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Maria Cecília Galletti

Oficina em Saúde Mental: instrumento


terapêutico ou intercessor clínico?

Mestrado – Psicologia Clínica


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
2001
i

Maria Cecília Galletti


cecig@uol.com.br

Oficina em Saúde Mental: instrumento


terapêutico ou intercessor clínico?

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre
em Psicologia Clínica, sob a orientação do
Prof. Dr. Peter Pál Pelbart.

PUC – SP

2001
ii

Banca Examinadora:

__________________________________

__________________________________

__________________________________
iii

Para Júlio e Bárbara


iv

Agradecimentos

Ao prof. Peter Pál Pelbart, que me acolheu como orientador e me


acompanhou com rigor e carinho na tarefa de encontrar um caminho e na
dificuldade em “separar pérolas de palhas”.

Aos meus pais que “sem saber do que se tratava”, me permitiram aventurar
pelos caminhos da Terapia Ocupacional.

Aos meus irmãos César, Fernando, e especialmente à Mara, companheiros


desde sempre.

À Bel, pela cumplicidade inabalável.

À Regina Benevides, poderosíssima intercessora no pensamento clínico, por


sua alegria, generosidade e confiança no acompanhamento de todo o trajeto deste
trabalho.

À Fátima Vicente, pela escuta sempre atenta aos “devires”.

À Izabel Marazina e Eliane Berger, grandes interlocutoras na


problematização da clínica da saúde mental.

Aos professores Suely Rolnik e Luiz Orlandi, pelos seminários inspiradores e


contribuições valiosas por ocasião do exame de qualificação.

Ao Paulinho Carvalho por sua revisão rigorosa, implicada e carinhosa, além


da grande amizade que temos compartilhado.

Aos queridos amigos do grupo de orientação do Prof. Peter Pál Pelbart:


Cristina Lopérgolo, Cristina Vicentin, Maurício Lourenção, Abrahão dos Santos,
v

Luis Eduardo Aragon, Felícia Knobloch, Edson Olivari de Castro, Paulo Carvalho,
Elizabeth Lima, Ana Paula Nassírios, que sabendo o que significa escrever,
contribuíram – cada um à sua maneira – para que este trabalho tomasse forma.

À Sônia Silva e Alcita Coelho, parceiras apaixonadas pela música.

À equipe do Centro de Convivência do Parque da Previdência: Cecília, Luci,


Maraísa, Cláudia, Elsie, Ivan, Adelina, Benê, e em especial aos tresloucados
Mariza, Denise, Pepe e Irene, com os quais me mantive devidamente acompanhada
no trato com a loucura.

À equipe do Espaço Lúdico Terapêutico: Andréa, Denise, Gisela, e


principalmente à Mari por seu entusiasmo quando me acolheu na universidade e
pelo apoio e liberdade de atuação.

Aos pacientes-usuários desses serviços, que me levaram a abordar essas


questões de frente.

Aos alunos-estagiários de TO, que em vários anos de supervisão clínica me


instigaram com suas questões acerca do ofício terapêutico.

À CAPS, pelo financiamento parcial desta pesquisa.


vi

É possível que escrever esteja em uma relação essencial com as


linhas de fuga. Escrever é traçar linhas de fuga, que não são
imaginárias, que se é forçado a seguir, porque a escritura nos
engaja nelas, na realidade, nos embarca nela. Escrever é tornar-
se, mas não é de modo algum tornar-se escritor. É tornar-se
outra coisa.
(Gilles Deleuze, 1998, p. 56)
vii

Resumo

O objetivo desta dissertação é problematizar o uso das oficinas no campo da


Saúde Mental. Dispositivo implementado em larga escala nas instituições dessa área,
as oficinas são comprometidas com os postulados da reforma psiquiátrica brasileira
e geralmente são utilizadas nos projetos que visam a inclusão-inserção social dos
usuários.

Pela análise de várias experiências de uso das oficinas procurei cartografar o


modo de subjetividade que esse dispositivo instaura na clínica. Ficou evidenciado
que a implementação dessa prática clínica impõe ao campo da saúde mental sempre
uma conexão com outros domínios, e isto é, a meu ver, a originalidade e a
singularidade desse dispositivo clínico: colocar em relação campos naturalmente
separados, sem sujeitar um ao outro.

Esta função das oficinas acaba por distingui-las dos demais dispositivos
terapêuticos que submetem ao seu domínio tanto a arte como o trabalho, reduzindo
esses campos a instrumentos terapêuticos.

O enfoque fundamental desta pesquisa é mostrar que o caráter heterogêneo


dessa prática clínica aponta não para uma nova especialidade clínica mas para uma
clínica da transdisciplinaridade, isto é, uma clínica que habita a fronteira e provoca
conexões com outros campos.

Palavras-chave: oficina, práticas terapêuticas, clínica transdisciplinar, intercessor,


saúde mental, subjetividade, Terapia Ocupacional
viii

Abstract

The objective of this dissertation is to determine the problems in the use of


the “ateliers” in the field of the Mental Health. Widely implemented in the
institutions of that area, the “ateliers” are committed with the postulates of the
Brazilian psychiatric reform and they are generally used in the projects that seek the
users' social inclusion-insertion.

Through the analysis of several experiences that uses the “ateliers” I tried to
map the subjectivity way that this device establishes in the clinic. It was evidenced
that the establishment of that clinical practice always imposes, to the field of the
mental health, a connection with other domains, and that is, according to my
understanding, the originality and the singularity of that clinical device: to relate
fields that are naturally separated, without submiting one to the other.

This function of the “ateliers” ends up in their distinction from the other
therapeutic devices that submit to their domain both the art and the work, reducing
those fields to therapeutic instruments.

The fundamental focus of this research is to show that the heterogeneous


character of that clinical practice does not point to a new clinical specialty, but to a
clinic of the transdisciplinarity, that is, a clinic that remains at the edge and provokes
connections to other fields.

Key-words: “ateliers” therapeutic practices, transdisciplinary clinic, intercessor,


mental health, subjectivity, Occupational Therapy.
ix

Sumário

Apresentação 1

Capítulo 1 – Oficinas e Saúde Mental 6


1.1. A Reforma Psiquiátrica e as oficinas como alternativa de tratamento.................9
1.2. A reforma psiquiátrica e a cidade de São Paulo.................................................14
1.3. Mapeando a utilização do termo oficina............................................................19
1.4. Perspectivas para o termo oficina: fabricando intercessores..............................24
1.5. Oficina e trabalho: o intercessor artesão............................................................28
1.6. A experimentação na clínica da psicose e o “intercessor artesão”....................33

Capítulo 2 – As oficinas no território da Saúde Mental 38


2.1. O projeto dos Centros de Convivência e Cooperativas......................................40
2.2. O Cecco Parque Previdência..............................................................................48
2.3. As oficinas como técnica: convivência X trabalho............................................54
2.3.1 Oficinas-convivência
2.3.2 Oficinas-trabalho
2.4. Rupturas: o fechamento do Cecco......................................................................67

Capítulo 3 – Novas práticas: desertando a Saúde Mental 69


3.1. A criação de um novo território........................................................................69
3.2. Novos agenciamentos, um novo mapa: o Espaço Lúdico Terapêutico ............75
3.3. O terreno de construção.....................................................................................77
3.4. As oficinas no ELT: da técnica ao dispositivo..................................................80
3.5. Os adolescentes e as experimentações de “trabalho”........................................82
3.6. A oficina de marcenaria....................................................................................85
3.7. Desdobramentos: contaminando a cidade.........................................................89
3.8. Composições musicais.......................................................................................92
3.9. A oficina de música no espaço terapêutico.......................................................95
3.10. Oficinas musicais...........................................................................................101
3.11. O Grupo Sapato e Meia: alguns ensaios........................................................104
3.12. A materialidade sonora e o primeiro CD........................................................108

Considerações finais 113

Referências bibliográficas 121


M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 1

Apresentação

A arte de construir um problema é muito importante: inventa-se


um problema, uma posição de problema, antes de se encontrar
uma solução.
(Gilles Deleuze, 1998, p. 9)

Desci o elevador daquele velho e mal cuidado prédio do centro da cidade


sentindo um frio na barriga daqueles que nos envolvem somente quando nos
sentimos completamente aterrorizados. A névoa que encobria o céu paulistano e que
dá a esses dias um clima melancólico não poderia me causar, depois de anos nessa
metrópole, tanto estranhamento. Deixando de lado as possíveis associações do mal-
estar com a cidade, o que percebo é que não consigo me afastar da imagem da
entrevista que tivera há poucos minutos.

O diretor do Centro de Farmacodependência tinha sido taxativo: a minha


aceitação na equipe daquele serviço em formação estava condicionada à escritura de
um projeto de intervenção da Terapia Ocupacional que contivesse a definição dessa
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 2

especialidade, estabelecendo objetivos gerais e específicos da atuação desse


profissional junto à “clínica da drogadição”.

Ainda no carro, percorrendo o imenso trajeto de volta para casa, tentava


inutilmente buscar na “rede furada da memória” as “indecoráveis” definições da
Terapia Ocupacional, livros específicos com as descrições e análises das atividades,
enfim, tudo que pudesse, naquele momento, me auxiliar naquela difícil empreitada.
Será que finalmente descobririam que estudei muito pouco acerca da especificidade
da profissão?

Fui tomada, a partir daí, por uma espécie de desassossego. Após anos de
experimentação numa prática de desconstrução da especialidade como forma de
expressão na clínica, lá estava eu de novo às voltas com aquelas questões. Na
tentativa de trazer à tona – por meio de lembranças imprecisas – um terapeuta
ocupacional escondido ou submerso, emergiam da memória gestos, imagens, sons e
afetos fervilhantes, mas que diziam respeito a outras lembranças: um passeio no
parque, as tortas de frango do almoço comunitário, as botas usadas para ir à horta,
situações de um campo de atuação que pouco tinha a ver com a especificidade do
especialista T.O.

Essa memória – que insistia em lugar de outras e que, ao mesmo tempo, me


tirava a sensação de desassossego e trazia de volta um “em casa” – são as marcas da
prática clínica com as oficinas que naquele momento eram reativadas (Rolnik,
1993). Dentre outros efeitos era, também ali, impulsionada para o que ora apresento
neste trabalho de pesquisa.

A partir dessas marcas é que procurei problematizar a utilização das oficinas


como ferramenta de intervenção na clínica da saúde mental. Como propósito mais
geral pretendo discutir as perspectivas desse dispositivo implementado em larga
escala a partir do movimento da reforma psiquiátrica brasileira. Embora de um
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 3

ponto de vista mais particular, busco investigar o modo de produção de


subjetividade que ele introduz nas práticas clínicas.

O recurso oficina, de caráter múltiplo e heterogêneo, tem encontrado solo


fecundo para sua disseminação geralmente nas instituições identificadas com o
ideário da reforma, desempenhando um papel fundamental nos trabalhos
institucionais, promovendo uma ampliação nos limites de atuação e contribuindo na
elaboração de novos sentidos para a clínica.

As experiências constitutivas desta dissertação foram e ainda são produzidas


em projetos da rede pública de saúde mental, em propostas substitutivas às
instituições fechadas, que têm como eixo a inserção social dos usuários, utilizando
substancialmente as oficinas como instrumento de intervenção.

Tomando a ênfase dada ao eixo inserção-inclusão social, a noção de


autonomia (entendida como a capacidade de o indivíduo gerir sua vida de acordo
com suas possibilidades) e ainda a noção de cidadania postulada pela reforma, a
estratégia oficina passou a ser amplamente requisitada. Na minha perspectiva, a
oficina guarda, em sua singularidade, uma heterogeneidade constitutiva,
imprescindível para essas ações.

Como terapeuta ocupacional e sobretudo como clínica apaixonada por essas


intervenções, utilizando-as quase ilimitadamente, sou constantemente convocada a
questões como: qual o papel das oficinas na clínica da saúde mental? O que as
diferencia das demais propostas terapêuticas? Quais as inter-relações que o trabalho
das oficinas foi produzindo na saúde mental?
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 4

Se minha intenção nesta pesquisa é cartografar1 o trajeto e o modo singular


de funcionamento das oficinas em meio a tantas intervenções, buscando sua
originalidade e sua potência disruptiva para os usuários e para os serviços de saúde,
esta é também a cartografia da minha prática clínica.

São três capítulos que apresentam o percurso trilhado no enfrentamento com


as questões vindas da prática com as oficinas. No Capítulo 1, apresento uma breve
história da reforma psiquiátrica brasileira e seus desdobramentos, considerando esse
movimento disparador de novas intervenções. A partir disso privilegio a oficina
como um modo de intervenção, buscando acompanhar os espaços de propagação e
rupturas e entender o lugar que esse instrumento é chamado a ocupar na assistência
em saúde mental.

Ainda nesse capítulo, pelo prisma do termo oficina exploro o território de


ação das oficinas na saúde mental, tecendo as interfaces desse dispositivo com
outros domínios e circunscrevendo o seu modo de produção que enfoca
possibilidades sempre móveis.

No Capítulo 2 procuro descrever e analisar o uso das oficinas nos Centros de


Convivência e Cooperativas em São Paulo, equipamento da rede de assistência em
saúde mental da Prefeitura do Município, que funcionou no período 1989-1996 e
tinha como projeto a inserção social dos “excluídos”, utilizando essencialmente as
oficinas como estratégia de intervenção.

1
A noção de cartografar aqui utilizada é trazida por Deleuze e Guattari, tal como trabalhado por Rolnik
(1989). A propósito, e baseando-se nessas mesmas fontes, Regina Benevides de Barros aponta que “a
cartografia é um desenho que acompanha os movimentos de transformação de uma paisagem. Neste
sentido, ela é sempre provisória e singular. Ela diz das linhas que são puxadas daqui e dali e que se tecem
no próprio acontecer. A cartografia não tem pretensão de verdade nem de universalidade. Ela acompanha
os movimentos e compõe uma realidade. (...) Pensamos que todos podemos ser cartógrafos. O cartógrafo é
aquele que quer envolver-se com o traçar, quer navegar no movimento, quer misturar-se com os
acontecimentos, quer compor territórios que não sejam fixos por muito tempo, já que o movimento não
cessa”. (Barros & Brasil, 1992, p. 228)
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 5

Já no Capítulo 3, o Espaço Lúdico Terapêutico, projeto de assistência do


curso de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, é tomado como
território de experimentação tanto da prática clínica como de análise dos
dispositivos oficinas.

A perspectiva deste trabalho não é, de modo algum, traçar um novo modelo


de intervenção, mas ao contrário, entender essa prática de possibilidades infinitas
como um dispositivo que coloca em xeque a clínica atual, isto é, permite
problematizar padrões terapêuticos cristalizados e com isso gerar perspectivas novas
para esse campo de atuação.

Num momento em que as práticas clínicas estão cada vez mais aprisionadas
em modelos e perspectivas cientificistas, o modo híbrido e migrante das oficinas é
uma alternativa de diálogo entre a clínica e outros campos da vida comum e
coletiva.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 6

Capítulo 1

Oficinas e saúde mental

O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem


eles não há obra. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é
preciso fabricar seus próprios intercessores.
(Gilles Deleuze, 1996, p.156)

Nas últimas décadas temos observado nas instituições de saúde mental


preocupadas em romper com o sistema asilar, uma redução no uso de intervenções
terapêuticas mais tradicionais, em favor de propostas alternativas, que valorizam as
várias dimensões dos processos de subjetivação.

O dispositivo a que chamamos oficina é geralmente convocado quando se


fala em “novas” propostas terapêuticas. Seu uso tem sido freqüente e quase
corriqueiro na clínica “psi” para designar um amplo espectro de experiências
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 7

terapêuticas e extras-terapêuticas, de diferentes formatos e composições. Quase


sempre amparado na crítica à psiquiatria tradicional e portanto respaldado pelas
concepções da reforma psiquiátrica, o universo das oficinas não se define por um
modelo homogêneo de intervenção e nem tampouco pela existência de um único
regime de produção, ao contrário, é composto de naturezas diversas numa
multiplicidade de formas, processos e linguagens.

Mas, o que caracteriza uma atividade aqui denominada como oficina? Quais
os aspectos que a definem? Ou ainda, como se dá a articulação, nesse mesmo “pano
de fundo”, entre esta extensa gama de atividades? Qual é a história que constitui a
suposta liberdade com que se tem utilizado esse termo para traduzir novas invenções
na clínica da saúde mental?

Radicalizar o conceito e buscar os contornos que o seu emprego assume na


nova feição da assistência psiquiátrica, é importante para começar a abordar o tema,
não para tomá-lo como modelo, mas ao contrário para des-universalizá-lo e
compreender como suas ações foram se criando e se organizando nas intervenções
da área.

A naturalização da prática da oficina, muitas vezes tomada a priori como um


instrumento na desconstrução da prática manicomial, tem o duplo efeito de
aprisionar e apassivar o dispositivo, mais do que torná-lo disruptivo nas
intervenções institucionais.

No que tange à produção teórica, o tema das oficinas na clínica tem sido
pouco estudado e é escassa a bibliografia em que este conceito é explorado ou
mesmo mencionado.

Mas ao contrário do que podemos rastrear nas produções teóricas,


percebemos que essas propostas terapêuticas têm sido cada vez mais criadas,
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 8

viabilizadas e desenvolvidas nas práticas institucionais implantadas nos projetos


alternativos de assistência à saúde mental.

Mas o que vem mesmo a ser oficina?

Por ora, a análise está centrada nas suas definições, mas já dá para perceber,
nitidamente, que é um termo amplo. Vindo do latim, o termo officina, tem
significações diversas, abrangendo o universo do trabalho. O dicionário Novo
Aurélio: século XXI apresenta várias acepções para o termo, trazendo um destaque
para “oficina pedagógica”:

[Do lat. officina.] S. f. 1. Lugar onde se exerce um ofício. / 2. Lugar


onde se fazem consertos em veículos automóveis. / 3. Dependência
de igreja, convento, etc., destinada a refeitório, despensa ou
cozinha. / 4. Fig. Lugar onde se verificam grandes transformações.
// Oficina pedagógica. (Educ. Esp.) Ambiente destinado ao
desenvolvimento das aptidões e habilidades de portadores de
necessidades especiais, mediante atividades laborativas orientadas
por professores capacitados, e em que estão disponíveis diferentes
tipos de equipamentos e materiais para o ensino ou aprendizagem,
nas diversas áreas do desempenho profissional.

Se, entretanto, nessas definições, o termo oficina articula itens como trabalho,
ofícios, ferramentas, instrumentos, atividades, indústria, arte e profissão, uma
pergunta ainda insiste: de que trabalho, ou de que ofícios estamos falando quando
queremos estabelecer uma conexão entre esse universo de significações e os
usuários de saúde mental?

Por que será que a clínica da saúde mental necessitou desta diversidade de
articulações, e da aproximação com essa paisagem, para designar as atuais
intervenções?
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 9

1.1 A Reforma Psiquiátrica e as oficinas como alternativa de tratamento

A reforma psiquiátrica brasileira provocou transformações éticas nos modos


de tratamento, reconfigurou a assistência em saúde mental rompendo com a
violência, segregação e exclusão dos asilos, passando a estimular a criação das
chamadas “novas instituições”.

Nas práticas e nos discursos que compõem a psiquiatria a partir da década de


1970, notamos alguns pressupostos quase já consagrados, no que tange à
humanização da assistência em saúde mental, descronificação de pacientes e às
tentativas de modernização dos tratamentos.

O hospital-asilo e o modelo de intervenção medicalizador vêm sendo


denunciados e combatidos e a recusa a essas concepções de tratamento é hoje uma
postura crítica aprovada por grande parte da sociedade civil e apoiada por
organismos mundiais, incluída aí a Organização Mundial de Saúde.

A partir dos anos 60, período de intensas movimentações sociais em vários


países, surgem experiências inovadoras no campo da saúde mental. As comunidades
terapêuticas, a Psiquiatria de Setor, a Psicoterapia Institucional, a Psiquiatria
Democrática, a Socioanálise, para ficar apenas entre as mais importantes correntes,
provocaram transformações éticas nos modos de tratamento da doença mental,
problematizaram o paradigma psiquiátrico e contribuíram decisivamente para o
questionamento dos aparatos da psiquiatria e para a desconstrução de um modelo de
segregação e exclusão social, que é sintetizado pela figura do manicômio.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 10

Decorrente disso, o mundo psi foi contaminado e convulsionado por essas


experiências modelares, que possibilitaram inovações das práticas em Saúde Mental,
muitas delas tornando-se políticas oficiais como no caso da experiência nacional
italiana e da Psiquiatria de Setor na França (Passos, 2000).

No Brasil, a desmontagem do manicômio como centro do tratamento em


saúde mental tem sido um processo lento e que ainda hoje carece de cuidados, como
evidenciaram notícias apresentadas com destaque na Folha de São Paulo
(30/06/2000), que denunciava a existência de práticas manicomiais, incluído o uso
de eletrochoques e cirurgias cerebrais (lobotomia).

No final da década de 1970, quando as movimentações políticas contra a


ditadura militar e a luta pela redemocratização da sociedade civil ganharam
expressão de massa no cenário nacional brasileiro, nascia o Movimento de
Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM). De fundamental importância para a
reforma psiquiátrica brasileira, tal movimento deflagrou uma série de denúncias
contra os grandes hospitais psiquiátricos e clínicas do país, mobilizou e articulou
familiares, trabalhadores, organizações governamentais e não-governamentais, na
tentativa de construir políticas públicas de Saúde Mental, contrárias ao modelo
clássico de Psiquiatria, asséptico, normalizador e excludente.

Esse processo conhecido pela consigna “Por uma sociedade sem


manicômios” instigou diversas inovações no campo de intervenções. Assim, vários
programas e ações governamentais e não-governamentais foram criados como
respostas à necessidade de mudanças, objetivando reverter o modelo psiquiátrico
clássico. O tratamento da doença mental cede lugar à promoção de saúde mental,
buscando transformar a função do hospital psiquiátrico, valorizar o serviço público
de saúde, instaurar serviços alternativos na comunidade, melhorando assim a
qualidade da assistência em saúde mental, rompendo com a violência da exclusão,
desumanização e cronificação operadas pelas instituições asilares. Mas a doença
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 11

mental e suas instituições de tratamento são questões de extrema complexidade e


somente a mudança no discurso técnico e a implantação de alguns programas
oficiais, não foram suficientes para modificar significativamente a realidade da
assistência no País.

Para os reformadores da psiquiatria a palavra de ordem era abolir o


manicômio, e, mais radicalmente, as instituições de controle social. Para os
burocratas da medicina mental, os parâmetros para as mudanças eram sobretudo de
racionalização financeira.

Assim, as mudanças operadas nos grandes hospitais – como o Juqueri em São


Paulo, a Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro e o Hospital Anchieta em Santos
– mesmo tendo desempenhado importante papel na trajetória da reforma psiquiátrica
brasileira não foram suficientes para reverter o quadro de assistência calcado no
tratamento hospitalar. Portanto, a prática psiquiátrica continua ainda marcada por
processos de confinamentos e procedimentos medicamentosos.

Reverter esse processo, romper com o paradigma asilar, deslocar o hospital


psiquiátrico do centro do sistema de atenção, não é apenas um procedimento técnico,
legado de algumas disciplinas: trata-se menos de uma remodelagem das instituições
existentes e mais da produção de um novo tipo de relação saúde/doença.

Nos anos 80, o Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental, articulado


com outras entidades e organizações, instaura um período fecundo de debates por
meio de fóruns, encontros e conferências, em que concepções consideradas
progressistas quanto à saúde mental emergem no cenário da assistência. Temas
como os direitos de cidadania, a criação de redes extra-hospitalares de atendimento e
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 12

projetos de lei de reforma psiquiátrica 2 – junto com as lutas anteriores de


desospitalização – caracterizam esse período como de avanço de concepções e
estratégias.

Esse período ficou marcado por importantes acontecimentos e eventos


configurando uma trajetória que

pode ser identificada por uma ruptura ocorrida no processo da


reforma psiquiátrica brasileira, que deixa de ser restrito ao campo
exclusivo, ou predominante das transformações no campo técnico-
assistencial, para alcançar uma dimensão mais global e complexa,
isto é, para tornar-se um processo que ocorre, a um só tempo e
articuladamente, nos campos técnico-assistencial, político-jurídico,
teórico-conceitual e sociocultural. (Amarante, 1998b, p. 75)

No âmbito da assistência pública, embora grande parte dos seus atores


estejam se orientando por essas iniciativas, a maioria das mudanças têm se
configurado apenas como experiências de desospitalização definidas por Delgado
(1997, p. 182) como “o conjunto de procedimentos destinados a transformar um
modelo assistencial baseado na segregação hospitalar em uma prática assistencial
que não isole o paciente da comunidade”.

Entretanto, o processo de desinstitucionalização foi, e ainda continua sendo,


muito inspirador para o movimento da reforma brasileira, já que esse processo
produziu (como por exemplo na Itália) uma ruptura com o paradigma asilar e uma
nova relação com a experiência do sofrimento psíquico. Esse processo se propõe não
só ao recentramento do tratamento na cidade e a reaproximação de pacientes e

2
Ver Projeto de Lei n. 3.657/89 do deputado Paulo Delgado, conhecido como “Projeto Paulo Delgado”, cuja
proposta é a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos e a criação de outras práticas assistenciais
substitutivas àquele modelo.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 13

comunidade, mas sobretudo repensar as condições de cidadania desses indivíduos,


por um lado retirando-os dos asilos, mas também desconstruindo o próprio asilo,
problematizando com isso a psiquiatria e seu pressuposto objeto.

Nicácio (1994), apoiada em Basaglia que pontua a negação da psiquiatria


como ideologia, toma a cidade de Santos como um exemplo e afirma ter havido
poucas oportunidades de serem implantadas experiências inovadoras e quando estas
surgem, têm grande dificuldade de se consolidarem.

Desmontar o aparato jurídico-institucional legitimador da instituição


manicomial é tarefa árdua. Além disso, redesenhar a loucura, substituir os hospitais
psiquiátricos e resgatar o louco não só do manicômio mas de outras clausuras (como
os medicamentos e terapias), exige não só uma política partidária de saúde com seus
dispositivos discursivos, mas um compromisso efetivo com essas ações.

É preciso aqui deixar bem claro que o aparato manicomial não se resume ao
hospital psiquiátrico, embora este seja a instituição em que se pratica o isolamento.
Conforme apontam Giovanella e Amarante (1998a, p. 141), esse aparato...

é o conjunto de gestos, olhares, atitudes que fundam limites,


intolerâncias e diferenças, em grande parte informadas pelo saber
psiquiátrico, existentes de forma radicalizada no hospício, mas
presentes também em outras modalidades assistenciais e no
cotidiano das relações sociais.

Desta forma, como bem assinalam esses autores, “o manicômio é o saber e as


práticas que definem direitos e deveres distintos, baseados em preconceitos, em
categorias de acusação, em poderes e saberes de dominação” (idem). Esse saber e
essa prática vão constituir uma hierarquização entre razão e desrazão, e assim
estabelecerão diferentes lugares sociais “para os sujeitos, de acordo com sua
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 14

condição de adaptação/desadaptação social ou de normalidade/anormalidade”


(idem).

1.2 A Reforma Psiquiátrica e a cidade de São Paulo

Na cidade de São Paulo, como no restante do país, a implantação de novas


instituições nas práticas públicas de tratamento mental têm sido marcadas por
avanços e retrocessos.

A existência dessas “novas instituições” tem se concentrado basicamente nos


períodos de administrações públicas de partidos de esquerda, geralmente
comprometidos com as propostas mais inovadoras na área. No entanto, por não
construírem mecanismos adequados de sustentação para esses projetos e pela brutal
resistência dos empresários da saúde, essas inovações não têm sobrevivido além do
período da gestão administrativa desses mesmos partidos. Esses projetos são ainda
prejudicados pelas restrições da legislação orçamentária, apesar da intenção de
grande parte de seus atores em tecer transformações mais radicais nas dimensões
técnicas e sociais.

Desde os anos 70, as iniciativas do médico Luiz Cerqueira frente à


Coordenadoria de Saúde Mental do Estado de São Paulo, iam em direção à
diminuição das internações e reinternações desnecessárias, criação de emergências
psiquiátricas, promoção de convênios com os departamentos de psiquiatria das
faculdades de medicina visando integrar saúde mental à saúde pública. Mas esses
programas não foram minimamente implementados pois, como o restante do país, o
Estado de São Paulo também vivia anos de escuridão. Para além da exclusão e
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 15

isolamento dos usuários de psiquiatria, esses foram anos de isolamento e


emudecimento da maioria da população.

No início dos anos 80, em pleno processo de reconstrução democrática, a


volta das eleições diretas e a vitória de um governo de oposição para o Estado de
São Paulo, trouxeram modificações significativas quanto à organização do sistema
de saúde.

O governo eleito em 1982 teceu uma reestruturação na assistência em saúde


mental promovendo a descentralização do hospital psiquiátrico, o aumento dos leitos
de psiquiatria nos hospitais gerais, a criação de emergências psiquiátricas, a
ampliação da rede extra-hospitalar com a criação de ambulatórios e centros de saúde
com equipes multiprofissionais, integrando e regionalizando os serviços.

Na cidade de São Paulo foram constituídos vários espaços de assistência


pública, em diversas experiências consoantes com a concepção de descentralização e
territorialização 3 do sistema de saúde em programas que integraram as secretarias de
estado e município.

Como um exemplo fecundo do final desse período há a experiência dos


Centros de Atendimento Psicossocial – CAPS (Goldberg, 1996; Sampaio, 1996 e
Yassui, 1989), equipamento que se destina ao tratamento de pacientes com quadros
mentais graves, sustentando práticas cotidianas múltiplas e diversificadas. Essa
“experiência viva” produz uma nova cultura de relações no cuidado e na atitude

3
O conceito de território tem sido muito utilizado na configuração dos cenários das novas instituições de
saúde mental, mas com sentidos bastante diversos. Nesta pesquisa usarei duas concepções de território que,
embora se assemelhem em alguns aspectos, se processam em modos de clínica diferentes. Nos Capítulos 1
e 2, o conceito de territorialização diz respeito à previsão de “uma rede de serviços articulados em níveis de
complexidade, que respeita o indivíduo como ser integral e que considera, para a compreensão do
sofrimento, o território onde ele está inserido, sua moradia, seu bairro, seu transporte, suas opções de lazer,
seu salário, seu trabalho, suas relações, sua família...” (PMSP, 1992). A partir do Capítulo 3, tomarei o
conceito na acepção desenvolvida por Deleuze e Guattari e retomada por Guattari e Rolnik (1996).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 16

terapêutica. São serviços que passaram a inventar estratégias para lidar não só com o
sofrimento psíquico, mas com a relação desses sujeitos com a vida.

As mudanças de gestão administrativa que sucederam este período


provocaram modificações na política de saúde mental de São Paulo: instabilidade,
turbulência, desinvestimento, desmantelamento de serviços, substituições de
trabalhadores fragmentam as instituições públicas. Esses aspectos caracterizam
quase a totalidade das mudanças de gestão na cidade e no país, fazendo com que
experiências inovadoras não se solidifiquem.

Nessa tensão permanente, o risco é que essas experiências permaneçam


sempre circunscritas a uma certa conjuntura político-administrativa, inviabilizando
muitas das vezes as conexões entre os projetos, burocratizando e engessando o
cotidiano das práticas institucionais.

É neste cenário histórico-político do final da década de 1980, que a Secretaria


Municipal de Saúde de São Paulo propõe uma reestruturação do modelo de atenção
à saúde, incluindo aí a saúde mental.

A nova proposta de assistência foi coordenada por grande parte dos


trabalhadores envolvidos no MTSM, que investiu na criação de uma multiplicidade
de dispositivos, na delicada tarefa de retirar da marginalidade os princípios de
atenção integral e coletiva na saúde mental. 4

Os serviços de saúde já existentes (Unidades Básicas de Saúde – UBS,


Emergências Psiquiátricas, Enfermarias de Saúde Mental e Saúde Mental
Hospitalar) foram redirecionados em suas ações e novos espaços de atenção foram
criados (Hospitais-Dia em Saúde Mental – HD, Centros de Convivência e

4
Esses princípios integravam também o projeto SUS (Sistema Único de Saúde), que previa uma união dos
governos federal, estadual e municipal na criação de um único sistema público de saúde.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 17

Cooperativa – Cecco), formando uma rede de serviços articulados entre si, com
equipes multiprofissionais em todos os níveis do projeto, fortalecendo assim o
funcionamento da rede extra-hospitalar. Assim, tal projeto previu para o município
uma territorialização dos serviços de saúde, com a abertura de serviços nas diversas
regiões da cidade e em vários níveis de complexidade.

As estratégias de territorialização e descentralização foram fundamentais para


a reconstrução do novo cenário em saúde mental.

Para além de uma simples ampliação da assistência, esses serviços foram uma
tentativa de transformação na estratégia de intervenção, na medida em que os
espaços criados não eram estruturas simplificadas mas uma rede tecida por uma
nova cultura de relações entre os sujeitos e a instituição, que valorizava acolher o
sofrimento, investindo na participação ativa do usuário no seu processo terapêutico.

Muitos desafios se apresentaram na implantação desse projeto. A produção de


uma nova cultura da prática terapêutica não se realiza somente com projetos
administrativos. É necessário, para fazê-la, o envolvimento de um coletivo
implicado na produção, que inclua a administração, os trabalhadores, os usuários, as
famílias, o território, num processo de trabalho lento e contínuo, ao mesmo tempo
disruptivo porque compõe possibilidades de positivar as práticas de assistência,
invertendo os conceitos negativos de doença e doentes mentais.

Esse “projeto-processo” foi experimentado a partir de 1989 e foi


interrompido em 1996, devido à implantação do Plano de Assistência à Saúde –
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 18

PAS, 5 que alterou significativamente, desde então, a rede de cuidados em saúde


mental, situação que permaneceu em vigor até o ano 2000.

Nesse longo caminho, onde a teoria e a prática revelam possibilidades de


mudanças, os projetos se deparam não só com a ingerência dos investimentos na
área de saúde, mas como nos diz Ferreira (1996, p. 80), “com a falência da
organização social, num país onde a população tem como oferta de condições de
vida o desemprego, o aumento tributário, a impossibilidade do lazer e sobretudo, o
desespero como produto da fome e da miséria”.

A rede de serviços de saúde mental nos anos 90 ainda se apresentou


insatisfatória e ineficiente, permitindo que o hospital psiquiátrico continuasse
ocupando um papel hegemônico comparado aos outros serviços de atenção.

Não é intuito desta dissertação tecer a história da reforma psiquiátrica


brasileira e em São Paulo, mas é necessário contextualizar o momento histórico em
que foram introduzidos – no tratamento dos pacientes de saúde mental – muitos
dispositivos inovadores, para destacar aqueles que são chamados de oficinas, objeto
desta investigação. Benilton Bezerra Jr nos fala que,

...o desafio é construir uma rede de dispositivos coletivos de


proteção que organize modalidades diferentes de inserção dos
usuários na trama social. (...) quando se põe no centro de nossas

5
Com a implantação do PAS no município de São Paulo, pelo então prefeito Paulo Maluf, todo o serviço
público municipal de saúde foi transferido a cooperativas de assistência privadas, encarregadas a partir daí
pela prestação de serviços. Tal projeto, contrário ao Sistema Único de Saúde – SUS, modificou toda a
forma de atendimento da rede pública de saúde, principalmente de saúde mental. A violência que
caracterizou esse processo e sua prática privatista desmantelaram a rede de assistência à saúde e
descaracterizarm os serviços existentes. Alvo de crítica de grande parte da sociedade civil, preocupada com
os movimentos sociais, esse plano de atendimento foi responsável também por enormes falcatruas por parte
dos seus gerenciadores. No início de nova gestão na prefeitura (administração de Marta Suplicy), instaurou-
se uma CPI para averiguação dessas irregularidades, prevendo-se a extinção do PAS até junho de 2001,
quando se encerram os contratos com as cooperativas. Sobre o PAS ver Nassírios (1999).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 19

preocupações a expansão das possibilidades de vida dos sujeitos...


(Bezerra Jr, 1999, p. 17)

Esses “dispositivos coletivos de proteção” – essas possibilidades de


construção coletiva que permitem, de maneira singular, a cada sujeito se organizar –
surgem na sua grande maioria nos momentos de alargamento do campo de
intervenção, de rupturas com couraças institucionais. Nesses momentos é que
emerge e se inscreve na saúde mental o trabalho com oficinas

1.3 Mapeando a utilização do termo oficina

Após esse sobrevôo histórico uma pergunta ainda insiste: qual é a conexão do
termo oficina com a psiquiatria, saúde/doença mental, tratamentos, terapias,
intervenções?

Alguns autores que mapearam e traçaram contornos tomados por este


dispositivo quando utilizado como instrumento terapêutico fornecem pistas
fundamentais para o entendimento da configuração das oficinas nesse campo.

Márcia Raposo Lopes engloba nesse termo “...todos os dispositivos


terapêuticos que usam de alguma forma o trabalho como instrumento terapêutico”
(Lopes, 1996, p. 82). Para esta autora, a oficina é “um dispositivo quase sempre
experimental que não segue uma fundamentação teórica rígida nem um modelo
padrão de funcionamento, um dispositivo que é essencialmente construído no
quotidiano por seus pacientes e técnicos” (idem, p. 78).

Numa pesquisa em várias instituições da rede pública de assistência em saúde


mental no Rio de Janeiro e Niterói, esta autora analisa o funcionamento de diferentes
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 20

oficinas e constata uma grande diversidade de ocupações utilizadas como recursos


terapêuticos.

São atividades como teatro, pintura, papel machê, desenho, até festas,
passeios, que vão desenhar para a autora um campo que ela define como clínico, no
qual os instrumentos e técnicas são utilizados como facilitadores da expressão do
sujeito.

Um outro campo definido por ela é o que chama de reabilitador, em que os


projetos (geralmente ligados ao trabalho e à produção de recursos financeiros), estão
voltados para a inserção/reinserção do sujeito à sociedade.

Estes projetos, de diferentes formatos, têm sido implantados na grande


maioria das instituições ligadas à reforma psiquiátrica e ao movimento de
desospitalização dos pacientes de saúde mental, geralmente preocupados com a
inclusão desses sujeitos no circuito social mais amplo que o âmbito da psiquiatria.

São esses projetos de trabalho que têm viabilizado muitas das vezes os
“arejamentos institucionais”, as trocas, interferências e relações com o mundo dito
“normal”.

A autora problematiza em sua pesquisa o encontro entre trabalho e terapia,


ressaltando o papel normatizador e disciplinador que o trabalho vem ocupando
historicamente no campo social. Por isso, propõe como necessário – para que as
oficinas se constituam como ferramentas efetivas na desconstrução do modelo
hospitalocêntrico 6 – “rediscutir o trabalho enquanto processo coletivo e solidário e
rediscutindo-o como possibilidade de criação/ação sobre o mundo, produção de
vida/cultura” (Lopes, 1996, p. 110).

6
Estou chamando hospitalocêntrico aqui o modelo de intervenção que tem no hospital e no trabalho médico a
exclusividade das decisões e atitudes terapêuticas.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 21

Em uma outra pesquisa, Erotildes Maria Leal estuda onze textos –


apresentados em um congresso no Rio de Janeiro e tomados como material de
análise para sua tese de doutoramento – que tratam da categoria por ela denominada
oficinas, vista como um dispositivo de intervenção na saúde mental, buscando
encontrar “...que regularidades permitiam nomear do mesmo modo atividades tão
diversas...” (Leal, 1999, p. 74).

Com base nesses textos, que esboçam em seu conteúdo um caráter apenas
descritivo das atividades desenvolvidas, desarticulados de modelos teóricos mais
tradicionais, a autora identificou três possibilidades para o termo oficina, a saber:
oficina como espaço de criação; oficina como espaço de realização de atividades
manuais ou mecânicas; e, oficina como espaço de convivência.

Já Roberta dos Santos Rocha, outra autora que estuda as propostas de oficina
na clínica psi, divide o projeto de oficinas na saúde mental em três grupos. O
primeiro grupo é aquele onde há, na oficina, a produção de objetos destinados ao
mercado, identificando-se com o processo industrial (Rocha, 1997, p. 26). Num
segundo grupo, vislumbra-se o fazer artístico: há o ensino de técnicas artísticas e
também uma preocupação com o mercado das artes. Nesse tipo de oficina, a
produção dos “artistas” destina-se à comercialização. E há ainda um terceiro grupo,
que a autora considera diferente dos anteriores, em que não há uma preocupação
com o produto e tampouco com o valor de troca dos mesmos, o enfoque neste tipo
de oficina está na relação do oficineiro com o material utilizado.

Rocha problematiza ainda a relação entre trabalho, arte e terapia nas oficinas,
tomando como questão a suposta supremacia da terapia com relação aos outros
campos, quando esses são utilizados na clínica como instrumentos terapêuticos.
Sobre esta questão, ela conclui que...
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 22

... a clínica tem se utilizado de outros dispositivos para intervir,


(neste caso as oficinas), porque entende que a atividade de produção
é capaz de modificar as conexões que parecem ter produzido uma
certa “configuração psíquica”, na qual o sujeito está inserido, ou
seja, “desterritorializá-lo” em relação àquilo que o tornaria
“doente”. (Rocha, 1997, p. 29)

Ela acentua ainda que o propósito desse tipo de intervenção é “produzir


diferenças, linhas de fuga” e é isso que ela possibilita. Por fim, afirma que, “ao
contrário da intervenção terapêutica, o tratar a doença não faz outra coisa senão
conduzir o sujeito a um suposto e determinado estado de normalidade” (idem, grifo
meu).

Ainda sob esta perspectiva, a autora faz uma distinção entre clínica e terapia,
utilizando o conceito de Instituição 7 para clínica e situando a terapia como o seu
instrumento. Tal distinção traz, em si, a idéia de que a terapia só se faz necessária a
partir da clínica (Instituição), e de outras instituições que a atravessam, como por
exemplo, doença mental e norma:

A terapia portanto, é o signo que estabelece o índice da doença e


aponta para um ideal normativo; ou seja, possui sempre um caráter
desqualificador, pois condena a forma presente como patológica e
doente e lança os critérios normativos no horizonte forçando os

7
Tomado no sentido que lhe confere a Análise Institucional, como apresenta Baremblitt (1992, pp. 87-88):
“Uma instituição é um sistema lógico de definições de uma realidade social e de comportamentos humanos
aos quais classifica e divide, atribuindo-lhes valores e decisões, algumas prescritas (indicadas), outras
proscritas (proibidas), outras apenas permitidas e algumas, ainda, indiferentes. Essas lógicas podem estar
formalizadas em leis ou em normas escritas ou discursivamente transmitidas, ou ainda podem operar como
pautas, quer dizer, como hábitos não explicitados. As citadas lógicas se concretizam ou se realizam
socialmente em formas materiais ou ‘corporificadas’ que, segundo sua amplitude, podem ser: organizações,
estabelecimentos, agentes e práticas. Cada Instituição é universal, ou seja, indispensável para toda e
qualquer sociedade, mas para realizar-se em suas formas concretas passa por um momento de
particularidades e outro de singularidade única e irrepetível”.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 23

corpos a adaptarem-se e produzirem-se de forma saudável e normal.


(Rocha, 1997, p. 24)

Com esta posição, a autora pretende retirar das oficinas o estatuto de terapia,
ou melhor dizendo, de um tipo de terapia, considerando que nesta posição mais
facilmente encontrada, este dispositivo, não se apresenta como novo, mas só
reproduz velhos procedimentos. Ela defende, então, o papel estratégico assumido
por “uma intervenção distinta da terapia” no campo da Saúde Mental. Para ela, “se
abandonarmos a prática terapêutica, quebramos o elo em que operacionalizavam-se
as três instituições já citadas: a clínica, a enfermidade e a norma” (idem, p. 22).

Também nesta perspectiva, Cristina Rauter, em um artigo dedicado ao tema,


afirma que para compreender o trabalho das oficinas no campo da saúde mental, é
necessário que não fiquemos restritos ao “...campo da psicologia, da psiquiatria, ou
da psicanálise”. Segundo ela, o trabalho das oficinas precisa ser visto pela ótica da
clínica transdisciplinar “...com diferentes campos de saber, desarticulando as
fronteiras tradicionais e construindo novos parâmetros teóricos-práticos...” (Rauter,
s/d, p. 9).

Essa autora também problematiza a relação entre trabalho e arte nas práticas
das oficinas apontando que esses saberes podem se constituir como vetores
importantes de inserção no coletivo, não só para pacientes psiquiátricos, mas para
todos os seres humanos, “...caso consigam estabelecer outras e melhores condições
que as habitualmente existentes entre produção desejante e produção de vida
material” (idem, p. 4).

Para Rauter, produzir territórios existenciais para os pacientes de saúde


mental, por meio do trabalho, não é uma adaptação ou subordinação desses sujeitos
às condições de trabalho impostas pelo capitalismo, mas é reinventar o cotidiano nas
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 24

suas diversas formas, tarefa que considera fundamental para a sobrevivência


humana.

As práticas com oficinas, portanto, devem estar sempre atentas ao seu


parentesco com o trabalho no sentido capitalista, buscando criar condições para que
esta relação possa permitir experimentações menos atreladas aos imperativos
reificantes da produtividade econômica.

1.4 Perspectivas para o termo oficina: fabricando intercessores

Tendo por base os autores apresentados acima, podemos tomar alguns eixos
que norteiem a compreensão do trabalho das oficinas no campo da saúde mental.

As oficinas atualmente nomeiam uma grande diversidade de dispositivos


terapêuticos, que não estão atrelados a nenhuma teoria ou ciência específica. Com a
intenção de modificar antigas práticas cronificantes, os profissionais de saúde
mental têm se aventurado cada vez mais à invenção de diferentes espaços de
atuação.

Esses espaços têm promovido uma desestabilização dos enquadres


específicos de cada área. Nos espaços de oficinas estão envolvidos profissionais de
diversas origens – Psicologia, Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, Serviço Social
– que não seguem uma corrente teórica específica, mas estão geralmente
compromissados em propiciar aos usuários uma gama de experimentações sociais e
a partir daí criar possibilidades diversificadas de ser e estar no mundo.

Assim, as oficinas localizam-se num campo híbrido, móvel, instável, sem


identidade, feito dessas experimentações múltiplas e aberto à intersecção com vários
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 25

campos e saberes o que pode garantir a elas um espaço menos restrito como o de
especialidade em Saúde Mental e mais efervescente quanto às problematizações e
descontinuidades produzidas. Uma nova cultura de intervenções, escavada por essas
experiências que pouco se intimidam com o discurso técnico vigente e que tentam
escapar do modelo terapêutico normatizador.

Mas, se procuramos não o que haveria de comum nessa diversidade (um


comum entendido como regularidade abrangente ou subjacente), mas aquilo que se
reitera como singularidade distintiva nesses vários planos que se atravessam,
podemos dizer que é a utilização de uma atividade, ou de um trabalho – ou, melhor
dizendo, de um “fazer algo” – que se trata.

Mas de que “fazer” estamos falando? Isto ainda parece insuficiente quando
nos perguntamos: a que trabalho estamos nos referindo quando intencionamos a
criação de territórios existenciais e quando queremos que as oficinas se tornem elas
próprias vetores de existencialização para os sujeitos atendidos, substituindo as
intervenções-promessas de inserção-/inclusão? Se as oficinas são hoje na clínica, o
instrumento mais utilizado para colocar em jogo a reinvenção do cotidiano, é através
dessas atividades ligadas ao “trabalho” que elas têm realizado sua proposta.

Se tomamos esta perspectiva será possível pensar no trabalho atual e moderno


como proposta de vida nos projetos com os nossos pacientes? Será que este tipo de
trabalho possibilita e põe em relação múltiplos modos de existência? Que tipo de
relação ele instaura? Ou será que ele é o manicômio que hoje temos que enfrentar?

Este bloco de questões leva ainda a uma outra interrogação: Será que é do
trabalho tomado como emprego, ou como produção de mercadoria ou mesmo como
fonte de renda financeira, que se tratam essas atividades experimentadas nas
oficinas?
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 26

Para incluir o trabalho como experiência de produção na vida desses sujeitos


que tratamos, é necessário em primeiro lugar problematizar a organização formal de
trabalho industrial capitalista a que ainda estamos submetidos. Este modo de
produção engendrou, na modernidade, proporções enormes de enrijecimento,
isolamento, esvaziamento das esferas coletivas e, por fim, destituiu do trabalho seu
potencial criativo. Ou seja, longe de representar uma fonte de prazer e pertencimento
ao mundo, o trabalho no capitalismo se transformou em fonte de exclusão,
sofrimento e marginalização.

Vários autores como Viviane Forrester (1997), Toni Negri (em diversos
artigos na Folha de São Paulo), entre tantos outros, afirmam que a grande questão
do contemporâneo é desafiar a subordinação do trabalho ao capital e restabelecer sua
função como força produtiva.

Guattari forjou o termo “não garantidos” para nomear todos os excluídos do


trabalho na modernidade. Segundo o autor,

São i marginatti, desempregados tanto no trabalho quanto na vida


estudantil, que recusam a legitimação dos processos de produção
vigente, do sistema de trocas tal como existe. Eles desenvolvem um
outro tipo de relação com a sociedade e com a vida cotidiana, um
outro tipo de investimento de tudo aquilo que chamamos de vida
pessoal e coletiva, um outro tipo de relação com o trabalho,
associando a posição de desempregado involuntário a uma recusa
voluntária do trabalho, tal como lhes é proposto. (Guattari &
Rolnik, 1996, -pp. 187-188, grifo meu)

Küller, na esteira de Guattari, ampliou e incluiu nesse termo


M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 27

...toda a massa de desempregados, subempregados, terceirizados,


subcontratados, trabalhadores em tempo parcial, trabalhadores
temporários, autônomos que prestam pequenos serviços e, por fim,
pequenos empresários com seus negócios sujeitos à permanente
ameaça de inviabilidade pelo incremento da competitividade.
(Küller, 1996, p. 202)

E conclui que “os ‘não-garantidos’ são atores de outra linha de escape do


processo de totalização” (idem).

É a partir desta perspectiva que se apresenta a questão: como libertar a vida


(já que é da constituição de modos existência que tratamos) dessa dominação
autoritária? Ou, formulando-a de outra maneira: no que cabe a esta investigação,
como repensar o sentido do trabalho nas oficinas de saúde mental, quando estas vêm
a ser um projeto de saída para os seus usuários?

Minha hipótese é que os projetos de trabalho nas oficinas exigem em


primeiro lugar produzir sentido, isto é, trata-se de encontrar modos de produção que:
singularizem existências, permitam o surgimento de processos criativos e
fundamentalmente que legitimem a pluralidade da vida.

Com essa hipótese e no contexto em que se inscreve o trabalho na


modernidade, é que proponho para a ação nas oficinas, conexões com outras cenas
de trabalho, que não a do modo capitalista por excelência, as quais potencializem
processos de produção que associem concepção-execução e uma certa autonomia
sobre o ritmo da produção. Seguindo o trajeto de Küller, será que essas cenas não
poderiam também se constituir em linhas heterogêneas que escapam ao modo de
produção dominante?

Uma cena que se apresentou para nós como muito fecunda para essa conexão
trabalho-clínica, foi o modo artesão de produção. Este modo nos foi convocado a
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 28

partir do próprio termo – pois o trabalho do artesão não se realiza nas fábricas ou nas
empresas, mas nas chamadas oficinas – e pelas características que apresenta no seu
processo de produção. Temos dito que o papel das oficinas na clínica deve estar
comprometido com a ética da reinstauração de uma certa processualidade no
trabalho, que implica movimentos de desterritorialização e constantes linhas de fuga.
Isto nos coloca, portanto, numa posição heterogênea à axiomática do capitalismo,
que se por um lado comporta movimentos de desterritorialização, por outro, não
permite saídas para fora dele mesmo.

É nessa direção que tomo emprestado o modo artesanal de produção, por


entender que este pode funcionar como um “intercessor” tanto na máquina abstrata
do capitalismo, onde a produção é ligada única e exclusivamente ao capital, quanto
na clínica. Através da ressonância entre essas varias linhas que se atravessam mas
que seguem cada qual o seu movimento é que pode ser possível reconectar trabalho
e produção de modos de vida.

1.5 Oficina e trabalho: o intercessor artesão

Numa bela pesquisa realizada na cidade de São Paulo, a historiadora Antônia


Terra de Calazans Fernandes observou, ouviu, conversou e conviveu com um tipo de
trabalhador que, segundo ela, esteve desaparecido das estatísticas, das produções
teóricas, dos interesses dos historiadores e sociólogos, ao longo do século XX: o
artesão. Trata-se de um trabalho que instala formas e cores próprias, como vai
descrevendo a autora:
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 29

Enriquece a história de vida a oportunidade de ouvir os artífices na


atualidade, conversar com eles, visitar suas oficinas, ouvir
pessoalmente suas trajetórias profissionais, conhecer seus rostos,
suas mãos – muitas vezes retorcidas pelo ofício e pelo uso de
ferramentas manuais – vê-los trabalhando, distinguir seus
instrumentos de trabalho, suas máquinas e os objetos que
confeccionam, dimensionar a organização do espaço e a cor da
matéria prima que fica impregnada no ambiente. Em cada oficina
predomina uma cor: as marcenarias são amareladas, as
marmorarias azuladas e as sapatarias coloridas. (Fernandes, 1997,
p. 207, grifo meu)

Ao contrário do trabalho industrial realizado pelo operário (foco central dos


estudos sobre o trabalho), o trabalho artesanal escapou da história do trabalho e das
análises econômicas do século XX. Isto aconteceu porque, por um lado esta
categoria agrupava um número inexpressivo de profissionais, comparado a uma
maioria de trabalhadores da indústria, por outro lado, a divisão do trabalho na
economia industrial capitalista também não incluía esse tipo de trabalhador.

Fernandes distingue os artesãos atualmente em duas categorias. Por um lado,


há aqueles que manufaturam os chamados “produtos artesanais” que

expressam as tradições artísticas, religiosas, e utilitárias de uma


cultura popular tradicional (cerâmica, cestaria, trabalhos artísticos
de madeira, de cobre, de estanho, etc.), relacionados ao folclore ou
ao mercado para turistas, tendo a sua obra o valor da reminiscência
de uma tradição cultural, que se perde no tempo... (idem, p. 25)

Por outro lado, a autora fala dos “chamados artífices, trabalhadores


qualificados relacionados ao passado pré-industrial dos ‘ofícios mecânicos’ ”, que...
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 30

realizam trabalhos voltados para o mercado, concorrendo com o


sistema de produção industrializado, criando e moldando objetos de
uso prático ou prestando serviço de reparos como os sapateiros, os
marceneiros, os pedreiros, os carpinteiros, os marmoreiros, as
costureiras e os alfaiates... (idem)

A historiadora ressalta que, apesar das indústrias e do processo de


modernização advindo da utilização das máquinas, ainda existem, mesmo nos
grandes centros urbanos, pequenas oficinas de artesãos. Em sua pesquisa, ela conta
histórias esquecidas e cotidianos de um trabalho urbano incomum em grandes
centros como São Paulo, cidades que se escravizaram com o ritmo acelerado
instaurado pelo capitalismo.

São histórias de homens, mulheres e às vezes famílias que, em fundos de


casa, quintais, e pequenas oficinas, ainda reconhecem e contam suas profissões,
muitas das quais presentes no país desde a colonização. As oficinas de trabalho dos
artesãos ainda podem ser encontradas em pontos da cidade. Logicamente, elas não
são o que prevalece na paisagem, mas a cidade comporta uma certa pluralidade, de
que quase não é percebida no corre-corre diário pelas suas ruas. Espalhadas pelos
bairros, a presença de placas indica uma sapataria, ou uma marcenaria ou
serralheria. Mesmo sem placas indicativas (como acontece na maioria das oficinas),
o barulho de uma serra, ou o cheiro da cola ou ainda restos de madeira espalhados
na calçada podem indicar uma dessas oficinas funcionando, simultaneamente, mas
diferentemente das indústrias .

Após essa apresentação um tanto poética e panorâmica do artesão, resta a


indagação: o que de fato esse modo de trabalho tem a nos ensinar? Quais são as
novas linhas de fuga que podem surgir quando nos propomos a uma “viagem” ao
seu encontro?
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 31

José Antônio Küller traça algumas características do modo de produção


artesanal que nos parece muito interessantes para o que buscamos com o trabalho na
clínica.

Uma primeira característica descrita pelo autor sobre esse modo de produção,
é “a integração entre concepção e execução”, ou ainda “a integração entre pensar e
agir”. Sobre isso o autor nos fala que: “O mesmo homem que tem a idéia (o plano) é
quem a concretiza. Traz, com suas próprias mãos, a idéia para a esfera da existência
material” (Küller, 1996, p.26). Uma decorrência dessa primeira característica que
citamos é o que o autor sintetiza como “o domínio do ciclo completo do produto.
Cortar o sisal, desfibrá-lo, amarrar as fibras, encabar a vassoura, acabá-la e vendê-la
são fases de um processo produtivo sob o domínio de um mesmo homem” (idem,
1996, p. 27).

Uma outra característica descrita é

O objeto produzido não é mera mercadoria a ser lançada num


mercado intangível. O usuário está próximo. O resultado do
trabalho lança uma ponte pessoal entre produtor e usuário. Uma
ponte que começa a ser estabelecida na concepção do produto e que
permanece viva durante o seu uso no interior da comunidade que a
ambos, produtor e usuário, abriga. (idem, 1996, p. 28-33, grifos do
autor)

O autor também afirma que “existe uma propensão pedagógica natural e um


projeto educativo imanente ao trabalho artesanal” (idem, 1996, p.33, grifos do
autor). Isso acontece porque nas oficinas o ensino do ofício é realizado pelo próprio
artesão que realiza o trabalho. Os aprendizes num exercício de cooperação realizam
a aprendizagem no processo de experimentação do trabalho.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 32

Uma última característica relevante e fundamental para esta investigação é “a


vivência autônoma do tempo”. Segundo o autor o artesão é um profissional

livre para estabelecer a sua jornada de trabalho e seu ritmo. A


natureza criativa do trabalho e a fluidez dos limites da jornada
permite uma passagem natural entre o tempo de trabalho e o tempo
destinado às demais exigências da vida. (idem, 1996, p. 34)

Estas características, descritas acima por Küller acerca do modo de produção


artesanal, têm muita semelhança com o que temos buscado promover com o trabalho
das oficinas, contudo isto não significa de modo algum tomá-lo como modelo. A
integração entre a concepção e a execução, a preocupação com a singularidade do
ritmo de produção, um aprendizado imanente ao processo de experimentação do
trabalho, exercícios de cooperação instalando um coletivo de trabalho e as pontes
entre produtor e usuários, são peças da engrenagem dessa máquina de produção
caras para o trabalho na clínica, mas sobretudo cabe apontar que esse modo de
experimentação, o qual migrou das oficinas dos artesãos, ecoa atualmente nas
oficinas na saúde mental.

Estas propriedades do trabalho artesão também são atualmente encontradas


em outras cenas de trabalho. Esse “jeito meio informal” de produção tem cada vez
mais sido requisitado pelo próprio capitalismo para a produção de capital. A
separação entre trabalho manual e trabalho intelectual, a divisão serializada,
característica clássica da produção industrial, tende a desaparecer na sociedade pós-
industrial, principalmente nos setores ligados à informação. “Esses setores requerem
um tipo de trabalhador mais autônomo, polimorfo e criativo.” (Pelbart, 2000, p.35)

O que se denomina hoje como trabalho imaterial comporta muitos desses


elementos ligados ao trabalho artesanal: o trabalho cooperado e a coordenação
coletiva, a valorização da subjetividade, autonomia, entre outros são estratégias
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 33

utilizadas por uma série de atividades de produção (moda, informação, artes visuais,
alimentação). Obviamente não estamos vivendo em pleno trabalho imaterial, este é
uma tendência e o que de fato se observa é a coexistência das várias dimensões do
capitalismo: trabalho industrial, trabalho informacional e até mesmo trabalho
escravo.

Com isso, embora o trabalho imaterial forneça elementos para pensar a


utilização do trabalho na clínica, a dissertação não aprofundará tal perspectiva por,
entre outras razões, considerá-la ainda ligada ao projeto do capital, e ao ritmo da
velocidade do capitalismo, que é incompatível com o trabalho na clínica da psicose. 8

1.6 A experimentação na clínica da psicose e o “intercessor artesão”

O artesão é um trabalhador que – ainda que atravessado pelo processo de


industrialização e pelo domínio da produção capitalista – não foi totalmente
capturado pelo modo de existência desse modelo.

Ao continuar seu trabalho nas oficinas e na sua forma de produção, o artesão


mantém uma certa insubordinação ao capital, cumprindo sua trajetória à margem da
sociedade industrial. Ao realizar seu ofício com base na experiência prática e na
habilidade que possui, ele articula elementos de vida e trabalho, contribuindo para
que retomemos a ligação entre trabalho e produção de desejo, em contrapartida à
ligação trabalho/produção de capital. Como afirma Nestor Perlongher

8
A respeito do trabalho imaterial ver: Lazzarato (1996), Pelbart (2000), Antunes (2000, mais especificamente
o capítulo VII).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 34

Entrevimos, nas trajetórias marginais, em suas fugas, a trama de


uma territorialidade itinerante que, sem deixar de inscrever-se no
equivalente geral do capital, funciona em base à deriva desejante, e
anuncia um outro funcionamento do desejo no campo social.
(Perlongher,1995, p. 110)

Ora, já dissemos que o artesão realiza seu ofício na experimentação. Assim,


ele detém o ciclo completo de produção e, desta forma, há – no seu modo de
produção – a singularidade do produto, o qual é imprevisível no início do processo
pois só se realiza na variação do contato com o produtor, esse caráter processual
onde aprendizagem e trabalho se constroem ao mesmo tempo.

O que caberia então relançar do trabalho do artesão na clínica, não é um


saudosismo melancólico. A exploração da vizinhança entre o modo de produção
artesão e o modo de produção nas oficinas pretende encontrar uma “virtualidade
comum”, vislumbrando esse comum não como portador de traços de regularidades,
mas como afirma Luis Orlandi, “...como transmutatividade, como complexa
diferenciação” onde cada modo “vai erigindo enquanto traça distintamente seu modo
singular de revirar-se...”. (Orlandi, 1999, p. 11)

Ao incluirmos nossos usuários no contingente dos “não garantidos” e


concordando com Guattari, que esses desenvolvem outro tipo de relação com a vida
e portanto com o trabalho, esse modo de produção minoritário que propomos como
intercessor no trabalho das oficinas, não poderia ser capaz de produzir novos
sentidos?

Volto a afirmar que a intenção não é retomar o modelo artesanal como


salvação para o trabalho e com isso transformar todos os “excluídos” em sapateiros,
marceneiros, alfaiates, etc. A conexão com esse domínio surgiu como uma
possibilidade de encontrar pistas para novas saídas de inserção/inclusão social que
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 35

não sejam meramente formais. Incluir os usuários de saúde mental em trabalhos


serializados e individualizantes como por exemplo, exercer uma função na rede
MacDonalds, pode servir para reafirmar a incapacidade produtiva que lhes é
atribuída socialmente.

Foucault aponta que já nas fábricas surgidas no final do século XVIII, “o


princípio do quadriculamento individualizante se complica”. Assim, pontua ele:

Importa distribuir os indivíduos num espaço onde se possa isolá-los


e localizá-los; mas também articular essa distribuição sobre um
aparelho de produção que tenha suas exigências próprias. É preciso
ligar a distribuição dos corpos, a arrumação espacial do aparelho de
produção e as diversas formas de atividade na distribuição dos
“postos” (...) Ela se compõe de uma série de oficinas especificadas
segundo cada grande tipo de operações: para os impressores, os
encaixadores, os coloristas, as pinceladores, os gravadores, os
tintureiros. (Foucault, 1997, p. 132)

Nesse processo serializado, que se mantém ainda na grande maioria dos


empregos formais, existe uma divisão no processo de produção, divisão que
fragmenta, desarticula e usurpa do produtor o produto do seu trabalho.

A intenção de estabelecer uma ponte entre a experiência do artesão e a clínica


(principalmente à clínica da psicose) é de religar a idéia de concepção-execução e
experimentação compartilhada como possibilidade de inscrição no coletivo.

Sem querer estabelecer uma relação abusiva, podemos pensar que buscamos
transpor do modo artesanal de produção para a clínica o caráter coletivo e
compartilhado da “experiência”. Isso é diferente do caráter individualizado da
“vivência” no modo capitalista de produção que, como aponta Jeanne Marie
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 36

Gagnebin, “reenvia à vida do indivíduo particular, na sua inefável preciosidade, mas


também na sua solidão” (Gagnebin, 1999, p. 59).

O peculiar uso do tempo no processo de produção, já apontado, é outro


aspecto interessante do processo de trabalho artesão. De fato, esses trabalhadores,
muito diferentemente daqueles que atuam nas fábricas e empresas, mantêm, nos seus
ritmos de trabalho, uma certa vizinhança (saudável) com a preguiça.

Quem nunca reclamou ou ouviu reclamações da demora de um mecânico no


conserto de um carro, ou do atraso de um marceneiro na feitura de uma armário, ou
mesmo da lentidão de um alfaiate ou costureira na confecção de uma roupa? Esta
lentidão estranha ao ritmo de trabalho atual é – para nós que trabalhamos com a
clínica da psicose – completamente bem-vinda.

Não é meu intuito desenvolver esta questão exaustivamente, mas se procuro


“beber em outra fonte”, é porque também os ritmos de trabalho e de aprendizagem
impostos pelo capitalismo não incluem de forma alguma no seu universo, os
usuários da nossa clínica. Nesses tempos de aceleração, esses usuários mais se
assemelham ao coelho (sempre atrasado) de Alice no País das Maravilhas.

E se procuramos em outras cenas, linhas de fuga à temporalidade dominante,


é também porque a loucura nos introduz numa outra temporalidade. Como afirma
Peter Pál Pelbart, “... a loucura tal como ela se apresenta hoje certamente é também
isso: a recusa de um determinado regime de temporalidade, o protesto em forma de
colapso frente ao império da velocidade, e a reivindicação de um outro tempo...”
(Pelbart, 1993, p. 39).

Ainda nesta mesma linha o autor aponta que

...a dificuldade maior talvez ainda seja nossa insistência no fator


espacial, nas oposições aberto/fechado, muro/não muro,
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 37

reclusão/inserção. É uma luta importante, mas em face às novas


tecnologias de poder (em que o lema não é mais “trancar” ou
“excluir” mas “acelerar”), parece insuficiente. Para essa tecnologia,
a loucura representa um obstáculo inserindo-a simplesmente no
ritmo generalizado. É preciso dar à loucura (sem substanciá-la)
espaços de temporalidade diferenciada, lugares onde um outro
regime de temporalidade permita outras coisas. Deveriam existir
ateliês de tempo, para loucos e não loucos, pouco importa, onde
isso fosse possível. Em certa medida eles já existem, não
oficialmente e não com este nome, em todos os movimentos ou
grupos ou pessoas ou instituições que desafiam a
homotemporalidade dominante, com seus devires atípicos,
estrambólicos, bizarros... (idem, p.45)

Estar em contato com a clínica de saúde mental e com pacientes psicóticos é


também estar convocado à busca de outros tempos.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 38

Capítulo 2

As oficinas no território da saúde mental

...mas há encontro onde cada um empurra o outro,


o leva em sua linha de fuga, em uma
desterritorialização conjugada.

(Gilles Deleuze, 1998, p. 57)

Ao esboçarmos as questões no Capítulo 1, afirmamos que a oficina constitui


hoje uma ferramenta importante na clínica da saúde mental e por não estar
totalmente atrelada aos paradigmas técnicos e também por não ser um modelo
homogêneo de intervenção, é hoje um instrumento que comporta inúmeras
invenções.

Verificamos que – na grande maioria das instituições em que é utilizado –


esse instrumento está relacionado com o universo do trabalho. Nota-se entretanto
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 39

que pode assumir contornos diversos quando implementado em projetos de


convivência, criatividade, passeios, festas, etc.

No cenário político que se abre no final da década de 1980 na cidade de São


Paulo, um novo serviço de saúde pública foi criado pela Prefeitura Municipal –
PMSP como parte da rede de saúde mental, numa concepção bastante diferente dos
demais equipamentos de saúde.

Esse serviço – os Centros de Convivência e Cooperativas (Ceccos) –, com


características específicas quanto ao seu modo de funcionamento, tinha como
principal instrumento de intervenção com os usuários, o trabalho com oficinas.

Inspirado nos princípios da Reforma Psiquiátrica, este equipamento tinha na


sua concepção, a proposta fundamental da Reabilitação psicossocial dos usuários da
saúde mental, isto é, o trabalho das oficinas tinha como finalidade inserir os
pacientes no circuito social. Segundo Ana Pitta, a Reabilitação Psicossocial
pressupõe uma “ética de solidariedade” que faculte

aos sujeitos com limitações para os afazeres cotidianos, decorrente


de transtornos mentais severos e persistentes, o aumento da
contratualidade afetiva, social e econômica que viabilize o melhor
nível possível de autonomia para a vida na comunidade. (Pitta,
1996, p. 9)

Neste capítulo focalizarei o projeto dos Ceccos por considerá-lo de extrema


importância no que tange às problematizações desta pesquisa, pois nesta instituição
as oficinas eram o princípio norteador do cotidiano de convívio. Trata-se de um
esforço teórico que procura reconstituir o percurso desse equipamento na rede
pública de saúde mental, deixando claro que foi extinto em 1996 por ocasião da
implantação do PAS, na rede de saúde do município de São Paulo.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 40

2.1 O projeto dos Centros de Convivência e Cooperativas

Os Centros de Convivência e Cooperativas – Ceccos eram serviços


intersecretariais 9 da Prefeitura do Município de São Paulo gerenciados pela
Secretaria Municipal de Saúde. Tal projeto fazia parte do Novo modelo de atenção à
saúde mental, implementado no governo municipal – 1989/1992 – administração da
prefeita Luiza Erundina (PT), modelo esse inteiramente afinado com o ideário da
Reforma Psiquiátrica e portanto com a superação da lógica hospitalocêntrica,
pressupondo a implantação de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico: uma
rede de serviços articulados entre si, num sistema de referência e contra-referência. 10

Tratava-se de um conjunto amplo de mudanças, tanto nos aparatos


institucionais como nas práticas dos profissionais e população envolvida, que remete
ao que Guattari apontava ao escrever sobre como seria a “reconstrução das
engrenagens sociais ... para fazer face aos destroços do Capitalismo Mundial
Integrado”:

... esta reconstrução passa menos por reformas de cúpula, leis,


decretos, programas burocráticos do que pela promoção de práticas
inovadoras, pela disseminação de experiências alternativas,
centradas no respeito à singularidade e no trabalho permanente de
produção de subjetividade, que vai adquirindo autonomia e ao
mesmo tempo se articulando ao resto da sociedade. (Guattari, 1995,
p.44)

9
Nessa experiência estiveram envolvidas, várias secretarias municipais (Cultura, Educação, Saúde, Parques e
áreas Verdes) e seus diversos trabalhadores (agrônomos, professores de educação física, etc.).
10
O sistema de referência e contra-referência é a interligação de inúmeros serviços e ações, que visa
compromissar e co-responsabilizar toda complexidade da rede de prestação da assistência à saúde.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 41

Os Ceccos, que integram essas práticas inovadoras, foram implantados em


Parques, Centros Esportivos, Centros Comunitários e Praças públicas municipais, e
concebidos como espaços alternativos de convivência. Abertos a todas as pessoas,
tais espaços estavam comprometidos principalmente em aproximar a população
normal dos diferentes (psicóticos crônicos, deficientes mentais, auditivos, físicos,
idosos, meninos e meninas de rua, etc.), investindo para que estes tivessem a
oportunidade de se relacionar com o restante da população usuária dos espaços
públicos (Galletti, 1999).

Segundo o documento “Normatização das Ações nos Centros de Convivência


e Cooperativas Municipais (NCC)”,

este exercício de convivência dos ditos diferentes, estruturado sob o


eixo da solidariedade e da não segregação dará contorno a uma
abordagem em Saúde Mental de ruptura com a cultura manicomial
para a efetivação de contratos sociais anti-discriminatórios e anti-
paternalistas, para nesta fratura conquistar relações democráticas e
“desalienantes”. (PMSP, 1992, p. 8, grifo meu)

Mais adiante, o documento estabelece que a população-alvo seriam os setores


populares que têm menores chances de vida – “vida física e psíquica” –, cuja
identidade é marcada pelo estigma...

que marginaliza e segrega, anulando possibilidades de convivência


e troca, impedindo que a sociedade se incomode com estes seus
“produtos”, como o são destacadamente os indivíduos acometidos
de transtorno mental, os portadores de deficiência, os idosos, as
crianças e os adolescentes de rua... (idem, p. 36)

Em seguida, o documento pontua que esses setores marginalizados não


devem ser o alvo exclusivo da preocupação dos Ceccos:
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 42

(...) Deverá constituir preocupação fundamental os usuários que


correspondem ao segmento populacional classificado como
“normal” pois a dialética se fará aí neste encontro dos dois tipos de
segmentos populacionais: os tidos normais e os desiguais, para que
em esforço conjunto de convivência e cooperação, sob o cuidado
técnico transformarem-se num único alvo – os diferentes. (idem,
grifado no original)

Se, entretanto, o discurso oficial do projeto já trazia na sua concepção uma


abertura diante da exclusão social dos usuários da saúde mental, por não radicalizá-
lo completamente mantinha ainda um certo aprisionamento quanto à dicotomia entre
normal e anormal.

Os trechos do documento acima citados permitem-nos observar que ali


diferença era vista enquanto oposição normal/anormal.

A própria nomenclatura utilizada para nomear os usuários do Cecco –


população geral e população alvo – representa respectivamente o que na medicina
designa população normal (saudável) e população anormal (patológica).

Canguilhem contribui ao pensamento sobre o que ocorre ao trabalharmos


com essas distinções na clínica. Segundo esse autor: “A doença difere da saúde, o
patológico do normal, como uma qualidade difere de outra, quer pela presença ou
ausência de um princípio definido, quer pela reestruturação da totalidade orgânica”
(Canguilhem, 1995, p.21). Mais adiante, pontua:

“Normar”, normalizar, é impor uma exigência a uma existência, a


um dado, cuja variedade e disparidade se apresentam, em relação à
exigência, como um indeterminado hostil, mais ainda do que
estranho. (Canguilhem, 1995, p.211)
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 43

Mas será que não era justamente o contrário disso que esse projeto se
propunha?

Se o objetivo dos Ceccos era aproximar-se da diversidade e da pluralidade da


vida, certamente não podia tolerar esse termos “caducos” dos modelos de saúde.
Pois se a vida pode comportar irregularidade e variação, seguindo Canguilhem, a
saúde pode ser entendida como um obstáculo à vida, isto é a saúde impede a
originalidade da vida na medida em que está sempre em comparação com uma
exigência de normalidade.

Este autor ainda faz uma diferenciação entre normal e anomalia, muito
importante para essa reflexão: “Anomalia vem do grego anomalia que significa
desigualdade, aspereza; omalos designa em grego o que é uniforme, regular, liso; de
modo que anomalia é, etimologicamente, an-nomalos, o que é desigual, rugoso,
irregular...” (Canguilhem, 1995, p.101). Ao passo que normal é um termo vindo do
latim norma que significa regra; portanto anormal é o que contradiz as regras.
“Assim com todo rigor semântico, anomalia designa um fato, é um termo descritivo,
ao passo que anormal implica referência a um valor, é um termo apreciativo,
normativo...” (Canguilhem, 1995, p.101).

Esta diferenciação se faz necessária não só para contextualizar a concepção


de diferença embutida nesse projeto, mas para problematizar toda uma tradição dos
modelos de saúde que – por pensar diferença enquanto contradição à norma
(anormalidade) – não potencializa as forças heterogêneas (anomalia), mas ao
contrário as desqualificam (patologizam).

A partir dessa diferenciação, o normal está sempre numa relação de exclusão


com o anormal, porque este é a negação lógica daquele. Ora, o documento de
normatização dos Ceccos, apóia-se claramente nessa dualidade normal/anormal.
Nesse sentido podemos problematizar a matriz desse projeto de inserção social,
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 44

sustentada por conceitos que por si produzem exclusão. Além disso, operar com o
conceito de anomalia, como trazido por Canguilhem, permite uma saída dessa
negatividade (comparação com o genérico), para a positividade (diferença pura
em si).

Penso que essas análises são de fundamental importância para que possamos
entender os atravessamentos que se reproduziram nas relações institucionais.

Retomando a experiência, os freqüentadores dos Ceccos eram, basicamente,


usuários dos serviços de saúde da região: serviço de saúde mental, serviço de
reabilitação, geriatria, saúde da mulher, saúde da criança, moradores de rua e ainda
moradores da comunidade mais próxima.

Diante disso, os Ceccos tinham como proposta aproximar essa população


excluída (psicóticos, deficientes mentais, físicos, idosos, crianças de rua) à
população comum, freqüentadora dos espaços públicos. Nesse sentido, todo o
dispositivo institucional estava preparado para facilitar esse encontro, desde o
momento da chegada do usuário que era sempre recebido por alguém da equipe num
procedimento que chamávamos de acolhida. Nesse espaço de recebimento-
acolhimento discutia-se a programação de atividades, habilidades, preferências,
histórias de vida, que – por serem muitas vezes marcadas por sofrimentos psíquicos
intensos – necessitavam de intervenção para poderem estabelecer contatos, trocas
afetivas, enfim tudo o que precisamos para poder conviver, compartilhando um
campo comum.

Vale dizer que, numa cidade como São Paulo, em que os espaços públicos de
lazer e de compartilhamento de experiências, estão cada vez mais escassos, onde são
valorizados os espaços privados – como shoppings centers e clubes – restritos a uma
certa camada social, e de difícil acesso a uma população mais carente, o Cecco
surgiu como uma possibilidade de resgate do espaço público, promovendo de fato
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 45

novas organizações em torno desse universo e refazendo artesanalmente pontos de


referências culturais perdidos ao longo do tempo.

Essa experiência também aparecera na direção de uma abertura inovadora do


campo da saúde mental ao campo social, isto é na busca da ampliação dos
horizontes vitais dos pacientes, retirando-os de uma espécie de limbo, de uma
circulação restrita dos meios de tratamento para trânsitos mais espontâneos pela
cidade.

Assim, os Ceccos tinham como objetivo promover o encontro entre as


pessoas, criando condições favoráveis para a inserção e integração destes indivíduos
isto é, colocá-los efetivamente em cena através de atividades coletivas como
atividades manuais, culturais, esportivas, etc., interferindo portanto no cenário
social.

Essas atividades foram denominadas Oficinas e elas foram a ferramenta e o


principal modo de expressão nos Ceccos, o eixo central do cotidiano institucional,
não semelhante a escolas profissionalizantes, casas de cultura ou outros cursos
técnicos – pois nesses locais, em geral as oficinas estão dirigidas à aprendizagem de
um ofício –, mas sim um dispositivo institucional propiciador da invenção de novas
relações, de convivência entre sujeitos marcados por histórias de exclusão e
marginalização e destes com o restante da população comum.

Essas atividades-oficinas eram a matéria prima para a produção de novos


encontros e novas relações, pois ali o fazer junto, compartilhado, já apontava para
novos processos de subjetivação. Mais do que fazer juntos os usuários exercitavam o
compartilhar experiências. A propósito, Marazina pontua que

qualquer articulação com os espaços fora do terapêutico, no sentido


instituído do termo terapêutico, contemplará essa dimensão do
encontro como fundante, assim como afirmará o saber do clínico
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 46

como parte dessa diferença, que exatamente lhe permite fazer essa
articulação. (Marazina, 1997, p. 174)

As oficinas eram sempre abertas – ou seja, em princípio um interessado


poderia participar de qualquer uma das atividades – e a participação em cada uma
delas era definida pelo interesse de cada um pela atividade, o que permitia a
formação de grupos heterogêneos e dificultava a constituição de guetos, como por
exemplo grupos formados somente por deficientes mentais, ou grupos de meninos
de rua ou ainda grupos de idosos.

Para propiciar esse campo de convivência, a instituição contava com uma


equipe formada por profissionais como: Psicólogos, Assistentes Sociais, Terapeutas
Ocupacionais, Educadores, Fonoaudiólogos, Sociólogos.

Esta equipe, interventora-facilitadora da convivência (PMSP, 1992, p. 48),


buscava criar possibilidades múltiplas de comunicação, oferecendo não mais uma
instituição total (Goffman, 1974, p. 16) mas um espaço institucional aberto, assim
como um porto, de onde se podia partir e para onde se podia voltar.

Este serviço foi de extrema importância, no contexto histórico da saúde


mental do município de São Paulo, pois além de se constituir como uma retaguarda
para a rede de saúde, 11 e portanto uma ponte de comunicação entre esses serviços
(UBS e HD), os Ceccos localizavam-se na fronteira entre o que usualmente
denominamos de campo da clínica e campo social. O cuidado com o sofrimento
psíquico anteriormente subordinado à rede de psiquiatria passou a se estender para a
comunidade a partir da instalação desse serviço nos espaços públicos.

11
Os outros equipamentos da rede de Saúde como Unidades básicas e Hospitais-Dia, encaminhavam seus
pacientes em tratamento para o Cecco objetivando que esses freqüentassem as oficinas tanto de convivência
como de trabalho, como projetos de inserção/inclusão na vida social.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 47

Como já apontei no Capítulo 1, devido à produção de um número cada vez


maior de excluídos da esfera social e da produtividade econômica, a conquista pelo
cotidiano deixou de ser tarefa exclusiva dos usuários da saúde mental, para dizer
respeito também a toda camada dos “não garantidos”: desempregados, idosos,
mulheres, etc.

Na rede, o Cecco constituiu um campo de diversas linguagens. A instituição


portanto não se restringia ao conceito mais formal de clínica. Um novo formato mais
híbrido se formou, o que ampliou o conceito de tratamento, na medida em que tanto
os profissionais, os usuários e as intervenções foram redimensionados num novo
posicionamento de lugares e papéis. Nesse serviço se exercitava um desafio
constante de ocupar um lugar, desestabilizando-o a cada momento. A intervenção ali
era permanentemente um processo de reelaboração.

É preciso frisar que foram vários os obstáculos enfrentados nesse projeto. Por
um lado, os terapeutas tinham dificuldade de desconstruírem os papéis absolutizados
que exerciam, na medida em que eles são geralmente fiéis às suas especialidades, e
isso impedia a fabricação desse novo estilo de realizar a clínica. Por outro lado, o
dispositivo institucional implementado (as oficinas) exigia esta desestabilização dos
especialistas para que houvesse de fato um trabalho de recriação de si e da própria
experiência.

Portanto, o embaralhamento dos papéis terapeuta-oficineiro, terapias-oficinas,


pacientes-usuários desenvolveu novos contornos para essas montagens clínicas que
são mistos de teorias e práticas que as próprias experiências vão constelando.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 48

2.2 O Cecco Parque Previdência

Como seu próprio nome aponta, o Cecco Parque Previdência, equipamento


no qual fui “iniciada” no universo das oficinas, situava-se num Parque Municipal na
zona oeste de São Paulo.

Cheguei ali numa daquelas manhãs de junho, em que o céu fica totalmente
azul, o frio é intenso e a respiração quase que se confunde com a fumaça do cigarro.

O parque, envolto pela vegetação da Mata Atlântica, ainda estava deserto e o


imenso playground logo na entrada encontrava-se molhado pela neblina. O Sr. José
era o único que aparecia, quieto, sisudo, varrendo a grande escadaria que leva à
parte de cima do parque de onde já se podia avistar o prédio branco sem formas que
outrora fora uma enorme caixa d’água. Dentro dele o salão grande e desajeitado,
com uma pequena cozinha, um banheiro, alguns bancos, mesas de refeitório,
prateleiras abarrotadas de trabalho de argila, trabalhos de gesso, vidros, tintas e
pincéis. Alguém na cozinha fazia um grande caldeirão de chá.

Percebi que eu tinha chegado cedo demais, mas assim também pude observar
toda a paisagem local, de uma beleza pouco vista em São Paulo, algo que no corre-
corre diário nos passa desapercebido.

Aos poucos, os usuários foram chegando: alguns olhavam desconfiados


tentando descobrir quem era a nova personagem, outros arriscavam um sorriso, ou
um cumprimento.

Pedro já arriscou uma conversa: “quem é você, vai ficar por aqui?”,
engatando um pedido de ajuda para levar a mesa de pebolim para frente da porta de
entrada.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 49

Percebi logo no primeiro dia que aquele lugar era diferente dos outros que eu
conhecia. Tinha algo de familiar e amigável nos seus loucos .

Ali, desde os primeiros contatos com os “psicóticos” eles me pareceram mais


humanos. A equipe também parecia transitar de uma maneira mais intuitiva e menos
impessoal. Num primeiro momento arrisco a dizer que era difícil para quem chegava
nomear quem eram os pacientes, os usuários comuns e os terapeutas, tal a
naturalidade dos encontros, a apropriação do espaço e a sutileza das intervenções.

Olhei a programação afixada na parede e vi que as sextas-feiras eram


reservadas ao almoço comunitário, atividade que incluía todos os membros da
equipe (terapeutas, serventes, zelador, cozinheiras), todos os usuários e seus
familiares.

Já nessa hora, o silêncio do parque tinha sido substituído pela movimentação


da chegada, dos encontros e das conversas. As pessoas já se dividiam entre ir à horta
na parte de baixo do parque, escolher arroz, feijão, descascar tomates, batatas e
cebolas.

Uma lista afixada na parede ia indicando quem estava na preparação,


arrumação e limpeza. Benedito insistia em escolher arroz e feijão, dizia não gostar
de ir à horta e não saber preparar os cozidos.

João com as batatas, cenouras e chuchus era relembrado a todo instante que
estes legumes eram para o almoço e não para o jantar. Talvez esse fosse seu maior
divertimento, ser relembrado que a sua tarefa fazia parte da tarefa do grupo.

Quando me dei conta, eu já estava ali, descascando cebolas, amassando alho e


decidindo com o grupo qual a música nos serviria de fundo musical.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 50

Nesta atividade coletiva, que foi inaugural para mim na instituição, parecia,
como nos fala Guattari, que havia sido operada uma mini-revolução interna, não
havia separação entre as nobres tarefas dos terapeutas e as do pessoal operacional e
dos pacientes, o que este autor traduz por uma micro-revolução no trato com a
loucura. Para ele, ao instaurarmos estruturas múltiplas, que possam mobilizar os
pacientes, é fundamental contarmos com todos os membros da equipe, que devem se
disponibilizar e se revezar nas atividades diversas. Ele defende ainda que as
instituições que se propõem a um novo trato da loucura, devem se deshierarquizar-se
nas funções de sua equipe.

Naquele lugar não havia consultórios, salas de atendimento, horários de


agendamentos, sala dos técnicos; havia sim uma disposição institucional de instaurar
possibilidades de convivência entre pacientes de saúde mental e usuários daquele
parque público e daquela comunidade, da forma mais livre e audaciosa (no simples
direito de ir e vir) que já pude observar.

O almoço ficou pronto por volta do meio-dia. Grandes bandejas de saladas


chegavam à mesa, já posta pelo grupo da arrumação. Arroz, feijão, frango assado
com batatas. Ai, que saudade daquela boa comida de sexta-feira!

Na limpeza se revezavam alguns usuários e alguns membros da equipe.

Após o almoço, jogos de mesa, música, pebolim e bate-papo animavam a


tarde que terminava a semana no Parque Previdência.

Por meses e meses, vivemos o encantamento da sexta-feira, mediada pelos


poucos técnicos, poucos usuários e a oficina de almoço comunitário, atividade essa
recomendada pelo documento “Normatização das Ações nos Centros de
Convivência e Cooperativas Municipais (NCC)” e implantada pelos técnicos e
usuários daquela instituição.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 51

Segundo esse documento

...Num ritual mecânico e diário de ingerir alguma coisa para saciar a


fome ou mesmo para cumprir um horário determinado
culturalmente, é mais difícil se observar o processo do alimentar-se
associado a convivência no agrupamento de pessoas como
observamos em grupos de colegas de trabalho ou de adolescentes
que se juntam para lanchar, para um café... e fazem daquele
momento um verdadeiro encontro de trocas, de idéias, afeto e
prazer... (PMSP, 1992, p. 32)

Naquele momento institucional, as situações se repetiam em quase todos os


encontros; as brigas entre os usuários na preferência pelo trabalho da cozinha:
trabalhar no fogão era preferido a cortar cenouras ou batatas; arrumar a mesa era
preferido a varrer o salão.

Algumas usuárias, em aliança com cozinheiras da instituição, solicitavam


para si posições de chefe de cozinha, enquanto delegavam aos outros (um louco, um
deficiente, um adolescente) os papéis de ajudantes.

Essas situações, permanentemente balizadas pelos terapeutas, que também se


revezavam nas diferentes atividades que a oficina comportava, permitiam que cada
um pudesse se desprender de seus supostos e confortáveis papéis para dar lugar a
variações heterogêneas.

É bem verdade que isso, assim condensado, parece tarefa fácil, mas essa
experiência, cuja prática carecia (felizmente) de modelos transponíveis, tinha o
mérito de abalar as nossas formações técnicas.

Lembro-me de uma sexta-feira em que dona Isaura chegou logo cedo, como
era habitual, com seu avental e touca de cabelo, o que sempre lhe garantia um lugar
no fogão, evitando assim, como ela mesma dizia, que alguma coisa pudesse dar
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 52

errado, afinal “todos gostam de comer uma boa comida, bem temperada, cozida e
principalmente limpa”.

Naquele dia, para seu espanto, outros combinados já haviam sido feitos pelos
que haviam chegado anteriormente. Vários outros usuários que sempre chegavam
tarde e que por isso pegavam os serviços mais gerais, estavam a postos para pilotar o
fogão na pequena cozinha, sobrando para ela as atividades menos nobres do salão
ou escolher arroz, feijão, ou mesmo descascar batatas e cenouras.

Era clara a sua insatisfação para com outras atividades, e um certo desdém
para com a competência de outros em tarefas como temperar carnes e cozer os
grãos, o que era ainda compartilhado com as cozinheiras-funcionárias do Cecco que
co-coordenavam, com os terapeutas, a atividade-oficina.

Um certo nojo apareceu no ar, uma tensão e uma incerteza quanto ao


resultado. O que afinal aconteceria com o almoço de sexta-feira?

Dona Isaura com um ar de eu avisei fazia um certo corpo mole diante dos
pedidos de ajuda que recebia, do tipo: quanto colocar de sal, ou quanto pôr de alho
na carne, ou ainda se as batatas precisavam ser cozidas antes de serem assadas.

Naquele dia o almoço atrasou, a carne ficou mal passada e as batatas ficaram
duras. Quase ninguém comeu e um certo silêncio invadiu a sala de almoço, que em
outros dias se mostrava tão cheirosa e efervescente.

Na terça-feira, dia de reunião geral da equipe, o assunto foi o almoço


comunitário. A equipe, um tanto chateada, um tanto desapontada, levantava questões
e arriscava soluções para o assunto: seria o caso de reorganizar o almoço? Faltava
alguém da equipe de terapeutas (um TO, um psicólogo...) para mediar as relações?
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 53

Será que as cozinheiras não gostavam mesmo (como alguém sempre dizia)
dos loucos no espaço da cozinha? E a dona Isaura, hein, que prepotência! Se bem
que ela cozinhava bem melhor. Seria o caso de estabelecer coordenação e papéis
fixos nas atividades? Mas, enfim, qual era mesmo a proposta do almoço
comunitário?

Essa perguntas, como um certo retroceder, sempre aparecem em momentos


de crise institucional. Um certo tecnicismo surge como salvaguarda da ordem
institucional.

Naquele momento institucional a equipe experimentava o almoço


comunitário como uma “dificuldade” a ser resolvida. As mudanças de papéis
provocadas pelo atraso de Dona Isaura, “desestabilizaram” as relações instituídas. Se
por um lado essa desestabilização do instituído é o que dá acesso à possibilidade de
novos arranjos permitindo a expressão da diferenciação, parece-me que em nome da
integração dos diferentes, não foi possível sustentar a potência da experiência. Isso
não surpreende, pois, como já visto, não havia lugar para a diferenciação pelo modo
que foi concebido o projeto (normal/desigual). Nesse sentido parece que a idéia de
integração, apesar de todo esforço de mudança, em alguns momentos, pode estar a
serviço de um movimento de resistência para garantir o instituído. O almoço “não
ter dado certo”, é, a meu ver, a manutenção da ordem institucional, isto é, de uma
certa exclusão da diferença.

Em instituições novas, com múltiplos sistemas de atividade (Guattari,1992),


os velhos procedimentos podem reaparecer a cada instante, apontando que a
resistência a novos procedimentos faz parte do processo, mas deve ser incluída
como elemento de análise e não entendida como erro.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 54

Com essas e outras questões, estava pontuada a aporia do processo de


integração ou de inserção ou ainda de convivência a que este serviço estava se
propondo, pois promover encontros não necessariamente produz diferença.

2.3 As oficinas como técnica: convivência X trabalho

No amplo conjunto de possibilidades que abrange o universo das oficinas,


este instrumento nos Centros de Convivência e Cooperativas foi construído a partir
de vários intercessores, mas efetivamente se organizou, valendo-se de dois vetores
terapêuticos, que não podem ser entendidos separadamente e que são explicitados
pelo próprio nome do projeto: oficinas de convivência e oficinas de trabalho
(cooperativas).

2.3.1 Oficinas-convivência

É muito importante para compreender o trajeto institucional do Cecco,


localizá-lo a partir da relação intrínseca que ele mantinha com o projeto da luta
antimanicomial, que trazia na sua concepção a necessidade e a urgência de inserção
dos excluídos, e que levava os projetos à construção de condições favoráveis para
essa inserção. O que de novidade esse serviço trazia era a produção de um processo
de inserção num mundo coletivo e transitório como os parques públicos.

Para esse projeto de inserção, como instrumento utilizavam-se as oficinas-


convivência que, como já disse anteriormente, eram atividades que visavam produzir
a aproximação da população encaminhada dos serviços de saúde (psicóticos,
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 55

deficientes, idosos, meninos de rua), com a população comum freqüentadora do


parque (donas de casa, crianças da comunidade).

Acerca das oficinas-convivência, Erotides Leal, em sua tese de doutorado,


aponta: “subjacente a esta proposta uma hipótese central: o isolamento, a ruptura
com o social e a impossibilidade de coletivizar experiências pessoais é produtor de
sofrimento psíquico” (Leal, 1999, p. 79).

Essas atividades – tais como tai-chi-chuan, bate-papo, música, contos, horta,


futebol, argila, artesanato, costura, culinária, etc. – organizavam-se dentro de uma
programação semanal, em que os usuários se inscreviam com base em seu interesse
pela proposta.

A população comum, denominada ali de população geral, também se


inscrevia e participava das atividades, segundo seus próprios interesses e
preferências. Já a população encaminhada, ali denominada de população alvo,
inscrevia-se para as oficinas, mas a escolha era realizada em conjunto com os
terapeutas da instituição, que muitas vezes faziam uma indicação para uma atividade
em preferência a outra escolhida pelo usuário. As indicações dessas atividades eram
feitas com base na necessidade e no pedido do encaminhamento realizado por outros
serviços de saúde para o Cecco.

Para esse serviço eram encaminhados: idosos, portadores de deficiência,


portadores de transtornos mentais (que eram identificados nos documentos oficiais
da SMS/PMSP pela sigla “PTM”), que apresentavam dificuldades diversas como
vida sedentária, falta de autonomia e para quem eram sugeridas oficinas que
buscavam melhorar sua capacidade vital.

Novamente, aqui é possível observar que a diferença pontuada entre


população geral (normais) e população alvo (anormais) evidencia os paradigmas
teóricos de uma certa visão de saúde em que a diferença é tratada como
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 56

anormalidade e não como singularidade, e isto para além de uma simples questão
semântica, produz um compromisso aprisionador a uma fantasia de um processo de
inserção-integração de evolução linear e não que “sua gênese se faz por alianças ou
contágios, um rizoma infinito que muda de natureza e rumo ao sabor das mestiçarias
que se operam na grande usina de nossa antropofagia cultural” (Rolnik,1998, p.
133).

Nesse sentido, podemos também pensar que as oficinas – nesse modo de


funcionamento institucional – ainda faziam parte de um certo referencial clínico, em
que havia uma relação nítida entre atividade e indicação. Como as oficinas no Cecco
não tinham como objetivo específico a aprendizagem de um oficio, ou mesmo o
simples direito ao lazer, mas a intencionalidade da convivência entre os usuários,
muitas vezes não era valorizado o processo de produção da atividade, mas apenas a
possibilidade de inserção dos usuários, os encontros e as suas relações.

E estava aí o paradoxal da instituição: a valorização da convivência em


detrimento da aprendizagem ou do lazer provocava muitas vezes o distanciamento
dos usuários comuns do serviço e reforçava a permanência exclusiva de usuários da
saúde mental. Esses usuários na sua grande maioria sem outras chances de vida,
acabavam se submetendo às atividades terapêuticas muitas vezes empobrecidas com
relação à técnica de produção, ao contrário de outros usuários que exigiam para sua
participação um contato efetivo com a produção de uma atividade.

Nesse contexto havia ali muita dificuldade de manter a heterogeneidade dos


usuários das oficinas (um dos principais compromissos do equipamento),
principalmente quando as atividades eram coordenadas somente pelos terapeutas,
como já apontei no exemplo do almoço comunitário.

Ao contrário, quanto mais as atividades se distanciavam dos objetivos mais


clínicos e o terapeuta-oficineiro se afastava do seu lugar exclusivo de terapeuta,
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 57

maior a procura da população geral, e com isso a convivência acontecia


espontaneamente. E quanto mais terapêuticas eram as atividades, mais eram
realizadas exclusivamente pelos usuários da saúde mental.

Mas essas questões eram de muita complexidade para o serviço, pois


travávamos ali um embate diário entre ser terapeuta e ser oficineiro. Uns tantos
defendiam a intervenção clínica no seu sentido mais instituído, outros a intervenção
de uma clínica ampliada, 12 outros ainda rejeitavam o olhar da clínica por entender
que este pode reduzir tanto os usuários a pacientes como o espaço do parque a um
ambulatório de atendimento.

Nesse contexto, as atividades realizadas por oficineiros 13 (ginástica, tai-chi-


chuan) eram essencialmente freqüentadas pela comunidade (a população geral), que
procurava o Cecco não para convivência terapêutica, mas para a aprendizagem de
uma técnica ou esporte ou mesmo pelo simples direito ao lazer. Esses usuários
escolhiam sem intermediação suas atividades.

Já os usuários que eram encaminhados de outros Serviços de saúde para os


processos terapêuticos de convivência (a convivência como parte do seu projeto
terapêutico, como um ponto do tratamento); eram permanentemente auxiliados na

12
Éstou usando a expressão clínica ampliada, muito utilizada pelas novas instituições de saúde mental, tal
como desenvolve Maurício Lourenção Garcia. Segundo ele, esta é uma clínica “comprometida com a
crítica, construção e produção de uma subjetividade heterogenética, aliançada com a escuta daquilo que
propicia a criação e potencializa os processos de transformação do cotidiano. Uma clínica que visa
potencializar e positivar os efeitos instituintes presentes em toda e qualquer forma de relação humana.
Processo onde a subjetividade é pensada, teorizada e produzida no exato momento em que ela ecoa e
produz ressonâncias; um modelo de relação que ao movimentar aquilo que está cristalizado, cria
oportunidades de ampliação da capacidade de afetar e ser afetado; uma clínica que possa ser praticada como
um exercício de expansão e aliança sensíveis aos processos de singularização; uma clínica que se sustente
como produto e produtora da leitura do analítico que preserve o caráter disruptor e sua vocação de remover
minuciosamente dos territórios constituídos, tudo aquilo que impedindo o acesso aos processos de não
totalização, obstruem passagens, não promovem intensificações e emperram as possibilidades de
movimento”. (Garcia, 1996, p. 11)
13
O oficineiros eram profissionais de outras áreas como: artistas plásticos, professores de educação física,
músicos, professores de teatro, dança, bailarinos, etc., que tinham como função o ensino das atividades de
suas especialidades.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 58

escolha das oficinas, pois além de não estarem habituados a simples escolhas,
submetiam-se mais facilmente às orientações dos terapeutas.

Esses usuários-pacientes carentes de outras atividades no seu cotidianos,


permaneciam muito tempo no Cecco, participando de várias atividades e oficinas,
muitas vezes num processo de estar em ocupação, sem nenhum vínculo com a
produção, mas somente com o Serviço. Nesses momentos, os terapeutas se viam
obrigados a escolher algumas das atividades para esse usuários durante a semana,
para que o parque não se transformasse para eles num grande pátio de hospital
psiquiátrico.

Essas questões apontadas acima podem ser vistas como características das
instituições das bordas, dos serviços fronteiras. E essa divisão que se estabeleceu
entre os usuários no Cecco nos seus projetos de convivência – projetos vistos como
regra e dever para uns, pois fazem parte do tratamento; e vistos como oportunidade e
possibilidade para outros, pois pura experimentação dos espaços públicos – tornou
esses projetos uma fonte de distinção entre o normal e o anormal.

Por isso, entendo que os serviços fronteira devem estar atentos para os
reguladores da autonomia dos seus usuários pois esta deve estar incluída no conjunto
de possibilidades de criação de normas disponibilizado para eles e não que sejam
aprisionados na dicotomia normal/patológico.

Esse era o maior problema que enfrentávamos nas oficinas-convivência.


Contudo, sabíamos que muitas vezes esse serviço e as oficinas eram “um ponto de
referência” para os usuários, pois mais do que a produção de uma atividade,
produziam-se para os usuários da saúde mental novos modos de existir (andar na rua
sozinho, tomar um ônibus, encontrar e fazer amigos). Essa era talvez a grande
produção das oficinas-convivência: produzir novos modos de se relacionar,
freqüentar lugares, escolher, jogar e se relacionar.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 59

Embora muitas vezes a convivência se desse apenas entre “pacientes” e


terapeutas, eles podiam se organizar para outros passeios, fazer festa de aniversário,
ter aonde ir, sair de casa, não assistir televisão todo o dia, coisas que sabemos que
são rotinas diárias dos pacientes de saúde mental.

Soma-se a isso o fato de o projeto dos Ceccos ter sido concebido com base
em iniciativas de reforma sanitária que, para superar a lógica hospitalocêntrica,
necessitou colocar em prática uma rede extra-hospitalar eficiente. Esse equipamento
cumpria, nessa rede de assistência, um papel de intermediação entre o que
usualmente denominamos de campo da clínica e campo social. O trabalho desse
serviço era muitas vezes articular a passagem de um campo ao outro ou mesmo
oferecer-se como espaço de fronteira, ou ainda como possibilidade primeira de estar
e de experimentar o campo social.

Entretanto, muitas vezes observávamos nesses processos de convivência a


manutenção da dicotomia normal/patológico, representativa da dimensão instituída
da clínica. Esse caráter que estamos chamando de clínico das intervenções e que
mostrava uma intencionalidade no trato com os usuários de saúde mental, obstruía a
passagem desses ao campo das relações comuns, isto é, as relações que não
necessitam das intermediações permanentes dos terapeutas.

Ultrapassar essa dicotomia entre os normais e os anormais, não entender o


apelo à cidadania como uma forma de apaziguar as diferenças, eram talvez os
grandes desafios das oficinas-convivência. Com isso, não se trata de ignorar os
grandes sofrimentos dos loucos ou dos deficientes mentais e suas famílias, mas –
nesta era do capitalismo globalizado em que um contingente maior de pessoas está
excluído do campo social – estas novas propostas de intervenções sociais têm o
responsabilidade de repensar os paradigmas de normalidade e o estatuto de
cidadania.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 60

Cabe também a estas novas propostas de intervenção fazer com que a cidade
ao invés de propiciar convívios assépticos e descontaminados possa cumprir de fato,
como nos propõe Espinoza, sua tarefa de promover encontros nos quais os
indivíduos ao se comporem entre si, aumentem suas possibilidades de afetar e ser
afetado (Deleuze, 1981).

2.3.2 Oficinas-trabalho

Um outro aspecto de muita complexidade mas sobretudo muito profícuo para


entender os Centros de Convivência foram os projetos de cooperativas, geralmente
denominados oficinas de trabalho.

Com algumas características mais específicas do que os projetos de


convivência, estes projetos focalizavam mais o processo de trabalho como

ferramenta de viabilização socioeconômica (...) aqui o enquadre da


atividade e da produção dos pacientes é marcadamente diferente do
primeiro campo abordado no que diz respeito ao trinômio
trabalho/produto/dinheiro, ponto fundamental das relações sociais e
da produção da subjetividade de nossa época... (Lopes, 1996, p. 95)

Nesses projetos, diferentemente das oficinas-convivência, participavam um


maior número de usuários denominados como população alvo.

Segundo o documento “Normatização da Ações nos Centros de Convivência


e Cooperativas Municipais (NCC)”,

Nos núcleos de trabalho-cooperativas, diferentemente das oficinas


de convivência, onde o produto não é o mais importante, onde não
há comercialização e onde o contrato é feito objetivando outras
metas, a participação dos usuários pertencentes a população alvo
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 61

(acometidos de transtorno mental, portadores de deficiência em


geral, idosos, crianças e adolescentes de rua, portadores de
necessidades especiais) poderão se dar em agrupamentos
independentes da observância das mesmas taxas percentuais a
serem cuidadas na composição das oficinas de convivência, com
relação a população “tida normal”, pois a dificuldade de inserção no
mundo do trabalho é maior com os estigmatizados, portanto
deverão ter prioridade, mas não necessariamente exclusividade nas
cooperativas. (PMSP,1992, p. 30)

Neste trecho do documento, é possível perceber nitidamente que fomentar


atividades de trabalho era de suma importância para este serviço, que se colocava na
rede de saúde como mediador entre o mundo de tratamento e a vida social.

Nessas atividades, todo o enfoque no trabalho com os usuários era uma


mobilização para o trabalho produtivo-econômico, geralmente a partir da
aprendizagem e prática de um ofício. Muitas vezes observávamos nesse processo de
produção um movimento semelhante ao que apontei no primeiro capítulo como um
certo modo artesanal de produção pois as oficinas de trabalho eram quase sempre
realizadas com técnicas experimentais, sem uma fundamentação teórica rígida e
construída no processo de interação dos seus participantes. Nesses projetos havia
uma preocupação com o processo de produção das atividades, onde se buscava a
união entre a concepção e a execução, atreladas à singularização do ritmo do
trabalho.

As oficinas tinham como proposta fundamental a iniciação dos seus


participantes no universo do trabalho, embora saibamos a partir de nossas análises
anteriores que o trabalho ocupa um papel ambivalente na sociedade moderna.

Não apenas para os usuários de psiquiatria, mas para a grande maioria dos
usuários do Cecco (desempregados, moradores de rua, donas de casa, idosos), seus
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 62

modos de vida não se adequavam ao modo de produtividade capitalista, definida nos


seguintes termos: quantidade de produto por tempo necessário para produzi-lo.

Essa questão se colocava para a instituição como paradoxal, pois ao mesmo


tempo em que se almejava construir alternativas de inclusão socioeconômica para os
usuários, tais práticas deveriam estar ligadas a processos à margem tanto da
economia quanto do social hegemônico.

Evidentemente esta não é uma questão puramente clínica, mas como os


Centros de Convivência pretendiam uma reinvenção do cotidiano ou, melhor
dizendo, a construção de territórios existenciais ou ainda um “em casa” para os seus
usuários, o tema trabalho produzia questões de muita complexidade.

Nessas atividades (oficina-trabalho), surgia permanentemente nos usuários o


desejo de um aprendizado técnico, 14 e conseqüentemente de um retorno financeiro
pelas suas produções, o que geralmente provocava na equipe muitas inquietações.

Produzir autonomia financeira através de atividades não formais, estabelecer


novas bases de inserção sem incluir no ciclo vicioso do capital, é tarefa não só de
terapeutas mas de toda sociedade atual.

No contexto de oficina que analiso na dissertação, os terapeutas tentavam


produzir outras variações no modo de produção, com isso encarnavam muitas vezes
o papel de oficineiros, e os pacientes por sua vez o papel de aprendizes.

Contudo, foram poucas as oportunidades de esses projetos se concretizarem


no Serviço, pois tanto os terapeutas como os usuários se viam ali em condições
muito desfavoráveis para isso, sobretudo porque os terapeutas pouco sabiam a

14
Estou aqui chamando de aprendizado técnico, a aquisição de alguma habilidade manual ou mecânica útil à
comunidade e que trouxesse a possibilidade de um retorno financeiro.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 63

respeito de técnicas para ensino de um ofício e os usuários por sua vez ficavam
empobrecidos na realização da aprendizagem.

A estreita relação entre as técnicas oferecidas nas oficinas e a capacitação


pessoal dos terapeutas mascarava muitas vezes a demanda dos usuários. Nessa
medida, articular-se com outras esferas da comunidade é um desafio a ser superado
pelos Serviços que implementam os dispositivos oficinas. Isto exige implicar outros
campos na construção desses dispositivos para livrar tanto os terapeutas da grande
tarefa de prover as oficinas de propostas artísticas, culturais, esportivas e
profissionais, quanto os usuários de se submeter apenas aos instrumentais técnicos
da equipe de terapeutas do Serviço.

Com isso, retomo a diferenciação entre oficinas e intervenções terapêuticas já


apontada no Capítulo 1. Enquanto estas últimas comportam sempre uma relação
entre saúde e doença, as primeiras se legitimam ao migrarem dos modelos
terapêuticos, borrando a fronteira discriminatória que faz a separação entre saúde e
doença.

No Cecco Parque Previdência, experimentamos uma oficina-trabalho que se


mostrou muito fecunda quanto às problematizações acima expostas. Essa
experiência se deu em parceria com o HD Butantã, 15 que naquele momento também
se defrontava com as questões de inserção dos pacientes após a alta.

Esse projeto – que não contou com o trabalho de oficineiros – era coordenado
por terapeutas do Cecco e do HD, e foi priorizada a participação de pacientes de
saúde mental, adultos, com alguma demanda de trabalho.

15
Hospital-Dia de saúde mental – adultos que era referência para a região de Butantã, onde se situava o Cecco
Parque da Previdência.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 64

Diferentemente dos outros projetos de convivência na instituição, nessa


oficina-trabalho, exercitava-se lidar com questões relativas à produção, horários,
produtividade e dinheiro.

Um exemplo que demonstra nitidamente a complexidade dessas oficinas


neste equipamento foi o projeto pintura de vasos.

Desde o início dessa oficina-trabalho, o grupo enfrentou situações difíceis


como por exemplo a compra dos vasos de cerâmica, pois o restante do material a ser
utilizado no projeto como as tintas e os pincéis eram materiais usualmente
consumidos pela instituição.

Após várias discussões desse grupo-trabalho, surgiu uma idéia para


solucionar o problema: pedir doações de vasos no cemitério mais próximo, pois
afinal ali deveria haver muito desse material em desuso. Muito constrangimento
apareceu nos terapeutas da equipe. Mas afinal o que haveria de errado no contato
com essa instituição da comunidade?

Realizados os acertos com a administração local, o cemitério doou os vasos,


muitos deles quebrados, que foram artesanalmente reformados pelos usuários da
oficina. Um longo processo de restauração e os vasos foram pintados e coloridos.
Eram azuis, amarelos, vermelhos, com flores, com peixes, que aos montes,
chegavam às prateleiras do Cecco.

Após o processo de feitura dos vasos, veio a preparação da terra, a escolha


das plantas, o plantio das mudas e finalmente os vasos estavam prontos. Mas o que
fazer com toda aquela produção?

Muitas idéias surgiram, vindas não só dos participantes da oficina, mas


também de toda a equipe da instituição que se mobilizou em torno do trabalho dessa
oficina: montar uma barraca permanente em feiras das praças públicas municipais,
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 65

realizar exposições itinerantes nos parques e instituições da comunidade (igrejas,


centros esportivos, centros comunitários, casas de cultura); propostas interessantes
que se dissolviam com as burocracias institucionais.

Quem se responsabilizaria pelas barracas nos finais de semana? Onde seriam


guardados os vasos após as feiras ou ainda quem levaria as peças para os tais
eventos? Essas eram questões que surgiam quando o projeto das oficinas
ultrapassava o limite de tempo de trabalho dos terapeutas com os usuários e com a
instituição.

Para o projeto dos vasos, foram organizados – tal como muitas instituições
tradicionais de psiquiatria marcados pelos ditames estandardizados da doença
mental – bazares e feiras na própria instituição, e uma aliança com uma loja de
cerâmica que se propôs a ficar com as peças em consignação.

Alguns vasos vendidos, outros não e a partir daí questões como a definição de
critérios para a divisão do dinheiro obtido: divisão igualitária ou proporcional à
quantidade de trabalho de cada um, etc.

Esse grupo passou muitos momentos de frustração com as questões que dele
emergiam, pois era muito difícil dar novos contornos ao tema do trabalho, tendo
como parâmetro a relação trabalho/dinheiro.

Os usuários dessa oficina, encantados com a possibilidade de trabalho e de


retorno financeiro, exigiam dos terapeutas o equivalente em dinheiro das suas
produções. Os terapeutas, por sua vez, sem saída para esse processo, compravam
quase toda a produção e enchiam suas casas com peças e mais peças confeccionadas
pelo grupo.

Com esses dilemas, insolúveis naquele momento para a instituição, o projeto


pintura de vasos durou até o dia da liquidação total dos vasos do grupo de trabalho,
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 66

estratégia utilizada num momento em que a instituição não suportava mais todas
essas angústias vindas da oficina-trabalho.

Muitas vezes na instituição, aparecia uma falsa questão advinda das oficinas-
trabalho. Obviamente não era a intenção desse serviço transformar-se numa empresa
com reservas de empregabilidade, mas o fato de ele se abrir ao universo do trabalho
sem articular-se com outras esferas desse campo, levava sempre ao risco de
permanecer tão enclausurado e excluído quanto os seus usuários, somado ao risco de
nem sequer se abrir a outros vetores que ali eram produzidos. Valorizar múltiplos
modos de produção e com isso modos de existências tão singulares como os dos
usuários de saúde mental pode produzir não só territórios existenciais para eles, mas
signos que também interessem a outros.

Nesse exemplo da oficina de vasos, podemos visualizar situações


embaraçosas que são vividas cotidianamente pelas instituições de saúde mental que
se propõem a usar o trabalho como terapêutica de inserção social

O trabalho, visto aqui como possibilitador de uma certa autonomia, pode


acabar imerso no mesmo campo de produção desconectado das necessidades
cotidianas em que se encontram os seus participantes.

Isso leva a pensar que os projetos de inserção social balizados na


intermediação permanente dos profissionais estão sempre no limite da atuação
desses enquanto tais. Nesse sentido, se desejamos que as oficinas sejam diferentes
dos projetos mais tradicionais do mundo psi, estas devem caminhar cada mais para
se distanciarem da instituição saúde mental transformando-se em projetos concretos
de engajamento social onde caiba a inclusão de outros atores sociais (não só
pacientes e terapeutas) ou mesmo que possam ser projetos de vida de todos os
participantes do projeto incluindo aí os terapeutas. Os projetos de cooperativas por
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 67

exemplo tornam-se completamente insuficientes quando não articulados com outros


organismos e outros atores sociais.

Como nos aponta Márcia Raposo Lopes,

O trabalho terapêutico acaba por repetir, assim, algumas das


principais características da produção capitalista acabando também
por reproduzir, pelo menos em parte, uma noção de trabalho que o
funda enquanto troca de tempo por dinheiro, que o desliga do
cotidiano, da produção de Vida e prazer. (Lopes, 1996, p. 102)

Com isso posto, a intenção desta investigação não é de modo algum esgotar
essas questões, mas ao contrário abrir-se a elas. Escapar dos modelos enrijecidos que
o aparato social oferece, sair dos impasses repetitivos dos modos de produção
vigente, são tarefas árduas para a clínica atual.

Essas experiências que apontei visam apenas disparar ou ajudam a explicitar


as várias dimensões da intervenção oficina nos espaços de assistência em saúde.

2.4 Rupturas: o fechamento do Cecco

É importante dizer que o projeto de oficinas não era a única proposta do


Cecco, embora aqui eu o tenha privilegiado por ser o tema da pesquisa. Cada ação
desse equipamento de extrema complexidade mereceria uma dissertação, um conto
ou uma história.

Entretanto, apesar do leque de ações atribuídas a esse serviço, muitas vezes a


intervenção oficina era a única desenvolvida.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 68

Marazina conta – baseada em projetos de supervisão das equipes dos Ceccos


– que, diante da angústia dos terapeutas em articular minimamente a proposta do
equipamento, projetos de oficina se instalavam o tempo todo. Segundo ela, “sem
dúvida esses espaços abriam possibilidades de encontro, mas existia um grande
controle sobre a possibilidade de trânsitos mais espontâneos” (Marazina, 1997, p.
172).

Nesse sentido, essa intervenção pode ter um caráter aprisionador quando se


propõe a servir de instrumento de um projeto, seja ele inovador ou de prática
tradicional.

Não tenho dúvida de que esse projeto foi essencial e importante na vida dos
usuários que por ele transitaram. E é verdade também que a prática profissional
nessa lógica de assistência abriu portas para novos agenciamentos.

Como já foi dito, esse serviço foi violentamente fechado em maio de 1996,
por um projeto político de privatização do sistema público de saúde (PAS). Esse
“fechamento” rompeu com uma certa cultura de saúde mental que se pautava pelo
ideário da reforma psiquiátrica, e mais do que isso esta ruptura esgarçou com uma
larga rede de serviços de atendimento público municipal da maior cidade deste país.
Contudo, o Cecco nos seus poucos anos de vida pôde propiciar problematizações
importantes no que concerne à clínica contemporânea.

Admitamos portanto a frase contundente e ao mesmo tempo pertinente para


esse processo: “Na Escola Bélica da Vida– O que não me faz morrer me torna mais
forte.” (Nietzche, 1984, p. 10).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 69

Capítulo 3

Novas práticas: desertando a saúde mental

O grande erro, o único erro, seria acreditar que uma linha de


fuga consiste em fugir da vida; a fuga para o imaginário ou para
a arte. Fugir, porém, ao contrário, é produzir algo real, criar
vida, encontrar uma arma. (Gilles Deleuze, 1998, p. 62)

3.1 A criação de um novo território 16

O colapso provocado pelo PAS na instituição Saúde da prefeitura de São


Paulo alterou significativamente o quadro de assistência pública da cidade e
comprometeu várias ações importantes na rede pública de saúde mental,

16
A partir daqui passo a utilizar uma outra noção de território, diferente da que apareceu nos capítulos
anteriores, que traz um suporte ao pensamento sobre os projetos de uma clínica ampliada. Trata-se da idéia
proposta por Deleuze e Guattari. Conforme expressa Guattari, a noção de território deve ser tomada em um
sentido amplo, indo além dos usos feitos pela etologia e pela etnologia: “Os seres existentes se organizam
segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território
pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se
sente ‘em casa’. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o
conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de
comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivo” (in:
Guattari & Rolnik, 1996, p. 323).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 70

principalmente os projetos que previam que os usuários desses serviços circulassem


pela cidade.

A partir daí, muitos dos profissionais envolvidos nos projetos de saúde e


ideário da Reforma Psiquiátrica foram transferidos para outros serviços (geralmente
fora da Secretaria da Saúde) e impedidos de continuarem a desenvolver suas
atividades com os usuários. Foram criados, nesse período, alguns espaços precários
de atendimento, fora do PAS, que serviram também como lugar de exílio para os
profissionais deslocados de seus locais de trabalho.

A esse propósito, é importante esclarecer que apesar de o PAS ter ficado


encarregado de gerir toda a rede de assistência em saúde do município de São Paulo,
a grande maioria dos funcionários da saúde decidiu por não participar desse projeto,
o que acarretou uma legião de servidores à deriva da instituição. Por mais que a
própria instituição tenha criado vários serviços alternativos e “complementares” ao
PAS, esses não foram suficientes para absorver o contingente de trabalhadores
afastados. Com isso muitos profissionais da saúde admitidos numa diversidade de
outros projetos foram obrigados a atuar na criação de novos serviços e a se recriarem
como profissionais.

Para o sistema de saúde pública municipal, essa época foi marcada por
acontecimentos estarrecedores. Como nos momentos de guerra, fomos assolados por
uma avalanche de violência, descaso, tristeza, abatimento, desesperança e descrença.

Algumas pesquisas já permitiram quantificar o êxodo forçado de servidores


da Secretaria Municipal de Saúde, como estratégia para implementação do PAS e
analisar algumas conseqüências desse êxodo para a administração pública de saúde.

O Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública


da Universidade de São Paulo – Eixo de Políticas, Planejamento e Administração
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 71

em Saúde, realizou no período de junho/1996 a janeiro/1997 pesquisa com estes


objetivos em que concluiu que:

– O êxodo caracterizou-se por uma desocupação humana de unidades básicas


por parte de servidores públicos, para ser possível a ocupação pelo pessoal do PAS,
reforçando preconceitos da ineficência inerente ao serviço público.

– Foram realizadas 24.505 transferências ou remoções de funções de saúde, e


isso representou a retirada de 69,94% dos servidores que exerciam funções de saúde.

– O êxodo resultou em mudanças na estrutura do quadro de pessoal da SMS,


com a diminuição da proporção das funções típicas de saúde, de 63,54% em
dezembro de 95 para 58,69% em agosto de 96.

– Os destinos do êxodo foram esdrúxulos: para as secretarias de


Administrações Regionais, Esportes, Cultura, Verde e para a Guarda Civil
Metropolitana.

– O êxodo significou um retardo na organização política do setor saúde no


município de São Paulo, mantendo a desarticulação entre os governos municipal e
estadual além de implicar a desestruturação de órgãos destinados ao
desenvolvimento de ações específicas de saúde pública, como atividades de alcance
coletivo: vigilância epidemiológica e sanitária, entre outras. (Sá et al, 1997).

Especialmente no campo da saúde mental, estudo realizado pela Associação


SOS Saúde Mental (Ong com trajetória iniciada no movimento popular de saúde da
zona leste de São Paulo) em 1996, demonstrou a queda no número de serviços de
saúde mental substitutivos aos manicômios, a diminuição no número de
profissionais atuando em saúde mental (1.200 em 1995 e 750 em 1996) e a
expressiva diminuição da população atendida (153.396 pessoas/ano em 1993,
114.896 em 1995 e 98.712 em 1996). (Lopes, 1999, pp. 71-73).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 72

Poderíamos aqui permanecer nessa experiência cáustica e seria inteiramente


pertinente fazê-lo, mas o fato é que dessas experiências mórbidas e sombrias, pode-
se desencadear também uma rede de solidariedade positiva, dessas que nascem
como estratégia vital para os “tempos de inverno”, utilizando expressão de Guattari.

E o fato de uma experiência ter sido interrompida (por violência ou fracasso


próprio) não elimina a sua possibilidade de ainda nutrir o pensamento e a criação
sobre a clínica... Olhar criticamente para ela, buscando analisar suas potências mas
também suas limitações, pode contribuir, fornecer inspiração, apontar certas
recorrências para novas criações.

Para além da tese sobre os efeitos negativos do PAS (e isso não significa de
forma alguma negá-los), a destruição da rede de serviços de saúde permitiu
problematizar todo um campo de assistência que estava, num certo sentido,
enrijecido pelos discursos técnicos, como apontei no Capítulo 2.

Nesta breve formulação já dá para perceber que a concretização de uma


clínica “desassossegada”, “inquieta”, que não se contenta com as definições e
limites impostos por cânones científicos ou instituições burocráticas do aparelho de
Estado, pode se alimentar dessa idéia de que o território não se resume aos espaços
físicos que podemos montar-arranjar-ocupar, mas se espraia também para espaços
invisíveis e sutis. E, como tal, diz Guattari : “pode se desterritorializar, isto é, abrir-
se, engajar-se em linhas de fuga e até sair de seu curso e se destruir”. (in Guattari
& Rolnik, 1996, p. 323, grifo meu).

Assim, vou me deter aqui em uma dessas experiências, muito significativa


porque se fez ética e política, na medida em que respondeu ao intolerável do PAS,
reinstaurando um coletivo em meio à apatia social e reconectando um corpo de
profissionais à clínica.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 73

Essa experiência se desenvolveu a partir da preciosa parceria que se


estabeleceu no ano de 1997, entre o Curso de Terapia Ocupacional da Universidade
de São Paulo (TO/USP) e a Secretaria de Saúde da Prefeitura Municipal de São
Paulo (SMS/PMSP).

Antes da existência do PAS, vários dos projetos de saúde mental do


município (centros de convivência, hospitais-dia, unidades básicas de saúde)
mantinham convênio com o curso de Terapia Ocupacional da USP, servindo como
espaços de estágio para os graduandos dessa instituição. Com o projeto PAS e o
grau de desresponsabilização do poder municipal pela saúde coletiva e ainda, com as
saídas das equipes de referência dos serviços, o curso de Terapia Ocupacional
rompeu o convênio e por isso necessitou criar novos espaços de clínica para a
formação prática dos seus alunos de graduação.

Nessa ocasião, alguns docentes do curso de TO estavam às voltas com


projetos de assistência-ensino que intencionavam implementar novos espaços de
intervenção, e precisavam de parcerias para concretizá-los.

E nessa dureza de acontecimentos, uma suavidade emergiu. Uma mistura


potente, de irrigação recíproca, quer dizer, um novo agenciamento: vários docentes
do curso de TO iniciaram seus projetos de assistência no curso e convidaram para a
formação das equipes, profissionais da PMSP que anteriormente eram supervisores
de estágio na instituição.

Alguns desses profissionais vinham da prática clínica anterior nos projetos


com oficinas nos Centros de Convivência, que apresentavam na sua composição um
delicado desmanchamento dos especialismos na intervenção clínica. Este modo
híbrido de realizar a clínica era compartilhado e apreciado pelos docentes do curso
de TO, que – ao pensar a clínica – não se atinham ao paradigma de um ambulatório
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 74

de especialidades, mas se propunham à invenção de novos espaços, ao desafio de


construir uma prática para além dos seus limites tradicionais.

Neste sentido, os projetos de clínica do curso de TO foram criados de acordo


com um eixo entendido como clínica transdisciplinar, acompanhando a elaboração
de Neves et al (1996). Para esses autores, a clínica não pode ser vista como uma
mera técnica que seria sustentada por uma teoria. E eles afirmam que também não
seria o caso

de propor uma nova técnica terapêutica que viesse resolver os


problemas das demais técnicas, e sim de problematizar, propor
estratégias particulares, singulares, que digam respeito aos
problemas também singulares que a clínica nos propõe.(Neves et al,
1996, p. 183)

A essa modalidade de atuação, esses autores sugerem o nome de “clínica


militante”, que estaria “preocupada com a criação de novas maneiras de viver, uma
clínica que se ocupasse das produções do inconsciente para além de uma pura
fantasmagoria, tiranias da intimidade...” (idem)

Estas novas instituições foram forjadas então a partir de um fundo de


engendramento (parceria TO/USP e SMS/PMSP), e nesse processo passou-se de
uma negatividade (lei do PAS que interditou a experiência clínica), para uma
positividade (criação de novas realidades de clínica).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 75

3.2 Novos agenciamentos, um novo mapa: o Espaço Lúdico Terapêutico

Como uma das propostas, o Espaço Lúdico Terapêutico (ELT) foi criado em
1996, inserido nos projetos de assistência do curso de Terapia Ocupacional da USP.
Desde o início, este serviço se caracteriza como um espaço de assistência, ensino e
pesquisa, atendendo crianças e adolescentes com distúrbios globais de
desenvolvimento (psicoses, autismos e deficiências mentais).

O projeto inicial propunha, segundo Maria I. B. Brunello, idealizadora e


coordenadora do serviço, a construção de um lugar para brincar, um espaço que
resgatasse e estimulasse o lúdico na vida das crianças “diferentes” (deficientes
mentais, autistas, psicóticas), entendendo-o do mesmo modo que Suely Rolnik
posteriormente precisou tão bem: “brincar, play, onde o jogo se inventa ao mesmo
tempo que suas regras, seus personagens e o lugar cambiante que cabe a cada um
como jogador” (Rolnik, 2000, p. 5).

Quando estamos implicados na clínica de saúde mental infantil, percebemos


que todo o trajeto dessas crianças que nos procuram está aprisionado pelo mapa da
clínica. São perambulações exaustivas por psicólogos, psiquiatras, terapeutas
ocupacionais, fonoaudiólogos, neurologistas, num circuito imenso de entrevistas,
tratamentos, internações, intervenções, que mergulham essas vidas num único e
restrito meio.

A propósito disto, Deleuze (1997, p. 73) diz que, “o trajeto se confunde não
só com a subjetividade dos que percorrem um meio, mas com a subjetividade do
próprio meio, uma vez que este se reflete naqueles que o percorrem”. Então, intervir
na composição de outros trajetos, na exploração de novos meios, torna-se essencial
se queremos – a partir da clínica – ampliar o universo dessas crianças, conectá-las
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 76

com outros mundos e, fundamentalmente, possibilitar um desertar o mundo restrito


da saúde mental.

Nessa medida, a idéia original do projeto pode ser entendida como uma certa
tendência da clínica contemporânea de apontar cada vez mais para a construção de
espaços de socialização, em oposição aos espaços terapêuticos tradicionais.

Num nível mais imediato o projeto ambicionava tensionar o campo da clínica


no sentido de não se colocar como mais uma terapia na vida dessas crianças, mas se
constituir como um espaço de brincadeiras, de jogos e de abertura para a criança
encontrar seu próprio caminho.

Inspirado inicialmente na idéia de instituição estourada criada por Maud


Mannoni a propósito da École Experimentale de Bonneil-sur-Marne, o Espaço
Lúdico, é também uma instituição que se propõe estar à margem e que

...tem em vista aproveitar e tirar partido de tudo o que de insólito


surja (esse insólito que, pelo contrário, têm-se o costume de
reprimir). Portanto, em vez de oferecer permanência, a estrutura da
instituição oferece, sobre uma base de permanência, aberturas para
o exterior, brechas de todos os gêneros (por exemplo, estadas fora
da instituição)... (Mannoni, 1977, p. 79)

Segundo essa autora, “...o essencial da vida desenrola-se em outra parte –


num trabalho ou num projeto no exterior..” (idem).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 77

3.3 O terreno de construção

O espaço físico projetado para as atividades do Espaço Lúdico é composto


por salas do Centro de Docência e Pesquisa em Terapia Ocupacional que servem
tanto para o atendimento às crianças e adolescentes quanto para laboratório de
atividades dos alunos do curso de TO.

A equipe é constituída por quatro terapeutas ocupacionais e uma psicóloga,


sendo que somente uma terapeuta ocupacional é docente do curso de TO da USP. O
restante das profissionais são funcionárias da Prefeitura do Município de São Paulo
cedidas por comissionamento ao ELT.

Para esta nova prestação de assistência, no início do projeto, os pacientes


vinham prioritariamente da própria “comunidade USP”: outros serviços de
assistência do curso de TO, serviços de assistência do curso de Fonoaudiologia e
Fisioterapia, que funcionam no mesmo prédio, e a Pré-Escola Terapêutica Lugar de
Vida (instituição parceira em algumas atividades com adolescentes). Após alguns
meses de funcionamento, o ELT passou a receber também encaminhamentos de
outros serviços da região e de outras instituições de São Paulo e de Osasco,
município situado nas proximidades da Cidade Universitária.

A partir de entrevistas ligeiras, que buscavam investigar o lugar da


brincadeira na vida das crianças, e a que denominávamos acolhida, alguns grupos
foram criados com o objetivo primeiro de se constituírem como espaços
complementares e de alternância com os tratamentos: um lugar para a criança
“estranha” ir brincar.

Entretanto, com o passar do tempo, começamos a receber crianças e


adolescentes gravemente comprometidos, provenientes das mais diversas regiões de
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 78

São Paulo, em busca de uma instituição de saúde mental que se oferecesse como
espaço de tratamento, pois muitas delas tiveram seus tratamentos interrompidos por
causa da implantação do PAS.

As entrevistas iniciais realizadas pelos terapeutas da equipe, em que as


famílias relatavam dificuldades de encontrar lugares que se dispusessem a atender
seus filhos, levaram ao surgimento, no ELT, de várias estratégias isoladas de
intervenção, digamos mais terapêuticas. Assim, um atendimento individual aqui,
uma visita domiciliar ali, um grupo de pais... várias situações que, a todo momento,
obrigavam-nos a colocar em questão o funcionamento institucional e a reelaborar a
proposta inicial.

Era uma encruzilhada: como não se tornar um ambulatório de especialidades,


com terapias específicas de TO, psicologia, fonoaudiologia, e continuar a ser um
lugar para brincar?

Para nós da equipe, essa era uma questão fundamental, já que tínhamos como
parâmetro não sermos engolidos por um certo referencial clínico. Ou, dizendo de
outra forma, nosso objetivo era ocupar na clínica um lugar de deslocamento dela
própria.

Contudo, é importante relembrar que a implantação do PAS esfacelou a rede


pública municipal de assistência, que deixou de atender uma grande parte da
população que fazia uso dela. Por isso, a universidade e o curso de TO se viram
defrontados por demandas que não haviam se proposto a atender, sendo então
implicados na construção de novos serviços de atendimento. Foi assim que o curso
de TO “comissionou”, isto é, tomou emprestado da Prefeitura do Município de São
Paulo quinze terapeutas ocupacionais, profissionais que antes atuavam nos serviços
de saúde que foram extintos.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 79

Desta forma, o caminho foi buscar um entre o ambulatório e o lugar de


brincar, construindo um espaço onde coubessem as terapias e também as
brincadeiras, jogos, passeios, festas e oficinas, para que a clínica pudesse ser
fabricada no coletivo das ações, e as intervenções ao invés de serem previamente
moldadas, pudessem se constituir como catalisadores existenciais, com estratégias
singulares em constante mutação.

Com isso, a montagem da assistência no ELT ganhou uma configuração


articulada por três eixos fundamentais, a saber:

1. Intervenções com crianças e adolescentes:

ƒ atendimentos domiciliares
ƒ grupos
ƒ oficinas
ƒ atendimentos domiciliares
ƒ acompanhamento terapêutico

2. Intervenções com as famílias:

ƒ atendimentos processuais
ƒ grupos
ƒ oficinas
ƒ atendimentos pontuais
ƒ orientações

3. Intervenções com outras instituições que alternam com o tratamento:

ƒ escolas
ƒ creches
ƒ outros tratamentos

Essa montagem institucional foi assim pensada por acreditarmos que essas
crianças e adolescentes assistidos por nós não necessitavam apenas de atendimentos
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 80

específicos de TO ou de outra especialidade, mas de um corpo institucional e de


dispositivos diversos de sustentação, como dobras terapêuticas no tecido social, que
lhes abrissem possibilidades de alternância, isto é, ir de um lugar para outro,
comportar novas experimentações, habitar novos lugares, situações difíceis para
sujeitos marcados por histórias de psicoses, autismos ou deficiências mentais graves.

Assim, o ELT é um lugar multifacetado, com uma riqueza de aspectos, cada


um dos quais colocando questões de muita complexidade. Nesta pesquisa, a
proposta é problematizar apenas um desses dispositivos de intervenção
implementados na montagem desse serviço, ou seja, as oficinas.

3.4 As oficinas no ELT: da técnica ao dispositivo

As oficinas no ELT têm sido pensadas sempre na intersecção


instituição/campo social, isto é, nas intervenções que exigem que se pense para fora
da instituição ou, melhor dizendo, nesses processos em que intencionamos fomentar
trânsitos, movimentos e passagens diversas, dos pacientes por circuitos sociais
outros.

Claro que hoje isso parece óbvio e aparece como projeto de quase todas as
instituições que trabalham na clínica da saúde mental. Os movimentos institucionais
das últimas décadas, como já comentado anteriormente, foram categóricos nas
afirmações da importância de se abrir as portas das instituições para a esfera social.
Mas como fazer isso sem cair na armadilha de que existe um indivíduo ou um grupo
a ser incluído? Como não entender o campo social de um lado e a clínica de outro?
Como não hierarquizar, e continuar nas intervenções-promessas?
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 81

Nossa perspectiva com o trabalho das oficinas é bem outro. Consideramos


que as oficinas não são meros instrumentos aplicáveis a serviço de um projeto, mas
um espaço que mobiliza novas práticas e outras formas de organização. Assim,
tomando-as em sua dimensão de dispositivos, acreditamos que elas possam se
constituir como uma mediação entre os vários aspectos heterogêneos de uma dada
situação. Como bem aponta Regina Benevides de Barros (1997, p. 187), “com isso
não estamos nos referindo a qualquer tipo de intermediação entre totalidades (o
social e o indivíduo)”.

Essa autora afirma que trabalhar na filosofia dos dispositivos é ultrapassar a


dimensão das dicotomias que se estabelecem entre o indivíduo e o social, pois
articular heterogêneos é constituir um espaço para além dos elementos já
constituídos.

Foucault (1994), em entrevista dada à revista Ornicar em 1977, esclarece que


o termo dispositivo aponta para três vetores: o caráter de rede do dispositivo (o
dispositivo estabelece ligação entre os elementos heterogêneos: discurso, instituição,
as leis, os regulamentos, enunciados científicos, proposições filosóficas); a natureza
da ligação (os elementos podem ser discursivos ou não e existe um jogo de mudança
de posição entre eles); e ainda o caráter de estratégia que tem por função responder a
uma urgência.

Em outro momento da entrevista, ele aponta que

...o dispositivo se constitui como tal e permanece dispositivo, na


medida em que ele é lugar de um duplo processo: processo de
sobredeterminação funcional, de um lado, já que cada efeito,
positivo ou negativo, desejado ou não, vem entrar em ressonância,
ou em contradição com os outros, e obriga a um reajustamento dos
elementos heterogêneos que apareceram. É um processo perpétuo
de preenchimento estratégico... (Foucault, 1994, p. 299, grifo meu)
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 82

Mas para entender isso melhor, proponho que nos lancemos a uma viagem
pelo dispositivo oficinas. Antes, porém, considero importante diferenciar
sucintamente as noções de técnica e dispositivo que estamos utilizando aqui, já que
esses termos são muitas vezes tomados como sinônimos. Técnica é aqui vista como
um instrumento, um material aplicativo a uma dada situação. O dispositivo, ao
contrário, nasce na situação como dobra estratégica da própria experiência.

3.5 Os adolescentes e as experimentações de “trabalho”

Falar de “experimentações de trabalho com adolescentes” exige o


esclarecimento prévio sobre a relação entre educação e trabalho na infância e
adolescência.

Estou chamando de “trabalho com adolescentes”, experimentações ligadas


ao aprendizado de um ofício. Especialmente no que diz respeito aos adolescentes,
os processos de profissionalização e inserção no campo do trabalho, conforme
indica a legislação vigente (Lei 8069, de 13/07/1990, Estatuto da Criança e do
Adolescente), não devem impedir ou competir com o processo de escolarização.
Ao contrário, tem sido orientação das políticas de atenção à infância e juventude,
focalizar a educação e a escolarização nos processos de abertura ao mundo do
trabalho. Na Constituição brasileira, a preparação para o ingresso é o terceiro alvo
da educação, sendo esta preparação entendida como aquisição de habilidades
básicas e específicas de gestão necessárias para a inserção na vida produtiva.

De outro lado, as características contemporâneas do mundo do trabalho têm


desafiado os que trabalham com profissionalização de adolescentes e jovens a
redimensionarem os objetivos da educação.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 83

Assim, temos nos valido para o desenvolvimento deste projeto com


adolescentes, para além da compreensão do trabalho na sua dimensão de inclusão e
produção de subjetividade, também da compreensão da Educação tal como
formulada pela Unesco (1998): a educação deve se estender ao conjunto da
experiência humana, abraçando quatro diferentes eixos: ser, conviver, aprender e
fazer, ou seja, o desenvolvimento das competências: pessoal, social, cognitiva e
operativa.

O eixo do fazer, privilegiado nas oficinas com os adolescentes, é entendido

de uma maneira ampla, não apenas para adquirir uma qualificação


profissional, mas competências que tornem a pessoa apta a
enfrentar numerosas situações e trabalhar em equipe. Mas também,
aprender a fazer, no âmbito das diversas experiências sociais ou de
trabalho que se oferecem aos adolescentes, quer espontaneamente,
quer formalmente...” (Unesco, 1998, p. 101-102)

Tornada clara a concepção assumida pelo ELT sobre a relação


educação/trabalho na adolescência, cabe apontar que as atividades nessa área
iniciaram-se em 1996, numa parceria realizada por dois docentes do curso de
Terapia Ocupacional da USP, comprometidos com a implantação de atividades
clínicas nessa universidade, com a Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, do
Instituto de Psicologia da USP.

Num primeiro momento, o pedido do Lugar de Vida para o curso de Terapia


Ocupacional foi de um projeto de oficinas para as crianças crescidas daquela
instituição, isto é, para pré-adolescentes ou já adolescentes com problemas
emocionais graves, que se viam às voltas com a questão da inserção, não somente no
âmbito escolar. A Pré-Escola Lugar de Vida, segundo Cristina Kupfer, coordenadora
do serviço, é uma instituição organizada para atender crianças e tem como objetivo
final a inserção escolar, e por isso se encontrava sem ferramentas para lidar com as
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 84

novas questões para as quais a “carreira de exclusão” daquelas crianças apontava, as


relacionadas à inserção no mundo do trabalho.

Assim, o Lugar de Vida, nessa parceria pedia projetos cujo referencial não
fosse mais a infância mas a possibilidade de inscrição dessas crianças em uma outra
fase da vida, a adolescência.

Este, sabidamente, é um período difícil, de indefinições, crises, rearranjos e


descobertas. Particularmente com crianças marcadas por histórias de psicose ou
autismos, isto se torna ainda mais problemático, sobretudo porque esse período de
transição ainda está quase sempre submetido a enredos de infantilização.

Havia aí então uma questão complexa: tanto as crianças, quanto as famílias e


as instituições envolvidas estavam às voltas com a problemática da exclusão que
apontava para a questão do trabalho. A chegada da adolescência leva as famílias a se
preocuparem com o problema da autonomia e sobrevivência financeira dos filhos e
assim passam a demandar das instituições clínicas e educacionais, o aprendizado de
um ofício. Trata-se de uma questão espinhosa para todos que se propõem a atuar na
saúde mental: por um lado, sabemos que o trabalho é uma importante ferramenta de
inserção social, mas por outro sabemos também que a exclusão do mercado atinge
atualmente proporções que vão muito além da questão da saúde.

No entanto, ainda que a problemática do mercado de trabalho extrapole o


campo da saúde mental, na clínica com adolescentes e adultos, muitas vezes os
terapeutas (e principalmente os terapeutas ocupacionais) estarão envolvidos com
essa questão da preparação para um trabalho. Por isso, a problematização dessas
práticas de inclusão social, significa não reduzi-las a meras estratégias de adaptação
a realidades dadas, mas, como diz Lima e Brunello (2000, p. 76), visando “buscar o
sentido último do trabalho clínico, em sua vertente de prática social, como criação
de agenciamentos coletivos e de territórios compartilhados”.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 85

Assim, o trabalho de terapia ocupacional, em análise neste estudo, começou


com um grupo de seis adolescentes, com idades entre 12 e 16 anos, acontecendo
uma vez por semana no laboratório de TO. 17

As terapeutas que iniciaram o trabalho – Elizabeth Araújo Lima e Maria Ines


Britto Brunello – relatam que o começo da experiência foi vivido como um período
de reconhecimento de um novo espaço (já que não eram atendidos no mesmo espaço
do Lugar de Vida) e de uma nova forma de trabalhar. As pias, bancadas e
ferramentas do laboratório de TO incluíram esses jovens na atmosfera das oficinas,
de forma que, quando chegavam à TO, costumavam dizer que tinham vindo para
trabalhar.

Naquele período, várias atividades foram desenvolvidas com o grupo,


buscando experimentar e perscrutar o foco de interesse grupal. Essas atividades
utilizavam materiais diversos (tintas, pincéis, jornais, revistas, papéis, colas,
tesouras, culinária, madeira) e aquelas que faziam uso de madeira pareciam
interessar mais ao grupo. Por isso, iniciamos com eles, a oficina de marcenaria.

3.6 A oficina de marcenaria

Nesta fase, algumas situações ainda me tomam de assalto, pois foi ali na
oficina de marcenaria que iniciei meu trabalho no ELT.

Penso que para um terapeuta, entrar num grupo-oficina de psicóticos é quase


como um elefante, entrando numa loja de cristal.

17
Esse trabalho teve continuidade nos anos seguintes e no final do ano 2000 eram atendidas 8 crianças com
idades entre 11 e 18 anos.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 86

Assim, foi preciso muita delicadeza para chegar e conhecer cada um dos
personagens daquele grupo.

Lembro-me de um adolescente do grupo que solitariamente fazia e refazia seu


caminhão de madeira. Era muito difícil para ele aceitar qualquer interferência do
grupo na sua atividade. Durante semanas, observei aquele garoto com seu caminhão
que era construído e desconstruído a cada encontro.

Num desses encontros, percebi que os pregos que ele usava para juntar as
madeiras eram menores que a largura delas. Em alguns encontros, no ritual da
chegada, onde era realizada a preparação para o trabalho, sugeri novos pregos,
maiores e mais largos que os outros, colocando os potes maiores junto ao seu projeto
de caminhão. Foram necessários vários encontros para Luís retirar os pregos
pequenos e usar o material adequado para seu trabalho.

Num trabalho com oficinas, em que se valoriza a produção como um certo


aprendizado de ofício, é importante a escolha certa dos materiais, o uso das
ferramentas e a combinação deles.

A oficina de marcenaria impunha a todos os participantes, por exemplo, o


conhecimento das ferramentas e materiais, saber quando usar o serrote ou a serra
elétrica, quando usar pregos ou cola de madeira... Tudo isso é que fazia com que a
oficina não fosse um jogo de faz-de-conta. Para os adolescentes, pedir o uso da
morsa ou de um alicate era carregado de sentido, no que eram totalmente
incentivados pelos terapeutas, não para imitar jogos papai e filhinho ou coisa
parecida, mas para que aqueles materiais tivessem sua real potência de engendrar a
realidade de uma marcenaria na vida daqueles sujeitos.

Esses encontros eram marcados por uma vivência intensa de cada usuário
com seu projeto. Eram casas, caminhões, postos de gasolina, televisões. O uso de
materiais, ferramentas e espaço físico de verdade, tinha por si só a potencialidade de
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 87

marcar a entrada desses adolescentes no reino do trabalho, não de um trabalho


qualquer, mas ali era como se nos transportássemos para o mundo de uma oficina de
marcenaria, com livros que contavam as histórias de antigos marceneiros, atlas de
nomes de ferramentas, e principalmente onde o aprendizado, a concepção e a
execução se realizavam conjuntamente.

Isso não quer dizer que havia nesse projeto imitação ou cópia de um modelo
preestabelecido da atividade de marcenaria, mas a produção daqueles encontros
aproximava os dois reinos: oficina de marcenaria e trabalho de marceneiro
transpondo a barreira que normalmente separa as experimentações clínicas das
experimentações da vida comum.

Esses projetos eram naquele momento quase sempre realizados


individualmente, mas isso é também o que acontece em quase toda marcenaria, onde
os marceneiros trabalham cada um com seu projeto: uma cozinha, um armário
embutido, um gabinete de banheiro. O coletivo dessa experiência não se dá pelo
trabalho de várias pessoas num único projeto, mas pela possibilidade de
intercambiar experiências. Isto deve ser valorizado e até fomentado pela clínica
contemporânea, essa que se deixa realmente afetar pela problemática da inserção
social e pela construção não de enredos individualizantes mas de modos diversos de
subjetivação. Conforme apontam Guattari & Rolnik,

os processos de subjetivação... não são centrados em agentes


individuais (...) nem em agentes grupais (...) Implicam o
funcionamento de máquinas de expressão que podem ser tanto de
natureza extrapessoal, extraindividual, (...) quanto de natureza
infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal... (Guattari & Rolnik,
1996, p. 31)
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 88

Nesse período, um projeto foi comum a todos os participantes: um campo de


futebol de madeira para jogo de futebol de botão. Isso aconteceu não porque
consideramos atividade grupal aquela que se realiza por todos juntos, mas porque
nessa ocasião nos encontrávamos em plena Copa do Mundo e os adolescentes desse
grupo, como tantos outros, viram-se envolvidos em disputas, formação de time,
escolha de parcerias e torcidas.

Ora, nesse sentido, o projeto do campo de futebol foi um dispositivo da


oficina de marcenaria, pois nasceu como dobra estratégica da experiência da oficina,
que não estava alheia à pulsação social. Essa produção coletiva, realizada pelo
contágio provocado pela Copa do Mundo e pela aliança grupal, produziu novos
sentidos para os participantes do grupo.

No final de um ano de realização dessa oficina, outros interesses começaram


a se insinuar para esses adolescentes: outros projetos como artes plásticas, esportes,
culinária e também o desejo de circular sozinho pela cidade. Isso gerou o
desfazimento do projeto marcenaria.

O término dessa oficina não foi vivido na instituição como “uma experiência
que não deu certo”, o que geralmente ocorre quando findam os projetos, ao
contrário, foi entendido que ela atingiu o ponto de sua própria abolição, necessária
para abrir outros caminhos e permitir outras conexões.

Após esse período, alguns adolescentes que concluíram seus períodos de


escolarização, foram desenvolver, na condição de aprendizes, projetos de trabalho
remunerado – de caráter informal, geralmente em oficinas de alfaiataria, costureiras
e pequenas confecções – e outros continuam nas oficinas da TO em outros projetos.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 89

3.7 Desdobramentos: contaminando a cidade

Com o encerramento da oficina de marcenaria, iniciamos com o grupo outras


atividades que nos pareciam também importantes para a ampliar a circulação desses
adolescentes pela esfera social, pois percebemos que a experiência social desses
sujeitos está permanentemente atravessada pelo campo da saúde mental: suas saídas
estão sempre vinculadas a atividades de tratamentos.

Assim, uma vez que nosso compromisso com a clínica têm sido o de praticá-
la nas bordas e na intersecção com outros planos, passamos desde então a
experimentações diversas quanto a saídas das crianças e adolescentes sem o
acompanhamento dos pais, incentivando vivências em situação do cotidiano, como
por exemplo, grupo de culinária, jogos de rua e jogos esportivos em quadras da
cidade.

Tais empreendimentos foram despertados pelo contato desses adolescentes


com outros jovens estudantes da USP que transitam pelos corredores dos
atendimentos, fazem e vendem “comidinhas” nos intervalos de aulas, e freqüentam
as quadras e centros esportivos na cidade universitária. Nessas atividades de
circulação, vamos a museus, lanchonetes da USP, quadras e parques públicos
municipais.

Nosso objetivo é, portanto, oferecer aberturas diversas e criar situações reais


de encontro com o outro. Assim, os terapeutas acompanham todo o movimento
grupal, abrindo brechas, intervindo quando necessário, mas principalmente criando
um espaço de referência, um ponto de atração e sobretudo um campo de
solidariedade, entendida aqui no seu sentido ativo como nos convoca Suely Rolnik.
Para essa autora, a solidariedade não consiste apenas em relacionar-se com o outro
pelo simples respeito civil, politicamente correto, mas também em desejar a
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 90

singularidade do outro, expor-se à alteridade e contaminar-se com o outro (Rolnik,


1995, 1998).

Uma característica muito interessante desse trabalho é a sua potência em


promover estranhamentos em todos os que se expõem a ele. Numa dessas saídas
com o grupo, fomos passear no Parque da Previdência (localizado nas proximidades
da USP), onde encontramos um grupo de pessoas fazendo ginástica. Quando
sentamos num banco e ficamos observando a atividade, dois garotos do nosso grupo
se juntaram ao grupo de ginástica desenvolvendo passos de capoeira.

Sentados com o restante do nosso grupo, fomos então surpreendidos por uma
senhora que se dizia terapeuta do grupo de ginástica e que a atividade fazia parte da
programação do Centro de Convivência do PAS.18 Ela pedia aos responsáveis por
nosso grupo que retirassem os garotos dali pois eles estavam atrapalhando a
atividade que ela estava realizando com “seus deficientes”.

Para nosso grupo, sobretudo para os terapeutas, esse acontecimento foi muito
desestabilizador, por isso tomado como um analisador. 19

Na atividade em “grupo” coordenada por aquela senhora, a convivência é


tomada no seu sentido mais negativo. A questão da diferença aqui se revela por um
modo cultural de manutenção das identidades, sem produzir modificações nos
territórios subjetivos constituídos. Essa situação mostrou claramente as diferentes
concepções de clínica que estavam em jogo no encontro das duas instituições (ELT-
Cecco x PAS) e os efeitos dessas diferenças no modo de trabalho com os usuários.
Para nós do ELT, as saídas da instituição e os passeios acompanhados não têm como

18
Fui coordenadora desse serviço, já analisado no Capítulo 2, até a implantação do PAS na região (maio de
1996), quando por determinação do prefeito Paulo Maluf, fui exonerada da função, transferida
sumariamente para outra Secretaria e proibida de retornar àquele local de trabalho.
19
O termo analisador é utilizado aqui como uma potência de colocar em análise o estabilizado, é aquilo que
rompe com o instituído, produzindo outras singularidades (Baremblitt, 1992).
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objetivo a adaptação a um certo modelo de circulação, nem a domesticação da


“estrangeiridade”, mas a possibilidade de desfazimento das identidades: “normais”,
“loucos”, “deficientes” e “terapeutas”.

Naquele dia pudemos observar a vida pulsando em cada ato dos jovens que
acompanhávamos. A “alegria” tomava corpo nos movimentos de capoeira, danças
diversas, risadas, cantos, conversas, que se contrapunham aos movimentos “tristes”
e estereotipados dos participantes daquela aula de ginástica. Essa é, a meu ver, a
diferença fundamental das propostas de intervenção que ali se apresentavam: a
primeira, da qual partilhamos, visa trabalhar com a vida e portanto com a
singularidade dos modos de existência e a segunda em que o trabalho se dirige
especificamente aos processos de normalização.

Nesses passeios que fazemos pela cidade, verificamos a pertinência da


intervenção de um guarda de museu para que os meninos não coloquem as mãos nas
obras, ou de um caixa de lanchonete que pergunta para alguém que “empaca” na sua
frente, se vai resolver ou não o que quer comprar, já que ele tem mais o que fazer na
vida. Estas aproximações provocam vibrações em ambos os lados. São afetos que
exercem pressões e que obrigam todos a se recriarem.

Consideramos que essas intervenções que não vêm do campo “psi” são
muitas vezes extremamente eficazes, porque comportam por si só todo o repertório
de sentido, isto é, não precisam de intermediários. Por isso devemos cada vez mais
oferecer aos usuários a possibilidade de habitar outros lugares, ouvir línguas
estrangeiras, essas que são alheias ao campo “psi”, até porque a vida se desenrola
sempre alhures. Nesta perspectiva, o que permanece como instituição deve ser
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somente uma estratégia de extroversão, uma instituição que se ofereça tal como uma
“centrífuga”, 20 um lugar onde se vai para sair de si e ir para outros lugares.

Acredito que isto é fundamental, para que nós terapeutas estejamos atentos a
que a instituição ofereça saídas para fora dela mesma, pois só aí estaremos
contribuindo para uma real desinstitucionalização dos nossos usuários.

E aqui retomo o termo desinstitucionalização num outro sentido ético e


político, como abertura para a vida, para a liberdade de misturas e para a não adesão
absoluta a qualquer sistema de referência.

3.8 Composições musicais

A criação da oficina de música no ELT deu-se a partir de dois vetores:

O primeiro, que já citei anteriormente, foi o vetor das experiências da reforma


psiquiátrica, que nos conduziram a experimentações mais abertas no campo das
práticas clínicas, impelindo-nos cada vez mais a operar com abordagens extra-
terapêuticas, como condição básica da desinstitucionalização. Como propõe Maud
Manonni, a instituição deve se oferecer cada vez mais como um fundo de
permanência, criando condições para que as grandes transformações se operem fora
dela, o que, extrapolando a autora, significa que a instituição deve se oferecer como
um universo de dispositivos extraprojetivos, um lugar que insiste como tal mas para
jogar para fora.

20
Esta idéia preciosa me foi sugerida pelo Prof. Luís Orlandi por ocasião do exame de qualificação.
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Neste sentido, podemos considerar a instituição como um espaço


diferenciante (onde se vai para sair outro). O que permanece então são apenas os
dispositivos de extraprojeção.

O segundo vetor, talvez o mais decisivo naquele momento institucional, foi o


contato com um de nossos adolescentes, que nos indicava, pela música, sua única
forma de comunicação.

Esse garoto (com diagnóstico de autismo desde a infância) já participava há


algum tempo do grupo de adolescentes do ELT, sempre com muita dificuldade de
aproximação e de estabelecimento de contato, tanto com os terapeutas, como com os
usuários e com as diversas atividades propostas. Mas ele sempre chegava aos
encontros cantarolando alguma melodia, ou falando vários nomes, às vezes difíceis
de decifrar, de conjuntos de música popular (conjuntos de pagodes, rock nacional,
etc.).

A sua recusa em se conectar com o grupo e com as atividades as mais


diversas fez-nos imaginar que a possibilidade de contato com a música na instituição
poderia criar para ele um território existencial que, no seu isolamento inquietante,
parecia-nos tão difícil de se constituir.

Por isso, realizamos ainda no grupo de adolescentes várias tentativas de criar


situações musicais. Levávamos, para os encontros, aparelhos de som, rádios de
pilha, instrumentos musicais diversos, letras de música e CDs com os conjuntos que
ele cantarolava.

Os terapeutas, instigados pela sensibilidade sonora que havia naquele


“menino estranho”, buscavam por meio de suas próprias habilidades – um com o
teclado, outro no violão, outro ainda na flauta – penetrar no universo musical do
garoto. Mas todas essas situações ainda o mantinham enclausurado, sem
possibilidades de relação com os outros, reagindo com muito sofrimento e
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 94

estranheza a qualquer forma de intervenção que o tirasse do seu misterioso e


solitário contato com a música.

Como escreve Peter Pál Pelbart (1993, p. 46),

Não é simples fazer tudo isso e ainda estar atento para as diferenças
de tempo individuais, criando certos ritmos, em que uma
modalidade temporal possa conectar-se com outra, compor-se,
combinar-se, contrapor-se, ressoar, destoar. Não para fazer
bandinha, mas para não deixar que, por solidão uma temporalidade
morra estrangulada, ou que um paciente sufoque no seu ponto de
horror. (grifo meu)

Começamos a suspeitar, após um período nebuloso, que introduzir a música


num processo terapêutico – por exemplo, no grupo de adolescentes em que ele se
encontrava – não era suficiente para criar um território, ainda que incerto.
Precisávamos, sobretudo, inventar um espaço (ou um outro espaço-tempo) onde a
música fosse por si só o elo de referência, e a forma de comunicação.

Para isso, era necessário um ouvido “estrangeiro”, pois a prática terapêutica


diária muitas vezes nos impede de escutar uma possibilidade de comunicação
existente num pequeno som ou num ruído singular. Muitas vezes, na convivência
com psicóticos, entramos em contato com uma multiplicidade de sons “estranhos”,
que no dia-a-dia ouvimos mas não mais escutamos 21 .

Intuímos então que, para realizar esse trabalho, precisaríamos mais do que de
terapeutas: era necessário nos aliar com “ouvidos musicais”. Assim, convidamos
para isso duas musicistas que, junto com uma terapeuta da equipe do Espaço Lúdico

21
Olivari de Castro (2000, p. 4) aponta que “há uma distinção entre ouvir e escutar: para o primeiro, basta-nos
que os ouvidos sejam capazes, fisiologicamente, de captar o som; para o segundo, é necessário que haja
uma intenção deliberada, por parte de quem ouve, em desejar captar o som”.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 95

e estagiários do quarto ano do curso de Terapia Ocupacional da USP, iniciaram um


novo projeto: a oficina de música.

3.9 A oficina de música no espaço terapêutico

Nos acertos iniciais da nossa composição, inúmeras questões partiam das


musicistas sobre como trabalhar com “pacientes”, pois o que elas diziam saber fazer
era “realizar laboratórios de musicalização” com crianças e adolescentes, o que veio
completamente ao encontro do nosso desejo. Enfim essas crianças poderiam ser
ouvidas nas sonoridades da infância, o que para nós terapeutas já é quase impossível
diante da escuta imperiosa do sofrimento psíquico.

Formou-se, então, o grupo desta oficina com crianças e adolescentes que já


eram atendidos pelo ELT e que em algum momento demonstraram interesse pela
música. Em seguida, outras crianças e adolescentes se incorporaram a partir de
convites dos primeiros, dos musicistas, dos terapeutas e dos estagiários de TO.

Nessa oficina, experimentamos desde o início uma ruptura com as


identidades, tanto dos profissionais como dos pacientes.22 O terapeuta não está ali
para entrevistar, diagnosticar, interpretar, mas sim para acompanhar e participar
ativamente do movimento grupal, muitas vezes impedir obstruções, mas sobretudo
possibilitar que todos possam descobrir seus ritmos, seus tempos, suas melodias,
seus silêncios, quer dizer, que todos, inclusive nós terapeutas, possamos nos
conectar e sintonizar com a arte musical.

22
Considero de fundamental importância ao falarmos da quebra das identidades, não atentarmos apenas ao
papel dos profissionais. A tranversalização dos papéis deve necessariamente incluir os sujeitos atendidos,
isto é, não deve respeitar nenhuma hierarquia.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 96

Este grupo criou ritmos singulares de aulas. A improvisação foi parceira nos
exercícios com sons, ruídos e silêncios estranhos e os pacientes foram aos poucos se
transformando em aprendizes de música.

Lembro-me de que, em um de nossos encontros, aquele garoto que chegava


cantarolando no grupo de adolescente, distante de todo o grupo, tocava uma cítara.
Por mais que nós o convidássemos a se juntar aos demais, pois sabíamos o quanto
esse isolamento o mantinha enclausurado, ele permanecia em sua recusa.

Então, uma de nossas musicistas, encantada com a expressão musical do


menino, pediu ao restante do grupo que conversasse com ele. Naquele momento, na
minha sapiência de terapeuta de psicóticos, pensei que ela só poderia ter feito aquela
intervenção “desastrosa” porque não o conhecia ou o conhecia pouco, e ainda
porque nada sabia a respeito dessa clínica.

Mas, para o meu (feliz) espanto, o pedido da musicista era para que a
conversa se realizasse por meio dos instrumentos musicais, isto é, para que cada um
dos participantes do grupo utilizasse o seu instrumento (pandeiros, atabaque, flautas,
agogô) para conversar com o garoto da cítara.

Uma nova dimensão de comunicação se insinuava naquele grupo.

Naquele dia, todos os instrumentos conversaram entre si, formando – num


misto de espanto e euforia – uma grande orquestra aberta para a expressão sonora,
que com seus sons ásperos, intensos, opacos, cintilantes, pôde incluir e criar
existências para crianças e adolescentes com muita dificuldade de comunicação.

O grupo experimentou, nestas cenas, variações inusitadas de encontros na


música: com a música, com o outro, com o outro de si, e foi naquele
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 97

acontecimento, 23 que pude observar e perceber, o que era “estar encarnado” por um
sentido sonoro. A nossa intuição estava certa: sim, a expressão musical podia tocá-
los num certo direito de existir, cada um a seu tempo. A música propicia pura
expressão em materialidade sonora, tanto em acontecimentos de escuta como em
acontecimentos do fazer som.

Como disse Deleuze,

É como se a arte musical tivesse dois aspectos, um como dança de


moléculas sonoras, revelando a “materialidade dos movimentos que
costumamos atribuir à alma”, agindo sobre todo o corpo, que ela
utiliza como seu próprio palco; mas também um outro como
instauração de relações humanas nessa matéria sonora que produz
diretamente os afetos que costumam ser explicados pela psicologia.
(Deleuze, 1999, p. 52)

A partir daí, quando fomos rompendo com a escuta clínica e também com
algumas das idéias da macropolítica musical (“harmonia/ruído”), para experimentar
a escuta dentro do território musical, apareceram para além do ritmo, melodia e
harmonia outros componentes como intensidade, gesto, espaço, espaço de escuta,
textura.

Temos explorado nesses laboratórios da oficina de música, muitas


possibilidades e variações sonoras. Criamos repertórios de canções, realizamos
gravações instrumentais, ensaiamos a composição de uma orquestra, descobrimos
jogos corporais: uma série de experimentações que rompeu com a nossa idéia pobre
e simples de comunicação, essa idéia unívoca de harmonia sonora. Nos nossos
encontros, ao contrário, têm tomado corpo outros objetos sonoros e os sons

23
Aqui entendido na acepção dada por Deleuze (1998, p. 152), segundo o qual o acontecimento “não é o que
acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera”.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 98

produzidos são incorporados como traços da cultura musical e não como simples
agitação motora.

A escuta aqui é uma escuta nômade e se torna “... um ato de compor, de


ouvir, de vir a ser, é o ato de desvendar a cada momento um novo território de
possibilidades” (Ferraz, 1998, p. 246).

Isso aconteceu porque a oficina de música, com seu grau polifônico de


“comunicação psicótica”, foi aos poucos infletindo a comunicação dos “normais”,
obrigando-nos progressivamente a ocupar o território da música contemporânea, que
tem cada vez mais explodido com as dicotomias harmonia/ruído, 24 insustentáveis
para o nosso trabalho.

Esta aventura clínica – que captava sons tão diversos (corporais, de animais,
apitos de trem, ambulância, barulhos de chuva, vento e tantos outros) não os
reduzindo a sentidos secundários, ao contrário admitindo-os imediatamente como
motivos musicais – tem encontrado territórios existenciais no plano da música. Ou
seja, tanto o território da música foi desterritorializado pela clínica como a clínica
foi totalmente desterritorializada a partir dos sentidos musicais. Foi por isso que,
com o passar do tempo, esta oficina foi causando na equipe do ELT um certo
estranhamento (desejável), com relação ao trabalho na clínica.

Fomos percebendo que as crianças e adolescentes envolvidos foram


desertando o lugar de pacientes, e aos poucos não eram nem mesmo discutidos como
“casos” nas reuniões e nas supervisões de equipe.

Os terapeutas, por sua vez, deixaram de realizar entrevistas iniciais para


colher a história de vida e as famílias dos usuários dessa oficina deixaram de ser

24
A esse respeito podemos lembrar dos trabalhos de Naná Vasconcelos, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal,
dentre outros.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 99

alvo dos trabalhos terapêuticos com famílias. Ao contrário das discussões de casos,
aparecíamos a cada reunião com uma nova música incorporada, ou uma dança ou
ainda contando do aprendizado de um instrumento musical.

Os ruídos da escuta terapêutica foram aos poucos desaparecendo e no seu


lugar foram emergindo sons de tambores, atabaques, teclados e violões.

A partir de certo momento, os encaminhamentos passaram a ser feitos pelos


próprios participantes do grupo. Nesse sentido, a via de entrada para a oficina pode
tanto ser um convite feito pelos profissionais-oficineiros, como de qualquer outro
integrante-aprendiz do grupo.

Esse movimento percorrido pelo grupo tem modificado a relação desses


usuários com a equipe da instituição. Curiosamente, em um certo dia, a mãe de uma
criança do grupo pediu-me ajuda na busca de um T.O, pois a escola havia realizado
um encaminhamento para essa especialidade. Por alguns instantes, fiquei tentando
pensar em pessoas ou instituições para indicação, esquecendo-me completamente de
que eu era uma terapeuta ocupacional e que, além disso, estava numa instituição
quase exclusivamente composta de terapeutas ocupacionais.

Acompanhar o processo da oficina tem muitas vezes provocado um


“esquecimento” da especialidade.

A oficina exerce assim uma “provocação de vida” em todos os participantes,


na medida em que produz outros modos de subjetivação como por exemplo
paciente/aprendiz de música, terapeuta/oficineiro/aprendiz de música. Penso que
isso é desejável nas intervenções-oficinas, pois a partir desses novos modos de
subjetivação experimentados é que podemos desertar a subjetividade dominante na
saúde mental: doença/doente, terapeutas/terapias.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 100

Além disso, nas manhãs de quinta-feira, uma certa musicalidade invadiu as


salas de atendimento de TO da USP. Alguns mais entediados reclamavam do
barulho, outros traduziam uma curiosidade na produção sonora (já que a produção
não se tratava de “bandinha”), mas o que de fato aconteceu é que a paisagem do
espaço de atendimento modificou-se com a oficina. Nos encontros do grupo,
recebemos visitantes (usuários que são atendidos por outros profissionais dos vários
serviços de assistência que existem no prédio), estabelecendo aí intersecções
importantes entre os vários projetos, o que não era produzido pelas intermináveis
reuniões técnicas.

Mais do que ensinar música ou realizar procedimentos terapêuticos, nosso


desejo têm sido de que esse grupo, e quem venha se juntar a ele, possa encontrar
nesse espaço, possibilidades de conexões: cantar, dançar, tocar, ouvir histórias,
descobrir instrumentos, ou uma canção... como aquela que cantamos sempre:“A
noite no castelo, é mal assombrada, lá tem uma bruxa, que faz assim... Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah!”

O plano de composição no processo da oficina de música acontece no brincar


com possibilidades múltiplas de falas, gestos, imagens e sons. Introduzir a música
como um vetor de existencialização na vida dessas crianças e adolescentes é poder
modificar a crença

... que a clínica deve ficar de um lado e a cultura de outro, como se


a arte não fosse ela mesma e a um só tempo crítica e clínica, como
se a arte não fosse ela mesma um dispositivo, como se o olhar de
um diretor de teatro, a escuta de um músico, não fossem, na sua
exterioridade em relação ao campo clínico tradicional, e na
possibilidade de assistirem a nascimentos que nosso olhar viciado
abortaria, poderosamente clínica, e no mais alto grau... (Pelbart, [PC1] Comentário: Ciça,
além de dizer o número da página
1998a, p. 68) vc deve especificar se é 1998 a
(Teatro nômade) ou 1998 b
(Prefácio do Ferraz).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 101

3.10 Oficinas musicais

Depois de um ano e meio de trabalho, alguma coisa começava a se esgotar no


índice mágico da oficina de música: um certo desânimo nas conversas da equipe, um
ir embora rapidinho após o término do grupo, a sala de atendimento que já parecia
tão pequena, a falta permanente de instrumentos e materiais.

O que será que tinha acontecido com aquele grupo tão alegre das quintas-
feiras de manhã ?

Um desejo de mudança e uma urgência apareciam nas conversas. Mas o que


poderíamos desejar para além das oficinas? Não era esse o maior desdobramento, a
maior deriva que poderíamos alcançar na clínica?

Com muito medo, inquietação, dúvidas, incertezas, percebemos que a oficina


estava experimentando a sua finitude naquele modo de existência, e que era
necessário, se quiséssemos ir além, inventar um novo dispositivo para aquele
trabalho ou então explodir, esgarçar, o próprio dispositivo da oficina..

Compreendemos que aquelas crianças e adolescentes ainda não haviam


atravessado o muro terapêutico, isto é, ainda não eram aprendizes comuns desses
que a gente vê por aí nas escolas de música. A música, por sua vez. também estava
submetida à grade terapêutica, estava ainda de certa forma amarrada às
interioridades. Ora, a partir disso, só uma saída do portão institucional permitiria de
fato, para além das promessas de inserção em algum dia e lugar, um ato de inserção,
ou melhor dizendo, uma imersão efetiva na consistência musical.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 102

E se o nomear-se de oficina já traz consigo esse processo, caberia à oficina de


música ir além e inserir de fato os seus participantes. Nessa perspectiva, desviamos a
trilha da oficina de música do ELT e saltamos da sala de atendimento da TO para a
escola de música de Sônia Silva, nossa música e parceira, chamada curiosamente
Oficina de Música Sônia Silva.

Nesse deslocamento, Sônia Silva, que mantinha um contrato remunerado de


professora-convidada do ELT, cedeu voluntariamente o espaço físico de sua escola
de música, efetivando assim uma parceria na qual tanto se modificou a relação desse
grupo com o aprendizado musical, quanto a escola, que a partir de então se viu
implicada no trabalho com as crianças e adolescentes “diferentes”.

A oficina transformou-se, então, em verdadeiros laboratórios musicais. O


prédio da clínica da terapia ocupacional foi substituído por uma casa de bairro com
escritos bem grandes na frente (para não deixar dúvidas em nenhum de nós): Oficina
de Música. A sala dos encontros não era mais uma sala de atendimento terapêutico
com pandeiros surrados guardados juntos a outros materiais, mas um estúdio com
piano, teclado, guitarra, bateria, violão, violoncelo, microfone, gravador e
amplificador.

Essas mudanças foram de grande potência para todos os envolvidos,


incluindo aí as crianças e adolescentes, os terapeutas, as musicistas e os pais... se é
que aí ainda podíamos manter tais especificidades.

Numa reunião no final do ano letivo, um dos pais relatou, muito comovido,
que desde o nascimento de Aninha, era a primeira vez que ele podia, ao sair com ela
do prédio onde moravam, dizer aos outros moradores que ele, como os outros,
estava levando sua filha a uma escola de música e não a algum tratamento.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 103

Nesse momento ele pôde experimentar as sensações de um pai comum, algo


que é raro para aqueles que são pais de crianças psicóticas. O diferenciar-se
paciente-aprendiz de música da filha arrastou a subjetividade desse pai para uma
diferenciação.

Nessa mudança de espaço, em que ocorre uma passagem da instituição


clínica (oficina da TO) para a instituição educação (Escola de Música), verificamos
com o grupo um movimento muito interessante que, ao contrário do espaço
burocratizado e formalizado que geralmente marca as instituições escolares, esta
mudança resgatou para os participantes da oficina de música o coletivo da infância,
pois indo para a escola, eles puderam constituir um espaço vital de aprendizagem,
diferente daquele vivido em relação à clínica. A escola, por outro lado, tornou-se ali
a possibilidade de experimentar outros devires, diferentemente também do lugar
estratificado que normalmente estas instituições ocupam no socius.

Semanalmente, esses processos são vividos com muita euforia neste grupo:
desde a sala de espera compartilhada com outros alunos e pais da escola, até o
grande painel com fotos de todos os grupos da escola diferenciados apenas pelo
nome do grupo: Chá de Hortelã, Teco-Teco, Pula-Pula, Grupo Novo, Sapato e
Meia.

O entra-e-sai dos músicos com seus instrumentos, as diversas salas de


gravação, estúdio, confecção de instrumentos, piano, bateria... imantam a atmosfera
musical do Grupo Sapato e Meia. A partir desses cruzamentos, “a música faz e nos
leva a fazer o movimento. Ela garante nossa vizinhança e a multidão de
singularidades” (Deleuze, 1999, p. 53)
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 104

3.11 O Grupo Sapato e Meia: alguns ensaios...

Um certo dia, estávamos todos sentados na sala de musicalização enquanto


Alcita ao piano ensinava-nos uma nova melodia: “A formiga olha uma luz que pisca
e descobre que é um vaga-lume que quer namorá-la. Como mandar o sinal se ela
não pisca? Ela é esperta, arranja uma lanterna e pisca para o seu vaga-lume”.

Aprendendo, tocando e cantando a música são apresentados instrumentos


para o grupo e um pedido para todos se dividirem em formigas e vaga-lumes.

Vários dos aprendizes rapidamente se decidiram pelo personagem formiga,


sobrando alguns poucos para o personagem vaga-lume.

Num certo impasse, uma das estagiárias de Terapia Ocupacional que participa
do grupo, decide-se por ser formiga. Espantada pelo grande número de formigas, e
necessitando de mais vaga-lumes, a musicista sugere para ela que seja um vaga-
lume. Mas ela insiste em ser formiga, apontando o grande número de aprendizes
neste papel, que no seu imaginário de terapeuta em formação, necessitavam de
ajuda. 25

A musicista não entende e continua a sugerir que ela volte a ser vaga-lume,
mas a estagiária ainda insiste e permanece no lugar de formiga, pensando ser esta a
sua única possibilidade de estar no grupo.

Nesse momento sugerimos então que o grupo decidisse sobre que papel
deveria ocupar a estagiária, já que esta nos parecia tão firme no seu papel de
formiga.

25
Esta explicação foi apresentada pela estagiária em grupo de supervisão ocorrido logo após a atividade.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 105

Todos os aprendizes, sem a mínima hesitação apontam-na para o papel de


vaga-lume, afirmando ser nesse momento o papel necessário para a continuidade da
experiência; e era verdade que naquele momento não necessitávamos de terapeuta
algum, mas de personagens vaga-lumes: esses sim eram imprescindíveis para o
desfecho do jogo lúdico.

Tal situação apresentou-se como paradigmática do lugar do terapeuta e do


adulto nas oficinas: ao contrário de outras intervenções na clínica, esta atividade nos
exige ocupar múltiplos papéis. Está aí uma das funções desse dispositivo, no que
toca ao lugar dos profissionais: ocupar um duplo de personagem-terapeuta e no
engenho de construção de pontes, transitar por esses papéis, estar no entre eles,
numa passagem sutil de um para outro.

Muitas vezes, para um terapeuta (ou um adulto) implicar-se nesses espaços de


brincadeiras significa poder habitar um “devir criança”, quer dizer, “reencontrar uma
infância como lugar da invenção, fábrica de uma sensibilidade criadora, manancial
de possíveis” (Rolnik, 2000, p. 5), ou ainda como descreve José Gil :

O devir-infância do adulto implica entrar nesse tempo infinitamente


delicado e plástico (um tempo que se desdobra como devir-
múltiplo, devir-adulto múltiplo e fractal). Devir-adulto não significa
chegar a um estado definido macroscopicamente como “estado de
adulto” (com uma inscrição social, psicológica, fixada uma vez por
todas); mas sim atingir uma consistência em que todas as sensações
e intensidades microscópicas de adulto possam coexistir – quer
dizer, em que os devires outros do adulto, inclusive o devir-criança
do adulto, sejam possíveis e coexistentes. (Gil, 2000, p. 94)

Nesse mesmo dia na oficina de música, o Grupo Sapato e Meia encenava


ainda uma outra brincadeira, onde se procuravam rabos supostamente escondidos
uns nos outros e que deveriam ser encontrados no tempo de um refrão musical. Ao
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 106

término da brincadeira descobrimos que as duas estagiárias de TO não tiveram seus


rabos achados, pois nenhum dos outros participantes foi ao encontro delas para
procurá-los.

Essa situação, como a primeira descrita, pôde justificar o que aconteceu com
os outros aprendizes para que eles não se aproximassem das estagiárias. Parece que
a dificuldade que elas tiveram de sair do lugar exclusivo do terapeuta e portanto
poder ocupar outros personagens, foi decisivo para que os outros participantes não
se aproximassem delas. Ao não se entregarem ao personagem, ou podemos dizer, ao
não “se outrarem” (Gil, 2000), elas conseqüentemente ficaram fora da cena, pois
naquela situação não se tratava de encenar um “draminha psi”, mas encenar a cena
no sentido teatral a que a música nos convoca.

Seguindo as pistas de Peter Pál Pelbart, num belo ensaio acerca da potência
do teatro num hospital-dia de saúde mental, quando utilizamos a música

...não se trata de expressar um universo interior já existente (uma


cena interior, um lugar nesta cena), mas sobretudo de criar um
estado, um gesto, um trajeto, um rastro, uma cintilância, uma
atmosfera, e nessas passagens (des)encadeadas ir produzindo novas
dilatações, novas contrações, de tempo, de espaço, de corporeidade,
de afecto, de percepção, de vidência, um pluriverso à imagem e
semelhança desses deslocamentos... (Pelbart, 1998a, p. 67)

Se entendemos que o trabalho com a clínica da psicose é atentar para a


criação de planos de consistência, as oficinas oferecem recursos privilegiados nesse
sentido, na medida em que podem, ao invés de ligar os sujeitos à cena-doença, levá-
los a encenar situações da vida, comum e coletiva. Isto parece-nos que é a grande
potência dessas oficinas musicais: arrastar seus participantes (incluindo os adultos),
para um processo de diferenciação.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 107

As crianças e adolescentes da oficina de música, que inicialmente foram


encaminhadas para tratamento no ELT, atualmente rejeitam esse espaço como parte
de um conjunto de terapias. Dia desses, a avó de uma criança do grupo me interpela
ao final da aula, desejando saber se Laurinha está “melhorando e diminuindo suas
dificuldades na mãozinha”. Ao ouvir sua pergunta, a criança rapidamente respondeu:
“Estou aqui para aprender música vó, e estou aprendendo, olha!” – e logo começa a
cantar uma das músicas que ensaiamos na aula daquele dia.

A potência das oficinas enquanto dispositivo deixa emergir “estados de


vitalidade” nos seus participantes, porque os retira do lugar de desqualificado
inerente ao papel de doente-paciente. O embaralhamento incessante que a oficina de
música provoca nos seus personagens – alunos, músicos, oficineiros e terapeutas – e
também a mistura de tempos ali existente, permite uma experimentação na qual as
crianças e adolescentes têm a possibilidade de “encontrar o que lhe convém, saber o
que pode conectar, fazer durar, construir” (Gil, 2000, p. 94), o que na trilha deixada
por esse autor é o modo de construção do plano de consistência.

Essas questões que emergem do cotidiano do trabalho na oficina de música


têm sido enriquecedoras para a problematização do trabalho na clínica, pois permite
pensar as diferenças entre os dispositivos terapêuticos convencionais e o dispositivo
oficina, onde a conexão com outros campos, seja ele a arte ou o trabalho, não pode
estar a serviço do terapêutico, ao contrário os terapeutas devem ativar cada vez mais
a potência desses vetores na vida dos sujeitos atendidos.

A “oficina de música” tem se desligado cada vez mais do trabalho terapêutico


do ELT, o que parece ser uma característica dessa clínica, que vai a cada dia
subvertendo o trabalho clínico. Nesse sentido, essa concepção de clínica

é um modo de subjetivação regido por um princípio estético – a


existência como obra de arte, que se cria e recria através de devires.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 108

Princípio que é também ético, já que tem a vida como referência


maior, no lugar de um supostamente saudável princípio moral.
(Rolnik, 2000, p. 9, grifo meu)

Portanto, esse trabalho sensível à diferenciação se dá em simultaneidade para


os “cuidados” e “cuidadores”. E é nesta perspectiva que proponho, nesta dissertação,
como fundamental para o campo da saúde mental o trabalho com oficinas.

3.12. A materialidade sonora: o primeiro CD

Já quando esta pesquisa se encontrava em fase de finalização, surgiu uma


idéia no Grupo Sapato e Meia, de produzir um CD com o repertório de canções que
ensaiamos no decorrer do ano 2000. 26

Tal trabalho, que durou um mês, foi para o grupo de música um grande
acontecimento. Em todas as etapas do processo de gravação – a escolha de canções
para compor um repertório, a preparação do estúdio, a montagem dos instrumentos
musicais utilizados em cada canção, o uso do instrumento para cada participante, as
vozes – o grupo (incluindo não só as crianças e adolescentes, mas também os
terapeutas, estagiários e musicistas) dava sinais de que já não se tratava de fato de
um grupo terapêutico, mas constituiu-se ali uma banda de musicalização, isto é, o
grupo, nesse processo de composição artística, pôde enfim estabelecer encontros
exclusivamente musicais.

26
A produção do CD não envolveu gastos de estúdio e as despesas realizadas foram cobertas com parte das
contribuições voluntárias de 10 reais mensais que os pais das crianças fazem para a compra de lanches,
materiais descartáveis da escola e materiais de consumo da oficina (argila, tintas, papéis, cadernos de
música).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 109

As crianças e adolescentes, mesmo as mais quietas e estranhas não se


furtaram ao movimento produzido pela gravação musical. Em todos os ensaios, que
duraram várias semanas, a música levava todos os integrantes do grupo ao
movimento de composição, de escuta, de produção de sons instrumentais e vozes.
Mais do que em outras experiências realizadas na oficina, a produção do CD
embaralhou completamente os papéis dos seus participantes. Não havia mais ali
terapeutas, músicos e aprendizes, mas uma banda capturada pela atividade de
materialização sonora.

O caráter de “atividade terapêutica” que originou esta oficina e que sobrepôs


e subordinou algumas vezes o caráter artístico da música foi, na criação do CD,
totalmente destronado, liberando o grupo para transbordar-se em musicalidades. As
crianças e adolescentes revelaram nessa composição, conexões com instrumentos,
canções, vozes e sons, criando e recriando as canções que por meses haviam
ensaiado, como se o tempo de ensaio fosse a possibilidade de tecer múltiplos
arranjos.

Nesse sentido, os encontros do Grupo Sapato e Meia durante o ano e as


repetições às vezes exaustivas (mas não cumulativas) das canções foram uma
incessante aventura de recriação musical, ao invés de um processo homogeneizador.
A cada diferenciação sonora produzida pela repetição das canções, o grupo
singularizava, produzia irregularidades e explodia com o arranjo original.

É Deleuze quem convida a pensar na repetição como o que libera a diferença.


A esse respeito, Peter Pál Pelbart diz que “... a repetição não incide sobre um mesmo
termo, mas faz retornar aquilo que só pode retornar na medida em que se transforma
ao retornar” (Pelbart, 1998b, p. 19).

A produção do CD também possibilitou instaurar relações entre os


participantes a partir da matéria sonora. O intercessor oficina de música possibilitou
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 110

ao Grupo Sapato e Meia outros canais de expressão e comunicação, ao mesmo


tempo que desviou o próprio curso da oficina, esta que saiu do seu território original
para se instalar no plano da música.

Podemos pensar de novo aqui uma diferença que reitero como fundamental
entre o dispositivo oficina, esse que se libera do seu campo original (aqui o campo
da saúde mental) e que se abre totalmente à conexão com outro campo (aqui a
música), e outros dispositivos terapêuticos que se utilizam da música como
intermediário terapêutico e por isso se mantêm no mesmo campo.

Tem sido crescente a utilização da música nos processos terapêuticos,


principalmente com crianças e adolescentes psicóticos, 27 contudo já apontei aqui o
quanto nesta utilização corre-se o risco de despotencializar a criação artística
principalmente quando um domínio é submetido ao outro. Quero reafirmar com isso
o interesse desta pesquisa em privilegiar não o caráter terapêutico da música, mas o
que ela pode criar, e nesse processo de criação, percutir e interferir no processo
terapêutico.

Meu propósito é salientar que o dispositivo oficinas no campo da saúde


mental deveria ser utilizado como um “intercessor no terapêutico” e não um
“instrumento de terapia”.

Conforme explica Deleuze, um campo ou um domínio sempre precisará


fabricar seus intercessores para se exprimir, quer dizer, ele entra em relação de
ressonância com outros domínios porque isso é intrínseco ao seu movimento. Mas a
potência do intercessor está no fato de ele interceder, percutir, ressoar, ecoar em um
certo campo sem retirá-lo do seu próprio caminho.

27
A música tem sido utilizada por várias especialidades do campo da saúde mental (psicólogos, terapeutas
ocupacionais, fonoaudiólogos) como uma técnica de intervenção, tendo também gerado nesse campo uma
“especialidade terapêutica” denominada musicoterapia.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 111

Enquanto utilizávamos a música no ELT como recurso terapêutico não


produzíamos um sair de si nos seus participantes. Utilizar a arte ou qualquer outro
domínio nas terapias pode ser um caminho e uma promessa de inserção e inclusão,
mas fazer interface com esses domínios, conectar-se efetivamente com eles,
transitar, deixar-se contaminar, misturar-se a eles, deixar-se invadir, é o que
possibilita processos de diferenciação, de transmutação e de outramento.

Este é, a meu ver, o rigor das oficinas enquanto dispositivo clínico:


estabelecer uma relação de ressonância com outros domínios, constituir-se como
espaço de inserção e promover a partir daí processos sensíveis à diferenciação.

É importante dizer que quando falo repetidas vezes em processos de


diferenciação, quero apontar para uma certa liberação, um certo desertar o território
rumo a processos que permitam novas saídas.

O plano da música tornou possível o aparecimento de novas percepções e


afetos. Podemos pensar que o Grupo Sapato e Meia embarcou num “devir musical”
– crianças que não se falavam entre si encontraram outros elos de comunicação
singulares na composição musical, puderam criar sons conjuntos, escutar-se através
dos instrumentos, embarcar no ritmo do outro.

As canções populares preexistentes foram recriadas pelo grupo, num ritmo


singular. Como já disse, por mais que ensaiássemos repetidas vezes as canções
escolhidas, estas não eram as mesmas a cada repetição, isto é, todos os ensaios que
antecederam a gravação final foram realizados não para repetir eventos iguais, mas
sobretudo para nos lançarmos a experimentações variadas: formas diferentes de
utilizar as vozes, os instrumentos e a conjugação dos sons.

Ao longo do processo de experimentação das repetições musicais, todos os


participantes puderam fazer – por meio delas – o uso da variação, construindo a cada
vez maneiras diversas de tocar, cantar e inventar. Com isso muitos limites foram
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 112

borrados, como por exemplo a crença na impossibilidade de se tocar bateria a várias


mãos, ou mesmo aceitar a possibilidade de coexistirem na mesma canção
instrumentos que em princípio pareciam incompossíveis.

Isso leva a crer que a oficina de música tem tido cada vez menos um caráter
terapêutico, mas ao mesmo tempo ela insiste no seu caráter clínico. Isto se
entendemos a clínica como um “campo de dispersão” – na sua potência em desviar-
se do seu percurso, inclinar-se e experimentar o seu próprio limite – e que desse
modo não se prende a modelos universais e não fica submissa aos paradigmas da
saúde mental.

Na festa de lançamento do CD, dançamos e cantamos ao som do “Sapato e


meia 1ª edição”. As crianças, adolescentes, convidados, pais, professores e
funcionários de escola de música, terapeutas, estagiários divertiram-se e travaram
conversas animadas sobre a qualidade do som ou as múltiplas utilizações dos
instrumentos. Os participantes do grupo por sua vez davam dicas de quais eram as
vozes existentes em cada uma das canções. O assunto desse encontro foi a produção
do grupo em sua musicalidade, o que convocou a todos os participantes do evento,
retirando dele qualquer aspecto terapêutico.

Todos os pais que a cada final de ano nos questionavam acerca do


“prognóstico do tratamento”, naquele momento se abriram à possibilidade de outras
questões como: quando era o reinício das aulas, quem eram os próximos estagiários
ou ainda quando seria a próxima festa...

Portanto, a oficina de música com esse caráter de “esquecimento do


tratamento” faz com que as crianças e adolescentes desse grupo possam ter a
possibilidade de existir nas suas singularidades e ao mesmo tempo, dialogarem com
a vida comum e coletiva.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 113

Considerações finais

O pensamento pensa sua própria história (passado), mas para se


libertar do que ele pensa (presente) e poder, enfim “pensar de
outra forma” (futuro).

(Gilles Deleuze, 1988, p.127)

Iniciei esta pesquisa interessada em cartografar o movimento das oficinas no


território da saúde mental, saber qual o seu modo de produção, e entender o que elas
permitem operar na clínica contemporânea.

Estas questões perseguidas durante todo o desenvolvimento do trabalho,


surgiram a partir da minha inserção nas práticas concretas com oficinas, que
fundamentalmente me convocaram a pensar e por isso foram tomadas aqui como um
campo problemático. Nesse campo é que emergiram os verdadeiros problemas, e é
nele também que emergiu o método, pois, como Deleuze ensina, o método deve ser
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 114

tomado como puro plano de imanência, isto é, na operação da pesquisa, inventa-se


um problema, ao mesmo tempo em que se inventam suas próprias saídas.

Considerando que as oficinas ganharam grande visibilidade com o


movimento da reforma psiquiátrica, tornando-se muitas vezes palavra de ordem nas
instituições de saúde mental, observamos que esse recurso, amplamente utilizado,
tem se efetivado em grande parte nas práticas clínicas que se propõem à tarefa de
inserção-inclusão social.

Se num primeiro momento da dissertação acompanhamos uma relação


intrínseca das intervenções oficinas com o domínio do trabalho, ao mesmo tempo
verificamos que essa relação foi produzida pelo que o próprio termo evoca e
também a partir da formulação quase que naturalizada de que inserção social é igual
a inserção no trabalho.

Contudo, essa relação oficina/trabalho não sugeria uma vizinhança com


qualquer tipo de trabalho, ao contrário, as características do uso das oficinas no
campo da saúde mental aproximavam-se especificamente do trabalho artesão, que
no seu processo permite uma produção cuidadosa e singular. Uma produção onde há
uma integração entre a concepção e a execução somado à vivência autônoma do
tempo, características caras para a clínica da saúde mental.

Esse modo de produção artesão foi, a partir daí, tomado na pesquisa como um
intercessor no trabalho nas oficinas de saúde mental, “...um lugar de interseção (mas
não de fusão) das duas vertentes...” (Orlandi, 1999, p. 12), entendendo a idéia do
intercessor não como uma forma de capturar o outro campo, mas ao contrário, como
um modo de fazer uma conexão de domínios cada um podendo, no entanto, seguir
seu próprio caminho.

Retomar o modelo artesanal nesta pesquisa, conectar-se com esse domínio foi
uma pista para vislumbrar novas saídas de inserção-inclusão social. Obviamente que
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 115

a intenção com isso não é transformar os usuários de nossa clínica em artesãos, mas
possibilitar que o modo de produção artesanal sirva como vetor de existencialização,
espaço de experimentação de diferenciação, de diversidade e da vida como sinônimo
de pluralidade.

A pesquisa evidenciou que as oficinas possuem uma profusa heterogeneidade


e impõem um hibridismo na sua prática, diferindo de outras intervenções na clínica
(terapias das diferentes especialidades) por não estarem atreladas a nenhum
paradigma científico, e por serem realizadas na maioria das vezes por atores que, em
certa medida se “descomprometem com suas especialidades”, entendendo que o
desespecializar-se não significa uma perda de rigor, mas uma ampliação nos
horizontes de atuação. Uma plasticidade para entrar em conexão com os saberes
vizinhos e uma atitude questionadora permanente dos papéis profissionais
cristalizados.

Isto não quer dizer que essas práticas (as oficinas) situam-se numa espécie de
limbo, sem limite ético, num pode tudo destrambelhado. Ao contrário, a
precariedade constitutiva desse dispositivo – construído na conexão de diversos
saberes – e o extravasamento das fronteiras “científicas” pretendem elevar a
experiência clínica em seu mais alto grau, quer dizer: romper a barreira que separa a
clínica e o social, o tratamento e a vida.

As práticas das oficinas nessa perspectiva se colocam como um potente


espaço de experimentação e de efetuação da transdisciplinaridade, entendendo essas
práticas nas suas possibilidades de experimentar as bordas e os limites, criando com
isso outras formas de subjetividade, que podem subverter ainda que parcialmente os
padrões majoritários de assistência em saúde .

As oficinas são dispositivos que ao não se fixarem no terreno da saúde


mental, invadem e transitam por territórios outros como o trabalho, a arte, a rua, a
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 116

cidade, colocando a clínica em contato com a sua exterioridade. Esses projetos


tornaram-se, mais do que projetos de saúde, projetos de vida, entendendo a vida para
além da simples ausência de doença, mas vida como pluralidade, como inauguração
de novas possibilidades, como impossibilidade de totalizar-se em modelos.

A propósito do final desta dissertação que acompanhou o movimento das


oficinas através de diferentes experiências, em espaços e realidades diversas, mais
do que concluir e circunscrever esse dispositivo a um único campo de ação – o que
esgotaria seu funcionamento e seria a negação de sua capacidade itinerante –
importa afirmar que seus traços de singularidade provocam reverberações nas
trajetórias por elas percorridas.

Se a oficina é uma prática híbrida, se esta é a sua marca, se ela nos convoca
justamente nesse ponto onde se dão as misturas, como pensar “um especialista de
oficinas” tal como desejam e evocam para si muitas especialidades da clínica psi?

Nos dispositivos-oficina em que se insinuavam muitas vezes modos


dissidentes de intervenções “terapêuticas”, seus funcionamentos provocaram
agenciamentos de campos naturalmente separados, produzindo deslocamentos onde
anteriormente havia lugares bem definidos: arte e clínica, pacientes e alunos-
aprendizes, terapeutas e oficineiros.

Com isso, trabalhar com oficinas é habitar um campo híbrido, a diversidade,


habitar o lugar onde acontecem as misturas e os encontros e por isso habitar sempre
esse espaço fronteiriço dos agenciamentos de vários campos.

Assim, é possível dizer que as oficinas são dispositivos políticos da clínica de


saúde mental, o político entendido como um campo de encontros de alteridade
(Rolnik, 1995), onde o encontro é marcado por processos ininterruptos de
diferenciação. Ao se transportar para outras paragens, invadindo o socius e
apropriando-se dos seus recursos, a clínica inventa um dispositivo que opera saídas
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 117

para fora dela mesma. Podemos pensar então que para sair do campo restrito dos
meios de tratamento, a clínica constrói dispositivos que promovem de certa forma
sua própria abolição.

Talvez neste ponto possamos entender a vasta utilização desse dispositivo


pelas instituições que privilegiam o vetor inserção-inclusão como eixo do trabalho
clínico, pois se este é o vetor que permite aos pacientes-usuários relações com o
exterior ao tratamento, as oficinas são em grande parte das vezes, o dispositivo que
opera essa relação com a exterioridade, brecha pela qual os pacientes e terapeutas
encontram saídas para fora da clínica. Do ponto de vista dos dispositivos, a oficina
promove o “respiro institucional” quando se abre à multiplicidade de agenciamentos
e, estando implicada nos processos de singularização, ...

compromete-se igualmente com o que vem a ser do domínio da


construção de uma subjetividade conectada e entrelaçada com
problemáticas encontradas em outros campos, como por exemplo,
da educação, da saúde, etc. (Garcia, 1996, p. 139).

Há uma grande afinidade dessa prática com os postulados da reforma e da


luta antimanicomial, o que implica não apenas a desospitalização e a criação de
serviços substitutivos, mas também uma atitude de desinstitucionalização. Tal
atitude vai não somente indicar e abrir a vida para a possibilidade de misturas, mas
também instaurar um outro estatuto de cidadania, que não deixa as práticas de saúde
isoladas da vida na cidade, mas, ao contrário interfere e percute na cidade pois se
conecta e se mistura a ela..

Essas misturas e interferências podem ser uma saída, uma linha de fuga por
onde a loucura se libera do sistema de referência da reforma e a partir daí pode
argüir a própria reforma, num certo avesso dela. A experiência da loucura ao invés
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 118

de ficar circunscrita aos meios de tratamento, pode produzir subjetividade naqueles


chamados não-loucos.

Na direção oposta àquela que vem se ampliando no campo da saúde mental,


em que se banaliza o uso das oficinas por considerá-la “uma prática sem teoria”,
realizada por “profissionais sem conhecimento científico”, busquei mostrar o rigor
de tal prática que – ao se deslocar da posição de técnica terapêutica, de um
instrumento de terapia em meio a tantos outros e poder afirmar-se como um potente
intercessor no terapêutico, e porisso um dispositivo clínico – abre um buraco no
muro que separa a clínica da vida comum e coletiva.

Ocupar o lugar de intercessor é, então, ao mesmo tempo, a originalidade, a


singularidade e o rigor dessas práticas no campo da saúde mental, pois coloca esse
campo em relação permanente com outros domínios sem submetê-los à condição de
instrumentos terapêuticos.

As conexões do campo da saúde mental com outros campos de saberes, que


muitas vezes são impostas pelo dispositivo oficina, instauram uma complexidade
nas relações da clínica contemporânea, pois destronam os asilos como centro de
preocupação desse saber para nos abrir a outras perguntas tais como: quais os
manicômios que temos hoje a enfrentar? Quais as saídas que de fato temos
inventado para abolir a dicotomia louco/não-louco? Quais as interfaces que a clínica
de saúde mental tem verdadeiramente assumido com outros campos de saberes sem
chamá-los para si como recurso terapêutico?

Essas questões que emergiram na problematização das oficinas não


significam afirmar que essa prática compreende todo o exército da guerra contra
experiências segregadoras e muito menos que ela encerra a luta por práticas criativas
e produtoras de novos sentidos.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 119

Nesta pesquisa, a produção teórica esbarrou constantemente com a


experimentação prática, o que implicou a construção de uma teoria-prática, que ao
se construir, criou outras formas de subjetividade.

O percurso teórico que problematizou todo o tempo essa experimentação


prática não formatou um modelo de intervenção para as oficinas. Ao contrário, essa
construção teórica é sempre provisória e parcial.

A afirmação de que o dispositivo oficina se constrói na experimentação de


suas composições com outros domínios permite incluir nessa experimentação o
processo de produção teórica. Isto significa também dizer que o percurso teórico é
um potente intercessor na prática clínica.

Nesse sentido, o método que utilizamos para a construção dessas práticas e


também desta pesquisa é o que Suely Rolnik chama de “uma perspectiva ético-
estético-política”. Esse método é

ético porque não se trata do rigor de um conjunto de regras tomadas


como um valor em si (um método), nem de um sistema de verdades
tomadas como valor em si (um campo de saber): ambos são de
ordem moral. O que estou definindo como ético é o rigor com que
escutamos as diferenças que se fazem em nós e afirmamos o devir a
partir dessas diferenças. (Rolnik, 1993, p. 245)

Ela pontua que as verdades criadas com esse tipo de rigor, e também as regras
adotadas para gerá-las, só valem se guiadas e exigidas pelas marcas. E ela prossegue
afirmando que o método é estético e político:

estético porque este não é o rigor do domínio de um campo já dado


(campo de saber), mas sim o da criação de um campo, criação que
encarna as marcas no corpo do pensamento, como uma obra de arte.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 120

Político porque esse rigor é o de uma luta contra as forças que em


nós obstruem as nascentes do devir. (idem)

Decorre dessa perspectiva um trabalho no qual seu desfecho não corresponde


a uma conclusão. Minha proposta ao tematizar a prática com oficinas foi abrir-me a
um horizonte conceitual que considerasse a multiplicidade de uma prática como as
diversas maneiras em que essa pode se desdobrar. Poderia, por isso, lançar-me a
outras dobras, outras nuanças e outras virtualidades ainda por se atualizar. Mas... o
trabalho acadêmico tem os seus prazos... e desse modo, este encerramento não é
nada mais do que um dos pontos que se somam à composição do tema.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 121

Referências Bibliográficas

Os conceitos são centros de vibrações, cada um em si mesmo e


uns em relações aos outros. É por isso que tudo ressoa, em lugar
de se seguir e de se corresponder.

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Assinatura:____________________ São Paulo, abril de 2.001.

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