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LINGUAGEM, INTERAÇÃO E PROCESSOS DE APRENDIZAGEM

Cristiane Krumenauer

MEMÓRIA, IMAGINAÇÃO E NARRAÇÃO:

NAS TUAS MÃOS, DE INÊS PEDROSA

Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Letras do Centro Universitário
Ritter dos Reis, como requisito
parcial para a obtenção do título
de Mestre em Letras.

Orientadora Prof. Dr. Rejane


Pivetta de Oliveira

Porto Alegre
2011
2

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

K94m Krumenauer, Cristiane

Memória, imaginação e narração : nas tuas mãos, de Inês


Pedrosa / Cristiane Krumenauer. – Porto Alegre, 2011.

127 f. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado) – Centro Universitário Ritter dos Reis,


Mestrado em Letras, Porto Alegre, 2011.

Orientadora: Profa. Dra. Rejane Pivetta de Oliveira

1. Narrativa (Retórica). 2. Análise do discurso narrativo. 3.


Memória na literatura. 4. Nas tuas mãos. I. Oliveira, Rejane Pivetta
de. II. Título.

CDU 808

Ficha catalográfica elaborada no Setor de Processamento Técnico da

Biblioteca Dr. Romeu Ritter dos Reis


3

Dedico este trabalho a Marcelo de Paiva, esposo e amigo, pelo


seu imenso amor e na certeza da felicidade partilhada neste
momento único.
4

A Deus, pelas oportunidades; a meus pais, pela orientação que


levo por toda a vida; a meu avô, pela presença iluminada; e às
professoras desta estimada instituição, pela dedicação e carisma,
em especial, à minha orientadora, professora Rejane Pivetta de
Oliveira, bem como à professora Leny da Silva Gomes - os
meus agradecimentos.
5

She did not look back now, but went on and on, thinking of the
blue-grass meadow that she had traversed when a little child,
believing that it had no beginning and no end.

CHOPIN, The Awakening. 1899, p. 302


6

RESUMO

Esta dissertação discute as relações entre memória, imaginação e narração, a


partir da análise do romance Nas Tuas Mãos, de Inês Pedrosa. O romance é composto
de três partes, cada qual constituída a partir de um gênero de registro da experiência
pessoal: diário, álbum e cartas. Estilos diferentes entre si trazem o mesmo objetivo de
reordenar o passado das três protagonistas mulheres, em sucessivas gerações, a fim de
que a experiência vivida torne-se passível de narração, na tentativa de mostrar até
mesmo o que é inenarrável e o que é não-demonstrável. A reflexão empreendida
nesta dissertação centra-se na memória e suas possibilidades narrativas, valendo-se de
alguns aportes teóricos, tais como: visão por detrás, de Pouillon; perspectiva do
presente no passado e representação psíquica, de Olney; sujeito duplo, de Lejeune;
descontextualização da ação, de Weintraub; passado que simboliza ausência e
presente que simboliza presença, de Ricoeur; elaboração do passado a fim de torná-lo
inteligível, de Gusdorf e Neufeld; exigências do sujeito de resgatar a trajetória
passada, de Gagnebin; e ponto de vista adequado na narração em primeira pessoa, de
Mallea. Para essa análise, fez-se necessária uma contextualização histórica e social
das ações representadas, com a finalidade de discernir a influência do tempo e da
sociedade na construção do romance e também constatar os modos de atuação das
protagonistas em diferentes cenários. Por fim, foram analisadas as implicações do
relacionamento entre diferentes gerações e as possibilidades de constituição de novas
trajetórias, articuladas ao passado, enquanto reconstrução narrativa.

Palavras-chave: Nas Tuas Mãos. Memória. Imaginação. Narração.


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ABSTRACT

This production discusses the relationship between action and narration,


analyzing Nas Tuas Mãos, by Inês Pedrosa. The novel has three parts, all written in
different genders of a personal experience: diary, album and letters. These stiles have
the same purpose of organizing the past of the three protagonist-women, according to
their generations, in order to make the experience possible to be told, showing what is
unsaid. It also reflects on the memory and narrative strategies, considering some
theories, such as: behind vision, by Pouillon; present`s perspective upon the past and
psychological representation, by Olney; double subject, by Lejeune; displaced action,
by Weintraub; past meaning absence and present meaning presence, by Ricoeur; past
elaboration to become understandable, by Gusdorf and Neufeld; necessity of the
subject of rescuing the past, by Gagnebin; and point of view in the narration of the
first person, by Mallea. Therefore, a historical and social contextualization of the
actions was made with the purpose of showing the time and the society influence on
the creation of the novel and of the protagonists. Finally, it studies the relationship
between different generation characters and the possibilities of creating new
trajectories linked to the past, considering this in the novel.

KEY-WORDS: Nas Tuas Mãos. Memory. Imagination. Narration.


8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................... 9
1 ENTRE MEMÓRIA, IMAGINAÇÃO E NARRAÇÃO EM NAS
TUAS MÃOS, DE INÊS PEDROSA .................................................. 12
1.1 Diário, Álbum, Cartas: maneiras de dizer o passado ...................... 12
1.2 Lembrar, imaginar, narrar .............................................................. 21
2 O DIÁRIO DE JENNY .................................................................... 25
2.1 Visão distanciada dos acontecimentos ............................................ 25
2.2 Rememorar, imaginar e compreender o passado ........................... 32
2.3 O que foi retido pela memória de Jenny e por quê? ....................... 40
3 O ÁLBUM DE CAMILA ................................................................ 47
3.1 História pessoal e política ............................................................... 47
3.2 Visões em contraponto .................................................................... 51
3.3 Entre compreender e reinventar ...................................................... 58
3.4 Imagens inexatas ............................................................................. 64
3.5 A memória como marca individual................................................. 69
4 AS CARTAS DE NATÁLIA ........................................................... 74
4.1 Cartas: proximidade e distanciamento ........................................... 74
4.2 Amadurecer para melhor compreender ........................................... 83
4.3 Natália e a restauração da vida ........................................................ 85
CONCLUSÃO ..................................................................................... 93
REFERÊNCIAS .................................................................................. 101
ANEXO 1 ............................................................................................. 104
9

INTRODUÇÃO

Inês Pedrosa é uma escritora que surge em 1991, e que, com uma sensibilidade
irreverente, passa a ser uma das vozes mais importantes da literatura portuguesa atual.
Mesmo com uma obra considerável – Mais Ninguém Tem (história infantil, 1991); A
Instrução dos Amantes (1992); Nas tuas Mãos (1997); Fazes-me Falta (2002); A
Menina que Roubava Gargalhadas (2002); Fica Comigo Esta Noite: Contos (2003);
Carta a uma Amiga (2005), com Maria Irene Crespo; Do Grande e do Pequeno Amor
(2006), com Jorge Colombo; A Eternidade e o Desejo (2007); Os Íntimos (2010) -
foi somente em 2002 que Inês Pedrosa passou a ser conhecida entre os brasileiros,
quando o editor Paulo Roberto Pires publicou o livro Fazes-me falta, pela editora
Planeta. Por outro lado, apesar de sua presença tão recente em nosso país, a escritora
tem conquistado leitores fiéis, o que resultou na publicação de livros anteriores seus,
como Nas tuas mãos, de 1997, por exemplo.

Em entrevista concedida à Saraiva Conteúdo, a qual poderá ser vista na íntegra


em anexo, a escritora comenta brevemente um pouco de cada livro, ressaltando que
Nas tuas mãos é um romance cujo cenário inicial são os anos 30 do século XX. A
história é baseada na vida de uma mulher que teve um casamento branco, ou seja, que
não foi consumado porque o marido era, na verdade, homossexual. Isso, entretanto,
só lhe foi revelado na noite de núpcias, quando o esposo dirigiu-se ao quarto com o
melhor amigo, alojando-a em um espaço diferente. Segundo a autora, foi por
vergonha, tristeza e uma paixão imensurável que essa mulher manteve o casamento
até que a morte os separasse. Ao ficar viúva, ela pediu aos sobrinhos para se casar
com o melhor amigo do marido. Nessa altura, ela já teria uns setenta anos. Por
10

ambição, pois não queriam dividir o patrimônio, os sobrinhos não permitiram que
esse casamento se realizasse e a mulher acabou morrendo sozinha e louca.

Essa história atraiu a atenção de Inês Pedrosa, a ponto de inspirar-lhe a criação


de um romance para compreender melhor a situação dessa mulher. No seu livro,
como a autora mesma afirma, apesar de todas as controvérsias, a personagem
consegue ser mais feliz e livre que todas as mulheres de sua época, além de ser
favorecida financeiramente.

Outro ponto importante é que esse romance, por ser narrado por três diferentes
gerações, reflete sobre como as tendências históricas e sociais influenciam a maneira
de viver e ver das personagens quanto ao amor, à amizade e ao trabalho. Essas
tendências, inclusive, parecem muitas vezes sobreporem-se à vontade das três
mulheres do romance, que, contraditoriamente, acreditam que estão construindo sua
época, em vez de estarem deixando-se construir a si próprias.

Atualmente, Inês Pedrosa é diretora da Casa Fernando Pessoa, onde trabalha


com paixão e prazer. Seu último romance, intitulado Os íntimos, ao contrário de Nas
tuas mãos, composto por três vozes femininas, apresenta narradores masculinos que
se encontram em jantares ou jogos de futebol, a discutir questões rotineiras. Nesse
romance, rituais patriarcais e maternais são evidenciados como traços que, mesmo
nos dias de hoje, fazem parte da cultura europeia.

É rica a obra dessa autora portuguesa, que surge em nossos tempos como sinal
de que o romance ainda tem muito a oferecer-nos. Além disso, o foco narrativo
sempre foi observado como um dos aspectos mais relevantes, sendo, muitas vezes,
responsável pela inovação da arte. Isso não é diferente em Nas tuas mãos, em que a
riqueza de detalhes reside na diversidade com que as três protagonistas enxergam seu
mundo, em três diferentes perspectivas de tempo e de valores.

O corpus dessa análise, portanto, será Nas tuas mãos, por apresentar essas três
narradoras em primeira pessoa. O romance foi eleito porque as protagonistas buscam
resgatar seu passado a partir de diferentes instâncias temporais, variando do
11

consideravelmente longínquo ao extremamente recente, tudo por meio de estratégias


enunciativas distintas: diário, álbum e cartas, respectivamente, segundo a divisão das
partes da obra.

Esta dissertação propõe a análise da relação que as três personagens narradoras


desse romance estabelecem com o seu passado, no instante em que as ações não
podem mais se tornar presentes. A partir de conceitos formulados por Lejeune,
Mallea, Olney, Pouillon, Ricoeur e Weintraub, discutiremos a possibilidade de
resgate do passado, considerando a memória, a imaginação e o ponto de vista como
fatores decisivos na composição do romance. Visamos, finalmente, a colocar em tela
as releituras dos episódios retomados pela memória, sugerindo, consequentemente, a
duplicidade ambígua da experiência: uma referente às ações das personagens e outra
ao que é narrado por elas.

Para tanto, quanto à primeira parte do romance, trataremos sobre a expressão de


Jenny por meio de um diário, e buscaremos analisar de que maneira isso possibilitou
uma melhor compreensão de seu passado distante. Analisaremos, também, porque
certas lembranças receberam maior relevância, a ponto de terem sido retomadas na
velhice, e de que modo o transcorrer do tempo e a situação “presente” acabaram
atuando na memória dessa personagem.

Da mesma forma, a segunda parte do romance será lida segundo a expressão de


Camila por meio de um álbum. Será verificado como essa outra personagem buscou
relatar suas memórias com o auxílio fotográfico, o qual a remeteu a outras
lembranças e ideias. Também se abordará como a visão das ações foi se modificando
com o tempo, ou seja, com o distanciamento da personagem de situações frustrantes.

Por fim, as cartas de Natália, que compõem a terceira parte de Nas tuas mãos,
serão consideradas conforme a proximidade existente entre a ação e a narração,
concluindo quanto à vontade da personagem de resgatar um momento que nunca foi
seu. Em outras palavras, será analisado por que Natália passa por uma profunda
transformação após a morte da avó, a ponto de acreditar que a felicidade reside na
maneira como Jenny enxergava o mundo.
12

1 ENTRE MEMÓRIA, IMAGINAÇÃO E NARRAÇÃO EM NAS

TUAS MÃOS, DE INÊS PEDROSA

1.1 Diário, Álbum, Cartas: maneiras de dizer o passado

A necessidade de comprovação do que é transmitido de geração em

geração acentua-se com a mudança do processo de transmissão do conhecimento: da

oralidade para escrita. A diferença entre memória – lembrança do que ocorreu – e

imaginação – capacidade mental de representação de fatos e objetos – é um tema de

interesse não só para a literatura, como também para áreas como a psicologia e o

direito. O homem, de fato, sente um inevitável desejo de representar o passado, seja

ele o de outrem, seja o de si mesmo. A possibilidade de que possa ser ludibriado pela

sua própria mente enquanto está nessa busca o deixa à mercê da sua história, fazendo-

o sentir-se incapaz de controlar não somente seu presente e futuro (o que já se era de

prever), mas também seu passado – singular, mas estranhamente mutável, como

veremos mais adiante.

O passado, constantemente, é objeto de retomada pelo desejo humano de

busca de uma origem perdida ou mesmo pela necessidade de compreensão do


13

presente. A recuperação do passado, mesmo que recorra a indícios, registros ou

provas factuais do que se passou, dá-se essencialmente sob a forma narrativa. Assim,

a escrita é uma das formas mais privilegiadas de acesso a ele, ainda que saibamos

que, ao fazê-lo, criamos apenas a ilusão de torná-lo presente outra vez. As

frustrações, no entanto, de perceber que o tempo é irrepetitível e que algumas

circunstâncias são inenarráveis, a ponto de permanecerem melhor em silêncio,

provocam nos indivíduos uma busca incansável por soluções eficazes de

memorização e de fidelidade ao passado. Por outro lado, quanto mais se analisa essa

matéria, mais se conclui que tudo o que possuímos é uma visão unilateral – o que não

permite nunca a totalidade dos casos – bem como uma visão fragmentária – cujas

lacunas podem ser preenchidas imperceptivelmente pela imaginação e por conclusões

lógicas.

A ciência, preocupada com a verdade, desenvolveu seus estudos com a

finalidade de não permitir que a unilateralidade e a fragmentação interferissem nas

suas explicações do mundo. Com a literatura ocorre exatamente o oposto: ao invés da

descoberta da verdade, evidencia-se que essa verificação, muitas vezes, perde a sua

razão de ser. A literatura demonstra que o que nos move é justamente essa forma

fragmentária e deficitária de percebermos o mundo, e o que é melhor: nem por isso é

objeto de julgamento negativo.

Portanto, esta análise escapa de qualquer verdade, embora sua busca seja

por explicações válidas para compreendermos as significações do romance.

Exatamente por que se trata de três personagens fictícias – Jenny, Camila e Natália –

que narram acontecimentos vividos na esfera fictícia, é que não cabe qualquer espécie
14

de verificação. Cabe-nos, somente, questionar a coerência dos episódios, dados num

tempo anterior, considerando a (in)viabilidade de torná-los presentes novamente, no

momento em que as personagens os estão narrando.

De fato, quando a autora escolhe o foco narrativo, bem como o tempo

representado, está, consequentemente, definindo a própria matéria a ser narrada. O

foco em primeira pessoa, com narradoras protagonistas, permite extravasar emoções

mais intensas que o foco em terceira pessoa. Por outro lado, isso leva à limitação do

conhecimento, a uma visão contrária à onisciência, devido à visão unilateral desses

aspectos fictícios. Exemplo disso é, especialmente, o relato de Jenny em seu diário, a

primeira entre as três gerações de mulheres desta obra. Jenny expressa-se por meio de

um diário, que, no entanto, distingue-se dos demais por não apresentar somente

relatos do seu dia-a-dia, mas, sobretudo, por trazer lembranças de sua juventude e dos

tempos de casamento com António. Por tentar trazer um tempo distante, o diário de

Jenny também se distingue dos demais de igual gênero, pois não possui datas na

abertura de cada capítulo, o que nos dificulta ter uma dimensão temporal das ações.

Por sua vez, essa estratégia valoriza os episódios lembrados mais que a própria ação

de relembrar; em outras palavras, a leitura que faz do passado é mais relevante que

seu presente, quando se sente solitária e deprimida.

Outra característica não muito comum desse diário é a existência

constante de dois diferentes destinatários: Jenny não escreve somente para si – como

ocorre na maior parte das vezes com escritores desse gênero de escrita – mas para seu

falecido esposo António e para Camila, alternando entre um e outro, em determinados

capítulos, conforme a mensagem que deseja transmitir. Vejamos:


15

Comecei agora a escrevê-la (nossa história) sobretudo para Camila,


temo que um dia ela descubra a totalidade dos factos e se zangue
connosco. Os factos, minha querida Camila, não existem, são peças
de loto que inventamos e encadeamos para nos sentirmos vitoriosos
ou, pelo menos, seguros (PEDROSA, 2005, p.21).

A presença de dois destinatários, como se percebe acima, é constante em

todo o diário e pode-se mesmo constatar que isso acaba influenciando a escrita, uma

vez que é até eles que a protagonista deseja chegar com a sua mensagem. Essa é outra

peculiaridade do diário de Jenny: não simplesmente registrar as ações, para que, num

momento de saudade, as palavras lhe sirvam de consolo a trazer momentos felizes ou

não; mas, acima de tudo, servir como uma voz apaziguadora, que desvende os

segredos mais íntimos do seu coração a António e a Camila.

O diário, assim, é recriado pela protagonista, que o escreve à sua maneira

e segundo seus propósitos. Como afirma Bazerman (2006, p.31), os gêneros emergem

nos processos sociais em que o essencial é as pessoas tentarem compreender-se

suficientemente bem para compartilhar significados, tendo em vista seus propósitos

práticos. Para o autor, portanto, o importante não são as estruturas fixas que um

gênero pode conter, mas a sua finalidade. Essa ideia é complementada também por

Marcuschi (2006, p.25), para quem os gêneros não são superestruturas canônicas e

deterministas, o que não significa, entretanto, que estejam totalmente à mercê de

pressões externas. Segundo o estudioso, os gêneros são formações, acima de tudo,

interativas, multimodalizadas e flexíveis.

O diário de Jenny, dessa forma, que não tem o intuito de ser convencional

nem pessoal, vai além de suas características de gênero habituais e revela aos seus
16

destinatários, também não muito convencionais, os mistérios da alma dessa

protagonista. Por outro lado, retomando a noção de unilateralidade e fragmentação,

há que sempre se considerar que o que se tem com o diário de Jenny não são as ações

da protagonista, e sim uma (re)leitura das mesmas, (re)leitura essa que estará

carregada de valores de uma época e de sentimentos de (in)satisfação pessoal,

também tingida pelo esquecimento compensado pela invenção. O diário, então, nada

mais é que o instrumento pelo qual a personagem deixará que seus destinatários

saibam mais não sobre seus atos, mas sobre a concepção que possui deles.

A narradora protagonista da segunda parte deste romance, por sua vez,

expressa-se por meio de um álbum de fotografias, o qual é comentado com palavras.

Camila, a fotógrafa, tentará deixar-se traduzir por meio das imagens, mesmo tendo

aprendido, ao atingir maior maturidade, que a vida não pode ser fixada simplesmente

por fotografias. Segundo Boris Kossoy,

Quando apreciamos determinadas fotografias nos vemos, quase sem


perceber, mergulhando no seu conteúdo e imaginando a trama dos
fatos e as circunstâncias que envolveram o assunto ou a própria
representação (o documento fotográfico) ao contexto que foi
produzido: trata-se de um exercício mental de reconstituição quase
intuitivo (KOSSOY, 2003, p.131-2).

Assim, as ações que Camila, de princípio, acredita poder resgatar tal e

qual se deram naquele momento de sua trajetória, considerando as imagens como

prova, não escapam à sua (re)leitura pessoal, à fragmentação e à unilateralidade, da

mesma forma como o que ocorre no diário de Jenny.


17

A opção por se expressar por meio de algo mais “concreto”, ou seja,

através de imagens, parece coincidir com a personalidade de Camila, tão ávida por

denunciar as injustiças cometidas durante a ditadura salazariana e durante as guerras

por independência em ultramar. As imagens, por outro lado, incontestavelmente lhe

escapam e são incapazes de transmitir toda a essência das ações fotografadas. Quanto

a isso, Kossoy comenta que:

O contexto particular que resultou na materialização da fotografia, a


história do momento daquelas personagens que vemos
representadas, o pensamento embutido em cada um dos fragmentos
fotográficos, a vida enfim do modelo referente – sua realidade
interior – é, todavia, invisível ao sistema óptico da câmara. Não
deixa marcas na chapa fotossensível, não pode ser revelada pela
química fotográfica, nem tampouco digitalizada pelo scanner.
Apenas imaginada (KOSSOY, 2003, p.133).

A narradora, portanto, que se apresenta é a Camila que fotografa, a

Camila que seleciona as imagens e, por fim, a Camila que descreve verbalmente

fotografia por fotografia. Temos a (re)leitura das ações no momento em que o foco é

escolhido, quando a cena é selecionada, e também quando é comentada. Cada

imagem vem carregada de sentido a partir de diferentes perspectivas, geradas nas

distintas etapas de sua produção.

Por isso a necessidade de complementar as imagens com uma descrição

verbal de qual evento foi fotografado, em que circunstâncias se deram e que

impressões causaram na personagem. Busca-se uma totalidade na abordagem, mas o

desafio do inenarrável e do não-demonstrável perpetua-se também nessa segunda

parte do romance. Mas o que a fotografia revela? Responde Kossoy:


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Apenas o mundo físico, visível na sua exterioridade. Apenas a


aparência, o aparente das coisas, da natureza, das pessoas. E
ainda mais, apenas o determinado detalhe da vida que se
pretendeu mostrar (KOSSOY, 2003, p.137).

Para Camila, personagem da segunda geração, a tentativa de tradução das

ações cometidas ou que presenciou cometer não escapa do seu olhar carregado de

valores e de sentimentos, bem como de esquecimento compensado pela invenção, tal

como ocorre no diário de Jenny. A aparência, além do mais, é a matéria mais

evidenciada por suas fotografias, sendo necessário recorrer à palavra para certo

aprofundamento. Novamente, as (re)leituras se sobrepõem às ações, mesmo por meio

de instrumentos aparentemente irrefutáveis, como as fotografias.

Já a narradora da terceira parte optará pelas cartas como gênero de

comunicação. Posicionando-se bem mais próxima dos eventos que vai retomar,

Natália se distinguirá das outras protagonistas, que buscam retomar ações cometidas

num passado consideravelmente distante. Dessa forma, a personagem estará menos

sujeita aos esquecimentos da memória, mas, ainda assim, não poderá fugir da

unilateralidade e da fragmentação da narração. Pelo contrário, a aproximação

demasiada prejudica-lhe a compreensão das ações e facilita-lhe as atitudes

impensadas. O casamento com Rui e seu posterior fracasso é uma amostra disso, pois

como a própria personagem diz, não há tempo para nada, muito menos para esperar

que a felicidade aconteça. Na verdade, é a falta de tempo aliada ao perfil da

destinatária alguns dos motivos pelos quais Natália elege expressar-se por meio de
19

cartas. São dez cartas, escritas em dez anos, a primeira tendo sido redigida em 1984,

quando Natália tinha vinte anos de idade. Nelas, encontram-se revelações, confissões

ou mesmo assuntos corriqueiros. A destinatária de todas as dez cartas é sua avó

Jenny, com quem mantém um relacionamento íntimo e fidedigno. Aliás, Natália

parece seguir as características principais do gênero através do qual se comunica:

explicita a data do ato da escrita e se instala no enunciado do eu “que fala”;

estabelece a data como marco referencial presente, em função do qual se organiza

predominantemente o dito; instala o tu no enunciado, o que consolida a presença do

eu; participa dos acontecimentos narrados, já que é a narradora; e circunscreve os

temas e figuras à esfera do sentido dado segundo a cotidianidade e não segundo a

institucionalização das relações humanas (LANDOWSKI, 2002, p.167-181).

Consta, entretanto, que Jenny morre em 1993, e que Natália redige ainda três

cartas após o falecimento da avó: em 28 de dezembro de 1993, em 21 de junho de

1994 e, por fim, em 15 de outubro de 1994. Há uma lacuna, todavia, de pouco mais

de dois anos (de 10 de dezembro de 1991 a 27 de dezembro de 1993), nos quais a

neta nada escreve, e isso coincide com os últimos anos de vida de Jenny. Após a

morte, entretanto, há o retorno às cartas, destinadas desta vez a um ser

fantasmagórico e essa época acaba se tornando decisiva para uma mudança drástica

em Natália.

Reside, como se pode perceber, na destinatária, a caracterização pouco

convencional do gênero carta, escrito por Natália. O objetivo com que escreve

também a diferencia de outras escritoras desse gênero: nem sempre a protagonista

envia suas cartas à avó. Além disso, embora sempre cite Jenny como sendo a pessoa
20

para quem escreve, é provável que suas cartas dirijam-se somente a si mesma. Jenny,

nesse caso, seria mais uma referência e um auxílio para compreensão das ações do

que uma destinatária, no sentido literal da palavra.

Diário, álbum e carta. Três gêneros que, mesmo sendo mutáveis e flexíveis,

possuem certa estabilidade. Nas palavras de Schneuwly e Doly:

...eles definem o que é dizível (e, inversamente: o que deve ser dito
define a escolha de um gênero); eles têm uma composição: tipo de
estruturação e acabamento e tipo de relação com os outros
participantes da troca verbal (2004, p.26).

Esses três gêneros, portanto, não foram simplesmente escolhidos, há uma

relação de identificação entre eles e as personagens. Representam antes a tentativa de

expressão de si mesmas que uma forma rígida e canônica: Jenny com o diário, numa

tentativa de fazer-se compreender; Camila com seu álbum, por ser fotógrafa e por

necessitar de algo concreto na compreensão da sua trajetória; e, por fim, Natália, com

as cartas, por ser o gênero que melhor se adéqua ao seu perfil e ao da destinatária.

A forma pela qual as personagens se expressam, no entanto, não permite

conhecer o passado dessas protagonistas de três diferentes gerações. Pode-se ter com

Jenny, Camila e Natália uma tentativa de esclarecerem-se, ou perante sua família ou

perante si mesmas e, com isso, haver uma busca por descreverem as suas ações. Isso,

contudo, não pode sobrepor-se à peculiaridade de que as protagonistas não têm acesso

ao seu próprio passado, mas sim, à releitura dele – releitura essa que será analisada a

partir da memória, influenciada pela situação presente, quando o relato é feito.


21

1.2 Lembrar, imaginar, narrar

Para o estudo deste subcapítulo, a teoria de Pouillon (1974) foi

investigada por abordar a influência da imaginação na memória. Devido ao longo

tempo transcorrido entre as ações e a narração, especialmente quanto às personagens

Jenny e Camila, a memória não daria conta de reproduzir o passado. A imaginação,

segundo o autor, viria para suprir as deficiências das lembranças. Assim, apesar de,

na narração, perceber-se que as personagens não estão simplesmente contando suas

ações, mas sim, criando-as à medida que estão compondo seu diário, álbum e cartas,

essa releitura pode revelar muito mais das protagonistas do que aquilo que elas

efetivamente dizem. Essa imaginação, ou essa invenção, assim como a memória que

busca reter as ações consideradas mais relevantes por essas mulheres, ajudam na

composição psicológica dessas personagens.

Jean Pouillon (1974) estabelece a visão por detrás, segundo a qual, graças

ao afastamento temporal das ações, as personagens estariam não só físico mas

também psicologicamente distantes de seu passado. Isso seria responsável por um

sentimento de mais liberdade e menos inibição diante da matéria narrada, pois geraria

a sensação de que Jenny e Camila não estariam contando sua história, mas a história

de outra personagem.

Já Olney (1994) afirma que a retomada do passado nada mais é que uma

operação psíquica. Dessa forma, através da narração, as narradoras não poderão

reproduzir as ações que se deram em sua trajetória. Pelo contrário, o que contarão
22

demonstrará mais seus valores e seu contexto no presente, do que aquilo que teria

ocorrido num tempo distante.

Lejeune (1994) complementa a tese de Olney, ao comentar que o sujeito

que resgata seu passado por meio da narração é duplo, ou seja, narradora e

personagem, embora coincidam, diferenciam-se à medida que aquela que está

narrando não está mais ligada emocional, físico e psiquicamente às ações. Os estudos

de Lejeune, contudo, aplicam-se apenas parcialmente na análise de Nas tuas mãos,

uma vez que não se trata de um romance autobiográfico, em que autor, narrador e

personagem são equivalentes, já que apenas esses dois últimos se correspondem

ficcionalmente e a autoria nos remete a um ser concreto, ou seja, a Inês Pedrosa.

Poderíamos falar de uma encenação ficcional do gênero autobiográfico, uma

autobiografia ficcional, à medida que as personagens são as autoras e as narradoras de

sua própria trajetória, dentro da moldura do romance.

Weintraub (1994), por sua vez, avalia que a descontextualização da ação,

dada no momento em que é lembrada, atribui um significado diferente ao passado,

com vistas mais em seus resultados, os quais somente serão conhecidos

posteriormente. Assim, quando as três narradoras estão contando suas ações, o

conhecimento não só da causa, mas também da consequência, influenciaria a

narração. É nesse sentido que a narração de Natália, por contar eventos recentes,

estaria menos suscetível a essa consciência dos resultados.

Gusdorf (1994) reitera que ação e narração da ação não coincidem, pois a

memória reelabora os acontecimentos para que, dessa forma, façam sentido. Sem essa
23

elaboração, o discurso das três protagonistas se perderia toda vez que encontrasse

algum obstáculo, como o do esquecimento, por exemplo. Além disso, essa

elaboração, segundo Neufeld (2005), tem a ver com os graus de valoração que variam

a cada sujeito, atuando diretamente na percepção da ação: o que é relevante a Jenny,

por exemplo, pode ser irrelevante e, por isso mesmo, passar despercebido a Camila.

Outro ponto que contribui para a releitura das ações, conforme Ricoeur

(2007), é que a representação do passado equivale a reproduzir uma imagem, ou seja,

evocar a memória é evocar a imaginação. A memória, portanto, operaria na esteira da

imaginação. O grande desafio, segundo o pesquisador, seria envolver em presença

aquilo que já está ausente, que não faz mais parte. Isso poderia explicar a necessidade

de Jenny de continuar a ouvir as vozes de António e Pedro, alucinadamente, após a

morte deles, bem como a necessidade de Camila de organizar as fotografias em um

álbum, ou mesmo a de Natália, que decide mudar-se para a casa da avó – tudo

correspondendo à busca de atribuir presença a um ausente, isto é, a um passado

irrecuperável.

Unilateralidade, influência do presente, memória, imaginação – tudo isso

são fatores que não permitem às protagonistas descreverem suas ações, mas antes

darem a elas uma forma, construírem um projeto de escrita, na qual expressam a

concepção que têm de si mesmas e do que experimentaram, de maneira sempre

parcial e incompleta. A capa da obra de 2005, pela Editora Planeta do Brasil, dá conta

justamente dessa ideia, pois mostra uma mulher cujo rosto é encoberto

completamente com as próprias mãos, sendo que seu posicionamento está dividido

entre a capa e a contracapa. Assim, somente com o livro totalmente aberto, podemos
24

ver essa face de mulher por completo. Essa simbolização parece considerar que o que

será contado está longe de abranger o conhecimento total das ações.

A análise, portanto, assim como se dá a divisão do romance de Inês

Pedrosa, será desenvolvida em mais três partes, nas quais serão estudados trechos em

que a retomada do passado revela contradições, ambiguidades, incertezas e, muitas

vezes, aparece ofuscada por razões diversas.


25

2 O DIÁRIO DE JENNY

2.1 Visão distanciada dos acontecimentos

A personagem da primeira parte da obra nasce em 1917, ano em que,

conforme Martins (2007), o segundo contingente do Corpo Expedicionário

Português, o CEP, é enviado para combate no território francês durante a Primeira

Guerra Mundial. Como no romance o pai de Jenny faz parte do exército, ela não tem

a possibilidade de conhecê-lo, pois ele acaba por ser morto em batalha. Sua criação

cabe, portanto, a sua mãe, que se mantém orgulhosamente viúva de um herói até a

velhice. Tendo vivido de 1917 a 1993, Jenny pode vivenciar a Primeira, a Segunda e

Terceira República. A Primeira, que perdura de 1910 a 1926; a Segunda, de 1926 a

1968 (com Salazar como Primeiro-Ministro, governando por meio de um regime

ditatorial ofensivo), e de 1968 a 1974 (com Marcello Caetano, período que, por seu

governante ser menos rigoroso, é chamado de Primavera Marcelina); e, por fim, a

Terceira República, que vigorou a partir de 1974, com a Revolução dos Cravos.

Jenny fora criada com os resquícios de riqueza da mãe e educada à

maneira inglesa. Isso supostamente lhe conferia um status social numa época em que,
26

após o fim dos títulos de nobreza e da monarquia, em 1910, no território português, a

Inglaterra era considerada uma das maiores potências mundiais, segundo Martins

(2007). Além disso, o Reino Unido mantinha uma parceria muito importante com

Portugal desde 1373, por meio da Aliança Luso-Britânica – o que, posteriormente,

levou à participação de Portugal à guerra contra as tropas napoleônicas no início do

século XX. Essa influência britânica é desaprovada, na obra de Inês Pedrosa, por

muitas personagens da primeira geração do romance. O desacordo se dava porque

Salazar se deixara levar pelos britânicos, e isso era ponto de discussão nos jantares

que António e Jenny ofereciam aos amigos. Entretanto, percebe-se que Jenny, embora

não lhe apetecesse seguir o comportamento da mãe, acaba irreversivelmente

influenciada pela cultura tradicional e conservadora inglesa, tanto que essa é uma das

razões que a leva a preferir um casamento de aparências ao vexame de um divórcio.

Outro ponto importante de ser contextualizado é o papel da mulher na

sociedade portuguesa. Na época da Segunda República, ou mais especificamente,

num paralelo com a ficção, quando Jenny tinha 18 anos de idade, Salazar pretendia

que as mulheres retornassem ao lar. Em 1933, o Estatuto do Trabalho Nacional

estipulou que o trabalho feminino “fora do domicílio” seria regulado por “disposições

especiais conforme as exigências da moral, da defesa física, da maternidade, da vida

doméstica, da educação e do bem social”. A seguir, em 1934, foi decretado que

enquanto houvesse homens desempregados, não seria permitido o recurso abusivo à

mão de obra mais barata fornecida pelas mulheres e pelos menores. Assim, em muitas

empresas, as mulheres foram substituídas por homens e tiveram que assumir tarefas
27

mal pagas. A partir daí, ocuparam postos laborais na situação de “auxiliares” e

“aprendizes”, o que fazia delas realmente a mão de obra mais barata.

Assim, para a geração de Jenny, não havia necessidade de a mulher

trabalhar. Isso, aliás, faz com que ela julgue negativamente a filha de criação, por

trocar o amor de um homem pelo amor ao trabalho. Para ela, Camila estaria infiltrada

pela promiscuidade, como se estivera doente, e seu talento a trituraria como uma

máquina registradora (PEDROSA, 2005, p.23).

Isso não significa, contudo, que Jenny, apesar da fortuna da mãe e de não

ter tido a obrigação social de trabalhar, não tenha passado por momentos difíceis.

Embora tenha se casado, seu marido não trabalhava e, como se não bastasse,

desperdiçava os bens da esposa nos cassinos de Lisboa, junto a Pedro, seu amante. As

consequências desse comportamento abusivo passam a ser evidentes com o tempo, o

que acaba por reduzir o luxo que tinham no início do relacionamento. Para que Jenny

mantivesse, por exemplo, ao menos uma empregada ou comprasse algo mais luxuoso

no mercado, foi necessário que ela trabalhasse. Isso, entretanto, a personagem opta

por manter em segredo. Assim, durante 20 anos, a protagonista trabalha num

programa de correio sentimental numa rádio, intitulado Cartas do Coração por Maria

da Felicidade. As razões que a levam a trabalhar, por outro lado, segundo a

personagem, não são apenas o dinheiro, mas sim, certa vingança com relação a

António, que não trabalhava.

Esse papel secundário da mulher daquele período também parece


28

transparente na personagem Josefa Nascimento, única amiga de Jenny. Escritora de

romances policiais, Josefa fazia muito sucesso, pois publicava suas obras sob o

pseudônimo de Joseph Birth. Apenas posteriormente, a escritora revela a Jenny que é

a autora desses livros, e que adotou um nome masculino devido ao preconceito da

época. Além disso, o sobrenome inglês também lhe conferia um grau de importância,

favorecendo-lhe com maior aceitação do público.

Por fim, outro aspecto presenciado pela protagonista, e de uma forma

também muito próxima e dolorida, foi a prisão da filha durante a ditadura de Salazar,

sobre o que falaremos mais adiante. Em suma, o que se percebe dessa

contextualização do cenário em que se passa a trajetória de Jenny, é que ele influencia

diretamente as suas ações mais íntimas e peculiares.

Quanto à estratégia narrativa, é por meio do diário que Jenny procura

retomar o passado. Entretanto, esse diário, do qual se esperam relatos do dia-a-dia,

passa a ser escrito somente quando ela já está em idade avançada. Por sua vez, o que

escreve não é somente sua vida recente, mas principalmente um determinado resumo

das lembranças mais relevantes que a levaram até a situação presente. Isso a põe

numa posição de distanciamento do passado que busca relatar, o que nos permite

considerá-la na posição de narradora com uma “visão por detrás”, conforme indica

Jean Pouillon (1974).

Por essa visão, pressupõe-se que a personagem necessita ver-se como

outra mulher, diferentemente daquela que está vivendo todas as situações. Esse

afastamento de si mesma acaba permitindo-lhe uma visão mais ampla, exatamente


29

por não se sentir mais parte daquilo. Isso também possibilita uma apresentação, que

muitas vezes ou é dolorosa ou de difícil acesso à memória, de forma mais equilibrada,

ainda que esse equilíbrio beire mais à imaginação do que à narração das ações feitas:

Afasto-me das pessoas e observo-as de longe; nunca consigo vê-las


de muito perto, sem enquadramento. Enfrentando a imperfeição
aprendi a perdoar. Olho para a raiz das acções, e concluo que
também eu a podia ter cometido. A pior delas (PEDROSA, 2005,
p.47).

Assim, Jenny, devido à relativa distância em que se encontra da maior

parte do que é narrado, ao mesmo tempo em que possui uma melhor compreensão do

que ocorreu, também sente a vulnerabilidade da memória.

Nas palavras da própria Jenny:

Não me lembro da experiência da dor. Uma das vantagens do


envelhecimento é conseguirmos esquecer aquilo que não nos
apetece recordar (PEDROSA, 2005, p.27).

E não lhe apetecendo recordar, narra mais o que lhe apraz e como lhe

apraz, não se restringindo à cronologia, nem ao registro detalhado do que lhe ocorreu

durante os seus 75 anos. Sente-se, em outras palavras, livre para recriar seu passado

da maneira que melhor lhe parece.

De certa forma, temos também que questionar como Jenny, com sua visão

do presente, tendo, portanto, visão dos resultados e das consequências de suas ações,

poderá relatar o que sucedeu no passado, sem recriá-lo com seu conhecimento atual.
30

Vejamos:

(1) Só na noite do nosso casamento descobri que havia outra


pessoa que te soletrava António, querido (PEDROSA, 2005,
p.14).

(2) Não percebi porque é que nada sucedia de acordo com as


normas, mas nessa noite nem sequer fiquei triste. Estava
muito cansada de ter sorrido e dançado o dia inteiro, cansada
de ser bonita e espirituosa num vestido pesado de rainha,
pensei apenas que me querias proteger, como sempre, ou que
simplesmente te agradava prolongar um pouco mais o
perverso prazer da espera (PEDROSA, 2005, p.21).

(3) Só depois de casada soube dos motivos (traição de Pedro) que


te conduziram até aos meus braços, em Meteora. O Pedro
mencionou essa viagem numa discussão contigo. Estavam tão
exaltados que não vos deve ter ocorrido que eu pudesse ouvir-
vos, no quarto ao lado (PEDROSA, 2005, p.38).

(4) Quando agora olho tranquilamente para as fotografias da


vossa juventude, vejo dois rapazes elegantes procurando
atenuar pela distinção dos adereços – os chapéus de aba larga,
os foulards de seda lavrada, os coletes italianos, os casacos de
ombros largos – certas irregularidades de formas e traços.
Eram magros, o Pedro mais alto do que tu e quase macilento
(PEDROSA, 2005, p.15-6).

Os quatro trechos são lembrados tendo em vista seus desdobramentos, ou

seja, quando Jenny já havia tomado ciência de que António era homossexual, que se

casara com ela para ludibriar os olhos preconceituosos da sociedade. O segundo faz

menção específica à primeira noite de núpcias, quando o noivo a instala no quarto ao

lado, enquanto se dirige ao leito com o amante Pedro. No terceiro, esclarece-se que o

que levou António a pedi-la em casamento não fora o amor, mas as traições do

parceiro. Já o quarto demonstra um olhar tranquilo, quase desapaixonado de Jenny, ao


31

perceber que António não tinha um físico tão atraente como sempre imaginara, ao

contrário de como o via na juventude.

Essa duplicidade de visões – na qual, de um lado está a Jenny do passado,

que participa das ações e que, devido a essa proximidade, desconhece o desenrolar

posterior das mesmas, e de outro, está a Jenny que as narra, tendo em vista a

compreensão mais completa delas – permite-nos constatar um trabalho de

reelaboração do passado. Podemos nos questionar como a personagem poderá narrar

e, através de sua narração, fazer suas impressões e sensações estarem presentes outra

vez.

Podemos, assim, fazer a seguinte indagação:

Haverá uma “memória” para os últimos? [fenômenos psíquicos]


Não o acreditamos: um fenômeno psíquico não se reproduz. Temos
de reinventá-lo. A lembrança não é uma realidade e sim uma
operação: não existe lembrança, nós nos lembramos. Nós nos
lembramos captando em alguma coisa que nos esteja sendo dada
uma outra coisa que não nos é dada: a significação do passado
(POUILLON, 1974, p. 40).

Por isso, também, Jenny está mais próxima de uma reinvenção de seu

passado do que de um resgate do mesmo, porque se tratam, muitas vezes, de

tentativas de reproduções psíquicas, mais que de ações. Além disso, quando Pouillon

afirma que nos lembramos a partir de algo dado, está se referindo a algo dado no

presente. O passado, dessa forma, é buscado porque há um aspecto do presente que

nos remete até ele. No caso de Jenny, a tentativa de justificar-se diante de Camila

pode ser esse algo dado no presente. O objetivo da personagem, portanto, estaria mais
32

para justificar-se do que para revelar detalhes de sua trajetória. De outra forma, esse

resgate, independentemente da finalidade com que é feito – justificar-se ou apenas

reencontrar-se – aproxima-se mais da atribuição de um sentido e de uma

compreensão do passado do que simplesmente de uma tentativa vã de narrá-lo tal

como se deram as ações, como poderemos reparar mais adiante.

2.2 Rememorar, imaginar e compreender o passado

Percebe-se, no decorrer da leitura do romance, que a personagem Jenny

consegue, através da escrita do seu diário, esclarecer suas decisões, especialmente

quanto a ter optado por permanecer casada. É como se, depois de prosseguir sem

grandes reflexões, decidisse analisar amplamente não só suas atitudes, como também

as consequências que essas tiveram para si mesma e para toda sua família:

Hoje tenho a certeza de que deveríamos ter contado a Camila


o nosso segredo, tão pobremente encenado. Tenho a certeza
de que os nossos amigos, pelo menos a Josefa e o Manuel
Almada, percebiam a tua paixão pelo Pedro, e nos amavam
mais, aos três, por isso mesmo (PEDROSA, 2005, p.41).

Pouillon (1974) considera que essa necessidade de lembrar o passado é

própria do presente, que exige uma trajetória, uma causa, um motivo anterior e

arrazoado de ser. Essa exigência é extremamente sutil, podendo beirar o julgamento

de si mesmo. Todavia, o estudioso também ressalta a importância de não

desconsiderarmos que esse julgamento é posto diante de um eu de hoje, com suas

ideias sobre as coisas e sobre as pessoas, suas normas pessoais, indispensáveis para

avaliar o que ele foi; um julgamento, portanto, só pode ser formulado no presente:
33

Assim, o que ele tem em mente ao narrar-se é coincidir com seu ser
passado. Deseja, por certo, explicar-se. Apenas, ele se explica tal
como se explicava e seu esforço para julgar-se representa ainda um
esforço para reencontrar-se... (POUILLON, 1974, p.42).

Olney, outro estudioso do assunto, reitera a ideia de Pouillon ao

questionar essa relação sutil entre o presente e o passado, afirmando que o momento

em que nos lembramos, ou seja, o presente, acaba interferindo no passado como o

conhecemos:

Si bios es ‘el curso de la vida: el tiempo de vida’, y si ésta ya ha


tenido lugar, entonces habría que preguntarse cómo va a hacerse
presente otra vez, cómo va a ser revivida, cómo es posible devolver
a la vida lo que ya no se está viviendo, cuándo el ‘es’ ha sido
transformado en ‘era’, en qué momento el presente se introduce en
el enorme abismo del pasado, y si éste permanece enteramente real
en todos los sentidos entonces debe serlo dentro de un nuevo orden
de la realidad totalmente diferente del que forma el presente. Así,
un tipo de realidad corresponde al presente y otro tipo bastante
diferente de realidad (si efectivamente lo es) corresponde al pasado
(OLNEY, 1991, p.34).

Jenny se questiona quanto às mudanças que teriam tido lugar caso tivesse

revelado o segredo de seu matrimônio a Camila, e quanto ao relacionamento de seu

pai (Pedro) com António. Esse questionamento, contudo, torna-se evidente apenas

num momento posterior a tudo e a todos (após a morte dos amantes e após o

afastamento de Camila), o que lhe permite chegar a esse raciocínio, mais maduro e

com melhor possibilidade de avaliação.

A teorização de Philippe Lejeune sobre a autobiografia pode aqui ser

retomada para entendermos essa relação entre narrador e personagem, embora de

modo parcial, visto que o gênero autobiográfico implica a “narrativa retrospectiva em


34

prosa que a pessoa real faz de sua própria existência” (1991, p.48). Em outras

palavras, quando autor, narrador e personagem coincidem, identificando-se, aliás,

com o mesmo nome, enquanto na obra aqui analisada somente narrador e personagem

coincidem, já que sua autora não faz parte da história. Em todo o caso, Lejeune

auxilia-nos a compreender a relação entre a personagem que pratica as ações e a

personagem que os narra, através de uma analogia:

...el narrador asume, frente al personaje que él ha sido en el pasado,


la distancia de la mirada de la historia o la de la mirada de Dios, es
decir, de la eternidad, e introduce en su narración una
trascendencia, con la cual, en última instancia, se identifica
(LEJEUNE, 1991, p.49).

Essa “mirada de Deus” equivale à “visão por detrás”, de Pouillon, já que

ambas pressupõem um afastamento do olhar do narrador do seu próprio passado.

Lejeune (1991, p.58) também acrescenta que esse tipo de narração implica que a

personagem, enquanto conta feitos do passado, é também, ao mesmo tempo, a

personagem “atual” que está produzindo a narração. Isso posto, podemos afirmar que

Jenny é um sujeito duplo que não se converte novamente em singular, pois sempre

permanecerá a distância entre o sujeito que narra e o sujeito sobre quem algo é

narrado, mesmo que se trate da mesma pessoa. As palavras de Jeanne Marie

Gagnebin (2006), ao tratar de questões referentes ao tempo e à memória, leva-nos a

considerar, aliás, que Jenny, ao escrever seu diário, não só julga ou compreende o

passado, mas também transforma a vida de Camila, revelando seu segredo, ainda que

postumamente. Segundo a autora,


35

A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente,


em particular a estas estranhas ressurgências do passado no
presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado,
mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não
sendo um fim em si, visa à transformação do presente
(GAGNEBIN, 2006, p.55).

O presente que, conforme as palavras de Gagnebin, será transformado

pelo passado é o de Camila, cuja visão de sua própria família será irremediavelmente

alterada após a leitura do diário de Jenny.

O afastamento temporal que nos levou a refletir sobre a “mirada de

Deus”, ou sobre a “visão por detrás” considerando uma maior abrangência de visão

da narradora com relação ao seu próprio passado, leva-nos também a indagar o papel

da memória e do esquecimento. Como Jenny poderá nos contar uma matéria tão

distante sem permitir que o esquecimento acabe interferindo nessa narração? Ou

mais: como Jenny pode nos dar detalhes das ações e mesmo dos diálogos, sem

recorrer à recriação? De que forma, enfim, ela pode reencontrar-se com o passado

longínquo em vez de reproduzir somente uma releitura do mesmo?

Paul Ricoeur (2007), filósofo que reflete acerca da memória e suas

implicações, aponta para os perigos imanentes às ações e ao resgate das mesmas. Para

ele, existe uma ameaça permanente de confusão entre rememoração e imaginação,

posto que a lembrança é, antes de mais nada, uma imagem. Essa imagem, entretanto,

serviria como garantia de que algo ocorreu antes, ou seja, que a personagem tem um

passado e, portanto, uma trajetória que a levou àquela situação atual, dentro da

narrativa (RICOEUR, 2007, p.26).


36

Tendo isso em mente, analisemos cinco trechos de Jenny:

(1) Já estávamos casados há vários meses quando tu disseste:


“Você é tão intensa, Jennifer, nunca supus que uma mulher
pudesse ter tanta intensidade”. Foi talvez o maior elogio que
recebi de ti... (PEDROSA, 2005, p.18).

Nesse primeiro trecho, Jenny faz uma valoração do elogio que recebeu de

António, afirmando que acredita ter sido a maior qualidade que já havia escutado de

alguém. Essa valoração, por outro lado, é vista a partir do momento em que está

narrando a cena, ou seja, é a narradora quem julga e atribui um grau de importância

ao elogio, e não a personagem que está envolvida na ação. A ênfase, em suma, está

no dizer, e não no lembrar.

(2) O ciúme é o vírus do analfabetismo sentimental, creio até que


esta máxima foi inventada por ti (PEDROSA, 2005, p.44-5).

Já o segundo trecho demonstra outra peculiaridade do processo de

rememoração: a presença do esquecimento auxiliando a reinvenção da ação. Jenny,

ao perceber o ciúme que António sente de Daniele, mãe de Camila, com quem Pedro

teve um caso, procura resgatar uma máxima a respeito desse sentimento. Segundo

Jenny, talvez o próprio António tivesse usado essa expressão anteriormente. Por outro

lado, essa dúvida quanto à autoria não a impede de criticar o ciúme do esposo e, pelo

contrário, Jenny acaba utilizando-a como argumento contra António. Para Pouillon

(1974, p.35 a 37), a imaginação inventa, ultrapassando os dados perceptivos e, não se

sabe como, induzindo a partir dos mesmos. Entretanto, os seus resultados são apenas
37

uma releitura ou uma hipótese, de modo que só devemos utilizá-la quando não a

pudermos evitar. Mas essa releitura ou hipótese tem uma razão de ser. Sendo ou não o

autor da máxima, António já havia discursado a respeito do ciúme de Jenny com

relação a ele e ao amante Pedro. A releitura, então, é criada a partir de certos instantes

perceptivos.

Nas palavras de Pouillon, a imaginação tem uma utilização própria, de

que não se pode incumbir a percepção, e que consiste em fornecer o sentido daquilo

que se percebe. Por outro lado, a imaginação não intervém para substituir as ações. Se

assim o fosse, não estaríamos atribuindo à imaginação sua devida importância. É

devido a ela, continua o autor, que as visões do passado não são insuficientes e

podem ser analisadas sem que sejam dissolvidas (POUILLON, 1974, p.35 e 37).

Para Jenny, então, o mais relevante não é a comprovação da autoria, mas

demonstrar a futilidade do sentimento de António e até mesmo justificar o seu

próprio ciúme por ele.

(3) Acabei por aceitar sem culpa o papel de confidente de Natália,


até porque creio que o utilitarismo acanhado do tal Álvaro, que
falava da pintura como “um campo de produção de eficiências
cromáticas”, ou coisa parecida, teria tido um efeito devastador
sobre o espírito rigoroso de Camila (PEDROSA, 2005, p.57).

O terceiro excerto tem relação peculiarmente familiar com a memória em

si. Trata-se das impressões que se tem de uma ação ou de uma personalidade. De fato,

frequentemente, na impossibilidade de uma visão totalizante e onisciente, são as

impressões ou pré-julgamentos que dominam a releitura da ação. De outra forma,


38

essas impressões são individuais, mesmo porque parte de uma visão parcial. Jenny

formula um pré-julgamento: Álvaro devastaria o espírito de Camila, pelo que seria

melhor que ele se relacionasse com a neta Natália. A avó está, na verdade,

assenhorando-se de uma ideia que não é compartilhada por Camila, que está

apaixonada pelo rapaz mais jovem. Ricoeur (2007) analisa como essa diversidade de

visões atua sobre a formação da memória:

...a memória parece de fato ser radicalmente singular: minhas


lembranças não são as suas. Não se pode transferir as lembranças
de um para a memória do outro. Enquanto minha, a memória é um
modelo de minhadade, de possessão privada, para todas as
experiências vivenciadas pelo sujeito [...] a memória é passado, e
esse passado é o de minhas impressões; nesse sentido, esse passado
é meu passado. É por esse traço que a memória garante a
continuidade temporal da pessoa e, por esse viés, essa identidade...
(RICOEUR, 2007, p.107)

Por essa razão, o passado que Jenny narra em seu diário entra em choque

com o passado concebido pela filha Camila. Porque Jenny, ao narrar, está

apresentando mais do que simples ações, está descrevendo suas impressões, seus

julgamentos, seu modo de enxergar as pessoas. Eis o porquê do confronto: um ponto

em comum acaba sendo visto por focos de duas gerações distintas, o que nos leva a

ter acesso a duas diferentes versões do mesmo passado.

(4) A Natália ralhou comigo, da última vez que me veio ver –


ontem? Há um mês? Não sei. Ralhou comigo porque parece
que eu lhe disse: “Vais-te já embora? Não me digas que tens
um jantar. A chata da Jenny está sempre a perturbar a tua vida
mundana, não é, minha querida? (PEDROSA, 2005, p.89)”
39

O quarto fragmento faz referência a uma circunstância bem próxima, mas

que pode ser de rememoração mais difícil que a de um passado distante. Trata-se de

uma lembrança perturbada pela loucura de Jenny, em sua velhice. Assim sendo, a

personagem perde a noção de tempo e a certeza de suas próprias palavras. A

expressão “parece que” deixa evidente a confusão dos limites entre a memória e a

imaginação. Contudo, não é somente a loucura ou o esquecimento que influenciam a

releitura do passado. Para Gusdorf (1991), a narração passa de centrar-se nos feitos

do passado à elaboração desses feitos. A memória já não seria um mecanismo de

meras recordações, mas um elemento ativo que reelabora os acontecimentos, que dá

forma a uma ação que, sem esse processo ativo da memória, careceria de sentido: a

memória atuaria como redentora do passado ao convertê-lo num presente eterno.

Mais que resgate, portanto, a memória é, acima de tudo, reelaboração, e não mera

descrição.

(5) Estou deitada na relva, a comer pão com açúcar, às escondidas


da minha mãe. Ela diz que se eu continuar a comer açúcar os
meus dentes vão cair, e fico gorda, e não encontro nenhum
marido [...] Recupero momentos de uma memória de infância
que desconhecia (PEDROSA, 2005, p.90-1).

Já o quinto excerto, por sua vez, ao contrário do que ocorre no quarto

trecho, refere-se a uma lembrança de algo consideravelmente distante: a infância.

Cabe aqui mencionar que isso lhe ocorre nos momentos de loucura, estando, portanto,

ainda mais suscetível à reinvenção. O risco é considerável: Jenny afirma que resgata

aspectos da infância que até então desconhecia. Além disso, estar deitada na relva a

comer pão com açúcar e a crítica da mãe quanto aos riscos de perder os dentes pode
40

ter relação com o momento presente, no qual não possui mais essa dentição, além de

se recusar a usar prótese. Alimentando-se somente de líquidos na velhice, o pão com

açúcar situa-se entre seu desejo no presente e uma memória difusa do passado.

2.3 O que foi retido pela memória de Jenny e por quê?

Ao lermos o romance, notamos que Jenny relembra certas ações que,

independentemente de serem antigas ou recentes, sofrem com as dificuldades de

retenção da memória. O que permite que Jenny se recorde bem dessas ações,

portanto, não é o distanciamento temporal, e sim o quanto pareceram marcantes a

essa personagem. Ela, diversas vezes, diz que sente dificuldade em lembrar-se do que

falou com a neta durante a manhã do mesmo dia, mas que consegue escrever em seu

diário, páginas e mais páginas sobre o momento em que conheceu António na

juventude, ou sobre o sentimento de receber Camila nos braços. Essa lembrança que

tem, na verdade, também necessita de uma arrazoada justificativa: Jenny não escreve

em seu diário somente para extravasar suas emoções e pensamentos; pelo contrário,

escrever possibilita que o relacionamento entre os três (António, Pedro e Jenny) seja

esclarecido diante dos olhos de Camila. Sendo essa uma de suas finalidades, explícita

ou não, a própria matéria a ser escrita no diário acaba sendo influenciada.


41

Vejamos:

(1) Uma vez chegaste a deitar-me no chão e encheste-me o


peito de dentadas e lágrimas, estiveste quase a possuir-me
e depois pediste desculpa, eu disse-te “vem para dentro de
mim, não tenhas medo”, e tu disseste: “Não posso, meu
anjo. Não seria justo para si. Eu sou dele, Jennifer. Se
quiser, abandone-me” (PEDROSA, 2005, p.18).

(2) “Claro, Jenny”, disse ele, e depois confessou, num sorriso


melancólico: “De qualquer maneira, minha querida, já
nem temos idade para essas novidades. Não sei se a
menina passou pela experiência física do amor, nem estou,
evidentemente, a pedir-lhe essa confidência. Mas caso
nunca lhe tenha ocorrido provar as iguarias da carne, seria
um insulto à sua belíssima sensualidade ousar tomar eu
agora esse privilégio. Contudo, gostaria que soubesse que
sempre nutri por si um terno desejo, e que se não me
sentisse seduzido por si não lhe pediria para ser minha
mulher” (PEDROSA, 2005, p.50).

Os excertos reproduzem dois diálogos distintos: o primeiro, referente ao

momento em que António é quase seduzido por Jenny, mas acaba resistindo; o

segundo, relativo à pós-morte de António, quando Pedro pede Jenny em casamento,

sob a condição imposta por ela de continuarem convivendo como irmãos. Ambas as

situações se dão num espaço de tempo relativamente distantes, mas podem ser

analisados num mesmo patamar segundo o que representam a Jenny. A lembrança de

ambas as cenas, em termos de importância, não é questionada. Por outro lado, a

opção da narradora pelo discurso direto permite-nos questionar quanto à coerência do

que está descrevendo. As palavras de António são mais breves e marcantes, podendo

ser retidas mais facilmente pela memória. Entretanto, o mesmo não se pode afirmar

do diálogo tido com Pedro. Embora suas palavras sejam bastante significativas e
42

tenham sido proferidas num tempo não muito longínquo, o uso do discurso direto

parece não ser o mais apropriado para representar um discurso relativamente extenso.

Por sua vez, vale ressaltar que o diário, antes de mais nada, é um meio pelo

qual a personagem pode se expressar para si mesma ou para os outros, e, assim sendo,

a liberdade com que escreve é mais significativa que a necessidade de descrever sua

trajetória tal como se deu. Não questionemos, pois, os meios pelos quais Jenny revela

suas ações, mas pensemos nos objetivos que a levaram a escrever o seu diário.

Segundo Weintraub, “Esta reordenación o reorganización de la vida pasada se debe a

que ésta está siendo interpretada en función del sentido (o sentidos) que ahora se cree

que posee” (WEINTRAUB, 1991, p.21). As cenas resgatadas, então, valem por uma

necessidade que se apresenta no presente, ou seja, no momento em que Jenny escreve

seu diário. O sentido que tiveram em seu passado, isso a personagem não consegue

transmitir, ao contrário, somente expressa o sentido que agora acredita que as cenas

possuem.

A seguir, mais algumas exemplificações sobre os processos narrativos de

retenção da memória. Enquanto acima nos detivemos na análise dos efeitos do

discurso direto, a seguir refletimos sobre as ações em si. São três fragmentos que

impressionaram Jenny de alguma forma, visto retratarem a maternidade, os

sentimentos, as angústias, a paixão, enfim. Não é difícil perceber que Jenny acaba

retendo esses episódios em sua memória, atribuindo valores diferenciados a eles:

(1) O desespero punha-te o fulgor de oiro, acho mesmo que te


transfiguraste no dia em que a Camila apareceu. “Como
pudeste trair-me tanto, Pedro?” Choraste nos braços dele a
43

noite inteira, aos poucos ele convenceu-te a aceitá-la,


ofereceu-ta entre pedidos de perdão e juras de amor.
Assim me deste a filha que me impediu de enlouquecer
(PEDROSA, 2005, p.19).

Em primeiro lugar, sem muitos detalhes, ela descreve o momento em que

recebeu Camila nos braços e a revolta de António diante da traição de Pedro. Em

outras circunstâncias, certas personagens poderiam retratar o dia em que deram à luz

a um filho. No caso de Jenny, o equivalente se dá quando Danielle deixa Camila com

o pai. Esse se torna, assim sendo, o seu momento de maternidade. Nada a impede,

entretanto, de focar sua atenção na reação de António: a transfiguração que percebe,

bem como sua atitude, é descrita precisamente, o que acaba por apresentar não

somente o comportamento de António, mas a intensidade do amor de Jenny, que não

deixa de observar o esposo em nenhum momento sequer.

(2) Não consigo recordar o sabor de nenhum dos muitos


beijos que me deram pelos recantos destes longos
corredores, nem sequer o nome dos homens, as suas
palavras esbraseadas. A memória torna-se-me grossa e
aguçada como uma agulha de gramofone, repetindo até à
loucura as mesmas notas. Lembro-me daquela ocasião
única em que senti a terra molhada do jardim cedendo
debaixo das minhas costas, a chuva vergastando-me o
rosto e a cabeça de um estranho tentando afogar-se em
meu peito (PEDROSA, 2005, p.53).

Já esse segundo trecho demonstra a irrelevância dos beijos que Jenny

recebeu de outros homens que não o de seu esposo. O que não lhe apetece recordar é

vantajoso esquecer. A memória torna-se “grossa” e “aguçada”, concentrando-se

apenas nas mesmas notas, numa repetição nem sempre desejável.


44

Weintraub (1991) comenta que são os aspectos exteriores que formam

parte da experiência das narradoras. Entretanto, acrescenta o estudioso, essa

experiência é modificada pelo aspecto interior. Assim, todo feito externo alcança

determinado grau de valor sintomático que se deriva de sua absorção e reflexo

internos.

O externo, em que a narradora recebe diversos beijos ardentes, alcança

um grau interior de valoração. É somente uma experiência que considera merecedora

de resgate: quando, num dia chuvoso, tem no peito a cabeça de um estranho. O

esquecimento de outras situações similares, nesse caso, parece ser proposital: é o seu

interior interferindo diretamente na sua memória.

(3) [...] a mais forte recordação dessa noite é ainda a dos teus
olhos inesperadamente fascinados por mim. Eu subia o
caminho do lago, encharcada e aturdida, e tu viraste a
cabeça e ficaste, como uma estátua inacabada, a olhar para
mim. Esqueceste-te da pessoa que tinhas diante de ti e
avançaste, flutuando, na minha direcção. Paraste a um
metro de mim, e ficaste a derramar o lume lento do teu
olhar sobre o meu corpo. Vi a nossa vida inteira, passada e
futura, desfilando em espiral à nossa volta, como se o
universo terminasse ali. Então disseste: “Tanta beleza dá
vontade de morrer, Jennifer” (PEDROSA, 2005, p.54-55).

O esquecimento, no terceiro fragmento, não parece intervir nas

lembranças de Jenny, a exemplo do que ocorre no segundo. Apesar de estar aturdida

quando um estranho a tenta seduzir sob a chuva (trecho 2), não deixa de observar a

reação de desejo inesperado de António, bem como suas palavras intensas quanto à

sua beleza.
45

O que vem a ser retido pela memória, portanto? Percebemos que as

lembranças estão em constante embate com o tempo, um poderoso aliado do

esquecimento. De outra forma, nem mesmo o tempo parece páreo para a relevância

com que ela enxerga determinados eventos. Segundo palavras de Ricoeur (2007), já

mencionadas anteriormente, o passado tem caráter de uma “minhadade”: Jenny

lembra-se a partir de uma valorização que parte da sua interioridade. Caso esse

mesmo passado fosse retomado por outra personagem, jamais se igualaria ao que

Jenny declara em seu diário. Sabemos, pois, somente do passado de Jenny, resgatado

a partir de uma visão única e singular.

Todavia, apesar dessa “minhadade” da forma como se concebe o passado

ou até mesmo se percebe o presente, determinadas situações-hábitos tornam-se mais

visíveis ao olhar, à medida que expõem a experiências consecutivamente similares.

Analisemos:

(1) Costumavas dizer que ser amigo de alguém é ter a


coragem de conhecer o melhor e o pior dessa pessoa, e
guardar esse pior, por mais peso que tenha, no silêncio do
nosso coração. Na realidade, nunca ouvi uma definição de
amizade mais precisa e poética. Vezes sem conta, a
clarividência atravessava os teus monólogos num voo
rasante (PEDROSA, 2005, p.40).

(2) Tu punhas sempre defeitos na comida, ou os ovos não


estavam frescos, ou a vitela estava demasiado assada, ou
então era o vinho, que não estava nunca na temperatura
certa. [...] É destes pormenores que tenho saudades, das
brigas causadas por um copo mal lavado ou da pequena
maledicência sobre os nossos amigos. É nestes
pormenores que a memória se concentra, projectando uma
luz tão intensa sobre esses dias mortos que às vezes temo
que já não sejam lembranças, mas criações puras da minha
solidão (PEDROSA, 2005, p.69).
46

Nos excertos acima, as expressões “costumavas”, “vezes sem conta”,

“sempre”, bem como o uso do pretérito imperfeito, marcam ações de António,

repetidas frequentemente e, por isso, mais facilmente observáveis por Jenny. Trata-se

de ações corriqueiras, com certa irrelevância, mas que, apesar disso, a narradora faz

questão de registrar. Tais pormenores são, aliás, atentamente requisitados pela

memória, principalmente à medida que a personagem envelhece, como se houvesse a

necessidade de existir uma história para dar um fim à solidão. O uso exaustivo da

memória, resultando na tentativa de alcançar aquilo que ela não nos pode dar, é, como

há de se convir, imaginação. Como afirma Jenny, é tão intensa a busca por seu

passado, tempo em que António ainda era vivo, que já não mais diferencia se é

memória ou criação de sua solidão. Nas palavras de Pouillon, “Na realidade, nós só

nos compreendemos a nós mesmos imaginando-nos” (POUILLON, 1974, p.38),

sendo, dessa forma, compatível que a imaginação esteja insistentemente presente em

quaisquer lembranças que Jenny tiver.


47

3 O ÁLBUM DE CAMILA

3.1 História pessoal e política

Aqui, nesta segunda parte do romance, temos Camila, que se torna, a partir de

então, a narradora protagonista, relatando sua trajetória por meio de um álbum

fotográfico. Em cada capítulo, a personagem descreve uma nova fotografia por

completo – suas nuances, seus detalhes, as personagens fotografadas e o cenário. Não

há nenhuma imagem nesta edição, a única forma pela qual o leitor pode visualizá-las,

portanto, é através da descrição da própria Camila. Após essa descrição, a

personagem muda de estratégia, passando a lembrar-se do que ocorreu naquela

determinada situação fotografada, ou mesmo, deixando-se guiar por outras

lembranças, retomadas espontaneamente, graças à imagem na qual fixa seu olhar.

Segundo ela, o motivo pelo qual se tornara fotógrafa foi a tentativa de registrar os

seus principais momentos, como se, ao fazer isso, conseguisse apoderar-se desses

instantes.

Camila nasce do encontro de Pedro e Danielle, no verão de 1941. A mãe

era uma judia, que, após perder os pais num campo de concentração, dedicou-se a

conseguir vistos para seus compatriotas franceses para entrar nos Estados Unidos.
48

Nas palavras de Sérgio (1972), para se mencionar um aspecto histórico real e ajudar-

nos a compreender melhor o romance, Lisboa serviu como refúgio temporário de

muitos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, graças ao cônsul Aristides de

Sousa Mendes, na França (1939-1940), que ajudou dezenas de milhares de refugiados

a emigrar, via Portugal, para os Estados Unidos. A emissão de vistos à revelia do

Governo de Salazar fez com que o cônsul fosse preso em 1940, com a queda da

França. Esse fato histórico, como se pode perceber, parece ter inspirado Inês Pedrosa

na criação dessa personagem.

Já em 1943, a situação de Danielle se agravou e ela se viu obrigada a

entregar a filha nos braços de Pedro. Tempos mais tarde, soube-se de sua morte em

um campo de concentração, a exemplo do que ocorrera com seus pais. Jenny e

Camila, por outro lado, não sofreram diretamente com a violência da guerra. Aliás,

não faria sentido que sofressem, pois, segundo Sérgio (1972), o contexto em que

estão inseridas é o de um país declarado como neutro (1939, por Salazar), além de a

Alemanha ter desistido da Operação Félix, ou seja, do plano de invasão de Portugal,

em parceria com a Espanha, já que outras prioridades acabaram surgindo. Além disso,

os objetivos políticos não estavam centrados na Europa, e sim no domínio

ultramarino. Posteriormente, isso abalará consideravelmente a sociedade portuguesa.

Outra contextualização importante a ser feita é quanto ao final dos anos

50, quando, no romance de Inês Pedrosa, Camila tinha 18 e acabou sendo presa por

distribuir panfletos subversivos. Ao regressar para casa, depois de um mês na cadeia,

não revelou diretamente a ninguém o que lhe sucedera, mas, em seguida, por meio de

seu álbum, menciona que sofrera torturas e ameaças. A ficção nos reporta a uma crise
49

real e séria, ocorrida durante o Estado Novo, durante a ditadura, quando, em 1958,

Américo de Deus Rodrigues Tomás foi eleito Presidente da República supostamente

de maneira fraudulenta. Devido à agitação social, desordem e intranquilidade

públicas ocasionadas pelos resultados evidentemente contrários à vontade da maioria

da população, Salazar faz com que as eleições deixem de ser diretas, passando-as para

a responsabilidade de um colégio eleitoral, constituído exclusivamente por membros

da União Nacional. Dessa forma, a manifestação pública teve de ser rigorosamente

punida, a fim de manter-se o posicionamento do governo. Possivelmente é a isso que

o personagem Veleno, a quem Jenny pedira ajuda para libertar a filha, esteja

referindo-se ao dar como resposta que não podia fazer nada, visto estarem em tempo

de alvoroço.

Posteriormente, em 1964, Camila vai para Moçambique, desta vez como

repórter, com o objetivo de mostrar à Nação Portuguesa os grandes feitos de seus

soldados, durante a Guerra do Ultramar, também conhecida como Guerra de

Libertação. Essa guerra, iniciada em 1961 nas colônias da África, dividiu a sociedade

portuguesa. O povo não sabia até que ponto deveria apoiar o governo a manter uma

ideologia na qual considerava seu território uma nação pluricontinental e multirracial,

ao passo que os movimentos de libertação justificavam-se com base no princípio

inalienável de autodeterminação e independência, num quadro internacional de apoio

e incentivo à luta.

Em Moçambique, por sua vez, o movimento de libertação se iniciou

somente em 1964, com um ataque a Chai por guerrilheiros da FRELIMO. Em

novembro, quando Camila chega à terra africana, sabe-se que as tropas portuguesas
50

começam a sofrer suas primeiras baixas. Inês Pedrosa, aproveitando esse contexto

histórico, cria um cenário em que Camila conhece Xavier, um guerrilheiro

moçambicano que teria participado no ataque da FRELIMO ao quartel de Mueda. O

encontro, por outro lado, dá-se em uma zona pacífica, em Lourenço Marques, visto os

militares portugueses preferirem poupar a mídia de conhecer a excessiva violência

que predominava em certos locais.

Assim, é em meio à Guerra Ultramarina que Camila gera Natália, sua

“filha de África”. Não volta a rever Xavier, cuja cabeça aparecera espetada numa

árvore, segundo lhe informaram posteriormente.

Esse período de luta pela libertação das colônias só teve fim com a

Revolução dos Cravos em 25 de Abril de 1974, com a mudança de rumo político do

país. Os novos dirigentes anunciavam a democratização e passaram a negociar as

fases de transição com os movimentos de libertação empenhados na luta armada. Em

Portugal, esse foi um período de alegria, pois representou o fim da ditadura e trouxe a

expectativa do fim próximo da Guerra Ultramarina, o que resultaria no regresso de

milhares de militares às suas famílias. Inês Pedrosa também utiliza esse fato histórico

em sua narrativa, representando-o por meio da personagem Camila, que sai às ruas

junto à filha Natália, a fotografar a felicidade da população por um dia tão

significativo para Portugal.

Camila, portanto, é uma personagem consideravelmente diferente de

Jenny, sua mãe de criação – seja pelas influências do período, seja por sua índole de

fazer parte de uma geração que necessitava modificar os valores de uma época em
51

que as mulheres necessitavam lutar por seu espaço. Assim, ao contrário de Jenny, que

não se divorciara para salvar as aparências, Camila nem sequer se casara, o que, por

si só, já revela uma mudança drástica de sua trajetória de vida.

Camila, então, procura revelar essas informações, ou as impressões que

teve das mesmas, por meio de seu álbum, complementando-o com descrições ou

comentários de suas fotografias. É por meio disso, então, que Camila busca ter o

acesso ao passado de maneira mais facilitada, o que, mesmo assim, não significa uma

retomada simples de suas ações.

3.2 Visões em contraponto

Atentemos para as três seguintes declarações de Camila:

(1) O meu pai e o tio Tó Zé não davam por nada; deitavam-se


sempre muito tarde, a maior parte das vezes saíam para o
Casino às onze da noite e só voltavam ao romper da manhã.
Era evidente que viviam encadeados um pelo outro, mas nessa
época eu ainda não queria pensar no significado desse
fascínio. Precisava de uma ideia de pai, por tênue que fosse
(PEDROSA, 2005, p.104).

(2) Mas quando li o diário de Jenny compreendi que o meu


pai não tinha sido o sedutor inveterado que, com grande
tristeza, o julgava. Passei a vida inteira a mantê-lo
delicadamente à distância, para não ter de enfrentar aquilo que
me parecia ser a sua falta de amor por mim, e, antes de mim,
pela minha mãe, e, antes da minha mãe, por qualquer ser
humano. A sua veemência parecia-me uma afectação de salão,
e a sua dedicação extrema ao António uma subserviente
cobardia (PEDROSA, 2005, p.135).
52

(3) Querida Natália, o diário de Jenny perturbou-me muito


porque me obrigou a ver, pela primeira vez, para além da
confortável protecção das imagens feitas, das descrições
científicas da personalidade. Pela mão dela, o teu avô Pedro
tornou-se finalmente o meu pai. E só a mim mesma posso
julgar severamente, por não ter sabido avançar para além da
letra visível das palavras, até à voz surdamente uníssona
daqueles três corações. Apesar disso, consolo-me na definição
do meu retrato, à luz de Jenny. Tratarei de não me fustigar
demasiado com recriminações póstumas, para não oxidar essa
espécie de heroísmo minimal próprio da filha que ela tanto
mereceu (PEDROSA, 2005, p.135).

As palavras de Camila, nos três fragmentos, demonstram o conflito entre

duas visões: a primeira referente à forma como, na época, enxergava o

relacionamento amoroso entre os três; a segunda, à compreensão das ações tendo em

vista seu resultado posterior, o que somente pode ocorrer com o distanciamento da

personagem.

Na verdade, a primeira concepção, originada no momento em que as

ações ocorrem, assemelha-se mais a uma busca de proteção por meio de imagens

criadas, o que beira à reinterpretação. Como ela mesma afirma no excerto 1: Camila

precisava de uma ideia de pai, qualquer ideia que fosse. O distanciamento que

manteve desse pai, o qual julgava um sedutor sem alma nem caráter, acaba também

se qualificando como uma fuga (trecho 2). De fato, Camila pensava que Pedro não

tinha sentimentos por não ter se relacionado com ninguém (era no que acreditava

naquela época, quando desconhecia o caso entre António e ele) e, sendo assim, não

amava nem a ela nem a sua mãe, Danielle. Via o pai, portanto, como um incapaz de

amar e a distância de um ser sem sentimentos a resguardaria de maiores sofrimentos.

Outra razão para esse afastamento poderia ser não dar a oportunidade de lhe
53

revelarem o que pressentia em sua alma quanto ao estranho relacionamento do pai

com António.

Com a leitura do diário, por sua vez, depara-se com uma grande

reviravolta – o que havia julgado não passava de engano, dado não só pela sua fuga

como também por sua visão parcial. Revela, então, que através das palavras de Jenny,

pôde, enfim, compreender o passado e aceitar o pai (trecho 3). Jenny, dessa forma,

estava certa ao escrever que acreditava que deveriam ter revelado tudo a Camila

desde o início, apesar do temor da não aceitação dela e do preconceito da sociedade.

Essa dualidade demonstrada nos três excertos anteriores mostra a

divergência entre percepção, imaginação e compreensão. Enquanto a percepção se dá

no momento em que ocorrem as ações e é influenciada, em grande parte, pelo filtro

que cabe a Camila utilizar (o que pode levá-la à reinvenção); a compreensão se dá

somente ao ler o diário de Jenny, quando pode entender alguns episódios de sua

infância e adolescência. Pouillon (1974) esclarece-nos que a percepção é

acompanhada pela imaginação. A primeira tem relação direta com as ações; a

segunda, por sua vez, somente entraria em cena para suprir as deficiências da

percepção.

Assim, estando, como afirma Pouillon, a percepção de Camila deficiente

diante do homossexualismo do pai, a imaginação entraria em cena, o que a faz

enxergar Pedro como um sedutor sem sentimentos e sem consideração. A visão

parcial que tem acaba sustentando sua imaginação, o que não pode, apesar disso, ser

visto negativamente, pois é graças à percepção aliada à imaginação que possuía uma
54

concepção arrazoada de sua juventude. Como afirma o estudioso, esse recurso à

imaginação para captar o que não se oferece à percepção não denota uma impotência

lamentável; não estamos deixando escapar o psíquico ao imaginar. A própria

definição clássica de imaginação é: fazer existir para nós algo que não existe. Por

outro lado, continua o pesquisador, “se é alguma coisa, essa coisa existe; portanto,

esta frase só pode significar: algo que não é material, que não se oferece à percepção,

podendo, entretanto, apresentar-se de outra maneira: à imaginação” (POUILLON,

1974, p.37).

Essa imaginação e essa percepção de Camila, por sua vez, mudam graças

à compreensão do segredo revelado por Jenny. Resulta daí a “visão por detrás”,

conceituada por Pouillon , a partir da qual a personagem se vê como outra a resgatar

sua história. Daí que Camila não se reconheça como a mesma da infância e da

adolescência e esse afastamento de si é o que lhe permite reorganizar sua trajetória,

deixando-a mais compreensível a si mesma. Nas palavras de Pouillon, quanto a essa

análise de si próprio:

O protótipo dessa compreensão nos é fornecido pela reflexão que


cada um de nós pode fazer sobre a sua própria pessoa, e na qual nos
transformamos como que em objetos para nós mesmos, assim como
por todos os casos em que nos julgamos capazes de falar dos
sentimentos, dos pensamentos de outrem sem os fazer nossos. Este
modo de compreensão representa um modo de conhecimento; com
efeito, é no conhecimento que o sujeito conhecedor se distancia do
objeto conhecido, razão pela qual a reflexão é considerada como
um desdobramento (POUILLON, 1974, p.62).

Camila, portanto, desdobra-se a fim de compreender a si e ao pai. Uma

controvérsia parece ser a de que quanto mais longe está do passado, mais próxima
55

está de compreendê-lo, pois é através desse afastamento que consegue reestruturar o

que antes parecia como peças de quebra-cabeça que não se encaixavam devidamente.

Por outro lado, essa controvérsia é amplamente plausível, à medida que refletimos

sobre a posição de Camila no seu círculo familiar: não lhe é permitida clareza no

momento em que seu olhar encontra-se no desenrolar das ações. É necessário, então,

ocorrer uma visão de si para si como sendo outrem para analisar adequadamente seu

papel naquela família.

Por sua vez, não foi apenas o diário de Jenny o responsável por essa

mudança de perspectiva. O amadurecimento e a possibilidade de maior reflexão

acerca do passado são bastante expressivos na compreensão ou reinterpretação do

mesmo. O distanciamento, à medida que não inclui tanta intensidade de sentimentos,

abre espaço a uma maior objetividade na análise das ações, permitindo um

entendimento mais coerente.

A “visão por detrás” ou a “mirada de Deus”, como podemos perceber,

colabora para uma nova reordenação também no que corresponde ao relacionamento

com a filha Natália:

Estremeci de raiva e desespero naquele dia em que ela me


apareceu ao pequeno-almoço, elegantíssima, no meu vestido
vermelho. Pensava homenagear-me, ou mostrar-se digna do
meu apreço, mas isso vejo-o agora. Naquele momento, só me
apercebi de que era uma bela mulher de dezassete anos na
qual a minha roupa brilhava mais do que em mim (PEDROSA,
2005, p.139).
56

O egocentrismo ou mesmo a vaidade, no trecho acima, ao ver Natália

com seu vestido vermelho, cegam-lhe a inocente tentativa da filha de tentar agradar-

lhe. A dualidade de visões é evidente: uma dada no momento em que vê Natália, o

que provoca em Camila uma ira descabida; a outra dada no instante em que se lembra

da cena, que é quando tem a melhor compreensão do ocorrido.

Todo o relato de Camila, cabe acrescentar, dá-se a partir de um ponto de

vista com o qual consegue focar com mais neutralidade o seu passado. Essa distância

é essencial para uma melhor fluidez da narrativa, segundo nos esclarece Mallea:

Justeza de punto de vista quiere decir ya primera prueba de


inteligencia estimativa: quien se coloca en la mejor posición está
mostrando hasta qué punto es sagaz y listo y hasta qué sabio punto
aleja para no ser devorado por ella la materia que tiene delante (…)
Sin esta relación de mutua distancia – o de mutuo respeto – todo se
desconcierta y los volúmenes desplazados aparecen agresivos [...]
Las reglas aparecen rotas, la disonancia triunfa sobre el concierto
(MALLEA, 1965, p.46-7).

Mallea concorda, em outras palavras, com a noção abordada por Pouillon

de “visão por detrás” e por Lejeune de “mirada de Deus” ao tratar desse

distanciamento e da justeza do ponto de vista: somente quando o olhar de Camila está

afastado da cena é que melhor a compreende.

Talvez nos caiba indagar por que certas situações, tão facilmente

interpretáveis, eram incompreendidas por Camila. Por que, por exemplo, o

relacionamento entre Pedro e António, apesar de óbvio para muitos, era imperceptível

à personagem? Por que, além disso, ela não percebia as intenções da filha que nem

sempre eram desafiá-la, mas trazê-la para si? Mallea explica:


57

¿Qué nos pasa? – nos hemos preguntado. - ¿Qué nos está


pasando? ¿Por qué no acertamos? Y lo que nos estaba
pasando era que no nos habíamos colocado ante lo que
enfrentábamos a la distancia justa; que no lo habíamos visto
desde el debido lugar (MALLEA, 1965, p.48).

E essa distância adequada, como vimos anteriormente, serve como

reorganizadora da cena, pois ameniza as fragilidades sentimentais. Na leitura do

romance, percebemos que Camila, assim como Jenny, teve uma trajetória árdua e

repleta de contratempos, pois, enquanto uma sofria com o amor não correspondido de

António, a outra sofria com o aparente desamor do pai, com o abandono da

verdadeira mãe e com o falecimento dos dois homens com quem se envolvera, além

de ter sido presa e torturada no período ditatorial. Tudo isso, embora não somente

isso, acaba dificultando a visão no momento em que se dão as ações, quando os

sentimentos vêm à tona, sobrepondo-se à razão. O tempo, dessa forma, torna-se um

aliado do esquecimento ou apaziguamento no que se refere às emoções intensas, que

em nada colaboram para uma ordenação do passado. O tempo não apaga, contudo, os

episódios em si, cuja relevância determina seu espaço na memória:

Descobri mais tarde que aqueles dias de tortura tinham sido


muito úteis para aferir a minha percepção de fotógrafa. Deixei
de me fascinar por transparências, sobreposições, pela
imediata beleza que comove a frio. Deixei também de
acreditar no Partido, que sacudia os que se deixavam apanhar
à primeira manifestação, no auge da juventude. De qualquer
forma, julgo que me atirei para a linha da frente do perigo por
desilusão (PEDROSA, 2005, p.101).

Desiludida com a morte de seu primeiro amor, Camila percebe que suas

atitudes foram suicidas e que, de alguma forma, inconscientemente, agiu no intento


58

de ser presa. A personagem reconhece suas atitudes, vendo-as como se tivessem sido

praticadas por outrem. Essa alteridade é o que lhe permite clareza, correspondendo ao

que afirma Ricoeur:

Mas o pequeno milagre do reconhecimento é de envolver em


presença a alteridade do decorrido. É nisso que a lembrança é re-
(a)presentação, no duplo sentido do re-: para trás e de novo
(RICOEUR, 2007, p.56).

3.3 Entre compreender e reinventar

Camila, em princípio, acredita que, através das fotografias, o passado

acaba sendo registrado concretamente. Suas lembranças surgem, de fato, a partir das

imagens de seu álbum que, consequentemente, remete-a a outras lembranças e assim

sucessivamente. Indaga-se, porém, sobre a forma de essas imagens condizerem com

sua trajetória. Acrescenta-se a isso a estratégia de Camila de, ao tentar resgatar esse

passado, ir além das fotografias, recorrendo não apenas à mera descrição das mesmas,

mas principalmente, à narração de episódios relacionados a elas.

Vejamos um excerto em que a personagem narra o momento e a situação

em que fotografa a amiga, logo após o golpe militar de 25 de abril, em Portugal.

Enquanto comemora-se a nova fase política, Armanda, em meio às lágrimas de

alegria do povo, sofre pela separação solicitada pelo marido:

No seu nítido recorte, esta fotografia prova-me que todas as


imagens, as mais sinceras delas, podem ser uma fraude. A
água dos olhos de Armanda brilha como um rio acabado de
59

escapar às comportas; o cravo, as mulheres que a abraçam


sorrindo, o sol nos cabelos, as crianças, nada revela o drama
trivial que este instantâneo do 25 de Abril esconde
(PEDROSA, 2005, p.128).

Trechos como o que acabamos de apresentar demonstram que a

possibilidade de incorreção na interpretação das ações é comum, especialmente em se

tratando de resgate do passado. Isso porque, se considerássemos apenas as

informações históricas, conceberíamos que os sentimentos de Armanda seriam de

alegria pelo fim da ditadura. Entretanto, como Camila, a fotógrafa, acaba ouvindo as

razões das lágrimas da amiga, reconhece que a mensagem aparente daquela imagem é

falsa.

Outro ponto digno de nota diz respeito à seguinte indagação: como

resgatar o passado – além de olhar para ele num caráter de alteridade, a partir do qual

a narradora não se dissolve na personagem – se Camila acaba esquecendo detalhes

que poderiam ser essenciais no momento em que se deu a percepção? E mais: o que

dizer de ações que, mesmo sendo principais, acabaram não sendo levadas em conta,

por motivos os mais variados? É o que acontece quando Camila entra em estado de

choque, ao ver seu amado morrer, fulminado por um raio:

O seu corpo cintilante saía das ondas, eu preparava-me para


pegar na câmara para o fixar uma vez mais quando o
relâmpago se abateu sobre ele e me desmoronou o mundo.
Não me lembro do que se passou depois. Retive apenas a
acusação da mãe dele, os olhos secos com que sacudiu as
minhas mãos que procuravam a carne da sua carne
(PEDROSA, 2005, p.106).
60

Camila simplesmente não se lembra do que ocorreu depois da morte de

seu grande amor: se chamou por socorro; se o socorro foi dado e por quem; como

reagiu diante de tudo; se foi ela quem avisou a sogra ou como a sogra foi parar a sua

frente, a acusar-lhe pela morte do filho. O estado de choque, nesta situação, colabora

para esse “esquecimento” de Camila. Esse é um exemplo de que o silêncio pode ser

tão significativo quanto o dizer. Por outro lado, não são apenas momentos tensos que

fragilizam a retenção, já que a memória, por si só, possui essa característica. Nas

palavras de Pouillon (1974), o retorno ao passado permite mais uma compreensão do

que uma reprodução do mesmo. Assim sendo, não cabe recorrer à memória, quando

essa falta, pois, na ausência, ela será substituída pela imaginação ou, em outras

palavras, pela mentira. Por outro lado, acrescenta o estudioso:

Esse passado não é artificial com relação a um passado real, porém


desconhecido: é o meu único passado psicológico, aquele que eu
faço existir e que sem isto não pode existir. Tornamos a cair na
definição da imaginação (POUILLON, 1974, p.40).

Por sua vez, Inês Pedrosa, ao escolher esse ponto de vista para a segunda

protagonista de seu romance, permite que Camila crie e recrie sua trajetória,

propiciando um vai-e-vem no tempo que a auxilia numa melhor organização das

ações, já que elas podem ser narradas tendo já em vista os propósitos que eram

desconhecidos no passado. Para Weintraub:

En momentos tales de crisis vital tiene lugar una experiencia de


choque en la que se clarifica una cuestión personal que tenía un
carácter difuso y por la que la personalidad adquiere una mayor
solidez. Es como si se corriera un velo y ahora se comenzasen a ver
con claridad aquellos propósitos que antes eran confusos.
61

Así, el curso de la vida se ve como si estuviera formado por una


serie de líneas conectadas entre sí que previamente se encontraban
ocultas y que ahora convergen en una dirección en la que
anteriormente prevalecían impulsos e intenciones descoordinadas
(WEINTRAUB, 1991, p.20).

Assim sendo, analisando a aplicabilidade das palavras de Weintraub na

análise do romance, a retomada do passado apresenta-se com um dilema duplo: a

narradora pode estar exageradamente próxima da cena, e o distanciamento exíguo não

lhe propicia um ângulo mais amplo, com o qual os excessos sentimentais estariam

reduzidos; ou então, a personagem pode estar numa perspectiva de vasto

distanciamento da cena, o que lhe trará os benefícios dessa distância, mas também a

impedirá de resgatar alguns aspectos com um nível maior de detalhamento, devido ao

esquecimento a que a memória inevitavelmente acaba sendo submetida.

Considerando esse duplo viés, cabe ressaltar que se Inês Pedrosa pretende que suas

protagonistas resgatem o passado, visando a sua reprodução única e simplesmente,

acaba fazendo mais sentido se o objetivo, antes de mais nada, for a compreensão do

mesmo.

Em consonância a isso, uma cena da lembrança de Camila será

apresentada a seguir, na qual a personagem está distante de seu antigo universo, em

que valores como igualdade, liberdade sexual, desapego material e desvalorização da

beleza eram ideologias pelas quais os jovens lutavam naquela época. Nesta cena,

entretanto, as suas atitudes de menina acabam recebendo outra conotação:


62

Lembro-me de pensar, às vezes, a meio do acto: “Se é isto a


liberdade, porque é que me sinto tão triste e contrariada? Por
que é que não recuso este hálito de que não gosto? Este corpo
flácido e sem beleza? (PEDROSA, 2005, p.116)

Camila, ao recordar-se das várias relações sexuais que ela, assim como

outras garotas de sua idade, mantinha com estranhos, independentemente de sentir-se

atraída por eles, pois acreditava que todos mereciam tratamento igualitário,

demonstra nítida desaprovação por suas ações. Por outro lado, quando estava inserida

naquele momento e defendendo aquela ideologia, parece estranhar a si mesma e

questiona-se por não estar se sentindo feliz. Como ela mesma afirma:

Éramos levianos por militância, sobretudo as raparigas. Para


acabar de vez com o fúnebre baptismo erótico dos rapazes da
nossa geração, que ainda se processava em casas de passe,
deitávamo-nos com eles ao fim dessas longas madrugadas em
que mudávamos o mundo (PEDROSA, 2005, p.116).

Mas a resposta a suas dúvidas surge somente vários anos depois, quando

tem maturidade para entender aquela situação. Os detalhes do sexo não são

mencionados – eis a maior vantagem do distanciamento e da alteridade do passado:

poder esquecer o que não lhe apraz, e se ver como um ser diferente do que no

presente se é. Vejamos outro excerto:

A mais feliz memória que guardo dessa época é a da


ocasional cumplicidade entre raparigas, em algumas noites de
segredos, risinhos e confidências. Vingávamo-nos deles, sem
repararmos, cotejando-lhes as prestações para afastar a
desolação desses encontros baços. Eles nem sequer nos
comentavam entre eles: respeitavam-nos ou, melhor dito,
esqueciam-nos (PEDROSA, 2005, p.117-8).
63

Essa outra lembrança também parece fazer agora mais sentido a Camila:

as confidências e os risinhos não eram apenas divertimento, a personagem passa a

perceber que eram atos de vingança contra aqueles homens que as deixavam infelizes.

A circunstância de eles não falarem delas também passa a ser mais bem

compreendida: não era uma questão de respeito, e sim, de simples indiferença. Mais

que memória compreendida, as cenas despertam-lhe diversas sensações: seja de

repúdio pelos corpos indesejados daqueles homens, seja de felicidade pela união

despercebida que existia entre as meninas de seu tempo. Ricoeur trata, em seus

estudos, não somente da arte da lembrança e do esquecimento, como também

menciona uma categoria da memória - a memória corporal:

A memória corporal pode ser “agida” como todas as outras


modalidades de hábito, como a de dirigir um carro que está em seu
poder. Ela varia segundo todas as variantes do sentimento de
familiaridade ou de estranheza. Mas as provações, as doenças, as
feridas, os traumatismos do passado levam a memória corporal a se
concentrar em incidentes precisos que recorrem principalmente à
memória secundária, à relembrança, e convidam a relatá-los. Sob
esse aspecto, as lembranças felizes, mais especialmente eróticas,
não deixam de mencionar seu lugar singular no passado decorrido,
sem que seja esquecida a promessa de repetição que elas
encerravam. Assim, a memória corporal é povoada de lembranças
afetadas por diferentes graus de distanciamento temporal: a própria
extensão do lapso de tempo decorrido pode ser percebida, sentida,
na forma da saudade, da nostalgia (RICOEUR, 2007, p.57).

No caso de Camila, não podemos mencionar, tal como o fez Ricoeur no

trecho acima, que as lembranças eróticas da personagem sejam exatamente “felizes”,

mas acabaram registrando-se como relevantes à memória exatamente por sua

oposição a isso: correspondem a um tempo em que se lutou por uma ideologia a

respeito da qual são imensuráveis não só os benefícios, mas principalmente os


64

malefícios oriundos dela. Correspondem, ainda, a toda uma indagação quanto ao

tempo e esforço dedicados a uma causa cujas consequências, no presente em que se

dá a narração, não são completamente positivas, nem a essa geração, nem à geração

seguinte, como veremos adiante, no capítulo sobre Natália, filha de Camila.

Isso tudo pode ser visto pela personagem quando a mesma já tem em

mente os resultados das ações, suas e de sua época. Considerado por esse viés,

entende-se que o enfoque que Camila dá a essas cenas seja nitidamente negativo, pois

tem como base menos as ações do que a compreensão de suas próprias ações. Por

isso, tendemos a mencionar a existência de uma ficção dentro de outra ficção: a

primeira referente às ações de três personagens; a segunda, referente à narração, por

meio da qual conhecemos apenas a elaboração que cada narradora faz de sua própria

trajetória.

3.4 Imagens inexatas

Para Camila, no auge de sua juventude, ser fotógrafa é mais que ter uma

profissão, é ter a oportunidade de fixar a história de si, de Portugal e do Mundo. O

retrato de Armanda é o que lhe transmite a terrível revelação de que nem uma

fotografia é capaz de trazer consigo uma visão que não seja elaborada. Já a criticava

Xavier, o pai de Natália: “Então para que é que serve essa máquina, senhora? Os teus

olhos são desmemoriados, estão doentes?” (p.109). A angústia que sente por não

poder registrar fielmente a história acompanha-a no decorrer de toda sua profissão.

Como afirma Ricoeur,


65

... a interferência da pragmática da memória, em virtude da qual


lembrar-se é fazer alguma coisa, exerce um efeito de confusão
sobre toda a problemática veritativa (ou veridictiva): possibilidades
de enganos inserem-se inelutavelmente nos recursos dos usos e
abusos da memória apreendida em seu eixo pragmático
(RICOEUR, 2007, p.24).

Essa interferência, se compararmos com o que ocorre com Jenny e

também com Natália, como demonstraremos a seguir, é ainda mais nítida no caso de

Camila. Isso porque as imagens que tem de seu passado foram criadas por toda uma

simulação de relacionamento de Jenny e António, quando, de fato, era seu próprio pai

Pedro quem vivia esse relacionamento amoroso. As imagens que fazia de seu pai

quanto a ser vazio, sem sentimentos e um mero sedutor, também não coincidem com

o que vem a saber somente depois, por meio da leitura do diário de Jenny. Outro

ponto também relevante: o conhecimento que tem de sua verdadeira mãe, a judia

Danielle, não lhe é dado diretamente, por meio de um contato familiar, visto ela ter

sido perseguida e assassinada pouco depois de ter deixado Camila nos braços de

Jenny. Assim sendo, a memória que tem com relação a sua mãe é uma memória que

se dá através dos depoimentos de Jenny, aliados à única fotografia que possui de

Danielle, a partir da qual Camila vislumbra o modo como ela era.

Diante do exposto, percebemos que o passado de Camila é incerto para si

mesma e leva-nos a questionar quanto ela teria deixado escapar de sua relação com o

pai Pedro, e, devido a isso, como seria capaz de relembrar o que se passou na sua

juventude. Questionamos ainda a impressão que tem e que relata a respeito de sua

mãe Danielle: teriam os relatos de Jenny e uma simples fotografia sido capazes de

revelar a essência daquela personagem? Analisemos alguns pontos:


66

DANIELLE

VERÃO DE 1941

A minha mãe sorri e os seus olhos são dois riscos de luz, há um


excesso de sol que a torna demasiado física, quase evanescente. Por
trás dela, as sombras das árvores da Avenida da Liberdade, um
homem avançando apressado de pasta na mão, dois miúdos
tremidos, uma bola no ar, a mancha do Elevador da Glória. O
vestido dela é claro, saia rodada, sem mangas. Tem os braços
gordos muito abertos, como se fosse abraçar alguém. Ou como se
dançasse, sozinha, no meio da rua. Usa o colar de pérolas e os
brincos que me deixou em herança. Nesta fotografia eu ainda não
existia. Ou talvez tivesse acabado de nascer dentro dela. Gosto de
pensar que sou eu, no fundo dela, quem a faz sorrir assim. É
estranho, porque não gosto de sorrisos. Sorriram-me demasiado,
durante os interrogatórios... (PEDROSA, 2005, p.97).

Comentaremos, a princípio, quanto às oscilações de sua descrição:

Camila começa descrevendo a mãe e, logo em seguida, muda o foco de observação,

pondo seu olhar no sol, nas sombras, num homem estranho que por ali passava

naquele momento, numa bola e, inclusive, numa mancha do Elevador da Glória. Em

seguida, retorna o foco para a mãe, descrevendo-a como alguém que parece

extremamente feliz e satisfeita. Mas seu pensamento novamente muda, quando o

sorriso da mãe lhe faz lembrar dos sorrisos que recebeu quando estava sendo

torturada. A partir daí não volta a narrar sobre a mãe, e sim sobre sua amiga Glória.

Ainda, considerando o fragmento anterior, em que Camila faz uma

interpretação da imagem da mãe, vendo-a como uma mulher feliz e sorridente,

indagamos quanto à possibilidade de um instantâneo reproduzir, e mesmo registrar

fielmente a personagem Danielle. A exemplo do retrato da amiga Armanda, cujo

choro não é de alegria pelo fim da ditadura como o das demais da fotografia, que

credibilidade pode haver naquela imagem?


67

Ricoeur, em seu estudo sobre memória/imaginação, afirma que nossa

relação com o passado ocorre por meio de imagens que, por algum motivo ou

encadeamento, resgatamos:

...a presença, na qual parece consistir a representação do passado,


aparenta ser mesmo a de uma imagem. Dizemos indistintamente
que nós representamos um acontecimento passado, ou que temos
dele uma imagem, que pode ser quase visual ou auditiva. [...] É sob
o signo da associação de ideias que está situada essa espécie de
curto-circuito entre memória e imaginação: se essas duas afecções
estão ligadas por contiguidade, evocar uma – portanto, imaginar – é
evocar a outra, portanto, lembrar-se dela. Assim, a memória,
reduzida à rememoração, opera na esteira da imaginação
(RICOEUR, 2007, p.25).

O processo de se fazer uma imagem ao observar a mãe Danielle numa

fotografia, portanto, é similar ao processo de resgate do passado. As próprias

associações de ideias que faz ao descrever a mãe no retrato também são reveladoras

de circunstâncias interpretativas, como se uma ideia puxasse outra e,

consequentemente, acabasse revelando o sentido que Danielle representa à filha

(tanto que aquele sorriso a fez lembrar que foi torturada pelo sistema ditatorial.

Coincidentemente, sua mãe foi perseguida e assassinada pelos nazistas). E, como é

possível quanto ao próprio processo de resgate, rememorar é imaginar,

principalmente quando o que se tem é apenas uma fotografia, bem como relatos de

terceiros.

A imagem que Camila faz da mãe Danielle, portanto, é fragmentada e a

custo nutrida com o passar dos anos: existe uma nebulosa entre quem ela foi e o que
68

ela representa ser. Ricoeur, em sua abordagem, distingue essa visão, admitindo a

presença da imaginação e da memória como unidades opostas:

Sua ideia diretriz é a diferença, que podemos chamar de


eidética, entre dois objetivos, duas intencionalidades: uma, a
da imaginação, voltada para o fantástico, a ficção, o irreal, o
possível, o utópico; a outra, a da memória, voltada para a
realidade anterior, a anterioridade que constitui a marca
temporal por excelência da “coisa lembrada”, do “lembrado”
como tal (RICOEUR, 2007, p.26).

A lembrança, portanto, para o estudioso, está em oposição à imaginação,

em termos de semântica; mas, por outro lado, uma está interligada à outra, na medida

em que a memória opera na esteira da imaginação.

O que se está querendo abordar aqui é que as impressões de algo,

independentemente de provirem de uma fotografia ou de uma ação propriamente dita,

estão sujeitas à elaboração, como lemos na própria declaração de Camila:

As fotografias provavam-me que a verdade se podia fixar para


sempre. Depois o acto de fotografar tornou-se uma obsessão,
quando a verdade deixou de existir para além da imobilidade
das imagens (PEDROSA, 2005, p.98).

Camila aprendeu, no decorrer de sua trajetória, que não existe uma

verdade única, assim como a imobilidade das imagens fotografadas; ao contrário,

suas verdades foram se modificando, especialmente através das revelações que Jenny

lhe legou após a morte. Ainda assim, não se lhe sustenta que novas modificações não

possam novamente ocorrer, talvez por meio não do olhar da “mãe Jenny”, mas pelo
69

da filha Natália, que está inserida num outro contexto e que, por isso, terá consigo

novos conceitos e visões de mundo.

3.5 A memória como marca individual

Sabe-se que uma marca particular que o indivíduo tem são suas

lembranças e Inês Pedrosa utiliza-se muito bem disso na composição de suas

personagens, que compartilham momentos em comum. Por outro lado, a retomada

que fazem das mesmas ações não se repete: ora varia conforme o ponto de vista em

que as protagonistas estão; ora varia segundo os valores e tendências de cada geração;

ora se define pela forma como o grau de relevância da ação se apresenta a cada uma

delas. Não há como haver, portanto, uma única versão dos episódios, e sim várias

versões pessoais, singulares e intransferíveis.

Se existem essas peculiaridades quanto às versões, ou seja, se essas são

pessoais, singulares e intransferíveis, não seriam também inenarráveis? Em outras

palavras, como será possível transmitir as lembranças, impressões e sensações por

meio da escrita? Especialmente no que se refere às trajetórias de Jenny e Camila no

seio familiar, como ambas podem ter visões tão diferentes acerca de alguns

episódios?

Ressalta-se aqui que o que foi retido pela memória de Camila foi uma

fusão entre o que ela vislumbra do seu passado (e essa é a parte mais definidora de

seu ser) e o que Jenny lhe revela no diário. A versão de Jenny, desse modo, apresenta-
70

se especialmente como um preenchimento de lacunas para a compreensão de Camila

quanto ao pai Pedro. Em contrapartida, embora tenha havido essa influência para

auxiliá-la a complementar espaços ininteligíveis, o que foi retido em sua memória

permanece único e singular – nenhuma personagem pode ter a mesma impressão,

sensação ou lembrança – e é isso que as constitui, acima de tudo, como indivíduos,

que, de algum modo, estão interligados, mas cada qual com suas peculiaridades.

Um trecho exemplar quanto a isso, no quesito das impressões, é a imagem

que Camila fazia da mãe Jenny antes de saber do relacionamento amoroso do pai:

Para dizer a verdade, zanguei-me sobretudo com a minha


ingenuidade: para não ver o romance do meu pai com outro
homem, habituara-me a imaginar a Jenny como musa estereofônica,
amante dos dois amigos [...] Tive pena de Jenny, mas afinal a Jenny
nunca deixa que se tenha pena dela. Esse diário revela-me
sobretudo que Jenny era implacável: quando decidia que alguém
era perfeito, nada a podia desiludir (PEDROSA, 2005, p.135).

Quando descobre sobre o relacionamento entre António e Pedro por meio

do diário, Camila faz toda uma revisão de antigas imagens, concebidas de forma a lhe

proteger contra o homossexualismo do pai. Sua primeira tendência é a de julgar Pedro

e a de sentir pena de Jenny. Toda a revelação (transmitida no presente), no entanto,

acaba sendo influenciada por outra imagem – a que possuía do passado – de que

Jenny continuava sendo implacável. Isso acaba sendo interpretado por Camila de uma

forma singular, irrepetitível no caso de outra personagem, como explica Pouillon:

[...] um personagem pode ser colocado diferentemente e, por


conseguinte, ser visto de muitas maneiras. Esta variedade não
representa um privilégio do romance em face de uma realidade que
seria sempre unívoca; ela existe igualmente na vida real
(POUILLON, 1974, p.52).
71

De fato, conforme a citação anterior, os personagens que se relacionam

com Camila durante toda sua vida – seus familiares, ao manterem esse segredo; sua

amiga Glória, ao denunciá-la ao sistema político e não apoiá-la quando da demissão

de seu emprego; Natália, ao se envolver às escondidas com Álvaro, por quem a mãe

estava apaixonada – mostram a fragilidade da percepção e surpreendem a narradora, o

que, consequentemente, será demonstrado por meio de suas confissões.

Assim, a não identificação entre a ação, transcorrida no passado, e a

narração, no presente, repete-se continuamente. No próximo capítulo, além disso,

podemos perceber a diferença com que Natália narra os mesmos episódios.

Com a finalidade de apresentar essa ideia com mais exatidão, citam-se os

seguintes trechos para uma reflexão quanto à particularidade da memória:

(1) Às vezes (a mãe de Eduardo) sugeria-me, com um sorriso


magnânimo, que tirasse maior partido da minha beleza: “Tem
uns olhos tão bonitos, não seria pecado puxar um bocadinho
por eles. Já experimentou usar rimmel? E não me leve a mal,
mas se usasse umas cores mais alegres, e subisse os saltos dos
sapatos, ficaria encantadora” (PEDROSA, 2005, p.104).

(2) ...o relâmpago se abateu sobre ele e me desmoronou o mundo.


Não me lembro do que se passou depois (PEDROSA, 2005,
p.106).

Enquanto, no primeiro trecho, a personagem lembra-se de uma situação

aparentemente banal, descrevendo com detalhes as palavras da ex-sogra quanto a sua

aparência; estranha-se, no segundo fragmento, que Camila não consiga se recordar de

uma passagem tão marcante quanto a que se deu posteriormente à morte de Eduardo
72

por um relâmpago. A explicação não está quanto ao nível de relevância, pois como

ela mesma afirma, com a morte do amado, “desmoronou o mundo”. Então, para se

compreender a singularidade da memória da personagem Camila, considera-se o

estudo de Neufeld (2005, p.15), que sugere que nenhum detalhe chama a atenção da

mesma forma ou é igualmente memorável. Para a estudiosa, algumas coisas chamam

mais a atenção que outras, e, por isso, podem ser facilmente relembradas. Os erros de

memória, assim sendo, ocorreriam devido a experiências prévias e outros

conhecimentos que vão além da experiência, integrando-se à percepção da ação. De

algum modo, as palavras da ex-sogra representaram detalhes importantes e, por isso,

foram retidas. De outra forma, nada que sucedeu após o falecimento de seu amado foi

mais relevante que o ato da morte em si. O erro da memória, portanto, foi além da

experiência e se integrou à percepção, talvez, como uma maneira de proteção contra

um sofrimento ainda maior.

De fato, Camila, ao recordar-se de algo, vai além de simplesmente

resgatar a ação. Essa operação dá-se não somente no sentido de o presente buscar o

passado, numa única direção. A operação, na verdade, pode ser vista como dupla:

primeiro, porque se dá no presente, buscando o passado, mas tendo como base toda

uma visão contemporânea. Essa visão atual, por sua vez, acabará por influenciar a

memória, diante da qual a personagem é incapaz de se colocar de forma neutra.

Segundo, porque o passado, ao mesmo tempo em que é influenciado pelo presente,

deixa firmes marcas nele, determinando-o também.


73

Olney levanta a seguinte consideração sobre essa operação:

Si el tiempo nos va alejando de los primeros estados del ser, la


memoria recupera esos estados pero lo hace sólo como una función
de la conciencia presente de tal forma que podemos recuperar lo
que éramos solo desde la perspectiva compleja de lo que somos
ahora, lo que significa que puede que estemos recordando algo que
no fuimos en absoluto. En el acto de recordar el pasado en el
presente, el autobiógrafo imagina la existencia de otra persona, de
otro mundo, que seguramente no es el mismo que el mundo pasado
el cual, bajo ninguna circunstancia ni por más que lo deseemos,
existe en el presente (OLNEY, 1991, p.36).

Partindo das palavras de Olney e adaptando o termo “autobiógrafo” por

narradora protagonista, compreende-se que, numa relação mútua, constitui-se a

particularidade da personagem – Camila define-se, dessa forma, não apenas por suas

ações, mas pela elaboração e inferência que faz de suas experiências. As mesmas

experiências podem ter sido evidenciadas pelas três personagens do romance; a

concepção das mesmas, por outro lado, é particular, individual e, acima de tudo,

intransferível. O que foi contado pela personagem, portanto, não tem que ser

equivalente ao que a outra narra; contudo, é essa imagem que ela tem de seu passado

que a caracteriza no presente, servindo-lhe como um registro único.


74

4 AS CARTAS DE NATÁLIA

4.1 Cartas: proximidade e distanciamento

A estratégia narrativa volta a mudar na terceira parte do romance Nas Tuas

Mãos. Enquanto, na primeira, temos um diário, considerado incomum por não trazer

apenas memórias recentes, além de não conter especificação de data; na segunda,

temos a descrição de um álbum de fotografias, que faz a narradora recordar-se dos

seus momentos importantes. E, diferentemente das duas estratégias anteriores,

conhecemos mais sobre a personagem Natália por meio das cartas que escreve à avó

Jenny.

A primeira carta data de 21 de maio de 1984, quando Natália ainda reside com

a mãe e com a avó, na Casa do Xadrez, em Lisboa. Aqui, como nas outras partes do

romance, o contexto histórico acaba beneficiando a ficção, visto auxiliar a construção

não só do espaço como também das ações das personagens. Isso pode ser averiguado,

por exemplo, nas relações amorosas de Natália. A sua primeira paixão é Álvaro, ex-

pretendente de sua própria mãe. Essa protagonista, de início, pretendia somente

impedir a felicidade de Camila com um homem mais jovem que ela. Entretanto, o que
75

era uma simples disputa acabou tornando-se uma paixão arrebatadora. Álvaro, no

entanto, não parece disposto a assumir um relacionamento e se entrega aos prazeres

do sexo da mesma forma como foge de algum compromisso mais sério. Enquanto

num dia manda flores a Natália, noutro, faz troças de seus sonhos e sentimentos. Um

produto do regime da indiferença que vigora em Portugal e no mundo, como diria a

própria Natália. Os relacionamentos, para essa geração, modificam-se intensamente.

A partir da leitura do romance, pode-se inferir que os casamentos passam a ser vistos

como uma aliança que somente deve ser feita se facilitar a vida prática. É isso, aliás,

que leva Natália a casar-se com Rui, por quem não é apaixonada, mas que lhe

convém para lhe livrar da solidão. O que indica que seu casamento foi realizado em

bases práticas, e não românticas, é o fragmento a seguir:

E então pus-me a enumerar as qualidades do rapaz: a solidez


da sua presença, a estrutura da sua alma, a profundidade do
seu olhar, as arestas do seu corpo. A minha amiga ouviu-me
atentamente e no fim comentou: “Menina, o que acabaste de
descrever foi um prédio!” (PEDROSA, 2005, p.168).

Na verdade, Natália está, aqui, vendo o amor em termos de troca. Rui é um

homem que pode oferecer-lhe certa estabilidade emocional, servindo-lhe de

companhia, o que não acontecia com Álvaro, que somente a fazia sofrer, não se

decidindo por assumir ou não o relacionamento. A psicóloga Brehm (1991), a

respeito disso, afirma que ultimamente compreendemos as relações íntimas como

uma forma de interação social que ela identifica como troca; isto é, existem

recompensas, custos e troca social em qualquer relação que suponha algum tipo de

intimidade. Essas recompensas podem ser as características físicas do companheiro,


76

beleza, inteligência, assim como a atenção dispensada pelo outro ou ainda o auxílio

prestado em algum momento da vida. Dessa forma, o que teria levado Natália ao

divórcio foi a coragem de enfrentar aquilo que ela sempre temia: a solidão. Em outras

palavras, não necessitava mais de Rui, visto ter originado em seu interior a

capacidade de enfrentar o vazio, o que rompeu com o sistema de trocas que deu

origem ao relacionamento.

Além disso, Bauman (2004) acrescenta que os laços afetivos se tornam cada

vez mais frágeis, o que decorre das crescentes relações de consumo características de

nosso contexto histórico. Por outro lado, o autor também afirma que, mesmo dentro

dessa fragilidade, existe uma necessidade de relacionamento interpessoal e que esses

relacionamentos somente estão mais rápidos e menos cristalizados do que em tempos

atrás. Assim, ele utiliza a metáfora do "amor líquido" para compreender a

complexidade das relações afetivas na atualidade. Apesar das características efêmeras

do amor, o estudioso ressalta o quanto ainda esse é almejado como se fosse eterno,

mesmo sabendo-se que poderá durar menos do que se espera. Então, como a

insegurança causa mal-estar, os sujeitos envolvidos em relacionamentos amorosos

tentam controlá-los como se controlam investimentos realizados no mercado.

Inês Pedrosa é escritora bem ciente das tendências de cada geração e utiliza

isso ao seu favor para compor sua ficção. Tanto que as ideias de Bauman quanto ao

amor e ao relacionamento na atualidade contemplam adequadamente as ações de

Natália no romance, já que ela, em princípio, acredita que as trocas com Rui serão

suficientes para manter uma relação duradoura. Por sua vez, ela sente a necessidade

de um sentimento amoroso pleno e somente com Álvaro essa possibilidade existe,


77

apesar de predominar a insegurança.

Além do amor, outro aspecto que caracteriza bem a época em que passa a

trajetória da terceira narradora é a sua viagem a Moçambique, terra onde foi gerada,

por meio da qual demonstra a decadência e a miséria não solucionadas, apesar dos

ideais de liberdade divulgados especialmente pela FRELIMO, Frente que lutou pela

independência na década de 1970. Enquanto Camila visita a África durante a

revolução, Natália chega naquelas terras somente em 1994, e o que vê são as

consequências cruéis da Guerra Ultramarina.

Na Terra de seu pai, surpreende-se com diversos ex-soldados dessa Frente,

agora mendigos, que combateram quando tinham apenas oito anos de idade.

Entristece-se também com a miséria generalizada, com a fome de barriga inchada e

com as mortes constantes pela disenteria, malária, diarreia, conjuntivite, sarampo,

enfim. Dessa forma, por meio do relato de Natália, conhecemos um pouco mais de

África, cujo cenário real serve como matéria da narrativa.

Como se pode perceber, muitas descrições de Natália, diferentemente das de

Jenny e Camila, não retomam momentos distantes em anos ou mesmo em décadas.

Pelo contrário, a maior parte da ação se dá num período inferior a uma semana do

relato. A análise que aqui faremos, portanto, será, de certa forma, distinta da que se

deu nos capítulos anteriores. Por outro lado, apesar de se tratar de resgate de um

tempo recente, isso não significa inexistência de dualidade, visto continuar existindo

uma personagem a “agir” e outra a “narrar” através de cartas.

A escolha da destinatária das cartas, além disso, parece influenciar bastante o


78

discurso de Natália. Aliás, o íntimo relacionamento que tem com sua avó é resultado

de uma estreita identificação entre essas duas personalidades. Existe, ainda, a

impressão de que Natália não esteja escrevendo a Jenny, mas a si própria, como se

estivesse refletindo consigo mesma, embora o desfecho de suas ações também vá de

encontro à história da avó.

Dessa forma, podemos analisar em que sentido Natália resgata sua própria

história; e também, de que forma acaba retomando mais do que o seu passado, mas o

da avó Jenny, com quem se identificava mais que com sua mãe, demonstrando que

não foram apenas laços de sangue que uniram duas personagens.

As cartas de Natália a Jenny descrevem vários episódios, a maior parte de

um tempo não muito distante. Na verdade, quanto maior a proximidade, menor é a

possibilidade de abordagem com visão crítica. Isso porque, muitas vezes, a

personagem os relata antes de ter conhecimento dos seus resultados e esse ponto de

vista acaba fazendo com que a narradora descreva mais sua rotina. Em 15 de

fevereiro de 1991, por exemplo, ela escreve sua quinta carta à avó:

Entretanto, o Rui continua em Coimbra, e eu perdi o hábito de


jantar em casa. Trabalho até tarde, vou cear com amigos,
depois sigo para o Frágil onde fico até me sentir estonteada de
sono. Procuro recuperar a alegria das minhas saídas de
juventude, mas parece que já não há nada de surpreendente
em lado nenhum (PEDROSA, 2005, p.182).

A rotina é descrita indicando a falta de algo no seu dia-a-dia. Ela descreve

o que ocorre no seu trabalho, a distância do marido que passa a residir em Coimbra
79

devido à profissão enquanto ela continua em Lisboa, e dá detalhes dos encontros com

os amigos. Tudo isso, contudo, parece pouco, diante da alegria que diz ter sentido no

passado, pois no presente, “já não há nada de surpreendente”. Todo esse sentimento,

aliás, vai interferir no seu discurso.

Anteriormente, abordou-se que o passado é simbolizado pela ausência e

que a memória seria um esforço de tornar algo presente outra vez. Isso, portanto,

levaria a acreditar-se que o presente estaria mais próximo da presença; porém, lendo

o trecho da carta de Natália, verificamos que esse não é um processo tão simples

como se imagina, pois é o presente que a personagem sente como algo ausente, e não

seu passado. Nas palavras de Ricoeur:

...o presente não deve ser identificado à presença – em nenhum


sentido metafísico que seja. A fenomenologia da percepção não tem
mesmo nenhum direito exclusivo sobre a descrição do presente. O
presente é também o do gozar e do sofrer, e, de maneira mais
significativa para uma investigação sobre o conhecimento histórico,
presente de iniciativa (RICOEUR, 2007, p.51).

Então, se Natália, ou outra personagem que fosse, resgata a ação próxima

de seu presente, não o faz sem trazer consigo os prazeres e sofrimentos, e isso

também influenciará seu relato. O presente que ela retoma, se assim podemos afirmar,

é mais ausência que seu próprio passado, visto haver um escapismo do momento no

qual se sente infeliz.

Talvez esse olhar vago do presente ausente deva-se não só à insatisfação

pessoal, mas também ao ritmo de vida que Natália leva: um ritmo tão constante que

não lhe é possível enxergar com clareza sua trajetória atual:


80

Mas parece não haver alternativa: se parar de correr, nunca serei


livre. Preciso de trabalhar muito, de mostrar tudo o que valho agora,
ou ninguém dará nada por mim. Logo que se entra para a
Universidade percebe-se que a vida não perdoará a quem não se
esfolar. Bem sei que no seu tempo não era assim. Nem sequer no
tempo da minha mãe. Mas tente compreender. Os anos de estudo
são violentos, mas nada que se compare ao que nos espera no fim
(PEDROSA, 2005, p.155-6).

O trecho foi extraído da segunda carta escrita pela neta a avó, datada de 5

de janeiro de 1990, e indica a velocidade da sociedade em que a personagem está

inserida – uma sociedade em que é necessário trabalhar muito, independentemente de

ser homem ou mulher, para que se obtenha prestígio profissional.

Nesse trecho, então, também se evidencia a persistência dos tempos

atuais. Em contrapartida, essa persistência não é sinônima de maior clarividência,

pois pode haver, conforme Pouillon, mais resultados vantajosos ao ausentar-se o

presente do que o contrário:

... a posição ‘por detrás’ deve ser perpetuamente mantida por uma
imaginação que conserva o outro longe de mim para que eu não me
dissolva nele. Ela me leva a compreendê-lo fazendo com que eu o
veja, isto é, conservando esta dualidade do visto e do vidente
(POUILLON, 1974, p.68-9).

É através de um maior distanciamento da matéria narrada, portanto, que

Natália atingiria um maior grau de observação, pois poderia distinguir-se melhor

como dual, ou seja, como personagem que “age” e como personagem que “narra”.

Esse distanciamento, em quesitos temporais, não pode ser comparado ao de sua mãe
81

ou avó, mas, ainda assim, não a impede, ao menos completamente, de ter alguma

nitidez:

(1) Nunca pensei que pudesse gostar realmente de um homem


com rabo de cavalo e botas alentejas. Quando lhe apareci
na galeria, uma semana depois do tal jantar, tinha um só
objectivo: conquistá-lo para em seguida o desprezar.
Queria acabar com a excitação juvenil com que a mãe
ultimamente se punha a fazer ginástica de manhã e a
experimentar vestidos ao espelho (PEDROSA, 2005,
p.151).

(2) Quando o Álvaro foi jantar lá a casa, apeteceu-me brincar


às mulheres fatais, para que a minha mãe visse que já não
era uma criança. E também para a castigar por tentar
seduzir um homem escandalosamente novo para ela. Pode
chamar-me preconceituosa, Jenny, mas a experiência
prova que, nestes casos, a idade joga sempre contra as
mulheres. O Álvaro só a faria sofrer. Ria-se, vala: o meu
delito virou-se contra mim, o Álvaro só me faz sofrer.
Antes assim. Ela nem precisa saber (PEDROSA, 2005,
p.150-1).

Natália relata o antes e o depois com relação a Álvaro: seu objetivo inicial

era o de apenas separá-lo da mãe, em contraponto com o desenrolar das ações e dos

sentimentos. A visão anterior distingue-se completamente da posterior, quando acaba

se apaixonando pelo homem por quem sua mãe se interessara. Eis porque é

importante haver um lugar estratégico a partir do qual será feita a narração. Se

Natália, por exemplo, tivesse escrito a carta antes de conhecer os primeiros resultados

de suas ações, o que relataria a Jenny não teria correspondência alguma com as
82

impressões descritas acima. O que Weintraub diz quanto à autobiografia podemos

estender à análise do romance:

Cuando el autobiógrafo logra situarse en ese lugar estratégico desde


el que es posible una visión retrospectiva y total de la vida,
consigue imponer el orden del presente sobre el pasado. Un
acontecimiento, que en su momento se vio cuando estaba teniendo
lugar, puede verse ahora en función de sus resultados. Al
sobreponer esta visión presente y consumada de un acontecimiento
pasado éste cobra un significado distinto que en el momento en que
estaba teniendo lugar no poseía. El sentido del pasado es inteligible
y significativo en función de su comprensión en el presente. Así
ocurre también con todo intento de comprensión histórica: a los
hechos pasados se les sitúa de forma que se establece entre ellos
una relación retroactiva de la que carecían en el momento en que
tuvieron lugar (WEINTRAUB, 1991, p.21).

A personagem, ao analisarmos a ideia de Weintraub, consegue realmente

impor uma ordem do presente sobre o passado, apesar de ainda não ter uma visão

total do desfecho desse relacionamento, que está sendo visto a partir dos seus

primeiros resultados. A visão do presente, de fato, difere daquela tida no momento

em que as ações de desenrolavam. O distanciamento da matéria narrada, ainda que

não tão longo, em suma, propicia um significado diverso, pois tem como ponto de

partida o conhecimento das primeiras consequências de se tentar seduzir o homem

por quem a própria mãe estava interessada. Natália, enfim, consegue compreender

melhor a si e a situação em que se encontra, na medida em que não se dissolve na

matéria narrada, ou seja, conforme Pouillon : “... visto nos encontrarmos ‘por detrás’

dele, podemos ver diretamente o que só lhe é dado ver distanciando-se com relação a

si mesmo” (1974, p.63).


83

4.2 Viver para melhor compreender

A mudança de visões não decorre apenas do conhecimento dos resultados

das ações; corresponde também ao simples transcorrer do tempo, quando Natália vai,

aos poucos, atingindo a maturidade. Várias cenas poderiam ser citadas. Contudo, a

que parece melhor exemplificar essa dualidade é o divórcio de Natália e de Ruy, cujo

casamento foi largamente criticado por Jenny (que, já de início, sabia do amor entre a

neta e Álvaro, além de perceber uma incompatibilidade entre o casamento e as razões

pelas quais Natália dizia estar se casando).

Vejamos os trechos em que Natália descreve suas impressões quanto ao

fim do casamento a Jenny. Consta-se, entretanto, que esta carta foi escrita após o

falecimento da avó, o que nos permite questionar quanto a quem é realmente a

destinatária do relato:

(1) Repeti: “Está tudo acabado, Rui”. Disse-me: “Pronto,


pronto, vê se te acalmas”, e começou a massajar-me o
pescoço. Para o Rui, todos os meus problemas se
resolviam assim: “Pronto, pronto”. Uma pirueta simples,
um dedilhar eficaz, e já estava. Parece que foi preciso que
a Jenny morresse para que eu me apercebesse disso.
Quando fecharam o portão de jardim do seu jazigo senti
que se encerravam as portas do medo na minha alma
(PEDROSA, 2005, p.197).

(2) Eu e o Rui caímos no mais comum dos erros românticos,


que é o de tratar as afeições como projectos de
arquitectura ou meninos de bibe. Em amor, seja ele o do
sexo profundo (que é o da paixão), o da pele quotidiana
(que é o do casamento) ou o das afinidades electivas (que
é o da amizade), aquilo a que chamamos instrução é
insensibilização e esquecimento, estratégias de
sobrevivência ao absoluto que nos impele para a fusão
final (PEDROSA, 2005, p.198).
84

O trecho 1 demonstra uma nova percepção do relacionamento amoroso e

de si própria. A morte da avó acaba agindo como um despertar da situação em que

Natália se encontrava – uma controvérsia, na verdade, pois Jenny, quando ainda

estava viva, questionava esse casamento que fora baseado mais em utilidade do que

em amor. O falecimento da avó, por assim dizer, proporcionou-lhe maior clareza do

que todos os conselhos dados. O segundo trecho confirma o primeiro: comparar

afeições com projetos de arquitetura – o que, de certo modo, coincide com a

tendência da sociedade de supervalorizar o trabalho – não poderia resultar numa

fusão bem-sucedida.

Essa consciência da personagem, no entanto, depende de

amadurecimento. É sentindo-se mais confiante que Natália consegue enxergar-se

melhor. Nas palavras de Pouillon, não se pode ter um sentimento sem que tenhamos

consciência dele (1974, p.38). Natália não podia ver as raízes falhas que sustentavam

seu casamento. À medida que se tornou consciente delas e de si mesmo é que pôde

compreender melhor a situação em que se encontrava.

Esse processo, por outro lado, não se dá conforme a vontade da

personagem. É um transcorrer natural que se dá como consequência de suas escolhas

e atos. Jenny simbolizou sua consciência ao adverti-la das bases enganadoras em que

sustentava a noção do matrimônio. Sua própria consciência, no entanto, havia estado

se criando durante todo o tempo. Esse fio permaneceu oculto, inconsciente e

desconhecido para Natália até o momento em que se fez consciente, da maneira tal

como se apresentou à narradora, logo após o velório de Jenny.


85

Esse processo de conscientização nos faz pensar novamente nos estudos

de Pouillon quanto à visão “por detrás” da cena, pois o entendimento só ocorre

quando Natália não se encontra mais na personagem que foi, mas sim distanciada

dela. Em outras palavras, é o distanciamento que promove a compreensão imediata

dos móveis mais íntimos que a fizeram agir. Com isso, não é a personagem que se

impõe à narradora; a narradora é que escolhe a sua posição para ver a personagem.

Natália, desse modo, vê-se como outra depois do falecimento da avó, e

essa alteridade permite-lhe maior discernimento quanto às razões de seus atos: o

medo de um grande amor por Álvaro e o temor de ficar na solidão. Assim, quando

Natália escreve essa carta, está escrevendo sobre uma consciência e um

relacionamento que já não existem mais. Olney (1991) argumenta que a escrita de si

vai além da legitimidade de uma história ou de uma narrativa individual. Antes disso,

a narração de si é a revelação de uma configuração psíquica. Assim, através do relato

de Natália, tem-se não somente sua rotina, mas também seus temores, valores e

mudanças de concepção, que influenciam diretamente nas ações dessa personagem.

4.3 Natália e a restauração da vida

Se a narradora discorre, em suas cartas, sobre momentos seus,

recentemente experimentados; por outro lado, deixa transparecer uma necessidade de

restaurar um outro tempo, que foi degradado. Há um descontentamento com o seu


86

presente e com o estilo atual da sociedade em que está inserida. A narradora, então,

passa a acreditar que a felicidade reside no passado e que, restaurando-o, de alguma

forma, fará com que essa felicidade retorne. Eis porque procura reunir-se com seus

antigos amigos de faculdade, por exemplo. Mas Natália vai ainda mais além... para

ela, existe algo especial nas gerações anteriores, descritas como mais felizes e

satisfeitas, e essa percepção pode ter sido por influência de sua avó. Essa ideia de que

o presente é sinônimo de degradação enquanto o passado conserva sua aura, atuará

diretamente em sua forma de agir.

No trabalho, por exemplo, sente uma inclinação a restaurar monumentos

antigos e carregados de história – ao contrário de sua rotina, em que o tempo lhe

parece passar tão rápido que já nem o sente. Um dos primeiros sinais são os projetos

que surgem em sua carreira. Uma arquiteta... Natália formara-se em arquitetura e suas

obras mais reconhecidas são as de restauração:

Procurava criar um mundo sem desperdícios. Nada se perde, tudo


se transforma [...]. Ganhei também uma aura de salvadora de
projectos impossíveis, que a princípio me soube muito bem. Um dia
reparei que nenhum projecto específico e entusiasmante me vinha
parar às mãos. Cabia-me apenas restaurar fidelidades perdidas, dar
uma aparência de beleza a edifícios traçados, retraçados e
sucessivamente ultrajados (PEDROSA, 2005, p.194).

Arquiteta do passado: Natália sobressai-se quando devolve a cor e os

traçados originais aos antigos prédios que, com o tempo, sofreram ultrajes e

deformações. É a tentativa de tornar a ausência uma presença, muitas vezes,

inconscientemente. Tudo isso condiz com a identificação que tem com a avó –

símbolo dos edifícios originais; e com o desentendimento com a mãe – símbolo dos
87

ultrajes que deformaram a arquitetura primária. Inusitadamente, ela dá-se conta de

que lhe cabia a salvação de projetos impossíveis e o resgate de fidelidades perdidas.

À Natália, como se pode perceber, apraz-lhe tentar fazer ressurgir o que

estava ausente, ou seja, o estilo de uma sociedade do passado. A arquitetura original

resgatada equivale ao reconhecimento da existência de algo anterior. A esse respeito,

Ricoeur assim se manifesta:

...pelo fenômeno de reconhecimento, somos remetidos ao enigma


da lembrança enquanto presença do ausente anteriormente
encontrado. E a “coisa” reconhecida é duas vezes outra: como
ausente (diferente da presença) e como anterior (diferente do
presente). E é como outra, emanando de um passado outro, que ela
é reconhecida como sendo a mesma. Essa alteridade complexa
apresenta por sua vez graus que correspondem aos graus de
diferenciação e de distanciamento do passado em relação ao
presente. A alteridade é vizinha do grau zero no sentimento de
familiaridade: nós nos encontramos nela, nos sentimos à vontade,
em casa na fruição do passado ressuscitado (RICOEUR, 2007,
p.56).

A restauração, portanto, faz-lhe bem, ao menos no que corresponde ao

seu trabalho como arquiteta. Ricoeur, como expresso anteriormente, diria que ela se

sente bem nessa fruição do passado ressuscitado, mesmo que simbolicamente, por

meio de edifícios antigos, visto que, para ela, é mais fácil restaurar um passado que

não lhe pertence.

O que ela tenta adiar, entretanto, é a necessidade de restaurar sua própria

trajetória, no que tange à sua relação amorosa. Então, a princípio, Natália restringe-se

a resgatar um passado que se deu quando estava na faculdade:


88

Lembrei-me das tardes de sábado na casa do Quicas. A porta estava


sempre entreaberta, a música – invariavelmente blues – ouvia-se
desde o fundo da escada. Cada um contribuía com uma bebida ou
umas bolachas. Chegávamos, procurávamos uma almofada ou um
canto de sofá, abastecíamo-nos de livros e revistas – o Quicas usava
semanas a fio as mesmas calças de ganga preta e a mesma camisa
cinzenta, mas tinha uma portentosa biblioteca de arte e banda
desenhada – e ficávamos ali, lendo e ouvindo música, em silêncio,
horas seguidas [...] Agora o Quicas punha pó-de-talco sobre a
nódoa de gordura que caíra sobre a sua camisa Ralph Lauren e
precisávamos mesmo da companhia das palavras [...] Não conheço
estas pessoas, avó (PEDROSA, 2005, p.158-9).

Nem sempre, todavia, é possível reconhecer no presente os momentos da

juventude. Embora ela busque a convivência com antigos amigos, verifica que as

mudanças são inevitáveis, especialmente em se tratando de pessoas, não podendo ser

comparadas aos edifícios que, com suas habilidades, restaura eficazmente. Isso

porque a trajetória deve ser vista mais como um processo do que como uma unidade

estável, como afirma Olney (1991), e que é a nossa configuração psíquica única que

faz de nós o que somos, e não outros.

Outro ponto é que Natália parece estar extremamente envolvida e

sentindo-se “condicionada” pela concepção de mundo das mulheres de sua família.

Sendo assim, esse é o próximo aspecto a ser mudado, já que implica a retomada de

situações “mal resolvidas”. Trata-se de conflitos enfrentados pelas gerações de

mulheres de sua família que eram infelizes no amor, como se essa fosse a única

trajetória a ser seguida. Natália, por sua vez, tentará levar a vida como processo, e não

como uma versão pré-estabelecida. Os trabalhos de restauração, para os quais possui

essencial habilidade, irão ajudá-la a compreender que para reencontrar-se, é

necessário voltar-se ao passado e, a partir de então, construir um novo presente.


89

Finalmente, a principal necessidade de retomada da personagem, como se

pode inferir, parece mesmo ser com relação ao amor. Um amor que não somente o

seu, mas o de mais três gerações de mulheres, considerando aqui sua mãe Camila, sua

avó Jenny e sua bisavó, pois como a própria personagem afirma: “Por mais que os

acontecimentos o contradigam, a natureza não inclina para a fatalidade as mulheres

da nossa família” (PEDROSA, 2005, p.220). E como quem quisesse restaurar as

histórias tristes de amor, do mesmo modo como restaurou os edifícios arrasados pelo

tempo ou os projetos impossíveis que lhe incumbiam, Natália passa a viver na Casa

do Xadrez, alguns meses após a morte de Jenny: 15 de outubro de 1994. Com essa

atitude, novamente ressalta-se que parecem estar no passado algumas questões

íntimas que Natália precisa resolver. Pouillon elucida essa necessidade de vínculo do

presente com o passado:

Sem dúvida, é preciso que esse passado lhe seja lembrado pelo seu
presente; estamos, porém, muitas vezes errados quando
consideramos essa lembrança como baseada unicamente numa
semelhança do presente com o passado; meu presente exige o meu
passado e as razões dessa exigência são mais sutis do que
geralmente se julga (POUILLON, 1974, p.42).

Ou seja, o presente ganha sentido no passado, mesmo que esse passado

não tenha sido o seu, e sim o das outras gerações de mulheres de sua família. As teias

de aranha, o caruncho nas paredes, os objetos desbotados, o jardim mal-cuidado

indicam o quanto a Casa do Xadrez necessita de cuidados. Apesar disso, Natália opta

apenas por restaurar a residência em sua originalidade. Para isso, contrata jardineiros

e conta com a ajuda de seus amigos arquitetos para poder fazer o que é necessário na

casa que, desde o falecimento de António, em 1988, não havia sido reformada nem
90

por Jenny nem por mais alguém. Quanto a essa mudança de residência e opção pela

permanência da originalidade da casa, podemos considerar as palavras de Ricoeur,

que vê uma íntima relação entre o ato de habitar e a memória:

O ato de habitar [...] constitui a mais forte ligação humana entre a


data e o lugar. Os lugares habitados são, por excelência,
memoráveis. Por estar a lembrança tão ligada a eles, a memória
declarativa se compraz em evocá-los e descrevê-los. Quanto a
nossos deslocamentos, os lugares sucessivamente percorridos
servem de reminders aos episódios que aí ocorreram. São eles que,
a posteriori, nos parecem hospitaleiros ou não, numa palavra,
habitáveis (RICOEUR, 2007, p.59).

Ao optar por residir na Casa do Xadrez, Natália não está, então, apenas

mudando de residência. Viver ali trará à tona os episódios ocorridos não somente com

ela, mas também com as mulheres das gerações anteriores, em especial, com Jenny,

por quem nutre maior consideração. Mudar-se para esse lugar, portanto, tem sentido

simbólico: romper o destino de fatalidades de sua família. Com essa finalidade,

parece acreditar que estão naquela casa as razões dos infortúnios de sua bisavó (que

enviuvara muito jovem, devido à guerra); de sua avó Jenny (não correspondida por

António, amante de Pedro); de sua mãe Camila (cujos homens com quem se

relacionou morreram); e finalmente, de si mesma (divorciada de Rui e apaixonada por

Álvaro).

O ato de habitar novamente aquele local, restaurando-o, reutilizando

móveis e até roupas da geração anterior, simboliza mais do que simples necessidade

de reaproximação de um tempo distante. Simboliza, embora soe contraditório, uma

mudança producente, visto tentar constituir, a partir do passado, uma nova trajetória
91

de vida amorosa, como se, ao fazer isso, Natália pudesse homenagear bisavó, avó,

mãe e a si própria. Isso porque, conforme Weintraub:

Los elementos de la experiencia pasada, que han sido


extraídos del contexto en el que se situaban con anterioridad,
han sido escogidos porque ahora se cree que tienen un sentido
sintomático que podían no haber tenido antes (WEINTRAUB,
1991, p.21).

É, portanto, trazendo o passado ao presente, que acredita poder colocá-lo

finalmente no seu devido lugar, ou seja, no passado. Definindo com clareza o local

das ações anteriores, está também deixando evidente a si mesma que elas não podem

mais influenciar, mais do que deveriam, a sua trajetória, quanto às propensões da

família para a infelicidade no amor. Considerando a afirmação de Ricoeur de que

...a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência,


presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas
também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em
um presente evanescente (RICOEUR, 2007, p.44).

faz sentido, pois, dizer que Natália está agindo com discernimento ao vestir a camisa

de noite branca, de bordado inglês, e ao meter-se entre os lençóis de frioleiras

bordados para celebrar as núpcias de Jenny. Não está, também, agindo

alucinadamente ao enviar um cartãozinho ao seu amado Álvaro, escrito com palavras

roubadas do diário da avó, que, motivada pelo amor e desejo, suplicava a António:

“Vem para dentro de mim, não tenhas medo” (PEDROSA, 2005, p.221).

Essas ações parecem fazer sentido, na medida em que se procura unir

passado e presente para, finalmente, distingui-los, pois, como afirma Ricoeur no


92

trecho anterior: a tensão entre presença e ausência existe. Cabe, portanto, à

personagem diferenciar o que é para si do que foi para suas antepassadas. As ações

parecem fazer sentido, também, à medida que Natália se identifica com as três

gerações anteriores, mas nem por isso deixa de se reconhecer como indivíduo capaz

de criar sua própria história.

Por isso, escreve para Álvaro, deixa a porta de entrada aberta e enche de

velas acesas o caminho da entrada até o quarto de Jenny. E como ela mesma afirma,

“a natureza não inclina para a fatalidade as mulheres da nossa família” (PEDROSA,

2005, p.220), ou seja, suas ações mais decisivas para que o amor se concretize

rompem, por fim, com o que se supunha ser destino. É assim, pois, que passado e

presente se reorganizam, ocupando cada qual o seu devido lugar para esta

personagem, que opta por um novo destino: o seu... tão somente seu.
93

CONCLUSÃO

Três gerações, três contextos, três maneiras de narrar, costurar fragmentos de

memória e imaginação, aproximar passado de presente, abrir as portas do futuro.

Cada narradora, apesar de íntimos laços familiares, expressa-se por meios

diferentes, numa tentativa de discorrer sobre suas trajetórias. O registro de suas ações

se dá através de um diário, de um álbum e de cartas, e cada gênero nos mostra um

pouco mais sobre as características de cada protagonista e do contexto em que estão

inseridas. Esses gêneros, muitas vezes, fogem de um formato canônico, mas a

liberdade com que são criados possibilita que as narradoras exponham seus

sentimentos, seus amores, sua concepção de mundo e, principalmente, contem a

versão de suas trajetórias. Essa subversão da forma canônica dos gêneros relaciona-

se às diferentes maneiras como as narradoras protagonistas articulam memória,

subjetividade e interlocutores.

Jenny, por exemplo, surpreende com o seu diário, pois não faz apenas um

registro pessoal de suas experiências cotidianas, mas vale-se dele para organizar e

manter suas lembranças (e não o relato de fatos cotidianos) contra um inimigo

perigoso: a loucura; e certo: o tempo. O diário de Jenny, cabe ainda lembrar, possui
94

dois destinatários, o que é incomum a esse gênero. Por sua vez, a leitura permite

constatar que a motivação da narradora para a escrita do diário centra-se justamente

sobre esses dois narratários (Camila e António), mais do que a si mesma, destinatária

privilegiada, como seria de se esperar, visto haver uma necessidade de explicar-

se/revelar-se para o outro. A subversão desse gênero quanto às suas características

tradicionais deve-se, portanto, à natureza daquilo que cabe revelar, e que vai além do

que as ações cotidianas deixam entrever, justamente o segredo que cerca o seu

relacionamento amoroso com um marido homossexual.

Já no caso das cartas de Natália, que ocupam a terceira parte do romance, a

narratária ou sua ausência também põe em xeque a estrutura canônica da

correspondência. Contrariando o diário, do qual não se esperam destinatários, as

cartas da neta são, inicialmente, destinadas à avó. Contudo, a sequência de escrita,

ocorrida mesmo após o falecimento da destinatária, faz com perguntemos para quem

Natália escreve desde sua primeira carta: para Jenny ou para si mesma, utilizando a

imagem da avó como uma figura simbólica?

Tais questões nem sempre encontram respostas, mas são estratégias

enriquecedoras do romance de Inês Pedrosa. E, independentemente de a quem Natália

se dirige, é por meio dessas cartas que a narradora registra sua trajetória,

transparecendo uma mudança de perspectiva de si mesma no decorrer da narrativa, o

que nos leva a pensar que a autora da correspondência tem no outro, mesmo

imaginário, um espelho através do qual olha para si mesma.


95

Ainda em relação à transgressão dos gêneros, vale dizer que Camila também

revoluciona as fronteiras da fotografia, da qual não se espera muito mais que o

registro objetivo da realidade. É através de seu álbum que Camila retoma grande

parte de sua trajetória, pois é ele que a remete a recordações que nem sempre fazem

referência ao que foi fotografado, mas que, por razões de ordem subjetiva, são

trazidas à tona, na sucessão de uma ideia que puxa outra. O álbum, então, vai além de

uma coletânea de imagens, pois, por meio dele, percebemos o olhar da narradora, que

seleciona e comenta as fotografias, nem sempre atendo-se ao estritamente mostrado

nas imagens. Outro ponto é que, nas três partes do romance, pode-se perceber o

trabalho das personagens em suas memórias, a fim de torná-las objeto de narração e,

por conseguinte, torná-las compreensíveis a si mesmas. Tal se evidencia, uma vez que

as protagonistas não acessam o passado, mas, sim, fazem uma (re)leitura dele, e isso

não é apenas uma questão estratégica de narração, mas uma constante, em se tratando

de memória.

Esses três gêneros diferentes de se expressar, contudo, demonstram aspectos

de uma trajetória em comum, dos quais ressaltamos dois: as três protagonistas

amaram e sofreram por amor e as três passaram por perdas familiares.

Independentemente dos laços que unem essas personagens, elas dispõem de

uma mesma herança: os obstáculos amorosos que se impõem diante delas parecem

intransponíveis, declarando-lhes a inviabilidade da realização afetiva. A primeira,

pela homossexualidade do esposo, de quem nunca se divorciara devido às aparências

e à paixão excessiva. A segunda, pelas duas mortes dos homens com quem se
96

relacionara. A terceira, enfim, por não suportar os desequilíbrios de um

relacionamento não assumido.

Por coincidência também, lembremos que as três protagonistas perderam um

símbolo paterno ou materno devido às guerras. Jenny, por exemplo, nem sequer

conhecera seu pai, morto durante a Primeira Guerra Mundial. Assim, foi criada pela

mãe, uma eterna e orgulhosa viúva que a educa de uma forma extremamente

conservadora. Camila, por sua vez, perde a mãe, uma judia morta em um campo de

concentração. Apesar de ter conhecido Danielle antes de sua morte, a protagonista,

que era muito jovem, não se recorda da figura materna, substituindo-a, de certo modo,

pela da mãe de criação. Essa herança de perdas também esteve presente na trajetória

de Natália, cujo pai, soldado representante da Frelimo, morreu em batalha em

Moçambique sem ao menos saber que Camila estava grávida.

Por outro lado, essas três protagonistas, embora com trajetórias parcialmente

semelhantes, reagem de maneiras muito distintas, enfrentando os obstáculos, cada

qual ao seu modo. Enquanto a primeira, numa atitude tradicional, manteve-se firme

diante de um casamento fracassado, a segunda, com uma postura de militância,

protestou contra o sistema, no sentido político, e jamais voltou a relacionar-se

seriamente com alguém, no sentido amoroso. Já a terceira narradora foi a

Moçambique, com a esperança de conhecer mais sobre o pai e divorciou-se do

esposo, que não amava, para tentar reconquistar Álvaro.

As três protagonistas, como se percebe, tiveram reações diferentes diante de

circunstâncias similares. Ora, se suas reações foram diversas, então podemos concluir
97

que ainda mais diferentes foram as versões narradas por elas, embora se tratasse

parcialmente dos mesmos episódios. Daí a crítica com que cada personagem enxerga

a outra geração: Jenny, como uma infeliz por Camila; Camila, como uma militante

sem causa por Natália; Natália, como uma desentendida no sentido amoroso por

Jenny.

As versões contadas referem-se à memória de cada personagem, que se

constitui de maneira distinta, tendo sido influenciada por dois fatores principais:

distanciamento do passado e presença do presente. O primeiro, que impõe como

obstáculo às narradoras o esquecimento, mas que favorece quanto à sensação de

alteridade; e o segundo, que impõe sua influência no resgate das ações, ao mesmo

tempo em que exige um passado para que se constitua como presença.

Nessas versões, além disso, o transcorrer do tempo atua como aspecto

essencial para a compreensão das ações, que sofrem diversas influências no decorrer

da narrativa, especialmente devido à visão unilateral e parcial dos episódios. O

tempo, que traz consigo a experiência, age como um redentor do conhecimento,

ampliando a compreensão das narradoras. É isso que nos leva a considerar um

elemento duplo: um referente às personagens que atuam e que, consequentemente,

têm uma visão limitada dos episódios e de si mesmas; outro referente às narradoras,

já cientes dos resultados que suas escolhas tiveram, ou seja, com uma visão

significativamente mais ampla dos episódios e de si mesmas. A distinção é razoável,

uma vez lembremos que só se narra aquilo de que se tem consciência.


98

Essa duplicidade permite-nos uma reflexão: se temos contato somente com a

narração, podemos considerar que estamos junto às narradoras, mas que

desconhecemos as personagens ou as ações das mesmas. O que temos são apenas as

suas versões, que, por sinal, são singulares. Camila não herda a versão de Jenny após

ler o diário que revela o homossexualismo do pai, assim como Natália não herda a

versão das gerações anteriores quanto à concepção de relacionamento amoroso. Isso

nos indica que existem coisas que não se herdam nunca, ou seja, as versões narradas

permaneceram intransferíveis e individuais.

De outra forma, pensemos também não somente no que herdamos, mas no que

fazemos as próximas gerações herdarem. Jenny transmite à Natália a noção do amor

puro. Para ela, o amor tem um fim em si mesmo, não precisa de justificativas e pode

se manter mesmo que apenas na abstração. Trata-se de um amor duradouro e

constante, independentemente das mazelas a que estiver sujeito. Já Camila, com suas

atitudes revolucionárias, lega à Natália benefícios que passam, de alguma maneira,

despercebidos, embora tenham tido elevado nível de importância à sociedade. Trata-

se do rompimento de tabus seculares e de preconceitos raciais. Se, na época de Jenny,

o divórcio era símbolo de derrota, especialmente para a mulher, a geração de Camila

chega para provar que o divórcio não só é natural, como o casamento não é uma

obrigação. O racismo também é questionado, tanto que Camila exibe a filha mulata a

toda sociedade, acentuando que o pai era um moçambicano, soldado da Frelimo, para

espanto de todos. Com relação ao trabalho, essa geração também garante mais

igualdade às mulheres, e a presença delas nesse mercado passa a ser comum.


99

Lembremos que Jenny trabalhava às escondidas, revelando esse segredo somente

após sua morte.

Assim, percebemos que as gerações mutuamente influenciam, em especial, a

terceira personagem – Natália, que está inserida no mercado de trabalho e que se

entrega à profissão até a exaustão, graças ao legado da geração de sua mãe. É esse

legado também que lhe permite pedir o divórcio, pelo qual lamenta por questões

sentimentais e pessoais, e não pelo preconceito da sociedade, como ocorreria no

tempo da avó. Mas antes, é esse legado também que a faz casar-se erroneamente, pois

a imagem de amor ganha ares de praticidade: Natália casa-se para ter estabilidade

sentimental, pois lhe angustia os altos e baixos do amor profundo.

Em contrapartida, é baseada no legado de Jenny que Natália, percebendo as

deficiências de sua geração, buscará deixar a sua própria marca no que corresponde

ao amor. Amor puro, de fato, existe, conclui ela ao dar-se conta de que não era feliz

sem o seu grande amor. E, apropriando-se dessa ideologia de Jenny, ela parte em

busca de algo mais desafiador: transformar o amor ideal em amor ideal concreto,

deixando, agora ela mesma, o seu legado da completude dos relacionamentos a

gerações posteriores.

Toda essa reflexão possibilita que entendamos o título do romance: Nas tuas

mãos. São histórias de três diferentes mulheres, de três diferentes gerações, mas que

perdem seu sentido se consideradas separadamente. Trata-se de episódios

entrelaçados e ações melhor esclarecidas a partir das mãos uma da outra. É marcante

que Camila tenha tido suas visões de juventude estilhaçadas pela revelação da
100

homossexualidade do pai por meio do diário de Jenny, por exemplo. Também marca

que essa narradora tenha se voltado para seu passado e revelado essa imagem por

meio da qual temos outra visão desse relacionamento familiar. Da mesma forma, é

interessante perceber toda a mudança de perspectiva que Natália teve no decorrer de

suas ações, ao optar pelo divórcio e ao retornar à casa do Xadrez.

Visto isso, pode-se dizer que a linearidade no tempo deu lugar à circularidade

das ações – um giro, um resgate, uma retomada de todas as trajetórias, por meio das

três narradoras. Essas três mulheres têm, assim, seus laços reforçados, à medida que o

escrito de uma volta-se para o de outra, o que se dá não apenas temporalmente, como

também espacialmente, com a volta de Natália à casa do Xadrez. Isso tudo nos

permite afirmar que são trajetórias que não se encerram, mas que se retomam, e com

a retomada, se complementam.

Assim, percebe-se que não é o que uma geração tem, mas como se fez com

que a junção delas se transformasse em algo merecedor de se perpetuar em novos

cenários, em novos temas e, indubitavelmente, em outras histórias.


101

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104

ANEXO A - ENTREVISTA COM A AUTORA

Inês Pedrosa, um caso de amor com o Brasil1


Por Ramon Mello e Marcio Debellian

Foto de Luiz Carvalho

A escritora e jornalista portuguesa Inês Pedrosa ficou conhecida


entre os brasileiros em 2002, quando o editor Paulo Roberto Pires publicou o livro
Fazes-me falta (Planeta). Desde sua passagem no Brasil, Inês tem conquistado
leitores e cultivado amigos, entre eles o músico Caetano Veloso e o poeta Eucanãa
Ferraz.

Atual diretora da Casa Fernando Pessoa, Inês acaba de publicar em Portugal


Os íntimos. O livro é uma investigação sobre o universo dos homens, onde vozes
masculinas tomam a narrativa, fazendo um paralelo com as três protagonistas
femininas do livro Nas tuas mãos. O romance sai ainda este ano no Brasil pela editora
Alfaguara.

Durante a conversa com o SaraivaConteúdo, Inês Pedrosa também revelou sua


paixão pelo Brasil, em especial pela música e pela literatura. Além de falar de cada
uma das histórias de seus livros (o amor sempre está presente), da força da produção
da poesia portuguesa, e, ainda, do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Você acaba de lançar em Portugal o livro Os íntimos, onde você investiga o


universo masculino. Fale sobre esse novo livro.

Inês Pedrosa – Os íntimos é um romance contado por homens, na primeira pessoa,


por vários homens que se encontram regularmente para jantar ou em torno de futebol

1
http://www.saraivaconteudo.com.br/Artigo.aspx?id=345&gclid=CIPsmdrAwaQCFS
da7AodfHTaEQ. Acesso em 07/10/2010.
105

(porque todos são fãs de futebol) ou simplesmente para falar mal de alguém.
Interessou-me, por um lado, dar fala ao masculino contemporâneo, que ainda tem
distinções culturais em relação ao feminino. Não acredito na diferença de gênero.
Vivi sempre no mundo de homens e tenho grandes amigos homens, mas noto que há
uns rituais específicos dos países do sul da Europa, que têm uma cultura patriarcal
muito forte. E que também têm, por sua vez, um matriarcado, maternal, muito
castrador e muito forte, que dá vida ao cotidiano.

O livro lida com a intimidade do homem. Foi difícil chegar a essa voz
masculina?

Inês Pedrosa - Sou irmã de homem e sempre tive muitos amigos homens variados. O
livro nasce da observação de coisas que eles dizem. E de começar a tomar nota de
frases, de maneiras de olhar a realidade, recortes da realidade. Tem lá uma conversa
no livro, de homem que diz que em casamento se contam as noites, que esteve casado
não sei quantas mil noites, cada noite um marco no casamento. Ouvi isso num jantar,
essa conversa não foi provocada por mim. Portanto, foi espontânea. Então tomei nota
da forma de falar. E têm muitas outras coisas. Procurei fazer um retrato desses
homens, muito diferentes ente si. E fui percebendo - independente de machismo,
conceito tradicional ou orientação sexual - homens têm uma infinita indulgência uns
com os outros. Os homens são muito amigos porque não exigem muito uns dos
outros. Noto que as mulheres exigem muito mais umas às outras, e provavelmente
também aos seus amigos homens, do que os homens propriamente. Ou seja, pode ter
uma discussão brava com alguém e voltar, com muito mais facilidade do que uma
mulher. Talvez, porque nunca sonharam tão alto em relação a essa amizade. Então,
podem deixar passar a tempestade e voltar a olhar para aquela pessoa sem amargura.
Penso que seja por isso, porque os homens têm a expectativa baixa e são menos
perfeccionistas do que as mulheres são educadas para ser. É claro que as relações
passionais são muito parecidas entre homens e mulheres, entre homens e homens,
entre mulheres e mulheres. Paixão é sempre uma relação complicada, que tem o
ciúme, a posse, a fidelidade. A relação de amizade é francamente mais livre e menos
exigente da parte dos homens entre si. Por isso homens podem dizer "nós somos
amigos para a vida". Porque também exigem muito menos dessa amizade ao longo da
vida.

Sua primeira publicação no Brasil foi o livro Fazes-me falta...

Inês Pedrosa - Sim. O Fazes-me falta foi publicado no Brasil um pouco depois de
sair em Portugal. Em 2002 saiu em Portugal e 2002/2003 no Brasil, talvez início de
2003.

Você consegue analisar o que mudou na sua escrita desde a publicação do Fazes-
me falta?

Inês Pedrosa - Na realidade, no Brasil se tem passado uma relação um pouco


embaraçosa para um escritor. Eu apareci no Brasil com os livros que eu tinha
publicado naquela época e depois começaram a publicar meus livros anteriores. Claro
106

que um escritor prefere que comecem a publicar pelo primeiro porque, em princípio,
se não pensasse que vai evoluindo deixava de ser escritor. Nós temos sempre essa
ideia de que vamos crescendo a cada livro. Eu não tenho tanto essa ideia porque,
infelizmente - meio na brincadeira, mas meio à sério - depois de ter publicado A
eternidade e o desejo, que é o romance que publiquei cronologicamente depois do
Fazes-me falta, há pessoas que dizem, depois de ler esse livro: "Gostei muito, mas o
Fazes-me falta que é o livro..." Já percebi, comparando com o dono dessa casa,
Fernando Pessoa - uma comparação muito abusiva - que o meu Livro do
desassossego, até agora, é o Fazes-me falta. É aquele que desassossega mais pessoas,
que as pessoas mais gostam. Devo a minha publicação ao Paulo Roberto Pires, meu
primeiro editor. Eu dizia: “O problema é que em seguida [ao Fazes-me falta] vai
publicar o Nas tuas mãos, que é o anterior. E em seguida o primeiro romance. Pode
ser que os leitores digam que cada livro novo é pior do que o anterior.” O Paulo dizia:
"O Nas tuas mãos não é pior do que o Fazes-me falta!" Fiquei muito grata por isso. O
Fazes-me falta é composto por dois monólogos que se cruzam. Uma mulher que
acabou de morrer, subitamente. Não estava preparada para morrer. E tinha uma
relação por resolver, uma relação de amizade. Mas uma amizade onde passava um
erotismo muito particular com um homem bastante mais velho. Por um lado, foi
interessante fazer o confronto das duas vozes, de gêneros e gerações diferentes. E
também porque as mesmas situações são descritas por duas pessoas de forma
completamente diferente. A questão da perspectiva, o livro é muito isso.

Fale um pouco mais sobre Nas tuas mãos.

Inês Pedrosa - Explicando um pouco o que é cada livro: Nas tuas mãos é um
romance que começa nos anos 30 do século XX, em Portugal, por contar a história de
uma mulher que teve um casamento branco - no sentido que não foi consumado
porque seu marido lhe disse na noite de núpcias que ia ficar no quarto com o melhor
amigo dele, que era na verdade o homem da vida dele. E ela ficaria num outro quarto.
Então, ela guardou esse segredo por vergonha e tristeza porque ela tinha uma grande
paixão pelo homem por quem se casou. E também porque não queria assumir-se
como uma falhada no casamento. Quando a mulher ficou viúva, ela pediu aos
sobrinhos que não se zangassem e deixassem ela se casar com o melhor amigo do
marido, explicando que seria um casamento sem sexo - ela já com setenta anos por
essa época. Isso para não ficar sozinha... Os sobrinhos deram-na como louca e não a
deixaram casar. Ela acabou por morrer louca e sozinha pela ganância dos sobrinhos,
que não queriam dividir o patrimônio dela com ninguém. Fiquei tão impressionada
com essa história, que passei a pensar: "Como essa mulher viveu esta vida?" Então
passou uma personagem louca e desgrenhada nos meus sonhos a dizer: "Tens que me
entender. Eu não fui uma desgraçada. Eu não fui uma infeliz." Construí uma mulher
que chegou a conclusão, no meu livro, que era mais feliz com aquela vida pouco
ortodoxa, porque tinha uma liberdade de ação e de movimento que mulher nenhuma
na época tinha em Portugal. No livro entram vários poetas e várias figuras literárias e
da política. Ela tinha certo nível de vida que lhe permitiu ter uma existência diferente
da rotina das mulheres da época. Já meu primeiro romance, A instrução dos amantes,
é sobre um grupo de adolescentes em torno de um suicídio, que não se percebe bem.
Um caso policial sobre um jovem que se atira de uma janela. Depois começa a se
107

suspeitar que ela foi atirada. É um grupo de adolescentes no subúrbio de Lisboa que
estão entre dois mundos, acabou a infância e não começou a fase adulta. E eles estão
a experimentar o amor, o sexo e a amizade pela primeira vez. E em A eternidade e o
desejo, último livro que publiquei antes de Os íntimos, a história se passa no Brasil,
em particular em Salvador, na Bahia. Ele resultou de uma viagem que fiz no trilho do
Padre Antonio Vieira no Brasil. Ao mesmo tempo fui lendo os Sermões dele, que são
fortíssimos. E, de repente, o eco daquela voz, aquele púlpito permanente, fez-me
fechar os olhos e imaginar-me cega naquele mundo. E como seria uma mulher guiada
por aquela voz? Um mundo novo, onde ela encontrou a paixão e perdeu a vista. O
que acontece muito, não é? [risos] A lucidez específica da paixão às vezes nos cega
para outras coisas. [risos] Nos Sermões há textos infinitos sobre o desejo, de alguém
que experimentou o desejo. Definindo a eternidade como convivência permanente
com o desejo, a capacidade de não largar o desejo. Isso é eternidade de vida. Achei
isso tão bonito que quis trazer para uma história de amor contemporânea. Em cada
um dos livros, o que eu procuro é investigar a linguagem. No caso desse livro, o que
procuro é claramente confrontar a língua do Padre Antonio Vieira com o português
contemporâneo, e o português do Brasil com o de Portugal. O fato dos homens não
terem nenhuma censura social sobre a linguagem, como têm as mulheres, usarem o
palavrão, o calão, de um forma muito mais livre, permitiu-me esticar os limites do
meu uso da língua portuguesa. O que procuro em cada livro é fazer uma pintura da
língua diferente do que já foi feito e do que eu própria fiz.

Como é seu trabalho como diretora da Casa Fernando Pessoa?

Inês Pedrosa - É muito estimulante, agradável. E a equipe é cheia de energias e


ideias, o que é muito bom. Devo dizer que quando fui convidada hesitei muito.
Sempre estive ligada à Casa desde que ela nasceu porque fui chamada para muitas
coisas ao longo do tempo, enquanto escritora. E também porque vim assistir à
programação. Eu sou muito entusiasmada e obsessiva, por isso tem sido mais forte do
que eu pensava. Portanto, ocupando mais tempo e espaço. Mas tem sido muito
criativo. Tem a biblioteca e o auditório onde fazemos sessões, debates, exibições de
filmes... E temos feito teatro em várias zonas da Casa, até no jardim. Tem sido um
convívio muito mais próximo à obra do Pessoa. Por ter deixado tantos papéis soltos e
incompletos, o Pessoa parece que está a falar conosco. Tem funcionado com um
estímulo muito grande.

Estimulou a escrever poemas?

Inês Pedrosa - Na verdade, eu tinha começado a fazer poesia em 2007. Desde meus
15 anos eu não ousava escrever poemas. Foi em Lisboa, por causa de um encontro
particular com uma pessoa do Brasil. Perdendo a vergonha, estive em São Paulo num
período e escrevi para ele três, quatro poemas por dia. Devo muito ao Brasil a poesia
que escrevo. A coragem também, o Brasil tem me feito perder o medo. O filme
Palavra encantada explica muito essa relação. Talvez, eu perca esse medo e publique
os poemas... Não sei. É mais fácil publicar poemas no Brasil e depois aqui. Sobretudo
agora nessa função. Vão dizer: "Baixou o Pessoa sobre ela! Agora deu para escrever
108

poesias." Apesar de ser anterior. Claro que é estimulante, leio muito mais poesia por
razões de programação.

Fale sobre a produção dos poetas contemporâneos. Você citaria alguém?

Inês Pedrosa - Portugal é um país que sempre produziu muita poesia. Porque é um
país pouco arriscado do ponto de vista do pensamento. Por termos medo de nos expor
como pensamento radical, nos refugiamos na poesia. Porque poesia permite uma
inovação ideológica, filosófica, sem ser “confrontacional”. A poesia tem qualquer
coisa de redondo. A poesia tornou-se muito intensa e forte, hoje não tem uma poesia à
altura da poesia portuguesa. Portugal continua a produzir muitos bons poetas. É
sempre difícil falar dos que estão vivos. Depois, a cada cinco anos é uma nova
geração que emerge. Há inclusive uma guerra de elite. Há a poesia do real, a poesia
do cotidiano, a poesia experimental... Penso que no Brasil também há, uns fazem
umas antologias que outros detestam e criticam... A verdade é que em Portugal a
poesia se vende, a tiragem de poesia de Portugal é igual a da França. Temos casos de
poetas muito populares como Manuel Alegre, que tem um linguagem muito coloquial
e chega a muita gente. Ele tem uma tiragem de poesia de 10, 20 mil exemplares, esse
nível. O que é extraordinário. Temos muitos bons poetas com tiragens de 3 mil
exemplares que esgotam. Dos vivos contemporâneos, os nomes que primeiro me
ocorrem: Nuno Júdice, Maria do Rosário Pedreira, Fernando Pinto do Amaral,
Francisco José Viegas, José Agostinho Baptista, Herberto Helder, Manuel de Freitas,
Luis Quintaes... E tem o Ruy Belo, um poeta que morreu muito jovem, que tem uma
poesia simbólica, narrativa, muito ligada ao cinema. Sophia de Mello Breyner, que
está publicada no Brasil, a poesia dela tem uma luminosidade que não se pode
ultrapassar.

Sophia de Mello Breyner seria nossa Cecília Meireles, com toda aquela relação
com o mar...

Inês Pedrosa - É muito parecida, essa relação é muito forte. O Brasil tem Carlos
Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto. E Clarice, que é poesia em
prosa... A língua portuguesa dá poesia. Infelizmente, com a relação música e poesia,
em Portugal há uma série de grupos que só cantam em inglês. Dizem que é mais fácil
de fazer músicas para cantar. Respondo: como é que se inventou a música popular
brasileira? É a melhor música popular do mundo. Qualquer letra escrita no joelho do
Caetano Veloso é melhor do que as letras dos Beatles.

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