Blackburn, Robin. A queda do escravismo colonial, 1776-1848. Tradu-
ção de Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro, Record, 2002. 599p.
Os temas da escravidão e da eman- expressão dos embates de classe e da
cipação dos escravos figuram entre diplomacia entre as grandes e peque- os mais estudados pela historiogra- nas potências escravistas da época. fia nos últimos trinta anos, e sob di- A geografia coberta não é pequena, versas perspectivas. A bibliografia dedicando-se individualmente a cada é enorme e não pára de crescer, so- uma das mais importantes regiões bretudo aquela escrita em inglês. Há escravistas das Américas e suas res- cerca de quinze anos, quando acon- pectivas metrópoles. Blackburn pro- tecia no Brasil a controvertida co- mete para um outro trabalho a análi- memoração dos cem anos de aboli- se de três dos mais vigorosos siste- ção, o historiador Robin Blackburn mas escravistas do hemisfério – o Sul publicou o livro agora traduzido. dos Estados Unidos, Cuba e Brasil Nele, ao sintetizar uma boa parte da —, que só libertaram seus escravos bibliografia sobre o processo de abo- ao longo da segunda metade do sé- lição da escravatura nas Américas, culo XIX. Mas Brasil e Cuba ganham ele oferece uma narrativa inteligen- um capítulo da obra, tratados como te de um fenômeno complexo, na boa casos que escaparam à primeira gran- tradição da historiografia marxista de onda abolicionista discutida pelo inglesa. autor. Dessa onda fez parte a aboli- Blackburn trafega entre grandes in- ção do tráfico de escravos, combati- telectuais e abolicionistas, governo e do globalmente pela Inglaterra deste sociedade, colônia e metrópole, es- o início do Oitocentos, que trouxe im- cravo e senhor; investiga os interes- portantes conseqüências para aque- ses materiais e seus vínculos com o las duas regiões. A abolição do tráfi- debate ideológico; propõe análises so- co é um dos assuntos relevantes do fisticadas da ação política enquanto livro.
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Blackburn cobre o período que vai Nesse período de retórica concentra- da revolução americana da indepen- da em torno do tema da liberdade, a dência, momento em que algumas escravidão, como escreveu Davis, se das colônias do norte adotaram tí- tornaria um problema moral. Todos mida legislação emancipacionista, os grandes movimentos reformistas até a revolução de 1848 na Europa, e revolucionários nas colônias ou nas ano em que a França aboliu a escra- metrópoles se viram obrigados a dis- vidão em suas colônias caribenhas. cuti-la, por insistência de abolicio- Esse o período que se convencionou nistas impertinentes, religiosos te- chamar de Era das Revoluções, mentes a Deus e escravos impacien- quando o mundo atlântico foi sacu- tes. Todos de alguma forma aponta- dido por polêmicas ideológicas, de- vam a hipocrisia dos belos discur- bates políticos, lutas de classes, mo- sos libertários recitados por patrio- vimentos de descolonização e outros tas, revolucionários e reformistas, os conflitos armados que tiveram como quais, ao mesmo tempo em que dis- foco a conquista de liberdades polí- cursavam, não hesitavam em ter suas ticas e civis, liberdades individuais senzalas bem abastecidas de escra- e de povos inteiros, num Ocidente vos e severamente disciplinadas por dominado por estruturas sociais e de feitores. Inclusive gente muito gran- poder aristocráticas e que se encon- de, como Thomas Jefferson e George trava atolado no tráfico e na escra- Washington. Esta seria talvez a vidão de milhões de africanos e seus grande contradição moral da época, descendentes. Os aspectos políticos resolvida por muitos através da di- e ideológicos da escravidão, princi- vulgação dos primeiros escritos mais palmente no meio anglo-saxão, já foi sistemáticos em defesa da tese de que discutido por diversos autores, en- os negros pertenciam a uma outra tre eles David Brion Davis em obra espécie de humanidade, quando não exaustiva e clássica, The Problem of eram simplesmente excluídos do Slavery in the Age of Revolution, gênero humano, daí justificar-se que 1770-1823 (Ithaca & Londres, fossem mantidos sob cativeiro. Cornell University Press, 1975). A tarefa de Blackburn não é fácil, Blackburn percorrerá muito do ter- porque não é fácil controlar a bibli- reno coberto por Davis, mas além de ografia a respeito de tema tão vasto, ampliar o escopo geográfico, sua escrita em diversas línguas, cobrin- abordagem é mais integrada por ele- do tantas regiões. Daí que seu livro mentos da história social e econô- tem altos e baixos. É muito detalha- mica. É uma discussão mais do, por exemplo, quanto ao abolici- abrangente. onismo inglês, um tema cuja litera-
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tura já era enorme na década de monstração empírica, talvez porque 1980, e não parou de crescer desde baseada numa bibliografia rala. Por então. A trajetória desse abolicionis- exemplo, as diversas e bem conhe- mo é explicada, em quase cada lan- cidas memórias proto-abolicionistas ce e personagem, desde os anos de das décadas de 1820 a 1840 não são 1770 até 1838, quando terminou examinadas, exceto a representação antes da hora prevista, por pressão de José Bonifácio à Assembléia Cons- dos libertos, o regime de “aprendi- tituinte de 1823. Nada sobre Maciel zado” estabelecido para eles no da Costa, Muniz Barreto, Frederico Caribe britânico por uma lei Burlamanque e outros. Aliás, no caso emancipacionista passada cinco da América ibérica como um todo, o anos antes. O abolicionismo euro- autor oferece uma visão para lá de peu, sobretudo o inglês, em geral panorâmica, embora útil, sobre as leis tratou o problema da escravidão abolicionistas feitas — e às vezes como parte de reformas democráti- desfeitas — no calor dos movimen- cas mais amplas da sociedade me- tos de descolonização e formação de tropolitana. Apesar de decidir suas estados nacionais. A explicação vitórias principalmente através de esboçada por Blackburn a respeito jogos de poder na cúpula de gover- da pouca tinta gasta sobre a região no, o movimento também teve seu – a menor importância da escravi- lado popular. Na Grã Bretanha as dão aqui, exceto Cuba e Brasil – não campanhas de rua mobilizaram é muito convincente, e ele próprio trabalhadores, religiosos dissidentes desconfia dela. Afinal, afora Cuba do anglicanismo, marinheiros, mu- com seus mais de duzentos mil es- lheres e outros grupos em esforços cravos, havia cerca de trezentos mil memoráveis para a obtenção de mi- escravos na América espanhola no lhares de assinaturas firmadas sobre início do século XIX. petições enviadas aos parlamentares. Em termos da política do cotidiano Blackburn desce a detalhes dessas foram os escravos que desde sempre duas frentes da luta antiescravista, a atuaram na linha de frente da luta parlamentar e a popular, inscreven- pela liberdade, e isso Blackburn ad- do-as de maneira compreensível e mite, embora não aprofunde. As for- convincente na dinâmica da história tes relações entre a política escrava social e política inglesa da época. miúda e seu conteúdo cultural — in- Já em relação ao Brasil, a região que clusive o papel da religião africana mais importou escravos da África, a — com os movimentos de maior discussão é sugestiva em muitos as- porte podem ser verificadas na re- pectos mas superficial na sua de- volução do Haiti, como esclarece
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Carolyn Fick em estudo inovador, Américas não seria a mesma depois The Making of Haiti: The Saint disso. O chamado “haitianismo” – Domingue Revolution from Below a idéia de que escravos pudessem (Knoxville, The University of destruir a escravidão e até tomar o Tennessee Press, 1990). Este livro poder — circulou pelo Atlântico ainda não estava disponível quando negro durante muitas décadas, le- Blackburn escreveu o seu, que ape- vando esperança aos escravos e te- nas tangencia o tema. Mesmo assim mor aos senhores. este autor proporciona uma discus- A narrativa de Blackburn vincula a são esclarecedora sobre o mais com- resistência explícita e coletiva dos plexo e empolgante capítulo da li- escravos às lutas abolicionistas nas bertação dos escravos nas Américas, colônias e, sobretudo, nas metrópo- a Revolução do Haiti, equilibrando les. Argumenta que os líderes escra- sua narrativa entre o abolicionismo vos souberam avaliar as conjunturas metropolitano no contexto da revo- políticas em seu redor, explorando em lução francesa e o movimento escra- benefício de suas causas os debates vo naquela que era a colônia euro- relacionados com as reformas da ins- péia mais próspera do Caribe. Ape- tituição escravista, além dos confli- sar de alguma hesitação, os rebeldes tos abertos e armados entre os ho- – muitos deles ex-escravos, como o mens livres. Durante a guerra da in- grande Toussaint Louverture — ter- dependência americana exploraram minaram por destruir a escravidão na vantagens aliando-se ao lado que ace- prática, entre 1791 e 1793, e forçar a nasse com a liberdade mais convin- Convenção Nacional da França revo- centemente. No caso do Haiti, apro- lucionária a aboli-la de direito, em veitaram-se dos conflitos intensos 1794. Ao longo de dez anos os entre republicanos e monarquistas, “jacobinos negros” enfrentaram e brancos e mulatos, petits blancs e superaram divisões em seu próprio grands blancs, e as diversas facções meio, combateram e venceram for- políticas no interior da França revo- ças enviadas pela Inglaterra, Espanha lucionária. Nas colônias britânicas – e França, as grandes potências euro- Barbados, em 1816, Demerara, em péias da época. Após a derrota das 1823, e Jamaica, em 1831-32 — mi- forças napoleônicas, encarregadas de lhares de escravos participaram de in- restabelecer a escravidão e a ordem surreições cujos líderes os havia con- colonial, eles proclamaram a inde- vencido de que notícias a respeito de pendência da ilha de Saint discussões parlamentares e atos go- Domingue em 1804, só então bati- vernamentais visando reformar as- zada como Haiti. A escravidão nas pectos mais cruentos da escravidão
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eram na verdade decretos emancipa- “drivers and skilled slaves” foi tra- cionistas emitidos pela metrópole e duzido, espantosamente, como “mo- desobedecidos pelos senhores e go- toristas [!] e hábeis escravos”, onde vernos coloniais. deveria ser “feitores e escravos Blackburn não resolve de maneira especializados (ou com ocupação es- simplista qualquer debate historio- pecializada).” A palavra maroon (p. gráfico em torno do fim do tráfico e 32) foi mantida no original, quando da escravidão. Um dos debates mais poderia ter sido traduzida por importantes e caros à tradicional in- quilombola, termo vigente na litera- terpretação marxista foi provocado tura brasileira sobre escravidão. Em por Eric Williams em Capitalism diversas passagens que se referem à and Slavery — publicado em 1944 agricultura açucareira, melhor teria e reeditado muitas vezes — e diz res- sido usar os termos engenho e se- peito ao fim do regime nas colônias nhor de engenho e não “plantation” britânicas do Caribe. Segundo (mantido no original) e “dono de Williams “os capitalistas primeiro plantation”. No próprio título a ex- encorajaram a escravidão nas índi- pressão do seu original, “colonial as Ocidentais e depois ajudaram a slavery”, ao ser traduzida por destruí-la”. Blackburn não dá uma “escravismo colonial” remete a uma rasteira em Williams, mas sobe so- perspectiva específica de interpretação bre seus ombros para ver mais lon- que não é a do autor, sendo por isso ge, demonstrando que os “capitalis- mais apropriado traduzi-la por “escra- tas” não formavam um bloco unifi- vidão colonial”, como aliás aparece em cado e que a abolição foi decidida vários momentos do texto. num processo complexo de lutas po- Nenhum dos problemas apontados líticas e de classe nas colônias e na diminui a importância deste livro, metrópole. pelo valor de suas análises sutis e A tradução do livro, embora em ge- em certos momentos brilhantes. Sua ral fluente, tem problemas às vezes publicação, apesar de atrasada mais curiosos, talvez por falta de uma re- de dez anos, deve ainda ser aplaudi- visão técnica mais cuidadosa com o da porque há pouca coisa escrita ou vocabulário especializado. A certa traduzida no Brasil sobre a escravi- altura (nota 17 do Capítulo XI), dão de uma perspectiva continental. João José Reis Professor do Departamento de His- tória da UFBA