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ESTUDOS
publicação da associação nacional de pós-graduação
URBANOS
e pesquisa em planejamento urbano e regional
EDITOR RESPONSÁVEL
Henri Acselrad (UFRJ)
COMISSÃO EDITORIAL
Geraldo Magela Costa (UFMG), Marco Aurélio A. Filgueiras Gomes (UFBA),
Maria Flora Gonçalves (Unicamp), Norma Lacerda (UFPE)
CONSELHO EDITORIAL
Ana Fernandes (UFBA), Carlos Bernardo Vainer (UFRJ), Carlos Roberto M. de Andrade (USP/São Carlos),
Circe Maria da Gama Monteiro (UFPE), Clélio Campolina Diniz (UFMG), Flávio Magalhães Villaça (USP),
Frank Svensson (UnB), Frederico de Holanda (UnB), Jan Bitoun (UFPE), Lícia Valladares (IUPERJ),
Marcus André B. C. de Melo (UFPE), Marta Ferreira Santos Farah (FGV/SP), Martim Smolka (UFRJ),
Maurício Abreu (UFRJ), Milton Santos (USP) in memorian, Tania Bacelar (UFPE), Tânia Fischer (UFBA),
Wilson Cano (Unicamp), Wrana Panizzi (UFRGS)
COLABORADORES DESTE NÚMERO
Antonio Pinho (EA/UFBA), Regina Pacheco (FGV/SP), Rodrigo Ferreira Simões (Cedeplar/UFMG), Jair do Amaral Filho
(Ipece/UFCE), Marilia Luiza Peluso (Neur/UnB), Tereza Ximenes (NAEA/UFPA), Adauto Lucio Cardoso (Ippur/UFRJ),
Decio Rigatti (Propur/UFRGS), Ana Lucia Duarte Lanna (FAU/USP), Francisco de Assis da Costa (PPGAU/FAUFBA),
Cibele Saliba Rizek (USP/SC), Robert Moses Pechman (IPPUR/UFRJ), Wrana Panizzi (UFRGS), Norma Lacerda (MDU/UFPE)
PROJETO GRÁFICO
João Baptista da Costa Aguiar
CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO
Ana Basaglia
REVISÃO
Fernanda Spinelli
ASSISTENTE DE ARTE
Priscylla Cabral
FOTOLITOS
Join Bureau de Editoração
IMPRESSÃO
Assahi Gráfica e Editora
Indexado na Library of Congress (E.U.A.)
Semestral.
ISSN 1517-4115
O nº 1 foi publicado em maio de 1999.
ESTUDOS
publicação da associação nacional de pós-graduação
URBANOS
e pesquisa em planejamento urbano e regional
E REGIONAIS
VO L U M E 6 - N Ú M E R O 2 - N OV E M B R O 2 0 0 4
S U M Á R I O
GESTÃO 2003-2005
PRESIDENTE
Heloisa Soares de Moura Costa (IGC/UFMG)
SECRETÁRIO EXECUTIVO
Roberto Luis de Melo Monte-Mór (CEDEPLAR/UFMG)
SECRETÁRIA ADJUNTA
Jupira Gomes de Mendonça (NPGA/EA/UFMG)
DIRETORES
Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ)
Ana Fernandes (UFBA)
Brasilmar Ferreira Nunes (UnB)
CONSELHO FISCAL
Carlos Roberto Monteiro de Andrade (USP/SC)
José Antônio Fialho Alonso (FEE)
Sonia Marques (UFRN)
Apoio
EDITORIAL
O presente fascículo da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais reúne
um conjunto de trabalhos selecionados pela Comissão Científica do XI Encontro
Nacional da Anpur e pela comissão editorial da Revista como os mais destacados en-
tre aqueles apresentados no referido evento científico. Como se verá, este conjunto
de artigos reflete o estado atual da reflexão da área do planejamento urbano e regio-
nal – suas questões, seus desafios teóricos e metodológicos e seus resultados. Perce-
ber-se-á, em particular, que boa parte das investigações dedica-se a buscar elos signi-
ficativos que elucidem as condições problemáticas de vida nas cidades
contemporâneas, objetos por excelência construídos pelo homem, mas parecendo
cada vez mais fugir ao seu controle e compreensão.
Em diálogo com autores como Argan, Cauquelin, Rykwert e Arantes, Maria
Stella Bresciani discute a “preocupante ambigüidade metodológica” associada à in-
definição do estatuto disciplinar do pensamento e da prática urbanísticos. Consi-
derando o papel da memória e da experiência, a autora procura localizar o desacer-
to e a distância que se interpuseram entre as intenções projetuais dos urbanistas,
autoridades municipais e estaduais e a cidade tal como se apresenta – como ques-
tão histórica. Luciana Corrêa do Lago revê, por sua vez, o ideário da Reforma Ur-
bana, pondo foco nas políticas de regularização e urbanização de assentamentos
populares. Tendo em conta os pressupostos de ideal igualitário contidos em tais
políticas, a autora interroga sobre a possibilidade de que as normas e os padrões es-
pecíficos instituídos nos espaços em questão venham institucionalizar duas classes
de cidadãos, correspondendo a duas categorias de bem-estar, de direito social e de
direito de propriedade. Flávia de Paula Duque Brasil faz uma revisão do debate
sobre participação nas políticas urbanas, sustentando que, a despeito da heteroge-
neidade das experiências e dos limites político-institucionais encontrados, os espa-
ços destinados à “participação” têm levado a configurar novas linhagens de políti-
cas urbanas.
A heterogeneidade interna das periferias urbanas é o objeto da pesquisa cujos
resultados são apresentados no artigo de Renata Mirandola Bichir, Haroldo da Ga-
ma Torres e Maria Paula Ferreira. Abordando alguns tipos selecionados de riscos so-
ciais que incidem sobre indivíduos jovens, tais como desemprego, violência urbana,
baixo nível educacional e gravidez na adolescência, e tendo por base dados do Cen-
so Demográfico de 2000, os autores pretendem assinalar, no caso do município de
São Paulo, a ausência de sobreposição espacial homogênea dos diversos riscos consi-
derados em todas as subáreas das periferias estudadas. O artigo de Lorenzo Gonzá-
lez Casas examina, desde uma perspectiva histórica aplicada ao caso da cidade de Ca-
racas, a evolução observada no uso e representação do espaço público para os fins da
participação política, bem como suas implicações para o planejamento urbano, res-
saltando a introdução recente de novas cartografias urbanas por efeito dos processos
de mudança política e dos programas de descentralização governamental. Maria da
Conceição Barletta Scussel e Miguel Aloysio Sattler, por fim, discutem os problemas
relativos à definição de indicadores de “sustentabilidade” aplicáveis a espaços resi-
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denciais e padrões construtivos, quando considerada a diversidade de contextos so-
cioculturais em que se definem as práticas de moradia.
Este fascículo contém igualmente uma entrevista com Ermínia Maricato, Se-
cretária-Executiva do Ministério das Cidades, que oferece uma primeira avaliação da
experiência de dois anos vivida pela equipe que implantou esta nova instância mi-
nisterial. A seção “Homenagem” destaca a marca original e duradoura do pensamen-
to de Celso Furtado no campo do planejamento urbano e regional, marca esta ca-
racterizada pela busca de uma teoria e de uma ação condizentes com a complexidade
específica de nossa realidade, bem como com o compromisso de sua transformação,
objetivos que têm unido também em sua prática os profissionais e instituições con-
gregados na Anpur.
HENRI ACSELRAD
Editor Responsável
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A CIDADE
OBJETO DE ESTUDO E EXPERIÊNCIA VIVENCIADA* * Este artigo é parte de pes-
quisa apoiada pelo CNPq.
A cidade que tão bem conhecíamos mudou. Essa constatação se repete, no decorrer
de gerações, sempre nova, sempre imperiosa. É comum a lembrança de avós, pais, tias,
tios recordando saudosos outra cidade, a mesma, que de tão transformada lhes escapa...
É comum um cheiro sutil e passageiro, uma imagem fugidia ou o ambiente de um fim de
tarde cinzento trazerem num relance a sensação de uma situação vivida, tal como a Ma-
deleine proustiana, metáfora do insight captado por Walter Benjamin para falar desse pas-
seio interno por nossas lembranças involuntárias suscitadas repentinamente. A mais co-
mum das avaliações sobre a cidade, diuturnamente presente na imprensa escrita e
televisiva, à qual somos induzidos a vivenciar e vivenciamos de fato, é que a cidade está
em crise. No entanto, a atualidade dessa constatação e/ou sensação parece repor-se há du-
zentos anos pelo menos, desde que já faz parte dos registros dos que falaram da(s) cida-
de(s) desde o início do século XIX. Foi talvez a acentuada presença de expressões de espan-
to e sua persistente repetição nas várias formas de linguagem no decorrer de dois séculos
o que inicialmente me intrigou. Algo como se a idéia (ou idealização) de cidade e o estar
nela se apresentassem em constante descompasso. Ou, usando uma observação de Giulio
Carlo Argan, como se as estruturas do espaço cidade, que não está na realidade objetiva,
mas no pensamento que a pensa, não mais coincidisse com a dimensão do distinto, do
relativo, do consciente, do ego em contraposição à natureza sublime e dimensão do trans-
cendente, do absoluto, do superego (Argan, 1993, p.212). A cidade, produto do homem
por excelência, fugindo ao seu controle, espaço agigantado cujas dimensões escapam à
compreensão humana.
Esses registros repetitivos sugeriam que a concepção de cidade – uma imagem de ci-
dade, ainda que pouco nítida, inscrita em nosso subconsciente – não mais encontrava cor-
respondência na imagem da cidade que se tem diante dos olhos, na qual se vivia e na qual
hoje estamos.
A primeira constatação desse, digamos, mal-estar se deu ao estudar as cidades no
século XIX, quando encontrei o uso recorrente de metáforas para falar da cidade em tex-
tos de poetas, de literatos, de filantropos, médicos, advogados e demais pessoas que dei-
xaram registros escritos. O descompasso entre uma suposta noção e a efetividade exigia a
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3 O artigo data de 1971. Com essas palavras Giulio Carlo Argan constatava, há mais de trinta anos,3 terem as
cidades escapado às delimitações básicas do urbanismo e expunha sua visão crítica sobre
o pensamento urbanístico numa seqüência de observações paralelas entre a disciplina e
seu objeto, ambos perdendo de modo acelerado suas características e fundamentos orien-
tadores. A disciplina ainda prisioneira de fundamentos fincados no século XIX, como que
perdida em meio ao crescimento contraditório da(s) cidade(s), correndo sem rumo em
busca de soluções paliativas para um fenômeno diante do qual se sente pouco confortá-
vel; a cidade ultrapassando qualquer projeção anterior do pensamento urbanístico e mos-
trando uma face pouco aceitável e nada condizente com a racionalidade que deveria
orientar sua permanência e expansão.
Argan atribuía esse desencontro a “uma preocupante ambigüidade metodológica”
decorrente da indefinição do estatuto disciplinar do pensamento e da prática urbanísti-
cos. Arte ou ciência, economia, sociologia, política, tecnologia: onde localizar esse saber
cujo objeto parece se impor de maneira tão óbvia ao olhar? Nem arte – como as cidades
concebidas como uma única e grande arquitetura pelos teóricos da Renascença –; nem
ciência, atrelada a um conjunto de leis objetivas e constantes; nem o momento prático da
sociologia, da economia ou da política, pois aplicáveis sob o aspecto da tecnologia. O ur-
banismo não se conformaria ao perfil de nenhuma dessas disciplinas. O urbanismo é e
reafirma uma disciplina nova que pressupõe a superação desse esquematismo (Argan,
1993a, p.211).
Menos que dúvidas suas, Argan expressa, por meio dessas indagações, dúvidas
alheias e que, contudo, parecem conduzir nos dias de hoje grande parte da prática de es-
pecialistas das cidades. Seu texto tem um viés polêmico, sem entretanto deixar de ser di-
dático, ao afirmar que o urbanismo é, “em substância, programação e projeto”. E expõe
passo a passo como se estrutura um projeto: inicia na forma de componente científico,
pois efetua análises rigorosas sobre a condição demográfica, econômica, produtiva, sani-
tária, tecnológica dos agregados sociais; soma em seguida os componentes sociológico,
político e histórico, já que estuda as estruturas sociais e seus possíveis desenvolvimentos;
faz depois opções tanto sobre a orientação a tomar, pondo em perspectiva passado e fu-
turo, como sobre o estético, por determinar as estruturas formais. São dados, explica, que
não devem ser combinados, porém resultar em algo próprio ao trabalho do urbanista, o
plano, o “plano diretor”, que precisa ser encarado em sua finalidade de orientar e não ser
imposto ou traduzido em realidades construtivas.
Na base de sua argumentação radica a nítida certeza de que é decepcionante, por
ineficaz, a moderna intenção de projetar a cidade para um futuro que não nos pertence.
Essa intenção reverteria, a seu ver, o procedimento adotado por levas de gerações anterio-
res que construíram palácios, catedrais, que se até hoje são limites para o planejamento
urbano, foram na verdade construídos para as exigências de seus contemporâneos. “Trata-
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se, enfim, de uma herança, não de um planejamento.” E vai além, ao relacionar critica-
mente a prática contemporânea da preservação, como exigência de nossa cultura, ou se-
ja, uma exigência e necessidade atuais, tão evidentes no modo pelo qual lhe designamos
significados diferentes dos que tinham ao serem construídos. A seu ver, constituiria atitu-
de contrária pensar o que deve ser preservado, conservado e transmitido enquanto valor
histórico e valor estético, ambos indissoluvelmente imbricados (Argan, 1993b, p.225-7).
Desse modo, Argan localiza a disciplina urbanismo no presente, tempo saturado de
historicidade, conferindo à noção de futuro um valor, que eu designaria como ético,
orientador da prática no presente, o que comporta parte significativa de passado, nas di-
mensões do edificado e do pensamento que o orientou. Como urbanista, Argan destaca a
questão do “valor estético da cidade”, a cidade como espaço visual. Assim, considera que
a cidade é antes de tudo um impacto visual ou uma experiência estética. A ela ou aos seus
dados visuais é atribuído valor, seja pela comunidade, seja por uma elite de estudiosos em
função do interesse da comunidade, já que, diz o autor, “o que hoje é ciência de poucos,
será amanhã cultura de todos” (1993b, p.228). Há, sem dúvida, em seu texto a busca do
reencontro da dimensão do indivíduo, do ego enquanto sujeito, diria ele, da dimensão hu-
mana e do cidadão, por ser ele o elemento fundante da própria cidade.
Ao conferir à experiência o peso maior da atribuição de significado ao espaço urba-
no e seu tempo próprio, Argan advertia sobre a condição de “abstrações interessadas” pa-
ra noções, tais como “sociedade”, “comunidade” e “função urbana”, que levariam a con-
siderar a cidade em que se mora como “máquina que deve realizar uma função”. Seriam
abstrações “que corroem em profundidade o conceito histórico de cidade, porque o afas-
tam da experiência e, portanto, da consciência”. Transpõe para o espaço da cidade o estu-
do de Gaston Bachelard sobre a casa – a casa da infância como modelo pelo qual se cons-
trói grande parte da psicologia individual, no que diz respeito às idéias, às imagens
profundas de espaço e tempo – e abre um amplo campo de significações singulares da ci-
dade para cada um de seus habitantes. Essa experiência, entre consciente e inconsciente,
de cada habitante reproduzida graficamente resultaria em um quadro bem mais comple-
xo do que o emaranhado de cores, traços e pontos de uma obra artística de Pollock, ain-
da que nele estivessem representados somente os trajetos executados por seus habitantes
no intervalo de somente uma hora. Esse emaranhado marcaria, entretanto, trajetos e
pontos nodais constantes. Percursos que pouca semelhança guardariam com o percurso
lógico ou necessário, e portanto previsível, do urbanista. Esse estar na cidade se traduziria
no registro das imagens cotidianas e conteria uma lógica – a do mapa do espaço-cidade e
a do ritmo de tempo urbano – formada pelos trajetos de cada um de nós, durante os quais
deixamos trabalhar a memória e a imaginação. Nada é gratuito ou puramente casual, diz
Argan (1993b).
Onde localizar, de que modo acompanhar esse emaranhado de percursos? Como es-
tabelecer correlação entre ele e a prática de um grupo especializado e circunscrito dedica-
do a intervir na cidade? Como colocar em diálogo essa lógica especializada e as individuais
ou a da maioria dos habitantes da cidade? Como entender essa difusão ampla e ampliada
dos valores atribuídos à cidade? Mais ainda: qual o significado histórico, e portanto ins-
crito no presente, da atribuição de valor estético às cidades? Conferir-lhes identidade sin-
gular? Diferenciá-las simplesmente? Reduzi-las a uma essencialidade inerente? Argan faz
em seguida uma afirmação categórica sobre a necessidade de uma “análise psicológica”
que se baseie no “estudo da experiência urbana individual como princípio de qualquer
pesquisa sobre os modos de vida urbana de uma sociedade real” (1993b, p.233).
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vida. Um tempo, esse do citadino, que recobriria, em seu entender, com uma fina pelícu- 6 Para a noção de doxa e de
sua apropriação por Cauque-
la a vida social, servindo-lhe como suporte e moldura.6 lin, ver capítulo 1, “Le lieu du
temps”, 1982, p.19-22.
Também ela, tal como Argan, encontra na experiência do ser urbano uma das bases 7 Fiz aqui um resumo bastan-
necessárias à apreensão da cidade. Trata-se da cidade escondida, recortada em detalhes for- te redutor dos argumentos
iniciais do instigante livro de
mados pelo tempo do aprendizado e do trabalho, dos sucessos e dos fracassos humanos.7 Cauquelin, contidos nos ca-
pítulos 1, “Le lieu du temps”,
Uma imagem da cidade muito próxima à apresentada por Walter Benjamin em muitos de e 2, “Les plis du temps”.
seus textos; uma percepção do espaço trabalhada pela memória voluntária, que escapa en- 8 Penso principalmente em
“Sobre alguns temas em
tretanto à rigidez organizada desta, sendo invadida por lapsos de esquecimento e de lem- Baudelaire”, “O flâneur” e “In-
branças desconcertantes, arrancadas do fundo do subconsciente, dessa memória involun- fância em Berlim por volta de
1900”. Textos constantes de
tária fugidia e pouco apropriada a se deixar envolver por explicações ou seqüências várias coletâneas, das quais
cito aqui Walter Benjamin.
objetivas.8 Obras Escolhidas II e III da
Foram indagações como estas as que me instigam a estudar a formação do pensa- Editora Brasiliense (São Pau-
lo), editadas em 1987 e
mento urbanístico sobre a cidade de São Paulo, reduto de um saber de especialistas que 1989, respectivamente.
propuseram intervenções, exatamente como projeção, como plano de organização, com o 9 O termo é de Argan, em
“O espaço visual da cidade”,
objetivo maior de colocar no centro de sua prática a importância de se superar uma situa- 1993b.
ção considerada insatisfatória da “existência humana como existência social”.9 A propos- 10 Remeto para o livro re-
centemente publicado de
ta do estudo tem como suporte teórico exatamente a concepção do urbanismo como pro- Candido Malta Campos, Os
rumos da cidade. Urbanismo
jeto estruturado por dados “objetivos”, contudo, nutrido também por imagens idealizadas e Modernização em São Pau-
e utópicas, cujo norte se situa em um lugar idealizado de perfeição. Isto implica afirmar lo, 2003. Nele o autor, a des-
peito de uma pesquisa exten-
a existência de uma distância entre a prática de projeto, por mais “realista” que se propo- sa e por muitos motivos útil,
reitera os velhos chavões da
nha, e sua efetivação, tal como se interpõe uma distância entre a intenção projetiva da lei dependência intelectual, in-
e o comportamento que objetiva disciplinar. Com isso, desejo afirmar uma posição que clusive da intelligentsia brasi-
leira em relação aos seus pa-
questiona afirmações de que, aqui entre nós, os projetos urbanísticos e arquitetônicos são res estrangeiros, retomando
a dicotomia centro-periferia
importados10 e nesse transplante e em sua realização se modificam e/ou se apequenam.11 para explicar os processos
Por serem importados constituiriam cópias pouco refletidas (no sentido forte de reflexão, de modernização da cidade
de São Paulo, neles vendo
de pensamento), algo assemelhado a um mimetismo característico de uma cultura sem so- somente a importação de
modelos estrangeiros. Nos-
lo próprio, atrelado à atração fatal exercida por países de cultura mais avançada. Posição sa intenção não é a de pole-
que também se desloca para a relação entre a lei e sua efetiva aplicação, como se a práti- mizar nesse plano, mas a
de verificar a maneira como
ca legal fosse sempre formada pela distância e inadequação entre o pensamento importa- os especialistas brasileiros
participam da formação des-
do de seu país originário, que seja o liberalismo inglês, o francês, ou a sua versão estadu- se fundo comum de conheci-
nidense, e seu uso inadequado em países como o nosso, no qual o “atraso” e o “arcaísmo” mentos que constitui a “dis-
ciplina” Urbanismo e o modo
fazem dele uma “idéia fora do lugar”.12 pelo qual são aplicados seus
princípios na atividade de in-
O ponto de partida do estudo fixa-se no final do século XIX e início do século XX, tervenção na capital paulista.
momento em que se pode surpreender a formação desse “pensar o urbano” em São Pau- 11 Também o estudo de He-
liana Angotti Salgueiro (La
lo, cidade que cresce, se modifica pela multiplicação de suas “funções”. Cidade que um casaque d’Arlequin. Belo Ho-
memorialista como Alfredo Moreira Pinto diria, em 1900, havia deixado de ser o burgo rizonte, une capitale éclecti-
que au 19e. siècle, 1997)
dos estudantes e se transformado em uma cidade moderna, até na composição de sua po- reproduz esse mesmo viés
teórico, empobrecendo, do
pulação.13 A surpresa contida no relato de Alfredo Moreira Pinto reveste-se de uma di- meu ponto de vista, uma so-
mensão positiva, conduzida pela constatação de que em trinta anos a cidade se moderni- berba pesquisa sobre o pro-
jeto e a fundação da cidade
zara graças à dinâmica de sua vida comercial, financeira e industrial, à presença dos de Belo Horizonte na déca-
da final do século XIX.
imigrantes com novas idéias e costumes: o belo viaduto sobre o vale do Anhangabaú li-
12 Ver de Raquel Rolnik, A Ci-
gando o Centro velho ao Centro novo, o traçado projetado de bairros recém-abertos, as dade e a Lei. Legislação, po-
lítica urbana e territórios na
medidas sanitárias tomadas pelas autoridades e o significativo aumento do fluxo de pe- cidade de São Paulo, 1997.
destres e de veículos no seu núcleo central. 13 Tratei desse relato em
“Imagens de São Paulo. Estéti-
Outra questão desafiante é onde localizar o desacerto e a distância que se interpuse- ca e cidadania”, in Encontros
ram entre as intenções projetuais dos urbanistas e das autoridades municipais e estaduais com a História. Percursos
históricos e historiográficos
e a cidade tal como se apresenta hoje: uma questão histórica. Impossível renunciar, entre- de São Paulo, 1999.
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tanto, a ter em mente dois momentos vivenciados em minha experiência pessoal, momen-
tos intermediados pelo tempo da memória que me traz à lembrança a cidade dos anos 50
e 60, lembranças talvez idealizadas pela escolha que faço, mas certamente pela distância
14 Penso aqui nas conside- temporal e pelo trabalho de rememorar, seletivo, sempre um pouco excludente.14 Lem-
rações de Germaine de
Staël quando, em Essai sur
branças que carregam imagens fugidias da cidade, do prazer de transitar anônima pelas
les fictions (1979, p.25), ruas centrais, se sentir submersa em meio à multidão do fim de tarde, o pôr do sol escon-
disse ser a imaginação a fa-
culdade mais preciosa do dido entre os edifícios, se deixando entrever no trajeto pela praça da República e no via-
homem, pois seria nela que duto do Chá. Foi a São Paulo de hoje que me incentivou a indagar como historiadora so-
criaríamos imagens colhi-
das entre as boas lembran- bre esse processo de um século de duração que leva os que por aqui viajam a se verem
ças destinadas a mitigar os freqüentemente submetidos ao impacto negativo da imagem atual da cidade. Foi a con-
sofrimentos inerentes à vida
humana. O texto foi escrito dição de cidadã que me colocou a questão de como se vive em São Paulo: esse descompas-
em 1795 sob o impacto dos
acontecimentos da Revolu-
so entre intenções bem-intencionadas (na maioria das vezes, quero crer) das autoridades
ção Francesa de 1789. Re- e o resultado pouco animador; a surpresa de que iniciativas individuais podem mostrar
meto para as reflexões de
Jacy Alves de Seixas em
que a cidade pertence e pode ser edificada pelo cidadão. Devaneio? Pode ser...
“Os campos (in)elásticos da
memória: reflexões sobre a
memória histórica”, 2001, O terreno plano ganha contornos ao som do martelo. Da terra – antes coberta apenas
p.59. pelo mato – sobem paredes, constroem-se tetos, nascem barracos. Por todos os cantos, a
construção não pára. Cerca de 300 famílias, reunindo perto de mil pessoas, já moram no lo-
cal em uma enorme área da Prefeitura, ao lado da Estação Itaquera do metrô, na zona leste
de São Paulo. Muitas outras pregam pedaços de madeira para fazer o mesmo. Todos eles que-
rem moradia. Se hoje o cenário lembra o de um acampamento, logo o lugar poderá se trans-
formar em mais uma favela da capital. (OESP, 10.7.2003.)
Uma notícia corriqueira nos jornais da grande imprensa paulistana. Seu título –
“Como nasce uma favela em SP”. O caderno “Cidades” de O Estado de S. Paulo de 10 de
julho de 2003 noticiava a ocupação de um terreno da Prefeitura ao lado de outra matéria
que informa já ter sido obtida pela municipalidade uma liminar de reintegração de posse
do terreno. Pequenos trechos de entrevistas com os “invasores” dão conta das precárias
condições de vida dessa população que, mesmo ameaçada com o despejo, expressa a fir-
me intenção de resistir, de reconstruir os barracos derrubados pelo vento forte que se aba-
teu sobre a capital paulista durante a madrugada. Afinal, diz uma chamada: “Local já tem
boteco e padaria”. A matéria detalha informações tais como a de que a padaria foi feita
dentro de um contêiner e que uma moradora vive com sete de seus nove filhos dentro de
um barraco de 1,5 por 2,3 metros, fugindo de outra favela que diz “ser um lugar onde
não tem vida digna, onde nem lei entra”.
Alguns dias antes, em 28 de junho, o mesmo caderno “Cidades” trazia uma matéria
com o título: “Moradores iniciam mutirão para salvar São Vito”. Trata-se de um edifício
situado no Centro da cidade, no número 3.197 da avenida do Estado, às margens do rio
Tamanduateí e fronteiro ao Mercado Central da rua da Cantareira. O edifício, transfor-
mado em favela vertical há anos, compõe, no dizer do articulista, uma das “imagens mais
conhecidas de São Paulo”. Contudo, segundo matéria de um ano antes, 10 de agosto de
2002, desse mesmo caderno “Cidades”, ele parecia estar com seus dias contados. O arti-
culista criticava até a possibilidade de serem gastos pela Prefeitura US$ 6,2 milhões dos
US$ 100,4 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), destinados a fi-
nanciar a reabilitação do Centro da cidade. Há sem dúvida uma questão estética aponta-
da na reportagem quando afirma o desconforto produzido pela aparência do edifício:
“uma das imagens de degradação”, “uma favela vertical ... caindo aos pedaços ... os vidros
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estão quebrados ... a fachada está deteriorada com remendos de tijolos sem reboco”. Mas
a seu mau aspecto soma-se a falta de manutenção do equipamento básico: “os elevadores
não funcionam ... o esgoto vazando na calçada bem na entrada do prédio”. Contudo, seus
683 apartamentos minúsculos distribuídos pelos 26 andares, onde vivem 3.084 pessoas,
denunciam um grave problema social. A maioria dos moradores paga R$ 100,00 de alu-
guel, trabalha na área central, bem servida de transporte, “próxima de tudo”, como diz
um entrevistado.
Segundo Marcos Barreto da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento, o projeto
de recuperação do São Vito constituía parte da intenção dessa Secretaria “de fazer de no-
vo do centro uma área de moradia de qualidade”. Afinal, informava Barreto, “em vinte
anos, de 1980 a 2000, a região perdeu 30% de sua população ... Hoje, existem no centro
cerca de 45 mil imóveis desocupados. Com a reabilitação da área queremos que as pes-
soas voltem [a] morar ali”. Em 2002, portanto, dos mais de US$ 100 milhões, US$ 48 mi-
lhões seriam empregados no programa Morar no Centro.
Em 21 de julho de 2003, na página dois – na seção “Espaço aberto” – de O Estado
de S. Paulo, a socióloga Maria Ruth Amaral de Sampaio apresentou um comentário con-
sistente sobre a situação do São Vito, comentário enriquecido por informações acerca do
significado arquitetônico e urbanístico dos edifícios gêmeos, São Vito e Mercúrio, e ou-
tros tantos prédios de apartamentos de pequenas dimensões construídos nos anos 50 pa-
ra a população de baixa renda.15 Em suas palavras: 15 Maria Ruth Amaral de
Sampaio publicou, recente-
mente, A promoção privada
Naquela década, São Paulo foi caracterizada por um acelerado processo de verticaliza- da habitação econômica e a
arquitetura moderna. 1930-
ção, principalmente em sua área central e nos bairros limítrofes ao centro. A arquitetura mo- 1974 (2003), no qual trata
derna tinha trazido para os arquitetos novas preocupações, entre as quais a sensibilidade à da questão.
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Essas matérias escolhidas entre outras que noticiam problemas relativos ao transpor-
te coletivo, às constantes tentativas de fuga e às fugas efetivas de penitenciárias, ao tráfi-
co de drogas e de armas, desabamentos de casas e demais tragédias do cotidiano da gran-
de metrópole parecem desmentir toda a possibilidade de manter sob controle seu
crescimento e a qualidade de vida indispensável a seus habitantes. Embora não consti-
tuam problemas específicos da capital paulistana, sem dúvida nela se apresentam de for-
ma superlativa contradizendo os vários planos elaborados no decorrer de todo o século XX
com vistas a torná-la uma metrópole capaz de oferecer condições de vida digna para sua
população. Contrastam com a posição afirmativa das autoridades municipais e dos urba-
nistas que, na primeira metade do século XX, sempre viram com otimismo a possibilida-
de de fazer de São Paulo uma grande metrópole e exemplo de boa urbanização.
Grande parte dos problemas é imputada à constante e numerosa corrente migrató-
ria que há mais de meio século busca a cidade atrás das efetivas ou quiméricas possibili-
dades de emprego. Ou seja, parcela importante dos problemas decorreria da má distribui-
ção da renda e das condições do mercado de trabalho no País. Contudo, a aposta na
possibilidade de enfrentar e resolver as questões postas pela metropolização de São Paulo
persiste. Afinal, se a municipalidade não se dispõe, aliás não poderia se dispor, a oferecer
condições de trabalho para o número sempre crescente de seus habitantes, deveria enfren-
tar os problemas de infra-estrutura – saneamento e energia elétrica, bem como de trans-
porte coletivo, assunto que tem merecido matérias constantes na grande imprensa paulis-
tana – que se avolumam, estando longe de atender às necessidades básicas da população.
Para entender a afirmação de que esses não são problemas específicos da cidade de
São Paulo, acredito ser importante voltar a Argan e a outros urbanistas e estudiosos das
questões urbanas que, desde a década de 1970, vêm chamando a atenção para o descom-
passo entre os planos urbanísticos, o planejamento regional e ecológico, as intenções de
controlar o crescimento das cidades e seu entorno ambiental, e o que nelas ocorre. Nesse
sentido, os dois textos já citados de Argan – “O espaço visual da cidade” e “Urbanismo,
espaço e ambiente” – guardam atualidade por falarem dos desafios postos aos urbanistas.
Em suas palavras encontra-se o registro de uma constatação e de um alerta severo: “A ci-
dade não se funda, se forma. As cidades fundadas e construídas por imposição não tive-
ram desenvolvimento, não são cidades”. Para ele, “Pienza é um modelo, um objeto de
museu; Brasília é um grande ministério; a cidade industrial de Ledoux, ou um século de-
pois, de Garnier, é uma extensão da fábrica” (Argan, 1993a, p.224). Mesmo consideran-
do problemática essa afirmação sua, penso que Argan trabalha uma aposta, utópica sem
dúvida (porém qual intenção urbanística não guarda uma dimensão utópica?), mas extre-
mamente atraente por recolocar o homem no centro de seu próprio mundo. Para ele, “o
que define, conserva e transmite o caráter de uma cidade é o impulso, a pressão ou ape-
nas a resistência que cada um, em sua esfera ‘particular’, opõe à destruição de certos fatos
que têm para ele [o habitante] valor simbólico ou mítico, e todos [os habitantes opõem]
de comum acordo à destruição de certos fatos sobre cujo valor simbólico há consenso ge-
ral”. Essa pressão do citadino não estaria mais presente nas cidades que deixaram de ser
“unidades de vizinhança”, aquelas “em que todos se conhecem”. Nas cidades modernas
“cessam as razões de defesa interna e as lutas citadinas, que tornavam úteis as ruas tortuo-
sas” e o acaso e a surpresa se vêm eliminados pela organização em perspectiva dos traçados
retilíneos que mensuram e diminuem distâncias (1993b, p.234-5). Em outras palavras,
quando a cidade deixa de ser lugar de abrigo, proteção e refúgio e torna-se aparato de
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Passemos agora a Otília Arantes que, embora transite por um caminho crítico diver-
so do de Argan, Cauquelin e Rykwert, em alguns pontos se aproxima deles, em outros
deixa patente sua percepção pessimista, desesperançada mesmo, das possibilidades de se
reencontrar a dimensão de cidadania nas cidades contemporâneas.
Arantes vem insistindo, desde os inícios dos anos 90, na afirmativa do colapso da
idéia de planificação global da cidade e na tendência a se adotar a forma pontual nas in-
tervenções, por vezes, diz ela, “intencionalmente modesta”, e mais, “buscando uma requa-
lificação que respeite o contexto, sua morfologia ou tipologia arquitetônica, e preserve os
valores locais”. Prossegue refletindo sobre essa tendência ao colocar no debate a questão
bastante atual sobre se não se estaria “substituindo a ideologia do plano por outra, a ideo-
logia da diversidade, das identidades locais, em que os conflitos são escamoteados por
uma espécie de estetização do heterogêneo?”. Otília não recua perante as implicações, até
de caráter ideológico, e insiste no significado da alteração terminológica que substituiu a
noção de planejamento pela de “desenho urbano” (Arantes, 1998, p.131-5). Uma restri-
ção que, diz ela:
parece anunciar esse estreitamento das possibilidades de mudança real, que no plano ideoló-
gico ... reflete a espécie de renúncia a que obrigou a déblâcle irreversível do Movimento Mo-
derno. Encolhimento que não se deve apenas à interferência direta dos interesses em jogo,
dos verdadeiros agentes urbanos ou promotores do espaço público: governos – no mais das
vezes preocupados em transformar a cidade em imagem publicitária – ou os especuladores
imobiliários de sempre (proprietários, construtoras etc.); à qual se somam os limites naturais
da profissão, obrigando a dividir a responsabilidade de qualquer intervenção com outros pro-
fissionais; mas, basicamente, imposto pelo rumo atual do capitalismo, cuja mundialização é
responsável em grande parte por uma urbanização tanto mais intensa e extensa quanto maior
o contingente dos “náufragos da competitividade” mundial (só no Brasil, mais de 70% da
população pobre reside nas cidades). (Arantes, 1998, p.131-2.)
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soft, tão festejado por “alguns deslumbrados”. “De fato, assiste-se a uma estetização da po-
breza urbana”, afirma buscando reforço para sua posição em uma citação de David Har-
vey: “quando a pobreza e a falta de moradia são servidas para o prazer estético, a ética é
de fato dominada pela estética, convidando, por conseguinte, à amarga colheita da polí-
tica carismática e do extremismo ideológico” (Harvey apud Otília, 1998, p.140). Otília
Arantes expõe todo seu pessimismo na frase com que fecha o artigo: “Ocorre que este úl-
timo (o capitalismo central) se recompôs inviabilizando de vez a idéia mesma de urbani-
zação, tornando o conceito de cidade uma coisa do passado, como atestam os monstros
urbanos em que vivemos, e dentro deles as zonas extraterritorializadas que, sem dúvida,
um bom desenho até pode tornar agradável de ver – em maquete, de preferência” (Aran-
tes, 1998).
Na seqüência de seus argumentos apreende-se a crítica severa ao sentido dado atual-
mente à preservação, para ela, uma manifestação nostálgica de reação à modernidade téc-
nica, um retorno da arquitetura aos estilos áulicos, retorno estranho, diz, que parece “no
mínimo um descompasso, um retrocesso brutal, ou algo do gênero”. Não há em seus tex-
tos uma recusa cega ao “revivalismo”; lembra até a presença de componentes regressivos
presentes na arquitetura monumental do século XIX – nos monumentos e nas casas bur-
guesas – e no medievalismo de Ruskin, carregando ambos, entretanto, uma função sim-
bólica. O que a preocupa é esse retorno esvaziado de sentido simbólico, motivado por es-
pecialistas que advogam a causa do urbanismo anárquico ou que fazem a apologia da
cidade caótica, plural, fragmentada, soft. A apologia das identidades locais, a estetização
do heterogêneo.19 Confusão entre o respeito à alteridade e o culto à diversidade. Cidades 19 Otília retoma em outros
textos esse tema e aqui a ci-
com espaços transformados em cenários fascinantes buscando atrair “uma sociabilidade tação é de “Urbanismo em
que deixou de existir por causa desse traço desertificante da modernização”, completa. fim de linha”, 1998, p.140.
Sua posição em relação a esse “amolecimento” da cidade onde a tudo pode ser atri-
buído valor, e que Otília Arantes relaciona à noção de “desenho urbano”, implica a seu
ver “um estreitamento das possibilidades de mudança real, uma certa renúncia á utiliza-
ção dos meios técnicos ao nosso alcance em função da melhoria material das condições
de vida dos habitantes dos grandes centros metropolitanos” (1998, p.132). Desfaz-se o
par complementar – modernização e urbanização – enquanto recusa da urbanização de-
molidora dos modernos orientada por uma pretensa racionalidade da cidade planificada
– substituindo-o pela alternativa de intervenções orientadas pela idéia de consertar sem
destruir, respeitar a sedimentação dos tempos diferentes, reatando e rejuvenescendo os
vínculos com a tradição – construir um lugar, um desejo implausível de devolver a anti-
ga dignidade perdida da continuidade histórica.
Otília Arantes não vê “nessa intervenção contextualista”20 a possibilidade de se for- 20 A expressão está em
“Cultura da cidade: anima-
mar um espaço de salvação da cidade e da vida pública perdida, tão desejada por Richard ção sem frase”, artigo da
Sennett, a partir do refazer discretamente espaços da cidade, em migalhas, a partir de pon- coletânea Urbanismo em
fim de linha, 1998, p.146.
tos nevrálgicos com o poder de requalificar o entorno e a relação entre as pessoas. Ela pa-
rece concordar com Argan que noções como “comunidade” constituem meras abstrações,
pontos localizados no passado, cujo olhar retroprojetivo de alguns parece acreditar ser
possível reconstituir. E finaliza afirmando: “os modernos (ao pensarem a ruptura) tinham
o sentido da história, nós o perdemos”.21 21 “Arquitetura no pre-
sente: uma questão de
A mesma avaliação crítica severa encontra-se em um artigo de Ana Fernandes (2001, história?”, 1998, p.54.
p.317-28), no qual a autora indaga, exatamente, sobre esse consenso de âmbito mundial
das intervenções apoiado na generalização dos conceitos. Nos anos de crítica ao raciona-
lismo, ao funcionalismo e ao zoneamento, em que Jane Jacobs (Morte e vida das grandes
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cidades americanas, 1961), Aldo Rossi (Arquitetura da cidade, 1966) e Robert Venturi
(Aprendendo com Las Vegas, 1971) movimentavam o debate, formou-se um contramovi-
mento de afirmação de novos valores. Eles apontavam para a boa convivência das “cida-
des tradicionais”, para “os valores ligados à historicidade do espaço construído e à consti-
tuição da memória”, e para “a busca de conteúdos comerciais, não cultos ou não eruditos
na legitimação dos processos de produção das cidades e de sua forma – uma apologia do
caráter híbrido para a linguagem arquitetônica”. Passadas essas décadas de crítica, pros-
segue, nos anos 80 e 90, “esses conceitos deixaram de ser diferenciados das práticas de
intervenção sobre as cidades para se transformarem em termos quase consensuais das
ações implementadas no espaço urbano, em diversas de suas configurações: política, em-
presarial, da mídia e do corpo técnico vinculado à ação sobre as cidades” (Fernandes,
2001, p.319).
Fernandes assinala a mesmice das intervenções com exemplos colhidos, em cidades
estrangeiras e brasileiras – Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro – e várias outras implemen-
tadas por prefeituras progressistas, todas se reportando à auto-sustentabilidade, ecologia,
comunidade, memória, identidade, todas reforçadas por ótica idêntica defendida pelo
Banco Mundial. Em todas, a mesmice se forma a partir de preocupações idênticas em re-
lação “às novas centralidades”, em vista da escala territorial imensa das metrópoles, com
a recuperação de espaços centrais, regiões portuárias e de grandes equipamentos urbanos
que permitam o deslocamento rápido entre esses pontos transformados em atração turís-
tica. Também em relação à recuperação do “espaço simbólico” das cidades, a autora indi-
ca idêntica preocupação generalizada com a hierarquização urbana em escala mundial; há,
diz ela, “uma ânsia de particularidade que a distinga e que congregue habitantes e turis-
tas, cada vez mais presentes no cotidiano”. Uma preocupação em tornar a(s) cidade(s) ob-
jeto de desejo na apreciação estética da paisagem urbana que diferencia umas das outras
de modo aparente, superficial. Uma terceira dimensão revela a mesmice: a da importân-
cia atual dos grandes organismos internacionais impondo na prática metodologias de in-
tervenção sempre atreladas a objetivos monetário-financeiros. “O desdobramento dessas
ações em termos de produção do território com fortes características de homogeneidade
não é, portanto, surpreendente, assim como não o é sua relação indiferenciada com per-
fis políticos de gestão urbana bastante distintos”, conclui Fernandes (2001, p.322 e 324).
Há, portanto, nos textos desses autores – Arantes, Fernandes e Argan – a constata-
ção do terreno cediço em que se transformou a área de atuação dos urbanistas, “o urba-
nista demiurgo foi se transformando num decorador” e o planejamento foi cedendo aos
22 Arantes remete aqui a poucos ao “urbanisme d’entretien”.22
Alain Ghieux em “Entrées
sur la scène”, in Cahiers du
Qual seria então o sentido da história para os modernos? Ora, estaria exatamente em
CCI, n.5, 1998. seu obstinado esforço em romper com o passado, com a tradição. Nesse ponto escuta-se
também as palavras de Rykwert interpretando o Movimento Moderno do pós-Segunda
Guerra Mundial. Tratava-se, diz, de uma intenção radical de seus integrantes de fechar
um tempo, acreditando que a história, além de seus vínculos com os velhos tempos ruins,
nada tinha a lhes ensinar. As ruínas deixadas em muitos países europeus e asiáticos ofere-
ciam o duplo espetáculo do final de uma civilização e de uma nova a ser construída com
a garantia proporcionada pela racionalidade planejada e projetada de cidades. Os profis-
sionais eram vistos como pioneiros de um mundo novo e, mais ainda, seu trabalho esta-
ria baseado na pesquisa estatística e na eficiência técnica. Na perspectiva otimista deles, a
construção se tornara a maior prioridade social e fizera que até o status conferido pela for-
mação nas faculdades de Direito, ainda prevalecente na primeira metade do século em
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OS INSTRUMENTOS
DA REFORMA URBANA E
O IDEAL DE CIDADANIA
AS CONTRADIÇÕES EM CURSO
LUCIANA CORRÊA DO LAGO
INTRODUÇÃO
...todos são iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obede-
cem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participa-
tiva; indiretamente, numa democracia representativa). Donde o maior problema da democracia
numa sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios – igualdade e liberdade – sob
os efeitos da desigualdade real...
Marilena Chauí
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urbana é responsabilizada pela degradação ambiental. Entre os extremos ainda vale men-
cionar a visão liberal dos efeitos negativos da ilegalidade para um virtuoso dinamismo da
economia (De Sotto, 2001).
Não se trata aqui de uma avaliação das políticas em curso, de seus efeitos concretos
sobre o quadro de desigualdades e carências, mas sim de seus princípios e efeitos no cam-
po valorativo do ideal igualitário. Os instrumentos legais acionados nos assentamentos,
1 Zona Especial de Interes- particularmente a Zeis,1 objeto desse ensaio, carregam princípios contraditórios. Questio-
se Social. A definição e o
detalhamento desse instru-
na-se, aqui, em que medida as normas e os padrões específicos instituídos nesses territó-
mento encontram-se ao lon- rios, com o objetivo de garantir a permanência dos moradores e os mínimos necessários
go do texto.
para o bem-estar individual e coletivo, institucionalizam duas classes de cidadãos, ou se-
ja, duas referências de bem-estar: de direito social e de direito de propriedade; ambas le-
gais e legítimas, na medida em que a participação dos envolvidos no processo garante tal
legitimidade. Busca-se, assim, contribuir com o debate (bastante caloroso, hoje, na Euro-
pa) sobre as possibilidades de “convivência” entre igualdade e diferença, ou mesmo entre
igualdade e liberdade, numa sociedade hierarquizada e profundamente desigual, em que
2 Duarte apresenta um insti- a diferença é a expressão da inferioridade dos pobres.2
gante mapeamento da refle-
xão sociológica sobre os pa-
Compartilha-se aqui a visão de que tais instrumentos representam importantes avan-
radoxos do projeto de ços no sentido do reconhecimento de uma grande parcela da população urbana como ci-
“cidadanização” nas socie-
dades modernas (em espe- dadãos (portadores de um conjunto de direitos privados e públicos) e de seus territórios
cial das classes populares), residenciais como parte integrante da metrópole. Cabe avaliar se esse reconhecimento e os
entre eles, os impasses “en-
tre o projeto universalista da processos sociais aí envolvidos desnaturalizam ou reificam nossos valores hierárquicos. A
Liberdade e da Igualdade e própria noção “interesse social”, utilizada na titulação da Zeis, tem ampla utilização (e pos-
o respeito, preservação ou
cultivo das diferenças (que sivelmente sua origem) no campo da assistência social, e mereceria uma discussão mais
não é senão um corolário do
ideal libertário)” (Duarte,
acurada sobre seus significados, não tendo esse trabalho tal pretensão. Vale mencionar, ape-
1993, p.6). nas, que a política de assistência tem como pressuposto a existência de grupos sociais in-
capazes de se integrar plenamente, ou seja, de aceder à cidadania. Essa “clientela” estaria
fora do ideal integrativo, sem condições de mudar seu estatuto social. Para Castel (1998),
a “clientela” é objeto da política de inserção e não de integração.
Na contramão do assistencialismo, o processo de institucionalização das Zeis, desde
sua origem no início dos anos 80, está baseado no ideário integrativo, na perspectiva de
transformar os moradores de tais áreas em cidadãos. A intenção era, e continua sendo, a
de através desse instrumento colocar dentro do “mapa oficial”, com condições de vida dig-
nas, áreas e pessoas até então excluídas. O projeto da Reforma Urbana, portanto, não se
esgota na busca pelo reconhecimento dos assentamentos como objeto da política urbana.
Não esqueçamos que as favelas no Rio de Janeiro vêm sofrendo intervenções por parte do
Estado, há mais de cinqüenta anos, através de políticas sociais e urbanas de diferentes ma-
tizes ideológicos. A questão central de um projeto democrático de cidade é garantir aos
moradores dessas áreas igual condição de disputa por investimentos públicos. A conquis-
ta da cidadania, portanto, é a conquista do reconhecimento desses moradores como sujei-
tos políticos, que reivindicam e criam novos direitos. Não se trata, portanto, de clientela.
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priedade e princípios hierárquicos que institucionalizam as diferenças inter e intraclasses, 5 Em Recife, foram criados
por Decreto de 1980, 26
através de zonas residenciais com padrões mínimos distintos. Áreas Especiais, tendo em
O ideário da Reforma Urbana introduz mais um componente à critica ao urbanis- vista a implantação do Pro-
morar (programa federal de
mo racionalista, isto é, ao seu princípio excludente, impeditivo da inserção legal dos mo- erradicação de sub-habita-
radores de assentamentos populares.3 Assim, a proposta de flexibilização da legislação ur- ção). Foram elaborados pro-
jetos de urbanização para
bana, através das Zeis, teria a função de aproximar a cidade ideal da real, adequando a três favelas (marcos da re-
norma à realidade. A flexibilização, nesse caso, põe em questão a legitimidade dos padrões sistência popular contra a
remoção), com parâmetros
de bem-estar socialmente aceitos e instituídos em nome de “todos”.4 Voltarei a esse pon- urbanísticos especiais, en-
to, mais adiante, relacionando-o à politização das normas legais. tre eles a proibição de “re-
membramentos” como for-
Embora tenha ganhado fama e se difundido a partir da Constituição de 1988, a ins- ma de impedir a ação dos
empreendedores imobiliá-
titucionalização de zonas especiais, com o objetivo de integrar à cidade os assentamentos rios. Em 1987, é sanciona-
de baixa renda, remonta ao início dos anos 80, com iniciativas em Recife e Belo Horizon- da a Lei do Prezeis, “preven-
do um conjunto de regras,
te. Em ambas as cidades, a presença da Igreja católica em ações comunitárias nas favelas procedimentos e mecanis-
foi fator decisivo para esse pioneirismo em relação às normas legais.5 O balanço dos re- mos para o reconhecimento
de outras áreas faveladas
sultados alcançados, nesses vinte anos, em relação ao projeto das Zeis pode ser agrupado como Zeis, para viabilizar a
em duas ordens de questões: (i) o reconhecimento legal desses territórios como “zonas” da regularização urbanística e
fundiária dos assentamen-
cidade; e (ii) as condições da moradia, no que se refere ao padrão de habitabilidade e à re- tos e para efetivar um siste-
lação de propriedade. As avaliações já feitas apontam importantes avanços no sentido da ma de gestão participativa”
(Miranda & Moraes, 2003).
legitimação e da institucionalização dos assentamentos populares como parte da cidade, Em Belo Horizonte, foi cria-
do, pela lei municipal de
criando, inclusive, reações por parte de empresas imobiliárias. O alto percentual de fave- 1983, o Profavela, que defi-
las transformadas em Zeis,6 não só em Recife e Belo Horizonte, evidenciam esses avanços nia um zoneamento específi-
co para as favelas existen-
(Alfonsín, 1997). tes, para fins de urbani-
zação e regularização (Al-
fonsín, 1997).
São inegáveis os resultados alcançados a partir do Prezeis para as comunidades de baixa
renda: a possibilidade da população de baixa renda permanecer em suas comunidades, inclu- 6 Em Recife, dos 421 as-
sentamentos, 252 com-
sive em áreas centrais, próximas a localidades com disponibilidade de serviços e equipamen- põem as 66 Zeis, que ocu-
tos urbanos; o reconhecimento institucional do direito à participação de representantes po- pam 85% das áreas de
favelas.(Miranda & Moraes,
pulares na formulação e acompanhamento de políticas urbanas; a consolidação da mudança 2003).
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Uma segunda intenção, que não exclui a primeira, seria a de intervir no mercado de
terras da cidade, “desvalorizando” áreas vazias, por meio do gravame da Zeis. Nesse caso,
a experiência de Diadema merece atenção. Na Lei que disciplina o zoneamento e o uso e
7 Porto Alegre também ins- ocupação do solo, foram instituídos dois tipos de Zeis:7 as que são gravadas sobre áreas
tituiu um tipo de Zeis, a
Aeis, específica para vazios
vazias e as que compreendem “terrenos ocupados por favelas, ou assentamentos habitacio-
urbanos destinados a pro- nais assemelhados, destinados a programas de reurbanização, regularização jurídica da
gramas habitacionais.
posse da terra ou empreendimentos habitacionais de interesse social” (Alfonsín, 1997,
p.101). O relevante é que está definida na Lei a destinação dessas áreas vazias: Empreen-
dimentos Habitacionais de Interesse Social, o que evidencia uma restrição ao direito de
propriedade, por uma caracterização social legalmente atribuída.
Ainda no sentido de regular o mercado imobiliário, outro mecanismo que vem sen-
do utilizado através das Zeis é o estabelecimento de limites máximos quanto às dimen-
sões dos lotes conjugado ao impedimento do remembramento. Até agora, o uso desses
mecanismos estão restritos às favelas, mas poderiam ser acionados para outras áreas das ci-
dades, com boa infra-estrutura. Vale mencionar a reação, em Recife, dos empreendedores
imobiliários em relação ao limite da dimensão dos lotes, reivindicando maior “flexibiliza-
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ção” das normas (Miranda & Moraes, 2003). Estaríamos diante de uma curiosa sobrepo-
sição de “flexibilizações”: uma que reduz e congela os “mínimos” instituídos na legislação
urbana em vigor para atender necessidades sociais especiais, congelando-os; e outra que
suspenderia o congelamento. O que importa destacar aqui é a abrangência desse instru-
mento para além dos assentamentos populares, podendo interferir diretamente nos pro-
cessos e conflitos produtores das desigualdades urbanas.
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radores das Zeis, “por não implicar na aquisição de direitos equivalentes aos da transfe-
rência da propriedade” (Miranda & Moraes, 2003). O valor simbólico dos dois estatutos
jurídicos está atrelado a condições objetivas diferenciadas. A desobediência das cláusulas
do contrato de concessão, como por exemplo a destinação residencial do lote, pode levar,
no limite, à perda do direito de uso. No caso da propriedade, poderiam se aplicadas mul-
tas e sanções. É de extrema importância a equivalência dos estatutos legais acionados nas
políticas de regularização fundiária, se o objetivo for não apenas buscar restringir o direi-
to de propriedade para democratizar o acesso à terra e aos serviços urbanos, mas legitimar
essa restrição na sociedade, em geral, e no judiciário e cartórios, em particular.
Outro ponto que merece atenção diz respeito à regulação do mercado imobiliário
nas Zeis, impedindo ou inibindo a venda do imóvel pelos moradores recém-legalizados.
Como já assinalado, o pressuposto é de que a valorização imobiliária provocada pela re-
gularização pode expulsar os moradores socialmente mais vulneráveis. Ou seja, esses mo-
radores, sem uma “proteção” legal, serão expulsos pelo mercado e produzirão novas ilega-
lidades em outros lugares. A forma mais democrática de “proteção” seria o próprio
gravame da Zeis, com normas especiais de uso do solo (lote máximo, coeficiente de edi-
ficação etc.), inibidoras do interesse dos empreendedores imobiliários por essas áreas. Tais
mecanismos seriam mais efetivos para garantir a permanência dos moradores beneficiá-
rios do que a proibição da transferência do imóvel (Instituto Pólis, 2003).
A idéia de uma cidadania “tutelada” ganha corpo através das propostas de “prote-
ção” dos moradores de áreas regularizadas contra os especuladores e nos remete à dis-
tinção, apresentada por Castel (1998), entre políticas de inserção e de integração. Esses
moradores estariam inseridos na cidade, na medida em que suas áreas de residência pas-
sam a ser legalmente reconhecidas, mas não integrados na sociedade. Para tanto, precisa-
10 O caderno “Regulariza- riam ser reconhecidos socialmente como iguais, como portadores dos mesmos direitos,
ção Fundiária Sustentável”,
produzido pela Secretaria
no caso, os urbanos.
Nacional de Programas Ur- No entanto, os mecanismos de “proteção”, ou seja, de regulação da valorização da
banos, desenvolve bem es-
se argumento, apontando a
terra, merecem uma análise mais abrangente, que dê conta da complexidade dos proces-
necessária articulação entre sos em curso. Pode-se utilizar os mesmos mecanismos de “proteção” dos pobres para o
as ações “curativas” (de re-
gularização) e “preventivas” controle das ações especulativas na cidade como um todo. O desafio é ampliar as restri-
(de controle público sobre o ções ao direito de propriedade para além das favelas (Zeis), ou seja, para os processos que
mercado imobiliário) e a am-
pliação da oferta de terra ur- produzem e reproduzem as desigualdades de acesso à terra.10 A aplicação das Zeis em
banizada para a população áreas vazias com infra-estrutura básica, a discussão e formulação de novos princípios e pa-
de baixa renda. Cf. Ministé-
rio das Cidades, “Planeja- râmetros para a Lei de Zoneamento das cidades, entre outras ações, podem caminhar nes-
mento territorial urbano e
política fundiária”, Cadernos
sa direção.
MCidades, n.3, 2004.
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L U C I A N A C O R R Ê A D O L A G O
A REGULARIZAÇÃO COMO
UM CAMPO DA LUTA POLÍTICA
sa é uma problemática relevante, que precisa entrar na pauta da luta política. A politiza-
ção das normas permite desvendar os interesses de classe presentes na legislação
urbanística e fundiária. É inegável que a Lei para “todos” expressa interesses privatistas de
alguns, mas é inegável também que ela é resultado de uma disputa material e simbólica
sobre os parâmetros de bem-estar. 13 Depoimento por mim
recolhido, em 2003, no âm-
Do ponto de vista dos moradores das áreas regularizadas ou potencialmente regula- bito da pesquisa, ainda em
curso, sobre segregação ur-
rizáveis, em que medida os parâmetros mínimos de bem-estar são internalizados como va- bana na metrópole do Rio
lor positivo ou como sinal de inferioridade? Segundo uma moradora da Comunidade de Janeiro, Observatório
das Metrópoles.
Criança Esperança, em Bangu,13 o assentamento onde morava não era uma favela porque
“favela é onde tem beco, casa colada uma na outra. Ninguém tem privacidade. Aqui, não. Luciana Corrêa do Lago
é professora do Instituto de
É proibido colar as casas”. A clara distinção entre espaço público e privado, base do pro- Pesquisa e Planejamento
cesso de individualização, começa a se fazer presente nas mentes das classes populares. A Urbano e Regional da Uni-
versidade Federal do Rio de
legitimidade e ampliação das ações coletivas direcionadas para a transformação profunda Janeiro. E-mail: lucianalago
da sociedade estão associadas à constituição de indivíduos que se vêem como iguais. @terra.com.br
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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PARTICIPAÇÃO CIDADÃ
E RECONFIGURAÇÕES
NAS POLÍTICAS URBANAS NOS ANOS 90
FLÁVIA DE PAULA DUQUE BRASIL
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forma que a possibilidade de influência nas políticas públicas pode se traduzir como par-
ticipação nos processos decisórios, nos limites da relação argumentativa e crítica.
Esse debate inscreve-se nas interfaces da teoria social (sobretudo voltada para a ação
coletiva) com a teoria democrática contemporânea, na trilha aberta pela teoria crítica de
Jürgen Habermas. O autor oferece um modelo ao mesmo tempo dual e tripartite ao pos-
tular o desacoplamento, decorrente da modernidade, entre os domínios interativos e co-
municativos presentes na formulação de mundo da vida e os domínios sistêmicos, que por
sua vez diferenciam-se nos subsistemas econômico e administrativo.
A concepção habermasiana de mundo da vida como uma arena de integração social
refere-se ao domínio das interações cotidianas, constituindo um reservatório de tradições
culturais. Um ponto central dessa formulação reside nos pressupostos da comunicação
como elemento fundante da racionalidade e nos papéis da linguagem. A linguagem co-
loca-se como um elemento de coordenação interpessoal da ação que permite o estabele-
cimento de acordos interpretativos a partir de argumentações, questionamentos e deba-
tes que sustentam a noção de deliberação. Ao situar a ação comunicativa no mundo da
vida, Habermas (1987; 1997) perfila sujeitos de uma racionalidade intersubjetiva, capa-
zes de problematizar, negociar e redefinir problemas, questões, normas e tradições cultu-
rais. Neste sentido, o mundo da vida é um terreno de reconstrução reflexiva que aponta
para a construção de fundamentos éticos e morais da política. Neste aspecto relativo à
primazia conferida às estruturas de interação comunicativa em relação aos domínios sis-
têmicos ancora-se o entendimento da democracia como prática societária e como fluxo
comunicacional, da periferia para o centro, ou seja, a partir do mundo da vida e endere-
çado ao sistema.
Nesse contexto teórico, a noção de esfera pública como espaço de formação e publi-
cização de opiniões e vontades ganha relevo na mediação entre os impulsos comunicati-
vos do mundo da vida e os domínios sistêmicos e institucionais. Por motivo de economia,
esse estudo apóia-se estritamente na produção mais recente habermasiana – na qual se
destacam as noções de esfera pública e espaço público. Habermas (1997) descreve a esfera
pública política como estrutura comunicacional enraizada no mundo da vida por inter-
médio da sociedade civil. Na esfera pública os problemas são percebidos, identificados, te-
matizados e dramatizados; os fluxos comunicacionais são filtrados e condensados em opi-
niões públicas. Deste modo, a esfera pública opera como uma “caixa de ressonância”,
conferindo visibilidade às questões endereçadas à elaboração no sistema político. Partindo
de revisões da obra habermasiana, Teixeira (2000, p.77) reporta o emprego da noção de es-
paço público para “indicar a dimensão aberta, plural, permeável, autônoma, de arenas de
interação social que seriam aqueles espaços pouco institucionalizados”. Desta forma, os
espaços públicos referem-se às instâncias autônomas de debates e negociações entre ato-
res societários, podendo incluir a formulação de proposições a serem postas em circula-
ção na esfera pública. As esferas públicas, por sua vez, assumem o papel de mediação en-
tre os diferentes domínios, bem como de publicização e visibilidade das questões e
problemas, correspondendo às estruturas comunicacionais generalizadas, como a mídia.
Contudo, a teoria habermasiana não autoriza a assumir possibilidades de participa-
ção dos atores sociais nos âmbitos decisórios sistêmicos, ainda que constitua as bases pa-
ra desenvolvimentos teóricos que procuram ultrapassar seus limites, alargando o papel re-
servado aos atores sociais para além da dimensão de formação de vontade informal e da
possibilidade (contingente) de influência nos domínios institucionais. Partindo do cami-
nho pavimentado por Habermas, Cohen & Arato (1994) efetuam a reconstrução do con-
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ceito de sociedade civil1 e sustentam, para além de uma atuação defensiva dos atores so- 1 O núcleo da reconstrução
efetuada refere-se à supera-
cietários, a possibilidade de sua atuação ofensiva, endereçada aos domínios sistêmicos. Os ção da noção de sociedade
autores afirmam, ainda, que a questão política central consiste “em introduzir espaços pú- civil concebida com base
nos marcos dualistas de
blicos no Estado e nas instituições econômicas, estabelecendo uma continuidade com uma oposição entre a sociedade
rede de comunicação composta por movimentos sociais, associações e esferas públicas” . e o Estado, e de identifica-
ção da sociedade civil com o
Mais além, os debates atuais em torno da deliberação e das potencialidades da demo- mercado, situando a socie-
cracia participativa prevêem a participação cidadã nos processos de tomada de decisão tam- dade civil como um terreno
autônomo e distinto tanto do
bém em ocasiões mais regulares e institucionalizadas. Nesta direção, Avritzer (2002) apon- Estado quanto do mercado.
ta os espaços de mediação entre a sociedade e o Estado como locais, por excelência, de Cohen & Arato (1992) si-
tuam o conceito de socieda-
democracia deliberativa, representando a possibilidade de soberania popular procedimen- de civil no interior do marco
analítico habermasiano e em
talizada, na conjunção entre participação e representação. Nesses termos, cabe destacar o seu arcabouço tripartite
entendimento alternativo do conceito de participação política para além das fronteiras da (mundo da vida, subsistema
econômico e subsistema po-
concepção elitista de democracia representativa, apontando-se para as noções de democra- lítico). A sociedade civil cor-
cia participativa e de deliberação, que conferem centralidade à dimensão societária. responde às instituições e
formas associativas nos do-
A breve referência aos conceitos de participação política e participação cidadã mostra- mínios da esfera pública – in-
se necessária para o enfoque pretendido. Como observa Cunill-Grau (1997, p.64-81), o cluindo os movimentos so-
ciais – que implicam a
conceito de participação tem sido evocado no contexto contemporâneo como instrumen- interação comunicativa para
to para o aprofundamento da democracia e para a reivindicação de democracia participa- sua reprodução.
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dos quais se realiza “de forma permanente, a interlocução direta entre representantes das
organizações da sociedade civil e Estado e em que se formulam e controlam as políticas
públicas”. Estes canais constituem arenas de debate e interlocução entre atores, regidas
por normas e regulamentos elaborados por seus componentes.
Conforme Daniel (1994, p.27), os canais de participação na gestão local referem-se
aos “espaços – institucionalizados ou não – criados pelo Estado no nível local, com vistas
a serviços de ponte entre Estado e sociedade”. O elemento distintivo sublinhado pelo au-
tor remete à característica de criação desses canais pelo governo – localizando-os em seu
âmbito–, ressalvando, porém, que sua origem pode ser atribuída tanto à luta autônoma
dos movimentos sociais quanto às iniciativas do poder público. O autor sublinha que o
funcionamento dessas instâncias e a qualidade dos processos participativos dependem, em
via de mão dupla, tanto dos arranjos estabelecidos pelo poder público quanto da disposi-
ção e capacidade dos atores da sociedade civil em participar.
Assinalando o seu papel de co-gestão local, Pontual & Silva (1996, p.64) caracteri-
zam os canais institucionalizados de participação como espaço de discussão e negociação
de políticas públicas, assim como de explicitação de conflitos e interesses. As promessas e
expectativas endereçadas aos novos espaços de participação e aos seus potenciais são bem
sintetizadas por Tatagiba:
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No que tange aos formatos dos canais de participação, as variáveis sintetizadas por
Coelho & Bittar (1997, p.334) contribuem para sua caracterização e a tradução da pos-
sível diversidade. Entre as variáveis apontadas, destaca-se, em primeiro lugar, o grau de
institucionalização, que remete à formalidade ou informalidade dos arranjos estabeleci-
dos: no pólo formal, os canais são constituídos por meio de legislação e regulamentação,
ou de definição de atribuições, funções e procedimentos, em contraposição às relações e
dinâmicas menos formalizadas que podem constituir alguns desses espaços. Segundo, des-
taca-se o poder formal desses canais que podem ter caráter deliberativo ou consultivo.
Apontam-se, ainda, a periodicidade desses “encontros” entre sociedade e Estado, que po-
de assumir caráter regular e processual ou eventual e episódico e a escala de planejamen-
to (da elaboração de políticas setoriais ao planejamento global) ou de gestão (de projetos
específicos ou de espaços, equipamentos e serviços).
Pode-se considerar que tais variáveis influenciam os processos participativos, sobre-
tudo no que se refere aos aspectos relativos às atribuições e ao poder de decisão. As carac-
terísticas da ação estatal e da política pública em questão também se mostram elementos
relevantes. Podem-se apontar os possíveis papéis do poder público nessas instâncias: idea-
lizador e financiador das políticas; e/ou mediador dos conflitos societários. Pode-se exa-
minar a natureza da política pública: de caráter setorial ou transversal; e de corte distri-
butivo, redistributivo ou regulatório, vinculado ao tipo de bem público produzido. Além
desses aspectos, o maior ou menor comprometimento do poder público com o funciona-
mento efetivo dessas instâncias, que remete à sua agenda de governo, pode ser tomado co-
mo um fator decisivo.
Principalmente a partir do marco constitucional, observa-se a proliferação das ins-
tâncias de participação dos governos locais, sob formatos e características diversas, que
correspondem a experiências bastante heterogêneas, de amplitude e alcance diferenciados.
Além dos conselhos, do OP (Orçamento Participativo) e das conferências ou fóruns temá-
ticos, têm sido realizados debates e audiências públicas voltados para discussões específi-
cas sobre planos diretores, legislação urbanística, planos e projetos urbanos ou, ainda,
têm-se constituído espaços transitórios ou episódicos, em casos específicos de conflitos
ambientais e urbanos. Conformam-se, assim, instâncias diversas de participação e inter-
locução entre o governo e a sociedade, pautadas nos debates, na explicitação e negociação 4 Para um balanço compa-
rativo das experiências de
dos conflitos e na presença da lógica de interação comunicativa. OP no Brasil, ver Ribeiro &
Neste panorama, a despeito de um repertório heterogêneo de experiências, com tra- Grazia (2003).
jetórias e características distintas, podem ser destacados os Conselhos Municipais, espe- 5 Enquadram-se na catego-
cialmente pela magnitude do fenômeno nos anos 90, e o OP (que não será aqui aborda- ria de gestores os Conse-
lhos Municipais de Saúde,
do),4 pela sua proposição originária da sociedade civil e pelo seu formato deliberativo de Educação, dos Direitos
da Criança e do Adolescen-
inovador. Os dados do perfil dos municípios em 1999 refletem a expressão dos conselhos te e de Assistência Social.
locais: foram contabilizados 26,9 mil conselhos nos municípios brasileiros, que apresen- Nos casos das políticas so-
ciais, os arranjos para os di-
tavam um número médio de 4,9 conselhos por município. Entre 1999 e 2001, aumen- ferentes setores estão defi-
tou o número de municípios que dispunham de conselhos municipais nas diversas áreas nidos no texto constitucional
ou foram aprovados subse-
setoriais (IBGE, 2001). qüentemente à Constituição
Prevalecem neste cenário os conselhos gestores de políticas públicas, que assumem o Federal pela legislação com-
plementar. Os Conselhos de
papel de gestor, em decorrência dos dispositivos da própria Constituição Federal ou de le- Saúde estavam presentes
gislação federal complementar subseqüentemente aprovada. Estes conselhos vinculam-se às em 98,5% dos municípios;
os de Assistência Social,
políticas públicas que se estruturam em sistemas nacionais unificados após arranjos inter- em 91,5%; os de Educação,
em 91%; e os dos Direitos
governamentais para sua implementação. Têm caráter obrigatório ou previsão legal e po- da Criança e do Adolescen-
dem, inclusive, assumir a gestão e fiscalização dos fundos destinados às políticas setoriais.5 te, em 71,7% (IBGE, 2003).
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tre mudanças e continuidades. Nesses termos, colocam-se as dificuldades e as potenciali- Artigo recebido em dezem-
bro de 2004 e aceito para
dades da tradução de princípios e práticas inovadoras cunhadas pelos atores sociais no publicação em fevereiro de
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JOVENS NO MUNICÍPIO
DE SÃO PAULO
EXPLORANDO O EFEITO DAS RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
R E N ATA M I R A N D O L A B I C H I R
HAROLDO DA GAMA TORRES
MARIA PAULA FERREIRA
INTRODUÇÃO
Está presente na literatura sociológica e de estudos urbanos, ainda que de modo di-
fuso, a proposição da homogeneidade das periferias metropolitanas, que seriam locais dis-
tantes dos centros urbanos, marcados pela ausência de investimentos públicos, pelo acú-
mulo de privações e de indicadores sociais negativos:
A extensão das periferias urbanas ... tem sua expressão mais concreta na segregação es-
pacial ou ambiental configurando imensas regiões nas quais a pobreza é homogeneamente
disseminada. (Maricato, 2003, p.152.)
Essa frase sintetiza o argumento relativo à homogeneidade das áreas periféricas das
metrópoles brasileiras, que seriam marcadas pela sobreposição de múltiplas carências e
privações, com conteúdos socioeconômicos bastante similares. A idéia de que os riscos so-
ciais são cumulativos pode parecer bastante evidente para a maior parte dos observadores
da cena urbana brasileira. No caso de São Paulo, o argumento teria sido supostamente
comprovado ad nauseam por dezenas de estudos, sobretudo se considerarmos a grande
massa de dados existentes sobre a periferia de São Paulo, bem como a sistemática produ-
ção de indicadores de cunho territorial, tais como o Índice de Desenvolvimento Huma-
no (IDH), o Índice de Exclusão Social (Sposati, 1996), o Índice Paulista de Responsabili-
dade Social (IPRS) e outros.
Vale ainda destacar que boa parte da literatura brasileira sobre a chamada segregação
residencial tende a considerar como dado que os riscos sociais em geral se concentram es-
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pacialmente no anel externo das regiões metropolitanas, gerando – no caso de São Pau-
lo – uma distribuição espacial dos problemas sociais de formato radial-concêntrico (Vil-
laça, 2001; Taschner & Bogus, 2000). Essa visão associa-se com a caracterização das pe-
riferias urbanas como locais relativamente homogêneos em termos de falta de
investimentos públicos, de acesso a bens e serviços essenciais, além de indicadores socioe-
conômicos muito ruins.
Muitos desses estudos ou tomam o argumento da concentração de precariedades nas
áreas periféricas a priori ou são organizados em unidades de análise muito agregadas es-
pacialmente, como, por exemplo, na escala de distritos administrativos. E, no caso de São
Paulo, a análise por distritos (96 áreas) tende a ser bastante insatisfatória, indicando ape-
nas padrões espaciais muito gerais, uma vez que essas áreas apresentam grande variabili-
dade no porte demográfico, sendo que algumas têm o tamanho de verdadeiras cidades,
como o distrito de Grajaú, com mais de 400 mil habitantes, segundo o Censo de 2000
do IBGE.
Estudos desenvolvidos recentemente no âmbito do Centro de Estudos da Metrópo-
le (CEM/Cebrap) em escala geográfica mais detalhada (como a de setores censitários)
apontam, ao contrário, para uma relativa heterogeneidade das áreas de pobreza. Apesar de
ser possível afirmar que certas áreas do município de São Paulo possuem um legado his-
tórico de acúmulo de indicadores negativos – sujeitas a diferentes tipos de riscos, tanto
sociais quanto ambientais –, é também verdade que essas áreas se distribuem por todo o
município de forma bastante dispersa e complexa, aproximando-se mais de um mosaico
do que da descrição radial-concêntrica descrita pela literatura: ou seja, cada vez mais pa-
rece ser preciso falar em periferias, com características bastante peculiares, e não mais em
“periferia”, uma vez que esse rótulo abrangente coloca sob o signo da homogeneidade rea-
lidades muito distintas. Em outras palavras, é necessário examinar o argumento referente
ao acúmulo de riscos em uma escala de observação mais detalhada, de modo a produzir
uma caracterização mais precisa de sua distribuição espacial.
Como exemplo, podemos citar o Mapa da Vulnerabilidade Social da População da
1 Este estudo foi desenvol- Cidade de São Paulo,1 desenvolvido na escala dos setores censitários, destacando que a po-
vido pelo Centro de Estudos
da Metrópole (CEM/Cebrap
breza urbana no município apresenta múltiplas dimensões que não se restringem à sim-
e Cepid/Fapesp) em parce- ples carência (ou ausência) material, pois além da dimensão socioeconômica (baixos ní-
ria com a Secretaria de As-
sistência Social do Municí- veis de renda e escolaridade) também é importante considerar a dimensão demográfica da
pio de São Paulo – ver pobreza: entre os mais pobres, há composições familiares específicas que devem ser con-
CEM/Cebrap e SAS-PMSP,
2004. sideradas com bastante cuidado, como famílias chefiadas por mulheres, por homens jo-
vens de baixa escolaridade, compostas por muitas crianças, ou por pessoas idosas, e mui-
2 O mapeamento das áreas
de vulnerabilidade do muni- tos outros aspectos.2
cípio de São Paulo baseou-
se em variáveis seleciona-
Esse estudo mostrou ainda que a pobreza urbana pode ser marcada pela segregação,
das do Censo Demográfico pelo isolamento espacial, em áreas com poucas oportunidades gerais de vida e de acesso a
2000, que, submetidas à
análise fatorial, foram agru-
serviços e políticas públicas. Certas áreas da periferia de São Paulo, como Brasilândia (na
padas em duas dimensões Zona Norte), Capão Redondo (na Zona Sul) e Cidade Tiradentes (na Zona Leste) são
principais, denominadas “di-
mensão de privação socioe- marcadas por acúmulos de indicadores negativos: falta de acesso a políticas essenciais (co-
conômica” e “dimensão de mo saúde e educação); altos índices de criminalidade (como altas taxas de homicídio); ex-
ciclo de vida familiar”; estas
dimensões combinadas, por posição a variados tipos de riscos (como maior incidência de certos agravos de saúde pú-
meio de análise de cluster, blica) etc. Porém, além dessas áreas fortemente segregadas, há certas áreas da chamada
deram origem a diferentes
grupos de vulnerabilidade “periferia” que não são tão segregadas: estão inseridas em áreas consolidadas e com boas
social.
condições de acesso a serviços públicos, têm melhores oportunidades de emprego e de mo-
bilidade em geral. Essa distinção remete ainda à diferenciação do próprio conceito de
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pobreza, e também de periferias (há periferias mais recentes, algumas já consolidas, ou-
tras em fase de transição).
Cada uma dessas composições necessita de cuidados e de olhares específicos: é im-
portante atentar para as estratégias de sobrevivência das populações que moram nesses lo-
cais; do ponto de vista das políticas públicas, esses dados destacam a necessidade de polí-
ticas sociais que considerem o componente espacial da pobreza, elegendo o território
como área de atuação, sem perder, entretanto, a dimensão mais geral: os mecanismos pro-
dutores da pobreza e da segregação urbanas, destacando-se especialmente o papel do Es-
tado (inclusive por meio das políticas públicas tradicionais, que geram condições diferen-
ciadas de acesso) e do capital imobiliário (ver Marques & Torres, 2004).
A segregação observada em certos locais da cidade gera diferentes e perversas conse-
qüências: menor acesso a serviços essenciais (dada a grande distância que tem de ser per-
corrida, em média, para obter diversos tipos de atendimento), maior exposição a certos
tipos de agravos à saúde (dadas as condições bastante insalubres em que muitos vivem),
efeitos sobre a escolaridade dos jovens (Torres, Ferreira & Gomes, 2004, revelam que es-
tudar em escolas de áreas periféricas, em que a maioria dos alunos tem baixa renda e pais
com baixa escolaridade, tem fortes efeitos sobre o desempenho escolar), menores oportu-
nidades de mobilidade social (dada a maior fragilidade das redes de relações) etc. Além
disso, a segregação socioespacial tem efeitos sobre as redes de relações sociais, sobre os pa-
drões de sociabilidade, sobre a articulação das comunidades (uma vez que reduz os con-
tatos entre os diferentes grupos sociais), o que afeta, também, as possibilidades de modi-
ficação de suas realidades.
Em suma, além da relevância analítica, o tema tem particular importância para as
políticas sociais, uma vez que a literatura internacional sugere que a aglomeração de um
determinado grupo social ou étnico em uma dada área tenderia a aumentar substancial-
mente esses riscos juvenis, bem como teria impactos substanciais sobre as oportunidades
econômicas e sociais dos indivíduos que residem nessas áreas altamente segregadas: aque-
las que concentram grupos menos favorecidos (Massey & Denton, 1993; Durlauf, 2001; 3 De modo geral, o concei-
Yienger, 2001). Esta literatura adverte, porém, que na análise dos padrões espaciais da se- to de segregação remete a
duas dimensões principais:
gregação a escala pode exercer um papel fundamental (Sabatini, 2001).3 Assim, examinar os padrões de concentra-
a hipótese de acúmulo de riscos associada ao tema da segregação residencial constitui um ção espacial de determina-
dos grupos sociais e o grau
esforço de interesse tanto empírico como teórico, com implicações significativas para as de homogeneidade social de
políticas sociais. determinadas áreas. Mas-
sey e Denton (1993) men-
Do ponto de vista empírico, o artigo busca compreender até que ponto determina- cionam outras dimensões,
dos riscos sociais, especialmente aqueles que afetam indivíduos jovens, convergem ou não tais como concentração
(que mede a densidade da
para territórios urbanos específicos. Por esta convergência de riscos em um mesmo terri- pobreza) e centralização
(que mede sua localização
tório estamos nos referindo, no caso desse artigo, à concentração do desemprego, violên- em relação ao centro da ci-
cia urbana, baixo nível educacional e gravidez na adolescência, em um pequeno número dade). Consideramos estes
elementos menos relevantes
de áreas contíguas, normalmente localizadas nas periferias urbanas – discute-se assim o para a discussão brasileira.
efeito das relações de vizinhança sobre a incidência desses riscos.4 Esses indicadores foram
4 Para a discussão relativa
selecionados por ajudarem a complementar a definição das situações de pobreza sem es- aos efeitos de vizinhança
tarem diretamente relacionados à dimensão da renda – ou seja, a análise da concentração sobre o desenvolvimento
dos jovens, ver, por exem-
espacial de alguns riscos juvenis contribui para tornar mais complexo o entendimento das plo, Brooks-Gunn, Duncan,
“múltiplas dimensões da pobreza” (Mingione, 1999). O estudo desses tipos de riscos que 1997.
afetam as populações mais jovens é particularmente relevante do ponto de vista das polí-
ticas sociais, especialmente se for considerado que a sobreposição de carências nessa faixa
etária contribui para a reprodução de circuitos de pobreza.
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No que diz respeito a riscos juvenis, um dos principais exercícios empíricos sobre o
tema foi o Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ), realizado pela Fundação Seade em 2002,
5 O estudo serviu como ba-
se para a localização dos mediante uma demanda da Secretaria Estadual da Cultura.5 Este estudo classificava os
equipamentos do projeto
“Fábricas de Cultura”, que
distritos administrativos da cidade em uma escala de zero a cem pontos que expressava o
visa proporcionar acesso à grau de vulnerabilidade social dos seus jovens moradores, considerando, simultaneamen-
cultura e lazer aos jovens de
áreas periféricas, em parti- te, os níveis de escolaridade dos jovens, homicídios, fecundidade e outros.6 O estudo des-
cular aquelas com maiores tacou ainda a existência de cinco grupos de distritos no município com distintos níveis
concentrações de jovens
em situação de risco social, de vulnerabilidade para os jovens residentes.7 Com poucas exceções, foram observadas
particularmente violência.
coincidências espaciais entre os diversos tipos de riscos analisados, indicando – na escala
6 Assim, o valor zero indica de distritos – uma estreita relação existente entre condições socioeconômicas, em particu-
o distrito com o menor nível
de vulnerabilidade, e o valor lar a pobreza, e situações de violência e maternidade entre os jovens residentes nestes lo-
cem, o de maior nível. Este
indicador considerava em
cais. Assim, de certa forma, a hipótese do acúmulo de riscos foi também reafirmada por
sua composição a taxa de este exercício, realizado na escala do distrito (Fundação Seade, 2002).
crescimento do distrito entre
os anos 1991 e 2000; o per- Em outras palavras, o objetivo mais geral deste artigo é reexaminar a proposição de
centual de jovens residentes;
o percentual de nascidos vi-
que as periferias são homogêneas. Pretendemos mostrar que a sobreposição de carências
vos de mães com idade en- nas áreas periféricas do município de São Paulo não é completa, ou seja, a periferia é mais
tre 14 e 17 anos; a taxa de
homicídio entre os jovens do heterogênea do que supõe a literatura. Tomaremos como exemplo alguns riscos juvenis –
sexo masculino com idade
entre 15 e 17 anos; o per-
desemprego, grau de alfabetização, gravidez precoce e taxa de homicídios – em uma uni-
centual de jovens de 15 a 19 dade de análise espacial mais detalhada: trabalharemos aqui com as 456 áreas de ponde-
anos que não freqüentavam
a escola; e a renda média do ração da amostra do Censo Demográfico do IBGE.8 Utilizaremos também métodos de es-
chefe do domicílio. Foi utiliza-
da a metodologia estatística
tatística espacial, como o Índice de Moran,9 que oferecem uma abordagem bastante
de análise fatorial. interessante tanto para medir os níveis de segregação existentes como para identificar em
7 A título de ilustração das grande detalhe os locais com altíssimo grau de concentração de um dado risco juvenil, os
grandes disparidades obser- chamados hot spots.
vadas, pode-se destacar que
enquanto nos distritos de
Jardim Paulista e Moema (ca-
racterizados por bons indica-
dores socioeconômicos) o METODOLOGIA
percentual de mães adoles-
centes variava em torno de
1%, em Cidade Tiradentes
(distrito da periferia do muni-
A partir dos dados do Censo Demográfico 2000 (IBGE) e do sistema de estatísticas vi-
cípio) o percentual era próxi- tais da Fundação Seade, foram gerados quatro indicadores que expressam as condições de
mo de 10%, ou seja, em 10%
dos nascidos vivos de mulhe- vida dos jovens no município de São Paulo: percentual de adolescentes do sexo feminino
res residentes neste local,
nos anos de 1999 a 2001,
de 13 a 17 anos que já tiveram filhos; percentual de jovens de 18 a 19 anos com ensino
as mães tinham menos de médio completo; taxa de desemprego dos jovens de 18 a 24 anos; e taxa de homicídios de
17 anos de idade.
homens de 18 a 29 anos. Os três primeiros indicadores foram derivados da amostra do
8 O Censo é baseado em Censo Demográfico, que é constituída por 10% das unidades domiciliares do município.
dois questionários: um mais
sucinto, denominado ques- A taxa de homicídios foi elaborada com base na média dos óbitos para os anos de 1999,
tionário para o universo do
censo, que cobre toda a po- 2000 e 2001, sendo derivada do sistema de estatísticas vitais da Fundação Seade.
pulação; e outro mais abran- Como unidades de análise (e como áreas de vizinhança) foram utilizadas as áreas de
gente e detalhado que é
aplicado em uma amostra ponderação criadas no âmbito do Censo Demográfico 2000, que no município de São
correspondente a 10% dos
domicílios.
Paulo correspondem a 456 áreas. Essas áreas são compostas por setores censitários e en-
globam em torno de 4 mil domicílios, com cerca de quatrocentos deles pertencentes à
9 O índice de Moran varia no
intervalo de -1 a 1, com va- amostra. Essas áreas são homogêneas em termos de variáveis socioeconômicas e demo-
lores positivos indicando au-
tocorrelação espacial, ou
gráficas (Fundação IBGE, 2002). A adoção das áreas de ponderação como unidades geo-
seja, a existência de áreas gráficas do estudo teve como objetivo explorar as dimensões da segregação espacial em
com valores similares entre
vizinhos (para o indicador de uma escala mais detalhada do que os 96 distritos administrativos da cidade, já que estes
interesse), e valores negati- podem conter em seu interior uma diversidade de situações que no nível agregado não
vos representando diferen-
ças entre vizinhos. é possível detectar.
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adolescência). Tal evidência, por si só, já coloca em questão a hipótese apresentada na in-
trodução relativa a um perfeito e simultâneo acúmulo de riscos nas mesmas áreas, pelo
menos no que diz respeito à unidade de observação utilizada neste estudo – áreas de pon-
deração. Para aprofundar esse argumento, foram analisados os mapas gerados pelo Índice
de Moran Local.
11 Os mapas LISA (Local In- A seguir são apresentados os mapas LISA,11 onde estão identificados os clusters espa-
dicator of Spatial Associa-
tion) apresentam as corre-
ciais de áreas de ponderação que se diferenciam das demais áreas da cidade. Nesse mapa
lações para uma dada as áreas em cinza claro são aquelas onde ocorrem valores muito acima da média da cida-
variável entre cada uma das
unidades de análise e seus de e, simultaneamente, as áreas vizinhas também apresentam valores muito altos; as pre-
vizinhos. Todos os mapas tas representam as áreas com valores abaixo da média do município (e simultaneamente
foram elaborados pelos au-
tores do presente artigo. as áreas vizinhas também apresentam valores muito baixos). As áreas em cinza escuro são
as áreas denominadas de transição, ou seja, o padrão local não é similar ao da vizinhança.
Por fim, as áreas em branco são aquelas em que não foram identificados padrões espaciais
que se diferenciam de modo particular do observado para o conjunto do município.
Mapa 1 – Taxa de desemprego dos jovens com 18 a 24 anos. Município de São Paulo, 2000.
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Mapa 2 – Porcentagem de jovens com 18 a 19 anos com ensino médio completo, segun-
do agrupamentos de correlação espacial. Município de São Paulo, 2000.
Também neste caso surgem dois grandes agrupamentos: o que engloba as áreas
centrais e mais ricas da cidade – com alto grau de conclusão do segundo grau – e o que
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envolve as áreas periféricas a Leste, Sul e também a Noroeste (nesse caso, com baixo grau
de conclusão). Com algumas exceções, observamos que as áreas de baixo desemprego têm
alta escolaridade e as áreas de baixa escolaridade têm alto desemprego.
Cabe ressaltar que esses resultados, embora corroborem a hipótese de sobreposição
de riscos sociais em locais de periferia – mesmo na escala de áreas de ponderação –, suge-
rem uma série de elementos relativamente surpreendentes. O Centro histórico da cidade
não apresenta alto nível de escolaridade, mas alto nível de emprego. A região de São Mi-
guel Paulista – no extremo Nordeste da cidade – está na pior situação em relação ao em-
prego, o que não se reflete no nível de escolaridade.
Em outras palavras, os dados nesta escala sugerem que a segregação não é tão “com-
pacta territorialmente” como o modelo centro-periferia sugere (Villaça, 1999). E estas dis-
crepâncias são muito mais significativas quando observamos outros dados, tais como os de
homicídios e ocorrência de filhos entre as adolescentes (Mapas 3 e 4). No caso de homicí-
dios, embora as maiores taxas encontrem-se nas periferias, tais eventos não se localizam com
intensidade em qualquer periferia, mas de modo muito mais concentrado espacialmente
nos distritos de Jardim Ângela, Brasilândia, São Mateus e na fronteira com Diadema.
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Mapa 4 – Porcentagem de pessoas do sexo feminino com 13 a 17 anos e com filhos, se-
gundo agrupamentos de correlação espacial. Município de São Paulo, 2000.
Estes resultados sugerem que embora os locais com elevadas taxas de homicídios
apresentem elevados níveis de desemprego e baixa escolaridade, não necessariamente to-
dos os locais com estas características têm elevado nível de homicídios. A cumulatividade
de riscos ocorre em alguns casos, mas não em outros. Entender estes padrões pode ser de
grande interesse para políticas de caráter local. De certo modo, o mesmo fenômeno se ob-
serva no caso da gravidez na adolescência, com um padrão ainda mais fragmentado do
que o observado acima (Mapa 4).
O mapa apresenta a distribuição do indicador referente a adolescentes de 13 a 17
anos com filhos. É possível identificar um único agrupamento homogêneo: as áreas lo-
calizadas no chamado quadrante Sudoeste – onde o índice de gravidez na adolescência
se diferencia do restante do município por apresentar valores muito baixos. Nas áreas
mais periféricas, o padrão territorial é relativamente fragmentado, embora algumas áreas
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Podemos verificar no Mapa 6 que, do ponto de vista espacial, estas áreas de altíssi-
ma vulnerabilidade são bastante concentradas espacialmente. De fato, enquanto os locais
com algum indicador fortemente negativo distribuem-se por quase toda a periferia da ci-
dade, as áreas com três ou quatro indicadores muito desfavoráveis se concentram terri-
torialmente em locais como Jardim Ângela, Brasilândia, Cidade Tiradentes e Leste do
Itaim Paulista.
Esses resultados indicam que certos riscos sociais realmente são mais concentrados
espacialmente, incidindo de forma sobreposta sobre certas áreas da periferia, mas não per-
mitem afirmar que os riscos sociais em geral (no caso, os riscos que afetam os jovens) in-
cidem de forma homogênea e concentrada nas áreas periféricas do município de São Pau-
lo. Ou seja, a cumulatividade de riscos não é perfeita como sugere a literatura, e o balanço
entre o acúmulo e a heterogeneidade de situações de vulnerabilidade é bastante comple-
xo. Tais elementos contribuem para a discussão a respeito de políticas sociais que consi-
derem a dimensão espacial da pobreza e da vulnerabilidade em toda a sua complexidade,
ou seja, políticas que levem em consideração as necessidades específicas de cada local, ten-
do assim uma atuação mais eficiente.
Finalmente, cabe também destacar aqueles 37,7% da população que vive em áreas
que não se distinguem nem positivamente nem negativamente nesses indicadores (Tabe-
la 2). Espacialmente, este contingente está localizado num trecho intermediário entre o
centro e a periferia mais distante, com ocorrências territoriais localizadas, principalmen-
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te, a Leste e Norte da cidade (ver Mapas 5 e 6). Existe também um grupo de áreas que
têm situações simultaneamente positivas e negativas, mas que representam apenas 4% da
população total.
CONCLUSÃO
Esse artigo mostrou que é preciso prestar mais atenção aos temas da heterogeneida-
de e dos componentes espaciais das situações de pobreza. Apesar da estrutura geral da me-
trópole ser de fato marcada por intensa segregação residencial entre áreas ricas e pobres,
como apontam extensamente as literaturas sociológica e urbanística brasileiras, os territó-
rios de pobreza são também caracterizados por um tecido urbano muito mais complexo
e difícil de compreender do que propõe essa literatura, quando tratados numa escala de
observação mais detalhada.
Constatamos que, enquanto as áreas ricas são compactas territorialmente – mais ho-
mogêneas em termos de indicadores sociais positivos –, os espaços urbanos pobres apre-
sentam características diferentes entre si no que diz respeito à intensidade de mazelas ur-
banas tais como o desemprego e a violência. Assim, apesar da verificação da sobreposição
de alguns tipos de riscos, como desemprego e baixa escolaridade, em outras situações a
cumulatividade não é perfeita, como no caso das taxas de homicídio e de gravidez na ado-
lescência, que apresentam distribuições espaciais complexas mesmo nas áreas periféricas –
elementos que reforçam o argumento da heterogeneidade das áreas periféricas e a neces-
sidade de um olhar mais atento e localizado.
De certa forma, esses resultados sugerem que, se o mercado de trabalho continua
a ocupar um papel fundamental na reprodução das desigualdades urbanas – traduzida
em uma marcada diferenciação entre centro e periferia – é também verdade que proces-
sos locais ligados ao cotidiano das comunidades e à dinâmica das políticas públicas tam-
bém influenciam e diferenciam esses lugares. Assim, seria importante analisar os con-
teúdos sociais desses espaços periféricos, as estratégias de sobrevivência das populações
que aí residem e os ativos que possuem, incluindo suas redes de relações (na linha de
trabalhos como Filgueiras, 1998; e Moser, 1998), de modo a tornar mais complexas as
interpretações sobre as áreas periféricas das grandes metrópoles – algo que foge ao esco- Renata Mirandola Bichir
po desse artigo. é pesquisadora do Centro
de Estudos da Metrópole –
É importante destacar ainda que esse tema não tem interesse apenas acadêmico. Tra- CEM/Cebrap. E-mail: renata
ta-se de uma questão fundamental para as políticas públicas: se os espaços onde reside a mbichir@yahoo.com.br
população mais pobre não são homogêneos, pelo contrário, apresentam múltiplas lógicas Maria Paula Ferreira é
de acordo com o tipo de risco considerado (podendo haver ou não sobreposição de vul- analista da Fundação Seade
e consultora do Cebrap.
nerabilidades), existe a possibilidade de organizar a oferta dos serviços públicos segundo E-mail: mpferrei@yahoo.com.br
as características desses diversos locais, mesmo no caso de políticas universais, gerando
Haroldo da Gama Torres
iniciativas estatais mais eficazes e distributivas (Marques & Torres, 2004). é pesquisador do Cebrap e
do Centro de Estudos da
Em outras palavras, é como se nos diferentes locais de pobreza se configurassem di- Metrópole – CEM/Cebrap.
ferentes “estruturas de oportunidades”, proporcionadas – além do mercado – pela comu- E-mail: hgtorres@uol.com.br
nidade e pelo Estado. Tais oportunidades vão condicionar as possibilidades das famílias Artigo recebido em dezem-
aí residentes saírem ou persistirem na situação de risco social em que vivem (Kaztman bro de 2004 e aceito para
publicação em fevereiro de
& Filgueira, 1999). Este argumento certamente reforça a necessidade de uma política 2005.
social sensível à situação local e de sistemas de informação capazes de caracterizar essa
heterogeneidade.
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A B S T R A C T The main aim of this article is to test the hypothesis of the concentra-
tion of negative indicators in the peripheral areas of São Paulo municipality. We focus on so-
me social hazards that affect young people such as unemployment, urban violence, low levels
of education, and teenager pregnancy. We base our analysis on census survey areas (IBGE, 2000)
and spatial statistics methods. Contrary to the established perspective about these issues, our
findings generally show that the social hazards have a complex spatial distribution with rele-
vant implications for social policies.
ANEXO 1
68 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 4
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TERRITÓRIOS DA POLÍTICA
EM CARACAS
USOS E REPRESENTAÇÕES DO ESPAÇO PÚBLICO 1
1 Este trabalho é parte de
uma pesquisa sobre as ma-
nifestações da modernidade
LORENZO GONZÁLEZ CASAS em Caracas. Uma versão ti-
tulada “Rostros de la Moder-
nidad Caraqueña” será publi-
R E S U M O Os eventos políticos que tiveram lugar em Caracas desde meados do sé- cada em espanhol num livro
editado pelo professor Pe-
culo XX acarretaram a aparição de formas inovadoras de utilização do espaço público e o de- dro García. Agradeço ao
senvolvimento de territorialidades urbanas diferenciadas. A incorporação de grandes multi- professor Jorge Villota por
seus comentários e ajuda
dões à urbe, a luta pelos direitos de cidadania, o surgimento dos partidos políticos e outras na tradução deste texto ao
português.
formas de organização da sociedade e a transformação dos espaços públicos aos fins do deba-
te político são alguns dos fenômenos que têm caracterizado a modernidade caraquenha. Com
a crise do sistema democrático, a politização da vida cotidiana e a reformulação dos esque-
mas de participação política têm acentuado os processos de segregação espacial e provocado o
surgimento de novos mapas de percepção da metrópole. O objetivo principal deste trabalho é
examinar desde uma perspectiva histórica a evolução no uso e representação do espaço públi-
co utilizado para os fins da participação política, suas implicações para o planejamento ur-
bano e a introdução em tempos recentes de novas cartografias urbanas por efeito de processos
de mudança política, programas de descentralização governamental e debates patrimoniais.
As complexas relações que se tecem entre coletivos e lugares urbanos cada vez mais
anônimos induzem a repensar o assunto da modernidade em termos da transformação
dos usos e configurações do espaço da cidade. Um problema básico ao qual se pode redu-
zir o problema, em termos espaciais, é o da representação na arquitetura e urbanismo me-
tropolitanos. A crescente abstração do espaço, para alguns gênese de psicopatologias do
lugar moderno (Vidler, 1993), produz uma interação distanciada ou distante entre o meio
edificado e o observador. Tal problema de abstração acontece em dois níveis: no plano ur-
bano, onde se perde a noção de totalidade,2 e no frontispício, premissa da venustas vitru- 2 A metrópole introduz uma
mudança perceptiva e de re-
viana. O assunto, como é de supor, se magnifica nos espaços públicos da metrópole, lu- presentação do espaço. O
gar por excelência da abstração. espaço metropolitano modifi-
ca a noção geral de espaço
Por outra parte, a modernidade urbana e metropolitana supõe a existência tanto de porquanto é uma realidade
grandes massas humanas anônimas, às que tanta referência fez a sociologia alemã de prin- impessoal que amplia o po-
der de abstração. A metró-
cípios do século XX, como de intensos processos de mobilização política e concentração pole não pode ser represen-
urbana (que se produzem com bastante independência em relação ao tipo de regime, co- tada através dos recursos
tradicionais; é um plano enor-
mo as concentrações comunistas, fascistas e populistas de meados desse século). De fato, me que não se capta dentro
do cone da perspectiva.
a concentração e a mobilização são fenômenos tipicamente urbanos. Tal como afirma Hil-
da Sabato (1998, p.191), a cidade não é somente “o marco da vida pública senão sua con-
dição de possibilidade”.3 3 O trabalho de Sabato é
um dos poucos estudos que
Ora, entre as necessidades e as possibilidades de representação se apresenta um dile- vinculam a mobilização pú-
ma, ou ao menos uma tensão: em primeiro lugar, a necessidade de aparência requer a cria- blica latino-americana com
os espaços nos quais esta
ção de um meio carregado de conotações e formalidades de espaço público, de metáforas se produz.
da estrutura social em que “a espontaneidade da ação política possa surgir e as pessoas
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possam sentir seu poder coletivo” (Jencks, 1987, p.7) para que realize as funções de orgu-
lho cívico, memória, participação política e representação social. Historicamente, isso tem
tido lugar nas ágoras, pórticos, foros, praças e boulevards; espaços física e socialmente de-
terminados, que contrastam com os “não-lugares” da chamada “ sobremodernidade” (Au-
gé, 1996). Em segundo lugar, a arquitetura e urbanismo modernos enfrentam uma gran-
de dificuldade para incorporar as demandas de participação e simbolismo coletivos. Em
outras palavras, a uma maior solicitação de conteúdos simbólicos parece corresponder
uma maior dificuldade para sua provisão por parte do meio metropolitano.
Neste trabalho concentraremo-nos no caso de Caracas e na complexa interação en-
tre modernidade, urbanismo, arquitetura e mobilização política. A história se inicia na
terceira década do século XX, uma era de intensas mudanças socioeconômicas, políticas e
culturais, com respostas urbanísticas e arquitetônicas que afetaram radicalmente a aparên-
cia da cidade. Tais mudanças significaram a passagem de uma economia concreta a uma
abstrata (derivada da renda petrolífera), o trânsito de uma comunidade a uma sociedade;
e, no político, a tensão entre a fácil e direta autocracia do caudilho e a difícil democracia
representativa, sustentada no equilíbrio de poderes e nos contratos sociais.
A modernização do país tem sido acompanhada, de um lado, por um intenso pro-
cesso de urbanização e transformação substancial da agenda da arquitetura via um enor-
me programa de obras públicas, e, por outro, por um alto grau de agitação política e
mobilização de massas. Ao mesmo tempo que uma proporção significativa de indiví-
duos e grupos sociais se viam envolvidos no debate político, Caracas se convertia no
4 Importantes esforços têm arauto da modernidade e no principal palco de confrontação pública no país (Caballe-
sido realizados para analisar
o “quem”, “como”, “que” e “a ro, 1994, p.298). As novas relações de poder, depois da morte do ditador Juan Vicen-
quem” das mensagens e es- te Gómez, e a crescente mobilização política significaram uma metamorfose tanto da
forços comunicativos dos lí-
deres modernos na Venezue- liderança como dos espaços públicos. Fez-se fundamental na Venezuela de então a figu-
la, cf. L. B. García, El Poder
sin la Máscara, 1989. No en-
ra do líder político “que fala na praça pública, forma opinião e dirige organizações”
tanto, pouco se têm escrito (Meneses, 1967, p.295) e que, por sua vez, demanda lugares onde se possa falar dos as-
sobre o “onde”, o lugar ou
palco que acompanha o pro-
suntos públicos.4
cesso de comunicação.
5 As primeiras assembléias
públicas acomodaram-se MOBILIZAÇÕES E PLANOS URBANOS
dentro da fábrica tradicional
da cidade, tomando lugar
em espaços públicos tradi- Corre o ano de 1936. Em 17 de dezembro, que coincide com a data da comemora-
cionais, como a praça Bolí-
var. De fato, em 20 de de- ção da morte de Simón Bolívar, morre o ditador Juan Vicente Gómez, o “Benemérito”.
zembro de 1935, só três
dias depois da morte de Gó-
Na manhã do 14 de fevereiro as pessoas reúnem-se na praça Bolívar para protestar contra
mez, López Contreras diri- a censura política, justo quando Félix Galavís (1877-1941), líder “gomecista”, assume o
giu-se a uma multidão con-
centrada na praça Bolívar
governo do Distrito Federal, estreando um novo edifício que se propõe a mudar a apa-
do balcão da Casa Amarilla, rência do espaço principal da cidade.5
a antiga residência presiden-
cial. Ver T. P. Alcántara, El Um incidente entre um polcial e um civil inicia a repressão sobre a multidão, com
General de Tres Soles, 1985, um saldo de vários mortos e feridos. Nessa mesma tarde, uma multidão estimada entre
p.134.
30 mil e 70 mil pessoas – numa cidade com uma população de menos de 250 mil habi-
6 O governador Galavís foi tantes –, encabeçada por Francisco Antonio Rísquez (reitor da Universidade) e o dirigen-
destituído e prendido tempo-
rariamente. Em relação à te estudiantil Jóvito Villalba, vai a Miraflores – o palácio presidencial –, para protestar an-
trajetória deste persona-
gem, ver N. Perazo, 1985,
te o chefe do Executivo, Eleazar López Contreras, que, surpreso por essa multidão que
tomo II, p.230-1. antecipa a multidão metropolitana, promete reformas políticas imediatas e garante que os
responsáveis pelo massacre da praça Bolívar serão castigados.6
Talvez o mais relevante desta mobilização cívica é que, apesar de seus rasgos anárquicos,
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11 Maurice Rotival, “Cara- trofiado”.11 Não obstante, o Plano não se limita ao complexo viário ou infra-estrutural,
cas Marcha Hacia Adelante”,
in C. R. Villanueva, op.cit.,
pois propõe uma imagem arquitetônica específica.
1966, p.181. A busca de uma cidade nova e moderna é reforçada por uma defesa taxativa de aspec-
tos funcionais, incluindo a economia, a higiene, o interesse público, o turismo, a ilumina-
ção, o transporte e a segurança. Estes elementos enfrentam-se, em teoria, às tendências de-
corativas tradicionais do urbanismo. O novo urbanismo é definido agora como uma
ciência, equivalente a “um programa de organização e desenvolvimento ... [contra] a idéia
vulgar de que o urbanismo é um luxo, uma arte ornamental que se preocupa, antes de mais
nada, em levantar arcos de triunfo e edificar fontes públicas” (Meneses, 1967, p.19). É
12 O crítico e arquiteto aus- Adolf Loos12 em registro urbano.
tríaco (1870-1933), pioneiro
do movimento moderno,
Apesar de sua retórica funcionalista, as imagens arquitetônicas que acompanham o
propunha a necessidade de Plano estão mais perto dos postulados da École de Beaux Arts que às tendências do Estilo
uma arquitetura despojada
de todo enfeite, em contras- Internacional. Isto resulta evidente no projeto de Lambert para o Centro Cívico, com seu
te com o aparentemente su- monumental edifício do Congresso, a estátua de Bolívar e a pirâmide, tipo Teotihuacan,
perficial e recarregado do
Art Nouveau de princípios que conteria o túmulo de Simón Bolívar. O simbólico prevalece, outra vez, sobre a possi-
de século. Seu conhecido bilidade de albergar reuniões multitudinárias, pois sempre existe nelas o perigo da violên-
ensaio “Ornamento e Delito”
(1908) recolhe suas idéias, cia, originada na expressão da ovação, da exclamação e do incentivo à agressão, no momen-
as quais se plasmam em
edifícios como a Casa Stei-
to em que a platéia sobrepuja os dirigentes políticos, deixando de ser “distinto público” ou
ner, construída em Viena em “povo”, designações utilizadas para convocar atos e votações, para tornar-se turba ou popu-
1910.
lacho. Diante de tais riscos em relação aos espaços públicos e da necessidade de resolver pro-
blemas de tráfego, o Plano propõe um conjunto de praças onde “o movimento do público
possa ser ordenado durante as grandes festividades” e também criar novos caminhos que na
atualidade não existem” (Meneses, 1967, p.25). É a cidade da circulação ordenada.
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No entanto, o Nuevo Circo, outro espaço nas imediações da avenida Bolívar, é a se-
de favorita das reuniões políticas até meados dos anos 40. Muitos eventos transcendentais
ocorrem nesse cenário de arena de touros, construído entre 1916 e 1919; entre outros, a
proclamação por um grupo de independentes da primeira candidatura presidencial de
Rómulo Gallegos, o 5 de abril de 1941 (Alcántara, 1985, p.250); a reunião inaugural do
partido Acción Democrática (AD), em 13 de setembro de 1941; o lançamento da candi-
datura presidencial de Angel Biaggini, indicado por Medina Angarita como seu sucessor,
em 1945; a reunião onde a AD mostra sua força política um dia antes da denominada Re-
volução de Outubro, em 17 de outubro de 1945; e freqüentes reuniões do partido Unión
Republicana Democrática (URD), de Jóvito Villalba, em 1946.
Talvez o mais notável é que a “cultura da mobilização” extravasa as previsões do pla-
nejamento, alimentando velhos espaços com novo simbolismo. Os atos de massas pregam
a unidade dos participantes, em afirmação de princípios de liberdade, igualdade e, sobre-
tudo, fraternidade, tornando familiares os imigrantes, nacionais e estrangeiros, numa ci-
dade nova e cada vez mais complexa e impregnada de tensões. Em cada um dos eventos
de massas se constroem laços de identidade e pertencimento, atos de comunhão entre os
líderes e o coletivo, reconhecendo vitórias na capacidade de encher os espaços públicos,
no espetáculo que as massas proporcionam a si mesmas, no estrondo da ovação e do
aplauso em que o dirigente se legitima seguidamente junto a uma platéia anônima que
intermedeia a sociedade e o poder político.
Disso nos dá noticia a liderança política da época. Como observou Manuel Cabal-
lero (1988, p.53), López Contreras foi o primeiro presidente que experimentou o conta-
to direto com as massas. Este contato aconteceu por dois meios de comunicação que al-
cançariam papéis proeminentes na vida nacional: o rádio e os espaços públicos.14 Não 14 Em 1936, López Contre-
ras foi o primeiro presidente
obstante, não foi López Contreras, mas seu sucessor, Isaías Medina Angarita, quem des- venezuelano a se dirigir à
creveu de forma mais explícita como a figura presidencial vai deixando de ser autoritá- nação através da rádio.Ver
J. Ewell, 1984, p.80. Os
ria, distante e enigmática para se converter num chefe do Executivo que representa um meios de comunicação mo-
partido político e que está obrigado “a baixar em pé de igualdade à praça, a lutar, ante o dernos permitiram dar a co-
nhecer os políticos até che-
eleitorado, com os demais grupos, por sua aspiração a seguir governando” (Angarita, gar à variante de tornar
1963, p.28). políticos a personagens co-
nhecidos.
Três elementos da descrição de Medina pintam o novo clima político e urbano do
15 O populismo supõe uma
país: em primeiro lugar o líder desce, e, ao fazê-lo, desfaz muitas relações hierárquicas identificação do líder com
tradicionais. Como ocorria com alguns autores do século XIX ao contato com as massas as massas até o ponto de
ser considerado aquele co-
na metrópole, Medina parece desfrutar do “banho de multidão”. Em segundo lugar, o mo a encarnação da vonta-
chefe tem de representar um grupo organizado, em vez de representar unicamente seus de popular. Para o historia-
dor e ensaísta Luis Britto
interesses pessoais. E, finalmente, o lugar localizado “abaixo” é uma praça: um foro pa- García, tal identificação é só
ra a discussão política. Obviamente, dentro da nova atmosfera discursiva, os líderes uma máscara retórica do lí-
der em sua busca de legiti-
emergentes da política venezuelana se beneficiam grandemente de suas habilidades retó- mação, devido a que o con-
ricas: Rómulo Betancourt, Rafael Caldera, Andrés Eloy Blanco e, sobretudo, Jóvito Vil- tato é unidirecional (do líder
para as pessoas), restringi-
lalba, vogal urbano quintessencial do período, são oradores de exceção.15 do às campanhas presiden-
ciais e enraizado em formas
mais antigas de caudillismo.
Ver: Luis Britto García, La
Máscara del Poder, Cara-
UM PARADOXO: BARULHO NO “SILÊNCIO” cas: Alfadil Ediciones, 1988.
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A mudança de caráter das reuniões políticas e o uso de novos espaços na cidade pa-
ra albergá-las são explicados por Vallenilla Lanz, o ideólogo ou pensador do regime mili-
tar, em termos da relação entre a aparição de uma liderança ilustrada e a nova configura-
ção dos espaços físicos: “O líder da praça aérea do Centro Bolívar, o conferencista da
[praça] Aula Magna não podem ser os mesmos da praça de Capuchinos, nem de El Silen-
cio, nem do Teatro Olimpia. O palco e o decorado reclamam novos atores e o público
também” (Lanz, 1955, p.15).
É curioso que Vallenilla Lanz não faça referência ao complexo urbanístico de La Na-
cionalidad, em desenvolvimento no momento em que seu artigo foi escrito, ou aos desfi-
les da “Semana da Pátria”, senão à praça Aérea e ao Aula Magna, dois lugares desenhados
para funções diferentes dos desfiles. Ao que parece, como civil, ele não é tão entusiasta a
respeito das marchas como o eram outros membros do regime. Ou talvez Vallenilla tenha
previsto que os comícios políticos da democracia poderiam entrar de novo em vigência, e
que se requereriam espaços para algum tipo de assembléia. De fato, durante a campanha
política de 1952, o URD (um dos poucos partidos que não foram suprimidos pelo gover-
19 O evento de novembro no) tinha voltado ao Novo Circo em março e novembr.19 Mais ainda, em janeiro de 1958,
foi considerado “a assem-
bléia popular mais gigantes-
à beira da derrubada de Pérez Jiménez, uma multidão foi de novo a El Silencio para res-
ca da década de cinqüenta”. taurar o espaço de reunião. Poucos meses depois, produz-se ali uma enorme concentração
Ver Ramón J. Velásquez,
“Evolución Política de Vene- para receber Fidel Castro, na alvorada do seu longo mandato em Cuba. El Silencio conti-
zuela”, 1976, p.126. nuaria como o centro preferido das reuniões políticas, até que as multidões, agora cente-
nas de milhares, começaram a se reunir na avenida Bolívar entre os anos 60 e 80.
Nas últimas décadas do século XX, vários espaços urbanos foram empregados co-
mo centros de atividade política organizada. É o caso das praças Altamira, Venezuela e
El Venezuelano. As duas primeiras, distantes do centro tradicional da cidade, foram uti-
lizadas pelos partidos políticos AD e Copei, respectivamente, para a realização de reu-
niões ou festas ligadas a eventos eleitorais. Por sua vez, a chamada praça El Venezuela-
no, antes um espaço remanescente que ficou da antiga praça de San Jacinto,
converteu-se no destino de marchas de protesto que se originavam com freqüência na
Universidade Central de Venezuela e que ao aproximar-se da sede do Congresso, a duas
20 Vários eventos de finais
da década de 1980 e princí- quadras dalí, ou à de outros poderes, terminavam freqüentemente em repressão e atos
pios da de 1990 representa-
ram formas explosivas do
vândalos, parte do cotidiano citadino e da anomia de quem carece ou desconhece ca-
protesto coletivo na cidade, nais e lugares de participação.20
denunciando a crise política
profunda em que o país se
De maior relevância para os fins da mobilização política foi a chamada praça Cara-
encontrava; os arrastões de cas, um espaço situado em frente à sede da autoridade eleitoral mais importante do país,
fevereiro de 1989 e as ten-
tativas de golpe de Estado o Conselho Eleitoral (anteriormente “Supremo” e atualmente “Nacional”). A praça Cara-
de fevereiro e novembro de cas surge de um processo de reacondicionamento de um estacionamento e saída de veí-
1992.
culos do Centro Simón Bolívar. O lugar é sede de economias informais, mercados e reu-
niões políticas, provavelmente o mais parecido a uma ágora que existe na cidade. É de
fazer notar que este espaço se deriva, novamente e quiçá sem querê-lo, da avenida Bolí-
21 Marshall Berman, All var, o núcleo da cidade inventada, ou de sucessivos inventos de cidade, o corredor que
That Is Solid Melts into Air.
The Experience of Moder-
tentou abrir “no coração de um país subdesenvolvido uma perspectiva de todas as deslum-
nity, 1988, p.195. brantes promessas do mundo moderno”.21
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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senciado sessenta anos de tábula rasa, de tentativas de romper os laços com o passado e 26 Patrizia Lombardo, “In-
de acelerar os processos históricos. Sessenta anos que têm provado a futilidade do em- troduction”, en Massimo
Cacciari, op. cit., p.LVI.
preendimento de dar a este espaço urbano uma forma, direção e uso permanente.25 Sua
indeterminação faz da avenida um lugar eminentemente moderno; porque é “intrinseca- Lorenzo González Casas
é professor titular do Depar-
mente instável, continuamente catastrófico”.26 Como também parece sê-lo o projeto de tamento de Planificación Ur-
bana da Universidad Simón
sistema político moderno venezuelano. Bolívar, Caracas, Venezuela.
E-mail: lgonza@usb.ve
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A B S T R A C T The political events that took place in Caracas from the middle of
the 20th century have supposed the apparition of novel forms of utilization of the public space
and the development of differentiated urban territorialities. The incorporation of large
multitudes to the metropolis, the claim of civic rights, the apparition of political parties and
other forms of social organization, and the transformation of public spaces for political debate,
are some of the phenomena that have characterized the Caracas’ modernity. With the rise and
crisis of the democratic system, the politicization of the everyday life as well as the re-
formulation of the schemes of political participation have supposed an accentuation of the
processes of spatial segregation and the development of new maps of urban perception. The
main objective of this work is to examine, from a historic perspective, the evolution in the use
and representation of the public space. It examines how space has been used for political
participation, its effects on city and regional planning, and the introduction of new urban
cartographies in the midst of political change, programs of governmental decentralization, and
heritage debates.
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QUALIDADE DO
ESPAÇO RESIDENCIAL
E SUSTENTABILIDADE
(RE)DISCUTINDO CONCEITOS E (DES)CONSTRUINDO PADRÕES
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Colocar o debate sobre sustentabilidade fora dos marcos do determinismo ecológico im-
plica, portanto, afastar representações indiferenciadoras do espaço e do meio ambiente, re-
quer que se questione a idéia de que o espaço e os recursos ambientais possam ter um único
modo sustentável de uso, inscrito na própria natureza do território. A perspectiva não deter-
minística, portanto, pressupõe que se diferencie socialmente a temporalidade dos elementos
da base material do desenvolvimento. Ou seja, que se reconheça que há várias maneiras de as
coisas durarem, sejam elas ecossistemas, recursos naturais ou cidades. (Acselrad, 1999, p. 87.)
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Na linha de estudos que permitem uma análise com desdobramentos por estratos
de renda e/ou espaciais, inclui-se “Condições de moradia e comprometimento da renda
familiar com habitação e transporte na Região Metropolitana de Porto Alegre”, com in-
formações levantadas pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada em
1995 pelo Centro de Estudos e Pesquisas Econômicas – Iepe/UFRGS, com vistas ao cál-
culo do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) para a região, atualizando a série inicia-
da em 1954.
Ainda que o trabalho apresente suas conclusões para o âmbito metropolitano, des-
tacam-se alguns aspectos que corroboram a observação das desigualdades no acesso a ser-
viços urbanos:
• das famílias pesquisadas, 97,6% são abastecidas com água tratada, sendo que 96,8%
dispõem de água encanada em seus domicílios e 0,8% servem-se de torneira pública;
na faixa de 0 a 3 SM (salários mínimos), esse percentual baixa para 91,8%;
• 98% dos domicílios dispõem de esgotamento sanitário, quer através de rede geral de es-
goto, quer por meio de fossa séptica. Verifica-se que o percentual de domicílios servi-
dos pela rede pública apresenta variações que vão de 78,5%, no estrato de 3 a 5 SM, a
92,5%, no estrato de 15 a 20 SM;
• o número de banheiros e o número de chuveiros disponíveis em cada domicílio, como
era de se esperar, apresentam variação crescente conforme aumentam os níveis de ga-
nhos mensais familiares (Carrion & Scussel, 2000).
Comparando esses dados com as informações referentes aos núcleos de ocupações ir-
regulares ou invadidas, verifica-se que o provimento de tais serviços é bastante inferior,
em termos quantitativos, e qualitativos.
Já um estudo comparativo com as condições de moradia na zona rural de Porto Ale-
gre (Scussel, 2002) apontou o índice de 86,8% do total de residências servidas por água
encanada, o que não significa abastecimento de água tratada. Dados complementares in-
dicam que 44,4% são servidas com água proveniente de poço cavado, fontes, riachos e
açudes, de potabilidade não assegurada, enquanto apenas 30,7% das propriedades rece-
bem água do Departamento Municipal de Água e Esgoto – DMAE. Estes dados tornam-
se preocupantes num meio rural como o de Porto Alegre, densamente povoado, onde
98,9% do esgoto cloacal é direcionado para fossas negras, sangas e valas, indicando a pos-
sibilidade de contaminação do lençol freático superficial.
Uma informação muito importante, mas dificilmente trabalhada em termos de in-
dicadores socioeconômicos, seria o dispêndio familiar com habitação e transporte. Interes-
sa, sobretudo, considerar o gasto conjunto de aluguel e transporte e sua evolução ao lon-
go do tempo, uma vez que são gastos implicados e que experimentam variações em
decorrência dos processos de urbanização e de ocupação e uso do solo. Do ponto de vis-
ta ambiental – seja pelos agentes poluidores do ar, nível de ruídos, congestionamentos,
consumo energético –, a composição desse binômio tem papel fundamental na determi-
nação da qualidade do espaço residencial dos diferentes lugares da cidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Das considerações até aqui alinhadas, destaca-se a importância de se ter a maior cla-
reza possível, em que pese sua complexidade, de todo o processo envolvido na formula-
ção de indicadores de sustentabilidade – desde a definição do que se pretende aferir e dos
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CELSO FURTADO
E O PLANEJAMENTO
TEORIA E AÇÃO
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INTRODUÇÃO
A obra de Celso Furtado impressiona por sua extensão, por sua coerência metodo-
lógica, unidade de propósito, assim como pela relevância amplamente reconhecida. A
produção intelectual que trata diretamente da sua obra é também considerável e aumen-
tou significativamente desde a última década do século passado, em decorrência das inú-
meras homenagens que, no Brasil e em outros países, foram prestadas ao autor, sobretu-
do quando completou 80 anos.
Se as primeiras obras de Furtado, da década de 1950, foram marcadas pela influência
da Cepal, ele, por sua vez, contribuiu com a sua abordagem histórica para enriquecer o pen-
samento cepalino, cujos elementos básicos estão contidos em El desarrollo económico de la
América Latina y algunos de sus principales problemas, de 1949, escrito por Raúl Prebisch.
Em sua fase da Cepal, Furtado realizou inúmeros trabalhos técnicos sobre países da
América Latina. Mais tarde, no exílio, escreveu um livro sobre a formação econômica des-
sa região. Mas foi para o Brasil e o Nordeste brasileiro que dedicou o máximo de sua aten-
ção e de suas energias. Foi o economista brasileiro ou mesmo cientista social brasileiro de
maior projeção fora do País. Escreveu 31 livros que foram traduzidos em 15 idiomas. Cal-
cula-se que foram vendidos mais de dois milhões de exemplares. Considerando-se os di-
versos indicadores de formas de difusão, estima-se que, no presente, o número de leitores
atinge cerca de dez milhões.
Como explicar o reconhecimento de Celso Furtado, expresso por esse grande núme-
ro de leitores? Em primeiro lugar, porque – caso raríssimo entre os economistas – Celso
Furtado não escreve apenas para os seus pares, mas também para um público mais am-
plo, com o fim de levar suas idéias e despertar a consciência da necessidade de lutar con-
tra as desigualdades sociais e o subdesenvolvimento. Daí porque em sua obra a fronteira
entre economia e política é tênue. “Nunca entendi a existência de um problema estrita-
mente econômico”, diz ele. Depois, a criatividade que, no início de sua carreira, chegou
a ser vista por Gudi (apud Furtado, 1985) como algo incompatível com o ofício de eco-
nomista, acabou sendo o grande trunfo que lhe permitiu realizar a “navegação venturosa”
e descortinar sempre novos horizontes. Criatividade que supõe uma boa dose de ousadia,
até mesmo para ser eclético, quando o ecletismo é, como sabemos, considerado sempre
negativamente pelos escolásticos de todos os matizes. Mas em Furtado o ecletismo permi-
te-lhe uma abordagem original: por exemplo, enquanto procura, por um lado, recuperar
o movimento (histórico) da economia, por outro, faz uso de instrumentos de análise neo-
clássicos para melhor compreender esse processo.
Embora em muitos contextos Furtado tenha procurado proteger-se, colocando-se
como portador de soluções técnicas, neutras, a leitura atenta de suas principais obras
indica uma permanente preocupação política, que se traduz em uma linguagem que pro-
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cura persuadir e mobilizar os seus leitores, sem, contudo, perder o rigor e a elegância
(Bielshowski, 2001).
Quais são as bases teóricas do pensamento de Furtado? Ele próprio responde, indi-
cando a seguinte ordem: o positivismo, o marxismo e a teoria keynesiana, que, tudo in-
dica, obedece à cronologia de como cada um desses sistemas de pensamento passaram a
influir decisivamente em sua formação (Furtado, 1983). O positivismo, com o qual ele
toma contato ainda muito jovem, interessou-lhe pela importância que essa doutrina atri-
bui à razão, ao conhecimento científico e à relação que estabelece entre este e o progres-
so. O marxismo – com o qual tomou contato através da leitura de Max Beer e, mais tar-
de, em curso na Universidade de Paris – por sua teoria da História e, no plano econômico,
pela percepção de Marx de que a acumulação é uma necessidade objetiva do capitalista,
o que o pressiona a recorrer constantemente ao progresso técnico, sendo esta segunda
idéia reforçada pela leitura de Schumpeter.
Em terceiro lugar, como não poderia deixar de ser, Celso Furtado reconhece em
Keynes uma influência decisiva. Desse autor, ele retém a análise dos processos econômi-
cos centrados na demanda e o papel do Estado no desenvolvimento capitalista. Quanto a
esse último aspecto, diz Furtado que “a economia capitalista não pode funcionar sem um
certo grau de centralização de decisões, ou seja, sem uma estrutura superior de poder (to-
do capitalismo é em certo grau um capitalismo de Estado” (Furtado, 1973). De resto, es-
ta visão keynesiana de Estado influiu em toda uma geração de economistas e de gover-
nantes no Brasil.
Essas informações foram fornecidas pelo próprio autor em seu Auto-retrato intelec-
tual, publicado pela Unesco em 1973. Ao leitor atento desse texto não deve passar des-
percebido o fato de que Furtado não tenha mencionado Prebisch entre os autores que in-
fluenciaram na formação de seu pensamento. O papel de Prebisch e seus colaboradores
na estruturação de uma teoria com características próprias, decisiva no avanço da com-
preensão do desenvolvimento da América Latina, só aparecerá em sua verdadeira dimen-
são na Fantasia organizada, livro de memórias, publicado em 1985.
A TRAJETÓRIA INTELECTUAL
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Esta visão global da economia capitalista, que permitia nela identificar uma fratura es-
trutural gerada pela lenta propagação do progresso técnico e perpetuada pelo sistema de di-
visão internacional do trabalho então existente, constitui certamente a contribuição teórica
maior de Prebisch e foi o ponto de partida da teoria do subdesenvolvimento que dominaria
o pensamento latino-americano e teria amplas projeções em outras regiões do mundo. (Fur-
tado, 1985.)
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À primeira vista parece um absurdo colher o produto para destruí-lo. Contudo, situa-
ções como essa se repetem todos os dias nas economias de mercado. Para induzirem o produ-
tor a não colher, os preços teriam que baixar muito mais, particularmente se se tem em con-
ta que os efeitos da baixa de preços eram parcialmente anulados pela depreciação da moeda.
Ora, como o que se tinha em vista era evitar que continuasse a baixa de preços, compreende-
se que se retirasse do mercado parte do café colhido para destruí-lo. Obtinha-se, dessa forma,
o equilíbrio entre a oferta e a procura a nível mais elevado de preços. (Furtado, 1979.)
O que importa ter em conta é que o valor do produto que se destruía era muito in-
ferior ao montante da renda que se criava. Estávamos, em verdade, construindo as famosas
pirâmides que anos depois preconizaria Keynes. Dessa forma, a política de defesa do setor
cafeeiro nos anos da grande depressão concretiza-se num verdadeiro programa de fomento
da renda nacional. Praticou-se no Brasil, inconscientemente, uma política anticíclica de
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maior amplitude que a que se tenha sequer preconizado em qualquer dos países industria-
lizados. (Furtado, 1979.)
TEMPOS DE LUTA
Desde a segunda metade do século XIX, há uma questão regional no Brasil – a do Nor-
deste brasileiro, a partir das secas de 1877-1879 e de 1899 – e seu impacto sobre grande
parte da população nordestina. O governo federal implantou, em 1909, uma política
de obras públicas destinada a construir açudes, para a acumulação de água, e estradas,
com a intenção de resolver o que se considerava então como o principal problema nordes-
tino: a seca. No decênio de 1950, o equívoco dessa política, a sua apropriação pelos gran-
des proprietários de terras e a malversação de recursos públicos, a qual se tornou uma cha-
ga nacional, conduziram à necessidade de rediscussão do problema do Nordeste e de suas
soluções no âmbito de uma nova política.
O sucesso norte-americano da Tennessee Valley Authority (TVA) foi tema de debate
durante vários anos no Congresso Nacional, na década de 1940, em torno de projetos que
aplicariam aquele modelo à bacia do Amazonas e à bacia do rio São Francisco. Deles re-
sultou a criação da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia e
da Superintendência de Valorização do Vale do São Francisco. Ambos os órgãos não pas-
saram de arremedos do modelo norte-americano.
Quanto ao Nordeste, na década de 1950, assiste-se ao desenvolvimento de condi-
ções propícias ao surgimento de novas idéias, que levaram o governo federal a modificar
a sua política para aquela região.
O governo Vargas, orientado pela sua assessoria econômica, criou o Banco do Nor-
deste do Brasil (BNB) e acelerou a construção da hidrelétrica de Paulo Afonso. Na mesma
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Parcelas dessa população seriam transferidas para as áreas de colonização. Essa estratégia
se tornaria viável com a incorporação do Maranhão, onde havia terras públicas da pré-hi-
léia amazônica e mais o Piauí, à região-plano da Sudene, órgão a ser criado. Nasceria da-
li o Projeto de Colonização do Maranhão.
A segunda estratégia agrícola consistia na irrigação das bacias dos açudes median-
te uma política que possibilitasse a desapropriação daquelas áreas. A primeira grande
tarefa da nova política, ainda na fase do Conselho do Desenvolvimento do Nordeste
(Codeno), foi a elaboração do projeto de lei de irrigação, cujo desdobramento veremos
mais adiante.
A terceira estratégia era a reestruturação da área de monocultura da cana-de-açúcar,
destinando-a, prioritariamente, à produção diversificada de alimentos.
A indústria regional, quase toda ela exclusivamentevoltada aos bens de consumo, es-
pecialmente têxteis e de alimentos, deveria ser modernizada, para ter condições de com-
petir com a moderna indústria do Centro-Sul. O Estado deveria investir na infra-estru-
tura (energia elétrica, transporte e saneamento) e em indústrias de base, como a
siderurgia. Além do financiamento do Estado, seriam criados mecanismos de estímulos
fiscais e financeiros, nos moldes dos praticados nos países desenvolvidos e mesmo no Cen-
tro-Sul do País.
Tratava-se, portanto, de uma política de modernização, melhor dizendo, de capita-
lização da região nordestina. O movimento camponês, mesmo continuando a luta pela
reforma agrária, não se opunha abertamente à política proposta. A grande reação partia
dos grandes interesses agrários, dos grandes proprietários de terras que concentravam sua
oposição no Congresso Nacional.
Pode-se afirmar que a proposta teve ampla aceitação das principais forças sociais que,
nos últimos anos da década de 1950, reivindicaram um tratamento diferenciado para a
região, com as restrições que já foram mencionadas. Em uma época em que se estava lon-
ge de ouvir falar em planejamento participativo, é indiscutível que o projeto da nova po-
lítica de desenvolvimento do Nordeste contou com grande apoio popular, responsável em
grande medida para que essa proposta não fosse derrotada desde o início, diante das ar-
remetidas da direita majoritária no Congresso. Esse apoio ocorreu em vários momentos e
situações, como em uma greve que paralisou Recife por um dia, para pressionar o Con-
gresso a aprovar o Primeiro Plano Diretor da Sudene.
Mas essa mobilização nem sempre conseguia contra-arrestar as investidas da direita,
que obteve duas vitórias significativas: impediu que o projeto de irrigação do Codeno fos-
se aprovado pelo Congresso Nacional e impediu que o Departamento Nacional de Obras
Contra as Secas (Dnocs) passasse a ser controlado pela Sudene, contrariando a lei que
criou esse órgão. Conseguiu, também, sabotar o Projeto de Colonização do Maranhão. É
certo que os estudos prévios sobre a área maranhense a ser colonizada não deram conta
de que ela já se encontrava quase inteiramente grilada.
A despeito do ambiente hostil criado pelas oligarquias e seus representantes na im-
prensa e no Congresso, o projeto da Sudene introduziu inovações importantes, entre as
quais ressaltamos:
• Uma estruturação institucional que se preocupou em fortalecer o sistema federativo do
País. Vejamos um dos muitos depoimentos de Furtado a esse respeito:
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é o Rio de Janeiro. Portanto, era preciso compensar esse aspecto perverso da Constituição,
mas como uma reforma constitucional era coisa impossível de se fazer no Brasil, apelamos
para um truque, que consistiu em criar um mecanismo de discussão e votação entre o gover-
no federal e os governos estaduais da região: foi o Conselho Deliberativo da SUDENE, que
reúne nove governadores para harmonizar pontos de vista sobre o que fazer na região. Assim,
se reivindica conjuntamente e quando se vai ao Parlamento e ao Presidente da República, o
Nordeste tem uma vontade só. (Furtado, 2001.)
Um vasto sopro de esperança varreu a região. Uma convergência nunca antes vista de
classes e setores sociais, desde o campesinato, mobilizou-se para o que pensávamos ser a ta-
refa do século, a mais ingente e espinhosa de quantas reclamavam solução para a construção
de uma Nação harmônica, sem gritantes disparidades que se constatavam e que, infelizmen-
te, estes 20 anos não conseguiram desfazer. Minha geração jogou-se por inteiro naquele em-
preendimento, e tentamos converter nossa fraqueza em força: despreparados para tão gran-
de cometimento, substituímos o conhecimento científico, de que não dispúnhamos, pelo
ardor, pelo vigor e, por que não dizê-lo, pelo desprendimento. Com o inteiro apoio da po-
pulação, vale a pena lembrar, sem que isso seja uma vanglória, que a Sudene inovava com-
pletamente o estilo de desempenho dos poderes públicos, não apenas na escala regional, mas
até mesmo medida pela escala nacional. (Oliveira, 1978, apud Tavares, 2004.)
Como vimos na primeira parte deste trabalho, Celso Furtado contribuiu teorica-
mente para a compreensão do processo de desenvolvimento das economias dependentes
e, em particular, para a análise da evolução histórico-econômica da sociedade brasileira.
Particularmente, no caso do Brasil, em que a pesquisa para a sua obra maior cobriu qua-
tro séculos, a massa de textos consultados exigiu um enorme esforço de síntese. Isso, so-
mado à maioria de suas obras que tratam exclusivamente do Brasil, leva muitos estudio-
sos da obra desse autor a considerá-lo um dos raros cientistas sociais brasileiros que
conseguiram interpretar este País.
No plano da ação, podemos dizer que o seu grande mérito foi o de transformar
o planejamento numa realidade concreta, depois de várias tentativas fracassadas desde a
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H E R M E S M A G A L H Ã E S T A V A R E S
década de 1930. No âmbito nacional, Furtado dirigiu o Grupo Cepal-BNDE que realizou
projeções setoriais da economia brasileira, as quais constituíram a base do Plano de Me-
tas do governo JK. No governo de João Goulart, foi ministro extraordinário do Planeja-
mento, quando elaborou o Plano Trienal de Desenvolvimento. Vimos, na segunda parte
deste texto, a sua atuação de cinco anos como idealizador e dirigente da Sudene.
Ao observarmos a produção de Furtado dos anos 80 e 90, constatamos que sua cren-
ça nas possibilidades do planejamento não se alterou ao longo do tempo. Mesmo no au-
ge do neoliberalismo, em 1999, ele afirmou: “Queiramos ou não, o planejamento foi a
grande invenção do capitalismo moderno” (Furtado, 2001).
Outro problema de enorme atualidade para o desenvolvimento do País é o de sua
organização político-territorial. Aqui ele defende a instituição do poder regional, indo
além daquilo que propôs em 1959. Vejamos o que ele nos diz:
Por último, convém não perder de vista que o revigoramento do federalismo na forma
aqui referida requer, ao lado da plena restauração da autonomia estadual e do contrapeso de
um poder regional, o fortalecimento da instituição parlamentar. Isso porque somente o po-
der que reúne os representantes do povo de todas as regiões pode dar origem a um consen-
so capaz de traduzir as aspirações dessas mesmas regiões em uma vontade nacional. (Furta-
do, 2001.)
Hermes Magalhães Tava-
res é professor adjunto do
Furtado deixou-nos aqui alguns pontos dos mais relevantes e atuais para uma agenda Ippur/UFRJ. E-mail: smtavares
da questão territorial brasileira: a persistência no planejamento, para ele único instrumen- @uol.com.br
to capaz de levar os entes econômicos a considerar os custos ecológicos e sociais do desen- Artigo recebido em novem-
bro de 2004 e aceito para
volvimento; a distribuição das atividades econômicas entre regiões; a plena restauração da publicação em março de
autonomia estadual e da instituição parlamentar. 2005.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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O DESENVOLVIMENTO URBANO
DEMOCRÁTICO COMO UTOPIA
ENTREVISTA COM ERMÍNIA MARICATO,
SECRETÁRIA EXECUTIVA DO MINISTÉRIO DAS CIDADES
RBEUR: Sugerimos começar por alguns temas mais gerais, ma do saneamento ambiental, compreendendo água,
como a gênese e a construção do Ministério das Cidades, esgoto, drenagem e lixo, e o problema do transporte
para depois ir afunilando para as políticas. coletivo urbano. A proposta do Projeto Moradia apro-
fundou muito mais a política habitacional e, dentro
ERMÍNIA: Nas últimas vezes em que Lula foi candidato dela, seus elementos estruturantes: a questão fundiária,
à presidência da República constava, em seu programa a questão do financiamento e a da estrutura institucio-
de governo, a proposta de criação de um Ministério nal necessária. O Ministério das Cidades foi estrutura-
com os nomes variáveis de Ministério da Reforma Ur- do [em secretarias] a partir das três maiores fontes dos
bana, Ministério do Desenvolvimento Urbano e Mi- problemas sociais urbanos vinculados ao território: ha-
nistério das Cidades. Numa dessas oportunidades (se bitação, saneamento ambiental e transporte. A essas
não me engano, na terceira candidatura) foi criado um somou-se uma quarta secretaria, a de Programas Espe-
grupo de expressão nacional, reunindo trabalhadores ciais Urbanos, que tinha como objetos o planejamento
sindicais, professores universitários e movimentos so- e a política fundiária, entre outras atribuições.
ciais, que escreveu um programa denominado de Re-
forma Urbana, impresso pelo partido como parte do RBEUR: No que se refere a essa junção operada entre dife-
Programa de Governo. Lá propúnhamos o Ministério rentes fragmentos da máquina pública, nesses dois anos de
da Reforma Urbana. A proposta de um Ministério da existência do Ministério, você acha que foi possível olhar
Política Urbana surgiu novamente no Projeto Mora- a cidade como objeto de política, ou ainda há resíduos de
dia. Por meio do Instituto Cidadania, Lula convidou fragmentação dos instrumentos necessários para um pla-
um grupo de pessoas (profissionais, lideranças sociais, nejamento de longo prazo?
parlamentares) para elaborar uma proposta de habita-
ção. O Instituto realizou várias audiências para ouvir ERMÍNIA: Essa fragmentação vai continuar por muito
pessoas de outros segmentos. O documento elaborado tempo, por causa da própria formação universitária e
por esse grupo mostra que as soluções para a carência profissional, que é fragmentada. Lembremos do sanea-
habitacional devem ser buscadas no contexto da cida- mento e dos transportes ou então o fato de os arquite-
de. Afirmamos assim que era preciso recuperar um es- tos e urbanistas olharem muito pouco para esses temas.
paço de institucionalização da política urbana que ti- No Ministério isso é muito visível e estamos obtendo,
nha sido perdido. Segundo o Projeto Moradia, por quanto a isto, muitos ganhos por intermédio do Con-
meio de um ministério, poderíamos tratar dos três selho das Cidades. O Conselho das Cidades tem Câ-
maiores problemas sociais urbanos que, muitas vezes, maras Técnicas separadas. As discussões técnicas preci-
na discussão dos planos diretores e nos debates ur- sam de fato de um detalhamento e devem respeitar a
banísticos não apareciam como centrais: o problema necessidade do aprofundamento setorial e da verticali-
da moradia, em especial da moradia social, o proble- zação, mas é preciso também assegurar a integração. As
discussões são feitas nas Câmaras Técnicas e depois vão
1 Entrevista concedida em Porto Alegre, em janeiro de 2005. ao plenário do Conselho, o que obriga a todos os seto-
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res das políticas setoriais a dialogar com enfoque trans- de um organismo amplo e regionalizado e a existência
versal. O conceito de mobilidade, que é uma obsessão da Caixa Econômica Federal, que tem grande capila-
para nossa equipe da Secretaria Nacional de Transpor- ridade, levou à opção por não termos sedes regionais.
te e da Mobilidade Urbana, esse olhar – o da relação Alguns ministérios têm representação regional. A Cai-
entre mobilidade, transporte e desenvolvimento urba- xa Econômica Federal é operadora dos programas do
no – é muito evidente. A mobilidade no território ur- Ministério, com recursos do OGU – Orçamento Geral
bano não é dada apenas pelo transporte, mas pelo uso da União, e além de operadora é financiadora quando
e ocupação do solo. As características de um trânsito se trata de recursos do FGTS. A criação do Ministério
desumano e altamente mortal não são vistas apenas pe- traz algum impacto sobre a Caixa, e entendemos que
lo viés do veículo, mas especialmente dos pedestres, da vai levar um certo tempo para que se chegue a um pac-
falta de infra-estrutura, em especial calçadas, da falta to sobre procedimentos e encaminhamentos. Vou citar
de sinalização, do desenho urbano adequado e, eviden- um exemplo paradigmático: aprovar projeto de con-
temente, da falta de educação para o trânsito. O Dena- juntos habitacionais fora da rede urbana existente
tran – Departamento Nacional do Trânsito veio do como desejamos é algo que ainda estamos longe de
Ministério da Justiça para o Ministério das Cidades. atingir. Entendemos que precisamos de muito en-
Do Ministério dos Transportes trouxemos duas empre- tendimento e esforço de capacitação para que consiga-
sas de trens e metrôs. A Companhia Brasileira de Trens mos disseminar as idéias do direito à cidade assim
Urbanos está construindo quatro metrôs e tem a coor- como o direito à arquitetura. E não se trata apenas de
denação de três sistemas de trens, antigos e sucateados: pessoal de ponta da Caixa Econômica que precisa ser
os metrôs de Fortaleza, Recife, Belo Horizonte e Salva- preparado para o direito à cidade, são os projetistas,
dor e os sistemas de trens em Natal, Maceió e João Pes- são as prefeituras, são as universidades. A capacitação
soa. Contamos ainda com uma companhia que está si- de pessoal é tão ou mais estratégica do que a ampliação
tuada em Porto Alegre, que é a Trensurb. A política de dos recursos. Os secretários nacionais foram indicados
saneamento e a de habitação já foram aprovadas no de forma democrática com forte acento dos movimen-
Conselho das Cidades. Foram aprovadas também as tos sociais e também das corporações profissionais – o
diretrizes da Política de Mobilidade Urbana e estamos Secretário de Transporte e da Mobilidade Urbana, José
preparando a Política Nacional de Mobilidade e Trans- Carlos Xavier, por exemplo, compôs uma lista tríplice
porte Público, o que não é um tema banal: o que cabe com a participação do setorial de transportes do PT e
ao governo federal nessa área? companheiros da ANTP – Associação Nacional de
Transportes Públicos; a Frente Nacional do Saneamen-
RBEUR: E quanto aos quadros e competências? Como têm to indicou também alguns companheiros e o ministro
sido formados ou trazidos os quadros que são portadores escolheu, da lista que eles indicaram para a Secretaria
das memórias institucionais, setoriais e das especialidades. Nacional de Saneamento Ambiental, um sindicalista,
Como está ocorrendo esta composição, e qual seria a ex- Abelardo de Oliveira Filho, antigo e respeitado mili-
pectativa em termos de profissionais adequados? tante da área, com grande conhecimento técnico. O
secretário de Habitação veio com o apoio dos movi-
ERMÍNIA: O Ministério, criado em 2003, cresceu e ex- mentos de moradia. Ele passou pela Cohab de Salva-
pandiu suas atribuições em relação à Sedu – Secretaria dor e de São Paulo, pelas prefeituras de Diadema e de
Especial de Desenvolvimento Urbano que o precedeu, Ribeirão Pires, tendo sido um dos pioneiros da Articu-
mas ainda é um organismo extremamente enxuto e lação Nacional do Solo Urbano criada pela Comissão
sem funcionários de carreira. Estamos trabalhando Pastoral da Terra na década de 1980. A urbanista Ra-
com muita dificuldade em razão disso. As tarefas têm quel Rolnik, secretária nacional de Programas Urba-
sido enormes: além de criar o Ministério física e insti- nos, que dispensa apresentação, foi indicada ao minis-
tucionalmente, executar os programas e ao mesmo tro pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana. O
tempo reformulá-los, estamos debatendo com a socie- presidente do Denatran também foi indicado por di-
dade a formulação de uma nova política nacional de versas fontes pela sua extensa experiência administrati-
médio e longo prazos. A falta de recursos para a criação va com o assunto. Eu fui convidada, já no período de
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transição de governo, pelo presidente Lula, para parti- mental. A Anpur participou de todas as grandes ações,
cipar do desenho do Ministério, a partir da experiência eventos, mobilizações e propostas nessa história da Re-
que tivemos durante a elaboração do Projeto Moradia, forma Urbana. No início da gestão Lula cometemos no
e depois acabei ficando na Secretaria Executiva a con- MCidades um equívoco ao acreditar que iríamos cons-
vite do ministro Olívio Dutra, que trouxe da sua equi- truir a curto prazo uma imensa rede de capacitadores
pe anterior do governo do Rio Grande do Sul um pe- ou uma Escola das Cidades, assim como o Ministério
queno número de colaboradores, entre eles o Dirceu da Fazenda tem há décadas a Escola Fazendária. No
Lopes, chefe de gabinete, e a Íria Charão, secretária exe- entanto, ficamos tão ocupados em institucionalizar o
cutiva do Conselho das Cidades. A indicação de nomes Ministério, mudar as ações em curso, criar novos pro-
pelos respectivos setores de atuação, profissional ou mi- gramas e rubricas, que a capacitação ficou a cargo de
litante, gerou algumas críticas, assim como o fato de a uma equipe composta de uma única pessoa, ou seja,
maior parte dos quadros da equipe do Ministério virem não avançou como imaginamos. Poder executivo é pa-
do PT. Os nomes foram indicados por movimentos so- ra executar. Todos querem ver resultados a curto prazo:
ciais que na verdade estão na origem de diversas con- dos agentes do mercado ao movimento social. Corre-
quistas relativas à democratização da questão urbana – mos muito para apresentar resultados a curto prazo. Se
a Constituição Federal de 88, os orçamentos participa- começássemos planejando, para depois executar, não
tivos, o Projeto de Lei (PL) do Fundo Nacional de Ha- sobreviveríamos. Como primeiras medidas criamos
bitação de Interesse Social, o Estatuto da Cidade, e co- programas novos como parte do Plano Plurianual
mo seguimento dessa relação está também a criação do 2004/2007, mas especialmente nas áreas de Mobilida-
Ministério das Cidades com a Conferência Nacional de e Transporte Urbano, como também alguns Progra-
das Cidades e o Conselho das Cidades. Na equipe há mas Especiais Urbanos (Planejamento, Gestão, Regu-
também profissionais do PCdoB, do PSB e do PPS. De larização Fundiária, Risco etc). Acima de tudo neste
fato, nele não se encontram quadros originários do es- primeiro momento precisávamos reverter o quadro da
pectro mais amplo que hoje caracteriza o governo Lula extrema contenção de recursos. Não conseguimos tu-
do o que esperávamos, mas avançamos bastante. Do
RBEUR: E quanto ao perfil do profissional que vocês con- ponto de vista da formulação da PNDU – Política Na-
cebem como necessário? cional de Desenvolvimento Urbano, da formulação
das políticas setoriais e dos marcos institucionais, an-
ERMÍNIA: Para nós a questão ainda não está satisfato- damos em paralelo. A Política Nacional do Saneamen-
riamente resolvida. Nós, a equipe do MCidades, somos to Ambiental, que nos era muito cobrada, foi a primei-
muito poucos, e pensamos que o movimento social ra a ser levada para a discussão pública. Isso porque o
que resultou na criação do Ministério são parceiros nas projeto de lei anterior enviado pelo governo FHC não
nossas ações, juntamente com a Caixa Econômica Fe- fora aprovado devido a uma ação intensa que teve na
deral, para realizar um imenso trabalho de capacitação Frente Nacional do Saneamento, um dos seus princi-
para uma política de desenvolvimento urbano demo- pais opositores. A proposta do presidente Lula era
crática, includente e sustentável. Os movimentos so- mandar muito rapidamente o PL para o Congresso,
ciais de luta pela reforma urbana criaram um tipo de mas, diante dos muitos conflitos que surgiram, a estra-
agente social e um profissional que as escolas, com ra- tégia foi mudada e remeteu-se a proposta para as au-
ras exceções, formam. Nós mesmos ainda não temos diências públicas. Foram 11 audiências públicas que o
consolidada essa visão mais holística de amarração das Conselho das Cidades definiu e acompanhou. O pro-
políticas setoriais. Os urbanistas pretensamente têm es- jeto de lei da Política Nacional do Saneamento recebeu
sa visão, mas têm pensado a cidade de forma muito mais de quatrocentas emendas: é um marco regulató-
restrita e dirigida para o mercado. Os regionalistas rio do saneamento, estabelecendo regras para o setor e
quase não abordam o intra-urbano. Temos de cons- recuperando a importância da participação do Estado
truir esse novo profissional ao longo do caminho e mu- e do controle social. Ainda como parte desse esforço de
dar muitos dos paradigmas. No enfrentamento deste institucionalização e formulação da política, definimos
desafio a Anpur sempre foi um componente funda- também um novo Sistema Nacional de Habitação que
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já foi aprovado no Conselho das Cidades e lançamos as maior sobre estes investimentos. O governo federal
bases para uma Política Nacional de Desenvolvimento mesmo, há alguns anos, financiou obras de transporte
Urbano que contém iniciativas também nas áreas da que não estavam integradas entre si: uma foi dirigida
política fundiária e imobiliária, política de planeja- ao governo estadual e outra, ao governo municipal.
mento, de transporte e trânsito. Iniciamos programas Neste contexto é que estamos pensando o papel da An-
de capacitação em todas as secretarias. A política de pur. É importante cobrar conhecimento e proposições
trânsito, por exemplo, é uma política que capacita o para essa realidade tão seccionada, dividida, desarticu-
tempo todo pois o trânsito é uma grande tragédia, e is- lada em tantas facetas que muitas nos passam desper-
so diz respeito ao Ministério das Cidades: são quase 40 cebidas. Isso tem muito a ver com a pesquisa, o ensino
mil mortes no trânsito, anuais, e 400 mil acidentes, e a extensão. Neste momento de inflexão da nossa po-
com um grande número de pessoas incapacitadas para lítica de capacitação, a Anpur e toda entidade que tem
o resto da vida. Estamos colocando em prática a capa- potencial para auxiliar nessa transformação podem de-
citação para o plano diretor participativo. Quer dizer: sempenhar um importante papel em nossa estratégia
não é para elaborar qualquer plano diretor, mas sim de pesquisa e de capacitação. Não se pretende violar a
planos diretores que o Ministério das Cidades, o Con- autonomia da Universidade, que tem suas próprias de-
selho das Cidades e a Conferência Nacional das Ci- mandas de pesquisa, ensino e extensão. Trata-se de
dades definem como participativos, includentes e de- pactuar uma agenda para o desenvolvimento urbano
mocráticos. Para mudar paradigmas, procedimentos, clamada pela condição urbana no Brasil.
conceitos etc., precisamos de um grande movimento
de capacitação. É inacreditável o grau de carência téc- RBEUR: Este elo fundamental do setor público não entrou
nica, de informação ou de administração da maior par- ainda na agenda, não se entendeu ainda a relevância des-
te de nossas prefeituras. Um cadastro multifinalitário ta questão?
pode fazer uma grande diferença para a política fiscal,
para a política de priorização das ações (não ouso nem ERMÍNIA: Perfeito, eu ia dizer isso em seguida, não en-
falar em planejamento em alguns casos). Não se trata trou. Há uma invisibilidade da agenda urbana, espe-
de uma tarefa federal, mas nacional. O MCidades não cialmente entre os economistas, mas não só. Estamos
pode dar conta dela sozinho. Para tomar um exemplo buscando a Enap, que se articula com mais de quaren-
dramático da necessidade de melhor qualificar o gasto ta escolas de governo em todo o País, a Finep, o CNPq,
público, vou lembrar que 2/3 do orçamento do Minis- bem como vamos buscar a Capes e as fundações esta-
tério das Cidades em 2005 são formados de emendas duais para reforçar a nossa agenda.
parlamentares. Elas se distribuem pelos mais de 5.560
municípios do País. A maior parte dessas emendas ou, RBEUR: Tem que ser uma coisa forte.
R$ 700 milhões, estão dirigidos para a infra-estrutura
urbana, ou mais exatamente asfalto, em sua maior par- ERMÍNIA: Temos de elaborar coletivamente este docu-
te. Como dar maior eficiência, maior racionalidade a mento mostrando que o Ministério das Cidades pre-
estas emendas para que esse gasto seja coerente com as cisa de pesquisa, precisa de cursos, precisa de capaci-
prioridades locais? Capacitar as prefeituras, pactuar tação nessas áreas. Necessitamos do aporte de cursos
com os próprios parlamentares, poderá evitar ou dimi- de especialização e de pós-graduação, para fazer a di-
nuir desperdícios. Nós temos, ao longo de muitos ferença nesse estado de coisas. Para o Ministério fica
anos, obras construídas que não foram terminadas e uma tarefa que a gente não pode delegar: a busca de
quando terminadas não entraram em operação. Agora cooperação entre Ministérios das Cidades, da Ciência
estamos fazendo este levantamento, que não é banal, e e Tecnologia e da Educação, e a definição das necessi-
começando um choque de gestão nas localidades que dades à luz da política nacional de desenvolvimento
são objeto do investimento fragmentado. Só vamos urbano. Se conseguirmos mobilizar nossa área, com
mudar esse quadro com muita capacitação junto com todas as entidades ajudando, participando da elabora-
os governos, nos diversos níveis, e junto com as lide- ção da proposta e influindo com mais força, isso po-
ranças sociais, de modo a se obter um controle social derá ser viabilizado.
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RBEUR: Passando agora para a política de desenvolvi- nos, metas, indicadores de desempenho e controle so-
mento urbano. O Ministério sublinha o fato de que ela cial, se não podemos aplicar isso aos municípios? A
não é federal, mas nacional. Qual tem sido a efetividade nossa saída é a seguinte: quando o governo federal em-
dos instrumentos de articulação entre União, Estados e presta ao município, o município se insere no sistema
municípios? Quais os meios de “reverter a cultura políti- e, inserindo-se no sistema, tem que cumprir determi-
ca hegemônica” que tende a favorecer uma cidade para nadas obrigações e regulações. Veja como a questão
poucos, como diz o documento Política Nacional de De- não é tão simples como se esperava, nem por meio de
senvolvimento Urbano, publicado em 2004 nos Cader- uma lei aprovada no Congresso Nacional. A Constitui-
nos MCidades, volume 1? ção brasileira pretendeu descentralizar mas, ao mesmo
tempo, limitou essa descentralização por meio das
ERMÍNIA: Combater a especulação, a segregação e a ex- competências comuns e concorrentes. Também do
clusão territorial é uma tarefa longa e tem que ser pro- ponto de vista econômico existe uma dependência
duto de uma luta social. Instrumentos legais nós te- muito grande dos municípios em relação aos demais
mos, embora eles encontrem muita dificuldade na níveis de governo. Este é um dos temas para a Confe-
aplicação e sejam dependentes da correlação de forças. rência das Cidades de 2005, o pacto federativo, a ges-
A legislação avançada não é suficiente para resolver os tão compartilhada, a cooperação que se mostra neces-
problemas da desigualdade, da exclusão social e da se- sária para o desenvolvimento urbano em especial nas
gregação. A importância do Estatuto da Cidade e dos regiões metropolitanas. Precisamos esclarecer as com-
Planos Diretores é evidente, mas não suficiente. A luta petências dos diversos entes federativos e decidir se há
social e o controle sobre as Câmaras Municipais, na necessidade de novas leis complementares. Precisamos
hora em que votam a legislação de uso e ocupação do respeitar as competências já definidas claramente, mas
solo, é fundamental. Como é que você torna coerciti- não podemos deixar de reconhecer que a situação das
vo o controle social? Como usar todas essas ferramen- gestões metropolitanas está muito insatisfatória. Todo
tas de participação social, de transparência, que aju- mundo reconhece isso, inclusive a Comissão de De-
dam a negar o modelo de apropriação privada da senvolvimento Urbano do Congresso Nacional.
valorização decorrente do investimento público? Tudo Já podemos festejar um grande avanço nas rela-
isso diz respeito à autonomia dos entes federativos ções federativas que foi a aprovação da lei dos Consór-
mas, também, ao pacto federativo. Nós temos enfren- cio Públicos, que vai permitir a gestão cooperativa ou
tado, muito mais do que eu esperava antes de entrar no compartilhada de municípios, governos estaduais e
Ministério, a discussão sobre o pacto federativo. Eu União sob a égide do direito público. O impacto sobre
achava que já conhecia bem a Constituição brasileira. a administração pública brasileira dessa conquista ain-
Hoje estou aprendendo que é uma constituição de de- da não está bem assimilado.
senho extremamente complexo, porque ela define au-
tonomia para os três níveis de governo, ao mesmo tem- RBEUR: O fundamento deste pensamento holístico estaria
po que define competências comuns, concorrentes e centrado nos usos do solo, que concretamente é uma ques-
complementares. Então, a Constituição brasileira exi- tão da propriedade. Até que ponto essa dimensão estrutu-
ge a cooperação, mas tem-se, ao contrário, guerra fis- ra efetivamente os vários braços setoriais do Ministério?
cal num mesmo nível de governo, assim como imensa
disputa ou cooptação, dependendo do partido que es- ERMÍNIA: A definição do uso e da ocupação do solo é
tá aqui ou ali; ou seja, uma cultura difícil de ser supe- tarefa eminentemente municipal, a menos que se trate
rada. Discutindo o sistema de saneamento, por exem- de área de interesse ambiental, patrimônio nacional
plo, todos os assessores jurídicos do governo federal ou patrimônio da União. No entanto a PNDU – Polí-
foram unânimes em dizer que não tínhamos condição tica Nacional de Desenvolvimento Urbano tem entre
de cobrar dos municípios certas incumbências na área seus eixos estruturantes a terra urbana (ou a questão
do saneamento urbano devido à autonomia dada pela imobiliária), o financiamento e a estrutura institucio-
Constituição Federal. Uma das questões discutidas era: nal (leis, marcos, regras, competências, quadros etc.).
como é que vamos levar uma regulação que exige pla- Hoje você não faz uma política de habitação chegar
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nas camadas de baixa renda se o mercado não atingir Combinada à ampliação do mercado privado es-
a classe média. Atualmente o mercado privado atinge tamos colocando em prática uma política para a baixa
cerca de 22% da população brasileira, grosso modo. Se renda. Os recursos federais públicos e semipúblicos
não inserirmos a classe média no mercado privado va- (FGTS e demais fundos) estão sendo dirigidos para as
mos continuar gastando subsídio com ela, que tem faixas de renda situadas entre zero e cinco salários mí-
mais poder para ser ouvida, e ignorando as camadas nimos (SM), as quais concentram 92% do déficit habi-
baixa renda. Em 2000, mais de 80% dos financiamen- tacional. O orçamento do FGTS prevê mais de R$ 8 bi-
tos e investimentos federais em habitação – que não lhões para moradia e R$ 2,7 bilhões para saneamento
são exatamente públicos, porque o FGTS é gerido por (o orçamento do FAT dispõe de mais R$ 600 milhões
um conselho curador do qual o governo participa e para saneamento). Estamos sendo bem-sucedidos no
preside – estavam dirigidos para o conjunto dos que esforço paulatino de reverter o destino dos recursos
ganham mais de cinco salários mínimos, onde estão que estão em mãos do governo federal para as camadas
localizados apenas 8% do déficit habitacional. Este é de de baixa renda. Passamos de menos de 20% do
um problema estrutural do País: um mercado extre- montante destinado às faixas de até cinco SM em 2000
mamente restrito. O mercado brasileiro faz um pro- para uma projeção de 60% em 2005. Se todo esse di-
duto de luxo ou, como disse o Nilton Vargas ainda na nheiro for despejado num mercado altamente especu-
década de 1970, um artesanato de luxo. Com isto não lativo, teremos o indesejado resultado de aumentar o
se resolvia nem o problema da classe média (que tam- preço da terra e da moradia, daí nossa preocupação
bém chega a morar em favelas) e muito menos da bai- com a reforma fundiária e imobiliária, daí nossa preo-
xa renda. Temos os primeiros sinais de que estamos cupação com a função social da propriedade prevista
mudando essa situação. A aprovação de uma lei envia- no Estatuto da Cidade que, como todos sabem, se rea-
da ao Congresso Nacional e uma resolução do CMN liza por meio do Plano Diretor. A falta de políticas
(ambas em 2004) mudaram a situação do mercado fundiárias, a concentração da propriedade urbana, a
privado: os recursos do SBPE – Sistema Brasileiro de tradição patrimonialista que marca também o urbano
Poupança e Empréstimo que estavam retidos no Ban- são as grandes causas de toda a ilegalidade que temos,
co Central foram desovados para o financiamento pri- porque as próprias prefeituras têm dificuldade de che-
vado. Para 2005 um montante equivalente a R$ 12 gar na terra, e não lutam por uma legislação, por um
bilhões deverá ser aplicado no mercado. Os bancos fa- zoneamento que permita construir habitação social. A
zem pressão o tempo todo para diminuir o montante maior parte das prefeituras no Brasil simplesmente não
porque estão prevendo que não vão gastar, alegando se prepara, não enfrenta essa questão. Governos esta-
que “não tem demanda”... Por que não tem demanda? duais, nem se fala. Muitos dos Executivos e Legislati-
Não tem demanda se mantida a estrutura de mercado vos de municípios de pequeno, médio e até mesmo de
como ela se encontra hoje, com esse “artesanato de lu- grande porte são liderados por proprietários de terra e
xo” para essa faixa de renda com esse preço da terra, de imóveis.
com essa margem de lucro e com essa baixa produti-
vidade. É preciso incluir nesse mercado o professor RBEUR: Como fica a relação com o mercado no âmbito
primário e secundário e até o universitário, o policial do novo marco regulatório do saneamento? Na análise do
militar etc. São trabalhadores que têm carteira de tra- Ministério, visa-se superar problemas de indefinição
balho assinada. Os dados mostram que o financia- de competências, ineficiência na gestão e limites do Con-
mento privado foi ampliado em 53% no início de selho Monetário Nacional impostos aos empréstimos a ór-
2005. Avançou por enquanto, mas creio que a mu- gãos públicos. Esse novo marco será capaz de dar conta
dança do produto assim como o patamar tecnológico dessas três dificuldades? Como ele se situa diante das pres-
da construção devem demorar. Se essa proposta se de- sões por um projeto privatizante?
senvolver como planejado, esperamos ter o setor pro-
dutivo apoiando a reforma fundiária, já que a terra é ERMÍNIA: O principal conflito hoje dá-se em torno à
insumo fundamental para a produção em maior esca- gestão metropolitana. As companhias estaduais se co-
la. Há muito de utopia nessa coisa mas quem sabe... locam, grande parte delas, contra o projeto porque
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este reconhece a titularidade municipal fixada pela água e do esgoto, outra grande parte tem a titulação só
Constituição de 88. Ele não deixa de reconhecer – e do esgoto, e uma parte maior ainda está numa situação
nem pode – a existência e papel das companhias es- completamente irregular. Cito o exemplo do municí-
taduais. Ele reconhece essa possibilidade de com- pio de Mesquita na Baixada Fluminense. Nova Iguaçu
partilhamento do serviço de saneamento. Seria um está com contrato irregular com a Cedae – Companhia
absurdo, numa mesma bacia ou numa Região Metro- de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro. Mesquita foi
politana, não reconhecer a necessidade desse compar- desmembrada de Nova Iguaçu há quatro anos. Mes-
tilhamento. Foi forte a crítica das empresas estaduais quita está com a Cedae fornecendo água de forma in-
de saneamento às primeiras versões do projeto. Ele satisfatória. Não há nenhum contrato entre eles e o
passou por 11 audiências públicas e recebeu mais de município não sabe bem o que fazer diante desse qua-
quatrocentas contribuições para mudanças. Esse deba- dro, mas está buscando alternativas, assim como todos
te está atrasando seu envio para o Congresso. Mas es- os municípios da Baixada Fluminense que estão des-
sa discussão avançou. O principal conflito não está contentes com a situação. Estamos, em grande parte
entre estatizar e privatizar, mas entre a titularidade nas do Brasil, numa situação de caos, sem regras ou base
Regiões Metropolitanas, o papel do Estado e o papel jurídica clara. Não será a competência estadual ou mu-
dos municípios. nicipal que deverá facilitar a privatização.
Nosso projeto incorpora as PPPs – Parcerias Pú-
blico-Privadas, mas não deixa a menor dúvida sobre o RBEUR: Passando a uma outra área de indagações: com
papel do Estado como o formulador e gestor da políti- respeito à articulação com a sociedade civil organizada,
ca, além de enfatizar instrumentos de planejamento, através dos Conselhos e das Conferências, como se tem da-
metas, desempenho, controle social e transparência. do essa relação?
Esperamos que o contingenciamento dos empréstimos
ao setor público vigente neste começo de 2005 seja ERMÍNIA: O Ministério das Cidades é fruto deste mo-
transitório. vimento social que lutou muito tempo para incluir a
questão urbana na agenda nacional. A proposta de um
RBEUR: Não haveria riscos de a responsabilidade muni- Ministério das Cidades seria completamente diferente
cipal favorecer a privatização dos sistemas? sem a participação social, como mostram os órgãos
que nos antecederam. O que impede que o MCidades
ERMÍNIA: Na época do Planasa – Plano Nacional de se transforme em um balcão de negociação de emen-
Saneamento e do BNH, era orientação do governo fe- das apenas é a orientação do ministro e da sua equipe
deral, durante o regime militar, centralizar os serviços em parceria com os atores que constituem a sociedade
de saneamento. Essa centralização foi compulsória. organizada. Hoje, 2/3 do orçamento do Ministério é
Muita prefeitura conseguia recurso para habitação se, composto por emendas. Se algum ministro quisesse
em contrapartida, desse a concessão do saneamento projeção política por meio da aplicação de emendas,
para a companhia estadual. Formaram-se grandes em- encontraria no Ministério das Cidades uma situação
presas públicas e nem todas foram bem administradas. propícia. Para que o Ministério não seja reduzido a um
Muitas das companhias estaduais, aliás a maior parte, balcão, ele tem que ser o coordenador de uma política
são ineficientes. Muitas estão falidas. A maior parte nacional. Essa visão do Ministério de que a questão
dos municípios não tem organismo voltado para o sa- fundiária não pode ser desligada da questão do finan-
neamento e muitas das concessões estão em situação ir- ciamento também pode ser abandonada rapidamente,
regular. A discussão entre a Assemai – Associação das porque em nível federal não há formas evidentes de fa-
Empresas Municipais de Saneamento e a Aesb – Asso- zer uma vinculação muito profunda entre essas ques-
ciação das Empresas Estaduais ainda não chegou à tões: a fundiária, a financeira e também a institucional.
maior parte da população brasileira. Muito município Apenas por meio do financiamento que inclua no con-
lutou para ficar com o controle da água e do esgoto no trato a etapa do DI – Desenvolvimento Institucional
passado, e foi forçado a ceder. Hoje, uma grande parte podemos tornar compulsório um plano local, elabora-
dos municípios brasileiros ainda tem a titulação da ção de cadastros, bem como a participação social e o
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acompanhamento pós-ocupação, como faz o Programa leis que regulamentamos e uma rede com setor empre-
Habitar Brasil de urbanização de favelas. Por meio de- sarial de produtores de veículos para, dentro do prazo
le muitos municípios começam a se conhecer melhor, previsto pela lei, adequarmos os ônibus brasileiros e as
por exemplo quantas famílias moram ilegalmente, cidades brasileiras à mobilidade dos idosos e portado-
quantas famílias moram em favelas, em loteamentos res de deficiência. O Conselho aprovou também o pro-
ilegais ou em áreas de risco. grama de regularização fundiária que não existia no go-
Essa política, que faz avançar a administração, a verno federal, e que começou a deslanchar em meados
participação e a cidadania, deve ser garantida pelo con- do ano passado. É um programa cuja implementação
trole social que no MCidades é exercido especialmen- não depende apenas do Ministério, que tem na prefei-
te pelo Conselho das Cidades. tura seu agente central e que depende também dos
Nós realizamos a I Conferência Nacional das Ci- Cartórios de Registro de Imóvel, do Judiciário e do
dades atingindo mais de 3.400 municípios. Eu duvida- Ministério Público. A secretária de Programas Urbanos
va que chegássemos a quinhentos municípios. O mi- Raquel Rolnik acertou um convênio por meio do qual
nistro Olívio Dutra falou: “vamos chegar a mil, dois os cartórios vão fazer registro gratuito quando se tratar
mil”. O que aconteceu foi que o Ministério não reali- de moradia de interesse social. O Conselho das Cida-
zou isso sozinho, e nem poderia. Foi a mobilização so- des agora criou um grupo para fazer acompanhamen-
cial, esse braço organizado da política urbana que saiu to do orçamento do Ministério das Cidades e outro
construindo literalmente as conferências municipais e grupo para ajudar a organizar a II Conferência Nacio-
estaduais. Os governos estaduais e municipais foram os nal. No momento estamos discutindo um texto básico
promotores do evento, mas os atores organizados fo- para a próxima Conferência.
ram fundamentais. Não conseguíamos nem mandar Infelizmente a Anpur ficou fora do Conselho na
gente do Ministério para todas as reuniões. Ficamos as- condição de titular, o que é lamentável, porque a An-
soberbados com tantas conferências municipais, regio- pur tem de fato um acúmulo que é fundamental para
nais, estaduais ou dos segmentos como de arquitetos, aquele Conselho. Vamos ver se este ano as negociações
de engenheiros, reunião de universitários, de centros políticas para a renovação do Conselho permitem que
de pesquisa e de movimentos sociais que estavam dis- essa ausência seja superada.
cutindo o que foi colocado na I Conferência – os prin-
cípios, diretrizes e prioridades da política urbana. Foi RBEUR: Do ponto de vista da democratização da dinâmi-
uma construção árdua, mas acho que foi realmente um ca decisória, o que é que esses espaços conseguem incorpo-
mutirão, um esforço coletivo, e por isso ela foi tão rar em seu âmbito, considerado o alcance da crise urba-
bem-sucedida. na, da fragmentação e dos conflitos urbanos? A questão da
Nós tivemos dificuldade de pagar a instalação da segregação socioespacial pode vir a ser, depois de se enfren-
Conferência para tanta gente –– 2.800 delegados. Es- tar as questões mais imediatas, discutida e enfrentada?
tavam presentes diretores de bancos, que sentaram ao
lado de lideranças sociais de favelas e assim por diante. ERMÍNIA: A questão da segregação é um tema constan-
Não é pouco para a história do Brasil, um país de tan- te no Conselho. Quando se discute mobilidade, trans-
ta desigualdade e discriminação. Então criamos o Con- porte e acessibilidade o que está em pauta é o direito à
selho das Cidades e quatro Câmaras Técnicas que co- cidade. Com o saneamento idem, trata-se dos direitos
meçaram a funcionar a partir de 2004. da população excluída. Quando se discute habitação
O Conselho das Cidades aprovou uma campanha ou programas urbanos, esse tema vem à tona a todo o
para o plano diretor participativo que o Ministério vai momento. A questão fundiária, como já foi destacado,
levar às ruas durante este ano. Aprovou ainda o Siste- não é uma atribuição direta do Executivo federal senão
ma Nacional de Habitação, a Política Nacional do Sa- sob alguns aspectos específicos. A campanha do Plano
neamento Ambiental, a Política Nacional de Trânsito, Diretor pretende fazer com que os Planos apontem on-
diretrizes da Política de Mobilidade e Transporte e re- de vai ter moradia social no interior das áreas urbani-
visão da Lei de Parcelamento do Solo, Lei 6.766. Dis- zadas. Estamos colocando a questão nesses termos bem
cutiu-se o Programa Brasil Acessível que inclui duas simples. Onde vai morar a maior parte da população
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que hoje não tem lugar na cidade formal, legal e urba- causas dos dramas que nossas cidades vivem, no entan-
nizada? Ela não pode ser ignorada. to a formação profissional ainda é compartimentada e
elitista, ou seja, não busca soluções para a maioria que
RBEUR: Não caberia pensar um curso em que se projetas- está excluída.
se a cidade democrática?
RBEUR: Como esse debate está se organizando com vistas
ERMÍNIA: O IAB [Instituto de Arquitetos do Brasil], em à próxima Conferência das Cidades?
parceria com o Ministério das Cidades, vai conduzir
uma campanha pelo Direito à Arquitetura para Todos. ERMÍNIA: Lançamos oito cadernos da Política Nacio-
Estamos pensando no edifício e no desenho urbano, nal de Desenvolvimento Urbano. O que eles têm de
especialmente na moradia chamada impropriamente bom é o acúmulo de muitos anos de tudo o que fize-
de social. A Federação Nacional dos Arquitetos vai mos e que avançou como política institucional do
conduzir uma campanha pelo direito à cidade e ao ur- MCidades, respeitando, obviamente, os limites legais
banismo e também pela universalização da Assistência e ações em andamento. Os cadernos foram redigidos
Técnica também para a moradia social. Essas campa- um tanto prematuramente, sem que todos os estudos
nhas envolverão os Creas, o Confea, o FNEA – os estu- estivessem concluídos, e lançados no final de 2004.
dantes de Arquitetura –, a Abea. Além dos engenheiros Como o tema da reforma ministerial é recorrente es-
e arquitetos, precisamos chegar aos advogados e de- tamos sempre tentando consolidar o estágio presente
mais profissionais para as assessorias técnicas. Não se para, se houver substituição da equipe do MCidades,
trata de uma questão corporativa. Trata-se do direito à deixarmos algo de pactuado e consolidado. Entende-
cidade e do direito à moradia. Mas precisamos atingir mos que a PNDU será reescrita e complementada após
nossas instituições formadoras de profissionais e pes- a Conferência de 2005.
quisadoras... Para discutirmos a PNDU na próxima Conferên-
cia o Conselho das Cidades elegeu quatro grandes te-
RBEUR: A articulação entre luta social e capacitação nu- mas gerais e quatro campanhas de temas mais específi-
ma visão mais abrangente do que a corporativa em rela- cos. Os temas gerais são os seguintes:
ção ao direito à cidade tem se manifestado recentemente? 1 Participação social na política de desenvolvimento
urbano nos três níveis de governo.
ERMÍNIA: Sim, tem. O discurso atual do pessoal dos 2 Pacto federativo ou cooperação intergovernamental
transportes é emocionante se levarmos em conta que para o desenvolvimento urbano.
até há pouco tempo o campo foi dominado pela ma- 3 Financiamento do desenvolvimento urbano.
triz corporativa daqueles que chamávamos de “trans- 4 Prioridades da política urbano/regional e metropolita-
porteiros”. Eles pensam de forma holística. Ainda te- na (nesse caso teremos em mãos estudos que estão sen-
mos muito resquício da matriz antiga sem dúvida, mas do desenvolvidos em várias universidades federais).
a nova semente é forte. A ANTP vem, há muitos anos, As campanhas são as seguintes:
difundindo a relação entre transporte e uso do solo, a a Plano Diretor Participativo – em que a questão fun-
qual dominou, aliás, muitos dos CIAMs. Na maior par- diária e imobiliária terá centralidade com a aplicação
te das cidades brasileiras, mas em especial no Centro- do Estatuto da Cidade e a função social da proprie-
Oeste, Sul de Minas, interior de São Paulo e Norte do dade. Sempre é importante lembrar que entre inten-
Paraná, o absurdo número de lotes vazios constitui um ção e fato há uma profunda distância, por isso tere-
problema muito grave para o custo da infra-estrutura, mos de trabalhar muito para não termos novamente
em especial aquela ligada aos transportes. A desregula- uma indústria de PDs que fazem mais mal do que
mentação dos serviços públicos, os recuos dos investi- bem, como acontece freqüentemente com legisla-
mentos e a tendência de privatização, dominantes nos ções urbanísticas que reforçam a segregação e a ilega-
anos 90, atingem, de modo geral, todas as áreas das lidade. Pretendemos usar um decálogo, que na ver-
quais o MCidades se ocupa. Relacionar esses proble- dade são 12 pontos, como vacina ao PD tecnocrático
mas com a exclusão territorial nos leva a entender as e burocrático.
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b A aprovação do PL da Política do Saneamento Am- em relação à própria União quanto na relação federati-
biental – que pretende fornecer regras e dar um mar- va. Nesse sentido temos atuado de forma muito coope-
co institucional para uma área que está muito desre- rativa com a SAF – Secretaria de Assuntos Federativos,
gulada. que pertence à Secretaria de Coordenação Política.
c A aprovação do PL do Fundo Nacional de Habitação É preciso reconhecer, no entanto, que há muito a
de Interesse Social – que está há quase 13 anos no fazer nessa questão territorial, pois vários são os minis-
Congresso Nacional e que no momento está no Se- térios que elegem regiões prioritárias para intervenção,
nado, após aprovação pela Câmara Federal. como é o caso da Região do Arco do Desmatamento,
d Acessibilidade e mobilidade – campanha por uma na Amazônia, e a Região do Pantanal (ambas de inte-
cidade mais acessível para os idosos e pessoas com resse do MMA), Regiões de Fronteira (MRE, MIN e De-
deficiência. fesa), Região do Semi-Árido (Intermini) e Região do
Muitos dos participantes do Conselho das Cida- Vale do Jequitinhonha (MIN, MMA, MDS e outros), ape-
des defendem institucionalização da participação so- nas para lembrar alguns. Como há cidades em todos
cial na política urbana ou mesmo um sistema à seme- eles, nós ficamos um pouco assoberbados e sem poder
lhança do SUS. Todos concordam entretanto que responder satisfatoriamente a todas as demandas.
temos muito pouco acúmulo no País para definir tal
estrutura neste ano sem uma discussão ampla, abran- RBEUR: Você poderia falar um pouco dos constrangimen-
gente e democrática. tos de ordem macroeconômica, que certamente, nós sabe-
mos, limitam a ação transformadora: há sinais de percep-
RBEUR: E quanto a isto, como fica a relação do Ministé- ção no interior do Estado dessa forte associação entre a
rio das Cidades com os outros ministérios mas, sobretudo crise urbana e as grandes escolhas macroeconômicas?
com aquilo que podermos chamar de ministério do terri-
tório, no caso seria esse Ministério da Integração Nacional? ERMÍNIA: Eu tenho me recusado a fazer comentários
sobre a política macroeconômica, como vocês sabem.
ERMÍNIA: Essa é uma relação que estamos construindo. Sou parte do governo e espero por mudanças que nos
Foi lançado um Plano Nacional de Desenvolvimento permitam enfrentar os problemas considerando a esca-
Regional e nós estamos perfeitamente afinados com la que eles apresentam. Estou sempre procurando en-
aquelas linhas gerais e diretrizes, já que a professora Tâ- tender por onde passa a continuidade e as mudanças.
nia Bacelar participou daquela construção e hoje nos O que as determina. Quero apenas comentar aqui a
assessora na proposta da política urbana/regional. Co- constatação das dificuldades dos economistas enxerga-
mo parte dessa política foi criada uma Câmara Intermi- rem a questão urbana. Economistas em todos os níveis,
nisterial de Desenvolvimento Regional e essa câmara não só os da máquina do governo federal. No seminá-
criou alguns grupos de trabalho interministeriais visan- rio que lançou a Proposta Nacional de Desenvol-
do a integração das ações federais e algumas regiões. O vimento Urbano, insistimos na questão da relação en-
MCidades ganhou a coordenação de um GT que trata tre desenvolvimento urbano e desenvolvimento.
das regiões metropolitanas. Como nossas pernas são Ficamos impressionados como isso não é visto. Mesmo
mais curtas do que nossas tarefas, não demos ainda a nos abundantes relatórios internacionais sobre a po-
devida velocidade ao assunto que é central. A questão breza a pouca importância dada às cidades é notável,
metropolitana é especialmente delicada devido às com- em especial à política fundiária e imobiliária.
petências federativas. O quadro atual da gestão metro-
politana não é nada satisfatório, porém quando o go- RBEUR: Há uma alienação territorial incluindo as me-
verno federal toca no assunto há reações de um ou trópoles? Abstraem-se os fluxos, imaginando-se a coisa eco-
outro governo estadual contra o que é interpretado co- nômica desconectada da questão territorial?
mo uma intervenção indevida. Como o problema é
pauta da Conferência Nacional deste ano e estamos de- ERMÍNIA: Sem dúvida, essa constatação é notável. On-
senvolvendo diversos estudos e ações visando um pacto de foram parar as heranças de Caio Prado e Celso Fur-
federativo, esperamos avançar com esse assunto tanto tado?
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RBEUR: Há uma preocupação, nos textos da Política Na- vir onde o Brasil está crescendo muito, Norte, Centro-
cional de Desenvolvimento Urbano, com a menção às Oeste e alguns lugares do Leste. Numa segunda escolha,
perdas econômicas do mal desenvolvimento? teríamos de nos concentrar nas regiões metropolitanas
porque 80% das favelas estão ali localizadas. Por fim,
ERMÍNIA: Percebo que, na lógica prevalecente, não é o outros nos assinalam os pequenos municípios de base
prejuízo econômico que mais conta, mas o financeiro. rural e a necessidade de neles desenvolver consórcios
Põe-se dinheiro na obra desde que a rentabilidade da- ou associações de municípios para qualificar e segurar
quele dinheiro que você vai investir for maior do que a os jovens, dar perspectiva e condição econômica e so-
de outro negócio ou se o retorno medido pela rentabi- cial para estes jovens. Eu estou olhando isso com a
lidade financeira for maior. Essa é a lógica utilizada pa- tranqüilidade de que vamos, exatamente, ter um am-
ra aprovar projetos que compõem as exceções em rela- plo debate com propostas que não são simples, como
ção ao superávit primário. É difícil ser ouvido a partir revela a história geopolítica do Brasil.
de outro lógica. Fizemos uma proposta para a área de
transporte coletivo para compor os famosos “projetos- RBEUR: Na experiência dos eixos do Avança Brasil, esque-
pilotos” negociados com o FMI. Mostramos como um ceram as cidades. Em princípio, não seria preciso cidade
corredor de ônibus permite economia de combustível, nenhuma para a soja, mas ao construir e asfaltar vias pa-
rapidez do tráfego, pois retira automóveis de circulação, ra escoar a soja poderão aparecer favelões nas beiras de es-
diminuição de horas perdidas, economia de insumos tradas. Nesse sentido, falamos aqui da necessidade de
como pneus etc., redução da poluição, redução de aci- capacitação, da passagem ao conhecimento. Mas, onde ra-
dentes com mortos e feridos etc. Calculamos o valor de cionalidades distintas encontram-se em jogo, caberia tal-
tudo isso. O financiamento do governo federal seria vez pensar em espaços de persuasão. Haveria que se cons-
condicionado a uma política de integração dos trans- truir um arrazoado para a interlocução com fabricantes
portes, o que levaria e uma economia maior. Mas a ló- de emendas que querem o bem dessas populações que re-
gica do julgamento não é econômica mas financeira, foi presentam mas não têm a noção da relatividade daquela
o que percebi com meus parcos conhecimentos na área. decisão no âmbito do desafio de se fazer políticas mais ar-
ticuladas, mais eficazes.
RBEUR: Na discussão sobre cidade e desenvolvimento re-
gional, os documentos do Ministério falam em “tentar fa- ERMÍNIA: Aí tratar-se-ia de conscientização, um traba-
vorecer novas centralidades”, dada a nova configuração lho mais pedagógico do que propriamente preparar
da rede urbana. quadros. Vejo que na nossa ação a comunicação é fun-
damental. Ocupar o espaço político é o que me preo-
ERMÍNIA: Se você pegar as políticas setoriais e mesmo cupa o tempo todo. Como é que nós entramos na
a política intra-urbana holística, no Ministério, nós es- agenda política, como ganhamos espaço político, po-
tamos bem preparados. Temos experiência de reflexão, der político, legitimidade, importância nesse quadro
de administração e de militância. Se você pegar a ques- de invisibilidade do território e das cidades. Quando a
tão do território nacional – eu não sei se chamamos is- gente discute no Ministério constatamos um mundo
so de questão regional – é diferente. O debate não es- de boas intenções mas freqüentemente os recursos das
tá suficientemente maduro e volta e meia retornamos emendas tomam caminhos fragmentados.
para algumas teses antigas como foi o Programa de Ci- De alguma maneira, na agenda encontra-se até a
dades Médias dos anos 70. O PNUD divulgou há pou- luta para garantir a existência do Ministério sem tor-
co o que deveria ser prioridade – seiscentos municípios nar-se um balcão, com a sua missão de coordenar este
carentes. Para buscar as prioridades da política urbana esforço nacional. Estamos conquistando muitos prefei-
partindo de uma visão territorial, estamos construindo tos. O Ministério das Cidades está representando uma
uma tipologia de cidades que vai, evidentemente, levar proposta. Essa proposta conquistou muitos cargos mu-
em conta a dinâmica regional. Numa primeira opção, nicipais a partir da última eleição para prefeitos, no fi-
podemos decidir fortalecer os pólos médios regionais, nal de 2004. São pessoas que passaram pelos nossos
especialmente nas áreas dinâmicas no Brasil, ou inter- cursos (das nossas universidades), passaram pelos nos-
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sos movimentos, pelas nossas mobilizações, pelos nos- não é isso, falo do projeto em si. É preciso lembrar que,
sos eventos, que fizeram teses com denúncias ou com como governo, nós apanhamos também.
busca de saídas. Tudo isso estava muito pulverizado
apesar do esforço do movimento de reforma urbana. O RBEUR: O que o Ministério entende poder ser a contri-
que eu sinto é que estamos avançando muito rapida- buição da Anpur?
mente nesses dois anos, se olharmos todo o tempo de
caminhada. Por quê? Porque sempre falamos que o Es- ERMÍNIA: Em relação à Anpur, acho que ela deveria en-
tado tinha que assumir o seu papel de regulador. Nós trar no Conselho das Cidades, a partir da Conferência
temos muita dificuldade ainda de entrar na agenda do de 2005. Temos tanto a discussão da proposta que a
Congresso. Tivemos sim uma troca intensa com a Co- Tânia Bacelar vai trazer envolvendo uma Política Ter-
missão de Desenvolvimento Urbano da Câmara Fede- ritorial Urbana para o País, como a proposta de Políti-
ral. Avançamos em nossas relações com a equipe que ca de Pesquisa, Tecnologia e Capacitação. Nessa, a An-
coordena os trabalhos e com vários parlamentares. pur é o principal interlocutor porque não poderemos
Entre suas cinco prioridades para o orçamento de fazer essa capacitação só pela via das ONGs.
2005 a Comissão elegeu quatro que eram coincidentes
com as prioridades do Ministério. Quando chegou no RBEUR: A agenda de pesquisa deve ser conversada de mi-
orçamento final, caíram as quatro prioridades e perma- nistério para ministério, de ministro para ministro, en-
neceu uma: exatamente a que diz respeito à infra-estru- volvendo ciência e tecnologia. A conjuntura não estaria a
tura, que redunda em asfalto, especialmente. O que eu favorecer uma mobilização do movimento social e intelec-
depreendo daí? No Congresso Nacional, externamente tual em consonância com a dinâmica desse Ministério?
à Comissão de Desenvolvimento Urbano, nós ainda
não somos agentes. Nós o somos, na medida em que o ERMÍNIA: Se vocês estivessem no Conselho das Cida-
Ministério se tornou um espaço de cobiça na reforma des, a coisa já seria completamente diferente. Necessi-
ministerial mas especialmente porque concentra muitas tamos de um primeiro documento para discutir ciên-
emendas. Em relação aos economistas já comentei nos- cia, tecnologia, pesquisa e capacitação, definindo os
sa invisibilidade. Em relação à mídia, houve um avan- interlocutores, os assuntos, os financiadores, e para
ço, ainda que absolutamente insatisfatório – a Folha de quem a gente se dirige.
S. Paulo criou o caderno “Cidades”, depois o extinguiu
ou transformou-o para caderno “Cotidiano”. Raramen- RBEUR: Para concluir, você pode dizer que há espaço pa-
te você vê notícias sobre cidades nos cadernos de polí- ra uma ação política que leve a algum tipo de transfor-
tica nacional. O assunto vai para o caderno de política mação? A despeito de constrangimentos de ordem econô-
local. Mas acho que estamos avançando em visibilida- mica e da carência de recursos, há processos que valem a
de, principalmente com a criação do Ministério, do pena ser desenvolvidos?
Conselho e das Conferências. Alguns prefeitos estão
percebendo isso. Algumas entidades profissionais e so- ERMÍNIA: Sou uma pessoa muito crítica. Já abandonei
ciais estão defendendo a proposta do Ministério como muito lugar porque eu não via essa mudança, esse
se fosse uma coisa delas. Por exemplo, eu não pude ir avanço e esse crescimento. O ministro Olívio Dutra é
no Encontro do Confea em São Luís (houve reuniões um uma pessoa voltada para a o interesse público. Ele
dos Creas no País inteiro, sobre sustentabilidade urba- tem essa postura dedicada para a organização popular,
na; fui em várias, a discussão foi importantíssima e ga- social, democrática e transparente. Eu acredito que
nhamos muita gente para o debate democrático), mas nossa geração vai realizar a utopia de criar uma Políti-
percebi, lendo o jornal, que um companheiro, que é do ca Nacional de Desenvolvimento Urbano democrática,
Conselho das Cidades, assumiu as propostas do Conse- solidária, com todos os valores que a gente sempre
lho e do Ministério e divulgou nossas políticas em ela- quis. Há garantias de que ela seja sustentável? A única
boração. Foi maravilhoso. Tem alguém lá que defendeu forma de garantir sua sustentabilidade – embora sua
nossa proposta. Não digo que seja interessante essa institucionalização seja importante – é a luta social.
identidade entre papel da sociedade e papel do governo, Pois mudança cultural é o que importa.
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LES NOUVEAUX PRINCIPES urbana moderna”. Finalmente, em “Os princípios de
DE L’URBANISME um novo urbanismo”, são apresentadas as proposições
François Ascher para enfrentar os desafios da nova fase da modernida-
Paris: Éditions de l’Aube, 2004. (l’Aube poche essai.) de.
A descrição cuidadosa da relação entre as cidades
Pedro de Novais Lima Junior (UFV) e a organização e dinâmica sociais é necessária para ga-
rantir legitimidade aos preceitos que Ascher defende
As sociedades ocidentais adentram uma nova fase como adequados para nortear as intervenções urbanas
da modernidade. Profundas transformações nas formas contemporâneas. A argumentação é enriquecida de
de pensar e agir, nas ciências e técnicas, nas relações po- uma reconstrução da história dessa relação, recurso ló-
líticas, econômicas e sociais, desencadeiam uma tercei- gico para sustentar a novidade dos princípios urbanís-
ra revolução urbana moderna e colocam em pauta mu- ticos apresentados. A análise detém-se na modernida-
danças nas formas de conceber, produzir e gerir cidades de, na qual são distinguidas três fases, correspondentes
e territórios. Em linhas gerais, esse é o contexto cons- a diferentes “revoluções urbanas modernas”.
truído por François Ascher (2001) com o fim de subsi- Modernidade é o resultado de um processo (mo-
diar sua argumentação sobre a emergência e sobre a ne- dernização) de permanente transformação social, referi-
cessidade de um novo urbanismo, instrumento com o do ao futuro e impulsionado pela combinação de três
qual a sociedade pode enfrentar as transformações ur- dinâmicas diferentes: individualização, racionalização e
banas em curso, aproveitando as oportunidades que se diferenciação social. Individualização diz respeito à
apresentam e limitando possíveis efeitos nocivos. identificação da pessoa, e não do grupo ao qual perten-
Em sua primeira edição (Aube Nord, 2001) o li- ce o indivíduo, como elemento base da constituição do
vro recebeu apoio da Região Nord-Pas-de-Calais (cole- todo social (p.13). Racionalização é indicativa do des-
tividade que compõe um dos níveis da administração prezo da tradição e do valor atribuído à experiência- –
territorial francesa), dentro de um programa que se especialmente aquela elaborada na forma do conheci-
propõe a contribuir para “o desenvolvimento de uma mento científico – para o balizamento das tomadas de
cultura prospectiva regional” (segundo J-F. Stevens, da decisão. Diferenciação social, relacionada à diversifica-
Mission prospective du Conseil régional Nord-Pas-de- ção de funções e ao desenvolvimento da divisão técni-
Calais). Pelo menos outras duas edições, em coleções ca e social do trabalho, explica o aumento da diversida-
diferentes (Intervention/Monde en cours, 2001; e de e das desigualdades entre indivíduos e grupos e a
l’Aube poche essai, 2004), foram lançadas pela mesma constituição de uma sociedade cada vez mais complexa.
editora. Sua publicação recente em formato de bolso No recorte temporal apresentado, a primeira fase
consolida o reconhecimento do autor que vem, há al- da modernidade corresponde à Renascença. O desen-
gum tempo, construindo um panorama sobre a socie- volvimento e a autonomização da ciência, as mudanças
dade e o urbanismo contemporâneos (Métapolis ou quanto ao lugar da religião, a emancipação política da
l'avenir des villes, 1995; La République contre la ville, civitas e a emergência do Estado-nação contribuem pa-
1998; Ces événements nous dépassent, feignons d'en être ra reestruturar as cidades: o novo poder do Estado to-
les organisateurs, 2001). ma lugar central e apresenta-se, pela perspectiva, à
O texto está organizado em quatro partes, reve- apreciação do indivíduo; a mobilidade torna-se uma
ladoras da estrutura de argumentação do autor. Em questão importante, as cidades são expandidas e suas
“Urbanização e Modernização” encontra-se delineada ruas alargadas e diferenciadas funcionalmente. Con-
a relação histórica entre as cidades e as sociedades mo- forme nota Ascher, a cidade renascentista é moderna
dernas e entre o que são consideradas como sucessivas porque “é projeto; ela cristaliza a ambição de definir e
revoluções urbanas e as respostas urbanísticas que pro- dominar o futuro, de ser o enquadramento espacial de
curaram fazer-lhes face. A segunda parte do livro, inti- uma nova sociedade” (p.16).
tulada “A terceira modernidade”, trata da presente fase O urbanismo surge na segunda modernidade,
do processo de modernização, cujo rebatimento espa- indício da mobilização científica e técnica demandada
cial é discutido na parte seguinte: “A terceira revolução para garantir o bom desempenho dos sistemas de
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R E S E N H A
transporte e estocagem de bens, informações e pes- incerteza e risco, estratégia e precaução tornam-se as
soas. Seu propósito é atenuar as insuficiências e dis- palavras-chave da modernidade radical (também desig-
funções do mercado, conforme materializadas no am- nada reflexiva).
biente construído, por meio do ajustamento das A obrigatoriedade de escolhas constantes – deve-
cidades à realidade de um mundo industrializado e às se decidir sobre tudo todo o tempo – contribui para o
exigências da produção, distribuição e consumo desenvolvimento de padrões de vida e perfis de consu-
(p.18). Nessa média modernidade, os princípios da mo cada vez mais diversificados. Intensifica-se, assim,
indústria se tornam referência para pensar a cidade: a o processo de individualização, que se manifesta na
especialização taylorista fabril toma a forma do zonea- constituição de grupos sociais cada vez menores, que
mento espacial; com a mediação do Estado-Providên- desafiam as formas de representação política institu-
cia, o mundo fordista da produção e consumo em cionalizadas e a oferta não segmentada de bens e servi-
massa ganha materialidade, inscreve-se e estrutura o ços. Mesmo os processos tidos como homogeneizantes
espaço urbano pela disposição de redes de comunica- contribuem para acentuar a diferenciação social: a
ção, saneamento e transportes, pela implantação dos reestruturação produtiva em escala mundial se vale de
grandes conjuntos de habitação social e pela localiza- assimetrias territoriais e, assim, reforça as desigualda-
ção de equipamentos coletivos. A diferenciação social des entre sociedades locais, inclusive quando as articu-
também encontra seu lugar graças a alguns avanços la num mesmo processo de produção; a difusão, pelo
tecnológicos como os elevadores, que permitiram que planeta, de um conjunto abrangente de referências
os ricos pudessem habitar os andares ensolarados dos culturais expande o leque de opções de indivíduos e
centros urbanos, e ao desenvolvimento dos transpor- grupos (p.31).
tes coletivos, que possibilitou o surgimento dos subúr- Também contribuem para a crescente e mais
bios industriais ou residenciais. complexa diferenciação social os maiores graus de mo-
A acentuação das três dinâmicas constitutivas da bilidade social: distintas formas de socialização (pelos
modernização conforma uma sociedade mais racional, meios de comunicação e informação, por exemplo) re-
mais individualista e mais diferenciada, que o autor de- duzem o peso das origens sociais na determinação de
dica-se a descrever pois, a seu ver, é quando “nos tor- escolhas e práticas individuais. Como a mobilidade fí-
namos verdadeiramente modernos” (p.22). sica aumenta – os avanços tecnológicos permitem a au-
A aceleração do processo de transformações, ca- tonomia diante dos constrangimentos espaciotempo-
racterística da modernidade radical, coloca em dúvida rais já que, com os novos sistemas de comunicação, as
receitas anteriormente acreditadas e demanda que as interações podem prescindir do encontro direto –,
ações (intervenções urbanas, por exemplo) sejam também são ampliadas as possibilidades de contatos e
acompanhadas de processos reflexivos: é necessário trocas e, portanto, alargadas as bases sobre as quais as
examinar permanentemente as escolhas possíveis e ree- diferenças ou afinidades se assentam (p.33).
xaminá-las em função do que se começa a fazer (p.23). Ascher emprega a noção de sociedade hipertexto
A consciência das condições de limitada racionalidade para designar a emergência de indivíduos socialmente
suscita uma crescente mobilização de conhecimentos plurais, isto é, que pertencem, simultaneamente, a di-
para instruir a tomada de decisões. Assim é explicado ferentes grupos sociais (num hipertexto, uma mesma
o desenvolvimento de ciências relacionadas aos proces- palavra faz parte de uma multiplicidade de textos).
sos de decisão, tais como as teorias dos jogos e escolhas Trata-se do oposto à idéia de uma sociedade de massa,
limitadas, aplicadas na formulação de estratégias em si- pois, na modernidade radical, a atomização social é
tuações de conflitos. A demanda por reflexividade apenas aparente: os elos que ligam os indivíduos não
também justifica a importância atribuída às ciências estão rompidos, são mais instáveis, porém mais nume-
cognitivas e o interesse em novas formas de representa- rosos e fáceis de serem refeitos. Assim, a sociedade hi-
ção da realidade, como as teorias do caos e da comple- pertexto pode ser representada por séries de redes co-
xidade. As dificuldades, angústias e inseguranças da so- nectadas que expressam novos modos de construção
ciedade contemporânea são expressas em termos de identitária e de formação do tecido social (a possibili-
perigos prováveis a serem administrados (p.26). Assim, dade de indivíduos deslocarem-se entre diferentes uni-
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versos sociais é descrita em termos de uma solidarieda- sas novas formas urbanas exprimem a crescente irrele-
de comutativa, em contraste com as formas mecânica vância da proximidade na vida cotidiana e demandam
e orgânica de solidariedade, propostas por Dürkheim). grande intensidade e volume de deslocamentos espa-
O texto de Ascher acompanha a narrativa corren- ciais. Porém, as diversas metápolis são delimitadas pela
te, segundo a qual a economia contemporânea está fun- extensão de seus espaços urbanizados: a metapolização
dada na produção, apropriação, venda e uso de conhe- é considerada um duplo processo de homogeneização,
cimentos, informações e processos. A nova economia pelo qual os mesmos atores, interesses e lógicas estão
do conhecimento e da informação caracteriza-se pela distribuídos por toda a parte, mas também de diferen-
reflexividade. Ela resulta da crise dos dispositivos de ciação, construído pela concorrência interurbana, que
produção repetitivos e relativamente simplificados, pró- acentua a importância das especificidades locais.
prios do industrialismo. Ela também coloca em questão As tecnologias de informação e comunicação
a previsibilidade e o otimismo quanto ao futuro da so- contribuem para a transformação do sistema de mobi-
ciedade industrial e desestabiliza a crença no planeja- lidades urbanas e para as reestruturações espaciais. Po-
mento como meio de reduzir as incertezas (p.43). A no- rém, a cidade real não é substituída pela virtual, pelo
va economia demanda a mobilização, sob diversas contrário, ao contribuir para a banalização do audiovi-
formas, do progresso das ciências e das técnicas e de- sual, o desenvolvimento das telecomunicações termina
pende da consideração de valores de capital difíceis de por valorizar o contato direto, forma de comunicação
mensurar (know-how, relações pessoais, criatividade). privilegiada que constitui a singularidade das concen-
A economia cognitiva também é mais individua- trações urbanas.
lizada no campo do consumo e mais diferenciada no O processo de crescente individualização, com
âmbito da produção, já que emprega novas técnicas de base no qual a sociedade contemporânea se organiza,
divisão do trabalho e de exteriorização e terceirização tem como conseqüência o surgimento de novos arran-
das atividades da empresa (p.45). Por isso, suscita no- jos no espaço e no tempo individuais: envolve, em ge-
vas formas de regulação, entre as quais se destacam as ral, maiores deslocamentos e resulta em ajustes nos
parcerias entre diferentes tipos de atores (p.50). Trata- modos de regulação dos horários de trabalho e de aten-
se, sobretudo, de uma economia mais urbana, na qual dimento ao público. A maior autonomia na organiza-
a cidade é transformada em um espaço produtivo cu- ção do espaço-tempo implica maior dependência a
jas condições de desenvolvimento dependem da aces- sistemas técnicos, especialmente de transporte e comu-
sibilidade aos fluxos de riqueza. A inserção nos circui- nicação particulares. O acesso desigual a esses sistemas
tos globais constitui justificativa para as iniciativas dos é fator de diferenciação social e suscita pressões sobre
poderes públicos de criar ambientes material, econô- os serviços públicos, sobretudo demandas por meios
mica, social e culturalmente propícios para as deman- de transporte mais flexíveis. Também constitui um
das externas. problema, nesse caso para os processos institucionali-
A modernidade radical é acompanhada por uma zados de decisão política e para as organizações que se
terceira revolução urbana caracterizada, segundo o au- propõem a integrar posições sobre um grande número
tor, por cinco grandes desenvolvimentos: a metapoliza- de questões, a relativização da importância dos grupos
ção; a transformação dos sistemas urbanos de mobili- de pertença tradicionais, resultante da diversificação
dade; a formação de espaços-tempos individuais; a dos interesses individuais e da recomposição dos cole-
redefinição das relações entre interesses individuais, tivos com base na tecedura de novos e mais instáveis
coletivos e gerais, e as novas posturas quanto aos riscos. elos sociais.
O fenômeno da metapolização refere-se à mudan- O esforço moderno em dirigir o futuro – que im-
ça de escala e forma das cidades, permitida pelo desen- plica conhecer possibilidades e antecipar escolhas – e a
volvimento dos meios de transporte e estocagem de circulação intensa e acelerada de informações sobre os
pessoas, bens e informações. Metápolis são “vastas co- mais diversos fatos ampliam a incerteza e fazem crescer
nurbações, distendidas e descontínuas, heterogêneas e a noção de risco, que se difunde por diferentes domí-
multipolarizadas” (p.58), decorrentes da redução das nios da vida social (p.73). O aumento da insegurança
diferenças físicas e sociais entre a cidade e o campo. Es- resulta em maiores exigências por seguridade: atores
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sociais buscam tudo o que possa produzir confiança. ferentes demandas individuais, às novas práticas sociais
Nesse quadro desenvolve-se o “princípio da precau- e às formas variadas de sociabilidade (p.84-93).
ção”, relacionado às possíveis conseqüências de uma O novo urbanismo também tem como desafio
ação. O risco e o princípio da precaução constituem buscar mecanismos para construir quadros de referên-
elementos fundamentais no contexto sobre o qual cia e decisão mais ajustados à crescente diferenciação
agem os atores sociais, públicos e privados, diretamen- social. Isto demanda, por um lado, processos decisó-
te envolvidos na produção do espaço urbano. rios que enfatizem o compromisso, em contraste à im-
A terceira revolução urbana moderna suscita no- posição do desejo da maioria (p.88) e, por outro, a re-
vas questões aos urbanistas e planejadores urbanos e qualificação dos poderes públicos, tornando-os mais
demanda a reconsideração das categorias e dos princí- sensíveis às demandas, interesses e ações dos diversos
pios, até então dominantes, de análise e intervenção atores sociais (p.90). Nas palavras do autor, trata-se de
na cidade. Das questões surgem os desafios cujas res- trabalhar por uma “governança metapolitana”, noção
postas constituem o esboço de um novo urbanismo que indica o enriquecimento da democracia represen-
(definido como novidade em contraste com as práti- tativa com novos procedimentos de deliberação e con-
cas modernistas). sulta (p.94).
O primeiro desafio diz respeito à necessidade de O texto de Ascher é muito bem elaborado, sua
romper com os planos urbanos de longo prazo e narrativa é agradável e de fácil compreensão. A análise
de buscar abordagens mais reflexivas, que permitam do mundo contemporâneo não apresenta novidades –
elaborar e gerir os projetos num contexto incerto. Se- ela pode ser encontrada alhures: Ulrich Beck, An-
gundo Ascher, a noção de projeto é fundamental para thonny Giddens, Manuel Castells –, no entanto, o au-
as novas práticas urbanísticas, ela indica um instru- tor é perspicaz e convincente em seus exemplos, espe-
mento de antecipação (como na acepção tradicional da cialmente quando discute o papel da tecnologia na
palavra), mas também de negociação e de indução de produção de novas conformações espaciotemporais.
iniciativas de diferentes atores: projetos servem para O problema é que, ao tratar dos grandes movi-
provocar situações que evidenciam as disposições de mentos da sociedade ocidental e submetê-los à idéia de
diferentes grupos e as possibilidades e obstáculos que a modernidade, o autor desconsidera o processo de
sociedade se coloca. Trata-se de passar do planejamen- construção do social, resultado e expressão de conflitos
to urbano ao “gerenciamento estratégico urbano”, for- intensos e de diversas ordens. Pelo contrário, descreve
ma que busca aproveitar eventos e forças das quais pos- um mundo que se desenvolve espontaneamente, a par-
sa tirar partido (p.80). Como corolário dessa ênfase tir do rearranjo de suas próprias estruturas. Não são
gerencial, o novo urbanismo tende a privilegiar os re- apresentados os atores desse processo, aqueles que, em
sultados em relação aos meios e as avaliações de perfor- suas ações, constroem o mundo descrito. Aqui não é
mance em contraposição à normatividade dos planos, possível ignorar a dimensão política do trabalho de
às leis e regras impostas (eventualmente, descontextua- Ascher: a forma neutralizada como é representada a
lizadas; p.81). A ênfase na performance suscita o desen- consolidação da terceira modernidade e a revolução ur-
volvimento de instrumentos e técnicas estranhas ao ur- bana que a acompanha – como realização de tendên-
banismo modernista, acionadas para mobilizar cias anteriormente constituídas – contribui para a na-
múltiplas inteligências e integrar as lógicas de diferen- turalização da ordem social que seu proponente
tes autores. vivencia em posição privilegiada.
Em termos do espaço físico, o desafio urbanístico O trabalho de neutralização que o autor em-
diz respeito à construção de uma cidade mais comple- preende fica evidente nos trechos em que é discutida a
xa – com espaços polivalentes e equipamentos e servi- necessidade de revisão das práticas democráticas a fim
ços multifuncionais, ou seja, que permitam atividades de dar espaço às demandas de grupos cada vez mais di-
de natureza diferente num mesmo lugar – e integrada, ferenciados. Pode-se verificar, por exemplo, o desloca-
em seus diversos sistemas e redes. As mudanças são ne- mento da questão sobre quem deve participar para a já
cessárias para garantir um uso mais intensivo dos espa- suficientemente debatida e aceita idéia de que “o pla-
ços urbanos e para que as cidades possam atender às di- nejamento deve ser participativo”, resultado da ênfase
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GODARD, O. “Environnement, modes de coordination et systèmes de légitimité: analyse de la catégorie de patri-
moine naturel”. Revue Economique, Paris, n.2, p.215-42, mars 1990.
BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1981.
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