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Rita Morrigan
Mary Luton, irmã do conde de Rohard, deveria ser uma das mulheres com mais
pretendentes em toda a Inglaterra: é bonita, inteligente e nada a detém, nem mesmo sua
incapacidade para andar. Quando seu irmão parte em viagem de núpcias, solicita a
Diego Lezcano, seu sócio e amigo, que vigie a audaz Mary para que não se meta em
problemas.
Diego não tem intenções de cuidar da temerária mulher, mas termina aceitando
contrariado. Não quer estar perto de Mary, ou melhor, quer muito estar perto dela. No
entanto, ele é um homem que não pode falar do seu passado, e sabe que não é o
adequado para Mary, por isso prefere manter uma tensa distância.
— Isto não estaria acontecendo se o imbecil do meu tio não tivesse casado.
— Pode ser que fosse assim, — respondeu lorde Reeds, alegre diante do visível
abatimento de seu interlocutor — mas com a herança do viscondado só teria
conseguido retardar o inevitável. Terrell, sua situação financeira é desastrosa; se não
fosse por seus contatos, estaria praticamente na miséria.
Terrell Davenport olhou com aborrecimento para seu anfitrião, William Reeds,
marques de Hartington, e não porque não estivesse certo, pois devia reconhecer que,
desde que herdara o condado de Hampshire, não fizera outra coisa além de dormir
todo o dia, jogar cartas, deitar com todas as mulheres que desejava e se embebedar até
perder o conhecimento a cada noite.
Há cinco anos, assistia as quantas festas se celebrasse em Londres; e não só aos bailes
formais, os que, por certo, odiava, mas também a outras reuniões muito mais
depravadas, as quais ele e seu grupo de amigos aristocratas eram assíduos. Pensando
bem, deveria reconhecer que a origem de todos seus problemas residia principalmente
em que nunca se interessava em como fazer dinheiro, muito pelo contrário: sempre
preferia gastá-lo.
Assim, a cada noite devia ir para a casa de algum companheiro de farras, para evitar a
todos aqueles sanguessugas que o perseguiam constantemente. Além de permitir que
os mesmos amigos o mantivessem ou pagassem seus pequenos caprichos, como eles
denominavam, em troca de guardar silencio sobre certos detalhes escabrosos de suas
vidas. Era uma das vantagens de ser o macho alfa daquela manada de nobres e
luxuriosos lobos.
Depois de todos aqueles anos como conde de Hampshire, agradecia mil vezes sua
mania de recolher todo tipo de provas acerca das tramas turvas, nas quais a maioria
dos jovens herdeiros ingleses participavam. Aquilo servia para salvar sua pele e se
manter à tona em muitas ocasiões.
No momento, seu aborrecimento se devia a que seu plano para sair de sua miserável
situação econômica fracassara. Davenport depositara suas últimas esperanças no
dinheiro da herança de seu tio: o visconde de Mersey que, apesar de ter mais de
sessenta anos, se casara fazia menos de um ano. Sua jovem esposa já tinha dado à luz a
— Investimentos? Vamos, Terrell, se nem mesmo sabe o que é uma ação. Se seu tio
não tivesse se casado e gerado um herdeiro, as propriedades do viscondado seriam
pasto dos coletores.
— Você me cansou! — exclamou Davenport levantando-se bruscamente da poltrona
de couro na qual estava recostado. — Falo com você para que me dê soluções, não
para que me descreva como é desesperada a minha situação. Preciso de dinheiro
imediatamente.
— Meu querido Terrell, talvez tenha chegado o momento de seguir o exemplo de seu
tio, não acha?
— O que você precisa não é um herdeiro, mas uma esposa com dinheiro. E,
conhecendo-o como conheço, eu recomendaria que encontre uma que possua uma
enorme fortuna como dote. A temporada está a ponto de começar, e o mercado está
repleto de jovens herdeiras americanas, mais que dispostas a prender um elegante
conde como você.
Davenport se voltou para seu anfitrião e o olhou com interesse. Era estranho que
aquela ideia não lhe tivesse ocorrido antes. Mas, na verdade, poderia ser a solução a
todos os seus problemas. O dinheiro de um bom dote não só serviria para salvar suas
propriedades, mas também seu estilo de vida. Aquela seria a única vantagem de pôr
em marcha aquele plano, porque a ideia de arranjar uma esposa não o atraía em
absoluto. Não queria uma mulher que organizasse sua vida, e também não se
interessava que lhe proporcionasse um herdeiro. Não tinha nenhum interesse na
perpetuação da estirpe Davenport; por ele, sua linhagem podia ir para o inferno.
— Sabe que tem razão? — murmurou em tom pensativo enquanto começava a andar
pela sala.
— Claro que sim, meu querido amigo. Chegou o momento de explorar essa beleza
masculina que Deus teve o mau gosto de lhe dar, e procure uma esposa milionária.
Mary Elizabeth Luton afastou a leve cortina de sua sala, e observou o movimento das
pessoas e carruagens, que a àquelas horas no meio do dia circulavam por Grosvenor
Square. Contemplou as copas desfolhadas das árvores dos jardins no outro lado da
rua. Naquele instante, um raio de sol escapou do cinzento céu de Londres e atravessou
o vidro de sua janela, aquecendo seu rosto.
Mary levantou o rosto agradecida pelo calor da luz em sua pele. Devia reconhecer que,
contra todo o prognóstico, sentia falta da vida no campo. Fazia um mês que seu irmão
e sua cunhada estavam percorrendo o continente em viagem de núpcias, o que
permitira que ela e sua mãe se mudassem de Sweet Brier Path, a propriedade da sua
família no condado de Rohard, até a capital. E agora, — nunca o aceitaria em voz alta
— sentia falta das verdes campinas, do ar limpo e fresco das manhãs, da quietude que
parecia envolver qualquer atividade. Sim, custava admitir que sentia falta da sua
aborrecida rotina no campo, mas assim era.
Mesmo que sua mãe mostrasse certa preocupação por ela e supervisionasse suas
companhias, Mary estava segura de que na realidade sua preocupação se devia mais a
um profundo sentimento de pena e culpa, por não ter desejado nunca um segundo
filho. Passava a maior parte do dia encerrada em suas dependências, atacada de
alguma enxaqueca. Ninguém se preocupava muito com a saúde da condessa viúva, já
que suas dores de cabeça coincidiam sempre com seus desentendimentos nas decisões
de seu filho, o conde.
Mas se havia alguém que se preocupava por ela realmente, aquele era seu irmão mais
velho: Robert Luton, conde de Rohard, que sempre estivera mais preocupado com sua
segurança, do que com sua felicidade; assumindo talvez a equivocada suposição de
que ambas fossem a mesma coisa.
Agora, Robert se casara com sua prima e amiga, Sara Brown, e Mary não podia estar
mais satisfeita com aquela união. Eram seus melhores amigos, e os amava; e desejava
que os dois tivessem encontrado juntos a felicidade, o que a enchia de alegria. Mas,
Mary estava contente por seu irmão ter insistido em deixar que ela e sua mãe ficassem
em Londres durante o tempo que durasse sua lua de mel. Sua viagem pela Europa
duraria vários meses, portanto, Mary poderia usufruir do início da temporada
londrinense. Na primavera, começariam os bailes e reuniões aos quais as jovenzinhas
corriam em busca de maridos; e suas mães, em busca de bons partidos.
Aos vinte e seis anos, Mary sabia que nunca se casaria. Fazia muitos anos que deixara
de criar falsas esperanças; tinha a certeza de que nenhum cavalheiro passaria por alto
sua enfermidade. Mas então... porque continuava recordando, pensando sem parar
naquela experiência vivida meses atrás? E, outra vez, como em tantas outras, a
lembrança e a imagem de um homem atravessavam sua alma:
Era noite, e ela havia escapado de sua festa de aniversário. Olhava a lua, e as lágrimas
desciam quentes por suas faces; havia compreendido que jamais encontraria um amor
para ela.
E então, ele se inclinou e a ergueu em seus braços. Suas pernas se penduraram inertes
a alguns centímetros do piso, enquanto ele girava ao compasso da música que chegava
do salão.
Assim, ela, a inválida Mary Luton, dançara pela primeira vez em sua vida.
Mary voltou a contemplar a paisagem da rua londrinense que se estendia sob sua
janela, mas desta vez o fez com o olhar perdido e a mente atormentada por um
torvelinho de lembranças:
Você poderia me beijar, por favor? — Mary perguntara deixando-se levar por uma
espécie de loucura.
E justamente quando pensava que iria rejeitá-la... ele a beijou. E Mary acreditou que
poderia morrer.
Mary tentou controlar seus devaneios, ser pragmática; uma mulher como ela não
devia abrigar aqueles desejos. Mas não conseguiu seu propósito. Estava cansada de ser
realista, quando tudo o que queria era amor: apaixonado, romântico e incondicional
amor.
— Não, não sinto nada. Estou um pouco melancólica, isso é tudo. — respondeu com
um sorriso forçado.
Olivia Carlyle colocou um tecido em cima da bonita mesa estilo Luís XV, no centro da
sala e se virou para sua melhor cliente.
— Não, nem pensar. Isto me distrai. — Mary respondeu, olhando para sua modista,
desta vez com um sorriso de sincera simpatia.
— Sabe, milady? Creio que conheço o porquê de sua melancolia. Mary a olhou
— Ah, sim?
— O que lhe acontece é que sente falta de seu irmão e da senhorita Brown, quero
dizer, da condessa. — Olivia se ruborizou ao perceber que se esquecera outra vez de
que a encantadora Sara Brown, prima longínqua do conde, era agora também sua
esposa. — Mas não deve se preocupar, a viagem dos noivos não durará para sempre,
milady.
Olivia se aproximou de novo da escrivaninha e observou o fino veludo azul noite que
lady Luton segurava entre seus delicados dedos. Observou o elegante vestido de
passeio que representava o desenho e assentiu.
— Sim, creio que é perfeito. Além de, — acrescentou, assinalando com seu dedo o
esboço — se o aumentarmos um pouco realçará muito mais sua cintura.
— E quanto diria...?
— Uns...
Mary levantou a vista para sua modista e sorriu com complacência; entendiam- se
incrivelmente bem.
— Você tem muito talento para o desenho, milady. — Olivia afirmou com
sinceridade, avaliando os diferentes desenhos sobre a escrivaninha.
— Você acha?
Mary assentiu.
— Não foram poucas as senhoras que depois da festa me procuraram para que os
copiasse.
Mary observou o rubor e a confusão da senhorita Carlyle. Sabia que a estava deixando
em um aperto ao lhe fazer aquela pergunta. Ela, como boa modista, estava a par de
que a discrição era uma das peças chave de sua profissão.
— Não se preocupe, senhorita Carlyle, o que você me disser não sairá daqui. Não
quero deixá-la em um aperto. Conheço e valorizo sua discrição, mas, como disse,
esses desenhos eram meus, então creio que tenho direito de saber quem mostrou
interesse por eles, não acha?
Olivia reconheceu que o raciocínio tinha certa lógica. Ainda assim, não estava muito
segura de como lady Luton receberia o que iria lhe revelar.
— Veja, milady. Eu... espero que não se aborreça comigo. Mary a contemplava
confusa.
— E porque iria me aborrecer? Não vou exigir nenhum direito comercial, não se
preocupe. — declarou sorridente.
— Veja, senhorita Carlyle, não compreendo sua inquietação. Que dama tão terrível
lhe encomendou meus modelos de vestidos para provocar essa reação?
— Bem, não sei se dama, seria o melhor qualificativo. — Olivia murmurou, resignada.
— Veja, lady Luton, seus vestidos me foram encomendados pela senhorita Smith,
Edén Smith.
A mente de Mary se moveu veloz, tentando recordar que nome era aquele, até que...
Olivia Carlyle assentiu, com seu roliço rosto tingido de vermelho intenso.
A modista voltou a assentir, e seu rubor se intensificou um tom mais, até se converter
quase em roxo. Então, a reação de lady Luton a surpreendeu completamente.
Olivia sorriu, contagiada pela alegria de sua cliente, mas, na verdade, não entendia
porque lady Luton achava tanta graça que a mulher, que gerenciava a mais célebre
casa de encontros do Reino Unido, vestisse seus modelos.
—E, diga-me uma coisa, — Mary conseguiu dizer sem deixar de sorrir — a senhorita
Smith é uma boa cliente?
— Oh, sim. Sempre faz numerosos pedidos; e não só para ela, mas também para suas
jovens. Além de..., — explicou, lançando um olhar de lado a sua interlocutora —
sempre pagarem, milady.
— Oh, não, milady, isso é impossível. Você não sabe do que seriam capazes se eu,
uma simples costureira, me atrevesse a tal ousadia. Sem dúvida me arruinariam.
Mary se repreendeu por perguntar. Não sabia por que estranhava tanto, ela conhecia
bem a aquelas damas. De fato, se criara entre elas e sabia muito bem até onde podia
chegar sua maldade.
Existia uma boa parte da nobreza que simplesmente recusava o trabalho como forma
de conseguir recursos econômicos. Sua reticência a investir na crescente indústria, a
crise que atravessava o antiquado sistema agrícola e o desprezo que mostravam pela
emergente classe social de proprietários industriais, tornava francamente difícil que a
velha nobreza britânica recuperasse seu antigo esplendor.
— Mas me parece muito injusto. E você diz que a senhorita Smith e suas amigas são
boas clientes?
Diego Lezcano levantou a cabeça dos balanços que tinha sobre a escrivaninha e que
estava tentando ler sem muito êxito. Contemplou a pesada porta entreaberta de seu
escritório, quando escutou a conversa que se desenrolava no vestíbulo. Em seguida
distinguiu o estridente tom de Wilson, seu fiel secretário, e a vozinha do menino a
quem repreendia. Tratava-se de Eric Nash, um pequeno indigente que conhecera,
quando tentava lhe roubar a carteira enquanto caminhava por St. James.
Wilson agarrou com mais força ao inquieto menino pelo braço e levantou a outra mão
como se fosse lhe bater.
Quando o menino viu a grande mão ossuda flutuar sobre ele, se encolheu, mas não
deixou de lutar com o empregado.
Diego Lezcano apareceu no vão da porta com os braços cruzados sobre seu amplo
peito e se apoiou com descuido contra o batente da porta. Mesmo exibindo um meio
Wilson soltou o braço do rapaz no instante, pois sabia que contrariar seu chefe ficava
fora de toda questão.
— Este mentiroso insiste em vê-lo, senhor. Disse que trabalha para você.
Diego ignorou as palavras de seu secretário e olhou para o menino que respirava
agitadamente enquanto colocava seu puído casaco e lançava um olhar pouco amistoso
a Wilson. Deveria ter por volta de oito anos, media menos de um metro e estava tão
magro que as roupas pendiam de seu corpo como se fosse um saco de ossos.
— Bom dia, senhor Nash. — Diego exclamou estendendo a mão para ele. Eric tirou o
— Vamos para o meu escritório, por favor. Já tomou o desjejum esta manhã, senhor
Nash?
Diego se afastou do batente da porta e fez um gesto com a mão para deixar o menino
passar.
Surpreso e animado pelas palavras do patrão, Eric deu uma olhada altiva ao
boquiaberto secretário e entrou no escritório.
O tamanho do senhor Lezcano sempre impressionara Eric. Era um homem muito alto
e possuía uns ombros tão largos que estava certo que possuía uma força incrível.
Vestia-se sempre de negro, e uma cicatriz cruzava sua sobrancelha esquerda; aquilo,
unido ao fato de que seus cabelos também eram escuros como a noite, lhe
proporcionava um aspecto certamente diabólico. Mesmo reconhecendo que seu
aspecto impressionasse bastante, Eric não o temia.
Na primeira vez que o viu, Eric soube em seguida por suas roupas elegantes que era
um cavalheiro muito rico. Assim, se dispôs a fazer o que melhor sabia para sobreviver:
Naquele momento sim, teve medo e quase desmaiou de terror. Mas agora não, não
temia o senhor Lezcano. Depois de ter tentado roubá-lo, ele não o pegara, nem o
denunciara à polícia. Só ficara surpreso que Eric tivesse conseguido roubar sua
carteira. Assim, depois de recuperá-la e o colocar no chão, só lhe perguntou o que
pretendia fazer com tanto dinheiro.
Sua segurança provocou uma gargalhada ao desconhecido, que abriu a carteira e tirou
um xelim.
Eric ficou esmagado olhando aquela fortuna na palma de sua mão. Guardou-o
rapidamente no bolso, pois havia muitos ladrões na espreita, e continuou seguindo o
estranho cavalheiro.
Agora, muitos meses depois daquele encontro, havia chegado o momento de lhe
devolver o favor. Bem, realmente não era um favor, mas um encontro comercial.
O senhor Lezcano se sentou atrás de sua enorme escrivaninha de madeira escura e lhe
fez um sinal para ocupar uma das poltronas em frente a ele.
—Sente-se, senhor Nash, e diga-me a que se deve esta visita tão inesperada.
Acreditei que nossa próxima reunião seria só no domingo.
— Veja, senhor, você me disse que, se houvesse alguma troca, deveria informá- lo
imediatamente.
— Esta semana lady Luton saiu de sua casa várias vezes e foi a parte este da cidade.
Ela e outra senhorita foram duas vezes a Parker Street.
A rua era conhecida pelo elevado número de delinquentes que a povoavam. O menino
— Não sei, senhor. As duas entraram no que parecia um velho armazém e depois de
um tempo saíram, seguidas por um lacaio que carregava um monte de rolos gigantes.
Mesmo que sempre se divertia com a excessiva preocupação que o conde demonstrava
para com sua irmã, Diego estava começando a compreendê-lo muito bem. Mary Luton
parecia um anjo, mas agia como um demônio. Tinha um caráter forte, era decidida e
condenadamente imprevisível. Sua pequena estatura, e o fato de que estivesse em uma
cadeira de rodas a faziam parecer frágil, mas Diego sabia que não era; na verdade, sua
força poderia ser comparada com a de um tornado. Quase sempre fazia o que lhe dava
vontade. Era resoluta e agia de forma temerária, completamente inconsciente de sua
vulnerabilidade. Sim, naquele momento compreendia perfeitamente a preocupação do
conde. Nunca mais voltaria a zombar dele. Se fosse por ele, Luton podia acorrentar a
louca de sua irmã a uma mesa e não lhe permitir sair de casa nunca mais.
— Minha mãe passa o dia fechada em seu quarto e mal se ocupa do que Mary faz. —
o conde se queixara durante aquela reunião mantida nos escritórios de Bow Street
antes de sair de viagem. — Por isso insisti em trazê-las para Londres, quero que se
ocupe de sua segurança enquanto eu estiver fora.
— Disse-lhe que não. — continuou obstinado — Sua irmã é uma mulher adulta, e
você, um exagerado. Além de que enquanto viaja pelo mundo usufruindo de sua
mulher, quem você acredita que vai evitar que seu império comercial se vá ao
demônio? Não tenho tempo para me fazer de babá.
Luton se levantou de sua poltrona e o olhou com aqueles imperturbáveis olhos azuis.
Diego sustentou seu olhar durante quase um minuto. Depois, virou a cabeça e se
remexeu desconfortável na poltrona.
Os olhos de Diego voltaram a se fixar nos do conde, e seu coração se acelerou. Seria
tão condenadamente evidente? Abriu a boca e voltou a fechá-la, para abri-la de novo.
Não sabia que resposta mordaz poderia dar a aquele convencido para dissuadi- lo de
sua maluca decisão. Imbecil. Se soubesse como sou perigoso para sua irmã, não permitiria que
me aproximasse nem a mil metros.
Diego estava decidido a não fazer caso de seu amigo. Não tinha nenhuma intenção de
se encarregar de sua irmã, quando o que tentava era justamente o contrário. Estava tão
decidido a evitar Mary Luton, como se fosse uma praga.
Seus sentimentos pela irmã do conde constituíam um grande mistério para ele.
Quando ela aparecia, todo seu corpo reagia à sua presença: seus olhos a seguiam por
toda a sala, e, frequentemente, perdia a capacidade para dialogar com normalidade
porque sua mente se concentrava involuntariamente nas palavras e nos gestos dela.
Nunca lhe ocorrera nada semelhante. Como homem de negócios, Diego estava
acostumado a dominar qualquer situação, mas a perda das faculdades que aquela
mulher lhe provocava, o deixava muito desconcertado.
Com a única intenção de não ter que visitá-la durante a ausência do conde, Diego
contratara os serviços de Eric Nash. O trabalho era simples e um menino levantava
poucas suspeitas. Tudo o que tinha de fazer era não perder de vista lady Luton e
mantê-lo informado de seus movimentos. Era uma fórmula ideal para evitar que a
A cara de profundo espanto de Eric fez Diego sorrir. Até ele se surpreendia
frequentemente com os suculentos desjejuns ingleses. Uma cafeteira com aromático e
fumegante café, uma jarra de leite, um pequeno recipiente com mel e outro igual com
marmelada, presunto, salsichas, ovos e vários pratinhos com diferentes tipos de
biscoitos se distribuíam sobre a bem provida bandeja.
Diego fez um sinal ao garoto que, em instante levou um biscoito com manteiga à boca.
O espanhol não conseguiu evitar outro sorriso diante da voracidade do menino e o
olhar de profunda desaprovação que Wilson lhe deu antes de sair.
Diego lhe serviu leite e o contemplou comendo, satisfeito. Provavelmente, Eric levava
dias sem provar um alimento em condições. Diego sabia muito bem como podia ser
difícil para um menino sobreviver no mundo da rua. A lembrança de sua mãe
enquanto o deixava nas portas de um convento aos cinco anos ainda permanecia
vívida em sua memória. Assim como do dia em que decidiu fugir do mesmo convento
dois meses mais tarde depois de receber outra surra da madre superiora. Aos cinco
anos, Diego aprendeu a cuidar de si mesmo, nas ruas de San Sebastian. Ali também
aprendeu algumas lições que marcariam para sempre seu caráter: que o ser humano
podia ser infinitamente cruel com outro ser humano, que ninguém era mais
importante que ele e que nada era o que parecia naquele mundo perigoso.
Naquela noite, Diego saia de uma taberna do porto de Londres na qual acabava de
fechar um bom negócio. A quantidade de barris de rum cubano que acabava de
vender a um grupo de comerciantes ingleses por um preço muito superior ao real, o
fazia se sentir muito satisfeito. Por motivos mais que justificados, nunca aceitara bem
os britânicos. Quando dobrou um beco em direção ao molhe onde estava atracado seu
barco, uns gemidos de dor chamaram sua atenção. Diego virou a esquina e se
encontrou com a origem do ruído: três homens davam uma surra de morte a outro que
se retorcia de dor no solo. Tentou dar meia volta e sair dali, afinal, não era assunto
dele. Mas outro golpe surdo e o brilho de uma navalha o fizeram reagir em seguida.
Agarrou uma barra de ferro que estava no chão e deu contra os três malfeitores.
Diego não tinha ideia de que aquela decisão mudaria, em muitos sentidos, a sua vida
para sempre.
O conde era muito alto e pesado, e Diego o carregou até o centro do luxuoso vestíbulo.
A casa se transformou no momento em um rebuliço de apressadas criadas correndo de
um lado ao outro. Diego as olhava divertido e tentava erguer o escorregadio ferido
uma e outra vez.
Então, uma voz mais suave que a seda chegou do primeiro piso.
Diego levantou a cabeça e o que contemplou o deixou praticamente sem fôlego. Uma
criatura celestial o observava com expectativa, com os olhos azuis mais estranhos e
cativantes que já vira. Era impossível deixar de olhá-la; envolvida em uma bata branca
e com os cabelos presos em uma grossa trança da cor do sol, era a coisa mais bela que
já contemplara na vida. Diego teve uma sensação de aturdimento, e assim, como se
fosse um encantamento, a imagem de Mary Luton se gravou a fogo em sua mente.
Sua confusão fora tão grande que, no dia seguinte, com a desculpa de visitar o conde,
Diego foi à mansão de Grosvenor Square com a única intenção de comprovar a
existência daquela mulher; estava certo que sua visão não fora mais do que um sonho.
Diego estava aborrecido, e seu humor piorava a cada momentos. Após indagar,
averiguara que lady Luton visitara várias vezes um velho armazém em Parker Street
gerenciado por um contrabandista chinês chamado Tao Chang. Mas aquilo não era
tudo, não. Também fora várias vezes a uma elegante mansão em Covent Garden
denominada: O Eden, e que era, nem mais nem menos, um dos bordéis mais exclusivos
da cidade.
Diego saiu à rua pela grande porta de vidro do hotel San Telmo. Como quase todos os
dias decidira dispensar sua carruagem. Gostava de andar, pois o ajudava a pensar.
Mas nem mesmo o sol daquela manhã de março conseguiu melhorar um pouco o seu
caráter. Seu humor também não melhorou no ambiente do mercadinho que a aquelas
horas ocupava St. Martin's Lane. Apenas duas horas depois de ter se levantado, já
gritara com uma donzela que fugira chorando de sua suíte, gritara também com o
recepcionista da manhã e grunhira um bom dia a Jack, um dos porteiros. Todo o
pessoal do exclusivo San Telmo sabia que o dono estava há vários dias com um humor
do cão.
Fazia três anos que Diego financiara o moderno edifício de quatro planos que o hotel
ocupava. As modernas instalações em seus aposentos e suítes: o restaurante que
gozava de certo prestígio na cidade e sua localização na área de negócios atraíam a um
grande número de hóspedes. Por tudo aquilo, o San Telmo estava se convertendo em
um dos hotéis mais bem cotados de Londres.
No início, o hotel significava um simples investimento para ele, mas, uma vez
terminadas as obras, decidiu convertê-lo em sua residência. Aos trinta e quatro anos, e
como proprietário de uma das maiores companhias do país, Diego Lezcano podia se
permitir uma luxuosa mansão em qualquer das exclusivas zonas da capital. Mas a alta
sociedade inglesa nunca fora muito de seu agrado; devia se relacionar com eles por
Desde muito jovem Diego havia aprendido a observar para sobreviver. Depois de
escapar do convento, vagara pelas ruas durante meses. Aprendera a se mover como
um gato de rua; subia pelas paredes e pelos telhados diante de qualquer perigo.
Andava pelas ruelas das tabernas onde encontrava comida, igual aos ratos, que
durante um tempo foram seus piores inimigos.
Gostava dos verões porque muitas pessoas elegantes visitavam a cidade; as senhoras
carregadas de valiosas joias fáceis de roubar e os cavalheiros com suas carteiras
repletas. Embora Diego reconhecesse em sua defesa, que somente roubava quando
não achava outra via de sobrevivência. Limpava botas, descarregava pacotes tão
grandes no porto que praticamente o amassavam contra o solo, e se lançava à água no
molhe junto a outros meninos em busca das moedas que os marinheiros lançavam dos
barcos para se divertirem com a dura disputa entre os meninos pelo dinheiro; e ele
quase sempre ganhava.
Mas nos invernos era outra coisa: suas roupas puídas e pequenas não o resguardavam
do vento frio do norte. Assim, quando chegava novembro, Diego devia buscar um
refúgio temendo sempre ser descoberto para, no melhor dos casos, ser desalojado.
Daquela maneira conheceu Jon Legazpi, durante o cruel inverno de 1825, ao se enfiar
na sua oficina: um pequeno estaleiro no qual fabricava bons barcos. Quando Jon o
descobriu uma manhã dormindo sob o enorme casco de um barco, não o jogou a
pontapés como teriam feito outros, mas lhe deu comida e uma manta. E, em troca de
manter o lugar limpo, o deixou dormir ali durante o tempo que quisesse.
Por não ter que se preocupar por sua sobrevivência, Diego pode ir à escola em seus
tempos livres. E, varrendo as aparas na oficina, aprendeu a trabalhar a madeira, e a
valorizar o que significava tomar parte em algo pela primeira vez na vida. Jon
Legazpi, aquele tipo de quase dois metros de altura e mais de cem quilos de peso, era
o mais parecido a um pai que Diego tivera na vida. Mas sua tranquilidade não durou
muito; oito anos mais tarde, a guerra truncaria sua felicidade e mudaria tudo para
sempre.
Muito mais tarde, quando teve de fugir e atravessar o oceano atlântico, descobriu que
a sorte também era um fator fundamental para qualquer negócio. Pelo visto, ele era
um homem tremendamente afortunado. Se não, como explicar que um fugitivo
terminasse dirigindo uma das maiores plantações de açúcar cubanas?
Outra das lições extraídas de sua etapa açucareira, foi que o sistema escravagista de
trabalho resultava pouco efetivo. Comprovou que os homens trabalhavam melhor
quando eram livres e suas condições de vida melhoravam, muito mais do que quando
estavam escravizados. Os escravos só temiam a morte, mas os homens livres se
preocupavam em conservar aquilo que fazia possível a felicidade de seus filhos: o
trabalho. Assim, o Engenho Lezcano foi a primeira plantação de açúcar que prescindiu
do trabalho escravo em todas suas instalações.
Quando sua plantação chegou a ser a maior do país, Diego pensou que havia chegado
o momento de expandir. Mesmo que os Estados Unidos lhe parecessem um destino
interessante, o Velho Continente o continuava atraindo secretamente. Por isso, decidiu
visitar a França depois de fazer uma pequena parada na Inglaterra, que era um de seus
principais compradores. Nunca poderia imaginar que aquela viagem mudaria tanto
sua vida.
Quando conheceu Robert Luton, o conde buscava formas de sanear sua minguada
fortuna familiar. Assim, para Diego não foi difícil convencê-lo onde deveria investir o
dinheiro: os barcos, as ferrovias e os bancos foram seus primeiros objetivos. Além
disso, Diego descobriu que, na Inglaterra, estava surgindo uma série de mudanças que
faziam do país um lugar ideal para alguém como ele.
Lorde Luton lhe agradava. Apesar de ser um nobre, era honrado e, na opinião de
Diego, generoso em excesso; sempre mais preocupado em melhorar a vida dos demais
antes que a sua própria.
Naquela manhã, Diego saíra de seu hotel decidido a fazer uma visita a lady Luton.
Necessitava saber em que confusões estava se metendo na ausência de seu irmão. Na
realidade, nunca prometera ao conde que se encarregaria dela, mas Diego conhecia
bem a facilidade da jovem para se meter em problemas.
Bufou passando as mãos pelo rosto, quando uma lembrança veio à sua mente: Por
todos os santos, se for capaz de sair por aí pedindo que a beijem, pensou, desgostoso com o
arrebatamento do desejo que o assaltou outra vez, como em todas as vezes que aquela
imagem voltava à sua memória durante o dia.
Era a festa de seu vigésimo sétimo aniversário e estava bonita. Ele, cansado de vê-la
rodeada de engomados e das conversas dos bêbados e do resto dos convidados, havia
saído para dar uma caminhada pelo jardim. Ali a encontrou, chorando desconsolada.
Ainda que soubesse que devia passar longe e deixá-la a sós, uma forte opressão no
peito ao ver suas lágrimas o fez se aproximar dela e lhe perguntar porque estava
chorando. A partir daí tudo, absolutamente tudo, se descontrolou.
— Quero saber o que se sente ao ser beijada. Você se importaria de me beijar, senhor
Lezcano?
Ele, sabia que seria o maior erro de sua vida e que devia sair dali a toda velocidade,
mas fez a única coisa que não devia: beijou-a. E aquele beijo, longe de ser algo
amistoso com o que ela saciaria sua curiosidade feminina, foi o mais sensual e
excitante que Diego já vivera. Tomou seu pequeno rosto entre as mãos e se perdeu na
doce boca de lady Luton. Ela foi acometida com profundos e úmidos beijos até que
seus desejos de levá-la a um canto escondido do jardim para fazerem amor de todas as
formas possíveis se tornaram insuportáveis. Mas Mary Luton era uma dama: sua
primeira vez deveria ser com seu marido. Diego sabia que nunca poderia reclamá-la;
ela merecia um homem honrado, e ele era tudo menos honrado.
Diego parou tão de repente no meio da rua que um homem acabou tropeçando com
ele. Após se desculpar, observou que já estava em Grosvenor Square; alguns metros
mais e chegaria a Luton Hall. Então, compreendeu que ainda não estava preparado
para se enfrentar com ela.
Para desenvolver uma boa estratégia, primeiro deveria saber ao que se enfrentava. Por
isso decidiu que, antes de mais nada, manteria uma pequena conversa com Edén
Smith. Diego estava certo que seria fácil conseguir um acordo monetário com ela em
troca da informação que desejava. Assim, foi para lá que se dirigiu após dar uma
última olhada para Grosvenor Square.
Depois de bater a grande aldrava de ferro contra a porta de O Eden, uma criada de
idade avançada abriu e, sem grandes gestos, o conduziu até um salão na primeira
planta.
— Vou ver se está acordada. — grunhiu a anciã olhando-o com desdém. — Se não,
terá que sair. Como você se chama?
Diego lhe disse seu nome e a observou ao se afastar agitando a cabeça e murmurando
algo desprezível acerca dos homens ricos.
Diego se virou e contemplou a bela Edén Smith atravessar a entrada. Ela se aproximou
se remexendo sedutoramente, enquanto seus longos cabelos escuros ondulavam soltos
por suas costas. A provocante bata de seda que usava e que modelavam perfeitamente
suas sugestivas formas, teria despertado o desejo de Diego em qualquer outro
momento. Mas a recente desordem nas atividades de lady Luton o deixavam muito
inquieto.
Diego se acomodou na poltrona oposta à que ela lhe indicara, ficava em frente a
mulher e não ao seu lado. A madame o olhou com desagrado quando ele recusou seu
convite, mas não se deu por vencida. Cruzou as pernas, de modo que ficassem à vista
quando a seda da bata escorregou.
— Veja, senhorita Edén, não vim em busca de seus serviços. — esclareceu, olhando-a
diretamente aos olhos — O que quero é informação.
— Soube que recentemente você tem recebido a visita de uma dama importante.
Diego decidiu utilizar o tom taxativo que usava para os negócios; deixar de
subterfúgios era sempre a melhor forma de conseguir seus propósitos.
Edén lhe deu uma olhada perspicaz. Nunca gostara daquele homem, nunca, e não
porque sua aparência não fosse agradável; na verdade, era bem bonito e, mesmo
sendo um pouco rude, seu aspecto era muito atraente. Qualquer mulher se sentiria
seduzida por seu portentoso físico e olhar penetrante. Edén sempre se chateava com o
desdém que ele mostrava por todas suas jovens. Aparecia ali, normalmente
acompanhado de homens importantes. Mas, em lugar de se divertir como eles, o
Recordava-se de uma só ocasião na qual se deixara seduzir por uma de suas meninas.
Chamava-se Lilian, tinha uma longa cabeleira loira e uns bonitos olhos azuis. No
entanto, Edén havia decidido dispensar seus serviços porque os cavalheiros não
gostavam de sua pequena estatura e do escasso tamanho de seus seios.
— E bem?
— Na verdade, — respondeu Edén com cautela — lady Luton esteve aqui algumas
vezes.
Algumas vezes. Aquelas duas palavras ressoaram como um gongo na mente de Diego.
Diego não percebeu, mas conteve a respiração na espera da resposta. Edén o olhou
cautelosa; intuía que aquele homem não aceitava negativas com facilidade. Não queria
que descobrisse como sua presença a incomodava, assim, tentou deixar sua voz
natural ao responder.
— No início sua visita me surpreendeu um pouco, não posso negar. Mas, depois de
conhecê-la, devo dizer que me impressionou descobrir a maravilhosa criatura que é:
carinhosa e amável com todos, lady Luton não está doente da soberba das damas de
seu tipo, e trata qualquer prostituta com o respeito de uma grande duquesa. — Edén
inspirou o ar e o olhou decidida. — Senhor Lezcano, ela veio me ver e me pediu a
máxima discrição. E, como lhe digo, me impressionou sua bondade e jamais a
prejudicaria. Conheço a relação que você mantém com a família da jovem, por isso,
qualquer assunto que lady Luton e eu tenhamos, é direito dela revelá-lo.
— Quero que me diga agora mesmo a que veio aqui aquela mulher. Edén se
Edén comprovou que, mesmo recuperando a calma, seu olhar se tornara mais escuro e
intenso. Se bem que os homens não costumavam intimidá-la, devia reconhecer que
Diego Lezcano era um espécime pouco usual, em especial pelo halo de periculosidade
que constantemente o envolvia. Talvez por isso tivesse tanto êxito nos negócios;
deveria estar louca para não notar o risco de contrariar a aquele homem.
— Você não me ouviu? Disse-lhe que prometi que guardaria silêncio. — balbuciou
Edén afastando-se dele. — Dei-lhe minha palavra de honra, e ela me outorgou sua
confiança. Não trairia uma dama como lady Luton nem por todo o ouro de Londres.
— Oh, sim, claro que o fará. — Diego respondeu, se aproximando dela. — Diga- me
agora mesmo o que traz entre as mãos ou a arruinarei.
— Saia agora mesmo! Quem você acredita que é para tentar me chantagear em minha
própria casa?
Edén sabia que enfrentar um homem tão rico e poderoso poderia prejudicá-la, mas
aquilo não diminuía a raiva que sentia. Estava farta de ter os homens ditando e
manipulando sua vida.
— Se quiser averiguar algo, vá perguntar a ela, mas não volte aqui a menos que
queira se satisfazer.
— Coloque qualquer preço. — murmurou, mas desta vez com ar sedutor. Mas a
Mary franziu o cenho e deixou o esboço que estivera estudando sobre a almofada. A
seguir acariciou Smokie, um de seus cinco gatos, que descansava enroscado ao seu lado
e brincava com as folhas de seus desenhos, procurando que a atenção de sua dona se
concentrasse somente nele. Após repreender o felino com um gesto carinhoso, Mary
sorriu para sua donzela que, naquele momento, massageava suas pernas com força,
aplicando-lhe um azeite perfumado de lavanda. A massagem ajudava a diminuir as
câimbras que às vezes a acometiam após seu treinamento matinal.
Depois de ser vista pelos melhores médicos do país, Mary não abrigava mais
esperança alguma de poder andar. Mas fazia um ano que sua melhor amiga, e agora
também cunhada, Sara, lhe mostrara um livro no qual recomendavam uma série de
exercícios para inválidos. Então, mais com o propósito de passar o tempo do que
conseguir algum resultado sério, Mary mandara instalar duas barras paralelas em sua
sala para se deslizar segurando-se nelas, enquanto imitava o gesto de andar.
Apesar de acabar muito cansada após cada sessão, até o momento os resultados não
tinham sido significativos. No entanto, devia reconhecer uma série de progressos: com
o fortalecimento adquirido nos braços era capaz de se erguer e segurar seu próprio
peso. Além do que, com a ginástica e as massagens, suas pernas deixavam de parecer
duas estacas finas e agora ofereciam um aspecto bem saudável e normal.
Mary suspirou ao pensar que, mesmo todos aqueles progressos existindo, seu sonho
de poder andar alguma vez estava mais longe a cada dia. De todo modo, já não a
assaltava aquela sensação de raiva e sufoco quando via algum casal de noivos andar,
ou ao contemplar alguma babá empurrando um carrinho de bebê. Seu destino não era
aquele, e ela se resignara a procurar outros objetivos em sua vida; cuidaria de seus
sobrinhos quando chegassem. Por outro lado, sua nova faceta como desenhista de
moda a mantinha bem animada. Por fim descobrira uma atividade que gostava e pela
qual, além de tudo, era elogiada.
Mary sorriu quando recordou a cara de sua nova sócia, Olivia Carlyle, enquanto lhe
narrava com felicidade todos as novas encomendas que recebera. Sabia que suas
visitas à senhorita Smith tinham sido um êxito; a dama se encantou com os desenhos e
se mostrou muito simpática e amável.
Além de ser uma das mulheres mais belas que Mary já contemplara, tinha que
reconhecer que simpatizara francamente com Edén Smith. Em nenhum momento
zombara de sua decisão de renunciar a comodidade de sua posição e escolher
desempenhar uma profissão. Conhecer a senhorita Smith fora interessante. Tratar com
uma mulher honesta e sem artifícios como ela era muito refrescante.
Para atender a todos os pedidos que Olivia e ela já tinham, no entanto, deveriam
contar com uma quantidade de dinheiro impossível para sua modista e muito difícil
de conseguir para ela sem dar explicações ao seu irmão. Assim, para fazer frente a
todos os novos pedidos sem que Olivia se arruinasse, Mary decidiu que deveriam
visitar a Tao Chang. Tao fora o melhor amigo de seu avô, além de vender os melhores
tecidos de Londres. Sua mãe a levara algumas vezes à sua loja. Sobretudo quando
chegava o momento de renovar o vestuário. A condessa viúva nunca gostara de
desperdiçar e, como filha de comerciante, sabia que Tao tinha os melhores preços da
capital.
— Quer que retire os desenhos para dormir um tempo, milady? Mary lhe sorriu
carinhosamente.
— Este. Nunca vira nada igual. Sério? Posso pegar? Mary assentiu.
Fazia mais de três meses que não tinha notícias dele. Sabia que, com seu irmão de
viagem, as visitas de seu sócio estavam fora de questão, mas Mary esperava que pelo
menos se aproximasse para cumprimentá-la, por uns minutos. Talvez tomasse um chá
e perguntasse por sua saúde, era o mínimo que podia pretender dele, mas talvez sua
mãe tivesse razão, e as baixas origens do senhor Lezcano o impedissem de respeitar
qualquer princípio básico de educação.
Umas batidas na porta expulsaram Mary de suas reflexões. Ocorreu algo inesperado.
Após aguardar permissão, uma criada entrou na sala e, como se algum misterioso
poder na mente de Mary tivesse servido para invocá-lo, anunciou:
Como amigo da família, Diego não necessitou que nenhum criado o acompanhasse à
biblioteca. Milady está descansando, verei se pode recebê-lo, foram as palavras do
mordomo ao lhe abrir a porta de Luton Hall.
Diego entrou naquela sala familiar para ele e se serviu de um copo, esperando que o
whisky escocês de seu amigo temperasse um pouco seus nervos. Tinha se preparado
mentalmente para aquela visita; e o fizera durante o caminho que decidira fazer a pé
desde Covent Garden e durante as voltas que dera na vizinhança quanto chegara à
casa do conde. Estava há mais de três horas se preparando para aquele maldito
encontro. Apesar de que um laço invisível lhe apertasse o estômago e de que as mãos
começassem a suar, sabia que seria perfeitamente capaz de enfrentar lady Luton. Sim,
estava mais que preparado. Por outro lado, se o senso comum não o ajudasse, seu
aborrecimento teria o trabalho de confrontar a aquela mulher incorrigível que tinha
assuntos com cortesãs. Diego gemeu, deixou o copo e foi até a janela. Talvez se
contasse as carruagens que passavam pela rua conseguisse manter a mente ocupada.
Então, a verdade se revelou para ele tão clara como a água cristalina:
Se estivesse, não teria ficado olhando-a abobalhado, tentando não se fixar nos seus
sedosos cachos presos em um penteado improvisado ou em como sua blusa branca
deixava à vista uma generosa porção em forma triangular de seu decote. Também
gostaria que aquele olhar azul tão direto, com a cabeça meio inclinada e um leve
sorriso aparecendo naqueles generosos lábios, não tivesse feito sua boca secar no ato.
Depois de pedir a sua donzela que a ajudasse a se preparar o mais rápido possível,
Mary tentara controlar o ritmo louco de seu coração, enquanto a desciam ao primeiro
piso. A porta da biblioteca estava entreaberta, e ela se aproximara com discrição.
Em seguida reparou na figura de mais de metro e oitenta que a luz recortava contra a
janela. Mary suspirou e dedicou alguns segundos observando-o sem ser vista. Seus
traços graves e afilados, seu perfil levemente aquilino, os cabelos negros um pouco
mais longos que na última vez e as longas pestanas que escondiam seu olhar
concentrado na rua. Somente sua presença já a cativava. Tudo nele era
surpreendentemente familiar para ela.
Então, o senhor Lezcano se virou, e seu coração esteve a ponto de sair do peito. Na
verdade seus cabelos mais longos e vários cachos negros caíam desordenadamente
sobre sua larga fronte. Seus lábios finos se entreabriram e os olhos rasgados
aumentaram em um gesto de surpresa. O olhar de Mary se fixou em sua boca, a
felicidade que experimentou naquele momento a deixou sem fôlego. Estava tão
contente de voltar a vê-lo que o teria abraçado durante horas.
Sabia que seu tratamento nunca fora tão formal, mas os nervos a impossibilitavam de
tratá-lo de outra forma. A comida lhe pareceu um assunto tão seguro como qualquer
outro.
— Se soubesse que viria, teria dito a Bessy para preparar sua especialidade. Talvez
ainda fiquem alguns biscoitos de açúcar que fez ontem.
— Não quero nada. — Diego disse com mais energia do que queria — Só vim falar
com você.
O tom brusco dele a deixou de mau humor. Sabia que não tinha por que se alegrar de
vê-la, mas pelo menos podia disfarçar um pouco sua pressa para sair.
Fazia anos que se conheciam, e Mary estava a par de que a origem humilde dele era
um argumento que muitos haviam empregado para feri-lo. Mas também sabia que
todos aqueles ataques era pouco efetivos. No entanto, uma leve contração em sua
mandíbula antes de responder a surpreendeu.
—Pensei que já tinha ficado bem claro que não sou uma pessoa civilizada e que não
tenho a mais remota intenção de ser, milady. — confessou descaradamente — Só
quero lhe perguntar algo, e quero que me responda com sinceridade.
Longe de ofendê-la, a resposta conseguiu divertir Mary, que já estava mais que
acostumada a sua falta de etiqueta. De fato, era um dos traços que mais gostava nele.
—Muito bem, sou toda ouvidos. — disse com calma — Quer se sentar, por favor?
Me sentiria muito mais cômoda si ficasse quieto.
Ela o observou atravessar a sala. Seu casaco negro caía perfeitamente em seus ombros,
e as calças e o colete da mesma cor estilizavam ainda mais sua estreita cintura. A
gravata era igualmente escura e mais larga do que ditava a moda no momento. A
única coisa que rompia com a monocromia do vestuário era a camisa, cuja brancura
contrastava igualmente com a bronzeada pele de sua forte mandíbula.
Diego se acomodou na poltrona em frente a ela. Longe o suficiente para que aquele
perfume de flores que se desprendia dela, lhe permitisse se concentrar.
— Soube que há algum tempo, desde que seu irmão está de viagem, para ser mais
preciso, suas atividades têm sido diferentes.
Ele fez uma parada e contemplou como sua expressão mudava. A reação da jovem era
o que se esperava ao se ver descoberta. Então, suas suspeitas de que se metera em
confusão se confirmaram.
Diego guardou silêncio com a intenção de que ela acreditasse que sabia muito mais do
que sabia na realidade, para que lhe mostrasse que tipo de embrulhos a ocupavam
recentemente.
Maldita seja, pensou aborrecido, sabia que não seria tão fácil.
— Senhor Lezcano, — murmurou Mary, o mais calmamente que pode — você está
me seguindo?
Mary tentou não se sufocar à voz. Mas a raiva que sentiu naquele momentos fez seu
sangue ferver. Respirando entrecortadamente, conduziu sua cadeira para a porta.
— Não tenho porque lhe dar nenhuma explicação. Se veio para me fustigar e não vai
me falar nada mais interessante, pode sair por onde veio.
— Não seria capaz... — sussurrou ela, apertando os olhos. Diego abaixou a cabeça até
Mary se dirigiu até uma das mesas de carvalho maciço, no centro da grande sala,
apoiou suas mãos na madeira e se levantou da cadeira.
A figura dele se moveu com agilidade para a sala e no instante seguinte estava ao seu
lado.
Mary fez um gesto para afastá-lo e se virou para ele, apoiando-se com ambas as mãos
na mesa. A primeira coisa que viu ao se virar foi seu amplo peito a poucos centímetros
de seu nariz. Cheirava maravilhosamente bem a sabão e algodão. A surpresa quase a
fez perder o equilíbrio, mas então, duas fortes mãos em sua cintura impediram que
caísse.
— O que faz? — perguntou ele, de novo, ainda que já não houvesse rasto de
brusquidão em sua voz.
A pequena estatura de lady Luton lhe permitia uma visão completa da parte de cima
de sua encantadora cabecinha. Os raios de sol, que entravam através da janela às suas
costas, arrancavam fulgurantes reflexos dourados de seus cabelos. Atônito, Diego
contemplou o efeito ótico e tomou dolorosa consciência da calidez do corpo feminino
através de suas mãos que pareciam imensas em sua pequena cintura.
Diego separou a cabeça com uma careta de dor no rosto. Aquilo não o estava ajudando
precisamente a manter a situação sob controle. Se não a tivesse conhecido bem, teria
acreditado que ela, lady Luton, queria que ele a beijasse. Antes de perder a cabeça,
Diego clareou a mente e tentou se concentrar de novo em seu aborrecimento.
— Porque foi ver a Edén Smith? — conseguiu perguntar com um fio de voz. Ela o
olhou furiosa.
— Vá para o inferno!
Diego a colocou com cuidado na cadeira e se afastou até o outro extremo da biblioteca.
Necessitava guardar uma distância que lhe permitisse pensar.
— Creio que escreverei hoje mesmo ao lorde Luton. Estou certo que este é um motivo
mais que justificado para encurtar sua viagem.
Ele se encaminhou para a porta muito lentamente. Queria lhe dar tempo para
embaralhar suas opções.
Um sorriso triunfal se desenhou nos lábios de Diego antes de se virar para ela e lhe
dedicar toda a sua atenção.
Mary sabia que teria que retardar como fosse o momento em que sua família viesse a
tomar conhecimento de sua faceta como desenhista. Tinha tudo planejado: primeiro o
diria a Sara, e ela a ajudaria a preparar o terreno para contar ao Robert. Sua mãe
saberia logo, quando já não pudesse lhe proibir de desempenhar uma profissão. Mas
ali estava Diego Lezcano, disposto a terminar com seu pequeno reduto de liberdade e
jogar todos os seus planos pela beirada.
— Está bem. — repetiu — Mas antes, diga-me porque se interessa tanto. O mau
— Não me interessa. — exclamou quase gritando — Quantas vezes devo dizer? Mas
qualquer negócio seu com contrabandistas e prostitutas é do interesse de seu irmão.
Ela lhe deu uma fugaz olhada de soslaio. Diego se aproximou do outro lado da sala e
se abaixou ameaçador sobre sua cadeira.
— Sei que comprou tecidos dele.— sussurrou com superioridade — Assim, prove
outra vez.
— Senhor Lezcano, nossa economia familiar nem sempre foi tão folgada. Como deve
saber, meu avô era comerciante, e minha mãe conhece o senhor Tao desde sempre. Eu
visitava sua loja desde menina cada vez que tinha de renovar minhas roupas. Tem os
melhores tecidos ao melhor preço.
Diego continuava segurando a cadeira com ambas as mãos e com seu rosto a poucos
centímetros dela.
Mary negou com a cabeça e piscou de forma coquete. Ele a olhou com intensidade e
inspirou com força antes de soltá-la.
O rosto dele voltou a ficar muito perto do seu, observando-a com dureza.
Os olhos de Mary vagaram por seu rosto contraído e percebeu, melhor, soube que a
inquietação do senhor Lezcano ultrapassava qualquer compromisso de amizade
adquirido com seu irmão.
— Senhor Lezcano, não pensa que eu... — ofegou incrédula — não acredita
seriamente que eu...
Então, o sorriso que seus lábios formavam, aumentou até se converter em uma
gargalhada.
— Não posso acreditar, juro que não acredito. — Mary conseguiu dizer, com a voz
quebrada pelo riso. — Na verdade, senhor Lezcano, não sei se sua impertinência me
ofende ou me elogia. Que tipo de negócios acredita que posso ter — perguntou
assinalando sua cadeira — com a senhorita Smith?
— Maldição se eu sei! — gritou furioso — Mas como não me diz agora mesmo, tenho
que escrever ao seu irmão.
Mary o olhou com doçura. Ficaria encantada se todo aquele mau gênio se devesse à
sua preocupação real com ela ou mesmo que estivesse um pouquinho ciumento.
A ira de Diego alcançou cotas tão altas que acreditou estalar como uma caldeira a
pressão. Virou-se e atravessou a sala a grandes passadas.
— Vestidos?
1 Soprão ou Ponto: Pessoa que no teatro, fica perto dos atores, escondido do público e
se dedica a ditar em voz baixa o texto aos atores quando se esquecem do que devem
dizer.
Dias mais tarde, Mary observava a rua com concentração através da vitrine da loja na
qual Olivia e ela entraram em busca de novas ideias.
— Olivia, aproxime-se. — disse sem afastar os olhos enquanto fazia um gesto com a
mão a sua modista.
Olivia Carlysle deixou os tecidos que a dona da loja lhe mostrava e se aproximou da
sua sócia.
Olivia olhou o garoto que estava apoiado contra um farol e observava atento algo que
tinha entre as mãos. Negou com a cabeça.
— Estou certa que é o mesmo menino que vive rondando minha casa há dias. Venha,
vamos verificar.
Mary se desculpou com a atendente e indicou a Olivia que a empurrasse para fora da
loja. Ambas saíram para a movimentada rua de Bow Street, pela qual circulavam
preocupados homens de negócios e numerosas damas com suas donzelas carregadas
de caixas das lojas exclusivas.
Quando as viu, o lacaio abriu a porta da carruagem dos Luton que as esperava na
calçada.
Mary não olhou em nenhum momento para o menino, só indicou a Olivia que
continuasse empurrando-a pela calçada. Quando estavam perto de uma esquina, Mary
abaixou suas mãos até as rodas da cadeira e fez uma brusca virada que surpreendeu a
modista.
— Mas o que faz, milady? — Olivia perguntou ao perceber que aquilo era um beco
sem saída.
Mary lhe indicou que ficasse calada e que a seguisse atrás de uma estrutura de
madeira que as escondia.
Grudadas contra a parede, Olivia olhava confusa para lady Luton, que, naquele
momento, respirava agitada. Então, o menino que ela lhe mostrara na loja passou em
frente a elas correndo. Quando acabou de passar, lady Luton saiu do meio do beco
para cortar uma possível fuga.
Quando se viu preso, o menino tentou escapar correndo. Mas, ao tentar escapar, Mary
o prendeu. Com o desejo de escapulir, o menino quase a derrubou de sua cadeira. Mas
ela o abraçou com força. Era pequeno, não deveria ter mais de oito anos, e, ainda que
fosse maior para sua idade, seu pequeno corpo logo perdeu as forças para resistir.
Estava com roupas velhas como qualquer vagabundo, ainda que desprendesse um
agradável cheiro de sabão.
Quando deixou de lutar, Mary o observou sem soltá-lo. Seu gorro caíra ao chão, e ao
contemplar seu rosto ficou admirada. Era um menino lindíssimo: tinha uma espessa
mata de cabelos castanhos, um nariz pequeno e a boca em forma de coração. Mas o
mais bonito eram seus olhos: enormes e de um castanho dourado parecido a cor do
mel, que mostravam um brilho inteligente e terno.
— Porque está nos seguindo? — Mary perguntou suavemente para não assustá-lo.
aborreço o quando os meninos mentem. Como se chama?
— Tem os olhos violeta. — espetou emocionado com sua vozinha infantil. Ela sorriu
— É uma fada?
— Veja, Eric, eu esqueci de aprender antes de perder minhas asas e agora não consigo
lembrar como se faz.
— Porque nos segue, Eric? — Mary voltou a perguntar, libertando-o por completo.
— É o meu trabalho.
Mary trocou um olhar com a senhorita Carlyle. Não sabia porquê, mas estava certa de
saber quem estava por trás de tudo aquilo.
A lealdade do menino comoveu Mary. Sorriu de uma forma tão radiante, que o
menino ficou desconcertado.
— Não precisa me dizer. Sou uma fada, lembra? Tenho poderes e, se me olhar,
poderei ler em sua mente. Assim, Eric, — Mary o pegou suavemente pelos braços e se
aproximou até que seus rostos quase se tocaram — olhe-me nos olhos.
Não pense no senhor Lezcano, não pense, não pense... A mente de Eric era incapaz de parar.
Então aqueles olhos violeta o atravessaram e fechou os olhos, assustado.
— Como soube?
Como não tinha suspeitado antes? Estava há meses sem ter notícias dele, e de repente
aparecia em sua casa com informação acerca de todas suas atividades e movimentos.
Estava claro que deveria ter contratado alguém para segui-la. Mas utilizar um menino
lhe parecia algo bem rasteiro e falta de escrúpulos.
Durante sua conversa na biblioteca, Mary lhe contara os detalhes de suas novas
atividades. Mesmo continuando zangado, o senhor Lezcano parecia compreender o
importante que era para ela ter uma distração. Após discutir os termos durante mais
de uma hora, ambos alcançaram um acordo: ela prometia deixar de visitar bairros
perigosos e já não teria relação direta com as clientes, porque sua modista se
encarregaria de servir de ligação. Em troca, o senhor Lezcano lhe prometera sua
confiança e seu silencio.
Mary observou o pequeno Eric. Grande forma tinha aquele homem de confiar nela;
abusar de um pobre menino para que a seguisse a todas as partes e depois informá-lo
de todos seus movimentos. Ela cumprira a sua parte do trato: não retornara à loja do
senhor Tao e também não voltara a se encontrar com nenhuma cliente; só se ocupava
dos desenhos. A pobre Olivia se ocupava de fazer o resto. Sentiu-se uma tola porque
Diego não respeitara seu acordo nem um só dia. Não confiara nela nem por um
momento. O enorme aborrecimento que Mary sentia lhe agitou a respiração. Ainda
não sabia o que, mas estava segura de que algo teria de fazer para se ressarcir de um
ato tão desprezível.
Mary deixou escapar um ofego de incredulidade. Ainda que decidisse passar por
alto.
Mary fechou a boca e, fechando os olhos, jurou para si que, quando conseguisse jogar
a luva a Diego Lezcano, ia fazê-lo se arrepender por ser tão mentiroso e manipulador.
Para Luton, a exposição significava o triunfo de uma série de valores nos quais ele
acreditava com uma paixão inquebrantável. O conde depositava toda sua fé no
conhecimento científico do que dizia que libertaria a sociedade inglesa de séculos de
opressões religiosas. Para Diego, sempre mais prático que seu sócio e amigo, a grande
exibição não deixava de representar mais oportunidades de negócios e dinheiro. De
fato, após sua visita às obras, estava há dias estudando as possibilidades do ferro na
construção de edifícios mais altos. Aquele era, precisamente, o assunto central a tratar
na junta daquela manhã.
Mas, ainda que a conversa dos cavalheiros que o acompanhavam lhe interessasse, sua
mente não deixava de se perder constantemente nas lembranças de outra reunião
mantida dias atrás. Aquele encontro no qual lady Luton voltara a surpreendê-lo com
uma nova loucura. Estava claro que, apesar de conhecê-la há muitos anos, nunca
deixaria de admirar seu vigor. Diego não foi consciente do sorriso de ternura que
aflorou aos seus lábios quando recordou o momento em que a jovem lhe mostrava
seus desenhos enquanto falava de recursos, investimentos e custos com uma seriedade
que teria rivalizado com a de qualquer industrial. Ele queria ter se mantido zangado,
mas seu rosto iluminado de emoção o alcançou diretamente no coração. Entendia e a
admirava; só Deus sabia que poderia conseguir o que fosse dele somente olhando-o
daquela forma.
— Você poderá desenhar vestidos, que é o que mais gosta no mundo. — respondera
ele com sarcasmo, fazendo suas as melosas palavras com as quais ela tentara
convencê-lo por um momento.
Diego, consciente da cara de bobo que, com certeza, mostrava ao recordar sua
conversa com lady Luton, assentiu e tentou se concentrar de novo no assunto da
reunião.
William Reeds levou o charuto à boca e deu uma profunda tragada. Através da
fumaça de sua exalação, observou o rosto de preocupação de seu acompanhante, o
conde de Hampshire.
Reeds assentiu.
— Sim, é.
— Mas que merda de informação é essa Reeds? — estalou furioso o conde, chateado
pela risadinha de seu amigo. — Sabe que minha situação é desesperada, assim, não
tente me foder. Porque não me custaria nada divulgar quais são seus gostos na cama e
arruinar você e sua família.
O gesto de William ficou tenso. Olhou à sua volta para ver se alguém escutara a
ameaça de Davenport, mas comprovou aliviado que o número de cavalheiros no salão
de fumantes do White's ainda era pequeno a àquela hora.
Os olhos verdes de Davenport se abriram pela surpresa. Suas mãos tremeram e o copo
de conhaque quase caiu no tapete.
— Quinhentas mil? — perguntou com voz trêmula. — Mas quanto dinheiro tem
aquele tipo?
— Creio que seu nome é Lezcano. E aquela espécie de buldogue, meu amigo, é um dos
homens mais ricos e poderosos do país. Ninguém sabe realmente até onde se
estendem seus tentáculos.
— Sim, — Reeds confirmou — mas um idiota muito rico. Ele e Luton poderiam
comprar até a Coroa.
William observou Davenport, mas ele já não o escutava. Seu olhar perdido indicava
que sua mente perversa maquinava alguma coisa.
— Quinhentas mil libras, minha mãe. — murmurou, com um gesto com a mão e
assoviando — Essas são umas vontades loucas de se desfazer da irmãzinha aleijada,
não lhe parece?
Reeds voltou a chupar seu charuto e guardou sua resposta. Se aquele bastardo não o
tivesse em suas mãos, lhe diria o que realmente pensava dele.
— Não se engane, Davenport. Segundo minha irmã, lady Luton é uma dama
peculiar. É bonita e inteligente, inclusive muito, para uma mulher. Faz tempo que não
assiste a festas, porque sua residência habitual está no campo. Mas sua assistência aos
bailes era muito desejada pelos anfitriões pelo sagaz gênio da jovem. Parece que está
com sorte, porque este ano estão em Londres e pensam passar toda a temporada aqui.
Creio que Luton aproveitará a oportunidade para apresentar a sua recente esposa à
sociedade.
— Bem, então não devemos perder tempo. Sua irmã pode me apresentar a jovem. —
resolveu o conde com um sorriso ladino. — Eu proporei casamento à aleijadinha.
Um ruído no outro lado da sala sobressaltou Mary. Podia escutar os sons da noite no
exterior e o inquietante uivo do vento infiltrando-se entre as vigas do telhado
desmantelado da loja. Olhou assustada as altas estantes repletas de longos rolos de
tecido, e seu medo aumentou um grau ao comprovar o aspecto fantasmagórico da loja
do senhor Tao na noite; nada a ver com a atmosfera relaxada das conversas e dos
regateios dos numerosos clientes durante o dia.
Desde que conhecera Eric, Mary se apegara a ele com carinho. O menino a visitava
frequentemente e cada vez passava mais tempo em sua casa. Para sua surpresa,
descobrira que o senhor Lezcano o proibira de roubar e lhe ensinara a ler um
pouquinho. Além de Eric demonstrar ser um às para as somas e para o desenho. Por
isso Mary lhe dera um de seus cadernos e vários lápis para que fizesse seus esboços.
Mas ela também sabia que Eric continuava passando informações de suas atividades
ao senhor Lezcano. Então, um dia, decidiu estender uma armadilha ao menino para
que escutasse uma conversa na qual Olivia e ela fingiam planejar naquela noite visitar
a loja de Parker Street para ver uns novos tecidos muito exclusivos. Preocupado e
apressado, Eric saíra em seguida.
Mary esperava que fosse diretamente ver seu patrão para lhe contar o averiguado. Ela
sabia que Lezcano estalaria de cólera quando seu pequeno sócio lhe revelasse a
notícia. A ideia de Mary consistia em criar uma situação bem estranha e perigosa para
fazer o senhor Lezcano sair de seu esconderijo. Sabia que ele apareceria ali para
ensinar e gritar, como fazia sempre, zangado com ela por ter violado sua promessa.
Mas, então, e só com sua presença ali, ele seria desmascarado e a situação se viraria a
Outro ruído na loja a sobressaltou. Disposta desta vez a indagar do que se tratava,
empurrou sua cadeira até o corrimão do segundo piso da qual teria uma vista geral de
toda a primeira planta. Mas as tabuas do piso eram tão irregulares que uma das rodas
se enroscou em um buraco. Mary empurrou com todas suas forças, mas não conseguiu
libertá-la. Frustrada e aborrecida, saltou várias vezes em sua cadeira e, então, outro
rangido soou e tudo desmoronou.
Sua cadeira se precipitou ao primeiro piso, e seu corpo, já sem nenhum ponto de
apoio, também cairia se não fosse porque no último momento conseguiu se agarrar às
pranchas do corrimão. Mary olhou para baixo, aterrorizada. Suas pernas penduravam
inertes a vários metros do chão. Se caísse, se quebraria ou, talvez, algo pior. Tentou
levantar seu próprio peso com a força de seus braços, mas não conseguiu. Então, as
mãos começaram a escorregar, e soube que iria cair. Voltou a olhar para baixo
desesperada e desta vez algo chamou sua atenção: uma sombra através do vidro da
porta indicava que alguém tentava entrar na loja.
Antes de começar a gritar, agradeceu a Deus que aquele homem não respeitasse nunca
seus pactos.
Diego se envolveu em seu abrigo de lã porque ainda fazia frio, mesmo apesar de estar
em finais de abril. Suponho que seja outro dos encantos deste maravilhoso país, pensou com
sarcasmo enquanto virava a esquina de Long Acre e encarava a longa via de Drury
Lane, pela qual ainda circulavam carruagens de aluguel a aquelas horas da noite.
Vários casais de retardatários espectadores dos teatros da área passeavam pela
calçada. Alguns cavalheiros saíam dos clubes de jogos e tentavam parar algum
veículo. Diego ajustou seu chapéu e abaixou a cabeça para não ser reconhecido. O que
menos necessitava naquele momento era ser entretido por um bêbado. Não queria que
nada o distraísse de seu objetivo, que não era outro mais que chegar a Parker Street e
retorcer o precioso pescoço de lady Luton.
Mais irritado que um touro aguilhoado, repetia uma e outra vez que nem o brilho de
seu olhar a salvaria dessa vez; já não teria mais concessões. Ia tirá-la da loja do chinês
arrastada se fosse necessário. E, por Deus, que saltaria a parte de escrever ao conde
para deixá-lo a par de todas as loucuras de sua irmã: passaria diretamente à ação. Ele
mesmo se encarregaria de que não voltasse a sair de sua casa até seu regresso.
Diego atravessou a rua até um armazém no qual um cartaz estragado que dizia:
Tecidos de Tao, lhe indicou que havia chegado. Diego escrutinou a escura fachada com
curiosidade. Onde estava a carruagem de lady Luton e porque não se via nenhuma luz
ou atividade na loja? Diego tirou seu relógio do bolso e comprovou que já passava da
meia noite. Segundo Eric, a àquela hora, lady Luton e sua sócia deveriam se encontrar
ali negociando com o chinês. Mas não parecia ter alguém na loja. Diego se aproximou
em silêncio e tentou vislumbrar algo através do vidro da porta de entrada.
E então a ouviu.
— Socorro!
O grito provinha do interior e era a voz de Mary. Incapaz de pensar, Diego direcionou
um soco no vidro, introduziu o braço para puxar a trava e a quebrou com a força que
utilizou para abri-la. Quando a porta se abriu e seus olhos se adaptaram a escuridão
da loja, seu sangue gelou ao contemplar a cena. A visão da cadeira de rodas virada no
piso e lady Luton pendurada imóvel no primeiro piso o paralisaram de medo.
— Eu vou cair. — soluçou ela tentando virar a cabeça para olhá-lo. — Já não aguento
mais.
Diego reagiu em seguida. Não tinha tempo de procurar a escada para o segundo piso,
nem de chegar até a jovem. Atravessou a loja rapidamente e se colocou sob ela.
— Solte-se, eu a seguro.
O pequeno peso dela não foi difícil de segurar. Mas o vestido se abriu na queda e um
revoo de anáguas o impediu de ver onde pisava. Sua bota bateu em um objeto
cilíndrico que virou, desequilibrando-o. Diego tentou cair debaixo dela para que seu
corpo amortecesse o impacto e, assim, os dois acabaram deitados no piso da loja de
tecidos.
— Você está bem? — Diego perguntou com a voz entrecortada pelo esforço.
Mary negou com a cabeça e segurou em seus braços para detê-lo. Necessitava que ele
abandonasse aquela torturante exploração de seu corpo.
— Estou tão zangado com você, — murmurou ele com aspecto cansado — tanto que
é melhor que a leve para casa, porque agora mesmo seria capaz de estrangulá-la.
Ela levantou a cabeça e observou seu rosto enquanto ele continuava com a massagem.
— O que você faz aqui, senhor Lezcano? Acreditei que tínhamos combinado que
deixaria de me seguir.
— Para começar, tento que não quebre o pescoço, — sussurrou muito perto de seu
rosto. — e parte do trato era que você não se aproximaria daqui. Muito menos à noite
e sozinha. Onde está sua sócia? Você sabe tudo o que poderia acontecer, louca do
demônio?
— Você não deixou de me seguir durante todo este tempo. Já conheci Eric, —
anunciou ela, observando com prazer como mudava sua expressão — e me parece
muito rasteiro utilizar um menino para isso.
— Então tudo isto foi uma armadilha. — sentenciou consternado — Correu o maior
perigo de sua vida somente para me dar uma lição?
Sob aquele olhar contrariado, Mary acreditou morrer. Ela já havia chegado a aquela
conclusão antes que ele aparecesse. Sabia que tinha sido uma terrível estupidez. Além
do que, na verdade ele acabava de salvá-la e, em agradecimento, ela o estava
desafiando. Arrependida, Mary afastou os olhos e abaixou a cabeça.
Diego suspirou exasperado. Não sabia se a matava ou beijava até fazê-la perder o
sentido. Aquele pensamento esporeou sua consciência. A fragilidade de lady Luton o
perturbava sobremaneira, o que naquele momento o impedia de enfrentá-la.
— Sabe o que vamos fazer? — falou — Agora mesmo vou levá-la à sua casa, e
amanhã conversaremos muito mais calmos. Quanto ao seu pequeno cúmplice,
também me ocuparei dele amanhã.
— Não, — Mary interrompeu — Eric não teve nada a ver. Eu o enganei para que
acreditasse no que escutava e fosse logo contar para você. É um bom menino, nunca o
trairia. Também precisei enganá-lo para saber que era você quem estava por trás de
tudo.
— Por favor, não repreenda o menino. Juro que tudo foi minha culpa.
— É melhor você não me jurar nada mais. — Diego tentou que sua voz soasse
zangada, mas não conseguiu. — O pirralho e eu falaremos amanhã. Terei que ensiná-
lo a não acreditar nunca nas mulheres.
Diego não conseguiu evitar e sorriu. Enfeitiçara até o menino. Então a olhou. Se ainda
tivesse algum rasto de aborrecimento, naquele momento se evaporava. Tinha os
cabelos revolvidos pela queda, e seus olhos resplandeciam com o brilho do luar da
claraboia. Suas faces estavam vermelhas devido ao esforço que acabava de realizar.
Como um imã, a boca de Mary atraiu sua atenção. A lembrança de seu sabor fez seu
coração se acelerar. Guiado por um inexorável impulso, Diego acariciou seu rosto
embalando-a com a mão e abaixou lentamente a cabeça, sem afastar nem por um
momento o olhar daqueles lábios. Sabia que não devia, mas seria somente uma carícia
breve; só para consolá-la. Depois a levaria para casa e nunca voltaria a tocá- la.
Mary intuiu que iria beijá-la, e o ritmo de seu pulso se acelerou. Desejava-o e queria
experimentá-lo. Ansiava sentir de novo aqueles lábios sobre os seus, e sua língua
explorando-a. Relembrara tantas vezes seu beijo no jardim, que não podia acreditar
que fosse acontecer de novo. Impaciente, levantou o rosto, tombou a cabeça para
facilitar-lhe o acesso a sua boca e se aproximou mais dele para que seus lábios se
encontrassem o quanto antes. Fechou os olhos e esperou.
— Está sangrando!
— Tem sangue no rosto. — Diego esclareceu, observando seu rosto. Ele voltou a
Mary abaixou a cabeça e comprovou que o tecido azul turquesa de seu corpete estava
coberto de manchas vermelhas. Assustada, tocou o corpo para descobrir a fonte
daquele sangue.
Com uma perna a cada lado de Mary e muito nervoso, o senhor Lezcano a apalpava
por todo o corpo.
Os nós de seus dedos apresentavam um corte profundo pelo qual brotava bastante
sangue. Mary lhe virou o pulso com delicadeza e comprovou que também tinha
ferimentos na palma.
Diego examinou sua mão e compreendeu com alívio que ela estava bem.
Ela levantou a saia e rasgou algumas tiras de sua anágua. Pegou delicadamente a
grande mão dele entre as suas e começou a limpar o sangue dos ferimentos.
Diego sentiu a boca secar no instante e tentou engolir com grande esforço. A sensação
de ser cuidado por alguém era nova para ele. Quando adoecia, sempre se atendia
sozinho. Mas, além da surpresa inicial, Diego notou que a visão de lady Luton
cuidando dele fazia o seu coração martelar com força contra o peito, e aquela
preocupação em sua voz o abrandava até a alma.
— Deixe isso, — balbuciou, observando sua cabeça inclinada sobre ele — não é
necessário, não está doendo.
— Pronto. — concluiu — Quando chegar a casa lave-a com água quente e sabão.
— Obrigado.
Algo em sua voz a fez erguer a cabeça e olhá-lo. Diego tinha permanecido em silêncio,
mas Mary notara seus olhos fixos nela todo o tempo. Ao observá-lo de novo, percebeu
a tensão de seu corpo e sua longa e agitada respiração.
— Não, senhor Lezcano, sou eu quem deve agradecer. Me salvou, como sempre.
Então, estimulada por uma corrente de sentimentos contra os quais já não lhe parecia
necessário lutar, Mary pegou seu rosto entre as mãos e lhe deu um ligeiro beijo nos
lábios.
Diego abriu os olhos surpreso e exalou um longo suspiro. Quando ela o soltou e
tentou se afastar, ele não permitiu. Com um rouco grunhido seguiu sua boca e a
prendeu de novo com a sua. No início, a carícia dele foi suave, reverente; uma
continuação da sua. Mas logo seus lábios se tornaram mais exigentes. Introduziu sua
língua e explorou toda sua boca, memorizando cada textura, cada sabor, cada
Com a respiração agitada, Diego acariciou seu rosto e o levantou para afundar mais
em sua boca. Ela não se afastou.
Muito mareada para se mover, Mary levantou as mãos de forma automática e lhe
acariciou os cabelos. Na primeira vez que a beijara, ela, excessivamente surpresa, fora
incapaz de corresponder, mas desta vez estava mais que pronta a participar com
entusiasmo. Então, quando notou sua língua, ela correspondeu à caricia com o mesmo
atrevimento.
Diego voltou a gemer e todo seu corpo ficou rígido. Mary se sentiu poderosa ao
compreender que não era só ela que estava perdendo o controle.
Ansioso, Diego a empurrou até que ambos ficaram deitados outra vez sobre o ninho
de organza que os tecidos formavam no piso. Tremendo de emoção, e sem deixar de
beijar sua boca, se esticou junto a ela e cobriu o pequeno corpo de Mary, com o seu.
Profanava sua preciosa boca com longos e úmidos beijos, enquanto os braços dela se
moviam frenéticos por suas costas tentando aproximá-lo ainda mais.
O peso do senhor Lezcano sobre ela era muito prazeroso, então, Mary notou algo que
nunca experimentara: o sangue parecia ferver em suas veias, e uma cálida sensação se
propagou por seu ventre como uma chuva de estrelas fugazes. Aquela descoberta a
fez se arquear contra o corpo duro dele em busca de uma maior proximidade.
Quando Diego notou que Mary se remexia para se aproximar mais, a apertou contra
ele saboreando a forma em que seus corpos se encaixavam. Enquanto com a mão
vendada lhe segurava o queixo, com a outra explorava seu corpo. Acariciou o seio
inteiro, com a mão e notou como se endurecia sob o tecido do vestido. Abaixou pelo
lado até prender seu quadril e apertá-la contra ele para que notasse sua excitação.
Nunca se excitara tanto e tão rápido. Então pensou que ela se assustaria, que fosse
pará-lo, que tentaria afastá-lo, mas nada daquilo aconteceu. Em um claro sinal de
rendição, Mary respondeu ao seu oferecimento arqueando ainda mais seu corpo
contra ele e gemendo seu nome contra sua boca.
Naquele momento, a realidade golpeou Diego com violência. Mary Luton não iria
pará-lo, porque o desejava. Um instante antes de esquecer todos os motivos pelos
quais não deveria continuar com aquela loucura, Diego se levantou e se afastou dela.
Mary continuava no piso da loja, trêmula e com os braços abertos. Os lábios estavam
inchados, o rosto ruborizado e o olhava confusa com os olhos ainda nublados pela
paixão.
Diego soube que deveria sair dali até se acalmar ou voltaria para junto dela e
cometeria o maior erro de toda sua vida.
Completamente desconcertada, Mary o observou sair apressado da sala. Sabia que não
fora embora, porque podia ver sua sombra fora da loja andando de um lado ao outro.
Sentou-se no piso e exalou ar profundamente várias vezes com a intenção de se
acalmar. Tentou arrumar o vestido, e seu corpo foi se acalmando lentamente. Sua
cabeça recuperou o domínio da situação e tomou consciência do que estivera a ponto
de fazer. Ai, meu Deus, pensou angustiada ao perceber que teria se entregado sem
pensar a Diego Lezcano.
Ele fora o único com um pouco de senso para tomar o controle e se afastar. Mary
deveria se sentir agradecida, mas não era assim. A certeza de ter perdido a última
oportunidade de se sentir amada completamente por um homem apertou seu
estômago e inundou seus olhos de lágrimas. Apoiando-se nas mãos e limpando o
nariz para controlar o pranto, se deslocou até onde estava sua cadeira. Levantou-a e
tentou sentar-se nela.
Mary olhou sua alta silhueta recortada contra o buraco da porta. Ele a observou e
atravessou a sala a grandes passos até chegar junto a ela. Abaixou-se ao seu lado e a
levantou nos braços com grande facilidade.
— E a cadeira? — perguntou.
Diego cruzou a Parker Street com lady Luton, tentando se concentrar em seus passos e
não em seu rosto perto dele, em seus braços em torno de seu pescoço. Ao chegar a
Drury Lane, amaldiçoou para si mesmo ao comprovar que nenhuma carruagem
circulava.
As luzes dos faróis daquela rua permitiram a Mary uma melhor visão do rosto sério
dele que não a olhava nem por um instante. Aborrecida por sua indiferença e cansada
daquele desconfortável silêncio, Mary decidiu falar. Não desejava que o que acabara
de acontecer no armazém de Tao abrisse outra brecha entre eles. Temia que aquilo
terminasse por afastá-lo outra vez.
— Senhor Lezcano, — disse decidida — não quero que sinta pelo que acaba de
acontecer. Sei que uma mulher como eu não deveria desejar aquilo...
— Cale-se, Mary! — grunhiu ele — Isto não tem nada a ver com você.
Mary suspirou ao ouvi-lo pronunciar seu nome pela primeira vez. Continuou,
animada a deixá-lo saber como era especial para ela.
— Mas também sei que se acontecesse, não poderia ser com nenhum outro.
Mary entrelaçou as mãos atrás de sua nuca para se segurar melhor. Comprovou,
satisfeita, o efeito que suas palavras provocaram nele. O tremor que atravessou seu
Nem uma carruagem, nem uma maldita carruagem cruzara em seu caminho até
Grosvenor Square. Carregara o pequeno corpo de lady Luton por metade da cidade e
estava esgotado, não precisamente pelo esforço físico, mas pelo esforço mental de não
pensar no que ela acabava de lhe confessar. Tudo o que desejava, o que mais desejava
no mundo acabava de se colocar ao seu alcance, no entanto, ele não podia alongar a
mão e prendê-la.
Estava há muito tempo tentando não dedicar um nome ao que sentia por aquela
mulher, mas era mais que evidente: se chamava amor. Amava-a até com a última fibra
de seu ser. Ninguém, jamais, despertara aquelas emoções nele. Queria dizer-lhe,
ansiava para lhe declarar seu amor, pedir sua mão e uni-la a ele com todas as amarras
legais que o ser humano tivesse concebido para tal efeito. Mas como lhe dar um
sobrenome que nem mesmo era seu? Como começar uma vida ao seu lado sem lhe
revelar todas as mentiras de sua existência? Como confessar a ela e ao seu irmão que
ele não era mais que um usurpador, que jamais fora o cavalheiro que acreditavam?
Mary permaneceu calada até chegarem a Luton Hall. Descobrira todos os olhares de
soslaio que ele lhe dava durante o caminho; também todos os longos suspiros e
posteriores franzidas de cenho. Sabia que estava todo o tempo imaginando algo, ainda
que não se atrevesse a lhe perguntar o que era.
Diego parou em frente à grande mansão do conde de Rohard. Se afastou dos faróis da
rua para não ser descoberto e inspecionou detidamente a grande fachada de pedra
cinza de estilo georgiano. Com seus três pisos, seus telhados piramidais e as chaminés
apontando para o céu escuro de Londres, Diego decidiu que sua habilidade como
escalador de telhados lhe serviria pouco naquela ocasião.
— Como irei levá-la para sua sala sem que ninguém nos veja? — perguntou para si
mesmo.
Mary virou a cabeça para sua casa, em cujas janelas já não se via nenhuma luz.
— Alguns membros do serviço saem à noite para visitar seus pares em outras casas,
— anunciou com um sorriso, virando o rosto de novo para ele — e eu sei onde
guardam a chave.
— Eu não sou rebelde, só um pouco inquieta, isso é tudo. Diego deixou escapar uma
O corpo de Mary se agitava de rir, enquanto a conduzia até a porta de serviço e ambos
entravam na escura cozinha. Diego conhecia bem a casa, de modo que continuou pelos
corredores do serviço, subiu até o primeiro piso e se dirigiu ao corredor dos aposentos
da família. Os candelabros já tinham sido apagados e a casa estava mergulhada na
penumbra, quebrada unicamente pela claridade das luzes da rua que atravessavam as
grandes vidraças das janelas.
Sem deixar de olhá-lo, Mary lhe indicou o caminho para seu quarto.
— Agora à direita. Sabe de uma coisa, senhor Lezcano? — perguntou em voz baixa.
— Gostei muito que me chamasse por meu nome. Teria alguma possibilidade de
continuar fazendo-o?
— O que?
— Antes, na rua, você me chamou de Mary, pela primeira vez. Gostaria muito que
continuasse assim. — Ela levantou timidamente os olhos e prosseguiu: — Também
gostaria de poder chamá-lo de Diego, se me permitir.
Diego observou comovido como seus doces lábios articulavam pela primeira vez, seu
nome, e esteve a ponto de lhe dizer que sim.
Mary se revirou na cama quando sua donzela correu os cortinados da janela e uma
rajada de luz incomodou seus olhos. Chateada, cobriu a cabeça com uma almofada.
Cobriu-se com a colcha até o queixo e abraçou a si mesma, emocionada. Não podia
permitir que alguma criada visse o vestido, ou que o lavasse. Ela desejava com loucura
conservar aquelas manchas como uma lembrança da maravilhosa noite na qual
descobrira que o senhor Lezcano sentia algo por ela. Mary pensou com aborrecimento
que não seria nada fácil que ele revelasse seus sentimentos, já que era um homem
muito fechado. Mas ela estava aguardando toda a vida e tinha toda a paciência e
tenacidade de quem sabe esperar.
Alarmada ao notar que sua donzela se aproximava para ajudá-la com o banho, Mary
tirou a cabeça debaixo dos lençóis e a olhou diretamente.
Aproveitando enquanto ficou sozinha no quarto, Mary levou as mãos as costas para
desabotoar o vestido. Como o escolhera na noite anterior pela simplicidade de seu
fechamento, não demorou mais de um minuto para tirá-lo pela cabeça. Uma aguda
dor lhe queimou os músculos dos braços, o que serviu para lhe recordar o acidente.
Porém, quase agradeceu a dor, porque não era mais que outra prova de que tudo
acontecera de verdade. Afrouxou o corpete e o dobrou com o vestido antes de
escondê-los sob o colchão.
Somente com a camisola interior, Mary voltou a se recostar. Cobriu-se até o peito com
os lençóis e esperou Daisy retornar. Observou sua cadeira ao lado da janela e percebeu
que quando o senhor Lezcano a devolvera, ela já devia estar dormindo há um bom
tempo. Um formigueiro lhe percorreu a pele ao pensar nele observando-a dormir.
Inspirou e repassou com um sorriso inconsciente sua última conversa antes de sair.
— Pensa voltar agora a Parker Street para buscar a cadeira? — ela perguntou depois
de se sentar na cama.
— E o que acontecerá com a loja? Quando o senhor Tao regressar pela manhã e ver
seu negócio destruído, levará um choque.
Diego estava abaixado ao seu lado, ajudando-a a desatar os cordões de suas botas.
Mary observava com supremo deleite seus cabelos negros; se permitiu fantasiar com
aquela situação se repetindo a cada noite se ele fosse seu marido.
— Com tudo o que vou lhe oferecer por aquele casebre, não terá motivo de queixa.
— Quer dizer que comprará uma loja somente para me impedir de entrar, Diego?
— perguntou; acrescentando seu nome só para chateá-lo.
—... lady Luton. — terminou de dizer, enquanto saía do quarto e fechava a porta.
Furiosa, Mary agarrou uma das botas do piso e a jogou, rezando para acertá-lo na
cabeça. Mas ele já havia saído, e só conseguiu que a bota batesse com estrépito contra a
porta. Menos mal que os criados dormiam na outra parte da mansão e que sua mãe
não acordasse nem que tivesse uma orquestra de trombones tocando junto a sua cama.
Mary voltou à realidade quando sua sorridente donzela apareceu com um copo de
água entre as mãos.
Naquela manhã em sua oficina de Bow Street, Diego mantinha uma interessante
reunião com seu empregado mais jovem.
— Oh, sim, senhor. A senhorita Mary me deixa ir à sua casa sempre que quero. E,
além de tudo... — Eric falou em tom confidencial para que Wilson não pudesse ouvi-lo
— tem poderes mágicos.
— Eric, — disse, voltando sua atenção ao menino — não pode se confraternizar com
aqueles aos quais vigia.
— Isso mesmo.
Diego comprovou que pelo rosto do menino passavam naquele momento um colosso
de emoções. Mas, sobretudo, poderia dizer que Eric ficara muito triste com a notícia. E,
depois de quase um minuto de reflexão, respondeu.
— Olhe, senhor Lezcano, fui com ela porque me descobriu com seus poderes de fada.
Nunca teria me aproximado tanto se ela não me tivesse pedido. No início tinha medo,
como de você, mas agora não. Me obriga a ler em voz alta, porque acredita o mesmo
que você está dizendo sempre: que tenho que praticar para ler melhor. Presenteou-me
com lápis de cor; e nunca antes ninguém me presenteara nada. Abraça-me todo o
tempo, e me acaricia assim, — o menino apalpou o rosto — e eu gosto.
A declaração de Eric foi um golpe direto ao seu coração. Se pudesse lhe dizer como o
compreendia, se pudesse lhe contar quanto ele tinha desejado a alguém como Mary
Luton quando era somente um ladrãozinho nas ruas de San Sebastián. Diego engoliu
com dificuldade antes de falar, tentando que a voz não se quebrasse por sua absurda
sensibilidade.
— Leva meses recebendo uma pequena fortuna e nem mesmo comprou uma roupa
nova. — Diego declarou, observando o casaco puído do menino. — O que faz com
todo o dinheiro que lhe pago, Eric?
— Quero saber agora, — exigiu, batendo na mesa com o dedo indicador — ou não
voltará a ver um xelim mais de minha parte.
Mary reconheceu em seguida a voz profunda que chegava do outro lado da porta
principal de Luton Hall: era a de seu irmão Robert. Todo o pessoal de serviço
esperava a chegada dos condes no vestíbulo de entrada. Para lhe dar as boas-vindas,
Mary e sua mãe, como parte da família, aguardavam em primeiro lugar e um pouco
afastadas dos serventes.
Após ouvir as indicações, o velho mordomo abriu a porta. Robert apareceu no umbral
com sua mulher nos braços. O vestíbulo se encheu de gargalhadas e de aplausos pela
entrada triunfal de seu senhor.
— Vê, — disse Robert olhando para sua mulher — não disse que seria uma boa ideia.
Obrigado, Wallace.
Mary não pode esperar mais e se aproximou deles com os braços abertos.
Quando seu marido a deixou no chão, Sara se afundou em um carinhoso abraço com
sua melhor amiga.
Mary olhou para seu elegante irmão por cima do ombro de sua amiga e lhe deu a mão.
Robert foi até ela e, depois que Sara se afastou, pegou sua irmã nos braços e a apertou
com força contra si.
— Sim, minha querida esposa se lembrou de todos e esqueceu de comprar algo para
ela. — Robert acrescentou, lançando um olhar de intenso amor à sua mulher.
— De modo que nossa bagagem cresceu tão esmagadoramente somente com seus...
livros?
Robert olhou para sua irmã com falso desgosto, e ela devolveu o sorriso a Sara.
As duas gostavam de pegar Robert pelos cabelos, sempre muito sério e distante.
— Ah, me alegra saber que minha família me tem em consideração como aos seus
criados.
Sara corou. Já se esquecera do ácido caráter de sua sogra. Parecia-se tanto a Mary
fisicamente, mas às vezes não conseguia recordar que a condessa viúva iria demorar
para admitir que ela fosse a nova condessa de Rohard. Como um dos herdeiros mais
cotados do país, Helen Luton sempre tivera a esperança que seu filho desposasse uma
das tantas damas de alta linhagem que estava há anos lhe apresentando. Mas Robert
escolhera a ela, que, além de ser sua prima longínqua, provinha de uma família à beira
da ruína na qual não havia nem rastos de sangue azul. Sara estava convencida de que
sua sogra nunca a aceitaria, porque, por ser filha de seu primo, lhe recordava
continuamente que ela tampouco tinha origem nobre.
— Não comece, mãe. — Robert pediu, enquanto ainda abraçava Mary. — Permita-
nos pelo menos desfazermos a bagagem.
Com a curiosidade aguçada, depois que o menino lhe falara de sua família, Diego
tomara uma carruagem de aluguel e pedira ao seu secretário que os acompanhasse
para conhecer aquele lar que o menino descrevia. Eric estava preocupado por ter
revelado seu segredo e se mostrava indeciso e nervoso.
Diego olhou para o menino, que já parecia muito mais decidido a lhe mostrar seu
segredo.
Demoraram mais de uma hora para chegarem, devido ao caótico trânsito londrinense.
Depois de várias paradas e interrupções, por fim chegaram a uma zona da margem do
rio da qual se divisava para o oeste a ponte Waterloo com as fumegantes chaminés das
fábricas ao fundo.
Diego observou aquela mãozinha e a apertou com uma cálida emoção palpitando em
seu peito, mais decidido que nunca, a conhecer até o último detalhe da vida de Eric
Nash.
Os três entraram pela porta lateral do armazém e seus olhos demoraram um pouco em
se adaptar à penumbra do interior.
O lugar deveria ter uns oitenta metros quadrados de superfície e uns quatro metros de
altura. Diego estreitou os olhos e observou uma serie de camas velhas feitas de
madeira e palha no fundo do barracão. No centro, havia uma velha mesa de madeira
com as pernas originais, substituídas grosseiramente por quatro troncos maciços. A
um lado do armazém ardia um fogareiro sobre o qual estava um caldeirão com
alguma coisa cozinhando. Ao lado do fogo, havia várias cadeiras estragadas e vazias.
Igualmente vazio, parecia aquele lugar.
— Saiam, rapazes. — disse Eric, e sua voz ecoou contra as paredes. — Eles vieram
comigo.
Diego olhou para seu secretário, que permanecia ao lado da porta com o olhar
atemorizado, e se voltou para Eric levantando as sobrancelhas para indicar sua
confusão. Depois de uns minutos, as sombras da sala pareceram ganhar vida e umas
pequenas figuras precedidas por sujas carinhas começaram a surgir dos diferentes
cantos. Eram vários meninos com mais ou menos a idade de Eric.
— Querem vir, já! — gritou o menino, fazendo-lhes um gesto de pressa com a mão.
— Nós não temos todo o dia.
Uns dez meninos se aproximaram até rodeá-los. Todos estavam com roupas velhas e
tinham os rostos manchados de fuligem. Uma menina que parecia a maior se
aproximou de Eric.
— Quem são? — perguntou, indicando com a cabeça os dois estranhos. — E por que
os trouxe aqui, Eric?
— Este é meu chefe, o senhor Lezcano, e o da cara azeda é Wilson, seu secretário.
Muito confuso para rir, Diego pegou a mão do menino para olhá-lo aos olhos.
— Você disse que queria saber o que fazia com o dinheiro que me paga. Compro
carvão para manter isto quente às noites, consegui mantas novas, e temos tomado leite
e comido carne durante os últimos meses. Mas Martha tem razão: aqui todos
colaboramos.
Diego se sentiu um estúpido por ter duvidado daquele menino de oito anos que
acabava de lhe dar uma lição. Olhou à sua volta e lhes sorriu.
Todos pareceram concordar e cada um voltou ao seu lugar; Martha foi mexer o cozido
no caldeirão, e os outros se sentaram junto ao fogo.
— Então, não vai me despedir? — Eric, que ainda permanecia ao seu lado,
perguntou.
Diego o observou durante alguns segundos e somente conseguiu negar com a cabeça.
Aquele menino já chegara de várias formas ao seu coração. Mas agora, após conhecer
Diego começou a andar pela sala. Wilson permanecia cravado ao lado da porta. Eric o
acompanhava, e Martha não lhe tirava os olhos de cima, enquanto mexia seu almoço.
Verificou os catres e reparou que em cada um havia uma manta nova. Tocou- as e
comprovou que eram grossas e de boa qualidade. Olhou para Eric, que lhe sorria de
forma orgulhosa, e lhe devolveu o gesto. Diego confirmou também que o ambiente
estava muito carregado pela falta de ventilação e pela fumaça do fogareiro. Aquilo
poderia se tornar mortal. Conhecia casos nos quais famílias inteiras morreram
envenenadas pelos gases. A ideia de que Eric corresse aquele perigo lhe retorceu as
entranhas, e então, uma ideia começou a se formar em sua mente.
Diego continuou andando com o menino colado aos seus calcanhares. Distinguiu as
garrafas de leite vazias que os meninos amontoavam em um lado do armazém. Então,
algo se moveu no chão em um dos cantos e chamou sua atenção: o longo e afinado
rabo de um rato se agitou perto das garrafas. O nojo repentino que Diego
experimentou lhe eriçou a pele. Virou-se de repente, pegou Eric entre seus braços e
antes de sair dali olhou para Wilson com determinação.
— Tem que fazer alguma coisa com isto. — ordenou, em um tom que não admitia
réplicas.
Naquela tarde atendera o convite para dar as boas-vindas ao conde e colocá-lo a par
da situação de suas empresas. Quando entrou em seu escritório, Robert se levantou de
trás da escrivaninha e o recebeu com um afetuoso abraço.
—Nem um pouco. Foi o melhor que fiz na vida. Deveria pensar em dar o passo, meu
amigo.
— Nem todos temos a mesma sorte que você teve para encontrar a mulher perfeita.
Diego tomou um longo gole do seu conhaque, esperando que o forte licor melhorasse
o nó de nostalgia que lhe apertava o estômago. Como lhe explicar? Como contar ao
conde que aquela mulher estava em seu caminho há muitos anos; e muito perto de
Robert: vivendo sob seu mesmo teto, para ser exato?
Diego se sentou em uma poltrona de couro em frente a Luton. Sim, pensou com ar de
tristeza, como lhe dizer que sua irmã é absoluta e arrematadamente imperfeita para mim?
Robert observou seu sócio com certa preocupação. Sabia que Diego não era muito
dado a usar a diplomacia quando se tratava de fazer negócios com certas pessoas
desagradáveis.
Diego assentiu e tentou desviar a atenção de sua mão o quanto antes. Não tinha
nenhuma intenção de contar ao conde como se cortara.
— Estou dando voltas a uma coisa para a qual preciso da sua ajuda. — anunciou
— Algo que sei, vai lhe agradar.
— Diga-me.
— O que? — perguntou sufocada, e percebeu como o rubor acendia seu rosto ao ser
descoberta por todos olhando ao senhor Lezcano com cara de tonta.
Tentou não olhar em sua direção, mas não pode evitar dar uma rápida olhada à frente
e então percebeu o olhar de Diego cravado nela. A respiração se acelerou e tentou fixar
de novo sua atenção no prato, ou todos descobririam como estava ruborizada e
agitada. Claro que a teria ajudado bastante se ele tivesse deixado de observá-la
daquela forma do outro lado da mesa.
Robert não deu importância por Mary estar tão calada aquela noite e decidiu
compartilhar com elas o plano que Diego e ele discutiram antes do jantar.
— Gostaria muito de contar algo no que decidimos trabalhar e que tenho certeza será
do interesse de todos. O senhor Lezcano decidiu construir um grande lar para
meninos de rua.
— Oh, me parece uma ideia maravilhosa. — Sara afirmou, e foi a primeira a falar
— E em que consistirá o lar?
— Bem, teria que ser algo grande. — Diego explicou. — Quero que tenha um amplo
número de camas, banheiros, uma boa cozinha, um refeitório, serviço médico e várias
salas de aulas para transmitir todo tipo de matérias: biologia, física, matemáticas,
música, literatura e desenho.
Quando disse aquele último, Diego não pode evitar que seus olhos procurassem os de
Mary. Então percebeu seu reconhecimento. Somente um gesto, bastara somente um
olhar para que ela descobrisse por que o fazia. Somente um olhar para que Mary
Luton soubesse que aquele grande projeto era algo que eles dois tinham iniciado
juntos fazia meses, com Eric. Diego tentou passar por alto o estremecimento que o
atravessou e continuar com sua explicação.
O sorriso de Sara foi se ampliando à medida que o discurso de Diego avançava. Como
filha de um professor de Oxford, a nova condessa apoiava certamente aquela forma de
ver o ensino.
— Não poderia estar mais de acordo. — concordou e voltou a atenção ao seu esposo
— Nem mais orgulhosa de que participe em algo assim. Oh, ficaria encantada em
colaborar de alguma forma.
Robert tomou a mão de sua esposa e lhe deu um leve beijo no dorso.
Diego ficou paralisado sob a influência do intenso olhar. Menos mal que o conde
decidiu tomar a palavra, porque acabaria revelando qualquer detalhe inoportuno.
— Desta vez eu não tive nada a ver. Tudo foi coisa sua. — Robert disse, assinalando
com um movimento de cabeça ao seu sócio.
Robert soltou uma gargalhada e deu uma pequena palmada na mesa, satisfeito porque
sua esposa também percebera o estranho que parecia um reconhecido homem de
negócios embarcar em um projeto completamente desinteressado.
— Era justamente onde eu queria chegar. — Robert brincou. — Diga-nos quem é você
e o que fez com meu amigo.
O conde limpou os lábios antes de deixar seu guardanapo sobre a mesa e deu uma
gargalhada.
— Eu já dizia...
— Luton, não me ofende o seu sarcasmo, assim deixe de tentar. — Diego respondeu
sorrindo. — Imagine todos os jovens gênios que se escondem nas ruas de Londres e
que jamais descobrirão seu potencial porque ninguém lhes facilitou a possibilidade de
fazê-lo. Agora, imagine o que significa descobrir um talento assim e fazê-lo trabalhar
para você.
Por isso Diego não gostava de participar daqueles debates de mesa e preferia guardar
silêncio. Assim, sempre podia escutar comentários como aquele com um sorriso
indiferente. Ele não era bom com as palavras, para isso tinha Luton. A chantagem, o
suborno e a manipulação, eram campos que dominava perfeitamente e nos quais a
oratória não servia para nada. Mas o discurso da condessa viúva prendera uma chispa
em seu interior que fora num crescendo com cada palavra até se transformar no
grande fogaréu que naquele momento lhe abrasava o sangue.
— Talvez todos tenhamos aspirações, milady. — afirmou em um tom mais mordaz
do que queria utilizar. — Só que a vida nem sempre oferece a todos, a ocasião de
Helen Luton ficou vermelha de fúria, mas fingiu não perceber a ofensa para não
responder. Robert estava muito satisfeito com a lição que sua mãe acabava de receber,
não só porque pensava daquela forma, mas porque não tinha nenhuma vergonha em
expor tudo em voz alta. Sara meditou na conveniência de se levantar da cadeira e dar
um efusivo aplauso ao senhor Lezcano; porém, decidiu mudar de assunto.
— Já mencionei que o duque de Devonshire nos convidou para a festa que fará em
seu palácio na próxima semana?
— Será uma grande ocasião para que todos esses nobres rançosos a conheçam,
— disse, enquanto voltava a beijar sua mão. — e se enamorem perdidamente de você.
O grande salão de baile de Devonshire House estava muito concorrido naquela noite.
As festas do duque sempre atraíam um amplo número de convidados. Mary
observava a pista de baile repleta de elegantes casais. Estava há um bom tempo
sozinha no canto das debutantes. Sua mãe insistira em acompanhá-la; mas, graças a
Deus, algumas damas a entretiveram com suas conversas. As jovens que estavam ao
seu lado foram abandonando seus lugares à medida que recebiam convites para
dançar ou andar pelo salão, e ela ficara sozinha, como sempre, porque para realizar
qualquer daquelas atividades necessitava suas pernas. Depois de dez anos
transcorridos desde sua apresentação em sociedade, já estava mais que acostumada a
aquela sensação. Era uma solteirona consumada e orgulhosa. Mas aqueles
pensamentos já não a deixavam triste como antes. Convencera-se que sua vida sempre
seria diferente e já não a abalava de forma negativa, pelo contrário.
Naquela noite Mary se sentia um pouco mais cansada do que o habitual já que, desde
o regresso de Sara, ambas voltaram a sua rotina de exercícios matinais. Ainda não
confiara a sua amiga seu pessimismo acerca do êxito daqueles exercícios para fazê-la
andar, mas no momento não tinha intenção de fazê-lo, já que não desejava renunciar a
aquele tempo do qual dispunham diariamente só para elas. Gostava de estar próxima
a ela. Adorava sua forma de ser sincera e totalmente desinteressada. Mary recordou
com um sorriso nos lábios, antes, quando Sara ainda era solteira, e as duas
observavam e comentavam com sarcasmo tudo o que se passava no salão.
Mary a procurou com o olhar e percebeu que Sara também a observava. Estava com
um vestido cor de groselha com adornos dourados que ela mesma lhe desenhara.
Escolhera aquela cor porque oferecia um contraste muito atraente com os olhos negros
e os cabelos da mesma cor de sua cunhada. O penteado simples, sem adornos e o colar
de pérolas completavam com acerto o vestuário que a convertia em uma das damas
mais elegantes do baile. Mary percebeu que Sara lhe sorria, enquanto seu marido a
apresentava com orgulho pouco disfarçado a um grupo de pessoas. Ela lhe devolveu o
gesto com afeto.
Os primeiros dias do casal em Londres não estavam sendo muito fáceis como
deveriam. Sobretudo devido a sua mãe, que se empenhava em fazer de Sara uma
condessa exemplar. A última coisa que soubera naquela manhã era que sua mãe
ordenara arrumarem os dois quartos principais da mansão: um para o conde e outro
para a condessa. Pois achava impróprio que um casal usasse o mesmo dormitório a
cada noite. Mary não pode evitar um sorriso ao recordar o monumental aborrecimento
de Robert quando soube e a rapidez com a qual todos os objetos de sua esposa
retornassem aos seus aposentos.
Ao recordar o senhor Lezcano, Mary voltou a dar outra olhada pelo salão. Sabia que
estava ali, porque ele mesmo lhes confirmara sua presença durante o jantar que
tinham compartilhado fazia uma semana. Ainda não o vira, e, no entanto, todo seu
corpo mantinha uma espécie de alerta que lhe indicava que ele a observava. O senhor
Lezcano sempre comparecia a aquele tipo de festas com algum propósito comercial.
Assim, se estivesse ali, certamente estaria falando sobre negócios com algum grupo de
cavalheiros. Apesar que ele nunca dançava, nem se esforçava muito em ser agradável,
Mary percebera o efeito de fascinação que produzia nas damas. Tinha que reconhecer
que, mesmo não sendo o homem do qual se enamorara, o mais admirado da cidade,
despertava paixões femininas por onde passava. A estranha mescla entre mistério e
perigo que emanava dele parecia ser algo irresistível para as mulheres. Certamente,
mais de uma já fantasiara em decifrar o atraente e rico estrangeiro.
Mary voltou a escrutinar o salão, mas não conseguiu distingui-lo entre os convidados.
Ainda que pode observar que, naquele momento, lady Cleveland se dirigia para ela,
acompanhada de um homem muito elegante que não era seu marido.
— Boa noite, lady Luton. —A duquesa a saudou com um cálido sorriso desenhado
em seu rosto. — Espero que esteja desfrutando da festa.
Mary lhe devolveu o sorriso e respondeu sua saudação; desejava que se afastasse logo
de seu campo de visão.
Mary foi consciente de que a duquesa se afastava uns passos; o suficiente para que o
conde e ela pudessem falar sem ficarem completamente a sós. Aquele gesto despertou
a curiosidade de Mary, que tipo de interesse teria lady Cleveland em que o conde e ela
conversassem sozinhos? Em seguida descartou aquelas questões e se concentrou no
intenso olhar de lorde Davenport.
— Não sei se sabe que é indevido olhar assim a uma dama, milorde. — Mary disse,
desconfortável sob o escrutínio daquele cavalheiro.
Ele reagiu prontamente, ainda que não deixasse de observá-la sem disfarce.
— Desculpe-me, mas creio que não há nada neste salão que mereça ser contemplado
tanto quanto você.
Aquela impertinência não chegou a aborrecer Mary de todo; estava bem acostumada a
ser adulada por engomadinhos. E tudo no aspecto daquele homem, com seu perfeito
traje de etiqueta, suas unhas cuidadas e o forte perfume masculino, indicavam que se
tratava de outro mais daqueles jovens que se aproximavam dela por seu dote. Ainda
que Mary desejasse se casar e ter filhos com todo seu coração, nunca desejaria alguém
assim ao seu lado. Muito menos, depois de se sentir apaixonada por Diego Lezcano e
de comprovar como era feliz o casamento por amor, de seu irmão e Sara. Ela sonhava
algum dia ter aquilo também.
Mas o aborrecimento que sentia naquela noite a levou a seguir o jogo do jovem lorde.
— Não poderia elogiar-me com uma mortificação mais agradável, milady. Mary
observou preocupado.
— Parece que você está acalorada, milady. Permita-me que lhe traga um refresco. —
disse ele solicitamente, se afastando antes que Mary pudesse recusar sua oferta.
— Aqui tem.
Quando Mary descobriu que o conde lhe oferecia um copo de vinho, se surpreendeu
gratamente. Estava certa que iria trazer um copo de inocente limonada, como faziam
todos. O gesto de Davenport de considerá-la uma mulher adulta e não uma menina a
agradou. Sorriu e pegou o copo, agradecida, pensando que talvez o conde não fosse
uma companhia de todo desagradável durante um tempo.
— Não sei se deveria aceitar de alguém como você algo que possa afetar meu
raciocínio.
Davenport voltou a sorrir e desta vez uma fileira de branquíssimos dentes contrastou
com o tom levemente bronzeado de seu rosto.
— Minha intenção não era ofendê-lo. — Mary manifestou. — Mas deve reconhecer e
aceitar que sua fama de libertino o precede, milorde.
— Não acredite nem na metade. — ele declarou, enquanto se inclinava sobre ela e
seus olhos verdes a estudavam descaradamente. — Sabe que você é linda?
Mary voltou a concentrar sua atenção em lorde Davenport e recordou sua pergunta.
Disposta a se livrar por fim da companhia do cavalheiro e se encaminhar ao exterior
com o restante dos convidados, Mary lhe respondeu em tom cortante.
Mary virou e conduziu sua cadeira para o exterior. Mas seus planos para que
Davenport a deixasse em paz não obtiveram o êxito esperado, já que o homem
continuou ao seu lado.
— Gosta, milady?
Mary devolveu um cândido sorriso ao conde e tocou levemente seu braço. Ele parecia
muito satisfeito com o gesto. Ela olhou de novo para as sombras do terraço.
Absurdamente decepcionada, comprovou que já não havia ninguém.
Diego já se afastava a grandes passos pelo amplo caminho de cascalho. Saiu para
Picadilly onde as pessoas contemplavam alvoroçadas os fogos artificiais que
iluminavam a noite de Londres. Diego avançou abrindo caminho a cotoveladas,
enquanto cada estalido no céu rachava sua mente.
Certamente, Mary ainda estaria no terraço junto ao lorde Davenport. Aquele homem
se aproximara dela e não se desgrudara durante toda a noite. Não conseguira indagar
muito acerca dele; alguns cavalheiros pareciam relutantes a lhe dar informações. Mas
Diego tinha averiguado o necessário: Terrell Davenport era um conde com uma
família de arraigada linhagem fazia gerações. E ele mesmo, bem, ele nem mesmo sabia
quem era seu pai; inclusive duvidava se mesmo sua mãe o soubesse exatamente.
Diego sorriu com ironia ao recordar sua mãe. Supunha que aquele fosse um problema
comum entre as prostitutas do porto. Tudo o que lhe ficara dela era seu nome.
— Diga as monjas que se chama Diego. — sussurrou aquela mulher, soluçando e
beijando-o na fronte enquanto o abandonava. — Eu voltarei em menos de uma
semana.
Ele a aguardara sentado nas escadarias de pedra do convento durante dias, mas sua
mãe nunca voltou.
Sabia que a ardente tenaz que o estava rasgando por dentro tinha um nome: ciúmes.
Mas também sabia que os ciúmes, — fora de complexos e inseguranças, dos quais
estava disfarçadamente bem servido — consistiam no receio de perder algo que
alguém tinha; e, por mais que lhe pesasse, Mary não era sua e não seria jamais.
Sei que se acontecesse, não poderia ser com nenhum outro. As palavras dela lhe
alimentaram a alma a cada noite, permitindo-lhe sonhar. Merda de sonhos, pensou
desgostoso. Uma aguilhoada de fúria o incitou a ir mais depressa até que seu passo
acelerado se converteu em uma corrida a toda velocidade. Sua capa ondulava ao vento
enquanto atravessava Trafalgar Square como se o perseguissem todos os demônios do
inferno. Seguiu a avenida Strand e virou na segunda esquina. Conhecia um local em
Craven Street no qual todas as noites se organizavam lutas. Aquilo era exatamente o
que ele necessitava naquele momento: pegar, golpear, partir vários ossos ou, então,
que alguém lhe fizesse o favor de quebrar sua cara e deixá-lo sem sentido.
Quinze minutos mais tarde, Diego se livrava do fraque de seu traje de gala e do colete
e gravata. Arregaçava a camisa e soltava o primeiro soco.
Mary releu a nota do primeiro ramo de rosas vermelhas que chegara antes do
amanhecer. Tendo em conta que não deixara de chegar flores durante toda a manhã,
aquelas letras de lorde Davenport adquiriam a cada hora um maior significado. Ainda
que o conde e ela tivessem mantido uma conversa bastante divertida, Mary meditou,
um pouco confusa, se aquele homem estava disposto a cortejá-la a sério, apesar de que
na noite anterior ela se desfizera de sua companhia quando comprovara que o senhor
Lezcano já não estava na festa.
— Mas são muito bonitas. — Sara disse, enquanto acariciava uma delas. Mary franziu
Sara assentiu e sorriu amplamente ao recordar quando Mary quase ficou presa em um
roseiral ao tentar resgatar seu chapéu favorito, que se enganchara no mato após ter
sido arrastado pelo vento. Ela, tão intrépida como sempre e decidida a recuperá-lo,
subira pelos espinhos até ficar presa. Menos mal que o senhor Lezcano estivesse perto
e corresse em sua ajuda antes que os espinhos a ferissem.
— Sabe, Mary? Prometi ao seu irmão que não lhe contaria, mas acredito que deve
saber que lorde Davenport pediu permissão para cortejá-la.
— Creio que não vou poder. — disse antes que o pranto que lutava por sair de sua
garganta lhe quebrasse a voz.
Mary negou impetuosamente com a cabeça. Decidiu que, se não abrisse seu coração e
liberasse aquela angústia que pesava como um milhão de pedras, morreria naquele
momento.
Sua amiga observou seu rosto com atenção, e, quando Mary acreditou que ia lhe
perguntar o nome, Sara a surpreendeu.
— Não deveria, porque sou muito desgraçada. E porque se alegrar por ele? Agora era
—Porque ele também a ama, tenho certeza disso. Percebo como a olha quando
acredita que ninguém vê.
— Você me conhece, Sara, e sabe que posso ser qualquer coisa menos sutil.
Mary notou a careta de assentimento de sua amiga, mas não se sentiu ofendida. Mais
que nunca necessitava se livrar daquela sensação de angustia que oprimia seu peito e
sabia que ela a compreenderia. Então decidiu que aquele seria um momento tão bom
quanto qualquer outro para revelar a Sara todos seus segredos.
Naquela manhã, Diego percorreu a toda velocidade a distância que separava seu hotel
de Luton Hall. O conde e ele deveriam ver alguns terrenos no este da cidade. Estavam
demorando muito em adquirir uma propriedade para a construção do lar, então
deveriam agilizar o quanto antes aquele complicado negócio.
Naquela mesma manhã, e devido aos golpes recebidos na noite anterior, Diego se
levantara com uma boa dor de cabeça. A primeira coisa que observou ao acordar
foram os olhinhos cor de mel de Eric contemplando-o com muito interesse.
Sentado em sua cama, o garoto não deixava de olhá-lo. Diego se ergueu colocando um
almofadão nas costas, e decidiu passar por alto sua pergunta.
— O que faz aqui, Eric? — resmungou, enquanto enfocava a imagem de sua carinha
sorridente.
Uma dor aguda atravessou sua fronte e imediatamente levou uma mão à cabeça.
— Ganhou a luta? — Eric perguntou ao perceber seus olhos com uma auréola violeta
e o lábio inchado.
Diego o olhou com cara de poucos amigos. Para sua infelicidade, nenhum dos
pugilistas com os quais se enfrentara na noite anterior conseguira derrubá-lo.
Mas suas repreensões já não faziam o mesmo efeito de antes no menino, porque já não
o temia. Aquilo o fazia empregar muito mais tempo e argumentos para conseguir que
Eric obedecesse. Apesar de tudo, Diego se alegrava de que já não o temesse.
Diego se virou para ele e o pegou nos braços para descê-lo da cama.
Diego demorou um pouco em assimilar sua pergunta. Sabia que o menino não havia
esquecido Mary; a considerava sua amiga e, para sua desgraça, gostava de falar dela
diariamente. Aquela mulher conseguira em pouco tempo fazer um buraco no
coraçãozinho de Eric. Diego não podia deixar de se identificar com ele; Mary Luton se
infiltrava com sigilo muito dentro sem que alguém percebesse.
— Devo visitar seu irmão, mas pode ser que nem mesmo a encontre. — Diego
respondeu, decidido a que não o afetasse a inquietação de não saber quando voltaria a
vê-la.
— Não.
— Agora já não trabalho para você, — argumentou, e se voltou para subir na cama —
então já posso me confraternizar com ela.
— Confra... o que?
— Você me disse que não podia confraternizar com a senhorita Mary enquanto a
vigiava. — Eric explicou, saltando outra vez sobre o colchão. — Isso significa que não
podia falar com ela, mas agora que já não trabalho para você poderei visitá-la, não?
Eric gritou de alegria quando Diego o subiu ao ombro como se fosse um fardo.
Os dois entraram rindo na salinha privada onde os esperava um suculento desjejum.
Eric conseguira fazê-lo esquecer sua dor de cabeça por uns momentos. Mas agora que
chegara a Luton Hall, seu mal-estar o assaltou novamente. Chamou à porta da mansão
e aguardou.
— Seja o que for, mãe, — dizia o conde — nada lhe dá o direito de converter minha
casa em uma estufa.
— Oh, Robert, filho, — respondeu Helen Luton desgostosa — não percebe que isto é
o mais importante que acontece na família em anos?
A condessa, que parecia ter abandonado de muito bom gosto a reclusão em sua sala,
passou a frente deles sorrindo ao ramo de flores que estava entre as mãos. Robert a
observou mal humorado e virou tão rápido que quase derrubou um daqueles
floreiros.
Diego fechou a porta e se aproximou até onde estava o conde com um sorriso
perplexo.
— Para mim um simples, por favor. Quer me dizer o que acontecia aí fora?
Robert lhe passou o copo antes de se deixar cair sobre a poltrona de seu escritório.
Diego fez o mesmo em uma das poltronas em frente a grande mesa de carvalho.
— Lorde Davenport decidiu cortejar a minha irmã. As rosas são dele; não pararam de
chegar toda a manhã.
Robert voltou a dar outro gole e pareceu não notar os turbulentos pensamentos que
afetavam seu interlocutor.
— Que eu saiba, ainda não lhe deu uma resposta. — disse fazendo uma careta.
—É por isso que não vejo a necessidade de que converta minha casa em um maldito
jardim.
— Como assim, que você saiba? — Diego grunhiu. — Você é seu irmão, e quem deve
conceder a permissão.
— Não é nada...
Diego se levantou com rapidez da cadeira e colocou o copo sobre a escrivaninha com
tanta força que parte do líquido se derramou na madeira.
— Acalme-se, quer? Só lhe disse que é minha irmã quem deve decidir.
Diego começou a andar de um lado ao outro da sala. Sentia que, se não se mexesse, a
qualquer momento entraria em combustão.
Depois da batida da porta, Robert permaneceu olhando na direção por onde seu
amigo acabava de sair estranhamente irado, e se perguntou a que se deviam todas
aquelas mudanças em alguém tão indiferente como Diego Lezcano. Depois de um
bom tempo pensando no assunto sem chegar a nenhuma conclusão satisfatória,
decidiu ir em busca da única pessoa que sempre conseguia deixá-lo de bom humor.
Levantou-se e foi procurar Sara, esperando que ela conseguisse fazê-lo esquecer
aquela manhã de loucos.
Robert encontrou sua mulher no corredor do primeiro piso, quando saía do quarto de
sua irmã. Estava com seu simples vestido revolvido e os cabelos despenteados de uma
forma encantadora. Até com aquele aspecto era capaz de deixá-lo excitado só a
olhando. Aproximou-se até ela e a pegou pela cintura aprisionando-a contra a parede.
— Bom dia de novo, senhora. — murmurou junto a sua orelha. — Como vão esses
exercícios?
Sara jogou a cabeça para trás para poder olhar em seu rosto, e lhe sorriu com doçura.
— Tudo marcha sem grandes mudanças, mesmo que sua irmã sempre consiga me
esgotar.
Robert retirou um mecha de cabelos negros da fronte e cobriu a generosa boca de Sara
com a sua. Pegou seu queixo com uma mão, enquanto com a outra lhe explorava o
seio, o lado, e lhe apertava o quadril. Sara gemeu de prazer contra sua boca. Tinha que
reconhecer que a portentosa estatura de seu esposo e seus fortes ombros sempre lhe
infundiam aquela maravilhosa sensação entre a dominação e a segurança total.
Colocou-se nas pontas dos pés e se abraçou ao seu pescoço, pensando em qual seria a
estratégia a seguir para contar a Robert tudo o que Mary acabava de lhe confessar.
Bem, penso que pouco a pouco, decidiu, ainda que sem muita segurança. Devido ao
excesso de proteção ao qual Robert sempre submetera sua irmã, Sara sabia que fosse
qual fosse a forma que soubesse, a reação de seu marido seria completamente
exagerada.
Quando percebeu que ele a empurrava para sua sala, Sara escapou de entre seus
braços.
Robert a prendeu de novo sem nenhuma dificuldade. Pegou-a nos braços e avançou a
grandes passos pelo corredor.
— Vou prendê-la pelo resto do dia em nosso quarto. Mas não tema, eu ficarei lhe
fazendo companhia. — sussurrou, enquanto que em sua bonita boca se desenhava um
sorriso provocante.
— Fique quieto. — disse, empurrando seus punhos contra o duro peito dele. —
Agora não posso, Robert, e digo de verdade. Deixe-me no chão, por favor.
— Deus meu, — implorou queixoso olhando ao céu — será que hoje todo o mundo
pensa em me deixar louco?
— Porque diz isso? — Sara perguntou, acariciando com ternura a barbeada face de
seu esposo, enquanto a descia para o chão.
— Minha irmã, minha mãe, meu sócio. — Robert voltou a abraçá-la e a apertá-la
contra ele. — E agora, você. — gemeu antes de lhe dar outro abrasador beijo nos
lábios.
— Sim, tínhamos que inspecionar uns terrenos para o colégio. Mas quando viu as
flores e lhe falei de Davenport ficou como um louco. Antes de sair dando uma portada
me chamou de irresponsável e disse algo como o conde poderia ser um assassino.
— De verdade?
— Ah, mas isso é maravilhoso! — exclamou Sara dando uns saltinhos de alegria
antes de se abraçar de novo ao seu pescoço.
Duas semanas mais tarde, Diego saía muito satisfeito do White's. Mesmo não tomando
parte do clube e pessoalmente preferindo outros estabelecimentos, como Almack's,
descobrira que Davenport passava ali boa parte do dia. Então, não ficava alternativa a
não ser convencer a alguns membros a convidá-lo. O fato de que alguns sócios do
clube lhe devessem muito dinheiro, influíra de maneira determinante em sua boa
disposição para recomendá-lo como seu convidado. Diego sabia que um estrangeiro
com origens duvidosas como as suas não seria em absoluto bem recebido pelo resto
dos membros. Em nenhum momento lhe passavam despercebidos os silêncios que se
estendiam pelas salas quando ele aparecia, ou como os supostos cavalheiros
cochichavam a sua passagem, ou como se desculpavam e se levantavam para não
compartilhar uma mesa com ele.
Mas o certo era que Diego não se importava o mínimo com todos aqueles
comportamentos. Se os membros do White's tivessem ideia de que os interesses do
espanhol deixavam muito longe a vontade de se sentir integrado em sua sociedade,
deixariam de tentar excluí-lo. Diego não se interessava nem em uma maldita coisa de
nenhum deles. Bem, sim, somente de um: tudo acerca de Terrell Davenport lhe
importava. Mesmo que os nobres sempre estivessem mais que dispostos a criticar as
fraquezas de seus semelhantes, teve que reconhecer que conseguir a informação que
Assim, para obter toda a informação que desejava sobre Davenport, unicamente tivera
que regatear uma quantidade e tudo bem. Agora já conhecia o motivo pelo qual o
conde se apressava a cortejar Mary: estava na absoluta ruína e estimava que o
suculento dote que Luton designara a sua irmã o tiraria de mais de um aperto.
Diego caminhou pela rua St. James decidido a indagar todo o possível no problema de
Davenport. Um sorriso malévolo lhe curvou a boca enquanto percorria a grandes
passos a distância que separava o clube de seu hotel. Luton queria argumentos? Pois
ele acabava de encontrar um tão grande como a abadia de Westminster. Estava claro
que o interesse repentino do conde em Mary tinha que se dever a algo de força maior.
E a ruína encaixava perfeitamente dentro daquela categoria.
Rosas, pelo amor de Deus, lhe presenteara rosas, pensava Diego desdenhosamente,
enquanto colocava uma mão no bolso e tirava uma pequena margarida de tecido.
Aquele tipo não a conhece em absoluto. Nem mesmo sabe que Mary não gosta das rosas, que
prefere flores menos pretenciosas como esta margarida. Diego acariciou com os dedos a
pequena flor de tecido que arrancara do chapéu de Mary, no dia em que se enroscara
em um roseiral. Roseiral no qual ela quase caiu tentando resgatá-lo, se ele não tivesse
chegado a tempo de evitar que se ferisse. Diego não percebeu, mas sorria como um
tolo ao recordar que aquela fora a primeira vez que a pegara nos braços. A primeira
vez que a repreendera e, portanto, também a primeira vez em que discutiram. Depois
de garantir que Mary estava a salvo, ele regressou ao arbusto para buscar o chapéu e
devolvê-lo. Mas antes arrancara aquela flor de tecido que, desde então, levava com ele
a todas as partes como uma espécie de amuleto. Sabia que era uma tolice, mas guardar
aquela pequena parte de algo importante para ela, fazia com que a possuísse de algum
modo. Mesmo que tudo o que pudesse ter de Mary fosse algo tão insignificante como
aquela pequena flor de tecido.
Diego chegou ao seu hotel e decidiu que no dia seguinte começaria todas as
indagações pertinentes à situação financeira de lorde Davenport. Se seu problema
fosse o dinheiro, ninguém melhor que ele para descobrir até o último detalhe. Diego
conhecia bem as portas que deveria tocar para se informar do estado das contas do
conde.
Mary observou que haviam chegado ao tanque e decidiu que aquele seria um lugar
tão bom como qualquer outro para falar com ele. O sol de junho se refletia na
superfície e arrancava fulgurantes e ofuscantes faíscas da água do reservatório. Mary
freou sua cadeira e pegou uma bolsinha com migalhas de pão para lançar aos patos.
Lorde Davenport se acomodou ao seu lado em um dos bancos de pedra em frente ao
tanque. Mary virou a cabeça e viu que sua donzela continuava seguindo-os a alguns
metros. Daisy fingia estar mais interessada em uma parte da vegetação dos jardins
para lhes permitir certa intimidade, mas sabia que, no fundo, a donzela estava muito
atenta para salvaguardar a reputação de sua senhora.
Mary começou a jogar as migalhas aos patos, que logo chegaram junto a ela.
— Lorde Davenport… — iniciou a conversa, ainda que o tom saísse meio indeciso.
Tinha de reconhecer que estava um pouco nervosa; nunca tivera que recusar ninguém.
Não era uma situação das mais habituais para uma mulher como ela.
— Sim?
Pela reação dela, lorde Davenport acreditou que estava a ponto de se jogar em seus
braços e aceitar sua proposta. Ele sempre sabia calcular a dose certa de drama e
romantismo para deixá-las boquiabertas. Porém, a reação de lady Luton não foi
exatamente a que ele esperava. Sua expressão perplexa logo deu passo a outra de
irritação. Franziu seus bonitos lábios e começou a negar com a cabeça. Então todo o
corpo de lorde Davenport ficou em alerta.
— Milorde, como é possível que...? — Mary apenas era capaz de balbuciar uma
resposta coerente. — Eu não posso me casar com você.
Ele parecia ter captado o significado de suas palavras e seu alarme logo se converteu
em fúria contida.
— Você está me rejeitando? — resmungou, erguendo-se de repente. Mary teve que
— Desculpe, milorde, mas nunca tive intenção de que nossa relação fosse mais que a
amizade que creio que nos une.
Mary abaixou a vista e descobriu que realmente esperara muito para falar com o
conde. Ainda que tinha a impressão de que lorde Davenport estava mais preocupado
pelo tempo e pelo dinheiro que havia consagrado a ela, que por conhecer o motivo de
sua negativa. Graças ao céu, Mary fora previdente, como sempre. De modo que fez um
gesto a sua donzela que se aproximou com uma caixa entre as mãos. Mary a recebeu e
lhe agradeceu. Daisy voltou a se afastar, mas não sem antes lançar um olhar de
advertência ao conde, já que era evidente que estava nervoso e desgostoso com sua
senhora.
— Aqui estão todos os seus presentes, menos as rosas, que tivemos de jogar. — disse,
e lhe estendeu a caixa. — Lorde Davenport, acredite-me quando lhe digo que sinto
muito deixá-lo confuso e não gostaria de perder sua amizade.
— Sim, milorde.
Então, para surpresa de Mary, ele abriu a caixa e conferiu seu conteúdo.
Visivelmente certo, a fechou de novo e colocou sob o braço.
A voz de Daisy a trouxe de volta à realidade. Mary assentiu com um sorriso um pouco
forçado.
Naquela ensolarada manhã, Mary decidiu que não ficaria em sua sala praticando
exercício. Depois de falar com Sara para lhe comunicar a troca de planos, saiu ao
jardim para desenhar por algum tempo. O ar livre a ajudaria a ordenar um pouco seus
pensamentos. Desde que recusara lorde Davenport dias atrás, não tinha deixado de
pensar se fizera o certo. Mesmo que o deplorável comportamento dele indicava que
fizera bem, também sabia que ao recusá-lo, talvez tivesse perdido a única
oportunidade de formar sua própria família. Bem, supondo que é o que corresponde,
pensou. Mas com um enérgico movimento de cabeça tentou afastar aqueles
sentimentos de autocompaixão. Então, a sua mente a lembrou novamente do
verdadeiro motivo de ter recusado o conde: Diego Lezcano. Como imaginava, tudo o
que havia acontecido entre eles terminara por afastá-lo por completo. Não o via desde
o dia do baile em Devonshire House: fazia exatamente um mês e oito dias.
Sua cunhada estava certa que Lezcano sentia algo por ela; inclusive ela mesma
acreditara em alguns momentos. Mas era um homem tão fechado e difícil que,
possivelmente jamais a deixaria se aproximar dele, e Mary não iria forçá-lo mais, ela
também tinha seu orgulho.
Naquela manhã, Diego saiu de seu hotel com um único propósito em mente: por freio
a aquele sanguessuga com título nobiliário e afastá-lo para sempre de Mary Luton.
Assim, para não demorar o mínimo decidiu que, apesar de ser uma bonita e
ensolarada manhã de julho, alugaria uma carruagem para que o levasse rapidamente a
Luton Hall.
— Sim, senhor, mas agora está reunido com lady Luton. Se desejar, pode esperá-lo na
biblioteca.
Diego assentiu com a cabeça. Estava mais que disposto a evitar a aquela lady Luton
com todos os meios humanos possíveis.
Diego atravessou o amplo vestíbulo de Luton Hall. As vidraças que davam vista para
o jardim da mansão estavam abertas e por elas entrava uma agradável brisa. Ao passar
em frente a elas, a pequena figura de Mary sentada em sua cadeira de rodas à sombra
de uma árvore atraiu sua atenção. Observou que estava com seu chapéu de palha com
margaridas, aquele chapéu ao qual Diego sabia que faltava uma flor. Tinha uma
espécie de caderno sobre seu colo e se inclinava sobre ele com o cenho franzido e
mordendo levemente o lábio inferior, com a expressão de concentração mais linda que
Diego já vira. Decidido a se retirar em seguida, virou para se dirigir à biblioteca.
Mas não foi capaz de dar um só passo que o afastasse dali. Estava há tanto tempo sem
vê-la e sem ouvir sua voz que sentia sua falta. Ah, Diego, é para matá-lo. Passou uma
mão pelo rosto e, soltando um suspiro exasperado, olhou de novo para o jardim. Bem,
pensou, revelar a Robert tudo o que descobrira de Davenport servirá para que anule qualquer
relação entre aquele sem vergonha e Mary. Mas, conhecer a opinião dela acerca de
Davenport também podia ser de utilidade. Assim, tentando se convencer que
Mary já estava há um bom tempo apagando mais que desenhando. Sabia que quando
chegava a aquele ponto era o momento de parar. Mas devia entregar aqueles desenhos
a Olivia antes de finalizar a semana, ou não poderiam cumprir com o pedido. Então,
suspirando, tentou averiguar o que faltava às mangas daquele vestido de passeio que
não a convencia.
Não tenho a mais remota ideia, Diego esteve a ponto de admitir. Ainda que depois de um
instante de hesitação, se decidiu pela resposta óbvia.
Mary fez um exagerado movimento de cabeça para assentir. Deus, por que estava tão
nervosa?
— Ah!
Mary voltou a assentir. Sabia que sua mãe estava falando com Robert sobre o
compromisso. Desde que soubera que Davenport pretendia se casar com ela, parecia
ter enlouquecido. Perseguia-a todo o dia tentando averiguar em que ponto estava sua
relação. Apesar do casamento de seus pais não ter sido feliz, sua mãe não deixava de
enumerar todas as vantagens de uma possível união com um conde. Mary pensou
com sarcasmo que preferia, quando a vida de seus filhos a deixava tão doente, que não
saía da cama durante todo o dia.
Mary observou o desenho e tentou lhe responder sem que sua proximidade a afetasse,
mas a cabeça do senhor Lezcano, tão próxima da sua, fazia de seu propósito uma
tarefa quase impossível.
— São estas infelizes mangas, — disse lhe lançando um rápido olhar de lado — não
sei o que lhes acontece.
Diego não tinha ideia de moda, mas tudo o que via lhe agradava: e não só o que se
referia ao desenho. Estava tão perto dela que a aba de seu chapéu lhe tocava
levemente o queixo. Cheirava a flores, como sempre. Seu pequeno narizinho
arrebitado se torcia em um gesto de leve desgosto, que para Diego só fazia cativá-lo
inteiro. De cima, o generoso decote de seu vestido de verão oferecia uma espetacular
panorâmica da parte superior de seus seios.
— Pois eu creio que estão bem. — assinalou e engoliu com dificuldade ao notar que
começava a se excitar.
Mary virou a cabeça e o surpreendeu observando-a. Seus olhos negros vagavam por
seu rosto, e ela percebeu uma centelha de alarme quando se pousaram em sua boca.
E, como sempre que estava a ponto de acontecer algo, ele fez o que costumava fazer:
fugiu. Ergueu-se rapidamente e foi até o outro lado da mesa do jardim. Isso, pensou
Mary com ironia, coloque todos os móveis que encontrar entre nós. Talvez devêssemos ir ao
outro lado da cerca, há umas magníficas estátuas de granito. Certamente ali estaria
completamente a salvo de mim.
Mary abaixou a cabeça aborrecida e tentou respirar profundamente várias vezes para
controlar seu desgosto, e não dizer nenhuma impertinência. Aquele homem conseguia
tirá-la do sério. Com ele tudo era um passo adiante e três atrás. Quando Mary percebia
uma pequena brecha em sua couraça e tentava se aproximar, ele voltava a afastá-la
com tudo o que tivesse ao seu alcance.
Mary limpou a garganta, decidida a corrigir seu equívoco, mas quando o observou
detidamente algo nele chamou sua atenção. Mesmo que aparentemente mantivesse o
mesmo olhar e postura indiferente de sempre, sua expressão era muito mais rígida
que de costume. Comprovou também que os nós dos seus dedos estavam brancos pela
força com que segurava seu chapéu na altura da cintura. Mary subiu seu olhar de
exploração e descobriu que seu peito arfava depressa com longas e profundas
respirações. Então percebeu que Diego Lezcano não estava absolutamente tão
tranquilo quanto se esforçava para demonstrar. A intuição de Mary a aconselhou que
talvez devesse esperar um pouco e não tirar rapidamente o senhor Lezcano de seu
erro; talvez, depois de tudo, lorde Davenport terminasse sendo de grande ajuda.
— Creio que suas notícias estão um pouco velhas, senhor Lezcano; lorde Davenport
pediu minha mão esta semana.
Sua explosão de fúria era justo o que Mary esperava. Completamente feliz, o observou
depositar bruscamente seu chapéu na mesa e começar a andar zangado, de um lado ao
outro.
— O que ouviu: lorde Davenport me pediu para me casar com ele. — repetiu
tranquilamente.
— Pediu a você? — ele perguntou, ainda que mais para si mesmo do que para obter
uma resposta. — E seu irmão consentiu?
Diego não percebeu, mas prendeu a respiração na espera da resposta dela. Mary o
observou com a cabeça inclinada e não disse nada; parecia estar pensando em alguma
coisa.
Ao ouvir todos aqueles elogios, Diego atravessou raivosamente o jardim até ela.
Agarrou os apoios de sua cadeira e se inclinou até que seus rostos ficassem a poucos
centímetros.
O pulso de Mary começou um galope tão forte que acreditou não suportar. Finalmente
aconteceria, por fim iria acontecer. Ele abriria seu coração e ela corresponderia com
toda sua alma. Não podia acreditar que tivesse sido tão fácil. Observou com ternura o
aborrecimento de Diego. Justamente quando estava a ponto de lhe revelar que
recusara lorde Davenport porque o amava, Lezcano, como sempre, estragou tudo.
— Você só se engana em uma coisa, milady. Lorde Davenport não tem dinheiro; na
verdade, está totalmente arruinado. — Diego correspondeu ao gesto de surpresa dela,
erguendo sarcasticamente as sobrancelhas. — Por isso quer se casar com você. Está
mais interessado no dote que seu irmão está disposto a pagar. Acredite-me, pelo que
me contaram daquele sem vergonha, não empregaria o dinheiro com os orfãozinhos.
— Claro, como não percebi antes? Uma mulher como eu não pode pensar que um
homem deseja se casar com ela por amor. Em seguida deveria suspeitar que o que
lorde Davenport procurava era o dinheiro de meu irmão. Menos mal que você o
descobriu, senhor Lezcano. Nunca lhe agradecerei o suficiente por ter me livrado de
minhas estúpidas ilusões. — ela concluiu, com toda a mordacidade que conseguiu
reunir. Mesmo que ele nem chegasse a ter ideia de como se sentia terrivelmente
estúpida.
Mary levantou a cabeça e o olhou diretamente. Quando Diego viu as lágrimas que
inundavam seus olhos e que começavam a resvalar por suas faces, se sentiu o homem
mais miserável do mundo. Em um ato reflexo pegou seu rosto entre as mãos e com os
polegares começou a secar as cálidas lágrimas.
— Não chore por aquele imbecil, Mary. Porque tem que ser um completo imbecil
para não se apaixonar por você.
Robert levantou a cabeça dos papeis que abarrotavam sua escrivaninha e observou seu
sócio entrando no escritório, pelo visto, não de muito bom humor.
Diego atravessou a sala a grandes passos disposto a apagar o estúpido sorriso daquele
irresponsável.
Robert suspirou, passara toda a manhã falando do mesmo assunto. Depois de saber
que Mary recusara Davenport, sua mãe estava desde o amanhecer cantando- lhe
elogios ao conde e tentando fazê-lo ver a necessidade de convencer Mary para
reconsiderar a sua decisão. Algo no qual ele não tinha a mais remota intenção de
colaborar. Mary dera uma resposta e, para ele, o assunto Davenport estava resolvido
definitivamente. Por isso, não entendia a que vinha agora aquele sermão de Diego.
— Tem mais dívidas que um país, suas casas estão a ponto de serem embargadas e
deve dinheiro a gente nada recomendável, pode me acreditar.
— Porque não importa? — Diego grunhiu, atônito. — Pelo amor de Deus, Luton, está
mal da cabeça? Sabia tudo isto e consentiu em celebrar o casamento.
— E?
— Apesar de conhecer seus problemas de dinheiro, pensei que talvez fosse minha
irmã quem decidisse. Você não sabia que quanto mais lhe proíbem de fazer algo, mais
o deseja?
— Além do que, — Robert continuou — Mary sempre desejou formar sua própria
família.
Diego sentiu seu sangue gelar nas veias ao escutar aquelas palavras.
— Está falando em ter filhos? Mas não pode. Como pode pensar...? — murmurou,
com a expressão absolutamente desfeita. — E se não suportar uma gravidez, e se...?
Ao perceber o mal estar de seu amigo, Robert se levantou de sua poltrona, rodeou a
escrivaninha e, cruzando os braços, se apoiou levemente na mesa enquanto observava
sua cabeça abaixada.
— Mas não entendo porque temos que discutir isto agora. — declarou.
Apesar do conde ser forte e medir quase dez centímetros mais que ele, Diego não fez
nenhum esforço para levantá-lo do chão e derrubá-lo sobre a grande mesa de madeira.
Surpreso, Robert agarrou seus braços para afastá-lo, mas lhe foi impossível movê-lo.
Seu sócio estava completamente fora de si. Então, para afastá-lo de cima, Robert deu
um soco que alcançou a mandíbula de Diego e o fez cambalear para trás.
— Não, não o entendo. — grunhiu o conde pelo esforço. — Porque minha irmã
recusou o compromisso. — concluiu, erguendo-se e arrumando a roupa.
— O que?
Diego negou lentamente com a cabeça. Não, não sabia. Como poderia saber depois do
que ela acabava de lhe dizer no jardim? Pelo amor de Deus, se ele mesmo tivera que
consolá-la quando soubera do verdadeiro interesse de seu prometido. Mas se não era
seu prometido, então, porque chorava? Ia quebrar sua cabeça.
— Contei-lhe depois que o recusou. Não queria que aquilo influísse em sua decisão.
Também não seria o primeiro casamento por conveniência da história, não lhe parece?
Diego afastou as mãos do rosto e o observou confuso. Mary já sabia quando ele o
revelara no jardim. Mas, então, porque demônios chorava e por que demônios tivera
que consolá-la?
— E eu creio que deverias dizê-lo a minha irmã. Diego voltou a olhar para Robert.
— Dizer-lhe o que?
Com a mão na boca e com gesto pensativo, Robert contemplava fascinado ao seu
amigo, perguntando-se porque não percebera antes.
— Olhe, se tudo isto não se deve a um ataque repentino de ciúmes, — expôs com
tranquilidade — deve estar pronto para o manicômio.
— Meu querido amigo, — disse com afeto — eu só sei que me sentiria muito honrado
de entregar a minha irmã a um homem como você.
Robert comprovou como Diego levantava a cabeça em seguida e escrutinava seu rosto
com atenção para, a seguir, suspirar exasperado. Parecia como se, em seu íntimo,
houvesse uma batalha entre alguns de seus demônios. Então, sua expressão ficou dura
como o granito e o afastou com um empurrão.
— Você não sabe nada, Luton! — gritou furioso antes de dar uma sonora portada ao
sair.
Sara, que se aproximava pelo corredor, viu o senhor Lezcano sair muito zangado do
escritório de seu marido. Decidiu descobrir o que havia acontecido, chamou à porta de
Robert e abriu sem esperar resposta. Enfiou a cabeça e viu que seu esposo se
encontrava em frente à janela olhando ao exterior.
Ao ouvir a voz de sua esposa, Robert se virou e atravessou a sala até ela.
Robert a apertou pela cintura e lhe deu um leve beijo nos lábios.
— Como diz? — Sara perguntou, com um sorriso incrédulo. — Por quem está
apaixonado o senhor Lezcano?
— Por Mary.
— O que?
— Fala sério?
— Agora? — protestou.
Sara o olhou determinada. Não encontraria melhor momento que aquele para contar a
Robert tudo o que deveria saber acerca de sua irmã.
— Agora mesmo.
Naquela manhã não conseguia avançar, e a visita de Diego Lezcano tivera bastante a
ver com sua ofuscação. Depois de deixá-lo no jardim em plena confusão, mais
decidida que nunca a se esquecer dele, Mary tentara terminar os desenhos em seu
quarto, mas depois de quase uma hora tentando se concentrar, decidiu que seria
impossível. A imagem de Diego a contemplando confuso enquanto ela saia do jardim
voltou a se fixar em sua mente.
Aborrecida, Mary refletiu como poderia esquecer sua paixão por ele, quando não
deixava de pensar nele nem por um instante. Então decidiu que para deixar de amá-lo
o melhor seria racionalizar as coisas: pelo que Eric lhe contara durante suas últimas
visitas, aquelas que, por certo, deviam ser mantidas em segredo, sabia que Diego
levara dez meninos sem lar para viver em seu hotel. Aquilo não era próprio de um
homem malvado ou egoísta. Então, Mary decidiu descartar a perversidade como
possível fator de sua rejeição.
O melhor é que não a quer, já lhe ocorreu pensar isso? Disse a si mesma. Mas, então, porque
me observa intensamente quando acredita que não estou vendo, ou porque sempre que me olha
parece querer me beijar, ainda que logo se reprima? Maldição. Maldito seja, Diego Lezcano,
pensou intensamente frustrada.
Mary observou com verdadeiro deleite como tirava o chapéu e passava a mão por
aqueles cachos negros que ela tanto desejava acariciar. Comprovou que seus largos
ombros estavam mais baixos que o normal, como se acabasse de receber uma má
notícia. Ainda que aquele detalhe não diminuísse nem um ápice a extraordinária e
dominante energia que emanava dele. Contemplou arrebatada como seu casaco
marcava os poderosos músculos de suas costas até se perder na sua cintura estreita.
Ele continuou andando até a carruagem onde um lacaio o esperava com a portinhola
aberta.
Então, como se tivesse sido invocado, Diego Lezcano virou a cabeça e a atravessou
com seus olhos, e o tempo parou para Mary.
Reeds já se divertira bastante às suas custas. Nem todos os dias um nobre era rejeitado
por uma aleijada. Aquilo era algo tão pouco provável que até mesmo ele achava certa
graça.
Ainda que a ideia de se casar com uma mulher doente nunca tinha convencido muito
a Davenport, depois de conhecer lady Luton, para sua surpresa, chegara a pensar
rapidamente na ideia. Estava claro que seu dote a distinguia como o melhor partido
do país, mas além disso, era bonita. Na verdade, era uma preciosidade a que somente
sua cadeira de rodas tirava o atrativo. Tinha um agudo senso de humor e um
magnífico domínio da ironia, o que o fazia sorrir quase todo o tempo que estava ao
seu lado. Sim, pensou Davenport dando outra tragada, seria bastante fácil me imaginar
casado com ela. Era uma pena que a dama em questão, não tivera o bom gosto de aceitá-
lo.
Um de seus criados entrou e anunciou que uma dama desejava falar com lorde
Davenport. A seguir, os dois homens ficaram duros como pedra quando o servente
anunciou a condessa viúva de Rohard. Reeds observou seu relógio e comprovou que
eram quase dez da noite. Olhou confuso para Davenport, que lhe devolveu o mesmo
gesto de surpresa.
Como anfitrião, Reeds se dirigiu a ela e a saudou inclinando-se para beijar sua
mão.
— Você nunca importunaria, milady. Deseja um refresco?
— Você é muito amável, milorde, mas não desejo nada, obrigada. — respondeu com
um sorriso antes de se inclinar e observar o conde. — Mas gostaria de poder falar uns
minutos a sós com seu convidado.
Terrell contemplou a condessa viúva e teve que reconhecer que, apesar de ser uma
mulher idosa, ainda podia ser considerada uma beleza. Compreendeu então de quem
Mary herdara aqueles traços tão bonitos.
— O que deseja, senhora? — perguntou insolente: um sermão seria o que menos lhe
interessava naquele momento.
— Quero saber o que você pensa fazer para conquistar a minha filha.
— Creio que se encontra um pouco desinformada, milady. Cortejei a sua filha, e ela,
além de me fazer perder um tempo precioso, me rejeitou.
Enquanto tinha durado seu cortejo a lady Luton, os rumores sobre sua ruína se
estenderam por todos os círculos sociais de Londres. De modo que as oportunidades
de conseguir um bom dote tinham se reduzido bastante. Na verdade, agora deveria se
conformar com qualquer candidata de categoria inferior.
— Meu querido lorde Davenport, eu acreditava que os jovens de agora fossem mais
impulsivos. Além de pensar que não se dessem por vencidos tão rápido.
— Sua filha foi muito clara e, porque não dizer, bastante soberba ao me responder,
senhora.
Mesmo Helen Luton tentava aparentar calma, mas os nervos em seu interior vibravam
como as cordas de uma guitarra. Mas a lembrança do inadequado matrimonio de
Robert lhe deu forças. Ela, que se sacrificara para conseguir uma boa posição para sua
família, só conseguira que seu filho, um herdeiro que poderia tomar por esposa a
qualquer princesa, escolhesse uma mulher vulgar sem posição nem título. Quando já
acreditava que tudo estivesse perdido, um conde se fixara em sua filha. Um conde
arruinado, sim, mas um conde, afinal. E ao que mais poderia aspirar sua pobre Mary?
Helen sabia que o que estava a ponto de propor a lorde Davenport não seria a melhor
forma de começar um casamento, nem a opção mais vantajosa para a reputação de
Mary, mas também sabia que os escândalos ficavam esquecidos logo; sobretudo, os de
uma condessa do reino.
Apesar de não se encontrar muito bem naquela manhã, Sara decidira que iria às
oficinas que a companhia de seu esposo tinha em Bow Street. Desejava poder falar a
sós com o senhor Lezcano e tentar descobrir porque não se decidia a se declarar a
Mary.
Sara, não se intrometa, lhe dissera Robert depois de lhe contar a discussão que tivera
com seu sócio. Sara sorriu ao recordar as palavras de seu marido, que, por certo, a
surpreendera bastante ao não conceder grande importância ao fato de que sua irmã
desempenhasse uma profissão. Isso a distrairá, disse muito tranquilo depois que ela lhe
revelara a sociedade que Mary tinha com sua modista. Claro que Sara decidira omitir
alguns pequenos detalhes, como o de que uma de suas principais clientes era a
prostituta mais famosa da cidade.
Sara decidira se envolver no projeto do colégio que o senhor Lezcano e seu marido
haviam começado. Naquela manhã tinha uma reunião com eles às dez. Mas chegara
muito mais cedo para manter uma pequena conversa a sós com Diego.
Justo no momento em que a carruagem parou, Sara pensou em Mary. Sempre gostara
do senhor Lezcano e, assim, lhe desejava o melhor. Mas amava Mary como uma irmã e
faria o que fosse para vê-la feliz. Por isso, mais decidida que nunca a colocar o
espanhol entre a cruz e a espada, aceitou a mão do lacaio e desceu da carruagem.
Bow Street era um autêntico caldeirão de gente: as damas entravam e saíam das
exclusivas lojas, e os cavalheiros caminhavam depressa muito distraídos em
importantes conversas de negócios. Agoniada com toda aquela atividade, Sara levou
uma mão a cintura e olhou ao céu por cima da aba do chapéu. A luz do sol perturbou
seus olhos e um profundo mal-estar revolveu seu estômago.
— Sim, obrigada. Devo ter enjoado um pouco com o balanço da carruagem, isso é
tudo.
Diego agradeceu ao céu por chegar a tempo de impedir que a esposa de seu amigo
rolasse escadas abaixo. Ao vê-la chegar cambaleante e completamente pálida,
percebeu que algo não estava bem e fora em seguida para ela. Quando ela desmaiou,
Diego já estava ao seu lado. Pegou-a nos braços e a levou ao interior de seu escritório.
— Wilson, que alguém avise ao conde na fábrica de parafusos, e peça que venha o
médico. Rápido! — gritou ao seu secretário, que contemplava a cena oprimido.
Diego a deitou com cuidado no sofá de seu escritório. Desatou o laço do seu chapéu e
o tirou, assim como as luvas. Se não fosse completamente indecoroso, também lhe
teria tirado o vestido e afrouxado aquelas prendas íntimas que as mulheres
costumavam usar, mesmo em dias quentes. Enquanto a observava impotente, pensou
que não era de estranhar que andando tão condenadamente comprimidas ficassem
sem ar e sofressem desmaios como aquele.
Foi até o pequeno banheiro que instalara em seu escritório para quando ficava
trabalhando à noite, molhou uma toalha com água fria e retornou. Após se sentar ao
seu lado, molhou sua nuca como via fazer em Cuba quando os escravos sofriam
golpes de calor.
— Verdade?
Sara tentou se erguer, mas tudo girou novamente. Assim, depois de uma careta de
dor, voltou a se recostar.
— Não tente se mover, milady. O conde estará aqui em seguida e também o médico.
— Sabe o que, senhor Lezcano? — disse enquanto sorria a aquele homem excepcional
— Você deveria deixar de me chamar de condessa. Porque cada vez que o faz, creio
que minha sogra vai aparecer de algum lugar.
— E já sei que marcamos às dez. — continuou ela — Mas é que antes queria falar com
você.
— E para que quer falar comigo? — perguntou. Sara lhe pegou a mão e o observou
intensamente.
— Veja, senhor Lezcano, não faz muito que nos conhecemos, mas o afeto que meu
marido e minha cunhada lhe têm, — Sara fez uma pequena pausa e observou satisfeita
como a referência a Mary provocava uma sacudida em seu interlocutor — me fazem
confiar plenamente em você.
— Então, posso perguntar-lhe uma coisa e esperar que você me responda com total
sinceridade?
Diego assentiu e se mexeu impaciente, pois não entendia a que vinha tanta reverência
por parte da condessa. O desconforto de Diego cresceu quando ela o olhou com
intensidade, como se soubesse algo dele que nem mesmo ele chegava a suspeitar.
Isto já começa a parecer contagioso! Diego pensou, desesperado com a mania persecutória
daqueles dois. Os condes de Rohard formavam um casal encantador que se casaram
por amor e pareciam ter contraído uma terrível necessidade de unir todos os que se
encontravam ao seu alcance. Mas como conseguir desanimá-los em seu propósito de
aproximar a irmã do conde, sem lhes contar que ele nunca poderia ter o mesmo que
eles, que as mentiras de seu passado o impediam de tomar o que mais desejava no
mundo: Mary Luton? E que cada vez ficava mais complicado manter seus princípios
sobre aquele aspecto; em especial, depois que Robert praticamente lhe dera sua benção
e o acesso a ela. Claro que, o que pensaria o conde se soubesse que ele nem mesmo era
o que dizia ser? O que opinaria Luton de entregar sua irmã a um usurpador?
— Eu não posso me apaixonar, milady. — foi sua resposta sucinta. Sara se ergueu de
— É casado?
— Não, — Diego respondeu, sem poder evitar uma risada gutural diante da
ocorrência da dama. — e fique quieta ou voltará a se marear.
— Estaria encantada em escutar quais são os motivos que não lhe permitem se
apaixonar, senhor Lezcano.
Atónito, Diego emudeceu, enquanto sua cabeça funcionava a toda velocidade. Como
sabia? Acaso ela havia dito? E, se fosse assim, o que dissera exatamente: confio no
senhor Lezcano e, se tivesse que perder minha virgindade, o faria com alguém como ele, ou: amo
o senhor Lezcano? Teria utilizado o verbo amar? Diego acreditou ficar completamente
louco com todas as perguntas se amontoando em sua mente. Apesar de tudo, o que ela
sentisse por ele não deveria lhe importar.
De modo que, diante do perspicaz olhar da condessa, Diego fez o que lhe pareceu
mais seguro naquele momento. Levantou-se do sofá no instante e saiu ao corredor,
gritando aos seus empregados.
Robert ficou lívido e saiu correndo. Chegou às oficinas a uma velocidade inacreditável
para um homem a pé e subiu os degraus de três em três até o escritório de seu sócio.
Todo o caminho para Bow Street fora um maldito pesadelo, até que pode comprovar
por si mesmo que Sara não sofrera nenhum dano.
Diego, que permanecia apoiado contra a parede do corredor com os braços cruzados
sobre o peito, observou desgostoso o nervosismo de seu amigo.
— Quanto tempo mais necessita esse charlatão? Pelo amor de Deus, se já leva aí
dentro mais de meia hora. — Robert grunhiu, olhando para Diego. Ainda sem deixar
de andar, porque sentia que, se parasse, explodiria.
— A condessa está perfeita, milorde. Só que a partir de agora deve tentar reduzir um
pouco o ritmo de suas atividades devido ao seu estado.
Robert olhou para Diego com um sorriso radiante, apertou a mão do doutor e, sem
maior demora, entrou no escritório para se reunir com sua mulher. Diego percebeu
que também sorria quando olhou na direção pela qual o conde havia desaparecido.
Após uma leve tossida do velho doutor Bradford, Diego voltou à realidade e se
encarregou da situação. Pagou e despediu o médico com uma profunda alegria
bailando em seu peito.
Depois da insistência dos condes, Diego os acompanhara a Luton Hall para dar a
fabulosa notícia à família. Robert chamou sua mãe e irmã, e todos se reuniram na
biblioteca.
Diferente de sua mãe, Mary permaneceu calada olhando de cima a baixo para seu
irmão e sua cunhada. Levou as mãos às rodas de sua cadeira e atravessou a sala até
eles.
— Sara... — começou a dizer, e não conseguiu continuar, porque sua voz se quebrou.
— Estou tão feliz, — Mary soluçou — estou imensamente feliz por vocês.
Olhou para seu irmão por cima do ombro de Sara. Então, através da cortina embaçada
por suas lágrimas de alegria, Mary percebeu a escura silhueta que se moveu por trás
de Robert. Um espasmo a atravessou ao reconhecer o convidado excepcional: junto à
janela, o senhor Lezcano presenciava a cena com uma estranha intensidade brilhando
em seus olhos.
Naquela mesma tarde, Mary descansava na chaise longue de sua salinha privada antes
da chegada de seu pequeno amigo Eric, com quem estivera dias atrás. O menino vinha
visitá-la mais ou menos uma vez por semana, e ela tentava animá-lo para que durante
aquelas visitas reativassem suas lições e praticassem a leitura. Sabia que vivia no hotel
do senhor Lezcano com outros meninos. Mary notava como seus olhos se iluminavam
quando falava dele; notava a grande admiração e afeto que lhe dedicava. Eric também
lhe falava de seus companheiros, e ambos riam com as divertidas histórias com o
pessoal do hotel.
Sara e ela estavam no jardim de Sweet Brier Path. Era verão e fazia um dia radiante.
Sara estava sentada em uma cadeira e embalava seu filho nos braços enquanto
cantarolava uma bonita melodia. Mary a observava, maravilhada com o espetáculo.
Naquele momento aparecia Robert e alguém vinha com ele: era o senhor Lezcano.
Robert se aproximava de Sara e, após depositar um leve beijo na fronte do bebê,
Mas então ocorria algo desconcertante: o senhor Lezcano se aproximava dela, lhe
acariciava a mandíbula e a beijava na boca.
— Como estão meus dois pequenos tesouros? — perguntava com sua voz profunda,
enquanto se abaixava e pousava uma mão em seu ventre.
Ela olhava então naquela direção, e uma emoção interior a paralisava ao contemplar o
volume de seu corpo. Esperava um filho! Melhor dizendo: Diego e ela esperavam um
filho!
— Eu sei...
Helen Luton o conduzira até a salinha privada de sua filha e não deixava de insistir
em que não fizesse ruído, mas ele já sabia que não deveria fazer ruído. Se alguém
soubesse o que estava a ponto de fazer antes de poder comprometer a jovem, iria
preso e, provavelmente, terminaria morto pelas mãos de seu próprio irmão.
A condessa fechou a porta apressada, e Davenport observou o sofá onde Mary parecia
profundamente adormecida. Pela expressão de satisfação de seu rosto, diria que
estava sonhando com algo muito agradável. Aproximou-se dela e a observou de cima.
Era muito pequena, e não lhe custaria nada carregá-la nos braços. Os condes tinham
saído, e Helen Luton lhe afirmara que manteria os criados ocupados, com o que
Davenport concluiu que não levaria muito tempo descê-la até a carruagem que
aguardava no beco.
Enquanto a condessa retorcia nervosa as mãos, Terrell tirou uma corda e um lenço do
bolso. Ajoelhou-se em frente ao sofá e se dispôs a atar os punhos de Mary.
Lorde Davenport conseguiu terminar com um forte nó, apesar de Mary começar a se
remexer com força.
Mary não sabia o que aquele homem pretendia, mas em seguida compreendeu que
não queria averiguar nada. Quando abriu a boca para gritar, contemplou sua mãe
junto a porta.
— Mãe, graças a Deus! — exclamou aliviada — Rápido, avise aos criad...
Mas Lorde Davenport a amordaçou com o lenço e não a deixou terminar a frase.
Levantou-se e se inclinando sobre ela a pegou nos braços.
Aterrorizada, Mary se dobrou pela cintura e tentou com todas suas forças
desequilibrá-lo, mas pesava muito pouco para conseguir seu objetivo. Lorde
Davenport a conduziu para a porta sem esforço. Mary olhou para sua mãe, que
permanecia assombrosamente impassível e gemeu implorando sua ajuda, mas, para
sua surpresa, ela não interrompeu a passagem daquele homem, muito pelo contrário.
Abriu a porta para lorde Davenport e o precedeu pelo corredor, indicando-lhe o
caminho.
Tentavam sequestrá-la. Mary percebeu imediatamente que o conde não estava ali por
engano, queria levá-la de sua casa e sua própria mãe o estava ajudando.
Mary se revoltou com violência, se dobrou e se agitou com todas suas forças, mas tudo
aquilo não conseguiu deter o avanço de Davenport. Então, abraçou o conde pelo
pescoço e o arranhou, enquanto tentava estrangulá-lo com a corda.
— Filha de... — exclamou ele, contendo um grito de dor. A condessa virou a cabeça
no momento.
O conde a agarrou pela cintura e a carregou sobre os ombros como um fardo. Naquela
postura, Mary mal conseguia se mover. Sua mãe e Davenport retomaram seu caminho
para as escadas de serviço.
— Vou levá-la para Winchester em alguns dias. Falei com o pároco, e está disposto a
celebrar o casamento.
— Bem, — assentiu a condessa — mas não pode demorar mais de três dias ou o
escândalo será maior.
Ela, que sabia por experiência como um homem poderia se tornar cruel durante
aqueles momentos, o observou com dureza.
— Você faça o que tiver de fazer, milorde. — replicou — Mas não lhe cause mais
dano do que for preciso.
Mas o que Helen Luton não sabia era que, no outro lado do beco, um menino havia
presenciado tudo, e naquele momento atravessava as ruas de Londres como alma que
leva o diabo; mais que disposto a arruinar todos os seus planos.
Eric foi diretamente para a única pessoa que podia evitar que fizessem mal à senhorita
Mary.
Diego, que permanecia sentado em um dos sofás do grande salão de seu hotel, olhou
para o menino.
Diego se virou outra vez para o menino e observou seu aspecto: Eric tinha os cabelos
revoltos, a cara vermelha e suava profusamente. A gravidade do que acabava de dizer,
combinado com a intensidade de seu olhar, indicaram a Diego que deveria escutá-lo.
— Estes meninos... — disse enquanto se levantava — Senhor Proctor, lhe peço que
me desculpe um momento.
Diego agarrou Eric pelo braço e praticamente o arrastou até o escritório da recepção.
Fechou a porta e cruzou os braços sobre o peito.
— Além de muito bonita é briguenta, sempre gostei disso nas mulheres. Mary
— É isso, meu amor, lute. Quanto mais lutar, — assegurou ele sorrindo
perversamente — mais excitado ficarei e melhor passaremos esta noite.
O terror em seus lindos olhos ainda incitou mais lorde Davenport, que não pode
resistir a tocá-la. Ajoelhou-se no piso da carruagem, a agarrou pelos braços e a deitou
no assento imobilizando-a com o peso de seu corpo.
O conde começou a manusear todo seu corpo. Mary se revoltou e gemeu com tanta
força que sua garganta ardeu. Compreendeu então que sua resistência ainda o
excitava mais. Então, ficou muito quieta e, com uma náusea retorcendo seu estômago,
resistiu a todo seu manuseio.
Quando Davenport percebeu que por fim a havia subjugado, se ergueu ligeiramente e
olhou seu rosto molhado pelas lágrimas.
— Acalme-se, meu amor, — sussurrou, passando-lhe a mão pelos cabelos — não vou
tomá-la em uma suja carruagem. Só queria que soubesse como será inútil resistir e o
muito que a desejo. — concluiu, pegando sua mão e empurrando-a até seu membro
para que ela pudesse comprovar que lhe dizia a verdade.
Mary tentou disfarçar uma careta de nojo antes que ele a soltasse e retornasse ao seu
assento. Sufocada, tentou se erguer de novo. Quando por fim conseguiu,
compreendeu que no momento estava a salvo, não imaginando até quando.
Mary deu uma rápida olhada para a ereta figura do conde e comprovou que seu peito
subia e descia agitado, enquanto a observava em silêncio. Respirou profundamente
Mary suspirou exasperada, resignada diante da ideia de que sua única esperança
radicava em que alguém corresse em sua ajuda. Por favor, Deus, por favor, rogou com os
olhos fechados, faça com que meu irmão saiba; que Robert saiba e que minha mãe não consiga se
ocupar dele, terminou, recordando o que sua mãe dissera a Davenport antes de subir a
carruagem.
Se isto for outro de seus estratagemas vou matá-la, pensava Diego antes que o rapaz de
quadra do hotel lhe estendesse as rédeas de seu cavalo negro. Mas quando se
dispunha a montar, algo puxou levemente seu sobretudo.
— Não vai deixar aquele homem lhe fazer mal, não é? — Eric perguntou, ansioso.
— Se o que me disse for certo, sei quem a tem e para onde se dirige. Levarei a Bruma,
— disse, assinalando o cavalo com um movimento de cabeça — e conseguirei ganhar
tempo. Mas, —Diego continuou, com o semblante escurecido — se descobrir que isto é
outra de suas armadilhas, eu mesmo a estrangularei. E depois regressarei aqui e lhe
darei umas boas chicotadas por me desobedecer, quando lhe ordenei que não a
visitasse mais.
Diego observou o menino esperando tê-lo assustado o suficiente para que confessasse
se era um engano, mas Eric nem se abalou diante de suas ameaças.
Diego montou em seu magnífico cavalo e meditou no acertado que fora não investigar
somente Davenport, mas também todas suas propriedades. Se Eric ouvira
corretamente, o aguardavam quase duas horas de boa cavalgada para o sul: até
Winchester, uma aldeia perto de Southampton onde se encontrava Davenport House,
uma das mansões que o conde conservava ainda em um mínimo estado de habitação.
O melhor seria avisar Robert antes de empreender sozinho o possível resgate de Mary;
como seu irmão, o conde tinha o direito de saber. Mas se o que Eric vira coincidisse
com a realidade, sua mãe servira como cúmplice, infundindo ao assunto ainda muito
mais gravidade. Diego descartou todas aquelas questões em seguida: havia agido com
a rapidez que exigia a questão. Depois daria as necessárias explicações ao conde
quando comprovasse por si mesmo que sua irmã se encontrava em perfeito estado.
Mary contemplou o perfil de lorde Davenport, enquanto ele desamarrava a corda das
suas mãos para em seguida voltar a amarrá-las separadas a cabeceira de madeira
maciça da enorme cama na qual acabava de deitá-la. Ela estava amordaçada e não
podia se fazer entender. Queria que o conde a olhasse, queria que soubesse que não
tinha porque amarrá-la, que não tinha nenhuma intenção, possibilidade, era uma
palavra melhor, de escapar. Mas Davenport, concentrado em realizar uns bons nós,
nem mesmo se preocupou em dar uma olhada ao seu rosto.
Quando terminou sua tarefa, o conde se levantou e a observou com as mãos na cintura
e com um sorriso malicioso aparecendo em seus lábios.
Mary apertou os olhos e lhe deu uma olhada muito significativa, o que lhe arrancou
uma gargalhada antes de se dirigir para a saída do quarto.
— Antes de mais nada, lhe informo que, se estiver pensando em gritar, será inútil.
Não há nenhum criado, fica muito caro mantê-los. — explicou com um sorriso contrito
— Pago a umas senhoras do povoado para que venham limpar uma vez por semana.
Quanto à cozinheira, já foi para sua casa. Assim, ninguém poderá ouvi-la.
Aquela nova informação desanimou Mary no mais fundo. O que significava sua
última oportunidade de conseguir ajuda acabava de ir para o inferno.
O conde sorriu.
— Minha querida menina, se a devolver a sua casa sem me casar com você, seu irmão
me degolará vivo.
— Não, — ela interrompeu — não o fará. Eu sei como falar com ele e o convencerei
para que não lhe faça nada.
— Creio que sua mãe e você têm excessiva confiança em sua influência sobre ele, mas
você viu o tamanho de seu irmão, querida? Me faria em pedaços. — concluiu, negando
com a cabeça. — Além disso, como vê, — disse fazendo um gesto com a mão ao redor
— preciso do dinheiro de seu dote desesperadamente. Por outro lado, e contra todo
prognóstico, a desejo; desejei desde o primeiro momento em que a vi. Assim, por tudo
isso, devo lhe dizer que não somente preciso do nosso casamento, mas que também o
quero.
Quando Mary tentou replicar, ele lhe introduziu mais comida na boca. Ela se sentiu
invadida pela náusea. Ainda assim, continuou comendo e mastigando cada bocado
com extraordinária lentidão, disposta a ganhar tanto tempo como lhe fosse possível.
Lamentavelmente, os dois terminaram muito depressa com todo o conteúdo dos
pratos. O conde voltou a colocá-los na bandeja e a deixou sobre uma cômoda no outro
lado da sala. Antes de voltar junto a Mary, pegou uma das facas.
Aterrorizada, Mary não conseguiu suportar mais e gritou com todas as suas forças.
E gritou, e gritou, e gritou, até quase ficar sem voz. Davenport sorriu enquanto tirava a
camisa.
— Já lhe disse, linda. Aqui só estamos você e eu. — falou, subindo à cama com os
olhos cintilantes.
Mary olhou para baixo e comprovou que ele estava cortando seu vestido com a faca.
Após fazer um bom corte, agarrou as duas partes e deu um forte puxão até que o
tecido se rasgou por completo. O conde afastou as duas metades do vestido e
contemplou extasiado os montículos dos pequenos seios que o corselete apertava
elevando-os. Agarrou a faca e deu outro corte na anágua até conseguir abri-la também.
Davenport observou com verdadeiro deleite as suaves curvas de Mary através de seus
calções. Tinha uma ereção tão forte que já não conseguia resistir mais sem tocá-la.
Mary sufocou um grito quando ele afastou a mão e amassou sua boca com a dele. Mas
quando o conde introduziu sua língua, ela já não conseguiu suportar mais e o mordeu
com todas suas forças, virando o rosto de um lado ao outro para produzir- lhe o maior
dano possível.
Davenport soltou um grito de dor e se ergueu no instante segurando sua boca com
ambas as mãos. Mary viu horrorizada como através de seus dedos brotava sangue aos
borbotões.
— Filha de uma cadela. — ele resfolegou, dando-lhe um bofetão tão forte que a
tonteou.
Montou sobre ela e começou a rasgar o pouco que restava de sua roupa interior.
— Vou fazê-la minha. — murmurou, salpicando-a com o sangue que brotava de sua
boca. — Agora.
Completamente atordoada, Mary notou que suas forças começavam a abandoná- la.
Encomendou-se a Deus e lhe pediu que aquilo terminasse logo. O Senhor pareceu
ouvi-la, porque, após o som de vários vidros estilhaçando-se, o peso do conde deixou
de estar sobre ela.
Uns aterradores bramidos fizeram com que Mary se erguesse para ver o que acontecia,
e um grito de alivio a engasgou ao ver como um homem rodava Davenport no chão.
Mary suspirou e se deixou cair sobre as almofadas. Afinal, seu amado irmão havia
corrido em sua ajuda. Mas então, uma voz com um profundo acento a fez se erguer de
novo. Mary conhecia aquele acento e sabia que se notava muito mais quando seu dono
se irritava. Não era Robert que naquele momento levantava Davenport como se fosse
um boneco de trapo, mas Diego. Diego Lezcano acabava de atravessar a janela para
salvar sua vida, outra vez.
Segurava o conde contra a parede e, enquanto com uma mão o apertava pelo pescoço
levantando-o vários centímetros do piso, com a outra punha todo seu empenho em
romper-lhe o fígado. Davenport cuspia sangue e tentava desesperadamente se
explicar, com o terror desenhado na cara.
— Não fiz nada. — balbuciava uma e outra vez, paralisado pelo medo.
Davenport nunca contemplara tal ferocidade em um rosto. Olhou outra vez a aquele
homem que ia matá-lo. Antes de perder a consciência o reconheceu: era aquele
estrangeiro, o sócio de Luton. Como se chamava?
— Acorda, filho da puta! — Diego gritou, enquanto lhe golpeava as costas contra a
parede tentando que voltasse a si, para continuar lhe infligindo dor.
Diego notou que a ira voltava a dominá-lo. Bufando como um animal se virou de novo
para Davenport com a intenção de terminar o que começara.
A suplica resolveu, porque ele correu para junto dela no momento e se sentou na
cama. Acariciou seu rosto e limpou os restos das lágrimas, com uma esmagadora
comoção oprimindo seu peito.
— Estou bem. Não conseguiu seu propósito. — informou, contemplando como ele
exalava um profundo suspiro de alivio. — Desamarre-me e tire-me daqui, por favor.
Diego desfez os nós tão rápido como conseguiu com o tremor de suas mãos. Observou
com o cenho franzido o ensanguentado sulco que a corda lhe produzira nos delicados
punhos e tentou aliviar sua dor esfregando levemente seus antebraços para que o
sangue voltasse a circular.
Diego se ergueu, disposto a impedir que saísse, mas Mary lhe segurou as mãos com
força e o olhou implorando.
Ele voltou a concentrar sua atenção nela, e Davenport saiu cambaleando do quarto.
Diego a pegou nos braços sem esforço e foi para a porta. Chegara até ali depois de
subir por um galpão na parte traseira da mansão, mas com ela nos braços já não
poderia regressar pelo mesmo lugar. Assim, se dirigindo para o corredor, Diego
deixou o quarto disposto a matar a qualquer um que decidisse se interpor em seu
caminho.
Desejava sair dali o quanto antes. Diego a carregou com passo firme até o exterior da
casa, onde um enorme cavalo negro os esperava. Com uma força extraordinária ele a
ergueu até à sela. Mary ficou sentada sobre o cavalo com uma perna em cada lado, ao
contrário de como montava normalmente. Apoiou as palmas das mãos contra o couro
da sela tentando não perder o equilíbrio. Diego tirou o sobretudo e passou para ela.
— Vista isso.
Diego montou com um ágil movimento, de forma que sobre o cavalo os dois ficaram
um de frente ao outro. Agarrou as pernas dela e as ergueu, deixando-a praticamente
sentada sobre as suas pernas.
— Agora segure-se em mim e não cairá. — disse ele, olhando-a com um gesto grave
de concentração.
— Diego, não posso ir para casa. Por favor, — exclamou implorando — não me leve
para casa com este aspecto.
Diego abriu os braços para segurar as rédeas e a rodeou com eles, cobrindo-a sob a
proteção e o calor de seu corpo.
Diego abaixou a cabeça e enterrou o nariz em seus cabelos despenteados. Não sentiu
nenhum perfume, mas a floral frescura que sempre parecia envolvê-la inundou suas
fossas nasais. Diego jurou ao céu que nunca mais permitiria que nada nem ninguém
voltasse a tentar arruinar a inocência de Mary. Sua Mary.
Diego a apertou contra ele e esporeou seu cavalo. Mary sufocou um grito, assustada
pelo aumento da velocidade, e se abraçou a Diego com todas suas forças. Não lhe
importava para onde se dirigiam, sempre e quando fosse com ele.
Mas houve pouca sorte, já que dez minutos depois do primeiro relâmpago, a
tempestade desabou justamente sobre eles. A chuva caía abundante, e Diego mal
conseguia ver por onde iam. Abraçou mais forte a Mary, que tremia violentamente
contra seu corpo, e se encomendou ao bom instinto de Bruma.
Ao entrar no pátio de armas, o ruído dos cascos sobre o piso de pedras ressoou contra
as muralhas com mais força que o constante alvoroço do aguaceiro. Completamente
desorientado, Diego procurou a luz do velho farol sobre a porta de entrada da torre
principal, que era a única construção ainda habitável do castelo. Quando por fim a
distinguiu, puxou as rédeas para andar até lá.
Mary se agarrou com força aos seus ombros e desmontou. Diego a segurou pela
cintura com um braço e com o outro deu um leve golpe na garupa do cavalo para que
fosse procurar um abrigo. A porta se abriu.
— Desculpe, — disse a anciã que apareceu do outro lado — mas isto não é uma
pousada. Terão que ir ao povoado para se resguardarem.
Quando a mulher se dispunha a fechar, Diego adiantou uma perna e interpôs sua bota
na trajetória do portão.
— Bem, então terá que acender a lareira da minha sala, ainda que demore um pouco
mais para aquecer. Se puder colocar alguns baldes de água no fogo. Ah, — disse
enquanto começava a subir as estreitas escadas de pedra — traga umas toalhas e diga
ao seu marido que suba a tina ao meu quarto.
Ele lhe deu um rápido olhar de lado e não deixou de evitar que sua boca se elevasse
em algo parecido a um sorriso.
Diego parou no meio do escuro corredor, iluminado unicamente pela luz de algumas
tochas. Um amplo sorriso iluminou sua boca e seus olhos, antes que se pousassem
com ternura nela. Ia sempre ali quando o corrompido ar de Londres o agoniava, mas
nunca lhe falara daquilo nem mesmo ao seu sócio. Assim, não estranhou que ela se
surpreendesse.
— Tem um castelo! Mas eu acreditei..., — titubeou — acreditei que não queria ter
uma casa e por isso vivia no hotel.
Entraram em uma sala escura. Diego atravessou a sala com extrema perícia, sem
tropeçar em nenhum móvel e a colocou sobre uma superfície suave e fofa. Mary ouviu
os passos dele ressoando no solo.
— Diego, — o chamou nervosa quando sentiu que se afastava — não me deixe. Ele
Diego saiu um momento do quarto e retornou com uma das tochas do corredor, com a
qual foi acendendo as velas distribuídas nos apliques de ferro da parede. O
característico e doce aroma de mel que a cera de abelhas desprendia ao arder, logo
inundou até o último canto da sala.
Mary contemplou então a austeridade com que a sala estava decorada. As paredes de
pedra nua não tinham qualquer adorno, salvo pelos candelabros. No centro, se
encontrava a grande cama quadrada de mais de dois metros de cada lado, na qual ela
permanecia sentada. Olhou ao seu redor e viu que cada um dos cantos daquele leito
estava delimitado por um grosso poste de madeira mais alto que qualquer homem. O
velho dossel que pendurava até o piso pelos quatro lados era confeccionado por uma
gaze tão fina que apresentava alguns furos pelo passar do tempo. Além de um grande
roupeiro aos pés da cama, o resto do mobiliário se reduzia a uma pesada escrivaninha
de mogno, sobre a qual havia amontoado uns vinte livros, e uma poltrona estofada em
couro vermelho ao lado da janela. No centro da parede oposta à cama, se encontrava a
Mary cruzou as mãos sobre o colo e observou Diego ir de um lado ao outro. Quando
terminou, a sala ficou completamente iluminada. Alguém bateu à porta e, após abrir,
Diego deixou entrar a senhora de antes, que carregava um monte de toalhas brancas, e
um homem robusto de uns sessenta anos que a seguia com uma pequena pilha de
madeira.
Mary olhou para a anciã, que lhe devolveu um sorriso inseguro, e assentiu. Quando os
dois homens saíram da sala a mulher falou. — O senhor Lezcano nos deixa viver
— Deve tirar esse casaco molhado ou ficará doente, senhorita. — anunciou, solícita.
Mary olhou a manga do casaco de Diego e assentiu. Estava gelada até os ossos, e o
calor que já começava a aquecer a sala não era capaz de atravessar o encharcado
tecido.
Mary olhou para baixo e, ao contemplar seu vestido rasgado e salpicado com seu
próprio sangue e o do conde, compreendeu a cara de susto da senhora Carpenter.
— Lobos?
Mary assentiu sem dar mais explicações, já que não queria assustá-la mais. Claro que
não mencionou que o predador que a ferira era muito mais perigoso que um lobo:
nada mais e nada menos que um par do reino. Alguém ao qual todo o mundo
respeitava e pensava ser altamente civilizado.
A senhora Carpenter pegou uma das toalhas que deixara sobre a cama e estendendo-a
em frente a Mary a envolveu com ela. Mary suspirou, agarrou a ponta do tecido e
secou o rosto, agradecida pela sua suavidade e calidez.
Diego voltou à realidade quando o senhor Carpenter, que já deixara seus baldes em
frente à lareira, retornou para ajudá-lo com os seus.
Diego deu uma furtiva olhada à pequena figura de Mary sentada na cama e se
esforçou para controlar as frenéticas batidas de seu coração. Levou as mãos à cintura e
olhou ao redor, enumerando mentalmente tudo o que devia fazer para preparar o
banho. Disposto a realizar um trabalho metódico e que a presença dela deixasse de
afetá-lo, foi até o roupeiro. As dobradiças chiaram ao serem abertas, e pegou um lençol
de linho com a ideia de cobrir o fundo da tina. Depois virou três dos quatro baldes
fumegantes em seu interior. Voltou ao roupeiro e procurou um daqueles sabõezinhos
Diego estava plenamente consciente da forma em que ela o seguia com os olhos por
toda a sala. Mantivera-se em silêncio, observando-o em seu ir e vir enquanto
preparava o banho. Diego contemplou o resultado de seu trabalho com as mãos outra
vez na cintura, repassando mentalmente se tudo estava no lugar. E, suspirando de
forma bastante audível, fez um último esforço para se acalmar.
Diego pensou que deveria limpar todas aquelas manchas de sangue e fazê-la se
aquecer o mais rápido possível ou iria adoecer. Ambas as coisas seriam possíveis com
o simples e efetivo ato de um banho. Mas, o problema era que Mary precisaria de
ajuda. Então pensou que o mesmo que até um minuto atrás lhe parecia fácil, agora,
que chegara o momento, estava lhe custando muito mais do que previra. Porque,
mesmo sabendo que devia contemplá-la como alguém que simplesmente necessitava
sua ajuda para um ato cotidiano, era impossível passar por alto que era ela; não
qualquer pessoa, e sim, ela.
Diego virou em seguida para ela e o que contemplou o deixou petrificado no lugar:
Mary já tinha tirado o vestido e anágua rasgados, as presilhas dos cabelos, e somente
com as meias e os calções, se retorcia tentando chegar com as mãos aos laços
posteriores de seu corselete para desamarrá-lo.
pelo rosto.
— É, sim, bem...
Subiu à cama por trás dela. Quando Mary notou a troca de peso sobre o colchão, não
conseguiu evitar uma risadinha nervosa escapando de seus lábios.
— Pronto. — declarou com voz pastosa quando terminou de afrouxar as tiras uma a
uma.
Ela se desfez do corpete e, após uns segundos nos quais parecia estar pensando em
algo, agarrou decidida a borda de sua camisola interior e a tirou pela cabeça. Diego,
ainda ajoelhado na cama, contemplou atônito como seus cachos dourados se
espalhavam desordenados por suas costas nuas.
Mary abaixou as meias e puxou as pontas para tirá-las. Restava somente o calção para
estar completamente nua diante dele. Tinha vontade de se banhar, isso era certo; mas,
de repente, desejava muito mais que Diego a contemplasse tal e como era. Todas suas
inseguranças pareciam ficar para trás, os temores se esfriaram e já não havia mais
vergonha. Parecia que tudo o que lhe acontecera estivesse criando sentido. Tudo a
conduzira até ali por algum motivo, e ela, mais valente que nunca, estava disposta a
descobrir. Então, desatou as cintas do calção e, segurando- se na coluna da cama, se
ergueu para que a peça íntima deslizasse até seus pés.
Diego sentiu a garganta seca. Queria protestar, dizer-lhe que podia se banhar com a
roupa intima, mas, muito concentrado em continuar respirando, foi absolutamente
incapaz de emitir algum som. Era delicada e miúda, isso já sabia, mas o que nunca
imaginara era que sob seus vestidos se escondessem todas aquelas curvas. Em uma
torturante exploração de seu corpo, Diego se fixou em como suas esbeltas pernas se
perdiam em um traseiro de nádegas arredondadas e firmes que, subiam até uma
cintura muito fina, e davam ao conjunto de sua figura uma marcada forma de pera.
Com um calafrio percorrendo sua coluna vertebral, Mary notou seus olhos fixos nela e
como sua respiração se aprofundava. Apesar de tremer como uma folha em um
temporal, se apoiou no poste da cama e se obrigou a se virar muito lentamente.
Diego permanecia ajoelhado na cama, sentado totalmente sobre suas pernas. Os braços
pendurados inertes e suas mãos descansando juntas sobre as pernas. Os olhos
apertados sob suas espessas pestanas negras, fixos em algum ponto da colcha, e seu
peito subindo e descendo visivelmente agitado.
Diego se atreveu a lhe dar uma rápida olhada. O que viu lhe produziu no instante a
maior ereção que experimentara na vida. O fogo da lareira se recortava contra a figura
nua de Mary, apoiada na grossa coluna da cama. A gaze transparente do dossel se
enroscava sinuosa em seu corpo. Seu cabelos, que cintilavam com reflexos de ouro,
chegavam até sua cintura e cobriam parcialmente a visão de seu ventre plano e de uns
pequenos e arredondados seios de ponta rosada. Naquele momento, naquele exato
momento, Diego soube que nada voltaria a ser igual.
Mary contemplou como ele deixava escapar um sonoro ofego entre os dentes antes de
se levantar do colchão. Levantou-se e, agarrando uma das colunas com a mão, rodeou
lentamente a cama sem afastar nem por um instante o olhar dela. Mary observou que
seus olhos nunca tinham parecido tão negros, resplandecentes à luz do fogo como o
mais puro azeviche. Diego se aproximou devagar e parou a alguns centímetros dela.
Não chegou a tocá-la, mas o corpo de Mary formigou de antecipação. Notou que sua
pele ardia, como se o calor da sala tivesse aumentado em vários graus.
O ruído da chuva que golpeava com força contra o vidro da janela e o crepitar do fogo
eram os únicos sons que quebravam o silêncio da sala. Diego permaneceu em frente a
De repente, ele grunhiu e se abaixou para levantá-la nos braços sem nenhum esforço.
Mary sufocou um grito pelo brusco movimento e se agarrou ao seu pescoço com
firmeza. Enquanto a conduzia à banheira, Mary foi intensamente consciente das
cócegas que o velo de seu corpo lhe produzia nos lados e desejou se abraçar mais
apertado para senti-lo melhor.
— Diego.
Ele sorriu e a olhou com os olhos cintilantes até deixá-la na banheira. Mary exalou um
fundo suspiro de prazer quando a água quente rodeou seus músculos doloridos.
Esparramou-se tudo o que pode na pequena piscina, tampou o nariz com os dedos e
submergiu a cabeça e os ombros. Quando emergiu vários segundos depois, o fez com
um sorriso de puro deleite.
Enquanto se ajoelhava ao seu lado, Diego não conseguia estar mais de acordo: era uma
deusa, a mais maravilhosa e fascinante que seus olhos já tinham contemplado. Pegou o
sabonete e estendeu pelo cabelos. Diego se inclinou sobre ela ensaboando sua cabeça e
esfregando com suaves movimentos circulares. Mary observou apaixonada o
movimento de seus enormes bíceps enquanto lhe lavava os cabelos. Depois de vários
minutos olhando-se em silêncio, ele pegou o outro balde e derramou seu conteúdo
com cuidado sobre ela para retirar o sabão. Extasiada, Mary suspirou inclinando a
cabeça para trás enquanto passava as mãos pelos cabelos.
Quando terminou de enxaguar os cabelos, Diego voltou para seu lado. Ela lhe sorriu e
comprovou que seu rosto se entristecia ao observar seu rosto.
— Sente dor? — perguntou com tom dolorido enquanto tocava com a ponta dos
dedos o arroxeado que cruzava sua face direita.
Recordando a forte bofetada do conde, Mary colocou sua mão sobre a de Diego para
tranquilizá-lo.
Mary suspirou quando ele lhe levantou a cabeça e se inclinou para beijá-la nos lábios.
Ela pegou seu rosto entre as mãos e, acariciando a aspereza de suas faces, lhe
devolveu o beijo com toda a alma. Enquanto sua boca a saboreava, Diego deixou sua
nuca, e sua mão se perdeu sob a água em uma febril descida por sua coluna. Com a
palma aberta para abarcar a maior superfície possível, explorou suas costas até o início
das nádegas, subiu pelo seu lado e segurou seu seio sopesando e acariciando-o com o
polegar. Satisfeito e completamente excitado, notou que o pequeno mamilo se erguia
contra a palma de sua mão.
Mary ficou sem respiração e todo seu corpo parecia se incendiar sob suas carícias.
Com um rouco grunhido contra sua boca, procurou frenética uma maior proximidade.
Abraçou seu pescoço e ele a envolveu com seus fortes braços. A banheira se inclinou a
ponto de virar, e parte de seu conteúdo se derramou pelo solo. Sem deixar de beijá-la,
Diego a tirou da água e a conduziu à cama. Mary se agarrou com força ao seu pescoço
e brincou com seus cabelos negros enquanto explorava sua boca com úmidos e
lânguidos beijos.
Diego sabia que aquela noite não seria a mais indicada, que ela necessitava descansar e
que ele deveria secá-la e deixá-la dormir. Mas o desejo por Mary, contido durante
tantos anos, exigia a gritos ser satisfeito. Por uma vez, Diego se esqueceu de seus
deveres: a deitou sobre a colcha de lã, que absorveu a umidade de seus corpos, e se
colocou em cima dela. Mary ofegou ao sentir o velo do torso masculino contra seus
úmidos mamilos. Abraçou-o com força apertando-o contra ela, anelava senti-lo perto,
muito perto. Desejava que ele a envolvesse com seu corpo que parecia esculpido em
mármore, e que a liberasse daquela crescente ansiedade que a queimava por dentro.
Frenético, Diego abandonou seus lábios inchados e desceu beijando sua mandíbula e o
pescoço. Agarrou seu quadril e o apertou contra ele para que pudesse sentir sua
poderosa ereção.
— Mary, — ofegou — Mary, não creio que possa parar. Ela o olhou com os olhos
nublados de paixão.
Diego sufocou uma gargalhada, a observou com adoração e se inclinou para tomar seu
delicado mamilo entre os lábios. Mary gritou diante da surpresa do contato e do
espasmo de prazer que lhe percorreu o corpo. Prendeu sua cabeça com as mãos e
arqueou tudo o que pode contra ele. Diego aproveitou o movimento e lhe acariciou as
Diego levou uma mão até a parte de trás de seu joelho e lhe separou as pernas muito
lentamente. Subiu acariciando o interior de sua perna, até que enroscou suavemente os
dedos em seu velo íntimo, afastando as dobras que cobriam seu centro de prazer.
Mary enterrou os dedos em seu ombro e esquadrinhou seu rosto.
Mary assentiu.
— E gosta? — quis saber, disposto a lhe dar todo o prazer que pudesse sentir.
Ele afastou a mão, e Mary arqueou a cintura instintivamente, buscando de novo seu
contato naquela zona. Diego sorriu e voltou a lhe beijar o seio. Beijou seu plano
estômago e abaixou até seu ventre onde se entreteve uns segundos em seu umbigo, até
que com um rápido movimento descendente colocou sua cabeça entre as pernas dela.
Mary protestou e tentou afastá-lo, mas Diego a segurou firmemente pelos quadris e
começou a beijá-la naquele lugar no qual ela jamais pensara ser beijada. Diego
separou, esfregou, e lambeu com devotada paciência até Mary se retorcer contra sua
boca.
A luz das velas se desfocou diante de seus olhos e a sala parecia girar a sua volta.
Mary se agarrou com as unhas à colcha e gritou quando violentas ondas expansivas
queimaram seu corpo por dentro, desde o centro onde Diego a beijava naquele
momento. Gritou surpresa por uma violenta liberação.
Então, Diego saiu do colchão e, sem afastar os olhos dela, tirou as calças e a roupa
interior. Mary, ainda aturdida e ofegante, percorreu seu corpo com um ávido olhar.
— Quero lhe dar prazer. — ela sussurrou, quando Diego voltou ao seu lado —
Ensina-me o que devo fazer.
Ela lhe acariciava os lados, o peito, o ventre. Suas mãos eram infinitamente pequenas
sobre as vigorosas formas do corpo de Diego. Ele prendeu seu punho para deter
aquela tormentosa exploração e a olhou intensamente.
— Nunca havia gozado tanto, — sussurrou inclinando-se para lhe beijar o pescoço.
— somente vendo você gozar.
Mary se soltou e pousou sua mão sobre a enorme dureza de seu sexo. Satisfeita
quando notou a sacudida do corpo de Diego e maravilhada por aquele contato sedoso,
o explorou com lentas e prolongadas carícias. Diego sentiu seu sangue se incendiar e
ficou sem respiração. Com um brusco grunhido se colocou sobre ela e lhe separou as
pernas com o joelho. Guiada por um instinto tão velho quanto o tempo, Mary prendeu
os estreitos quadris dele e, arqueando seu corpo, o guiou para ela.
Diego a beijou e a penetrou devagar, mas de forma contínua. Ela ofegou e se revirou
— Você é muito grande, Diego. — murmurou, nervosa — Creio que não vou poder.
Mary gritou quando uma aguda dor a quebrou em dois. Diego ficou quieto, ofegando
pelo esforço de se conter. Era muito apertada e envolvia seu sexo por completo em sua
cálida umidade. Apoiou-se no colchão tentando distribuir seu peso para aliviar-lhe a
dor.
— Oh, Mary.
Então ela acreditou morrer quando as mesmas ondas de prazer de antes, mas
intensificadas um milhão de vezes, lhe derreteram as veias. Diego estremeceu quando
notou as contrações do êxtase dela e empurrou com mais força. Com um esmagador
Depois de uns minutos em que nenhum dos dois conseguiu se mover, Diego se pôs a
um lado e a arrastou com ele até que ambos ficaram envolvidos em um apertado
abraço. Beijou seus cabelos ainda úmidos e se dedicou a usufruir daquele embriagador
aroma de flores. Então, um violento estremecimento atravessou Mary. Ele percebeu
que tinham molhado a cama e que seus corpos começavam a se esfriar. Ainda com as
pernas trêmulas, se levantou e puxou a colcha e os lençóis para deixá- los perto do
fogo. Foi até o roupeiro. Tirou uma manta mais grossa que a anterior. Voltou junto a
ela e a estendeu sobre os dois. Mary se aconchegou, procurando o calor do corpo de
Diego.
Após vários minutos abraçados contemplando o fogo, Mary notou que ele pensava em
alguma coisa. Suspirava e franzia o cenho enquanto acariciava os cabelos e beijava sua
fronte. Quase podia ouvi-lo pensar. Mas teve medo de perguntar. Não queria ouvi-lo
dizer que nunca deveriam ter feito amor ou que se arrependia ou qualquer coisa no
estilo. Permaneceu calada, desfrutando do sedoso contato de seu velo peitoral ao
passar entre seus dedos.
— Fizemos amor, e foi maravilhoso. Não vamos estragar tudo falando. — concluiu,
voltando a se recostar contra seu ombro.
Ele jogou a cabeça para trás até observar seus brilhantes olhos violeta. Compreendeu
que, com segurança, havia algo extraordinariamente fantástico tanto nela como no
menino.
— Mary, o que tento dizer, — continuou, ficando sério outra vez — é que, mesmo
que Davenport não conseguiu seu objetivo, conseguiu comprometer muito seriamente
sua reputação.
— Você se importa?
— Claro que me importo. As pessoas irão menosprezá-la por algo que não foi culpa
sua.
— Bem, — disse ela tranquilamente — levo anos de duras práticas e consegui que
não me importar com nada do que pensem ou digam os demais.
— Mas irão murmurar. Não se aproximarão para falar com você. Será uma pária.
Ele queria que aquilo parecesse aterrador, mas a única coisa que conseguiu foi que ela
voltasse a sorrir.
— Nada que já não fizeram comigo. — aceitou. Ele se ergueu até se sentar na cama.
— Mary, acredito que isso desta noite vá muito além. Pense no que isto afetará seu
irmão, sua amiga e seu futuro filho. — Quando Diego comprovou como se escurecia
seu rosto, soube que aquilo não falharia. Também soube que estava jogando sujo, mas
estava disposto a utilizar toda a artilharia para conseguir o que queria. — Não deveria
passar por alto, e creio que deveria fazer algo a respeito. — concluiu.
— O que? — Mary perguntou atônita. — Diego, não brinque com isto. Ele a
Mary notou que as lágrimas brotavam em seus olhos, mas resistiu a chorar. Desejara
tantas vezes escutar aquelas palavras de sua boca, mas aquilo não era como ela
pensava; não era como deveria ser. Ele não falava de amor, só de dever. Dizia-lhe que
deveria se casar e que ele estava ali, disposto a se sacrificar por ela, por seu irmão e
por toda sua família.
— Mary. — ele disse, olhando-a com dureza. Ela lhe devolveu o mesmo olhar.
— Diego.
Aturdido, Diego contemplou as costas nuas dela e como se sacudia com cada soluço.
Uma violenta ansiedade o levou a fazê-la se virar em seguida. Seu peito estremeceu ao
ver seu rosto molhado de lágrimas. Seria capaz de suportar qualquer tortura, exceto
seu pranto. As lágrimas de Mary doíam como mil punhaladas a sangue frio cravando
em seu peito. Observou-a e se sentiu o homem mais imbecil do mundo. Ela o ama, as
palavras de Sara voltaram a se fixar em sua mente. Diego rogou ao céu para que a
mulher de seu amigo estivesse certa.
— Bem, então vamos nos casar por amor. — sussurrou, com a voz a ponto de se
quebrar, enquanto a beijava na boca, nas faces, nos olhos. Tentava conter sua tristeza
por todos os meios. — Porque, Mary Luton, eu a amo mais que a minha vida.
— Só diz para que me case com você. — respondeu carrancuda, limpando o nariz.
— Então, — disse apoiando-se nos cotovelos para olhá-lo melhor. — me ama? Ele a
olhou vulnerável.
— Com toda minha alma. — respondeu — E você me ama? Mary limpou as lágrimas
Ele riu e a apertou com força entre seus braços. Deitou-a sobre as almofadas e,
colocando-se de novo entre suas pernas, exalou todo o ar que cabia em seus pulmões
enquanto a penetrava longamente, demonstrando-lhe que se pertenciam para sempre.
Mary pegou seu rosto entre as mãos e, ao olhá-lo, se viu refletida nas escuras
profundidades de seus olhos.
Emocionado por aquelas palavras, ele a segurou com outra profunda investida.
A cada arremetida do corpo de Diego, Mary respondia com palavras de amor. Aquilo
o fez aumentar o ritmo até fazê-la gritar e se curvar repentinamente contra ele. Então,
a ponto de estalar de puro gozo, Diego se retirou dela e se derramou nos lençóis,
disposto a não comprometer mais a sua saúde com uma possível gravidez.
Exaustos, os dois dormiram abraçados até que a luz da manhã os surpreendeu, apenas
duas horas depois. Diego abriu os olhos e notou que Mary o observava fixamente.
Revirou-se preguiçoso e se aconchegou contra ela, desfrutando do contato de sua
sedosa pele contra seu corpo.
— O que é isso?
Diego se ergueu ligeiramente. O fogo se apagara fazia tempo e a sala estava fria e em
silêncio.
Ainda que não estivesse nos planos de Diego sair da cama, não resistiu ao seu
cintilante olhar. Levantou-se e vestiu as calças, envolveu Mary com a manta e
atravessou a sala com ela nos braços. Sentou-se no beiral da janela, acomodou-a sobre
seu colo e se aproximou à vidraça apontando com um dedo para fora.
Mary ficou sem palavras ao contemplar a vista. O castelo se erguia sobre a rocha de
um pronunciadíssimo penhasco, onde o mar se estalava com violência até formar
verdadeiras nuvens de espuma.
Diego observou satisfeito sua paixão e lhe deu um terno beijo no pescoço.
Ela exalou lentamente e desfrutou da paixão que descobriu nos olhos de Diego ao
nomear seu país.
— O que?
Diego a olhou confuso até que compreendeu o que ela queria dizer; acreditava que
sentia falta do seu país. Mas nada estava mais longe da realidade.
— Não, meu amor, — sussurrou e a beijou nos lábios — meu lar está junto a você.
Meu país nunca me deu nada. Na verdade, — concluiu sorrindo irônico — me tirou
tudo.
Mary se concentrou em seu rosto, em suas faces endurecidas pelas lembranças e por
fim se atreveu a falar daquilo.
Ele negou com a cabeça, e Mary notou que seu corpo se enrijecia.
— Depois teria que matá-la. — respondeu, tentando evitar o momento com uma de
suas melhores armas: o sarcasmo.
— Diego, sei que é algo que lhe aconteceu na Espanha e sei que é ruim, mas seja o
que for, nunca, ouve-me bem, — Mary disse pegando seu rosto entre as mãos para que
ele não pudesse afastar o olhar — nunca poderia romper o amor que sinto por você.
Faremos uma coisa: — continuou, decidida — você me conta uma coisa ruim de seu
passado, e eu conto uma do meu.
Ela o observou com dureza, disposta a dar o primeiro passo para que nada se
interpusesse entre eles.
— Meu pai nunca me quis, e minha mãe... bem, uma criada a quem despediram me
disse uma vez que eu não podia andar, porque minha mãe tentara me matar antes de
nascer. Nunca acreditei, sempre pensei que fosse invenção, por despeito e que, apesar
da sua frieza comigo e com meu irmão, minha mãe nos queria a sua maneira. Mas
depois do que se passou com Davenport... — O pranto quebrou seu discurso.
— Disse que não tinha coisas ruins. — afirmou resolvida — Pois acabei de lhe contar,
assim fique cômodo.
Diego suspirou exasperado, esperando que ela deixasse de se atormentar como fosse.
— Está bem, maldição! Mas quero que me dê sua palavra de que não romperá o
compromisso.
— Juro que não há nada no presente, passado, ou futuro que me impeça de ser sua
mulher.
Ele sabia que aquilo não era certo, mas já era muito tarde para voltar atrás. Como
sempre, Mary o desarmara com sua vulnerabilidade. Assim, preparando-se para abrir
seu coração para que ela o destruísse, Diego se dispôs a lhe revelar sua verdadeira
identidade.
— Nasci em algum porto da Espanha, não sei muito bem qual. Ainda que as
primeiras lembranças que tenho sejam de San Sebastián, que está atravessando um
pouco da França e quase em linha reta, justo atrás dali. — Diego assinalou com uma
risada melancólica a janela. — Minha mãe era prostituta e me deixou em um convento
aos cinco anos quando um cliente quis lhe pagar para ficar comigo. Fugi de lá quando
pude, antes que as monjas me matassem com as surras. Perambulei durante anos pelas
ruas da cidade fazendo qualquer coisa para sobreviver...
— Porque?
— E o que aconteceu então? Como conseguiu sair de lá? Diego sorriu com ar
cansado.
— Fazendo tudo o que fazia até conhecer Jon: roubar e mentir. Mary o olhou
assombrada.
— Não, — o tom dele se tornou mais duro. — eu não tenho nome. Nunca consegui
recordar o nome de minha mãe. Quando me abandonou só me disse que me chamava
Diego, não o sobrenome; certamente, para que nunca a procurassem. Então, sempre
fui somente Diego.
— Então, roubou seu sobrenome. — Mary determinou, seguindo a lógica. Diego não
— Não, não precisei. Durante a viagem para a Colônia o senhor Lezcano me mandou
chamar várias vezes ao seu camarote. No princípio era por trabalho, pequenos
arranjos na câmara ou em algum móvel. Ele ficava conversando comigo: me falava de
Cuba, da plantação de açúcar que possuía lá, de sua jovem esposa crioula que nunca
lhe dera filhos e do bêbado de seu irmão. No início, não me interessava muito, mas
depois de um tempo estabelecemos certa camaradagem. Ele nunca perguntava por
meu passado; unicamente me perguntou se meus pais viviam. Quando lhe disse que
não tinha família, começou a me convidar para sua mesa a cada noite. Depois do
jantar, compartilhava comigo seu rum e, enquanto jogávamos baralho, me falava do
funcionamento de sua plantação. Então, o restante da tripulação começou a murmurar
acerca da nossa amizade. Após quebrar algumas caras e, muito ao meu pesar, decidi
deixar de ir ao jantar com ele para evitar mais falatórios. Quando soube, dom Rodrigo
me mandou chamar e me explicou o motivo de seu interesse por mim.
— Não queria que fosse seu amante? — Mary perguntou, com um sorriso nos lábios.
Não era tão inocente para não saber que aquele tipo de relações existiam entre alguns
homens e também entre as mulheres.
— Intui pelo que me contou até agora. Mas você já não era um menino, porque
adotá-lo se já era um homem?
— Rodrigo Lezcano tinha cinquenta anos e partira de Cuba fazia quase vinte. Ao
abandonar a Espanha deixara sua primeira esposa grávida de seu primeiro filho,
esperando regressar logo para eles. Mas na ilha se enamorou de outra e se esqueceu da
esposa espanhola. Fazia mais ou menos um ano que o médico o diagnosticara com
uma grave afecção pulmonar. Pelo que, dom Rodrigo, contrário a que o meliante de
seu irmão herdasse sua fortuna, decidira aproveitar a viagem à Espanha para saber o
que fora feito de sua esposa e procurar seu filho, a quem, por direito, correspondia sua
herança. Mas, segundo me contou, o menino e sua mãe tinham morrido de
tuberculose muitos anos antes.
— Aquele menino teria mais ou menos sua mesma idade. — Mary concluiu.
Acabava de compreender como Diego se convertera em Diego Lezcano.
— Aquela foi a segunda vez que usurpei uma identidade que não me correspondia.
Dom Rodrigo Lezcano demorou mais ou menos um ano para morrer desde que
desembarcamos em Havana. Durante aquele tempo me ensinou tudo acerca do
funcionamento da plantação e praticamente tudo o que sei sobre os negócios.
— Ninguém pôs em dúvida jamais a palavra de dom Rodrigo. Para todos eu era o
filho que o patrão tivera na Espanha. Quando meu pai adotivo morreu, seu irmão se
casou com sua viúva e ambos partiram para a América do Norte. Nunca mais soube
algo deles desde então.
Ela assentiu com um sorriso radiante, entusiasmada com a ideia de que ele a fizesse
partícipe daquela parte tão importante de sua vida.
— Gostaria muito. — aceitou — Mas ainda não me disse porque nunca regressou.
Diego suspirou.
— Um conde, talvez?
— E de quem não consegui me afastar desde que conheci sua irmã mais nova. Mary
— Que sempre a amei? Sim. — confirmou — Desde que meus olhos a viram.
— Seu irmão é um homem muito atípico. Gosto da sua forma de pensar; faz-me
esforçar para ser uma pessoa melhor. Mas isso, descobri mais tarde. No início, só
queria estar perto de você. Percebi que em meu íntimo sempre sentia um vazio que
somente você seria capaz de preencher. Mesmo que não fosse para mim, necessitava
sua presença tanto quanto respirar.
— Oh, Diego, sou uma tola. — murmurou, abraçando-se ao seu pescoço e beijando-o
na boca. — Porque nunca percebi?
— Mary, não escutou tudo o que acabo de lhe dizer? Eu não sou digno de você.
— E quem é? Davenport? Pensa que ele merece mais que um homem que vai para o
cárcere por um amigo e sua família, ou que, por outro, decide assumir uma
personalidade e uma responsabilidade que não lhe correspondem e carregá-la com a
maior dignidade. Não, Diego, se pensa que seu passado o desonra, está equivocado.
Antes o queria, mas agora o quero e admiro muito mais.
— Não era seu lugar, maldição! — exclamou zangada — Estou certa que perceberam
o engano quando o soldado despertou. Mas, se não foi assim, não pagou por um crime
seu, mas pelo do seu amigo. Aquilo está corroendo sua consciência todo este tempo.
Nunca conseguiu escapar daquela prisão, por isso colocou aquele nome no seu hotel,
Diego abaixou a cabeça, mas ela prendeu seu rosto entre as mãos e o obrigou a olhá-la.
— Pois não vou permitir, me ouviu, Diego Lezcano? — assinalou resolvida — Agora
sua felicidade também é coisa minha.
Diego a apertou com força e beijou sua boca desesperadamente. Naquele momento,
soube que deveria ter sido bom para que Deus o recompensasse com a enorme
felicidade que sentia. Levantou-se cuidadosamente e a abraçou pela cintura enquanto
o pequeno corpo dela se estendia ao longo do seu. A manta resvalou e caiu ao chão.
Diego a beijou possessivamente durante mais de um minuto. Suas mãos vagaram por
suas costas apertando-a fortemente. Mary se abraçou ao seu pescoço e se curvou
contra ele enquanto emitia pequenos ofegos com cada respiração. Ele desceu as
palmas abertas e procurou seu traseiro apertando-a contra seu sexo.
— Sim. — sussurrou junto a sua orelha antes de beijar o lóbulo com uma caricia
provocante.
Frenético, Diego tentou conduzi-la à cama. Mas, muito desorientado pelo ardente
torvelinho no qual ambos pareciam ter caído, tropeçaram com a mesa. Diego atirou
todos os livros ao chão com uma mão, virou Mary e a fez se segurar ao móvel.
Enquanto com uma mão lhe acariciava as costas, com a outra desabotoou suas calças.
Fez Mary abaixar o corpo até ficar com o tronco inclinado sobre a mesa.
Acariciou sua fina cintura e desfrutou o indizível com a visão que aquela postura lhe
oferecia de seu traseiro.
Mary apoiou as mãos na madeira e tentou se virar quando notou que ele se
aproximava por trás.
— Mas isto não..., — sussurrou desconcertada — assim não poderá. Oh, Diego —
gemeu quando notou como ele usava seu pé para lhe separar as pernas.
Diego introduziu um dedo em sua cálida umidade, valendo-se dela para lubrificar
suas suaves e abrasadoras carícias.
Mary cravou as unhas na madeira quando seu corpo começou a tremer a um ritmo
vertiginoso.
Ele não a fez esperar mais. Sem deixar de acariciá-la com uma mão, com a outra
agarrou seu rígido membro e o orientou ao seu interior. Com um violento grunhido,
Diego se enterrou nela enquanto começava a se mover com longas e profundas
investidas. Mary o sentiu dentro e cada acometida a levou a um nível mais alto de
prazer sexual. Até que, completamente banhada em suor, gritou e se retorceu sobre a
escrivaninha quando seu corpo explodiu em um violento êxtase. Diego notou as
contrações de seu orgasmo segurando-o em seu interior. Agarrou seu traseiro com
ambas as mãos e se enterrou o mais dentro dela que pode. Depois de umas poucas
investidas percebeu que seria incapaz de aguentar mais e se retirou em seguida,
derramando-se sobre suas nádegas. Após um brusco grunhido de liberação, Diego se
deixou cair sobre ela.
Várias horas mais tarde, Mary e Diego ainda permaneciam abraçados sob a grossa
manta. Diego descera à cozinha da senhora Carpenter e voltara com uma bandeja
repleta de comida, da qual ambos se serviram. Assim que terminaram o almoço, Mary
se deixou cair sobre as almofadas com o corpo absolutamente extenuado. Abraçou-se a
Diego, e os dois dormiram apertados durante horas.
— Ao acordar, acreditei que tudo tinha sido um sonho, que você não estava aqui.
— Diego, gostaria que adotássemos Eric. — declarou, observando sua reação com
atenção. — E, além dele, — continuou — quero ter filhos com você.
Os dois se observaram fixamente durante uns instantes. Diego não estava disposto a
ceder nem um ápice naquele assunto. A saúde de Mary era frágil, e nenhum médico
aconselharia uma gravidez. Nunca se arriscaria a perdê-la por um desejo egoísta de ter
um filho. Quando os olhos dela se encheram de lágrimas, Diego se levantou da cama
imediatamente. Não iria se deixar convencer. Sabia que ela conseguiria qualquer coisa
dele se chorasse.
— De que, antes de decidir se casar com alguém, sempre devemos esclarecer estes
pontos. Diego, quero me casar com você, mas por isso não vou deixar de ser eu
mesma: desejo continuar desenhando vestidos, quero adotar Eric e desejo mais que
nada no mundo ter um filho com você.
— Mary, — respondeu pegando seu rosto entre as mãos. — eu não quero me casar
com nenhuma outra. Amo você tal como é: desenhe se quiser; adotaremos Eric, eu
também o desejo; mas, no que diz respeito ao resto, não cederei.
— Não, não, não e não. — disse ele balançando energicamente a cabeça. — Nada de
bebês, me ouviu, Mary?
— Vai ter que me dar uma boa explicação. — gritara furioso ao seu amigo.
Uma hora mais tarde Diego saía do escritório de Robert muito satisfeito; seu irmão
dera seu consentimento de bom gosto para que o casamento fosse realizado o quanto
antes. Já que, e como Diego lhe afirmara que aconteceria, Robert concedeu a mesma
importância que ela havia concedido ao seu passado; ou seja, nenhuma.
Para Robert, um homem se definia pelos atos que decidia fazer, e não por aqueles aos
quais se via obrigado; e para ele, a nobreza de seu amigo ficara sobejamente
demonstrada desde a noite em que seus caminhos se cruzaram.
Quanto à sua mãe, Diego e Mary chegaram a um acordo antes de sair do castelo. O
primeiro impulso de ambos foi o de confessar todas as maldades da condessa a
Robert. Mas Mary pensou então como seu irmão ficaria infeliz se chegasse a saber
alguma vez o que sua mãe fora capaz de fazer.
Sua mãe se apressara a afirmar para Sara e Robert que sua fuga tinha sido com lorde
Davenport. Informação que Mary não demorou a corrigir ao retornar, afirmando que,
guiada por um arrebatamento romântico, fugira com Diego. A condessa não se
atreveu a contradizê-la, pois se exporia a revelar seu grau de implicação no assunto.
Mary decidiu não revelar a verdade a Robert nem a Sara, ainda que não em troca de
nada. Dias depois de seu regresso foi à sala de sua mãe.
— Filha, — a condessa exclamara tentando se aproximar para abraçá-la. — que
alegria que tenha vindo me ver!
— Esta não é uma visita de cortesia, mãe. — respondeu fazendo um brusco gesto
com a mão para que não se aproximasse. — Vim somente lhe informar como serão as
coisas a partir de agora. — Fez uma pequena pausa para se acalmar e continuou. —
Quando chegar a hora de voltar a Sweet Brier Path, você dirá a Robert que deseja ficar
aqui. Viverá sozinha nesta casa e, quando não tivermos outra opção ao nos
encontrarmos em certas festas familiares, deverá guardar todos seus comentários
mordazes e não voltará a nos atormentar com suas opiniões e queixas.
— Quando a condessa tentou protestar, Mary lhe ordenou que se calasse com outro
gesto. — Se alguma vez voltar a fazer ou a dizer qualquer coisa que esteja fora de
lugar, contarei a Robert tudo o que você tentou fazer comigo. Pode acreditar que ele
não será tão benévolo quanto eu. Sabe a desonra que é ser repudiada? Suas amigas
nunca voltarão a se aproximar de você e adeus posição que tanto lhe importa.
— Por meu bem? — Mary gritou. — Entregou-me a um tipo para que me violasse,
mãe. — arrematou, com uma repugnância nada sutil.
— Você nunca entenderia porque sempre teve privilégios. Nunca precisou suportar
que outros a olhassem por cima do ombro simplesmente por não ter nascido na
família certa. Tudo o que fiz, foi pensando em que você e seu irmão nunca precisassem
passar por isso.
— A partir de agora já sabe o que tem de fazer se não quiser perder tudo.
— Quero que todos saibam que lhe pertenço e de que você me pertence. Não temos
porque esconder. — Dissera ele, quando os dois ultimavam os detalhes do evento.
Apesar do rumor de sua fuga ter se estendido entre a alta sociedade londrinense,
nenhum dos convidados encontrou motivos para recusar o convite ao prematuro
enlace da irmã do conde de Rohard com o senhor Lezcano. Claro que muitos deles
deviam dinheiro ao noivo e aquele fato os dissuadia de qualquer tentativa de boicotar
o evento com uma negativa para assistir ao casamento, mesmo sendo realizado com
tanta pressa.
Sua família se colocou nas primeiras filas. Seu irmão segurava a mão de sua esposa
que não deixava de chorar, ainda mais, devido a sensibilidade pela gravidez. Ao seu
lado, Eric e seus amigos se remexiam incômodos com seus trajes de gala. Olivia, que
contemplava orgulhosa o lindo vestido com incrustações de pequeníssimas pedras
preciosas de sua sócia, também não conseguia reter as lágrimas.
Junto a todos eles, a condessa viúva observava tudo em completo silêncio, porque,
apesar da cerimônia responder a opulência que ela sempre havia desejado, Mary
estava convencida de que sua mãe continuava pensando que a escolha do noivo não
era a adequada. Mas não diria nada, já não poderia continuar se intrometendo em suas
vidas. A condessa viúva era como era e não se arrependia de nada do que fizera
porque, segundo ela, fizera o correto. Ainda que naquela manhã, quando a vira
Mary deixou de observar a rua e sorriu ao menino. A quem, por certo, não custou
nada fazer a ideia de que ela e Diego fossem seus novos pais. Recebeu feliz a notícia
quando lhe contaram a possibilidade de adotá-lo. Ainda que no início Eric pensasse
que sua intenção era adotar todos, Diego lhe explicou que, quando o colégio estivesse
pronto, não teria que se preocupar mais por seus amigos e poderia visitá-los sempre
que viajassem para Londres. O menino demorou um tempo em assimilar que iria se
separar de sua pequena família para passar a tomar parte em outra. Mas a ideia
parecia satisfazê-lo, porque não precisou fazer nenhum esforço para começar a chamá-
los de papai e mamãe.
Perdida outra vez em seus pensamentos, Mary sorriu melancólica ao recordar a cara
de bobo que Diego fazia cada vez que Eric o chamava de papai. Voltou a colocar as
mãos no ventre e rezou para que ele a compreendesse e pudessem compartilhar a
felicidade pela chegada daquele filho que crescia em seu interior.
— Vem, mamãe? — Eric insistiu, esperando que Mary lesse antes de se deitar, como
fazia a cada noite.
— Bem, não posso negar que eu também estou morto de medo. Desde que Mary nos
disse esta tarde, — Robert expôs, após tomar outro gole de seu copo. — não deixo de
pensar que não só posso perder a minha mulher, mas também a minha irmã.
Diego não se sentiu zangado quando percebeu que Mary informara sobre sua
gravidez a todos, antes dele. Com certeza se sentia insegura, porque conhecia sua
opinião acerca de ter filhos próprios. Diego soube que fora sua culpa, porque na
primeira vez que estiveram juntos fora incapaz de se retirar a tempo, e que aquilo fora
suficiente para colocá-la em grave perigo. Amaldiçoou-se outra vez e tomou um bom
trago de seu whisky.
— Como diabos suporta isso? — perguntou ao seu amigo enquanto passava uma
mão pelo rosto. — Porque eu estou a ponto de ficar louco.
— Já chega, por favor. — disse e lhe colocou a mão no ombro para detê-lo. — Não
vai acontecer nada, maldição. — continuou com um esforço para se convencer, mais
a si mesmo do que ao Diego. — Dentro de alguns meses estaremos rindo de tudo isto
com nossos filhos e sobrinhos nos braços, verá.
Diego o olhou sem muita segurança, e ambos terminaram seus copos de uma
vez.
Seu irmão entrou naquele momento, apesar da tentativa de ser detido por um grupo
de criadas.
Robert se aproximou da cama e pegou a mão de Sara enquanto com a outra começou a
aplicar-lhe panos úmidos na fronte. Sara respirava cada vez mais agitada.
O médico tirou seus pequenos óculos e o olhou como se ainda não o tivesse percebido
na sala.
— O que faz aqui, milorde? Deveria esperar lá embaixo. Robert se virou furioso para
todos.
— Matarei o próximo que tentar me tirar daqui. Ajude minha mulher, maldição!
— Robert, — Sara sussurrou — em um livro, li que há povos que dão à luz em pé.
Ajude-me a me levantar daqui!
Ao não obter resposta, Robert ajudou sua mulher a se levantar. Sara se ergueu com um
gesto de dor. Pegou uma das mantas da cama e a levou com ela até perto da lareira.
Robert mandou todos saírem, salvo a Mary.
— O que faço, meu amor? — murmurou, virando-se para Sara. — Diga-me o que
Mary estava paralisada pelo terror, mas diante da imagem daqueles dois
valentes pais tentando sozinhos trazer o seu filho ao mundo, se obrigou a ir até eles e
oferecer-lhes sua ajuda.
disposta.
Sara começou a andar em círculos sobre a manta que estendera no piso, ajudada por
Robert. A cada contração se abaixava, se apoiando com força nos braços de seu marido
e na cadeira de Mary. Só repetiu quatro vezes; porque na quinta, e após um grito
esmagador, Sara deu à luz a um robusto menino.
Completamente ensopada em sangue e suor, Sara pegou seu filho, que se retorceu em
seus braços enquanto berrava desconsolado.
— Agora, chame o médico. — disse, observando a ambos com lágrimas nos olhos. —
Tudo vai bem.
Robert estava tão molhado quanto sua mulher e tremia violentamente. Quando ia
atender os seus desejos, Sara o parou e puxou sua mão.
— Eu o amo, Robert Luton, e este menino nasceu graças a vocês dois. — declarou,
olhando aos dois irmãos.
Robert pegou o rosto de sua mulher entre suas grandes mãos e lhe deu um
apaixonado beijo nos lábios. Quando saiu, Mary se aproximou da sua amiga, que jazia
recostada no piso com seu filho nos braços.
— Oh, Sara, é lindo. — sussurrou, acariciando a cabecinha do bebê. Ela lhe sorriu.
A sala voltou a se encher de criados e atividade. Sara voltou para a cama e, após ser
lavada e examinada pelo médico para comprovar que tudo estava bem, ela e sua
família puderam descansar.
Quando todos se retiravam pelo corredor, Wallace se aproximou de Mary com cara de
preocupação.
— Onde está?
— No escritório, milady. Mas creio que bebeu muito. Derrubou três homens que
tentavam ajudá-lo.
garrafa.
Mary pegou a cabeça de Diego entre as mãos e o fez olhá-la enquanto lhe acariciava os
cabelos com suaves movimentos tranquilizadores.
— Sei exatamente como se sente e lhe prometo que só passaremos por isto esta vez.
Há formas de evitá-lo, sabe? Falarei com minha amiga Edén Smith e lhe pedirei toda a
informação que necessitamos, e adotaremos, adotaremos vinte meninos se for
necessário De acordo, meu amor?
Diego assentiu e, a seguir, lhe deu um apaixonado beijo com sabor de whisky.
Contar com a experiência de Sara foi de grande ajuda no momento em que Mary
precisou dar à luz. Mas, diferente de sua amiga, seu parto durou umas poucas horas.
Diego, que não saiu nem por um momento de seu lado, esteve mais calmo do que
Mary esperava; depois de ameaçar somente duas vezes ao médico, se relaxou um
pouco ao comprovar que tudo corria normalmente. Segurando as mãos seu marido, às
oito e quinze minutos da tarde, sua filha veio ao mundo.
Depois de dormir durante horas, Mary abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi
Diego recostado em uma cadeira ao lado de sua cama. Tinha os cabelos revoltos, o
colete desabotoado e as mangas da camisa dobradas até os cotovelos. Mary sorriu com
ternura e pensou que, mesmo com aquele aspecto desarrumado, seu marido estava
irresistível.
— Olá. — ele disse quando viu que abria os olhos. O sorriso de Mary aumentou.
— Agora dorme.
— Quero vê-la.
— Querida, se sua filha tiver esse caráter do demônio que você tem, que Deus me
ampare com as duas. — implorou, olhando para o céu.
Diego se sentou ao lado do berço e acomodou Mary com cuidado, em seu colo. Ela
afastou a manta do berço e contemplou aliviada como sua filha, que acordara com
todo o alvoroço, os observava com atenção e movia jubilosa suas perninhas. Mary
suspirou, e o medo que sombreara secretamente sua alma durante os últimos meses se
dissipou. Diego se inclinou e pegou uma colcha em cima da cama, envolvendo com ela
a sua mulher para que não se esfriasse.
Mary olhou ao responsável por toda aquela felicidade e o beijou com paixão. Então,
sua filha chorou para chamar sua atenção. Mary se virou para ela e a cobriu de novo
enquanto lhe sorria com ternura.
Depois de uma semana ouvindo falar dela sem parar, Eric Nash decidiu conhecê- la
por fim. Então, uma vez que tudo estava em silêncio, entrou silenciosamente na sala
do bebê. A lareira estava acesa e semeava a sala com cálidos resplendores dourados.
Eric, que por alguma estranha razão estava nervoso, se aproximou lentamente do
berço. Afastou o fino dossel que o cobria e distinguiu então a cabecinha coberta de
cabelos negros. Ao perceber sua presença, a menina levantou seu bonito rostinho para
ele.
Rita Morrigan surpreendeu sua família desde pequena por sua inclinação a devorar
historias: em voz alta, em um filme, em uma peça teatral, em uma ópera, em uma
canção. Admirada pelo efeito mágico que as histórias produziam em quem as
recebiam, tomou a decisão de começar a relatar as próprias.
Atualmente vive em uma cidade de sonho junto ao mar com seu marido e seu gato
Fume.