.........16 de julho de 1833 - Esta é uma data memorável para mim;
completo trezentos e vinte e três anos! .........O Judeu Errante? - Claro que não. Mais de dezoito séculos passaram por sua cabeça. Comparado a ele, sou um Imortal muito jovem. .........Sou, então, imortal? Essa é uma pergunta que me tenho feito, dia e noite, no decorrer destes trezentos e vinte e três anos e, contudo, não consigo responder a ela. Percebi um fio de cabelo grisalho em meio a minhas madeixas castanhas ainda hoje, e isso certamente significa decadência. Contudo, pode ter ficado escondido ali por trezentos anos, pois algumas pessoas ficam com os cabelos completamente brancos antes dos vinte. .........Contarei minha história, e o leitor julgará por si, Contarei minha história e, assim, conseguirei passar algumas horas de uma longa eternidade, que se tornou tão enfadonha... Para sempre! O leitor pode imaginar viver para sempre? Ouvi falar de encantamentos em que as vítimas mergulhavam em sono profundo, para acordar depois de cem anos, bem dispostas como nunca. Ouvi falar nos Sete Adormecidos (dessa forma, ser imortal não seria tão cansativo), mas, oh!, o peso do tempo interminável, a passagem tediosa das horas que se sucedem... Como era feliz o fabuloso Nourjahad. . . Mas vamos a minha história. .........Todo mundo já ouviu falar de Cornelius Agrippa. Sua memória é tão imortal quanto suas artes que me fizeram imortal. Todo mundo também ouviu falar de um seu aluno que, sem querer, na ausência do mestre, despertou o odioso espírito do mal e foi destruído por ele. O rumor, verdadeiro ou falso, desse acidente, foi acompanhado de muitos inconvenientes para o renomado filósofo. Todos os estudantes o abandonaram imediatamente... Seus criados desapareceram. Não tinha ninguém perto de si, nem para manter acesas as chamas sob os frascos, enquanto dormia, ou para cuidar das cores mutáveis de suas poções, enquanto estudava. As experiências fracassavam uma após outra, porque um par de mãos era insuficiente para completá-las: os espíritos das trevas riam dele por não conseguir reter um único mortal a seu serviço. .........Nesse tempo eu era muito jovem, muito pobre, e estava muito apaixonado. Fora aluno de Cornelius durante um ano, embora estivesse ausente quando esse acidente aconteceu. Quando voltei, os amigos imploraram para que não voltasse à residência do alquimista. Tremi ao ouvir a história pavorosa que contaram. Não precisei de segundo aviso. Quando Cornelius veio oferecer-me um prêmio em ouro para que eu ficasse sob seu teto, senti como se o próprio Satanás estivesse me tentando. Meus dentes estalejaram - meu cabelo ficou em pé, e fugi o mais depressa que permitiram meus joelhos trêmulos. .........Meus passos vacilantes dirigiram-se para onde havia dois anos eram atraídos todas as noites - uma fonte de água pura a burburejar docemente, ao lado da qual se demorava uma garota de cabelos escuros, cujos olhos radiantes estavam fixos no caminho que eu costumava percorrer toda noite. Não consigo me lembrar da hora em que eu não amava Bertha; fôramos vizinhos e companheiros de folguedos desde a infância - seus pais, como os meus, eram humildes mas respeitáveis -, e nossa ligação fora motivo de prazer para eles. Em má hora, uma febre maligna levou tanto seu pai como sua mãe, e Bertha ficou órfã. Ela teria encontrado um lar debaixo de meu teto paterno, mas, infelizmente, a velha dama do castelo vizinho, rica, sem filhos e solitária, declarou a intenção de adotá-la. Desde então, Bertha vestia sedas - habitava um palácio de mármore - e era considerada altamente favorecida pela sorte. Mas em sua nova posição, entre novos companheiros, Bertha continuou fiel ao amigo de seus dias mais modestos; freqüentemente visitava a casinha de meu pai e, quando foi proibida de ir lá, caminhava até a floresta vizinha e se encontrava comigo ao lado da fonte sombrosa. .........Com freqüência, declarava que não devia a sua nova protetora nenhuma obrigação tão sagrada quanto a que nos unia. Todavia, eu ainda era pobre demais para casar-me, e ela se cansou de ser atormentada por minha causa. Tinha um espírito altivo mas impaciente e irritava-se com os obstáculos que impediam nossa união. Encontrávamo-nos agora depois de longa ausência, e ela fora extremamente assediada enquanto eu estava fora; queixou-se amargamente e quase me censurou por ser pobre. Retruquei apressadamente: .........- Sou honesto, embora pobre! Se não fosse, poderia em breve ficar rico! .........Essa exclamação provocou mil perguntas. Temi chocá-la confessando a verdade, mas ela a arrancou de mim e, então, lançando- me um olhar de desprezo, disse: .........- Você finge amar e teme enfrentar o Demônio por amor a mim! .........Protestei que apenas temera ofendê-la, enquanto ela insistia na magnitude da recompensa que eu receberia. Assim encorajado - humilhado por ela -, levado por amor e esperança, rindo dos temores que sentira, com passos rápidos e coração leve, voltei para aceitar a oferta do alquimista e imediatamente instalei-me em meu escritório. .........Passou-se um ano. Tornei-me possuidor de uma quantia de dinheiro nada insignificante. O hábito afugentara meus temores. Apesar da mais penosa vigilância, nunca percebera o rastro de uma pata fendida; nem o silêncio consciencioso de nossa residência foi jamais perturbado por uivos demoníacos. Ainda continuava tendo meus encontros furtivos com Bertha e começava a ter Esperança - Esperança -, mas não perfeita alegria, pois Bertha imaginava que o amor e a segurança eram inimigos, e seu prazer era dividi-los em meu peito. Embora sincera de coração, tinha modos um tanto levianos, e eu era ciumento como um turco. Ela me desfeiteava de mil maneiras, mas nunca reconhecia estar errada. Deixava-me louco de raiva e, então, forçava-me a pedir perdão. Às vezes ela imaginava que eu não era submisso o bastante e então vinha com a história de um rival, preferido por sua protetora. Era cercada por jovens bem vestidos, ricos e alegres. Que probabilidade tinha o melancólico aluno de Cornelius de se comparar a eles? .........Uma ocasião, o filósofo tomou tanto de meu tempo, que não pude ir vê-la como estava acostumado. Ele estava ocupado em algum trabalho importante, e fui obrigado a permanecer, dia e noite, alimentando as fornalhas e vigiando as preparações químicas. Em vão Bertha esperou por mim perto da fonte. Seu espírito altivo inflamou-se com essa desconsideração; quando, afinal, saí às escondidas durante os poucos minutos destinados a meu descanso, esperando que ela me consolasse, recebeu-me com desdém, despediu-me com desprezo e jurou que qualquer homem poderia obter sua mão de preferência a quem não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo por amor a ela. Ela seria vingada! E realmente o foi. Em meu lúgubre retiro soube que ela fora caçar, acompanhada por Albert Hoffer, que era o preferido por sua protetora, e os três passaram em cavalgada diante de minha janela enfumaçada. Pareceu-me que mencionaram meu nome, que foi acompanhado por uma risada de zombaria, enquanto ela relanceava desdenhosamente os olhos escuros em direção a minha residência. .........O ciúme, com todo o seu veneno e toda a sua miséria, entrou em meu peito. Ora eu derramava uma torrente de lágrimas pensando que nunca poderia considerá-la minha; dali a pouco lançava mil imprecações por sua inconstância. Contudo, ainda precisava atiçar os fogos do alquimista, ainda precisava cuidar das mudanças em suas porções ininteligíveis. .........Cornelius vigiara três dias e noites, e não fechara os olhos. O progresso em seus alambiques era mais lento do que esperara; apesar da ansiedade, o sono pesava em suas pálpebras. Repetidas vezes afastou a sonolência com força sobre-humana; repetidas vezes ela afastou sua consciência. Ele olhava os cadinhos com melancolia. Ainda não está pronto - murmurava -, será que outra noite se passará antes que o trabalho esteja terminado? Winzy, você está alerta, você é fiel, você dormiu, meu rapaz, dormiu a noite passada. Olhe para aquele frasco. O líquido que contém é de um suave cor-de-rosa; quando começar a mudar de cor, acorde-me, até então posso fechar os olhos. Primeiro se tornará branco; depois emitirá lampejos dourados; mas não espere tanto; quando a cor rosa empalidecer, desperte-me. - Mal ouvi as últimas palavras, pois foram murmuradas já durante o sono. Mesmo então não se entregou completamente à natureza. - Winzy, meu rapaz - repetiu -, não toque o recipiente, não o leve aos lábios; é um filtro, um filtro para curar o amor; você não gostaria de deixar de amar sua Bertha, cuidado, não vá beber! .........E dormiu. Sua cabeça venerável inclinou-se sobre o peito, e eu mal ouvia sua respiração regular. Por alguns minutos observei os recipientes: o matiz rosado do líquido continuava inalterado. Depois meus pensamentos devanearam - visitaram a fonte e alongaram-se em mil cenas encantadoras que nunca se repetiriam, nunca! Serpentes e víboras estavam em meu coração, enquanto a palavra "Nunca!" se formava em meus lábios. Jovem falsa! Falsa e cruel! Nunca mais sorriria para mim como sorrira aquela noite para Albert. Mulher indigna e detestável! Eu não ficaria sem vingança - ela veria Albert expirar a seus pés -, ela morreria sob minha vingança. Sorrira desdenhosa e triunfante; conhecia meu infortúnio e seu próprio poder. Todavia, que poder ela possuía?, o poder de excitar meu ódio -meu desprezo absoluto -, meu... oh, tudo menos a indiferença! Se eu pudesse conseguir isso, se pudesse fitá-la com olhos despreocupados, transferindo meu amor rejeitado para uma jovem mais justa e mais leal, isso constituiria verdadeiramente uma vitória! .........Um clarão dardejou diante de meus olhos. Esquecera-me da poção do iniciado; maravilhado, fitei-a: lampejos de admirável beleza, mais brilhantes do que os emitidos pelo diamante quando recebe os raios do sol, cintilavam na superfície do líquido; senti o mais flagrante e agradável perfume; o frasco parecia um globo resplandecente, adorável aos olhos e convidativo ao paladar. O primeiro pensamento, instintivamente inspirado pelo sentido mais grosseiro, foi: "Quero, preciso beber". Levei o frasco aos lábios. - Curar-me-á do amor, da tortura! - Emborcara metade do mais delicioso líquido jamais provado pelo paladar do homem, quando o filósofo começou a despertar. Sobressaltei-me - derrubei o vidro -, o fluido incendiou-se e espalhou- se pelo chão, enquanto sentia Cornelius apertando meu pescoço e gritando com estridência: - Canalha! Destruiu o trabalho de minha vida! .........O filósofo não se apercebeu de que eu bebera parte de sua poção. Sua idéia, com a qual concordei tacitamente, era que eu erguera o frasco por curiosidade e que, assustado com seu brilho e os clarões de intensa luz que emitia, deixara-o cair. Nunca o desenganei. O incêndio provocado pela poção foi apagado, a fragrância evaporou-se, e ele acalmou-se, como um filósofo deveria fazer nas mais duras provações, e mandou que eu fosse descansar. .........Não tentarei descrever o sono de glória e júbilo que inundou minha alma de felicidade durante as horas que restavam daquela noite memorável. As palavras seriam débeis modelos superficiais de meu prazer, ou da alegria que me invadiu quando acordei. Andava no ar - meus pensamentos estavam no céu. A terra parecia o céu, e a herança que eu deixaria nela seria um rastro de prazer. "Isto é que é estar curado do amor", pensei; "verei Bertha hoje, e ela achará o amado frio e indiferente; feliz demais para ser desdenhoso, porém sentindo completa indiferença por ela!" .........As horas passaram voando. O filósofo, seguro de que fora bem- sucedido uma vez e acreditando que poderia sê-lo nova-mente, começou, mais uma vez, a preparar a mesma poção. Estava ocupado com seus livros e suas drogas, e eu tinha um dia livre. Vesti-me com cuidado; olhei em um escudo antigo, mas muito bem polido, que me servia de espelho; pareceu-me que minha boa aparência melhorara maravilhosamente. Apressei-me para sair fora dos limites da cidade, com alegria na alma e a beleza do céu e da terra ao meu redor. Dirigi os passos para o castelo - podia olhar para suas torres majestosas com o coração leve, pois estava curado do amor. Minha Bertha avistou-me à distância, enquanto eu subia a estrada. Não sei que súbito impulso animou-lhe o peito, mas, quando me viu, desceu os degraus de mármore com a leveza de uma corça e correu em minha direção. Porém, outra pessoa me avistara. A velha bruxa de alta estirpe que se considerava sua protetora, e era sua tirana, também me vira; manquejou ofegante até o terraço; uma pajem, tão feia quanto ela, abanava-a e segurava-lhe a cauda do vestido, enquanto ela se apressava e continha minha bela moça, dizendo: - O que é isso, minha ousada senhora? Aonde vai com tanta pressa? Volte para a gaiola, os gaviões estão à solta! .........Bertha agarrou-lhe as mãos com os olhos ainda voltados para mim. Percebi a disputa. Como eu execrava a velha encarquilhada que impedia os bondosos impulsos do coração de minha Bertha! Até então, o respeito por sua posição fizera com que eu evitasse a dama do castelo. Agora desdenhava essa fútil consideração. Estava curado do amor e alçava-me acima de todos os temores humanos; adiantei-me rapidamente e logo alcancei o terraço. Como Bertha estava adorável! Com olhos faiscantes, as faces afogueadas de raiva e impaciência, estava mil vezes mais graciosa e encantadora do que nunca. Eu não a amava mais, oh, não! Eu a adorava, venerava, idolatrava! .........Aquela manhã ela fora atormentada com mais do que a costumeira veemência, para que consentisse em casar-se imediatamente com meu rival. Foi repreendida pelo encorajamento que lhe demonstrara, foi ameaçada de ser posta na rua em desgraça e vergonha. Seu espírito orgulhoso rebelou-se com a ameaça; mas quando se lembrou do desprezo com que me cumulara e como, talvez, com isso perdera quem agora considerava seu único amigo, chorou de remorso e raiva. Cheguei nesse momento. - Oh, Winzy! - exclamou -, leve-me para a casa de sua mãe; quero abandonar rapidamente o luxo e a baixeza detestáveis desta nobre moradia, leve-me à pobreza e à felicidade. .........Apertei-a nos braços com arrebatamento. A velha senhora perdeu a fala de ódio e prorrompeu em insultos somente quando estávamos longe, a caminho de minha casa. Minha mãe recebeu a bela fugitiva, que escapara de uma gaiola dourada para a natureza e a liberdade, com ternura e alegria; meu pai, que gostava muito dela, deu-lhe cordialmente as boas-vindas; foi um dia de regozijo, que não precisou do acréscimo da poção celestial do alquimista para saturar-me de prazer. .........Logo depois desse dia agitado, tornei-me o marido de Bertha. Deixei de ser aluno de Cornelius, mas continuei seu amigo. Sempre lhe fui grato por ter, involuntariamente, me proporcionado aquele delicioso gole de um elixir divino que, em vez de me curar do amor (triste cura, solitário e melancólico remédio para males que são lembrados como bênçãos), inspirara-me coragem e resolução, conseguindo-me assim um tesouro inestimável em minha Bertha. .........Muitas vezes lembrei-me com assombro daquele período de embriaguez extasiante. A poção de Cornelius não realizara a tarefa para a qual ele afirmara tê-la preparado, mas seus efeitos foram mais potentes e ditosos do que as palavras conseguem expressar. Os efeitos haviam fenecido aos poucos - contudo duraram bastante -, e pintaram a vida com cores esplendorosas. Freqüentemente Bertha se admirava de minha leveza de coração e alegria desacostumada, pois antes eu fora um tanto sério, triste mesmo, em minha disposição. Ela me amava mais por meu temperamento animado, e nossos dias eram cheios de alegria. .........Cinco anos mais tarde, fui subitamente chamado à cabeceira de Cornelius, que estava à morte. Chamara-me às pressas, implorando minha presença imediata. Encontrei-o estirado na cama, morrendo de fraqueza; toda a vida que lhe restava animava seus olhos penetrantes, fixos em um recipiente de vidro, cheio de um líquido rosado. .........- Olhe - disse ele com voz cava e entrecortada -, a vaidade dos desejos humanos! Pela segunda vez minhas esperanças estão para ser realizadas, pela segunda vez são destruídas. Olhe aquele líquido; lembra-se de que, cinco anos atrás, preparei o mesmo líquido, com idêntico sucesso? Então, como agora, meus lábios sequiosos esperavam provar o elixir imortal, mas você frustrou minhas esperanças! E agora é tarde demais. .........Falou com dificuldade e caiu sobre o travesseiro. Não pude deixar de dizer: .........- Como, venerando mestre, pode uma cura para o amor devolver- lhe a vida? Um débil sorriso brilhou em seu rosto e ouvi atentamente sua resposta que mal dava para entender. .........- Cura para o amor e para tudo, o Elixir da Imortalidade. Ah!, se agora eu pudesse beber, viveria para sempre! Enquanto falava, um clarão dourado cintilou no fluido; uma fragrância bem lembrada inundou o ar; levantou-se, fraco como estava - a força pareceu voltar milagrosamente a seu corpo -, estendeu a mão - uma forte explosão sobressaltou-me -, e um raio de fogo saltou do elixir e o frasco de vidro que o continha despedaçou-se! Voltei os olhos para o filósofo; ele caíra para trás - seus olhos estavam vidrados, suas feições, rígidas -, estava morto! .........Mas eu vivia, e iria viver para sempre! Assim dissera o infortunado alquimista e, durante alguns dias, acreditei em suas palavras. Lembrei-me da gloriosa embriaguez que se seguira a meu gole roubado. Pensei na mudança que sentira no corpo, na alma. A palpitante elasticidade de um, a animada leveza da outra. Olhei-me no espelho e não pude perceber nenhuma mudança em minha fisionomia durante os cinco anos que se ha viam passado. Lembrei-me das cores radiantes e do agradável perfume daquela deliciosa bebida, digna da dádiva que era capaz de conceder - então, eu era IMORTAL! .........Alguns dias depois ri de minha credulidade. O antigo provérbio: "Ninguém é profeta em sua própria terra", era verdade no que dizia respeito a mim e a meu falecido mestre. Amava-o como homem - respeitava-o como sábio -, mas ridicularizava a idéia de que ele pudesse dominar os poderes das trevas e ria do medo supersticioso que o povo lhe tinha. Era um sábio filósofo, mas não conhecia nenhum espírito, exceto os de carne e osso. Sua ciência era humana apenas; e logo me persuadi de que a ciência humana nunca conseguiria conquistar as leis da natureza a ponto de aprisionar a alma para sempre dentro de sua habitação carnal. Cornelius preparara uma bebida que refrescava a alma - mais inebriante que o vinho -, mais doce e mais perfumada do que qualquer fruta: provavelmente possuía fortes poderes medicinais, transmitindo alegria ao coração e vigor aos membros; mas seus efeitos passariam; já haviam diminuído em meu corpo. Eu era um sujeito de sorte por ter bebido espíritos de saúde e alegria, e talvez de longa vida, nas mãos de meu mestre; mas minha boa sorte terminava aí: longevidade era muito diferente de imortalidade. .........Continuei a manter essa crença por muitos anos. Às vezes um pensamento me ocorria: estaria o alquimista verdadeiramente enganado? Mas minha crença costumeira era a de que eu teria a mesma sina de todos os filhos de Adão, quando chegasse minha hora - um pouco tarde, mas ainda em uma idade natural. Contudo, era indiscutível que eu conservava uma aparência maravilhosamente jovem. Riam de mim, por causa de minha vaidade em consultar o espelho com tanta freqüência, mas eu o consultava em vão - minha fronte não tinha rugas, minhas faces, meus olhos, toda a minha pessoa continuava com a aparência imaculada de meus vinte anos. ......... Eu me preocupava. Olhava a beleza decadente de Bertha - eu mais parecia seu filho. Aos poucos nossos vizinhos começaram a fazer observações semelhantes e, por fim, descobri que meu apelido era o Estudante Encantado. A própria Bertha começou a ficar apreensiva. Tornou-se ciumenta e rabugenta e, finalmente, começou a interrogar- me. Não tínhamos filhos; éramos tudo um para o outro; e, embora, à medida que envelhecia, seu espírito vivaz se misturasse um pouco ao mau humor e sua beleza decaísse tristemente, eu a considerava do fundo do coração como a amada que eu idolatrara, a esposa que eu procurara e que conquistara com um amor tão perfeito. .........Por fim nossa situação tornou-se intolerável: Bertha tinha cinqüenta anos, eu, vinte. Com certa moderação, eu adotara, de pura vergonha, os hábitos de uma idade mais avançada: não acompanhava mais a dança entre os jovens alegres, mas meu coração saltitava com eles enquanto eu refreava os pés; e fazia triste figura entre os patriarcas de nossa aldeia. Porém, antes da época que mencionei, as coisas se alteraram - éramos completamente evitados; pelo menos eu fui acusado de ter mantido um relacionamento iníquo com alguns dos supostos amigos de meu antigo mestre. Lamentavam a pobre Bertha, mas fugiam dela. Tinham horror e aversão a mim. .........O que podíamos fazer? Sentávamo-nos ao pé da lareira, a pobreza se fizera sentir, pois ninguém queria comprar os produtos de minha fazenda e freqüentemente eu era forçado a viajar quilômetros até um lugar onde não fosse conhecido para vender nossos bens. É verdade, economizáramos alguma coisa para um mau dia - esse dia chegara. .........Sentávamo-nos ao pé de nossa lareira solitária - o jovem de coração envelhecido e a esposa velha. Mais uma vez Bertha insistiu em saber a verdade: recapitulou tudo o que ouvira sobre mim e acrescentou suas próprias observações. Esconjurou-me a que rejeitasse o encantamento; descreveu como cabelos grisalhos eram muito mais bonitos do que minhas madeixas castanhas; discorreu sobre a reverência e o respeito devido à idade - como eram preferíveis à consideração insignificante prestada a simples crianças: imaginava eu que os desprezíveis dons da juventude e da bela aparência prevaleceriam sobre a desgraça, o ódio e o desprezo? Não, no final eu seria queimado como adepto da magia negra, enquanto ela, a quem eu não me dignara comunicar uma parte de minha boa sorte, talvez fosse apedrejada como cúmplice. Por fim, insinuou que eu devia partilhar meu segredo com ela e conceder-lhe benefícios semelhantes aos de que eu gozava ou ela me denunciaria - e então desfez-se em lágrimas. .........Assediado dessa maneira, pareceu-me melhor contar a verdade. Revelei-a o mais ternamente que pude e falei somente de uma vida muito longa, não de imortalidade - imagem que, realmente, melhor coincidia com minhas próprias idéias. Quando terminei, levantei-me e disse: .........- E agora, minha Bertha, vai denunciar o amor de sua juventude? Não vai, eu sei. Mas é duro demais, minha pobre esposa, que você deva sofrer com minha má sorte e as artes malditas de Cornelius. Vou deixá- la. Você tem riqueza suficiente, e com minha ausência os amigos voltarão. Partirei; jovem como pareço e forte como sou, posso trabalhar e ganhar o pão entre estranhos, insuspeito e desconhecido. Amei-a na juventude; Deus é testemunha de que não a abandonaria na velhice, a não ser que sua segurança e felicidade o exigissem. .........Peguei meu gorro e fui andando até a porta; no mesmo instante, os braços de Bertha rodearam-me o pescoço e seus lábios comprimiram os meus. - Não, meu marido, meu Winzy - disse -, você não irá sozinho, leve-me com você, sairemos deste lugar e, como você mesmo diz, entre estranhos estaremos seguros e livres de suspeita. Não sou tão velha a ponto de envergonhá-lo, meu Winzy, e suponho que o encanto logo desaparecerá, e, com a bênção de Deus, você parecerá mais velho, como convém; você não vai me deixar. .........Retribuí calorosamente o abraço da boa alma. - Não vou, minha Bertha; se não fosse por você eu não teria pensado em uma coisa dessas. Serei seu fiel e verdadeiro marido enquanto você não me for tirada e cumprirei minhas obrigações para com você até o fim. .........No dia seguinte preparamo-nos secretamente para emigrar. Fomos obrigados a fazer grandes sacrifícios pecuniários, isso não pôde ser evitado. Conseguimos uma soma suficiente para nos mantermos pelo menos enquanto Bertha vivesse; e, sem nos despedirmos de ninguém, deixamos nossa terra natal e nos refugiamos em uma parte remota da França ocidental. ......... Foi desumano afastar Bertha da aldeia natal e dos amigos da juventude para um novo país, nova língua, novos costumes. O estranho segredo de meu destino tornou essa mudança insignificante para mim; mas tinha muita pena dela e fiquei contente ao perceber que ela achava compensação para suas desgraças em várias pequenas circunstâncias ridículas. Longe de todos os cronistas linguarudos, procurava diminuir a evidente disparidade entre nossas idades com mil artifícios femininos, ruge, roupas juvenis e adoção dos modos da juventude. Não podia zangar-me. Eu próprio não usava máscara? Por que brigar com a dela só porque era menos bem-sucedida? Sofria profundamente quando me lembrava de que essa era minha Bertha, que eu amara tanto e conquistara com tanta emoção - a garota de olhos e cabelos escuros, com sorrisos de encantadora brejeirice e o andar de uma corça -, essa velha ciumenta, afetada e pernóstica. Deveria reverenciar suas madeixas grisalhas e suas faces murchas; mas assim! Era minha culpa, eu sabia; mas nem por isso deplorava menos esse tipo de fraqueza humana. .........Seu ciúme nunca descansava. Sua principal ocupação era descobrir que, apesar das aparências, eu estava ficando velho. Na verdade, acredito que a pobre alma amava-me do fundo de seu coração, mas mulher alguma jamais teve uma forma tão cruel de demonstrar afeição. Ela percebia rugas em meu rosto e decrepitude em meu andar, enquanto eu saltitava com vigor juvenil, parecendo o mais novo entre vinte jovens. Nunca ousei dirigir-me a outra mulher. Uma ocasião, imaginando que a beldade da aldeia me olhava com agrado, trouxe-me uma peruca grisalha. O tema das constantes conversas com as conhecidas era sobre a decadência que já estava atacando meu corpo, embora eu parecesse tão jovem, e ela afirmava que o pior sintoma era minha saúde aparente. Minha juventude era uma doença, dizia, e eu devia sempre estar preparado, quando não para a morte súbita e medonha, pelo menos para acordar uma manhã com cabelos brancos e curvado, com todas as marcas de uma idade avançada. Eu a deixava falar - freqüentemente tomava parte em suas conjeturas. Suas advertências harmonizavam-se com minhas incessantes especulações a respeito de meu estado, e eu tinha um interesse fervoroso, embora dolorido, em ouvir tudo o que sua sagacidade e sua imaginação excitada pudessem dizer sobre o assunto. .........Por que insistir nesses detalhes? Vivemos ainda por muitos longos anos. Bertha ficou acamada e paralítica. Cuidei dela como a mãe cuida do filho. Tornou-se rabugenta e ainda batia na mesma tecla - quanto tempo eu sobreviveria a ela. E sempre uma fonte de consolo para mim o fato de ter cumprido escrupulosamente minhas obrigações para com ela. Fora minha na juventude, foi minha na velhice; e, por fim, quando cobri de terra seu cadáver, chorei, ao sentir que perdera tudo o que realmente me ligava à humanidade. .........Desde então, quantos têm sido meus cuidados e pesares, quão poucos e vazios meus prazeres! Aqui interrompo minha história - não a continuarei mais. Um marinheiro sem leme ou compasso, debatendo- se em um mar tempestuoso - um viajante perdido em um vasto deserto, sem um ponto de referência ou uma rocha para guiá-lo -, assim tenho sido: mais perdido, mais desesperado do que ambos. Um navio que se aproxima, a luz de uma casinha distante podem salvá-los; mas eu não tenho nenhum farol, exceto a esperança da morte. .........Morte! Misteriosa e mal-encarada amiga da fraca humanidade! Por que, sozinho, entre todos os mortais, só eu fui expulso de seu redil protetor? Oh, pela paz da sepultura! O profundo silêncio do túmulo de ferro! Que o pensamento cessasse de agir em meu cérebro, e meu coração não mais batesse com emoções diferençadas apenas por novas formas de tristeza! .........Sou imortal? Volto à minha primeira pergunta. Em primeiro lugar, não seria mais provável que a poção do alquimista estivesse antes carregada de longevidade do que de vida eterna? Essa é minha esperança. E, então, seja lembrado que só bebi a metade da poção preparada por ele. Não seria toda ela necessária para completar o encanto? Ter consumido metade do Elixir da Imortalidade é ser apenas meio imortal - meu "para sempre" fica assim truncado e nulo. .........Mas, novamente, quem contará os anos da metade da eternidade? Freqüentemente tento imaginar por qual regra o infinito pode ser dividido. Às vezes imagino a idade avançando sobre mim. Já achei um fio de cabelo grisalho. Tolo! Lamento? Sim, o medo da idade e da morte com freqüência insinua-se friamente em meu coração; e quanto mais vivo, mais temo a morte, mesmo enquanto tenho horror à vida. Tamanho enigma é o homem - nascido para morrer -, quando luta, como eu, contra todas as leis estabelecidas de sua natureza. .........Se não fosse por essa anomalia de sentimentos, certamente eu poderia morrer; o remédio do alquimista não seria à prova de fogo - da espada e das águas sufocantes. Fito as profundezas azuis de muitos lagos calmos e a correnteza turbulenta de muitos rios possantes e digo: - A paz habita essas águas; - contudo, desvio meus passos para viver ainda outro dia. Pergunto-me se o suicídio seria um crime para alguém que só assim poderia ter abertas as portas do outro mundo. Tenho feito tudo, exceto apresentar-me como soldado ou duelista, uma objeção à destruição de meus... não, eles não são meus companheiros mortais, e, por esse motivo, tenho me esquivado. Não são meus companheiros. A força inextinguível da vida em meu corpo, e a efêmera existência deles, separa-nos tanto quanto os pólos distantes. Eu não poderia levantar um dedo contra o mais insignificante ou o mais poderoso deles. .........Assim tenho continuado a viver por muitos anos, sozinho e cansado de mim mesmo - desejando a morte, contudo não morrendo nunca -, mortal imortal. Nem ambição nem avareza podem entrar em meus pensamentos, e o amor ardente que atormenta meu coração, sem nunca ser retribuído - nunca achar um igual em quem se consumir -, ali vive somente para me atormentar. .........Hoje mesmo concebi um plano pelo qual posso terminar bem - sem suicídio, sem fazer de outro homem um Caim -, uma expedição a que o corpo mortal não pode jamais sobreviver, mesmo dotado da juventude e da força que habitam o meu. Assim, testarei minha imortalidade e descansarei para sempre - ou voltarei, prodígio e benfeitor da espécie humana. .........Antes de partir, uma vaidade desprezível fez-me redigir estas páginas. Não gostaria de morrer sem deixar um nome para trás. Três séculos se passaram desde que emborquei a bebida fatal; outro ano não se passará antes que, enfrentando perigos gigantescos, lutando com as forças do frio intenso em sua própria casa, acossado pela fome, pela fadiga e pela tempestade, eu entregue aos elementos destruidores do ar e da água este corpo, jaula persistente demais para uma alma que tem sede de liberdade; ou, se sobreviver, meu nome será lembrado como um dos mais famosos entre os filhos dos homens; e, cumprida minha tarefa, adotarei meios mais decididos; e, espalhando e aniquilando os átomos que compõem meu corpo, libertarei a vida presa dentro dele e tão cruelmente impedida de elevar-se desta terra obscura para uma esfera mais apropriada à sua essência imortal.