradoxos resultantes do método da relação de nomeação, que
pareciam se aplicar apenas a contextos “opacos” como atitudes
proposicionais (saber, acreditar, pensar) e predicados modais (necessário,
possível e contingente), deixariam de fora um último recurso que ainda
poderia viabilizar o projeto de tradução e extensionalização das linguagens
formais: o predicado “ser verdadeiro”. Carnap estava contando, portanto,

15
Cf. Carnap, 1964, p. 141, nota 49.
Os paradoxos da identidade... 29

com o fato de que o predicado “ser verdadeiro” pudesse ser definido na


mesma meta-linguagem extensional onde estariam todas as sentenças.
Lembremos também que um dos requisitos da tese da extensionalidade seria
a obtenção de uma linguagem universal da ciência. Assim, o projeto seria o
da tradução de todas as linguagens formais extensionais, ou mesmo
intensionais, diferentes em uma única meta-linguagem extensional universal.
Bastaria, portanto, que nos livrássemos dos contextos ditos “opacos”.
O que acontece entre Logical Syntax of Language e Meaning and
Necessity é a publicação dos resultados de Tarski que atingem em cheio a tese
da extensionalidade. No famoso artigo “The Semantic Conception of
Truth”, Tarski argumenta, com o auxílio do predicado “ser satisfazível”,
contra a possibilidade de linguagens universais. Segundo o teorema de
Tarski, a verdade é uma noção “semântica” e linguagens semanticamente
fechadas são necessariamente inconsistentes, incluindo uma linguagem
universal que seria por definição semanticamente fechada. Para provar o seu
teorema, Tarski recorre a mais um conhecido paradoxo, usado muitas vezes
como uma brincadeira de criança, mas que causa sérios estragos nas
pretensões da tese da extensionalidade: o paradoxo do mentiroso. Tarski o
coloca da maneira seguinte.

S: A sentença impressa na página 29, linha numerada 0, não é


verdadeira.

“s” é verdadeira se, e somente se, a sentença impressa na página 29,


linha numerada 0, não for verdadeira.

Fato empírico:

“S” é a sentença impressa na página 29, linha numerada 0.

Podemos então substituir “a sentença impressa na página 29, linha


numerada 0” por “s”, em (1), obtendo:

“S” é verdadeira se, e somente se, “S” não é verdadeira.


30 Araceli Velloso

Segundo Tarski, as três pressuposições subsequentes levam ao


paradoxo do mentiroso e a consequente conclusão de seu teorema:

(I) a linguagem na qual a antinomia é construída contém, além de expressões, o


nome dessas expressões, termos semânticos como “verdadeira” que se referem a
sentenças dessa linguagem, bem como sentenças que determinem o uso adequado
do termo “verdadeira” na linguagem; (uma linguagem com essas propriedades é
dita uma linguagem semanticamente fechada)

(II) as leis ordinárias da lógica valem nessa linguagem;

(III) podemos formular e asserir na nossa linguagem uma premissa empírica do


tipo do enunciado (3); (Tarski, 1952, p. 20, §8)

Como, segundo Tarski, a pressuposição (III) é dispensável, porque


podemos reconstruir a antinomia sem ela, teremos de abrir mão de (I), ou
de (II). Mas não podemos abrir mão de (II) sem ter de fazer sérias
transformações na lógica contemporânea. Logo, só nos resta abrir mão de
(I), ou seja, predicados como “ser verdadeira” não podem ocorrer na mesma
linguagem que as sentenças as quais eles se aplicam, sob pena de ser possível
construir, nessa linguagem, paradoxos como o do mentiroso – os chamados
paradoxos semânticos.
À semelhança dos outros paradoxos aqui examinados, o paradoxo
do mentiroso pode ser criado com o auxílio de uma sentença de identidade
(a sentença (3)) e um processo de substituição, embora também possa ser
criado sem ela. Um aspecto que fica mais claro neste último paradoxo, por
tanto, é que o elemento crucial para gerar o paradoxo não é o uso da relação de
nomeação, mas sim a possibilidade numa determinada linguagem de se
construir sentenças que possam envolver auto-referência. Por conseguinte,
mesmo que nos livremos da relação de nomeação e mantenhamos uma visão
não denotativa da linguagem, ainda encontraremos dificuldades com os
paradoxos semânticos, pois eles podem ser recriados em qualquer linguagem
que disponibilize o recurso a auto-referência.
Com efeito, se trabalhamos com uma estrutura composicional, é
razoável esperar que possamos construir qualquer sentença usando nossos
átomos semânticos sem incorrer em resultados paradoxais. A construção
desses paradoxos demonstra, portanto, um ponto importante para a nossa
argumentação: parece haver uma falha em princípio na concepção de que
Os paradoxos da identidade... 31

qualquer teoria semântica deva envolver o princípio da composicionalidade.


A conclusão a qual chega Tarski, no entanto, é diferente dessa. O autor
conclui que não podemos ter uma linguagem universal. Tal conclusão tem
uma consequência direta para a tese da extensionalidade de Carnap: a
impossibilidade de traduzir qualquer linguagem não extensional para uma
única linguagem universal extensional. Esse seria, portanto, um problema
bem sério para aqueles defendem a possibilidade de se fazer a tradução de
qualquer linguagem objeto não extensional para uma meta-linguagem
extensional universal.
Seria a nosso ver devido aos resultados de Tarski que, em Meaning
and Necessity, Carnap recua e, no lugar da tese da extensionalidade,
apresenta, como solução para as antinomias, o seu método da extensão e
intensão. Segundo esse método de análise, as expressões da linguagem
teriam sempre uma dupla leitura: uma leitura extensional e uma leitura
intensional. Com o seu método, Carnap alega ter evitado a multiplicidade
de entidades implicada pelos que defendiam uma análise através do método
da relação de nomeação, mas desejavam evitar os paradoxos, bem como os
famigerados paradoxos eles próprios. Para evitar a última dificuldade,
Carnap mantém os critérios de equivalência entre termos e sentenças, mas
rejeita a interpretação realista dessas equivalências, preferindo introduzir as
noções de “classes de equivalências de expressões” e “L-classes de
equivalências de expressões” (Carnap, 1956, p.17) como sendo a denotação
dos termos que ladeiam as duas equivalências. Apesar de recorrer
frequentemente a noções modais, sua abordagem não consegue evitar
também o recurso a uma distinção entre meta-linguagem e linguagem
objeto, ou seja, semântica e sintaxe, como modo de evitar os paradoxos
semânticos.

Considerações finais
Como havíamos mencionado no inicio desse artigo, nosso interesse era
duplo. Inicialmente, pretendíamos investigar os paradoxos e as soluções que
lhes foram historicamente apresentadas. Nesse primeiro estágio, visávamos
apenas a uma reconstituição mais precisa das dificuldades e motivações que
estavam por detrás de várias tentativas heróicas de se construir uma teoria
geral do significado. Nosso segundo objetivo, contudo, era mais amplo:
pretendíamos avaliar até que ponto o uso da identidade em uma linguagem
32 Araceli Velloso

formalizada refletiria uma preferência filosófica equivocada por uma


abordagem semântica composicionalista.
Ao longo de nossa exposição, pudemos constatar, nas soluções
apresentadas por Quine e Russell, bem como, em parte, nas críticas de
Carnap a posição de Frege, que uma das dificuldades frequentemente
apontadas como causadoras dos paradoxos seria, com efeito, a referência a
objetos como a relação semântica fundamental e instauradora de
significado. Um ponto ficou bem claro com a discussão feita por Carnap:
uma visão da linguagem fundamentada na noção de “objeto” e na “relação
de nomeação” 16 introduz nesse sistema linguístico a possibilidade de se
formular os paradoxos aqui apresentados. O aspecto inesperado que surge
da discussão feita por Carnap, no entanto, é que esses paradoxos podem ser
reformulados também para um sistema que não faça menção a objetos, mas
seja semanticamente fechado e possua características funcionais. Assim
gostaríamos de concluir que a exigência de composicionalidade (ou seja, a
visão funcional da linguagem) seria, com efeito, a causadora última de todas
as dificuldades. No entanto, sem uma visão funcional da linguagem
perdemos o que parece ser a única explicação razoável de como podemos
entender um número ilimitado de sentenças com base no conhecimento de
um número finito de palavras, sugerida por Frege 17 .
Diante de todos esses argumentos, gostaríamos de finalizar
observando que, embora seja correto afirmar, como o faz Carnap, que a
relação de nomeação gera dificuldades, nos pareceria ainda mais correto
afirmar que a dificuldade principal permanece sendo a de construir uma
teoria do significado que respeito o desiderata de composicionalidade 18 .
Nesse panorama, o recurso aos objetos e as dificuldades com a identidade,
bem como o requisito de uma linguagem universal, seriam apenas corolários
dessa visão da linguagem como uma estrutura única, hierarquizada e
estruturada. O requisito de composicionalidade sem restrição de domínio e
a consequente exigência de critérios de encaixe universais para qualquer

16
Cf. a discussão sobre Carnap na seção 4.
17
Davidson também sugere uma explicação semelhante (Davidson,1984, 3)
18
Estamos compreendendo funcional (ou composicional) como foi explicado no início do
artigo, ou seja, de baixo para cima, começando nas unidades semânticas mínimas e
chegando ao significado de sentenças inteiras.
Os paradoxos da identidade... 33

átomo semântico, feita a qualquer teoria linguística, seria por fim a


conjunção de fatores desencadeadora dos paradoxos semânticos. O requisito
de composicionalidade sem restrições inviabilizaria, inclusive, o recurso à
distinção entre linguagem objeto e meta-linguagem, uma vez que esse recurso
criaria uma série de exceções às regras universais de composição.

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34 Araceli Velloso

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A natureza como negação da
imortalidade da alma no jovem Feuerbach

Eduardo Ferreira Chagas *

Resumo: O presente artigo visa a explicitar o conceito duplo de natureza do jovem Feuerbach,
em sua obra Pensamentos sobre Morte e Imortalidade (Gedanken über Tod und Unsterblichkeit):
1. a natureza como possibilidade e condição de toda existência no espaço e no tempo e 2. a
natureza como instância da negação de todo ser. A natureza oferece ao jovem Feuerbach o
modelo para a solução de várias oposições, pois nela se manifesta um processo dialético de
afirmação e negação, singularidade e pluralidade, indivíduo e gênero. Assim, o homem
experimenta na natureza não apenas a afirmação, como também a negação, de sua existência
em forma de efemeridade e morte.
Palavra-chaves: Natureza; Feuerbach; Negação da imortalidade da alma; Unidade de Natureza
e Espírito

Abstract: This article aims at clarifying the two-pointed concept of nature as proposed by
young Feuerbach in his work Thoughts on Death and Immortality (Gedanken über Tod und
Unsterblichkeit): 1. nature as possibility and condition for all existence within space and
time, and 2. nature as negation instance of all being. Nature offers young Feuerbach the
model for solution of several oppositions, for one finds within it a dialectical process of
assertion and negation, singularity and plurality, individual and gender. Thus, man
experiments within nature not only positive assertion but also negation of his existence in the
form of his ephemerality and death.
Keywords: Nature; Feuerbach; Negation of Soul’s immortality; Unity of Nature and Spirit

*
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Ceará - UFC e do
Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação (FACED) da UFC. E-mail:
ef.chagas@uol.com.br. Artigo recebido em 26.07.2009, aprovado em 30.11.2009.

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 35-51


36 Eduardo Ferreira Chagas

O escrito de Feuerbach Pensamentos sobre Morte e Imortalidade (1830) 1


consiste de três partes: I – Deus (Gott); II – Tempo (Zeit), Espaço (Raum) e
Vida (Leben) e III – Espírito (Geist), Consciência (Bewusstsein). Na
Introdução, Feuerbach nomeia três períodos da fé na imortalidade na história
do desenvolvimento do espírito europeu. O primeiro é o antigo grego-
romano, no qual havia unidade imediata entre a vida individual e a universal.
O grego, como também o romano, não conhecia nenhuma fé na perduração
individual depois da morte, isto é, nenhuma imortalidade no sentido
moderno, que se baseava na separação entre idealidade e realidade, pois para
eles não havia nenhum abismo entre possibilidade e efetividade. Assim vivia
o latino, por exemplo, em Roma, num espaço particular, que limitava o
horizonte de sua contemplação; ele não conhecia outra vida a não ser a vida
real, não a vida para si mesmo, mas apenas a vida em união com o povo e o
Estado; isto é, ele sentia-se encerrado no Estado, porque não tinha
consciência de uma existência autônoma , independente do universal. Não a
esfera privada, pessoal, mas a vida na comunidade era o ideal do homem
latino, pois a “moralidade” se desenvolvia no Estado romano, e não fora dele.
“Ser e pensar estão aqui”, assim comenta Dorothee Vögeli, “colocados
identicamente. A unidade da individualidade e da essência, da subjetividade e
da substância, não fora partida e, por isso, não havia ainda consciência da
oposição.” 2 Partindo da identidade de ser e pensar, podiam os gregos, por
sua vez, contemplar os conceitos que animam tudo, como a beleza feita
representação do visível, ou seja, como manifestation do interior ou do
espiritual no real. Na sociedade grega, onde a vida terrena valia como alto

1
Na sequência do texto, a obra Gedanken über Tod und Unsterblichkeit será citada como
Todesgedanken (Pensamentos sobre a Morte). Em 1830, Feuerbach tinha publicado
anonimamente este escrito. “A reação a este escrito”, escreve Werner Schuffenhauer, in
“‘Aut Deus – Aut Natur’ – Zu Ludwig Feuerbchs Spinoza- und Leibniz-Bild”, Padova:
Archivio di Filosofia, 1978, p.271, “põe Feuerbach repentinamente no chão da realidade; o
escrito foi confiscado policialmente e o autor foi averiguado.” A autoria foi, no entanto,
logo descoberta. Esse escrito, no qual Feuerbach recusa a doutrina da imortalidade
individual, ou seja, a perduração da alma depois da morte, significava o fim de sua carreira
acadêmica.
2
Vögelli, D. Der Tod des Subjekts – eine philosophische Grenzerfahrung. Die Mystik des jungem
Feuerbach, dargelegt Anhäng seiner Frühschrft “Gedanken ¨ber Tod und Unstrblichkeit”.
Würzburg: Königshausen und Neumann, 1997, p. 66.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 37

princípio, era aos gregos inimaginável a dissolução de sua pessoa da unidade


harmônica da pólis e da vida do povo.
O segundo período na história do desenvolvimento da fé na
imortalidade foi a época cristã-católica, ou seja, a Idade Média, quando a
imortalidade se tornara artigo de fé e de doutrina universal. A característica
essencial dessa época era a fé na existência real da graça divina como
conteúdo da religião cristã. Por isso, o homem do medievo não tinha
consciência de sua autonomia e, com isto, não podia ter também nenhuma fé
na imortalidade pessoal. Nessa época, o homem medieval não tinha ainda,
como esclarece Feuerbach, “a consciência vazia de sua individualidade”, e
também não estava voltado para si mesmo; ele era membro de uma ordem
hierárquica, isto é, de uma comunidade da igreja, de um “reino de Deus”. O
homem na Idade Média achava, assim, na igreja aquilo que o homem grego
tinha no Estado, a saber: a comunidade sagrada dos fiéis, na qual o
individual estava salvo. Disso segue que o homem não era independente, já
que obter sua salvação e felicidade eterna não dependia de sua convicção e de
seu esforço. A autodeterminação ou a auto-atividade não ocorria, porém, de
fato, pois apenas o ser sobrenatural, supra-sensível, isto é, o ser celestial,
acima da vida natural e terrena, era “o ser real”, efetivo. Já que o ser real era
possível apenas no interior da igreja, o homem não precisava da illusion de
um mundo do além, de um universo misericordioso de sonhos e perfeições
sobrenaturais, ao qual ele estaria, no mundo terreno, impedido de alcançar.
Isto porque, na Idade Média, quando a igreja garantia uma ligação segura
entre o aquém e o além, não havia, como já expresso, espaço para a separação
entre idealidade e realidade, entre possibilidade e efetividade, e, com isto, a fé
na imortalidade (der Glaube an die Unsterblichkeit) tornara-se apenas um
artigo de fé. Na verdade, trata-se, em primeira linha, de acordo com a
observação de Feuerbach, de uma fé no céu (Himmel) e no inferno (Hölle),
por assim dizer, como um “quadro sensível” da recompensa ao bem e do
castigo ao mal. Embora o céu e o inferno fossem representados e/ou pintados
sensivelmente, tinham o bem e o mal não apenas valor simbólico, puramente
sensível, externo, mas também, e principalmente, consequências espirituais,
morais. O céu representava a imagem do bem (Gute), com a qual se ligava a
salvação eterna, a bem-aventurança, e o inferno era, por sua vez, uma
representação do mal (Böse), de que eram inseparáveis a nulidade e a
infelicidade. É necessário chamar a atenção para a ideia de que o essencial
38 Eduardo Ferreira Chagas

nessa fé não era a fé no indivíduo e em sua perduração eterna, mas a fé na


realidade do bem e, ao mesmo tempo, na nulificação do mal. Pode-se, no
entanto, já no primeiro período cristão, encontrar a fé na “perduração
individual” depois da morte, já que a fé na “ressurreição” dos mortos
significava “nada mais do que a fé na imortalidade do indivíduo”. 3
Só no terceiro período, ou seja, na Era Moderna, põe-se a ressalto a
fé na imortalidade do indivíduo em seu sentido verdadeiro. “Depois do
desmoronamento do mundo protegido da idade média”, assim escreve Hans-
Jürg Braun, “vê-se o homem isolado em sua individualidade, completamente
posto para si mesmo. Neste ser isolado, sem relação, sua individualidade
torna-se tão importante que são, logo, agregados a ela traços divinos.” 4 Na
Época Moderna, a doutrina da imortalidade da alma torna-se agora um fator
decisivo, pois a característica dessa época é, como Feuerbach acentua, “que
nela o homem como homem, a pessoa como pessoa, e, com isto, o indivíduo
humano isolado foi reconhecido por si mesmo, em sua própria
individualidade, como divino e infinito.” 5 A primeira forma, na qual se
expressa esta característica da ascensão e afirmação do indivíduo, evidencia-se
na Reforma (isto é, no protestantismo) e conduz, mais tarde, ao pietismo,
moralismo e racionalismo. No lugar do catolicismo, para o qual a igreja valia
como alto princípio e autoridade da fé e, simultaneamente, como garantia
para a segurança do indivíduo isolado, põe-se com a Reforma, no centro dos
interesses, a pessoa do singular, isto é, a fé na imortalidade do indivíduo, no
sujeito isolado. “A oposição colocada” do sujeito moderno “à substância
divina foi trazida”, diz Dorothee Vögeli, “para a unidade”, na medida em
que o sujeito “se põe no lugar da substância divina. Mas se reconhece agora
apenas seu eu pessoal, limitado, e não Deus.” 6 Daqui em diante, o sujeito era
o essencial e o infinito.

3
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Org. por Werner. Schuffenhauer.
Berlim: Akademie Verlag, 2000, GW 1, p. 189.
4
Braun, H.-J. Ludwig Feuerbachs Lehre vom Menschen. Stuttgart-Bad Cannstartt: Friedrich
Frommann Verlag, 1971, p. 55. De forma semelhante manifesta-se Dorothee Vögeli: “A
ruptura com a consciência antiga e pré-cristã resulta nisso, a saber, que o indivíduo desliga-
se de Deus e diviniza o seu próprio eu natural, isolado.” Cf. Vögeli, D. Der Tod des
Subjekts.... Op. cit., p. 69.
5
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p. 189.
6
Vögeli, D. Der Tod des Subjekts.... Op. cit., p. 69.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 39

Com isto, estava perdido, na Modernidade, a perspectiva para o


“uno”, para o universal, para o todo da realidade e da humanidade como
condição para o individual, pois o indivíduo (Individuum), concebido como
o essencial, foi elevado ao centro, ao critério da verdade e da realidade. O
indivíduo (o particular, o finito) foi entendido, agora, como um universal;
tenta-se dominar sua finitude natural, quando a eleva à infinitude. É para si
mesma, em sua individualidade, seu próprio objeto, por conseguinte vê-se
nesta condição não o universal, o infinito, o substancial, mas apenas o
determinado, o individual, o acidental; faz-se do singular o fundamento, isto
é, do limitado, do subjetivo, a essência da realidade, e, por isso, ele é
imperfeito, negativo e finito. Se o indivíduo fosse, realmente, absoluto e
ilimitado, “seria mesmo perfeito, e, então, deixaria, com isto, de ser
indivíduo, pessoa”. 7 Para o jovem Feuerbach, a morte (Tod) é uma prova de
que o indivíduo não pode ser, de maneira nenhuma, absolutamente livre,
ilimitado, imortal; ele pertence à realidade da natureza viva. Feuerbach
entende, no entanto, a morte aqui positivamente, pois ela aniquila o
individual, o finito, o singular imperfeito, e, com isto, ela confirma e afirma
a permuta do finito para o infinito, a passagem do sensível, que termina com
a morte, para o universal, para a vida representada espiritualmente. A morte
não deve, segundo o jovem Feuerbach, de maneira nenhuma ser entendida
como uma negação superficial e carnal (oberflächliche und fleischliche
Negation), mas, pelo contrário, ela deve ser concebida como uma morte
interna, “penetrante”, que abrange completamente a vida do indivíduo,
porque o homem é um ser passageiro, traz ele em si já, desde o princípio, a
morte, que o faz também perecer como essência pensante.
A crítica de Feuerbach, que é um desdobramento da crítica da
subjetividade de sua Dissertation de Doutorado, A Razão Una, Universal e
Infinita (De ratione una, universali, infinita ou Über die eine, allgemeine,
unendliche Vernunft) (1828), dirige-se, portanto, contra a “absolutização” do
indivíduo, que se concentra aqui, sobretudo, em dois âmbitos: 1. a
imortalidade pessoal do indivíduo e 2. o conceito de Deus pessoal. Esta
crítica à subjetividade era, como Peter Cornehl observa, comum ao círculo
dos jovens hegelianos, embora houvesse a esse respeito pontos de vista
diferentes. “Mas, enquanto para os ‘socialistas verdadeiros’ e para Marx a

7
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p. 192-193.
40 Eduardo Ferreira Chagas

esperança do novo se ligava com a expectativa de uma revolução das relações


sociais, era, para Feuerbach, impensável um afastamento para o futuro. Nisso
pertence Feuerbach ao contexto da discussão dos neo-hegelianos e representa
uma indicação típica para esta frase, administrar a herança de Hegel, porque
ele – como também os hegelianos de direita – não abandona a exigência para
uma presença do absoluto no presente.” 8 A crítica não deve ser entendida,
assim observa ainda Peter Cornehl, como restauration do passado, nem como
restabelecimento da unidade da Era Cristã, nem como renovação da
Antiguidade pré-cristã. A recusa do princípio da subjetividade absoluta, da
imortalidade do indivíduo, estende-se, para o jovem Feuerbach, à negação da
esperança de um novo tempo, no qual se consolide o domínio da razão (isto
é, do espírito ou de Deus) como o universal e infinito. Um novo tempo deve,
segundo ele, começar, quando o homem avaliar corretamente seu significado
e reconhecer sua condição dada pela natureza, isto é, quando reconhecer sua
finitude, transitoriedade e mortalidade de sua existência. Por conseguinte, o
homem não deve mais procurar o fundamento para sua existência, post-
mortem no além, como propõe a doutrina cristã da imortalidade, mas, pelo
contrário, na própria natureza. Na análise de Feuerbach, quando o homem
chega à consciência de sua finitude e mortalidade, alcança ele coragem e
confiança para começar uma vida nova puramente terrena, ou seja, no
interior dos limites da natureza.
A primeira parte de Todesgedanken ocupa-se com o conceito de Deus
(Gottesbegriff), que aqui significa, principalmente, amor (Liebe); o ser do
amor é eterno, pois ele subsiste, segundo Feuerbach, independentemente do
tempo. Em oposição à Dissertation, concebe Feuerbach, aqui, o amor não
como o “ser-em-si” ou o “ser-para-si”, mas, agora, como o “ser-comum”, no
qual os homens existem não mais como sujeitos separados uns dos outros,
mas, pelo contrário, como “unidade de todos os homens”. Enquanto Deus é,
porém, o amor, o homem tem seu ser fora do amor e ama de forma
condicionada, dependente; no homem, o amor é propriedade, qualidade de
um estado ou momento passageiro. Apesar da essência do amor ser
caracterizada não como afirmação, mas como renuncia da singularidade, da

8
Cornehl, P. Feuerbach und die Naurphilosophie. Zur Genese der Anthropologie und
Religionskritik des jungen Feuerbach. In: Neue Zeitschrift für systematische Theologie und
Religionsphilosophie. Berlin, 1969, v. 11, p. 53.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 41

pessoa, o homem, um ser particular, não nega no amor sua particularidade e


finitude. A essência do amor é “absorvente, pleno de sacrifício, ardente, o
amor é fogo; ele é cólera ante o singular e a existência egoísta.” 9 Como Deus
é, no entanto, o amor ou o absoluto, isto “serve a Feuerbach de apoio para
sua tese de que Deus como o infinito é” também, e precisamente, “o
fundamento da morte do ser humano.” 10 Embora os homens e todos as
coisas sensíveis e finitas possam existir só sob a condição do tempo, eles
perecem, na verdade, não nesse âmbito, mas em Deus mesmo, pois Ele é a
causa efficiens do finito, do singular e, ao mesmo tempo, de sua morte, ou
seja, o fundamento último de toda temporalidade e transitoriedade. Nesse
sentido, poder-se-ia, então, ressaltar que a única prova verdadeira para a
existência de um ser infinito, isto é, que Deus existe, é, precisamente, o
tempo (Zeit), pois este prova, sim, que o ser infinito é uno, e nele tudo é
uno, tudo é em si absorvido e suprassumido, sobretudo aquilo que é finito e
passageiro. A relação do homem para com Deus é, segundo Feuerbach,
comparável à relação do finito para com o infinito: também o infinito é,
como Deus, o fundamento da finitude. Feuerbach argumenta, aqui, da
seguinte maneira: o infinito deve existir, pois, sem ele, não haveria diferença
entre o infinito e o finito, ou o finito seria eterno e teria existência infinita.
Sob essas condições, o tempo é, segundo Feuerbach, apenas a manifestação
de tudo o que em Deus se passou desde a eternidade. Isto significa que, antes
da morte temporal da existência finita e transpondo esta, já existe a
eternidade, que é Deus mesmo. A morte (Tod) da vida sensível, biológica,
que aparece na fé da religião cristã como a oposição à vida, tem, para o jovem
Feuerbach, um significado criador, pois ela não é o fim fático, mas, pelo
contrário, a passagem para o todo inseparável. A morte, o limite da vida
natural, é, pois, uma submersão em Deus, isto é, uma volta para a fonte, já
que todos os indivíduos finitos já estavam antes submergidos em Deus.
Em sua obra anônima, Todesgedanken, o jovem Feuerbach concebe
Deus panteisticamente, pois Este é, para ele, o ser que une a natureza e o
homem, o todo do existente. Portanto, Feuerbach concebe Deus não como
sujeito, como pessoa, isto é, como modelo, imagem ou retrato da
personalidade humana, o que seria, para ele, um ser superficial, sem
profundidade, mas como o todo, o fundamento universal do kosmos inteiro,

9
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p. 203.
10
Cornehl, P. Feuerbach und die Naurphilosophie... Op. cit., p. 68.
42 Eduardo Ferreira Chagas

isto é, não só do homem, como também da natureza. Em oposição à tradição


teísta, para qual Deus como pessoa absoluta, pura, representa o espírito
superior ou a autoridade sagrada, desprendido da natureza, trata-se para o
jovem Feuerbach de conceber Deus também como natureza. 11 Ele defende,
de maneira radical, o panteísmo: “Se tu censuras o puro panteísmo, porque
ele faz de Deus o todo, então tu deves se deparar com a reprovação de
representar o pior panteísmo, o panteísmo particular. Pois, ao pensar Deus só
sob a determinação do ser-em-si e do saber-de-si ou, melhor, do ser-para-si,
e, por conseguinte, só sob a determinação da particularidade e da
diferencialidade, então tu elevas, precisamente, o algo, não certamente o
todo, mas o particular, à condição de absoluto.” 12 “Tu não podes agora”,
pergunta ele, então, ao inimigo imaginário do panteísmo, “elevar-te também
ao pensamento de que Deus é tudo e, por sua vez, consciente de si; que Ele,
ao saber de si mesmo, sabe tudo como si e a si mesmo como tudo? Tu não
podes também unir o ser-para-si de Deus com seu ser-todo.” 13 Abstraindo do
panteísmo (Pantheismus), Feuerbach designa todas as outras doutrinas de
“egoísmo, zelo de si mesmo, vaidade, cobiça, mercenaria, idolatria”. 14 Para o
jovem Feuerbach, não há nenhuma discrepância entre Deus e Natureza, pois
se Deus “não é pura e simplesmente pessoa absoluta, isto é, um puro quem
sem o que, uma pessoa sem ser [...], mas é pessoa e simultaneamente ser”,
então ele, “como Deus, como pessoa autoconsciente, é um ser diferente de
todos os seres”, é também “natureza”. 15 Assim, para o jovem Feuerbach,
Deus não é um sujeito puro, pois ele contém em si também sua diferença,
que é, precisamente, a natureza. Se a natureza não se encontrasse presente em

11
Deus é nem pura natureza, nem puro espírito, mas Ele contém ambos os momentos
necessariamente: natureza e espírito. Cf. Ascheri, C. Feuerbachs Bruch mit der Spekulation.
Einleitung zur kritischen Ausgabe von Feuerbach: Notwendigkeit einer Veränderung (1842).
Frankfurt am Main: Europa Verlag Wien, 1969, p. 26 e 36: “O Deus de Todesgedanken é
‘espírito’, tem em sua essência ambos os polos: consciência e natureza.” Em Todesgedanken,
Deus não é, como o referido autor escreve adiante, “uma pessoa absoluta, diferente da
natureza e em oposição a ela, mas Ele comprende em sua essência também a natureza [...].
Deus é não apenas pessoa, mas também natureza, também essêncal e substância e,
enquanto tal, princípio da objetivida, por conseguinte dos limites do indivíduo.”
12
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p. 213.
13
Ibid., p. 213.
14
Ibid., p. 216.
15
Ibid., p. 210.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 43

Deus, estaria a diferença, o impulso da atividade, o começo e o princípio da


vida fora Dele, e, assim, Ele seria um ser não absoluto, não independente,
não autônomo, sem espírito. Deus é, portanto, nem uma personalidade pura,
sem espírito, sem alma, nem uma natureza pura, uma matéria ou coleção de
objetos mortos, mas totalidade, generalidade, universalidade. Deus se
diferencia de tudo aquilo que Ele não é, mas Ele é tudo. “Ele é”, como diz
Feuerbach, “uno consigo e uno para si, na medida em ele é uno com o
todo.” 16 Isto porque sua essência e seu ser constituem, precisamente, toda a
essência e todo o ser, e não ser do algo, ser do particular, ser do singular.
Assim como Deus, é a natureza, também, totalidade, universalidade. Embora
Deus e natureza contenham, aqui, o mesmo conteúdo, a saber, o todo, eles se
diferenciam pela forma como o todo aparece. O todo, como está em Deus e
é Deus mesmo, é um ser uno, absoluto feito unidade, e, por isso, Ele é ser
para si mesmo, o ser do todo; o todo, como está na natureza e é natureza, é,
ao contrário, a multiplicidade orgânica dos objetos e dos fenômenos
sensivelmente observados, experimentados. Não se trata aqui, todavia, apenas
de uma diferença puramente formal entre a unidade e a pluralidade, pois
Deus como o todo universal se fundamenta no fato de que Ele se manifesta
não somente na unidade, mas também na diferença, não apenas na
universalidade, mas também na singularidade, porque Ele representa não só
o limitado, bem assim o ilimitado. Feuerbach quer livrar o conceito de Deus
de uma concepção subjetiva, que entende Deus como pessoa, para
fundamentá-lo no sentido panteísta. Deus (ou o espírito, a razão) em
referência à natureza significa, aqui, como observa também Peter Cornehl,
nada mais do que uma palavra, um nome, como que um símbolo, a unidade
de natureza e espírito como totalidade dos seres no espaço e no tempo.
Para o panteísmo do jovem Feuerbach, Deus é não só uma essência
subjetiva, pessoal, mas também objetiva, que é a natureza mesma, como que
o outro ser de Deus. A natureza é, no entanto, em Todesgedanken tanto
affirmation (o subsistir) quanto negation (o perecer) de todos os seres. Aqui o
jovem Feuerbach determina a natureza já negativamente, pois esta é o ponto
de negação do homem, “o cemitério da eudidade, da mesmidade”, ou, com
outras palavras, ela contém em si, precisamente, o limite do indivíduo, o fim
da vida. Em qualquer “árvore, [...] com a qual tu tropeças, tu te impeles,

16
Ibid., p. 212.
44 Eduardo Ferreira Chagas

igualmente, para a tua morte, para o limite e o término de tua existência. E


para apresentar a ti teu fim, tu não precisas primeiro passear pelo cemitério;
qualquer dose de tabaco em pó fora de ti pode fazer-te recordar o sarcófago
de teu eu”. 17 A natureza como “não-ser” (Nichtsein), como limitação
(Beschränkung), é para o jovem Feuerbach a prova real da finitude e, ao
mesmo tempo, do fim, ou seja, da morte do indivíduo. Se não houvesse na
natureza nenhum limite, o sujeito seria infinito e imutável e, como absoluta
realidade, de per se imortal (unsterblich); com isto, não haveria nem
singularidade, nem negatividade ou morte do indivíduo. Deus criou,
segundo a Bíblia, a natureza, isto é, Ele deu ao “não-ser”, ou seja, à natureza,
essência e realidade. Se a natureza, cuja essência é a limitação, nasceu, porém,
de Deus, então em Deus está também contida a negação da vida, e, com isto,
Ele é tanto fundamento do ser como também do não-ser, fonte da alegria
como da dor, do lamento e da miséria, isto é, princípio da vida e da morte de
todos os indivíduos. “Como pode ser o infinito, todavia, fundamento do
finito, como pode, pois, do ser absoluto, do amor absoluto, que é a unidade
autônoma de todos os seres, resultar o condicionado, o particular, o
determinado?” 18 Esta questão se resolve, quando diante do nascer do finito já
se implica o perecimento deste, ou seja, se no ser já está fundamentado o
não-ser. Através do infinito, está posto o finito como finito, e, nesta finitude,
sua negation e sua morte já estão afirmadas; o finito nunca é quieto, e seu ser,
no interior da esfera do infinito, é possível apenas como sucessão, como
desaparecer e perecer.
A essência da obra Todesgedanken, a saber, a crítica à doutrina da
imortalidade do indivíduo e à fé cristã na ressurreição da alma, é tematizada
mais uma vez na segunda parte dessa obra, “Tempo, Espaço e Vida”. “Não
apenas mediante a crítica ao egoísmo humano, mas também através da
análise das condições que constituem a existência humano-individual” pode
“ser fornecido”, como Peter Cornehl expõe, “a prova da absurdidade de uma
continuação individual depois da morte.” 19 Espaço (Raum) e tempo (Zeit)
designa Feuerbach como as condições absolutas, inevitáveis, necessárias de
todos os indivíduos, pois o indivíduo é não só temporal, mas também,

17
Ibid., p. 218.
18
Ibid., p. 233.
19
Cornehl, P. Feuerbach und die Naurphilosophie. Op. cit., p. 59.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 45

necessariamente, espacial. Embora espaço e tempo contenham igualmente as


condições da afirmação (Bejahung) e da negação (Verneinung) da existência
(Dasein), pode-se atribuir ao tempo a determinidade da negação e ao espaço
a da afirmação. O espaço é, então, a forma externa do existir de todos os
indivíduos, que não podem, por isso, ser fora dele; o tempo é, por sua vez, o
perecer, isto é, a negatividade de todo ser finito e particular. Feuerbach
acredita que aquele que é indivíduo só existe para um tempo certo num lugar
determinado. É, precisamente, este o contexto em que a concepção de
natureza do jovem Feuerbach aparece como fonte (Quelle) e poder (Macht)
sobre a vida (Leben) e a morte (Tod), isto é, tanto como condição de
possibilidade da existência no espaço e no tempo, como também como fim
do ser individual. A mediação e a ligação do indivíduo à natureza, isto é, às
condições de existência no espaço e no tempo, contêm já em si a negação de
qualquer esperança a uma continuação do indivíduo depois da morte, pois,
se fosse dada um continuação infinita ao indivíduo, a vida (Leben) deveria
existir, depois da morte, novamente no espaço e no tempo. Como
argumento contra a fé na imortalidade individual (der individuelle
Unsterblichkeitsglaube), Feuerbach menciona o seguinte: “Não há duas
espécies de espaços ou espaços fora do espaço, assim este lugar não pode
mesmo diferenciar-se do espaço, estar separado ou inteiramente fora do
mesmo, pois um espaço fora do espaço é, sim, um absurdo.” 20 Se houvesse
uma vida sobrenatural, celestial, “do além”, ela deveria, por conseguinte,
existir em um lugar, e, assim, cairia a vida, depois da morte, de novo na vida
antes da morte. Então, a vida “imortal”, “eterna”, seria, deste ponto de vista,
novamente uma vida espaciotemporal e teria, com isto, todos os atributos e
qualidades sensíveis, que pertencem essencialmente a esta existência
temporal, sensível. Por isso, é para Feuerbach sem sentido uma vida dupla. A
pretensão do jovem Feuerbach consiste, por conseguinte, em demonstrar a
impossibilidade de uma existência postmortale do indivíduo, isto é, em
desmascarar a esperança de uma vida depois da morte como fantasia e
illusion. Depois da morte, o indivíduo não pode esperar nada mais.
O indivíduo (Individuum), considerado como um mikrokosmo, é,
como Feuerbach expõe, um espelho da natureza (ein Spiegel der Natur), do
makrokosmo, pois a contemplação de sua existência já remete para todo o

20
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p. 250.
46 Eduardo Ferreira Chagas

universo. Seu corpo consiste, por exemplo, de variadas, infinitas e autônomas


partes, que são todas, por sua vez, divisíveis até o infinito. A natureza abrange
essa infinitude ou quantidade incontável de partes, membros, órgãos,
sistemas, no quais ela se expressa e se desdobra para uma unidade que se nega
e que se pode chamar de vida. Essa argumentation de Feuerbach obedece,
como diz Simon Rawidowicz, a Lógica de Hegel: “toda unidade” é para
Feuerbach, como também para Hegel, “apenas unidade das diferenças”, mas
“sem negação” não há “nenhuma unidade”. 21 Na medida em que os
indivíduos, em suas infinitas partes, só são possíveis na natureza, esta
determina a essência e o limite de suas vida. Por conseguinte, uma vida ou
uma duração do indivíduo fora da natureza é impensável. A natureza como
universalidade, totalidade, multiplicidade, torna-se una; ou, como o jovem
Feuerbach se expressa: “tudo é uno, e o uno é tudo.” 22 Se o indivíduo tem,
no entanto, seu lugar na natureza, então suas determinações obedecem ao
horizonte de uma teleologia natural? Existe um télos na natureza? Ou é a
natureza, pelo contrário, sem télos, acidental, fortuita em si mesma? A
natureza tem, para o jovem Feuerbach, um fim (Zweck) conforme a sua
essência interna. Para isto dá Feuerbach o seguinte exemplo: “No fruto está,
pois, a finalidade, a essência, da árvore, está todo o carvalho que se perde e se
estende no tronco, nas raízes etc., - ali se encontra como em casa abrigado e
encerrado, no estreito espaço de um botão de cravo -, pois este botão de
cravo é a força, a possibilidade, do carvalho inteiro.” 23 Se a natureza em si
mesma fosse sem fim e vazia, não haveria nela vida, existência. A finalidade
não é, contudo, imediata na natureza, pois ela já tem, perante sua existência,
“uma história”, um outro ser como fundamento. Para realizar algo, a
natureza deve seguir outros caminhos, isto é, ela deve atravessar uma longa
série de graus e modos do ser. “Veja”, diz o jovem Feuerbach, “este embrião
aqui está determinado para ser um homem; veja esta essência [...] silenciosa,
imóvel, deve se tornar, um dia, um homem vivo, forte, desejante e ativo!” 24
Ou: “O sêmen é, de fato, só possível sob a condição de seu não-ser, isto é,

21
Rawidowicz, S. Ludwig Feuerbachs Philosophie. Ursprung und Schicksal. Berlin: Walter de
Gruyter & CO, 1964, p. 25.
22
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p. 253.
23
Ibid., p. 263.
24
Ibid., p. 261.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 47

sob a condição de que ele não se mantenha como sêmen, mas se torne um
outro do que é.” 25 O jovem Feuerbach concebe, então, a finalidade como
limite e morte, pois onde não existe nenhuma destruição, nenhuma negação
e superação da existência autônoma, lá não há nenhuma finalidade. Uma
finalidade, que não põe nenhum limite, como a natureza exige, é apenas uma
finalidade imaginada, não real.
A argumentation do jovem Feuerbach insiste, aqui, no princípio
dialético (de Hegel) da contradição: no interior da limitação foi eliminada “a
negatividade” do finito e, ao mesmo tempo, elevada a positividade ao ser.
Tudo o que existe na natureza não é sem fronteira, sem limitação
(Beschränkung), pois cada coisa é já determinada. “Toda coisa é uma prova da
verdade desta afirmação.” 26 No limite, ou seja, na determinidade, encontra-
se, pois, a essência de uma coisa. A água, por exemplo, é aquilo, o que ela é,
não como água em geral, mas como uma determinada fonte de água, água do
rio ou do mar. Disso deduz o jovem Feuerbach que também a vida só é
possível e também real “no limite que a natureza tem na forma e figura da
terra”. 27 “Feuerbach vê, como Hans-Jürg Braun menciona, “já aqui a
natureza como o limite insuperável de todo ser terreno e, por conseguinte,
também como o limite do ser humano. Não apenas o homem como singular
vive sua vida na- e da natureza, mas também, em grande medida, o gênero
mesmo. O que Feuerbach nomeia espírito e pensamento, como pertence, do
mesmo modo, a vida ao todo da natureza, está fundamentado na mesma.” 28
A natureza, na qual a vida encontra seu limite, seu não-ser, é um ser
determinado, mas não um ser finitamente limitado, e sim um ser igualmente
universal, infinito, em sua determinidade. Há na natureza diferentes graus de
vida, isto é, muitos degraus e múltiplos e infinitos modos de vida. Se a
natureza fosse apenas um elemento determinado e limitado e não abrangesse
em sua determinidade, infinitamente, muitas espécies, ela seria apenas a
extensão da vida de um animal ou de única espécie de planta, apenas de um
membro particular. E, com isto, seria excluída a diferença, a particularidade,
ou seja, o rico e múltiplo conteúdo, que a natureza contém. Já que na
natureza existem, infinitamente, muitas espécies de vida no interior de um

25
Ibid., p. 233.
26
Ibid., p. 275.
27
Ibid., p. 277.
28
Braun, H.-J. Ludwig Feuerbachs Lehre vom Menschen. Op. cit., p. 61.
48 Eduardo Ferreira Chagas

limite comum, que é a natureza mesma, constitui, por conseguinte, a


natureza o todo, a condição geral de todas as vidas. Em Todesgedanken,
Feuerbach defende também, explicitamente, a autonomia (Selbständigkeit) da
natureza, da vida natural, sensível: “A essência da vida é, portanto, a medida,
a estrutura, a proporção da natureza terrena”; a vida “não pode ser dada, nem
presenteada [...], pois somente vive aquilo cujo ser e essência é sua vida
mesma”; “vida é unidade de essência e ser, vida só há ali, onde se dá uma
absoluta identidade consigo mesma. Portanto, o que vive, tem o fundamento
e o princípio de seu ser em si mesmo; só aquilo, que é em si mesmo e de si
mesmo, tem vida. Vida não quer dizer nada mais do que ser o fundamento de
si mesmo. [...] Vida só há ali, onde origem e existência são idênticos, onde o
fundamento e o princípio do ser é o ser mesmo, onde nada se põe fora de seu
fundamento, mas permanece nele e este é nele a existência sempre originária,
sempre no seu começo.” 29 Em oposição à primeira consideração da natureza,
concebida como negatividade, torna-se, agora, clara a outra concepção de
natureza de Feuerbach, a saber: a natureza é também a absoluta e última
fundamentação e condição de toda a vida, porque todos os seres vivos
possíveis têm se desenvolvido dela. Dito brevemente, a realidade da vida
encontra-se na natureza terrena, que é, também, simultaneamente, o limite
pleno e a negation da mesma (da vida). Uma outra possiblidade fora da
natureza é, para o jovem Feuerbach, pura ilusão (blosse Einbildung), pois,
onde não estão dadas as condições plenas exigidas para a vida, onde não há,
por exemplo, água, ar, luz, lá também não há vida, já que sem ela o homem,
o animal, a planta ou qualquer outro ser vivo não podem ser pensados. A
vida só pode existir nos limites determinados, uma vez que ela é limitada e
condicionada pela natureza; realiza-se na natureza, portanto, não apenas seu
nascimento, mas também sua destruição e limitação. Esta limitação e
condicionalidade da vida mostram que a natureza em sua totalidade constitui
não apenas um puro “não-eu” fitcheano; pelo contrário, ela marca também o
limite (Grenze) e a morte (Tod) de todos os indivíduos, isto é, a “tragédia”

29
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p. 278 e 287-288.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 49

(Tragödie), a “condição trágica” (tragische Zustand), da qual nasce a existência


imediata do homem e nela ela novamente perece. 30
Com o título “Espírito, Consciência” (Geist, Bewusstsein), a terceira
parte de Todesgedanken tem como tema a posição privilegiada
(Sonderstellung) do homem diante de todas as outras formas de vida orgânica.
O homem (Mensch) diferencia-se de todos os seres da natureza – animal,
planta etc. -, porque ele é não só um ser vivo (lebendiges Wesen), mas também
um ser espiritual (geistig), consciente (bewusst). Que o homem se diferencia
de seu próprio ser e possa tomá-lo como seu objeto, é isto já sua essência. Em
resumo: o homem é a si mesmo consciente de si mesmo e faz a si mesmo
como objeto. Na medida em que ele é consciente de si mesmo, é ele a si
consciente também dos outros. Esta atividade diferencial distingue o espírito
(Geist), que é a unidade absoluta e infinita de todos os homens. O meio
absoluto da humanidade é, precisamente, o espírito, que foi designado pelo
jovem Feuerbach também como “Deus”, pois ele expressa o todo inseparável,
a infinitude e a universalidade. Na medida em que o espírito significa gênero,
é ele também o aniquilamento do individual ou, expresso de outra forma, a
morte do singular. Aqui apresenta o jovem Feuerbach um significado
particular do conceito de morte: a morte (Tod) não é uma aniquilação
positiva, mas uma negação que se nega a si mesma, isto é, uma aniquilação
que, na medida em que ela nada toma, toma tudo, ou, corretamente, uma
aniquilação que é aniquilação de si mesma. O que nega a existência tem isto
mesmo nenhuma existência, pois, na medida em que isto nega a existência
mesma, nega isto aquilo de que, de onde e por onde se pode existir. Nesta
negação da existência, do positivo ou da vida, nega a morte a si mesma, e,
por isso, é ela a afirmação e confirmação da existência mesma, a realidade
absoluta da vida. Assim, escreve o jovem Feuerbach ironicamente: “Loucos
são os que dizem que a vida é um puro som, vazio, que passa como sopro e se
desvanece como vento.” 31 Tratada desta maneira é, na verdade, a morte o
limite da vida, que, todavia, não tem nenhuma existência, pois a realidade da
morte é apenas aparência, representação, não realidade. O homem religioso
(o crente) entende, ao contrário, a morte como vida, apenas porque ele não

30
Cf. Vögeli, D. Der Tod des Subjekts.... Op. cit., p. 131: O “problema da condição trágica
do homem sensível foi omitido”, no entando, na fé cristã, “na medida em que se idealiza a
pessoa sensível singular”.
31
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p.403.
50 Eduardo Ferreira Chagas

pode pensar a si mesmo como morto. “A outra vida”, que ele atribui à morte,
não tem nenhum significado positivo; ela não se diferencia, segundo seu
conteúdo, da morte; ela é apenas um euphemismus, uma “expressão poética”
do ser da morte. Mais tarde, de uma maneira literária, escreverá Feuerbach,
em A Questão da Imortalidade do Ponto de Vista da Antropologia (Die
Unsterblichkeitsfragae vom Standpunkt der Antropologie) (1846), o seguinte:
“Os mortos vivem, mas eles vivem apenas como mortos, isto é, eles vivem e
não vivem; a suas vidas falta a verdade da vida; suas vidas são apenas uma
alegoria da morte.” 32 Pode-se, então, dizer que a morte é a morte da morte,
pois, na medida em que ela acaba com a vida, ela mesma morre. A morte é,
porém, como mostrado, apenas uma negação que nega a si mesma, assim
também a imortalidade (Unsterblichkeit), como pura oposição à morte, é
uma nulidade, uma afirmação irreal, indeterminada, do indivíduo, da vida e
da existência. Da doutrina da imortalidade segue, contudo, uma moralidade,
que se fundamenta na representação de um outro mundo, de um além, que
pressupõe uma segunda vida. Esta moralidade não corresponde à liberdade
humana, que vê a si mesma na morte e reconhece nela sua ação suprema
como emancipação da limitação e, por isso, como amor. “Tua moralidade” é,
assim julga o jovem Feuerbach no final de Todesgedanken, “por conseguinte,
a moralidade imoral, deplorável, vaidosa, do mundo, se ela provém da fé na
imortalidade.” 33 Feuerbach nega, entretanto, apenas a imortalidade pessoal,
individual da alma; para ele, a verdadeira fé é nada mais do que a fé na

32
Feuerbach, L. Die Unsterblichkeitsfragae vom Standpunkt der Antropologie. Org. por W.
Schuffenhauer. Berlim: Akademie Verlag, 1971, GW 10, p. 197.
33
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p.342-343. Cf. Também
Die Unsterblichkeitsfragae vom Standpunkt der Antropologie. Op. cit., p. 260-261, onde
Feuerbach, contra o desejo de imortalidade, de vida no outro mundo, argunenta o seguinte:
“Como é ridículo pensar no preenchimento da lacuna imaginável do homem, deixando
despercebido a lacuna real da vida humana! Como é ridículo proporcionar ao homem uma
existência do além, antes de se pensar em proporcionar, aqui, aos homens existência, pois o
homem existe, apenas quando ele tem uma existência humana, realiza suas determinações
humanas.” Desta maneira, o desejo de imortalidade, do além, aponta para a causa da
miséria do mundo cristão. O cristão sacrifica as determinações deste mundo em nome das
determinações fictícias, imaginadas, do além; sacrifica as necessidades reais do homem em
nome das necessidades religiosas. Em vez de pensar em finalidades terrenas, que o homem
pode realmente alcançar, o cristão pensa, do seu ponto de vista supranatural, apenas em fins
que o homem não pode alcançar, para assegurar-se de uma existência do além.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 51

realidade da razão, do espírito, realidade esta que se manifesta na consciência


do homem como gênero, como um ser universal, “eterno”; o espírito subsiste
sempre; ele é um “presente infinito”, que se concretiza na história. 34

34
Neste lugar, é interessante a observação de Josef Winiger, in: Feuerbachs Weg zum
Humanismus. Zur Genesis des anthropologischen Materialismus. München, 1979, p. 41-42: A
oposição de Feuerbach à teologia leva a uma diferença de opinião, entre outras, com a de
Hegel. Este tinha, assim escreve Winiger, “afirmado, com referência ao interesse comum e
ao objeto comum, a identidade do Cristianismo com a religião absoluta”. Feuerbach
acentua aqui, ao contrário, a oposição entre teologia e filosofia. “Drasticamente”, diz ainda
Winiger, Feuerbach “expõe esta oposição nos ‘Pensamentos sobre Morte e Imortalidade’, e,
na verdade, não apenas como oposição de religião e filosofia [...], mas, em geral, como
oposição entre a vida estranhada, fixada no além, e a vida amigável, afirmada no mundo.
Seu racionalismo como protesto contra a religião mostra-se como elemento daquela
‘concentração indivisa ao mundo efetivo’, por causa disso ele quer superar a velha
discrepância entre o aquém e o além.” O além é, para Feuerbach, nada mais do que um
mundo da fantasia, isto é, uma representação do futuro, mas que o homem religioso
hipostasia como uma condição diferente do futuro real. Abstraído da natureza e arrancado
de sua conexão com ela, apresenta-se ao crente o além como melhor, mais bonito do que o
aquém, do que a realidade. O futuro imaginado, pintado do além, depende, então, apenas
de sua vontade; tal mundo está inteiramente no poder de sua fantaisa, na qual tudo é
possível.
Podem as serpentes conviver com as pombas?
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política

Cinara Nahra *

Resumo: O objetivo do presente artigo é discutir a relação entre ética e política a partir das
diferenças entre as visões de Kant e de Maquiavel. No artigo é discutido também o papel do
Estado contemporâneo bem como é apresentado o modelo dos 6c, que são as práticas
antiéticas que são largamente utilizadas na política brasileira, especialmente no momento
eleitoral, a saber, o clientelismo, o coorporativismo, o coronelismo, o controle e manipulação
de informações, a construção de realidades inexistentes e a corrupção. Finalmente pretende-
se mostrar a necessidade da adoção do modelo inspirado em Kant que subordina a política a
uma moral racional
Palavras-chave: Ética; Política; Corrupção; Fins e meios; Estado; Moral racional

Abstract: The purpose of this article is to discuss the relationship between ethics and politics
taking as the starting point the differences between Kant´s and Machiavelli´s views. I will
also discuss here the role of the contemporary State, as well as I will put forward what I call
the “6c model” namely the immoral practices which are largely used in Brazilian politics,
especially at the time of elections, i.e., exchange of favours, corporative vote
,authoritarianism, control and manipulation of information, fantasy and corruption. Finally,
I intend to show the necessity of adopting a model inspired by Kant that subordinates
politics to a rational morality.
Keywords: Ethics; Politics; Corruption; Means to an end; State; Rational morality

A política diz “seja prudente como as serpentes; a moral acrescenta: e sem falsidade,
como as pombas. Se ambos não podem coexistir em um único mandamento, então há
efetivamente conflito entre a política e a moral; mas se ambos devem se unir
absolutamente então o conceito do contrário é um absurdo e a questão de saber como
resolver este conflito não se apresenta nem mesmo como um problema. Ainda que a
proposição: a honestidade é a melhor política reafirme uma teoria que a prática
infelizmente contradiz frequentemente, a proposição igualmente teórica: a
honestidade é melhor que toda política esta acima de qualquer objeção. O deus limite
da moral não cede diante de Júpiter (o deus limite do poder) pois Júpiter é ele
também submetido ao destino”.
Immanuel Kant A Paz Perpétua (Apendice 1)

*
Professora do Departamento de Filosofia da UFRN. E-mail: cinaranahra@hotmail.com
Artigo recebido em 31.10.2009, aprovado em 15.12.2009 .

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 53-70


54 Cinara Nahra

1 Algumas observações sobre o que é a ética


Para falar sobre ética e política é necessário, antes de tudo, falar um pouco
sobre Ética em geral. Aristóteles, o fundador do primeiro grande sistema
ético -filosófico ocidental, afirma:

Uma vez que a presente investigação não visa ao conhecimento teórico como as
outras - porque não investigamos para saber o que é a virtude, mas a fim de nos
tornarmos bons, do contrário nosso estudo seria inútil- devemos agora examinar a
natureza dos atos, isto é, como devemos praticá-los 1

Essa observação metodológica de Aristóteles é pré-requisito para a


compreensão do que é a ética e é a primeira coisa que iremos tratar aqui. O
conhecimento moral é um tipo de conhecimento muito especial, a saber,
por essência ele não visa simplesmente uma apreensão ou uma compreensão
teórica, mas objetiva a prática. Em outras palavras, não se terá
compreendido a ética se não tornarmos éticos. Esse, então, é o objetivo do
estudo da ética: ser ético.
Mas o que é ser ético? Os filósofos eticistas têm se digladiado ao
longo dos séculos tentando responder a esta pergunta, exibindo argumentos
e conceitos que muitas vezes são absolutamente contrários. Filósofos
distintos, correntes distintas, respostas distintas. Há algo, no entanto, que a
sociedade deve reconhecer como sendo práticas, atitudes e comportamentos
claramente imorais, e que se forem universalizados ou mesmo generalizados
colocam em risco a sobrevivência da sociedade e impedem seu
desenvolvimento. O que é ser anti-ético, pois, talvez seja mais fácil de ser
definido.
E o que é, pois, ser anti-ético? A melhor definição para isso pode ser
derivada de uma mixagem entre as teorias kantianas e utilitaristas da
moralidade. Ser anti-ético seria, então, praticar determinados atos e assumir
determinadas práticas ou comportamentos que se forem universalizados (ou seja,
se todos os praticarem) colocam em risco a sobrevivência da sociedade
provocando o caos social. Assim, por exemplo, se coloca o problema do
roubo. O que aconteceria em uma sociedade na qual todos fossem ladrões?
Tal sociedade se inviabilizaria a medida em que todos só poderiam
conservar o que é seu através do uso da força. Se todos roubam de todos, as

1
Aristóteles. A Ética a Nicômaco. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, p. 68.
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política 55

próprias instituições que deveriam proteger os indivíduos também estariam


minadas por pessoas que roubam, e nessa medida, acabar-se-ia a proteção.
Isto significa o fim da eficácia das leis e das instituições. Em ultima instância
é o fim do chamado estado de civilização de que fala o filósofo Thomas
Hobbes e a volta ao estado de natureza.

2 A morte do Leviatã e a morte do social


O estado de natureza hobesiano é um modelo que ele utiliza para
caracterizar uma situação na qual o homem vive sem as leis civis. Para
Hobbes esta é uma situação propícia a luta de todos contra todos:

Em todos os lugares onde os homens viviam em pequenas famílias, roubar-se e


espoliar-se uns aos outros sempre foi uma ocupação legítima, e tão longe de ser
considerada contrária à lei da natureza que quanto maior era a espoliação
conseguida, maior era a honra adquirida. Nesse tempo os homens tinham como
únicas leis as leis de honra, ou seja, evitar a crueldade, isto é, deixar aos outros suas
vidas e seus instrumentos de trabalho. 2

É para escapar desta situação, tão desfavorável à paz e à auto-


conservação que os homens pactuam e criam o Estado. A essência do
Estado, pode ser assim definida:

Uma pessoas de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns
com os outros, foi instituída por cada um como autora de modo a ela poder usar a
força e os recursos de todos, da maneira que achar conveniente, para assegurar a
paz e a defesa comum 3

A finalidade desta Instituição, ainda segundo Hobbes, é a paz e a


defesa de todos. O Estado, o grande Leviatã, é o homem artificial criado
para a defesa e proteção. É a criação humana imitando a natureza. A riqueza
e a prosperidade de todos os membros individuais são sua força. Salus Populi
(segurança do povo) é seu objetivo. A guerra civil é a morte.
Concordemos ou não com algumas conclusões periféricas de
Hobbes, o que nos interessa aqui é salientar que na essência sua teoria é
correta e em alguns pontos até visionária. Um mundo sem as chamadas leis
de civilização é um mundo de caos e de desordem, comprometendo em

2
Hobbes, T. Leviatã. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, p. 103.
3
Hobbes. Op. Cit. p.106.
56 Cinara Nahra

última instância a sobrevivência de cada um e da própria espécie como um


todo. E o compromisso do Leviatã deve ser com todos.
A pergunta que cabe a nós é a seguinte: O Estado, tal como o
conhecemos atualmente, cumpre o seu papel básico de manter a paz e
defender a todos? Ou seria o Estado contemporâneo uma instituição que há
muito perdeu essa pretensão e serve apenas para a defesa de determinados
interesses de classes ou de grupos? Se a segunda hipótese for verdadeira não
estaríamos caminhando a passos largos para uma volta ao estado de
natureza, ou seja, uma espécie de barbárie pós-moderna, já que o objetivo
para o qual o Estado existe já se perdeu?
Lenin (ele mesmo, o dinossauro!), já havia no início do século
desmascarado as teorias clássicas como a hobesiana, afirmando que o Estado
nada mais era do que um instrumento a serviço da dominação de classes 4 .
Assim, o Estado nunca teria estado a serviço de todos, mas sim, sempre a
serviço de uma classe, no caso, as classes dominantes nos mais diversos
momentos históricos. No capitalismo, pois, o Estado sempre teria sido um
instrumento de dominação usado pela burguesia.
Mesmo que se diga que a teoria leninista do estado é reducionista e
incapaz de abarcar todas as mazelas sob a qual se desenvolve o Estado
contemporâneo, ela pode ser, entretanto, uma boa chave interpretativa. Não
que o Estado esteja a serviço da burguesia como um todo ( até porque fica
difícil caracterizar o que é a burguesia hoje) mas é óbvio que o Estado

4
Lenin, V. O Estado e a Revolução, Cultura Brasileira. Disponível em:
www.culturabrasil.org/zip/oestadoearevolucao.pdf. p.13 “De um lado, os ideólogos
burgueses e, sobretudo, os da pequena burguesia, obrigados, sob a pressão de fatos
históricos incontestáveis, a reconhecer que o estado não existe senão onde existem as
contradições e a luta de classes, "corrigem" Marx de maneira a fazê-lo dizer que o Estado é
o órgão da conciliação das classes. Para Marx, o Estado não poderia surgir nem subsistir se a
conciliação das classes fosse possível.Para os professores e publicistas burgueses e para os
filisteus despidos de escrúpulos, resulta, ao contrário, de citações complacentes de
Marx,semeadas em profusão, que o Estado é um instrumento de conciliação das classes.
Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe,um órgão de submissão de uma
classe por outra; é a criação de uma "ordem" que legalize e consolide essa submissão,
amortecendo a colisão das classes. Para os políticos da pequena burguesia, ao contrário, a
ordem é precisamente a conciliação das classes e não a submissão de uma classe por outra;
atenuar a colisão significa conciliar, e não arrancar às classes oprimidas os meios e processos
de luta contra os opressores a cuja derrocada elas aspiram".
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política 57

contemporâneo, que podemos chamar de Estado pós moderno, está a serviço


não de todos, mas de interesses de grupos, pessoas e setores que estão muito
longe de significar todos.
Peguemos a título de exemplificação o caso do Brasil. Como se
pode falar de proteção a todos com pessoas morrendo a porta de hospitais
públicos por falta de atendimento, perplexas diante de um sistema público
de saúde que está destruído? Como se pode falar de riqueza e prosperidade
de todos diante de um sistema que estimula a especulação em detrimento da
produção, levando necessariamente ao desemprego e a um grau de
concentração de renda absurdo? Como se pode falar de “todos” quando se
socorre grandes banqueiros e se penaliza com impostos a absoluta maioria
da população? Como se pode falar em segurança e paz, quando crianças
estão morrendo dentro de escolas , quando população se encontra
completamente indefesa diante de bandidos cada vez mais audaciosos e
certos da sua impunidade e quando os próprios profissionais da segurança
estão, muitos, vivendo sob condições de pobreza?
O fato é que o Estado pós moderno destruiu o social, e com isso,
está se destruindo a sociedade. Jean Baudrillard, embora não nos
comprometemos com suas conclusões, faz um diagnóstico sério do processo
de morte do social:

Ora, o que se torna a racionalidade do social, do contrato e da ligação social, se


esta, em vez de aparecer como estrutura original aparece como resíduo e gestão de
resíduos? Se o social só é resto, não é mais o lugar de um processo ou de uma
história positiva, só é o lugar da acumulação e da gestão usurária da morte. Não
tem mais sentido, pois existe para outra coisa e em desespero de outra coisa: é
excremencial. Sem perspectiva ideal. Porque o resto é o nada ultrapassado, o que é
irreconciliável na morte, e sobre ele só se pode fundar uma política de morte.
Reclusão ou exclusão .O social inicialmente foi, sob o signo da razão positiva, o
espaço da grande Reclusão- tornou-se sob o signo da simulação e da dissuasão, o
espaço da grande Exclusão. Mas talvez já não seja mais um espaço “social”. É nessa
perspectiva de gestão de resíduos que o social pode aparecer hoje pelo que é: um
direito, uma necessidade, um serviço, um puro e simples valor de uso [...] O
problema da morte do social nessa perspectiva é simples: o social morre de uma
extensão do valor de uso que equivale a uma liquidação. Quando tudo, inclusive o
social, se torna valor de uso, o mundo se tornou inerte, onde se opera o inverso do
que Marx sonhava. Ele sonhava com uma reabsorção do econômico no social
58 Cinara Nahra

(transfigurado). O que nos acontece é a reabsorção do social na economia


política(banalizada): a gestão pura e simples 5 .

O processo de morte do social descrito por Baudrillard só pode ser


bem compreendido se entendermos que subjacente e concomitantemente a
este, assistimos a um processo de morte do Estado, ou pelo menos de morte
do Estado moderno . O Estado não serve mais àquilo para o qual ele deveria
servir, ou seja, a defesa e proteção de todos. O Estado está servindo
claramente aos interesses de uns poucos, uma minoria, e com isso, está
traindo seus objetivos clássicos (e para sermos justos devemos ao menos
conceder o benefício da dúvida a tradição marxista-leninista e nos perguntar
se alguma vez ele chegou a cumprir estes objetivos) .
O ponto importante e preocupante é que a continuação desse
processo significa a barbárie, significa o retorno ao estado de natureza,
significa a guerra de todos contra todos, o fim das leis, o espólio
generalizado, a propagação da violência, a vitória da força sobre a razão, o
caos.
A reversão deste processo, embora difícil, é necessária ainda que
mais não seja para que possamos ter esperança no futuro da humanidade. A
tarefa histórica que se coloca hoje aos homens e mulheres de bem e do bem
é resgatar ao Estado o seu papel de proteger a vida humana e prover as
condições necessárias para a prosperidade de todos.
É nessa perspectiva que as eleições são um momento
importantíssimo. O compromisso de quem se elege com essa visão de
Estado faz toda a diferença entre o sim e o não a vida. Que mundo
queremos? O mundo da saúde, da educação, da segurança, da felicidade ou
o mundo da acumulação irracional e ilícita de uns poucos pelo roubo
descarado ou mascarado nas formas mais sinuosas , dissimuladas e cínicas?
O mundo em que o mercado existe em função do homem ou um mundo
em que o homem se submete a uma lógica de mercado que na realidade
nada mais é do que uma lógica de espoliação e dominação?
Se quisermos a concretização deste primeiro cenário, deste primeiro
mundo, temos que nos empenhar em colocar no governo, nas suas diversas
instâncias, pessoas que estejam comprometidas com a humanidade e com a

5
Baudrillard, J. À sombra das maiorias silenciosas. São Paulo: Editora brasiliense, p. 62 e 67.
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política 59

preservação do planeta, e não pessoas que apenas usam o poder para


alcançar seus interesses pessoais ou de grupo. Aquele que vai governar uma
nação inteira deve ler, em si mesmo, não este ou aquele indivíduo em particular,
mas o gênero humano . 6
Quem lê em si próprio o gênero humano carrega dentro de si
preocupações não só consigo próprio, mas com todos. Pensa nesta e nas
futuras gerações, nos que existem e nos que haverão de existir,
administrando no sentido de prover as condições de possibilidade para que
os seres humanos, atuais e futuros, possam ser felizes. Esta preocupação é a
preocupação ética, a preocupação moral par excellence. A ética exige sempre (
além da recorrência à prática como já vimos) a recorrência ao Outro, aos
outros, e em última instância, como Kant nos adverte, a referência
necessária ao universal e àquilo que pode ser universalizado.

3 Maquiavel X Kant
Com Kant e Maquiavel teremos dois modelos opostos para conceber a
relação entre moral e política, ou se quisermos, entre ética e política, ou em
última instância entre ética e poder. A base do modelo maquiavélico é a
concepção de que o importante é alcançar e manter-se no poder, seja a que
custo for:

Nas ações de todos os homens, especialmente os príncipes, contra os quais não há


tribunal a que recorrer, os fins é que contam. Faça, pois, o Príncipe tudo para
alcançar e manter o poder; os meios de que se valer serão sempre julgados honrosos
e louvados por todos porque o vulgo atenta sempre para aquilo que parece ser e
para os resultados. 7

O modelo maquiavélico podemos dizer que é o modelo dominante


na política, nos governos e nas gestões pós-modernas contemporâneos.
Discutindo a questão da ciência e da técnica Lyotard observa:

O estado e/ou a empresa abandonam a narrativa de legitimação idealista ou


humanista para justificar a nova situação: no discurso dos capitalistas de hoje a
única situação merecedora de crédito é o aumento do poderio. Não se pagam
técnicos, sábios e aparelhos para saber a verdade, mas para aumentar o poderio. 8

6
Hobbes, T. Op. Cit. p. 6.
7
Maquiavel. O Príncipe. Editora Cultrix, p 113.
8
Lyotard, Jean F. A Condição Pós Moderna. Gradiva, p. 91.
60 Cinara Nahra

A esta busca do poder pelo poder se associa a ideia de que os fins


justificam os meios. Este é ,segundo Kant, o modelo do moralista político
que forja uma moral que interessa aos interesses do homem de estado 9 . Em
oposição a este modelo diz Kant, devemos conceber o político moral ou
seja, aquele que considera que os princípios da prudência política podem
coexistir com a moral. O resumo desta ópera é que no modelo Kantiano a
política deve estar sempre subordinada a moral, subordinada a ética,
enquanto que no modelo maquiavélico a ética e a moral devem estar sempre
submetidas a “política”.
No modelo Kantiano nós temos, pois, um princípio moral o
chamado Imperativo Categórico assim enunciado: “Age de tal modo que o
princípio subjetivo da tua ação possa servir ao mesmo tempo como princípio de
uma legislação universal”, e tudo o mais no campo da ação, inclusive da ação
política, deve estar subordinado a este princípio. Ações, pois, inclusive no
campo político que não admitam a universalização e a sua publicidade, são
ações imorais, e não devem ser realizadas. Em Kant o objetivo político
último de todos os povos deve ser a construção do que ele chama de paz
perpétua.
Em Maquiavel, ao contrário, a arte da guerra é a única que se espera
daquele que governa. Em Maquiavel existe uma autorização explícita para
que se faça qualquer coisa que sirva para que se alcance e sustente o poder.
Sua receita para isso inclui um princípio, o fingimento, do qual o
pretendente ao domínio não deve nunca se afastar, e nove regras, a saber,
tratar os outros como meios e não como fins, obter riquezas por qualquer
meio, mentir, apropriar-se, usar da força, ser temido, ser cruel, trocar
favores e aniquilar 10 .
Este modelo maquiavélico é aplicado na gestão do Estado pós
moderno, e podemos perceber claramente isto no caso do Brasil. Mas se em
alguns momentos o modelo consegue ser maquiado, no momento eleitoral
ele se revela plenamente. Chegamos, então, a figura do descaramento, degrau
maior de manifestação de uma compreensão política absolutamente
perversa.

9
Kant, I. Vers La Paix Perpetuelle. Flamarion, p. 112.
10
Nahra, C. “A Megera e o Príncipe”. Princípios, n.5, 1997, p. 41-62.
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política 61

4 Eleiçoes e o modelo do“6 C”na política brasileira


O desdobramento do modelo maquiavélico no momento eleitoral se revela
nos “6 C”, ou seja, seis práticas que são utilizadas e abusadas pela classe
política dirigente brasileira interessada em manter-se no poder a qualquer
preço. São elas: controle e manipulação da informação, clientelismo,
coronelismo, coorporativismo, corrupção, construção de realidades
inexistentes. Vamos analisá-la uma a uma...
1. Clientelismo. A prática clientelista está baseada na máxima do é
dando que se recebe, que tem origens em São Francisco , mas que em
Maquiavel ganhou uma conotação absolutamente diferente, implicando
claramente em troca de favores. O clientelismo abunda em tempo de
eleições e é prática constante também nas gestões. Trata-se, basicamente, de
trocar o voto pela concessão de algum favor. Faz parte de uma concepção
perversa que torna privado o público, compreendendo o político ou o
dirigente como sendo dono daquilo que ele deveria representar. Ao ser
concebido como proprietário, o político ou o dirigente pode manipular
concessões a fim de conseguir com isto o voto de seus eleitores em tempo de
eleições ou outras vantagens. A manipulação de concessões se dá tanto a
nível de grandes quantias em altas esferas (no caso de licitações, leilões,
licenças ) quanto a nível da relação com a população em geral (caso de troca
de votos até por comida junto aos mais carentes) e pode até não passar por
questões financeiras ,envolvendo, as vezes, apenas troca de interesses. Com
essa prática o político ou o dirigente se exime da responsabilidade de legislar
e gerir para o desenvolvimento e o bem daquilo que ele está representando e
passa, então, a legislar e gerir para o seu próprio interesse e , no máximo, os
interesses de seus “clientes”. Em geral o que acontece, inclusive, é que os
“clientes” pobres são esquecidos imediatamente após a eleição e voltam a ser
lembrados no momento eleitoral subsequente quando se efetiva uma nova
troca.
2. Coorporativismo. É um modo um pouco mais refinado e não
menos perverso de exercício do clientelismo. O voto é dado não em função
do compromisso do candidato com a instituição e o bem comum mas em
função do empenho do candidato na defesa dos interesses da coorporação,
que pode ser uma categoria profissional ou um segmento específico da
sociedade. O problema do coorporativismo é que os interesses da
coorporação são colocados acima do bem comum. Uma gestão
62 Cinara Nahra

coorporativista em qualquer nível é nefasta porque nela se perde o olho do


universal, ou seja, a visão daquilo que deve ser feito para o desenvolvimento
da sociedade e da população como um todo. Os interesses de grupos passam
a ter predominância sobre os interesses do todo.
3. Coronelismo. É o modelo autoritário e despótico de governar. Foi
típico da ditadura militar que se instaurou em 1964, mas mesmo na plena
vigência democrática dos anos 80 nunca deixou de existir. A nível eleitoral o
coronelismo se manifesta na imposição do voto através de métodos escusos
como a coerção e a ameaça. Trata-se do tradicional ou vota ou perde o
emprego e outras pérolas deste tipo. Trata-se de expressão máxima da
negação da cidadania. Enquanto que a cidadania é concebida como sendo a
garantia que todo cidadão tem de poder manifestar livremente suas
opiniões, exercer livremente seu direito ao voto e ter seus direitos básicos
respeitados, o coronelismo é o contrário disto, ou seja, é o atrelamento dos
direitos do cidadão àquilo que uma figura determina, no caso o coronel ou
os coronéis, figurativamente os agentes do autoritarismo e da coerção.
4. Controle e manipulação das informações. Michel Foucault 11 ao
descrever o processo de transformação do homem em máquina , mostrando
também o interesse do poder em docilizar os homens, fala do controle e da
vigilância como momentos deste processo. O controle de que Foucault fala
aí é o controle do corpo que se dá através do horário, do programa, da
correlação corpo-gesto, da articulação corpo-objeto e da utilização exaustiva.
Mas há um outro tipo de controle. É o que se dá basicamente ao nível das
informações , que são selecionadas, maquiadas e enlatadas para o consumo
da sociedade, que deve apenas assimilá-las. Informação é poder e poder
implica controle.
Mas o controle é de tal ordem, e o poder também, que tudo se
passa como se eles não existissem quando na realidade eles nunca deixaram
de estar lá, se fazendo invisíveis...E é exatamente neste tornar-se invisível
que reside sua força, e é exatamente aí que os teóricos da pós modernidade
ou erram (se eles efetivamente não compreenderam isto) ou mostram-se
também eles maquiavélicos( se eles sempre souberam disto e
propositadamente criaram o discurso de legitimação desta estratégia de
dominação). Vejamos Baudrillard:

11
Foucault, M . Vigiar e Punir. Vozes, p. 117- 162.
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política 63

O próprio poder nem sempre deixa-se levar pelo poder, e o segredo dos grandes
políticos foi saber que o poder não existe. Que ele é apenas um espaço perspectivo
de simulação como foi o espaço pictórico da renascença, e que se o poder seduz é
justamente - o que os realistas ingênuos da política não compreenderão nunca-
porque é simulacro, porque se metamorfoseia em signos. O segredo da inexistência
do poder, segredo dos grandes políticos, é também o dos grandes banqueiros, de
saber que o dinheiro não é nada, que dinheiro não existe, o dos grandes teólogos e
inquisidores de saber que Deus não existe, que está morto. Isto lhes dá uma
superioridade fabulosa. Quando o poder descobre este segredo e se lança esse
próprio desafio então se torna verdadeiramente soberano. Quando desiste de fazê-
lo e procura encontrar-se uma verdade, uma substância uma representação (na
vontade do povo etc) perde então a soberania e são os outros que lhe devolvem o
desafio de sua própria morte, até que ele pereça efetivamente desta presunção,
desse imaginário, dessa superstição de si próprio como substância, desse
desconhecimento de si mesmo como vazio, como reversível na morte. Antigamente
matavam-se os chefes assim que eles perdiam este segredo. 12

Essa afirmação de Baudrillard, paradoxalmente, é a prova maior de


que o poder existe, ao contrário do que ele afirma. E tanto existe que
provoca a magia máxima, a deturpação maior, a saber, mostrar-se como
inexistente. Baudrillard ao propor que esquecêssemos Foucault prova que
este último estava certo. O poder que não se mostra é a expressão maior do
que Foucault chama dos olhares que devem ver sem ser vistos. É o ideal maior
da vigilância e do controle. É a concretização do ideal maior de todo poder.
Nas eleições o controle e a manipulação das informações é um dos
maiores trunfos e uma das táticas mais utilizadas. Com estratégias de
marketing controla-se o modo como o político deve se apresentar ao seu
eleitor, é informado o que interessa que seja dito e são escondidas as
informações que não interessa serem repassadas. O político diz que fez o que
não fez, que não fez o que fez, e tudo é montado de modo a que pareça
absolutamente verossímil. Manipula-se e controla-se a mídia, manipula-se e
controla-se números, manipula-se e controla-se órgãos, instituições , e com
isso manipula-se a controla-se a população e seu voto, para que tudo
permaneça como está, sem alterações de essência.
5 Construção de realidades inexistentes. O controle e a manipulação
de informações podem chegar a um grau tal de exacerbamento que se
inventa realidades que na realidade nunca existiram. É o uso perverso da

12
Baudrillard, J. Esquecer Foucault. Rocco, p. 92.
64 Cinara Nahra

fantasia dentro de uma estratégia de conquista do voto através da afirmação


do falso.
Dentro deste contexto se colocam as estratégias dos boatos e a
divulgação de pesquisa manipuladas. Manipular pesquisas para que dêem o
resultado que se deseja é muito fácil. Qualquer bom profissional da área
sabe que o uso premeditado de uma metodologia incorreta leva a resultados
completamente deturpados mas que podem muito bem ser apresentados
como a expressão da realidade eleitoral, quando na realidade são a expressão
de uma parte desta realidade, muito diferente de seu todo. A apresentação
deste resultado ao público como sendo o verdadeiro resultado, ou seja, a
construção de uma realidade inexistente é utilizada no sentido de interferir
sobre o voto do eleitor, fazendo com que ele não vote naquele candidato
que foi apresentado como sendo sem chance de vitória quando na realidade
este candidato tem chances reais.
O boato é outra estratégia deste tipo. Inventa-se algo inexistente
sobre um candidato , positivo quando se quer elegê-lo e negativo quando se
quer derrubá-lo, e este algo é espalhado por uma determinada cidade ou
regiões como se fosse verdadeiro. É a criação de uma realidade absolutamente
inexistente ou a projeção de algo que se sabe ser absurdo. De novo, é a fantasia
usada dentro de uma estratégia de conquista de votos. A existência de boatos
que se espalham rapidamente dentro de cidades não é nova. Edgar Morin
fez uma análise interessantíssima do processo de desenvolvimento de um
boato na cidade de Orléans em maio de 1969. Vejamos a descrição inicial:

Em maio de 1969 nasce, se difunde e se desenvolve em Orleans o boato de que


um, depois dois, depois seis lojas de vestimentas femininas do centro da cidade
organizam o tratado dos Blanches. As jovens são drogadas nas cabines de
experimentar roupas, depois colocadas nos porões, de onde são tiradas a noite para
serem levadas a lugares de prostituição exóticos. As lojas incriminadas pertencem a
judeus. Se trata de um boato no seu estado puro. Por dois motivos: a)não há
nenhum desaparecimento na cidade e nenhum fato que possa servir de ponto de
partida ao rumor e b)a informação circula de boca em boca, fora da imprensa, de
cartazes ou mesmo de pichações. 13

13
Morin, E. La rumeur d’Órleans. Seuil, p. 17.
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política 65

Se espalhar boatos não é coisa nova, há de se analisar ,entretanto, o


uso dos boatos como estratégia política. Aqui no Brasil usa-se e abusa-se dos
boatos, tendo sido inventadas em eleições passadas coisas do tipo se Lula for
eleito as casas de praia vão ser doadas aos sem-terra o que obviamente nunca se
confirmou..
6. Corrupção. Corrupção é a ação ou efeito de corromper;
putrefação, decomposição, suborno, desmoralização. Pode-se dizer que é a
mais descarada de todas estas práticas. No processo eleitoral a corrupção
significa a fraude sob as mais diversas formas. É a compra de votos, o
suborno, a falsificação de títulos, a violação de urnas etc. Trata-se do uso da
força no seu estado puro.

5 Podem as serpentes conviver com as pombas?


O que significa nos dias de hoje, sustentar uma visão inspirada na
concepção kantiana de relação entre Moral e Política ao invés de uma
concepção inspirada em Maquiavel? Na minha opinião isto significa
basicamente a adoção deste princípio básico ( a subordinação da política à
moral) de inspiração kantiana, e o estabelecimento de duas estratégias que
deveriam orientar a ação política a nível nacional e internacional nos dias de
hoje e que seriam as seguintes: A) A oposição a máxima de que os fins
justificam os meios e B) A luta contra o neoconservadorismo
Por que a política deve estar subordinada à moral, e o que significa
esta subordinação? Para responder a esta pergunta é preciso entender
primeiro qual o problema que existe com o modelo clássico Maquiavélico
de separação das duas esferas. No inicio da era moderna, a política precisava
ser separada da moral, que não podemos nunca esquecer, nada mais era do
que a moral religiosa. A separação proposta por Maquiavel era então, na
realidade, a separação das esferas Moral/Religiosa e Política. Esta separação
está na base da constituição do Estado Moderno ocidental, que é por
excelência, não religioso. Maquiavel, então, com sua teoria, prestou em seu
tempo uma grandiosa contribuição para o desenvolvimento da Política.
Hoje, porém, na primeira década do terceiro milênio, me parece
que devemos ser críticos em relação à manutenção do modelo maquiavélico.
Por um lado, precisamos defender o Estado laico, o estado não religioso,
uma das grandes conquistas da modernidade, mas paralelamente a isso é
necessário que se consolide a separação das esferas moral e religiosa,
66 Cinara Nahra

consolidando então o projeto iluminista que prega uma moral racional em


oposição a uma moral religiosa. A tarefa que deve se apresentar então para a
contemporaneidade é dupla:

1. Consolidar a separação da moral racional e da moral religiosa


2. Efetivar a superação do modelo maquiavélico, desde que se a política não deve
de fato estar subordinada à moral religiosa, ela deve, entretanto, estar
subordinada à moral racional, sob pena de que o campo da política se torne o
campo por excelência da imoralidade, da corrupção e da efetivação de objetivos
pessoais ou de grupos e não do bem comum

O que significa, entretanto, esta subordinação da política à moral


racional? Significa basicamente que nós não deveríamos estar autorizados na
ação política a romper com o principio moral básico de que as ações,
individuais ou coletivas, devem obedecer ao principio da universalização, ou
seja, se elas não podem ser universalizadas, ou se nós não podemos querer
que elas sejam universalizáveis, então elas não deveriam ser realizadas. A
adoção deste princípio implica no imediato rechaçamento de atos como
corrupção, desvios de verbas, pagamentos de propina, uso da coisa publica
para interesses particulares, sejam eles individuais ou de grupos, e uma
miríade de práticas que não podem resistir à aplicação do princípio da
moralidade kantiano, pois uma vez universalizados eles se mostrariam como
irracionais ao comprometerem a própria existência da coisa pública (a
universalização da corrupção, por exemplo, leva a destruição do Estado e da
própria ideia de que o Estado deve servir ao bem publico).
Correlato ao princípio básico de subordinação da política à moral
está a ideia de que os fins não devem justificar os meios, ou seja, por melhor
ou mais bem intencionado que seja o fim, não estamos autorizados a fazer
tudo que está a nosso alcance para atingi-lo. Assim, seja qual for a finalidade
da ação política, os agentes políticos não estão autorizados a usar todos os
meios que estão a sua disposição para atingir estes fins, em outras palavras,
os meios usados para atingir qualquer fim devem ser meios morais. De
novo, o critério para determinar quais meios são moralmente admissível
deve ser o critério da possibilidade da universalização. Meios que nós não
podemos querer que sejam utilizáveis por todos, se desqualificam para ser
usados por qualquer agente político, seja ele um indivíduo, um grupo, um
partido, um governo ou mesmo um Estado.
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política 67

Assim é que podemos entender, tomando exemplos da política


nacional, porque a prática de algo do tipo “mensalão” , se ela realmente
existiu, foi errada. A prática de parlamentares ou partidos receberem
dinheiro para votar em determinados projetos dentro do parlamento, se
universalizada, faz com que o parlamento não represente mais os interesses
públicos que ele deveria representar, e sim os interesses particulares ou de
grupos, o que coloca em cheque a própria ideia de um sistema político
representativo, e em última instância, a própria ideia de democracia. A
prática em si é, pois errada, sendo irrelevante para determinar a imoralidade
e o equívoco do ato saber quem é o agente ou qual o propósito da ação.
Mesmo que a intenção e a finalidade da ação seja a melhor possível, como
por exemplo, salvar o Estado da falência administrativo-econômica, o ato é
em si mesmo lesivo o que pode ser verificado pelo fato de que não podemos
querer a universalização da prática.
No que se refere a política internacional os acontecimentos do
início do milênio, ou seja, o ataque terrorista às torres do World Trade
Center e a consequente resposta dos EUA com a invasão do Afeganistão e
Iraque , e a resultante carnificina de cidadãos inocentes, especialmente no
Iraque, também mostram que existe algo de errado com a política de que os
fins justificam os meios. Do lado terrorista a lógica do raciocínio é a
seguinte: o fim (o ataque ao “Império do Mal”, os EUA) é tão necessário e
bom que qualquer meio para atingi-lo (incluindo a morte de inocentes) é
justificado. Assim, o ataque ao World Trade Center e qualquer ataque ao
“Império do Mal”, mesmo que implique na destruição da vida de pessoas
inocentes, está justificado, pois a finalidade (a destruição dos EUA) é boa e
justificável. É exatamente esta mesma linha de raciocínio que o governo
Bush seguiu. O fim (a destruição do terrorismo, que é a representação do
mal) é tão bom e desejável, que qualquer meio pode ser usado para isto,
inclusive a invasão de países, como o Afeganistão e o Iraque e o massacre às
suas populações civis, o massacre de inocentes que não tem nada a ver com
os terroristas e seus atos. Assim, apesar da complexidade da situação política
deste início de milênio, é possível entender perfeitamente a sua lógica
imoral, podendo esta ser resumida na máxima maquiavélica de que “os fins
justificam os meios”. O resultado da aplicação desta máxima a nível da
política internacional contemporânea todos nós sabemos qual é: o massacre
de cidadãos inocentes, tanto pelos terroristas quanto pelos americanos, e a
68 Cinara Nahra

expansão tanto do terrorismo quanto da cultura da guerra. Se nós


universalizarmos, porém, as máximas do terrorismo e da guerra, veremos
que elas não se sustentam. Podemos querer a universalização de atos de
terrorismo e da guerra? Podemos querer um mundo em que grupos que
representam posições políticas das mais diversas matizes pratiquem atos de
terror e de ataque a vidas humanas? Podemos querer um mundo onde reine
a guerra como estado permanente ao invés da paz? Podemos querer um
mundo em que as vidas de pessoas inocentes sejam permanentemente
ceifadas pelas mãos humanas? Se nós não podemos querer isto, se a resposta
a todas estas perguntas é não, se nós não podemos querer a universalização
de tais máximas, isto mostra que a matança de pessoas inocentes é errada em
qualquer circunstância, sejam quais forem os fins que se pretenda atingir
com isto. Assim, é possível verificar a imoralidade da própria máxima de
que “os fins justificam os meios”, e que ninguém, nenhum individuo,
grupo, partido ou mesmo Estado, está justificado em adotá-la.
A política, pois, deve estar subordinada à Moral e os fins não devem
justificar os meios, de modo que a ação política deve sempre pressupor uma
moral racional a qual ela deve estar subordinada. Essa moral racional, como
vimos, exige que nós nos subordinemos ao critério da universalidade, de
forma que se queremos algo para todos, devemos querer para nós próprios, e
isso é válido para a ação tanto individual quanto de grupos, partidos,
governos e Estado.
A subordinação da política à moral, entretanto, deve ser entendida
nestes termos, e não como uma volta a um estado de coisas pré-moderno,
aonde a subordinação da política à moral nada mais era do que a
subordinação da política à moral religiosa, e, portanto a subordinação do
Estado à Igreja. Quando se fala, pois, da subordinação da política à moral, é
necessário que esteja claramente estabelecida a distinção entre a moral
racional e a moral religiosa, e principalmente, que esteja consolidado o
princípio básico no qual se funda o Estado ocidental contemporâneo, ou
seja, a separação entre Estado e Igreja e entre política e religião. Com isto
estabelecido será possível então caminharmos para frente, pensando um
modelo político para o terceiro milênio que supere o modelo maquiavélico,
mas que esteja baseado na subordinação da ação política a uma moralidade
racional, ao invés de caminharmos para trás, em direção a um modelo
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política 69

político perverso que seria pré-maquiavélico quanto a forma, no sentido de


que a política estaria subordinada a uma moral religiosa e maquiavélico no
seu conteúdo, a medida que estaria baseado em princípios como “os fins
justificam os meios” e no autoritarismo político em sua versão pós moderna,
aonde o príncipe e substituído por governos ultra-conservadores, ainda que
democraticamente eleitos.
Esse modelo político perverso se estabeleceu no início do século
XXI na onda do neoconservadorismo, que foi representado, principalmente,
pela política imposta pelo neoconservador George Bush, que teve entre
outras características: a) o militarismo, b) a implementação de uma agenda
moralista/ religiosa a nível de políticas públicas. Para exemplificar, o
combate a propagação da AIDS substituindo os programas que incentivam
o uso da camisinha por programas que incentivam a não prática do sexo
fora do casamento assim como a permissão para que nas escolas fosse
ensinado que o criacionismo tem o mesmo estatuto científico da teoria da
evolução, estão inseridas nesta estratégia moralista. As consequências
nefastas do neoconservadorismo ainda podem ser sentidas até hoje, sendo a
grande crise econômica de 2008 consequência direta destas políticas.
A luta contra o neoconservadorismo se apresenta então não só
como uma luta política, mas também como uma luta moral, caracterizando
então uma luta político-moral (ou se preferirem o termo) ético-política. Esta
luta implica a percepção de que se é errado matar inocentes, é errado matar
qualquer inocente, e a vida de um Iraquiano, ou de um africano não deve
valer menos do que a vida de um americano. Implica tolerância em três
sentidos: religiosa, no sentido de que é errado assumir que nós cristãos
somos mais sujeito de direitos do que os muçulmanos, cultural, no sentido
de que os povos têm direito a sua autodeterminação e o direito a não serem
atacados, e comportamental no sentido de que os indivíduos também tem o
direito a estabelecerem seus projetos de vida da maneira que lhes parecer a
melhor (ainda que seus estilos de vida não sejam aprovados pela maioria)
desde que, obviamente, não causem dano aos outros, ou seja, não roubem,
não matem etc.. Porque isto é uma luta moral? Basicamente porque a
quebra destes princípios envolve uma quebra da racionalidade no campo
prático, a medida que admitiríamos para alguns direitos que não
admitiríamos para todos.
70 Cinara Nahra

A título de conclusão, então, podemos dizer que os acontecimentos


políticos a nível nacional e internacional neste inicio de milênio fornecem
um material vasto para que pensemos a relação da ética (ou da moral) e da
política. Mais do que qualquer coisa, entretanto, a grande lição que parece
que esta para ser apreendida destes acontecimentos é a de que nós não
podemos abandonar o projeto da razão e do humanismo, mesmo em uma
sociedade pós-moderna, de modo que o próprio conceito de pós-
modernidade merece ser cuidadosamente e criticamente discutido. A grande
lição que aprendemos de acontecimentos aparentemente diversos como o
dos ataques terroristas ao World Trade Center e a consequente guerra
liderada pelos americanos contra alguns países do Oriente Médio, por um
lado e de todos os lamentáveis episódios no cenário político nacional que
mostram a dissociação da política em relação à ética por outro, é a de que
indivíduos, grupos, partidos, governos ou Estados, seja lá em nome do que
ou de quem, seja pela esquerda ou pela direita, não estão autorizados a
romper com os princípios morais que a racionalidade nos impõe. Se esta
lição for aprendida estaremos dando passos seguros no sentido de corrigir os
desvios de rota na política nacional e de apontar para a necessidade de uma
grande mudança de rumos na política internacional.
A não-aposta do ateu: Diderot e a aposta pascaliana

Paulo Jonas de Lima Piva *

Resumo: Para deleite dos religiosos, a história da filosofia oficial − que continua, ao que
parece, infectada pelo espírito teológico − consagrou a “aposta de Pascal” como uma das
soluções modelares ao problema ético suscitado pela questão clássica da existência ou não de
Deus. No raciocínio de Blaise Pascal (1623-1662), aquele que aposta na existência do deus
judaico-cristão ganhará a felicidade eterna caso ele efetivamente exista; em contrapartida,
uma vez sendo este Deus uma realidade, a aposta na sua inexistência resultará na danação do
apostador equivocado. Ocorre que a história da filosofia oficial parece desconhecer a
alternativa ateísta que Denis Diderot (1713-1784) propõe a essa questão das conseqüências
da existência ou não de Deus na vida e na morte dos seres humanos. Lançando mão de uma
fábula que permite uma analogia com o tema do ateísmo, em que um ateu, depois de
morrer, constata que a alma é de fato imortal, que Deus realmente existe, e que, portanto,
não ter tido fé em vida não foi uma aposta inteligente, Diderot, no seu Diálogo de um filósofo
com a Marechala de... (1774), reflete sobre os desdobramentos para o ateu dessa experiência
inesperada. É sobre essa não-aposta do ateu que trata este artigo.
Palavras-chave: Aposta de Pascal; Ateísmo; Deus; Diderot; Virtude

Abstract: To the delight of the religious, the official history of philosophy − which is,
apparently, infected with the theological spirit − devoted to “Pascal's Wager” as an
exemplary solutions to ethical problems raised by the classic question of whether or not God.
In thinking of Blaise Pascal (1623-1662), who bet on the existence of the judeo-christian
god will gain eternal happiness if it actually exists, however, since this God is a reality,
investing in their absence will result in damage of the bettor wrong. It turns out that the
history of philosophy seems to ignore the officially atheistic alternative to Denis Diderot
(1713-1784) proposes the question of the consequences of the presence of God in the life
and death of human beings. Drawing on a fable that allows an analogy to the topic of
atheism, in which an atheist after his death, notes that the soul is indeed immortal, that God
really exists, and therefore did not have faith in life not was a smart bet, Diderot, in his
Dialogue of a philosopher with the Marshall ... (1774) discusses the consequences for the
atheist that unexpected experience. It is about this non-wager of the atheist in this article.
Keywords: Atheism; Diderot; God; Pascal's wager; Virtue

*
Professor da Universidade São Judas Tadeu. E-mail: prof.piva@usjt.br Artigo recebido em
30.09.2009,aprovado em 30.11.2009.

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 71-85


Paulo Jonas de Lima Piva 72

1 A “falsa questão” ou Deus está vivo


Tornou-se um lugar-comum entre os acadêmicos da nossa filosofia
universitária − e com uma certa empáfia, diga-se de passagem − a crença de
que o clássico problema da existência ou não de um deus não passaria de
uma “falsa questão”, portanto, de um assunto despropositado e sem
relevância, logo, não mais merecedor da mesma atenção da filosofia
desfrutada em outros tempos. Marxistas, nietzschianos e filósofos analíticos
são alguns a pensarem desta forma. Aos teólogos, padres, pastores e rabinos
caberiam nos dias de hoje a investigação sobre o “objeto” Deus e não mais a
filósofos sérios e bem-pensantes, os quais teriam problemas mais
significativos para enfrentar.
Oxalá que esses nossos colegas acadêmicos estejam certos! De fato,
há problemas mais reais e concretos para serem examinados pelos nossos
pesquisadores financiados com o dinheiro público de nossas CAPES,
CNPqs e FAPESPs do que a existência ou não de Deus. Acontece que
nossos filósofos profissionais, assoberbados com a relevância e seriedade de
suas pesquisas, esquecem-se de alguns detalhes nada desprezíveis do entorno
do tema: 1) a universidade não é o mundo tampouco o centro e umbigo do
universo, como alguns parecem conceber; 2) as confrarias filosóficas
constituem apenas uma pequena − para não dizer ínfima, isolada e muitas
vezes inócua − parcela da população, logo, não podem ser tomadas como
um critério absoluto, tampouco como perspectiva privilegiada, para definir
a realidade; 3) as “verdadeiras questões” estabelecidas pelos filósofos
universitários em suas teses e papers parecem não corresponder às questões
que realmente inquietam e movem milhões de mulheres e homens em suas
existências cotidianas. Em outras palavras, se Deus jaz de fato sob as
preocupações e problematizações do mundo da filosofia universitária atual,
o mesmo não parece ocorrer do outro lado do muro dessa ilha.
Fora das academias universitárias, ao menos no interior das
consciências que se estendem das periferias mais miseráveis aos bairros mais
nobres das elites ansiosas e angustiadas da nossa contemporaneidade, seja
esta pós ou hipermoderna, Deus parece estar muito vivo e respirando, como
bem diagnostica Michel Onfray no seu Tratado de ateologia: física da
metafísica, lançado na França em 2005. Desdizendo o louco que anuncia
retardatariamente a sarcásticos deicidas a morte de Deus no célebre
aforismo de Friedrich Nietzsche, em A gaia ciência (1882), Onfray, que se
A não-aposta do ateu: Diderot e a aposta pascaliana 73

coloca ao lado de Gilles Deleuze, Félix Guattari e Jean-François Lyotard


“no campo do nietzschismo de esquerda” (sic!) (Onfray, 2001, p. 111),
sustenta que a existência ou não de Deus está longe de ser uma “falsa
questão”, pelo menos para a maioria dos seres humanos do planeta que
fazem da fé o sustentáculo de suas cosmovisões e juízos. “A morte de Deus”,
escreve Onfray,

foi um artifício ontológico, número de mágica consubstancial a um século XX que


vê a morte por toda parte: morte da arte, morte da filosofia, morte da metafísica,
morte do romance, morte da tonalidade, morte da política. Que se decrete hoje
então a morte dessas mortes fictícias! (Idem, 2007, p. 3).

Na seqüência, o ateu Onfray surpreende: “Evidentemente, o


anúncio do fim de Deus foi ainda mais tonitruante por ser falso...
Trombetas embocadas, anúncios teatrais, rufaram tambores alegrando-se
cedo demais” (Idem, Ibidem, p. 4). Onfray ainda ironiza: “Quem viu o
cadáver? Com exceção de Nietzsche, e olhe lá...” (Idem, Ibidem). E conclui
com grandiloqüência e mordacidade: “Pois Deus não está morto nem
moribundo − ao contrário do que pensam Nietzsche e Heine. Nem morto
nem moribundo porque não [é] mortal. Uma ficção não morre, uma ilusão
não expira nunca, não se refuta um conto infantil” (Idem, Ibidem).
Uma demonstração expressiva de que, com efeito, a boa nova da
morte de Deus anunciada pelo louco do aforismo de Nietzsche ainda não
chegou aos ouvidos da maioria dos homens e mulheres contemporâneos e,
além disso, que “estamos a anos-luz de um tal progresso ontológico” (Idem,
Ibidem, p. 5), ocorreu recentemente. Nos anos de 2006 e 2007, seguindo,
como de praxe, uma tendência européia e norte-americana, o mercado
editorial brasileiro fez do tema do ateísmo sua mais nova e promissora
mercadoria. Nessa “onda ateísta” foram lançados em português, além do
Tratado de ateologia, de Michel Onfray, o não menos retumbante Deus, um
delírio, de Richard Dawkins, e ainda obras como Deus não é grande: como a
religião envenena tudo, de Christopher Hitchens, todos best-sellers que
agitaram de algum modo a opinião pública envolvida com religião e,
sobretudo, interessada pelo tema. Somemos ainda a esses títulos O livro
negro do cristianismo: dois mil anos de crimes em nome de Deus, de Jacopo Fo,
Sergio Tornat e Laura Malucelli, no qual, embora o ateísmo não seja o
Paulo Jonas de Lima Piva 74

núcleo da argumentação, a religião cristã historicamente manifestada é o


alvo dos autores.
As críticas implacáveis desses autores à religião como experiência
histórica e psicológica da humanidade, suas argumentações radicais
contrárias à existência de uma divindade criadora e de uma providência,
suas ironias ácidas aos consolos, ilusões e subterfúgios proporcionados pela
fé, e a desconstrução de escritos considerados sagrados reduzindo-os a
mitologias que se recusam a se verem e, principalmente, a se assumirem
como tais, iniciativas desse teor provocaram a fúria dos religiosos mais
melindrosos acostumados à tranqüilidade e à segurança da hegemonia
ideológica das suas doutrinas. A grande exposição pública desses pensadores
ateus e críticos da religião somada ao sucesso de venda dos seus livros
levaram muitos desses religiosos a trombetearem pela grande mídia a
chegada do apocalipse. Os mais indignados desses fiéis bradaram contra um
suposto “fundamentalismo ateu” que estaria por detrás, por exemplo, da
veemência iconoclástica de um Michel Onfray, ou do rigor científico das
refutações às “verdades da fé” contidas nas obras de Richard Dawkins −
merece menção também O relojoeiro cego, de 2001, outro de seus livros que
desanca a idéia de Deus −, o qual consistiria num atentado inaceitável e
perigoso ao princípio democrático da liberdade de culto e, sobretudo, à
tolerância, esta, uma das mais importantes conquistas civilizatórias
modernas.
Precipitação carola, desespero desnecessário: é o que poderíamos
dizer à primeira vista desse julgamento religioso dos livros anti-religiosos.
Mais: incompreensão, preconceito, puro alarmismo. Na verdade, a tal
“onda ateísta” promovida pelo mercado editorial, em particular pelo
brasileiro, possibilitou algo inédito na história do ateísmo: permitiu aos
ateus, historicamente estigmatizados e perseguidos pelos religiosos, exporem
livremente e para um grande público os seus pontos de vista sobre assuntos
até então monopolizados por pensadores de índole religiosa. Importante
ressaltar que o tema “Deus” não é exclusividade de teólogos ou de outras
espécies de sacerdotes. E esses ateus best sellers apresentaram à sociedade suas
posições e idiossincrasias como todos os demais estudiosos que costumam
fazer um uso público de suas razões, exercendo assim um direito
democrático que cabe a qualquer cidadão: a liberdade de pensamento e
expressão. Ademais, testaram, fortaleceram e desfrutaram ao mesmo tempo
A não-aposta do ateu: Diderot e a aposta pascaliana 75

de um princípio democrático: a tolerância. Em outras palavras, Dawkins,


Hitchens, Onfray e até Sponville rechaçaram sim, e com bastante
contundência, a idéia da existência de Deus, além de tecerem críticas severas
à religião. Porém, tudo em absoluta conformidade e respeito às regras e aos
valores do convívio democrático.
A propósito, a tolerância, no caso, não pode ser entendida como
sinônimo de ausência de questionamentos e de antagonismos, ou, pior,
como imunidade concedida a determinados assuntos e blindagem de certos
temas para não ferir suscetibilidades. Tal concepção de tolerância poderia
causar o estrangulamento e a estagnação dos debates, o que não seria nada
saudável para a democracia e, em especial, para a filosofia. A vivência da
tolerância exige muita estrutura psicológica e, principalmente, a consciência
de que algumas concessões e sacrifícios são necessários para que todos, no
essencial, saiam ganhando, apesar das divergências. Melhor dizendo, foi em
defesa do princípio da tolerância e contra toda forma de fundamentalismo
autoritário que esses autores acionaram suas artilharias ateístas. A brecha
inédita que lhes foi oferecida pela grande mídia não podia ser desperdiçada.
Foi sem dúvida uma tática acertada dos ateus na guerra ideológica cotidiana
− e, de certo modo, sísifica − contra a religião e, particularmente, contra a
fantasmagoria de Deus.
O ateísmo do século XXI, vale dizer, não é o mesmo do ateísmo
dos primórdios, isto é, do ateísmo da época de um Jean Meslier, de um
Barão de Holbach, de Diderot e do Marquês de Sade. O filósofo ateu dos
nossos dias respira os ares liberais da democracia e do Estado de direito e
não mais tem de conviver com o terror das lettres de cachet do absolutismo
dos Luíses XIV e XV. Ademais, ateus, por assim dizer, mais filosóficos,
como Onfray e Sponville, e os mais científicos, como Dawkins, inseriram-se
sem hesitar na polifonia dissonante da opinião pública, justamente num
momento avançado do reaquecimento religioso do século passado, explícito
na proliferação de seitas, no recrudescimento do fanatismo religioso e na
institucionalização política cada vez maior de grupos de fé, fenômeno que
vem ocorrendo e se consolidando mais precisamente desde a desintegração
do mundo comunista. Tal expansão religiosa merece atenção, pois, ao
contrário do ateísmo desses autores, esta pode comprometer a existência da
tolerância, por conseguinte, o bom andamento da democracia liberal. Assim
sendo, faz-se necessário a todos os partidários da tolerância e de outras
Paulo Jonas de Lima Piva 76

garantias democráticas, dentre os quais os ateus, posicionarem-se para que


tais conquistas civilizadoras sejam preservadas. É exatamente o que estão
fazendo os ateus de hoje preocupados com a presença e, sobretudo, com a
influência da fé no cotidiano dos homens, em particular na esfera da
política.
Para evitar novas barbaridades como o 11 de setembro, para
proteger a laicidade do Estado republicano contra acordos como o que foi
assinado recentemente entre o governo brasileiro e o Vaticano
restabelecendo o ensino religioso nas escolas públicas e isentando de
tributos as entidades religiosas, e para enfrentar nos legislativos a atuação de
bancadas religiosas contrárias à aprovação de leis que visem proporcionar
mais dignidade aos cidadãos, como, por exemplo, a ampliação de direitos
aos homossexuais e mais autonomia às mulheres na questão do aborto, é
que os ateus precisam ocupar seu espaço no debate público, ou seja,
fazerem-se intelectuais. É o que podemos inferir da seguinte declaração de
Onfray: “Meu ateísmo se ativa quando a crença privada torna-se assunto
público e em nome de uma patologia mental pessoal organiza-se também
para os outros o mundo que convém” (Idem, Ibidem, p. XXI).

2 A aposta desesperada e calculista do fiel


O ateísmo, uma “crença numa ausência”, como bem define André Comte-
Sponville − autor, aliás, de O espírito do ateísmo, livro publicado pela editora
Martins Fontes, em 2007 −, mais precisamente o ateísmo stricto sensu ou
“ateísmo positivo, ou mesmo militante”, como ele prefere (Comte-
Sponville, 2003, p. 64), é tratado pelo pensador cristão Blaise Pascal (1623-
1662) do mesmo modo que a Bíblia o trata, ou seja, com preconceito e
animosidade. Lemos, por exemplo, no Salmo 14 de Davi, cujo subtítulo é
“O homem sem Deus”, o seguinte: “Diz o insensato no seu coração: ‘Deus
não existe!’. Suas ações são corrompidas e abomináveis: não há um que faça
o bem” (Bíblia, 2000, p. 959). Em outras palavras, de acordo com essa
“verdade”, advogada por muitos como “revelada”, a sensatez, o caráter e a
virtude seriam exclusividades dos crentes em Deus. Já os ateus − pobres
ateus! −, estes seriam loucos, doentes, seres degenerados, indivíduos à-toa
duplamente, isto é, com hífen (moralmente desprezíveis) e sem hífen (à toa,
isto é, sem rumo na vida). “Que o homem sem a fé não pode conhecer o
verdadeiro bem, nem a justiça”, sentencia Pascal tendo em vista não
A não-aposta do ateu: Diderot e a aposta pascaliana 77

somente o ateu, mas também outro adversário que muito o incomodou,


embora desconfiasse da possibilidade da sua existência sincera: o cético
pirrônico (Pascal, 2001, p. 59, fr. 148 (425)). A propósito, sobre o
pirronismo, lemos de Pascal, num dos fragmentos que compõem os seus
Pensamentos, publicados postumamente, em 1670, as seguintes palavras:
“Nada fortalece mais o pirronismo do que o fato de haver quem não seja
pirrônico. Se todos o fossem, eles ficariam sem razão” (Idem, p. 10, fr. 33
(374)).
Na esteira do trocadilho popular “ateu, à-toa” − e/ou “ateu, à toa”
−, nutrido em alguma medida pela tradição influenciada pelo salmo bíblico
de Davi, Pascal acrescenta mais uma desvantagem àquele que não crê na
existência de Deus, em especial na realidade do Deus cristão. No seu
entender, além de celerados, os ateus seriam também pessoas infelizes,
portanto, criaturas merecedoras tanto de censura quanto da comiseração
cristã: “Lastimar os ateus que procuram, pois já não são bastante infelizes?
Invectivar contra aqueles que fazem disso vaidade” (Idem, p. 68, fr. 156
(190)).
Pascal vai mais além nos seus Pensamentos. Tomando como critério
a fé cristã, ele distingue os seres humanos em três tipos:

Só há três tipos de pessoas: umas que servem a Deus, tendo-o encontrado; outras
que, não o tendo encontrado, se empenham em procurá-lo; outras que vivem sem
procurá-lo nem tê-lo encontrado. Os primeiros são razoáveis e felizes, os últimos
são loucos e infelizes. Os do meio são infelizes e razoáveis (Idem, p. 69, fr. 160
(257)).

A idéia do ateu como uma aberração a ser combatida, porém, digna


de pena − e, ao que tudo indica, como o mais fraco, insignificante e inferior
dos “caniços pensantes” (Cf. Idem, p. 86, fr. 200 (347)) − e do cristão, por
outro lado, como alguém melhor e humanamente superior ao ateu,
prossegue nos raciocínios de Pascal: “Começar por lamentar os incrédulos,
eles são bastante infelizes por sua condição. Não se deveria injuriá-los senão
no caso em que isso fosse útil, mas isso os prejudica” (Idem, p. 69, fr. 162
(189)). Convém lembrar que outra característica do ateu é não crer na
imortalidade da alma, já que não existiria outra substância além da matéria.
Conceber a alma como uma expressão material, para um cristão feito Pascal,
seria outro aspecto grave e assustador do ateísmo, logo, outro motivo de
Paulo Jonas de Lima Piva 78

infortúnio para o ateu. Afinal, como encarar com serenidade a idéia de que
os sentimentos e os pensamentos seriam simples produtos da “vil” matéria e
a vida como um fenômeno finito, terreno e efêmero? Refutando tal
concepção materialista, Pascal escreve: “Os ateus devem dizer coisas
perfeitamente claras. Ora, não é perfeitamente claro que a alma seja
material” (Idem, Ibidem, fr. 161 (221)). “Muito menos espiritual”, poderia
replicar, também com razão, um materialista ateu ou até mesmo um cético
pirrônico.
Em seguida, depois de analisar a saúde mental do ateu, de julgar o
seu comportamento moral, de constatar obscuridades em sua ontologia, e
de concluir que a sua condição existencial seria deplorável, Pascal ressalta
nos seus Pensamentos outras conseqüências nefastas do ateísmo. A recusa da
realidade de Deus provocaria estragos tanto na metafísica quanto nas
ciências. Sem a existência de uma divindade única, absoluta, onipotente e
onisciente, deixam também de existir os fundamentos ontológicos e
epistemológicos capazes de fornecerem aos homens um conhecimento
seguro acerca da natureza e da nossa mísera condição humana dentro dela.
Sem Deus, tudo se torna instável, incerto e vazio, o horizonte do homem
passa a ser sombrio, tão-somente de trevas. É o que podemos inferir do
seguinte fragmento do filósofo seiscentista: “Objeção dos ateus. Mas não
temos nenhuma luz” (Idem, p. 98, fr. 245 (228)).
Ora, se o ateísmo engendra o caos, a escuridão e o desespero, é
necessário então combatê-lo. Esta será a justificativa principal da posição de
Pascal. Entretanto, o instrumento mais adequado para tal feito parece não
ser a razão isoladamente, uma vez que o ateísmo consiste num exercício
radical da racionalidade. A opção, por assim dizer, metodológica, adotada
por Pascal para o dilema, como era de se esperar de um cristão, será o apego
à fé. Estaríamos, assim, diante do primeiro momento do que ficou
conhecido como “a aposta de Pascal”: a escolha da fé em detrimento de uma
razão. Nesse sentido, a recuperação do sentido e das certezas destruídos pela
racionalidade ateísta não poderá ser realizada mediante a elaboração de
conceitos e raciocínios. A lógica seria impotente para realizar tal tarefa. É o
que lemos em outro dos fragmentos dos Pensamentos:

Examinemos, pois, esse ponto. E digamos: Deus existe ou não existe; mas para que
lado penderemos? A razão nada pode determinar a esse respeito. Existe um caos
A não-aposta do ateu: Diderot e a aposta pascaliana 79

infinito que nos separa. Joga-se um jogo de extremidade dessa distância infinita,
em que dará cara ou coroa (Idem, p. 159, fr. 418 (233)).

Pascal insiste na fé como instância superior à razão para resolver


esse problema crucial: “Que aposta fareis? Pela razão não podeis fazer nem
uma coisa nem outra; pela razão não podeis desfazer nenhuma das duas”
(Idem, p. 160, fr. 418 (233)).
O paradoxo desse primeiro momento da aposta pascaliana é
evidente: há presença de uma racionalidade nessa opção pela superioridade
da fé em detrimento da razão. Em questões sobre a divindade, optar pela fé
em detrimento da razão parece o mais razoável. Por conseguinte, o mais
razoável de nossa parte parece não sermos assim tão razoáveis, melhor
dizendo, tão racionais. Isso significa apostar na fé, que é, por exclusão, a
única instância que resta. Mas não numa fé cega e auto-suficiente, adverte-
nos Pascal. O ideal pascaliano de crença consiste, ao que parece, numa fé
temperada pela razão e, sobretudo, inspirada em Cristo, como nos explica o
filósofo: “Há três modos de se crer: a razão, o costume, (a) inspiração. A
religião cristã, única a ter razão (grifo nosso), não admite como seus
verdadeiros filhos aqueles que crêem sem inspiração” (Idem, p. 319, fr. 808
(245)). É quando tem início, poderíamos dizer, o segundo momento da
aposta de Pascal.
Uma vez definido o instrumento para a reconstrução do sentido e
da estabilidade soçobrados pelo ateísmo, o próximo passo de Pascal será
calcular e, principalmente, persuadir o seu leitor, das vantagens de ser um
fiel e das desvantagens de ser ateu. Nessa espécie de cara e coroa metafísico
nosso pensador argumenta em tom imperativo:

Sim, mas é preciso apostar. É inevitável, estais embarcados nessa. Qual dos dois
escolhereis então? Vejamos; já que é preciso escolher, vejamos o que vos interessa
menos. Tendes duas coisas para perder: a verdade e o bem (grifos nossos), e duas
coisas a engajar: vossa razão e vossa vontade, vosso conhecimento e vossa ventura, e
vossa natureza duas coisas de que fugir: o erro e a miséria. Vossa razão não fica
mais ofendida, pois que é preciso necessariamente escolher, escolhendo um ou
outro. Aí está um ponto liquidado (Idem, p. 160, fr. 418 (233)).

Na sequência, recomenda com ênfase o caminho para a ventura:

Pesemos o ganho e a perda escolhendo coroa que Deus existe (grifo nosso).
Avaliemos esses dois casos: se ganhardes, ganhareis tudo, e se perderdes, não
Paulo Jonas de Lima Piva 80

perdeis nada: apostai, pois, que ele existe sem hesitar. Isso é admirável” (Idem,
Ibidem).

“Fazei vossos jogos...”, tal como Gérard Lebrun resume bem a


aposta pascaliana (Lebrun, 1983, p. 107). Mas vejamos esse jogo de azar por
um outro prisma, pela aposta daquele que escolheu a cara e não a coroa. O
que acontecerá com esse indivíduo eventualmente equivocado, que apostou
no que não era devido, mesmo que de boa-fé? Na perspectiva de Pascal,
independentemente da boa ou má-fé do apostador, este perderá de imediato
“a verdade e o bem”, deixando de ganhar por isso “uma eternidade de vida e
de felicidade” (Pascal, 2001, p. 160, fr. 418 (233)). Dito de outro modo,
não há escapatória, não há possibilidade de escolha propriamente dita para
o homem. A maneira como a aposta é concebida por Pascal atemoriza e
constrange. O medo do pior, como um aguilhão afiado, acaba
predeterminando pela ameaça a opção do aguilhoado. Portanto, não há
uma aposta de fato, pois não há escolha de fato. Em suma, somos todos
obrigados a crer nesse deus judaico-cristão sob pena da danação eterna. De
onde se conclui que, no interior do raciocínio que compõe a aposta de
Pascal, a fé na existência de Deus, bem como a crença na imortalidade da
alma, são uma imposição inelutável, portanto, o único caminho sensato
para o ser humano. Por extensão, podemos inferir também que é neste “dá
ou desce” que consistiria o “livre-arbítrio” dos religiosos.

3 E agora?: o encontro entre o ateu e Deus


Num texto curto e despretensioso, porém denso e bastante direto, de 1774,
o já maduro Denis Diderot pensa sobre os fundamentos e a viabilidade de
uma ética laica, mais precisamente, de uma ética ateísta. Trata-se do Diálogo
de um filósofo com a Marechala de***. O protagonista, que na edição
brasileira, tanto na da coleção “Os Pensadores” (cf. Diderot, 1979) quanto
na da editora Perspectiva (cf. Idem, 2000), aparece como Thomas Crudeli,
e que na edição francesa da Robert Laffont aparece denominado Diderot
(cf. Diderot, 1994), é um ateu conhecido e sua reputação intriga sua
interlocutora, uma aristocrata devota. Crudeli, ou Diderot, era tido como
uma pessoa honesta e polida na alta sociedade parisiense, a despeito de ser
um descrente. “Entretanto, vossa moral é a de um crente”, constata
desconcertada a senhora (Diderot, 1994, p. 929).
A não-aposta do ateu: Diderot e a aposta pascaliana 81

No avançado da conversa, a Marechala, cuja identidade Diderot


omite, indaga o ateu virtuoso: “Ainda uma questão, e é a última. Vós estais
bem tranquilo em vossa incredulidade?” (Idem, p. 938). O ateu responde
com muita segurança e tranquilidade à pergunta capital da Marechala:
“Mais impossível” (Idem, Ibidem).
De fato, quem não crê na existência de uma divindade, ou, dito de
outro modo, quem crê na inexistência de Deus, já que o ateísmo stricto sensu
é uma crença e não uma posição metafísica suspensiva, como a dos céticos,
por exemplo, dificilmente crerá na imortalidade da alma. Assim sendo, que
significado teria a aposta pascaliana para um ateu desse tipo? Que efeitos ela
teria nas elucubrações metafísicas, no comportamento moral e na vivência
emocional de um ateu como o do protagonista do Diálogo de Diderot?
A reação de um ateu iluminista e virtuoso feito Diderot em face da
constrangedora aposta de Pascal é mais ou menos previsível. De imediato,
se, além de ateu e iluminista, ele for também irônico e bem humorado,
como o personagem parece ser, um riso de deboche − aquele clássico,
discreto, de canto de boca − será inevitável. Afinal, o que um ateu teria a
ganhar ou perder nesse jogo metafísico aterrorizador, já que a possibilidade
da existência de Deus, bem como a de uma vida post mortem, são de
antemão por ele excluídas? Enfim, para esse ateu, a aposta pascaliana
evidentemente não terá o menor sentido.
Mas retomemos o texto de Diderot. O ateu se deixa levar pelas
inquietações da Marechala. No entanto, brinca com ela afirmando que,
uma vez condenado ao inferno pela sua descrença, lá se sentiria “como um
peixe dentro d’água” (Idem, Ibidem). É quando ele se põe a narrar um
conto que muito faz lembrar a aposta pascaliana, mais precisamente, a
situação de um ateu diante da constatação da realidade do dilema proposto
por Pascal. Em linhas gerais, um jovem mexicano, habitante de uma
localidade litorânea, vivia zombando das estórias de sua avó sobre a
existência de outro país para além do oceano e da linha do horizonte que
seus olhos podiam alcançar. Na arrogância típica dos jovens, parecia-lhe um
contrassenso admitir a existência de um país para além de um mar e de um
céu que se impunham como limites intransponíveis à sua visão e
entendimento. Contudo, certa feita, o jovem descrente resolveu deitar-se
numa tábua, na praia, próximo às ondas, para descansar, e acabou
adormecendo sobre o objeto. As ondas e o vento conduziram-no então, por
Paulo Jonas de Lima Piva 82

meio da tábua, para o alto mar, e deste, para o além do horizonte que ele
conseguia enxergar. Quando acordou, percebeu que sua avó tinha razão: o
tal do país realmente existia.
Por analogia, a situação vivida pelo jovem mexicano é como a de
um ateu que, ao morrer, despertasse para a verdade da vida após a morte,
isto é, para o fato da imortalidade da alma, no qual, aliás, ele não só nunca
havia acreditado como dele muito ridicularizou em vida. A reação do jovem
mexicano, porém, e curiosamente, não foi de desespero diante do seu
equívoco: “Eu raciocinei como um tolo, seja; mas fui sincero comigo
mesmo; e é tudo o que se pode exigir de mim. Se não é uma virtude ter
espírito, não é crime não tê-lo” (Idem, Ibidem, p. 941).
A fábula continua com uma nova e comprometedora constatação
por parte do nosso jovem perplexo: o tal velho, chefe do país que ele acabara
de descobrir, do qual sua avó lhe havia falado em várias ocasiões, também
existia. “Eu sou o soberano do país”, apresentou-se-lhe o velho (Idem,
Ibidem). “Vós negastes a minha existência?”, pergunta-lhe triunfante o
velho (Idem, Ibidem). No entanto, para a surpresa do jovem, o velho chefe
lhe diz em tom imperativo e paternal: “Eu vos perdôo, pois sou aquele que
vê o fundo dos corações, e li no fundo do vosso que vós fostes de boa-fé”
(Idem, Ibidem). E completa: “Mas o restante de vossos pensamentos e de
vossas ações não é igualmente inocente” (Idem, Ibidem). Na sequência,
Diderot promove a diversão do leitor: “Então o velho, que o segurava pela
orelha, recordou-lhe todos os erros de sua vida; e, a cada assunto, o jovem
mexicano se inclinava, batia no peito e pedia perdão...” (Idem, Ibidem).
Imaginemos, também por analogia, o ateu no lugar do jovem
mexicano e Deus no lugar do velho chefe do país descoberto. O conto do
mexicano é, no fundo, a alegoria da não-aposta do ateu. Trata-se do
encontro do ateu com Deus na vida post mortem. Ora, se esse deus não for
um mau demiurgo, uma providência sem apreço pela virtude e cruel, como
sugere o Marquês de Sade no seu Os infortúnios da virtude, de 1787 (cf.
Sade, 2009, p 159), mas uma divindade onisciente, onipotente e
absolutamente bondosa, não há razões para o ateu temer a danação caso
depare-se com ela após a morte. Se um ateu, durante toda a sua vida, foi um
homem justo, honesto e benevolente, e cujo ateísmo foi o resultado do fato
de ele não ter encontrado razões ou motivos suficientes para persuadi-lo da
existência de um deus, da imortalidade da alma e da veracidade dos
A não-aposta do ateu: Diderot e a aposta pascaliana 83

ensinamentos bíblicos, não há por que ele temer esse encontro, uma vez que
ele nada deve moralmente que justifique uma punição assim tão bárbara e
desproporcional que é a eterna estadia no inferno cristão. Um Deus assim
absolutamente sábio e bondoso, como o velho na fábula do jovem
mexicano, irá desconsiderar a falta de fé desse ateu, porém, considerará suas
ações em vida. Entre a fé e a prática do bem, Deus certamente ficará com a
segunda opção. O contrário não seria compatível com a idéia que se tem de
divindade, ao menos do deus cristão. Afinal, como pergunta o ateu, para o
embaraço da Marechala, Deus condenaria ao inferno Sócrates, Catão e
Marco Aurélio, personalidades que se eternizaram como paradigmas de
virtude, mas que foram ao mesmo tempo pagãos, ou seja, viveram antes de
Cristo e numa outra cultura, fatos estes sobre os quais eles não podem ser
responsabilizados? (cf. Diderot, 1994, p. 940).
A propósito, quanta mesquinhez e frieza calculista a aposta de
Pascal inspira! Aposta-se na existência de Deus para ganhar o paraíso; age-se
moralmente motivado pela recompensa ou constrangido pelo medo da
danação e não pelo valor intrínseco da ação, pela virtude em si mesma. É a
própria Marechala, a cristã do diálogo, quem confessa: “É que me parece
que se eu não tivesse nada a esperar nem a temer quando eu deixasse de
existir, haveria pequenas delícias das quais eu não me privaria enquanto
existisse. Confesso que empresto a Deus com juros” (Idem, p. 930).
A Marechala concorda com o seu interlocutor descrente, porém,
honesto, que Deus não condenaria ao inferno seres humanos da estirpe
moral de um Sócrates ou Catão por lhes terem faltado a fé cristã. Citando o
apóstolo Paulo, ela desperta para a ausência de vínculo necessário entre fé e
virtude: “De forma alguma! Só bestas ferozes poderiam pensar isso. São
Paulo diz que cada um será julgado pela lei que conheceu; e São Paulo tem
razão” (Idem, p. 940). Na mesma direção o ateu acrescenta: “Mas aquele
que fez os tolos os punirá por terem sido tolos?” (Idem, Ibidem).
Podemos concluir então que a aposta pascaliana consiste,
primeiramente, num terrorismo metafísico desnecessário. Sendo nossas
ações morais o mais significativo de nossas vidas e não nossas crenças
religiosas, aquele que durante toda a sua vida foi justo, honesto e solidário
não terá motivos para temores caso realmente existam outra vida e um deus,
pois, como vimos, a única idéia compatível com Deus é a de que este
expresse a suprema bondade e a onisciência, a menos que ele seja um deus
Paulo Jonas de Lima Piva 84

injusto e cruel, como conjeturou Sade valendo-se do mal predominante no


mundo. Desse modo, se esse deus é justo, se ele considera seus filhos mais
pelas virtudes que demonstram do que pelo ardor religioso que professam,
ateus e crentes podem viver suas vidas despreocupadamente, sem terem de
encarar a vida como um jogo de azar perturbador, subordinando-a a um
post mortem, o que faz da aposta pascaliana algo inócuo e sem sentido. O
que, com efeito, importaria a Deus é que sejamos virtuosos antes de sermos
ou não crentes.
Outra conclusão possível é que tal aposta é antes de tudo um
expediente religioso de conversão, portanto, um expediente ideológico
sobretudo: aceite o cristianismo ou pagará caro por isso num outro
momento de sua vida. E o que é pior: um expediente que apela para um dos
mais sórdidos sentimentos humanos: o egoísmo. Fazer o bem visando ao
paraíso e evitar o mal por medo do inferno torna os homens cegos
interesseiros da própria causa e a moral um meio e não um fim em si
mesmo. Em contrapartida, o ateu diderotiano, sem nenhum tipo de aposta,
sem subordinar a vida à morte, e que, sem proselitismos, permite a cada um
pensar à maneira que lhe aprouver desde que lhe permitam pensar à
maneira dele (cf. Idem, p. 937), justifica seu comportamento moral
basicamente em três razões, conscientemente contingentes e, de certo, modo
precárias: 1) sentir grande prazer em praticar o bem; 2) ter uma inclinação
para a prática do bem animada e fortalecida pela educação recebida; 3)
experiência de que, para ser feliz em sociedade, mais vale a pena ser honesto
do que canalha, pois sob os canalhas cairão não só o olhar implacável do
julgamento público, mas, sobretudo, o braço pesado da lei e das instituições
punitivas (cf. Idem, p. 930).
Em suma, a interpretação do conto do jovem mexicano,
desenvolvido no Diálogo de um filósofo com a Marechala de ***, como uma
refutação indireta de Diderot à aposta pascaliana, mostra que esta é um
tormento desnecessário até mesmo para os próprios cristãos. Com esse tipo
de aposta pelo menos o ser humano não precisará, nessa perspectiva ateísta,
se desesperar.
A não-aposta do ateu: Diderot e a aposta pascaliana 85

Referências
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. Trad. Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
DIDEROT, Diderot. “Diálogo de um filósofo com a Marechala de....”. In:
Textos escolhidos. Trd. J. Guinsburg. São Paulo: Abril Cultural, Col. “Os
Pensadores”, 1979.
_______. Entretien d’un philosophe avec la Maréchale de ***. In: Oeuvres,
Tome I, Philosophie. Paris: Robert Laffont, 1994.
_______. “Colóquio com a Marechala”. In: Obras I – Filosofia e Política.
Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2000.
LEBRUN, Gérard. Blaise Pascal. Trad. Luiz R. Salinas Fortes. São Paulo:
Brasiliense, Col. “Encanto radical”, 1983.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
ONFRAY, Michel. A política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão.
Trad. Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
_______. Tratado de ateologia: física da metafísica. Trad. Mônica Stahel.
São Paulo: Martins Fontes, 2007.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
SADE, Marquês. Os infortúnios da virtude. Trad. Celso M. Paciornik. São
Paulo: Iluminuras, 2009.
A presença da história no “primeiro” Sartre:
Roquentin e a náusea frente a ilusão da aventura heróica

Thana Mara de Souza *

Resumo: Muitos críticos dividem a obra sartriana em dois momentos: o primeiro,


caracterizado pelo solipsismo e ausência de preocupações históricas, seria representado pelo
livro O ser e o nada, e o segundo, caracterizado pelas questões sociais e marxistas, seria
representado por Crítica da Razão Dialética. Pretendemos mostrar, no entanto, que a história
nunca esteve ausente dos escritos filosóficos e literários de Sartre. Embora sem o peso que
terá na Crítica, a história aparece em O ser e o nada e nos livros anteriores, até mesmo para o
personagem Roquentin de A Náusea, normalmente visto como o exemplo do solipsimo do
“primeiro” Sartre. Por meio de seu diário, poderemos perceber que a história penetra
surdamente em sua pacata vida na pequena cidade de Bouville.
Palavras-Chave: Contingência; História; Literatura; Metafísica; Sartre.

Résumé: Beaucoup de critiques divisent l’oeuvre sartrienne en deux périodes: le premier,


caractérisé par le solipsisme et par le manque des questions historiques, serait représenté par
L’être et le néant, et le deuxième, caractérisé par les questions sociales et marxistes, serait
représenté par Critique de la raison dialectique. On prétend montrer, néanmoins, que
l’histoire n’a jamais été absente des écrits philosophiques et littéraires de Sartre. Même si elle
n’a pas le rôle qu’elle aura dans la Critique, l’histoire apparaît chez L’être et le néant et dans
les livres antérieurs, même pour le personnage Roquentin de La Nausée, vu comme l’exemple
du solipsisme du “premier” Sartre. En lisant son journal, on pourra percevoir que l’histoire
pénètre sourdement chez sa vie paisible à la petite ville de Bouville.
Mots-clé: Contingence; Histoire; Littérature;, Métaphysique; Sartre.

A filosofia de Sartre, que se inicia nos anos 30 e tem textos publicados após
sua morte, em 1980, como Cadernos para uma moral e Verdade e Existência,
costuma ser dividida pelos comentadores em dois grandes momentos: o
primeiro, representado por sua obra máxima O ser e o nada, é caracterizado
como sendo uma filosofia abstrata, metafísica e solipsista. A liberdade, aqui
definida como absoluta, passa a ser o símbolo dessa filosofia abstrata que
ignora a realidade humana, a história de nossos impedimentos e escravidões.

*
Professora adjunta do Departamento de Filosofia da UFES. E-mail:
souza_thana@yahoo.com.br Artigo recebido em 19.10.2009, aprovado em 30.12.2009.

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 87-105


88 Thana Mara de Souza

Já na segunda fase, representada por sua obra Crítica da razão


dialética, teríamos o oposto: uma preocupação exaustiva com a história,
com as questões materiais e uma aproximação crítica em relação ao
marxismo. Aqui não se trata mais de fazer uma ontologia, mas uma análise
histórica das condições sociais e das opressões. Longe de uma liberdade
absoluta, agora teríamos um exercício de libertação que só se dá em
condições precisas. E o que faria Sartre sair de uma fase para a outra seria a
Segunda Guerra Mundial: ela faria Sartre conhecer a solidariedade e a
importância da história, e essa vivência da guerra o tiraria do solipsismo
abstrato que defendia quando escreveu O ser e o nada.
Mesmo que muitos comentadores digam que há uma unidade
apesar das mudanças, é nessas que eles se concentram. É o caso, por
exemplo, de Bornheim no seu livro Sartre, metafísica e existencialismo:
mesmo que haja uma profunda unidade na evolução, há uma evolução, uma
transformação, uma passagem positiva da metafísica à história. Segundo
Bornheim, há uma conversão à história realizada no livro Crítica da razão
dialética, e O ser e o nada se situaria em um plano meta-histórico: “A
transformação que se verifica em Sartre resume-se no fato de que seu
pensamento passa do plano meta-histórico ao histórico, e aquele parece
subordinar-se agora a este” 1 .
Também o comentador Gomez-Muller, em seu livro chamado
Sartre, da Náusea ao engajamento, tem uma tese parecida com a de
Bornheim: a experiência da mobilização na guerra introduziu uma profunda
crise existencial e ética na vida de Sartre, e junto com a influência de
Heidegger, nosso filósofo francês descobre a historicidade. Antes da guerra,
jovem burguês, Sartre pensava apenas numa ética individualista, não age,
mesmo se tem simpatia pela esquerda.

Au Sartre radicalement ‘désengagé’ de l'avant-guerre se substitue, dès lors, le Sartre


éthiquement et politiquement ‘engagé’ des dernières années de la guerre et de
l'après-guerre. [...] Il découvre l'historicité constitutive de la subjectivité, la réalité
de la situation de l'homme parmi les choses 2 .

1
Bornheim, G., Sartre: Metafísica e existencialismo, p. 230.
2
Gomez-Muller, Sartre, de La Nausée à l’engagement, p. 197
A presença da história no “primeiro” Sartre 89

A metafísica não deixa de existir, mas ela não é mais condição e


preocupação primeira e primordial. A ética se torna mais originária que a
ontologia.
Poderíamos citar outros comentadores que, mesmo admitindo uma
certa unidade na obra de Sartre, enfatizam a questão da transformação, da
radical mudança de uma filosofia abstrata e metafísica para uma filosofia
ética e social. Na tese de doutorado de Cristina Mendonça, chamada “O
mito da resistência”, podemos achar várias referências desses comentadores
que colocam O ser e o nada no plano da pura metafísica, entre elas Marcuse,
Istvzan Mészaros, Anna Boschetti e o próprio Sartre.
Sim, o próprio Sartre, ao comentar suas obras passadas, muitas
vezes fala das distinções entre seus primeiros livros e os livros depois da
Crítica da razão dialética. Em uma entrevista dada a Michel Sicard em
1978, 2 anos antes de morrer, Sartre diz que tentou realizar três morais: a
primeira, de O ser e o nada, era individualista e se assemelhava às morais do
antes-guerra; a segunda, de Crítica da razão dialética, seria realista; e a
terceira, livro que viria a escrever com seu polêmico secretário que os amigos
de Sartre acusaram de deturpar o pensamento de um velho doente,
retomaria os problemas éticos em suas fontes ontológicas. E quanto Sicard
diz que pensava haver menos ruptura na moral sartriana, o filósofo responde
primeiro que “Si vous voulez, mes première ouvrages ne sont jamais sorties
du JE, et celle-ci est une morale du NOUS” 3 , mas mais adiante admite que
há uma unidade. Na mesma entrevista, Sartre diz que a Crítica da Razão
Dialética está ligada à O ser e o nada:

C'est pourquoi je dis toujours – et j'y tiens – qu'il y a de l'unité intellectuelle dans
ma vie, depuis le départ, La Nausée, jusqu'au traité de morale à la fin, quelque
chose comme un système, qui perd certaines de ses idées et en gagne d'autres, qui
n'est pas entièrement le même, mais qui a une unité, qui suppose à chaque
moment une sorte d'idée vécue: ce ne sont pas des idées intellectuelles et logiques
s'enchaînant les unes aux autres d'après des liens logiques, ce sont plutôt des idées
vécues se présentant dans la pensée sous une forme temporelle, à un moment
donné, et qu'on retrouvera plus tard avec une forme légèrement (ou entièrement)
différente, mais remplissant le rôle qu'elles avaient au départ 4 .

3
Entretien, “L’écriture et la publication” In: Revue Obliques, p. 15
4
Ibidem, p. 21.
90 Thana Mara de Souza

Em algumas entrevistas, Sartre enfatiza as transformações que a


guerra causou em sua vida e em sua filosofia, principalmente a saída de uma
filosofia metafísica e solipsista para uma filosofia histórica e social. Mas em
outras a ênfase é no contrário, é na continuidade de toda sua filosofia.
Mesmo que admita modificações, considera a continuidade maior que a
ruptura, como podemos ver na entrevista dada à Radioscope: “Je n'étais pas,
dans L'être et le néant un partisan de l'individualisme absolu, et je n'ai pas
renoncé non plus à ce qu'on peut appeler le personalisme... Simplement je
vois le vrai milieu de l'individu que ne peut être que dans l'ensemble
social”.
Temos, portanto, uma oscilação muito grande no modo como
Sartre vê sua própria filosofia, às vezes enfatizando rupturas e às vezes
enfatizando a unidade. É importante sermos, então, críticos em relação a
essas entrevistas e procurar principalmente nas próprias obras a chave para
melhor compreender o desenvolvimento da filosofia sartriana. Sem ignorar
as modificações que existem ao longo da filosofia e escritos de Sartre,
pretendemos mostrar que essas mudanças de ênfase não são suficientes para
afirmar uma ruptura na filosofia sartriana. Para nós, não há duas fases, dois
Sartres como diz Paulo Perdigão no livro Existência e Liberdade, duas ou três
morais, como o próprio Sartre diz.
O que pretendemos mostrar aqui é que a história, se ela adquire um
papel fundamental em Crítica da razão dialética, não se encontra ausente
dos livros anteriores. Se o enfoque é outro, isso não significa que a história
não interessa ao jovem Sartre e que ela não se encontra de modo algum nos
livros anteriores à Crítica. Não temos livros totalmente abstratos, solipsistas
e metafísicos antes da “descoberta da historicidade” feita por meio de uma
guerra mundial!
E para mostrar que os primeiros livros filosóficos e literários de
Sartre não desprezam a questão histórica, pelo contrário, exigem-na,
comecemos por apontar alguns aspectos que normalmente são ignorados
pelos críticos. Com isso, ainda não pretendemos demonstrar que a dita
“primeira fase” já pede uma análise da situação, da historicidade que somos,
mas apenas lançar algumas desconfianças em relação à tese de que há uma
ruptura radical entre o “primeiro” e o “segundo” Sartre.
Trata-se apenas de apontar alguns elementos que a maior parte dos
comentadores ignora; elementos esses que não são suficientes para refutar a
A presença da história no “primeiro” Sartre 91

tese da divisão entre as duas fases, mas que servem ao menos para indicar
que de certo modo, na época em que Sartre escreveu A náusea e O ser e o
nada, já havia uma preocupação com a noção de história.
A primeira observação é a de que muitos críticos fazem essa
separação tendo como base apenas os livros filosóficos maiores, O ser e o
nada e a Crítica da razão dialética, e não consideram os textos escritos
paralelos ao primeiro livro e nos quais a história já aparece com grande
importância. No mesmo ano em que publica o ensaio de ontologia
fenomenológica, 1943, Sartre colabora na revista clandestina Lettres
françaises, participa de reuniões do Conselho Nacional dos Escritores,
basicamente formado por escritores de esquerda, e escreve Sursis, o livro
mais “histórico” da trilogia Caminhos da Liberdade. Assim, ao mesmo
tempo em que escreve seu livro de filosofia considerado abstrato e solipsista,
Sartre é um escritor que mostra o quanto a guerra modifica as pessoas e é
um homem que, mesmo que não de forma resoluta, participa da resistência.
E nos anos seguintes, funda a revista Les Temps Modernes e escreve peças
com teor explicitamente histórico e também o livro Que é a literatura? e
outros ensaios nos quais a história, e a história atual (como a questão dos
judeus) aparece. Muitas das ocupações paralelas de Sartre na época da
escrita de O ser e o nada já envolvem questões explicitamente sociais e
históricas.
Além disso, o próprio livro O ser e o nada foi escrito durante uma
guerra mundial, desde o final de 1941, depois que fora prisioneiro de
guerra. Não se trata de um livro que ignora as questões históricas, e mesmo
que não trate diretamente delas, isso não implica dizer que não há lugar
para a história ali. Pelo contrário: o que temos anunciado ali, em termos
bastante rigorosos, é a necessidade de se pensar o homem no mundo, em
situação, que sua liberdade, absoluta, só é absoluta nesse mundo em que
vivemos, nesse mundo em meio a uma guerra mundial e no qual não basta
ser pacifista para não ter relação alguma com a guerra que ocorria. Mesmo
que não concordemos totalmente com a tese de Cristina Mendonça, a de
que “são os conflitos sociais e as lutas políticas de uma época de
transformação histórica radical que põem em movimento a engrenagem
especulativa do livro” 5 , pensamos que seu estudo teve o grande mérito de

5
Mendonça, C., O mito da resistência: experiência histórica e forma filosófica em Sartre, p.
192-193.
92 Thana Mara de Souza

mostrar o quanto a história não é ignorada em O ser e o nada. Mas, mais


que mostrar os exemplos ligados à experiência de uma guerra e como eles
formam uma rede que condiciona o desenvolver do livro, pensamos que é a
partir das próprias noções ali expostas, a do Para-si como sendo Para-outro,
como sendo liberdade que só se dá em situação, e portanto nunca de modo
abstrato, nunca totalmente fora desse mundo, que podemos começar a
perceber o quanto a história, a facticidade, é fundamental para esse ensaio
de ontologia fenomenológica. E se se trata de ontologia, é importante
ressaltar que é um Ensaio, e é uma ontologia fenomenológica, o que já
mostra um pouco o quanto o real e as incertezas estão presentes nesse livro
que a crítica pensa ser apenas abstrato e metafísico, sem se lembrar que a
metafísica não pode se dar nunca fora da história.
E por fim, uma outra problemática nessa tese que divide a filosofia
sartriana em duas fases é uma outra divisão, agora referente aos livros
literários. Numa relação que não leva em consideração os aspectos
cronológicos, os comentadores costumam dizer que o romance A Náusea é o
exemplo do homem solipsista e abstrato que O ser e o nada mostrará,
enquanto os romances da trilogia Os caminhos da liberdade, mesmo que
escritos ao mesmo tempo que O ser e o nada, são exemplos da descoberta da
historicidade e da sociabilidade que será mostrada em Crítica da razão
dialética.
Para esses comentadores, o exemplo da filosofia abstrata e solipsista
de O ser e o nada encontra-se ilustrado no personagem Roquentin de A
Náusea.
E para mostrar que há uma continuidade na filosofia sartriana,
continuidade que admite mudanças, mas que não aceita rupturas e
diferenças radicais a ponto de falarmos de duas filosofias, vamos agora
analisar o romance A Náusea e o modo como a história ali aparece e é
desconstruída, uma corrosão que faz ruir as certezas da História com H
maiúsculo, cheia de Heróis e Aventuras, essas histórias de grandes ações
feitas por grandes homens, e como, no seu lugar, aparece uma história mais
cotidiana, uma história que deve aceitar a contingência no lugar da
necessidade, a dúvida no lugar da certeza, as pessoas sem importância no
lugar de grandes heróis – enfim, uma história menos certa mas mais rica e
mais profunda.
A presença da história no “primeiro” Sartre 93

Já que normalmente o personagem Roquentin é citado como


exemplo da filosofia abstrata e metafísica que é O ser e o nada, tentemos
mostrar, então, que mesmo antes desse livro filosófico a história já aparece e
é questionada.
Antes, porém, de analisar o próprio romance, façamos alguns
comentários gerais sobre a época em que Sartre escreveu o livro ao menos
para começarmos a ter uma ideia de quais eram as preocupações do filósofo
nesse período.
Em 1931, ele é nomeado professor de filosofia do Liceu de Havre e
é lá que começa a escrever seu romance, que tratará da contingência, mas da
qual só tem ainda uma vaga ideia. Já em 1933, Raymond Aron, seu amigo,
volta da Alemanha e conta as novidades da filosofia de Husserl, da
fenomenologia, do voltar-se às coisas mesmas. Sartre fica entusiasmado por
encontrar uma filosofia que ia ao encontro de suas preocupações e resolve ir,
em 1933, para a Alemanha, para Berlim, onde ficou durante um ano todo a
fim de fazer estudos sobre Husserl. É ali que ele escreve a segunda versão de
seu romance, ainda chamado de Melancolia.
Ao mesmo tempo em que escrevia seu romance metafísico e
solipsista na Alemanha, Hitler assume poder. E se é certo que Sartre não se
envolveu diretamente nessa questão, não dá para dizer que ele a ignorou
totalmente, mesmo que sua ação fosse apenas a de se reunir com jovens que
se diziam não fascistas.
Depois de um ano de estudos, retorna ao Havre para continuar suas
aulas e terminar de escrever o romance. E ao mesmo tempo em que escreve
o romance, também escreve contos que publica aos poucos. Em 1938,
publica seu livro A náusea, que teve o nome trocado por exigência do editor,
e vários contos que serão reunidos no início de 1939 com o nome O muro.
E é interessante notar que, se Roquentin é visto como o
personagem que melhor representa o que Sartre pensa nessa época, com
todo seu solipsismo e desimportância para as questões sociais, vários contos
de O muro aparecem com preocupações opostas. Ali vemos personagens
totalmente inseridos na história, lutando na guerra da Espanha ou se
tornando futuros Hitlers. No conto O muro vemos Ibbieta em meio à
guerra civil espanhola, preso, na noite anterior à sua provável execução e
frente ao dilema de dizer onde o amigo estava escondido. E no conto A
infância de um chefe vemos o percurso de um jovem burguês em direção à
94 Thana Mara de Souza

“chefia”, aos homens que mandam – incluindo um período de rebeldia


contra os judeus: com leituras de Barrès e da Action Française, Lucien
Fleurier se torna antisemita e persegue judeus pelas ruas de Paris.
Assim, ao mesmo tempo em que vemos um personagem tão
aparentemente metafísico como Roquentin, vemos também personagens
totalmente preocupados com as questões históricas – seja um revolucionário
na guerra da Espanha, seja um pequeno burguês se preparando para ser um
chefe, para liderar, para mandar e executar os que não são parecidos com
ele, tal como Hitler e Mussolini faziam nessa época.
Enquanto Sartre escreve A náusea, normalmente visto como o
romance metafísico por excelência, vemos outros escritos nos quais a
história aparece e com sua devida importância. E se é assim, não podemos
dizer que o filósofo não tinha nenhuma preocupação histórica nessa época.
Sem enfatizar essa importância, podemos ao menos dizer que não havia
uma total ignorância da história, de Hitler no poder, da Guerra na Espanha.
Mas se mostramos que ao menos em textos paralelos a história
surge, isso não é suficiente. Não é porque textos paralelos tratam da história
que necessariamente em A náusea ela também aparece, assim como não é
porque Sartre escreve artigos em revistas clandestinas que seu livro de
filosofia O ser e o nada necessariamente leva a história em consideração.
Não pretendemos, com isso, provar que a história está presente no
romance A náusea e no livro de filosofia O ser e o nada, mas mostrar que, ao
mesmo tempo em que Sartre se dedicava a esses livros, havia também uma
certa preocupação com as questões históricas: essas ao menos estavam no
horizonte das preocupações do filósofo e escritor.
O segundo passo, seguindo nossas críticas bastante gerais à tese da
divisão da filosofia sartriana em dois grandes e opostos momentos, seria
mostrar que no próprio romance A Náusea a história aparece. Assim como
Cristina Mendonça mostrou o quanto a história está presente em O ser e o
nada, mesmo que não concordemos com a tese de que foi justamente a
história que conduziu toda a estrutura formal e lógica e metafísica do livro,
pretendemos mostrar agora algumas cenas e frases do diário de Roquentin
em que a história é dita explicita ou implicitamente.
Nas primeiras páginas já temos algumas informações importantes
referentes ao espírito aventureiro de boa parte dos europeus na década de
20: as viagens exóticas ao Oriente. Roquentin, conforme informam os
A presença da história no “primeiro” Sartre 95

editores que publicam seu diário, viajou por 6 anos pela Europa Central,
África do Sul e Extremo Oriente, e como o próprio Roquentin informa nas
primeiras linhas de seu diário, viajou encantado por uma escultura oriental e
depois de tantos anos de viagem, achou-a desagradável e estúpida. Ficou
com tédio por estar na Indochina e resolveu, repentinamente, voltar à
França.
Essa questão pode parecer apenas um capricho de um indivíduo
estranho e solitário se não levarmos em consideração que numa década
anterior o tema literário da aventura, do viajante, era bastante comum na
França, e que Malraux, o escritor célebre da época, ficou conhecido
justamente por relatar personagens que vão ao encontro da História, das
guerras onde elas ocorrem, assim como o próprio autor fazia. Os romances
que Malraux publicou no final da década de 20 e início da década de 30 se
localizam todos no Oriente, em meio à Indochina e revoluções ou então,
são relatos da busca de aventureiros por estátuas, exatamente a mesma que
interessou Roquentin. Há uma referência direta ao modo de viver dos
franceses e ao gosto pelas aventuras exóticas que muitos escritores relatavam,
e como diz Michel Sicard nos comentários das Obras Romanescas da
Pléiade: há uma referência clara a Malraux e ao livro Estrada Real. “La
contestation du thème littéraire de l’aventure – thème d’époque et que les
romans de Malraux ont largement contribué à illustrer et à répandre – est
très certainement une des visées de La Nausée” 6 .
Mais para frente, podemos ver outras questões que dizem respeito
às distinções e luta de classes, à formação de uma cidade pela burguesia e
desprezo pelas ruas dos operários, a lembrança do autodidata de sua prisão
na primeira guerra mundial, o sonho de Roquentin como soldado que
espanca Barrès, o escritor símbolo do antisemitismo na França. E numa
longa passagem, da qual Roquentin se arrepende no dia seguinte por ter
sido muito “literário”, ele escreve:

Estou inteiramente sozinho, mas caminho como uma tropa que irrompe numa
cidade. Neste momento, há navios ressonantes de música sobre o mar; luzes se
acendem em todas as cidades da Europa; comunistas e nazistas trocam tiros nas
ruas de Berlim; desempregados perambulam pelas ruas de Nova Iorque; num
quarto aquecido, diante de suas penteadeiras, mulheres colocam rímel nos cílios. E
eu estou aqui, nessa rua deserta, e cada tiro disparado de uma janela de Neukölln,

6
Sicard, M., Oeuvres Romanèsques de Sartre, p. 1729.
96 Thana Mara de Souza

cada soluço sangrento dos feridos que são transportados, cada gesto preciso e
diminuto das mulheres que se enfeitam, corresponde a cada um de meus passos, a
cada batida de meu coração 7 .

Há, portanto, várias passagens em que ficam nítidas as referências


às questões históricas: a primeira e a segunda guerra estão ali presentes,
como pano de fundo, como lembrança ou imaginação, mas ali estão. Os
comunistas e nazistas aparecem, assim como o desemprego nos Estados
Unidos (não de forma totalmente genérica se pensarmos que o livro foi
escrito pouco tempo depois da crise de 29), assim como a luta de classes no
fim do século XIX na pequena cidade de Bouville.
A história aparece, portanto, em alguns momentos do romance.
Mas mostrar isso também não é suficiente para dizer que a história tem
importância: citar momentos históricos não faz do livro um livro histórico.
E é essa a discordância que temos com a tese de Cristina Mendonça.
Não basta ter referências diretas ou indiretas às questões históricas
para ser um livro histórico, para dizer que esse livro dá importância às
problemáticas sociais. É possível utilizar a história em um romance e fazer
dele um romance com sentido abstrato, a-histórico. Dizer que textos
paralelos tratam da história e dizer que no próprio texto há referências aos
acontecimentos históricos atuais não é suficiente para provar a relevância da
questão histórica nesses dois textos, mas ao menos já nos indica que a
história não parece ser tão indiferente e ausente como a crítica costuma
dizer.
Temos dois indícios de que a história não está totalmente ausente
de A Náusea e de O ser e o nada, tanto na comparação com os textos escritos
na mesma época como na análise de exemplos e referências aos eventos
políticos e sociais da época. Mas como já dissemos, são apenas indícios,
indícios que podem ser destruídos com a constatação de que um romance
que trata de temas históricos pode ter sentido abstrato, metafísico.
Um romance que à primeira vista pode parecer totalmente
fantástico pode estar relacionado de forma muito forte ao real, assim como
romances que aparentemente tratam explicitamente de questões sociais
podem ter um sentido abstrato, um sentido que de certo modo destrói a
história que narra.

7
Sartre, A Náusea, p. 88.
A presença da história no “primeiro” Sartre 97

Este é o caso do escritor Malraux. A maior parte de seus romances


têm um cenário histórico muito forte: guerra da Indochina, Revolução
Chinesa, Guerra Espanhola, Segunda Guerra Mundial – e mesmo assim,
com todos os personagens sendo heróis, indo em busca de guerras e lutas, o
sentido de todos seus livros é metafísico. A história aparece com força nesses
romances para exemplificar uma luta mais importante que a própria luta
histórica: a luta metafísica do homem contra a morte, contra o inevitável
destino. Seus personagens são homens que mergulham na história, mas se
mergulham é para logo sair dela, para se encontrarem além dela. A história é
apenas símbolo de uma questão metafísica, do caos em que o homem vive
após o decreto da morte de Deus e consequentemente, da morte do
homem, e a necessidade de se construir uma nova moral, de refazer a ordem
perdida. A história aparece explicitamente nesses romances mas o modo
como é vista pelos personagens a torna mero símbolo e faz dos romances,
não romances históricos, mas romances metafísicos.
Para provar que em A Náusea há considerações sobre a noção de
história não basta, portanto, citar os textos paralelos que tratam diretamente
da história e nem indicar as referências do livro aos acontecimentos
históricos da época. Pretendemos mostrar que a história não está ausente de
A Náusea por meio de uma análise interna do texto, vendo como esse tema
aparece e como ele é visto pelo personagem – para daí concluir que Sartre
tem inquietações a respeito da noção de história, e que se isso não se
identifica com o papel que a história terá em Crítica da razão dialética, é
condição para que ela apareça com a força que terá depois.
Passemos então à compreensão do romance A Náusea para mostrar
a destruição do sentido de história como aventura heróica, necessidade e
abstração e o surgimento do sentido de história como descontinuidade,
contingência, feita por simples homens em meio à concretude do cotidiano.
A Náusea é o diário do personagem Roquentin que foi publicado
por alguns editores sem que ele autorizasse: logo no início há uma nota
explicativa destes, dizendo terem encontrados os papéis e publicado sem
nenhuma alteração. Não se sabe o que é de Roquentin quando seu diário foi
publicado.
Provavelmente escrito no início de 1932, segundo o que os editores
dizem, seu diário são anotações de Roquentin diante do mundo, dos outros
e de seus atos. No início, a descrição de uma sensação desagradável e sem
98 Thana Mara de Souza

definição que aos poucos se torna A Naúsea, a descoberta da total


contingência do mundo e de si mesmo.
E não é por acaso que Roquentin é historiador. Junto com a
descoberta vertiginosa da contingência do mundo, ele descobre também que
não há encadeamento lógico entre os fatos, que a história que tentava
pesquisar era tão inventada como um romance. E é assim que a noção de
história surge em A Náusea. A descoberta da contingência não se distingue
da descoberta do tempo como contingente, da história como sucessão
contingente de fatos. A náusea que desvela a contingência é a mesma que
faz ruir qualquer necessidade, causalidade, ordem.
Ao mesmo tempo em que Roquentin vê sua percepção mudar,
também vê sua pesquisa não fazer mais sentido. Historiador que reúne
arquivos e cartas sobre o Marquês de Rollebon para escrever um livro
falando de seus atos e importância para a história, aos poucos Roquentin
percebe que os muitos documentos a que tem acesso não são suficientes
para tornar possível a apreensão de uma ordem lógica e causal na vida de
seu marquês. A necessidade só pode ser inventada, só pode ser imaginada,
tal como a ficção faz. Em meio ao excesso de documentos, uns tão
divergentes em relação a outros, sobra apenas a imaginação para ligar um
fato a outro, para criar uma ordem que não existe no acontecimento.
A noção tradicional de História como sucessão de fatos e heróis,
noção essa que Roquentin parece acatar, começa a ser destruída juntamente
com a sensação da Náusea, com a descoberta da única necessidade que
temos, que é a de sermos contingentes, não ter necessidade alguma.
É certo que essa descoberta é feita por um homem totalmente
solitário, sem amigos, sem contatos, que ainda busca umam salvação por
meio da arte – salvação essa, aliás, que não acreditamos ser possível. Como
diz o professor Franklin Leopoldo e Silva, “a resposta do indivíduo ao
mundo que o nega é a negação do mundo, uma forma extrema de estar no
mundo e na história. Refugiar-se no imaginário e escolher a alienação são
ainda atos: o artista pode assumir o compromisso de ignorar a história mas
não pode ausentar-se dela” 8 .
De todo modo, Roquentin é solitário nesse descoberta, que poderia
não passar, portanto, de uma descoberta apenas abstrata. Mas o que

8
Silva, F., Ética e literatura em Sartre, p. 241.
A presença da história no “primeiro” Sartre 99

esquecemos ao notar essa solidão é que ela é constatada sempre em relação


aos outros: Roquentin se descreve como solitário ao se comparar com os
outros homens, com aqueles que conversam, que jogam cartas em bares. A
descoberta do “eu” não se dá separado da descoberta do “Nós” – e se é certo
que esse “nós” adquire um papel cada vez maior na filosofia de Sartre, é
certo também que essa noção sempre será problemática.
O historiador Roquentin percebe a noção de História como rigor e
causalidade lógica, como feita por grandes homens, ser afetada pela Náusea
que sente.
Já na nota escolhida para iniciar o livro, uma citação de Céline: “é
um rapaz sem importância coletiva; é apenas um indivíduo”, podemos ver
que não se trata aqui de uma História com H maiúsculo, de um
personagem herói fazendo grandes ações. A Náusea revela a ilusão dessa
história narrada sempre como uma aventura, como um grande herói
realizando grandes atos e modificando o mundo. É, aliás, mais ou menos
isso que Malraux defende em suas ações e seus romances, é isso que o fará
ser ministro do general De Gaulle e de ver nesse homem a encarnação da
História, o que Sartre muito critica.
Ser apenas um indivíduo pode significar ser um homem não
grandioso, ser um homem cotidiano, desses como nós somos, pessoas que
têm um trabalho, que vão à biblioteca estudar e fazer suas pesquisas. Talvez
a ênfase aqui esteja nessa cotidianidade de nossas vidas, na consciência de
vivermos esse mundo sem grandes guerras e que, mesmo assim, é histórico.

Aussi, plutôt qu'une référence à la littérature populiste que Sartre probablement


connaît peu, ses personnages de servantes, de petites gens, sont la réintroduction
ironique du peuple dans un univers post-héroïque. Roquentin comme Gisors de
La Condition humaine est un métaphysicien qui a affaire au monde, mais lui ce
n'est pas par la révolution, c'est à travers l'enlisement provincial, auquel il oppose
une farouche solitude et non pas la fraternité 9 .

Roquentin, homem solitário, sem amigos, é também aquele que, já


na descoberta de sua absurda solidão e contingência, se enfurece ao ver a
sociedade injuriar o Autodidata na biblioteca por causa de sua pederastia.
No auge da Náusea, Roquentin é também o homem que se volta contra a
hipocrisia dessa sociedade moralista, mas essa revolta não se dá de modo

9
Contat, M., De Melancholia à La Nausée In: Louette. Sartre écrivain, p. 54-55.
100 Thana Mara de Souza

heróico, em meio a grandes guerras. É no mundo cotidiano que Roquentin


age, aperta o pescoço do homem que bate no Autodidata. Sem ações
heróicas e grandiosas, que mudarão o mundo, o romance pretende mostrar
a importância dos “apenas indivíduos”. Mais que a solidão, é essa ênfase no
sujeito normal, no herói antiherói que vemos no romance.
A Náusea revela o descobrimento de homens reais num mundo
real... de homens sem importância social. E é nisso que consiste o
engajamento de Sartre nesse livro.
Não se trata de pensar mais a História com H maiúsculo, como
história de datas e heróis, de grandes feitos. A história não contém certezas e
uma ordem rigorosamente lógica, e isso porque é feita por nós, seres
humanos comuns, Para-sis que necessariamente buscam em vão ser o que
nunca serão, a completude. Com o passar dos meses, Roquentin começa a
identificar suas sensações, o estranhamento que passa a ter diante de uma
folha de papel, uma maçaneta, uma raiz de uma árvore. A contingência é
descoberta como uma náusea, como um desvelamento vertiginoso do qual
não pode se livrar porque descobre que ele se identifica com a própria
Náusea.
Não são os objetos que mudam, é sua experiência com eles que se
modifica: se a vida do Marquês de Rollebon o seduzia com tantos fatos
inexplicáveis e ricos, aos poucos sua figura esmaece, não por falta de
documentos, pelo contrário: há excesso de documentos, os quais revelam
ainda mais a falta de consistência e de firmeza na história. O historiador
Roquentin nos revela, em seu diário, o quanto a percepção do mundo, da
temporalidade e da própria história se transforma juntamente com a
angústia que a Náusea lhe traz, com a descoberta da total contingência que
somos.
Antes do aparecimento da Náusea, a história do marquês aparecia
como certa, como o que justificava a vida de Roquentin por meio da ordem
da sucessão dos fatos: “Quis que minha vida tivesse uma sequência e uma
ordem como os de uma vida que recordamos” 10 .
A ordem que ele achava possível encontrar na vida do marquês de
Rollebon era a ordem que ele também tentava manter em sua vida. Aqui
ainda há a noção da temporalidade como necessidade, como se de tal fato

10
Sartre, A Náusea, p. 68.
A presença da história no “primeiro” Sartre 101

necessariamente surgisse o outro, como se o final já estivessse inscrito desde


o começo e justificasse todos os atos anteriores. Isso é, aliás, o que
Roquentin chama de aventura: só nas aventuras os começos são realmente
começos e os fins já aparecem desde o começo para ordenar e justificar
todos os fatos. Mas o que aos poucos ele percebe é que essa aventura só é
possível se narrada: enquanto os fatos acontecem, não há nenhuma
justificação, nenhuma ordem, nenhuma necessidade que ligue o fato
anterior ao fato atual.
Com essa descoberta, Roquentin se dá conta que o que faz para
colocar ordem na vida do marquês é praticamente o mesmo que escrever
romance: a ordem é forjada, a necessidade só pode ser criada a posteriori,
não existe enquanto os fatos acontecem. A forma dos acontecimentos,
quando vividos e quando narrados, é diferente. A vida não é narração: não
há verdadeiros começos nem verdadeiros fins. “Os acontecimentos ocorrem
num sentido e nós os narramos em sentido inverso. Parecemos começar do
início [...] e na verdade foi pelo fim que começamos [...]. O fim, que
transforma tudo, já está presente. Para nós o sujeito já é o herói da
história” 11 .
E esse sentido da aventura como acontecimento inevitável,
necessário, só é possível a posteriori, invertendo a ordem dos fatos,
colocando o final no começo para então encadear lógica e necessariamente
todos os acontecimentos. E isso só é possível por meio da criação, da
imaginação.
Assim, a noção clássica de História começa a cair por terra. Não há
lógica entre os acontecimentos, não há uma irreversibilidade nos fatos: se
Napoleão não existisse, não dá para saber se outra pessoa faria exatamente o
mesmo papel. A história não se dá sem os homens, sem todos os homens,
mesmo os que ficam o dia todo em bibliotecas pesquisando – e isso significa
que a história não tem uma ordem necessária, significa que ela está sujeita às
complexidades e paradoxos que o homem apresenta.
Percebendo que a estrutura temporal lógica e necessária começa a
ser demolida pela Náusea, que a certeza na sucessão dos acontecimentos
deixa de existir, Roquentin anota em seu diário: “Não refletir muito sobre o

11
Ibidem, p. 67
102 Thana Mara de Souza

valor da História. Corre-se o risco de perder o gosto por ela” 12 . Mas qual
história é essa que perde seu valor?
Nitidamente é a História Clássica, é essa História com H
maiúsculo, é essa História que pensa apenas nos grandes acontecimentos e
nos grandes homens de ação, tal como Malraux relata em seus livros e como
ele mesmo tenta viver ao lado do general De Gaulle. Ao se descobrir
contingência, Roquentin descobre que essa História é uma farsa. A vertigem
que faz Roquentin descobrir a ausência de necessidade em sua vida é a
mesma que o faz descobrir a farsa que é essa História em que acreditava.
Não há aventuras vividas, não há grandes homens que
necessariamente precisam viver em determinada época para mudar o
mundo, não há nenhuma necessidade entre um acontecimento e outro. Essa
necessidade só surge depois, quando já sabemos o resultado de tal ação e
colocamos como se ela fosse feita para inevitavelmente levar ao resultado,
como se houvesse uma Razão, um Espírito Absoluto guiando todos os atos,
todos os homens.
Mas não há: Roquentin descobre que a única necessidade é a
contingência, e com isso descobre que sua vida não tem justificativa, que a
vida do marquês de Rollebon não tem justificações, que nenhum fato
necessariamente faz surgir tal outro fato. A lei que governa nossas ações, e,
portanto, a história, é a lei da contingência, da incerteza. Por isso não se
pode pensar no tempo nem como causalidade nem como finalismo: o
passado não causa o futuro, assim como o futuro não determina o passado.
Não há determinações e necessidade na temporalidade, em nossas vidas. “O
essencial é a contingência. O que quero dizer é que, por definição, a
existência não é a necessidade” 13 .
No romance A Náusea temos a descoberta da contingência que rege
as ações humanas, e, portanto, também a história. Há a destruição do
conceito tradicional de história e alguns indícios de uma outra noção de
história, uma noção que admite “apenas indivíduos” e não só “homens com
importância social”, uma noção que admite a contingência, a inexistência
da inevitabilidade e necessidade entre os fatos; o surgimento de uma história
mais rica e mais profunda.

12
Ibidem, p. 110.
13
Ibidem, p. 193
A presença da história no “primeiro” Sartre 103

Não dá, portanto, para falar que a história está ausente de A


Náusea. Aqui se inicia a destruição de um conceito tradicional que não seria
compatível com a filosofia de Sartre. E não são os exemplos e referência que
fazem de A Náusea e O Ser e o Nada livros que problematizam a questão da
história, mas as próprias noções presentes, de forma filosófica e literária, que
permitem dizer que existe uma preocupação com a realidade, que a história
está de certo modo presente. Mesmo que não nomeada, mesmo que não
com a importância e relevo que terá depois, ela já aparece nos livros iniciais
de Sartre.
Dizer que a história está ausente de A Náusea é ainda pensar a
história com H maiúsculo, é ainda pensar que históricos são somente os
grandes acontecimentos feitos por grandes homens, é ainda conceber a
História como encadeamento necessário entre os fatos, é ainda acreditar na
História que Sartre começa a destruir nesse romance. E a história que
começa a surgir em seu lugar é a história contingente realizada por “apenas
indivíduos”, é a mesma que aparecerá como estrutura necessária ao Para-si
em O ser e o nada, e é a mesma que ganhará concretude e peso extremo em
Crítica da razão dialética.
Se talvez seja uma “História” que provoque o afogamento de Sartre
na história real, se talvez ele precisou de uma guerra mundial para dar
importância mais concreta aos problemas históricos, esse ato revela que tudo
é história, até mesmo a vida pacata e tediosa de um historiador em Bouville.
Muitos dos personagens de Sartre tentam sair da história, mas, ao se
afogarem nela, aprendem que, mesmo que saiam desse rio, terão para
sempre as marcas e cicatrizes dessa luta contra (e portanto também com) a
história.

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104 Thana Mara de Souza

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O fim da metafísica segundo Habermas:
ponderações à luz do pensamento heideggeriano

Caroline Vasconcelos Ribeiro *

Resumo: Habermas anuncia em sua obra Pensamento Pós-Metafísico o fim da metafísica


enquanto pensamento totalizador e auto-referente que pretende um acesso privilegiado à
verdade. A desvalorização deste modo de pensar culmina na passagem para o que ele
denomina de pensamento pós-metafísico, fazendo-se necessário um redimensionamento do
papel da filosofia, visto que um novo cenário de pensamento se instaura. O presente artigo
pretende problematizar, à luz da filosofia de Heidegger, os pressupostos habermasianos que
fundamentam a sua constatação do fim da metafísica. Neste sentido, procura indicar que a
constatação do império da técnica na contemporaneidade torna o anuncio da instauração de
um pensar pós-metafísico algo de difícil sustentação.
Palavras-chave: Habermas; Heidegger; Metafísica; Pensamento pós-metafísico; Técnica

Abstract: In his work Post-Metaphysical Thinking, the philosopher Habermas announces the
end of metaphysics as a totalizing and self-referential thinking, which intends to have a
privileged access to truth. The devaluation of this kind of thinking culminates in the passage
to what he calls post-metaphysical thinking, making a resizing of the role of philosophy
necessary considering that a new scenario of thinking is being established. This article
intends to problematize – in the light of the philosophy of Martin Heidegger – assumptions
of Habermas, which justify his proposition of the end of metaphysics. In this sense, this
article wants to show that the proposition of the contemporary empire of technique makes
the announcement of the establishment of a post-metaphysical thinking something difficult
to sustain.
Keywords: Habermas; Heidegger; Metaphysics; Post-metaphysical thinking; Technique

1 Por uma razão “situada”


Em sua obra Pensamento pós-metafísico Habermas constata, no âmbito do
pensamento filosófico contemporâneo, uma tendência em se questionar a
tradição metafísica e o sistema fechado de razão auto-referente que ela traz

*
Professora do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de
Feira de Santana. E-mail: carolinevasconcelos@hotmail.com Artigo recebido em
29.09.2009, aprovado em 30.12.2009.

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 107-134


108 Caroline Vasconcelos Ribeiro

em seu bojo. Indica que a ideia de um sistema de razão como única forma
de interpretar a realidade está demasiado arraigada dentro da própria
concepção do fazer filosófico-metafísico. Ele efetua sua crítica à tradição
metafísica denunciando que este pensamento, ao se impor como
“fundamentação última”, fechou-se num círculo totalizante com pretensões
de legitimar todas as premissas a partir de si mesmo. Assim, direciona seus
questionamentos não só à racionalidade em sua constituição
especificamente metafísica, mas também à toda tradição filosófica que a
sustenta. Seu pensamento desenvolve-se no sentido de demonstrar os
aspectos que marcaram o estremecimento deste modo de pensar e,
conseqüentemente, minaram a razão como pretensão universal de saber; tais
aspectos são denominados por ele de “motivos de um pensamento pós-
metafísico”. (Habermas,1984, p. 37).
Falar do estremecimento do modo metafísico de pensar implica,
neste caso, dizer que esta razão não abarcou a multiplicidade do real e que a
onipotência da reflexão foi quebrada por uma realidade que não é
totalmente capturável por ela. Trata-se, portanto, de concretizar esta razão –
endeusada e abstrata – na prática do mundo da vida, fazê-la adquirir carne e
sangue em encarnações históricas. Deste modo, ao enfatizar a fragilidade da
compreensão racionalizante de mundo, Habermas (1984, p. 26) aponta
para a dimensão dos “horizontes de nossas biografias e das formas de vida
nas quais nos encontramos desde sempre e que formam um todo poroso
que se compõe de familiaridades presentes de modo pré-reflexivo, que
escapam a qualquer intervenção reflexiva”. Esta dimensão, denominada de
mundo da vida (Lebenswelt), compreende uma totalidade pré-teórica e não-
objetiva das auto-evidências cotidianas, na qual sempre se situam aqueles
que agem comunicativamente.
A metafísica como pensamento totalizador e auto-referente – que
pretende compreender o todo da natureza e da história – já não poderia
pretender um acesso privilegiado à verdade, visto que suas categorias
fundamentais não abarcam a multiplicidade da realidade. Assim, diante de
tais “embaraços”, caberia ao pensamento levar a cabo “[...] um processo de
reconstrução racional que tome como ponto de partida o saber intuitivo,
pré-teórico, de sujeitos dotados de competência de falar, agir e julgar [...]”
(Habermas,1984, p. 26).
O fim da metafísica segundo Habermas 109

Anuncia-se então, um novo conceito de razão, uma razão situada


em contextos concretos dos jogos de linguagem e instituições da vida
humana, isto é, a razão comunicativa. Ao redimensionar a razão, retirando-
lhe a moldura idealista e situando-a na prática cotidiana, Habermas ao
mesmo tempo redimensiona o papel da filosofia que, por sua vez, perde, no
contexto do saber humano, o lugar que lhe fora reservado pela tradição, ou
seja, a condição de tribunal da razão. À filosofia caberia um papel de
intérprete, responsável pela mediação entre as culturas especializadas da
ciência, da técnica, do direito e da moral de um lado, e o mundo da vida,
regido pelo agir comunicativo, de outro. Para o autor, os filósofos atuariam
“[...] trazendo subsídios de uma teoria da racionalidade, sem elevar
pretensões fundamentalistas, ou mesmo, de tudo englobar num abraço
absolutista.” (Habermas, 1984, p. 30).
Em suma, Habermas ao propor um novo papel para a filosofia, o
faz calcado na ideia de que algo escapou à tentativa secular do pensamento
metafísico em ditar sentido para a realidade, como também, na constatação
de quatro motivos que estremeceram esta forma de pensar: 1. substituição
da racionalidade material pela racionalidade de procedimentos; 2. mudança
do paradigma da consciência para o da linguagem; 3. a historização da razão
e a conseqüente “destranscendentalização” dos conceitos tradicionais; 4. a
inversão da relação clássica entre teoria e práxis. (Habermas,1984, p. 39).
Para o autor, a constatação de tais motivos culminou na desvalorização do
modo metafísico de pensar e na passagem para o pensamento pós-metafísico
que, especificamente em sua proposta, opera com um conceito diferente de
mundo (mundo da vida), de razão (razão situada), contextualiza e
mundaniza o sujeito transcendental (agentes comunicativos), se liberta do
logocentrismo e da pretensão de ser ciência primeira, e, finalmente, mantém
um nexo necessário “com o saber pré-teórico e com a totalidade do mundo
da vida que não pode ser objetivada.” (Habermas,1984, p. 58).
Neste presente artigo pretendemos, inicialmente, apontar os
pressupostos habermasianos que fundamentaram a sua constatação do fim
da metafísica. Em seguida, almejamos problematizar o argumento da
instauração de um pensar pós-metafísico analisando, sistematicamente, a
maneira como Habermas interpreta a relação entre a metafísica moderna e
as ciências. Para esta empresa nos serviremos das apuradas investigações
heideggerianas acerca da instauração e configuração da ciência na
110 Caroline Vasconcelos Ribeiro

modernidade. Neste sentido, visaremos examinar se a racionalidade


procedimental das ciências – apresentada por Habermas como um dos
motivos que abalaram o pensamento metafísico – representa uma ruptura
ou faz coro ao modo metafísico de compreensão da realidade.

2 O papel da Filosofia segundo Habermas


Em Pensamento Pós-metafísico Habermas nos alerta para o fato de que a
situação do filosofar atual tornou-se intransparente. Faz tal afirmação, não
se referindo necessariamente à disputa das escolas filosóficas, mas insistindo
no quanto se tornou obscura a posição do pensamento atual com relação à
metafísica. A partir de tal constatação ele procura, em primeiro lugar,
explicitar, do seu ponto de vista, as características fundamentais do
pensamento metafísico para, em seguida, apontar os aspectos que marcaram
o estremecimento deste modo de pensar e a conseqüente passagem para o
pensamento pós-metafísico. Uma vez empreendida esta tarefa Habermas faz
um balanço das tendências fundamentais do atual contexto do pensamento
ocidental, indicando qual seria o possível papel da filosofia diante de tal
conjuntura.
Inicialmente pretendemos, de maneira sucinta, expor as noções
habermasianas de pensamento metafísico e pós-metafísico, possibilitando
assim, a compreensão do papel por ele atribuído à filosofia: o de guardadora
de lugar e intérprete.
No que diz respeito à metafísica, Habermas (1984,p.38) destaca-lhe
três aspectos considerados fundamentais: 1. o pensamento da identidade; 2.
a doutrina das ideias e, 3. o conceito forte de teoria. Para ele, a história deste
pensamento constrói-se a partir da repetição de certa questão básica: a
relação entre o uno e o múltiplo. É sempre com referência ao uno enquanto
origem e fundamento que a metafísica pensa a realidade como totalidade.
Assim, fica claro que:

O uno e o múltiplo, delineado abstratamente como relação de identidade e


diferença, constitui a relação fundamental, que o pensamento metafísico interpreta
como sendo lógica e ontológica ao mesmo tempo: o uno passa a ser ambas as
coisas - proposição fundamental e fundamento do ser, princípio e origem.
(Habermas,1984, 39.)

Visto que a origem fundadora de unidade é de natureza conceitual,


ou seja, é delineada abstratamente, só torna-se possível, para o pensamento
O fim da metafísica segundo Habermas 111

metafísico, compreender o real na medida em que este é pensado desde os


princípios internos que compõem este sistema de pensamento, na medida
em que o particular é explicado a partir do universal.
Com a passagem do paradigma da ontologia para o do mentalismo,
a metafísica, desde Descartes, aborda o pensamento da identidade com base
na subjetividade. Tudo passa a ser referido então ao uno da subjetividade
produtora. A razão surge, neste contexto, como uma reflexão, ao mesmo
tempo totalizadora e auto-referente, assumindo assim, “a herança da
metafísica, na medida em que garante o primado da identidade frente à
diferença e a precedência da ideia frente à matéria.” (Habermas,1984, 41).
Para Habermas, este primado da ideia frente à matéria caracteriza a
metafísica como “doutrina das ideias”, cuja finalidade seria a de pensar a
ordenação subjacente à multiplicidade dos fenômenos. Sendo assim, a teoria
destaca-se como acesso privilegiado à verdade, exigindo o abandono da
postura de vida natural e prometendo o contato com o extraordinário, com
o que estaria por trás dos fenômenos. Recomenda-se então, a vida dedicada
à contemplação – o bios theorétikos. Ainda segundo Habermas (1984, 42),
na modernidade a teoria perderia sua ligação com o evento sagrado, mas
ainda assim seria mantido o distanciamento com relação à experiência
cotidiana.
Resumindo, o pensamento metafísico, para Habermas, é
caracterizado como um sistema conceitual totalizador e auto-referente que,
ao pretender fundamentar todas as premissas a partir de si mesmo,
distanciou-se da experiência cotidiana, supervalorizando a teoria frente à
práxis.
Tal forma de pensamento passou a ser questionada através de
desenvolvimentos históricos do pensamento, denominados por Habermas
de motivos de pensamento pós-metafísico. O passo seguinte deste texto
consistirá em indicar tais motivos e, ao mesmo tempo, situar o papel que
Habermas postula para a filosofia.
Um dos acontecimentos responsáveis pela destruição do privilégio
atribuído à filosofia (metafísica) na esfera do conhecimento humano, diz
respeito à questão da fundamentação. Enquanto a metafísica fundamenta-se
numa racionalidade auto-refervente e organizadora dos conteúdos do
mundo, as ciências modernas e a teoria da moral, ao se tornarem
autônomas, recusaram este tipo de racionalidade, apoiando-se assim, na
112 Caroline Vasconcelos Ribeiro

racionalidade de seus próprios procedimentos. Sendo assim, a razão


totalizadora “encolheu-se” visto que a fundamentação na qual se apoiam as
ciências modernas e a moral, não provém de um sistema conceitual
abstrato, ao contrário, só é obtida a partir da confirmação empírica dos
dados contidos em seus enunciados. Este falibilismo das teorias científicas
estremeceram o privilégio da filosofia como ciência primeira, pois esta já
não pôde garantir seu status no sistema das ciências. Enfim:

Passa a valer como racional, não mais a ordem das coisas encontradas no próprio
mundo ou concebida pelo sujeito, nem aquela surgida dos processos de formação
do espírito, mas somente a solução de problemas que aparecem no momento em que
se manipula a realidade de modo metodicamente correto. (Habermas, 1984, 44)[grifo
nosso]

A razão perde seus atributos clássicos, não somente em função da


racionalidade de procedimentos, mas também, a partir de sua
destranscendentalização ocorrida em nome da finitude, da temporalidade e
da historicidade. Dimensões que surgem no século XIX com as ciências
histórico-hermenêuticas.
Habermas indica que ainda no decorrer do século XIX intensificou-
se a crítica contra a funcionalização das formas de vida e contra a auto-
compreensão objetivista da ciência e da técnica, o que, segundo ele,
desencadeou uma crítica severa à filosofia que comprimia tudo nas relações
sujeito-objeto. Operou-se então, a mudança do paradigma da filosofia da
consciência para o da linguagem, surgindo assim, uma nova base metódica
capaz de oferecer meios conceituais através dos quais seria possível analisar a
razão incorporada no agir comunicativo. Trata-se da guinada lingüística
que, segundo Habermas, libertou a filosofia das aporias das teorias da
consciência. (Habermas, 1984, 55-56).
Também o conceito forte de teoria, sustentado pela metafísica, foi
atingido em suas pretensões, quando o esclarecimento sobre os nexos entre a
teoria e a prática desencantou o pensamento metafísico da ilusão da
independência de suas premissas internas, fato que, segundo Habermas
(1984, 15), aconteceu a partir da radicalização do pensamento de Marx, do
pragmatismo, da psicologia do desenvolvimento de Piaget e da teoria da
linguagem de Vygotski.
O fim da metafísica segundo Habermas 113

Delineia-se assim, um novo quadro de pensamento, o qual a


filosofia metafísica não conseguiria mais conter ou abarcar com suas
molduras idealistas, com seu logocentrismo ou com seu total desprezo pelo
horizonte concreto do mundo da vida. Por conseguinte, não daria mais para
admitir esta filosofia como um pensamento conclusivo e integrador que
forneceria a medida para a interpretação da realidade. A complexidade do
real, marcada pela presença de diferentes subsistemas de saber, de formas de
vida, de crenças, de organizações sociais, forçou o pensamento a renunciar
as premissas ontológicas comuns de um mundo do ente racionalmente
ordenado.
Diante do fato de a filosofia ter se visto forçada a abandonar sua
pretensão de ser ciência primeira e de perder seu status perante o sistema das
ciências, Habermas, em Consciência Moral e Agir Comunicativo, se fez
interlocutor da seguinte questão: qual seria então a função que a filosofia
poderia ainda reclamar para si? (Habermas, 1990).
Como tentativa de resolver tal questão, Habermas indica que “a
mediação interpretadora entre o saber dos especialistas e a práxis cotidiana,
necessitada de orientação, é que pode dizer o que resta para a filosofia e qual
o seu alcance.” (Habermas, 1984, 27).
Ora, se à filosofia cabe o papel de mediadora, esta conclusão está
baseada na ideia de que existiriam dois campos de “saberes” diferentes,
sustentados por tipos diferentes de racionalidade e de ação. De um lado,
haveria o mundo da vida (Lebenswelt), caracterizado pela presença de um
saber pré-teórico, sustentado por uma racionalidade situada num agir
comunicativo de sujeitos que interpretam situações de vida a partir
processos intersubjetivos. De outro, um saber especializado e técnico,
característico da cultura dos experts, fundamentado nos pressupostos
científicos, prescindindo assim, de uma justificação metafísica e sustentado
por um agir-racional-com-respeito-a-fins. 1
Para que se faça necessário o papel do mediador é preciso que haja,
no mínimo, duas instâncias demarcadas e que se constate uma necessidade,
ou a simples presença, de um intercâmbio entre elas. Ao mesmo tempo,
para tanto, deve-se partir do princípio de que a terceira instância, ou

1
Habermas diferencia o agir-racional-com-respeito-a-fins do agir comunicativo presente no
mundo da vida, caracteriza aquele como a estrutura de exercício de controle da
racionalidade tecnológica. (Habermas,1983,320 e ss.)
114 Caroline Vasconcelos Ribeiro

instância mediadora, tenha autonomia e condições para realizar sua função.


Habermas parte deste fato. Para ele, o intercâmbio entre a cultura dos
experts e o mundo da vida caracterizar-se-ia pela persistente tentativa de
dominação da primeira instância sobre a segunda, no sentido de impor os
produtos de seu saber como as “verdadeiras” medidas para se compreender a
realidade. À filosofia, como terceira instância (supostamente autônoma),
caberia uma espécie de:

Promoção iluminadora dos processos de auto-entendimento de um mundo da vida


referido à totalidade, o qual precisa ser preservado da alienação resultante das
intervenções objetivadoras, moralizantes e estetizantes da cultura dos especialistas
(Habermas,1984, 27).

Vale ressaltar que esta promoção iluminadora que caberia à filosofia


não abrangeria as pretensões totalizadoras da metafísica, ao invés, consistiria
apenas numa instância crítica, visto que na conjuntura atual a filosofia não
estaria mais de posse de “uma teoria afirmativa da vida correta.” (Habermas,
1984, 60).
Neste sentido, a filosofia, na sua função de intérprete, não poderia
reclamar para si perante a arte, a ciência e a moral – sendo uma ciência
dentre outras –, um acesso privilegiado a intuições especiais, pois seu saber
seria apenas mais um saber falível.
Diante do exposto somos forçados a formular as seguintes questões:
Por que então, caberia à filosofia e não a outra ciência qualquer, este papel
de mediador? O que diferenciaria, para Habermas, a filosofia das outras
ciências a ponto de torná-la apta a este papel mediador?
Habermas reivindica a dimensão pré-reflexiva do common-sense do
mundo da vida como ponto de partida necessário para o processo de
reconstrução racional, a ser realizado pela filosofia. Faz tal reivindicação
sustentando a ideia de que o mundo da vida seria “meio irmão da filosofia”
e que a “filosofia move-se no círculo do mundo da vida, numa relação com
a totalidade do horizonte fugidio do saber cotidiano”. (Habermas, 1984,
44). Ao mesmo tempo, afirma que a filosofia se opõe também ao saber pré-
reflexivo, através da “força subversiva da reflexão, da análise crítica,
esclarecedora, fragmentadora.” (Habermas, 1984, 44). Então, é:

Devido a esta relação íntima e, ao mesmo tempo, rompida, que a filosofia se


adequa a uma função aquém do sistema das ciências - ao papel de intérprete, que
O fim da metafísica segundo Habermas 115

faz mediação entre as culturas especializadas da ciência, da técnica, do direito e da


moral, de um lado, e a comunicativa cotidiana, de outro - de modo semelhante ao
que acontece na crítica da literatura e da arte, que realizam a mediação entre a arte
e a vida. (Habermas, 1984, 44)[grifo nosso]

Dentre todas as ciências, a filosofia estaria mais apta para o papel de


mediador por ainda deter-se nas veredas do mundo da vida e, segundo
Habermas, sem renunciar sua relação com o todo. Contudo, trata-se agora
do todo do horizonte fugidio do saber cotidiano, que escaparia à pretensão
de total captura teórica. Além disso, a filosofia estaria aquém do sistema das
ciências, operando com um tipo de razão erradicada na própria prática
comunicativa cotidiana. Sendo assim, ao constatar a presença desta delicada
relação entre a filosofia e o mundo da vida – relação que mistura intimidade
e ruptura – e, ao mesmo tempo, identificar certa autonomia em relação ao
sistema das ciências, Habermas elege a filosofia como a ciência, dentre
outras, capaz de cooperar, exercendo o papel de mediador de sentido e
intérprete.
Recapitulando, teríamos, segundo a análise habermasiana, o
seguinte quadro:
a. Uma filosofia conformada com a perda de seus privilégios
metafísicos e, ao mesmo tempo, supostamente disposta a atualizar sua
relação com a totalidade em seu papel de intérprete voltada para o mundo
da vida. Um saber sem pretensões totalizantes e auto-referentes, apenas
disposto a cooperar. Trata-se do abandono da pretensão de razão com que o
pensamento filosófico veio ao mundo.
b. Um mundo da vida, como uma dimensão demarcada e
constituída por uma espécie de reservatório de auto-evidências e “saberes”
do senso comum, fruto de interpretações intersubjetivamente
compartilhadas. Ao mesmo tempo, uma prática cotidiana que necessitaria
de orientação, pois estaria exposta às intervenções impostas pela cultura dos
experts.
c. Uma outra dimensão de saber (cultura dos experts), caracterizada
pela produção de conhecimentos científicos especializados ao nível da
estética, da tecnologia, do direito, da economia, enfim, no campo das
ciências. Esta cultura de especialistas, por sua vez, tenderia impor seu saber,
seu discurso e seus produtos à prática cotidiana.
116 Caroline Vasconcelos Ribeiro

d. Um papel para a filosofia: “A esta cabe cooperar com as ciências


reconstrutivas, iluminando as situações nas quais nós [do mundo da vida]
nos encontramos.” (Habermas, 1984, 182)
Tendo em mãos este quadro, Habermas (1990) se pergunta como
seria possível abrir as esferas da ciência, da moral e da arte encapsuladas em
culturas de especialistas e ligá-las às tradições do mundo da vida sem lesar
sua racionalidade autônoma, de tal modo que os fatores dispersos da razão
se reencontrem na prática comunicativa cotidiana para formar um novo
equilíbrio. Este questionamento abre veredas para o anuncio de um projeto
(ou um ideal) de uma sociedade emancipada por uma razão
intersubjetivamente estabelecida (razão comunicativa), liberta da
racionalidade instrumental e com uma suposta capacidade de reconciliação
consensual. Para Habermas (1984, 182) este seria “um projeto situado
historicamente, ao mesmo modo que a razão comunicativa, que o inspira.”
Tal projeto se fundamentaria na “[...] ideia de uma intersubjetividade intacta
capaz de possibilitar um entendimento não coagido dos indivíduos no seu
relacionamento recíproco, bem como a identidade do indivíduo que se
entende consigo mesmo de modo não coagido.” (Habermas, 1984, 182).
Aqui vale perguntar: ao levantar a bandeira deste histórico projeto
equilibrador da sociedade, Habermas não estaria, de certa forma,
trivializando a pujança dos conflitos histórico-sociais em nome de um ideal
fruto de uma “potente” razão reconciliadora? E o caráter insuperável das
antinomias que definem a nossa condição histórica, não estaria sendo
esquecido, em nome de um possível equilíbrio a ser realizado por uma livre
deliberação de todos os interesses, a partir de uma decisão racional
consensual?
Com o intuito de lançar luz as indagações acima, recorremos ao
seminal artigo de Michel Löwy, intitulado A Escola de Frankfurt e a
Modernidade – Benjamin e Habermas. No referido artigo, Löwy (1992)
afirma:

A utopia neo-racionalista de Habermas é sedutora, mas baseada em ilusões


tipicamente liberais no que se refere às virtudes miraculosas da ‘discussão pública e
racional dos interesses’, da produção consensual de ‘normas ético-jurídicas’ etc.
Como se os conflitos de interesses e de valores entre classes sociais, ou a ‘guerra dos
deuses’ na sociedade atual, entre posições normais, religiosas ou políticas
antagônicas, pudessem ser resolvidos por um simples paradigma de comunicação
intersubjetiva, de livre discussão racional. (Löwy, 1992, 126)
O fim da metafísica segundo Habermas 117

O que Löwy (1992, 124) pretende destacar em sua análise do que


ele denomina de “utopia neo-racionalista de Habermas” é que tal utopia
está baseada em um paradigma lingüístico. Neste sentido, o autor nos alerta
que apenas do ponto de vista de uma utopia futura, de uma sociedade
emancipada, sem classes nem opressão, este modelo lingüístico de
Habermas aparece como legítimo.
Não obstante a possibilidade de fecundas contestações à
denominada “utopia neo-racionalista de Habermas”, vale salientar que levar
a cabo tal possibilidade nos faria escapar do propósito maior deste artigo, a
saber: o propósito de examinar, à luz de Heidegger, a pertinência ou não em
se anunciar o fim da metafísica a partir de argumentos expostos por
Habermas. Neste sentido, torna-se imprescindível perguntar se o quadro
formulado pelas análises habermasianas acerca do fim da metafísica é
suficientemente fundamentado a ponto de autorizá-lo a noticiar a passagem
para um pensamento pós-metafísico. Guiados por tal indagação passamos
para o último tópico de nosso artigo.

3 Sobre o fim da metafísica e o surgimento de um pensamento pós-


metafísico
Será que poderíamos afirmar que, com o surgimento dos chamados motivos
pós-metafísicos, a metafísica teria encerrado sua “era” enquanto modo de
pensar?
Com tal questão pretendemos indicar, tendo como guia a filosofia
de Heidegger, que talvez seja precipitado falar de um pensamento pós-
metafísico como o marco da supressão definitiva da metafísica. Contudo,
não se trata aqui de afirmar que estaríamos ainda sob o cânone da
“Doutrina das Ideias”, desprezando as possíveis mudanças, apontadas por
Habermas. O que se pergunta é se tais mudanças são suficientes para
autorizar o anuncio da passagem para um outro modo de pensar,
nomeadamente, o pensar pós-metafísico.
Ao falar do “fim” da metafísica, Habermas refere-se a motivos de
pensamento que minaram este modo de pensar. Dentre eles, a nosso ver,
um merece ser destacado e analisado: a relação que o autor estabelece entre
ciência e metafísica.
118 Caroline Vasconcelos Ribeiro

Analisemos, então, a relação supracitada. Habermas, ao argumentar


que a metafísica se viu exonerada dos privilégios que outrora detinha, indica
que isto se deve também ao fato de as ciências modernas deixarem de se
servir da racionalidade auto-referente do sistema metafísico, baseando-se
assim, na racionalidade de seus próprios procedimentos. Ao constatar que as
ciências modernas fundamentam-se não num sistema conceitual abstrato,
mas na confirmação empírica de dados, Habermas (1984, 44) assevera que
somente a solução de problemas que aparecem no momento em que se
manipula a realidade de modo metodicamente correto, passa a valer como
racional. Em suma: para a racionalidade procedimental das ciências
interessa a solução exitosa de problemas com vistas a uma intervenção
efetiva na realidade. (Oliveira, 1993).
O que pretendemos colocar em questão não é a indicação que a
ciência moderna se baseia numa racionalidade procedimental e não abstrata,
muito menos o argumento que, para esta ciência, é a manipulação correta
da realidade que equivale ao racional, ao verdadeiro. O que almejamos
questionar é se esta argumentação ao invés de revelar uma possível ruptura
da ciência com a metafísica, com o possível estremecimento desta última,
não estaria a serviço de tornar exposta a intrínseca relação entre as duas.
Sendo assim, a pergunta que se impõe é a seguinte: a caracterização
habermasiana da ciência é suficiente para afirmar-lhe como antípoda da
metafísica?
Com o intuito de levar a cabo a indagação acima, julgamos que
uma investigação mais detida acerca das relações entre a ciência moderna e a
metafísica impõe-se como caminho necessário. Como guia para tal
percurso, utilizaremos o pensamento de Heidegger.
Segundo Heidegger, em Ciência e Meditação, a ciência moderna,
para assegurar a pujança de seus procedimentos, esforça-se em separar seus
objetos – “regiões do real” – enquadrando-os em disciplinas especiais, em
especialidades. Deste modo, “todo novo fenômeno numa área da ciência
será processado até enquadrar-se no domínio decisivo dos objetos da
respectiva teoria” (Heidegger, 2002a, 49). Para Heidegger, o que não se
submete a este enquadre, não tem o status de objeto e conseqüentemente,
de real. Assim segue resoluta a pesquisa científica, reduzindo a realidade a
uma objetividade processável, desnudável a partir de procedimentos
metodológicos seguros.
O fim da metafísica segundo Habermas 119

Em Que é uma coisa?, Heidegger (1992) versa sobre a força da


edificação da ciência e sua imposição como “padrão de medida para o
saber”, alertando-nos para o fato de que tanto o cientista quanto o homem
comum que goza de seus feitos, pouco ou nada sabem sobre o que este
ofício pressupõe, sobre suas bases históricas. Então, afirma:

Podemos admirar e utilizar os progressos das modernas ciências da natureza e da


técnica, sem saber como tal aconteceu – por exemplo, sem saber que a ciência
moderna só se tornou possível num confronto, que partiu do primeiro entusiasmo
do questionar, realizado com o saber antigo, com os seus conceitos e princípios.
Não precisamos saber nada sobre isso e podemos pensar que somos homens com
um tal poder de dominação, que esse domínio nos poderia ter sido dado pelo
Senhor, enquanto dormíamos. (Heidegger, 1992, 48)

O franco tom de ironia endereça-se àqueles que julgam a hegemonia


dos modos científicos de apropriação e dominação do real como uma coisa
natural, evidente em si mesma e sobre a qual “não se deve pensar
mais”(Heidegger, 1992, 47). Contrapondo-se aos que não se incumbem de
pensar a proveniência disto que assim se configura, Heidegger enfatiza o
enlace necessário entre a efetivação da ciência moderna e o “primeiro
entusiasmo do questionar realizado com o saber antigo”, em outros termos,
atrela o que hoje conhecemos como procedimento científico ao princípio da
filosofia ocidental, enquanto sua condição de possibilidade. Como então, se
pode estabelecer esta conexão entre a filosofia e a ciência? De onde provém o
enlace entre o imperativo de ater-se ao ente como “algo” que deve ser
processado em informações, catalogado e manipulado com fins utilitários e a
filosofia? Se, para Heidegger (1978, 54), “todo pensar científico é uma forma
derivada e, como tal, consolidada de pensamento filosófico”, como se
poderia evidenciar esta derivação?
Certamente poderíamos inventariar, baseados no pensamento
heideggeriano, uma gama de concepções filosóficas que, historicamente,
construíram o solo sobre o qual se ergueu a ciência moderna. Para Heidegger
já na noção platônica de verdade como correção (Richtigkeit) da visão a partir
de um modelo exemplar 2 e na concepção aristotélica de substância enquanto

2
Em Platons Lehre von der Wahrheit Heidegger (1976a,231), ao analisar os estágios que
marcam a caminhada do prisioneiro desde a escuridão da caverna até a luz do sol,
interpreta a paideia platônica, descrita no Livro VII da República, como a formação
120 Caroline Vasconcelos Ribeiro

categoria primeira do pensamento 3 , podemos encontrar a condição de


possibilidade para a futura germinação da ciência moderna. Entretanto,
devido ao escopo deste artigo, julgamos ser pertinente enfocar o âmbito da
filosofia que mantém uma estrita relação com o modo como a ciência se
configura na modernidade. Trata-se da metafísica moderna, nomeada por
Heidegger, de metafísica da subjetividade.
A necessidade de entendimento desta metafísica da modernidade nos
encaminha, necessariamente, à investigação acerca do pensamento de
Descartes.
Segundo Heidegger, em O que é isto – a filosofia?, a pergunta
cartesiana por excelência não reverbera simplesmente a tradicional pergunta
da filosofia antiga: “O que é o ente, enquanto é?. Descartes pergunta,

(Bildung) da capacidade de correção (Richtigkeit) do olhar, acentuando que Platão institui a


idea como soberana diante de tudo que se apresenta, se desvela. Na medida em que este
olhar deverá se tornar capaz de corresponder ao puro aspecto, a verdade como correção
(orthotés) passa ser a marca da atitude humana para com os entes. Isto autoriza Heidegger
afirmar que Platão também inicia o “Humanismus”, entendido no sentido amplo como um
pensamento que circula em torno do homem, no qual tudo que é se remete
necessariamente a ele. Com Platão, assevera Heidegger, a humanidade assume um lugar
dotado de autoridade sobre os entes. Ao longo da historia do pensamento ocidental, este
lugar será cada vez mais alargado, cada vez mais dotado de poder e soberania. Veremos
mais adiante que o ápice da instalação desta autoridade será a metafísica moderna que, por
sua vez, constituirá o solo para o erguimento da ciência moderna.
3
A substância é o alvo último intentado pela filosofia aristotélica por ser o que
necessariamente existe na dinâmica do real, o que nele deve ser visado, apreendido. Cabe a
esta filosofia interpelar o real acusando, denunciando a estrutura necessária do ser dos
entes. Este modo de interpelação diz-se, para os gregos, do ato de categorizar. O que
significa “[...] dizer na cara dos entes o que, como ente, cada um deles é, ou seja, deixar e
fazer todos verem os entes em seu ser.” (Heidegger,1995,88). Vários são os modos de
predicação que nos possibilita compreender o ente em seu ser, porém, todos estes modos
estão subordinados à substância primeira. Em Introdução à Metafísica, Heidegger (1978)
afirma que a substância assim entendida resguarda a possibilidade de conhecer tanto a
qüididade, expressa pela forma das coisas, ou seja, pelo que a coisa realmente é, como
também, de se pensar o hypokeimenon, o subjectum que pré-existe como substrato para a
atribuição de predicados e determinações. Neste sentido, o filósofo, ao esclarecer o possível
legado que o pensamento moderno herda da ontologia clássica, enuncia que “essa
determinação do ser do ente caracteriza a maneira em que o ente se contrapõe a todo
apreender e enunciar.” O hipokeimenon aristotélico, diz Heidegger, “é o precursor da
interpretação posterior do ente como objeto” (Heidegger,1978, 212). Veremos, logo a
seguir, que a noção de objeto é fundamental para o estabelecimento e consolidação da
ciência na modernidade.
O fim da metafísica segundo Habermas 121

prioritariamente, pelo ente no sentido do ens certum, do ente verdadeiro.


Perguntar pelo ente significa aqui, conhecê-lo enquanto objeto de uma
representação (Heidegger, 1999a, 22). O sujeito, enquanto res cogitan, é
visto como o fundamento de compreensão da realidade (res extensa),
transformando a certeza no critério de verdade. Assim, através da emissão de
juízos verdadeiros, o sujeito irá determinar o que são as coisas, isto é, os
entes, atendo-se a estes, enquanto objetos, com o intuito de manipulá-los e
dominá-los. 4 Enquanto consciência, enquanto pensamento, o sujeito re-
apresenta o ente a partir de algo que é prévio, a partir de sua própria
subjetividade:

Assim, o ego se transforma no sub-ectum por excelência, e, desta maneira, a


essência do homem penetra pela primeira vez na esfera da subjetividade no sentido
da egoidade. Do acordo com esta certitudo recebe o dizer de Descartes a
determinação de um clare et distincte percipere. A disposição afetiva da dúvida é o
positivo acordo com a certeza. Daí em diante a certeza se torna a medida
determinante da verdade. A disposição afetiva da confiança na absoluta certeza do
conhecimento a cada momento acessível permanece o páthos e com isso a arché da
filosofia moderna. (Heidegger, 1999a, 22)

Visto que tal filosofia está fundamentada na certeza advinda do


cogito, isto é, que seu próprio fazer-se enquanto tal constitui-se como ação do
sujeito que representa, Heidegger a denomina de metafísica da subjetividade.
Em A superação da metafísica, ele nos lembra o quanto o ego cogito é imposto
e previamente consolidado como algo inquestionável e o objeto, por sua vez,
é entendido como “algo” que se dá “apenas onde o homem se torna sujeito,
onde o sujeito se torna ego e o ego, cogito”(Heidegger, 2002b, 73). Sendo
assim, tudo o que se manifesta e “é” deve subordinar-se ao imperativo da
clareza, segurança e ausência de dúvida. Mediante estes imperativos, o
pensamento é enrijecido e emoldurado pela pretensão de certezas e o ente,

4
Julgamos pertinente trazer uma esclarecedora passagem da sexta parte do Discours de la
Méthode: “[...] il est possible de parvenir à des connaissances qui soient fort utiles à la vie, et
qu'au lieu de cette philosopie spéculative qu'on enseigne dans les écoles, on en peut trouver
une practique pour laquelle, conaissant la force et les actions du feu, de l'eau, de l’áir, des
astres, des cieux et de tous les autres corps que nous environnent, aussi distictement que
nous connaissons les divers métiers de nous arisan nous les poirrions emploiyer en même
façon à tous les usages auxquels ils sont propes, et ainsi nous rendre maîtres et possesseurs
de la nature” (Descartes,1987).
122 Caroline Vasconcelos Ribeiro

por sua vez, é definitivamente reduzido à condição de objeto representado


pelo soberano sujeito do conhecimento. 5
Doravante o homem se torna o único e verdadeiro subjectum, se
torna o ente sobre o qual todos os entes se fundam, se torna o centro de
referência que fixa e domina o ente, na qualidade de objeto. Nada escapa ao
imperativo da representação, todo fenômeno humano ou não-humano é
encaixado neste molde, tudo advém enquanto objeto para um sujeito
representante, até mesmo as próprias ações humanas. Somente o que é assim
concebido, reconhecido como tal, alcança a condição de algo real. Em outras
palavras: o ente deve advir enquanto objeto representado, pois apenas “é um
ente à medida que ele é estabelecido e fixado pelo homem na representação”
(Heidegger, 2006, 117). A pesquisa científica, por sua vez, dispõe do ente
desta maneira, desdobra-se neste território agenciado e aperfeiçoado pela
filosofia, em particular, a filosofia moderna. Os procedimentos científicos
incumbem-se de planificar, calcular, disponibilizar, catalogar, experimentar,
legislar, manipular, computar, conceituar, enfim, de se dispor dos entes num
comprometimento silencioso com sua determinação enquanto objetividade.
A ciência se funda num determinado setor de objetividade, se constitui e se
especializa, interpelando os entes como objetos disponíveis.

5
Numa extensa nota de rodapé do texto L’époque des “conceptions du monde” Heidegger
(2006) se debruça sobre o termo representação acentuando que Vor-stellung tem a presença
do verbo stellen que significa “localizar algo”, “por de pé” e da preposição vor que tem o
sentido de “diante de, em frente a”. Deste modo, para Heidegger, o verbo vorstellen
(representar), tem a significação de “por algo diante de si, a partir de si, se assegurando
disso, confirmando isso e garantindo o que é assim fixado.” Este garantir e fixar, prossegue
o autor, “deve ser um calcular, pois apenas a calculabilidade garante uma certeza antecipada
e constante do repraesentandum disso que deve ser representado”. Quer dizer, a
representação, a partir da ótica heideggeriana, não é uma mera apreensão do que se
apresenta, do que está aí, trata-se antes de um “procedimento, que procede desde si mesmo,
de uma investigação em um setor assegurado, devendo o setor mesmo ser
assegurado”.(Heidegger, 2006). Nos Seminários de Zollikon Heidegger enuncia que o que
está implicado na eleição da representação como índice primevo da relação com o real, é o
asseguramento de sua objetificação (Vergegenständlichung).(Heidegger, 2001,125). O
pensador Michel Haar, em Heidegger et l´essence de l´homme afirma que a representação é
uma procura indiscreta e indiscriminada que visa apossar-se totalmente do ente pela
racionalidade calculante. Segundo ele, para Heidegger, tanto o método cartesiano, quanto a
busca kantiana pelas condições de possibilidade do conhecimento em geral, quanto a
vontade de poder nietzscheana são figuras da agressividade crescente da representação.
(Haar,1990)
O fim da metafísica segundo Habermas 123

Diante da expressa necessidade de esclarecer a relação estabelecida


entre ciência e metafísica, podemos afirmar, com Heidegger (2006, 114),
que “estritamente falando, só há ciência como pesquisa a partir do momento
em que a verdade se torna certeza sobre a representação.” Quer dizer: a partir
do momento em que o homem é investido do poder de impor, via
racionalidade, o aparecimento do ente enquanto objeto. Só assim o cientista
pode ter assegurada a primazia dos seus rigorosos procedimentos
metodológicos sobre o real, sentindo-se, então, autorizado a gerenciá-lo e
manipulá-lo. Para Heidegger este é o “fundo metafísico” sobre o qual
repousa a ciência moderna. Este solo sobre o qual se edificam as ciências
positivas, segundo ele, foi germinado em Platão e solidificado com o
pensamento cartesiano, na medida em que este “imobilizou, decididamente”
o ente na objetividade e estabeleceu a “verdade como correção da
representação.” Ainda segundo Heidegger, “a metafísica moderna inteira,
incluindo Nietzsche, se manterá doravante no interior da interpretação do
ente e da verdade iniciada por Descartes” 6
Desde a perspectiva heideggeriana, podemos afirmar que a
metafísica moderna consolida a vigência do real como objetidade
(Gegenständlichkeit) e que a ciência moderna, por sua vez, é herdeira deste
pressuposto, na medida em que se configura como um procedimento que
investiga e manipula o real, reduzido à esta objetidade. Deste modo:

A ciência corresponde a esta regência objetivada do real à medida que, por sua
atividade, ex-plora e dis-põe do real na objetidade. A ciência põe o real. E o dis-
põe a pro-por-se num conjunto de operações e processamentos, isto é, numa
seqüência de causas aduzidas que se podem prever. Desta maneira, o real pode ser
previsível e tornar-se perseguido em suas conseqüências. É como se assegura do
real em sua objetidade. Desta decorrem domínios de objetos que o tratamento
científico pode, então, processar à vontade. (Heidegger, 2002a, 48)

Ora, a partir das considerações heideggerianas expostas até o


momento não podemos sustentar, sem desconforto e dificuldades, o
argumento habermasiano que coloca a ciência moderna e sua racionalidade
procedimental como antípodas da metafísica moderna. Desde o ponto de
vista heideggeriano, a ciência efetiva sua marcha sobre um “território” de
garantidos pressupostos metafísicos: a objetidade (Gegenständlichkeit) como

6
Todas as citações deste parágrafo encontram-se em Heidegger, 2006,114.
124 Caroline Vasconcelos Ribeiro

modo único de presença das coisas e a representação como via hegemônica


de acesso à realidade. A racionalidade de procedimentos que Habermas nos
aponta como exemplo de libertação da ciência em relação ao sistema
metafísico não é estrangeira a estes pressupostos, ao invés, representa a
consolidação dos mesmos. A redução de tudo o que há a uma objetidade
processável é a condição de possibilidade para a ciência executar rigorosos
procedimentos de pesquisa, tendo em vista a infindável manipulação da
realidade. Sendo assim, por mais que os experimentos da ciência tratem de
fenômenos impensáveis e ininteligíveis ao âmbito filosófico, por mais que
seus resultados eficazes reforcem a ideia de uma incomensurável distância
existente entre este procedimento e a abstrata filosofia, devemos, segundo
Heidegger, admitir que filosofia e metafísica não são denominações
bibliotecárias que se enclausuram em linhas quando se fecham os livros,
muito menos mera diversão de uma elite desocupada. Ao consolidar sua rota
de progresso em relação ao controle e manipulação do real, a ciência
moderna pressupõe o pré-domínio inabalável da objetividade, horizonte
aberto e estabelecido pela filosofia. Diante do exposto fica inteligível a
assertiva de Heidegger que enuncia que o fazer científico é uma forma
derivada e consolidada de pensamento filosófico.
O cientista moderno executa a tarefa de investigar e intervir sobre o
que já está antecipadamente decidido como realidade – o domínio dos
objetos – e sequer percebe o caráter subjacente desta configuração. 7
Obviamente, diz Heidegger, os cientistas podem “[...] sem dúvida, negar sua
procedência, não podem, contudo, rejeitá-la. Pois a pretensão de
cientificidade das ciências é a certidão que atesta seu nascimento da
filosofia.” (Heidegger, 1999b, 73).
Com base nas discussões desenvolvidas até aqui, cabem as seguintes
questões: Será que a metafísica moderna foi soterrada? Ou será que, ao nos
depararmos com uma concepção de homem como “mestre possuidor da
natureza”, cujo ofício é a busca de certeza e previsibilidade na construção de
conhecimentos, não estaríamos diante das “velhas” categorias e pretensões da
metafísica moderna? Seria factível afirmar que, na contemporaneidade, não
estaríamos mais diante do pensamento que visa dominar o real e lidar com o
desconhecido com vistas à transformá-lo em certeza subjetiva? Ao nos

7
Sobre a herança filosófica da qual a ciência moderna se serve, ver maiores considerações em:
Ribeiro, 2008; Loparic, 2001; Heidegger 2001
O fim da metafísica segundo Habermas 125

depararmos com o atual império da tecnologia poderíamos negar que, de


maneira implícita, este império acena para domínio racional da natureza?
Para Heidegger (2002c) o império da técnica na contemporaneidade
atesta a culminância da manifestação da metafísica do sujeito, que começa
com Descartes. A essência da técnica é entendida pelo filósofo enquanto um
modo de desabrigar o real mobilizado pelo intuito de fazê-lo servil aos
imperativos da racionalidade que planifica e calcula. 8 Neste sentido, Gilvan
Fogel, em Martin Heidegger, et coetera e a Questão da Técnica, argumenta que
testemunhamos na contemporaneidade uma busca desenfreada por
conquistas, calcada numa “gramática metafísica” que categoriza a realidade
estabelecendo relações de causa e efeito, no sentido de esgotar, através da
racionalidade, todas as possibilidades do real. A tecnologia (techne + lógos),
afirma Fogel, é o corolário desta forma de pensamento que transforma o real
em objeto. Em outras palavras, transforma a natureza em matéria-prima e o
mundo em empreendimento financeiro. O lógos que rege esta forma de
techne é advento do cogito cartesiano. 9 Vale lembrar que, com tal advento,
pensar significa representar, ou seja, re-apresentar à consciência tudo o que se
apreende, desde a ótica da objetividade, do controle e apoderamento. Assim,
na palavra tecnologia:

8
Quando Heidegger fala em técnica ou tecnologia, não se refere ao arsenal de máquinas
instaladas à nossa volta. O seu olhar é para a essência da técnica, não capturável pela ação
de técnicos e sim pela investigação filosófica. Em síntese, a essência de técnica constitui-se
num modo de desvelar tudo o que há como estoque de reserva sempre disponível ao
domínio procedimental. (Heidegger, 2002c)
9
Torna-se necessário destacar a radical diferença entre o modo grego e o modo moderno de
conceber a techne. A techne, para os gregos antigos, é um saber não tematizado que se
concretiza numa ocupação manual com as coisas, é um modo de produzir (poiesis) que se
funda num conceder ao descoberto “aquilo” que antes ainda não tinha aparecido. Mas este
produzir não vai de encontro ao que se mostra encoberto com o intuito de impor-lhe
“algo” que sobrepuje a sua essência, ao invés, em obediência à própria “natureza” da coisa
material, deixa a mesma ser o que já é, ou seja, oferece, inaugura “algo” que não se
mostrava, mas que essencialmente compunha as possibilidades do material. A techne grega
é, portanto, um saber da mão, onde “mão” é menos um órgão de preza e destreza, do que
uma abertura de possibilidades que se instauram na execução da ocupação, do fazer
artístico, da lida com as coisas do real. Assim como a techne grega, a techne moderna é um
modo de desocultamento. Entretanto, no caso da primeira não se localiza uma atitude de
agressão ao que se mostra, à physis, antes uma harmonia. Já na modernidade o
desocultamento da techne se dá sob a forma de domínio, apoderamento e manipulação do
que se mostra. (Heidegger, 1998). Sobre este tema, conferir também: Beaini, 1986.
126 Caroline Vasconcelos Ribeiro

acontece que o logos da representação se torna o projeto, o sentido orientador de


toda techne possível. O que não for esta técnica é pré ou sub-técnica - isto é, não é
técnica verdadeira, certa e segura. Este fenômeno, que é a arché e o télos modernos,
definem a modernidade e a contemporaneidade ocidentais e perfaz o fenômeno de
europeização planetária ou ocidentalização da Terra. (Fogel, 1986, 47)

Desde a perspectiva aqui apresentada, a tecnologia se impõe não só


como excelência na produção de máquinas e aparelhos, mas como sentido
orientador da contemporânea condição humana, e, na medida em que o
pensamento moderno que a sustenta dita o imperativo do progresso,
assistimos uma acelerada fabricação de bens para o consumo, com a
finalidade de proporcionar ao homem confortos e garantias que encobrem a
finitude e indigência da existência.
Ora, se o lógos da tecnologia, enquanto cartesiano, traz consigo
justamente a compreensão de realidade como objetidade
(Gegenständlichkeit), como poderíamos falar do fim da metafísica se, em se
fazendo ou realizando esta tecnologia, o que estaria insistentemente se
expondo e se concretizando, seria justamente este lógos que a ela sustenta?
Se o homem contemporâneo se entende como aquele que exerce
um domínio sobre a totalidade do planeta, se lida com os entes
objetificando-os e com o desconhecido tentando transformá-lo em certeza
subjetiva, podemos dizer que estamos salvos dos grilhões da filosofia da
subjetividade, da metafísica moderna?
Heidegger nos alerta para a impossibilidade de se afirmar
tal coisa na medida em que reconhece o domínio da técnica como a
dimensão fundante da nossa época. Ou seja, segundo ele, com o fenômeno
da técnica a metafísica atingiu suas possibilidades supremas. Este argumento
pode ser constatado a partir da seguinte afirmação:

O que agora é vai sendo caracterizado pela dominação de essência da técnica


moderna, dominação que se apresenta já em todas as esferas da vida, através dos
múltiplos sinais que podem ser nomeados: funcionalização, perfeição,
automatização, burocratização, informação. Assim, como chamamos de biologia a
representação do que é vivo, assim pode ser chamada de tecnologia a apresentação
e aperfeiçoamento do ente perpassado pela essência da técnica. A expressão pode
servir como a caracterização da metafísica da era atômica (Heidegger, 1999c, 153)
O fim da metafísica segundo Habermas 127

Ao enunciar que podemos denominar de tecnologia “a apresentação


e aperfeiçoamento do ente perpassado pela essência da técnica”, Heidegger
visa esclarecer que, na era atual, a técnica se impõe como modo hegemônico
de ater-se ao real enquanto objetidade incondicionalmente disponível. No
fenômeno contemporâneo da tecnologia concretiza-se a racionalidade
orientada para fins de manipulação e cálculo. Trata-se, como diz Heidegger
(2002c), de um ataque violento que obriga tudo o que há se revelar como
algo disponível para uma racionalidade cujo poder se faz insaciável. O
desenvolvimento desta linha investigativa autoriza ao filósofo afirmar que a
tecnologia é a metafísica da era atômica, ou seja, da era atual.
Se há então uma determinada compreensão metafísica subjacente a
este domínio da técnica – que permeia e determina os modos de existir do
homem – não poderíamos entender a metafísica como um pensamento
restrito aos círculos de intelectuais e à academia filosófica, isto é, como um
pensamento além (distante), sem implicações nas variadas esferas da vida
humana. Deste modo, ao invés de falarmos do fim da metafísica como a
superação total deste modo de pensar, não poderíamos, ao contrário, indicar
que acontece na contemporaneidade uma espécie de radicalização desta
filosofia que, por sua vez, ramificou-se, instalando-se “silenciosamente” nas
ciências?
Em O fim da filosofia e a tarefa do pensamento Heidegger (1999b)
afirma que, na presente época, a metafísica atingiu o cume de suas
possibilidades dissolvendo-se na proliferação das ciências. Com este
argumento, nos apresenta uma concepção muito peculiar da palavra “fim”.
Ao nos falar do fim da filosofia, Heidegger diz intencionar falar de
acabamento da filosofia, mas não no sentido de sua aniquilação. Visando
esclarecer a maneira como concebe a palavra “fim” (Ende) o autor recorre ao
expediente da análise etimológica desta palavra e assevera que, no alemão
arcaico, Ende remete ao sentido de Ort (lugar). Por conseguinte, ao falar do
fim da filosofia Heidegger quer enunciar o lugar para onde converge toda a
história da metafísica, ou seja, o lugar onde se dá toda a sua culminância. O
acabamento da filosofia enquanto metafísica se dá na medida em que este
saber encontra seu lugar nas ciências tecnicizadas. Para Heidegger, a
filosofia metafísica tem seu acabamento dissolvendo-se nas ciências.
Ao nos depararmos com o caráter técnico-científico-industrial que
marca o modo hegemônico de habitação do homem no mundo não
128 Caroline Vasconcelos Ribeiro

podemos assegurar que os questionamentos históricos à tradição metafísica


foram suficientes para considerar-lhe como “algo” ultrapassado, como um
modo de pensar que não está mais na ordem do dia, como um modo de
compreender a realidade que foi descartado por não conseguir mais adesões.
Os estremecimentos aos imperativos do pensar metafísico, nomeados por
Habermas de motivos de um pensamento pós-metafísico, podem ter
operado crises impactantes na tradição filosófica, entretanto, acreditamos
que daí não se segue que se possa asseverar que a metafísica se deixa descartar
como se fosse apenas um sistema de opiniões. (Heidegger, 2002b).
Poderíamos então, como supõe Habermas, falar de uma filosofia
contemporânea conformada com a perda dos privilégios que historicamente
caracterizaram a metafísica? Mais que isso: poderíamos anunciar, com
Habermas, a passagem para um pensamento pós-metafísico?
Enquanto Habermas se faz arauto da supressão do pensamento
metafísico e da instauração de um pensamento pós-metafísico, Heidegger
nos indica que a tecnologia, não só como excelência na produção de
máquinas e aparelhos, mas enquanto modo de pensar e agir sobre a
realidade, impõe-se como sentido orientador da contemporânea condição
humana, reverberando assim, o pensamento metafísico em seu acabamento,
isto é, em suas possibilidades supremas. Por conseguinte, a concepção
metafísica de realidade continuaria regendo a nossa forma de agir no
mundo. Justamente aquela concepção que Habermas anuncia seu fim ao
nos asseverar o total estremecimento da filosofia que comprimia tudo nas
relações sujeito-objeto (Habermas, 1984, 53).
É preciso esclarecer que não pretendemos, com nossa
argumentação, negligenciar as diversas e contundentes críticas à
modernidade e à metafísica realizadas em diversos campos de saber.
Pretendemos menos ainda trivializar a capacidade de impacto destas críticas.
O próprio Heidegger dirigiu, incansavelmente, críticas severas às
concepções modernas de mundo e de sujeito, o que resultou numa
concepção inaugural de homem enquanto Dasein, cujo primitivo modo de
ser no mundo não se funda na representação, mas na compreensão de ser na
qual este ente sempre se move. Vale ressaltar que uma das características
inequívocas de Ser e Tempo é uma abordagem do ente humano que escapa
às categorias herdadas da metafísica: animal racional, ego cogito, espírito,
sujeito transcendental, etc. Nesta obra, o autor escolhe o termo Dasein –
O fim da metafísica segundo Habermas 129

que literalmente significa “ser-aí” – “para reunir numa só palavra, tanto a


relação do ser com a essência do homem, como também essa referência
fundamental do homem à abertura (“aí”) do ser enquanto tal”. (Heidegger,
1999e, 58). Tal escolha não se deve a um preciosismo semântico, antes, se
refere a um pensar fundamental acerca privilégio ontológico do homem: a
sua relação com o ser. Tal relação pauta-se originalmente não na
subjetividade que representa, mas na compreensão de ser (Seinsvertändnis),
que abre possibilidades fáticas de sermos no mundo. Esta compreensão de
ser não equivale a um domínio teórico sobre o tema, a uma atitude do
pensamento representativo-conceitual. Grosso modo, a compreensão de ser
constitui, de início e na maioria das vezes, uma relação pré-teórica pautada
na lida cotidiana, cravada no âmbito das relações não objetificantes com o
mundo. (Heidegger, 1995).
Mesmo com toda a profundidade de seu pensamento, com toda
apurada crítica à nossa herança metafísica, Heidegger não anunciou como
consolidada a passagem para um pensamento pós-metafísico. O empenho
de seu pensar caminhou sempre na tentativa de gestar modos não
objetificantes de se conceber o homem e a realidade e, no caminho mesmo
deste empenho, o filósofo deu-se conta de quão grandiosa é a empresa de
desconstruir o legado metafísico, de quão complexa é a tarefa do
pensamento em relação a esta destinação.
Para entendermos a magnitude da tarefa acima referida, bem como
esta abordagem do legado metafísico como destinação, devemos esclarecer
como a filosofia de Heidegger, ao longo dos anos, altera de alguma forma,
sua concepção de metafísica.
Inicialmente cabe frisar que a pergunta pelo ser, pelo sentido do ser,
foi a tarefa cardeal de toda filosofia heideggeriana, entretanto, ao longo de
suas investigações algumas concepções sofreram alargamentos ou alterações.
Especificamente neste artigo, nos ateremos, de maneira muito sucinta, ao
modo como se desenvolveu a concepção heideggeriana da relação entre a
metafísica e o ser. Grosso modo podemos dizer que, até meados da década de
trinta, para Heidegger, a metafísica, ao pretender pensar o ser desde o
domínio seguro dos entes, esqueceu a irredutível diferença entre ser e ente.
Esqueceu o ser enquanto fundamento de possibilidades do presentar-se do
ente. Segundo Heidegger, de diferentes maneiras, na tradição metafísica, o
ser foi fixado na perspectiva do que é determinável, subsistente, sendo
130 Caroline Vasconcelos Ribeiro

assim, foi reduzido à condição de presença constante (ständige Anwesenheit).


O esquecimento do ser (Seinsvergessenheit) é o esquecimento da diferença
ontológica entre ser e ente. Neste sentido, cabe-nos indicar que, na
ambiência do primeiro Heidegger, a pretensão em relação à metafísica é de
uma desconstrução do seu legado – concepção de ser, de ente, de realidade,
de mundo, enfim – para uma posterior fundamentação que restitua ao
pensamento a chance de pensar o homem e sua relação com o ser, sem fazer
recurso às categorias tradicionais. 10
Na medida em que o pensamento de Heidegger expõe-se com mais
intimidade à dinâmica do seu “objeto”, constata que o esquecimento do ser
não é uma contingência, mas um destino, por conseguinte, sua posição em
relação à metafísica e ao esquecimento do ser, será revista.
Reconhecendo que o ser, ao longo de sua história, se destina como
retiro, o seu esquecimento deixa de ser visto como algo externo e eventual,
sendo admitido como conseqüência própria à sua essência. Heidegger
abraça a ideia de que o esquecimento provém do ser, é sua modalidade de
destinação. Deste modo, num momento mais maduro de seu pensamento,
especificamente na conferência Tempo e ser, proferida em janeiro de 1962
na Universidade de Freiburg, Heidegger (1999c) anuncia que “o
esquecimento do ser, que constitui a essência da metafísica e que se tornou
elemento propulsor em Ser e tempo, faz parte do próprio acontecer do ser.”
Com isto, continua, “se impõe a um pensamento que pensa o ser, a tarefa
de pensar o ser de tal maneira que o esquecimento do ser dela faça parte
essencial” 11 O adentramento no âmbito do esquecimento, revela a
metafísica como história do ser, fazendo-o concluir que, ao longo de suas
produções históricas, o ser aconteceu de maneiras diferentes. Numa
“profusão de transformações”, o ser se manifestou como idea, energeia,
ousia, actus, cogito ergo sum, subjetividade, espírito, até seu cume enquanto

10
Furtamo-nos, neste artigo, de polemizar acerca da relação entre o Heidegger I (até meados
da década de 30) e o Heidegger II, pós viragem (Kehre). Quer dizer: optamos por não
perguntar se depois da viragem (Kehre) seria possível localizar uma via única do
pensamento heideggeriano ou um hiato, deflagrador de mudanças radicais. Em vista da
diversidade de opinião dos comentadores, resolvemos não abordar esta questão. Sobre o
tema, pode-se conferir: Heidegger, 1977; Zarader, 2000; Beaufret, 1974 e Loparic, 1986.
11
A título de esclarecimento vale lembrar que esta conferência tem o título da última seção
não publicada da primeira parte de Ser e tempo, vindo à luz depois de um hiato de 35 anos
em relação à data em que se anunciava seu cumprimento no tratado de 1927.
O fim da metafísica segundo Habermas 131

vontade de poder. O grande embaraço da tradição em relação a estas figuras


epocais do ser, radica em confundi-lo com uma dada manifestação, sem
atentar que em cada modo de revelação, o ser se retrai. 12 Heidegger
esclarecerá, em seu pensamento tardio, que a metafísica – pensada em suas
formas e estágios históricos – é uma fatalidade, um traço fundamental da
história do ocidente, fadando a humanidade assegurar-se nos entes. Em seu
desdobramento mais atual, em seu estágio mais avançado, a metafísica
engloba todos os setores dos entes “obrigando-os” a responder desde a ótica
da manipulação e da calculabilidade. A dominação planetária pela técnica
representaria a fulguração máxima dos desdobramentos desta história de
esquecimentos, desta destinação.
A investigação heideggeriana sobre esta destinação acena ao seu
pensar que superar uma metafísica que se dissolveu no surto das ciências
técnicas, envolve uma pungente dificuldade. Heidegger confere peso a esta
tarefa e anuncia que a mesma implica um pensar rememorativo sobre os
modos como o ser, em sua verdade, foi esquecido na história da metafísica.
Caberá ao pensamento retroceder rumo à dimensão impensada da origem
da filosofia ocidental, a fim de nomear o ser de maneira até então
insuspeitada. Trata-se de um pensamento que pretende meditar sobre os
envios do ser, sobre o seu modo de se destinar. Os esforços heideggerianos
se concentraram, com vigor, no empreendimento de um pensar originário
que se desvencilhasse da gramática metafísica. Podemos testemunhar textos
densos e complexos nos quais Heidegger leva a cabo esta tarefa, entretanto,
antes de localizar nestas obras a constatação do aniquilamento da metafísica,
no deparamos, sobretudo, com o reconhecimento do perigo da dominação
da técnica e da necessidade premente de o pensamento empreender um
salto para sua a origem ainda impensada. 13 Apesar de sua infatigável

12
Para melhor compreendermos estas épocas de destinação do ser, convém atentarmos que o
termo Época é utilizado por Heidegger em sua referência necessária ao grego Epoché,
indicando um processo de suspensão, de recolhimento. Sob esse prisma, Época nos remete
a uma subtração atrelada à doação, quer dizer, não sendo isso ou aquilo, mas doando-se
historialmente em cada Época, o ser realiza (determina) esta ou aquela possibilidade que
constitui seu destino. Neste destinar, o ser, enquanto puro poder ser, se subtrai em favor de
uma determinação, se envia e, neste envio mesmo, se furta enquanto pura possibilidade. O
que implica dizer que o ser, na verdade da sua dinâmica, só de dá retirando-se. (Heidegger,
1999d,209)
13
Sobre obras em que Heidegger se refere a tarefa para o pensamento na era do acabamento
132 Caroline Vasconcelos Ribeiro

dedicação a este empreendimento, Heidegger sempre anunciou que o seu


pensar estava no caminho, que as sendas para esta tarefa estavam sendo
abertas, mas que a tarefa em si, não estava concluída.
A nosso ver, não cabe no escopo deste trabalho um detalhamento
sobre a forma como Heidegger constitui seu modo tardio de meditar sobre
o ser e o seu esquecimento, enfim, um detalhamento sobre o que o filósofo
chama de pensamento meditante. Nossa pretensão neste artigo, como
insinuado pelo título, era fazer ponderações, à luz de Heidegger, em relação
ao anúncio da consolidação de um pensamento pós-metafísico. Em outros
termos, era indicar que a passagem para um modo de pensar que supere a
metafísica é algo extremamente laborioso e que requer uma avaliação mais
profunda até mesmo do que se entende por metafísica. Requer,
principalmente, que repensemos a relação entre ciência, técnica e metafísica.
Daí a necessidade de se renovar a suspeita do pensamento. O fim da
metafísica não prenuncia, segundo Heidegger, uma era pós-metafísica. O
fim da metafísica anuncia a imposição de uma tarefa para o pensamento!

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Formação da obra de arte
O formar como “fazer” que, enquanto faz, inventa o “modo de
fazê-lo”: uma perspectiva estética em Luigi Pareyson

Íris Fátima da Silva *

Resumo: O propósito do presente texto é trazer à luz breves considerações acerca do formar como
“fazer” que, enquanto faz, inventa o “modo de fazê-lo”: uma perspectiva estética em Luigi Pareyson,
para quem, “produção é ao mesmo tempo e indivisivelmente, invenção”. A interpretação pessoal é o
tornar evidente a própria obra, isto é, o dar-se, revelar-se, o descortinar-se da obra em si. O interpretar
é de acordo com Pareyson, em si, sempre pessoal; entretanto é apenas uma forma dentre tantas outras
possíveis. A pluralidade das interpretações não deve ser considerada uma desvantagem, longe
de ser um “defeito” é já uma revelação da inexorabilidade do pensamento humano. Ao
conceber a interpretação como singular, evidencia-se a historicidade do contexto e a
personalidade do pensante. Iniciaremos com algumas considerações acerca da estética, em
seguida, trataremos da forma como execução e o formar como experimento.
Palavras-Chave: Estética; Formatividade; Interpretação, Luigi Pareyson; Obra de arte

Abstract: The purpose of the present text is to bring into light brief considerations
concerning forming as “doing” that, while it does, it invents the “way of doing it”: an aesthetic
perspective in Luigi Pareyson, for whom, “production is, at the same time and indivisibly,
invention”. The personal interpretation is the making evident of the work itself, that is,
giving, revealing, pulling the curtain of the work in itself. Interpreting is in agreement with
Pareyson, in itself, always personal; however, it is just one form among many other possible
ones. The plurality of interpretations should not be considered a disadvantage; far from
being a “defect” it is already a revelation of the inexorability of human thought. When
conceiving the interpretation as singular, it is evidenced the historicity of thinkers context
and personality. We will begin with some considerations concerning aesthetics, and treat
about the form as execution and the forming as experiment freewards.
Key words: Aesthetics; Artwork; Formativity; Interpretation; Luigi Pareyson

1 O que é estética?
A estética embora se encontre em uma daquelas zonas periféricas da filosofia
na qual não se sabe bem onde começa e/ou termina o discurso filosófico nos
remete a pergunta se temos competências técnicas para falar de criadores,
                                                            
*
Doutoranda em Filosofia – PPGFIL-UFRN. E-mail: irisfsol@bol.com.br Artigo recebido
em 07.08.2009, aprovado em 15.11.2009.

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 135-148


136 Íris Fátima da Silva

contempladores e juízes da beleza e da arte. Qual a relação entre o fazer e a


invenção? O “fazer” na sua historicidade tem um papel importante na
renovação estética filosófica da atualidade. A natureza da estética é
abrangente, no entanto não é normativa, não agrega princípios a fim de
julgar o que é arte, isso é atribuição da teoria e da crítica de arte. A estética
evidencia a necessidade da discussão da relação do leitor com a obra, só
através desta experiência poder-se-á alcançar conclusões teóricas universais.
Não obstante, a estética não está preocupada com uma obra específica, ao
contrário, ocupa-se, sobretudo de um conjunto de obras que consentem ao
teórico criar teorias. De acordo com Luigi Pareyson 1 a estética se preocupa
com a experiência concreta da arte, cabe a poética normatizá-la e especificar
as leis e regras de determinada arte. A tal propósito, Pareyson apresenta-nos
a questão da experiência estética como objeto essencial para discutir o
caráter especulativo da mesma e isso é sem dúvida interessante e sugestivo
nos remete a questões concretas e bem determinadas, no âmbito de revelar
também ao profano a utilidade e a eficácia da experiência da produção e
contemplação do belo, e a reflexão filosófica posta em foco originando
resultados universais e sistemáticos e renovando continuamente a si mesma
(Pareyson, ETF, 2005, p. 15).

                                                            
1
Luigi Pareyson (1918-1991) ensinou Estética de 1945 a 1964 na Universidade de Turim,
sua terra natal, torna-se catedrático em Filosofia Teorética por longos anos e forma uma
“Escola” com nomes reconhecidos em todo o mundo como Umberto Eco, Gianni
Vattimo, Giuseppe Riconda e tantos outros. Foi um dos primeiros intérpretes italianos do
existencialismo. Em 1939, com apenas 21 anos publica a primeira edição de La filosofia
dell’esistenza e C. Jaspers, publicado em segunda edição revisado em 1940, logo em seguida:
publica Studi sull’esistenzialismo, 1943. Investiga profundamente o pensamento alemão dos
séculos XVIII e XIX e nos contempla com obras como Fichte, 1950; Shelling, 1975, Verità
e Interpretazione, 1971. Filosofia della libertà, 1989. Esistenza e Persona, (5ª Edizione),
2002. Ontologia della Libertà. Il male e la sofferenza, 1995 e 2000. Estetica dell’idealismo
tedesco III. Goethe e Schelling, 2003. Estetica dell’idealismo tedesco I. Kant e Schiller, 2005. La
sofferenza inutile in: Dostoevskij, in “ Giornale di Metafisica’, 4, 1982, 1, p. 123-170.
Heidegger: la libertà e il nulla, in: ‘Anuario filosofico’, 5, 1989, p. 9-29. La ‘domanda
fondamentale’:’Perché l’essere piuttosto che il nulla?’, in: ‘Anuario filosofico’, 8, 1992, p. 9-36.
La natura tra estetica e ontologia, in: ‘Anuario filosofico’, 9, Milano, 1993, p. 9-23. Essere e
libertà. Il principio e la dialetica, 1983, in: ‘Anuario filosofico’, 10, 1994, p. 11-88. Limito-
me aqui apenas as obras mais conhecidas. Ressalto, entretanto que as Obras Completas já
estão em vias de publicação.
...uma perspectiva estética em Luigi Pareyson 137

Ao que se refere ao caráter visível da estética, o autor vincula a


relação da estética com a experiência concreta, considerando-as inseparáveis,
de modo que a especulação sem base na experiência torna-se abstração
estéril. Assim como, a apreciação dos objetos estéticos sem o
aprofundamento filosófico torna-se mera descrição. De acordo com
Pareyson há dois caminhos distintos, no entanto convergentes para se
chegar ao problema da estética: o primeiro dar-se através do filósofo que
dedica seu pensamento à arte, o segundo investigando a própria arte.
Contudo, no ato da experiência concreta com a arte surge uma consciência
crítica sobre a própria atividade artística, desde que os dois caminhos
passem por examinar a obra de arte em si mesma e através de um
aprofundamento especulativo, o que é a verdadeira especificidade da
estética.
Vale lembrar, que com a intenção de diferenciar a estética da
crítica, o teórico afirma claramente que a crítica não pode ser confundida
com a estética, na medida em que a crítica compreende a experiência
estética como objeto de seu estudo. A função da estética não é definir
critérios de análise para o crítico, mas, ao analisar os critérios usados pela
crítica, desenvolve uma reflexão que serve ao crítico e acaba por interferir
inevitavelmente no seu trabalho e, por conseguinte no trabalho do artista
por originar-se nesse ínterim uma ciclicidade. Para Pareyson, estética e
teoria da arte são naturalmente duas coisas distintas, uma vez que a teoria
desenvolve normas e regras para a arte. A diferença entre crítica e poética
dar-se na sutileza do vir a ser, ou seja, a “poética se ocupa da obra por fazer e
a crítica avalia a obra feita. A estética tem a função de adequar a execução à
arte, e a crítica a de avaliar a obra de arte”.
Não podemos deixar de considerar aqui a indissociabilidade de
receptividade e atividade na sutileza do operar humano. Pareyson nos
explica que o operar humano é caracterizado pelo fato que ele (o operar)
não é criativo pó si: todas as atividades da pessoa remetem sempre a um
estímulo, uma sugestão, uma alusão da qual surge o início e revelam a
receptividade para a qual nem é receptividade absoluta, nem absoluta
atividade, não se trata nem de passividade nem de criatividade, no operar
humano receptividade e atividade são indissociáveis constituem o
acontecimento. O operar humano é sempre pessoal. “A iniciativa humana
não se inicia por si, mas é iniciada, e começa o próprio movimento somente
138 Íris Fátima da Silva

enquanto é principiada.” (Pareyson, ETF, 2005, p.180). A crítica observa a


obra considerando o valor que ela apresenta para si mesma, na sua
configuração estética, e propõe uma discussão entre o artifício e o fazer da
obra, a partir da própria obra. Nesse sentido, a poética diz respeito ao fazer,
a feitura, ao produzir da obra, no entanto a crítica, como afirma Pareyson,
já tem à mão a obra feita, basta descobrir essa produção e fazer a avaliação
do poético, ou seja, a crítica poética. Ao que se referem aos diversos âmbitos
artísticos os problemas detectados devem ser tratados pela estética, sem
desconsiderar a unidade da arte, e os conceitos universais elaborados pela
estética devem ser tratados nos diversos campos da arte.
Pareyson ressalta a peculiar sutileza entre estética e poética, nota
que a estética não pode transformar em divergência filosófica os duelos que
as diversas poéticas travam ao longo dos anos, haja vista não ser possível
contrapor filosoficamente questões de arte que são, em suma, diferenças no
âmbito do gosto. Uma poética tal, só tem validade dentro de seu campo de
atuação, mas em virtude de a poética definir normas, passa a querer definir
como arte apenas as que seguem suas regras, apresentando a intenção de
tornar-se estética, distanciando-se da sua especificidade ao considerar a
experiência poética. Nesse sentido, Pareyson afirma que uma poética é
eficaz somente quando propõe normas que traduzem toda a espiritualidade
de uma época transformada em expectativa de arte.
Retomando o que já aludimos anteriormente, a natureza e a tarefa
da estética não são normativas, sobretudo pelo seu caráter filosófico. De
acordo com Pareyson – a reflexão sobre a experiência estética é legítima,
enquanto a poética e a teoria de cada arte são de caráter normativo –
desenvolvem normas e regras sobre as questões da arte, estabelecem seus
limites. A poética precede a obra, “ainda por fazer”, regulamenta a produção
artística. Todavia a crítica analisa e ajuíza a obra feita. Mas a arte é um fazer,
que tem um sentido mais profundo, já que não se trata do simples executar
de uma atividade, a arte é invenção, criação, inovação não apenas de
artefatos que têm vida própria, mas de formas originais que transcendem a
realidade, justamente por recriá-las.
Pareyson no decorrer das suas investigações desenvolve com
originalidade e paixão uma formulação da teoria da arte como formatividade
considerada um de seus pontos cardinais. A fenomenologia do processo
artístico é investigada com o rigor da sua reflexão estética, complexa e
...uma perspectiva estética em Luigi Pareyson 139

instigante no âmbito da obra de arte, caracterizando-a na sua especificidade.


Em suma, a estética é do âmbito da filosofia, mas pesquisa a expressão
artística. Para tanto, terá que levar em conta outras áreas que estão
intrinsecamente ligadas à arte, tais como a poética, a crítica, a teoria de cada
arte, a história da arte, a experiência do artista, o leitor, isto é, o intérprete,
mesmo que, segundo Pareyson, a estética seja sutilmente distinta de todas
essas áreas. Por sua natureza especulativa explora investigações mais
universais sobre a arte descortinando a expressão artística, levando suas
indagações ao seu limite. Sabemos que a natureza da filosofia fundamenta-se
no problema a investigar. Sua grande questão é: Por quê? O que significa?
Qual o Problema? O que está por traz? Isto é, o que nos faz produzir uma
outra experiência.
Depois de Baumgarten (1714-1762) criador do vocábulo Aesthetica
(= estética). (foi numa de suas obras mais famosas Aesthetica escrita em latim
entre (1750-1758) onde tornou conhecido o conceito da nova palavra). A
partir da discussão originada pelas provocações de Baumgarten o conceito
de fim da arte defendido por Hegel e analisado por outros estudiosos no
século XVIII, determinou estéticas negativas como as que subjazem ao
dadaísmo, surrealismo, cubismo e expressionismo. “Escolas” literárias
importantes para a compreensão da estética. Hegel não concebe que a arte
possa significar para o homem moderno o que significava para os gregos
e/ou medievais. A revelação direta de uma dimensão divina, que não era
considerada um mito criado pela imaginação humana, mas ao contrário
durante uma longa trajetória da história do homem no mundo, o
fundamento de sua existência, isto é, o sentido de sua existência. Ao homem
moderno não interessa mais o contentar-se com a contemplação estética
imediata como um meio suficiente de contemplar essa verdade, ele inventou
para si mesmo a imprescindibilidade do refletir e do pensar sobre a arte.
Hegel expõe esta idéia de que a partir da idade moderna: “O pensamento e
a reflexão sobrepujaram a bela arte”.
As teorias estéticas desenvolveram-se, sobretudo no século XX
buscando uma significação “moderna” para a obra de arte. Não obstante, é
possível olhar os movimentos artísticos, não como derivações de descobertas
científicas, mas, ao contrário, como elementos impulsionadores dessas
descobertas, o que nos conduz a voltar o nosso olhar para o significado
“renovador” da interpretação para Pareyson. Nos manteremos atentos à sua
140 Íris Fátima da Silva

Estetica. Teoria della formatività, onde a execução e interpretação da obra de


arte são investigadas através da personalidade da interpretação e infinidade da
obra como fundamento da variedade das execuções. 2 . A propósito do primeiro
problema, nos afirma o autor que só o conceito de “interpretação” pode nos
explicar como as execuções possam ser múltiplas e diversas sem que com
isto seja comprometida a unidade e identidade da obra, mas que executar
significa, acima de tudo interpretar. Haja vista a natureza da interpretação
consiste no declarar e revelar o que se interpreta e expressa ao mesmo tempo
à pessoa do intérprete, reconhecer que a execução é interpretação significa
dar-se conta que ela contém simultaneamente a identidade imutável da obra
e a sempre distinta personalidade do intérprete que a executa. Os dois
aspectos são inseparáveis: por um lado se trata sempre de tornar a fazer viver
a obra como ela mesma quer, e por outro e sempre novo e diverso o modo
de torná-la e fazê-la viver (Pareyson, ETF, 2004, p. 226).
Pareyson defende a interpretação pessoal como o único modo pelo
qual a obra pode dar-se, pode mostrar-se, aparecer e conseqüentemente ser.
Mas esse aspecto pessoal da interpretação não é uma desvantagem - no
sentido que na interpretação seja acessível somente um aspecto relativo da
obra e nunca a obra como é “em si” -, porque ao contrário as várias
interpretações são toda a própria obra, dado que a obra não existe além das
suas execuções, não existe um lugar onde se encontre a obra como é em si,
porque a obra não aparece, isto é, não é do lado de fora, no além das suas
interpretações pessoais, ela é propriamente o seu mostrar-se.
Poder-se-ia distinguir dois aspectos da interpretação. Por um lado,
a interpretação é a obra mesma, e por outro, a interpretação é sempre
pessoal, mas somente uma das tantas possíveis. Com efeito, todo intérprete
deve manter a sua execução a única possível, mas ao mesmo tempo ser
consciente do fato, que existem inúmeras outras, igualmente válidas. No
entanto só se toda interpretação é a obra mesma há sentido confrontá-las e
só com esta promessa dar-se a possibilidade de um diálogo que seja
verdadeiramente diálogo, e logo diálogo entre pares. Fiel a obra se é apenas
                                                            
2
Pareyson, Luigi, Teoria della formatività, (IV edizione), p. 226. Personalidade da
interpretação e infinidade da obra como fundamentos da variedade das execuções. Pareyson
afirma que só o conceito de “interpretação” está em grau de explicar como as execuções podem ser
múltiplas e diversas sem com isso seja comprometida a unidade e identidade da obra, e sim que
executar significa, acima de tudo, interpreta (trad. Nossa).
...uma perspectiva estética em Luigi Pareyson 141

na interpretação pessoal. Neste sentido, em sua obra Esistenza e Persona


Pareyson precisa: “A interpretação é ao mesmo tempo revelativa e expressiva:
é um conhecimento no qual o objeto se revela na medida em que o sujeito
se expressa, de tal modo que subjetividade e objetividade [...] estão em
proporção direta”.

2 A forma como execução e o formar como operar humano


Pareyson em sua Teoria da fomatividade (Pareyson, ETF. 2005, p, 60), nos
chama atenção para: um fazer que ao mesmo tempo inventa o modo de fazer o
que implica que se proceda por tentativas, e o bom êxito de uma operação
deste gênero, é propriamente uma conquista; não se pode penetrar a
natureza da forma e do formar (formar significa por um lado fazer,
produzir, realizar e por outro, inventar o modo de fazer), se não se colhe o
inseparável nexo que combina respectivamente com a conquista e com o
tentar. De acordo com Pareyson “toda operação humana é sempre
expressiva, no sentido que é sempre acompanhada pelo sentimento, e brota
sempre daquele primeiro olhar da interpretação, daquele sentido das coisas,
daquele especial modo de ver, que é característico da simples e irrepetível
pessoa, e que se condensa sempre em um sentimento” 3 .
Assim sendo, compreender uma obra de arte não significa apenas
explicitar um significado que transcende o seu corpo físico (como se a obra
não passasse de um simples meio, um simples veículo cognoscitivo à espera
de explicitação, e como se compreender fosse possuir de uma vez por todas a
sua insondável realidade física e espiritual), mas, mais precisamente,
interpretá-la, entrar em diálogo com ela, responder ao seu vivo apelo, quer
dizer, ao vivo apelo que ela própria é, enquanto fundadora de um mundo
que nasce com ela. Trata-se, enfim, de reconhecê-la, ao mesmo tempo,
como uma forma e um mundo: “[...] uma forma que não exige valer senão
como pura forma e um mundo espiritual que é um modo pessoal de ver o
universo”. 4 Mas só se pode vê-la como tal quando se tem presente a sua
organicidade e o seu caráter dinâmico e processual. São esses fatores que
atestam a alteridade a e irredutibilidade da forma artística relativamente aos
pré-condicionamentos de qualquer natureza e que evidenciam o seu caráter

                                                            
3
Pareyson, Luigi. Teoria dell’Arte. Saggi di estetica, Milano, Marzorati, 1965, p. 53-54.
4
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sciarttext&pid=s0100_s12x2005000200018#mt10.
142 Íris Fátima da Silva

hermenêutico e ontológico: hermenêutico, no sentido de que a sua


interpretabilidade não é algo externo, secundário, posterior a conclusão, ao
contrário, é um aspecto, constitutivo de sua gênese interna; ontológico, no
duplo sentido de que a) é produto do agir de uma pessoa e, assim como
esta, está em relação com o ser; b) de que se impõe, ela própria, como uma
realidade, cujo fundamento reside nela mesma, na sua própria constituição
interna, e não em algo já dado e pré-constituído.
Bem no início da sua investigação sobre o problema da especificação
da arte Pareyson nos chama atenção para a constatação que a estética é
reflexão filosófica sobre a experiência estética (Pareyson, ETF, 2005, p. 18).
No entanto, isso não significa cair em um círculo, já que a estética toma os
movimentos da experiência propriamente, a qual, se devidamente
interrogada, ela mesma mostrará e denunciará, no seu vasto âmbito os
aspectos ou as zonas que têm um caráter estético ou artístico. Ao comparar a
arte com qualquer outra atividade, não se alcançará nunca uma definição
como operação específica se a inteira experiência não tivesse já ela mesma
um caráter de esteticidade e artisticidade: como operação própria dos
artistas a arte não pode resultar a não ser da acentuação intencional e
programática de uma atividade que é presente em experiência humana por
inteira, e que acompanha, a propósito, constitui cada manifestação da
operosidade do homem.
Não obstante, esta atividade, que insere genericamente a todo
experimento e que, se oportunamente especificada, constitui aquilo que
normalmente chamamos arte, é a formatividade, isto é, um tal fazer que
enquanto faz, inventa o modo de fazer: produção que é, ao mesmo tempo e
indivisivelmente invenção. Todos os aspectos da operosidade humana dos
mais simples aos mais articulados apresentam um caráter, ineliminável e
essencial de formatividade de acordo com Pareyson em (Pareyson, ETF,
2005, p, 18). Chamamos atenção para outra importante obra do Pareyson,
Os Problemas da Estética. Nessa obra o autor ressalta o argumento que a
reflexão estética, a partir da origem etimológica do termo, mesmo nos
remetendo à relação da estética com a filosofia, permanece sem grandes
alterações desde sua adoção no século XVIII, onde a influência do
romantismo tornava evidente a relação entre o belo e o sentimento. Vale
dizer, que o conceito de estética a partir de então foi sendo reconstruído,
buscando um ponto de reflexão com o vislumbre do grande acontecimento,
...uma perspectiva estética em Luigi Pareyson 143

isto é o surgimento da arte moderna onde o belo, no sentido clássico, não


era mais o objetivo da arte. Em tal reflexão o argumento era que a beleza
não estaria no objeto, e sim, no resultado da arte, na idéia. Relacionar o
termo estética ao belo, nos conduz à reflexão que a arte é a idéia, não é o
objeto mesmo, no entanto nos remete à questão filosófica em si, isto é, o
que nos conduz a perguntar o que está por traz das coisas do cotidiano? A
experiência estética lida com a singularidade de uma forma. Pareyson nos
chama atenção para o caráter concreto da estética. A relação da experiência
estética com a experiência concreta é inseparável, de forma que a
especulação sem base na experiência torna-se abstração estéril, ao mesmo
tempo em que, a análise dos objetos estéticos sem o aprofundamento
filosófico torna-se mera descrição.
A estética da formatividade de Pareyson define a arte como um
legítimo êxito de uma atividade modeladora e especificamente própria da
forma artística o que caracteriza o cerne do seu conceito de autonomia da
arte, desenvolvendo uma estética de âmbito especialmente ontológico.
Pareyson pretende evitar o labirinto das teorias que se perdem tanto na
exaltação de formalismos abstratos, quanto àquelas que tomam como ponto
de partida um suposto conteúdo da obra de arte e, depois, não têm como
explicar a passagem decisiva do conteúdo em si ao plano da arte. Mas o que
Pareyson de fato entende por forma artística e sobre como esta se especifica?
Em arte, explica ele, a forma se especifica como um legítimo êxito, isto é,
como conclusão de um processo cuja única condição de êxito é o próprio
amoldamento a si mesmo e a nenhum outro fim ou valor externo.
Segundo Pareyson a particularização formativa não subentende a
atividade isolada de uma formatividade vazia, (isto não seria possível,
considerando-se que a pessoa se faz sempre presente em todos os seus atos),
mas, ao contrário, requer, para a sua sustentação, toda a plenitude da vida
espiritual de quem opera, toda a sua vontade expressiva e comunicativa,
traduzidas em modo de formar. É assim, portanto, quer dizer, já como
componente orgânico da obra de arte, que o mundo do artista se faz
presente na obra. Esse conceito de modo de formar permite entender o
caráter auto-referencial do discurso artístico, enquanto discurso originador,
que se constitui não somente como discurso sobre, mas, primordialmente,
como fundador de uma linguagem e, portanto, de um mundo próprio que
com ele se origina. O discurso primordial de uma obra de arte é, pois,
144 Íris Fátima da Silva

aquele que ela faz dispondo suas formas de um modo específico — e não
simplesmente o conjunto de juízos que ela eventualmente pronuncia sobre
determinado assunto. No seu conteúdo legítimo revela-se, então, o seu
próprio modo de formar, enquanto modo de ver a realidade e de atuar sobre
ela. É desse prisma que Pareyson teoriza a questão da autonomia da arte e
das suas relações com a realidade (Pareyson, ETF, 2005, 246).
De acordo com Pareyson a forma artística, é, essencialmente,
matéria formada, dizer que a forma é matéria formada significa dizer que ela
é, de per si, um conteúdo, um “conteúdo expresso”, para usar o termo de
Pareyson na forma artística, tudo está carregado de significação, até as
inflexões estilísticas mais discretas, enfim, tudo é significado. Dizer, pois,
que a forma é matéria formada é o mesmo que dizer que ela é coincidência
perfeita de forma e conteúdo: matéria formada é matéria humanizada,
espiritualizada, impregnada de significado e de expressividade. Observe-se
que essa identidade não é apenas entre forma e conteúdo, mas entre forma,
entendida como matéria formada, e conteúdo, entendido como conteúdo
expresso, o que pode ser traduzido em uma fórmula bastante ilustrativa:
forma = matéria formada = conteúdo expresso. A analogia dar-se devido ao
propósito que tudo que integra, especificamente, a composição da forma
artística ali está enquanto já assumido pelo gesto formativo do artista e em
submissão à lei orgânica que presidiu todo o processo. A obra de arte
apresenta-se, então, como uma contração orgânica de valores diversos,
dotada de legitimidade interna, de autônoma consistência e, ao mesmo
tempo, de uma basilar ligação com a realidade de onde brota. Vale dizer, ela
já insurge de suas posições com uma particularização própria (Pareyson,
ETF, 2005. PP, 46-47).
Ao que se refere à forma artística propriamente, esta apresenta-se
como resultado de uma gênese formativa que ela mesma dirige e que nela se
inclui de modo indelével. Esse acabamento, evidentemente, não é algo que
se acrescenta (como acontece, por exemplo, quando se faz consistir o
problema artístico em dar uma forma estética a um dado conteúdo), mas
subentende uma teleologia interna, explicada por Pareyson como uma
atuação da própria obra como formante, bem antes de se concluir como
forma formada. Entenda-se que o procedimento da arte contém em si
mesmo a própria direção, porque o tentar, não sendo nem preventivamente
regulado nem abandonado é por si só orientado pela passagem da obra a
...uma perspectiva estética em Luigi Pareyson 145

qual comanda, define. E esta antecipação da forma não é propriamente um


conhecimento preciso e uma visão clara, porque a forma existirá somente
com o processo concluído e executado, mas nem mesmo uma vaga sombra e
uma larva pálida, que seria idéias e não propósitos infecundos. Trata-se
verdadeiramente de um presságio e de uma divinização, na qual a forma não
é encontrada e colhida, mas intensamente atendida e esperada (Pareyson,
ETF, 2005, p, 75).
Pareyson institui um vínculo efetivo e indivisível entre os três
momentos basilares da experiência da arte: a gênese, a forma acabada e a
interpretação. Interpretação em Pareyson é definida como: “uma tal forma
de conhecimento na qual, por um lado, receptividade e atividade são
inseparáveis, e, por outro, o conhecido é uma forma e o conhecedor é uma
pessoa” (Pareyson, ETF, 2005, p, 18). Os referidos momentos são períodos
que se interligam na obra mesma ao passo em que esta, no ato mesmo em
que se mostra como fim de um processo formativo, revela-se como abertura
a inexauríveis interpretações, atuando como lei diretora, em primeiro lugar
para o autor, e, posteriormente, para o intérprete. Por conseguinte, a
importância desse atrelamento íntimo obriga-nos a outra consideração
imprescindível, isto é, a forma artística, bem mais do que ser expressão de
um mundo acabado, é, na sua essência, um começo, uma fenda permanente
ao diálogo, em virtude de ser uma fonte perene de significados, propícios a
iluminar, de modo sempre renovado a realidade à sua volta e de transformar
qualitativamente o lugar do homem e das coisas no interior dessa realidade.
Na estética de Pareyson, ao contrário, a autonomia da obra de arte revelou-
se um traço distintivo dela mesma, intrinsecamente ligado à sua
particularidade como arte.
Pareyson chama atenção para três aspectos fundamentais ao que se
refere à sustentação teórica dessa autonomia: 1). identidade de forma,
matéria e conteúdo, na obra de arte; 2). alteridade da obra frente a seu autor e
seu tempo, enquanto se apresenta, ao mesmo tempo, como lei e resultado do seu
próprio processo de formação; 3). polaridade contínua entre acabamento e
processualidade, pela qual a forma acabada pode colocar-se, não apenas como
acabamento e resultado (o que faria dela um mero objeto de explicitação),
146 Íris Fátima da Silva

mas como abertura a um fluxo interminável de interpretações, ao longo da


história 5 .
Concluímos as nossas breves investigações chamando atenção para
o argumento pareysoniano de que a obra de arte brota com um preciso
condicionamento, mas já explicitada como arte. O que nos remete ao que se
segue: 1) a forma estética já nasce com uma especificação formativa (vale
dizer: nasce já como “conteúdo expresso”); 2) que o seu poder de exercer
esta ou aquela função, o seu potencial revolucionário e libertário, enfim, são
decorrências dessa autonomia e não fatores determinantes em relação à
mesma. Não obstante: se a obra de arte pode desempenhar tais funções, sem
com isso se comprometer na sua autonomia e no seu valor, é precisamente
porque, antes, conseguiu ser arte. Pareyson nos apresenta uma possibilidade
hermenêutica e ontológica importante, não apenas no âmbito de permitir
um olhar completo do fenômeno arte e uma aceitável concepção da sua
autonomia, mas, sobretudo a razão do descortinar da possibilidade de se
repensar, sobre alicerces mais consistentes, o problema do estatuto
ontológico da arte, enquanto alteridade irredutível, não dedutível e não
explicável por condições preexistentes. Nesse âmbito, em meu parecer,
incide uma das contribuições mais significativas da ontologia estética de
Pareyson.

Referências
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Loffredo, 1940. Marietti, Genova, 19973 (1931), è la rielaborazione del
vol. La filosofia dell’esistenza e Carlo Jaspers, Loffredo, Napoli, 1940. Si veda
in particolare l’introduzione alle p.3-29 (Lo Jaspers e l’esistenzialismo tedesco)
con continui riferimenti a Karl Barth.
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(nuova edizione; 1951). Si vedano in particolare i due studi su Barth:
L’esistenzialismo di Karl Barth, p.111-182, già apparso in «Giornale critico
della filosofia italiana», (1939); e La dialettica della crisi in Karl Barth,
p.183-205.

                                                            
5
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sciarttext&pid=s0100_s12x2005000200018#mt10.
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200018#mt10.
O experimentalismo contra os idealismos
nos escritos intermediários de Nietzsche

Jelson Roberto de Oliveira *

Resumo: Pretende-se nesse artigo demonstrar como o chamado experimentalismo se


apresenta, nas obras do segundo período da produção nietzscheana (1878-1882), enquanto
estratégia de combate aos “idealismos” (cujo resultado foi um distanciamento daquilo que
Nietzsche compreende como vida) presentes na filosofia metafísica. Além disso, intenta-se
esclarecer de que forma o uso desse estratagema contribui para a decifração do fenômeno da
vida a partir de uma abordagem histórico-fisio-psicológica que aproxima a ciência do fazer
artístico.
Palavras-chave: Ciência; Experimentalismo; Fisio-psicologia; Procedimento experimental

Abstract: In this article we intent to show how called experimentalism is presented in the
written of the second period of Nietzsche’s production (1878-1882), as a strategy to fight
the “ideals” (that the result was a distancing from what Nietzsche understands as life) in the
metaphysical philosophy. Furthermore, it seeks to clarify how the use of this artifice helps to
decipher the phenomenon of life from a historical and physiological-psychological approach
to the science of art.
Keywords: Experimental procedure; Experimental; Physiological-psychology; Science

O experimento é utilizado para a “autodenominação” da filosofia


nietzscheana 1 e por ele se criam as condições para o cultivo do espírito livre
como o criador, extraindo afirmações daquilo que é tido como motivo de
negação da existência. Friedrich Kaulbach, em sua obra Nietzsches Idee einer

*
Professor de Filosofia da PUC-Paraná e membro do Grupo de Estudos Nietzsche. Email:
jelsono@yahoo.com.br Artigo recebido em 15. 06. 2009, aprovado em 18.12.2009.
1
Num fragmento da primavera-verão de 1888 (KSA 13, 16 [32], p. 292), Nietzsche fala em
Experimental-Philosophie. Segundo Giacóia-Júnior, “o discurso Nietzscheano
autodenomina-se ‘interpretação’, ‘experimento’, ‘ensaio’, ‘tentativa’, ‘hipótese regulativa’,
cujo resultado arrasta consigo a necessidade de um distanciamento em relação às próprias
posições assumidas. Trata-se, de um lado, de um contradiscurso, de contradicção que
dissolve pseudoevidências ou interpretações consolidadas, petrificadas, mostrando como a
elas se pode contrapor, com igual direito, interpretações subsistentes, em sentido contrário”
(1999, p. 137)

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 149-166


150 Jelson Roberto de Oliveira

Experimentalphilosophie, caracteriza o experimentalismo de Nietzsche como


um “método de desmascaramento” que conduz à posse de si mesmo por
parte do espírito livre. Como processo de reunião das várias perspectivas de
interpretação da vida, o experimentalismo nietzscheano conduz à elevação e
intensificação do poder e, por isso mesmo, de libertação e desmascaramento
das convicções metafísicas que negam a origem humana, demasiado
humana de todas as avaliações. Assim, segundo o autor alemão, o
experimentalismo está ligado a uma redefinição do próprio conhecimento
(de metafísico a experimental), conduzindo a uma perspectiva afirmadora
derivada da intensificação do niilismo.
É nesse sentido que o experimentalismo de Nietzsche se contrapõe
àquilo que ele chama de idealismo metafísico, já que a “falta de sentido
histórico é o defeito hereditário de todos os filósofos” (HHI, 2 2 ) e esse erro
fez com que eles inventassem o ser perfeito e eterno como critério de
verdade, esquecendo que “tudo veio a ser; não existem fatos eternos: assim
como não existem verdades absolutas” (HH I, 2). Como “filosofar
histórico”, o experimentalismo é o procedimento pelo qual Nietzsche
pretende denunciar esses enganos e defeitos da filosofia.
Nietzsche entende a metafísica como processo de criação de uma
interpretação dualista sobre o mundo, com a superioridade do inteligível
sobre o sensível. Essa dualidade, amparada na ascendência da razão como
portadora do verdadeiro, teria criado um vácuo entre a essência e a
aparência, devotando todos os privilégios à primeira. Metafísica, assim, para
Nietzsche, não passa de um processo de valoração que estabelece a
dualidade e a consequente superioridade do mundo inteligível sobre o
sensível. Esse processo teria começado com Anaximandro (com a oposição
apeíron e mundo do devir) e encontrado em Sócrates o seu mais ilustre
representante, vindo a marcar os processos filosófico-culturais desde então:
platonismo, cristianismo, kantismo e positivismo seriam meras

2
Nesse artigo usaremos as siglas convencionais para citação dos escritos de Nietzsche: HH I
(Humano, Demasiano Humano, vol. I); OS (Humano, Demasiado Humano II:
Miscelânea de opiniões e sentenças); AS (Humano, Demasiado Humano II: O andarilho e
sua sombra); A (Aurora); GC (A Gaia Ciência); KSA (Sämtliche Werke. Kritische
Studienausgabe – edição crítica em 15 volumes organizada por Giorgio Colli e Mazzino
Montinari); ZA (Assim Falou Zaratustra); BM (Além de Bem e Mal); GM (Para a
Genealogia da Moral); EH (Ecce Homo).
O experimentalismo contra os idealismos... 151

representações desse primeiro movimento de condenação do mundo e da


vida.
Marcada pelo devir, a vida foi interpretada pela metafísica a partir
da moralidade que viu o movimento-decomposição-morte como culpa e
injustiça. Sócrates é a insígnia mais representativa desse processo de
“envenenamento” e negação da vida, vivida sob a égide do cansaço e da
culpa, interpretada como destituída de valor, portanto. Ao analisar esse
processo com o método científico fisio-psicológico praticado, mormente,
em seus escritos intermediários, Nietzsche, como psicólogo, identifica o
aspecto fisiológico de Sócrates, Platão e dos demais metafísicos: seu
pensamento não é mais do que o sintoma de uma falta de forças, da
decadência e da fraqueza fisio-psicológica de seus autores. A eleição da
racionalidade como critério de valoração, conjugando virtude, felicidade,
verdade e beleza, tal como implementado pelo movimento socrático não
passaria de um sintoma da perda do vigor da cultura grega que, incapaz de
suportar o devir, ergueu os altos muros do consolo metafísico,
desqualificando outras formas de constituição de sentido. A excessiva
racionalidade de Sócrates é o símbolo da busca de um lenitivo que tem
como consequência o aprofundamento da fraqueza, posto que não cura,
apenas mantém a situação de pusilanimidade a partir da elevação da ilusão
do ser.
O experimentalismo, ao contrário, se torna um pensamento “vivo”
e criativo, capaz de interpretar a vida em seu vir-a-ser sem apelar para o jogo
da culpa. Por ele, o intérprete é também o criador de novos sentidos para a
vida (e não o descobridor de um sentido único 3 ): ao contrário da metafísica,
a experimentação se torna uma ampliação de horizontes e possibilita ao
experimentador a abertura de sempre novas e múltiplas perspectivas. Sendo
o contrário dos idealismos presentes na metafísica, na religião e na arte, o
experimentalismo serviria de crítica ao dogmatismo, entendido por
Nietzsche como pretensão à universalidade e absolutismo da verdade. O
experimentalismo apresenta-se como uma “teoria” que, por unir
pensamento e vida, possibilita a afirmação da existência, ela mesma tida
pelo espírito livre como um experimento, uma leve e alegre brincadeira

3
“A verdade não é algo que estaria presente aí e que deveria ser encontrado, descobreto, mas
algo a ser criado e que empresta o nome para um processo, melhor ainda, para uma vontade
de sobrepujar que propriamente não tem fim [...] (KSA 12, 9 [91], de 1887, p. 383).
152 Jelson Roberto de Oliveira

dionisíaca com as perspectivas que derivam da inocência do devir (presentes


na ideia de Justiça). A leveza desse pensamento seria uma contraposição ao
rigor das formas pesadas da dominação e da crença presentes nos idealismos
metafísicos inaugurados por Anaximandro, como um representante prévio
do movimento socrático.
Essa afirmação exige a construção de “novas leis da vida e do agir”,
para o que as ciências têm uma grande contribuição:

Construir novamente as leis da vida e do agir – para essa tarefa nossas ciências da
fisiologia, da medicina, da sociedade e da solidão não se acham ainda
suficientemente seguras de si: somente delas podemos extrair as pedras
fundamentais para novos ideais (se não os próprios ideais mesmos). De modo que
levamos uma existência provisória [vorläufig, antes de] ou uma existência póstuma
[nachläufig, depois de], conforme o gosto e o talento, e o melhor que fazemos nesse
interregno, é ser o máximo possível nossos próprios reges [reis] e fundar pequenos
estados experimentais [Versuchsstaaten]. Nós somos experimentos [Wir sind
Experimente]: sejamo-lo de bom grado. (A, 453)

Nietzsche explicita nesse parágrafo, a tarefa do experimentalismo


para a construção das novas “leis da vida e do agir” que derivam não de
princípios ultramundanos, mas de perspectivas históricas e fisio-psicológicas
reveladas pela ciência experimental. É preciso experimentar, ou seja, ensaiar,
testar, por à prova, verificar, praticar, exercitar... enfim, fazer com que o
experimento mesmo concorra para a concretização da tarefa. Essa seria a
base dos novos reinos criados por cada indivíduo como “estados
experimentais” que fazem de si mesmos, experimentos e experimentadores.

A filosofia experimental de Humano, Demasiado Humano


O emprego da concepção de “experiência” sob a cognominação de
experimentalismo se apresenta de forma mais acabada em Humano,
Demasiado Humano. Esse livro não é resultado apenas da decisiva crise
vivida por Nietzsche em Sorrento, entre outubro de 1876 e maio de 1877,
depois de ter abandonado Wagner no festival de Bayreuth. Pode-se afirmar
que os indícios da “novidade” apresentada nessa obra já estão postos em
escritos anteriores, de maneira especial em Sobre verdade e mentira no sentido
extramoral (de 1873) e em A ciência e o saber em conflito (de 1875), ambos
não publicados por Nietzsche. O período passado na Itália fez com que
Nietzsche amadurecesse as dúvidas que já vinha alimentando e que são
O experimentalismo contra os idealismos... 153

finalmente confrontadas com o fortalecimento da “experiência comunitária


de amizade” (na qual se destaca a amizade com Paul Rée, a quem conhecia
desde 1873) e com o agravamento de sua enfermidade nesse período. Em
resumo: Humano, Demasiado Humano havia sido iniciado em julho de
1876, mas só após a decepção com Wagner a obra se consolida como
expressão de um rompimento com a metafísica vigente nos primeiros
escritos do filósofo alemão, tendo como vínculo o exame criterioso das
crenças e dos sentimentos humanos. A esse respeito, confira-se, por
exemplo, o § 10, no qual, após criticar a metafísica presente na religião, na
arte e na moral, Nietzsche escreve: “deixaremos para a fisiologia e a história
da evolução dos organismos e dos conceitos a questão de como pode a nossa
imagem do mundo ser tão distinta da essência inferida do mundo”.
Como obra antirromântica e antimetafísica por excelência,
Humano, Demasiado Humano critica o humano pensado como aquele que
capta a essência do mundo, através do engano da linguagem (tema do § 11)
cuja expressão traduz a ilusão da unidade: “[...] fala-se do sentimento moral,
do sentimento religioso, como se fossem simples unidades: na verdade, são
correntes com muitas fontes e afluentes. Também aí, como sucede
frequentemente, a unidade da palavra não garante a unidade da coisa” (HH
I, 14). Ao questionar a ideia de essência e de unidade do mundo captada
por um sujeito racional, demonstrando a falsidade dessas bases metafísicas,
Nietzsche intenciona elidir o primado da religião e da moral nela baseadas.
Há um anúncio, portanto, de mudança naquilo que é pensado e praticado
por Nietzsche como filosofia – e que, não à toa, causou estranheza aos
leitores do autor de O Nascimento da Tragédia.
É assim que a leitura de Humano, Demasiado Humano revela que
esta obra está para além de uma mera conjectanea (KSA 8, 22 [11], de 1877,
p. 380), mas se apresenta como um escrito decisivo para o engendramento
(através de elípticas composições) da filosofia nietzscheana como tal. Já no
primeiro capítulo encontra-se a afirmação da tarefa daquilo que Nietzsche
chama nesse momento de “ciência” (e que jamais alcançará uma acepção
única em seu pensamento), enquanto estratégia para superação da metafísica
e que, logo em seguida, no segundo capítulo, é nomeado como um filosofar
histórico: a história dos sentimentos morais e a própria psicologia (como o
fundo donde nascem esses sentimentos) são os meios que, ao desvendar as
154 Jelson Roberto de Oliveira

origens das valorações humanas, conduzirão ao desmonte das religiões e


morais baseadas na metafísica.

Vida como experiência


Nietzsche faz uso da noção de experimentalismo relacionada à sua
concepção de experiência, esta entendida como a participação do indivíduo
nas situações vitais que provocam o seu envolvimento e implicação direta,
de tal forma que não se pode separar a consciência da experiência, da
própria experiência. Em outras palavras, para Nietzsche, a experiência é um
princípio da própria vida e como tal, exige incorrências diretas e integrações
provisórias e, na maior parte das vezes, contraditórias.
Experiência é, assim, uma habilidade obtida a partir da vida e que
enriquece o conhecimento. Para o filósofo alemão, a experiência passa,
necessariamente, pela expressão fisio-psicológica dos processos valorativos
que são experimentados como tentativas hipotéticas e ubertosas tentações
(Versuchung) cuja constituição forma um dispositivo de provação e
verificação de forças que superam a mera “observação racional”, a fim de
vivenciar o que é experimentado. Por isso, o experimentador não se coloca
“fora” do experimento, mas é dele condição e parte constitutiva. É o
experimentador que qualifica, mede, distingue e afere valores aos pleitos
experimentais, sabendo que nada pode ser fixado porque o mundo não tem
nenhuma formação de domínio que se apresente como estável. As próprias
formulações filosóficas de Nietzsche se apresentam, assim, em seu caráter
experimental de interpretação, a respeito do que ele mesmo escreve em Além
de Bem e mal: “Acontecendo de também isto [a sua própria filosofia] ser
apenas interpretação – e vocês se apressarão em objetar isso, não? – bem,
tanto melhor!” (BM, 22).
Não significa, portanto, que Nietzsche alie experiência a observação
objetiva (o que implicaria uma ação intencional de análise) e sequer que o
seu experimentalismo esteja reduzido ao empirismo praticado como método
científico ou como procedimento de validação de uma verdade – o que
incorreria no erro da fundamentação típico da empiria moderna. Nietzsche
recusa uma visão mecanicista da natureza e da vida enquanto tal para
afirmar o caráter hipotético da ciência: para o filósofo alemão, vida deve ser
compreendida como efetivação de forças em busca de expansão, como
conjunto ilógico, antiteleleológico e pulsional, que revela o “caráter geral do
O experimentalismo contra os idealismos... 155

mundo” e que não pode ser alcançado pelo conhecimento a não ser em seu
caráter de inverdade, provisoriedade e desordem. Essa é a ideia que se
apresenta no parágrafo 344, de A Gaia Ciência:

Na ciência, as convicções não têm direito de cidadania, é o que se diz com boas
razões: apenas quando elas decidem rebaixar-se à modéstia de uma hipótese, de um
ponto de vista experimental e provisório, de uma ficção reguladora, pode lhes ser
concedida a entrada e até mesmo um certo valor no reino do conhecimento –
embora ainda com a restrição de que permaneçam sob vigilância policial, a
vigilância da suspeita.

A experiência não visa captar determinada ordem, repetição ou


situações de uniformidade presentes na vida, mas deve permanecer no
âmbito do hipotético e da suspeita – é esse, no limite, o interesse
manifestado por Nietzsche em relação ao “método” das ciências. A
experiência revela justamente o estado experimental característico da própria
vida e não tem como resultado nada além de hipóteses experimentais que
nascem do envolvimento do experimentador como experiência de si
mesmo. Em outras palavras: não se trata de um procedimento de verificação
de hipóteses, mas de afirmação da hipótese interpretativa como
possibilidade de conhecimento. É nisso que, como estratégia, o
experimentalismo se apresenta como um niilismo radical, já que garante um
diagnóstico do niilismo e apresenta uma afirmação de seu processo. Não há
sentido único e é preciso conviver com essa falta de sentido e, ao invés de
negar a vida, essa ausência de sentido deve conduzir a uma afirmação ainda
mais radical:

Uma filosofia experimental, tal como eu a vivo, antecipa experimentalmente até


mesmo as possibilidades do niilismo radical; sem querer dizer com isso que ela se
detenha em uma negação, no não, em uma vontade de não. Ela quer em vez disso,
atravessar até ao inverso – até um dionisíaco dizer- sim ao mundo, tal como é, sem
desconto, exceção e seleção. (KSA 13, 16 [32], de 1888, p. 492)

Portanto, Nietzsche não concebe a experiência como verificação ou


como confirmação empírica ou sensível de algo dado anteriormente como
ideia – porque esse “algo” não existe. Para o filósofo alemão, a experiência se
apresenta como vivência de algo que está fora do campo reflexivo sem que
se distinga o próprio movimento racional do movimento vivencial. A
noção, assim, anula a dualidade experiência x razão ao romper com a
156 Jelson Roberto de Oliveira

distinção teoria x prática (Marton, 2000, p. 197), já que todas as tentativas


de expressão do mundo suportam apenas processos de
valoração/avaliação/criação de valores. É da própria vida em seu caráter
fisio-psicológico que o conhecimento se efetiva e nenhuma verdade pode
expressar, por qual procedimento seja, algum “predicado do ser” (KSA 9
[38], do outono de 1887) ou objetividade natural. Como experiência, o
conhecimento se revela como relacional: “Conhecer significa ‘entrar em
relação condicional com algo’” (KSA 12, 2 [154], de 1885/outono de 1886,
p. 141).

Experiment, Erfahrung e Erlebnis


Para esclarecer essa questão, é preciso recorrer às três expressões usadas por
Nietzsche para traduzir esse ideário: a derivação latina Experiment; e as
palavras alemãs Erfahrung e Erlebnis. Quanto a Experiment 4 , o termo deriva
do latim periri e do particípio peritus, reconduzindo a perícia, perigo e
mesmo a pirata e perito, habilidoso e, portanto, experimentado (Huaiss;
Villar, 2001). É dessa raiz que provem experimente e mesmo experimentum
(uma prova através dos fatos), além de expertus (que remete a
experimentado, aquele que dá provas de seu conhecimento). Da raiz periri
advem ainda, além da ideia de prova e experimento, a de periculum
(tentativa, risco e exame), periculosum (arriscado) ou mesmo o verbo latino
periclitor (fazer uma tentativa), peritus (que sabe por experiência) e mesmo
imperitia (imperícia e ignorância). Todas essas expressões latinas remetem
ao grego peíra (que significa prova ou tentativa) e ao verbo peráo (tentar),
estando ligadas a peiratés (o que age por um golpe, um pirata), empeiría
(experiência) e empeirikós (que se dirige pela experiência). Assim, a noção de
experiência remete a um contato direto com o mundo sensível e físico, em
contraposição ao conhecimento racional obtido pela via das ideias. A
presença do prefixo ex (que precede as vogais com o mesmo efeito de ec, no
caso das consoantes) traduz a ideia de “movimento para fora”, portanto a
um acontecimento de relação entre o indivíduo e mundo. Como contato, a
experiência envia, então, a uma relação e se efetiva de forma relacional pela

4
São inúmeras as aparições do termo na obra de Nietzsche, com destaque especial para os
escritos do segundo período, entre os quais se destacam: AS, 267; GC, 51, 110, 324; além
de vários fragmentos póstumos desse momento. A primeira aparição da palavra, entretanto,
é do parágrafo 6 da segunda das Considerações Extemporâneas.
O experimentalismo contra os idealismos... 157

criação de significados e interpretações que não nascem meramente da


razão.
A essa concepção está ligado também Erfahrung 5 : a palavra remete a
um aprendizado pela prática, a um conhecimento adquirido na vida.
Erfahren remete a aprender como processo de descoberta, experimentação,
já que fahren significa viajar, sair de um lugar, realizar uma nova
experiência. É essa a forma de aprendizado praticada pelo andarilho,
personagem do segundo volume de Humano, Demasiado Humano – aquele
que se desprende, que viaja, que modifica opiniões, que vivencia sempre
novas experiências. Por isso, Erfahrung é uma sabedoria adquirida pelas
experiências vitais, também chamadas de vivências.
É por onde se aproximam Erfahrung e Erlebnis: aquilo que é
evocado diante de uma experiência ou um acontecimento. Erlebnis 6 é o que
marca, algo que se aprende pelas sequelas, algo que é profundamente vivido
e não simplesmente adquirido. Está ligado, portanto, ao presenciar, ao se
deixar tocar pelo que ocorre, já que Leben (vida) e o verbo leben (vivenciar)
remetem a presenciar, passar por, deixar-se tocar, portanto. Trata-se do
encontro, como impacto e colisão com as demais forças que lutam pela
autoafirmação no reino existencial. É a experiência mais frontal com o
acontecimento vital. Vivenciar é se encontrar com essa força em forma de
aventura (outra conotação do termo) e sair marcado de forma imediata,
ainda quando a razão e os processos mentais não tenham sido ativados – e
muitas vezes sem que eles possam sê-lo.

Um procedimento histórico-fisio-psicológico
Nos escritos que formam o período intermediário da obra nietzscheana, as
noções de história, fisiologia e psicologia são aproximadas e passam a definir
o que o filósofo entende como ciência. Como novo expediente de análise da
moralidade a noção de fisio-psicologia (Physio-Psychologie – BM, 23) faz ver
que os edifícios metafísicos não passam de construções históricas. Para o

5
Em HHI, 13 Erfahrung está ligado a “saber por experiência” e no § 16 associado à vida,
como ocorre em várias outras passagens de Humano, Demasiado Humano, no qual esse
termo aparece de forma constante.
6
O conceito se apresenta bastante frequentemente nos escritos de Nietzsche, mormente nos
do período intermediário, entre os quais se destacam os aforismos de Aurora: 113, 119,
137, 448; 476 (no qual estão associados os termos experiências e vivências). Além disso,
vários fragmentos póstumos trazem o termo, principalmente até os nos de 1885.
158 Jelson Roberto de Oliveira

filósofo alemão a cultura não é nada mais do que um sintoma fisio-


psicológico das construções humanas. Essa afirmação está ligada a uma
reinterpretação do corpo, entendido não apenas em seu sentido físico ou
biológico, mas como um processo de organização que interpõe uma
hierarquia às forças que organizam provisoriamente a corporalidade em
busca do crescimento. Rompe-se o dualismo corpo-alma, para se pensar o
corpo como grande razão (ZA, II, Dos desprezadores do corpo), no qual
aquilo que se chama de “alma” (ou consciência) não passa de um
epifenômeno do próprio corpo, uma pequena razão.
Esse é o olhar para o “mais profundo” que caracteriza Humano,
Demasiado Humano: “Enquanto livro para ‘espíritos livres’, fala nele algo da
frieza quase serena e curiosa do psicólogo (...)”, escreve Nietzsche no
prólogo do segundo volume dessa obra (Miscelânea de Opiniões e Sentenças,
Prólogo, 1), escrito em 1886. Nessa época o filósofo reconhece a obra como
uma psicologia que desvela o que há “por debaixo” e “por trás” da
moralidade e como parte do “autotratamento antiromântico” (OS, Prólogo,
2) que ele pretende impetrar como parte do rompimento com a primeira
fase de seu pensamento. Pretendendo “prosseguir sozinho” (Prólogo, 3), a
partir de uma “primeira suspeita contra a música romântica”, Nietzsche
confessa ter feito nessa obra um “combate contra a anti-científica tendência
fundamental de todo pessimismo romântico a exagerar, a interpretar
experiências pessoais singulares como juízos universais” (Prólogo, 5). Para
isso foi preciso “inverter” seu olhar, alterar seu ponto de vista contra o
“pessimismo romântico” (OS, Prólogo 7), ou seja, contra a filosofia de
Schopenhauer e a música de Wagner.
Para essa tarefa, portanto, faz-se necessário um uso interdisciplinar
que junte não apenas a psicologia com a morfologia e com a fisiologia, mas
também com a história, a cultura, a linguística, a literatura, a medicina e
várias outras áreas do conhecimento, tal como Nietzsche reiteradamente faz
uso.
Amparado nessas concepções, o experimento é praticado por
Nietzsche como um recurso ético-filosófico derivado daquilo que é, para o
autor, o experimento científico ou a ciência experimental explorada no
segundo período de sua produção e entendida a partir da história, da
fisiologia e da psicologia – exploração que deixará marcas surpreendentes
em todos os seus demais escritos. Mas “a ciência não significa, pois, a
O experimentalismo contra os idealismos... 159

investigação de um âmbito do real, mas a demonstração do caráter ilusório


daquelas atitudes humanas que em seu primeiro período Nietzsche
considerava como os acessos originários e verdadeiros à essência do mundo”
(Fink, 1989, 54).
Deriva-se daí, pois, que o experimentalismo ascende à filosofia
nietzscheana ligado ao procedimento histórico-fisio-psicológico impetrado a
partir de Humano, Demasiado Humano: trata-se de uma perquirição a
respeito do “homem”, aquele que mede (Den Messenden, cf. AS, 21), o que
avalia 7 e cuja pretensão foi dominar e representar até “regiões que são
inteiramente impossíveis” e que, por isso, só o fez como erro. Ainda que isso
se explicite melhor a partir, principalmente, do último livro de A Gaia
Ciência, no qual Nietzsche deixa claro que também a ciência – no sentido
positivista – pode ser considerada uma crença ou mesmo um
aprimoramento da consciência religiosa, por supor ainda a verdade como
algo absoluto, pode-se afirmar que a compreensão de ciência como
“estratégia científica”, percorrida nos escritos intermediários, já antecipa essa
visão, na medida em que neles o filósofo pretende mobilizar a crítica à
“crença milenar” (GC, 344) na verdade como algo eterno e divino.
Destarte, Humano, Demasiado Humano é a obra na qual Nietzsche
apresenta os argumentos de seu experimentalismo, enquanto Aurora é um
livro pelo qual esse estratagema é colocado em “funcionamento”, já que nele
o filósofo analisa as condições de nascimento dos “preconceitos morais”,
segundo o subtítulo da obra. Ao passo que em Humano, Demasiado

7
Expressão também presente em ZA, I, Dos mil e um alvos. Segundo Rubens Torres Filho,
na sua tradução da obra de Nietzsche (Col. Os Pensadores), “na origem da palavra Mensch,
mannisco, substantivação do velho-alto-alemão mennisc (humano), encontra-se o radical
indogermânico men (pensar), o mesmo que em latim deu mens (mente) e mensurare
(medir). Talvez Nietzsche se refira a este último sentido, tanto mais que ‘pensar’ guarda
lembrança de: tomar o peso, ponderar. Schätzen por: estimar, avaliar, apreciar, daí
Schätzende, o que estima, o taxador” (Nietzsche, 1978, p. 233 ). É bom lembrar que a
própria ideia de moralidade em Nietzsche não é mais do que um processo de avaliação
realizado pelo “homem” a partir do “valor da vida”: “entenda-se moral como a teoria das
relações de dominação sob as quais se origina o fenômeno vida” (BM, 19). Por outro lado,
lembrando a origem latina da palavra homem (humanus e homo remeteria a humus, ou seja,
terra), ou seja, aquele “nascido da terra” explica a insistência por parte de Nietzsche a
respeito da ascensão de uma moral que reconduza o homem de volta à terra, que mantenha
uma fidelidade à terra a fim de que “a terra um dia se torne do além-do-humano” (ZA,
Prefácio, 9).
160 Jelson Roberto de Oliveira

Humano são tratados os sentimentos morais a partir daquilo que ele chama
de ciência, caracterizada como uma filosofia histórico-fisio-psicológica, em
Aurora esses sentimentos são analisados em seus processos de valorações. Ou
seja, o que Nietzsche pretende mostrar nessas obras é que a base de toda a
moralidade é a interpretação e a avaliação a partir do que é humano e nelas
estão embasadas a própria razão e todas as experiências vitais.
Esse é o ensejo do experimentalismo praticado por Nietzsche e que
se confunde com a sua própria filosofia nesse segundo período: o que ele
entende como ciência é o que ele pratica como filosofia, e o que ele usa
como ciência não é um conjunto de fórmulas que conduz a uma finalidade
específica, mas um experimento rigoroso no qual não interessam os
resultados, mas a dinâmica da própria ciência como experimentalismo:

O valor de praticar com rigor, por algum tempo, uma ciência rigorosa não está
propriamente em seus resultados: pois eles sempre serão uma gota ínfima, ante o
mar das coisas dignas de saber. Mas isso produz um aumento de energia, de
capacidade dedutiva, de tenacidade; aprende-se a alcançar um fim de modo
pertinente. Neste sentido é valioso, em vista de tudo o que se fará depois, ter sido
homem de ciência. (HH I, 256)

Em outras palavras: o procedimento experimental da ciência


(aplicado na sua própria filosofia) é a base primeira para a constituição da
noção de experimentalismo e mesmo de vida como experimento em
Nietzsche. Observe-se como o filósofo alemão parece deixar claro nesse
parágrafo o sentido propedêutico da ciência. O que interessa a essa filosofia
histórica (HH I, 2) por ele praticada é a capacidade de pertinência
(Zweckmäßigkeit), ou seja, um determinado uso estratégico da ciência capaz
de dar ao conhecimento alguma probidade. É esse o instrumento de
passagem para as grandes afirmações que advirão desse estratagema e que
encontram expressão no último período da produção nietzscheana. Ao
mesmo tempo, o que se adivinha nesse procedimento é a abertura às
múltiplas perspectivas que nascem das vivências e se expressam como
interpretação de verdade.
Em Humano, Demasiado Humano, § 635, principia à visão essa
insistência na importância estratégica da utilização do experimentalismo, ele
mesmo apresentado como um produto tão importante para a pesquisa
“quanto qualquer outro resultado”. Fica claro nesse fragmento, o interesse
de Nietzsche pelo “método científico” enquanto tal e pelo que ele tem de
O experimentalismo contra os idealismos... 161

rigor e de possibilidade para a dissipação de crenças e ficções constituintes


da metafísica reinante desde Platão e, inclusive, em sua própria filosofia até
então. É isso o que ele busca na ciência:

No conjunto, os métodos científicos são um produto da pesquisa ao menos tão


importante quanto qualquer outro resultado: pois o espírito científico repousa na
compreensão do método, e os resultados todos da ciência não poderiam impedir
um novo triunfo da superstição e do contrasenso, caso esses métodos se perdessem.
[...] Por isso cada um, atualmente, deveria chegar a conhecer no mínimo uma
ciência a fundo: então saberia o que é método e como é necessária uma extrema
circunspeção. (HH I, 635)

Desse modo Nietzsche destaca, de forma antecipatória, algo que se


fará frequente em sua obra posterior: a pergunta sobre o valor dos valores,
questão que advém a partir de Assim Falou Zaratustra e o levará ao
desvendamento dos processos de avaliação que embasam as afirmações
racionais do conhecimento e da moral como negações da vida – traduzidas,
no § 35 de Aurora (o qual faz referência justamente à genealogia: “avô, avó e
aos avós deles”), como ligadas a algo mais profundo e anterior do que a
razão e a experiência: os sentimentos e os processos valorativos que eles
revelam. Esse é o principal ponto desvendado pelo experimentalismo.
Escreve Nietzsche a esse respeito em Aurora:

Os sentimentos e sua derivação dos preconceitos. – “Confie no seu sentimento!” –


Mas os sentimentos não são nada de último, nada de original; por trás deles estão
juízos e valorações, que nos são legados na forma de sentimentos (inclinações,
aversões). A inspiração nascida do sentimento é neta de um juízo! Confiar no
sentimento – isto significa obedecer mais ao avô e à avó e aos avós deles do que aos
deuses que se acham em nós: nossa razão e nossa experiência. (A, 35)

O fundo, portanto, de todo processo de moralização não são os


sentimentos, mas os próprios impulsos que motivam as valorações,
resultados do lastro fisio-psicológico individual. Isso porque todo instinto é
apresentado por Nietzsche como despossuído de qualquer “caráter ou
denominação moral, nem mesmo uma determinada sensação concomitante
de prazer e desprazer”, coisa que só se adquire a partir da relação com outros
instintos já “batizados de bons e maus” (A, 38). Na verdade, “as paixões
tornam-se más e pérfidas quando são consideradas más e pérfidas” (A, 76):
esse é o gesto mais contundente da crítica de Nietzsche aos preconceitos
162 Jelson Roberto de Oliveira

morais, posto que o filósofo entende que os sentimentos se tornam bons ou


maus a partir de um processo anterior de valoração que se dá como relação
de um instinto com outro, no campo energético dos impulsos e pulsões.
Um exemplo do uso desse procedimento experimental é
apresentado por Nietzsche no § 95 de Aurora: “Outrora se buscava
demonstrar que não existe Deus – hoje se mostra como pode surgir a crença
de que existe Deus e de que modo essa crença adquiriu peso e importância”.
Ou seja, Nietzsche quer estudar o que está na raiz do surgimento das
grandes instituições morais e filosóficas e isso não necessariamente para
provar ou negar a sua existência, mas para entender os processos de
valoração que levaram ao seu surgimento (lanço psicológico) e as razões
pelas quais essas valorações ganharam importância (lanço histórico).

Conhecimento e vida
Como se vê, a noção de experiência não diz respeito a algo que passa pela
racionalidade e se efetiva como uma teorização que poderia ser comunicada.
Não é algo que nasce de alguma observação racional em vista de uma meta
(seguindo um método) e, por isso, não pode ser pensado a partir de um
único significado, mas justamente aquilo que rompe com essa possibilidade
e conduz à noção de fluxo vital. É o que há de mais profundo na superfície
da existência e se efetiva de forma a caracterizar, compor e fazer parte do
experimentador, aquele que se deixa envolver no processo experimental. A
experiência, portanto, não tem neutralidade epistemológica e não se
expressa por um dualismo sujeito-mundo. Um e outro estão
interconectados para expressar um tipo de filosofia que integra pensamento
e vida, na medida em que o primeiro é sintoma da segunda e não pode
requerer qualquer estatuto de universalidade, estabilidade, unidade e
realidade (as bases da interpretação nietzcheana da metafísica e contra as
quais o filósofo dirige a sua crítica nos escritos intermediários).
A grande contribuição do “método científico” analisado por
Nietzsche nesse segundo período de sua produção, diz respeito à
possibilidade de que eles possam fomentar a desconfiança em relação às
crenças, convicções e idealismos criados pela metafísica, pela religião e pela
arte romântica. A ciência, tal como pensada por Nietzsche, ajudaria a
solapar as bases falsas que ergueram as verdades como algo último e
definitivo. Ela se apresenta como o processo pelo qual a falsa crença na
O experimentalismo contra os idealismos... 163

verdade e no ser (como algo supra-sensível) cai por terra e junto, todas as
superstições erguidas como sustentáculos de erros que se tornaram
inquestionáveis. Para isso o procedimento experimental se revela eficaz já
que é ele que possibilita a compreensão da condição perspectiva de toda a
realidade, como configuração provisória de forças em permanente conflito.
Através do experimentalismo, portanto, chega-se aos cômodos nos quais a
filosofia se torna avessa às dicotomias metafísicas e passa a reconhecer o
mundo como uma pluralidade de perspectivas e possibilidades. Algo sempre
incompleto, porque é o inacabado que serve de estimulante artístico (HH I,
199), é o incompleto que guarda uma maior eficácia (HH I, 178), pois
expressa a improvisação própria da vida, “numa miraculosa instantaneidade
da gênese” (HHI, 145). Esse processo liga o experimentalismo a uma
inspiração vital, a uma intuição repentina (HHI, 155) que expressa o prazer
com a existência (HHI, 222).

Ciência e arte
Note-se como aquilo que Nietzsche entende como experimentalismo ou
filosofia experimental, passa a articular o procedimento científico ao
procedimento artístico, já que conhecer é experimentar, experimentar é criar
e criar é viver. A compatibilidade entre o conhecimento e a criação artística
remete à necessária conciliação entre arte e ciência no que tange à
compreensão da filosofia experimental de Nietzsche.
Em primeiro lugar, é preciso constatar que Nietzsche compreende a
arte não apenas a partir das obras de arte (OS, 174), mas a partir de atitudes
artísticas. A arte das obras seriam meramente uma expressão do “excedente
de tais forças embelezadoras, ocultadoras e reinterpretantes” (OS, 174). Em
segundo lugar, é importante notar que a própria racionalidade é associada
ao gosto pelo regular, simétrico e ordenado (OS, 119) e se consolida a partir
desse impulso artístico que se encontra por trás da rotina científico-racional.
Os expedientes da ciência são fundados, portanto, por meio de uma
estruturação que remete ao sentido artístico que permeia a vida enquanto
tal. Todo gesto de conhecer, na medida em que é um gesto experimentador
(engendrador) de significado, revela o traço primodial da vida: “trata-se,
sem mais, da apropriação, por uma comunidade, de regiões ou fatias de
mundo, através da associação entre expectativas motivadas valorativamente
e tudo o que estiver disponível em termos de experiências, experimentos ou
164 Jelson Roberto de Oliveira

do que for aceito, por convenção, como fato” (Pimenta, 2000, p. 80). Todo
o conhecimento, se torna, assim, a partir do critério da utilidade para a vida,
algo arranjado segundo a função de segurança (revelada pelo gosto pelo
ordenamento, pela rotina e pela previsibilidade das formas).
É a “mentalidade artística”, portanto, que funda a prática
racionalizante. Mas é esse mesmo processo que será marcado pelo
esquecimento, em nome da formulação do status definitivo da razão. É essa
– vale lembrar – a conexão entre arte e conhecimento estabelecida no texto
Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, fazendo do ato de conhecer
um ato de criação de metáforas. Nietzsche quer mostrar o quanto a verdade
é uma criação articulada de sentidos e a filosofia uma composição de
experimentos que ganham algum significado.
O processo experimental se oferece assim, como medida de
autosuperação da verdade, por revelar que ela nasce do impulso artístico e se
expressa pela mesma transação: o que se torna erro, aqui, não é algo
contrário à verdade, mas a própria verdade – ou melhor, a crença na sua
existência e o rigor moralizante que ela inaugura. Liberada de uma
epistemologia cega e de uma moralidade corretiva, a verdade recupera o seu
caráter artístico no qual sobejam expressões do provisório e faltam
determinações de fundamentos. O recurso linguístico, agora, pela via da
retórica, experimenta a vida e ele mesmo, como forma de expressão, se torna
um experimento.
Vê-se como, então, a característica basilar do uso feito por
Nietzsche da noção de experiência é o que o autor mesmo autodenomina de
“novidade” na sua posição em relação à filosofia anterior e que serve de
antídoto ao aroma superlativo e adiposo que usualmente recobre a tarefa
científica: “a novidade na nossa atual posição sobre a filosofia é uma
convicção que ainda não teve época: a convicção de que não temos a verdade.
Todos os homens anteriores ‘tinham a verdade’, inclusive os céticos” (KSA
9, 3 [19], de 1880, p. 52). Como se sabe despossuidora da verdade, a
filosofia experimental de Nietzsche também reconhece a si mesma como
uma interpretação possível e não pretende que a sua própria assertiva seja
tida como verdade absoluta. Como interpretação, o âmbito da sua
efetivação não é a razão e sequer a comunicação linguística. A experiência
remete à vida, na sua indizível condição de fluxo de sentidos.
O experimentalismo contra os idealismos... 165

Referências
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HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.
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Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 2 ed.; 3
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de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000 (v. I) e 2008 (v.
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Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os Pensadores).
166 Jelson Roberto de Oliveira

_______ Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe (KSB). Herausgegeben


von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. München/Berlin/New York:
dtv/Walter de Gruyter & Co., 1986. (8 Bänden).
_______ Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Herausgegeben
von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. München/Berlin/New York:
dtv/Walter de Gruyter & Co., 1988. (15 Einzelbänden).
PIMENTA, Olímpio. “Arte e conhecimento em Nietzsche”. In: FEITOSA,
Charles/BARRENECHEA, Miguel A. Assim Falou Nietzsche II: memória,
tragédia e cultura. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 77-85.
A presença de Nietzsche na obra de Foucault:
mais do que uma afinidade filosófica

Luiz Celso Pinho*

Resumo: As referências a Nietzsche proliferam de tal forma ao longo dos quase trinta anos de
produção teórica de Foucault que fica evidente o forte elo que há entre ambos. Além disso,
um exame atento das análises foucaultianas sobre a emergência de um saber sobre o
indivíduo na modernidade revela que existem, do ponto de vista programático, afinidades
consistentes. No entanto, deixar de levar em conta eventuais dissonâncias ou mesmo
antagonismos resulta, ao mesmo tempo, numa abordagem superficial e incompleta. É
justamente o que se buscará evitar neste ensaio.
Palavras-chave: Afinidades; Arqueologia; Dissonâncias; Genealogia

Abstract: The references to Nietzsche proliferate in such a way along the almost thirty years
of Foucault’s theoretical work that is evident the strong link between them. Moreover, a
careful examination of Foucault's analysis on the emergence of a knowledge about the
individual in modern times shows that there are, from a programmatic point of view, solid
affinities. However, do not taking into account any dissonances or even antagonisms result,
simultaneously, in a superficial and incomplete approach. It is precisely what will look for to
avoid in this paper.
Keywords: Affinities; Archeology; Dissonances; Genealogy

1 Introdução
A data é vinte e nove de maio de 1984. Michel Foucault, ao ser levado a
falar dos filósofos que lhe parecem imprescindíveis, naquela que será a
derradeira de tantas entrevistas, acaba declarando: “sou simplesmente
nietzschiano, e tento ver, na medida do possível, sobre certo número de
pontos, com a ajuda de textos de Nietzsche – mas também com teses anti-
nietzschianas (que são completamente nietzschianas!) o que se pode fazer
neste ou naquele domínio”. 1 Num primeiro momento, essas palavras,

*Professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Pesquisador APQ-1 da


FAPERJ. E-mail: lucepi@uol.com.br. Artigo recebido em 31.10.2009, aprovado em
20.12.2009.
1
Foucault, M. “Le retour de la morale” (entrevista com G. Barbedette e A. Scala) in Dits et
écrits, IV, p. 704.

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 167-187


168 Luiz Celso Pinho

pronunciadas no limiar de trinta anos de intensa atividade intelectual,


chamam a atenção pela influência ímpar atribuída a um único pensador.
Porém, tal declaração envolve implicações embaraçosas. Conclui-se,
facilmente, que houve um diálogo solidamente profícuo, jamais
interrompido, entre ambos. Além disso, e aqui esbarramos num obstáculo
de ordem lógica, eventuais dissonâncias, em vez de levarem à ruptura,
servem como demonstração cabal de afinidade teórica.
Na sequência da entrevista, Foucault nada diz sobre os “pontos”
e/ou “textos” que teriam sido utilizados por ele, dificultando qualquer juízo
interpretativo. A frase de impacto “sou simplesmente nietzschiano” indica,
sem dúvida, sua proximidade com o pensador alemão. No entanto, até que
ponto ela não expressa uma tentativa de minimizar possíveis, e inevitáveis,
diferenças, num momento solene, tendo em vista que são pronunciadas no
limiar de uma vida? Podemos supor, assim, que a referida afirmação retrata
uma última homenagem retórica àquele cuja inegável relevância teórica não
ficou registrada de forma adequada.
De certo modo, essa situação inconclusiva lembra um episódio –
narrado pelo próprio Foucault num livro homônimo – que precede a morte
do escritor Raymond Roussel. Referimo-nos à promessa deste último de
revelar o procedimento-chave responsável pela construção de suas narrativas
nas páginas de Como escrevi alguns de meus livros. O resultado se mostra,
contudo, paradoxal, já que o mecanismo rousseliano envolve um segredo
“jamais totalmente demonstrável”. 2 Na entrevista acima, Foucault anuncia
o quanto seu nietzschianismo é fundamental sem, contudo, indicar
elementos que possam ser criteriosamente avaliados. Isso acaba nos levando
a considerar a “pista” foucaultiana uma paródia da revelação tardia de
Roussel.
Especulações à parte, entendemos que o caminho mais seguro para
averiguar quais são os elementos constitutivos da afinidade proclamada por
Foucault consiste em nos determos no conjunto de seus escritos, o que nos
coloca diante de outras dificuldades. Em primeiro lugar, o opus foucaultiano
se distribui por uma topografia que tanto burla as grandes classificações de
área ou disciplina (estaríamos lidando com um sociólogo das relações de

2
Foucault, M. Raymond Roussel, p. 10. Ressalte-se que Foucault acaba extrapolando os
limites impostos por Roussel e generaliza o “procedimento secreto”, aplicando-o
indistintamente aos demais livros dele.
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 169

poder, um historiador das práticas culturais? um filósofo que oscila entre o


ceticismo e o niilismo? um teórico das ciências humanas? um criador de
ficções? um escritor diletante?) quanto está registrada de forma desigual. Há
os trabalhos acadêmicos que percorrem indistintamente “regiões” como:
teoria literária, análise de discurso, história das ciências e da filosofia,
estudos políticos e da subjetividade etc. Além disso, um conjunto quase
inesgotável de entrevistas (o mercado editorial tem continuamente revelado
novidades) se acumula em torno desse material mais formalmente elaborado
constituindo, no entender de Deleuze, “linhas de atualização que exigiam
outro modo de expressão do que as linhas assinaláveis nos grandes livros”. 3
Tem-se, assim, duas grandes regiões discursivas independentes entre si, mas
que refletem uma tensão viva, em ato, entre o que foi minuciosamente
descrito e demandas imediatas. Há ainda transcrições independentes de
cursos, debates e palestras que retratam etapas de um processo de criação
que pode ou não vir sofrer reformulações até culminar na materialidade
física do livro.
A presença de Nietzsche se faz no meio dessa diversidade estilística
que abrange registros heterogêneos entre si, como podemos constatar nos
ensaios, seminários e conversações livres que povoam a coletânea Ditos e
escritos. Nesse longo inventário do percurso teórico de Foucault
descobrimos Nietzsche como ponto de apoio para o desenvolvimento de
reflexões de cunho literário (os textos sobre Georges Bataille, Pierre
Klossowski e Maurice Blanchot), hermenêutico (a conferência “Nietzsche,
Freud, Marx”), historiográfico (o célebre artigo “Nietzsche, a genealogia, a
história”) e epistemológico (o resumo do curso do Colégio de França “A
vontade de saber” e a primeira conferência de A verdade e as formas
jurídicas). Nas entrevistas seu nome é constantemente invocado. Vejamos
alguns exemplos. Junho de 1967: “Minha arqueologia deve mais à
genealogia nietzschiana do que ao estruturalismo propriamente dito”. 4
Setembro de 1967: “Quanto à influência efetiva que Nietzsche teve sobre
mim, me seria bem difícil de precisá-la porque tão somente presumo o
quanto ela foi profunda. Diria apenas que permaneci ideologicamente

3
Deleuze, G. “Qu’est-ce qu’un dispositif?”, p. 192.
4
Foucault, M. “Sur la façon d’écrire l’histoire” (entrevista com R. Bellour) in Dits et écrits, I,
p. 599.
170 Luiz Celso Pinho

‘historicista’ e hegeliano até ter lido Nietzsche”. 5 Junho de 1975: “Agora


permaneço mudo quando se trata de Nietzsche. No tempo em que era
professor, frequentemente ministrava cursos sobre ele, mas não o faço mais
hoje em dia. Se fosse pretensioso, daria como título geral ao que faço
genealogia da moral.” 6 Junho de 1976: “A questão política [...] não é o erro,
a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia: é a própria verdade. Daí a
importância de Nietzsche.” 7 Outubro de 1982: “Nietzsche foi uma
revelação para mim. Tive a impressão de descobrir um autor bem diferente
daquele que me haviam ensinado”. 8 Primeiro semestre de 1983: “[...] não é
tanto a história mesma do pensamento que me interessa, mas essa espécie de
desafio que senti quando li, há muito tempo, A gaia ciência e Aurora [...].
Qual é o máximo de intensidade filosófica e quais são os efeitos filosóficos
atuais que se pode tirar desses textos?”. 9
Essas referências maciças atestam, sem dúvida, um encontro fértil e
prolongado. No entanto, somente em raras ocasiões Foucault aborda as
diretrizes que norteiam sua afinidade teórica com Nietzsche. Aliás, tal
atitude é uma constante no seu percurso, pois outros filósofos foram
igualmente submetidos a um tratamento que não somente carece de
maiores justificativas como também varia conforme o tempo passa. Eis os
casos mais significativos. Canguilhem lhe forneceu preceitos metodológicos
jamais abandonados, apesar de praticamente nada ter sido dito sobre o
assunto. 10 Um intercâmbio, geralmente velado, foi mantido com
Heidegger, cuja estreita associação a Nietzsche dificulta que determinemos à
risca quem está sendo evocado. Influências marcantes nos primeiros escritos,
as fenomenologias de Husserl e Merleau-Ponty são logo abandonadas e

5
Foucault, M. “Qui êtes-vous, professeur Foucault?” (entrevista com P. Caruso) in Dits et
écrits, I, p. 613.
6
Foucault, M. “Entretien sur la prison: le livre et sa méthode” (com J.-J. Brochier) in Dits et
écrits, II, p. 753.
7
Foucault, M. “Entretien avec Michel Foucault” (com A. Fontana e P. Pasquino) in Dits et
écrits, III, p. 160.
8
Foucault, M. “Vérité, pouvoir et soi” (entrevista com R. Martin) in Dits et écrits, IV, p.
780.
9
Foucault, M. “Structuralisme et poststructuralisme” (entrevista com G. Raulet) in Dits et
écrits, IV, p. 446.
10
Essa afinidade em termos de metodologia é abordada por Machado na primeira parte de
Foucault, a ciência e o saber através do conceito científico, da descontinuidade histórica e da
normatividade epistemológica (cf. Machado, R. Op. cit., p. 15-47).
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 171

mesmo execradas. Independentemente da assumida distância em relação à


dialética hegeliana, Foucault atribui a Hegel o mérito de tê-lo conduzido ao
“limite extremo” dela, tendo em vista que Hyppolite, seu antigo mestre, o
ensinou a percorrer o “caminho pelo qual nos afastamos de Hegel, tomamos
distância dele, e por meio do qual somos de outro modo reconduzidos a ele
para depois sermos forçados a abandoná-lo de novo” 11 . Althusser tem uma
recepção positiva, porém discreta, no início dos anos 60, já que “liberou a
interpretação marxista tradicional de todo humanismo, de todo
hegelianismo, de toda fenomenologia que também pesavam sobre ela” 12 Na
década seguinte, porém, torna-se inconveniente por evocar a noção de
“ideologia”. 13 Surpreendente também se mostra o caso de Kant. Foucault o
vincula, num primeiro momento, em meados dos anos 60, a uma função ao
mesmo tempo inovadora e temerária na medida em que “a crítica kantiana
traz consigo a possibilidade – ou o perigo – de uma antropologia”, 14 ou seja,
ela permite, por um lado, interromper o longo reinado do dogmatismo
metafísico, inaugurando a filosofia moderna, e, por outro lado, estabelece a
finitude humana como fundamento da atividade filosófica, o que encerrará
a era pós-kantiana noutra forma de letargia epistemológica. Por sua vez,
numa efêmera aparição durante a década de 70, Kant é tido como um
exemplo da concepção jurídica, repressora do poder, o que se choca
frontalmente com a análise foucaultiana da época. A partir de 1978,
reviravolta: Kant passa a simbolizar uma atitude típica da modernidade na
medida em que inaugura o imperativo filosófico de se refletir sobre o
momento atual em que nos encontramos. Não apenas desaparece qualquer
traço do ranço ambíguo dos anos 60 e da censura aberta na década seguinte
como também Foucault caracteriza a filosofia kantiana a partir de elementos
antes aplicados preferencialmente à reflexão nietzschiana da cultura.
A dificuldade em elucidar como se dá a incidência de Nietzsche nos
escritos de Foucault decorre, acima de tudo, da ausência de uma reflexão
sistemática sobre ele. Mesmo as pistas esparsas de que dispomos não

11
Foucault, M. L’ordre du discours, p. 74.
12
Foucault, M. “Revenir à l’histoire” (conferência) in Dits et écrits, II, p. 272. Na introdução
de A arqueologia do saber Althusser é saudado, indiretamente, pelo mesmo motivo (cf.
Foucault, M. L’archéologie du savoir, p. 22).
13
Cf. Foucault, M. A verdade e as formas jurídicas, Primeira Conferência, p. 26-27.
14
Foucault, M. “Philosophie et psychologie” (entrevista com A. Badiou) in Dits et écrits, I, p.
446, os grifos são meus.
172 Luiz Celso Pinho

permitem que cheguemos a um denominador comum, pois variam


bastante: temos desde nítidos empréstimos terminológicos e breves citações
até alusões genéricas e parentescos superficiais. No que diz respeito às
passagens onde se pode detectar uma inspiração nietzschiana sem que nada
seja dito claramente, teríamos de lançar mão do expediente de ler nas
entrelinhas e buscar o não-dito, o que tornaria ainda mais temerário nosso
empreendimento, pois estaríamos indo de encontro à crítica foucaultiana de
que através do comentário somos levados a “redizer o que jamais foi
pronunciado”. 15
Em função de tudo o que foi alegado acima, adotaremos alguns
critérios prévios para determinar a incidência de Nietzsche no opus
foucaultiano.
Inicialmente, vamos privilegiar o que denominamos de análises
histórico-filosóficas, tendo em vista que elas sempre articulam um
componente empírico (a massa documental que compõe o arquivo de uma
época) a um aparato conceitual crítico. É o caso de História da loucura na
época clássica (1961); O nascimento da clínica: uma arqueologia do olhar
médico (1963); As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências
humanas (1966); Vigiar e punir, nascimento da prisão (1975); A vontade de
saber, História da sexualidade, t. I (1976); O uso dos prazeres, História da
sexualidade, t. II (1984); O cuidado de si, História da sexualidade, t. III
(1984). Se escolhemos tal fio condutor é porque ele retrata o âmago do
projeto foucaultiano de investigar em que condições se pode falar de um
saber sobre o homem, mais exatamente quando o que está em jogo é a
loucura, a doença, o saber, o crime, a sexualidade e a conduta individual.
Através deles também podemos acompanhar como se constitui a
“arqueologia do saber” na década de 60, a “genealogia do poder” na década
de 70 e a breve “genealogia da ética” no início da década de 80.
Consideramos, também, que as demais publicações de autoria de Foucault,
sejam elas individuais ou coletivas, são uma extensão do plano histórico-
filosófico, concentrando-se em um ou mais aspectos dele: linguagem
(Raymond Roussel, A biblioteca fantástica, O pensamento de fora, Isso não é um
cachimbo, Sete propostas sobre o sétimo anjo), método (A arqueologia do saber,

15
Foucault, M. Naissance de la clinique, p. XII.
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 173

A ordem do discurso, A verdade e as formas jurídicas, A prisão impossível), 16


“vidas infames” (Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e
meu irmão... – um caso de parricídio do século XIX; Herculine Barbin: o diário
de um hermafrodita) e biopolítica (As máquinas de curar, A desordem das
famílias).

2 No labirinto discursivo
2.1 A história arqueológica
Em termos de registro temporal, o contato inicial entre Foucault e
Nietzsche ocorre, pelo que se pode apurar, no ano de 1953, com a leitura
das Considerações extemporâneas. 17 Desse encontro isolado surge, um ano
depois, Doença mental e personalidade – pequeno ensaio sobre as principais
teorias psicológicas a partir de meados do século XIX. Nada nele, porém,
tem parentesco com Nietzsche, o que, aliás, se estende aos demais ensaios
deste período. O único traço nietzschiano no trabalho de Foucault reside na
realização de alguns cursos. 18 Sua efetiva incidência ocorre somente na
passagem dos anos 50 para a década de 60, através de um duplo registro. O
mais expressivo (e difundido) diz respeito a Loucura e desrazão, publicado
em maio de 1961 como um dos requisitos necessários para a conclusão do
doutorado na Faculdade de Letras e Ciências Humanas de Paris
(Sorbonne), e que será reeditado onze anos depois com o antigo subtítulo:
História da loucura na época clássica. 19 Sua fonte de inspiração pode ser
pressentida logo no prefácio quando lemos que se trata de um
empreendimento realizado “sob o sol da grande pesquisa nietzschiana”, cuja
meta consiste, numa alusão a O nascimento da tragédia, em “confrontar as
dialéticas da história às estruturas imóveis do trágico”. 20 As páginas que se
seguem revelam um extenso estudo sobre o silêncio imposto ao louco a
partir da segregação institucional, da invalidação discursiva e do

16
Podemos incluir Raymond Roussel entre os textos metodológicos, pois, segundo Deleuze,
ele retrata uma “versão poética e cômica da teoria dos enunciados que Foucault cria em A
arqueologia do saber” (Deleuze, G. “Um retrato de Foucault”, p. 133).
17
Cf. Pinguet, M. “Les années d’apprentissage”, p. 130.
18
Cf. Defert, D. “Chronologie” in Dits et écrits, I, p. 19.
19
Nesta segunda edição Foucault redige outro prefácio (do qual desaparece qualquer menção
a Nietzsche), acrescenta dois textos em anexo e suprime algumas notas. Nas edições
posteriores a parte anexa será retirada.
20
Foucault, M. “Préface” (a Loucura e desrazão) in Dits et écrits, I, p. 162.
174 Luiz Celso Pinho

enquadramento moral ao qual ele vem sendo submetido desde o século


XVII. O segundo registro a que nos referimos ocorre, surpreendentemente,
quando Foucault se detém num texto de Kant – Antropologia de um ponto
de vista pragmático [Anthropologie in pragmatischer Hinsicht] – no intuito de
redigir os dois volumes de sua tese complementar. Um deles corresponde à
tradução para o francês do referido texto (editado três anos depois), o outro
contém um longo comentário, recentemente publicado, em 2008, a seu
respeito intitulado Introdução à Antropologia de Kant, cujo teor é de
particular interesse para nós, tendo em vista que se encerra contrapondo o
“super-homem” nietzschiano à antropologia. 21
Essas afinidades iniciais com Nietzsche têm como pano de fundo a
psicologia. O Foucault pré-arqueológico está interessado na possibilidade de
fundamentação metodológica e conceitual das teorias psicológicas, como se
pode constatar nos ensaios “Introdução a O sonho e a existência”, “A
psicologia de 1850 a 1950”, “A pesquisa científica em psicologia” e,
principalmente, no opúsculo Doença mental e personalidade, que mais tarde
será renegado pelo autor sob o pretexto de que se trata de uma obra à parte,
que confunde perspectivas e aborda um problema insolúvel. 22 Este último
merece destaque, contudo, tendo em vista que se trata de um estudo cuja
modéstia se restringe ao pequeno número de páginas: além da afinidade
com os demais ensaios mencionados, revela-se um ambicioso libelo contra
as ilusões, os mitos e os preconceitos que grassam indistintamente no campo
psicológico desde meados do século XIX. Foucault defende a adoção de um
ponto de partida rigoroso, no qual seja concedido o devido crédito ao
homem e à antropologia – o que retrata seu indisfarçável otimismo
humanista nos anos 50. Essas análises histórico-filosóficas centradas na
psicologia carecem de qualquer parentesco explícito com Nietzsche. 23

21
“A trajetória da questão: Was ist der Mensch? [O que é o homem?] no campo da filosofia se
encerra na resposta que a recusa e a desarma: der Übermensch [o super-homem] (Foucault,
M. Introduction à l’Anthropologie de Kant, p. 79). Esse ensaio teria sido batizado
inicialmente de Gênese e estrutura da Antropologia de Kant, numa alusão à obra que
Hyppolite dedica à elucidação da Fenomenologia do espírito de Hegel (cf. Defert, D.
“Chronologie” in Dits et écrits, I, p. 23).
22
Foucault, M. “Interview de Michel Foucault” (com J. François e J. de Wit) in Dits et écrits,
IV, p. 665.
23
Se bem que – como atesta o relato de Daniel Defert – no verso do original datilografado
de Doença mental e personalidade podemos ler que “existem três experiências vizinhas: o
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 175

No entanto, o projeto foucaultiano de reescrever a história da


psicologia sofre uma profunda inflexão ao adotar um referencial
nietzschiano. Apesar de manter a antiga problemática (o aparecimento do
saber psicológico), a posição que o homem ocupa nesse processo não será
mais a de fundamento. A passagem de um projeto teórico para outro foi
lenta: a redação de História da loucura se estendeu por cinco anos. 24 E, sua
grande novidade residiu na adoção da trilogia trágica – nascimento, morte,
renascimento – para elucidar em que condições surgiu a Psicologia. Além
disso, a presença de Nietzsche em História da loucura ultrapassa a interface
com o trágico: a análise genealógica da relação entre sujeito e moral, apesar
de não ter sido comentada explicitamente, se revela um aspecto decisivo
para explicar como a psiquiatria moderna encontra-se associada ao
surgimento de uma interioridade subjetiva. Vemos, assim, conviver, num
único texto, o primeiro Nietzsche, que faz uma apologia da arte em
detrimento do conhecimento, pois ela é a única capaz de conhecer a verdade
do mundo, com o terceiro, da análise genealógica dos valores.
A segunda presença significativa de Nietzsche na arqueologia
ocorre, em 1966, com As palavras e as coisas. Ela está diretamente associada
à célebre frase de que “o homem é uma invenção cuja arqueologia de nosso
pensamento mostra facilmente a data recente. E talvez o fim próximo”. 25
Não estamos, contudo, diante de uma novidade, tendo em vista que no
ensaio introdutório de sua tese complementar, Foucault já manifestava um
descontentamento para com o insidioso paradigma antropológico da
modernidade. Isso indica que as etapas do percurso que almejamos
reconstituir, apesar de conjugarem um objetivo comum, não obedecem a
um desdobramento linear, cumulativo. A polêmica suscitada pelo combate
foucaultiano ao humanismo está respaldada pela tese zaratustriana do
“super-homem”, mas também se refere ao privilégio da linguagem em
relação ao sujeito defendida pelo Nietzsche de Genealogia da moral. Aliás, a
reflexão literária de Foucault se fará a partir de um desdobramento dessa

sonho, a embriaguez e a desrazão” e que “todas as propriedades apolíneas definidas n’A


origem da tragédia formam o espaço livre e luminoso da existência filosófica’” (Defert, D.
“Chronologie” in Dits et écrits, I, p. 20).
24
Foucault relata que escreveu História da loucura no período que vai de 1955 a 1960 (cf.
Foucault, M. “Structuralism et poststructuralisme” (entrevista com G. Raulet) in Dits et
écrits, IV, p. 436.
25
Foucault, M. Les mots et les choses, p. 398.
176 Luiz Celso Pinho

ideia. Destacamos também que, antes de advogar o ocaso do homem,


Foucault redigiu um texto intermediário – O nascimento da clínica (1963) –
no qual esboça em que condições o indivíduo se tornou, pela primeira vez,
objeto de conhecimento no discurso médico através do discurso produzido
sobre o corpo doente. Por sua vez, a questão da morte do sujeito no
discurso literário será tematizada, no mesmo ano, em Raymond Roussel. No
final da década de 60, Nietzsche ainda será saudado por “libertar a história
do pensamento de sua sujeição transcendental”. 26
Não acreditamos, contudo, que o alcance nietzschiano da
arqueologia se encerre nessas utilizações pontuais. Há toda uma
cumplicidade entre as pesquisas histórico-filosóficas de Foucault e o modo
como Nietzsche avalia nossa cultura. Daí não podermos deixar passar
despercebida a questão do niilismo. Sabemos que Foucault não o aborda
diretamente, e que tal noção visa retratar uma longa tendência de
desvalorização do mundo terreno, responsável pelo enfraquecimento da
vida, e símbolo de uma civilização que domesticou seus instintos. Esses
aspectos não estão presentes na arqueologia, que, aliás, se detém num
contexto epistemológico bem delimitado: o da formação do conceito de
homem na modernidade. Mas, o conteúdo da interpretação nietzschiana do
niilismo se faz sentir no trabalho de Foucault, seja através da dissociação
“anti-Iluminista” entre história e progresso, seja por subverter a verdade do
homem. A própria atividade filosófica requer, com isso, uma redefinição: ao
invés de sonhar com o espaço idílico das essências ou com o tempo imóvel
das ideias, ela deve despertar para a tarefa verdadeiramente crítica do
diagnóstico.
2.2 A história genealógica
A partir de 1969, Foucault começa a dar indícios de que sua leitura de
Nietzsche passa por um processo de reformulação. Gradualmente, os temas
que serviram de apoio para a argumentação de História da loucura, O
nascimento da clínica e As palavras e as coisas são deixados para trás,
minimizados ou adquirindo outra roupagem – se bem que o interesse pela
irrupção de uma ciência do indivíduo tenha se mantido como meta
prioritária de suas pesquisas. Um sinal prematuro do desprendimento
foucaultiano em relação ao que outrora lhe pareceu imprescindível diz
respeito à experiência trágica. Após ocupar um lugar de destaque na tese de

26
Foucault, M. L’archéologie du savoir, p. 264.
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 177

doutorado, sua importância só poderá ser pressentida em duas ocorrências


isoladas: uma em 1963, ao retratar a capacidade da literatura de transgredir
e contestar, e outra no ano seguinte, ao servir de referência para a ideia de
que a interpretação constitui uma tarefa inesgotável, sem fim, inacabada. 27
Para A arqueologia do saber, obra que se debruça sobre cada etapa das
análises histórico-filosóficas dos anos 60, constatamos o desinteresse em
“reconstituir o que poderia ser a própria loucura, tal como ocorreria,
inicialmente, em alguma experiência primitiva, fundamental, surda, muito
pouco articulada, e tal como teria sido organizada em seguida (traduzida,
deformada, deturpada, reprimida talvez) pelos discursos e pelo jogo oblíquo,
frequentemente retorcido, de suas operações”. Sendo que Foucault
complementa em nota: “isto é escrito contra um tema explícito em História
da loucura, o qual é nele retomado várias vezes e de modo singular no
Prefácio”. 28 Em suma, a pesquisa arqueológica do trágico se torna obsoleta
e, até mesmo, inconveniente.
O combate ao humanismo, por sua vez, símbolo do período
arqueológico, não desaparece, mas perde qualquer laço de parentesco com o
tema do “super-homem”. Um livro como Assim falou Zaratustra deixa de
servir de inspiração, a ponto de, ao ser indagado, em 1972, sobre “qual”
Nietzsche o agradava, Foucault responde taxativamente: “não é,
evidentemente, o de Zaratustra, mas o de O nascimento da tragédia e o de
Genealogia da moral”. 29 Paradoxalmente, uma das consequências
filosoficamente mais instigantes que acompanha a tese do “super-homem” –
a crítica da racionalidade – ocupa lugar de destaque na primeira conferência
de A verdade e as formas jurídicas (1974). De modo geral, a polêmica
suscitada pelo tema da “morte do homem” adquire um tom ameno,
chegando a se tornar um pouco menos intolerável para os defensores do
humanismo, conforme podemos notar, num ensaio do final da década de
60, “O que é um autor?”, onde Foucault admite que pretendia “ver de que
maneira, segundo quais regras se formou e funcionou o conceito de

27
Cf. Foucault, M. “Débat sur la poésie” in Dits et écrits, I, p. 398-9, e “Nietzsche, Freud,
Marx” in Dits et écrits, I, p. 570-1.
28
Foucault, M. L’archéologie du savoir, p. 64-5. Foucault adota uma postura nominalista e
nega a existência do objeto “loucura” (ib., p. 45-6).
29
Foucault, M. “Les problèmes de la culture. Un débat Foucault-Preti” (entrevista) in Dits et
écrits, II, p. 372.
178 Luiz Celso Pinho

homem”. 30 Aliás, tal posicionamento já havia sido timidamente exposto na


quinta e última parte de A arqueologia do saber, através da seguinte
declaração: “não quis excluir o problema do sujeito”, mais sim “definir as
posições e as funções que o sujeito podia ocupar na diversidade dos
discursos”. 31 Ocorre, deste modo, no curto espaço de três anos, o
deslocamento de um projeto negativo, ou seja, das condições de
possibilidade da morte do sujeito, para a análise, de cunho positivo, dos
diversos “lugares ocupados” pelo autor no mundo dos discursos.
Não se pretende, com isso, sugerir que Foucault tenha se afastado
da proposta inicial de denunciar a proliferação insidiosa de noções
antropológicas. Porém, a redução do caráter polêmico de antigas hipóteses
de trabalho nos leva a concluir que o rumo de suas pesquisas está sendo
reavaliado. Também chama a atenção o abandono de qualquer menção à
literatura e, por extensão, à apologia da linguagem. Por fim, na digressão
introdutória de A arqueologia do saber, Nietzsche aparece como um dos
expoentes do rompimento da soberania do sujeito, tendo em vista que seu
método genealógico se mostra incompatível com a “pesquisa de um
fundamento originário que faça da racionalidade o telos da humanidade”. 32
No entanto, o descentramento nietzschiano em relação à razão, ao progresso
e à totalização se aplica igualmente a Marx e ao estruturalismo.
Apesar dessas mudanças de ênfase, a afinidade com Nietzsche
permanece inalterada nos anos 70. Daí o emprego do termo genealogia em
Vigiar e punir, a homenagem estampada no título A vontade de saber ou a
tese de que ele é o “melhor, mais eficaz e atual” modelo para a análise das
relações de poder no mundo ocidental. 33 Mas um exame minucioso revela
que o modo como Foucault incorpora o referencial nietzschiano às suas
pesquisas histórico-filosóficas sofre uma sutil, porém reveladora,
modificação. Há mudanças de nítida visibilidade, como a do papel
atribuído à Genealogia da moral: se, nos anos 60, esse livro esteve em maior
ou menor escala associado à elucidação das bases morais do conhecimento
psiquiátrico, ao surgimento de uma região onde reina a linguagem e ao fim
do primado antropológico, sua inserção nos anos 70 tanto permite conceber

30
Foucault, M. “Qu’est-ce qu’un auteur?” (ensaio) in Dits et écrits, I, p. 817.
31
Foucault, M. L’archéologie du savoir, p. 261.
32
Ib., p. 22.
33
Foucault, M. A verdade e as formas jurídicas, Primeira Conferência, p. 9.
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 179

um novo modelo de escrita da história quanto está em consonância com a


tese foucaultiana de que houve um processo de interiorização da
subjetividade.
Além disso, os conceitos nietzschianos de vontade e genealogia
passaram por uma lenta gestação. São abordados inicialmente em A ordem
do discurso. Mas logo adquirem novas feições no resumo do primeiro curso
do Colégio de França, “A vontade de saber”, e no ensaio “Nietzsche, a
genealogia, a história”, ambos de 1971. Inicialmente, as duas rubricas
aparecem atreladas a problemáticas inerentes ao período arqueológico,
como no caso da desqualificação da linguagem do louco e da formação de
saberes sobre o homem. Com o passar do tempo, contudo, a vontade de
verdade se presta a um estudo comparativo das teorias do conhecimento
inventadas pelos filósofos e a genealogia, por sua vez, suscita uma
reformulação dos pressupostos metodológicos que norteiam a escrita da
história.
Temos, a partir dessa dupla metamorfose, um conjunto de
pesquisas de inspiração nietzschiana que constituem uma “genealogia do
poder”, ou “microfísica do poder” (como aparece em Vigiar e punir), ou
“analítica do poder” (após a publicação de A vontade de saber). A dificuldade
em acompanhar como se dá a lenta assimilação de conceitos nietzschianos
reside no fato de que Foucault praticamente não ter comentado nada sobre
as etapas desse processo. Além do mais, a renovação da nomenclatura
nietzschiana não decorre de alguma modalidade de empréstimo
terminológico, mas sim da necessidade de elaborar um instrumental teórico
que não seja de base metafísica ou antropológica.

2.3 Para além da história genealógica?


A primeira parte da história foucaultiana da sexualidade recorre à genealogia
nietzschiana no intuito de transformá-la numa ferramenta capaz de dar
conta da matriz política das ciências do homem. Seu desdobramento,
contudo, nosso objeto de análise agora, abandona o projeto inicial de
investigar a formação do sujeito a partir de práticas confessionais para
abordar como “os indivíduos foram levados a exercer sobre eles mesmos, e
sobre os outros, uma hermenêutica do desejo”. 34 Além disso, apenas no
texto introdutório de O uso dos prazeres, que também estabelece as diretrizes

34
Foucault, M. L’usage des plaisirs, p. 12.
180 Luiz Celso Pinho

teóricas dos volumes seguintes, encontramos tênues indícios que nos


permitem inferir certa afinidade entre os dois, como no caso da passagem
em que Foucault ressalta a necessidade de implementar, “a propósito do
desejo e do sujeito desejante, um trabalho histórico e crítico”, ou seja, uma
“genealogia”. 35
Mas é preciso ressaltar que essa indicação se mostra vaga.
Inicialmente, a introdução não nos fornece elementos suficientes para
delinearmos o que vem a ser a história genealógica no caso da
problematização ética do homem do desejo. Ficamos, na verdade, sem saber
se há de fato total ruptura ou não com os anos 70. Se bem que Foucault dá
a entender que a “genealogia da ética” tem raízes bem extensas, pois
“encontra-se no ponto de cruzamento de uma arqueologia das
problematizações e de uma genealogia das práticas de si”. 36 Além de afirmar
que considera indispensável realizar um deslocamento teórico “para analisar
o que é designado como ‘o sujeito’”. 37 Ou seja, o genealogista aborda os
processos de formação da subjetividade, sem considerá-la uma instância
originária, o que se mostra claramente uma invariante no pensamento
foucaultiano. Por fim, enquanto a questão dos dispositivos disciplinares
conjugava a genealogia com o elemento poder, na questão das técnicas de si,
surge o elemento verdade, o que aponta para uma direção não apenas
inédita como também portadora de resultados ainda imprevisíveis.
No que diz respeito às entrevistas, ocorre uma situação
diametralmente oposta; porém, ainda mais complexa. Através delas,
podemos circunscrever um conjunto significativo de pistas, só que elas ora
se mostram bastante genéricas, ora estabelecem filiações que não são
efetivamente corroboradas pelas análises histórico-filosóficas de O uso dos
prazeres e O cuidado de si (ambos de 1984). É o que percebemos quando
nos detemos especificamente na questão da conduta individual.
Nietzsche avalia a cultura ocidental como um todo e saúda o
período pré-socrático e a cultura renascentista por terem atingido um
esplendor existencial. No mesmo sentido, Foucault investiga a
problematização ética entre gregos, romanos e cristãos, chegando a esboçar
seus desdobramentos no mundo moderno e contemporâneo. Apesar dessa

35
Ib., p. 12.
36
Ib., p. 21.
37
Ib., p. 13.
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 181

afinidade programática, quando nos detemos nas hipóteses históricas e


teóricas de cada um verificamos um nítido descompasso. Enquanto o
primeiro toma como referência imutável a relação entre cultura judaico-
cristã e desvalorização da vida, a genealogia foucaultiana revela sucessivas
problematizações éticas através das quais ocorre um variado intercâmbio de
temas. Deste modo, a chave única de que Nietzsche se utiliza para avaliar a
moral ocidental – o niilismo – não se revela válida para Foucault. É curioso
que este último tenha se mantido extremamente econômico nos
comentários sobre suas teses anti-nietzschianas, como se quisesse passar a
impressão de que continuava atrelado, de alguma forma, ao legado do
filósofo alemão. Não nos cabe especular o que ele tinha em mente ou
mesmo justificar o que deixou de ser dito, mas também não podemos deixar
passar despercebido sua intenção de atenuar as divergências com Nietzsche,
como se nenhuma modificação significativa tivesse se produzido com
relação a ele.
Apesar de a ética nietzschiana se apresentar de forma sistemática em
Genealogia da moral através da oposição entre dois modelos de conduta
perante a vida – o dos “senhores” e o dos “escravos” –, seus principais
aspectos encontram-se disseminados por várias obras: a dissecação
psicológica da moralidade (Humano, demasiado humano); a fidelidade ao
que cada um tem de singular (A gaia ciência); a afirmação do eterno retorno
(Assim falou Zaratustra), a auto-superação trágica (Ecce homo). Há ainda
toda uma discussão de cunho ético-existencial que atravessa sua obra de
uma ponta a outra, como no caso das passagens relativas à força criadora, à
grande saúde, ao vínculo entre vida e arte, à recusa do livre-arbítrio. Quanto
à ética foucaultiana, ela apresenta dois momentos: o primeiro diz respeito à
análise da problematização ética no mundo greco-romano e ao esboço de
seus desdobramentos na era cristã, cujo resultado consiste em demonstrar o
quanto foi possível se afastar ou comungar dos princípios de uma “estética
da existência”; o segundo, por sua vez, resulta de uma reflexão que Foucault
desenvolve para estabelecer as bases de um ethos pessoal. É neste sentido que
a história foucaultiana da sexualidade acaba culminando numa discussão
sobre o papel das “tecnologias de si” na invenção de outros referenciais
sócio-políticos na modernidade.
Nossa comparação entre a ética nietzschiana e a ética foucaultiana
revela desde idiossincrasias até antagonismos. No entanto, Foucault nos
182 Luiz Celso Pinho

despista da distância que ele toma em relação a Nietzsche. Nas diversas


entrevistas em que o nome dele é evocado, sempre de forma breve, ora é
considerado sua principal influência, sendo homenageado com elogios
desconcertantes (do tipo: “sou simplesmente nietzschiano”), ora é integrado
à totalidade de sua obra de modo retrospectivo, chegando mesmo a ser tido
como condição de possibilidade da “genealogia da ética”.

3 Conclusão
A partir das pesquisas histórico-filosóficas de Foucault, fica patente que não
houve um diálogo ininterrupto com Nietzsche. Estamos diante de um
percurso sinuoso e intrincado, cujas peças que dispomos fazem parte de um
quebra-cabeça repleto de lacunas. Isso não significa que tenha faltado
coerência interna ao que foi dito e escrito por Foucault. O alerta feito por
Kant de que “não raro acontece, tanto na conversa corrente, como em
escritos, compreender-se um autor, pelo confronto dos pensamentos que
expressou sobre seu objeto, melhor do que ele mesmo se entendeu, isto
porque não determinou suficientemente o seu conceito e, assim, por vezes,
falou ou até pensou contra a sua própria intenção” 38 , não se aplica a
Foucault. Vinculá-lo a uma suposta inconsistência teórica ou ausência de
rigor implica simplificação, já que ele pretendia, acima de tudo, escapar da
exigência – de cunho moral – de assumir uma identidade fixa, imutável.
Daí o desabafo na introdução de A arqueologia do saber: “que ela nos deixe
livres quando se trata de escrever”. 39
O estilo de Foucault está muito próximo de Proust, para quem “a
obra de um escritor é apenas uma espécie de instrumento ótico, oferecido ao
leitor a fim de lhe permitir discernir o que, sem o livro, ele não teria, talvez,
visto em si mesmo [...]: experimente se você enxerga melhor com esta lente,
com aquela, ou com outra”. 40 Também se aproxima do método de colagem
filosófica desenvolvido por Deleuze, no qual o texto estudado sofre
“pequenas ou grandes torções”, sendo “muitas vezes extraído de seu
contexto”, pois “os conceitos – considerados como objetos de um encontro,
como um aqui e agora, como coisas em estado livre e selvagem – são

38
Kant, I. Crítica da razão pura, p. 309.
39
Foucault, M. L’archéologie du savoir, p. 28.
40
Proust, M. A la recherche du temps perdu (“Le temps retrouvé”), p. 307-8.
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 183

utilizados como instrumentos, como técnicas, como operadores,


independentemente das inter-relações conceituais próprias do sistema a que
pertencem”. 41 E se seus comentários a respeito de Nietzsche às vezes
extrapolam os limites de segurança de uma hermenêutica fechada em si
mesma, basta nos lembrarmos do conselho de Heidegger, segundo o qual
“toda explicação não deve somente extrair o sentido do texto, deve também
[...] lhe fornecer o seu”, ou ainda: “uma verdadeira explicação nunca
compreende o texto melhor do que o compreendeu seu autor; ela a
compreende de outro modo”. 42
Neste ensaio assinalamos os deslocamentos detectados na obra de
Foucault ao longo de quase trinta anos. Nossas análises buscaram mostrar o
quanto e como cada etapa dos escritos foucaultianos está articulada ao nome
de Nietzsche. No entanto, após a retumbante homenagem feita ao seu
legado nas páginas de História da loucura e As palavras e as coisas, Foucault
vai lhe reservando um cada vez maior silêncio. Não se pode falar
propriamente de um afastamento progressivo, já que tanto na “arqueologia
do saber” quanto na “genealogia do poder” sua presença remete à obtenção
de inestimáveis subsídios teóricos. Mesmo nas divergências verificadas na
“genealogia da ética”, ainda assim podemos assinalar alguns aspectos – de
caráter abrangente, sem dúvida – que nos proporcionam um déjà-vu
nietzschiano, como no caso da avaliação artística da existência.
Nossa hipótese é de que a leitura foucaultiana de Nietzsche varia
conforme a época e a problemática envolvida: daí este último desempenhar
um papel específico na “arqueologia do saber” dos anos 60, na “genealogia
do poder” da década de 70 e na “genealogia da ética” desenvolvida entre
1980 e 1984.
Uma primeira forma de “afinidade” se faz notar a partir da recusa
do primado antropológico nas Ciências do Homem, na Filosofia e na
História, como se pode notar na ponte que a argumentação de História da
loucura e As palavras e as coisas estabelece com temáticas associadas a O
nascimento da tragédia e Assim falou Zaratustra – no caso, o pensamento
trágico e a promessa-ameaça do super-homem.
Uma segunda modalidade de “afinidade” está relacionada ao efeito
positivo das relações de força. Apesar da função estratégica de Nietzsche

41
Machado, R. “A geografia do pensamento”, p. 16.
42
Heidegger, M. “Le mot de Nietzsche ‘Dieu est mort’”, p. 176.
184 Luiz Celso Pinho

permanecer inalterada, Foucault não o leva ao pé da letra, como fizera no


período arqueológico: a partir dos anos 70, começa a haver uma lenta
gestação de temáticas nietzschianas, precisamente dos conceitos de vontade
de verdade e genealogia. E isso acontece, não se pode deixar de enfatizar, em
situações para os quais tais noções não haviam sido concebidas. Se, para
Nietzsche, tratava-se, respectivamente, de elucidar a crença num mundo
verdadeiro e entender a formação dos valores morais a partir de uma
perspectiva ao mesmo tempo filológica e agonística, para a “genealogia do
poder” foucaultiana o que importa é desenvolver modelos não-metafísicos
de inteligibilidade dos processos históricos e do conhecimento.
Uma terceira, e paradoxal, “afinidade” ocorre no estudo das
modalidades de relação consigo. Trata-se da que se revela mais perturbadora
por incorporar assumidamente teses anti-nietzschianas. Enquanto que nas
etapas anteriores, Nietzsche era claramente evocado, seja diretamente como
parâmetro para a avaliação arqueológica da cultura, seja indiretamente como
modelo metodológico; no início dos anos 80, verificamos, de imediato, uma
ausência: as duas análises histórico-filosóficas do período em nenhum
momento se referem a ele ou lhe fazem qualquer alusão, exceto por
subordinar vagamente sua pesquisa das formas de relação consigo a uma
abordagem genealógica.
Examinando com mais acuidade o problema, notamos inclusive
que há um nítido descompasso entre os dois, apesar de Nietzsche também
se respaldar no mundo grego para atribuir à vida valores estéticos. No
entanto, enquanto ele se refere ao eterno retorno, à adesão incondicional à
fatalidade (o amor fati), à auto-superação, ao tornar-se o que se é, a
problematização foucaultiana da conduta frente à existência privilegia a
liberdade através do trabalho sobre si e da construção racional de uma bela
vida (sempre respaldado nos trabalhos de helenistas e latinistas como Pierre
Hadot e Peter Brown). Além do mais, Foucault não vincula o eterno
retorno a uma ética nietzschiana (caminho pela qual envereda Deleuze, por
exemplo). Quando muito, o compreende, a partir da influência de
Klossowski, 43 como uma noção dessubjetivante. A apologia de Zaratustra à
vida também não merece nenhuma palavra.

43
Na questão do eterno retorno “o acento deve ser colocado sobre a perda da identidade
dada” (Klossowski, P. “Oubli e anamnèse dans l’experience vécue de l’eternel retour du
Même”, p. 94).
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 185

Essa frontal divergência é atenuada pelo conteúdo de entrevistas da


época que nos induzem a pensar que ambos encontram-se unidos por uma
sólida aliança. Nesses registros – que em sua maioria foram feitos de
improviso e não passaram por um processo de revisão – Foucault radicaliza
sua leitura de Nietzsche, tendo em vista que tanto dá sinais de que diverge
dele quanto busca integrá-lo ao conjunto de suas análises histórico-
filosóficas.
Nas três formas de interação aqui delineadas procuramos mostrar
que a cada etapa da obra de Foucault ocorrem diferentes interações com
imagens e conceitos nietzschianos. Deparamo-nos com afinidades que não
se encadeiam de modo linear, que não buscam um significado mais
verdadeiro, que, inclusive, correm o risco de se anular mutuamente.
Contudo, não havia ensinado Zaratustra que “retribui-se mal um mestre,
quando se permanece sempre e somente discípulo”? 44 Fomos seduzidos por
esse misto de apego e desprendimento de Foucault no trato com a letra
nietzschiana. Um filósofo, sentencia Nietzsche, deve se abster de casar. 45 Se
com essa fórmula corrente na antiguidade greco-romana pretende invalidar
o ritual jurídico-religioso do matrimônio, então não passa da expressão de
um sentimento pessoal; se, ao contrário, desaprova a união entre a atividade
filosófica e a busca de segurança, de uma estabilidade que seja mantida até o
último suspiro, ou ainda, de uma afinidade irrestrita, que necessite ser
reafirmada a cada discurso pronunciado ou registrado no papel, então a
lição se mostra, do ponto de vista da liberdade do pensamento,
extremamente valiosa.

44
Nietzsche, F. Assim falou Zaratustra, I, “Da virtude que dá”, § 3.
45
“Qual grande filósofo foi casado? Heráclito, Platão, Descartes, Spinoza, Leibniz, Kant,
Schopenhauer não o foram. Um filósofo casado é coisa de comédia, eis minha tese”
(Nietzsche, F. Genealogia da moral, III, § 7).
186 Luiz Celso Pinho

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Paris: Gallimard/Flammarion, 1986.
Natureza e liberdade: a questão ética
da posição indeterminista de Karl Popper

Paulo Eduardo de Oliveira *

Resumo: O presente trabalho analisa a perspectiva indeterminista da epistemologia de Karl


Popper. A partir da compreensão unitária do Racionalismo Crítico, como epistemologia e
filosofia política, ao mesmo tempo, o artigo mostra em que sentido se pode afirmar que a
proposta de Popper revela uma questão ética de largo alcance e interesse na filosofia
contemporânea, sobretudo no que se refere à análise da crise da cientificidade moderna.
Palavras-chave: Ética; Indeterminismo; Popper; Racionalismo Crítico

Abstract: This paper analyzes the indeterministic view of the epistemology of Karl Popper.
Since the unit understanding of Critical Rationalism, as epistemology and political
philosophy at the same time, the article shows in what sense the Popper's proposal reveals an
ethical issue of broad scope and interest in contemporary philosophy, particularly in the
analysis of the crisis of modern scientism.
Keywords: Critical Rationalism; Ethics; Indeterminism; Popper

1 Para uma biografia do indeterminismo popperiano


A filosofia de Karl Popper nasce profundamente arraigada às condições
históricas de sua vida. Por isso, sua Autobiografia Intelectual torna-se, em
certa medida, texto obrigatório para fundamentar a exegese de sua obra. Em
relação à noção de indeterminismo e liberdade, que nos interessa aqui,
cremos também se justificar a atitude de debruçar-se sobre sua história
pessoal no intento arqueológico de compreender as raízes que sustentam sua
filosofia. As passagens aqui destacadas referem-se à narração dos fatos
ocorridos no ano de 1919.
Popper inicia falando da revolução interna que teve início
precisamente quando a estrutura política de sua terra natal entrou em
colapso.

A derrocada do Império Austríaco e as conseqüências da Primeira Guerra – a


fome, as greves salariais em Viena, a inflação galopante [...] destruíram o mundo

*
Professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: oliveira.p@pucpr.br.
Artigo recebido em 29.10.2009, aprovado em 19.12.2009.

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 189-209


190 Paulo Eduardo de Oliveira

em que eu havia crescido. Teve início a fase da guerra civil, que culminou com a
invasão da Áustria pelas tropas de Hitler e deu margem à Segunda Guerra
Mundial. Eu estava com 16 anos quando a guerra terminou, e a revolução incitou-
me a preparar minha própria revolução 1 .

Continua seu relato mostrando as condições em que se tornou


antimarxista, atitude que vai conservar durante toda a vida e que, em certa
medida, vai definir muitas de suas posições teóricas, tanto no que se refere à
ética e à política quanto à epistemologia.

Aos 17 anos tornei-me um antimarxista. Compreendi que o marxismo tinha


cunho dogmático e que era incrível a sua arrogância. Terrível a gente admitir que
possuía uma espécie de conhecimento que transformava em dever arriscar a vida de
terceiros em prol de um dogma acolhido sem crítica ou de um sonho que, afinal,
poderia jamais concretizar-se. E isso era particularmente aterrador em se tratando
de intelectuais, de pessoas que sabiam ler e pensar. E era deprimente a idéia de
haver caído na armadilha 2 .

Mostra, em seguida, que seu antimarxismo não significava, de


imediato, uma rejeição do socialismo. A rejeição futura deste, contudo, foi
conseqüência da falta de liberdade que tal regime estabelece. A liberdade,
desde as primeiras linhas da obra popperiana, aparece como pano de fundo,
como condição primeira, como ponto de partida.

Continuei socialista por vários anos, mesmo após rejeitar o marxismo. E se existisse
um socialismo capaz de combinar-se com a liberdade individual, eu seria ainda
hoje socialista. De fato, nada poderia ser mais aprazível do que viver uma vida
modesta, simples e livre, numa sociedade igualitária. Foi necessário algum tempo
para que eu percebesse que isso não passava de um sonho; que a liberdade é mais
importante do que a igualdade; que a tentativa de chegar à igualdade põe em
perigo a liberdade e que, perdida esta, aquela nem chega a implantar-se entre os
não-livres 3 .

Apesar do desencanto, Popper admite o significado intelectual de


seu encontro com o marxismo, mostrando as atitudes antidogmáticas que
dele aprendeu, ainda que de modo indireto e à revelia.

1
Popper, 1977, p. 38.
2
Popper, 1977, p. 40-41.
3
Popper, 1977, p. 42-43.
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 191

O encontro com o marxismo foi um dos acontecimentos mais notáveis de meu


desenvolvimento intelectual. Ele ensinou-me várias lições, que nunca olvidei.
Ensinou-me a sabedoria do dito de Sócrates, ‘Eu sei que não sei’. Transformou-me
num falibilista e me ensinou o valor da modéstia intelectual. E me tornou
consciente das diferenças entre o pensamento dogmático e o pensamento crítico 4 .

Por fim, Popper destaca, ainda nos relatos de 1919, seu encontro
com Einstein e a teoria da relatividade. Sem dúvida, este foi o encontro
decisivo de sua formação intelectual e não é exagero dizer que ali se deu o
início da formulação indeterminista do pensamento de Popper.

Einstein fez uma preleção em Viena a que compareci. Lembro-me apenas de que
fiquei deslumbrado.[...] Entretanto, o que mais me impressionou foi a explícita
asserção de Einstein, de que consideraria insustentável a sua teoria caso ela viesse a
falhar em certas provas. [...] Aí estava uma atitude completamente diversa da
atitude dogmática de Marx, Freud, Adler e mesmo de alguns de seus sucessores.
Einstein procurava experimentos cruciais, cujo acordo com suas previsões não
bastaria para estabelecer a teoria da relatividade, mas cujo desacordo, como ele
próprio insistia em acentuar, revelaria a impossibilidade de aceitar-se a teoria 5 .

Em Einstein, Popper reconhece a verdadeira atitude científica e, a


partir dela, desenvolve as linhas fundamentais de seu racionalismo crítico.

Essa era, sentia eu, a verdadeira atitude científica. Ela diferia por completo da
atitude dogmática, que constantemente proclama haver encontrado ‘verificações’
de teorias prediletas. Cheguei, assim, em fins de 1919, à conclusão de que a
atitude científica era uma atitude crítica, em que não importam as verificações,
mas as provas cruciais – provas que poderiam refutar a teoria em exame,
conquanto jamais pudessem estabelecê-la ou prová-la 6 .

Embora estas citações possam parecer exageradas e extremamente


longas, parecem-nos de fundamental importância porque revelam a base
sobre a qual Popper assentou suas mais profundas convicções
epistemológicas e éticas. Mostram, sobretudo, que ele estava atento ao
caráter indeterminista da ciência, sobretudo da física de Einstein, em
oposição ao dogmatismo do modelo clássico da física e das teorias
emergentes em seu tempo. Revelam, ainda, a atitude pessoal que Popper

4
Popper, 1977, p. 43.
5
Popper, 1977, p. 43-45.
6
Popper, 1977, p. 45.
192 Paulo Eduardo de Oliveira

assumiu diante de tais fatos: ele não se tornou dogmático, assumindo o ideal
que lhe era apresentado; nem tampouco se tornou cético diante dos limites
teóricos que percebia. Ao contrário, assumiu uma posição ativa diante da
ciência e da ética, contribuindo para a construção de um modelo
epistemológico que minimizasse os limites observados até então.

2 Crise da ciência clássica: ruptura domodelo determinista


Para a compreensão do nascimento da posição indeterminista de Popper,
deve-se considerar, além dos fatos pessoais de sua vida, alguns elementos da
história da ciência. Desde a segunda metade do século XIX, em muitos
campos da ciência, surgiu uma série de transformações, abalando a
estabilidade da ciência nascida do ideal de Galileu e Newton e defendida
pelo Positivismo de Comte. Apoiada, sobretudo, no modelo da física de
Newton, a ciência moderna imaginou ter conseguido chegar ao
estabelecimento da verdade de modo absoluto e definitivo. A física
newtoniana, assim, se tornou o paradigma da ciência positivista.
Algumas de suas principais características são fundamentais para
compreendermos o significado filosófico da crise da ciência moderna.
Primeiramente, deve-se considerar que a física de Newton observa as
exigências do método experimental desenvolvido por Galileu, no qual se
destaca: a materialização da ciência, a geometrização do espaço, a
matematização da natureza e a aplicação da lógica indutiva para fins de
experimentação do mundo natural. A materialização da ciência mostra que
a natureza não está vinculada a forças ou energias sobrenaturais. Todos os
eventos e fenômenos têm uma causa estritamente natural e, dessa forma, é
possível determinar a razão de qualquer evento. Em outras palavras, trata-se
do processo de secularização da ciência. Além de não depender da
implicação do sobrenatural, a ciência não se dedica senão à ordem natural
das coisas. O que escapa do espectro natural também foge dos limites da
ciência. A geometrização do espaço é outra nota fundamental da física
newtoniana. Enquanto o espaço, na concepção antiga e medieval, está
vinculado à noção religiosa do mundo, a modernidade mostra que o espaço
não é outra coisa que a disposição natural da matéria. Herdeiro da revolução
copernicana, Newton faz de sua física uma ampliação do grau de
materialização do espaço. Além disso, Newton consegue traduzir a natureza
em caracteres matemáticos, como Galileu sugeriu. Disso deriva a
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 193

possibilidade de produzir conhecimento verdadeiro, exato, preciso,


confiável e matematicamente demonstrável. A ciência newtoniana,
portanto, é a concretização do ideal da ciência absolutamente verdadeira.
Por fim, a aplicação da lógica indutiva à experimentação da natureza coroa
o ideário newtoniano. Pela indução, mostra-se que a natureza segue uma lei
de regularidade extrema, pela qual é possível determinar a relação causal
entre os fenômenos do mundo natural. Uma vez dominada a lógica da
natureza, nenhum fenômeno deve surpreender a ciência.
Além disso, Ilya Prigogine mostra que a física de Newton
modificou o significado filosófico da flecha do tempo e isso é de
fundamental importância para a compreensão dos resultados a que chegou a
física newtoniana 7 . Para ele, é preciso compreender o significado da
principal equação da física de Newton:

F = m . a (força é igual à massa multiplicada pela aceleração)


Deve-se considerar que:
a = v / t (aceleração é igual à velocidade dividida pelo tempo)
Então, aplicando-se à primeira equação, temos:
F=m.v/t

O que é importante perceber, diz Prigogine, é que o tempo assume


um caráter desprezível, isto é: alterando-se o sinal do tempo, a única
conseqüência é a mudança do sentido do vetor da força obtida. Isso significa
que a única coisa alterada é o sentido do deslocamento de um corpo
qualquer. A flecha do tempo, portanto, é desprezível. Ela não implica na
modificação da natureza, na alteração da ordem do universo ou na
modificação da matéria ao longo do tempo. O tempo serve tão somente
para indicar o sentido do deslocamento de um mundo ontologicamente
estático. A matéria, portanto, é eterna e imóvel do ponto de vista metafísico.
Não é de estranhar que Lavoisier tenha dito que “na natureza nada se perde,
nada se cria, tudo se transforma”.
Portanto, Newton construiu o protótipo da ciência moderna no
qual os principais elementos da sua visão de mundo estão contemplados, ou
seja: a insignificância do tempo, o caráter permanente da matéria e a
natureza regular do mundo físico. Dessa forma, a sua física se tornou o

7
Prigogine, 1996.
194 Paulo Eduardo de Oliveira

modelo de todas as ciências modernas e, de certo modo, contribuiu para a


demarcação científica que culminou no Positivismo de Comte.
De modo sucinto, pode-se dizer que: a) a física newtoniana realizou
o propósito de tornar a ciência um empreendimento absolutamente secular;
b) o caráter altamente matemático da física de Newton estabeleceu o padrão
de precisão e exatidão exigido das ciências; c) a ampla utilização do método
indutivo, por Newton, firmou as bases do empirismo, negando a
possibilidade de produção de conhecimento válido a não ser pela via da
experiência; d) os físicos da escola de Newton acreditam que o universo é,
do ponto de vista ontológico, estático: não existe mudança, nem geração e
nem corrupção, apenas transformação; e) a ciência newtoniana tem um
caráter fortemente determinista, pois está assentada na crença indutivista de
que o universo segue padrões de regularidade que permitem previsibilidade
absoluta dos fenômenos; f) finalmente, a física de Newton expressa aquilo
que o mundo, de fato, é, ou seja, ela corresponde à verdade, pois é uma
teoria que consegue explicar, com sucesso, um mundo que não altera o seu
comportamento.
O incomparável sucesso da física newtoniana não conseguiu
impedir que outras visões de ciência abalassem o edifício erigido por
Newton. O mais importante é notar que a crise nasceu da própria ciência e
não foi resultado de interferências externas à atividade científica. Daí se
compreende o impacto de tal crise que atacou, precisamente, os
fundamentos da física de Newton e de todas as ciências que nela se
espelhavam. Tal crise foi de proporções tão elevadas que exigiu não apenas
algumas reformas no edifício newtoniano, mas o abandono de alguns
pressupostos de sua visão de mundo e de natureza. Depois dessa crise,
nasceu uma nova ciência. Consideremos alguns exemplos significativos de
teorias ou descobertas que contribuíram para aumentar o quadro de crise da
ciência moderna.

a) Teoria da Evolução de Darwin


Embora Darwin tenha dado sua contribuição sobretudo no campo da
biologia, o que ele descobriu abalou significativamente um dos princípios
básicos do modelo de ciência construído por Newton. Trata-se da inclusão
da flecha do tempo no desenvolvimento da ciência. A admissão de que os
seres vivos passam por um processo de evolução permanente mostra que o
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 195

tempo é um elemento significativo nas elaborações científicas. Não


podemos mais pensar que o universo é ontologicamente estático e,
portanto, a previsibilidade dos fatos futuros perde, em muito, o grau de
confiança que nela depositávamos. Assim, temos que admitir que se uma
teoria T1 é considerada verdadeira num dado momento t1, ela poderá ser
substituída por uma teoria T2 num outro momento t2 , pois, por força do
processo de evolução, o mundo que era x, em t1, passou a ser y, em t2.
Isso implica considerar que a flecha do tempo deixa de ter um
caráter desprezível, como a física de Newton sugere, como já dissemos. O
tempo passa a ser um elemento altamente significativo nas elaborações da
ciência. Não se pode mais considerar o universo livre da flecha do tempo e,
portanto, não se pode mais admitir a existência de teorias científicas que
sejam válidas ad aeternum.

b) Teoria Termodinâmica de Boltzmann


A segunda lei da termodinâmica de Boltzmann também é conhecida pelo
nome de lei da entropia. Em poucas palavras, ela afirma que se um sistema
X apresenta, num dado momento t1, concentração de energia maior do que
um outro sistema Y, num outro dado momento t2, a concentração de
energia dos dois sistemas tende a se igualar, de modo irreversível. A
diferença de concentração energética só vai se verificar, novamente, se a um
dos sistemas for acrescida energia proveniente de fora dos dois sistemas.
Com essa teoria, Boltzmann contribui para a relativização das
teorias científicas: o que pode ser considerado válido ou verdadeiro num
dado momento, pode não mais ser verificado num outro espaço de tempo.
Assim como Darwin, Boltzmann resgata a importância da flecha do tempo
nas teorizações acerca do universo. Outra vez, o modelo newtoniano sofre
um ataque de proporções gigantescas, e o determinismo moderno perde
terreno para as concepções indeterministas da natureza e do conhecimento.

c) Teoria da Relatividade de Einstein


A teoria da relatividade é, no campo da física, a principal responsável pela
crise da ciência moderna. Einstein concebeu não apenas um novo modelo
de teoria, mas vislumbrou um outro universo, completamente distinto do
universo de Newton.
196 Paulo Eduardo de Oliveira

A equação básica de sua teoria (E = m. c2) revela alguns aspectos


interessantes. Em primeiro lugar, é preciso destacar que o conceito de força
(F) da física newtoniana é substituído pelo conceito de energia (E). Isso
implica considerar que a própria noção de matéria é alterada. Enquanto
para Newton (F) implica no deslocamento de uma matéria sempre idêntica,
para Einstein (E) implica numa matéria que se transforma em energia. A
matéria se desintegra e passa a ser energia quando submetemos algum corpo
ao quadrado da velocidade da luz.
Em segundo lugar, a forma mesma como se estabelece a teoria da
relatividade denota um outro ponto de partida. Do ponto de vista lógico, a
física de Newton está sustentada na indução. Ao contrário, porém, a física
de Einstein funda-se a partir da dedução. Isso é óbvio: Einstein não fez
nenhum experimento para verificar sua teoria. Ela é simples conjectura,
aceitável pela coerência interna dos argumentos matemáticos que utiliza.
Isso demonstra que Einstein rompe com a própria tradição empirista que
embasa a física clássica newtoniana.
Em terceiro lugar, e esse é o ponto principal que interessa a Popper,
Einstein formulou uma teoria falseável, isto é, passível de ser falseada.
Quando Einstein expôs a sua teoria, em 1919, em Viena, Popper esteve
presente à conferência, quando tinha apenas 17 anos de idade, como vimos
anteriormente. O que mais surpreendeu o jovem filósofo foi a modéstia de
Einstein, dizendo que deveria ser considerada insustentável a sua teoria caso
viesse a falhar em algumas provas 8 . De fato, Einstein não fizera nenhum
experimento para chegar às conclusões que resultaram em sua teoria. Suas
reflexões eram todas teóricas, hipotéticas, conjecturais e, portanto, passíveis
de serem falseadas. Essa é a principal revolução que Einstein causou na
ciência do início do século XX. Com essa sua atitude, rompeu com o
modelo dogmático, estático e absolutamente válido da física de Newton e
das ciências que nela se inspiraram.

d) Princípio de Incerteza de Heisenberg


O físico Heisenberg é outro importante teórico a ser considerado. O
princípio que ele formulou é, por si só, paradigmático. Enquanto o ideal da
ciência clássica, inspirada na física de Newton, exigia precisão absoluta,

8
Popper, 1977, p. 43-54.
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 197

Heisenberg demonstra que a ciência sempre trabalha no limite da incerteza.


Seu princípio é um ataque ao modelo dogmático e positivista da ciência e
torna-se um apelo à construção de uma nova estrutura para o conhecimento
científico.
Em poucas palavras, o princípio de incerteza afirma: Na física
atômica, o cientista sempre trabalha com um grau de aproximação e, jamais,
com a certeza absoluta, pois, quando ele sabe a localização de uma partícula,
não consegue determinar a sua velocidade. E, quando obtém a velocidade, não
sabe onde a partícula se situa.
Desse modo, Heisenberg reivindica para a ciência a possibilidade de
avançar na conquista do conhecimento apesar dos limites impostos pelo
cosmos e pelo próprio conhecimento. A ciência abdica de sua pretensão
dogmática e absolutista. Embora o conhecimento científico seja o que de
melhor produzimos, ele ainda está longe de chegar a ser definitivo e
inquestionável.
O princípio de incerteza de Heisenberg é um apelo a que os
cientistas compreendam o limite do próprio labor e não se entreguem com
demasiada confiança ao poderio da ciência.
Estes são apenas alguns exemplos de campos da ciência que
apresentaram desenvolvimentos díspares em relação ao modelo clássico da
física newtoniana e em relação ao ideal de cientificidade que ela propunha.
A manifestação dessas descobertas contribuiu para: a) minimizar o
ideal positivista da física newtoniana e de toda a ciência que via nela o seu
paradigma; b) substituir a atitude dogmática por uma atitude mais modesta
diante das conquistas da ciência; c) repensar os critérios de demarcação
científica, incluindo as áreas de conhecimento emergentes (como a física da
energia, por exemplo); d) rever a crença determinista de que o mundo é
regido por movimentos regulares, previsíveis, desde que conhecidas as
“condições iniciais”.
Para este nosso estudo, talvez o ponto crucial seja, justamente, este:
se a física de Newton permitia compreender o universo dentro de uma visão
determinista, a nova física impede a continuação dessa atitude. O mundo
deixou de ser totalmente controlado por nossas equações e por nossos
modelos matemáticos. É preciso, portanto, construir uma nova ciência e
198 Paulo Eduardo de Oliveira

uma nova cientificidade, a partir de uma nova matemática que supere a


matemática tradicional (e a partir de uma nova lógica) 9 .
Outro aspecto importante e que veio na esteira de todo esse
movimento de crise da ciência foi o desenvolvimento e a aplicação da noção
de probabilidade. Por si só, isso demonstrou o novo modelo de ciência que
estava nascendo: se antes a ciência se arrogava o direito de falar de certezas
absolutas, agora estava limitada a dizer o que o mundo “provavelmente é”.
Como afirma Ilya Prigogine, a ciência chegou à era do “fim das certezas”.
Quais são os caminhos que se apresentam, então? Ora, se não há
mais verdades absolutas sustentadas pela ciência, há três possibilidades: a)
adotar uma atitude cética; b) optar pelo relativismo; c) construir a ciência
sobre uma outra base. Popper escolhe, justamente, a terceira alternativa. E
essa sua escolha nos ajuda a compreender as implicações éticas de sua
filosofia. Embora o ceticismo e o relativismo possam contemplar uma
dimensão ética, cada qual ao seu modo, Popper compreende que ambas as
atitudes não correspondem ao ideal de “busca da verdade”, atitude que o
modelo de ciência proposto por ele adota e que, portanto, corresponde ao
seu quadro referencial de valores.

3 A epistemologia indeterminista de Popper


Popper tem consciência de que vai além dos limites da própria filosofia:
“Todas mis obras filosóficas están vinculadas con problemas no
filosóficos” 10 . Esta consciência nasce de sua percepção da urgência e da
importância de certas discussões: “Los genuinos problemas filosóficos
siempre están arraigados en problemas urgentes fuera de la filosofía y
mueren si estas raíces se secan” 11 . Entre tais problemas, Popper discute a
questão da paz, da liberdade, da ética, da democracia. Todos esses temas são
tratados, ao longo de sua obra, de modo a expressar as principais teses de

9
Deve-se considerar, ainda, que o desenvolvimento das lógicas não-clássicas também
contribuiu para o desenrolar da crise que atingiu a ciência clássica. Frege, Gödel,
Lukasiewski, Cantor, entre outros, são nomes representativos que devem ser considerados.
De modo particular, deve-se ainda lembrar a contribuição do brasileiro Newton da Costa na
criação da lógica paraconsistente.
10
Popper, 1992, p, 115.
11
Popper, 1992, p, 115. (Popper faz referência à página 72 da versão inglesa de Conjecturas e
refutações).
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 199

seu racionalismo crítico. Isso nos impede de afirmar que há dicotomia entre
a epistemologia e a filosofia política popperianas. Ao contrário, há uma
unidade profunda, um vínculo estreito entre a “busca da verdade”, numa
natureza indeterminista, e a “busca de um mundo melhor”, no qual a
liberdade é o valor primeiro.

3.1 Os escritos epistemológicos


Embora a obra de Popper abarque uma grande variedade de temas, é no
campo da lógica e da filosofia da ciência que vemos a grande expressão do
seu pensamento. Tal expressividade, ao que nos parece, deve-se: a) ao
sucesso da Logik der Forschung; b) à sua crítica contundente ao Positivismo
Lógico; c) ao novo critério por ele apresentado para a demarcação da
ciência, sem a utilização da lógica indutiva; d) ao enfrentamento teórico de
doutrinas emergentes como o marxismo e a psicanálise; e) à compreensão, a
partir de sua metodologia, do impacto da teoria da relatividade no âmbito
das teorias da física; f) ao fato de que Popper não se rendeu ao ceticismo,
nem ao relativismo e nem ao dogmatismo ao enfrentar a crise da
racionalidade da ciência no início do século passado 12 .
A importância, a profundidade e o caráter revolucionário do
pensamento de Popper não o tornaram imune a críticas severas. Alguns dos
pontos que sofreram mais ataques são: a) o seu método de falseamento de
teorias, considerado por vezes demasiado simplista 13 ; b) a sua pretensão de
ter resolvido o problema da indução, considerando que alguns teóricos
vêem no processo de corroboração um apelo à indução 14 ; c) a dificuldade de
enquadrar no seu método de falseamento alguns episódios da história da
ciência 15 ; d) as dificuldades para o estabelecimento das noções de base
empírica e de hipóteses auxiliares 16 .

12
A esse respeito, cf. Oliveira, Paulo Eduardo. O critério de falseabilidade de Karl Popper: um
estudo crítico. Dissertação. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
1996.
13
Ver a esse respeito a obra de Imre Lakatos, o qual denomina falseacionismo ingênuo ao
método de Popper. Lakatos, Imre. La falsación y la metodología de los programas de
investigación científica. In: Lakatos , I. e Musgrave, A., 1975, p. 290.
14
Entre outros textos que discutem esta questão, veja-se Newton-Smith, W.H. Popper,
ciência e racionalidade, p. 21-40. In: O’Hear, 1997.
15
Thomas Kuhn mostra exemplos de mudanças de teorias na ciência que se deram por
razões que não se enquadram no modo de Popper compreender a “sucessão de teorias” na
200 Paulo Eduardo de Oliveira

Estas e outras críticas não foram capazes de ofuscar a originalidade e


o alcance da filosofia da ciência de Popper, não representando nada além do
que uma conseqüência natural para a filosofia de alguém aberto à crítica e
ao debate e em busca constante da verdade. Ele mesmo não poderia fechar-
se em posições dogmáticas, o que seria uma contradição ao seu próprio
pensamento e ao seu apreço à “modéstia intelectual” 17 . Assim, o
enfrentamento maduro das críticas e a disposição de discutir suas idéias foi
uma atitude constante em sua vida 18 . E sua crença na possibilidade de
construção de um mundo melhor apóia-se nesta atitude antidogmática,
como ele mesmo afirma: “En cualquier caso, una parte de nuestra búsqueda
de un mundo mejor debe consistir en la búsqueda de un mundo en el que
no se fuerza a otros a sacrificar su vida en razón de una idea” 19 .

3.2 Os escritos políticos


Os escritos políticos de Popper, em especial “A sociedade aberta e seus
inimigos” 20 , ocupam um lugar também privilegiado em sua obra. Algumas
das razões desse fato talvez sejam: a) os desafios históricos vividos ou
presenciados pelo próprio Popper e que, naturalmente, despertaram o
filósofo político latente; lembre-se, por exemplo, da Primeira Grande
Guerra quando ele era ainda um menino, da ocupação da Áustria pelos
nazistas e do período de exílio na Nova Zelândia; b) a sensibilidade de
Popper às questões sociais, fazendo-o, inclusive, um militante socialista
durante alguns anos de sua juventude 21 ; c) o enfrentamento decidido das
teorias marxistas, tanto por sua fragilidade metodológica quanto por suas
limitações sócio-políticas; d) a sua convicção de que o racionalismo crítico

história da ciência. Cf. a esse respeito: Kuhn, Thomas. A estrutura das revoluções
científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975.
16
Zahar, E. G. O problema da base empírica. p. 57 a 90. In: O’Hear, 1997.
17
Popper, En busca de un mundo mejor. Barcelona: Paidós, 1992, principalmente o Capítulo
6, “Contra as grandes palavras”.
18
Veja-se o texto de Popper “Replies to my Critics”, in Schilpp, 1974.
19
Popper, Karl. En busca de un mundo mejor. Barcelona: Paidós, 1992, p. 48.
20
Popper, 1974.
21
Popper, 1977.
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 201

vai além dos muros da ciência, pois não é apenas uma teoria, mas uma
“atitude” 22 .
Da mesma forma como a temática epistemológica, a filosofia
política de Popper é alvo de críticas que, ao que nos parece, só contribuíram
para o debate ainda mais frutuoso das mesmas idéias. Pode-se citar, por
exemplo, as críticas à sua atitude de defesa do individualismo ético ou do
liberalismo, ou ainda a sua análise histórica do texto A miséria do
historicismo 23 . Tais críticas, reafirmamos, não foram capazes de encobrir a
importância da dimensão política de seu pensamento.
As proporções tomadas pela epistemologia e pela política na
filosofia de Popper não permitem uma separação entre o “filósofo da
ciência” e o “filósofo político”. Não há uma sobreposição entre estas duas
abordagens e nem mesmo a superioridade de uma em relação à outra. Em
alguns textos, percebe-se a tentativa de analisar separadamente as “duas
filosofias de Popper”. 24 Contudo, acreditamos que essa tentativa tem
somente uma função didática, permitindo uma análise mais detalhada de
um e de outro aspecto da obra popperiana.
Recentes estudos, aos quais vamos nos referir mais adiante,
mostram que a unidade da filosofia da ciência e da filosofia política de
Popper está no próprio conceito de racionalidade crítica. Porém, tal unidade
não é simplesmente metodológica, ela afirma-se sobre uma base ética,
anterior à própria epistemologia de Popper. A partir dessa perspectiva é que
queremos desenvolver a nossa investigação.

3.3 As grandes linhas da epistemologia indeterminista de Popper


O racionalismo crítico é o eixo central do pensamento de Karl Popper. As
principais teses do racionalismo crítico podem assim ser resumidas: a) o
nosso conhecimento progride por ensaio e erro; b) a indução, pelos
problemas lógicos que apresenta, compromete a validade do conhecimento
produzido com a sua intervenção; c) o conhecimento nasce a partir de
conjecturas ousadas, nascidas de um ato livre da imaginação; d) os testes

22
Popper, K. Texto da participação de Popper no seminário em Kyoto. In: Artigas, Mariano.
Lógica y ética en Karl Popper. Pamplona: EUNSA, 1998.
23
Um texto interessante sobre esse assunto pode ser encontrado em Minogue, Kenneth.
Popper explica a explicação histórica? p. 267 a 285. In: O’Hear, 1997.
24
Pereira, 1993.
202 Paulo Eduardo de Oliveira

empíricos procuram refutar tais conjecturas, eliminando as “mais fracas” 25 ;


e) as teorias que resistem aos testes empíricos são aceitas de modo
provisório, até o momento em que testes mais elaborados as refutem; f) a
possibilidade de refutação por novos testes impede a afirmação da verdade
justificada de uma teoria; podemos até ter chegado à verdade, mas não
podemos afirmá-lo em definitivo; g) assim, o conhecimento científico
expressa a verossimilhança, aquilo que o mundo “parece ser”; h) teorias que
resistem aos testes empíricos são corroboradas e jamais justificadas,
aumentando assim o seu grau de verossimilhança; i) a principal
característica de uma teoria científica é a refutabilidade ou falseabilidade:
toda teoria deve mostrar em que condições pode ser refutada ou falseada; j)
a demarcação da ciência passa a ser um esforço de teste de teorias, ao invés
de justificação de teorias; k) a falseabilidade apóia-se na assimetria lógica
existente entre a impossibilidade de afirmar categoricamente a verdade de
uma teoria e a possibilidade de afirmar a falsidade da mesma; l) o
racionalismo crítico parte da convicção de que não podemos ter justificações
positivas para nossas crenças, mas podemos ter razões críticas para mantê-las
ou abandoná-las; m) a impossibilidade lógica de saber se atingimos a
verdade por meio da ciência (e do conhecimento humano) nos impede de
adotar qualquer postura dogmática; n) o racionalismo crítico não se
restringe ao campo da ciência: ele é aplicável a qualquer atividade humana,
seja científica, cultural, pedagógica, religiosa ou política; o) o racionalismo
crítico crê na máxima socrática: “talvez eu esteja equivocado e você possa
estar certo”; p) a “honestidade” e “modéstia” intelectuais são conseqüências
da visão não dogmática da ciência e da consciência da falibilidade do
conhecimento humano.
Estes pontos evidenciam o caráter indeterminista da filosofia de
Popper. Embora sua preocupação seja a “busca da verdade”, ele sabe que a
ciência é um empreendimento, em sua própria natureza, limitado. Mas, a
impossibilidade de acesso à verdade, ou a impossibilidade de se saber do
alcance da verdade, não diminui a responsabilidade do cientista e nem lhe
permite afrouxar os próprios valores morais. É assim que Popper não cede à

25
Esta expressão denota uma referência à teoria darwiniana, a qual é muito cara a Popper.
Analogamente ao processo biológico onde as espécies melhor adaptadas superam as mais
fracas, no campo da ciência há um confronto entre teorias e as mais fortes sobrevivem.
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 203

atração do ceticismo e do relativismo, construindo uma epistemologia


realista e, ao mesmo tempo, comprometida com a ética.
Enquanto a crença dogmática na ciência permite toda sorte de
dominação de uns sobre os outros, a crença nos limites do conhecimento
científico exige uma atitude de modéstia, de tolerância, de respeito pelo
outro, de convivência pacífica. Essa é a principal conseqüência ética da
epistemologia de Popper. A defesa da liberdade depende de uma visão não
dogmática da natureza e da ciência.
E os limites do conhecimento humano não são devidos,
exclusivamente, à nossa imperícia e aos poucos recursos de que dispomos.
Antes, as limitações da ciência estão ligadas à própria natureza do universo:
ele não é uma realidade estática, pronta, definida e acabada. Ao contrário, o
desenvolvimento das novas teorias, sobretudo no campo da biologia e da
física, mostra que o mundo está em contínuo movimento, em
transformação, em modificação permanente do seu status quo. E este
desenvolvimento não segue os cânones deterministas de uma matemática e
de uma lógica pré-definidas. Em muitos casos, os desdobramentos da
natureza são aleatórios, caóticos e, portanto, imprevisíveis. Assim, não há
ciência que seja capaz de acessar à verdade absoluta do mundo, porque o
mundo está em movimento indeterminado, indefinido, o mundo está
aberto ao futuro e nossas previsões não apresentam grau de confiança
suficiente para podermos adotar nossas teorias como verdades absolutas. A
natureza não cede aos estratagemas deterministas de nossa ciência.
A epistemologia de Popper torna-se, desse modo, uma resposta à
crise da ciência iniciada a partir da segunda metade do século XIX. O “fim
das certezas” não encontrou, na filosofia de Popper, um caminho alternativo
de “busca das certezas”. Mesmo assim, Popper não se entregou ao ceticismo
nem ao relativismo. Ao contrário, buscou uma forma de compreender a
ciência e de adotá-la apesar de suas contingências. Mas, ao adotar uma
ciência indeterminista, Popper fez corresponder uma opção moral, uma
atitude ética, cujas implicações são fundamentais para os desdobramentos
históricos e para o progresso da própria ciência.
Aqui compreendemos uma questão fundamental: a epistemologia
de Popper não é apenas uma nova alternativa para a compreensão da
ciência, mas ela também modifica o nosso modo de compreender o mundo.
Não é a ciência que se torna indeterminista, isoladamente, mas é o mundo
204 Paulo Eduardo de Oliveira

que passa a ser compreendido como uma realidade indeterminada de modo


absoluto. É a partir daí que Popper propõe o conceito de “propensão” 26 .
Para Popper, os limites da ciência humana não nos impedem de
continuarmos a aceitar a ciência como o melhor tipo de conhecimento de
que dispomos. Basta que compreendamos a sua natureza e estejamos
conscientes disso. Assim, no texto Um mundo de propensões, Popper
apresenta algumas teses que resumem, por assim dizer, sua epistemologia
indeterminista:
1) O conhecimento assume muitas vezes o caráter de expectativas.
2) As expectativas têm, geralmente, o caráter de hipóteses, de
conhecimento hipotético ou conjectural: são incertas. E que aqueles que
têm expectativas, ou que sabem, podem não se dar conta dessa incerteza.
3) A maior parte das espécies de conhecimento, tanto humanos
como de animais, são hipotéticos e conjecturais.
4) Apesar da incerteza, ou do seu caráter hipotético, muito de nosso
conhecimento é objetivamente verdadeiro: corresponde a fatos objetivos.
De outro modo, dificilmente poderíamos ter sobrevivido como espécie.
5) Devemos por isso distinguir muito claramente entre a verdade de
uma expectativa, ou de uma hipótese, e a sua certeza. Mais ainda, devemos
distinguir duas idéias: a idéia de verdade e a idéia de certeza; ou, por outra
palavras, entre verdade e verdade certa.
6) Há muita verdade em muito do nosso conhecimento, mas pouca
certeza. Devemos encarar as nossas hipóteses de modo crítico. Devemos
testá-las com a severidade possível de modo a sabermos se é ou não possível
demonstrar a sua falsidade.
7) A verdade é objetiva: consiste na correspondência aos fatos.
8) A certeza raramente é objetiva: geralmente não passa de um forte
sentimento de confiança, ou convicção, embora baseada em conhecimento
insuficiente 27 .
Popper está convencido de que a inclusão do conceito de propensão,
na ciência, enfraquece a ideologia determinista:

A teoria segundo a qual as nossas ações são determinadas por certas causas, e que
estas causas, por seu lado, são motivadas, ou causadas, ou determinadas por outras,

26
Popper, Um mundo de propensões. Lisboa: Fragmentos, 1991.
27
Idem, p. 46-48.
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 205

etc., parece ser, na verdade, ela própria motivada pelo desejo de estabelecer a
ideologia do determinismo nos assuntos humanos. Mas, com a introdução das
propensões, a ideologia do determinismo evapora-se. Situações passadas, quer
físicas, quer psicológicas, quer mistas, não determinam uma situação futura. Mais
propriamente, determinam propensões inconstantes que influenciam situações
futuras sem as determinar num só sentido. E todas as nossas experiências,
incluindo os nossos desejos e os nossos esforços, podem contribuir, umas vezes
mais outras vezes menos, conforme o caso, para essas propensões 28 .

A própria cosmologia fica, assim, alterada, pois:

Esta visão das propensões permite-nos encarar de uma nova forma os fenômenos
que constituem o nosso mundo. O mundo já não é uma máquina causal – pode
ser visto agora como um mundo de propensões, como um processo de
possibilidades que se vão concretizando e de novas possibilidades que se revelam.
No mundo da física tudo isso é muito claro pois nele se produzem novos
elementos – novos núcleos atômicos – sob condições externas de temperatura e
pressão; elementos que só sobrevivem se não forem muito instáveis. E com estes
novos núcleos, com estes novos elementos, criam-se novas possibilidades,
possibilidades essas que pura e simplesmente não existiam antes. Finalmente, nós
próprios nos tornamos possíveis 29 .

Portanto, a visão determinista da ciência é, neste sentido, ingênua,


pois não admite as constantes adaptações que vão acontecendo sempre no
interior da matéria. Visto o mundo sob a ótica linear do movimento
espacial, do deslocamento físico, portanto, o mundo pode parecer
determinado. Porém, se o mundo for observado a partir do movimento
ontológico de suas estruturas mais íntimas, o determinismo cai por terra.
Passamos, assim, a considerar o mundo com uma nuvem, e não como um
relógio 30 .
Uma visão de mundo estática pode nos conduzir à crença de que
nosso conhecimento atingiu a verdade. Na Idade Média, por exemplo,
durante séculos nós acreditamos que a terra era plana, estávamos certos
disso, sacrificamos quem pensava o contrário. Porém, nos enganamos e a
verdade não demorou para aparecer.

28
Idem, p. 30.
29
Idem, p. 31.
30
Popper, 1975, p. 193 e seg.
206 Paulo Eduardo de Oliveira

A ciência, portanto, tem uma dimensão ética: sempre que nos


consideramos donos da verdade, agimos de modo a impor nossas idéias, seja
pela força física, seja pelo peso das instituições a que servimos. Ao contrário,
quando nos consideramos eternos caminhantes, errantes nas sendas da
verdade, não buscamos oprimir mas dialogar, conviver e construir juntos
novas possibilidades de melhoria de vida para todos.
A filosofia de Karl Popper insere-se nessa tradição, na tradição da
humilde busca da verdade, na tradição iniciada por Sócrates, talvez, e
alimentada pela atitude de tantos que, despidos de pretensões dogmáticas,
se colocaram a caminho da verdade com modéstia e com honestidade. Tal
filosofia não se apresenta como um dogma moral a ser aceito, o que seria
contraditório. Antes, coloca-se como uma opção, uma atitude, uma escolha
livre, que implica uma visão de mundo aberta, onde o futuro é possibilidade
e, portanto, onde o otimismo é um dever moral.
Alguns testemunhos do próprio Popper mostram o quanto ele
tomou a sério as atitudes que propôs, insistindo que seu racionalismo crítico
não é uma teoria a ser compreendida, mas uma atitude a ser, talvez,
adotada:

Não me considero especialista nem em ciência nem em filosofia. Tenho, contudo,


tentado com afinco, durante toda a minha vida, compreender alguma coisa acerca
do mundo em que vivemos. O conhecimento científico e a racionalidade humana
que o produz são, em meu entender, sempre falíveis ou sujeitos a erro. Mas são
também, creio, o orgulho da humanidade. Pois o homem é, tanto quanto sei, a
única coisa do universo que tenta entendê-lo. Espero que continuemos a fazê-lo e
que estejamos também cientes das severas limitações de todas as nossas
intervenções. Durante muitos anos argumentei contra as modas intelectuais nas
ciências e ainda mais contra as modas intelectuais em filosofia. O pensador da
moda é, de um modo geral, prisioneiro da sua moda e considero a liberdade, tanto
a liberdade política como uma mente livre e aberta, como um dos grandes, se não
o maior valor que a nossa vida pode oferecer-nos 31 .

O compromisso moral do intelectual é algo a que Popper dá a


máxima atenção e o máximo valor:

Todo intelectual tem uma responsabilidade muito especial. Tem o privilégio e a


oportunidade de estudar. Em troca, deve apresentar a seus congêneres (ou ‘à

31
Popper, O mito do contexto, p. 9.
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 207

sociedade’) os resultados de seu estudo o mais simples, claro e modestamente que


possa. O pior que podem fazer os intelectuais – o pecado cardeal – é intentar
estabelecer-se como grandes profetas em relação aos seus congêneres e
impressionar-lhes com filosofias desconcertantes. Qualquer um que não saiba falar
de forma simples e com clareza não deveria dizer nada e continuar trabalhando até
que possa fazê-lo 32 .

E outro não poderia ser um seu conselho senão que devemos estar
sempre em busca e jamais satisfeitos com nossas próprias soluções para os
problemas que enfrentamos. Essa é a atitude popperiana, a atitude da
modéstia intelectual, a atitude que compreende o mundo como uma
realidade aberta, sem determinismos e, por tanto, sem donos da verdade:

... por muito satisfeitos que estejam com uma solução, nunca a considerem como
sendo a final. Existem excelentes soluções, mas não existe uma solução final. Todas
as nossas soluções são falíveis. Este princípio tem sido freqüentemente confundido
com uma forma de relativismo, mas é exactamente o oposto do relativismo.
Procuramos a verdade e a verdade é absoluta e objectiva, como o é a falsidade. Mas
qualquer solução para um problema abre caminho a um problema ainda mais
profundo. Que o meu conselho seja um marco no vosso caminho para uma vida
feliz e criativa 33 .

Referências
ARTIGAS, Mariano. Lógica y ética en Karl Popper (se incluyen unos
comentarios inéditos de Popper sobre Bartley y el racionalismo crítico).
Pamplona: Eunsa, 1998.
_______ Lógica y ética en Karl Popper. Conferencia proferida em Pamplona,
em 13 de janeiro de 1999.
_______ Karl Popper: búsqueda sin término. Madrid: Magisterio Español,
1979.
BOUVERESSE, R. (org). Karl Popper et la science d’aujourdhui. Aubier,
1989.
_______ y BARREAU, H. (org). Karl Popper. Science et philosophie. Vrin,
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Esboços de categorias no direito privado kantiano

Fábio César Scherer *

Resumo: A presença, ainda que parcial, do procedimento categorial no direito privado em


Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre é inegável, assim como a sua importância para a
construção da teoria da posse. Uma prova adicional aos próprios fragmentos da primeira
parte do direito natural (cf. MS R, AB 59, 79, 82, 90, 93, 119-121) são os esboços
categoriais contidos nos Manuscritos da Rechtslehre (particularmente, em Vorarbeiten zum
Privatrecht e em Zusammenhängender, signierter Entwurf in Kant's handschriflicher Nachlaß).
Os objetivos desse artigo são: 1) expor a coerência interna entre os esboços categoriais do
direito privado presentes em Vorarbeiten zur Rechtslehre, e 2) apresentar a correspondência
entre esses esboços e o texto jurídico de 1797. O parâmetro de avaliação e de comparação
serão as observações kantianas quanto às categorias nas obras Kritik der reinen Vernunft e
Kritik der praktischen Vernunft.
Palavras-chave: Arbítrio livre; Categorias; Direito; Liberdade; Posse

Abstract: The existence of the categorical procedure on private law in Metaphysische


Anfangsgründe der Rechtslehre, albeit small, is unquestionable, as well as its importance for the
construction of the possession theory. An additional proof to the fragments of the first part
of the natural right (cf. MS R, AB 59, 79, 82, 90, 93, 119-121) are the categorical outlines
included in Rechtslehre manuscripts (particularly, in Vorarbeiten zum Privatrecht and in
Zusammenhängender, signierter Entwurf in Kant's handschriflicher Nachlaß). The objectives of
this paper are: 1) to show the internal coherence among the private law categorical outlines
in Vorarbeiten zur Rechtslehre, and 2) to present the relation between these outlines and the
legal text of 1797. The parameter of evaluation and comparison will be the Kantian
observations concerning the categories in Kritik der reinen Vernunft and Kritik der praktischen
Vernunft works.
Key-words: Categories; Free will; Law; Liberty; Possession

*
Doutor em Filosofia pela Unicamp. E-mail: schererfabio@hotmail.com Este texto é fez
parte de uma pesquisa mais ampla (de doutorado) sobre a “teoria kantiana dos juízos
jurídico-políticos a priori”, desenvolvida na Unicamp e na Humboldt-Universität zu Berlin.
O trabalho doutoral foi orientado pelo Prof. Dr. Zeljko Loparic e pelo Prof. Dr. Volker
Gerhardt, e financiado pela FAPESP (2006 e 2009) e pelo DAAD (2007 e 2008). Artigo
recebido em 20.09.2009, aprovado em 10.12.2009.

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 211-228


212 Fábio César Scherer

Introdução
O procedimento categorial foi empregado por Kant somente parcialmente
em sua doutrina do direito. Todavia, nos Manuscritos da Rechtslehre é
possível encontrar pelo menos sete tentativas de construir uma tabela de
categorias do direito (cf. AA XXIII) 1 . A maior parte desses esboços (seis)
refere-se ao direito privado. A razão “oficial” pela qual Kant não adotou
essas tabelas de categorias no texto jurídico publicado é desconhecida. Sem
dúvida, não teria sido por tal emprego causar uma incoerência com o
sistema crítico, já que há, por um lado, a pretensão das categorias da
liberdade de fornecer não somente um plano de divisão de toda a ciência
prática deduzida de princípios, mas também a ordem que esta filosofia
prática deverá assumir (cf. KpV, 118-9) e, por outro lado, o fato das
categorias serem concebidas no plano geral do “sistema” crítico, enquanto
guias (Leitfaden) de toda investigação metafísica, garantindo, assim, a
aprioridade no campo científico. Consequentemente, se a doutrina do
direito for compreendida enquanto campo a priori de uma metafísica
especial, ela (doutrina do direito) deveria também ser construída a partir de
categorias 2 . Sou partidário de que esses Manuscritos são valiosos para a
interpretação da obra Metaphysik der Sitten.
O critério para a determinação da seqüência de abordagem das
tabelas de categorias 3 , adotado neste trabalho, foi a ordem dos conteúdos

1
Salvo indicação expressa, as referências aos textos de Kant serão realizadas a partir da edição
das obras completas, segundo Wilhelm Weischedel (Werke in sechs Bänden. Darmstadt,
Wissenschaltliche Buchgesellschaft, 1983). As indicações a Kant serão feitas por abreviação
do título original da obra e página. Já as referências a outros autores serão realizadas por
nome do autor, ano de publicação da obra e página.
2
Segundo Ritter, o texto Kritik der praktischen Vernunft e o Metaphysik der Sitten carecem de
uma dedução das categorias. As determinações categoriais nessas obras, bem como nos
manuscritos da Rechtslehre, podem ser caracterizadas somente enquanto uma transferência,
no primeiro caso, das categorias especulativas, e, no segundo caso, das categorias
especulativas e das infundadas categorias práticas (cf. Ritter, 1971, 282-7). Contra essa
crítica, vale lembrar que as categorias não são suscetíveis a meramente transcrição. Elas
deixam serem deduzidas somente sob determinados pressupostos teóricos fundamentais,
como é explicitado por Kant em vários exemplos.
3
Esses esboços de categorias do direito e sua organização numa possível tabela – tal como a
determinação categorial do conceito de direito enquanto categoria da possibilidade de
arbítrio em comum - é fruto da década de 90 (não podendo ser encontrado nas reflexões
pré-críticas entre 1772-5, como sugere Ritter, 1971, 88).
Esboços de categorias no direito privado kantiano 213

em Rechtslehre. A principal justificativa, para tanto, encontra-se na


dificuldade em saber se o ordenamento das tabelas exposto na edição XXIII
da Academia é efetivamente correspondente à ordem cronológica de suas
formulações. As tabelas de categorias do direito privado em Vorarbeiten zur
Rechtslehre (AA XXIII) podem ser assim denominadas:

I - Divisão das leis gerais do direito (p. 238/239)


II - Os conceitos do direito são categorias da possibilidade desse arbítrio em
comum (p. 302)
III - Categorias da quantidade e qualidade do direito (p. 218)
IV - As categorias do direito determinadas pura e simplesmente pelo arbítrio (p.
298)
V - As 12 categorias da posse meramente jurídica (inteligível) (p. 274)
VI - Categorias do controle sobre coisas (posse de um objeto) (p. 216)

Há três questões centrais nesses esboços de tabelas: o conceito de


direito enquanto categoria do arbítrio em comum, a divisão do direito
privado e a posse inteligível pura. O primeiro tema é tratado nas tabelas I e
II; o segundo, na III, o terceiro, nas IV, V e VI. As tabelas serão
estruturadas, quando possível, segundo as quatro posições da tábua de
categorias, ainda que esse ordenamento nem sempre possa ser encontrado
no texto original (a fim de facilitar a comparação, o texto original será
citado em nota de rodapé). O texto-base para observações quanto ao direito
em geral será o Vorarbeiten zur Rechtslehre.

1 Análise das tabelas de categorias do direito privado


A tabela denominada “Divisão das leis gerais do direito” encontra-se em
Zusammenhängender, signierter Entwurf 4 . Nessa tabela o filósofo prussiano
procura apresentar os conceitos de liberdade e de arbítrio segundo as quatro
posições categoriais (qualidade, quantidade, relação e modalidade). O ponto
de partida é a liberdade externa enquanto independência entre arbítrios. O
estado jurídico é qualificado enquanto possibilidade de resistir ao outro
arbítrio meramente mediante o seu arbítrio (cf. AA XXIII, 302). O conceito

4
Esses “Rascunhos” chamam a atenção pela sua coesão e sistematicidade. Eles são marcados
pela tentativa kantiana de classificar os conceitos fundamentais da doutrina do direito
numa tabela, pela reflexão sobre uma possível esquematização dos conceitos jurídicos e das
proposições sintéticas a priori resultantes desta simbolização, bem como pelo problema de
aplicabilidade desses conceitos e proposições.
214 Fábio César Scherer

de arbítrio unido representa a relação entre as pessoas jurídicas capazes de


exercer influências mútuas. Por conseguinte, os conceitos do direito
representam as categorias de possibilidade deste arbítrio em comum, uma
vez que o estado jurídico é determinado enquanto “relação com o arbítrio
do outro”. Essa relação é sempre uma relação de arbítrios unidos, na qual
encontram-se as diferentes interações entre liberdade e arbítrio.

Tabela I

1. A liberdade para a liberdade.


Universalidade do princípio do direito em geral.

2. A concordância do arbítrio com a liberdade,


a qualidade do direito.

3. A liberdade com o arbítrio de cada um,


a relação do arbítrio para com o objeto.

4. O arbítrio com o arbítrio


a) a possibilidade de união de ambos
b) a efetividade (actus) da união
c) Necessidade, a permanência que já está presente no conceito.

Essa modalidade refere-se quer à relação do arbítrio para a coisa, quer ao arbítrio
para com o arbítrio, quer à pessoa para com a pessoa enquanto (instar) coisa, e a
aquisição é:
a) a apreensão
b) a aceitação
c) a constituição, isto é, a constituição na relação privada da pessoa (AA XXIII,
238/9) 5 .

5
Einteilung der allgemeinen Rechtsgesetze:
„Denn zwischen Freyheit und Willkühr finden vierley Beziehungen statt. 1. Der Freyheit
zur Freyheit. Allgemeinheit des Rechtsprinips überhaupt 2. Die Übereinstimmung der
Willkühr mit der Freyheit die qvalität des Rechts 3. Der Freyheit mit der Willkühr eines
jeden die Relation der Willkühr zu Objecten. 4. Der Willkühr mit der Willkühr a. die
Möglichkeit der Vereinigung derselben b. die Wirklichkeit (actus) der Vereinigung c.
Nothwendigkeit die Beharrlichkeit die schon im Begriffe liegt. - Diese Modalität betrift
entweder das Verhältnis der Willkühr zu Sachen, oder der Willkühr zur Willkühr oder der
Person zur Person als (instar) Sache und die Erwerbung ist a) der Apprehension b) der
acceptation, c) der Constitution d.i. der Verfassung im Privatverhältnis der Person” (AA
XXIII, 239).
Esboços de categorias no direito privado kantiano 215

Nesse quadro, o direito é pensado in abstrato, ou melhor, enquanto


direito em geral de uma pessoa. Tal direito não se reporta ao direito natural
existente (da tradição), porém à idéia de obrigação em geral, que possibilita
somente um único direito e em conformidade com o imperativo moral - a
partir do qual pode desenvolver-se o conceito de direito (cf. MS, AB 48). As
três primeiras posições dessa tabela referem-se à relação jurídica entre
sujeitos racionais. A categoria de modalidade, quarta classe de conceitos, por
sua vez, destaca-se por efetuar a passagem para o campo específico da
doutrina do direito, precisamente, para o direito privado, segundo a sua
divisão em: direito a uma coisa, direito a uma pessoa e direito a uma pessoa
em afinidade com um direito a uma coisa. Conforme Kant, o direito
externo enquanto posse do arbítrio do outro baseia-se na idéia de uma
comunidade de arbítrios, a qual, na medida em que se considera o homem
como ser sensível (a fim de aplicar esse direito in concreto), necessita para a
determinação do direito de condições sensíveis que tornem o arbítrio unido
(em comum), do ponto de vista da coisa, da pessoa e da condição do uso da
pessoa enquanto coisa, respectivamente, possível, objetivo e necessário (cf. AA
XXIII, 299/300).
Dessa determinação do direito in abstrato, em que os homens são
representados em termos de sua faculdade de liberdade, atendendo, logo,
somente a sua humanidade como personalidade independente de
determinações físicas (homo noumenon), e em que os homens são
qualificados enquanto sujeitos racionais obrigados, pode se desenvolver o
direito do homem enquanto homo phaenomenon (cf. MS, AB 48). A
“integração” de ambas as perspectivas do “homem” possibilita o
estabelecimento da doutrina do direito propriamente dita e apriorística,
visto que somente dessa maneira é possível a determinação do campo de
operação dos atos do arbítrio livre em seu uso externo. A relação a priori dos
arbítrios unidos, tematizada na tabela acima, estabelece os conceitos
jurídicos que são apresentados enquanto “categoria da possibilidade de
arbítrio em comum” nos Manuscritos para direito privado.

Tabela II

1. Conforme a quantidade, a concordância da coletividade para essa lei.


2. Conforme a qualidade da posse, da privação, da restrição.
3. Da relação a) para com coisas, b) pessoas, c) de pessoas enquanto coisas.
216 Fábio César Scherer

4. Da modalidade, em conformidade com as três categorias da relação:


a) união possível,
b) (união) objetiva,
c) (união) necessária.

Todas essas (categorias) pressupõem a relação no espaço e no tempo. O “meu” e o


“teu” no espaço e no tempo é determinado através de cada uma das categorias
(AA XXIII, 302) 6 .

Na tabela (I) “Divisão das leis gerais do direito”, aqui pressuposta, é


determinada, primeiro, mediante a categoria de relação, a concordância da
liberdade com o arbítrio de cada um e, depois, estabelecida a necessidade da
associação entre liberdade e arbítrio, através de possibilidade e de
objetividade dessa associação. A necessidade do arbítrio unido, o qual deve
ser efetivado no âmbito do espaço e do tempo, é o ponto de partida da
tabela II – citada mais acima. Esta tabela, por sua vez, efetua a transição de
uma determinação categorial geral das relações de obrigação do sujeito
meramente numenal para um sujeito jurídico fenomenal, culminando com
a especificação do conceito fundamental da doutrina do direito, o arbítrio
unido. Num panorama geral, essas tabelas podem ser sintetizadas da
seguinte forma: os conceitos do direito são categorias da possibilidade do
arbítrio em comum.
Os conceitos fundamentais deduzidos do arbítrio em comum são a
base para a derivação de conceitos de fundamentação e de estruturação do
direito privado, bem como do direito público. Uma tentativa de inferência e
de organização de conceitos da “doutrina da posse” foi realizada por Kant
em Zusammenhängender Entwurf nos Vorarbeiten zur Rechtslehre. Nesse
ensaio foi seguido o modelo categorial empregado no âmbito da razão
especulativa. Na tabela abaixo, referente ao direito privado, os conceitos são
divididos em matemáticos e em dinâmicos:

6
Die Rechtsbegriffe sind Kategorien der Möglichkeit dieser gemeinschaftlichen Willkür:
„1. Der Qvantität nach die der Allgemeinheit der Einstimmung zu diesem Gesetze 2. der
Qvalität nach die des Besitzes, der Beraubung desselben (res nullius) der Einschränkung 3.
der Relation a, zu Sachen, b Personen c, der Personen als Sachen 4. der modalität, a
mögliche Vereinigung b, wirkliche c nothwendige nach den drey Categorien der relation.
Alle diese gehen vor dem Verhältnis in Raum und Zeit voraus und das Mein und Dein in
Raum und Zeit wird durch jene Categorien bestimmt” (AA XXIII, 302).
Esboços de categorias no direito privado kantiano 217

Tabela III

1- Da liberdade matemática de cada um na unidade sintética do arbítrio para a


determinação formal do direito, a fim de que ninguém cometa injustiça ao
outro.

a) (Quantidade): determinação unilateral, multilateral, omnilateral do arbítrio para


unidade sintética.

b) (Qualidade): comando, permissão e proibição.

2- Da relação e da modalidade dinâmica sob o ponto de vista da realidade do


arbítrio em propósito do seu objeto. Um direito conforme a matéria (não
meramente da forma através da qual é apresentado que algo é direito).

a) Relação: direito a uma coisa, direito a uma pessoa e direito a uma comunidade.

b) Modalidade: possibilidade da união do arbítrio sobre um objeto, efetividade


dessa união (im pacto) e necessidade dessa associação na união civil (vnione
civili) enquanto o único estado legal (statu legali) (AA XXIII, 218) 7 .

Esse esboço categorial foi denominado pelo filósofo prussiano de


“categorias da quantidade e qualidade do direito”. Esse título é
desapropriado, já que as quatro posições da tábua de categorias são
abordadas (e não somente as duas primeiras). Na tabela acima, efetua-se a
determinação do arbítrio em duas frentes: a) quanto à unidade sintética
(matemática) e b) em função do seu objeto (dinâmica). A primeira
determinação refere-se à forma das relações da vontade em geral. Essa
vontade determina, segundo a idéia, a relação externa entre os arbítrios de

7
Kategorien der Quantität und Qualität des Rechts:
„1.) Mathematische der Freyheit eines jeden in der synthetischen Einheit der Willkühr zur
formalen Bestimmung des Rechts damit niemand dem Andern Unrecht thue.
a Einseitige, Vielseitige allseitige Bestimmung der Willkühr zu synthetischer Einheit b)
Geboth, Erlaubnis und Verboth.
2.) Dynamische der Relation und Modalität in Ansehung der Realität der Willkühr in
Absicht auf ihr Object. Ein Recht der Materie nach (nicht blos der Form dadurch
vorgestellt wird daß etwas Recht sey) a Relation. Sachenrecht, persönliches Recht
Gemeinschaftsrecht. b) Modalität. Möglichkeit der Vereinigung der Willkühr über ein
Object, Wirklichkeit dieser Vereinigung (im pacto) und Nothwendigkeit dieser Vereinigung
in der vnione civili als dem einzigen statu legali” (AA XXIII, 218).
218 Fábio César Scherer

seres racionais. Do arbítrio unido é derivado o direito enquanto forma 8 . O


direito formal diz respeito à relação de uma pessoa com uma ação, em que a
ação é suscetível de ser coagida através dessa pessoa, de acordo com leis da
liberdade, de modo que (como formulado neste esboço) ninguém cometa
injustiça ao outro. Esse direito é interno, referente ao direito da humanidade
enquanto própria pessoa, baseado na autocoerção, sobre o qual fundamenta-
se o direito externo, assim como a autorização de coagir os outros (cf. AA
XXIII, 276).
As categorias dinâmicas do direito são formuladas em
similaridade com as do entendimento puro. Elas, categorias dinâmicas, se
concentram sobre a existência do seu “objeto”. No caso do direito, a
existência do “objeto” é qualificada enquanto Faktum do direito e é
determinada pela categoria dinâmica jurídica em referência com o sujeito ou
com a associação do arbítrio sobre o objeto. O direito, conforme a matéria,
consiste na realidade do arbítrio em desígnio de seu objeto; de maneira que
o direito material pode ser caracterizado enquanto a relação de uma pessoa
com um “objeto” (Gegenstand) externo ao seu arbítrio, em que a pessoa
pode exercer coação pela posse do objeto contra os demais, conforme leis da
liberdade (cf. AA XXIII, 277). De acordo com a categoria de relação, o meu
e teu externos podem ser: a) uma coisa; 2) uma ação de um outro; 3) um
estado de agir e de “sofrer” (leiden) do meu arbítrio segundo leis da
liberdade (Ibid., 230). Todavia, essa divisão do meu e teu, que pode ser
associada à divisão sistemática da doutrina do direito privado (direito a uma
coisa, direito a uma pessoa e direito a uma pessoa em afinidade com um
direito a uma coisa), somente pode ser estabelecida enquanto tal se for
possível demonstrar a necessidade da união dos arbítrios, última etapa da
categoria de modalidade. No geral, a categoria matemática do direito expõe
o direito enquanto forma. A categoria dinâmica do direito, por sua vez,
apresenta o direito enquanto matéria e determina, assim, a forma da
doutrina da posse (uma parte da doutrina do direito material). Esse esboço
categorial 9 , ainda que incompleto (por faltar unidade nas formulações),

8
Sob “forma” do direito está subentendido a forma das relações da vontade e não das
proposições jurídicas formais.
9
Uma das vantagens da estruturação dos conceitos em categorias é o auxílio na completude
das formulações. Um exemplo disso pode ser verificado na categoria de qualidade da tabela
II (comando, permissão e proibição). As leis permissivas, abordadas pelos teóricos do
Esboços de categorias no direito privado kantiano 219

possui grande semelhança com a estrutura do texto publicado do direito.


O passo seguinte, na fundamentação a priori da “doutrina da
posse”, conforme os Manuscritos, é a passagem para o campo objetual
específico da doutrina do direito e a sua estruturação. Essa tarefa se apóia
também numa estrutura categorial. As categorias do direito, definidas
meramente pelo arbítrio, determinam o campo objetual enquanto condição
de possibilidade do meu e teu externos. O conceito de posse é interpretado
sob duas conotações: posse física e posse jurídica. A posse física é
caracterizada enquanto aquela que é estabelecida pelas condições de um
objeto e de sua existência no tempo e no espaço (cf. AA XXIII, 298). Já a
posse jurídica é definida pelas meras relações do meu arbítrio com o arbítrio
do outro em conformidade com leis da liberdade. As condições sensíveis e
inteligíveis, referentes às distintas qualificações de posse, são tratadas nas
categorias do direito, determinadas pura e simplesmente pelo arbítrio.

Tabela IV

As categorias são 10 :

1. Da grande coletividade de coagir a cada um que esteja na posse física da coisa


que pertence a mim.

2. Da qualidade como direitos são adquiridos, perdidos, restringidos enquanto


realidade de uma posse, não meramente da liberdade, em que a negação (da

direito natural enquanto exceções às leis passam a ser vistas, através da “estrutura
categorial”, enquanto necessárias. No geral, é exigido que as leis devam ser fundamentadas
na necessidade prática objetiva. O seu poder de coagir advém de sua aprioridade. Ocorre
que as leis permissivas se fundamentam na contingência prática de certas ações; sendo
introduzidas na lei pela tradição jurídica, somente de modo causal (principalmente, no
direito estatutário). O filósofo Königsberg encontra a solução desse problema numa razão
sistematicamente classificadora. A derivação segundo um princípio, por fornecer um ponto
de partida a priori, assegura a necessidade das leis permissivas. De acordo com a
reivindicação kantiana, as leis permissivas devem ser tratadas enquanto condições
limitativas da lei imperativa (cf. EwF, Anm., BA 16-7). Na introdução à obra Metaphysik
der Sitten, Kant caracteriza uma ação que não está ordenada ou proibida enquanto
simplesmente permitida, uma vez que não há nenhuma lei que limite a liberdade
(permissão) e, logo, qualquer dever (cf. MS, AB 21-22). Quanto à função das leis
permissivas da razão prática, veja MS R, AB 58.
10
Tomei a liberdade de introduzir acréscimos (entre parênteses), visando favorecer fluidez na
leitura desse fragmento.
220 Fábio César Scherer

posse) não reduz a liberdade de ninguém que esteja conectado com a ação justa
(actione iusta), (porém limita), já que a liberdade de cada um é restringida
através desse direito.

3. Da relação a) das coisas em substância - as quais existem também para si sem


efeito do meu arbítrio; b) da ação de um outro: para o qual o meu arbítrio é
necessário, c) da comunidade, onde uma (pessoa) pertence a outra pessoa, isto é,
um certo estado que faz de si mesmo dependente, em que cada um é através
meramente do arbítrio do outro.

4. Da modalidade, posto que esse direito se dá ou enquanto propriamente possível,


ou também enquanto efetivo, ou a cada homem enquanto necessário (AA
XXIII, 298) 11 .

Esta tabela é construída sobre a relação (indireta ou mediante a


coisa) entre os arbítrios segundo leis da liberdade 12 . Essa relação meramente
inteligível deve ser aplicada ao mundo sensível. O que significa, para uma
relação jurídica do livre arbítrio, que as forças irão ser exercidas externa e
mutuamente de acordo com leis da liberdade. Esse campo de forças, em que
o livre arbítrio atua, bem como a forma de sua interação, pode ser associado
à lei física newtoniana de simetria da ação e reação 13 . Segundo Kant, é da
relação entre liberdade e arbítrio (este último no espaço e no tempo) que
surgem primeiramente os princípios a priori de extensão do arbítrio sobre o

11
Die Kategorien des Rechts, welche die Willkür schlechthin bestimmen:
„Diese Categorien sind 1. der Größe Allgemeinheit, jeden zu zwingen, der im physischen
Besitz der Sache ist die mir angehört 2.) der Qvalität wie Rechte erworben verlohren
eingeschränkt werden als Realität eines Besitzes nicht blos der Freyheit der die Negation
blos Keinem seyne Freyheit zu schmälern entgegen steht, die mit der actione iusta
verbunden ist u. die limitation da die Freyheit eines jeden durch dieses Recht eingeschränkt
wird. 3. der Relation a) der Sachen in Substanz (die auch für sich ohne Wirkung meiner
Willkühr existiren b) der Handlung eines andern: wozu ihn meine Willkühr nöthigt c) der
Gemeinschaft da einer des andern Person d. i. einen gewissen Zustand desselben von ihm
abhängig macht in welchem jener blos durch die Willkühr des andern ist.
d) der Modalität da dieses Recht entweder selbst blos möglich oder auch wirklich oder auch
jedem Menschen nothwendig zukommt” (AA XXIII, 298).
12
Embora essa ordem categorial não seja adotada no texto publicado do direito, há alguns
aspectos similares. Por exemplo: no § 2 do direito privado quanto à categoria de quantidade
e qualidade (cf. MS R, AB 57) e o § 4 no que diz respeito à categoria de relação (cf. Ibid.,
AB 59-60).
13
Esta analogia foi utilizada no § E do texto da introdução à doutrina do direito (cf. MS, AB
37).
Esboços de categorias no direito privado kantiano 221

arbítrio do outro em vista do uso de objetos utilizáveis. Isso porque é nessa


relação que, pela primeira vez, pode irromper, segundo as condições do
espaço e do tempo, um conflito (cf. AA XXIII, 296). É mediante a extensão
do arbítrio a sua unidade sintética na relação com o objeto no espaço e no
tempo que se tornam possíveis proposições jurídicas sintéticas. Em outros
termos, somente após a proposição fundamental sintética do direito (aja de
tal maneira que o seu arbítrio possa coexistir com o arbítrio do outro em
vista do objeto do mesmo segundo leis da liberdade) 14 é que pode se
determinar a unidade sintética do direito em vista da coisa, da pessoa e desta
enquanto coisa. E, com isso, a relação do arbítrio em vista de um objeto
estende-se sinteticamente de uma “potencial” união geral do arbítrio,
pensada meramente enquanto possível, para uma real especial união, que
deve ser efetiva.
O conceito de posse de um objeto, como visto, é determinado
de acordo com o “estado” do objeto do arbítrio: se este é dado (no espaço e
no tempo) ou é inteligível. A posse meramente jurídica é “uma associação
com o sujeito através de meros conceitos da unidade sintética ou extensiva
do arbítrio em vista do objeto” (Ibid., 222). Esses meros conceitos enquanto
conceitos do entendimento puro, que possibilitam uma extensão sintética,
são organizados pelo filósofo prussiano também segundo categorias. O meu
e o teu (direito segundo a matéria) são determinados por esses conceitos
enquanto “categorias da posse meramente jurídica”.

Tabela V

Quantidade
1. arbitrário
2. consentido (permitido) por um outro
3. deduzido da posse de todos

Qualidade
1. da faculdade do emprego
2. da independência de uma coisa do uso de outro, isto é, da liberdade
3. da restrição do arbítrio dos outros através da minha liberdade

Relação

14
“Handle so, daß nach Prinzipien der Freiheit deine Willkür mit anderer ihrer in Ansehung
ihrer Objekte überhaupt zusammen bestehen kann” (AA XXIII, 297).
222 Fábio César Scherer

1. da substância, isto é, da coisa (direito a uma coisa)


2. da causalidade, da promessa do outro (direito a uma pessoa)
3. da comunidade, da posse recíproca das pessoas (direito a uma pessoa em
afinidade com um direito a uma coisa)

Modalidade
1. direito provisório (estado de natureza “facto”)
2. direito adquirido (direito privado “pacto”)
3. direito externo inato (direito público “lege”) (AA XXIII, 218) 15

Essa tabela de categorias é pautada na determinação da proposição


jurídica original-sintética: “Isso é meu” - proposição esta que pode conter
vários significados. A declaração de posse, por exemplo, “este pedaço de
terra é meu” pode ser compreendida, no âmbito da categoria de quantidade,
enquanto: a) minha apropriação arbitrária de uma terra “intocada”; b)
resultante de um acordo privado que faço com um outro, com o qual divido
essa terra; c) dedução da minha posse da posse de todos, de forma que a
minha declaração de posse é pública e juridicamente assegurada, no âmbito
de um estado civil. Já quanto à categoria de qualidade, eu posso afirmar,
com a mesma frase sintética, que: a) estou em totais condições de fazer um
uso físico desse pedaço de terra; b) esse pedaço de terra não pode ser
utilizado por ninguém além de mim; c) no âmbito de uma constituição
civil, o meu uso é possível pelo não uso de outros e vice-versa. No que diz
respeito à categoria de relação, posso, ainda através da mesma declaração de
posse (“esse pedaço de terra é meu”), a) designar a minha ligação com uma
coisa ou substância (direito de uma coisa); b) referir-me a uma promessa
feita a outro ou feita por um outro, que considero enquanto válida
juridicamente para um contrato pactual sobre a terra (direito a uma pessoa);
e com a declaração, por exemplo, “esse filho é meu”, c) assinalar um direito
recíproco de uma pessoa contra outra pessoa (direito a uma pessoa como
um direito a uma coisa). A categoria de modalidade, por sua vez, sinaliza os

15
Tafel der „12 Categorien des blos-rechtlichen Besitzes”:
„Mein Recht ist der Qvantität 1.) eigenmächtig 2.) eingewilligt von einem anderen 3.
abgeleitet vom Besitz aller - der Qvalität 1.) des Vermögens des Gebrauchs 2) der
Unabhängigkeit einer Sache vom Gebrauch anderer d.i. der Freyheit 3.) der Einschränkung
der Willkühr anderer durch meine Freyheit. - Der Relation 1.) der Substanz d. i. der
Sachen 2. der Caußalität, des Versprechens Anderer 3. der Gemeinschaft, des
wechselseitigen Besitzes der Personen. - Der Modalität 1.) provisorisches Recht. 2.
erworbenes 3. angebohrnes äußeres Recht” (AA XXIII, 274).
Esboços de categorias no direito privado kantiano 223

diferentes status jurídicos que uma declaração sintética de posse poder ter:
possível, efetivo e necessário. No estado de natureza, em que a posse e o
poder estão concentrados nos singulares, o direito pode ser somente
provisório, isto é, possível. No estado privado (quase-civil), através da
adesão a um contrato jurídico privado, no qual há uma mediação com a
vontade de outros sujeitos, o direito passa a ser efetivo, contudo, a posse é
ainda vulnerável. É somente com o estado civil e com o poder de coerção
pública (possibilidade real de impedimento de qualquer obstáculo ao uso
externo da minha liberdade) que fica garantido, de forma necessária, o meu
direito de posse.
Há alguns aspectos simétricos dessa tabela V que devem ser
observados. Primeiro, a correspondência das subdivisões de cada uma das
quatro posições categoriais com os três momentos distintos do direito. As
primeiras subdivisões referem-se ao estado de natureza, ainda na ausência do
direito. As segundas subdivisões tratam do direito privado interpessoal,
marcado pelo direito contratual. Já as terceiras subdivisões pressupõem uma
constituição civil, condição necessária para o asseguramento da posse
inteligível. Essa classificação kantiana é realizada com o intuito de demarcar
os três momentos elementares da efetivação do direito (não havendo relação
direta com momentos históricos passados). Segundo, somente com a
instauração do direito público é que o direito alcança a sua efetividade
completa. Terceiro, é através dessa efetividade que pode se estabelecer uma
teleologia histórico-universal; como Kant, de fato, faz sobre a perspectiva do
direito das gentes. Quarto, à efetivação do direito irão sempre pertencer
momentos do estado de natureza e do direito privado. Não é à toa que o
direito natural é dividido, por Kant, em direito privado e direito público (cf.
MS, AB 52). Quinto, o direito privado é construído e validado pelo seu
enfoque na constituição civil. O direito privado não desaparece com a
entrada em vigor do direito público. O que deixa claro a simultaneidade dos
vários status do direito em Kant. A tabela das categorias indica que essa
simultaneidade tem também motivos lógico-transcendentais.
Ainda, quanto à tabela V, pode se constatar que os seus conceitos
jurídicos, analogamente à estrutura das categorias especulativas, também
deixam ser divididos em dois grupos: matemáticos e dinâmicos. O primeiro
grupo trata da determinação da unidade do arbítrio em vista da posse de um
objeto e, o segundo grupo, que se preocupa com a existência dos objetos,
224 Fábio César Scherer

ocupa-se com o objeto do próprio arbítrio. As três formas da união do


arbítrio a sua unidade sintética sobre um objeto são expostas segundo os três
tipos de objetos externos do arbítrio (em vista da coisa, da pessoa e desta
enquanto coisa). Esses objetos, dados pela categoria de relação, determinam
o campo objetual da doutrina do direito e contêm o princípio de
fundamentação do meu e teu externos (cf. Sänger, 1982, 215). Vale notar
ainda que o esboço categorial acima é análogo em muitos aspectos com os
das tabela II e IV, bem como que é semelhante à “exposição do conceito do
meu e teu externos” do § 4 e com a “divisão da aquisição do meu e teu
externos” do final do § 10, referente ao texto publicado do direito privado.
No que diz respeito à ordem das tabelas, elas são expostas em geral,
pelo filósofo prussiano, de acordo com um método progressivo: exposição
dos objetos externos seguida pelas formas de união do arbítrio. Todavia,
essas categorias podem também ser apresentadas segundo um método
regressivo analítico. Esse procedimento, que se inicia pela determinação
modal, foi realizado por Kant na primeira tabela dos Manuscritos,
denominada de “categorias do controle sobre coisas (posse de objetos)”. Para
tanto, é pressuposto a existência dos objetos externos do meu arbítrio.

Tabela VI

1. a posse de uma coisa


2. a vontade esclarecida de uma pessoa
3. a posse de uma pessoa enquanto igual a posse de uma coisa.

No que refere-se ao primeiro, a união do arbítrio pode ser considerada enquanto


possível; quanto ao segundo, ela deve considerada enquanto efetiva e, em relação
com o terceiro, por sua vez, enquanto necessária. O primeiro trata do objeto
enquanto substância; o segundo, enquanto ação; o terceiro, enquanto influência
mútua. O primeiro é a fundação de uma posse; o segundo, exclusão; o terceiro,
restrição da posse através do direito do outro. Finalmente, um contra um ou um
contra muitos ou um contra todos (AA XXIII, 216) 16 .

16
Kategorien der Gewalt über Sachen (Besitz eines Objekts):
„1.) Der Besitz einer Sache 2.) des erklärten Willens einer Person 3. der Besitz einer Person
gleich als der Besitz einer Sache. In Beziehung auf den ersteren darf die Vereinigung der
Willkühr nur als möglich auf den zweyten Besitz muß sie als wirklich in Beziehung auf den
dritten als nothwendig angesehen werden. Die erste geht aufs Object als Substanz, die
zweyte als Handlung, die dritte als wechselseitiger Einflus, die erste ist Gründung eines
Besitzes die zweyte Ausschließung die dritte Einschränkung eines Besitzes durch das Recht
Esboços de categorias no direito privado kantiano 225

Se reunirmos os fragmentos presentes em Vorarbeiten zur Rechtslehre


sobre os três objetos do arbítrio, mediante os quais pode se determinar a
posse de um objeto, e os organizarmos cada um dos objetos do arbítrio
segundo as quatro posições da tabela de categorias, teremos, assim, uma
determinação apriorística e relativamente completa quanto à posse de um
objeto. Uma tentativa bem sucedida, neste sentido, foi realizada por Sänger:

A posse de um objeto é:
1. enquanto posse de uma coisa (direito a uma coisa)
a) da quantidade segundo unidade (um contra um)
b) da qualidade segundo realidade (fundamentação de uma posse)
c) da relação segundo substância (tratamento do objeto enquanto substância)
d) da modalidade segundo possibilidade (associação possível do arbítrio)

2. enquanto arbítrio esclarecido de uma pessoa (direito a uma pessoa)


a) da quantidade segundo pluralidade (um contra muitos)
b) da qualidade segundo negação (exclusão de uma posse)
c) da relação segundo causalidade (objeto enquanto ação)
d) da modalidade segundo efetividade (associação efetiva do arbítrio)

3. enquanto a posse de uma pessoa igual posse de uma coisa (direito a uma pessoa
em afinidade com um direito a uma coisa)
a) da quantidade segundo totalidade (um contra todos)
b) da qualidade segundo limitação (restrição de uma posse através do direito do
outro)
c) da relação segundo comunidade (objeto enquanto influência recíproca)
d) da modalidade segundo necessidade (associação necessária do arbítrio em vista
da posse) (Sänger, 1982, 217).

Esse esboço torna evidente a sistemática categorial da doutrina da


posse kantiana. A correspondência (ainda que parcial) das divisões das
categorias em Vorarbeiten zur Rechtslehre com o texto da Metaphysische
Anfangsgründe der Rechtslehre, bem como as repetidas tentativas kantianas de
organização dos conceitos básicos do direito em tabelas, sinalizam que
poderia haver, em princípio, uma terceira tabela, ao lado da tabela da razão
especulativa e das categorias da liberdade. Essa tabela seria similar, por um
lado, à tabela da liberdade, em especial, pela natureza do objeto tratado
(determinação do livre arbítrio) e, consequentemente, pela forma de

des andern. Endlich Eines gegen Einen oder eines gegen viele oder eines gegen jedermann”
(AA XXIII, 216).
226 Fábio César Scherer

tratamento e de efetivação desses conceitos; e, por outro lado, com a tabela


especulativa, quanto à forma. A forma da regularidade em geral da natureza
é entendida por Kant enquanto tipo (typus) das leis dos costumes (cf. KpV,
A 69-70), de emprego valioso - como heurística de tipos – na construção do
âmbito prático, incluindo, o subcampo jurídico (por exemplo, na
construção do conceito de direito). Todavia, nas categorias do direito,
diferentemente do que nas categorias da liberdade, exige-se, para sua
realidade objetiva prática, não apenas a consistência interna das máximas
das ações, mas também que se encontre uma ação na experiência (no espaço
e no tempo) que lhes seja correspondente (cf. AA XXIII, 275). Desta forma,
as categorias do direito ganhariam propriamente significado na relação com
o fato (Tatsache) externo de outra liberdade, particularmente, no ato físico
do arbítrio enquanto expressão externa da liberdade. Essa relação entre o ato
físico do arbítrio e as categorias do direito deveria ser feita por
“esquematismo” (cf. Ibid.) 17 , em que se poderia representar a liberdade de
um e de outro enquanto capaz de coexistir no espaço e no tempo. As
categorias do direito, por sua vez, determinariam a forma e a maneira da
mediação entre o princípio do direito inteligível e os direitos materiais
concretos (que são postos por um agente jurídico ao outro agente jurídico),
sendo esses últimos “responsáveis” pela determinação do significado real.

Considerações finais
A validade (legitimidade), consequentemente, a utilidade dos esboços
categoriais jurídicos depende da demonstração da necessidade das categorias
no contexto de fundamentação sistemática da doutrina do direito
apriorística. Em outras palavras, deve-se demonstrar como é possível extrair
das categorias proposições sintéticas a priori do direito enquanto princípios
da possibilidade de experiência, já que, do ponto de vista dos objetos do
arbítrio livre em geral, as proposições são analíticas (cf. AA XXIII, 276).
Esse quadro conceitual delimitado a priori é pressuposto na resposta do
problema central da Rechtslehre: como são possíveis proposições sintéticas a
priori do direito 18 ?

17
De acordo com Kant, “os conceitos do direito se tornam conhecimento somente se for
apresentada a vontade do outro, como ela aparece (erscheint) e como se manifesta
(offenbart) externamente aos sentidos” (cf. AA XXIII, 277).
18
As resoluções dos problemas da validade de proposições jurídicas analíticas e os das
Esboços de categorias no direito privado kantiano 227

Segundo a determinação da relação entre a razão e o entendimento,


e do entendimento com os objetos da experiência, dados na Kritik der reinen
Vernunft, válida também para os campos específicos da metafísica, a razão
enquanto faculdade dos princípios não se refere nunca diretamente aos
objetos da experiência, mas aos conceitos ou juízos do entendimento.
Somente o entendimento, com suas categorias, relaciona-se com as
representações da experiência e com os conceitos empíricos dos objetos. No
caso da doutrina do direito privado, o conceito de posse inteligível,
enquanto conceito da razão, se relaciona somente com o conceito do
entendimento de posse meramente jurídica, o qual é necessário para a
dedução da realidade jurídica do conceito de posse inteligível (cf. MS R, AB
68). Esse conceito do entendimento de “posse em geral” (em que se
encontram abstraídas todas as condições de espaço e de tempo), por sua vez,
estabelece a relação com o conceito de posse física e com os objetos da
experiência. Tal conexão é feita através de princípios sintéticos, em que cada
um é conectado e também mutuamente autorizado, na sua relação com as
coisas e com os agentes livres, a restringir a si próprio e aos outros a uma
condição que seja compatível com a idéia de uma vontade coletiva (cf. AA
XXIII, 211). As categorias do direito privado seriam responsáveis por
possibilitar, por exemplo, a aplicação do conceito de posse inteligível
(conceito da razão) à experiência em geral.

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HANNA, Robert. Kant and the foundations of analytic philosophy. Oxford,

sintéticas a priori (do direito) são distintas. A determinação da verdade das proposições
analíticas pode ser dada, conforme a Kritik der reinen Vernunft, segundo leis da lógica e de
regras de significação da linguagem. No caso das proposições jurídicas analíticas, elas se
mostram evidentes a partir do direito inato e podem ser decididas quanto a sua verdade
mediante o princípio de contradição. Já quanto à verdade das proposições sintéticas a
priori, elas não podem ser extraídas somente por leis lógicas. É necessário também outros
princípios de validade, tais como a relação (direta ou indireta) com o campo da experiência,
possibilitada pelo esquematismo (em geral).
228 Fábio César Scherer

Clarendon Press, 2001.


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de Kant. São Paulo, Iluminuras, 1995.
Por uma metafísica do sublime

Martha de Almeida *

Resumo: O sublime vem sendo analisado desde a antiguidade com uma marcante relação
com a tragédia, seja como gênero literário, seja por meio da Poética, de Aristóteles que nos
traduz pela catarse o sentimento do sublime. Na modernidade, novos nomes foram
chegando para colaborar com esta teoria: o próprio Hume, em seu ensaio Da tragédia,
mostrou-se impressionado com a capacidade que esta forma de arte tem de produzir efeitos
tão intensos no espectador. Porém, quem mais fortaleceu a análise do sublime na
modernidade, servindo de base para o próprio Kant foi Edmund Burke, com sua obra Uma
investigação filosófica sobre as idéias do sublime e do belo. A terceira crítica de Kant dedicou um
momento especial à analise do sublime, a qual já havia servido como base também para
Schopenhauer que, no entanto, a partir dela, construíra sua própria estética que viria a ser de
suma importância para o jovem Nieztsche, sobretudo devido à consideração da música como
arte sublime. Nietzsche, então, construiu sua sabedoria trágica,com base na experiência
sublime da tragédia. A questão que este artigo quer tratar é exatamente: é possível pensar
numa metafísica do sublime ,com base em Nietzsche ?
Palavras-chaves: Kant; Metafísica; Nietzsche; Schopenhauer; Sublime

Abstract: The sublime has been analyzed since ancient times with a striking compared with
tragedy, whether as a literary genre, whether through Poetics, Aristotle's catharsis we translate
the feeling the sublime. In modernity, new names were coming to work with this theory:
Hume himself, in his essay The Tragedy, was impressed by the ability of this art form has to
produce such strong effects on the viewer. But who else has strengthened analysis of the
sublime in modernity, providing the basis for their own Kant was Edmund Burke, with his
piece A philosophical investigation on the ideas of the sublime and the beautiful. The third
criticism of Kant devoted a special moment to the analysis of the sublime, which had served
as basis also for Schopenhauer, however, from her built his own aesthetic that would be of
paramount importance Nieztsche for the young, mainly due to the consideration of music as
sublime art. Nietzsche, then built his tragic wisdom, with based on the experience of the
sublime tragedy.The question this paper wants to treat it exactly: It is possible think of a
metaphysics of the sublime, based on Nietzsche?
Keywords: Kant; Metaphysical; Nietzsche; Schopenhauer; Sublime

*
Doutoranda do programa de pós-graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro- bolsista do CNPq. E-mail: marthinhadealmeida@gmail.com Artigo recebido
em 15.09.2009, aprovado em 20.12.2009.

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 229-255


230 Martha de Almeida

O tema do sublime é abordado desde a antiguidade, tendo seu marco inicial


na obra Do sublime do pseudo Longino, comprovando que desde a
antiguidade já se falava deste sentimento, que nos antigos, era definido
como uma forma lingüística, literária ou artística que expressava
sentimentos ou atitudes elevadas e nobres.
Este tratado visava demonstrar uma forma de atingir o sublime
através da arte da poesia, da retórica e da oratória; nele o sublime é
compreendido como a expressão da intensidade do pensamento e das
paixões, como a perfeição das belas composições e a clareza máxima das
imagens, mantendo com isso uma postura antropocêntrica tão própria e
característica da cultura helenística. O sublime emerge aí em sua relação
com a natureza humana, e cujo dom do poeta é valorizado, estando, porém,
sempre associado à técnica, sendo a técnica a dimensão artística mais
valorizada na época.
Outros autores antigos escreveram sobre o sublime; Teofrasto teria
sido o primeiro a produzir uma teoria dos gêneros literários onde se
preocupou, minuciosamente, com a retórica, chegando a influenciar Marco
Antônio Cicéron (106-43 a,C.), orador filósofo e literato da antiga Roma,
em sua obra De Oratore com sua teoria das quatro virtutes dicenti.
Somando-se a esses antigos que se dedicaram ao estudo do sublime
podemos citar Quintiliano, em sua obra De institutione oratória e um
tratado intitulado Libellus de elocutione atribuído a Demetrio de Fávero,
filósofo, orador e chefe político nascido em Fávero, porto de Atenas. Esta
autoria, porém, lhe foi negada posteriormente devido a estudos históricos
que a atribuíram a um autor desconhecido que deve ter vivido nos
primeiros anos de nossa era.
Lembrando que a tradição literária grega trata o sublime como um
gênero, o gênero trágico pode ser considerado sublime na medida em que a
tragédia grega pode der entendida como um relato, uma representação das
paixões humanas. Neste sentido, bem nos lembrou Aristóteles em sua
Poética, que o sublime é o prazer que provém da imitação ou da
contemplação de uma situação dolorosa. Esta definição está diretamente
relacionada com a idéia da catarse trágica, lembrando que a palavra catarse
em seu sentido etimológico significa limpar, depurar, remover alguma
mescla, mácula ou obscuridade, em outras palavras: sublimar. Ao afirmar
que a tragédia deve provocar terror e piedade e, por isso, o poeta trágico
Por uma metafísica do sublime 231

deve propiciar o prazer que nasce da piedade e do terror por meio da


imitação, Aristóteles não esta evidenciando nada mais do que aquilo que
entendemos como sendo a fórmula do sublime: Um sentimento de
desprazer seguido por um sentimento de prazer grandioso. 1 Neste
momento, entra em cena, a definição de sublime que pretendemos enfocar
neste trabalho, uma noção primeiramente evidenciada por Aristóteles que
marcará toda a modernidade.
No século XVIII, essa noção de tragédia, evidenciada na Poética de
Aristóteles, deu origem a um problema que foi examinado por Hume em
um dos ensaios morais e políticos intitulado Da tragédia, que já em seu
início profere as seguintes palavras:

É aparentemente impossível dar conta do prazer que os espectadores de uma


tragédia bem escrita recebem da tristeza, do terror, da ansiedade e de outras
paixões que em si mesmas são incômodas e desagradáveis. Quanto mais são
comovidos e afetados, mais se deliciam com o espetáculo e, assim que as paixões
desagradáveis cessam sua influência, a peça chega ao fim.O máximo que uma
composição deste tipo pode admitir é uma única cena de completa alegria,
contentamento e segurança, e é quase certo tratar-se sempre da cena final. Se na
textura da peça forem introduzidas quaisquer cenas de satisfação, estas produzem
apenas pálidas luzes de prazer, incluídas unicamente a título de variedade, e a fim
de mergulhar os atores numa aflição mais profunda, por meio desse contraste e da
decepção daí resultante. Toda a arte do poeta é usada para despertar e manter
compaixão e indignação, a ansiedade e o ressentimento de seu público. Sentem
prazer na mesma proporção em que se afligem, e nunca são tão felizes como
quando soltam soluços, lágrimas e gritos para dar vazão a seu desgostos e aliviar seu
coração dilatado pela mais terna simpatia e compaixão

Hume também contribui para a análise psicológica do sublime na


medida em que “equaciona quatro noções em cadeia: 2 imaginação,
simpatia, utilidade e beleza; entendendo o belo como algo afetivo e que se
opõe ao disforme numa relação entre prazer e dor. Hume também associa o
sublime a grandeza na medida em que se refere aos objetos sublimes como
sendo grandes.
Esta análise serviu de fundamento para a obra do sensualista Inglês
Edmund Burke Uma investigação filosófica sobre as idéias do sublime, que
quando levou a cabo a publicação de sua obra já contava com uma evolução

1
Cf. Aristóteles, Poética 14, 1453 b 10
2
Cf.Barbas, 2006.
232 Martha de Almeida

nos estudos sobre o sublime que se apontava como um tema próprio para
um estudo psicológico a ser estudado por filósofos que se interessavam pela
relação entre as emoção humana e seu objeto.
Burke acreditava que os antigos não haviam separado
adequadamente o belo do sublime, e que por alguma falha ou necessidade
de valorizar a arte na antiguidade estes a teriam associado a sentimentos
morais. 3 Como podemos ver nas palavras do autor:

a aplicação geral desta qualidade (a beleza) à virtude alimenta uma forte tendência
para confundir as nossas idéias das coisas; e tem dado origem a uma quantidade
infinita de teoria excêntricas; como a de atribuir a beleza à proporção, congruência
e perfeição, bem como a qualidade das coisas ainda mais remotas das nossas idéias
delas, e umas das outras; tenderam para confundir as nossas idéias de beleza, e
deixaram-nos sem padrão ou regra para julgar, que não fosse ainda mais incerta e
falaciosa que nossas próprias fantasias . 4

Desta maneira, Burke se propõe a investigar a possibilidade de uma


teoria das paixões humanas a partir de uma metodologia indutiva que se
propõe a examinar primeiramente as paixões do próprio indivíduo,
examinando, em seguida, a propriedade das coisas que, pela experiência,
influenciam as paixões e finalmente as leis da natureza por meio das quais
essas propriedades podem afetar os corpos e excitar as paixões; tendo como
objetivo encontrar regras que possam ser aplicadas às artes imitativas.
Segundo Burke, todas as sensações tem como base uma relação
entre prazer e dor que corresponde a contrações e descontrações musculares
e dos feixes nervosos; o prazer dilata enquanto a dor contrai. Burke vai,
ainda, postular a existência de um grau zero do prazer ou dor: a indiferença,
negando, assim, a idéia de que o prazer é a ausência de dor e de que a dor,
nada mais é que a ausência do prazer. Desta forma, Burke introduz a idéia
de prazer e dor positivos, diferente da concepção aceita na época que
evocava sentimentos advindos do cessar ou da diminuição da dor e do
prazer.
Burke, então, afirmará a existência de dois tipos de prazer: um que
se relaciona com o belo, e o outro com o sublime. O sentimento que diz
respeito ao sublime é chamado de deleite, este nasce da mortificação da dor,

3
Cf Burke.p.112
4
Idem.p.112.
Por uma metafísica do sublime 233

sendo uma espécie de regresso à indiferença, uma consternação, um misto


de terror e surpresa, de natureza sólida e severa que compõe a experiência do
sublime. Em suas palavras:

O belo e o sublime são de natureza diferente: um tem fundamento na dor e o


outro no prazer; embora possam depois afastar-se da verdadeira natureza de suas
causas, estas continuarão sendo diferentes uma da outra, e essa diferença nunca
deverá ser esquecida por quem se propuser suscitar paixões 5

No sublime a primeira emoção a ser excitada é o espanto, a paixão


que impede o raciocínio, seguidas de outras que já tem em si um caráter
racional: a admiração, a reverência, o respeito. Esse sentimento começa com
seu aspecto visual afirmando o espanto e o terror experimentados diante de
um objeto (grande ou pequeno) que contem em si a possibilidade de infligir
dor ou morte. Essa inversão nas relações de poder, faz com que o homem
experimente a impotência mediante essa força que lhe sujeita. O sublime
também pode ser experimentado diante de um objeto ilimitado, que
ultrapasse os limites da capacidade do entendimento. Neste caso o homem
se sente ameaçado por um objeto que o exceda em qualidade ou
quantidade.
Com Burke, o prazer estético proporcionado pelo sublime passa a
ser orgânico, logo, subjetivo. O prazer e a dor se tornam responsáveis pela
sensação estética; se o prazer garante a multiplicação das espécies, a dor
estará ligada a autoconservação. Neste sentido, o deleite ocorre exatamente
quando essas duas sensações se reúnem.
As distinções entre o belo e o sublime também serão foco das
preocupações de Immanuel Kant que desde da juventude se ocupa com esta
questão como podemos comprovar por seu livro Observações sobre o belo e o
sublime que veio a luz em 1764, oito anos após a publicação da obra de
Burke. Nele, o autor trabalha de forma embrionária as diferenças entre o
belo e o sublime o que muito o aproxima de Burke, referência esta que ele
não abandona nem mesmo em sua A Crítica da faculdade do Juízo, obra
escrita em sua maturidade, de imenso valor para a Estética como um todo.
Na Crítica da faculdade do Juízo Kant dedica-se a análise do belo e
do sublime, corrigindo e completando a fenomenologia de Burke. Kant

5
Ibidem.Edição de 1756, III, p. 27
234 Martha de Almeida

renova as idéias do empirista Inglês no contexto de seu transcendentalismo.


No primeiro parágrafo de sua analítica do sublime, Kant afirma que: “o
belo concorda com o sublime no fato de que ambos aprazem por si
próprios” na medida em que reivindicam simplesmente o sentimento de
prazer e não o conhecimento do objeto. 6 Porém, se no juízo sobre o belo há
uma harmonia entre as nossas faculdades, ou seja, uma conveniência que
gera o prazer estético, no sublime haverá um desacordo entre as nossas
faculdades da razão e da imaginação. A faculdade da imaginação - aquela
que apresenta o objeto na intuição e que gera as formas – sente-se ameaçada
diante caráter colossal, imensurável do sublime; que esmaga o homem e
permite que ele enxergue a sua própria finitude, bem como a força
esmagadora da natureza. . Segundo Kant:

Na representação do sublime na natureza o ânimo sente-se movido, já que em seu


juízo estético sobre o belo ele está em tranqüila contemplação.Esse movimento
pode ser comparado (principalmente no seu início) a um abalo, isto é uma rápida
alternância de atração e repulsão do mesmo objeto. O excessivo para a faculdade
da imaginação (até a qual ela é impelida na apreensão da intuição) é, por assim
dizer, um abismo, no qual ela própria teme perder-se; contudo, para a idéia da
razão do supra-sensível não é também excessivo, mas conforme a leis produzir um
tal esforço da faculdade da imaginação: por conseguinte, é por sua vez atraente
precisamente na medida em que era repulsivo para a simples sensibilidade. Mas o
próprio juízo permanece no caso sempre somente estético, por que, sem ter como
fundamento um conceito determinado do objeto, representa como harmônico
apenas o jogo subjetivo das faculdades do ânimo (imaginação e razão), mesmo
através de seu contraste. Pois assim, como a faculdade da imaginação e
entendimento no ajuizamento do belo através de sua unanimidade, assim a
faculdade da imaginação e razão produzem aqui através de seu conflito,
conformidade a fins subjetiva das faculdades de ânimo: ou seja, um sentimento de
que nós possuímos uma razão pura, independente, ou uma faculdade da avaliação
da grandeza, cuja excelência não pode ser feita intuitível através de nada a não ser
da insuficiência daquela faculdade que na apresentação das grandezas (objetos
sensíveis) é ela própria ilimitada. 7

Entendemos por sublime aquilo que em comparação com todo o


resto torna tudo pequeno, que á grande acima de qualquer
comparação 8 .Assim, como explicado acima, nesse jogo entre razão e

6
Kant, 1995 p. 89-90.
7
Idem,p. 104-105.
8
Ibidem.Cf.§ 25 p.93
Por uma metafísica do sublime 235

imaginação, a imaginação se esforça para apresentar ao entendimento uma


imagem, mas nunca consegue dar conta do infinito, já que o infinito não
pode ser representado. Surge aí um sentimento de impotência seguido de
uma admiração diante do irrepresentável, do infinitamente grande que
marcará a experiência do sublime em Kant.
Kant divide o sublime em “sublime matemático” e “sublime
dinâmico”. Segundo o pensador, o sublime matemático afronta o homem
devido à sua grandiosidade (grandeza, medida, proporção), demonstrando o
“fracasso” da imaginação em compreender o “absolutamente grande”. As
pirâmides do Egito servem como exemplo de sublime matemático 9 .Já o
sublime dinâmico entende a natureza como poder. Para Kant, o sublime
dinâmico nasce do juízo estético por ocasião dos espetáculos terrificantes
que demonstram a força da natureza: o oceano enfurecido, os vulcões
devastadores, os rochedos aterrorizantes, dentre outras manifestações da
natureza que despertam sensações de impotência e pequenez no homem.
No entanto, este espetáculo se toma mais atraente quanto mais terrível é,
pois, desde que nos encontremos em segurança, perceberemos estes objetos
como sublimes pela capacidade que eles têm de elevar a fortaleza da alma,
permitindo descobrir em nós uma faculdade de resistência que nos encoraja
a medir-nos com a aparente onipotência da natureza. Neste sentido, através
da sensação do sublime, tomamos consciência do nosso poder, enquanto
espécie, o que permite que nos sintamos superiores à natureza, ainda que a
possamos sucumbir. 10 Esses fenômenos fazem com que o homem perceba
que o sublime não está fora dele, mas dentro de si.
Ao nos perguntarmos sobre a finalidade do belo e do sublime em
nossas vidas nos deparamos com a belíssima observação kantiana: “O belo
prepara-nos para amar sem interesse algo, mesmo a natureza; o sublime para
estimá-lo, mesmo contra nosso interesse (sensível).” 11
Schopenhauer se encantará com a analítica do sublime de Kant e a
partir dela construíra sua própria estética, porém, embora as concordâncias
sejam claras e até mesmo declaradas a construção de sua estética estará
fundamentada sobre outro solo. Como veremos a seguir.

9
Ibidem.p. 93-99
10
Ibidem.p.107-108.
11
Ibidem. .p.14.
236 Martha de Almeida

Os três princípios fundamentais do pensamento schopenhaueriano


“O mundo é a minha representação” 12 é uma afirmação que pode ser
compreendida da seguinte forma: o mundo como representação é composto
pelas relações entre sujeito e objeto, ou, dito de outra maneira, o mundo
existe como um objeto em relação a um sujeito, como um objeto que
pressupõe um sujeito, como nos explica Roberto Machado no capítulo 5:
“Schopenhauer e a negação da vontade” de sua obra O nascimento do trágico
de Schiller a Nietzsche.
Segundo seu raciocínio, para entendermos a questão “o que é o
mundo?” é necessário que entendamos antes três conceitos fundamentais
que explicitam seu pensamento: 1) representação, 2) Vontade, 3) idéia.
Tomando esta afirmação como referência nos propomos realizar
uma análise de cada um desses conceitos e de como eles se relacionam entre
si.
1) Representação - Primeiramente, precisamos entender que o
ponto de partida da filosofia schopenhaueriana não é nem o sujeito nem o
objeto, mais sim a representação, ou seja, aquilo que podemos pensar,
compreender desta relação entre sujeito e objeto, entendendo esta relação
como a forma primitiva de qualquer representação. No entanto, toda
representação, tudo que pode ser pensado, conhecido, só pode ser
conhecido graças ao princípio de razão que nos permite captar cada
representação. O princípio de razão nada mais é que a forma de cada
representação, como a representação se apresenta no nosso entendimento.
Neste sentido, consideramos tempo, espaço e causalidade como formas a
priori, que permitem ao ser humano a compreensão das representações,
garantindo assim o conhecimento das relações entre sujeito e objeto. Desta
maneira, Schopenhauer, inspirado por Kant, entende o princípio de razão
nas relações de espaço, tempo e causalidade sendo que estas só podem ser
percebidas na consciência do sujeito, na consciência de cada ser humano
frente a forma de apreensão de cada objeto e conseqüentemente de cada
representação.
O princípio de razão só faz sentido quando entendemos sua relação
com a matéria já que este pressupõe a relação de causalidade para agir no
espaço e no tempo. Schopenhauer também utiliza a expressão principium
individuationis quando deseja se referir somente às relações de tempo e

12
Schopenhauer, 2005 § 1.
Por uma metafísica do sublime 237

espaço, já que estes podem ser considerados independentemente da matéria.


Entenderemos melhor O princípio de individuação quando estudarmos sua
metafísica da arte e o papel do gênio na mesma.
Tendo analisado o mundo como representação podemos, agora,
entende-lo como Vontade.
2) Vontade - O mundo também é “minha vontade”. No interior de
cada representação existirá sempre a relação entre sujeito e objeto, e, por isso
mesmo, é necessário buscar fora dessa relação a essência do mundo como
coisa em si, percebendo que Schopenhauer continua a seguir os passos de
Kant nesse “idealismo transcendente do mundo fenomênico” 13 . Neste
sentido, entendemos a representação como manifestação, fenômeno,
objetivação da vontade, ao contrário da vontade que deve ser entendida
como coisa em si, essência. Desta forma, a vontade é ontologicamente
anterior à representação, já que a representação nada mais é que sua
objetivação, sendo, portanto, a vontade primordial, fundamental, enquanto
a representação é secundária.
A vontade possui várias propriedades. Uma delas é que enquanto
coisa em si ela é única, indivisível em sua identidade. Porém, apesar disso,
ela é o núcleo de cada coisa particular do conjunto dos entes. O mais
interessante é que esta substância indivisível está sempre em luta por uma
manifestação no mundo fenomênico, ou seja, em luta por sua aparição.
Apesar desta afirmação parecer paradoxal, ela não o é, já que a Vontade vive
em luta consigo mesma por um espaço na matéria, por sua expansão no
mundo fenomênico, por sua multiplicação nos mais variados reinos da
natureza, desde a matéria inorgânica até seu mais elevado grau no ser
humano.
Neste momento, precisamos entender que a vontade possui duas
instâncias: uma primordial, onde longe do princípio de razão ela é uma e
indivisível, sem fundamentos, regras ou determinações, existindo por si
mesma tal como coisa em si kantiana; e outra onde esta se manifesta no
mundo fenomênico como representação, exposta, portanto ao princípio de
razão e as suas relações de espaço, tempo e causalidade, sendo, portanto,
eterna necessidade, sentida nos indivíduos como uma negação da liberdade
em virtude da afirmação da necessidade. A Vontade, enquanto essência que

13
Machado, 2006, p.167-168.
238 Martha de Almeida

rege nosso mundo submete todos os indivíduos à roda de desejo que nunca
cessa, fazendo que os indivíduos só busquem a satisfação de suas
necessidades. Como tão bem retrata as palavras do próprio Schopenhauer:

E em essência é indiferente se perseguimos ou somos perseguidos, se tememos a


desgraça ou almejamos o gozo: o cuidado pela Vontade sempre exigente, não
importa em que figura, preenche e move continuamente a consciência.Sem
tranqüilidade, entretanto, nenhum bem-estar verdadeiro é possível.O sujeito do
querer, consequentemente, está sempre atado a roda de Ìxion que não cessa de
girar, está sempre enchendo os tonéis das Danaides, é o eternamente sequioso
Tântalo 14

Isto acontece, porque o pensamento de “ Schopenhauer


compreende a Vontade como um fluxo vital que impulsiona todos os seres,
os produz incessantemente e submete a grande roda da existência” 15 .Na
visão de Schopenhauer, essa vontade se manifesta no corpo sendo sentida
pelo homem como uma necessidade, uma privação que gera sofrimento.
Neste sentido, a arte ofereceria ao homem um caminho de suspensão deste
estado de subjugação da vontade, por ser ela mesma o conhecimento das
essências, das idéias nas quais a Vontade se objetiva como entenderemos
melhor quando analisarmos a metafísica do belo de Schopenhauer.
Na citação destacada o filósofo faz uso de personagens da mitologia
com a finalidade de melhor explicar a inquietude do desejo humano.
Segundo nossas pesquisas o termo Danaídes 16 se refere as cinqüenta irmãs,
filhas de Danan, rei de Argos, que pelo crime de assassinato de seus próprios
maridos praticado por todas elas na noite de noivado (com exceção de
Hypermnestra) foram condenadas a encher eternamente um tonel furado
no inferno.
Também o termo Tântalo 17 tem sua origem na mitologia se
referindo a um personagem condenado, nos infernos, a apanhar frutos que
lhe fugiam e a beber uma água que lhe escapava; não podendo assim nem
matar sua sede nem saciar sua fome. Melhor explicado numa outra fonte
podemos entender, inclusive, porque o nome Tântalo foi dado
posteriormente a um metal em alusão ao suplício narrado na Odisséia;

14
Schopenhauer, 2005, p. 266
15
Nunes, 2000 p.66.
16
Silva, 1891.p.583.
17
Idem. p. 872.
Por uma metafísica do sublime 239

quando Tântalo, mergulhado num lago de águas cristalinas e cheio de sede


não conseguia beber as águas do rio, pois a água se retraia quando ele
tentava umedecer seus lábios. Este nome foi então atribuído ao metal
Tântalo pelo muito que custa a este elemento absorver os ácidos no qual
este é banhado.
Assim, a célebre e bela passagem de Schopenhauer sobre a prisão da
vontade nos revela através dessas figuras mitológicas a dificuldade de se
libertar do desejo na condição humana, mais do que isto, a prisão gerada
por ele mesmo no eterno ciclo das necessidades que nunca são inteiramente
satisfeitas, na medida em que a satisfação do desejo é momentânea dentro
da realidade de um querer insaciável.
Nos comentários de Jair Barboza:

A vontade de vida como coisa em si universal se objetiva em fenômenos. A


objetivação da Vontade traz consigo a autodiscórdia originária dela que se espelha
na guerra de todos os indivíduos pela matéria constante do mundo, com o fim de
exporem e afirmarem sua espécie, gerando assim sofrimento e dor em todo lugar
onde haja vida 18

Desta maneira, a Vontade traz consigo a dor originária pela


aparição marcando com sofrimento toda a forma de vida produzida por ela,
ou seja, toda a forma de vida. Porém, apesar do pessimismo latente desta
filosofia o filósofo oferecerá, em sua metafísica do belo, um caminho, a arte
será para Schopenhauer o único caminho possível, ainda que temporário de
alívio, de suspensão deste eterno aprisionamento; Sua estética, bem como
sua explicação sobre o gênio artístico, não são mais que explicações de como
o homem pode alcançar esse estágio.
Agora, com a finalidade de terminar nossa análise didática sobre os
três conceitos fundamentais do pensamento schopenhauriano, falaremos
sobre a idéia.
3) A idéia – é interessante observar que este conceito de
Schopenhauer tem origem platônica, mais propriamente na alegoria da
caverna, encontrada em sua obra mais conhecida, A República. As idéias são
apresentadas em Platão como a única realidade verdadeira, enquanto os
fenômenos não passam de ilusão, de aparências.

18
Schopenhauer 2005, p. 14.
240 Martha de Almeida

Se fizermos uma análise do § 30 de O mundo como Vontade e


representação perceberemos que nele Schopenhauer apresenta os graus de
objetivação da vontade em diferentes representações. Lembrando que nesses
graus podemos reconhecer as Idéias de Platão na medida em que estas são
justamente espécies determinadas, ou formas e propriedades originárias dos
corpos orgânicos e inorgânicos, bem como forças naturais que se
manifestam segundo leis da natureza. Sendo que todas essas Idéias se expõe
em inúmeros indivíduos e fenômenos particulares, com os quais se
relacionam como os modelos se relacionam com as cópias. Podemos
perceber essas representações graças ao princípio de razão (espaço, tempo,
causalidade) que é o princípio de toda individuação. A Idéia é então forma
universal da representação, por isso, não se submete ao princípio de razão e
não lhe cabe, portanto, nem a pluralidade, nem a mudança. Ela permanece
única e imutável. Entendemos então as idéias como arquétipos eternos,
forçais imutáveis, propriedades originais de tudo o que existe, na medida em
que objetivam diretamente a Vontade servindo de mediação entre ela e os
fenômenos.
Schopenhauer, sob a influência de Platão, entende que as idéias
correspondem ao pensamento transcendente originário, as essências, porém,
em Schopenhauer, estas estão submetidas à Vontade. Para ele, as idéias
correspondem à objetivação mais direta da Vontade, sendo que, por isso
mesmo, elas não estão presas ao princípio de razão como acontece com os
fenômenos. Como já dissemos anteriormente as Idéias não estão sujeitas a
nenhuma forma de mutação sendo, portanto, a forma eterna de todas as
coisas, elas são como protótipos que não estão submetidas nem ao princípio
de razão, nem ao princípio de individuação 19 . No entanto, por serem a
objetivação direta da Vontade, entendidas como coisa em si, estas são de
alguma maneira representação, porém a única forma de representação que é
anterior ao espaço, ao tempo e a causalidade.
No § 49 de O Mundo como Vontade e Representação Schopenhauer
aborda as explicita as diferenças entre a idéia e o conceito. Para ele o
conceito é abstrato, discursivo determinado em seus próprios limites, em
sua própria esfera e pode ser compreendido por qualquer um que tenha
razão, que se comunique por meio das palavras. O conceito se esgota em sua

19
Cf.Schopenhauer, 2005, § 25.p.191 e achado,2006, p. 172.
Por uma metafísica do sublime 241

definição diferentemente da idéia que é absolutamente intuitiva e apesar de


representar uma multidão infinita de coisas isoladas é, ao mesmo tempo,
inteiramente determinada, nunca, porém, podendo ser conhecida pelo
simples sujeito, mas somente pelo puro sujeito do conhecimento, destituído
da Vontade e de toda individualidade, livre do princípio de razão. Assim a
idéia é comunicável condicionalmente e não integralmente. Desta forma,
podemos entender a idéia como a unidade que decaiu na pluralidade e o
conceito, como a unidade produzida por intermédio da abstração de nossa
faculdade racional.
Como temos analisado até então, a concepção do que é o mundo
para Schopenhauer apresenta-se da seguinte forma: primeiramente devemos
entender a Vontade como coisa em si, seguida do conhecimento da idéia
como sua objetivação mais direta expressa nos mais variados graus de clareza
e perfeição, a partir de então poderemos entender o fenômeno como uma
simples objetivação indireta, mediata da coisa em si, ou, na visão
schopenhaueriana, da vontade.
O próximo passo é entender que as idéias, enquanto manifestação
direta da vontade nos seus mais variados graus de mediação, são
responsáveis pelas manifestações da vontade no mundo fenomênico, seja no
reino mineral, vegetal e animal até sua manifestação mais elevada no ser
humano.
No § 35 de O Mundo como Vontade e Representação Schopenhauer
demonstra a necessidade de sabermos diferenciar a Vontade como coisa em
si da Idéia enquanto sua objetividade mais adequada, diferenciando em
seguida seus diversos graus, ou seja, as inúmeras manifestações das idéias
mesmas no mundo fenomênico e por isso, consequentemente, no contexto
do conhecimento dos indivíduos, ou seja, nos limites do princípio de razão.
As idéias se manifestam em diferentes fenômenos se apresentando
aos indivíduos em sucessivos graus com fragmentos desligados de seu ser.
Desta maneira, podemos distinguir facilmente a idéia da maneira pela qual
ela é concebida pelo indivíduo.
Assim, exemplifica isto explicitando como a forma das nuvens é
indiferente a própria idéia de nuvem, embora signifique algo ao indivíduo.
Para o filósofo os eventos do mundo são como letras pelas quais
podemos ler a idéia de homem.
242 Martha de Almeida

A fonte , a partir da qual os indivíduos e suas forças brotam, é inesgotável e infinita


como tempo e espaço, pois aqueles são, tanto quanto estas formas de todo
fenômeno visibilidade da Vontade,Todavia, nenhuma medida finita pode esgotar
aquela fonte infinita.Por isso, todo evento ou obra, sufocados em gérmem, ainda
tema infinitude inteiramente aberta para seu retorno.Neste mundo do fenômeno é
tão pouco possível uma verdadeira perda quanto um verdadeiro ganho.Só a
Vontade é. Ela é a coisa em si, a fonte de todos os fenômenos.O
autoconhecimento da Vontade e daí, sua decidida afirmação ou negação é o único
evento em si 20

Vale ainda ressaltar que a idéia é a fonte de toda a obra de arte e


que sua contemplação será a tarefa do gênio artístico que após contemplar a
essência de todas as coisas busca apresentá-las através de sua reprodução na
obra de arte.
Compreendido, então, os três principais fundamentos do
pensamento schopenhaueriano poderemos partir para a análise do que nos
interessa em Schopenhauer: sua metafísica da arte.
Para tanto, iniciaremos a questão com as algumas palavras de
Schopenhauer sobre a contemplação estética:

Quando o pensamento abstrato, os conceitos da razão não ocupam mais a


consciência mas, em vez disso, todo poder do espírito é devotado à intuição e nos
afunda por completo nesta, a consciência inteira sendo preenchida pela calma
contemplação do objeto natural que acabou de se apresentar, seja uma paisagem,
uma árvore, um penhasco, uma construção ou outra coisa qualquer; quando,
conforme uma significativa expressão alemã, a gente se perde por completo nesse
objeto, isto é , esquece o próprio indivíduo, o próprio querer e, permanece apenas
como claro espelho do objeto_ então é como se apenas o objeto ali existisse, sem
alguém que o percebesse, e não pode mais separar quem intui da intuição ambos se
tornaram unos, na medida em que toda a consciência é integralmente preenchida e
assaltada por uma única imagem intuitiva 21

Desta maneira, entendemos que para que a contemplação estética


possa ocorrer é necessário que o sujeito puro do conhecimento se eleve
acima da sua própria personalidade, rompendo assim com o princípio de
individuação, desenvolvendo, portanto a capacidade de se elevar acima dos
objetos particulares na busca pelas idéias, num caminho de retorno a
Vontade originária. Desta forma, somente depois de romper com a própria

20
Schopenhauer, 2005, p. 252.
21
Idem § 34 p. 246.
Por uma metafísica do sublime 243

individualidade é que o sujeito, como puro sujeito que conhece, deixa de ser
um sujeito, tornando-se capaz de contemplar as essências, ou seja, as idéias,
e de produzir arte a partir de sua contemplação. Neste sentido, a memória
desta momentânea contemplação é responsável pelas manifestações artísticas
que tem lugar no mundo do ponto de vista da representação.
Esse momento de contemplação estética é prazeroso, já que todo
indivíduo sente no próprio corpo a necessidade imposta pela vontade, neste
sentido, a contemplação garante ao homem uma pausa em seu sofrimento
existencial por meio da suspensão do querer.
Neste momento, entra em cena o gênio artístico como aquele que
tem a aptidão de conhecer as idéias como puro sujeito do conhecimento,
independente do princípio de razão, ou seja, das relações de espaço, tempo e
causalidade.
Schopenhauer entende o homem comum como um produto de
fabrica da natureza produzido aos milhares todos os dias, incapaz de deter-se
numa contemplação estética desinteressada, completamente preso ao
mundo dos fenômenos e das suas relações. 22 Porém, embora pareça
paradoxal, Schopenhauer acredita que todo o homem possui a capacidade
de contemplar as idéias ainda que não a utilize. Por mais que Schopenhauer
apresente o gênio, como um representante dessa facilidade que é a captação
das idéias através do rompimento das malhas individuais, o filósofo acredita
que todos os homens possuem essa capacidade em diferentes graus,
argumentando que se estes não a tivessem, eles seriam completamente
insensíveis a tudo que é belo e sublime. Assim, Schopenhauer acredita que
devemos conceder a todos os homens o poder de separar as idéias das coisas
através da capacidade de elevação, ainda que momentânea, da própria
individualidade.
Porém, ao analisarmos as artes, que nos são trazidas pelo gênio,
temos que reconhecer que não podemos entendê-lo como um criador, já
que este não faz mais do que trazer para o mundo fenomênico aquilo que
conseguiu apreender através da contemplação da Idéia. 23 Na descrição dada
por Schopenhauer em suas anotações de aula que foram publicadas na obra
Metafísica do belo, onde encontramos a genialidade muito bem definida,

22
Ibidem.Cf.§ 37.
23
Pernin, 1995, p. 120
244 Martha de Almeida

logo nos primeiros parágrafo do capítulo 6 dedicado ao gênio. Nele o


filósofo explica que:

[...] a genialidade reside na capacidade de proceder de maneira puramente


intuitiva, de perder-se na intuição e de afastar por inteiro dos olhos o
conhecimento que existe originariamente para o serviço da vontade, isto é, seu
interesse, seu querer, seus fins, e assim a personalidade se ausenta completamente
por um tempo, restando apenas o puro sujeito que conhece, claro olho cósmico;
tudo isso não por um instante, mas de modo duradouro e com tanta clareza de
consciência quanto for preciso reproduzir numa arte planejada,o que foi
apreendido.

Desta forma, a obra de arte é reproduzida pelo gênio que trazendo-


a ao mundo das representações a partilha com o homem comum que pode
então contemplá-las com maior clareza comparado com sua restrita
contemplação das Idéias.

O belo e o sublime em Schopenhauer.


Schopenhauer entende que as coisas belas nos convidam a contemplação
estética, dito de outra maneira “as coisas são mais ou menos belas em
função de sua idéia exprimir um maior ou menor grau de objetividade da
vontade.” 24
Assim, se no belo, o estado puro do conhecimento ocorre de
maneira facilitada, já que a bela natureza provoca, até nos mais insensível,
uma satisfação estética fugaz 25 , bem como retrata, individualiza a relação
travada como resultado da fusão do puro sujeito que conhece e as idéias
como mediação direta da Vontade; No sublime o que ocorre é um
desacordo, uma hostilidade entre a vontade humana e a contemplação
estética, o que faz com que esta só possa ocorrer se o sujeito se elevar acima
de sua própria vontade a fim de conseguir se fundir com as idéias, abrindo
mão de sua subjetividade, sentindo, apesar desta dificuldade inicial, como
conseqüência, um prazer ainda maior que o proporcionado pela
contemplação do belo.
Com base nas divisões de sublime, expostas, anteriormente, por
Kant, na Crítica da Faculdade do Juízo do sublime em sublime dinâmico (da

24
Machado, 2006, p.181
25
Schopenhauer, 2005 p. 103
Por uma metafísica do sublime 245

natureza como poder) e sublime matemático (da natureza como uma


grandeza acima de qualquer comparação) 26 Schopenhauer descreve aquilo
que ele entende por sublime dinâmico e matemático. Por sublime dinâmico
Schopenhauer entende uma resistência sentida pelo homem diante de um
poder ameaçador, que suprimiria qualquer outra forma de resistência que
pudesse lhe vir ao encontro e por sublime matemático a grandeza de
objetos, cuja grandiosidade não pode ser mensurada e por isso mesmo, sua
contemplação, causa no homem a sensação de que seu corpo se reduziu a
nada.
A princípio parece não haver diferença entre as considerações
kantianas do sublime matemático e o sublime dinâmico e as considerações
de Schopenhauer sobre o mesmo, mas quanto a isso muito nos pode
esclarecer as considerações de Nuno Nabais em seu livro A Metafísica do
Trágico:

Há já uma diferença de fundo. Schopenhauer rompe com o terreno transcendental


da Crítica da Faculdade do Juízo, isto é, com a recusa Kantiana de fundar o
estético em supostas características não-subjetivas do objetivo, tais como harmonia
para a experiência do belo, e a grandeza ou a monstruosidade para a experiência do
sublime “reivindicam simplesmente o sentimento de prazer e não o conhecimento
do objeto”. Pelo contrário, Schopenhauer propõe-se construir uma doutrina
positiva das formas dos objetos da experiência estética, restabelecer uma metafísica
da arte pela análise das características próprias de sua condição de obras belas e
sublimes. 27

Assim, se em Kant o que vale são as sensações produzidas no


indivíduo, ou seja, no sujeito com base na contemplação estética, se para
Kant o que importa são os juízos de gosto, um juízo ao qual este atribui
validade universal, para Schopenhauer o que importa não é mais a sensação
do sujeito em relação a um objeto considerado belo ou sublime, mas sim, a
capacidade de se livrar da identidade e se fundir num só sentimento, onde
não mais existe separação entre sujeito e objeto, onde só existe a sensação da
beleza e da sublimidade, produzidas pela contemplação estética num total
abandono do eu rumo as idéias.
Desta maneira, o sublime matemático é o sublime da grandeza
absoluta, que gera um esforço inútil da imaginação para dar conta da

26
Kant,1995,p..93-123
27
Nabais, 1997, p. 39
246 Martha de Almeida

totalidade do objeto contemplado e é isto que causa o desprazer inicial deste


tipo de sentimento. Já o sublime dinâmico é o sublime do poder, o sublime
da potência que se manifesta quando nos encontramos diante de forças que
nos ultrapassam, excedendo infinitamente nossas próprias forças, o que nos
desperta um sentimento de prostração, de humilhação. No entanto, como
característica geral do sublime, este desprazer causado inicialmente logo é
seguido por um prazer muito intenso e elevado, sendo esta a sensação
marcante da sublimidade.
O § 39 de O Mundo como Vontade e Representação é dedicado à
diferença entre o belo e o sublime, sendo, portanto de enorme valia para
nosso trabalho, já que neste podemos notar não só a imensa influência da
estética kantiana no pensamento de Schopenhauer, bem como o texto que
inspirou o jovem Nietzsche em sua primeira estética exposta em O
Nascimento da Tragédia.
Ainda no § 39 de O Mundo como Vontade e Representação,
Schopenhauer cita exemplos de situações que nos predispõe a contemplação
da beleza e da sublimidade. Demonstrando que em muitas vezes o que
existe é uma passagem do sentimento belo para a sensação de sublime, em
seus mais variados graus. 28
Primeiramente, o filósofo nos convida a uma paisagem solitária, de
horizonte ilimitado, céu sem nuvens, repleta árvores e plantas, somado ao
silêncio profundo. Sem a presença de homens ou animais, nem mesmo o
barulho da água corrente, ou seja, um lugar que convida a profunda solidão,
o que favorece a contemplação estética por sua beleza e silencio, causando
uma predisposição à contemplação estética. Por outro lado, pode-se se
entregar ao aborrecimento devido à facilidade ou a dificuldade de se aceitar
a solidão. Tendo-se que, neste caso, se elevar acima deste sentimento para se
alcançar o sentimento do sublime, ainda que num grau mais fraco.
Em seguida, Schopenhauer pede que imaginemos uma região sem
plantas, inóspita, cheia de rochas, onde a natureza orgânica esteja ausente, o
que causa no homem a insegurança diante de sua própria subsistência; A
imagem de um deserto devastador que predispõe no homem uma situação
de tragicidade. Somente se como puro sujeito do conhecimento este se
elevar acima de sua própria personalidade é que o sublime poderá o

28
Cf. Schopenhauer, 2005, p.274.
Por uma metafísica do sublime 247

preencher como um êxtase, ao contrário do medo que poderia tomá-lo por


completo.
O filósofo nos deixa ainda um exemplo mais elevado de sublime
apresentando-nos outra situação onde a natureza se mostra muita mais
ameaçadora. Tempestade, tormenta, um feixe de luz adentra pelas nuvens
negras, rochedos imensos nos ameaçam e sufocam fechando o horizonte, a
água furiosa borbulha por entre o deserto, podendo-se perceber o forte
barulho do vento que luta por entre as ravinas. Neste momento o homem se
sente um nada diante da força da natureza. Tendo de lutar contra si mesmo
a fim de conseguir acessar as idéias e se manter no estado de contemplação
estética. Este sentimento tão contrastante é que dá lugar ao sentimento do
sublime. 29
Ao explicar os exemplos de sublime devemos salientar as emoções
que este provoca em uníssono no interior de cada sujeito. Em todos os casos
podemos observar o esmagamento de nossa vontade individual, uma certa
angústia produzida no sujeito, uma sensação de aniquilamento, de
nadificação, que ameaça ao indivíduo, frente ao poder ou a grandiosidade
de uma certa força da natureza ou mesmo produção humana de dimensão
inimaginável. Diante destas sensações que nos causam desagrado, sentimos
um desprazer inicial causado pela certeza de nossa pequenez diante de um
universo de coisas que nos assustam, frente a nossa incapacidade de
apreensão imediata destas realidades da natureza, ou mesmo de certas
construções humanas monumentais. Somos tomados pela sensação de
sublime, sentimento este que ultrapassa nossa individualidade e nos
apresenta um prazer maior do que a sensação de pequenez, sentida,
anteriormente, no homem.
Nas palavras de Schopenhauer: “[...] O sentimento do sublime, em
resumo, provém aqui como em todo lugar de um contraste entre a
insignificância e a escravidão do nosso eu individual, fenômeno da vontade,
por um lado, e, por outro lado, a consciência do nosso ser como puro
sujeito que conhece.” 30
Desta maneira, podemos entender que o indivíduo, no sublime,
precisa lutar contra si mesmo, contra sua própria vontade, afim de alcançar

29
Cf. Schopenhauer, 2001, § 39. p. 214, e 2005, mesmo parágrafo
30
Idem. pág.217
248 Martha de Almeida

as idéias, contemplando as essências, para usufruir do prazer gerado pela


fusão entre sujeito e objeto, na condição de puro sujeito que conhece.
Nuno Nabais explica em sua obra A metafísica do Trágico que por
mais que Schopenhauer declare o belo e o sublime como forma equivalentes
no acesso ao “mundo das Idéias”, podendo entender no belo uma
intensificação e ulterior suspensão do comprazimento no objeto, no sublime
o que ocorre é a suspensão imediata do interesse face a hostilidade do
objeto. Desta maneira, Nuno Nabais explica que os exemplos das
experiências de sublime permitem que vejamos uma diferença fundamental
entre o belo e o sublime. O sentimento de belo não excede a esfera das
idéias, eleva-se das formas singulares belas à forma bela inteligível as quais
estão manifestas no tempo e no espaço. No sentimento do sublime
percebemos uma elevação para além do próprio indivíduo.Nas palavras de
Nuno:

[...] a anulação violenta da minha individualidade é também a anulação da minha


finitude e, portanto, a conversão metafísica do meu olhar. Eu descubro-me
essencialmente fundido com o mundo. No sublime eu acedo à sabedoria dos
Vedas, a esse sentimento de que somos um só com o mundo e pela sua infinitude
não somos aniquilados, mas elevados. Por outras palavras, no sublime o que se dá
é, não as idéias- objetivações da vontade-mas a vontade uma e eterna ela
mesma.Na contemplação de um objeto colossal eu sou arrancado ao mundo
empírico para aceder ao mundo como coisa-em-si. 31

No livro III de O Mundo como Vontade e representação


Schopenhauer apresenta uma hierarquia das artes a qual não abordaremos
em sua integridade por não interessar diretamente ao nosso
trabalho.Entretanto, vale ressaltar o lugar que este dá a tragédia e a música,
já que seus pensamentos irão influenciar demasiadamente o pensamento do
jovem Nietzsche.
Schopenhauer considera a tragédia como o mais elevado gênero
poético levando em conta não só as dificuldades de sua execução, mas
também o poder da impressão causada por ela, já que a tragédia demonstra
o lado mais terrível da vida, suas dores, todos os sofrimentos que a
humanidade pode passar representados na figura do herói. Neste sentido, o

31
Nabais, 1997, p. 50
Por uma metafísica do sublime 249

filósofo entende que o conflito trágico traduz o conflito da Vontade com ela
mesma.
Desta forma, o filósofo afirma que querer que a tragédia pratique o
que entendemos como justiça poética significa desconhecer profundamente
sua essência tanto no que diz respeito ao mundo transcendental da Vontade
quanto ao mundo das representações ao qual todos nós estamos presos.
Desta maneira, Schopenhauer tem uma visão pessimista do mundo
e da tragédia, na medida em que esta forma de arte expressa os infortúnios
da humanidade diante da existência, sempre presa à necessidade de uma
Vontade que só sabe querer, sentida no homem como incessante angústia,
desejo latente, sofrimento gerado pela eterna insatisfação. Neste
movimento, a tragédia expressa seu conflito consigo mesma seja na
dimensão humana e porque não dizer, em todo o plano fenomênico.A
tragédia é, então, reconhecida como o ápice da arte poética exatamente por
retratar a essência da nossa visão de mundo: o lado mais terrível da vida, o
sofrimento e a miséria humana, a vitória da maldade, a soberania do acaso, e
a inevitável queda do justo e do inocente.O conflito da Vontade consigo
mesma, essa vontade única que vive e reaparece em fenômenos que se
combatem e se devoram.
Assim, de tanto sofrimento o indivíduo se enobrece atingindo um
ponto onde o fenômeno do mundo não mais o ilude.
Neste sentido, na tragédia os heróis não expiam seus pecados
individuais, mas sim o pecado original, a culpa pela existência.
A tragédia possui um alto grau de objetivação das Idéias, enquanto
manifestações mediatas da Vontade, mais só a música expressa a vontade
diretamente. A música apropriada a um espetáculo, como no caso da
tragédia, é capaz de nos revelar o sentido mais profundo de cada
acontecimento narrado, promovendo uma ilustração mais clara, mais exata
do espetáculo permitindo que o espectador consiga acessar o sentido mais
íntimo desta manifestação artística, fazendo com que este se identifique com
o espetáculo através de sua identificação com as situações e personagens que
aparecem ao longo da narrativa. Nas palavras de Schopenhauer 32 :

O que distingue a música das outras artes é que ela não é uma reprodução do
fenômeno, ou melhor dizendo, da objetividade adequada da Vontade; ela exprime

32
Schopenhauer, 2001, § 52, p.276.
250 Martha de Almeida

o que há de metafísica, a coisa em si de cada fenômeno..Conseqüente, o mundo


pode chamar-se tanto uma encarnação da música como um encarnação da
Vontade.

Desta forma, podemos afirmar que a música contém o núcleo


íntimo que precede toda forma, “O coração das coisas”. Através da música
podemos compreender, ainda que aos poucos, o que é a Vontade . Valendo,
assim, o tracadilho que nos permitiria afirmar que se o mundo é Vontade e
representação, o mundo não passa de uma grande sinfonia musical, onde
cada nota possui sua representação no mundo fenomênico, ainda que nem a
Vontade, nem a música precisem de nosso mundo para sobreviver.

Nietzsche a nova dupla estética da modernidade


A questão do sublime no pensamento de Nietzsche é abordada no § 7 de O
Nascimento da tragédia que a relaciona com a própria tragédia ao entender o
coro satírico do ditirambo como o ato salvador da arte grega. Segundo
Nietzsche, a arte trágica tem o poder de transformar os sentimentos de
horror e aversão, diante do absurdo da existência, em representações, com as
quais é possível viver: o sublime enquanto “domesticação artística do
horrível” e o cômico, enquanto “descarga artística da náusea do absurdo” 33 .
Assim, a tragédia se encontra no centro de uma visão afirmativa da arte e da
existência, no pensamento nietzschiano, pois é exatamente pela
“transfiguração” de sua matéria sombria e dolorosa que o homem pode
considerá-la um estimulante da vida, através da aparência estética 34
Nietzsche apresenta a idéia de um uno-primorial, que traz em si o
conflito de dois impulsos artísticos da natureza (apolíneo/dionisíaco), os
quais, em sua eterna contradição, necessitam se manifestar na aparência
fenomenal. Apolo, em seu sentido metafísico, é o princípio de individuação,
enquanto princípio de ordenação e conformação da realidade, que distingue
e determina as formas individuais, Apolo é então a própria representação do
princípio de individuação, anteriormente explicado por Schopenhauer,
princípio este esteticamente associado à beleza, à sensação de calma e à
confiança gerada pela contemplação das belas formas. Dionísio, por sua vez,
é o nome grego para o êxtase, o deus do caos, da desmedida, do fluxo da

33
Cf. Nietzsche, 1992, p. 56.
34
Cf. Brum,1998, p. 101.
Por uma metafísica do sublime 251

vida, da música, da dissolução ante a individuação. Ao descrever o


fenômeno dionisíaco, Nietzsche fala de uma experiência que nos parece
seguir os mesmos “moldes” da experiência do sublime, já que transforma o
terror (sentimento de desprazer sentido pela ruptura do princípio de
individuação) em embriaguez e êxtase - gerando um sentimento de prazer
que emerge da ruptura da individuação e da unificação com a natureza 35 .
Na embriaguez, o processo pelo qual a vontade satisfaz seus impulsos
artísticos é o inverso do movimento de produção das aparências. Com o
colapso do “principium individuationis”, pela intensificação das emoções
dionisíacas, tudo volta ao seu ponto de origem, à unidade primordial. Este
processo de reunificação com a natureza gera um prazer supremo, que é
sentido como um delicioso êxtase, que ascende do ser mais íntimo do
homem e da própria natureza 36
Essa possibilidade de “redenção da vontade pela aparência”, em que
toda dor e sofrimento do mundo são revertidos numa bela aparência, onde
a vontade se redime nela mesma, é de suma importância para nossa
pesquisa, não só pela originalidade que garante à estética nietzschiana como
pelo fato de servir como fundamento das idéias do jovem pensador sobre o
sublime e o trágico, permitindo que este desenvolva uma interpretação da
tragédia compromissada com a afirmação e aceitação da vida.
Em Ecce Homo, obra em que o pensador reapresenta sua obra
destacando aquilo que é mais importante em seu pensamento, amarrando
sua filosofia, deixando um caminho mais seguro para seus interpretes,
Nietzsche apresenta O nascimento da tragédia, sua obra de juventude em
oposição ao pessimismo schopenhaueriano. Segundo ele, a tragédia é a
prova precisa de que os gregos não eram pessimistas. Nietzsche se refere a
ela como uma psicologia que revela, através do símbolo do dionisíaco, o
extremo limite da afirmação. Desta maneira, é através do dionisíaco que
podemos compreender a essência do trágico, enquanto transmutação da dor
em alegria, afirmação incondicional da vida diante de toda dor e
sofrimento.
Em o Nascimento da tragédia Nietzsche apresenta a ópera de
Wagner como um renascimento da tragédia grega, sendo a tragédia, na

35
Cf. Nietzsche, 1992, p. 30.
36
Idem, p..30-31, 34.
252 Martha de Almeida

visão nietzschiana, fruto da harmonia dos impulsos apolíneos e dionisíacos,


respectivamente o equilíbrio entre a beleza e a sublimidade, na medida em
que o impulso apolíneo corresponde a beleza e o dionisíaco ao experiência
sublime.
Assim, a tragédia grega guarda em sua forma e estrutura tanto
poética quanto cênica o elemento apolíneo e na música que transforma o
herói trágico em mito na hora de sua morte, gerando o consolo metafísico
de que “a vida apesar de toda a mudança das aparências fenomenais, é
indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria” apresentando por meio desta
transmutação de sentimentos que geram a aceitação da finitude humana seu
elemento sublime, o seu caráter dionisíaco.
Desta maneira, podemos afirmar que em Nietzsche o sentimento
trágico de transformação de todo o sofrimento e dor em uma bela
aparência, logo, a transmutação da dor em prazer supremo; o consolo
metafísico oferecido pela arte, de que a vida em seu fundo mais íntimo é
alegria e que esta deve ser afirmada mesmo nos momentos de dor.
Entendendo que a vida em sua plenitude é trágica diante da morte certa de
todo ser vivente, mas nem por isso deve ser vivida com a tristeza de um
condenado e sim com a afirmação, com a força de um herói trágico, com a
alegria sublime que a arte trágica nos oferece ao justificar a existência.
O sentimento do sublime em Nietzsche está em relação direta com
o sentimento do dionisíaco e com a música, desde Schopenhauer que a
entende como manifestação direta da Vontade, expressão do em-si do
mundo, para ele, mesmo que não houvesse mundo haveria música, pois a
música não precisa do mundo para existir.Nisto o jovem Nietzsche abraça
as idéias de seu precursor. A grande diferença está na forma pela qual o
jovem filósofo entende a tragédia, que ao contrário da visão
schopenhaueriana não é somente uma interpretação dos infortúnios de
existência humana, para Nietzsche é o trágico que interessa, a capacidade
metafísica de reapresentar a vida ao homem, afirmando a existência mesmo
na dor possibilitando por meio da arte trágica uma metafísica do sublime
que nada mais é que a capacidade salvadora oferecida pela arte dionisíaca,
logo, arte sublime, de transformar o homem numa completa aceitação da
vida na sua integralidade, unindo com sua estética, arte e vida.
Finalizando, se levarmos em consideração o caráter metafísico da
primeira estética nietzschiana, a qual expressa (através da união entre o devir
Por uma metafísica do sublime 253

dionisíaco da vontade e a perfeição apolínea da individuação) o próprio


modo de justificação da existência; se observarmos essa capacidade de
transfiguração, tão própria do pensamento nietzschiano, de transformar, por
meio da arte, todos os pensamentos de horror e absurdo frente à existência
em representações com as quais podemos viver (sublime e cômico), não
poderíamos entender que Nietzsche apresenta, em sua primeira estética,
uma “metafísica do sublime”?

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TRADUÇÃO

George Berkeley e a tradição platônica

Costica Bradatan *

Existe já uma grande quantidade de literatura dedicada à presença na


filosofia inicial de Berkeley de alguns assuntos tipicamente platônicos
(arquétipos, o problema da mente de Deus, a relação entre ideias e coisas,
etc.). Baseados em alguns desses escritos, nas próprias palavras de Berkeley,
assim como no exame de alguns elementos da tradição platônica num
amplo sentido, sugiro que, longe de serem apenas tópicos isolados,
livremente espalhados nos primeiros escritos de Berkeley, eles formam uma
perfeita rede de aspectos, atitudes e modos de pensar platônicos, e que, por
mais alusivos ou ambíguos que esses elementos platônicos possam parecer,
eles constituem um todo coerente e complexo, desempenhando um papel
importante na formação da própria essência do pensamento de Berkeley.
Em outras palavras, sugiro que, dadas algumas das ideias apresentadas em
suas primeiras obras, foi de certo modo inevitável para George Berkeley, em
virtude da lógica interna do desenvolvimento de seu pensamento, chegar a
uma obra tão abertamente platônica e especulativa como Siris (1744).

A tradição platônica
Definindo a tradição platônica
Não é fácil definir o “platonismo” ou a “tradição platônica”. Mais ainda
num texto que não trata do platonismo enquanto tal, mas principalmente
da filosofia de Berkeley e de uma possível conexão entre esta e certos
elementos da tradição platônica. Parece-me nesse ponto que uma solução
razoável (ainda que oblíqua) para a dificuldade consistiria em simplesmente
começar esta discussão sem tentar oferecer uma definição completa,

*
Assistant Professor, The Honors College, Texas Tech University. E-mail:
costica.bradatan@ttu.edu O texto aqui traduzido corresponde ao Capítulo 1 do livro The
Other Bishop Berkeley: An Exercise in Reenchantment, Fordham University Press, New York,
2006, ISBN: 082-322-693-X, p. 18-39. Tradução: Jaimir Conte.

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 257-284


258 Costica Bradatan

inteiramente satisfatória, do platonismo, mas antes esboçar provisoriamente


alguma informação geral sobre ele. Espero que ao olhar constantemente o
desenvolvimento do pensamento de Berkeley à luz da tradição platônica, ao
“confrontar” o pensamento de Berkeley com diversos tópicos e modos de
pensar platônicos – em outras palavras, ao colocar os dois modos de falar
“face a face” – resultará um entendimento mais completo e concreto do
platonismo.
Muito esquematicamente colocado, por “platonismo”, de acordo
com um longo uso do termo, eu quero dizer certa linha de pensamento
metafísico originada em Platão, e subsequentemente desenvolvida por
figuras tão diversas como Filo, Plotino, Próclo, Dionísio o Aeropagita,
Marcílio Ficino, Giovanni Pico della Mirandola, os Platonistas de
Cambridge, e muitos outros. Existem autores que estabelecem uma clara
distinção entre o platonismo (estritamente entendido como a doutrina de
Platão), e o neoplatonismo (as subsequentes escolas e correntes filosóficas
inspiradas pelo pensamento de Platão). Por razões de simplicidade, neste
texto usarei do início ao fim o termo “platonismo” num sentido amplo, ou
seja, como cobrindo também o(s) significado(s) de quaisquer
“neoplatonismos”. Além disso, às vezes usarei a frase “a tradição platônica”
mais ou menos com o mesmo significado de “platonismo”; ainda que isso
possa parecer um pouco vago e sem muito rigor histórico, a frase “tradição
platônica” descreve muito bem as complexas tradições de pensamento,
escolas, e diversos autores oriundos da filosofia de Platão, ou agrupados em
torno dela, ao longo dos séculos.
Por outro lado, exatamente como esta tradição filosófica que Platão
inaugurou não incorporou todo o pensamento de Platão1, igualmente ela
adquiriu, com o passar do tempo, novos elementos, cristãos ou não, alguns
deles mais ou menos estranhos às ideias originais de Platão. Na verdade, o
que é mais interessante sobre a tradição Platônica não é tanto seu núcleo de
ideias de Platão quanto sua notável abertura para outras filosofias, visões de
mundo e sistemas de pensamento. O platonismo é na realidade uma escola
de pensamento aberta; além disso, como repetidamente tem sido dito, no

1
‘‘Os neoplatônicos enfatizaram e desenvolveram alguns aspectos da metafísica de Platão e
da visão do homem resultante. Para eles a principal parte do homem é a sua alma e
qualquer discussão dos dons e aspirações da alma deve ser compreendida no contexto do
universo como um todo’’ (Sheppard 1994: 6).
George Berkeley e a tradição platônica 259

que há de mais notável ela representa a abertura, o pluralismo e o


dialogismo do pensamento. Eu inclusive ousaria dizer que o que explica a
longevidade e a aura especial da tradição filosófica platônica é precisamente
sua impressionante capacidade de interagir, comunicar e entrar em diálogo
espontâneo com vários outros sistemas filosóficos, com várias disciplinas
humanísticas, e às vezes com maneiras de pensar e formas culturais
estranhas. Vários vínculos têm sido estabelecidos, seja profundos ou
superficiais, temporários ou duradouros, por exemplo, entre o platonismo e
a teologia (seja ela cristã, judaica, ou islâmica), o platonismo e várias formas
de misticismo, o platonismo e o gnosticismo, o platonismo e todos os tipos
de esoterismo, o platonismo e a poesia/literatura, o platonismo e as artes (as
imagens sacras, por exemplo), o platonismo e a política, o platonismo e a
teosofia, o platonismo e a tradição utópica, etc. Todas essas alianças têm à
vezes resultado em novas entidades culturais ou disciplinares: subcorrentes,
seitas, heresias, várias escolas ou mini-escolas de pensamento, clubes e
sociedades filosóficas, várias modas intelectuais, ou grupos ideológicos
marginais. E a coisa mais fascinante sobre essa situação toda é
provavelmente o fato que, permeando todas essas “alienações”, alianças, e
combinações, seja de uma maneira visível, seja de uma maneira mais sutil,
permanece quase sempre um sabor “platônico” bem definido, um
ingrediente que no final das contas nos lembra “o espírito do pensamento
de Platão.” Contudo, a questão é: qual é precisamente a essência deste
“espírito platônico”? O que é que faz alguma coisa (uma escola de
pensamento ou apenas uma moda intelectual) “platônica”? O que é afinal
de contas o “platonismo” neste amplo sentido?
Devido a suas excelentes qualidades sintéticas, escolhi tomar
emprestada de Andrew Louth esta descrição do “espírito platônico”:

É fundamental ao platonismo, em praticamente qualquer aspecto, que este


mundo, o mundo que nós percebemos por meio dos sentidos e sobre o qual
mantemos uma diversidade de opiniões, não é o mundo real. Este mundo é um
mundo de mudança, dissolução, e, para todos nós, morte; tudo quanto tem a
marca da irrealidade. O mundo real é imutável, incorruptível, um lugar de vida
eterna: é, para Platão, o domínio das Formas. (Louth 1994: 54)

O platonismo diz respeito, então, a uma dualidade primordial, a


uma diferença [gap] ontológica entre um domínio de plenitude e perfeição,
de esclarecimento e completo entendimento, por um lado, e um domínio
260 Costica Bradatan

de precariedade e imperfeições, de ignorância e erro, por outro. E ser


humano é precisamente habitar neste desconfortável espaço ontológico, e ao
mesmo tempo almejar superar a diferença [gap] e obter acesso à realidade
última.
Outra questão a ser evocada antes de discutir o problema das
influências platônicas sobre o pensamento de Berkeley é a da específica
relação platonismo-criatianismo. Muito cedo na história da igreja Cristã
havia uma compreensão de que o cristianismo e o platonismo tinham
alguma coisa essencial em comum, fazendo seu “casamento”, em certo
sentido, inevitável. E esta relação privilegiada entre a tradição platônica e o
cristianismo deveria desempenhar um importante papel em qualquer
discussão da tradição platônica dentro do contexto europeu. Pois, como
muitos estudiosos têm notado, de todas as escolas, seitas e correntes
filosóficas antigas, o platonismo foi provavelmente a que teve a mais forte e
mais duradoura influência na formação inicial e depois sobre o
desenvolvimento da teologia cristã. Uma certa substância platônica foi
vertida em teologia cristã no momento de seu encetamento e em seguida
tornou-se uma parte indistinguível dela. Como (entre outras coisas) uma
filosofia moral, o platonismo tinha sempre enfatizado o lado espiritual do
homem, os desejos mais nobres da alma humana; a filosofia platônica tinha
tocado numa região “em que a atmosfera luminosa do conhecimento de
Deus era alcançada por abnegação, subjugação da carne e pelo cultivo da
pureza intelectual, e a alma humana poderia elevar-se acima de sua natureza
mais baixa” (Evans, 1993: 25). Graças precisamente às suas orientações
ascéticas e a algumas de suas pressuposições metafísicas básicas, a filosofia de
Platão estaria em condições de conceder amplo espaço para Cristo e dar a
ele um papel filosófico único a desempenhar: “Cristo poderia ser visto como
a Razão suprema, a sabedoria de Deus” (Ibid.). Como Andrew Louth
corretamente observa, a história da influência do platonismo sobre a
teologia cristã “remonta pelo menos ao século II da era cristã, se não antes, e
tornou-se tão penetrante que é quase impossível considerar a teologia cristã
separadamente de sua forma platônica” (Louth, 1994: 52). E a principal
razão pela qual isso aconteceu é simplesmente que o “platonismo e o
cristianismo tinham muito em comum.” Tanto em termos da doutrina
como da apologética “os teólogos cristãos logo passaram a procurar no
George Berkeley e a tradição platônica 261

platonismo argumentos com os quais defender o cristianismo” (Ibid)2. Ao


mesmo tempo, as noções, atitudes e crenças cristãs influenciaram em grande
medida o ulterior desenvolvimento do próprio platonismo – Dionísio o
Aeropagita, John Scotus Eriugena, Marcílio Ficino – os platonistas de
Cambridge sendo apenas os mais notáveis casos deste ponto de vista. Havia
uma influência mútua envolvida aqui: “o tráfego entre a tradição platônica e
o cristianismo não foi todo num único sentido’’ (ibid: 59).3
O casamento entre o platonismo e o cristianismo causaria uma
clara impressão no desenvolvimento do pensamento europeu. Chamar
Platão um “cristão antes de Cristo” é reconhecer uma verdade fundamental
sobre o aspecto principal da mente européia. O platonismo ajudou a fé
cristã a adquirir sua identidade doutrinal, teológica, fundamentando-a
numa antiga e venerada escola de pensamento filosófico, e conectando-a
secretamente às tradições míticas da Grécia antiga, do Egito antigo, do
Oriente Médio, e além.

Considerando Berkeley como um platônico


Foi dentro deste contexto metafísico particular, cristão-platônico, que se
originou a filosofia de Berkeley. Contudo, não existe consenso entre os
especialistas sobre Berkeley quanto a exata medida em que Berkeley foi um
platônico. Alguns especialistas inclusive negam que ele foi um platônico.
Antes da segunda metade do séc. XX se Berkeley tinha às vezes sido visto
como um pensador platônico, isto tinha sido apenas relativamente a sua
última obra Siris, pois as primeiras obras não foram geralmente consideradas
de um ponto de vista platônico. Por exemplo, em sua história The Platonic
Tradition in Anglo-Saxon Philosophy, John Muirhead, quando faz uma das
raras referências a Berkeley em todo livro, fala sobre como “a semente” do

2
Este tópico é amplamente desenvolvido no Capítulo 5 do livro The Other Bishop Berkeley
(p. 116-145) dedicado precisamente a situar Berkeley na tradição cristã da filosofia
apologética.
3
Obviamente, a relação foi mais complexa do que ela poderia parecer à primeira vista. O
cristianismo tomou emprestadas algumas ideias do platonismo, ao mesmo tempo criticou
ou rejeitou abertamente outras: “Algumas doutrinas platônicas foram bastante
invariavelmente rejeitadas, particularmente a doutrina da pré-existência das almas;
gradualmente a doutrina cristã da creatio ex nihilo chegou a distinguir a teologia cristã dos
desenvolvimentos no platonismo, principalmente no neoplatonismo. [...] Esta adaptação
gradativa do platonismo tornou difícil, na verdade, identificar claramente os elementos
platônicos no cristianismo” (Louth 1994: 53).
262 Costica Bradatan

platonismo, replantada na Grã-Bretanha pelos platonistas de Cambridge,


“não germinou exceto na pálida forma das especulações tardias do Bispo
Berkeley” (Muihead, 1931: 13). Além disso, Paul Shorey inclusive notou
que “os primeiros escritos de Berkeley estão aparentemente no pólo oposto
do platonismo” (Shorey, 1938: 207). Até meados do século XX as primeiras
obras filosóficas de Berkeley foram em geral compreendidas no estrito
contexto da “nova filosofia”, e seu pensamento colocado sem problemas
dentro do repertório temático, metodológico e programático do “empirismo
britânico.” Para a maioria dos especialistas e filósofos da primeira metade do
século XX Berkeley não foi nada mais que uma ponte conveniente entre
Locke e Hume, um passo lógico natural no desenvolvimento do empirismo
britânico do primeiro em direção ao último.
Durante os últimos trinta anos ou mais, entretanto, vários estudos
têm sido publicados tratando precisamente da presença nos primeiros
escritos de Berkeley de alguns tópicos específicos que poderiam ser vistos
como pertencendo à tradição platônica4. O problema é que esses tópicos são
em geral vistos como noções platônicas isoladas ou séries de pensamentos
apenas acidentalmente dispersos nas primeiras obras de Berkeley, e
nenhuma tentativa sistemática e continuada tinha sido feita até
recentemente para estabelecer alguma “conexão necessária”, por um lado,
entre esses tópicos como eles aparecem dentro dos primeiros escritos
berkeleianos e, por outro, entre sua presença nos primeiros trabalhos
escritos de Berkeley e seu reconhecido platonismo em Siris. É verdade que
Peter Wenz, por exemplo, escreveu algumas décadas atrás que “o neo-
platonismo de Siris deveria ser considerado compatível, em vez de contrário,
tanto com o empirismo como com o ataque às ideias abstratas presente nos
Princípios do conhecimento humano,” (Wenz, 1976: 542) apontando
explicitamente para tal conexão, mas sem comentá-la detalhadamente, ou
considerá-la de outro modo senão à luz da relação arquétipos-“ideias
abstratas”. Subsequentemente, alguns outros autores assumiram o insight de
Wenz. Foi Stephen Daniel quem, num recente artigo (Daniel, 2001), deu
um passo decisivo adiante, propondo um exame sistemático dos Princípios e
dos Três diálogos entre Hylas e Philonous à luz da “metafísica neoplatônica

4
Por exemplo, sobre o problema particular dos arquétipos na filosofia de Berkeley existem já
vários estudos de Peter S. Wenz (1976), Charles J. McCracken (1971), C. C. W. Taylor
(1985), Stephen H. Daniel (2001), e outros.
George Berkeley e a tradição platônica 263

cristã” de Berkeley, e sugerindo que “esta metafísica está já presente em suas


primeiras obras” (Ibid: 239–40).
Num certo sentido, minha abordagem aqui poderia bem ser vista
como uma continuação dos esforços de Daniel para oferecer uma leitura
platônica das primeiras obras filosóficas de Berkeley. Não obstante, tentarei
avançar esta discussão, trazendo à tona novos elementos platônicos em
Berkeley (por exemplo, a relação de semelhança entre a mente humana e a
mente divina, ou o tópico do liber mundi). Além disso, tentarei ampliar esta
discussão significativamente apontando para uma perfeita rede de tópicos,
modos de pensar, e tendências platônicas nas primeiras obras de Berkeley
(uma rede dentro da qual os arquétipos discutidos por Daniel e outros
representam apenas um “nó” entre outros). Por mais alusivos, ambíguos, ou
vagos que estes elementos platônicos possam parecer, eles formam um todo
coerente, que desempenhou um papel crucial na formação da essência do
pensamento de Berkeley como ele o apresentou em seus primeiros escritos
filosóficos. Finalmente, argumentarei que uma vez que Berkeley começou
seguindo esta linha de pensamento (platônico), as especulações em Siris não
foram apenas possíveis, mas, de alguma maneira, inevitáveis.5
No que se segue delinearei alguns dos “nós” dessa rede platônica.

O platonismo nas primeiras obras filosóficas de Berkeley


A relação de semelhança: a mente humana–a mente divina
Um dos argumentos centrais empregados por Berkeley a fim de fornecer a
seu sistema imaterialista solidez lógica, profundidade metafísica, e
eventualmente um importante meio de refutar quaisquer acusações de
solipsismo é que a existência das coisas sensíveis é baseada em última
instância nelas serem continuamente percebidas (concebidas) por Deus, ou
– em outras palavras – nelas existirem na mente de Deus. Afirmar
simplesmente que esse é percipi não é suficiente; um acréscimo essencial é
necessário: percebido não somente por nós, mas também (e de maneira mais
importante) por Deus. Nós percebemos as coisas no mundo e este fato as
torna existentes, existentes para nós. Contudo, fora de nós, na nossa

5
‘‘À medida que ele cresce e ganha confiança ele dissimula menos os motivos prudenciais; ele
faz cada vez menos uso do jargão corrente (e confuso) dos filósofos; e ele alarga seu
horizonte e descobre com mais segurança sua afinidade com os antigos filósofos” (Ardley
1968: 10).
264 Costica Bradatan

ausência, antes de nosso nascimento, e depois de nossa morte, ou quando


nós não estamos conscientes, as coisas devem existir, por assim dizer,
“mantidas por” algum espírito ininterruptamente ativo, infinito, ou seja,
por Deus.

as coisas sensíveis não podem existir senão em uma mente ou em um espírito. Por
isso concluo não que elas não têm nenhuma existência real, mas que, vendo que
elas dependem de meus pensamentos e que têm uma existência distinta de ser
percebidas por mim, deve existir alguma outra mente onde elas existam. Portanto,
tão certo como que o mundo sensível realmente existe, é igualmente certo que
existe um espírito infinito onipresente que o contém e mantém. (Berkeley 1948–
57, 2:212 [Três diálogos])

De certo modo, no que diz respeito a nós seres humanos, as coisas existem
somente à medida que nós as percebemos, de acordo com nossas limitadas
faculdades e – em algum sentido – “para nosso próprio bem”, mas no que
diz respeito às próprias coisas, elas devem necessariamente ser pensadas por
uma mente infinita, em conformidade com seus poderes infinitos, e para
seu próprio bem. Sua plenitude ontológica é assegurada unicamente por elas
serem percebidas pela mente divina. Para colocar isso de uma maneira um
pouco diferente, a fim das coisas existirem objetivamente e de forma
autônoma, a existência e as operações de Deus são necessárias. Deus é o que
dá às coisas um status ontológico estável e as faz verdadeiramente “coisas”
(rei) reais. Numa passagem similar, Berkeley enfatiza que quando

eu nego às coisas sensíveis uma existência fora da mente, não quero dizer minha
mente em particular, mas todas as mentes. Agora, é claro que elas têm uma
existência exterior à minha mente, pois descubro pela experiência que elas são
independentes dela. Existe, portanto, uma outra mente na qual elas existem
durante os intervalos de tempo em que as percebo: assim como existiam antes do
meu nascimento e continuarão a existir depois de minha suposta aniquilação. E
como o mesmo é válido relativamente a todos os outros espíritos criados e finitos,
necessariamente concluímos que existe uma Mente onipresente e eterna que conhece
e compreende todas as coisas e as exibe para nossa vista de certa maneira e de
acordo com suas regras, pois Ela mesma as estabeleceu, e que são por nós
chamadas de Leis da Natureza. (Ibid: 230–31)

O fato mais importante a notar aqui é que a suposição subjacente à


linha de argumentação de Berkeley é que existe uma fundamental
semelhança e uma similaridade de função entre a mente humana e a mente
divina, que neste processo de “realização” das coisas a mente humana e a
George Berkeley e a tradição platônica 265

mente divina desempenham essencialmente a mesma função. De fato, a


mente humana é dotada apenas de poderes limitados, tem um alcance
limitado, e é profundamente marcada por uma condição de dependência e
finitude. Contudo – apesar de todas as suas imperfeições – em Berkeley nós
encontramos um fato que nunca será super-enfatizado, ou seja, que a mente
humana desempenha exatamente o mesmo ato que a mente divina realmente
desempenha: percebe, ou concebe, objetos, assim (de acordo com o
imaterialismo de Berkeley) conferindo-lhes existência e inteligibilidade, e,
em última instância, tornando-os reais. Ainda que numa escala muito
reduzida, a mente humana espelha a atividade da mente divina: ela reflete
fielmente, de acordo com seus poderes e complexidade, o processo de
“realização” das coisas que tomam lugar na mente divina. A questão é,
evidentemente: por que esta similaridade de função? O que faz Berkeley
postular esta similaridade? Qual é a origem desta linha de pensamento?
À luz do fato que Berkeley via a filosofia como tendo
proeminentemente funções e objetivos religiosos6 e apologéticos7, e
considerando todo o contexto teológico em contato com o qual seu
pensamento emergiu, assim como a própria formação de Berkeley como um
membro da Igreja, proponho aqui a hipótese que esta noção de uma
fundamental “similaridade de função” entre a mente humana e a mente
divina deve ser considerada em conexão direta com uma certa intuição
bíblica, que nós encontramos no livro do Gênesis (1:26, 27): ou seja, trata-
se da noção que Deus nos fez à sua “imagem e semelhança”, que ele nos
criou semelhante a ele: “E Deus disse, façamos o homem à nossa própria
imagem, e semelhança [...] Assim Deus criou o homem à sua imagem, à
imagem de Deus ele o criou”. Simples e sem problemas como à primeira
vista poderia parecer a alguns, esta noção teológica forneceu a Berkeley um

6
Ele constantemente afirmou que a sua visão imaterialista é, e deve ser considerada,
perfeitamente compatível com os princípios básicos de uma cosmovisão cristã: “para um
cristão, certamente não deve ser chocante dizer que a árvore real, existindo fora da sua
mente, é realmente conhecida e compreendida pela (ou seja, existe na) mente infinita de
Deus. Provavelmente ele pode, mas não à primeira vista, estar ciente da prova direta e
imediata que existe acerca disso, visto que a própria existência de uma árvore, ou de
qualquer outra coisa sensível, implica uma mente na qual ela está”. Berkeley (1948-57,
2:235 [Três Diálogos]).
7
Ver o capítulo 5 do meu livro The Other Bishop Berkeley (Bradatan, 2006, p. 116-145) para
uma discussão detalhada deste problema.
266 Costica Bradatan

engenhoso e elegante modelo sobre o qual ele moldou sua complexa


argumentação filosófica sobre a similaridade de função entre a mente de
Deus e a do homem. Obviamente, nosso ser feito “à imagem de Deus” é
uma questão teológica muito complexa para ser tratada de modo
satisfatório, ao menos em passant, neste texto, mas o que me interessa aqui é
apontar para uma possível fonte teológica (extra-filosófica) do argumento de
Berkeley. Mesmo em termos do contexto pessoal e da formação biográfica,
há muitas razões para acreditar que esta é uma hipótese razoável a defender:
Berkeley formou-se como teólogo, serviu como um bispo da Igreja
Anglicana, e durante toda sua vida julgou que o que ele estava fazendo devia
servir a fé e a teologia o máximo possível, a tal ponto que concebeu sua
missão principal como filósofo como sendo a de “destruir completamente”
o ateísmo e o livre-pensamento. Portanto, parece bastante plausível que ele
tomou emprestada a noção teológica sobre a qual construiu um de seus
argumentos centrais.
Como tal, em virtude do fato fundamental que nós somos feitos “à
imagem de Deus”, nossa mente, através de todos os seus processos e padrões
de funcionamento, deve nos fazer lembrar o que acontece na mente de
Deus. De acordo com esta linha de pensamento, ao nos examinarmos
cuidadosamente nós poderíamos analogamente obter um vislumbre de
como é o mundo divino. Na verdade, embora Deus tenha criado o homem
“à sua imagem e semelhança” devido a várias causas, “a imagem de Deus em
nós” (imago Dei in Nobis), como os escritores medievais costumavam
colocar, tornou-se corrompida e obscura. “A imagem de Deus em nós” está
sempre em perigo de ser maculada por nossa propensão para o pecado e
para o erro, em outras palavras, pela nossa tendência de esquecer de que
imagem nós somos realmente feitos. Santo Anselmo, entre muitos outros,
expressou com excelente força poética a profunda angústia causada nele pela
realização deste fato e a ânsia de uma renovação interna e de renascimento
espiritual.

Senhor, reconheço, e rendo-te graças por ter criado em mim esta tua imagem, a
fim de que, ao recordar-me de ti, eu pense em ti e te ame. Mas, ela está tão
apagada em minha mente por causa dos vícios, tão embaciada pela névoa dos
pecados, que não consegue alcançar o fim para o qual a fizeste, caso tu não a
renoves e a reformes. (Anselmo, 1962, 6) [Proslógio]
George Berkeley e a tradição platônica 267

Não obstante, permanece o fato que, apesar de todas as suas


imperfeições, erros e más inclinações, a mente humana ainda carrega em si
mesma a marca de Deus, a impressão original de seu criador. Isso significa
dizer que, graças precisamente a tal marca, pelo puro fato do sermos
humanos nós temos a capacidade de superar a distância – por mais enorme
que esta possa ser – que nos separa de Deus: “imediatamente depois que a
alma nasceu de Deus, ela voltou-se para ele como seu autor por certo
instinto natural, exatamente como um fogo criado sobre a terra pelo poder
das coisas mais elevadas é imediatamente dirigido para as coisas mais
elevadas por um impulso da natureza. Tendo se voltado para ele, a alma é
iluminada pelos seus raios” (Ficino 1985: 75).
No que diz respeito à filosofia de Berkeley, esta marca divina
impressa sobre a mente humana por Deus no momento da criação
manifesta-se ela mesma precisamente através do fato que a mente humana
funciona como um Deus en miniature. A noção que, dentro do sistema de
Berkeley, a mente humana percebe as coisas e assim torna-as existentes (esse
este percipi) não faz outra coisa senão precisamente confirmar que ela é de
fato criada “à imagem de Deus”, e “segundo sua semelhança”, na medida
em que, de acordo com Berkeley, a missão suprema do próprio Deus – a
principal razão de sua existência, por assim dizer – é fazer exatamente a
mesma coisa, isto é, perceber coisas e assim torná-las existentes: “Os homens
comumente acreditam que todas as coisas são conhecidas ou percebidas por
Deus porque eles acreditam na existência de um Deus; enquanto eu, por
outro lado, concluo imediata e necessariamente a existência de um Deus
porque todas as coisas sensíveis devem ser percebidas por Ele. (Berkeley
1948–57, 2:212 [Três diálogos]).
Ao mesmo tempo, esta relação privilegiada entre a mente humana e
a divina é um tópico crucialmente importante no platonismo. Nós tocamos
aqui um daqueles pontos onde a filosofia grega antiga tornou-se de forma
extrema estreitamente conectada, ou entrelaçada, com algumas das ideias
teológicas que chegaram até nós da tradição bíblica. Como na
Weltanschauung judaico-cristã, dentro de um contexto platônico os dois
termos não são de modo algum indiferentes um em relação ao outro, mas
existe uma permanente tendência dramática, do lado humano, para as
realidades divinas, uma inevitável ânsia pelo estado de plenitude ontológica
e felicidade suprema que é a única característica do mundo de Deus. E esta
268 Costica Bradatan

ânsia é estruturalmente possível precisamente em virtude da acima


mencionada semelhança “ontológica” entre o humano e o divino. Uma
doutrina central no platonismo é reunida em torno da crença num “mundo
de realidades mais elevadas, além do domínio falível da percepção sensível; a
crença que a alma pertence ao mundo mais elevado e pode encontrar seu
caminho de volta a esse lugar” (Sheppard 1994: 17–18). A mente humana,
mediante todos os seus empenhos, esforços e empreendimentos, procura
permanentemente por sua origem divina como um lugar de transfiguração e
redenção, como um lugar onde ela pode realizar todo seu potencial. Esta
tendência dinâmica está, de acordo com a visão platônica, incorporada nas
estruturas mais profundas da alma como uma de suas características
definidoras. Viver uma “boa vida” significa precisamente deixar-se guiar por
esta tendência inata da alma para a esfera das ideias.
O que torna alguém particularmente bem preparado para o
encontro com o reino das realidades imutáveis é morrer uma “boa morte.”
No platonismo a experiência da morte é uma experiência metafísica central:
a morte é acima de tudo vista como uma iniciação e como um grande
começo, não de modo algum como uma perda ou um fim absoluto. Se a
morte é o fim de algo, ela é só o fim de uma existência marcada pela
dissolução e precariedade, uma existência empobrecida durante a qual a
alma é sempre corrompida, a ponto de ser obstáculo, por sua proximidade
com o corpo. Devido à mesma proximidade, a mente é sempre míope e
dependente dos sentidos. Somente na morte nossa alma pode livrar-se de
todas as faltas cometidas durante nossa existência como criaturas encarnadas
e encontrar-se com seu modelo divino. Por exemplo, no Fédon, Platão faz
Sócrates inferir que estar preparado (e feliz) para morrer é na realidade uma
parte necessária de um cenário mais amplo de redenção, um cenário no fim
do qual a mente/alma humana deve encontrar repouso em sua contraparte
divina:

Há muita esperança de que somente no ponto em que me encontro, e mais em


tempo algum, é que alguém poderá alcançar o que durante a vida constituiu nosso
único objetivo. Por isso a viagem que me foi agora imposta deve ser iniciada com
boa esperança, o que se dará também com quantos tiverem certeza de achar-se com
a mente preparada e, de algum modo, pura. (Platão 1997: 58 [Fédon 67b–c]).

É por isso que a filosofia, como a suprema forma de realização


espiritual, chega a ser vista na tradição platônica como um “exercício para a
George Berkeley e a tradição platônica 269

morte” (Ibid. [Fédon 81a]), a morte assim significando uma experiência


iniciatória fundamental por meio da qual as verdades últimas são
completamente reveladas à mente humana, a última chegando a ver sua
contraparte divina “face a face” (facie ad faciem), como São Paulo depois
diria. Em outras palavras, “a ascensão da alma ao mundo espiritual é
experenciada como uma volta ao lar (nostos)’’ (Louth 1994: 54). Numa
ligeira continuação das meditações de Platão no Fédon, Plotino de maneira
famosa alegará depois que “nossa pátria está onde nós estivermos, e ali está o
Pai. (Plotino 1966-88 [Enéadas I.6.8.21]). Desta maneira, a filosofia não
passa a ser outra coisa senão uma sofisticada ars moriendi, e esta tornar-se-á
uma característica distintiva da filosofia cristã-platônica de todos os tempos.
Santo Agostinho (1963 [Confissões 10]) imita fielmente Plotino quando
exclama nesta passagem muito citada: ‘‘Tu nos fizestes por tu mesmo, Oh
Senhor, e nosso coração está inquieto até seu repouso em Ti’’ (Fecisti nos ad
te, Domine, et inquietum est cor nostrum donec requiescat in te). Por assim
dizer, no sistema platônico, esforçar-se para ir além de tudo que o mundo
sensível nos oferece, a fim de compreender tanto quanto podemos as
realidades inteligíveis (na esperança de um “reencontro” final com elas), é a
tarefa mais importante da mente de alguém durante toda sua vida. Esta
tendência para o divino é na realidade o que em última instância nos define
como seres humanos, e o que dá significado a nossas vidas, tornando-as
dignas de viver: “um amor eterno pelo qual a alma está sempre voltada para
Deus, faz com que a alma sempre aprecie Deus como um novo espetáculo.
A mesma bondade de Deus que também torna o amante abençoado sempre
acende o amor na alma” (Ficino 1985: 80).
Esta não é, evidentemente, uma tarefa fácil: uma preocupação
comum entre os planonistas foi que “a condição humana é uma perpétua
luta entre um materialismo aviltante e uma espiritualidade elevada” (Evans
1993: 95). Não obstante, é somente mediante esta difícil luta que nós
podemos nos libertar da “prisão do corpo” e do mundo material em geral, e
através do que nós podemos atingir o que é mais apropriado para nós. E o
“lugar” onde se pode dizer, de maneira mais apropriada, que a razão
humana se encontra “em casa”, é somente onde a Razão habita. Daí o
predomínio, dentro da tradição platônica-cristã, do ideal da “razão
transfigurada, capaz de ver claramente a Razão suprema que é o seu modelo
e de desfrutar as alegrias puramente intelectuais, não maculadas pelas
270 Costica Bradatan

premências das necessidades da carne” (ibid: 95). Portanto, estar “em casa”
para nossa mente significa repousar em Cristo como a razão (Logos) do
mundo. A razão individual retorna à Razão divina, e se dissolve nela,
alcançando assim um estágio em que ela quase não imita mais os seus
processos, mas une-se a ela, tornando-se “carne e sangue” dela.
Em vista dessas breves considerações, a abordagem de Berkeley da
relação entre a mente divina e a sua contraparte humana adquire, assim se
espera, uma compreensão mais completa, e uma contextualização mais
adequada. Pois seu argumento não era de modo algum parte de um
brilhante raciocínio sofístico, ou apenas um artifício filosófico
engenhosamente empregado a fim de rejeitar as acusações de solipsismo,
mas – quando usou esse argumento – Berkeley realmente seguiu um
modelo de pensamento antigo e consagrado. Tratava-se de um modelo cuja
praticabilidade e força já havia sido testada por uma longa tradição de
platonistas e pensadores cristãos, que adotaram basicamente a mesma visão
de Berkeley: uma visão segundo a qual a mente humana realmente funciona
como um speculum Dei, como um espelho vivo de Deus. E é precisamente
essa função que dá à mente (“a Vela do Senhor em nós”, para usar a frase de
Benjamin Wichcote) um caráter muito especial, transformando-a em um
domínio privilegiado. Nossa percepção das coisas, no sentido muito
particular que a palavra “percepção” tem em Berkeley, é a nossa mais
profunda maneira de “imitar” Deus. Feitos como somos à “Sua imagem” e
“à Sua semelhança” nós queremos reproduzir fielmente, en miniature, o
processo divino através do qual o mundo vem a ser.8 Assim, a filosofia de
Berkeley parece esconder jóias teológicas nunca antes apreciadas.

Os arquétipos
No entanto, a simples asserção da mente de Deus como um “lugar” onde as
coisas existem não é suficiente: deve haver alguma modalidade imediata
através da qual a mente de Deus pode perceber os objetos, ou, em outras
palavras, um meio pelo qual os objetos existem na mente divina. Daí a
introdução da noção antiga de arquétipos. Na tradição cristão-platônica os

8
Para maiores detalhes sobre essa questão e suas outras ocorrências na história da filosofia
ocidental, ver meu ensaio “‘God Is Dreaming You’: Narrative as Imitatio Dei in Miguel de
Unamuno”. (Bradatan, 2004). [“Deus está sonhando você: narrativa como Imitatio Dei em
Miguel de Unamuno” (http://www.principios.cchla.ufrn.br/24P-249-265.pdf).]
George Berkeley e a tradição platônica 271

arquétipos são plasticamente definidos como os “pensamentos de Deus” ou


“os pensamentos que ocupam a mente de Deus” (penseés dans l’intellect
d’un dieu suprême [Dillon 1997: 107]). Eles formam uma ordem ideal das
coisas, uma versão ideal do que vemos no mundo sensível. Na verdade, o
mundo sensível é tornado possível precisamente pelo fato de que os
arquétipos das coisas sensíveis existem na mente divina. Como o platônico
renascentista Giovanni Pico della Mirandola coloca, Deus

criou tudo, porque nessa Mente ele criou as Ideias e as Formas de todas as coisas.
Há, portanto, nessa Mente a Ideia do sol, a Ideia da lua, do homem, de todos os
animais, das plantas, das pedras, dos elementos, e em geral de todas as coisas. Da
Ideia do sol ser um sol mais verdadeiro que o sol sensível, e assim por diante,
segue-se não só que Deus criou todas as coisas, mas também que Ele as criou com
o mais verdadeiro e mais perfeito ser que elas podem ter, ou seja, o ser ideal e
inteligível. (Pico della Mirandola, 1986: 16)

Em seu artigo sobre os arquétipos em Berkeley publicado em 1976,


Peter Wenz escreve que: “há boas razões para acreditar que Berkeley foi. . .
um cristão neo-platônico, alguém que sustenta a visão que as ideias abstratas
existem na mente de Deus e que o mundo foi criado por Deus usando essas
ideias como modelos ou arquétipos” (Wenz, 1976: 537). Ainda que
existam, entretanto, alguns aspectos problemáticos nessa identificação, no
sentido de que o ataque de Berkeley às ideias abstratas poderia ser visto
como um ataque contra as ideias abstratas divinas também9, e ainda que o
imaterialismo de Berkeley não se encaixe absolutamente em todos os
detalhes no modelo tradicional da utilização da noção de arquétipos, poder-
se-ia mostrar, no entanto, que a existência e a função dos arquétipos (um
tema platônico par excellence) é crucialmente importante no pensamento de
Berkeley, assim como para a compreensão do desenvolvimento da sua
filosofia desde seus primeiros escritos até Siris. De fato, o emprego da noção
de arquétipo é simplesmente necessário e inevitável para explicar a maneira
como a mente de Deus compreende e torna inteligíveis as coisas no mundo.
Não é suficiente dizer que “as coisas existem na mente de Deus”: uma
explicação de como elas existem é também necessária. Como Steven Daniel
claramente chamou a atenção, “se a percepção das coisas por parte de Deus

9
Ver, por exemplo, a crítica apresentada por Robert McKim contra os argumentos de Wenz
(McKim 1982).
272 Costica Bradatan

é [...] a maneira de Berkeley evitar as implicações solipsistas de sua doutrina


que ser é ser percebido, então parece que a sua teoria das ideias ou
arquétipos divinos estaria no centro de seu imaterialismo idealista” (Daniel
2001: 247).
Embora o papel dos arquétipos seja crucial para o sistema
imaterialista de Berkeley, na medida em que eles fornecem um meio
relativamente não-problemático e, diríamos, tradicional, de fazer as coisas
existir no intelecto divino, Berkeley em seus primeiros escritos não prestou
uma atenção proporcional à teoria dos arquétipos enquanto tal. Ele
freqüentemente usou o termo, mas não parece basear-se na teoria dos
arquétipos tanto quanto se poderia esperar. Por exemplo, nos Princípios do
conhecimento humano, ele diz:

quem quer que reflita e procure compreender o que diz, reconhecerá [...] que todas
as qualidades sensíveis são igualmente sensações, e igualmente reais; que onde há a
extensão, há também a cor, isto é, na sua mente, e que seus arquétipos podem
existir somente em alguma outra mente. (Berkeley 1948–57: 2:84)

Nos Três diálogos entre Hylas e Philonous a noção de arquétipos é sistemática


e completamente empregada, mas ao mesmo tempo muitas vezes se sente
certa hesitação por parte de Berkeley entre falar sobre as “coisas”
perceptíveis (ou seja, “ideias”) e “seus arquétipos”. Por exemplo: “nenhuma
ideia ou arquétipo de uma ideia pode existir senão em uma mente” (ibid.:
212-13). Ou, em outra passagem:

as coisas que percebo devem ter uma existência, elas ou seus arquétipos, fora da
minha mente, mas sendo ideias, nem elas nem seus arquétipos podem existir de
outra forma senão em um entendimento; existe, portanto, um entendimento. Mas
vontade e entendimento constituem, no sentido mais estrito, uma mente ou
espírito. Assim, a causa poderosa das minhas ideias é, no sentido estrito e próprio
da palavra, um espírito. (Ibid.: 240)

Entretanto, apesar de toda esta hesitação, o contexto lógico dentro do qual


Berkeley emprega a noção de arquétipo é o mesmo que aquele em que os
arquétipos eram empregados no platonismo tradicional, ou seja, os
arquétipos existem na mente de Deus, sendo o modo divino favorito de
compreender o mundo criado, em outras palavras, eles são “os pensamentos
de Deus”:
George Berkeley e a tradição platônica 273

as coisas que percebo são as minhas ideias, e [...] nenhuma ideia pode existir a
menos que seja em uma mente. Tampouco é menos claro que essas ideias ou coisas
por mim percebidas, elas mesmas ou seus arquétipos, existem independentemente
de minha mente, já que sei que não sou seu autor, estando fora de meu poder
determinar, como me aprouver, com que ideias particulares devo ser afetado ao
abrir meus olhos e ouvidos. Elas devem, portanto, existir em uma outra mente,
cuja vontade é que elas devem ser exibidas a mim. (Ibid: 214-15)

Finalmente, numa (muito citada e discutida) carta a Samuel Johnson,


datada de 24 de março de 1730, ou seja, cerca de vinte anos depois que
Berkeley publicou suas primeiras obras, Berkeley chega a admitir
abertamente que:

Não tenho objeção alguma em chamar de arquétipos das nossas as ideias na mente
de Deus. Mas objeto contra os arquétipos que os filósofos supõem que são coisas
reais e que têm uma existência racional absoluta diferente do fato de serem
percebidos por qualquer mente que seja. (Ibid.: 292)

Esta afirmação é muito importante, pois ela nos permite perceber que
Berkeley era contra o uso do termo “arquétipo” com um sentido Lockeano,
ou seja, contra “arquétipo” como se referindo simplesmente a um objeto
externo, a uma “coisa real”, cuja imagem mental (ou ideia) é refletida em
nossa mente, e que pode ser considerada como o “modelo”, “original” ou
“arquétipo”, em que a imagem é moldada. Dada a influência então
predominante das opiniões e da linguagem de Locke entre os círculos
intelectuais e filosóficos, isso explica a hesitação de Berkeley e por que ele
foi tão relutante em utilizar o termo “arquétipo”, embora não o tenha
rejeitado completamente. Por um lado, Berkeley estava sem dúvida
inclinado a lançar mão do termo devido a suas implicações metafísicas e por
causa dos problemas que, com sua aplicação, teria resolvido em sua própria
filosofia. Por outro lado, ele estava consciente de que “arquétipo” ainda
tinha conotações Lockeanas que ele não desejava assumir. Isso é exatamente
o que os comentadores têm notado sobre o assunto em questão. T. E.
Jessop, por exemplo, diz: “Sobre os arquétipos não como supostos originais
corpóreos de cópias mentais, mas como modelos no intelecto divino,
Berkeley parece ter tido uma mente aberta” (Jessop 1949a: 78 n. 1). Como
acontece, em geral, com aqueles filósofos que desejam afirmar-se contra
certo ambiente intelectual e encontrar sua própria maneira irredutível entre
os seus contemporâneos, Berkeley teve de resolver uma série de problemas
274 Costica Bradatan

terminológicos e teve dificuldades antes de conseguir criar e lançar seu


próprio vocabulário filosófico.
Um passo à frente muito importante, para não dizer decisivo, no
que diz respeito ao emprego da noção platônica de arquétipos, é dado
quando Berkeley, nos Três diálogos entre Hylas e Phylonous, chega a
reconhecer abertamente que: “Não sou a favor de transformar as coisas em
ideias, mas, antes, as ideias em coisas” (Berkeley, 1948-57, 2:244). Em
outras palavras, as coisas são para Berkeley ideias reificadas, ideias
transformadas em entidades corporificadas. Para colocar isso de forma
diferente, as coisas existem apenas na medida em que são expressões de uma
ordem da realidade mais elevada, isto é, a ordem de ideias. De uma maneira
notavelmente precisa, esta afirmação de Berkeley contém virtualmente, ou
resume, um dos princípios fundamentais que guiam praticamente toda a
escola de pensamento platônica, a saber, que este mundo sensível que nós
vemos à nossa volta é apenas um reflexo de um mundo de ideias ou
arquétipos, e que todas as coisas “neste mundo” são, em certo sentido,
apenas uma espécie de “ideias corporificadas”, sombras “terrenas” de uma
ordem ontológica celestial. E no processo de trazer as coisas à existência é
Deus quem desempenha o papel decisivo. Graças à sua intervenção, um
processo de “reflexão”, ou “emanação”, ou “geração” ocorre, um processo
através do qual as coisas “deste mundo” aparecem como “cópias” mais ou
menos fiéis dos arquétipos: “Deus é a alma suprema, a mente que conhece
os objetos inteligíveis, mas cuja função é criar o mundo sensível em termos
do modelo inteligível fornecido a ele pelas Ideias” (Feibleman 1971: 28). O
mundo, então, torna-se de certa maneira a revelação espetacular do
pensamento de Deus, uma generosa e interminável dissipação de Deus em
seu exterior, para o que não é Deus. Desse ponto de vista, o próprio
entendimento de Berkeley do papel de Deus, e do uso que Deus faz dos
arquétipos, parece, mais uma vez, muito semelhante ao do platonismo
tradicional:

Todos os objetos são eternamente conhecidos por Deus ou, o que quer dizer a
mesma coisa, têm uma existência eterna em sua mente. Mas quando coisas antes
imperceptíveis às criaturas se tornam perceptíveis por uma lei de Deus, então
dizemos que elas iniciaram uma existência relativa com respeito às mentes criadas.
(Berkeley 1948– 57, 2:252 [Three Dialogues])
George Berkeley e a tradição platônica 275

Esta passagem lança uma luz esplêndida no uso de Berkeley da noção de


arquétipos, e seu papel na “produção” do mundo sensível. “Todos os
objetos” significa aqui, naturalmente, os arquétipos, os “modelos” das
entidades físicas com as quais nos deparamos no mundo sensível ao nosso
redor: eles têm uma existência eterna na mente de Deus, e só em algum
ponto do tempo, por um decreto de Deus, eles produzem a existência de
uma outra ordem de realidade, que é, provavelmente, o evento primordial
sobre o qual lemos no livro do Gênesis. Esta é uma ordem da realidade
“relativa” às nossas faculdades perceptivas, dependente da nossa mente: ela
só existe à medida em que a percebemos. Agora, o que fazemos no curso do
nosso encontro com o mundo é precisamente uma reconstrução, do nosso
ponto de vista, do processo através do qual Deus in illo tempore instituiu as
coisas simplesmente ao pensá-las: nós percebemos as coisas e, assim, as
tornamos existentes. E assim fazendo, nós podemos seguramente dizer que
reproduzimos, mesmo que em menor escala, en miniatura, por assim dizer,
o processo divino. Em outras palavras, na opinião de Berkeley, nós, como
seres vivos, estamos sempre nas “pegadas Deus”. Dito de outro modo, a
missão do sujeito berkeleiano é afastar permanentemente o véu dos vários
preconceitos, erros e falsas imagens que nós erroneamente tendemos a
considerar como sendo o mundo. Idealmente, o sujeito berkeleiano renova
o mundo a cada dia, a cada segundo, devolvendo-lhe o sabor virginal que
Deus lhe deu, no momento da criação. Branka Arsic´, ao tocar neste
aspecto, considera que o objetivo da filosofia de Berkeley é simplesmente “a
restauração de tudo ao estado de uma percepção absolutamente ‘objetiva’,
que é o percebido, a restauração de tudo a um estado de consciência
‘virginal’. [...] Tudo é restaurado a um estado sem disfarces ou máscaras, um
estado de completa nudez, de completa visibilidade”. (Arsic´ 2003: 131-32).
Dito isto, não será de estranhar que John Dillon, em um estudo
comparativo sobre Plotino e Berkeley, chega a concluir que, ao usar o
próprio termo “ideia” Berkeley estava sob uma forte influência platônica,
emprestando o seu significado precisamente de Plotino: En se servant Du
term ‘idée’, Berkeley este soumis à l’influence de l'usage du mot grec idéa
chez Plotin, et dans la tradition du platonisme disponible à Berkeley, il
allait de soi que ces idéai étaient des pensées dans l´intellect d’un dieu
suprême” (Dillon 1997: 107). Aliás, deve ser dito que, uma vez que
embarcou em seu ambicioso projeto de compreender o mundo como uma
276 Costica Bradatan

forma de “desdobramento” de Deus, Berkeley não podia deixar de fazê-lo:


graças à sua elegante funcionalidade e virtudes explicativas, de uma maneira
que ele teve de aceitar os arquétipos, juntamente com todo o filosofar
platônico sobre eles acumulado ao longo dos séculos.
Além disso, existem, na opinião de Dillon, algumas outras
semelhanças que poderiam ser encontradas entre o idealismo de Plotino e o
de Berkeley. Por exemplo, no contexto de uma teoria platônica dos
arquétipos, deve haver alguma modalidade individualizada por meio da qual
os arquétipos divinos viriam a ser efetivos em termos de trazer as coisas
sensíveis à existência. Plotino vê as coisas sensíveis como sido “irradiadas”,
ou “saídas”, de alguma forma hierárquica, a partir do Um, a suprema
realidade metafísica:

Todas as coisas que existem, enquanto elas permanecem no ser, necessariamente,


produzem, a partir de suas próprias substâncias, na dependência do seu poder
presente, uma realidade circundante direcionada para o que está fora delas, uma
espécie de imagem dos arquétipos a partir dos quais foi produzida: o fogo produz o
calor que emana dele, a neve não só mantém o seu frio dentro de si. As coisas
perfumadas apresentam esta particularidade de maneira clara. Na medida em que
existem, elas espalham algo ao redor delas, e o que está próximo delas desfruta sua
existência. (Plotino 1966-88 [Enéadas 5.1.6.27-40).

Ainda que apenas em Siris Berkeley assumiria, quase literalmente, a maneira


de pensar de Plotino, incorporando-a à estrutura de sua própria cosmologia
e fazendo um uso extensivo dela, nesta fase (ou seja, ao escrever os Três
Diálogos) pode-se dizer que Berkeley trabalha dentro de um repertório
conceitual e temático muito próximo ao próprio repertório metafísico de
Plotino. Mesmo nos Três Diálogos entre Hylas e Philonous Berkeley considera
o mundo como sendo, de certa forma, o resultado de uma superabundância
de Deus, de uma transbordante graça divina:

existe uma mente que me afeta a todo momento com todas as impressões sensíveis que
percebo. E, a julgar pela sua variedade, ordem e modos, concluo que o Autor dessas
impressões é sábio, poderoso e bom além da compreensão. [...] as coisas por mim
percebidas são conhecidas pelo entendimento e produzidas pela vontade de um
espírito infinito. (Berkeley 1948–57: 2:215)

Deus não é de modo algum uma presença imóvel no mundo de Berkeley,


mas de forma contínua e ativa ele se revela ao nosso entendimento. Para
colocar isso de outra maneira, em Berkeley, Deus constantemente assalta-
George Berkeley e a tradição platônica 277

nos com sua presença sonora. Nós simplesmente não podemos deixar de
perceber Deus; basta apenas abrir nossos olhos e a evidência de sua
existência e benevolência nos dominará. O mundo de Berkeley não é um
lugar frio e hostil; é um reino caloroso e sorridente, nascido de um abraço
divino. Como tal, além de todas as outras semelhanças que se poderia
encontrar em Berkeley e Plotino, existe uma que faz suas filosofias tão
notavelmente semelhantes. Ou seja, nas palavras de Dillon,

o ponto onde os dois filósofos se encontram e parece iluminar um ao outro [...] é a


sua total oposição em relação a qualquer teoria que introduza uma diferença
[insérer une différence] entre o que é dado aos nossos sentidos e a substância além
deles (Dillon 1997: 107).

Tanto em Plotino como em Berkeley o que nós imediatamente


encontramos no mundo é o efeito predominantemente direto de uma
divindade generosa. Não há lugar, em qualquer uma dessas duas filosofias,
para substâncias intermediárias, para fontes de alienação, digressões inúteis,
ou outras coisas para desviar-nos da nossa verdadeira missão neste mundo,
que é encontrar o caminho de volta à realidade divina imutável.

“Os dois mundos”


Uma conseqüência lógica imediata da teoria de que existem arquétipos na
mente de Deus é a ideia de que existem dois mundos: por natureza, o
mundo dos arquétipos (kosmos noetos) pressupõe necessariamente a
existência de um mundo de “cópias” sensíveis (kosmos aisthetos), de
entidades constituídas à imagem dos arquétipos, existindo como meras
imitações “terrenas” dos modelos celestiais. “Este mundo, portanto, é
produzido pela Mente à imagem do mundo inteligível produzida em si pelo
primeiro Pai (Pico della Mirandola, 1986: 22). Uma teoria dos arquétipos é,
portanto, baseada no “reconhecimento de um mundo invisível da realidade
imutável por trás do fluxo dos fenômenos, um universo espiritual em
comparação com o qual o mundo da aparência ficou pálido e insubstancial
e tornou-se apenas um símbolo ou mesmo uma ilusão” (Inge, 1926: 7-8).
Essa é outra doutrina professada por praticamente todas as escolas
platônicas, seja antigas ou modernas, uma doutrina com conseqüências
importantes não só para a metafísica, mas também em termos
antropológicos e soteriológicos. É um daqueles pontos que tornam Platão,
como já se disse, “o representante paradigmático de uma tendência perene
278 Costica Bradatan

para ‘outro mundo’ que nunca deixou de atrair ou repelir as emoções tanto
quanto o intelecto” (Cooper 1996: 107). À luz deste duplo estado de
realidade, os seres humanos devem agora ser definidos pela sua dupla
natureza:10

Nós, seres humanos, pertencemos a dois mundos: é evidente que a este mundo (é
por isso que o chamamos este mundo), mas em virtude de possuirmos (ou
estritamente: termos) uma alma (estritamente: um intelecto, nous), nós
pertencemos ao mundo espiritual. Para Platão, a tarefa principal da filosofia é a de
garantir nossa passagem para o mundo espiritual: a filosofia é “um exercício para a
morte” melete thanatou (Fédon, 81a), pois a morte é a separação da alma do corpo.
(Louth, 1994: 54)

O objetivo de todo empreendimento filosófico (e, em geral, intelectual)


sério, deveria ser, num contexto platônico, precisamente o de decifrar e
compreender o que está por trás da multiplicidade enganosa das coisas, na
esperança de descobrir seus “modelos” ou “formas” eternas. Obviamente,
nosso conhecimento imediato do mundo externo é, necessariamente, um
conhecimento de “cópias” sensíveis, sendo impossível ser de outra forma,
mas a coisa mais importante sobre este processo de conhecimento é
compreender a verdadeira natureza das coisas, ir além do que é dado a nós
como sensível, e não confundir as “cópias” com seus “arquétipos”. Esta é às
vezes uma tarefa difícil porque, como já foi notado, apesar de as cópias “não
terem a perfeição da Forma, elas são não obstante consideradas como
“imitando” a Forma; elas são como ela, embora aquém dela” (Sheppard,
1994: 6). Isso significa que um bom conhecimento do mundo pressupõe,
por parte do conhecedor platônico, uma consciência aguda do específico
“peso” ontológico de cada classe de coisas com as quais sua mente está
preocupada a cada momento dado. O conhecedor platônico deve sempre
mostrar discernimento e uma crescente capacidade de distinguir as cópias de
seus modelos, o falso do verdadeiro, e, em geral, sempre saber onde
precisamente “este mundo” termina e onde o outro mundo “começa”.
Finalmente, o conhecedor Platônico é um especialista profissional de
hermenêutica: ele sempre sabe distinguir o sinal do significado, o símbolo
do simbolizado, e assim por diante.

10
Para um comentário mais detalhado sobre o dualismo platônico, ver o capítulo 7 do livro
The Other Bishop Berkeley (Bradatan, 2006, p.173-192).
George Berkeley e a tradição platônica 279

Gostaria também de observar, de passagem, que, sob a influência


poderosa de um platonizante Santo Augustinho, a representação de como o
nosso conhecimento do mundo é constituído viria a se tornar uma das
noções mais difundidas na filosofia da Idade Média antes da redescoberta
do aristotelismo. Importantes e influentes pensadores medievais viram a
produção de nosso conhecimento do mundo externo como uma ascensão
progressiva e libertadora do nível sensível das coisas à sua fonte inteligível, a
saber, Deus, verdadeiramente a única realidade para a qual devemos sempre
direcionar nossas práticas epistêmicas e esforços intelectuais. Vir a conhecer
o mundo significa para eles a ascensão elaborada da scala entis, a partir de
seu nível mais baixo até o mais elevado, um movimento místico progressivo
desde o total comprometimento com “este mundo” em direção ao êxtase
divino ocasionado pela habitação no outro:

Versões medievais da explicação de Agostinho de uma progressão da percepção-


sensível por meio da produção-de-imagem e abstração para um encontro
verdadeiramente espiritual e racional com a mente de Deus podem ser
encontradas, por exemplo, no Monologium de Anselmo e no Itinerarium Mentis in
Deum, de Boaventura; mas a ideia é amplamente difundida em muitos autores.
(Evans, 1993: 38)

É essa doutrina postulando a existência de dois mundos que Berkeley


admite. Na realidade, ele não poderia ter feito de outro modo, na medida
em que esta noção era um dos resultados lógicos dos próprios princípios
sobre os quais toda sua abordagem tinha se baseado. Nos Três diálogos entre
Hylas e Philonous, seu porta-voz, Philonous chega a perguntar retoricamente

não reconheço um duplo estado das coisas, um ectípico ou natural, o outro


arquetípico ou eterno? O primeiro foi criado no tempo, o segundo existia desde
sempre na mente de Deus. Isso não está em conformidade com as opiniões
correntes dos teólogos? Ou será que é necessário mais do que isso a fi m de
conceber a Criação? (Berkeley 1948–57, 2:254 [Three Dialogues])

Em outras palavras, na medida em que as coisas são percebidas por nós elas
são ideias, realidades “de segunda mão”, “imitações”, ao passo que, na
medida em que são compreendidas por Deus, elas são arquétipos, modelos
eternos sobre os quais, e em cuja imagem, as coisas sensíveis são feitas.
Mais do que isso, no Alcifron, escrito cerca de vinte anos depois,
Berkeley expressaria opiniões não apenas em consonância com o que disse
280 Costica Bradatan

nos seus primeiros escritos, mas também platônicas num sentido muito
mais profundo e de longo alcance. A atitude metafísica fundamental
revelada por uma passagem como a seguinte é provável que seja encontrada
em qualquer escrito importante da tradição platônica: “Parece-me que
quem não tem consciência de sua própria miséria, pecado, dependência e,
quem não percebe que este mundo não foi projetado ou adaptado para
tornar as almas racionais felizes, não vê profundamente, nem muito bem.”
Berkeley (1948-57, 3:178). Em certo sentido, é esse tipo de angústia
existencial e sentimento de desconforto fundamental que confere ao
pensamento de Berkeley um aspecto platônico mais forte; passagens como
esta provam o mais genuíno “aspecto platônico”. Em outras palavras,
enquanto em seus primeiros escritos o platonismo de Berkeley era antes
teórico, concebido apenas como um sofisticado sistema de noções
metafísicas por meio do qual ele explicava a existência e a natureza das
coisas, no Alcifron Berkeley permitiu-se expressar algumas das preocupações
específicas e atitudes existenciais que tipicamente acompanham uma forma
platônica de “sentir” o mundo.
Com certeza, existe certa ambiguidade na doutrina de Berkeley do
“duplo estado das coisas”, o que dá origem a uma tensão entre suas próprias
opiniões e a concepção platônica corrente dos “dois mundos”. Essa
ambigüidade tem origem na sua negação radical da existência da matéria. O
próprio Platão admitia que a matéria (hule) tinha algum tipo de existência,
ainda que uma existência problemática, inferior e obscura, e o mesmo
fizeram muitos platônicos depois dele, embora alguns outros, incluindo
Plotino, tinham uma concepção mais próxima da visão de Berkeley11.
Berkeley em vez disso não admite qualquer forma de existência material e
reduziu a tradicional oposição platônica entre “os dois mundos”, o mundo
das ideias e o mundo dos objetos físicos, a uma oposição (de alguma forma
menos dramática do que a de Platão) entre um reino dos arquétipos,
existente na mente de Deus, e um reino dos objetos sensíveis, ocasionados
pela nossa percepção dos arquétipos de Deus. A este respeito, como John
Dillon sugere, Berkeley é ainda mais radical que Plotino:

11
Dillon fala de uma série de “procedimentos filosóficos para ‘desconstruir’ o mundo
material objetivo [pour ‘déconstruction’ Du monde matériel objetif] que os dois filósofos
[Berkeley e Plotino] partilharam” (Dillon 1997: 100).
George Berkeley e a tradição platônica 281

Para Berkeley, até mais do que para Plotino, o mundo externo dos objetos físicos
[....] representa uma ameaça. Para ele, se admitirmos a existência de uma camada
de matéria inferior [une couche matérielle inférieure], algo que possui qualidades
primárias e secundárias [...] isso desafiaria a onipotência e a providência de Deus.
Esses objetos materiais Lockeanos seriam entitades extramentais que existiriam a
despeito de sua percepção por parte de uma mente [en dépit de la connaissance de
quelque esprit]. Elas seriam entidades cuja existência seria completamente
independente da mente, inclusive da mente de Deus. (Dillon 1997: 100-1)

Por outro lado, deve-se acrescentar que essa ambiguidade, ou dificuldade,


pode ser encontrada não só na filosofia de Berkeley. Ela provavelmente
deriva do que Andrew Louth chama o “problema não resolvido do
platonismo cristão”. Quando Deus ocupa um lugar tão importante dentro
de um sistema de pensamento, quando – de acordo com os princípios mais
fundamentais sobre os quais um tal sistema se baseia – Deus permeia tudo e
é somente Deus que torna o conjunto da realidade inteligível (como Deus
faz tanto em Berkeley como no platonismo cristão referido por Louth),
então torna-se realmente difícil encontrar algum espaço adequado para a
existência de uma coisa tão grosseira e não-divina como a matéria, ou, no
caso, de qualquer realidade física. Há um certo sentido em que, nestes
sistemas, sob a pressão de uma presença divina invasora a matéria tende de
alguma maneira “desmaterializar-se”.

“O Livro do mundo”
Por mais dramática que a diferença entre “os dois mundos” possa parecer no
platonismo tradicional, há, não obstante, maneiras de superá-la.12 Uma
delas consiste, para colocá-la de maneira muito esquemática, em considerar
a realidade imediatamente visível (“o mundo”) como um amplo sistema de
signos, ou símbolos, por meio do qual Deus se comunica conosco,
mantendo uma relação ativa com as suas criaturas, informando-as sobre si,
sobre seu caráter, sua natureza e seu funcionamento. Embora Platão não
tenha, ele mesmo, tratado do tema enquanto tal, na Idade Média os
platônicos cristãos recorreram em grande medida ao tema na forma da
metáfora do “livro da natureza” ou “livro do mundo” (liber naturae ou liber
mundi). Como A. E Taylor apontou, por trás do emprego cristão-platônico
desta metáfora havia a ideia de que a natureza “é apenas metade do real”, e

12
O capítulo 3 do meu livro The Other Bishop Berkeley (Bradatan, 2006 p. 57-86) é dedicado
precisamente ao lugar que Berkeley ocupa na tradição do liber mundi.
282 Costica Bradatan

que ela apontava para a existência de uma “outra realidade que está além
dela mesma”. A natureza é “um sistema de símbolos”, e nossa ascensão à
realidade última ocorre como resultado de “aprender a passar dos símbolos
às realidades não-sensíveis simbolizadas” (Taylor, 1963: 41-42). Conhecer o
mundo é essencialmente um processo de leitura, ou, para falar de modo
mais geral, de interpretação. Vivemos no meio de um livro vivo, e neste
livro, se prestarmos atenção, podemos encontrar tudo o que Deus deseja
que saibamos. São Boaventura, por exemplo, diz que “a criatura do mundo
é como um livro em que a Trindade criativa é refletida, representada, e
escrita” (Creatura mundi est quasi quidam liber, in quo relucet,
repraesentatur et legitur Trinitas fabricatrix) [Breviloquium 2.12]). Como
podemos facilmente ver, o mundo físico é, por assim dizer, “resgatado” no
platonismo cristão, sendo radicalmente transformado em algo muito mais
significativo.
É precisamente a este tema antigo do “livro do mundo” que George
Berkeley recorre com muita frequência. Na forma de uma “linguagem
divina”, ou de uma “linguagem óptica”, Berkeley emprega o tema em quase
todos os seus principais escritos filosóficos e considera-o como expressando
adequadamente a essência de sua filosofia. Em seu primeiro escrito
filosófico, Um ensaio para uma nova teoria da visão (1709), ele diz que

os objetos próprios da visão constituem uma linguagem universal do Autor da


Natureza, instruindo-nos sobre como regular nossas ações a fim de alcançar as
coisas que são necessárias à preservação e bem-estar de nossos corpos, bem como
evitar tudo o que lhes possa ser danoso ou destrutivo. É principalmente pela
informação que nos proporcionam que somos guiados em todos os assuntos e
cuidados da vida. Berkeley (1948-57, 1:231)

Então, nos Princípios do conhecimento humano, Berkeley fala, de


uma maneira que nos lembra claramente os autores medievais, da missão
própria do filósofo quando ele aborda o mundo natural:

E é a busca e o empenho de entender esses signos instituídos pelo Autor da


Natureza o que deveria constituir a ocupação do filósofo natural, não a pretensão
de explicar as coisas por meio de causas materiais, doutrina essa que parece ter
afastado muito a mente dos homens do princípio ativo, daquele espírito sábio e
supremo em quem vivemos, nos movemos e existimos. (Berkeley 1948–57, 2:69–70)13

13
Cerca de vinte anos depois, no Alcifron, or, The Minute Philosopher (1732), ele reafirma a
importância do tema Liber Mundi: “Deus fala aos homens por interseção e uso de sinais
George Berkeley e a tradição platônica 283

Para Berkeley o mundo é, portanto, um livro (“uma linguagem universal”)


de uma maneira fundamental, e não meramente como um artifício retórico.
Para ele, “todo o sistema da Natureza é um sistema de signos, uma
linguagem visual divina, falando de Deus à nossas mentes” (Copleston
1993-94, 5:248). Berkeley fala claramente da existência de um autor que
“escreveu” ou, antes, “ditou” o mundo (“o autor da Natureza”); da
existência de uma relação autor/sujeito entre ele e o mundo, assim como da
existência de um “leitor” cujo objetivo final deveria ser o de transcender o
“sinal”, que é o mundo imediatamente visível (kosmos aisthetos), para a
“coisa significada” que é o mundo dos arquétipos divinos (kosmos noetos).

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sensíveis, visíveis e arbitrários, não tendo qualquer semelhança ou conexão necessária com
as coisas que eles representam e sugerem [...] por inúmeras combinações destes sinais, uma
variedade infinita de coisas nos é revelada e dada a conhecer [...] somos instruídos e
informados, assim, sobre suas diferentes naturezas [...] e orientados a como regular nossos
movimentos, e a como agir em relação às coisas distantes de nós, tanto no tempo como no
espaço” (Berkeley 1948-57, 3:149).
284 Costica Bradatan

DILLON, John M. 1997. The Great Tradition: Further Studies in the Development
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History of Ideas 37, n. 3: 537–46.
RESENHAS

SILVA, Jairo José da. Filosofias da matemática. São Paulo:


Editora UNESP, 2007.

Marcos Silva * 1

O livro do professor de matemática e filosofia, Jairo da Silva,


publicado em 2007 pela editora UNESP, vem expor (e defender) a
perenidade dos problemas filosóficos concernentes à multifacetada
matemática ao longo da história do pensamento. A aprioricidade, a
universalidade, a necessidade, a indispensabilidade, a aplicabilidade
irrestrita, qualidades filosoficamente convidativas da matemática, são
analisadas nesta obra pioneira em português. O livro é publicado em bom
momento para suprir esta lacuna editorial e para marcar os esforços de
consolidação da pesquisa em filosofia da matemática e da lógica matemática
no Brasil. Esta pesquisa é representada em boa medida, como Jairo da Silva
destaca, pelos Encontros Brasileiros de Lógica e pelos Colóquios Conesul de
Filosofia das Ciências Formais, anuais, em Santa Maria, RS.
Com prosa clara e agradável o livro do professor Jairo cumpre o
papel que pretende em seu prefácio: o de ser “útil àquele estudante, não
importa sua origem intelectual, que queira se iniciar na Filosofia da
Matemática, mas que talvez não tenha estudado nenhuma filosofia antes e
de matemática só conheça o elementar (sem, no entanto, alienar os já
iniciados tanto num domínio quanto no outro)” (p. 23). Seguindo esta
proposta sua obra tem fôlego e qualidade suficientes para conquistar um

*
Doutorando pela PUC-Rio. E-mail: marcossilvarj@hotmail.com Resenha recebida em
07.10.2009, aprovada em 02.03.2010.
1
Agradeço aos professores Luiz Carlos Pereira e Oswaldo Chateaubriand tanto pela
indicação deste livro quanto pelo incentivo para esta resenha.

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 285-297


286 Marcos Silva

público amplo. Pode, então, ser lida por neófitos procurando panoramas
conceituais e históricos acurados ou ser adotada por professores procurando
textos-base para suas aulas de graduação e pós-graduação. Pode ser lida sem
prejuízos tanto por estudantes de matemática interessados nos fundamentos
e problemas teóricos de sua disciplina quanto por estudantes de filosofia
interessados pelo terreno preciso e bem comportado da matemática, onde
todos os temas tradicionais da filosofia reaparecem, seminais.
De Platão aos contemporâneos, de ontologia à epistemologia, de
realismos ingênuos a idealismos radicais, de perspectivas intensionais a
elogios à extensionalidade, de proponentes a detratores da metafísica, são
todos temas e tensões revisitados de maneira profícua pelo livro. Aliás, aqui
temos um ponto de fascínio que estimula o interesse pelo pensamento em
geral e pela filosofia da matemática em particular: todas as grandes questões
e debates filosóficos encontram acolhida e resurgem, caprichosamente,
repaginados, mesmo em um domínio marcado pela exatidão, formalismos e
objetividade. É interessante e revelador poder discutir filosofia em terreno
que deveria sempre, por princípio, primar pela clareza e certezas.
Apesar de introdutório o “Filosofias da Matemática” apresenta e
defende uma tese de seu prólogo ao epílogo, iniciando e perfazendo cada
capítulo, a saber, a necessidade de se tomar a matemática e sua filosofia em
diacronia. Com efeito, Jairo da Silva defende a importância da historicidade
da matemática no estudo de sua filosofia, ponderando suas crises, fracassos,
retomadas e evoluções. A matemática, segundo o autor, reflete a cultura
onde é criada, sendo inútil, então, procurar uma essência que poderia ser
revelada pela filosofia ou qualquer investigação mais sistemática de seus
amplos domínios. Coerente com esta proposta, para cada autor ou corrente
filosófica apresentada, há em seu livro uma introdução histórica onde se
mostra, em panorama, o nível de evolução das técnicas e procedimentos
matemáticos e os debates teóricos e técnicos contemporâneos a eles. A partir
de uma chave de perguntas bem determinada o autor apresenta e analisa a
atividade filosófica que perscruta a matemática em suas teorias. De fato,
perguntas sobre o que são os objetos matemáticos (ontologia matemática),
como conhecê-los (epistemologia matemática) e por que podem ser
aplicados de maneira sistemática à realidade empírica, uma vez que sejam
independentes dela, são (e devem ser) itens permanentes em qualquer pauta
de discussão sobre a filosofia da matemática.
Resenha 287

Além disso, outra questão que se impõe a qualquer teórico, como


bem mostra o livro do professor Jairo, é determinar em que medida caberia
à filosofia regular a atividade do matemático, apontando o que é legítimo
ou ilegítimo em suas práticas, revisando e legislando sobre o que é feito. Sob
esta visão, o filósofo poderia decidir, em princípio, sobre a validade das
regras de um terreno específico extra-filosófico. Em oposição a esta
perspectiva mais crítica e restritiva, o filósofo da matemática poderia adotar
posturas mais descritivas das atividades, destacando que a prática dos
matemáticos sob esta visão é o teste genuíno para boas teorias filosóficas.
Desta forma, esta proposta se coaduna à tese tradicional que defende a
matemática como padrão de verdade e dotada de papel privilegiado no
esquema geral da razão humana. Como fica evidente na obra de Jairo da
Silva, esta pequena contenda já mostra o potencial problematizador da
filosofia em sua excelência, porque além do próprio domínio estudado, o
proceder filosófico é posto em questão também, e se argue sobre sua própria
legitimidade e alcances. Apesar da filosofia com freqüência se extrapolar, ela
mesma é tomada em dúvida e análise.
Outra tese defendida pelo autor é a respeito da origem dos maus
entendidos freqüentes ao se esperar da filosofia da matemática um
comportamento de ciência, ou seja, esperar que o filósofo seja cientista e se
comprometa com a existência de uma teoria verdadeira. Esta confusão fica
particularmente clara quando entendemos que a própria noção de teoria e
verdade estão sob judice na filosofia. Jairo da Silva destaca, e este é
certamente um ponto notável de seu livro, que filosofia não precisa veicular
uma teoria verdadeira sobre domínios de observação, mas “teorias
interessantes”. Esta característica, de ser interessante, desempenha papel
importante na concepção de filosofia do autor. A partir da inevitável
constatação que muitas teorias filosóficas apesar de consistentes são
incompatíveis entre si, sem que uma delas seja ou possa ser descoberta como
a verdadeira teoria, o autor observa que “se à ciência empírica cabe explicar
e prever, sujeita sempre ao crivo da experiência, à filosofia cabe fornecer-nos
conceitos e ideias, sistemas, teorias ou perspectivas, sujeitas sempre ao
confronto com suas rivais, cuja função é antes descortinar questões
interessantes, interpretações iluminadoras (ainda que não a rigor
“verdadeiras”), insight ou caminhos promissores.” (p. 235)
288 Marcos Silva

Daí o título do livro, onde filosofia aparece propositadamente no


plural. As correntes filosóficas mesmo sendo excludentes entre si podem,
então, descortinar ou revelar um aspecto pertinente e seminal sobre a
natureza da matemática. Este é certamente o ganho do livro de Jairo, a
generosidade de visão, importante em um livro introdutório para não coibir
o horizonte do leitor iniciante. Fica claro que cada perspectiva apresentada e
defendida pelos filósofos pode contribuir de seu modo para evidenciar uma
parte da matemática. Mesmo erros em teorias podem gerar bons
subprodutos por serem, sobretudo, esforços que evidenciam determinadas
características centrais de um domínio. Cada perspectiva ou programa
filosófico pode iluminar um recanto particular de um domínio amplo e
multifacetado, destacando que às vezes “buscar soluções é mais fértil que
obtê-las” (p. 110). Assim o autor vem defender, de encontro às teses de
Wittgenstein ecoadas pelo positivismo lógico, a dignidade e existência dos
problemas filosóficos, sempre inevitáveis, inextinguíveis, irrefreáveis: “A
matemática é fonte constante de questionamentos que transbordam os seus
limites e requerem um contexto propriamente filosófico para serem
adequadamente tratados. A filosofia da matemática é o departamento do
imenso edifício da filosofia que tem por competência acolhê-los.”
No prólogo de seu livro, mais especificamente nesta crítica de
caráter mais geral, é o único lugar em que o autor menciona a filosofia de
Wittgenstein. Esta é uma omissão, a meu ver, sentida e não justificada em
pelo menos três lugares de seu livro, onde a filosofia de Wittgenstein,
mesmo com suas rupturas e teses extravagantes, poderia contribuir na
composição dos panoramas conceituais e claras influências históricas.
Destaco-as: (i) ao discutir a importância da noção de uso em Dummett e
fazer um elogio ao construtivismo lingüístico (p. 177); (ii) ao discutir e
elogiar teses carnapianas sobre a composição lingüística do conteúdo
matemático (p. 229), em ambos os pontos faltou algum tratamento, mesmo
que incidental, da noção de regras e seu papel central nas visões pragmáticas
de manipulação de símbolos. E (iii) num ponto em que quase parafraseia,
acredito que inadvertidamente, a famosa teoria da representação
(Bildtheorie) do Tractatus de Wittgenstein: “Mas essas associações [de
seqüência e operações de barras a outras seqüências e operações de outros
objetos] não são arbitrárias. | | só pode ser associado a {a,b}, porque existe
uma relação de correspondência um-a-um entre as barras da seqüência
Resenha 289

quanto à coleção. Assim, deve existir algo que tanto a seqüência quanto a
coleção que corresponde a ela tem em comum. É apenas em virtude dessa
identidade formal que a teoria das seqüências de barras pode ser aplicada.”
Com efeito, Wittgenstein, em seu Tractatus, defende uma concepção
metafísica de simbolismo que demanda uma relação biunívoca preservativa
entre representação e representado que evidenciaria uma forma lógica
comum entre seus elementos componentes (cf. Tractatus 2.18).
Além disso, aqui não é um caso de falta, mas, talvez, de excesso, a
fenomenologia de Husserl aparece com certa insistência em muitos
momentos na obra do professor Jairo e em alguns pontos, de maneira
surpreendente, porque pouco usual na literatura, por exemplo: no apêndice
à teoria da abstração aristotélica, numa analogia ao logicismo de Frege, na
menção ao formalismo do grupo Bourbaky e na recomposição do programa
de Hilbert pós-teoremas de Gödel. Em quase todos os pontos em que
Husserl é mencionado, Jairo da Silva o defende como autor que influenciou
diretamente teses defendidas ao longo do século XX, mas que nunca foi
referenciado devidamente pela literatura especializada. Esta insistência em
Husserl mostra que o livro de Jairo não é inteiramente isento, apesar de
introdutório, e seu panorama tende a privilegiar elementos fenomenológicos
e epistemológicos da matemática. A par disso, este elogio tácito à
fenomenologia contrasta com um tom jocoso e desencaminhador em tratar
outras teorias da ordem do dia, com acentos mais ontológicos que
epistêmicos, como o platonismo. Refere-se a estas teorias tradicionalíssimas
como “teorias de lugar nenhum”, de “lugares celestes” ou “puramente
utópicos” (cf. p. 178). O platonismo é conhecido, por dentre outras
qualidades: explicar a visão ingênua do matemático, não restringindo sua
atividade; ter como base a intuitiva verdade por correspondência; aceitar
procedimentos usuais como provas indiretas; apresentar certo otimismo
epistemológico, por acreditar que as verdades da matemática já estão todas
determinadas independentes da atividade humana. Apesar de ser difícil
identificar o locus dos objetos matemáticos e de determinar o tipo de acesso
epistêmico a estes objetos, o platonismo é uma saída interessante para os
problemas matemáticos. Aliás, estas perguntas, como feitas pelo professor
Jairo, sobre que lugar ocupariam estes objetos matemáticos independentes,
parecem excessivamente contaminadas por imagens e intuições espaciais,
exigindo justamente de objetos abstratos o que não podem dar. Ora, se
290 Marcos Silva

forem entes abstratos, não são físicos, logo não faz sentido perguntar onde
estariam como perguntamos sobre objetos materiais. Além disso, a
insistência no problema do tipo de acesso que teríamos a estes objetos
mostra uma intrusão epistemológica, que tem como marco questões
kantianas, num terreno propriamente ontológico.
Portanto, há claramente certo desequilíbrio no panorama do livro,
tanto em conteúdo no caso da filosofia de Wittgenstein como em tom
evidenciado pelo tratamento diferenciado e elogioso à fenomenologia,
mesmo que não explícito, e indevido quanto ao platonismo matemático. A
omissão de Wittgenstein, por exemplo, mereceria ao menos uma nota que a
justificasse. Entretanto este fato certamente não compromete o brilhantismo
da sua obra quanto à erudição e domínio do autor em relação à matemática,
à filosofia e à articulação seminalíssima entre as duas.

* * *

O livro é dividido em 5 grandes capítulos sendo os dois primeiros,


um sobre Platão e Aristóteles e outro sobre Leibniz e Kant, de caráter mais
histórico e introdutório às questões em filosofia da matemática do fim do
século XIX e do século XX. Este período é consensualmente tomado como
filosoficamente mais maduro e com avanços mais bem consolidados em
técnicas e teorias matemáticas. Este período é representado pelos capítulos
sobre Frege e o Logicismo, outro sobre os vários tipos de construtivismo e
um último sobre o formalismo e o programa de Hilbert. Os capítulos
comportam seções, subtópicos e apêndices ricos de perspectivas que não são
_ infelizmente _ discriminados no Sumário. As partes do livro são
antecipadas por uma elegante apresentação feita pelo professor
Chateaubriand e por inspirados Prólogo e Introdução escritos por Jairo da
Silva. O livro é encerrado com Epílogo que reitera as teses do autor, que
apresentei acima, e todas as correntes filosóficas apresentadas ao longo da
obra em suas vertentes ontológicas e epistemológicas, destacando, segundo a
visão do professor Jairo, o problema da aplicabilidade irrestrita da
matemática como o grande problema a ser enfrentado por um filósofo da
matemática. Há também um elenco de livros indicados para dar
continuidade aos estudos e curiosidades dos leitores.
Resenha 291

A partir daqui, pretendo fazer uma breve descrição das partes do


livro.
O primeiro capítulo trata da matemática grega para se concentrar
nas filosofias matemáticas de Platão e Aristóteles como paradigmas de
explicação tanto em matemática como em outras áreas da filosofia. Seus
sistemas aparecem, então, como repertórios de ideias que a tradição sempre
revisita, remonta e re-elabora. Platão como paradigma de uma interpretação
realista da matemática pela assunção de um domínio objetivo independente
e só acessível pelo entendimento e Aristóteles como marco de outro tipo de
realismo que assume um domínio independente, mas extraído de objetos
reais. “O que Platão tomava por objetos matemáticos ideais, Aristóteles via
apenas como aspectos (formais), ou idealizações de aspectos de objetos
reais” (p. 56). Jairo da Silva destaca que as técnicas mais sistemáticas e
rigorosas de cálculos elementares permitiram o pioneirismo abstrato grego
pela importância atribuída à racionalidade, pureza e validade universal dos
problemas matemáticos desvinculados de interesses práticos. Este ineditismo
possibilitou, então, uma clara compleição filosófica em atividades
matemáticas, representadas de forma marcante pelo pitagorismo. Sob esta
perspectiva, a matemática possibilitaria então o acesso à estrutura íntima do
cosmos pela constituição essencialmente numérica das coisas. Jairo da Silva
também sublinha a importância do método dedutivo de Euclides na
redução racional de todas as verdades geométricas aos axiomas de seus
Elementos. Os gregos ainda viram nascer a lógica formal sistematizada por
Aristóteles, a partir de um elenco exaustivo das formas válidas de inferência.
Este sistema foi refinado no XIX pelo uso inovador de linguagens simbólicas
mais sofisticadas que aumentaram o poder de expressão e investigação das
inferências válidas. Apesar de problemas com teses empiristas, como a
impossibilidade de enumerar coleções abstratas e imaginárias e números
transfinitos e a dificuldade recorrente de se explicar a (aparência de)
necessidade e universalidade, Jairo da Silva esboça no apêndice a este
primeiro capítulo uma abordagem empirista da abstração, segundo ele,
“uma asserção matemática poderia ser vista como a generalização de uma
asserção empírica, não baseada na mera indução enumerativa, mas em uma
292 Marcos Silva

intuição formal”. Logo, a matemática poderia ser justificada por evidência


empírica mais um procedimento de abstração na intuição formal 2 .
O segundo capítulo trata da filosofia da matemática de Leibniz e
Kant e é introduzido por uma descrição do estado da matemática no século
XVII e XVIII, onde aparecem uma crescente autonomia do simbolismo
com sistemas mais flexíveis e expressivos com incógnitas, parâmetros e
operações mais bem determinados. A partir de uma maior força heurística
advinda do simbolismo moderno, as vantagens das técnicas matemáticas
puderam ser estendidas e generalizadas No campo da filosofia moderna,
Descartes operou o deslocamento do foco da ontologia para a epistemologia
e logrou a filosofia como crítica do conhecimento. A ciência moderna foi,
enfim, marcada pela matematização da natureza concebida por Galileu. Já a
matemática da modernidade é marcada pelos métodos infinitários. Todos
estes avanços e rupturas mostravam o distanciamento de elementos
intuitivos e empíricos em ciência e em teorias especulativas. Em oposição à
concepção grega, a modernidade mostrou que os números não precisavam
mais ser quantidades, mas poderiam ser abstrações da razão formal. Em
razão disso, Jairo da Silva destaca a existência clara de uma tensão entre
elementos intuitivos e finitários e elementos abstratos e infinitários,
mostrando a conseqüente necessidade da época em não considerar mais a
intuição como critério para teorias. “O que é contraditório para as
grandezas finitas pode ser da própria essência das grandezas infinitas; o que
repugna a nossa intuição finita pode ser a verdade do infinito. A duras penas
os matemáticos aprenderam a desconfiar da “intuição”, do óbvio, da luz
natural, quando essas nada mais são que a mera e indevida extensão de
verdades para além de seus limites de validade” (p. 84).
Leibniz destaca o caráter lógico-analítico da matemática com sua
clássica divisão entre verdades de fato ou contingentes e verdades de razão,
as quais não poderiam ser negadas. Desta forma, a matemática poderia ser
assumida como inteiramente conceitual e simbólica. Afirma Jairo da Silva:

2
Indico, aqui, o trabalho de Casanave, Sautter e Secco publicado na revista O que nos faz
pensar n.24, de 2008, onde este tema da assunção de uma abstração lógica na composição
da geometria e da aritmética é retomado. Ali, a prova sugerida por Jairo da Silva é
confrontada com a de J.Lear, mostrando-se que a partir da definição deste podemos ter a de
Jairo, mas sem a recíproca. Há ainda neste trabalho, uma importante correção ao itinerário
da prova proposta pelo professor Jairo.
Resenha 293

“apesar de sua idealidade abstrata, a matemática regeria o mundo,


ordenando-o e tornando-o inteligível” (p. 192). Já a filosofia de Kant viria
para restituir a premência de intuitividade à matemática, mesmo que um
intuitividade formal. Ela deveria, então, ser baseada na construção e síntese
pela intuição pura do sujeito. Para Kant, na matemática a manipulação
simbólica se liga indiretamente à intuição a qual se referem. Portanto, em
oposição a Leibniz, a análise conceitual não é suficiente para verificar as
asserções da matemática, seria necessário um elemento sintético. Em Kant,
só são legítimas construções simbólicas e construções ostensivas. Aqui se
denota claramente o confronto entre o que é feito em matemático e o que a
filosofia demandaria. A filosofia de Kant não aceita, por exemplo, a
possibilidade de números imaginários e a possibilidade de uma geometria
não euclidiana. Apesar de dar uma explicação elegante ao fenômeno da
matemática congregando-a com um edifício científico marcado pela
premência de construtividade a partir de intuições, a filosofia de Kant faz
acreditar que a aritmética também se funda sobre a intuição, obscurecendo
a percepção de que a correlação entre aritmética e tempo não é tão natural
quanto a de espaço e geometria. Jairo da Silva observa bem esta tensão entre
filosofia regulativa e a atividade dos matemáticos, se alinhando com esta: “a
Filosofia da Matemática de Kant, fortemente limitada pela noção de
construção de conceitos, i.e., pela necessidade de exemplificações na
intuição pura, foi contaminada pelo seu projeto filosófico mais amplo, uma
crítica à Filosofia e à teologia dogmáticas, discursos caracterizados pela
argumentação lógica desprovida de intuição. Foi assim também uma crítica
à matemática de seu tempo e à matemática futura. Esta é simultaneamente
sua virtude e seu defeito.” (p. 107).
O terceiro capítulo trata do projeto fundacionista do logicismo.
Aproveitando a tensão entre o dogmatismo leibniziano e o criticismo de
Kant, Jairo da Silva introduz a filosofia de Frege que defendeu a geometria
como sintética, restrita ao espaço, enquanto a aritmética deveria ser reduzida
à lógica, à razão, por ser mais geral e abstrata. Como bem sublinha Jairo da
Silva: “se formos coerentes quanto ao padrão de contagem e preservarmos o
sentido dos termos e operações numéricas, 1+1 só pode ser igual a 2” (p.
124). Operações aritméticas são funções do entendimento e não da
sensibilidade, mesmo que pura. A partir desta tese Frege, então, tentou
implementar o programa de Leibniz: reduzir os conceitos e verdades da
294 Marcos Silva

aritmética a equivalentes puramente lógicos (analíticos). Para tanto a lógica


deveria ser mais expressiva, sofisticada e precisa. Assim novos patamares de
rigor formal na matemática, através de novas expressões, articulações,
notações e análises, deveriam ser introduzidos. Isto permitiu o avanço da
informática, de ciências cognitivas e da inteligência artificial do século XX.
Além do salto qualitativo em lógica pela simbologia de Frege, se destaca
também no século XIX o aparecimento de geometrias não euclidianas, de
teorias dos conjuntos de Cantor com a noção de infinito atual.
Frege permitiu a expressão mais refinada da forma lógica de
sentenças, um calculo potente, uma nova abordagem da análise de asserções,
de relações e quantificadores. Mesmo que seu projeto fundacionista não
tenha dado certo, porque o sistema de Frege demonstrava leis da
matemática, mas contradições também, Jairo da Silva destaca com toda
razão que muitas vezes “buscar soluções é mais fértil que obtê-las”. Neste
capítulo, ainda são apresentadas as tentativas de se recriar o logicismo de
Frege no Principia Mathematica de Russel e, mais contemporaneamente, no
neo-logicismo representado por Crispin Wright. No apêndice a este
capítulo, Jairo apresenta uma interessante exposição da definição por
abstração matemática onde objetos são definidos por classe de equivalência.
É possível, a partir desta técnica, redefinir um conjunto em outro para
reduzir a quantidade de entes necessários em uma teoria. Jairo da Silva
defende, então, que este método “atentos que somos às críticas e às atitudes
de Frege e Russell, é também um instrumento de redução ontológica,
permite a eliminação de entidades matemáticas desnecessárias em favor de
conjuntos de entidades já existentes” (p. 142).
No começo do quarto capítulo, Jairo mostra como a matemática, a
partir da profusão de inovações técnicas havia se tornado formalista demais,
o que foi, em parte, a razão que engendrou a proliferação de paradoxos e as
suas crises de fundamentos no começo do século XX. Houve, então, a
necessidade de ser regulada pela intuição imediata e justificada por
construções efetivas. Enquanto Frege pretendia mostrar que a lógica era
anterior a matemática, construtivistas inverteram o raciocínio e defenderam
que “a lógica é a descrição a posteriori das regularidades formais dos
procedimentos de construção matemática” (p. 151). A filosofia da
matemática ganhou novamente um estatuto revisionista e crítico do
conhecimento matemático acentuando restrições e limites de procedimentos
Resenha 295

e práticas muito familiares ao projeto crítico kantiano. Como Kant, alguns


filósofos voltaram a defender que não haveria matemática sem evidência
manifesta ou objeto que não pudesse ser construído num procedimento
finito, limitada e discreto, sendo a matemática fundada num instante
temporal sucedendo outro. Esta é a visão de Brower. “A intuição básica de
que qualquer experiência mental tem a forma de uma seqüência temporal
finita e suficiente para nos dar (por reflexão) o esquema geral dessa
seqüência ela mesma como um objeto intuído” (p. 149).
Assim como Platão teria sido o primeiro platonista, Kant teria sido
o primeiro filósofo contrutivista. Assim Brower joga luz novamente na
necessidade do sujeito e suas formas de acompanharem os processos
matemáticos de forma direta ou potencialmente direta de um matemático
ideal. Outros tipos de construtivismos mais fracos que o de Brower são
apresentados por Jairo da Silva. Por exemplo, Poincaré ressaltou que a
aritmética poderia ser construída na intuição fundamental da sucessão
discreta e ininterrupta de pontos e acentuando a necessidade de restrição às
definições predicativas. A matemática seria, então, uma vivência consciente
de construção finita. Já Dummet defende a existência de uma teoria da
significação correta que implica a validade exclusiva da lógica intuicionista
na matemática: sem dupla negação, sem provas indiretas. Segundo esta
corrente de construtivismo, mesmo que fosse inteligível, se não for
verificável não é uma proposição da matemática. Jairo da Silva defende que
temos que admitir a possibilidade de um sentido formal para garantirmos a
inteligibilidade de proposições matemáticas que não possamos verificar (pp.
162-6). “O sentido formal de uma asserção não depende de conhecermos
ou podermos reconhecer as suas condições de verdade, mas apenas do fato
de que os termos que a compõem estarem corretamente combinados, ou
dito de outra forma, a posse de sentido formal exige apenas que a asserção
não contenha nenhum erro categorial.” Assim, garante-se a tese que
corrobora a nossa intuição usual e assegura o sentido de proposições que
não possamos verificar.
Já o quinto e último capitulo trata do formalismo, última grande
corrente fundacionista do século XX. Destaca-se a importância cada vez
maior do método axiomático-dedutivo a partir do qual toda a fundação de
uma ciência poderia ser realizada por meio de uma base de verdades não
demonstradas de onde poderíamos extrair, por meios lógicos, todas as
296 Marcos Silva

demais verdades. As teorias axiomáticas podem ser interpretadas, tendo


asserções com significado determinado por um domínio específico de
objetos e podem ser não-interpretadas, quando seus termos só veiculam o
significado que os axiomas o dão, sendo meras sucessões ou seqüências de
símbolos.
Esta técnica permitiu isolar os elementos puramente dedutivos de
uma teoria. Segundo Jairo da Silva, “Hilbert liberou o método axiomático
de suas limitações, abrindo-lhe os horizontes do puro formalismo. Ele viu
que a natureza dos objetos de um domínio descrito por uma teoria
axiomática interpretada não desempenhava nenhum papel lógico,
vislumbrando assim a possibilidade de abstrair completamente a natureza
desses elementos reduzindo domínios matemáticos a sua pura forma lógica,
e tradicionais teorias matemáticas a teorias puramente formais” (p. 187).
Estava criado a metamatemática, um estudo sobre características de teorias
matemáticas formais, como, por exemplo, sua consistência e trivialização,
completude, correção e independência de axiomas.
Teorias axiomáticas são úteis para permitir provas relativas de
consistência onde um domínio teria sua consistência garantida pela
consistência de um outro domínio. Hilbert, em seu projeto fundacionista,
procurou uma prova absoluta da consistência da aritmética justificando o
infinito pelo finito intuitivo, justificando a matemática pela matemática
finitária (um sistema de manipulação de sinais gráficos). Segundo esta visão,
a consistência era a marca a ser procurada por uma teoria. Bastaria, então, a
matemática finitária, toda verificável e completa, para poder ser estendida
sem inconsistências. Deste modo, esta matemática simples deveria provar a
sua própria consistência sem auxilio de sistemas externos e ser completa, ou
seja, para qualquer asserção “construível” dentro dela, ela ou a sua negação
deveria ser demonstrada. Não é difícil notar que os teoremas de Gödel de
1931 solapavam o formalismo de Hilbert. O primeiro mostrava que um
sistema axiomático como a aritmética de Peano poderia conter uma
sentença a qual nem ela ou a sua negação pudesse ser demonstrada. Já o
segundo grande resultado mostrou que é sempre necessário um sistema mais
forte para provar a consistência de uma teoria axiomatizada. Em outras
palavras, o primeiro mostra que o método axiomático não é completo sobre
o ponto de vista teórico e o segundo, a impossibilidade de uma prova
absoluta de consistência.
Resenha 297

Jairo da Silva destaca também que resultados matemáticos não


resolvem divergências filosóficas. Por exemplo, para Brower, a questão
problemática não está na consistência de teorias, mas na sua construção.
Depois de Gödel, o formalismo de Hilbert ficou condenado à humildade de
buscar provas relativas de consistência, uma vez que nenhum sistema
consistente pode provar a sua própria consistência. Mais ainda se impõe,
como bem vê Jairo da Silva, coerente com sua posição a respeito da
irrefreabilidade dos problemas filosóficos, o problema sobre o estatuto dos
axiomas da matemática: serão eles enunciados verdadeiros sobre
determinado domínio de objetos ou simples regras que fixam as operações
legítimas de símbolos?
A partir desta questão, professor Jairo esboça uma agenda de
problemas epistemológicos e ontológicos em um programa de Hilbert
modificado, como um convite para a pesquisa, mostrando o muito que
ainda pode ser feito. A primeira tese-problema defende que a matemática
estuda a manipulação regrada de sinais gráficos (operações e relações). A
segunda que números são peças no jogo formal da aritmética, não objetos e
não verdadeiros. A terceira que matemática é o estudo das conseqüências
lógicas ou definições arbitrárias dadas por sistemas de axiomas,
desenvolvendo-se em uma teoria de possíveis antes de ter o domínio efetivo
de aplicação. A quarta tese assume que a matemática estuda a forma ou
estrutura do domínio de objetos existentes ou meramente possíveis, ou seja,
a matemática só seria coagida pela consistência do que já foi feito. Todas
estas formulações desafiam segundo Jairo da Silva “o mais sério problema
inventado pelo conhecimento matemático” (p. 221): como é possível que
uma ciência a priori seja relevante para o conhecimento empírico? A
matemática é independente, mas aplicável. Existem várias distintas filosofias
para resolver estes problemas. Que não precisam ser verdadeiras, mas
interessantes. As três correntes apresentadas iluminam múltiplas facetas da
matemática. Não são hegemônicas ou definitivas, mas certamente
convergem para serem autênticos programas de pesquisa com muito ainda a
ser feito. O livro do professor Jairo é seminal em apontar, então, para a
direção da perenidade dos problemas da filosofia da matemática em toda a
sua dignidade e alcance.
ALVES NETO, Rodrigo Ribeiro. Alienações do mundo: uma
interpretação da obra de Hannah Arendt. Rio de Janeiro/São
Paulo: Editora PUC-Rio/Edições Loyola, 2009, 216 p.

Pedro Duarte de Andrade *

Como pode o homem sentir-se a si mesmo quando o mundo some? Essa


perturbadora pergunta não tem em vista dar começo à procura de alguma
saída que evidenciasse como, afinal, o homem pode sentir a si mesmo sem
que o mundo apareça. Ela pretende, antes e somente, despertar nossa tão
combalida sensibilidade contemporânea para um fato: não conseguimos
sequer sentir a nós mesmos caso estejamos sem mundo. Em outras palavras,
a ausência de partilha pública do aparecer dos homens entre si não deixa,
para estes mesmos homens, a chance de sentir a si próprios, pois o que aí se
perde é o decisivo em tudo: a simples possibilidade de sentir. Sem ela, não
podemos nem sentir a nós mesmos, ao menos não como homens.
Desdenhar, portanto, da conhecida crise do âmbito de aparecer público ao
qual em geral chamamos de política por confiar que, de outro lado,
ganhamos a satisfação do âmbito privado da intimidade é não conseguir
dar, nem sequer a este último, sua devida dignidade: a de ser sentido e a de
ter sentido.
Já posso, agora, dizer que a pergunta perturbadora que abre este
texto foi a epígrafe que Rodrigo Ribeiro Alves Neto deu a seu livro
Alienações do mundo: uma interpretação da obra de Hannah Arendt. Ela foi
tomada de empréstimo ao poeta Carlos Drummond de Andrade. Não
coloquei as habituais e esperadas aspas ao citá-la acima, como manda nosso
ritual acadêmico. Essa falta não quis fazer qualquer crítica daquele ritual,
mas pretendeu apenas chamar a atenção para o fato de que, no livro de
Rodrigo Ribeiro, as palavras de Drummond são apropriadas, ou seja,

*
Professor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio e da UNIRIO. E-mail:
p.d.andrade@gmail.com. Resenha recebida em 30.10.2009, aprovada em 15.12.2009.

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 299-305


300 Resenha

tornam-se próprias ao autor. Depois de percorrer as suas páginas cheias de


enorme esforço compreensivo sobre a obra da autora judia alemã,
concluímos que, no âmbito do pensamento e não das demarcações autorais,
as palavras de Drummond tornam-se suas, completamente suas. Não
carecem, portanto, de aspas.
Mundo. Esta pequena palavra traz consigo a enorme e acidentada
geografia da história, que movimentada como o é pela epígrafe de
Drummond não deixa incólume aquilo mesmo que nós somos. Essa história
é o que, como fica claro desde o título, Rodrigo Ribeiro estuda em seu livro
através da obra de Hannah Arendt. São as alienações do mundo. Repare-se
que aqui já se diz muito. Primeiro, porque já sabemos que a compreensão aí
esboçada do problema do mundo é, ao mesmo tempo, a compreensão do
mundo como problema, ou seja, de nossa alienação do mundo. Segundo,
porque sabemos também que não se trata apenas da alienação no singular, e
sim no plural, ou seja, das várias formas pelas quais, a cada vez, ela se deu, o
que significa que prevalece aí a perspectiva histórica de abordagem da
questão.
Logo, a alienação do mundo não é tomada por Rodrigo Ribeiro
(que assim é fiel à perspectiva da autora dentro da qual abre sua
compreensão acerca do tema que está em jogo) como algum suposto dado
essencial do homem, mas, pelo contrário, como a determinação, sempre
histórica, pela qual a tradição ocidental conseguiu, ou não conseguiu,
enfrentar o espaço que habitamos como a pluralidade que somos. Do
começo ao fim desta tradição, portanto, o mundo surge como aquilo que
não surge ou, ao menos, como aquilo que o pensamento forjado por nós
evita. Nossa história seria, em certo sentido, a história não do mundo, mas
da fuga do mundo, desde a antiguidade grega até as sociedades
contemporâneas. Expliquemos agora este ponto.
Para tanto, vale seguir a estrutura, nem sempre explícita, que
organiza, a meu ver, a seqüência dos sete capítulos do estudo de Rodrigo
Ribeiro – versão mais enxuta do que, originalmente, era a sua tese de
doutorado, defendida na PUC do Rio de Janeiro sob a orientação de
Eduardo Jardim de Moraes. Essa estrutura é, toda ela, capaz de concatenar,
ao mesmo tempo, dois eixos: o temático e o autoral – coincidência feliz,
proposital e também pouco comum. Estamos diante de um estudo, como
Pedro Duarte de Andrade 301

evidencia o título, sobre o tema “alienações do mundo” e, como completa o


subtítulo, sobre a autora Hannah Arendt.
Iniciamos este percurso, então, no primeiro capítulo, onde Rodrigo
Ribeiro destaca, de dentro da pioneira análise que Hannah Arendt fez sobre
os totalitarismos, a forma como tais regimes, através da ideologia no plano
do pensamento e do terror no plano da ação, buscavam tirar o homem do
mundo e o mundo do homem. Essa “desmundanização totalitária” teria
feito com que Hannah Arendt percebesse que tal problema não era pontual
e que, pelo contrário, obrigava-nos a olhar para como ele foi sendo
constituído dentro da própria história ocidental.
Em suma, os horrores de Hitler e Stálin não seriam tropeços, ainda
que graves, da civilização ocidental, mas sim algo próprio ao caminho que
tal civilização traçava para si mesma. Se é verdade, portanto, que o estopim
para que Hannah Arendt chegasse ao seu conceito de “mundo” não se deu
“a partir do clássico recuo contemplativo do filósofo em relação ao
cotidiano dos assuntos humanos”, como afirma Rodrigo Ribeiro, e sim dos
“incidentes da experiência viva”, como confessa a própria autora, também é
verdade que tais incidentes fizeram com que ela enfrentasse a constituição
da tradição que nos trouxera até aqui, sendo este “aqui” o século XX.
Nesse sentido, podemos dizer que, se o conceito de “mundo” pode
tornar-se o eixo para a compreensão da obra arendtiana, não é como simples
tema de estudo. É, antes, como problema. Falta mundo. Eis o que se pode
ver no totalitarismo e o que ele, assim, faz ver como traço decisivo de nossa
tradição. Entretanto, se é da falta ou da alienação do mundo na tradição
que trata Hannah Arendt, ela não poderia achar aí mesmo seu conceito de
“mundo”. Ele é forjado originalmente pela autora, a partir sobretudo do
diálogo com seu ex-professor Martin Heidegger, como observa Rodrigo
Ribeiro. Não estaríamos, segundo ela, apenas no mundo, ou seja, dentro
dele, assim como alguma coisa empírica pode estar no interior de outra.
Seríamos, antes, do mundo, pertenceríamos a ele, ou seja, ele, mundo, seria
inscrito na nossa própria constituição enquanto homens. Este mundo, que
não é coisa alguma, é “o espaço artificial entre o homem e a natureza, bem
como o âmbito intermediário de relacionamento e distinção instaurado
entre os homens por meio de suas interações e interesses comuns”, para
empregar as palavras de Rodrigo Ribeiro.
302 Resenha

Faz-se preciso, antes de continuar, sublinhar que aquele diálogo


travado pelo pensamento de Hannah Arendt com sua herança vinda de
Heidegger é tratado no trabalho de Rodrigo Ribeiro com competência. Esta
seara é bastante freqüentada pelos comentadores, porém nem sempre com a
precisão que vemos aqui, sem opor a aluna a seu professor e sem, de outro
lado, fazer dela apenas uma discípula. No caso em questão, este ponto era
importante, pois tal diálogo é sensível para compreender o que se passa na
elaboração do conceito de “mundo”. Se Heidegger, em Ser e Tempo, fizera a
analítica do “ser-no-mundo”, Hannah Arendt escreveu, inspirada por ele
mas a seu modo próprio, a analítica do “ser do mundo”. Inspirada, aliás,
também na fenomenologia de Merleau-Ponty, ela só entendia a habitação
do homem na terra a partir da pluralidade, ou seja, do “ser-em” ou “ser-
com”, como diria Heidegger. Essa discussão é tratada no segundo capítulo
do livro de Rodrigo Ribeiro, mas não só nele.
Depois daí, ou seja, após ter explicado de onde surge o problema
do “mundo” na vida e na obra de Hannah Arendt e de ter esclarecido em
que consiste o seu conceito, o estudo ganha o viés explicitamente histórico
acima anunciado, embora, em seu decorrer, outros conceitos, refinamentos
dos anteriores e conexões novas sejam feitos. Entendemos, assim, como a
fragilidade do âmbito político dos homens foi tratada no decorrer da
história e como, para solucioná-la, costumou-se tirar dela o que tem de
próprio e específico. Entendemos, ao mesmo tempo, como a preocupação
com esta situação, às vezes explícita, mas às vezes discretamente, esteve
sempre presente no esforço de pensamento de Hannah Arendt, talvez até o
orientando.
Desde a “solução grega” da época de Sócrates (terceiro capítulo), a
alienação do mundo começa sua história, assim contada por Rodrigo
Ribeiro através do corte que faz na obra arendtiana a partir de sua questão: a
alienação antiga do mundo pelo privilégio metafísico dado à contemplação
sobre a ação mundana, com a filosofia de Platão (quarto capítulo); a
alienação moderna do mundo pelo privilégio dado à interioridade subjetiva
sobre a exterioridade mundana, com a filosofia de Descartes a partir dos
desafios postos por Galileu e pela Revolução Científica (quinto capítulo); e
a alienação contemporânea do mundo pelo privilégio dado à tecnologia
como fabricação de processos sobre a interação mundana dos homens (sexto
capítulo). Por fim, o sétimo capítulo, com ares de conclusão, fala do
Pedro Duarte de Andrade 303

“colapso do mundo no século XX”, arriscando, pontualmente, traçar o


perfil da burocratização econômica e do consumo como valores que
substituem o verdadeiro exercício da liberdade na política.
Passei acima, de forma breve e esquemática, pelo trajeto do livro de
Rodrigo Ribeiro, às custas, é claro, de simplificações. No texto
propriamente dito, contudo, elas quase não existem. Pelo contrário, dentre
suas qualidades está o extremo cuidado com cada ponto, que é
exaustivamente cercado até que esteja, digamos, perfeitamente delimitado.
Se, às vezes, esta característica pode dar certa aridez ao texto, ela, pouco a
pouco, deixa aparecer, em sua seriedade obstinada a circunscrever cada
noção em seu escopo determinado e com seus traços próprios, o que eu
gostaria chamar de estilo de pensamento do autor: paciente em seu cuidado
com o trabalho conceitual porque zeloso com seu objeto. Ele exige, assim,
paciência semelhante para que seja fruído. Reside aí, surpreendentemente,
sua força, pois, cada vez que algum problema aparece, não é evitado e nem
driblado. É encarado, detalhado e tratado, mesmo que isso signifique parar,
retomar e repetir para, então, ganhar precisão.
Não fosse assim, o estudo de Rodrigo Ribeiro provavelmente não
teria sido capaz de encontrar a trilha que encontrou para adentrar o
pensamento de Hannah Arendt. Ele articula diversas obras da autora a
partir de uma questão central que, no entanto, não é necessariamente
evidente, ao menos não de forma sistemática. Se A condição humana, livro
mais original de Hannah Arendt, ocupa a maior parte do texto de Rodrigo
Ribeiro, sua sagacidade esteve em conseguir compreender como, por
exemplo, Origens do totalitarismo e A vida do espírito podem, ainda, ser
articulados com ele a partir do papel que desempenha o conceito de
“mundo” em cada caso.
Deve ser por isso que tanto o autor em sua introdução, quanto
Eduardo Jardim na orelha e André Duarte no prefácio, empregam a mesma
metáfora para falar do livro. Todos falam de “chave” de interpretação. É
que, de fato, o livro de Rodrigo Ribeiro abre uma porta para que entremos
no espaço que é a obra arendtiana. Mas não qualquer porta, daí esta chave
ser especial. É que a porta que ela abre é daquelas a partir das quais
conseguimos enxergar como várias partes do cômodo, ainda que não
estejam simetricamente organizadas, possuem algum tipo de coerência entre
si. Não vemos necessariamente a totalidade do cômodo, mas
304 Resenha

compreendemos seu princípio de organização e sua forma de reagir às


condições de clima e sol que o atingem.
Resolvendo a metáfora, tais condições são os “incidentes da
experiência viva” de que falou Hannah Arendt, enquanto sua obra é como o
supracitado cômodo, construído a partir daquelas condições ao mesmo
tempo que, dali, pretende achar outro jeito de olhar para elas. É que esta
obra apresenta, conforme aponta Rodrigo Ribeiro, “uma análise do
momento singular no qual ela é escrita e para o qual escreve”. Tal obra, se
não pode ser sistematizada, pode, contudo, ser compreendida a partir de
algum tipo de unidade espiritual que faz com que ela seja algo mais do que
fragmentos soltos uns dos outros. Se a chave que Rodrigo Ribeiro oferece
não abre uma porta a partir da qual vemos todo o cômodo, ou seja, toda a
obra de Hannah Arendt, entendemos porém o problema que a move, o que
talvez seja mais decisivo.
Por fim, gostaria de destacar ainda como, estudando o pensamento
da autora que ficou conhecida por observar agudamente a falência dos
conceitos tradicionais para compreender a situação contemporânea, Rodrigo
Ribeiro mostra que ela, ao reconhecer isto, tornou possível,
simultaneamente, encarar tal situação através de outras perspectivas. Só
porque acolheu a desintegração das ferramentas conceituais antigas, Hannah
Arendt pôde compreender a singularidade da sua época e da história que a
constituíra. Sua obra é testemunho disso.
Fazer a história, portanto, das formas pelas quais a tradição
ocidental deixou de experimentar o mundo preferindo dele se alienar não é
qualquer tipo de exercício erudito. É, antes, o que temos para compreender
como foi possível chegar ao esvaziamento da política que hoje vivemos, em
que ações e palavras, os frágeis elementos pelos quais entramos em contato
no âmbito público, perdem o seu vigor. Nesse sentido, admitir, com
Rodrigo Ribeiro, que “como nem toda forma de inter-relacionamento
humano e nem toda espécie de comunidade se caracterizam pela mediação
do mundo enquanto palco da ação de homens plurais, esse âmbito público
nasce e se mantém entre os homens apenas potencialmente, nunca
necessariamente”, é ao mesmo tempo acolher, para nós, hoje e aqui, a
responsabilidade pelo fomento das condições de instauração e preservação
de um mundo, que jamais nos é dado como certo e pronto, mas apenas
como possibilidade. Eu arriscaria dizer que Rodrigo Ribeiro enxergou no
Pedro Duarte de Andrade 305

conceito de “mundo” elaborado por Hannah Arendt a chance de construir


sua sólida interpretação que esclarece a obra da autora sem, com isso, perder
de vista algo mais decisivo, que é a colocação de um problema através dela e
que não é só dela, mas de todos nós: o cuidado com o mundo.
CARDIM, Leandro Neves Corpo. Col. Filosofia Frente &
Verso. São Paulo: Globo, 2009. 177 p.

Sandra S. F. Erickson *

O livro presentemente resenhado é pequeno e modesto. Faz parte da


coleção Filosofia Frente & Verso, projetada e organizada por Alexandre de
Oliveira Torres Carrasco (USP). Sua capa, discretamente elegante não tem
nenhum blurb [nota publicitária para chamar atenção especial do leitor];
uma pequena reprodução de um dos frescos de Michelangelo se “deita”
contorcido & pendente para um dos lados (como uma espécie de
justaposição) sobre a capa-corpo (ou o corpo capa); a orelha foi redigida
(aparentemente) pelo autor ou pela editora; na segunda orelha há uma
brevíssima apresentação do autor com apenas suas titulações: graduação em
filosofia pela Universidade Católica de Goiás, mestrado e doutorado (2007)
na mesma área (parcialmente cursado na universidade Paris I, Panthéon,
Sorbone no programa de bolsas sanduíche do CNPq) pela USP, onde é
posdoutorando e professor convidado. Uma busca no Lattes do autor
aponta alguns artigos publicados em revistas e capítulos em coletâneas,
sendo esse seu primeiro livro. A concentração de suas publicações é em
Fenomenologia, que foi tema de sua tese – e, não, o livro não é a tese (“A
ambigüidade na Fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty,” 2007),
embora materiais de lá possam ter emigrado para cá, como se pode ver no
capítulo mais longo, o que compõe sozinho a terceira parte do livro que
trata de Merleau-Ponty. A contracapa, que é uma descrição breve da
coletânea, descreve-o como “acessível a qualquer pessoa que queira pensar
[...] os grandes temas da vida humana com os instrumentos que a filosofia
continua a nos oferecer há mais de dois mil anos.”
Fiquei feliz de constatar, na leitura, a veracidade dessa afirmativa,
pois acabei de ler mais de duas dezenas de livros sobre o tema “corpo e

*
Professora do Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas, UFRN. E-
mail: ericksons@ufrnet.br Resenha recebida em 30.10.2009, aprovada em 15.12.2009.

Natal, v.16, n.26, jul./dez. 2009, p. 307-312


308 Sandra S. F. Erickson

filosofia” e já estava começando a perguntar cadê os filósofos nesse banquete


das falas, onde há de tudo: geografia (A carne de pedra, Richard Sennet,
2008), história (A história do corpo, Alain Corbin, et AL; 2008; Corpo e
história, Carmen L. Soares, 2001), sociologia (Da cultura do corpo, Jocimar
Daolio, 1995), estudos de políticas e ideologias (As classes sociais e o corpo,
Luc Boltanski, 1979), teoria e crítica literária (O simbolismo do corpo
humano, Annick de Souzennelle,1984), entre muitos outros; mas na
filosofia e com filosofia, tinha encontrado apenas Variações sobre o corpo
(2004) do professor de filosofia francês Michel Serres e Pensar o corpo
(2004), de outro filósofo francês, Maria Michela Marzano-Parisoli, onde se
encontra muito de sociologia, mas quase nada de filosofia.
Na orelha se diz que o tema do livro é o tratamento do corpo na
filosofia, “tema mais do que pertinente,” porque “o corpo é hoje a
verdadeira alma da cultura ocidental” e que “esse livro foi concebido e
escrito especialmente para o leitor se atirar de corpo e alma.” Puxa! É uma
promessa e tanto! Essa reversão – o corpo sendo a alma do mundo – me
lembrou Merleu-Ponty e sua noção de “carne do mundo” e me arrebatou.
Não sou filósofa – tenho apenas um mero bacharelado, mas, como
disse, andei lendo muito sobre o tema (corpo e filosofia, filosofia do corpo)
não só nos livros, mas, também em revistas disponibilizadas na internet,
procurando materiais escritos por e para a filosofia. Foi difícil encontrar
leituras que fossem interessantes, informativas (sem serem medíocres),
atualizadas (sem deixarem de revisar os locus clássicos), e que fizesse sentido
para um leitor interessado no tema de uma forma recortada (mas inteligente
e eficiente): corpo e filosofia – o que a filosofia disse sobre o corpo. Um
livro que dissesse (mostrando suas citações diretas) o que os filósofos
disseram sobre o corpo sem a gente ter que ler todo o cabedal de textos para
fazer a triagem do material (mais uma vez, o corpo). Gastei muita grana
também, mas o resultado das leituras sempre o mesmo: apesar de títulos
bacanas, contracapas supimpas e orelhas chiques, nada de elucidativo e as
discussões restritas ao corpo enquanto material antropológico, sociológico,
ideológico, lingüístico: tudo menos uma reflexão do que o corpo é para e na
filosofia (apesar de não faltarem referências a Foucault e Merleu-Ponty).
Quando eu vi o livro de Cardim, o título singelo: Corpo, apenas, eu quase
não dava bolas (pensando que seria mais um sobre educação física), mas,
talvez por causa daquela compulsão de pesquisa que herdei da formação
Resenha 309

bacharelar, comprei. Li. Li de um gole só. Sem parar. Exatamente como a


orelha garantiu: de corpo e alma.
O livro é composto de três partes, um Epílogo e bibliografia, onde
faltam algumas referências como a Antonin Artaud (p. 163) que aparece
numa citação longa de Deleuze na subseção O corpo sem órgãos que se
refere ao próprio Deleuze e que seria interessante para o leitor poder acessar
mais rapidamente a citação de Artaud. O livro é bem escrito. O texto é
limpo, claro, o vocabulário bem selecionado (para o nível erudito pop) e o
tamanho das discussões adequada, exceto nas referentes a Merleau-Ponty
que acabam tomando conta do texto, mas se justificam pela importância
(que o autor aponta bem) do pensador e sua influência no tema. É
extremamente (e felizmente) objetivo: para os pré-socráticos o corpo era
“x”, para Platão, “y”, para Aristóteles, “z” e assim o autor aponta com
precisão o que cada um dos pensadores que ele selecionou disse sobre o
corpo, indicando onde, quando e com excursões pertinentes sobre o porquê.
A primeira parte (p. 19-46) tem três capítulos bem nomeados (Os
fundadores: a harmonia entre o corpo e a alma; Descartes: a distinção e a
união do corpo e da alma; Maine de Biran: a coexistência do corpo e do eu
– o fato primitivo), e apresentando, no terceiro, a novidade (para mim) do
pensamento de Biran o qual até hoje não conhecia. É a parte mais curta,
mas louvo o autor por ter, de uma maneira tão rápida, mas eficiente,
econômica, inteligente, e sem banalizá-los ou subestimá-los percorrido a
longa via cruxis do pensamento sobre o corpo dos pré-socráticos a
Immanuel Kant, deixando ao leitor interessado um mapa bem demarcado
de referências capitais para o tema.
A segunda (p. 47-86) tem quatro capítulos: Kant: a
substancialização do corpo e da alma; Husserl: o corpo objetivo e o corpo
subjetivo; Bergson: o corpo imenso e o corpo mínimo; e Nietzsche: a
pequena razão e a grande razão.
A terceira (p. 87-146), conforme foi indicado acima, tem um
capítulo só e trata de um só pensador, Merleau-Ponty: a ambigüidade da
experiência do corpo próprio. Aqui, nota-se o interesse do autor em discutir
sua própria tese que é justamente a ambigüidade do corpo na Fenomenologia
da percepção. Embora seja a parte mais desenvolvida, e embora seja mesmo
difícil de entender os desenvolvimentos do pensamento de Merleau-Ponty
depois desse livro sem se entender o contexto das idéias e os movimentos
310 Sandra S. F. Erickson

dialéticos que culminaram nas noções desse pensador de corpo como coisa
universal e a de que o mundo também tem carne; o presente leitor (não
filósofo, mas diletante Merleau-Pontiano) teria preferido maior ênfase nesse
pensamento tardio (para o tema). As citações do autor (Cardim) de
Merleau-Ponty se referem ao “ser em si” e “ser para si” (p. 89), e aí fica mais
visível a falta que faz Martim Heidegger (p. 101 e 102), que só aparece de
raspada para contextualizar a noção de corpo como um “terceiro gênero de
ser” (p. 88) desenvolvida em Fenomenologia da percepção. É difícil (imagino)
de se triar o que Heidegger diz de corpo, mas o próprio Cardim não pode
esconder Heidegger, não apenas pela influência do pensador em Merleau-
Ponty, mas por sua contribuição no pensamento contemporâneo do corpo
como abertura, como estado de ser-no-mundo; muito embora, talvez para
Heidegger o corpo fosse mais um modo de ser do que um ser, ou seja, um
lugar (a clareira) de habitação do ser, que é a visão que Merleau-Ponty quer
destituir.
Merleau-Ponty desenvolve seus conceitos sob o agon do fenômeno
designado pelo crítico e teórico Harold Bloom de inveja criativa e/ou
angústia da influência. Ele tenta se esquivar da influência do outro
(Heidegger) revisando, com vários tipos de substituições, seu esquema;
assim, ele não tanto “emprega o velho termo ‘elemento’ no sentido em que
é empregado para falar da água, do ar, da terra, e do fogo” como Cardim
suspeita, em Visível e invisível (136; Cardim p. 123), mas ele quer revisar o
esquema heideggeriano de terra-céu, deuses-mortais (que por sua vez revisa
o esquema dos antigos gregos). Merleau-Ponty trata a corporeidade como
uma dimensão (bi-polar já que o corpo e o mundo, cada um, possui sua
própria corporeidade). Mas, isso seria outra estória...
O Epílogo (p. 127-146) tem três capítulos: Foucault: a história do
corpo – disciplina e regulamento; e Deleuze: o corpo sem órgãos; e é
seguindo por uma pequena parte autônoma intitulada Ensaiando leituras
(p. 147-173) onde há uma espécie de rascunho de algumas discussões mais
contemporâneas sobre o tema, mas que o autor não substancia, nem
desenvolve, apenas... ensaia ...
O recorte de tudo que Foucault disse sobre o corpo (e foi um
caldeirão de coisas!) foi perfeito! É muito difícil se resumir, sem perder a
inteligibilidade e sem sair do tema em si, o que Foucault diz e fez pelo
assunto e Cardim consegue, escrevendo ainda um texto bonito que faz
Resenha 311

justiça ao pensador também francês (como Merleau-Ponty & Deleuze – e


ainda Descartes e Bergson). Porém ele fica meio desperdiçado porque o
autor organiza os pensadores cronologicamente. Assim, Foucault segue a
Merleau-Ponty, mas depois o autor traz Merleau-Ponty de volta à discussão
para ressaltar o caráter ainda atual de suas teses. Ele poderia ter optado por
uma organização ideológica e demarcado Foucault primeiro, deixando
Merleau-Ponty, no palco da história, com seus solos. Todavia, essa saída
seria dificultada pela noção de corpos sem órgãos (SsO) desenvolvida pelo
também francês Gilles Deleuze.
Cardim ainda pincela (para evidenciar a radical contemporariedade
do pensamento merleau-pontiano) as idéias de Kurt Goldstein (p. 147-151)
e Paul Schilder (151-155) antes de retornar a Merleau-Ponty (p. 155-162);
finalmente, passando a tocha para Deleuze (163-171), onde o fogo da
tradição, ao mesmo tempo em que é guardado, conquista novos e radicais
espaços. É pena que Cardim não tenha dado muita bola para o Anti-Édipo
(1972) que Deleuze escreveu com Félix Guattari e que foi prefaciado por
Foucault. Talvez pelo fato de que ainda estamos tentando digerir as noções
radicais propostas nesse trabalho.
O autor usa bem os subtítulos porque todos descrevem as teorias
filosóficas dos pensadores nomeados – alguns como Husserl & Bergson
difíceis para leitores fora da Filosofia. Talvez a razão porque, mesmo em
áreas que pensam o corpo, se nota a gritante falta do pensamento filosófico,
possa ser atribuída a dificuldade de se compreender o pensamento desses
filósofos e a falta (pelo menos na língua portuguesa) de uma literatura
secundária que dê conta dela. Esses dois pensadores são não apenas difíceis,
mas chatos, e muitas vezes a gente parece estar andando em círculos, mas
Cardim consegue descrevê-los com lucidez e prazer, fazendo-nos ver a
necessidade de lê-los. Ele nos leva ao labirinto pela mão. Dele saímos não
apenas vivos e inteiros, mas com o gosto pela aventura (treino necessário
para o leitor, mais tarde, entender minimamente as idéias de Merleau-Ponty
e Deleuze).
Fiquei impressionada que esse jovem autor, nessas poucas páginas,
tenha realmente satisfeito minha vontade de informação sobre a literatura
sobre o corpo na filosofia e ainda mais: oferecido, além de um mapa de
leitura consistente sobre e para o assunto, discussões agradáveis, inteligentes,
fomentando o desejo do leitor de saber mais. Textos que já tenham sido
312 Sandra S. F. Erickson

objetos de nossas leituras, como Descartes, Kant, Husserl, Bergson, são


muito bem recortados pelo autor para enfocar exatamente seu tema: o corpo
e a filosofia e a contribuição única de cada um deles para o tema. É filosofia
mesmo porque o que contém não é a incrível leveza de um resumo do
pensamento dos autores abordados, mas a densidade de um tema fascinante
que não pode ser compreendido sem a contribuição do pensamento
filosófico, em particular desses pensadores.
Os profissionais da filosofia versados nos textos-mães encontrarão
uma discussão bem organizada para o pensamento filosófico sobre o corpo e
a contribuição da Filosofia para o assunto, os amadores encontrarão um
guia prático, bem elaborado e instrutivo, tanto no que diz respeito ao que e
como os filósofos pensaram o corpo na história do pensamento ocidental,
como também referências bibliográficas específicas para se continuar a
pesquisa e aprofundar as desafiantes idéias apresentadas pelo texto (dos
filósofos). Os profissionais das áreas que tratam do corpo não podem deixar
de ler porque estarão perdendo o melhor do banquete. Seu prato principal.
O supremo deleite de ver Sofia rodando a baiana.
Ainda que a alma do mundo, o corpo, esteja sendo dissecada por
outras ciências cujas pesquisas são essenciais para o pensamento dos
filósofos, essa leitura deixa claro que começando com esses “pais” do
assunto, o pensamento filosófico sobre o corpo se dá a partir das pesquisas
do que ele é como organismo, mas a ciência apenas não dá conta de
compreender o que é essa “alma do mundo”. É a filosofia que possui as
ferramentas necessárias para esse tipo de aventura. Assim, ainda que Cardim
não tenha apresentado nenhuma idéia filosoficamente original, ao nomear o
já nomeado e contar o já contado sua pequena historiografia do pensamento
sobre o que a filosofia disse e descobriu sobre o corpo não deixa de ser um
evento filosófico, um relâmpago que ilumina a clareira do ser do tema.
A leitura desse livro vale à pena. Aliás, devo confessar: a releitura
também. Não porque apresenta ao leitor uma filosofia do corpo, mas o
convence de que, para qualquer um, em qualquer área, que queira entender
e pensar (ou lecionar) sobre o tema, a lista de leitura que Cardim propõe é
essencial. Um dever de casa bem feito pode ser algo singelo, mas é um
exercício útil e bem vindo num mundo de publicações tão... desnorteadas
como a minha lista de leitura sobre o tema aponta.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN
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Revista de Filosofia
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