Sie sind auf Seite 1von 8

O negro desde dentro

Guerreiro Ramos 185

Texto escrito em 1964, em comemo-


O negro desde ração ao vigésimo aniversário do
Teatro Experimental do Negro.
dentro
Povos brancos, graças a uma con-
junção de fatores históricos e naturais que
não vem ao caso examinar aqui, vieram
a imperar no planeta e, como seria con-
seqüente, forçaram, sobre aqueles que
dominam, uma concepção do mundo fei-
ta à sua imagem e semelhança. Num país
como o Brasil, colonizado por europeus,
os valores mais prestigiados e, portanto,
aceitos, são os do colonizador. Entre es-
tes valores está o da brancura como sím-
bolo do excelso, do sublime, do belo. Deus
é concebido em branco e em branco são
pensadas todas as perfeições. Na cor ne-
gra, ao contrário, está investida uma car-
ga milenária de significados pejorativos.
Em termos negros pensam-se todas as
Guerreiro Ramos imperfeições. Se se reduzisse a axiologia
186 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos

do mundo ocidental a uma escala cro- são meus. Sirvo-me deles para marcar o
mática, a cor negra representaria o pólo sortilégio que a cor negra evoca no espí-
negativo. São infinitas as sugestões, nas rito deste escritor. Pois que se fosse bran-
mais sutis modalidades, que trabalham a ca a pessoa de que se trata - Gregório
consciência e a inconsciência do homem, Fortunato -, a elaboração do pensamen-
desde a infância, no sentido de conside- to teria, evidentemente, tomado outras di-
rar, negativamente, a cor negra. O de- reções. Se o guarda-costas fosse claro,
mônio, os espíritos maus, os entes huma- as aproximações seriam muito diversas.
nos ou super-humanos, quando perver- (Experimente o leitor traduzir para o
sos, as criaturas e os bichos inferiores e branco o texto acima.) O comentário do
malignos são, ordinariamente, represen- caso nos jornais e nas ruas se assinala
tados em preto. Não têm conta as ex- de ângulos muito elucidativos da degra-
pressões correntes no comércio verbal dação da cor escura. De uma revista ca-
em que se inculca no espírito humano a rioca transcrevo, por exemplo, este
reserva contra a cor negra. “Destino ne- excerto. “Gregório quis saber se terá uma
gro”, “lista negra”, “câmbio negro”, chance, um dia, de ser acareado. Disse-
“missa negra”, “alma negra”, “sonho ne- lhe eu que, na pior das hipóteses, defron-
gro”, “miséria negra”, “caldo negro”, tar-se-á com o General no sumário de
“asa negra” e tantos outros ditos impli- culpa, na Justiça comum. O preto pare-
cam sempre algo execrável. Ainda nas ceu ficar satisfeito. Esfregou as mãos
pessoas mais vigilantes contra o precon- (...). Deixei o quarto do negro e com ele
ceito se surpreendem manifestações caminhei para a sala (...). Perguntei quais
irrompidas do inconsciente em que ele eram seus amigos (...) o preto respon-
aparece. Há dias, um lider católico, culto deu (...)”. A cor humana aí perde o seu
cidadão, anti-racista por princípio, num caráter de contingência ou de acidente
dos seus artigos, em que focalizava a mo- para tornar-se verdadeiramente substân-
mentosa tragédia culminada no suicídio cia ou essência. Não adjetiva o crime.
do presidente Vargas, escrevia: “(...) pe- Substantiva-o.
las revelações tremendas do arquivo se- Tais escritos são de autoria de pes-
creto do seu mais íntimo guarda-costas, soas brancas. Mas, na verdade, mesmo
se verificou que o governo do Brasil pos- as pessoas escuras sofrem obnubilação
suía uma éminence grise, que no caso em face da cor negra. Um dos mais dra-
era uma eminência negra! E que essa máticos flagrantes disto é esta declara-
asa negra do presidente (...) escondia em ção de uma autoridade policial de cor ne-
suas fichas secretas o mais terrível libe- gra: “(...) o preto, é verdade, é feio. Uma
lo contra um regime de traficâncias e raça feia, de pele escura. Não agrada
favoritismos.” E mais adiante reporta- aos olhos, o negro é antiestético, e a ma-
se aos “que acudiam a rojar-se aos pés nifestação deste sentimento é tida como
da eminência negra, para dela conseguir preconceito.” Este, como a quase totali-
as mais escusas intervenções”. Os grifos dade dos nossos patrícios de cor, é um
O negro desde dentro
Guerreiro Ramos 187

cidadão aculturado ou assimilado, como exige ser aferida por critérios específi-
diriam os que cultivam aquela típica ci- cos. A beleza negra vale intrinsecamen-
ência de exportação e de intuitos te e não enquanto alienada. Há, de fato,
domesticadores - a antropologia. Mas pra- exemplares de corpos negros, masculi-
tiquemos um ato de suspensão da bran- nos e femininos, que valem por si mes-
cura e com este procedimento feno- mos, do ponto de vista estético, e não
menológico nos habilitaremos a alcançar enquanto se alteram ou se aculturam para
a sua precariedade e, daí, a perceber a aproximar-se dos padrões da brancura.
profunda alienação estética do homem Há homens e mulheres trigueiros, de ca-
de cor em sociedades europeizadas como belos duros e de outras peculiaridades
a nossa. De repente se nos torna perceptí- somáticas e antropométricas, nos quais
vel a venda por sobre os nossos olhos. É é imperioso reconhecer a transparência
como se saíssemos do nevoeiro da bran- de uma autêntica norma estética. A be-
cura - o que nos parece olhá-la em sua leza negra não é, porventura, uma cria-
precariedade social e histórica. E ainda ção cerebrina dos que as circunstâncias
que por um momento, para obter certa vestiram de pele escura, uma espécie de
correção do nosso aparelho ótico, pode- racionalização ou autojustificação, mas
ríamos dizer que das trevas da brancura um valor eterno, que vale, ainda que não
- só nos poderemos libertar à luz da ne- se o descubra. Não é uma reivindicação
grura. racial o que confere positividade à ne-
grura: é uma verificação objetiva. É, as-
Revelar a negrura em sua validade
sim, objetivamente que pedimos para a
intrínseca, dissipar com o seu foco de
beleza negra o seu lugar no plano egré-
luz a escuridão de que resultou a nossa
gio. Na atitude de quem associa a bele-
total possessão pela brancura - é uma
za negra ao meramente popular, folclóri-
das tarefas heróicas da nossa época. Pior
co, ingênuo ou exótico, há um precon-
do que uma alma perversa, dizia Péguy,
ceito larvar, uma inconsciente recusa de
é uma alma habituada. Nossa perver-
aceitá-la liberalmente. Eis por que é digna
são estética não nos alarma ainda por-
de repulsa toda atitude que, sob a forma de
que a repartimos com muitos, com qua-
folclore, antropologia ou etnologia, reduz os
se todos - é uma lesão comunitária que
valores negros ao plano do ingênuo ou do
passou à categoria de normalidade des-
magístico. Num país de mestiços como o
de que, praticamente, a ninguém deixa
nosso, aceitar tal visão constitui um sinto-
de atingir. A ninguém? Não. Uns poucos
ma de autodesprezo ou de inconsciente sub-
se iniciaram já na visão prístina da ne-
serviência aos padrões estéticos europeus.
grura e se postam como noviços diante
dela, isto é, emancipados do precário A aculturação é tão insidiosa que ain-
fastígio da brancura. Purgado o nosso da os espíritos mais generosos são por ela
empedernimento pela brancura, estamos atingidos e, assim, domesticados pela bran-
aptos a enxergar a beleza negra, uma cura, quando imaginam o contrário.
beleza que vale por sua imanência e que É o que parece flagrante na poesia de
188 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos

motivos negros. De ordinário, a negrura Como era linda, meu Deus!


aí aparece subalterna, principalmente Não tinha da neve a cor,
quando se focaliza a mulher, a qual se Mas no moreno semblante
celebra, em regra, em termos puramente Brilhavam raios de amor.
dionisíacos, como se neles se esgotasse
a sua especificidade. Ledo o rosto, o mais formoso
De trigueira coralina.
De anjo a boca, os lábios breves
E eu que era um menino puro
Cor de pálida cravina.
Não fui perder minha infância
No mangue daquela carne!
Em carmim rubro engastados
Dizia que era morena
Tinha os dentes cristalinos;
Sabendo que era mulata
Doce a voz, qual nunca ouviram
Dizia que era donzela
Dúbios bardos matutinos.
Nem por isso não era ela
Era uma moça que dava
..................................................
Deixava... mesmo no mar
................................................
Límpida alma - flor singela
Pelas brisas embalada,
Assim falou o nosso grande Vinicius
Ao dormir d’alvas estrelas,
de Morais. Falaram no mesmo tom, com
Ao nascer da madrugada.
a melhor das intenções, Mário de
Andrade, Jorge de Lima, Nicolas Guillén
Quis beijar-lhe as mãos divinas,
e a legião de seus imitadores. Todavia,
Afastou-mas - não consente;
pondo a salvo o propósito generoso de
A seus pés de rojo pus-me,
tais poetas, nos refolhos de suas produ-
-Tanto pode o amor ardente!
ções se surpreende, via de negra, o es-
tereótipo: “Branca pra casar, negra pra
cozinha, mulata pra fornicar!” Labora Não são raros, aliás, os momen-
pela ocultação da negrura toda esta tos em que Luís Gama alcança a visão
pátina de associações pejorativas e de essencial, não contigente, da beleza
equívocos sinceros que vestem nosso negra. Referem-se-lhe, entre outras,
espírito e que precisam ser purgados expressões como “as madeixas cres-
mediante a reiteração, em termos egré- pas, negras”, “flor louçã”, “formosa cri-
gios, dos valores negros. No Brasil, oula”, “Tétis negra”, “cabeça envolvi-
quem talvez mais perto chegou, em al- da em núbia trunfa”, “amores... lindos,
guns momentos, da visão não domesti- cor da noite”, “ebúrneo colo”. Neste
cada da beleza negra foi Luís Gama, particular, Luís Gama antecipou os
no século passado, que escreveu ver- movimentos revolucionários atuais,
sos como estes:
O negro desde dentro
Guerreiro Ramos 189

foto 15

O sociólogo Guerreiro Ramos, com obras do concurso de artes plásticas sobre o tema
O Cristo Negro, promovido pelo TEN. Rio de Janeiro, 1955
190 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos
O negro desde dentro
Guerreiro Ramos 191

como o Teatro Experimental do Negro Femme nue, femme obscure!


e o da negritude, dos intelectuais de for- Huile que ne ride nul souffle, huile
mação francesa, em que se destacam calme aux flancs de l’athlète, aux flancs
Birago e David Diop e Léopold Sédar- des princes du Mali,
Senghor (senegaleses), Gilbert Gratiant, Gazelle aux attaches célestes, les
Etienne Lero, Aimé Césaire (Martinica), perles sont étoiles sur la nuit de ta peau.
Guy Tirolien e Paul Niger (Guadalupe), Délice des jeux de l’esprit, les reflets
Léon Laleau, Jacques Roumain, Jean-F. de l’or rouge sur ta peau qui se moire.
A l’ombre de ta chevelure, s’éclaire
Brière (Haiti), Jean-Joseph Rabéarivelo,
mon agoisse aux soleils prochains de tes
Jean Rabémananjara e Flavien Ranaivo yeux.
(Madagascar). Todos esses poetas per-
ceberam a beleza negra não desfigurada Femme nue, femme noire!
pela contingência imperialista como “for- Je chante ta beauté qui passe, forme
ma (...) fixa na eternidade”, no dizer de que je fixe dans l’éternel
um deles, Léopold Sédar-Senghor, autor Avant que le destin jaloux ne te
do poema “Femme noire”, no qual assim réduise en cendres pour nourrir les racines
se expressa: de la vie.

Esta verdadeira revolução poéti-


Femme nue, femme noire
ca de nossos tempos se conjuga com todo
Vêtue de ta couleur qui est vie, de ta for- um movimento universal de auto-afirma-
me qui est beauté! ção dos povos de cor e tem, ela mesma,
J’ai grandi à ton ombre, la douceur de grande importância sociológica e políti-
tes mains bandait mes yeux. ca. Não deixam mais dúvida quanto a
Et voilá qu’au coeur de l’été et du midi, isso versos como os que se seguem, de
je te découvre terre promise du haut d’un Aimé Césaire:
haut col calciné ..........................................................
Et ta beauté me foudroie en plein coeur
comme l’éclair d’un aigle. Et nous sommes debout maintenant,
mon pays et moi, les cheveux dans le
Femme nue, femme obscure! vent, ma main petite maintenante dans
son poing énorme et la force n’est pas
Fruit mûr à la chair ferme, sombres extases en nous, mais au-dessus de nous, dans
du vin bouche qui fais lyrique ma bouche. une voix qui vrille la nuit et l’audience
Savane aux horizons purs, savane que comme la pénétrance d’une guêpe
frémis aux caresses ferventes du Vent d’est, apocalyptique.
Tam-tam sculpté, tam-tam tendu qui Et la voix prononce que l’Europe nous
grondes sous les doigts du Vainqueur, a pendant des siécles gravés de mensonge
et gonflés de pestilences,
Ta voix grave de contre-alto est le chant
car il n’est point vrai que l’oeuvre de
spirituel de l’Aimée.
l’homme est finie
192 THOTH 3/ dezembro de 1997
Depoimentos

que nous n’avons rien à faire au monde às avessas; daquele de que foram arau-
que nous parasations le monde tos Gobineau, Lapouge, Rosenberg et
Qu’il suffit que nous nous mettions au pas caterva. Trata-se de que, até hoje, o ne-
du monde gro tem sido um mero objeto de versões
mais l’oeuvre de l’homme vient seulement de cuja elaboração não participa. Em to-
de commencer das estas versões se reflete uma pers-
et il reste à l’homme à conquerir toute pectiva de que se exclui o negro como
interdiction immobilisée aux coins de sujeito autêntico. Autenticidade - é a pa-
sa ferveur lavra que, por fim, deve ser escrita. Au-
et aucune race ne possède le monopole tenticidade para o negro significa idonei-
de la beauté, de l’inteligence, de la dade consigo próprio, adesão e lealdade
force ao repertório de suas contingências exis-
et il est place pour tous au rendez-vous tenciais, imediatas e específicas. E na
de la conquête et nous savons maintenant medida em que ele se exprima de modo
que le soleil tourne autour de autêntico, as versões oficiais a seu res-
notre terre éclairant la parcelle qu’a peito se desmascaram, e se revelam nos
fixée notre volonté seule et que toute seus intuitos mistificadores, deliberados
étoile chute le ciel en terre à notre ou equivocados. O negro na versão de
commandement sans limite. seus “amigos profissionais” e dos que,
mesmo de boa fé, o vêem de fora é uma
A rebelião estética de que se trata coisa.Outra - é o negro desde dentro.
nestas páginas será um passo preliminar
da rebelião total dos povos de cor para (Publicado originalmente na revista
se tornarem sujeitos de seu próprio des- Forma, nº 3, outubro de 1954.)
tino. Não se trata de um novo racismo,

Das könnte Ihnen auch gefallen