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SOB A LUZ DO LAMPIÃO: análise das cartas dos leitores e suas relações com o jornal

Lampião da Esquina (1978-1981)

GABRIEL DONIZETTI FERREIRA SIMIONATO*

INTRODUÇÃO
Esta comunicação integra o projeto de Iniciação Científica Mulherio e Lampião da
Esquina: gênero e sexualidade como resistência da imprensa alternativa à ditadura e ao
patriarcado brasileiro (décadas de 1970 e 1980), orientado pela prof.ª dr.ª Marta Gouveia de
Oliveira Rovai, na Universidade Federal de Alfenas. Preocupa-se em estudar os periódicos
Mulherio e Lampião da Esquina para analisar as reivindicações dos movimentos feministas e
homossexual, respectivamente, nas décadas 1970 e 1980, período em que circulou os jornais.
Ambos os jornais analisados se inserem na chamada imprensa alternativa, por não
fazerem parte da grande mídia e discutirem temas até então marginalizados, como a luta pelos
direitos das mulheres e dos LGBT. Também se caracterizam na oposição à ditadura civil-militar
brasileira (1964-1985), trazendo críticas ao governo, à repressão, apoio à anistia e à volta dos
exilados políticos (SCHULTZ; BARROS, 2011: 10). Todavia, este texto se limitará somente a
analisar o jornal Lampião da Esquina, mostrando reflexões e resultados ainda em andamento.
O periódico surgiu após a visita de Winston Leyland, editor da revista Gay Sunshine
Press, de São Francisco (EUA), em 1977, que pretendia organizar uma antologia com a
literatura gay latino-americana (MOSQUEIRA, 2015: 16-17). Após sua visita, reuniram-se na
casa do artista plástico Darcy Penteado outros dez intelectuais: o jornalista Adão Costa, o
escritor Agnaldo Silva, o crítico musical Antônio Chrysóstomo, o crítico de cinema Clóvis
Marques, o poeta Francisco Bittencourt, o escritor Gasparino Damata, o cineasta Jean-Claude
Bernadet, o advogado João Antônio Mascarenhas, o cineasta e escritor João Silvério Trevisan,
e o antropólogo e professor Peter Fry. Dessa iniciativa nasceu o Lampião, que ganhava sua
edição experimental de número 0 em abril de 1978 (MARIUSSO, 2015: 46).
A partir da edição n.º 1, o jornal passou a se chamar Lampião da Esquina. Ao todo foram
publicadas 38 edições, mais 3 edições extras, com tiragem de 15 mil exemplares, circulando
até junho de 1981, quando encerrou suas atividades devido à monopolização do jornal pelos

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Graduando em História pela Universidade Federal de Alfenas – MG.
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editores do Rio de Janeiro, tornando-o um produto quase que exclusivamente para os homens
homossexuais cariocas, o que trouxe dificuldades financeiras, já que dificilmente se
encontravam patrocinadores para um jornal destinado para o público homossexual
(MARIUSSO, 2015: 60).
Na edição n.º 0, o conselho editorial já definia os objetivos do jornal: a desmistificação
de estereótipos e preconceitos, a desmarginalização e despatologização da homossexualidade,
a denúncia da repressão, a ressignificação de termos (bicha, sapatão, etc.), a conscientização e
politização da comunidade homossexual e a união com os demais setores oprimidos: mulheres,
negros, índios, ambientalistas, etc., (SILVA; BRITO, 2017: 216; SCHULTZ; BARROS, 2011:
02). Contudo, ao final de suas atividades, o foco do jornal passou a ser temas ousados e
explícitos, como masturbação e sadomasoquismo, utilizando-se da pornografia para atingir o
público, tornando-se muito mais um jornal comercial, (SCHULTZ; BARROS, 2011: 14;
FERREIRA, 2010: 11).
O Lampião da Esquina não foi o primeiro jornal destinado ao público gay, pois já
circulavam jornais como o Snob, o Fatos e Fofocas (SOTANA; MAGALHÃES, 2015: 16), o
Mundo Gay, o Entender, o Eros, que eram, inclusive, citados no Lampião da Esquina, que foi
o que teve maior alcance, de nível nacional (SCHULTZ; BARROS, 2011: 07), podendo ser
observado pelos seus pontos de distribuição. Inicialmente a distribuição em pontos fixos
(livrarias, bancas, etc.) era somente no Rio de Janeiro-RJ, na edição n.º 3 é revelada que a
distribuição já alcançava São Paulo-SP, Belo Horizonte-MG, Recife-PE, Salvador-BA,
Teresina-PI, Curitiba-PR, Florianópolis-SC e Porto Alegre-RS, além do Rio de Janeiro-RJ. Até
a edição n.º 12, a última analisada para esta comunicação, a distribuição atingia, além das
cidades já citadas, Manaus-AM e Joinville-SC.
Tamanha a repercussão e a importância do Lampião da Esquina, que se tornou um dos
marcos fundadores do movimento LGBT brasileiro, incentivando e inspirando a articulação das
sexualidades marginalizadas em grupos na luta pelos seus direitos (ZANATTA, 1996/1997:
194). Visto o contexto político em que vigorou o jornal, sua mobilização e críticas à sociedade
não passaram despercebidas. Em 1979, foi acusado de ferir a “moral e os bons costumes”,
abrindo-se contra ele um inquérito na Divisão de Censura e Diversões Públicas do
Departamento da Polícia Federal. A homossexualidade era vista pelo regime militar como uma
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artimanha comunista de conquista do ocidente, uma tática da guerra revolucionária, como era
chamada as supostas articulações comunistas para dominar o mundo (COWAN, 2014: 28-30).
Enfim, uma das seções do Lampião da Esquina de maior repercussão foi a Cartas na
Mesa, na qual os leitores escreviam para o jornal parabenizando-o, criticando-o, apresentando
sugestões, relatando experiências, reagindo a publicações, etc. Sendo essa seção a que esta
comunicação se proporá analisar, no período de um ano de circulação do jornal (edição n.º 0,
de abril de 1978 a edição 12, de maio de 1979), para se entender os impactos do jornal na
sociedade em seu ano inicial.

METODOLOGIA
Esta pesquisa se iniciou após a delimitação do tema (as cartas dos leitores) e a
periodização (ano um do jornal), pois, por meio delas, torna-se possível analisar as repercussões
do jornal, em seu ano inicial, dentro da sociedade, e as expectativas dos leitores, suas
compreensões de conceitos como gênero, sexualidade e transitoriedade. Inicialmente, as cartas
foram lidas e catalogadas, especificando suas principais ideias. Concomitantemente à leitura
das cartas, foi realizada a leitura da bibliografia existente sobre o jornal. Após, separou-se as
cartas por suas temáticas, visto a catalogação inicial, sendo elas: como os leitores concebiam
conceitos como transexualidade, travestilidade e homossexuais efeminados; como os leitores
compreendiam o papel do jornal na luta LGBT, seus elogios, críticas e sugestões; como
concebiam conceitos como preconceito, machismo e homofobia e seus relatos de experiência;
a questão conturbada das mulheres no jornal; a relação com a política do período; a relação com
outros veículos da imprensa alternativa; a questão da ressignificação dos termos e da
(auto)aceitação; a comercialização da homossexualidade; a relação com a religião; o impacto
da censura; e a questão de classes e a elitização do jornal. Escolheu-se para serem analisadas
para este trabalho a questão das sugestões e críticas, para compreender o modo que os leitores
interagiam com o periódico e suas expectativas; como os leitores entendiam a falta de mulheres
na redação; e a questão da transexualidade, travestilidade e dos homossexuais efeminados, para
o entendimento de uma cultura heteronormativa dentro da própria comunidade homossexual.
Foram utilizados os textos, como base para a contextualização do movimento
homossexual nas décadas de 1970 e 1980, Documento e identidade: O movimento homossexual
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no Brasil na década de 80 (1996/1997), de Zanatta, e o capítulo Homossexualidade, ideologia


e “subversão” no regime militar, de Cowan, do livro Ditadura e Homossexualidades:
repressão, resistência e a busca da verdade (2014), de Quinalha e Green. Para se entender os
conceitos de gênero e sexualidade, foram usados os textos A emergência do gênero (1999), de
Louro, e Gênero: uma categoria útil de análise histórica (1990), de Scott, e Problemas de
Gênero (2003), de Butler. Para análise do periódico ainda são usados os textos História dos,
nos e por meio de periódicos (2008), de Tânia de Luca, e Na oficina do historiador: conversas
sobre história e imprensa (1997), de Cruz e Peixoto.
Os textos usados para a contextualização do jornal Lampião da Esquina foram Imprensa
homossexual: Surge o Lampião da Esquina (2010), de Ferreira, e O Lampião da Esquina:
discussões de gênero e sexualidade no Brasil no final da década de 1970 (2011), de Schultz e
Barros. Para a análise das críticas e sugestões dos leitores, utilizou como base o texto Ativismo
político em traços de humor: As charges veiculadas no jornal O Lampião da Esquina (1978-
1981), de Sotana e Magalhães (2015), e Homens e mulheres nos anos 1960/70: Um modelo
definido? (2001), de Cunha. Já para a categoria da relação das mulheres com o jornal, o texto
“Então Chegamos”: Representações do feminino nas páginas d’O Lampião da Esquina (1978-
1981), de Mosqueira (2015). Por fim, os textos base para a análise da questão das transexuais,
travestis e efeminados, Travestis e transexuais no jornal ‘Lampião da Esquina’ durante a
ditadura militar (1978-1981), de Silva e Brito (2017), “Prendam, matam e comem os
travestis”: A imprensa brasileira e seu papel na exclusão da população LGBT (1978-1981), de
Mariusso (2015), Ideologia heteronormativa: Uma crítica à luz da teoria Queer (2016), de
Silva e Oliveira, e O que é homossexualidade (1985), de Fry e MacRae.

DISCUSSÃO E RESULTADOS
A seção Cartas na Mesa, presente em todas as edições, contava com as cartas dos
leitores selecionadas pelo jornal. As cartas eram publicadas com um título em referência ao seu
teor; algumas vezes, um grupo de cartas com temas parecidos eram publicadas sob um mesmo
título. Muitas vezes havia também uma resposta do jornal a cada carta. As cidades dos leitores
também variavam nas cartas analisadas, sendo 4 do Rio de Janeiro-RJ, 4 de São Paulo-SP, 3 de
Salvador-BA, 1 de Campina Grande-PB.
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Neste artigo não se pretende, ainda, apresentar análise aprofundada das cartas (por se
tratar de uma pesquisa em andamento), mas apresentar brevemente parte das temáticas trazidas
pelo jornal, a fim de que, num outro momento, possam ser analisadas a partir dos conceitos
trazidos pelos autores aqui citados.
Uma das ideias das cartas, que pode ser usada para entender como o Lampião se
colocava dentro dessa imprensa gay, é a da carta Pelo turismo interno, de Carlos C., de São
Paulo, quando diz que a ideia do jornal é boa, porém não é nova; já passaram vários jornais,
destinados para o mesmo público, que tiveram curta duração (LAMPIÃO DA ESQUINA, abr.
1978: 15). Quanto às críticas que o jornal recebia, destaca-se aquelas voltadas à seriedade do
mesmo; sucessivamente pede-se para que o jornal deixe de ser tão sério e seja mais humorístico,
com mais ilustrações e utilizando-se de charges (LAMPIÃO DA ESQUINA, mai. 1978: 15;
LAMPIÃO DA ESQUINA, jun. 1978: 15; LAMPIÃO DA ESQUINA, jul. 1978: 14;
LAMPIÃO DA ESQUINA, ago. 1978: 17).
A carta Lampião é desnudado, de um grupo de homossexuais de São Paulo, traz também
críticas ao símbolo do jornal, denunciado como falocêntrico e machista; à diagramação (letras
iguais, separação simples entre as seções); dificuldade em entender o objetivo do jornal; artigos
“frios”, sem emoção; falta de provocações e confrontações; temas angustiantes; uso do jornal
para promoção pessoal dos editores (LAMPIÃO DA ESQUINA, jul. 1978: 15).
Um dos leitores chega, inclusive, a pedir, na carta Anônimo se revela, para o jornal
“deixar de ser tão guei”, para abordar outros temas além da homossexualidade, pois ao se
restringir ao público gay e aos assuntos referentes a esse público, estaria isolando a comunidade
gay, e não a integrando à sociedade. Pede também maior participação feminina (LAMPIÃO
DA ESQUINA, mai. 1978: 15).
Dentre as sugestões, além de mais ilustrações e charges, destacam-se os pedidos por um
guia turístico homossexual, na carta Pelo turismo interno (LAMPIÃO DA ESQUINA, abr.
1978: 15). Já na carta Mais climas e alegrias, de José Márcio Penido, de São Paulo, pede-se
por menos castidade, o que se verificará nas edições finais do jornal e inclusive na edição n.º 7,
mas não sem repercussão (LAMPIÃO DA ESQUINA, ago. 1978: 17). Outra sugestão é a de
um concurso de beleza gay, presente na carta Um concurso de beleza?, de Valentino, do Rio de
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Janeiro, o que configura com a cultura do período que dava grande importância a concursos de
beleza (CUNHA, 2001: 205).
A carta Lampião é desnudado também traz algumas sugestões, além das congratulações
pela escolha do nome do jornal, fazendo referência ao rebelde e à iluminação (Lampião). Sugere
que o jornal sirva como correspondente de alguma revista homossexual internacional, também
propõe um horóscopo gay, uma mesa redonda com jornalista policiais sobre a criminalização
da homossexualidade, e indica Patrício Bisso para ser cartunista do jornal (LAMPIÃO DA
ESQUINA, jul. 1978: 14), que pelo visto atende ao pedido. Na mesma edição é anunciada a
entrada de Patrício Bisso (LAMPIÃO DA ESQUINA, jul. 1978: 02), e na edição n.º 4 ele já faz
sua estreia (LAMPIÃO DA ESQUINA, ago. 1978: 04). Ao todo, o Lampião teve 64 charges,
sendo 3 de 1978, 18 de 1979, 37 de 1980 e 6 de 1981, e os cartunistas que mais contribuíram
foram Hartur e Levi (SOTANA; MAGALHÃES, 2015: 18-19).
Uma das primeiras leitoras do Lampião da Esquina, Elisa Doolitle, de Salvador,
escreveu na carta Homens nus perguntando se o jornal publicaria fotos de rapazes nus. O jornal
respondeu-a dizendo “LAMPIÃO acha que ninguém, nem mesmo Pedrinho Aguinagua, deve
ser tratado como objeto sexual” (LAMPIÃO DA ESQUINA, abr. 1978: 14). Contudo, na
reportagem Quem resistirá a este verão, na edição n.º 7, o jornal traz fotografias de rapazes em
trajes de banho (LAMPIÃO DA ESQUINA, nov. 1978: 05). Essa mudança de perspectiva gerou
certa movimentação dos leitores, entre críticas e apoios.
Dentre as críticas, destaca-se a carta Em defesa dos bofes, de Paulo Emanuel, de
Salvador, na resposta a essa carta o jornal admite “quanto aos rapazes na praia, nossa intenção
foi essa mesma: mostra-los como objetos sexuais” (LAMPIÃO DA ESQUINA, dez. 1978: 14).
Uma segunda carta de crítica, Fabíolo Dorô ataca outra vez, de Fabíolo Dorô, de Salvador,
apesar do jornal dizer que Fabíolo Dorô e Paulo Emanuel sejam a mesma pessoa, mostra como
o jornal está sendo incoerente com o que ele mesmo disse nas suas edições iniciais. O jornal
responde-lhe afirmando que mostrar corpos masculinos para olhos masculinos, no Brasil da
época, é algo revolucionário (LAMPIÃO DA ESQUINA, fev. 1979: 14).
Em relação às mulheres, sempre foi uma temática retomada pelo jornal e pelos leitores,
já que um dos objetivos do jornal era a união do movimento gay com os outros movimentos
sociais, como o feminista. Além disso, por se tratar de um veículo da comunidade homossexual,
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não poderia se restringir unicamente ao homem gay, ainda que esse tenha sido o público que o
jornal tentava atingir. Na própria edição estreante, afirma-se “A ausência de mulheres em
LAMPIÃO não é, fique bem explicado, por culpa do seu conselho editorial; convites não
faltaram, todos recusados, mas nossas colunas continuam à disposição” (LAMPIÃO DA
ESQUINA, abr. 1978: 05). Na edição n.º 2, o jornal recebe uma carta, intitulada Cartas de
“Marias Bonitas”, na qual a leitora, identificada como Rose S., universitária, do Rio de Janeiro,
questiona a falta da participação feminina na elaboração do periódico, até mesmo brinca que
caso o jornal continue assim, fundará, ela mesma, um jornal feminino chamado Maria Bonita
(LAMPIÃO DA ESQUINA, jun. 1978: 14). Já na edição seguinte, as mulheres já estão na
redação do jornal, nas figuras das escritoras Zsu Zsu Vieira e Lúcia Rito. As mulheres,
inclusive, são manchete nessa edição, com a reportagem com a atriz Norma Bengell
(LAMPIÃO DA ESQUINA, jul. 1978: 01).
Contudo, a problemática da participação feminina não é resolvida nas edições iniciais.
Na edição n.º 9, na carta Dar a palavra à gente comum, assinada por Carmen Lúcia, do Rio de
Janeiro, é retomado o pedido por mais participação feminina, ao qual o jornal responde “Não
tem sido fácil transar com as mulheres, Carminha. Elas enfrentam uma barra muito mais pesada,
e por isso hesitam em sair a luz” (LAMPIÃO DA ESQUINA, jan. 1979: 14).
Na edição n.º 11, na carta A voz da mulher, assinada por Telma Radicez de São Paulo,
o teor da carta passa de pedinte por mais participação feminina para crítico. Expõe como o
jornal não está tão preocupado em resolver a questão das mulheres. Diz que o periódico quando
trata das mulheres é com “tom simpático e paternalista de dono da bola, que concede se quiser,
como quiser e quando quiser”. Afirma também que o Lampião da Esquina dá respostas evasivas
quando se trata da participação feminina, “vocês se arriscam, involuntariamente, a assumir, em
relação à mulher homossexual, a mesma posição repressora e medrosa que a sociedade assume
em relação ao homem e à mulher homossexuais”. O Lampião responde que as publicações sobre
mulheres e de mulheres estão acontecendo, todavia em menor escala que o ideal, mas afirma
que, finalmente, as mulheres estão o invadindo (LAMPIÃO DA ESQUINA, mar. 1979: 18).
No ano I de circulação do jornal, ao longo de 13 edições, somente quatro capas trouxeram como
matéria principal algo relacionado com as mulheres (edições n.º 3, 5, 11 e 12).
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Por fim, a questão da travestilidade, transexualidade e feminilidade em homens


homossexuais. A carta Pauladas na bichórdia, de José Alcides Ferreira, do Rio de Janeiro, se
inicia agradecendo o surgimento do Lampião da Esquina, pois estava em falta uma publicação
para o público gay que fosse boa e produtiva. Relata que o jornal Mundo Gay se perdeu em sua
própria fragilidade, já “o Entender também e crucificou entre tantos “roteiros” e mau caratismo
(os travestis invadiram todas as páginas e “sujaram” a barra) ” (LAMPIÃO DA ESQUINA, jun.
1978: 14). Percebe-se nesse trecho uma tendência comum de relacionar as travestis com todo
um submundo marginalizado e odiado (mendigos, criminosos, prostitutas, etc.), tratando-as
como seres perigosos para a manutenção da ordem social (MARIUSSO, 2015: 50).
A carta continua, agora referente ao boletim Eros, que, segundo o leitor, acabou por ter
buscado “apoio junto de uma camada de homossexuais bastante entorpecida pela bichice”
(LAMPIÃO DA ESQUINA, jun. 1978: 14), não está claro em que sentido a palavra bichice foi
usada, mas provavelmente no sentido de feminilidade de homens homossexuais, seguindo a
linha de raciocínio do próprio leitor. Ainda se refere às travestis como estando a “serviço da
Sociedade de Proteção ao Machismo”, sendo um “esboço bizarro da escrava doméstica e do
objeto sexual que ainda é a mulher” (LAMPIÃO DA ESQUINA, jun. 1978: 14).
Uma das relações mais comuns feitas com a transexualidade e travestilidade é de que se
trata de um distúrbio mental (SILVA; BRITO, 2017: 222-223), o que se verifica quando José
Alcides Ferreira diz que essas bichas são incapazes de se imporem como gente (LAMPIÃO DA
ESQUINA, jun. 1978: 14); além disso, diferentemente da homossexualidade, que foi retira do
catálogo de doenças mentais da OMS (Organização Mundial da Saúde) em 17 de maio de 1990,
somente em 18 de junho de 2018 que a transexualidade foi desqualificada como distúrbio
mental. Percebe-se também a dificuldade de se entender a travesti, já que a travestilidade
configura a própria inconstância, fluidez e transitoriedade entre os gêneros, sexos e
sexualidades e a multiplicidade dos corpos, não se encaixando nos padrões vigentes, não sendo
nem totalmente feminina nem masculina (SILVA; BRITO, 2017: 222; BUTLER, 2003).
Por último, nota-se que, ao criticar as travestis por “manterem” a sociedade machista, o
próprio leitor contribui para isso, reforçando preconceitos e estereótipos, mantendo o status
quo, defendendo a heteronormatividade, na qual os sexos definem os gêneros, e ambos, mais
as sexualidades, são fixos e invariantes; a norma heterossexual é tida como natural e o padrão
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ideal para a sociedade, definindo as funções sociais para homens e mulheres (SILVA;
OLIVEIRA, 2016: 3-4). Mesmo nas relações homossexuais, a heteronormatividade impera por
definir comportamentos segundo as funções sexuais, nas quais, tanto em uma relação
homossexual feminina como masculina, o(a) ativo(a) deve fazer o papel do homem e o(a)
passivo(a) o papel da mulher (FRY; MACRAE, 1985: 43-45).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O jornal Lampião da Esquina foi um importante veículo de conscientização e
politização da comunidade homossexual brasileira nos finas da década de 1970 e início da
década de 1980. Propunha-se a retirar o homossexual da marginalização por meio de sua auto
aceitação, do seu reconhecimento como homossexual e da construção de uma identidade
homossexual entre seus leitores. Servindo como inspiração, articulou os vários grupos e
movimentos homossexuais que surgiram após sua estreia em abril de 1978.
Percebe-se por meio das cartas dos leitores o público que o Lampião atingia e sua
repercussão nesses meios. As cartas também permitem compreender as continuidades e
descontinuidades dos pensamentos referentes às questões de gênero, sexo, sexualidade e
transitoriedade. É possível entender também as marginalizações dentro do próprio movimento
homossexual, como é percebido pela falta de participação de lésbicas no jornal e os
preconceitos que os leitores cultivavam quando se tratava de transexualidade, travestilidades e
de efeminados (o que ainda será analisado mais cuidadosamente no encaminhamento da
pesquisa).
Enfim, o Lampião da Esquina fortaleceu a comunidade LGBT apesar de seus limites,
muito apontados pelos leitores, recebendo críticas numa sociedade marcada pela
heteronormatividade e pelas disputas dentro do próprio movimento LGBT, ainda tratado pela
denominação de gay. Porém, ao final, desviou-se dessa proposta e, por fim, encerrou suas
atividades em junho de 1981, por razões que serão melhor analisadas. Todavia, ainda hoje, no
seio do movimento LGBT, brilha a luz originária do Lampião da Esquina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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