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REVISTA BRASILEIRA DE

ESTUDOS
publicação da associação nacional de pós-graduação

URBANOS
e pesquisa em planejamento urbano e regional

E REGIONAIS ISSN 1517-4115


REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS
Publicação semestral da ANPUR
Volume 6, número 2, novembro de 2004

EDITOR RESPONSÁVEL
Henri Acselrad (UFRJ)
COMISSÃO EDITORIAL
Geraldo Magela Costa (UFMG), Marco Aurélio A. Filgueiras Gomes (UFBA),
Maria Flora Gonçalves (Unicamp), Norma Lacerda (UFPE)
CONSELHO EDITORIAL
Ana Fernandes (UFBA), Carlos Bernardo Vainer (UFRJ), Carlos Roberto M. de Andrade (USP/São Carlos),
Circe Maria da Gama Monteiro (UFPE), Clélio Campolina Diniz (UFMG), Flávio Magalhães Villaça (USP),
Frank Svensson (UnB), Frederico de Holanda (UnB), Jan Bitoun (UFPE), Lícia Valladares (IUPERJ),
Marcus André B. C. de Melo (UFPE), Marta Ferreira Santos Farah (FGV/SP), Martim Smolka (UFRJ),
Maurício Abreu (UFRJ), Milton Santos (USP) in memorian, Tania Bacelar (UFPE), Tânia Fischer (UFBA),
Wilson Cano (Unicamp), Wrana Panizzi (UFRGS)
COLABORADORES DESTE NÚMERO
Antonio Pinho (EA/UFBA), Regina Pacheco (FGV/SP), Rodrigo Ferreira Simões (Cedeplar/UFMG), Jair do Amaral Filho
(Ipece/UFCE), Marilia Luiza Peluso (Neur/UnB), Tereza Ximenes (NAEA/UFPA), Adauto Lucio Cardoso (Ippur/UFRJ),
Decio Rigatti (Propur/UFRGS), Ana Lucia Duarte Lanna (FAU/USP), Francisco de Assis da Costa (PPGAU/FAUFBA),
Cibele Saliba Rizek (USP/SC), Robert Moses Pechman (IPPUR/UFRJ), Wrana Panizzi (UFRGS), Norma Lacerda (MDU/UFPE)
PROJETO GRÁFICO
João Baptista da Costa Aguiar
CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO
Ana Basaglia
REVISÃO
Fernanda Spinelli
ASSISTENTE DE ARTE
Priscylla Cabral
FOTOLITOS
Join Bureau de Editoração
IMPRESSÃO
Assahi Gráfica e Editora
Indexado na Library of Congress (E.U.A.)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.6, n.2,


2004. – : Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editor
responsável Henri Acselrad : A Associação, 2004.
v.

Semestral.
ISSN 1517-4115
O nº 1 foi publicado em maio de 1999.

1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação


Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento
Urbano e Regional). II. Acselrad, Henri

711.4(05) CDU (2.Ed.) UFBA


711.405 CDD (21.Ed.) BC-2001-098
REVISTA BRASILEIRA DE

ESTUDOS
publicação da associação nacional de pós-graduação

URBANOS
e pesquisa em planejamento urbano e regional

E REGIONAIS
VO L U M E 6 - N Ú M E R O 2 - N OV E M B R O 2 0 0 4

S U M Á R I O

ARTIGOS 85 QUALIDADE DO E SPAÇO R ESIDENCIAL E S US -


TENTABILIDADE : (R E )D ISCUTINDO C ONCEITOS E
9 A CIDADE : O BJETO DE E STUDO E E XPERIÊNCIA (D ES )C ONSTRUINDO PADRÕES – Maria Conceição
V IVENCIADA – Maria Stella Bresciani Barletta Scussel e Miguel Aloysio Sattler

27 O S INSTRUMENTOS DA R EFORMA U RBANA E HOMENAGEM


O I DEAL DE C IDADANIA : A S C ONTRADIÇÕES EM
C URSO – Luciana Corrêa do Lago 97 C ELSO F URTADO E O P LANEJAMENTO – T EO -
RIA E A ÇÃO – Hermes Magalhães Tavares
35 PARTICIPAÇÃO C IDADÃ E R ECONFIGURAÇÕES
NAS P OLÍTICAS U RBANAS NOS ANOS 90 – Flávia de ENTREVISTA
Paula Duque Brasil
109 O D ESENVOLVIMENTO U RBANO D EMOCRÁ -
53 J OVENS NO M UNICÍPIO DE S ÃO PAULO : TICO COMO U TOPIA – Entrevista com Ermínia Ma-
E XPLORANDO O E FEITO DAS R ELAÇÕES DE V IZI - ricato, Secretária Executiva do Ministério das Ci-
NHANÇA – Renata Mirandola Bichir, Haroldo da dades, por Ana Clara Torres Ribeiro e Henri Acselrad
Gama Torres e Maria Paula Ferreira
RESENHA
71 T ERRITÓRIOS DA P OLÍTICA EM C ARACAS : U SOS
E R EPRESENTAÇÕES DO E SPAÇO P ÚBLICO – Loren- 123 Les nouveaux principes de l’urbanisme, de François
zo González Casas Ascher – por Pedro de Novais Lima Junior
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL – ANPUR

GESTÃO 2003-2005
PRESIDENTE
Heloisa Soares de Moura Costa (IGC/UFMG)
SECRETÁRIO EXECUTIVO
Roberto Luis de Melo Monte-Mór (CEDEPLAR/UFMG)
SECRETÁRIA ADJUNTA
Jupira Gomes de Mendonça (NPGA/EA/UFMG)
DIRETORES
Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ)
Ana Fernandes (UFBA)
Brasilmar Ferreira Nunes (UnB)
CONSELHO FISCAL
Carlos Roberto Monteiro de Andrade (USP/SC)
José Antônio Fialho Alonso (FEE)
Sonia Marques (UFRN)

Apoio
EDITORIAL
O presente fascículo da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais reúne
um conjunto de trabalhos selecionados pela Comissão Científica do XI Encontro
Nacional da Anpur e pela comissão editorial da Revista como os mais destacados en-
tre aqueles apresentados no referido evento científico. Como se verá, este conjunto
de artigos reflete o estado atual da reflexão da área do planejamento urbano e regio-
nal – suas questões, seus desafios teóricos e metodológicos e seus resultados. Perce-
ber-se-á, em particular, que boa parte das investigações dedica-se a buscar elos signi-
ficativos que elucidem as condições problemáticas de vida nas cidades
contemporâneas, objetos por excelência construídos pelo homem, mas parecendo
cada vez mais fugir ao seu controle e compreensão.
Em diálogo com autores como Argan, Cauquelin, Rykwert e Arantes, Maria
Stella Bresciani discute a “preocupante ambigüidade metodológica” associada à in-
definição do estatuto disciplinar do pensamento e da prática urbanísticos. Consi-
derando o papel da memória e da experiência, a autora procura localizar o desacer-
to e a distância que se interpuseram entre as intenções projetuais dos urbanistas,
autoridades municipais e estaduais e a cidade tal como se apresenta – como ques-
tão histórica. Luciana Corrêa do Lago revê, por sua vez, o ideário da Reforma Ur-
bana, pondo foco nas políticas de regularização e urbanização de assentamentos
populares. Tendo em conta os pressupostos de ideal igualitário contidos em tais
políticas, a autora interroga sobre a possibilidade de que as normas e os padrões es-
pecíficos instituídos nos espaços em questão venham institucionalizar duas classes
de cidadãos, correspondendo a duas categorias de bem-estar, de direito social e de
direito de propriedade. Flávia de Paula Duque Brasil faz uma revisão do debate
sobre participação nas políticas urbanas, sustentando que, a despeito da heteroge-
neidade das experiências e dos limites político-institucionais encontrados, os espa-
ços destinados à “participação” têm levado a configurar novas linhagens de políti-
cas urbanas.
A heterogeneidade interna das periferias urbanas é o objeto da pesquisa cujos
resultados são apresentados no artigo de Renata Mirandola Bichir, Haroldo da Ga-
ma Torres e Maria Paula Ferreira. Abordando alguns tipos selecionados de riscos so-
ciais que incidem sobre indivíduos jovens, tais como desemprego, violência urbana,
baixo nível educacional e gravidez na adolescência, e tendo por base dados do Cen-
so Demográfico de 2000, os autores pretendem assinalar, no caso do município de
São Paulo, a ausência de sobreposição espacial homogênea dos diversos riscos consi-
derados em todas as subáreas das periferias estudadas. O artigo de Lorenzo Gonzá-
lez Casas examina, desde uma perspectiva histórica aplicada ao caso da cidade de Ca-
racas, a evolução observada no uso e representação do espaço público para os fins da
participação política, bem como suas implicações para o planejamento urbano, res-
saltando a introdução recente de novas cartografias urbanas por efeito dos processos
de mudança política e dos programas de descentralização governamental. Maria da
Conceição Barletta Scussel e Miguel Aloysio Sattler, por fim, discutem os problemas
relativos à definição de indicadores de “sustentabilidade” aplicáveis a espaços resi-

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denciais e padrões construtivos, quando considerada a diversidade de contextos so-
cioculturais em que se definem as práticas de moradia.
Este fascículo contém igualmente uma entrevista com Ermínia Maricato, Se-
cretária-Executiva do Ministério das Cidades, que oferece uma primeira avaliação da
experiência de dois anos vivida pela equipe que implantou esta nova instância mi-
nisterial. A seção “Homenagem” destaca a marca original e duradoura do pensamen-
to de Celso Furtado no campo do planejamento urbano e regional, marca esta ca-
racterizada pela busca de uma teoria e de uma ação condizentes com a complexidade
específica de nossa realidade, bem como com o compromisso de sua transformação,
objetivos que têm unido também em sua prática os profissionais e instituições con-
gregados na Anpur.

HENRI ACSELRAD
Editor Responsável

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A CIDADE
OBJETO DE ESTUDO E EXPERIÊNCIA VIVENCIADA* * Este artigo é parte de pes-
quisa apoiada pelo CNPq.

MARIA STELLA BRESCIANI

R E S U M O Estudar a(s) cidade(s) implica estabelecer conexões de tipo variado com


a própria experiência de viver em cidades. Conexões objetivas de moradia e trabalho, laços
afetivos tecendo espaços nos quais as lembranças compõem um acervo especial, nós intrinca-
dos que relacionam expectativas e imagens, idealizadas em grande parte e resistentes à pas-
sagem do tempo. O interesse intelectual pelo estudo da(s) cidade(s) procede com certeza de
questões colocadas no presente, ainda quando nos fazem retroceder para um momento no
qual consideramos poder captar um elo significativo que elucide as pouco acolhedoras
condições de vida nas cidades contemporâneas.

PA L AV R A S - C H AV E Cidade; urbanismo; história; imagens; memória.

A cidade que tão bem conhecíamos mudou. Essa constatação se repete, no decorrer
de gerações, sempre nova, sempre imperiosa. É comum a lembrança de avós, pais, tias,
tios recordando saudosos outra cidade, a mesma, que de tão transformada lhes escapa...
É comum um cheiro sutil e passageiro, uma imagem fugidia ou o ambiente de um fim de
tarde cinzento trazerem num relance a sensação de uma situação vivida, tal como a Ma-
deleine proustiana, metáfora do insight captado por Walter Benjamin para falar desse pas-
seio interno por nossas lembranças involuntárias suscitadas repentinamente. A mais co-
mum das avaliações sobre a cidade, diuturnamente presente na imprensa escrita e
televisiva, à qual somos induzidos a vivenciar e vivenciamos de fato, é que a cidade está
em crise. No entanto, a atualidade dessa constatação e/ou sensação parece repor-se há du-
zentos anos pelo menos, desde que já faz parte dos registros dos que falaram da(s) cida-
de(s) desde o início do século XIX. Foi talvez a acentuada presença de expressões de espan-
to e sua persistente repetição nas várias formas de linguagem no decorrer de dois séculos
o que inicialmente me intrigou. Algo como se a idéia (ou idealização) de cidade e o estar
nela se apresentassem em constante descompasso. Ou, usando uma observação de Giulio
Carlo Argan, como se as estruturas do espaço cidade, que não está na realidade objetiva,
mas no pensamento que a pensa, não mais coincidisse com a dimensão do distinto, do
relativo, do consciente, do ego em contraposição à natureza sublime e dimensão do trans-
cendente, do absoluto, do superego (Argan, 1993, p.212). A cidade, produto do homem
por excelência, fugindo ao seu controle, espaço agigantado cujas dimensões escapam à
compreensão humana.
Esses registros repetitivos sugeriam que a concepção de cidade – uma imagem de ci-
dade, ainda que pouco nítida, inscrita em nosso subconsciente – não mais encontrava cor-
respondência na imagem da cidade que se tem diante dos olhos, na qual se vivia e na qual
hoje estamos.
A primeira constatação desse, digamos, mal-estar se deu ao estudar as cidades no
século XIX, quando encontrei o uso recorrente de metáforas para falar da cidade em tex-
tos de poetas, de literatos, de filantropos, médicos, advogados e demais pessoas que dei-
xaram registros escritos. O descompasso entre uma suposta noção e a efetividade exigia a

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A C I D A D E

adjetivação da cidade ou o recurso a metáforas – a grande cidade, a cidade moderna, o


monstro urbano –, ou ainda, a substituição do termo pelo de metrópole quando se trata-
va de uma cidade correspondendo a um centro irradiador e/ou sugador de homens e re-
cursos. A imagem mais forte, porém, relacionava a cidade moderna a uma certa inversão
de valores – Wordsworth, em 1800, não só designou Londres como monstruoso formi-
gueiro plantado na planície, mas deu ênfase a esse mundo atarefado (busy world), às in-
sígnias dos comerciantes afixadas nos frontões das lojas à semelhança dos brasões da no-
breza, além de mencionar a dança rápida de cores, luzes e formas, e as pessoas passando
tal como uma corrente sem-fim, apressadas, umas atrás das outras ou face a face sem se
olharem. Também constituía temas recorrentes o crescimento desmesurado de cidades co-
mo Londres e Paris, os estranhos misturados à população local, a agressividade contida no
comportamento das pessoas, o medo de se aventurar por suas ruas, a ameaça sempre à es-
1 Anotei esses registros em preita, de tocaia.1
vários textos desde Londres
e Paris no século XIX. O es-
Talvez uma frase de Giulio Carlo Argan sobre a cidade moderna condense a razão
petáculo da pobreza (1982) desse espanto:
e “As faces do monstro ur-
bano. As cidades no século
XIX”, in Revista Brasileira de A cidade que, no passado, era o lugar fechado e seguro por antonomásia, o seio materno,
História, n.8-9, 1985.
torna-se o lugar da insegurança, da inevitável luta pela sobrevivência, do medo, da angústia,
do desespero. Se a cidade não se tivesse tornado a megalópole industrial, as filosofias da an-
gústia existencial e da alienação teriam bem pouco sentido e não seriam – como no entanto
são – a interpretação de uma condição objetiva da existência humana. (Argan, 1993a, p.212.)

Argan argumenta que o existencialismo de Kierkegaard, Heidegger e Sartre, o mate-


rialismo marxista e as críticas duras de Horkheimer, Adorno e Marcuse não se justifica-
riam se a cidade não tivesse se transformado no ambiente físico concreto, incontestavel-
mente opressivo e repressivo que se tornou. E coloca a pergunta de modo direto: “Mas o
que de fato aconteceu na cidade moderna?”.
Ora, para Argan, isto, sem dúvida, se deve em grande parte à redução do valor do
indivíduo, do ego; o indivíduo não é mais do que um átomo na massa. Elimina-se com
esse valor o valor da história de que o ego é o protagonista, e eliminar o ego como sujeito
corresponde a eliminar a natureza. “A realidade não é mais dada em escala humana, isto
é, na medida em que pode ser concebida, pensada, compreendida pelo homem.” Acon-
teceu, a seu ver, uma inversão de posições em que as máquinas agem melhor do que as
mãos do homem. Os computadores raciocinam melhor (eu diria, mais rápido) do que sua
cabeça. Nessa condição subordinada do homem ocorre uma inversão fundamental: “o mi-
to do sublime e do terrífico, não mais representado pelas forças cósmicas, transfere-se pa-
ra as forças tecnológicas, portanto humanas, que submetem as forças cósmicas e as utili-
zam. É assim que o homem faz da sua técnica um mito, e o que é pior, um mito
novamente tectônico” (Argan, 1993a). Tem-se, portanto, em suas palavras a técnica, ou
melhor, a aposta em seu poder transformador das condições de vida urbana e moldador
do cidadão, uma das portas conceituais de entrada para elucidar o uso das metáforas de
monstros mecânicos para apresentar/representar a cidade moderna, industrial, locus privi-
legiado da produção e reprodução do capital.
Essa aposta humana na potencialidade da técnica disponível certamente subjuga o
homem e parece ganhar autonomia, podendo ser assemelhada ao que se tornou a cidade
no mundo atual: alguma coisa que “não pode mais ser considerada um espaço delimita-
do, nem um espaço em expansão; ela não é mais considerada espaço construído e objeti-

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M A R I A S T E L L A B R E S C I A N I

vado, mas um sistema de serviços, cuja potencialidade é praticamente ilimitada” (Argan,


1993a). Preocupado com as questões e desafios colocados ao urbanismo, Argan propõe a
noção de “sublime”, reapresentada e comentada em meados do século XVIII por Edmund
Burke,2 como chave para que possamos entender a dimensão psicológica desse viver em 2 Ver Edmund Burke em
Uma investigação filosófica
cidades modernas. Se no tempo anterior à urbanização acelerada produzida pela indus- sobre a origem de nossas
trialização, ainda no início do século XIX, o sublime estava na natureza – o espaço não- idéias do sublime e do belo
(1993), tradução a partir da
organizado, não-protegido, espaço de fronteira –, o campo habitado por seres cuja natu- edição crítica de James T.
reza parecia incerta e ambígua, entre o humano e o animal, para além da qual se dispunha Boulton (1986), que tomou
como base a 2ª edição
a verdadeira natureza, selvagem, considerada inimiga, inacessível, inviolada, freqüentada (1759) do original de 1756.
pelas feras, pelos gênios do Bem e do Mal e por Deus, essa noção se transportou para os
domínios da cidade. “Na história da interpretação da cidade, e, depois, do urbanismo co-
mo disciplina autônoma, o tema do ‘sublime’ está sempre presente e determinante” (Ar-
gan, 1993a). Estaria nas catedrais góticas e na arquitetura de Michelangelo e de Borromi-
ni, tal como no geometrismo de Ledoux, no ascetismo de Gaudí, entre outras tantas
coisas. Até o componente utópico do urbanismo, uma constante até hoje, “nada mais é”,
prossegue o autor, “do que a extrema ramificação da poética do ‘sublime’. Com o acrés-
cimo, porém, de que hoje o ‘sublime’ ou o transcendente é dado como subjugado pelo es-
forço tecnológico do homem”.
O argumento com os quais Argan, em “O espaço visual da cidade”, introduz sua
concepção de urbanismo – “O urbanismo é uma disciplina moderna. O passado pratica-
mente ignorou a figura e a atividade do urbanista, bem diferente da do arquiteto da cida-
de” (Argan, 1993b, p.240) – fala e retoma o tema do texto anterior, “Urbanismo, espaço
e ambiente”, ou seja, aquilo que para ele distingue essa disciplina de qualquer outra “não
é certamente a qualidade dos seus conteúdos, mas o processo com que os elabora, os co-
loca em relação dialética entre si, os organiza em um sistema cujos diversos componentes
dão lugar a uma resultante. A resultante não é um quadro estatístico nem a representação
sintética de uma situação social de fato; é um programa, um plano, um projeto tendo em
vista a mudança de uma situação de fato reconhecida como insatisfatória”. E deixa claro
a questão básica: “Trata-se, porém, de saber o que e com que fim se programa, se plane-
ja, se projeta” (Argan, 1993b).
Até onde pode ir a aposta do homem na tecnologia, aposta que chegou ao limite de,
ao projetar a cidade do futuro, dispensar o espaço físico, o nível do terreno, e as projeta
suspensas e como tramadas no ar ou precipitadas nas entranhas da terra? As indagações
contidas em “Urbanismo, espaço e ambiente”, texto escrito em 1969, podem ser coloca-
das em diálogo com aquelas de “O espaço visual da cidade”, de 1971, no qual Argan ex-
pressa dúvidas e incertezas quanto ao lugar ou a posição em que se coloca o urbanista nos
dias de hoje:

Como disciplina que visa interpretar, estabelecer, reorganizar e finalmente programar


para o futuro a conformação da cidade, o urbanismo está se separando cada vez mais de seu
objeto, dir-se-ia até que aspira a destruí-lo. Ora propõe descentralizar, desarticular, desmem-
brar a cidade, transformando-a em uma inflorescência ou em uma constelação de pequenos
aglomerados sociais, coordenados mas auto-suficientes, nenhum dos quais, entretanto, teria
a estrutura, o caráter, a configuração da cidade; ora, num movimento apenas aparentemente
contraditório, demonstra que o progresso tecnológico das comunicações permitirá chegar, no
decorrer de alguns anos e de algumas décadas, à cidade de trinta, cinqüenta milhões de ha-
bitantes. Essas duas perspectivas, naturalmente, têm por alvo enquadrar o mesmo fenômeno

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A C I D A D E

– a cidade – na civilização industrial; mas, na realidade, demonstram apenas que, no estado


atual das coisas, a civilização industrial colocou em crise a concepção tradicional da cidade,
mas ainda não conseguiu substituí-la por sua própria concepção. Com um rápido olhar pe-
la vasta literatura urbanística, de fato, notamos facilmente que, quando ela não se limita a
verificar a progressiva e rápida degradação das cidades atuais, imaginamos as cidades do fu-
turo, como se a degradação das cidades dependesse do destino e não da nossa incapacidade
de as conservar e como se a forma das cidades futuras dependesse de nós e não das gerações
vindouras. (Argan, 1993b, p.225.)

3 O artigo data de 1971. Com essas palavras Giulio Carlo Argan constatava, há mais de trinta anos,3 terem as
cidades escapado às delimitações básicas do urbanismo e expunha sua visão crítica sobre
o pensamento urbanístico numa seqüência de observações paralelas entre a disciplina e
seu objeto, ambos perdendo de modo acelerado suas características e fundamentos orien-
tadores. A disciplina ainda prisioneira de fundamentos fincados no século XIX, como que
perdida em meio ao crescimento contraditório da(s) cidade(s), correndo sem rumo em
busca de soluções paliativas para um fenômeno diante do qual se sente pouco confortá-
vel; a cidade ultrapassando qualquer projeção anterior do pensamento urbanístico e mos-
trando uma face pouco aceitável e nada condizente com a racionalidade que deveria
orientar sua permanência e expansão.
Argan atribuía esse desencontro a “uma preocupante ambigüidade metodológica”
decorrente da indefinição do estatuto disciplinar do pensamento e da prática urbanísti-
cos. Arte ou ciência, economia, sociologia, política, tecnologia: onde localizar esse saber
cujo objeto parece se impor de maneira tão óbvia ao olhar? Nem arte – como as cidades
concebidas como uma única e grande arquitetura pelos teóricos da Renascença –; nem
ciência, atrelada a um conjunto de leis objetivas e constantes; nem o momento prático da
sociologia, da economia ou da política, pois aplicáveis sob o aspecto da tecnologia. O ur-
banismo não se conformaria ao perfil de nenhuma dessas disciplinas. O urbanismo é e
reafirma uma disciplina nova que pressupõe a superação desse esquematismo (Argan,
1993a, p.211).
Menos que dúvidas suas, Argan expressa, por meio dessas indagações, dúvidas
alheias e que, contudo, parecem conduzir nos dias de hoje grande parte da prática de es-
pecialistas das cidades. Seu texto tem um viés polêmico, sem entretanto deixar de ser di-
dático, ao afirmar que o urbanismo é, “em substância, programação e projeto”. E expõe
passo a passo como se estrutura um projeto: inicia na forma de componente científico,
pois efetua análises rigorosas sobre a condição demográfica, econômica, produtiva, sani-
tária, tecnológica dos agregados sociais; soma em seguida os componentes sociológico,
político e histórico, já que estuda as estruturas sociais e seus possíveis desenvolvimentos;
faz depois opções tanto sobre a orientação a tomar, pondo em perspectiva passado e fu-
turo, como sobre o estético, por determinar as estruturas formais. São dados, explica, que
não devem ser combinados, porém resultar em algo próprio ao trabalho do urbanista, o
plano, o “plano diretor”, que precisa ser encarado em sua finalidade de orientar e não ser
imposto ou traduzido em realidades construtivas.
Na base de sua argumentação radica a nítida certeza de que é decepcionante, por
ineficaz, a moderna intenção de projetar a cidade para um futuro que não nos pertence.
Essa intenção reverteria, a seu ver, o procedimento adotado por levas de gerações anterio-
res que construíram palácios, catedrais, que se até hoje são limites para o planejamento
urbano, foram na verdade construídos para as exigências de seus contemporâneos. “Trata-

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M A R I A S T E L L A B R E S C I A N I

se, enfim, de uma herança, não de um planejamento.” E vai além, ao relacionar critica-
mente a prática contemporânea da preservação, como exigência de nossa cultura, ou se-
ja, uma exigência e necessidade atuais, tão evidentes no modo pelo qual lhe designamos
significados diferentes dos que tinham ao serem construídos. A seu ver, constituiria atitu-
de contrária pensar o que deve ser preservado, conservado e transmitido enquanto valor
histórico e valor estético, ambos indissoluvelmente imbricados (Argan, 1993b, p.225-7).
Desse modo, Argan localiza a disciplina urbanismo no presente, tempo saturado de
historicidade, conferindo à noção de futuro um valor, que eu designaria como ético,
orientador da prática no presente, o que comporta parte significativa de passado, nas di-
mensões do edificado e do pensamento que o orientou. Como urbanista, Argan destaca a
questão do “valor estético da cidade”, a cidade como espaço visual. Assim, considera que
a cidade é antes de tudo um impacto visual ou uma experiência estética. A ela ou aos seus
dados visuais é atribuído valor, seja pela comunidade, seja por uma elite de estudiosos em
função do interesse da comunidade, já que, diz o autor, “o que hoje é ciência de poucos,
será amanhã cultura de todos” (1993b, p.228). Há, sem dúvida, em seu texto a busca do
reencontro da dimensão do indivíduo, do ego enquanto sujeito, diria ele, da dimensão hu-
mana e do cidadão, por ser ele o elemento fundante da própria cidade.
Ao conferir à experiência o peso maior da atribuição de significado ao espaço urba-
no e seu tempo próprio, Argan advertia sobre a condição de “abstrações interessadas” pa-
ra noções, tais como “sociedade”, “comunidade” e “função urbana”, que levariam a con-
siderar a cidade em que se mora como “máquina que deve realizar uma função”. Seriam
abstrações “que corroem em profundidade o conceito histórico de cidade, porque o afas-
tam da experiência e, portanto, da consciência”. Transpõe para o espaço da cidade o estu-
do de Gaston Bachelard sobre a casa – a casa da infância como modelo pelo qual se cons-
trói grande parte da psicologia individual, no que diz respeito às idéias, às imagens
profundas de espaço e tempo – e abre um amplo campo de significações singulares da ci-
dade para cada um de seus habitantes. Essa experiência, entre consciente e inconsciente,
de cada habitante reproduzida graficamente resultaria em um quadro bem mais comple-
xo do que o emaranhado de cores, traços e pontos de uma obra artística de Pollock, ain-
da que nele estivessem representados somente os trajetos executados por seus habitantes
no intervalo de somente uma hora. Esse emaranhado marcaria, entretanto, trajetos e
pontos nodais constantes. Percursos que pouca semelhança guardariam com o percurso
lógico ou necessário, e portanto previsível, do urbanista. Esse estar na cidade se traduziria
no registro das imagens cotidianas e conteria uma lógica – a do mapa do espaço-cidade e
a do ritmo de tempo urbano – formada pelos trajetos de cada um de nós, durante os quais
deixamos trabalhar a memória e a imaginação. Nada é gratuito ou puramente casual, diz
Argan (1993b).
Onde localizar, de que modo acompanhar esse emaranhado de percursos? Como es-
tabelecer correlação entre ele e a prática de um grupo especializado e circunscrito dedica-
do a intervir na cidade? Como colocar em diálogo essa lógica especializada e as individuais
ou a da maioria dos habitantes da cidade? Como entender essa difusão ampla e ampliada
dos valores atribuídos à cidade? Mais ainda: qual o significado histórico, e portanto ins-
crito no presente, da atribuição de valor estético às cidades? Conferir-lhes identidade sin-
gular? Diferenciá-las simplesmente? Reduzi-las a uma essencialidade inerente? Argan faz
em seguida uma afirmação categórica sobre a necessidade de uma “análise psicológica”
que se baseie no “estudo da experiência urbana individual como princípio de qualquer
pesquisa sobre os modos de vida urbana de uma sociedade real” (1993b, p.233).

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Esse conjunto de indagações soma-se a questões assemelhadas presentes em traba-


lhos dos filósofos Anne Cauquelin e Pierre Ansay, autores interessados em devolver a
cidade ao citadino (ver Cauquelin) e em restabelecer o vínculo entre pensamento filosó-
fico e cidade (ver Ansay). Cauquelin por sentir a defasagem entre o saber e a prática dos
especialistas em intervenções urbanas e o modo pelo qual o citadino se apropria da cida-
de; Ansay preocupado com a condição empobrecida do pensamento filosófico, por ter-se
afastado de, ou mesmo renunciado a, seu solo original, a cidade (Cauquelin, 1982; An-
say, 1989, p.23-51).
Para este texto os argumentos de Cauquelin (1982) interessam mais de perto, pois a
autora lembra o quanto a perspectiva temporal do citadino permanece exterior ao urba-
nismo, da mesma maneira “como um dicionário permanece exterior à escrita ou como as
regras de sintaxe à produção e ao deciframento de um texto”. Ao apontar esse descompas-
so entre temporalidades diversas, essenciais porém à apreensão do espaço urbano, a auto-
ra introduz um elemento complicador para a experiência dos próprios urbanistas no que
concerne a percepção do tempo: a duplicidade manifesta na confrontação entre, de um
4 Joseph Rykwert comenta lado, a seqüência de momentos rigorosamente encadeados em uma técnica e, de outro, o
a incapacidade das autorida- desejo de se eternizar em uma produção que busca atenuar o drama do destino humano
des cívicas e dos “experts”
planejadores em pensarem em direção à morte”. Deixar uma marca de imortalidade na pedra seguindo os procedi-
uma nova cidade como uma
totalidade, como um modelo
mentos técnicos disponíveis, este o duplo jogo do tempo tão bem conhecido pelos urba-
que deve conter significa- nistas e arquitetos.
dos outros além dos lugares-
comuns do zoneamento (in-
Embora na prática o especialista saiba que o entrecruzamento complexo e tenso de
dústria, habitat, lazer etc.). temporalidades, inerente ao ofício do arquiteto e do urbanista, é insuficiente para dar
Estaríamos hoje em face do
empobrecimento do nosso conta da produção de uma cidade, ele se mantém consciente de que esse tempo inter-
discurso sobre a cidade por vém na textura de um projeto, cuja fonte reside em um estoque de possibilidades acu-
recusarmos e estranharmos
a concepção antiga que muladas por uma memória da história da arte e por modelos anteriores. Os projetos se
considerava a cidade um formam a partir dessas imagens completadas por comentários, estilos de vida e de mo-
modelo simbólico [“to consi-
der the town or city a numentos, do qual ele, o urbanista, retira necessariamente os elementos de seu saber.
symbolic pattern”], in Jo-
seph Rykwert, “Prefácio” de
Cauquelin vê inscrita nesse procedimento a própria prática do urbanista já que consi-
The Idea of a Town. The dera impossível recusar ao arquiteto o direito de se nutrir da memória específica que é
Anthropology of Urban Form
in Rome, Italy and the An-
também fonte de seu saber-fazer. Saber especializado, diverso daquele de Vitrúvio, in-
cient World, 1989, p.23. serido num tempo outro em que, embora o mundo do arquiteto fosse composto de ele-
5 Freud fala do sentimento mentos heterogêneos próprios ao seu ofício, ele os partilhava com os demais citadinos.
de eternidade ou “oceâni- Tempo constituído por crenças, ilusões e desejos, cultura e memórias compósitas no
co”, algo relativo ao senti-
mento de ilimitado e infinito qual a edificação deitava raízes; em que o saber-fazer coincidia com o saber-viver, com-
que estaria inscrito no mais pleta Cauquelin.4
profundo do âmago humano
– segundo sugestão de um A imagem elaborada textualmente pela filósofa para compor a diferença entre o
seu amigo e leitor – e que
ele prefere, deixando de la-
“tempo” do arquiteto-urbanista e o “tempo” do citadino se aproxima daquelas sugeridas
do a difícil tarefa de lidar por Argan quando as compara aos quadros de Pollock. Imagem de maior complexidade
cientificamente com os sen-
timentos, ou como um senti-
ainda, pois tecida por dobras do tempo denso composto por memórias fixadas em estra-
mento de união indissolúvel tos superpostos, visíveis, contudo, em sua simultaneidade no presente, imagem aproxima-
com o grande todo, perten-
cimento ao universal, tratar da por ela à descrita por Freud nas primeiras páginas de O mal-estar na civilização.5 Ca-
como um elemento derivado madas de memórias fixadas, algumas por monumentos e edifícios espalhados pela cidade,
de um ponto de vista intelec-
tual. Um sentimento do eu outras formadas pela maneira pela qual se vive em cidades, fragmentariamente, diz ela,
(ou de mim) formado no de- com esquecimentos e lacunas, orientados e submetidos que somos às opiniões correntes
correr dos anos de forma-
ção até se chegar à idade – a doxa dos gregos, essa “opinião” vagabunda, alterável, mutável, transportadora de ca-
adulta. Ver Sigmund Freud,
Malaise dans la Civilisation,
cos de lembranças históricas, mas também de lembranças pessoais, mescladas à escuta e à
1979, p.5ss. escrita, aos monumentos e aos costumes –, tal como compomos nossa própria história de

14 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 4
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vida. Um tempo, esse do citadino, que recobriria, em seu entender, com uma fina pelícu- 6 Para a noção de doxa e de
sua apropriação por Cauque-
la a vida social, servindo-lhe como suporte e moldura.6 lin, ver capítulo 1, “Le lieu du
temps”, 1982, p.19-22.
Também ela, tal como Argan, encontra na experiência do ser urbano uma das bases 7 Fiz aqui um resumo bastan-
necessárias à apreensão da cidade. Trata-se da cidade escondida, recortada em detalhes for- te redutor dos argumentos
iniciais do instigante livro de
mados pelo tempo do aprendizado e do trabalho, dos sucessos e dos fracassos humanos.7 Cauquelin, contidos nos ca-
pítulos 1, “Le lieu du temps”,
Uma imagem da cidade muito próxima à apresentada por Walter Benjamin em muitos de e 2, “Les plis du temps”.
seus textos; uma percepção do espaço trabalhada pela memória voluntária, que escapa en- 8 Penso principalmente em
“Sobre alguns temas em
tretanto à rigidez organizada desta, sendo invadida por lapsos de esquecimento e de lem- Baudelaire”, “O flâneur” e “In-
branças desconcertantes, arrancadas do fundo do subconsciente, dessa memória involun- fância em Berlim por volta de
1900”. Textos constantes de
tária fugidia e pouco apropriada a se deixar envolver por explicações ou seqüências várias coletâneas, das quais
cito aqui Walter Benjamin.
objetivas.8 Obras Escolhidas II e III da
Foram indagações como estas as que me instigam a estudar a formação do pensa- Editora Brasiliense (São Pau-
lo), editadas em 1987 e
mento urbanístico sobre a cidade de São Paulo, reduto de um saber de especialistas que 1989, respectivamente.
propuseram intervenções, exatamente como projeção, como plano de organização, com o 9 O termo é de Argan, em
“O espaço visual da cidade”,
objetivo maior de colocar no centro de sua prática a importância de se superar uma situa- 1993b.
ção considerada insatisfatória da “existência humana como existência social”.9 A propos- 10 Remeto para o livro re-
centemente publicado de
ta do estudo tem como suporte teórico exatamente a concepção do urbanismo como pro- Candido Malta Campos, Os
rumos da cidade. Urbanismo
jeto estruturado por dados “objetivos”, contudo, nutrido também por imagens idealizadas e Modernização em São Pau-
e utópicas, cujo norte se situa em um lugar idealizado de perfeição. Isto implica afirmar lo, 2003. Nele o autor, a des-
peito de uma pesquisa exten-
a existência de uma distância entre a prática de projeto, por mais “realista” que se propo- sa e por muitos motivos útil,
reitera os velhos chavões da
nha, e sua efetivação, tal como se interpõe uma distância entre a intenção projetiva da lei dependência intelectual, in-
e o comportamento que objetiva disciplinar. Com isso, desejo afirmar uma posição que clusive da intelligentsia brasi-
leira em relação aos seus pa-
questiona afirmações de que, aqui entre nós, os projetos urbanísticos e arquitetônicos são res estrangeiros, retomando
a dicotomia centro-periferia
importados10 e nesse transplante e em sua realização se modificam e/ou se apequenam.11 para explicar os processos
Por serem importados constituiriam cópias pouco refletidas (no sentido forte de reflexão, de modernização da cidade
de São Paulo, neles vendo
de pensamento), algo assemelhado a um mimetismo característico de uma cultura sem so- somente a importação de
modelos estrangeiros. Nos-
lo próprio, atrelado à atração fatal exercida por países de cultura mais avançada. Posição sa intenção não é a de pole-
que também se desloca para a relação entre a lei e sua efetiva aplicação, como se a práti- mizar nesse plano, mas a
de verificar a maneira como
ca legal fosse sempre formada pela distância e inadequação entre o pensamento importa- os especialistas brasileiros
participam da formação des-
do de seu país originário, que seja o liberalismo inglês, o francês, ou a sua versão estadu- se fundo comum de conheci-
nidense, e seu uso inadequado em países como o nosso, no qual o “atraso” e o “arcaísmo” mentos que constitui a “dis-
ciplina” Urbanismo e o modo
fazem dele uma “idéia fora do lugar”.12 pelo qual são aplicados seus
princípios na atividade de in-
O ponto de partida do estudo fixa-se no final do século XIX e início do século XX, tervenção na capital paulista.
momento em que se pode surpreender a formação desse “pensar o urbano” em São Pau- 11 Também o estudo de He-
liana Angotti Salgueiro (La
lo, cidade que cresce, se modifica pela multiplicação de suas “funções”. Cidade que um casaque d’Arlequin. Belo Ho-
memorialista como Alfredo Moreira Pinto diria, em 1900, havia deixado de ser o burgo rizonte, une capitale éclecti-
que au 19e. siècle, 1997)
dos estudantes e se transformado em uma cidade moderna, até na composição de sua po- reproduz esse mesmo viés
teórico, empobrecendo, do
pulação.13 A surpresa contida no relato de Alfredo Moreira Pinto reveste-se de uma di- meu ponto de vista, uma so-
mensão positiva, conduzida pela constatação de que em trinta anos a cidade se moderni- berba pesquisa sobre o pro-
jeto e a fundação da cidade
zara graças à dinâmica de sua vida comercial, financeira e industrial, à presença dos de Belo Horizonte na déca-
da final do século XIX.
imigrantes com novas idéias e costumes: o belo viaduto sobre o vale do Anhangabaú li-
12 Ver de Raquel Rolnik, A Ci-
gando o Centro velho ao Centro novo, o traçado projetado de bairros recém-abertos, as dade e a Lei. Legislação, po-
lítica urbana e territórios na
medidas sanitárias tomadas pelas autoridades e o significativo aumento do fluxo de pe- cidade de São Paulo, 1997.
destres e de veículos no seu núcleo central. 13 Tratei desse relato em
“Imagens de São Paulo. Estéti-
Outra questão desafiante é onde localizar o desacerto e a distância que se interpuse- ca e cidadania”, in Encontros
ram entre as intenções projetuais dos urbanistas e das autoridades municipais e estaduais com a História. Percursos
históricos e historiográficos
e a cidade tal como se apresenta hoje: uma questão histórica. Impossível renunciar, entre- de São Paulo, 1999.

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tanto, a ter em mente dois momentos vivenciados em minha experiência pessoal, momen-
tos intermediados pelo tempo da memória que me traz à lembrança a cidade dos anos 50
e 60, lembranças talvez idealizadas pela escolha que faço, mas certamente pela distância
14 Penso aqui nas conside- temporal e pelo trabalho de rememorar, seletivo, sempre um pouco excludente.14 Lem-
rações de Germaine de
Staël quando, em Essai sur
branças que carregam imagens fugidias da cidade, do prazer de transitar anônima pelas
les fictions (1979, p.25), ruas centrais, se sentir submersa em meio à multidão do fim de tarde, o pôr do sol escon-
disse ser a imaginação a fa-
culdade mais preciosa do dido entre os edifícios, se deixando entrever no trajeto pela praça da República e no via-
homem, pois seria nela que duto do Chá. Foi a São Paulo de hoje que me incentivou a indagar como historiadora so-
criaríamos imagens colhi-
das entre as boas lembran- bre esse processo de um século de duração que leva os que por aqui viajam a se verem
ças destinadas a mitigar os freqüentemente submetidos ao impacto negativo da imagem atual da cidade. Foi a con-
sofrimentos inerentes à vida
humana. O texto foi escrito dição de cidadã que me colocou a questão de como se vive em São Paulo: esse descompas-
em 1795 sob o impacto dos
acontecimentos da Revolu-
so entre intenções bem-intencionadas (na maioria das vezes, quero crer) das autoridades
ção Francesa de 1789. Re- e o resultado pouco animador; a surpresa de que iniciativas individuais podem mostrar
meto para as reflexões de
Jacy Alves de Seixas em
que a cidade pertence e pode ser edificada pelo cidadão. Devaneio? Pode ser...
“Os campos (in)elásticos da
memória: reflexões sobre a
memória histórica”, 2001, O terreno plano ganha contornos ao som do martelo. Da terra – antes coberta apenas
p.59. pelo mato – sobem paredes, constroem-se tetos, nascem barracos. Por todos os cantos, a
construção não pára. Cerca de 300 famílias, reunindo perto de mil pessoas, já moram no lo-
cal em uma enorme área da Prefeitura, ao lado da Estação Itaquera do metrô, na zona leste
de São Paulo. Muitas outras pregam pedaços de madeira para fazer o mesmo. Todos eles que-
rem moradia. Se hoje o cenário lembra o de um acampamento, logo o lugar poderá se trans-
formar em mais uma favela da capital. (OESP, 10.7.2003.)

Uma notícia corriqueira nos jornais da grande imprensa paulistana. Seu título –
“Como nasce uma favela em SP”. O caderno “Cidades” de O Estado de S. Paulo de 10 de
julho de 2003 noticiava a ocupação de um terreno da Prefeitura ao lado de outra matéria
que informa já ter sido obtida pela municipalidade uma liminar de reintegração de posse
do terreno. Pequenos trechos de entrevistas com os “invasores” dão conta das precárias
condições de vida dessa população que, mesmo ameaçada com o despejo, expressa a fir-
me intenção de resistir, de reconstruir os barracos derrubados pelo vento forte que se aba-
teu sobre a capital paulista durante a madrugada. Afinal, diz uma chamada: “Local já tem
boteco e padaria”. A matéria detalha informações tais como a de que a padaria foi feita
dentro de um contêiner e que uma moradora vive com sete de seus nove filhos dentro de
um barraco de 1,5 por 2,3 metros, fugindo de outra favela que diz “ser um lugar onde
não tem vida digna, onde nem lei entra”.
Alguns dias antes, em 28 de junho, o mesmo caderno “Cidades” trazia uma matéria
com o título: “Moradores iniciam mutirão para salvar São Vito”. Trata-se de um edifício
situado no Centro da cidade, no número 3.197 da avenida do Estado, às margens do rio
Tamanduateí e fronteiro ao Mercado Central da rua da Cantareira. O edifício, transfor-
mado em favela vertical há anos, compõe, no dizer do articulista, uma das “imagens mais
conhecidas de São Paulo”. Contudo, segundo matéria de um ano antes, 10 de agosto de
2002, desse mesmo caderno “Cidades”, ele parecia estar com seus dias contados. O arti-
culista criticava até a possibilidade de serem gastos pela Prefeitura US$ 6,2 milhões dos
US$ 100,4 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), destinados a fi-
nanciar a reabilitação do Centro da cidade. Há sem dúvida uma questão estética aponta-
da na reportagem quando afirma o desconforto produzido pela aparência do edifício:
“uma das imagens de degradação”, “uma favela vertical ... caindo aos pedaços ... os vidros

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estão quebrados ... a fachada está deteriorada com remendos de tijolos sem reboco”. Mas
a seu mau aspecto soma-se a falta de manutenção do equipamento básico: “os elevadores
não funcionam ... o esgoto vazando na calçada bem na entrada do prédio”. Contudo, seus
683 apartamentos minúsculos distribuídos pelos 26 andares, onde vivem 3.084 pessoas,
denunciam um grave problema social. A maioria dos moradores paga R$ 100,00 de alu-
guel, trabalha na área central, bem servida de transporte, “próxima de tudo”, como diz
um entrevistado.
Segundo Marcos Barreto da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento, o projeto
de recuperação do São Vito constituía parte da intenção dessa Secretaria “de fazer de no-
vo do centro uma área de moradia de qualidade”. Afinal, informava Barreto, “em vinte
anos, de 1980 a 2000, a região perdeu 30% de sua população ... Hoje, existem no centro
cerca de 45 mil imóveis desocupados. Com a reabilitação da área queremos que as pes-
soas voltem [a] morar ali”. Em 2002, portanto, dos mais de US$ 100 milhões, US$ 48 mi-
lhões seriam empregados no programa Morar no Centro.
Em 21 de julho de 2003, na página dois – na seção “Espaço aberto” – de O Estado
de S. Paulo, a socióloga Maria Ruth Amaral de Sampaio apresentou um comentário con-
sistente sobre a situação do São Vito, comentário enriquecido por informações acerca do
significado arquitetônico e urbanístico dos edifícios gêmeos, São Vito e Mercúrio, e ou-
tros tantos prédios de apartamentos de pequenas dimensões construídos nos anos 50 pa-
ra a população de baixa renda.15 Em suas palavras: 15 Maria Ruth Amaral de
Sampaio publicou, recente-
mente, A promoção privada
Naquela década, São Paulo foi caracterizada por um acelerado processo de verticaliza- da habitação econômica e a
arquitetura moderna. 1930-
ção, principalmente em sua área central e nos bairros limítrofes ao centro. A arquitetura mo- 1974 (2003), no qual trata
derna tinha trazido para os arquitetos novas preocupações, entre as quais a sensibilidade à da questão.

questão social, principalmente relacionada à habitação, às necessidades de assegurar luz e


ventilação, a ênfase na economia da construção, a introdução de novas tecnologias e a pos-
sibilidade de tipologias menores, com dimensionamentos mínimos, que deram origem aos
pequenos apartamentos de um dormitório ou às quitinetes dos anos 50, precursoras dos flats
de hoje. (OESP, 21.7.2003.)

A autora relaciona a lista de edifícios e respectivos arquitetos responsáveis por seus


projetos, na maioria nomes importantes na área e representativos da arquitetura moder-
na no Brasil – Niemeyer, Warchavchik, Eduardo Kneese de Mello, entre outros. Amaral
de Sampaio informa que na década de 1950 havia carência de habitações e de transporte
urbano coletivo, o que tornava a área central da cidade um conforto para seus moradores
e um atrativo para empreendimentos privados que buscavam suprir as demandas não
atendidas pelo poder público por meio dos Institutos de Aposentadorias e Pensões e da
Fundação da Casa Popular. Sua posição clara é a de que se deveria atuar na recuperação
desses edifícios, todos localizados em área central, de modo a dar condições decentes de
moradia aos que os habitam para revitalizar essa área, além de manter esses marcos sim-
bólicos da arquitetura moderna em São Paulo. Ela comenta também que, ao invés de de-
molir o São Vito, “a municipalidade desenvolveria uma ação muito mais racional e coe-
rente com sua política tão divulgada de incentivar a moradia no centro, se cuidasse
prioritariamente desses cidadãos paulistanos, auxiliando-os a melhorarem o espaço em
que vivem” (OESP, 21.7.2003).
Afinal, as preocupações das autoridades públicas de São Paulo em relação à área cen-
tral da cidade parecem não se limitar à questão da moradia. Uma das matérias, ainda de

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O Estado de S. Paulo, publicada em 10 de agosto de 2002, ao noticiar as precárias condi-


ções do São Vito, estende-se comentando o projeto de reabilitação do Centro que prevê
a recuperação de outros cinco edifícios considerados de função pública. Entre eles, o So-
lar da Marquesa de Santos (única construção remanescente do período colonial) e a seu
lado a Casa nº 1, ambos situados na pequena rua que desemboca no Pátio do Colégio.
Da lista consta ainda o prédio Martinelli, que com seus 23 andares causou sensação em
1929, ano em que foi completada sua construção, e até hoje é um dos símbolos marcan-
tes da paisagem da cidade.
Um ano depois, 30 de junho de 2003, outra reportagem noticia a intenção de Ge-
raldo Alckmin, governador do Estado, de negociar a compra de oito prédios no Centro
da cidade entre as ruas 15 de Novembro e Boa Vista. Ou seja, mantém-se a intenção de
reabilitar a área central que algum tempo atrás ganhou, com a reforma do prédio do Ban-
co do Brasil, um centro cultural bem no coração da cidade. Em 19 de julho de 2004, a
chamada da matéria principal do caderno “Cidades” de O Estado de S. Paulo, diz: “Bares
devolvem animação ao centro de SP”. Uma foto mostra um trecho de rua do Centro ve-
lho, o largo do Café entre prédios antigos (“históricos”, nas palavras do articulista) pre-
servados, onde se encontram animados freqüentadores de fim de tarde de sexta-feira, dis-
tribuídos pelas mesas do calçadão. A matéria, que se estende à página 3 do caderno,
descreve o ambiente agradável formado pelos freqüentadores – bancários, gente da Bolsa
[Bovespa], funcionários de cooperativas de crédito, de lojas e escritórios, advogados – for-
mando verdadeiras ilhas que, diz a matéria, “nem se imagina existir nesse canto da cida-
de”. A maioria se dizia confiante na segurança da região ao caminharem até o estaciona-
mento de seus carros; mesmo casais moradores da área central se diziam seguros ao
retornarem a pé para suas casas. Não há no texto menção a qualquer tipo de realização re-
lativa à intenção do governador Alckmin veiculada em O Estado de S. Paulo a 30 de junho.
Outro artigo, este sobre o mutirão dos moradores do São Vito, de 28 de junho de
2003, não fazia sequer menção ao processo de reabilitação dos cinco edifícios, reabilita-
ção prevista um ano antes pelo representante da Secretaria de Habitação e Desenvolvi-
mento (OESP, 10.8.2002), nem mencionava qualquer subvenção para a recuperação do
próprio São Vito. São os moradores, temerosos com a ameaça de demolição desejada pe-
la Prefeitura, que haviam se mobilizado em mutirão para reformar, pelo menos, sua área
interna. “Aqui é como uma cidade do interior. Entre os 3 mil moradores temos muitos
pedreiros, eletricistas e pintores que estão ajudando”, diz a síndica, que como outros mo-
radores desafiam a “Prefeita Marta Suplicy” a vir tentar demolir ou implodir o edifício. O
número de problemas é enorme, variando entre o não-pagamento do condomínio por
cerca de 65% dos condôminos, as dívidas com a Sabesp e a Eletropaulo, mais os direitos
trabalhistas de ex-funcionários. Entretanto, a síndica e alguns moradores entrevistados pe-
los repórteres dizem não serem problemas maiores do que os que assolam as edificações
do Cingapura e da Cohab.
Essas matérias da imprensa dão uma pequena amostragem dos problemas enfrenta-
dos na cidade de São Paulo em relação às condições de habitação de parcela significativa
de seus mais de 10 milhões de habitantes. São assustadores os números apresentados em
abril deste ano por artigo da revista Pesquisa Fapesp: “A cidade de São Paulo tem 2.018
16 “Pobreza desvendada. favelas, com um total de 1,16 milhão de habitantes vivendo em condições precárias de sa-
Centro de estudos mapeia
áreas para implementação neamento e habitação”.16 O artigo, cujo tema principal diz respeito à saúde e escolarida-
de políticas públicas”, in
Pesquisa Fapesp, n.86,
de das crianças moradoras nessas áreas, relata os resultados de pesquisa realizada pelo Cen-
p.16-7, abril de 2003. tro de Estudos da Metrópole (CEM) com o qual foi elaborado o Mapa da Vulnerabilidade

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social e do déficit de atenção a crianças e adolescentes no Município de São Paulo. Argelina


Cheibub Figueiredo, diretora do CEM, expõe a dificuldade na realização da pesquisa que
demandou o cruzamento de informações dispersas de diferentes bases de dados, entre
elas, o mapeamento do perímetro das favelas e a estimativa da população residente basea-
da na análise de 8.500 fotos aéreas e 800 inspeções físicas feitas pelos pesquisadores do
CEM e da Secretaria Municipal de Habitação. Como resultado, obteve-se o mapeamento
da pobreza da cidade – mapeamento que servirá de base para a ação da Secretaria de As-
sistência Social da Prefeitura.
Afinal, os resultados da pesquisa dão conta de que, se 6,3% da população da cidade
desfruta de renda que lhe permite ser classificada como “não sofrendo nenhuma priva-
ção”, por desfrutar das melhores condições de renda e escolaridade do município, 3,8%
dos habitantes vivem em “situação de altíssima privação”. Essa porcentagem, aparen-
temente pequena em termos estatísticos, representa nada menos do que “algo em torno
de 420 mil famílias vivendo na periferia da cidade ... famílias com alta concentração de
crianças entre 0 e 4 anos e de jovens de 15 a 19 anos, e péssimos indicadores de escolari-
dade – 18% dos chefes de família não são alfabetizados – e de renda – 76% dos respon-
sáveis por domicílio ganham até dois salários mínimos”.
Contudo, não só a pobreza e suas precárias condições de vida merecem observação
crítica de matérias da imprensa. No dia 7 de julho de 2003, em pequeno artigo intitula-
do “Paisagem paulistana”, na página dois, seção “Espaço aberto” de O Estado de S. Paulo
– o arquiteto Bendito Lima de Toledo, conhecido por seus vários livros sobre a capital
paulistana, denunciava a degradação sofrida pela cidade em virtude de seu gigantismo de-
corrente da má distribuição demográfica do País. “A cidade não cresce, incha, espalha-se
como mancha de óleo no mapa, sem possibilidade de se prover trabalho, habitação, saú-
de e escola para toda a população” (OESP, 7.7.2003) . Sua crítica avança, porém, muito
além da constatação dessa característica que alinha São Paulo a outras cidades do, assim
denominado, Terceiro Mundo. Lembrava ainda a forma desastrada e corrupta pela qual
se fazem as obras públicas na cidade, com absoluto descaso para com a paisagem urbana
– mencionando, entre outras “obras”, a via elevada sobre a avenida São João, o “Minho-
cão”, responsável pela degradação de uma das avenidas mais antigas da área central, como
se beleza e bem-viver fossem coisas apartadas.
No dia seguinte, 8 de julho, na página três do primeiro caderno, destinada aos edi-
toriais desse mesmo órgão da grande imprensa, o articulista comentava criticamente os
prejuízos para a cidade com a pendência entre diferentes autoridades e a decorrente de-
mora nas decisões para resolver a questão dos “corredores comerciais” encravados em
várias áreas residenciais da capital. Um problema antigo que se submetido às leis vigen-
tes representaria hoje em dia, segundo ele, o fechamento de 10 mil postos de trabalho
em uma cidade já bastante onerada pelo alto índice de desemprego. A disputa entre as
autoridades municipais responsáveis pela Lei que, contando com a aprovação em breve
de uma nova Lei de Zoneamento, anistia provisoriamente os estabelecimentos comer-
ciais instalados nesses corredores e a decisão judicial do presidente do Tribunal de Justi-
ça suspendendo a anistia, desencadeia um processo que pode se arrastar por três anos,
prazo estimado para que a matéria seja analisada pelos 25 desembargadores do órgão es-
pecial do TJ. Nesse meio tempo perde a cidade submetida a uma Lei de Zoneamento
que, diz o editorial, deveria ter sido modificada há vinte anos. A matéria fecha alertan-
do para as conseqüências do descompasso entre “a dinâmica da evolução” da cidade e a
legislação desatualizada.

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Essas matérias escolhidas entre outras que noticiam problemas relativos ao transpor-
te coletivo, às constantes tentativas de fuga e às fugas efetivas de penitenciárias, ao tráfi-
co de drogas e de armas, desabamentos de casas e demais tragédias do cotidiano da gran-
de metrópole parecem desmentir toda a possibilidade de manter sob controle seu
crescimento e a qualidade de vida indispensável a seus habitantes. Embora não consti-
tuam problemas específicos da capital paulistana, sem dúvida nela se apresentam de for-
ma superlativa contradizendo os vários planos elaborados no decorrer de todo o século XX
com vistas a torná-la uma metrópole capaz de oferecer condições de vida digna para sua
população. Contrastam com a posição afirmativa das autoridades municipais e dos urba-
nistas que, na primeira metade do século XX, sempre viram com otimismo a possibilida-
de de fazer de São Paulo uma grande metrópole e exemplo de boa urbanização.
Grande parte dos problemas é imputada à constante e numerosa corrente migrató-
ria que há mais de meio século busca a cidade atrás das efetivas ou quiméricas possibili-
dades de emprego. Ou seja, parcela importante dos problemas decorreria da má distribui-
ção da renda e das condições do mercado de trabalho no País. Contudo, a aposta na
possibilidade de enfrentar e resolver as questões postas pela metropolização de São Paulo
persiste. Afinal, se a municipalidade não se dispõe, aliás não poderia se dispor, a oferecer
condições de trabalho para o número sempre crescente de seus habitantes, deveria enfren-
tar os problemas de infra-estrutura – saneamento e energia elétrica, bem como de trans-
porte coletivo, assunto que tem merecido matérias constantes na grande imprensa paulis-
tana – que se avolumam, estando longe de atender às necessidades básicas da população.

Para entender a afirmação de que esses não são problemas específicos da cidade de
São Paulo, acredito ser importante voltar a Argan e a outros urbanistas e estudiosos das
questões urbanas que, desde a década de 1970, vêm chamando a atenção para o descom-
passo entre os planos urbanísticos, o planejamento regional e ecológico, as intenções de
controlar o crescimento das cidades e seu entorno ambiental, e o que nelas ocorre. Nesse
sentido, os dois textos já citados de Argan – “O espaço visual da cidade” e “Urbanismo,
espaço e ambiente” – guardam atualidade por falarem dos desafios postos aos urbanistas.
Em suas palavras encontra-se o registro de uma constatação e de um alerta severo: “A ci-
dade não se funda, se forma. As cidades fundadas e construídas por imposição não tive-
ram desenvolvimento, não são cidades”. Para ele, “Pienza é um modelo, um objeto de
museu; Brasília é um grande ministério; a cidade industrial de Ledoux, ou um século de-
pois, de Garnier, é uma extensão da fábrica” (Argan, 1993a, p.224). Mesmo consideran-
do problemática essa afirmação sua, penso que Argan trabalha uma aposta, utópica sem
dúvida (porém qual intenção urbanística não guarda uma dimensão utópica?), mas extre-
mamente atraente por recolocar o homem no centro de seu próprio mundo. Para ele, “o
que define, conserva e transmite o caráter de uma cidade é o impulso, a pressão ou ape-
nas a resistência que cada um, em sua esfera ‘particular’, opõe à destruição de certos fatos
que têm para ele [o habitante] valor simbólico ou mítico, e todos [os habitantes opõem]
de comum acordo à destruição de certos fatos sobre cujo valor simbólico há consenso ge-
ral”. Essa pressão do citadino não estaria mais presente nas cidades que deixaram de ser
“unidades de vizinhança”, aquelas “em que todos se conhecem”. Nas cidades modernas
“cessam as razões de defesa interna e as lutas citadinas, que tornavam úteis as ruas tortuo-
sas” e o acaso e a surpresa se vêm eliminados pela organização em perspectiva dos traçados
retilíneos que mensuram e diminuem distâncias (1993b, p.234-5). Em outras palavras,
quando a cidade deixa de ser lugar de abrigo, proteção e refúgio e torna-se aparato de

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comunicação, no duplo sentido de deslocamento e relação, de transmissão de determina-


dos conteúdos urbanos: a autoridade do Estado ou da Lei, da arquitetura privada expres-
sando com o luxo e a grandeza a condição social ou apenas econômica dos proprietários.
Estudioso das cidades, Joseph Rykwert também localiza nos problemas do trânsito
a atual concentração das preocupações das autoridades urbanas e do usuário da cidade,
pedestre ou motorizado. Os constantes engarrafamentos atormentam de tal modo a vida
urbana que a engenharia de trânsito terá (deverá substituir) que substituir o planejamen-
to urbano. A imagem positiva e valorizada do tráfico intenso das cidades, considerado ín-
dice de desenvolvimento, está sendo revista, já que os especialistas da área estariam sem-
pre um passo atrasado em relação às demandas. O mesmo acontece com as suposições
otimistas dos economistas que, durante quase dois séculos, avaliaram positivamente o
crescimento demográfico das cidades, correlacionando-o ao crescimento do produto in-
terno bruto nacional. Aprisionados a modelos analíticos de caráter estatístico, esses espe-
cialistas e as autoridades públicas confirmam essa tendência, agora avaliada negativamen-
te, para os anos vindouros. Rykwert vai além em sua crítica ao denunciar o silêncio com
que se elide a possibilidade de desenvolvimentos outros.17 17 As observações que se
seguem foram resumidas
Manter o quadro conceitual dentro do qual os planejadores trabalham significa, pa- do “Prefácio” a The Idea of a
ra ele, recusar qualquer ordenação de natureza extraeconômica e aceitar a idéia de um Town, 1989, p.23-6.

crescimento autônomo, assemelhado aos processos naturais e às imagens de árvores e de


tecido epidérmico, e à noção de patologia quando se referem a crises. Porém, diz ele, “a
cidade não é realmente um fenômeno natural. É um artefato – um artefato de espécie cu-
riosa, composto de elementos da vontade e do acaso [willed and random elements] imper-
feitamente controlados. Quando relacionados com a fisiologia constituem algo antes de
tudo mais próximo do sonho” (Rykwert, 1989). Não que sonhos e fantasias sejam dispen-
sáveis. Aliás, diz ele, tudo acontece porque hoje em dia se considera pouco séria a preo-
cupação com sonhos e fantasias, coisas que no século XIX foram vistas como sérias e passí-
veis de estudos, até científicos. Talvez por isso mesmo, prossegue Rykwert, o pensamento
urbanístico tenha se empobrecido tanto. Ocupando-se somente do espaço em termos fí-
sicos, o espaço psicológico, cultural, jurídico e religioso não são tratados como aspectos
do espaço ecológico, pensado pelos urbanistas exclusivamente do ponto de vista econô-
mico. Ao limitarem-se a soluções dos problemas físicos dos centros urbanos, se esquecem
que essas modificações físicas implicam para os cidadãos mudanças simbólicas. Vêem-se,
desse modo, planejadores e arquitetos às voltas com um resíduo irracional motivado por
preconceitos inconfessos de caráter espiritual ou estético desastrosos para a própria con-
vivência da comunidade.
Para Rykwert é de extrema relevância a preocupação demonstrada por alguns soció-
logos quanto aos construtos mentais dos habitantes para se pensar e propor protótipos
conceituais de cidades. Acredita mesmo que esses construtos encontram-se nas casas que
seriam percebidas como miniaturas da cidade, não da existente, mas da cidade desejada.
Rykwert se aproxima em seus argumentos de Argan e Cauquelin por entender a impor-
tância de serem reconciliados o modelo conceitual – posto à disposição do citadino na sua
apresentação gráfica dos diagramas dos metrôs e trajetos de ônibus – com o que é efeti-
vamente vivenciado pelo citadino, formado pelo espaço e tempo que nos ata a lugares es-
pecíficos: casas, trechos e área das cidades. Rykwert não considerava no momento em que
escrevia e publicava esse seu livro (1988) que se dispusesse de soluções para essa questão
e por isso voltava-se para os tempos antigos, às cidades romanas e sua organização em obe-
diência a leis divinas.

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A C I D A D E

Passemos agora a Otília Arantes que, embora transite por um caminho crítico diver-
so do de Argan, Cauquelin e Rykwert, em alguns pontos se aproxima deles, em outros
deixa patente sua percepção pessimista, desesperançada mesmo, das possibilidades de se
reencontrar a dimensão de cidadania nas cidades contemporâneas.
Arantes vem insistindo, desde os inícios dos anos 90, na afirmativa do colapso da
idéia de planificação global da cidade e na tendência a se adotar a forma pontual nas in-
tervenções, por vezes, diz ela, “intencionalmente modesta”, e mais, “buscando uma requa-
lificação que respeite o contexto, sua morfologia ou tipologia arquitetônica, e preserve os
valores locais”. Prossegue refletindo sobre essa tendência ao colocar no debate a questão
bastante atual sobre se não se estaria “substituindo a ideologia do plano por outra, a ideo-
logia da diversidade, das identidades locais, em que os conflitos são escamoteados por
uma espécie de estetização do heterogêneo?”. Otília não recua perante as implicações, até
de caráter ideológico, e insiste no significado da alteração terminológica que substituiu a
noção de planejamento pela de “desenho urbano” (Arantes, 1998, p.131-5). Uma restri-
ção que, diz ela:

parece anunciar esse estreitamento das possibilidades de mudança real, que no plano ideoló-
gico ... reflete a espécie de renúncia a que obrigou a déblâcle irreversível do Movimento Mo-
derno. Encolhimento que não se deve apenas à interferência direta dos interesses em jogo,
dos verdadeiros agentes urbanos ou promotores do espaço público: governos – no mais das
vezes preocupados em transformar a cidade em imagem publicitária – ou os especuladores
imobiliários de sempre (proprietários, construtoras etc.); à qual se somam os limites naturais
da profissão, obrigando a dividir a responsabilidade de qualquer intervenção com outros pro-
fissionais; mas, basicamente, imposto pelo rumo atual do capitalismo, cuja mundialização é
responsável em grande parte por uma urbanização tanto mais intensa e extensa quanto maior
o contingente dos “náufragos da competitividade” mundial (só no Brasil, mais de 70% da
população pobre reside nas cidades). (Arantes, 1998, p.131-2.)

Otília Arantes considera no texto citado e em “Arquitetura no presente: uma ques-


18 Otília Arantes, Urbanis- tão de história?”18 que “se perdeu a fé no poder emancipador da razão comandando o de-
mo em fim de linha, 1988,
p.43ss.
senrolar do processo histórico”, que levara os modernos a romperem com a tradição, for-
mando outra, é bem verdade, a da “tradição da ruptura”, como foi denominada por
Octavio Paz. Fé fundada na “crença no poder emancipatório da evolução capitalista, que
se julgava decorrência inelutável do desenvolvimento das forças produtivas”. Essa revira-
volta foi em boa parte motivada pelos resultados da crença na razão que redundou na
“funcionalização do novo, formalização da ruptura, e a conseqüente transformação da
utopia no seu contrário à medida mesma em que se realizava” (Arantes,1998, p.41-54), e
implicou o colapso da idéia de planificação global da cidade e de sua aposta na organiza-
ção racional do espaço habitado coletivo.
A cidade fragmentada é para a autora o resultado da nova ordem mundial – a sub-
proletarização – decorrente do aumento do excedente de mão-de-obra não absorvido pe-
lo mercado de trabalho e que agrega conflituosamente essa nova marginalidade urbana de
dimensões mundiais. Não se trata mais de explosão urbana, mas de implosão. Em sua
perspectiva vive-se um contexto calamitoso em que pouco há para fazer no sentido de re-
sistir a essa tendência perversa do mercado, além de atuações restritas relativas a melho-
rias das condições de higiene, trabalho, alimentação e saúde. Em sua ótica, inverte-se a
avaliação positiva da “heterogeneidade”, da “pluralidade da cidade caótica” e seu caráter

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soft, tão festejado por “alguns deslumbrados”. “De fato, assiste-se a uma estetização da po-
breza urbana”, afirma buscando reforço para sua posição em uma citação de David Har-
vey: “quando a pobreza e a falta de moradia são servidas para o prazer estético, a ética é
de fato dominada pela estética, convidando, por conseguinte, à amarga colheita da polí-
tica carismática e do extremismo ideológico” (Harvey apud Otília, 1998, p.140). Otília
Arantes expõe todo seu pessimismo na frase com que fecha o artigo: “Ocorre que este úl-
timo (o capitalismo central) se recompôs inviabilizando de vez a idéia mesma de urbani-
zação, tornando o conceito de cidade uma coisa do passado, como atestam os monstros
urbanos em que vivemos, e dentro deles as zonas extraterritorializadas que, sem dúvida,
um bom desenho até pode tornar agradável de ver – em maquete, de preferência” (Aran-
tes, 1998).
Na seqüência de seus argumentos apreende-se a crítica severa ao sentido dado atual-
mente à preservação, para ela, uma manifestação nostálgica de reação à modernidade téc-
nica, um retorno da arquitetura aos estilos áulicos, retorno estranho, diz, que parece “no
mínimo um descompasso, um retrocesso brutal, ou algo do gênero”. Não há em seus tex-
tos uma recusa cega ao “revivalismo”; lembra até a presença de componentes regressivos
presentes na arquitetura monumental do século XIX – nos monumentos e nas casas bur-
guesas – e no medievalismo de Ruskin, carregando ambos, entretanto, uma função sim-
bólica. O que a preocupa é esse retorno esvaziado de sentido simbólico, motivado por es-
pecialistas que advogam a causa do urbanismo anárquico ou que fazem a apologia da
cidade caótica, plural, fragmentada, soft. A apologia das identidades locais, a estetização
do heterogêneo.19 Confusão entre o respeito à alteridade e o culto à diversidade. Cidades 19 Otília retoma em outros
textos esse tema e aqui a ci-
com espaços transformados em cenários fascinantes buscando atrair “uma sociabilidade tação é de “Urbanismo em
que deixou de existir por causa desse traço desertificante da modernização”, completa. fim de linha”, 1998, p.140.

Sua posição em relação a esse “amolecimento” da cidade onde a tudo pode ser atri-
buído valor, e que Otília Arantes relaciona à noção de “desenho urbano”, implica a seu
ver “um estreitamento das possibilidades de mudança real, uma certa renúncia á utiliza-
ção dos meios técnicos ao nosso alcance em função da melhoria material das condições
de vida dos habitantes dos grandes centros metropolitanos” (1998, p.132). Desfaz-se o
par complementar – modernização e urbanização – enquanto recusa da urbanização de-
molidora dos modernos orientada por uma pretensa racionalidade da cidade planificada
– substituindo-o pela alternativa de intervenções orientadas pela idéia de consertar sem
destruir, respeitar a sedimentação dos tempos diferentes, reatando e rejuvenescendo os
vínculos com a tradição – construir um lugar, um desejo implausível de devolver a anti-
ga dignidade perdida da continuidade histórica.
Otília Arantes não vê “nessa intervenção contextualista”20 a possibilidade de se for- 20 A expressão está em
“Cultura da cidade: anima-
mar um espaço de salvação da cidade e da vida pública perdida, tão desejada por Richard ção sem frase”, artigo da
Sennett, a partir do refazer discretamente espaços da cidade, em migalhas, a partir de pon- coletânea Urbanismo em
fim de linha, 1998, p.146.
tos nevrálgicos com o poder de requalificar o entorno e a relação entre as pessoas. Ela pa-
rece concordar com Argan que noções como “comunidade” constituem meras abstrações,
pontos localizados no passado, cujo olhar retroprojetivo de alguns parece acreditar ser
possível reconstituir. E finaliza afirmando: “os modernos (ao pensarem a ruptura) tinham
o sentido da história, nós o perdemos”.21 21 “Arquitetura no pre-
sente: uma questão de
A mesma avaliação crítica severa encontra-se em um artigo de Ana Fernandes (2001, história?”, 1998, p.54.
p.317-28), no qual a autora indaga, exatamente, sobre esse consenso de âmbito mundial
das intervenções apoiado na generalização dos conceitos. Nos anos de crítica ao raciona-
lismo, ao funcionalismo e ao zoneamento, em que Jane Jacobs (Morte e vida das grandes

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A C I D A D E

cidades americanas, 1961), Aldo Rossi (Arquitetura da cidade, 1966) e Robert Venturi
(Aprendendo com Las Vegas, 1971) movimentavam o debate, formou-se um contramovi-
mento de afirmação de novos valores. Eles apontavam para a boa convivência das “cida-
des tradicionais”, para “os valores ligados à historicidade do espaço construído e à consti-
tuição da memória”, e para “a busca de conteúdos comerciais, não cultos ou não eruditos
na legitimação dos processos de produção das cidades e de sua forma – uma apologia do
caráter híbrido para a linguagem arquitetônica”. Passadas essas décadas de crítica, pros-
segue, nos anos 80 e 90, “esses conceitos deixaram de ser diferenciados das práticas de
intervenção sobre as cidades para se transformarem em termos quase consensuais das
ações implementadas no espaço urbano, em diversas de suas configurações: política, em-
presarial, da mídia e do corpo técnico vinculado à ação sobre as cidades” (Fernandes,
2001, p.319).
Fernandes assinala a mesmice das intervenções com exemplos colhidos, em cidades
estrangeiras e brasileiras – Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro – e várias outras implemen-
tadas por prefeituras progressistas, todas se reportando à auto-sustentabilidade, ecologia,
comunidade, memória, identidade, todas reforçadas por ótica idêntica defendida pelo
Banco Mundial. Em todas, a mesmice se forma a partir de preocupações idênticas em re-
lação “às novas centralidades”, em vista da escala territorial imensa das metrópoles, com
a recuperação de espaços centrais, regiões portuárias e de grandes equipamentos urbanos
que permitam o deslocamento rápido entre esses pontos transformados em atração turís-
tica. Também em relação à recuperação do “espaço simbólico” das cidades, a autora indi-
ca idêntica preocupação generalizada com a hierarquização urbana em escala mundial; há,
diz ela, “uma ânsia de particularidade que a distinga e que congregue habitantes e turis-
tas, cada vez mais presentes no cotidiano”. Uma preocupação em tornar a(s) cidade(s) ob-
jeto de desejo na apreciação estética da paisagem urbana que diferencia umas das outras
de modo aparente, superficial. Uma terceira dimensão revela a mesmice: a da importân-
cia atual dos grandes organismos internacionais impondo na prática metodologias de in-
tervenção sempre atreladas a objetivos monetário-financeiros. “O desdobramento dessas
ações em termos de produção do território com fortes características de homogeneidade
não é, portanto, surpreendente, assim como não o é sua relação indiferenciada com per-
fis políticos de gestão urbana bastante distintos”, conclui Fernandes (2001, p.322 e 324).
Há, portanto, nos textos desses autores – Arantes, Fernandes e Argan – a constata-
ção do terreno cediço em que se transformou a área de atuação dos urbanistas, “o urba-
nista demiurgo foi se transformando num decorador” e o planejamento foi cedendo aos
22 Arantes remete aqui a poucos ao “urbanisme d’entretien”.22
Alain Ghieux em “Entrées
sur la scène”, in Cahiers du
Qual seria então o sentido da história para os modernos? Ora, estaria exatamente em
CCI, n.5, 1998. seu obstinado esforço em romper com o passado, com a tradição. Nesse ponto escuta-se
também as palavras de Rykwert interpretando o Movimento Moderno do pós-Segunda
Guerra Mundial. Tratava-se, diz, de uma intenção radical de seus integrantes de fechar
um tempo, acreditando que a história, além de seus vínculos com os velhos tempos ruins,
nada tinha a lhes ensinar. As ruínas deixadas em muitos países europeus e asiáticos ofere-
ciam o duplo espetáculo do final de uma civilização e de uma nova a ser construída com
a garantia proporcionada pela racionalidade planejada e projetada de cidades. Os profis-
sionais eram vistos como pioneiros de um mundo novo e, mais ainda, seu trabalho esta-
ria baseado na pesquisa estatística e na eficiência técnica. Na perspectiva otimista deles, a
construção se tornara a maior prioridade social e fizera que até o status conferido pela for-
mação nas faculdades de Direito, ainda prevalecente na primeira metade do século em

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M A R I A S T E L L A B R E S C I A N I

países latinos, europeus e sul-americanos, se transferisse em boa parte para a formação em


Arquitetura. Até na Grã-Bretanha cresceu a preocupação de autoridades públicas não só
com a urbanização, mas também com a própria organização dos espaços domésticos das
casas. Rykwert não faz menção à dimensão política dessa mudança de perspectiva em re-
lação à construção civil.
Essa posição otimista teve curta duração, pois, segundo ele, por volta de 1965, a si-
tuação mudara em vista de vários dos projetos não terem demonstrado a eficiência alme-
jada. Nomeia especialmente os Estados Unidos ao acolher os veteranos da guerra, não
nas cidades de arquitetura projetada por “visionários”, mas em vastos subúrbios urbani-
zados na velha base especulativa. Sem dúvida, uma reversão de expectativa que não sur-
preendeu os jovens arquitetos cuja carreira, como a dele, começara depois da guerra e
que nunca haviam se convencido da racionalidade e eficácia de seus colegas mais velhos.
Eles se davam conta de que, afinal, a cidade não é somente um conjunto de unidades de
moradia bem planejadas. O resultado dessa desavença ficou patente na desarticulação
do Ciam em seu décimo encontro, organização que motivara a reflexão e a atividade da
maioria de planejadores urbanos e arquitetos do imediato pós-guerra. Assim, Rykwert
explica sua reaproximação acadêmica com a história, pois, como estudante e recém-
formado nessa época, achava insatisfatória a formação que recebera na escola de Arqui-
tetura. Contudo, nesse livro – The Seduction of Place,23 ele faz da cidade contemporânea 23 O livro publicado em
2000 tem como subtítulo
e das cidades do século XXI seu objeto de reflexão. Da história ele retirou a lição de que The City in the Twenty-first
as cidades nunca são inteiramente determinadas pelo alto por forças obscuras que mal Century. A edição brasileira
de A sedução do lugar
podemos identificar, menos ainda controlar. Nelas, se somos pacientes, somos também (2004) leva outro subtítulo,
agentes. A história e o futuro da cida-
de, e traz um “Epílogo” que
É nesse campo teórico que procuro desenvolver minha pesquisa – buscar essa rela- atualiza suas reflexões para
ção entre o especialista e o citadino, entre projeto e realização, entre intenção e resistên- o mundo depois do 11 de
setembro de 2001.
cia: esse intervalo que sugere nossa participação e cumplicidade com a formação do que
Maria Stella Bresciani é
hoje são as cidades, o vazio interposto pela genérica acusação de visão distorcida das au- professora titular de História
toridades com seus olhos sempre voltados para experiências externas, essa explicação a Contemporânea e coordena-
dora do Centro Interdiscipli-
priori, sempre disponível, pouco elucidativa, a meu ver: nossa obrigação de participar com nar de Estudos da Cidade
os instrumentos profissionais de que dispomos. (CIEC) do Instituto de Filoso-
fia e Ciências Humanas da
Unicamp. E-mail: sbrescia@
lexxa.com.br

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A B S T R A C T To study the cities means to establish connections to the experience of


living in cities. Objective connections concerning living and working conditions, affective ties
that build spaces where remindings constitute a special repertoire relating images and expec-
tations mostly idealized and resistant to time. The intellectual interest in studying the city(ies)
comes certainly from present questions, despite making us retrocede to moments where we can
catch the significant links able to explain the quite unconfortable living conditions in the con-
temporary cities.

K E Y W O R D S Cities; urbanism; history; images; memory.

26 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 4
OS INSTRUMENTOS
DA REFORMA URBANA E
O IDEAL DE CIDADANIA
AS CONTRADIÇÕES EM CURSO
LUCIANA CORRÊA DO LAGO

R E S U M O O ensaio busca confrontar o projeto de cidadania, contido no ideário da


Reforma Urbana, com os rumos da política urbana brasileira, local e nacional, direcionada
para a ampliação dos direitos de acesso à cidade. A análise tem como foco as políticas de re-
gularização e urbanização de assentamentos populares, tendo em vista o lugar central que
ocupa, hoje, a ilegalidade da moradia na formulação da questão urbana brasileira e nas ações
públicas daí decorrentes. Trata-se de uma avaliação dos princípios das políticas em curso e de
seus efeitos no campo valorativo do ideal igualitário. Parte-se da idéia de que os instrumen-
tos legais acionados nos assentamentos, particularmente a Zeis, carregam princípios contra-
ditórios. Questiona-se em que medida as normas e os padrões específicos instituídos nesses ter-
ritórios institucionalizam duas classes de cidadãos, ou seja, duas referências de bem-estar, de
direito social e de direito de propriedade; ambas legais e legítimas. Busca-se contribuir com o
debate sobre as possibilidades de “convivência” entre igualdade e diferença, ou mesmo entre
igualdade e liberdade, numa sociedade hierarquizada e profundamente desigual, onde a di-
ferença é a expressão da inferioridade dos pobres.

PA L AV R A S - C H AV E Cidadania; política urbana; habitação.

INTRODUÇÃO

...todos são iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obede-
cem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participa-
tiva; indiretamente, numa democracia representativa). Donde o maior problema da democracia
numa sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios – igualdade e liberdade – sob
os efeitos da desigualdade real...
Marilena Chauí

Tomando como referência a definição de democracia, acima citada, busca-se nesse


ensaio confrontar o projeto de cidadania, contido no ideário da Reforma Urbana, com os
rumos da política urbana brasileira, local e nacional, direcionada para a ampliação dos di-
reitos de acesso à cidade. Nesse sentido, a análise tem como foco as políticas de regulari-
zação e urbanização de assentamentos populares, tendo em vista o lugar central que ocu-
pa, hoje, a ilegalidade da moradia na formulação da questão urbana brasileira e nas ações
públicas daí decorrentes. Vale lembrar que a ilegalidade da moradia dos pobres como pro-
blema aparece, hoje, nos diferentes projetos políticos em disputa: dos mais “progressistas”,
em que as ilegalidades fundiária e urbanística são elementos da não-cidadania, aos mais
“conservadores”, como, por exemplo, a visão de cunho ambientalista, em que a ilegalidade

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urbana é responsabilizada pela degradação ambiental. Entre os extremos ainda vale men-
cionar a visão liberal dos efeitos negativos da ilegalidade para um virtuoso dinamismo da
economia (De Sotto, 2001).
Não se trata aqui de uma avaliação das políticas em curso, de seus efeitos concretos
sobre o quadro de desigualdades e carências, mas sim de seus princípios e efeitos no cam-
po valorativo do ideal igualitário. Os instrumentos legais acionados nos assentamentos,
1 Zona Especial de Interes- particularmente a Zeis,1 objeto desse ensaio, carregam princípios contraditórios. Questio-
se Social. A definição e o
detalhamento desse instru-
na-se, aqui, em que medida as normas e os padrões específicos instituídos nesses territó-
mento encontram-se ao lon- rios, com o objetivo de garantir a permanência dos moradores e os mínimos necessários
go do texto.
para o bem-estar individual e coletivo, institucionalizam duas classes de cidadãos, ou se-
ja, duas referências de bem-estar: de direito social e de direito de propriedade; ambas le-
gais e legítimas, na medida em que a participação dos envolvidos no processo garante tal
legitimidade. Busca-se, assim, contribuir com o debate (bastante caloroso, hoje, na Euro-
pa) sobre as possibilidades de “convivência” entre igualdade e diferença, ou mesmo entre
igualdade e liberdade, numa sociedade hierarquizada e profundamente desigual, em que
2 Duarte apresenta um insti- a diferença é a expressão da inferioridade dos pobres.2
gante mapeamento da refle-
xão sociológica sobre os pa-
Compartilha-se aqui a visão de que tais instrumentos representam importantes avan-
radoxos do projeto de ços no sentido do reconhecimento de uma grande parcela da população urbana como ci-
“cidadanização” nas socie-
dades modernas (em espe- dadãos (portadores de um conjunto de direitos privados e públicos) e de seus territórios
cial das classes populares), residenciais como parte integrante da metrópole. Cabe avaliar se esse reconhecimento e os
entre eles, os impasses “en-
tre o projeto universalista da processos sociais aí envolvidos desnaturalizam ou reificam nossos valores hierárquicos. A
Liberdade e da Igualdade e própria noção “interesse social”, utilizada na titulação da Zeis, tem ampla utilização (e pos-
o respeito, preservação ou
cultivo das diferenças (que sivelmente sua origem) no campo da assistência social, e mereceria uma discussão mais
não é senão um corolário do
ideal libertário)” (Duarte,
acurada sobre seus significados, não tendo esse trabalho tal pretensão. Vale mencionar, ape-
1993, p.6). nas, que a política de assistência tem como pressuposto a existência de grupos sociais in-
capazes de se integrar plenamente, ou seja, de aceder à cidadania. Essa “clientela” estaria
fora do ideal integrativo, sem condições de mudar seu estatuto social. Para Castel (1998),
a “clientela” é objeto da política de inserção e não de integração.
Na contramão do assistencialismo, o processo de institucionalização das Zeis, desde
sua origem no início dos anos 80, está baseado no ideário integrativo, na perspectiva de
transformar os moradores de tais áreas em cidadãos. A intenção era, e continua sendo, a
de através desse instrumento colocar dentro do “mapa oficial”, com condições de vida dig-
nas, áreas e pessoas até então excluídas. O projeto da Reforma Urbana, portanto, não se
esgota na busca pelo reconhecimento dos assentamentos como objeto da política urbana.
Não esqueçamos que as favelas no Rio de Janeiro vêm sofrendo intervenções por parte do
Estado, há mais de cinqüenta anos, através de políticas sociais e urbanas de diferentes ma-
tizes ideológicos. A questão central de um projeto democrático de cidade é garantir aos
moradores dessas áreas igual condição de disputa por investimentos públicos. A conquis-
ta da cidadania, portanto, é a conquista do reconhecimento desses moradores como sujei-
tos políticos, que reivindicam e criam novos direitos. Não se trata, portanto, de clientela.

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A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E URBANÍSTICA 3 Os projetos originais de di-


COMO AMPLIAÇÃO DA CIDADANIA: AS ZEIS ferentes cidades planejadas
no Brasil evidenciam clara-
mente a exclusão dos traba-
Como zonas urbanas específicas, as Zeis são criadas no sentido de interferir no zo- lhadores sem qualificação,
responsáveis pela constru-
neamento das cidades, incorporando territórios que até então estavam fora das normas es- ção das cidades. Os planos
tabelecidas. As especificidades não se restringem às distintas ilegalidades presentes nessas de Volta Redonda, Belo Hori-
zonte, Brasília e Carajás,
áreas, abrangendo também a caracterização social dos moradores. por exemplo, não previam
uma “zona residencial” para
esses trabalhadores, que fo-
As Zeis são zonas urbanas específicas, que podem conter áreas públicas ou particulares ram se alojar fora das fron-
ocupadas por população de baixa renda, onde há interesse público de promover a urbaniza- teiras legais das cidades (Pi-
quet, 1998)
ção e/ou a regularização jurídica da posse da terra, para salvaguardar o direito à moradia.
4 A proposta de “flexibiliza-
(Instituto Pólis, 2002, p.92.) ção” da lei está presente, ho-
je, em ideários politicamente
opostos. Para o projeto de
O zoneamento, expressão maior do urbanismo racionalista, é o principal instrumen- cidade de cunho “neolibe-
to legal de controle e ordenamento da produção e da apropriação do espaço construído, ral”, a legislação urbana ra-
cionalista é uma barreira à
representando o interesse “difuso” (leia-se “de todos”) por uma boa qualidade de vida na gestão empreendedora, que
cidade. Como as normas legais em geral, o zoneamento fala em nome da Razão, tradu- busca uma permanente ade-
quação do espaço da cidade
zindo, em um conjunto de parâmetros, um ideal de bem-estar urbano. Vale destacar que às novas possibilidades de
esse ideal contém, ao mesmo tempo, princípios restritivos em relação ao direito de pro- investimento.

priedade e princípios hierárquicos que institucionalizam as diferenças inter e intraclasses, 5 Em Recife, foram criados
por Decreto de 1980, 26
através de zonas residenciais com padrões mínimos distintos. Áreas Especiais, tendo em
O ideário da Reforma Urbana introduz mais um componente à critica ao urbanis- vista a implantação do Pro-
morar (programa federal de
mo racionalista, isto é, ao seu princípio excludente, impeditivo da inserção legal dos mo- erradicação de sub-habita-
radores de assentamentos populares.3 Assim, a proposta de flexibilização da legislação ur- ção). Foram elaborados pro-
jetos de urbanização para
bana, através das Zeis, teria a função de aproximar a cidade ideal da real, adequando a três favelas (marcos da re-
norma à realidade. A flexibilização, nesse caso, põe em questão a legitimidade dos padrões sistência popular contra a
remoção), com parâmetros
de bem-estar socialmente aceitos e instituídos em nome de “todos”.4 Voltarei a esse pon- urbanísticos especiais, en-
to, mais adiante, relacionando-o à politização das normas legais. tre eles a proibição de “re-
membramentos” como for-
Embora tenha ganhado fama e se difundido a partir da Constituição de 1988, a ins- ma de impedir a ação dos
empreendedores imobiliá-
titucionalização de zonas especiais, com o objetivo de integrar à cidade os assentamentos rios. Em 1987, é sanciona-
de baixa renda, remonta ao início dos anos 80, com iniciativas em Recife e Belo Horizon- da a Lei do Prezeis, “preven-
do um conjunto de regras,
te. Em ambas as cidades, a presença da Igreja católica em ações comunitárias nas favelas procedimentos e mecanis-
foi fator decisivo para esse pioneirismo em relação às normas legais.5 O balanço dos re- mos para o reconhecimento
de outras áreas faveladas
sultados alcançados, nesses vinte anos, em relação ao projeto das Zeis pode ser agrupado como Zeis, para viabilizar a
em duas ordens de questões: (i) o reconhecimento legal desses territórios como “zonas” da regularização urbanística e
fundiária dos assentamen-
cidade; e (ii) as condições da moradia, no que se refere ao padrão de habitabilidade e à re- tos e para efetivar um siste-
lação de propriedade. As avaliações já feitas apontam importantes avanços no sentido da ma de gestão participativa”
(Miranda & Moraes, 2003).
legitimação e da institucionalização dos assentamentos populares como parte da cidade, Em Belo Horizonte, foi cria-
do, pela lei municipal de
criando, inclusive, reações por parte de empresas imobiliárias. O alto percentual de fave- 1983, o Profavela, que defi-
las transformadas em Zeis,6 não só em Recife e Belo Horizonte, evidenciam esses avanços nia um zoneamento específi-
co para as favelas existen-
(Alfonsín, 1997). tes, para fins de urbani-
zação e regularização (Al-
fonsín, 1997).
São inegáveis os resultados alcançados a partir do Prezeis para as comunidades de baixa
renda: a possibilidade da população de baixa renda permanecer em suas comunidades, inclu- 6 Em Recife, dos 421 as-
sentamentos, 252 com-
sive em áreas centrais, próximas a localidades com disponibilidade de serviços e equipamen- põem as 66 Zeis, que ocu-
tos urbanos; o reconhecimento institucional do direito à participação de representantes po- pam 85% das áreas de
favelas.(Miranda & Moraes,
pulares na formulação e acompanhamento de políticas urbanas; a consolidação da mudança 2003).

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nos padrões de intervenção urbanística daqueles assentamentos. Contudo, as expectativas em


relação à transformação das condições de vida da população das Zeis foram, relativamente,
frustradas. (Miranda & Moraes, 2003.)

A citação acima aponta os limites da Zeis como instrumento redistributivo, ou se-


ja, a sua capacidade limitada de redirecionar os investimentos públicos prioritariamente
para as áreas especiais de interesse social. No caso de Recife, em vinte anos, apenas duas
Zeis tiveram a urbanização concluída (Miranda & Moraes, 2003). Em Belo Horizonte,
a desvinculação entre a urbanização e a regularização fundiária possibilitou a titulação de
lotes sem as condições “mínimas” de bem-estar (Alfonsín, 1997). Quanto à regularização
fundiária, os avanços mais significativos ficaram restritos aos assentamentos em terras pú-
blicas, onde os instrumentos de Concessão de Direito Real de Uso e de Doação vêm pos-
sibilitando a titulação plena ou de direito de uso da propriedade. Em relação à titulação
das posses em terras privadas, pouco foi alcançado até agora. Inúmeras barreiras, de or-
dem política e administrativa, impedem os encaminhamentos e/ou a conclusão dos pro-
cessos de titulação através dos instrumentos da Usucapião Urbana e de Desapropriação.
Mais adiante, esses instrumentos serão problematizados à luz do projeto de democratiza-
ção da cidade.
A Zeis não se limita a uma função integrativa de inserir no “mapa” territórios e pes-
soas até então excluídos, garantindo-lhes condições mínimas de bem-estar no lugar da
moradia. A Zeis pode ser um poderoso instrumento de controle e ordenamento do uso
do solo urbano, interferindo na dinâmica redistributiva do mercado imobiliário. As expe-
riências já acumuladas mostram que a ação regulatória, nesse caso, carrega intenções mui-
to distintas. A primeira seria garantir a finalidade da moradia social através da “proteção”
da área diante da especulação.

As Zeis gravam a área do assentamento regularizado como de interesse social, ou seja, a


destinação do terreno, independentemente de quem esteja morando ali, é a habitação de in-
teresse social, o que já induz à diminuição da vantagem da especulação imobiliária nessas
áreas, já que o mecanismo reduz o valor do terreno. (Instituto Pólis, 2003, p.149).

Uma segunda intenção, que não exclui a primeira, seria a de intervir no mercado de
terras da cidade, “desvalorizando” áreas vazias, por meio do gravame da Zeis. Nesse caso,
a experiência de Diadema merece atenção. Na Lei que disciplina o zoneamento e o uso e
7 Porto Alegre também ins- ocupação do solo, foram instituídos dois tipos de Zeis:7 as que são gravadas sobre áreas
tituiu um tipo de Zeis, a
Aeis, específica para vazios
vazias e as que compreendem “terrenos ocupados por favelas, ou assentamentos habitacio-
urbanos destinados a pro- nais assemelhados, destinados a programas de reurbanização, regularização jurídica da
gramas habitacionais.
posse da terra ou empreendimentos habitacionais de interesse social” (Alfonsín, 1997,
p.101). O relevante é que está definida na Lei a destinação dessas áreas vazias: Empreen-
dimentos Habitacionais de Interesse Social, o que evidencia uma restrição ao direito de
propriedade, por uma caracterização social legalmente atribuída.
Ainda no sentido de regular o mercado imobiliário, outro mecanismo que vem sen-
do utilizado através das Zeis é o estabelecimento de limites máximos quanto às dimen-
sões dos lotes conjugado ao impedimento do remembramento. Até agora, o uso desses
mecanismos estão restritos às favelas, mas poderiam ser acionados para outras áreas das ci-
dades, com boa infra-estrutura. Vale mencionar a reação, em Recife, dos empreendedores
imobiliários em relação ao limite da dimensão dos lotes, reivindicando maior “flexibiliza-

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ção” das normas (Miranda & Moraes, 2003). Estaríamos diante de uma curiosa sobrepo-
sição de “flexibilizações”: uma que reduz e congela os “mínimos” instituídos na legislação
urbana em vigor para atender necessidades sociais especiais, congelando-os; e outra que
suspenderia o congelamento. O que importa destacar aqui é a abrangência desse instru-
mento para além dos assentamentos populares, podendo interferir diretamente nos pro-
cessos e conflitos produtores das desigualdades urbanas.

OS PRINCÍPIOS DO DIREITO À TERRA:


A PROPRIEDADE, O USO E A VALORIZAÇÃO

Como já visto, são inúmeras as barreiras jurídicas, administrativas e políticas para a


efetivação de uma regularização fundiária que constranja o direito de propriedade da ter-
ra. O principal avanço foi tornar visível o conflito de interesses e as contradições e “bre-
chas” nas Leis. O peculiar nesse conflito é que o ideário democrático não coloca em ques-
tão o direito de propriedade como valor, na medida em que busca transformar os
moradores dos assentamentos em proprietários, plenos ou não. O que ele busca regular é
o direito do proprietário auferir renda da terra sob seu domínio. Os parâmetros urbanís-
ticos instituídos nas Zeis como forma de controle da especulação e valorização imobiliá-
ria exemplificam esse princípio.
O importante a ressaltar é a centralidade do direito de propriedade fundiária para a
ampliação do exercício da cidadania.8 A propriedade da terra, no Brasil, é base e condi- 8 Essa centralidade, muitas
ção para o acesso a uma série de outros direitos (à justiça, ao crédito, ao financiamento vezes, não é percebida co-
mo tal pelos residentes em
imobiliário etc.) e tem sido, historicamente, um dos principais mecanismos reprodutores assentamentos irregulares.
da estrutura hierárquica nas cidades brasileiras. Contraditoriamente, a ampliação dos di- Pesquisas realizadas por
mim com moradores de fa-
reitos sociais passa, necessariamente, pela maior difusão dos direitos civis, entre eles o da velas no Rio de Janeiro mos-
propriedade. As mudanças nas fronteiras entre o público e o privado em nossas cidades, tram que, nas listas de rei-
vindicações, a titularidade da
com a redução do primeiro, estão também condicionadas à difusão desses direitos.9 A ex- terra não é prioridade, fican-
do atrás da urbanização, dos
periência e a valorização do espaço público são realizadas por indivíduos conscientes de equipamentos coletivos e
seus direitos (e deveres). da segurança. O afastamen-
to da ameaça de remoção
Entremos, então, no argumento central desse ensaio sobre as contradições presentes e, portanto, a crença no di-
no ideário democrático relativas à regularização fundiária. Um primeiro ponto refere-se reito de uso, explicam esse
fenômeno.
aos instrumentos mais recorrentes para esse fim.
9 Num seminário sobre re-
gularização urbanística, pro-
• Concessão do Direito Real de Uso (CDRU), para posse de terras públicas, previsto em movido pela Fundação Ben-
lei desde 1967, pelo Decreto Lei 271. Tal concessão se dá através de um contrato por to Rubião em 2004, no Rio
de Janeiro, uma liderança
tempo determinado, renovável e contendo destinação especificada, não havendo a pos- comunitária de favela apon-
tou a relação existente entre
sibilidade de transferência da propriedade para o outorgado. No caso de Diadema o pe- a expansão territorial do trá-
ríodo do contrato é de noventa anos. fico de drogas nas favelas e
a não-titularidade da proprie-
• Usucapião Urbana, para posse de terras privadas. Garante a aquisição do direito real em dade. Segundo essa lideran-
relação à área privada sobre a qual se tem a posse durante cinco anos contínuos para ça, o poder do tráfico de ex-
pulsar moradores de suas
fins de moradia, em lote não superior a 250m2 (Alfonsín, 1997). casas e ocupá-las como es-
tratégia de controle da área
é fortalecido pela impossibi-
Em que medida o contrato de “concessão real de uso”, em contraposição ao direito lidade desses moradores
pleno da propriedade, institui uma outra classe de cidadãos? É possível construir social- reclamarem judicialmente
seus direitos.
mente uma equivalência entre o valor da concessão de uso e o atribuído à propriedade
plena? A experiência das Prezeis evidencia as dificuldades da CDRU ser aceita entre os mo-

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radores das Zeis, “por não implicar na aquisição de direitos equivalentes aos da transfe-
rência da propriedade” (Miranda & Moraes, 2003). O valor simbólico dos dois estatutos
jurídicos está atrelado a condições objetivas diferenciadas. A desobediência das cláusulas
do contrato de concessão, como por exemplo a destinação residencial do lote, pode levar,
no limite, à perda do direito de uso. No caso da propriedade, poderiam se aplicadas mul-
tas e sanções. É de extrema importância a equivalência dos estatutos legais acionados nas
políticas de regularização fundiária, se o objetivo for não apenas buscar restringir o direi-
to de propriedade para democratizar o acesso à terra e aos serviços urbanos, mas legitimar
essa restrição na sociedade, em geral, e no judiciário e cartórios, em particular.
Outro ponto que merece atenção diz respeito à regulação do mercado imobiliário
nas Zeis, impedindo ou inibindo a venda do imóvel pelos moradores recém-legalizados.
Como já assinalado, o pressuposto é de que a valorização imobiliária provocada pela re-
gularização pode expulsar os moradores socialmente mais vulneráveis. Ou seja, esses mo-
radores, sem uma “proteção” legal, serão expulsos pelo mercado e produzirão novas ilega-
lidades em outros lugares. A forma mais democrática de “proteção” seria o próprio
gravame da Zeis, com normas especiais de uso do solo (lote máximo, coeficiente de edi-
ficação etc.), inibidoras do interesse dos empreendedores imobiliários por essas áreas. Tais
mecanismos seriam mais efetivos para garantir a permanência dos moradores beneficiá-
rios do que a proibição da transferência do imóvel (Instituto Pólis, 2003).

Ao promoverem programas de regularização, cabe aos gestores públicos reconhecer sim os


processos de mobilidade social e práticas decorrentes do exercício das liberdades individuais
dos ocupantes, porém de maneira tal que se garanta que as áreas urbanas que sofrem a inter-
venção publica – com enorme investimento de dinheiro público – sejam reservadas para fi-
nalidade de moradia social. O instrumento das Zeis – Zonas Especiais de Interesse Social
tem se mostrado muito eficaz nesse sentido, e deve ser combinado com normas urbanísticas
que reconheçam as especificidades das áreas a serem regularizadas e com processos de gestão
democrática. Se um dia as desigualdades macroeconômicas diminuírem no país, talvez essa
proteção jurídico-urbanística não seja mais necessária. (Alfonsín & Fernandes, 2004, p.3.)

A idéia de uma cidadania “tutelada” ganha corpo através das propostas de “prote-
ção” dos moradores de áreas regularizadas contra os especuladores e nos remete à dis-
tinção, apresentada por Castel (1998), entre políticas de inserção e de integração. Esses
moradores estariam inseridos na cidade, na medida em que suas áreas de residência pas-
sam a ser legalmente reconhecidas, mas não integrados na sociedade. Para tanto, precisa-
10 O caderno “Regulariza- riam ser reconhecidos socialmente como iguais, como portadores dos mesmos direitos,
ção Fundiária Sustentável”,
produzido pela Secretaria
no caso, os urbanos.
Nacional de Programas Ur- No entanto, os mecanismos de “proteção”, ou seja, de regulação da valorização da
banos, desenvolve bem es-
se argumento, apontando a
terra, merecem uma análise mais abrangente, que dê conta da complexidade dos proces-
necessária articulação entre sos em curso. Pode-se utilizar os mesmos mecanismos de “proteção” dos pobres para o
as ações “curativas” (de re-
gularização) e “preventivas” controle das ações especulativas na cidade como um todo. O desafio é ampliar as restri-
(de controle público sobre o ções ao direito de propriedade para além das favelas (Zeis), ou seja, para os processos que
mercado imobiliário) e a am-
pliação da oferta de terra ur- produzem e reproduzem as desigualdades de acesso à terra.10 A aplicação das Zeis em
banizada para a população áreas vazias com infra-estrutura básica, a discussão e formulação de novos princípios e pa-
de baixa renda. Cf. Ministé-
rio das Cidades, “Planeja- râmetros para a Lei de Zoneamento das cidades, entre outras ações, podem caminhar nes-
mento territorial urbano e
política fundiária”, Cadernos
sa direção.
MCidades, n.3, 2004.

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A REGULARIZAÇÃO COMO
UM CAMPO DA LUTA POLÍTICA

Um dos desafios para se levar adiante um projeto efetivo de democratização do aces-


so à cidade é tornar visíveis, para a sociedade, as contradições e paradoxos dos princípios
que orientam o conjunto das ações políticas. Os programas de regularização constituem
um campo fértil para a reflexão e possível superação, ao longo da luta política, de algu-
mas dessas contradições. É nesse sentido que devemos nos indagar sobre as possibilidades
e os limites da convivência entre os princípios de “igualdade” e de respeito às “diferenças”.
No caso das Zeis, encontramos uma sobreposição de significados para o “respeito à dife-
rença”: como um valor, expressão da “liberdade”, e como a igualdade possível.
Em que medida “o reconhecimento da especificidade das formas urbanas já criadas
e consolidadas ao longo de décadas de ocupação informal” (Alfonsín & Fernandes, 2004,
p.2) fortalece o projeto de reconhecimento desses moradores como iguais, como sujeitos
políticos com as mesmas condições de disputar recursos públicos? Formular, como pres-
suposto, a escassez dos recursos e o conjunto de impossibilidades daí decorrentes, coloca
em risco o projeto democrático de cidade. As Zeis institucionalizam os “mínimos” de
bem-estar produzidos pela espoliação urbana, legitimando esses parâmetros dentro e fora
dos territórios regularizados.11 A legitimidade se sustenta na naturalização da escassez de 11 Os critérios para a medi-
ção dos mínimos necessá-
recursos para investimento, reduzindo o campo de possibilidades a ser formulado pelos rios para a reprodução so-
moradores. Como exemplo, podemos apontar a relação entre os novos “mínimos (a ele- cial são arbitrários e
valorativos e fazem parte da
vação da taxa de ocupação, a largura das vielas etc.) e a “impossibilidade” de transferên- estrutura de valores de ca-
cia de parte dos domicílios para áreas próximas. Já vimos que essa impossibilidade pode- da sociedade. Na luta políti-
ca, os indivíduos reelabo-
ria ser rompida por meio da utilização da própria Zeis em áreas vazias. ram os valores instituídos,
Por serem contraditórios, os processos aqui analisados carregam potencialidades de reproduzindo-os e transfor-
mando-os. Para aprofundar
radicalização da democracia. Podemos pensar em novos padrões de urbanização e bem- essa discussão, ver Nunes
(1990).
estar, instituídos nas Zeis por meio da participação popular, como “novos direitos” para
todos, ou seja, novos mínimos para toda a cidade.12 Alfonsín & Fernandes (2004, p.1) 12 A re-inclusão das vilas no
zoneamento da cidade do
colocam em questão o conjunto de parâmetros urbanísticos que vigoram nas grandes ci- Rio de Janeiro, poderia ter
dades, e “que expressam uma tradição de planejamento urbano elitista e tecnocrático”. Es- esse sentido.

sa é uma problemática relevante, que precisa entrar na pauta da luta política. A politiza-
ção das normas permite desvendar os interesses de classe presentes na legislação
urbanística e fundiária. É inegável que a Lei para “todos” expressa interesses privatistas de
alguns, mas é inegável também que ela é resultado de uma disputa material e simbólica
sobre os parâmetros de bem-estar. 13 Depoimento por mim
recolhido, em 2003, no âm-
Do ponto de vista dos moradores das áreas regularizadas ou potencialmente regula- bito da pesquisa, ainda em
curso, sobre segregação ur-
rizáveis, em que medida os parâmetros mínimos de bem-estar são internalizados como va- bana na metrópole do Rio
lor positivo ou como sinal de inferioridade? Segundo uma moradora da Comunidade de Janeiro, Observatório
das Metrópoles.
Criança Esperança, em Bangu,13 o assentamento onde morava não era uma favela porque
“favela é onde tem beco, casa colada uma na outra. Ninguém tem privacidade. Aqui, não. Luciana Corrêa do Lago
é professora do Instituto de
É proibido colar as casas”. A clara distinção entre espaço público e privado, base do pro- Pesquisa e Planejamento
cesso de individualização, começa a se fazer presente nas mentes das classes populares. A Urbano e Regional da Uni-
versidade Federal do Rio de
legitimidade e ampliação das ações coletivas direcionadas para a transformação profunda Janeiro. E-mail: lucianalago
da sociedade estão associadas à constituição de indivíduos que se vêem como iguais. @terra.com.br

Artigo recebido em dezem-


bro de 2004 e aceito para
publicação em fevereiro de
2005.

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A B S T R A C T The essay searches to confront the project of citizenship, contained in


the Urban Reform ideal, with the directions of the Brazilian urban policies, local and
national, addressed for the enlargement of the access rights to the city. The analysis has as focus
the regularization and urbanization policies in low income areas, based on the central place
that occupies, today, the housing illegality in the formulation of the Brazilian urban question
and public actions. So, the work is about an evaluation of the principles of the urban policies
in course and not of their objective results. The main idea is that the legal instruments used
in the poor areas, particularly the Zeis, load contradictory principles. It is questioned in what
measure the legal norms and the specific urban patterns instituted in these territories
institutionalize two classes of citizens, or two references of welfare, social right and property
right; both legal and legitimate ones. One searches to contribute in the debate on the
possibilities of “conviviality” between equality and difference, or even, between equality and
freedom, in a deeply hierarchical and unequal society, where the difference is the expression of
the inferiority of the poor classes.

K E Y W O R D S Citizenship; urban policy; housing.

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PARTICIPAÇÃO CIDADÃ
E RECONFIGURAÇÕES
NAS POLÍTICAS URBANAS NOS ANOS 90
FLÁVIA DE PAULA DUQUE BRASIL

R E S U M O O artigo aborda as instâncias de participação nas políticas urbanas que


se multiplicam no cenário contemporâneo, a partir do trânsito de projetos societários endere-
çados à democratização do planejamento e da gestão das cidades. Sustenta-se que, a despeito
da heterogeneidade das experiências, dos seus limites, dificuldades e contradições (inerentes ao
processo de reconstrução das relações entre Estado e sociedade no Brasil), os canais de parti-
cipação têm configurado trilhas alternativas e novas linhagens de políticas locais. No primei-
ro momento discutem-se os conceitos de público e participação cidadã, mapeando possibili-
dades de influência dos atores societários na formação da agenda e produção das políticas
urbanas. No momento seguinte, as instâncias de participação são objeto de exame, privile-
giando-se os Conselhos Municipais de Política Urbana, suas características, papéis, potenciais
e alcances. Finalmente, detém-se ilustrativamente no Conselho Municipal de Política Urba-
na e na Conferência Municipal de Política Urbana de Belo Horizonte.

PA L AV R A S - C H AV E Participação cidadã; política urbana; conselhos mu-


nicipais.

As transformações delineadas no Estado e na sociedade civil brasileira, bem como no


âmbito de sua relação e dos processos de formulação e gestão das políticas públicas, cons-
tituem o cenário de abordagem deste trabalho. No bojo destas transformações, Santos &
Avritzer (2002, p.52) destacam o papel dos novos atores na cena política, cuja atuação
questiona a exclusão social e a ação do Estado, volta-se para a ampliação do espaço políti-
co, para a cidadania e inclusão, enfatizando as possibilidades de constituição de uma nova
gramática social e de relações entre o Estado e a sociedade, incluindo a possibilida-
de de experimentalismo na esfera do Estado. Deste modo, as possibilidades de renovação
no campo das políticas públicas remetem especialmente à influência dos atores coletivos no
alargamento dos limites da agenda pública e no seu conteúdo substantivo. Os autores
apontam como elemento nuclear de democratização o reconhecimento da possibilidade de
inovação, compreendida como a participação ampliada dos diversos atores sociais nos pro-
cessos decisórios, destacando que “em geral, estes processos implicam a inclusão de temá-
ticas até então ignoradas pelo sistema político, a redefinição de identidades e vínculos e o
aumento de participação, especialmente no nível local” (Santos & Avritzer, 2002, p.59).
Os potenciais de renovação das políticas públicas com base em lastros societários, nos
termos dos autores citados, colocam em questão as possibilidades de influência dos atores
coletivos – movimentos sociais e suas redes, associações e outros atores – nos processos de-
cisórios desde a formação da agenda de intervenção governamental. Como Teixeira (2000,
p.54) ressalta, “o processo decisório encampa diversos momentos, desde a tematização dos
problemas relacionados à construção de parâmetros para nortear as ações e a criação de al-
ternativas até a escolha da melhor solução, sua implementação e acompanhamento”, de

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P A R T I C I P A Ç Ã O C I D A D Ã E R E C O N F I G U R A Ç Õ E S

forma que a possibilidade de influência nas políticas públicas pode se traduzir como par-
ticipação nos processos decisórios, nos limites da relação argumentativa e crítica.
Esse debate inscreve-se nas interfaces da teoria social (sobretudo voltada para a ação
coletiva) com a teoria democrática contemporânea, na trilha aberta pela teoria crítica de
Jürgen Habermas. O autor oferece um modelo ao mesmo tempo dual e tripartite ao pos-
tular o desacoplamento, decorrente da modernidade, entre os domínios interativos e co-
municativos presentes na formulação de mundo da vida e os domínios sistêmicos, que por
sua vez diferenciam-se nos subsistemas econômico e administrativo.
A concepção habermasiana de mundo da vida como uma arena de integração social
refere-se ao domínio das interações cotidianas, constituindo um reservatório de tradições
culturais. Um ponto central dessa formulação reside nos pressupostos da comunicação
como elemento fundante da racionalidade e nos papéis da linguagem. A linguagem co-
loca-se como um elemento de coordenação interpessoal da ação que permite o estabele-
cimento de acordos interpretativos a partir de argumentações, questionamentos e deba-
tes que sustentam a noção de deliberação. Ao situar a ação comunicativa no mundo da
vida, Habermas (1987; 1997) perfila sujeitos de uma racionalidade intersubjetiva, capa-
zes de problematizar, negociar e redefinir problemas, questões, normas e tradições cultu-
rais. Neste sentido, o mundo da vida é um terreno de reconstrução reflexiva que aponta
para a construção de fundamentos éticos e morais da política. Neste aspecto relativo à
primazia conferida às estruturas de interação comunicativa em relação aos domínios sis-
têmicos ancora-se o entendimento da democracia como prática societária e como fluxo
comunicacional, da periferia para o centro, ou seja, a partir do mundo da vida e endere-
çado ao sistema.
Nesse contexto teórico, a noção de esfera pública como espaço de formação e publi-
cização de opiniões e vontades ganha relevo na mediação entre os impulsos comunicati-
vos do mundo da vida e os domínios sistêmicos e institucionais. Por motivo de economia,
esse estudo apóia-se estritamente na produção mais recente habermasiana – na qual se
destacam as noções de esfera pública e espaço público. Habermas (1997) descreve a esfera
pública política como estrutura comunicacional enraizada no mundo da vida por inter-
médio da sociedade civil. Na esfera pública os problemas são percebidos, identificados, te-
matizados e dramatizados; os fluxos comunicacionais são filtrados e condensados em opi-
niões públicas. Deste modo, a esfera pública opera como uma “caixa de ressonância”,
conferindo visibilidade às questões endereçadas à elaboração no sistema político. Partindo
de revisões da obra habermasiana, Teixeira (2000, p.77) reporta o emprego da noção de es-
paço público para “indicar a dimensão aberta, plural, permeável, autônoma, de arenas de
interação social que seriam aqueles espaços pouco institucionalizados”. Desta forma, os
espaços públicos referem-se às instâncias autônomas de debates e negociações entre ato-
res societários, podendo incluir a formulação de proposições a serem postas em circula-
ção na esfera pública. As esferas públicas, por sua vez, assumem o papel de mediação en-
tre os diferentes domínios, bem como de publicização e visibilidade das questões e
problemas, correspondendo às estruturas comunicacionais generalizadas, como a mídia.
Contudo, a teoria habermasiana não autoriza a assumir possibilidades de participa-
ção dos atores sociais nos âmbitos decisórios sistêmicos, ainda que constitua as bases pa-
ra desenvolvimentos teóricos que procuram ultrapassar seus limites, alargando o papel re-
servado aos atores sociais para além da dimensão de formação de vontade informal e da
possibilidade (contingente) de influência nos domínios institucionais. Partindo do cami-
nho pavimentado por Habermas, Cohen & Arato (1994) efetuam a reconstrução do con-

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ceito de sociedade civil1 e sustentam, para além de uma atuação defensiva dos atores so- 1 O núcleo da reconstrução
efetuada refere-se à supera-
cietários, a possibilidade de sua atuação ofensiva, endereçada aos domínios sistêmicos. Os ção da noção de sociedade
autores afirmam, ainda, que a questão política central consiste “em introduzir espaços pú- civil concebida com base
nos marcos dualistas de
blicos no Estado e nas instituições econômicas, estabelecendo uma continuidade com uma oposição entre a sociedade
rede de comunicação composta por movimentos sociais, associações e esferas públicas” . e o Estado, e de identifica-
ção da sociedade civil com o
Mais além, os debates atuais em torno da deliberação e das potencialidades da demo- mercado, situando a socie-
cracia participativa prevêem a participação cidadã nos processos de tomada de decisão tam- dade civil como um terreno
autônomo e distinto tanto do
bém em ocasiões mais regulares e institucionalizadas. Nesta direção, Avritzer (2002) apon- Estado quanto do mercado.
ta os espaços de mediação entre a sociedade e o Estado como locais, por excelência, de Cohen & Arato (1992) si-
tuam o conceito de socieda-
democracia deliberativa, representando a possibilidade de soberania popular procedimen- de civil no interior do marco
analítico habermasiano e em
talizada, na conjunção entre participação e representação. Nesses termos, cabe destacar o seu arcabouço tripartite
entendimento alternativo do conceito de participação política para além das fronteiras da (mundo da vida, subsistema
econômico e subsistema po-
concepção elitista de democracia representativa, apontando-se para as noções de democra- lítico). A sociedade civil cor-
cia participativa e de deliberação, que conferem centralidade à dimensão societária. responde às instituições e
formas associativas nos do-
A breve referência aos conceitos de participação política e participação cidadã mostra- mínios da esfera pública – in-
se necessária para o enfoque pretendido. Como observa Cunill-Grau (1997, p.64-81), o cluindo os movimentos so-
ciais – que implicam a
conceito de participação tem sido evocado no contexto contemporâneo como instrumen- interação comunicativa para
to para o aprofundamento da democracia e para a reivindicação de democracia participa- sua reprodução.

tiva, em caráter de complementaridade aos mecanismos de representação. A recuperação


de figuras da democracia direta, a participação cidadã na formulação de políticas e deci-
sões estatais e a possibilidade de deliberação pública constituem os conteúdos evocados
na noção de democracia participativa, assim como a manutenção de um sistema institu-
cional relativamente aberto para propiciar a experimentação. A participação concebida
nos marcos da noção de democracia participativa remete, deste modo, ao fortalecimento
e à democratização da sociedade e do Estado, assim como à redefinição das relações entre
Estado e sociedade sob o ângulo da própria sociedade. Desse modo, o conceito de parti-
cipação cidadã que se procura delimitar refere-se “à participação política, embora se afas-
te dela por pelo menos dois sentidos: abstrai tanto a participação em partidos políticos
como a que o cidadão exerce quando elege representantes”. Diz respeito à intervenção dos
agentes sociais no curso das atividades públicas de diversas formas, que permitem sua in-
fluência nas decisões estatais ou na produção de bens públicos, constituindo, assim, ex-
pressão de interesses sociais.
Essa perspectiva converge com a de Teixeira (2000, p.46), que também recorre ao
conceito de participação cidadã. Contudo, o autor enfatiza a extensão da participação ci-
dadã para além dos espaços institucionalizados e da relação com o Estado, remetendo aos
espaços públicos regidos pela lógica comunicativa, nos domínios da sociedade civil con-
cebida como autônoma e autolimitada. O autor refere-se à participação cidadã como um
“processo complexo e contraditório de relação entre sociedade civil, Estado e mercado, em
que os papéis se definem pelo fortalecimento da sociedade civil através da atuação orga-
nizada de indivíduos, grupos e associações”.
Contemplados os conceitos que permitem enquadrar a discussão da participação ci-
dadã e as possibilidades de influência dos atores coletivos nas políticas públicas, quer a
partir dos espaços públicos societários, quer a partir das instâncias institucionais de par-
ticipação, cabe situar brevemente o campo das políticas urbanas e os atores coletivos que
emergem na cena pública dos anos 90.
No contexto semiperiférico brasileiro os déficits e desigualdades socioespaciais, bem
como os processos de exclusão e segregação territorial decorrem dos traços históricos de-

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terminantes do processo de urbanização, notadamente dos padrões de atuação do Estado,


que incluem deixar acontecer à deriva a cidade, os seus assentamentos informais e perifé-
ricos. Não se estabeleceu, neste contexto, um Estado de Bem-Estar robusto que equacio-
nasse em patamares mínimos a questão urbana. As políticas urbanas – que em seus cor-
tes redistributivos e regulatórios permitem a relativa equalização das condições de vida nas
cidades – historicamente se revelaram insuficientes, na periferia da agenda governamen-
tal, ou resultaram inócuas em face de seus arranjos e modelos. Deste modo, a crise e o re-
traimento da atuação do Estado a partir dos anos 80 geram um contexto de déficits so-
ciais acumulados em relação à questão urbana.
É inevitável o paralelo entre as dimensões da desigualdade e exclusão socioespaciais
e a assimetria de poder político entre os diversos segmentos sociais (Villaça, 1998; Rol-
nik, 2000; Maricato, 2000). Neste sentido, especialmente no período autoritário, repor-
tam-se aos processos tradicionais de formulação e implementação das políticas urbanas no
País, pautados pelo centralismo-tecnocrático, pelas lógicas particularistas na relação entre
o Estado e a sociedade, pela ausência ou escassez de possibilidades de participação cidadã
e de influência dos diversos grupos nos processos decisórios. Ao lado dos novos processos
socioespaciais conformados no atual ciclo de acumulação capitalista, a velha questão ur-
bana apresenta-se como um eixo significativo de conflitos e de necessária (por vezes ur-
gente) intervenção estatal. Deste modo, os velhos e novos problemas urbanos – bem co-
mo as próprias lógicas de atuação do Estado – configuram objetos passíveis de
tematização societária, de mobilização e ação coletivas.
Neste âmbito, ressaltam-se os atores da sociedade civil brasileira atuantes no campo
das políticas urbanas, sua mobilização e organização como atores coletivos, sua atuação
em espaços públicos e em espaços institucionais, seu papel na retematização do urbano a
partir dos anos 80, especialmente no que se refere à construção da agenda de reforma ur-
bana. Entre outros pilares, a agenda de reforma urbana assenta-se em pressupostos de de-
mocratização da gestão das cidades – mediante a participação cidadã nos processos deci-
sórios – e na perspectiva de inclusão delineada pelo reconhecimento do direito à moradia
e à cidade. Construída nos domínios da sociedade civil, pela articulação de atores coleti-
vos heterogêneos quanto a suas bases organizativas, a plataforma de reforma urbana desa-
fia as matrizes tradicionais da cultura política brasileira e os modelos tradicionais de pla-
2 Sobre a atuação do Movi- nejamento urbano, ou seja, desafia práticas e representações sociais.2
mento e posteriormente do
Fórum Nacional de Reforma
Assumem-se premissas, portanto, de constituição de novos atores coletivos da socie-
Urbana, a construção de sua dade civil inscritos no campo das políticas urbanas que logram influir decisivamente nos
agenda, os atores envolvi-
dos, sua constituição como seus marcos legais e instrumentos no âmbito federal (na Constituição Federal e no Esta-
ator coletivo e o processo tuto da Cidade), assim como no âmbito local. Sua influência se expressa no sentido da
de (re)construção de identi-
dades coletivas, sua influên- democratização das políticas urbanas – sobretudo por meio da criação de instâncias de
cia no campo das políticas participação cidadã – e da cunhagem de possibilidades de justiça e inclusão socioespaciais
urbanas, ver especialmente
Brasil (2004). através do emprego dos “novos” instrumentos normativos. A esfera local afirma-se como
um terreno privilegiado de concretização desses avanços e experimentações que se tecem
nas interseções entre o poder público e a sociedade, implicando, no caso das políticas ur-
banas, o delineamento de possibilidades de renovação nos seus princípios norteadores,
conteúdos, instrumentos, arranjos institucionais e formas democráticas de gestão.
A abordagem dessas instâncias locais de participação cidadã permite perceber a pos-
sível influência das agendas construídas por atores coletivos, assim como sinaliza as difi-
culdades e desafios dessas experiências. Para seu exame, parte-se da discussão mais geral
sobre os canais de participação institucionalizados pelos governos locais, seus papéis, po-

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tenciais e limites, privilegiando-se, neste texto,os Conselhos Municipais de Política Urba-


na. No momento seguinte, são focalizados o Conselho Municipal de Política Urbana e a
Conferência de Política Urbana de Belo Horizonte, canais de participação criados por
ocasião da aprovação do Plano Diretor em 1996. Na análise, busca-se sublinhar os possí-
veis avanços e inovações (de cunho democratizante e includente) no aparato da legislação
urbanística que se conectam aos processos de participação cidadã.

AS NOVAS INSTÂNCIAS DE PARTICIPAÇÃO CIDADÃ


E DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES

O reconhecimento da importância da participação institucional tem sido ponto de


acordo e convergência de um amplo espectro de atores sociais. Entretanto, podem ser
apontadas diferentes perspectivas sobre a questão da participação cidadã, que, não apenas
expressam as diferentes premissas quanto ao papel do Estado, como se articulam aos dis-
tintos pressupostos e agendas relativas à gestão das cidades – de um lado, de cunho em-
preendedorista e, de outro, de cunho democratizante e includente (como expresso na pla-
taforma de reforma urbana).3 3 Brasil (2004) explora as
duas agendas apontando as
Santos (2002, p.17-9) discute duas vertentes analíticas que aportam concepções bas- características e premissas
tante diferenciadas quantos aos termos e ao papel da participação institucional. A primei- de cada “modelo”.

ra concebe a participação de forma instrumental, como meio de assegurar a governabilida-


de, visando, portanto, à eficiência por meio do “redirecionamento das formas de protesto
e pressão dos movimentos sociais para formas controladas de participação”. Situa-se, as-
sim, em uma perspectiva da participação como meio de reforçar a tendência de desrespon-
sabilização do Estado. A segunda corrente enfatiza as dimensões pública e política da par-
ticipação cidadã. Nesta concepção, as instâncias participativas constituem espaços de pu-
blicização de conflitos, de negociação de interesses distintos dos segmentos sociais, e de
afirmação e (re)construção de identidades coletivas. A participação configura, assim, um
ponto de partida para a democratização das políticas públicas e vincula-se à perspectiva da
garantia dos direitos sociais e da possibilidade de redução das desigualdades.
A participação cidadã nos governos locais, nos termos dessa segunda perspectiva,
constituiu um ponto central de tematização no campo das políticas urbanas, compondo a
agenda de reforma urbana construída no interior de seus espaços públicos, desde os anos
80. Desta forma, um vetor nuclear de renovação das políticas urbanas assenta-se na con-
formação de instâncias de participação cidadã no âmbito dos governos locais, que expres-
sam os processos de expansão democrática para além dos arranjos de representação, conec-
tando os potenciais de inovação social e institucional.
Cabe partir da caracterização desses espaços e de seus papéis, recorrendo a alguns au-
tores. Uma primeira distinção conceitual necessária, efetuada por Teixeira (2000, p.298),
diferencia mecanismos e canais de participação cidadã. Os mecanismos de participação
referem-se aos meios ou instrumentos – classificados em judiciais, administrativos, parla-
mentares e simbólicos – “que permitem aos cidadãos ou organizações acionar o Poder Pú-
blico para cumprir obrigações ou para responsabilizá-los por suas omissões”. Nesse reper-
tório, situam-se, entre outros instrumentos passíveis de emprego nas políticas urbanas: o
mecanismo parlamentar de iniciativa popular em projetos de lei e programas urbanos; os
mecanismos judiciais de ação popular e ação civil pública. Ainda de acordo com Teixeira
(2000, p.298), os canais institucionais de participação referem-se aos espaços por meio

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dos quais se realiza “de forma permanente, a interlocução direta entre representantes das
organizações da sociedade civil e Estado e em que se formulam e controlam as políticas
públicas”. Estes canais constituem arenas de debate e interlocução entre atores, regidas
por normas e regulamentos elaborados por seus componentes.
Conforme Daniel (1994, p.27), os canais de participação na gestão local referem-se
aos “espaços – institucionalizados ou não – criados pelo Estado no nível local, com vistas
a serviços de ponte entre Estado e sociedade”. O elemento distintivo sublinhado pelo au-
tor remete à característica de criação desses canais pelo governo – localizando-os em seu
âmbito–, ressalvando, porém, que sua origem pode ser atribuída tanto à luta autônoma
dos movimentos sociais quanto às iniciativas do poder público. O autor sublinha que o
funcionamento dessas instâncias e a qualidade dos processos participativos dependem, em
via de mão dupla, tanto dos arranjos estabelecidos pelo poder público quanto da disposi-
ção e capacidade dos atores da sociedade civil em participar.
Assinalando o seu papel de co-gestão local, Pontual & Silva (1996, p.64) caracteri-
zam os canais institucionalizados de participação como espaço de discussão e negociação
de políticas públicas, assim como de explicitação de conflitos e interesses. As promessas e
expectativas endereçadas aos novos espaços de participação e aos seus potenciais são bem
sintetizadas por Tatagiba:

O discurso da participação, portanto, lança exigências e busca articular a democracia


de processo com a eficácia dos resultados, onde a primeira aparece como condição da segun-
da. Claro que a ênfase em um ou outro ponto, ou sua efetiva articulação, varia tendo em vis-
ta a natureza dos governos, a capacidade de pressão da sociedade organizada e a setorializa-
ção dos projetos etc. Esperava-se que, por meio da participação cidadã nos espaços
institucionais, seria possível reverter o padrão de planejamento e execução das políticas pú-
blicas no Brasil. (2002, p.47.)

A despeito das ênfases conceituais, bem como da diversidade das experiências no


âmbito dos governos locais, podem ser destacados substratos comuns e recorrentes na
abordagem dos traços constitutivos dos canais de participação cidadã. Por definição, apre-
sentam-se como formas ampliadas de participação política para além dos arranjos institu-
cionais da democracia representativa; fundamentam-se na interlocução entre Estado e so-
ciedade, mediante seu formato e composição híbrida, reconfigurando e democratizando
esta relação (as possibilidades de superação das formas clientelistas e predatórias que tra-
dicionalmente têm conformado essa relação e a inclusão de atores sociais tradicionalmen-
te alijados dos processos decisórios são os principais elementos de democratização desta
inter-relação). Ancoram-se na dimensão do debate, da manifestação e reconhecimento
dos conflitos e interesses contraditórios, e da negociação que fundamenta a concepção
dessas instâncias e constitui substrato deliberativo; endereçam-se à formulação e gestão de
políticas públicas, aos processos decisórios relativos à distribuição dos bens públicos e alo-
cação de recursos e ao controle público da gestão local.
A partir desses elementos, ressoam os potenciais desses espaços e das práticas ne-
les inscritas, no mínimo, em duas derivas: as possibilidades de reconstrução da cultura
política tradicional nos domínios tanto institucional quanto societário; e a produção
de modelos alternativos de políticas centrados no enfrentamento dos déficits e desi-
gualdades sociais e socioambientais, apoiada na inclusão de novos atores nos processos
de decisão.

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No que tange aos formatos dos canais de participação, as variáveis sintetizadas por
Coelho & Bittar (1997, p.334) contribuem para sua caracterização e a tradução da pos-
sível diversidade. Entre as variáveis apontadas, destaca-se, em primeiro lugar, o grau de
institucionalização, que remete à formalidade ou informalidade dos arranjos estabeleci-
dos: no pólo formal, os canais são constituídos por meio de legislação e regulamentação,
ou de definição de atribuições, funções e procedimentos, em contraposição às relações e
dinâmicas menos formalizadas que podem constituir alguns desses espaços. Segundo, des-
taca-se o poder formal desses canais que podem ter caráter deliberativo ou consultivo.
Apontam-se, ainda, a periodicidade desses “encontros” entre sociedade e Estado, que po-
de assumir caráter regular e processual ou eventual e episódico e a escala de planejamen-
to (da elaboração de políticas setoriais ao planejamento global) ou de gestão (de projetos
específicos ou de espaços, equipamentos e serviços).
Pode-se considerar que tais variáveis influenciam os processos participativos, sobre-
tudo no que se refere aos aspectos relativos às atribuições e ao poder de decisão. As carac-
terísticas da ação estatal e da política pública em questão também se mostram elementos
relevantes. Podem-se apontar os possíveis papéis do poder público nessas instâncias: idea-
lizador e financiador das políticas; e/ou mediador dos conflitos societários. Pode-se exa-
minar a natureza da política pública: de caráter setorial ou transversal; e de corte distri-
butivo, redistributivo ou regulatório, vinculado ao tipo de bem público produzido. Além
desses aspectos, o maior ou menor comprometimento do poder público com o funciona-
mento efetivo dessas instâncias, que remete à sua agenda de governo, pode ser tomado co-
mo um fator decisivo.
Principalmente a partir do marco constitucional, observa-se a proliferação das ins-
tâncias de participação dos governos locais, sob formatos e características diversas, que
correspondem a experiências bastante heterogêneas, de amplitude e alcance diferenciados.
Além dos conselhos, do OP (Orçamento Participativo) e das conferências ou fóruns temá-
ticos, têm sido realizados debates e audiências públicas voltados para discussões específi-
cas sobre planos diretores, legislação urbanística, planos e projetos urbanos ou, ainda,
têm-se constituído espaços transitórios ou episódicos, em casos específicos de conflitos
ambientais e urbanos. Conformam-se, assim, instâncias diversas de participação e inter-
locução entre o governo e a sociedade, pautadas nos debates, na explicitação e negociação 4 Para um balanço compa-
rativo das experiências de
dos conflitos e na presença da lógica de interação comunicativa. OP no Brasil, ver Ribeiro &
Neste panorama, a despeito de um repertório heterogêneo de experiências, com tra- Grazia (2003).

jetórias e características distintas, podem ser destacados os Conselhos Municipais, espe- 5 Enquadram-se na catego-
cialmente pela magnitude do fenômeno nos anos 90, e o OP (que não será aqui aborda- ria de gestores os Conse-
lhos Municipais de Saúde,
do),4 pela sua proposição originária da sociedade civil e pelo seu formato deliberativo de Educação, dos Direitos
da Criança e do Adolescen-
inovador. Os dados do perfil dos municípios em 1999 refletem a expressão dos conselhos te e de Assistência Social.
locais: foram contabilizados 26,9 mil conselhos nos municípios brasileiros, que apresen- Nos casos das políticas so-
ciais, os arranjos para os di-
tavam um número médio de 4,9 conselhos por município. Entre 1999 e 2001, aumen- ferentes setores estão defi-
tou o número de municípios que dispunham de conselhos municipais nas diversas áreas nidos no texto constitucional
ou foram aprovados subse-
setoriais (IBGE, 2001). qüentemente à Constituição
Prevalecem neste cenário os conselhos gestores de políticas públicas, que assumem o Federal pela legislação com-
plementar. Os Conselhos de
papel de gestor, em decorrência dos dispositivos da própria Constituição Federal ou de le- Saúde estavam presentes
gislação federal complementar subseqüentemente aprovada. Estes conselhos vinculam-se às em 98,5% dos municípios;
os de Assistência Social,
políticas públicas que se estruturam em sistemas nacionais unificados após arranjos inter- em 91,5%; os de Educação,
em 91%; e os dos Direitos
governamentais para sua implementação. Têm caráter obrigatório ou previsão legal e po- da Criança e do Adolescen-
dem, inclusive, assumir a gestão e fiscalização dos fundos destinados às políticas setoriais.5 te, em 71,7% (IBGE, 2003).

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P A R T I C I P A Ç Ã O C I D A D Ã E R E C O N F I G U R A Ç Õ E S

Os conselhos gestores distinguem-se, assim, dos conselhos temáticos característicos de


campos setoriais que podem dispor de referências constitucionais, orientações gerais e até
mesmo de marcos federais, mas que não prevêem ou vinculam conselhos municipais aos
pactos e arranjos institucionais dessas políticas entre as esferas de governo. Nesses casos,
a iniciativa de criação dos conselhos é municipal, independente de caráter compulsório
ou de incentivos federais, e seu papel circunscreve-se à formulação e implementação das
políticas locais. Encontra-se uma proporção notadamente menor de conselhos setoriais
nos demais campos, em que sua criação não está sujeita à exigência legal. São exatamen-
te esses casos que merecem atenção, por se tratar de iniciativa autônoma dos governos
municipais, como no caso dos Conselhos de Política Urbana, em especial aqueles anterio-
6 Embora as políticas urba- res à promulgação do Estatuto da Cidade.6
nas não tenham se estrutu-
rado nos anos 90 nos mol-
Em que pese a maior pluralidade e contraditoriedade dos interesses representados
des sistêmicos ou pactua- nos conselhos pode-se destacar como limite estrutural deste formato o potencial relativa-
dos das políticas sociais, o
Estatuto da Cidade, aprova- mente estreito e reduzido de interlocução com os diversos segmentos populares e de re-
do em 2001 ampliou signifi- presentação dos setores não-organizados.7 Desta forma, a despeito dos substratos comuns
cativamente o tratamento
da participação, estabele- e constitutivos das instâncias de participação cidadã, os diversos canais institucionais cor-
cendo como uma das diretri- respondem a espaços com alcances e papéis diferenciados e complementares, e que não
zes de política urbana a ges-
tão democrática das cida- substituem as formas não-institucionais de ação coletiva e os espaços públicos construí-
des (objeto do capítulo IV),
prevendo instâncias distin-
dos no interior da sociedade civil.
tas de participação (conse- Com base nas reflexões da literatura, podem ser apontados alguns elementos centrais
lhos, gestão participativa do
orçamento, conferências,
à caracterização dos Conselhos Municipais e de seus papéis, tais como: o caráter híbrido
debates, audiências públi- desses espaços, quer pela sua composição com atores do poder público e sociedade civil,
cas, iniciativa popular em
projetos de lei, planos e pro- quer pela articulação entre participação e mecanismos de representação; o vínculo insti-
jetos) e a participação da tucional e o caráter formal das suas atribuições e competências, geralmente definidas por
população e das associa-
ções representativas na for- meio de legislação; o recorte temático de atuação, que ultrapassa as clivagens de interes-
mulação, execução e acom- ses de classes ou de grupos sociais, remetendo aos interesses coletivos e difusos ou ao âm-
panhamento de planos,
programas e projetos. Ou bito normativo; a pluralidade de sua composição e a representação dos interesses distin-
seja, pode-se supor um mo-
vimento de ampliação des-
tos (e conflituais) dos diversos segmentos sociais nessas instâncias; a presença de ele-
sas instâncias no âmbito mentos deliberativos dependentes dos marcos legais e dos atores participantes. Destaca-
municipal na presente déca-
da, especialmente a partir
se ainda a possibilidade de participação no âmbito decisório referente à formulação,
da criação e da atuação do implementação e controle das políticas públicas e de seus instrumentos; o caráter dia-
Ministério das Cidades.
lógico – pautado na lógica de interação comunicativa – no que se refere não apenas à
7 Ver Avritzer & Pereira negociação dos conflitos, mas às possibilidades de inovações institucionais dos atores so-
(2002) que cotejam os Con-
selhos Municipais e o OP. cietários; e; finalmente, a possibilidade de se conformar como instrumento de aprofun-
damento da descentralização.
No caso dos Conselhos Municipais de Política Urbana e de Desenvolvimento Urba-
no, suas atribuições – definidas em legislação municipal – geralmente têm se atido ao
campo do planejamento urbano e da regulação urbanística, podendo incluir a definição
de diretrizes e prioridades, a fiscalização e avaliação da aplicação de instrumentos e a for-
mulação da própria política e de seus instrumentos. De forma geral, remetem às dimen-
sões regulatórias da política urbana, ainda que essas possam repercutir no âmbito redistri-
butivo. A discussão referenciada permite apontar, no campo regulatório dessas políticas,
a presença de interesses corporativos organizados e vinculados à acumulação urbana, ao
lado de interesses (e possíveis benefícios) coletivos e difusos. O espectro de conflitos em
questão não se esgota na clivagem entre os interesses contraditórios, mas envolve confli-
tos valorativos em torno de questões como: qualidade de vida, justiça socioespacial, sus-
tentabilidade urbana, enfim, de premissas, projetos e concepções de cidade.

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F L Á V I A D E P A U L A D U Q U E B R A S I L

Os Conselhos de Política Urbana foram encontrados em 4% dos municípios brasi-


leiros em 1999 (IBGE, 2001). Em 2001, a ocorrência dos Conselhos de Política Urbana
cresceu, passando a 334 municípios, correspondentes a 6% do total (IBGE, 2003). A ri-
gor, este crescimento não pode ser tributado ao Estatuto da Cidade, posto que a sua apro-
vação ocorreu em julho do referido ano. A ocorrência desses Conselhos é predominante
nos municípios de maior porte, fazendo-se presentes em 72% dos municípios com mais
de 500 mil habitantes e 32% dos municípios na faixa entre 100 e 500 mil habitantes. A
maior parte dos Conselhos também se encontrava em funcionamento, correspondendo a
80% dos casos (IBGE, 2003).
Podem ser apontados inúmeros problemas e dificuldades em relação ao funciona-
mento desses espaços. Além do necessário equacionamento da composição plural e pa-
ritária dos conselhos, Tatagiba (2002, p.71) refere-se às assimetrias e desigualdades nas re-
presentações que constrangem o equilíbrio nos processos decisórios. Sustentando que os
conselhos são arranjos institucionais inovadores, entre outros motivos por permitirem que
setores tradicionalmente excluídos possam influenciar no processo de produção de políti-
cas públicas, a autora assinala que as regras de composição por si só não garantem que es-
ses setores realizem seus interesses, de modo que se mostra necessário aprimorar esses es-
paços para minimizar impactos das desigualdades sociais nos processos deliberativos. A
autora reporta, ainda, a dificuldade de se reverter a centralidade assumida pelo poder pú-
blico na definição de políticas e de prioridades na dinâmica concreta de funcionamento
dos Conselhos.
Podem ser referenciadas assimetrias em relação às diferentes representações e ao per-
fil e qualificação dos conselheiros. No caso dos Conselhos de Política Urbana, impõem-se
dificuldades adicionais para as representações dos segmentos populares, em virtude do es-
copo de discussões mais globais e abstratas dos planos e leis urbanísticas. O repertório e a
linguagem técnica empregada, “estabelecida em discussões intra-elite acabam sendo uma
muralha invisível que dificulta a participação popular mesmo em instâncias criadas para
que ela ocorra” (Cymbalista, 2001).
A pluralidade dos atores e o escopo de interesses distintos e contraditórios represen-
tados nos Conselhos impõem complexidade aos processos de interação, de debate e de ne-
gociação, implicando dificuldades que podem envolver a apresentação das diferenças e
identidades, a explicitação de interesses e valores, bem como o reconhecimento dos confli-
tos. Contudo, essa mesma complexidade interna coloca em foco a dimensão de aprendiza-
gem coletiva da prática democrática nessas instâncias de participação. Um dos caminhos
que vem sendo trilhado para enfrentar essas dificuldades, bem como as assimetrias e desi-
gualdades, tem sido a capacitação técnica de conselheiros por iniciativa dos governos mu-
nicipais. Essas iniciativas podem ainda ocorrer a partir da sociedade civil, e nesse terreno
os próprios fóruns e espaços públicos contribuem para o intercâmbio de informações e de
experiências, e para a qualificação da participação nesses espaços.
A abordagem de experiências concretas tem apontado a expressiva heterogeneidade
destes espaços e de suas dinâmicas, mas tem ressaltado as experiências de Conselhos que
logram assumir seus papéis propondo e negociando instrumentos inovadores de planeja-
mento e gestão urbana.

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P A R T I C I P A Ç Ã O C I D A D Ã E R E C O N F I G U R A Ç Õ E S

O CONSELHO E CONFERÊNCIA MUNICIPAIS DE


POLÍTICA URBANA DE BELO HORIZONTE: PARTI-
CIPAÇÃO CIDADÃ E INOVAÇÕES INSTITUCIONAIS

Cidade projetada e centenária, Belo Horizonte constitui o núcleo de uma extensa e


populosa região metropolitana, polariza um amplo espaço regional na rede urbana brasi-
leira, e não foge do quadro socioespacial brasileiro, tecido pelos déficits e desigualdades
históricas. A trajetória de urbanização da cidade marca-se, de um lado, pela forte presen-
ça do poder público, que garante as condições para a acumulação industrial e imobiliária,
e, por outro, por permitir o crescimento de tecidos informais e periféricos. Nesse percur-
so, alguns instrumentos urbanísticos foram elaborados (embora nem sempre regulamen-
tados ou tampouco efetivamente aplicados) sem chegar a esboçar, em patamares mínimos,
8 Entretanto, um ou outro a equalização das condições urbano-ambientais para os diversos grupos sociais.8
avanço pode ser apontado
na legislação urbanística
A inflexão mais significativa traduz-se no primeiro plano diretor aprovado na cida-
precedente, destacando-se de, que começou a ser elaborado em 1993, no início da gestão da Frente BH-Popular,9
nos anos 80 a criação pre-
cursora do Setor Especial-4 conjuntamente à nova Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS). Ambos os
(SE-4), cujo conteúdo anteci- instrumentos foram concluídos em meados de 1995 e implicaram avanços substantivos,
pa as Zonas Especiais de In-
teresse Social (Zeis). O ins- não apenas no que se refere à incorporação de novas premissas e instrumentos urbanísti-
trumento, proposto e imple- cos ou à superação da lógica de zoneamento funcional presente na legislação de uso e ocu-
mentado pela atuação e mo-
bilização de atores coletivos pação do solo anterior. O processo de formulação do Plano Diretor (e da LPUOS) incor-
da sociedade civil, incorpo-
rou a cidade informal à legis-
porou, em alguma medida, a participação dos diferentes segmentos sociais. Ao lado disso,
lação de uso e ocupação do a disposição no texto legal de instâncias de gestão democrática de política urbana mos-
solo então vigente – repre-
sentação regulada dos terri-
trou-se inovadora, assinalando a possibilidade de ultrapassar a lógica estritamente técni-
tórios sociais – anunciando co-racional de elaboração e de gestão de seus instrumentos.
o reconhecimento do direito
à cidade. O Conselho Municipal de Política Urbana (Compur) e a Conferência de Política
Urbana (CMPU) foram instituídos na Lei do Plano Diretor de Belo Horizonte como ins-
9 Liderada pelo Partido dos
Trabalhadores. tâncias de gestão democrática. Coube ao governo seguinte (1997-2000) a instauração e
aparelhamento do Compur, por intermédio de uma Secretaria Executiva, inicialmente li-
gada à Secretaria Municipal de Planejamento. A continuidade da coalizão político-parti-
dária, também na gestão seguinte (2001–2004), permitiu a consolidação do Compur,
sustentou a aplicação dos instrumentos e o processo mais recente de revisão do Plano Di-
retor. A realização, respectivamente em 1999 e 2002, da I e II Conferência de Política Ur-
bana (CMPU), constitui os momentos de avaliação participativa da política urbana e de
seus instrumentos, bem como de proposições para seu aprimoramento, processadas por
intermédio do Compur.
O Plano Diretor aprovado em 1996 caracteriza-se em seu texto “como instrumento
básico da política de desenvolvimento urbano”, tendo em vista as “aspirações da coletivida-
de”, e reafirma a função social da cidade e da propriedade. Os objetivos enunciados apon-
tam, entre outros aspectos, para a sustentabilidade, a justiça social, a qualidade de vida, a
democratização do acesso ao solo urbano e à moradia, a gestão democrática da cidade e
a participação popular. Enfim, trata-se de um plano que efetivamente procurou incorporar
os avanços constitucionais, conferindo-lhes operacionalidade, segundo as especificidades lo-
cais. Pode-se dizer que encampou a agenda de reforma urbana cunhada por atores coletivos
no período mobilizador da Constituinte, quer pelos intercâmbios nos circuitos profissionais
de planejamento, incluindo técnicos da prefeitura, quer pela consultoria de profissional ali-
nhado com o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU). Essas asserções são autorizadas
já em Mendonça (2001, p.153), que coordenou a elaboração do plano, em reflexão poste-

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F L Á V I A D E P A U L A D U Q U E B R A S I L

rior sobre sua contextualização, remetendo-se à Constituição Federal como um marco de


novas abordagens dos planos diretores e, ainda, reportando-se à pauta dos movimentos or-
ganizados no período. De forma pioneira no País, o Plano Diretor integrou à sua proposta
os instrumentos urbanísticos posteriormente regulamentados pelo Estatuto da Cidade. 10 Sobre o processo, ver
Azevedo & Mares Guia
Dois avanços podem ser mencionados em relação ao processo de elaboração. Primei- (1996) e Boschi (1998,
ro, procurou-se engajar e articular os diversos órgãos municipais de vocação urbana desde a p.10), que destacam espe-
cialmente a participação do
fase inicial de estudos básicos. Segundo, procurou-se constituir debates com o foco no Pla- setor empresarial e o envol-
no, efetivados por meio da realização de seminários e palestras e, principalmente, da criação vimento crescente do técni-
co ao lado da participação
de comissões para a discussão das propostas, como a comissão que de certo modo veio a mais diluída e desigual do
setor popular.
constituir-se como precursora do Conselho Municipal de Política Urbana (Compur). Essa
comissão, que se reuniu periodicamente por oito meses, era integrada por diversos segmen- 11 Sobre os tensionamen-
tos postos pelas novas ins-
tos da sociedade civil envolvidos com a temática urbana, quais sejam, organizações popula- tâncias de participação ao
res, universidades, associações de profissionais liberais e empresariado. Apesar da indicação Legislativo, ver Azevedo &
Mares Guia (1996) e Brasil
de que não se tratou de um processo de participação mais abrangente, deve-se assinalar o (2004).
avanço quanto ao envolvimento dos diferentes segmentos sociais para a sua discussão.10
12 Somam-se mais de seis
Os debates implicaram algumas reformulações. Contudo, o momento mais polari- dezenas de canais de parti-
zado de debates ocorrerá na Câmara, no decorrer do trâmite de 12 meses que acarretou cipação em funcionamento
em Belo Horizonte, a maio-
um número expressivo de 1.500 emendas e a supressão de alguns instrumentos propos- ria dos quais já consolida-
dos. As instâncias de partici-
tos. Ao lado das objeções endereçadas aos instrumentos de regulação imobiliária e às ins- pação vinculam-se às dife-
tâncias de participação propostas constituíram um eixo de desacordo e de resistências ex- rentes escalas – da escala
global da cidade à escala re-
pressas por parte de representantes da Câmara e do setor empresarial.11 gional ou mesmo local – e
No saldo desse processo, o Compur e a CMPU foram instituídos, integrando uma ex- aos diferentes campos seto-
riais. São 17 os conselhos
tensa rede de espaços locais de participação cidadã (que vêm sendo cunhados desde a Lei setoriais, com formatos e
Orgânica Municipal)12 com papéis, objetivos e características distintas e complementares. papéis distintos, entre eles
11 vinculam-se às políticas
O Compur – destituído de poder mais amplo de deliberação – distingue-se da maioria sociais, ao lado de nove
dos conselhos locais em virtude de seu caráter eminentemente consultivo. O arranjo “mi- conselhos consultivos regio-
nais, além de comissões re-
nimalista” efetuado pode ser atribuído aos trâmites do Plano Diretor – que instituiu o re- gionais e locais, fóruns e
grupos de referência. Perio-
ferido Conselho –, às polêmicas e à resistência dos vereadores e do segmento empresarial dicamente, realizam-se, ain-
em relação à participação, sob o argumento de que esta implicaria menor eficiência e da, conferências municipais
setoriais, constituindo oca-
maior burocratização na política urbana. siões de participação mais
O Compur tem caráter consultivo em relação às suas atribuições de monitoramen- capilarizada. O OP encontra-
se já consolidado em Belo
to da aplicação do Plano Diretor e da LPUOS, de proposição de alteração à legislação ur- Horizonte: em funcionamen-
banística, de acompanhamento das intervenções urbanas e de avaliação da compatibilida- to desde 1994, foi objeto
de inúmeros rearranjos e re-
de entre as propostas de obras e dos instrumentos orçamentários com as diretrizes do desenhos para aprimora-
planejamento urbano. Tem ainda a atribuição de deliberar (em recurso) sobre os proces- mento do processo. Atual-
mente, estrutura-se nos
sos administrativos decorrentes do Plano Diretor e da LPUOS, ou seja, o caráter delibera- OP-Regionais, no OP-Habita-
ção (que constitui um recor-
tivo aplica-se apenas a um objeto técnico-administrativo. te setorial específico), no
Em razão do papel predominantemente circunscrito à dimensão consultiva, o Com- OP-Cidade e na Conferência
da Cidade, que, ao lado da
pur não dispõe de fundo municipal, a exemplo de outros órgãos colegiados no municí- Comissão “Conselho da Ci-
pio. Sua composição totaliza 16 membros, com os respectivos suplentes. A representação dade”, correspondem às
instâncias mais gerais de
governamental corresponde a oito membros representantes do Executivo (de secretarias democratização de deci-
municipais de vocação urbano-ambiental), além de dois membros do Legislativo Muni- sões orçamentárias e de ar-
ticulação das diferentes
cipal. Os seis outros membros dividem-se entre os setores técnico (universidades, entida- áreas setoriais. Em seu con-
des profissionais e ONGs), popular (organizações de moradores e movimentos) e empresa- junto, portanto, os espaços
de participação atravessam
rial (entidades do segmento imobiliário). A composição do Compur é um ponto a estrutura organizacional
da prefeitura em seus diver-
problematizado pelos conselheiros entrevistados vinculados aos segmentos societários que sos âmbitos setoriais e te-
assinalam a forte presença do Executivo. máticos.

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A atuação do Compur nesse período possibilitou avanços concretos na aplicação, na


revisão e no aprimoramento dos instrumentos de regulação urbanística na cidade. Neste
bojo, a regulamentação das operações urbanas que têm sido realizadas, a aplicação do ins-
trumento de transferência de direito de construir, a regulamentação das áreas de diretri-
zes especiais (ADEs) e os planos diretores regionais têm sido objeto de avaliação, de discus-
13 A partir de entrevistas são, de negociação, de acompanhamento ou de proposição por parte do Compur. Além
realizadas com os conselhei-
ros, Brasil (2004 indica que disso, propostas e projetos de parcelamento, de alteração de zoneamento, de modificações
os maiores eixos de desa-
cordo no Compur têm sido a
de classificação viária também são encaminhadas à avaliação do Compur.13
regulamentação das ADEs – Descartando-se aqui o balanço das ações do Compur, pode ser destacado como esfor-
Áreas de Diretrizes Espe-
ciais e a aplicação do instru-
ço de maior fôlego e envergadura a elaboração e a negociação de uma extensa emenda ao
mento das Operações Urba- Plano Diretor e à LPUOS, aprovada em 2000, com base nas diretrizes e indicações anterior-
nas. As ADEs previstas na
LPUOS de 1996 têm em vis- mente construídas na I CMPU. Entre outros pontos, a emenda regulamenta as Zeis I e III14
ta a preservação de determi- (que já integravam a legislação urbanística), estabelecendo parâmetros urbanísticos e crité-
nadas áreas da cidade, com
base em parâmetros mais rios especiais de parcelamento, uso e ocupação do solo nestas áreas. Institui oficialmente
restritivos de ocupação, en- os planos globais específicos que já integravam o processo de regularização urbanística e
volvendo, centralmente, por-
tanto, conflitos entre os inte- fundiária das vilas-favelas; e prevê a criação de Grupos de Referência locais para acompa-
resses privados e coletivos.
Apesar da realização de es-
nhamento desses planos. A emenda regulamenta, ainda, uma Operação Urbana e a ADE –
tudos e projetos, em muitos Área de Diretrizes Especiais do Bairro de Santa Tereza, além de outras disposições.
casos, apenas a ADE de
Santa Tereza logrou ser re-
Em pesquisa voltada para a avaliação dos Conselhos Municipais, Pereira (2002) re-
gulamentada pela ampla mo- porta a unanimidade dos conselheiros quanto à importância do Compur e à influência
bilização local, por intermé-
dio do movimento Salve efetiva de suas posições na política urbana do município. Entre outros aspectos, a autora
Santa Tereza, que pressio- problematiza a sua composição e aponta assimetrias de recursos, segundo o perfil dos con-
nou para sua aprovação e
participou na formulação da selheiros. Ao examinar a influência das diferentes representações nas decisões do Conse-
proposta. Por sua vez, as lho, representantes do Executivo foram apontados pela maioria dos conselheiros como os
operações urbanas têm sido
regulamentadas e relativa- membros mais influentes nas decisões do Conselho. Os representantes do segmento téc-
mente bastante utilizadas,
constituindo objeto de con-
nico foram considerados relativamente influentes, enquanto os representantes do setor
trovérsia explícita no Conse- popular foram considerados pouco influentes pelos seus pares. Esses diferenciais remetem
lho, apontando-se os “riscos
de captura do instrumento,
às assimetrias de recursos dos diferentes segmentos, destacando-se a disponibilidade de as-
do instrumento ser banaliza- sessoria, de infra-estrutura, de informações e de tempo para dedicar-se à função, maior
do mais para regularizar edi-
ficações a partir do mecanis- no caso dos representantes governamentais e, no outro extremo, menor no caso dos seg-
mo de compensação”. mentos populares. Remetem também ao maior ou menor poder argumentativo dos di-
14 As Zeis estão previstas versos segmentos que se revela na constatação de que as decisões do Compur, na sua
no Plano Diretor e da LPUOS maioria, convergem com as posições do Executivo (Pereira, 2002).
de 1996, correspondendo,
no caso das Zeis-1 as áreas Nesta direção, um representante do setor técnico observa que os representantes da
de ocupação informal nas
quais o poder público de-
sociedade civil têm feito uma discussão de política urbana muito direcionada pelo Exe-
senvolverá programas de re- cutivo, estruturada com base numa pauta e na legislação existente, resultando uma dis-
gularização urbanística e
fundiária, e, no caso das
cussão em varejo em detrimento de uma discussão mais ampla da política urbana. A des-
Zeis-3, os conjuntos habita- peito do reconhecimento unânime pelos conselheiros entrevistados da relevância e
cionais de interesse social.
O poder público municipal influência do Compur na gestão da política urbana, a problematização do seu papel e de
tem realizado sistematica- sua atuação atestam o dinamismo desse espaço e a reflexividade presente em seu interior.
mente intervenções nas
Zeis-1, por meio dos planos Estes questionamentos colocam em relevo a explicitação dos conflitos, os processos de
globais e de intervenções negociação e a dimensão de aprendizagem coletiva, evidenciada na afirmação de um re-
estruturais (de caráter multi-
dimensional), de modo que presentante popular de que a participação no Conselho demanda “estar aberto a construir
a emenda institui legalmente
os instrumentos que vinham
novas concepções, percepções ... entender a necessidade de construir, flexibilizar, de me-
sendo empregados e avan- diar com o outro” (Brasil, 2004).
ça no estabelecimento de
parâmetros urbanísticos pa-
Por sua vez, a CMPU, organizada quadrienalmente pelo Compur, corresponde ao mo-
ra a regularização. mento de ampliação da participação, de alargamento das discussões sobre a cidade e de

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possível articulação entre as políticas urbano-ambientais a partir das discussões temáticas


nas diversas áreas. A CMPU mostra-se fundamental, no mínimo, por três motivos: a aber-
tura à participação; a possibilidade de ampliação da discussão sobre a cidade e de influên-
cia em macrodiretrizes e prioridades; e o potencial de articulação intersetorial no contex-
to de fragmentação e complexidade da administração municipal. A primeira Conferência
Municipal de Política Urbana realizou-se em 1998-1999, aglutinando 700 pessoas e de-
mandando seis meses de preparação. Dada a aprovação (então recente) dos instrumentos
urbanísticos, não se visava à sua avaliação, mas à definição de ajustes e modificações e
à construção desse espaço de democracia participativa. Os esforços mobilizados para a sua
concretização não podem ser subestimados, tendo em vista, inclusive, as resistências en-
frentadas à instituição de canais de participação por ocasião da aprovação do Plano Dire-
tor. Neste sentido, cabe citar a afirmação de representante do setor técnico de que “a Con-
ferência tem o papel de trazer outras visões, outros desejos” (Brasil, 2004).
Na segunda CMPU o processo e as dinâmicas foram aprimorados, possibilitando a
ampliação das discussões e da participação. De fato, a II Conferência, tendo como obje-
tivo avaliar o Plano Diretor e a LPUOS, e propor diretrizes e alterações nesses instrumen-
tos, envolveu um longo processo de preparação, realizando-se no período entre outubro
de 2001 e agosto de 2002. As seguintes diretrizes foram assumidas na sua concepção: o
caráter processual; o acesso à informação; a garantia à participação; o estímulo à aborda-
gem integrada; e o objetivo de construção da agenda urbana para o município. Destaca-
se a participação expressiva nas pré-conferências que visavam a produzir o documento “A
cidade que somos” e eleger os delegados para a etapa seguinte, além de seu papel de ca-
pacitação dos participantes. Foi credenciado um total de 2.958 participantes nas pré-con-
ferências regionais e temáticas, e no caso dessas últimas destaca-se o número significativo
de inscrições, que totalizaram 2.441, das quais 1.632 oriundas do setor popular.15 15 Ver o balanço da partici-
pação nos Anais da II Confe-
Não se deterá nas questões discutidas e propostas que delineiam avanços na política rência (PBH,2003).
urbana e nos seus instrumentos, ressaltando-se apenas alguns pontos. Destacam-se a com-
posição heterogênea dos participantes e a amplitude das discussões efetuadas nesse espa-
ço, encampando as diferentes escalas, recortes, objetos e tematizações. Diversas proposi-
ções foram elaboradas e aprovadas, envolvendo: mudanças nos parâmetros urbanísticos e
alterações no zoneamento; aplicação de instrumentos do Estatuto da Cidade; e ampliação
do emprego de instrumentos redistributivos e voltados para a inclusão socioespacial.
A participação cidadã mostrou-se valorizada pelos participantes, com destaque para
o reconhecimento crescente do OP. Contudo, diversas questões foram problematizadas:
desarticulação entre as diferentes instâncias e a sobreposição de pautas e calendários fo-
ram recorrentemente levantadas como problemas, implicando a diretriz de integração en-
tre esses espaços. Um número expressivo de propostas referentes à gestão participativa foi
aprovado, tendo em vista o aperfeiçoamento dos canais de participação e de sua articula-
ção, a ampliação de sua autonomia e das possibilidades de participação. Várias propostas
endereçaram-se ao Compur: a ampliação de suas atribuições, o papel deliberativo e a
composição paritária. Mais além, aprovou-se uma proposta mais ampla de reorganização, 16 Constituíram eixos temá-
referente à criação de um sistema de desenvolvimento urbano, com o respectivo fundo ticos da Conferência Munici-
pal de Política Urbana, que
(inclusive alimentado pela aplicação de instrumentos urbanísticos). estruturam as discussões e
A CMPU aglutinou e canalizou investimentos, expectativas, desejos e energias do Exe- propostas: mobilidade urba-
na, sistema viário e trans-
cutivo, dos membros do Compur, dos participantes e dos delegados em torno de uma pla- porte coletivo; habitação, vi-
las e favelas; meio-ambiente
taforma ampla – a cidade que queremos16–, constituindo, assim, um momento privilegia- e saneamento; controle ur-
do de interlocução, embate, negociação e construção coletiva. Foi bem-sucedida em bano e patrimônio cultural.

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P A R T I C I P A Ç Ã O C I D A D Ã E R E C O N F I G U R A Ç Õ E S

avançar e aprimorar o processo de participação cidadã em suas múltiplas dimensões: a


possibilidade de influência nos processos decisórios, a dimensão integrativa e de aprendi-
zagem, e a apresentação e reconhecimento das identidades dos atores envolvidos. O desa-
fio que se coloca à CMPU e ao Compur, como aos canais de participação de um modo ge-
ral, reside nas possibilidades de concretização dos acordos e deliberações construídos
nesses espaços, sem as quais a participação se resume ao caráter litúrgico ou de encenação.

GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES


E INCLUSÃO SOCIOESPACIAL: OBSTÁCULOS,
DESAFIOS E POTENCIALIDADES DAS
INSTÂNCIAS DE PARTICIPAÇÃO

A divisão de competências, abrangências, escalas e papéis do conjunto pulverizado


de instâncias de participação em Belo Horizonte implica desafios substantivos, referentes
à articulação não apenas entre esses espaços – como já tem sido ensaiado –, mas entre os
diversos setores, entre planejamento e gestão urbana, entre os instrumentos das políticas
urbanas voltados para a regulação e para a provisão de bens coletivos. A multiplicidade
dos espaços de participação propicia diversas ocasiões de encontro entre o governo e a so-
ciedade, e possibilidades distintas de influir ou intervir no âmbito decisório. Contudo, es-
sa fragmentação pode acarretar o esvaziamento relativo das instâncias que efetuam discus-
sões mais globais em relação às que decidem a aplicação de recursos ou a provisão de bens
negociáveis. Também pode implicar maiores riscos de absorção das energias dos movi-
mentos sociais e dos atores coletivos, que têm sido canalizadas em grande medida para a
atuação institucional.
A despeito das dificuldades, ambigüidades e limites que se apresentam nesses novos
espaços de construção democrática, a atuação do Compur mostra a concretização de pos-
sibilidades de avanços na reconfiguração dos instrumentos de planejamento e regulação
urbanística, que se pode traduzir na cunhagem de avanços e em inovações locais na ges-
tão urbana. Mais além, a convergência de seus representantes quanto à relevância do
Compur e, ainda, quanto às dimensões que remetem aos processos de aprendizagem co-
letiva permitem apostar nas possibilidades de aprimoramento desses arranjos de interlo-
cução entre o poder público e os diversos segmentos sociais.
Além disso, os debates e as proposições na CMPU indicam as trilhas de aprofundamen-
to da gestão democrática das cidades, de renovação nas políticas urbanas e de requalifica-
ção das instâncias de participação, tendo em vista maior efetividade e maior equalização
das condições de participação dos diferentes segmentos. A existência e o efetivo funciona-
mento de ambos os espaços, destinados à gestão dos instrumentos normativos da política
e do planejamento urbanos no município, indicam potencialidades inerentes à superação
de modelos de corte centralista, pautados monologicamente na racionalidade técnica.
O campo inerentemente conflitual da produção da cidade e a arena das suas políti-
cas coloca dificuldades e contradições de toda ordem para a concretização dos potenciais
dos espaços de gestão democrática das cidades. A efetividade e a consolidação das instân-
cias de participação desafiam as matrizes tradicionais e predatórias de relação entre o Es-
tado e a sociedade, contribuindo para o processo – permeado de continuidade e resistên-
cias, de promessas e mudanças – de reconstrução da cultura política sob premissas
democráticas e de inclusão social. Não se podem minimizar as dificuldades e as contradi-

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F L Á V I A D E P A U L A D U Q U E B R A S I L

ções de toda natureza nos processos de formulação e implementação dos instrumentos de


política urbana, sobretudo se apontam para a superação de uma ordem urbana configu-
rada há longa data, de padrões de ação estatal e de padrões tradicionais de relação entre
poder público e sociedade. Nesse sentido, a rota do chamado planejamento politizado e da
incorporação das premissas de reforma urbana – inscrita nas lutas pelo direito à cidade –
implica obstáculos relativamente maiores e, se não o alargamento, por certo a explicita-
ção dos conflitos urbanos na cena pública.
Inúmeras dificuldades e desafios interpõem-se às possibilidades de as instâncias ins-
titucionais de participação no âmbito local realizarem suas promessas e potenciais de cu-
nhagem de avanços institucionais, de democratização das políticas públicas e das relações
entre governo e sociedade, tendo em vista a inclusão e concretização dos direitos sociais.
Não se pretende esgotá-las, mas tão-somente recuperar alguns dilemas e questões mais ge-
rais na abordagem dos canais de participação cidadã. Nos domínios institucionais, vários
dilemas e problemas se apresentam, desde os dilemas postos pelo processo inconcluso de
descentralização brasileiro, entre os quais as limitações de recursos e capacidades técnicas,
financeiras e administrativas, que conformam óbices muito significativos para a realização
das atribuições constitucionais pela maioria dos governos locais brasileiros. Os espaços de
participação acarretam o tensionamento das estruturas governamentais – do Executivo e
Legislativo municipais – do aparato burocrático-administrativo e de suas lógicas, impli-
cando dificuldades de articulação. Também a proliferação das instâncias e a conseqüente
fragmentação recolocam o desafio da articulação das ações governamentais, bem como
apresentam implicações para a organização, mobilização societária e participação cidadã.
No âmbito da sociedade civil, os dilemas remetem, sobretudo, à questão da preser-
vação da autonomia dos movimentos e organizações sociais, de sua capacidade mobiliza-
dora e de seu fortalecimento. Os riscos de desmobilização, instrumentalização e coopta-
ção, e os custos atribuídos à ultrapassagem das fronteiras dos domínios societários e de
seus espaços públicos podem ser considerados um cenário possível, colocando novos de-
safios à organização societária. Teixeira (2000, p.273) aponta para essa questão em aber-
to ao afirmar que a participação cidadã nas instâncias dos governos locais cria a possibili-
dade de as organizações perderem sua autonomia, inserindo-se na lógica do poder. Porém,
para o autor, “o desafio que se lhes apresenta é o de enfrentar todos esses riscos, com ação
e reflexão coletivas, buscando o fortalecimento da sociedade civil e a democratização das Flávia de Paula Duque
Brasil é pesquisadora da
relações entre Estado e sociedade”. Escola de Governo da Fun-
A consideração da dimensão cultural e da cultura política como aspecto relevante dação João Pinheiro e Mes-
tre em Sociologia pela
demarca a magnitude dos desafios postos em ambos os domínios e na relação entre o Es- UFMG. E-mail: flavia.brasil@
tado e a sociedade. Sugere percursos e processos contraditórios e descontínuos, tecidos en- fjp.gov.br

tre mudanças e continuidades. Nesses termos, colocam-se as dificuldades e as potenciali- Artigo recebido em dezem-
bro de 2004 e aceito para
dades da tradução de princípios e práticas inovadoras cunhadas pelos atores sociais no publicação em fevereiro de
âmbito das políticas públicas. 2005.

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A B S T R A C T This article addresses citizens participation in urban policies,


focusing on participatory arrangements implemented by local governments since the late
eighties in Brazilian context. These experiences could be regarded as expressions of collective
actors democratizing projects referred to urban planning and management. This paper argues
that, despite the experiences diversity, their limits, difficulties and contradictions, participation
have produced alternative policies models. First, the text approaches public space and citizens
participation concepts and stresses civil society possibilities to influence agenda-setting
and policy-making process. Next, local-level participatory arrangements are examined,
emphasizing urban policy municipal councils. Their character, roles, potencials and limits are
pointed out. Last, Belo Horizonte’s Urban Policy Municipal Council and the Urban Policy
Municipal Conference are analyzed as an illustrative case.

K E Y W O R D S Citizens participation; urban policies; municipal councils.

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JOVENS NO MUNICÍPIO
DE SÃO PAULO
EXPLORANDO O EFEITO DAS RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
R E N ATA M I R A N D O L A B I C H I R
HAROLDO DA GAMA TORRES
MARIA PAULA FERREIRA

R E S U M O O objetivo desse artigo é testar a hipótese de acúmulo de indicadores ne-


gativos nas áreas periféricas do município de São Paulo, abordando alguns tipos de riscos so-
ciais que incidem sobre indivíduos jovens, como desemprego, violência urbana, baixo nível
educacional e gravidez na adolescência. Para tanto, são utilizados métodos de estatística es-
pacial e as áreas de ponderação da amostra do Censo Demográfico (IBGE, 2000). Ao contrá-
rio da visão bastante difundida, os resultados apontam, de modo geral, para a questão da he-
terogeneidade da periferia, ou seja, para a não-sobreposição espacial de diversos riscos
considerados. Desse modo, os resultados indicam a complexa estruturação dos riscos sociais em
municípios como São Paulo, o que tem importantes conseqüências para o planejamento de
políticas públicas.

PA L AV R A S - C H AV E Riscos sociais; segregação; políticas sociais; juventude.

INTRODUÇÃO

Está presente na literatura sociológica e de estudos urbanos, ainda que de modo di-
fuso, a proposição da homogeneidade das periferias metropolitanas, que seriam locais dis-
tantes dos centros urbanos, marcados pela ausência de investimentos públicos, pelo acú-
mulo de privações e de indicadores sociais negativos:

A extensão das periferias urbanas ... tem sua expressão mais concreta na segregação es-
pacial ou ambiental configurando imensas regiões nas quais a pobreza é homogeneamente
disseminada. (Maricato, 2003, p.152.)

Essa frase sintetiza o argumento relativo à homogeneidade das áreas periféricas das
metrópoles brasileiras, que seriam marcadas pela sobreposição de múltiplas carências e
privações, com conteúdos socioeconômicos bastante similares. A idéia de que os riscos so-
ciais são cumulativos pode parecer bastante evidente para a maior parte dos observadores
da cena urbana brasileira. No caso de São Paulo, o argumento teria sido supostamente
comprovado ad nauseam por dezenas de estudos, sobretudo se considerarmos a grande
massa de dados existentes sobre a periferia de São Paulo, bem como a sistemática produ-
ção de indicadores de cunho territorial, tais como o Índice de Desenvolvimento Huma-
no (IDH), o Índice de Exclusão Social (Sposati, 1996), o Índice Paulista de Responsabili-
dade Social (IPRS) e outros.
Vale ainda destacar que boa parte da literatura brasileira sobre a chamada segregação
residencial tende a considerar como dado que os riscos sociais em geral se concentram es-

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pacialmente no anel externo das regiões metropolitanas, gerando – no caso de São Pau-
lo – uma distribuição espacial dos problemas sociais de formato radial-concêntrico (Vil-
laça, 2001; Taschner & Bogus, 2000). Essa visão associa-se com a caracterização das pe-
riferias urbanas como locais relativamente homogêneos em termos de falta de
investimentos públicos, de acesso a bens e serviços essenciais, além de indicadores socioe-
conômicos muito ruins.
Muitos desses estudos ou tomam o argumento da concentração de precariedades nas
áreas periféricas a priori ou são organizados em unidades de análise muito agregadas es-
pacialmente, como, por exemplo, na escala de distritos administrativos. E, no caso de São
Paulo, a análise por distritos (96 áreas) tende a ser bastante insatisfatória, indicando ape-
nas padrões espaciais muito gerais, uma vez que essas áreas apresentam grande variabili-
dade no porte demográfico, sendo que algumas têm o tamanho de verdadeiras cidades,
como o distrito de Grajaú, com mais de 400 mil habitantes, segundo o Censo de 2000
do IBGE.
Estudos desenvolvidos recentemente no âmbito do Centro de Estudos da Metrópo-
le (CEM/Cebrap) em escala geográfica mais detalhada (como a de setores censitários)
apontam, ao contrário, para uma relativa heterogeneidade das áreas de pobreza. Apesar de
ser possível afirmar que certas áreas do município de São Paulo possuem um legado his-
tórico de acúmulo de indicadores negativos – sujeitas a diferentes tipos de riscos, tanto
sociais quanto ambientais –, é também verdade que essas áreas se distribuem por todo o
município de forma bastante dispersa e complexa, aproximando-se mais de um mosaico
do que da descrição radial-concêntrica descrita pela literatura: ou seja, cada vez mais pa-
rece ser preciso falar em periferias, com características bastante peculiares, e não mais em
“periferia”, uma vez que esse rótulo abrangente coloca sob o signo da homogeneidade rea-
lidades muito distintas. Em outras palavras, é necessário examinar o argumento referente
ao acúmulo de riscos em uma escala de observação mais detalhada, de modo a produzir
uma caracterização mais precisa de sua distribuição espacial.
Como exemplo, podemos citar o Mapa da Vulnerabilidade Social da População da
1 Este estudo foi desenvol- Cidade de São Paulo,1 desenvolvido na escala dos setores censitários, destacando que a po-
vido pelo Centro de Estudos
da Metrópole (CEM/Cebrap
breza urbana no município apresenta múltiplas dimensões que não se restringem à sim-
e Cepid/Fapesp) em parce- ples carência (ou ausência) material, pois além da dimensão socioeconômica (baixos ní-
ria com a Secretaria de As-
sistência Social do Municí- veis de renda e escolaridade) também é importante considerar a dimensão demográfica da
pio de São Paulo – ver pobreza: entre os mais pobres, há composições familiares específicas que devem ser con-
CEM/Cebrap e SAS-PMSP,
2004. sideradas com bastante cuidado, como famílias chefiadas por mulheres, por homens jo-
vens de baixa escolaridade, compostas por muitas crianças, ou por pessoas idosas, e mui-
2 O mapeamento das áreas
de vulnerabilidade do muni- tos outros aspectos.2
cípio de São Paulo baseou-
se em variáveis seleciona-
Esse estudo mostrou ainda que a pobreza urbana pode ser marcada pela segregação,
das do Censo Demográfico pelo isolamento espacial, em áreas com poucas oportunidades gerais de vida e de acesso a
2000, que, submetidas à
análise fatorial, foram agru-
serviços e políticas públicas. Certas áreas da periferia de São Paulo, como Brasilândia (na
padas em duas dimensões Zona Norte), Capão Redondo (na Zona Sul) e Cidade Tiradentes (na Zona Leste) são
principais, denominadas “di-
mensão de privação socioe- marcadas por acúmulos de indicadores negativos: falta de acesso a políticas essenciais (co-
conômica” e “dimensão de mo saúde e educação); altos índices de criminalidade (como altas taxas de homicídio); ex-
ciclo de vida familiar”; estas
dimensões combinadas, por posição a variados tipos de riscos (como maior incidência de certos agravos de saúde pú-
meio de análise de cluster, blica) etc. Porém, além dessas áreas fortemente segregadas, há certas áreas da chamada
deram origem a diferentes
grupos de vulnerabilidade “periferia” que não são tão segregadas: estão inseridas em áreas consolidadas e com boas
social.
condições de acesso a serviços públicos, têm melhores oportunidades de emprego e de mo-
bilidade em geral. Essa distinção remete ainda à diferenciação do próprio conceito de

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pobreza, e também de periferias (há periferias mais recentes, algumas já consolidas, ou-
tras em fase de transição).
Cada uma dessas composições necessita de cuidados e de olhares específicos: é im-
portante atentar para as estratégias de sobrevivência das populações que moram nesses lo-
cais; do ponto de vista das políticas públicas, esses dados destacam a necessidade de polí-
ticas sociais que considerem o componente espacial da pobreza, elegendo o território
como área de atuação, sem perder, entretanto, a dimensão mais geral: os mecanismos pro-
dutores da pobreza e da segregação urbanas, destacando-se especialmente o papel do Es-
tado (inclusive por meio das políticas públicas tradicionais, que geram condições diferen-
ciadas de acesso) e do capital imobiliário (ver Marques & Torres, 2004).
A segregação observada em certos locais da cidade gera diferentes e perversas conse-
qüências: menor acesso a serviços essenciais (dada a grande distância que tem de ser per-
corrida, em média, para obter diversos tipos de atendimento), maior exposição a certos
tipos de agravos à saúde (dadas as condições bastante insalubres em que muitos vivem),
efeitos sobre a escolaridade dos jovens (Torres, Ferreira & Gomes, 2004, revelam que es-
tudar em escolas de áreas periféricas, em que a maioria dos alunos tem baixa renda e pais
com baixa escolaridade, tem fortes efeitos sobre o desempenho escolar), menores oportu-
nidades de mobilidade social (dada a maior fragilidade das redes de relações) etc. Além
disso, a segregação socioespacial tem efeitos sobre as redes de relações sociais, sobre os pa-
drões de sociabilidade, sobre a articulação das comunidades (uma vez que reduz os con-
tatos entre os diferentes grupos sociais), o que afeta, também, as possibilidades de modi-
ficação de suas realidades.
Em suma, além da relevância analítica, o tema tem particular importância para as
políticas sociais, uma vez que a literatura internacional sugere que a aglomeração de um
determinado grupo social ou étnico em uma dada área tenderia a aumentar substancial-
mente esses riscos juvenis, bem como teria impactos substanciais sobre as oportunidades
econômicas e sociais dos indivíduos que residem nessas áreas altamente segregadas: aque-
las que concentram grupos menos favorecidos (Massey & Denton, 1993; Durlauf, 2001; 3 De modo geral, o concei-
Yienger, 2001). Esta literatura adverte, porém, que na análise dos padrões espaciais da se- to de segregação remete a
duas dimensões principais:
gregação a escala pode exercer um papel fundamental (Sabatini, 2001).3 Assim, examinar os padrões de concentra-
a hipótese de acúmulo de riscos associada ao tema da segregação residencial constitui um ção espacial de determina-
dos grupos sociais e o grau
esforço de interesse tanto empírico como teórico, com implicações significativas para as de homogeneidade social de
políticas sociais. determinadas áreas. Mas-
sey e Denton (1993) men-
Do ponto de vista empírico, o artigo busca compreender até que ponto determina- cionam outras dimensões,
dos riscos sociais, especialmente aqueles que afetam indivíduos jovens, convergem ou não tais como concentração
(que mede a densidade da
para territórios urbanos específicos. Por esta convergência de riscos em um mesmo terri- pobreza) e centralização
(que mede sua localização
tório estamos nos referindo, no caso desse artigo, à concentração do desemprego, violên- em relação ao centro da ci-
cia urbana, baixo nível educacional e gravidez na adolescência, em um pequeno número dade). Consideramos estes
elementos menos relevantes
de áreas contíguas, normalmente localizadas nas periferias urbanas – discute-se assim o para a discussão brasileira.
efeito das relações de vizinhança sobre a incidência desses riscos.4 Esses indicadores foram
4 Para a discussão relativa
selecionados por ajudarem a complementar a definição das situações de pobreza sem es- aos efeitos de vizinhança
tarem diretamente relacionados à dimensão da renda – ou seja, a análise da concentração sobre o desenvolvimento
dos jovens, ver, por exem-
espacial de alguns riscos juvenis contribui para tornar mais complexo o entendimento das plo, Brooks-Gunn, Duncan,
“múltiplas dimensões da pobreza” (Mingione, 1999). O estudo desses tipos de riscos que 1997.

afetam as populações mais jovens é particularmente relevante do ponto de vista das polí-
ticas sociais, especialmente se for considerado que a sobreposição de carências nessa faixa
etária contribui para a reprodução de circuitos de pobreza.

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J O V E N S N O M U N I C I P I O D E S Ã O P A U L O

No que diz respeito a riscos juvenis, um dos principais exercícios empíricos sobre o
tema foi o Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ), realizado pela Fundação Seade em 2002,
5 O estudo serviu como ba-
se para a localização dos mediante uma demanda da Secretaria Estadual da Cultura.5 Este estudo classificava os
equipamentos do projeto
“Fábricas de Cultura”, que
distritos administrativos da cidade em uma escala de zero a cem pontos que expressava o
visa proporcionar acesso à grau de vulnerabilidade social dos seus jovens moradores, considerando, simultaneamen-
cultura e lazer aos jovens de
áreas periféricas, em parti- te, os níveis de escolaridade dos jovens, homicídios, fecundidade e outros.6 O estudo des-
cular aquelas com maiores tacou ainda a existência de cinco grupos de distritos no município com distintos níveis
concentrações de jovens
em situação de risco social, de vulnerabilidade para os jovens residentes.7 Com poucas exceções, foram observadas
particularmente violência.
coincidências espaciais entre os diversos tipos de riscos analisados, indicando – na escala
6 Assim, o valor zero indica de distritos – uma estreita relação existente entre condições socioeconômicas, em particu-
o distrito com o menor nível
de vulnerabilidade, e o valor lar a pobreza, e situações de violência e maternidade entre os jovens residentes nestes lo-
cem, o de maior nível. Este
indicador considerava em
cais. Assim, de certa forma, a hipótese do acúmulo de riscos foi também reafirmada por
sua composição a taxa de este exercício, realizado na escala do distrito (Fundação Seade, 2002).
crescimento do distrito entre
os anos 1991 e 2000; o per- Em outras palavras, o objetivo mais geral deste artigo é reexaminar a proposição de
centual de jovens residentes;
o percentual de nascidos vi-
que as periferias são homogêneas. Pretendemos mostrar que a sobreposição de carências
vos de mães com idade en- nas áreas periféricas do município de São Paulo não é completa, ou seja, a periferia é mais
tre 14 e 17 anos; a taxa de
homicídio entre os jovens do heterogênea do que supõe a literatura. Tomaremos como exemplo alguns riscos juvenis –
sexo masculino com idade
entre 15 e 17 anos; o per-
desemprego, grau de alfabetização, gravidez precoce e taxa de homicídios – em uma uni-
centual de jovens de 15 a 19 dade de análise espacial mais detalhada: trabalharemos aqui com as 456 áreas de ponde-
anos que não freqüentavam
a escola; e a renda média do ração da amostra do Censo Demográfico do IBGE.8 Utilizaremos também métodos de es-
chefe do domicílio. Foi utiliza-
da a metodologia estatística
tatística espacial, como o Índice de Moran,9 que oferecem uma abordagem bastante
de análise fatorial. interessante tanto para medir os níveis de segregação existentes como para identificar em
7 A título de ilustração das grande detalhe os locais com altíssimo grau de concentração de um dado risco juvenil, os
grandes disparidades obser- chamados hot spots.
vadas, pode-se destacar que
enquanto nos distritos de
Jardim Paulista e Moema (ca-
racterizados por bons indica-
dores socioeconômicos) o METODOLOGIA
percentual de mães adoles-
centes variava em torno de
1%, em Cidade Tiradentes
(distrito da periferia do muni-
A partir dos dados do Censo Demográfico 2000 (IBGE) e do sistema de estatísticas vi-
cípio) o percentual era próxi- tais da Fundação Seade, foram gerados quatro indicadores que expressam as condições de
mo de 10%, ou seja, em 10%
dos nascidos vivos de mulhe- vida dos jovens no município de São Paulo: percentual de adolescentes do sexo feminino
res residentes neste local,
nos anos de 1999 a 2001,
de 13 a 17 anos que já tiveram filhos; percentual de jovens de 18 a 19 anos com ensino
as mães tinham menos de médio completo; taxa de desemprego dos jovens de 18 a 24 anos; e taxa de homicídios de
17 anos de idade.
homens de 18 a 29 anos. Os três primeiros indicadores foram derivados da amostra do
8 O Censo é baseado em Censo Demográfico, que é constituída por 10% das unidades domiciliares do município.
dois questionários: um mais
sucinto, denominado ques- A taxa de homicídios foi elaborada com base na média dos óbitos para os anos de 1999,
tionário para o universo do
censo, que cobre toda a po- 2000 e 2001, sendo derivada do sistema de estatísticas vitais da Fundação Seade.
pulação; e outro mais abran- Como unidades de análise (e como áreas de vizinhança) foram utilizadas as áreas de
gente e detalhado que é
aplicado em uma amostra ponderação criadas no âmbito do Censo Demográfico 2000, que no município de São
correspondente a 10% dos
domicílios.
Paulo correspondem a 456 áreas. Essas áreas são compostas por setores censitários e en-
globam em torno de 4 mil domicílios, com cerca de quatrocentos deles pertencentes à
9 O índice de Moran varia no
intervalo de -1 a 1, com va- amostra. Essas áreas são homogêneas em termos de variáveis socioeconômicas e demo-
lores positivos indicando au-
tocorrelação espacial, ou
gráficas (Fundação IBGE, 2002). A adoção das áreas de ponderação como unidades geo-
seja, a existência de áreas gráficas do estudo teve como objetivo explorar as dimensões da segregação espacial em
com valores similares entre
vizinhos (para o indicador de uma escala mais detalhada do que os 96 distritos administrativos da cidade, já que estes
interesse), e valores negati- podem conter em seu interior uma diversidade de situações que no nível agregado não
vos representando diferen-
ças entre vizinhos. é possível detectar.

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Como ferramental analítico foram utilizadas medidas de autocorrelação espacial, es-


pecificamente o índice de Moran (I), global e local. Apesar da existência de vários índices
que mensuram padrões espaciais, o índice global de Moran é o mais comumente utiliza-
do quando se deseja um sumário da distribuição espacial dos dados.
Em outras palavras, se comparados aos indicadores comumente utilizados para os
estudos de segregação – como o índice de dissimilaridade – o índice de Moran incorpo-
ra uma dimensão bastante inovadora: testar até que ponto o nível de uma variável para
uma dada área é similar ou não ao das áreas vizinhas. Por exemplo, em situações em que
não existe segregação, a distribuição da proporção de pobres (ou de qualquer outra va-
riável de interesse, como concentração de negros) será uniforme em todas as áreas da ci-
dade, isto é, se o percentual de pobres na cidade é de 30%, esta proporção será aproxi-
madamente a mesma em todas as áreas do município e o índice de Moran tenderá a
zero. Para as situações em que há segregação, as áreas com altas concentrações de pobres
serão vizinhas entre si (assim como as áreas com altas concentrações de não-pobres) e o
índice de Moran se aproximará de um. Assim como no caso dos outros indicadores de
segregação, este indicador tende a ser afetado pela escala geográfica adotada (Anselin,
1995).10 10 Este índice é escrito co-
mo: I=(N/S0)Σi Σj wijxixj / Σixi 2
(1) Onde, wij é um elemento
da matriz vizinhança espa-
cial W que indica se as
RESULTADOS DO MORAN GLOBAL áreas i e j são contíguas. Foi
utilizada uma matriz de vizi-
nhança de primeira ordem,
Os valores obtidos pelo Índice Global de Moran sugerem a existência de autocorre- com wij assumindo valor 1
lação espacial para os quatro indicadores analisados, com as maiores correlações observa- se i e j são fronteiriços e 0
(zero) caso contrário. S0 é
das para a taxa de desemprego e o percentual de jovens de 18 a 19 anos com ensino mé- um fator de normalização
igual à soma de todos os
dio completo; a menor correlação corresponde ao percentual de meninas de 13 a 17 anos pesos (Σi Σj wij), e xi corres-
que têm ou já tiveram filhos. Assim, é possível afirmar que a distribuição desses indica- ponde ao valor do indicador
a ser testado para a área i e
dores não é uniforme no município de São Paulo, isto é, os graus de heterogeneidade es- N o número de observações.
pacial variam conforme o tipo de variável considerada (Tabela 1). Foi utilizado o nível de signi-
ficância de 5% nos testes de
Uma outra maneira de observar a autocorrelação espacial existente para cada um dos hipóteses, em que a hipóte-
quatro indicadores é o Diagrama de Espalhamento de Moran. Esse tipo de gráfico apre- se nula corresponde a: o va-
lor observado do índice para
senta o cruzamento entre o valor do indicador para uma determinada área e a média dos cada um dos quatros indica-
vizinhos. Assim, no caso de uma autocorrelação perfeita – índice de Moran igual a 1 (um) dores era igual a zero.
Para se verificar a existên-
– a média de cada área considerada seria igual à média ponderada dos seus vizinhos. No cia de padrões espaciais e
sua identificação utilizou-se
Anexo 1 apresentamos o Diagrama de Espalhamento para as quatro variáveis consideradas. o Índice de Moran Local,
que pode ser expresso co-
mo: Σ wij zj
j
Tabela 1 – Índice Global de Moran I i = 
N
Σ zi2
Indicadores Índice de Moran (I)* i=1 (2)
_
Taxa de desemprego dos jovens de 18 a 24 anos 0,63 Onde, zi = (xi - x )
Essa medida apresenta um
Percentual de jovens de 18 a 19 anos com ensino médio completo 0,61 valor para cada região, per-
Taxa de homicídios de homens de 18 a 29 anos (em cem mil) 0,45 mitindo a identificação de
padrões espaciais e a cria-
Percentual de adolescentes do sexo feminino de 13 a 17 anos que já tiveram filhos 0,23 ção de clusters que os re-
presentam. Estes clusters
Fontes: IBGE, Censo Demográfico 2000; Seade, Estatísticas Vitais.
podem ser interpretados co-
* Nível de significância de 5%. mo áreas com dinâmicas es-
paciais próprias que se des-
tacam das demais. A partir
Os resultados revelam que, enquanto os padrões de heterogeneidade espacial pare- desses índices foram gera-
dos os LISA maps (Anselin,
cem ser de fato similares quando considerados certos indicadores (como desemprego e es- 1995), com um nível de sig-
colaridade), o mesmo não ocorre para outros indicadores (como homicídios e gravidez na nificância de 5%.

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adolescência). Tal evidência, por si só, já coloca em questão a hipótese apresentada na in-
trodução relativa a um perfeito e simultâneo acúmulo de riscos nas mesmas áreas, pelo
menos no que diz respeito à unidade de observação utilizada neste estudo – áreas de pon-
deração. Para aprofundar esse argumento, foram analisados os mapas gerados pelo Índice
de Moran Local.

RESULTADOS DO MORAN LOCAL

11 Os mapas LISA (Local In- A seguir são apresentados os mapas LISA,11 onde estão identificados os clusters espa-
dicator of Spatial Associa-
tion) apresentam as corre-
ciais de áreas de ponderação que se diferenciam das demais áreas da cidade. Nesse mapa
lações para uma dada as áreas em cinza claro são aquelas onde ocorrem valores muito acima da média da cida-
variável entre cada uma das
unidades de análise e seus de e, simultaneamente, as áreas vizinhas também apresentam valores muito altos; as pre-
vizinhos. Todos os mapas tas representam as áreas com valores abaixo da média do município (e simultaneamente
foram elaborados pelos au-
tores do presente artigo. as áreas vizinhas também apresentam valores muito baixos). As áreas em cinza escuro são
as áreas denominadas de transição, ou seja, o padrão local não é similar ao da vizinhança.
Por fim, as áreas em branco são aquelas em que não foram identificados padrões espaciais
que se diferenciam de modo particular do observado para o conjunto do município.

Mapa 1 – Taxa de desemprego dos jovens com 18 a 24 anos. Município de São Paulo, 2000.

Fonte: Censo Demográfico 2000.

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Apresentamos no Mapa 1 o Índice de Moran Local para a taxa de desemprego dos


jovens de 18 a 24 anos. Podemos observar que este indicador apresenta um padrão de dis-
tribuição espacial semelhante ao esperado pela literatura, apresentando o conhecido pa-
drão radial-concêntrico. Níveis baixos de desemprego são observados no bloco homogê-
neo constituído pelo chamado Centro expandido (em preto) e altos níveis de desemprego
são encontrados nas áreas homogêneas a Leste e a Sul da cidade (em cinza claro).
Trata-se de um resultado conhecido. Não por acaso, a região do Centro expandido
apresenta os maiores níveis de renda e é também a principal responsável pela oferta de
empregos (Gomes & Amitrano, 2004). A principal surpresa, neste caso, diz respeito à si-
tuação da Zona Norte. Apenas algumas poucas áreas apresentam níveis de emprego ho-
mogeneamente baixos. Talvez isso possa ser explicado, em parte, pela recente transforma-
ção social da região – com a emergência de Santana como um distrito de renda média-alta
– e pela maior proximidade da maior parte da Zona Norte à região do Centro expandi-
do, local de maior concentração de empregos. De forma análoga ao mapa anterior, o Ma-
pa 2 apresenta o Índice de Moran Local para o percentual de jovens de 18 a 19 anos com
ensino médio completo.

Mapa 2 – Porcentagem de jovens com 18 a 19 anos com ensino médio completo, segun-
do agrupamentos de correlação espacial. Município de São Paulo, 2000.

Fonte: Censo Demográfico 2000.

Também neste caso surgem dois grandes agrupamentos: o que engloba as áreas
centrais e mais ricas da cidade – com alto grau de conclusão do segundo grau – e o que

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envolve as áreas periféricas a Leste, Sul e também a Noroeste (nesse caso, com baixo grau
de conclusão). Com algumas exceções, observamos que as áreas de baixo desemprego têm
alta escolaridade e as áreas de baixa escolaridade têm alto desemprego.
Cabe ressaltar que esses resultados, embora corroborem a hipótese de sobreposição
de riscos sociais em locais de periferia – mesmo na escala de áreas de ponderação –, suge-
rem uma série de elementos relativamente surpreendentes. O Centro histórico da cidade
não apresenta alto nível de escolaridade, mas alto nível de emprego. A região de São Mi-
guel Paulista – no extremo Nordeste da cidade – está na pior situação em relação ao em-
prego, o que não se reflete no nível de escolaridade.

Mapa 3 – Taxa média de homicídios, 1999-2001, segundo agrupamentos de correlação


espacial. Município de São Paulo, 2000.

Fonte: Censo Demográfico 2000.

Em outras palavras, os dados nesta escala sugerem que a segregação não é tão “com-
pacta territorialmente” como o modelo centro-periferia sugere (Villaça, 1999). E estas dis-
crepâncias são muito mais significativas quando observamos outros dados, tais como os de
homicídios e ocorrência de filhos entre as adolescentes (Mapas 3 e 4). No caso de homicí-
dios, embora as maiores taxas encontrem-se nas periferias, tais eventos não se localizam com
intensidade em qualquer periferia, mas de modo muito mais concentrado espacialmente
nos distritos de Jardim Ângela, Brasilândia, São Mateus e na fronteira com Diadema.

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Analogamente, as áreas com baixa incidência de homicídios não abrangem todo o


Centro expandido, e se manifestam também em áreas próximas, como Santana e Tatua-
pé. Em outras palavras, os padrões espaciais da taxa de homicídios não podem ser consi-
derados um espelho do padrão observado na taxa de desemprego e grau de conclusão do
segundo grau.

Mapa 4 – Porcentagem de pessoas do sexo feminino com 13 a 17 anos e com filhos, se-
gundo agrupamentos de correlação espacial. Município de São Paulo, 2000.

Fonte: Censo Demográfico 2000.

Estes resultados sugerem que embora os locais com elevadas taxas de homicídios
apresentem elevados níveis de desemprego e baixa escolaridade, não necessariamente to-
dos os locais com estas características têm elevado nível de homicídios. A cumulatividade
de riscos ocorre em alguns casos, mas não em outros. Entender estes padrões pode ser de
grande interesse para políticas de caráter local. De certo modo, o mesmo fenômeno se ob-
serva no caso da gravidez na adolescência, com um padrão ainda mais fragmentado do
que o observado acima (Mapa 4).
O mapa apresenta a distribuição do indicador referente a adolescentes de 13 a 17
anos com filhos. É possível identificar um único agrupamento homogêneo: as áreas lo-
calizadas no chamado quadrante Sudoeste – onde o índice de gravidez na adolescência
se diferencia do restante do município por apresentar valores muito baixos. Nas áreas
mais periféricas, o padrão territorial é relativamente fragmentado, embora algumas áreas

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– Norte de Brasilândia e Sul do Jardim Ângela – mereçam um destaque especial, por


apresentarem também níveis elevados para os demais indicadores considerados. Não
por acaso, no caso dessa variável, o Índice de Moran Global é o mais baixo entre os qua-
tro analisados.
Se considerarmos em conjunto os resultados referidos aos quatro indicadores consi-
derados, encontraremos um conjunto de combinações relativamente limitado e de gran-
de interesse analítico. A Tabela 2, resume as informações relativas à análise das possíveis
combinações entre áreas com acúmulo ou não de riscos.

Tabela 2 – Combinações dos clusters espaciais considerando situações positivas e negati-


vas entre os quatro indicadores considerados

Combinações Número População Taxa de Jovens que Taxa de Adolescentes


consideradas de áreas (%) desemprego concluíram o homicídio do sexo fe-
de pon- ensino médio (em minino com
deração (%) cem mil) filhos (%)

Quatro indicadores 6 1,5 32,2 25,9 284,9 5,4


negativos

Três indicadores 25 7,5 33,1 24,5 279,2 5,5


negativos

Dois indicadores 50 13,0 31,7 27,3 231,2 5,0


negativos

Um indicador 53 13,4 30,2 31,9 233,2 4,5


negativo

Nenhum indicador 157 33,7 25,4 39,1 166,8 3,7


positivo ou negativo

Um indicador 50 9,5 20,7 43,3 130,1 2,9


positivo

Dois indicadores 39 7,2 20,3 56,1 87,2 1,7


positivos

Três indicadores 33 5,7 18,5 62,7 93,4 1,6


positivos

Quatro indicadores 24 4,4 17,4 65,0 73,5 1,3


positivos

Combinações de indicadores 19 4,0 25,3 34,6 162,7 4,9


positivos e negativos

Total 456 100,0 26,3 38,3 176,7 3,9


Fonte: Fundação IBGE, Censo Demográfico 2000; Fundação Seade, Estatísticas Vitais. Elaboração dos autores.

A interpretação da Tabela 2, considerando os principais diferenciais entre os vários


tipos de clusters espaciais propostos, torna mais clara a percepção da heterogeneidade en-
tre estas diversas áreas urbanas. Enquanto nas melhores regiões da cidade – as áreas com
pelo menos três indicadores apresentando os níveis mais positivos – o percentual de jo-
vens de 18 a 19 anos com ensino médio completo é maior que 60%, nas piores áreas, três
ou mais negativos, este percentual é de cerca de 25%. O mesmo pode ser observado quan-
do são considerados outros indicadores, como as taxas de desemprego e de homicídios.
Do ponto de vista demográfico, observa-se na Tabela 2 a existência de 4,4% da popula-

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ção residindo em áreas que apresentam os quatro indicadores positivos, equivalendo à


aproximadamente 455 mil pessoas. Com três indicadores muito favoráveis foram encon-
tradas 33 áreas, que correspondem, junto com o grupo anterior (os distritos que formam
o chamado quadrante Sudoeste), a área mais rica da cidade e onde está localizada a maior
parte da oferta de serviços urbanos. Estes elementos podem ser observados no Mapa 5.

Mapa 5 – Combinações positivas entre os quatro indicadores.

De fato, podemos observar no Mapa 5 a significativa concentração de áreas com to-


dos os indicadores apresentando os níveis mais positivos. De certa forma, estes resultados
sugerem que enquanto a periferia pobre é mais heterogênea socialmente (particularmen-
te no que diz respeito à ocorrência de homicídios e gravidez na adolescência), o Centro
rico é mais compacto espacialmente e mais homogêneo, do ponto de vista da concentra-
ção de níveis positivos dos indicadores considerados.
Pela Tabela 2, observa-se também que, em 2000, 1,5% da população da cidade, ou
aproximadamente 160 mil pessoas, residiam em locais que podiam ser considerados de al-
tíssima vulnerabilidade para os jovens, uma vez que acumulam as situações mais desfavo-
ráveis do município para os quatro indicadores considerados. Se for agregado a esse con-
tingente a população residente em áreas com três situações mais desfavoráveis para pelo
menos três dos quatro indicadores considerados, chega-se a 9% da população total, ou
quase 950 mil pessoas residindo nestes locais.

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Mapa 6 – Combinações negativas entre os quatro indicadores.

Podemos verificar no Mapa 6 que, do ponto de vista espacial, estas áreas de altíssi-
ma vulnerabilidade são bastante concentradas espacialmente. De fato, enquanto os locais
com algum indicador fortemente negativo distribuem-se por quase toda a periferia da ci-
dade, as áreas com três ou quatro indicadores muito desfavoráveis se concentram terri-
torialmente em locais como Jardim Ângela, Brasilândia, Cidade Tiradentes e Leste do
Itaim Paulista.
Esses resultados indicam que certos riscos sociais realmente são mais concentrados
espacialmente, incidindo de forma sobreposta sobre certas áreas da periferia, mas não per-
mitem afirmar que os riscos sociais em geral (no caso, os riscos que afetam os jovens) in-
cidem de forma homogênea e concentrada nas áreas periféricas do município de São Pau-
lo. Ou seja, a cumulatividade de riscos não é perfeita como sugere a literatura, e o balanço
entre o acúmulo e a heterogeneidade de situações de vulnerabilidade é bastante comple-
xo. Tais elementos contribuem para a discussão a respeito de políticas sociais que consi-
derem a dimensão espacial da pobreza e da vulnerabilidade em toda a sua complexidade,
ou seja, políticas que levem em consideração as necessidades específicas de cada local, ten-
do assim uma atuação mais eficiente.
Finalmente, cabe também destacar aqueles 37,7% da população que vive em áreas
que não se distinguem nem positivamente nem negativamente nesses indicadores (Tabe-
la 2). Espacialmente, este contingente está localizado num trecho intermediário entre o
centro e a periferia mais distante, com ocorrências territoriais localizadas, principalmen-

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te, a Leste e Norte da cidade (ver Mapas 5 e 6). Existe também um grupo de áreas que
têm situações simultaneamente positivas e negativas, mas que representam apenas 4% da
população total.

CONCLUSÃO

Esse artigo mostrou que é preciso prestar mais atenção aos temas da heterogeneida-
de e dos componentes espaciais das situações de pobreza. Apesar da estrutura geral da me-
trópole ser de fato marcada por intensa segregação residencial entre áreas ricas e pobres,
como apontam extensamente as literaturas sociológica e urbanística brasileiras, os territó-
rios de pobreza são também caracterizados por um tecido urbano muito mais complexo
e difícil de compreender do que propõe essa literatura, quando tratados numa escala de
observação mais detalhada.
Constatamos que, enquanto as áreas ricas são compactas territorialmente – mais ho-
mogêneas em termos de indicadores sociais positivos –, os espaços urbanos pobres apre-
sentam características diferentes entre si no que diz respeito à intensidade de mazelas ur-
banas tais como o desemprego e a violência. Assim, apesar da verificação da sobreposição
de alguns tipos de riscos, como desemprego e baixa escolaridade, em outras situações a
cumulatividade não é perfeita, como no caso das taxas de homicídio e de gravidez na ado-
lescência, que apresentam distribuições espaciais complexas mesmo nas áreas periféricas –
elementos que reforçam o argumento da heterogeneidade das áreas periféricas e a neces-
sidade de um olhar mais atento e localizado.
De certa forma, esses resultados sugerem que, se o mercado de trabalho continua
a ocupar um papel fundamental na reprodução das desigualdades urbanas – traduzida
em uma marcada diferenciação entre centro e periferia – é também verdade que proces-
sos locais ligados ao cotidiano das comunidades e à dinâmica das políticas públicas tam-
bém influenciam e diferenciam esses lugares. Assim, seria importante analisar os con-
teúdos sociais desses espaços periféricos, as estratégias de sobrevivência das populações
que aí residem e os ativos que possuem, incluindo suas redes de relações (na linha de
trabalhos como Filgueiras, 1998; e Moser, 1998), de modo a tornar mais complexas as
interpretações sobre as áreas periféricas das grandes metrópoles – algo que foge ao esco- Renata Mirandola Bichir
po desse artigo. é pesquisadora do Centro
de Estudos da Metrópole –
É importante destacar ainda que esse tema não tem interesse apenas acadêmico. Tra- CEM/Cebrap. E-mail: renata
ta-se de uma questão fundamental para as políticas públicas: se os espaços onde reside a mbichir@yahoo.com.br

população mais pobre não são homogêneos, pelo contrário, apresentam múltiplas lógicas Maria Paula Ferreira é
de acordo com o tipo de risco considerado (podendo haver ou não sobreposição de vul- analista da Fundação Seade
e consultora do Cebrap.
nerabilidades), existe a possibilidade de organizar a oferta dos serviços públicos segundo E-mail: mpferrei@yahoo.com.br
as características desses diversos locais, mesmo no caso de políticas universais, gerando
Haroldo da Gama Torres
iniciativas estatais mais eficazes e distributivas (Marques & Torres, 2004). é pesquisador do Cebrap e
do Centro de Estudos da
Em outras palavras, é como se nos diferentes locais de pobreza se configurassem di- Metrópole – CEM/Cebrap.
ferentes “estruturas de oportunidades”, proporcionadas – além do mercado – pela comu- E-mail: hgtorres@uol.com.br
nidade e pelo Estado. Tais oportunidades vão condicionar as possibilidades das famílias Artigo recebido em dezem-
aí residentes saírem ou persistirem na situação de risco social em que vivem (Kaztman bro de 2004 e aceito para
publicação em fevereiro de
& Filgueira, 1999). Este argumento certamente reforça a necessidade de uma política 2005.
social sensível à situação local e de sistemas de informação capazes de caracterizar essa
heterogeneidade.

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A B S T R A C T The main aim of this article is to test the hypothesis of the concentra-
tion of negative indicators in the peripheral areas of São Paulo municipality. We focus on so-
me social hazards that affect young people such as unemployment, urban violence, low levels
of education, and teenager pregnancy. We base our analysis on census survey areas (IBGE, 2000)
and spatial statistics methods. Contrary to the established perspective about these issues, our
findings generally show that the social hazards have a complex spatial distribution with rele-
vant implications for social policies.

K E Y W O R D S Social hazards; segregation; social policies; youth.

ANEXO 1

Os Gráficos 1 a 4 apresentam o Diagrama de Espalhamento de Moran para cada um


dos quatro indicadores considerados no estudo.

Gráfico 1 – Diagrama de Espalhamento de Moran para a taxa de desemprego dos jovens


de 18 a 24 anos.

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Gráfico 2 – Diagrama de Espalhamento de Moran para o percentual de jovens de 18 a 19


anos com ensino médio completo.

Gráfico 3 – Diagrama de Espalhamento de Moran para a taxa de homicídio de homens


de 18 a 29 Anos.

Gráfico 4 – Diagrama de Espalhamento de Moran para o percentual de adolescentes do


sexo feminino de 13 a 17 anos que já tiveram filhos.

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TERRITÓRIOS DA POLÍTICA
EM CARACAS
USOS E REPRESENTAÇÕES DO ESPAÇO PÚBLICO 1
1 Este trabalho é parte de
uma pesquisa sobre as ma-
nifestações da modernidade
LORENZO GONZÁLEZ CASAS em Caracas. Uma versão ti-
tulada “Rostros de la Moder-
nidad Caraqueña” será publi-
R E S U M O Os eventos políticos que tiveram lugar em Caracas desde meados do sé- cada em espanhol num livro
editado pelo professor Pe-
culo XX acarretaram a aparição de formas inovadoras de utilização do espaço público e o de- dro García. Agradeço ao
senvolvimento de territorialidades urbanas diferenciadas. A incorporação de grandes multi- professor Jorge Villota por
seus comentários e ajuda
dões à urbe, a luta pelos direitos de cidadania, o surgimento dos partidos políticos e outras na tradução deste texto ao
português.
formas de organização da sociedade e a transformação dos espaços públicos aos fins do deba-
te político são alguns dos fenômenos que têm caracterizado a modernidade caraquenha. Com
a crise do sistema democrático, a politização da vida cotidiana e a reformulação dos esque-
mas de participação política têm acentuado os processos de segregação espacial e provocado o
surgimento de novos mapas de percepção da metrópole. O objetivo principal deste trabalho é
examinar desde uma perspectiva histórica a evolução no uso e representação do espaço públi-
co utilizado para os fins da participação política, suas implicações para o planejamento ur-
bano e a introdução em tempos recentes de novas cartografias urbanas por efeito de processos
de mudança política, programas de descentralização governamental e debates patrimoniais.

PA L AV R A S - C H AV E Planejamento; política; espaço urbano; Caracas.

As complexas relações que se tecem entre coletivos e lugares urbanos cada vez mais
anônimos induzem a repensar o assunto da modernidade em termos da transformação
dos usos e configurações do espaço da cidade. Um problema básico ao qual se pode redu-
zir o problema, em termos espaciais, é o da representação na arquitetura e urbanismo me-
tropolitanos. A crescente abstração do espaço, para alguns gênese de psicopatologias do
lugar moderno (Vidler, 1993), produz uma interação distanciada ou distante entre o meio
edificado e o observador. Tal problema de abstração acontece em dois níveis: no plano ur-
bano, onde se perde a noção de totalidade,2 e no frontispício, premissa da venustas vitru- 2 A metrópole introduz uma
mudança perceptiva e de re-
viana. O assunto, como é de supor, se magnifica nos espaços públicos da metrópole, lu- presentação do espaço. O
gar por excelência da abstração. espaço metropolitano modifi-
ca a noção geral de espaço
Por outra parte, a modernidade urbana e metropolitana supõe a existência tanto de porquanto é uma realidade
grandes massas humanas anônimas, às que tanta referência fez a sociologia alemã de prin- impessoal que amplia o po-
der de abstração. A metró-
cípios do século XX, como de intensos processos de mobilização política e concentração pole não pode ser represen-
urbana (que se produzem com bastante independência em relação ao tipo de regime, co- tada através dos recursos
tradicionais; é um plano enor-
mo as concentrações comunistas, fascistas e populistas de meados desse século). De fato, me que não se capta dentro
do cone da perspectiva.
a concentração e a mobilização são fenômenos tipicamente urbanos. Tal como afirma Hil-
da Sabato (1998, p.191), a cidade não é somente “o marco da vida pública senão sua con-
dição de possibilidade”.3 3 O trabalho de Sabato é
um dos poucos estudos que
Ora, entre as necessidades e as possibilidades de representação se apresenta um dile- vinculam a mobilização pú-
ma, ou ao menos uma tensão: em primeiro lugar, a necessidade de aparência requer a cria- blica latino-americana com
os espaços nos quais esta
ção de um meio carregado de conotações e formalidades de espaço público, de metáforas se produz.
da estrutura social em que “a espontaneidade da ação política possa surgir e as pessoas

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possam sentir seu poder coletivo” (Jencks, 1987, p.7) para que realize as funções de orgu-
lho cívico, memória, participação política e representação social. Historicamente, isso tem
tido lugar nas ágoras, pórticos, foros, praças e boulevards; espaços física e socialmente de-
terminados, que contrastam com os “não-lugares” da chamada “ sobremodernidade” (Au-
gé, 1996). Em segundo lugar, a arquitetura e urbanismo modernos enfrentam uma gran-
de dificuldade para incorporar as demandas de participação e simbolismo coletivos. Em
outras palavras, a uma maior solicitação de conteúdos simbólicos parece corresponder
uma maior dificuldade para sua provisão por parte do meio metropolitano.
Neste trabalho concentraremo-nos no caso de Caracas e na complexa interação en-
tre modernidade, urbanismo, arquitetura e mobilização política. A história se inicia na
terceira década do século XX, uma era de intensas mudanças socioeconômicas, políticas e
culturais, com respostas urbanísticas e arquitetônicas que afetaram radicalmente a aparên-
cia da cidade. Tais mudanças significaram a passagem de uma economia concreta a uma
abstrata (derivada da renda petrolífera), o trânsito de uma comunidade a uma sociedade;
e, no político, a tensão entre a fácil e direta autocracia do caudilho e a difícil democracia
representativa, sustentada no equilíbrio de poderes e nos contratos sociais.
A modernização do país tem sido acompanhada, de um lado, por um intenso pro-
cesso de urbanização e transformação substancial da agenda da arquitetura via um enor-
me programa de obras públicas, e, por outro, por um alto grau de agitação política e
mobilização de massas. Ao mesmo tempo que uma proporção significativa de indiví-
duos e grupos sociais se viam envolvidos no debate político, Caracas se convertia no
4 Importantes esforços têm arauto da modernidade e no principal palco de confrontação pública no país (Caballe-
sido realizados para analisar
o “quem”, “como”, “que” e “a ro, 1994, p.298). As novas relações de poder, depois da morte do ditador Juan Vicen-
quem” das mensagens e es- te Gómez, e a crescente mobilização política significaram uma metamorfose tanto da
forços comunicativos dos lí-
deres modernos na Venezue- liderança como dos espaços públicos. Fez-se fundamental na Venezuela de então a figu-
la, cf. L. B. García, El Poder
sin la Máscara, 1989. No en-
ra do líder político “que fala na praça pública, forma opinião e dirige organizações”
tanto, pouco se têm escrito (Meneses, 1967, p.295) e que, por sua vez, demanda lugares onde se possa falar dos as-
sobre o “onde”, o lugar ou
palco que acompanha o pro-
suntos públicos.4
cesso de comunicação.

5 As primeiras assembléias
públicas acomodaram-se MOBILIZAÇÕES E PLANOS URBANOS
dentro da fábrica tradicional
da cidade, tomando lugar
em espaços públicos tradi- Corre o ano de 1936. Em 17 de dezembro, que coincide com a data da comemora-
cionais, como a praça Bolí-
var. De fato, em 20 de de- ção da morte de Simón Bolívar, morre o ditador Juan Vicente Gómez, o “Benemérito”.
zembro de 1935, só três
dias depois da morte de Gó-
Na manhã do 14 de fevereiro as pessoas reúnem-se na praça Bolívar para protestar contra
mez, López Contreras diri- a censura política, justo quando Félix Galavís (1877-1941), líder “gomecista”, assume o
giu-se a uma multidão con-
centrada na praça Bolívar
governo do Distrito Federal, estreando um novo edifício que se propõe a mudar a apa-
do balcão da Casa Amarilla, rência do espaço principal da cidade.5
a antiga residência presiden-
cial. Ver T. P. Alcántara, El Um incidente entre um polcial e um civil inicia a repressão sobre a multidão, com
General de Tres Soles, 1985, um saldo de vários mortos e feridos. Nessa mesma tarde, uma multidão estimada entre
p.134.
30 mil e 70 mil pessoas – numa cidade com uma população de menos de 250 mil habi-
6 O governador Galavís foi tantes –, encabeçada por Francisco Antonio Rísquez (reitor da Universidade) e o dirigen-
destituído e prendido tempo-
rariamente. Em relação à te estudiantil Jóvito Villalba, vai a Miraflores – o palácio presidencial –, para protestar an-
trajetória deste persona-
gem, ver N. Perazo, 1985,
te o chefe do Executivo, Eleazar López Contreras, que, surpreso por essa multidão que
tomo II, p.230-1. antecipa a multidão metropolitana, promete reformas políticas imediatas e garante que os
responsáveis pelo massacre da praça Bolívar serão castigados.6
Talvez o mais relevante desta mobilização cívica é que, apesar de seus rasgos anárquicos,

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ela evoca um sentimento de força revolucionária, e torna a população consciente do po-


der das demonstrações multitudinárias.7 Tanto é assim que, poucos dias depois, López 7 Tratando de emular o su-
cesso do primeiro protesto
Contreras apresenta o chamado “Programa de Fevereiro”, como resposta às recentes de- em massa, novas concen-
mandas da população e como uma maneira metódica e racional de organizar as ativida- trações populares foram
convocadas. Em 3 de junho
des governamentais. Inaugura-se, ainda que em forma de “lista de supermercado”, um de 1936, outra manifesta-
programa que pretende abarcar totalidades.8 É o início de um plano de modernização de ção gigantesca foi desde a
praça Bolívar ao Panteão
um país e de sua capital. O programa, cuja meta última é, como Arturo Úslar Pietri de- Nacional para exigir mais re-
clara, “semear o petróleo”, contém uma série de iniciativas nas áreas da educação, imigra- formas e anunciar uma gre-
ve geral. O evento incluiu os
ção, modernização das forças armadas, vias de comunicação e obras públicas, agricultura oradores Jóvito Villalba, Ró-
mulo Betancourt, Ángel Co-
e reformas políticas (Contreras, 1988, p.183-95). rao e Miguel Acosta Saig-
Logo chegará a oportunidade do plano urbano, tradutor fundamental do programa nes. Ver T. P. Alcántara, op.
cit., p.173.
governamental no meio construído. De fato, a saída de Galavís do governo abrirá a com-
porta ao planejamento.9 Em 1937 cria-se a Comissão Municipal de Urbanismo com a fi- 8 Este foi considerado “o
primeiro programa de go-
nalidade de regular o desenvolvimento urbano e “procurar soluções lógicas” aos proble- verno social e econômico na
mas fundamentais da cidade (Villanueva, 1950, p.21). Pouco depois, em 6 de abril de história venezuelana”. D. C.
Hellinger, 1991, p.52. O
1938, o governo do Distrito Federal não fica atrás, e cria a Direção de Urbanismo, cuja Programa de Fevereiro foi
tarefa era produzir, com a ajuda de uma equipe de assessores franceses e a supervisão da também o primeiro discurso
político nacional difundido
Comissão de Urbanismo, o Plano Mestre da cidade, denominado depois “Plano Monu- através da rádio.
mental” ou “Plano Rotival”. 9 Elbano Mibelli Lobo
O Plano de 1939, na sua tentativa de transformar a cidade num ambiente moderno (1869-1946), antigo líder
antigomecista, foi chamado
e controlado, herança provável das motivações estratégicas do programa de Napoleão III e por López Contreras para
do barão Haussmann (com freqüência associa-se o valor da reforma urbana parisiense assumir o governo em subs-
tituição a Galavís. Desta po-
com mecanismos de controle da agitação política), marca a introdução em grande escala sição Mibelli patrocinou a
de técnicas de planejamento e paradigmas de desenho urbano europeus. realização do Plano de Cara-
cas com a intervenção dos
Maurice Rotival (1892-1980), contratado pelo governador Elbano Mibelli, sucessor assessores franceses.
de Galavís, chega a Caracas em 1937. Depois de vários meses de trabalho, o chamado Pla-
no Monumental, elaborado com a contribuição decisiva dos assessores franceses Rotival
e Lambert, é apresentado às autoridades municipais em 1939. O esquema tem um pro-
cesso figurativo claro, com a noção de centro único como valor de imagem. A cidade es-
tá dividida em duas partes: um centro monumental e um conjunto de desenvolvimentos
residenciais periféricos, como no modelo francês. Assim o Plano descreve a cidade: “A
grande Cidade, com seus belos bulevares, parques, teatros, jardins, clubes etc. Os exterio-
res, com suas formosas cidades-jardins e seus clubes esportivos unidos à urbe por meio de
amplas e formosas artérias de rápida circulação” (Villanueva, 1950, p.23). Não há nenhu-
ma referência aos espaços de reunião multitudinária.
O Centro de Caracas é concebido como um núcleo multifuncional desenvolvido ao
longo de um corredor monumental que segue o eixo Leste-Oeste do estreito vale. O eixo
monumental questiona ou contradiz o padrão concêntrico tradicional da cidade, ao im-
por o bulevar francês sobre a quadrícula e sistema de praças que o urbanismo espanhol ti-
nha institucionalizado na América.10 A coluna vertebral da proposta é a via central de 30 10 Uma crítica das caracte-
rísticas axiais e simétricas
metros de largura, futura avenida Bolívar, que vai desde a colina do Calvário, a Oeste (on- do enfoque de Rotival se en-
de se propõe uma praça gigantesca, um monumento a Simón Bolívar e um novo centro contra em L. Zawisza, “Roti-
val, Ayer y Hoy”, Revista del
cívico), até o parque Os Caobos, a Leste. Colegio de Ingenieros de Ve-
Rotival justifica a imensa intervenção mediante uma analogia orgânica: “era neces- nezuela, n.347, p.14-31,
jan. 1989.
sário abrir de novo uma espinha dorsal, inserir ali os organismos essenciais, isolar e arejar
as comunidades, modelar sobre tão bela natureza as artérias e as praças ou jardins: fazer
fluir, enfim, um sangue generoso e fazer palpitar com regularidade um coração já hiper-

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11 Maurice Rotival, “Cara- trofiado”.11 Não obstante, o Plano não se limita ao complexo viário ou infra-estrutural,
cas Marcha Hacia Adelante”,
in C. R. Villanueva, op.cit.,
pois propõe uma imagem arquitetônica específica.
1966, p.181. A busca de uma cidade nova e moderna é reforçada por uma defesa taxativa de aspec-
tos funcionais, incluindo a economia, a higiene, o interesse público, o turismo, a ilumina-
ção, o transporte e a segurança. Estes elementos enfrentam-se, em teoria, às tendências de-
corativas tradicionais do urbanismo. O novo urbanismo é definido agora como uma
ciência, equivalente a “um programa de organização e desenvolvimento ... [contra] a idéia
vulgar de que o urbanismo é um luxo, uma arte ornamental que se preocupa, antes de mais
nada, em levantar arcos de triunfo e edificar fontes públicas” (Meneses, 1967, p.19). É
12 O crítico e arquiteto aus- Adolf Loos12 em registro urbano.
tríaco (1870-1933), pioneiro
do movimento moderno,
Apesar de sua retórica funcionalista, as imagens arquitetônicas que acompanham o
propunha a necessidade de Plano estão mais perto dos postulados da École de Beaux Arts que às tendências do Estilo
uma arquitetura despojada
de todo enfeite, em contras- Internacional. Isto resulta evidente no projeto de Lambert para o Centro Cívico, com seu
te com o aparentemente su- monumental edifício do Congresso, a estátua de Bolívar e a pirâmide, tipo Teotihuacan,
perficial e recarregado do
Art Nouveau de princípios que conteria o túmulo de Simón Bolívar. O simbólico prevalece, outra vez, sobre a possi-
de século. Seu conhecido bilidade de albergar reuniões multitudinárias, pois sempre existe nelas o perigo da violên-
ensaio “Ornamento e Delito”
(1908) recolhe suas idéias, cia, originada na expressão da ovação, da exclamação e do incentivo à agressão, no momen-
as quais se plasmam em
edifícios como a Casa Stei-
to em que a platéia sobrepuja os dirigentes políticos, deixando de ser “distinto público” ou
ner, construída em Viena em “povo”, designações utilizadas para convocar atos e votações, para tornar-se turba ou popu-
1910.
lacho. Diante de tais riscos em relação aos espaços públicos e da necessidade de resolver pro-
blemas de tráfego, o Plano propõe um conjunto de praças onde “o movimento do público
possa ser ordenado durante as grandes festividades” e também criar novos caminhos que na
atualidade não existem” (Meneses, 1967, p.25). É a cidade da circulação ordenada.

NA BUSCA DE UMA ÁGORA MODERNA

No projeto de transformação urbana ficou uma matéria pendente: prover lugares


adequados às novas práticas políticas, pois se evidencia que o caráter, tamanho, traçado e
mobiliário da praça Bolívar de Caracas – bem diferentes dos de sua homônima de Bogo-
13 Em contraste com ou- tá – dificultam, praticamente impossibilitam, o abrigo de grandes multidões.13 A deman-
tras praças centrais da
América Latina, as quais da por espaços de reunião, que se assemelhem ao Zócalo do México, a praça de Maio de
permanecem estreitamente Buenos Aires ou a praça da Revolução em Havana, leva à utilização de outros espaços, tais
vinculadas à política de mas-
sas, a praça Bolívar de Ca- como estádios e teatros, os quais assumem o papel de foros, substituindo a praça Bolívar
racas tem sido desde a épo- e a praça da Misericórdia, onde se tinham produzido as primeiras aglomerações. Como
ca de Guzmán Blanco um
centro social onde aconte- Carlos Eduardo Misle notou, os novos palcos ofereciam melhores condições para a con-
cem concertos e passeios
patrocinados pela municipa-
centração de público – em termos de acústica, localização, assentos, serviços e organiza-
lidade e o governo. ção – e para o controle por parte do governo sobre o desenvolvimento dos acontecimen-
tos (Misle, 1964, p.93).
É desta maneira que em 1943 e 1944, a praça dos Museus nos Caobos, o hipódro-
mo do Paraíso e o Estádio Nacional transformam-se em sedes de reuniões políticas. Do
mesmo modo, os cinemas e teatros serão empregados freqüentemente para esses fins: o
teatro Hollywood é utilizado em outubro de 1944 para uma reunião de membros da cha-
mada “Geração do 28”, que apoiava o governo de Medina; o cinema Rex, que nesse mes-
mo mês de outubro concentrou os aliados do partido Acción Democrática; e o teatro Bo-
yacá, em outubro de 1945, que foi cenário de uma convenção de em apoio ao
ex-presidente López Contreras.

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No entanto, o Nuevo Circo, outro espaço nas imediações da avenida Bolívar, é a se-
de favorita das reuniões políticas até meados dos anos 40. Muitos eventos transcendentais
ocorrem nesse cenário de arena de touros, construído entre 1916 e 1919; entre outros, a
proclamação por um grupo de independentes da primeira candidatura presidencial de
Rómulo Gallegos, o 5 de abril de 1941 (Alcántara, 1985, p.250); a reunião inaugural do
partido Acción Democrática (AD), em 13 de setembro de 1941; o lançamento da candi-
datura presidencial de Angel Biaggini, indicado por Medina Angarita como seu sucessor,
em 1945; a reunião onde a AD mostra sua força política um dia antes da denominada Re-
volução de Outubro, em 17 de outubro de 1945; e freqüentes reuniões do partido Unión
Republicana Democrática (URD), de Jóvito Villalba, em 1946.
Talvez o mais notável é que a “cultura da mobilização” extravasa as previsões do pla-
nejamento, alimentando velhos espaços com novo simbolismo. Os atos de massas pregam
a unidade dos participantes, em afirmação de princípios de liberdade, igualdade e, sobre-
tudo, fraternidade, tornando familiares os imigrantes, nacionais e estrangeiros, numa ci-
dade nova e cada vez mais complexa e impregnada de tensões. Em cada um dos eventos
de massas se constroem laços de identidade e pertencimento, atos de comunhão entre os
líderes e o coletivo, reconhecendo vitórias na capacidade de encher os espaços públicos,
no espetáculo que as massas proporcionam a si mesmas, no estrondo da ovação e do
aplauso em que o dirigente se legitima seguidamente junto a uma platéia anônima que
intermedeia a sociedade e o poder político.
Disso nos dá noticia a liderança política da época. Como observou Manuel Cabal-
lero (1988, p.53), López Contreras foi o primeiro presidente que experimentou o conta-
to direto com as massas. Este contato aconteceu por dois meios de comunicação que al-
cançariam papéis proeminentes na vida nacional: o rádio e os espaços públicos.14 Não 14 Em 1936, López Contre-
ras foi o primeiro presidente
obstante, não foi López Contreras, mas seu sucessor, Isaías Medina Angarita, quem des- venezuelano a se dirigir à
creveu de forma mais explícita como a figura presidencial vai deixando de ser autoritá- nação através da rádio.Ver
J. Ewell, 1984, p.80. Os
ria, distante e enigmática para se converter num chefe do Executivo que representa um meios de comunicação mo-
partido político e que está obrigado “a baixar em pé de igualdade à praça, a lutar, ante o dernos permitiram dar a co-
nhecer os políticos até che-
eleitorado, com os demais grupos, por sua aspiração a seguir governando” (Angarita, gar à variante de tornar
1963, p.28). políticos a personagens co-
nhecidos.
Três elementos da descrição de Medina pintam o novo clima político e urbano do
15 O populismo supõe uma
país: em primeiro lugar o líder desce, e, ao fazê-lo, desfaz muitas relações hierárquicas identificação do líder com
tradicionais. Como ocorria com alguns autores do século XIX ao contato com as massas as massas até o ponto de
ser considerado aquele co-
na metrópole, Medina parece desfrutar do “banho de multidão”. Em segundo lugar, o mo a encarnação da vonta-
chefe tem de representar um grupo organizado, em vez de representar unicamente seus de popular. Para o historia-
dor e ensaísta Luis Britto
interesses pessoais. E, finalmente, o lugar localizado “abaixo” é uma praça: um foro pa- García, tal identificação é só
ra a discussão política. Obviamente, dentro da nova atmosfera discursiva, os líderes uma máscara retórica do lí-
der em sua busca de legiti-
emergentes da política venezuelana se beneficiam grandemente de suas habilidades retó- mação, devido a que o con-
ricas: Rómulo Betancourt, Rafael Caldera, Andrés Eloy Blanco e, sobretudo, Jóvito Vil- tato é unidirecional (do líder
para as pessoas), restringi-
lalba, vogal urbano quintessencial do período, são oradores de exceção.15 do às campanhas presiden-
ciais e enraizado em formas
mais antigas de caudillismo.
Ver: Luis Britto García, La
Máscara del Poder, Cara-
UM PARADOXO: BARULHO NO “SILÊNCIO” cas: Alfadil Ediciones, 1988.

A partida de Rotival para os Estados Unidos, a Segunda Guerra Mundial e alguns


eventos locais obrigam a introduzir importantes modificações ao Plano de 1939, que, no
entanto, continua fornecendo uma linha geral para futuros desenvolvimentos da cidade. A

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modificação mais importante é a criação de El Silencio (1941-1944), um conjunto residen-


cial e comercial localizado onde Rotival e seu grupo tinham previsto o novo Centro Cívico.
O conjunto de El Silencio não só substitui a proposta monumental de Rotival mas locali-
16 Esse lugar era conside- za-se numa área onde, segundo a crônica da época, abunda a prostituição e a delinqüência.16
rado uma sorte de compên-
dio dos males urbanos. Guil-
A substituição de edifícios e espaços monumentais por residências destinadas à clas-
lermo Meneses diz que "O se média não só preenche melhor as condições financeiras internacionais, senão também
Silêncio era visto como a
síntese de toda essa vida as novas orientações políticas e sociais do governo venezuelano. El Silencio, projetado por
asquerosa, miserável, rebel- Carlos Raúl Villanueva, introduz também uma escala urbana mais humana, substituindo
de ante toda autoridade e
sobre esse bairro de escân- “a concepção quiçá demasiado monumental do antigo plano”, como o mesmo Rotival ad-
dalo e vício, o governo deci- verte (Rotival apud Villanueva, 1950, p.173).
diu criar um bairro de apar-
tamentos destinados à Não é casualidade que, em fins da década de 1940, a praça O'Leary de El Silencio,
classe média". Guillermo
Meneses, op. cit., 1967,
espaço central do conjunto, transforme-se na nova ágora da cidade. Conquanto o exten-
p.302. so lugar não tenha sido previsto para alojar reuniões públicas multitudinárias, senão para
a circulação do tráfico, a construção de fontes e esculturas e o desenvolvimento de ativi-
dades comerciais, sua localização, configuração e dimensões o fazem mais apropriado pa-
ra fins políticos. Em particular, é o partido AD, opositor ao regime que inaugurou El Si-
lencio, que reclama para tais fins o novo coração da cidade e, depois de atingir o poder
em 1945, continua usando-o para apoiar sua política governamental
A mutação do caráter do espaço foi advertida pelo próprio Rotival, que assegura que
a avenida será o centro do “sistema nervoso que armará de novo a cidade, o lugar onde
virá a se desenvolver a história do amanhã, onde o canto da ‘urbs’ se fará ouvir, seja ale-
gremente, seja tragicamente; mas com essa intensidade misteriosa da alma comum que ca-
racteriza para nós a cidade” (Rotival apud Villanueva, 1950, p.182). Esta curta sentença
deixa-nos uma série de interrogações em relação à natureza dos cantos urbanos aos quais
se refere o conhecido urbanista.

DA MULTIDÃO QUE GRITA À MULTIDÃO


QUE MARCHA: DESFILES E DIAS PÁTRIOS

Depois do parêntese criado pela guerra, e com a chegada da Junta Revolucionária de


Governo encabeçada por Rómulo Betancourt, se origina em 1946 a Comissão Nacional
de Urbanismo, instituição nacional encarregada do planejamento urbano. Como tinha
acontecido na década anterior, a Comissão e o governo venezuelanos requerem o serviço
de assessores estrangeiros em urbanismo. Nesta oportunidade conta-se com a assessoria de
Maurice Rotival, Francis Violich, Joseph Lluis Sert e Robert Moses. O novo Plano Mes-
tre (Plano Regulador), destinado a uma população de 1,7 milhão de pessoas é preparado
em 1951. Novamente os aspectos de circulação prevalecem no Plano sobre a necessidade
17 Rotival continuou mos-
de criação de espaços coletivos. Fala-se fundamentalmente de áreas verdes e de recreação,
trando sempre seu interesse mais do que de praças e centros de convenção.
no desenvolvimento da ave-
nida Bolívar. Regressou a Ca- Em termos da articulação de espaços cívicos, e como parte distintiva da agenda de
racas em 1959 contratado Rotival, o Plano Regulador reafirma a importância da avenida Bolívar.17 A empresa edilí-
pelo Centro Simón Bolívar
para preparar um relatório cia mais importante nesse momento é a criação de um remate à avenida, separado de El
intitulado “Tese para o Cen- Silencio. Parece que já não se deseja ressaltar esse espaço, e sim transportar o centro de in-
tro de Caracas”, o qual foi
apresentado em novembro teresse, móvel ao longo do eixo, para Leste. É erguido, então, o Centro Simón Bolívar, o
de 1959. Também realizou
uma breve assessoria em
complexo multiuso que reproduz o Rockefeller Center (1930-1940) e a praça dos Três
Caracas no ano de 1975. Poderes de Brasília (1956-1960) no centro de Caracas.

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O custoso complexo de edifícios governamentais e comerciais inclui, entre outras


coisas, um túnel veicular que leva o tráfego sob o conjunto, uma plataforma gigante, duas
torres gêmeas de trinta andares (que se convertem nos primeiros arranha-céus e símbolo
da cidade), passagens subterrâneas em cujo centro habita Amalivaca, o deus Caribe (em
forma de um longo mural alusivo ao mito indígena da criação do mundo), com áreas co-
merciais e de estacionamento e uma estação subterrânea de ônibus que depois é abando-
nada. Não obstante suas enormes dimensões e a complexidade do programa, não há no
conjunto – salvo uma “praça aérea” (praça Diego Ibarra) –, e nem no eixo da avenida, lu-
gares para a concentração em massa.
Não é o momento para tais eventos. De fato, a chegada ao poder de uma Junta Mi-
litar em 1948 impõe um hiato de dez anos ao ritual populista das reuniões políticas. Os
líderes da Junta Militar perseguem um gênero diferente de contato com as massas que,
de todas as formas, chegaram a ser um elemento político fundamental.18 Recepções e des- 18 É importante advertir
que nem Carlos Delgado
files tomam o lugar dos comícios anteriores. Durante a “Semana da Pátria” milhares de Chalbaud, primeiro Presi-
estudantes e servidores públicos mobilizam-se ao longo de avenidas de recente data, co- dente da Junta Militar de Go-
verno (1948-50), nem seu
mo a Urdaneta, para marchar ante o presidente em exercício. Combinando o folclore sucessor, Marcos Pérez Ji-
com o simbolismo religioso e militar, esses desfiles procuram a identificação do povo com ménez (1950-1958), foram
líderes carismáticos ou des-
o governo (ver Figura 1). tacados oradores.

Figura 1 – Desfile da Semana da Pátria na avenida Urdaneta na década de 1950.


Fonte: Archivo Biblioteca Nacional, Caracas.

A transformação da multidão que grita na multidão que marcha estimula o surgi-


mento de um novo setor urbano: La Nacionalidad, distante da avenida Bolívar, que se foi
convertendo em via expressa. Essa seção da cidade aparece contígua à Cidade Universitá-
ria como uma espécie de nó acadêmico-militar e centro para desfiles e recreação, influen-
ciado por experiências européias como Les Invalides e Trocadero-École e pelos projetos de
Albert Speer (1905-1981) na Alemanha e de Marcelo Piacentini (1881-1960) na Itália.
Para reforçar os sentimentos patrióticos e o que Nietzsche chamou de “história monu-
mental” (1990, p.68), o culto a Bolívar vai se estendendo a outros heróis, civis e milita-
res, encontrando dito culto um recinto ad hoc no setor La Nacionalidad.

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A mudança de caráter das reuniões políticas e o uso de novos espaços na cidade pa-
ra albergá-las são explicados por Vallenilla Lanz, o ideólogo ou pensador do regime mili-
tar, em termos da relação entre a aparição de uma liderança ilustrada e a nova configura-
ção dos espaços físicos: “O líder da praça aérea do Centro Bolívar, o conferencista da
[praça] Aula Magna não podem ser os mesmos da praça de Capuchinos, nem de El Silen-
cio, nem do Teatro Olimpia. O palco e o decorado reclamam novos atores e o público
também” (Lanz, 1955, p.15).
É curioso que Vallenilla Lanz não faça referência ao complexo urbanístico de La Na-
cionalidad, em desenvolvimento no momento em que seu artigo foi escrito, ou aos desfi-
les da “Semana da Pátria”, senão à praça Aérea e ao Aula Magna, dois lugares desenhados
para funções diferentes dos desfiles. Ao que parece, como civil, ele não é tão entusiasta a
respeito das marchas como o eram outros membros do regime. Ou talvez Vallenilla tenha
previsto que os comícios políticos da democracia poderiam entrar de novo em vigência, e
que se requereriam espaços para algum tipo de assembléia. De fato, durante a campanha
política de 1952, o URD (um dos poucos partidos que não foram suprimidos pelo gover-
19 O evento de novembro no) tinha voltado ao Novo Circo em março e novembr.19 Mais ainda, em janeiro de 1958,
foi considerado “a assem-
bléia popular mais gigantes-
à beira da derrubada de Pérez Jiménez, uma multidão foi de novo a El Silencio para res-
ca da década de cinqüenta”. taurar o espaço de reunião. Poucos meses depois, produz-se ali uma enorme concentração
Ver Ramón J. Velásquez,
“Evolución Política de Vene- para receber Fidel Castro, na alvorada do seu longo mandato em Cuba. El Silencio conti-
zuela”, 1976, p.126. nuaria como o centro preferido das reuniões políticas, até que as multidões, agora cente-
nas de milhares, começaram a se reunir na avenida Bolívar entre os anos 60 e 80.

FIM DO SÉCULO: PROTESTOS,


COMÍCIOS E “SACUDONES”

Nas últimas décadas do século XX, vários espaços urbanos foram empregados co-
mo centros de atividade política organizada. É o caso das praças Altamira, Venezuela e
El Venezuelano. As duas primeiras, distantes do centro tradicional da cidade, foram uti-
lizadas pelos partidos políticos AD e Copei, respectivamente, para a realização de reu-
niões ou festas ligadas a eventos eleitorais. Por sua vez, a chamada praça El Venezuela-
no, antes um espaço remanescente que ficou da antiga praça de San Jacinto,
converteu-se no destino de marchas de protesto que se originavam com freqüência na
Universidade Central de Venezuela e que ao aproximar-se da sede do Congresso, a duas
20 Vários eventos de finais
da década de 1980 e princí- quadras dalí, ou à de outros poderes, terminavam freqüentemente em repressão e atos
pios da de 1990 representa-
ram formas explosivas do
vândalos, parte do cotidiano citadino e da anomia de quem carece ou desconhece ca-
protesto coletivo na cidade, nais e lugares de participação.20
denunciando a crise política
profunda em que o país se
De maior relevância para os fins da mobilização política foi a chamada praça Cara-
encontrava; os arrastões de cas, um espaço situado em frente à sede da autoridade eleitoral mais importante do país,
fevereiro de 1989 e as ten-
tativas de golpe de Estado o Conselho Eleitoral (anteriormente “Supremo” e atualmente “Nacional”). A praça Cara-
de fevereiro e novembro de cas surge de um processo de reacondicionamento de um estacionamento e saída de veí-
1992.
culos do Centro Simón Bolívar. O lugar é sede de economias informais, mercados e reu-
niões políticas, provavelmente o mais parecido a uma ágora que existe na cidade. É de
fazer notar que este espaço se deriva, novamente e quiçá sem querê-lo, da avenida Bolí-
21 Marshall Berman, All var, o núcleo da cidade inventada, ou de sucessivos inventos de cidade, o corredor que
That Is Solid Melts into Air.
The Experience of Moder-
tentou abrir “no coração de um país subdesenvolvido uma perspectiva de todas as deslum-
nity, 1988, p.195. brantes promessas do mundo moderno”.21

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E dizemos “sem querê-lo” porque ao longo do tempo na avenida se tem promovi-


do um acúmulo interminável de objetos mais do que de espaços. Provavelmente de ma-
neira similar ao que percebe o anjo de Walter Benjamin (1969, p.257-8), têm aparecido
inumeráveis projetos e se têm produzido muitas intervenções.22 Uma lista incluiria ou- 22 Talvez nenhum outro lu-
gar da cidade representa
tro projeto de Rotival nos anos 50; a criação do parque de atrações de El Conde e do melhor o “efêmero perfei-
Caracas Hilton, edifício que quis ser de moradia e terminou sendo hotel (nos anos 60); to”, uma situação que com-
bina duração com transito-
o Parque Central, que apesar de seu nome, é um enorme complexo multiuso construí- riedade. Massimo Cacciari
do no extremo Leste da avenida (anos 70 e 80); a antes mencionada praça Caracas (fins definiu tal condição da se-
guinte maneira: “O efêmero
dos anos 70); o teatro Teresa Carreño, no encontro da avenida com o parque Los Cao- não é o evento em cuja su-
bos (nos 80); o parque Vargas, uma edição pós-moderna do boulevard proposto inicial- cessão nos encontramos -e
tem antes os eventos múlti-
mente no Plano Monumental de 1939 (nos anos 80 e 90), com uma nova mudança de plos, a catástrofe que o An-
jo vê e procura arrastar de-
nomenclatura que implica a presença de uma alameda e de um herói civil (e médico, co- pois de si no futuro de onde
mo o presidente que patrocinou o projeto); o inaugurado e inconcluso Palácio da Justi- vem”. Ver Massimo Caccia-
ri, Architecture and Nihilism,
ça (1995); e o edifício da Galeria de Arte Nacional (por décadas em construção). Mui- 1993, p.147.
tos objetos e poucos lugares.

O NOVO MILÊNIO: MARCHAS E CONTRAMARCHAS

Os inícios do novo século trouxeram ao debate, com infreqüente vigor, o tema do


espaço público na Venezuela. Não se trata exclusivamente da discussão em torno da
produção de lugares para a flânerie ou o lazer; ou a privatização e homogeneização do
espaço residencial; ou a ocupação de áreas públicas por desenvolvimentos não-contro-
lados de moradia ou atividades da economia informal, aspectos que nutrem os debates
sobre o espaço público como discurso dominante do urbanismo contemporâneo e que
em Caracas, especialmente em sua área central, se evidencia como uma profunda hos-
tilidade cotidiana ao pedestre, por efeito da insegurança pessoal, da presença ostensiva
de automóveis e motocicletas e a proliferação indiscriminada de vendas e publicidade
exterior. No entanto, o que desejamos destacar – e em contraste com um longo perío-
do de dissolução do espaço urbano com fins políticos – é a volta do uso da rua como
fonte de poder.
As campanhas eleitorais de 1998 e 2000 puseram em vigor novamente as arengas de
oradores carismáticos ante as concentrações em massa. Possivelmente em conexão com is-
so, produziu-se a vantagem da corrente liderada por Hugo Chávez, com um relançamen-
to da simbologia associada ao “Libertador” e uma aposta geral na mudança, em particu-
lar da toponímia urbana e institucional. A nova Constituição, aprovada em 1999, propõe
uma democracia “participativa” e “protagônica”, com a passagem das figuras tradicionais
da representação e da delegação às referendárias, “assembleísticas” e planejadoras locais, as
quais demandarão campos específicos como espaços públicos e salas de convenções para
poder se desenvolver.
Ao mesmo tempo, os debates intensificaram-se de maneira considerável, ao ponto
de chegarem a ser hoje, como mencionou o dirigente Clemente Scotto, “muito mais in-
teressante fazer política que, por exemplo, nos anos 70”.23 Grandes multidões têm ocupa- 23 Entrevista de Albor Ro-
dríguez a Clemente Scotto,
do os espaços de Caracas e outras cidades do país com o fim de mostrar sua adesão ou re- El Nacional, Caracas, 18 de
jeição ao regime, e ao processo ou revolução no poder. Nos meios de comunicação agosto de 2002, p.H-8.

debatem freqüentemente os “marchólogos”, especialistas no cálculo de presença de públi-


co em eventos, para confirmar ou recusar hipóteses quanto à magnitude das manifestações

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populares, magnitude que varia segundo a fonte de informação. Os comunicadores sociais


têm exercido seu trabalho em movimento e no meio de multidões alegres ou exaltadas.
“Tomar a rua” ou “ganhar a rua” são lemas vinculados com os direitos cidadãos e com
a busca por divulgar a mensagem de cada grupo político. E isso ocorre com particular in-
tensidade numa capital que, por um lado, não incorporou à sua centralidade a possibilida-
de da reunião coletiva, que se encheu de artefatos em vez de lugares, de auto-estradas em
vez de avenidas, e que, por outro lado, reconduziu a função de seus espaços tradicionais ao
uso prestigioso do “turista” e do visitante. A especialização da cidade do urbanismo da mo-
dernidade – e Caracas é uma metrópole moderna sobre um núcleo urbano fundado há
mais de quatrocentos anos – contemplava a recreação sob forma de práticas esportivas e
contemplativas e, a circulação, com a única finalidade do deslocamento. Como se viu an-
teriormente, a ágora e o foro só apareciam no discurso. Porque o tumultuoso,de massas,
confrontante ficava fora das normas e formas da modernidade. No entanto, a realidade ca-
raquenha mostra uma ressemantização dos lugares modernos e tradicionais muito além das
considerações funcionais do planning moderno.
A nova carga simbólica dos lugares urbanos impulsionada por motivações políticas vai
gerando novas cartografias e nomenclaturas. Concentrações de adeptos ao governo toma-
ram lugar no Centro e Oeste da cidade, onde residem setores de rendimentos médios e bai-
xos. É o caso da praça Caracas, do Centro Simón Bolívar e das imediações do Palácio Mi-
raflores, a sede do Poder Executivo. Em Miraflores, a expressão “não passarão” – que
remete a outras experiências históricas – ilustra a estratégia do domínio territorial para o
exercício do poder. O setor de Los Próceres (no setor La Nacionalidad), criado na década
de 1950 para desfiles militares e celebrações do “Dia da Pátria” da Junta Militar também
foi empregado para concentrações e relançamento da deliberação política dos fardados.
Por sua vez, os opositores, que com freqüência passaram da dissidência à resistência
(Hernández, 2003, p.4-5), concentram-se predominantemente em lugares do Leste da ci-
dade em concordância com as cercanias das urbanizações de classes médias e altas. Rebati-
zaram de “praça da Liberdade” a praça França de Altamira e de “praça da ‘Meritocracia’”
um espaço situado em frente a um dos edifícios da petrolífera estatal PDVSA (Petroleos de
Venezuela Sociedad Anónima) no setor de Chuao. Embora em menor medida do que a
restrição de manifestar a oposição em lugares ocupados pelos simpatizantes do governo, co-
mo seria o caso de Miraflores ou da praça Bolívar, o acesso a estes espaços estaria garanti-
do somente aos grupos de oposição.
Outros espaços, como a praça Bolívar e o de acesso ao Panteão Nacional, permane-
cem como pontos de tensão – alguns os denominaram “zonas de reclamação” – entre di-
ferentes forças do governo e a oposição. Por exemplo, a esquina da Torre, em frente à ca-
tedral, foi denominada “a esquina quente” (assim se nomeia no beisebol a terceira base,
rincão do campo sujeito a “incandescentes” jogadas), por se encontrar ali permanente-
mente em atividade um grupo de aliados do governo. A matéria de administração e go-
verno da praça foi objeto de controvérsia entre as prefeituras metropolitana e do municí-
pio Libertador.
Não obstante o uso freqüente dos espaços públicos para concentrações ou comícios,
talvez a forma mais empregada para a manifestação foi a da marcha, porém de forma di-
versa dos rallies tradicionais, nos quais uma ordenada multidão se deslocava em frente à
autoridade civil ou militar. As marchas caraquenhas, com níveis variáveis de organização,
transladam por corredores urbanos apregoando slogans e portando bandeiras, cartazes e
objetos sonoros. As grandes avenidas – Bolívar, Urdaneta, Sucre, Francisco de Miranda,

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Baralt, Universidad – têm sido o palco de mobilizações, de tentativas de participação em


movimento sem destino ou encontro final. Isso é especialmente manifesto no caso da
oposição ao governo, carente de um líder único ou principal que interpretasse ou sinteti-
zasse os desejos desta parcela.
Às vezes, as marchas do governo e a oposição ocorreram ao mesmo tempo, como em
23 de janeiro, aniversário da queda da ditadura, e em Primeiro de Maio de 2002. Essas
coincidências têm sido denominadas marchas e contramarchas. Até o momento, com ex-
ceção da sangrenta experiência do 11 de abril de 2002, as grandes marchas e concentra-
ções não têm se encontrado, já que têm tido lugar em avenidas diferentes ou se cruzaram
em níveis distintos, tendo as forças da ordem estabelecido finos limites entre eles.
Um fato evidencia ainda mais a ruptura dos esquemas tradicionais de concentrações
e marchas: algumas têm ocorrido em lugares que, com toda probabilidade, seriam qualifi-
cados por Marc Augé como “não-lugares”. A mencionada praça da Meritocracia, de onde
partiu a marcha do 11 de abril de 2002, é em essência um espaço viário. Mas o mais curio-
so é que a mencionada marcha tomou a auto-estrada do Leste, para se dirigir ao Palácio Mi-
raflores, localizado a uns dez quilômetros do lugar, como se faria ao circular em automóvel.
Por sua vez, os manifestantes governistas usavam horas mais tarde a auto-estrada do
Vale, em frente às instalações militares de Conejo Blanco, para exigir a volta do presiden-
te ao poder. De maneira similar, vários milhares de opositores decidiram celebrar o fim de
ano de 2002, improvisando uma festa à la Times Square na auto-estrada do Leste. Em
quase todas as oportunidades, tanto o oficialismo como a oposição têm empregado as au-
to-estradas para se dirigir ao centro da cidade, e experimentando uma mudança na per-
cepção do espaço urbano mediante rupturas na relação espaciotemporal, similar ao que su-
gere o escritor argentino Julio Cortázar no conto “A auto-estrada do Sul” (ver Figura 2).

Figura 2 – Marcha na auto-estrada do Leste no ano 2004.


Fonte: Prof. J. Muñoz, Caracas.

O desenvolvimento urbano com base em periferias e auto-estradas – curiosas versões


da ágora – têm condicionado as possibilidades de participação direta, deixando que
anônimos espaços ganhem protagonismo, na contramão da anomia que supostamente

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promoveriam e em contradição com os princípios de Haussmann, segundo os quais o


alargamento viário é uma forma efetiva de controle das multidões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência caraquenha propõe várias interrogações para o desenvolvimento de


práticas urbanísticas e cidadãs. Em primeiro lugar, sobre as possibilidades de participação
na grande cidade. A metrópole, por suas dimensões – já o advertiam os gregos ao limitar
tanto o o tamanho populacional quanto o tamanho dos palcos de discussão política – tor-
na virtualmente impossível a assembléia geral e pode contribuir para transformar o refe-
rendo em tumulto. Ao ampliar as margens da liberdade individual, como sugeria Georg
Simmel, a grande cidade requer formas mais sofisticadas de agregação de interesses para
a obtenção de valores de mútua cooperação e solidariedade, como estabelece a Constitui-
ção venezuelana de 1999, e uma sociedade civil mais forte, pois “sem ela não existe real-
mente o espaço público” (Oviedo & Abogabir, 2000, p.33).
Em segundo lugar, tem-se colocado em relevo a notável carência de espaços e canais
adequados para a realização de manifestações de apoio e protesto na cidade de Caracas e
os significativos custos associados a essa carência. Por exemplo, o desprendimento de um
poste na avenida Bolívar numa manifestação de apoio ao governo em agosto de 2003 pro-
duziu a queda no vazio de um grupo de participantes, com o saldo de uma pessoa morta
e vários feridos.
Adicionalmente, a “adaptação” do urbano à manifestação, mediante o fechamento
de vias públicas ou a tomada de determinados lugares por uma facção, conspira contra
outras operações cotidianas da cidade, quando não contra direitos de livre trânsito, reu-
nião, expressão, segurança e acesso a serviços públicos. Em relação a estes aspectos, fica
passível de exame a eficácia da manifestação na rua nos processos de construção da demo-
cracia. Expressava Lech Walesa, em visita à Venezuela, que “a democracia não se faz nas
24 Um conjunto de barrei- ruas, e sim com programas que a tentem por e ponham em prática”.24 O conhecido líder
ras (o Bloco 1 do Silêncio, o
Centro Simón Bolívar e,
polaco reagia diante da tendência a converter manifestações em distúrbios por obra de he-
mais recentemente, o Tea- roísmos coletivos. A menor capacidade de convocação dos últimos eventos de rua – de
tro Teresa Carreño e o Palá-
cio de Justiça) construíram-
governo e de oposição – poderia significar dúvidas sobre essa eficácia e o início de deman-
se sobre o eixo. Essas das por programas como os aludidos por Walesa.
edificações interromperam
a transparência do corredor Em terceiro lugar, é cada vez mais evidente a dificuldade de criar geografias e histó-
e a conexão que se tinha rias comuns em sociedades heterogêneas e, sobretudo, polarizadas. Ainda que a política
proposto. A transformação
da avenida em via expressa tenha passado a ocupar um lugar mais relevante na Venezuela de hoje, com tudo o que
tornou-a uma obstrução físi- há de positivo no incremento do interesse pelos assuntos públicos, o desafio está em criar
ca e visual entre os setores
Norte e Sul do centro histó- os lugares físicos e psíquicos para o encontro e para a divergência. Isso com o objeto de
rico. Além do mais, as ativi-
dades e vida urbana têm to-
evitar que ódios mascarados de ideologia cheguem a escaladas de violência de proporções
mado lugar de maneira epidêmicas e conduzam a guerras civis “moleculares” urbanas, lamentavelmente cada vez
tangente – e antes elusiva –
à avenida; de fato, as contí-
mais freqüentes em escala global (Enzenberger, 1994). O desenvolvimento desses espaços
guas avenidas Universidade é necessário para que, contrariamente às leis da física, várias opiniões possam ocupar o
e Lecuna concentram e brin-
dam acessibilidade à maior mesmo lugar ao mesmo tempo.
parte das atividades urba- Para a aceitação da alteridade em momentos e lugares diferentes aos eventos vincu-
nas do setor, como são as
estações do Metrô, o Par- lados ao direito do sufrágio, quando os simpatizantes de diferentes opções compartilham
que Central e Os Caobos. nas mesmas filas de votantes, surgem opções como a avenida Bolívar, a qual, ao cabo de
tantos anos, continua sendo um símbolo essencial da modernidade caraquenha. É algo

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inacabado, fragmentário, um tanto intangível e em perpétua transformação, mas é um 25 Entrevista de Milagros


Socorro a Lech Walesa. In:
dos poucos espaços que não foi territorializado de maneira definitiva por parte de nenhu- El Nacional, Caracas, 18 de
ma facção. Como um desejo que não termina de conseguir seu objeto, a avenida tem pre- agosto de 2002, p.D-1.

senciado sessenta anos de tábula rasa, de tentativas de romper os laços com o passado e 26 Patrizia Lombardo, “In-
de acelerar os processos históricos. Sessenta anos que têm provado a futilidade do em- troduction”, en Massimo
Cacciari, op. cit., p.LVI.
preendimento de dar a este espaço urbano uma forma, direção e uso permanente.25 Sua
indeterminação faz da avenida um lugar eminentemente moderno; porque é “intrinseca- Lorenzo González Casas
é professor titular do Depar-
mente instável, continuamente catastrófico”.26 Como também parece sê-lo o projeto de tamento de Planificación Ur-
bana da Universidad Simón
sistema político moderno venezuelano. Bolívar, Caracas, Venezuela.
E-mail: lgonza@usb.ve

Artigo recebido em dezem-


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A B S T R A C T The political events that took place in Caracas from the middle of
the 20th century have supposed the apparition of novel forms of utilization of the public space
and the development of differentiated urban territorialities. The incorporation of large
multitudes to the metropolis, the claim of civic rights, the apparition of political parties and
other forms of social organization, and the transformation of public spaces for political debate,
are some of the phenomena that have characterized the Caracas’ modernity. With the rise and
crisis of the democratic system, the politicization of the everyday life as well as the re-
formulation of the schemes of political participation have supposed an accentuation of the
processes of spatial segregation and the development of new maps of urban perception. The
main objective of this work is to examine, from a historic perspective, the evolution in the use
and representation of the public space. It examines how space has been used for political
participation, its effects on city and regional planning, and the introduction of new urban
cartographies in the midst of political change, programs of governmental decentralization, and
heritage debates.

K E Y W O R D S Planning; politics; urban space; Caracas.

84 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 4
QUALIDADE DO
ESPAÇO RESIDENCIAL
E SUSTENTABILIDADE
(RE)DISCUTINDO CONCEITOS E (DES)CONSTRUINDO PADRÕES
M A R I A C O N C E I Ç Ã O B A R L E T TA S C U S S E L
M I G U E L A LOY S I O S AT T L E R

R E S U M O A partir da análise da inserção das condições de habitação na cons-


trução de diferentes conjuntos de indicadores de qualidade de vida, o presente trabalho
propõe uma leitura crítica desses conceitos, apontando limites e possibilidades de sua utili-
zação enquanto instrumentos de aferição da realidade. Discute os conceitos envolvidos na
definição de aspectos de qualificação do espaço residencial e a construção de padrões subja-
centes a estes, buscando identificar as múltiplas dimensões – ambiental, social, econômica,
política, cultural – implicadas na produção e apropriação desse espaço. A identificação dos
componentes que concorrem para a configuração de determinado espaço residencial, e o re-
conhecimento das relações que a partir daí se estabelecem sugerem a necessidade de uma
abordagem diferenciada de avaliação, capaz de permitir a transposição de escalas, de con-
frontar distintos interesses e de captar a diversidade de lugares de morar na cidade, segun-
do princípios de sustentabilidade.

PA L AV R A S - C H AV E Indicadores de qualidade de vida; condições de ha-


bitação; sustentabilidade.

QUALIDADE DE VIDA E SUSTENTABILIDADE

A “qualidade de vida” de um indivíduo ou de uma comunidade é fortemente deter-


minada pelas suas condições de habitação. Por sua vez, os atributos que conferem maior ou
menor grau de adequação dessas condições às necessidades de um habitat sustentável es-
tão diretamente relacionados às características socioeconômicas e culturais de cada comu-
nidade. O reconhecimento, a construção e a avaliação desses atributos requerem a utili-
zação de instrumentos sensíveis a tais especificidades.
No entanto, expressões como “qualidade de vida” e “sustentabilidade” têm sido usa-
das quase indistintamente. Ainda que reconhecendo a complexidade e multiplicidade de
abordagens envolvidas na construção destes conceitos, ou talvez por isso, confundem-se,
freqüentemente, as categorias de análise.
Em vista disso, um pressuposto básico a orientar as considerações pontuadas neste
artigo é que nem sempre a “qualidade de vida” perseguida por indivíduos e comunidades
concorre positivamente no sentido da sustentabilidade, entendida em sua pluridimensio-
nalidade. Ou seja: cidades com melhor qualidade de vida não são, necessariamente, cida-
des mais sustentáveis, sob distintas clivagens, mas, particularmente, do ponto de vista da
ausência de eqüidade, das desigualdades e da segregação no espaço dessas cidades, locus de
vida de populações de países de capitalismo periférico, como o nosso.

R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 6 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 4 85
QUA L I D A D E D O E S PA Ç O R E S I D E N C I A L E S U S T E N TA B I L I D A D E

A qualidade do espaço residencial compreende, simplificadamente, três componentes


inter-relacionados: as características edilícias da habitação, as especificidades do seu entor-
no e o acesso aos serviços e equipamentos urbanos. A composição desses elementos pode
ser semelhante, sob vários aspectos e segundo determinados recortes da realidade, mas
tem peculiaridades intrínsecas à natureza de cada lugar.
Como passo fundamental para desenvolver a avaliação de aspectos de qualificação
de determinado espaço residencial, segundo princípios de sustentabilidade, o presente tra-
balho parte da análise da inserção das condições de habitação na construção de diferen-
tes conjuntos de indicadores de qualidade de vida, identificando limites e possibilidades
de sua utilização como instrumentos de aferição da realidade.
Segundo Acselrad, diferentes matrizes discursivas pretenderam associar-se à noção de
sustentabilidade: o discurso da eficiência, que se contrapõe ao desperdício de insumos ne-
cessários ao desenvolvimento; o discurso da escala, que coloca limites quantitativos ao
crescimento econômico feito às custas da utilização dos recursos naturais; o discurso da
eqüidade, que articula fundamentos de justiça social e ecologia; o discurso da auto-sufi-
ciência, que busca formas de organização da produção que gerem sociedades suficiente-
mente autônomas e auto-reguláveis; o discurso da ética, que formula a sustentabilidade
pela discussão pautada entre o certo e o errado na apropriação da base material para o de-
senvolvimento da sociedade, tendo em vista assegurar a própria vida no planeta (Acsel-
rad, 1999).
A diversidade de discursos possíveis tem sua origem em dois aspectos fundamentais:
1 como toda construção conceitual, a definição de sustentabilidade está intimamente liga-
da ao arcabouço teórico que lhe dá sustentação, que não é desprovido de caráter históri-
co ou ideológico; 2 a articulação de um conceito de sustentabilidade é necessariamente
interdisciplinar, reunindo elementos da ecologia, economia, política, sociologia, geogra-
fia, engenharia etc.
Ainda que tal conceito deva ser concebido e trabalhado em sua totalidade, justifi-
cam-se, para fins de análise, diferentes clivagens teóricas, em que a desagregação privile-
gia um ou outro componente, sobre o qual se dirige o foco de uma proposição ou inves-
tigação. Há que se atentar, contudo, para o viés inevitável a que esse corte conduz – um
enfoque essencialmente econômico da sustentabilidade, ou eminentemente ecológico,
por exemplo. Todavia, não se pode negar que mesmo uma visão pautada por um viés es-
pecífico possa dar origem, muitas vezes, a uma série de encadeamentos que agreguem no-
vas discussões em direção ao entendimento mais amplo do que seja e do que se deva al-
mejar como desenvolvimento sustentável. É, pois, o caráter processual e dinâmico que
marca a construção da sustentabilidade.
Esse mesmo caráter pode ser identificado ao se buscar compreender a construção do
espaço e, sobretudo, aparentes dicotomias, como global x local, urbano x rural.
A premissa básica para esse entendimento é que a produção do espaço deva ser vis-
ta como um processo totalizante e universal, em que o espaço é, a um só tempo, deter-
minado por e determinante de uma formação social, em suas múltiplas dimensões. A or-
denação físico-territorial assim produzida apresenta diferentes subunidades, que
desempenham distintos papéis na totalidade.
Por outro lado, o padrão de desenvolvimento capitalista trouxe, em sua fase atual,
novas contradições – a globalização da economia imprimiu a homogeneização de territó-
rios, culturas, sistemas éticos e sociais, ao mesmo tempo que exacerbou a importância do
individual e do fragmentário, valorizando a diferenciação espacial (Scussel, 1996).

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M . C O N C E I Ç Ã O B . S C U S S E L , M I G U E L A . S AT T L E R

Cabe destacar, sempre, que a visão de totalidade não se contrapõe ao reconhecimen-


to da diferenciação do espaço: o global não é uniforme, subsiste pela heterogeneidade das
partes. Do mesmo modo,

Colocar o debate sobre sustentabilidade fora dos marcos do determinismo ecológico im-
plica, portanto, afastar representações indiferenciadoras do espaço e do meio ambiente, re-
quer que se questione a idéia de que o espaço e os recursos ambientais possam ter um único
modo sustentável de uso, inscrito na própria natureza do território. A perspectiva não deter-
minística, portanto, pressupõe que se diferencie socialmente a temporalidade dos elementos
da base material do desenvolvimento. Ou seja, que se reconheça que há várias maneiras de as
coisas durarem, sejam elas ecossistemas, recursos naturais ou cidades. (Acselrad, 1999, p. 87.)

É, pois, no âmbito das condições de habitação, enquanto necessidade básica e deter-


minante da qualidade de vida do indivíduo ou de uma comunidade, e na perspectiva da
sua sustentabilidade, que se insere a presente discussão. E a primeira questão que se colo-
ca é: em que medida os indicadores correntes para aferição das condições de habitação res-
pondem adequadamente a situações diferenciadas, típicas de uma realidade multifaceta-
da, especialmente nas grandes cidades e regiões metropolitanas de um capitalismo
periférico, em que se aguçam os problemas ambientais, a escassez de recursos e a exclusão
em todas as formas?

A CONSTRUÇÃO DE INDICADORES DE SUSTEN-


TABILIDADE E ÍNDICES DE DESENVOLVIMENTO
E OS PADRÕES INERENTES A ELES

Concomitantemente ao processo de discussão e formulação temática do desenvolvi-


mento sustentável, foi se evidenciando a necessidade de utilização de instrumentos ade-
quados ao tratamento das inúmeras abordagens feitas a esse processo – desde a análise da
realidade à proposição de projetos e práticas, bem como ao seu monitoramento.
Entre esse instrumental, destaca-se a construção de indicadores capazes de balizar ca-
da uma das instâncias apontadas – não há como fazer diagnósticos, definir prioridades de
atuação, elaborar programas e projetos, avaliar o desempenho de uma atividade, direcio-
nar investimentos, sem um referencial de parâmetros a nortear essas práticas.
A formulação e/ou eleição de indicadores está diretamente relacionada a uma base
conceitual definida e à finalidade a que se propõe. Essas definições pautarão os critérios
de escolha das variáveis, o método empregado no tratamento das informações, a escala de
abrangência e a própria linguagem utilizada, imprimindo-lhes diferentes características,
conforme destacado por Silva (2000).
Portanto, indicadores de sustentabilidade não são instrumentos universais, aplicá-
veis a qualquer realidade. Há componentes diretamente relacionados a uma determina-
da situação, a um determinado recorte no tempo e no espaço. Contudo, é possível reco-
nhecer elementos de generalidade, em níveis de menor especificidade, o que permite que,
definidos certos princípios básicos, possam os mesmos indicadores ser aplicados em si-
tuações diferenciadas.
Quanto à elaboração de índices, é importante destacar que eles fazem a síntese de vá-
rios indicadores, apresentando-se como “fusão das informações que contêm diferentes

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QUA L I D A D E D O E S PA Ç O R E S I D E N C I A L E S U S T E N TA B I L I D A D E

variáveis em uma única expressão de valor, tornando-se, portanto, ‘adimensional’... O ín-


dice demandaria uma maior inserção de escolhas e priorizações vinculadas aos diferentes
aspectos da sociedade, gerando, assim, uma situação com maior grau de subjetividade”
(Silva, 2000). Sob esse enfoque, assume fundamental importância o reconhecimento de
que a atribuição de ponderações diferenciadas às variáveis envolvidas responde a uma ló-
gica dominante.

CONDIÇÕES DE HABITAÇÃO E SUA INSERÇÃO NOS ÍNDICES DE QUALIDADE DE VIDA

A partir de 1990, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD


passou a elaborar e divulgar o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, conceituando
desenvolvimento humano como o “processo de ampliar a gama de opções das pessoas,
oferecendo-lhes maiores oportunidades de educação, atenção médica, renda e emprego, e
abrangendo o aspecto total de opções humanas, desde um entorno físico em boas condi-
ções até liberdades econômicas e políticas” (PNUD, 1991, p.18). O IDH combina, basica-
mente, indicadores correspondentes a longevidade (esperança de vida ao nascer), educa-
ção (taxa de alfabetização de adultos e escolaridade) e renda (PIB per capita).
Data de 1996 a elaboração do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano no Bra-
sil (PNUD/Ipea, 1996) que apresenta um Índice de Desenvolvimento Humano por Gran-
des Regiões e por Estado. O aperfeiçoamento da metodologia inicial produziu, em 1999,
a desagregação de dados para todos os municípios e microrregiões do País, gerando o
Índice Municipal de Desenvolvimento Humano – IDH-M, e o Índice de Condições de Vi-
da – ICV. Além desses “índices-sínteses”, foram contemplados, nesse último trabalho, no-
vos indicadores econômicos e sociais.
O IDH-M não difere, conceitualmente, do IDH; é, na verdade, uma adaptação, devi-
do à nova escala da unidade geográfica e à disponibilidade dos dados para essa desagrega-
ção espacial. Substitui a variável PIB per capita pela renda familiar per capita média do mu-
nicípio; a taxa de alfabetização de adultos pela taxa de analfabetismo; a taxa combinada de
matrícula, pelo número médio de anos de estudo da população adulta (25 anos ou mais),
mantendo a variável esperança de vida ao nascer.
Já o ICV, considerado uma extensão do IDH-M, acrescenta outros indicadores às di-
mensões longevidade, educação e renda, com o intuito de captar novos aspectos delas, além
de incorporar as dimensões infância e habitação. Do ponto de vista operacional, é impor-
tante destacar que tanto o IDH-M como o ICV utilizam variáveis obtidas com base nos
Censos Demográficos do IBGE, em razão da cobertura e uniformidade dos dados; isso im-
plica a possibilidade de realizar seu cálculo apenas para os anos de realização dos Censos.
A dimensão habitação do Índice de Condições de Vida utiliza como indicadores:
• densidade – percentual da população que vive em domicílios com mais de duas pessoas
por domicílio;
• durabilidade – percentual da população que vive em domicílios em que a cobertura e
as paredes são construídas com materiais duráveis;
• abastecimento adequado de água: percentual da população urbana residente em domi-
cílios com abastecimento através de rede geral com canalização interna ou através de
poço ou nascente com canalização interna;
• instalações adequadas de esgoto: percentual da população urbana residente em domicí-
lios com instalações sanitárias próprias, através de fossa séptica ou rede geral de esgoto
(PNUD/Ipea/FJP, 1998).

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M . C O N C E I Ç Ã O B . S C U S S E L , M I G U E L A . S AT T L E R

No Rio Grande do Sul, a Fundação de Economia e Estatística – FEE apresentou, em


1995, o Índice de Desenvolvimento Social Ampliado – IDS, calculado para os então 333
municípios do Estado, adotando indicadores de saúde (mortalidade infantil), educação
(taxa de alfabetização e taxa de escolaridade) e renda (PIB per capita e grau de indigência)
(FEE, 1995). Já em 1999, desenvolveu o Índice Social Municipal Ampliado – Isma, que
considera quatro grupos de indicadores: condições de domicílio e saneamento (média de
moradores por domicílio, proporção de domicílios urbanos abastecidos com água trata-
da, proporção de domicílios urbanos com coleta de esgoto cloacal), educação (taxa de re-
provação do ensino fundamental, taxa de evasão do ensino fundamental, taxa de atendi-
mento do ensino médio), saúde (unidades ambulatoriais por mil habitantes, número de
médicos por dez mil habitantes,baixo peso ao nascer) e renda (concentração de renda –
salários formais, proporção da Despesa Social Municipal em relação à Despesa Total, PIB
per capita a custo de fatores) (FEE, 1999).
Ilustrando o quanto a elaboração desses índices responde a concepções determina-
das de desenvolvimento e atende a distintas necessidades, verifica-se que, em 2003, a FEE
substituiu o Isma pelo Idese – Índice de Desenvolvimento Socioeconômico, constituído
pelos mesmos grupos, porém com alteração de algumas variáveis e ponderações distintas
das atribuídas no método anterior.
A Comissão para o Desenvolvimento Sustentável – CDS das Nações Unidas, a par-
tir de 1992, tendo em vista dar andamento às disposições dos capítulos 8 e 40 da Agen-
da 21, que abordam a relação entre ambiente, desenvolvimento sustentável e informações
para tomada de decisões, tem capitaneado o movimento pela construção de indicadores
de desenvolvimento sustentável. A CDS apresentou, em 1996, em publicação conhecida
como “Livro Azul”, um conjunto de 134 indicadores, que, em 2000, foram reduzidos a
57, com orientação metodológica para sua aplicação. Já o Centro para os Assentamentos
Humanos das Nações Unidas – UNCHS (Habitat) desenvolveu um conjunto de indica-
dores voltados especificamente ao meio urbano – os Indicadores Urbanos Globais, que
têm por objetivo monitorar a performance e as tendências em vinte áreas-chave da Agen-
da Habitat.
O trabalho do IBGE “Indicadores de desenvolvimento sustentável – Brasil 2002”
tem por base as recomendações da CDS, que adaptam a série de indicadores para a rea-
lidade brasileira, resultando num conjunto de cinqüenta indicadores organizados em
quatro dimensões: social, ambiental, econômica e institucional. Cada indicador selecio-
nado é descrito em detalhe, acompanhando-o a justificativa da seleção, comentários me-
todológicos e fonte de obtenção das informações. A agregação territorial apresentada é a
das Unidades da Federação, tendo em vista a disponibilidade das informações nessa es-
cala e a possibilidade de realizar comparações de séries históricas. Desse modo, só se po-
de obter os indicadores referidos para o Brasil, Grandes Regiões e Unidades da Federa-
ção (IBGE, 2002). No grupo habitação (dimensão social), o único indicador incluído –
densidade inadequada de moradores por dormitório – utiliza como valor de referência
para a definição de densidade excessiva (>3 moradores/dormitório) a publicação Déficit
Habitacional no Brasil 2000, da Fundação João Pinheiro. A fonte da informação é a
PNAD. No entanto, o Censo Demográfico 2000 também a oferece, com base nos resul-
tados da amostra, os quais , até o momento, só foram divulgados até o âmbito das Uni-
dades da Federação.
Conforme a própria ficha do indicador enfatiza, indicadores relativos a característi-
cas construtivas e infra-estrutura disponível são fundamentais para compor o quadro das

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QUA L I D A D E D O E S PA Ç O R E S I D E N C I A L E S U S T E N TA B I L I D A D E

condições de habitação. Daí a necessidade de se agregar à análise o grupo saneamento (di-


mensão ambiental). Este grupo de indicadores está amplamente contemplado por infor-
mações: Censo Demográfico, PNSB e PNAD (esta somente até o âmbito metropolitano).
Vale observar que, mesmo nos casos em que se verifica que o nível de desagregação
da informação é superior ao municipal, é possível adquirir, muitas vezes – dependendo
dos recursos disponíveis –, uma tabulação especial para o nível desejado (ou seja, tais in-
formações não são, na verdade, de domínio público) (IBGE, 2002).
Bastante conhecido é o trabalho desenvolvido pela Prefeitura Municipal de Belo Ho-
rizonte e pela PUC/MG para aquela cidade: o IQVU – Índice de Qualidade de Vida Urba-
na, que tem como destaque, além da inclusão de um grande leque de variáveis na sua
composição, o fato de ser aplicado em âmbito intra-urbano, reconhecendo a condição de-
sigual da distribuição espacial dos indicadores considerados.
Nesse índice, o grupo habitação compreende os indicadores: área construída/habi-
tante; padrão de acabamento das moradias e número de pessoas/dormitório. O grupo
infra-estrutura urbana engloba indicadores de limpeza urbana (coleta de lixo, varrição e
capina); saneamento (taxa e freqüência de fornecimento de água tratada, disponibilidade
de rede de esgoto); energia elétrica (taxa de fornecimento domiciliar, iluminação públi-
ca); telefonia (porcentagem de ruas com rede telefônica, qualidade das ligações); e trans-
porte coletivo (possibilidade de acesso de transporte/pavimentação, número e conforto
dos veículos). Observe-se que a participação atribuída aos grupos das variáveis habitação
e infra-estrutura urbana é de 17,66% e 15,75%, respectivamente, correspondendo, pois,
a 34,10% da ponderação total. Isso denota que grande parte da qualidade de vida dos mo-
radores da cidade é avaliada em função das suas condições de moradia.
Com efeito, a importância assumida pelas condições de moradia na qualidade de vi-
da de um indivíduo, família ou de toda uma comunidade é mais que evidente. Há, con-
tudo, que ser reforçada a idéia de que se incluem, nessa concepção, não apenas as condi-
ções de domicílio propriamente dito (material construtivo, dimensões, instalações
sanitárias), mas a acessibilidade aos equipamentos de consumo coletivo (de educação, saúde,
recreação) e demais serviços urbanos, que qualificam o espaço do cotidiano de seus mo-
radores (Scussel, 1996).
O provimento da moradia é, pois, necessidade básica nos assentamentos humanos,
manifestada pela Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvi-
mento, de 1992, e registrada no capítulo 7 da Agenda 21 – “Promoção do desenvol-
vimento sustentável dos assentamentos humanos”, visivelmente nas áreas de programa in-
cluídas no item 7.5: “oferecer a todos habitação adequada ... promover a existência
integrada de infra-estrutura ambiental: água, saneamento, drenagem e manejo de resíduos
sólidos; promover sistemas sustentáveis de energia e transporte nos assentamentos huma-
nos ... promover atividades sustentáveis na indústria da construção” (Cnumad, 2000).
Destaque-se que, no Brasil, a carência de linhas de financiamento à habitação popu-
lar gerou a busca de diferentes alternativas ao provimento de moradia à população de bai-
xa renda, mas, sobretudo, ocasionou um processo acentuado de exclusão de um contin-
gente cada vez maior dessa população. Exclusão existente no plano socioeconômico, de
forma mais abrangente, e, no foco específico de análise, exclusão do tecido urbano estru-
turado e equipado; exclusão do morar em condições mínimas de habitabilidade, sanea-
mento, infra-estrutura, acesso a equipamentos e serviços urbanos.
À margem do mercado formal que oferta tais serviços, multiplicaram-se, a partir de
meados dos anos 80, as ocupações irregulares e invasões, assim como se multiplicaram

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vertiginosamente as sub-habitações na Região Metropolitana de Porto Alegre, por exem-


plo (Carrion & Scussel, 2000). Esse quadro não é diferente nas demais capitais e grandes
cidades brasileiras, especialmente nas metrópoles (Motta, 1997).
Diante dessa realidade, e das diferentes tentativas de estimar o “déficit habitacional”
no País, Cardoso (1999) questiona esse conceito, por considerá-lo conjuntural: segundo
o autor, transformações culturais e históricas que modificam as necessidades da popula-
ção, bem como práticas políticas alternativas de produção de habitação demandam nova
abordagem da questão. Em seu trabalho, Cardoso faz uma “adoção crítica” do conceito
sugerido pela Fundação João Pinheiro, de necessidades habitacionais, que seria a soma do
déficit mais a demanda demográfica mais a inadequação (Pinheiro, 1995).

A primeira crítica mais evidente à metodologia apresentada vai no sentido da validade


lógica e ética em se estabelecerem critérios de inadequação em infra-estrutura diferenciados
por faixas de renda ... Pode-se supor, com alguma consistência, que, em áreas rurais, esses cri-
térios talvez pudessem ser diferenciados, já que, nesses casos, o impacto sobre a saúde e as con-
dições de vida, nos casos de condições precárias de saneamento, são bem menos rigorosas. O
esgotamento sanitário por fossa rudimentar em áreas rurais, por exemplo, não acarretaria, ne-
cessariamente, problemas de contaminação. O mesmo não é válido para áreas urbanas, onde
as densidades mais elevadas tornam esse tipo de solução problemático para a saúde. Da mes-
ma forma, considerar o “lixo enterrado” como uma solução adequada para áreas urbanas não
metropolitanas também parece ser uma generalização excessiva, cabendo um estudo mais de-
talhado que permitisse estabelecer padrões mais convenientes à salubridade, considerando, pe-
lo menos, os tamanhos de cidades. (Cardoso, 1999, p.9.)

Em meio a essa discussão, fica evidente que as condições de moradia e as necessida-


des habitacionais são variáveis em contextos socioeconômicos e culturais distintos. Como
definir o que é aceitável ou desejável em cada situação?
Essa definição passa, necessariamente, pelo enfrentamento da questão dos padrões a
serem adotados – e tal questão precisa ser respondida na dimensão social, econômica, cul-
tural, ecológica e política. Certamente, não há um “padrão melhor” para todos os atores
envolvidos, e o contraditório é travado no cotidiano de cada cidade.
Particularmente no caso dos países em desenvolvimento, as políticas públicas têm
adotado padrões que têm favorecido soluções cada vez mais socialmente excludentes e
ambientalmente degradantes.

UMA ABORDAGEM EXPLORATÓRIA:


MORAR EM PORTO ALEGRE

Na verdade, os índices que buscam cotejar o nível de desenvolvimento de municípios


(Estados, países ou regiões) são extremamente úteis como balizadores de possíveis políticas
públicas ou como apoio à tomada de decisão na alocação de recursos, na medida em que
permitem a priorização das unidades que denotam um posicionamento mais desfavorável
num ou noutro setor, para que alcancem um desenvolvimento mais sustentável. Entretanto,
vale sempre lembrar que tais situações são retratos de determinado momento da realidade,
além de “mascararem” a distribuição do fenômeno avaliado internamente ao objeto de estu-
do – seja em termos espaciais (diferenças entre bairros, por exemplo), seja no que se refere a

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QUA L I D A D E D O E S PA Ç O R E S I D E N C I A L E S U S T E N TA B I L I D A D E

estratos sociais da população. Daí, a importância de se perseguir, além da definição cuidado-


sa das variáveis capazes de captarem a realidade a ser aferida, em cada uma das dimensões do
desenvolvimento, as possibilidades de sua mensuração no nível de abrangência pretendido,
de maneira periódica e sistemática, adequando-se à especificidade de cada situação.
Questão crucial para a transformação de indicadores urbanos em ferramentas efeti-
vas na gestão de políticas públicas é a possibilidade de transposição de escalas – do geral
para o particular, da cidade para o bairro ou para o quarteirão, e deste para a cidade. No
entanto, as abordagens intra-urbanas nas cidades brasileiras são experiências ainda redu-
zidas e recentes – os pioneiros, IQVU (Índice de Qualidade de Vida Urbana) de Belo Ho-
rizonte (Nahas, 1997) e o Mapa da Exclusão/Inclusão Social de São Paulo (Sposati, 2000),
datam de 1996. O primeiro destacou-se ao incluir um grande leque de variáveis na sua
composição e ser aplicado em nível intra-urbano, reconhecendo a condição desigual da
distribuição espacial dos indicadores considerados. O segundo agrega como principal di-
ferencial a forma como foi construído, com a participação das comunidades na própria
definição dos padrões de exclusão/inclusão.
1 Em 2003, em parceria da Avaliações intra-urbanas ainda são incipientes para Porto Alegre.1 Por outro lado, al-
UFRGS com a Prefeitura Mu-
nicipal, foi apresentado à
guns estudos têm buscado avançar no conhecimento capaz de alimentar a formulação de
população estudo do Grupo instrumentos de avaliação e de gestão local. Exemplo de diagnóstico detalhado é o Atlas
de Pesquisa Violência e Ci-
dadania, que traça o mapa Ambiental de Porto Alegre (Menegat, 1998).
da violência em Porto Ale- A pesquisa “Desigualdades socioespaciais na Região Metropolitana de Porto Alegre”,
gre, mostrando contrastes
na criminalidade e na quali- que vem sendo desenvolvida pela FEE, tem permitido uma análise das mudanças socioes-
dade de vida em diferentes paciais ocorridas com as transformações econômicas dos últimos anos, quando a metró-
áreas da cidade (Correio do
Povo, 26.03.2003). Atual- pole se configura como espaço em que se concentram riqueza e poder, ao mesmo tempo
mente (dezembro de 2004),
a Prefeitura Municipal de
que se acentuam as desigualdades sociais.
Porto Alegre está prestes a A tipologia socioespacial construída segue metodologia proposta em âmbito nacio-
implantar um Sistema de In-
dicadores de Desenvolvi-
nal,2 que parte da identificação de unidades espaciais homogêneas através de um sistema
mento Urbano, bem como classificatório de natureza sociocupacional. Por meio de análise fatorial por correspondên-
divulgar o Mapa da Exclu-
são/Inclusão Social da Cida- cia, foram relacionadas a distribuição das diferentes categorias sociocupacionais com as 55
de de Porto Alegre. áreas geográficas em que o espaço de Porto Alegre foi desagregado. Como resultado, ob-
2 A pesquisa se insere num teve-se uma divisão da cidade em seis grandes tipos de áreas, tanto para 1980 como para
conjunto de estudos sobre 1991: superior, média superior, média, média inferior, operária e popular, em ordem hierár-
as mudanças em curso nas
grandes cidades brasileiras, quica (Barcellos et al., 2001).
desenvolvidas sob coorde-
nação do Observatório de
No sentido de aferir movimentos e tendências na apropriação do espaço pela popu-
Políticas Urbanas e Gestão lação de Porto Alegre, buscando identificar em que sentido caminha no que diz respeito
Municipal, vinculado ao Insti-
tuto de Pesquisa e Planeja-
à sustentabilidade, a análise da mobilidade verificada entre os tipos socioespaciais da ci-
mento Urbano e Regional – dade na década de 1980 oferece rica fonte de informação.
Ippur/UFRJ.
Ao realizar a análise da evolução socioespacial de Porto Alegre, observa-se que, do
total das 55 áreas em que a cidade foi dividida, 31 delas (56,3%) mudaram de tipo – 19
áreas se deslocaram para tipos superiores e 12 áreas para tipos inferiores. De acordo com
o estudo, os espaços de tipo médio superior aumentaram significativamente sua importân-
cia no período 1980-1991, da mesma forma que o tipo popular ampliou sua participação.
O acesso diferenciado a bens sociais e serviços entre os diferentes espaços da cidade tam-
3 Cabe destacar que a pes-
quisa que gerou o estudo bém foi aferido, em termos de distribuição de renda, educação e saneamento, incluindo
em pauta segue seu anda- a abordagem da segmentação por raça. O que se observa é que, embora em 1980 a situa-
mento, devendo atualizar a
análise para o ano 2000, a ção do conjunto da cidade fosse mais precária que a de 1991 em relação à disponibilida-
partir da finalização de tabu-
lações especiais do Censo
de de instalações adequadas nos domicílios, a distribuição entre os diferentes espaços ur-
Demográfico pelo IBGE. banos era menos desequilibrada.3

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Na linha de estudos que permitem uma análise com desdobramentos por estratos
de renda e/ou espaciais, inclui-se “Condições de moradia e comprometimento da renda
familiar com habitação e transporte na Região Metropolitana de Porto Alegre”, com in-
formações levantadas pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada em
1995 pelo Centro de Estudos e Pesquisas Econômicas – Iepe/UFRGS, com vistas ao cál-
culo do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) para a região, atualizando a série inicia-
da em 1954.
Ainda que o trabalho apresente suas conclusões para o âmbito metropolitano, des-
tacam-se alguns aspectos que corroboram a observação das desigualdades no acesso a ser-
viços urbanos:
• das famílias pesquisadas, 97,6% são abastecidas com água tratada, sendo que 96,8%
dispõem de água encanada em seus domicílios e 0,8% servem-se de torneira pública;
na faixa de 0 a 3 SM (salários mínimos), esse percentual baixa para 91,8%;
• 98% dos domicílios dispõem de esgotamento sanitário, quer através de rede geral de es-
goto, quer por meio de fossa séptica. Verifica-se que o percentual de domicílios servi-
dos pela rede pública apresenta variações que vão de 78,5%, no estrato de 3 a 5 SM, a
92,5%, no estrato de 15 a 20 SM;
• o número de banheiros e o número de chuveiros disponíveis em cada domicílio, como
era de se esperar, apresentam variação crescente conforme aumentam os níveis de ga-
nhos mensais familiares (Carrion & Scussel, 2000).
Comparando esses dados com as informações referentes aos núcleos de ocupações ir-
regulares ou invadidas, verifica-se que o provimento de tais serviços é bastante inferior,
em termos quantitativos, e qualitativos.
Já um estudo comparativo com as condições de moradia na zona rural de Porto Ale-
gre (Scussel, 2002) apontou o índice de 86,8% do total de residências servidas por água
encanada, o que não significa abastecimento de água tratada. Dados complementares in-
dicam que 44,4% são servidas com água proveniente de poço cavado, fontes, riachos e
açudes, de potabilidade não assegurada, enquanto apenas 30,7% das propriedades rece-
bem água do Departamento Municipal de Água e Esgoto – DMAE. Estes dados tornam-
se preocupantes num meio rural como o de Porto Alegre, densamente povoado, onde
98,9% do esgoto cloacal é direcionado para fossas negras, sangas e valas, indicando a pos-
sibilidade de contaminação do lençol freático superficial.
Uma informação muito importante, mas dificilmente trabalhada em termos de in-
dicadores socioeconômicos, seria o dispêndio familiar com habitação e transporte. Interes-
sa, sobretudo, considerar o gasto conjunto de aluguel e transporte e sua evolução ao lon-
go do tempo, uma vez que são gastos implicados e que experimentam variações em
decorrência dos processos de urbanização e de ocupação e uso do solo. Do ponto de vis-
ta ambiental – seja pelos agentes poluidores do ar, nível de ruídos, congestionamentos,
consumo energético –, a composição desse binômio tem papel fundamental na determi-
nação da qualidade do espaço residencial dos diferentes lugares da cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Das considerações até aqui alinhadas, destaca-se a importância de se ter a maior cla-
reza possível, em que pese sua complexidade, de todo o processo envolvido na formula-
ção de indicadores de sustentabilidade – desde a definição do que se pretende aferir e dos

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QUA L I D A D E D O E S PA Ç O R E S I D E N C I A L E S U S T E N TA B I L I D A D E

objetivos desse monitoramento à seleção e operacionalização dos indicadores –, sempre


tendo presentes as limitações das fontes de informação e do próprio instrumento em cap-
turar a dinâmica da realidade.
Cabe ressaltar, também, que:
• A utilização de índices de desenvolvimento municipal, que combinam vários indicado-
res, pode ser útil para uma primeira aproximação da realidade, situando a posição rela-
tiva da unidade de análise num contexto mais abrangente e permitindo priorizações a
partir desse nível.
• Indicadores de sustentabilidade para o município como um todo oferecem uma visão
“média” do aspecto que se pretende avaliar, eludindo as diferenciações internas – seja
do ponto de vista espacial, seja do ponto de vista de estratos sociais.
• A adoção de indicadores consagrados nas mais diferentes esferas tem a grande vantagem
de, além de já terem testado sua eficácia, permitirem análises comparadas, baseadas na
adoção de critérios homogêneos; quando se opta por indicadores alternativos, mais ade-
quados à realidade local, há que se ter presente que essa escolha limitará essa possibili-
Maria Conceição Barletta dade de comparação.
Scussel é arquiteta, M.Sc.,
pesquisadora do IEPE/UFRGS • A diferenciação qualitativa no trato e utilização de indicadores urbanos permite as me-
e doutoranda do Núcleo lhores abordagens à dinâmica socioeconômica espacial da cidade.
Orientado para a Inovação da
Edificação – NORIE/PPGEC/ Importante, ainda, é nunca perder de vista a concepção de que a sustentabilidade,
UFRGS.
E-mail: scussel@ufrgs.br
em suas múltiplas dimensões, traz embutido um padrão desiderato de desenvolvimento –
sob a ótica de quem? Em vista disso, a participação da população na construção desse pa-
Miguel Aloysio Sattler é
engenheiro, Ph.D., profes-
drão assume papel fundamental para definir a sua inserção no lugar onde vive.
sor adjunto do Núcleo Orien- Por fim, o reconhecimento da complexidade envolvida na identificação dos com-
tado para a Inovação da Edi-
ficação/PPGEC/UFRGS. ponentes que concorrem para a configuração de determinado espaço residencial e das re-
E-mail: sattler@ufrgs.br lações que a partir daí se estabelecem sugere a necessidade de uma abordagem diferen-
Artigo recebido em dezem- ciada de avaliação, capaz de permitir a transposição de escalas, de confrontar distintos
bro de 2004 e aceito para interesses e de captar a diversidade de lugares de morar na cidade, segundo princípios de
publicação em fevereiro de
2005. sustentabilidade.

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2001/htm. Acessado em 29.11.2002.

A B S T R A C T The present work proposes a critical reading to the current sets of


“quality of life indicators”, particularly those related to housing conditions and their insertion
in such assessment frameworks, aiming at pointing out their limits and possibilities as reality
gauging instruments. It discusses the involved concepts to describe qualification aspects of the
residential space and the patterns supporting them, trying to identify the multiple dimensions

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QUA L I D A D E D O E S PA Ç O R E S I D E N C I A L E S U S T E N TA B I L I D A D E

– environmental, social, politics, economics, cultural – implied in the production and


appropriation of this space. The identification of the components (and their relationships) that
concurs to configurate the residential space suggests the necessity of a differentiated evaluation
approach, in order to allow scale transpositions, to collate distinct interests and catch the
diversity of places to live in the city, according to sustainability principles.

K E Y W O R D S Quality of life indicators; housing conditions; sustainability.

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CELSO FURTADO
E O PLANEJAMENTO
TEORIA E AÇÃO
H E R M E S M A G A L H Ã E S TAVA R E S

INTRODUÇÃO

A obra de Celso Furtado impressiona por sua extensão, por sua coerência metodo-
lógica, unidade de propósito, assim como pela relevância amplamente reconhecida. A
produção intelectual que trata diretamente da sua obra é também considerável e aumen-
tou significativamente desde a última década do século passado, em decorrência das inú-
meras homenagens que, no Brasil e em outros países, foram prestadas ao autor, sobretu-
do quando completou 80 anos.
Se as primeiras obras de Furtado, da década de 1950, foram marcadas pela influência
da Cepal, ele, por sua vez, contribuiu com a sua abordagem histórica para enriquecer o pen-
samento cepalino, cujos elementos básicos estão contidos em El desarrollo económico de la
América Latina y algunos de sus principales problemas, de 1949, escrito por Raúl Prebisch.
Em sua fase da Cepal, Furtado realizou inúmeros trabalhos técnicos sobre países da
América Latina. Mais tarde, no exílio, escreveu um livro sobre a formação econômica des-
sa região. Mas foi para o Brasil e o Nordeste brasileiro que dedicou o máximo de sua aten-
ção e de suas energias. Foi o economista brasileiro ou mesmo cientista social brasileiro de
maior projeção fora do País. Escreveu 31 livros que foram traduzidos em 15 idiomas. Cal-
cula-se que foram vendidos mais de dois milhões de exemplares. Considerando-se os di-
versos indicadores de formas de difusão, estima-se que, no presente, o número de leitores
atinge cerca de dez milhões.
Como explicar o reconhecimento de Celso Furtado, expresso por esse grande núme-
ro de leitores? Em primeiro lugar, porque – caso raríssimo entre os economistas – Celso
Furtado não escreve apenas para os seus pares, mas também para um público mais am-
plo, com o fim de levar suas idéias e despertar a consciência da necessidade de lutar con-
tra as desigualdades sociais e o subdesenvolvimento. Daí porque em sua obra a fronteira
entre economia e política é tênue. “Nunca entendi a existência de um problema estrita-
mente econômico”, diz ele. Depois, a criatividade que, no início de sua carreira, chegou
a ser vista por Gudi (apud Furtado, 1985) como algo incompatível com o ofício de eco-
nomista, acabou sendo o grande trunfo que lhe permitiu realizar a “navegação venturosa”
e descortinar sempre novos horizontes. Criatividade que supõe uma boa dose de ousadia,
até mesmo para ser eclético, quando o ecletismo é, como sabemos, considerado sempre
negativamente pelos escolásticos de todos os matizes. Mas em Furtado o ecletismo permi-
te-lhe uma abordagem original: por exemplo, enquanto procura, por um lado, recuperar
o movimento (histórico) da economia, por outro, faz uso de instrumentos de análise neo-
clássicos para melhor compreender esse processo.
Embora em muitos contextos Furtado tenha procurado proteger-se, colocando-se
como portador de soluções técnicas, neutras, a leitura atenta de suas principais obras
indica uma permanente preocupação política, que se traduz em uma linguagem que pro-

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C E L S O F U R T A D O E O P L A N E J A M E N T O

cura persuadir e mobilizar os seus leitores, sem, contudo, perder o rigor e a elegância
(Bielshowski, 2001).
Quais são as bases teóricas do pensamento de Furtado? Ele próprio responde, indi-
cando a seguinte ordem: o positivismo, o marxismo e a teoria keynesiana, que, tudo in-
dica, obedece à cronologia de como cada um desses sistemas de pensamento passaram a
influir decisivamente em sua formação (Furtado, 1983). O positivismo, com o qual ele
toma contato ainda muito jovem, interessou-lhe pela importância que essa doutrina atri-
bui à razão, ao conhecimento científico e à relação que estabelece entre este e o progres-
so. O marxismo – com o qual tomou contato através da leitura de Max Beer e, mais tar-
de, em curso na Universidade de Paris – por sua teoria da História e, no plano econômico,
pela percepção de Marx de que a acumulação é uma necessidade objetiva do capitalista,
o que o pressiona a recorrer constantemente ao progresso técnico, sendo esta segunda
idéia reforçada pela leitura de Schumpeter.
Em terceiro lugar, como não poderia deixar de ser, Celso Furtado reconhece em
Keynes uma influência decisiva. Desse autor, ele retém a análise dos processos econômi-
cos centrados na demanda e o papel do Estado no desenvolvimento capitalista. Quanto a
esse último aspecto, diz Furtado que “a economia capitalista não pode funcionar sem um
certo grau de centralização de decisões, ou seja, sem uma estrutura superior de poder (to-
do capitalismo é em certo grau um capitalismo de Estado” (Furtado, 1973). De resto, es-
ta visão keynesiana de Estado influiu em toda uma geração de economistas e de gover-
nantes no Brasil.
Essas informações foram fornecidas pelo próprio autor em seu Auto-retrato intelec-
tual, publicado pela Unesco em 1973. Ao leitor atento desse texto não deve passar des-
percebido o fato de que Furtado não tenha mencionado Prebisch entre os autores que in-
fluenciaram na formação de seu pensamento. O papel de Prebisch e seus colaboradores
na estruturação de uma teoria com características próprias, decisiva no avanço da com-
preensão do desenvolvimento da América Latina, só aparecerá em sua verdadeira dimen-
são na Fantasia organizada, livro de memórias, publicado em 1985.

A TRAJETÓRIA INTELECTUAL

Originário do estado da Paraíba, Celso Furtado realizou o seu curso superior no


Rio de Janeiro, formando-se em Direito pela antiga Universidade do Brasil. Em 1944,
mediante concurso, ingressa no serviço público, como funcionário do Dasp (Departa-
mento de Administração do Serviço Público Federal) e, neste mesmo ano, incorpora-se,
como oficial, às Forças Expedicionárias Brasileiras que participaram da Segunda Guerra
Mundial, em território italiano. Desmobilizado, volta ao Brasil e, em 1946, regressa à
Europa para realizar o doutorado em Economia, em Paris, sob a orientação de Maurice
Byé. Terminado o curso, em 1948, retoma suas funções na administração pública brasi-
leira e pouco depois passa a integrar a pequena equipe de técnicos que deu início aos tra-
balhos da Cepal (Comissão Econômica Para a América Latina), órgão recém-criado pe-
la ONU, por indicação do governo chileno. A equipe tinha como tarefa inicial realizar um
diagnóstico econômico dos países latino-americanos, que seria discutido na reunião de
1949 em Havana.
Contratado como consultor, o economista argentino Raúl Prebisch apresentou
uma primeira versão do seu texto, cuja forma definitiva seria mais tarde considerada o

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H E R M E S M A G A L H Ã E S T A V A R E S

“Manifesto Latino-Americano”. Celso Furtado, um dos primeiros a ler a versão prelimi-


nar do trabalho de Prebisch, concluiu de imediato que as idéias ali contidas eram sobre-
modo inovadoras e que, se aceitas pelos governos latino-americanos, poderiam mudar a
face da região. Daí o seu empenho em traduzi-lo para o português e, em seguida, publi-
cá-lo e divulgá-lo entre profissionais influentes no Brasil.
Dois anos depois, em reunião que ocorreria em São José da Costa Rica, diante de for-
tes indícios de que os Estados Unidos vetariam a continuidade da Cepal, Celso Furtado
fez gestões junto ao governo brasileiro (segundo governo Vargas), no sentido de que este
votasse pela permanência do órgão. Em suas memórias, Furtado diz que a posição favorá-
vel assumida por Vargas, em defesa da Cepal, foi fundamental para a sua manutenção, pois
o voto do Brasil influiu para que vários outros países latino-americanos assumissem idên-
tica posição (Furtado, 1985).
Keynes fizera uma poderosa crítica ao laissez-faire. Prebisch, por sua vez, empe-
nhou-se em demonstrar, empiricamente, que a organização econômica mundial, basea-
da no livre-câmbio e no princípio da divisão internacional do trabalho, não produz ga-
nhos proporcionalmente iguais para os países que dela participam. A razão por que isto
não acontece deriva de que a economia mundial não é uma estrutura homogênea. Ao
contrário, trata-se de uma estrutura em que há, de um lado, um centro principal deten-
tor da tecnologia e dos frutos do progresso, composto de um pequeno numero de paí-
ses, e, de outro, uma vasta e heterogênea periferia, constituída de países produtores e ex-
portadores de matérias-primas e de produtos primários. Os termos de intercâmbio
tendem a se degradar em detrimento da periferia, contribuindo para que a renda se con-
centre no centro.
Desde o início, Celso Furtado viu nessa concepção de Prebisch a sua contribuição
maior, de tal força que se constituiria em verdadeiro tournant na realidade latino-americana.

Esta visão global da economia capitalista, que permitia nela identificar uma fratura es-
trutural gerada pela lenta propagação do progresso técnico e perpetuada pelo sistema de di-
visão internacional do trabalho então existente, constitui certamente a contribuição teórica
maior de Prebisch e foi o ponto de partida da teoria do subdesenvolvimento que dominaria
o pensamento latino-americano e teria amplas projeções em outras regiões do mundo. (Fur-
tado, 1985.)

Comparando as séries de dados econômicos relativos ao Brasil, Argentina, México e


Chile, principalmente, Celso Furtado constatou, com surpresa, a evidência do atraso do
Brasil em relação àqueles países. Isso o levou à decisão de pesquisar a fundo as razões de tal
atraso, trabalho ao qual se empenhou com obsessão. “Arregacei as mangas e comecei a pen-
sar o Brasil com a desenvoltura de quem reunisse ignorância e intrepidez” (Furtado, 1985).
O esforço dessa tarefa desdobrou-se por seis ou sete anos. Foi um período fértil pa-
ra Furtado. Em 1953, fixou-se no Rio de Janeiro como coordenador do grupo misto Ce-
pal-BNDE. Entre 1950 e 1957 publicou três livros: A economia brasileira (1954), A de-
pendência econômica (1956) e Desequilíbrios da economia brasileira (1957). Em
1957-1958 (ano letivo europeu), licenciado da Cepal, Furtado realiza o seu pós-douto-
rado em Cambridge e escreve Formação econômica do Brasil, sua obra maior. Livro-texto
nos cursos universitários, sobretudo os de Economia, Ciências Sociais e História, Brasil
afora, dele foi tirada a 32a edição, recentemente, pela Editora Nacional, e várias edições
saíram no exterior.

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A Formação... é, nas palavras do autor, um grande afresco da economia brasileira,


abarcando o início da colonização até 1930. Seguindo uma démarche diacrônica, adota
uma postura eclética, ao recorrer a autores de visões ideológicas distintas, tais como Key-
nes, Marx, Schumpeter e até mesmo o instrumental neoclássico, para explicar a formação
econômico-social do Brasil. Observa-se um afastamento em relação a Raúl Prebisch, que
analisa sincronicamente as estruturas de centro–periferia, em momentos específicos. Por-
tanto, a Furtado o que interessa é a evolução histórica analisada a partir da economia. Ou-
tra diferença metodológica é a preocupação em tomar a economia brasileira como uma
economia colonial (o que ocorreria até a crise de 1930) e não como periférica.
Ao longo de quatro décadas (1530-1930), em decorrência das disponibilidades de
fatores internos e da demanda externa, surgia uma atividade econômica dinâmica, en-
quanto outras permaneciam em letargia por longo tempo.
O fato de que a análise leva em conta a dinâmica econômica (a evolução histórica)
sem deixar de considerar a dimensão geográfica é outra inovação de Furtado na Forma-
ção... raramente ressaltada pelos críticos. Esse segundo aspecto será examinado na segun-
da parte deste texto.
O livro, dividido em cinco partes e 36 capítulos, tem, segundo o autor, a intenção
de formular questões e hipóteses, na esperança de que fossem estudadas mais a fundo por
pesquisadores que o sucedessem. Em outros termos, não esperava chegar a respostas de-
finitivas. Expectativa assaz modesta para quem, fazendo uso do seu método peculiar,
conseguira explicar a transição da economia colonial, voltada para fora, para uma econo-
mia industrial, voltada para o mercado interno, o que é, sem dúvida, o maior contribu-
to da Formação...
A crise mundial de 1930 marca o colapso da economia colonial no Brasil, fato que
vai se configurar efetivamente a médio e longo prazo, pois de imediato o governo revolu-
cionário cuidou de garantir os interesses dos cafeicultores, ao dar continuidade à política
de defesa do café, o que o levou a ir muito além da simples estocagem, passando a des-
truir parcela considerável da produção invendável (80 milhões de sacas de 60 quilos em
menos de dez anos). E o que parecia mais estranho era que, na impossibilidade de recor-
rer ao financiamento externo, em decorrência da crise, o governo Vargas lançara mão da
emissão monetária. Esse paradoxo é assim explicado por Furtado:

À primeira vista parece um absurdo colher o produto para destruí-lo. Contudo, situa-
ções como essa se repetem todos os dias nas economias de mercado. Para induzirem o produ-
tor a não colher, os preços teriam que baixar muito mais, particularmente se se tem em con-
ta que os efeitos da baixa de preços eram parcialmente anulados pela depreciação da moeda.
Ora, como o que se tinha em vista era evitar que continuasse a baixa de preços, compreende-
se que se retirasse do mercado parte do café colhido para destruí-lo. Obtinha-se, dessa forma,
o equilíbrio entre a oferta e a procura a nível mais elevado de preços. (Furtado, 1979.)

Diz, em outra parte, o autor:

O que importa ter em conta é que o valor do produto que se destruía era muito in-
ferior ao montante da renda que se criava. Estávamos, em verdade, construindo as famosas
pirâmides que anos depois preconizaria Keynes. Dessa forma, a política de defesa do setor
cafeeiro nos anos da grande depressão concretiza-se num verdadeiro programa de fomento
da renda nacional. Praticou-se no Brasil, inconscientemente, uma política anticíclica de

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maior amplitude que a que se tenha sequer preconizado em qualquer dos países industria-
lizados. (Furtado, 1979.)

A partir de 1933, a economia brasileira começa a se recuperar, nesse momento as


atividades mais dinâmicas deixam de ser aquelas do setor exportador e são substituídas
por aquelas voltadas ao mercado interno. E o impulso maior deriva das indústrias que
substituem bens que antes se importavam, ou seja, destinavam-se a atender uma deman-
da preexistente.
Muitos criticaram essa explicação, sobretudo pela sua essência keynesiana, ao colocar
a demanda no centro da análise. Teriam tido sucesso os que subestimaram a questão do
mercado, notadamente o mercado externo, e convergiram a discussão em torno da dinâ-
mica das forças produtivas existentes no País? Francisco de Oliveira, que também faz res-
trições ao enfoque de Furtado sobre a transição, ressalva: “A elegância do modelo, em que
parece existir dialética, pois forças independentes de seu papel, ao lutarem por seus inte-
resses strictu senso, estruturam um programa não previsto, capturou todos e até hoje não se
conseguiu produzir nada que o substituísse teoricamente” (Oliveira, 1985, p.14).
Encerrada a sua passagem por Cambridge, e tendo completado dez anos como fun-
cionário da Cepal (ONU), Furtado decide retomar suas atividades no Brasil, dessa feita,
com intenção de não se restringir ao trabalho teórico e assumir também uma ação políti-
ca. Ao final da Fantasia organizada, ele sublinha que concluíra a Formação... “apontando
para os dois desafios a serem enfrentados no futuro imediato: completar a industrialização
e deter o processo de crescentes disparidades regionais. Como nordestino, cabia-me prio-
ritariamente dar uma contribuição na segunda dessas frentes de luta” (Furtado, 1985).

TEMPOS DE LUTA

Desde a segunda metade do século XIX, há uma questão regional no Brasil – a do Nor-
deste brasileiro, a partir das secas de 1877-1879 e de 1899 – e seu impacto sobre grande
parte da população nordestina. O governo federal implantou, em 1909, uma política
de obras públicas destinada a construir açudes, para a acumulação de água, e estradas,
com a intenção de resolver o que se considerava então como o principal problema nordes-
tino: a seca. No decênio de 1950, o equívoco dessa política, a sua apropriação pelos gran-
des proprietários de terras e a malversação de recursos públicos, a qual se tornou uma cha-
ga nacional, conduziram à necessidade de rediscussão do problema do Nordeste e de suas
soluções no âmbito de uma nova política.
O sucesso norte-americano da Tennessee Valley Authority (TVA) foi tema de debate
durante vários anos no Congresso Nacional, na década de 1940, em torno de projetos que
aplicariam aquele modelo à bacia do Amazonas e à bacia do rio São Francisco. Deles re-
sultou a criação da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia e
da Superintendência de Valorização do Vale do São Francisco. Ambos os órgãos não pas-
saram de arremedos do modelo norte-americano.
Quanto ao Nordeste, na década de 1950, assiste-se ao desenvolvimento de condi-
ções propícias ao surgimento de novas idéias, que levaram o governo federal a modificar
a sua política para aquela região.
O governo Vargas, orientado pela sua assessoria econômica, criou o Banco do Nor-
deste do Brasil (BNB) e acelerou a construção da hidrelétrica de Paulo Afonso. Na mesma

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assessoria começou-se a discutir um plano econômico para o Nordeste e um estudo de Rô-


mulo de Almeida concluía que o atraso e a pobreza da região não se deviam a fatores cli-
máticos (a falta de chuvas) e sim à organização econômica regional inadequada. Trabalhos
realizados por Hans Singer reforçaram o argumento de Rômulo de Almeida e levantaram
outras questões, como o fato de que a política de desenvolvimento nacional contribuía pa-
ra o empobrecimento relativo do Nordeste; e sobre a falta de uma política de incentivos fi-
nanceiros e fiscais para a região, prática que era adotada em alguns países europeus. A es-
ses fatos acrescentava-se a implantação do Plano de Metas do governo Kubitscheck,
iniciado em 1956 e cujos investimentos se concentravam nas regiões mais industrializadas.
As organizações da sociedade civil cresceram rapidamente no mesmo período e co-
braram do governo federal medidas que iam de investimentos compensatórios para a re-
gião à reforma agrária.
É nesse momento que as idéias de Celso Furtado sobre o Nordeste tornam-se conhe-
cidas e ganham força ao serem adotadas por Kubitscheck para servirem de base a uma po-
lítica de desenvolvimento naquela região. Uma política de desenvolvimento para o Nordes-
te, escrito por Furtado sob a forma de relatório, no início de 1959, é um marco na
literatura especializada, e até hoje constitui fonte de referência de qualquer estudo da eco-
1 Por razões de ordem táti- nomia nordestina.1 O conhecimento teórico do autor e a sua permanência na Europa de-
ca, a publicação foi feita
com a autoria do Grupo de
vastada pela guerra, mas em reconstrução, foram fundamentais para o resultado obtido.
Trabalho para o Desenvolvi- Quanto ao primeiro aspecto, é clara, no relatório, a influência do conceito de desenvol-
mento do Nordeste (GTDN).
vimento na linha cepalina, bem como o enfoque dos processos sociais cumulativos de
Myrdal, responsáveis pelos desequilíbrios regionais. O livro de Myrdal publicado na pri-
meira metade do decênio de 1950 tratava de questões do desenvolvimento capitalista que
se tornaram muito claras com a depressão de 1930. Na Europa do imediato pós-guerra,
as desigualdades sociais tanto quanto as desigualdades regionais constituíam uma questão
candente. De uma forma ampla, os governos europeus viram no planejamento o cami-
nho para solucionar essas questões. Experiências como a do Plano Marshall, para toda a
Europa, e o Planejamento Indicativo, no âmbito da França, tiveram grande êxito.
As discussões em torno dos desequilíbrios regionais, traduzidos em grandes concen-
trações econômicas nas metrópoles e empobrecimento de outras áreas. Debates esses que
propiciaram o surgimento de políticas de desenvolvimento regional em escala nacional
(Inglaterra, França e Itália, especialmente).
Entre 1946 e 1948, Celso Furtado viveu de perto essa realidade. Agregue-se a isso o
fato de que Organização e Planejamento foram campos do conhecimento que desperta-
ram grande interesse no nosso autor, em sua formação universitária no Brasil. O docu-
mento que ele apresenta a Kubitscheck em março de 1959 é, na verdade, um diagnósti-
co detalhado e bastante articulado do Nordeste e um esboço de plano de ação. Portanto,
uma proposta de planejamento para a região nordestina.
Diante das limitações de espaço, concentraremos nossa atenção nas estratégias da
nova política. Com base na análise minuciosa das relações sociais nos grandes espaços so-
cioeconômicos da região (zona da Mata, agreste e semi-árido) e da forma como eles se re-
lacionavam, Furtado conclui que o problema central era o da população que vivia da eco-
nomia de subsistência e dependente dos grandes proprietários de terras. A calamidade
social da seca é que o seu impacto é consideravelmente maior sobre essa população. Em
uma época em que a reforma agrária era socialmente inviável, Furtado propõe uma solu-
ção que era a de outros estudiosos importantes da região, particularmente Guimarães Du-
que e Ignácio Rangel: a colonização em terras férteis, fora, obviamente, do semi-árido.

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Parcelas dessa população seriam transferidas para as áreas de colonização. Essa estratégia
se tornaria viável com a incorporação do Maranhão, onde havia terras públicas da pré-hi-
léia amazônica e mais o Piauí, à região-plano da Sudene, órgão a ser criado. Nasceria da-
li o Projeto de Colonização do Maranhão.
A segunda estratégia agrícola consistia na irrigação das bacias dos açudes median-
te uma política que possibilitasse a desapropriação daquelas áreas. A primeira grande
tarefa da nova política, ainda na fase do Conselho do Desenvolvimento do Nordeste
(Codeno), foi a elaboração do projeto de lei de irrigação, cujo desdobramento veremos
mais adiante.
A terceira estratégia era a reestruturação da área de monocultura da cana-de-açúcar,
destinando-a, prioritariamente, à produção diversificada de alimentos.
A indústria regional, quase toda ela exclusivamentevoltada aos bens de consumo, es-
pecialmente têxteis e de alimentos, deveria ser modernizada, para ter condições de com-
petir com a moderna indústria do Centro-Sul. O Estado deveria investir na infra-estru-
tura (energia elétrica, transporte e saneamento) e em indústrias de base, como a
siderurgia. Além do financiamento do Estado, seriam criados mecanismos de estímulos
fiscais e financeiros, nos moldes dos praticados nos países desenvolvidos e mesmo no Cen-
tro-Sul do País.
Tratava-se, portanto, de uma política de modernização, melhor dizendo, de capita-
lização da região nordestina. O movimento camponês, mesmo continuando a luta pela
reforma agrária, não se opunha abertamente à política proposta. A grande reação partia
dos grandes interesses agrários, dos grandes proprietários de terras que concentravam sua
oposição no Congresso Nacional.
Pode-se afirmar que a proposta teve ampla aceitação das principais forças sociais que,
nos últimos anos da década de 1950, reivindicaram um tratamento diferenciado para a
região, com as restrições que já foram mencionadas. Em uma época em que se estava lon-
ge de ouvir falar em planejamento participativo, é indiscutível que o projeto da nova po-
lítica de desenvolvimento do Nordeste contou com grande apoio popular, responsável em
grande medida para que essa proposta não fosse derrotada desde o início, diante das ar-
remetidas da direita majoritária no Congresso. Esse apoio ocorreu em vários momentos e
situações, como em uma greve que paralisou Recife por um dia, para pressionar o Con-
gresso a aprovar o Primeiro Plano Diretor da Sudene.
Mas essa mobilização nem sempre conseguia contra-arrestar as investidas da direita,
que obteve duas vitórias significativas: impediu que o projeto de irrigação do Codeno fos-
se aprovado pelo Congresso Nacional e impediu que o Departamento Nacional de Obras
Contra as Secas (Dnocs) passasse a ser controlado pela Sudene, contrariando a lei que
criou esse órgão. Conseguiu, também, sabotar o Projeto de Colonização do Maranhão. É
certo que os estudos prévios sobre a área maranhense a ser colonizada não deram conta
de que ela já se encontrava quase inteiramente grilada.
A despeito do ambiente hostil criado pelas oligarquias e seus representantes na im-
prensa e no Congresso, o projeto da Sudene introduziu inovações importantes, entre as
quais ressaltamos:
• Uma estruturação institucional que se preocupou em fortalecer o sistema federativo do
País. Vejamos um dos muitos depoimentos de Furtado a esse respeito:

O recorte da federação brasileira prejudica o Nordeste, que é dividido em pedaços re-


lativamente pequenos. Estado importante é Rio Grande do Sul, é Minas Gerais, é São Paulo,

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é o Rio de Janeiro. Portanto, era preciso compensar esse aspecto perverso da Constituição,
mas como uma reforma constitucional era coisa impossível de se fazer no Brasil, apelamos
para um truque, que consistiu em criar um mecanismo de discussão e votação entre o gover-
no federal e os governos estaduais da região: foi o Conselho Deliberativo da SUDENE, que
reúne nove governadores para harmonizar pontos de vista sobre o que fazer na região. Assim,
se reivindica conjuntamente e quando se vai ao Parlamento e ao Presidente da República, o
Nordeste tem uma vontade só. (Furtado, 2001.)

• O sistema de incentivos financeiros e fiscais destinado às empresas privadas. Esse siste-


ma iniciado durante a crise de 1930, na Inglaterra, generalizou-se em praticamente to-
dos os países centrais. No Brasil, tomou-se por base principalmente o modelo italiano
destinado ao Mezzogiorno, com adaptações. Com o fim da isenção cambial, no governo
Jânio Quadros, criou-se o sistema 34/18, que constituiu uma verdadeira inovação, gra-
ças à qual foi possível aumentar significativamente a produção industrial no Nordeste.
Os desvios de recursos dos incentivos fiscais que foram surgindo com o tempo, tanto na
Sudene quanto na Sudam, jamais poderiam ser resolvidos com a medida do governo Fer-
nando Henrique Cardoso para o fechamento desses órgãos, como de fato aconteceu.
• A seriedade do órgão no uso dos recursos públicos difundiu-se rapidamente em todos
os meios. Esse fato relaciona-se com o espírito de equipe que se formou em um campo
de atividade cuja prática pouco se conhecia. Essa prática tinha que ser aprendida rapi-
damente à base de ensaio e erro. Francisco de Oliveira, que participou dessa primeira
fase da Sudene como adjunto de Celso Furtado e, posteriormente, fez várias críticas
àquele órgão, após 1964, deu, todavia, um depoimento que expressa corretamente o
trabalho naquele órgão antes daquele ano:

Um vasto sopro de esperança varreu a região. Uma convergência nunca antes vista de
classes e setores sociais, desde o campesinato, mobilizou-se para o que pensávamos ser a ta-
refa do século, a mais ingente e espinhosa de quantas reclamavam solução para a construção
de uma Nação harmônica, sem gritantes disparidades que se constatavam e que, infelizmen-
te, estes 20 anos não conseguiram desfazer. Minha geração jogou-se por inteiro naquele em-
preendimento, e tentamos converter nossa fraqueza em força: despreparados para tão gran-
de cometimento, substituímos o conhecimento científico, de que não dispúnhamos, pelo
ardor, pelo vigor e, por que não dizê-lo, pelo desprendimento. Com o inteiro apoio da po-
pulação, vale a pena lembrar, sem que isso seja uma vanglória, que a Sudene inovava com-
pletamente o estilo de desempenho dos poderes públicos, não apenas na escala regional, mas
até mesmo medida pela escala nacional. (Oliveira, 1978, apud Tavares, 2004.)

Como vimos na primeira parte deste trabalho, Celso Furtado contribuiu teorica-
mente para a compreensão do processo de desenvolvimento das economias dependentes
e, em particular, para a análise da evolução histórico-econômica da sociedade brasileira.
Particularmente, no caso do Brasil, em que a pesquisa para a sua obra maior cobriu qua-
tro séculos, a massa de textos consultados exigiu um enorme esforço de síntese. Isso, so-
mado à maioria de suas obras que tratam exclusivamente do Brasil, leva muitos estudio-
sos da obra desse autor a considerá-lo um dos raros cientistas sociais brasileiros que
conseguiram interpretar este País.
No plano da ação, podemos dizer que o seu grande mérito foi o de transformar
o planejamento numa realidade concreta, depois de várias tentativas fracassadas desde a

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década de 1930. No âmbito nacional, Furtado dirigiu o Grupo Cepal-BNDE que realizou
projeções setoriais da economia brasileira, as quais constituíram a base do Plano de Me-
tas do governo JK. No governo de João Goulart, foi ministro extraordinário do Planeja-
mento, quando elaborou o Plano Trienal de Desenvolvimento. Vimos, na segunda parte
deste texto, a sua atuação de cinco anos como idealizador e dirigente da Sudene.
Ao observarmos a produção de Furtado dos anos 80 e 90, constatamos que sua cren-
ça nas possibilidades do planejamento não se alterou ao longo do tempo. Mesmo no au-
ge do neoliberalismo, em 1999, ele afirmou: “Queiramos ou não, o planejamento foi a
grande invenção do capitalismo moderno” (Furtado, 2001).
Outro problema de enorme atualidade para o desenvolvimento do País é o de sua
organização político-territorial. Aqui ele defende a instituição do poder regional, indo
além daquilo que propôs em 1959. Vejamos o que ele nos diz:

A descentralização regional do poder central deveria ser acompanhada de um planeja-


mento plurianual que permitisse compatibilizar as aspirações das distintas regiões. Só o pla-
nejamento permite corrigir a tendência das empresas privadas e públicas a ignorar os custos
ecológicos e sociais da aglomeração espacial das atividades produtivas. Com efeito, somente
o planejamento permite introduzir a dimensão “espaço” no cálculo econômico. Este é um
ponto importante, pois a distribuição espacial da atividade econômica leva, com freqüência,
a conflitos entre regiões ou entre determinada região e um órgão do poder central.

Por último, convém não perder de vista que o revigoramento do federalismo na forma
aqui referida requer, ao lado da plena restauração da autonomia estadual e do contrapeso de
um poder regional, o fortalecimento da instituição parlamentar. Isso porque somente o po-
der que reúne os representantes do povo de todas as regiões pode dar origem a um consen-
so capaz de traduzir as aspirações dessas mesmas regiões em uma vontade nacional. (Furta-
do, 2001.)
Hermes Magalhães Tava-
res é professor adjunto do
Furtado deixou-nos aqui alguns pontos dos mais relevantes e atuais para uma agenda Ippur/UFRJ. E-mail: smtavares
da questão territorial brasileira: a persistência no planejamento, para ele único instrumen- @uol.com.br

to capaz de levar os entes econômicos a considerar os custos ecológicos e sociais do desen- Artigo recebido em novem-
bro de 2004 e aceito para
volvimento; a distribuição das atividades econômicas entre regiões; a plena restauração da publicação em março de
autonomia estadual e da instituição parlamentar. 2005.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O DESENVOLVIMENTO URBANO
DEMOCRÁTICO COMO UTOPIA
ENTREVISTA COM ERMÍNIA MARICATO,
SECRETÁRIA EXECUTIVA DO MINISTÉRIO DAS CIDADES

ANA CLARA TORRES RIBEIRO1


HENRI ACSELRAD

RBEUR: Sugerimos começar por alguns temas mais gerais, ma do saneamento ambiental, compreendendo água,
como a gênese e a construção do Ministério das Cidades, esgoto, drenagem e lixo, e o problema do transporte
para depois ir afunilando para as políticas. coletivo urbano. A proposta do Projeto Moradia apro-
fundou muito mais a política habitacional e, dentro
ERMÍNIA: Nas últimas vezes em que Lula foi candidato dela, seus elementos estruturantes: a questão fundiária,
à presidência da República constava, em seu programa a questão do financiamento e a da estrutura institucio-
de governo, a proposta de criação de um Ministério nal necessária. O Ministério das Cidades foi estrutura-
com os nomes variáveis de Ministério da Reforma Ur- do [em secretarias] a partir das três maiores fontes dos
bana, Ministério do Desenvolvimento Urbano e Mi- problemas sociais urbanos vinculados ao território: ha-
nistério das Cidades. Numa dessas oportunidades (se bitação, saneamento ambiental e transporte. A essas
não me engano, na terceira candidatura) foi criado um somou-se uma quarta secretaria, a de Programas Espe-
grupo de expressão nacional, reunindo trabalhadores ciais Urbanos, que tinha como objetos o planejamento
sindicais, professores universitários e movimentos so- e a política fundiária, entre outras atribuições.
ciais, que escreveu um programa denominado de Re-
forma Urbana, impresso pelo partido como parte do RBEUR: No que se refere a essa junção operada entre dife-
Programa de Governo. Lá propúnhamos o Ministério rentes fragmentos da máquina pública, nesses dois anos de
da Reforma Urbana. A proposta de um Ministério da existência do Ministério, você acha que foi possível olhar
Política Urbana surgiu novamente no Projeto Mora- a cidade como objeto de política, ou ainda há resíduos de
dia. Por meio do Instituto Cidadania, Lula convidou fragmentação dos instrumentos necessários para um pla-
um grupo de pessoas (profissionais, lideranças sociais, nejamento de longo prazo?
parlamentares) para elaborar uma proposta de habita-
ção. O Instituto realizou várias audiências para ouvir ERMÍNIA: Essa fragmentação vai continuar por muito
pessoas de outros segmentos. O documento elaborado tempo, por causa da própria formação universitária e
por esse grupo mostra que as soluções para a carência profissional, que é fragmentada. Lembremos do sanea-
habitacional devem ser buscadas no contexto da cida- mento e dos transportes ou então o fato de os arquite-
de. Afirmamos assim que era preciso recuperar um es- tos e urbanistas olharem muito pouco para esses temas.
paço de institucionalização da política urbana que ti- No Ministério isso é muito visível e estamos obtendo,
nha sido perdido. Segundo o Projeto Moradia, por quanto a isto, muitos ganhos por intermédio do Con-
meio de um ministério, poderíamos tratar dos três selho das Cidades. O Conselho das Cidades tem Câ-
maiores problemas sociais urbanos que, muitas vezes, maras Técnicas separadas. As discussões técnicas preci-
na discussão dos planos diretores e nos debates ur- sam de fato de um detalhamento e devem respeitar a
banísticos não apareciam como centrais: o problema necessidade do aprofundamento setorial e da verticali-
da moradia, em especial da moradia social, o proble- zação, mas é preciso também assegurar a integração. As
discussões são feitas nas Câmaras Técnicas e depois vão
1 Entrevista concedida em Porto Alegre, em janeiro de 2005. ao plenário do Conselho, o que obriga a todos os seto-

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res das políticas setoriais a dialogar com enfoque trans- de um organismo amplo e regionalizado e a existência
versal. O conceito de mobilidade, que é uma obsessão da Caixa Econômica Federal, que tem grande capila-
para nossa equipe da Secretaria Nacional de Transpor- ridade, levou à opção por não termos sedes regionais.
te e da Mobilidade Urbana, esse olhar – o da relação Alguns ministérios têm representação regional. A Cai-
entre mobilidade, transporte e desenvolvimento urba- xa Econômica Federal é operadora dos programas do
no – é muito evidente. A mobilidade no território ur- Ministério, com recursos do OGU – Orçamento Geral
bano não é dada apenas pelo transporte, mas pelo uso da União, e além de operadora é financiadora quando
e ocupação do solo. As características de um trânsito se trata de recursos do FGTS. A criação do Ministério
desumano e altamente mortal não são vistas apenas pe- traz algum impacto sobre a Caixa, e entendemos que
lo viés do veículo, mas especialmente dos pedestres, da vai levar um certo tempo para que se chegue a um pac-
falta de infra-estrutura, em especial calçadas, da falta to sobre procedimentos e encaminhamentos. Vou citar
de sinalização, do desenho urbano adequado e, eviden- um exemplo paradigmático: aprovar projeto de con-
temente, da falta de educação para o trânsito. O Dena- juntos habitacionais fora da rede urbana existente
tran – Departamento Nacional do Trânsito veio do como desejamos é algo que ainda estamos longe de
Ministério da Justiça para o Ministério das Cidades. atingir. Entendemos que precisamos de muito en-
Do Ministério dos Transportes trouxemos duas empre- tendimento e esforço de capacitação para que consiga-
sas de trens e metrôs. A Companhia Brasileira de Trens mos disseminar as idéias do direito à cidade assim
Urbanos está construindo quatro metrôs e tem a coor- como o direito à arquitetura. E não se trata apenas de
denação de três sistemas de trens, antigos e sucateados: pessoal de ponta da Caixa Econômica que precisa ser
os metrôs de Fortaleza, Recife, Belo Horizonte e Salva- preparado para o direito à cidade, são os projetistas,
dor e os sistemas de trens em Natal, Maceió e João Pes- são as prefeituras, são as universidades. A capacitação
soa. Contamos ainda com uma companhia que está si- de pessoal é tão ou mais estratégica do que a ampliação
tuada em Porto Alegre, que é a Trensurb. A política de dos recursos. Os secretários nacionais foram indicados
saneamento e a de habitação já foram aprovadas no de forma democrática com forte acento dos movimen-
Conselho das Cidades. Foram aprovadas também as tos sociais e também das corporações profissionais – o
diretrizes da Política de Mobilidade Urbana e estamos Secretário de Transporte e da Mobilidade Urbana, José
preparando a Política Nacional de Mobilidade e Trans- Carlos Xavier, por exemplo, compôs uma lista tríplice
porte Público, o que não é um tema banal: o que cabe com a participação do setorial de transportes do PT e
ao governo federal nessa área? companheiros da ANTP – Associação Nacional de
Transportes Públicos; a Frente Nacional do Saneamen-
RBEUR: E quanto aos quadros e competências? Como têm to indicou também alguns companheiros e o ministro
sido formados ou trazidos os quadros que são portadores escolheu, da lista que eles indicaram para a Secretaria
das memórias institucionais, setoriais e das especialidades. Nacional de Saneamento Ambiental, um sindicalista,
Como está ocorrendo esta composição, e qual seria a ex- Abelardo de Oliveira Filho, antigo e respeitado mili-
pectativa em termos de profissionais adequados? tante da área, com grande conhecimento técnico. O
secretário de Habitação veio com o apoio dos movi-
ERMÍNIA: O Ministério, criado em 2003, cresceu e ex- mentos de moradia. Ele passou pela Cohab de Salva-
pandiu suas atribuições em relação à Sedu – Secretaria dor e de São Paulo, pelas prefeituras de Diadema e de
Especial de Desenvolvimento Urbano que o precedeu, Ribeirão Pires, tendo sido um dos pioneiros da Articu-
mas ainda é um organismo extremamente enxuto e lação Nacional do Solo Urbano criada pela Comissão
sem funcionários de carreira. Estamos trabalhando Pastoral da Terra na década de 1980. A urbanista Ra-
com muita dificuldade em razão disso. As tarefas têm quel Rolnik, secretária nacional de Programas Urba-
sido enormes: além de criar o Ministério física e insti- nos, que dispensa apresentação, foi indicada ao minis-
tucionalmente, executar os programas e ao mesmo tro pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana. O
tempo reformulá-los, estamos debatendo com a socie- presidente do Denatran também foi indicado por di-
dade a formulação de uma nova política nacional de versas fontes pela sua extensa experiência administrati-
médio e longo prazos. A falta de recursos para a criação va com o assunto. Eu fui convidada, já no período de

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transição de governo, pelo presidente Lula, para parti- mental. A Anpur participou de todas as grandes ações,
cipar do desenho do Ministério, a partir da experiência eventos, mobilizações e propostas nessa história da Re-
que tivemos durante a elaboração do Projeto Moradia, forma Urbana. No início da gestão Lula cometemos no
e depois acabei ficando na Secretaria Executiva a con- MCidades um equívoco ao acreditar que iríamos cons-
vite do ministro Olívio Dutra, que trouxe da sua equi- truir a curto prazo uma imensa rede de capacitadores
pe anterior do governo do Rio Grande do Sul um pe- ou uma Escola das Cidades, assim como o Ministério
queno número de colaboradores, entre eles o Dirceu da Fazenda tem há décadas a Escola Fazendária. No
Lopes, chefe de gabinete, e a Íria Charão, secretária exe- entanto, ficamos tão ocupados em institucionalizar o
cutiva do Conselho das Cidades. A indicação de nomes Ministério, mudar as ações em curso, criar novos pro-
pelos respectivos setores de atuação, profissional ou mi- gramas e rubricas, que a capacitação ficou a cargo de
litante, gerou algumas críticas, assim como o fato de a uma equipe composta de uma única pessoa, ou seja,
maior parte dos quadros da equipe do Ministério virem não avançou como imaginamos. Poder executivo é pa-
do PT. Os nomes foram indicados por movimentos so- ra executar. Todos querem ver resultados a curto prazo:
ciais que na verdade estão na origem de diversas con- dos agentes do mercado ao movimento social. Corre-
quistas relativas à democratização da questão urbana – mos muito para apresentar resultados a curto prazo. Se
a Constituição Federal de 88, os orçamentos participa- começássemos planejando, para depois executar, não
tivos, o Projeto de Lei (PL) do Fundo Nacional de Ha- sobreviveríamos. Como primeiras medidas criamos
bitação de Interesse Social, o Estatuto da Cidade, e co- programas novos como parte do Plano Plurianual
mo seguimento dessa relação está também a criação do 2004/2007, mas especialmente nas áreas de Mobilida-
Ministério das Cidades com a Conferência Nacional de e Transporte Urbano, como também alguns Progra-
das Cidades e o Conselho das Cidades. Na equipe há mas Especiais Urbanos (Planejamento, Gestão, Regu-
também profissionais do PCdoB, do PSB e do PPS. De larização Fundiária, Risco etc). Acima de tudo neste
fato, nele não se encontram quadros originários do es- primeiro momento precisávamos reverter o quadro da
pectro mais amplo que hoje caracteriza o governo Lula extrema contenção de recursos. Não conseguimos tu-
do o que esperávamos, mas avançamos bastante. Do
RBEUR: E quanto ao perfil do profissional que vocês con- ponto de vista da formulação da PNDU – Política Na-
cebem como necessário? cional de Desenvolvimento Urbano, da formulação
das políticas setoriais e dos marcos institucionais, an-
ERMÍNIA: Para nós a questão ainda não está satisfato- damos em paralelo. A Política Nacional do Saneamen-
riamente resolvida. Nós, a equipe do MCidades, somos to Ambiental, que nos era muito cobrada, foi a primei-
muito poucos, e pensamos que o movimento social ra a ser levada para a discussão pública. Isso porque o
que resultou na criação do Ministério são parceiros nas projeto de lei anterior enviado pelo governo FHC não
nossas ações, juntamente com a Caixa Econômica Fe- fora aprovado devido a uma ação intensa que teve na
deral, para realizar um imenso trabalho de capacitação Frente Nacional do Saneamento, um dos seus princi-
para uma política de desenvolvimento urbano demo- pais opositores. A proposta do presidente Lula era
crática, includente e sustentável. Os movimentos so- mandar muito rapidamente o PL para o Congresso,
ciais de luta pela reforma urbana criaram um tipo de mas, diante dos muitos conflitos que surgiram, a estra-
agente social e um profissional que as escolas, com ra- tégia foi mudada e remeteu-se a proposta para as au-
ras exceções, formam. Nós mesmos ainda não temos diências públicas. Foram 11 audiências públicas que o
consolidada essa visão mais holística de amarração das Conselho das Cidades definiu e acompanhou. O pro-
políticas setoriais. Os urbanistas pretensamente têm es- jeto de lei da Política Nacional do Saneamento recebeu
sa visão, mas têm pensado a cidade de forma muito mais de quatrocentas emendas: é um marco regulató-
restrita e dirigida para o mercado. Os regionalistas rio do saneamento, estabelecendo regras para o setor e
quase não abordam o intra-urbano. Temos de cons- recuperando a importância da participação do Estado
truir esse novo profissional ao longo do caminho e mu- e do controle social. Ainda como parte desse esforço de
dar muitos dos paradigmas. No enfrentamento deste institucionalização e formulação da política, definimos
desafio a Anpur sempre foi um componente funda- também um novo Sistema Nacional de Habitação que

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já foi aprovado no Conselho das Cidades e lançamos as maior sobre estes investimentos. O governo federal
bases para uma Política Nacional de Desenvolvimento mesmo, há alguns anos, financiou obras de transporte
Urbano que contém iniciativas também nas áreas da que não estavam integradas entre si: uma foi dirigida
política fundiária e imobiliária, política de planeja- ao governo estadual e outra, ao governo municipal.
mento, de transporte e trânsito. Iniciamos programas Neste contexto é que estamos pensando o papel da An-
de capacitação em todas as secretarias. A política de pur. É importante cobrar conhecimento e proposições
trânsito, por exemplo, é uma política que capacita o para essa realidade tão seccionada, dividida, desarticu-
tempo todo pois o trânsito é uma grande tragédia, e is- lada em tantas facetas que muitas nos passam desper-
so diz respeito ao Ministério das Cidades: são quase 40 cebidas. Isso tem muito a ver com a pesquisa, o ensino
mil mortes no trânsito, anuais, e 400 mil acidentes, e a extensão. Neste momento de inflexão da nossa po-
com um grande número de pessoas incapacitadas para lítica de capacitação, a Anpur e toda entidade que tem
o resto da vida. Estamos colocando em prática a capa- potencial para auxiliar nessa transformação podem de-
citação para o plano diretor participativo. Quer dizer: sempenhar um importante papel em nossa estratégia
não é para elaborar qualquer plano diretor, mas sim de pesquisa e de capacitação. Não se pretende violar a
planos diretores que o Ministério das Cidades, o Con- autonomia da Universidade, que tem suas próprias de-
selho das Cidades e a Conferência Nacional das Ci- mandas de pesquisa, ensino e extensão. Trata-se de
dades definem como participativos, includentes e de- pactuar uma agenda para o desenvolvimento urbano
mocráticos. Para mudar paradigmas, procedimentos, clamada pela condição urbana no Brasil.
conceitos etc., precisamos de um grande movimento
de capacitação. É inacreditável o grau de carência téc- RBEUR: Este elo fundamental do setor público não entrou
nica, de informação ou de administração da maior par- ainda na agenda, não se entendeu ainda a relevância des-
te de nossas prefeituras. Um cadastro multifinalitário ta questão?
pode fazer uma grande diferença para a política fiscal,
para a política de priorização das ações (não ouso nem ERMÍNIA: Perfeito, eu ia dizer isso em seguida, não en-
falar em planejamento em alguns casos). Não se trata trou. Há uma invisibilidade da agenda urbana, espe-
de uma tarefa federal, mas nacional. O MCidades não cialmente entre os economistas, mas não só. Estamos
pode dar conta dela sozinho. Para tomar um exemplo buscando a Enap, que se articula com mais de quaren-
dramático da necessidade de melhor qualificar o gasto ta escolas de governo em todo o País, a Finep, o CNPq,
público, vou lembrar que 2/3 do orçamento do Minis- bem como vamos buscar a Capes e as fundações esta-
tério das Cidades em 2005 são formados de emendas duais para reforçar a nossa agenda.
parlamentares. Elas se distribuem pelos mais de 5.560
municípios do País. A maior parte dessas emendas ou, RBEUR: Tem que ser uma coisa forte.
R$ 700 milhões, estão dirigidos para a infra-estrutura
urbana, ou mais exatamente asfalto, em sua maior par- ERMÍNIA: Temos de elaborar coletivamente este docu-
te. Como dar maior eficiência, maior racionalidade a mento mostrando que o Ministério das Cidades pre-
estas emendas para que esse gasto seja coerente com as cisa de pesquisa, precisa de cursos, precisa de capaci-
prioridades locais? Capacitar as prefeituras, pactuar tação nessas áreas. Necessitamos do aporte de cursos
com os próprios parlamentares, poderá evitar ou dimi- de especialização e de pós-graduação, para fazer a di-
nuir desperdícios. Nós temos, ao longo de muitos ferença nesse estado de coisas. Para o Ministério fica
anos, obras construídas que não foram terminadas e uma tarefa que a gente não pode delegar: a busca de
quando terminadas não entraram em operação. Agora cooperação entre Ministérios das Cidades, da Ciência
estamos fazendo este levantamento, que não é banal, e e Tecnologia e da Educação, e a definição das necessi-
começando um choque de gestão nas localidades que dades à luz da política nacional de desenvolvimento
são objeto do investimento fragmentado. Só vamos urbano. Se conseguirmos mobilizar nossa área, com
mudar esse quadro com muita capacitação junto com todas as entidades ajudando, participando da elabora-
os governos, nos diversos níveis, e junto com as lide- ção da proposta e influindo com mais força, isso po-
ranças sociais, de modo a se obter um controle social derá ser viabilizado.

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RBEUR: Passando agora para a política de desenvolvi- nos, metas, indicadores de desempenho e controle so-
mento urbano. O Ministério sublinha o fato de que ela cial, se não podemos aplicar isso aos municípios? A
não é federal, mas nacional. Qual tem sido a efetividade nossa saída é a seguinte: quando o governo federal em-
dos instrumentos de articulação entre União, Estados e presta ao município, o município se insere no sistema
municípios? Quais os meios de “reverter a cultura políti- e, inserindo-se no sistema, tem que cumprir determi-
ca hegemônica” que tende a favorecer uma cidade para nadas obrigações e regulações. Veja como a questão
poucos, como diz o documento Política Nacional de De- não é tão simples como se esperava, nem por meio de
senvolvimento Urbano, publicado em 2004 nos Cader- uma lei aprovada no Congresso Nacional. A Constitui-
nos MCidades, volume 1? ção brasileira pretendeu descentralizar mas, ao mesmo
tempo, limitou essa descentralização por meio das
ERMÍNIA: Combater a especulação, a segregação e a ex- competências comuns e concorrentes. Também do
clusão territorial é uma tarefa longa e tem que ser pro- ponto de vista econômico existe uma dependência
duto de uma luta social. Instrumentos legais nós te- muito grande dos municípios em relação aos demais
mos, embora eles encontrem muita dificuldade na níveis de governo. Este é um dos temas para a Confe-
aplicação e sejam dependentes da correlação de forças. rência das Cidades de 2005, o pacto federativo, a ges-
A legislação avançada não é suficiente para resolver os tão compartilhada, a cooperação que se mostra neces-
problemas da desigualdade, da exclusão social e da se- sária para o desenvolvimento urbano em especial nas
gregação. A importância do Estatuto da Cidade e dos regiões metropolitanas. Precisamos esclarecer as com-
Planos Diretores é evidente, mas não suficiente. A luta petências dos diversos entes federativos e decidir se há
social e o controle sobre as Câmaras Municipais, na necessidade de novas leis complementares. Precisamos
hora em que votam a legislação de uso e ocupação do respeitar as competências já definidas claramente, mas
solo, é fundamental. Como é que você torna coerciti- não podemos deixar de reconhecer que a situação das
vo o controle social? Como usar todas essas ferramen- gestões metropolitanas está muito insatisfatória. Todo
tas de participação social, de transparência, que aju- mundo reconhece isso, inclusive a Comissão de De-
dam a negar o modelo de apropriação privada da senvolvimento Urbano do Congresso Nacional.
valorização decorrente do investimento público? Tudo Já podemos festejar um grande avanço nas rela-
isso diz respeito à autonomia dos entes federativos ções federativas que foi a aprovação da lei dos Consór-
mas, também, ao pacto federativo. Nós temos enfren- cio Públicos, que vai permitir a gestão cooperativa ou
tado, muito mais do que eu esperava antes de entrar no compartilhada de municípios, governos estaduais e
Ministério, a discussão sobre o pacto federativo. Eu União sob a égide do direito público. O impacto sobre
achava que já conhecia bem a Constituição brasileira. a administração pública brasileira dessa conquista ain-
Hoje estou aprendendo que é uma constituição de de- da não está bem assimilado.
senho extremamente complexo, porque ela define au-
tonomia para os três níveis de governo, ao mesmo tem- RBEUR: O fundamento deste pensamento holístico estaria
po que define competências comuns, concorrentes e centrado nos usos do solo, que concretamente é uma ques-
complementares. Então, a Constituição brasileira exi- tão da propriedade. Até que ponto essa dimensão estrutu-
ge a cooperação, mas tem-se, ao contrário, guerra fis- ra efetivamente os vários braços setoriais do Ministério?
cal num mesmo nível de governo, assim como imensa
disputa ou cooptação, dependendo do partido que es- ERMÍNIA: A definição do uso e da ocupação do solo é
tá aqui ou ali; ou seja, uma cultura difícil de ser supe- tarefa eminentemente municipal, a menos que se trate
rada. Discutindo o sistema de saneamento, por exem- de área de interesse ambiental, patrimônio nacional
plo, todos os assessores jurídicos do governo federal ou patrimônio da União. No entanto a PNDU – Polí-
foram unânimes em dizer que não tínhamos condição tica Nacional de Desenvolvimento Urbano tem entre
de cobrar dos municípios certas incumbências na área seus eixos estruturantes a terra urbana (ou a questão
do saneamento urbano devido à autonomia dada pela imobiliária), o financiamento e a estrutura institucio-
Constituição Federal. Uma das questões discutidas era: nal (leis, marcos, regras, competências, quadros etc.).
como é que vamos levar uma regulação que exige pla- Hoje você não faz uma política de habitação chegar

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nas camadas de baixa renda se o mercado não atingir Combinada à ampliação do mercado privado es-
a classe média. Atualmente o mercado privado atinge tamos colocando em prática uma política para a baixa
cerca de 22% da população brasileira, grosso modo. Se renda. Os recursos federais públicos e semipúblicos
não inserirmos a classe média no mercado privado va- (FGTS e demais fundos) estão sendo dirigidos para as
mos continuar gastando subsídio com ela, que tem faixas de renda situadas entre zero e cinco salários mí-
mais poder para ser ouvida, e ignorando as camadas nimos (SM), as quais concentram 92% do déficit habi-
baixa renda. Em 2000, mais de 80% dos financiamen- tacional. O orçamento do FGTS prevê mais de R$ 8 bi-
tos e investimentos federais em habitação – que não lhões para moradia e R$ 2,7 bilhões para saneamento
são exatamente públicos, porque o FGTS é gerido por (o orçamento do FAT dispõe de mais R$ 600 milhões
um conselho curador do qual o governo participa e para saneamento). Estamos sendo bem-sucedidos no
preside – estavam dirigidos para o conjunto dos que esforço paulatino de reverter o destino dos recursos
ganham mais de cinco salários mínimos, onde estão que estão em mãos do governo federal para as camadas
localizados apenas 8% do déficit habitacional. Este é de de baixa renda. Passamos de menos de 20% do
um problema estrutural do País: um mercado extre- montante destinado às faixas de até cinco SM em 2000
mamente restrito. O mercado brasileiro faz um pro- para uma projeção de 60% em 2005. Se todo esse di-
duto de luxo ou, como disse o Nilton Vargas ainda na nheiro for despejado num mercado altamente especu-
década de 1970, um artesanato de luxo. Com isto não lativo, teremos o indesejado resultado de aumentar o
se resolvia nem o problema da classe média (que tam- preço da terra e da moradia, daí nossa preocupação
bém chega a morar em favelas) e muito menos da bai- com a reforma fundiária e imobiliária, daí nossa preo-
xa renda. Temos os primeiros sinais de que estamos cupação com a função social da propriedade prevista
mudando essa situação. A aprovação de uma lei envia- no Estatuto da Cidade que, como todos sabem, se rea-
da ao Congresso Nacional e uma resolução do CMN liza por meio do Plano Diretor. A falta de políticas
(ambas em 2004) mudaram a situação do mercado fundiárias, a concentração da propriedade urbana, a
privado: os recursos do SBPE – Sistema Brasileiro de tradição patrimonialista que marca também o urbano
Poupança e Empréstimo que estavam retidos no Ban- são as grandes causas de toda a ilegalidade que temos,
co Central foram desovados para o financiamento pri- porque as próprias prefeituras têm dificuldade de che-
vado. Para 2005 um montante equivalente a R$ 12 gar na terra, e não lutam por uma legislação, por um
bilhões deverá ser aplicado no mercado. Os bancos fa- zoneamento que permita construir habitação social. A
zem pressão o tempo todo para diminuir o montante maior parte das prefeituras no Brasil simplesmente não
porque estão prevendo que não vão gastar, alegando se prepara, não enfrenta essa questão. Governos esta-
que “não tem demanda”... Por que não tem demanda? duais, nem se fala. Muitos dos Executivos e Legislati-
Não tem demanda se mantida a estrutura de mercado vos de municípios de pequeno, médio e até mesmo de
como ela se encontra hoje, com esse “artesanato de lu- grande porte são liderados por proprietários de terra e
xo” para essa faixa de renda com esse preço da terra, de imóveis.
com essa margem de lucro e com essa baixa produti-
vidade. É preciso incluir nesse mercado o professor RBEUR: Como fica a relação com o mercado no âmbito
primário e secundário e até o universitário, o policial do novo marco regulatório do saneamento? Na análise do
militar etc. São trabalhadores que têm carteira de tra- Ministério, visa-se superar problemas de indefinição
balho assinada. Os dados mostram que o financia- de competências, ineficiência na gestão e limites do Con-
mento privado foi ampliado em 53% no início de selho Monetário Nacional impostos aos empréstimos a ór-
2005. Avançou por enquanto, mas creio que a mu- gãos públicos. Esse novo marco será capaz de dar conta
dança do produto assim como o patamar tecnológico dessas três dificuldades? Como ele se situa diante das pres-
da construção devem demorar. Se essa proposta se de- sões por um projeto privatizante?
senvolver como planejado, esperamos ter o setor pro-
dutivo apoiando a reforma fundiária, já que a terra é ERMÍNIA: O principal conflito hoje dá-se em torno à
insumo fundamental para a produção em maior esca- gestão metropolitana. As companhias estaduais se co-
la. Há muito de utopia nessa coisa mas quem sabe... locam, grande parte delas, contra o projeto porque

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este reconhece a titularidade municipal fixada pela água e do esgoto, outra grande parte tem a titulação só
Constituição de 88. Ele não deixa de reconhecer – e do esgoto, e uma parte maior ainda está numa situação
nem pode – a existência e papel das companhias es- completamente irregular. Cito o exemplo do municí-
taduais. Ele reconhece essa possibilidade de com- pio de Mesquita na Baixada Fluminense. Nova Iguaçu
partilhamento do serviço de saneamento. Seria um está com contrato irregular com a Cedae – Companhia
absurdo, numa mesma bacia ou numa Região Metro- de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro. Mesquita foi
politana, não reconhecer a necessidade desse compar- desmembrada de Nova Iguaçu há quatro anos. Mes-
tilhamento. Foi forte a crítica das empresas estaduais quita está com a Cedae fornecendo água de forma in-
de saneamento às primeiras versões do projeto. Ele satisfatória. Não há nenhum contrato entre eles e o
passou por 11 audiências públicas e recebeu mais de município não sabe bem o que fazer diante desse qua-
quatrocentas contribuições para mudanças. Esse deba- dro, mas está buscando alternativas, assim como todos
te está atrasando seu envio para o Congresso. Mas es- os municípios da Baixada Fluminense que estão des-
sa discussão avançou. O principal conflito não está contentes com a situação. Estamos, em grande parte
entre estatizar e privatizar, mas entre a titularidade nas do Brasil, numa situação de caos, sem regras ou base
Regiões Metropolitanas, o papel do Estado e o papel jurídica clara. Não será a competência estadual ou mu-
dos municípios. nicipal que deverá facilitar a privatização.
Nosso projeto incorpora as PPPs – Parcerias Pú-
blico-Privadas, mas não deixa a menor dúvida sobre o RBEUR: Passando a uma outra área de indagações: com
papel do Estado como o formulador e gestor da políti- respeito à articulação com a sociedade civil organizada,
ca, além de enfatizar instrumentos de planejamento, através dos Conselhos e das Conferências, como se tem da-
metas, desempenho, controle social e transparência. do essa relação?
Esperamos que o contingenciamento dos empréstimos
ao setor público vigente neste começo de 2005 seja ERMÍNIA: O Ministério das Cidades é fruto deste mo-
transitório. vimento social que lutou muito tempo para incluir a
questão urbana na agenda nacional. A proposta de um
RBEUR: Não haveria riscos de a responsabilidade muni- Ministério das Cidades seria completamente diferente
cipal favorecer a privatização dos sistemas? sem a participação social, como mostram os órgãos
que nos antecederam. O que impede que o MCidades
ERMÍNIA: Na época do Planasa – Plano Nacional de se transforme em um balcão de negociação de emen-
Saneamento e do BNH, era orientação do governo fe- das apenas é a orientação do ministro e da sua equipe
deral, durante o regime militar, centralizar os serviços em parceria com os atores que constituem a sociedade
de saneamento. Essa centralização foi compulsória. organizada. Hoje, 2/3 do orçamento do Ministério é
Muita prefeitura conseguia recurso para habitação se, composto por emendas. Se algum ministro quisesse
em contrapartida, desse a concessão do saneamento projeção política por meio da aplicação de emendas,
para a companhia estadual. Formaram-se grandes em- encontraria no Ministério das Cidades uma situação
presas públicas e nem todas foram bem administradas. propícia. Para que o Ministério não seja reduzido a um
Muitas das companhias estaduais, aliás a maior parte, balcão, ele tem que ser o coordenador de uma política
são ineficientes. Muitas estão falidas. A maior parte nacional. Essa visão do Ministério de que a questão
dos municípios não tem organismo voltado para o sa- fundiária não pode ser desligada da questão do finan-
neamento e muitas das concessões estão em situação ir- ciamento também pode ser abandonada rapidamente,
regular. A discussão entre a Assemai – Associação das porque em nível federal não há formas evidentes de fa-
Empresas Municipais de Saneamento e a Aesb – Asso- zer uma vinculação muito profunda entre essas ques-
ciação das Empresas Estaduais ainda não chegou à tões: a fundiária, a financeira e também a institucional.
maior parte da população brasileira. Muito município Apenas por meio do financiamento que inclua no con-
lutou para ficar com o controle da água e do esgoto no trato a etapa do DI – Desenvolvimento Institucional
passado, e foi forçado a ceder. Hoje, uma grande parte podemos tornar compulsório um plano local, elabora-
dos municípios brasileiros ainda tem a titulação da ção de cadastros, bem como a participação social e o

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acompanhamento pós-ocupação, como faz o Programa leis que regulamentamos e uma rede com setor empre-
Habitar Brasil de urbanização de favelas. Por meio de- sarial de produtores de veículos para, dentro do prazo
le muitos municípios começam a se conhecer melhor, previsto pela lei, adequarmos os ônibus brasileiros e as
por exemplo quantas famílias moram ilegalmente, cidades brasileiras à mobilidade dos idosos e portado-
quantas famílias moram em favelas, em loteamentos res de deficiência. O Conselho aprovou também o pro-
ilegais ou em áreas de risco. grama de regularização fundiária que não existia no go-
Essa política, que faz avançar a administração, a verno federal, e que começou a deslanchar em meados
participação e a cidadania, deve ser garantida pelo con- do ano passado. É um programa cuja implementação
trole social que no MCidades é exercido especialmen- não depende apenas do Ministério, que tem na prefei-
te pelo Conselho das Cidades. tura seu agente central e que depende também dos
Nós realizamos a I Conferência Nacional das Ci- Cartórios de Registro de Imóvel, do Judiciário e do
dades atingindo mais de 3.400 municípios. Eu duvida- Ministério Público. A secretária de Programas Urbanos
va que chegássemos a quinhentos municípios. O mi- Raquel Rolnik acertou um convênio por meio do qual
nistro Olívio Dutra falou: “vamos chegar a mil, dois os cartórios vão fazer registro gratuito quando se tratar
mil”. O que aconteceu foi que o Ministério não reali- de moradia de interesse social. O Conselho das Cida-
zou isso sozinho, e nem poderia. Foi a mobilização so- des agora criou um grupo para fazer acompanhamen-
cial, esse braço organizado da política urbana que saiu to do orçamento do Ministério das Cidades e outro
construindo literalmente as conferências municipais e grupo para ajudar a organizar a II Conferência Nacio-
estaduais. Os governos estaduais e municipais foram os nal. No momento estamos discutindo um texto básico
promotores do evento, mas os atores organizados fo- para a próxima Conferência.
ram fundamentais. Não conseguíamos nem mandar Infelizmente a Anpur ficou fora do Conselho na
gente do Ministério para todas as reuniões. Ficamos as- condição de titular, o que é lamentável, porque a An-
soberbados com tantas conferências municipais, regio- pur tem de fato um acúmulo que é fundamental para
nais, estaduais ou dos segmentos como de arquitetos, aquele Conselho. Vamos ver se este ano as negociações
de engenheiros, reunião de universitários, de centros políticas para a renovação do Conselho permitem que
de pesquisa e de movimentos sociais que estavam dis- essa ausência seja superada.
cutindo o que foi colocado na I Conferência – os prin-
cípios, diretrizes e prioridades da política urbana. Foi RBEUR: Do ponto de vista da democratização da dinâmi-
uma construção árdua, mas acho que foi realmente um ca decisória, o que é que esses espaços conseguem incorpo-
mutirão, um esforço coletivo, e por isso ela foi tão rar em seu âmbito, considerado o alcance da crise urba-
bem-sucedida. na, da fragmentação e dos conflitos urbanos? A questão da
Nós tivemos dificuldade de pagar a instalação da segregação socioespacial pode vir a ser, depois de se enfren-
Conferência para tanta gente –– 2.800 delegados. Es- tar as questões mais imediatas, discutida e enfrentada?
tavam presentes diretores de bancos, que sentaram ao
lado de lideranças sociais de favelas e assim por diante. ERMÍNIA: A questão da segregação é um tema constan-
Não é pouco para a história do Brasil, um país de tan- te no Conselho. Quando se discute mobilidade, trans-
ta desigualdade e discriminação. Então criamos o Con- porte e acessibilidade o que está em pauta é o direito à
selho das Cidades e quatro Câmaras Técnicas que co- cidade. Com o saneamento idem, trata-se dos direitos
meçaram a funcionar a partir de 2004. da população excluída. Quando se discute habitação
O Conselho das Cidades aprovou uma campanha ou programas urbanos, esse tema vem à tona a todo o
para o plano diretor participativo que o Ministério vai momento. A questão fundiária, como já foi destacado,
levar às ruas durante este ano. Aprovou ainda o Siste- não é uma atribuição direta do Executivo federal senão
ma Nacional de Habitação, a Política Nacional do Sa- sob alguns aspectos específicos. A campanha do Plano
neamento Ambiental, a Política Nacional de Trânsito, Diretor pretende fazer com que os Planos apontem on-
diretrizes da Política de Mobilidade e Transporte e re- de vai ter moradia social no interior das áreas urbani-
visão da Lei de Parcelamento do Solo, Lei 6.766. Dis- zadas. Estamos colocando a questão nesses termos bem
cutiu-se o Programa Brasil Acessível que inclui duas simples. Onde vai morar a maior parte da população

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que hoje não tem lugar na cidade formal, legal e urba- causas dos dramas que nossas cidades vivem, no entan-
nizada? Ela não pode ser ignorada. to a formação profissional ainda é compartimentada e
elitista, ou seja, não busca soluções para a maioria que
RBEUR: Não caberia pensar um curso em que se projetas- está excluída.
se a cidade democrática?
RBEUR: Como esse debate está se organizando com vistas
ERMÍNIA: O IAB [Instituto de Arquitetos do Brasil], em à próxima Conferência das Cidades?
parceria com o Ministério das Cidades, vai conduzir
uma campanha pelo Direito à Arquitetura para Todos. ERMÍNIA: Lançamos oito cadernos da Política Nacio-
Estamos pensando no edifício e no desenho urbano, nal de Desenvolvimento Urbano. O que eles têm de
especialmente na moradia chamada impropriamente bom é o acúmulo de muitos anos de tudo o que fize-
de social. A Federação Nacional dos Arquitetos vai mos e que avançou como política institucional do
conduzir uma campanha pelo direito à cidade e ao ur- MCidades, respeitando, obviamente, os limites legais
banismo e também pela universalização da Assistência e ações em andamento. Os cadernos foram redigidos
Técnica também para a moradia social. Essas campa- um tanto prematuramente, sem que todos os estudos
nhas envolverão os Creas, o Confea, o FNEA – os estu- estivessem concluídos, e lançados no final de 2004.
dantes de Arquitetura –, a Abea. Além dos engenheiros Como o tema da reforma ministerial é recorrente es-
e arquitetos, precisamos chegar aos advogados e de- tamos sempre tentando consolidar o estágio presente
mais profissionais para as assessorias técnicas. Não se para, se houver substituição da equipe do MCidades,
trata de uma questão corporativa. Trata-se do direito à deixarmos algo de pactuado e consolidado. Entende-
cidade e do direito à moradia. Mas precisamos atingir mos que a PNDU será reescrita e complementada após
nossas instituições formadoras de profissionais e pes- a Conferência de 2005.
quisadoras... Para discutirmos a PNDU na próxima Conferên-
cia o Conselho das Cidades elegeu quatro grandes te-
RBEUR: A articulação entre luta social e capacitação nu- mas gerais e quatro campanhas de temas mais específi-
ma visão mais abrangente do que a corporativa em rela- cos. Os temas gerais são os seguintes:
ção ao direito à cidade tem se manifestado recentemente? 1 Participação social na política de desenvolvimento
urbano nos três níveis de governo.
ERMÍNIA: Sim, tem. O discurso atual do pessoal dos 2 Pacto federativo ou cooperação intergovernamental
transportes é emocionante se levarmos em conta que para o desenvolvimento urbano.
até há pouco tempo o campo foi dominado pela ma- 3 Financiamento do desenvolvimento urbano.
triz corporativa daqueles que chamávamos de “trans- 4 Prioridades da política urbano/regional e metropolita-
porteiros”. Eles pensam de forma holística. Ainda te- na (nesse caso teremos em mãos estudos que estão sen-
mos muito resquício da matriz antiga sem dúvida, mas do desenvolvidos em várias universidades federais).
a nova semente é forte. A ANTP vem, há muitos anos, As campanhas são as seguintes:
difundindo a relação entre transporte e uso do solo, a a Plano Diretor Participativo – em que a questão fun-
qual dominou, aliás, muitos dos CIAMs. Na maior par- diária e imobiliária terá centralidade com a aplicação
te das cidades brasileiras, mas em especial no Centro- do Estatuto da Cidade e a função social da proprie-
Oeste, Sul de Minas, interior de São Paulo e Norte do dade. Sempre é importante lembrar que entre inten-
Paraná, o absurdo número de lotes vazios constitui um ção e fato há uma profunda distância, por isso tere-
problema muito grave para o custo da infra-estrutura, mos de trabalhar muito para não termos novamente
em especial aquela ligada aos transportes. A desregula- uma indústria de PDs que fazem mais mal do que
mentação dos serviços públicos, os recuos dos investi- bem, como acontece freqüentemente com legisla-
mentos e a tendência de privatização, dominantes nos ções urbanísticas que reforçam a segregação e a ilega-
anos 90, atingem, de modo geral, todas as áreas das lidade. Pretendemos usar um decálogo, que na ver-
quais o MCidades se ocupa. Relacionar esses proble- dade são 12 pontos, como vacina ao PD tecnocrático
mas com a exclusão territorial nos leva a entender as e burocrático.

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b A aprovação do PL da Política do Saneamento Am- em relação à própria União quanto na relação federati-
biental – que pretende fornecer regras e dar um mar- va. Nesse sentido temos atuado de forma muito coope-
co institucional para uma área que está muito desre- rativa com a SAF – Secretaria de Assuntos Federativos,
gulada. que pertence à Secretaria de Coordenação Política.
c A aprovação do PL do Fundo Nacional de Habitação É preciso reconhecer, no entanto, que há muito a
de Interesse Social – que está há quase 13 anos no fazer nessa questão territorial, pois vários são os minis-
Congresso Nacional e que no momento está no Se- térios que elegem regiões prioritárias para intervenção,
nado, após aprovação pela Câmara Federal. como é o caso da Região do Arco do Desmatamento,
d Acessibilidade e mobilidade – campanha por uma na Amazônia, e a Região do Pantanal (ambas de inte-
cidade mais acessível para os idosos e pessoas com resse do MMA), Regiões de Fronteira (MRE, MIN e De-
deficiência. fesa), Região do Semi-Árido (Intermini) e Região do
Muitos dos participantes do Conselho das Cida- Vale do Jequitinhonha (MIN, MMA, MDS e outros), ape-
des defendem institucionalização da participação so- nas para lembrar alguns. Como há cidades em todos
cial na política urbana ou mesmo um sistema à seme- eles, nós ficamos um pouco assoberbados e sem poder
lhança do SUS. Todos concordam entretanto que responder satisfatoriamente a todas as demandas.
temos muito pouco acúmulo no País para definir tal
estrutura neste ano sem uma discussão ampla, abran- RBEUR: Você poderia falar um pouco dos constrangimen-
gente e democrática. tos de ordem macroeconômica, que certamente, nós sabe-
mos, limitam a ação transformadora: há sinais de percep-
RBEUR: E quanto a isto, como fica a relação do Ministé- ção no interior do Estado dessa forte associação entre a
rio das Cidades com os outros ministérios mas, sobretudo crise urbana e as grandes escolhas macroeconômicas?
com aquilo que podermos chamar de ministério do terri-
tório, no caso seria esse Ministério da Integração Nacional? ERMÍNIA: Eu tenho me recusado a fazer comentários
sobre a política macroeconômica, como vocês sabem.
ERMÍNIA: Essa é uma relação que estamos construindo. Sou parte do governo e espero por mudanças que nos
Foi lançado um Plano Nacional de Desenvolvimento permitam enfrentar os problemas considerando a esca-
Regional e nós estamos perfeitamente afinados com la que eles apresentam. Estou sempre procurando en-
aquelas linhas gerais e diretrizes, já que a professora Tâ- tender por onde passa a continuidade e as mudanças.
nia Bacelar participou daquela construção e hoje nos O que as determina. Quero apenas comentar aqui a
assessora na proposta da política urbana/regional. Co- constatação das dificuldades dos economistas enxerga-
mo parte dessa política foi criada uma Câmara Intermi- rem a questão urbana. Economistas em todos os níveis,
nisterial de Desenvolvimento Regional e essa câmara não só os da máquina do governo federal. No seminá-
criou alguns grupos de trabalho interministeriais visan- rio que lançou a Proposta Nacional de Desenvol-
do a integração das ações federais e algumas regiões. O vimento Urbano, insistimos na questão da relação en-
MCidades ganhou a coordenação de um GT que trata tre desenvolvimento urbano e desenvolvimento.
das regiões metropolitanas. Como nossas pernas são Ficamos impressionados como isso não é visto. Mesmo
mais curtas do que nossas tarefas, não demos ainda a nos abundantes relatórios internacionais sobre a po-
devida velocidade ao assunto que é central. A questão breza a pouca importância dada às cidades é notável,
metropolitana é especialmente delicada devido às com- em especial à política fundiária e imobiliária.
petências federativas. O quadro atual da gestão metro-
politana não é nada satisfatório, porém quando o go- RBEUR: Há uma alienação territorial incluindo as me-
verno federal toca no assunto há reações de um ou trópoles? Abstraem-se os fluxos, imaginando-se a coisa eco-
outro governo estadual contra o que é interpretado co- nômica desconectada da questão territorial?
mo uma intervenção indevida. Como o problema é
pauta da Conferência Nacional deste ano e estamos de- ERMÍNIA: Sem dúvida, essa constatação é notável. On-
senvolvendo diversos estudos e ações visando um pacto de foram parar as heranças de Caio Prado e Celso Fur-
federativo, esperamos avançar com esse assunto tanto tado?

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RBEUR: Há uma preocupação, nos textos da Política Na- vir onde o Brasil está crescendo muito, Norte, Centro-
cional de Desenvolvimento Urbano, com a menção às Oeste e alguns lugares do Leste. Numa segunda escolha,
perdas econômicas do mal desenvolvimento? teríamos de nos concentrar nas regiões metropolitanas
porque 80% das favelas estão ali localizadas. Por fim,
ERMÍNIA: Percebo que, na lógica prevalecente, não é o outros nos assinalam os pequenos municípios de base
prejuízo econômico que mais conta, mas o financeiro. rural e a necessidade de neles desenvolver consórcios
Põe-se dinheiro na obra desde que a rentabilidade da- ou associações de municípios para qualificar e segurar
quele dinheiro que você vai investir for maior do que a os jovens, dar perspectiva e condição econômica e so-
de outro negócio ou se o retorno medido pela rentabi- cial para estes jovens. Eu estou olhando isso com a
lidade financeira for maior. Essa é a lógica utilizada pa- tranqüilidade de que vamos, exatamente, ter um am-
ra aprovar projetos que compõem as exceções em rela- plo debate com propostas que não são simples, como
ção ao superávit primário. É difícil ser ouvido a partir revela a história geopolítica do Brasil.
de outro lógica. Fizemos uma proposta para a área de
transporte coletivo para compor os famosos “projetos- RBEUR: Na experiência dos eixos do Avança Brasil, esque-
pilotos” negociados com o FMI. Mostramos como um ceram as cidades. Em princípio, não seria preciso cidade
corredor de ônibus permite economia de combustível, nenhuma para a soja, mas ao construir e asfaltar vias pa-
rapidez do tráfego, pois retira automóveis de circulação, ra escoar a soja poderão aparecer favelões nas beiras de es-
diminuição de horas perdidas, economia de insumos tradas. Nesse sentido, falamos aqui da necessidade de
como pneus etc., redução da poluição, redução de aci- capacitação, da passagem ao conhecimento. Mas, onde ra-
dentes com mortos e feridos etc. Calculamos o valor de cionalidades distintas encontram-se em jogo, caberia tal-
tudo isso. O financiamento do governo federal seria vez pensar em espaços de persuasão. Haveria que se cons-
condicionado a uma política de integração dos trans- truir um arrazoado para a interlocução com fabricantes
portes, o que levaria e uma economia maior. Mas a ló- de emendas que querem o bem dessas populações que re-
gica do julgamento não é econômica mas financeira, foi presentam mas não têm a noção da relatividade daquela
o que percebi com meus parcos conhecimentos na área. decisão no âmbito do desafio de se fazer políticas mais ar-
ticuladas, mais eficazes.
RBEUR: Na discussão sobre cidade e desenvolvimento re-
gional, os documentos do Ministério falam em “tentar fa- ERMÍNIA: Aí tratar-se-ia de conscientização, um traba-
vorecer novas centralidades”, dada a nova configuração lho mais pedagógico do que propriamente preparar
da rede urbana. quadros. Vejo que na nossa ação a comunicação é fun-
damental. Ocupar o espaço político é o que me preo-
ERMÍNIA: Se você pegar as políticas setoriais e mesmo cupa o tempo todo. Como é que nós entramos na
a política intra-urbana holística, no Ministério, nós es- agenda política, como ganhamos espaço político, po-
tamos bem preparados. Temos experiência de reflexão, der político, legitimidade, importância nesse quadro
de administração e de militância. Se você pegar a ques- de invisibilidade do território e das cidades. Quando a
tão do território nacional – eu não sei se chamamos is- gente discute no Ministério constatamos um mundo
so de questão regional – é diferente. O debate não es- de boas intenções mas freqüentemente os recursos das
tá suficientemente maduro e volta e meia retornamos emendas tomam caminhos fragmentados.
para algumas teses antigas como foi o Programa de Ci- De alguma maneira, na agenda encontra-se até a
dades Médias dos anos 70. O PNUD divulgou há pou- luta para garantir a existência do Ministério sem tor-
co o que deveria ser prioridade – seiscentos municípios nar-se um balcão, com a sua missão de coordenar este
carentes. Para buscar as prioridades da política urbana esforço nacional. Estamos conquistando muitos prefei-
partindo de uma visão territorial, estamos construindo tos. O Ministério das Cidades está representando uma
uma tipologia de cidades que vai, evidentemente, levar proposta. Essa proposta conquistou muitos cargos mu-
em conta a dinâmica regional. Numa primeira opção, nicipais a partir da última eleição para prefeitos, no fi-
podemos decidir fortalecer os pólos médios regionais, nal de 2004. São pessoas que passaram pelos nossos
especialmente nas áreas dinâmicas no Brasil, ou inter- cursos (das nossas universidades), passaram pelos nos-

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sos movimentos, pelas nossas mobilizações, pelos nos- não é isso, falo do projeto em si. É preciso lembrar que,
sos eventos, que fizeram teses com denúncias ou com como governo, nós apanhamos também.
busca de saídas. Tudo isso estava muito pulverizado
apesar do esforço do movimento de reforma urbana. O RBEUR: O que o Ministério entende poder ser a contri-
que eu sinto é que estamos avançando muito rapida- buição da Anpur?
mente nesses dois anos, se olharmos todo o tempo de
caminhada. Por quê? Porque sempre falamos que o Es- ERMÍNIA: Em relação à Anpur, acho que ela deveria en-
tado tinha que assumir o seu papel de regulador. Nós trar no Conselho das Cidades, a partir da Conferência
temos muita dificuldade ainda de entrar na agenda do de 2005. Temos tanto a discussão da proposta que a
Congresso. Tivemos sim uma troca intensa com a Co- Tânia Bacelar vai trazer envolvendo uma Política Ter-
missão de Desenvolvimento Urbano da Câmara Fede- ritorial Urbana para o País, como a proposta de Políti-
ral. Avançamos em nossas relações com a equipe que ca de Pesquisa, Tecnologia e Capacitação. Nessa, a An-
coordena os trabalhos e com vários parlamentares. pur é o principal interlocutor porque não poderemos
Entre suas cinco prioridades para o orçamento de fazer essa capacitação só pela via das ONGs.
2005 a Comissão elegeu quatro que eram coincidentes
com as prioridades do Ministério. Quando chegou no RBEUR: A agenda de pesquisa deve ser conversada de mi-
orçamento final, caíram as quatro prioridades e perma- nistério para ministério, de ministro para ministro, en-
neceu uma: exatamente a que diz respeito à infra-estru- volvendo ciência e tecnologia. A conjuntura não estaria a
tura, que redunda em asfalto, especialmente. O que eu favorecer uma mobilização do movimento social e intelec-
depreendo daí? No Congresso Nacional, externamente tual em consonância com a dinâmica desse Ministério?
à Comissão de Desenvolvimento Urbano, nós ainda
não somos agentes. Nós o somos, na medida em que o ERMÍNIA: Se vocês estivessem no Conselho das Cida-
Ministério se tornou um espaço de cobiça na reforma des, a coisa já seria completamente diferente. Necessi-
ministerial mas especialmente porque concentra muitas tamos de um primeiro documento para discutir ciên-
emendas. Em relação aos economistas já comentei nos- cia, tecnologia, pesquisa e capacitação, definindo os
sa invisibilidade. Em relação à mídia, houve um avan- interlocutores, os assuntos, os financiadores, e para
ço, ainda que absolutamente insatisfatório – a Folha de quem a gente se dirige.
S. Paulo criou o caderno “Cidades”, depois o extinguiu
ou transformou-o para caderno “Cotidiano”. Raramen- RBEUR: Para concluir, você pode dizer que há espaço pa-
te você vê notícias sobre cidades nos cadernos de polí- ra uma ação política que leve a algum tipo de transfor-
tica nacional. O assunto vai para o caderno de política mação? A despeito de constrangimentos de ordem econô-
local. Mas acho que estamos avançando em visibilida- mica e da carência de recursos, há processos que valem a
de, principalmente com a criação do Ministério, do pena ser desenvolvidos?
Conselho e das Conferências. Alguns prefeitos estão
percebendo isso. Algumas entidades profissionais e so- ERMÍNIA: Sou uma pessoa muito crítica. Já abandonei
ciais estão defendendo a proposta do Ministério como muito lugar porque eu não via essa mudança, esse
se fosse uma coisa delas. Por exemplo, eu não pude ir avanço e esse crescimento. O ministro Olívio Dutra é
no Encontro do Confea em São Luís (houve reuniões um uma pessoa voltada para a o interesse público. Ele
dos Creas no País inteiro, sobre sustentabilidade urba- tem essa postura dedicada para a organização popular,
na; fui em várias, a discussão foi importantíssima e ga- social, democrática e transparente. Eu acredito que
nhamos muita gente para o debate democrático), mas nossa geração vai realizar a utopia de criar uma Políti-
percebi, lendo o jornal, que um companheiro, que é do ca Nacional de Desenvolvimento Urbano democrática,
Conselho das Cidades, assumiu as propostas do Conse- solidária, com todos os valores que a gente sempre
lho e do Ministério e divulgou nossas políticas em ela- quis. Há garantias de que ela seja sustentável? A única
boração. Foi maravilhoso. Tem alguém lá que defendeu forma de garantir sua sustentabilidade – embora sua
nossa proposta. Não digo que seja interessante essa institucionalização seja importante – é a luta social.
identidade entre papel da sociedade e papel do governo, Pois mudança cultural é o que importa.

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LES NOUVEAUX PRINCIPES urbana moderna”. Finalmente, em “Os princípios de
DE L’URBANISME um novo urbanismo”, são apresentadas as proposições
François Ascher para enfrentar os desafios da nova fase da modernida-
Paris: Éditions de l’Aube, 2004. (l’Aube poche essai.) de.
A descrição cuidadosa da relação entre as cidades
Pedro de Novais Lima Junior (UFV) e a organização e dinâmica sociais é necessária para ga-
rantir legitimidade aos preceitos que Ascher defende
As sociedades ocidentais adentram uma nova fase como adequados para nortear as intervenções urbanas
da modernidade. Profundas transformações nas formas contemporâneas. A argumentação é enriquecida de
de pensar e agir, nas ciências e técnicas, nas relações po- uma reconstrução da história dessa relação, recurso ló-
líticas, econômicas e sociais, desencadeiam uma tercei- gico para sustentar a novidade dos princípios urbanís-
ra revolução urbana moderna e colocam em pauta mu- ticos apresentados. A análise detém-se na modernida-
danças nas formas de conceber, produzir e gerir cidades de, na qual são distinguidas três fases, correspondentes
e territórios. Em linhas gerais, esse é o contexto cons- a diferentes “revoluções urbanas modernas”.
truído por François Ascher (2001) com o fim de subsi- Modernidade é o resultado de um processo (mo-
diar sua argumentação sobre a emergência e sobre a ne- dernização) de permanente transformação social, referi-
cessidade de um novo urbanismo, instrumento com o do ao futuro e impulsionado pela combinação de três
qual a sociedade pode enfrentar as transformações ur- dinâmicas diferentes: individualização, racionalização e
banas em curso, aproveitando as oportunidades que se diferenciação social. Individualização diz respeito à
apresentam e limitando possíveis efeitos nocivos. identificação da pessoa, e não do grupo ao qual perten-
Em sua primeira edição (Aube Nord, 2001) o li- ce o indivíduo, como elemento base da constituição do
vro recebeu apoio da Região Nord-Pas-de-Calais (cole- todo social (p.13). Racionalização é indicativa do des-
tividade que compõe um dos níveis da administração prezo da tradição e do valor atribuído à experiência- –
territorial francesa), dentro de um programa que se especialmente aquela elaborada na forma do conheci-
propõe a contribuir para “o desenvolvimento de uma mento científico – para o balizamento das tomadas de
cultura prospectiva regional” (segundo J-F. Stevens, da decisão. Diferenciação social, relacionada à diversifica-
Mission prospective du Conseil régional Nord-Pas-de- ção de funções e ao desenvolvimento da divisão técni-
Calais). Pelo menos outras duas edições, em coleções ca e social do trabalho, explica o aumento da diversida-
diferentes (Intervention/Monde en cours, 2001; e de e das desigualdades entre indivíduos e grupos e a
l’Aube poche essai, 2004), foram lançadas pela mesma constituição de uma sociedade cada vez mais complexa.
editora. Sua publicação recente em formato de bolso No recorte temporal apresentado, a primeira fase
consolida o reconhecimento do autor que vem, há al- da modernidade corresponde à Renascença. O desen-
gum tempo, construindo um panorama sobre a socie- volvimento e a autonomização da ciência, as mudanças
dade e o urbanismo contemporâneos (Métapolis ou quanto ao lugar da religião, a emancipação política da
l'avenir des villes, 1995; La République contre la ville, civitas e a emergência do Estado-nação contribuem pa-
1998; Ces événements nous dépassent, feignons d'en être ra reestruturar as cidades: o novo poder do Estado to-
les organisateurs, 2001). ma lugar central e apresenta-se, pela perspectiva, à
O texto está organizado em quatro partes, reve- apreciação do indivíduo; a mobilidade torna-se uma
ladoras da estrutura de argumentação do autor. Em questão importante, as cidades são expandidas e suas
“Urbanização e Modernização” encontra-se delineada ruas alargadas e diferenciadas funcionalmente. Con-
a relação histórica entre as cidades e as sociedades mo- forme nota Ascher, a cidade renascentista é moderna
dernas e entre o que são consideradas como sucessivas porque “é projeto; ela cristaliza a ambição de definir e
revoluções urbanas e as respostas urbanísticas que pro- dominar o futuro, de ser o enquadramento espacial de
curaram fazer-lhes face. A segunda parte do livro, inti- uma nova sociedade” (p.16).
tulada “A terceira modernidade”, trata da presente fase O urbanismo surge na segunda modernidade,
do processo de modernização, cujo rebatimento espa- indício da mobilização científica e técnica demandada
cial é discutido na parte seguinte: “A terceira revolução para garantir o bom desempenho dos sistemas de

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transporte e estocagem de bens, informações e pes- incerteza e risco, estratégia e precaução tornam-se as
soas. Seu propósito é atenuar as insuficiências e dis- palavras-chave da modernidade radical (também desig-
funções do mercado, conforme materializadas no am- nada reflexiva).
biente construído, por meio do ajustamento das A obrigatoriedade de escolhas constantes – deve-
cidades à realidade de um mundo industrializado e às se decidir sobre tudo todo o tempo – contribui para o
exigências da produção, distribuição e consumo desenvolvimento de padrões de vida e perfis de consu-
(p.18). Nessa média modernidade, os princípios da mo cada vez mais diversificados. Intensifica-se, assim,
indústria se tornam referência para pensar a cidade: a o processo de individualização, que se manifesta na
especialização taylorista fabril toma a forma do zonea- constituição de grupos sociais cada vez menores, que
mento espacial; com a mediação do Estado-Providên- desafiam as formas de representação política institu-
cia, o mundo fordista da produção e consumo em cionalizadas e a oferta não segmentada de bens e servi-
massa ganha materialidade, inscreve-se e estrutura o ços. Mesmo os processos tidos como homogeneizantes
espaço urbano pela disposição de redes de comunica- contribuem para acentuar a diferenciação social: a
ção, saneamento e transportes, pela implantação dos reestruturação produtiva em escala mundial se vale de
grandes conjuntos de habitação social e pela localiza- assimetrias territoriais e, assim, reforça as desigualda-
ção de equipamentos coletivos. A diferenciação social des entre sociedades locais, inclusive quando as articu-
também encontra seu lugar graças a alguns avanços la num mesmo processo de produção; a difusão, pelo
tecnológicos como os elevadores, que permitiram que planeta, de um conjunto abrangente de referências
os ricos pudessem habitar os andares ensolarados dos culturais expande o leque de opções de indivíduos e
centros urbanos, e ao desenvolvimento dos transpor- grupos (p.31).
tes coletivos, que possibilitou o surgimento dos subúr- Também contribuem para a crescente e mais
bios industriais ou residenciais. complexa diferenciação social os maiores graus de mo-
A acentuação das três dinâmicas constitutivas da bilidade social: distintas formas de socialização (pelos
modernização conforma uma sociedade mais racional, meios de comunicação e informação, por exemplo) re-
mais individualista e mais diferenciada, que o autor de- duzem o peso das origens sociais na determinação de
dica-se a descrever pois, a seu ver, é quando “nos tor- escolhas e práticas individuais. Como a mobilidade fí-
namos verdadeiramente modernos” (p.22). sica aumenta – os avanços tecnológicos permitem a au-
A aceleração do processo de transformações, ca- tonomia diante dos constrangimentos espaciotempo-
racterística da modernidade radical, coloca em dúvida rais já que, com os novos sistemas de comunicação, as
receitas anteriormente acreditadas e demanda que as interações podem prescindir do encontro direto –,
ações (intervenções urbanas, por exemplo) sejam também são ampliadas as possibilidades de contatos e
acompanhadas de processos reflexivos: é necessário trocas e, portanto, alargadas as bases sobre as quais as
examinar permanentemente as escolhas possíveis e ree- diferenças ou afinidades se assentam (p.33).
xaminá-las em função do que se começa a fazer (p.23). Ascher emprega a noção de sociedade hipertexto
A consciência das condições de limitada racionalidade para designar a emergência de indivíduos socialmente
suscita uma crescente mobilização de conhecimentos plurais, isto é, que pertencem, simultaneamente, a di-
para instruir a tomada de decisões. Assim é explicado ferentes grupos sociais (num hipertexto, uma mesma
o desenvolvimento de ciências relacionadas aos proces- palavra faz parte de uma multiplicidade de textos).
sos de decisão, tais como as teorias dos jogos e escolhas Trata-se do oposto à idéia de uma sociedade de massa,
limitadas, aplicadas na formulação de estratégias em si- pois, na modernidade radical, a atomização social é
tuações de conflitos. A demanda por reflexividade apenas aparente: os elos que ligam os indivíduos não
também justifica a importância atribuída às ciências estão rompidos, são mais instáveis, porém mais nume-
cognitivas e o interesse em novas formas de representa- rosos e fáceis de serem refeitos. Assim, a sociedade hi-
ção da realidade, como as teorias do caos e da comple- pertexto pode ser representada por séries de redes co-
xidade. As dificuldades, angústias e inseguranças da so- nectadas que expressam novos modos de construção
ciedade contemporânea são expressas em termos de identitária e de formação do tecido social (a possibili-
perigos prováveis a serem administrados (p.26). Assim, dade de indivíduos deslocarem-se entre diferentes uni-

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versos sociais é descrita em termos de uma solidarieda- sas novas formas urbanas exprimem a crescente irrele-
de comutativa, em contraste com as formas mecânica vância da proximidade na vida cotidiana e demandam
e orgânica de solidariedade, propostas por Dürkheim). grande intensidade e volume de deslocamentos espa-
O texto de Ascher acompanha a narrativa corren- ciais. Porém, as diversas metápolis são delimitadas pela
te, segundo a qual a economia contemporânea está fun- extensão de seus espaços urbanizados: a metapolização
dada na produção, apropriação, venda e uso de conhe- é considerada um duplo processo de homogeneização,
cimentos, informações e processos. A nova economia pelo qual os mesmos atores, interesses e lógicas estão
do conhecimento e da informação caracteriza-se pela distribuídos por toda a parte, mas também de diferen-
reflexividade. Ela resulta da crise dos dispositivos de ciação, construído pela concorrência interurbana, que
produção repetitivos e relativamente simplificados, pró- acentua a importância das especificidades locais.
prios do industrialismo. Ela também coloca em questão As tecnologias de informação e comunicação
a previsibilidade e o otimismo quanto ao futuro da so- contribuem para a transformação do sistema de mobi-
ciedade industrial e desestabiliza a crença no planeja- lidades urbanas e para as reestruturações espaciais. Po-
mento como meio de reduzir as incertezas (p.43). A no- rém, a cidade real não é substituída pela virtual, pelo
va economia demanda a mobilização, sob diversas contrário, ao contribuir para a banalização do audiovi-
formas, do progresso das ciências e das técnicas e de- sual, o desenvolvimento das telecomunicações termina
pende da consideração de valores de capital difíceis de por valorizar o contato direto, forma de comunicação
mensurar (know-how, relações pessoais, criatividade). privilegiada que constitui a singularidade das concen-
A economia cognitiva também é mais individua- trações urbanas.
lizada no campo do consumo e mais diferenciada no O processo de crescente individualização, com
âmbito da produção, já que emprega novas técnicas de base no qual a sociedade contemporânea se organiza,
divisão do trabalho e de exteriorização e terceirização tem como conseqüência o surgimento de novos arran-
das atividades da empresa (p.45). Por isso, suscita no- jos no espaço e no tempo individuais: envolve, em ge-
vas formas de regulação, entre as quais se destacam as ral, maiores deslocamentos e resulta em ajustes nos
parcerias entre diferentes tipos de atores (p.50). Trata- modos de regulação dos horários de trabalho e de aten-
se, sobretudo, de uma economia mais urbana, na qual dimento ao público. A maior autonomia na organiza-
a cidade é transformada em um espaço produtivo cu- ção do espaço-tempo implica maior dependência a
jas condições de desenvolvimento dependem da aces- sistemas técnicos, especialmente de transporte e comu-
sibilidade aos fluxos de riqueza. A inserção nos circui- nicação particulares. O acesso desigual a esses sistemas
tos globais constitui justificativa para as iniciativas dos é fator de diferenciação social e suscita pressões sobre
poderes públicos de criar ambientes material, econô- os serviços públicos, sobretudo demandas por meios
mica, social e culturalmente propícios para as deman- de transporte mais flexíveis. Também constitui um
das externas. problema, nesse caso para os processos institucionali-
A modernidade radical é acompanhada por uma zados de decisão política e para as organizações que se
terceira revolução urbana caracterizada, segundo o au- propõem a integrar posições sobre um grande número
tor, por cinco grandes desenvolvimentos: a metapoliza- de questões, a relativização da importância dos grupos
ção; a transformação dos sistemas urbanos de mobili- de pertença tradicionais, resultante da diversificação
dade; a formação de espaços-tempos individuais; a dos interesses individuais e da recomposição dos cole-
redefinição das relações entre interesses individuais, tivos com base na tecedura de novos e mais instáveis
coletivos e gerais, e as novas posturas quanto aos riscos. elos sociais.
O fenômeno da metapolização refere-se à mudan- O esforço moderno em dirigir o futuro – que im-
ça de escala e forma das cidades, permitida pelo desen- plica conhecer possibilidades e antecipar escolhas – e a
volvimento dos meios de transporte e estocagem de circulação intensa e acelerada de informações sobre os
pessoas, bens e informações. Metápolis são “vastas co- mais diversos fatos ampliam a incerteza e fazem crescer
nurbações, distendidas e descontínuas, heterogêneas e a noção de risco, que se difunde por diferentes domí-
multipolarizadas” (p.58), decorrentes da redução das nios da vida social (p.73). O aumento da insegurança
diferenças físicas e sociais entre a cidade e o campo. Es- resulta em maiores exigências por seguridade: atores

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sociais buscam tudo o que possa produzir confiança. ferentes demandas individuais, às novas práticas sociais
Nesse quadro desenvolve-se o “princípio da precau- e às formas variadas de sociabilidade (p.84-93).
ção”, relacionado às possíveis conseqüências de uma O novo urbanismo também tem como desafio
ação. O risco e o princípio da precaução constituem buscar mecanismos para construir quadros de referên-
elementos fundamentais no contexto sobre o qual cia e decisão mais ajustados à crescente diferenciação
agem os atores sociais, públicos e privados, diretamen- social. Isto demanda, por um lado, processos decisó-
te envolvidos na produção do espaço urbano. rios que enfatizem o compromisso, em contraste à im-
A terceira revolução urbana moderna suscita no- posição do desejo da maioria (p.88) e, por outro, a re-
vas questões aos urbanistas e planejadores urbanos e qualificação dos poderes públicos, tornando-os mais
demanda a reconsideração das categorias e dos princí- sensíveis às demandas, interesses e ações dos diversos
pios, até então dominantes, de análise e intervenção atores sociais (p.90). Nas palavras do autor, trata-se de
na cidade. Das questões surgem os desafios cujas res- trabalhar por uma “governança metapolitana”, noção
postas constituem o esboço de um novo urbanismo que indica o enriquecimento da democracia represen-
(definido como novidade em contraste com as práti- tativa com novos procedimentos de deliberação e con-
cas modernistas). sulta (p.94).
O primeiro desafio diz respeito à necessidade de O texto de Ascher é muito bem elaborado, sua
romper com os planos urbanos de longo prazo e narrativa é agradável e de fácil compreensão. A análise
de buscar abordagens mais reflexivas, que permitam do mundo contemporâneo não apresenta novidades –
elaborar e gerir os projetos num contexto incerto. Se- ela pode ser encontrada alhures: Ulrich Beck, An-
gundo Ascher, a noção de projeto é fundamental para thonny Giddens, Manuel Castells –, no entanto, o au-
as novas práticas urbanísticas, ela indica um instru- tor é perspicaz e convincente em seus exemplos, espe-
mento de antecipação (como na acepção tradicional da cialmente quando discute o papel da tecnologia na
palavra), mas também de negociação e de indução de produção de novas conformações espaciotemporais.
iniciativas de diferentes atores: projetos servem para O problema é que, ao tratar dos grandes movi-
provocar situações que evidenciam as disposições de mentos da sociedade ocidental e submetê-los à idéia de
diferentes grupos e as possibilidades e obstáculos que a modernidade, o autor desconsidera o processo de
sociedade se coloca. Trata-se de passar do planejamen- construção do social, resultado e expressão de conflitos
to urbano ao “gerenciamento estratégico urbano”, for- intensos e de diversas ordens. Pelo contrário, descreve
ma que busca aproveitar eventos e forças das quais pos- um mundo que se desenvolve espontaneamente, a par-
sa tirar partido (p.80). Como corolário dessa ênfase tir do rearranjo de suas próprias estruturas. Não são
gerencial, o novo urbanismo tende a privilegiar os re- apresentados os atores desse processo, aqueles que, em
sultados em relação aos meios e as avaliações de perfor- suas ações, constroem o mundo descrito. Aqui não é
mance em contraposição à normatividade dos planos, possível ignorar a dimensão política do trabalho de
às leis e regras impostas (eventualmente, descontextua- Ascher: a forma neutralizada como é representada a
lizadas; p.81). A ênfase na performance suscita o desen- consolidação da terceira modernidade e a revolução ur-
volvimento de instrumentos e técnicas estranhas ao ur- bana que a acompanha – como realização de tendên-
banismo modernista, acionadas para mobilizar cias anteriormente constituídas – contribui para a na-
múltiplas inteligências e integrar as lógicas de diferen- turalização da ordem social que seu proponente
tes autores. vivencia em posição privilegiada.
Em termos do espaço físico, o desafio urbanístico O trabalho de neutralização que o autor em-
diz respeito à construção de uma cidade mais comple- preende fica evidente nos trechos em que é discutida a
xa – com espaços polivalentes e equipamentos e servi- necessidade de revisão das práticas democráticas a fim
ços multifuncionais, ou seja, que permitam atividades de dar espaço às demandas de grupos cada vez mais di-
de natureza diferente num mesmo lugar – e integrada, ferenciados. Pode-se verificar, por exemplo, o desloca-
em seus diversos sistemas e redes. As mudanças são ne- mento da questão sobre quem deve participar para a já
cessárias para garantir um uso mais intensivo dos espa- suficientemente debatida e aceita idéia de que “o pla-
ços urbanos e para que as cidades possam atender às di- nejamento deve ser participativo”, resultado da ênfase

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que o autor dá à fragmentação do tecido social. Ao


longo do texto aparecem conceitos que já foram alvo
de cuidadosa crítica: consenso (sob a forma de com-
promisso; p.90), parcerias público-privadas (p.95),
empregados para descrever – e, de outra forma, para
prescrever e instrumentar – os métodos do urbanismo
contemporâneo, revelam fórmulas para garantir a pre-
valência de certas visões que transpõem para o jogo de-
mocrático as mesmas situações de desigualdade encon-
tradas no espaço social.
Por sua inclinação missionária o livro pode ser
pensado como um veículo pelo qual são difundidas ca-
tegorias, representações, esquemas de pensamento que
visam a legitimar políticas, processos e modelos em ur-
banismo e planejamento urbano. De fato, é como um
guia prático que o texto deve ser lido: não há espaço
para dúvidas, não se determinam os limites do conhe-
cimento que o informa. Na base do trabalho está uma
postura pragmática, segundo a qual se deve tirar parti-
do das oportunidades, conforme elas se apresentam na
nova economia.
Na contracapa de uma das edições, verifica-se que
o livro é recomendado pelo modo como conjuga dife-
rentes aportes disciplinares e tece a relação entre teoria
e prática no urbanismo contemporâneo. O comentário
certamente se dirige àqueles atraídos pela dimensão
normativa da teoria. Porém, o texto poderá interessar
leitores além de seu público-alvo: aqueles que desejam
conhecer – sem necessariamente comungar –, numa
síntese bem elaborada e coerente, as idéias que têm
fundamentado o receituário dominante para a inserção
das cidades nos fluxos mundiais de riqueza.

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GODARD, O. “Environnement, modes de coordination et systèmes de légitimité: analyse de la catégorie de patri-
moine naturel”. Revue Economique, Paris, n.2, p.215-42, mars 1990.
BENEVOLO, L. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1981.
Se houver até três autores, todos devem ser citados; se mais de três, devem ser citados os coordenadores, orga-
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