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Cristiane Krumenauer
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Letras do Centro Universitário
Ritter dos Reis, como requisito
parcial para a obtenção do título
de Mestre em Letras.
Porto Alegre
2011
2
127 f. ; 30 cm.
CDU 808
She did not look back now, but went on and on, thinking of the
blue-grass meadow that she had traversed when a little child,
believing that it had no beginning and no end.
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................... 9
1 ENTRE MEMÓRIA, IMAGINAÇÃO E NARRAÇÃO EM NAS
TUAS MÃOS, DE INÊS PEDROSA .................................................. 12
1.1 Diário, Álbum, Cartas: maneiras de dizer o passado ...................... 12
1.2 Lembrar, imaginar, narrar .............................................................. 21
2 O DIÁRIO DE JENNY .................................................................... 25
2.1 Visão distanciada dos acontecimentos ............................................ 25
2.2 Rememorar, imaginar e compreender o passado ........................... 32
2.3 O que foi retido pela memória de Jenny e por quê? ....................... 40
3 O ÁLBUM DE CAMILA ................................................................ 47
3.1 História pessoal e política ............................................................... 47
3.2 Visões em contraponto .................................................................... 51
3.3 Entre compreender e reinventar ...................................................... 58
3.4 Imagens inexatas ............................................................................. 64
3.5 A memória como marca individual................................................. 69
4 AS CARTAS DE NATÁLIA ........................................................... 74
4.1 Cartas: proximidade e distanciamento ........................................... 74
4.2 Amadurecer para melhor compreender ........................................... 83
4.3 Natália e a restauração da vida ........................................................ 85
CONCLUSÃO ..................................................................................... 93
REFERÊNCIAS .................................................................................. 101
ANEXO 1 ............................................................................................. 104
9
INTRODUÇÃO
Inês Pedrosa é uma escritora que surge em 1991, e que, com uma sensibilidade
irreverente, passa a ser uma das vozes mais importantes da literatura portuguesa atual.
Mesmo com uma obra considerável – Mais Ninguém Tem (história infantil, 1991); A
Instrução dos Amantes (1992); Nas tuas Mãos (1997); Fazes-me Falta (2002); A
Menina que Roubava Gargalhadas (2002); Fica Comigo Esta Noite: Contos (2003);
Carta a uma Amiga (2005), com Maria Irene Crespo; Do Grande e do Pequeno Amor
(2006), com Jorge Colombo; A Eternidade e o Desejo (2007); Os Íntimos (2010) -
foi somente em 2002 que Inês Pedrosa passou a ser conhecida entre os brasileiros,
quando o editor Paulo Roberto Pires publicou o livro Fazes-me falta, pela editora
Planeta. Por outro lado, apesar de sua presença tão recente em nosso país, a escritora
tem conquistado leitores fiéis, o que resultou na publicação de livros anteriores seus,
como Nas tuas mãos, de 1997, por exemplo.
ambição, pois não queriam dividir o patrimônio, os sobrinhos não permitiram que
esse casamento se realizasse e a mulher acabou morrendo sozinha e louca.
Outro ponto importante é que esse romance, por ser narrado por três diferentes
gerações, reflete sobre como as tendências históricas e sociais influenciam a maneira
de viver e ver das personagens quanto ao amor, à amizade e ao trabalho. Essas
tendências, inclusive, parecem muitas vezes sobreporem-se à vontade das três
mulheres do romance, que, contraditoriamente, acreditam que estão construindo sua
época, em vez de estarem deixando-se construir a si próprias.
É rica a obra dessa autora portuguesa, que surge em nossos tempos como sinal
de que o romance ainda tem muito a oferecer-nos. Além disso, o foco narrativo
sempre foi observado como um dos aspectos mais relevantes, sendo, muitas vezes,
responsável pela inovação da arte. Isso não é diferente em Nas tuas mãos, em que a
riqueza de detalhes reside na diversidade com que as três protagonistas enxergam seu
mundo, em três diferentes perspectivas de tempo e de valores.
O corpus dessa análise, portanto, será Nas tuas mãos, por apresentar essas três
narradoras em primeira pessoa. O romance foi eleito porque as protagonistas buscam
resgatar seu passado a partir de diferentes instâncias temporais, variando do
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Por fim, as cartas de Natália, que compõem a terceira parte de Nas tuas mãos,
serão consideradas conforme a proximidade existente entre a ação e a narração,
concluindo quanto à vontade da personagem de resgatar um momento que nunca foi
seu. Em outras palavras, será analisado por que Natália passa por uma profunda
transformação após a morte da avó, a ponto de acreditar que a felicidade reside na
maneira como Jenny enxergava o mundo.
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interesse não só para a literatura, como também para áreas como a psicologia e o
ele o de outrem, seja o de si mesmo. A possibilidade de que possa ser ludibriado pela
sua própria mente enquanto está nessa busca o deixa à mercê da sua história, fazendo-
o sentir-se incapaz de controlar não somente seu presente e futuro (o que já se era de
prever), mas também seu passado – singular, mas estranhamente mutável, como
provas factuais do que se passou, dá-se essencialmente sob a forma narrativa. Assim,
a escrita é uma das formas mais privilegiadas de acesso a ele, ainda que saibamos
memorização e de fidelidade ao passado. Por outro lado, quanto mais se analisa essa
matéria, mais se conclui que tudo o que possuímos é uma visão unilateral – o que não
permite nunca a totalidade dos casos – bem como uma visão fragmentária – cujas
lógicas.
descoberta da verdade, evidencia-se que essa verificação, muitas vezes, perde a sua
razão de ser. A literatura demonstra que o que nos move é justamente essa forma
Portanto, esta análise escapa de qualquer verdade, embora sua busca seja
Exatamente por que se trata de três personagens fictícias – Jenny, Camila e Natália –
que narram acontecimentos vividos na esfera fictícia, é que não cabe qualquer espécie
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mais intensas que o foco em terceira pessoa. Por outro lado, isso leva à limitação do
primeira entre as três gerações de mulheres desta obra. Jenny expressa-se por meio de
um diário, que, no entanto, distingue-se dos demais por não apresentar somente
relatos do seu dia-a-dia, mas, sobretudo, por trazer lembranças de sua juventude e dos
tempos de casamento com António. Por tentar trazer um tempo distante, o diário de
Jenny também se distingue dos demais de igual gênero, pois não possui datas na
abertura de cada capítulo, o que nos dificulta ter uma dimensão temporal das ações.
Por sua vez, essa estratégia valoriza os episódios lembrados mais que a própria ação
de relembrar; em outras palavras, a leitura que faz do passado é mais relevante que
constante de dois diferentes destinatários: Jenny não escreve somente para si – como
ocorre na maior parte das vezes com escritores desse gênero de escrita – mas para seu
todo o diário e pode-se mesmo constatar que isso acaba influenciando a escrita, uma
vez que é até eles que a protagonista deseja chegar com a sua mensagem. Essa é outra
peculiaridade do diário de Jenny: não simplesmente registrar as ações, para que, num
não; mas, acima de tudo, servir como uma voz apaziguadora, que desvende os
e segundo seus propósitos. Como afirma Bazerman (2006, p.31), os gêneros emergem
práticos. Para o autor, portanto, o importante não são as estruturas fixas que um
gênero pode conter, mas a sua finalidade. Essa ideia é complementada também por
Marcuschi (2006, p.25), para quem os gêneros não são superestruturas canônicas e
O diário de Jenny, dessa forma, que não tem o intuito de ser convencional
nem pessoal, vai além de suas características de gênero habituais e revela aos seus
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há que sempre se considerar que o que se tem com o diário de Jenny não são as ações
da protagonista, e sim uma (re)leitura das mesmas, (re)leitura essa que estará
também tingida pelo esquecimento compensado pela invenção. O diário, então, nada
mais é que o instrumento pelo qual a personagem deixará que seus destinatários
saibam mais não sobre seus atos, mas sobre a concepção que possui deles.
Camila, a fotógrafa, tentará deixar-se traduzir por meio das imagens, mesmo tendo
aprendido, ao atingir maior maturidade, que a vida não pode ser fixada simplesmente
através de imagens, parece coincidir com a personalidade de Camila, tão ávida por
escapam e são incapazes de transmitir toda a essência das ações fotografadas. Quanto
Camila que seleciona as imagens e, por fim, a Camila que descreve verbalmente
fotografia por fotografia. Temos a (re)leitura das ações no momento em que o foco é
ações cometidas ou que presenciou cometer não escapa do seu olhar carregado de
evidenciada por suas fotografias, sendo necessário recorrer à palavra para certo
comunicação. Posicionando-se bem mais próxima dos eventos que vai retomar,
Natália se distinguirá das outras protagonistas, que buscam retomar ações cometidas
sujeita aos esquecimentos da memória, mas, ainda assim, não poderá fugir da
impensadas. O casamento com Rui e seu posterior fracasso é uma amostra disso, pois
como a própria personagem diz, não há tempo para nada, muito menos para esperar
destinatária alguns dos motivos pelos quais Natália elege expressar-se por meio de
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cartas. São dez cartas, escritas em dez anos, a primeira tendo sido redigida em 1984,
quando Natália tinha vinte anos de idade. Nelas, encontram-se revelações, confissões
Consta, entretanto, que Jenny morre em 1993, e que Natália redige ainda três
1994 e, por fim, em 15 de outubro de 1994. Há uma lacuna, todavia, de pouco mais
neta nada escreve, e isso coincide com os últimos anos de vida de Jenny. Após a
fantasmagórico e essa época acaba se tornando decisiva para uma mudança drástica
em Natália.
convencional do gênero carta, escrito por Natália. O objetivo com que escreve
envia suas cartas à avó. Além disso, embora sempre cite Jenny como sendo a pessoa
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para quem escreve, é provável que suas cartas dirijam-se somente a si mesma. Jenny,
nesse caso, seria mais uma referência e um auxílio para compreensão das ações do
Diário, álbum e carta. Três gêneros que, mesmo sendo mutáveis e flexíveis,
...eles definem o que é dizível (e, inversamente: o que deve ser dito
define a escolha de um gênero); eles têm uma composição: tipo de
estruturação e acabamento e tipo de relação com os outros
participantes da troca verbal (2004, p.26).
expressão de si mesmas que uma forma rígida e canônica: Jenny com o diário, numa
tentativa de fazer-se compreender; Camila com seu álbum, por ser fotógrafa e por
necessitar de algo concreto na compreensão da sua trajetória; e, por fim, Natália, com
as cartas, por ser o gênero que melhor se adéqua ao seu perfil e ao da destinatária.
conhecer o passado dessas protagonistas de três diferentes gerações. Pode-se ter com
perante si mesmas e, com isso, haver uma busca por descreverem as suas ações. Isso,
contudo, não pode sobrepor-se à peculiaridade de que as protagonistas não têm acesso
ao seu próprio passado, mas sim, à releitura dele – releitura essa que será analisada a
segundo o autor, viria para suprir as deficiências das lembranças. Assim, apesar de,
ações, mas sim, criando-as à medida que estão compondo seu diário, álbum e cartas,
essa releitura pode revelar muito mais das protagonistas do que aquilo que elas
efetivamente dizem. Essa imaginação, ou essa invenção, assim como a memória que
busca reter as ações consideradas mais relevantes por essas mulheres, ajudam na
Jean Pouillon (1974) estabelece a visão por detrás, segundo a qual, graças
sentimento de mais liberdade e menos inibição diante da matéria narrada, pois geraria
a sensação de que Jenny e Camila não estariam contando sua história, mas a história
de outra personagem.
Já Olney (1994) afirma que a retomada do passado nada mais é que uma
reproduzir as ações que se deram em sua trajetória. Pelo contrário, o que contarão
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demonstrará mais seus valores e seu contexto no presente, do que aquilo que teria
que resgata seu passado por meio da narração é duplo, ou seja, narradora e
narrando não está mais ligada emocional, físico e psiquicamente às ações. Os estudos
uma vez que não se trata de um romance autobiográfico, em que autor, narrador e
narração. É nesse sentido que a narração de Natália, por contar eventos recentes,
Gusdorf (1994) reitera que ação e narração da ação não coincidem, pois a
memória reelabora os acontecimentos para que, dessa forma, façam sentido. Sem essa
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elaboração, o discurso das três protagonistas se perderia toda vez que encontrasse
elaboração, segundo Neufeld (2005), tem a ver com os graus de valoração que variam
por exemplo, pode ser irrelevante e, por isso mesmo, passar despercebido a Camila.
Outro ponto que contribui para a releitura das ações, conforme Ricoeur
aquilo que já está ausente, que não faz mais parte. Isso poderia explicar a necessidade
álbum, ou mesmo a de Natália, que decide mudar-se para a casa da avó – tudo
irrecuperável.
são fatores que não permitem às protagonistas descreverem suas ações, mas antes
parcial e incompleta. A capa da obra de 2005, pela Editora Planeta do Brasil, dá conta
justamente dessa ideia, pois mostra uma mulher cujo rosto é encoberto
completamente com as próprias mãos, sendo que seu posicionamento está dividido
entre a capa e a contracapa. Assim, somente com o livro totalmente aberto, podemos
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ver essa face de mulher por completo. Essa simbolização parece considerar que o que
Pedrosa, será desenvolvida em mais três partes, nas quais serão estudados trechos em
2 O DIÁRIO DE JENNY
Guerra Mundial. Como no romance o pai de Jenny faz parte do exército, ela não tem
a possibilidade de conhecê-lo, pois ele acaba por ser morto em batalha. Sua criação
cabe, portanto, a sua mãe, que se mantém orgulhosamente viúva de um herói até a
velhice. Tendo vivido de 1917 a 1993, Jenny pode vivenciar a Primeira, a Segunda e
ditatorial ofensivo), e de 1968 a 1974 (com Marcello Caetano, período que, por seu
Terceira República, que vigorou a partir de 1974, com a Revolução dos Cravos.
maneira inglesa. Isso supostamente lhe conferia um status social numa época em que,
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Inglaterra era considerada uma das maiores potências mundiais, segundo Martins
(2007). Além disso, o Reino Unido mantinha uma parceria muito importante com
século XX. Essa influência britânica é desaprovada, na obra de Inês Pedrosa, por
Salazar se deixara levar pelos britânicos, e isso era ponto de discussão nos jantares
que António e Jenny ofereciam aos amigos. Entretanto, percebe-se que Jenny, embora
influenciada pela cultura tradicional e conservadora inglesa, tanto que essa é uma das
num paralelo com a ficção, quando Jenny tinha 18 anos de idade, Salazar pretendia
estipulou que o trabalho feminino “fora do domicílio” seria regulado por “disposições
mão de obra mais barata fornecida pelas mulheres e pelos menores. Assim, em muitas
empresas, as mulheres foram substituídas por homens e tiveram que assumir tarefas
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trabalhar. Isso, aliás, faz com que ela julgue negativamente a filha de criação, por
trocar o amor de um homem pelo amor ao trabalho. Para ela, Camila estaria infiltrada
pela promiscuidade, como se estivera doente, e seu talento a trituraria como uma
Isso não significa, contudo, que Jenny, apesar da fortuna da mãe e de não
ter tido a obrigação social de trabalhar, não tenha passado por momentos difíceis.
Embora tenha se casado, seu marido não trabalhava e, como se não bastasse,
desperdiçava os bens da esposa nos cassinos de Lisboa, junto a Pedro, seu amante. As
que acaba por reduzir o luxo que tinham no início do relacionamento. Para que Jenny
mantivesse, por exemplo, ao menos uma empregada ou comprasse algo mais luxuoso
no mercado, foi necessário que ela trabalhasse. Isso, entretanto, a personagem opta
programa de correio sentimental numa rádio, intitulado Cartas do Coração por Maria
personagem, não são apenas o dinheiro, mas sim, certa vingança com relação a
romances policiais, Josefa fazia muito sucesso, pois publicava suas obras sob o
época. Além disso, o sobrenome inglês também lhe conferia um grau de importância,
também muito próxima e dolorida, foi a prisão da filha durante a ditadura de Salazar,
passa a ser escrito somente quando ela já está em idade avançada. Por sua vez, o que
escreve não é somente sua vida recente, mas principalmente um determinado resumo
das lembranças mais relevantes que a levaram até a situação presente. Isso a põe
numa posição de distanciamento do passado que busca relatar, o que nos permite
considerá-la na posição de narradora com uma “visão por detrás”, conforme indica
outra mulher, diferentemente daquela que está vivendo todas as situações. Esse
por não se sentir mais parte daquilo. Isso também possibilita uma apresentação, que
ainda que esse equilíbrio beire mais à imaginação do que à narração das ações feitas:
parte do que é narrado, ao mesmo tempo em que possui uma melhor compreensão do
E não lhe apetecendo recordar, narra mais o que lhe apraz e como lhe
apraz, não se restringindo à cronologia, nem ao registro detalhado do que lhe ocorreu
durante os seus 75 anos. Sente-se, em outras palavras, livre para recriar seu passado
De certa forma, temos também que questionar como Jenny, com sua visão
do presente, tendo, portanto, visão dos resultados e das consequências de suas ações,
poderá relatar o que sucedeu no passado, sem recriá-lo com seu conhecimento atual.
30
Vejamos:
seja, quando Jenny já havia tomado ciência de que António era homossexual, que se
casara com ela para ludibriar os olhos preconceituosos da sociedade. O segundo faz
lado, enquanto se dirige ao leito com o amante Pedro. No terceiro, esclarece-se que o
que levou António a pedi-la em casamento não fora o amor, mas as traições do
perceber que António não tinha um físico tão atraente como sempre imaginara, ao
que participa das ações e que, devido a essa proximidade, desconhece o desenrolar
posterior das mesmas, e de outro, está a Jenny que as narra, tendo em vista a
e, através de sua narração, fazer suas impressões e sensações estarem presentes outra
vez.
Por isso, também, Jenny está mais próxima de uma reinvenção de seu
tentativas de reproduções psíquicas, mais que de ações. Além disso, quando Pouillon
afirma que nos lembramos a partir de algo dado, está se referindo a algo dado no
nos remete até ele. No caso de Jenny, a tentativa de justificar-se diante de Camila
pode ser esse algo dado no presente. O objetivo da personagem, portanto, estaria mais
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para justificar-se do que para revelar detalhes de sua trajetória. De outra forma, esse
quanto a ter optado por permanecer casada. É como se, depois de prosseguir sem
grandes reflexões, decidisse analisar amplamente não só suas atitudes, como também
as consequências que essas tiveram para si mesma e para toda sua família:
própria do presente, que exige uma trajetória, uma causa, um motivo anterior e
ideias sobre as coisas e sobre as pessoas, suas normas pessoais, indispensáveis para
avaliar o que ele foi; um julgamento, portanto, só pode ser formulado no presente:
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Assim, o que ele tem em mente ao narrar-se é coincidir com seu ser
passado. Deseja, por certo, explicar-se. Apenas, ele se explica tal
como se explicava e seu esforço para julgar-se representa ainda um
esforço para reencontrar-se... (POUILLON, 1974, p.42).
questionar essa relação sutil entre o presente e o passado, afirmando que o momento
conhecemos:
Jenny se questiona quanto às mudanças que teriam tido lugar caso tivesse
pai (Pedro) com António. Esse questionamento, contudo, torna-se evidente apenas
num momento posterior a tudo e a todos (após a morte dos amantes e após o
afastamento de Camila), o que lhe permite chegar a esse raciocínio, mais maduro e
prosa que a pessoa real faz de sua própria existência” (1991, p.48). Em outras
com o mesmo nome, enquanto na obra aqui analisada somente narrador e personagem
coincidem, já que sua autora não faz parte da história. Em todo o caso, Lejeune
Lejeune (1991, p.58) também acrescenta que esse tipo de narração implica que a
personagem “atual” que está produzindo a narração. Isso posto, podemos afirmar que
Jenny é um sujeito duplo que não se converte novamente em singular, pois sempre
permanecerá a distância entre o sujeito que narra e o sujeito sobre quem algo é
considerar, aliás, que Jenny, ao escrever seu diário, não só julga ou compreende o
passado, mas também transforma a vida de Camila, revelando seu segredo, ainda que
pelo passado é o de Camila, cuja visão de sua própria família será irremediavelmente
Deus”, ou sobre a “visão por detrás” considerando uma maior abrangência de visão
da narradora com relação ao seu próprio passado, leva-nos também a indagar o papel
da memória e do esquecimento. Como Jenny poderá nos contar uma matéria tão
mais: como Jenny pode nos dar detalhes das ações e mesmo dos diálogos, sem
recorrer à recriação? De que forma, enfim, ela pode reencontrar-se com o passado
implicações, aponta para os perigos imanentes às ações e ao resgate das mesmas. Para
posto que a lembrança é, antes de mais nada, uma imagem. Essa imagem, entretanto,
serviria como garantia de que algo ocorreu antes, ou seja, que a personagem tem um
passado e, portanto, uma trajetória que a levou àquela situação atual, dentro da
Nesse primeiro trecho, Jenny faz uma valoração do elogio que recebeu de
António, afirmando que acredita ter sido a maior qualidade que já havia escutado de
alguém. Essa valoração, por outro lado, é vista a partir do momento em que está
ao elogio, e não a personagem que está envolvida na ação. A ênfase, em suma, está
ao perceber o ciúme que António sente de Daniele, mãe de Camila, com quem Pedro
teve um caso, procura resgatar uma máxima a respeito desse sentimento. Segundo
Jenny, talvez o próprio António tivesse usado essa expressão anteriormente. Por outro
lado, essa dúvida quanto à autoria não a impede de criticar o ciúme do esposo e, pelo
contrário, Jenny acaba utilizando-a como argumento contra António. Para Pouillon
sabe como, induzindo a partir dos mesmos. Entretanto, os seus resultados são apenas
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uma releitura ou uma hipótese, de modo que só devemos utilizá-la quando não a
pudermos evitar. Mas essa releitura ou hipótese tem uma razão de ser. Sendo ou não o
relação a ele e ao amante Pedro. A releitura, então, é criada a partir de certos instantes
perceptivos.
que não se pode incumbir a percepção, e que consiste em fornecer o sentido daquilo
que se percebe. Por outro lado, a imaginação não intervém para substituir as ações. Se
devido a ela, continua o autor, que as visões do passado não são insuficientes e
podem ser analisadas sem que sejam dissolvidas (POUILLON, 1974, p.35 e 37).
si. Trata-se das impressões que se tem de uma ação ou de uma personalidade. De fato,
essas impressões são individuais, mesmo porque parte de uma visão parcial. Jenny
melhor que ele se relacionasse com a neta Natália. A avó está, na verdade,
assenhorando-se de uma ideia que não é compartilhada por Camila, que está
apaixonada pelo rapaz mais jovem. Ricoeur (2007) analisa como essa diversidade de
Por essa razão, o passado que Jenny narra em seu diário entra em choque
com o passado concebido pela filha Camila. Porque Jenny, ao narrar, está
apresentando mais do que simples ações, está descrevendo suas impressões, seus
em comum acaba sendo visto por focos de duas gerações distintas, o que nos leva a
que pode ser de rememoração mais difícil que a de um passado distante. Trata-se de
uma lembrança perturbada pela loucura de Jenny, em sua velhice. Assim sendo, a
expressão “parece que” deixa evidente a confusão dos limites entre a memória e a
releitura do passado. Para Gusdorf (1991), a narração passa de centrar-se nos feitos
forma a uma ação que, sem esse processo ativo da memória, careceria de sentido: a
Mais que resgate, portanto, a memória é, acima de tudo, reelaboração, e não mera
descrição.
Cabe aqui mencionar que isso lhe ocorre nos momentos de loucura, estando, portanto,
ainda mais suscetível à reinvenção. O risco é considerável: Jenny afirma que resgata
aspectos da infância que até então desconhecia. Além disso, estar deitada na relva a
comer pão com açúcar e a crítica da mãe quanto aos riscos de perder os dentes pode
40
ter relação com o momento presente, no qual não possui mais essa dentição, além de
açúcar situa-se entre seu desejo no presente e uma memória difusa do passado.
retenção da memória. O que permite que Jenny se recorde bem dessas ações,
essa personagem. Ela, diversas vezes, diz que sente dificuldade em lembrar-se do que
falou com a neta durante a manhã do mesmo dia, mas que consegue escrever em seu
juventude, ou sobre o sentimento de receber Camila nos braços. Essa lembrança que
tem, na verdade, também necessita de uma arrazoada justificativa: Jenny não escreve
em seu diário somente para extravasar suas emoções e pensamentos; pelo contrário,
escrever possibilita que o relacionamento entre os três (António, Pedro e Jenny) seja
esclarecido diante dos olhos de Camila. Sendo essa uma de suas finalidades, explícita
Vejamos:
momento em que António é quase seduzido por Jenny, mas acaba resistindo; o
sob a condição imposta por ela de continuarem convivendo como irmãos. Ambas as
situações se dão num espaço de tempo relativamente distantes, mas podem ser
que está descrevendo. As palavras de António são mais breves e marcantes, podendo
ser retidas mais facilmente pela memória. Entretanto, o mesmo não se pode afirmar
do diálogo tido com Pedro. Embora suas palavras sejam bastante significativas e
42
tenham sido proferidas num tempo não muito longínquo, o uso do discurso direto
parece não ser o mais apropriado para representar um discurso relativamente extenso.
Por sua vez, vale ressaltar que o diário, antes de mais nada, é um meio pelo
qual a personagem pode se expressar para si mesma ou para os outros, e, assim sendo,
a liberdade com que escreve é mais significativa que a necessidade de descrever sua
trajetória tal como se deu. Não questionemos, pois, os meios pelos quais Jenny revela
suas ações, mas pensemos nos objetivos que a levaram a escrever o seu diário.
que ésta está siendo interpretada en función del sentido (o sentidos) que ahora se cree
que posee” (WEINTRAUB, 1991, p.21). As cenas resgatadas, então, valem por uma
seu diário. O sentido que tiveram em seu passado, isso a personagem não consegue
transmitir, ao contrário, somente expressa o sentido que agora acredita que as cenas
possuem.
discurso direto, a seguir refletimos sobre as ações em si. São três fragmentos que
sentimentos, as angústias, a paixão, enfim. Não é difícil perceber que Jenny acaba
outras circunstâncias, certas personagens poderiam retratar o dia em que deram à luz
o pai. Esse se torna, assim sendo, o seu momento de maternidade. Nada a impede,
bem como sua atitude, é descrita precisamente, o que acaba por apresentar não
recebeu de outros homens que não o de seu esposo. O que não lhe apetece recordar é
experiência é modificada pelo aspecto interior. Assim, todo feito externo alcança
internos.
esquecimento de outras situações similares, nesse caso, parece ser proposital: é o seu
(3) [...] a mais forte recordação dessa noite é ainda a dos teus
olhos inesperadamente fascinados por mim. Eu subia o
caminho do lago, encharcada e aturdida, e tu viraste a
cabeça e ficaste, como uma estátua inacabada, a olhar para
mim. Esqueceste-te da pessoa que tinhas diante de ti e
avançaste, flutuando, na minha direcção. Paraste a um
metro de mim, e ficaste a derramar o lume lento do teu
olhar sobre o meu corpo. Vi a nossa vida inteira, passada e
futura, desfilando em espiral à nossa volta, como se o
universo terminasse ali. Então disseste: “Tanta beleza dá
vontade de morrer, Jennifer” (PEDROSA, 2005, p.54-55).
quando um estranho a tenta seduzir sob a chuva (trecho 2), não deixa de observar a
reação de desejo inesperado de António, bem como suas palavras intensas quanto à
sua beleza.
45
esquecimento. De outra forma, nem mesmo o tempo parece páreo para a relevância
com que ela enxerga determinados eventos. Segundo palavras de Ricoeur (2007), já
lembra-se a partir de uma valorização que parte da sua interioridade. Caso esse
mesmo passado fosse retomado por outra personagem, jamais se igualaria ao que
Jenny declara em seu diário. Sabemos, pois, somente do passado de Jenny, resgatado
Analisemos:
repetidas frequentemente e, por isso, mais facilmente observáveis por Jenny. Trata-se
de ações corriqueiras, com certa irrelevância, mas que, apesar disso, a narradora faz
necessidade de existir uma história para dar um fim à solidão. O uso exaustivo da
memória, resultando na tentativa de alcançar aquilo que ela não nos pode dar, é, como
há de se convir, imaginação. Como afirma Jenny, é tão intensa a busca por seu
passado, tempo em que António ainda era vivo, que já não mais diferencia se é
memória ou criação de sua solidão. Nas palavras de Pouillon, “Na realidade, nós só
3 O ÁLBUM DE CAMILA
Aqui, nesta segunda parte do romance, temos Camila, que se torna, a partir de
há nenhuma imagem nesta edição, a única forma pela qual o leitor pode visualizá-las,
Segundo ela, o motivo pelo qual se tornara fotógrafa foi a tentativa de registrar os
seus principais momentos, como se, ao fazer isso, conseguisse apoderar-se desses
instantes.
era uma judia, que, após perder os pais num campo de concentração, dedicou-se a
conseguir vistos para seus compatriotas franceses para entrar nos Estados Unidos.
48
Nas palavras de Sérgio (1972), para se mencionar um aspecto histórico real e ajudar-
Governo de Salazar fez com que o cônsul fosse preso em 1940, com a queda da
França. Esse fato histórico, como se pode perceber, parece ter inspirado Inês Pedrosa
entregar a filha nos braços de Pedro. Tempos mais tarde, soube-se de sua morte em
Camila, por outro lado, não sofreram diretamente com a violência da guerra. Aliás,
não faria sentido que sofressem, pois, segundo Sérgio (1972), o contexto em que
estão inseridas é o de um país declarado como neutro (1939, por Salazar), além de a
em parceria com a Espanha, já que outras prioridades acabaram surgindo. Além disso,
50, quando, no romance de Inês Pedrosa, Camila tinha 18 e acabou sendo presa por
não revelou diretamente a ninguém o que lhe sucedera, mas, em seguida, por meio de
seu álbum, menciona que sofrera torturas e ameaças. A ficção nos reporta a uma crise
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real e séria, ocorrida durante o Estado Novo, durante a ditadura, quando, em 1958,
da população, Salazar faz com que as eleições deixem de ser diretas, passando-as para
o personagem Veleno, a quem Jenny pedira ajuda para libertar a filha, esteja
referindo-se ao dar como resposta que não podia fazer nada, visto estarem em tempo
de alvoroço.
Libertação. Essa guerra, iniciada em 1961 nas colônias da África, dividiu a sociedade
portuguesa. O povo não sabia até que ponto deveria apoiar o governo a manter uma
e incentivo à luta.
novembro, quando Camila chega à terra africana, sabe-se que as tropas portuguesas
50
começam a sofrer suas primeiras baixas. Inês Pedrosa, aproveitando esse contexto
encontro, por outro lado, dá-se em uma zona pacífica, em Lourenço Marques, visto os
“filha de África”. Não volta a rever Xavier, cuja cabeça aparecera espetada numa
Esse período de luta pela libertação das colônias só teve fim com a
Portugal, esse foi um período de alegria, pois representou o fim da ditadura e trouxe a
milhares de militares às suas famílias. Inês Pedrosa também utiliza esse fato histórico
em sua narrativa, representando-o por meio da personagem Camila, que sai às ruas
Jenny, sua mãe de criação – seja pelas influências do período, seja por sua índole de
fazer parte de uma geração que necessitava modificar os valores de uma época em
51
que as mulheres necessitavam lutar por seu espaço. Assim, ao contrário de Jenny, que
não se divorciara para salvar as aparências, Camila nem sequer se casara, o que, por
teve das mesmas, por meio de seu álbum, complementando-o com descrições ou
comentários de suas fotografias. É por meio disso, então, que Camila busca ter o
acesso ao passado de maneira mais facilitada, o que, mesmo assim, não significa uma
vista seu resultado posterior, o que somente pode ocorrer com o distanciamento da
personagem.
ações ocorrem, assemelha-se mais a uma busca de proteção por meio de imagens
criadas, o que beira à reinterpretação. Como ela mesma afirma no excerto 1: Camila
precisava de uma ideia de pai, qualquer ideia que fosse. O distanciamento que
manteve desse pai, o qual julgava um sedutor sem alma nem caráter, acaba também
se qualificando como uma fuga (trecho 2). De fato, Camila pensava que Pedro não
tinha sentimentos por não ter se relacionado com ninguém (era no que acreditava
naquela época, quando desconhecia o caso entre António e ele) e, sendo assim, não
amava nem a ela nem a sua mãe, Danielle. Via o pai, portanto, como um incapaz de
Outra razão para esse afastamento poderia ser não dar a oportunidade de lhe
53
com António.
Com a leitura do diário, por sua vez, depara-se com uma grande
reviravolta – o que havia julgado não passava de engano, dado não só pela sua fuga
como também por sua visão parcial. Revela, então, que através das palavras de Jenny,
pôde, enfim, compreender o passado e aceitar o pai (trecho 3). Jenny, dessa forma,
estava certa ao escrever que acreditava que deveriam ter revelado tudo a Camila
somente ao ler o diário de Jenny, quando pode entender alguns episódios de sua
segunda, por sua vez, somente entraria em cena para suprir as deficiências da
percepção.
parcial que tem acaba sustentando sua imaginação, o que não pode, apesar disso, ser
visto negativamente, pois é graças à percepção aliada à imaginação que possuía uma
54
imaginação para captar o que não se oferece à percepção não denota uma impotência
definição clássica de imaginação é: fazer existir para nós algo que não existe. Por
outro lado, continua o pesquisador, “se é alguma coisa, essa coisa existe; portanto,
esta frase só pode significar: algo que não é material, que não se oferece à percepção,
1974, p.37).
Essa imaginação e essa percepção de Camila, por sua vez, mudam graças
à compreensão do segredo revelado por Jenny. Resulta daí a “visão por detrás”,
sua história. Daí que Camila não se reconheça como a mesma da infância e da
análise de si próprio:
controvérsia parece ser a de que quanto mais longe está do passado, mais próxima
55
que antes parecia como peças de quebra-cabeça que não se encaixavam devidamente.
Por outro lado, essa controvérsia é amplamente plausível, à medida que refletimos
sobre a posição de Camila no seu círculo familiar: não lhe é permitida clareza no
momento em que seu olhar encontra-se no desenrolar das ações. É necessário, então,
ocorrer uma visão de si para si como sendo outrem para analisar adequadamente seu
Por sua vez, não foi apenas o diário de Jenny o responsável por essa
com seu vestido vermelho, cegam-lhe a inocente tentativa da filha de tentar agradar-
que provoca em Camila uma ira descabida; a outra dada no instante em que se lembra
vista com o qual consegue focar com mais neutralidade o seu passado. Essa distância
é essencial para uma melhor fluidez da narrativa, segundo nos esclarece Mallea:
Talvez nos caiba indagar por que certas situações, tão facilmente
relacionamento entre Pedro e António, apesar de óbvio para muitos, era imperceptível
à personagem? Por que, além disso, ela não percebia as intenções da filha que nem
romance, percebemos que Camila, assim como Jenny, teve uma trajetória árdua e
repleta de contratempos, pois, enquanto uma sofria com o amor não correspondido de
verdadeira mãe e com o falecimento dos dois homens com quem se envolvera, além
de ter sido presa e torturada no período ditatorial. Tudo isso, embora não somente
em nada colaboram para uma ordenação do passado. O tempo não apaga, contudo, os
Desiludida com a morte de seu primeiro amor, Camila percebe que suas
de ser presa. A personagem reconhece suas atitudes, vendo-as como se tivessem sido
praticadas por outrem. Essa alteridade é o que lhe permite clareza, correspondendo ao
acaba sendo registrado concretamente. Suas lembranças surgem, de fato, a partir das
sua trajetória. Acrescenta-se a isso a estratégia de Camila de, ao tentar resgatar esse
passado, ir além das fotografias, recorrendo não apenas à mera descrição das mesmas,
alegria pelo fim da ditadura. Entretanto, como Camila, a fotógrafa, acaba ouvindo as
razões das lágrimas da amiga, reconhece que a mensagem aparente daquela imagem é
falsa.
resgatar o passado – além de olhar para ele num caráter de alteridade, a partir do qual
que poderiam ser essenciais no momento em que se deu a percepção? E mais: o que
dizer de ações que, mesmo sendo principais, acabaram não sendo levadas em conta,
por motivos os mais variados? É o que acontece quando Camila entra em estado de
seu grande amor: se chamou por socorro; se o socorro foi dado e por quem; como
reagiu diante de tudo; se foi ela quem avisou a sogra ou como a sogra foi parar a sua
frente, a acusar-lhe pela morte do filho. O estado de choque, nesta situação, colabora
para esse “esquecimento” de Camila. Esse é um exemplo de que o silêncio pode ser
tão significativo quanto o dizer. Por outro lado, não são apenas momentos tensos que
fragilizam a retenção, já que a memória, por si só, possui essa característica. Nas
que uma reprodução do mesmo. Assim sendo, não cabe recorrer à memória, quando
essa falta, pois, na ausência, ela será substituída pela imaginação ou, em outras
Por sua vez, Inês Pedrosa, ao escolher esse ponto de vista para a segunda
protagonista de seu romance, permite que Camila crie e recrie sua trajetória,
ações, já que elas podem ser narradas tendo já em vista os propósitos que eram
lhe propicia um ângulo mais amplo, com o qual os excessos sentimentais estariam
distanciamento da cena, o que lhe trará os benefícios dessa distância, mas também a
Considerando esse duplo viés, cabe ressaltar que se Inês Pedrosa pretende que suas
acaba fazendo mais sentido se o objetivo, antes de mais nada, for a compreensão do
mesmo.
beleza eram ideologias pelas quais os jovens lutavam naquela época. Nesta cena,
Camila, ao recordar-se das várias relações sexuais que ela, assim como
atraída por eles, pois acreditava que todos mereciam tratamento igualitário,
demonstra nítida desaprovação por suas ações. Por outro lado, quando estava inserida
questiona-se por não estar se sentindo feliz. Como ela mesma afirma:
Mas a resposta a suas dúvidas surge somente vários anos depois, quando
tem maturidade para entender aquela situação. Os detalhes do sexo não são
poder esquecer o que não lhe apraz, e se ver como um ser diferente do que no
Essa outra lembrança também parece fazer agora mais sentido a Camila:
perceber que eram atos de vingança contra aqueles homens que as deixavam infelizes.
A circunstância de eles não falarem delas também passa a ser mais bem
compreendida: não era uma questão de respeito, e sim, de simples indiferença. Mais
repúdio pelos corpos indesejados daqueles homens, seja de felicidade pela união
despercebida que existia entre as meninas de seu tempo. Ricoeur trata, em seus
dá a narração, não são completamente positivas, nem a essa geração, nem à geração
Isso tudo pode ser visto pela personagem quando a mesma já tem em
mente os resultados das ações, suas e de sua época. Considerado por esse viés,
entende-se que o enfoque que Camila dá a essas cenas seja nitidamente negativo, pois
tem como base menos as ações do que a compreensão de suas próprias ações. Por
meio da qual conhecemos apenas a elaboração que cada narradora faz de sua própria
trajetória.
Para Camila, no auge de sua juventude, ser fotógrafa é mais que ter uma
retrato de Armanda é o que lhe transmite a terrível revelação de que nem uma
fotografia é capaz de trazer consigo uma visão que não seja elaborada. Já a criticava
Xavier, o pai de Natália: “Então para que é que serve essa máquina, senhora? Os teus
olhos são desmemoriados, estão doentes?” (p.109). A angústia que sente por não
também com Natália, como demonstraremos a seguir, é ainda mais nítida no caso de
Camila. Isso porque as imagens que tem de seu passado foram criadas por toda uma
simulação de relacionamento de Jenny e António, quando, de fato, era seu próprio pai
Pedro quem vivia esse relacionamento amoroso. As imagens que fazia de seu pai
quanto a ser vazio, sem sentimentos e um mero sedutor, também não coincidem com
o que vem a saber somente depois, por meio da leitura do diário de Jenny. Outro
ponto também relevante: o conhecimento que tem de sua verdadeira mãe, a judia
Danielle, não lhe é dado diretamente, por meio de um contato familiar, visto ela ter
sido perseguida e assassinada pouco depois de ter deixado Camila nos braços de
Jenny. Assim sendo, a memória que tem com relação a sua mãe é uma memória que
mesma e leva-nos a questionar quanto ela teria deixado escapar de sua relação com o
pai Pedro, e, devido a isso, como seria capaz de relembrar o que se passou na sua
juventude. Questionamos ainda a impressão que tem e que relata a respeito de sua
mãe Danielle: teriam os relatos de Jenny e uma simples fotografia sido capazes de
DANIELLE
VERÃO DE 1941
pondo seu olhar no sol, nas sombras, num homem estranho que por ali passava
seguida, retorna o foco para a mãe, descrevendo-a como alguém que parece
sorriso da mãe lhe faz lembrar dos sorrisos que recebeu quando estava sendo
torturada. A partir daí não volta a narrar sobre a mãe, e sim sobre sua amiga Glória.
choro não é de alegria pelo fim da ditadura como o das demais da fotografia, que
relação com o passado ocorre por meio de imagens que, por algum motivo ou
encadeamento, resgatamos:
associações de ideias que faz ao descrever a mãe no retrato também são reveladoras
(tanto que aquele sorriso a fez lembrar que foi torturada pelo sistema ditatorial.
principalmente quando o que se tem é apenas uma fotografia, bem como relatos de
terceiros.
custo nutrida com o passar dos anos: existe uma nebulosa entre quem ela foi e o que
68
ela representa ser. Ricoeur, em sua abordagem, distingue essa visão, admitindo a
em termos de semântica; mas, por outro lado, uma está interligada à outra, na medida
suas verdades foram se modificando, especialmente através das revelações que Jenny
lhe legou após a morte. Ainda assim, não se lhe sustenta que novas modificações não
possam novamente ocorrer, talvez por meio não do olhar da “mãe Jenny”, mas pelo
69
da filha Natália, que está inserida num outro contexto e que, por isso, terá consigo
Sabe-se que uma marca particular que o indivíduo tem são suas
que fazem das mesmas ações não se repete: ora varia conforme o ponto de vista em
que as protagonistas estão; ora varia segundo os valores e tendências de cada geração;
ora se define pela forma como o grau de relevância da ação se apresenta a cada uma
delas. Não há como haver, portanto, uma única versão dos episódios, e sim várias
seio familiar, como ambas podem ter visões tão diferentes acerca de alguns
episódios?
Ressalta-se aqui que o que foi retido pela memória de Camila foi uma
fusão entre o que ela vislumbra do seu passado (e essa é a parte mais definidora de
seu ser) e o que Jenny lhe revela no diário. A versão de Jenny, desse modo, apresenta-
70
quanto ao pai Pedro. Em contrapartida, embora tenha havido essa influência para
que, de algum modo, estão interligados, mas cada qual com suas peculiaridades.
que Camila fazia da mãe Jenny antes de saber do relacionamento amoroso do pai:
do diário, Camila faz toda uma revisão de antigas imagens, concebidas de forma a lhe
acaba sendo influenciada por outra imagem – a que possuía do passado – de que
Jenny continuava sendo implacável. Isso acaba sendo interpretado por Camila de uma
com Camila durante toda sua vida – seus familiares, ao manterem esse segredo; sua
de seu emprego; Natália, ao se envolver às escondidas com Álvaro, por quem a mãe
uma passagem tão marcante quanto a que se deu posteriormente à morte de Eduardo
72
por um relâmpago. A explicação não está quanto ao nível de relevância, pois como
ela mesma afirma, com a morte do amado, “desmoronou o mundo”. Então, para se
estudo de Neufeld (2005, p.15), que sugere que nenhum detalhe chama a atenção da
mais a atenção que outras, e, por isso, podem ser facilmente relembradas. Os erros de
foram retidas. De outra forma, nada que sucedeu após o falecimento de seu amado foi
mais relevante que o ato da morte em si. O erro da memória, portanto, foi além da
resgatar a ação. Essa operação dá-se não somente no sentido de o presente buscar o
passado, numa única direção. A operação, na verdade, pode ser vista como dupla:
primeiro, porque se dá no presente, buscando o passado, mas tendo como base toda
uma visão contemporânea. Essa visão atual, por sua vez, acabará por influenciar a
particularidade da personagem – Camila define-se, dessa forma, não apenas por suas
ações, mas pela elaboração e inferência que faz de suas experiências. As mesmas
concepção das mesmas, por outro lado, é particular, individual e, acima de tudo,
intransferível. O que foi contado pela personagem, portanto, não tem que ser
equivalente ao que a outra narra; contudo, é essa imagem que ela tem de seu passado
4 AS CARTAS DE NATÁLIA
Mãos. Enquanto, na primeira, temos um diário, considerado incomum por não trazer
conhecemos mais sobre a personagem Natália por meio das cartas que escreve à avó
Jenny.
A primeira carta data de 21 de maio de 1984, quando Natália ainda reside com
a mãe e com a avó, na Casa do Xadrez, em Lisboa. Aqui, como nas outras partes do
não só do espaço como também das ações das personagens. Isso pode ser averiguado,
por exemplo, nas relações amorosas de Natália. A sua primeira paixão é Álvaro, ex-
impedir a felicidade de Camila com um homem mais jovem que ela. Entretanto, o que
75
era uma simples disputa acabou tornando-se uma paixão arrebatadora. Álvaro, no
do sexo da mesma forma como foge de algum compromisso mais sério. Enquanto
num dia manda flores a Natália, noutro, faz troças de seus sonhos e sentimentos. Um
A partir da leitura do romance, pode-se inferir que os casamentos passam a ser vistos
como uma aliança que somente deve ser feita se facilitar a vida prática. É isso, aliás,
que leva Natália a casar-se com Rui, por quem não é apaixonada, mas que lhe
convém para lhe livrar da solidão. O que indica que seu casamento foi realizado em
companhia, o que não acontecia com Álvaro, que somente a fazia sofrer, não se
uma forma de interação social que ela identifica como troca; isto é, existem
recompensas, custos e troca social em qualquer relação que suponha algum tipo de
beleza, inteligência, assim como a atenção dispensada pelo outro ou ainda o auxílio
prestado em algum momento da vida. Dessa forma, o que teria levado Natália ao
divórcio foi a coragem de enfrentar aquilo que ela sempre temia: a solidão. Em outras
palavras, não necessitava mais de Rui, visto ter originado em seu interior a
capacidade de enfrentar o vazio, o que rompeu com o sistema de trocas que deu
origem ao relacionamento.
Além disso, Bauman (2004) acrescenta que os laços afetivos se tornam cada
vez mais frágeis, o que decorre das crescentes relações de consumo características de
nosso contexto histórico. Por outro lado, o autor também afirma que, mesmo dentro
do amor, o estudioso ressalta o quanto ainda esse é almejado como se fosse eterno,
mesmo sabendo-se que poderá durar menos do que se espera. Então, como a
Inês Pedrosa é escritora bem ciente das tendências de cada geração e utiliza
isso ao seu favor para compor sua ficção. Tanto que as ideias de Bauman quanto ao
Natália no romance, já que ela, em princípio, acredita que as trocas com Rui serão
suficientes para manter uma relação duradoura. Por sua vez, ela sente a necessidade
Além do amor, outro aspecto que caracteriza bem a época em que passa a
trajetória da terceira narradora é a sua viagem a Moçambique, terra onde foi gerada,
por meio da qual demonstra a decadência e a miséria não solucionadas, apesar dos
ideais de liberdade divulgados especialmente pela FRELIMO, Frente que lutou pela
agora mendigos, que combateram quando tinham apenas oito anos de idade.
enfim. Dessa forma, por meio do relato de Natália, conhecemos um pouco mais de
Pelo contrário, a maior parte da ação se dá num período inferior a uma semana do
relato. A análise que aqui faremos, portanto, será, de certa forma, distinta da que se
deu nos capítulos anteriores. Por outro lado, apesar de se tratar de resgate de um
tempo recente, isso não significa inexistência de dualidade, visto continuar existindo
discurso de Natália. Aliás, o íntimo relacionamento que tem com sua avó é resultado
impressão de que Natália não esteja escrevendo a Jenny, mas a si própria, como se
Dessa forma, podemos analisar em que sentido Natália resgata sua própria
história; e também, de que forma acaba retomando mais do que o seu passado, mas o
da avó Jenny, com quem se identificava mais que com sua mãe, demonstrando que
personagem os relata antes de ter conhecimento dos seus resultados e esse ponto de
vista acaba fazendo com que a narradora descreva mais sua rotina. Em 15 de
fevereiro de 1991, por exemplo, ela escreve sua quinta carta à avó:
o que ocorre no seu trabalho, a distância do marido que passa a residir em Coimbra
79
devido à profissão enquanto ela continua em Lisboa, e dá detalhes dos encontros com
os amigos. Tudo isso, contudo, parece pouco, diante da alegria que diz ter sentido no
passado, pois no presente, “já não há nada de surpreendente”. Todo esse sentimento,
que a memória seria um esforço de tornar algo presente outra vez. Isso, portanto,
levaria a acreditar-se que o presente estaria mais próximo da presença; porém, lendo
o trecho da carta de Natália, verificamos que esse não é um processo tão simples
como se imagina, pois é o presente que a personagem sente como algo ausente, e não
de seu presente, não o faz sem trazer consigo os prazeres e sofrimentos, e isso
também influenciará seu relato. O presente que ela retoma, se assim podemos afirmar,
é mais ausência que seu próprio passado, visto haver um escapismo do momento no
pessoal, mas também ao ritmo de vida que Natália leva: um ritmo tão constante que
O trecho foi extraído da segunda carta escrita pela neta a avó, datada de 5
... a posição ‘por detrás’ deve ser perpetuamente mantida por uma
imaginação que conserva o outro longe de mim para que eu não me
dissolva nele. Ela me leva a compreendê-lo fazendo com que eu o
veja, isto é, conservando esta dualidade do visto e do vidente
(POUILLON, 1974, p.68-9).
como dual, ou seja, como personagem que “age” e como personagem que “narra”.
Esse distanciamento, em quesitos temporais, não pode ser comparado ao de sua mãe
81
ou avó, mas, ainda assim, não a impede, ao menos completamente, de ter alguma
nitidez:
Natália relata o antes e o depois com relação a Álvaro: seu objetivo inicial
era o de apenas separá-lo da mãe, em contraponto com o desenrolar das ações e dos
se apaixonando pelo homem por quem sua mãe se interessara. Eis porque é
Natália, por exemplo, tivesse escrito a carta antes de conhecer os primeiros resultados
de suas ações, o que relataria a Jenny não teria correspondência alguma com as
82
impor uma ordem do presente sobre o passado, apesar de ainda não ter uma visão
total do desfecho desse relacionamento, que está sendo visto a partir dos seus
não tão longo, em suma, propicia um significado diverso, pois tem como ponto de
por quem a própria mãe estava interessada. Natália, enfim, consegue compreender
matéria narrada, ou seja, conforme Pouillon : “... visto nos encontrarmos ‘por detrás’
dele, podemos ver diretamente o que só lhe é dado ver distanciando-se com relação a
das ações; corresponde também ao simples transcorrer do tempo, quando Natália vai,
aos poucos, atingindo a maturidade. Várias cenas poderiam ser citadas. Contudo, a
que parece melhor exemplificar essa dualidade é o divórcio de Natália e de Ruy, cujo
casamento foi largamente criticado por Jenny (que, já de início, sabia do amor entre a
fim do casamento a Jenny. Consta-se, entretanto, que esta carta foi escrita após o
destinatária do relato:
estava viva, questionava esse casamento que fora baseado mais em utilidade do que
fusão bem-sucedida.
melhor. Nas palavras de Pouillon, não se pode ter um sentimento sem que tenhamos
consciência dele (1974, p.38). Natália não podia ver as raízes falhas que sustentavam
seu casamento. À medida que se tornou consciente delas e de si mesmo é que pôde
e atos. Jenny simbolizou sua consciência ao adverti-la das bases enganadoras em que
desconhecido para Natália até o momento em que se fez consciente, da maneira tal
quando Natália não se encontra mais na personagem que foi, mas sim distanciada
dos móveis mais íntimos que a fizeram agir. Com isso, não é a personagem que se
impõe à narradora; a narradora é que escolhe a sua posição para ver a personagem.
medo de um grande amor por Álvaro e o temor de ficar na solidão. Assim, quando
relacionamento que já não existem mais. Olney (1991) argumenta que a escrita de si
vai além da legitimidade de uma história ou de uma narrativa individual. Antes disso,
de Natália, tem-se não somente sua rotina, mas também seus temores, valores e
presente e com o estilo atual da sociedade em que está inserida. A narradora, então,
forma, fará com que essa felicidade retorne. Eis porque procura reunir-se com seus
antigos amigos de faculdade, por exemplo. Mas Natália vai ainda mais além... para
ela, existe algo especial nas gerações anteriores, descritas como mais felizes e
satisfeitas, e essa percepção pode ter sido por influência de sua avó. Essa ideia de que
parece passar tão rápido que já nem o sente. Um dos primeiros sinais são os projetos
que surgem em sua carreira. Uma arquiteta... Natália formara-se em arquitetura e suas
traçados originais aos antigos prédios que, com o tempo, sofreram ultrajes e
inconscientemente. Tudo isso condiz com a identificação que tem com a avó –
símbolo dos edifícios originais; e com o desentendimento com a mãe – símbolo dos
87
seu trabalho como arquiteta. Ricoeur, como expresso anteriormente, diria que ela se
sente bem nessa fruição do passado ressuscitado, mesmo que simbolicamente, por
meio de edifícios antigos, visto que, para ela, é mais fácil restaurar um passado que
trajetória, no que tange à sua relação amorosa. Então, a princípio, Natália restringe-se
juventude. Embora ela busque a convivência com antigos amigos, verifica que as
comparadas aos edifícios que, com suas habilidades, restaura eficazmente. Isso
porque a trajetória deve ser vista mais como um processo do que como uma unidade
estável, como afirma Olney (1991), e que é a nossa configuração psíquica única que
Sendo assim, esse é o próximo aspecto a ser mudado, já que implica a retomada de
mulheres de sua família que eram infelizes no amor, como se essa fosse a única
trajetória a ser seguida. Natália, por sua vez, tentará levar a vida como processo, e não
pode inferir, parece mesmo ser com relação ao amor. Um amor que não somente o
seu, mas o de mais três gerações de mulheres, considerando aqui sua mãe Camila, sua
avó Jenny e sua bisavó, pois como a própria personagem afirma: “Por mais que os
histórias tristes de amor, do mesmo modo como restaurou os edifícios arrasados pelo
tempo ou os projetos impossíveis que lhe incumbiam, Natália passa a viver na Casa
do Xadrez, alguns meses após a morte de Jenny: 15 de outubro de 1994. Com essa
íntimas que Natália precisa resolver. Pouillon elucida essa necessidade de vínculo do
Sem dúvida, é preciso que esse passado lhe seja lembrado pelo seu
presente; estamos, porém, muitas vezes errados quando
consideramos essa lembrança como baseada unicamente numa
semelhança do presente com o passado; meu presente exige o meu
passado e as razões dessa exigência são mais sutis do que
geralmente se julga (POUILLON, 1974, p.42).
não tenha sido o seu, e sim o das outras gerações de mulheres de sua família. As teias
indicam o quanto a Casa do Xadrez necessita de cuidados. Apesar disso, Natália opta
apenas por restaurar a residência em sua originalidade. Para isso, contrata jardineiros
e conta com a ajuda de seus amigos arquitetos para poder fazer o que é necessário na
casa que, desde o falecimento de António, em 1988, não havia sido reformada nem
90
por Jenny nem por mais alguém. Quanto a essa mudança de residência e opção pela
Ao optar por residir na Casa do Xadrez, Natália não está, então, apenas
mudando de residência. Viver ali trará à tona os episódios ocorridos não somente com
ela, mas também com as mulheres das gerações anteriores, em especial, com Jenny,
por quem nutre maior consideração. Mudar-se para esse lugar, portanto, tem sentido
parece acreditar que estão naquela casa as razões dos infortúnios de sua bisavó (que
enviuvara muito jovem, devido à guerra); de sua avó Jenny (não correspondida por
António, amante de Pedro); de sua mãe Camila (cujos homens com quem se
Álvaro).
móveis e até roupas da geração anterior, simboliza mais do que simples necessidade
mudança producente, visto tentar constituir, a partir do passado, uma nova trajetória
91
de vida amorosa, como se, ao fazer isso, Natália pudesse homenagear bisavó, avó,
finalmente no seu devido lugar, ou seja, no passado. Definindo com clareza o local
das ações anteriores, está também deixando evidente a si mesma que elas não podem
faz sentido, pois, dizer que Natália está agindo com discernimento ao vestir a camisa
roubadas do diário da avó, que, motivada pelo amor e desejo, suplicava a António:
“Vem para dentro de mim, não tenhas medo” (PEDROSA, 2005, p.221).
personagem diferenciar o que é para si do que foi para suas antepassadas. As ações
parecem fazer sentido, também, à medida que Natália se identifica com as três
gerações anteriores, mas nem por isso deixa de se reconhecer como indivíduo capaz
Por isso, escreve para Álvaro, deixa a porta de entrada aberta e enche de
velas acesas o caminho da entrada até o quarto de Jenny. E como ela mesma afirma,
2005, p.220), ou seja, suas ações mais decisivas para que o amor se concretize
rompem, por fim, com o que se supunha ser destino. É assim, pois, que passado e
presente se reorganizam, ocupando cada qual o seu devido lugar para esta
personagem, que opta por um novo destino: o seu... tão somente seu.
93
CONCLUSÃO
diferentes, numa tentativa de discorrer sobre suas trajetórias. O registro de suas ações
liberdade com que são criados possibilita que as narradoras exponham seus
versão de suas trajetórias. Essa subversão da forma canônica dos gêneros relaciona-
subjetividade e interlocutores.
Jenny, por exemplo, surpreende com o seu diário, pois não faz apenas um
registro pessoal de suas experiências cotidianas, mas vale-se dele para organizar e
perigoso: a loucura; e certo: o tempo. O diário de Jenny, cabe ainda lembrar, possui
94
dois destinatários, o que é incomum a esse gênero. Por sua vez, a leitura permite
sobre esses dois narratários (Camila e António), mais do que a si mesma, destinatária
tradicionais deve-se, portanto, à natureza daquilo que cabe revelar, e que vai além do
que as ações cotidianas deixam entrever, justamente o segredo que cerca o seu
ocorrida mesmo após o falecimento da destinatária, faz com perguntemos para quem
Natália escreve desde sua primeira carta: para Jenny ou para si mesma, utilizando a
se dirige, é por meio dessas cartas que a narradora registra sua trajetória,
que nos leva a pensar que a autora da correspondência tem no outro, mesmo
Ainda em relação à transgressão dos gêneros, vale dizer que Camila também
registro objetivo da realidade. É através de seu álbum que Camila retoma grande
parte de sua trajetória, pois é ele que a remete a recordações que nem sempre fazem
referência ao que foi fotografado, mas que, por razões de ordem subjetiva, são
trazidas à tona, na sucessão de uma ideia que puxa outra. O álbum, então, vai além de
uma coletânea de imagens, pois, por meio dele, percebemos o olhar da narradora, que
nas imagens. Outro ponto é que, nas três partes do romance, pode-se perceber o
por conseguinte, torná-las compreensíveis a si mesmas. Tal se evidencia, uma vez que
as protagonistas não acessam o passado, mas, sim, fazem uma (re)leitura dele, e isso
não é apenas uma questão estratégica de narração, mas uma constante, em se tratando
de memória.
uma mesma herança: os obstáculos amorosos que se impõem diante delas parecem
e à paixão excessiva. A segunda, pelas duas mortes dos homens com quem se
96
símbolo paterno ou materno devido às guerras. Jenny, por exemplo, nem sequer
conhecera seu pai, morto durante a Primeira Guerra Mundial. Assim, foi criada pela
mãe, uma eterna e orgulhosa viúva que a educa de uma forma extremamente
conservadora. Camila, por sua vez, perde a mãe, uma judia morta em um campo de
que era muito jovem, não se recorda da figura materna, substituindo-a, de certo modo,
pela da mãe de criação. Essa herança de perdas também esteve presente na trajetória
Por outro lado, essas três protagonistas, embora com trajetórias parcialmente
qual ao seu modo. Enquanto a primeira, numa atitude tradicional, manteve-se firme
circunstâncias similares. Ora, se suas reações foram diversas, então podemos concluir
97
que ainda mais diferentes foram as versões narradas por elas, embora se tratasse
parcialmente dos mesmos episódios. Daí a crítica com que cada personagem enxerga
a outra geração: Jenny, como uma infeliz por Camila; Camila, como uma militante
sem causa por Natália; Natália, como uma desentendida no sentido amoroso por
Jenny.
constitui de maneira distinta, tendo sido influenciada por dois fatores principais:
alteridade; e o segundo, que impõe sua influência no resgate das ações, ao mesmo
essencial para a compreensão das ações, que sofrem diversas influências no decorrer
têm uma visão limitada dos episódios e de si mesmas; outro referente às narradoras,
já cientes dos resultados que suas escolhas tiveram, ou seja, com uma visão
suas versões, que, por sinal, são singulares. Camila não herda a versão de Jenny após
ler o diário que revela o homossexualismo do pai, assim como Natália não herda a
nos indica que existem coisas que não se herdam nunca, ou seja, as versões narradas
De outra forma, pensemos também não somente no que herdamos, mas no que
puro. Para ela, o amor tem um fim em si mesmo, não precisa de justificativas e pode
constante, independentemente das mazelas a que estiver sujeito. Já Camila, com suas
chega para provar que o divórcio não só é natural, como o casamento não é uma
obrigação. O racismo também é questionado, tanto que Camila exibe a filha mulata a
toda sociedade, acentuando que o pai era um moçambicano, soldado da Frelimo, para
espanto de todos. Com relação ao trabalho, essa geração também garante mais
entrega à profissão até a exaustão, graças ao legado da geração de sua mãe. É esse
legado também que lhe permite pedir o divórcio, pelo qual lamenta por questões
tempo da avó. Mas antes, é esse legado também que a faz casar-se erroneamente, pois
a imagem de amor ganha ares de praticidade: Natália casa-se para ter estabilidade
deficiências de sua geração, buscará deixar a sua própria marca no que corresponde
ao amor. Amor puro, de fato, existe, conclui ela ao dar-se conta de que não era feliz
sem o seu grande amor. E, apropriando-se dessa ideologia de Jenny, ela parte em
busca de algo mais desafiador: transformar o amor ideal em amor ideal concreto,
gerações posteriores.
Toda essa reflexão possibilita que entendamos o título do romance: Nas tuas
mãos. São histórias de três diferentes mulheres, de três diferentes gerações, mas que
entrelaçados e ações melhor esclarecidas a partir das mãos uma da outra. É marcante
que Camila tenha tido suas visões de juventude estilhaçadas pela revelação da
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homossexualidade do pai por meio do diário de Jenny, por exemplo. Também marca
que essa narradora tenha se voltado para seu passado e revelado essa imagem por
meio da qual temos outra visão desse relacionamento familiar. Da mesma forma, é
Visto isso, pode-se dizer que a linearidade no tempo deu lugar à circularidade
das ações – um giro, um resgate, uma retomada de todas as trajetórias, por meio das
três narradoras. Essas três mulheres têm, assim, seus laços reforçados, à medida que o
escrito de uma volta-se para o de outra, o que se dá não apenas temporalmente, como
também espacialmente, com a volta de Natália à casa do Xadrez. Isso tudo nos
permite afirmar que são trajetórias que não se encerram, mas que se retomam, e com
a retomada, se complementam.
Assim, percebe-se que não é o que uma geração tem, mas como se fez com
REFERÊNCIAS
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.
MELLO, Ramon. Inês Pedrosa, um caso de amor com o Brasil. Disponível em:
http://www.saraivaconteudo.com.br/Artigo.aspx?id=345&gclid=CIPsmdrAwaQC
FSda7AodfHTaEQ. Acesso em 07/10/2010.
PEDROSA, Inês. Nas Tuas Mãos. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005.
1
http://www.saraivaconteudo.com.br/Artigo.aspx?id=345&gclid=CIPsmdrAwaQCFS
da7AodfHTaEQ. Acesso em 07/10/2010.
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(porque todos são fãs de futebol) ou simplesmente para falar mal de alguém.
Interessou-me, por um lado, dar fala ao masculino contemporâneo, que ainda tem
distinções culturais em relação ao feminino. Não acredito na diferença de gênero.
Vivi sempre no mundo de homens e tenho grandes amigos homens, mas noto que há
uns rituais específicos dos países do sul da Europa, que têm uma cultura patriarcal
muito forte. E que também têm, por sua vez, um matriarcado, maternal, muito
castrador e muito forte, que dá vida ao cotidiano.
O livro lida com a intimidade do homem. Foi difícil chegar a essa voz
masculina?
Inês Pedrosa - Sou irmã de homem e sempre tive muitos amigos homens variados. O
livro nasce da observação de coisas que eles dizem. E de começar a tomar nota de
frases, de maneiras de olhar a realidade, recortes da realidade. Tem lá uma conversa
no livro, de homem que diz que em casamento se contam as noites, que esteve casado
não sei quantas mil noites, cada noite um marco no casamento. Ouvi isso num jantar,
essa conversa não foi provocada por mim. Portanto, foi espontânea. Então tomei nota
da forma de falar. E têm muitas outras coisas. Procurei fazer um retrato desses
homens, muito diferentes ente si. E fui percebendo - independente de machismo,
conceito tradicional ou orientação sexual - homens têm uma infinita indulgência uns
com os outros. Os homens são muito amigos porque não exigem muito uns dos
outros. Noto que as mulheres exigem muito mais umas às outras, e provavelmente
também aos seus amigos homens, do que os homens propriamente. Ou seja, pode ter
uma discussão brava com alguém e voltar, com muito mais facilidade do que uma
mulher. Talvez, porque nunca sonharam tão alto em relação a essa amizade. Então,
podem deixar passar a tempestade e voltar a olhar para aquela pessoa sem amargura.
Penso que seja por isso, porque os homens têm a expectativa baixa e são menos
perfeccionistas do que as mulheres são educadas para ser. É claro que as relações
passionais são muito parecidas entre homens e mulheres, entre homens e homens,
entre mulheres e mulheres. Paixão é sempre uma relação complicada, que tem o
ciúme, a posse, a fidelidade. A relação de amizade é francamente mais livre e menos
exigente da parte dos homens entre si. Por isso homens podem dizer "nós somos
amigos para a vida". Porque também exigem muito menos dessa amizade ao longo da
vida.
Inês Pedrosa - Sim. O Fazes-me falta foi publicado no Brasil um pouco depois de
sair em Portugal. Em 2002 saiu em Portugal e 2002/2003 no Brasil, talvez início de
2003.
Você consegue analisar o que mudou na sua escrita desde a publicação do Fazes-
me falta?
que um escritor prefere que comecem a publicar pelo primeiro porque, em princípio,
se não pensasse que vai evoluindo deixava de ser escritor. Nós temos sempre essa
ideia de que vamos crescendo a cada livro. Eu não tenho tanto essa ideia porque,
infelizmente - meio na brincadeira, mas meio à sério - depois de ter publicado A
eternidade e o desejo, que é o romance que publiquei cronologicamente depois do
Fazes-me falta, há pessoas que dizem, depois de ler esse livro: "Gostei muito, mas o
Fazes-me falta que é o livro..." Já percebi, comparando com o dono dessa casa,
Fernando Pessoa - uma comparação muito abusiva - que o meu Livro do
desassossego, até agora, é o Fazes-me falta. É aquele que desassossega mais pessoas,
que as pessoas mais gostam. Devo a minha publicação ao Paulo Roberto Pires, meu
primeiro editor. Eu dizia: “O problema é que em seguida [ao Fazes-me falta] vai
publicar o Nas tuas mãos, que é o anterior. E em seguida o primeiro romance. Pode
ser que os leitores digam que cada livro novo é pior do que o anterior.” O Paulo dizia:
"O Nas tuas mãos não é pior do que o Fazes-me falta!" Fiquei muito grata por isso. O
Fazes-me falta é composto por dois monólogos que se cruzam. Uma mulher que
acabou de morrer, subitamente. Não estava preparada para morrer. E tinha uma
relação por resolver, uma relação de amizade. Mas uma amizade onde passava um
erotismo muito particular com um homem bastante mais velho. Por um lado, foi
interessante fazer o confronto das duas vozes, de gêneros e gerações diferentes. E
também porque as mesmas situações são descritas por duas pessoas de forma
completamente diferente. A questão da perspectiva, o livro é muito isso.
Inês Pedrosa - Explicando um pouco o que é cada livro: Nas tuas mãos é um
romance que começa nos anos 30 do século XX, em Portugal, por contar a história de
uma mulher que teve um casamento branco - no sentido que não foi consumado
porque seu marido lhe disse na noite de núpcias que ia ficar no quarto com o melhor
amigo dele, que era na verdade o homem da vida dele. E ela ficaria num outro quarto.
Então, ela guardou esse segredo por vergonha e tristeza porque ela tinha uma grande
paixão pelo homem por quem se casou. E também porque não queria assumir-se
como uma falhada no casamento. Quando a mulher ficou viúva, ela pediu aos
sobrinhos que não se zangassem e deixassem ela se casar com o melhor amigo do
marido, explicando que seria um casamento sem sexo - ela já com setenta anos por
essa época. Isso para não ficar sozinha... Os sobrinhos deram-na como louca e não a
deixaram casar. Ela acabou por morrer louca e sozinha pela ganância dos sobrinhos,
que não queriam dividir o patrimônio dela com ninguém. Fiquei tão impressionada
com essa história, que passei a pensar: "Como essa mulher viveu esta vida?" Então
passou uma personagem louca e desgrenhada nos meus sonhos a dizer: "Tens que me
entender. Eu não fui uma desgraçada. Eu não fui uma infeliz." Construí uma mulher
que chegou a conclusão, no meu livro, que era mais feliz com aquela vida pouco
ortodoxa, porque tinha uma liberdade de ação e de movimento que mulher nenhuma
na época tinha em Portugal. No livro entram vários poetas e várias figuras literárias e
da política. Ela tinha certo nível de vida que lhe permitiu ter uma existência diferente
da rotina das mulheres da época. Já meu primeiro romance, A instrução dos amantes,
é sobre um grupo de adolescentes em torno de um suicídio, que não se percebe bem.
Um caso policial sobre um jovem que se atira de uma janela. Depois começa a se
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suspeitar que ela foi atirada. É um grupo de adolescentes no subúrbio de Lisboa que
estão entre dois mundos, acabou a infância e não começou a fase adulta. E eles estão
a experimentar o amor, o sexo e a amizade pela primeira vez. E em A eternidade e o
desejo, último livro que publiquei antes de Os íntimos, a história se passa no Brasil,
em particular em Salvador, na Bahia. Ele resultou de uma viagem que fiz no trilho do
Padre Antonio Vieira no Brasil. Ao mesmo tempo fui lendo os Sermões dele, que são
fortíssimos. E, de repente, o eco daquela voz, aquele púlpito permanente, fez-me
fechar os olhos e imaginar-me cega naquele mundo. E como seria uma mulher guiada
por aquela voz? Um mundo novo, onde ela encontrou a paixão e perdeu a vista. O
que acontece muito, não é? [risos] A lucidez específica da paixão às vezes nos cega
para outras coisas. [risos] Nos Sermões há textos infinitos sobre o desejo, de alguém
que experimentou o desejo. Definindo a eternidade como convivência permanente
com o desejo, a capacidade de não largar o desejo. Isso é eternidade de vida. Achei
isso tão bonito que quis trazer para uma história de amor contemporânea. Em cada
um dos livros, o que eu procuro é investigar a linguagem. No caso desse livro, o que
procuro é claramente confrontar a língua do Padre Antonio Vieira com o português
contemporâneo, e o português do Brasil com o de Portugal. O fato dos homens não
terem nenhuma censura social sobre a linguagem, como têm as mulheres, usarem o
palavrão, o calão, de um forma muito mais livre, permitiu-me esticar os limites do
meu uso da língua portuguesa. O que procuro em cada livro é fazer uma pintura da
língua diferente do que já foi feito e do que eu própria fiz.
Inês Pedrosa - Na verdade, eu tinha começado a fazer poesia em 2007. Desde meus
15 anos eu não ousava escrever poemas. Foi em Lisboa, por causa de um encontro
particular com uma pessoa do Brasil. Perdendo a vergonha, estive em São Paulo num
período e escrevi para ele três, quatro poemas por dia. Devo muito ao Brasil a poesia
que escrevo. A coragem também, o Brasil tem me feito perder o medo. O filme
Palavra encantada explica muito essa relação. Talvez, eu perca esse medo e publique
os poemas... Não sei. É mais fácil publicar poemas no Brasil e depois aqui. Sobretudo
agora nessa função. Vão dizer: "Baixou o Pessoa sobre ela! Agora deu para escrever
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poesias." Apesar de ser anterior. Claro que é estimulante, leio muito mais poesia por
razões de programação.
Inês Pedrosa - Portugal é um país que sempre produziu muita poesia. Porque é um
país pouco arriscado do ponto de vista do pensamento. Por termos medo de nos expor
como pensamento radical, nos refugiamos na poesia. Porque poesia permite uma
inovação ideológica, filosófica, sem ser “confrontacional”. A poesia tem qualquer
coisa de redondo. A poesia tornou-se muito intensa e forte, hoje não tem uma poesia à
altura da poesia portuguesa. Portugal continua a produzir muitos bons poetas. É
sempre difícil falar dos que estão vivos. Depois, a cada cinco anos é uma nova
geração que emerge. Há inclusive uma guerra de elite. Há a poesia do real, a poesia
do cotidiano, a poesia experimental... Penso que no Brasil também há, uns fazem
umas antologias que outros detestam e criticam... A verdade é que em Portugal a
poesia se vende, a tiragem de poesia de Portugal é igual a da França. Temos casos de
poetas muito populares como Manuel Alegre, que tem um linguagem muito coloquial
e chega a muita gente. Ele tem uma tiragem de poesia de 10, 20 mil exemplares, esse
nível. O que é extraordinário. Temos muitos bons poetas com tiragens de 3 mil
exemplares que esgotam. Dos vivos contemporâneos, os nomes que primeiro me
ocorrem: Nuno Júdice, Maria do Rosário Pedreira, Fernando Pinto do Amaral,
Francisco José Viegas, José Agostinho Baptista, Herberto Helder, Manuel de Freitas,
Luis Quintaes... E tem o Ruy Belo, um poeta que morreu muito jovem, que tem uma
poesia simbólica, narrativa, muito ligada ao cinema. Sophia de Mello Breyner, que
está publicada no Brasil, a poesia dela tem uma luminosidade que não se pode
ultrapassar.
Sophia de Mello Breyner seria nossa Cecília Meireles, com toda aquela relação
com o mar...
Inês Pedrosa - É muito parecida, essa relação é muito forte. O Brasil tem Carlos
Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto. E Clarice, que é poesia em
prosa... A língua portuguesa dá poesia. Infelizmente, com a relação música e poesia,
em Portugal há uma série de grupos que só cantam em inglês. Dizem que é mais fácil
de fazer músicas para cantar. Respondo: como é que se inventou a música popular
brasileira? É a melhor música popular do mundo. Qualquer letra escrita no joelho do
Caetano Veloso é melhor do que as letras dos Beatles.