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PUC – SP
2001
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Banca Examinadora:
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Agradecimentos
Aos meus pais que “sem saber do que se tratava”, me permitiram aventurar
pelos caminhos da Terapia Ocupacional.
Luis Eduardo Aragon, Felícia Knobloch, Edson Olivari de Castro, Paulo Carvalho,
Elizabeth Lima, Ana Paula Nassírios, que sabendo o que significa escrever,
contribuíram – cada um à sua maneira – para que este trabalho tomasse forma.
Resumo
Esta função das oficinas acaba por distingui-las dos demais dispositivos
terapêuticos que submetem ao seu domínio tanto a arte como o trabalho, reduzindo
esses campos a instrumentos terapêuticos.
Abstract
Through the analysis of several experiences that uses the “ateliers” I tried to
map the subjectivity way that this device establishes in the clinic. It was evidenced
that the establishment of that clinical practice always imposes, to the field of the
mental health, a connection with other domains, and that is, according to my
understanding, the originality and the singularity of that clinical device: to relate
fields that are naturally separated, without submiting one to the other.
This function of the “ateliers” ends up in their distinction from the other
therapeutic devices that submit to their domain both the art and the work, reducing
those fields to therapeutic instruments.
Sumário
Apresentação 1
Apresentação
Fui tomada, a partir daí, por uma espécie de desassossego. Após anos de
experimentação numa prática de desconstrução da especialidade como forma de
expressão na clínica, lá estava eu de novo às voltas com aquelas questões. Na
tentativa de trazer à tona – por meio de lembranças imprecisas – um terapeuta
ocupacional escondido ou submerso, emergiam da memória gestos, imagens, sons e
afetos fervilhantes, mas que diziam respeito a outras lembranças: um passeio no
parque, as tortas de frango do almoço comunitário, as botas usadas para ir à horta,
situações de um campo de atuação que pouco tinha a ver com a especificidade do
especialista T.O.
1
A noção de cartografar aqui utilizada é trazida por Deleuze e Guattari, tal como trabalhado por Rolnik
(1989). A propósito, e baseando-se nessas mesmas fontes, Regina Benevides de Barros aponta que “a
cartografia é um desenho que acompanha os movimentos de transformação de uma paisagem. Neste
sentido, ela é sempre provisória e singular. Ela diz das linhas que são puxadas daqui e dali e que se tecem
no próprio acontecer. A cartografia não tem pretensão de verdade nem de universalidade. Ela acompanha
os movimentos e compõe uma realidade. (...) Pensamos que todos podemos ser cartógrafos. O cartógrafo é
aquele que quer envolver-se com o traçar, quer navegar no movimento, quer misturar-se com os
acontecimentos, quer compor territórios que não sejam fixos por muito tempo, já que o movimento não
cessa”. (Barros & Brasil, 1992, p. 228)
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 5
Num momento em que as práticas clínicas estão cada vez mais aprisionadas
em modelos e perspectivas cientificistas, o modo híbrido e migrante das oficinas é
uma alternativa de diálogo entre a clínica e outros campos da vida comum e
coletiva.
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Capítulo 1
Mas, o que caracteriza uma atividade aqui denominada como oficina? Quais
os aspectos que a definem? Ou ainda, como se dá a articulação, nesse mesmo “pano
de fundo”, entre esta extensa gama de atividades? Qual é a história que constitui a
suposta liberdade com que se tem utilizado esse termo para traduzir novas invenções
na clínica da saúde mental?
No que tange à produção teórica, o tema das oficinas na clínica tem sido
pouco estudado e é escassa a bibliografia em que este conceito é explorado ou
mesmo mencionado.
Por ora, a análise está centrada nas suas definições, mas já dá para perceber,
nitidamente, que é um termo amplo. Vindo do latim, o termo officina, tem
significações diversas, abrangendo o universo do trabalho. O dicionário Novo
Aurélio: século XXI apresenta várias acepções para o termo, trazendo um destaque
para “oficina pedagógica”:
Se, entretanto, nessas definições, o termo oficina articula itens como trabalho,
ofícios, ferramentas, instrumentos, atividades, indústria, arte e profissão, uma
pergunta ainda insiste: de que trabalho, ou de que ofícios estamos falando quando
queremos estabelecer uma conexão entre esse universo de significações e os
usuários de saúde mental?
Por que será que a clínica da saúde mental necessitou desta diversidade de
articulações, e da aproximação com essa paisagem, para designar as atuais
intervenções?
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 9
2
Ver Projeto de Lei n. 3.657/89 do deputado Paulo Delgado, conhecido como “Projeto Paulo Delgado”, cuja
proposta é a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos e a criação de outras práticas assistenciais
substitutivas àquele modelo.
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É preciso aqui deixar bem claro que o aparato manicomial não se resume ao
hospital psiquiátrico, embora este seja a instituição em que se pratica o isolamento.
Conforme apontam Giovanella e Amarante (1998a, p. 141), esse aparato...
3
O conceito de território tem sido muito utilizado na configuração dos cenários das novas instituições de
saúde mental, mas com sentidos bastante diversos. Nesta pesquisa usarei duas concepções de território que,
embora se assemelhem em alguns aspectos, se processam em modos de clínica diferentes. Nos Capítulos 1
e 2, o conceito de territorialização diz respeito à previsão de “uma rede de serviços articulados em níveis de
complexidade, que respeita o indivíduo como ser integral e que considera, para a compreensão do
sofrimento, o território onde ele está inserido, sua moradia, seu bairro, seu transporte, suas opções de lazer,
seu salário, seu trabalho, suas relações, sua família...” (PMSP, 1992). A partir do Capítulo 3, tomarei o
conceito na acepção desenvolvida por Deleuze e Guattari e retomada por Guattari e Rolnik (1996).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 16
terapêutica. São serviços que passaram a inventar estratégias para lidar não só com o
sofrimento psíquico, mas com a relação desses sujeitos com a vida.
4
Esses princípios integravam também o projeto SUS (Sistema Único de Saúde), que previa uma união dos
governos federal, estadual e municipal na criação de um único sistema público de saúde.
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Cooperativa – Cecco), formando uma rede de serviços articulados entre si, com
equipes multiprofissionais em todos os níveis do projeto, fortalecendo assim o
funcionamento da rede extra-hospitalar. Assim, tal projeto previu para o município
uma territorialização dos serviços de saúde, com a abertura de serviços nas diversas
regiões da cidade e em vários níveis de complexidade.
Para além de uma simples ampliação da assistência, esses serviços foram uma
tentativa de transformação na estratégia de intervenção, na medida em que os
espaços criados não eram estruturas simplificadas mas uma rede tecida por uma
nova cultura de relações entre os sujeitos e a instituição, que valorizava acolher o
sofrimento, investindo na participação ativa do usuário no seu processo terapêutico.
5
Com a implantação do PAS no município de São Paulo, pelo então prefeito Paulo Maluf, todo o serviço
público municipal de saúde foi transferido a cooperativas de assistência privadas, encarregadas a partir daí
pela prestação de serviços. Tal projeto, contrário ao Sistema Único de Saúde – SUS, modificou toda a
forma de atendimento da rede pública de saúde, principalmente de saúde mental. A violência que
caracterizou esse processo e sua prática privatista desmantelaram a rede de assistência à saúde e
descaracterizarm os serviços existentes. Alvo de crítica de grande parte da sociedade civil, preocupada com
os movimentos sociais, esse plano de atendimento foi responsável também por enormes falcatruas por parte
dos seus gerenciadores. No início de nova gestão na prefeitura (administração de Marta Suplicy), instaurou-
se uma CPI para averiguação dessas irregularidades, prevendo-se a extinção do PAS até junho de 2001,
quando se encerram os contratos com as cooperativas. Sobre o PAS ver Nassírios (1999).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 19
Após esse sobrevôo histórico uma pergunta ainda insiste: qual é a conexão do
termo oficina com a psiquiatria, saúde/doença mental, tratamentos, terapias,
intervenções?
São atividades como teatro, pintura, papel machê, desenho, até festas,
passeios, que vão desenhar para a autora um campo que ela define como clínico, no
qual os instrumentos e técnicas são utilizados como facilitadores da expressão do
sujeito.
São esses projetos de trabalho que têm viabilizado muitas das vezes os
“arejamentos institucionais”, as trocas, interferências e relações com o mundo dito
“normal”.
6
Estou chamando hospitalocêntrico aqui o modelo de intervenção que tem no hospital e no trabalho médico a
exclusividade das decisões e atitudes terapêuticas.
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Com base nesses textos, que esboçam em seu conteúdo um caráter apenas
descritivo das atividades desenvolvidas, desarticulados de modelos teóricos mais
tradicionais, a autora identificou três possibilidades para o termo oficina, a saber:
oficina como espaço de criação; oficina como espaço de realização de atividades
manuais ou mecânicas; e, oficina como espaço de convivência.
Já Roberta dos Santos Rocha, outra autora que estuda as propostas de oficina
na clínica psi, divide o projeto de oficinas na saúde mental em três grupos. O
primeiro grupo é aquele onde há, na oficina, a produção de objetos destinados ao
mercado, identificando-se com o processo industrial (Rocha, 1997, p. 26). Num
segundo grupo, vislumbra-se o fazer artístico: há o ensino de técnicas artísticas e
também uma preocupação com o mercado das artes. Nesse tipo de oficina, a
produção dos “artistas” destina-se à comercialização. E há ainda um terceiro grupo,
que a autora considera diferente dos anteriores, em que não há uma preocupação
com o produto e tampouco com o valor de troca dos mesmos, o enfoque neste tipo
de oficina está na relação do oficineiro com o material utilizado.
Rocha problematiza ainda a relação entre trabalho, arte e terapia nas oficinas,
tomando como questão a suposta supremacia da terapia com relação aos outros
campos, quando esses são utilizados na clínica como instrumentos terapêuticos.
Sobre esta questão, ela conclui que...
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Ainda sob esta perspectiva, a autora faz uma distinção entre clínica e terapia,
utilizando o conceito de Instituição 7 para clínica e situando a terapia como o seu
instrumento. Tal distinção traz, em si, a idéia de que a terapia só se faz necessária a
partir da clínica (Instituição), e de outras instituições que a atravessam, como por
exemplo, doença mental e norma:
7
Tomado no sentido que lhe confere a Análise Institucional, como apresenta Baremblitt (1992, pp. 87-88):
“Uma instituição é um sistema lógico de definições de uma realidade social e de comportamentos humanos
aos quais classifica e divide, atribuindo-lhes valores e decisões, algumas prescritas (indicadas), outras
proscritas (proibidas), outras apenas permitidas e algumas, ainda, indiferentes. Essas lógicas podem estar
formalizadas em leis ou em normas escritas ou discursivamente transmitidas, ou ainda podem operar como
pautas, quer dizer, como hábitos não explicitados. As citadas lógicas se concretizam ou se realizam
socialmente em formas materiais ou ‘corporificadas’ que, segundo sua amplitude, podem ser: organizações,
estabelecimentos, agentes e práticas. Cada Instituição é universal, ou seja, indispensável para toda e
qualquer sociedade, mas para realizar-se em suas formas concretas passa por um momento de
particularidades e outro de singularidade única e irrepetível”.
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Com esta posição, a autora pretende retirar das oficinas o estatuto de terapia,
ou melhor dizendo, de um tipo de terapia, considerando que nesta posição mais
facilmente encontrada, este dispositivo, não se apresenta como novo, mas só
reproduz velhos procedimentos. Ela defende, então, o papel estratégico assumido
por “uma intervenção distinta da terapia” no campo da Saúde Mental. Para ela, “se
abandonarmos a prática terapêutica, quebramos o elo em que operacionalizavam-se
as três instituições já citadas: a clínica, a enfermidade e a norma” (idem, p. 22).
Essa autora também problematiza a relação entre trabalho e arte nas práticas
das oficinas apontando que esses saberes podem se constituir como vetores
importantes de inserção no coletivo, não só para pacientes psiquiátricos, mas para
todos os seres humanos, “...caso consigam estabelecer outras e melhores condições
que as habitualmente existentes entre produção desejante e produção de vida
material” (idem, p. 4).
Tendo por base os autores apresentados acima, podemos tomar alguns eixos
que norteiem a compreensão do trabalho das oficinas no campo da saúde mental.
campos e saberes o que pode garantir a elas um espaço menos restrito como o de
especialidade em Saúde Mental e mais efervescente quanto às problematizações e
descontinuidades produzidas. Uma nova cultura de intervenções, escavada por essas
experiências que pouco se intimidam com o discurso técnico vigente e que tentam
escapar do modelo terapêutico normatizador.
Mas de que “fazer” estamos falando? Isto ainda parece insuficiente quando
nos perguntamos: a que trabalho estamos nos referindo quando intencionamos a
criação de territórios existenciais e quando queremos que as oficinas se tornem elas
próprias vetores de existencialização para os sujeitos atendidos, substituindo as
intervenções-promessas de inserção-/inclusão? Se as oficinas são hoje na clínica, o
instrumento mais utilizado para colocar em jogo a reinvenção do cotidiano, é através
dessas atividades ligadas ao “trabalho” que elas têm realizado sua proposta.
Este bloco de questões leva ainda a uma outra interrogação: Será que é do
trabalho tomado como emprego, ou como produção de mercadoria ou mesmo como
fonte de renda financeira, que se tratam essas atividades experimentadas nas
oficinas?
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 26
Vários autores como Viviane Forrester (1997), Toni Negri (em diversos
artigos na Folha de São Paulo), entre tantos outros, afirmam que a grande questão
do contemporâneo é desafiar a subordinação do trabalho ao capital e restabelecer sua
função como força produtiva.
Uma cena que se apresentou para nós como muito fecunda para essa conexão
trabalho-clínica, foi o modo artesão de produção. Este modo nos foi convocado a
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 28
partir do próprio termo – pois o trabalho do artesão não se realiza nas fábricas ou nas
empresas, mas nas chamadas oficinas – e pelas características que apresenta no seu
processo de produção. Temos dito que o papel das oficinas na clínica deve estar
comprometido com a ética da reinstauração de uma certa processualidade no
trabalho, que implica movimentos de desterritorialização e constantes linhas de fuga.
Isto nos coloca, portanto, numa posição heterogênea à axiomática do capitalismo,
que se por um lado comporta movimentos de desterritorialização, por outro, não
permite saídas para fora dele mesmo.
Uma primeira característica descrita pelo autor sobre esse modo de produção,
é “a integração entre concepção e execução”, ou ainda “a integração entre pensar e
agir”. Sobre isso o autor nos fala que: “O mesmo homem que tem a idéia (o plano) é
quem a concretiza. Traz, com suas próprias mãos, a idéia para a esfera da existência
material” (Küller, 1996, p.26). Uma decorrência dessa primeira característica que
citamos é o que o autor sintetiza como “o domínio do ciclo completo do produto.
Cortar o sisal, desfibrá-lo, amarrar as fibras, encabar a vassoura, acabá-la e vendê-la
são fases de um processo produtivo sob o domínio de um mesmo homem” (idem,
1996, p. 27).
utilizadas por uma série de atividades de produção (moda, informação, artes visuais,
alimentação). Obviamente não estamos vivendo em pleno trabalho imaterial, este é
uma tendência e o que de fato se observa é a coexistência das várias dimensões do
capitalismo: trabalho industrial, trabalho informacional e até mesmo trabalho
escravo.
8
A respeito do trabalho imaterial ver: Lazzarato (1996), Pelbart (2000), Antunes (2000, mais especificamente
o capítulo VII).
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Sem querer estabelecer uma relação abusiva, podemos pensar que buscamos
transpor do modo artesanal de produção para a clínica o caráter coletivo e
compartilhado da “experiência”. Isso é diferente do caráter individualizado da
“vivência” no modo capitalista de produção que, como aponta Jeanne Marie
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Capítulo 2
9
Nessa experiência estiveram envolvidas, várias secretarias municipais (Cultura, Educação, Saúde, Parques e
áreas Verdes) e seus diversos trabalhadores (agrônomos, professores de educação física, etc.).
10
O sistema de referência e contra-referência é a interligação de inúmeros serviços e ações, que visa
compromissar e co-responsabilizar toda complexidade da rede de prestação da assistência à saúde.
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Mas será que não era justamente o contrário disso que esse projeto se
propunha?
Este autor ainda faz uma diferenciação entre normal e anomalia, muito
importante para essa reflexão: “Anomalia vem do grego anomalia que significa
desigualdade, aspereza; omalos designa em grego o que é uniforme, regular, liso; de
modo que anomalia é, etimologicamente, an-nomalos, o que é desigual, rugoso,
irregular...” (Canguilhem, 1995, p.101). Ao passo que normal é um termo vindo do
latim norma que significa regra; portanto anormal é o que contradiz as regras.
“Assim com todo rigor semântico, anomalia designa um fato, é um termo descritivo,
ao passo que anormal implica referência a um valor, é um termo apreciativo,
normativo...” (Canguilhem, 1995, p.101).
sustentada por conceitos que por si produzem exclusão. Além disso, operar com o
conceito de anomalia, como trazido por Canguilhem, permite uma saída dessa
negatividade (comparação com o genérico), para a positividade (diferença pura
em si).
Penso que essas análises são de fundamental importância para que possamos
entender os atravessamentos que se reproduziram nas relações institucionais.
Vale dizer que, numa cidade como São Paulo, em que os espaços públicos de
lazer e de compartilhamento de experiências, estão cada vez mais escassos, onde são
valorizados os espaços privados – como shoppings centers e clubes – restritos a uma
certa camada social, e de difícil acesso a uma população mais carente, o Cecco
surgiu como uma possibilidade de resgate do espaço público, promovendo de fato
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como parte dessa diferença, que exatamente lhe permite fazer essa
articulação. (Marazina, 1997, p. 174)
11
Os outros equipamentos da rede de Saúde como Unidades básicas e Hospitais-Dia, encaminhavam seus
pacientes em tratamento para o Cecco objetivando que esses freqüentassem as oficinas tanto de convivência
como de trabalho, como projetos de inserção/inclusão na vida social.
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É preciso frisar que foram vários os obstáculos enfrentados nesse projeto. Por
um lado, os terapeutas tinham dificuldade de desconstruírem os papéis absolutizados
que exerciam, na medida em que eles são geralmente fiéis às suas especialidades, e
isso impedia a fabricação desse novo estilo de realizar a clínica. Por outro lado, o
dispositivo institucional implementado (as oficinas) exigia esta desestabilização dos
especialistas para que houvesse de fato um trabalho de recriação de si e da própria
experiência.
Cheguei ali numa daquelas manhãs de junho, em que o céu fica totalmente
azul, o frio é intenso e a respiração quase que se confunde com a fumaça do cigarro.
Percebi que eu tinha chegado cedo demais, mas assim também pude observar
toda a paisagem local, de uma beleza pouco vista em São Paulo, algo que no corre-
corre diário nos passa desapercebido.
Pedro já arriscou uma conversa: “quem é você, vai ficar por aqui?”,
engatando um pedido de ajuda para levar a mesa de pebolim para frente da porta de
entrada.
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Percebi logo no primeiro dia que aquele lugar era diferente dos outros que eu
conhecia. Tinha algo de familiar e amigável nos seus loucos .
João com as batatas, cenouras e chuchus era relembrado a todo instante que
estes legumes eram para o almoço e não para o jantar. Talvez esse fosse seu maior
divertimento, ser relembrado que a sua tarefa fazia parte da tarefa do grupo.
Nesta atividade coletiva, que foi inaugural para mim na instituição, parecia,
como nos fala Guattari, que havia sido operada uma mini-revolução interna, não
havia separação entre as nobres tarefas dos terapeutas e as do pessoal operacional e
dos pacientes, o que este autor traduz por uma micro-revolução no trato com a
loucura. Para ele, ao instaurarmos estruturas múltiplas, que possam mobilizar os
pacientes, é fundamental contarmos com todos os membros da equipe, que devem se
disponibilizar e se revezar nas atividades diversas. Ele defende ainda que as
instituições que se propõem a um novo trato da loucura, devem se deshierarquizar-se
nas funções de sua equipe.
É bem verdade que isso, assim condensado, parece tarefa fácil, mas essa
experiência, cuja prática carecia (felizmente) de modelos transponíveis, tinha o
mérito de abalar as nossas formações técnicas.
Lembro-me de uma sexta-feira em que dona Isaura chegou logo cedo, como
era habitual, com seu avental e touca de cabelo, o que sempre lhe garantia um lugar
no fogão, evitando assim, como ela mesma dizia, que alguma coisa pudesse dar
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errado, afinal “todos gostam de comer uma boa comida, bem temperada, cozida e
principalmente limpa”.
Naquele dia, para seu espanto, outros combinados já haviam sido feitos pelos
que haviam chegado anteriormente. Vários outros usuários que sempre chegavam
tarde e que por isso pegavam os serviços mais gerais, estavam a postos para pilotar o
fogão na pequena cozinha, sobrando para ela as atividades menos nobres do salão
ou escolher arroz, feijão, ou mesmo descascar batatas e cenouras.
Era clara a sua insatisfação para com outras atividades, e um certo desdém
para com a competência de outros em tarefas como temperar carnes e cozer os
grãos, o que era ainda compartilhado com as cozinheiras-funcionárias do Cecco que
co-coordenavam, com os terapeutas, a atividade-oficina.
Dona Isaura com um ar de eu avisei fazia um certo corpo mole diante dos
pedidos de ajuda que recebia, do tipo: quanto colocar de sal, ou quanto pôr de alho
na carne, ou ainda se as batatas precisavam ser cozidas antes de serem assadas.
Naquele dia o almoço atrasou, a carne ficou mal passada e as batatas ficaram
duras. Quase ninguém comeu e um certo silêncio invadiu a sala de almoço, que em
outros dias se mostrava tão cheirosa e efervescente.
Será que as cozinheiras não gostavam mesmo (como alguém sempre dizia)
dos loucos no espaço da cozinha? E a dona Isaura, hein, que prepotência! Se bem
que ela cozinhava bem melhor. Seria o caso de estabelecer coordenação e papéis
fixos nas atividades? Mas, enfim, qual era mesmo a proposta do almoço
comunitário?
2.3.1 Oficinas-convivência
anormalidade e não como singularidade, e isto para além de uma simples questão
semântica, produz um compromisso aprisionador a uma fantasia de um processo de
inserção-integração de evolução linear e não que “sua gênese se faz por alianças ou
contágios, um rizoma infinito que muda de natureza e rumo ao sabor das mestiçarias
que se operam na grande usina de nossa antropofagia cultural” (Rolnik,1998, p.
133).
12
Éstou usando a expressão clínica ampliada, muito utilizada pelas novas instituições de saúde mental, tal
como desenvolve Maurício Lourenção Garcia. Segundo ele, esta é uma clínica “comprometida com a
crítica, construção e produção de uma subjetividade heterogenética, aliançada com a escuta daquilo que
propicia a criação e potencializa os processos de transformação do cotidiano. Uma clínica que visa
potencializar e positivar os efeitos instituintes presentes em toda e qualquer forma de relação humana.
Processo onde a subjetividade é pensada, teorizada e produzida no exato momento em que ela ecoa e
produz ressonâncias; um modelo de relação que ao movimentar aquilo que está cristalizado, cria
oportunidades de ampliação da capacidade de afetar e ser afetado; uma clínica que possa ser praticada como
um exercício de expansão e aliança sensíveis aos processos de singularização; uma clínica que se sustente
como produto e produtora da leitura do analítico que preserve o caráter disruptor e sua vocação de remover
minuciosamente dos territórios constituídos, tudo aquilo que impedindo o acesso aos processos de não
totalização, obstruem passagens, não promovem intensificações e emperram as possibilidades de
movimento”. (Garcia, 1996, p. 11)
13
O oficineiros eram profissionais de outras áreas como: artistas plásticos, professores de educação física,
músicos, professores de teatro, dança, bailarinos, etc., que tinham como função o ensino das atividades de
suas especialidades.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 58
escolha das oficinas, pois além de não estarem habituados a simples escolhas,
submetiam-se mais facilmente às orientações dos terapeutas.
Essas questões apontadas acima podem ser vistas como características das
instituições das bordas, dos serviços fronteiras. E essa divisão que se estabeleceu
entre os usuários no Cecco nos seus projetos de convivência – projetos vistos como
regra e dever para uns, pois fazem parte do tratamento; e vistos como oportunidade e
possibilidade para outros, pois pura experimentação dos espaços públicos – tornou
esses projetos uma fonte de distinção entre o normal e o anormal.
Por isso, entendo que os serviços fronteira devem estar atentos para os
reguladores da autonomia dos seus usuários pois esta deve estar incluída no conjunto
de possibilidades de criação de normas disponibilizado para eles e não que sejam
aprisionados na dicotomia normal/patológico.
Soma-se a isso o fato de o projeto dos Ceccos ter sido concebido com base
em iniciativas de reforma sanitária que, para superar a lógica hospitalocêntrica,
necessitou colocar em prática uma rede extra-hospitalar eficiente. Esse equipamento
cumpria, nessa rede de assistência, um papel de intermediação entre o que
usualmente denominamos de campo da clínica e campo social. O trabalho desse
serviço era muitas vezes articular a passagem de um campo ao outro ou mesmo
oferecer-se como espaço de fronteira, ou ainda como possibilidade primeira de estar
e de experimentar o campo social.
Cabe também a estas novas propostas de intervenção fazer com que a cidade
ao invés de propiciar convívios assépticos e descontaminados possa cumprir de fato,
como nos propõe Espinoza, sua tarefa de promover encontros nos quais os
indivíduos ao se comporem entre si, aumentem suas possibilidades de afetar e ser
afetado (Deleuze, 1981).
2.3.2 Oficinas-trabalho
Não apenas para os usuários de psiquiatria, mas para a grande maioria dos
usuários do Cecco (desempregados, moradores de rua, donas de casa, idosos), seus
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 62
14
Estou aqui chamando de aprendizado técnico, a aquisição de alguma habilidade manual ou mecânica útil à
comunidade e que trouxesse a possibilidade de um retorno financeiro.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 63
respeito de técnicas para ensino de um ofício e os usuários por sua vez ficavam
empobrecidos na realização da aprendizagem.
Esse projeto – que não contou com o trabalho de oficineiros – era coordenado
por terapeutas do Cecco e do HD, e foi priorizada a participação de pacientes de
saúde mental, adultos, com alguma demanda de trabalho.
15
Hospital-Dia de saúde mental – adultos que era referência para a região de Butantã, onde se situava o Cecco
Parque da Previdência.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 64
Para o projeto dos vasos, foram organizados – tal como muitas instituições
tradicionais de psiquiatria marcados pelos ditames estandardizados da doença
mental – bazares e feiras na própria instituição, e uma aliança com uma loja de
cerâmica que se propôs a ficar com as peças em consignação.
Alguns vasos vendidos, outros não e a partir daí questões como a definição de
critérios para a divisão do dinheiro obtido: divisão igualitária ou proporcional à
quantidade de trabalho de cada um, etc.
Esse grupo passou muitos momentos de frustração com as questões que dele
emergiam, pois era muito difícil dar novos contornos ao tema do trabalho, tendo
como parâmetro a relação trabalho/dinheiro.
estratégia utilizada num momento em que a instituição não suportava mais todas
essas angústias vindas da oficina-trabalho.
Muitas vezes na instituição, aparecia uma falsa questão advinda das oficinas-
trabalho. Obviamente não era a intenção desse serviço transformar-se numa empresa
com reservas de empregabilidade, mas o fato de ele se abrir ao universo do trabalho
sem articular-se com outras esferas desse campo, levava sempre ao risco de
permanecer tão enclausurado e excluído quanto os seus usuários, somado ao risco de
nem sequer se abrir a outros vetores que ali eram produzidos. Valorizar múltiplos
modos de produção e com isso modos de existências tão singulares como os dos
usuários de saúde mental pode produzir não só territórios existenciais para eles, mas
signos que também interessem a outros.
Com isso posto, a intenção desta investigação não é de modo algum esgotar
essas questões, mas ao contrário abrir-se a elas. Escapar dos modelos enrijecidos que
o aparato social oferece, sair dos impasses repetitivos dos modos de produção
vigente, são tarefas árduas para a clínica atual.
Não tenho dúvida de que esse projeto foi essencial e importante na vida dos
usuários que por ele transitaram. E é verdade também que a prática profissional
nessa lógica de assistência abriu portas para novos agenciamentos.
Como já foi dito, esse serviço foi violentamente fechado em maio de 1996,
por um projeto político de privatização do sistema público de saúde (PAS). Esse
“fechamento” rompeu com uma certa cultura de saúde mental que se pautava pelo
ideário da reforma psiquiátrica, e mais do que isso esta ruptura esgarçou com uma
larga rede de serviços de atendimento público municipal da maior cidade deste país.
Contudo, o Cecco nos seus poucos anos de vida pôde propiciar problematizações
importantes no que concerne à clínica contemporânea.
Capítulo 3
16
A partir daqui passo a utilizar uma outra noção de território, diferente da que apareceu nos capítulos
anteriores, que traz um suporte ao pensamento sobre os projetos de uma clínica ampliada. Trata-se da idéia
proposta por Deleuze e Guattari. Conforme expressa Guattari, a noção de território deve ser tomada em um
sentido amplo, indo além dos usos feitos pela etologia e pela etnologia: “Os seres existentes se organizam
segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território
pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se
sente ‘em casa’. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o
conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de
comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivo” (in:
Guattari & Rolnik, 1996, p. 323).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 70
Para o sistema de saúde pública municipal, essa época foi marcada por
acontecimentos estarrecedores. Como nos momentos de guerra, fomos assolados por
uma avalanche de violência, descaso, tristeza, abatimento, desesperança e descrença.
Para além da tese sobre os efeitos negativos do PAS (e isso não significa de
forma alguma negá-los), a destruição da rede de serviços de saúde permitiu
problematizar todo um campo de assistência que estava, num certo sentido,
enrijecido pelos discursos técnicos, como apontei no Capítulo 2.
Como uma das propostas, o Espaço Lúdico Terapêutico (ELT) foi criado em
1996, inserido nos projetos de assistência do curso de Terapia Ocupacional da USP.
Desde o início, este serviço se caracteriza como um espaço de assistência, ensino e
pesquisa, atendendo crianças e adolescentes com distúrbios globais de
desenvolvimento (psicoses, autismos e deficiências mentais).
A propósito disto, Deleuze (1997, p. 73) diz que, “o trajeto se confunde não
só com a subjetividade dos que percorrem um meio, mas com a subjetividade do
próprio meio, uma vez que este se reflete naqueles que o percorrem”. Então, intervir
na composição de outros trajetos, na exploração de novos meios, torna-se essencial
se queremos – a partir da clínica – ampliar o universo dessas crianças, conectá-las
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 76
Nessa medida, a idéia original do projeto pode ser entendida como uma certa
tendência da clínica contemporânea de apontar cada vez mais para a construção de
espaços de socialização, em oposição aos espaços terapêuticos tradicionais.
São Paulo, em busca de uma instituição de saúde mental que se oferecesse como
espaço de tratamento, pois muitas delas tiveram seus tratamentos interrompidos por
causa da implantação do PAS.
Para nós da equipe, essa era uma questão fundamental, já que tínhamos como
parâmetro não sermos engolidos por um certo referencial clínico. Ou, dizendo de
outra forma, nosso objetivo era ocupar na clínica um lugar de deslocamento dela
própria.
atendimentos domiciliares
grupos
oficinas
atendimentos domiciliares
acompanhamento terapêutico
atendimentos processuais
grupos
oficinas
atendimentos pontuais
orientações
escolas
creches
outros tratamentos
Essa montagem institucional foi assim pensada por acreditarmos que essas
crianças e adolescentes assistidos por nós não necessitavam apenas de atendimentos
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 80
Claro que hoje isso parece óbvio e aparece como projeto de quase todas as
instituições que trabalham na clínica da saúde mental. Os movimentos institucionais
das últimas décadas, como já comentado anteriormente, foram categóricos nas
afirmações da importância de se abrir as portas das instituições para a esfera social.
Mas como fazer isso sem cair na armadilha de que existe um indivíduo ou um grupo
a ser incluído? Como não entender o campo social de um lado e a clínica de outro?
Como não hierarquizar, e continuar nas intervenções-promessas?
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 81
Mas para entender isso melhor, proponho que nos lancemos a uma viagem
pelo dispositivo oficinas. Antes, porém, considero importante diferenciar
sucintamente as noções de técnica e dispositivo que estamos utilizando aqui, já que
esses termos são muitas vezes tomados como sinônimos. Técnica é aqui vista como
um instrumento, um material aplicativo a uma dada situação. O dispositivo, ao
contrário, nasce na situação como dobra estratégica da própria experiência.
Assim, o Lugar de Vida, nessa parceria pedia projetos cujo referencial não
fosse mais a infância mas a possibilidade de inscrição dessas crianças em uma outra
fase da vida, a adolescência.
Nesta fase, algumas situações ainda me tomam de assalto, pois foi ali na
oficina de marcenaria que iniciei meu trabalho no ELT.
17
Esse trabalho teve continuidade nos anos seguintes e no final do ano 2000 eram atendidas 8 crianças com
idades entre 11 e 18 anos.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 86
Assim, foi preciso muita delicadeza para chegar e conhecer cada um dos
personagens daquele grupo.
Num desses encontros, percebi que os pregos que ele usava para juntar as
madeiras eram menores que a largura delas. Em alguns encontros, no ritual da
chegada, onde era realizada a preparação para o trabalho, sugeri novos pregos,
maiores e mais largos que os outros, colocando os potes maiores junto ao seu projeto
de caminhão. Foram necessários vários encontros para Luís retirar os pregos
pequenos e usar o material adequado para seu trabalho.
Esses encontros eram marcados por uma vivência intensa de cada usuário
com seu projeto. Eram casas, caminhões, postos de gasolina, televisões. O uso de
materiais, ferramentas e espaço físico de verdade, tinha por si só a potencialidade de
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 87
Isso não quer dizer que havia nesse projeto imitação ou cópia de um modelo
preestabelecido da atividade de marcenaria, mas a produção daqueles encontros
aproximava os dois reinos: oficina de marcenaria e trabalho de marceneiro
transpondo a barreira que normalmente separa as experimentações clínicas das
experimentações da vida comum.
O término dessa oficina não foi vivido na instituição como “uma experiência
que não deu certo”, o que geralmente ocorre quando findam os projetos, ao
contrário, foi entendido que ela atingiu o ponto de sua própria abolição, necessária
para abrir outros caminhos e permitir outras conexões.
Assim, uma vez que nosso compromisso com a clínica têm sido o de praticá-
la nas bordas e na intersecção com outros planos, passamos desde então a
experimentações diversas quanto a saídas das crianças e adolescentes sem o
acompanhamento dos pais, incentivando vivências em situação do cotidiano, como
por exemplo, grupo de culinária, jogos de rua e jogos esportivos em quadras da
cidade.
Sentados com o restante do nosso grupo, fomos então surpreendidos por uma
senhora que se dizia terapeuta do grupo de ginástica e que a atividade fazia parte da
programação do Centro de Convivência do PAS.18 Ela pedia aos responsáveis por
nosso grupo que retirassem os garotos dali pois eles estavam atrapalhando a
atividade que ela estava realizando com “seus deficientes”.
Para nosso grupo, sobretudo para os terapeutas, esse acontecimento foi muito
desestabilizador, por isso tomado como um analisador. 19
18
Fui coordenadora desse serviço, já analisado no Capítulo 2, até a implantação do PAS na região (maio de
1996), quando por determinação do prefeito Paulo Maluf, fui exonerada da função, transferida
sumariamente para outra Secretaria e proibida de retornar àquele local de trabalho.
19
O termo analisador é utilizado aqui como uma potência de colocar em análise o estabilizado, é aquilo que
rompe com o instituído, produzindo outras singularidades (Baremblitt, 1992).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 91
Naquele dia pudemos observar a vida pulsando em cada ato dos jovens que
acompanhávamos. A “alegria” tomava corpo nos movimentos de capoeira, danças
diversas, risadas, cantos, conversas, que se contrapunham aos movimentos “tristes”
e estereotipados dos participantes daquela aula de ginástica. Essa é, a meu ver, a
diferença fundamental das propostas de intervenção que ali se apresentavam: a
primeira, da qual partilhamos, visa trabalhar com a vida e portanto com a
singularidade dos modos de existência e a segunda em que o trabalho se dirige
especificamente aos processos de normalização.
Consideramos que essas intervenções que não vêm do campo “psi” são
muitas vezes extremamente eficazes, porque comportam por si só todo o repertório
de sentido, isto é, não precisam de intermediários. Por isso devemos cada vez mais
oferecer aos usuários a possibilidade de habitar outros lugares, ouvir línguas
estrangeiras, essas que são alheias ao campo “psi”, até porque a vida se desenrola
sempre alhures. Nesta perspectiva, o que permanece como instituição deve ser
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 92
somente uma estratégia de extroversão, uma instituição que se ofereça tal como uma
“centrífuga”, 20 um lugar onde se vai para sair de si e ir para outros lugares.
Acredito que isto é fundamental, para que nós terapeutas estejamos atentos a
que a instituição ofereça saídas para fora dela mesma, pois só aí estaremos
contribuindo para uma real desinstitucionalização dos nossos usuários.
20
Esta idéia preciosa me foi sugerida pelo Prof. Luís Orlandi por ocasião do exame de qualificação.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 93
Não é simples fazer tudo isso e ainda estar atento para as diferenças
de tempo individuais, criando certos ritmos, em que uma
modalidade temporal possa conectar-se com outra, compor-se,
combinar-se, contrapor-se, ressoar, destoar. Não para fazer
bandinha, mas para não deixar que, por solidão uma temporalidade
morra estrangulada, ou que um paciente sufoque no seu ponto de
horror. (grifo meu)
Intuímos então que, para realizar esse trabalho, precisaríamos mais do que de
terapeutas: era necessário nos aliar com “ouvidos musicais”. Assim, convidamos
para isso duas musicistas que, junto com uma terapeuta da equipe do Espaço Lúdico
21
Olivari de Castro (2000, p. 4) aponta que “há uma distinção entre ouvir e escutar: para o primeiro, basta-nos
que os ouvidos sejam capazes, fisiologicamente, de captar o som; para o segundo, é necessário que haja
uma intenção deliberada, por parte de quem ouve, em desejar captar o som”.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 95
22
Considero de fundamental importância ao falarmos da quebra das identidades, não atentarmos apenas ao
papel dos profissionais. A tranversalização dos papéis deve necessariamente incluir os sujeitos atendidos,
isto é, não deve respeitar nenhuma hierarquia.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 96
Este grupo criou ritmos singulares de aulas. A improvisação foi parceira nos
exercícios com sons, ruídos e silêncios estranhos e os pacientes foram aos poucos se
transformando em aprendizes de música.
Mas, para o meu (feliz) espanto, o pedido da musicista era para que a
conversa se realizasse por meio dos instrumentos musicais, isto é, para que cada um
dos participantes do grupo utilizasse o seu instrumento (pandeiros, atabaque, flautas,
agogô) para conversar com o garoto da cítara.
acontecimento, 23 que pude observar e perceber, o que era “estar encarnado” por um
sentido sonoro. A nossa intuição estava certa: sim, a expressão musical podia tocá-
los num certo direito de existir, cada um a seu tempo. A música propicia pura
expressão em materialidade sonora, tanto em acontecimentos de escuta como em
acontecimentos do fazer som.
A partir daí, quando fomos rompendo com a escuta clínica e também com
algumas das idéias da macropolítica musical (“harmonia/ruído”), para experimentar
a escuta dentro do território musical, apareceram para além do ritmo, melodia e
harmonia outros componentes como intensidade, gesto, espaço, espaço de escuta,
textura.
23
Aqui entendido na acepção dada por Deleuze (1998, p. 152), segundo o qual o acontecimento “não é o que
acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera”.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 98
produzidos são incorporados como traços da cultura musical e não como simples
agitação motora.
Esta aventura clínica – que captava sons tão diversos (corporais, de animais,
apitos de trem, ambulância, barulhos de chuva, vento e tantos outros) não os
reduzindo a sentidos secundários, ao contrário admitindo-os imediatamente como
motivos musicais – tem encontrado territórios existenciais no plano da música. Ou
seja, tanto o território da música foi desterritorializado pela clínica como a clínica
foi totalmente desterritorializada a partir dos sentidos musicais. Foi por isso que,
com o passar do tempo, esta oficina foi causando na equipe do ELT um certo
estranhamento (desejável), com relação ao trabalho na clínica.
24
A esse respeito podemos lembrar dos trabalhos de Naná Vasconcelos, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal,
dentre outros.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 99
alvo dos trabalhos terapêuticos com famílias. Ao contrário das discussões de casos,
aparecíamos a cada reunião com uma nova música incorporada, ou uma dança ou
ainda contando do aprendizado de um instrumento musical.
O que será que tinha acontecido com aquele grupo tão alegre das quintas-
feiras de manhã ?
Numa reunião no final do ano letivo, um dos pais relatou, muito comovido,
que desde o nascimento de Aninha, era a primeira vez que ele podia, ao sair com ela
do prédio onde moravam, dizer aos outros moradores que ele, como os outros,
estava levando sua filha a uma escola de música e não a algum tratamento.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 103
Semanalmente, esses processos são vividos com muita euforia neste grupo:
desde a sala de espera compartilhada com outros alunos e pais da escola, até o
grande painel com fotos de todos os grupos da escola diferenciados apenas pelo
nome do grupo: Chá de Hortelã, Teco-Teco, Pula-Pula, Grupo Novo, Sapato e
Meia.
Num certo impasse, uma das estagiárias de Terapia Ocupacional que participa
do grupo, decide-se por ser formiga. Espantada pelo grande número de formigas, e
necessitando de mais vaga-lumes, a musicista sugere para ela que seja um vaga-
lume. Mas ela insiste em ser formiga, apontando o grande número de aprendizes
neste papel, que no seu imaginário de terapeuta em formação, necessitavam de
ajuda. 25
A musicista não entende e continua a sugerir que ela volte a ser vaga-lume,
mas a estagiária ainda insiste e permanece no lugar de formiga, pensando ser esta a
sua única possibilidade de estar no grupo.
Nesse momento sugerimos então que o grupo decidisse sobre que papel
deveria ocupar a estagiária, já que esta nos parecia tão firme no seu papel de
formiga.
25
Esta explicação foi apresentada pela estagiária em grupo de supervisão ocorrido logo após a atividade.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 105
Essa situação, como a primeira descrita, pôde justificar o que aconteceu com
os outros aprendizes para que eles não se aproximassem das estagiárias. Parece que
a dificuldade que elas tiveram de sair do lugar exclusivo do terapeuta e portanto
poder ocupar outros personagens, foi decisivo para que os outros participantes não
se aproximassem delas. Ao não se entregarem ao personagem, ou podemos dizer, ao
não “se outrarem” (Gil, 2000), elas conseqüentemente ficaram fora da cena, pois
naquela situação não se tratava de encenar um “draminha psi”, mas encenar a cena
no sentido teatral a que a música nos convoca.
Seguindo as pistas de Peter Pál Pelbart, num belo ensaio acerca da potência
do teatro num hospital-dia de saúde mental, quando utilizamos a música
Tal trabalho, que durou um mês, foi para o grupo de música um grande
acontecimento. Em todas as etapas do processo de gravação – a escolha de canções
para compor um repertório, a preparação do estúdio, a montagem dos instrumentos
musicais utilizados em cada canção, o uso do instrumento para cada participante, as
vozes – o grupo (incluindo não só as crianças e adolescentes, mas também os
terapeutas, estagiários e musicistas) dava sinais de que já não se tratava de fato de
um grupo terapêutico, mas constituiu-se ali uma banda de musicalização, isto é, o
grupo, nesse processo de composição artística, pôde enfim estabelecer encontros
exclusivamente musicais.
26
A produção do CD não envolveu gastos de estúdio e as despesas realizadas foram cobertas com parte das
contribuições voluntárias de 10 reais mensais que os pais das crianças fazem para a compra de lanches,
materiais descartáveis da escola e materiais de consumo da oficina (argila, tintas, papéis, cadernos de
música).
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 109
Podemos pensar de novo aqui uma diferença que reitero como fundamental
entre o dispositivo oficina, esse que se libera do seu campo original (aqui o campo
da saúde mental) e que se abre totalmente à conexão com outro campo (aqui a
música), e outros dispositivos terapêuticos que se utilizam da música como
intermediário terapêutico e por isso se mantêm no mesmo campo.
27
A música tem sido utilizada por várias especialidades do campo da saúde mental (psicólogos, terapeutas
ocupacionais, fonoaudiólogos) como uma técnica de intervenção, tendo também gerado nesse campo uma
“especialidade terapêutica” denominada musicoterapia.
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 111
Isso leva a crer que a oficina de música tem tido cada vez menos um caráter
terapêutico, mas ao mesmo tempo ela insiste no seu caráter clínico. Isto se
entendemos a clínica como um “campo de dispersão” – na sua potência em desviar-
se do seu percurso, inclinar-se e experimentar o seu próprio limite – e que desse
modo não se prende a modelos universais e não fica submissa aos paradigmas da
saúde mental.
Considerações finais
Esse modo de produção artesão foi, a partir daí, tomado na pesquisa como um
intercessor no trabalho nas oficinas de saúde mental, “...um lugar de interseção (mas
não de fusão) das duas vertentes...” (Orlandi, 1999, p. 12), entendendo a idéia do
intercessor não como uma forma de capturar o outro campo, mas ao contrário, como
um modo de fazer uma conexão de domínios cada um podendo, no entanto, seguir
seu próprio caminho.
Retomar o modelo artesanal nesta pesquisa, conectar-se com esse domínio foi
uma pista para vislumbrar novas saídas de inserção-inclusão social. Obviamente que
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 115
a intenção com isso não é transformar os usuários de nossa clínica em artesãos, mas
possibilitar que o modo de produção artesanal sirva como vetor de existencialização,
espaço de experimentação de diferenciação, de diversidade e da vida como sinônimo
de pluralidade.
Isto não quer dizer que essas práticas (as oficinas) situam-se numa espécie de
limbo, sem limite ético, num pode tudo destrambelhado. Ao contrário, a
precariedade constitutiva desse dispositivo – construído na conexão de diversos
saberes – e o extravasamento das fronteiras “científicas” pretendem elevar a
experiência clínica em seu mais alto grau, quer dizer: romper a barreira que separa a
clínica e o social, o tratamento e a vida.
Se a oficina é uma prática híbrida, se esta é a sua marca, se ela nos convoca
justamente nesse ponto onde se dão as misturas, como pensar “um especialista de
oficinas” tal como desejam e evocam para si muitas especialidades da clínica psi?
para fora dela mesma. Podemos pensar então que para sair do campo restrito dos
meios de tratamento, a clínica constrói dispositivos que promovem de certa forma
sua própria abolição.
Essas misturas e interferências podem ser uma saída, uma linha de fuga por
onde a loucura se libera do sistema de referência da reforma e a partir daí pode
argüir a própria reforma, num certo avesso dela. A experiência da loucura ao invés
M. Cecília Galletti – Oficinas em Saúde Mental... 118
Ela pontua que as verdades criadas com esse tipo de rigor, e também as regras
adotadas para gerá-las, só valem se guiadas e exigidas pelas marcas. E ela prossegue
afirmando que o método é estético e político:
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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a
reprodução total ou parcial desta dissertação por processos
fotocopiadores ou eletrônicos.