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do mundo ocidental a uma escala cro- são meus. Sirvo-me deles para marcar o
mática, a cor negra representaria o pólo sortilégio que a cor negra evoca no espí-
negativo. São infinitas as sugestões, nas rito deste escritor. Pois que se fosse bran-
mais sutis modalidades, que trabalham a ca a pessoa de que se trata - Gregório
consciência e a inconsciência do homem, Fortunato -, a elaboração do pensamen-
desde a infância, no sentido de conside- to teria, evidentemente, tomado outras di-
rar, negativamente, a cor negra. O de- reções. Se o guarda-costas fosse claro,
mônio, os espíritos maus, os entes huma- as aproximações seriam muito diversas.
nos ou super-humanos, quando perver- (Experimente o leitor traduzir para o
sos, as criaturas e os bichos inferiores e branco o texto acima.) O comentário do
malignos são, ordinariamente, represen- caso nos jornais e nas ruas se assinala
tados em preto. Não têm conta as ex- de ângulos muito elucidativos da degra-
pressões correntes no comércio verbal dação da cor escura. De uma revista ca-
em que se inculca no espírito humano a rioca transcrevo, por exemplo, este
reserva contra a cor negra. “Destino ne- excerto. “Gregório quis saber se terá uma
gro”, “lista negra”, “câmbio negro”, chance, um dia, de ser acareado. Disse-
“missa negra”, “alma negra”, “sonho ne- lhe eu que, na pior das hipóteses, defron-
gro”, “miséria negra”, “caldo negro”, tar-se-á com o General no sumário de
“asa negra” e tantos outros ditos impli- culpa, na Justiça comum. O preto pare-
cam sempre algo execrável. Ainda nas ceu ficar satisfeito. Esfregou as mãos
pessoas mais vigilantes contra o precon- (...). Deixei o quarto do negro e com ele
ceito se surpreendem manifestações caminhei para a sala (...). Perguntei quais
irrompidas do inconsciente em que ele eram seus amigos (...) o preto respon-
aparece. Há dias, um lider católico, culto deu (...)”. A cor humana aí perde o seu
cidadão, anti-racista por princípio, num caráter de contingência ou de acidente
dos seus artigos, em que focalizava a mo- para tornar-se verdadeiramente substân-
mentosa tragédia culminada no suicídio cia ou essência. Não adjetiva o crime.
do presidente Vargas, escrevia: “(...) pe- Substantiva-o.
las revelações tremendas do arquivo se- Tais escritos são de autoria de pes-
creto do seu mais íntimo guarda-costas, soas brancas. Mas, na verdade, mesmo
se verificou que o governo do Brasil pos- as pessoas escuras sofrem obnubilação
suía uma éminence grise, que no caso em face da cor negra. Um dos mais dra-
era uma eminência negra! E que essa máticos flagrantes disto é esta declara-
asa negra do presidente (...) escondia em ção de uma autoridade policial de cor ne-
suas fichas secretas o mais terrível libe- gra: “(...) o preto, é verdade, é feio. Uma
lo contra um regime de traficâncias e raça feia, de pele escura. Não agrada
favoritismos.” E mais adiante reporta- aos olhos, o negro é antiestético, e a ma-
se aos “que acudiam a rojar-se aos pés nifestação deste sentimento é tida como
da eminência negra, para dela conseguir preconceito.” Este, como a quase totali-
as mais escusas intervenções”. Os grifos dade dos nossos patrícios de cor, é um
O negro desde dentro
Guerreiro Ramos 187
cidadão aculturado ou assimilado, como exige ser aferida por critérios específi-
diriam os que cultivam aquela típica ci- cos. A beleza negra vale intrinsecamen-
ência de exportação e de intuitos te e não enquanto alienada. Há, de fato,
domesticadores - a antropologia. Mas pra- exemplares de corpos negros, masculi-
tiquemos um ato de suspensão da bran- nos e femininos, que valem por si mes-
cura e com este procedimento feno- mos, do ponto de vista estético, e não
menológico nos habilitaremos a alcançar enquanto se alteram ou se aculturam para
a sua precariedade e, daí, a perceber a aproximar-se dos padrões da brancura.
profunda alienação estética do homem Há homens e mulheres trigueiros, de ca-
de cor em sociedades europeizadas como belos duros e de outras peculiaridades
a nossa. De repente se nos torna perceptí- somáticas e antropométricas, nos quais
vel a venda por sobre os nossos olhos. É é imperioso reconhecer a transparência
como se saíssemos do nevoeiro da bran- de uma autêntica norma estética. A be-
cura - o que nos parece olhá-la em sua leza negra não é, porventura, uma cria-
precariedade social e histórica. E ainda ção cerebrina dos que as circunstâncias
que por um momento, para obter certa vestiram de pele escura, uma espécie de
correção do nosso aparelho ótico, pode- racionalização ou autojustificação, mas
ríamos dizer que das trevas da brancura um valor eterno, que vale, ainda que não
- só nos poderemos libertar à luz da ne- se o descubra. Não é uma reivindicação
grura. racial o que confere positividade à ne-
grura: é uma verificação objetiva. É, as-
Revelar a negrura em sua validade
sim, objetivamente que pedimos para a
intrínseca, dissipar com o seu foco de
beleza negra o seu lugar no plano egré-
luz a escuridão de que resultou a nossa
gio. Na atitude de quem associa a bele-
total possessão pela brancura - é uma
za negra ao meramente popular, folclóri-
das tarefas heróicas da nossa época. Pior
co, ingênuo ou exótico, há um precon-
do que uma alma perversa, dizia Péguy,
ceito larvar, uma inconsciente recusa de
é uma alma habituada. Nossa perver-
aceitá-la liberalmente. Eis por que é digna
são estética não nos alarma ainda por-
de repulsa toda atitude que, sob a forma de
que a repartimos com muitos, com qua-
folclore, antropologia ou etnologia, reduz os
se todos - é uma lesão comunitária que
valores negros ao plano do ingênuo ou do
passou à categoria de normalidade des-
magístico. Num país de mestiços como o
de que, praticamente, a ninguém deixa
nosso, aceitar tal visão constitui um sinto-
de atingir. A ninguém? Não. Uns poucos
ma de autodesprezo ou de inconsciente sub-
se iniciaram já na visão prístina da ne-
serviência aos padrões estéticos europeus.
grura e se postam como noviços diante
dela, isto é, emancipados do precário A aculturação é tão insidiosa que ain-
fastígio da brancura. Purgado o nosso da os espíritos mais generosos são por ela
empedernimento pela brancura, estamos atingidos e, assim, domesticados pela bran-
aptos a enxergar a beleza negra, uma cura, quando imaginam o contrário.
beleza que vale por sua imanência e que É o que parece flagrante na poesia de
188 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
foto 15
O sociólogo Guerreiro Ramos, com obras do concurso de artes plásticas sobre o tema
O Cristo Negro, promovido pelo TEN. Rio de Janeiro, 1955
190 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
O negro desde dentro
Guerreiro Ramos 191
que nous n’avons rien à faire au monde às avessas; daquele de que foram arau-
que nous parasations le monde tos Gobineau, Lapouge, Rosenberg et
Qu’il suffit que nous nous mettions au pas caterva. Trata-se de que, até hoje, o ne-
du monde gro tem sido um mero objeto de versões
mais l’oeuvre de l’homme vient seulement de cuja elaboração não participa. Em to-
de commencer das estas versões se reflete uma pers-
et il reste à l’homme à conquerir toute pectiva de que se exclui o negro como
interdiction immobilisée aux coins de sujeito autêntico. Autenticidade - é a pa-
sa ferveur lavra que, por fim, deve ser escrita. Au-
et aucune race ne possède le monopole tenticidade para o negro significa idonei-
de la beauté, de l’inteligence, de la dade consigo próprio, adesão e lealdade
force ao repertório de suas contingências exis-
et il est place pour tous au rendez-vous tenciais, imediatas e específicas. E na
de la conquête et nous savons maintenant medida em que ele se exprima de modo
que le soleil tourne autour de autêntico, as versões oficiais a seu res-
notre terre éclairant la parcelle qu’a peito se desmascaram, e se revelam nos
fixée notre volonté seule et que toute seus intuitos mistificadores, deliberados
étoile chute le ciel en terre à notre ou equivocados. O negro na versão de
commandement sans limite. seus “amigos profissionais” e dos que,
mesmo de boa fé, o vêem de fora é uma
A rebelião estética de que se trata coisa.Outra - é o negro desde dentro.
nestas páginas será um passo preliminar
da rebelião total dos povos de cor para (Publicado originalmente na revista
se tornarem sujeitos de seu próprio des- Forma, nº 3, outubro de 1954.)
tino. Não se trata de um novo racismo,